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AGRADECIMENTOS
A todos os meus alunos e a todas as pessoas que porventura
venham a ler esse escrito e desejem sinceramente compreender o
método de Jung com o fito de ajudar as pessoas que padecem dos
males da alma.
INTRODUÇÃO
A psique não pode ser apreendida numa teoria; tampouco o mundo. As
teorias não são artigos de fé; quando muito, são instrumentos a serviço do
conhecimento e da terapia; ou então não servem para coisa alguma.
C. G. Jung.
Falar sobre o método de Jung não deveria ser algo tão
complicado e espinhoso, haja vista sua Psicologia ter um viés
eminentemente prático, voltado não apenas para a clínica individual,
mas tendo essa última como seu principal horizonte. Justamente por
esse fato – a importância da terapia individual – os demais aspectos
que envolvem o indivíduo e o ultrapassam não podem ser deixados
de lado, pois a individualidade não é idêntica à singularidade, do
contrário uma Antropologia geral e uma Psicologia geral seriam
impossíveis. Existem partes conformes (coletivas) no psiquismo e,
mesmo a individualidade é, para Jung, um recorte particular de
elementos coletivos. Todos somos atravessados pelos problemas do
nosso tempo e da sociedade. O método elaborado por Jung, nessa
perspectiva, visa interpretar não apenas a fantasia espontânea
manifesta em sonhos, visões e sintomas, mas igualmente as
produções culturais que têm seu nascedouro, assim como os
sonhos e devaneios, na alma e expressam de maneira simbólica o
mistério inenarrável das profundezas de nossa psique.
A “teoria” deve estar a serviço do conhecimento. Essa parece
uma afirmação banal, mas que requer uma explicação, pois Jung
faz uma distinção entre conhecimento e compreensão. O
conhecimento se refere àquilo que é geral, como ele expõe em seu
livro Presente e Futuro. Na perspectiva do conhecimento, o homem
real – que se caracteriza na realidade pela irregularidade relativa –
deve ser entendido como unidade comparável, mas, ao estabelecer
um conhecimento teórico sobre os aspectos universais e recorrentes
do homem como abstração, o médico deve estar ciente do paradoxo
de que tudo o que redunda em vantagem para o conhecimento é
desvantagem para a compreensão. Para a possibilidade de
compreender um homem real, que se evidencia pela sua
individualidade e como uma exceção à regra, a “teoria” pode se
converter em um preconceito. O paradoxo é que devemos atentar
tanto para o conhecimento quanto para a compreensão. Nesse
último aspecto, se evidencia o desafio representado pela terapia,
bem como o autoconhecimento que o processo analítico pode
proporcionar a esse ser humano real, que não é mera recorrência
estatística e, nesse caso, é certo que esse autoconhecimento não
pode ser baseado em pressupostos teóricos.
Pode parecer um tanto estranha essa afirmação no começo de
um livro que vai se debruçar longamente em um método, ou que tal
frase seja haurida da vasta e complexa obra de Jung. Nesse ponto,
o temperamento empírico indispensável à compreensão do caráter
fortemente pragmático de Jung entra em cena, pois, segundo
James, o método pragmático é anti-racionalista, mas não anti-
intelectualista. Os conceitos empíricos1 são extremamente
importantes ao lidar com o aparente caos e variedade dos
fenômenos. Os conceitos empíricos de Jung estão inextricavelmente
ligados à maneira peculiar como ele utilizava o método das ciências
da natureza – o método empírico descritivo – pois seus conceitos
visam, pragmaticamente, a ser instrumentos e não respostas a um
enigma. Cada um desses conceitos – chamados por Jung de
conceitos empíricos – deve ter um valor prático (practical cash-
value), há uma ênfase nos fatos e nos aspectos práticos e um
desprezo por soluções verbais, questões inúteis e abstrações
metafísicas. Jung os chamava de conceitos empíricos, porque a
Psicologia é um campo de experiência e não uma teoria filosófica,
pois sabemos muito bem que os fatos decisivos de que tratamos
nesse campo são extraordinariamente complexos e só podem ser
apreendidos pela descrição casuística, que deve ser livre de
pressupostos teóricos. Não se pode delimitar o campo de trabalho
segundo conceitos teóricos, assim, importa o fenômeno em sua
totalidade, os conceitos apenas nomeiam um grupo de fenômenos
análogos e afins, logo eles são descrições dedutivas de fatos
empíricos.
Vale ressaltar, sempre e de novo, que o método descritivo não
pode ser sobrecarregado por pressupostos teóricos. O
temperamento empírico proposto por James engendra uma atitude
diante dos fatos e jamais podemos nos esquecer de que, no fundo,
para utilizar uma expressão do próprio Jung, sua teoria é um
nominalismo culto2, seus conceitos são, nomeadamente, conceitos
verbais. Significa que um conceito como energia é um coeficiente de
cálculo mental, entretanto não é um nominalismo qualquer, pois
compreende por quais dinâmicas da psique a ideia abstrata é
hipostasiada3.
Historicamente, na ontogênese e na filogênese, a imagem possui
uma realidade autônoma e primeva, de tal maneira que para o xamã
primitivo (e para certos “junguianos”), a palavra como manifestação
externa do pensamento tem um efeito real, pois evoca imagens
reais. Mesmo sendo mero conceito verbal, nosso exemplo da
energia possui, ou pode possuir, psicologicamente uma dose de
realidade (é tão real que temos uma conta de luz no fim do mês),
pois a ideia de energia designa a conformidade dos fenômenos de
força e tal conformidade não pode ser negada, e temos provas
convincentes de sua existência (assim, também, anima, animus,
sombra designam conformidades nos fenômenos anímicos), na
medida em que uma coisa é real e uma palavra a designa
convencionalmente, o conceito genérico adquire um significado real.
Pragmaticamente, todavia, nos interessamos por fatos e não por
abstrações e categorias (conceitos são categorias e não são fatos),
sabemos que leis científicas são aproximações, nossas teorias
possuem o valor prático de sumariar velhos fatos e nos levar a
novos fatos, são apenas atalhos conceituais e a verdade dos fatos
pode ser descrita por inúmeros dos dialetos científicos criados pelo
homem. Aqueles que caem sob o poder da velha magia das
palavras, sentindo-se poderosos como o mítico Salomão4, estão
identificados com ideias inconscientes, alienam-se de seu papel
como terapeuta e usam os conceitos como palavras mágicas. Ao
dizerem “anima” creem poder exorcizá-la, nesse momento, perdem
a oportunidade de serem terapeutas e se tornam “xamãs” de quinta
categoria, fazendo, em vez de Psicologia, uma macumba muito
ineficaz5. Saem da ciência e adentram o reino da metafísica.
Aqui, estimado leitor, surge justamente a complicação do
método, não que ele seja complicado em si mesmo, mas a
metafísica é frequentemente tema dos estudos de Jung, assim
como o mito, a religião e a poesia – compreendidas como
produções simbólicas, como Imago. Diferente da metafísica, a
psicologia não se interessa pelas coisas como realmente são, mas
apenas pela maneira como são imaginadas. Jung advertiu diversas
vezes que falar da existência não é a mesma coisa que a própria
existência, mas falava para ouvidos moucos. O seu método se volta
sempre para os fatos, para o particular, mas sua pesquisa empírica
que se embrenhava no mais profundo e intrincado simbolismo
produzido pela alma muitas vezes alienava as pessoas que não
compreendiam o método comparativo ou o debate epistêmico que
sempre antecedia essa lida com a empiria da alma. Para essas
pessoas, a “teoria” passava a interessar por ela mesma e, para esse
tipo de temperamento, os fatos são um empecilho a ser evitado a
todo custo. Daí para se projetar sobre Jung o misticismo e o
obscurantismo, foi, como se diz, um pulo. A compreensão do
método e de seu viés pragmático impede esse tipo de viagem
imaginativa estéril. Por isso, para realizar esse passatempo,
costumava-se esquecer de propósito os aspectos metódicos da
obra, o que a privava de seu real valor.
Meu discurso algumas vezes pode parecer um pouco cínico ao
lidar com esse tipo de interpretação do opus de Jung, porém, espero
que, ao terminar de ler esse livro, e tendo conseguido o meu
objetivo de expor os aspectos fundamentais do método, você,
estimado leitor, possa constatar por si mesmo o quanto de
desonestidade intelectual existe nesse tipo de interpretação a que
me refiro.
Ao conhecermos o método, a “teoria” se converte naquilo que foi
pensada para ser: uma ferramenta heurística6. Voltada para o
conhecimento e a terapia, voltada para os fatos, para a vida e não
para abstrações ociosas e perguntas inúteis. Minha preocupação é
a de que todos os anos que dediquei a estudar o método de Jung
possam ajudar outros que também se aventurem a penetrar o reino
da alma tendo como mapa a Psicologia de Jung. Como todo mapa,
ele descreve uma topografia, uma paisagem, serve como guia para
evitar perigos ou descaminhos e para que ganhemos tempo, pois ao
menos uma parte do caminho já foi palmilhada por alguém antes de
nós. Há muita região inexplorada, todavia, repleta de segredos e
perigos, cabendo aos exploradores mais novos ampliar esse mapa,
relatar suas experiências nesta terra misteriosa e, não raro, inóspita.
Essa jornada já é perigosa o bastante com um mapa, não podemos
abrir mão dele e, para que ele tenha um valor prático, é
indispensável saber usá-lo.
Minha esperança é a de que meu esforço seja útil, de que a
leitura dessas páginas possa realmente contribuir no trabalho
prático daqueles que se interessam vivamente pela obra de Jung,
sem que caiam na tentação de torná-la um racionalismo aplicado,
ou um modismo new age boboca e francamente ridículo. Espero
que minhas aspirações possam se realizar e mais e mais pessoas
possam compreender a obra de Jung e utilizá-la em prol do
conhecimento e da terapia.
Sobre o conteúdo desse livro, o primeiro capítulo, na realidade,
foi o último a ser escrito. Foi o resultado tanto do meu interesse por
interpretação de contos de fadas, mitos e aspectos da cultura pop,
quanto de uma série de cursos sobre métodos de interpretação
junguianos. O segundo desses cursos foi justamente sobre
interpretação de sonhos e o texto foi uma maneira de organizar a
minha leitura de vários escritos de Jung e Franz concernente a essa
temática. No primeiro momento, pensei em utilizá-lo como texto-
base para o referido curso, mas, ao descartar essa ideia, me
ocorreu a possibilidade de colocá-lo em um livro. Esse capítulo
versa sobre o coração do método dialético de Jung: a interpretação
dos sonhos. A compreensão do método de interpretação de sonhos
de Jung é um ponto nevrálgico para se entender seu método clínico,
bem como as demais aplicações heurísticas de sua obra.
O segundo capítulo – sobre o método de interpretação aplicado a
obras de arte – foi escrito bem antes do primeiro, que versa sobre
interpretação de sonhos. Foi feito para uma conferência, mas, à
época, me pareceu inacabado e passou por uma elaboração maior
em que percebi a necessidade de tratar de maneira pormenorizada
o método de interpretação dos sonhos, pois a análise de obras de
artes se baseia em uma adaptação desse método. Mesmo após
escrever de maneira mais detida sobre a interpretação dos sonhos,
ainda me senti compelido a sistematizar informações encontradas
em diversos textos e seminários escritos por Jung em um período
de mais de 30 anos, finalizando com um exemplo de sua aplicação
prática, que veio a se tornar o primeiro capítulo deste livro.
O segundo capítulo ainda mantém o caráter de cotejamento
entre os métodos de Freud e Jung, no que concerne à interpretação
das obras de arte que a referida conferência teve; pois creio que
esse contraste, longe de levantar polêmicas inúteis, serve para
destacar ainda mais o aspecto específico de atuação da teoria de
Jung e a distância metodológica e epistemológica que separa os
dois autores. O método de Jung possui especificidades que lhe são
próprias e que não são deturpações ou derivações do método de
Freud. Jung teceu críticas ao modelo freudiano, as quais fazem eco
a nomes da área da arte e literatura que, de maneira independente,
observaram as mesmas fragilidades na abordagem de Freud no que
concerne à arte. Essas críticas, antes de serem um ataque,
evidenciam uma posição epistêmica, teórica e, consequentemente,
metodológica diversa. Essa metodologia possui as próprias bases e
essas me interessam, mais do que a crítica.
Acredito que Jung já se deteve sobre a justificativa científica para
se interpretar sonhos e obras de artes, por isso, evitei tratar dessa
seara e remeto o leitor aos textos do próprio Jung. Creio que os dois
capítulos se complementam, sem que haja demasiada repetição e
juntos formam um quadro amplo do método proposto por Jung.
O terceiro capítulo, sobre tipos, foi o primeiro que escrevi, muito
antes de ter a ideia para este livro. Meu intuito foi possibilitar algum
grau de aproximação da tipologia de Jung que se afastasse das
corriqueiras interpretações simplórias e estereotipadas que se faz
desse aspecto de sua vasta obra. Pode parecer estranho que essa
temática figure entre os capítulos de um livro sobre interpretação,
mas, no fundo, não o é. A tipologia é uma ferramenta para
interpretar os fenômenos anímicos em sua desconcertante
variedade e aparente caos. Além disso, a descrição do fenômeno
anímico já é um fenômeno análogo àquele que tenta descrever,
sendo assim a própria descrição já está sujeita ao método
comparativo (filológico). Não bastasse o que já expus, a tipologia
não é simplesmente mera descrição, mas realmente um método.
Além de tudo, todas as vezes que ensino, surgem sempre dúvidas
sobre os tipos e sua relação com a “interpretação propriamente
dita”. Logo, me pareceu adequado que esse escrito figurasse neste
livro.
O MÉTODO JUNGUIANO DE INTERPRETAÇÃO
DE SONHOS
Na raiz do sonho há um mistério criativo que não temos como explicar
racionalmente. É a mesma criatividade que criou aquilo que o homem jamais
poderia ter inventado: as milhares de espécies de animais, flores e plantas que há
na terra. Os sonhos são como flores ou plantas. São algo único, diante do que só
podemos nos maravilhar.
M. L. von Franz.
A primeira coisa a ser dita ao se tratar do método de Jung para
interpretar sonhos é que, assim como Freud, ele acreditava que os
sonhos são a via régia de acesso ao inconsciente, suplantada
apenas pela imaginação ativa7. Mas que diferente do velho Freud,
Jung nunca elaborou uma teoria8 dos sonhos. Ele afirma isso
textualmente em carta dirigida a Jolande Jacobi9 datada de 1956,
onde garante que apenas descreve fatos, não possui uma teoria de
como as neuroses se originam, apenas descreve o que encontra
nas neuroses. E o que é mais importante para nós, “Não tenho
qualquer teoria dos sonhos, apenas indico que tipo de método eu
uso e quais são seus possíveis resultados”. Freud tem uma teoria
no sentido de que ele explica como e por que se originam os
sonhos. Isso é algo que não está nos fenômenos, não é psicológico,
mas metapsicológico, ele até mesmo nega o aspecto empírico dos
sonhos, pois de acordo com sua doutrina isso não passaria de uma
fachada. Jung jamais se afasta dos fatos psicológicos, eles são a
carne e o sangue de sua Psicologia.
O método de interpretação dos sonhos de Jung é a espinha
dorsal de seu procedimento clínico: o método dialético. É muito
comum que as pessoas achem que Jung está o tempo todo falando
de sua prática clínica em seus livros – o próprio Jung se queixava
desse equívoco – e que seu método inclui falar de mitos aos seus
pacientes, praticar yoga, ou pedir que desenhem mandalas, mas
isso não passa de um erro grosseiro. Infelizmente essa
interpretação tacanha ganhou um destaque desmedido e, um
número nada desprezível de pessoas crê que uma interpretação
junguiana de sonhos – ou de qualquer outra coisa – consiste em dar
nomes às figuras da fantasia e dizer que “tal coisa é o ego, essa
outra é a anima e, espere, acho que esse aqui é o si-mesmo”. Isso,
entretanto, não passa de um embuste, uma mascarada e uma
aplicação espúria dos conceitos, mera colagem conceitual que não
possui nenhum valor prático, pelo contrário, se torna um obstáculo e
tanto ao processo analítico. É necessário escapar ao preconceito de
que os conceitos explicam os fatos que eles denotam.
Diante desse cenário de confusão, do qual o próprio Jung já se
queixava, creio que deva esclarecer alguns aspectos do método
dialético antes de falar da interpretação de sonhos, dessa maneira
nos prevenimos contra equívocos.
É indispensável ao método de Jung, realmente indispensável,
que o médico não se apresente como autoridade diante do paciente,
que não violente suas inclinações, que nenhuma tendência seja
corrigida a não ser que se corrija a si mesmo, que não se esconda
por trás de uma persona medici10, que o analista não pareça ser
possuidor de algum conhecimento secreto acerca do paciente. É
imprescindível ter sempre em mente que tudo, simplesmente tudo, o
que você crer saber sobre seu paciente não passa de um
preconceito ou de uma projeção. Jung afirmava que requer um
imenso esforço para adquirir a erudição e conhecimento
necessários para ser um analista, e demanda um esforço ainda
maior abrir mão desse saber para poder estar em pé de igualdade
ao cliente.
Jung jamais advogou a burrice ou a ignorância, e eu também
jamais o faria. Como já repeti inúmeras vezes aos meus alunos, só
se pode abdicar de algo que se tem. Se você não tem qualquer
saber, e não passa de um idiota, não irá abdicar de nada, logo não é
apto a ser um analista. O nominalismo culto proposto por Jung (sua
Psicologia), em minha modesta experiência, serve como uma
espécie de moldura para os fenômenos e os organiza de uma
maneira muito geral e me oferece uma espécie de bússola. Usarei
apenas um exemplo para não tomar muito espaço.
Algo indispensável, que aprendemos com os escritos de Jung, é
como o inconsciente funciona e como a projeção atua. Assim, se
sabemos dos estágios da retirada da projeção, sabemos que o
mesmo objeto que foi elevado a alturas olímpicas, para que aquela
libido retorne ao sujeito, terá que ser arremessado ao inferno, e
desvalorizado de maneira cruel e impiedosa. Para piorar, essa
energia investida, que dava um colorido sentimental tão peculiar à
vida, não retorna à consciência, mas, ao contrário, num primeiro
momento parece desaparecer no inconsciente, deixando atrás de si
um insuportável sentimento de vazio.
Observei estarrecido esse fenômeno diversas vezes, ficando, a
cada vez, mais e mais convencido da importância da projeção e do
fator que origina as projeções para a labuta clínica. Assim, com
diferentes inflexões individuais, a pessoa que dava significado a vida
do paciente em um dado momento, em outro passa a ser a raiz de
todo o mal em sua vida, ou um ser desprezível e odioso. Tudo isso
eu “já sabia de antemão”, mas por Deus, como o estábulo fede!11
Abrir mão de nosso saber não significa esquecê-lo, ou fazer-se de
parvo, mas colocar em primeiro plano a experiência do paciente, e a
maneira como ela o afeta, e apenas secundariamente, submeter
essa experiência ao crivo, ou a moldura do nominalismo culto de
Jung e saber adquiridos a duras penas. A “teoria”12 não deve se
converter numa amarra, ao contrário, ela é libertadora quando se
compreende que os conceitos não explicam os fenômenos que
denotam, e que o valor descritivo dos conceitos não se confunde
com um valor prescritivo. A “teoria” é uma ótima serva, porém uma
péssima mestra. Nada pode substituir a personalidade do médico,
não há nenhum truque ou prestidigitação intelectual que faça um
tolo parecer um sábio13.
Algo que me parece importante sublinhar, e que aparece com
mais ou menos força, mas que está sempre presente, é que a
análise não é um local de isolamento. Naquele temenos14 que
parece silencioso e habitado por apenas duas pessoas, estão
presentes os problemas de toda a sociedade, como afirmou certa
feita Jung, “se quisermos compreender a alma devemos incluir o
mundo”. Não raro, uma neurose é a tentativa de se responder a um
problema existencial, ou a um grande dilema de nosso tempo. Estar
a par, ou diretamente envolvido com essas questões é crucial. A
Psicologia Junguiana parece ter um apelo maior para introvertidos,
sejam eles realmente introvertidos ou impostores que parecem crer
que Jung privilegiava especialmente a introversão. Isso pode levar a
uma postura que se afasta da sociedade e seus grandes dilemas.
Essa postura, todavia, é falsa, mesmo em se tratando de
introvertidos, como Jung o foi. Os grandes movimentos sociais
possuem uma história profunda, quase abissal, que parece estar
sendo preparada nas profundezas muito antes de virem à tona. Não
fosse isso o bastante, seu poder de afetar a tantos espíritos, advém
em larga medida do fato de formularem, de alguma maneira, fatores
obscuramente pressentidos, que estão constelados em um número
considerável de pessoas, ou mesmo, de se tratar da influência de
fatores nefastos do inconsciente que se alastram como fogo uma
vez ativados. Tenho visto sempre e de novo que as fronteiras entre
a clínica e a sociedade são sempre ilusórias e toda psicologia clínica
se preze será também psicologia social em alguma medida.
Algo que me parece valioso sublinhar, diz respeito ao que Jung
chamou de fase da transformação, pois, nesse estágio do método
dialético, ambos, paciente e médico, se transformam. Em todo o
processo, desde seu início, o terapeuta deve prestar contas de si,
está ali não apenas para perguntar, mas igualmente para responder.
Alguém que se coloque numa posição inacessível, ou que reduza o
método dialético a mera técnica, agindo desapaixonadamente, como
alguém sem sangue nas veias, está fadado ao fracasso mais
retumbante. É preciso estar disposto a grandes e pequenos gestos
para demonstrar vivamente que a relação é simétrica. Desde o
mínimo, que é o de reagir de maneira viva e espontânea ao material
do paciente, seja rindo ou se emocionando, mas sempre
demonstrando o que aquilo que o paciente traz e é lhe causa, seja
respondendo de maneira honesta ao que o paciente lhe pergunta,
não lhe ocultando suas opiniões, sentimentos ou o que pensa de
uma determinada situação ou o que faria se estivesse em seu
lugar15 (caso isso lhe seja inquirido), mesmo que a resposta mais
genuína seja “não sei” ou que você confesse não se sentir à
vontade para falar. Todas essas respostas devem ser dadas, na
medida do bom senso, com a clareza de que se trata de sua
resposta pessoal e que não aspira à universalidade, nem mesmo
algo tão restrito quanto servir de modelo ou admoestação ao
paciente apenas.
Caso lhe seja pedido um conselho, se lhe parecer adequado
pode-se dar, não é a priori equivocado dar conselhos, não há regras
fixas, até pelo motivo de que conselhos são, em geral, relativamente
inócuos, e, como disse Jung, caracterizam a moderna psicoterapia
tanto quanto a gaze caracteriza a cirurgia. Digo isso acerca de um
tema tão boboca quanto conselhos para ressaltar que sua
humanidade deve sempre estar presente, e ser humano significa ter
dúvidas, falhar, dizer coisas bobas e ter defeitos. Abrir mão do saber
e da persona medici tem como contraponto jamais abrir mão de sua
humanidade. Jamais tente afetar ser o que você não é. Jung
aconselhava até mesmo que se você está triste ou chateado por
algum motivo, explique que seu humor nada tem a ver com o
paciente. Tenho seguido esse conselho à risca, com ótimos
resultados.
A fase da transformação me traz ainda outra consideração
importante, uma que me causa um grande peso e temor ao peito,
mas que tem me mantido muito alerta. Eu vou formulá-la aqui da
maneira como costumo pensar a respeito com meus botões. A
análise faz com que, por dever de ofício, tenhamos de dar um jeito
em nossas próprias vidas. Jung sempre advertiu que em análise, só
se pode levar o paciente até onde se foi. Isso sempre foi encarado
de maneira introvertida, mas bem, aqui vai a avaliação extrovertida
dessa admoestação: ela também significa que você deve encarar
com seriedade os problemas práticos da sua vida! Não raro, ao ver
um de meus pacientes lutando duramente com um problema de
relacionamento, estando eu mesmo passando por esse tipo de
agrura eu pensava “preciso lidar com o meu problema, ou jamais
serei capaz de ajudá-lo”. Por dever de ofício, um analista deve
encarar a vida e suas agruras de frente e com coragem, e procurar
ao máximo lidar com seus conflitos. Aos mais introvertidos eu
lembro, como lembro sempre aos meus alunos, que Jung, em seu
confronto com o inconsciente, afirmou que não cedia a loucura ao
se recordar que “era médico, capitão do exército suíço, e tinha uma
família”, gosto de lembrar disso para que não pensem que o
confronto com o inconsciente é uma desculpa para fugir da vida,
não é!
Retornando ao tema dos sonhos, seu estudo e interpretação, é
preciso se dizer que os textos de Jung não são simples e podem ser
confusos. Um dos motivos para isso é que ele estava fundando uma
ciência, e seu debate epistêmico, suas justificativas para o trabalho
científico sobre os sonhos, tomam um espaço considerável dos
momentos em que ele se debruçou sobre o seu método. Para se ter
uma visão mais ou menos completa da maneira como ele realmente
interpretava metodicamente sonhos, é preciso ler e reler com
atenção uns seis ou sete de seus escritos e cotejá-los
cuidadosamente16. O que ambiciono fazer aqui é deixar de lado
esse aspecto de justificativa do método como científico – sublinho,
de saída, que Jung já tratou suficientemente bem desse tema – e
me debruço sobre o método, com o objetivo de expô-lo da maneira
mais clara e concisa que eu puder, aludindo aos conceitos empíricos
e aspectos epistêmicos apenas quando isso for necessário para
melhor elucidar o referido método. Por certo não é tarefa das mais
simples, tampouco me passa pela cabeça, “simplificar” Jung, ou ser
“didático”, não é possível fazer tais coisas sem mutilar severamente
aquilo que queremos elucidar. Para realizar essa empreitada, não
há atalhos possíveis, tampouco é possível esquivar-se da
complexidade do tema.
De acordo com Jung, o sonho (em alemão Traum) é uma criação
psíquica que parece estar à margem da continuidade do
desenvolvimento dos conteúdos conscientes, um fato de natureza
exterior e aparentemente causal. O sonho, todavia, não fica
completamente à margem da continuidade consciente, pois, em
muitos deles, é possível encontrar elementos que provêm de
impressões, pensamentos, sentimentos, que são ou foram
conscientes. Na realidade, uma observação meticulosa revela que,
como anota Jung, “[...] há entre o consciente e o sonho a mais
rigorosa causalidade e uma relação precisa em seus mínimos
detalhes”. Diferente da sequência lógica de ideias que se encontra
normalmente na consciência, suas imagens são de natureza
essencialmente fantásticas. Em geral, é correto afirmar que os
sonhos são produtos espontâneos da fantasia inconsciente que se
manifestam durante o sono e podem ser recordados pela
consciência, mas são uma atividade psíquica alheia à nossa
vontade. Apesar de se manifestarem na consciência, não são por
ela produzidos nem controlados, guardando as características das
produções inconscientes de serem autônomas. Além de provirem do
inconsciente, os sonhos são uma expressão deste, revelando algo
do pano de fundo psíquico inexpresso.
O sonho retrata a situação interna do sonhador, cuja realidade a
consciência reluta em aceitar, ou não aceita pura e simplesmente.
Representa a verdade e realidade interiores exatamente como elas
são. Trata-se de uma realidade utilizável no diagnóstico, em muitos
casos a etiologia da neurose de destaca com clareza, mas o sonho
também desvela um prognóstico ou antecipação, além de uma
orientação para a terapia. Nesse aspecto destaca-se não apenas o
“por que”, mas igualmente o “para que”. Alguns sonhos sequer
tocam a etiologia, mas sim questões bem diferentes, como, por
exemplo, a relação com o médico. Os sonhos podem ser
antecipações, prever dificuldades e fornecer informações sobre a
situação analítica de inestimável valor terapêutico.
Nesse sentido, os sonhos são uma autorrepresentação de
desenvolvimentos inconscientes, que permitem a expansão gradual
da consciência. O sonho é um produto natural e objetivo da psique
que nos dá pistas de certas tendências básicas do processo
psíquico. Este, como se trata de um processo vital, possui não
apenas uma ou mais causas, mas igualmente uma orientação
finalística. Sendo o sonho um autorrepresentação desse processo
ele nos fornece indícios sobre a causalidade objetiva e sobre as
tendências objetivas. Os sonhos são autorretratos do processo
psíquico em curso.
Jung também nos ensina, e isso é fundamental, que os sonhos
são uma tentativa de cura. Além disso, uma verdade difícil de digerir
é que não somos nós que sonhamos, mas sim somos sonhados. O
sonhador é o objeto do sonho e não o sujeito deste. Temos, por
meio do sonho, uma visão da situação do sonhador, sub especie
aeternitatis, trata-se do problema como é visto pela ótica do
inconsciente. Assim, temos uma visão objetiva de nós mesmos por
meio das imagens oníricas, que revelam caminhos até então
inauditos, caminhos para a cura.
Os sonhos se revestem de importância apenas se for levada em
conta a ideia de um inconsciente psíquico. Uma das minhas
definições preferidas de inconsciente é de que se trata de um fator
irracional existencial inalienável. Von Franz17 também explica o
termo de maneira bastante clara e concisa. Para ela, o inconsciente
é tudo aquilo que sabemos ser psiquicamente real, mas que não é
consciente. É um conceito limítrofe, e negativo. Usamos esse
conceito negativo para evitar um preconceito. O termo inconsciente
(Umbewußte) é útil justamente porque não diz nada. Apenas que
não é consciente, o que permanece um mistério. Não sabemos o
que é. Jung algumas vezes utiliza a expressão alemã des
Unbekannten – desconhecido – como um sinônimo de inconsciente,
sendo esse desconhecido tudo “[...] was man nicht weiß” (que não
sabemos). Então temos a hipótese basilar de que, ao lado do campo
da consciência (Bewußtseinfelde) e dos conteúdos conscientes
(Bewußtseinsinhalte) existe o inconsciente (Unbewußte).
A essa hipótese se acrescenta o fato de empiricamente a
consciência ser um fenômeno intermitente, um processo
momentâneo de adaptação, o que leva a se considerar o
inconsciente como anterior, simultâneo e posterior à consciência do
eu (Ich). Entre essas duas instâncias, há uma relação que Jung
aponta como uma de suas hipóteses mais importantes: o
relacionamento entre a consciência e o inconsciente é
compensatório. Por enquanto, guardemos essa informação no bolso
do colete. Voltarei a ela mais tarde.
Antes de adentrar os meandros do método propriamente dito, é
preciso uma palavra (ou duas) de advertência. Não é possível se ter
um conhecimento completo da psique – pois há um fator inalienável
de desconhecimento – também não existe um método que possa
simplesmente ser aplicado mecanicamente e que obtenha sempre
os mesmos resultados estereotipados, independentemente da
personalidade daquele que faz uso dele. Nesse sentido, Jung
assevera que só podemos levar o paciente até onde nós mesmos
fomos, e, assim como o cirurgião deve ter as mãos desinfetadas
antes de realizar um procedimento cirúrgico, é fundamental que o
analista tenha, ele mesmo, passado por um processo de análise do
inconsciente. Por certo, não é possível, nem desejável, que se
esgote o inconsciente, mas é necessário ter passado por um
confronto moral e intelectual sério com o aspecto irracional de nossa
alma, para que se possa utilizar o método de interpretação, ou
corre-se o risco de interpretar projetivamente os próprios complexos
por meio do material do paciente, alienando, dessa forma, ambos de
suas possibilidades vitais. A única ferramenta terapêutica de que
dispõe o médico, no caso da terapia individual, é a sua
personalidade; e ele deve zelar por sua integridade. Aquilo que o
médico pode oferecer de genuíno ao paciente – nisso se incluiu o
método de interpretação de sonhos – é o efeito causado em sua
personalidade pelo material do paciente, sejam seus conteúdos
conscientes, seja a sua fantasia oriunda de fontes inconscientes18.
Não bastasse essa complicação, há ainda outra, que está
intimamente ligada à primeira. É certo que, assim como afiançava o
hermeneuta alemão Schleiermacher19 acerca da hermenêutica, a
interpretação dos sonhos possui regras metódicas, mas não pode
ser confinada à aplicação mecânica dessas regras. Nesse sentido,
trata-se, igualmente, de uma arte de interpretar sonhos, assim como
uma ciência. Von Franz compara o ofício de interpretar sonhos à
profissão de carpinteiro. Um velho carpinteiro pode mostrar a um
novato como usar ferramentas ou tomar medidas, mas há um certo
toque na madeira que ele simplesmente não pode comunicar. Como
dizia Jung, nada substitui a experiência prática com os sonhos, ou
ainda, para usar a máxima hindu “há coisas que são dignas de
serem aprendidas, mas não são dignas de serem ensinadas”20. Por
certo, o aspecto técnico da interpretação é muito útil e pode nos
levar muito longe, mas ele está distante de ser suficiente ou de ser
capaz de substituir uma profundidade de caráter e personalidade,
bem como o firme compromisso moral com o próprio processo de
desenvolvimento individual, e o comprometimento com o processo
analítico do paciente, que exige todas as forças morais do
terapeuta.
Antes mesmo de começar a analisar um sonho, uma das coisas
mais importantes a ser levada em consideração é a idade do
indivíduo, pois tudo o que é importante na última parte da vida pode
ser completamente negligenciável na primeira.
Em seguida deve-se levar em consideração se o indivíduo
adaptou-se a vida, se ele cumpriu as expectativas razoáveis, aos
quarenta anos já se deve ter raízes, uma posição, família do
contrário se está psicologicamente a deriva – que Jung denominava
de psicologia do nômade, na terra de ninguém. Pessoas sem raízes
possuem objetivos diferentes de pessoas que já realizaram as
expectativas razoáveis, justamente pelo fato da tarefa de ter raízes
(família, posição etc.) ainda não foi realizada. Deve-se perguntar: O
indivíduo está adaptado normalmente ou não? Jovens em geral não
são adaptados pelo fato de serem jovens, ou mesmo por uma
variedade de motivos. É preciso levar em conta que certas formas
de fantasia podem ser o pior veneno para o sujeito que não está, ao
menos, razoavelmente adaptado.
O oposto é verdadeiro em relação ao homem fortemente
enraizado, talvez até mesmo aprisionado em seu ambiente, os
germes de imaginação devem ser tratados como algo do mais
elevado valor, algo que pode significar a chave de sua prisão
cinzenta. No caso de pessoas muito jovens, ou mesmo
simplesmente de alguém com um estilo de vida temporário (pessoas
pueris), que estão à deriva, a fantasia pode ter um efeito negativo e
deve ser manejada com extrema cautela, ou eles ficarão presos em
suas fantasias. Para alguns a fantasia é a chave da prisão que a
vida real representa, para outros a fantasia é a prisão, uma prisão
dourada e fantástica, mas ainda assim um cárcere.
A despeito dos critérios que esbocei aqui, deve-se recordar
sempre e de novo, que num método genuinamente empírico o
campo dos fenômenos não pode ser delimitado por preconceitos
teóricos, e que existe uma enorme quantidade de variações
individuais a serem levadas em consideração, que precisam ser
avaliadas pelo analista. O principal é saber que, por mais que a
análise de sonhos seja algo de valor inestimável para um tratamento
psíquico, jamais pode ser vista como uma panaceia ou utilizada sem
se avaliar os critérios individuais que o médico julgar relevantes a
cada caso. A análise de sonhos não deve ser convertida em mera
técnica de utilização estereotipada.
Jung, em seu texto sobre análise de sonhos no volume XVI/2,
assevera que é necessário levantar duas hipóteses fundamentais
para se animar a lidar com o material onírico, as julga até mesmo
indispensáveis. A primeira hipótese é a de que o sonho possua um
sentido. Como ele explica em sua obra Sincronicidade, pensar em
um sentido e um significado é sempre uma pretensão
antropomórfica e que dificilmente podemos provar, mas sem essa
hipótese não faz sentido analisar sonhos, ela é o crivo principal,
apesar de nem sempre poder se provada empiricamente. A segunda
hipótese fundamental é a de que o sonho deve acrescentar algo de
essencial à apreensão consciente, logo, aquele que não o fizer está
mal interpretado. Todas as demais hipóteses não passam de regras
operacionais.
