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cadernos temáticos CRP SP
Patologização e medicalização
das vidas: reconhecimento
e enfrentamento - parte 1
XV Plenário (2016-2019)
Diretoria
Presidenta | Luciana Stoppa dos Santos
Vice-presidenta | Larissa Gomes Ornelas Pedott
Secretária | Suely Castaldi Ortiz da Silva
Tesoureiro | Guilherme Rodrigues Raggi Pereira
Conselheiras/os
Aristeu Bertelli da Silva (Afastado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Beatriz Borges Brambilla
Beatriz Marques de Mattos
Bruna Lavinas Jardim Falleiros (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Clarice Pimentel Paulon (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Ed Otsuka
Edgar Rodrigues
Evelyn Sayeg (Licenciada desde 20/10/2018 - PL 2051ª de 20/10/18)
Ivana do Carmo Souza
Ivani Francisco de Oliveira
Magna Barboza Damasceno
Maria das Graças Mazarin de Araújo
Maria Mercedes Whitaker Kehl Vieira Bicudo Guarnieri
Maria Rozineti Gonçalves
Maurício Marinho Iwai (Licenciado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Mary Ueta
Monalisa Muniz Nascimento
Regiane Aparecida Piva
Reginaldo Branco da Silva
Rodrigo Fernando Presotto
Rodrigo Toledo
Vinicius Cesca de Lima (Licenciado desde 07/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Organização do caderno
Lucia Masini, Rosangela Villar, Maria Rozineti Gonçalves e Lilian Suzuki
Revisão ortográfica
Lucia Masini
___________________________________________________________________________
C755p Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
Psicologia, direitos humanos e pessoas com deficiência. Conselho Regional de
Psicologia de São Paulo. - São Paulo: CRP SP, 2019.
52 p.; 21x28cm. (Cadernos Temáticos CRP SP /nº 29)
ISBN: 978-85-60405-53-4
CDD 157.8
__________________________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Marcos Toledo CRB8/8396
Cadernos Temáticos do CRP SP
Desde 2007, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo inclui, entre as
ações permanentes da gestão, a publicação da série Cadernos Temáticos do
CRP SP, visando registrar e divulgar os debates realizados no Conselho em
diversos campos de atuação da Psicologia.
07 Introdução
Núcleo de Educação e Medicalização do CRP SP
Despatologizar é possível
14 Andreia de Jesus
Na contramão da patologização
50 Rogério Giannini
51 Leonardo Pinho
52 Paulo Amarante
55 Rosangela Villar
Processos de avaliação numa perspectiva
despatologizante
73 Participação da plateia
Subvertendo Laudos
97 Participação da plateia
Introdução 7
- parte 1
Psicologia em emergências e desastres
Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Temática fundamental que merece reflexão e tem como consequência a patologização, em
construção de ações de enfrentamento tanto especial de crianças e adolescentes nas esco-
nos aspectos ligados diretamente à Educação, las. Estes PLs são reeditadas sistematicamente
quanto à vida das pessoas. nas casas legislativas e merecem total atenção
e medicalização
e articulação do Sistema Conselhos, de profis-
O CRP SP tem essa diretriz fruto de deli-
sionais da categoria e outros – ligados ou não
Cadernos Temáticos
berações de nossos COREPs e CNPs, há várias
à Educação e representantes do Legislativo.
gestões e o presente Caderno Temático traz à
Estes PLs geralmente tem a temática ligada a
categoria e à sociedade debates, palestras e
supostos transtornos de aprendizagem, como
Patologização
conferências que o Conselho organizou, apoiou
a dislexia e o TDAH, mas podem também atin-
ou foi parceiro, na gestão 2016 a 2019.
gir outros temas, que medicalizam, patologizam
Entendendo a medicalização/patologiza- e judicializam – como a manicomialização, as
ção da educação e da vida como um processo/ questões étnico-raciais e de gênero, o abuso de
atitude que transforma, artificialmente, ques- cesáreas no Brasil, o parto desumanizado, a cri-
tões não médicas em médicas, com aspectos minalização de crianças e adolescente, via redu-
da vida - de diferentes ordens - sendo trans- ção da maioridade penal, dentre outras pautas.
as Recomendações do Ministério da
Saúde para a adoção de práticas não
medicalizantes, de 1 de outubro de 2015;
e a Recomendação nº 19 do Conselho
Nacional de Saúde, de 8 de outubro de
2015, que recomenda ao Ministério e
Secretarias de Saúde a promoção de
práticas não medicalizantes,
- parte 1
Psicóloga formada pela PUC Campinas, especialista em clínica analítico comportamental
e desastres
e mestre pelo Programa de Mestrado Profissional em Análise do Comportamento
Aplicado; atua no Centro de Educação Especial Síndrome de Down em Campinas, com
e enfrentamento
pesquisa, intervenção e inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento
É um prazer e uma honra estar aqui, queria
agradecer muito o convite do Despatologiza em “Falamos em inclusão porque
parceria com o CRP. Venho propor alguns ques-
tionamentos sobre inclusão no trabalho como
ainda há exclusão”
e medicalização
um caminho para o olhar despatologizante. Atu-
almente, estou na área de inclusão de pesso- pessoas com deficiência. Com quantas pessoas
Cadernos Temáticos
as com deficiência principalmente no mercado com deficiência convivemos no nosso dia a dia
de trabalho. Atuo no CEESD, que é uma insti- especificamente? Como a deficiência ainda é vista
tuição, em Campinas, que atende pessoas com em relação às diferenças do ser humano?
Patologização
Síndrome de Down, desde o nascimento até o
Falamos em inclusão porque ainda há exclu-
envelhecimento. Trabalho especificamente no
são. Historicamente, pessoas que apresentaram
programa da vida adulta, atendendo jovens e
alguma diferença foram marginalizadas na socie-
adultos, a partir dos 16 até o envelhecimento,
dade, além de serem alvo das mais diversas estra-
visando a inclusão no trabalho.
tégias de violência simbólica, preconceito e efetiva-
Quero articular a discussão da inclusão no mente exclusão. Na Idade Antiga, as crianças com
- parte 1
justamente para marcar que as pessoas com
uma vez que entende o processo
e desastres
deficiência não precisam de espaços diferen-
como uma possibilidade de ciados pra trabalhar. Ele não atende só a pes-
e enfrentamento
abertura dos espaços sociais, soas com deficiência, ele atende pessoas com
Psicologia em emergências
deficiência e outras condições que precisam de
como os empregos formais, mais apoio por vivenciarem uma situação de in-
garantindo o direito ao cidadão capacidade mais significativa. Incapacidade no
de acessibilidade aos recursos de sentido da CIF (Classificação Internacional de
e medicalização
o processo como uma possibilidade de abertura
dos espaços sociais, como os empregos formais, o treinamento das habilidades no
Cadernos Temáticos
garantindo o direito ao cidadão de acessibilidade próprio espaço de trabalho, numa
aos recursos de sua comunidade.
situação real de vida”
Patologização
Retomando, então, 5% das pessoas com de-
ficiência, no censo de 2010, estavam formalmente
incluídas no mercado de trabalho. E os 95% restan- Outro ponto importante no Emprego
tes? Ou essas pessoas não estão trabalhando ou Apoiado é o de respeitar os interesses, as habi-
elas estão em programas não formais, em coope- lidades e as necessidades de apoio de cada um.
rativas. E quando essas pessoas estão em coope- Então, o Emprego Apoiado, por exemplo, atende
rativas, reforçamos a lógica de patologização, de pessoas que passaram por uma dependência
química, pessoas com transtornos psicosso-
- parte 1
isso acontecia porque ele estava num lugar que para a pessoa e para equipe em que está traba-
e desastres
ele não gostava, e aí tudo virava um problema. lhando. O empregador acaba vendo a inclusão
Quando fizemos essa mudança de emprego, le- com outros olhos a partir do desempenho real
e enfrentamento
vando em consideração o que ele estava que- das pessoas.
Psicologia em emergências
rendo, a postura dele mudou da água para o vi-
Entendo que o Emprego Apoiado vem para
nho. E é muito legal ver o papel da família nisso
quebrar com o paradigma da diferença como do-
também, de ver a satisfação da família nesse
ença e da necessidade de espaços de trabalho
desenvolvimento da pessoa.
e medicalização
espaços de trabalho diferenciado quecer que as pessoas com deficiência também
para as pessoas com deficiência. têm projetos de vida. “Nada sobre nós sem nós”.
Cadernos Temáticos
O Emprego Apoiado aposta que O Emprego Apoiado também está alinha-
do com o modelo social de que falamos aqui
todo mundo é ‘empregável’, todo
Patologização
sobre deficiência. A inclusão no trabalho é uma
mundo tem direito ao emprego questão de adaptação do ambiente. Antes, as
independente de sua condição. pessoas com deficiência precisavam se adaptar
ao ambiente, a responsabilidade pela adapta-
Se a pessoa exprime esse
ção era delas, assim como a culpa pela inadap-
desejo, ela tem esse direito e é tação. Então, a vaga existia e a pessoa preci-
uma questão de adaptação” sava se qualificar para chegar até ela. Com o
Em primeiro lugar, boa tarde. Queria dizer que es- do Mia Couto que eu li, e ele diz assim, “o impor-
tou imensamente feliz porque, como disse Bian- tante não é casa onde moramos. Mas onde em
cha Angelucci, “eu sou da casa”, mas ser da casa nós, a casa mora.”
também tem muita responsabilidade. E estou
Resolvi ocupar um pouco o lugar da esco-
mais feliz ainda em encontrar aqui Maria Apare-
la “regular”, entre aspas, porque de regular não
cida Moysés que tem, na minha formação, um pa-
tem nada. Eu sou professora habilitada e, du-
pel primordial. Uma parte do que eu venha contar
rante muitos anos, fugi das instituições. Mas na
aqui, nesse momento, está alicerçado em prin-
minha trajetória, num determinado momento, eu
cípios discutidos no início da década de 90, em
tive que me haver com elas. Há quase cinco anos,
que eu era uma menina, vinda de São Paulo para
estou em Franco da Rocha a convite de uns ami-
Campinas, na expectativa de ser historiadora,
gos que assumiram a Secretaria de Educação, e
mas acabei virando pedagoga, com elementos
me chamaram pra fazer parte dessa empreita-
dos quais eu não tenho dúvida que constituíram
da. Eu disse que eu aceitaria, desde que eu não
um pouco da profissional que eu sou hoje.
tomasse conta das questões que envolvessem
Eu tenho uma filha de 10 anos que me inclusão das crianças com deficiência, porque
vê há muitos dias comentando sobre fazer um eu queria uma trégua dessa jornada.
texto e não produzindo o dito texto. Por várias
vezes falei, “ah, preciso fazer um texto, preciso Eu tinha me exonerado da Prefeitura de
fazer um texto, preciso fazer um texto.” Então, São Bernardo no começo dos anos 2000, onde
no domingo, ela sentou lá em frente ao compu- fiquei entre seis e sete anos, num momento
tador e falou assim, “mãe, eu vou escrever o seu muito importante para desconstrução de coi-
texto”. “Uau! É mesmo?” perguntei, “não, vou te sas que hoje a gente tem de lutar bastante pra
ajudar aqui, vou começar”. E, então, ela come- mantê-las. Eu trabalhava no Centro de Apoio, no
çou “meu nome é Andreia, eu trabalho em Fran- tempo em que as crianças com deficiências não
co da Rocha, eu sou pedagoga”. Foi quando ela eram matriculadas na escola regular, elas eram
disse, “mas eu não estou entendendo, você é matriculadas no Centro de Apoio. E era eu, no
pedagoga ou você é professora?”. Centro de Apoio, no meu papel de professora,
que decidia se determinada criança iria ou não
Essa é uma das coisas que nos comportam para o regular. Era uma das coisas que mais me
enquanto categoria. Eu gosto sempre de dizer incomodavam: ter essa responsabilidade.
que, antes de mais nada, eu sou uma professo-
ra polivalente. Gosto muito desse lugar que eu Comecei a trabalhar em São Bernardo num
ocupo, porque esse lugar me permite fazer cer- grupo de pessoas que entrou no mesmo con-
tas ousadias. Então, resolvi começar hoje com curso e, coincidentemente, todas vindo da es-
uma frase do Mia Couto de que eu gosto bas- cola. Como nós tínhamos vindo da escola, não
tante, que está no livro Um Rio Chamado Tempo, sabíamos mesmo fazer o atendimento naquela
uma Casa Chamada Terra, que é o primeiro livro perspectiva que nos diziam que teria de ser o
atendimento das crianças com deficiência. Tudo
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muito tranquilo, tudo muito devagar, muita es- “Ao abrir os planos de trabalho
cala pra preencher. Eu não sabia fazer aquilo.
Então, o que fazíamos? Víamos os horários em
das escolas, fiquei admirada,
que as crianças chegavam e nós nos agrupáva- porque tinha aula de ioga,
mos. Fazíamos, de fato, uma pequena escola. de violino, e eu pensava em
- parte 1
quanta coisa legal essas
e desastres
E assim fomos nos dando conta que aque-
la nossa escola não tinha nada de tão verdadei- crianças poderiam aprender.
e enfrentamento
ro quanto imaginávamos, por mais que tivésse-
mos a melhor das intenções. Passamos, então, Minha surpresa foi descobrir
Psicologia em emergências
a discutir cada vez mais que o lugar daquelas que não teríamos mão de obra
crianças era na escola regular. Quando graváva- o suficiente para a execução
mos os nossos encontros, as vozes que ouvía-
dessas propostas desenhadas”
e medicalização
EJA. Nós temos um total de 15 escolas de Ensi-
Então, quando cheguei em Franco da Rocha no Fundamental e 34 escolas de Educação In-
Cadernos Temáticos
com a condição de não trabalhar com essa pauta, fantil. Hoje coordeno três projetos, dentre eles
esses meus amigos me disseram que tinham ou- o Mais Educação, um projeto chamado Foco e o
tras demandas para mim. E, de fato, eles tinham. Atendimento Educacional Especializado.
Patologização
Nessa época, era o início de uma gestão Quando cheguei em Franco pra cuidar
petista. Nós somos hoje, digo isso com todo or- do Mais Educação, fiquei superfeliz porque os
gulho, uma das pequenas cidades no estado de meus amigos me disseram que inscreveram as
São Paulo que se mantém com 70% de aprova- escolas na plataforma do Governo Federal e
ção na eleição e estamos na segunda gestão. elas escolheram os seus campos de trabalho.
Acho que somos sobreviventes no meio desse Nossa tarefa seria organizar como esses pla-
- parte 1
va, de certa maneira, as conversas, o jeito das to desse espaço, porque é um espaço público,
e desastres
crianças maiores. Assim, optamos por trabalhar bonito, quanto da relação que eles estabelecem
no programa com as crianças dos quintos anos. com esse espaço.
e enfrentamento
As imagens que vocês estão vendo são No ano passado, fizemos uma viagem, a
Psicologia em emergências
das crianças no processo que a gente faz de que chamamos de “viagem ao imaginário”, em
ocupação do Complexo do Juquery. Hoje, o Com- que as crianças, junto com os professores, ti-
plexo do Juquery tem uma parte é da prefeitura nham de escolher um lugar para fazer uma via-
e medicalização
imaginária, e eu brincava que tínhamos de es-
elas, em rodas de conversa, e essas crianças,
colher um lugar e que para esse lugar nós tí-
que hoje têm nove, dez, onze anos, são a última
Cadernos Temáticos
nhamos de produzir, pelo menos, cinco aconte-
geração de crianças também nascidas em Fran-
cimentos. Então, teve gente que foi para o Rio,
co e na maternidade do Juquery, porque com o
mas que passava em Paris. Foi para o Rio, mas
fechamento do Complexo, fechou-se também o
Patologização
no Rio nevava. Um pouco para também tirar da
complexo hospitalar. E o que me chamava aten-
cabeça essa ideia de que as coisas são todas
ção, e me chama sempre atenção em Franco, é
compartimentalizadas, tudo tão separado, e
que todo mundo, direta ou indiretamente, tem
que, pra estudar o Rio de Janeiro, tem de es-
uma história relacionada a este lugar. Então,
tudar quantos habitantes têm, qual é a cor da
as crianças têm muitas histórias em relação ao
bandeira, o que que eles comem lá. Não estou
Complexo do Juquery.
dizendo que essas coisas não são importantes,
- parte 1
A Biancha me sugeriu fazer um piloto desse
e desastres
trabalho sem retirar as crianças da sala de aula,
já que isso continuava me incomodando. Come-
e enfrentamento
çamos com essa brincadeira em uma unidade
escolar em que tínhamos os dois programas fun-
Psicologia em emergências
cionando. Não foi um processo simples, porque a
sensação de invasão na própria sala de aula tam-
bém é muito grande. Mas foram surgindo coisas
e medicalização
E por que que a gente resolveu construir
Cadernos Temáticos
pipa? Por dois motivos. Aparecia como uma coisa
que as crianças mais queriam fazer, mas a minha
experiência também tem dito que os professo-
Patologização
res precisam ser desafiados no lugar de fazer
algo com as crianças que eles sejam obrigados
a ouvir as crianças, que as crianças nos contem
como fazer.
