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ISSN 1676-0387
Editores Responsáveis
Paulo Toledo Machado Filho
Sandra Maria Greger Tavares
Conselho Consultivo
Maria Helena M.Guerra
Neusa Maria Lopes Sauaia
Paulo Toledo Machado Filho
Sandra Maria Greger Tavares
Conselho Editorial
Ana Maria Galrão Rios
Anita Ribeiro-Blanchard
Paulo Toledo Machado Filho
Sandra Maria Greger Tavares
Revisão Técnica
Ana Maria Galrão Rios
Anita Ribeiro-Blanchard
Juliana Martinez Serrano Guidugli
Regina Figueiredo
Sandra Maria Greger Tavares
Revisão Gramatical
Fátima Aparecida Garcia Loureiro Vares
Imagem de Capa
Mandala nepalense em sânscrito entrelaçada
ao símbolo chinês taoísta Yin e Yang
Diagramação
Felippe Romanelli
São Paulo – São Paulo, Brasil, 2021
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SUMÁRIO
EDITORIAL
Sandra Greger Tavares, Paulo Toledo Machado Filho..............................................................5
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EDITORIAL
Entre 2020 e 2021, e ainda não sabemos até quando, enfrentamos a maior catástrofe
de nossa história: a pandemia do COVID-19, que assola a humanidade, já ceifou em nos-
so país cerca de 600 000 vidas, tragédia potencializada por uma gigantesca crise social e
política, que lançou nas ruas de nossas principais cidades uma multidão de desemprega-
dos e famintos. Crise que se intensifica ainda mais por meio da atitude profundamente
polarizada de nossa população e da incapacidade e completa falta de sensibilidade do
pior presidente que já governou o nosso país.
Os artigos que este ano recebemos para publicação refletem, de certo modo, o mo-
mento que apontamos acima: dos oito artigos recebidos, seis abordam algum tipo de
situação traumática, quer seja o trauma infantil e seus efeitos na vida adulta, o trauma
da ferida do feminino ou os traumas coletivos, históricos ou sociais e que nos afetam
indiretamente. Os autores não deixaram de apontar a Calatonia e outras técnicas de
abordagem corporal como recursos que, integrados à abordagem simbólica junguiana,
podem ser utilizados nos cuidados e tratamento das feridas traumáticas. Curiosamente,
observamos que as referências citadas pelos autores dos artigos que publicamos este
ano, fontes que em anos anteriores privilegiaram principalmente outros autores jun-
guianos ou pós-junguianos e temáticas mitológicas ou amplificações simbólicas, con-
vergiram neste momento, para autores como Kalsched, Levine, Sieff e Corrigan, entre
outros, que se relacionam, ou de algum modo aproximam-se do estudo dos transtornos
traumáticos através da área da neurociência. Vejamos os artigos.
Orientando sua atenção para os eventos traumáticos (psicológicos ou físicos) e os
atos de negligência entre cuidadores e bebês ocorridos na infância e a influência poste-
rior destes acontecimentos na vida e no corpo do adulto, Alessandra N. R. Leite desen-
volveu um cuidadoso estudo, em seu artigo “O impacto do trauma infantil na psique e
no corpo do adulto”.
Por meio da análise da história de Karabá no filme de animação “Kiriku e a Feiticeira”,
do diretor franco-belga Michel Ocelot, Luciana F. do Amaral, em seu artigo “O trauma e
a psique feminina na perspectiva junguiana corporal: análise da animação Kiriku e a Fei-
ticeira” também se debruçou sobre a referência traumática, procedendo a interessantes
amplificações sobre a dinâmica da psique feminina traumatizada em uma sociedade re-
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gida unilateralmente por valores patriarcais. A autora discute a ferida social produzida
pela violência contra a mulher, que configura um trauma histórico (Levine), correspon-
dente a um comportamento que se persevera por séculos e séculos a fio.
Outro contundente artigo, este de Sâmia Riachi, “Sonhos sobre catástrofe: uma com-
paração junguiana entre os sonhos do nazismo e os sonhos da pandemia do COVID-19”,
aborda o trauma coletivo. A autora coletou sonhos em diferentes locais durante o perío-
do inicial da pandemia do COVID-19 e os comparou com o relato dos sonhos do período
da II Grande Guerra, coletados pela jornalista Charlotte Beradt (Sonhos do III Reich). A
autora, mediante a análise dos sonhos que coletou baseada na perspectiva junguiana,
também constatou o estado de sofrimento psíquico dos brasileiros, sofrimento traduzido
pelos sonhos que envolvem a pandemia e também pelo momento político que vivemos.
