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Texto, contexto e trabalho editorial

UM POUCO DE TEORIA DA COMUNICAÇÃO

O objetivo deste curso é apresentar a gramática no contexto da publicação de livros. Não a


gramática pela gramática, mas a gramática a serviço do texto e, de um ponto de vista mais amplo, a
serviço da comunicação.
Vamos lembrar então os elementos básicos da comunicação: emissor, receptor, mensagem,
canal de comunicação, referente e código. Com certeza você já deve ter topado com o esquema
abaixo em algum momento.

Emissor: Aquele que emite a mensagem. No universo do livro, o emissor é o autor.


 
Receptor: Aquele a quem se destina a mensagem. No nosso caso, é o leitor.
 
Código: A maneira como a mensagem se organiza. Pode ser uma língua, gestos, código Morse, etc.
No nosso caso, o código é a língua portuguesa.
 
Canal de comunicação: Meio pelo qual a mensagem circula. Rádio, TV, livro, revista, etc. Vamos
focar no livro.
 
Mensagem: O conteúdo transmitido. Para o que interessa neste curso, pode ser um conteúdo
informativo ou literário.
 
Referente: O contexto em torno da mensagem: as circunstâncias em que se encontram o emissor
e/ou o receptor da mensagem.
 
 
As funções da linguagem
 
Todo texto carrega uma intenção de comunicação, e a cada intenção de comunicação
corresponde uma função da linguagem, que vai determinar a maneira como o texto se estrutura
sintática e semanticamente.
 
Função emotiva, ou expressiva: Manifesta uma emoção, um ponto de vista subjetivo. O emissor
(autor) está no centro da comunicação, pois a mensagem exprime os seus sentimentos. O uso da
primeira pessoa do discurso, interjeições, exclamações e reticências são indicativos da função
emotiva.
 
Função conativa, ou apelativa: Procura convencer o leitor de alguma coisa, dar-lhe uma ordem ou
um conselho. O receptor (leitor) está no centro da comunicação, pois a mensagem busca determinar
o seu comportamento. O uso dos verbos no modo imperativo e do vocativo são indicativos da função
conativa.
 
Função poética: A mensagem está no centro da comunicação e é expressa de modo criativo,
artístico. Obviamente, a função poética está na poesia, mas também nos slogans publicitários e nos
provérbios.
 
Função referencial, ou denotativa: Transmite informações de forma neutra e objetiva. O referente
está no centro da comunicação. Esta é a linguagem dos textos jornalísticos, dos documentos legais e
científicos. Em geral, o verbo está na terceira pessoa.
 
Função metalinguística: Explica o código através do próprio código, a linguagem pela linguagem.
Por exemplo, uma crônica que fale sobre a língua portuguesa, uma poesia que fale sobre poesia, etc.
 
Função fática: O canal de comunicação está no centro da mensagem, que busca estabelecer um
contato entre o emissor e o receptor. Quando dizemos “Oi”, “Como vai?”, estamos aplicando a
linguagem fática.
 
 
Os problemas de comunicação
 
As dificuldades de comunicação acontecem por falhas diversas:
 
O emissor/autor:
 
     Tem dificuldade para expor o próprio pensamento.
     Não expõe ideias e fatos de forma coerente.
     Emite opiniões e juízos de valor quando apenas fatos estão sendo solicitados.
 
O receptor/leitor:
 
     Tem repertório insuficiente para compreender a mensagem.
     Não tem vivência nem experiência para compreender a mensagem.
 
O código/texto:
 
     Apresenta linguagem inadequada para o público ao qual se destina a mensagem.
     É sintaticamente desconexo. 
     É estruturalmente desconexo.
 
O canal de comunicação/material impresso:
 
     É  inadequado para o objetivo da comunicação.
     Apresenta problemas técnicos.
 
A mensagem/conteúdo:
 
     Apresenta incoerência entre as ideias ou os fatos expostos e o nosso conhecimento de mundo.
     É hermética.
     É vazia de significado.
 