Boa tarde. Para participar de um evento, nos orga- ria, ou na assistência e que têm alguma interfa-
nizamos sozinhos, em casa, e quando chegamos ce com a educação. Ficam de três anos a quatro
aqui, tudo se compõe com um dia, uma discussão, anos, uma vez por mês, duas horas cada encon-
um certo lugar e vamos percebendo que o que pro- tro. De 1997 pra cá, foram mais do que 130 gru-
gramamos talvez não sirva muito bem mais. Eu já pos. Muito trabalho que foi nos abrindo o mundo
tinha até dito isso em relação à mesa da manhã, para podermos pensar algumas questões que
que eu me sentia muito satisfeita assim, pensando vão acontecendo na interface com a educação.
muitas coisas. Então, depois de ouvir agora as co-
Tivemos uma mudança muito grande e eu
legas também, você vai riscando, vai cortando, vai
não posso deixar de falar dela. Fui contratada,
falando “isso aqui é um absurdo...”
durante 25 anos na universidade, como psicólo-
Bom, essa mesa se coloca nesse evento um ga, assim como minhas colegas, para trabalhar-
pouco para contarmos algumas operações, algu- mos bem. Se uma certa escola tem uma reunião à
mas invenções, algumas maneiras de fazer o que noite, vamos na reunião à noite; se há uma festa
vamos inventando a partir do lugar que estamos no final de semana, vamos no final de semana,
para dar conta de certos problemas, de certos ini- mas agora nós temos o relógio de ponto. Há pou-
migos, e alguns deles, em nós. Tempos difíceis. Eu cos meses, a USP iniciou com o relógio de ponto,
sou professora na Universidade São Paulo e tra- e aprendemos que ele não é um organizador do
balho no serviço de psicologia escolar há 30 anos, trabalho, e sim, um impeditivo do trabalho. Falo
dos quais 25 anos fui psicóloga e há cinco, além dele porque tem relação com o que eu vou dizer
de trabalhar no serviço, faço parte como docente. aqui hoje. Quem defende o relógio de ponto usa
o argumento que é “sempre teve aquele funcio-
Trata-se de um serviço público numa insti- nário público que não faz nada”. Essa questão
tuição pública, dentro do Instituto de Psicologia, do “sempre” também diz de uma certa covardia
com a marca da seguinte pergunta: como criar nossa de como criar enfrentamentos no cotidiano
trabalhos e ações que vão na contramão daquilo em relação àquilo que discordamos. É muito co-
que se tornou o encaminhamento da educação mum o pensamento “o que eu vou fazer? O que eu
para saúde? Como ir na contramão desse enca- vou falar?”. Então, acho que o relógio de ponto diz
minhamento? de um certo enfraquecimento que nos convoca a
pensar na nossa responsabilidade nisso tudo.
Vamos publicar um livro, online pela pri-
meira vez, sobre os 40 anos do serviço. Uma ho- Não se faz uma mudança sem agir no fascis-
menagem aos 40 anos do serviço. Lá contamos mo em nós, sem outra subjetividade. Falamos contra
algumas histórias, algumas invenções, como o uma certa subjetividade que tem a capacidade de
plantão institucional que se constitui em a uni- exteriorizar, que fala do outro, como se ao falar não
versidade abrir espaço e horário para receber estivesse constituindo esse outro. Falamos de uma
grupos de trabalhadores, que atuam nas escolas, subjetividade que dicotomiza, com a ilusão de que a
ou em serviços de acolhimento, ou na Promoto- dicotomia seria um final feliz, não aos manicômios.
estagiários que trabalham comigo sobre as vi-
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“Não se faz uma mudança sem sitas às instituições. Relatórios que contavam
tudo. “Cheguei à escola, estava uma bagunça,
agir no fascismo em nós, sem eu não sabia o que fazer, eu ando meio perdi-
outra subjetividade. Falamos do. A professora me recebeu, ela foi supergentil,
contra uma certa subjetividade mas logo vi uma cena que é uma cena aonde al-
- parte 1
gumas crianças estavam sendo humilhadas por
que tem a capacidade de
e desastres
um funcionário.”
exteriorizar, que fala do outro,
e enfrentamento
Esses relatórios são trabalhados no es-
como se ao falar não estivesse tágio supervisionado, do Instituto de Psicologia
Psicologia em emergências
constituindo esse outro” da USP. Estamos falando de um privilégio que é
estudar num lugar como a USP, onde existem 20
O que eu faço quando uma mãe pede inter- psicólogos de áreas diferentes que têm a função
e medicalização
mas e nas impossibilidades.
Nós estamos com um problema, com uma
Cadernos Temáticos
lógica padrão de que as coisas, tudo que vemos e Então, nós resolvemos mudar o nosso pe-
vivemos, existiriam fora de nós, quando, na verda- dido. Não nos interessava mais nenhum tipo de
de, tudo que vemos e vivemos é construído e fruto escrita sobre alguma coisa. Interessava-nos pen-
Patologização
das relações que habitamos. sar que uma das coisas que a gente tinha que
disputar era a ideia de que conhecer é bom. Em
Eu, mulher, branca, chego de carro nas As Formas Jurídicas de Foucault, primeira pales-
escolas públicas e a professora me pede para tra, em que ele faz articulações com o Nietzsche,
atender um aluno. O desenho desse aluno ser há a seguinte passagem: “Conhecer. Conhecer é:
atendido é constituído na relação comigo. Ca- deplorar, rir e destruir.”
minhamos nessa discussão, mas ela permane-
O que que o Foucault está nos ensinando
- parte 1
escrever”. Eram cartas que contavam aos professo-
conhecer a partir das marcas
e desastres
res novos alguma coisa que ajudasse essa chegada.
“Preciso te dizer a mudança que conseguimos na fes- que as pessoas produzem em
e enfrentamento
ta junina no ano passado.” O outro “conheço a história mim: se você é agressiva, eu me
Psicologia em emergências
dessa escola”, o outro, “cheguei no final do ano. Fui
professora realocada, cheguei no final do ano”.
sinto agredida e, portanto, você é
agressivo; outra coisa é conhecer a
Eram pequenas cartas. Mas por que isso?
partir das relações: se eu me sinto
e medicalização
conceito que concordamos, agimos pouco nesse que
relação. Portanto, - o exemplo
espinosano -, ‘se a água derruba,
Cadernos Temáticos
discordamos. Queremos agir nele e, portanto, quere-
mos conceituar a diferença numa certa convenção. se o corpo cai, a possibilidade de
Bom, nesse sentido, cada palavra escrita não é uma
liberdade é criar o nadar’ ”
Patologização
escolha livre, no sentido de liberta das relações que a
constituem. O que há são escolhas implicadas.
“É preciso”. Por que que a gente escreve “é pre-
A liberdade aqui não se refere ao sentido de ciso” sem ser em manifesto? Um trabalho que fala “é
fazer boas escolhas, refere-se à possibilidade de preciso” ou produzimos a precisância durante o texto,
criação. Uma discussão de que eu gosto e uso mui- ou até produzimos e estamos resumindo, mas traze-
to sobre liberdade é a que coloca a possibilidade de mos como se fosse uma coisa nova.
pensarmos que uma coisa é eu conhecer a partir das
Queria conversar um pouco sobre o tema da mesa a menor crítica. O Instituto Nacional de Saúde
que é “Despatologizar é Possível”. Mariazinha Mental, em 2012, disse que 46% dos estaduni-
(avatar presente nos slides de suporte da apre- denses preenchem critérios de diagnóstico de
sentação) ajudará nessa tarefa. um transtorno mental. Ponto. É isto. Não é crítica,
vamos deixar isso bem estabelecido. Na Euro-
Bom, eu não sei se todos vocês estão acos-
pa, em 2013, se afirmou 38% dos europeus com
tumados, mas exige-se que médicos e médicas, ao
transtornos mentais. O Centro de Controle de
publicarem ou fazerem apresentações, declarem os
Doenças nos Estados Unidos revela que uma em
conflitos de interesse. Infelizmente, há de ter moti-
cada cinco crianças tem, por ano, um episódio de
vos para isso. Então, eu declaro que eu não tenho
transtorno mental. O que eles estão chamando
conflitos de interesses com a Novartis, nem com a
de episódio de transtorno mental, clareando, é
Jansen, nem a Shire. Com nenhuma indústria, nem
um surto psicótico. Uma em cinco. Nos Estados
com editoras. Eu publico algumas coisas, mas não
Unidos, os diagnósticos de transtorno bipolar au-
ganho dinheiro com isso, às vezes a gente paga
mentaram 40 vezes.
pra publicar. Enfim, eu não tenho nenhum interesse
financeiro nessa discussão, eu não tenho nenhum
Só lembrando: o transtorno bipolar é o su-
conflito de interesse. Mas tenho sim, alguns com-
cedâneo, o herdeiro da PMD (Psicose Maníaco
promissos que são radicais, porque vão à raiz das
Depressiva). E tem alguns fatores que já ajudam
coisas e são intransigentes porque são princípios
a entender esse aumento de diagnósticos de
e princípios a gente não transige, a gente não ne-
transtorno bipolar. Vejam: até metade dos anos
gocia. O intransigente é: não negociamos princípios.
90, era um dado inquestionável que não existia
O convite da mesa era pra falar de possibili- PMD em crianças, e era muito raro em adolescen-
dades de despatologização, e de vez em quando tes. O caso mais descrito no mundo era o de um
a minha cabeça se descomporta se comportan- garoto de 13 anos, que era raridade. Então, não
do. E aí eu pensei assim, “mas como é que eu vou tem PMD, pediatra não se preocupa com PMD
falar de despatologização sem falar o que quer porque não tem. E, de repente, tem esse aumen-
dizer, por que que precisa despatologizar?” to. Bom, alguns fatores têm pra isso, sem dúvida.
- parte 1
nados em surtos psicóticos estavam recebendo de política pública, pensar em implantar qualquer
e desastres
drogas, substâncias psicoativas, há mais de três política pública que dê conta de atender isso. Não
anos. 80% num estudo, 70% no outro, e todos au- dá pra atender. E não é porque o SUS... não. Em
e enfrentamento
tores dizendo “esse jovem não tinha nada na his- lugar nenhum do mundo.
Psicologia em emergências
tória de vida que indicasse que ele teria um surto,
Isso é, no mínimo, duplamente perverso, por-
e agora ele está tendo um surto” e tem uma clara
que teremos crianças, como a Mariazinha que se
relação com o uso de substâncias psicoativas.
descomporta muito comportadamente, sendo ro-
e medicalização
Joãozinho também não é atendido.
pouco, mas não tem tudo, então um pouco você
tem. E não estou desqualificando, ridicularizando, Vejam que é perverso com quem é rotulado
Cadernos Temáticos
fazendo bullying com quem tem autismo. Não é não tendo problema e é perverso com quem tem o
isso. O diagnóstico melhorou? Ok, mas isso não problema. É impossível dar conta desses números.
acontece em campo nenhum na medicina. Só Para entendermos quando a gente fala em epide-
Patologização
aqui no campo dos transtornos mentais é que mia de transtornos mentais, precisamos corrigir a
melhora o diagnóstico? Isso é algo que cientifica- escrita. Na verdade, é uma epidemia de diagnósti-
mente não se sustenta. cos de transtornos e não de transtornos. Com es-
ses números, não dá para aceitar esse dado que
Bom, a partir desses números somos obriga-
é divulgado. Falar em porcentagem nessa frequ-
dos a pensar: quem é normal? Temos uma discus-
ência, não cabe na racionalidade médica. Alguma
são, há tempos, de que normalidade é um conceito
coisa de muito errado está acontecendo aqui.
Enfim, é disso que estamos falando. Para si- Quanto um jovem pode não gostar de estu-
tuar o que estamos falando, nos Estados Unidos, dar sem risco de ser rotulado como transtorno de
houve um aumento de lucro da indústria farma- aprendizagem? Pode não gostar, não é? Aliás, é
cêutica, em 2008 eram US$ 799 bilhões e em 2015 mais normal não gostar.
subiu para US$ 1.057 bilhões. Esses são dados Quanto uma criança pode ser desobe-
extremamente difíceis de conseguir porque só diente e sem limites sem o risco de ser rotula-
são divulgados em livros que só eles têm acesso, da como opositor desafiante? Quanto a gente
por isso não estão atualizados, mas já dá uma di- pode ser teimoso e desafiar e questionar? Ali-
mensão da grandeza. ás, aqui todo mundo tem TOD. E eu sempre digo
que quem tem TOD autêntico diz, “eu não tenho
TOD, eu tenho Nescau”.
“E, então, estamos falando
Quanto uma criança pode ser agitada e
do quê? De diagnóstico? De ativa sem risco de ser rotulada como hiperati-
etiqueta? Ou de uma vida va? Pode ser agitado? Tempos atrás, as crianças
transformada em mercadoria?” eram espertas, peraltas, desobedientes, sonha-
doras, arteiras...
- parte 1
Quantas vezes uma pessoa pode fazer sexo
aterrarmos, criarmos solos ético-
e desastres
– e com quanto prazer – sem o risco de ser rotula-
da como transtorno de hipersexualidade? políticos. É ela dizendo para nós,
e enfrentamento
Eles não tiveram coragem no DSM-5 de colo-
‘Despatologiza’ ”
Psicologia em emergências
car o homossexualismo de volta como doença, que
foi uma conquista do movimento LGBT. Não é do-
A subjetividade é aquela, é uma possível.
ença. Não tiveram coragem, mas criaram o trans-
e medicalização
depressão? Eu não sei se vocês sabem que até A gente estancou de repente
DSM-4, o luto era critério de exclusão pra de- Ou foi o mundo então que cresceu...
Cadernos Temáticos
pressão. Uma pessoa em luto não poderia ter o
diagnóstico de depressão. O DSM-5 manteve o A gente quer ter voz ativa
critério por 14 dias. No décimo quinto dia, você
Patologização
No nosso destino mandar
pode estar com depressão.
