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cadernos temáticos CRP SP


Patologização e medicalização
das vidas: reconhecimento
e enfrentamento - parte 1
Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região - CRP 06

33
cadernos temáticos CRP SP
Patologização e medicalização
das vidas: reconhecimento
e enfrentamento - parte 1

CRP 06 · São Paulo · 2019 · 1ª Edição


Caderno Temático n° 33 – Patologização e medicalização das vidas: reconhecimento e enfrentamento -
parte 1

XV Plenário (2016-2019)

Diretoria
Presidenta | Luciana Stoppa dos Santos
Vice-presidenta | Larissa Gomes Ornelas Pedott
Secretária | Suely Castaldi Ortiz da Silva
Tesoureiro | Guilherme Rodrigues Raggi Pereira

Conselheiras/os
Aristeu Bertelli da Silva (Afastado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Beatriz Borges Brambilla
Beatriz Marques de Mattos
Bruna Lavinas Jardim Falleiros (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Clarice Pimentel Paulon (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Ed Otsuka
Edgar Rodrigues
Evelyn Sayeg (Licenciada desde 20/10/2018 - PL 2051ª de 20/10/18)
Ivana do Carmo Souza
Ivani Francisco de Oliveira
Magna Barboza Damasceno
Maria das Graças Mazarin de Araújo
Maria Mercedes Whitaker Kehl Vieira Bicudo Guarnieri
Maria Rozineti Gonçalves
Maurício Marinho Iwai (Licenciado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Mary Ueta
Monalisa Muniz Nascimento
Regiane Aparecida Piva
Reginaldo Branco da Silva
Rodrigo Fernando Presotto
Rodrigo Toledo
Vinicius Cesca de Lima (Licenciado desde 07/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)

Organização do caderno
Lucia Masini, Rosangela Villar, Maria Rozineti Gonçalves e Lilian Suzuki

Revisão ortográfica
Lucia Masini

Projeto gráfico e editoração


Paulo Mota | Relações Externas CRP SP

___________________________________________________________________________
C755p Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
Psicologia, direitos humanos e pessoas com deficiência. Conselho Regional de
Psicologia de São Paulo. - São Paulo: CRP SP, 2019.
52 p.; 21x28cm. (Cadernos Temáticos CRP SP /nº 29)

ISBN: 978-85-60405-53-4

1. Psicologia e Pessoas com Deficiência. 2. Direitos das Pessoas com


Deficiência. 3. Direitos Humanos. 4. Rede de Atendimento às Pessoas com
Deficiência. 5. Direitos às Acessibilidades de Pessoas com Deficiência. I. Título

CDD 157.8
__________________________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Marcos Toledo CRB8/8396
Cadernos Temáticos do CRP SP
Desde 2007, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo inclui, entre as
ações permanentes da gestão, a publicação da série Cadernos Temáticos do
CRP SP, visando registrar e divulgar os debates realizados no Conselho em
diversos campos de atuação da Psicologia.

Essa iniciativa atende a vários objetivos. O primeiro deles é concretizar


um dos princípios que orientam as ações do CRP SP, o de produzir referências
para o exercício profissional de psicólogas/os; o segundo é o de identificar
áreas que mereçam atenção prioritária, em função de seu reconhecimento
social ou da necessidade de sua consolidação; o terceiro é o de, efetivamente,
ser um espaço para que a categoria apresente suas posições e questiona-
mentos acerca da atuação profissional, garantindo, assim, a construção co-
letiva de um projeto para a Psicologia que expresse a sua importância como
ciência e como profissão.

Esses três objetivos articulam-se nos Cadernos Temáticos de maneira


a apresentar resultados de diferentes iniciativas realizadas pelo CRP SP, que
contaram com a experiência de pesquisadoras/es e especialistas da Psicolo-
gia para debater sobre assuntos ou temáticas variados na área. Reafirmamos
o debate permanente como princípio fundamental do processo de democrati-
zação, seja para consolidar diretrizes, seja para delinear ainda mais os cami-
nhos a serem trilhados no enfrentamento dos inúmeros desafios presentes
em nossa realidade, sempre compreendendo a constituição da singularidade
humana como um fenômeno complexo, multideterminado e historicamente
produzido. A publicação dos Cadernos Temáticos é, nesse sentido, um convite
à continuidade dos debates. Sua distribuição é dirigida a psicólogas/os, bem
como aos diretamente envolvidos com cada temática, criando uma oportuni-
dade para a profícua discussão, em diferentes lugares e de diversas maneiras,
sobre a prática profissional da Psicologia.

Este é o 33º Caderno da série. Seu tema é: Patologização e medicalização


das vidas: reconhecimento e enfrentamento - parte 1.

Outras temáticas e debates ainda se unirão a este conjunto, trazendo


para o espaço coletivo informações, críticas e proposições sobre temas rele-
vantes para a Psicologia e para a sociedade.

A divulgação deste material nas versões impressa e digital possibilita


ampla discussão, mantendo permanentemente a reflexão sobre o compro-
misso social de nossa profissão, reflexão para a qual convidamos a todas/os.

XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo


Os Cadernos já publicados podem ser consultados em www.crpsp.org.br:

1 – Psicologia e preconceito racial


2 – Profissionais frente a situações de tortura
3 – A Psicologia promovendo o ECA
4 – A inserção da Psicologia na saúde suplementar
5 – Cidadania ativa na prática
5 – Ciudadanía activa en la práctica
6 – Psicologia e Educação: contribuições para a atuação profissional
7 – Nasf – Núcleo de Apoio à Saúde da Família
8 – Dislexia: Subsídios para Políticas Públicas
9 – Ensino da Psicologia no Nível Médio: impasses e alternativas
10 – Psicólogo Judiciário nas Questões de Família
11 – Psicologia e Diversidade Sexual
12 – Políticas de Saúde Mental e juventude nas fronteiras psi-jurídicas
13 – Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade
14 – Contra o genocídio da população negra: subsídios técnicos e teóricos para Psicologia
15 – Centros de Convivência e Cooperativa
16 – Psicologia e Segurança Pública
17 – Psicologia na Assistência Social e o enfrentamento da desigualdade social
18 – Psicologia do Esporte: contribuições para a atuação profissional
19 – Psicologia e Educação: desafios da inclusão
20 – Psicologia Organizacional e do Trabalho
21 – Psicologia em emergências e desastres
22 – A quem interessa a “Reforma” da Previdência?: articulações entre a psicologia e os direitos das trabalhadoras e trabalhadores
23 – Psicologia e o resgate da memória: diálogos em construção
24 – A potência da psicologia obstétrica na prática interdisciplinar: uma análise crítica da realidade brasileira
25 – Psicologia, laicidade do estado e o enfrentamento à intolerância religiosa
26 – Psicologia, exercício da maternidade e proteção social
27 – Nossa luta cria: enfrentar as desigualdades e defender a democracia é um dever ético para a Psicologia
28 – Psicologia e precarização do trabalho: subjetividade e resistência
29 – Psicologia, direitos humanos e pessoas com deficiência
30 – Álcool e outras drogas: subsídios para sustentação da política antimanicomial e de redução de danos
31 – Psicologia e justiça: interfaces
32 – Conversando sobre as perspectivas da educação inclusiva para pessoas com Transtorno do Espectro Autista
Sumário

07 Introdução
Núcleo de Educação e Medicalização do CRP SP

Despatologizar é possível

09 Livia Rech de Castro

14 Andreia de Jesus

20 Adriana Marcondes Machado

24 Maria Aparecida Affonso Moysés

Subverter o olhar, inventar possibilidades e


enfrentar desigualdades

31 Maria Teresa Esteban

36 João Paulo Faustinoni

41 Juliana Garrido Pereira - Participação da plateia

Na contramão da patologização

49 Maria Aparecida Affonso Moysés

50 Rogério Giannini

51 Leonardo Pinho

52 Paulo Amarante

54 Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto

55 Rosangela Villar
Processos de avaliação numa perspectiva
despatologizante

56 Rossano Cabral Lima

63 Carla Biancha Angelucci

69 Cláudia Rodrigues de Freitas

73 Participação da plateia

Subvertendo Laudos

78 Adriana Marcondes Machado

85 Fernando Cesar Chacra

90 Antônio Moreira Lima Júnior

97 Participação da plateia
Introdução 7

Núcleo de Educação e Medicalização do CRP SP

- parte 1
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Temática fundamental que merece reflexão e tem como consequência a patologização, em
construção de ações de enfrentamento tanto especial de crianças e adolescentes nas esco-
nos aspectos ligados diretamente à Educação, las. Estes PLs são reeditadas sistematicamente
quanto à vida das pessoas. nas casas legislativas e merecem total atenção

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
e articulação do Sistema Conselhos, de profis-
O CRP SP tem essa diretriz fruto de deli-
sionais da categoria e outros – ligados ou não

Cadernos Temáticos
berações de nossos COREPs e CNPs, há várias
à Educação e representantes do Legislativo.
gestões e o presente Caderno Temático traz à
Estes PLs geralmente tem a temática ligada a
categoria e à sociedade debates, palestras e
supostos transtornos de aprendizagem, como

Patologização
conferências que o Conselho organizou, apoiou
a dislexia e o TDAH, mas podem também atin-
ou foi parceiro, na gestão 2016 a 2019.
gir outros temas, que medicalizam, patologizam
Entendendo a medicalização/patologiza- e judicializam – como a manicomialização, as
ção da educação e da vida como um processo/ questões étnico-raciais e de gênero, o abuso de
atitude que transforma, artificialmente, ques- cesáreas no Brasil, o parto desumanizado, a cri-
tões não médicas em médicas, com aspectos minalização de crianças e adolescente, via redu-
da vida - de diferentes ordens - sendo trans- ção da maioridade penal, dentre outras pautas.

Cadernos Temáticos CRP SP


formados em “doenças”, “transtornos”, “distúr-
Dada à abrangência do fenômeno e às
bios”; questões coletivas olhadas como indivi-
consequências desastrosas para a vida das
duais; e problemas sociais e políticos, tornados
pessoas, é fundamental que o CRP produza po-
biológicos; e, tendo como uma das consequên-
sicionamentos e documentos de referência que
cias, a manutenção da des-responsabilização
auxiliem a categoria a identificar criticamente
de pessoas, instituições e governos por esta
práticas patologizantes, medicalizantes e judi-
situação de sofrimento, discriminação e exclu-
cializantes; e, que continue apoiando este en-
são – reafirma-se a necessidade do Conselho
frentamento em todas as formas possíveis.
atuar na temática.
É importante salientar que a partir da prá-
O CRP, via Núcleo de Educação e Medica-
tica despatologizante de profissionais em di-
lização e em parceria com o Fórum sobre Medi-
ferentes setores e de sua efetiva participação
calização da Educação e da Sociedade e o Des-
crítica em espaços de construção de políticas
patologiza - Movimento pela Despatologização
públicas e de controle social, alguns frutos vêm
da Vida, vem realizando e apoiando eventos
sendo colhidos. O protocolo do metilfenidato,
que discutem como enfrentar esses processos.
implantado em Campinas/SP, como uma expe-
As principais ações tem sido dar visibili- riência pioneira; sua implantação em forma de
dade ao 11 de Novembro – Dia Nacional de En- Portaria no município de São Paulo/SP; a cons-
frentamento à Medicalização da Educação e da trução de protocolos – em andamento – em
Sociedade, promover debates, posicionamentos muitos municípios, dentro e fora do estado de
e acompanhar os Projetos de Lei - PLs - que São Paulo; as Recomendações do Ministério da
Saúde para adoção de práticas não medicali- Organização, apoio e parceria de eventos
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zantes e para adoção de protocolos estaduais sobre o tema se tornam fundamentais.
e municipais de dispensação do metilfenidato
Tendo este projeto como eixo estruturan-
para prevenir a excessiva medicação de crian-
te, a organização deste Caderno Temático é
ças e adolescentes; e a divulgação à todas as
mais uma forma de lidar com a temática. Sele-
unidades educacionais do país destas Reco-
cionamos materiais gravados de eventos orga-
mendações pelo Ministério da Educação (MEC)
nizados ou apoiados pelo CRP e os movimentos
por meio da Secretaria de Educação Básica
contra a patologização e a medicalização da
(SEB) e da Secretaria de Educação Continuada,
sociedade e/ou pelo legislativo.
Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI)
são exemplos destes frutos. Mas ainda há mui- Nesta primeira parte, em ordem de reali-
to a se construir. zação, temos os seguintes materiais para enri-
quecer nossas reflexões e práticas:
Alguns objetivos precisam ser buscados
de forma sistemática pelo CRP: • Evento VII Despatologiza: Despatologizar di-
ferenças, enfrentar dificuldades, realizado na
a. Promover discussões junto aos movi-
Faculdade de Educação da UNICAMP. Mesa
mentos sociais sobre o tema da medica-
Despatologizar é possível. Data: 10/10/2017;
lização e da patologização, envolvendo
profissionais da assistência social, da • Evento VII Despatologiza: Despatologizar di-
saúde, da educação, do sistema de justi- ferenças, enfrentar dificuldades, realizado na
ça, das ciências humanas, estudantes de Faculdade de Educação da UNICAMP. Mesa
psicologia e segmentos sociais afins, in- Subverter o olhar, inventar possibilidades e en-
cluindo a construção e divulgação de prá- frentar desigualdades. Data: 10/10/2017;
ticas psicológicas não medicalizantes;
• Evento VIII Despatologiza: Na contramão da
b. Manter o compromisso com: Patologização, realizado no Auditório da Fa-
culdade de Ciências Médicas da UNICAMP.
a Resolução 177/2015, do CONANDA,
Mesa de abertura e Mesa Processos de Ava-
que dispõem sobre o direito de crian-
liação numa perspectiva despatologizante.
ças e adolescentes de não serem sub-
Data 19/09/2018;
metidos à excessiva medicalização;
• Evento VIII Despatologiza: Na contramão da
a Recomendação Mercosul/XXVI
Patologização, realizado no Auditório da Fa-
RAADH/P nº 1/2015, de 6 de julho de
culdade de Ciências Médicas da UNICAMP.
2015, que afirma a importância de ga-
Mesa Subvertendo Laudos. Data: 20/09/2018.
rantir o direito de crianças e adoles-
centes a não serem excessivamente Esperamos que aproveitem.
medicados e recomenda o estabeleci-
mento de diretrizes e protocolos clíni-
cos sobre o tema;

as Recomendações do Ministério da
Saúde para a adoção de práticas não
medicalizantes, de 1 de outubro de 2015;

e a Recomendação nº 19 do Conselho
Nacional de Saúde, de 8 de outubro de
2015, que recomenda ao Ministério e
Secretarias de Saúde a promoção de
práticas não medicalizantes,

c. Elaborar, de forma descentralizada nas


subsedes, pilares de apoio à categoria e
a profissionais de diferentes áreas que
forneçam informações e programas re-
lacionados à compreensão do fenômeno
da medicalização e seu enfrentamento.
Despatologizar é possível 9

Livia Rech de Castro

- parte 1
Psicóloga formada pela PUC Campinas, especialista em clínica analítico comportamental

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
e mestre pelo Programa de Mestrado Profissional em Análise do Comportamento
Aplicado; atua no Centro de Educação Especial Síndrome de Down em Campinas, com

e enfrentamento
pesquisa, intervenção e inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento
É um prazer e uma honra estar aqui, queria
agradecer muito o convite do Despatologiza em “Falamos em inclusão porque
parceria com o CRP. Venho propor alguns ques-
tionamentos sobre inclusão no trabalho como
ainda há exclusão”

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
um caminho para o olhar despatologizante. Atu-
almente, estou na área de inclusão de pesso- pessoas com deficiência. Com quantas pessoas

Cadernos Temáticos
as com deficiência principalmente no mercado com deficiência convivemos no nosso dia a dia
de trabalho. Atuo no CEESD, que é uma insti- especificamente? Como a deficiência ainda é vista
tuição, em Campinas, que atende pessoas com em relação às diferenças do ser humano?

Patologização
Síndrome de Down, desde o nascimento até o
Falamos em inclusão porque ainda há exclu-
envelhecimento. Trabalho especificamente no
são. Historicamente, pessoas que apresentaram
programa da vida adulta, atendendo jovens e
alguma diferença foram marginalizadas na socie-
adultos, a partir dos 16 até o envelhecimento,
dade, além de serem alvo das mais diversas estra-
visando a inclusão no trabalho.
tégias de violência simbólica, preconceito e efetiva-
Quero articular a discussão da inclusão no mente exclusão. Na Idade Antiga, as crianças com

Cadernos Temáticos CRP SP


trabalho no campo da despatologização. Vamos deficiência eram consideradas subumanas e, por
iniciar com um questionamento. Por que pensar isso, abandonadas. Na Idade Média, a deficiência
em inclusão no trabalho? era encarada como uma questão demoníaca, como
um castigo divino. Depois, com a influência da dou-
O trabalho é parte da nossa identifica- trina cristã, as instituições de caridade acolhiam
ção. Pensando no nosso dia a dia, na nossa ro- essas pessoas, embora continuassem sendo mar-
tina, quando vamos nos apresentar, conhecer ginalizadas. Vamos pensar o quanto essa história
alguém, geralmente falamos o nosso nome e ainda se faz presente no nosso dia a dia, o quanto
o que fazemos. Então, o trabalho faz parte da isso ainda está enraizado no nosso dia a dia.
nossa identificação, da nossa identidade. O tra-
É importante retomar a convenção so-
balho é também uma oportunidade de acesso
bre os direitos da pessoa com deficiência para
aos bens disponíveis no mundo, e, quando tra-
pensarmos na definição da deficiência e na de-
balhamos, conhecemos pessoas, temos nosso
finição do conceito de pessoa com deficiência.
salário que nos oportuniza acessar bens dispo-
A convenção foi um tratado internacional cons-
níveis no mundo. Podemos pensar também no
truído por pessoas com deficiência. Isso é mui-
trabalho como uma ferramenta de construção
to importante de saber, pois constantemente
social através de nossa profissão. Daí a impor-
pregamos o lema “nada sobre nós sem nós” e
tância de por que pensar no trabalho.
não faz sentido falarmos do direito das pessoas
E a inclusão, especificamente, por que falar com deficiência sem tê-las discutindo conosco.
disso? Vamos pensar inicialmente num contingen- A convenção foi incorporada na legislação bra-
te populacional e na convivência que temos com sileira, ela é uma emenda de valor constitucio-
nal. Ela propõe principalmente a alteração desse Ainda mais atual, temos a Lei Brasileira de
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modelo reabilitador médico para o modelo social. Inclusão, Lei 13.146, também conhecida como Es-
Como Biancha Angelucci apontou anteriormente, tatuto da Pessoa com Deficiência, em vigor desde
precisamos pensar na deficiência a partir da in- janeiro do ano passado. Ela é baseada na Conven-
teração entre a pessoa com suas características ção da ONU, citada anteriormente, e organiza e
e o ambiente e, consequentemente, pensar nas atualiza, em uma única lei, vários decretos e por-
barreiras que essa pessoa encontra ao longo de tarias para compor todos os direitos da pessoa
sua vida, de seu cotidiano. Acho essencial essa com deficiência. Um outro ponto importante da Lei
discussão quando falamos em despatologiza- Brasileira da Inclusão é que ela inclui a discussão
ção, sobretudo no âmbito do trabalho. dos transtornos psicossociais sendo caracteriza-
dos como uma deficiência também. Esta é uma
questão importante porque havia muita confusão
“Constantemente pregamos de deficiência intelectual versus deficiência men-
tal. Nas últimas legislações, ambas eram tomadas
o lema ‘nada sobre nós sem
como sinônimos, com o reconhecimento de pesso-
nós’ e não faz sentido falarmos as com deficiência intelectual como mental, enfim...
do direito das pessoas com Então, a lei já atualiza essa discussão e entra na
outra questão pertinente à minha fala. Especifica-
deficiência sem tê-las discutindo
mente no Artigo 37, temos o direito ao trabalho,
conosco” que vai descrever o direito de inserção da pessoa
com deficiência em trabalhos formais por meio
de trabalho com apoio. Dentre outros pontos, ga-
No último censo de 2010, 25 milhões de pes- rante: provisão de suportes individualizados que
soas, quase um quarto da população brasileira, es- atendam às necessidades específicas da pessoa
tão descritas como tendo algum tipo de deficiên- com deficiência, inclusive, a disponibilização de re-
cia. E então volto à minha pergunta anterior: com cursos de tecnologia assistiva, de agente facilita-
quantas pessoas com deficiência convivemos? dor e de apoio no ambiente de trabalho. Então, por
lei, temos uma garantia realmente bem atualizada.
Especificamente no mercado de trabalho,
A Lei Brasileira de Inclusão tem muita coisa legal,
Vinícius Garcia, economista da Facamp, desen-
mas e a prática? Como estamos hoje?
volveu uma pesquisa de mapeamento das pes-
soas com deficiência que estavam formalmen-
Do modo como fui construindo minha fala,
te inseridas no mercado de trabalho no ano de
fica claro que os indivíduos com deficiência, prin-
2010. A partir do cruzamento dos dados do IBGE,
cipalmente intelectual em que as diferenças são
com os dados que as empresas mandam para o
mais acentuadas, têm menores oportunidades
Ministério do Trabalho, ele chegou a um número
de acessar e manter ocupações competitivas for-
de menos de 5% das pessoas com deficiência
mais, os empregos formais com carteira assinada,
em idade produtiva formalmente inseridas no
e de mais oportunidades no seu cotidiano. Mas
mercado de trabalho, isto é, com registro em car-
esta não é uma questão exclusivamente brasileira.
teira. É um número bem baixo, sem dúvida. Como
Há, nos Estados Unidos, uma pesquisa interessan-
podemos relacionar esse dado com o olhar des-
te que fala de pessoas com deficiência intelectual
patologizante que estamos propondo aqui?
que se declaram empregadas. Delas, 71% incluem-
A título ainda de contextualização, temos se em programas comunitários não competitivos,
uma legislação que embasa a prática da inclu- que são aqueles de oficinas protegidas em coope-
são, mas precisamos saber como isso acontece rativas. Então, de 71% que se declaram emprega-
de fato. Temos a lei de cotas que obriga e prevê dos, estão em programas alternativos ao mercado
que empresas, com mais de 100 funcionários, de trabalho formal. E por que estou enfatizando
precisam ter no seu quadro de funcionários uma isso? Porque os trabalhos não formais reforçam a
parcela específica de pessoas com deficiência. lógica de que as pessoas com deficiência precisam
É a Lei Federal 8.213 de 91. A penalidade para de espaços diferenciados pra trabalhar. Se a maio-
o descumprimento é uma multa a depender do ria das pessoas com deficiência está trabalhando
número de funcionários não contratados desse em espaços diferentes, estamos reforçando a lógi-
contingente; uma multa progressiva, que chega ca da necessidade de essas pessoas terem espa-
a números exorbitantes. ços diferentes, certo?
O Emprego Apoiado vem para quebrar um
11
“A inclusão efetiva vai justamente pouco essa lógica vigente, na medida em que
propõe o treinamento das habilidades no pró-
discutir a questão da superação prio espaço de trabalho, numa situação real
do conceito da diferença de vida. Assim, o Emprego Apoiado objetiva a
enquanto problema ou doença, inserção no mercado de trabalho competitivo,

- parte 1
justamente para marcar que as pessoas com
uma vez que entende o processo

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
deficiência não precisam de espaços diferen-
como uma possibilidade de ciados pra trabalhar. Ele não atende só a pes-

e enfrentamento
abertura dos espaços sociais, soas com deficiência, ele atende pessoas com

Psicologia em emergências
deficiência e outras condições que precisam de
como os empregos formais, mais apoio por vivenciarem uma situação de in-
garantindo o direito ao cidadão capacidade mais significativa. Incapacidade no
de acessibilidade aos recursos de sentido da CIF (Classificação Internacional de

CRP SPdas vidas: reconhecimento


Funcionalidade), que é entendida como uma sé-
sua comunidade” rie de fatores biopsicossociais.

E o que é inclusão, a inclusão efetiva, afinal?


A inclusão efetiva vai justamente discutir a ques- “O Emprego Apoiado vem para
tão da superação do conceito da diferença en- quebrar um pouco essa lógica
quanto problema ou doença, uma vez que entende
vigente, na medida em que propõe

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
o processo como uma possibilidade de abertura
dos espaços sociais, como os empregos formais, o treinamento das habilidades no

Cadernos Temáticos
garantindo o direito ao cidadão de acessibilidade próprio espaço de trabalho, numa
aos recursos de sua comunidade.
situação real de vida”

Patologização
Retomando, então, 5% das pessoas com de-
ficiência, no censo de 2010, estavam formalmente
incluídas no mercado de trabalho. E os 95% restan- Outro ponto importante no Emprego
tes? Ou essas pessoas não estão trabalhando ou Apoiado é o de respeitar os interesses, as habi-
elas estão em programas não formais, em coope- lidades e as necessidades de apoio de cada um.
rativas. E quando essas pessoas estão em coope- Então, o Emprego Apoiado, por exemplo, atende
rativas, reforçamos a lógica de patologização, de pessoas que passaram por uma dependência
química, pessoas com transtornos psicosso-

Cadernos Temáticos CRP SP


as pessoas precisarem de espaços diferentes para
trabalhar que não o mercado competitivo formal. ciais, enfim, atende pessoas em situação de in-
capacidade ou que precisam de algum apoio a
Mas como podemos fazer na prática? Eu
mais pra entrar no mercado competitivo.
venho estudando, junto ao grupo do CEESD, uma
metodologia que chama Emprego Apoiado. Esta
metodologia surgiu na década de 70, nos Estados
Unidos, para apoiar a inclusão de pessoas com
“Outro ponto importante
deficiência intelectual. Inicialmente foi deficiência no Emprego Apoiado é o de
intelectual, hoje já não é só esta deficiência. Reto- respeitar os interesses, as
mando a história, surgiu no pós-guerra, para apoiar
as pessoas, que adquiriram alguma deficiência na
habilidades e as necessidades
guerra, a serem incluídas no mercado de trabalho, de apoio de cada um”
mas isso fica para uma outra conversa. O que me
chamou atenção no Emprego Apoiado foi o fato de
ele quebrar uma lógica vigente na nossa socieda- E qual o papel do consultor no Emprego
de, principalmente com as pessoas com deficiên- Apoiado? Ele fica na mediação entre o indivíduo,
cia, qual seja, a de treinar, treinar e treinar a pessoa a família e o empregador, provendo e avaliando
para depois inseri-la no trabalho. O treinamento se de forma conjunta os apoios necessários para
dá, às vezes, em espaços diferenciados, em ofici- o seu desenvolvimento no campo do trabalho.
nas protegidas, para ser inserido no trabalho, so- Isso é interessante porque o consultor ou me-
mente quando estiver preparado. diador não vai ditar o que que a pessoa precisa;
ele vai construir junto com a pessoa. Assim, a habilidades e das necessidades de apoio que a
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pessoa participa ativamente do processo des- pessoa vai precisar; o desenvolvimento do em-
de o começo, valorizando o que tentamos cons- prego. Junto com a pessoa fazemos a pesquisa
truir do “nada sobre nós sem nós”, de participar das empresas para levantar ou desenvolver um
ativamente junto com a pessoa e não ditar o trabalho que melhor atenda às características
que a pessoa precisa, não interferir num projeto da pessoa em questão, e então a análise da
de vida que uma pessoa tem. Historicamente, função consequentemente para ver o que que
temos a tendência de desconsiderar os proje- essa pessoa precisa dentro desse emprego; ao
tos de vida das pessoas com deficiência ou até final, um acompanhamento pós-colocação para
esquecer que elas têm projetos de vida. verificar se as estratégias de apoio estão se re-
velando eficazes.
Então, o Emprego Apoiado vai justamente
na lógica de entender quais são os projetos de Essa parte é muito importante, porque às
vida que essa pessoa tem. O que ela deseja? vezes pensamos num apoio que, por algum mo-
Quais os apoios de que ela precisa? Sempre tivo, não funciona naquela empresa e aí é sem-
construindo junto com a pessoa, vamos agindo pre importante monitorar e observar se aquilo
de forma a ter um casamento, que é como cha- tá sendo efetivo.
mamos, entre os interesses e as habilidades do
indivíduo, a busca pelo emprego efetivamente, Trouxe rapidamente alguns exemplos, pre-
mediando quais os apoios dentro daquilo que servando a identidade das pessoas, para ilus-
essa pessoa precisa. A meta é a de entender trar o que falei. No caso do A, estamos, mais
muito bem os interesses e habilidades do in- ou menos, na primeira fase. Ele está num gru-
divíduo para buscar o emprego que seja com- po de discussão de interesses de trabalhos e
patível com tudo isso, verificando e avaliando habilidades sociais do trabalho e tem síndrome
os apoios de que precisa, sejam quais forem as de Down. Estamos descobrindo com ele seu in-
condições que a pessoa tenha. teresse muito forte por carro e moto. Ele quer
trabalhar com carro e moto. E aí o que pode-
Como se organiza o Emprego Apoiado. A mos fazer dentro do que condiz com a realidade
primeira fase é uma descoberta do perfil: levan- que eles têm naquele momento? Adaptamos,
tamento de interesses, de repertório. A segun- dentro desses interesses, o que conseguimos
da é uma avaliação da condição da pessoa e do compatibilizar em termos de trabalho. Então,
que ela precisa. A terceira é, junto com ela, a estamos chegando com ele numa possibilidade
busca do emprego. Qual é o emprego que vai de buscar trabalhos em oficinas, trabalhos lo-
satisfazer a necessidade da pessoa e do em- cais que vendam ferramentas de carro e moto.
pregador? A terceira fase é um acompanha- Uma empresa nos procurou recentemente com
mento pós-colocação para ver se está sendo uma vaga para infraestrutura. Ele vai trabalhar,
efetivo. enfim, com os carros da empresa, com a infra-
Lá na instituição eu digo que temos uma estrutura da empresa, com as ferramentas, e
sociedade contrária ao movimento do Emprego estamos delineando juntos qual a busca neces-
Apoiado, porque, diante da lei de cotas, algumas sária para isso acontecer.
empresas ligam pedindo pessoas pra trabalhar, Temos também o caso do C, que está,
falando assim: “ó, a gente precisa de 10 deficien- mais ou menos, na fase 2. Ele está já numa em-
tes pra trabalhar aqui na minha empresa por cau- presa de terceirização de serviços de limpeza
sa da lei de cotas”. E eu quase brinco, dizendo e tinha um interesse em trabalhos no setor ad-
“peraí que eu vou pegar no estoque”. Não é isso, ministrativo. Então, ele está lá e nós estamos,
não é assim que funciona. Estamos estudando neste momento, criando alguns apoios para
muito para inverter a lógica das empresas. Ao ele, para organização de arquivo. Ele tem um
invés de elas buscarem a pessoa, vamos com a repertório básico de leitura e escrita, consegue
própria pessoa em busca do emprego, para en- discriminar as letras e os números, mas nesse
tão mediar e fazer os apoios que essa pessoa momento, ele ainda não consegue fazer a leitu-
precisa. ra completa. Então, estamos delineando, junto
Retomando, são três as fases: a desco- com ele, alguns apoios que ele vai precisar, por
berta do perfil vocacional; uma avaliação fun- exemplo, para organização de arquivo, porque é
cional dos pontos fortes, dos interesses, das uma questão de adaptação.
É muito legal eu contar pra vocês um pou- o último nome e evitar as trocas. Isso melhorou
13
co de como fica a família nesse processo. O C de modo significativo seu desempenho e, con-
era uma pessoa muito impulsiva; discutia bas- sequentemente, melhorou a dinâmica da equipe
tante com os colegas de trabalhos, numas ex- de trabalho. Esse caso ilustra como os apoios
periências anteriores que ele teve; geralmente em geral são simples, já estão no ambiente da
se envolvia em conflito. Fomos descobrindo que empresa e mudam todo o ambiente. Melhora

- parte 1
isso acontecia porque ele estava num lugar que para a pessoa e para equipe em que está traba-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
ele não gostava, e aí tudo virava um problema. lhando. O empregador acaba vendo a inclusão
Quando fizemos essa mudança de emprego, le- com outros olhos a partir do desempenho real

e enfrentamento
vando em consideração o que ele estava que- das pessoas.

Psicologia em emergências
rendo, a postura dele mudou da água para o vi-
Entendo que o Emprego Apoiado vem para
nho. E é muito legal ver o papel da família nisso
quebrar com o paradigma da diferença como do-
também, de ver a satisfação da família nesse
ença e da necessidade de espaços de trabalho
desenvolvimento da pessoa.

CRP SPdas vidas: reconhecimento


diferenciado para as pessoas com deficiência.
O Emprego Apoiado aposta que todo mundo é
“empregável”, todo mundo tem direito ao em-
“Entendo que o Emprego prego independente de sua condição. Se a pes-
Apoiado vem para quebrar com soa exprime esse desejo, ela tem esse direito
o paradigma da diferença como e é uma questão de adaptação. Como eu falei,
é muito importante o respeito e valorização do
doença e da necessidade de projeto de vida do indivíduo. Não podemos es-

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e medicalização
espaços de trabalho diferenciado quecer que as pessoas com deficiência também
para as pessoas com deficiência. têm projetos de vida. “Nada sobre nós sem nós”.

Cadernos Temáticos
O Emprego Apoiado aposta que O Emprego Apoiado também está alinha-
do com o modelo social de que falamos aqui
todo mundo é ‘empregável’, todo

Patologização
sobre deficiência. A inclusão no trabalho é uma
mundo tem direito ao emprego questão de adaptação do ambiente. Antes, as
independente de sua condição. pessoas com deficiência precisavam se adaptar
ao ambiente, a responsabilidade pela adapta-
Se a pessoa exprime esse
ção era delas, assim como a culpa pela inadap-
desejo, ela tem esse direito e é tação. Então, a vaga existia e a pessoa preci-
uma questão de adaptação” sava se qualificar para chegar até ela. Com o

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Emprego Apoiado, a lógica é outra. A inclusão
no trabalho também é uma questão de adap-
tação do ambiente. Há o foco nas habilidades e
Para encerrar, trago o caso de F que está,
aptidões; sempre vamos focar no que a pessoa
mais ou menos, na fase 3. Ele trabalha numa
tem de bom, em suas habilidades, suas apti-
empresa enorme, no setor de telemarketing,
dões. É uma mudança cultural. Quando passa-
sendo responsável por monitorar um sistema
mos a agir dessa forma e fazemos uma inclusão
de auditoria. Ele tem que monitorar uma lista de
bem-feita, quebramos alguns paradigmas cul-
operadores que precisam ser auditados, passar
turais também, o das limitações que as pesso-
por um controle de qualidade. Ele tinha de se-
as com deficiência têm, e o das empresas que
guir uma lista e, então, cometia muitas trocas
falam de não ter pessoas qualificadas. Quebra-
na ordem e isso causava um caos na equipe.
mos alguns paradigmas tanto na família, como
Então, propusemos a implementação de alguns
eu comentei, como na sociedade, incluindo aí o
apoios e foi muito legal porque a própria equi-
papel das empresas.
pe criou os apoios. Cheguei lá um dia para para
observar e registrar como estava acontecendo Por fim, fica o questionamento: a inclusão
o apoio e a própria equipe já tinha entrado no no trabalho e o Emprego Apoiado são um cami-
clima e criado o apoio que ele precisava. E foi nho para despatologização? Queria propor que
uma simples planilha do Excel que o pessoal en- fizéssemos uma reflexão sobre isso. Estou à
sinou a ele como copiar e colar o último nome disposição para o debate. Agradeço novamente
que ele falava. Assim, ele conseguia comparar o convite. Muito obrigada.
14 Andreia de Jesus
Pedagoga, assessora técnica da Secretaria Municipal
de Educação de Franco da Rocha, formada pela
Faculdade de Educação da Unicamp.

Em primeiro lugar, boa tarde. Queria dizer que es- do Mia Couto que eu li, e ele diz assim, “o impor-
tou imensamente feliz porque, como disse Bian- tante não é casa onde moramos. Mas onde em
cha Angelucci, “eu sou da casa”, mas ser da casa nós, a casa mora.”
também tem muita responsabilidade. E estou
Resolvi ocupar um pouco o lugar da esco-
mais feliz ainda em encontrar aqui Maria Apare-
la “regular”, entre aspas, porque de regular não
cida Moysés que tem, na minha formação, um pa-
tem nada. Eu sou professora habilitada e, du-
pel primordial. Uma parte do que eu venha contar
rante muitos anos, fugi das instituições. Mas na
aqui, nesse momento, está alicerçado em prin-
minha trajetória, num determinado momento, eu
cípios discutidos no início da década de 90, em
tive que me haver com elas. Há quase cinco anos,
que eu era uma menina, vinda de São Paulo para
estou em Franco da Rocha a convite de uns ami-
Campinas, na expectativa de ser historiadora,
gos que assumiram a Secretaria de Educação, e
mas acabei virando pedagoga, com elementos
me chamaram pra fazer parte dessa empreita-
dos quais eu não tenho dúvida que constituíram
da. Eu disse que eu aceitaria, desde que eu não
um pouco da profissional que eu sou hoje.
tomasse conta das questões que envolvessem
Eu tenho uma filha de 10 anos que me inclusão das crianças com deficiência, porque
vê há muitos dias comentando sobre fazer um eu queria uma trégua dessa jornada.
texto e não produzindo o dito texto. Por várias
vezes falei, “ah, preciso fazer um texto, preciso Eu tinha me exonerado da Prefeitura de
fazer um texto, preciso fazer um texto.” Então, São Bernardo no começo dos anos 2000, onde
no domingo, ela sentou lá em frente ao compu- fiquei entre seis e sete anos, num momento
tador e falou assim, “mãe, eu vou escrever o seu muito importante para desconstrução de coi-
texto”. “Uau! É mesmo?” perguntei, “não, vou te sas que hoje a gente tem de lutar bastante pra
ajudar aqui, vou começar”. E, então, ela come- mantê-las. Eu trabalhava no Centro de Apoio, no
çou “meu nome é Andreia, eu trabalho em Fran- tempo em que as crianças com deficiências não
co da Rocha, eu sou pedagoga”. Foi quando ela eram matriculadas na escola regular, elas eram
disse, “mas eu não estou entendendo, você é matriculadas no Centro de Apoio. E era eu, no
pedagoga ou você é professora?”. Centro de Apoio, no meu papel de professora,
que decidia se determinada criança iria ou não
Essa é uma das coisas que nos comportam para o regular. Era uma das coisas que mais me
enquanto categoria. Eu gosto sempre de dizer incomodavam: ter essa responsabilidade.
que, antes de mais nada, eu sou uma professo-
ra polivalente. Gosto muito desse lugar que eu Comecei a trabalhar em São Bernardo num
ocupo, porque esse lugar me permite fazer cer- grupo de pessoas que entrou no mesmo con-
tas ousadias. Então, resolvi começar hoje com curso e, coincidentemente, todas vindo da es-
uma frase do Mia Couto de que eu gosto bas- cola. Como nós tínhamos vindo da escola, não
tante, que está no livro Um Rio Chamado Tempo, sabíamos mesmo fazer o atendimento naquela
uma Casa Chamada Terra, que é o primeiro livro perspectiva que nos diziam que teria de ser o
atendimento das crianças com deficiência. Tudo
15
muito tranquilo, tudo muito devagar, muita es- “Ao abrir os planos de trabalho
cala pra preencher. Eu não sabia fazer aquilo.
Então, o que fazíamos? Víamos os horários em
das escolas, fiquei admirada,
que as crianças chegavam e nós nos agrupáva- porque tinha aula de ioga,
mos. Fazíamos, de fato, uma pequena escola. de violino, e eu pensava em

- parte 1
quanta coisa legal essas

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
E assim fomos nos dando conta que aque-
la nossa escola não tinha nada de tão verdadei- crianças poderiam aprender.

e enfrentamento
ro quanto imaginávamos, por mais que tivésse-
mos a melhor das intenções. Passamos, então, Minha surpresa foi descobrir

Psicologia em emergências
a discutir cada vez mais que o lugar daquelas que não teríamos mão de obra
crianças era na escola regular. Quando graváva- o suficiente para a execução
mos os nossos encontros, as vozes que ouvía-
dessas propostas desenhadas”

CRP SPdas vidas: reconhecimento


mos eram as nossas, era interminável o número
de consignas paras crianças realizarem. E eu
fico pensando que mesmo que elas quisessem
Mas é preciso contar um pouco da ampli-
ou pudessem, ainda bem que não nos respon-
tude de Franco. Franco tá na região metropolita-
diam, porque eu acho que é a mínima maneira
na de São Paulo com 147 mil habitantes. Temos
de conseguir manter uma sanidade. Tentamos,
16.637 alunos, desses 7.457 estão no Ensino
cada vez mais, garantir que as crianças estives-
Infantil; 8.580 no Ensino Fundamental e 600 na

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sem na escola regular.

e medicalização
EJA. Nós temos um total de 15 escolas de Ensi-
Então, quando cheguei em Franco da Rocha no Fundamental e 34 escolas de Educação In-

Cadernos Temáticos
com a condição de não trabalhar com essa pauta, fantil. Hoje coordeno três projetos, dentre eles
esses meus amigos me disseram que tinham ou- o Mais Educação, um projeto chamado Foco e o
tras demandas para mim. E, de fato, eles tinham. Atendimento Educacional Especializado.

Patologização
Nessa época, era o início de uma gestão Quando cheguei em Franco pra cuidar
petista. Nós somos hoje, digo isso com todo or- do Mais Educação, fiquei superfeliz porque os
gulho, uma das pequenas cidades no estado de meus amigos me disseram que inscreveram as
São Paulo que se mantém com 70% de aprova- escolas na plataforma do Governo Federal e
ção na eleição e estamos na segunda gestão. elas escolheram os seus campos de trabalho.
Acho que somos sobreviventes no meio desse Nossa tarefa seria organizar como esses pla-

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sistema todo, e não é fácil ser sobrevivente, nos funcionariam nas escolas.
nesse momento, porque criar as estratégias de
resistência exige muita sapiência. Ao abrir os planos de trabalho das esco-
las, fiquei admirada, porque tinha aula de ioga,
Quando cheguei em Franco, fui logo no de violino, e eu pensava em quanta coisa legal
primeiro dia no Complexo do Juquery. Como a essas crianças poderiam aprender. Minha sur-
maioria das pessoas, eu tinha duas imagens da presa foi descobrir que não teríamos mão de
cidade e da instituição: a do complexo do Ju- obra o suficiente para a execução dessas pro-
query, dos loucos soltos, e de Franco, a ideia postas desenhadas.
da cidade alagada. Eram essas duas imagens
que me acompanhavam quando eu cheguei em A ideia básica da criação do programa
Franco. Chegando no Complexo, meus amigos Mais Educação é interessante, pois pressupõe
me disseram que eu podia ficar sossegada que que o educador encontre, na própria comuni-
não ia cuidar de questões relativas à educação dade, pessoas que possam dar as oficinas es-
inclusiva; estávamos lá por conta de um evento. colhidas nos planos de trabalho das escolas.
Mas com a ampliação do programa isso vai se
Essas imagens que estamos vendo agora tornando impossível, até porque o valor hora
do Juquery, descobri nos últimos cinco anos jun- pago para um oficineiro é muito pequeno. Isso
to com as crianças do ensino fundamental, num não acontece em Franco, mas eu acompanho a
processo de imersão no Complexo. São fotos escola onde minha filha estuda, no Butantã, que
das instalações que eu desconhecia e de anti- nunca conseguiu colocar o Mais Educação, de
gos internos. fato, em operação.
Pensei que teríamos um problema. Lem-
16
brava que, em São Bernardo, na época que eu “Um dos princípios básicos desse
trabalhava lá, havia algo relacionado ao Mais
Educação e, então, fui à Prefeitura de lá conhe-
programa é o de que se tenha a
cer um pouco melhor a estrutura. Fiquei sabendo capacidade de criar elos e de se
que, além do dinheiro que vinha, eles investiam desenvolver o diálogo entre as
um milhão e meio no programa, que era quase
toda a verba do Fundef de Franco, algo impen-
pessoas envolvidas, algo, do meu
sável de fazer. Não sabia como poderíamos fa- ponto de vista essencial para a
zer acontecer o programa, mas surgiu uma opor- educação inclusiva e que ainda
tunidade e é desse lugar que eu quero falar.
caminhamos a passos lentos. Se
Desse lugar em que eu assumo hoje, tento minimamente conseguíssemos
criar processos junto à Secretaria em que pos-
samos experimentar um pouco da escola que
organizar esse processo
imaginamos poder existir. Vale lembrar que eu de maneira que as crianças
tinha vindo do terceiro setor, e me incomoda- passassem a ter vozes, para mim
va muito essa dinâmica de ir à escola, oferecer
a oficina às crianças, ir embora e a escola não
já seria bastante interessante”
ter nenhuma relação com aquilo que acontecia.
Foi assim que fizemos a “captura” das pri-
Então, eu pedi ao secretário na época, que, ao
meiras professoras. O que me chamava atenção,
invés de contratarmos pessoas, apostássemos
muitas vezes, no final desse processo, é que mui-
nas professoras polivalentes assim como eu. Se
tas delas me abraçavam e diziam “muito obrigado
cuidássemos desse processo formativo, pode-
por você ter reconhecido que eu tenho uma boa
riam assumir um papel de oficineiros”.
prática”. E aquilo sempre me deixava também mui-
O secretário fez as contas e viu que isso to emocionada. E eu dizia, “olha, não fui eu que
seria possível. Na empolgação, pedi professo- reconheci, porque eu não te conheço, mas alguém
res de Arte e de Educação Física. A resposta daqui olhou para você e viu um tanto do seu traba-
foi que não tínhamos esses professores nem lho e contou um tanto dele para nós”.
nas unidades escolares, quanto mais para fazer Começamos rodando o programa dessa
parte do programa. “E se contratássemos es- maneira, com os estagiários de educação físi-
tagiários?”, perguntei. Até hoje não temos nem ca, para quem eu dizia, como digo até hoje: “o
professores nem estagiários de arte, mas de desafio que está posto é que vocês possam
Educação Física sim. também viver uma escola da qual, muitas vezes,
também estão distantes”.
E foi assim que originalmente tudo come-
çou: unindo uma professora polivalente, pedago- Tem um dado interessante para pensar:
ga, como eu, e um estagiário de educação física. atualmente, tenho mais professores especia-
A chamada das pessoas no começo desse pro- listas com licenciatura e professores formados
cesso foi boca a boca. Na Secretaria, eu pergun- nas universidades do que pedagogas, muitas
tava se as pessoas conheciam professores nas vezes, formadas à distância. Passo a ter um
escolas que tivessem boas práticas pedagógicas quadro de especialistas interessante no senti-
e que gostariam de fazer esse trabalho conosco. do da possibilidade de desenvolvimento da pró-
pria docência. Foi um casamento que deu certo.
Eu marcava vários horários para conversar
com grupos de pessoas que chegavam. E, na Um dos princípios básicos desse progra-
verdade, não tinha muito o que prometer, por- ma é o de que se tenha a capacidade de criar
que tinha um desenho do programa, mas não elos e de se desenvolver o diálogo entre as pes-
tinha clareza de como ia executá-lo. Então, eu soas envolvidas, algo, do meu ponto de vista
começava já dizendo isso para as pessoas, que essencial para a educação inclusiva e que ainda
eu estava propondo um noivado, com determi- caminhamos a passos lentos. Se minimamente
nadas precondições. Ele poderia ser desfeito se conseguíssemos organizar esse processo de
eu achasse, em determinado momento, que não maneira que as crianças passassem a ter vo-
daria conta daquilo. zes, para mim já seria bastante interessante.
Sempre fazemos uma opção. A vida na es- comida é ruim, a roupa, “a gente tem que ficar
17
cola é uma vida difícil e gostamos dos peque- sem a nossa roupa. Você acredita que a gente
nos, porque eles são pequenos, certo? E vamos fica sem a nossa roupa? A gente não come a
desgostando deles na medida em que eles vão hora que quer, a gente sente saudade de casa”.
crescendo. Então, falei, “quero os mais crescidos, É a partir dessa ideia que vamos tentando tra-
quero os meninos maiores”, porque me encanta- balhar com as crianças a ressignificação, tan-

- parte 1
va, de certa maneira, as conversas, o jeito das to desse espaço, porque é um espaço público,

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
crianças maiores. Assim, optamos por trabalhar bonito, quanto da relação que eles estabelecem
no programa com as crianças dos quintos anos. com esse espaço.

e enfrentamento
As imagens que vocês estão vendo são No ano passado, fizemos uma viagem, a

Psicologia em emergências
das crianças no processo que a gente faz de que chamamos de “viagem ao imaginário”, em
ocupação do Complexo do Juquery. Hoje, o Com- que as crianças, junto com os professores, ti-
plexo do Juquery tem uma parte é da prefeitura nham de escolher um lugar para fazer uma via-

CRP SPdas vidas: reconhecimento


municipal e uma parte continua sendo do Es- gem. No começo, os professores achavam que
tado, mas lá nós temos uma casa. Essas ima- “minha cabeça não estava muito bem-compor-
gens são das crianças do lado externo brincan- tada” e tiveram uma certa resistência, achando
do. É um lugar belíssimo. É uma construção do que isso não daria liga, porque também desa-
Ramos de Azevedo. Essa é uma parte interna, creditamos da possibilidade, da necessidade
onde funcionava a rouparia do Juquery. Hoje é a imaginativa das crianças maiores.
rouparia do Juquery reformulada que ocupamos
Começamos a brincadeira dessa viagem
com as crianças. Conversamos bastante com

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e medicalização
imaginária, e eu brincava que tínhamos de es-
elas, em rodas de conversa, e essas crianças,
colher um lugar e que para esse lugar nós tí-
que hoje têm nove, dez, onze anos, são a última

Cadernos Temáticos
nhamos de produzir, pelo menos, cinco aconte-
geração de crianças também nascidas em Fran-
cimentos. Então, teve gente que foi para o Rio,
co e na maternidade do Juquery, porque com o
mas que passava em Paris. Foi para o Rio, mas
fechamento do Complexo, fechou-se também o

Patologização
no Rio nevava. Um pouco para também tirar da
complexo hospitalar. E o que me chamava aten-
cabeça essa ideia de que as coisas são todas
ção, e me chama sempre atenção em Franco, é
compartimentalizadas, tudo tão separado, e
que todo mundo, direta ou indiretamente, tem
que, pra estudar o Rio de Janeiro, tem de es-
uma história relacionada a este lugar. Então,
tudar quantos habitantes têm, qual é a cor da
as crianças têm muitas histórias em relação ao
bandeira, o que que eles comem lá. Não estou
Complexo do Juquery.
dizendo que essas coisas não são importantes,

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As rodas de conversa são muito legais. Pri- mas, no contra turno, eu acho que o estudo tem
meiro porque as crianças também têm no ima- um outro papel.
ginário muitas coisas perdidas sobre a questão
da loucura, eles não sabem muito bem onde a
encaixam. Uma vez, minha filha menorzinha, es-
tava em casa e falava assim, “fulano é louco, “Temos também investido um
fulano é louco, fulano é louco, fulano é louco”. pouco na ideia de que às vezes
Aquilo foi me causando uma irritação e eu fa-
lei, “Filha, que história é essa de ficar chamando
devemos trazer as crianças
todo mundo de louco?”. E ela respondeu, “mãe, para fazer as oficinas junto
louco é quando a cabeça não se comporta”. conosco. Crianças e educadores.
Então, quando eu vou falar com as crian- Porque tenho achado cada
ças sobre isso, eu conto a história que todo
vez mais difícil aprender a
mundo, na sua família, tem alguém que a cabeça
não se comporta direito... Que, durante um tem- dialogar, aprender a ouvir. Unir
po, achávamos que as pessoas cuja cabeça não professores e crianças foi uma
se comportava direito, precisavam ficar afas-
forma de criar circunstâncias
tadas. Então, pergunto para eles se já ficaram
internados. Alguns contam que sim; eu pergunto de diálogo e escuta dentro da
se é bom, eles falam que é horrível, porque a dinâmica de trabalho”
Uma coisa importante, que eu também te- oferecer para elas. “As meninas pareciam musas do
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nho aprendido no decorrer desses anos, é saber verão com seu chapéu, óculos escuros e poses para
como é que vamos conduzindo esses proces- fotos. O auge da brincadeira acontecia quando eram
sos formativos com esse adulto que precisa ser arremessadas pelo professor Luís lona abaixo, um
convocado para olhar de outra maneira para as misto de medo e euforia, riam e gargalhavam. A di-
crianças. Então, eu tenho aprendido que, muito versão foi garantida, não havia maneira mais bacana
daquilo que queremos que os professores façam e refrescante de chegar à praia nessa viagem ima-
com as crianças, precisamos fazer com eles, de ginária com tantos acontecimentos. Depois de tudo
um outro lugar. desmontado, já na roda de conversa final, um aluno
me perguntou, ‘prô, e como vai ficar a nossa viagem
Assim, fomos criando seminários, como
de volta? Nós não vamos voltar?’. Fiquei sem respos-
forma de operacionalização do trabalho. O pro-
ta naquele momento. Pensei comigo, ‘acho que não
cesso é: fazemos primeiro, conversamos sobre o
dará tempo, infelizmente’”.
que fazemos, e depois os professores escolhem
o que fazer com as crianças. Por exemplo, come- Outra experiência que gostaria de apresen-
çamos a estudar mandalas e perguntei se dava tar surgiu de uma conversa com a Biancha, quan-
para fazer mandala no corpo. Com a resposta do esteve em Franco para falar sobre o atendi-
positiva, fomos fazer mandalas, assistir vídeos mento educacional especializado. Nessa ocasião,
sobre isso e conversar. contei-lhe do Projeto Foco, destinado a crianças
que, ao final do ciclo de alfabetização, não esta-
No início do programa, as crianças não
vam alfabetizadas e eram retiradas da sala, no
gostavam de ir porque achavam que era reforço.
mesmo período de aula, e ficavam com um grupo
Hoje elas próprias são a melhor propaganda do
de professoras. Incomodava-me um tanto essa
programa. Temos em média 35 crianças que par-
coisa de as crianças serem retiradas da sala no
ticipam do processo de segunda a quarta. Temos
turno. Mas, por outro lado, naquele momento, era
também investido um pouco na ideia de que às
o possível, e o que fomos fazendo naquele mo-
vezes devemos trazer as crianças para fazer as
mento inicial era qualificar o máximo as ativida-
oficinas junto conosco. Crianças e educadores.
des oferecidas. Porque assim como para as crian-
Porque tenho achado cada vez mais difícil apren-
ças com deficiência, que o trabalho está sempre
der a dialogar, aprender a ouvir. Unir professores e
marcado pra repetição, para as crianças que che-
crianças foi uma forma de criar circunstâncias de
gam ao final do ciclo de alfabetização sem serem
diálogo e escuta dentro da dinâmica de trabalho.
alfabetizadas, o trabalho também está marcado
Gostaria de ler uma produção do Mais Edu- pela repetição sem fim de palavras e letras num
cação. É um diário de uma professora, no último caderninho. Enquanto todo mundo faz uma outra
dia da viagem em 24/11/2016. coisa, essas crianças pegam o caderno e fazem
os exercícios de repetição. Isso eu acredito que
Mar à vista. Rio de Janeiro, cidade maravi-
não seja só a realidade de Franco, mas sim a re-
lhosa, finalmente chegamos ao nosso destino. Ao
alidade de muitos outros municípios pelo Brasil.
som do Ultraje a Rigor..., hoje a gente fica... vamos
pensar duas vezes, “nós vamos invadir sua praia”, Então, começamos a criar um conjunto de
mas tudo bem. “Trouxemos a praia de Ipanema pra atividades que fosse interessante, que desmon-
dentro da quadra da Emeb Nilza Dias, munidos de tasse um pouco essa lógica e que causasse um
biquínis, chapéus, boias, óculos escuros, cadeira de pouco na sala de aula... O que aconteceu, com o
praia, protetor solar e muita alegria. O professor Luís tempo, é que as crianças passavam e diziam “ah,
esticou uma lona branca na quadra e transformamos eu queria vir aqui também fazer isso”. Eu brincava
na nossa praia com muita água e sabonete líquido. que primeira parte do encantamento estava con-
Animação total. O dia estava quente e ensolarado, quistada. Mas, feito isso, o que mais me chamava a
perfeito pra se refrescar e pegar um bronze. Corriam atenção, é que deste modo as crianças aprendiam
e se deslizavam pela lona escorregaria, espalhavam a ler, porque com um processo razoavelmente bem
água para todo lado numa alegria contagiante. Apro- organizado, as crianças começam a aprender. E
veitavam o calor do sol pra se secarem e descansar, assim que as crianças aprendiam a ler, elas que-
afinal, praia é pra isso: descansar, fazer nada, curtir riam ler para a professora da sala. Isso me emocio-
o momento”. A gente tem conversado muito isso, so- nava e mostrava o quanto não deve haver a dispu-
bre a necessidade de as crianças poderem também ta, bastante difícil também na escola, entre quem
não fazer nada, porque nós sempre temos algo a ensinou o que para a criança.
Muitas vezes, as crianças pediam pra trei-
19
nar com os menores antes de irem para a sala.
Então, fazíamos isso, as crianças treinavam o
que eles tinham para fazer com os menores, até
dizerem “agora eu posso”.

