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TEMPO E SINCRONICIDADE
UMA ENTREVISTA COM MARIE LOUISE VON FRANZ
Jornal Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, de 02 de novembro de 1987.
Por Gilson Schwartz.
Nada mais comum, depois das derrapadas de um ato falho ou mesmo diante de uma
descompostura alucinada, que ouvir alguém abrir parênteses para dizer: “Freud explica”. Mas
como qualquer outra marca registrada de nossa época, esse anúncio luminoso pode tanto ofuscar
quanto esclarecer. Há muito mais entre o falo e o vaso do que imagina nossa vã psicologia.
Em 1906, com 31 anos, Carl Gustav Jung experimentava a vertigem da ciência. Advertido por
dois professores alemães contra sua persistência em ficar ao lado de Freud, defendendo-o,
atitude que colocaria seu “futuro universitário” em perigo, Jung respondeu: “Se o que Freud diz
é verdadeiro, ficarei com ele. Pouco me importa uma carreira que silenciasse a verdade e
mutilasse a pesquisa”. Apoio incondicional à ciência e à pesquisa, mas defesa de Freud apenas
no caso de sua teoria ser verdadeira. Jung não chegou, afinal, a negar a verdade da teoria
freudiana das “neuroses causadas por recalques ou traumas sexuais”. Entretanto, movido por
outro ânimo, Jung lutou contra a conversão daquela verdade num dogma. Que as teorias
psicológicas virem dogmas não é novidade. Basta contar o número de “igrejinhas”, cada uma
cultivando a sua “verdade” (freudianos, kleinianos, lacanianos, junguianos etc.).
Marie-Louise von Franz é discípula de Jung, mas abomina a “escola junguiana”, o Instituto, o
carreirismo. Prefere reunir-se, sem verbas sem cargos com um grupo de estudiosos dispostos a
verdade. Aos 72 anos, é a única sobrevivente do círculo íntimo de trabalho que existiu em torno
de Jung. Vive numa pequena casa em Kusnacht, cidade próxima a Zurique, na Suíça – onde,
aliás, está instalado o Instituto Jung, à beira do lago. A casa de von Franz fica afastada desse
instituto que ela já não freqüenta. É uma casa simples de jardim abandonado. Na biblioteca,
entre livros de psicologia, história, antropologia, destaca-se uma enorme estátua esverdeada do
Buda indiano.
Marie-Louise von Franz conheceu Jung em 1934. Ela, aos 19 anos (ele com 59), já tinha uma
cultura filológica e filosófica suficiente para colaborar com o mestre na tradução de textos do
grego, latim e sânscrito, necessários para a pesquisa sobre a alquimia que Jung então
desenvolvia. Mas apenas em 1951, quando se publica “Aion”, o nome de Von Franz aparece como
autora de uma interpretação das visões da mártir Santa Perpétua. Entre 1955 e 1957 a
colaboração chega ao cimo, com a publicação de “Mysterium Coniunctionis”, estudo sobre “a
separação e a reunião dos opostos na alquimia”. O terceiro e último volume, de autoria de Von
Franz, contém o texto, a tradução e o comentário psicológico de um tratado de alquimia atribuído
a São Tomás de Aquino (Aurora Consurgens). Eis a cifra renovada da vertigem: buscar mundos
fundadores do racionalismo moderno as pistas do inconsciente. Um dos aspectos do pensamento
de Jung especialmente prolongados pela obra de Von Franz é o estudo do simbolismo dos
números. Em “Número e Tempo” (1970) esse simbolismo traduz um elo entre a psicologia do
inconsciente e a física moderna. Esse elo envolve o conceito de “sincronicidade”. É como se todos
os acontecimentos do tempo histórico fossem reunidos numa identidade objetiva e
transcendental que, entretanto, se revelaria em alguns momentos casualmente significativos. É
o acaso significativo, aquelas coincidências, sonhos, premunições que nos colocam em contato
com uma realidade dita “oculta”. Esse acaso que explica e orienta como no jogo do “I-Ching”, só
pode ser apreendido quando ultrapassamos a fronteira segura da explicação causal. Von Franz
tem desbravado esse território multidimensional, com a colaboração de físicos, biólogos e