O termo regras operacionais aparece em dois escritos de Jung,
no texto já citado, do volume XVI/2 e no Vol8, A Natureza da Psique.
Como regras operacionais, Jung anota, elas devem estar
constantemente abertas a introdução de modificações, pois o
terreno dos sonhos é de tal sorte traiçoeiro que a única certeza de
que podemos ter é a da incerteza. Logo, não se trata aqui de um
exposição dogmática, mas de hipóteses úteis aos momentos
preparatórios da análise onírica. Só não podemos abrir mão das
hipóteses de que o sonho possui um sentido, e de que ele deve
acrescentar algo de essencial a compreensão consciente.
Tratarei agora das hipóteses que se devem levar em conta na
arte de interpretação, ou, como Jung as denominava regras
operacionais.
Na realidade, o primeiro passo metódico é afirmar, ou se dar
conta, ao deparar o sonho, que “não tenho a mínima ideia do que
esse sonho quer significar”. Tenho que ser consciente de meus
preconceitos e me ater ao material empírico diante de mim, até onde
isso for humanamente possível.
Outro aspecto fundamental é saber que toda interpretação é
mera hipótese, como asseverava Jung, apenas uma tentativa de ler
um texto desconhecido. É fundamental manter a hipótese a que se
chegou por meio da interpretação em aberto, pois a interpretação só
adquire relativa segurança numa série de sonhos. É nessas séries
de sonhos que podemos distinguir com maior clareza os conteúdos
e motivos básicos.
Mesmo admitindo que o significado de um sonho seja hipotético,
só tem sentido interpretá-lo se eu aceitar que ele possui um
significado. Jung se ateve bastante a esse aspecto da interpretação,
mas podemos resumi-lo no princípio hermenêutico da caridade.
Quando não compreendo algo, não julgo que isso ocorra em virtude
de uma falta de sentido no objeto a ser analisado, mas sim da minha
insuficiência em decifrá-lo. Tenho que ser caridoso e supor no
material um sentido a ser interpretado. Jung resumiu essa regra
hermenêutica de maneira jocosa, ao afirmar que “não existem
sonhos idiotas, apenas pessoas idiotas que não sabem interpretá-
lo”21.
Devo igualmente me ater à hipótese de que o sonho deve
acrescentar algo de essencial à compreensão consciente do
paciente; logo, aquele que não o fizer está mal interpretado. Isso
leva a um ponto tão importante que não encontro palavras
adequadas para sublinhar a sua relevância, mas, decorre dessa
hipótese anteriormente citada, que uma interpretação só tem valor
quando for encontrada a fórmula que implica o consenso do
paciente; do contrário, é mera sugestão. Em termos práticos, esse
aspecto é assaz complicado, pois o sonho nunca diz o que você já
sabe, o que ele indica é um ponto cego. No início é natural que o
paciente compreenda os seus sonhos pelo prisma de sua neurose e
tente fazer com o material algo como o proverbial “leito de
Procusto”22, o que coloca o médico numa situação complicada, pois
deve evitar ao máximo o que von Franz chama de atitude de poder.
Não importam as concepções do médico acerca do que seja bom ou
normal. Ele não tem o direito de interferir na vida do outro, pois
qualquer ideia que tenha sobre o paciente não passa de um
preconceito ou uma projeção, porque não podemos conhecer o
destino de um ser humano. O que os sonhos proporcionam são um
vislumbre do que o nível psíquico mais profundo daquele ser
humano tem a lhe dizer sobre ele mesmo. Nesse sentido, a
interpretação é algo objetivo, não é a minha opinião.
Ao falar em “consenso”, além de dar a entender meramente a
aceitação (que pode ser conseguida pela referida atitude de poder),
Jung aponta justamente para a possibilidade da ampliação do
escopo do campo da consciência, e não simplesmente uma
barganha ou debate intelectual com o sonhador, pois,
fundamentalmente, a neurose aponta a sua própria terapia. A
neurose é uma cisão interior, um estado de desunião consigo
mesmo, como resultado de uma profunda e crônica unilateralidade
consciente. A regressão da libido proveniente da estase causada
pelo colapso da adaptação ativa a fantasia inconsciente que vai
caracterizar a neurose, mas, paradoxalmente, será justamente
aquilo de que se necessita, pois seja lá o que for que vai
restabelecer o equilíbrio da alma, nesse momento, isso pertence ao
inconsciente e não à consciência. Esse é o motivo de não se poder
desvencilhar da neurose por um gesto grandiloquente de vontade.
Um tipo intelectual que precisa do sentimento para contrabalançar
sua atitude deve entregar a liderança ao inconsciente que é onde
repousa a função compensadora que ele ignora. Esse é o motivo de
o paciente se submeter a sua neurose, no lugar de se defender
dela, pois é à neurose e toda a sorte de fantasias aparentemente
esdrúxulas que com ela emergem das profundezas que ele deve dar
ouvidos para encontrar a cura, “pecca fortiter sed crede fortius”23.
O consenso do paciente se trata do que disse anteriormente de
acrescentar algo de essencial à compreensão consciente do
sonhador, mesmo que para isso se deva discordar, ou mostrar
outras possibilidades, ou criticar. O sonho, como material simbólico,
necessita ser compreendido apenas, pois já traz em si a
compensação requerida pela atitude consciente. O sintoma, por
outro lado, precisa de uma crítica consciente, pois não pode ser
aceito simplesmente e, no início do tratamento, e em diversos outros
momentos, a compreensão que o sonhador tem de seu material
onírico é sintomática, e cabe ao médico tecer uma crítica apoiado no
material simbólico trazido pelas imagens do sonho. Tudo isso coloca
o médico numa posição nada invejável, uma verdadeira corda
bamba, em que deve conciliar aquilo que é a sua compreensão do
sonho, o material onírico objetivo e a neurose de seu paciente, ou, o
que pode ser pior, a sua neurose, o material onírico objetivo e a
neurose do paciente. Disso tudo pode surgir, de maneira não raro
penosa, uma nova síntese. Como dizia Campbell, é na caverna
onde você teme entrar que está o tesouro inestimável, e essa
caverna é guardada por um dragão.
Sumarizando as regras operacionais para tornar as coisas um
pouco mais fáceis:
1 – Me ater ao material empírico;
2 – Toda interpretação é mera hipótese;
3 – Não existem sonhos idiotas, apenas pessoas idiotas que não
sabem interpretá-lo (princípio da caridade);
4 – O sonho deve acrescentar algo de essencial à compreensão
consciente do paciente;
5 - Uma interpretação só tem valor quando for encontrada a fórmula
que implica o consenso do paciente.
Não é mera coincidência o fato de que na Antiguidade, em
diversas épocas e distintas latitudes, se imaginava que o sonho
trazia mensagens dos deuses ou dos demônios, o que é mais uma
constatação empírica do que uma superstição. Como afirmou von
Franz, de uma maneira simples e eivada de imensa sabedoria, “[...]
a análise consiste em educar as pessoas a conseguir ouvir sua voz
interior e a segui-la com o auxílio dos sonhos”.
Em certo sentido, o método consiste em primeiramente
considerar a narrativa do sonho como uma espécie de drama.
Nesse sentido, analisamos o material sob três aspectos estruturais:
primeiro a Introdução ou Exposição, depois a Peripécia e por fim a
Lysis. Algumas vezes, Jung põe antes da exposição o Local; von
Franz junta o Local à Exposição. De qualquer sorte, ao se pensar no
Local, há de se observar o lugar onde o sonho se passa e as
Dramatis Personae – as personagens do sonho. Por
Exposição/Introdução temos a apresentação do problema (para von
Franz esses dois passos se resumem à Exposição). A Peripécia é a
apresentação da transformação ou da catástrofe que pode ocorrer
no sonho. A Lysis é o resultado do sonho, o desfecho que faz
sentido, a apresentação da natureza compensatória do enredo do
sonho, como asseverou Franz, “A última frase é sempre a solução,
se houver alguma”. Von Franz descreve essa fase como a
apresentação da “solução final ou talvez catástrofe”.
Em uma de minhas aulas me ocorreu uma piada para explicar
rapidamente essa estrutura esquemática. Antes de passar a um
exemplo mais sério, vou utilizar o mesmo gracejo para lhes explicar.
Imagine, estimado leitor, a canção Atirei o Pau no Gato24: “atirei o
pau no gato-to, mas o gato-to não morreu reu reu, dona Chica ca ca,
admirou-se se do berro que o gato deu, miau!”. Dramatis personae:
eu (que atirei o pau no pobre e inocente gatinho), o gato e a dona
Chica; Exposição do problema: atirei o pau no gato; Peripécia: o
gato não morreu; Lysis: dona Chica admirou-se do berro que o gato
deu, miau!
Vamos passar a um exemplo prático um tanto mais sério para
tornar as coisas mais simples. Utilizarei para isso um pequeno conto
de fadas bem conhecido, chapeuzinho vermelho, para tanto usarei a
versão dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, cujo título em alemão é
Rothkäppchen (capa vermelha). Não vou interpretar o conto, mas
apenas destacar seus aspectos estruturais. Vou resumir um pouco o
conto para não tomar muito espaço.
Era uma vez uma menina chamada chapeuzinho vermelho, um
dia sua mãe pediu a ela que fosse levar bolo e uma garrafa de vinho
para sua avó que estava doente, e a mãe lhe disse para ser polida e
não sair do caminho. A avó vivia na floresta a meia hora da vila e
assim que chapeuzinho entrou na floresta um lobo veio falar com
ela, que não se assustou por não saber o quanto esses animais
eram malvados. O lobo a cumprimentou e perguntou o que ela fazia
tão cedo, ela respondeu sobre a avozinha doente e ele indagou
onde ela vivia “há um quarto de hora daqui, na floresta, nunca casa
debaixo de três grandes carvalhos, há uma sebe de arbustos de
avelã no local. O lobo caminhou com chapeuzinho por algum tempo
e lhe mostrou belas flores no caminho, ela encantada resolveu
colher um buquê, enquanto o lobo foi até a casa da avó e ao bater
na porta disse ser a menina e imediatamente comeu a velhinha. O
lobo se disfarçou usando as roupas da avó e quando chapeuzinho
chegou aconteceu a famosa cena em que ela destaca como ele tem
grandes: orelhas, olhos, mãos e boca. O lobo salta sobre ela, a
devora e deita na cama para dormir. Um caçador passava pelo local
e achou os roncos da vovó muito alto e resolve investigar, ele
descobre o lobo, o mata e abre sua barriga de onde tira a vovó e a
chapeuzinho. Eles enchem a barriga do lobo com pedras grandes e
quando ele acorda morre ao tentar correr. No final, a vovó como o
bolo e bebe o vinho, o lenhador fica com a pele do lobo, e a
chapeuzinho decide não mais desobedecer sua mãe.
No primeiro momento temos: tempo, local e dramatis
personae. Nesse caso o tempo é o “era uma vez”, Dramatis
personae: Chapeuzinho e a mãe – chapeuzinho e o lobo – vovó e o
lobo – o lobo e Chapeuzinho – o lobo e o caçador – o lobo, o
caçador, a avó e a Chapeuzinho – o caçador, a vovó e a
Chapeuzinho. Locais: a casa da Chapeuzinho na vila – a floresta –
a casa da vovó. É um procedimento simples, mas que se revela de
grande valia.
Exposição do problema: a avó está doente e chapeuzinho deve
levar para ela bolo e vinho. Peripécias: chapeuzinho encontra o
lobo na floresta e se encanta com as flores; o lobo vai à casa da
vovó e a devora, chapeuzinho encontra o lobo disfarçado e é
devorada; o caçador desconfia dos roncos vindos da casa e vai
investigar; Lysis: O caçador derrota o lobo, retira as duas de dentro
de sua barriga, pedras são postas no ventre da besta que morre ao
tentar fugir, depois disso o caçador fica com a pele do animal, a avó
come e bebe e chapeuzinho aprende a obedecer sua mãe.
Observar a estrutura narrativa dos sonhos é muito importante,
mas não é suficiente. Jung apontava já como um mérito de Freud ter
percebido ser quase impossível interpretar um sonho sem as
“associações”25 do sonhador (der Einfälle26 des Träumes), que
servem para fazer a Amplificação Pessoal a construção do Contexto
Subjetivo (Subjektiven Kontext) do sonho. Em termos gerais, Jung
denominava esse aspecto de Construção do Contexto (Aufnehmen
des Kontextes).
Na mesma carta que citei antes, Jung pede a Jacobi que corrija
em seu livro de introdução à psicologia junguiana, pois ela afirmara
que Jung utilizava associação livre para elucidar o material pessoal
do sonho, ele, porém a corrige,
Eu não utilizo associação livre de maneira alguma, pois em
qualquer caso é um método não confiável para se chegar ao
verdadeiro material do sonho. (C.G. Jung ~ Carl Jung, Letters
Vol. II, Pages 292-294. Tradução minha)
Ele ainda explica que um de seus colegas psiquiatra em uma
viagem de trem pela Rússia, em um estado sonolento, contemplou
as placas escritas em cirílico e ao associar livremente acerca dos
sinais desconhecidos para ele descobriu todos os seus complexos.
Isso significa que o método das associações livres vai lhe fazer
descobrir os seus complexos, mas isso não significa em absoluto
que esses complexos são o material de que fala o sonho. Jung
procedia em relação ao sonho de maneira circuambulatória, ou seja,
como se a imagem onírica estivesse no centro de um movimento em
espiral.
É absolutamente necessário explicar o abandono das
associações (Einfälle), pois o método elaborado por Jung se afasta
resolutamente do método freudiano (associação livre e atenção
flutuante). Infelizmente é muito comum que os analistas “junguianos”
desconheçam quase que completamente essa sutileza fundamental
do método. Com isso, passam a contar apenas com a sorte e a boa
vontade como ferramentas heurísticas, mas, como Jung afirmava,
não se há de subestimar os acasos felizes e a boa vontade. Explicar
essa sutileza me leva a ter que aludir agora a um árido debate
epistemológico e aos métodos de interpretação utilizados por Jung,
tanto em suas pesquisas, quanto no trabalho prático com seus
pacientes: o Método Empírico Descritivo e o Método Comparativo.
Como Freud já havia notado, as palavras do relato de um sonho
não possuem um significado único, mas muitos. Assim como Freud
fazia, Jung também escutava os seus pacientes e os inquiria sobre
as imagens de seus sonhos, mas com uma diferença fundamental.
Para Jung, o método de Freud atuava em ziguezague, a partir de
uma imagem (Bild), digamos, uma lagosta, o paciente poderia
associar: restaurante, depois garçom, conta, dinheiro, salário,
emprego, patrão, tio-avô que era acrobata, e por aí vai. As
associações livres nos fazem descobrir os complexos, mas,
dificilmente, o sentido de um sonho. Como se pode perceber, a
imagem inicial foi abandonada completamente, pois, numa
perspectiva junguiana, para Freud, o sonho é uma representação
inadequada dos complexos e importa pouco, sendo mais relevante
desvendar o seu real significado que ele se esmera em ocultar.
Jung, de outra parte, gostava de citar o Talmude27, onde se lê
que “o sonho é sua própria interpretação”. Nesse sentido, aquela
imagem possui uma importância, e ele permanecia com a imagem
inicial (no exemplo, a lagosta), em um movimento em espiral e
concêntrico. É importante salientar novamente, pois isso é decisivo,
que é preciso se ater tão fielmente quanto possível à imagem
onírica. No caso de Jung, seria algo como: o que lhe vem à mente
em relação à lagosta? O que pensa sobre isso? Como se sente em
relação à lagosta? O que mais lhe vem à mente ao pensar em
lagostas? Para Jung as associações do paciente já são
Amplificações28. É completamente diferente da perspectiva
freudiana de “reductio ad primam figuram”, trata-se, isso sim, de
uma “amplificatio”. Amplificação, como nos ensina von Franz, é
alargar um tema pela junção de numerosas versões análogas.
Nesse ponto, a escolha pela Amplificação e o abandono da
Associação Livre decorre de motivos epistemológicos além de
práticos. Diferente de outros campos das ciências naturais, onde um
processo físico é observado por um processo psíquico, no caso da
Psicologia, a psique observa a si mesma, não há ponto
arquimediano externo. A psique não pode conhecer nada além da
psique. Todo o conhecimento das ciências naturais é uma
reconstrução psíquica de um processo físico, é um conhecimento
acerca disso, mas não é plausível reproduzir o processo psíquico
em qualquer outro meio, logo, não existe conhecimento acerca do
psíquico, mas apenas no psíquico. Isso nos conduz a uma sutileza
no que concerne ao uso pela Psicologia do método das ciências
naturais (método empírico descritivo). Quando o médico reflete o
psíquico no psíquico, ele está empregando o método empírico
descritivo, mas se diferencia da ciência natural, pois se vê forçado a
realizar a reconstrução (conhecimento e explicação) em um meio de
natureza igual (ignotum per ignotius29). Todo processo psíquico, na
medida em que pode ser observado, já constitui em si uma “teoria”,
isto é, uma visão ou concepção (Anschaung30), e a reconstrução
não passa de uma variante da mesma visão. Se a reconstrução da
visão não for exatamente uma variação (ampliação), ela será uma
tentativa de compensação (melhora, censura etc) ou polêmica
(crítica do mesmo) e, nesses casos, será uma eliminação do
processo que deve ser reconstruído. Cada uma das imagens
oníricas é uma visão (Anschaung) inequívoca e suficientemente
positiva. Para Jung, o que Freud faz, ao considerar que o sonho é
algo diverso do que apresenta, é criar uma polêmica entre a sua
visão e a visão que o sonho tem de si próprio. Percebe-se que
mesmo a descrição está inapelavelmente ligada ao método
comparativo, pois a própria descrição do fenômeno já é uma versão
análoga.
Creio que uma palavra rápida sobre o termo Anschaung seja
interessante. No alemão do dia a dia, essa palavra significa
simplesmente “opinião”, porém, ela também é usada por Kant, e,
como sabemos, ele é o filósofo mais importante para Jung. Em Kant
a palavra Anschaung aparece utilizada com o mesmo sentido de
intuitos em latim, ou seja, intuição. Dessa maneira, poderíamos
igualmente ler a frase da seguinte maneira: Todo processo psíquico,
na medida em que pode ser observado, já constitui em si uma
“teoria”, isto é, uma intuição.
Retornando à construção do Contexto Subjetivo do sonho, é um
procedimento que não difere daquele utilizado para decifrar um texto
difícil, e consiste em procurar ver, por meio das amplificações do
sonhador, para cada imagem mais importante ou mais destacada,
com que significados e nuances lhe aparece. Esse processo é algo
simples e quase mecânico e possui um valor apenas preparatório; a
verdadeira interpretação do sonho é algo bem mais laborioso.
Qualquer interpretação estereotipada dos motivos oníricos deve ser
resolutamente evitada (“esse objeto circular que aparece no seu
sonho só pode ser o si-mesmo” ou “essa mulher misteriosa é a
anima”), só são válidas as interpretações específicas que se
justificam pelo exame minucioso do contexto! Qual é a razão prática
dessa regra operacional? Que só são válidas as interpretações que
podem ser justificadas pelo contexto? Na prática, é indispensável
levar em conta a exata situação consciente ao se interpretar um
sonho.
Isso conduz a uma das hipóteses basilares de Jung, a de que a
relação que se estabelece entre a consciência do eu e o
inconsciente é compensatória/complementar
(Kompensation/Komplementierung). A Compensação
(Kompensation, no original em alemão) é uma confrontação
(Gegeneinanderhaltung) ou comparação (Vergleichtung) entre
distintos dados e diferentes pontos de vista, de que resulta um
equilíbrio (Ausgleich) ou retificação (Berichtigung). Sendo assim, de
maneira muito geral, é de esperar que a compensação se manifeste
de três formas, dependendo sempre da maneira como se comporta
a atitude consciente. Se a atitude consciente é fortemente unilateral
(einseitig), o sonho adota um partido oposto. Se a atitude da
consciência tem uma posição que se aproxima mais ou menos do
centro, o sonho exprime variantes. Se a atitude da consciência é
adequada, o sonho coincide com essa atitude e lhe sublinha as
tendências. Como se pode ver facilmente, há uma relação estreita
entre o comportamento compensatório das imagens oníricas e a
atitude adotada pela consciência.
O conceito empírico de atitude31 (Einstellung) é uma disposição
da psique de agir ou reagir em certa direção. Ter atitude é o mesmo
que direção apriorística para algo determinado, quer ele seja
representado ou não, e consiste sempre na presença de uma
determinada constelação subjetiva que determina o agir nesta ou
naquela direção prefixada. Atitude significa uma expectativa – e a
expectativa sempre atua selecionando ou direcionando.
Como as imagens oníricas se referem a uma consciência (e sua
respectiva atitude) e a compensam, só em casos excepcionais se
faz uma interpretação, sem levar em conta a situação consciente do
sonhador, nem estabelecer um contexto, o que só se consegue por
meio das amplificações que ele mesmo fornece. Nesse sentido,
Jung adota a regra heurística que é “[...] perguntar a cada nova
tentativa de interpretação de sonho: qual é a atitude consciente
compensada pelo sonho?”. Graças ao caráter compensatório das
imagens oníricas, uma interpretação adequada ajuda o sonhador a
sair do estado de estagnação, aspecto crucial a ser ressaltado, pois,
como anota Jung em seu A Prática da Psicoterapia, o único critério
de validez de uma interpretação onírica é que ela ajude o paciente a
sair do estado de estagnação em que se encontra em virtude das
agruras de sua neurose.
O momento da amplificação pessoal corresponde, mutatis
mutandis, ao do método redutivo freudiano, porém com algumas
sutis diferenças que pragmaticamente fazem com que a maneira
como Jung preconiza essa etapa do processo tenha resultados
significativamente diferentes. De acordo com a percepção de Jung,
Freud aplica o método de redução causal de maneira estrita e
unilateral. Nesse sentido, o sonho resulta de conteúdos psíquicos
que o precederam. Jung considera isso correto e válido, mas
isoladamente é insuficiente para esclarecer o significado e sentido
do sonho.
O primeiro passo, no entanto, para compreender
psicologicamente um sonho é investigar as experiências
precedentes de que se compõem. Dessa forma, para cada imagem
onírica devemos remontar os seus antecedentes. Jung até mesmo
aconselhava que, ao ouvir o relato de um sonho, primeiro se
indagasse pela situação do dia que precedeu o referido sonho. Com
isso, encontram-se as causas do sonho? Não exatamente. Tanto no
que concerne à biologia, quanto aos estudos da alma, é quase
impossível aplicar a causalidade da mesma forma que, em geral, se
aplica às demais ciências da natureza. Uma relação de causa só
pode ser apontada quando a relação de antecedência entre dois
fenômenos for evidente e necessária (e possa ser provada), ou seja,
para que X aconteça, ele deve necessária e universalmente (todas
às vezes) ser precedido por Z. No que concerne à alma, esse tipo
de causalidade, raramente, ou mesmo nunca, pode ser apontado.
Nesse sentido, Jung adota três possibilidades de continuar
pensando em causalidade, mas de uma maneira mais adequada à
natureza do fenômeno anímico.
A primeira delas é pensar não em causa de maneira estreita,
mas em condições. A relação unívoca de causa e efeito é por
demais estreita para os fenômenos da alma, mas, ao mesmo tempo,
não se pode simplesmente abolir a causalidade. Ao se pensar em
condições admite-se que determinadas condições podem resultar
em certas consequências. Cuida-se de ampliar as relações unívocas
de causa e efeito por intermédio dos diversos significados que essa
relação possa ter. Decorre da adoção da ideia de condição a outra
perspectiva adotada por Jung, a de que, quando estamos lidando
com a causalidade em psicologia, não se trata de relações unívocas
e necessárias que podem ser provadas de maneira evidente, mas
de uma probabilidade estatística. Por fim, é muito comum que Jung
se utilize de dois conceitos aristotélicos: causa eficiente (causa
efficiens) e causa final (causa finalis). Ambas as noções são muito
importantes para avaliar as relações de causalidade dos fenômenos
da alma sem mutilar sua quase infinita e estonteante complexidade
e multiplicidade. No que tange à causa eficiente (o que me interessa
mais de perto ao se remontar o contexto) o Estagirita aponta dois
exemplos esclarecedores para se compreendê-la: no caso de uma
estátua, sua causa eficiente é o escultor, no do filho é o pai.
Posteriormente em sua obra, Jung abandona o conceito aristotélico
de causa final e adota de maneira resoluta a noção de finalidade,
que já se encontrava na psicologia de Adler.
O momento inicial da amplificação pessoal já nos situa diante um
paradoxo desconcertante, porém de grande importância prática, que
seja o uso dos métodos Qualitativo Causal e Quantitativo Final, ou,
para simplificar, a utilização dos princípios da causalidade e
finalidade em conjunto.
Ao reduzirmos as imagens do sonho às “associações” do
sonhador, recolhemos um material variado e importante para a
elucidação do seu sentido, mas esse material, por si, pode ser algo
tão confuso e embaraçoso quanto o próprio sonho que estamos
tentando decifrar. Por isso ele precisa passar por um processo de
seleção e elaboração cujo princípio é o mesmo aplicado ao material
histórico, ou da hermenêutica (como a hermenêutica universal de
Schleiermacher) o método comparativo – a que já aludi. A aplicação
desse critério heurístico faz com que, já no momento redutivo, se
deva considerar o princípio da finalidade. Finalidade é uma tensão
dirigida a um objeto futuro, ou o sentido de um objetivo a alcançar.
Ao aplicarmos o método redutivo (o princípio da causalidade) ao
material recolhido por meio do interrogatório do sonhador, o
conteúdo do sonho é reduzido a certas ideias ou tendências
fundamentais muito gerais e elementares descritas por esse
material (como a ideia de culpa, ou de fracasso, ou sexualidade
como queria Freud). Assim, há uma delimitação mais ou menos
clara (mas ainda imprecisa) do problema psicológico abordado pelo
sonho (porém ainda não temos a inflexão psicológica específica
trazida por aquelas imagens, referentes a esse problema, como
sabemos, a culpa, por exemplo, é um princípio geral que pode se
individualizar de uma miríade de maneiras diversas).
Vê-se que o princípio da causalidade reduz as diversas imagens
oníricas a um princípio elementar instintivo, mas ao se adotar o
princípio da finalidade, o mesmo material passa a ser julgado por
um critério diferente: que significado tem e o que deve operar? A
análise comparativa permite um olhar em direção ao futuro e aí
entra a finalidade na pergunta “o que deve operar?”. Há sempre
duas perguntas a fazer em relação às imagens do sonho: “por quê?”
e “para quê?”. Assim, um dos pressupostos adotados por Jung é o
de que o sonho é possuidor de conexões causais portadoras de
sentido e orientadas para um fim.
Essa perspectiva que parece ser logicamente impraticável –
pensar o porquê e o para quê ao mesmo tempo – pode se tornar
mais claro se recordarmos de um livro de William James que foi
profundamente influente na formulação da teoria de Jung,
especialmente seu conceito empírico de arquétipo: The Varieties of
Religious Experiences. Logo em sua primeira conferência, James
tem o cuidado de explicar sua metodologia: a distinção lógica entre
duas formas de investigação sobre qualquer tema. Primeiro a
natureza disso, como surgiu? Qual sua constituição, origem e
história? E, em segundo lugar, qual a sua importância, sentido,
significância, agora que está aqui?
A resposta da primeira pergunta é dada em um juízo existencial
(existencial judgment), a resposta à segunda é dada numa
proposição de valor (proposition of value), o que os germânicos
chamam de Werthurtheil, ou o que pode também ser denominada
de juízo espiritual (espiritual judgment). Nenhum desses
julgamentos pode ser imediatamente deduzido do outro, pois eles
procedem de preocupações intelectuais diversas, e a mente os
combina apenas ao fazê-los separadamente e só depois os
adicionando. Os dois são necessários, afirma James, pois fatos
existenciais por eles mesmos são insuficientes para determinar o
valor, e não se pode jamais confundir os problemas existenciais com
os espirituais. Para julgar o valor de algo, já precisamos ter de
antemão em nossa mente algum tipo de teoria geral. Essa teoria,
nela mesma, já é o que se pode chamar de um juízo espiritual
(baseado primariamente em nossos sentimentos e em segundo
lugar com aquilo que podemos auferir de sua relação com nossas
necessidades morais e com o que mais julgarmos verdadeiro).
Combinando isso com os juízos existenciais, podemos conseguir
outro juízo espiritual concernente ao valor. No fundo, estamos diante
dos princípios da Filosofia empirista que guiaram sua busca pela
verdade. Em oposição, temos as Filosofias dogmáticas para as
quais os testes para encontrar a verdade dispensam o apelo ao
futuro, e somente essa postura dogmática apela exclusivamente às
origens em sua busca pela verdade32.
O próprio Jung, incidentalmente, explica o mesmo em seu texto
sobre o Trickster, no vol. 9 das obras completas,
Tanto na psicologia como na biologia, não podemos
negligenciar ou subestimar a resposta à indagação acerca do
porquê de uma manifestação, embora em geral ela nada nos
ensine sobre seu sentido funcional. Por isso, a biologia não
deveria jamais renunciar à indagação do para quê, pois é só
através da resposta a ela que o sentido do fenômeno se
revela. Até mesmo na patologia, quando se trata de lesões
insignificantes, a observação exclusivamente causal mostra-
se inadequada, uma vez que inúmeros fenômenos
patológicos só revelam seu sentido quando inquirimos quanto
a seu propósito. Mas quando se trata de fenômenos normais
da vida, a questão do para quê tem prioridade inquestionável.
(JUNG, 2003, p.256)
O princípio da finalidade, que passa a ser o critério de julgamento
do material associativo, é justamente aquilo que vai nos permitir
desvendar o significado específico daquele sonho. Sendo um pouco
exagerado, na perspectiva freudiana, o médico já sabe de antemão
que sempre se trata de sexualidade recalcada, as mais diversas
imagens findam sempre sendo reduzidas a esse princípio geral,
fazendo com que escape o significado específico e individual do
sonho. O princípio da causalidade leva a uma uniformidade de
significação.
Do ponto de vista da finalidade, as imagens oníricas possuem
valor próprio. Para esse ponto de vista, assegura Jung, a riqueza de
sentidos reside na diversidade das expressões simbólicas. Ao se
analisar um sonho tendo em vista esse princípio, devemos
considerar que a variação das imagens oníricas é a expressão de
uma situação psicológica que se modificou. A finalidade não
reconhece significados fixos dos símbolos, por considerar as
imagens oníricas importantes em si mesmas.
Aqui, nesse ponto, topamos uma vez mais com uma antinomia
importante, mais um desconcertante paradoxo. Como aludi
anteriormente, só se justificam metodicamente as interpretações
específicas obtidas pelo exame minucioso do contexto, e essa é
uma regra operacional das mais importantes para evitar a sugestão
e não criar obstáculos ao processo analítico. Faz parte do processo
analítico, entretanto, e de interpretação dos sonhos levar em
consideração as convicções filosóficas, religiosas e também morais
conscientes, contudo sem entendê-las semioticamente, mas de
maneira simbólica – o símbolo representa uma grandeza
desconhecida, difícil de reconhecer e, em última análise, impossível
de definir, representa o indizível de maneira insuperável – nesse
sentido, as imagens da religião, por exemplo, não devem ser
consideradas como tendo um caráter imutável, mas entendidas
como a expressão de um conteúdo que o consciente ainda não
formulou conceitualmente e deve ser relacionada à situação
consciente. E aqui entra o aspecto complicado, pois, na teoria
existem símbolos relativamente fixos. Se tais símbolos não
existissem, nada se poderia descobrir sobre a estrutura do
inconsciente e a Amplificação Objetiva seria impossível. Isso leva a
um cuidado redobrado ao se tratar desses mitologemas – que
ressurgem de maneira espontânea nos sonhos – logo, um cuidado
especial é não referi-los a conteúdos conhecidos e a conceitos
formuláveis (como imediatamente referir uma imagem arquetípica a
mãe, o que é menos mal, ou, bem pior, referir uma imagem onírica
de caráter arquetípico a “Afrodite”, ou outra sandice do gênero).
Mesmo que se tenha um vasto conhecimento de filologia e
mitologia comparada, e por meio desses saberes, se conheça o
símbolo da estrela como ligado ao mundo de seres divinos e
eternos; ou que o aparecimento de uma estrela cadente
corresponde ao nascimento de alguém extraordinário; e, tanto na
China quanto em Roma, a morte de uma grande personalidade
deveria corresponder ao surgimento de uma estrela no firmamento;
que no Egito a meta das pessoas que faleciam era se tornar uma
estrela que nunca se põe; e a alma Ba era também simbolizada por
uma estrela, e assim podemos perceber que o que foi projetado na
estrela – pois a mitologia é a essência da alma projetada, ou seja,
uma projeção do inconsciente coletivo – tem relação com a
eternidade e o aspecto único da personalidade. Esse é um símbolo
relativamente fixo encontrado em diversas latitudes e inúmeras eras.
Isto, porém, não é garantia de que no caso concreto (o sonho
individual) o símbolo possa ser interpretado assim. Na prática é
aconselhável considerar o que o símbolo significa em relação à
atitude consciente, renunciando a tudo o que se sabe de antemão e
pesquisar o significado daquilo para o paciente. Retornarei a esse
ponto ao tratar da amplificação objetiva.
O método filológico (ou comparativo) adotado por Jung não é
exclusivo da Psicologia Complexa, mas é importado por esta da
História e da Hermenêutica. Um dos autores que o influenciaram foi
Friedrich Schleiermacher, pai da Hermenêutica universal. A partir
dele, sabemos que aquilo que denominava de “interpretação
psicológica” possuía dois métodos – o divinatório e o comparativo –
que, como remetem um ao outro, não podem ser separados. O
método divinatório procura compreender diretamente o singular ao
se “transformar no outro”. O comparativo estabelece aquilo que quer
ser compreendido primeiro como universal e identifica o peculiar ao
ser cotejado com outros sob o mesmo universal concebido. Os dois
referem-se um ao outro e necessitam um do outro; a divinação se
baseia no fato de cada ser humano trazer em si um mínimo de
todos, logo se dá por comparação consigo mesmo. Os dois métodos
não podem ser separados, pois a divinação só pode alcançar a
certeza por meio da comparação confirmadora, porquanto sem esta,
ela pode sempre ser fantástica. O comparativo não confere
nenhuma unidade e somente por meio da divinação o universal e o
particular se penetram.
É preciso elucidar psicologicamente a perspectiva de
Schleiermacher. Ao falar no processo de divinação, podemos
entender aludindo à alegoria que Jung usou no seu Tipos
Psicológicos e que sempre gosto de recordar. Como se lê nas
escrituras, no evangelho de Mateus, nós vemos o cisco no olho de
nosso irmão, porém não vemos a trave em nosso olho. Jung
entende psicologicamente essa passagem como uma advertência
de que só podemos ver no outro aquilo que há em nosso próprio
psiquismo, logo, sem a trave em nosso olho jamais veríamos o cisco
em nosso irmão. Lembre-se, estimado leitor, que uma atitude é uma
disposição da psique de agir ou reagir em certa direção, que
consiste sempre na presença de uma determinada constelação
subjetiva que determina o agir nesta ou naquela direção prefixada.
Essa constelação subjetiva33 (subjektiven psychologischen
Konstellation) é a proverbial trave, que por meio da empatia
(Einfühlung), cria um interesse pelos objetos (nesse caso pessoas),
trata-se do fenômeno da projeção passiva, do princípio de Eros34.
Em termos psicológicos, a divinação ocorre de 2 maneiras, como
já expliquei, por meio da empatia, pois o cisco no olho de nosso
irmão (sua constelação subjetiva de complexos) funciona como
gancho projetivo e por isso vemos nele algo de nossa “trave”. A
outra maneira, é que o material do paciente nos causa um impacto –
em nosso caso esse “material” são os sonhos e amplificações – com
esse impacto são consteladas reações em nosso sistema, ou seja,
por meio de um estímulo externo ocorre a aglutinação e atualização
de determinados conteúdos psíquicos (complexos), e isso nos leva
automaticamente a adotar uma atitude preparatória de expectativa.