Mas eis que chega a roda viva
Tem alguns textos lindíssimos de uma mé-
dica inglesa, Joanna Moncrieff, em que ela diz E carrega o destino prá lá...
que: “com certeza quem fez isso nunca perdeu Então, Mariazinha vem lembrar que um
uma pessoa querida, porque, provavelmente, nun- dos modos da gente despatologizar ou cons-
ca amou ninguém”. truir vidas despatologizadas, é nos aterrarmos,
possibilidades e enfrentar
desigualdades
- parte 1
Psicologia em emergências e desastres
e desastres
e enfrentamento
Maria Teresa Esteban
Psicologia em emergências
Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense, mestrado em Educação pela Universidade
Federal Fluminense, Doutorado em Filosofía y Ciencias de La Educación pela Universidade de Santiago de
Bom dia. É um prazer enorme estar aqui esta trutura, que se consolida, começando aos sete
manhã, compondo esta mesa. Agradeço o con- anos. Essas crianças estão fazendo provas em
vite, é uma alegria muito grande. que têm de preencher cartão resposta. Há toda
uma defesa para isso e já tem um movimento
e medicalização
em curso de expansão para educação infantil.
e um pouco de dentro da sala de aula, que é o Imagino eu que as crianças da educação infantil
Cadernos Temáticos
meu lugar. Sou da Faculdade de Pedagogia, sou não farão as provas de múltipla escolha, mas
pedagoga, então o meu lugar é a escola e a sala esse olhar do exame, é um olhar que padroniza,
de aula e, muito especialmente, a escola públi- classifica e, portanto, segrega e exclui. Então, é
Patologização
ca; a escola pública brasileira que é uma esco- desse lugar que eu venho pensando essas re-
la que recebe fundamentalmente as crianças, lações que estão tão naturalizadas e intensifi-
adolescentes e jovens das classes populares. cadas que nós quase não percebemos que elas
Temos aí um recorte importante de diálo- vão abarcando a quase totalidade das crianças.
go com as questões da patologização, da ex-
clusão e da segregação, que vem produzindo
um discurso que traduz a diferença como justi- “Vou pensar aqui a escola como
- parte 1
de de que a ação docente esteja atravessada tra na escola, o pai diz, “agora eu já sei o que eu
e desastres
por essa lógica da pesquisa. Trabalhamos com a tenho que fazer”, e ele a alfabetiza em casa e ela
ideia de professora pesquisadora porque, como vai para a escola já alfabetizada. Então, esse
e enfrentamento
podemos ver aqui nesse auditório e em muitos “agora eu já sei o que tenho que fazer”, para mim,
Psicologia em emergências
outros, o magistério ainda é predominantemen- é extremamente importante para compreender
te uma profissão feminina. Às vezes, usamos o essa relação, porque nós que temos uma expe-
arroba (@) para fazer professores (professor@s), riência histórica de escolarização, já sabemos o
mas ainda o conceito formulado foi dessa forma, que nós temos de fazer, fazemos naturalmente,
e medicalização
de conhecimentos e precisa ser, para que seja professora pesquisadora é que esse processo
um espaço compartilhado de conhecimentos, de conhecimento do que fazer, do como fazer,
Cadernos Temáticos
um ambiente dialógico, tomando como refe- do para que fazer, do por que fazer, é objeto de
rência a própria prática e tendo como destino estudo e de trabalho da comunidade escolar e,
das reflexões e das ações, a própria prática. O muito intensamente, da professora e do profes-
Patologização
que se procura é não ficar fechado no âmbito sor. Não é um movimento exclusivo da família
da escola, mas uma atenção permanente e uma de buscar formas de compreender uma lógica
tensão, atenção e tensão permanentes naquilo bastante distante e poder então se integrar a
que vai acontecendo na escola. E assim, esse ela, mas uma perspectiva de diálogo em que a
espaço é o espaço da diferença. possamos produzir o cotidiano da escola como
um espaço de todos, comprometidos com a
Quando olhamos para a sala de aula, para
produção de conhecimentos diferentes com
Tenho uma situação de uma estudante que Esse processo de exclusão frequentemen-
eu gosto sempre de contar. Ela me ajuda muito te vai sendo acompanhado de um discurso de
a pensar. Atualmente ela faz doutorado sob mi- patologização. Exclusão um pouco na perspec-
nha orientação, mas ela fez mestrado também, é tiva do que a Biancha (Angelucci) diz: o fracas-
uma professora muito experiente; e ela, um dia, so é responsabilidade do sujeito, no máximo de
me contou uma coisa que considero muito im- sua família e não é tomado como uma questão
portante para entender esses movimentos. da escola e da sociedade. Não quero marcar aí
só a questão da desigualdade socioeconômica, É nesse sentido, com a perspectiva da
34
claro que ela é fundamental. Mas, o que é que educação libertadora que vamos trazer o diálo-
nós fazemos com esses sujeitos diferentes que go para o centro do processo e a necessidade
chegam à escola com as suas diferenças? E o de conhecer o outro, com o outro. Nesse conhe-
que é que nós fazemos com essas pessoas que cimento do outro com o outro tem também a
ali se encontram cotidianamente? produção de um autoconhecimento. Isso traz
a alteridade para o centro do trabalho peda-
A justificativa da condição socioeconômi-
gógico, e é nesse movimento que nós vamos
ca serve como um argumento para não apren-
encontrando: o que precisamos estudar, o que
dizagem, para o fracasso, para os processos
queremos aprender, como vamos caminhar no
de exclusão da mesma forma que os discursos
sentido de buscar esses conhecimentos, como
medicalizantes. Então, “bom, eu não posso fazer
esses conhecimentos se articulam às nossas
nada porque veja bem: é de uma família... o pai
experiências, o que não significa ficar limitado
tá preso, a mãe é alcoólatra, então, né? Então...”.
às nossas experiências, mas tomar as nossas
É esse “então” que vai afastando a escola da
experiências como pontos de problematização
produção de processos, de conhecimento e de
para que possamos permanentemente estar
aprendizagem mais interessantes para todos.
ampliando os nossos conhecimentos.
Volto a dizer, é extremamente desafiador por-
que nós professores e professoras precisamos Nesse sentido, toda diferença é bem-vin-
aprender nesse processo, aquilo que nós tra- da, porque traz um ponto de vista, uma pers-
zemos é o que nós podemos trazer, é o nosso pectiva, uma questão que é única em certa
ponto de partida para então retomar um pro- medida. Cada sujeito traz aquilo que pode ver,
cesso de aprendizagem. viver, sentir para esse movimento que é coleti-
vo e que, assim vai complexificando o coletivo
E é desse modo que eu entendo que edu-
e alargando as possibilidades desse coletivo
cação popular nos ajuda a enfrentar esse deba-
aprender, produzir conhecimento. Produzir co-
te. Primeiro, pela perspectiva de liberação que
nhecimento em diálogo.
a educação popular traz. A educação popular
está vinculada não apenas com as classes po- Nesse contexto temos tentado trazer a
pulares, porque tem-se aí uma série de modos avaliação para esse movimento. Não a avaliação
de estar vinculado com as classes populares e como o processo que padroniza, classifica, jus-
com a pobreza e com a exclusão, mas está vin- tifica e exclui, mas trazer a avaliação como um
culada com as classes populares no sentido de processo de reflexão sobre esses movimentos,
produção, de processos, de libertação, de trans- sobre essas demandas, sobre aquilo que é ins-
formação dessa condição de subalternidade e, taurado para que, coletivamente, se possa pen-
portanto, transformação dessa dinâmica social. sar na redefinição dos processos, dos movimen-
tos na medida em que isso vai sendo necessário.
- parte 1
essas questões são levadas pra discutir com a di-
fortalecida, num movimento
e desastres
reção, com o conselho escolar, para poder entrar
em negociação na sua própria pauta. Dentre o de pensar a própria escola, de
e enfrentamento
conjunto de reinvindicações que as crianças tiram pensar a escola em conexão”
Psicologia em emergências
de uma assembleia como essa, por exemplo, estão
elementos da vida cotidiana da escola: merenda, do texto acima começa dizendo isso, “eu gostei
estrutura, relações, questões de comportamento. da produção de texto coletiva”, porque também
É muito interessante que inicialmente as questões
e medicalização
elas e com uma comunidade escolar de um modo
São as crianças que vão dando visibilidade mais interessante, no sentido da ampliação do
a isso nas suas respostas, nas suas reflexões. Só
Cadernos Temáticos
conhecimento e não de ficar discutindo avaliação.
pra marcar: essa escola não faz nenhum exame Como aumentamos o rendimento das crianças
externo, nunca fez, nem nacional, nem municipal, nos exames. Quer dizer, na medida em que a es-
Patologização
e isso vem sendo um ponto de conflito bastante cola toma uma decisão política de não participar
intenso com a Secretaria Municipal de Educação, desse tipo de exame, ela também vai sendo for-
obviamente. Então, esse movimento com as crian- talecida, num movimento de pensar a própria es-
ças é bastante significativo. Os professores vão cola, de pensar a escola em conexão. Houve um
produzindo materiais com as crianças, nos quais momento em que a Secretaria de Educação dis-
elas vão falando sobre as suas aprendizagens. Eu se que ia fazer a prova, mesmo que tivesse que
vou ler um que acho especialmente interessante. entrar com força policial. E foi muito interessante
Bom dia a todas e a todos. Eu queria também Eu não sou professor, não tenho habilidade
agradecer o convite, a oportunidade de partici- didática e minha cabeça funciona de uma maneira
par desse evento. Cumprimentar os demais par- muito desorganizada. Então, o fato de eu ter fica-
ticipantes aqui da mesa. Bom, eu queria dizer do por último, se de um lado me ajuda a entender
que eu estou com uma certa dificuldade desde um pouco melhor o contexto, de outro, estou aqui,
o momento que recebi o convite em saber exa- pensando no que falaram os que me antecederam
tamente por que que eu recebi o convite, e de e tentando organizar em algum departamento para
que maneira eu posso contribuir com o debate. eu conseguir retomar o que eu tinha imaginado. Na
verdade, o que eu acho que eu poderia tratar com
Eu sou promotor de Justiça, desde 2011,
vocês um pouco, é de um fenômeno que nós senti-
trabalhando num grupo que atua na área da
mos no cotidiano e às vezes não temos condições,
defesa do direito à educação em São Paulo. E
tempo, possibilidade de perceber o quanto esses
fiquei pensando um pouco assim, a minha ati-
fenômenos interferem na nossa vida, e na vida es-
vidade profissional, desde o início tem sido um
colar para reduzir um pouco o campo para o que
aprendizado de diálogo interinstitucional e in-
vem sido debatido aqui.
terdisciplinar. Então, desde que eu assumi essa
função de defesa do direito à educação, eu vi- Vou distinguir dois fenômenos: um de juridifi-
nha já de 20 anos quase de Ministério Público, cação e o outro de judicialização. Quando me cha-
de área criminal, infância e juventude, direito de maram, e eu verifiquei o tema, despatologização,
família e tudo mais, e quando me deparo com comecei a pensar em que medida essas questões
essa atividade, percebo, logo de cara, o tama- da atuação do sistema de justiça e da hipernor-
nho do desastre que poderia acontecer a partir matização da vida, da política, das relações so-
de uma intervenção tradicional do sistema de ciais da escola, poderiam aí se encaixar. E comecei
justiça nesse trabalho. a recuperar uma reflexão que já é um debate nas
ciências políticas, na filosofia, no direito também:
Então, logo de início, nós temos uma preo-
os fenômenos de juridificação e judicialização, são
cupação, primeiro de ter uma equipe técnica in-
uma patologia da democracia; são, ao contrário,
terna no Ministério Público, que hoje tem psicó-
uma manifestação de um vigor maior de uma de-
logos, assistentes sociais e mais recentemente
mocracia numa sociedade complexa ou, fugindo
reforçada por uma pedagoga, mas de buscar
então dos conceitos médicos, não são nem uma
amparo para atuação na academia, na universi-
coisa nem outra?
dade e tudo mais. Então, quando recebo o con-
vite para um evento também interinstitucional e Não vamos falar nem de patologia, nem de
interdisciplinar, eu venho muito feliz em ouvir o vigor de saúde, mas de um fenômeno que preci-
que as pessoas têm a dizer e assumindo o ris- samos melhor compreender. Quando eu faço a
co de falar um pouco sobre campos que eu não distinção entre juridificação e judicialização, estou
domino, e pensando de que maneira podemos trazendo então como juridificação a expansão do
estreitar essa articulação e esse diálogo. próprio direito, o adensamento da norma formal, e
das fontes também que geram essas normas, para da Fundação Getúlio Vargas também, eles têm,
37
campos da vida onde anteriormente, ela não se pra quem tiver interesse, um setor de pesqui-
aplicava. E judicialização seria um aspecto decor- sa que se chama Supremo Tribunal Federal em
rente dessa juridificação, que pode ser entendido Números, que mostra também que, conforme a
como a levada da decisão sobre um determina- população vai ganhando formação educacional,
do conflito ou um direito ao judiciário, ou também mais ela litiga. Então, há uma relação não mais
- parte 1
como a adoção de processos específicos judiciais de renda e litígio judicial, mas de formação de
e desastres
do sistema judicial pra outros departamentos. En- educação formal e litígio. Então é um fenômeno
tão, é o processo administrativo escolar, disciplinar que está colocado.
e enfrentamento
e tudo mais, que poderia entrar um pouco nesse
Se fizermos aí um grande panorama sobre
Psicologia em emergências
conceito. Para que a gente tenha uma ideia, o Con-
essa discussão, primeiro lugar é importante dizer
selho Nacional de Justiça, nos números de 2016,
que, diferente de outros temas, não consegui-
informa que nós terminamos aquele ano com 80
mos dividir aqui “olha, os progressistas são fa-
milhões de processos em andamento no país. En-
e medicalização
do colarinho do Chopp e se ele deve ser incluído
Garapon, que é um francês, e depois vou tocar
na métrica para fiscalização para fins de direito do
também numa cientista política alemã que se
Cadernos Temáticos
consumidor. Enfim, são questões que estão che-
chama Ingeborg Maus, que tem uma posição bem
gando às instâncias superiores de justiça.
mais ácida, contrária à submissão da nossa vida
a qualquer decisão judiciária. E de outro lado,
Patologização
fazendo a defesa de aspectos positivos desse
“Juridificação a expansão do processo de juridificação e judicialização, a gen-
próprio direito, o adensamento te teria um eixo que vai de Mauro Cappelletti na
da norma formal, e das fontes Itália até do Working que é norte-americano, e
aqui no Brasil eu diria que quem mais estudou e
também que geram essas defendeu o sistema foi o Werneck Vianna. Aqui
normas, para campos da vida no Brasil também quem se posiciona mais criti-
- parte 1
a complexidade das coisas, ele precisa simplificar
também alertar os educadores
e desastres
o conflito em termos de direito e não direito, lícito
e ilícito.” E, para isso, temos de ter tipos. Então, a respeito também de uma
e enfrentamento
você tem uma avaliação padronizada, você tem vivência da judicialização no seu
Psicologia em emergências
um tipo que é, por exemplo, “serão aprovados
os alunos que conseguirem tanto. Serão repro-
ambiente escolar e da exigência
vados alunos que conseguirem menos de tan- de direitos a partir também
to”. Então, sem a gente se dar conta passa a dessa lógica que até o próprio
e medicalização
cia da judicialização no seu ambiente escolar e
consiga conquistar direitos a
partir de algum outro canal de
Cadernos Temáticos
da exigência de direitos a partir também dessa
lógica que até o próprio Habermas e Ingeborg legitimação”
Maus vão utilizar como uma relação de cliente.
Patologização
Cliente e Estado, ou cliente e Judiciário, e não pessoas com deficiência que conquistam direi-
mais de uma cidadania ativa que consiga con- tos postos numa convenção, é preciso a gente
quistar direitos a partir de algum outro canal de também refletir a respeito das consequências
legitimação. advindas dessa positivação do direito e depois
da regulamentação desse direito. Porque sempre
Quer dizer, a gente costuma dizer, “a maio-
a gente precisa pensar: quando você põe o direi-
ria das pessoas não mata e não rouba”, é por que
to, positiva o direito numa norma, quem vai dizer
tem norma? É por que tem norma jurídica? Não,
- parte 1
Criança e do Adolescente pela Universidade Estadual de Campinas (2010). Tem
e desastres
experiência como professora de Educação Infantil e do Ensino Fundamental
(anos iniciais), atuou na Rede Municipal de Ensino de Campinas e atualmente,
e enfrentamento
na Rede de Educação no Município do São Paulo. É militante do DESPATOLOGIZA.
Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento
O que a gente pretende com o evento e com Des- Perguntas da plateia:
patologiza é pensar as questões (da patologiza-
“Como analisam, em seus trabalhos e ati-
ção da vida e da educação) a partir do lugar onde
vidades, a onda conservadora em relação com o
as pessoas estão. E isso ficou bem claro na fala
e medicalização
da Biancha e da Teresa que estão falando dos
espaços de educação ou mesmo os espaços de “Eu gostaria que o Tourinho e a Biancha
Cadernos Temáticos
formação dos profissionais que estão em atua- falassem sobre o protocolo de medicalização
ção. É como a Biancha falou sobre a mudança que sobre a Ritalina em Campinas e como a escola
foi vista, quando o movimento sobre a deficiência pode sair deste engodo imposto pela sociedade
Patologização
passou a ser tratado, feito e organizado por defi- extrema normativa.
cientes, e como a escola muda quando quem está
“Até que ponto é garantida a “neutralidade”
lá passa a pensar sobre a escola e falar da escola.