No texto de um livro – e também no de uma revista, uma dissertação de mestrado, uma tese de
doutorado –, todos os problemas listados acima podem ser resolvidos no processo de edição, pelas
mãos de editores, preparadores e revisores de texto, os quais, cada um a seu tempo, encaram a
seguinte missão:
 
      Melhorar textos confusos/dar coesão ao texto.
      Eliminar repetições desnecessárias.
      Corrigir erros ortográficos e gramaticais.
      Eliminar vícios de linguagem.
      Checar informações duvidosas.
      Padronizar o conteúdo segundo o manual de estilo da editora.

Essa listinha não esgota todas as tarefas de preparadores e revisores, mas esse é um assunto
para outro curso. Por ora, vamos nos concentrar nas etapas de produção editorial e nos limites de
intervenção no texto – esses, sim, temas que têm tudo a ver com a questão da gramática.
 
 
AS ETAPAS DA PRODUÇÃO EDITORIAL
 
Para fazer um bom trabalho de revisão e preparação, é importante conhecer o processo
editorial e entender o papel de cada um de seus agentes. Preparadores e revisores servem aos
interesses – muitas vezes conflitantes – de três atores: o autor, o editor, o leitor. Nunca se esqueça
disso.
Muito resumidamente, o processo de produção de um livro é o seguinte: se a obra aprovada
para publicação foi escrita em uma língua estrangeira, providencia-se a tradução. A seguir vem
a preparação. No caso de originais nacionais, a preparação é a primeira etapa do trabalho editorial
depois das intervenções iniciais do editor. Em qualquer caso ela deve ser executada antes da
diagramação do livro. Às vezes é preciso fazer cotejo, a análise comparativa do original com a
tradução linha por linha, mas essa etapa é executada apenas esporadicamente, quando se desconfia
que a tradução tem muitos problemas. Depois de preparado, o texto é diagramado. Na sequência,
passa pela revisão de provas (duas provas pelo menos). Terminada a revisão, o arquivo é fechado e
um PDF é encaminhado para a gráfica que fará a impressão do livro.
 
 
O fluxo do texto na produção do livro

Se o livro em questão for um original técnico-científico, dependendo do caso ele poderá ainda
passar pela revisão técnica de um especialista.
Observe que a cada etapa de intervenção no texto corresponde uma etapa de controle. Esse é
um princípio fundamental do processo, que deve ser sempre respeitado para que o produto final saia
o mais próximo possível da perfeição.
Os profissionais que trabalham diretamente para o cliente, sem passar pela intermediação de
uma editora, talvez experimentem um processo menos esquemático. Para começar, nessa situação
todo trabalho de correção do texto é chamado de revisão, ainda que seja feito na tela de um
computador, com o texto não diagramado. O cliente é o coordenador e última instância de decisões.
No mercado editorial, porém, é bem clara a divisão de atribuições entre os preparadores e os
revisores.
 
A preparação
Como a preparação acontece antes da diagramação do livro, no texto digitalizado, é nessa fase
que devem ser feitas as correções substanciais.
O preparador deve cuidar dos aspectos gramaticais do texto (acentuação, ortografia,
vocabulário e sintaxe), e para isso ele precisa ter excelente domínio da gramática e de técnicas de
redação. O preparador deve cuidar também dos aspectos formais do texto (uma série de critérios de
padronização cujo objetivo é dar à obra uma apresentação racional e uniforme). Clareza, coerência,
consistência e correção são as metas a serem alcançadas.
 
A revisão
A revisão de provas é a leitura e a correção do texto quando ele já está diagramado. Ela pode
ser feita em papel, método ainda predominante no mercado, ou em arquivos PDF. A principal função
do revisor de texto é garantir a coerência da aplicação dos critérios de padronização e a correção
gramatical (sempre em alinhamento com o contexto específico de cada texto).
Em especial, o revisor não pode errar a ortografia e a acentuação. E nem deixar passar pastéis
(ou gralhas), que são os erros tipográficos. Com o livro já diagramado, é preciso pesar bem as
correções a fazer. Não é mais o momento de interferir profundamente no texto, sob pena de atrasar e
onerar o processo. Se o revisor considerar que a prova que tem nas mãos precisa de muitos reparos,
deve conversar com o editor antes de emendá-la.
 