Na clínica, somos capazes de usar a divinação ao observarmos
atentamente esse processo (constelação), ao mesmo tempo em que
observamos as reações espontâneas do cliente. É exatamente
como no mito de Wotan, em que ele sacrificou um de seus olhos e o
deixou para sempre mergulhado na água da sabedoria (o
inconsciente), enquanto com seu olho restante observa o mundo à
sua volta. Não é à toa que Schleiermacher considera a divinação a
parte feminina do processo de interpretação, pois, em termos
psicológicos está ligada ao princípio do Eros.
A comparação, por seu lado, se afasta da inflexão individual e
me lança no aspecto impessoal, coletivo, sendo, portanto, um
processo abstrativo, ligado ao princípio do Logos. Esse processo é
exatamente como Jean-François Champollion fez para descobrir o
significado da escrita hieroglífica egípcia. Na pedra de roseta ele
tinha um texto no idioma egípcio desconhecido e sua tradução em
grego antigo que era conhecido, dessa maneira, comparando as
duas se chegou à compreensão da primeira, por meio da segunda.
Uso um exemplo retirado do meu livro Impetus para explicar isso
aos meus alunos. Interpretei o mito de Perseu, e me espantava o
fato dele matar todos os oponentes, menos as três Greias, eu não
tinha resposta para esse fato, e fiquei intrigado. Tempos depois,
trabalhando sobre um mito de Thor, ele é desafiado a uma
competição de luta livre com uma velha desdentada e perde,
humilhado e triste ele escuta do gigante que propusera a
competição de que ele, Thor, fora logrado, pois aquela mulher era a
própria velhice e nem mesmo os deuses podem vencê-la. Ao
comparar as duas histórias, a lenda de Thor me esclareceu o mito
de Perseu, pois nem mesmo o filho de Zeus poderia derrotar a
velhice.
A aplicação dos dois métodos esbarra em uma dificuldade, pois
eles são logicamente opostos: um olha para trás e o outro para
frente. Meu intuito aqui não é simplesmente expor o método, mas
também mostrar sua justificativa, nesse caso, por meio da dinâmica
dos movimentos da libido, o que, além de mostrar uma sólida
justificativa psicológica para a aplicação de ambos, por certo, auxilia
na elucidação de sua necessidade prática, pois essa é uma
exigência que surge em virtude da característica do nosso objeto de
estudos que é paradoxal.
Dois movimentos da libido caracterizam o funcionamento
psíquico: extroversão e introversão. No primeiro há um movimento
do interesse em direção ao objeto e no último um movimento
regressivo do interesse de volta ao sujeito. Ambos estão em todos
os indivíduos, e se sucedem como a sístole/diástole, e, mesmo
quando exigências adaptativas tornam a atitude consciente
caracterizada cronicamente por um dos dois (digamos, introversão),
a atitude inconsciente terá justamente o sinal oposto (extroversão).
As imagens da fantasia surgem, psicodinamicamente, de um
represamento da libido no inconsciente (regressão), o símbolo
(nesse caso um dado da cultura como o Cristo, por exemplo) é
relativo, no sentido em que pode ser considerado também como um
conteúdo psicológico, mas para tanto é preciso distinguir os
conteúdos do inconsciente de suas projeções no objeto o que os faz
parecer, também, subjetivamente condicionados. O mana, ou deus,
a medicina, o primitivo a sente tanto interna quanto externamente,
tanto como sua força vital quanto a energia que ativa o seu fetiche,
ou a influência que emana do chefe ou curandeiro.
Psicologicamente, isso significa uma valorização inconsciente
subjetiva desses objetos. Todo inconsciente ativado aparece
projetado. A percepção da relatividade do símbolo é uma retomada
ao estado primitivo. Isso não é surpreendente, nem sinal de um
retrocesso, pois toda a forma de religião realmente viva organiza
cultural ou eticamente uma ou outra tendência primitiva de onde
brotam as misteriosas forças instintivas que produzem o
desenvolvimento da personalidade.
Mas a própria vida brota ao mesmo tempo de fontes límpidas
e turvas. Por isso falta vida a toda “pureza” demasiada. Toda
renovação da vida passa pelo turvo e avança para o límpido.
Quanto maior a limpidez e a diferenciação, menor será a
intensidade de vida, precisamente porque foram excluídas as
substâncias turvas. O processo de desenvolvimento precisa
tanto de limpidez quanto de turvação. (JUNG, 2013, p.257).
Assim, o valor que estava nos objetos passa a ser reconhecido
como projeção, de tal maneira que, os objetos perdem importância e
esta passa a ser reconhecida como pertencente ao indivíduo,
surgindo assim um sentimento vital mais intenso. A fonte de vida e
renovação encontra-se agora na alma, no inconsciente. Nesse
ponto, torna-se como uma criança. Ser uma criança significa,
psicologicamente, ter uma reserva de libido represada que ainda
pode fluir. A libido da criança flui para as coisas e dessa maneira
conquista o mundo e também se perde aos poucos nesse mesmo
mundo. Aí surgem a dependência das coisas e a necessidade de
sacrifício, isto é, a ruptura dos laços, como está nas escrituras “Não
julgueis que vim trazer paz à Terra; não vim trazer-lhe paz, mas
espada; porque vim separar o homem contra seu pai, e a filha
contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; e os inimigos do homem
serão os seus mesmos domésticos.” (Mateus, X: 34-36). A libido
concentrada no inconsciente provém do mundo. Outrora estava nos
objetos o valor supremo, mas agora ele retorna à alma, que é a
personificação do inconsciente. A força determinante que estava no
mundo atua desde as profundezas e é refletida pela alma (Seele);
ela cria símbolos, imagens; ela é pura imagem. Por intermédio
dessas imagens, ela transfere as forças do inconsciente para a
consciência; ela é vaso e transmissor. Símbolos são ideias
determinantes que têm grande valor afetivo e espiritual. O confronto
e a conscientização dessas imagens têm um valor direto para a
adaptação à realidade. Para isso, é preciso o desenvolvimento das
imagens da fantasia, que é justamente o processo de interpretá-las,
a possibilidade do método redutivo e do método sintético. O primeiro
relaciona tudo aos instintos primitivos, o segundo desenvolve, a
partir do material da fantasia, um processo da diferenciação de
personalidade.
Os dois métodos se complementam mutuamente, pois a
redução ao instinto leva à realidade, à supervalorização da
realidade e, assim, à necessidade do sacrifício. O método
sintético desenvolve as fantasias simbólicas que resultam da
libido introvertida pelo sacrifício. Desse desenvolvimento
surge nova atitude para com o mundo que, graças à sua
diferenciação, garante novo declive. (Jung, 2013, p.265).
Com o surgimento do símbolo35, cessa a regressão da libido ao
inconsciente. A regressão se transforma em progressão, o
represamento vira uma torrente. O desenvolvimento simbólico gesta
uma nova atitude, mais equilibrada e adaptada.
Von Franz, ao tratar do mitologema da travessia do limiar, pensa
as sutilezas propriamente psicológicas do método comparativo, pois
esse mitologema se sustenta sobre um fenômeno psicológico
basilar que, em larga medida, importa ao realizarmos o processo de
amplificação. A dificuldade do limiar, como surge nos mitos, tem
relação estreita com o fato de a consciência ser estruturada para
poder representar as coisas em uma ordem espacial e temporal que
inexiste para os conteúdos aflorados do inconsciente e que parecem
estar simultaneamente presentes, o que Jung chama de relatividade
do tempo e do espaço de todo conteúdo do inconsciente. Ao
passarem para a consciência, ela parece instaurar uma ordem
temporal natural aos eventos do inconsciente que, à consciência, se
afigura completamente caótica. No limiar desses dois sistemas
psíquicos (consciência e inconsciente), é constelada uma
dificuldade que você também encontra nos mitos de criação. Os
conteúdos do inconsciente sofrem um escurecimento, um
empobrecimento, ao cruzar o limiar. É como Gilgamesh, que
encontrou a erva da imortalidade, mas, ao tentar retornar, uma
serpente lhe rouba o tesouro.
Essa é a dificuldade do limiar – trazer de volta aquilo que foi
localizado no além. A grande dificuldade está entre as esferas da
consciência e o inconsciente, em trazer destes os conteúdos que
devem pertencer àquele. Quando um conteúdo consciente é
reprimido ou esquecido, ele começa a se alterar no inconsciente,
quando se os traz de volta à consciência ele se altera
qualitativamente outra vez (como já apontavam os estudos de
Flornoy). Em virtude do empobrecimento que sofrem os conteúdos
do inconsciente, ao cruzarem o limiar da consciência, temos de
amplificá-los (isto é, enriquecê-los, desenvolvê-los) para podermos
compreendê-los.
Fazer associações em torno de um tema significa mergulhá-lo
de novo no inconsciente por um breve instante [...] O ponto
principal é concentrar-se, especialmente, nas qualidades
emocionais e na sensibilidade, e não em definições. [...] é
preciso que você realmente tente resgatar a riqueza original
do que aquela imagem transmite. É por isso que
amplificamos, e esse é o jeito correto de agir. Amplificar quer
dizer retornar tanto quanto possível para aquém do limiar, e
reviver aquelas difusas ideias emocionais, sensações e
reações que temos acerca de alguma coisa. (Franz, 2003,
p.86).
Tendo realizado a amplificação pessoal, alguns sonhos podem
exigir outro passo, denominado de amplificação objetiva. Jung
considerava impossível compreender a natureza daquilo que ele
denominava de processo de individuação – nos sonhos, por detrás
da compensação mais corriqueira, em longas séries de sonhos, e,
em alguns sonhos mais significativos, é possível discernir esse
processo – sem o auxílio de conhecimentos sólidos nos campos da
mitologia, folclore e história comparada das religiões. A individuação
está na base do processo de compensação e é o horizonte da
terapia junguiana.
Ao contrário do que afirma a vulgata, que passa corriqueiramente
como Psicologia Complexa, a análise junguiana não tem como
objetivo a individuação. Jung preconizava a irracionalização dos
objetivos em análise, no sentido de se compreender e aceitar a
noção de que, em virtude da autonomia inconsciente, o processo de
individuação é algo espontâneo, eo ipso, e não pode ser forçado.
Von Franz, assim como o próprio Jung, chega mesmo a afirmar que
a única coisa capaz de curar, em análise, é uma manifestação
arquetípica, e esse tipo de manifestação é Deo concedente, ou seja,
é uma graça. A rigor, a cada novo processo analítico fica em aberto
a possibilidade da individuação, entretanto menos de 10% dos
casos apontam para esse tipo de desenvolvimento e, como o
processo analítico depende de um confronto entre consciente e
inconsciente, metade dele está nas mãos da natureza e o que pode
surgir disso é um mistério que nem o médico nem o paciente podem
desvendar a priori. Nesse sentido, convém lembrar as palavras de
Jung, para que não se subestime a consciência e se superestime o
inconsciente: “[...] o inconsciente só funciona satisfatoriamente
quando a consciência cumpre a sua tarefa até o limite do
impossível”.
Os “grandes sonhos”, ou sonhos significativos, apresentam um
caráter mítico acentuado, em sua narrativa surgem motivos
mitológicos ou mitologemas que Jung denominava de arquétipos.
Arquétipos são categorias da fantasia, representam uma
predisposição atemporal e não causal para um comportamento
humano típico. Eles não são imagens herdadas, mas a
predisposição para que as imagens produzidas pelo psiquismo em
determinadas situações sejam funcionalmente similares e
estruturadas de uma maneira típica. Os arquétipos possuem um
efeito numinoso36, que pode ser curativo ou destruidor, porém
jamais indiferente. Esses mitologemas que surgem
espontaneamente nos sonhos são de natureza coletiva e não
individual e, em geral, não há associações subjetivas com essas
imagens. Elas não podem ser interpretadas com base em perguntas
e amplificações pessoais, fazendo-se necessário o que Jung
também denominava de método etnopsicológico.
As formações arquetípicas não se referem a experiências
pessoais do sonhador, mas a ideias gerais cujo significado principal
reside em seu conteúdo intrínseco. São emoções coletivas,
situações típicas fortemente afetivas, que não são, a princípio, uma
experiência pessoal (tornam-se uma experiência pessoal após a
interpretação), mas representações de um problema humano geral.
O sonho se utiliza de figuras coletivas com a finalidade de exprimir
um problema eterno e que se repete indefinidamente, e não um
desequilíbrio pessoal.
O método de amplificação aqui fará uso dos símbolos
relativamente fixos a que me reportei há pouco e que podem ser
encontrados na mitologia, na arte, na religião, no folclore, nos
contos de fadas, na literatura etc., e o significado das imagens
oníricas será descoberto por meio dessas versões análogas
encontradas na consciência coletiva (a cultura), e por elas
amplificadas até que sejam devidamente esclarecidos, para que a
interpretação possa ser efetiva, ou seja, lograr um resultado prático:
que o paciente saia de seu estado de estagnação. Assim,
levantamos essas hipóteses, que nos permitem compreender
melhor a direção do processo objetivo que se passa nos “bastidores
da consciência”.
Em termos práticos, essas amplificações objetivas raramente são
comunicadas ao paciente. Para um paciente cristão, por exemplo,
não faz sentido falar nas sagas dos deuses nórdicos ou celtas,
porém, em alguns momentos, faz sentido expor uma amplificação
retirada das sagradas escrituras – caso o símbolo cristão seja para
ele, de fato, uma religião e não apenas uma confissão – a função
das religiões sempre foi a de formular o inconsciente para seus
devotos e, assim como esse, atuar de maneira
compensatória/complementar tanto a sua atitude consciente quanto
a sua cultura, num sentido mais amplo. Convém, todavia, não tomar
o que eu afirmo aqui como uma regra inabalável, mas apenas como
uma afirmação relativa, pois como afirmou sabiamente Jung, em
psicoterapia não há regras e mesmo isso não é uma regra. Gosto de
sublinhar esse ponto em particular como problemático, porque se
criou uma espécie de “senso comum junguiano” de que o que se
deve fazer é justamente contar mitos e contos de fadas ao paciente,
o que é uma postura tola e contraproducente com caráter
meramente sugestivo. Como eu falo diante desse contexto, corro o
risco de pender para a unilateralidade oposta (nunca falar de mitos
etc), mas não é esse o caso. Todavia, se você estiver em dúvida e a
integridade de sua personalidade não se manifestar, tome como
“regra” trazer à baila apenas material religioso que já apareça de
antemão no discurso, sonhos, sintomas e fantasias do paciente.
Lamentavelmente, no atual estado de coisas, me vejo constrangido
a propor algo que foge ao espírito da obra de Jung, D’us me
perdoe...
Talvez um exemplo ajude, em um de meus cursos sobre
interpretação de sonhos, um dos participantes me narrou o sonho
de uma amiga, de maneira bastante resumida, ela dirigia o carro da
mãe e findava sofrendo um acidente. Pode não parecer à primeira
vista, mas temos aqui um mitologema claro. O mesmo mitologema
está na história de Faetonte, que ao se descobrir filho de Apolo,
pede a ele para dirigir o carro do sol pelo firmamento, mesmo
admoestado pelo deus a não fazê-lo, ele insiste a acaba provocando
uma catástrofe que o leva a morte. Nos dois casos, o sonho e o
mito, podemos perceber que as narrativas tratam de uma
presunção, alguém pueril se julga à altura da tarefa de viver à
maneira de seus pais, talvez por estar identificado com as imagos
parentais, mas não tem essa real capacidade, trata-se apenas de
arrivismo que leva à catástrofe. Levantei essa hipótese devido à
clareza do mitologema, e por ser uma oportunidade didática, se eu o
fizesse seriamente seria algo meio selvagem, ou seja, ouvir um
sonho de terceiros e já tirar conclusões. Se a tal moça fosse minha
paciente, todavia, ao escutar o relato do sonho, e conhecendo o
mitologema em questão, poderia formular essa hipótese e tentar
confirmar isso com as amplificações trazidas por ela. Perceba,
estimado leitor, que o mito de Faetonte não serve para ser
comunicado a paciente, mas que me ajuda a perceber algo de típico
expresso pelo espírito da cliente, a história grega serve como um
guia para mim e para minha compreensão, apenas indiretamente
terá serventia a sonhadora.
Esse exemplo também é útil, pois ilustra que os motivos típicos
podem surgir de maneiras muito sutis e não necessariamente como
elementos fantásticos e obviamente mitológicos. Evidentemente,
apenas o olho treinado pode perceber essas sutilezas.
O último passo do método é justamente aquele que os afoitos
fazem de imediato: a tradução do sonho em linguagem psicológica.
Tomando o sonho anterior da moça que batia o carro da mãe,
poderíamos traduzir em termos psicológicos o seu sentido da
seguinte maneira: o sonho retrata uma presunção, pois a sonhadora
está identificada as imagos parentais, e vive como se possuísse
autoridade, responsabilidade e autonomia. Todavia, não as possui e
isso leva a catástrofe.
Traduz-se o fenômeno para sua versão análoga científica e de
valor mais geral, passível de ser comunicada a uma audiência mais
ampla – se for o caso – além de, em termos pragmáticos, a “teoria”
é um instrumento e não a resposta a um enigma que, depois de
colocada, nos permite repousar. Ao usarmos a “teoria”, tendo em
vista o temperamento empírico de que ela necessita, é preciso
observar o valor prático de cada conceito, eles não são uma solução
a um dilema, mas um programa de trabalho e indicações das
maneiras em que a realidade pode ser modificada. É preciso ter
sempre em mente, ao realizar a “amplificação teórica”, que não se
trata daquilo que James chamava de resposta verbal, mas sim
“conceptual short-cuts” (atalhos conceituais) que nos permitem
evitar o trabalho infrutífero de simplesmente seguir a sucessão
interminável de fenômenos particulares, ligando as coisas
satisfatoriamente, trabalhando com segurança, simplificando,
ganhando tempo. Para Jung, seus conceitos, como Anima, Animus,
Sombra etc, são conceitos empíricos (ou experimentais), que
servem apenas para delimitar um conjunto de fenômenos análogos
e afins. Ao se fazer a amplificação teórica, é preciso recordar-se de
que o único critério de validez de uma hipótese em psicologia
complexa é o seu valor heurístico, isto é, explicativo. Ao traduzir o
fenômeno na linguagem psicológica, se a tradução não for
realmente uma amplificação (pode muito bem ser apenas uma
crítica teórica ao fenômeno, logo, uma polêmica), se não tiver as
qualidades pragmáticas listadas há pouco, se não nos auxiliar a
compreender, desse modo não passa de um equívoco lamentável.
Resumindo os três passos do método: Primeiramente se faz
recolha de amplificações, em seguida a reconstrução do contexto e,
por fim, se faz a tradução do sonho em linguagem psicológica.
Jung gostava de afirmar que um sonho só estava corretamente
interpretado se você conseguisse resumir seu sentido em uma
frase. Esse é um critério importante estabelecido por Jung e que
deve ser levado a sério. Em termos práticos, algumas vezes Jung
recontava o sonho ao paciente utilizando suas (do paciente)
amplificações, traduzindo o sonho para o paciente a partir do
contexto subjetivo.
Ao falar na tradução em linguagem psicológica, é preciso que se
faça uma advertência. Depois dessa longa discussão, pode ficar ao
leitor a impressão de que o método de interpretação é um
procedimento puramente intelectual, ou, ao menos, prioritariamente
intelectual, mas isso é um equívoco. Como Jung asseverou em seu
Tipos Psicológicos, na seara da ciência e do debate científico, o
intelecto tem a primazia, pois não tenho outra maneira de expor o
método, porém na clínica o intelecto é um mero servo do sentimento
e da fantasia criativa. Interpretar sonhos envolve muito mais do que
um debate sobre o significado das imagens ou da narrativa, envolve
o valor dessas mesmas imagens e toda a carga poderosa de afeto
que elas possuem. Quando finalmente descubro o sentido de um
sonho, ele amplia meus horizontes e me faz enxergar a mim mesmo
a ao meu ambiente de uma maneira nova, isso sempre leva a um
confronto moral, pois como ensina Emma Jung, o encontro consigo
mesmo é sempre um encontro com a culpa.
Jung tece outra importante advertência no livro O Eu e o
Inconsciente, ali ele faz algumas distinções muito sutis que precisam
ser compreendidas ou podem ser a causa de inúmeros erros.
Afirmei anteriormente que a neurose aponta a sua própria terapia, é
preciso compreender algumas nuances dessa afirmação. Quando
se tem uma neurose isso significa que aquilo de que necessitamos
para escapar do congelamento de vida que sentimos está no
inconsciente, por isso não se deve tentar escapar a neurose, mas
sim lhe dar a palavra. Acontece que isso não é o mesmo que se
abandonar a um capricho, justamente o que caracteriza o aspecto
nefasto da neurose, ou seja, se abandonar sem freio a um estado
de ânimo (um capricho), mas sim conservar a sua objetividade e
fazer deste seu objeto, dessa forma esse capricho vai lhe dizer que
aspecto tem se exprimindo por meio de uma analogia fantástica. As
fantasias que aparecem numa neurose são, em larga medida,
estados de ânimo visualizados. A terapia apontada pelo sintoma não
é simplesmente viver o sintoma de maneira desenfreada, mas
aprender com a fantasia que o acompanha o que é preciso assimilar
à consciência para escapar da estagnação e isolamento neuróticos.
Para fazer isso é necessário tomar a sério a fantasia e atribuir ao
inconsciente um valor de realidade absoluta (num primeiro
momento), o que significa outorgar indiretamente validez ao ponto
de vista irracional do inconsciente. Devemos compreender, apesar
do preconceito materialista, que nosso mundo “real” está
constantemente ameaçado por uma “irrealidade fantástica”. Aqui há
outra sutileza, uma que infelizmente a maioria dos junguianos não
percebe. Reconhecer o valor de realidade do inconsciente não
significa acreditarmos numa espécie de vida dupla, em uma delas
sou um modesto professor, mas na outra vivo aventuras incríveis.
Devemos tomar a sério a realidade de nossas fantasias, mas não
precisamos concretizá-las. Há uma forte tendência a fazer essa
concretização, por isso é tão comum uma desvalorização crítica do
inconsciente, porque é uma forma de defesa contra a concretização.
Os dois casos: a concretização e o medo da concretização
constituem superstições primitivas. Um fulano comum e ordinário na
vida cotidiana, pode ser um simples psicólogo, mas em uma seita
secreta qualquer (há várias) possui uma insuspeita e misteriosa
grandeza. Exemplos desse tipo despropositado de concretização
existem aos milhares. Infelizmente muitos analistas junguianos
sucumbem à tendência à concretização.
O resultado pragmático dessa sutileza psicológica é a de que
não devemos tomar ao pé da letra as fantasias ao tentarmos
interpretá-las, não podemos confundir a aparência com o que atua
por detrás dela. A aparência não é a coisa mesma, apenas sua
expressão. Se num sonho eu mato alguém, não significa que estou
vivendo um assassinato em um outro plano, mas que vivo algo de
real, que tem a aparência de um assassinato. Por meio dessa
aparência, se expressa simbolicamente um fator anímico que em
essência é inexprimível, porque inconsciente, mas que elegeu como
analogia ou metáfora mais próxima para se autorrepresentar uma
imagem objetiva qualquer, nesse exemplo, um assassinato. Temos
de admitir que a realidade do inconsciente é relativa, ao lado dessa
percepção, devemos igualmente compreender que a realidade do
mundo consciente também é relativa, ambas são vivências anímicas
que se apoiam num fundamento psíquico obscuro e impossível de
conhecer diretamente.
Quando nos damos conta da realidade das fantasias expressas
nos sonhos, temos de perceber que não se trata apenas de uma
realização intelectual, mas de uma vivência genuína que implica um
grau de integridade que passa também pelo intelecto, mas que
exige o homem todo. Quem já testemunhou o resultado trazido pela
compreensão de um sonho em outro ser humano pode entender o
quanto essa vivência é poderosa, e pode ser tanto salvífica e divina,
quanto horrenda e infernal. Todo o seu sistema psíquico está
implicado naquele momento de revelação.
Em seminário proferido em 1925, Jung nos dá um exemplo
pessoal dessa atitude preconizada por ele, pois ao deparar pela
primeira vez com a Anima, ela quis fazê-lo crer que aquela fantasia
que ele deitava ao papel era uma produção artística, algo que ele
rejeitou, apesar de levar a sério suas fantasias. Pois seguir
acriticamente o inconsciente nos transforma simplesmente em seu
joguete, ficamos a mercê dos opostos inconscientes como um
brinquedo. O que a Anima disse a Jung nessa ocasião estava
repleto de uma profunda astúcia, pois ao registrar suas fantasias – o
germe do viria a se tornar sua Psicologia – estava escrevendo um
material autobiográfico que não era autobiografia, sem qualquer
estilo literário e como não era manifestamente científico, ele poderia
ter tomado aquilo como arte. Mas essa era a atitude inadequada
diante daquela fantasia, porque seria como ler um livro ou assistir ao
cinema, uma apreensão meramente estética sem qualquer
obrigação moral diante daquele material. Rejeitar a insinuação da
Anima, salvou Jung de ser simplesmente esmagado pelos opostos,
pois depois, sentindo-se, como muitos antes dele, um artista
incompreendido a Anima certamente lhe diria, novamente com
profunda argúcia “você acha mesmo que esse absurdo é arte?”, e
isso o destruiria. Em lugar de ser um artista fracassado, Jung
produziu a ciência que estamos discutindo aqui e que tem a
potência de salvar inúmeras vidas37.
Depois de falar tanto em finalidade e causalidade, acredito que
uma última palavra de precaução seja necessária. Convém que nos
recordemos de algo fundamental sobre esses dois princípios a que
me referi antes e sua aplicação na compreensão/explicação do
fenômeno onírico. Quando se fala em causalidade ou finalidade, é
preciso estar ciente de que estas são apenas categorias para se
enquadrar o processo psíquico, citando novamente von Franz,
Nem a causalidade, nem a finalidade podem ser
comprovadas objetivamente. São só maneiras
heurísticamente úteis de olhar os processos psíquicos. (2003,
p.166).
A perspectiva finalista é útil para explicar a função, nos ajuda a
elucidar e estabelecer conexões. Como William James também
assevera, os juízos existenciais (o princípio da causalidade),
sozinhos são incapazes de nos elucidar o valor de algum fenômeno,
e tal julgamento deve provir exclusivamente dos resultados
alcançados por tal fenômeno, pelos frutos que ele carrega.
Devemos ter em mente, sempre, que a noção de finalidade e a
causalidade são simples ferramentas heurísticas. Assim, evitamos o
dogmatismo e a hipóstase desses conceitos. Lidamos sempre e de
novo com a psicologia e seus resultados, sabendo que eles são um
“como se”. Por certo, os paladinos da cientificidade estrita, ou
aqueles que querem imputar a nossa ciência uma epistemologia que
não é nativa de seu solo, estarão plenamente cientes disso, o que
me faz recordar o conselho de Tyrion Lannister a Jon Snow: “Let me
give you some advice bastard. Never forget what you are. The rest
of the world will not. Wear it like armor, and it can never be used to
hurt you.”38. Não quero atrapalhar o passatempo intelectual de
ninguém, logo, aqueles dispostos a entrar em debates intelectuais
ociosos que o façam, mas assim como o processo onírico ou a
religião, o valor da nossa ciência não deve provir desses embates
epistêmicos, mas de seus frutos.
A preocupação cimeira de Jung sempre foi o bem-estar de seus
pacientes e os resultados práticos de sua clínica, por esse motivo eu
lhes recordo uma vez mais que o único critério de validade de uma
interpretação onírica é se ela ajuda o paciente a sair de seu estado
neurótico de estagnação. Nesse ponto, creio que as duas disciplinas
que dominam o meu espírito se aproximam e se irmanam: História e
Psicologia.
Acredito que, assim como a História, a Psicologia de Jung é
menos uma ciência e mais um saber cientificamente conduzido, e
para ambas são verdadeiras as palavras que Marc Bloch proferiu ao
se referir às peculiaridades da História e do ofício de historiador, de
que a maior fortaleza da História é justamente sua maior fraqueza:
ser poética! O mesmo Bloch se pergunta, não sem razão: todo
exercício intelectual habilmente conduzido não será, à sua maneira,
uma obra de arte? A interpretação, como proposta por Jung é por
certo uma ciência, mas parafraseando Le Goff, possui uma parte de
poesia que não nos deve fazer enrubescer nem querer privá-la
disso, pois, assim como a minha amada História, a interpretação
onírica apela tanto a nossa sensibilidade quanto ao nosso intelecto.
Devemos aprender com os historiadores, pois assim como a
História, a Psicologia não deve definir falsas leis, mas só pode ser
válida penetrada de razão e inteligibilidade, o que situa a
cientificidade não do lado de seu objeto, mas do método.
Nesse sentido devo ser claro, o mais claro possível, pois, a
interpretação do sonho que proponho aqui é uma ficção, mas uma
ficção como a definiu Michel de Certeau, ao se referir à contribuição
de Freud à História. Trata-se de ficção no sentido em que é um texto
que declara sua relação com o lugar singular de sua produção. Não
há uma necessidade positiva de objetividade nesse discurso. Sua
cientificidade se situa do lado do método, e o resultado é uma
ficção, ou, para usar uma expressão cara a Jung, uma fantasia. O
processo dialético, dizia ele, era um fantasiar em conjunto, feito pelo
diálogo entre o médico e o paciente. No lugar de uma objetividade,
se adquire uma lucidez; nessa ficção, se revela uma verdade
profunda, e essa fantasia não esconde essa verdade, mas a revela
e assim desvela ao sujeito a possibilidade de ver em espelho a
própria face. A superfície prateada brilhante e polida desse espelho
é essa fantasia.
Vou tratar agora de analisar de maneira pormenorizada alguns
exemplos simples utilizados por Jung de interpretação de sonhos
em três textos fundamentais, A Função Transcendente, em A
Natureza da Psique; e A Aplicação Prática da Análise dos Sonhos,
em Ab-reação, Análise dos Sonhos, Transferência, e no apêndice do
Psicogênese das Doenças Mentais, no texto A Interpretação
Psicológica dos Processos Patológicos. Apontando nesses
exemplos de Jung as fases da interpretação abordadas aqui.
O primeiro sonho é de uma paciente solteira que vivia de
maneira passiva e sonhadora, sem muita vontade própria e sendo
movida sempre pela vontade das pessoas à sua volta.
[...] sonhou que alguém lhe entregava uma antiquíssima
espada maravilhosa, ricamente ornamentada, desenterrada
de um túmulo. (Jung, 1986, p. 7).
Em seguida, Jung nos dá as “associações” da paciente, lembrem
que esse é um texto de 1916, e doravante não vamos mais usar
esse termo, mas sim amplificações.
A adaga de seu pai, que ele certo dia fez brilhar ao sol, diante
dela, causou-lhe profunda impressão. Seu pai era, sob
qualquer aspecto, um homem energético, de vontade forte,
com um temperamento impetuoso, e dado a aventuras
amorosas. Uma espada céltica de bronze. Minha paciente se
glória de sua origem céltica. Os celtas são temperamentais,
impetuosos e apaixonados. Os ornamentos têm um aspecto
misterioso, antiga tradição, runas, sinais de antiga sabedoria,
civilização antiquíssima, herança da humanidade, trazidos do
túmulo para a luz do dia. (Jung, 1986, p. 7).
Primeiro, estimado leitor, vamos nos recordar de que o método
construtivo segue três passos simples: recolha das amplificações,
construção do contexto e interpretação psicológica propriamente
dita. Imagine, por um momento, Jung sentado em seu consultório,
cachimbo na mão, ouvindo atentamente a sua paciente narrar o
curto sonho, ele se recosta em sua cadeira, tira uma baforada do
cachimbo e lhe pergunta “o que essa espada em seu sonho lhe traz
a memória?”. A paciente pensa um pouco, olha para Jung e lhe
responde “me lembra da adaga de meu pai, ele uma vez a fez
brilhar ao sol diante de mim e me causou uma profunda impressão,
ao pensar nisso é como se revivesse o exato momento!”. Jung sorri
e lhe diz animadamente “me conte sobre o seu pai”. Ela franze o
cenho por um momento, parece um pouco constrangida, mas ao ver
os olhos marotos e curiosos de Jung e seu ar descontraído se sente
subitamente à vontade, “Era um homem energético, de vontade
forte, com um temperamento impetuoso e... dado a aventuras
amorosas”. Jung solta uma gostosa gargalhada e comenta “bom,
quem pode culpá-lo? O que mais essa espada maravilhosa lhe faz
lembrar?”. A paciente nem precisa pensar e responde de imediato,
elevando um pouco o tom de voz e parecendo se animar
subitamente “como o senhor já deve saber, sou de ascendência
céltica! Essa espada me faz imaginar uma antiga espada celta de
bronze, ornada com runas”. Jung afaga o bigode e ergue as
sobrancelhas pensativo, após reacender o cachimbo e tirar algumas
baforadas ele pergunta “a senhorita pode me contar um pouco sobre
os seus ancestrais, os celtas?”. A paciente se agita um pouco, se
mexe nervosamente na poltrona e após pigarrear responde “os
celtas são temperamentais, impetuosos e apaixonados!”. Jung sorri,
se inclina em direção a ela enquanto apoia o cotovelo no braço da
cadeira e recosta suavemente o queixo entre o polegar e o
indicador, e lhe pergunta “e quanto a esses ornamentos presentes
na espada? O que pode me dizer sobre eles?”. A paciente responde
rapidamente, parece animada “Os ornamentos têm um aspecto
misterioso, antiga tradição, runas, sinais de antiga sabedoria,
civilização antiquíssima, herança da humanidade, trazidos do túmulo
para a luz do dia”. Jung sorri satisfeito, coça o queixo com o
indicador por alguns segundos enquanto a observa pensativamente,
até que faz mais um questionamento “e quanto a escavação do
túmulo, como ela lhe parece?”. A paciente não hesita em responder
“a única coisa que me ocorre é a psicoterapia, afinal, não é isso o
que fazemos aqui? Esse processo sempre me pareceu um tipo de
escavação, falamos de coisas que eu julgava mortas a muito tempo
e as trazemos à luz do dia”.
Nesse momento, Jung está realizando a primeira parte do
processo, está recolhendo as amplificações. Como são as
amplificações trazidas pela própria paciente, elas servirão para
reconstruir o contexto subjetivo. Mesmo as amplificações que
parecem ser objetivas, como as runas, ou os celtas, como são
trazidas pela própria paciente, fazem parte das amplificações
subjetivas. Para a maior parte dos sonhos, não há a necessidade da
reconstrução do contexto objetivo, sendo suficientes as
amplificações recolhidas pelo interrogatório do paciente. Muito do
que a paciente trouxe nos indica as causae das imagens oníricas,
como, por exemplo, a adaga de seu pai. Perceba, que existe um
processo de análise, mas não um processo de redução, a imagem
do sonho não é dissolvida nas causae, eu não passo a entender a
espada como “na verdade” a adaga do pai, esta imagem apenas
amplifica aquela, lembrando que amplificar é alargar um tema por
meio de numerosas versões análogas.
Estou interessado em uma compreensão prospectiva, quando a
paciente me traz essas amplificações que apontam para o seu
passado: pai, celtas etc., temos um momento redutivo, cum grano
salis, mas não é suficiente, nem nos prendemos a ele e usaremos
como critério de seleção e elaboração o princípio da finalidade. Eu
vou me perguntar, tanto no que concerne a imagem do sonho,
quanto as amplificações, qual o seu sentido e significado, qual o seu
objetivo, o seu valor salvífico, como elas redimem a paciente, ou dito
em outras palavras, como elas compensam a atitude consciente.
Devemos nos recordar que a paciente vive de maneira muito
passiva e sonhadora, e lhe faltam justamente ímpeto, paixão e
energia. Jung, diferente de Freud, não tem uma epistemologia da
desconfiança, pelo contrário, o sonho é sua própria interpretação,
nós apenas o amplificamos!
Temos então a construção do contexto subjetivo, em que o
critério de seleção e elaboração do material é a finalidade. Jung
destaca em itálico três palavras no texto: pai, céltica e antiga
tradição.