– entre aspas - do poder de decisão de um juiz?
É isso que a gente busca, fazer esse diálo- Isso é avaliado? Acompanhado? Monitorado?”
go, entendendo os espaços onde a vida aconte-
“Gostaria que a Carla Biancha falasse um
ce, como os espaços que vão elaborar as suas
pouco mais sobre a desnecessidade de diagnós-
- parte 1
variadas, em relação à Universidade São Paulo. E jogo, talvez não estivessem. Então, tem uma for-
e desastres
eu sei também do projeto de precarização que a ça de argamassa, a pauta conservadora, ela tem
minha universidade vive, como estratégia de pre- o caráter de argamassa. Bem, e na educação isso
e enfrentamento
paração para processos de privatização. Então, tá sendo explícito, não é? Fundação Lemann faz
Psicologia em emergências
penso que não podemos, neste momento, fazer propostas para a Universidade de São Paulo, de
uma leitura dissociada entre qual é o projeto eco- melhoria do desempenho dos seus docentes, ela
nômico e qual é o projeto político, na medida em é muito boazinha.
que eu vejo bairros de classes populares em volta
e medicalização
político e econômico para um determinado terri- educação especial pra que a dupla entrada da
tório. Quando trabalhamos em educação e vemos matrícula seja computada, para que a verba seja
Cadernos Temáticos
as situações de territórios ocupados pela popu- garantida. Em cada municipalidade, às vezes,
lação sendo violentamente esmagados, sabemos tem um nome, mas é aquele cadastro que você
que não é exatamente um problema só do dono fala, “este sujeito é público-alvo da educação
Patologização
daquela terra reivindicando sua posse. Então, especial”. Tem vários nomezinhos, mas vocês
queria só chamar atenção, do ponto de vista da entenderam do que a gente tá falando, né? Colo-
educação, que temos um projeto na universidade car no sistema que aquele sujeito é público-alvo
de precarização como plataforma da privatiza- da educação especial para que seja garantida a
ção, temos nas nossas escolas públicas hoje um dupla entrada via Fundeb. Feita essa padroniza-
processo de privatização já acontecendo. É só ção linguística, olha só: o que acontece é que tem
olharmos para as municipalidades aqui em torno sido solicitado, na verdade, tem sido exigido que
- parte 1
naro? Uma doutrinação conservadora”. Mas eu não tenho a menor dúvida que se tem um
e desastres
agente, vamos dizer, um agente social que tem
Essa discussão sobre por que que isso vem um papel e uma responsabilidade nisso, eu diria
e enfrentamento
acontecendo e por que especificamente esse que foi a maneira como os grandes meios se co-
Psicologia em emergências
setor, essa faixa etária está sendo capturada municaram, usaram do seu espaço pra se comu-
por esse discurso. É uma discussão longa, imen- nicar na arena pública ao longo de alguns anos.
sa, não temos uma explicação precisa para falar Especificamente eu acho que nos últimos seis,
isso, se tivéssemos, encontrávamos a solução e sete anos, isso ficou muito mais intenso e acho
e medicalização
vulnerável na relação com o professor. Quer dizer, que é o que pauta e o que marca esse grupo.
é toda uma formulação a respeito do processo
Cadernos Temáticos
educacional que está, por definição, equivocada. Maria Teresa: Eu entendo que essa onda
Ela é, na minha opinião, intencionalmente equi- conservadora não é uma onda, é um conjunto
vocada, não é por acaso que ela é equivocada, e de ondas que vem, é um tsunami, mas que vem
Patologização
aí ela parte do princípio que é isso, que a escola se produzindo há algum tempo e eu vou fazer
teria essa capacidade, no contexto atual que a o mesmo movimento de olhar um pouco para
gente tem na escola, de promover esse tipo de o cotidiano escolar. Como é que eu vejo essa
alinhamento maciço de orientação política. Eu onda se produzindo já há algum tempo? Me
particularmente acho que existe um processo parece que há uma confusão entre os meus
muito mais intenso de formação de opinião e de valores pessoais e aquilo que é a função pú-
valor na esfera política, na verdade, que passa blica da escola. Então, por exemplo, com todo
- parte 1
que os estudantes, todos eles, possam se utili- afeto, do medo por uma determinada corrente
e desastres
zar daqueles recursos, inclusive, entre si? Não política e de poder, que pode explicar uma parte
estou dizendo também que todos e todas nós, inclusive dessa admiração de uma parte da ju-
e enfrentamento
independente da nossa condição, em alguns ventude por algumas promessas aí de soluções
Psicologia em emergências
momentos, não precisamos de alguma atenção em relação à violência. Aliás, o Chico Buarque,
específica, mas isso é da nossa condição huma- no novo álbum dele na música Caravanas, ele
na. Parece-me, por isso ou por aquilo, que em fala que “filha do medo, a raiva é mãe da co-
alguns momentos nós precisamos de um traba- vardia.” A gente precisa pensar um pouco nessa
e medicalização
ideia de uma certa segregação. É interessante com outros.
isso, quando a sala de recursos funciona bem,
Sobre a neutralidade dos juízes, neutra-
Cadernos Temáticos
as crianças, todas, querem ir para lá, porque na
lidade eu não acredito em ninguém, nem no
sala de recursos tem fantoche, na sala de recur-
juiz e nem em ninguém. Você tem mecanismos
so a gente brinca, porque na sala de recurso a
processuais que pretendem garantir a impar-
Patologização
gente desenha, porque na sala de recurso a gen-
cialidade do juiz no sentido de que ele não vá
te faz um monte de coisas. Então assim, quan-
julgar por inimizade, por interesse econômico,
do ela funciona bem, não como um espaço de
interesse pessoal dele e tudo mais. Agora, os
segregação, mas como um espaço pedagógico,
mecanismos são falhos, não é? Você tem recur-
todas as crianças querem ir para lá. Eu acho que
so, então, quer dizer, você tem primeiro o direi-
isso também nos indica coisas de qual é um dos
to a ser julgado por um juiz natural, ou seja, o
problemas de funcionamento da sala de aula,
teu processo vai ser distribuído livremente para
Mesa de Abertura
- parte 1
Psicologia em emergências e desastres
e desastres
Maria Aparecida Affonso Moysés
e enfrentamento
Graduação em medicina pela Faculdade de Medicina de São Paulo, doutorado em medicina pela
Psicologia em emergências
USP, livre docente em pediatria social pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp; atualmente
professora titular em pediatria da FCM da Unicamp; atua em ensino, pesquisa na área de
atenção à saúde do escolar e em especial nos campos da medicalização do comportamento e da
aprendizagem, avaliação cognitiva, aprendizagem e desenvolvimento; coordena o laboratório de
e medicalização
Cadernos Temáticos
Patologização
Vamos começar agora o nosso VIII Encontro Des- nosso agradecimento ao apoio que sempre tive-
patologiza, que esse ano tem o tema “Na Contra- mos, o apoio incondicional que temos em todos as
Bom dia. Cida, eu vim de São Paulo, ontem, lem- das. Por todas as entidades que passei, a gente
brando quando o tema medicalização, patologi- levou essa discussão a sério, não só eu, mas as
zação, despatologização entrou em pauta, as outras pessoas e a gente sempre teve o apoio
preocupações, na época que foi o I Seminário e o sistema conselho de modo geral tem, não
Internacional de Medicalização da Vida e que foi só o Conselho Federal, mas o Conselho Regio-
também quando eu te conheci. Quando a gente nal de São Paulo e o conselho regional de vários
fala “conheci”, eu conheci mesmo. “Ah, essa é a estados. Então eu diria que praticamente todos
Cida”, aí outras personalidades, outras perso- os estados, todas as regiões têm também atu-
nas desse campo que eu fui conhecendo e, na ado e apoiado ações ligadas ao movimento de
época, eu lembro que eu falei, “nossa, mas esse despatologização da vida, da discussão da me-
negócio de medicalização, como é que isso ope- dicalização, enfim, tem sido um espaço impor-
ra?”. Ao longo tempo, fui percebendo a potên- tante. E o Conselho Federal tem sido, sim, um
cia que esse tema tem, e a potência que essa parceiro fundamental, senão por uma outra coi-
categoria, esse modo de pensar, essa chave de sa, até porque eu diria que é o espaço em que
interpretação do sujeito, da vida, da sociedade a psicologia e as psicólogas encontram o seu
tem. E, durante muitos anos, a gente fica falan- melhor jeito de ser. Até porque em uma lógica
do, quase ninguém ouve, aí a coisa vai expan- medicalizante, outros conhecimentos sobre o
dindo. E hoje é o que é, não só o Despatologiza, sujeito, que não sejam os conhecimentos bio-
como tudo o que permeia essas discussões na lógicos, não ganham espaço nesta lógica. No
sociedade e como a gente vai juntando outras fundo, a busca é por esse mapeamento desse
categorias de análise. Enfim, de algum maneira, sujeito orgânico absoluto e nesse lugar não tem
vai percebendo a importância, como você disse, lugares para um encontro de sujeitos e de sub-
de como a gente pensa a despatologização, a jetividades. Então, quando a gente apoia essas
gente pensa desde o manejo clínico do sujeito, atividades, também a gente está dizendo para
até pensar a sociedade e a lógica patologizan- as psicólogas que não estão aqui, para vir para
te, medicalizante, que é uma lógica de domina- esses espaços, inclusive, que é um espaço em
ção, é uma lógica de estabelecimento de redes que a psicologia tem espaço, então acho que
de poder, enfim. isso tudo justifica plenamente o nosso apoio.
Mas era só isso, era só para ressaltar mais essa
E tudo isso, para quem não sabe, acaba iniciativa, estaremos juntos aqui esses dois
dando no capitalismo, interesses econômicos, dias e desejar os melhores frutos das nossas
então a gente vai desvendando essas cama- discussões. Muito obrigado.
Leonardo Pinho 51
Vice-presidente da Abrasme, Associação Brasileira
de Saúde Mental e Presidente da Unisol
- parte 1
Psicologia em emergências e desastres
Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Bom dia a todos e a todas. Primeiro agradecer mental esses dois dias aqui, porque esse debate
a Cida, a todos da mesa pelo convite de estar está inserido no debate mais geral da sociedade,
nesse importante momento aqui do encontro nós vemos isso com os planos de saúde popular,
do Despatologiza. por exemplo, no trato do SUS, na saúde mental
e medicalização
a gente assiste isso, o retorno do financiamento,
Atualmente, eu estou no Conselho Nacional do aumento das diárias para os hospitais psiqui-
Cadernos Temáticos
de Direitos Humanos, que tem travado algumas átricos, que é submeter a parte pública, sucatear
batalhas sobre o desmonte das políticas públicas atenção psicossocial por um retorno à lógica pri-
no Brasil, não só no SUS, na saúde mental, mas vada. Então, eu acho que esse encontro vai nos
Patologização
nas diversas áreas, emenda constitucional 95, ajudar, vai subsidiar para a gente fazer esse de-
reforma trabalhista etc. E estar aqui nesse even- bate. Olhando aqui eu lembrei da educação. Para
to, que discute a patologização da vida, medica- a educação, esse debate da medicalização e da
lização social, nesse cenário em que a gente se despatologização da vida está colocado se os
encontra, é muito importante porque esse debate direitos humanos, os direitos públicos vão ter e
está inserido diretamente com o interesse que continuar sendo centralidade na construção das
nós estamos hoje no país, de submissão do pú- políticas públicas ou se vai haver uma submissão
Bom dia. Eu quero primeiro agradecer à pro- a toda apropriação médica e científica que se
fessora Maria Aparecida Moysés e a toda or- faz da vida, e que o termo patologização vem
ganização do encontro Despatologiza e cum- trazer. A questão nossa maior, o nome é des-
primentar as outras pessoas da mesa. É uma medicar, só, e nem desmedicalizar no sentido
honra participar desse importante seminário. da medicina, né? Eu, inclusive, como médico,
Sinto também, mas compreendo, a ausência do sempre chamando a atenção disso, acho que
vereador Pedro Tourinho, nosso companheiro a medicina também com todos os outros que
histórico nos Cebes, Centro Brasileiro de Estu- se baseiam na ideia da patologia, corre o risco
dos de Saúde, entidade criada por um pernam- da patologização. Eu acho muito importante a
bucano tornado paulista, Davi Capistrano, e um coragem desse movimento aqui em Campinas,
paulista tornado carioca, Sérgio Arouca. Quero Despatolologiza, de enfrentar um desafio que
agradecer também estar aqui, na verdade, eu é um certo paradoxo, nós somos profissionais
sou presidente de honra da Abrasme, entidade da saúde que, paradoxalmente, vivemos da do-
que o Léo também é vice-presidente. Este é um ença, nós vivemos da clínica. Quando a gente
título dado para quem já está velho nessa luta. fala em patologização e medicalização, não fa-
O povo coloca o nome de sala de aula, Caps, lamos só da indústria farmacêutica, da indústria
eu só peço, como dizem da Nise da Silveira, que de equipamentos, da indústria de diagnósticos,
não coloque o meu nome num hospício, como nós falamos também de nossos consultórios,
fizeram com o nome dela num hospício no Rio falamos da nossa clínica particular e, muitas ve-
de Janeiro. Instituto Nise da Silveira é um hospí- zes, nós entramos no mesmo processo de pa-
cio; ainda esperaram a Nise morrer para botar o tologização. Vê-se muito isso com a questão da
nome dela num hospício, uma histórica lutadora, depressão, né? Muitas pessoas para quem nós
importante lutadora antimanicomial. poderíamos indicar a busca de outras formas
de vida, de organização e de cuidado, acabam
Lá, na Abrasme, realizamos evento impor- sendo aceitas e incorporadas como pacientes
tante, com quase 12 mil pessoas participando depressivos, aumentando as estatísticas e au-
e teve uma mesa sobre a questão da patolo- mentando, portanto, também a busca por tra-
gização e medicalização. E eu, nessa mesa, tamentos e por mercado. Eu acho que uma das
pude, com a Cida, frisar esse aspecto que eu grandes importâncias do Despatologiza é que
acho o que Despatologiza traz de Campinas, ele abre uma perspectiva. Inclusive esse livro
porque durante muito tempo, o termo chave, a da Abrasme, que a Cida tem capítulo, a Biancha
palavra chave, a palavra de honra desse movi- também, eu sou o autor, sou o organizador, ele
mento, foi o desmedicalização e medicalização. coloca como primeiro termo esse, despatolo-
E esse termo, por uma série de aspectos, induz gização, medicalização da vida, epistemologia
a dois problemas, duas limitações. Um proble- política. Além dos aspectos que são enfrenta-
ma é medicamento, muitas pessoas associam dos no conceitual, epistemológico, de rebater a
medicalização ao uso de medicamento, e não esse processo universalizante e totalizante de
53
- parte 1
Psicologia em emergências e desastres
Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
patologização da vida, existe também toda a apetite, que no mundo inteiro está sendo proibi-
luta que isso representa de direitos humanos, do, e uma série de outras regulamentações.
de resistência à redução da vida à patologia, ao
que se torna um mercado e tudo mais. Então, E a outra coisa é convidá-los e convidá-las
e medicalização
queria extrair essa importância do deslocamen- para o segundo seminário sobre epidemia das
to do termo principal para despatologização, drogas psiquiátricas, que estamos organizando
Cadernos Temáticos
que ele pode nos abrir perspectiva e que acho na Fiocruz. No ano passado foi um sucesso, nós
que esse encontro é para fazer. tivemos mais de 3 mil acessos online. Vários de
nós aqui, Sandro, Biancha, Cecília participaram;
Patologização
Não podia deixar de aproveitar para falar nós vamos fazer esse ano de 29 a 31 de outu-
duas coisas, uma do José Rubens de Alcântara bro, embora num auditório desse tamanho, um
Bonfim, Presidente da Sobravime, fundador da pouquinho menor. Então não cabe todo mundo, a
Sobravime, Sociedade Brasileira de Vigilância de transmissão será ao vivo em um padrão de quali-
Medicamentos, que foi o primeiro presidente do dade muito importante, muito bom e a gente está
Cebes. Ele nos chamou a atenção para uma coisa sugerindo que, como aconteceu no ano passado,
muito importante, que nós temos o hábito de fa- pessoas, professores, reúnam alunos, grupos de
Bom dia a todos e todas, aos colegas da mesa, nhamento especial. Em especial, eu vivi isso essa
à professora que nos brinda com mais um even- semana com uma pessoa muito próxima e nós
to de encontro Despatologiza, fundamental entendemos a importância dos cursos de forma-
para pensarmos. ção de professores nesse movimento. Então, ele é
um movimento que discursivamente nós podemos
Eu vou falar do local da Faculdade de Educa- construir novas referências, na tentativa de rom-
ção, as relações escolares. Nós celebramos esse per e deixar de produzir novas situações nas quais
evento e entendemos a riqueza desse encontro de os sujeitos são colocados como responsáveis por
pessoas de distintas áreas pensando numa mes- questões que são amplas e sociais, e não individu-
ma direção de desconstruir essa ideia patologi- ais e singulares. Cada vez mais defendemos uma
zante, como bem disseram já vários aqui na mesa, escola pública, laica, de boa qualidade para todos,
da vida, não só da escola. Mas do lugar da escola, não patologizante. Parabéns pelo evento, espero
nós nos preocupamos bastante com um número que tenhamos dois dias profícuos de trabalho e
crescente de laudos que temos tido de crianças que tenhamos aí novas construções discursivas
que são encaminhadas para salas de acompa- que nos levem pra outros caminhos. Parabéns.