- parte 1
A Biancha me sugeriu fazer um piloto desse

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
trabalho sem retirar as crianças da sala de aula,
já que isso continuava me incomodando. Come-

e enfrentamento
çamos com essa brincadeira em uma unidade
escolar em que tínhamos os dois programas fun-

Psicologia em emergências
cionando. Não foi um processo simples, porque a
sensação de invasão na própria sala de aula tam-
bém é muito grande. Mas foram surgindo coisas

CRP SPdas vidas: reconhecimento


muito interessantes e a marca desse processo é
que conseguíssemos criar situações dialógicas,
as crianças em roda conversando conosco. Coi-
sas que, apesar de parecerem habituais, ainda
não são frequentes no cotidiano escolar. Nes-
se processo todo, de tudo que apareceu que as
crianças sabiam e não sabiam fazer, decidi com

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as professoras por construir pipa.

e medicalização
E por que que a gente resolveu construir

Cadernos Temáticos
pipa? Por dois motivos. Aparecia como uma coisa
que as crianças mais queriam fazer, mas a minha
experiência também tem dito que os professo-

Patologização
res precisam ser desafiados no lugar de fazer
algo com as crianças que eles sejam obrigados
a ouvir as crianças, que as crianças nos contem
como fazer.

E foi a partir disso que criamos todo esse


processo, com tutorial, essa coisa que as crian-

Cadernos Temáticos CRP SP


ças estão superligadas, conhecem muito mais do
que nós. Gravamos, o áudio não ficou bom, eles
reclamaram, tivemos que fazer de novo, até che-
gar a construção do pipa e o momento final que
era empinar o pipa na unidade escolar.

No vídeo que está sendo mostrado, tem o


menino empinando o pipa, e os outros diendo que
o diretor passou muito tempo para colocar aque-
la lona na escola e agora que eles iam empinar o
pipa, “poxa, a lona estava atrapalhando, não preci-
sava ter aquela lona...”

Que a gente termine com essa imagem, um


pouco na perspectiva de que nós temos muito
ainda a construir, mas há tantas possibilidades,
e são as pequenas possibilidades que podem, de
fato, fazer a diferença e fazem com que nós nos
relacionemos com a diferença de um outro lugar.
Era só isso. Obrigada.
20 Adriana Marcondes Machado
Graduação em psicologia pelo Instituto de Psicologia da PUC, mestrado e doutorado em
Psicologia Social pela USP. Trabalhou no serviço de psicologia escolar de 1986 a 2010 como
psicóloga e hoje é membro desse serviço. Professora de graduação e pós-graduação do
Instituto de Psicologia da USP, departamento de aprendizagem do desenvolvimento e da
personalidade. Trabalha com temas ligados à psicologia escolar, pesquisa e intervenção,
educação inclusiva e relação saúde/educação.

Boa tarde. Para participar de um evento, nos orga- ria, ou na assistência e que têm alguma interfa-
nizamos sozinhos, em casa, e quando chegamos ce com a educação. Ficam de três anos a quatro
aqui, tudo se compõe com um dia, uma discussão, anos, uma vez por mês, duas horas cada encon-
um certo lugar e vamos percebendo que o que pro- tro. De 1997 pra cá, foram mais do que 130 gru-
gramamos talvez não sirva muito bem mais. Eu já pos. Muito trabalho que foi nos abrindo o mundo
tinha até dito isso em relação à mesa da manhã, para podermos pensar algumas questões que
que eu me sentia muito satisfeita assim, pensando vão acontecendo na interface com a educação.
muitas coisas. Então, depois de ouvir agora as co-
Tivemos uma mudança muito grande e eu
legas também, você vai riscando, vai cortando, vai
não posso deixar de falar dela. Fui contratada,
falando “isso aqui é um absurdo...”
durante 25 anos na universidade, como psicólo-
Bom, essa mesa se coloca nesse evento um ga, assim como minhas colegas, para trabalhar-
pouco para contarmos algumas operações, algu- mos bem. Se uma certa escola tem uma reunião à
mas invenções, algumas maneiras de fazer o que noite, vamos na reunião à noite; se há uma festa
vamos inventando a partir do lugar que estamos no final de semana, vamos no final de semana,
para dar conta de certos problemas, de certos ini- mas agora nós temos o relógio de ponto. Há pou-
migos, e alguns deles, em nós. Tempos difíceis. Eu cos meses, a USP iniciou com o relógio de ponto,
sou professora na Universidade São Paulo e tra- e aprendemos que ele não é um organizador do
balho no serviço de psicologia escolar há 30 anos, trabalho, e sim, um impeditivo do trabalho. Falo
dos quais 25 anos fui psicóloga e há cinco, além dele porque tem relação com o que eu vou dizer
de trabalhar no serviço, faço parte como docente. aqui hoje. Quem defende o relógio de ponto usa
o argumento que é “sempre teve aquele funcio-
Trata-se de um serviço público numa insti- nário público que não faz nada”. Essa questão
tuição pública, dentro do Instituto de Psicologia, do “sempre” também diz de uma certa covardia
com a marca da seguinte pergunta: como criar nossa de como criar enfrentamentos no cotidiano
trabalhos e ações que vão na contramão daquilo em relação àquilo que discordamos. É muito co-
que se tornou o encaminhamento da educação mum o pensamento “o que eu vou fazer? O que eu
para saúde? Como ir na contramão desse enca- vou falar?”. Então, acho que o relógio de ponto diz
minhamento? de um certo enfraquecimento que nos convoca a
pensar na nossa responsabilidade nisso tudo.
Vamos publicar um livro, online pela pri-
meira vez, sobre os 40 anos do serviço. Uma ho- Não se faz uma mudança sem agir no fascis-
menagem aos 40 anos do serviço. Lá contamos mo em nós, sem outra subjetividade. Falamos contra
algumas histórias, algumas invenções, como o uma certa subjetividade que tem a capacidade de
plantão institucional que se constitui em a uni- exteriorizar, que fala do outro, como se ao falar não
versidade abrir espaço e horário para receber estivesse constituindo esse outro. Falamos de uma
grupos de trabalhadores, que atuam nas escolas, subjetividade que dicotomiza, com a ilusão de que a
ou em serviços de acolhimento, ou na Promoto- dicotomia seria um final feliz, não aos manicômios.
estagiários que trabalham comigo sobre as vi-
21
“Não se faz uma mudança sem sitas às instituições. Relatórios que contavam
tudo. “Cheguei à escola, estava uma bagunça,
agir no fascismo em nós, sem eu não sabia o que fazer, eu ando meio perdi-
outra subjetividade. Falamos do. A professora me recebeu, ela foi supergentil,
contra uma certa subjetividade mas logo vi uma cena que é uma cena aonde al-

- parte 1
gumas crianças estavam sendo humilhadas por
que tem a capacidade de

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
um funcionário.”
exteriorizar, que fala do outro,

e enfrentamento
Esses relatórios são trabalhados no es-
como se ao falar não estivesse tágio supervisionado, do Instituto de Psicologia

Psicologia em emergências
constituindo esse outro” da USP. Estamos falando de um privilégio que é
estudar num lugar como a USP, onde existem 20
O que eu faço quando uma mãe pede inter- psicólogos de áreas diferentes que têm a função

CRP SPdas vidas: reconhecimento


nação para o seu filho? Explico que ela tá equivo- de dar a supervisão e coordenar trabalho em gru-
cada? Eu sou do não aos manicômios. O que eu pos pequenos de estudantes. É um serviço de
faço quando alguém precisa de uma internação? acolhimento, em que eles contam para nós como
Explico que é um equívoco cognitivo? Uma mãe é entrar em contato com uma história terrível. Eu
pede Ritalina. Explico que ela quer medicalizar lia o relatório antes da supervisão e sabia que
seu filho? Uma criança vai para o CAPS Infantil e depois da crise, já tinha acontecido outras coisas
eu a coloco imediatamente numa oficina, porque na direção de algumas soluções. Mas, durante a
supervisão, os estagiários ficavam só nos proble-

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é oficina que temos?

e medicalização
mas e nas impossibilidades.
Nós estamos com um problema, com uma

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lógica padrão de que as coisas, tudo que vemos e Então, nós resolvemos mudar o nosso pe-
vivemos, existiriam fora de nós, quando, na verda- dido. Não nos interessava mais nenhum tipo de
de, tudo que vemos e vivemos é construído e fruto escrita sobre alguma coisa. Interessava-nos pen-

Patologização
das relações que habitamos. sar que uma das coisas que a gente tinha que
disputar era a ideia de que conhecer é bom. Em
Eu, mulher, branca, chego de carro nas As Formas Jurídicas de Foucault, primeira pales-
escolas públicas e a professora me pede para tra, em que ele faz articulações com o Nietzsche,
atender um aluno. O desenho desse aluno ser há a seguinte passagem: “Conhecer. Conhecer é:
atendido é constituído na relação comigo. Ca- deplorar, rir e destruir.”
minhamos nessa discussão, mas ela permane-
O que que o Foucault está nos ensinando

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ce. Essa constante produção exteriorizada, pela
qual consigo falar dos outros como se eles não com isso? É que conhecemos para alguma coisa.
estivessem sendo constituídos, onde está? No Em muitos trabalhos de mestrado há a afirma-
corredor, nas salas de aula, nos nossos traba- ção “eu quero saber como é que a escola faz”,
lhos de mestrado e de doutorado. Está em to- mas contra o quê? A favor do quê? O que que
das as vezes em que escrevemos, “fui à escola, estamos querendo com os nossos trabalhos?
o ambiente estava muito barulhento, as crianças Disputar o que com eles? E com que tipo de es-
estavam pouco concentradas”. Está no muito ou crita? A ideia de que não existe ingenuidade ou
pouco que escrevemos. neutralidade em conhecer e, portanto, para que
conhecemos, vai definir como queremos conhe-
É disso que quero falar hoje. De uma das cer. E vamos percebendo que aquilo que conhe-
ações que se tornou, nesses últimos seis anos, cemos, ou que dizemos conhecer, diz mais de
uma ação importante para a minha formação, nós do que do outro.
que é trabalhar com a formação dos alunos do
Instituto de Psicologia e com outros profissio- Para que conhecer? Para rachar formas do-
nais; uma formação política para pensar sua minantes. 2017. Conhecer é intervir. Escolhemos
ação no mundo através de um dispositivo que as interpretações que queremos do mundo, es-
se chama escrever. Quero passar para os pre- colhemos as formas de pensar. Não é uma esco-
sentes a questão da potência da escrita quan- lha no sentido individual. Não é que temos duas
do falamos em formação. Escrita que está nos interpretações e vamos escolher qual é a melhor.
prontuários, que está no que dizemos sobre as Essas interpretações se fazem em nós, intervin-
crianças na escola, que está nos relatórios dos do no mundo.
Comecei a ficar muito preocupada com a
22
“Conhecer é intervir. Escolhemos nossa escrita, em qualquer lugar e na formação
dos estudantes de psicologia. Escrever é para
as interpretações que queremos rachar, é para rachar as formas, para afetar
do mundo, escolhemos as formas quem ler. Se eu estou escrevendo um manifesto,
de pensar. Não é uma escolha eu quero afetar os que estão próximos a mim,
eu quero congregar mais gente; se eu estou es-
no sentido individual. Não é que crevendo para a escola, eu quero compor com o
temos duas interpretações e professor, eu quero afetar o professor.
vamos escolher qual é a melhor. Então, para o que queremos conhecer?
Essas interpretações se fazem Fiquei enlouquecida pensando nisso. Pegava
em nós, intervindo no mundo” as coisas que eu escrevia, a primeira versão
do que eu escrevia e era sempre insuportável.
Essa escrita, que é uma escrita falatório, Tinha afirmações como, “a escola ainda não
uma escrita onde se escreve tudo - sou muito a trabalha numa direção da política da educação
favor de diário, até ele chegar numa escrita que especial, a perspectiva da educação inclusiva”.
você racha um pouco o que você era, e acho que Como ainda”? Ainda ficava parecendo que era
é muito difícil chegar nessa escrita sem esse para trabalhar, mas não trabalhava. Então, de
diário. Mas nós fomos mudando de uma escrita novo, o outro é equivocado e eu sou histórico?
relatório para uma carta relatório. Não é uma es-
Começamos a perceber a potência disso
crita com, é um pouco com, mas é uma escrita
na transformação do pensamento dos alunos,
para a escola, para as instituições que vamos. É
porque aqueles relatórios de três, quatro pá-
um pouco com no sentido de considerar as for-
ginas sobre cada visita se transformavam em
ças em jogo que eu habitei.
um de uma página e meia com gagueira... Eles
Como é que eu vou escrever? “Os profes- não conseguiam escrever, “é... ãhn... é... ãhn...”.
sores estavam totalmente equivocados quando Depois falava assim, “não, a gente chegou na
nos disseram que Amanda não brinca com nin- escola, estava barulho. Eu queria dizer muito
guém e que está isolada. Chegamos na escola barulho, mas veja bem, quando eu digo muito
e ela jogava basquete.” Se eu sou um professor, barulho, talvez...”
lendo esse relatório, ia dizer, “nossa, eles são ge-
niais, alunos do terceiro ano da faculdade do Ins- Era um inferno. Mas era um inferno bom,
tituto de Psicologia dizendo que a gente tá equi- era um inferno divertido, porque era um inferno
vocado, porque a gente disse pra eles, ‘Amanda onde a gente tinha que transformar o adjetivo
tá isolada, não tem amigos’”. no sujeito. Então, “Leandro é agressivo” tinha
de ser pensado como “a produção do agredir
Por que eles escreveram isso? Eles escre- na escola atravessando o corpo do Leandro”.
veram isso porque ainda têm que aprender que Tínhamos de fazer umas coisas assim, porque
quando a gente diz “Amanda está isolada, estou quando eu falo “a produção do agredir” é muito
preocupadíssimo”, e quando eu digo “quero matar fácil pensar em um monte de coisa que produz
meu marido, estou com raiva”, não quer dizer que o agredir. Quando eu falo “Leandro agressivo”, a
Amanda não tem amigo e não quer dizer que eu vou questão está com ele.
matar meu marido. Não quer dizer. É uma abertura,
é um começo de conversa. E daí vamos na escola Eram idas, vindas, mais ou menos dez para
e falamos, “aha! Os professores tão errados”. Eu poder ser entregue pra escola. E para quê? Para
não sei se vocês concordam comigo, mas é grande ler junto com o professor e ele falar, “aqui eu
o número de mestrados e doutorados que criticam discordo tudo o que vocês escreveram aqui.
a escola. Temos de criticar a escola? Temos. Como Aqui eu acho bom”. Eu me lembro uma vez que
a USP também, como vários lugares, sem proble- lemos com uma criança e a criança falou assim,
mas. Mas de que maneira? De uma maneira em que “você pode tirar esse pedaço?”, eu falei, “ah, eu
fica parecendo que os atores daquela instituição tiro”, era um pedaço que o menino vinha de bici-
tenham uma reponsabilidade muito maior do que cleta, sozinho, eu queria falar da autonomia. Ele
a que eu estou escrevendo? Eu estou escrevendo justificou, “a bicicleta não é minha, você bota no
que eles fazem isso, eu os torno fazendo isso. relatório que eu venho de bicicleta...”.
Começamos a trabalhar com cartas. E mesmo
23
no plantão, com um grupo de professores que trazia “Uma discussão de que eu gosto
o grande problema da constante rotatividade de pro-
fessores. Criamos a ideia de cartas para receber os
e uso muito sobre liberdade é
professores novos. Não precisava ter uma introdução a que coloca a possibilidade de
que é carta, não precisava ser “ó, gostaria muito de te pensarmos que uma coisa é eu

- parte 1
escrever”. Eram cartas que contavam aos professo-
conhecer a partir das marcas

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
res novos alguma coisa que ajudasse essa chegada.
“Preciso te dizer a mudança que conseguimos na fes- que as pessoas produzem em

e enfrentamento
ta junina no ano passado.” O outro “conheço a história mim: se você é agressiva, eu me

Psicologia em emergências
dessa escola”, o outro, “cheguei no final do ano. Fui
professora realocada, cheguei no final do ano”.
sinto agredida e, portanto, você é
agressivo; outra coisa é conhecer a
Eram pequenas cartas. Mas por que isso?
partir das relações: se eu me sinto

CRP SPdas vidas: reconhecimento


Como transformar a rotatividade numa coisa que
acontece e é nela que a gente tem que agir? Acho, agredida é porque eu sou agressível,
inclusive, que é a política desse evento. Na mesa da se o sol me queima é porque eu
manhã, como agir na escola? Como definir no concei-
to de diferença? Nós não queremos outro conceito
sou queimável; e outra coisa é
de diferença, nós queremos agir na construção de podermos pensar que conhecer é
um certo tipo de conceito, porque se nós temos um a possibilidade de criar uma nova

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conceito que discordamos, e apenas formulamos um

e medicalização
conceito que concordamos, agimos pouco nesse que
relação. Portanto, - o exemplo
espinosano -, ‘se a água derruba,

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discordamos. Queremos agir nele e, portanto, quere-
mos conceituar a diferença numa certa convenção. se o corpo cai, a possibilidade de
Bom, nesse sentido, cada palavra escrita não é uma
liberdade é criar o nadar’ ”

Patologização
escolha livre, no sentido de liberta das relações que a
constituem. O que há são escolhas implicadas.
“É preciso”. Por que que a gente escreve “é pre-
A liberdade aqui não se refere ao sentido de ciso” sem ser em manifesto? Um trabalho que fala “é
fazer boas escolhas, refere-se à possibilidade de preciso” ou produzimos a precisância durante o texto,
criação. Uma discussão de que eu gosto e uso mui- ou até produzimos e estamos resumindo, mas traze-
to sobre liberdade é a que coloca a possibilidade de mos como se fosse uma coisa nova.
pensarmos que uma coisa é eu conhecer a partir das

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Temos utilizado na pós-graduação uma estra-
marcas que as pessoas produzem em mim: se você tégia que é a construção de narrativas. A construção
é agressiva, eu me sinto agredida e, portanto, você é de cartas, a construção de narrativas. Narrativa é
agressivo; outra coisa é conhecer a partir das rela- muito difícil, porque a narrativa implica você conse-
ções: se eu me sinto agredida é porque eu sou agres- guir contar a produção de uma experiência. Termino
sível, se o sol me queima é porque eu sou queimável; com uma; com um mestrando escrevendo sobre a
e outra coisa é podermos pensar que conhecer é a mulher que pede internação para o seu filho numa
possibilidade de criar uma nova relação. Portanto, - o certa assembleia. Ele escreve, “tiraram o microfone
exemplo espinosano -, “se a água derruba, se o corpo da mão dela, recusavam o que essa mulher tinha a
cai, a possibilidade de liberdade é criar o nadar.” pedir”. Quem recusava? Quem tirou? Ele também ti-
rou, porque ele ficou em silêncio.
E o criar na escrita? Uma coisa são os nos-
sos pôsteres na hora da seleção, tem que ter re- O que nós temos de discutir no trabalho é
sumo, objetivo e outros tópicos. Só que podemos como esse silenciamento vai sendo produzido de
criar do jeito que quisermos a apresentação. Onde uma forma que rache esse silenciamento. Senão,
podemos criar, temos aproveitado pouco: o que para quê? Senão eu vou nos clássicos, não preciso
que eu quero dizer, que escrita que eu quero definir. mais falar como ele é produzido apenas.
Terminando... Na pós-graduação, eu comecei Então, quis dividir com vocês a minha experi-
a trabalhar com a questão da escrita na disciplina ência como professora na universidade, não como
e pensando que muitos trabalhos defendem na es- psicóloga trabalhando nas instituições educacionais,
crita o que deveria acontecer. essa história fica pra um outro dia.
24 Maria Aparecida Affonso Moysés
Graduação em medicina pela Faculdade de Medicina de São Paulo, doutorado em medicina pela
USP, livre docente em pediatria social pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp; atualmente
professora titular em pediatria da FCM da Unicamp; atua em ensino, pesquisa na área de
atenção à saúde do escolar e em especial nos campos da medicalização do comportamento e da
aprendizagem, avaliação cognitiva, aprendizagem e desenvolvimento; coordena o laboratório de
estudos sobre aprendizagem e desenvolvimento e direitos no Ciped, - Centro de Investigações de
Pediatria - da Unicamp; publicou livros e vários artigos em periódicos científicos na área de medicina,
psicologia e educação; autora do livro A Institucionalização Invisível: Crianças que não aprendem
na escola; parceira do Despatologiza, Movimento pela Despatologização da Vida que tem articulado
as discussões, eventos e ações sobre a medicalização da vida educação; coordena o Repense,
grupo de estudos sobre despatologização, tolerância e discriminação do Fórum Penses da Unicamp.

Queria conversar um pouco sobre o tema da mesa a menor crítica. O Instituto Nacional de Saúde
que é “Despatologizar é Possível”. Mariazinha Mental, em 2012, disse que 46% dos estaduni-
(avatar presente nos slides de suporte da apre- denses preenchem critérios de diagnóstico de
sentação) ajudará nessa tarefa. um transtorno mental. Ponto. É isto. Não é crítica,
vamos deixar isso bem estabelecido. Na Euro-
Bom, eu não sei se todos vocês estão acos-
pa, em 2013, se afirmou 38% dos europeus com
tumados, mas exige-se que médicos e médicas, ao
transtornos mentais. O Centro de Controle de
publicarem ou fazerem apresentações, declarem os
Doenças nos Estados Unidos revela que uma em
conflitos de interesse. Infelizmente, há de ter moti-
cada cinco crianças tem, por ano, um episódio de
vos para isso. Então, eu declaro que eu não tenho
transtorno mental. O que eles estão chamando
conflitos de interesses com a Novartis, nem com a
de episódio de transtorno mental, clareando, é
Jansen, nem a Shire. Com nenhuma indústria, nem
um surto psicótico. Uma em cinco. Nos Estados
com editoras. Eu publico algumas coisas, mas não
Unidos, os diagnósticos de transtorno bipolar au-
ganho dinheiro com isso, às vezes a gente paga
mentaram 40 vezes.
pra publicar. Enfim, eu não tenho nenhum interesse
financeiro nessa discussão, eu não tenho nenhum
Só lembrando: o transtorno bipolar é o su-
conflito de interesse. Mas tenho sim, alguns com-
cedâneo, o herdeiro da PMD (Psicose Maníaco
promissos que são radicais, porque vão à raiz das
Depressiva). E tem alguns fatores que já ajudam
coisas e são intransigentes porque são princípios
a entender esse aumento de diagnósticos de
e princípios a gente não transige, a gente não ne-
transtorno bipolar. Vejam: até metade dos anos
gocia. O intransigente é: não negociamos princípios.
90, era um dado inquestionável que não existia
O convite da mesa era pra falar de possibili- PMD em crianças, e era muito raro em adolescen-
dades de despatologização, e de vez em quando tes. O caso mais descrito no mundo era o de um
a minha cabeça se descomporta se comportan- garoto de 13 anos, que era raridade. Então, não
do. E aí eu pensei assim, “mas como é que eu vou tem PMD, pediatra não se preocupa com PMD
falar de despatologização sem falar o que quer porque não tem. E, de repente, tem esse aumen-
dizer, por que que precisa despatologizar?” to. Bom, alguns fatores têm pra isso, sem dúvida.

É mais ou menos assim, só precisa incluir


Sem dúvida, tem o glamour do nome, o ma-
porque excluiu. Se não patologizou, não tem por
rketing. Eu nunca escutei ninguém dizer assim,
que despatologizar. Então, vou conversar um
“eu sou PMD”. Vocês ouviam? Ou alguém dizer,
pouco antes sobre os processos de patologiza-
“eu sou psicótico”? E dizer assim, “eu sou bipo-
ção da vida. E acho que um jeito de discutirmos
lar”. Explica tudo. É chique. E eu não estou ridicu-
isso é conversarmos sobre a epidemia de trans-
larizando quem tem o problema, eu estou dizen-
tornos mentais que nos assola hoje.
do que foi glamourizado e vulgarizado. Esse é um
Há dados que são bastante eloquentes. fator. Então, é muito mais fácil aceitar um diag-
Esses dados são publicados, são divulgados sem nóstico de transtorno bipolar do que de PMD.
Um outro fator é que teve uma mudança Como foram construídos esses números?
25
de critérios, os critérios se tornaram frouxos, eles Porque isso nunca é dito. Que critérios de trans-
englobam todo mundo, é muito fácil entrar nesse torno mental são esses? De onde saíram esses
diagnóstico. E tem um outro dado, que cada vez números? Isso não é divulgado. Isso é naturaliza-
tem mais literatura mostrando, que, nos Estados do, não tem crítica, é reificado. E, só lembrando
Unidos, jovens internados, adolescentes inter- que, com esses números, é impossível, no campo

- parte 1
nados em surtos psicóticos estavam recebendo de política pública, pensar em implantar qualquer

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
drogas, substâncias psicoativas, há mais de três política pública que dê conta de atender isso. Não
anos. 80% num estudo, 70% no outro, e todos au- dá pra atender. E não é porque o SUS... não. Em

e enfrentamento
tores dizendo “esse jovem não tinha nada na his- lugar nenhum do mundo.

Psicologia em emergências
tória de vida que indicasse que ele teria um surto,
Isso é, no mínimo, duplamente perverso, por-
e agora ele está tendo um surto” e tem uma clara
que teremos crianças, como a Mariazinha que se
relação com o uso de substâncias psicoativas.
descomporta muito comportadamente, sendo ro-

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Dez mil crianças abaixo de dois anos em tra- tuladas, etiquetadas, e isso é extremamente per-
tamento por ter tempo cognitivo lento. verso com ela, porque, como diz Adriana, o falso
positivo a gente carrega para a vida toda no cam-
Taxa descrita de prevalência, de incidência
po do transtorno mental.
de autismo no mundo. Subindo de um para cinco
mil casos em 1975, para um para 64 em 2015. O Mas, se eu tenho 10%, 15%, aquele Joãozinho
que significa subir de 0,02% pra 1,5%. que tem problema, não vai ser identificado. E não
tem o que fazer, porque não dá pra atender, então
Espectro é aquela coisa que você tem um

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e medicalização
Joãozinho também não é atendido.
pouco, mas não tem tudo, então um pouco você
tem. E não estou desqualificando, ridicularizando, Vejam que é perverso com quem é rotulado

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fazendo bullying com quem tem autismo. Não é não tendo problema e é perverso com quem tem o
isso. O diagnóstico melhorou? Ok, mas isso não problema. É impossível dar conta desses números.
acontece em campo nenhum na medicina. Só Para entendermos quando a gente fala em epide-

Patologização
aqui no campo dos transtornos mentais é que mia de transtornos mentais, precisamos corrigir a
melhora o diagnóstico? Isso é algo que cientifica- escrita. Na verdade, é uma epidemia de diagnósti-
mente não se sustenta. cos de transtornos e não de transtornos. Com es-
ses números, não dá para aceitar esse dado que
Bom, a partir desses números somos obriga-
é divulgado. Falar em porcentagem nessa frequ-
dos a pensar: quem é normal? Temos uma discus-
ência, não cabe na racionalidade médica. Alguma
são, há tempos, de que normalidade é um conceito
coisa de muito errado está acontecendo aqui.

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normativo, impositivo, controlador. Mas não é isso
que se coloca aqui. Eles acabaram com a normali- Para entender essas coisas, Adriane Fugh-
dade, não acabaram com o conceito; não é possível Berman, professora de medicina da University
mais ser normal, no mínimo preenchemos critérios Georgetown, tem um texto fantástico em que ela
de três transtornos. Isso se a gente for saudável. diz: “Existe um número muito maior de pessoas sau-
dáveis do que de pessoas doentes no mundo e é
importante para a indústria farmacêutica, fazer com
“Isso é, no mínimo, duplamente que pessoas saudáveis pensem que são doentes.
Existem muitas maneiras de fazer isso. Uma delas é
perverso, porque teremos
mudar o padrão do que se caracteriza como doença.
crianças, como a Mariazinha Outra é criar novas doenças”.
que se descomporta muito A gente altera a norma e cria outras enfer-
comportadamente, sendo midades.
rotuladas, etiquetadas, e isso Um outro texto, que acho complementar, é
é extremamente perverso com do livro “Vendendo doenças, vendendo enfermida-
des”, de dois jornalistas dos Estados Unidos, es-
ela, porque, como diz Adriana, o
pecialistas em indústria farmacêutica. É um livro
falso positivo a gente carrega muito interessante porque eles têm acesso a atas
para a vida toda no campo do das reuniões, a vídeos das reuniões das indústrias
farmacêuticas. Ele conta o que falou o grande che-
transtorno mental”
fe da indústria farmacêutica, “Está fantástico, es- dizem, “o DSM matou a psicopatologia, os estudan-
26
tamos ganhando muito, muito, muito, mas ainda tem tes são formados pelo DSM e não por conhecerem
gente que não é doente, tem gente que acha que psicopatologia”.
não é doente, e a gente precisa convence-los de que
No DSM-5, eu quero colocar algumas per-
eles são doentes, e mais do que ser doente, que eles
guntas para todos:
precisam tomar um remedinho. Os próximos anos
mostrarão a criação de enfermidades patrocinadas Quando uma criança pode ser sonhadora e
por empresas”. viver no mundo da fantasia sem risco de ser rotu-
lada com déficit de atenção?
Um dos departamentos mais valiosos da in-
dústria farmacêutica é uma equipe de marketing Quantos baseados um jovem pode fumar
que constrói um processo de primeiro dar o nome sem risco de ser internado em uma comunidade
do remédio. O nome do remédio é muito poderoso. terapêutica?
Vejam, Concerta, Venvanse, até a Ritalina é boa,
não é? Eles constroem o nome e eles constroem Quanto uma criança pode fazer birras – e
a campanha que sempre vem antes da divulgação em qual intensidade – sem ser rotulada como
do medicamento dizendo que “existe uma doença transtorno disruptivo de descontrole de humor?
aí que...”. Então, quando começa a aparecer dados Não sei se vocês conhecem esse transtorno dis-
de aumento de uma determinada doença, como ruptivo de descontrole de humor, que nada mais
aconteceu com o autismo, na minha paranoia eu é que birra. E não é dos pais o transtorno, é da
sempre digo, está para aparecer um remédio, vão criança. E é tratada com Risperidona, o antipsi-
lançar o remédio que já está lá. cótico de terceira geração.

Enfim, é disso que estamos falando. Para si- Quanto um jovem pode não gostar de estu-
tuar o que estamos falando, nos Estados Unidos, dar sem risco de ser rotulado como transtorno de
houve um aumento de lucro da indústria farma- aprendizagem? Pode não gostar, não é? Aliás, é
cêutica, em 2008 eram US$ 799 bilhões e em 2015 mais normal não gostar.
subiu para US$ 1.057 bilhões. Esses são dados Quanto uma criança pode ser desobe-
extremamente difíceis de conseguir porque só diente e sem limites sem o risco de ser rotula-
são divulgados em livros que só eles têm acesso, da como opositor desafiante? Quanto a gente
por isso não estão atualizados, mas já dá uma di- pode ser teimoso e desafiar e questionar? Ali-
mensão da grandeza. ás, aqui todo mundo tem TOD. E eu sempre digo
que quem tem TOD autêntico diz, “eu não tenho
TOD, eu tenho Nescau”.
“E, então, estamos falando
Quanto uma criança pode ser agitada e
do quê? De diagnóstico? De ativa sem risco de ser rotulada como hiperati-
etiqueta? Ou de uma vida va? Pode ser agitado? Tempos atrás, as crianças
transformada em mercadoria?” eram espertas, peraltas, desobedientes, sonha-
doras, arteiras...

Hoje, elas são hiperativas, desatentas e


E, então, estamos falando do quê? De diag- coisas assim. Como mede isso? Qual é a norma
nóstico? De etiqueta? Ou de uma vida transforma- para definir? E não me digam que os especialis-
da em mercadoria? tas sabem. A norma são os valores deles trans-
postos para os outros.
A evolução do DSM - editado pela Asso-
ciação Americana de Psiquiatria, Associação de Então é assim: se o meu valor é de uma
Psiquiatria dos Estados Unidos, não da América criança questionadora, que grite “fora Temer” e
- mostra como é que aumenta o número de cate- eu atender uma criança quietinha, comportada,
gorias diagnósticas a cada edição do DSM. Isso só que só obedece e não pergunta, eu vou dizer que
existe no campo da saúde mental, não existe em ela é apática ou hipoativa, para entrar no padrão.
nenhum outro campo da medicina. Quer dizer, algu- Se o pai desta criança atender o meu filho, vai
ma coisa estranha à racionalidade médica. Só lem- dizer que ele é hiperativo. Está claro isso? São os
brando que os professores de psicopatologia hoje valores. Qual é a ética? Qual é a ciência que em-
nas faculdades de medicina, os bons professores, basa isso? Acho que não precisamos responder.
Mais algumas perguntas saindo do campo
27
das crianças. “Então, Mariazinha vem lembrar
Quantas vezes uma pessoa deve fazer sexo que um dos modos da gente
– e com quanto prazer – sem risco de ser rotulada despatologizar ou construir
como transtorno de hipossexualidade?
vidas despatologizadas, é nos

- parte 1
Quantas vezes uma pessoa pode fazer sexo
aterrarmos, criarmos solos ético-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
– e com quanto prazer – sem o risco de ser rotula-
da como transtorno de hipersexualidade? políticos. É ela dizendo para nós,

e enfrentamento
Eles não tiveram coragem no DSM-5 de colo-
‘Despatologiza’ ”

Psicologia em emergências
car o homossexualismo de volta como doença, que
foi uma conquista do movimento LGBT. Não é do-
A subjetividade é aquela, é uma possível.
ença. Não tiveram coragem, mas criaram o trans-

CRP SPdas vidas: reconhecimento


Nesse espaço, a ética não tem lugar, a política não
torno de hipossexualidade. Se você transar pouco,
tem lugar, ciência não tem lugar, e sinto dizer que a
ou com pouco prazer, você tem hipossexualidade.
arte também não tem lugar.
Porém, se você transar muito, ou com muito prazer,
você tem hipersexualidade. E o parâmetro aqui é a Escutem Maria Bethânia.
sexualidade de quem avalia. Lógico.
Tem dias que a gente se sente
Quanto tempo uma pessoa pode chorar Como quem partiu ou morreu
suas perdas sem o risco de ser rotulada como

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
depressão? Eu não sei se vocês sabem que até A gente estancou de repente
DSM-4, o luto era critério de exclusão pra de- Ou foi o mundo então que cresceu...

Cadernos Temáticos
pressão. Uma pessoa em luto não poderia ter o
diagnóstico de depressão. O DSM-5 manteve o A gente quer ter voz ativa
critério por 14 dias. No décimo quinto dia, você

Patologização
No nosso destino mandar
pode estar com depressão.
Mas eis que chega a roda viva
Tem alguns textos lindíssimos de uma mé-
dica inglesa, Joanna Moncrieff, em que ela diz E carrega o destino prá lá...
que: “com certeza quem fez isso nunca perdeu Então, Mariazinha vem lembrar que um
uma pessoa querida, porque, provavelmente, nun- dos modos da gente despatologizar ou cons-
ca amou ninguém”. truir vidas despatologizadas, é nos aterrarmos,

Cadernos Temáticos CRP SP


Enfim, nesse processo estamos falando de criarmos solos ético-políticos. É ela dizendo
algo que tira a vida de cena, e eu acho que temos para nós, “Despatologiza”. E tem algumas pos-
de perguntar: sibilidades pra gente atuar. Uma é o campo das
políticas públicas, seguindo alguns princípios
Por quê? Para quê? E para quem? Por que fundamentais. Acho que um que não podemos
isto acontece? transigir é: que saúde e educação são direito de
todos e dever do Estado, mais do que nunca. O
Não é maldade, não é maniqueísmo, não é só
compromisso com a qualidade de vida de todos.
má formação. É um processo muito mais amplo e
A política pública não pode estar submetida ao
mais profundo que temos de pensar e de investi-
mercado. A política pública tem que se propor a,
gar o porquê isso acontece. Sem dúvida, hoje no
de fato, enfrentar desigualdades, e enfrentar a
mundo e no Brasil, e no Brasil ainda mais, na medi-
mercantilização da vida. Esses são alguns prin-
da em que vivemos um projeto societário de bar-
cípios que são inegociáveis no campo de políti-
bárie, isso se amplia ainda mais.
cas públicas. Atuando no campo das políticas
Nesse mundo, nesse projeto societário de públicas, temos de ter esses princípios.
barbárie, singularidade não tem espaço. Tem sim
Quero, então, contar para vocês uma experi-
de ser normatizado, padronizado, normalizado. É
ência possível, realizada em Campinas.
como a música do Raul Seixas, “Tem que ser rotu-
lado... Pluct! Plact! Zum!” Tem de ser carimbado, ro- O gráfico apresentado no slide mostra a
tulado, não há espaço para a singularidade e nem evolução da dispensação de Metilfenidato na rede
para a subjetividade. pública de Campinas, de 2005 a 2011. Metilfenida-
to é o nome da substância da Ritalina e do Con- esta criança, o que ela precisa. Neste projeto
28
certa. Essa evolução é muito semelhante ao que terapêutico singular, o psiquiatra ou neurologista
encontramos em praticamente todos os lugares podem considerar que o Metilfenidato, a Ritalina,
onde conseguimos dados, porque uma das carac- pode ser benéfica pra essa criança. Pode ser ad-
terísticas que temos é a dificuldade em conseguir ministrado se essa criança tiver mais do que oito
dados públicos. Vejam o crescimento: anos, menos de oito anos, não.

Em 2006 – 22.680 Introduziu o medicamento, que nunca é ele,


ele é algo a mais do projeto terapêutico singular,
Em 2007 – 22.560
portanto, a proposta não é de fazer economia
Em 2008 – 49.460 à custa dos pobres, porque é muito mais caro
uma equipe cuidando do que um remedinho, cer-
Em 2009 – 66.240 to? Essa criança é reavaliada em três meses. Se
a criança está muito melhor, pode manter a pres-
Em 2010 – 91.780
crição; se não tem uma mudança significativa, ele
Em 2011 – 186.501 é retirado e não é nunca mais introduzido porque
já se sabe que não funcionou; se ele se mantém,
Isso é dispensação, na rede pública.
está lá se é o seguimento com ou sem substância
Com este número final, acendeu-se um si- psicoativa, essa criança vai seguindo o projeto te-
nal vermelho e a coordenadora de Saúde Mental rapêutico singular com todos os profissionais e a
da Secretaria de Saúde de Campinas, junto com escola envolvida, a cada seis meses a equipe faz
a coordenadoria da área de saúde da criança, toda uma reavaliação, rediscute, inclusive reava-
convidaram alguns profissionais da rede, da liando. O pediatra avaliando crescimento da crian-
Unicamp, do Despatologiza, para participarem ça, alimentação e toda parte pediátrica da criança
de um grupo de trabalho que começou a discutir, e se discute qual é o projeto terapêutico singular
levou quase um ano discutindo, numa estraté- para os próximos seis meses, que pode manter ou
gia política bastante interessante, a de convidar não a substância psicoativa. Se ela for sendo man-
para o grupo aqueles médicos que eram identifi- tida, é no máximo dois anos. Depois de dois anos,
cados como os maiores prescritores. ela é suspensa e não pode mais ser reintroduzida,
porque a literatura indica que: substâncias psico-
Então, eles começaram a participar do gru-
ativas usadas cronicamente por mais de 30 ou 36
po. E foi construído um protocolo que não proí-
meses, provoca danos cerebrais irreversíveis, aí
be o diagnóstico e não proíbe a dispensação de
sim surgindo doenças psiquiátricas sérias. Bom,
Metilfenidato. Porém, ele tem um embasamento
esse protocolo foi implantado, e foi todo um pro-
científico, com toda a bibliografia exposta. Ele
cesso fantástico da equipe. Eu não participei des-
constrói um algoritmo fundamental para o diag-
se GT, a Rosangela (Villar) participou, o Fernando
nóstico e a dispensação de Metilfenidato, que
(Chacra) participou, e teve uma adesão incrível dos
não pode ser burlado.
profissionais e dos familiares. A escola também
Então, o primeiro ponto é: uma criança que tranquila, e a curva foi esta.
chegue na unidade de saúde, ela é atendida pri-
Em 2012 – 65.880
meiro na área de saúde da criança, não é atendida
na saúde mental, sempre passa pela área de saú- Em 2013 – 48.500
de da criança e, se o pediatra ou psicólogo acha-
Em 2014 – 18.284
rem que essa criança tem algum problema, ou se
ela foi encaminhada, ela é avaliada por uma equipe Em 2015 – 5.867
multiprofissional, que inclui o pediatra, psicólogo,
A queda para 5.857, foi de um terço de um ano
psiquiatra ou neurologista, se precisar, se for o
para o outro. Fizemos um levantamento para saber
caso, fonoaudiólogo, que fazem toda uma avalia-
se estavam dando outra coisa. Conseguimos um
ção e a discussão dessa criança e é construído um
levantamento de Risperidona e Imipramina e vimos
projeto terapêutico singular para ela.
que não tinha aumentado. Agora, estamos queren-
Não importa se ela vai ficar com diagnós- do de novo esse levantamento. E eu devo dizer a
tico de TDH, de dislexia, de TOD, o projeto tera- vocês que a Risperidona, que é dispensada pelo Es-
pêutico não é para o diagnóstico, é para a Maria- tado, é muito mais transparente. Faz alguns meses
zinha, para o Joãozinho, para o Pedrinho, é para que estou mandando e-mails, sem respostas.
Acho que é uma coisa fantástica, que só de todas as Câmaras Técnicas do Ministério da
temos mesmo que dizer, “olha, dá pra fazer”. Saúde, todas eram contra. Foi aprovada. A Câ-
O município de São Paulo implantou na gestão mara arquivou. Em abril, comecinho de abril de
passada, obviamente, com mais dificuldades 2017, um deputado desarquivou, o Ministério da
pelo tamanho da rede e pela reação. Em Campi- Saúde, todas as Câmaras Técnicas reprovaram,
nas é Protocolo e em São Paulo, Portaria. Teve deram parecer contrário e, no final de abril, não
reação, mas a administração bancou, manteve deu um mês, ela estava publicada com a san-
e estava tendo um resultado muito bom nos ção do ilegítimo. Com o detalhe de que a lei é
lugares onde estava implantado, com redução assinada pelo ilegítimo e pelo ministro da Jus-
ainda pequena da dispensação, mas com uma tiça, o ministro da Saúde não assinou, o que é
mudança qualitativa na equipe. um dado interessante. Isso tramitou assim, em
caráter de urgência na Câmara. Não se ficou sa-
No Ministério da Saúde, o responsável, o
bendo, só se soube quando já tinha sido, e en-
coordenador da área da saúde da criança, Paulo
tão uma série de entidades, associações, movi-
Bonilha, pediatra da Unicamp, meu aluno e gran-
mentos, se juntaram e começaram a pressionar
de companheiro do Despatologiza, conseguiu
o Ministério da Saúde e soubemos que eles iam
fazer sair uma recomendação da coordenação
organizar um workshop, para discutir, porque a
da área de saúde da criança e do adolescente,
lei teria que ser regulamentada. E tínhamos um
para todos os estados e municípios do Brasil,
dado a nosso favor, sabíamos que o Ministério
- também na gestão passada, pré-golpe - reco-
da Saúde era contra, pelo menos não o primeiro
mendando que fossem implantados protocolos
nível, mas abaixo.
semelhantes a esse.
O workshop aconteceu, nos dias 28 e 29
E novidade absoluta, dia seis de outubro, de setembro, com a participação de várias en-
o estado de Pernambuco aprovou a implanta- tidades, aqui eu coloquei algumas que depois
ção do protocolo no estado. Grande mérito da acabaram atuando em conjunto, mandando
Patrícia (Guimaraes) aqui presente. Esses são documento para o Ministério, mandando docu-
os que a gente tem notícia. Eu sei de várias ci- mento para o Ministério Público, publicando, di-
dades que têm feito coisas semelhantes e que vulgando, pedindo abaixo-assinado, uma série
a gente não tem os dados, mas também não de questões, e algumas coisas foram consen-
precisa, o que importa é que tá espalhando. suadas nesta reunião.
Então é o seguinte: a Mariazinha tá dizen- No Despatologiza tem uma série de docu-
do, “ó gente, dá, hein? Vamos lá”. mentos a respeito: a nota pública; um texto meu
que é: A Lei 13.438 é um risco à saúde das crian-
Em abril de 2017, foi publicada uma lei do
ças; um documento anterior de um grupo de psi-
Governo Federal, a Lei 13.438 que altera do ECA,
canalistas, psiquiatras, que fala dos riscos da
- o Estatuto da Criança e do Adolescente -, e
lei. Como eles falam em risco, nós também.
tem um único artigo que é: modifica o artigo do
ECA. Este parágrafo torna obrigatória a aplica- Foi consensuado nesse workshop que o
ção de instrumento ou protocolo para identifi- Ministério da Saúde deve encaminhar a revoga-
cação de risco para o desenvolvimento psíquico, ção da lei. Estamos divulgando muito para que
ou de risco psíquico, leia-se fundamentalmente isso aconteça. Quanto mais divulgarmos, mais
autismo, nas consultas pediátricas de todas as dermos publicidade a isto, estamos querendo
crianças até os 18 meses. que o grupo que estava no workshop também
não sofra um golpe. Então que seja encaminha-
Era o que falávamos na mesa da manhã
da a revogação da lei.
sobre judicialização. Uma lei impondo que os
pediatras, ou os profissionais que fazem con- Além disso, como a Biancha já falou, foi
sultas pediátricas, façam determinada ação, consensuado que toda criança deve ter, sim, um
que é uma ação científica, uma ação técnica, acompanhamento de perto de seu desenvolvi-
que tem uma normatização técnica. Pesquisan- mento. Não só do desenvolvimento: do cresci-
do, o que encontramos é que essa lei tinha sido mento, da alimentação, do sono, do afeto, das
aprovada no Senado em 2012 ou 2013, quan- relações, tudo tem que ser acompanhado. E já
do foi pra Câmara, ela ficou arquivada; lá ela foi existe esse instrumento, não precisa de uma
aprovada no Senado com pareceres contrários lei. Esse instrumento existe desde 2005, é a Ca-
Isto não quer dizer que não tem pediatra que
“Este é o campo sim onde entenda de autismo. Não é isto. É que não é lá que
isso deve ser feito, e não se pode cobrar isso dele.
podemos atuar, o campo de Até porque, se ele for cobrar, se ele for fazer isso,
formação profissional. Temos vai ser mais um cursinho com treinamento aligei-
de batalhar por uma formação rado e que muita gente vai ganhar muito dinheiro.
Então, isto é outra decisão consensuada.
profissional pautada pela ética,
fundada no campo da ciências Além disso, um município quer usar outro
instrumento que não a Caderneta de Saúde da
e das humanidades; que tenha Criança, pode usar, desde que esse instrumen-
um compromisso com a vida to seja aprovado pelo Conitec – Comissão Na-
de todos; que não seja dirigida cional de Incorporação de Tecnologia no SUS.
Não pode alguém chegar e dizer assim, “olha,
nem pelo nem para o mercado; eu tenho essa coisa maravilhosa, fantástica”.
que tenha como princípio que Não. Tem que submeter ao Conitec. Em campo
toda pessoa merece uma vida de saúde pública não tem achismo, tem que ter
comprovação, tem que ter estudo epidemiológi-
digna; que se paute em ações co, saber falso positivo, falso negativo, e isso é
cidadãs e não tecnicistas; que o Conitec que vai avalizar. Além disso, sabemos
respeite as pessoas e o lugar que o SUS tá sendo degradado. Sabemos que
os profissionais que atuam no SUS precisam
onde se está, os saberes, os estar em constante formação continuada. E
valores, a história, o acesso, que isso também foi consensuado, que precisa ter a
respeite e acolha as pessoas expansão e qualificação dos diferentes serviços
e estratégias da atenção básica, em especial a
que sofrem processos, não só interdisciplinar e multiprofissionais com parce-
patologizantes, mas processos ria dessa rede aqui. Não se faz nada sozinho,
de sofrimento” tudo é em rede. O SUS se constitui como uma
rede em diferentes níveis e hierarquizações, re-
gionalizações.