O contexto da espada: adaga do pai, essa adaga é arma do pai,
seu instrumento, sua atitude perante a vida que era pautada por:
energia, paixão, impetuosidade e vontade. Uma espada céltica de
bronze, ou seja, a espada igualmente representa as qualidades da
alma céltica: temperamento, ímpeto e paixão. Seus ornamentos
indicam uma antiga sabedoria, uma herança da humanidade que
vem à luz do dia. Isso tudo é escavado pela análise. É importante
recordar que o método construtivo de tratamento pressupõe
percepções que existem ao menos potencialmente no paciente e
por isso podem ser trazidas à consciência. A espada é a paixão, o
ímpeto e a vontade que era expressa tanto por seu pai, quanto pela
antiga linhagem de seus ancestrais, ela é um modo de vida, uma
maneira de enfrentar, metaforicamente, o mundo. Com isso temos a
reconstrução do contexto subjetivo, temos em mente a atitude
passiva e sonhadora da paciente, que precisa ser compensada e a
finalidade da espada ter sido tirada do túmulo é dotar a paciente da
mesma energia e paixão de seu pai e ancestrais e que já corre no
seu sangue como a sua herança familiar e histórica.
Por fim, Jung nos dá a interpretação, perceba, estimado leitor,
que a figura do pai, nesse caso, é interpretada no plano do sujeito.
Não se trata do pai objetivo e concreto, mas aponta para processos
psíquicos da própria paciente. Note também, que a interpretação de
Jung não usa nenhum dos termos e conceitos de sua psicologia, ele
não diz, “veja, aqui temos o animus”, nada disso, é como ele explica
no A Prática da Psicoterapia acerca do diagnóstico psicológico, que
é muito mais preciso psicologicamente dizer que alguém é um
filhinho de papai do que afirmar que é histérico.
É como se a paciente tivesse necessidade de tal arma. Seu
pai tinha a arma. Era enérgico em conformidade com isto, e
assumia todas as dificuldades inerentes ao seu
temperamento; por isso, embora vivesse uma vida
apaixonada e excitante, não era neurótico. Esta arma é uma
herança do gênero humano que jaz enterrada na paciente e
veio à luz através de um trabalho de escavação (análise). [...]
A arma do pai era uma vontade inquebrantável com a qual ele
abriu seu próprio caminho através da vida. Até o momento a
paciente tem sido o contrário do pai. Ela está a ponto de
perceber que a pessoa pode também querer alguma coisa e
não precisa ser impulsionada como sempre acreditou [...].
(Jung, 1986, p.8).
A interpretação, que é dada por Jung está, nesse texto, um
pouco misturada com o contexto, mas podemos resumi-la em uma
frase, como o próprio Jung recomenda: a paciente tem a
necessidade de uma tal arma, que é uma vontade inquebrantável e
enérgica com a qual poderá abrir caminho através da vida e assumir
as dificuldades desse temperamento apaixonado, com isso deixará
de ser neurótica.
Vamos ao segundo exemplo, dessa vez do texto A Aplicação
Prática da Análise dos Sonhos, trata-se de um jovem paciente do
sexo masculino, que teve um sonho com o pai.
Meu pai sai de casa em seu carro novo. Dirige pessimamente
mal e me irrito demais com isso. O pai ziguezagueava com o
carro, de repente dá marcha-ré, coloca o carro em situações
perigosas, e vai chocar-se enfim contra um muro. O carro fica
seriamente danificado. Grito, furioso, que preste atenção no
que faz. Aí meu pai ri, e vejo que ele está completamente
bêbado. (Jung, 1999, p.25).
Imagine, estimado leitor, Jung sentado em sua poltrona, com
uma expressão relaxada, enquanto observa o jovem que lhe narra o
sonho nervosamente, movendo as mãos e com os olhos fixados no
chão, incapaz de encará-lo. Quando ele termina de contar o sonho
Jung se mantém em silêncio, está calmo, e sua calma ajuda o rapaz
a se recompor, por fim ele exala profundamente e se deixa afundar
na cadeira, ainda abalado pelo sonho. Finalmente, ele olha para
Jung, as sobrancelhas erguidas e o cenho franzido, ansiosamente
esperando por uma resposta. Jung calmamente acende o cachimbo,
tira algumas baforadas e lhe pergunta “você esteve envolvido em
algum acidente automobilístico? Ou seu pai? Ou mesmo presenciou
algo do tipo?”. O jovem se remexe na cadeira um tanto confuso, ele
encara Jung aturdido e passa a mão no rosto nervosamente “o que
importa se eu tive algum acidente? O senhor deve me dizer o que o
sonho significa”. Jung sorri, levantando as pontas do bigode, tira
mais uma baforada do cachimbo, em seguida, apontando a piteira
do cachimbo para ele exclama “acontece, meu rapaz, que eu não
sei o que o sonho significa”. Boquiaberto o moço encara Jung, ele
demora um pouco para se recobrar do choque, mas engole em
seco, ensaia dizer algo, mas recua, até que, por fim, com uma
expressão de desamparo ele diz “acreditava que essa fosse a sua
especialidade, esse sonho me causou uma grande impressão e
achei que pudesse me indicar o seu significado”. Jung se inclina em
direção a ele, apoiando a mão esquerda num dos braços da cadeira
enquanto movimenta ritmicamente o cachimbo “eu não posso
interpretar esse sonho sem a sua ajuda, afinal é o seu sonho.
Preciso responder às minhas perguntas com a maior honestidade,
eu nunca sei de antemão o que um sonho significa, posso até ter
algumas hipóteses, mas não há nada a ser feito sem a sua
colaboração”. O rapaz cruza os braços, mas assente
afirmativamente com a cabeça “eu nunca tive acidentes, nem meu
pai, tampouco tive notícias dessa espécie”. Jung assente satisfeito
algumas vezes e se recosta de maneira relaxada em sua poltrona “o
seu pai é um bom piloto?”. O jovem responde de imediato, elevando
um pouco o tom de voz e arregalando os olhos “posso lhe assegurar
que ele é um excelente motorista! Jamais faria algo desse tipo e se
irrita muitíssimo com barbeiragens, além disso, é muito cauteloso
com a bebida, especialmente quando precisa dirigir!”. Jung deposita
o cachimbo na mesa à sua frente e cruza os dedos pensativo,
permanecendo em silêncio por alguns instantes. “Me diga, meu
rapaz, como você descreveria o seu pai?”. O rosto do jovem se
iluminou e ele respondeu com um largo sorriso “meu pai é um
homem excepcionalmente bem-sucedido, é respeitado pelos seus
pares, um marido dedicado e excelente pai. Temos um ótimo
relacionamento, ele é um exemplo para mim, jamais deixou que
nada me faltasse”. Jung assentiu, o que pareceu deixar o jovem
mais aliviado, em seguida ele franziu o cenho e o fuzilou com um
olhar penetrante “quais são as suas ambições, meu rapaz?”. O
jovem pareceu atordoado com a pergunta, e após gaguejar um
pouco conseguiu responder “ainda não sei bem a qual ofício quero
me dedicar, mas gostaria de ser tão bem-sucedido quanto o meu
pai, mas por hora ainda não me decidi”.
As perguntas feitas por Jung são, novamente, a recolha de
amplificações. A partir delas se reconstrói o contexto subjetivo.
Graças as perguntas feitas por Jung, ele faz uma diferenciação
importante, o pai da vida de vigília é completamente diferente do
que aparece no sonho, são verdadeiramente opostos, mas o sonho
trata da relação entre pai e filho e tem por objetivo desvalorizar a
imagem do pai para afirmar a autonomia do jovem diante dessa
figura maior do que a vida. Devemos nos recordar de que o
processo de retirada de projeções se inicia justamente com a
impiedosa desvalorização do objeto que é alvo do conteúdo
subjetivo projetado. Graças as perguntas feitas por Jung para
investigar as imagens do sonho, ele descobre que o rapaz depende
do pai, e ele mesmo explica que só somos adultos se soubermos
que caso não sejamos capazes de resolver nossos problemas
ninguém os resolverá por nós. Se ainda esperamos pela ajuda de
papai e mamãe, ainda vivemos uma vida temporária,
psicologicamente, independente de nossa idade cronológica, ainda
somos crianças. Logo, temos essa situação da consciência, o filho
vive em completa dependência do pai, o que Jung chamou de a
psicologia do nômade na terra de ninguém, ele é pueril. O exagero
da desvalorização que surge no sonho corresponde ao valor
exagerado que ele deposita no pai, e devemos recordar que
patológico para Jung significa justamente exagero.
A interpretação psicológica desse sonho, a sua compreensão
prospectiva, é a de que se trata de uma astuciosa compensação,
que tem a finalidade de desvalorizar a imagem do pai com o fito de
libertar o filho da dependência infantil em que se encontra. O sonho
o prepara para as agruras da vida adulta, para que ele adquira
responsabilidade, autonomia e autoridade, por si mesmo e não viva
essas qualidades apenas por estar identificado inconscientemente
com o pai. Interpretando o sonho em uma frase: é preciso
compreender a justa medida de seu pai, ele é um bom homem, mas
se quiser crescer precisa agir por si próprio sem contar sempre com
ele, pois como todos, ele pode errar.
O próximo sonho é de um dos pacientes de Jung que era um
homem de pouquíssima força de vontade, preguiçoso e passivo. Na
época do sonho ele teve um leve mal-estar físico que o
impressionou de maneira exagerada que o lançou em um estado de
completo desespero e passividade, perdendo o interesse e o prazer
pela vida.
Um homem lhe deu de presente uma espada antiga, muito
singular, que trazia estranhas inscrições arcaicas. O sonhador
gostou imensamente do presente. (Jung, 2013, p. 205).
Ele trouxe como amplificação a imagem do sonho a lembrança
de um amigo de infância, pois o homem do sonho lhe fazia recordar
esse amigo. O rapaz fora desenganado com o diagnóstico de
tuberculose, mas agiu de maneira corajosa e estóica, sendo capaz
de suportar a dor com paciência, coragem e esperança. As demais
amplificações foram:
Uma velha espada de bronze que, desde tempos imemoriais,
vem passando de geração em geração. As inscrições me
lembram línguas arcaicas e civilizações antigas. A espada é
uma velha herança da humanidade, uma arma, um
instrumento de defesa e ataque, uma proteção quanto ao
perigo da vida. (Jung, 2013, p. 205).
Imagine, estimado leitor, esse paciente sentado na poltrona
diante de Jung, rosto abatido e ar cansado, deixando a cabeça
pender de maneira teatral como se fosse pesada demais para que a
pudesse sustentar. Suas roupas amarrotadas e com um ar de
desleixo e sujeira, encarando Jung enquanto respirava
profundamente e, numa voz sumida, narrava o curto sonho. Jung
estava inclinado em direção a ele, atento a cada palavra, se
esforçando para ouvir ele contar o sonho quase em um sussurro.
Ele termina de contar o sonho e se deixa afundar na poltrona, Jung
se levanta energicamente e lhe pergunta “você se incomoda se eu
ficar de pé? Passo muitas horas sentado e não tenho tempo para
me exercitar, às vezes prefiro interpretar os sonhos caminhando um
pouco pela sala”. O homem simplesmente dá de ombros de maneira
indiferente, Jung sorri e começa a caminhar pela sala segurando
cachimbo na boca sem o acender “diga-me, o que essa espada lhe
traz à memória?”. O homem dá um profundo suspiro, franze o cenho
e após meditar por alguns instantes responde de maneira pausada
“a espada é uma velha herança da humanidade, uma arma, um
instrumento de defesa e ataque, uma proteção quanto ao perigo da
vida”. Jung continua caminhando de um lado para o outro, então
para e aponta o cachimbo para ele e pergunta “se a espada é uma
proteção quanto ao perigo da vida, isso significa que você está em
perigo e necessita dessa arma?”. O homem se remexe um pouco na
poltrona, ele parece intrigado e agora olha diretamente para Jung
“não há nenhum perigo em especial na minha vida, é tudo muito
pacato, mas como o senhor bem sabe, tenho me sentido doente e
muito abatido...”. Jung recomeça a caminhar e comenta “os médicos
que você consultou foram unânimes em afirmar que se trata de uma
doença muito leve e de tratamento simples, nada que lhe deva
preocupar”. O homem volta a afundar na poltrona e cruza os braços,
seus olhos se estreitam e o rosto assume uma feição irritada “eu sei
muito bem o que estou sentido, e me sinto muito mal...”. Jung o
encara sorrindo e replica “eu jamais duvidei disso, meu caro. Eu não
duvido nem por um segundo que se sinta muito mal e abatido, mas
o fato é que sua doença não é nada grave”. Jung o encara por
alguns instantes, e o paciente o evita, ainda com o ar emburrado,
“Diga-me, esse homem que lhe entrega a espada, é alguém que
você conhece?”. O paciente parece subitamente iluminado por uma
ideia ou compreensão repentina, que lhe tira do estado de irritação
“agora que o senhor comentou, percebo que ele me lembra um
amigo de infância!”. Ainda caminhando, Jung lhe pede que lhe conte
mais sobre o tal amigo ao que o paciente imediatamente replica que
ele foi desenganado com o diagnóstico de tuberculose “foi
maravilhoso ver como esse meu amigo suportou a dor; tinha uma
paciência, uma coragem e esperança impressionantes. Costumava
dizer que não queria morrer, que havia decidido viver. Foi um
verdadeiro exemplo de coragem!”. Jung volta a sua poltrona, acendo
o cachimbo e após algumas baforadas ele diz “A atitude do seu
amigo é o exato oposto da sua, que caiu em desânimo, mas ele lhe
oferece um exemplo de como vencer o perigo da vida por meio de
uma decisão firme e corajosa”.
Novamente, o primeiro passo é recolher as amplificações e com
elas construímos o contexto, no processo de reconstrução do
contexto temos três coisas em mente: a situação consciente do
paciente a ser compensada pelo sonho; o pressuposto do método
construtivo de que certas percepções estão presentes
potencialmente no paciente e, por isso, podem ser conscientizadas;
e que o critério de seleção e organização das imagens e
amplificações é a finalidade. A atitude do paciente é passiva e
preguiçosa, e se deixa facilmente abater e aqui temos a espada
como herança da humanidade e como proteção contra o perigo da
vida. Como uma herança da humanidade, ela também está
potencialmente presente no paciente, mas ele a descobre por meio
do seu amigo que tinha uma forte vontade de viver e grande
coragem e paciência, justamente as qualidades que ele necessita
para sair de seu estado neurótico de estagnação. O próprio Jung
nos fornece a interpretação em uma frase “seu jovem amigo
ofereceu um exemplo inestimável de como é possível vencer o
perigo da vida por meio de uma decisão firme e corajosa”.
Como a imagem da espada apareceu duas vezes nos exemplos
de Jung, e significando coisas muito semelhantes, vou trazer um
contraexemplo, oriundo da minha experiência pessoal. Por quase
uma década tive sonhos com o mesmo tema: era acossado por
inimigos que me derrotavam, eu então treinava Kung Fu em vigília
com redobrado afinco e derrotava esses inimigos nos sonhos. Eles
foram se tornando mais fortes e numerosos, até que passaram a ser
ogros, demônios e monstros e o ciclo de ser derrotado, treinar mais
e os derrotar no próximo sonho prosseguia. Até que eu tinha à
minha disposição, em alguns sonhos uma espada, mas por mais
habilidoso ou violento que eu fosse, essa espada era incapaz de
cortar. Na época eu era muito brigão, e não hesitava em ser muito
firme para defender meus pontos de vista intelectuais, o que gerava
muitos ressentimentos e apenas me afastava das pessoas, que, por
mais que tivessem de dar o braço a torcer diante da força dos meus
argumentos, se ressentiam da violência deles. Isso prosseguiu até
um sonho em que, com um mero pedaço de cano de ferro, eu
derrotava diversos homens fortemente armados diante de um mar
fantasmagórico. Após os vencer, emergia das águas um exército de
zumbis e um deus dragão negro. Eu apertava com mais força a
minha arma precária e não arredava o pé diante desse perigo.
Como que reagindo à minha audácia, emergia um segundo exército
e um segundo dragão, mas eu não me amedrontava nem um pouco.
Segui sendo burro e teimoso por mais algum tempo, quando, por
fim, compreendi o sentido da espada que não era capaz de cortar
tive dois sonhos em que me faziam colocar a minha espada sobre a
lareira (era uma bela espada reta chinesa com ornamentos da
dinastia Han) e a substituía por um arado e um campo a ser
cultivado. No meu caso, a espada significava justamente o oposto
das duas espadas dos pacientes de Jung. Eles precisavam ser
menos passivos e eu mais passivo e menos agressivo, era preciso
refrear a minha vontade e a deles precisava ser intensificada. Este
livro é um dos frutos do arado que substituiu a minha espada.
Muitos anos depois, meu inconsciente finalmente conseguiu me
amedrontar, mas ao invés de demônios, monstros, ogros, zumbis e
dragões, ele me enviou um pequeno e fofo poodle falante.... Eu
acordei genuinamente apavorado.
Passarei agora a um exemplo prático mais longo e complexo de
interpretação de sonho. O sonhador é um homem de trinta e poucos
anos, invulgarmente inteligente, com conhecimentos de Filologia, e
uma razoável cultura científica e filosófica, que passa por
significativas mudanças em sua vida. Segue o relato do sonho:
Sou um conquistador, mas preciso fazer um tratado de paz e
agir com diplomacia. Para poder assinar esse tratado, tenho
que passar por uma terra repleta de “dragões-dinossauros”,
mas estão todos mortos e seus cadáveres espalhados por
toda a parte até onde a vista alcança. Pego um desses
cadáveres, mais ou menos do tamanho de um cachorro, seu
sangue é negro. Vou até o local combinado para selar o
acordo de paz, a paisagem do sonho é indistinta, mas me
parece vagamente uma esquina. Ao invés de assinar o
acordo de paz sou emboscado por diversos gorilas imensos a
cavalo e com quatro braços, pelos brancos e armados com
arcos e flechas. Estaria perdido se não tivesse um plano de
fuga, abro uma porta e dali sai uma tropa de cavalos e na
frente deles meu potro mais rápido, salto sobre ele e fujo. Os
cavalos dos gorilas são rápidos e me perseguem atirando
flechas, seu líder está em meu encalço e estica sua mão para
me agarrar, quando, para a minha surpresa, coloco a mão por
cima do ombro e disparo sobre ele um feitiço de fogo. O
monstro se esquiva, mas consigo ganhar distância, mas ele
se aproxima novamente e tudo se repete mais duas vezes,
porém, ao invés de fogo, atiro sobre ele eletricidade e gelo.
Esse estratagema me dá tempo de fugir até a minha cidadela
fortificada e escapar de meus perseguidores.
Comecemos observando a estrutura narrativa do sonho. Local: o
sonho se inicia sem uma indicação clara de local, mas o sonhador
passa pela terra “dos dinossauros-dragões mortos”, a “esquina”
onde se dará a assinatura do tratado e, por fim, sua cidadela. As
Dramatis Personae são o sonhador e seus perseguidores.
Exposição: o plano do sonhador de realizar um tratado diplomático.
Peripécia: a emboscada e a perseguição, com os recursos mágicos
para poder escapar. Lysis: o sonhador se refugia em sua cidadela
para escapar de seus perseguidores. Recapitulando, a peripécia em
geral nos permite nomear o problema, ou seja, discernir qual o
problema psicológico tratado pelo sonho (o mesmo pode se dar, em
alguns casos, com o local e a exposição), a lysis é o desenlace do
sonho, e seu desfecho, em geral, nos mostra o aspecto
compensador trazido pelo sonho (que só pode ser discernido em
relação à atitude consciente que ele procura equilibrar ou corrigir).
As amplificações do sonhador são: com conquistador e com o
estratagema dos cavalos, ele se recorda vivamente de Alexandre, o
Grande, e uma fábula que narra como ele escapou de um país de
brumas sem fim usando éguas que tinham parido recentemente,
pois sempre conseguiam voltar para os seus potros. Ao falar em
tratados, os primeiros que lhe vêm à cabeça são os tratados
assinados pela Coroa Portuguesa em nossa história colonial, como
a bula inter coetera, o tratado de Tordesilhas, o tratado de panos e
vinhos, bem como as aquisições territoriais posteriores conseguidas
pelo Barão do Rio Branco.
Sobre os “dinossauros-dragões”, queria ser paleontólogo quando
criança, era aficionado por dinossauros, possuía diversos livros de
gravuras de dinossauros (que guardou por muitos anos, mesmo
depois de adulto), sabia os nomes e as características de inúmeros
dinossauros de cor. Recentemente teve um sonho com
“dinossauros-zumbis”, e possui um bom conhecimento sobre lendas
e histórias sobre dragões, mas se recorda primeiro de dois dragões:
Bewolfsbane e Smaug.
Acerca dos gorilas de quatro braços, ele afirma serem idênticos
ao monstro de um jogo de RPG chamado Girallon. Basicamente
gorilas mágicos de quatro braços e pelo branco, mais perigosos e
inteligentes do que gorilas normais, mas ainda animais.
Sobre arco e flecha, recorda-se de que, desde criança, possui
interesse por eles e uma grande vontade de possuir um e saber
usá-lo, porém jamais concretizou essa vontade. Possui amigos que
praticam tiro com arco, e tem razoável conhecimento histórico sobre
eles. Recentemente seu filho lhe pediu um arco de presente. Leu
dois livros sobre arqueiros, Ranger Apprentice, de John Flanagan,
uma história juvenil com mais de dez livros que ele leu quase toda e
presenteou seu filho com o primeiro volume, e The Archer’s Tale de
Bernard Cornwell (a saga possui outros dois livros que ele não leu,
mas já leu outros três do mesmo autor que tratam sobre as sagas
arthurianas).
Cavalos também lhe recordam de fastidiosas viagens para o
campo, em que sua avó, superprotetora, não o deixava andar a
cavalo. Com relação aos feitiços elementais, lhe recordam jogos de
videogame (especialmente Skyrim) e RPG.
Alexandre era um conquistador e alguém que levou seu desejo
de conquista às raias do absurdo. Seus exércitos desistiram de
avançar e retrocederam às margens do Ganges. Ele teve uma vida
turbulenta e desregrada, enfrentou enormes dificuldades com seu
pai Filipe, rei da Macedônia. Foi discípulo de Aristóteles (depois
deste fugir de Atenas onde fora condenado à morte) e lhe enviava
sempre espécies botânicas e animais de suas expedições. Conta-se
que ao deparar com macacos em uma floresta da índia, julgou estar
sendo atacado por estranhos homens peludos. Também enviava
livros dos povos conquistados a seu professor (metade da biblioteca
de Aristóteles foi vendida por seu filho e sucessor e tornou-se a
biblioteca de Alexandria), é famoso por diversas histórias fabulosas
que aderiram a sua imagem, como o famoso episódio do nó górdio,
bem como inúmeros contos em que tenta ultrapassar os limites
humanos do conhecimento ou da capacidade de exploração e se vê
forçado a recuar (como o sonhador mesmo se recorda); as lendas
também falam de seu maravilhoso corcel Bucéfalo. Conquistou um
vasto império, derrotando tanto gregos quanto persas, mas, ao
morrer, suas possessões foram divididas entre seus generais mais
proeminentes. Conta-se que Júlio César o invejava e o tinha como
exemplo a ser seguido. Alexandre Magnus (grande) é praticamente
um exemplo histórico da desmedida, a ὕβρις (hubris)39, além de ser
uma personagem heróica e um tanto trágica.
A imagem do trágico conquistador Alexandre – no sonho ele é
um conquistador – deve operar algo, ou seja, possui um caráter
compensatório. O sonhador passa por mudanças na sua vida e
grandes problemas, e sente-se paralisado e incapaz de lidar com as
mudanças. Nessa situação, o sonho o coloca no papel de um herói
guerreiro e explorador. Ao mesmo tempo, podemos levantar a
hipótese de que a atitude consciente de estagnação e paralisia
corresponde a uma ὕβρις inconsciente, ou uma autoimagem
excessivamente elevada de si mesmo autorrepresentada no papel
assumido de conquistador. O sonhador, ao contrário de Alexandre,
deve realizar uma ação diplomática, fazer um tratado. Com exceção
de sua amplificação relacionada a um tratado comercial entre
Inglaterra e Portugal (panos e vinhos, que aprofundou a
dependência comercial portuguesa em relação às manufaturas
inglesas, quase arruinando o Estado português), os demais tratados
versam sobre limites territoriais, o estabelecimento de fronteiras, a
divisão de terras e, no caso dos tratados do famoso Barão do Rio
Branco, a resolução das disputas e aquisição de novas terras com
ampliação de fronteiras. O tratado versa sobre limites, fronteiras,
possivelmente entre inconsciente e consciente (mas guardemos
essa hipótese no bolso do colete). Para poder assinar esse tratado,
ele precisa do cadáver de um “dinossauro-dragão” e consegue isso
facilmente, pois estão todos mortos, aparentemente trucidados.
Dinossauros são uma imagem que o remete fortemente à
infância e seu fascínio por essas criaturas, bem como o seu desejo
de estudar Paleontologia. Eles representam um entusiasmo infantil e
inocente com relação ao conhecimento, um fascínio pelo passado
distante e por coisas antigas e primevas. Os dragões que lhe
ocorrem – a despeito de ter um razoável conhecimento sobre lendas
de dragões – são o dragão que mata Bewolf, seu último desafio
depois de já ter uma idade avançada, ter conquistado o trono e
ganhado fama ao derrotar o Troll Grendel. Smaug é o dragão
ganancioso e egoísta que tomou para si Erebor, o reino dos anões,
e foi o desafio que teve de ser superado para que o reino sob a
montanha fosse recuperado (Bewolfsbane também guardava numa
caverna um imenso tesouro), ele foi abatido por Bard com o auxílio
de uma flecha negra encantada que pertencera aos seus
antepassados. O fato de o sangue das criaturas ser negro é um
detalhe interessante, que reforça o aspecto de terra devastada,
associado a esse estranho lugar. Isso tudo está morto e arrasado,
esse élan primordial pelo conhecimento, bem como o desafio e a
promessa que aguarda após o desafio jazem trucidados. A despeito
da imagem heroica, a vontade e a coragem heroica parecem ter se
esvaído e estar destruída. Em vez de uma jornada heroica, o
sonhador vai fazer um acordo, e para fazê-lo parece evidente que
ele precisa de uma prova de que seu ímpeto heroico (dirigido ao
conhecimento) está morto.
O local da emboscada é um tanto indistinto, mas lembra uma
esquina; imediatamente, me ocorre a expressão “uma esquina na
história”, equivalente ao inglês “turning point”, que expressa um
momento crucial, uma virada, uma mudança repentina e abrupta
nos acontecimentos e que leva a uma outra direção. O próprio
sonhador não está muito seguro de que a coisa toda vai dar certo,
pois há um plano de fuga (ele se recorda de que Napoleão, sempre
tinha um plano de fuga caso as coisas não saíssem como o
planejado), e realmente as coisas não saem como o planejado. Na
verdade, ele foi tocaiado e caiu numa emboscada. Uma enorme
tropa de Girallons montada a cavalo e armada com arcos o ataca,
mas ele usa uma grande quantidade de cavalos e seu “potro mais
veloz” para escapar. É importante salientar que é um potro, um
filhote, visto que boa parte de seu élan mais primordial, sua
“coragem heroica”, está arrasada, ainda há algo de jovem e
vigoroso nele que o ajuda a escapar. Aqui surge o mitologema da
fuga mágica, de que cuidarei mais adiante, na Amplificação objetiva.
Os cavalos lhe remetem aos aspectos tediosos de sua infância,
quando ia para o campo, mas não podia cavalgar; a despeito de seu
desejo de fazê-lo, fica evidente que representam algo que
permanece infantil e irrealizado e passível de evolução, qualidades
que faltam à consciência e que poderiam ser muito úteis se as
possuísse. Essa ousadia e liberdade de andar sozinho pelo campo a
cavalo lhe foi tolhida pela avó, superprotetora. Algo dos instintos
saudáveis do sonhador ainda permanecem como um “potro”. São
jovens e não diferenciados, mas estão lá e o ajudam a escapar.
Ainda assim, seu potro não é rápido o bastante (nos mitos e contos
de fadas ele nunca é), mas, assim como no mitologema da fuga
mágica, ele, literalmente, possui alguns “truques na manga” e
usando de bruxaria de que nem mesmo ele suspeitava ser capaz
(isso é importante para pensarmos no sentido do tratado), ele
escapa e se tranca em sua cidadela, seu reino onde não pode ser
atacado por essas forças hostis, que lhe atacam com flechas que o
sonhador igualmente associa a um desejo juvenil que quedou
irrealizado. Nesse ponto, convém salientar que o sonhador é alguém
criativo e com dotes artísticos.
Uma das poucas vezes em que Jung usa o termo “sempre”, ao
se referir à interpretação dos sonhos, diz respeito a imagens como
essa de perseguição. Ele assevera que representam conteúdos
inconscientes que desejam participar da vida consciente, mas são
rechaçados por ela. Podemos suspeitar, pela amplificação pessoal
de que há um problema relacionado aos limites entre consciência e
inconsciente, há algo de inusitado e mágico em sua personalidade
que ele desconhece (logo, age de maneira autônoma em sua
consciência), além de elementos que não querem fazer qualquer
acordo, mas que almejam ser reconhecidos pela consciência do
sonhador. Uma parte dele (o potro) ainda está em uma situação
infantil, enquanto uma parte vital de sua personalidade (ambição,
coragem, élan pelo saber, criatividade), que deveria ser sempre
jovem e viva, está arrasada e morta. É, pois, um sonho bastante
complexo com diversos elementos coletivos (arquetípicos). A lysis, o
objetivo do sonho, é alcançada quando ele foge e se refugia em sua
cidadela. Com relação à cidadela, o sonhador não apresentou
qualquer amplificação. Podemos dizer que o problema apontado
pelo sonho (estamos nomeando o problema) é que o sonhador tem
vivido abaixo de suas reais possibilidades (talvez esteja acomodado
ao seu momento de estagnação), o que acarreta uma reação
instintiva violenta contrária a esse estado de coisas. Não há acordo
possível, mas parece que ele não está preparado para o confronto e
deve se refugiar em um local seguro, ao menos por enquanto.
Passemos agora ao momento da Amplificação Objetiva,
demandado pelas imagens coletivas do sonho. Comecemos pelo
simbolismo do cavalo (tanto o sonhador quanto seus fantásticos
perseguidores possuem cavalos). Jung, em seu Símbolos da
Transformação, se debruçou longamente sobre o simbolismo
relativamente fixo do cavalo. Ele inicia ao falar de lâmias, fantasmas
noturnos femininos que cavalgam suas vítimas. De acordo com as
pesquisas tanto de Freud quanto de Jung, sobre o medo de cavalos,
a fantasia de cavalgar pode ter uma conotação sexual, mas que é
apenas secundária, sendo o essencial o ritmo. O freixo universal
Yggdrasill é também chamado de corcel assustador. Há um costume
entre os camponeses europeus de espantar fantasmas noturnos,
jogando ossos de cabeça de cavalo sobre os telhados. Na qualidade
de Drosselbart (barba de corcel), Wotan é semi-humano e
semicavalo. Muitas sagas atribuem aos cavalos propriedades que
psicologicamente pertencem ao inconsciente: eles são clarividentes
e “clariouvintes”, mostram o caminho aos que estão perdidos, têm
propriedades proféticas. Na Ilíada, o cavalo prenuncia desgraças;
ouvem as palavras do morto ao ser levado à sepultura; eles vêem
fantasmas. Como recebem a projeção do inconsciente, não é de
surpreender que os cavalos, como símbolo do lado animal do
homem, tenham relações com Satanás. O Diabo tem cascos de
cavalo e pode ter aspecto de cavalo. Na versão Persa, o Diabo é a
cavalgadura de Deus. O demônio também representa o instinto
sexual, por isso aparece como bode ou cavalo nas festas das
bruxas. Loki procria na forma de corcel, assim como o Diabo faz a
mesma coisa em forma de cavalo. O relâmpago também pode ser
representado de forma teriomorfa. Em sagas hindus, aparece o
cavalo trovão, do deus dos mortos e, no folclore germânico também
se diz que o Diabo, como deus relâmpago, lançaria o casco de um
cavalo sobre os telhados. Imaginando o relâmpago e a tempestade
como a fecundação da terra, percebemos que o casco do cavalo
possui um significado fálico. Pégaso, com um coice, faz surgir a
fonte Hipocrene enquanto, o cavalo de Balder faz o mesmo. Vê-se
que o casco do cavalo é o doador de umidade fecunda. De modo
geral, o cavalo, como o asno, tem o significado de animal priápico. A
ferradura é um sinal de boa sorte e proteção contra o mal. Na
Holanda há o costume de se pendurar um casco de cavalo na
estrebaria para afastar feitiços. Por sua intensidade e velocidade, os
cavalos também representam o vento (os centauros, entre outras
coisas, são deuses do vento). Cavalos também significam fogo e
luz. Há como exemplos disso os cavalos de Hélios; Siegfried
transpõem Waberlohe, o valo em chamas, sobre o corcel-trovão
Grani, descendente de Sleipnir. Os cavalos também fazem o papel
de psicopompo, o animal usado para levar as almas para o outro
mundo, como no caso das Valquírias. Os cavalos possuem,
igualmente, um significado materno, como a própria amplificação do
sonhador aponta ao se recordar da fábula de Alexandre.
Alexandre chegou aos limites da terra, na fronteira de um país
coberto de brumas eternas e de onde nenhum mortal retornava
após se aventurar nele. Mesmo assim, ele insistia em explorar essa
terra. Um velho mendigo o aconselhou a ir montado em éguas que
tivessem acabado de parir, pois elas sempre conseguiam encontrar
o caminho de volta aos seus potros. Alexandre parte montado nas
tais éguas e atravessa as brumas sem ver quase nada a sua frente
por um bom tempo, até que depara dois corvos em uma árvore que
lhe dizem que ali é o limite até onde ele pode ir e retornar. Ele
aquiesce e, graças às éguas, consegue encontrar o caminho de
volta ao acampamento do seu exército.
A relação de Alexandre com sua montaria, Bucéfalo
(Βουκέφαλος, cabeça de búfalo) é bem conhecida. Ele era um
cavalo imenso, com uma enorme cabeça, pêlos negros com uma
estrela branca na testa e olhos azuis, proveniente das melhores
linhagens de cavalos da Tessália, famosos por todo o mundo grego
como animais soberbos. Plutarco narra a história de como, aos 13
anos, o jovem Alexandre domou e ganhou a propriedade de sua
famosa montaria. Um negociante de cavalos da Tessália, chamado
Philonicus, ofereceu o cavalo ao rei Filipe II pela soma de 13
talentos, mas, como ninguém era capaz de domar o magnífico
animal, o rei não ficou interessado. Alexandre ofereceu-se para
domar o animal e, caso falhasse, ele mesmo pagaria os treze
talentos. O garoto falou gentilmente ao animal e o virou em direção
ao sol, para que ele não visse mais a própria sombra – a causa de
seu comportamento agressivo – e assim conseguiu domá-lo, o que
impressionou grandemente seu pai. Ao redor da imagem do garboso
corcel, aderiram inúmeras lendas, como a profecia délfica de que
aquele que cavalgasse Bucéfalo seria o rei do mundo.
Convém não se esquecer de que a amplificação do sonhador
acerca dos cavalos o remete a sua avó superprotetora. Se eu
tivesse que dar um palpite, um tanto apressado, sobre a relação dos
cavalos à avó, eu diria que, psicologicamente, seja lá o que for que
compreendermos ser o significado do cavalo, isso é algo que está
preso à inércia do inconsciente, ao aspecto materno devorador. A
imagem do sonho reforça essa impressão, os cavalos saem em
disparada, e, no sonho, não se fala em arreios ou selas, o sonhador
simplesmente pula sobre o potro quando ele passa e se agarra a
ele. O potro mais veloz parece saber o caminho de volta para a
cidadela e, o cavaleiro é guiado pelo cavalo. Eles estavam presos e,
ao serem soltos, imediatamente disparam. O caráter de autonomia
da imagem me parece particularmente evidente. Outra coisa que me
chama a atenção é o fato de eles serem um plano de fuga, algo que
só deve ser usado em último caso “se tudo der errado”.