Rosangela Villar 55
Psicóloga com experiência em saúde pública e clínica.
Colaboradora do CRP SP nas áreas de Educação e Medicalização
e militante do Despatologiza - Movimento pela Despatologização.
- parte 1
Psicologia em emergências e desastres
Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Bom dia a todos e todas, e aos colegas de ção da vida - Resistir Para Reexistir. Lá na fren-
mesa, novamente nos encontramos. É bom falar te temos o banner, trouxemos os folhetos que
por último, porque a gente não precisa mais fa- providenciamos pelo conselho. E o que o Rogé-
zer discussão conceitual, já foi falado. Então, eu rio fala é muito importante. Embora a discussão
e medicalização
vou falar um pouquinho do processo de resis- da patologização da vida seja para todos os
tência e de enfrentamento. O Conselho de Psi- profissionais que cuidam de si e das pessoas,
Cadernos Temáticos
cologia, tanto de São Paulo, quanto a subsede em especial, estamos mandando um recado
de Campinas, dá o total apoio a essa luta e ao para nossa categoria que precisamos olhar com
movimento Despatologiza, já com oito edições muito cuidado: que prática que a gente tem?
Patologização
do evento. Estamos juntos desde o primeiro en- Porque somos praticantes da patologização e
contro e, especialmente em São Paulo, a gente da despatologização. É sempre uma questão
está vivendo um ano de campanha que se en- de escolha, de olhar o mundo. Então, esse é o
cerra agora em novembro, que é a campanha de convite. Agradeço, então, de novo e espero que
enfrentamento à medicalização e a patologiza- possamos continuar na luta lado a lado.
Gente, bom dia. É um prazer estar com vocês O que que o Borges inventou? Borges diz que
mais uma vez em Campinas. Pelas minhas con- umas certas ambiguidades, redundâncias e efi-
tas, é a terceira vez que eu participo de um ciências recordam que um doutor Frans Coom
evento do Despatologiza, então agradecer atribui a uma certa enciclopédia chinesa intitu-
à Cida por esse novo convite, por essa outra lada “Empório Celestial de Conhecimentos Be-
oportunidade de estar com vocês aqui. névolos”, totalmente inventado pelo Borges. Em
suas remotas páginas, está escrito que os ani-
Então, eu aproveitei o mote do recente
mais se dividem em 14 categorias, então vamos
lançamento da CID 11, da décima primeira edi-
classificar os animais, segundo Borges. Catego-
ção da Classificação da Organização Mundial
ria A: pertencentes ao imperador; categoria B:
de Saúde, que ainda não existe livro, mas já
embalsamados; categoria C: amestrados; D: lei-
é possível consultar online e em inglês, e vou
tões; E: sereias; F: fabulosos; G: cães vira-latas;
tomá-lo como eixo da minha discussão, da mi-
H: os que estão incluídos nessa classificação; I:
nha apresentação, até que a gente possa, che-
o que se agitam feito loucos; J: inumeráveis; K:
gar aos impactos na avaliação que é o objetivo
desenhados com um pincel finíssimo de pelo de
tema dessa conferência compartilhada.
camelo; L: etc; M: os que acabaram de quebrar o
Já que o lema é na Contramão da Patolo- vaso; N: os que de longe parecem moscas.
gização, eu primeiro vou na mão da patologiza-
Tá aí, é uma possibilidade, uma classifica-
ção, para a gente depois chegar na contramão
ção, por que não? Uma classificação dos ani-
da patologização. Acho que a questão de início
mais na qual você certamente tem a possibili-
é como o campo da psiquiatria tem classifica-
dade, a certeza de incluir todos os animais, na
do os transtornos mentais na infância e ado-
pior das hipóteses, na categoria etc.
lescência. Bem, classificar é um ato humano por
natureza, a gente sem saber sai classificando Então, vamos às categorias médicas com
tudo pela frente, uma maneira de a gente orga- o idioma analítico de John Wilkens na cabeça,
nizar o mundo, entender o mundo. Então, antes na verdade, o “Empório Celestial de Conheci-
de falar de classificação psiquiátrica, eu decidi mentos Benévolos” na cabeça. Bom, vou seguir
apresentar para vocês aquele trechinho do Bor- então a trilha do SM e do CID, né? Do Manual Es-
ges, que o Foucault cita no início das “Palavras tatístico e Diagnóstico Americano, e da Classi-
e as Coisas”. Na verdade, é menos lido direto do ficação Internacional de Doenças, da Organiza-
Borges, e mais lido indiretamente no Foucault, ção Mundial da Saúde. Pois bem, no que tange
que é o idioma analítico, de John Wilkens, onde o a criança, se procurarmos a primeira classifi-
Borges diz isso, “sabidamente não há classifica- cação, o primeiro da DSM, dos anos 50, vamos
ção no universo que não seja arbitrária e conjec- encontrar somente três grandes categorias. A
tural”. Mantenha isso na cabeça quando vai lidar categoria que, de certa maneira, é fundadora
com essas classificações científicas, baseadas da psiquiatria infantil, o retardo mental, antiga
em evidências, não é? Nunca são totalmente. idiotia, imbecilidade, deficiência mental, fraque-
za de espírito. Há um diagnóstico de reação es- seria só descritivo, objetivo, ateórico em rela-
57
quizofrênica tipo infantil. O que, por exemplo, a ção a etiologia e ao processo patofisiológico.
gente chama hoje de autismo, ou estaria aqui Mas, na verdade, mais do que ateórico, foi con-
no campo da neurose infantil, certo? Transtor- tra teórico, no sentido de eliminar basicamente
nos de ajustamento na infância, uma série de uma teoria forte, a teoria vocabulário da psica-
transtornos de hábitos como roer unha, chupar nálise. Não tem mais neurose, não tem mais his-
- parte 1
dedo, Transtornos de conduta, etc. teria, não tem mais psicose infantil e isso teve
e desastres
um impacto grande na formação de, pelo me-
Bem, 1968, você tem uma categoria cha-
nos, uma ou duas gerações, não só de psiquia-
e enfrentamento
mada transtornos de comportamento da in-
tras. A influência desses manuais está cada vez
fância e adolescência, então isso ganha um
Psicologia em emergências
maior, de tal maneira, que as pessoas passam
destaque um pouco maior, embora ainda fosse
a ser formadas sem contar com esse vocabulá-
considerado uma categoria menor da classifica-
rio, como se isso não existisse mais, porque não
ção psiquiátrica. A maior parte do campo psi-
está nas páginas do DSM.
e medicalização
parte das categorias infanto-juvenis do DSM 2. grande afinidade entre o formato de apresenta-
Na verdade, estava presente em quase todo o ção dos transtornos naquela lista de sintomas e
Cadernos Temáticos
DSM1 geral, e ela se preserva na infância e na as necessidades da indústria farmacêutica em
adolescência. Isso reflete o ambiente psi nor- relação a categorias médicas confiáveis para
teamericano dos anos 50 e 60, o modo como a
Patologização
que se pudesse, a partir delas, fazer ensaios clí-
cultura americana metabolizou e digeriu a con- nicos experimentais de uso de medicamentos.
tribuição da psicanálise. Dos psicanalistas que Era preciso esse tipo de sistema. E é claro que
foram fugidos do nazismo para os Estados Uni- isso, que em princípio, podia ter uma função,
dos, a noção de reação, de adaptação do orga- um objetivo de pesquisa de medicamento, se
nismo a condições adversas levando a transtor- espraiou para o campo clínico de uma maneira
nos mentais, isso explica essa noção de reação muito impactante, com consequências no modo
em praticamente tudo aqui. Pois bem, você tem
- parte 1
gorias usadas para os adultos. Transtorno de
e desastres
dobramento. É sempre bom lembrar isso; quem
ansiedade e separação, que vinha numa cate-
lembrou, entre outras pessoas, foi o Richard Le-
goria específica pra criança, agora está dentro
e enfrentamento
bon, um biólogo já falecido. Muito crítico do de-
dos transtornos de ansiedade de uma manei-
terminismo genético, ele lembrou que desenvol-
Psicologia em emergências
ra geral. Esses exemplos dão conta um pouco
vimento é a noção oriunda da biologia que está
dessas psicopatologias da pós-modernidade,
contaminada por essas teorias pré-formacio-
o transtorno de escoriação, de se cortar, de se
nistas do século 18, ideia de que alguma coisa
machucar, essa categoria também não existia,
e medicalização
as explosões são meio irritadas, são meio mal Você tem aí todo o impacto, durante o sé-
humoradas. Então, agora você tem nova cate- culo 20, inclusive, no campo da psiquiatria de
Cadernos Temáticos
goria diagnóstica pra essas crianças. crianças, das teorias do desenvolvimento, das
mais variadas, Piaget, Valon, Vygotsky, mais
Bem, chegamos à CID 11. Só pra situar, a
próximo da psicanálise, Winnicott, Erickson,
CID não é exatamente equivalente ao ameri-
Patologização
Spitz, Mahler. Em todos eles, a incidência do
cano, no sentido de que o americano é só dá
tema desenvolvimento, de alguma maneira, ex-
psiquiatria, CID classifica oncologia, classifica
plicitamente ou não, se dá.
dermatologia etc. Tem um capítulo de saúde
mental, mas vejam bem, na CID10 era transtor-
nos mentais e do comportamento, na CID 11,
transtornos mentais do comportamento e do “A ideia é entender o
neurodesenvolvimento, isso vai para o título do desenvolvimento como um
- parte 1
Psicologia em emergências e desastres
e desastres
Ninguém, em princípio, contesta isso to- aplicá-las e onde não cabe.
talmente, pelo menos.
Uma coisa que a gente deixa por último,
e enfrentamento
As falhas da neurociência como referen- mas não menos importante, é a escuta da pró-
Psicologia em emergências
cial epistêmico para psiquiatria já vinham sen- pria criança, ou seja, dar voz à própria criança,
do apontadas, inclusive por pessoas relevantes coisa que os adultos montando manuais de
dentro do campo da psiquiatria norte-americana, classificação, raramente fizeram. Os critérios
como, Nancy Andreasen, que é uma pesquisado- diagnósticos são montados independente do
e medicalização
1980, tem havido um declínio constante no ensi-
importante é a gente se fazer essas perguntas.
no de uma avaliação clínica cuidadosa, que seja
Quais são as limitações, os prejuízos ou os mal-
Cadernos Temáticos
direcionada para os problemas individuais e con-
estares que os sintomas, que os candidatos
texto social da pessoa, e que seja enriquecida por
a sintomas, usando aqui sintomas no sentido
um bom conhecimento geral da psicopatologia. Os
Patologização
bem latu sensu, provoca na criança e no seu en-
alunos são ensinados a memorizar o DSM ao invés
torno? os sintomas têm se prolongado no tem-
de aprender as complexidades dos grandes psico-
po, menos para ver se preenche critério de tan-
patologistas do passado”.
tos meses do DSM e do CID e mais para a gente
Pois bem, chegando no campo das conse- ver se a família e a própria criança estão dando
quências de todas as questões que eu levantei conta daquilo sozinhos, ou se não estão conse-
no campo da avaliação, apesar dos supostos guindo sozinhos superar aquele tipo de adversi-
avanços do referencial neurocientífico, não há
- parte 1
educação especial. Exerceu por 16 anos a atividade de psicoterapeuta.
Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Bom dia. Então, como eu acabei de dizer, eu e que me ajudam muito nesse debate, que são
estava fora do microfone para que as pessoas Aline Albuquerque, professora da Universidade
com deficiência visual pudessem me localizar, aí de Brasília, e Augustina Palácios, da Argentina;
depois disso eu tomo a palavra aqui no microfo- Ana Rita de Paula, uma psicóloga, pessoa com
e medicalização
ne para que possa ser gravado, mas explicitan- deficiência que luta e pesquisa pelos direitos
do o motivo de eu fazer isso: quando o som sai das pessoas com deficiência há, pelo menos,
Cadernos Temáticos
pelos autofalantes, as pessoas com deficiência 30 anos; e as trabalhadoras da assistência so-
visual não sabem onde está a pessoa que fala cial do município de Suzano, com quem venho
e aí ela pode ficar o tempo todo aqui da minha pesquisando no último ano e meio sobre o pro-
Patologização
fala, virada para o auto falante, e não pra mim, grama BBC na Escola. Em nome dessas tantas
o que cria um constrangimento. Por isso então, mulheres, é que eu repito aqui, como já disse a
que eu faço essa localização e convido vocês Cida, ele não, ele nãozinho. Em nome das mulhe-
a fazerem sempre que tomarem o uso do mi- res trans, em nome das pessoas que defendem
crofone. Bem, queria agradecer o convite da or- o direito às formas de existência nesse mundo,
ganização do seminário, essa possibilidade de dentro dos princípios dos direitos humanos.
interlocução nesta conferência compartilhada,
- parte 1
ao longo do início do século 21, pensando que de seus trabalhos, mas é muito comum que, em
e desastres
a deficiência é uma situação que expressa um residências terapêuticas, fique a responsabili-
contexto relacional, e que a gente vai colocar dade da gestão do dinheiro da pessoa que nela
e enfrentamento
dentro do guarda-chuva protetivo dos direitos vive, sob a coordenação da residência, tomando
Psicologia em emergências
das pessoas com deficiência, não só aquelas decisões sobre o uso desse dinheiro. O mesmo
que se identificam, mas também aquelas que se passa em residências inclusivas para pesso-
são identificadas. Gostaria que a gente ficasse as com deficiência e é muito comum que a ges-
com essas duas questões, porque a gente está tão do dinheiro, muitas vezes do benefício, por
e medicalização
dinheiro do BPC do beneficiário para matricular
de avaliação. É aquele que se refere à decisão
em academia particular e, como disse o Paulo
apoiada, que é uma transformação muito sig-
Cadernos Temáticos
Amarante e o Léo Pinho, na mesa de abertura,
nificativa do ponto de vista jurídico, em que a
planos de seguro saúde privados. Quem esco-
gente vai falar das pessoas que a gente tomava
lheu isso, quem fez essa demanda, como foi de-
como pessoas que não eram capazes de decidir
Patologização
batido? Estou usando o tema financeiro porque
sobre suas próprias vidas, tomar decisões sobre
é um tema fundamental da vida dos adultos e
as suas próprias vidas, e a gente faz a seguinte
das adultas, para pensar o que que é fazer as
virada, toda pessoa pode tomar decisões so-
suas próprias escolhas e lidar com elas, não é?
bre a sua própria vida. A pergunta passa a ser,
E para eventualmente alguém esteja pensando,
“quais são os sistemas de apoio com quem essa
“mas a gente vai deixar a pessoa fazer o que ela
pessoa tem de contar para que ela possa tomar
quiser com o seu dinheiro?”, a primeira resposta
decisões sobre a sua própria vida?”.
vendas quando você coloca um Vamos pensar agora na avaliação, com es-
certo diagnóstico e não o outro, sas considerações que trouxe. Em nossos proces-
sos de avaliação psicológica, ainda é muito forte
para dar o exemplo da educação” a centralidade em aspectos que são intrínsecos
à pessoa - atenção, habilidades sociais, memória.