Se essa lei for implantada, ela destrói o


derneta de Saúde da Criança, que substituiu a SUS. Não podemos admitir. Além disso, preci-
caderneta de vacinação. Caderneta de vacina- samos sim ter formação dos profissionais, eles
ção só tinha vacina, a de saúde da criança tem precisam estar em constante capacitação em
os registros mais importantes para a saúde da serviço, e pra isso precisa ter recurso.
criança; tem a vigilância do desenvolvimento in-
Este é o campo sim onde podemos atuar,
tegral de todas as áreas de desenvolvimento,
o campo de formação profissional. Temos de ba-
do crescimento. É um documento universal que
talhar por uma formação profissional pautada
é distribuído na maternidade, e tem uma par-
pela ética, fundada no campo da ciências e das
te muito grande de orientações para a família,
humanidades; que tenha um compromisso com
tanto como ela deve lidar com a criança, quanto
a vida de todos; que não seja dirigida nem pelo
como ela pode acompanhar a criança.
nem para o mercado; que tenha como princípio
Essa caderneta já está na décima edição, que toda pessoa merece uma vida digna; que se
já está para sair outra. A edição atual tem oito paute em ações cidadãs e não tecnicistas; que
páginas sobre desenvolvimento. É fantástico. respeite as pessoas e o lugar onde se está, os
Se aquilo for usado, qualquer problema vai ser saberes, os valores, a história, o acesso, que res-
encaminhado. Uma coisa para mim é bastante peite e acolha as pessoas que sofrem processos,
clara, não se pode pretender que o pediatra não só patologizantes, mas processos de sofri-
faça diagnóstico de autismo, de psicose, en- mento. E também que acolha as famílias que so-
fim, ele vai identificar, “não está indo bem”. Para frem, que quando uma criança tem um problema,
isso, temos um outro nível de atenção na reta- a família toda sofre também. Enfim, a vida não é
guarda que vai atender. mercadoria. Dá pra lutar, temos que lutar.
Subverter o olhar, inventar 31

possibilidades e enfrentar
desigualdades

- parte 1
Psicologia em emergências e desastres

e desastres
e enfrentamento
Maria Teresa Esteban

Psicologia em emergências
Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense, mestrado em Educação pela Universidade
Federal Fluminense, Doutorado em Filosofía y Ciencias de La Educación pela Universidade de Santiago de

CRP SPdas vidas: reconhecimento


Compostela e Pós-Doutorado na Universidad Nacional Autónoma de México e na Universidade do Minho.
Atualmente é professora Associado IV da Universidade Federal Fluminense, atuando na Graduação em
Pedagogia e no Programa de Pós Graduação em Educação da UFF, nos cursos de Mestrado e Doutorado.

Bom dia. É um prazer enorme estar aqui esta trutura, que se consolida, começando aos sete
manhã, compondo esta mesa. Agradeço o con- anos. Essas crianças estão fazendo provas em
vite, é uma alegria muito grande. que têm de preencher cartão resposta. Há toda
uma defesa para isso e já tem um movimento

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Eu vou falar da escola, de dentro da escola

e medicalização
em curso de expansão para educação infantil.
e um pouco de dentro da sala de aula, que é o Imagino eu que as crianças da educação infantil

Cadernos Temáticos
meu lugar. Sou da Faculdade de Pedagogia, sou não farão as provas de múltipla escolha, mas
pedagoga, então o meu lugar é a escola e a sala esse olhar do exame, é um olhar que padroniza,
de aula e, muito especialmente, a escola públi- classifica e, portanto, segrega e exclui. Então, é

Patologização
ca; a escola pública brasileira que é uma esco- desse lugar que eu venho pensando essas re-
la que recebe fundamentalmente as crianças, lações que estão tão naturalizadas e intensifi-
adolescentes e jovens das classes populares. cadas que nós quase não percebemos que elas
Temos aí um recorte importante de diálo- vão abarcando a quase totalidade das crianças.
go com as questões da patologização, da ex-
clusão e da segregação, que vem produzindo
um discurso que traduz a diferença como justi- “Vou pensar aqui a escola como

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ficativa de desigualdade nas práticas escolares
um espaço de reexistência, como
cotidianas. E, cada vez mais, no contexto em
que vivemos, a própria legislação vai orientando um espaço potente, exatamente
muito nesse sentido. Então, nós temos um mo- pelas microrrelações que ela
vimento de redução da função da escola e de
pode estabelecer”
redução do que se compreende que seja educa-
ção escolar, do que seja escolarização, do que
seja educação.
Quando nós pensamos nas crianças das
O Escola sem Partido é um exemplo, mas classes populares, que estão na escola pública,
a gente já vem vivendo um processo de redu- esse movimento é muito intensificado, porque a
ção das perspectivas curriculares, dos projetos diferença vai sendo constantemente traduzida
de ação na escola, muito encaminhado, do meu como impossibilidade, como dificuldade, como
ponto de vista, pelo sistema de avaliação exter- deficiência e como falta, no sentido da impos-
na, que é um sistema que uniformiza. Assim, to- sibilidade, e que vai constituindo uma história
das as crianças, adolescentes e jovens do Brasil, de fracasso escolar. Fracasso que vinha nos úl-
num determinado período serão submetidos ao timos anos, a passos bastante lentos, num sen-
mesmo exame, e terão os seus desempenhos tido de reversão, mas que percebemos, como
verificados a partir das mesmas perguntas, nos diversos outros segmentos, um movimento
das mesmas respostas e da mesma escala de muito rápido de retorno aos pontos anteriores.
classificação. Temos aí um sistema que se es- Por exemplo, a discussão de proibição da apro-
vação automática. Isso está em discussão, uma medida em que a maioria dos nossos estudan-
32
lei que proíba a aprovação automática. Estão ti- tes são de famílias de classes populares e, de
rando da escola, dos projetos político-pedagó- modo crescente, os professores e professoras
gicos, das relações que se dão cotidianamente, também são das classes populares.
a possibilidade de definir como é que nós va-
Dessa forma, não tem sentido que a gen-
mos conduzindo essa vida escolar. Então é des-
te tente mimetizar uma escola feita para um
te lugar que estou falando e pensando nesse
outro contexto, para uma outra realidade, para
fracasso escolar de um modo bastante amplo:
uma outra dinâmica, na medida em que nós te-
essa dinâmica entre êxito e fracasso escolar.
mos uma grande produção na América Latina,
Vou pensar aqui a escola como um es- no Brasil, sobre a educação popular, não des-
paço de reexistência, como um espaço poten- conhecendo as outras contribuições, mas colo-
te, exatamente pelas microrrelações que ela cando em diálogo a partir de uma determinada
pode estabelecer. Não que esteja à margem da perspectiva que vai ser marcada pela ideia de
dinâmica mais ampla, mas é ainda um espaço processos de libertação, retomando, então, a di-
que possibilita encontros múltiplos, encontros mensão política do processo de escolarização.
diversos e, portanto, pensar e praticar outras
Pensando a partir desses dois lugares,
possibilidades com enfrentamento, com o de-
que eu entendo que nos ajudam a subverter o
bate e com avanço e retrocessos, mas entendo
olhar, busco possibilidades outras, essa inven-
que ainda é um espaço que tem essa possibili-
ção de possibilidades a partir de algumas rup-
dade. Assim, vou encaminhar minha fala a par-
turas epistemológicas, teóricas e metodológi-
tir de dois posicionamentos, tentando dialogar
cas. Trago duas ideias também que me ajudam
com o título da mesa que é “Subverter o olhar,
nessa perspectiva.
inventar possibilidades”.
Uma é a ideia da pesquisa com o cotidia-
no, que vai se conectar imediatamente com a
“Esse é o desafio: entrar no posição de falar com a escola, olhar para as
práticas escolares com a escola e não falar
diálogo com a escola e pensar a
sobre a escola ou para a escola. Então, a ideia
escola com ela própria, o que é da pesquisa com o cotidiano vai indicar alguns
que ela está nos dizendo por ela percursos de relação com os sujeitos na produ-
ção do conhecimento e, muito especificamente,
mesmo, como é que nós falamos
entrar mesmo na sala de aula com a ideia da
sobre isso” formação da professora pesquisadora.

Para a ideia de subverter o olhar, vou me “Pesquisar é próprio da ação


apoiar em duas posições: primeiro olhar para a
escola. Olhar a escola com a escola e não olhar
docente”
para a escola a partir da universidade ou a partir
da pesquisa, isto é, a partir de um lugar exterior
Pesquisar é próprio da ação docente. Às
à escola. Esse é o desafio: entrar no diálogo com
vezes, no curso de mestrado, doutorado acon-
a escola e pensar a escola com ela própria, o que
tece muito isso. Uma professora vem ao mes-
é que ela está nos dizendo por ela mesmo, como
trado, ao doutorado para fazer uma pesquisa
é que nós falamos sobre isso. E uma outra posi-
sobre a sua prática. Ela sai da sala de aula, vem
ção é pensar a escola pública como espaço de
para um outro lugar e fala sobre, deste lugar em
educação popular. Esse debate é relativamente
que está e já não fala mais com aquele lugar ao
antigo no campo da educação popular, se a ins-
qual pertence. E aí é muito comum escutarmos,
tituição, se a educação institucionalizada pode
“mas aí eu estou na sala de aula, estou como pro-
ser de educação popular ou não. Já tem algum
fessora ou estou como pesquisadora?”.
tempo que o GT de Educação Popular da ANPEd,
de que eu faço parte, vem trabalhando com mui- Não é disso que estamos falando. Estamos
ta tranquilidade com essa ideia de que a escola falando da ideia de que a ação docente demanda
pública é um espaço de educação popular, na um processo constante de pesquisa, de reflexão,
de compreensão, de problematização daquilo Ela é de uma família grande, são sete, oito
33
que acontece no cotidiano da escola e da sala irmãos, e ela é a quinta, a única, nascida numa
de aula. Isso pode se traduzir ou não na pesquisa favela do Rio de Janeiro, que chegou ao douto-
formal. Isso pode se traduzir ou não num projeto rado. Quando ela entrou na escola, os irmãos
de mestrado, de doutorado, um projeto de pes- mais velhos já tinham entrado, já tinham vivido
quisa formalizado, mas há uma certa necessida- uma experiência de fracasso, e quando ela en-

- parte 1
de de que a ação docente esteja atravessada tra na escola, o pai diz, “agora eu já sei o que eu

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
por essa lógica da pesquisa. Trabalhamos com a tenho que fazer”, e ele a alfabetiza em casa e ela
ideia de professora pesquisadora porque, como vai para a escola já alfabetizada. Então, esse

e enfrentamento
podemos ver aqui nesse auditório e em muitos “agora eu já sei o que tenho que fazer”, para mim,

Psicologia em emergências
outros, o magistério ainda é predominantemen- é extremamente importante para compreender
te uma profissão feminina. Às vezes, usamos o essa relação, porque nós que temos uma expe-
arroba (@) para fazer professores (professor@s), riência histórica de escolarização, já sabemos o
mas ainda o conceito formulado foi dessa forma, que nós temos de fazer, fazemos naturalmente,

CRP SPdas vidas: reconhecimento


professora pesquisadora e vamos trabalhando já está integrado à nossa vida, ao nosso modo
com ele um pouco por aí. de pensar e de nos relacionar com a escola es-
ses modos de fazer.
Retomando, há uma intensificação da
ideia de que a professora é capaz de teorizar No entanto, as classes populares, e esse
sobre sua prática e a escola é um espaço de pai mostra muito bem, precisam aprender o que
teoria em movimento; e que, portanto, a sala de é que eles têm de fazer para poder dialogar com
aula é um espaço de construção compartilhada a escola. E o que propomos na formação da

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e medicalização
de conhecimentos e precisa ser, para que seja professora pesquisadora é que esse processo
um espaço compartilhado de conhecimentos, de conhecimento do que fazer, do como fazer,

Cadernos Temáticos
um ambiente dialógico, tomando como refe- do para que fazer, do por que fazer, é objeto de
rência a própria prática e tendo como destino estudo e de trabalho da comunidade escolar e,
das reflexões e das ações, a própria prática. O muito intensamente, da professora e do profes-

Patologização
que se procura é não ficar fechado no âmbito sor. Não é um movimento exclusivo da família
da escola, mas uma atenção permanente e uma de buscar formas de compreender uma lógica
tensão, atenção e tensão permanentes naquilo bastante distante e poder então se integrar a
que vai acontecendo na escola. E assim, esse ela, mas uma perspectiva de diálogo em que a
espaço é o espaço da diferença. possamos produzir o cotidiano da escola como
um espaço de todos, comprometidos com a
Quando olhamos para a sala de aula, para
produção de conhecimentos diferentes com

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o cotidiano da escola, para as práticas que ali
suas diferenças.
se realizam, para os processos que acontecem
ou não acontecem, o que vai emergindo, pre- Então, pensando: onde é que a educação
dominantemente, é a diferença. E, sobretudo, popular nos ajuda nesse sentido? Eu comecei
volto a dizer: quando nós trabalhamos com as falando dos exames externos, dos exames na-
crianças das classes populares. Porque elas cionais, porque eu entendo que, no cotidiano da
trazem modos de ver e de pensar a vida, co- escola, a avaliação, não só a externa, mas essa
nhecimentos, demandas, possibilidades e limi- do dia a dia que fazemos periodicamente, está
tes bastante próprios da sua experiência nesse marcada pela mesma lógica dos exames exter-
processo de subalternização, nesse processo nos, que é a lógica de ter um padrão, verificar o
histórico de subalternização que vai produzir quanto o estudante se aproxima ou se distan-
também um distanciamento histórico da escola cia do padrão, classificar, nomear e, portanto,
como instituição. excluir alguns.

Tenho uma situação de uma estudante que Esse processo de exclusão frequentemen-
eu gosto sempre de contar. Ela me ajuda muito te vai sendo acompanhado de um discurso de
a pensar. Atualmente ela faz doutorado sob mi- patologização. Exclusão um pouco na perspec-
nha orientação, mas ela fez mestrado também, é tiva do que a Biancha (Angelucci) diz: o fracas-
uma professora muito experiente; e ela, um dia, so é responsabilidade do sujeito, no máximo de
me contou uma coisa que considero muito im- sua família e não é tomado como uma questão
portante para entender esses movimentos. da escola e da sociedade. Não quero marcar aí
só a questão da desigualdade socioeconômica, É nesse sentido, com a perspectiva da
34
claro que ela é fundamental. Mas, o que é que educação libertadora que vamos trazer o diálo-
nós fazemos com esses sujeitos diferentes que go para o centro do processo e a necessidade
chegam à escola com as suas diferenças? E o de conhecer o outro, com o outro. Nesse conhe-
que é que nós fazemos com essas pessoas que cimento do outro com o outro tem também a
ali se encontram cotidianamente? produção de um autoconhecimento. Isso traz
a alteridade para o centro do trabalho peda-
A justificativa da condição socioeconômi-
gógico, e é nesse movimento que nós vamos
ca serve como um argumento para não apren-
encontrando: o que precisamos estudar, o que
dizagem, para o fracasso, para os processos
queremos aprender, como vamos caminhar no
de exclusão da mesma forma que os discursos
sentido de buscar esses conhecimentos, como
medicalizantes. Então, “bom, eu não posso fazer
esses conhecimentos se articulam às nossas
nada porque veja bem: é de uma família... o pai
experiências, o que não significa ficar limitado
tá preso, a mãe é alcoólatra, então, né? Então...”.
às nossas experiências, mas tomar as nossas
É esse “então” que vai afastando a escola da
experiências como pontos de problematização
produção de processos, de conhecimento e de
para que possamos permanentemente estar
aprendizagem mais interessantes para todos.
ampliando os nossos conhecimentos.
Volto a dizer, é extremamente desafiador por-
que nós professores e professoras precisamos Nesse sentido, toda diferença é bem-vin-
aprender nesse processo, aquilo que nós tra- da, porque traz um ponto de vista, uma pers-
zemos é o que nós podemos trazer, é o nosso pectiva, uma questão que é única em certa
ponto de partida para então retomar um pro- medida. Cada sujeito traz aquilo que pode ver,
cesso de aprendizagem. viver, sentir para esse movimento que é coleti-
vo e que, assim vai complexificando o coletivo
E é desse modo que eu entendo que edu-
e alargando as possibilidades desse coletivo
cação popular nos ajuda a enfrentar esse deba-
aprender, produzir conhecimento. Produzir co-
te. Primeiro, pela perspectiva de liberação que
nhecimento em diálogo.
a educação popular traz. A educação popular
está vinculada não apenas com as classes po- Nesse contexto temos tentado trazer a
pulares, porque tem-se aí uma série de modos avaliação para esse movimento. Não a avaliação
de estar vinculado com as classes populares e como o processo que padroniza, classifica, jus-
com a pobreza e com a exclusão, mas está vin- tifica e exclui, mas trazer a avaliação como um
culada com as classes populares no sentido de processo de reflexão sobre esses movimentos,
produção, de processos, de libertação, de trans- sobre essas demandas, sobre aquilo que é ins-
formação dessa condição de subalternidade e, taurado para que, coletivamente, se possa pen-
portanto, transformação dessa dinâmica social. sar na redefinição dos processos, dos movimen-
tos na medida em que isso vai sendo necessário.

Nossa finalidade na escola é que as crian-


“Nesse sentido, toda diferença é ças aprendam. Então, a aprendizagem das crian-
bem-vinda, porque traz um ponto ças é o indicador mais significativo, mas aprendi-
zagem não é desempenho. Nossa preocupação
de vista, uma perspectiva, uma central com a avaliação não é o desempenho
questão que é única em certa das crianças, sejam nos exames externos ou nas
medida. Cada sujeito traz aquilo provas do dia a dia da escola, mas como é que
essa aprendizagem vai se dando e como é que
que pode ver, viver, sentir para as próprias crianças vão se tornando capazes de
esse movimento que é coletivo pensar sobre a sua aprendizagem, pensar sobre
e que, assim vai complexificando esse movimento e se integrar à escola.

o coletivo e alargando as Para terminar, no sentido de pensar a esco-


possibilidades desse coletivo la como esse espaço de reexistência, trouxe al-
gumas imagens. Essa primeira imagem é de uma
aprender, produzir conhecimento. escola específica, uma escola municipal de uma
Produzir conhecimento em periferia de uma cidade na região metropolitana
diálogo” do Rio de Janeiro. Nela, temos uma assembleia de
estudantes. Essa escola vai da educação infantil
35
ao quarto ano, então, crianças de quatro a 10 anos. “Quer dizer, na medida em que a
Esta imagem é de uma assembleia de estudantes
conduzida pelos estudantes, não há adulto nes-
escola toma uma decisão política
se momento. As crianças organizam o trabalho, de não participar desse tipo de
fazem a pauta, as suas reinvindicações, e depois exame, ela também vai sendo

- parte 1
essas questões são levadas pra discutir com a di-
fortalecida, num movimento

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
reção, com o conselho escolar, para poder entrar
em negociação na sua própria pauta. Dentre o de pensar a própria escola, de

e enfrentamento
conjunto de reinvindicações que as crianças tiram pensar a escola em conexão”

Psicologia em emergências
de uma assembleia como essa, por exemplo, estão
elementos da vida cotidiana da escola: merenda, do texto acima começa dizendo isso, “eu gostei
estrutura, relações, questões de comportamento. da produção de texto coletiva”, porque também
É muito interessante que inicialmente as questões

CRP SPdas vidas: reconhecimento


é uma forma de que possa haver colaboração,
vão falar muito mais da estrutura; posteriormente, de que todos possam efetivamente entrar na
na medida que o trabalho vai sendo realizado, elas produção com as suas especificidades, com as
começam a trazer questões relativas à própria suas diferenças.
dinâmica pedagógica e elas vão ser muito impor-
tantes na sinalização de um descompasso entre o São as crianças que nos trazem elementos
Projeto Político Pedagógico da escola e os proces- bastante significativos para compreendermos
sos pedagógicos cotidianos. melhor essa escola e para podermos atuar com

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e medicalização
elas e com uma comunidade escolar de um modo
São as crianças que vão dando visibilidade mais interessante, no sentido da ampliação do
a isso nas suas respostas, nas suas reflexões. Só

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conhecimento e não de ficar discutindo avaliação.
pra marcar: essa escola não faz nenhum exame Como aumentamos o rendimento das crianças
externo, nunca fez, nem nacional, nem municipal, nos exames. Quer dizer, na medida em que a es-

Patologização
e isso vem sendo um ponto de conflito bastante cola toma uma decisão política de não participar
intenso com a Secretaria Municipal de Educação, desse tipo de exame, ela também vai sendo for-
obviamente. Então, esse movimento com as crian- talecida, num movimento de pensar a própria es-
ças é bastante significativo. Os professores vão cola, de pensar a escola em conexão. Houve um
produzindo materiais com as crianças, nos quais momento em que a Secretaria de Educação dis-
elas vão falando sobre as suas aprendizagens. Eu se que ia fazer a prova, mesmo que tivesse que
vou ler um que acho especialmente interessante. entrar com força policial. E foi muito interessante

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“Eu gostei mais da aula de produção textual porque as famílias, isso foi amplamente discutido,
coletiva. O que aprendi sobre o bairro Barro Branco: decidiram que elas fariam um plantão, um rodízio,
não possui asfalto em todas as ruas... não possui dizendo que eles não autorizavam que os filhos
asfalto. Em todas as ruas têm asfalto. Tem violên- fossem submetidos a esse tipo de exame.
cia física, sexual, e crianças entrando no crime. Nem Não acho que seja uma escola sem proble-
todas as casas têm água encanada; só tem uma ma, claro que não; não é para ser exemplar, não é
escola pública. Tem ruas que alagam, tem valão. Eu para mitificar, mas é pensar que é possível cons-
aprendi sobre a classificação dos seres vivos e não truirmos pequenos espaços de resistência e que
vivos”. “onívoros...” “E carnívoros e herbívoros”. In- isso tem uma potência bastante interessante.
grid, e a data. É uma escola que tem muitos problemas, muitas
contradições, que não cabe aqui trazer, mas eu
É bastante interessante porque podemos
acho que são alguns elementos pensarmos as
ver que, o que ela aprendeu na escola, é um con-
possibilidades de olhar para a escola pública não
junto bastante amplo, muito mais complexo do
sob essa visão preconceituosa com a qual ela vem
que aquilo que seria pedido em qualquer exame,
sendo apresentada na sociedade brasileira, como
em qualquer nível.
o lugar da impossibilidade, como o lugar do não
Para terminar, as professoras vêm produ- saber, como o lugar de quem não quer fazer nada,
zindo no sentido de tomar a avaliação como um mas da escola como um lugar de grande produção,
espaço de reflexão, pensar o trabalho pedagó- de relações bastante interessantes e que está nos
gico como um trabalho colaborativo, e a menina desafiando todos os dias. Obrigada.
36 João Paulo Faustinoni
Promotor de Justiça do Grupo de Atuação Especial de
Educação do Ministério Público de São Paulo - Capital.

Bom dia a todas e a todos. Eu queria também Eu não sou professor, não tenho habilidade
agradecer o convite, a oportunidade de partici- didática e minha cabeça funciona de uma maneira
par desse evento. Cumprimentar os demais par- muito desorganizada. Então, o fato de eu ter fica-
ticipantes aqui da mesa. Bom, eu queria dizer do por último, se de um lado me ajuda a entender
que eu estou com uma certa dificuldade desde um pouco melhor o contexto, de outro, estou aqui,
o momento que recebi o convite em saber exa- pensando no que falaram os que me antecederam
tamente por que que eu recebi o convite, e de e tentando organizar em algum departamento para
que maneira eu posso contribuir com o debate. eu conseguir retomar o que eu tinha imaginado. Na
verdade, o que eu acho que eu poderia tratar com
Eu sou promotor de Justiça, desde 2011,
vocês um pouco, é de um fenômeno que nós senti-
trabalhando num grupo que atua na área da
mos no cotidiano e às vezes não temos condições,
defesa do direito à educação em São Paulo. E
tempo, possibilidade de perceber o quanto esses
fiquei pensando um pouco assim, a minha ati-
fenômenos interferem na nossa vida, e na vida es-
vidade profissional, desde o início tem sido um
colar para reduzir um pouco o campo para o que
aprendizado de diálogo interinstitucional e in-
vem sido debatido aqui.
terdisciplinar. Então, desde que eu assumi essa
função de defesa do direito à educação, eu vi- Vou distinguir dois fenômenos: um de juridifi-
nha já de 20 anos quase de Ministério Público, cação e o outro de judicialização. Quando me cha-
de área criminal, infância e juventude, direito de maram, e eu verifiquei o tema, despatologização,
família e tudo mais, e quando me deparo com comecei a pensar em que medida essas questões
essa atividade, percebo, logo de cara, o tama- da atuação do sistema de justiça e da hipernor-
nho do desastre que poderia acontecer a partir matização da vida, da política, das relações so-
de uma intervenção tradicional do sistema de ciais da escola, poderiam aí se encaixar. E comecei
justiça nesse trabalho. a recuperar uma reflexão que já é um debate nas
ciências políticas, na filosofia, no direito também:
Então, logo de início, nós temos uma preo-
os fenômenos de juridificação e judicialização, são
cupação, primeiro de ter uma equipe técnica in-
uma patologia da democracia; são, ao contrário,
terna no Ministério Público, que hoje tem psicó-
uma manifestação de um vigor maior de uma de-
logos, assistentes sociais e mais recentemente
mocracia numa sociedade complexa ou, fugindo
reforçada por uma pedagoga, mas de buscar
então dos conceitos médicos, não são nem uma
amparo para atuação na academia, na universi-
coisa nem outra?
dade e tudo mais. Então, quando recebo o con-
vite para um evento também interinstitucional e Não vamos falar nem de patologia, nem de
interdisciplinar, eu venho muito feliz em ouvir o vigor de saúde, mas de um fenômeno que preci-
que as pessoas têm a dizer e assumindo o ris- samos melhor compreender. Quando eu faço a
co de falar um pouco sobre campos que eu não distinção entre juridificação e judicialização, estou
domino, e pensando de que maneira podemos trazendo então como juridificação a expansão do
estreitar essa articulação e esse diálogo. próprio direito, o adensamento da norma formal, e
das fontes também que geram essas normas, para da Fundação Getúlio Vargas também, eles têm,
37
campos da vida onde anteriormente, ela não se pra quem tiver interesse, um setor de pesqui-
aplicava. E judicialização seria um aspecto decor- sa que se chama Supremo Tribunal Federal em
rente dessa juridificação, que pode ser entendido Números, que mostra também que, conforme a
como a levada da decisão sobre um determina- população vai ganhando formação educacional,
do conflito ou um direito ao judiciário, ou também mais ela litiga. Então, há uma relação não mais

- parte 1
como a adoção de processos específicos judiciais de renda e litígio judicial, mas de formação de

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
do sistema judicial pra outros departamentos. En- educação formal e litígio. Então é um fenômeno
tão, é o processo administrativo escolar, disciplinar que está colocado.

e enfrentamento
e tudo mais, que poderia entrar um pouco nesse
Se fizermos aí um grande panorama sobre

Psicologia em emergências
conceito. Para que a gente tenha uma ideia, o Con-
essa discussão, primeiro lugar é importante dizer
selho Nacional de Justiça, nos números de 2016,
que, diferente de outros temas, não consegui-
informa que nós terminamos aquele ano com 80
mos dividir aqui “olha, os progressistas são fa-
milhões de processos em andamento no país. En-

CRP SPdas vidas: reconhecimento


voráveis à judicialização, os conservadores são
tão, no final de 2016, havia 80 milhões de proces-
contra” ou vice e versa, ou “a esquerda é a fa-
sos judiciais tramitando no país, e dos assuntos
vor da juridificação e a judicialização, e a direita
mais diversos. Nós acompanhamos desde deci-
é contra”. Normalmente, vamos dizer assim, na
sões muito emblemáticas pelo Supremo Tribunal
doutrina aí que discute esse tema, nós coloca-
Federal, reconhecimento de relações homoafeti-
ríamos um eixo crítico, vamos dizer, que vê mais
vas, interrupção de gravidez, de aborto de fetos
questões negativas à juridificação e a judiciali-
anencefálicos, até discussões sobre o tamanho
zação, num eixo que vai de Habermas, Luhmann,

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e medicalização
do colarinho do Chopp e se ele deve ser incluído
Garapon, que é um francês, e depois vou tocar
na métrica para fiscalização para fins de direito do
também numa cientista política alemã que se

Cadernos Temáticos
consumidor. Enfim, são questões que estão che-
chama Ingeborg Maus, que tem uma posição bem
gando às instâncias superiores de justiça.
mais ácida, contrária à submissão da nossa vida
a qualquer decisão judiciária. E de outro lado,

Patologização
fazendo a defesa de aspectos positivos desse
“Juridificação a expansão do processo de juridificação e judicialização, a gen-
próprio direito, o adensamento te teria um eixo que vai de Mauro Cappelletti na
da norma formal, e das fontes Itália até do Working que é norte-americano, e
aqui no Brasil eu diria que quem mais estudou e
também que geram essas defendeu o sistema foi o Werneck Vianna. Aqui
normas, para campos da vida no Brasil também quem se posiciona mais criti-

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onde anteriormente, ela não camente à questão judicialização, pelo menos do
que eu tenho contato e conhecimento, é o Rogé-
se aplicava. E judicialização rio Arantes da USP São Paulo.
seria um aspecto decorrente
Quais são, também muito em linhas ge-
dessa juridificação, que pode rais, as ponderações favoráveis e contrárias?
ser entendido como a levada da O fenômeno da judicialização é muito reforçado
no pós-guerra e com a construção do estado
decisão sobre um determinado
de bem-estar social, e do chamado constitucio-
conflito ou um direito ao nalismo democrático. Depois das tragédias das
judiciário, ou também como a guerras e das violações de direitos humanos
que todos conhecem, houve uma compreensão
adoção de processos específicos
de que “olha, é preciso de uma força contrama-
judiciais do sistema judicial pra joritária que garanta direitos fundamentais, e
outros departamentos” é preciso enfrentar também a questão da de-
sigualdade e da exclusão, por meio de garan-
tias de direitos fundamentais e concretização
Outro dado que o CNJ, o Conselho Nacio- de um estado de bem-estar social.”. Boa parte
nal de Justiça, traz, é que essa demanda judicial das pessoas que vão se posicionar então fa-
tem se ampliado progressivamente, pelo menos voravelmente a esse processo de juridificação,
desde 2009 isso vem aumentando. Há pesquisas vão usar justamente esses argumentos. Vão
dizer, “olha, a democracia é um sistema que mentativa, sensibilidade social e outras ques-
38
funciona com base na soberania popular e ma- tões que vão aparecendo nessa discussão.
nifestação da maioria, por meio basicamente
Bom, quem é o juiz? O juiz é essa pessoa
do Legislativo, mas também do Executivo, por-
que tem uma capacidade especial de razão argu-
que são os poderes que têm votos, mas ela só
mentativa, tem sensibilidade social e, portanto,
é efetivamente democracia do ponto de vista
saberá dizer a norma, e a partir de uma decisão
substancia,l se houver preservação de direi-
pública e da aprovação da população, fica legiti-
tos fundamentais. E, portanto, é preciso ter um
mada essa atuação.
poder que seja contramajoritário.”. Então, por
exemplo, como foi dito aqui: quando os Legisla- Habermas, lá na Teoria da Ação Comuni-
tivos começavam a aprovar leis relacionadas à cativa, começo da década de 80, é muito crítico
escola sem partido ou bobagens semelhantes, dessa questão da juridificação e da judicializa-
o fato do Supremo Tribunal Federal conceder ção da vida, das relações sociais, dizendo que
uma liminar barrando essa decisão, é uma deci- isso não emancipa, isso tira autonomia, isso é
são contramajoritária, “olha, o vereador aqui de autoritário. Quer dizer, a democracia depende da
Campinas teve mais voto do qualquer um da- participação das pessoas em espaços ideais em
queles ministros do Supremo, mas eles estão lá que elas possam ser ouvidas e dialogar, e, por-
exercendo essa função”. tanto, a juridificação, ainda que tenha um aspec-
to positivo, que ele reconhecia também que era
Acontece que, essa mesma teoria política
a afirmação dos direitos fundamentais, é difícil
e do direito, ela vai dizer, “não”, mas tem mais.
você ter um controle a respeito dela porque ela
Na sociedade complexa, a própria representa-
tende a se embrenhar por outros meios onde não
ção política não é mais suficiente. E aí também
deveria. Ele, inclusive, vai tratar do sistema edu-
retomando o que foi dito pelo Pedro, quando ele
cacional na Alemanha, e diz o seguinte, “a justiça,
fala, “olha, quais são as forças econômicas que
o sistema judiciário, as normas deveriam garantir
estão interferindo no Legislativo? Por que que o
os direitos fundamentais de acesso e permanência
Legislativo produz esse tipo de bizarrice? Que
da criança na escola e as relações da escola com
tipo de poder distorce a representação e gera,
os demais poderes, mas não deveria entrar no âm-
portanto, um déficit democrático?”. A partir des-
bito da atividade pedagógica propriamente dita.”
sa constatação, essa outra linha de pensamen-
Então, ele vai dizer, “a juridificação de âmbitos co-
to, Cappelletti, do Working, etc., vai dizer, “não,
municativamente estruturados, não deve ir além da
o voto não garante representação adequada”.
implantação dos princípios do estado de direito, da
Então, existe um outro campo que passa a ser
institucionalização jurídica da estrutura externa,
chamado de representação funcional, e que vai
seja da família ou da escola. O uso do direito como
dizer, “olha, a constituição pode sim estabele-
um meio deve ser substituído por procedimentos
cer poder de representação ao Judiciário e até
de regulação dos conflitos que se ajustem às es-
outros órgãos do sistema de justiça, desde que
truturas de ação orientadas ao entendimento.”
essa representação corresponda à norma cons-
titucional”. E é importante isso porque é um
E aqui é muito interessante, ouvindo quem
poder que também vai induzir ou forçar a con-
falou antes de mim, porque eu estava um pouco
cretização de direitos quando a representação
perdido em tentar achar essa relação direta da
política falhar.
juridificação e da judicialização com a questão
Essa teoria funcional também vai dizer o da patologização, porque lá no GEduc, no gru-
seguinte, “não se trata de atribuir um poder po- po que eu trabalho, não temos exatamente uma
lítico discricionário ao juiz, ou em menor grau a atuação direta de “peça medicamento, cobre do
um promotor de Justiça, mas dizer ele representa juiz que dê algum determinado tratamento ao
parte da soberania popular’”, por exemplo, quan- aluno”. Mas é interessante verificar o que a Te-
do promove uma ação penal em nome da socie- resa falou, que essa judicialização já está estru-
dade, mas também quando busca fazer garantir turada dentro da escola, ainda que não tenha in-
direito à educação infantil. Por exemplo, dizendo terferência judicial. É muito interessante quando
“olha, é direito público subjetivo, o poder Execu- você coloca o processo de avaliação, exclusão
tivo precisa se mobilizar”, etc. Desde que haja, e e fracasso traduzido por um termo jurídico, por
aí nós entramos naquele campo do perigo dos dois termos que o Habermas tratava também
conceitos fluidos, uma convincente razão argu- que são: tipificação e burocratização.
Agora, qual é um outro problema de você
39
trazer para o sistema de justiça a complexida- “Nós, quando pensamos então
de da vida, das relações escolares e tudo mais?
Entramos aí na Teoria dos Sistemas de Luh-
nessa inter-relação entre direito
mann, em que ele vai dizer, “o sistema jurídico e escola, precisamos pensar
tem algumas características. Uma é que ele reduz nessa via de mão dupla e

- parte 1
a complexidade das coisas, ele precisa simplificar
também alertar os educadores

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
o conflito em termos de direito e não direito, lícito
e ilícito.” E, para isso, temos de ter tipos. Então, a respeito também de uma

e enfrentamento
você tem uma avaliação padronizada, você tem vivência da judicialização no seu

Psicologia em emergências
um tipo que é, por exemplo, “serão aprovados
os alunos que conseguirem tanto. Serão repro-
ambiente escolar e da exigência
vados alunos que conseguirem menos de tan- de direitos a partir também
to”. Então, sem a gente se dar conta passa a dessa lógica que até o próprio

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traduzir todo o processo pedagógico, que é dia-
lógico, emancipatório, num processo também
Habermas e Ingeborg Maus
com características de judicialização. vão utilizar como uma relação
Nós, quando pensamos então nessa inter-
de cliente. Cliente e Estado, ou
relação entre direito e escola, precisamos pen- cliente e Judiciário, e não mais
sar nessa via de mão dupla e também alertar os de uma cidadania ativa que

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educadores a respeito também de uma vivên-

e medicalização
cia da judicialização no seu ambiente escolar e
consiga conquistar direitos a
partir de algum outro canal de

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da exigência de direitos a partir também dessa
lógica que até o próprio Habermas e Ingeborg legitimação”
Maus vão utilizar como uma relação de cliente.

Patologização
Cliente e Estado, ou cliente e Judiciário, e não pessoas com deficiência que conquistam direi-
mais de uma cidadania ativa que consiga con- tos postos numa convenção, é preciso a gente
quistar direitos a partir de algum outro canal de também refletir a respeito das consequências
legitimação. advindas dessa positivação do direito e depois
da regulamentação desse direito. Porque sempre
Quer dizer, a gente costuma dizer, “a maio-
a gente precisa pensar: quando você põe o direi-
ria das pessoas não mata e não rouba”, é por que
to, positiva o direito numa norma, quem vai dizer
tem norma? É por que tem norma jurídica? Não,

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esse direito é o juiz.
é porque é uma legitimação ética, social. E hoje
a gente corre o risco de partir para outras for-
Nós vivemos num constitucionalismo de-
mas de relação que são mais cômodas, menos
mocrático de uma constituição que normalmen-
trabalhosas, que são essas de normatizar direi-
te é chamada de constituição aberta, ou abran-
tos como se isso fosse semelhante ou como se
gente, ou analítica, seja o nome que queiram
fosse a mesma coisa de garantir direitos. Aliás,
dar. Ela diz lá “a todos é permitido o acesso ao
aí partindo para um outro teórico também, um
Judiciário, havendo a lesão, ameaça ao direito e
outro pensador, o Bob, ele vai falar, “o grande
lesão, qualquer um pode peticionar como garan-
problema hoje não é conquistar direitos ou posi-
tia individual”. E ela, como é uma constituição
tivar direitos, é tornar direitos efetivos, que eles
aberta que vai tratar de todos os direitos fun-
sejam realidade.”
damentais de previdência, direito do trabalho,
Nesse sentido, precisamos começar a pen- educação, saúde, como diz o ministro Barroso,
sar também em que medida essa luta fragmen- “ela só não traz a pessoa amada em três dias,
tada, segmentada por direitos dentro do campo o resto tem tudo lá”. Por isso que a gente vê
educacional não acaba também enfraquecendo chegar ao Supremo Superior Tribunal de Justiça
a escola no seu potencial e no seu dever mesmo discussões de colarinho de Chopp e tudo mais.
de ser heterogênea, de dar conta da diversidade, Mas aí, quando você então disciplina e coloca,
de acolher, valorizar e de ser uma educação, uma por exemplo, que o público-alvo da educação
escola para todos. Então, quando a Biancha traz especial, TGD, TEA, seja a sigla e o diagnóstico
o exemplo do movimento social também, das que queiram dar, ao juiz que está ali em situação
Para encerrar, eu queria trazer só um tex-
40
“Hoje, o Brasil, principalmente, to também porque acho que esse pode ser de
interesse mais interdisciplinar, que é da Inge-
vive um momento tão dramático borg Maus, em que ela fala “o judiciário como
a respeito dessa questão da superego da sociedade.” Eu achei interessante
judicialização da vida, e mais esse texto porque ela vai evidentemente falar
um pouco de tudo isso que eu já mencionei, di-
ainda, de uma justiça que zendo o seguinte “uma sociedade democrática
é baseada numa justiça de precisa inverter a lógica ‘natural’, entre aspas,
valores, não é nem uma justiça de um pai que normatiza a vida dos filhos”, “na
sociedade democrática, os filhos vem antes do
normativa, positivada, legalista, pai.” E mostra que quando o judiciário se agi-
é uma confusão da moral com o ganta, nós corremos o risco de acreditar que
direito” há um poder neutro, que deve ser respeitado
quase numa perspectiva religiosa, e que acaba
de insulamento, que desconhece completamen- perdendo qualquer possibilidade de controle
te o que se passa no campo do conhecimento social. E ela traz um exemplo que eu fiquei até
da educação, a hora que o médico chegar e fa- um pouco assustado na hora que eu li, porque
lar, “olha...”, a parte vai chegar, “eu tenho um lau- às vezes a gente lê uma coisa que já aconteceu
do, meu filho tem isso. Eu quero todos aqueles em outro lugar e fala, “nossa, parece que está
incisos do Artigo 28 da Lei Brasileira de Inclu- falando sobre alguma coisa que eu tenho visto
são”, ele vai determinar. E aí, quer dizer, o cam- ultimamente”. Então, ela está tratando da justi-
po fragmentado do TDAH, da dislexia, começa a ça nos Estados Unidos, ela diz assim, “o retorno
pressionar pra ter a sua própria normatização mais marcante da imagem do pai, parece revelar-
educacional e os seus suportes e os seus recur- se no exame da jurisdição constitucional nos Es-
sos e tudo mais. tados Unidos. Nesse país que já desenvolveram
um modo original de controle judicial da consti-
A cada vez que a gente juridifica esses tucionalidade desde o começo do século 19, tal
processos, eles vão desaguar fatalmente no retorno é indicado pelo surgimento de uma vasta
Judiciário, por conta desse arranjo institucional literatura a respeito de biografias de juízes. Na
que eu não estou nem dizendo se é bom ou se é visão retrospectiva do século 20, a jurisprudência
ruim. Essa é uma discussão que não são figuras da Suprema Corte norte-americana, apresenta-
de pouco calibre que estão tendo. O fato é: nós se como obra das marcantes personalidades de
temos um constitucionalismo democrático, uma juízes que fizeram a sua história constitucional,
constituição aberta, abrangente que disciplina os quais aparecem como profetas ou deuses do
muitos campos da vida, quanto mais a gente Olimpo do direito. Nessas representações se re-
disputa de maneira fragmentada sem capaci- vela mais que em outro campo a atual tendência
dade de comunicação no campo educacional, ao biografismo, que demonstra uma reação pas-
no campo da saúde, seja lá onde for, maior o siva da personalidade em face de uma sociedade
potencial de judicialização e de decisões que dominada por mecanismos objetivos. O aspec-
vão acabar transformando de novo o chão da to típico dessas biografias de juízes parece se
escola num destino de decisões judiciais. configurar na ideia que suscita algo como uma
reedição dos antigos espelhos dos príncipes, de
Hoje, o Brasil, principalmente, vive um mo- que os pressupostos para uma decisão racional e
mento tão dramático a respeito dessa questão justa residem exatamente na formação da perso-
da judicialização da vida, e mais ainda, de uma nalidade de juízes”.
justiça que é baseada numa justiça de valores,
não é nem uma justiça normativa, positivada, le- Então, era um pouquinho essa discussão
galista, é uma confusão da moral com o direito. do que se debate a respeito de juridificação e
Outro dia um amigo meu estava falando, “hoje a judicialização, na teoria estrangeira e aqui tam-
gente chegou numa situação tão dramática que bém, para pensarmos um pouquinho nas nossas
você senta no bar, você escala os 11 ministros do práticas, eu do lado do sistema de justiça e cada
Supremo, mas não consegue escalar o time do Co- um de nós aqui no sistema educacional, enfim,
rinthians”. Quer dizer, o negócio ficou brutal assim. nas suas diversas áreas. Muito obrigado.
Participação da plateia 41

Juliana Garrido Pereira


Pedagoga pela Universidade Federal Fluminense (2006) e mestra em Saúde da

- parte 1
Criança e do Adolescente pela Universidade Estadual de Campinas (2010). Tem

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
experiência como professora de Educação Infantil e do Ensino Fundamental
(anos iniciais), atuou na Rede Municipal de Ensino de Campinas e atualmente,

e enfrentamento
na Rede de Educação no Município do São Paulo. É militante do DESPATOLOGIZA.

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento
O que a gente pretende com o evento e com Des- Perguntas da plateia:
patologiza é pensar as questões (da patologiza-
“Como analisam, em seus trabalhos e ati-
ção da vida e da educação) a partir do lugar onde
vidades, a onda conservadora em relação com o
as pessoas estão. E isso ficou bem claro na fala

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funcionamento da democracia?

e medicalização
da Biancha e da Teresa que estão falando dos
espaços de educação ou mesmo os espaços de “Eu gostaria que o Tourinho e a Biancha

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formação dos profissionais que estão em atua- falassem sobre o protocolo de medicalização
ção. É como a Biancha falou sobre a mudança que sobre a Ritalina em Campinas e como a escola
foi vista, quando o movimento sobre a deficiência pode sair deste engodo imposto pela sociedade

Patologização
passou a ser tratado, feito e organizado por defi- extrema normativa.
cientes, e como a escola muda quando quem está
“Até que ponto é garantida a “neutralidade”
lá passa a pensar sobre a escola e falar da escola.
– entre aspas - do poder de decisão de um juiz?
É isso que a gente busca, fazer esse diálo- Isso é avaliado? Acompanhado? Monitorado?”
go, entendendo os espaços onde a vida aconte-
“Gostaria que a Carla Biancha falasse um
ce, como os espaços que vão elaborar as suas
pouco mais sobre a desnecessidade de diagnós-

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questões e que vão pensar e refletir sobre essas
tico médico para o trabalho escolar para crian-
questões e que vão, necessariamente, produzir
ças com deficiência”
respostas e pensar em possibilidades a partir
das suas próprias questões. “Biancha, já existe algo que auxilie, ou al-
guma orientação para o profissional de saúde
A entrada do Pedro com o campo médico e
para encaminhamento, por exemplo, para esti-
legislativo, e do João com o campo judiciário pro-
mulação precoce sem ser diagnóstico baseado
movem exatamente o que pensamos para essa
na convenção?”
mesa que era discutir em todas essas esferas
como que passamos a enfrentar a vida entenden- “Biancha e Teresa, em relação à sala de
do que temos parceiros nesses lugares e como recursos, como vocês veem a pressão das di-
conseguimos subverter a lógica normativa onde retorias de ensino ou das escolas para o laudo
quer que ela se imponha. Então, eu gostaria de médico como o F73, que é o CID de deficiência
abrir esse momento para as questões. intelectual, para a família consegui-lo? E as ten-
tativas de conseguir um olhar de reforço ou aula
Vou aproveitar para deixar registrado que
mais inclusiva para o aluno com dificuldades na
tivemos inscrições de 72 municípios e oito esta-
escola apenas”.
dos brasileiros diferentes. Isso é uma vitória para
nós, em particular do Despatologiza, e também “Como vocês veem a pressão das direto-
para todo mundo que está fazendo parte desse rias de ensino para o atendimento sem o laudo e
momento e tendo oportunidade de ampliar tão as tentativas da escola oferecer um olhar inclu-
grandemente esse diálogo. sivo da escola como um todo”.
“João, você terminou dizendo sobre a difi- toda a discussão que o João Paulo trouxe, do que
42
culdade de controle justamente desse movimento de fato significa o acesso a direitos, como é que
da judicialização. A gente fez um evento do Des- você viabiliza o acesso a direitos, com o Estado às
patologiza, inclusive, nesse período, no mês de vezes apenas, vamos dizer, cartorialmente estabe-
comemoração de enfrentamento à medicalização, lecendo a garantia de certos direitos, mas incapaz
pensando a medicalização e a judicialização den- de provê-los efetivamente ou de garanti-los efeti-
tro da educação, justamente por essa dificuldade vamente. Tem a ver com isso, com esse processo
que você apontou que, a partir do momento que as de falência das estruturas de bem-estar global-
leis começam a falar sobre “precisamos atender a mente acentuado; todo um processo de reestru-
criança com transtorno de déficit de atenção” pa- turação produtiva global atua nesse sentido, mas,
rece que aquilo tem uma especialidade, toma uma ao mesmo tempo, tem sempre os atores políticos
especialidade na escola quando, na verdade, o que vão ganhar com esse processo e, portanto, vão
objeto da escola devia ser atender todos em sua alimentá-lo e financiá-lo. Então, acho que, no Bra-
subjetividade e suas necessidades. E como é pos- sil, a gente mais uma vez recebe esse processo da
sível esse enfrentamento? Com relação ao judici- nossa posição de periferia dentro da estrutura ge-
ário especificamente. Como é que a gente diminui opolítica e da estrutura da distribuição do trabalho
um pouco essa intervenção do judiciário? inclusive, da distribuição internacional do trabalho,
vamos dizer, importamos boa parte dessa pauta,
RESPOSTAS: essa onda conservadora, ela vem com a pauta que,
em grande parte, é importada, foi produzida antes
Pedro: Bem, pessoal, a minha questão aqui
em outros lugares, tem farta literatura e evidências
é relativamente sucinta: a onda conservadora e o
que mostram o quão importada é essa pauta, mas
funcionamento da democracia. Vejam só: eu enten-
ela se dissemina muito, ela cresce muito e acho
do que esses movimentos, vamos dizer, com esse
que, do ponto de vista da sua consequência, eu
recorte ultraconservador e esse processo, primei-
não tenho a menor dúvida que é um processo que
ro, eles não são apenas sinal de uma falência do
tende a, sobre vários aspectos, estabelecer novos
processo e da capacidade do Estado democrático
parâmetros de sociabilidade para nossa sociedade,
de garantir direito. Eles são parte de uma agenda,
para o nosso convívio e tudo mais, na medida em
de um campo político que atua no sentido da pro-
que tem, em vários momentos, pautado de forma
moção de certos valores, de certos modos de ver
bem-sucedida a regressão de vários aspectos que
o mundo e de se organizar. Financiam, organizam,
a gente dava, pelo menos eu dava, como positivos,
estruturam. Então, ela não é só uma consequência,
e em vias de consolidação no Brasil, como certos
vamos dizer, de uma crise sistêmica, ela é parte de
direitos sociais, certas garantias individuais que
um projeto que propõe uma maneira de organizar
entendíamos que estavam sendo aprofundadas e
os valores na sociedade, uma maneira de expres-
asseguradas, e que, na nossa avaliação, tem sido
sar isso politicamente dentro dos espaços. Hoje,
desconstruídas sistematicamente, por intermédio
esses grupos têm grandes financiadores, tem
de um governo golpista que certamente se bene-
pensadores, tem toda uma agenda que está es-
ficia dessa onda conservadora, porque ela empurra
truturada, não podemos mais chamar isso de um
o pêndulo político todo para um campo em que o
processo desorganizado ou desarticulado.
debate vai todo para o pior ou o menos pior, e não
Assim como setores do campo progressista mais o de pautar o melhor e o que a gente pode
tem esse mesmo tipo de agente, setores de uma di- fazer. Estamos numa situação recuada, porque a
reita ou de um campo conservador mais moderado gente, na verdade, não quer discutir mesmo sa-
também o tem, e setores de um campo conservador bendo que tem problemas, porque, na verdade, não
mais radicalizado tem esse mesmo tipo de agencia- existe contexto pra discutir isso, porque se abrir a
mento. Não por acaso, isso não está acontecendo porta, o que vai vir vai ser pior. Isso tem acontecido
só no Brasil, onde a gente tem uma crise de legiti- em todas as políticas importantes: Sistema Único
midade do sistema político. Isso está acontecendo de Saúde está sendo efetivamente desmontado já
na América do Norte, está acontecendo na Europa, na sua estrutura de financiamento; a luta antimani-
está acontecendo num contexto muito mais amplo, comial, a reforma psiquiátrica está sendo atacada
que tem a ver com uma crise econômica que afeta pesadamente, e assim por diante. Sobre o protoco-
todo o estado de bem-estar social no mundo intei- lo, eu vou deixar pra Cida falar hoje à tarde, eu acho
ro. E aí eu acho que tem a ver com a questão do que não vale a pena a gente trazer isso agora por-
funcionamento da democracia nesse sentido, com que depois vai ser bem mais aprofundado.
Biancha: Do ponto de vista da educação, disputa que, essa sim, está velada, e que é impor-
43
queria só rapidamente comentar em relação à tante percebermos, porque senão, achamos que
onda conservadora em que vivemos, que existe estamos só discutindo a questão da ideologia de
um projeto econômico em jogo, não é? Eu tra- gênero, que é importantíssima, óbvio, mas está
balho na universidade pública e eu sei o assédio servindo nesse momento para aglutinar forças
que vivemos de instituições privadas, as mais que, se colocarmos qual é a verdadeira pauta em

- parte 1
variadas, em relação à Universidade São Paulo. E jogo, talvez não estivessem. Então, tem uma for-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
eu sei também do projeto de precarização que a ça de argamassa, a pauta conservadora, ela tem
minha universidade vive, como estratégia de pre- o caráter de argamassa. Bem, e na educação isso

e enfrentamento
paração para processos de privatização. Então, tá sendo explícito, não é? Fundação Lemann faz

Psicologia em emergências
penso que não podemos, neste momento, fazer propostas para a Universidade de São Paulo, de
uma leitura dissociada entre qual é o projeto eco- melhoria do desempenho dos seus docentes, ela
nômico e qual é o projeto político, na medida em é muito boazinha.
que eu vejo bairros de classes populares em volta

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da USP sendo já liberados para que conjuntos ha- Em relação à desnecessidade do diagnós-
bitacionais de classe média possam ser erguidos, tico médico, pensando aqui a interface primeiro
preparando a possibilidade de a Universidade com a educação, depois vou pensar com a saú-
São Paulo passar a ser uma universidade paga. de. Eu sei, e vivo isso na pele todo tempo, que
A especulação imobiliária sempre nos diz muito, tem diferentes nomes nas municipalidades, mas
não é? Campinas vive bastante isso. A especu- é o EOL. Aquele cadastro que você tem que co-
lação imobiliária diz muito sobre qual é o projeto locar o nome do estudante que é público-alvo da