Sobre o caráter materno do símbolo do cavalo, Jung assevera
que parece haver uma relação etimológica entre mar e cavalo, como
no caso de nightmare e mare em inglês, o radical indo-germânico
para Mähre (cavalo velho) é mark. Mähre é o cavalo, inglês mare,
antigo alto alemão marah (cavalo macho) e meriha (cavalo fêmea),
nórdico antigo merr (mara = a pesadelo), anglo-saxão myre (maira).
A raiz ariana comum mar quer dizer morrer, por isso “mara” significa
o “morto”, a “morta”, ou a morte. Daí resulta mors, Μόρος = a
fatalidade. As nornas sentadas sob o freixo do mundo representam
o destino. Também entre os celtas o conceito de fatae passa para o
de matres e matronae. No eslavo, mara quer dizer bruxa e no
polonês mora significa pesadelo. Mor ou more (em alemão suíço)
quer dizer porca que já deu cria.
Nos sonhos, o instinto frequentemente é apresentado como
touro, cavalo, cão etc. A libido representada de maneira teriomorfa40
é a impulsividade animal reprimida. Os símbolos teriomorfos, quase
sempre, se referem a manifestações inconscientes da libido. Em
geral somos, em larga medida, inconscientes de nossos instintos,
mas, em parte, quando a atitude consciente é fortemente unilateral,
ocorre uma inibição de certos conteúdos (que Freud chamaria de
repressão), que findam se tornando inconscientes. Este fenômeno
não está na raiz da sintomatologia neurótica, tampouco deve ser
apontado como causa da neurose, mas já é sintoma de uma atitude
neurótica. Não é ocioso recordar que, como insistia Jung, a
instintividade não pode ser simplesmente identificada com a
sexualidade. Os instintos são os fundamentos vitais, as leis da vida
em geral. Essa inibição (ou repressão) leva ao passado psíquico, a
infância, onde os poderes decisivos aparentemente eram os pais.
Se a regressão vai além da fase infantil, como parece ser o caso
aqui, aparecem imagens arquetípicas que não mais se associam a
recordações individuais, pois pertencem às possibilidades
imaginativas hereditárias que surgem novamente a cada
nascimento. Como regra geral, podemos afirmar que a maneira
como essas figuras se mostram depende da atitude consciente: uma
atitude negativa para com o inconsciente engendra animais
assustadores, e uma atitude positiva leva ao aparecimento de
animais prestativos, “auxiliares mágicos”.
Cavaleiro e cavalo simbolizam uma pessoa levada por forças
vitais instintivas. Nossa subestrutura, nosso corpo, é um
animal. O cavalo tem a ver com vitalidade da nossa
subestrutura. (Franz, 2003, p.91).
Nosso sonhador parece viver em “pé de guerra” com seu
inconsciente, a tal ponto que precisa tentar fazer uma trégua e
assinar um tratado de paz. Parece que suas forças se esgotaram
com esse confronto, mas os exércitos do submundo são
inumeráveis e nunca se cansam; e a tentativa de diplomacia
fracassa.
Os cavalos e Girallons o perseguem, de acordo com von Franz,
se algo em nossos sonhos nos persegue, é porque quer chegar até
nós. Há algo do inconsciente que deseja ser reconhecido pela
consciência e participar da vida consciente. Se tememos o
inconsciente, nosso medo lhes confere uma aparência maléfica,
mas se formos capazes de aceitar esse outro lado da nossa
natureza e o aceitar, provavelmente ele se tornará benevolente.
Nesse ponto é necessário lembrar que todas as regras de
interpretação de sonhos são paradoxais. Algumas vezes somos
perseguidos em sonhos por partes do inconsciente das quais é
correto fugir. Nossa alma possui tendências extremamente
destrutivas que devemos evitar. Lidar com o inconsciente não é algo
desprovido de perigos, trata-se de material explosivo. Em termos
gerais, invasões do inconsciente (como parece ser o caso aqui)
acontecem quando não apresentamos uma reação normal em
alguma área da vida; o lapso age como uma porta, por onde o
inconsciente pode entrar – como vimos ao realizar a construção do
contexto individual, o sonhador vive abaixo de suas reais
possibilidades.
Jamais se pode afirmar com cem por cento de certeza que as
figuras espirituais do sonho sejam moralmente boas.
Frequentemente elas têm o sinal, não só da ambivalência
como da malignidade. Devo porém ressaltar que o grande
Plano segundo o qual é construída a vida inconsciente da
alma é tão inacessível à nossa compreensão que nunca
podemos saber que mal é necessário para que se produza
um bem por enantiodromia, e qual o bem que pode levar em
direção ao mal. (Jung, 2003, p.212).
Creio que, no caso do sonhador, confesso que fico em dúvida
quanto a essas duas possibilidades, mas me inclino um pouco mais
para a primeira, não tanto em virtude de medo ou desconfiança em
relação ao lado irracional da alma, mas sim por uma posição
neurótica unilateral muito acentuada que inibe muito fortemente
suas reações emocionais instintivas, o que me parece explicar os
animais hostis do sonho, mas ainda há muito mais exploração a ser
feita no que tange à imagem dos macacos brancos de quatro
braços. Os macacos são também, evidentemente, representações
teriomórficas41. A figura do animal indica que os conteúdos e
funções em questão se encontram na esfera extra-humana, num
plano além do humano, simultaneamente o sobre-humano
demoníaco e o infra-humano animal. Como tudo o que é
genuinamente simbólico, essas imagens são ambivalentes e
representam uma antinomia. É importante ressaltar que o aspecto
animal não significa para o primitivo nem para o inconsciente um
desvalor. É certo que em muitos aspectos o animal é superior ao
homem, não apenas no que concerne à força, sentidos ou
velocidade, pois em sua inconsciência, os animais vivem em
harmonia com a natureza, e a força viva dos instintos que neles
impera pode viver desimpedida. No nosso caso específico, não é
simplesmente um animal, mas um animal fantástico, mágico, um
gorila – um hominídeo evolutivamente muito próximo dos seres
humanos – mas, ao contrário de um gorila comum, ele é maior, mais
ameaçador, inteligente e de quatro braços. No tal jogo de RPG,
temos a seguinte descrição do monstro,
À primeira vista, esta criatura parece um gorila albino, mas
possui quatro braços, além de dentes afiados como navalhas
e garras compridas. Os girallon são parentes selvagens e
mágicos dos gorilas. Eles são agressivos, sanguinários,
altamente territoriais e incrivelmente fortes. Quando se
movem sobre o solo, os girallon caminham sobre as pernas e
os braços inferiores. Um adulto atinge cerca de 2,4 m de
altura, tem uma caixa torácica ampla e é coberto por uma
grossa pelagem completamente branca. Eles pesam em torno
de 400 kg.
Na descrição do jogo eles não possuem inteligência comparável
à de um ser humano, mas no sonho utilizavam armas (arco e flecha)
e cavalgavam. O jogo de RPG (Role Playing Game) é basicamente
uma brincadeira altamente sofisticada de faz de conta, em que você
finge ser outra pessoa em um mundo fantástico, contando com as
regras do jogo para decidir se suas ações são bem-sucedidas ou
não (um dos problemas em jogos de faz de conta), basicamente
tudo se passa na imaginação dos jogadores, que constroem uma
narrativa em conjunto. Em especial, nesse jogo
(Dungeon&Dragons), é uma experiência cooperativa, em que cada
jogador (dependendo da classe do seu personagem) contribui de
maneira singular para o sucesso do grupo – ou todos vencem ou
todos perdem – não se trata de uma competição. É curioso que o
sonhador tenha que encarar não apenas um desses monstros, mas
toda uma tropa deles sozinho, pois, em uma partida de RPG, ele
contaria com o auxílio dos outros jogadores. É possível que essa
característica aponte para um aspecto compensatório de uma
atitude extrovertida e que depende em demasia dos outros – daí o
contraste com o jogo – mesmo assim, a fuga parece ser algo
acertado diante das circunstâncias. Um dado interessante sobre
gorilas é que, até 1902, eles eram criaturas “míticas”. Em 1625, o
explorador britânico Andrew Batell reportou ter visto um monstro nas
selvas africanas, um homem peludo de proporções gigantescas que
dormia em árvores e comia frutas. Relatos sobre gorilas
continuaram sendo vistos como lendas ou exageros até que, em
1847, o médico Thomas Savage conseguiu obter na Liberia diversos
ossos de gorila, incluindo um crânio. Com isso, ele fez a primeira
descrição científica desse animal. Na década seguinte, Paul Du
Chailu se tornou o primeiro explorador ocidental moderno a ver com
os próprios olhos um gorila vivo, enquanto fazia uma expedição à
África equatorial. O gorila das montanhas, uma espécie ainda maior,
continuou sendo considerado um mito até 1902.
Na cultura pop temos dois exemplos de gorilas. O famoso gorila
gigantesco King Kong, arrastado de sua ilha isolada até Nova York
onde se encarrapitou em prédios, lutou com aviões e sequestrou
belas loiras. E temos Tarzan, não exatamente um gorila, mas um
nobre inglês criado pelos gorilas e que se torna uma espécie de
herói em revistas e filmes televisivos (a exceção de Greystoke, com
uma inusitada boa atuação de Cristopher Lambert, que possui um
tom mais sério) e sua inseparável macaca Chita. Em virtude de suas
proporções enormes e aspecto hominídeo, os macacos guardam
similaridades com os gigantes. De acordo com von Franz, os
gigantes são caracterizados pelo tamanho e por terem relação
próxima com fenômenos naturais (como a neblina ou o trovão).
Muitas mitologias (como a judaica e a hindu) falam de raças antigas
que eram gigantes, mas se extinguiram. Na mitologia grega, os
gigantes são os titãs, raça de deuses mais antiga do que os
olímpicos. Hodiernamente, temos o anime Shigeki no Kyojin (ataque
aos titãs), onde gigantes surgem como seres sem mente ou alma
dedicados a devorar humanos. Psicologicamente, eles (os gigantes)
representam fatores emocionais de força bruta que não chegaram
ainda à consciência. São impulsos emocionais poderosos,
enraizados no solo arquetípico, e alguém vitimado por tais impulsos
é dominado por eles e agindo de maneira brutal e estúpida como um
gigante; ou, em seu aspecto positivo, serem tomados por uma
imensa energia e realizarem grandes feitos aparentemente
impossíveis.
O fato de os gorilas terem quatro braços parece- me algo
deveras intrigante. Creio que não posso fazer mais do que levantar
algumas hipóteses, mas elas devem permanecer em aberto. A
quaternidade é um símbolo da totalidade, o três é um número
masculino, enquanto o quatro é um algarismo feminino. Temos
diversos exemplos de quatérnios: os quatro evangelistas, os quatro
pontos cardeais, os quatro rios do paraíso, mesmo a estrutura da
consciência, na perspectiva de Jung, é organizada por um quatérnio
de funções (pensamento/sentimento, sensação/intuição). Mesmo
com tão pouco, eu me arriscaria a afirmar algo – um tanto óbvio –
de que há nesses impulsos autônomos de emoções violentas e
destruidoras (irrupções da energia instintiva) algo da totalidade da
psique que se manifesta. Deparamos aqui o velho tema arquetípico.
Lá onde está o tesouro a ser alcançado está também o dragão –
nunca se encontra um sem o outro. Na perspectiva budista acerca
das emoções, elas podem ser vistas de maneiras diversas, tanto
como venenos destrutivos que se deve evitar, quanto como
manifestações da pura natureza de Buda. Os sintomas mais
neuróticos escondem conteúdos importantes e positivos do
inconsciente, pois conteúdos psicológicos, quando não
completamente desenvolvidos, surgem como coisas repulsivas, e se
materializam como impulsos desagradáveis. Eles também possuem
pelos brancos, o que deve ser significativo. O sonhador possui uma
necessidade premente de se adaptar ao mundo e à sociedade.
Talvez por esse motivo, a imagem da totalidade surja como algo tão
ameaçador e destrutivo, algo de que ele deve fugir e se refugiar em
um lugar seguro.
Os gorilas de quatro braços usam arcos e flechas em sua
tentativa de atacar o sonhador, que parece estar desarmado. Um
dos paralelos mais conhecidos no ocidente para as flechas são as
famigeradas flechas do Cupido (Eros para os gregos) envenenadas
com o amor e capazes de fazer mesmo o mais empedernido
solitário cair de amores. Outros deuses gregos usam arco e flecha,
como a casta Artemis, a caçadora. Há uma crença muito antiga e
bastante difundida do projétil ou flecha ou disparo mágico que
prejudica outros homens. Algumas vezes esse disparo mágico
aparece na forma de um projétil de gelo, como se crê que os iogues
do Tibete consigam fazer para influenciar outrem. Esses projéteis
são uma das explicações mais antigas das causas de doenças – um
projétil o atinge para o bem ou para o mal. Em geral, ele parte de
um deus, espírito ou demônio, ou qualquer outro ser mítico
(macacos brancos de quatro braços) e atinge homens e animais,
causando doenças. De acordo com von Franz, em seu Reflexos da
Alma, no judaísmo, encontramos a concepção de que deus (ou
homens maus, ou o diabo) dispara flechas nocivas. Ela cita o salmo
91 “Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de dia,
Nem da peste que anda na escuridão, nem da mortandade que
assola ao meio-dia.”, bem como o livro de Jó: “Pois as flechas do
Todo-Poderoso estão cravadas em mim: o meu espírito sorve o
veneno delas e os horrores de Deus estão apontados para mim”.
Em Jeremias e nos Salmos, as palavras más e nocivas também são
designadas como flechas. Na antiga literatura veda, é o deus Rudra
com suas flechas que causa a morte. As flechas de Rudra podiam
causar febre, tosse, tumores malignos e dores agudas. A palavra
hindu “salaya” significa seta, espinho, estilhaço. Um dos textos da
tradição védica fala sobre o médico retirando a seta da doença
como se fosse um juiz. Nesse caso, temos a seta como um afeto
ruim que leva ao adoecimento. Em desenhos feitos por pacientes,
percebemos que formas pontiagudas indicam impulsos destrutivos,
que impedem a síntese da personalidade. No nosso caso, como as
flechas partem desses animais mágicos, esses impulsos destrutivos
são causados por conteúdos inconscientes arquetípicos (pelo
simbolismo do gigante/macaco, podemos presumir que são
impulsos emocionais poderosos). Lanças e flechas,
psicologicamente, expressam “direção”, canalização da libido. Apolo
e Ártemis, com suas flechas, enviam a morte e a doença. Para os
romanos, Apolo e Marte são os emissores de flecha que, além da
morte, podem causar comoção repentina da paixão amorosa,
quando partem do arco de Eros. Na mitologia Hindu, Kama, o deus
do amor, também usa o arco e a flecha. Buda designa o desejo
ávido como flecha. O símbolo da flecha representa o momento em
que somos atingidos por um estado de espírito que nos acomete.
Cada deus corresponde, nas imagens míticas, a um estilo específico
de comportamento instintivo. Em linguagem psicológica, os deuses
são arquétipos, que possuem uma base estrutural instintual. Pode-
se ligar cada deus a um campo biológico instintivo, sendo a imagem
arquetípica do deus o aspecto psicológico do instinto, e a todo
dinamismo instintual correspondem uma imagem ou conjunto de
imagens e um comportamento específico. Os deuses são
representações de complexos gerais (sexualidade, autodefesa e
agressividade etc). Como arquétipos, eles possuem um efeito
numinoso, logo, possuem uma carga dinâmica relativamente
autônoma, incontrolada e, nas mais das vezes, incontrolável.
Os deuses são configurações de certas constantes naturais
da psique inconsciente e de comportamentos da
personalidade emocional e imaginativa. Jung, como sabemos,
designou essas constantes como arquétipos. Trata-se de
estruturas inatas e implícitas, que sempre e por toda a parte
produzem pensamentos, imagens, sentimentos e emoções
semelhantes no homem, paralelamente ao instinto, aos
nossos impulsos específicos a ação. (Franz, 1997, p.29).
A análise das duas simbólicas (girallons e flechas) coloca em
xeque minha hipótese inicial de que é a atitude da consciência do
sonhador que faz com que as imagens do inconsciente possuam um
aspecto maligno. Sob essa nova luz trazida pelas amplificações,
talvez fosse mais sensato considerar que são realmente impulsos
destrutivos dos quais o sonhador deve fugir. Em um caso como
esse, os sonhos posteriores são de importância vital para se decidir
pela interpretação mais correta, bem como o comportamento do
sonhador diante daquilo que lhe é dito ao se interpretar
conjuntamente as imagens oníricas. Sobre os dons mágicos do
sonhador, me parece que, a despeito de viver “em pé de guerra”
com esses impulsos destrutivos, a magia que ele usa,
psicologicamente, pode significar que ele tem a habilidade de
exprimir os conteúdos do inconsciente. Normalmente, pessoas com
uma pobreza de coração, ausência de amor tanto quanto uma
esterilidade de pensamento e de espírito possuem uma debilidade
para expressar esses conteúdos novos e explosivos que emergem
do inconsciente. Não parece ser esse o caso. Justamente sua
habilidade de exprimi-los de maneira adequada lhe dá a pequena
margem de vantagem de que precisa para escapar. Como afirmei, o
sonhador é alguém com dotes artísticos. Também me chama a
atenção o fato de as flechas errarem o alvo. Alguma característica
da personalidade do sonhador faz com que ele seja um alvo difícil
para esse direcionamento da libido que visa o aparecimento de
emoções destrutivas na consciência. Talvez o fato de o sonhador
ser um sujeito bem humorado, como Jung costumava dizer, apenas
o humor pode nos salvar.
Como já havia sugerido, a parte da peripécia do sonho remete ao
mitologema da “fuga mágica”, ou “voo mágico” – como também o
chama von Franz – representa uma situação em que é melhor fugir
do inconsciente do que ser devorado por ele. Em geral, a fuga é
empreendida em algum momento da história e objetos são jogados
para trás – em um ato de sacrifício – e se transformam em obstáculo
para o perseguidor, que acabam por atrasá-lo um pouco e facilitar a
fuga. Von Franz cita dois exemplos de “voo mágico”, em seu livro A
Interpretação dos Contos de Fadas, dois contos siberianos, um com
um final positivo e outro que termina em catástrofe. Nos demais
exemplos que conheço, também são jogados objetos para trás e
eles se convertem em obstáculos (pentes se transformam em
florestas, espelhos em lagos etc), porém, em nosso caso, o
sonhador não se desfaz de qualquer objeto, mas conjura magias de
fogo, gelo e eletricidade sobre seu perseguidor. Não há o ato de
jogar fora os objetos, o que possui o valor de sacrifício, não há uma
atitude de renúncia, ou simplicidade e passividade, que a análise de
Von Franz aponta como importante ao se viver um confronto sem
esperanças ou falso. Ainda assim, algo é lançado em direção aos
perseguidores, e finda tendo o mesmo efeito que encontramos em
geral nos exemplos desse mitologema. Fogo e eletricidade
aparecem muitas vezes como metáforas para a intensidade da
libido. Pensando assim, o sonhador direciona seu interesse a esses
conteúdos e, em algum nível, deve ser capaz de, ao menos,
reconhecê-los e formulá-los. É muito comum que o fogo tenha
qualidades de purificação e transformação, e utilizado em muitos
rituais religiosos (como os holocaustos gregos). Na alquimia, o fogo
é empregado para queimar tudo o que é supérfluo, para que apenas
o núcleo indestrutível permaneça. O fogo é o grande agente da
transformação. Em determinados textos gnósticos, ele é chamado
de “o grande juiz”, pela sua capacidade de julgar o que tem valor e o
que deve ser destruído. Psicologicamente, pode ser pensado tanto
quanto metáfora para a intensidade da libido, quanto o calor das
reações emocionais e afetos. O fogo é o grande juiz, mas, em
diversos contextos míticos, ele também é o grande destruidor. De
acordo com von Franz, sem o fogo da emoção, nenhum
desenvolvimento ocorre e nenhuma conscientização maior pode
acontecer. A ausência de emoções é algo daninho, assim como o
seu excesso (o caráter destrutivo do fogo). O caráter fálico e
fecundador do raio já foi citado, por isso não pretendo me repetir.
Vou citar um exemplo, de uma história coreana de raposa (gumiho,
em coreano 구미호) que me agrada.
Um homem muito rico possuía uma filha a quem era muito
devotado e um filho mais velho. Um dia, ao sair para colher flores, a
filha mais nova demorou bem mais do que o de costume e o pai
enviou seu irmão para ir buscá-la. Ele a encontrou dormindo
próximo a um monte de terra e os dois voltaram para casa. No dia
seguinte, uma vaca morreu, ao ter o fígado arrancado. O pai enviou
um de seus muitos empregados para vigiar as vacas e ver quem as
estava matando e o homem presenciou a filha mais nova se
aproximar do animal, enfiar a mão em sua barriga e arrancar o
fígado e comê-lo cru. Ao relatar o ocorrido, o fazendeiro não
acreditou e o demitiu. Os animais continuavam a morrer todas as
noites e todas as noites ele colocava alguém de vigia e todos
testemunhavam a mesma coisa, mas ele continuava incrédulo e os
demitia. Por fim, ele enviou o seu filho, que viu sua irmã matar um
cavalo e devorar o fígado do animal. Ao reportar o que vira ao pai,
este o expulsou de casa. Ele vagou por um tempo e encontrou um
monge budista a quem relatou o ocorrido e lhe disse que sua
verdadeira irmã certamente fora morta e devorada por uma raposa e
que ele deveria voltar e lhe entregou três garrafas que ele deveria
usar para escapar da raposa. Ao retornar, a cavalo, para sua antiga
casa, encontrou a fazenda deserta e sua irmã sentada sozinha na
entrada. Ele logo percebeu que sua família estava morta e, quando
ela viu que não podia enganá-lo, começou a persegui-lo. Quando
ela estava quase o alcançando, ele jogou por sobre o ombro o
frasco branco, fazendo surgir um bosque de espinheiros, mas ela
logo atravessou e permaneceu a toda velocidade em seu encalço.
Quando ela estava novamente o alcançando, ele jogou para trás a
garrafa azul e surgiu um enorme lago, que ela teve de atravessar a
nado. Por fim, ele jogou a última garrafa, de cor vermelha, e a
raposa foi consumida em uma enorme labareda.
A raposa do conto devora o fígado de animais e seres humanos,
e devorou a garotinha. Psicologicamente, a antropofagia da raposa
ou seu hábito de devorar o fígado mostra o desejo de conteúdos
inconscientes que lutam desesperadamente para penetrar a
consciência e se realizar nos seres vivos, eles possuem um desejo
não reconhecido de atingir a plenitude da vida. Esse paralelo reforça
a noção de que os girallons são conteúdos inconscientes, impulsos
negativos que não foram redimidos, e que não podem ser aplacados
por uma ação diplomática, tampouco podem ser combatidos de
frente, restando a fuga e o refúgio na cidadela, o que leva a um
incômodo impasse. Passemos à simbologia da cidadela.
Como paralelos da cidade ou castelo, temos a Jerusalém celeste
do Apocalipse, de São João, a cidade de Brahma no monte Meru.
Na Flor de Ouro lê-se sobre o “livro do castelo amarelo” que fala “no
campo de uma polegada quadrada da casa de um pé quadrado
podemos ordenar a vida”. Os castelos medievais eram tanto
fortalezas e praças de guerra quanto a moradia da nobreza; também
no Medievo, se representava Constantinopla como uma cidadela
fortificada com altas muralhas.
Von Franz, assim se refere ao castelo em seu A Sombra e o Mal
nos Contos de Fadas:
O castelo é um símbolo feminino impessoal, algumas vezes
da anima, e como é construído pelo homem corresponde a
um aspecto específico da imagem maternal, a imagem da
deusa-anima elaborada em civilizações anteriores e na qual
podemos encontrar um conteúdo novo. Às vezes os castelos
são um sistema fantástico de construir, como nas brincadeiras
infantis. Às vezes as pessoas constroem um castelo ou uma
casa através de imaginação ativa, vivendo dentro deles por
muito tempo. Elas constroem a estrutura de uma atitude
específica com a qual possam viver. Os castelos garantem a
defesa. Quanto mais desfavoráveis as condições exteriores,
mais a criança tende a viver dentro desse castelo, atrás de
cujas paredes consegue levar a própria vida (Franz,
2002,p.74).
A rigor, a amplificação objetiva deve ser feita com aquelas
imagens de caráter arquetípico que careçam de amplificações do
paciente. Nesse caso, por preciosismo, curiosidade e motivos
didáticos, amplifiquei objetivamente quase todas as imagens. Em
nosso caso, precisaríamos construir o contexto objetivo para a
imagem da fuga e da cidadela. Nesse sentido, percebemos que ele
foge de impulsos emocionais e instintuais destrutivos oriundos do
inconsciente, que ameaçam destruí-lo, e se refugia em um símbolo
feminino e impessoal, uma imagem maternal antiga, e ali encontra
abrigo contra essas forças perigosas com as quais não pode lutar e,
tampouco, ter uma trégua.
A parte final do método é o “mas, psicologicamente”, ou seja, a
tradução do sentido do sonho em linguagem psicológica – não se
trata, necessariamente, de um diagnóstico ou prognóstico, mas
pode ter essas características, dependendo de cada sonho – a
amplificação teórica, isto é, a versão análoga teórica do fenômeno
estudado não é feita para ser comunicada ao paciente (com
raríssimas exceções), mas para orientar o olhar do médico e guiar a
sua ação, a fim de trazer alguma ordem ao aparente caos dos
fenômenos e tornar o trabalho do médico mais eficiente e gerar mais
trabalho, pois a tradução na mitologia psicológica não tem o caráter
de resposta verbal. No caso do sonhador, podemos afirmar que a
interpretação nos levou a crer que ele vive muito abaixo de suas
reais possibilidades, o que abre uma porta de entrada para
influências destruidoras do inconsciente (mas que, paradoxalmente,
traz consigo algo de essencial e vital) e ele deve se refugiar em um
símbolo materno impessoal. Poderíamos suspeitar de que o
sonhador possui um complexo materno positivo, mas, mesmo
assim, tem dificuldade de se libertar das garras da inércia do
inconsciente.
O método criado por Jung, a meu ver, não é particularmente
difícil, mas é bastante exigente e trabalhoso. A despeito do esforço
moral e intelectual que ele demanda, é uma ferramenta
incrivelmente efetiva, de um valor inestimável no processo analítico,
valendo todo o esforço em aprendê-lo e usá-lo. Espero ter podido
esclarecer alguns dos aspectos mais complicados e favorecido a
compreensão do leitor. Também espero ter podido transmitir a
seriedade com que o método deve ser tratado, pois sua
aplicabilidade prática visa auxiliar aqueles que sofrem e parecem
estar perdidos. Se a teoria de Jung não puder ajudar aqueles que
padecem dos males da alma e tiver se tornado mero brinquedo
intelectual, pode estar certo de que se está fazendo mau uso dela.
Precisamos estar moralmente comprometidos, e evitar os
descaminhos mais comuns que apontei aqui – e que infelizmente
são frequentes. Tenho esperança de ver cada vez mais jovens
analistas sendo capazes de utilizar a teoria e o método de Jung com
seriedade e perseverança, pois, como certa vez asseverou Jung,
“tudo o que é bom é custoso. Requer tempo, requer paciência, e
não há um fim para isso”.
Sobre o Método Dialético
“Se o homem errado usar o meio correto, o meio correto atuará de modo
errado”
O Segredo Da Flor de Ouro.
Creio que não é ocioso tecer algumas considerações acerca do
método dialético, mesmo ciente de que as fiz de maneira esparsa
pelo texto. A interpretação de sonhos é um aspecto crucial do
método clínico de Jung, e desejo aqui ressaltar dois pontos que
penso serem decisivos ao se aplicar a interpretação durante o
método dialético, especialmente no que concerne a postura do
analista.
Obviamente, não existe apenas uma postura correta para um
analista, mas muitas. Em seu livro fundamental, A Prática Da
Psicoterapia, Jung aponta que acerca da psique só se podem fazer
afirmações válidas relativamente, pois a individualidade do sistema
psíquico é infinitamente variável, o resultado é uma variabilidade
infinita de afirmações de validade relativa. Para Jung,
individualidade não está orientada contra a norma coletiva, mas
apenas de outro modo. O caminho individual não pode ser uma
oposição à norma coletiva, pois tal oposição teria de ser uma norma
antagônica e o caminho individual nunca é norma, porque individual.
Tentar tornar um caminho individual uma norma coletiva é apenas
manifestação de individualismo extremo. Disso decorre logicamente,
que existem diversos caminhos individuais possíveis para um
analista, e que o fato de seu caminho estar correto e apresentar
resultados não implica que os demais estejam errados, mas apenas
que eles são de outro modo42. Portanto, não se trata aqui de uma
tentativa de preconização de um modo correto, ou pior, do modo
correto de ser analista, mas sim de tentar explicitar o coração de
todas as posturas corretas, e justamente aquilo que permite que seu
número seja ilimitado, por mais paradoxal que isso pareça.
Sempre que alguém me diz que o que um analista faz é uma
“escuta”, eu sinto que estou diante de um conceito valise, pois
ninguém nunca lhe diz exatamente do que se trata essa escuta, e se
é que ela um dia significou, de fato, alguma coisa, seu significado
parece ter se desgastado com o tempo. Disso resulta que falar
nesta pretensa “escuta”, não passa de uma resposta verbal sem
qualquer serventia prática e que finda sendo algo estéril e
esterilizante. Eu, sinceramente, me interesso muito pouco pelas
outras possibilidades terapêuticas que existem, logo se quiserem
permanecer falando acerca dessa “escuta” que é tão especial que
ninguém sabe precisar do que realmente se trata, pouco me
importa. Todavia, no que concerne a nossa seara, ao método
dialético que nos foi legado por Jung, creio que não basta usar
terminologias vazias, pois não se trata apenas de uma “escuta”,
dizer isso do método de Jung é puro reducionismo, e apenas uma
das faces do tolo preconceito freudocentrico que nos ronda. Mas
então meu caro Heráclito, do que se trata? Você deve estar se
fazendo essa pergunta nesse exato instante, estimado leitor. Antes
de responder, quero lhe recordar da historieta que Richard Wilhelm,
dileto amigo de Jung, lhe contou sobre um fazedor de chuva chinês,
e que Jung recomendou a Barbara Hannah que a citasse em todos
os seus seminários, por simbolizar o coração do método dialético43.
De acordo com Wilhelm, havia um fazedor de chuva (rainmaker)
que vivia na província de Schantung e foi chamado para ir à
província de Kiautschou onde uma seca muito severa castigava toda
a região. Assim que o homem chegou, ele pediu que uma pequena
cabana fosse erguida para ele nos limites da cidade. Logo que
completaram a construção da cabana, ele adentrou nela e pediu que
ninguém o perturbasse. Ele permaneceu nessa cabana por três dias
e três noites, e na manhã do quarto dia, uma tempestade de neve
desabou sobre a cidade, um tipo de tempestade que ninguém
jamais vira naquela época ou estação do ano. Assim que Wilhelm
ouviu sobre essa insólita história, ele foi visitar o fazedor de chuva e
o perguntou como ele tinha conseguido fazer nevar. O homem
respondeu que ele não tinha feito nevar. Ele era simplesmente a
pessoa que veio de Schantung, onde tudo estava mais ou menos
em ordem. Aqui, em Kiautschou, todavia, céu e terra estavam
separados, tudo estava errado, e ele precisou de três dias e três
noites apenas para colocar a si mesmo em ordem. E, no exato
momento em que ele conseguiu se colocar em ordem, então
começou a chover e nevar44.
Eis o coração do nosso método! Meus alunos costumam ficar
aturdidos e confusos diante dessa pitoresca anedota, por isso eu a
amplifico com um exemplo da formidável Nise da Silveira, que me
foi contado pelo professor Walter Melo. De acordo com Walter, Nise
foi trabalhar num hospital psiquiátrico e nele ela também residia.
Todas as manhãs, uma paciente que não falava há muitos anos,
mas que no mais era inofensiva, lhe levava café. Todas as manhãs
a doutora Nise dividia com ela o café da manhã e conversava com a
paciente, que, como de costume, nada dizia. Como por essa época
o Brasil estava vivendo a ditadura de Vargas, Nise acabou presa por
ser comunista. Sem saber que a doutora Nise havia sido
encarcerada, a paciente fez o que fazia todos os dias e foi até o
quarto dela com café, mas para seu espanto, ela não estava lá.
Segue-se que essa paciente, muda há muitos e muitos anos, saiu
pelo hospital perguntando a todos pelo paradeiro da doutora Nise e
tanto fez, perguntou e investigou, que descobriu que ela fora presa
em virtude da denúncia de uma enfermeira. Assim que descobriu
isso, foi até essa enfermeira e lhe deu uma boa surra.
O que a doutora Nise fez, em termos terapêuticos?
Absolutamente nada, antes mesmo de tornar-se uma junguiana,
pois por essa época ainda não conhecia Jung, ela fez exatamente o
que Jung já preconizava: conversou com a paciente de igual para
igual. Nenhuma técnica, nenhuma vontade de curar, nada, apenas
foi ela mesma, e agiu com profunda integridade, sem nada desejar
ou procurar daquele singelo encontro diário.
Como costumo dizer aos meus confusos alunos, a única utilidade
de um analista vem do fato dele ser inútil. No caso da doutora Nise,
fica evidente que não há aí uma “escuta”, visto a paciente ter
permanecido com ela em seu estado de mutismo. O que podemos
aprender dessas duas histórias? Do que elas tratam?
Há dois conceitos chineses que nos ajudam a compreender um
pouco melhor esse pequeno enigma, o de não-ação ( 無為) e o de
vazio ( 空 ). Comecemos pelo conceito de vazio, em pali, Sunyata
(सु ञता). No romance satírico chinês O Macaco Peregrino, o
macaco de pedra, protagonista da obra, ao se tornar um mestre
taoista é batizado de Sun Wukong (孫悟空) que significa algo como
“consciente do vazio”. Ao final do livro, quando recebe as escrituras
budistas que procurava junto de seus companheiros, primeiro
recebem as verdadeiras escrituras, que não passavam de
pergaminhos em branco. Como, porém não estavam preparadas
para elas receberam os textos clássicos do budismo. O termo para
compaixão no budismo é karuna (क णा), uma palavra que possui
uma etimologia controversa, mas que de maneira geral pode ser
traduzida literalmente como “ação do vazio”, logo o mais elevado
ideal é o de deixar que o vazio atue naturalmente. Estritamente
nesse sentido clássico budista, o que a Doutora Nise fez com
relação a paciente foi ter compaixão (karuna).
Lembrando o ensinamento do prajnaparamita sutra de que “vazio
é forma e forma é vazio, vazio é vazio e forma é forma”, recordando
também que todos os fenômenos compostos são impermanentes,
pois dependem de uma série quase infinita de causas e condições
para que possam existir, logo, são vazios de existência intrínseca.
Jamyang Khyentse possui um exemplo interessante para ilustrar
esse fato: imagine que você está caminhando por um parque à noite
e vê um homem segurando um bastão de madeira, esse homem
amarra um pano à ponta desse bastão e depois o coloca em um
balde com combustível, após retirá-lo, ele usa um isqueiro para
acender o pano, ateando fogo a ele e, ato contínuo, começa a girá-
lo, produzindo um belo círculo de fogo. Se uma criança pequena
chegar nesse exato instante, desconhecendo o processo que você
presenciou, talvez ao ver o círculo de fogo ele imagine que ele
exista de maneira independente. Todavia, após presenciar todo o
processo que levou ao surgimento do círculo de fogo, você percebe
que, se faltar apenas uma das causas e condições, como, por
exemplo, a mão para girar o bastão ou o combustível, ele deixaria
de existir imediatamente. O conhecimento dessas causas e
condições cambiantes não nos impende de admirar o espetáculo,
mas o vemos como ele realmente é, uma ilusão. Essa lógica, da
impermanência e do vazio, se aplica a tudo, mesmo ao nosso corpo,
que devido a sua continuidade, função e consenso pensamos que
ele realmente existe. Todavia, nosso corpo muda constantemente, e
mesmo parecendo sólido, ele é composto de inúmeras partes, e
basta apenas uma delas deixar de funcionar para termos sérios
problemas.