Ampliando a produção de artigos tematizados pela Calatonia, a autora Claudia Her-
bert, em seu artigo “Calatonia e toque sutil na cura do trauma”, abordou a aplicação das
técnicas da Calatonia e outros toques sutis (Pethö Sándor) orientados para a cura do
trauma. A autora estudou, por meio de hipóteses recentes da neurociência, os efeitos
dos toques na ocorrência do recondicionamento psicofísico e da reorganização autonô-
mica, durante o tratamento da pessoa traumatizada.
Também a partir da abordagem sobre um contexto traumático, mas orientado para
o âmbito coletivo, social e político, e observando o funcionamento do cérebro de uma
pessoa incapaz de pensar com base em evidências, Paulo Machado fez, em seu artigo “A
dança das polaridades”, uma reflexão sobre a desinformação orientada (as fake news), a
polarização de opiniões e o debate sobre temas sensíveis que emergiram na atualidade
(questões étnicas e raciais, gênero, violência contra vulneráveis, etc.), por meio de am-
plificações embasadas na sabedoria essencial das mitologias e na perspectiva simbólica
da psicologia analítica.
Em outro artigo muito sensível, “Uma análise junguiana do corpo psíquico de pessoas
em situação de rua”, Mariana G. Salerno também refletiu sobre o trauma social e coleti-
vo, analisando o impacto da situação de rua no corpo psíquico de uma pessoa sem abri-
go. A partir da discussão sobre autores das áreas da psicologia analítica, da abordagem
corporal junguiana, da psicologia arquetípica e da psicologia socioambiental, a autora
verificou a importância da moradia para a estruturação da identidade de lugar.
“A jornada do herói e o processo de individuação de Simba” é um outro artigo em que
os autores, Eliwelton G. Batista e Sueli A. V. Arruda, procederam à análise de um filme
de animação, neste caso o “O Rei Leão”, filme produzido pela Walt Disney Pictures e diri-
gido por Roger Allers e Rob Minkoff, em 1994. Por meio de um estudo cuidadoso e bem
sistemático, os autores metaforizaram a história de Simba com o mitologema da jornada
do herói, de Campbell e com o processo de individuação.
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INUMERÁVEIS (2020)1
Bráulio Bessa
Chico César
1 O poema: “Os inumeráveis” de Bráulio Bessa, escritor, cordelista e poeta cearense, inspirado em dados
de um memorial às vítimas fatais da pandemia de COVID-19, teve por objetivo, segundo o autor, promover
conscientização sobre o fato de que estas e outras vítimas são muito mais do que números que se acumu-
lam nas estatísticas diárias, são pessoas e não podem ser esquecidas. O cantor, compositor e escritor parai-
bano Chico César compôs uma música baseada neste poema, cuja melodia se encaixou na métrica da letra.
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Resumo
O presente estudo tem como objetivo relacionar os eventos traumáticos ocorridos na infância, tanto os
traumas psicológicos e físicos, bem como os atos de negligência entre cuidador e bebê, além da influência
destes na vida e no corpo do adulto. O trabalho foi baseado na linha teórica junguiana.
Palavras-chave: Trauma, Corpo, Psique e Jung.
Abstract
The present study aims to relate the traumatic events that happen in childhood such as psychological and
physical traumas, as well as acts of negligence between caregiver and child and their influence on the
adult life and body. The work was based on the jungian theory.
Key words: Trauma, Body, Psyche and Jung.
1 Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e psicoterapeuta com Especiali-
zação em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP, e-mail: alenar-
delli.puc@gmail.com
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Introdução
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Entende-se, portanto, que é complexo para a criança compreender que os seus cuida-
dores sejam os responsáveis pelos danos emocionais, e pelos sentimentos negativos sen-
tidos por ela. Como as crianças dependem de seus cuidadores para sobreviver, não con-
seguem chegar à hipótese de que estes sejam os causadores de suas dores emocionais.
Desta forma, diante de tais dificuldades, a criança atribui a culpa a si mesma, como
se fosse ela a responsável pelas atitudes negligenciadas, abusivas ou físicas, desenca-
deadas por seus cuidadores. Ao fazer este movimento de atribuir a culpa a si, ocorre a
dissociação:
Uma reação normal à dor insuportável é se retirar; porém, sendo dependente de cuida-
dores, a criança não pode sair fisicamente. Em vez disso, uma parte do “eu” se retira. A
essência - a chamada vida: criativa, relacional e autêntica, que se encontra no âmago de
cada indivíduo - se esconde nas profundezas do inconsciente. Simultaneamente, outra parte
da psique cresce prematuramente. A divisão inicial da psique é um milagre, porque evita
a destruição psicológica, protege a essência, encapsulando-a. No entanto, também é de-
sastrosa, pois conduz a uma dissociação do que há de mais vital e criativo no indivíduo […]
A dissociação é um processo inconsciente, que ocorre fora do campo da consciência e da
percepção (SIEFF, 2019, p. 39).