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e medicalização
político e econômico para um determinado terri- educação especial pra que a dupla entrada da
tório. Quando trabalhamos em educação e vemos matrícula seja computada, para que a verba seja

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as situações de territórios ocupados pela popu- garantida. Em cada municipalidade, às vezes,
lação sendo violentamente esmagados, sabemos tem um nome, mas é aquele cadastro que você
que não é exatamente um problema só do dono fala, “este sujeito é público-alvo da educação

Patologização
daquela terra reivindicando sua posse. Então, especial”. Tem vários nomezinhos, mas vocês
queria só chamar atenção, do ponto de vista da entenderam do que a gente tá falando, né? Colo-
educação, que temos um projeto na universidade car no sistema que aquele sujeito é público-alvo
de precarização como plataforma da privatiza- da educação especial para que seja garantida a
ção, temos nas nossas escolas públicas hoje um dupla entrada via Fundeb. Feita essa padroniza-
processo de privatização já acontecendo. É só ção linguística, olha só: o que acontece é que tem
olharmos para as municipalidades aqui em torno sido solicitado, na verdade, tem sido exigido que

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das grandes cidades e nos perguntarmos a res- se apresente ou o laudo ou uma carta assina-
peito de qual é o material didático, de onde vem da pela família dizendo que ela tem consciência
o material didático, de onde vem as formações, de que aquela criança, aquele sujeito pela qual
mesmo que elas, em primeiro momento, se apre- ela é responsável, é uma pessoa público-alvo da
sentem como formações gratuitas, para saber- educação especial. E aí, a escola pode fazer uso
mos que elas custam, elas custam a nossa alma, da Nota Técnica número 4, que fala da educação
elas custam o nosso projeto político de educa- especial e da elegibilidade para ser público-alvo
ção. Então, queria dizer que essa faceta conser- da educação especial, que isso teria que advir
vadora tem um propósito econômico e político. de um grupo de estudos feito na escola que pen-
A questão das orientações sexuais, para dar um se a partir do projeto pedagógico e das condi-
exemplo, ou da ideologia de gênero no debate da ções de que aquele estudante se vale para ser
nossa escola, tem se mostrado o importante foco entendido ou não como público-alvo da educa-
aglutinador de interesses econômicos e políticos. ção especial. Só que, na hora de cadastrar, isso
Não vamos achar que as pessoas estão querendo é levado em conta? Ou você cadastra via laudo
defender só a família brasileira, elas querem de- ou você cadastra via uma carta da família dizen-
fender a família brasileira com um certo dinheiro do “eu sei que o meu filho tem deficiência”. Bom,
dentro de um certo propósito econômico e, sem se toda discussão que fizemos até aqui foi do
dúvida, étnico-racial. Então, quando percebemos reconhecimento do caráter de estigma que tem
a força que tem a ideologia de gênero, não vamos a deficiência na nossa sociedade, você acha que
achar que é só a disputa moral, porque essa dis- vai ser fácil essa discussão? Não vai ser fácil.
puta moral está também obliterando uma outra Então, de maneira protetiva, imagino eu, muitas
escolas não estão fazendo esse debate com as Nesse mesmo sentido a sala de recursos
44
famílias, e se não tem laudo, não cadastram, e não é sala de recuperação, a sala de recursos não
se não cadastram não vai ser reconhecido como é um projeto, não é um puxadinho da sala de aula
público-alvo da educação especial. Percebe comum. A sala de recursos visa garantir condi-
como o sistema, aquele que você aperta o botão ções para que o público-alvo da educação espe-
e fala, “essa criança sim, essa criança não” aca- cial aproveite a sala comum. Ela não é substitutiva,
ba dizendo quais são os critérios de elegibilida- ela é complementar, e a gente vai ter que encarar
de do público-alvo da educação especial? Então, essa. E aí quando você fala, “e a pressão da Di-
a gente já sabe onde é que está o problema, não retoria de Ensino?”. Eu te diria, não é nem a pres-
é? Porque não adianta também naturalizar o sis- são da Diretoria de Ensino, porque a Diretoria de
tema, falar, “puxa, mas o cadastro da Prodesp”, Ensino e a escola estão respondendo o Prodesp.
“o EOL”. O secretário da escola, que é o que faz Agora, a gente precisa desmistificar o Prodesp e
o cadastramento, vai trazer essa questão para poder reinventá-lo, não é? Porque ele patologiza o
vocês, não é? Então, a gente tem que enfrentá- público-alvo da educação especial, e a gente não
la no campo da política e não na disputa do ar- pode ser conivente com essa lógica.
quivo Excel que a gente faz. Por quê? Se a gente
vai fazer o debate a partir do arquivo Excel ou Por último, o colega que falou dos enca-
qualquer extensão que o valha, a gente já per- minhamentos para estimulação precoce, se tem
deu, porque o sistema sempre vai ganhar. Agora, algum processo fundamentado na convenção.
qual é a esfera em que nós vamos nos colocar a Eu diria assim, a Cida vai falar da produção que
debater sobre quem constrói o sistema? O siste- a gente fez em relação à Lei 13.438 que fala da
ma do Excel, não é nem o grande sistema. E tem obrigatoriedade de instrumentos, de detecção de
mais uma questão que eu queria apontar. Mui- risco psíquico para bebês de zero a 18 meses, e
tas docentes têm alegado o seguinte “eu quero uma das coisas que a gente debateu é que o ins-
o laudo justamente pra não medicalizar”. Vamos trumento de acompanhamento de bebês e crian-
entender essa afirmação, que ela é importante ças no seu aspecto, no seu desenvolvimento
para a gente debater na educação. “Porque eu integral, chama Caderneta de Saúde da Criança.
quero a certeza de que aquela criança tem defi- Para quem está na saúde e conhece já, ou quem
ciência?”, as professoras dizem, “porque eu pos- tem criança ou adolescente com menos de 15
so estar tomando uma decisão errada, porque anos de idade, conhece a Caderneta de Saúde da
eu não sei aferir deficiência”. Então, essa afirma- Criança, quem tem criança pequena ou trabalha
ção é importante para a gente fazer debate com com criança pequena. Bem, aquele é um instru-
a educação, porque não se trata de aferir defi- mento de acompanhamento do desenvolvimento
ciência, porque se fosse a tarefa eu concorda- integral dos sujeitos, não precisa de outro proto-
ria com a professora, não cabe a ela fazer essa colo, e se naquele instrumento a gente tem ele-
definição, mas o que cabe a ela é perguntar se, mentos para pensar que o desenvolvimento in-
o AEE, o Atendimento Educacional Especializa- tegral da criança de alguma forma está sofrendo
do, dentro da perspectiva da Polícia Nacional de impasses, a gente já tem, suficientemente então,
Educação Especial, na perspectiva de educação condição de encaminhar para serviços especia-
inclusiva, faz sentido para o percurso pedagó- lizados quando necessário. Queria só lembrar,
gico daquele estudante; e isso é só na escola porque talvez essa página vocês estejam mais
que a gente pode responder, não é na Unidade acostumadas a pular, e essa é a página em que
Básica de Saúde que a gente pode responder eu me centro, tem uma parte específica em rela-
isso, nem no serviço de estimulação precoce. É ção ao desenvolvimento da criança com síndro-
dentro da escola. Mas esse é o nosso critério de me de Down, e tem uma parte específica em rela-
elegibilidade para a educação especial, o critério ção ao desenvolvimento da criança com hipótese
de dentro da escola pensando se aquele recurso diagnóstica de autismo na Caderneta de Saúde
pedagógico tem sentido para aquele estudante. da Criança. Então, tem subitens específicos em
Isso só na escola a gente responde. Agora, se relação a essas duas condições humanas. Então,
a gente fica refém da ideia de que eu preciso queria dizer que o que permite a gente fazer um
primeiro aferir diagnóstico para depois garantir bom acompanhamento e avaliar se é o caso de
condicionalmente ao diagnóstico o aspecto da encaminhar pra serviços especializados, é a pró-
inclusão dele como pessoa com deficiência, não pria Caderneta de Saúde da Criança, que já vai
vai dar certo. ser lançado em breve em sua nova versão.
Pedro: Me perguntaram aqui sobre “quando debate. A consequência é que, evidentemente,
45
falamos sobre Escola sem Partido, falamos sobre essa exposição vai promovendo a reflexão e o
uma tendência da onda conservadora. Suponha- debate público a partir de certos referenciais, e
se que o jovem de 16 a 24 anos não teve uma dou- aí vai capturando e trazendo, buscando, encon-
trinação política. No entanto, por que as pesquisas trando adeptos que vão, enfim, num processo
apontam para o aumento dos números do Bolso- que é muito complexo de construção política.

- parte 1
naro? Uma doutrinação conservadora”. Mas eu não tenho a menor dúvida que se tem um

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
agente, vamos dizer, um agente social que tem
Essa discussão sobre por que que isso vem um papel e uma responsabilidade nisso, eu diria

e enfrentamento
acontecendo e por que especificamente esse que foi a maneira como os grandes meios se co-

Psicologia em emergências
setor, essa faixa etária está sendo capturada municaram, usaram do seu espaço pra se comu-
por esse discurso. É uma discussão longa, imen- nicar na arena pública ao longo de alguns anos.
sa, não temos uma explicação precisa para falar Especificamente eu acho que nos últimos seis,
isso, se tivéssemos, encontrávamos a solução e sete anos, isso ficou muito mais intenso e acho

CRP SPdas vidas: reconhecimento


aí resolveríamos o nosso problema. Agora, toda que agora nós temos aí uma onda que está ca-
a premissa da Escola sem Partido parte do prin- minhando sozinha e ela tem um trabalho. Vai ser
cípio que existiria doutrinação nas escolas, seja um trabalho muito grande para todos os setores
conservadora, seja uma doutrinação de esquer- democratas, nem só progressistas, mas demo-
da. Então, é uma premissa toda que parte de um cratas, a gente pensar como é que a gente con-
entendimento de que o jovem, o estudante está trapõe isso com mais democracia, mais direitos
numa posição passiva de aprendizado e que é e não com a mesma agenda de violência e força

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e medicalização
vulnerável na relação com o professor. Quer dizer, que é o que pauta e o que marca esse grupo.
é toda uma formulação a respeito do processo

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educacional que está, por definição, equivocada. Maria Teresa: Eu entendo que essa onda
Ela é, na minha opinião, intencionalmente equi- conservadora não é uma onda, é um conjunto
vocada, não é por acaso que ela é equivocada, e de ondas que vem, é um tsunami, mas que vem

Patologização
aí ela parte do princípio que é isso, que a escola se produzindo há algum tempo e eu vou fazer
teria essa capacidade, no contexto atual que a o mesmo movimento de olhar um pouco para
gente tem na escola, de promover esse tipo de o cotidiano escolar. Como é que eu vejo essa
alinhamento maciço de orientação política. Eu onda se produzindo já há algum tempo? Me
particularmente acho que existe um processo parece que há uma confusão entre os meus
muito mais intenso de formação de opinião e de valores pessoais e aquilo que é a função pú-
valor na esfera política, na verdade, que passa blica da escola. Então, por exemplo, com todo

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pelos grandes meios de comunicação. Acho que o equívoco que há na discussão do folclore, eu
os grandes meios de comunicação tiveram um acho que esse é um momento interessante. Por
papel muito importante na construção e na con- quê? Paulatinamente isso foi desaparecendo da
solidação dessa onda conservadora, na medida escola, não pela crítica à ideia do folclore, mas
em que eles alimentaram essa onda conserva- olha, o Saci Pererê não pode falar, porque o Saci
dora para antagonizar o campo político que go- Pererê é do mal; o Curupira não pode falar, por-
vernava o Brasil, em outras palavras a esquerda, que o Curupira é do mal, e é deficiente além de
ao longo dos últimos 13 anos. Então era muito tudo; a Iara... entendeu? Então assim, isso que
importante alimentar e reforçar todos os agen- está dentro da cultura popular brasileira, quero
tes que, de alguma forma, vociferassem contra me distanciar da ideia do folclore, que vem de
esse campo político. E foi nesse processo que outras matrizes que não predominantemente a
sobressaíram figuras que eram absolutamente ocidental cristã, vai sendo retirado de um modo
secundárias na arena pública, como Bolsonaro. invisível quase do cotidiano da escola, e não à
Ele tem sete mandatos de deputado, então, ele toa, isso tem uma intenção. Tem uma perspecti-
está há 28 anos no Congresso Nacional, mas há va de qual é a função da escola e de quem é que
10 anos atrás ninguém nem sabia que esse cara vai ganhando mais força na definição do currí-
existia, exceto os “milicos” que votavam nele lá culo, porque o currículo não é aquilo que está
no Rio de Janeiro. Então, falando a verdade as- escrito no papel, na lei, onde quer que queira. O
sim, ele é um produto fabricado por uma agen- currículo é aquilo que se realiza cotidianamen-
da de exposição pública de figuras que faziam te na escola. Claro que, em diálogo, em relação
um certo tipo de contestação e um certo tipo de com o que está proposto, com o que está pres-
crito, mas a prescrição não funciona o tempo Me parece muito difícil, tem sido muito di-
46
todo, ele tem aí espaços de negociação. Então, fícil, apesar de a gente ter uma produção, pelo
a gente vai vendo, ao longo do tempo, por exem- menos desde a década de 50 do século passado
plo, o debate entre o evolucionismo e o criacio- na pedagogia, de pensar o trabalho pedagógi-
nismo. Se a escola deve ensinar, já que ensina co de um outro lugar. Quer dizer, a referência do
o evolucionismo, tem que ensinar também o trabalho pedagógico não é o ensino, é a apren-
criacionismo. Eu acho que são expressões de dizagem, e a aprendizagem é necessariamente
como é que essa onda conservadora, que fun- plural, aprendizagem não pode ser enquadrada.
ciona, como a Biancha apresentou bem, numa É claro, você pode construir tipos ideais, mas
perspectiva macroestrutural, mas que também eles são apenas tipos ideais; e a aprendizagem,
vai se construindo nos pequenos fios que vão ela é múltipla, no próprio sujeito e no conjunto
se amarrando, se tecendo, se desamarrando no de sujeitos. Quando eu trabalho com aprendiza-
cotidiano. Vai criando uma certa naturalização gens, na sua pluralidade e na sua complexidade,
de um conjunto de relações e exclusão de ou- essa pergunta deixa de ter sentido. Por isso a
tro conjunto de relações. Com a legislação que gente tem investido muito na ideia da profes-
obriga a introduzir no currículo a cultura, a his- sora pesquisadora, que busca conhecer na sua
tória e cultura de matriz africana, a gente tem experiência o que está posto naquele conjunto
uma série de relatos de práticas no cotidiano, de relações, problematizar, conhecer, compreen-
tanto de professoras e de professores, como de der, confrontar, não é simplesmente identificar.
famílias que não querem ou apresentar aquelas Então, é preciso dar mais consistência a essas
propostas ou as famílias que não querem que perspectivas da pedagogia ou das pedagogias,
os seus filhos participem daquelas atividades. que vão tomar como centralidade a relação pe-
Então, tem aí um espaço de muita tensão de dagógica olhando as aprendizagens, e como é
como é que isso vai se produzindo, como é que então que os sujeitos que estão nessa sala de
isso vai sendo construído. aula participam dessa relação aprendizagem/
ensino. Aí essa pergunta, ela vai perdendo o
Em relação ao diagnóstico e ao trabalho sentido, porque é preciso que eu vá construin-
educacional, vou sempre olhar pelo lado de cá que do, na relação com esses sujeitos, porque são
é o único que eu posso olhar, que eu conheço um eles também que vão me dizendo como é que é
pouquinho. Eu entendo, quando a professora diz, possível que esse diálogo se realize. E entre to-
“olha, eu preciso saber se eu estou fazendo certo dos os sujeitos, porque mesmo as crianças pe-
ou se eu estou fazendo errado”. Eu entendo isso quenas, e claro que os adolescentes e os jovens
dentro de uma determinada matriz de compreen- ainda têm maior possibilidade, mesmo as crian-
são do trabalho pedagógico, que é um trabalho ças pequenas muitas vezes são elas que nos
uniforme. Então, eu preciso ter categorias para dizem, “olha, olha como é que o fulano tá fazen-
que eu possa construir um trabalho que sirva para do, olha que desse jeito ele fez melhor. Olha que
A, para B, para C e para D, ainda que eu entenda esse dia o trabalho dele ficou mais bonito”. Quer
que é bom que estejam todos na sala de aula. Eu dizer, também as crianças vão nos ajudando a
acho que essa ideia a gente, de certa forma, já con- perceber quais são as propostas que a gente
seguiu consolidar um pouco. Mas, o trabalho com pode produzir na sala de aula que vão alimentan-
quem sabe ler é diferente do trabalho com quem do com maior intensidade as possibilidades de
não sabe ler, e o trabalho com quem não sabe ler aprendizagem. Então, me parece que o laudo, o
porque não presta atenção, é diferente do traba- diagnóstico, do ponto de vista do trabalho peda-
lho com quem não sabe ler porque tem alguma... aí gógico, ele é desnecessário, ainda que, conhecer
alguma... alguma o quê? Então eu preciso alguém essas especificidades seja importante para que
que me diga o que que essa alguma é, porque eu eu possa ir constituindo essa relação que se es-
não tenho elementos para saber. Então, enquanto tabelece na sala de aula. Então, eu entendo que
a gente trabalha com essa ideia de “o ensino pa- aí toda classificação hierárquica me parece des-
dronizado é o que promove aprendizagem”, essa necessária para o processo de aprendizagem e
ideia de transmissão de conteúdo e de procedi- ensino, para aprender e para ensinar. Outras coi-
mentos que permitam uma boa transmissão, essa sas são as outras funções sociais, inclusive de
pergunta tem sentido, porque eu preciso saber seleção que a escola efetivamente na sociedade
quais são os recursos para fazer essa transmis- ocupa, mas aí, quer dizer, é uma outra coisa que
são na medida e qual é a possibilidade, enfim. está dentro da escola.
E, nesse sentido, eu sempre me pergunto, gente tem visto que é um fenômeno mundial,
47
entendendo uma determinada função da sala de enfim, as causas também são múltiplas, mas
recursos: por que é que todas as salas de aula eu queria chamar atenção só para um dado que
não deveriam ser salas de recurso, salas em também não é específico do Brasil, mas é que
que nós tivéssemos disponíveis a variedade de tem sido revelado em algumas pesquisas mais
materiais e de possibilidades que existem para recentes, que é a questão da mobilização do

- parte 1
que os estudantes, todos eles, possam se utili- afeto, do medo por uma determinada corrente

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
zar daqueles recursos, inclusive, entre si? Não política e de poder, que pode explicar uma parte
estou dizendo também que todos e todas nós, inclusive dessa admiração de uma parte da ju-

e enfrentamento
independente da nossa condição, em alguns ventude por algumas promessas aí de soluções

Psicologia em emergências
momentos, não precisamos de alguma atenção em relação à violência. Aliás, o Chico Buarque,
específica, mas isso é da nossa condição huma- no novo álbum dele na música Caravanas, ele
na. Parece-me, por isso ou por aquilo, que em fala que “filha do medo, a raiva é mãe da co-
alguns momentos nós precisamos de um traba- vardia.” A gente precisa pensar um pouco nessa

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lho mais específico, de um trabalho mais talvez construção também autoritária das nossas re-
individualizado, talvez num grupo menor, alguma lações, e isso acho que tem um trabalho muito
coisa que precise, mas eu vejo que isso é uma interessante que tá sendo feito agora pelo Jes-
necessidade humana. Claro, alguns talvez de- sé Souza, retomando a questão da escravidão
pendam mais, precisem mais do apoio de deter- como instituição fundadora das relações, para
minados recursos do que outros. Então, de certa a gente ver como é que a gente faz para desmo-
forma, eu acho que nós vamos alimentando uma bilizar esse tipo de afeto e começar a trabalhar

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e medicalização
ideia de uma certa segregação. É interessante com outros.
isso, quando a sala de recursos funciona bem,
Sobre a neutralidade dos juízes, neutra-

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as crianças, todas, querem ir para lá, porque na
lidade eu não acredito em ninguém, nem no
sala de recursos tem fantoche, na sala de recur-
juiz e nem em ninguém. Você tem mecanismos
so a gente brinca, porque na sala de recurso a
processuais que pretendem garantir a impar-

Patologização
gente desenha, porque na sala de recurso a gen-
cialidade do juiz no sentido de que ele não vá
te faz um monte de coisas. Então assim, quan-
julgar por inimizade, por interesse econômico,
do ela funciona bem, não como um espaço de
interesse pessoal dele e tudo mais. Agora, os
segregação, mas como um espaço pedagógico,
mecanismos são falhos, não é? Você tem recur-
todas as crianças querem ir para lá. Eu acho que
so, então, quer dizer, você tem primeiro o direi-
isso também nos indica coisas de qual é um dos
to a ser julgado por um juiz natural, ou seja, o
problemas de funcionamento da sala de aula,
teu processo vai ser distribuído livremente para

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dessa sala de aula, de certa forma, árida. E vai
algum juiz que você não sabe quem é. Depois
havendo uma compreensão nossa, professoras
da decisão desse juiz monocrático, você tem
e professores, de que realmente são aqueles
direito a um recurso, supostamente terá um co-
meninos e meninas especiais que precisam dos
legiado, diminui a chance de você estar sendo
recursos. Eu acho que a gente precisa também
de novo julgado por interesse pessoal de um
pensar nessa certa redução da importância do
só sujeito. Agora, isso é um sistema criado por
que está ali dentro da sala de recursos, não
humanos e que, portanto, tem as suas falhas.
como algo específico de um grupo, mas como
E assim, por mais que as pessoas se debrucem
algo que devia ser de uso dos estudantes de um
em buscar algumas soluções, no nosso arran-
modo geral. Bom, então eu acho que foram es-
jo institucional, aquele que eu havia menciona-
sas as questões que foram aparecendo. Eu acho
do de constituição aberta, abrangente, ele fica
que, fundamentalmente, seria a necessidade de
mais difícil ainda. Porque toda decisão judicial,
a gente colocar em discussão um projeto de es-
seja ela literal, então eu posso ler o texto da
colarização que é monocultural, numa sociedade
Constituição que está dizendo lá, “o AEE deve
que é multi e intercultural. Eu acho que quando a
ser ofertado preferencialmente na escola”. Pri-
gente coloca isso em discussão, me parece que
meiro que o sistema de justiça não sabe nem o
a gente pode pensar o processo pedagógico de
que é AEE, já começa daí, aí já confunde com a
um modo mais interessante.
educação especial e tudo mais, lê o “preferen-
João Paulo: Bom, rapidamente sobre a cialmente” eu posso fazer uma interpretação
questão da onda conservadora, claro que a literal daquilo, dogmática, dizer, “eu estou lendo
a lei e colocando aqui, preste seu atendimento judicialização, porque o juiz também não quer
48
educacional especializado”, fora ou preferen- ficar decidindo essas coisas, entendeu? A gen-
cialmente na escola. Agora, eu posso usar a te tem um outro princípio que é chamado non
interpretação, e aí ela sempre vai ser uma re- liquet. Quer dizer, o juiz é obrigado a decidir, ele
condução a alguma norma para justificar qua- não pode dizer, “ó, declaro empatado” ou “não
se que qualquer coisa. Não sei quem que men- vou resolver, deixa pra depois” tal. É do sistema
cionou aqui antes, por exemplo, uma ação para judiciário, que quando a questão chega, ele vai
proibir a progressão continuada, que, aliás, teve ter que definir.
uma ação do Ministério Público inclusive nesse
sentido. Obviamente, você vai dizer, “a pessoa Junto dessa questão de uma política pú-
está tirando da cartola, do seu senso comum blica efetiva, eu acho que tem uma fase extra-
porque ela acha que isso vai resolver porque judicial das chamadas redes de garantias tal,
não está em nenhum lugar, mas você pode fazer que também talvez seja um caminho de inte-
uma recondução à norma dizendo, “a Constitui- ração, então de saúde, escola, assistência so-
ção diz que tem que ter padrão de qualidade” ou cial, num diálogo que não seja o de imposição
“que tem um artigo que diz que cada um deve de saberes, mas de soma para ter um cuidado
atingir o grau posterior do nível mais elevado com essas crianças, que também pode resultar
de ensino a partir da sua capacidade”. Então, numa diminuição de judicialização. E um outro
é claro que o sistema falha e esse é mais um caminho que eu acho também que a gente pre-
dos pontos que a gente precisa pensar quando cisa apostar um pouco, é em promover forma-
se busca a via da normatização e do judiciário ção. Formação interdisciplinar. Então, é a gente
para resolver questões que não deveriam ser começar a chamar o judiciário, as escolas de
resolvidas nessa seara. A sua pergunta: como magistratura, as escolas de Ministério Público
é que a gente faz para diminuir intervenção do para esse debate. Isso tem começado a acon-
judiciário na escola? Eu acho que tem uma res- tecer. Agora, é aquela coisa, em todo lugar você
posta mais idealizada que é justamente essa tem uma disputa de hegemonia, né? Acho que
um pouco que a Teresa fala da escola dar con- precisamos disputar também esses espaços de
ta, através dos seus processos naturais, vamos formação.
dizer assim, ou pedagógicos, de diálogo e tudo
E uma última pergunta que veio aqui: “por que
mais, de maneira em que as pessoas não se sin-
as famílias dos alunos com deficiência precisam
tam compelidas ou com necessidade de buscar
optar entre o AEE na sala de recurso ou ONGs?
o sistema de justiça para suprir aquilo que não
foi dado no ambiente escolar. Então, a gente Na verdade, essa é outra briga, né? Des-
nota, por exemplo, no trabalho da Promotoria de que colocaram na Constituição “AEE pre-
de Justiça, que muitas vezes as demandas que ferencialmente na escola” e depois houve uma
chegam por suporte, por medicação, por uma mobilização, o MEC, uma época, chegou a ame-
sala de recursos, às vezes decorre do fato de açar cortar financiamento; houve resistência e
que simplesmente ninguém explicou o processo a legislação manteve a possibilidade do duplo
educacional para essa pessoa quando chegou financiamento. Então, de fato, quando a escola
na escola. Então, chega uma mãe de um aluno ou a rede não oferece o AEE, é possível fazer o
com deficiência e tem lá as expectativas dela convênio. Eu não sei se é sobre isso que veio a
e se ela ver aquela criança entrando ali no bolo pergunta exatamente. Agora, na verdade, não é
homogêneo e não tem um caderno com ativida- opção da família, quer dizer, de novo, o trabalho
de, não tem aquele padrão esperado do que é pedagógico é a escola que precisa dizer qual que
seu filho chegar em casa depois de um dia de vai ser feito. Agora, se a escola diz, “precisa fre-
atividade escolar, ela passa a entender “bom, quentar o AEE no contraturno” e não tem na es-
não estão dando atendimento, vou procurar cola e tem o convênio, ilegal não é. Agora, então
o Conselho Tutelar, vou procurar o promotor”. tem uma legislação que ainda regulamenta isso.
Então, quer dizer, eu acho que a gente precisa,
de fato, fortalecer uma política pública educa- Juliana: Encerro essa mesa, agradecendo
cional que dê conta dessas questões, e que as mais uma vez a participação de todos e dizendo
pessoas sejam informadas, saibam como é que da felicidade de ter o evento cheio, hoje, no Dia
se dá esse processo educacional na diversida- da Saúde Mental. Importante a gente marcar
de e tudo mais. Eu creio que isso diminuiria a também essa data.
Na contramão da patologização 49

Mesa de Abertura

- parte 1
Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Maria Aparecida Affonso Moysés

e enfrentamento
Graduação em medicina pela Faculdade de Medicina de São Paulo, doutorado em medicina pela

Psicologia em emergências
USP, livre docente em pediatria social pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp; atualmente
professora titular em pediatria da FCM da Unicamp; atua em ensino, pesquisa na área de
atenção à saúde do escolar e em especial nos campos da medicalização do comportamento e da
aprendizagem, avaliação cognitiva, aprendizagem e desenvolvimento; coordena o laboratório de

CRP SPdas vidas: reconhecimento


estudos sobre aprendizagem e desenvolvimento e direitos no Ciped, - Centro de Investigações de
Pediatria - da Unicamp; publicou livros e vários artigos em periódicos científicos na área de medicina,
psicologia e educação; autora do livro A Institucionalização Invisível: Crianças que não aprendem
na escola; parceira do Despatologiza, Movimento pela Despatologização da Vida que tem articulado
as discussões, eventos e ações sobre a medicalização da vida educação; coordena o Repense,
grupo de estudos sobre despatologização, tolerância e discriminação do Fórum Penses da Unicamp.

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e medicalização
Cadernos Temáticos
Patologização
Vamos começar agora o nosso VIII Encontro Des- nosso agradecimento ao apoio que sempre tive-
patologiza, que esse ano tem o tema “Na Contra- mos, o apoio incondicional que temos em todos as

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mão da Patologização”. Eu vou começar chaman- nossas propostas, do Sinpsi, Sindicato dos Psicó-
do as pessoas para compor a mesa de abertura, o logos do Estado de São Paulo, e também do Sind-
Presidente do Conselho Federal de Psicologia, Ro- med, que é o sindicato dos médicos de Campinas
gério Giannini. Nosso grande apoiador, o conselho e região, e do Pedro Tourinho, nosso querido com-
sempre tem apoiado todas as lutas e campanhas panheiro de lutas e de ideais e sonhos, que sempre
do Despatologiza, sempre comprometido com a está conosco, apoiou esse evento, mas não pode
despatologização da vida, assim como o Conselho estar aqui presente, porque ele é candidato a de-
Regional de Psicologia de São Paulo, aqui repre- putado estadual.
sentado pela Rosangela Villar. Também a Cláudia
Ometto, professora Cláudia representando a di- Eu estou aqui representando a Despatolo-
reção da Faculdade de Educação, nossa grande giza e é sempre uma emoção e um prazer muito
parceira. Agradecer também o apoio da direção da grande estar nesses eventos, porque sempre po-
Faculdade de Ciências Médicas, que sempre nos demos nos enriquecer com as reflexões coletivas,
apoiou e que neste evento, por um imprevisto, não mas também falar desse momento especial que
pode estar aqui presente. Também quero convidar estamos vivendo em tempos tão sombrios, em que
o professor Paulo Amarante, Presidente do Grupo tudo conspira na destruição de direitos, lembrando
de Trabalho de Saúde Mental, na Abrasco. Grande que a destruição de direitos constrói um terreno
parceiro na despatologização da vida. E Leonardo para a patologização da vida. A patologização da
Pinho, Léo Pinho, Vice-presidente da Abrasme, As- vida se constitui na destruição de direitos, e é con-
sociação Brasileira de Saúde Mental e Presidente tra isso que a gente sempre tem lutado. Vou pas-
da Unisol. Também quero aqui deixar registrado o sar para o Rogério.
50 Rogério Giannini
Conselheiro Presidente do Conselho Federal de Psicologia – CFP.

Bom dia. Cida, eu vim de São Paulo, ontem, lem- das. Por todas as entidades que passei, a gente
brando quando o tema medicalização, patologi- levou essa discussão a sério, não só eu, mas as
zação, despatologização entrou em pauta, as outras pessoas e a gente sempre teve o apoio
preocupações, na época que foi o I Seminário e o sistema conselho de modo geral tem, não
Internacional de Medicalização da Vida e que foi só o Conselho Federal, mas o Conselho Regio-
também quando eu te conheci. Quando a gente nal de São Paulo e o conselho regional de vários
fala “conheci”, eu conheci mesmo. “Ah, essa é a estados. Então eu diria que praticamente todos
Cida”, aí outras personalidades, outras perso- os estados, todas as regiões têm também atu-
nas desse campo que eu fui conhecendo e, na ado e apoiado ações ligadas ao movimento de
época, eu lembro que eu falei, “nossa, mas esse despatologização da vida, da discussão da me-
negócio de medicalização, como é que isso ope- dicalização, enfim, tem sido um espaço impor-
ra?”. Ao longo tempo, fui percebendo a potên- tante. E o Conselho Federal tem sido, sim, um
cia que esse tema tem, e a potência que essa parceiro fundamental, senão por uma outra coi-
categoria, esse modo de pensar, essa chave de sa, até porque eu diria que é o espaço em que
interpretação do sujeito, da vida, da sociedade a psicologia e as psicólogas encontram o seu
tem. E, durante muitos anos, a gente fica falan- melhor jeito de ser. Até porque em uma lógica
do, quase ninguém ouve, aí a coisa vai expan- medicalizante, outros conhecimentos sobre o
dindo. E hoje é o que é, não só o Despatologiza, sujeito, que não sejam os conhecimentos bio-
como tudo o que permeia essas discussões na lógicos, não ganham espaço nesta lógica. No
sociedade e como a gente vai juntando outras fundo, a busca é por esse mapeamento desse
categorias de análise. Enfim, de algum maneira, sujeito orgânico absoluto e nesse lugar não tem
vai percebendo a importância, como você disse, lugares para um encontro de sujeitos e de sub-
de como a gente pensa a despatologização, a jetividades. Então, quando a gente apoia essas
gente pensa desde o manejo clínico do sujeito, atividades, também a gente está dizendo para
até pensar a sociedade e a lógica patologizan- as psicólogas que não estão aqui, para vir para
te, medicalizante, que é uma lógica de domina- esses espaços, inclusive, que é um espaço em
ção, é uma lógica de estabelecimento de redes que a psicologia tem espaço, então acho que
de poder, enfim. isso tudo justifica plenamente o nosso apoio.
Mas era só isso, era só para ressaltar mais essa
E tudo isso, para quem não sabe, acaba iniciativa, estaremos juntos aqui esses dois
dando no capitalismo, interesses econômicos, dias e desejar os melhores frutos das nossas
então a gente vai desvendando essas cama- discussões. Muito obrigado.
Leonardo Pinho 51
Vice-presidente da Abrasme, Associação Brasileira
de Saúde Mental e Presidente da Unisol

- parte 1
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Bom dia a todos e a todas. Primeiro agradecer mental esses dois dias aqui, porque esse debate
a Cida, a todos da mesa pelo convite de estar está inserido no debate mais geral da sociedade,
nesse importante momento aqui do encontro nós vemos isso com os planos de saúde popular,
do Despatologiza. por exemplo, no trato do SUS, na saúde mental

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e medicalização
a gente assiste isso, o retorno do financiamento,
Atualmente, eu estou no Conselho Nacional do aumento das diárias para os hospitais psiqui-

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de Direitos Humanos, que tem travado algumas átricos, que é submeter a parte pública, sucatear
batalhas sobre o desmonte das políticas públicas atenção psicossocial por um retorno à lógica pri-
no Brasil, não só no SUS, na saúde mental, mas vada. Então, eu acho que esse encontro vai nos

Patologização
nas diversas áreas, emenda constitucional 95, ajudar, vai subsidiar para a gente fazer esse de-
reforma trabalhista etc. E estar aqui nesse even- bate. Olhando aqui eu lembrei da educação. Para
to, que discute a patologização da vida, medica- a educação, esse debate da medicalização e da
lização social, nesse cenário em que a gente se despatologização da vida está colocado se os
encontra, é muito importante porque esse debate direitos humanos, os direitos públicos vão ter e
está inserido diretamente com o interesse que continuar sendo centralidade na construção das
nós estamos hoje no país, de submissão do pú- políticas públicas ou se vai haver uma submissão

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blico aos interesses privados, não é? Então, o de- total aos interesses privados e, detalhe, de al-
bate da medicalização, da patologização da vida gumas corporações e, no caso da medicalização
passa diretamente por essa disputa mais geral da vida, há corporações internacionais. Então eu
que nós estamos vivendo nas políticas públicas acho que é esse o debate, eu espero nesses dois
no Brasil, de submissão dos interesses públicos, dias aprender muito com vocês e também levar o
da construção da política pública, dos interes- acúmulo daqui pros debates do Conselho Nacio-
ses dos direitos humanos das pessoas. É funda- nal de Direitos Humanos. Obrigado.
52 Paulo Amarante
Presidente do Grupo de Trabalho
de Saúde Mental, na Abrasco

Bom dia. Eu quero primeiro agradecer à pro- a toda apropriação médica e científica que se
fessora Maria Aparecida Moysés e a toda or- faz da vida, e que o termo patologização vem
ganização do encontro Despatologiza e cum- trazer. A questão nossa maior, o nome é des-
primentar as outras pessoas da mesa. É uma medicar, só, e nem desmedicalizar no sentido
honra participar desse importante seminário. da medicina, né? Eu, inclusive, como médico,
Sinto também, mas compreendo, a ausência do sempre chamando a atenção disso, acho que
vereador Pedro Tourinho, nosso companheiro a medicina também com todos os outros que
histórico nos Cebes, Centro Brasileiro de Estu- se baseiam na ideia da patologia, corre o risco
dos de Saúde, entidade criada por um pernam- da patologização. Eu acho muito importante a
bucano tornado paulista, Davi Capistrano, e um coragem desse movimento aqui em Campinas,
paulista tornado carioca, Sérgio Arouca. Quero Despatolologiza, de enfrentar um desafio que
agradecer também estar aqui, na verdade, eu é um certo paradoxo, nós somos profissionais
sou presidente de honra da Abrasme, entidade da saúde que, paradoxalmente, vivemos da do-
que o Léo também é vice-presidente. Este é um ença, nós vivemos da clínica. Quando a gente
título dado para quem já está velho nessa luta. fala em patologização e medicalização, não fa-
O povo coloca o nome de sala de aula, Caps, lamos só da indústria farmacêutica, da indústria
eu só peço, como dizem da Nise da Silveira, que de equipamentos, da indústria de diagnósticos,
não coloque o meu nome num hospício, como nós falamos também de nossos consultórios,
fizeram com o nome dela num hospício no Rio falamos da nossa clínica particular e, muitas ve-
de Janeiro. Instituto Nise da Silveira é um hospí- zes, nós entramos no mesmo processo de pa-
cio; ainda esperaram a Nise morrer para botar o tologização. Vê-se muito isso com a questão da
nome dela num hospício, uma histórica lutadora, depressão, né? Muitas pessoas para quem nós
importante lutadora antimanicomial. poderíamos indicar a busca de outras formas
de vida, de organização e de cuidado, acabam
Lá, na Abrasme, realizamos evento impor- sendo aceitas e incorporadas como pacientes
tante, com quase 12 mil pessoas participando depressivos, aumentando as estatísticas e au-
e teve uma mesa sobre a questão da patolo- mentando, portanto, também a busca por tra-
gização e medicalização. E eu, nessa mesa, tamentos e por mercado. Eu acho que uma das
pude, com a Cida, frisar esse aspecto que eu grandes importâncias do Despatologiza é que
acho o que Despatologiza traz de Campinas, ele abre uma perspectiva. Inclusive esse livro
porque durante muito tempo, o termo chave, a da Abrasme, que a Cida tem capítulo, a Biancha
palavra chave, a palavra de honra desse movi- também, eu sou o autor, sou o organizador, ele
mento, foi o desmedicalização e medicalização. coloca como primeiro termo esse, despatolo-
E esse termo, por uma série de aspectos, induz gização, medicalização da vida, epistemologia
a dois problemas, duas limitações. Um proble- política. Além dos aspectos que são enfrenta-
ma é medicamento, muitas pessoas associam dos no conceitual, epistemológico, de rebater a
medicalização ao uso de medicamento, e não esse processo universalizante e totalizante de
53

- parte 1
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
patologização da vida, existe também toda a apetite, que no mundo inteiro está sendo proibi-
luta que isso representa de direitos humanos, do, e uma série de outras regulamentações.
de resistência à redução da vida à patologia, ao
que se torna um mercado e tudo mais. Então, E a outra coisa é convidá-los e convidá-las

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e medicalização
queria extrair essa importância do deslocamen- para o segundo seminário sobre epidemia das
to do termo principal para despatologização, drogas psiquiátricas, que estamos organizando

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que ele pode nos abrir perspectiva e que acho na Fiocruz. No ano passado foi um sucesso, nós
que esse encontro é para fazer. tivemos mais de 3 mil acessos online. Vários de
nós aqui, Sandro, Biancha, Cecília participaram;

Patologização
Não podia deixar de aproveitar para falar nós vamos fazer esse ano de 29 a 31 de outu-
duas coisas, uma do José Rubens de Alcântara bro, embora num auditório desse tamanho, um
Bonfim, Presidente da Sobravime, fundador da pouquinho menor. Então não cabe todo mundo, a
Sobravime, Sociedade Brasileira de Vigilância de transmissão será ao vivo em um padrão de quali-
Medicamentos, que foi o primeiro presidente do dade muito importante, muito bom e a gente está
Cebes. Ele nos chamou a atenção para uma coisa sugerindo que, como aconteceu no ano passado,
muito importante, que nós temos o hábito de fa- pessoas, professores, reúnam alunos, grupos de

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lar das três bancadas do B, da Bala, da Bíblia e do estudo, de debate para assistir e interagir, na
Boi. E o José Rubens chamou a atenção: agora, medida que há facilidade de interação com os
nós temos uma importante bancada que a gente participantes da mesa. Já há vários brasileiros
não reconhece, que é a do quarto B, é a da Bula, convidados e confirmados, como a Biancha, o
a indústria de medicamentos e que tem um dos Rogério, a Cida e outras pessoas, o João Vitti e a
maiores lobbys dentro do Congresso Nacional. Laura Delano já confirmados, então importantes
Visto agora, recentemente, a liberação das an- referências aí também da luta contra a medicali-
fetaminas para a obesidade, com retardador de zação da vida. Muito obrigado.
54 Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto
Pedagoga pela Universidade Metodista de Piracicaba, mestrado em Educação
pelo Programa de Pós-Graduação em Educação PPGE/UNIMEP e doutorado em
Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professora
na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Bom dia a todos e todas, aos colegas da mesa, nhamento especial. Em especial, eu vivi isso essa
à professora que nos brinda com mais um even- semana com uma pessoa muito próxima e nós
to de encontro Despatologiza, fundamental entendemos a importância dos cursos de forma-
para pensarmos. ção de professores nesse movimento. Então, ele é
um movimento que discursivamente nós podemos
Eu vou falar do local da Faculdade de Educa- construir novas referências, na tentativa de rom-
ção, as relações escolares. Nós celebramos esse per e deixar de produzir novas situações nas quais
evento e entendemos a riqueza desse encontro de os sujeitos são colocados como responsáveis por
pessoas de distintas áreas pensando numa mes- questões que são amplas e sociais, e não individu-
ma direção de desconstruir essa ideia patologi- ais e singulares. Cada vez mais defendemos uma
zante, como bem disseram já vários aqui na mesa, escola pública, laica, de boa qualidade para todos,
da vida, não só da escola. Mas do lugar da escola, não patologizante. Parabéns pelo evento, espero
nós nos preocupamos bastante com um número que tenhamos dois dias profícuos de trabalho e
crescente de laudos que temos tido de crianças que tenhamos aí novas construções discursivas
que são encaminhadas para salas de acompa- que nos levem pra outros caminhos. Parabéns.
Rosangela Villar 55
Psicóloga com experiência em saúde pública e clínica.
Colaboradora do CRP SP nas áreas de Educação e Medicalização
e militante do Despatologiza - Movimento pela Despatologização.

- parte 1
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Bom dia a todos e todas, e aos colegas de ção da vida - Resistir Para Reexistir. Lá na fren-
mesa, novamente nos encontramos. É bom falar te temos o banner, trouxemos os folhetos que
por último, porque a gente não precisa mais fa- providenciamos pelo conselho. E o que o Rogé-
zer discussão conceitual, já foi falado. Então, eu rio fala é muito importante. Embora a discussão

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e medicalização
vou falar um pouquinho do processo de resis- da patologização da vida seja para todos os
tência e de enfrentamento. O Conselho de Psi- profissionais que cuidam de si e das pessoas,

Cadernos Temáticos
cologia, tanto de São Paulo, quanto a subsede em especial, estamos mandando um recado
de Campinas, dá o total apoio a essa luta e ao para nossa categoria que precisamos olhar com
movimento Despatologiza, já com oito edições muito cuidado: que prática que a gente tem?

Patologização
do evento. Estamos juntos desde o primeiro en- Porque somos praticantes da patologização e
contro e, especialmente em São Paulo, a gente da despatologização. É sempre uma questão
está vivendo um ano de campanha que se en- de escolha, de olhar o mundo. Então, esse é o
cerra agora em novembro, que é a campanha de convite. Agradeço, então, de novo e espero que
enfrentamento à medicalização e a patologiza- possamos continuar na luta lado a lado.

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56
Processos de avaliação numa
perspectiva despatologizante
Rossano Cabral Lima
Psiquiatra de crianças e adolescentes, doutor em saúde coletiva,
professor e vice-diretor do Instituto de Medicina Social da UERJ.

Gente, bom dia. É um prazer estar com vocês O que que o Borges inventou? Borges diz que
mais uma vez em Campinas. Pelas minhas con- umas certas ambiguidades, redundâncias e efi-
tas, é a terceira vez que eu participo de um ciências recordam que um doutor Frans Coom
evento do Despatologiza, então agradecer atribui a uma certa enciclopédia chinesa intitu-
à Cida por esse novo convite, por essa outra lada “Empório Celestial de Conhecimentos Be-
oportunidade de estar com vocês aqui. névolos”, totalmente inventado pelo Borges. Em
suas remotas páginas, está escrito que os ani-
Então, eu aproveitei o mote do recente
mais se dividem em 14 categorias, então vamos
lançamento da CID 11, da décima primeira edi-
classificar os animais, segundo Borges. Catego-
ção da Classificação da Organização Mundial
ria A: pertencentes ao imperador; categoria B:
de Saúde, que ainda não existe livro, mas já
embalsamados; categoria C: amestrados; D: lei-
é possível consultar online e em inglês, e vou
tões; E: sereias; F: fabulosos; G: cães vira-latas;
tomá-lo como eixo da minha discussão, da mi-
H: os que estão incluídos nessa classificação; I:
nha apresentação, até que a gente possa, che-
o que se agitam feito loucos; J: inumeráveis; K:
gar aos impactos na avaliação que é o objetivo
desenhados com um pincel finíssimo de pelo de
tema dessa conferência compartilhada.
camelo; L: etc; M: os que acabaram de quebrar o
Já que o lema é na Contramão da Patolo- vaso; N: os que de longe parecem moscas.
gização, eu primeiro vou na mão da patologiza-
Tá aí, é uma possibilidade, uma classifica-
ção, para a gente depois chegar na contramão
ção, por que não? Uma classificação dos ani-
da patologização. Acho que a questão de início
mais na qual você certamente tem a possibili-
é como o campo da psiquiatria tem classifica-
dade, a certeza de incluir todos os animais, na
do os transtornos mentais na infância e ado-
pior das hipóteses, na categoria etc.
lescência. Bem, classificar é um ato humano por
natureza, a gente sem saber sai classificando Então, vamos às categorias médicas com
tudo pela frente, uma maneira de a gente orga- o idioma analítico de John Wilkens na cabeça,
nizar o mundo, entender o mundo. Então, antes na verdade, o “Empório Celestial de Conheci-
de falar de classificação psiquiátrica, eu decidi mentos Benévolos” na cabeça. Bom, vou seguir
apresentar para vocês aquele trechinho do Bor- então a trilha do SM e do CID, né? Do Manual Es-
ges, que o Foucault cita no início das “Palavras tatístico e Diagnóstico Americano, e da Classi-
e as Coisas”. Na verdade, é menos lido direto do ficação Internacional de Doenças, da Organiza-
Borges, e mais lido indiretamente no Foucault, ção Mundial da Saúde. Pois bem, no que tange
que é o idioma analítico, de John Wilkens, onde o a criança, se procurarmos a primeira classifi-
Borges diz isso, “sabidamente não há classifica- cação, o primeiro da DSM, dos anos 50, vamos
ção no universo que não seja arbitrária e conjec- encontrar somente três grandes categorias. A
tural”. Mantenha isso na cabeça quando vai lidar categoria que, de certa maneira, é fundadora
com essas classificações científicas, baseadas da psiquiatria infantil, o retardo mental, antiga
em evidências, não é? Nunca são totalmente. idiotia, imbecilidade, deficiência mental, fraque-
za de espírito. Há um diagnóstico de reação es- seria só descritivo, objetivo, ateórico em rela-
57
quizofrênica tipo infantil. O que, por exemplo, a ção a etiologia e ao processo patofisiológico.
gente chama hoje de autismo, ou estaria aqui Mas, na verdade, mais do que ateórico, foi con-
no campo da neurose infantil, certo? Transtor- tra teórico, no sentido de eliminar basicamente
nos de ajustamento na infância, uma série de uma teoria forte, a teoria vocabulário da psica-
transtornos de hábitos como roer unha, chupar nálise. Não tem mais neurose, não tem mais his-

- parte 1
dedo, Transtornos de conduta, etc. teria, não tem mais psicose infantil e isso teve

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
um impacto grande na formação de, pelo me-
Bem, 1968, você tem uma categoria cha-
nos, uma ou duas gerações, não só de psiquia-

e enfrentamento
mada transtornos de comportamento da in-
tras. A influência desses manuais está cada vez
fância e adolescência, então isso ganha um

Psicologia em emergências
maior, de tal maneira, que as pessoas passam
destaque um pouco maior, embora ainda fosse
a ser formadas sem contar com esse vocabulá-
considerado uma categoria menor da classifica-
rio, como se isso não existisse mais, porque não
ção psiquiátrica. A maior parte do campo psi-
está nas páginas do DSM.