historiadores. O conceito de “sincronicidade” como outros ligados a obra de Jung, parece
impregnado de irracionalidade. Certamente não se reduz aos modelos explicativos
tradicionalmente usados na ciência moderna, porque exige ao mesmo tempo vontade de
conhecimento e consciência dos limites da racionalidade. Essa trilha ambivalente, que procura
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ENTREVISTA
Marie-Louise Uma reflexão a partir da filosofia de Kant esclarece que a causalidade não é um
fenômeno objetivo, mas uma das formas com que enxergamos as coisas: “por causa disso, ocorre
aquilo” na verdade, as duas coisas acontecem e nós fazemos a conexão. A causalidade é uma
categoria de nossa mente ou da nossa forma de pensar. Mesmo padrão comportamental dos
animais está sintonizado “se tal coisa acontece, comporto-me desse modo”. É um conceito com
raízes portanto, bastante profundas, mas não é tudo. Sabe-se na mecânica quântica que nem
tudo é explicado de modo causal. Há fenômenos comprovados apenas estatisticamente, e há por
assim dizer lacunas onde a causalidade não funciona. O novo conceito de “sincronicidade” criado
por Jung, não joga fora a causalidade, mas preenche aquele vazio ou lacuna. Ao invés de usar a
expressão “não causal”, Jung optou por uma expressão positiva, “sincronicidade”. Há algo mais
se manifestando.
Marie-Louise Todo conceito novo tem, na realidade, raízes históricas. As raízes históricas da
“sincronicidade” são mágicas. Além da causalidade, a humanidade sempre lidou com mágica,
povos primitivos têm fazedores de chuva e xamãs. Mas essa é a mentalidade primitiva. A noção
de “sincronicidade” dispensa essa referência à mágica, substituindo-a por um conceito muito mais
disciplinado. É um conceito que dá conta de uma manifestação temporária e pontual da totalidade
significativa.
Marie-Louise Usando a sua linguagem de economista, pense nas pessoas que especulam nos
mercados financeiros. Ela tem um comportamento mágico, usam amuletos, acreditam em dias
bons em oposição a dias negros. A especulação está permeada de pensamento mágico. Em outras
palavras, a realidade empírica da economia mostra que na especulação está em jogo um fator
irracional que tem um aspecto psicológico.
Folha O conceito de “sincronicidade” poderia ser aplicado a outras disciplinas das ditas ciências
humanas?
Marie-Louise Trata-se de um conceito realmente básico. Poderia ser usado, por exemplo, numa
revisão da história. Escrevi um artigo sobre a deusa Nikér, da vitória. A vitória militar não é
apenas uma questão racional (mais soldados, mais armas). Os alemães perderam a batalha do
Marne, na primeira guerra mundial por acaso: uma determinada ordem não foi seguida.
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Marie-Louise A diferença de Jung é que ele entra com o conceito de inconsciente. Outros
chamam-no “irracional” e então o racionalismo com referencia ao dialogo, ao sentimento e etc.
Jung dizia que há fatores muito mais profundos, ligados a força criativa do inconsciente. Isso é
novo e provoca muitas reações, pois as pessoas têm medo. Quando você fala em diálogo, a
manipulação ainda é possível. Mais ainda surge a esperança de aperfeiçoar essa manipulação: “e
se sentarmos juntos para fazer psicodrama poderemos superar as dificuldades”. Mas para Jung
é preciso render-se, a “dificuldade” nunca será superada. A “sincronicidade” não pode ser
manipulada. Assim, Jung promove uma derrota completa da racionalidade. Mesmo assim há uma
possibilidade de manipulação no conceito junguiano. Se você tem uma atitude positiva frente ao
inconsciente, ele se torna muito mais benevolente. Senão pudéssemos manipulá-lo em absoluto
não haveria psicoterapia. A partir de uma atitude consciente, frente ao inconsciente, a
“sincronicidade” pode trabalhar positivamente para o paciente, ele é curado. Eu diria que não se
pode manipular, mas, tornar o contato com o inconsciente mais amigável.