Os limites de intervenção durante a preparação do texto
A grande dificuldade do preparador e do revisor iniciantes é determinar quanto podem intervir
em um texto que não é seu. Para muitos, essa dúvida é paralisante e fonte de muita angústia.
Embora não exista uma regra absoluta, que possa ser aplicada a 100% dos casos, é possível
estabelecer algumas balizas. A primeira delas está logo acima: na preparação são feitas as correções
substanciais; na revisão, a correção gramatical e dos erros tipográficos.
 
Preparação de obras brasileiras
Em obras de ficção, o preparador deve se restringir a corrigir a ortografia e a acentuação, a
menos que tenha sido orientado pelo editor a efetuar alterações substanciais. A pontuação e as
pequenas incorreções de sintaxe devem ser mantidas, uma vez que são os autores nacionais que
introduzem na linguagem escrita formas novas, que a gramática normativa poderá um dia assimilar.
Mas vamos fazer um parêntese para falar dos autores de ficção autopublicados. Autopublicar-
se é uma possibilidade cada vez mais comum graças às novas tecnologias, e pode ser que um autor
assim decida contratar o serviço de um revisor ou preparador. Um texto de ficção que não passou
pelo crivo e pelas sugestões de um editor pode precisar de muito mais do que correções de
acentuação e ortografia. O que fazer? Conversar com o autor, explicar a ele quais são as
possibilidades de intervenção (veja “Os níveis de intervenção no texto”, abaixo), fazer o seu
julgamento e aguardar a decisão dele. Como, aliás, fazem os profissionais que trabalham com teses e
dissertações.
Em obras de não ficção, o preparador tem mais liberdade. Aqui o elemento mais importante é
o conteúdo informativo, e nesse caso fica tácito que, desde que não altere o conteúdo da obra, o
preparador pode melhorar o texto. Porém, mesmo neste caso é importante que o preparador procure
respeitar ao máximo a voz do autor. Não é incomum encontrarmos autores com uma voz bastante
própria cujo texto apresenta muitos problemas de sintaxe. Nossa função é manter a voz e corrigir os
problemas. Sim, é possível. Por outro lado, há um tipo de autor de livros de não ficção que tem um
estilo tão próprio que deve ser tratado como os autores de ficção. Pense em um Ruy Castro, um
Fernando Morais, uma Lya Luft, por exemplo.
No entanto, o estado em que a obra chegará às mãos do preparador sempre dependerá da
estrutura e do porte da editora que encomendou o serviço. Editoras grandes, mais estruturadas, em
geral trabalham mais o texto antes de enviá-lo à preparação. Por isso é muito importante que o
preparador procure saber exatamente o que esperam dele em cada livro.
 
Preparação de obras traduzidas
Além de corrigir os erros de ortografia, acentuação e sintaxe, é dever do preparador procurar
sanar os eventuais defeitos de tradução. Porém, é preciso cuidado para não desfigurar uma tradução
de caráter eminentemente pessoal. Cada tradutor tem seu estilo, e, desde que haja coerência e o
trabalho esteja bem-feito, ele deve ser respeitado. Em casos assim, emendas isoladas apenas
atrapalham o resultado final. Corrigir erros de sintaxe, sanar problemas pontuais, eliminar
ambiguidades, adequar uma ou outra palavra – funções do preparador – não tem nada a ver com
reescrever completamente o texto ou fazer opções de estilo.
Os desvios da norma-padrão da língua devem ser corrigidos, mas sem extremismos. Por
exemplo, não é porque a gramática não aceita a próclise do pronome oblíquo em início de oração que
vamos usar a mesóclise em uma obra contemporânea, especialmente em um diálogo, que dessa
forma soaria muito artificial. Em casos assim, o preparador deve buscar soluções menos radicais.
Mais sobre este tópico na próxima aula.
 