CRP SPdas vidas: reconhecimento


quiátrico, embora já houvesse uma psiquiatria
de crianças e adolescentes, não estava muito Uma outra coisa que o David Hill, o psi-
preocupado em psicopatologia da infância e quiatra inglês, já mostrou, é o quanto isso é um
adolescência. Mas você já tem precursores dos equívoco que muitas vezes se comete, de dizer
nossos diagnósticos contemporâneos, você já que o DSM diz explicitamente que os quadros
tem o precursor do TDAH, reação hipercinética, têm origem orgânica ideológica. Não, ele não
várias outras reações, isso é muito interessan- diz. Mas na verdade, nessa intenção de ser ate-
te. A noção de reação, ela está presente em boa

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órico do ponto de vista etiológico, Hill mostrou a

e medicalização
parte das categorias infanto-juvenis do DSM 2. grande afinidade entre o formato de apresenta-
Na verdade, estava presente em quase todo o ção dos transtornos naquela lista de sintomas e

Cadernos Temáticos
DSM1 geral, e ela se preserva na infância e na as necessidades da indústria farmacêutica em
adolescência. Isso reflete o ambiente psi nor- relação a categorias médicas confiáveis para
teamericano dos anos 50 e 60, o modo como a

Patologização
que se pudesse, a partir delas, fazer ensaios clí-
cultura americana metabolizou e digeriu a con- nicos experimentais de uso de medicamentos.
tribuição da psicanálise. Dos psicanalistas que Era preciso esse tipo de sistema. E é claro que
foram fugidos do nazismo para os Estados Uni- isso, que em princípio, podia ter uma função,
dos, a noção de reação, de adaptação do orga- um objetivo de pesquisa de medicamento, se
nismo a condições adversas levando a transtor- espraiou para o campo clínico de uma maneira
nos mentais, isso explica essa noção de reação muito impactante, com consequências no modo
em praticamente tudo aqui. Pois bem, você tem

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de a gente pensar a clínica hoje em dia.
outras categorias dispersas, não estão nesse
grande grupo transtorno de comportamento na Pois bem, agora isso é interessante, por-
infância e adolescência. Está o retardo mental, que é exatamente esse o momento, quer dizer,
a esquizofrenia, então já começa esse movi- não é um momento só, mas isso é mais um mo-
mento que a gente descreve hoje de multiplica- mento onde a atenção aos transtornos mentais
ção de diagnósticos; já começa a ganhar corpo da infância e adolescência ganha mais desta-
se a gente compara o DSM 1 com o DSM 2, vai que. Então, é um movimento, talvez como tudo
ser a mesma coisa quando a gente compara o na vida, ambivalente, ou seja, de um lado se
CID 8 com o CID 9 e o 10 também. presta mais atenção na possibilidade da criança
e o adolescente apresentarem sofrimento men-
Bem, chegam os anos 80, chega o DSM tal, transtorno mental, por outro lado, esse pro-
3 que é a edição que marca a chamada virada cesso de explosão de várias categorias e sub-
epistemológica, que no fundo é mais política categorias de diagnósticos atingem o seu ápice.
do que epistemológica, da psiquiatria nortea-
mericana e com reflexos, a partir de então, na Eu estou falando do destaque dado à in-
psiquiatria mundial. É o momento que marca a fância a partir desse momento, para o bem e
preocupação dos psiquiatras norteamericanos para o mal, porque essa vai ser a categoria que
em ganhar respaldo dentro do campo médico não é uma reação às outras, mas que abre o
científico. Não serem considerados uma es- DSM 3. Você abria o DSM 3, a primeira categoria,
pecialidade menor e para isso, então, eles vão é o transtorno, usualmente evidente, pela pri-
construir um manual que, nas palavras deles, meira vez na infância e na adolescência, com os
vários subtipos. É aqui que surge DDA. O termo, do desenvolvimento psicológico, e aí eu vou
58
nessa época não tinha o H ainda, era distúrbio ressaltar aqui a presença, a partir do DSM 3,
do déficit de atenção, mas aí é uma outra dis- porque eu estou falando de CID, mas os siste-
cussão. E é aí também onde surgem os transtor- mas se comunicam; a importância, a noção de
nos globais ou invasivos do desenvolvimento, ou desenvolvimento, de psicopatologia do desen-
seja, dito de outra forma, é aí que para psiquia- volvimento, o quanto ela se torna importante.
tria, o autismo deixa de ser uma psicose infantil. Está no CID 10 transtorno do desenvolvimento
Na verdade, a psiquiatria, de certa maneira, ten- psicológico, incluindo um monte de coisa, des-
ta expulsar a categoria de psicose infantil, até de coisas mais do campo, digamos, fonológico,
hoje. Na psicanálise, essa discussão ainda está escolar, chegando até os transtornos invasivos
viva, mas para a psiquiatria, psiquiatras não do desenvolvimento, autismo e suas outras va-
sabem muito bem o que fazer com a categoria riações. Transtornos emocionais iniciados na
psicose infantil desde essa época, e onde então infância, os transtornos hipercinéticos, de con-
aparece essa noção de transtornos do desen- duta, transtornos emocionais, tem uma catego-
volvimento, transtornos globais ou invasivos do ria que é muito divertida, que deixa mais eviden-
desenvolvimento. Guardem isso, porque vai ser te o caráter borgiano das classificações, que é
importante no que eu vou apresentar. transtorno de rivalidade entre irmãos. Esse aqui
ninguém usa, acho que assim, as pessoas têm o
Bem, no DSM 4, nos anos 90, essa cate- mínimo de medo do ridículo, elas não usam essa
goria, ela permanece, né? Aqui ele tem algumas categoria, então só para vocês terem uma ideia,
modificações, aí aparece o TDAH, na verdade, a gente normalmente até tem um pouco mais de
desde a revisão do DSM 3, e é o momento, nesse simpatia pelo CID, do que pelo DSM, mas o DSM
processo de inclusão de novas psicopatologias, nunca chegou a usar esse tipo de categoria.
de novas categorias ou subcategorias. Uma ou-
tra coisa marcante é que aparece a síndrome de Enfim, vamos ver aqui quem de nós já
Asperger, que não aparecia nesse manual. preencheu critérios, diagnósticos na infância,
e provavelmente parte de nós continua preen-
Vamos agora dar um recuo no tempo. Va-
chendo hoje em dia, fazer o que, não é? E nesse
mos ver como é que isso se reflete na classifica-
ambiente do país, com certeza tem transtorno
ção da Organização Mundial da Saúde, porque
de rivalidade entre irmãos subgrupo política
na prática, é o que a gente usa. Na verdade, mais
brasileira. Bem, você tem outros transtornos
uma ambivalência. Oficialmente no Brasil, o ser-
de funcionamento social, transtorno de tique,
viço de saúde, o SUS brasileiro usa a classifica-
aqueles transtornos funcionais, que já apare-
ção internacional de doenças (CID). Mas quando
cem desde o DSM 1. Está tudo aqui, então é
a gente vai ler pesquisas em periódicos, sejam
isso, vai se alargando, o número de páginas ne-
feitas nos Estados Unidos ou aqui em São Pau-
cessárias para conter esses transtornos é cada
lo, os critérios são os critérios da Associação
vez maior.
Psiquiátrica Americana (DSM), mas tudo bem.
Muito bem, chegamos no DSM 5, e o que
Na CID 8, você vai procurar categorias in-
parece ser a principal novidade do DSM 5?
fantis, só acha essas duas: distúrbio de conduta
Primeiro, desaparece uma categoria específi-
na infância e o retardo mental, que já está lá des-
ca para infância e adolescência, não há mais
de o século 19, antes do sistema CID, DSM e tal.
uma categoria, transtornos iniciais na infância,
Na CID 9, aí a coisa já se desdobra. Tem transtornos infantis e na adolescência. O que
o autismo na CID 9, ainda como uma psicose, mais se aproximou, o que mais se aproxima e
grupo de transtornos emocionais, os transtor- que ocupou esse espaço, a gente vai ver que no
nos hipercinéticos, o que vai dar origem depois CID 11 é mais ou menos a mesma coisa, é esse
ao transtorno do déficit de atenção e hiperati- grupo de transtornos, mas não é mais só do de-
vidade, atrasos e obviamente, retardo mental lá senvolvimento, é do neurodesenvolvimento.
firme e forte.
E nesse grupo de transtorno de neurode-
Bem, o que conhecemos de manejar mais, senvolvimento, cabe também coisas variadas,
o CID 10, encontramos dentro desse grupo desde o retardo mental renomeado, redescrito
também de transtornos com início específico como deficiência intelectual, questões da co-
na infância, duas subcategorias: Transtornos municação, o TDAH, agora é entendido como um
transtorno do neurodesenvolvimento. Transtor- tornos do neurodesenvolvimento. São basica-
59
nos da aprendizagem, transtornos motores, mente pequenas diferenças no detalhe.
essa nova noção de transtorno do espectro
Pois bem, chegamos no ponto que eu que-
autista também entendido como transtorno do
ria, um dos pontos para chegar na questão da
neurodesenvolvimento. Outros diagnósticos
avaliação. Essa noção do desenvolvimento é
infantis estão dispersos nas mesmas cate-
uma noção que tem destaque, mas é um des-

- parte 1
gorias usadas para os adultos. Transtorno de

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
dobramento. É sempre bom lembrar isso; quem
ansiedade e separação, que vinha numa cate-
lembrou, entre outras pessoas, foi o Richard Le-
goria específica pra criança, agora está dentro

e enfrentamento
bon, um biólogo já falecido. Muito crítico do de-
dos transtornos de ansiedade de uma manei-
terminismo genético, ele lembrou que desenvol-

Psicologia em emergências
ra geral. Esses exemplos dão conta um pouco
vimento é a noção oriunda da biologia que está
dessas psicopatologias da pós-modernidade,
contaminada por essas teorias pré-formacio-
o transtorno de escoriação, de se cortar, de se
nistas do século 18, ideia de que alguma coisa
machucar, essa categoria também não existia,

CRP SPdas vidas: reconhecimento


que já está presente, já está pré-formado e que
mas está dentro da categoria do TOC; e a cria-
simplesmente, se desdobra e se desenrola na-
ção de um novo diagnóstico dentro do campo
turalmente. Então muito importante a gente ter
dos transtornos depressivos, o chamado trans-
cuidado com o termo que a gente usa. O termo
torno disruptivo de desregulação do humor,
desenvolvimento tem valor, mas ele pode levar
também nunca existiu em categoria nenhuma
a gente por caminhos que às vezes não queria,
um quadro de crianças, entre seis e dez anos,
não previa, não sabia no início.
que tenham explosões emocionais e que entre

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e medicalização
as explosões são meio irritadas, são meio mal Você tem aí todo o impacto, durante o sé-
humoradas. Então, agora você tem nova cate- culo 20, inclusive, no campo da psiquiatria de

Cadernos Temáticos
goria diagnóstica pra essas crianças. crianças, das teorias do desenvolvimento, das
mais variadas, Piaget, Valon, Vygotsky, mais
Bem, chegamos à CID 11. Só pra situar, a
próximo da psicanálise, Winnicott, Erickson,
CID não é exatamente equivalente ao ameri-

Patologização
Spitz, Mahler. Em todos eles, a incidência do
cano, no sentido de que o americano é só dá
tema desenvolvimento, de alguma maneira, ex-
psiquiatria, CID classifica oncologia, classifica
plicitamente ou não, se dá.
dermatologia etc. Tem um capítulo de saúde
mental, mas vejam bem, na CID10 era transtor-
nos mentais e do comportamento, na CID 11,
transtornos mentais do comportamento e do “A ideia é entender o
neurodesenvolvimento, isso vai para o título do desenvolvimento como um

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capítulo, não estava colocado até então. Você processo ativo e dinâmico, que
tem outros quadros dispersos, as outras ca-
tegorias como o DSM5, está o diagnóstico de envolve tanto o processamento
TDAH, ele não entra na CID 11, ele entra como cognitivo e afetivo, como
subtipo de transtorno desafiador de oposição. também adição de sentido, que
Você tem uma categoria que não entrou no DSM
5, mas entrou na CID 11, que é o transtorno de o próprio indivíduo dá às suas
uso excessivo de games, o mais curioso é isso: experiências no decorrer da vida”
dois subtipos, predominantemente online e pre-
dominantemente off-line. Não é piada, uma das
justificativas é que o transtorno online é mais
Mas, a partir dos anos 80 até os anos
grave porque as pessoas não conseguem sair
2000, principalmente pelos trabalhos de Micha-
da frente do computador. O jogo está rolando,
el Rutter, considerado, de certa maneira, o pai
tem gente para jogar 24 horas por dia, a ponto
da psiquiatria infantil inglesa, e seu grupo na
de você ter relatos de pessoas que usam fralda,
Inglaterra, há a aderência à ideia de psicopato-
escolhem usar fralda para não parar de jogar,
logia do desenvolvimento, que seria, nas pala-
mas isso é outra discussão.
vras dele, o estudo das origens e evolução dos
Bem, a CID 11 também mantém uma ca- padrões individuais de problema de comporta-
tegoria transtorno de início na infância, ela mento e emocional, com objetivo de compreen-
também usa quase igualzinho ao DSM5, trans- der quais eram os processos subjacentes, as
rupturas de continuidade no desenvolvimento.
60
A ideia é entender o desenvolvimento como um “Na verdade, o impacto prático,
processo ativo e dinâmico, que envolve tanto o
processamento cognitivo e afetivo, como tam-
principalmente no campo psi, é
bém adição de sentido, que o próprio indivíduo relativamente pequeno, mas o
dá às suas experiências no decorrer da vida. impacto no imaginário social e,
O desenvolvimento, então, foi entendido inclusive, no imaginário do campo
como alguma coisa que está em constante re-
psi sobre o que que é adoecer
organização e transformação, mas também en-
volve algum grau de continuidade, de coerência, mentalmente, qual é a causa dos
algo que se mantém, enquanto algo se modifica. transtornos, o que é mente, tudo
Bem, é uma noção que tentava estabelecer um
vem sendo de fato, um impacto,
diálogo, uma seta de mão dupla entre organis-
mo, a pessoa de um lado e a experiência e o digamos, cultural muito maior
ambiente do outro, mostrando que essa seta até do que o seu impacto clínico,
pode ir nas duas direções. Então, nesse senti-
prático, aplicado, embora exista,
do, é uma noção que tem a sua riqueza e que é
importante. mas específico a alguns campos”
Com o passar dos anos 90, início dos anos
2000, cada vez mais esse tipo de pesquisa vem Estudos com neuroimagens, pesquisas
se aproximando das pesquisas no campo da sobre neuroplasticidade fazem com que o que
genética, mais especificamente no campo da era desenvolvimento, transtorno de desenvolvi-
epigenética, onde se entende que o ambiente mento, psicopatologia do desenvolvimento, co-
(principalmente o físico) é fator indispensável mece a virar do neurodesenvolvimento.
para modular a expressão do gene, para ver se
Vejamos as capas dos livros de psiquiatria
o gene está ativo ou se não está ativo.
a partir dos anos 90 para cá. Você não distingue
No campo da pesquisa epigenética, o am- se é um livro de psiquiatria ou de neurologia.
biente psicossocial só tem importância nos es- Então, isso mostra, de certa maneira, que a psi-
tudos sobre trauma e privação. São os únicos quiatria quando crescer, quer ser neurologia. E
elementos psicossociais que tem entrado no isso não sou eu que estou falando. Quem falou
campo da pesquisa epigenética que tem uma isso, com parte dessas palavras, foi Thomas In-
influência na chamada psicopatologia do de- sel, diretor do Instituto Nacional de Saúde Men-
senvolvimento. tal dos Estados Unidos, que publicou em 2005,
um artigo chamado “Psiquiatria Como Uma Dis-
Nesse sentido, já se nota de onde vem
ciplina da Neurociência Clínica”. Ele fazia uma
essa ênfase na noção de desenvolvimento nas
previsão de que, em algumas décadas, o que
classificações psiquiátricas dos anos 80 pra cá.
hoje a gente conhece como neurologia, psiquia-
Mas o que que acontece um pouco depois? A
tria, iriam se fundir.
partir também da virada dos anos 90 para os
anos 2000, todo esse campo sofre uma influ- Então os médicos que vão fazer residên-
ência forte do desenvolvimento das neurociên- cia, vai ser em neurologia ou psiquiatria? Essas
cias, a década do cérebro, como foi decretada palavras são do século 20. Será em neurociên-
nos anos 90 pelo Congresso Americano. Tudo cia clínica, com subespecialização em algum
isso teve um impacto. Na verdade, o impacto campo. É a ideia dele de pra onde o campo vai,
prático, principalmente no campo psi, é relati- mostrando a força do prefixo neuro. O Kirmayer,
vamente pequeno, mas o impacto no imaginário psiquiatra da Mcgill University, nos Estados
social e, inclusive, no imaginário do campo psi Unidos, é um psiquiatra transcultural. Ele res-
sobre o que que é adoecer mentalmente, qual pondeu um tempo depois ao Thomas Insel, no
é a causa dos transtornos, o que é mente, tudo artigo com o Ian Goat, “definir a psiquiatria como
vem sendo de fato, um impacto, digamos, cultu- neurociência aplicada, valoriza o cérebro, mas
ral muito maior até do que o seu impacto clínico, nos compele a uma disciplina que é, ao mesmo
prático, aplicado, embora exista, mas específico tempo, vazia e desprovida de cultura, precisamos
a alguns campos. de modelos e linguagens de descrição que nos
permitam reconhecer, estudar e intervir em pa- relação da criança com o seu ambiente, família,
61
drões e processos de adversidades e resiliência escola, de mais espaços onde ela vive e circula,
localizados fora do cérebro, mesmo que, por meio dos marcos do desenvolvimento.
do aprendizado e desenvolvimento, o mundo so-
Não vamos jogar fora totalmente o cam-
cial venha a se refletir no genoma e nos circuitos
po das pesquisas em desenvolvimento, a gente
cerebrais”.
tem de saber como aplicar, onde é pertinente

- parte 1
Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Ninguém, em princípio, contesta isso to- aplicá-las e onde não cabe.
talmente, pelo menos.
Uma coisa que a gente deixa por último,

e enfrentamento
As falhas da neurociência como referen- mas não menos importante, é a escuta da pró-

Psicologia em emergências
cial epistêmico para psiquiatria já vinham sen- pria criança, ou seja, dar voz à própria criança,
do apontadas, inclusive por pessoas relevantes coisa que os adultos montando manuais de
dentro do campo da psiquiatria norte-americana, classificação, raramente fizeram. Os critérios
como, Nancy Andreasen, que é uma pesquisado- diagnósticos são montados independente do

CRP SPdas vidas: reconhecimento


ra sobre esquizofrenia, mecanismos biológicos que a criança diga a respeito do seu mal-estar,
da esquizofrenia. Ela publicou, em 2007, um ar- isso não faz parte, mas precisa fazer parte se a
tigo que chamava “DSM e a Morte da Fenome- gente está falando de avaliação na contramão
nologia da América: um exemplo de consequên- da patologização.
cias não intencionais”. A gente não sabe até que
Ou seja, mais importante que o checklist
ponto era não intencional mesmo. Mas o que que
é a gente avaliar os contextos e o impacto da-
ela vai dizer? “Desde a publicação do DSM 3, em

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quilo que a criança está apresentando. O mais

e medicalização
1980, tem havido um declínio constante no ensi-
importante é a gente se fazer essas perguntas.
no de uma avaliação clínica cuidadosa, que seja
Quais são as limitações, os prejuízos ou os mal-

Cadernos Temáticos
direcionada para os problemas individuais e con-
estares que os sintomas, que os candidatos
texto social da pessoa, e que seja enriquecida por
a sintomas, usando aqui sintomas no sentido
um bom conhecimento geral da psicopatologia. Os

Patologização
bem latu sensu, provoca na criança e no seu en-
alunos são ensinados a memorizar o DSM ao invés
torno? os sintomas têm se prolongado no tem-
de aprender as complexidades dos grandes psico-
po, menos para ver se preenche critério de tan-
patologistas do passado”.
tos meses do DSM e do CID e mais para a gente
Pois bem, chegando no campo das conse- ver se a família e a própria criança estão dando
quências de todas as questões que eu levantei conta daquilo sozinhos, ou se não estão conse-
no campo da avaliação, apesar dos supostos guindo sozinhos superar aquele tipo de adversi-
avanços do referencial neurocientífico, não há

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dade psicossocial e precisam, de fato, de ajuda.
no horizonte próximo, não há ninguém no cam- Mas que fatores predispõem, desencadeiam ou
po, mesmo pesquisadores do campo da psi- mantém os sintomas da criança?
quiatria biológica, da psiquiatria neurocientífica,
ninguém que se arrisque a fazer uma previsão. No campo da casa, das figuras parentais,
tem alguma psicopatologia grave? Tem dificul-
Não há, no horizonte dos próximos dez dades graves no cumprimento de papéis, porque
anos, previsão de marcadores biológicos para não tem um papel só, dos papéis de pai, mãe,
maior parte dos quadros mentais, o que faz avô? Há problemas relacionais importantes? Há
com que a suspeita de um problema relevante indícios tentando resgatar o que pode haver de
continue se baseando na avaliação do quê? Da bom daquela noção de reação? há indícios de
que a criança pode estar reagindo a eventos ou
a ambientes desfavoráveis e manifestando isso
“Uma coisa que a gente deixa no seu comportamento, na sua vida emocional,
por último, mas não menos na relação com o meio em que ela vive? Há um
sentido a ser escutado nos sintomas da crian-
importante, é a escuta da ça? Isso que está completamente ausente das
própria criança, ou seja, dar voz páginas dos manuais.
à própria criança, coisa que os De certa maneira, em alguns círculos psi-
adultos montando manuais de quiátricos isso ficou até uma coisa meio data-
da, meio velha. Quem vai procurar sentido em...
classificação, raramente fizeram”
que sentido? O sintoma é aquilo lá, a descrição Pois bem, agora não é o Frances que está
62
do quadro é o quadro e ponto final, que coisa falando, sou eu, mesmo quando a avaliação re-
antiga ficar procurando sentido nas coisas. sulta num diagnóstico, ao contrário do que as
categorias do DSM e do CID parecem apontar,
Só para reforçar, mais do que número de
o diagnóstico infanto-juvenil, porque é um diag-
critério a ser preenchido, avaliar presença de
nóstico totalmente individualizado, uma vez
impacto negativo. Envolvendo a vida familiar, a
dado, parece que o problema é da criança. É a
escola, o aprendizado, a relação com os pares,
criança que tem transtorno opositor desafiador.
o brincar, uma vida lúdica da criança, a presença
Então o que eu queria ressaltar é que mesmo
de sofrimento para criança ou para a família e a
quando a gente chega a um diagnóstico, isso
manutenção desses prejuízos durante um perío-
não implica que a gente está localizando toda
do considerável de tempo, embora o que é con-
a patologia na criança, não implica esquecer do
siderável vá variar aí dependendo da situação.
ambiente, das relações significativas, da histó-
Pra finalizar então, eu vou também lançar ria da criança e da história de quem cuida da
mão de algumas figuras, e se eu tivesse fazen- criança. Era isso, o resto a gente conversa no
do essa conferência em 1990, estaria tomando debate. Obrigado.
algumas dessas figuras como adversários. En-
fim, o mundo dá voltas. Allen Frances foi o co-
ordenador do DSM 4, mas nos últimos anos tem
sido um crítico, digamos, moderado das classi-
ficações psiquiátricas, dos excessos das clas-
sificações psiquiátricas. Ele tem um livro que já
foi traduzido pro português, chamado “Voltando
ao Normal”, que é interessante e é um livro que
vale a pena ler, é acessível. O Allen, se não é um
aliado, é um interlocutor importante. E eu sele-
cionei aqui para gente finalizar duas coisas que
ele fala sobre avaliação.

A primeira coisa, está em uma outra bi-


bliografia dele que também existe em portu-
guês, publicada pela ArteMed. E ele diz: “Com
exceção dos casos mais claros, é sempre melhor
diagnosticar a menos ou não estabelecer qual-
quer diagnóstico durante as primeiras consultas”.
É uma postura de, pelo menos nos primeiros
atendimentos, evitar o campo da epidemiologia,
chamando os falsos positivos. O Francês não
é um especialista em criança, mas ele fala em
relação às crianças, que a dificuldade é ainda
maior, ele vai dizer exatamente isso: “Crianças
e adolescentes são particularmente difíceis de
diagnosticar, eles têm uma história curta, no
sentido de que nasceram há pouco tempo, ama-
durecem em ritmo variado, podem estar usando
substâncias que podem estar interferindo no
quadros. No caso de adolescentes, além de rea-
girem a estresses em casa e demais ambientes,
é provável que o diagnóstico inicial seja instável
e inadequado”.

Aquela ideia da Gisela Untoiglich de que


o diagnóstico psiquiátrico infantil tem que ser
escrito a lápis, coisa que o próprio Frances usou
no blog dele, a referência à Gisela, da Argentina.
Carla Biancha Angelucci 63
Possui graduação em psicologia, mestrado em psicologia escolar e
do desenvolvimento humano, doutorado em psicologia social, pela
Universidade de São Paulo, atualmente é professora do departamento
de filosofia da educação e ciências da educação, da Faculdade de
Educação da USP. É professora da graduação e de pós-graduação em

- parte 1
educação especial. Exerceu por 16 anos a atividade de psicoterapeuta.

Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Bom dia. Então, como eu acabei de dizer, eu e que me ajudam muito nesse debate, que são
estava fora do microfone para que as pessoas Aline Albuquerque, professora da Universidade
com deficiência visual pudessem me localizar, aí de Brasília, e Augustina Palácios, da Argentina;
depois disso eu tomo a palavra aqui no microfo- Ana Rita de Paula, uma psicóloga, pessoa com

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e medicalização
ne para que possa ser gravado, mas explicitan- deficiência que luta e pesquisa pelos direitos
do o motivo de eu fazer isso: quando o som sai das pessoas com deficiência há, pelo menos,

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pelos autofalantes, as pessoas com deficiência 30 anos; e as trabalhadoras da assistência so-
visual não sabem onde está a pessoa que fala cial do município de Suzano, com quem venho
e aí ela pode ficar o tempo todo aqui da minha pesquisando no último ano e meio sobre o pro-

Patologização
fala, virada para o auto falante, e não pra mim, grama BBC na Escola. Em nome dessas tantas
o que cria um constrangimento. Por isso então, mulheres, é que eu repito aqui, como já disse a
que eu faço essa localização e convido vocês Cida, ele não, ele nãozinho. Em nome das mulhe-
a fazerem sempre que tomarem o uso do mi- res trans, em nome das pessoas que defendem
crofone. Bem, queria agradecer o convite da or- o direito às formas de existência nesse mundo,
ganização do seminário, essa possibilidade de dentro dos princípios dos direitos humanos.
interlocução nesta conferência compartilhada,

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Bem, sobre o tema da nossa mesa, ava-
que a gente vai descobrir o que é exatamente
liação, vou colocar aqui qual é a posição que eu
uma conferência compartilhada e imensa honra
ocupo nesse debate sobre avaliação, e é o de
de estar ao lado de pessoas como a Claudia,
uma psicóloga que estuda os direitos das pes-
o Rossano, coordenada por Cecília, a sensação
soas com deficiência. Em alguns momentos, eu
de estar com as nossas referências bibliográfi-
vou usar o termo diferenças funcionais, porque
cas na mesa, Claudia dizia, dá um frisson, uma
é o termo que a gente vem buscando utilizar
alegria. E queria também dizer a vocês que ne-
para substituir a expressão deficiência. Aqui no
nhuma fala se faz a partir só da pessoa que
Brasil, tem uma conotação muito específica, e
aqui está. A gente constrói as nossas posições
que trabalha na formação de educadores, essa
evocando a memória de outras tantas pessoas
é a posição que eu ocupo no mundo, uma psi-
vivas ou mortas e queria fazer aqui um breve
cóloga que estuda os direitos das pessoas com
elenco das pessoas que me acompanham na
deficiência e que forma educadoras.
produção desta apresentação. O meu grupo de
orientandos de mestrado, doutorado, pós-dou- Bem, a partir disso vou utilizar dois cam-
torado e iniciação científica, que dá sentido para pos conceituais, um é o dos estudos da defici-
minha prática docente, para minha função de ência. O termo que a gente usa pouco em por-
pesquisadora, para o compromisso social que tuguês, a gente aportuguesou, mas ele não cola
carrego como servidora pública do Estado de muito, as pessoas continuam utilizando “disabi-
São Paulo; com as minhas alunas de graduação lity studies”, porque disability não é deficiência,
e pós graduação; com duas mulheres no campo mas é esse campo de um estudo das questões
do direito, que tem estudado direitos humanos da deficiência. E da psicanálise, de uma psica-
nálise que se põe no mundo, que não se encerra
64
no consultório, uma psicanálise que muitas mu- “Então, a deficiência passa a ser
lheres e homens, aqui deste Brasil, têm procura-
do desenvolver.
um conceito relacional e ela não
acontece o tempo inteiro, em
Vou tomar como princípio a Convenção In-
ternacional dos Direitos das Pessoas com De- todos os lugares, em toda a vida
ficiência, que aconteceu em 2006 e foi proto- da pessoa, por isso vamos falar
colada aqui no Brasil, em 2009, ou seja, já são
de situações de deficiência”
bons anos de debate e pouca discussão sobre
como implementar e implantar os princípios des-
sa convenção. E vou tomar três aspectos dessa os contextos em que a deficiência se expres-
convenção para subsidiar a minha discussão so- sa, então já tem o primeiro trabalho aí do nosso
bre avaliação, pensando que nós estamos aqui processo de avaliação.
em conjunto fazendo um esforço de superar pro-
Um segundo aspecto que eu quero co-
cessos de patologização em nossas práticas,
mentar da convenção, é a definição de pessoa
nos nossos modos de saber e fazer avaliação.
com deficiência, daí peço atenção, porque exis-
Vou pensar o tempo inteiro a partir desta te aqui um deslocamento que pede o nosso tra-
ideia, de como é que a gente se põe a fazer de balho em relação à produção das identidades,
outro jeito, mas também se põe, ao fazer de ou- outro tema bastante importante nos processos
tro jeito, a criar novas epistemologias. Dos três de avaliação. Definição de pessoa com deficiên-
aspectos da convenção que eu quero destacar, cia: são aquelas que se identificam com a situ-
o primeiro é relativo ao conceito de deficiên- ação de deficiência, mas são também aquelas
cia, porque nós estamos muito acostumados que mesmo não se identificando, vivem proces-
ainda a pensar deficiência como um atributo sos de discriminação e estigmatização, porque
do indivíduo e para a convenção, a deficiência são reconhecidas socialmente como pessoas
é o efeito de uma relação de uma pessoa que com deficiência.
carrega uma condição específica com um mun-
Então, tem um outro giro importante para
do que interpõe barreiras para o exercício da
nós e quero contar rapidamente a história de
sua vida digna. Portanto, a deficiência não é da
como é que chegamos nessa segunda formu-
Biancha, a deficiência é a expressão dessa re-
lação de pessoas com deficiência, que não são
lação, a Biancha que tem um corpo, que tem um
só aquelas que se identificam, mas são também
conjunto de funcionalidades, e que encontra um
aquelas que são identificadas como pessoas
mundo que acolhe ou não acolhe, que acolhe em
com deficiência e com isso vivem processos de
alguns contextos, em outros não.
discriminação e estigmatização. Vem de um de-
É por isso que a gente fala de situação bate longo de uma inserção importante de dois
de deficiência e não só da deficiência da pes- movimentos sociais na produção do documento
soa, porque um contexto pode gerar deficiên- da convenção.
cia, porque pode expressar esse desrespeito à
Um deles é da Associação de Sobrevivên-
vida de uma pessoa, outro contexto em relação
cia da Psiquiatria. O debate sobre as pessoas
a mesma pessoa, pode não gerar esta situação
que são usuários de saúde mental, que não são,
de indignidade e, portanto, a deficiência não se
tal como a gente vinha pensando, ao longo da
expressa.
década de 90, pessoas com deficiências, mas
Então, a deficiência passa a ser um concei- que sofrem processos discriminatórios, sofrem
to relacional e ela não acontece o tempo inteiro, processos de estigmatização, porque social-
em todos os lugares, em toda a vida da pessoa, mente são percebidas como pessoas com de-
por isso vamos falar de situações de deficiên- ficiência. Então, vem desse movimento social
cia. Isso para nós que produzimos processos de e de um outro movimento social, que é o mo-
avaliação nos diversos contextos da saúde, da vimento surdo, não todo ele, mas existe este
educação, da ciência, do social, da justiça, é um posicionamento no conjunto dos movimentos
desafio gigante, porque o resultado do nosso sociais de pessoas surdas, que é o de que não
trabalho não é: a Biancha tem deficiência e a são pessoas com deficiência, porque não car-
deficiência é do tipo x. O nosso trabalho é dizer regam nenhum impedimento ou prejuízo comu-
nicacional, desde que eles tenham acesso às saúde mental, ela precisa ser avaliada quanto
65
possibilidades de comunicação. Ou seja, eles se à sua capacidade decisional e a gente, então,
entendem como uma minoria linguística e cul- se autoriza a definir como, quando, onde, por
tural e não como pessoas que carregam impe- exemplo, ela gasta o seu benefício social, o seu
dimentos de comunicação ou de audição, como benefício previdenciário. Não sei qual é a reali-
queiram. Então, essa virada que a gente produz dade com a qual vocês se deparam em alguns

- parte 1
ao longo do início do século 21, pensando que de seus trabalhos, mas é muito comum que, em

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
a deficiência é uma situação que expressa um residências terapêuticas, fique a responsabili-
contexto relacional, e que a gente vai colocar dade da gestão do dinheiro da pessoa que nela

e enfrentamento
dentro do guarda-chuva protetivo dos direitos vive, sob a coordenação da residência, tomando

Psicologia em emergências
das pessoas com deficiência, não só aquelas decisões sobre o uso desse dinheiro. O mesmo
que se identificam, mas também aquelas que se passa em residências inclusivas para pesso-
são identificadas. Gostaria que a gente ficasse as com deficiência e é muito comum que a ges-
com essas duas questões, porque a gente está tão do dinheiro, muitas vezes do benefício, por

CRP SPdas vidas: reconhecimento


falando de produção identitária e dos efeitos exemplo, do BPC, Benefício de Prestação Conti-
sociais dessas produções identitárias. nuada, para pessoas com deficiência, seja ge-
rido pela coordenação da residência inclusiva,
Um terceiro elemento que eu quero desta-
sem um processo de debate, decisão conjunta
car da convenção e esse eu tenho estudado há
e das consequências do uso desse dinheiro por
menos tempo, e sei que o Brasil está em movi-
parte do próprio beneficiário, resultado disso,
mento em relação a ele, é um tema absolutamen-
a gente vê residências inclusivas que usam o
te importante para pensarmos nos processos

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e medicalização
dinheiro do BPC do beneficiário para matricular
de avaliação. É aquele que se refere à decisão
em academia particular e, como disse o Paulo
apoiada, que é uma transformação muito sig-

Cadernos Temáticos
Amarante e o Léo Pinho, na mesa de abertura,
nificativa do ponto de vista jurídico, em que a
planos de seguro saúde privados. Quem esco-
gente vai falar das pessoas que a gente tomava
lheu isso, quem fez essa demanda, como foi de-
como pessoas que não eram capazes de decidir

Patologização
batido? Estou usando o tema financeiro porque
sobre suas próprias vidas, tomar decisões sobre
é um tema fundamental da vida dos adultos e
as suas próprias vidas, e a gente faz a seguinte
das adultas, para pensar o que que é fazer as
virada, toda pessoa pode tomar decisões so-
suas próprias escolhas e lidar com elas, não é?
bre a sua própria vida. A pergunta passa a ser,
E para eventualmente alguém esteja pensando,
“quais são os sistemas de apoio com quem essa
“mas a gente vai deixar a pessoa fazer o que ela
pessoa tem de contar para que ela possa tomar
quiser com o seu dinheiro?”, a primeira resposta
decisões sobre a sua própria vida?”.

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assim muito no bate e pronto que eu daria: SIM,
Assim, não estamos mais falando de de- você parece que faz isso com a sua vida, mas se
cidir sobre a capacidade ou a incapacidade, eu respirar um pouquinho, eu também vou poder
estamos falando de pensar os sistemas de acrescentar, nas situações em que a gente acha
apoio que garantem ao sujeito a sua autono- que a pessoa está muito fragilizada, quanto à
mia para dizer o que quer, o que pensa e lidar possibilidade de ler os contextos, existe então
com as consequências de suas ações, porque a decisão apoiada que é a produção de siste-
podemos receber o nosso salário e gastar em mas de apoio para a tomada de decisões.
jujuba, podemos fazer uma prestação na loja de
departamento que quiser, de 20 parcelas de 500 Então, queria trazer esses três aspectos
reais, se endividar até o pescoço, sim, e tá tudo da convenção, o conceito de deficiência, a de-
bem. Depois a gente lida com as consequências finição do que é a pessoa com deficiência para
disso. Mas ninguém avalia a nossa capacidade efeitos da convenção e esse terceiro elemento
decisional anteriormente às nossas decisões. A que é a gente produzir sistemas de apoio deci-
gente faz um tanto de burrada nessa vida, sim, sório. A convenção não se propõe a ser um novo
e depois lida com as consequências no campo manual, ela não pretende fazer essa função, ela
afetivo, no campo financeiro, no campo jurídi- não quer estabelecer diagnóstico, ela não tem
co, no campo profissional, e a gente lida com o caráter clínico de saúde, nada disso. O que ela
essas consequências, sim. Mas a gente tem to- quer é ser um guarda-chuva de direitos huma-
mado por óbvio que uma pessoa com deficiên- nos. Então, o que eu estou falando aqui do con-
cia intelectual ou uma pessoa que é usuária de ceito e da definição, vocês vão ver que não teve
impacto direto sobre os manuais que o Rossa- Claudia vai falar desses desafios para nós na
66
no aqui apresentava, porque ela não tem essa educação especial, na perspectiva da educação
função, ela não quer ocupar esse lugar, ela quer inclusiva. O público alvo da educação especial
garantir direitos. hoje é organizado a partir de três categorias e
diagnósticos: as pessoas com deficiência, as
Segue um último elemento de conside-
pessoas com transtornos globais do desenvol-
ração e, então, eu entro na discussão propria-
vimento e as pessoas com superdotação e altas
mente da avaliação. No Brasil, assim como em
habilidades. São esses os sujeitos que podem
inúmeros países, nós temos uma organização
ser elegíveis para a educação especial, pessoas
da política pública que é garantia de acesso a
que não estão em uma dessas três condições,
serviços e recursos via diagnóstico. Quem tra-
não são elegíveis para a política de educação
balha em serviços de saúde sabe da luta que é
especial e para o conjunto de recursos.
para certas pessoas terem garantido o acesso
ao transporte, por exemplo, para o serviço. Mas E o que vemos, muitas vezes, é a disputa
quando o código de CID dela não é elegível para para que um outro diagnóstico passe a integrar
esse benefício, como é que fazemos? Muda o o campo de elegibilidade da educação especial,
código que vamos utilizar para pessoa, menti- mas pouco vemos sobre a discussão da neces-
mos para perícia, o que fazemos? sidade de utilizar categorias e diagnósticos para
definir quem é o público da educação especial.
Assim, vemos disputa em torno da escolha da
“Minha hipótese é de que o categoria de diagnóstico, como “pessoas com
diagnóstico de autismo hoje dislexia também têm que entrar na política de edu-
cação especial, as pessoas com TDAH, as pessoas
gera mais commoditie do que com TOC”, mas vemos muito menos disputas so-
o diagnóstico de deficiência bre porque continuamos utilizando na educação
intelectual; faz mais sucesso nas categorias que vem do campo biomédico.

vendas quando você coloca um Vamos pensar agora na avaliação, com es-
certo diagnóstico e não o outro, sas considerações que trouxe. Em nossos proces-
sos de avaliação psicológica, ainda é muito forte
para dar o exemplo da educação” a centralidade em aspectos que são intrínsecos
à pessoa - atenção, habilidades sociais, memória.
Em alguns momentos, vemos também uma pro-
Queria trazer esse elemento, porque no dia
positura de que possamos avaliar, além disso, os
a dia das nossas políticas públicas, nos organi-
contextos em que uma existência se dá, como é a
zamos por certos diagnósticos, o que pode aju-
família, como é a escola, como é a pracinha, como
dar, inclusive, a considerarmos porque que certos
é a relação com a comunidade. Então colocamos
diagnósticos prevalecem em detrimento de ou-
a memória, a atenção, as habilidades socioemo-
tros. A mim, como estudiosa, militante da área de
cionais em contexto escolar, em contexto fami-
pessoas com deficiência, chama atenção o sumi-
liar, mas queria chamar atenção sobre a limitação
ço das discussões sobre deficiência intelectual e,
desse tipo de avaliação, porque ainda não esta-
de repente, tudo virou discussão sobre autismo.
mos falando da característica intrínseca a sujeito
Onde estão as pessoas com deficiência intelec-
e do quanto ela é funcional ou não para o contexto
tual agora? Quais são os debates que nós temos
x, ou seja, a marca ainda é a da leitura de ajus-
a fazer? Esse sumiço de uma categoria e preva-
tamentos. Esta característica da pessoa, seu fun-
lência de outra categoria me chama atenção, e
cionamento da atenção é suficiente, é adequado,
estou colocando as duas em correlação porque
a escola se adapta a seus padrões de atenção?
minha hipótese é que existe uma correlação.
Então, ainda usamos o referente ajusta-
Minha hipótese é de que o diagnóstico mento, mesmo quando colocamos em contex-
de autismo hoje gera mais commoditie do que to familiar, escolar, laboral. E aí o ajustamento
o diagnóstico de deficiência intelectual; faz pode ser da pessoa, pode ser da instituição, a
mais sucesso nas vendas quando você coloca escola se adapta aos padrões de atenção do
um certo diagnóstico e não o outro, para dar Juquinha? E chamamos isso de escola inclusiva,
o exemplo da educação. Tenho certeza de que mas eles dizem que não é.
Estou propondo aqui que façamos um ou- diz daquilo que fazemos? Precisamos inventar
67
tro giro, que é avaliação do processo, as suas outras palavras e, nos nossos processos de
implicações para subjetividade em tempos de avaliação, muitas vezes ficamos com essa lógi-
movimentos identitários. O que quero dizer com ca da reabilitação. Vou dar um exemplo do cam-
isso? O quanto a avaliação pode expressar os po da deficiência.
efeitos do jogo de identificação para compor a

- parte 1
nossa leitura das barreiras e de suas possibili-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
dades de enfrentamento. “No campo da deficiência você
trazer a ideia de reabilitação é

e enfrentamento
Quando eu falava da definição de pessoa
com deficiência, eu falava que não só as pes- uma pobreza do ponto de vista

Psicologia em emergências
soas que se identificam, mas as pessoas que
são identificadas; como é que na nossa ava-
não só epistemológico, como
liação, podemos expressar esse movimento? A uma pobreza do ponto de vista

CRP SPdas vidas: reconhecimento


pessoa não tem, por exemplo, na sua avaliação, ético”
nenhuma dificuldade nos seus padrões de aten-
ção, mas que efeito gerou nela ser vista como
pessoa com TDAH, a ponto de chegar para você A ideia de que primeiro precisa aceitar a
uma avaliação que não é a avaliação da Biancha, sua condição e depois se colocar em compro-
é sim a avaliação do TDAH.? Conseguimos falar misso de superar a sua condição, essa é a mar-
do efeito que isso gerou nas nossas avaliações? ca dos serviços de reabilitação das pessoas
com deficiência. “A gente não faz nada antes

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e medicalização
da pessoa aceitar sua deficiência“. O que que é
“Estou propondo aqui que aceitar a sua deficiência? Ainda mais quando o

Cadernos Temáticos
conceito de deficiência deu esse salto, como ci-
façamos um outro giro, que é
tado há pouco, temos de fazer a pessoa aceitar
avaliação do processo, as suas e depois, assim que ela aceitar, colocá-la no lu-

Patologização
implicações para subjetividade gar de quem tem de superar a deficiência? Olha
o controle moral que exercemos quando pedi-
em tempos de movimentos
mos isso para alguém. “Primeiro você aceita a
identitários” sua cegueira e depois você se coloca no projeto
de superar a cegueira” - isso é reabilitação.

Um outro referente importante que acaba- Tenho certeza de que, em muitos serviços,

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mos utilizando nas nossas avaliações é o da rea- não fazemos isso, e portanto, não é reabilitação,
bilitação. Na saúde mental, as pessoas falam em tínhamos de dar outro nome. Muitas de vocês
reabilitação psicossocial, não é? Eu queria convi- devem estar pensando, “mas não é isso que eu
dar as pessoas da saúde mental a fazerem uma faço, eu não quero que a pessoa aceite a ceguei-
crítica radical à ideia de reabilitação psicosso- ra”. Que nome você dá para isso que faz? Isso
cial. Reabilitação, o que estamos querendo dizer não é reabilitação, porque você está trabalhan-
com isso? A história da reabilitação e a produção do com uma outra concepção de deficiência.
da ideia de reabilitação são integracionistas, de
Então vamos nomear melhor para tentar
ajustamento. E não ajudam a fazer a reflexão do
também fazer a superação desse jeito de com-
reconhecimento das várias formas de se estar
preender a marca do impedimento, da inade-
neste mundo. Então, é preciso criar outras ex-
quação, do desajustamento. A pergunta que eu
pressões para aquilo que queremos dizer, porque
proponho aqui é como é que, na nossa avalia-
ficar emprestando a palavra reabilitação para
ção, falamos dos efeitos dos encontros e dos
ressignificá-la, não me parece o caminho.
desencontros e de como é que a pessoa vai se
No campo da deficiência você trazer a apropriando dessa história para poder criar, en-
ideia de reabilitação é uma pobreza do ponto de tão, o seu projeto de intervenção do mundo? A
vista não só epistemológico, como uma pobreza virada que eu peço aqui é de deixarmos de fazer
do ponto de vista ético. Não queremos habilitar uma avaliação sobre alguém para produzirmos
ninguém, nem reabilitar ninguém, porque isso é uma avaliação/ intervenção em que a pessoa,
prática de reajustamento. Então, que palavra ao poder retomar sua história diante de outro
alguém que a convida a pensar e discutir, se co- faz, que não deu conta, que tá doendo demais,
68
loca a pensar sobre que vida foi produzida para sabemos o que isso significa. Então, quando
ela, que vida ela produziu e qual é o plano de uma pessoa vai para uma perícia, ela traz algo
intervenção dela no mundo. de si que é referente ao pedido sobre a perícia.
Vamos colocar isso nos nossos processos de
Nós avaliarmos o outro para decidirmos se
avaliação em consideração? O que é alguém ter
tem acesso a x direito, acesso a x recurso, se
de apresentar o pior de si? Puxando o campo da
tem tal diagnóstico, é para isso que nós avalia-
docência, novamente, a pessoa tem de contar
mos? Precisamos produzir um contexto em que
todas as incapacidades, todos os prejuízos, to-
o sujeito pensando sobre si, percebendo-se,
dos os impedimentos de si ou da sua criança,
possa criar chaves de leitura sobre o seu mun-
porque isso é garantidor do direito. Se não co-
do, e a partir daí, se posicionar. Se não fazemos
locamos isso em análise, qual é a avaliação que
isso, acabamos reproduzindo uma lógica de
estamos fazendo? Não estou falando de colo-
avaliação para pessoas externas ao processo:
car isso em análise só na nossa cabeça, na pro-
eu avalio para o juiz, eu avalio para a concessão
dução do nosso raciocínio clínico institucional,
de benefício, eu avalio para a mãe que está me
mas colocar isso como questão para a relação e
perguntando o que o filho tem, eu avalio para
tratar com ética a discussão sobre como é que
a escola. E qual é a avaliação que você tem de
fazemos com a vida que temos e com o pedido
fazer para a pessoa que está diante de você?
que nos é colocado.
Qual é o compromisso ético que temos de ter
como central na produção de uma avaliação?
Essa era a discussão que eu queria trazer
Digo isso porque, se a avaliação tem objetivos
da avaliação como uma intervenção que coloca
extrínsecos à sua relação, tem algo no campo da
no centro a pessoa com quem estamos, consi-
política que precisamos trazer para nossa ava-
derando com ela a solicitação que nos foi fei-
liação e produzir compreensão com a pessoa.
ta e que, muitas vezes, é extrínseca à vontade
Vou dar o último exemplo para finalizar. As dela, mas também tem a ver com a passagem
pessoas são instruídas a contar o pior de si, em para garantia de um recurso, um serviço, um be-
processos de avaliação de perícia. Sim, isso é nefício. Assim, qual é a ética da nossa avalia-
uma estratégia protetiva da pessoa, porque se ção nesse contexto do mundo concreto, não do
ela não contar que ela não consegue, que não mundo dos moranguinhos. É isso, obrigada.
Cláudia Rodrigues de Freitas 69
Docente da Universidade do Rio Grande do Sul, professora do
campo da inclusão escolar da Universidade do Rio Grande do Sul.

- parte 1
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Bom dia a todos e todas. É uma alegria estar aqui
nesse grupo, nessa mesa compartilhada e para co- “Avaliar sim, mas como? Parto de
meçar, vou apontar algo que me toca. As pessoas
que estão aqui são muito caras para mim, e isso
uma certeza, de uma convicção:

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todos aprendem. Pensar em

e medicalização
é importante falar. Professora Maria Aparecida
Moysés, professora Collares, professora Adriana companhia envolve produção

Cadernos Temáticos
Marcondes, Biancha, professor Amarante são re-
ferências teóricas para mim.
de rede, vontade de encontro.
Eu fico pensando se encontros

Patologização
Sou uma pessoa que tem 30 anos de escola,
na e com a escola, e nos últimos anos, na univer- são encontros. Quando estamos
sidade, com a escola e com as pessoas em for- junto, no mesmo espaço, isso
mação. O que avalia a educação ou quem avalia
é encontro? Deixo isso aqui,
desde a educação? É uma questão antiga e uma
questão que parece fácil de responder, só que não. porque é pergunta para mim
Quando eu olho para trás e vejo que outros avalia- também e vou logo em seguida

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vam pela educação, eu vou me lembrar da equipe
dizer o porquê”
itinerante da qual fui vítima, eu vou dizer que fui
vítima, porque sofri a partir dela.
As redes duras são muito organizadas, elas
Quando ela chegava na escola, o neurologis- funcionam, são protocolares, mas produzem en-
ta, a psicóloga e a assistente social e avaliavam contros? Há pouco tempo, um jornalista liga para
60 crianças em uma manhã. Então, aquilo me deixa a sala onde eu trabalho, na universidade, e me
marcas e quando a gente encontra um momento faz uma entrevista por telefone. Ele quer saber o
como esse, a vida está bem mais fácil hoje, não é? que estava acontecendo na cidade. Um encontro,
Pensar em companhia é fundamental, mas como? dentre muitos, entre professores da rede estadu-
Como que se tece redes e possibilidades? al e médicos para falar sobre o TDAH e ele quer
que eu opine sobre aquilo. Uma das coisas que
Avaliação como calcanhar de Aquiles ou
ele me pergunta de novo e de novo, era como or-
como ponte? A palavra ponte para mim é impor-
ganizar o espaço escolar para os TDAHs. Como
tante, forte na organização pedagógica.
eu não respondo e falo de outra coisa, ele repete
Avaliar sim, mas como? Parto de uma certe- a pergunta, eu digo, “olha, tem um livro de um mé-
za, de uma convicção: todos aprendem. Pensar em dico que já tem esse manual de como fazer isso,
companhia envolve produção de rede, vontade de então não precisa da minha fala para falar sobre
encontro. Eu fico pensando se encontros são encon- isso. Posso te falar para pensar sobre o sujeito, so-
tros. Quando estamos junto, no mesmo espaço, isso bre a criança, como é que a gente pode pensar em
é encontro? Deixo isso aqui, porque é pergunta para abrir suas histórias e olhar para elas”. Eu fico me
mim também e vou logo em seguida dizer o porquê. perguntando, tinha um encontro lá, quando eles
se encontraram? O resultado desse encontro é Então, de onde estamos falando mesmo?
70
muito assustador, dia 26 de julho sai uma lei que
Robert Whitaker vai falar sobre algo que é
vai dizer, numa página, algo muito assustador, a
muito complicado para uma professora como eu
Campanha Estadual de Informação e Conscienti-
entender. Ele junta muitos zeros para falar do que
zação Sobre o Transtorno do Déficit de Atenção
a indústria farmacêutica conta, é tanto zero que
Hiperatividade, TDAH e Dislexia, a ser realizada
eu não sei pronunciar. Umberto Eco nos fala, no li-
anualmente no primeiro semestre de cada ano.
vro A vertigem das listas, deliciosamente, sobre a
Ou seja, o convite era o a gente vem escutando
vertigem das listas e dessa coisa que nos encon-
há muitos anos, qual seja, “professores, por favor,
tra, que nos acolhe, que nos oferece algo, que na
nos indiquem, mandem pra nós, vocês sabem ver e
verdade é o que nos interessa. Podemos pensar,
olhar paras crianças”. Agora ele está oficializado,
também, em outros momentos que são encontros
e eu continuo perguntando, teve um encontro? O
vivos, como encontros de crianças no pátio da
que é que se produziu nesse momento?
escola, com muitas caixas de papelão para brin-
Em alguns contextos, como na cidade de car... Encontros que são alegres, mas eles não tem
Porto Alegre, alguns professores de escolas públi- a rede, a coisa fica um pouco mais divertida, mas
cas, estão recebendo formação específica ofereci- não tão organizada.
da por especialistas em saúde, para que se tornem
Avaliação em educação, mas do que mesmo
aptos a identificar transtornos mentais entre os
estamos falando? Avaliação como aferição do co-
estudantes e os encaminharem aos especialistas
nhecimento? Não há como medir o conhecimento,
em saúde. A ideia é a de que eles podem ajudar a
o que é possível é investigar as ferramentas que
identificar crianças que possivelmente sofrem de
os sujeitos utilizam no processo de construção do
patologias passíveis de diagnóstico.
conhecimento. E a palavra investigar liga com a
Algumas vezes, as escolas delegam à me- ideia do pesquisar, pesquisar sobre o sujeito.
dicina autoridade para legislar sobre problemas
A cena escolar: a escola do esquadro ou a
ou questões que poderiam ser vistas como es-
escola da alegria no aprender?
colares ou sociais, em um claro processo de me-
dicalização. Eu já não assinaria mais isso, mas eu Vou trabalhar aqui com algumas cenas, como
trago para essa palestra porque eu entendo que se fossem fotografias. Vou trazer flashes de uma
os processos não são tão simples assim, como cena escolar para se pensar sobre ela.
se a gente pudesse botar uma direção de quem
Victor: Fui chamada para olhar o Victor, um
fala e quem diz e outro que escuta. Eu penso
menininho que está na educação infantil, dois
que o processo é complexo e teríamos de ima-
anos, já chega medicado e a escola se preocupa
ginar quem convida quem. Como esse convite se
com aquilo. Numa das cenas, ele está no pátio e o
arma? Não tem um momento, não tem um enqua-
observo correr e pedir colo para uma e outra pro-
dre, mas são muitas possibilidades que temos a
fessora. Elas oferecem o colo acompanhado de
considerar: escolas que delegam? Quem convi-
palavras que buscam acolher e tranquilizar. Em ou-
da? Que movimento é esse?
tros momentos, suas professoras, identificando a
Fico pensando, então, no movimento do Ou- intensidade do menino, que o chamam, oferecendo
roborus (serpente que come o próprio rabo) ou da acolhida. Sim, as professoras identificam a neces-
vontade nosológica sobre essa questão, sobre sidade de Victor e produzem movimento de cuida-
a possibilidade da classificação, que não é nova, do, oferecem borda em forma de colo e palavras a
que é antiga, mas que é algo que é muito comple- este que parece transbordar.
xo. E aqui de novo, tem que abrir e abrir e abrir e
Vou colocar o nome de Victor num texto da
cada cena é um processo.
professora Norma Filidoro (2016). Assim, ela vai di-
A vontade de classificação não é novida- zer que “Victor desconhece os limites e, portanto, não
de. A Ilina Singh vai contar no seu livro a história se trata de uma conduta transgressora, mas sim de
do Metilfenidato. Ela vai dizer que, num primeiro um desbordamento”. Eu digo isso, a partir dela, por-
momento, a indústria farmacêutica foi convencer que abri a história junto com as professoras e com
o médico de quanto seria importante ele traba- a família a história do Victor. Fazer borda é oferecer-
lhar com remédio, ele oferecer esse remédio às lhe a possibilidade de ter um corpo, que é o que elas
crianças. Teve, então, um convencimento, ela fazem quando o acolhem, quando o colocam no
mostra essa indicação. colo e lhe dão concretamente este cuidado.
Laura: Laura me deixa de cabeça pra baixo. “A processualidade se faz presente nos avan-
71
Fazíamos eu e ela um trabalho no computador. ços e nas paradas, em cantos e letras e linhas, na
Ela me desenhava de cabeça pra baixo, eu rapi- escrita, em nós”. De novo, Barros e Kastrup (2009,
damente teclando no computador me coloco de p.73) estão falando de pesquisa, e eu estou dizendo
outra forma. Com esta minha vontade de certeza, da pesquisa sobre este que está ali. Deste tempo
eu me coloco em pé e ela me recoloca numa po- que é preciso ter, tempo que não é rápido, mas que

- parte 1
sição que é fundamental pra eu poder saber dela, é o único jeito de podermos ensinar.