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Um complexo traumático causa a dissociação da psique. O complexo não está sob controle
da vontade e, por essa razão, possui a qualidade da autonomia psíquica. Sua autonomia
consiste no poder de se manifestar independentemente da vontade e, até mesmo, em opo-
sição direta às tendências conscientes: ele se impõe tiranicamente à mente consciente. A
explosão de afeto é uma completa invasão do indivíduo, ela arremete contra ele como um
inimigo ou animal selvagem. Observei com frequência que o afeto traumático típico é repre-
sentado nos sonhos como um animal selvagem e perigoso, uma ilustração notável da sua
natureza autônoma, quando separado da consciência. (p. 31)
Desta forma, entende-se que as experiências dolorosas não desaparecem, mas estão
armazenadas no inconsciente constelando-se, portanto, como um complexo ativo e au-
tônomo, no que diz respeito à experiência traumática.
É importante ressaltar que o complexo é um acúmulo de energia, e se esta energia for
maior do que o ego, torna-se sintoma. Além disso, entrar em contato com os conteúdos
do complexo através de sonhos, como Jung pontuou, não significa necessariamente que
o indivíduo lidará emocionalmente com tais núcleos.
Jacobi (1990) afirma que “os complexos autônomos são, por natureza, inconscientes,
e aparecem como não pertencentes ao próprio “eu”, ou seja, como qualidades de obje-
tos ou pessoas estranhas, portanto, projetadas” (p. 22). Ao se entrar em contato com um
complexo, pode ser que haja tanto a identificação, quanto a projeção ou a confrontação
– sendo esta última, a única forma de se contribuir para a dissolução do complexo.
Entende-se, portanto, que confrontar um complexo não é uma tarefa fácil. Sendo as-
sim, o sistema de defesa fará de tudo para que o indivíduo não entre em contato com a
vivência traumática. Ademais, ao mesmo passo que o sujeito conseguirá viver a vida, não
a vivenciará de forma real e absoluta. Por conseguinte, de acordo com Kalsched (2013):
“no trauma, o objetivo da psique é a sobrevivência, e não a individuação” (p. 130).
Mais adiante, o mesmo autor refere que este é um caminho trágico, pois a psique fica
estagnada no trauma original, não considerando que, no decorrer da vida, passamos por
um processo de amadurecimento – a partir disto, outras defesas (antes inexistentes),
estarão disponíveis. A energia psíquica fica indisponível para o processo de individuação,
pois o único foco da defesa é proteger o indivíduo, de qualquer situação que represente
alguma ameaça.
Se a psique da criança traumatizada está focada na manutenção do sistema de defesa
– o qual, ao mesmo passo em que a protege, também a oprime – ela não dará abertura
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Se formos envolvidos por amor e harmonia, quando bebês, essa memória será incorporada,
permitindo que nos transformemos em adultos possuidores de uma estrutura firme, que se
movem de maneira forte, graciosa, flexível e coerente. Se formos recebidos com ambivalên-
cia ou desapego, então pode haver regiões do nosso corpo que sejam duras, congeladas,
rígidas e amortecidas. Se formos tratados ora com carência emocional, ora com raiva, e em
outros momentos com desapego, então talvez o corpo se mova de maneira desorganizada
e conflitante (p.108).
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Assim, torna-se importante ressaltar que, nos primeiros anos de vida, os cuidadores
são os espelhos das crianças. A falta de um espelhamento positivo, caracterizado pela
negligência, comprometerá o desenvolvimento do cérebro emocional. Este comprome-
timento gera dificuldades na interação social, e no controle saudável dos estados emo-
cionais, tanto positivos quanto negativos. Como é possível controlar estados emocionais
e expressá-los de forma coerente, se o desenvolvimento desta parte do cérebro foi pre-
judicado? Desta forma, entende-se que a relação entre um bebê e seu cuidador moldará
o desenvolvimento do cérebro direito emocional da criança.
Contudo, a psicoterapia é um recurso facilitador, capaz de promover o desenvolvi-
mento das funções atribuídas ao cérebro direito. Segundo afirma Schore (2019) apud
Sieff (2019): “O ponto mais importante relativo à psicoterapia, é que o cérebro direito
é especialista em processar informações novas” (p. 221). Portanto, a psicoterapia pode
auxiliar o indivíduo na integração e elaboração de novas emoções, que antes estavam
pouco desenvolvidas, devido à negligência dos cuidadores.