Trazendo paralelos a nossa história inicial, do fazedor de chuva,
temos diversas histórias Zen muito interessantes. Um discípulo
perguntou a um mestre Zen “qual o significado do Dharma-Buda?”
ao que o mestre respondeu apontando para uma árvore próxima “o
ciprestre em frente”, o discípulo contrariado retrucou “não use uma
metáfora usando objetos concretos” ao que o mestre aquiesceu,
voltando à carga ele indagou novamente “O que é o Dharma-Buda?”
e obteve a mesma resposta, “o cipreste em frente”. Pensando no
vazio, que vazio é forma e forma é vazio, acreditar que o cipreste é
algo sólido e real na verdade é ignorância, pois como sendo
também o cipreste um fenômeno composto, dependente de
inúmeras causas e condições cambiantes para a sua existência, ele
é vazio de realidade intrínseca, ele é Maya. Logo, ao apontar para o
ciprestre, o mestre enxergava para além dele e apontou para o
vazio. Além disso, não podemos conhecer a verdadeira natureza do
cipreste, mas apenas a maneira como ele se apresenta a nós, logo
ele depende de nossos sentidos e da maneira como ele é psificado,
ou seja, temos do cipreste uma imagem psíquica. Era justamente a
esse fenômeno que os budistas chamavam de véu de Maya, pois a
deusa continuamente tece o mundo em que vivemos como imagens
cambiantes da alma. Para os budistas tudo é projeção, não
existindo realidade material, em termos psicológicos, nós
projetamos sobre os objetos nossos conteúdos inconscientes como
uma maneira de conhecer tantos os objetos quanto a esses
conteúdos, e ambos possuem realidade relativa.
É preciso também destacar que, essa é uma característica
particular do budismo Mahayana (महायान). No início do budismo,
com a compreensão do Hinayana (हीनयान), o pequeno veículo, Buda
nunca era representado, normalmente ele era retratado por meios
indiretos, como pegadas, ou sandálias deixadas para trás, ou
mesmo um assento vazio, pois Buda, o desperto, ao vencer Kama-
Mara, venceu a ilusão do eu e a deixou para trás, logo ele era
aquele que “não veio e nem se foi”. Todavia, a compreensão
Mahayana de que não há diferença entre iluminação e ignorância,
samsara e nirvana, e a noção do Bhodysatva como aquele que
“participa alegremente das tristezas do mundo” passou a encarar
toda a criação como uma manifestação da natureza búdica original,
logo, toda a natureza, e qualquer objeto, por mais ordinário que
seja, é Buda, é um veículo para a transcendência, e pode ser visto
dessa maneira quando nossa percepção encontra-se para além dos
pares de opostos de medo e desejo, o que permite repousar em sua
natureza original e perceber a pura radiância que emana de tudo.
Campbell exemplifica isso com uma bela oração Hindu:
Bhrama é a energia da consciência viva, cósmica e universal
da qual somos todos manifestações, Bhrama é o sacrifício,
Bhrama é a comida que estamos ingerindo, Bhrama é o
consumidor do sacrifício, Bhrama é a escada que leva o
sacrifício ao fogo, Bhrama é o processo do sacrifício, todo
aquele que é capaz de contemplar Bhrama em todas as
coisas está prestes a realizar Bhrama em si mesmo.
(CAMPBELL, 2003, p.2003).
Em outra história Zen, a natureza do vazio é exposta por meio da
vacuidade de nosso próprio corpo, que também é um fenômeno
composto, logo impermanente e vazio de realidade intrínseca.
Houve uma vez, uma bela monja chamada Uptala, um homem se
apaixonou perdidamente por ela e passou a persegui-la. Apesar de
tentar evitá-lo, o homem era muito persistente e não dava a menor
trégua. Um dia ela foi até ele e o confrontou, mesmo aturdido ele
explicou que adorava os olhos dela, sem hesitar ela arrancou os
próprios olhos e entregou a ele. Uma das causas da paixão desse
homem por Uptala eram seus belos olhos, sem eles o fenômeno
perdia uma de suas causas e deixava de existir, é claro que o ato
drástico gerou nele choque e horror, mas passado o espanto inicial
ele se tornou discípulo da monja. Essa historieta mostra de maneira
dramática e chocante uma realidade que é fundamental ao budismo
e que é uma das verdades que mais ferrenhamente evitamos, nosso
corpo, como fenômeno composto, também é alvo da
impermanência. Nosso corpo muda constantemente, de maneiras
algumas vezes imperceptíveis. O processo de decadência se inicia
assim que nascemos, por isso, para o budismo todos estamos no
estado paradoxal de estarmos vivos e mortos ao mesmo tempo.
Em outro exemplo, não tão chocante, Shigong perguntou a
Xitang Zhicang se era possível agarrar o vazio, ao que ele
respondeu afirmativamente. Shigong então o desafio a fazê-lo, em
resposta Xitang Zhicang agarrou o espaço vazio a sua frente.
Shigong retrucou que ele não havia agarrado nada, irritado este
disse “então como você faria?” imediatamente Shigong agarrou o
nariz dele com força. Novamente nos deparamos com o
ensinamento do sutra do coração da sabedoria de que “o vazio é
forma e forma é vazio”, exemplificado de maneira divertida.
Noutra história interessante, a natureza da vacuidade e da
impermanência de nosso próprio corpo (que é um fenômeno
composto) surge com uma rara plasticidade. O mestre Zen Juzhi,
sempre que era questionado sobre o que era o Dharma-Buda,
mostrava o polegar e dizia “isto”. Várias pessoas atingiram a
iluminação através desse gesto de Juzhi, seu jovem discípulo
observou o mestre fazer isso inúmeras vezes, e quando ele não
estava por perto, ao ser indagado pelas pessoas que buscavam
Juzhi sobre o Dharma-Buda ele repetia o mesmo gesto com igual
resultado. Impressionado consigo mesmo ele foi procurar seu
professor e lhe disse “mestre, as pessoas perguntam sobre o
Dharma, e como o senhor ergo o meu dedo em resposta” enfurecido
o mestre gritou “você age como papagaio! isso não é Zen” e
bruscamente lhe cortou o polegar. Ainda em choque com a violência
do mestre, o discípulo o ouviu indagar “o que é o Dharma-Buda”, por
reflexo ele tentou erguer o dedo inexistente, ao mesmo tempo em
que seu mestre fez o mesmo gesto com o polegar. Quando o jovem
monge contemplou seu dedo cortado subitamente atingiu a
iluminação.
O ensinamento da vacuidade não se aplica apenas as coisas
sólidas. Nossas ideias, valores, ideologias, moral, e hábitos todos
são igualmente fenômenos compostos, impermanentes, e
dependentes de uma miríade de causas e condições cambiantes
que em larga medida desconhecemos e sobre as quais não temos
nenhum controle. Há uma história Zen famosa que ilustra a natureza
de vacuidade de nossos conceitos. Um dia, quando o monge Zen
Tanzan e um jovem monge estavam viajando, eles encontraram
uma bela jovem em apuros a beira de um rio. Tanzan imediatamente
se prontificou a ajudá-la a atravessar o rio, colocou-a nos braços e a
levou até a outra margem. Quase um dia de viagem depois o jovem
monge exclamou “pensei que nós monges devíamos evitar as
mulheres, por que fez aquilo?” ao que Tanzan replicou “Você se
refere à mulher lá atrás? eu a coloquei no chão há muito tempo.
ainda a está carregando?”.
Em outro exemplo clássico, típico da tradição Mahayana, para
quem o nirvana “a extinção do fogo tríplice do Desejo, da
Hostilidade e da ilusão” é na realidade a superação da ilusão da
diferenciação dualística da distinção entre nirvana e samsara, ilusão
e ignorância, é o exemplo da cobra e da gravata. Dzongsar
Jamyang Khyentse o ilustra da seguinte maneira:
Digamos que há um homem medroso chamado João, que
tem fobia de cobra. Ele entra num quarto mal iluminado, vê
uma cobra enrolada num canto e entra em pânico. Na
verdade ele está olhando para uma gravata listrada Giorgio
Armani, mas, em seu terror, interpreta mal o que vê, a ponto
de quase morrer de medo - morte causada por uma cobra que
não existe de verdade. Enquanto ele estiver sob a impressão
de que se trata de cobra, a dor e a ansiedade que ele
vivencia corresponde ao que os budistas chamam de
samsara, que é uma espécie de armadilha mental. Para a
sorte de João, sua amiga Maria entra no quarto. Maria é
calma e equilibrada, e sabe que João imagina estar vendo
uma cobra. Ela pode acender a luz e explicar que não há
cobra nenhuma, que se trata, na realidade, de uma gravata.
Quando João se convence de que de que não correu risco,
seu alívio é justamente o que os budistas chamam de
“nivarna” - libertação. Todavia, o alívio de João tem por base a
falácia de que o mal está sendo afastado, embora a cobra
não existisse nem nunca tenha existido nada que pudesse ter
feito João sofrer.
Vivemos num mundo marcadamente materialista, a realidade
supostamente objetiva da matéria reina suprema em nossa visão de
mundo, e a realidade da alma é relegada, tida como mera
fantasmagoria ou efeito de segunda categoria, epifenômeno de
causas físicas e materiais. O amor e toda sorte de sentimento é
reduzido a algum quimismo cerebral, “algo de saboroso” que existe
em nossos cérebros como disse certa vez Jung. Todavia, na visão
Budista, “qualquer coisa percebida pela mente, não existia antes de
ser assim percebida; essa coisa depende da mente. Ela não existe
de modo independente; portanto, não existe verdadeiramente”, as
coisas que percebemos existem em certa medida, mas são
encaradas como Maya, ilusão. Em larga medida, o exemplo ilustra
um fenômeno psicológico que Jung denominou de “realidade
psíquica”, para resumir, ele dizia de maneira sucinta “é real aquilo
que atua”, enquanto João estava convencido de estar em apuros
com a cobra, essa ilusão agiu tal e qual uma cobra real, seu
sofrimento e medo foi idêntico ao que ele sentiria diante de uma
cobra “real” de carne e osso. Obviamente, na filosofia Budista, há
uma sutil inflexão, mesmo a cobra de carne é osso é real “apenas
em certa medida”, ele é um fenômeno composto, logo
impermanente, e assim como os demais fenômenos, exatamente
como a cobra de João, depende da mente para existir.
No Budismo, temos o exato oposto da posição ocidental
extrovertida, ao fato psíquico é dado um caráter de realidade
absoluta, pois apenas a natureza de Buda é real, porque não
depende de nenhuma causa ou condição para existir. No ocidente,
em geral, concedemos esse caráter de realidade absoluta à matéria
e ao mudo material, sendo a alma relegada ou a um epifenômeno,
ou a uma irrealidade fantástica. Jung compreende tanto o mundo
anímico, quanto o material como possuidores de uma realidade
relativa, pois tanto a matéria quanto o inconsciente nos são
completamente desconhecidos e somente por vias indiretas temos
acesso a eles.
Joseph Campbell, em seu O Herói de Mil Faces, refere ao
caminho Mahayana:
O Bodisatva, todavia, não abandona a vida. Voltando os olhos
da esfera interna da verdade que transcende o pensamento
(que só pode ser descrita como ‘vazio’, já que ultrapassa a
palavra) para observar mais uma vez o mundo fenomênico,
ele percebe, fora de si, o mesmo oceano de existência que
encontrou no seu íntimo. ‘A forma é o vazio, o vazio é de fato
forma. O vazio não difere da forma, a forma não difere do
vazio. O que for forma é também o vazio; o que for vazio
também é forma. E o mesmo se aplica ao nome, à percepção,
e ao conhecimento’. Tendo ultrapassado as delusões do seu
antigo ego auto-afirmativo, auto defensivo e voltado para si
mesmo, ele conhece dentro e fora, a mesma tranquilidade.
Fora ele observa o aspecto visual do magnífico vazio que
transcende o pensamento, onde se encontram suas próprias
experiências do ego, da forma, das percepções, da palavra,
das concepções e do conhecimento. E ele fica cheio de
compaixão pelos seres auto-aterrorizados que vivem no temor
de seus próprios pesadelos. Ele se eleva, retorna ao seu meio
e habita entre eles como um centro desprovido de ego, por
meio do qual o princípio do vazio é manifesto em sua própria
simplicidade. E esse é seu grande ‘ato compassivo’; pois, por
meio dele, é revelada a verdade, segundo a qual, na
compreensão daquele em quem o Fogo Tríplice do Desejo,
da Hostilidade e da Ilusão se extinguiu, esse mundo é
Nirvana. ‘ondas de dádivas’ fluem desse ser para a libertação
de todos nós. ‘nossa vida nesse mundo é uma atividade do
próprio Nirvana, não existindo a mínima diferença entre este e
aquela’. (CAMPBELL, 2004, p.156).
No Tao Te King ( 道 德 經 ), que também foi traduzido para o
alemão por Richard Wilhelm, há inúmeras referências ao vazio. O
clássico taoísta se inicia anunciando o mesmo que Campbell
quando este afirma que a verdade que transcende o pensamento só
pode ser descrita como vazio, já que ultrapassa a palavra (lembre-
se que pensamento e linguagem são inextrincáveis), assim Lao Tze
( 老 子 ) afirma que “O Tao que pode ser pronunciado/não é o Tao
eterno/o nome que pode ser proferido não é o Nome eterno”. O Tao,
o princípio do céu e da terra é chamado nessa mesma passagem de
“não-ser”, e logo de início se instaura o mesmo paradoxo do
prajnaparamita sutra, pois ser e não-ser pela origem são uma coisa
só, que apenas difere no nome, e essa unidade é o “mistério dos
mistérios”. Em seguida, ele descreve a atitude do sábio em
consonância com o Tao,
Permanece na ação sem agir/ensina sem nada dizer/A todos
os seres que o procuram/ele não se nega/Ele cria, e ainda
assim nada tem/Age e não guarda coisa alguma/Realizada a
obra,/não se apega a ela [...]
O aspecto paradoxal transparece fortemente, pois o sábio ensina
sem nada dizer, e age sem agir. O que não significa que ele não
fale, o que fica claro no primeiro verso, pois permanece na ação
sem agir. Acontece que, estando em integridade com o Tao, ele age
e fala, mas sua ação e seu verbo emanam não apenas de um
arbítrio consciente, mas igualmente do princípio do céu e da terra. O
que significa, em termos psicológicos que esse não-ser é o princípio
do céu e da terra? Lembre-se, estimado leitor, de que a percepção
que Jung teve acerca de uma realidade psíquica, já era algo há
muito percebido na China, e estava claro, em virtude dos métodos
de yoga taoísta, que nosso mundo imediato é formado de imagens
psíquicas, que emanam de uma fonte misteriosa e insondável, que
hodiernamente chamamos de inconsciente. Que existe uma
estrutura do mundo, ou da maneira como ele é percebido
psiquicamente, que é uma forma vazia e atemporal, nosso mundo
imediato é a nossa alma, que brota do não-ser e, os taoístas
estavam convencidos da unidade entre matéria e psique, e toda a
civilização chinesa baseou sua vida espiritual não no princípio da
causalidade, como os gregos, mas na sincronicidade. Jung, ao se
referir a sua noção de arquétipos afirma,
Ao examinar cuidadosamente todos esses dados, parece-nos
provável que um arquétipo em estado de repouso, não
projetado, não possui forma determinável, mas constitui uma
estrutura formalmente indefinida, mas com a possibilidade de
manifestar-se em formas determinadas, através da projeção.
(JUNG, 2003, p.81).
Na quinta estrofe, Lao Tze se refere diretamente ao vazio, ao
comparar o espaço entre o céu e a terra a uma flauta, pois a flauta é
“vazia, ainda assim inexaurível;/soprada, mais e mais sons produz”.
Graças ao seu vazio, a flauta pode produzir sons de maneira
inexaurível, e nisso se compara ao espaço entre o céu e a terra. O
ideograma para vazio ( 空 ) também significa céu, e para além do
contexto filosófico e religioso é uma palavra bastante corriqueira.
Em uma passagem que julguei particularmente misteriosa quando li
o Tao Te King pela primeira vez a mais ou menos 26 anos, o sábio
chinês faz uma referência críptica ao vazio ao tratar do espírito do
vale,
O espírito do vale não morre nunca;/ele é a mulher
misteriosa/A porta da mulher misteriosa/é a raiz do céu e da
terra/ininterrupta, assim como perpétua,/ela age sem esforço.
O vale, bem como a porta, existem por não existirem. Um vale é
um espaço vazio, assim como uma porta é um vazio, logo, assim
como a flauta que é inexaurível o espírito do vale é ininterrupta e
perpétua. O fato desse espírito ser feminino foi sempre para mim um
enigma insolúvel. Eu li o Tao Te King pela primeira vez aos 14 anos,
e só o entendi aos 21 anos quando comecei a ler Jung. Ao tratar do
arquétipo do feminino, Jung se refere a uma de suas principais
qualidades justamente como sendo o vazio.
Mas, afinal, o vazio é um grande segredo feminino, é o
absolutamente estranho ao homem, o oco, o outro abismal, o
yin. Infelizmente essa mulher que suscita compaixão (eu falo
aqui como homem) é – quase eu diria assim – o mistério
poderoso da inacessibilidade do feminino. Uma tal mulher é
pura e simplesmente destino. (JUNG, 2003, p.106).
Na mitologia indígena brasileira, Betty Mindlin narra em seu
Moqueca de Marido: Mitos Eróticos Indígenas, o aparecimento de
vasos para cozinhar quando uma velha diz ao genro que coloque a
comida em sua vagina enquanto ela fica de cabeça para baixo sobre
o fogo. Ainda no livro chinês, em seu verso XI,
Trinta raios cercam o eixo:/a utilidade do carro consiste em
seu nada/Escava-se a argila para modelar vasos:/a utilidade
dos vasos está em seu nada/Abrem-se portas e janelas para
que haja um quarto:/a utilidade do quarto está no seu nada/
Por isso o que existe serve para ser possuído/ e o que não
existe, para ser útil.
Na nossa história do fazer de chuva de Schantung, O que ele
fez? Absolutamente nada, pois ninguém tem o poder de fazer
chover, ao mesmo tempo, ele foi afetado pelo desequilíbrio do
ambiente a sua volta, e quando o seu equilíbrio retornou, aquilo o
que faltava e causava desequilíbrio retornou. Ele faz o que os
chineses chamavam de Wu Wei ( 無 為 ), o hanzi 無 é um outro
ideograma para vazio, em chinês ele tem tanto o significado de não,
quanto o de vazio, em japonês o significado de vazio tem maior
privilégio e nos dois idiomas ele se pronuncia mais ou menos como
“mu”. Tanto que há uma historieta curiosa de que em chinês se pode
responder sim, não ou “mu”, como a negação da pergunta, e que
um monge perguntou a uma vaca se ela tinha a natureza de Buda
ao que ela respondeu “mu”, a história segue dizendo que se o tal
monge falasse chinês teria se iluminado na hora. O segundo
ideograma 為 tem em chinês os sentidos de agir, se comportar, se
tornar, servir etc. Logo, pode tanto ser traduzido como não-ação,
como quanto ação do vazio, o que se assemelha ao termo Karuna,
compaixão. A não-ação é quando o vazio age, ou no dizer de
Campbell, “a esfera interna da verdade que transcende o
pensamento”. Na não ação quem age é justamente esse espírito
feminino do vale, que é mistério dos mistérios, pois originalmente
ser e não-ser são a mesma coisa, diferindo apenas no nome. Aqui
deparamos com o mistério insondável da alma, que já havia sido
formulado na cultura indiana como Maya, a deusa que tece a ilusão
do mundo para nos enredar nele, mas que formulado
psicologicamente por Jung, significa o arquétipo da vida,
Um ser que tem alma é um ser vivo. Alma é o que vive no
homem, aquilo que vive por si só gera vida; por isso Deus
insuflou em Adão um sopro vivo a fim de que ele tivesse vida.
Com sua astucia e seu jogo de ilusões a alma seduz para a
vida a inércia da matéria que não quer viver. Ela (a alma)
convence-nos de coisas inacreditáveis para que a vida seja
vivida. A alma é cheia de ciladas e armadilhas para que o
homem tombe, caia por terra, nela se emaranhe e fique
preso, para que a vida seja vivida. (JUNG, 2003, p.32).
Assim, o coração de qualquer postura individual correta é
justamente o vazio, e a ação do vazio, pois esse estar no Tao, no
fluxo psíquico vivo, é justamente a integridade que é requerida para
que a inexaurível, ininterrupta e perpétua criatividade da fantasia
espontânea do inconsciente se manifeste. Não é à toa que o método
dialético é um fantasiar em conjunto, e é evidente que não se trata
de fantasias conscientes, mas da fantasia inconsciente, e quando
somos vazios nos tornamos como a flauta, pois de seu vazio
provém sua melodia inexaurível. Dessa maneira, da inexistência do
analista vem a sua utilidade, ou para usar outra feliz expressão de
Campbell, o coração da análise junguiana é tornar-se “transparente
ao transcendente”, ser capaz de expressar o Si-mesmo (Selbst) com
a sua ação, sendo assim, paradoxalmente, um movimento na
imobilidade. É impossível preconizar como deve ser o vazio,
justamente por ele ser o não-ser, apenas o ser serve para ser
possuído, com isso, abrem-se infinitas possibilidade individuais de
expressar vivamente esse mistério.
Que não se pense que estou aqui a inventar a roda, Jung em
1926 ao escrever um comentário ocidental a tradução de Richard
Wilhelm do livro de sabedora chinesa O Segredo Da Flor de Ouro, já
se expressava nesses termos e falava do vazio e da não ação ao
perceber que todos os grandes problemas da vida são insolúveis e
que assim devem ser, pois representam as polaridades necessárias
a um sistema auto-regulativo. A razão só tem a oferecer soluções
aparentes ou falsos compromissos, e apenas o aparecimento
espontâneo de uma terceira via, que leva a uma ampliação da
personalidade, e que representa a totalidade da personalidade de
uma maneira que a consciência jamais teria possibilidade de
imaginar, pode fazer com que o problema insolúvel perca a
urgência. Sem uma solução lógica para o problema, ele
simplesmente empalidece diante do novo e forte rumo. A
tempestade impetuosa de afetos que a neurose representava em
sua dilaceração entre os opostos na consciência não é reprimida
nem submerge no inconsciente, mas apenas surge sob uma nova
luz. Dessa maneira, a tempestade não é privada de sua realidade,
mas ao invés de estarmos nela, estamos acima dela. Ainda
sentimos a emoção que nos atormenta, mas nos é dada uma
consciência mais elevada que impede que nos identifiquemos com
os afetos. Tudo isso vem das fontes obscuras de dentro e de fora,
de maneira espontânea, por isso, no texto supracitado Jung afirma,
O que fizeram tais pessoas para levar a cabo esse processo
libertador? Na medida em que pude percebê-lo, elas nada
fizeram (Wu Wei), mas deixaram que as coisas
acontecessem, de acordo com o ensinamento do mestre LÜ
DSU. Assim, permitiram que a luz circulasse de acordo com a
sua própria lei, sem abandonarem sua ocupação habitual [..] a
ação na não ação foi, para mim, uma chave que abriu a porta
para entrar no caminho: Devemos deixar as coisas
acontecerem psiquicamente. Eis uma arte que muita gente
desconhece. É que muitas pessoas parecem estar querendo
ajudar, corrigindo e negando, sem permitir que o processo
psíquico se cumpra calmamente. (JUNG, 1998, p.33).
Obviamente, esse abrir-se ao irracional não significa que a
consciência não tem responsabilidade, é justamente o exato oposto
disso, pois apenas quando a consciência deu tudo de si é que o
inconsciente pode se manifestar com a espontaneidade salvífica do
Si-mesmo. Como artista marcial, acostumado a treinar até a
exaustão, e lutar sem pensar depois de repetir as técnicas muitas e
muitas vezes, o aspecto prático do vazio me parece claro. Nas artes
marciais fala-se no vazio mesmo na aplicação das técnicas, naquele
momento preciso que não é lá nem cá, nem acima nem abaixo em
que a técnica pode ser executada sem nenhum esforço, como se o
adversário sequer tivesse peso. Nas artes marciais, o peso de sua
vida vai em cada um dos golpes de espada, cada gesto significa
vida ou morte, é preciso que a consciência esteja agudamente
atenta ao momento presente, sem qualquer distração seja com
passado ou futuro, medo ou desejo, sem se distrair com qualquer
expectativa para que a não-mente ( 無 心 ) se manifeste. Esse
conceito japonês pode ser traduzido literalmente como coração
vazio, exatamente como é chamado o estado que antecede a
iluminação taoista. Não se trata aqui, estimado leitor, de uma tolice
new age como a tão propagada mindfullness, que nada tem a ver
com o conceito budista de atenção-plena, mas de estar plenamente
presente, e ao mesmo tempo, vazio.
Para Jung, somente uma coisa tem o poder de cura em análise,
a manifestação arquetípica numinosa, e nenhum analista tem o
poder de provocá-la, mas com esforço, podemos ter integridade o
bastante para ao sermos afetados pelo desequilíbrio do paciente,
voltarmos ao nosso equilíbrio e com isso expressar vivamente a
verdade que transcende as palavras, assim, talvez chova.
É preciso que fique claro que não estou trocando o ponto de vista
ocidental pelo oriental, isso é apenas tolice e loucura. Não se trata
disso. Os dois pontos de vistas são igualmente válidos apesar de
opostos. Não se trata de supervalorizar o inconsciente e desprezar a
consciência, isso seria apenas sinal de enantiodromia e falta de
espírito crítico, como afirmou von Franz,
A tendência da tradição taoísta é enfatizar o valor do
inconsciente em oposição ao da consciência. Penso que é
certa a sua contra-ênfase aos nossos mitos de um Deus que
fabrica o mundo a partir de matéria inerte, e reflete
naturalmente os aspectos questionáveis de nossa civilização
com sua exagerada valorização do fazer, da tecnologia, da
consciência. (FRANZ, 2003, p.137).
O problema de nossa atitude é o exagero, e de nada adianta
simplesmente trocar um exagero pelo outro, uma unilateralidade
pela outra, e pior, por algo que simplesmente tomamos de
empréstimo sem que exista em nós um enraizamento histórico e
cultural para tanto. Ao nos fantasiarmos de taoístas, apenas nos
alienamos de nossas raízes. Aquilo de que essa filosofia ajuda a
nos aproximarmos, ao percebermos nossos aspectos questionáveis,
é o fluxo vivo do psiquismo do qual Odin bebeu, existente em todos
não importa se nórdico ou chinês.
Por certo, essa discussão gera mais perguntas do que respostas.
Visto não ser, ela mesma, uma resposta para as muitas agruras da
clínica individual. Certa feita, enquanto esboçava essas ideias aos
meus alunos de graduação, sobre a postura do analista, diante
dessas estonteantes possibilidades de posturas individuais
possíveis, um dos meus alunos me fez uma pergunta singela,
porém, perspicaz. Ele me perguntou “então qualquer um pode ser
um analista?”, minha primeira reação foi a mais óbvia, responder
não, porém, de maneira espontânea e sem que eu procurasse outra
resposta, algo muito mais sofisticado me foi dado, e recordei do
filme Ratatouille dos estúdios Disney. Da crítica final do antipático
personagem Anton Ego. Imediatamente falei do filme para os meus
alunos e vi seus rostos se iluminarem ao compreenderem a singela
e verdadeira resposta. Transcrevo as palavras do personagem Ego,
No passado eu não fazia segredo quanto ao meu desdenho
pelo famoso lema do Chef Gusteau: “qualquer um pode
cozinhar”. Mas eu percebo que só agora, compreendo
realmente o que ele queria dizer. Nem todos podem se tornar
grandes artistas, mas um grande artista pode vir de qualquer
lugar.
Não há resposta mais acertada do que esta para a pergunta do
meu aluno. Quando eu preconizo que há apenas uma postura
correta para se atuar na clínica isso significa que qualquer um e
ninguém pode ser um grande analista. Qualquer um que sacrifique
ao máximo a sua individualidade para se adequar aos parâmetros
estabelecidos de como um analista deve agir pode ser um analista.
Nesse caso, isso, porém, o priva da única coisa que o autoriza e
permite atuar utilizando um método dialético: sua personalidade.
Além disso, ninguém, excetuado talvez a pessoa terrivelmente
individualista que colocou suas inclinações no lugar de norma,
corresponde a essa norma. Precisamos sempre ter em mente que o
paradoxo fundamental da Psicologia é o de que “o individual não
importa perante o genérico, e o genérico não importa perante o
individual”, estabelecer uma norma de atuação retira desse
paradoxo a importância do individual. Evidentemente, no que
concerne aos aspectos genéricos, podem se estabelecer algumas
normas, digamos, genéricas, mas nunca mais do que isso. Como eu
coloquei tanto nessa obra, quanto em meu outro livro introdutório,
no máximo podemos falar em algumas “regras operacionais”, que
sozinhas, sem levar em conta a individualidade, valem muito pouco
ou nada.
Precisamos sempre que recordar de que um procedimento
analítico é todo aquele se confronta com a existência do
inconsciente, e que todo procedimento baseado em sugestão ignora
a existência de um inconsciente. Somente levando em conta esse
fator irracional, existencial, inalienável é que podemos compreender
vivamente a história de Wilhelm sobre o fazedor de chuva chinês.
De alguma maneira, tudo o que trato aqui também está relacionado
à famosa e acertada frase do velho Freud de que as três coisas
mais importantes são impossíveis: governar, ensinar e psicanalisar.
Como toda afirmação psicológica só é verdadeira se eu puder
afirmar seu oposto, então é possível fazer essas três coisas. Aqui
estamos diante do mesmo paradoxo do fazedor de chuva. De uma
maneira puramente consciente, partindo exclusivamente da
vontade, é impossível governar, ensinar e psicanalisar. Uma parte
considerável do Tao Te King é dedicada, por exemplo, a arte de
governar. A única maneira em que nossas limitações individuais
podem ser superadas e essas tarefas impossíveis serem
executadas é quando estamos em acordo com a totalidade de
nossa personalidade. Como a flauta, que devido ao seu vazio, pode
ser soprada e produzir intermináveis melodias.
Basta recordar do meu exemplo sobre o desenho animado, ao
ser indagado a minha resposta era incompleta e insatisfatória,
porém não era incorreta: simplesmente dizer não. Porém, a
totalidade de minha personalidade, aquele vazio, a esfera interna da
verdade que transcende o pensamento, sem que eu desejasse ou
procurasse, me deu uma resposta mais verdadeira, humana, e
completa, porque ambígua, justamente oriunda da arte. Nesse dia,
graças ao mistério que reside em mim, e que Jung denominou
acertadamente de inconsciente, eu fui bem sucedido em ensinar.
Algo que nenhum homem mortal pode fazer sem a ajuda de sua
musa imortal. O mesmo se dá na clínica, curiosamente, já estive
envolvido nas três missões impossíveis a que Freud se refere com
acerto.
Isso me leva ao segundo problema que desejo tratar aqui, pois é
preciso estar atento tanto ao que diz o paciente, quanto àquilo que é
constelado pelos estímulos verbais que vêm dele (como no teste de
associação de palavras). Se eu não estivesse atento a minha
fantasia espontânea durante a aula, jamais teria dado a resposta
que dei e meus alunos teriam que se contentar com um simples
“não”. Em termos mitológicos, temos essa postura simbolizada na
figura do caolho Odin. Não é ocioso recordar que, figuras míticas
correspondem a vivências interiores, tendo sido originalmente
produzidas por estas últimas. Por isso, ao falar da aventura de Odin
para beber da água da sabedoria, e de como ele deixa um de seus
olhos para sempre mergulhado nessas águas, estou falando da
postura do analista (ou do professor, do artista e do governante).
Como meu objetivo aqui é muito específico, estimado leitor, minha
interpretação será um pouco mais breve do que a maneira que foi
preconizada por Jung. Curiosamente, só agora me dei conta de que
Odin era um poeta, professor e governante, além de um mago45 e
adivinho. Infelizmente devido aos exageros e tolices dos
“junguianos” a metáfora do mago para o analista se tornou um tanto
cafona, de qualquer sorte, isso pode ficar claro de uma maneira não
cafona ao ser ler o maravilhoso livro de M. L. von Franz Jung: Seu
Mito Em Nossa Época.
De acordo com as lendas nórdicas que sobreviveram depois da
era viking, após a cristianização dos nórdicos, Odin viajou a
Jotunheim, a perigosa terra dos gigantes, para ir até as raízes da
árvore do mundo onde borbulhava a fonte da sabedoria guardada
por Mimir. Após grandes perigos, o andarilho cinzento chegou à
fonte e pediu a Mimir para beber das águas usando o chifre que o
próprio guardião da sabedoria utilizava chamado de Gjallerhorn.
Mimir se recusou, Odin retrucou que eles eram parentes, a mãe de
Odin, Bestla era irmã do sábio Mimir, mas para ele isso não foi o
bastante. O preço pelas águas da sabedoria era um dos olhos de
Odin. Depois de tantos perigos para chegar à fonte, ele pediu uma
faca a seu tio e arrancou seu olho. Mimir recebeu o olho e o
depositou nas águas da fonte, onde ele permanece preservado
pelas propriedades mágicas da água. Foi permitido a Odin
mergulhar o chifre Gjallerhorn nas águas da sabedoria e beber.
Depois disso ele passou a ser conhecido por vários nomes como
Blindr, o deus cego; Hoarr, o caolho; Baleyg, o de olho flamejante. E
assim Odin adquiriu imensa sabedoria (Gaiman, 2017).
No que concerne ao aspecto mais superficial desse conto, fica
evidente que a sabedoria advém de uma perigosa jornada, e que o
preço a se pagar por ela é extremamente elevado. Normalmente eu
deixaria essa superficialidade de lado, por ser auto evidente, porém,
ainda há, especialmente entre os “junguianos”, quem ache que o
inconsciente é um poço dos desejos, que oferece suas águas
gratuitamente, sem nenhum custo ou nenhum perigo. Um dos
perigos mais evidentes deste tipo de sabedoria é a loucura. Como
certa vez afirmou Campbell – que certamente bebeu da mesma
fonte que Odin – as águas onde o místico nada são as mesmas em
que o louco se afoga. Um dos aspectos do mito é pedagógico, que
essa lição seja aprendida sem demora, quem não estiver disposto a
grandes sacrifícios não deve buscar a sabedoria.
Mimir significa memória, e o que já denota, em certo sentido, o
caráter metafórico da história, ou, ao menos, sua conexão psíquica
a uma vivência interior. A inteligência e o pensamento possuem uma
conexão com a memória, para Jung o pensamento é o processo de
comparação e diferenciação com o auxílio da memória. Em povos
sem escrita a memória possui o aspecto fundamental de guardar a
tradição, e vale ressaltar que Mimir era conselheiro de reis, ele foi
enviado por Odin para ser o conselheiro de Hoenir o novo líder dos
deuses vanir.
Reis são Nobres locais que guardavam fórmulas não-escritas
(dikai) consagradas pela tradição como normativas da vida
pública e social. Estes senhores, por seu poderio e riqueza,
detinham a autoridade de dirimir litígios e querelas, mediante
a aplicação das fórmulas corretas, i.e., itheíeisi díkeisin (v.86),
cujo conhecimento e conservação era privilégio deles. A
palavra Díke, que em grego veio a significar “Justiça”, é
cognata do verbo latino dico, dicere (= dizer), e designava
primitivamente estas fórmulas préjurídicas. Os reis, portanto,
dependiam do patrocínio da Memória, para preservarem as
Díkai, do deus Zeus, para poder aplicá-las em cada caso, e
do das Musas, para que esta aplicação fosse eficiente e bem
sucedida, se não também para os fins anteriores.
(TORRANO, 2006, p.35).
A sabedoria, na forma de pensamento, memória e tradição, está
bem expressa na figura de Mimir, pois sem as musas e a
autorização de Zeus, no exemplo da citação, não se pode governar.
Mas a sabedoria não vem diretamente de Mimir, ele é apenas o
intermediário, aquele que a guarda, para se chegar à sabedoria é
preciso passar por ele, mas a fonte da sabedoria não é a tradição,
ou a memória dos ancestrais, mas uma fonte anterior de onde
mesmo todas essas coisas brotaram e que, se a tradição se afastar
da fonte, perde seu vigor e vivacidade. Odin deseja beber dessa
fonte primordial, dessa esfera interna da verdade que transcende o
pensamento.