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
que é avaliar, pensar a ideia de avaliação como
Luís: Caso emprestado, esse é um caso muito
pesquisa da aprendizagem do aluno, pesquisa da

e enfrentamento
próximo, porque é deste ano. Luís chega à terceira
aprendizagem de Laura.
série vindo de outra escola, de uma escola particu-

Psicologia em emergências
“Prestem atenção”, esta é uma forma que lar. Por que a troca de escola, para uma outra escola
a escola nos diz. Ouvimos todo dia na escola: particular? Porque ia ser retido, ia ser detido, não é?
“preste atenção”, me empreste sua atenção. Nós Um menininho de oito anos, naquele processo que

CRP SPdas vidas: reconhecimento


professores, muitas vezes pedimos e convoca- dizemos que está combinado que as crianças têm
mos isso, e percebi que temos de pensar numa três anos para se alfabetizarem, mas não é três
outra. Há um equívoco fundamental aqui, porque, anos para ficar ortográfico, ninguém vai sair escre-
na verdade, o que temos de pensar é emprestar- vendo livro em três anos. Mas Luís ia ser interrom-
se em atenção e cuidado. Estou ali para os alu- pido, porque ele ia ser detido, naquela escola. Ele
nos e não eles para mim. Então tem um equívoco chega na escola nova e a professora organiza um
estrutural nessa ideia do “emprestar atenção”. trabalho junto com essa família. Como eles iam or-

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ganizar a aprendizagem dele, como a família ia se or-

e medicalização
Tomando um texto de Barros e Kastrup, em ganizar com os temas escolares, como ele podia se
que as autoras falam de pesquisar e de pesqui- engajar no processo. Ele entra novo na escola, num

Cadernos Temáticos
sador, eu troco as palavras pesquisar por avaliar grupinho que já vinha desde a educação infantil. O
e professor no lugar de pesquisador. Assim, te- Luís, na palavra da professora do ano anterior, dizia,
mos: “Avaliar, ela requer aprendizado e atenção

Patologização
“tem problema de atenção, precisa de diagnóstico”,
permanente, pois sempre podemos ser assaltados e por isso ia ser retido, até que voltasse com esse tal
pela política cognitiva do professor cognitivista, documento, que muitas vezes chega naquela meia
que está aqui dentro, aquele que se isola do objeto folhinha de ofício para professora. Luís, em agosto,
de estudo, na busca de soluções, regras, invarian- estava acompanhando os seus colegas; acompa-
tes” (2009, p.73). nhando nas brincadeiras, nos trabalhos em grupo,
na bagunça e nas aprendizagens. Esse processo de
Marcelo: um menino que fui convidada a

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partilhamento com os colegas, com a família, é algo
pensar junto sobre ele, sobre a história dele.
produzido por essa professora. Ela podia ter enga-
Marcelo tinha 12 anos, multirepetente. Dentre
tado rapidinho, dizer que já veio com o parecer da
as várias coisas que a gente faz ali conversan-
colega, só que não. Ela se engata no Luís e a partir
do, trabalhando junto, eu peço que ele escreva o
daí organiza o processo de avaliação dela e o pro-
nome dele, e ele escreve /R/. Então pensaríamos
cesso de organização da aprendizagem.
no que a professora pessimista vai dizer, “nossa,
mas esse menino, tantos anos na escola, já tem 12 De novo, a pesquisa ou a avaliação “parte do
anos, nem a primeira letra, nem o nome ele faz”, reconhecimento de que o tempo todo estamos em pro-
mas a professora otimista diria, “mas ele põe uma cesso, em obra. O acompanhamento de tais processos
letra e essa letra tem até no nome dele”. Então eu depende de uma atitude, de um ethos, não está garanti-
peço que ele me conte algo sobre ele, eu peço da de antemão” (Barros e Kastrup, 2009, p.73).
que ele leia o que ele escreveu, leia o nome dele
devagarinho para eu entender e assim ele con- Valentim: Ele chega para professora e conta
tornando a borda da letra R diz MAR CE LO. Des- uma cena; ele tinha ido no médico, no dia anterior e
cubro, então, uma coisa que só ele sabia, de onde tinha recebido um diagnóstico. E ele diz:
ele estava no processo; onde se podia engatar Valentim: “Professora, fiquei sabendo on-
algo; porque escondido?; aquilo que não estava tem que preciso de um remedinho, sabia que sou
mais; aquilo que ele me conta; como é que ele se hiperativo?”
permite mostrar; como é que ninguém viu aquilo
que ele já sabia; e ele sabia muito, esse menino Professora: “Como assim, Valentim? Quem
terminou o ano alfabetizado, tranquilo. te disse isso?”
Valentim: “Fui na médica e ela disse que sou não se falava. A professora atual olha a sua produ-
72
hiperativo, que não paro, que preciso tomar um re- ção, acolhe e incentiva a sua escrita, ideias, inven-
médio para aprender, a médica disse que eu sou ções. Essa é uma palavrinha preciosa pra mim, da-
hiperativo e que isso é um tipo de doença que tem quelas que eu guardo do lado da cama para todo
cura, que é só tomar remédio” dia, para vestir no outro dia.

Professora: “Tu sabes o que significa isso, O processo de ortografização foi trabalha-
Valentim?” do ao longo do ano, esse é um processo que corre
junto com a possibilidade de seguir escrevendo,
Valentim: “Sei, professora, é que eu não paro
de seguir pensando. De novo, o avaliar pelo pes-
quieto, sou atrapalhado, às vezes falo alto e tam-
quisar, “abordando a pista, avaliar é acompanhar
bém sou meio agressivo, preciso ficar mais calmo,
processo, procuramos apontar que a processuali-
eu sou assim mesmo, tu não achas, professora? Eu
dade está presente em cada momento da aprendi-
tenho essa doença, preciso de remédio?”
zagem” (Barros e Kastrup, 2009, p.73).
Professora: “Valentim, claro que não estás do- (Uma imagem projetada na tela mostra, fru-
ente, o que eu acho é que é muita saúde pra um corpi- tas: uva, cereja, ameixa. Outra imagem mostra
nho tão pequeno, tem muitas informações, é muito in- legumes, cebolas, vegetais, outra imagem, flores.
teligente, te empolgas em mostrar tudo o que sabes” Quando a imagem abre o foco, vemos uma figura
Na classe, eles tinham uma organização mui- humana formada por esses elementos. Trata-se
to diferente, muito interessante onde todos esta- de uma pintura típica de Giuseppe Arcimboldo, pin-
vam acolhidos e podiam conversar sobre o que se tor italiano do seç. XVI)
passava na aula. Só que uma professora, outra, que De quem é mesmo que nós estamos falando
não era dele, fez essa indicação. Então, o nome do quando estamos organizando o processo avaliati-
Valentim, o nome do sujeito passa a ser seu rótu- vo? Quem é mesmo que precisa ajudar a ver este
lo. Ele deixa de ser aquele que é terrível, que não sujeito? Para além daquele pedacinho, para além
para quieto, que conversa. Em seu dobramento o daquilo, daquele diagnóstico que transforma o su-
discurso sobre a criança passa a transformá-la em jeito em um diagnóstico.
diagnóstico. Esse dublê que o Foucault vai falar.
Avaliar, pesquisar: como aprende, como
Segue a história do Valentim e o encontro acessa, com quem aprende, com quem não apren-
vivo: a professora conversa com ele, ele estava de, o que aprende, o que não aprende?
vindo de outra escola, e ela inicia a perguntar:
Avaliar como invenção do e no encontro. A
Professora: “Valentim, se tiveres, gostaria palavra invenção é uma palavra poderosa, não? A
que me trouxesse os textos feitos por ti na outra professora Kastrup também fala muito sobre essa
escola, gostaria de dar uma lida” palavra, mas eu vou me lembrar de uma cena do
Valentim: “Mas professora, não vais enten- Foucault, em “As formas jurídicas”, quando ele bus-
der nada, minha letra é horrível, não sei escrever” ca Nietzsche para pensar e diferenciar a criação de
invenção. Ele diz assim, “criação é eu criador, esta
Professora: “Primeiro traga e depois olha- criatura, eu criador, aqui a criatura”, e ele vai dizer
mos juntos” invenção como “obra aberta de múltiplas mãos, de
múltiplos encontros”. Ele traz a cena do choque das
Valentim: “vou avisar que não vais conse-
espadas. “Quando tu tens uma espada um e a es-
guir entender nada”
pada dois, cada um de um metal diferente e, quan-
Valentim já anunciava uma visão sobre si do elas se encontram, elas provocam uma centelha
mesmo, não sabia escrever. Ele traz o material e que é uma terceira coisa, que é formado por um ter-
a professora olha o texto que vem marcado por ceiro material, já não é mais nem uma nem outra”.
observações referentes ao traçado e a troca de A ideia de invenção está sempre em processo, ela
letras, expressões como “letra horrível”, “texto in- está sempre acontecendo, e quanto mais a gente
compreensível”, “melhorar a letra”, e ela lê o texto. bota na roda, mais possibilidades a gente encontra.

Gente, para que que serve aprender a ler a Então, eu fecho com um texto do Lenine
escrever? Ela vai olhar o que está escrito. Valentim (1977), que diz, “a ponte não é de concreto, não é
era um menino criativo, tinha ideias, tinha uma his- de ferro, não é de cimento, a ponte é até onde vai o
tória potente, histórias interessantes, mas disso meu pensamento”. Obrigada.
Participação da plateia 73

- parte 1
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Paulo Amarante: Uma das questões chaves ta vinda de um insider, um cara de dentro. Isso
hoje é a medicalização da infância, de patolo- é muito legal, igual à crítica ao tabaco do cara
gização da infância. Uma das coisas mais cru- lá das indústrias de tabaco, nos Estados Uni-
éis que a indústria farmacêutica faz é a alian- dos. Ele denunciou, “o tabaco dá câncer”, eles

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
ça da psiquiatria com a Big Farma, uma grande sabiam e negaram, omitiram. Ele faz a mesma
indústria, e a mídia que a gente, poucas vezes, coisa com a psiquiatria, reconhece que o TDAH

Cadernos Temáticos
sabe o quanto que é estratégia de levar para os foi uma das invenções mais cruéis, cretinas, que
programas matinais, os programas de domingo não existe o TDAH. E fala da medicalização da
esse tema. O Jornal Nacional, há pouco tempo, vida, ele usa esse conceito no título e a aliança

Patologização
fez uma matéria sobre a eficácia, a importância perversa da psiquiatria com a Big Farma. Então,
dos antidepressivos, negando toda a crítica que o DSM 5 é patologizador.
a própria Organização Mundial da Saúde faz. E
o Jornal da Band também, então a gente vê que Rapidamente a Biancha, eu acho importan-
é uma estratégia sabida de negócio para gran- tíssimo a crítica à reabilitação. Eu fui um dos au-
de audiência. Eu queria fazer só três comentá- tores, um dos trabalhadores da área que nunca
rios rápidos. O primeiro, Rossano, eu sou amigo aceitei esse como método da reabilitação psi-

Cadernos Temáticos CRP SP


do Allen Frances, acho que ele é um crítico cora- cossocial. Achei muito curioso, num congresso
joso; eu fiz uma resenha crítica ao trabalho dele, em 94, eu fui discutir o Caps Itapeva, Caps do
mandei para ele. O livro chama originalmente ICQ em São Paulo, e falava, “o que é o Caps?”,
“Saving Normal”, “Salvando o Normal”. Você para o diretor na época do Caps, não sei mais
falou o nome em português, “Voltando ao Nor- dizer o nome dele, ele falou, “o Caps é centro de
mal”, mas o livro original é “Salvando o Normal”. reabilitação psicossocial”. Perguntei: “Não era de
Então, em justiça à coragem, como é, ele fez o atenção? Seria então CRPs?” Eu tenho um arti-
DSM 4, foi o presidente do grupo de tarefas do go sobre a genealogia desse deslocamento de
DSM 4, mas a crítica que ele faz ao DSM 5 é atenção, que bem ou mal, era cuidado, quando o
muito potente e o subtítulo é “A crítica vinda de Davi Capistrano, Tykanori, Fernanda, todo esse
um insider”, de um cara de dentro. Então, para a grupo, William Valentim, Lancetti, criaram os
gente enfrentar essa psiquiatria conservadora, Naps, em Santos. A primeira ideia era grupo de
a crítica do Allen Frances é muito importante. apoio, ao menos, mas era uma tentativa de não
Então, é “Salvando o Normal”, que até a gente colocarem reabilitação. E a Claudia também, eu
use o nome certo, ele tenta salvar a psiquiatria. queria só cumprimentar rapidamente: achei ma-
Eu acho, como vocês podem tentar salvar a psi- ravilhosa essa discussão como dar voz à criança,
cologia, a psicanálise, etc, desde que ela tenha como poder perceber dela a posição que ela faz
determinados compromissos, ou seja, é isso, do seu comportamento, de como ela se interpre-
esse é o projeto dele, salvar a psiquiatria para ta, significa e que a gente acaba não ouvindo a
que ela não siga esse caminho de negociação própria criança, o próprio sujeito e patologizan-
com a vida. Então, o subtítulo é a crítica, a revol- do a partir de uma visão de como a pedagogia
realmente está tão contaminada. E aí lhe faria falar para aquela mulher tão velha que ela não
74
uma pergunta assim, sei que você é lá da terra sabe desenhar?”. Uma avaliação padronizada
do Alfredo, dos grandes intelectuais dessa área faz esses tipos. Você não escuta, você tem de
do pensamento foucaultiano das instituições, o dar a resposta certa. Eu falei, na psicologia tem
que pode se fazer com esse campo para que a também a do famoso mini mental test, acho que
pedagogia, as escolas não sejam tão influencia- muita gente aqui deve conhecer, parece que ele
das, tenham uma certa postura de autonomia, saiu um pouco de moda, que era para fazer um
de rejeição do processo de medicalização? Por- diagnóstico de demência, e como a pessoa que
que de fato, os nossos centros de saúde lá da está nessa avaliação, qualquer avaliação, sem-
Fiocruz, a maior parte das crianças já chegam pre sabe que está sendo avaliada, portanto,
diagnosticadas com TDAH pelos professores, é uma situação de tensão, e uma vez aqui no
que já mandam com o diagnóstico, crianças hi- hospital de clínicas, eu estava passando e vi um
perativas e assim já medicalizou. E no momento velhinho, era um velhinho mesmo, sofrendo com
que deu essa medicação aos pais, nós sabemos o mini mental. Ele era assim bem do interior de
as consequências, né? Então, muito obrigado. São Paulo. Estava lá, aí eu tinha que parar e as-
sistir. Aí foram aquelas perguntas e ele pensava
Cida Moysés: Eu queria mais que tudo o quê? Que as perguntas eram todas armadi-
agradecer vocês por esta conferência com- lhas, “o que querem de mim?”. Com prova, a gen-
partilhada, acho que foi algo assim fantástico te precisa descobrir quem é o professor que fez
porque uma das coisas que a gente já vinha a pergunta para saber o que precisa responder,
comentando é como nós precisamos nos rea- não é? Aí veio a fatal, “jacaré voa?”, ele parou,
propriarmos da avaliação, porque a gente faz olhou, sabe aquela coisa assim, paralisa, né? Ele
avaliação, a gente tem de avaliar. E, de repente, só não puxou o cigarrinho de palha porque não
parecia que você criticar era ser contra a avalia- podia. Aí ele responde, “bom, eu nunca vi, mas um
ção. A gente é contra uma avaliação padroniza- amigo meu jura que já viu”. Saiu com diagnósti-
da, que coisifica o sujeito, que é violento e que co de demência, porque ele não respondeu que
não escuta as pessoas. Eu conto alguns causos jacaré não voa, certo? E acho que o avaliador
de avaliações padronizadas que eu vi, de não precisa ser avaliado nessa situação. Mas enfim,
escutar o sujeito e quando você escuta, você vê acho que é isso, então, eu queria agradecer a
como a avaliação tinha sido ridícula. Uma me- vocês por nos devolverem a avaliação. Acho que
nininha, agora ela já é uma moça, ela tinha cin- a gente pode dizer que a avaliação é nossa, nós
co anos e a escola tanto insistiu, tanto insistiu avaliamos, eles coisificam, eu acho que a gen-
que tinha de fazer uma avaliação, a mãe dela te tem que fazer avaliações que nos respeitem
era professora na Unicamp e não queria, mas e respeitem a pessoa que está à nossa frente,
foi convencida e ela falou, “tá bom, pode fazer, o sujeito, porque quando a gente transforma o
mas vai fazer naquela sala que tem espelho es- outro no objeto, a gente também se transfor-
pião, “eu quero ver”. E aí chegou a psicóloga, ma em objeto. Não existe relação sujeito com
“Olá, tudo bem? Eu vou te mostrar uns desenhos objeto, aí é objeto, então o que a gente está fa-
pra você ver”. Aí mostrou o famoso gato sem zendo em todas as nossas ações e em todas
bigode, “e aí, falta alguma coisa?”, “não, não”, o as nossas práticas, é nos respeitarmos como
caderno inteiro a menina disse que não faltava sujeitos, aí a gente respeita os outros como su-
nada. E a mãe, no terceiro desenho, começou a jeitos. E quando a gente respeita todos como
ficar preocupada, no décimo ela estava deses- sujeitos, a gente grita ele não.
perada, “o que eu fiz com a minha filha que não
percebi?”, enfim, saiu de lá arrebentada, andan- Jonas: Meu nome é Jonas, eu sou psicólo-
do, menina correndo para lá e para cá e a mãe go em Rio Claro e trabalho no serviço que tra-
se sentindo um horror de mãe. Porque, inclusi- ta pacientes com HIV/Aids e hepatites. A gen-
ve, não tinha deixado fazer a avaliação antes te lida com algumas situações lá que eu acho
na menina. Aí ela fez aquilo que ela sabia que muito delicadas, que eventualmente a gente
não devia fazer, mas fez. “Vem cá, querida, con- tem que lidar, que é trabalhar com a articulação
ta pra mim, você não viu mesmo nada faltando entre o sofrimento de um paciente e a situação
naqueles desenhos?”, aí ela assumiu a posição dele com relação aos seus direitos, e com INSS,
de açucareiro, certo? “Mãe, você não diz que com afastamentos, com licenças etc. E eu tenho
eu tenho que ser educada, como é que eu vou muita dificuldade, particularmente, com aquela
situação em que você começa a atender o pa- a partir de um sofrimento que ele acha melhor
75
ciente e ele já está instalado em uma situação continuar sendo beneficiado por esse benefí-
assim. Ele passou por um psiquiatra, por exem- cio, do que se responsabilizar pelo seu próprio
plo, um caso particular, que identificou que havia sofrimento, e daí eu acho que é pertinente ao
um sofrimento no serviço, alguma dificuldade movimento de despatologização, que é pen-
com o trabalho, aí o psiquiatra deu um diagnós- sar o sujeito, escutar o sujeito implica também

- parte 1
tico para afastar o paciente. Ele prescreveu um responsabilizá-lo pelas suas escolhas, né? Já é

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
monte de depressões ali, depressão repressiva uma coisa importante, né? Então, eu queria que
recorrente, depressão grave, depressão... então, vocês comentassem um pouco isso, como que

e enfrentamento
ele montou um laudo pra afastar o paciente. O a experiência que vocês têm trazido isso, como

Psicologia em emergências
que acontece? Ele se afasta e não consegue vocês têm lidado.
voltar mais, que é uma coisa que eu tenho visto
com muita frequência depois que você afasta Biancha: Bom, vou colocar a questão que
um paciente. Quando da nossa escuta, o nos- o colega nos traz, uma discussão que fazíamos.

CRP SPdas vidas: reconhecimento


so contato com ele, nos dá a impressão que ele Começamos a nos organizar para fazer um cole-
teria ficado melhor se ele tivesse continuado no tivo no Despatologiza, em relação às professo-
trabalho e trabalhando as dificuldades dele, fa- ras ali, vou dar o exemplo das professoras, por-
lando e tentando modificar a própria situação que é o meu terreno. Na história do burnout, não
dele, a forma de se colocar no serviço, de se co- é algo específico da carreira docente, mas que
locar na comunidade etc. Mas você o afastou, era o local como um exemplo. Então, o que você
e ele não consegue voltar com a possibilidade tem? Você tem o contexto laboral que produz so-

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
de rever a sua situação ali no serviço. Então, frimento, que não encontra campo de interlocu-
porque não existe esse mecanismo, pode até ção e transformação, que se torna adoecimento.

Cadernos Temáticos
existir assim burocraticamente, mas não existe Esse adoecimento só vai ser percebido quando
na prática, uma tentativa de botar de volta o incide sobre o corpinho, aquela vida humana da
sujeito ali, ver o necessário e depois repensar. professora, sim, e ela entra em sofrimento tal,

Patologização
Então, se ele arriscar tentar de novo, ele perde muitas vezes em processo de adoecimento,
o benefício, perde aposentadoria, perde afasta- ok. A gente sabe que... até porque tô usando
mento, perde tudo o que ele tinha conquistado, categoria burnout porque por definição tem a
para ele é uma conquista, porque agora ele está ver com um sofrimento decorrente da situação
recebendo um benefício, está afastado e apo- laboral. Bom, essa pessoa é afastada para cui-
sentado, ele não precisa trabalhar mais, só que dar de si, muito bem, enquanto ela cuida de si,
na escuta, você vê que há um sofrimento muito afastada do trabalho, o lugar gerador do sofri-

Cadernos Temáticos CRP SP


grande implicado nisso aí, porque por um lado, mento e do adoecimento, a vida anda, faz-se os
a pessoa incorpora o laudo, se define. Eu estou diversos processos de cuidado, mas no que que
falando de um adulto, imagine uma criança, né? isso repercute? Para a instituição que não faz a
Tenho pouquíssima experiência com criança, pergunta, como é que a gente produz pessoas
mas os adultos, eles incorporam, “eu sou bipo- que adoecem? E às vésperas da avaliação para
lar, eu sou...”, “eu tenho depressão recorrente...”, retorno, cessação do afastamento para o retor-
mas é interessante que a depressão recorria na no para atividade laboral, essas pessoas entram
véspera da avaliação, da perícia do INSS, era em ansiedade, porque elas sabem para onde
de lei isso, né? Então, eu queria que vocês co- elas vão voltar, elas não estão fazendo uma fan-
mentassem um pouco. Vocês têm alguma dica, tasia a respeito de como vai ser o retorno, elas
alguma estratégia, como lidar, conversar, como vão voltar para o lugar que as adoeceu e aquele
articular essas situações? Porque a gente tem lugar que as adoeceu não pensou sobre isso e
uma variedade grande de pacientes que a im- não produziu transformações, não produziu e ela
pressão que eu tenho é que quando você está vai voltar para lá e muitas vezes ela volta para lá
nessa situação, você já pega essa situação, e na condição de professora readaptada, ou seja,
você não participou da produção de um laudo, ela não pode voltar para sala de aula, porque
de um estudo, e ele já tá afastado, né? Então, ela é um risco para os estudantes, ela não pode
é difícil reverter, repensar isso, né? A impres- voltar para sala de aula, ela vai desenvolver ou-
são que eu tenho é assim, a gente está lidando tras atividades na escola. Então a sua identida-
também com o ganho secundário que o pacien- de profissional, que é de professora, sofre um
te tenha, com o ganho secundário que ele tenha processo de diminuição, de deslocamento que,
muitas vezes, não era o que a professora queria, ta, era um cesta de remédios, e se eu quiser
76
não é? Mas aí você fala, tem ganhos secundá- sair hoje aqui e for a cinco consultórios, eu vou
rios disso, eu diria que são estratégias para lidar conseguir cinco indicações de medicamento e
com situações que estão estagnadas, que es- vou encher cestas e ninguém sabe o que que
tão impossíveis de se mexer do ponto de vista eu faço com aquilo. Mas a ideia da gestão autô-
de um indivíduo. Então, ela volta e pede outro noma, coloca esse sujeito na primeira pessoa.
afastamento, ela volta e potencializa, avalia na Tem outros pesquisadores, para além da Ana
perícia o que ela está vivendo como estratégia Lis, a professora Carima também tem um traba-
para não adoecer de fato quando ela voltar para lho muito interessante, tem um artigo também
escola, porque ela vai voltar para mesma escola, pensando na relação com o Caps, ela é do Espí-
mesmo jeito, com as mesmas questões. Estou rito Santo, então eu acho que é um instrumento,
só dando um exemplo da escola, aí vocês usam embora o nome seja estranho, eles discutem
analogias com relação aos contextos de vocês. também sobre isso, guia, mas eu acho que ele é
Então, queria marcar isso, o quanto a gente lidar muito precioso para pensar essa questão. Ges-
com pessoas que adoecem nos seus processos tão Autônoma de Medicamento.
de trabalho, só como pessoas que adoecem sem
Rosangela: Gente, pra quem tiver interes-
pensar qual é o nosso plano de intervenção nos
sado, aqui na Unicamp, na Faculdade de Ciên-
últimos contextos adoecedores, aí volta para
cias Médicas, a gente tem o GAM sendo utiliza-
questão que eu trouxe na avaliação. Se a gen-
do, então é só entrar no site da Unicamp, vocês
te avalia a pessoa no contexto, ou se a gente
vão achar o material. Ele, inclusive, foi adaptado
avalia o processo de intervenção que a pessoa
à população brasileira. Vem também do Canadá,
pode produzir lendo o contexto em que se insere
então quem tiver interesse em conhecer o ma-
a partir de sua condição. É a história que eu fa-
terial, ele tá disponível, se vocês tiverem algu-
lei aqui do plano de intervenção. Se a avaliação
ma dificuldade, eu tenho o material.
não produz este plano, ela vai lidar sempre com
a produção do cenário que é estanque, em que Cecília: Mais alguém? Então, eu gostaria
muitas vezes a pessoa sai de lá sabendo quem de falar bem pouquinho, mas eu fui movida pela
ela é ou o contexto que a produziu, mas ela não fala da Claudia, pelo seguinte: durante muitos
sabe o que fazer com isso. Então, tem uma per- anos, a gente discutiu, falou em várias pales-
gunta que é: “posto isso que você entendeu sobre tras, escreveu muitos textos, eu e Maria Apare-
a tua história, que que você vai fazer com isso?”, cida Moysés, a respeito dessa questão da me-
para que esse processo de avaliação seja uma dicalização e principalmente da medicalização
avaliação prospectiva e não só a posteriori. da educação. E eu acho que a nossa primeira
etapa foi vencida, não no sentido de derrota-
Claudia: Mas eu queria dar só uma dica de da, mas nós completamos essa fase, que foi
referência bibliográfica, talvez pensando no que exatamente a fase de estar apontando o que
você traz, pensando nesse sujeito e qual a pos- estava acontecendo, desmistificando aqueles
sibilidade desse sujeito estar. Não com a pos- absurdos diagnósticos que a gente tinha, de
sibilidade de eu dar voz a ele, mas garantir sua uma quantidade absurda de crianças dentro da
voz, que é diferente, não sou eu que dou, mas escola, como se nós estivéssemos acabando
eu garanto. Tem um instrumento chamado GAM com a normalidade entre as crianças brasileiras,
(Guia de Gestão Autonoma de Medicação), que né? Então, a gente teve esse desafio de des-
tem uma pesquisadora muito importante, a pro- vendar isso e estamos agora, através de outras
fessora Ana Lis Palomeni, que é uma parceira, colegas, e hoje a Claudia mostrou isso muito
colega de residência e de vida, que vem traba- claramente. Quer dizer, o que fazemos? Então,
lhando com pesquisa e aí tu vai achar pelo nome nós já sabemos disso e dentro da área pedagó-
dela, textos, o próprio GAM, tá disponível online. gica o que é que nós temos de fazer para rever-
Há vários outros pesquisadores que trabalham ter essa situação? Então, eu acho que somos
com esse material que é pensar sobre, desde poucos ainda, mas nós vamos chegar lá, que é
crianças, pensar sobre a sua medicação, eu me exatamente o de estar trabalhando pedagogi-
lembro de uma cena de uma parceira de traba- camente e fazendo avaliações sucessivas para
lho, que trabalha no Caps, que ela fala da cesta encontrar a melhora dos nossos alunos e não
de medicação que o menino tomava, e aí ela me avaliando para simplesmente rotulá-los e deixá-
mandou uma foto, que era uma cesta concre- los de lado. Então, eu fiquei muito feliz de ouvir
a fala da Claudia, porque é um alento para os
77
educadores, e acho que é um alento para todas
as outras profissões, porque, como a Biancha
fez com o exemplo da professora para todas as
outras profissões, eu acho que a Claudia mos-
tra para todos os outros como a gente pode

- parte 1
através do trabalho sério, científico, com bases

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
teóricas potentes, poder trabalhar na prática e
reverter essas situações que foram artificial-

e enfrentamento
mente criadas. Porque nós, quase todos aqui,

Psicologia em emergências
fomos alfabetizados pelo Caminho Suave e não
aconteceu nada, somos todos capazes de ler,
não é? Então, eu acho que é importante a gente
pensar na simplicidade. Então, muito obrigada,

CRP SPdas vidas: reconhecimento


eu acho que foi maravilhoso.

Biancha: Agradeço, agradeço a companhia


da Claudia, do Rossano, da Cecília, agradeço a
interlocução dessa manhã.

Rossano: Gente, também foi um prazer


estar aqui com vocês. Só vou fazer um comen-

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e medicalização
tário, essa história que o Paulo falou e que vá-
rios de vocês já falaram, as crianças já estão

Cadernos Temáticos
chegando à clínica pública e privada com os
professores fazendo diagnóstico, não é? Então,
acho que isso mostra duas coisas, como vocês

Patologização
já falaram na mesa de apresentação, o quanto
a medicalização não precisa de médico obriga-
toriamente, o quanto isso pode estar entreme-
ado, a capilarização do biopoder que o Foucault
falava, mas isso está na casa da gente, está no
Jornal Nacional, está no dia a dia. A segunda
coisa é como isso é consequência, entre outras

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coisas, daquilo que eu comentei, ou seja, a par-
tir do DSM3 de checklist de fazer diagnóstico,
ficou parecendo que é uma coisa relativamente
simples, qualquer um com o mínimo de instrução
olha e “é assim que faz diagnóstico? Então, as-
sim eu sei fazer, é só ler para ver se tem tantos
critérios, marcar x eu sei fazer, né? E pronto, o
diagnóstico então se é assim, eu já faço na sala
de aula, adianto o processo lá para o médico só
botar o carimbo”, infelizmente muitas vezes é
assim mesmo que as coisas têm acontecido.

Claudia: Eu só quero agradecer imensa-


mente poder estar aqui nesse movimento. Diria
assim, o que a escola pode fazer, o que a gente
pode fazer para melhorar essa situação da es-
cola? Eu diria multiplicar muitos Despatologiza,
todo dia em cada cidade desse país, isso pode-
ria nos dar alguma ajuda nesse processo. Estou
muito feliz e contente de estar por aqui, isso é
uma alegria pra mim. Obrigada.
78
Subvertendo Laudos
Adriana Marcondes Machado
Graduação em psicologia pelo Instituto de Psicologia da PUC, mestrado e doutorado
em Psicologia Social pela USP. Trabalhou no serviço de psicologia escolar de 1986
a 2010 como psicóloga e hoje é membro desse serviço. Professora de graduação e
pós-graduação do Instituto de Psicologia da USP, departamento de aprendizagem do
desenvolvimento e da personalidade. Trabalha com temas ligados à psicologia escolar,
pesquisa e intervenção, educação inclusiva e relação saúde/educação.

Bom dia. Organizei uma fala que vai aproveitar definição no começo e depois eu a retomo um
muito o que foi discutido na mesa de ontem. Acho pouco mais para frente. Primeiro, eu queria dei-
que a gente talvez vá conseguir com esse evento xar claro a seguinte provocação: esse serviço foi
aqui, criar um patamar de discussão e de problema criado dentro do Instituto de Psicologia da USP,
em relação a esse tema dos laudos. Primeiro eu que teve a presença muito forte da professora
queria me apresentar em relação a essa temática Maria Helena Souza Patto e, portanto, os tex-
e me apresentar já justifica a forma como eu vou tos dela que iam mostrando que a produção do
compor essa temática. O que eu quero dizer? Es- fracasso escolar não poderia ser entendida de
sas reflexões e essas ações que vão ser apresen- uma forma que não considerasse que ela era um
tadas aqui, elas foram criadas dentro de um certo fato social, a produção do fracasso é fato social,
contexto e uma certa possibilidade de ação. não é? Nós éramos convocadas a pensar “então
como vocês vão atender? Como vocês vão ava-
Durante 25 anos, eu fui psicóloga num
liar? Como vocês vão exercer trabalhos na medi-
serviço público dentro da Universidade de São
da em que essa é a concepção?”. Então, as con-
Paulo. Então o Instituto de Psicologia tem vários
dições de possibilidade atravessadas por uma
serviços: clínica, orientação profissional, serviço
lógica produtora de desigualdade social, essas
de psicologia escolar, serviços de atendimento
condições precisariam estar presentes na nossa
individual, enfim, tem vários serviços. Um deles,
ação num trabalho de avaliação psicológica.
serviço de psicologia escolar, e eu com contrato
como psicóloga desse serviço. Então já é inte-
ressante pensar porque é uma universidade que
depende da existência de psicólogos para pode-
“A gente passou a defender que o
rem tocar hoje o Centro Escola do Instituto de nosso objeto não se encerra num
Psicologia e para poderem organizar estágios e sujeito encaminhado, mas o objeto
atendimentos, trabalhos de extensão. Então, eu
fui contratada num serviço para trabalhar com a
da avaliação psicológica são
questão da relação saúde/educação num serviço campos de relações em que certas
da universidade. É diferente ser um psicólogo que maneiras de existir se produzem”
está numa Unidade Básica de Saúde, é diferente
estar num consultório, ser um psicólogo que tra-
balha numa clínica particular. Então, eu estou me-
Então, o que a gente passou a defender? A
tida na engrenagem de uma forma singular e eu
gente passou a defender que o nosso objeto não
vou trazer alguns elementos dessa engrenagem.
se encerra num sujeito encaminhado, mas o objeto
Pensei o seguinte: eu ia fazer uma definição da avaliação psicológica são campos de relações
do nosso objeto, do nosso procedimento, do que em que certas maneiras de existir se produzem.
que se avalia num trabalho de avaliação psicoló- Então, campos de relações, relações de poder, de
gica ao final da minha fala, e resolvi trazer essa saber, relações de força, campo de relações onde
uma certa maneira se produz, um certo sujeito se te quando um certo paciente para de vir para
79
constitui, um certo disléxico se produz. Porque um atendimento, muito rapidamente a primeira
quando alguém diz “ele tem dislexia” naquela re- palavra que vem é resistência.
lação, a dislexia existe. Certo? O nosso argumento
Assim, achar que é resistência do outro,
é que isso é uma coisa construída, tanto é que, em
ficar chateado por ter ficado esperando, pacien-
outra relação, será de outra forma. Então, o objeto
te não vai mais vir, eu até compreendo. Mas daí

- parte 1
da avaliação, o objeto é o campo de relações.

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
sai com um amigo, toma uma cervejinha, toma
Se você vai trabalhar num campo de rela- um banho, melhora, melhora o pensamento, não

e enfrentamento
ções, o procedimento é o seu objeto, o seu pro- precisa ficar assim uma semana inteira. Não,
cedimento será buscar formas de afetar essas não. Não só ficamos uma semana inteira, como a

Psicologia em emergências
relações instituídas para alterar as condições discussão nos corredores é: “puxa, eu acho que a
que produziram o adoecimento. Então, eu tenho gente estava num momento que era um momento
que criar um procedimento que altere o campo difícil, não foi possível daí ele saiu”. Deveríamos

CRP SPdas vidas: reconhecimento


de forças, e alterando o campo de forças eu falar assim “puxa, a gente estava num momento
estarei variando os sujeitos que estão sendo em que o dispositivo de atendimento cria dificul-
produzidos. Então, olha que interessante, fo- dades que são difíceis de permanecer”. Então, se
mos criando grupo, não é? É um monte de gente nós somos pessoas que estamos o tempo todo
pensando. O procedimento tem de ser buscar fazendo trabalhos de avaliação que coloca o
formas de alterações. E o que se avalia? Se eu território do outro como problemático, por que
busco formas de alterações, se o meu objeto é que não consideramos o problema que se pro-
trabalhar com essas relações, com esses atra- duz no território com a gente? Ou não considera

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e medicalização
vessamentos, a criança faz parte dela, o jovem que é no território, nessas relações que inven-
faz parte dela, então me interessa muito estar tamos que os problemas são constituídos? E é

Cadernos Temáticos
com ele. O que que se avalia então? O que se maravilhoso pensar assim. É maravilhoso pensar
avalia é a potência de mudança de alteração, de assim porque a certeza de que sempre estamos
ampliação dessas relações datadas. constituindo aquilo em relação ao que estamos

Patologização
trabalhando, sempre estamos constituindo, nos
Traduzo: uma certa criança encaminhada,
dá uma força que é “bom, se estamos sempre
o procedimento é o procedimento onde vai ava-
constituindo, posso constituir, não preciso ficar
liar as relações e as práticas onde essa criança
amarrado numa certa configuração que tem expli-
se constitui, com o objetivo de avaliar isso. En-
cação e que não muda”.
tão, se a professora tem muito medo daquela
criança que sempre esteve ausente da escola Dito isso, eu queria fazer o seguinte per-

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e agora está na escola, com a política da edu- curso: eu tive que entrar nesse assunto, odia-
cação inclusiva, então vou pegar um elemento, va “avaliação psicológica”. “Ai que bom, que eu
o medo. E esse medo vai gerando uma impos- estou fazendo trabalhos, que eu vou lá nas es-
sibilidade de trabalho, avaliar o medo passa a colas, eu trabalho com os professores e tal, daí
ser o procedimento necessário para gente po- eles trazem qual é a problemática. Meu contrato
der agir. E isso é muito interessante porque com permite isso. Um privilégio, né? Eles trazem a pro-
o trabalho, dois, três meses eu indo numa cer- blemática, a gente levanta hipótese, eu conheço
ta escola, a situação piorou, isso permaneceu as pessoas, não sei o que lá, daí a gente tenta
da mesma forma, isso melhorou, significa que variar. Ótimo, não preciso trabalhar com esse ne-
o trabalho da gente conseguiu ou não conse- gócio da avaliação”. Mas eu precisei. Eu precisei
guiu. Jamais eu posso terminar um trabalho de porque eu entrei em contato com crianças que
avaliação psicológica dizendo que o outro não frequentavam as classes especiais, eu conheci
mudou. O dispositivo não mudou, não fez alte- crianças que eram encaminhadas para essas
ração. Então aqui eu já estou trazendo uma coi- classes especiais do Estado, que a gente sem-
sa bem importante para nós que vamos sendo pre brinca contando que muitos eram diagnosti-
convocados a essas ações. É que sempre que cados como deficiência mental grau leve e que
algo não funciona da forma como defendemos é doença de pobre, não é? Deficiência mental
que deva funcionar, o dispositivo que foi cria- grau leve é doença de pobre, porque classe mé-
do deve ser colocado em análise, em questão. dia, deficiência mental grau leve você pega um
Por isso que eu odeio uma coisa que ensinamos professor particular, o tio pega, a tia que sabe
para os nossos alunos, que é muito rapidamen- matemática e, de repente, o garoto melhora.
Agora, se você não tem condições de avaliar cando, não tinha o ano que vem “será que eu
80
aquilo que está ficando para trás, o cara não vou pra terceira? Será que eu vou repetir? Será
está aprendendo matemática, não dá para dei- que eu vou pro quarto? Será que eu vou...”. Não
xar de aprender soma para poder ir pra frente, tinha essa questão. Então tínhamos de pensar
não? Então vai ficando para trás. Como é que essa questão num certo ano. Bom, o que impor-
você vai agir nisso aí? Então fomos perceben- ta aqui é que foi desenvolvido um certo traba-
do o número de crianças que estavam nessas lho que gerou uma certa reflexão e poucos anos
classes especiais e que, com trabalhos razoá- depois, dois anos depois, na rede onde eu tra-
veis, porque eu nunca alfabetizei ninguém, sou balho lá em São Paulo, na rede municipal, eles
péssima nisso, mas com trabalhos razoáveis, as me chamaram na verdade, nessa época era do
crianças saíam um pouco desse lugar. Então o Estado, eles me chamaram e falaram assim, em
problema era anterior. Eu estou falando algumas dezembro “Adriana, nós temos 130 crianças para
crianças, gente, mas que fosse uma só. Não que fazer avaliação psicológica, você podia pegar?”.
nas classes especiais não houvesse crianças Em dezembro que é aquele mês bom de você ir
com comprometimentos graves, mas é uma en- para escola, certo? Tudo calmo, tranquilo, tudo
grenagem que uma vez que as crianças iam para funcionando normal. Por que era dezembro?
lá, elas saíam da política do ensino regular. Porque essas crianças eram colocadas numa
kombi, iam para uma conveniada da prefeitura
Caminhamos muito com a política da edu-
e voltavam com o diagnóstico, às vezes com
cação inclusiva e, sempre vale ressaltar, as me-
duas consultas voltavam com diagnóstico. No
tamorfoses do poder. Então essas crianças não
ano seguinte, dependendo do diagnóstico, elas
estão segregadas numa certa sala, mas muitas
iriam ou não para uma classe especial. Eu me
vezes estão segregadas dentro de uma sala
lembro que, na época, era como se fosse hoje
regular. Então é maravilhoso porque o trabalho
uns 200, 250 reais a avaliação, 200 vezes cento
continua, não é? Mas o que eu quero dizer é que
e tanto. Eu gosto de contar isso porque já pres-
essa questão nos trouxe uma pergunta que é
creveu. Eles puseram esse dinheiro na minha
“como esses trabalhos de avaliação estão sendo
conta, a gente montou uma equipe de 16 pes-
feitos que faz com que essas crianças sejam en-
soas para no ano seguinte ir nas 20 escolas que
caminhadas pras classes especiais?”.
essas crianças estavam e realizar um trabalho
E o meu mestrado foi sobre essas crian- que durou uns seis meses e esse dinheiro foi
ças de classe especial. Crianças de classe es- gasto paras conduções e para os materiais que
pecial, era uma ação que eu precisei desistir eram necessários para essas 16 pessoas.
da pós-graduação, só que a minha orientadora
Eu brinco que eu gosto de falar porque
não ficou sabendo que eu desisti, e depois eu
era tudo errado, não pode pegar o dinheiro do
voltei. Eu desisti sem a orientadora saber, por-
Estado, pôr na conta do banco de uma pessoa.
que não adiantava mais fazer o que eu fazia,
Depois essa pessoa pegar o dinheiro e montar
não adiantava mais me encontrar com essas
uma equipe, tudo sem papel. Mas por que que é
crianças, fazer grupo com essas crianças, con-
interessante contar? Porque tinha uma aposta.
versar com essas professoras, não adiantava.
Uma aposta feita na construção de uma rela-
Não adiantava porque a gente não conseguia
ção de aliança. Assim, eu confiava muito nes-
variar essa história, ou se a gente variava era
sas professoras e essas professoras confiavam
muito pouco, e eu estava numa linha pichonia-
muito em mim, e nós tínhamos que fazer avalia-
na de grupo, que eu achava que eu ia conseguir,
ção psicológica de 130 crianças. Então nós cria-
que outros pichonianos de grupo teriam conse-
mos um procedimento. E olha que interessante
guido, a questão é que eu não consegui. Mas o
gente, a gente foi para as escolas, vocês podem
que eu quero ressaltar aqui é que aprendemos
falar “bom, mas eu estou no meu consultório”.
com esse trabalho que havia uma questão que
Mas aí o que eu quero dizer é que a inspiração
não era colocada para essas crianças. E veja,
que eu tenho é a partir dessa experiência.
colocar uma questão não significa um adulto
perguntar; colocar uma questão significa essa Nós fomos para as escolas, conhecemos
questão se tornar necessária para essa crian- essas crianças, conhecemos os professores,
ça. Não havia a questão de “como será a minha conhecemos a escola, participamos da rotina e
vida o ano que vem?”. Porque a classe especial constituímos ter o que dizer. Mas os elementos
funcionava como um mini manicômio. Você ia fi- imprevistos nesses trabalhos eram incríveis,
porque, de repente a gente tinha de dizer que a conversa, de repente pode ser que ela tenha
81
20 dos 130 encaminhamentos eram porque as falado isso porque está muito difícil, porque foi
crianças estavam bem. Mas fala “ué, mas por muito difícil com o irmão, ela foi marcada des-
que que a professora quer uma avaliação psi- sa maneira e ela está isolada nesse trabalho.
cológica porque a criança está bem?”. Porque Como que esse elemento está presente nas
eram professores, muitas vezes da classe es- nossas avaliações psicológicas? Que é algum

- parte 1
pecial, que queriam que essa criança voltasse elemento que construiu a forma de uma pro-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
para o ensino regular. Mas vejam bem, somos fessora sentir ou pensar, ou a gente vai lá e diz
professores do ensino regular, vou receber uma que ela é equivocada, né? Ela é equivocada e

e enfrentamento
criança que estava na classe especial, o que vai nós somos históricos? Não, ela é perfeita, ela é

Psicologia em emergências
acontecer comigo? Primeira vez que ela der uma construída num certo campo de relações, per-
detonada, eu vou ficar insegura, vou falar “gen- feita nesse sentido. A perfeição da construção
te, primeiro que ela estava na classe especial, ela de um certo fenômeno.
tem problemas graves, eu não sei o que fazer,

CRP SPdas vidas: reconhecimento


ela acabou de bater no menino, o que será que Então, fomos convocados a fazer esse tra-
é isso? Que uma criança bateu em outra?”. Isso balho, entramos em contato que, no processo de
vai ser significado dentro de uma história que avaliação psicológica, as coisas mudavam. Tinha
me constituiu achar isso estranho, porque essa gente que retirava a queixa. Sabe assim, igual
criança era dessa escola e eu não a via nos úl- delegacia? “Ai, Adriana, a gente não quer, mas
timos três anos porque ela estava lá na classe não precisa mais desse trabalho com essa criança
especial, com recreio separado para não fazer porque você viu como está aquela sala de aula?”.

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“Não, nada, ela até está melhor”, “mas você viu

e medicalização
bagunça. Então, é muito legítimo o que essa
professora está pedindo. A gente foi perceben- como está essa sala de aula?” Então dependen-
do da maneira como a gente entra em contato

Cadernos Temáticos
do que a avaliação psicológica participa de um
campo de disputa. Dependendo da forma como com essa demanda, a demanda é uma porta de
vamos dizer o que conhecemos, participaremos entrada, é uma oportunidade. A gente vai criar as

Patologização
desse campo de relações, que é o nosso objeto, variações que nos dirão se a avaliação psicológi-
mudando mais ou menos. ca foi boa ou ruim. E repetindo: a avaliação psico-
lógica da Vilmara, dessa menininha, tá indo tudo
Olha que interessante: Eu avaliar uma me- bem; a avaliação psicológica do Welington tá di-
nina que tem uma doença grave, que tá sempre fícil, ele permanece no mesmo jeito e ninguém o
quietinha, tem um problema neurológico, tem quer, como que a gente vai fazer isso?
medo, depois de três meses na escola, ela já bri-
É interessante também pensar que, no ano

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ga pelo lugar que ela quer sentar. E eu avaliar um
menino na vida 10, na escola zero, né? Guarda os de 2003, eu fiz parte do Conselho Federal de Psi-
carros, bacana, articulado, analfabeto. Três me- cologia, e foi o ano que saiu uma regulamenta-
ses depois articulado, bacana, analfabeto. ção sobre avaliação psicológica, documentos,
atestado, relatório, avaliação psicológica. E eu
Eu pergunto para vocês: quem está me- amava a definição que estava, a gente demorou
lhor? A menina ou o rapazinho? A menina, e ela assim, cinco dias lutando horas, palavra por pala-
tem uma doença neurológica grave, ela está vra. Depois isso mudou, em 2018, houve uma ou-
muito melhor, porque eu estou avaliando a mu- tra resolução e essa foi revogada e a resolução
dança nesses três meses. Então, tem um mote atual é uma resolução muito mais ligada a como
do Lourau, analista institucional, bem interes- os testes psicológicos tão sendo utilizados, qual
sante que é: “nós não conhecemos para trans- é a padronização, qual é a necessidade, enfim.
formar, nós transformamos pra conhecer. Não se
conhece sem ser em transformação”. Mas o que eu quero dizer é que na defini-
ção, o objetivo de uma avaliação psicológica é
Uma professora que diga para mim “ele é servir como instrumento para atuar não somen-
de uma família pobre” ou “ele é irmão de fulano e, te no indivíduo, mas na modificação dos condi-
portanto, não vai aprender” é autoritário e gra- cionantes que se operam desde a formulação da
víssimo eu colocar umas aspas na fala dessa demanda até a conclusão do processo de ava-
mulher, colocar na minha dissertação de mes- liação. Quer dizer, a avaliação tem que ser ins-
trado ou na minha tese de doutorado dizendo trumento de disputa. Tanto a gente sabe disso
que essa mulher é preconceituosa. Começamos que quando a gente quer dar uma de bacana e
fala “essa criança não tem nada, ela está normal. esse nome? Difícil isso, né? Então eu vou fazer
82
Veja bem, aconteceu isso, isso e isso e tava ‘pa- uma avaliação dessa criança e eu vou ter de va-
papa, papapa’”, esse relatório vai para escola, a riar. Eu vou ter de trazer elementos impensados
professora entra em contato com esse relató- nesse nome para ele não ter mais a força que
rio e qual é o efeito normalmente, já que ela foi ele tinha de definir uma vida por inteiro.
encaminhada porque algo não está funcionando
bem? Também, ela não está sabendo o que essa Temos de analisar criticamente duas po-
criança tem e pode pensar “vou procurar um ou- sições: uma que é a que considera que os fe-
tro psicólogo”. Então se produzimos o efeito de nômenos psicológicos são efeitos de questões
“o trabalho não foi bem feito” pergunto: o traba- internas ao sujeito. Essa questão está fácil, ca-
lho foi bem feito? Não foi. Porque esse dispositi- minhamos muito nisso. Acontece que tem uma
vo que eu inventei de pegar a criança e dizer que outra posição que é um pouco mais difícil criti-
ela está normal o efeito que é “não estou sendo carmos e que precisamos criticar, que é: a que
ouvida, não estou sendo atendida, continuo não avalia as condições sociais como condicionan-
saber o que fazer”. tes plenos da subjetividade. O que que eu quero
dizer? São essas crianças, irmãos dessas que
estão indo tão mal e que tem uma situação mui-
to difícil na escola, mas que vão bem. O que que
“O objetivo de uma avaliação eu quero dizer? A questão da singularidade. Quer
psicológica é servir como dizer, como que o encontro dessas questões,
instrumento para atuar não que é uma certa forma de viver, se dá singular-
mente num certo sujeito e também se dará sin-
somente no indivíduo, mas na gularmente na relação desse sujeito com quem
modificação dos condicionantes vai atender. O que eu quero dizer com isso é que
que se operam desde a muitos trabalhos terminam dizendo que temos
que levar em consideração as condições so-
formulação da demanda até ciais como condicionantes da subjetividade, mas
a conclusão do processo de desconsideram que a subjetividade se consti-
avaliação” tui numa tensão entre determinações sociais e
também a pressão por escapes, por expansões e
também a produção de coisas inesperadas.
Eu não sei muito bem como é que vocês
vão pensando dentro dos lugares que vocês Então, eu não posso justificar alguma coi-
têm, mas tomar essa posição era uma posição sa de uma forma totalitária. Quando pensamos
que produzia um efeito de distanciamento. En- por que a maioria das crianças pobres estão
tão, o doutorado se tornou esse trabalho de num nível de alfabetização pior do que a maio-
avaliação psicológica, e daí ele passou a fazer ria das crianças ricas, estamos falando de um
parte da minha vida, porque daí você vai em uni- dado que é um dado estatístico que deve ser
versidades que estão contratando professores enfrentado politicamente.
que são da área de diagnóstico, daí você conti-
Então na hora de fazer o X, eu vou fazer
nua pensando sobre isso, enfim. E hoje, a volta
um X “precisamos melhorar as escolas públicas”,
dessa discussão, ela nunca deixou de existir.
o X vai ser aí. Agora, quando eu vou atender al-
Mas a força dessa discussão hoje é por- guém, o que nos interessa é conseguir naquela
que nós estamos sendo atravessados pelo do- relação agir naquilo que o constitui. A pessoa
mínio de um nome, chegue em um nome e aca- fala “ah, Adriana, mas a criança tem sete anos:
be o relatório com esse nome. E, portanto, nós como agir naquilo que te constitui?”. Pois é. Uma
estamos sendo convocados a pensar como que criança de sete anos consegue pensar a sala de
fazemos um trabalho que varie a necessidade aula, uma criança de sete anos é produzida na
do nome. Eu não vou variar o nome, eu não vou relação com a professora, eu preciso de conta-
dizer “dislexia existe, não existe” quando num to com essa professora para agir naquilo que
trabalho, num encontro com a professora, ela a constitui. Então, é poder dizer que nós cami-
diz “ele é disléxico” “é, não é, é, não é”. Não, ele nhamos muito colocando os condicionantes so-
é disléxico, ele está se produzindo como disléxi- ciais, mas às vezes parece que nós ampliamos o
co nessa relação. Agora, como que eu vou variar espectro de causa “não tá na criança, mas tam-
bém não tá na professora, mas também não tá não funcionou na escola anterior, né? É assim
83
na família, mas também não... tá no sistema ca- “ai meu Deus”. Então tínhamos de pensar essa
pitalista, na Secretaria de Educação, no MEC...”. passagem. Fui lá para a escola para isso. O di-
Ampliamos isso, e temos de ampliar. retor estava ocupado, porque veio o supervisor,
enfim, alguma coisa assim e eu fui comer uma
O que nós temos de pensar é o cuidado pipoca. E o pipoqueiro falou “a senhora é nova

- parte 1
de manter uma mesma forma discursiva onde aqui?”. “Não, eu sou psicóloga aqui da USP, uma

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
estamos fora dessa disputa. A questão é que escola mais ou menos perto” “ah, nossa, que ba-
nós estamos dentro dessa disputa. Veja bem, cana. Ah, psicóloga da USP, que é a USP”, enfim,

e enfrentamento
eu sou uma psicóloga de um serviço público, qualquer coisa. E daí eu, com aquele cuidado éti-
agora uma professora da universidade públi-

Psicologia em emergências
co que a gente consegue garantir todo tempo,
ca, meus filhos estudaram em escola particular. cheguei e falei assim, “então, eu estou aqui para
Veja bem, eu tenho um seguro saúde, eu tenho falar de fulano” e falei o nome dele. E daí ele fala
um seguro saúde e o imposto de renda, eu pos- “nossa, que bom menino”. Eu tinha vontade de

CRP SPdas vidas: reconhecimento


so descontar. Tenho uma isenção, posso des- agarrar aquele senhor, e falar “o senhor, por favor,
contar o valor do que eu pago particular. Então, o senhor não se afasta de mim”, “bom menino”.
ou nós estamos nessa engrenagem ou essa en- “Então, mas o senhor sabia que ele está indo mal
grenagem não existe. na escola? Que ele nem alfabetizado é?”, “o quê?”.
Estou inventando uma situação de uma es- Eu contando aqui uma coisa, quando o menino
cola que encaminha muito para um equipamento passou, o pipoqueiro chegou e falou o nome dele
de saúde: se eu estou numa Unidade Básica de “fulano” e o menino fez assim “hum!” (de modo a

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e medicalização
Saúde que eu não tenho tempo para ir para esco- se esconder), eu falei “gente, que maravilha, uma
la; eu não tenho tempo de ir para a escola porque relação na vida desse menino que ele faz ‘hum!’”.