Os níveis de intervenção no texto
A profundidade das correções a serem feitas em um texto deve ser discutida com o editor. Se
você estiver trabalhando diretamente para o cliente/autor, esses parâmetros deverão ser
estabelecidos com ele.
Com o tempo, todo preparador desenvolve uma espécie de intuição que lhe diz quando intervir
e quando deixar pra lá. O que não significa que vamos acertar sempre ou deixar autores e editores
felizes 100% do tempo. O importante é que o trabalho tenha consistência.
A tabela a seguir resume os tipos de intervenção que podemos fazer em um texto. Ela foi
criada pela Amy Einsohn e resume muito bem o trabalho editorial no que diz respeito ao texto:
 
  Padronização
  Verificação da correlação entre as partes do livro
  Edição da linguagem
  Edição do conteúdo
  Hierarquização
 
Não se esqueça de que em textos de ficção de autor nacional a margem de interferência pode ser
mínima.
 

Tarefas Intervenção leve Intervenção moderada Intervenção pesada


Padronização Garanta a consistência da edição em conformidade com as normas da gramática e de estilos
da editora: ortografia, uso de maiúsculas e minúsculas, pontuação, hifenização, abreviações,
numerais, etc. Dependendo da obra, pode-se aceitar variações das normas da editora.
Correlação das Verifique todas as possíveis correlações entre as partes da obra: os tópicos do sumário e os
partes capítulos, a numeração das notas, as citações e as referências bibliográficas, etc. Verifique
todos os números.
Edição da linguagem Corrija todos os erros Corrija todos os erros Corrija todos os erros
indiscutíveis de gramática. indiscutíveis de gramática. indiscutíveis de gramática.
     
Aponte as passagens confusas Reescreva as passagens Reescreva as passagens
e redundantes. confusas e redundantes. confusas e redundantes.
     
  Sugira alterações lexicais Faça as alterações lexicais
Ignore o vocabulário impreciso. para dar mais precisão ao necessárias.
texto.
Edição do conteúdo Questione inconsistências Recomende correções às Recomende correções às
factuais e informações que inconsistências factuais e inconsistências factuais e às
pareçam incorretas. às informações que informações que pareçam
pareçam incorretas. incorretas.
   
Questione a estrutura do Recomende nova estrutura do
texto e o encadeamento texto e melhore o
das ideias. encadeamento das ideias.
 
Hierarquização Atribua o peso de cada título e Atribua o peso de cada Atribua o peso de cada título e
  subtítulo. título e subtítulo. subtítulo.
Fonte: Einsohn, Amy. The copyeditor’s handbook. Berkeley, Los Angeles, Londres, University of
California Press, 1999.

A intervenção pesada é mais comum em textos de autores especialistas em alguma área de


conhecimento mas sem um bom domínio da língua e/ou com baixa capacidade de se comunicar com
o público leigo. Em casos assim, muito embora o editor possa interferir bastante na organização
estrutural, costuma sobrar ainda bastante trabalho para o preparador.
Mas existem autores que entregam um texto melhor, que chega à preparação quase limpo.
Portanto, avalie o texto que tem nas mãos, converse com o editor, escolha o nível de intervenção que
a sua intuição mandar e execute todos os seus passos para garantir uma coerência mínima.
Repare, porém, que a recomendação é corrigir os erros indiscutíveis de gramática, seja a
intervenção leve, seja moderada, seja pesada. Na próxima aula vamos falar sobre isso. Vamos
discutir gramática, erro gramatical, norma-padrão e português do Brasil.
 
Para concluir esta aula, leia o material complementar:
 
  Amostras comentadas de textos preparados.
  “Súplica aos revisores” e “MAO E MTT”.
 
Por fim, não se esqueça de fazer os exercícios.

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