Em alguns momentos, vemos também uma pro-
Queria trazer esse elemento, porque no dia
positura de que possamos avaliar, além disso, os
a dia das nossas políticas públicas, nos organi-
contextos em que uma existência se dá, como é a
zamos por certos diagnósticos, o que pode aju-
família, como é a escola, como é a pracinha, como
dar, inclusive, a considerarmos porque que certos
é a relação com a comunidade. Então colocamos
diagnósticos prevalecem em detrimento de ou-
a memória, a atenção, as habilidades socioemo-
tros. A mim, como estudiosa, militante da área de
cionais em contexto escolar, em contexto fami-
pessoas com deficiência, chama atenção o sumi-
liar, mas queria chamar atenção sobre a limitação
ço das discussões sobre deficiência intelectual e,
desse tipo de avaliação, porque ainda não esta-
de repente, tudo virou discussão sobre autismo.
mos falando da característica intrínseca a sujeito
Onde estão as pessoas com deficiência intelec-
e do quanto ela é funcional ou não para o contexto
tual agora? Quais são os debates que nós temos
x, ou seja, a marca ainda é a da leitura de ajus-
a fazer? Esse sumiço de uma categoria e preva-
tamentos. Esta característica da pessoa, seu fun-
lência de outra categoria me chama atenção, e
cionamento da atenção é suficiente, é adequado,
estou colocando as duas em correlação porque
a escola se adapta a seus padrões de atenção?
minha hipótese é que existe uma correlação.
Então, ainda usamos o referente ajusta-
Minha hipótese é de que o diagnóstico mento, mesmo quando colocamos em contex-
de autismo hoje gera mais commoditie do que to familiar, escolar, laboral. E aí o ajustamento
o diagnóstico de deficiência intelectual; faz pode ser da pessoa, pode ser da instituição, a
mais sucesso nas vendas quando você coloca escola se adapta aos padrões de atenção do
um certo diagnóstico e não o outro, para dar Juquinha? E chamamos isso de escola inclusiva,
o exemplo da educação. Tenho certeza de que mas eles dizem que não é.
Estou propondo aqui que façamos um ou- diz daquilo que fazemos? Precisamos inventar
67
tro giro, que é avaliação do processo, as suas outras palavras e, nos nossos processos de
implicações para subjetividade em tempos de avaliação, muitas vezes ficamos com essa lógi-
movimentos identitários. O que quero dizer com ca da reabilitação. Vou dar um exemplo do cam-
isso? O quanto a avaliação pode expressar os po da deficiência.
efeitos do jogo de identificação para compor a
- parte 1
nossa leitura das barreiras e de suas possibili-
e desastres
dades de enfrentamento. “No campo da deficiência você
trazer a ideia de reabilitação é
e enfrentamento
Quando eu falava da definição de pessoa
com deficiência, eu falava que não só as pes- uma pobreza do ponto de vista
Psicologia em emergências
soas que se identificam, mas as pessoas que
são identificadas; como é que na nossa ava-
não só epistemológico, como
liação, podemos expressar esse movimento? A uma pobreza do ponto de vista
e medicalização
da pessoa aceitar sua deficiência“. O que que é
“Estou propondo aqui que aceitar a sua deficiência? Ainda mais quando o
Cadernos Temáticos
conceito de deficiência deu esse salto, como ci-
façamos um outro giro, que é
tado há pouco, temos de fazer a pessoa aceitar
avaliação do processo, as suas e depois, assim que ela aceitar, colocá-la no lu-
Patologização
implicações para subjetividade gar de quem tem de superar a deficiência? Olha
o controle moral que exercemos quando pedi-
em tempos de movimentos
mos isso para alguém. “Primeiro você aceita a
identitários” sua cegueira e depois você se coloca no projeto
de superar a cegueira” - isso é reabilitação.
Um outro referente importante que acaba- Tenho certeza de que, em muitos serviços,
- parte 1
Psicologia em emergências e desastres
Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Bom dia a todos e todas. É uma alegria estar aqui
nesse grupo, nessa mesa compartilhada e para co- “Avaliar sim, mas como? Parto de
meçar, vou apontar algo que me toca. As pessoas
que estão aqui são muito caras para mim, e isso
uma certeza, de uma convicção:
e medicalização
é importante falar. Professora Maria Aparecida
Moysés, professora Collares, professora Adriana companhia envolve produção
Cadernos Temáticos
Marcondes, Biancha, professor Amarante são re-
ferências teóricas para mim.
de rede, vontade de encontro.
Eu fico pensando se encontros
Patologização
Sou uma pessoa que tem 30 anos de escola,
na e com a escola, e nos últimos anos, na univer- são encontros. Quando estamos
sidade, com a escola e com as pessoas em for- junto, no mesmo espaço, isso
mação. O que avalia a educação ou quem avalia
é encontro? Deixo isso aqui,
desde a educação? É uma questão antiga e uma
questão que parece fácil de responder, só que não. porque é pergunta para mim
Quando eu olho para trás e vejo que outros avalia- também e vou logo em seguida
- parte 1
sição que é fundamental pra eu poder saber dela, é o único jeito de podermos ensinar.
e desastres
que é avaliar, pensar a ideia de avaliação como
Luís: Caso emprestado, esse é um caso muito
pesquisa da aprendizagem do aluno, pesquisa da
e enfrentamento
próximo, porque é deste ano. Luís chega à terceira
aprendizagem de Laura.
série vindo de outra escola, de uma escola particu-
Psicologia em emergências
“Prestem atenção”, esta é uma forma que lar. Por que a troca de escola, para uma outra escola
a escola nos diz. Ouvimos todo dia na escola: particular? Porque ia ser retido, ia ser detido, não é?
“preste atenção”, me empreste sua atenção. Nós Um menininho de oito anos, naquele processo que
e medicalização
Tomando um texto de Barros e Kastrup, em ganizar com os temas escolares, como ele podia se
que as autoras falam de pesquisar e de pesqui- engajar no processo. Ele entra novo na escola, num
Cadernos Temáticos
sador, eu troco as palavras pesquisar por avaliar grupinho que já vinha desde a educação infantil. O
e professor no lugar de pesquisador. Assim, te- Luís, na palavra da professora do ano anterior, dizia,
mos: “Avaliar, ela requer aprendizado e atenção
Patologização
“tem problema de atenção, precisa de diagnóstico”,
permanente, pois sempre podemos ser assaltados e por isso ia ser retido, até que voltasse com esse tal
pela política cognitiva do professor cognitivista, documento, que muitas vezes chega naquela meia
que está aqui dentro, aquele que se isola do objeto folhinha de ofício para professora. Luís, em agosto,
de estudo, na busca de soluções, regras, invarian- estava acompanhando os seus colegas; acompa-
tes” (2009, p.73). nhando nas brincadeiras, nos trabalhos em grupo,
na bagunça e nas aprendizagens. Esse processo de
Marcelo: um menino que fui convidada a
Professora: “Tu sabes o que significa isso, O processo de ortografização foi trabalha-
Valentim?” do ao longo do ano, esse é um processo que corre
junto com a possibilidade de seguir escrevendo,
Valentim: “Sei, professora, é que eu não paro
de seguir pensando. De novo, o avaliar pelo pes-
quieto, sou atrapalhado, às vezes falo alto e tam-
quisar, “abordando a pista, avaliar é acompanhar
bém sou meio agressivo, preciso ficar mais calmo,
processo, procuramos apontar que a processuali-
eu sou assim mesmo, tu não achas, professora? Eu
dade está presente em cada momento da aprendi-
tenho essa doença, preciso de remédio?”
zagem” (Barros e Kastrup, 2009, p.73).
Professora: “Valentim, claro que não estás do- (Uma imagem projetada na tela mostra, fru-
ente, o que eu acho é que é muita saúde pra um corpi- tas: uva, cereja, ameixa. Outra imagem mostra
nho tão pequeno, tem muitas informações, é muito in- legumes, cebolas, vegetais, outra imagem, flores.
teligente, te empolgas em mostrar tudo o que sabes” Quando a imagem abre o foco, vemos uma figura
Na classe, eles tinham uma organização mui- humana formada por esses elementos. Trata-se
to diferente, muito interessante onde todos esta- de uma pintura típica de Giuseppe Arcimboldo, pin-
vam acolhidos e podiam conversar sobre o que se tor italiano do seç. XVI)
passava na aula. Só que uma professora, outra, que De quem é mesmo que nós estamos falando
não era dele, fez essa indicação. Então, o nome do quando estamos organizando o processo avaliati-
Valentim, o nome do sujeito passa a ser seu rótu- vo? Quem é mesmo que precisa ajudar a ver este
lo. Ele deixa de ser aquele que é terrível, que não sujeito? Para além daquele pedacinho, para além
para quieto, que conversa. Em seu dobramento o daquilo, daquele diagnóstico que transforma o su-
discurso sobre a criança passa a transformá-la em jeito em um diagnóstico.
diagnóstico. Esse dublê que o Foucault vai falar.
Avaliar, pesquisar: como aprende, como
Segue a história do Valentim e o encontro acessa, com quem aprende, com quem não apren-
vivo: a professora conversa com ele, ele estava de, o que aprende, o que não aprende?
vindo de outra escola, e ela inicia a perguntar:
Avaliar como invenção do e no encontro. A
Professora: “Valentim, se tiveres, gostaria palavra invenção é uma palavra poderosa, não? A
que me trouxesse os textos feitos por ti na outra professora Kastrup também fala muito sobre essa
escola, gostaria de dar uma lida” palavra, mas eu vou me lembrar de uma cena do
Valentim: “Mas professora, não vais enten- Foucault, em “As formas jurídicas”, quando ele bus-
der nada, minha letra é horrível, não sei escrever” ca Nietzsche para pensar e diferenciar a criação de
invenção. Ele diz assim, “criação é eu criador, esta
Professora: “Primeiro traga e depois olha- criatura, eu criador, aqui a criatura”, e ele vai dizer
mos juntos” invenção como “obra aberta de múltiplas mãos, de
múltiplos encontros”. Ele traz a cena do choque das
Valentim: “vou avisar que não vais conse-
espadas. “Quando tu tens uma espada um e a es-
guir entender nada”
pada dois, cada um de um metal diferente e, quan-
Valentim já anunciava uma visão sobre si do elas se encontram, elas provocam uma centelha
mesmo, não sabia escrever. Ele traz o material e que é uma terceira coisa, que é formado por um ter-
a professora olha o texto que vem marcado por ceiro material, já não é mais nem uma nem outra”.
observações referentes ao traçado e a troca de A ideia de invenção está sempre em processo, ela
letras, expressões como “letra horrível”, “texto in- está sempre acontecendo, e quanto mais a gente
compreensível”, “melhorar a letra”, e ela lê o texto. bota na roda, mais possibilidades a gente encontra.
Gente, para que que serve aprender a ler a Então, eu fecho com um texto do Lenine
escrever? Ela vai olhar o que está escrito. Valentim (1977), que diz, “a ponte não é de concreto, não é
era um menino criativo, tinha ideias, tinha uma his- de ferro, não é de cimento, a ponte é até onde vai o
tória potente, histórias interessantes, mas disso meu pensamento”. Obrigada.
Participação da plateia 73
- parte 1
Psicologia em emergências e desastres
Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Paulo Amarante: Uma das questões chaves ta vinda de um insider, um cara de dentro. Isso
hoje é a medicalização da infância, de patolo- é muito legal, igual à crítica ao tabaco do cara
gização da infância. Uma das coisas mais cru- lá das indústrias de tabaco, nos Estados Uni-
éis que a indústria farmacêutica faz é a alian- dos. Ele denunciou, “o tabaco dá câncer”, eles
e medicalização
ça da psiquiatria com a Big Farma, uma grande sabiam e negaram, omitiram. Ele faz a mesma
indústria, e a mídia que a gente, poucas vezes, coisa com a psiquiatria, reconhece que o TDAH
Cadernos Temáticos
sabe o quanto que é estratégia de levar para os foi uma das invenções mais cruéis, cretinas, que
programas matinais, os programas de domingo não existe o TDAH. E fala da medicalização da
esse tema. O Jornal Nacional, há pouco tempo, vida, ele usa esse conceito no título e a aliança
Patologização
fez uma matéria sobre a eficácia, a importância perversa da psiquiatria com a Big Farma. Então,
dos antidepressivos, negando toda a crítica que o DSM 5 é patologizador.
a própria Organização Mundial da Saúde faz. E
o Jornal da Band também, então a gente vê que Rapidamente a Biancha, eu acho importan-
é uma estratégia sabida de negócio para gran- tíssimo a crítica à reabilitação. Eu fui um dos au-
de audiência. Eu queria fazer só três comentá- tores, um dos trabalhadores da área que nunca
rios rápidos. O primeiro, Rossano, eu sou amigo aceitei esse como método da reabilitação psi-
- parte 1
tico para afastar o paciente. Ele prescreveu um responsabilizá-lo pelas suas escolhas, né? Já é
e desastres
monte de depressões ali, depressão repressiva uma coisa importante, né? Então, eu queria que
recorrente, depressão grave, depressão... então, vocês comentassem um pouco isso, como que
e enfrentamento
ele montou um laudo pra afastar o paciente. O a experiência que vocês têm trazido isso, como
Psicologia em emergências
que acontece? Ele se afasta e não consegue vocês têm lidado.
voltar mais, que é uma coisa que eu tenho visto
com muita frequência depois que você afasta Biancha: Bom, vou colocar a questão que
um paciente. Quando da nossa escuta, o nos- o colega nos traz, uma discussão que fazíamos.
e medicalização
de rever a sua situação ali no serviço. Então, frimento, que não encontra campo de interlocu-
porque não existe esse mecanismo, pode até ção e transformação, que se torna adoecimento.