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tenho muitos pacientes por dia. Temos de com- Entendeu? “É tudo que eu tô querendo”. Era o pi-
preender que essa condição de trabalho está poqueiro que ia nos ajudar a fazer a passagem,
presente na forma como eu invento um trabalho ou ele podia nos ajudar. Eu falar, “ai, vamos fazer

Patologização
de avaliação psicológica, de entender melhor o de um jeito que seja bacana na escola”. Agora, ele
que está acontecendo. Então, não foi pouca luta falar “ei” nossa, era outra coisa, “como assim?”,
dos psicólogos e assistentes sociais e fisiote- era outra coisa. Então, onde a gente caça essa
rapeutas, terapeutas ocupacionais e fonoaudi- cena, gente? A gente inventa dispositivos onde
ólogos. Não foi pouca luta desses profissionais as coisas se dão, uma multiplicidade de coisas
para que as condições de trabalho permitissem se dá no encontro com o outro, num certo aten-
que eles realizassem o trabalho. Por que como dimento, mas se a coisa não está caminhando,

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explicar o fato de ficar três horas numa escola, onde a gente caça isso?
um atendimento só? Porque é para fazer oito por Para encerrar a minha fala, vou trazer uma
dia. Então vocês entendem que a variação do consideração que é: “já que a escola não é abs-
protocolo de como se coordena o dia a dia de trata, o sujeito nela não é abstraído dessa reali-
trabalho tem relação com a forma como eu vou dade, nós precisamos pensar, não há a boa forma
acessar a possibilidade de variar uma história ou de fazer avaliação psicologia a priori, sempre ela
não, e variar a história é o objetivo. será feita a partir da análise que se faz sobre os
Um outro problema é, às vezes, colocar- fatos, sempre é jogo de forças e, portanto, ela é
mos uma generalidade estatística e justapor uma ação de disputa”. Quando eu digo “ação de
essa generalidade estatística mecanicamente disputa” é porque ela é ação de criação de mun-
aos problemas considerados singulares. do. A gente diz tanto “nossa, aquele diagnóstico
acabou com a vida daquela criança”. Pois é, ima-
Eu gosto muito de uma história, é dessas gine um que ampliasse. Então, se é criação de
histórias caóticas. Eu cheguei numa escola, uma mundo, disputemos.
vez, de um menino que me parecia naquele mo-
mento que o melhor era ele sair dessa escola e ir Quero terminar com um exemplo. Eles pe-
para outra e, portanto, como fazer essa passa- diram para fazermos uma avaliação porque o
gem para que ele não chegasse na escola como Matheus estava no quarto ano e ele estava de
aquele que não funcionou na escola anterior. manhã participando de um quarto ano regular e
Você sabe qual é o nosso amor e carinho quan- à tarde participando de uma sala de apoio duas
do a gente começa a dar aula para alguém que vezes por semana, e estava insuportável esse
quarto ano regular. E a pergunta é, olha que inte- poderemos terminar a frase dos nossos relató-
84
ressante como o mundo inventou esse problema, rios com “então a psicóloga não sabia”. Sempre
“Adriana, você que está aí no seu serviço, você terminaremos, “ela não saber nos convoca a pen-
poderia ver o Matheus e nos dizer se é melhor ele sar quais tem sido as informações importantes
ficar só na sala de apoio?”. Eu falei “lógico, lógico quando a gente vai oferecer um atendimento pra
que eu posso, como que eu não posso? Quando uma criança nessa unidade”. Então a avaliação
que eu posso ir aí? Vamos responder essa per- do Matheus foi uma avaliação que abriu pro-
gunta”. Os meninos do quarto ano odiavam a blemas, abriu questões. Então abriu pensarmos
presença do Matheus, porque o Matheus tinha a montagem dessa sala e pensarmos o que lá
umas coisas estranhas, tinha umas dificuldades. acontecia, porque não adianta o Matheus conti-
Uai, por que odiavam? Porque eles podiam tra- nuar na sala e tudo permanecer dessa maneira.
tar isso como problema do Matheus, né? Como E abrir significa assim “nós queremos agir no que
muitas vezes acontece. É que aquele quarto ano tá acontecendo no Matheus, nós vamos ter que
foi inventado naquele ano como um quarto ano conversar sobre a construção dessa sala de aula,
que somou um pouco as crianças que não es- as crianças tem nove anos, elas sabem muito bem
tavam aprendendo bem. Olha que interessante. nos corredores o que todo mundo tá dizendo so-
Então, de repente eu estou indo para um quarto bre o lugar que elas tão, elas escutam isso. Nós
ano, que a professora tem uma aposta “gente, tá vamos enfrentar esse problema, nós vamos abrir
meio difícil aqui, mas agora nós vamos pegar, ago- esse debate ou não? Porque se a gente não vai
ra nós vamos”, uma professora superbacana, só abrir esse debate, esse debate vira tabu e daí eu
que rapidamente essa sala virou a sala daquele vou pegar e vou colocar meus problemas em cima
quarto ano das pessoas que não estão apren- do Matheus”.
dendo muito. E quem era a figura que concretiza-
va isso? O Matheus. O Matheus era a prova con- Havia essa possibilidade para problema-
creta do “por isso que eu estou aqui”. Bom, esse tizar currículo, abrir para discutir sobre crian-
era um elemento. Por acaso isso veio no pedido ças que em três anos não se alfabetizam, você
de avaliação psicológica? Não veio. Como que entendeu? O Matheus virou o problema? Mas
eu ficava sabendo disso? Pede um relatório para assim, como que essa sala toda foi criada?
escola? O relatório não vai vir “na medida em que Portanto, o trabalho de avaliação, ele gera va-
construímos um quarto ano com as crianças que riação, é o objetivo dele, e ao gerar a variação
não estavam indo bem, então o Matheus deve ter novos elementos aparecem, aqueles elemen-
sido colocado no lugar de bode expiatório”. Não, tos que não estavam nem podendo aparecer. E
não era assim, tinha uma aposta na escola. Mas uma última coisa que temos de fazer é escrever.
era insuportável para essas crianças a presença Escrever um relatório, escrever um texto, e daí
do Matheus. temos de pensar o qque foi acontecendo com
os nossos relatórios que são relatórios em que
Bom, um trabalho de três meses sen- dizemos “não devemos...”. Gente, toda vez que
do que eu fui três vezes na escola, eu conver- tiver “não” no relatório, reescreve, porque se
sei com a mãe do Matheus porque tinha uma não devemos pensar que é culpa da criança é
mãe para conversar, se não fosse a mãe, seria porque o outro deve estar pensando. Se o ou-
o pipoqueiro, mas gente de fora da escola; eu tro deve estar pensando e eu estou dialogando
conversei com a psicóloga da Unidade Básica com isso, adianta dizer que não devemos? Ou
de Saúde onde ele era atendido, e olha que in- adianta escrever alguma coisa que tensione,
teressante, ela não sabia que segundas-feiras que coloque dúvida nesse pensamento? E, por-
que era o horário que atendia o Matheus, era o tanto, se a avaliação psicológica deve apontar
horário de aula. Mas, gente, não é que ela não para o aumento da capacidade de criar normas
sabia porque ela não perguntou, vocês tão en- de vida, a gente tem o Canguilhem, O Normal e
tendendo? É... “Olha, temos tal horário, pode?” o Patológico como um eixo teórico de discus-
“Pode”. Bom, eu que sou psicóloga tenho certe- são, se a avaliação psicológica deve enfrentar o
za que ele que é pai só trará a criança no horário processo histórico de produção das adversida-
que é fora de aula. Não, não é assim, eu estou des, se a avaliação psicológica deve fortalecer
oferecendo um horário, a pessoa está aceitan- os processos de subjetivação, então é prática
do e depois ele está sofrendo na escola. Então, política. E eu acho que é essa dimensão que eu
ela não sabia. Vocês entenderam, gente? Nunca queria ressaltar aqui. Então, obrigada.
Fernando Cesar Chacra 85
Pediatra pela Unicamp, pediatra da rede de saúde de
Campinas e da Pediatria Social da Unicamp, atua com
a área de ensino nas unidades básicas de Campinas.

- parte 1
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Bom dia a todos e todas. Agradeço muito o convite der. Ele vem acompanhado do avô para o atendi-
de poder estar aqui tentando trazer um pouco a mento, o avô paterno, e o motivo é a dificuldade
experiência do trabalho cotidiano nessa tentativa na escola. E a história inicial é que ele está ma-
de subverter os laudos. triculado no terceiro ano, o equivalente a nossa

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e medicalização
segunda série, certo? Porque é mais recente essa
Eu já tenho uns 30 anos de trabalho na rede
inclusão da primeira série como um ano a mais no

Cadernos Temáticos
com atendimento direto à população e também
ensino fundamental, e eu acho que isso é um pro-
com ensino de pediatria, na formação de residen-
blema porque parece que antecipou as expectati-
tes e de alunos da Faculdade de Medicina aqui da
vas de alfabetização como essa criança com oito

Patologização
Unicamp. A gente atua em unidades básicas de
anos já tivesse de estar totalmente alfabetizada
saúde aqui do município e tenta ampliar a capaci-
e preparada. Então isso inclusive os discursos,
dade de olhar desses alunos para essas questões
até políticos, a gente ouve muito isso, essa ne-
do social e da importância que tem de ampliar
cessidade de a criança estar pronta quando ainda
essa abordagem no cuidado em saúde. Então, eu
está numa fase de curiosidade, de descoberta e
pensei de trazer um caso que ilustrasse um pou-
de lidar com essas questões do aprendizado, da
co como tem sido essas tentativas que são, na
escrita, da fala, da leitura.

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realidade, uma coleção de experiências, de influ-
ências. Eu vou tentar mostrando para vocês o que A queixa do avô é que ele não sabe ler nem
eu tenho utilizado, com uma certa frequência, e escrever, não sabe nada, e tem dificuldade para com-
que eu acho que tem uma ação, são coisas bem preender as operações matemáticas. Então, na leitu-
simples. E tem estimulado bastante os residentes ra e na escrita ele tem muita dificuldade e na mate-
a pensar e fazer esse tipo de abordagem. mática também não vai bem, embora um pouquinho
melhor. Segundo o avô, o neto sempre foi mais lento,
Aqui em Campinas, as crianças vão chegan-
principalmente comparado às irmãs. Ele tem uma
do nas unidades básicas muito pelos encaminha-
irmã de 10 anos e uma irmã de cinco, e principalmen-
mentos das escolas, com os pedidos de avaliação,
te com relação à fala, que sempre foi mais atrasada.
já nos encaminhamentos, com uma certa indução
Já chegou a ser acompanhado por fonoaudiólogo,
de um medo que a escola tem, que o professor
porém perderam o segmento e não conseguem re-
tem, de que esteja diante de uma situação de um
estabelecer o acompanhamento. Quando eu recebo
diagnóstico, de algo que necessite uma medica-
esses casos, a primeira iniciativa é fazer um aco-
ção ou uma abordagem mais especializada. En-
lhimento positivo. O que eu chamo de acolhimento
tão isso é bastante frequente, os relatórios têm
positivo? Primeiro deixar claro para criança que isso
um formato muito parecido.
não é uma dificuldade exclusiva dela, que tem outros
O caso é de um menino de oito anos que fatores no meio, que não é um problema. E que é ne-
eu comecei a atender em janeiro de 2018. Ele foi cessário que ela entenda, que a gente entenda um
encaminhado mais ou menos em outubro do ano pouco o entorno dela, a escola, a família, que a gente
passado, porque não estava conseguindo apren- vai precisar investigar isso.
Vamos precisar interagir com ela para enten- Tento trabalhar isso com as famílias tam-
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der qual é a dificuldade principal, e algo ocorre nas bém, utilizando um pouco a teoria da psicogênese,
relações familiares e escolares que precisam tam- da Emílio Ferreiro e Ana Teberosky e essas fases
bém ser compreendidas. É necessário abordar todo do nível pré-silábico, do nível II. Isso é da medicina
o desenvolvimento. Então, isso eu já explico para fa- ou não? Isso é da pedagogia, certo? “Mas eu pos-
mília. O avô, como não conhecia direito as condições so acessar isso?”. Eu busco, eu tento compreender
de gestação e de parto, tinha poucas informações e que isso me auxilia na medida em que eu consi-
pediu para que isso fosse num outro momento me- go fazer alguma leitura sobre a aprendizagem e
lhor abordado, assim como os contextos familiar e me facilita na interação com a escola quando eu
escolar e a dinâmica das relações familiares. também consigo dizer “olha, ele, na minha opinião,
ele está silábico”, quando a escola “não, ele está
Então, precisando a dificuldade: o que predo-
pré-silábico”. E existem diferenças de compreen-
mina? São as dificuldades nas relações que ele tem?
são também que eu percebo com relação a isso,
Na autorregulagem dos vínculos que ele estabelece,
e eu não tento impor, mas mostro: “olha, na minha
tanto em família ou na escola? São dificuldades de
avaliação, aqui ele se mostrou assim”. E acho mui-
aprendizagem específicas, ou são múltiplas ou glo-
to importante que os alunos de medicina e os re-
bais? Essa é a grande primeira definição a ser pen-
sidentes saibam que existe essa forma de olhar,
sada. Tudo isso eu estou colocando agora, fugindo
essa forma de observar o processo e também con-
um pouquinho do caso, para mostrar um pouco o
sigam entrar em contato com essas teorias e ser
que está passando na minha cabeça com relação
capaz minimamente de ter uma ideia do que seja.
a isso. Tentar fazer uma “interação avaliativa”, bem
entre aspas, buscando positivar a autoestima. E as dificuldades na operação matemática
como que a gente olha? Se sabe diferenciar núme-
Nesse primeiro encontro, para quebrar essa
ros de letras; se consegue identificar o significado
coisa “não sabe nada? Não sabe ler? Não tem ideia
dos números; que os números representam uma
nenhuma?”, faço uma brincadeira que eu achei
contagem; se sabe contar; qual sua percepção de
muito interessante para perceber o quanto que ele
unidades, dezenas, centenas. O Material Dourado,
já faz alguma associação fonética. E eu repito isso
da Montessori, também é bastante interessante.
muitas vezes porque é o que eu incorporei ali como
Carrego uma caixona de material dourado de um
um hábito de observação.
Centro de Saúde para o outro para interagir, para
É essa listinha com esses animais: cavalo, brincar com as crianças com relação a isso, fazen-
camelo, canguru, cão e cabra. A primeira coisa que do as hipóteses que ele tem com relação às ope-
eu pergunto se ele consegue identificar. “É uma lis- rações. E também na brincadeira muitas vezes a
ta de palavras, né?” “Todas começam com que le- caixa de material dourado vira uma caixa de lego,
tra?” “Letra C” “você imagina do que é essa lista?”. eles montam prédios, fazem as brincadeiras deles,
Alguns me surpreendem já “é uma lista de animal”. e a partir dessa interação a gente vai brincando e
Outros chutam outras coisas ou “não, não sei o que entendendo o que é unidade, o que é dezena, o que
que é”. Daí eu falo “então, é uma lista de animal. Aí é centena e tentando traduzir isso para uma lin-
tem a palavra canguru, qual que é?”. A grande maio- guagem mais abstrata, numérica. E não vejo ques-
ria que chega, já vai direito, difícil uma criança er- tões de dificuldade matemática tão significativas
rar, porque ela já identifica as letras e ela vai, “é a como vejo na aprendizagem da leitura e da escrita.
única que tem U, né?” Por essa, ele já fica animado.
Voltando ao caso do menino de oito anos,
“Então vamos ver agora, tem uma outra que chama
então. Ainda nesse primeiro atendimento, a gente
cavalo”. Daí ele fica meio na dúvida entre as duas
pediu para que ele fizesse uma autoavaliação das
primeiras, mas pode tentar acertar. E a gente vai
suas dificuldades escolares. Então, ele começa a
interagindo. Cão também é muito fácil, porque é a
se queixar de que as aulas começam sempre com
única que tem o “ão”.
a cópia do cabeçalho, que isso ele já está cansa-
E assim eles quase sempre acertam duas do e que ele não consegue fazer isso rápido; que
ou três e ficam bastante contentes, como se ti- os outros alunos fazem muito rápido e daí já vão
vessem feito algo de leitura. E é aí que eu resgato para a segunda tarefa. Enquanto ele não termi-
“olha, tá vendo? Você está num processo de aprendi- na, a professora também não o deixa ir para ou-
zagem, você tá evoluindo, tá? Então você ainda não tra tarefa. Então, ele diz que isso, no ano anterior,
tá totalmente alfabetizado, mas você tá bastante no também foi muito difícil, e uma coisa que incomoda
caminho, você já andou bastante”. muito é que ele está já com apelido de tartaruga,
ele é sempre o último a acabar e, às vezes, até no mação sobre o desenvolvimento e é avaliado seu
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horário de intervalo ele tem que ficar na sala. Fica caderno escolar. A gente brinca também com jogos
muito incomodado com isso e desestimulado com de letras pra formar palavras assim de duas sílabas,
o aprendizado. eu tenho um joguinho de bingo e a gente ficou brin-
cando ali com ele: eu, o tio e o menino. Foi bastan-
Na brincadeira da leitura, ele não consegue
te interessante que ele mostrou muito interesse e
nenhuma das palavras, mas ele consegue identifi-

- parte 1
muita vivacidade, corrigindo um pouco o tio. Tinha

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
car qual se refere a canguru, cavalo e cão, demons-
dificuldades, mas aqui ele já estava mais interessa-
trando fazer uma associação sonora a algumas
do nessa questão das letras, quebrando um pouco

e enfrentamento
das letras. Daí numa tentativa, “então faz uma lista
aquele medo de lidar com a situação do não saber.
você de palavras”, ele faz.

Psicologia em emergências
Teve uma boa participação, aceitou as regras e teve
EO – Gato a atenção bastante concentrada nos jogos. Foi en-
viado o relatório de atendimento à escola. E esse
CALELEF – cavalo
relatório já solicitava um reforço, um apoio para as

CRP SPdas vidas: reconhecimento


BAOF – boi atividades para que ele pudesse deslanchar.

BAOEF – borboleta Na dinâmica das relações familiares, bus-


camos sempre entender qual é a estrutura, as
BEEFIAIEA - o gato bebe leite
condições socioeconômicas, a distribuição no es-
Então, dá para perceber que ele já está paço físico. Busca também identificar os papeis
numa fase silábica também na escrita. E então, a provedores e cuidadores, o cotidiano familiar da
partir dessa avaliação, temos mais ou menos uma criança e do adolescente; situação da dinâmica

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e medicalização
ideia da fase que ele estava. Isso em janeiro. En- familiar e o familiograma; e também às vezes uti-
tão foi feita uma avaliação do desenvolvimento. lizamos o Ecomapa.

Cadernos Temáticos
Essa avaliação foi feita só na segunda consulta
No caso dele, a dinâmica familiar nos mos-
que ocorreu mais ou menos 15 dias depois. Foram
tra que há quatro anos eles estão sob o cuidado
avaliadas as condições gestacionais, se foram

Patologização
da família paterna, os pais se separaram e a mãe
feitas as triagens neonatais, o acompanhamento
iniciou um novo relacionamento e teve uma quar-
das aquisições neuromotoras. Foi uma gestação
ta gestação. Vive em casa de três dormitórios,
sem intercorrência, um parto cesáreo, as triagens
onde pai e filhos dormem no mesmo quarto. Com
neonatais eram normais. Teve o atraso de desen-
exceção da avó, todos os adultos trabalham, as
volvimento na fala, demorou para começar a falar
condições econômicas são razoáveis; o pai não
e, quando começou, foi com bastante dislalia e
se casou novamente, embora tenha tentado no-
disfluência, que até hoje mantem ainda um pou-

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vos relacionamentos. A família é unida, os avós,
co, e foram acompanhadas por fonoaudiólogo até
os tios e o cunhado têm bom relacionamento com
dois anos atrás.
as crianças. A mãe visita muito pouco os filhos,
Fizemos o familiograma. Estou trazendo porém, ela telefona toda semana; e um dos tios,
coisas que são bem simples e que tem que ser o que mais o acompanhava nas consultas, estuda
feitas, isso é o trabalho no cotidiano. Mas no que pedagogia e é mais atento ao desenvolvimento
um familiograma pode ajudar? Ele vai me ajudar a escolar do sobrinho.
entender um pouco a estrutura familiar. No dese-
Sempre fazemos uma observação dos ca-
nho do familiograma, vemos que os pais estão se-
dernos, porque ela permite um olhar para um pe-
parados já há mais ou menos cinco anos e vivem
ríodo maior. É uma tentativa de olharmos para o
os três filhos acolhidos dentro da família paterna,
processo, para a relação, e revela a projeção de
com dois tios que moram junto, o pai, uma tia. A
estados afetivos, emocionais da criança. Também
mãe vive separada deles, com outro companheiro,
a própria forma de cuidar do caderno, de outros
tendo um outro filhinho.
registros além do registro escolar; revela esses
Em fevereiro de 2018, já no início do tercei- aspectos afetivos envolvidos, e revela também
ro ano escolar, ele está bastante entusiasmado parte do processo pedagógico, nem sempre é
com a professora, gostou muito dela, ela o acolheu o real processo pedagógico que está sendo in-
muito bem e os colegas da sala também. Ele vem dicado, mas dá pra perceber muito da interação
acompanhado de um dos tios para o atendimento. do educador e do educando; revela a adesão e a
E é completada a história, ele tinha bastante infor- transgressão às propostas pedagógicas.
O menino de oito anos tem um caderno gico especializado, me parece que esse é o novo
88
assim, em regular estado, conteúdo registrado termo que se usa aí para as escolas especiais, não
principalmente de cópias de cabeçalho, quase é? E tem sala de recursos; até uma das solicita-
sempre incompletas, e várias colagens de tarefas ções era que se houvesse a necessidade da sala
para o dia. A maioria dessas propostas e tarefas de recurso, precisaria do laudo. Eu só apontei para
estão pouco completadas e quase sempre com a necessidade de reforço escolar e houve possibi-
muito erro não corrigido e pouco registro do edu- lidade de professores para o reforço.
cador; os registros que aparecem são chamando
Vou falar um pouco da escola em relação ao
sua atenção porque ele não completou as tarefas
menino, à família e ao Centro de Saúde.
ou porque não está adequado.
Em relação ao menino: muitas situações su-
Daí uma outra avaliação que fazemos é
gestivas de provocações. Eu não gosto de usar a
olhar um pouco para o que sentimos de forças
palavra bullying porque eu não sei se dá para ca-
de resiliência que essa família e essa criança têm
racterizar bullying, e nem maus-tratos entre pares
e forças que podem estar vulnerabilizadas. Deu
porque também não chega a ser algo tão evidente,
para perceber que a família é coesa, tem figuras
recorrente, mas muita provocação era comum. Em
de referência, que aceitam a criança muito bem,
maio, ele foi suspenso por dois dias por ter sido
que tem uma ética do trabalho, que estão en-
pego mostrando o dedo médio a um coleguinha,
volvidas num trabalho legalizado; tem um humor
que, segundo ele o havia provocado. Ele acha que
adequado, uma boa rede de apoio, principalmente
a história não foi bem contada, mas eu fiquei até
dentro da família; e uma adesão às propostas de
contente que ele, dada a timidez, tivesse conse-
atendimento. Nunca houve falta e os retornos vão
guido reagir. A questão que incomoda foi a escola
ocorrendo quinzenalmente.
ter suspendido dois dias, por causa de um gesto,
Já com relação à vulnerabilidade, observa- de uma coisa que poderia ter sido tratada peda-
mos que o afastamento materno gera certa emo- gogicamente e não com punição assim tão severa.
ção na criança. Um cuidado compartilhado pelos
Familiares e a escola: têm uma preocupação
familiares, às vezes eu identifiquei isso como vul-
com o número de chamadas da família na escola;
nerabilidade, mas também poderia ser colocado
não há identificação de progresso na criança, mui-
como resiliência. A sensação é que existe rede,
tas queixas assim de que a evolução está muito
existe família dando continência a essa criança,
lenta, já foi um semestre e até agora praticamente
nunca houve a falta porque alguém não pode ir
está como iniciou, embora nós, na unidade, perce-
naquele dia, sempre alguém se responsabilizava
bêssemos uma progressiva melhora no interesse,
por levar. Mas, por outro lado, não era sempre o
nas brincadeiras, nos jogos que a gente estabelecia
mesmo tio, então quase sempre a consulta pre-
com ele. E a gente já estava percebendo que ele, de
cisava ser retomada, ser reiniciada. O bairro onde
maio pra junho, estava praticamente silábico.
eles vivem tem vários fatores de risco, e isso talvez
pudesse ser alguma vulnerabilidade; a autoestima A relação escola e Centro de Saúde: tem uma
dele bastante prejudicada, ele sempre se sentin- solicitação da escola de um relatório e de um lau-
do muito tímido, na entrada das brincadeiras. Na do médico, pois a preocupação com o atraso no
medida em que foi criando vínculo isso foi se que- desenvolvimento é bastante importante. E ques-
brando; e a outra questão da vulnerabilidade, as tionam se não seria adequada uma avaliação neu-
irmãs com bom desempenho escolar, induzindo a ropsiquiátrica. No encontro, no processo vincular,
comparações inadequadas. Até a irmãzinha de cin- eles têm retornos com a avó, com o tio, com o pai.
co já está quase lendo e isso também era um fato
Família e o Centro de Saúde: o pai era muito
estressante pra ele, “como é que a minha irmãzinha
interessante e queria ajudar muito o menino, ti-
de cinco anos já está quase lendo e eu ainda não?”.
nha uma boa adesão às propostas o tempo todo.
Sobre a dinâmica do contexto escolar. A es- E, em abril, já é observado o nítido progresso nas
cola é estadual, de primeiro ciclo. A sala de aula aquisições e ele já estava na fase silábica, dá para
dele tem 30 alunos, tem várias situações de con- observar. Não usando as sílabas corretas, mas já
flitos frequentes dentro dessa sala, não é só ele bem demarcadas com a entonação silábica. Em
que tem dificuldade escolar, mas chama bastante julho, o processo vincular vinha progredindo. O tra-
atenção essa sua dificuldade específica. É uma es- balho de reforço escolar iniciado, mais ou menos
cola que tem estratégias de atendimento pedagó- no mês anterior, estava sendo encarado com boa
motivação pelo aluno; e as aquisições de escrita e
89
leitura e matemática estavam em processo bas-
tante produtivo. Em agosto, já dá para perceber
que ele já estaria mais pra silábico alfabético na
escrita e tendendo para alfabético na leitura; mas
com pouca fluência e dificuldades na interpreta-

- parte 1
ção. Então, ele já estava evoluindo bastante.

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
E, então, há uma solicitação de avaliação

e enfrentamento
neuropsicológica. Isso no começo de setembro
agora. O pai solicita o encaminhamento para a

Psicologia em emergências
neuropediatra, pois ele está bastante angustiado
com o desenvolvimento escolar do filho. A escola
não reconhece a evolução que tem sido observa-

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da nos atendimentos e a preocupação relativa à
defasagem com o restante da turma tem sido con-
siderada muito grande. O tio do menino tem pes-
quisado sobre dislexia e considera que essa possi-
bilidade é bastante provável. Daí o pai chega assim
timidamente perguntando, “o que o senhor acha?
Meu irmão tem falado bastante. O senhor pode me
encaminhar pra uma avaliação? Pra um neurologista?

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e medicalização
Para que profissional o senhor acha que deveria ser
encaminhado?”. E insistindo. E então eu coloquei

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“eu noto que ele tá num processo nítido de melhora,
de avanço. O senhor não nota?”. Ele também perce-
be, mas ele fala que a escola não percebe e a pró-

Patologização
pria criança se sente muito em defasagem e que
ele gostaria de um olhar.

Combinamos que eu iria encaminhá-lo para


uma avaliação também, mas que eu gostaria de par-
ticipar desse processo para dar uma continuidade e
para evitar que um possível diagnóstico ou um rótu-

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lo ou uma indicação de medicamento atrapalhasse
todo esse processo que a gente vinha construindo
junto. Então estamos nesse ponto. E eu queria tra-
zer para cá essa questão: quantas interferências
existem num processo de atendimento, por mais
que estejamos criando possibilidades de observa-
ção, de avaliação do desenvolvimento, de interação,
de compreensão de toda essa dinâmica, não é?

É um menino lindo. Uma das coisas que mais


me chama atenção é a questão que ele sempre
quer brincar de poções mágicas. É seu grande in-
teresse: “o que que você quer escrever?”, “eu quero
escrever sobre as poções mágicas”, “mas por quê?”,
“porque eu quero ser um feiticeiro”. É um feiticeiro
que está com muita dificuldade de encontrar esse
caminho e ele tem poções mágicas para tudo no
mundo; assim, para transformar o mundo. Então
era isso, um pouco da tentativa de subverter os
laudos e a dificuldade cotidiana que nós temos,
que nos provoca.
90 Antônio Moreira Lima Júnior
Psiquiatra pela Faculdade de Ciências Médicas da
Unicamp, psicanalista associado à Tykhè - Associação
de Psicanálise - trabalha como psiquiatra na Apae de
Várzea Paulista, e com experiência em Capsi.

Bom dia a todos. Eu queria agradecer a Rosan- quando recebo uma criança ou mesmo um adulto. A
gela pelo convite, eu fico feliz de participar desse criança chega encaminhada de várias maneiras. Ela é
movimento, que eu acho extremamente neces- trazida pela família, mas a demanda geralmente vem
sário. Fico feliz de contribuir um pouco com esse da escola, às vezes da família e algumas vezes vem
pensamento. da criança. E eu tenho uma maneira de trabalhar que
é um pouco diferente do habitual. Eu sempre recebo
O que eu vou tentar trazer é um pouco da
a criança primeiro na minha sala, sempre chamo a
maneira como eu faço. Quando a Rosangela me
criança primeiro, ela entra como ela preferir, como ela
convidou para falar sobre laudos, a primeira coi-
quiser, como ela conseguir, e é um pouco surpreen-
sa que eu falei, “mas por que que você tá me pe-
dente que isso funcione muito bem, que geralmente a
dindo isso? Eu detesto fazer laudo”, e ela disse
criança entra sozinha, e a minha ideia, nesse sentido,
“bom, justamente por isso, pra você poder contar
é subverter um pouco a ordem das coisas.
como que você faz”.
Essa questão do laudo é muito difícil na
clínica quando você tenta sustentar uma clínica “Digo que hoje o meu maior
que se baseia na leitura, no acolhimento do su-
trabalho como psiquiatra é
jeito, da subjetividade. É uma questão realmente
muito difícil. Vou tentar transmitir um pouco para desfazer diagnósticos, e não
vocês as reflexões que eu acabei produzindo fazer diagnósticos”
com essa questão.

Sou psiquiatra infantil, foi minha primeira for-


E a ideia é que eu vou receber a criança para
mação, eu fiz a psiquiatria na Unicamp; fiz e faço
olhá-la com meus próprios olhos, sem que ninguém
até hoje minha formação em psicanálise que é
fale sobre ela. A ideia é simplesmente que a crian-
talvez o que mais me causa questões e que atra-
ça possa se apresentar por conta própria, que ela
vessa profundamente a minha prática clínica como
possa chegar lá e dizer o que ela é, o que ela quer,
psiquiatra. É muito difícil hoje trabalharmos na prá-
o que ela faz, o que ela gosta, como ela brinca, ela
tica clínica com crianças, mergulhado nesse discur-
fica quanto tempo ela quiser, ela pode sair em um
so vigente hoje, hegemônico, de caracterização de
minuto, ela pode ficar uma hora. Às vezes, quando
doenças e de que todas as nossas emoções, os
eu percebo que é um pouco tenso, eu não fecho a
nossos sentimentos, as nossas questões, os nos-
porta, a porta fica aberta, e quando ela quer entrar
sos sofrimentos têm uma tendência a ser explica-
com alguém, ela convida, o pai, a mãe, alguém para
dos e ser tratados a partir do discurso médico. E
ficar junto. Então, é uma primeira entrevista bastante
que isso produz muitos efeitos.
livre, e já nesse sentido de subverter um pouco essa
Digo que hoje o meu maior trabalho como psi- ideia de avaliação, de a gente já logo de cara buscar
quiatra é desfazer diagnósticos, e não fazer diagnós- um diagnóstico, eu não tô procurando diagnóstico
ticos. Esse é o principal trabalho: essa desconstrução, nenhum na primeira entrevista com a criança.
Em seguida, depois dessa apresentação, eu professora tal, a professora tal e que, coinciden-
91
marco a entrevista com os pais e depois eu volto temente, eram as pessoas que faziam parte do
a ver a criança. O importante é que, quando eu re- outro grupo político diferente da mãe. Para você
cebo a criança, ela está convocada a se contar um ver como que, às vezes, uma entrevista nos sur-
pouco. Então ela pode se contar do jeito que ela preende, se não estamos ali já com uma anteci-
quiser, o que ela gosta, o desenho que ela assis- pação do que que é uma criança mordendo na

- parte 1
te, e às vezes, quando é possível, eu faço alguma escola, um diagnóstico, se é um TOD. O que está

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
menção assim do porquê que ela foi levada lá, se acontecendo ali, não é?
foi ela que quis ir, se foi ela que pediu, se alguém

e enfrentamento
A entrevista com os pais, o lugar dos pais
trouxe. Eu gostaria de dizer para vocês que não é
no atendimento da criança, é uma coisa bastante

Psicologia em emergências
incomum a criança dizer que ela quis ir e algumas
complexa. Quero tocar em alguns pontos. Quando
vezes ela diz que ela quer ir. Ela conta por que e os
eu atendo a criança, estou dando uma certa possi-
pais depois entram e contam outra coisa que não
bilidade para que a criança fale; quando eu atendo
era aquilo que ela estava dizendo. Então ela cons-

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os pais eu estou ouvindo a criança falada pelos
trói ali um desejo, uma vontade de ajuda, um pe-
pais e geralmente não é aquela que eu atendi. A
dido às vezes, ou às vezes ela não tem nem ideia
criança falada pelos pais é tanto a criança que
do porquê ela foi levada lá, os pais nem dizem o
está ali, como a criança que os pais gostariam de
porquê, e aí a gente conversa sobre outras coisas
ter, como as crianças que os pais foram. As crian-
e ela me conta outras coisas.
ças que os pais veem da família.
Eu acho que esse primeiro momento sus-
Então, as críticas, as frustrações, os dese-
tenta uma aposta no trabalho de que essa crian-

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e medicalização
jos, as apostas que os pais trazem e falam sobre
ça vai poder falar sobre si, essa criança vai poder
a criança é que constitui essa criança falada. É
construir uma subjetividade, vai construir talvez

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importante sabermos que a criança que fala não é
uma forma de lidar com a realidade do entorno
a mesma criança que é falada. Hoje, essa criança
dela. Logo num primeiro momento, eu tenho essa
já vem, na grande maioria das vezes, diagnosti-
aposta bastante forte, e corro um pouco de risco,

Patologização
cada, ela vem com uma hipótese de diagnóstico
porque eu tenho de contar um pouco com a con-
ou da escola, ou dos próprios pais ou do Google.
fiança antecipada dos pais que não me conhecem
Os pais já procuraram, já sabem e é muito raro
e também o risco de que, muitas vezes, a questão
chegar um paciente no consultório que traz uma
não é com a criança. Então, às vezes eu atendi
questão e não tem nenhuma ideia do que ele acha
uma criança e a questão não era com ela. Na se-
que aquilo possa ser.
quência, às vezes, ela vem mais uma vez para eu
me despedir e o processo de acompanhamento

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segue um outro caminho.
“Então, as críticas, as
Já faz algum tempo que faço isso e para
frustrações, os desejos, as
mim tem sido bastante importante esses efeitos.
Já tive caso, por exemplo, de criança com quatro apostas que os pais trazem
anos de idade chegar na primeira consulta e falar e falam sobre a criança é que
assim “ah, eu vim porque eu mordo as crianças na
constitui essa criança falada.
escola”, “ah, é? Você morde as crianças na escola?
O que... como é que você faz isso?”, “ah, hoje eu É importante sabermos que a
mordi uma criança da professora tal, outro dia eu criança que fala não é a mesma
mordi uma criança da outra professora”. E aí eu fui
criança que é falada”
me dando conta de que ela não estava morden-
do as crianças, ela estava mordendo as profes-
soras. Então, quando eu fiz a entrevista com os Assim, o discurso do médico, o meu lugar
pais, e vem a queixa de que ela mordia, a gente já está antecipado nessa solicitação, certo? O
foi percebendo que a mãe tinha uma divergên- lugar do médico, como aquele que vai capturar
cia política com a coordenadora da escola. Eram esses signos e traduzir esses signos de sofri-
pessoas que frequentavam a mesma instituição mento num nome dentro do campo médico, que
e tinham posições políticas muito diferentes e já tem antecipadamente uma construção expli-
estavam brigando, e o menino era representante cativa sobre isso, já está posto, eu não tenho
político da mãe na escola. Ele mordia. Mordia a mais como escapar isso.
Já por muito tempo resisti a isso, eu recusava veis. Quando a gente progride no tratamento, as
92
esses diagnósticos. E eu perdia os meus pacientes coisas ficam um pouco mais rígidas e é mais difícil
porque eles iam aos neurologistas, iam em outros manejar esse tipo de posição, no meu ponto de
lugares onde eles conseguiam aqueles diagnós- vista. Isso eu também chamo de subversão.
ticos, aqueles laudos. Então, a partir de um certo
Estou chamando de subversão aqui tudo
ponto, eu percebi que esse lugar já tá dado, eu não
aquilo que introduz subjetividade, lugar do sujei-
posso lutar, não posso recusar de primeira mão. Eu
to, tudo aquilo que introduz história, aquilo que
tenho de aceitar, e a partir daí tenho de subverter,
introduz relação de desejo. No discurso em que
no sentido de poder fazer de novo incidir uma certa
estamos incluídos hoje, tudo isso está excluído e
subjetividade nessa avaliação, nesse diagnóstico
somos convocados a buscar signos de doenças,
que já chega ali antecipado.
colocar em checklist e produzir um diagnóstico.
Alguns pais têm essa preocupação de não Acho importante que a gente perceba que esta-
querer diagnosticar, não querer rotular, mas é mos mergulhados nesse discurso e não adianta
muito difícil escaparem do modo de pensar o so- querermos ignorar isso.
frimento, por mais que eles não queiram dar um ró-
tulo, eles buscam signo nos filhos. E isso é impor-
tante a gente perceber porque existe muito boa “Estou chamando de subversão
vontade de não rotular, mas não rotular de fato é
muito difícil hoje, porque a gente está mergulhado
aqui tudo aquilo que introduz
nesse discurso. E eu não posso ignorar que estou subjetividade, lugar do sujeito,
também recebendo uma criança em quem tá sen- tudo aquilo que introduz história,
do percebido um sofrimento. Então não é simples-
mente lutar contra o diagnóstico; temos de pensar
aquilo que introduz relação de
que foi assim que chegou e o que vamos fazer com desejo”
o sofrimento que essa criança traz.

Então, existe na entrevista com os pais, tam- Esse atendimento de que estou falando é
bém, uma aposta no sentido de sustentar com o mesmo que eu faço na Apae onde eu traba-
eles uma leitura subjetiva da dificuldade do filho. A lho, é o mesmo que eu fazia no Caps enquanto
relação daquela queixa com o contexto, com o en- eu estava lá, fazia no Centro de Saúde e faço no
torno, com a história deles, com a história de vida meu consultório, porque fica parecendo que es-
deles, com a história daquele momento, com as es- tamos falando isso de uma coisa muito elitizada
colhas que eles fizeram. Por exemplo: qual escola, talvez, mas não é. Isso é possível de se fazer em
qual lugar eles vão ocupar, como eles foram morar, qualquer atendimento, essa sustentação de uma
com quem que eles moram, a decisão de ter tido subjetividade, tendo isso como uma prática, isso
mais um filho ou de não ter tido mais um filho. Quer pode se dar em qualquer lugar.
dizer, esse contexto tem que comparecer.
É tão difícil trabalhar isso com crianças que
Então, por que estou dizendo isso? É preci- estão na escola particular quanto com as crianças
so suspender a ideia de que o psiquiatra está ali que estão na escola pública. Isso não tem classe,
procurando um signo de doença, procurando um no meu ponto de vista. Do ponto de vista do dis-
diagnóstico. Nesse momento é uma entrevista curso, não tem muita diferença. Eu acho que tem
que recebe o diagnóstico, mas o que eu devolvo muita diferença às vezes na questão da hotelaria,
são perguntas que lançam, relançam os pais na na questão das condições da escola, mas hoje os
história de vida deles, na ideia de o que produ- professores estão muito convocados a estudar a
ziu a vontade deles de ter um filho ou não. Então neurociência, a estudar a neuro-avaliação, a ava-
essa entrevista, antes de ser uma anamnese no liação neuropsicológica, neuro-pedagógica, não
sentido de colher dados, ela é uma aposta de que é? E isso objetifica, é um discurso científico que
esses pais possam enxergar aquela queixa sobre não vai no sentido de fazer a gente poder enxer-
outras perspectivas. gar o sujeito que está por trás disso. É um discur-
so que exclui o sujeito.
E isso é logo na avaliação; se você não faz
isso logo no começo, é muito difícil fazer isso de- O que eu acho que é importante? Que já logo
pois. Porque o primeiro momento da entrevista nas primeiras entrevistas, e depois quando eu re-
com os pais é quando as coisas estão mais flexí- tomo o atendimento com a criança, eu já tenho, de
uma certa maneira, a chance de ter conseguido ção de diagnóstico traz esse alívio para os pais.
93
alguns atravessamentos, vamos dizer assim. Não Esse alívio, às vezes, é até para a própria criança,
tenho nenhuma garantia disso, mas, na maioria porque, como já foi colocado aqui, quando você diz
das vezes, consigo algum atravessamento naquela que a criança tem TDH, ela mesma pode dizer isso
objetividade que é solicitada pelos pais. É isso que na escola. Então, ela já não precisa se culpar mais
cria condições para que eu consiga um processo por isso, ela já tem algo que explique o que que

- parte 1
de avaliação que os pais saibam que eu não estou acontece com ela e os outros é que vão se virar

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
avaliando ali um diagnóstico. Eu anuncio isso; às para resolver esse problema.
vezes, eu dou essa palestra para os pais, porque é

e enfrentamento
Assim, o momento de produzir o diagnóstico,
preciso que eles possam escolher, o que acho que
de ter de fazer um relatório, ter de fazer um laudo

Psicologia em emergências
é importante de sustentar. Às vezes, os pais não
é dramático no acompanhamento com uma crian-
querem essa avaliação, eles querem um diagnós-
ça quando você sustenta uma leitura da subjetivi-
tico e eles podem consegui-lo em outro lugar, mas
dade, não é? Por um outro lado, como médico, eu
eu uso o máximo de recurso possível para susten-

CRP SPdas vidas: reconhecimento


tenho a obrigação, eu tenho o direito até de fazer
tar a possibilidade de uma outra forma de fazer
laudo. Então eu não posso também recusar esse
avaliação que não seja uma avaliação diagnóstica,
laudo; a família tem direito de me solicitar um laudo
pura e exclusivamente, embora o diagnóstico pos-
e eu não posso escapar a isso eticamente, certo?
sa até ser uma consequência dessa avaliação.
Um psicanalista não faz laudo, mas um psiquiatra
Depois disso eu faço uma avaliação com a faz laudo. E nós não podemos ignorar que, da ma-
criança. Não é difícil procurar os signos que estão neira como a coisa está constituída hoje, o laudo
é um instrumento muitas vezes importante para

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lá no DSM, essa observação é possível de ser feita.

e medicalização
Isso é uma coisa fácil de fazer. Ele é feito para que criança, pois ele abre portas. Por exemplo: as es-
colas para poder conseguir recurso, conseguir au-

Cadernos Temáticos
qualquer um faça. Isso não é uma coisa complicada
de fazer. O complicado é você poder sustentar que xílio, conseguir um professor a mais, um professor
não é isso que você tá fazendo ali. Pura e simples- na sala de aula, têm de apresentar um laudo para
determinado órgão do Ministério da Educação.