A fonte se localiza em Jotunheim, o reino dos gigantes, nas
raízes da árvore Ygdrasil. Os gigantes são identificados na mitologia
nórdica ao mal, e, de uma maneira geral, representam em termos
psicológicos afetos muito intensos que nos deixam fortes e
estúpidos como gigantes, justamente por esses afetos prejudicarem
o curso normal do pensamento. Os perigos talvez tenham a ver,
psicologicamente, com uma domesticação e humanização desses
afetos representados pelos gigantes. Poderíamos imaginar,
psicologicamente, que a perigosa viagem à terra dos gigantes tenha
o mesmo significado de uma katábasis, uma descida aos infernos.
Em sentido psicológico, uma regressão da libido em direção ao
inconsciente, entendido simultaneamente como perigoso e salvífico.
Fica evidente a relação da água da fonte com o inconsciente,
como Jung gostava de dizer, a água é o símbolo favorito do
inconsciente. Por certo, essa é uma afirmação demasiado vaga,
entretanto é o suficiente para o que me proponho aqui. O que dá
uma inflexão mais individual a minha afirmação tão genérica acerca
da água, é que ela brota das raízes da árvore do mundo.
Curiosamente, em japonês a palavra para livro é “hon” que se
escreve com o mesmo kanji de raiz (本), pois na cultura japonesa o
livro é visto como a “raiz do conhecimento”, talvez a fonte da
sabedoria nas raízes do freixo do mundo corresponda à mesma
metáfora. De qualquer sorte, trata-se de uma água que brota das
raízes de uma árvore e não de qualquer árvore, mas do eixo do
mundo. Von Franz analisa o simbolismo da árvore em seu texto do
O Homem E Seus Símbolos, em geral a árvore simboliza essa vida
vegetativa em nós, aquilo que cresce espontaneamente, sem a
intervenção da vontade, podendo representar o aspecto puramente
inconsciente da individuação enquanto potencialidade vital e
equilibração psíquica. A fonte da sabedoria brota dessa raiz
espontânea, mas o aproximar-se dela requer que a consciência
esteja disposta a se aproximar, enfrentando inúmeros perigos, e
sacrificando seu prestígio, orgulho e até mesmo, algo de seu próprio
corpo.
O chifre Gjallerhorn tem obviamente caráter materno, trata-se de
um símbolo de feminilidade e maternidade por receber, conter e
conservar. Aqui, porém, ele está despido do elemento pessoal e
surge como um objeto, por isso não representa a entidade humana
da mulher ou da mãe, mas sim uma ideia, uma imagem original.
Emma Jung, ao tratar desse tema, da taça, alude à lenda cita
mencionada por Heródoto, pois diante do ancestral do povo cita,
Targilau estavam seus três filhos quando caíram do céu quatro
objetos: um arado, uma canga, um machado e uma taça. Seu filho
mais novo conseguiu pegá-los e foi aclamado como rei. Esses
objetos, que são trazidos pelo portador da cultura, tem caráter
numinoso. Não é preciso grande esforço – especialmente depois da
discussão sobre o vazio – para perceber que o recipiente é tido
como conservador ou doador de vida. Há um recipiente maravilhoso
em quase todas as mitologias, ora ele proporciona juventude e vida,
ora é curativo ou está imantado de inspiração e sabedoria,
sobretudo ele provoca transformação. No Tipos, Jung fala da
formação do símbolo, justamente como esse vaso que permite a
consciência ter acesso ao inconsciente, vaso esse que adquire
contornos femininos na figura da Anima. Odin precisa do recipiente
para conter a água da sabedoria, além de poder tomar apenas o
conteúdo do chifre, seu olho, porém, permanece para sempre
mergulhado nas águas mágicas. Sobre o simbolismo da taça, Jung
o discute em profundidade em seu Símbolos da Transformação, e
Emma Jung em seu livro formidável A Lenda do Graal.
Para a finalidade desse texto, a imagem do olho repousando
eternamente nas águas da sabedoria é o tema central do mito. Não
que os demais não sejam importantes, inclusive para se
compreender o olho, mas no que tange ao método proposto por
Jung ele adquire esse caráter de importância e centralidade. De
acordo com von Franz, o olho surge como um símbolo do
conhecimento. É perfeitamente normal e esperado que estejamos
sempre envoltos em uma névoa espessa de nossas próprias
projeções, e que tenhamos a maior dificuldade em nos desfazer
delas, basicamente por dois motivos. A projeção é diferente do erro
de julgamento consciente, por ser um fenômeno inconsciente e
automático, ela adquire um caráter apriorístico de certeza que
resiste a toda tentativa de correção. Por outro lado, a reflexão e o
reconhecimento da projeção, que nos permite ter um verdadeiro
conhecimento, é um processo penoso, e nosso orgulho é duramente
ferido ao se perceber como agimos tolamente com base em um
mero preconceito afetivo e do tempo enorme despendido nessa
situação. Muitas vezes, a exigência de prestígio do complexo do eu
impede uma reflexão e o surgimento de uma melhor compreensão.
Devido a esse orgulho, o tempo para que a projeção seja recolhida,
não depende tanto da consciência, que resiste a isso, mas de um
impulso interior a uma maior consciência e espiritualização,
depende do Si-Mesmo (Selbst). Como em nosso mito, Odin no
primeiro momento procura obter a sabedoria ao invocar o prestígio,
seu parentesco com o sábio Mimir, mas ele rejeita essa investida e
exige que Odin sacrifique seu olho. O orgulho do eu, e sua
necessidade de prestígio de nada valem diante da verdadeira
sabedoria46, não é ociosa a insistência Taoísta na preponderância
do inconsciente.
Aquilo que Jung denominou de Selbst muitas vezes é
representado como um olho interior do autoconhecimento, que nos
transmite uma imagem objetiva diferente da percepção do eu.
Paracelso chamava essa possibilidade de um conhecimento objetivo
oriundo do inconsciente de “luz da natureza”, enquanto outros
alquimistas falavam em olhos de peixes reluzentes, ou com o olho
de Deus. De acordo com von Franz,
O olho divino, que parece nos observar de dentro e em cuja
visão se localiza a única fonte de autoconhecimento não
dissimulada subjetivamente, é um motivo arquetípico
amplamente divulgado. Ele é descrito como um olho interior,
incorpóreo, envolto em luz, que é em si mesmo também luz.
Platão e muitos místicos cristãos denominaram-no como o
olho da alma, outros como o olho do conhecimento, da fé, da
intuição. (FRANZ, 1997, p.182).
Além de uma representação do Selbst, desse olho da verdade
interior, há uma inflexão específica na nossa história, pois Odin
retira um de seus olhos e o deposita na fonte, que também pode ser
compreendida como um símbolo impessoal do Si-Mesmo. Nesse
caso, porém, creio que está exposto de maneira metafórica uma
atitude específica de ligação com o centro do psiquismo, uma
espécie de atenção simultânea, pois um dos olhos de Odin lhe serve
para ver os objetos externos, enquanto o outro permanece vendo o
mundo sub especie aeternitates. Trata-se de uma postura intuitiva,
mas não exclusivamente intuitiva. O intuitivo se aliena do objeto e se
volta quase que inteiramente para a imagem eterna evocada em sua
alma pelo objeto. Uma postura puramente sensual seria o oposto
desta, o de desprezar a fantasia inconsciente em favor da realidade
dos objetos. Odin ainda tem um olho para se guiar no mundo das
coisas concretas, enquanto o outro está mergulhado na sabedoria.
Essa postura não despreza os objetos e nem tampouco a fantasia,
mas confere a ambos uma realidade relativa. Odin além de mago,
adivinho e poeta também era um grande viajante, professor,
guerreiro e governante. Como mago, adivinho e poeta, sua
percepção deve estar voltada para o mundo das imagens eternas do
inconsciente, para a sua própria alma e para o futuro que subtrai de
nós justamente o momento presente e a realidade concreta dos
objetos. Porém, como viajante, guerreiro e governante perder de
vista o momento presente pode ter resultados funestos. O caolho
Odin nos coloca diante do mesmo paradoxo taoísta da ação na não
ação, do vazio.
Pois ao mesmo tempo em que o médico deve estar atento ao
paciente, suas palavras e reações corporais espontâneas, também
precisa notar aquilo que é constelado em seu próprio inconsciente
de maneira irrefletida, deixando de lado a necessidade de prestígio
do complexo do eu, para que esse olho da alma, ou a luz da
natureza como preferia Paracelso, possa se manifestar vivamente.
Como no exemplo de Odin, há um sacrifício a ser feito, nenhum
prestígio, ou posição social, fama, relações familiares importa no
momento de se confrontar com o inconsciente, ou no momento em
que se está na posição de analista. Assim como Odin se feriu
voluntariamente, cabe ao médico abdicar de todo o seu saber,
autoridade e vontade de curar diante do fluxo vivo da alma do
paciente. Cada um de nós, que se dedica ao ofício de analista, teve
que fazer uma perigosa jornada a Jotunheim, poderíamos encarar
esse aspecto do mito, de uma maneira redutiva, como o nosso
processo de análise pessoal, bem como nosso desenvolvimento de
personalidade. Isso, porém não basta. Nossa análise nos fornece a
taça que iremos mergulhar na fonte, e a coragem para tomar da
lâmina e arrancar um de nossos olhos, mas essa decisão moral
cabe a cada um diante do sofrimento de que somos testemunha. Ao
beber da água da sabedoria Odin jamais foi o mesmo, ele retornou a
sua pátria transformado, ele ainda passou por outras duas
aventuras que lhe custaram sacrifícios, pois roubou dos gigantes os
hidromel da poesia e teve que se enforcar no freixo do mundo para
obter as runas e a magia.
Precisamos olhar para o paciente e para nós mesmos, para fora
e para dentro. Não há forma, e ao mesmo tempo há forma, pois
vazio é forma e forma é vazio e vazio é vazio e forma é forma.
Estamos diante de, ao menos, duas imensas imponderabilidades: o
paciente, e o nosso próprio inconsciente. Não temos controle sobre
esses dois imponderáveis. Tentar estabelecer qualquer controle é
mera vontade de poder e inflação. O que se pode fazer é se
confrontar vivamente tanto com o paciente quanto com nossas
vivencias interiores, com o sangue ainda gotejando de nossa órbita
vazia, e cientes de que, sozinhos, nos é impossível “psicanalisar”.
TIPOS PSICOLÓGICOS70
O intuito deste escrito é responder às perguntas: o que é um tipo
psicológico? E para que serve falar em tipos?
Jung nunca foi nem jamais pretendeu ser filósofo71 ou
racionalista, mas, reiteradas vezes, se declarou empirista e sempre
se utilizou do método empírico. Jung era um empirista72. Sobre os
tipos, ele declara uma vez mais o seu método e maneira pela qual
chegou a ele, como princípios obtidos a partir da observação da
totalidade dos fatos individuais. Não é algo a priori, mas “uma
descrição dedutiva de impressões conseguidas empiricamente”. A
teoria em Jung está incluída na fenomenologia, sendo preciso ter
claro que um método descritivo qualitativo não pode ser
sobrecarregado com pressupostos teóricos e filosóficos. Em cada
caso singular, cientificamente observado, deve-se considerar o
fenômeno anímico em sua totalidade. Ao tratarmos dos tipos, e do
método aqui aludido, é fundamental recordarmos que os conceitos
de Jung são empíricos, são conceitos experimentais que, no lugar
de ser uma invenção teórica, tem por único objetivo nomear um
grupo de fenômenos análogos e afins. Os tipos psicológicos
designam grupos fenomenológicos.
Devido à enorme complexidade dos fenômenos psíquicos, um
ponto de vista puramente fenomenológico é sem dúvida o
único possível e que promete êxito a longo prazo. “De onde”
vêm as coisas e o “o que” são constituem perguntas que no
campo da Psicologia suscitam tentativas de interpretação
inoportunas. (Jung, 2002, p.183).
O uso dessa terminologia, tipos, está associado ao método
empírico descritivo, como aludido há pouco. Em certo sentido, o
termo tipos diz respeito à possibilidade de classificação em virtude
de características similares observadas na descrição dos
fenômenos que a princípio parecem infinitamente multifacetados,
mas que guardam similaridades entre si.
O método tipológico se baseia na análise de uma grande
variedade de material empírico no qual as variações individuais se
anulam reciprocamente. Ao mesmo tempo, traços típicos surgem
com maior evidência, o que possibilita a construção de tipos ideais
que, logicamente, jamais ocorrem empiricamente em sua forma
pura. Os tipos são conceitos-limite, nomes bem definidos para
conjuntos de fatos psíquicos. O nome (conceito) não explica os fatos
psíquicos que ele denota. Não se trata de reproduzir na Psicologia o
preconceito geral de que o nome predetermina a natureza das
coisas. Conceitos não são palavras mágicas!
O termo tipos, em sentido lato, também se aplica aos materiais
psíquicos oriundos do inconsciente, como sonhos, visões, fantasias
e delírios. A observação permite que se reconheça certa
regularidade de tipos nos fenômenos, pois, existem tipos de
situações e tipos de figuras que se repetem frequentemente. Nesse
sentido, porém, como resultado do método empírico, o conceito de
tipo é intercambiado pelo de tema ou motivo para designar essas
repetições, da mesma maneira que no estudo comparado dos mitos,
pois a linguagem do mito é a mesma do sonho e do inconsciente.
O campo das manifestações psíquicas, provocadas por
processos inconscientes, é tão rico e múltiplo, que prefiro
descrever o fato observado e quando possível classificá-lo,
isto é, subordiná-lo a determinados tipos. Trata-se de um
método científico, empregado sempre que nos encontramos
diante de um material variado e ainda não organizado.
Podemos ter dúvidas quanto à utilidade e oportunidade das
categorias ou tipos de ordenamento empregados, mas não
quanto ao acerto do método. (Jung, 2002, p.183).
Os tipos, no sentido que estamos tratando aqui, não no de temas
ou motivos, mas no de tipos psicológicos são, assim como os temas
e motivos dos sonhos, fantasias, visões e delírios, repetições que se
observam no todo dos fenômenos individuais. Os tipos são uma
descrição dedutiva de impressões empíricas, ou seja, registram
essas recorrências típicas observadas ao se agruparem os
fenômenos. Paradoxalmente, em resposta à crítica de que
arquétipos não existem, Jung respondeu em nota de rodapé das
mais interessantes e elucidativas que eles não existem mesmo,
assim como na natureza não existe um sistema botânico, mas nem
por isso é possível negar a ocorrência e contínua repetição de
certas semelhanças morfológicas e funcionais nas plantas. Aqui,
como nota de advertência, é preciso dizer que tipos puros também
não existem e que os fatos reais se evidenciam em sua
individualidade, e o indivíduo é uma exceção e irregularidade
relativa. O que o caracteriza é o único e não o universal e o regular.
A realidade absoluta caracteriza-se pela irregularidade.
Ainda sobre o método empregado para definir os tipos por meio
da observação do material empírico, que é essencial para seu
entendimento, segue uma citação um tanto longa de Jung, todavia
necessária.
O único método que nos pode levar a resultados mais ou menos
seguros, no presente, é o método tipológico, utilizado por
Kretschmer com relação à constituição fisiológica, e que eu apliquei
à atitude psicológica. Em ambos os casos, o método se baseia em
uma grande quantidade de material empírico no qual as variações
individuais se anulam reciprocamente, em larga medida, enquanto
certos traços típicos fundamentais emergem com maior evidência,
dando-nos a possibilidade de construir um certo número de tipos
ideais. Naturalmente, jamais ocorrem, em realidade, sob sua forma
pura, mas sempre e unicamente como variações individuais do
princípio que rege o seu aparecimento, da mesma forma como os
cristais, em geral, são variantes individuais de um mesmo sistema.
A tipologia fisiológica procura, antes e acima de tudo determinar as
características exteriores graças às quais seja possível classificar os
indivíduos e investigar suas demais qualidades.
(...) A tipologia psicológica procede exatamente da mesma
maneira, mas seu ponto de partida, por assim dizer, não é
exterior, mas interior. Sua preocupação não é determinar as
características exteriores, mas descobrir os princípios íntimos
que governam as atitudes psicológicas genéricas. Enquanto a
tipologia fisiológica é obrigada a empregar, essencialmente,
métodos científicos para obter seus resultados, a natureza
invisível e imensurável dos processos psíquicos nos
constrange a empregar métodos derivados das ciências
humanas, ou, mais precisamente, à crítica analítica. Como já
tive ocasião de acentuar, não temos aqui uma diferença de
princípio, mas tão somente uma nuança, determinada pela
natureza diferente do ponto de partida. (Jung, 1986, p.43,
grifo meu).
Ao se falar em tipo, há de se ter clareza de que, juntamente com
as diferenças de psicologia individual, existe também uma diferença
de tipos. O grupo fenomenológico mais amplo diz respeito aos tipos
introvertido e extrovertido. Os últimos têm o seu destino mais
determinados pelos objetos de seu interesse e o dos primeiros mais
por seu interior. A relação entre sujeito e objeto é sempre uma
relação de adaptação que implica efeitos modificativos recíprocos.
Justamente essas modificações constituem a adaptação. É
fundamental perceber desde o início que, a par de um interesse
clínico prático, há um interesse epistêmico, em se pensar em tipos,
pois estamos todos naturalmente inclinados a entender tudo sob a
óptica de nosso tipo.
Ao falarmos em introversão e extroversão, nos reportamos a uma
dinâmica psicológica corretamente denominada por Goethe como
“sístole e diástole”, o que denota um processo cíclico em que os
dois movimentos existem e se alternam no caso harmonioso ideal.
Toda pessoa possui os dois mecanismos, e mesmo que a
adaptação leve à preponderância de um movimento sobre o outro,
no que concerne à atitude consciente, isso necessariamente
corresponderá a uma atitude compensatória inconsciente. “A todo
tipo mais declarado corresponde uma tendência especial a
compensar a unilateralidade do seu tipo”, tendência essa que tem
por objetivo a manutenção do equilíbrio psíquico. Em virtude dessa
compensação, aparecem tipos secundários. Todo indivíduo possui
os dois mecanismos, e apenas a relativa preponderância de um ou
de outro define o tipo.
O que, porém, é um tipo? Circunstâncias externas e disposições
internas, frequentemente, favorecem um dos mecanismos e
estorvam o outro. Com isso, temos a predominância de um dos
mecanismos. Quando essa situação se torna crônica, então surge
um tipo. Logo, um tipo é.
[...] uma atitude habitual onde predominará um dos
mecanismos, sem contudo poder suprimir totalmente o outro,
pois este faz parte necessária da atividade psíquica. Por isso
não pode ser haver um tipo puro no sentido de possuir
apenas um dos mecanismos (...) Uma atitude típica significa
sempre e tão-somente a predominância relativa de um dos
mecanismos. (Jung, 1991, p.22).
Um tipo é um modelo que reproduz de forma característica o
caráter de uma espécie ou de uma generalidade. Como aludi
anteriormente, ao tratar do método descritivo qualitativo, são como
princípios obtidos desde a observação da totalidade dos fatos
individuais. Trata-se de um conceito experimental, logo, oriundo da
experiência que designa grupos fenomenológicos. Um tipo é um
modelo característico de uma atitude.
Segundo Jung, atitude (Einstellung) é uma disposição da psique
de agir ou reagir em determinada direção. Ter atitude significa estar
pronto para algo determinado, ainda que seja algo inconsciente.
Sem atitude, é impossível uma apercepção ativa. No que concerne
ao problema dos tipos, isso explica em certa medida o aspecto
epistemológico com que se depara ao se tratar dos diversos tipos,
no sentido de como é possível conhecer. Uma atitude possui
sempre um ponto direcional seja ele consciente ou inconsciente. É
frequente haver duas atitudes: uma consciente e outra inconsciente.
É preciso ter sempre em mente a noção de que a consciência é um
processo momentâneo de adaptação, enquanto o inconsciente –
que é anterior, simultâneo e posterior à consciência – possui tudo
aquilo que foi esquecido e também os traços funcionais herdados,
bem como todas as fantasias que ainda não ultrapassaram a
intensidade liminar e que em condições favoráveis podem entrar no
campo da consciência. A consciência possui uma natureza
determinada e dirigida, que funciona pelo circuito da direção,
seleção e exclusão. Essas funções dirigidas exercem uma censura
sobre todo o material incompatível que cai no inconsciente. Isto tudo
e mais todas as percepções subliminares explicam a atitude
compensatória do inconsciente em relação à consciência. É de
crucial importância, para se compreender o problema dos tipos,
entender que os processos determinados e dirigidos da consciência
se tornam necessariamente unilaterais (einseitige). A classificação
tipológica não é uma classificação caracteriológica. É preciso
sublinhar a ideia de que a unilateralidade é uma característica
inevitável do processo dirigido, pois direção implica unilateralidade.
Por mais que isso possa parecer um inconveniente, é
absolutamente necessário para o processo consciente que a atitude
seja dirigida. A psique é um sistema autorregulador e, no
inconsciente, surge compensação que visa à regulação. Se a
consciência não fosse dirigida, todas as influências opostas do
inconsciente poderiam se manifestar livremente. Paradoxalmente,
por mais que exista uma homeostase psíquica, o sintoma é algo da
ordem da greve. Quando a reação reguladora compensatória do
inconsciente é reprimida, ela perde influência reguladora e passa a
ter efeito intensificador e acelerador no sentido do processo
consciente, o que leva Jung à seguinte constatação.
[...] a psique do homem civilizado não é mais um sistema
auto-regulador, mas pode ser comparado a um aparelho cujo
processo de regulagem automático da própria velocidade é
tão imperceptível, que pode desenvolver sua atividade a
ponto de danificar-se a si mesma, enquanto, por outro lado,
está sujeita às interferências arbitrárias de uma vontade
orientada unilateralmente. (Jung, 1986, p.11).
Das variadas atitudes possíveis encontradas na observação do
fenômeno vivo, Jung salienta quatro, são aquelas que se orientam
pelas quatro funções psicológicas básicas (vier psychische
Grundfunktionen): pensamento (Denken/Intellekt), sentimento
(Fühlen), intuição (Intuition) e sensação (Empfindung). Quando uma
dessas atitudes se torna habitual, pode-se falar em um tipo. Esses
tipos podem ser divididos, de acordo com a qualidade da função
psicológica, em duas classes: racionais/judicativos (pensamento e
sentimento) e irracionais/perceptivos73 (sensação e intuição). Os
tipos também podem ser classificados, de acordo com o movimento
dominante da libido, como introvertido ou extrovertido. Estes, que se
distinguem pelo movimento de sua libido, são chamados de tipos
gerais de atitude. Aqueles, que se caracterizam pelo fato do
indivíduo se orientar principalmente pela função mais diferenciada
nele, são chamados de tipos funcionais.
De acordo com Jung, a introversão expressa uma relação
negativa entre sujeito e objeto. Na introversão, há um movimento do
interesse que sai do objeto e se volta para o sujeito e seus próprios
processos psicológicos. É preciso ter claro o fato de que as funções
psíquicas possuem um sujeito que é tão importante quanto o objeto,
pois o mundo não existe apenas em si mesmo, mas igualmente
como o que representa para mim. A atitude introvertida é aquela que
procura sobrepor o eu e o processo subjetivo ao objeto e ao
processo objetivo. O enfoque introvertido dá mais valor ao sujeito do
que ao objeto, o introvertido se reserva uma opinião que se interpõe
entre ele e o dado objetivo e, normalmente, a atitude introvertida se
orienta pela estrutura psíquica hereditária. Na introversão, o objeto
recebe valor apenas secundário. A forma típica de neurose do tipo
introvertido é a psicastenia, caracterizada por uma grande
sensibilidade, esgotamento e cansaço crônico. A introversão pode
ser ativa ou passiva. Quando o sujeito quer um isolamento em
relação ao objeto, há uma introversão ativa. Por outro lado, quando
o sujeito não consegue reintegrar no objeto a libido que dele reflui,
temos uma introversão passiva. Caso haja uma atitude introvertida
habitual, podemos falar em um tipo introvertido.
A extroversão, por outro lado, é um voltar-se para fora da libido.
Há uma relação manifesta e um movimento positivo do interesse do
sujeito para com o objeto. Neste caso, o objeto atua como um imã,
pois atrai e condiciona em larga medida o sujeito, o que o torna
alheio a si mesmo e o assimila ao objeto como se houvesse uma
determinação absoluta do sujeito pelo objeto, correndo até mesmo o
risco de se perder completamente no objeto. A neurose mais
comum no extrovertido é a histeria. A extroversão é, mutatis
mutandis, uma transferência do interesse do sujeito para o objeto. O
extrovertido vive de uma maneira que corresponde imediatamente
às condições objetivas. Seu interesse e atenção seguem os
acontecimentos objetivos, assim como o seu agir se orienta pelas
influências externas. Nesse sentido, o extrovertido é bem ajustado,
pois acompanha harmoniosamente as condições da ambiência
imediata. Existe uma extroversão ativa quando ela é intencional, e
passiva quando o objeto atrai por conta própria o interesse do
sujeito, eventualmente contra a sua vontade. Sendo habitual o
estado de extroversão, podemos falar de um tipo extrovertido.
Introversão e extroversão constituem atitudes típicas em relação
ao objeto. O introvertido se comporta abstrativamente e o
extrovertido de modo positivo e empático em relação ao objeto e
orienta sua atitude subjetiva pelo objeto. As duas atitudes típicas em
relação ao objeto são processos de adaptação.
Cabe certamente, explicitar melhor o que Jung entende por
Empatia (Einfülung) e Abstração (Abstraktion). Ele trata desses
termos e seu uso na estética, bem como da sua relação com o
problema dos tipos no capítulo VII do Tipos Psicológicos, um dos
capítulos mais importantes do livro, justamente pela definição
desses conceitos. Eu fico tentado, estimado leitor, a tentar sumarizar
aqui toda a complicada discussão feita por Jung, especialmente as
inúmeras referências de autores que ele tem o cuidado de fazer,
entretanto isso seria fugir do escopo desse escrito, por isso, mesmo
a contragosto, serei sintético. A empatia é uma animação
(Beseelung) do objeto (sendo o termo animação mais apropriado do
que empatia) visto que de fato se trata de uma projeção. A empatia
é um processo de assimilação, é um tipo de processo de percepção
que se caracteriza por transferir um conteúdo psíquico para o
objeto. Com a projeção o objeto externo é assimilado ao sujeito
(passa a ser simultaneamente um objeto interno e externo), isso
gera uma vinculação tão intensa que o sujeito sente no objeto.
Como a projeção é um fenômeno inconsciente e automático que
não está sujeito ao controle consciente, o sujeito não se sente como
projetado no objeto, mas sente que o objeto “empatizado” é
animado e fala por si, dito de outra forma, o sujeito empresta a
própria alma ao objeto. Na Psicologia Analítica a Empatia é uma
extroversão.
A Empatia é um movimento solícito que transfere o conteúdo
subjetivo ao objeto causando uma assimilação subjetiva que leva a
um bom entendimento entre sujeito ou objeto (ou ao menos o
simula). As qualidades reais do objeto não se perdem, estas são
apenas disfarçadas, ou mesmo, violentadas pela transferência, pois
a empatia pode gerar qualidades e semelhanças que não subsistem
em si mesmas. A empatia pressupõe que o objeto é vazio, e precisa
ser preenchido de vida e alma pelo sujeito.
Na Abstração temos o contrário da Empatia, esta representa uma
confiança feliz entre o homem e os fenômenos do mundo, enquanto
a Abstração é consequência de uma grande inquietação interna do
homem devido ao fenômeno do mundo externo, uma espécie de
agorafobia espiritual. A abstração pressupõe que o objeto esteja de
certo modo vivo e ativo (e não vazio e passivo como na empatia) e
por isso procura fugir e se defender de sua influência. O abstrativo
coloca-se diante do objeto como se ele tivesse uma qualidade
aterrorizante, uma ação prejudicial e perigosa, contra a qual ele
precisa se defender. Essa qualidade apriorística do objeto é
indubitavelmente uma projeção, mas de cunho negativo. Ao ato
consciente de abstração é antecedido por um ato inconsciente de
projeção em que são transferidos conteúdos de cunho negativo. A
abstração serve para confinar, mediante um conceito geral o
mutável e o irregular nos limites da legalidade. No que concerne à
empatia temos uma projeção passiva e na abstração uma projeção
ativa.
A toda Empatia consciente corresponde um momento anterior
inconsciente de Abstração que priva os objetos de vida e atividade e
os esvazia, tornando o sujeito inconsciente potencializado e sentido
como ameaçador e nefasto, por isso a tentativa do extrovertido de
se proteger de seus conteúdos inconsciente potencializando os
objetos. Da mesma maneira, a toda Abstração consciente é
antecedida por uma Empatia inconsciente que vivifica os objetos e
permite que eles sejam sentidos como perigosos e daí a
necessidade do introvertido de elevar abstrativamente o sujeito com
o fito declarado de se proteger do perigo representado pelos
objetos.
Ampliando a discussão acerca das atitudes introvertida e
extrovertida, na perspectiva introvertida a pessoa se revela na
constância do eu, o extrovertido, por seu turno, não pode afirmar a
mesma coisa, para ele a pessoa se revela apenas na função de
relação com o objeto. Apenas no introvertido a pessoa se constitui
apenas pelo eu, no extrovertido a pessoa consiste no ser afetado e
não no eu que é afetado, o eu dele está sujeito ao seu
relacionamento com os objetos. O extrovertido se descobre sempre
no mutável, o introvertido no constante. Para o extrovertido o eu não
é constante e ele lhe dá pouca importância, e, objetivamente o eu
não é “eternamente constante”, mas sim altamente compósito e
variado. Todavia, para o introvertido é importante que seu eu seja
constante e evita toda e qualquer mudança que o atinja, para ele ser
afetado pode ser algo terrivelmente doloroso, enquanto que para o
extrovertido o ser afetado não pode ser perdido de maneira alguma.
Pela ótica do introvertido, os eventos devem ser elevados ao nível
da experiência, e da soma destas deve logo emergir uma lei para
todos os tempos. O ponto de vista do extrovertido é exatamente o
oposto, nenhum evento deve se tornar experiência, justamente para
que não se produzam leis que possam estorvar o futuro. Para o
introvertido, o valor mais alto é o eu que se abstrai de ser afetado,
ou seja, a abstração e a conservação do eu. Para o extrovertido,
entretanto o valor mais elevado é a experiência do objeto, a imersão
total na realidade. O introvertido se perde no objeto, enquanto o
extrovertido encontra a si mesmo no objeto, por esse motivo o
extrovertido tem uma aversão, medo e desprezo silenciosos pela
introversão e o introvertido nutre esses mesmos sentimentos
negativos pela extroversão. Ambas as atitudes são igualmente
válidas e igualmente humanas, a despeito de opostas.
Ao falar da psicologia do extrovertido é preciso sempre recordar
que, diferente do introvertido, o valor principal está na relação com o
objeto, e essa relação é um imponderável que não pode nunca ser
apreendido numa formulação intelectual (pois é algo de mutável e
inconstante), tendo isso em mente, é fácil perceber o erro que o
introvertido sempre comete de querer derivar a ação do extrovertido
de sua psicologia subjetiva, mas o próprio extrovertido só pode
compreender a vida espiritual íntima como consequência de causas
externas. Tudo aquilo em que não é perceptível uma relação
objetiva não passa para o extrovertido de algo de fantasmagórico e
irreal.
No que concerne à adaptação social e as emoções, ou, ao
menos ao seu ajustamento e adequação aos objetos, Jung afirma
que como a expressão de afetos atua por sugestão, enquanto que a
mente (o pensar) só opera de maneira indireta por árdua e penosa
transposição74, os afetos socialmente adequados não devem ser
profundos, senão suscitam paixão nos outros. Vendo por essa ótica,
como o extrovertido é mais adaptado e diferenciado em termos
sociais, seus afetos são mais extensos que profundos, assim não
perturbam ou excitam, pelo contrário, sua ação é tranquilizadora e
razoável. Por seu turno, o introvertido perturba pela violência de
suas paixões, mas não pensem que o extrovertido não cause
perturbação social, ele o faz de maneira irritante ao aplicar seus
pensamentos e sentimentos semiconstantes que aplica de maneira
incoerente a abrupta aos demais, na maioria das vezes na forma de
julgamentos sem o menor tato. Enquanto a paixão introvertida se
manifesta em ações brutais, a perversidade do pensar e sentir
inconscientes do extrovertido ataca a alma das pessoas, o problema
é que a maldade do primeiro é visível, enquanto a do segundo é
mascarada por um comportamento aceitável. O introvertido possui
certo bom senso, que depende de uma cuidadosa adaptação aos
seus conteúdos psíquicos, a afetividade do extrovertido possui
maleabilidade e superficialidade, trata-se de uma afetividade
socialmente diferenciada, isso à custa de sua vida espiritual que fica
marcadamente ausente. O tipo extrovertido também apresenta uma
marcada preocupação social e um empenho em proporcionar bem-
estar e alegria aos outros, enquanto o introvertido, via de regra, só
possui essas qualidades na fantasia. Há que se levar em conta,
igualmente, que afetos diferenciados possuem a vantagem do
charme e elegância, além de irradiarem um ar belo e benéfico. O
extrovertido, em sua atuação social possui uma grande dificuldade
em ficar inerte ou não tomar parte, por isso Jung considera que,
mesmo com certo exagero, valem as palavras de Jordan75, “se
possível, a sociedade deve ser agradada; se não puder ser
agradada, ao menos deve ser maravilhada; e, se nenhum dos casos
for possível, deve ser importunada e chocada”, o importante é afetar
e ser afetado, mesmo que negativamente, tudo depende de causar
impressão. Nenhuma parte é mais valiosa do que a outra, pois os
tipos se complementam mutuamente e sua diferença produz aquele
grau de tensão de que tanto a vida individual quanto coletiva
necessitam para sua manutenção.
Jung também analisa os personagens Prometeu e Epimeteu,
tanto em Spiteller, quanto na obra de Goethe, com o objetivo de
compreender como se formulou na arte poética o problema dos
tipos. De uma maneira muito geral e superficial, podemos afirmar
que Prometeu representa poeticamente o introvertido e Epimeteu o
extrovertido. Prometeu pondera antes de agir, enquanto Epimeteu
primeiro age e somente depois pondera. O caráter epimeteico
possui uma prontidão para a ação e a reação, uma tendência à
distração, uma queda para a superficialidade dos laços, uma certa
incoerência de se esperar vinculações mais profundas. A vivência
dos valores afetivos é excluída devida a essa rápida sucessão, por
isso a afetividade só pode ser superficial, entretanto isso possibilita
rápidas adaptações a mudanças de atitude. Existe uma maior
reatividade, o que dá a impressão de falta de crítica, ou conforme o
caso, também de falta de preconceitos, gentileza e compreensão.
Esse mesmo caráter reativo também pode ser interpretado como
desconsideração incompreensível, falta de tato e brutalidade. Essa
rápida reatividade também pode ser vista igualmente como
presença de espírito, audácia ou temeridade (devido à ausência de
crítica e incompreensão do perigo). A rapidez da ação parece ser
decisão, mas é antes um impulso cego, facilitada pela ignorância do
fator afetivo das representações, da ação e de seu efeito sobre os
outros.
O prometeico pondera e depois age, é lento na ação, porém
possui algo de que carece o epimeteico, de firmeza interior, de
solidez e coerência espiritual. Essa solidez transparece ao exterior
como uma personalidade inibida, dispersa, e pensativa. Há pequena
participação na vida exterior e uma tendência à misantropia e a
solidão, muitas vezes compensada por uma grande devoção aos
animais ou plantas. Como seus afetos são intensivos e profundos,
isso o leva a uma tendência a se manter longe de estímulos
externos, evitar a mudança e deter o fluxo da vida em favor de sua
coerência e estabilidade interiores. Em casos em que a tendência à
introversão é muito acentuada e unilateral, leva a que essa
preocupação com o próprio interior cause no contato social da
pessoa introvertida falta de presença de espírito e sonolência, o que
conduz a situações embaraçosas e difíceis de contornar. Também
são comuns explosões de afeto, o que dificulta os relacionamentos.