Cadernos Temáticos
existir assim burocraticamente, mas não existe Esse adoecimento só vai ser percebido quando
na prática, uma tentativa de botar de volta o incide sobre o corpinho, aquela vida humana da
sujeito ali, ver o necessário e depois repensar. professora, sim, e ela entra em sofrimento tal,
Patologização
Então, se ele arriscar tentar de novo, ele perde muitas vezes em processo de adoecimento,
o benefício, perde aposentadoria, perde afasta- ok. A gente sabe que... até porque tô usando
mento, perde tudo o que ele tinha conquistado, categoria burnout porque por definição tem a
para ele é uma conquista, porque agora ele está ver com um sofrimento decorrente da situação
recebendo um benefício, está afastado e apo- laboral. Bom, essa pessoa é afastada para cui-
sentado, ele não precisa trabalhar mais, só que dar de si, muito bem, enquanto ela cuida de si,
na escuta, você vê que há um sofrimento muito afastada do trabalho, o lugar gerador do sofri-
- parte 1
através do trabalho sério, científico, com bases
e desastres
teóricas potentes, poder trabalhar na prática e
reverter essas situações que foram artificial-
e enfrentamento
mente criadas. Porque nós, quase todos aqui,
Psicologia em emergências
fomos alfabetizados pelo Caminho Suave e não
aconteceu nada, somos todos capazes de ler,
não é? Então, eu acho que é importante a gente
pensar na simplicidade. Então, muito obrigada,
e medicalização
tário, essa história que o Paulo falou e que vá-
rios de vocês já falaram, as crianças já estão
Cadernos Temáticos
chegando à clínica pública e privada com os
professores fazendo diagnóstico, não é? Então,
acho que isso mostra duas coisas, como vocês
Patologização
já falaram na mesa de apresentação, o quanto
a medicalização não precisa de médico obriga-
toriamente, o quanto isso pode estar entreme-
ado, a capilarização do biopoder que o Foucault
falava, mas isso está na casa da gente, está no
Jornal Nacional, está no dia a dia. A segunda
coisa é como isso é consequência, entre outras
Bom dia. Organizei uma fala que vai aproveitar definição no começo e depois eu a retomo um
muito o que foi discutido na mesa de ontem. Acho pouco mais para frente. Primeiro, eu queria dei-
que a gente talvez vá conseguir com esse evento xar claro a seguinte provocação: esse serviço foi
aqui, criar um patamar de discussão e de problema criado dentro do Instituto de Psicologia da USP,
em relação a esse tema dos laudos. Primeiro eu que teve a presença muito forte da professora
queria me apresentar em relação a essa temática Maria Helena Souza Patto e, portanto, os tex-
e me apresentar já justifica a forma como eu vou tos dela que iam mostrando que a produção do
compor essa temática. O que eu quero dizer? Es- fracasso escolar não poderia ser entendida de
sas reflexões e essas ações que vão ser apresen- uma forma que não considerasse que ela era um
tadas aqui, elas foram criadas dentro de um certo fato social, a produção do fracasso é fato social,
contexto e uma certa possibilidade de ação. não é? Nós éramos convocadas a pensar “então
como vocês vão atender? Como vocês vão ava-
Durante 25 anos, eu fui psicóloga num
liar? Como vocês vão exercer trabalhos na medi-
serviço público dentro da Universidade de São
da em que essa é a concepção?”. Então, as con-
Paulo. Então o Instituto de Psicologia tem vários
dições de possibilidade atravessadas por uma
serviços: clínica, orientação profissional, serviço
lógica produtora de desigualdade social, essas
de psicologia escolar, serviços de atendimento
condições precisariam estar presentes na nossa
individual, enfim, tem vários serviços. Um deles,
ação num trabalho de avaliação psicológica.
serviço de psicologia escolar, e eu com contrato
como psicóloga desse serviço. Então já é inte-
ressante pensar porque é uma universidade que
depende da existência de psicólogos para pode-
“A gente passou a defender que o
rem tocar hoje o Centro Escola do Instituto de nosso objeto não se encerra num
Psicologia e para poderem organizar estágios e sujeito encaminhado, mas o objeto
atendimentos, trabalhos de extensão. Então, eu
fui contratada num serviço para trabalhar com a
da avaliação psicológica são
questão da relação saúde/educação num serviço campos de relações em que certas
da universidade. É diferente ser um psicólogo que maneiras de existir se produzem”
está numa Unidade Básica de Saúde, é diferente
estar num consultório, ser um psicólogo que tra-
balha numa clínica particular. Então, eu estou me-
Então, o que a gente passou a defender? A
tida na engrenagem de uma forma singular e eu
gente passou a defender que o nosso objeto não
vou trazer alguns elementos dessa engrenagem.
se encerra num sujeito encaminhado, mas o objeto
Pensei o seguinte: eu ia fazer uma definição da avaliação psicológica são campos de relações
do nosso objeto, do nosso procedimento, do que em que certas maneiras de existir se produzem.
que se avalia num trabalho de avaliação psicoló- Então, campos de relações, relações de poder, de
gica ao final da minha fala, e resolvi trazer essa saber, relações de força, campo de relações onde
uma certa maneira se produz, um certo sujeito se te quando um certo paciente para de vir para
79
constitui, um certo disléxico se produz. Porque um atendimento, muito rapidamente a primeira
quando alguém diz “ele tem dislexia” naquela re- palavra que vem é resistência.
lação, a dislexia existe. Certo? O nosso argumento
Assim, achar que é resistência do outro,
é que isso é uma coisa construída, tanto é que, em
ficar chateado por ter ficado esperando, pacien-
outra relação, será de outra forma. Então, o objeto
te não vai mais vir, eu até compreendo. Mas daí
- parte 1
da avaliação, o objeto é o campo de relações.
e desastres
sai com um amigo, toma uma cervejinha, toma
Se você vai trabalhar num campo de rela- um banho, melhora, melhora o pensamento, não
e enfrentamento
ções, o procedimento é o seu objeto, o seu pro- precisa ficar assim uma semana inteira. Não,
cedimento será buscar formas de afetar essas não. Não só ficamos uma semana inteira, como a
Psicologia em emergências
relações instituídas para alterar as condições discussão nos corredores é: “puxa, eu acho que a
que produziram o adoecimento. Então, eu tenho gente estava num momento que era um momento
que criar um procedimento que altere o campo difícil, não foi possível daí ele saiu”. Deveríamos
e medicalização
vessamentos, a criança faz parte dela, o jovem que é no território, nessas relações que inven-
faz parte dela, então me interessa muito estar tamos que os problemas são constituídos? E é
Cadernos Temáticos
com ele. O que que se avalia então? O que se maravilhoso pensar assim. É maravilhoso pensar
avalia é a potência de mudança de alteração, de assim porque a certeza de que sempre estamos
ampliação dessas relações datadas. constituindo aquilo em relação ao que estamos
Patologização
trabalhando, sempre estamos constituindo, nos
Traduzo: uma certa criança encaminhada,
dá uma força que é “bom, se estamos sempre
o procedimento é o procedimento onde vai ava-
constituindo, posso constituir, não preciso ficar
liar as relações e as práticas onde essa criança
amarrado numa certa configuração que tem expli-
se constitui, com o objetivo de avaliar isso. En-
cação e que não muda”.
tão, se a professora tem muito medo daquela
criança que sempre esteve ausente da escola Dito isso, eu queria fazer o seguinte per-
- parte 1
pecial, que queriam que essa criança voltasse elemento que construiu a forma de uma pro-
e desastres
para o ensino regular. Mas vejam bem, somos fessora sentir ou pensar, ou a gente vai lá e diz
professores do ensino regular, vou receber uma que ela é equivocada, né? Ela é equivocada e
e enfrentamento
criança que estava na classe especial, o que vai nós somos históricos? Não, ela é perfeita, ela é
Psicologia em emergências
acontecer comigo? Primeira vez que ela der uma construída num certo campo de relações, per-
detonada, eu vou ficar insegura, vou falar “gen- feita nesse sentido. A perfeição da construção
te, primeiro que ela estava na classe especial, ela de um certo fenômeno.
tem problemas graves, eu não sei o que fazer,
e medicalização
bagunça. Então, é muito legítimo o que essa
professora está pedindo. A gente foi perceben- como está essa sala de aula?” Então dependen-
do da maneira como a gente entra em contato
Cadernos Temáticos
do que a avaliação psicológica participa de um
campo de disputa. Dependendo da forma como com essa demanda, a demanda é uma porta de
vamos dizer o que conhecemos, participaremos entrada, é uma oportunidade. A gente vai criar as
Patologização
desse campo de relações, que é o nosso objeto, variações que nos dirão se a avaliação psicológi-
mudando mais ou menos. ca foi boa ou ruim. E repetindo: a avaliação psico-
lógica da Vilmara, dessa menininha, tá indo tudo
Olha que interessante: Eu avaliar uma me- bem; a avaliação psicológica do Welington tá di-
nina que tem uma doença grave, que tá sempre fícil, ele permanece no mesmo jeito e ninguém o
quietinha, tem um problema neurológico, tem quer, como que a gente vai fazer isso?
medo, depois de três meses na escola, ela já bri-
É interessante também pensar que, no ano
- parte 1
de manter uma mesma forma discursiva onde aqui?”. “Não, eu sou psicóloga aqui da USP, uma
e desastres
estamos fora dessa disputa. A questão é que escola mais ou menos perto” “ah, nossa, que ba-
nós estamos dentro dessa disputa. Veja bem, cana. Ah, psicóloga da USP, que é a USP”, enfim,
e enfrentamento
eu sou uma psicóloga de um serviço público, qualquer coisa. E daí eu, com aquele cuidado éti-
agora uma professora da universidade públi-
Psicologia em emergências
co que a gente consegue garantir todo tempo,
ca, meus filhos estudaram em escola particular. cheguei e falei assim, “então, eu estou aqui para
Veja bem, eu tenho um seguro saúde, eu tenho falar de fulano” e falei o nome dele. E daí ele fala
um seguro saúde e o imposto de renda, eu pos- “nossa, que bom menino”. Eu tinha vontade de
e medicalização
Saúde que eu não tenho tempo para ir para esco- se esconder), eu falei “gente, que maravilha, uma
la; eu não tenho tempo de ir para a escola porque relação na vida desse menino que ele faz ‘hum!’”.
Cadernos Temáticos
tenho muitos pacientes por dia. Temos de com- Entendeu? “É tudo que eu tô querendo”. Era o pi-
preender que essa condição de trabalho está poqueiro que ia nos ajudar a fazer a passagem,
presente na forma como eu invento um trabalho ou ele podia nos ajudar. Eu falar, “ai, vamos fazer
Patologização
de avaliação psicológica, de entender melhor o de um jeito que seja bacana na escola”. Agora, ele
que está acontecendo. Então, não foi pouca luta falar “ei” nossa, era outra coisa, “como assim?”,
dos psicólogos e assistentes sociais e fisiote- era outra coisa. Então, onde a gente caça essa
rapeutas, terapeutas ocupacionais e fonoaudi- cena, gente? A gente inventa dispositivos onde
ólogos. Não foi pouca luta desses profissionais as coisas se dão, uma multiplicidade de coisas
para que as condições de trabalho permitissem se dá no encontro com o outro, num certo aten-
que eles realizassem o trabalho. Por que como dimento, mas se a coisa não está caminhando,
- parte 1
Psicologia em emergências e desastres
Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Bom dia a todos e todas. Agradeço muito o convite der. Ele vem acompanhado do avô para o atendi-
de poder estar aqui tentando trazer um pouco a mento, o avô paterno, e o motivo é a dificuldade
experiência do trabalho cotidiano nessa tentativa na escola. E a história inicial é que ele está ma-
de subverter os laudos. triculado no terceiro ano, o equivalente a nossa
e medicalização
segunda série, certo? Porque é mais recente essa
Eu já tenho uns 30 anos de trabalho na rede
inclusão da primeira série como um ano a mais no
Cadernos Temáticos
com atendimento direto à população e também
ensino fundamental, e eu acho que isso é um pro-
com ensino de pediatria, na formação de residen-
blema porque parece que antecipou as expectati-
tes e de alunos da Faculdade de Medicina aqui da
vas de alfabetização como essa criança com oito
Patologização
Unicamp. A gente atua em unidades básicas de
anos já tivesse de estar totalmente alfabetizada
saúde aqui do município e tenta ampliar a capaci-
e preparada. Então isso inclusive os discursos,
dade de olhar desses alunos para essas questões
até políticos, a gente ouve muito isso, essa ne-
do social e da importância que tem de ampliar
cessidade de a criança estar pronta quando ainda
essa abordagem no cuidado em saúde. Então, eu
está numa fase de curiosidade, de descoberta e
pensei de trazer um caso que ilustrasse um pou-
de lidar com essas questões do aprendizado, da
co como tem sido essas tentativas que são, na
escrita, da fala, da leitura.
- parte 1
muita vivacidade, corrigindo um pouco o tio. Tinha
e desastres
car qual se refere a canguru, cavalo e cão, demons-
dificuldades, mas aqui ele já estava mais interessa-
trando fazer uma associação sonora a algumas
do nessa questão das letras, quebrando um pouco
e enfrentamento
das letras. Daí numa tentativa, “então faz uma lista
aquele medo de lidar com a situação do não saber.
você de palavras”, ele faz.
Psicologia em emergências
Teve uma boa participação, aceitou as regras e teve
EO – Gato a atenção bastante concentrada nos jogos. Foi en-
viado o relatório de atendimento à escola. E esse
CALELEF – cavalo
relatório já solicitava um reforço, um apoio para as
e medicalização
ideia da fase que ele estava. Isso em janeiro. En- familiar e o familiograma; e também às vezes uti-
tão foi feita uma avaliação do desenvolvimento. lizamos o Ecomapa.
Cadernos Temáticos
Essa avaliação foi feita só na segunda consulta
No caso dele, a dinâmica familiar nos mos-
que ocorreu mais ou menos 15 dias depois. Foram
tra que há quatro anos eles estão sob o cuidado
avaliadas as condições gestacionais, se foram
Patologização
da família paterna, os pais se separaram e a mãe
feitas as triagens neonatais, o acompanhamento
iniciou um novo relacionamento e teve uma quar-
das aquisições neuromotoras. Foi uma gestação
ta gestação. Vive em casa de três dormitórios,
sem intercorrência, um parto cesáreo, as triagens
onde pai e filhos dormem no mesmo quarto. Com
neonatais eram normais. Teve o atraso de desen-
exceção da avó, todos os adultos trabalham, as
volvimento na fala, demorou para começar a falar
condições econômicas são razoáveis; o pai não
e, quando começou, foi com bastante dislalia e
se casou novamente, embora tenha tentado no-
disfluência, que até hoje mantem ainda um pou-
- parte 1
ção. Então, ele já estava evoluindo bastante.
e desastres
E, então, há uma solicitação de avaliação
e enfrentamento
neuropsicológica. Isso no começo de setembro
agora. O pai solicita o encaminhamento para a
Psicologia em emergências
neuropediatra, pois ele está bastante angustiado
com o desenvolvimento escolar do filho. A escola
não reconhece a evolução que tem sido observa-
e medicalização
Para que profissional o senhor acha que deveria ser
encaminhado?”. E insistindo. E então eu coloquei
Cadernos Temáticos
“eu noto que ele tá num processo nítido de melhora,
de avanço. O senhor não nota?”. Ele também perce-
be, mas ele fala que a escola não percebe e a pró-
Patologização
pria criança se sente muito em defasagem e que
ele gostaria de um olhar.
Bom dia a todos. Eu queria agradecer a Rosan- quando recebo uma criança ou mesmo um adulto. A
gela pelo convite, eu fico feliz de participar desse criança chega encaminhada de várias maneiras. Ela é
movimento, que eu acho extremamente neces- trazida pela família, mas a demanda geralmente vem
sário. Fico feliz de contribuir um pouco com esse da escola, às vezes da família e algumas vezes vem
pensamento. da criança. E eu tenho uma maneira de trabalhar que
é um pouco diferente do habitual. Eu sempre recebo
O que eu vou tentar trazer é um pouco da
a criança primeiro na minha sala, sempre chamo a
maneira como eu faço. Quando a Rosangela me
criança primeiro, ela entra como ela preferir, como ela
convidou para falar sobre laudos, a primeira coi-
quiser, como ela conseguir, e é um pouco surpreen-
sa que eu falei, “mas por que que você tá me pe-
dente que isso funcione muito bem, que geralmente a
dindo isso? Eu detesto fazer laudo”, e ela disse
criança entra sozinha, e a minha ideia, nesse sentido,
“bom, justamente por isso, pra você poder contar
é subverter um pouco a ordem das coisas.
como que você faz”.
Essa questão do laudo é muito difícil na
clínica quando você tenta sustentar uma clínica “Digo que hoje o meu maior
que se baseia na leitura, no acolhimento do su-
trabalho como psiquiatra é
jeito, da subjetividade. É uma questão realmente
muito difícil. Vou tentar transmitir um pouco para desfazer diagnósticos, e não
vocês as reflexões que eu acabei produzindo fazer diagnósticos”
com essa questão.