Patologização
mente. Então o processo de avaliação com a crian-
ça é tanto no sentido de construir uma possibilida- O diagnóstico é importante para abrir portas
de de ela poder relatar, de ela poder se situar, de para o atendimento. Através do diagnóstico, você
ela poder dizer algo sobre aquilo que está sendo faz encaminhamentos dentro do plano de saúde,
solicitado para ela, seja com uma dificuldade que com o diagnóstico você consegue encaminhar
ela tem em casa, seja com a dificuldade que ela para um ambulatório de especialidade dentro do
tem na escola, e isso progredir para uma aposta, serviço de saúde do município. Então, o diagnósti-

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para um acompanhamento. co, o laudo não é uma coisa que podemos simples-
mente nos furtar a fazer, né?
Se fosse produzir um diagnóstico e fazer um
laudo, eu conseguiria dar em uma palavra, conse- Vou tentar discutir um pouco como é que
guiria dar um nome que explicaria toda a questão, eu me viro com essa função do psiquiatra que é
porque ele é feito para isso. Mas eu estaria jogan- laudar, fazer um relatório, e que é tão catastrófi-
do esse trabalho todo no lixo, seria catastrófico no co pra mim, porque se a criança se vê concernida
processo de subjetivação. num diagnóstico, isso é um risco de interromper
o processo de trabalho com a divisão do sujeito,
Por que que eu digo isso? Porque quando
com sua subjetividade, com seus desejos. Ela pode
os pais buscam uma ajuda, a criança busca uma
ficar identificada com esse diagnóstico e não ter
ajuda, existe uma angústia muito grande e a maior
mais de lidar com as questões que esse sofrimen-
angústia é não saber o que está acontecendo.
to produz para ela. Esse sofrimento passa a ser
Muitas vezes, é maior essa angústia do que o
identificado com diagnóstico e ele é exteriorizado,
próprio sofrimento que a criança está apresen-
quer dizer, o remédio vai resolver, a escola vai re-
tando. Às vezes, você vê pessoas que foram para
solver, o professor auxiliar vai resolver e a criança
uma consulta, conseguiram um diagnóstico e elas
fica desimplicada disso. E isso que eu acho que é
voltam aliviadas, mesmo que a criança continue
um risco muito grande do do lado da criança.
exatamente do mesmo jeito. Quer dizer, a angús-
tia melhorou, agora eles têm uma explicação, todo Do lado da família a mesma coisa: a família
mundo está mais tranquilo, mas a criança está no não tem de se perguntar onde ela entra nessa his-
mesmo sofrimento. O efeito da própria constitui- tória, o que ela tem a ver com aquele sintoma; o
que ela tem a ver com aquilo que está acontecendo dico produz uma enormidade de ganhos, e não só
94
com o filho dela; o que ela pode fazer; qual o próxi- para a criança, mas para os pais. Porque eu já tive
mo passo; o que a família pode produzir no sentido situação de criança acamada que tem direito a um
de melhorar a situação daquela criança. Esse é um carro zero. Ela nunca vai sair da cama, usar aquele
momento também muito complicado porque, de- carro, quem vai usar são os pais. O laudo é muito
pendendo como a gente conduz esse tipo de tra- solicitado, e a gente não pode se furtar a fazê-lo.
balho, você pode culpabilizar os pais, certo? E isso
Então, o momento de fazer é aquele em
não é interessante. A gente tem de trabalhar no
que já consegui, de alguma maneira, que os pais
sentido de não culpabilizar os pais, porque não é
entendam que esse diagnóstico é um diagnósti-
possível culpar os pais do que as crianças são. Isso
co vai estar a serviço de alguma coisa. Não é um
seria uma violência com os pais. Não é a medici-
diagnóstico que tem um valor explicativo sobre a
na, não é a psicanálise que culpabiliza os pais. Nós
criança, explicativo sobre a situação da família, a
pais já somos culpados por aquilo que acontece
situação da escola. Quando eu vou produzir o lau-
com os nossos filhos, é um sentimento. Mas é pos-
do, eu já tentei esvaziar o máximo possível a ex-
sível que a gente trabalhe uma desculpabilização.
pectativa de que isso responda alguma coisa. Eu já
O sentimento de culpa é uma coisa inerente tive oportunidade, por exemplo, de reapresentar a
à função de pais. O seu filho cai a 10 metros de criança para os pais sobre um outro ponto de vis-
você e você tem culpa “por que que você não es- ta; que eles enxerguem na criança, outros aspec-
tava lá? Por que você deixou ir lá? Por que você não tos e não aqueles que são os do signo, da doença.
segurou?”. “Por que que você não tem um braço mais
Esse processo é às vezes um pouco demora-
cumprido?” Então, o trabalho de desculpabilizar os
do, quando tenho de produzir o laudo, eu espero já
pais é importante. E, ao mesmo tempo, devemos
ter conseguido descolar a ideia de que o diagnós-
responsabilizá-los ou a quem cuida da criança. É
tico vai servir para que eles decifrem o enigma do
importante a gente poder desculpabilizar, mas ao
filho deles, e também que a criança vai se enten-
mesmo tempo implicar. Dizer, “embora você não
der a partir daquele diagnóstico. Então, o momento
tenha a culpa, mas é com você o negócio, você não
de produzir o laudo é aquele em que espero já ter
pode correr, você não pode sair daqui”. Porque a
conseguido avançar nesse sentido. Mas é preciso
vontade dos pais é terceirizar isso, não é? É passar
produzir. Outra questão em relação ao laudo que eu
para o psiquiatra resolver, para o psicólogo resol-
acho que é bastante importante, é quando a solici-
ver, para o fonoaudiólogo resolver, ou principal-
tação de relatório vem da escola. A maior demanda,
mente para o remédio resolver.
maior fonte de encaminhamento no meu consultó-
Porque hoje os pais acham muito fácil medi- rio, a maior demanda de laudo, é da escola.
car, porque ele dá de manhã o remédio e vai tra-
Esse é um outro ponto bastante complicado,
balhar. Ele não tem de voltar para a casa, pegar a
porque, assim como eu, assim como os pais, a es-
criança e levar no psicólogo, levar no fono. Então
cola também está mergulhada nesse discurso. Ló-
o remédio é uma coisa que está de acordo com a
gico que existem escolas e professores muito dife-
vida prática hoje em dia. Então, esse trabalho de
rentes um dos outros, às vezes a gente consegue
implicação dos pais e de desculpabilização é um
contato, consegue conversar com os professores
trabalho também difícil, e o diagnóstico, depen-
e sustentar essa aposta na subjetividade sem
dendo do momento em que você se encontra, atra-
muita dificuldade. A gente vê às vezes o próprio
vessa esse processo. Então é um momento bas-
professor já tomando certas iniciativas em relação
tante delicado isso. Por fim, quando a gente acaba
a isso. Não é o mais comum, mas a gente vê.
tendo de produzir um laudo, geralmente esse lau-
do é para a escola, mas hoje um laudo médico dá Quando recebo um relatório ou uma solici-
passagem aérea com metade do preço para o tação, eu sempre peço que venha da escola por
acompanhante e gratuita pra criança. Por exemplo: escrito, e a escola tenta descrever a criança, mas
no caso de retardo, de autismo, ele dá viagem de quando eu recebo o relatório, o que fica mais in-
ônibus interestadual; viagem de ônibus municipal; teressante para mim é entender quem é que está
carro com 30% de desconto; carro zero com 30% escrevendo. Quem está escrevendo aquela solici-
de desconto; tem auxílio doença, tem aposentado- tação ou aquele relatório escolar? A professora se
ria, medicação gratuita; consegue entrar em esco- coloca, coloca a maneira como ela enxerga, como
las através de advogado contra o Estado, escolas ela conta aquela criança, e ali dá para a gente às
especializadas caríssimas. Quer dizer, o laudo mé- vezes aprender se existe por trás daquilo algum
tipo de aposta que ultrapassa a questão diagnós- eu fale para sua professora? Agora você já me colo-
95
tica, por exemplo. Eu sempre peço para a escola cou nessa situação, o que que eu vou fazer agora? O
encaminhar o relatório e os professores se colo- que que você me propõe?” Então eu vou construin-
cam nesses relatórios. do com a criança o que ela quer que eu diga para a
professora, e nisso já vem uma aposta da criança
Em relatórios em que encontramos afirma-
poder se colocar de uma outra forma naquela sala,
ções como “ah, não faz isso, não consegue fazer

- parte 1
da professora receber aquela carta. Eu chamo

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
aquilo e não faz aquilo outro e não consegue isso”,
mais de carta do que de laudo, como um pedido de
penso “e o que que ele consegue? Qual foi a estra-
uma aposta. Quando é possível isso, porque nem

e enfrentamento
tégia que o professor adotou?”. Às vezes não vem
sempre a gente consegue fazer dessa forma, nem
nada disso no relatório. E às vezes vem uma cons-

Psicologia em emergências
sempre é interessante colocar a criança nessa si-
trução assim, um pedido de ajuda e você percebe
tuação. Mas, de alguma maneira, eu leio às vezes
que tem um professor que está um pouco perdido
o que eu escrevi para a criança, para a família e
ali com aquela criança. Eu respeito muito esse mo-
tento recolher os efeitos que isso produziu. Ten-

CRP SPdas vidas: reconhecimento


mento com o professor, essa escuta do professor
to manter para mim os efeitos desse ato médico,
através do relatório, ou muitas vezes quando a
vamos dizer, de você laudar alguém, na tentativa
gente consegue conversar pessoalmente.
de sustentar uma leitura que esteja fora de consi-
Eu trabalho numa instituição que tem 120 derar aquilo uma explicação, e acolher um pouco o
crianças autistas em salas de aula, são 800 alu- que é o desespero. Quando você tem crianças au-
nos. São crianças superdifíceis e eu não imagino tistas, por exemplo, em inclusão, você sabe o que é
como é que seria passar três, quatro horas com um professor desesperado. Então, principalmente

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e medicalização
uma criança dessa em sala de aula. Em consulta se ele não teve uma criança assim antes. Na maio-
ela fica sozinha comigo 30, 40 minutos, uma hora, ria das vezes, os professores não têm muito apoio

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e vai embora. Eu não imagino o que um professor na escola, não tem muito auxílio, então a gente
passa em sala de aula com aquela criança. Então é tem que procurar acolher. Mas eu não tenho muito
importante respeitar. o que dizer, porque a experiência do professor é

Patologização
uma coisa muito diferente da minha. Então é preci-
Eu acho esse pedido de ajuda, que às ve-
so que o diagnóstico carregue alguma explicação
zes a criança vem carregando, precisamos nos
para que esse professor saiba como lidar. É isso
perguntar de quem é esse pedido. Isso é uma
que eles pedem “nós precisamos do laudo para que
coisa que precisa ser bastante desdobrada, nós
a gente saiba o que fazer”.
não podemos receber isso e responder da ma-
neira como vem, né? Bom, qualquer tentativa de Se tem um engano nesse pedido é que o
responder dessa forma, eu acho produzimos uma diagnóstico explica alguma coisa para você saber

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violência muito grande. o que fazer, o diagnóstico não explica nada disso,
não é? Ele não tem esse poder de explicação. Está
Produzir um laudo, fazer uma descrição de
escrito no próprio DSM, as pessoas não leem isso,
uma pessoa, concerni-la dentro de um conceito e
é um diagnóstico descritivo. Na verdade, eu dou o
entregar para o outro, é de uma violência incrível.
diagnóstico com aquilo que o professor me descre-
Acho isso é uma das maiores violências que po-
ve, eu retorno para ele o que ele mandou pra mim.
demos produzir para uma criança. E isso é feito
Então é preciso desdobrar isso na relação com a
assim, aos montes.
escola. É muito difícil isso no dia a dia, é muito difícil
Como que eu trabalho com essa demanda da isso na nossa prática, nós não temos muito tempo
escola? Eu às vezes demoro um pouco para fazer para fazer isso, o professor não pode sair da sala
o laudo e às vezes eu produzo um falso laudo, va- de aula, as tentativas por telefone são sempre de-
mos dizer assim, um laudo subvertido. Quando é sastrosas, a pessoa não sabe com quem ela tá fa-
possível, faço o laudo junto com a criança. Quando lando, você não sabe o efeito que está tendo aquilo
eu atendo, sentamos junto e digo “olha, sua pro- que você tá dizendo. Então, é um momento tam-
fessora está me perguntando isso, o que que está bém bastante dramático, e a tentativa sempre é de
acontecendo lá que ela está me perguntando isso? poder encontrar pessoalmente para podermos ter
O que que aconteceu com você lá? O que que você uma conversa. E às vezes uma primeira conversa
fez para essa professora ter que falar comigo?”. Eu permite que depois a gente consiga continuar con-
implico um pouco a criança nisso, e às vezes a gen- versando por telefone, por carta ou por relatório.
te escreve junto, né? “Ah, o que que você quer que
Eu faço isso na instituição que eu trabalho, na
Apae. Lá eu tenho uma proximidade com os profes- como é na escola pública sem nenhum auxiliar?
96
sores, eu vou na sala de aula, como no consultório. Tem um monte de lista dizendo o que o professor
E eu trabalhei no Caps bastante tempo aqui em tem de fazer com criança que tem TDH, com criança
Campinas, e quando eu trabalhei l, fui psiquiatra no que é autista. O professor que agir desta forma, vai
Centro de Saúde, atendi crianças na região Noroes- aplicar de modo automático, não estará presente.
te. Então as escolas vão, a gente tenta conversar, a Não terá os elementos essenciais para construir
gente consegue ajuda dos psicólogos para que, ao um trabalho singular com aquela criança, porque
mesmo tempo que você não vai dar um laudo para ele estará alienado no discurso do outro, estará es-
explicar, você não pode deixar esse professor lá de- perando que o outro diga para ele o que fazer.
samparado, você tem que tentar pelo menos dizer
É importante que o professor se valha do
para ele que você também não sabe o que fazer. Eu
conhecimento, mas é importante que ele costure
acho que isso é o mais honesto que a gente pode
com as próprias mãos; o professor precisa estar
dizer “olha, você não sabe, eu também não sei”.
autorizado a fazer isso. E, muitas vezes, o laudo
Eu acho que essa questão na escola, no meu que a gente envia, com um diagnóstico, vai justa-
ponto de vista, do mesmo jeito que produzir um mente no sentido contrário. É catastrófico. A esco-
diagnóstico para uma criança é uma violência, eu la dá um jeito de deixar um mal-estar tão grande
acho que a escola tem sido violentada com o dis- que, muitas vezes, os pais tiram as crianças da es-
curso médico. Quer dizer, os professores estão sen- cola, porque a escola não se sente preparada para
do desautorizados a pensarem a criança que está lidar com aquele tipo de problema. Então, o laudo
na frente deles com a própria cabeça. É construído produz o efeito contrário do que foi solicitado para
uma ideia para o professor que existe um saber em que ele resolvesse.
outro lugar que dá conta daquilo, só ele que não
sabe, não é? Então essa questão eu acho muito
importante, do mesmo jeito que eu tenho que des-
construir com a família a ideia de que o diagnóstico “É importante que o professor
vai resolver o enigma que aquela criança produziu
se valha do conhecimento, mas é
amorosamente para aquela família, para aqueles
pais, eu também tenho que construir com esse pro- importante que ele costure com as
fessor a ideia de que ninguém sabe fazer aquilo, que próprias mãos; o professor precisa
ele vai precisar inventar seu fazer, que eu não sei,
estar autorizado a fazer isso”
que não tem um discurso em algum lugar que vai
dar aquela resposta. Isso porque você só consegue
construir a resposta no nível da singularidade, e
Assim, eu poderia falar sobre isso descre-
isso não está antecipado em um outro lugar.
vendo os efeitos que isso tem na subjetividade
Lógico que tem coisas que conhecemos, tem das pessoas, o que que é você produzir um diag-
um saber que podemos nos valer. Tem coisas que nóstico que vai ocupar o lugar de enigma, vamos
eu posso buscar, me informar, saber, trocar, mas a dizer assim, de aplacar esse enigma que toda
construção com aquela criança é singular. E é isso criança, toda pessoa, todo ser humano tá na vida
que é importante. Às vezes o professor pergunta pra resolver. Teria outras maneiras de discutir isso,
“o que que eu faço? O que eu tenho que dizer?”. O mas eu achei mais interessante trazer um pouco
professor está amedrontado e ele está desautori- como eu faço pra poder ir contando isso pra vocês.
zado. Isso que eu acho que é o efeito mais violento
Enfim, submeter o diagnóstico, para mim, é
sobre os professores: eles têm medo de tentar al-
fazer aquilo que a ciência trabalha para construir,
guma coisa com aquela criança, eles têm medo de
que é um discurso sem sujeito. Perverter o laudo
“se eu fizer alguma coisa, eu posso estragar o tra-
médico é fazer um laudo com sujeito, que inclua a
tamento”. Ele fica desautorizado, fica dependendo
dimensão do sujeito; consiga deslocar os pais dos
de um discurso que não é pedagógico, fica depen-
efeitos do diagnóstico; que eu possa dizer que a
dendo do discurso médico para explicar para ele.
criança ultrapassa muito aquela descrição que
Os médicos fazem isso, os neurologistas está colocada ali, e também, principalmente, cons-
mandam listas de como se deve proceder com essa truir com a escola uma possibilidade para além
criança. Colocar a criança na frente e ocupá-la. E dessa questão do diagnóstico. Bom, é isso que eu
como fazer isso com 30 crianças na sala de aula, tinha para falar. Obrigado pela oportunidade.
Participação da plateia 97

- parte 1
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Heloisa: Gostaria de saber a opinião de vocês so- ana, eu sou médica e eu, apesar de ser pediatra,
bre o uso da CIF, Classificação Internacional de Fun- estou num lugar de trabalho já há 11 anos que é no
cionalidade, no lugar da CID. Isso é algo que temos Nasf. Minha questão é o seguinte: por mais que o
discutido no Conselho de Fonoaudiologia para ten- caso do menino que o doutor Fernando trouxe pa-

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e medicalização
tar minimizar esses efeitos dos laudos. Penso se a reça mais difícil, ainda é uma realidade bem melhor
gente não poderia utilizá-lo e tentar transformar isso do que a grande maioria que nós temos no nosso

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em algo que seja exigido, que seja aceito pelos con- dia a dia. A minha questão maior é que a pressão
vênios, pelas escolas, já que a CIF permite que as ca- pela produção de laudo, é menos com relação a
racterísticas que o sujeito apresenta sejam entendi- ganho secundário e mais porque as famílias estão

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das na funcionalidade, localizadas num tempo e num pedindo um socorro: “a escola já não dá mais conta,
espaço. Dá muito mais trabalho para fazer, mas a eles não estão dando uma aula de reforço” ou “eu
gente poderia caminhar para este outro lado. A gen- não sei ler, eu não sei escrever, eu não sei ensinar o
te precisa de uma mudança política nesse país para meu filho”. Em Sumaré se você não tem um CID 71
conseguir essas transformações todas que a gente ou 73, a criança não tem nada além da sala de aula
quer. Isso é difícil, mas a gente pode tentar talvez ir comum e do professor, que não estou culpabilizan-
por esse caminho. Eu não sei o que vocês pensam. do, mas que muitas vezes, ele está tão cansado...

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Realmente eu não sei como eu ficaria 40 minutos
Beatriz: Bom dia, meu nome é Beatriz. Gosta-
numa sala com 30 crianças, nem as minhas três
ria de agradecer muito, essa mesa foi muito escla-
crianças eu dou conta 30 minutos numa sala. Às
recedora. Minha pergunta é para o Moreira. Adorei
vezes a gente coloca, faz um relatório, uma carta
essa nova estratégia, como você faz as entrevis-
“essa criança precisa ser mais observada, a gente
tas com as crianças primeiro, essa coisa do poder
trabalhar em conjunto”, o que a gente recebe de
entrar, sair, decidir se o pai entra, se não entra,
volta é: “isso não adiantou nada, a gente não pode
achei muito interessante. Mas eu queria pensar no
fazer nada porque você não deu um CID”. É quase
âmbito do SUS. Quando você tava no Capsi, como
isso, é mais um carinho do que uma resposta que
era esse diálogo com a equipe? De sustentar esse
eu preciso.
atendimento? Porque ele é mais demorado, não é?
Também queria saber mais ou menos quanto tem-
Antônio Moreira: Em relação ao CIF, Helô,
po era essa entrevista que você falou que você
eu acho que a gente deveria conseguir uma outra
fazia logo com a criança e logo em seguida com
classificação e penso “por que a pedagogia não tem
os pais. Quanto tempo, mais ou menos, durava ao
uma própria?”, que sirva para o pedagogo construir
todo esse atendimento. Era feito um atendimento
um diagnóstico dentro de uma própria avaliação. A
com a equipe multi ou você também fazia atendi-
instituição que eu trabalho, que é a Apae, logo que
mento compartilhado? Fono, TO, psico... Obrigada.
entrei, coloquei uma pergunta “por que as salas de
Joana: Bom dia. Eu queria agradecer, é um aulas são divididas por diagnósticos médicos?”. Por
prazer ver o doutor Chacra novamente, foi meu que sala dos autistas? O que tem a ver o diagnósti-
professor na residência, no internato. Eu sou a Jo- co com o modo de aprender? Mas eu acredito que
você tem razão sim; isso seria muito mais útil para morar um tempão. No começo eles encrencavam um
98
escola, falar sobre as habilidades que a criança tem, pouco porque eu tenho de ter uma produção, certo?
por exemplo, do que aquelas que ela não tem, e o Mas depois foram entendendo e permitindo que eu
CID e os diagnósticos só falam, só apontam o que a atenda o tempo que precisar e eu faço da maneira
criança não tem de recurso. Como eu já vi uma pes- como eu bem entender lá. Uma coisa que aconteceu
soa comentando, acho que foi num vídeo “bom, se no começo, não foi com a instituição. Vinha uma série
um aluno é bom de matemática e ruim de português, de médicos atendendo naquele lugar e eu fui ocupar
você contrata um professor de português e não de o lugar de médico que já estava antecipado, aquela
matemática”. Quer dizer, se ele é bom de matemá- cadeira, aquela mesa e o que se espera do médico
tica, por que você não contrata um professor de já estava tudo antecipado lá. E quando eu comecei
matemática que é o que ele gosta, que é para ele a atender dessa maneira foi uma coisa que produziu
poder desenvolver essas habilidades? A gente fica um efeito que a secretária veio me dizer assim “olha,
no discurso das deficiências. E a medicina faz isso as pessoas saem atordoadas da sua sala; o que acon-
e invade a escola com esse tipo de pensamento e tece? A pessoa quando sai da sua sala eu tenho que
o professor deveria resistir enormemente a isso, chamar, ‘a recepção é aqui ó’, para pessoa marcar o re-
porque muitas vezes ali onde está o diagnóstico é torno’”. Porque elas tão acostumadas a ir no médico
justamente onde ele não tem nada para fazer, e ele e falar se faz xixi, se faz cocô, se está mais agitado,
pede o diagnóstico para explicar para ele o que ele se não está mais agitado, qual remédio vai tomar.
tem de fazer. Quer dizer, é contraditório. Isso dura 15 minutos. Mas quando você pergunta,
“mas por quê? Mas como é que foi essa história? Como
Já existe lei para que não precise de CID, não
é que você conseguiu esse diagnóstico? Mas você es-
é? Mas isso não funciona, eu tento brigar, todo ano
tava passando pelo quê?”.
eu preciso fazer uma lista de 800 CID’s para Apae,
paras crianças que estão lá dentro, porque a Secre- Por exemplo: eu tive um caso de uma criança
taria de Educação vai lá e quer ver no prontuário o que fechou o diagnóstico com autismo quando a avó
encaminhamento do médico para a criança estar lá. teve um problema hepático, foi transplantada e de-
Olha a demanda. Quer dizer, a criança é autista e pois morreu. Depois que ela morreu, o pai do menino
todo ano eu tenho que dizer para ela que ela con- descobriu que também tinha um problema hepático,
tinua autista. Para a família tem enormes consequ- fez um transplante que deu errado, ficou nove meses
ências esse tipo de coisa. Então, eu acho bastante internado, a mãe ficou nove meses com essa criança
pertinente isso que você colocou e lutarmos para e com esse pai no hospital. E esse menino recebeu o
que usemos um outro tipo de classificação para diagnóstico de autismo ao mesmo tempo. Quer di-
permitir, já respondendo um pouquinho a pergunta zer, essa mãe com medo de que o pai morresse, o
da Joana, que as crianças tenham acesso aos recur- pai achando que ia morrer porque tinha dado errado,
sos, sem elas precisarem estar coladas em algum entendeu? Então, os diagnósticos são feitos dessa
tipo de diagnóstico, não é? Esse é o nosso drama, maneira, totalmente descontextualizados. Como é
você tem de dizer que o outro é inválido para ele ter que você pode pensar para uma criança que está re-
um recurso, quer dizer, então se ele não é, você tem servada, triste, ou deprimida com um risco de perder
de esperar que ele seja. Ou então você antecipa o pai, durante nove meses, um processo de patologia
que ele é, quando ele ainda não é para que ele tenha supercomplicado? Então, compartilhar, conversar, é
um recurso. Você vê, é uma coisa que tem enormes uma coisa bastante importante na instituição, pro-
consequências na prática do dia a dia. Eu acho isso duzir um efeito nos pacientes que não estão acostu-
extremamente importante o que você colocou. mados a conversar com o médico, eles não tão acos-
tumados a falar de si para o médico. Isso produziu
Bom, a Beatriz perguntou sobre o meu trabalho
um efeito bastante importante.
no Caps. A minha formação e esse modo de pensar
foi construído no Caps, eu não cheguei lá com esse Mas no Caps isso não é uma coisa complica-
conhecimento, eu saí de lá com esse modo de traba- da, porque eu acho que o Caps já tem uma visão
lho. Então eu eu tenho de agradecer às minhas co- diferente, já não é tão centrada no médico a avalia-
legas, aos meus colegas. Lá eu compartilhei outros ção, não sei como é que está hoje porque as coisas
conhecimentos com a TO, com a fono, a construção andaram bem pra trás, não é? Eu fiz bastante aten-
desse modo de pensar e esse modo de trabalhar no dimento compartilhado com outros profissionais. No
Caps. Eu trabalho hoje numa instituição que é bas- lugar onde eu trabalho, a criança para poder acessar
tante rígida, que é uma Apae, mas eles me permitem a escola, ela tem de ter o diagnóstico e eu tenho uma
fazer esse tipo de coisa, a minha consulta pode de- pressão enorme para produzir o diagnóstico. Agora,
no Caps não, a gente vai trabalhando e o diagnósti- e quando eu digo “história”, não é a história pessoal.
99
co é a última coisa que a gente faz, porque a gente Mas em que lugar que eu estou, qual é o tempo que
consegue fazer o projeto de trabalho com a criança eu tenho e, portanto, da história da construção des-
sem ter o diagnóstico estabelecido, fechado, a gen- se dispositivo. Lembrei de uma questão que a Bian-
te tem uma ideia, não é? O laudo traz um fechamen- cha colocou que é: se fica tão claro para gente que
to de diagnóstico. Trabalhar com diagnóstico aber- há coisas extrínsecas na demanda, tanto é que ago-

- parte 1
to na clínica é muito melhor porque a criança pode ra a Joana fala de uma pressão, portanto, como que

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e desastres
dizer várias vezes para você que você está errado, se considera aquilo que é extrínseco na avaliação
que não era isso, não era aquilo e você vai mudando junto com as pessoas que estão nessa engrena-

e enfrentamento
o diagnóstico conforme vai mudando a direção do gem da avaliação? Então, se há algo extrínseco, há

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seu trabalho ali. Essa pressão que a Joana colocou algo do campo político que precisa ser trazido. En-
que se você não produz laudo você deixa a escola tão, eu aproveito essas falas para falar que eu não
também desamparada, foi isso, né? Então você tem estou defendendo que a mudança seja política, ela
que dar um laudo para que a escola também pos- é, eu estou defendendo que além da mudança ser

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sa acessar dentro da burocracia os recursos que política, qualquer dessas nossas ações, está imer-
ela tem. Isso não pode, eu não gosto. Eu trabalho sa numa política, numa política no sentido de estar
numa instituição como uma Apae, mas eu procuro num campo de forças. E eu acho muito interessante
subverter bastante também as coisas por lá, eu não como talvez a gente esteja fortalecendo. Vários de
sou uma pessoa que trabalho de acordo com aquilo nós trouxeram a ideia de que é como que a gente
que acontece lá, se existe uma chance de eu mudar consegue, na relação com essas pessoas, este co-
a situação de várias crianças, então eu brigo bas- mum que é enfrentar esses elementos. Então, se o

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e medicalização
tante e eu tenho tido um acolhimento também das Moreira fala para um pai, para uma mãe “então é o
minhas questões lá, tem mudado um pouco as coi- seguinte, deixa eu dar uma olhada aqui. Eu acho que...

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sas. E eu também tenho aprendido muito uma coisa eu acho que eu vou colocar o CID 78 que daí dá pra
que eles fazem que eu acho incrível: que a Apae lá é pegar condução, e isso e aquilo ‘tarara, tarara’”, con-
uma AMÃE. É um Oasis, porque as crianças chegam, quistar esse momento é incrível, e eu acho que é

Patologização
têm um atendimento que elas não têm em lugar ne- isso que nós estamos colocando, porque conquistar
nhum. Então por mais que existam contradições no esse momento significa que estamos considerando
processo, também existe ali uma coisa que funciona na construção de um laudo a existência da pressão,
e que acaba criando condições para várias daque- a existência de um tipo de discurso de pensamento
las crianças. Só de autista são 120 em sala de aula, que é: “precisamos fazer de uma maneira que depois
só para você ter ideia do meu desespero. Às vezes a gente não seja prejudicado”.
eu falo para os pais “olha, eu vou pôr um diagnóstico

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aqui que é pra você conseguir lá os recursos, porque Não tem como a gente ampliar esse trabalho
ele precisa, isso ele precisa. Então vou pôr esse aqui, sem riscos, num momento discursivo que é contra
mas depois se precisar a gente troca”. Então eu dei- o risco. Não tem. E não tem como fortalecer o pro-
xo sempre uma certa insuficiência, eu sempre deixo cesso de subjetivação. O que significa fortalecer o
uma ideia de que aquilo ali é mais ou menos o que processo de subjetivação? Ser alguém que arrisca,
eu estou achando, que por enquanto aquilo vai aju- que aposta, que cuida, mas que não tem certeza,
dar, depois a gente revê, eu sempre deixo em aberto, senão a gente não faz. Como os meus colegas do
o diagnóstico eu sempre procuro deixar em aberto. Caps de Itapeva falam, tem uma forma de a gente
Mas a gente tem de fazer o diagnóstico porque se- garantir que o paciente não vai se matar. Qual é?
não você não faz os recursos surgirem, não só na A gente o mata antes, amarrando. Amarra, impede,
escola, mas nos convênios, não é? É assim que eu deixa vegetando, é essa a certeza que nós quere-
tento fazer, às vezes dá certo, às vezes não dá, às mos? Nem assim, não é? A gente tem certeza, mas
vezes o pessoal sai com o laudo e pronto. de qualquer forma estou falando sim à bolha, não
é? Então mais para poder dizer, acho muito bacana,
Adriana: Eu estava vendo aqui nas minhas Helô, a gente poder pensar como conseguir que uma
anotações da mesa de ontem e o Rossano terminou outra classificação faça parte. Essa é uma ação. E
a fala dele falando da necessidade da história da essa ação, como está nesse campo de forças, ela é
criança, da história do ambiente, da história de quem uma ação política que eu acho muito interessante,
cuida daquela criança, e acho que durante a mesa, muito interessante. Pensei na história do tempo que
com a fala da Biancha e da Cláudia, a gente foi au- a Beatriz trouxe, porque eu fiquei brincando, eu falei
mentando, com a história de quem faz o diagnóstico, “eu acho que a gente tem que escrever assim: ‘diag-
nóstico sem tempo, tal’. Diagnóstico falseado pela chegou aí?”. Eu falei “chegou, você sabe que essas
100
falta de tempo, tal”. Depois alguém lê e fala “Nossa, coisas chegam rápido”, “não, não, porque a gente não
você não pode escrever isso”, “não, mas é que foi ver- queria colocar, mas era a única forma de ela vir para o
dadeiramente o que foi, eu não minto, aprendi com a atendimento. Então nós colocamos porque é a forma
minha mãe, não minto”. Estou brincando um pouco, de ela conseguir o benefício para vir para o atendimen-
mas assim, essa coisa da escrita é incrível, porque a to”. Bom, a questão é que isso se reproduziu na esco-
escrita como ato é maravilhoso, que é como muitas la como ela tendo um certo quadro grave. E o que eu
colegas nossas fazem no sistema jurídico quando achei bacana é a conversa depois que ela se propôs
elas têm que dar pareceres objetivos que vão res- a fazer na escola sobre ela ter colocado uma coisa
paldar falas dos juízes e decisões dos juízes. Como cheia de dúvidas, mas porque naquele momento era
que elas driblam? Então eu fico pensando onde es- melhor. Mas daí precisava de tempo, ela precisava
tão as nossas estratégias? Como se constrói essas sair do Caps, precisava ir para a escola. Mas a gen-
nossas estratégias em cada lugar? E por último... o te estava junto, porque também tinha essa aliança,
Fernando é pediatra. É da saúde. Ele mostrou um que eu falei “meu, não entendi” ela falou “não, mas era
slide para gente sobre silábico, pré-silábico. Quer di- o que precisava”, sabe? Assim, quando você já criou
zer, ele foi investigar que argumento que ele poderia uma aliança de trabalho que você confia no trabalho
desenvolver, onde ele poderia desenvolver, porque a do outro, alguma coisa fez com que ela tivesse de
mãe falou, “ele não reza”, esse é o problema. Então colocar esse número. Então era um espectro autis-
ele vai para o psiquiatra, ele não reza. Gente, eu não ta, era um TEA, era alguma coisa, mas que ela não
posso desconsiderar que a produção da reza e da queria colocar isso sem a experiência, mas para ter a
não reza naquela família é loucura. Então “ele não experiência ela precisava colocar, né?
está escrevendo” “não, então pera aí, eu não posso
desconsiderar, mas olha só a situação caótica”. Então Fernando: Bom, não sei se eu vou conseguir
às vezes eu falava, “o Fernando fez pedagogia, fez complementar. Eu conheço muito pouco o CIF. Fui
psicologia, o que o Fernando fez que deu nisso que poucas vezes solicitado para que preenchesse, mais
de repente ele está contando um atendimento des- para adolescentes, mais esses que vão prestar ves-
se para gente”. O que eu acho interessante a gente tibular e tem alguma deficiência, alguma coisa, en-
poder pensar, é que enquanto ele ia conseguindo tão para conseguir uma sala especial para fazer o
uma melhora com a criança, para a escola isso não vestibular. Aqui na Unicamp eles pedem o CIF, não é?
era suficiente. Talvez para a escola isso não fosse E eu achei um pouco difícil, mas também pode ser
suficiente. Aquilo que constituiu inclusive a vinda porque eu não tenha sido treinado suficientemente.
para você, que é que você ocupe um certo lugar e Mas eu acho que pode ser uma pequena conquista
faça de uma certa maneira, isso me produziu um se a gente conseguir que as instituições de ensino
pouco esse desafio que é: como uma situação como passem a utilizar mais o CIF do que o CID, porque o
essa convoca a gente a pensar em que momentos e CID é muito taxativo. Eu por muitos anos tentei usar
de que maneira que eu vou dialogar com quem pede dentro do CID – porque também tem alguns CID’s
o laudo sobre a legitimidade do meu procedimento. que são subversores - o CID de problemas no pro-
Eu estou falando legitimidade não porque a pessoa cesso de escolarização, é Z alguma coisa que eu não
ache que não é bom, mas não resolve o problema me lembro bem, tá? E eu colocava sempre esse CID.
da escola que é que essa criança está indo pra trás. Até um certo ponto dava, mas, por exemplo, para
Eu sei que é. A situação que você apresentou é um sala de recurso não serve, não é? Então para sala de
pouco caótica porque a gente fala “nossa, mas você recurso tem que ser um daqueles que eles esperam,
comprovou a melhora, você fez com a criança a me- tem uma listagem. Então isso precisa ser trabalhado,
lhora”, mas isso no território da escola vira “é pouco, e essa demanda acho que é muito mais da educação
é muito, é mais ou menos. Vamos quantificar, ela não de questionar essa necessidade. Já fiz muito traba-
tá acompanhando”. Então como é que a gente inclui lho com escola fazendo essa discussão. Eu acho
isso no nosso atendimento? Achei interessante que essa também é uma pequena conquista, você
essa malícia que é socializar o que constitui a ne- conseguir espaço dentro da escola para levar um
cessidade do laudo com aqueles que estão lá. outro olhar e tentar. Mas é muito difícil a escola acre-
ditar em uma saída pedagógica. Eu sempre vou lá e
Termino com uma situação que é uma psiquia- já levei filmes da coleção dos grandes pedagogos:
tra lá em São Paulo que colocou um CID numa criança Vygotsky, Freinet,...?” Eles têm uma descrença tão
e eu trabalhando na escola, eu liguei para ela e falei grande no que existe de produção dentro da área
“nossa, eu estranhei tanto isso”, ela falou “ih Adriana, deles que me assusta. E assim, dentro da educação
e da pedagogia tem tantas soluções que estão aí a gente fala muito da má formação dos professores,
101
disponíveis e que realmente é assustador quando a da formação ruim profissional no campo da pedago-
gente vê a resposta é: “não, não é isso que eu preci- gia, que foi um campo que desde a Constituição de
so de você, eu preciso de outra coisa, eu preciso que 88 tornou obrigatório a escolarização que não era.
você entenda essa necessidade que eu tenho dos lau- Então você precisa ter um contingente, inimagina-
dos.”. Então o discurso, ele vai e volta, mas é como do antes, de professores para atender aquela nova

- parte 1
redução de danos, eu acho que a gente tem de, aos oferta do Estado e realmente não foi possível dar

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
pouquinhos, ir tentando pequenas conquistas, né? conta de que as professoras tivessem uma forma-
As rodas sempre são importantes, a ideia da inter- ção como a gente pode desejar, crítica, profunda e

e enfrentamento
setorialidade, da discussão dos casos. Esse caso é tudo mais. Eu acho que se a gente for discutir mais a

Psicologia em emergências
o caso mais tranquilo que eu trouxe. Normalmente, fundo, nenhum campo profissional teve. A gente tem
a complexidade dos casos é maior, a questão social, várias discussões sobre inclusive, a universidade pú-
muito mais grave, pouco apoio familiar, as questões blica, que ainda é o lugar que faz formação de mais
que a gente enfrenta, e quando eu falo “a gente” qualidade no campo profissional.

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somos nós em todas as políticas públicas. São as
mesmas crianças. Na educação, na assistência, na Mas eu queria tomar essas coisas para pen-
saúde. Sempre que é possível uma roda, que é pos- sar o seguinte: quanto o campo médico também
sível você ter um fórum de discussão conjunta, eu está implicado, porque a gente produz e, enquanto
considero uma pequena conquista. E é de pequena se produz, não está reforçando isso, quando o que
conquista em pequena conquista que talvez a gente chega na escola é só o relatório do médico. E como
vá a eventos como esse, não é? A todo ano reforça- o Moreira apontou, às vezes é difícil por telefone e

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e medicalização
se essa ideia, vai se constituindo um outro campo às vezes é praticamente impossível pessoalmente,
subjetivo para todos. Não é um discurso único, é mas eu acho que isso é importante de a gente estar

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uma área, são problemas que são muito complexos, fazendo esse exercício desde ontem de colocar mais
muito mais complexos do que a gente imagina e que elementos, né? Complexificar essa reflexão. E eu
a gente precisaria continuar nessa linha. Então, por queria trazer hoje para gente pensar assim: quanto

Patologização
isso que eu acho quese eu fosse dar uma sugestão, essa distância do campo médico e a escola também
seria essa: promover o máximo possível rodas e ro- reforçam a posição de inferioridade das professo-
das no serviço, incluindo as famílias. Nós tivemos um ras, a posição de inferioridade da pedagogia, a po-
trabalho lindíssimo assim, de chamar as professoras sição de superioridade do médico, e mesmo vocês
para contarem sobre o processo de alfabetização lá que vem mostrar relatos e experiências que tentam
no Centro de Saúde. Foi muito bonito, um dos psicó- subverter e enfrentar a produção de laudos, o efeito
logos foi e pode entender também todo o sofrimento na escola ainda é muito semelhante. Então, como a

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que elas têm com relação a esse dia a dia. Eu acho gente não só subverter o laudo, mas enfrentar essa
muito interessante. Obrigado. falta de diálogo com a escola e, em última instância,
o enfrentamento que tem de ser feito, que tem de
Juliana: Eu tomo a liberdade de que me sentir ser de transformação da prática pedagógica, ain-
convidada para essa conversa porque eu sou pro- da não está acontecendo. Então, a Adriana hoje de
fessora e acho que nenhuma fala ainda veio do cam- manhã apontou de novo isso: se faço um trabalho
po da escola e é interessante a gente poder dialogar imbuído dos melhores sentimentos e das maiores
com relação a isso. Sou professora da educação bá- competências técnicas, mas dá um resultado que eu
sica, sou pedagoga de formação e as falas tanto de não queria, que não é um resultado que eu quero, o
ontem quanto de hoje, especialmente a marca que dispositivo também tem que ser pensado. Então, até
a Adriana põe muito que é: como que a gente está isso eu acho que é importante a gente levar nessa
nisso tudo, produzindo isso tudo enquanto se pro- reflexão que é: se só a escola pedir e o médico devol-
duz, enquanto produz o outro, enfim. E, sem dúvida ver, continua dando esse resultado, a gente tem de
nenhuma, eu acho que a escola tem essa posição de enfrentar é isso, a falta de tempo, a falta de contato
inferioridade com relação ao discurso médico, mas com o médico, a falta de diálogo entre a escola e o
eu também acho importante marcar que isso é uma campo médico. Então, eu sou uma professora que
construção coletiva, histórica, social e não das pro- não quero os laudos. Brigo contra eles, tenho a ale-
fessoras. Então, é fundamental a gente pensar em gria de dizer que vários alunos eu tirei dessa história
como esse discurso médico tem força em todos os antes de entrar. Outros não, a gente tem essa his-
campos sociais e também na escola, e também no tória das crianças que já chegam para a gente com
meio das professoras. E tem um dado interessante: o diagnóstico fechado. Eu sei que nos espaços por
onde eu passei, eu não sou maioria, esse debate é Maria Aparecida: Eu só queria retomar uma
102
difícil, esse enfretamento é difícil no próprio campo, questão que eu a Cecília Collares falamos há muito
mas eu queria também dizer, Moreira, que eu, ao tempo que é a questão de que o diagnóstico, ele
contrário do que você sugeriu, não quero de jeito fala de dificuldades, de impossibilidade, e o trabalho
nenhum que a gente substitua isso por um código pedagógico, o cuidado, falam de potencialidades, do
pedagógico, porque a nossa linguagem e o nosso que eu posso fazer. Eu cada vez estou mais conven-
saber tem a ver com o humano, tem a ver com os cida de que o trabalho com uma criança, com uma
processos. Então, eu brinco sempre: “a gente já tem pessoa, seja na escola, seja num tipo de uma linha
as ferramentas”, se você estudar avaliação pedagó- de cuidado, enfim, só pode acontecer se entrar só a
gica bem, e até puder conhecer um pouquinho de pessoa e o diagnóstico ficar lá fora. Se o diagnós-
avaliação psicológica ou de uma avaliação médica tico entrar na sala de aula, ninguém ensina, porque
é mais do que o suficiente, e entender de didática, ninguém consegue ensinar síndrome de Down, mas
enfim, dos campos que me são de domínio para eu se a síndrome de Down ficar lá fora, a Mariazinha
fazer a intervenção e o trabalho que eu quero fazer aprende e a professora sabe ensinar a Mariazinha.
com os alunos, isso já é suficiente para eu perceber Então eu acho que essa é uma questão fundamen-
processos, para eu perceber avanços, para eu per- tal, até retomando o que a Juliana estava falando,
ceber possibilidades de intervenção e de mudança quer dizer, não tem que ter classificação. Aliás, de
daquela situação. E, por ser uma ciência humana, eu novo eu vou dizer uma coisa que a Biancha tem in-
acho que a gente tem de primar por isso. A hora que sistido muito e que aí eu acho que é uma luta cole-
eu começo a querer jogar fora um código médico tiva nossa. Por lei, no MEC não é obrigatório o laudo
para impor um outro código pedagógico, eu acho que para ir para as salas de recurso, não precisa, tá? O
eu fico na mesma lógica e posso cair nesse jogo de estado de São Paulo precisa, por uma questão do
“então eu que sou professora, sei sobre a criança”, governo do estado de São Paulo que só passa re-
mas eu descrevo com números ou com informações curso. Quer dizer, a criança pode ir para sala, mas só
aceleradas, e no fundo acho que a gente se perde passa o recurso se entrar numa planilha, e só entra
de novo no que para mim é o cerne do problema: na planilha se, ou tiver o CID ou pode não ter o lau-
falta de tempo, falta de escuta, falta de fala de to- do, porém, o pai ou a mãe assina uma declaração
das as pessoas envolvidas no cenário de sofrimento dizendo que o filho tem tal doença. Ou seja, é pior
ou de problemas de escolarização. Então, eu queria do que o laudo porque isso cria uma situação difí-
chamar um pouco para essa reflexão também que cil. Assinar “meu filho é X”, permite que ele introjete
assim, mesmo quando a gente é parceiro, talvez a isso de um modo que é mais uma violência desse
gente esteja enfrentando isoladamente o problema governo e que a gente precisa combater, precisa
da criança que não vai bem na escola e pode ser que se juntar e combater. Acho que isso é fundamental.
a gente, sem querer, esteja reforçando essa história Não precisa de laudo, não precisa de laudo, a sala
ruim de escolarização dessa criança. Então como é é pedagógica, é uma avaliação pedagógica, se um
que a gente transforma isso? É se falando mais? É professor considerou que essa criança precisa da-
não simplesmente não dando o diagnóstico e não quela sala, vai se beneficiar daquela sala. Ponto, vai
dando o laudo para escola, mas se disponibilizando para aquela sala e tem de ser passado o recurso.
a gastar minimamente aquele tempo que o médico ia Acho que é essa luta que a gente tem de ter. E eu
gastar na produção do laudo em contato com a pro- só queria colocar uma questão que não tem nada
fessora? Ou é querer que a professora conte mais, a ver com o que foi discutido, porém, como foi dito,
não aceitar mais um relatório da professora que só eu não posso perder o gancho. Não é uma crítica,
diga “ele não faz, ele não sabe, ele não atende, ele Moreira, não é nada disso. Porém, vamos lembrar
não...”. Devolve antes de dar o seu parecer pergun- que colocar 100 crianças com autismo numa sala
tando para a professora “me conta o que ele faz?”. Dá não é inclusão, é exclusão. Quer dizer, a Apae conti-
mais trabalho à professora nesse sentido de a gente nua fazendo o que ela sempre fez, ganhando muito
também ser convidado a fazer esse exercício de en- dinheiro antes com síndrome de Down, depois ela
xergar o que a criança tem para, a partir daí ela ter ampliou e agora ela abraçou o autismo. Inclusive,
mais, mas sem correr o risco de às vezes não querer ela estimula o diagnóstico de autismo porque ela
dizer, mas acabar dando essa munição para escola ganha muito dinheiro. Quer dizer, não tem nada de
dizer que então a partir daí não tem o que fazer ou inclusão, essa é a exclusão. Uma das batalhas de
algo nesse sentido e aquela situação, que a gente muitos movimentos de autista é “lugar de autista
junto queria enfrentar e desmontar, continua posta e é em todo lugar”, lugar de autista é onde ele quiser
a gente não consegue desmontar de fato. estar, lugar de autista é na sala regular, não é exclu-
ído, ele não tem de ser excluído, não tem de ser se- trabalhei em rede e em rede inventada. Nós tínha-
103
gregado, não tem de ser escondido. Porque é isso, a mos um encontro com equipe em Porto Alegre que
gente precisa despatologizar... lembrar que autismo não era organizada pela rede nem estadual, nem
não é doença, é uma condição diferente de estar no da saúde, nem da educação, mas era uma rede
mundo, que precisa de linha de cuidado, de rede de nossa. Uma vez por mês nós sentávamos e dis-
apoio, mas não tem tratamento, não tem cura e não cutíamos os nossos, os casos deles, as histórias,

- parte 1
tem de estar excluído. abríamos os casos. Então, eu entendo que não tem

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
outro jeito de a gente poder efetivamente trabalhar
Cláudia: Bom, a professora também se sentiu
com esse sujeito sem ser na produção de rede, sem

e enfrentamento
convocada a falar aqui, né? E aí eu me lembrei de
ser convocando. E quem pode convocar isso? Pode
ontem que eu cheguei a falar da equipe itinerante

Psicologia em emergências
ser o psiquiatra? Aqui foi o psiquiatra que convocou
que chega na escola, eu era professora, a equipe iti-
“ó, a rede do fulaninho precisa se encontrar”, mas
nerante, uma neuro, uma psicóloga, uma assistente
qualquer um desta rede pode convocar e chamar
social, avaliam 60 crianças num turno e me dizem
para conversar. E aí abre um fiozinho que eu não

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“este aluno aqui é psicótico e não pode estar na es-
preciso que todo mundo seja legal nessa rede, mas
cola. Encaminha para onde? Faz o quê?”. Eu fico bra-
quando essa rede senta, ela se dispõe e as coisas
ba e essa brabeza vem grande, né? Passa a minha
acontecem, não é? Então para pensar isso, garan-
existência com aquela brabeza e eu pergunto “com
tir enquanto a gente tem nota técnica, enquanto a
quem é que eu estava brava afinal?”. Elas vão embora
gente tem uma política de educação especial na
e o menino fica na escola, na sala de aula e eu faço
perspectiva inclusiva, uma política cheia de con-
o que eu bem quis aqui. Mas eu segui braba. Bra-
trovérsias, mas ela tinha uma palavrinha ali que é
ba com quem de fato eu estava? No ano seguinte,

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“a perspectiva inclusiva” que, neste momento está
elas voltam e dizem assim “este menino aqui agora
correndo o risco de sumir. Sumir, só isso, a perspec-
pode ficar na escola, ele está em condições de ficar

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tiva inclusiva, não estou dizendo nem que a gente
na escola”. Aprendeu como a ficar na escola? Tá, daí
estava garantindo a escola para todos, uma escola
o tempo vai passando, eu fui trabalhar numa rede
boa para todos, mas a gente tinha essa direção, a
onde não precisava de avaliação de equipe nenhu-

Patologização
gente estava correndo atrás, a gente foi fazendo
ma, quem avaliava eram os professores. As salas
normativas ao entorno para ir dando uma certa ga-
de recursos foram inventadas em Porto Alegre em
rantia, inclusive a nota técnica. E, neste momento,
95, nunca precisamos de diagnóstico para que eles
nós corremos um risco grave de perder também
frequentassem essas salas, a nota técnica vem
isso, e isso pode ser um retrocesso de 30 anos, lá
para nos ajudar, ajudar quem precisar para dizer as-
para aquela equipe itinerante que eu tinha antes.
sim “ó, o atendimento é pedagógico e está aqui, mas
tem uma questãozinha delicada: no frigir dos ovos a

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Antônio Moreira: Bom, eu queria agradecer a
gente tem que assinalar”, “a gente” nós, “a gente”
fala da Juliana, né? Que bom que você ficou convo-
professora, “um daqueles quadradinhos para ir para
cada pela fala. Eu só acrescentaria que a questão
o MEC”. Aí talvez seja o lugar onde a gente tem de
do código. Não é isso. É que eu acho que o profes-
fazer um movimento para ver como é que a gente
sor tem de ter autonomia para fazer isso. O médi-
coloca ali uma avaliação que diga “este aluno se be-
co pode até contribuir com isso, mas eu acho que
neficia desse trabalho, um trabalho aqui junto, um tra-
essa autonomia é da escola e o médico sabe muito
balho ampliado, é importante”. E aí sim a gente tem de
pouco disso, é uma vergonha, o médico geralmente,
falar com o P de professor mais forte, aí a gente tem
diferente do Fernando que entende um pouco mais
de pensar como é que vai organizar isso.
assim, mas o médico não sabe nada disso. Então
Vou fazer um pulo. Um parceiro psiquiatra de dizer uma coisa e decidir sobre isso eu acho deso-
Caps recebe meia folha de um ofício pedindo um nesto. Que bom que você falou disso. Eu ressaltei
laudo, não me lembro se era um CID, o que é que isso, eu não entendo de escola, não entendo como
dizia, mas sobre o tal do fulaninho que era atendido que as professoras fazem, eu acho incrível. E quan-
no Caps. Ele pega meia folha de ofício, igual, nem do eu trabalhei no Caps, a gente tinha lá um horário
uma linha e diz “a equipe, a rede desse menino pre- que era de sexta-feira de manhã, aberto para a es-
cisa se encontrar”. Então aqui a gente está de fato cola. Não precisava marcar, não precisava ligar, era
subvertendo algo e fazendo algo que é importante só ir. Então as crianças que a gente atendia tinham
que é a produção de rede. Eu não consigo imaginar um recado que ia para professora, se ela quisesse
outro jeito. Eu, enquanto professora de escola, tra- aquele horário era delas. Então tinha lá a equipe,
balhando com atendimento educacional, sempre algumas pessoas sempre disponíveis para atender,
porta aberta. Eu acho que essa coisa é importante forma de fazer seja possível? Então se é o territó-
104
a gente fazer, mas a gente precisa de uma mudan- rio do grupo dos professores que se reúnem numa
ça que mude o discurso que funciona, porque eu certa escola. Eu achei muito interessante porque a
entendo que eu posso, como psiquiatra no Caps, Beatriz perguntou pro Moreira “escuta, como é que
chamar o professor, o professor pede para vir con- você conseguiu lá no grupo do Caps?”, porque ela
versar, vem, a gente faz isso no um a um, mas pre- já está contando de um grupo do Caps que talvez
cisa mudar o discurso, o funcionamento. A gente tivesse dificuldade para poder um dos profissionais
precisa ter uma mudança política em relação a isso. exercer o atendimento da forma como os colegas
Então eu acho que precisa disso que você está co- aqui da mesa apresentaram, né? E eu acho que
locando, mas a gente precisa fazer isso que nós es- essa pergunta tem relação com o conceito de auto-
tamos fazendo aqui porque eu acho que isso aqui nomia, que a gente falou que estava presente nos
é muito perverso, né? Nesse sentido de a gente pôsteres, acho que agora na fala aparece de novo,
poder discutir essas coisas como a gente está dis- o Moreira ressalta. Eu acho que é um conceito para
cutindo aqui e construir um outro tipo de conheci- gente aprofundar um pouco mais.
mento, outro modo. Eu não estou sozinho nisso que
estou falando, eu sei que eu, como médico, posso Rosangela: Eu acho que uma coisa é impor-
ser tomado como representante da medicina, mas tante e vou ressaltar: espaços desta natureza e de
existe muita gente dentro da clínica que questiona tantos outros espaços como esse que acontecem
o modo como as coisas estão sendo feitas e que por aí, precisam se multiplicar, porque a gente pre-
abre possiblidade de pensar de uma outra forma. cisa fazer mais gente pensar e falar a respeito des-
Só que essas pessoas precisam fazer isso, se jun- sas coisas e achar saídas criativas e que possam ser
tar. Porque a indústria farmacêutica sabe juntar as compartilhadas. Eu acho que ontem foi um exercício
pessoas que ela precisa, tem dinheiro para fazer nesse sentido, tantas experiências que foram tra-
isso, por exemplo. E a gente precisa se juntar por zidas. Isso é fundamental que a gente continue fa-
interesse e por amor ao que a gente faz. zendo. E a gente se lembrar de que a política pública
também somos nós. Se a gente se esquivar de fazer
Adriana: Eu vou terminar com uma convoca- o nosso papel, de entrar dentro das políticas públicas,
ção. Fiquei pensando quando a Juliana fala do tem- da construção e da crítica a elas, a gente vai ter que
po e agora a Cláudia da rede. Eu fiquei pensando ficar obedecendo regra. Então, a gente vai continuar
que a maioria dos professores com aos quais a gen- tendo de fazer CID, se não fizer o CID o outro não tem
te trabalha e que estão vivendo certas problemáti- o benefício e isso prejudica a vida, se a gente conti-
cas com as crianças, durante a conversa a maioria nuar não entrando dentro das políticas, a gente vai
diz “não, eu acho que eu sei o que precisa acontecer, ter redução absurda do número de profissionais em
mas não dá pra fazer, eu preciso de mais tempo” ou áreas que são fundamentais para atenção às pesso-
“eu preciso de uma outra rotina” ou “eu preciso de as, então redução de número de professor, redução
mais gente. Sim, porque tem crianças que vão e vem de profissionais de saúde nos equipamentos, e aí so-
e tem a sala de aula e as crianças são pequenas”. Ela mos obrigados a fazer tudo correndo porque entra-
faz uma lista das coisas que precisa, mas não dá. mos de novo na questão do tempo, de a gente ter de
Cada um de nós tem essa lista do que precisa ser dar respostas para as quais a gente não tem tempo
feito no território do trabalho que a gente está, mas de ter respostas adequadas. Então acho que a gente
que a gente fala, “mas não dá”. Eu, por exemplo, eu precisa lembrar que a gente tem espaços de controle
preciso participar da Rede Butantã, eu já participo social em todos os municípios. Eu sei que não é fácil
de uma, mas a Rede Butantã é a maior, e tem al- participar dos conselhos, mas está lá, tem espaço
guns temas em relação aos quais eu trabalho que aberto, a gente pode ir lá e criar possibilidades de
está naquela rede, mas não dá. E eu sei porque não subverter a coisas. Não vamos ser pessoas gratas
dá, todos os motivos estão fora de mim. Pressão em alguns dos espaços, mas tudo bem, é melhor do
do trabalho que eu tenho de fazer. Sim, tem perdas. que a gente engolir os sapos e continuar fazendo do
A gente perde, às vezes, nas avaliações que fazem jeito que eles mandam a gente fazer. Então, eu acho
a respeito de nós, porque não estamos produzindo que isso é um convite que fica. Se a gente tem tantas
da maneira como deveríamos produzir, enfim, tem experiências boas, tantas possibilidades que já es-
perdas. Então, eu queria terminar com essa convo- tão sendo criadas, a gente precisa fazer essas pos-
catória que eu acho que o evento produz, que é: o sibilidades poderem ser usadas de uma forma legal e
que, nas nossas condições e relações de trabalho, não de uma forma por baixo de tapete. Eu acho que
está precisando ser batalhado para que uma certa esse é o convite.
Realização:

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