A lentidão em se adaptar leva a várias experiências desagradáveis
que produzem infalivelmente um sentimento de inferioridade, muitas
vezes de amargura, que pode se voltar contra os causadores dessa
situação sejam eles reais ou imaginários. Diferente do extrovertido,
marcado por uma afetividade superficial, o introvertido possui uma
vida afetiva interna muito intensa e que é dada a complexidade a
percepção de sutilezas e tons inacessíveis extrovertido. Essa
sensibilidade emocional se revala exteriormente como timidez e
ansiedade diante de estímulos emocionais por medo de que eles
provoquem nele uma reação emocional difícil de controlar.
O introvertido se caracteriza por uma atitude tensa, enquanto o
extrovertido se sente atraído por uma atitude fácil e relaxada. Essa
tensão ou relaxamento é tão intensa que pode mesmo ser percebida
na musculatura, e, em geral, vem expressa no semblante.
Obviamente, não se deve encarar essas atitudes puramente
como caracteres, não é ocioso sublinhar que Jung não produz uma
caracteriologia psicológica, citando o próprio Jung,
Como já sublinhei diversas vezes, introversão e extroversão
não são caracteres, mas mecanismos que podem ser ligados
e desligados à vontade, por assim dizer. Os caracteres
correspondentes só se desenvolvem a partir da
predominância habitual de um deles. É certo que a predileção
repousa em certa disposição inata, mas que, nem sempre, é
absolutamente decisiva. Já vi diversas vezes que a influência
do meio é quase tão importante. Pude constatar certa vez que
uma pessoa que vivia próximo de um introvertido e
apresentava um comportamento manifestamente extrovertido,
mudou de atitude e se tornou introvertida quando, mais tarde
entrou em relacionamento íntimo com uma personalidade
declaradamente extrovertida. (2013, p.299).
Mesmo quando existe um tipo declarado, ou seja, quando o
mecanismo se torna habitual e se converte em caractere, esse não
é imutável, e também não significa o desaparecimento do outro
mecanismo, a depender de certas condições o comportamento pode
se modificar radicalmente, citando novamente o Tipos,
Dê-se ao introvertido um ambiente harmonioso que lhe seja
totalmente favorável, e ele relaxará até a plena extroversão, dando a
ideia de estarmos diante de um extrovertido. Coloque-se o
extrovertido num quarto escuro e silencioso, onde todos os
complexos reprimidos possam roê-lo, e ele entrará numa tensão tal
que levará ao extremo o mais leve estímulo. (2013, p.301).
Há então, várias Psicologias possíveis. Nessa perspectiva, para
Jung, é “uma tirania intolerável pensar que existe apenas uma
Psicologia ou apenas um princípio psicológico fundamental”. Isto
tem uma repercussão ainda maior, pois afeta mesmo a noção de
realidade. Ainda segundo Jung, “também se fala da realidade como
se existisse apenas esta única realidade. Realidade é o que atua na
alma, e não o que alguns acham que lá atue, fazendo
generalizações preconcebidas”. Ao discutir os tipos, Jung debateu
extensamente oposições clássicas na história do pensamento, como
Tertuliano e Orígenes, Scoto Erígena e Radberto, o nominalismo e o
realismo, o problema dos universais na Antiguidade e na Escolástica
(que pode ser visto como um problema de inerência e predicação), a
controvérsia entre Lutero e Zwínglio sobre a Ceia, além de uma
longa preleção sobre outras ideias acerca dos tipos em outros
pensadores, como Schiller, por exemplo. Nessas querelas, o pano
de fundo, os elementos fundamentais são o ponto de vista abstrato
que rejeita a mistura com o objeto concreto, e o concretista que está
voltado para o objeto; o antagonismo típico entre aqueles para qual
o valor essencial está no processo de pensar em si, e o pensamento
e sentimento do indivíduo que recebem a sua orientação do objeto.
Neste ponto, creio, é de suma importância esclarecer o
significado de empiria para Jung, o que está intimamente
relacionado à sua ideia de ciência e as suas concepções
psicológicas. Para um empírico, a afirmação da existência de mais
de uma realidade, ou a afirmação de que é real é o que atua na
alma, soa descabida e, certamente, não empírica. De uma maneira
muito sucinta, o empirismo é uma posição filosófica que toma a
experiência como guia e critério de validade, e rejeita a noção de
ideias inata (o que Jung também rejeita) ou de um conhecimento
anterior ou independente da experiência. Existem, de fato, inúmeras
semelhanças entre as posições dos empiristas clássicos e seus
métodos e Jung. O que difere, fundamentalmente, é a noção do que
é experiência. Muito do que discorri anteriormente, sobre não
sobrecarregar a descrição qualitativa com pressupostos teóricos ou
filosóficos, por certo, seria aprovada por Bacon, bem como a
rejeição de debates metafísicos ou especulativos, decerto
encontraria o assentimento de Locke, mas Jung é um empirista
peculiar. Ele nos adverte sobre sua perspectiva peculiar: “As únicas
coisas que podemos experimentar diretamente são os conteúdos da
consciência”.
Jung duvidava do ponto de vista realista do pensamento
científico. É justamente o ponto de vista psicológico que nos permite
duvidar da perspectiva realista. É necessário ter claro, de início, o
fato de que os conteúdos da consciência aos quais ele se refere,
como na citação anterior, são imagens (Bilder). A psique é
constituída essencialmente de imagens. Nesse sentido, a psique é
uma estrutura riquíssima de sentido e uma objetivação das
atividades vitais expressas por meio de imagens, imagem aqui, nota
bene, no sentido de representação.
[...] a respeito da natureza da matéria temos apenas
suposições teóricas obscuras, que, por sua vez, nada mais
são do que imagens produzidas pela alma. É minha
percepção que traduz os movimentos ondulares ou as
emanações solares em luz. É minha alma, com sua riqueza
de imagens, que confere cor e som ao mundo; e aquela
certeza racional sumamente real que chamamos experiência
é um aglomerado complicadíssimo de imagens psíquicas,
mesmo em sua forma mais simples. Assim, em certo sentido,
da experiência imediata só nos resta a psique mesma. Tudo
nos é transmitido através da psique: traduzido, filtrado,
alegorizado, desfigurado e mesmo falsificado. (Jung, 1986,
p.269, destaquei).
O objetivo da ciência, como afiança Jung em seu Tipos
Psicológicos, não é dar a descrição mais exata possível dos fatos,
pois, “a ciência não pode competir com a câmera fotográfica ou com
o gravador de som”, mas estabelecer leis, que são a expressão
abreviada de processos múltiplos, mas que mantêm uma certa
unidade. Não se trata do puramente empírico, mas se sobrepõe a
este o objetivo de estabelecer leis por meio da concepção
(Anschauung). Esta concepção, por mais que tenha uma validade
geral comprovada, será sempre e inevitavelmente um produto da
constelação psicológica subjetiva do pesquisador. Mais radicalmente
ainda, nenhum pesquisador pode se abstrair de sua constelação
psicológica subjetiva. Os complexos gozam de autonomia, haja vista
que, mesmo no médico ou no cientista, eles fazem parte da
constituição psíquica, e é a constituição psíquica que decide
inapelavelmente a pergunta de saber que concepção psicológica
terá um determinado observador. Qualquer observação psicológica
para ser válida pressupõe a equação pessoal do observador. Há
uma equação psicofísica no processo de saber, visto que não
vemos cores, mas o comprimento de onda da luz e não ouvimos
sons, mas ondas sonoras que o complicado processo psicofísico da
percepção permite que percebamos. Simultaneamente a esse
processo, no entanto, ocorre o processo psíquico da apercepção
(Apperzeption). Nesse ponto, entra a equação pessoal psicológica,
e o efeito dessa equação psicológica se inicia já na percepção
“vemos aquilo que melhor podemos ver a partir de nós mesmos”.
Jung se utiliza de uma interessante alegoria, encontrada nas
escrituras, para ilustrar a importância desse fenômeno. Ele faz uma
paráfrase de Mateus 7:3 ““Por que você repara no cisco que está no
olho do seu irmão e não se dá conta da trave que está em seu
próprio olho? Isto, de fato, é muito elucidativo e psicologicamente
preciso. Vemos primeiro o cisco no olho do próximo e, sem dúvida,
há um cisco, mas a trave está no nosso olho e essa trave perturbará
o ato de ver. A equação pessoal psicológica aparece com ainda
mais força quando se trata de comunicar o que se observou sem
falar da concepção que se abstrai do material da experiência. Jung
vai mais adiante e afirma que “(...) é exatamente a trave no nosso
próprio olho que nos possibilita ver o cisco no olho do irmão”. A
perturbação de nossa visão, a “trave”, leva facilmente “a uma teoria
geral de que todos os ciscos são traves”. Torna-se indispensável,
em Psicologia, reconhecer e levar em consideração o
condicionamento subjetivo do saber psicológico, pois essa é a
condição essencial da valorização científica de uma psique diferente
do sujeito que observa.
Vê-se como o problema dos tipos toca em um debate
epistemológico fundamental. Em primeiro lugar, em virtude de, como
afirmou Jung “(...) a alma é o único fenômeno imediato deste mundo
percebido por nós e por isto mesmo a condição indispensável de
toda experiência em relação ao mundo.” Em segundo lugar, pelo
motivo de que nossa disposição psíquica influenciará decisivamente
em nossa concepção psicológica, como Jung demonstra nos
debates sobre nominalismo e realismo e as posições influenciadas
pela perspectiva introvertida ou extrovertida.
Prosseguindo com nossa discussão sobre tipos, é mister falar
sobre as quatro funções psicológicas básicas (Vier psychologischen
Grundfunktionen), pensamento/sentimento e sensação/intuição. No
processo de apercepção, que acompanha quase simultaneamente o
processo de percepção, pode-se perceber a cooperação de vários
processos psíquicos. O processo de percepção não nos possibilita
reconhecer os dados sensoriais que chegam a nossa consciência,
esse reconhecimento é feito pela função pensamento. Segundo
Jung “É o pensamento que nos diz o que a coisa é em si.”.
Vejamos. Vamos supor que eu esteja na África em um safari e
por algum motivo me ache por um instante sozinho na selva, noto
uma movimentação estranha a minha frente na mata fechada e logo
percebo se tratar de um assustador elefante. O que me diz que
tenho a minha frente é um elefante e não um leão ou um gorila é a
função pensamento. O pensamento é o processo de comparação e
diferenciação com o auxílio da memória.
Quando digo que havia um movimento “estranho” ou que o
elefante é “assustador”, todos esses qualificativos fazem referência
a uma tonalidade afetiva. A tonalidade afetiva implica uma
avaliação. Talvez se eu estivesse num zoológico, pudesse achar o
elefante simpático, mas, sozinho na selva um bicho de várias
toneladas é assustador. O mesmo objeto pode ter avaliações
distintas. Posso gostar de ver um elefante num passeio ao
zoológico, mas certamente não me sentiria tão contente ao vê-lo
feroz correndo em minha direção na selva. O sentimento é um tipo
de julgamento que visa a uma aceitação ou rejeição subjetivas.
Quando aumenta a intensidade do sentimento, surge um afeto
(Affekt/Emotion). O sentimento ordena os conteúdos da consciência
de acordo com o seu valor, e é uma função racional, pois os valores
em geral são atribuídos segundo leis da razão.
Antes de me dar conta de é um elefante ou mesmo avaliar se eu
gosto dele ou não, faz-se necessário percebê-lo. A sensação é uma
das funções psicológicas básicas, e é idêntica à percepção. A
sensação pode se associar ao sentimento na forma de uma
tonalidade afetiva, mas são funções diversas. No sentido dado por
Jung à sensação, essa função escapa da noção de senso comum,
entre outras coisas, pois ela não se relaciona apenas com os
estímulos externos, mas também com as sensações dos órgãos
internos, por isso ela é, em primeiro lugar, percepção pelos órgãos
dos sentidos. Por um lado, possui caráter de representação, pois
fornece a imagem percebida pelo objeto externo, e, por outro, é o
elemento de sentimento que confere o caráter de afeto. No caso do
meu elefante, ao vê-lo, a sensação me fornece a imagem do
elefante, ao mesmo tempo em que percebo o meu coração disparar,
minha boca ficar seca e o suor frio que começa a cobrir o meu
corpo, o que fornece a tonalidade afetiva de “assustador” ao
elefante e que me leva a avaliar que preferia não ter me deparado
com ele (uma rejeição subjetiva). A sensação nesse sentido
descrito, do fatídico encontro com o elefante na selva, é uma
sensação concreta que é sempre um fenômeno reativo. A sensação
caracteriza a psicologia da criança e do primitivo, pois predomina
sobre o pensamento e o sentimento, mas não necessariamente
sobre a intuição.
Pois bem, à frente do elefante, penso/sinto/vejo que “se eu
permanecer aqui parado as coisas podem acabar mal para mim”.
Nesse momento, entra em ação a minha intuição. No meu caso é
provável que a frase fosse “penso que se eu permanecer aqui...”,
mas em todo caso, a intuição é “a percepção das possibilidades
inerentes a uma dada situação”. Intuição vem de intueri “olhar para
dentro”, e é uma das funções psicológicas básicas e que transmite a
percepção via inconsciente. Assim como a sensação, a intuição é
uma função perceptiva irracional, seus conteúdos têm o caráter de
dados, em oposição ao caráter de derivado dos conteúdos do
pensamento e do sentimento, derivando daí seu caráter de certeza
e exatidão. A intuição passa por cima da realidade viva dos objetos
dos sentidos (quando orientada de maneira extrovertida) já que julga
sempre por sua imagem refletida no inconsciente, Jung também a
define como a percepção instintiva de um conteúdo psíquico
(quando possui orientação introvertida). A intuição é uma atitude
orientada para a percepção de conteúdos inconscientes que ocupa
a libido (o interesse) imediatamente de todos os elementos que
emergem do inconsciente e os associa a materiais paralelos,
fazendo com que estes cheguem com maior clareza e evidência à
consciência. A intuição se comporta relativamente à sensação de
maneira compensatória. Da mesma maneira que a sensação, a
intuição caracteriza a psicologia infantil e primitiva.
As funções são divididas em dois grupos – a sensação e a
intuição – que são irracionais. Para Jung, este conceito é
empregado no sentido de extrarracional, ou seja, o que não se pode
fundamentar com a razão – e o pensamento e o sentimento, que
são as funções racionais. Racional corresponde à razão e esta, por
sua vez é “(...) uma atitude que tem por princípio conformar o
pensamento, o sentimento e a ação com valores objetivos. ” Quando
uma pessoa orienta sua atitude global pelo princípio do
pensamento, pode-se falar que ela pertence ao tipo pensamento. O
mesmo se dá, respectivamente, com o sentimento, a sensação e a
intuição.
As funções psicológicas básicas raras vezes (ou quase nunca)
têm o mesmo grau de desenvolvimento num indivíduo, pois,
normalmente prepondera uma das funções. Por esse motivo, na
tipologia proposta por Jung, fala-se em uma função principal, oposta
a uma função inferior. Não existem tipos puros, a não ser em caso
de unilateralidade extremamente acentuada e, mesmo nesses
casos, a atitude da personalidade inconsciente intervém no seu agir
de maneira compensatória (ou em oposição nos casos de neurose),
a tal ponto que, dependendo da atitude do observador (judicativo ou
perceptivo), pode-se pensar até mesmo que se trate do tipo oposto.
Não se suponha que o inconsciente esteja enterrado sob
muitas camadas e que só possa daí ser retirado após penosa
escavação. O inconsciente, ao contrário, flui sempre para o
evento psicológico e em tão grande quantidade que se torna
difícil às vezes ao observador distinguir quais propriedades de
caráter atribuir à personalidade consciente e quais atribuir à
personalidade inconsciente (Jung, 1991, p.326).
Caso o pensamento seja a função principal, necessariamente o
sentimento será a função inferior, e vice-versa. Se tivermos a
sensação como função superior, a intuição será certamente a
função inferior, isto é, menos desenvolvida e mais primitiva. Caso a
intuição seja a função mais favorecida, a sensação será a função
inferior. A função superior é a expressão da personalidade
consciente de sua intenção e vontade, enquanto as funções menos
diferenciadas, principalmente a função inferior, fazem parte das
coisas que nos acontecem. Há igualmente uma função auxiliar, que
também está sob o controle consciente, mas é menos submetida ao
arbítrio consciente do que a função principal. A experiência
demonstra que essa função é sempre de natureza diversa, mas
nunca oposta à função principal. Já tratei das funções e, agora
passo a cuidar dos tipos em que prepondera uma ou outra função, a
começar pelo pensamento. Vale lembrar que, segundo Jung,
Por razões de clareza, vamos repetir: conscientes podem ser
os produtos de todas as funções; mas só falamos de
conscientização de uma função quando não apenas seu
exercício está à disposição da vontade, mas também seu
princípio é decisivo para a orientação da consciência. (Jung,
1991, p.381).
O tipo pensamento pode ser extrovertido ou introvertido. O
pensar extrovertido é determinado em grau mais elevado pelos
dados objetivos das percepções sensíveis. O critério determinante
para o seu julgamento deriva, sobretudo, das condições objetivas,
não importando se externa ou interna. A orientação do julgamento
de um pensar extrovertido, normalmente, provém de fora, assim
como a orientação para sua conclusão que também se origina de
fora, é um tipo de pensar positivo76, isto é, ele cria, pois possui um
julgamento predicativo. O tipo pensamento extrovertido se esforçará
por colocar toda a sua atividade na dependência de conclusões
intelectuais baseadas em dados objetivos. Sua moral não tolera
exceções, seu ideal precisa ser realizado custe o que custar. Pode,
no melhor dos casos, ter um papel social importante como
reformador, conscientizador ou propagador de inovações, no pior
dos casos será um resmungão, sofista e crítico. O tipo pensamento
extrovertido é encontrado, sobretudo, em homens, pois, em geral, o
pensamento é uma função que predomina mais no sexo masculino.
O pensar introvertido orienta-se principalmente, pelo sujeito e
pelo fator subjetivo, os dados externos não são causa ou meta deste
pensar, mas ele começa no sujeito e reconduz ao sujeito. Tal pensar
proporciona, em primeiro lugar, novas concepções. Os fatos têm
importância meramente secundária. O que realmente interessa é o
desenvolvimento e apresentação da ideia subjetiva. Sua força
criadora se manifesta quando é capaz de produzir uma ideia que
não se encontrava originalmente nos fatos externos, mas que é sua
expressão abstrata mais adequada. Em seu aspecto negativo,
apresenta uma tendência a forçar os fatos à sua ideia subjetiva ou a
ignorá-los completamente, e pode perder-se totalmente na verdade
do fator subjetivo e, se levado ao extremo, chega à evidência de seu
ser subjetivo. Kant foi escolhido por Jung como o representante do
tipo normal do pensamento introvertido; o filósofo que fez uma
crítica do conhecimento em geral e efetuou uma
“epistemologização” da Filosofia. O tipo pensamento introvertido se
caracteriza por se basear prioritariamente no fator subjetivo. Em
virtude de lhe faltar a intensa relação com os objetos, ele busca o
aprofundamento e não a ampliação de horizontes. Tal indiferença e
até rejeição com o objeto, que caracteriza a introversão em geral
torna difícil à descrição desse tipo. O pensamento do tipo
introvertido é positivo e sintético no desenvolvimento de suas ideias
que sempre se acercam da validade universal das imagens
primitivas, mas, por isso mesmo, correm o risco de tornarem-se
mitológicas, tornando-se assim, irrelevantes e esgotadas nelas
mesmas.
O tipo sentimento pode ser extrovertido ou introvertido. No
sentimento extrovertido, o objeto é o determinante indispensável do
modo de sentir, que está em concordância com valores objetivos. O
sentimento extrovertido se liberta o quanto possível de influências
subjetivas. A esse tipo de sentimento devemos a moda e a
manutenção positiva de empreendimentos de cunho cultural e
filantrópico. Sem ele, seria inconcebível uma convivência social
harmoniosa. Em seu aspecto negativo, caso o objeto receba uma
influência exagerada, tornando-se assimilado ao objeto, torna-se
algo frio e impessoal, material e não confiável, trazendo a impressão
de não passar de pose ou encenação. O sentimento é
indiscutivelmente uma peculiaridade mais frequente na psicologia
feminina e, por esse motivo, no sexo feminino, se encontram os
tipos sentimentais mais pronunciados. No tipo sentimento
extrovertido, os sentimentos estão em sintonia com os valores
aceitos em geral, e, por mais que o fator subjetivo tenha sido
reprimido, ele mantém o caráter pessoal em casos não extremos de
assimilação ao objeto, fazendo com que a personalidade pareça
ajustada às condições objetivas. O tipo sentimento extrovertido
reprime ao máximo o seu pensamento, pois é o pensamento que
mais pode perturbar o sentimento (e vice-versa). O pensamento é
tolerado apenas como servo do sentimento, tal não significando que
esse tipo não pense ou não possa ser esperto, pelo contrário, mas
seu pensar nunca é original, mas sim um acessório do sentimento.
O sentimento introvertido é dificílimo de apresentar teoricamente
ou mesmo descrevê-lo, pois, um sentimento que na aparência não
valoriza o objeto e por isso traz consigo um aspecto negativo. Como
esse tipo de sentimento é determinado principalmente pelo fator
subjetivo e só se ocupa secundariamente com o objeto, ele se
manifesta pouco e de maneira equívoca. Para tentar ao menos
descrevê-lo de maneira aproximada, é preciso um talento artístico
incomum, pois, do contrário, não se pode nem imaginar sua riqueza.
É de uma profundidade insuspeita, mas que não se pode captar
com clareza, tornando o indivíduo alguém quieto e que se retrai da
brutalidade do objeto, lançando julgamentos negativos ou recaindo
na indiferença. Como característica, ele não procura se adaptar ao
objeto, mas dominá-lo, e pode facilmente, em seu aspecto negativo,
aprofundar-se numa paixão sem conteúdo e egocêntrica. O tipo
Sentimento Introvertido é discreto e seus verdadeiros motivos
costumam permanecer encobertos, o que lhe impõe uma suspeita
de frieza. Em virtude de sempre permanecer reservado e parecer
indiferente, um julgamento superficial lhe nega qualquer sentimento;
esta impressão é falsa, pois ele possui sentimentos intensivos e
muito profundos, diferente dos sentimentos extensivos do tipo
sentimento extrovertido. A forma de neurose mais comum a esse
tipo é neurastênica.
O tipo sensação pode ser extrovertido ou introvertido. Como
percepção dos sentidos, a sensação tem uma evidente relação com
os objetos externos que percebe e uma dependência do sujeito,
existindo uma sensação subjetiva que é bem diferente da sensação
objetiva. Na extroversão, o componente subjetivo da sensação é
conscientemente reprimido. Em certo sentido, a função sensação é
absoluta, mas nem tudo possui o valor liminar de que necessita para
ser aceita. A sensação extrovertida é determinada, sobretudo, pelos
objetos, e aqueles que emanam a sensação mais forte são
determinantes para a Psicologia do indivíduo, o que enseja uma
vinculação sensível com os objetos, que apreende o ser
momentâneo e manifesto das coisas. A sensação é uma função vital
com a mais poderosa ligação com os instintos. Seu critério de valor
não é o julgamento racional, mas a força da sensação manifestada
por suas qualidades objetivas. O indivíduo desse tipo é orientado
somente pela realidade que cai nos sentidos. O tipo sensação
extrovertido possui um extraordinário senso objetivo dos fatos. Para
ele, sensação significa plenitude de vida real. Pode se tornar um
sensualista ou um esteta, e, em um aspecto inferior, esse tipo é o
homem da realidade tangível sem queda pela reflexão ou gosto pela
dominação. Seu objetivo é ter sensações, e, em geral, tem
disposições alegres e vivazes. Nada existe além do concreto e do
real tudo o que vem de dentro lhe parece mórbido e suspeito. Sendo
normal, estará incrivelmente ajustado à realidade de maneira visível
e patente.
Quando a vinculação ao objeto é levada a extremos, torna-se
uma pessoa grosseira ou um esteta sem escrúpulos. Nesse caso, a
tendência compensatória do inconsciente surge por meio da intuição
e pode tornar-se oposição aberta à atitude consciente, gerando
estados de angústia; desenvolve-se, então, todo tipo de fobia e, em
casos extremos, sintomas de obsessão de acentuada irrealidade.
Também a sensação está sujeita ao fator subjetivo, pois, ao lado
do objeto que é sensualizado, há um sujeito que sensualiza. Na
atitude introvertida, a sensação se baseia de maneira mais
acentuada na parcela subjetiva da percepção. O fator subjetivo é
uma disposição inconsciente que modifica a percepção dos
sentidos, tirando assim o seu caráter de pura influencia do objeto. É
na arte que vemos a força extraordinária do fator subjetivo na
sensação, e disso dá testemunho eloquente a arte impressionista.
Algumas vezes o objeto não passa de mero estímulo que possibilita
a percepção do fator subjetivo, nesse caso o sujeito ocupa-se mais
com a percepção subjetiva causada pelo estímulo do objeto. Faz
parte da percepção subjetiva o caráter significativo, a para a
sensação subjetiva, a realidade do objeto não é decisiva, mas a
realidade do fator subjetivo, as imagens primordiais que em sua
totalidade apresentam um mundo psíquico espelhado, que reflete os
conteúdos da consciência sub specie aeternitatis. O momento atual
é inverossímil para essa consciência. A sensação introvertida
transmite uma imagem que cobre o objeto com sedimento
antiquíssimo e futura experiência subjetiva.
O tipo sensação introvertido se orienta pela intensidade da
parcela subjetiva da sensação, suscitada pelo estímulo objetivo.
Visto de fora, parece que a influência do objeto não penetra o
sujeito, e esta impressão é correta na medida em que um conteúdo
subjetivo, nascido do inconsciente, se interpõe à influência do
objeto. Nesse tipo, encontramos uma espécie de subjetividade
alienada. Caso seja motivado a agir pelo objeto, ou quando esta
influência não consegue penetrar, temos uma neutralidade
benevolente, tudo para manter a influência do objeto nos devidos
limites. Se for benevolente, poderá ser facilmente vítima da
agressividade e despotismo dos outros. Nesses casos, deixam, em
geral, que se abuse deles e vingam-se disso em ocasiões
inoportunas com redobrada teimosia. Este tipo, normalmente, se
fecha à compreensão objetiva e, em geral, não se compreende a si
próprio. Seu desenvolvimento se afasta da realidade dos objetos e
se entrega as suas percepções subjetivas que possuem um caráter
arcaico e mitológico. Normalmente, o indivíduo se contenta com um
fechamento em si mesmo e com a banalidade do mundo real. A
neurose mais característica desse tipo, que surge em vista da
compensação inconsciente caracterizada pela natureza arcaica da
intuição extrovertida, é em geral uma neurose obsessiva, em que os
traços histéricos se escondem atrás de sintomas de esgotamento.
O tipo intuitivo pode ser extrovertido ou introvertido. Na atitude
extrovertida, a intuição se volta completamente para os objetos
exteriores. Na consciência, é representada por uma certa atitude de
contemplação e penetração, mas a intuição não é mera
contemplação, mas um processo criador que incute no objeto tanto
quanto dele retira. Em primeiro lugar a intuição fornece impressões
que não poderiam ser conseguidas por meio das demais funções.
Caso a intuição tenha a primazia, as demais funções são
relativamente reprimidas, com especial ênfase na sensação, por ser
a função que mais estorva a intuição, pois a sensação dirige o olhar
exatamente para as coisas além das quais a intuição quer chegar,
por isso, para a intuição funcionar, a sensação deve ser fortemente
reprimida. Esse tipo possui sensações, mas não se orienta por elas;
são apenas pontos de partida e, sua impressão e as suas
sensações são selecionadas por pressupostos inconscientes, pouco
importando a sensação fisiologicamente mais forte. A intuição
procura abranger as maiores possibilidades, pois o pressentimento
é mais bem satisfeito pela contemplação das possibilidades. A
intuição se esforça por descobrir possibilidades nos dados objetivos.
Ela sempre procura saídas e novas possibilidades na vida exterior.
Um fato só vale enquanto abrir possibilidades que o ultrapassem e
dele libertem o indivíduo. A psicologia do intuitivo é inconfundível, o
intuitivo sempre está lá onde se encontram as possibilidades, possui
um “faro” para o que promete futuro, nunca se encontra em
situações estáveis, duradouras, mas limitadas, estas o sufocam,
pois está sempre em busca de novas possibilidades, com as quais
se fixa com força fatídica. Quanto mais forte sua intuição, tanto mais
o sujeito se confunde com a possibilidade vislumbrada. Após algum
tempo, a nova possibilidade em que se fixou passa a ser vista como
prisão, e, contra toda a razão ou bom senso, irá impiedosamente
destruir ou se livrar do que construiu para se desembaraçar da
estabilidade e partirá uma vez mais em busca de novas
possibilidades. O intuitivo possui sua própria moral que não se pauta
pelo sentimento ou pensamento, mas que é uma fidelidade as suas
impressões e uma submissão a elas, pouco importando o bem-estar
dos outros ou o seu. Da mesma maneira, não respeita costumes ou
convenções passando uma impressão de aventureiro. Muitos
homens de negócios, empresários, especuladores, agentes políticos
etc pertencem a este tipo, todavia ele parece ser mais frequente
entre mulheres. Caso não seja excessivamente egocêntrico, este
tipo pode ter grande valor cultural e econômico, ele é o sujeito
arrojado que inicia novos empreendimentos, ou que consegue
pressentir nas pessoas seu valor e capacidades ocultas,
encorajando-as a atingir seu potencial. O intuitivo extrovertido corre
o risco de fragmentar a sua vida, ao trazer energia e força vital a
pessoas e coisas ao seu redor, espalhando abundância, mas jamais
aproveitando essa abundância. A neurose característica desse tipo
normalmente o prende de maneira coercitiva a um parceiro
altamente inconveniente, por meio de uma vinculação inconsciente,
em um sintoma obsessivo típico do intuitivo extrovertido. Sua
neurose o torna presa de compulsão inconsciente e da vinculação
compulsiva à sensação do objeto, bem como toda forma de fobias,
ideias hipocondríacas compulsivas e toda sorte de sensações
corporais absurdas.
A intuição introvertida volta-se para os objetos interiores que se
comportam para a consciência como se fossem exteriores. O sujeito
se volta para o conteúdo do inconsciente, em última análise para os
conteúdos do inconsciente coletivo. Assim como os objetos
exteriores, os objetos interiores não são, em sua essência,
diretamente acessíveis. Como disse Jung, no Aion, o complexo do
eu vive entre duas grandes obscuridades que não pode conhecer
completamente nem em sua essência: o mundo dos objetos físicos
e os objetos interiores, os elementos do inconsciente. As formas de
aparecer dos objetos internos são relativas, produto de sua essência
inacessível e da peculiaridade da função intuitiva. A intuição
introvertida se detém em seu fator subjetivo e se dirige ao que foi
internamente liberado pelo exterior. A sensação introvertida se fixa
nos fenômenos peculiares de inervação causados pelo inconsciente,
enquanto a intuição introvertida reprime fortemente este fator e
percebe a imagem causada por esta inervação. A intuição
introvertida percebe com nitidez os processos de fundo da
consciência, todavia, essas imagens provenientes do inconsciente
parecem existir por si mesmas, sem relação com a pessoa que as
contempla. Esta não chega a perceber que essas imagens
percebidas podem se referir a ela. O intuitivo introvertido também
possui uma eterna ânsia de mudança, que não liga para o bem ou o
mal e menospreza qualquer consideração humana, bem como
apresenta uma grande indiferença com relação aos objetos internos
que percebe. O intuitivo introvertido vai de imagem em imagem,
perseguindo todas as possibilidades, normalmente incapaz de
estabelecer a conexão do fenômeno consigo mesmo. O mundo das
imagens inconscientes não constitui problema moral, mas um
problema estético, fazendo assim desaparecer em si a consciência
de seu corpo, bem como sua influência sobre as pessoas que o
cercam.
O intuitivo introvertido é o sonhador e visionário místico. O
aprofundamento da intuição leva naturalmente o indivíduo a um
afastamento da realidade que o torna um enigma até mesmo para
aqueles que lhe são mais próximos. No inconsciente do tipo intuitivo
introvertido, reprime a sensação do objeto ao máximo, por isso
torna-se característico de seu inconsciente uma função sensação
extrovertida compensadora de caráter arcaico. No caso de uma
unilateralidade extremada da função intuitiva, uma completa
subordinação à imagem interior, o inconsciente abandona seu
caráter compensador e passa à oposição aberta, dando origem a
sensações compulsivas que geram dependência do objeto externo.
Sua neurose mais comum é uma neurose obsessiva, podendo exibir
hipocondria, hipersensibilidade dos órgãos sensoriais e ligações
compulsivas com objetos e pessoas.
Chega então ao fim esta minha tentativa de introdução ao
problema dos tipos. Se o estimado leitor chegou até este ponto na
leitura, creio que é de capital importância ressaltar alguns pontos
acerca do método por mim empregado. De propósito e de maneira
meticulosa omiti pontos importantes, bem como demonstrações de
pontos de vista de Jung que permitiriam uma leitura mais
desembaraçada, isto com o intuito deliberado de gerar mais dúvidas
do que fornecer respostas. A dúvida nos leva adiante, enquanto a
resposta coloca um fim à busca iniciada pela pergunta. Existem
certezas em demasia no mundo junguiano. Normalmente, essas
certezas constituem estorvo e ignorância do método. Para Jung, o
inconsciente jamais se dá a conhecer e sua Psicologia é sempre um
“como se” conseguido por vias as mais indiretas. Além disso,
certezas destroem essa Psicologia prática, pois a certeza na clínica
violenta e destrói o outro, causando um tipo de transferência que só
pode ser eliminada com brutalidade em virtude do caráter de
dependência compulsiva que cria em relação ao médico e a
alienação consequente do sujeito para consigo mesmo. Os
fenômenos do inconsciente que surgem na análise são Deo
concedente, e qualquer tentativa de forçá-los a se enquadrar em
certezas vãs só resulta em desastre e demonstra apenas que o
médico já sucumbiu à influencia perniciosa do próprio inconsciente.
Precisamos, urgentemente, da dúvida, mas não da dúvida insidiosa,
que procura simplesmente desautorizar Jung sem conhecer seus
argumentos e demonstrações. Isso não passa de má-fé e burrice,
que infelizmente grassa nesse meio, não! Precisamos da dúvida que
nos retira de nosso egocentrismo, da dúvida que surge do
conhecimento de si e de nossos abismos de desconhecimentos, da
dúvida que representa nosso assombro ante a natureza
maravilhosa, estranha e sublime da alma; dúvida essa que surge ao
contemplarmos os nossos semelhantes, cientes de nossa escuridão
e certos de que, fundamentalmente, não sabemos o que Deus quer
para ele. Felizes aqueles que podem ouvir seu próprio coração e ser
livres para obedecer ao próprio destino, não importando a que dores
ou sacrifícios isso leve. Precisamos nos lembrar que a certeza nos
aprisiona e apenas na dúvida somos livres. Infelizmente, em vez da
labuta em busca de nós mesmos, em nosso meio grassa a mais
ridícula contrafação desse fenômeno raro e maravilhoso e, a tal
ponto se vulgarizou essa compreensão que parece aos mais banais
e tolos dentre os junguianos que a meta de toda análise só pode ser
a individuação, como se um mero homem de carne e sangue
pudesse forçar a natureza, ou desvelar por um ato enérgico de
vontade a ignorância de outrem. Não, ninguém pode, e se pudesse
não deveria. Se você, estimado leitor, tiver terminado essas linhas
mal traçadas com dúvidas, perguntas, ou espanto diante de
algumas das afirmações aqui contidas, me dou por satisfeito.
Bibliografia
Jung, C. G. (1991), Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes.
Jung, C. G. (1986), A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes.
Jung, C. G. (2002), A Energia Psíquica. Petrópolis: Vozes.
Jung, C. G. (1950), Psychologische Typen. Zürich: Verlag.
Sumário
Introdução 5
O método junguiano de interpretação de sonhos 17
Sobre o Método Dialético ١٤٩
Uma última palavra sobre a aplicação