- parte 1
te, e às vezes, quando é possível, eu faço alguma escola, um diagnóstico, se é um TOD. O que está
e desastres
menção assim do porquê que ela foi levada lá, se acontecendo ali, não é?
foi ela que quis ir, se foi ela que pediu, se alguém
e enfrentamento
A entrevista com os pais, o lugar dos pais
trouxe. Eu gostaria de dizer para vocês que não é
no atendimento da criança, é uma coisa bastante
Psicologia em emergências
incomum a criança dizer que ela quis ir e algumas
complexa. Quero tocar em alguns pontos. Quando
vezes ela diz que ela quer ir. Ela conta por que e os
eu atendo a criança, estou dando uma certa possi-
pais depois entram e contam outra coisa que não
bilidade para que a criança fale; quando eu atendo
era aquilo que ela estava dizendo. Então ela cons-
e medicalização
jos, as apostas que os pais trazem e falam sobre
ça vai poder falar sobre si, essa criança vai poder
a criança é que constitui essa criança falada. É
construir uma subjetividade, vai construir talvez
Cadernos Temáticos
importante sabermos que a criança que fala não é
uma forma de lidar com a realidade do entorno
a mesma criança que é falada. Hoje, essa criança
dela. Logo num primeiro momento, eu tenho essa
já vem, na grande maioria das vezes, diagnosti-
aposta bastante forte, e corro um pouco de risco,
Patologização
cada, ela vem com uma hipótese de diagnóstico
porque eu tenho de contar um pouco com a con-
ou da escola, ou dos próprios pais ou do Google.
fiança antecipada dos pais que não me conhecem
Os pais já procuraram, já sabem e é muito raro
e também o risco de que, muitas vezes, a questão
chegar um paciente no consultório que traz uma
não é com a criança. Então, às vezes eu atendi
questão e não tem nenhuma ideia do que ele acha
uma criança e a questão não era com ela. Na se-
que aquilo possa ser.
quência, às vezes, ela vem mais uma vez para eu
me despedir e o processo de acompanhamento
Então, existe na entrevista com os pais, tam- Esse atendimento de que estou falando é
bém, uma aposta no sentido de sustentar com o mesmo que eu faço na Apae onde eu traba-
eles uma leitura subjetiva da dificuldade do filho. A lho, é o mesmo que eu fazia no Caps enquanto
relação daquela queixa com o contexto, com o en- eu estava lá, fazia no Centro de Saúde e faço no
torno, com a história deles, com a história de vida meu consultório, porque fica parecendo que es-
deles, com a história daquele momento, com as es- tamos falando isso de uma coisa muito elitizada
colhas que eles fizeram. Por exemplo: qual escola, talvez, mas não é. Isso é possível de se fazer em
qual lugar eles vão ocupar, como eles foram morar, qualquer atendimento, essa sustentação de uma
com quem que eles moram, a decisão de ter tido subjetividade, tendo isso como uma prática, isso
mais um filho ou de não ter tido mais um filho. Quer pode se dar em qualquer lugar.
dizer, esse contexto tem que comparecer.
É tão difícil trabalhar isso com crianças que
Então, por que estou dizendo isso? É preci- estão na escola particular quanto com as crianças
so suspender a ideia de que o psiquiatra está ali que estão na escola pública. Isso não tem classe,
procurando um signo de doença, procurando um no meu ponto de vista. Do ponto de vista do dis-
diagnóstico. Nesse momento é uma entrevista curso, não tem muita diferença. Eu acho que tem
que recebe o diagnóstico, mas o que eu devolvo muita diferença às vezes na questão da hotelaria,
são perguntas que lançam, relançam os pais na na questão das condições da escola, mas hoje os
história de vida deles, na ideia de o que produ- professores estão muito convocados a estudar a
ziu a vontade deles de ter um filho ou não. Então neurociência, a estudar a neuro-avaliação, a ava-
essa entrevista, antes de ser uma anamnese no liação neuropsicológica, neuro-pedagógica, não
sentido de colher dados, ela é uma aposta de que é? E isso objetifica, é um discurso científico que
esses pais possam enxergar aquela queixa sobre não vai no sentido de fazer a gente poder enxer-
outras perspectivas. gar o sujeito que está por trás disso. É um discur-
so que exclui o sujeito.
E isso é logo na avaliação; se você não faz
isso logo no começo, é muito difícil fazer isso de- O que eu acho que é importante? Que já logo
pois. Porque o primeiro momento da entrevista nas primeiras entrevistas, e depois quando eu re-
com os pais é quando as coisas estão mais flexí- tomo o atendimento com a criança, eu já tenho, de
uma certa maneira, a chance de ter conseguido ção de diagnóstico traz esse alívio para os pais.
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alguns atravessamentos, vamos dizer assim. Não Esse alívio, às vezes, é até para a própria criança,
tenho nenhuma garantia disso, mas, na maioria porque, como já foi colocado aqui, quando você diz
das vezes, consigo algum atravessamento naquela que a criança tem TDH, ela mesma pode dizer isso
objetividade que é solicitada pelos pais. É isso que na escola. Então, ela já não precisa se culpar mais
cria condições para que eu consiga um processo por isso, ela já tem algo que explique o que que
- parte 1
de avaliação que os pais saibam que eu não estou acontece com ela e os outros é que vão se virar
e desastres
avaliando ali um diagnóstico. Eu anuncio isso; às para resolver esse problema.
vezes, eu dou essa palestra para os pais, porque é
e enfrentamento
Assim, o momento de produzir o diagnóstico,
preciso que eles possam escolher, o que acho que
de ter de fazer um relatório, ter de fazer um laudo
Psicologia em emergências
é importante de sustentar. Às vezes, os pais não
é dramático no acompanhamento com uma crian-
querem essa avaliação, eles querem um diagnós-
ça quando você sustenta uma leitura da subjetivi-
tico e eles podem consegui-lo em outro lugar, mas
dade, não é? Por um outro lado, como médico, eu
eu uso o máximo de recurso possível para susten-
e medicalização
Isso é uma coisa fácil de fazer. Ele é feito para que criança, pois ele abre portas. Por exemplo: as es-
colas para poder conseguir recurso, conseguir au-
Cadernos Temáticos
qualquer um faça. Isso não é uma coisa complicada
de fazer. O complicado é você poder sustentar que xílio, conseguir um professor a mais, um professor
não é isso que você tá fazendo ali. Pura e simples- na sala de aula, têm de apresentar um laudo para
determinado órgão do Ministério da Educação.
Patologização
mente. Então o processo de avaliação com a crian-
ça é tanto no sentido de construir uma possibilida- O diagnóstico é importante para abrir portas
de de ela poder relatar, de ela poder se situar, de para o atendimento. Através do diagnóstico, você
ela poder dizer algo sobre aquilo que está sendo faz encaminhamentos dentro do plano de saúde,
solicitado para ela, seja com uma dificuldade que com o diagnóstico você consegue encaminhar
ela tem em casa, seja com a dificuldade que ela para um ambulatório de especialidade dentro do
tem na escola, e isso progredir para uma aposta, serviço de saúde do município. Então, o diagnósti-
- parte 1
da professora receber aquela carta. Eu chamo
e desastres
aquilo e não faz aquilo outro e não consegue isso”,
mais de carta do que de laudo, como um pedido de
penso “e o que que ele consegue? Qual foi a estra-
uma aposta. Quando é possível isso, porque nem
e enfrentamento
tégia que o professor adotou?”. Às vezes não vem
sempre a gente consegue fazer dessa forma, nem
nada disso no relatório. E às vezes vem uma cons-
Psicologia em emergências
sempre é interessante colocar a criança nessa si-
trução assim, um pedido de ajuda e você percebe
tuação. Mas, de alguma maneira, eu leio às vezes
que tem um professor que está um pouco perdido
o que eu escrevi para a criança, para a família e
ali com aquela criança. Eu respeito muito esse mo-
tento recolher os efeitos que isso produziu. Ten-
e medicalização
uma criança dessa em sala de aula. Em consulta se ele não teve uma criança assim antes. Na maio-
ela fica sozinha comigo 30, 40 minutos, uma hora, ria das vezes, os professores não têm muito apoio
Cadernos Temáticos
e vai embora. Eu não imagino o que um professor na escola, não tem muito auxílio, então a gente
passa em sala de aula com aquela criança. Então é tem que procurar acolher. Mas eu não tenho muito
importante respeitar. o que dizer, porque a experiência do professor é
Patologização
uma coisa muito diferente da minha. Então é preci-
Eu acho esse pedido de ajuda, que às ve-
so que o diagnóstico carregue alguma explicação
zes a criança vem carregando, precisamos nos
para que esse professor saiba como lidar. É isso
perguntar de quem é esse pedido. Isso é uma
que eles pedem “nós precisamos do laudo para que
coisa que precisa ser bastante desdobrada, nós
a gente saiba o que fazer”.
não podemos receber isso e responder da ma-
neira como vem, né? Bom, qualquer tentativa de Se tem um engano nesse pedido é que o
responder dessa forma, eu acho produzimos uma diagnóstico explica alguma coisa para você saber
- parte 1
Psicologia em emergências e desastres
Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Heloisa: Gostaria de saber a opinião de vocês so- ana, eu sou médica e eu, apesar de ser pediatra,
bre o uso da CIF, Classificação Internacional de Fun- estou num lugar de trabalho já há 11 anos que é no
cionalidade, no lugar da CID. Isso é algo que temos Nasf. Minha questão é o seguinte: por mais que o
discutido no Conselho de Fonoaudiologia para ten- caso do menino que o doutor Fernando trouxe pa-
e medicalização
tar minimizar esses efeitos dos laudos. Penso se a reça mais difícil, ainda é uma realidade bem melhor
gente não poderia utilizá-lo e tentar transformar isso do que a grande maioria que nós temos no nosso
Cadernos Temáticos
em algo que seja exigido, que seja aceito pelos con- dia a dia. A minha questão maior é que a pressão
vênios, pelas escolas, já que a CIF permite que as ca- pela produção de laudo, é menos com relação a
racterísticas que o sujeito apresenta sejam entendi- ganho secundário e mais porque as famílias estão
Patologização
das na funcionalidade, localizadas num tempo e num pedindo um socorro: “a escola já não dá mais conta,
espaço. Dá muito mais trabalho para fazer, mas a eles não estão dando uma aula de reforço” ou “eu
gente poderia caminhar para este outro lado. A gen- não sei ler, eu não sei escrever, eu não sei ensinar o
te precisa de uma mudança política nesse país para meu filho”. Em Sumaré se você não tem um CID 71
conseguir essas transformações todas que a gente ou 73, a criança não tem nada além da sala de aula
quer. Isso é difícil, mas a gente pode tentar talvez ir comum e do professor, que não estou culpabilizan-
por esse caminho. Eu não sei o que vocês pensam. do, mas que muitas vezes, ele está tão cansado...
- parte 1
to na clínica é muito melhor porque a criança pode ra a Joana fala de uma pressão, portanto, como que
e desastres
dizer várias vezes para você que você está errado, se considera aquilo que é extrínseco na avaliação
que não era isso, não era aquilo e você vai mudando junto com as pessoas que estão nessa engrena-
e enfrentamento
o diagnóstico conforme vai mudando a direção do gem da avaliação? Então, se há algo extrínseco, há
Psicologia em emergências
seu trabalho ali. Essa pressão que a Joana colocou algo do campo político que precisa ser trazido. En-
que se você não produz laudo você deixa a escola tão, eu aproveito essas falas para falar que eu não
também desamparada, foi isso, né? Então você tem estou defendendo que a mudança seja política, ela
que dar um laudo para que a escola também pos- é, eu estou defendendo que além da mudança ser
e medicalização
tante e eu tenho tido um acolhimento também das Moreira fala para um pai, para uma mãe “então é o
minhas questões lá, tem mudado um pouco as coi- seguinte, deixa eu dar uma olhada aqui. Eu acho que...
Cadernos Temáticos
sas. E eu também tenho aprendido muito uma coisa eu acho que eu vou colocar o CID 78 que daí dá pra
que eles fazem que eu acho incrível: que a Apae lá é pegar condução, e isso e aquilo ‘tarara, tarara’”, con-
uma AMÃE. É um Oasis, porque as crianças chegam, quistar esse momento é incrível, e eu acho que é
Patologização
têm um atendimento que elas não têm em lugar ne- isso que nós estamos colocando, porque conquistar
nhum. Então por mais que existam contradições no esse momento significa que estamos considerando
processo, também existe ali uma coisa que funciona na construção de um laudo a existência da pressão,
e que acaba criando condições para várias daque- a existência de um tipo de discurso de pensamento
las crianças. Só de autista são 120 em sala de aula, que é: “precisamos fazer de uma maneira que depois
só para você ter ideia do meu desespero. Às vezes a gente não seja prejudicado”.
eu falo para os pais “olha, eu vou pôr um diagnóstico
- parte 1
redução de danos, eu acho que a gente tem de, aos oferta do Estado e realmente não foi possível dar
e desastres
pouquinhos, ir tentando pequenas conquistas, né? conta de que as professoras tivessem uma forma-
As rodas sempre são importantes, a ideia da inter- ção como a gente pode desejar, crítica, profunda e
e enfrentamento
setorialidade, da discussão dos casos. Esse caso é tudo mais. Eu acho que se a gente for discutir mais a
Psicologia em emergências
o caso mais tranquilo que eu trouxe. Normalmente, fundo, nenhum campo profissional teve. A gente tem
a complexidade dos casos é maior, a questão social, várias discussões sobre inclusive, a universidade pú-
muito mais grave, pouco apoio familiar, as questões blica, que ainda é o lugar que faz formação de mais
que a gente enfrenta, e quando eu falo “a gente” qualidade no campo profissional.
e medicalização
se essa ideia, vai se constituindo um outro campo às vezes é praticamente impossível pessoalmente,
subjetivo para todos. Não é um discurso único, é mas eu acho que isso é importante de a gente estar
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uma área, são problemas que são muito complexos, fazendo esse exercício desde ontem de colocar mais
muito mais complexos do que a gente imagina e que elementos, né? Complexificar essa reflexão. E eu
a gente precisaria continuar nessa linha. Então, por queria trazer hoje para gente pensar assim: quanto
Patologização
isso que eu acho quese eu fosse dar uma sugestão, essa distância do campo médico e a escola também
seria essa: promover o máximo possível rodas e ro- reforçam a posição de inferioridade das professo-
das no serviço, incluindo as famílias. Nós tivemos um ras, a posição de inferioridade da pedagogia, a po-
trabalho lindíssimo assim, de chamar as professoras sição de superioridade do médico, e mesmo vocês
para contarem sobre o processo de alfabetização lá que vem mostrar relatos e experiências que tentam
no Centro de Saúde. Foi muito bonito, um dos psicó- subverter e enfrentar a produção de laudos, o efeito
logos foi e pode entender também todo o sofrimento na escola ainda é muito semelhante. Então, como a
- parte 1
tem de estar excluído. abríamos os casos. Então, eu entendo que não tem
e desastres
outro jeito de a gente poder efetivamente trabalhar
Cláudia: Bom, a professora também se sentiu
com esse sujeito sem ser na produção de rede, sem
e enfrentamento
convocada a falar aqui, né? E aí eu me lembrei de
ser convocando. E quem pode convocar isso? Pode
ontem que eu cheguei a falar da equipe itinerante
Psicologia em emergências
ser o psiquiatra? Aqui foi o psiquiatra que convocou
que chega na escola, eu era professora, a equipe iti-
“ó, a rede do fulaninho precisa se encontrar”, mas
nerante, uma neuro, uma psicóloga, uma assistente
qualquer um desta rede pode convocar e chamar
social, avaliam 60 crianças num turno e me dizem
para conversar. E aí abre um fiozinho que eu não
e medicalização
“a perspectiva inclusiva” que, neste momento está
elas voltam e dizem assim “este menino aqui agora
correndo o risco de sumir. Sumir, só isso, a perspec-
pode ficar na escola, ele está em condições de ficar
Cadernos Temáticos
tiva inclusiva, não estou dizendo nem que a gente
na escola”. Aprendeu como a ficar na escola? Tá, daí
estava garantindo a escola para todos, uma escola
o tempo vai passando, eu fui trabalhar numa rede
boa para todos, mas a gente tinha essa direção, a
onde não precisava de avaliação de equipe nenhu-
Patologização
gente estava correndo atrás, a gente foi fazendo
ma, quem avaliava eram os professores. As salas
normativas ao entorno para ir dando uma certa ga-
de recursos foram inventadas em Porto Alegre em
rantia, inclusive a nota técnica. E, neste momento,
95, nunca precisamos de diagnóstico para que eles
nós corremos um risco grave de perder também
frequentassem essas salas, a nota técnica vem
isso, e isso pode ser um retrocesso de 30 anos, lá
para nos ajudar, ajudar quem precisar para dizer as-
para aquela equipe itinerante que eu tinha antes.
sim “ó, o atendimento é pedagógico e está aqui, mas
tem uma questãozinha delicada: no frigir dos ovos a