Folha Uma sociedade informatizada tornaria essa consciência do inconsciente mais difícil?
Marie-Louise Para Jung, alcançar esse meio termo da reflexão razoável é sinal de cultura,
mover-se na direção oposta é primitivismo e barbárie. Ainda não sabemos se a superação da
barbárie será possível.
Folha Haveria na história humana um padrão cíclico de oscilações entre o racional e o irracional,
ou se pode acreditar num processo evolutivo?
Marie-Louise Eu não sei, minha mente está aberta para essas duas possibilidades. Por
temperamento, estou inclinada a acreditar numa evolução cultural muito lenta que transcorre ao
longo de milhares de anos, com ciclos de criação e destruição num meio tempo. Mas se
considerarmos 10 ou 20 mil anos felizmente tornou-se um pouco mais cultivada.
Marie-Louise Essa é uma parte daquela conversão ao irracional. As mulheres têm uma relação
com o irracional melhor que os homens, ao não ser que se masculinizem. Uma mulher feminina
tem uma inclinação natural ao irracional, a seguir, seus sentimentos ou intuições. Para uma
mulher, dizer “não pode te explicar, mas sinto que desejo fazer isso” não é loucura. Para um
homem isso é meio louco, ele diz: “querida procure refletir”.
Folha Como o feminismo se enquadra nessa visão, agora que as mulheres ocupam postos de
poder?
Marie-Louise Assumir papéis masculinos não é necessariamente uma coisa boa. Sou contra o
feminismo porque sou contra a masculinização das mulheres. Sou um outro tipo de feminista,
que procura dar mais valor ao “feminismo”. As mulheres precisam resistir ao complexo de
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inferioridade que levam muitas a imitar os homens. Ao contrário, temo pelos homens do futuro.
Pobre homens…
Marie-Louise As crianças apenas fazem aquilo que os adultos querem inconscientemente fazer.
Se as crianças se brutalizam, isso significa que seus pais não estão conseguindo lidar com sua
própria sombra de brutalidade. Os adultos acumulam uma sombra de brutalidade e não querem
vê-la. A manipulação das crianças apenas criara uma geração neurótica e criminosa.
Marie-Louise Religião pode significar duas coisas opostas. Poder ser o ato de ir a igreja,
pertencer a uma seita e acreditar em certas coisas e comportamentos. Isso nós não precisamos
necessariamente. Pelo menos as religiões existentes são muito deficientes. Mas pode-se entender
religião de outra forma, como uma experiência numinosa de um aspecto do inconsciente. Disso
nós precisamos muito, prestar atenção as forças irracionais da natureza dentro de nós e no
mundo exterior. Dessa religião nós realmente precisamos, na verdade é tudo o que precisamos.
Tomar consciência do que se passa nos bastidores. É o que fazemos na psicoterapia junguiana:
observar os sonhos e ensinar o paciente a observar seus sonhos e adaptar-se aquilo que seus
bastidores irracionais desejam dele.
Marie-Louise Freud via o inconsciente como algo a ser removido e manipulado. Jung via o
inconsciente como algo poderoso e criativo que não pode ser manipulado. Jung considera o
irracional enquanto irracional, ao invés de racionalizá-lo rapidamente, chamando-o de
“sexualidade”.
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Obs.: O encontro com Marie-Louise von Franz foi facilitado pelo intermédio de Matheus Ajzeuberg,
Mosoko Oki e Leniza Castelo Branco. A viagem à Suíça foi cortesia da Swissair.