Entretanto, é fundamental que, na relação entre paciente e terapeuta, haja um víncu-
lo suficientemente forte, a fim de que se favoreça o desenvolvimento do cérebro direito
do paciente.
Foi possível compreender até aqui, que o adulto traumatizado na infância irá se de-
parar com as consequências da dissociação. Essas consequências, por vezes, são difíceis
de serem enfrentadas pelo indivíduo. Quando isso acontece, pode haver o surgimento
de sintomas.
Tal sintoma, que será sentido pelo corpo, poderá se “materializar” e receber um
nome, como por exemplo: ataques de ansiedade, que causarão falta de ar e taquicardia;
a tristeza intensa, que poderá desencadear uma angústia representada, muitas vezes,
por uma dor no peito e nós na garganta; enxaquecas persistentes; dores de barriga, que
se tornam gastrite nervosa; entre outros. A partir disto, o adulto traumatizado não con-
seguirá mais fugir desta dor que se corporificará, e será convidado a enxergá-la.
Quando ele consegue acessar a dor, por meio do sintoma que emergiu, é neste mo-
mento que se iniciará o processo de cura. Para Nijenhuis (2019) apud Sieff (2019, a cura
do trauma emocional constitui-se em:
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integrada. O trabalho de cura é invariavelmente sofrido, e pode levar a muitos anos, espe-
cialmente em caso de trauma crônico e grave (p. 195).
Neste modelo de cura, proposto pelo autor, é de extrema importância que as partes
dissociadas sejam identificadas, e se tornem conscientes. É necessário que o indivíduo
reconheça, para si mesmo, eventos da sua infância os quais ele considera que foram
traumáticos, e entender que estes ficaram no passado, embora exerçam influência em
sua vida atualmente.
É possível afirmar, portanto, que a cura requer a integração do trauma. As partes
dissociadas, as quais tem como principal função ajudar a criança a prosseguir com a sua
vida, precisam ser acessadas na fase adulta. Este acesso ajudará na compreensão de
que os eventos traumáticos fazem parte da sua história, e só assim as partes dissociadas
poderão ser integradas a uma personalidade coerente. É um processo bastante difícil e
desafiador, que requer paciência, coragem, e entendimento de que o que aconteceu não
foi culpa do traumatizado.
Por mais que um indivíduo traumatizado acredite que o caminho da negação de seus
sentimentos é o mais fácil, o mesmo irá sofrer com este movimento, pois não é possível
fugir daquilo que faz parte de nós. Lutar contra os medos e aflições, é uma batalha per-
dida.
A partir do momento que o indivíduo compreende que o caminho é acessar fielmente
seus conteúdos inconscientes, por meio do trabalho com os sonhos e técnicas corporais,
por exemplo, é dado o primeiro passo. Isto favorece tanto a ampliação, quanto a retoma-
da da progressão do processo de autoconhecimento, e da individuação.
O fato de se conectar com sentimentos que machucam, causam no indivíduo uma
sensação ameaçadora que o faz, cada vez mais, se afastar daquilo que ele precisa com-
preender, a fim de evoluir não só pessoalmente, mas também emocionalmente. Se as
defesas não são reconhecidas, não é possível haver cura. Para ir ao encontro da cura, é
necessário conhecer as defesas protetoras, e entendê-las como recursos que contribu-
íram para a sobrevivência no passado, mas que agora, na fase adulta, perderam a sua
função inicial, tornando-se mais um movimento de autossabotagem.
Renunciar a um sistema protetor que proporcionou a sobrevivência, e saltar para o
mundo desconhecido, é aterrorizante. Como se desfazer de algo, que forneceu proteção
durante a vida inteira? É muito complexo e difícil para o indivíduo entender este meca-
nismo de defesa que, ao mesmo tempo que o protege, também o afasta de si mesmo.
Além disso, caso o indivíduo não consiga fazer o movimento de enfrentamento da
dor, evitando qualquer situação que possa ativar o gatilho do trauma, poderá impedir
a si mesmo de vivenciar situações benéficas. Portanto, devido ao trauma, o mesmo se
fechará para novas experiências, com medo destas serem catastróficas como foram no
passado.
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Conclusão
Quando o indivíduo vítima de trauma infantil se torna adulto, a vida emocional dele
e o seu mundo interior se diferenciam daqueles que não foram submetidos a uma si-
tuação traumática. O mundo do trauma faz o indivíduo crer, de uma forma implícita e
corporificada, que a sua vida e suas vivências foram prejudicadas.
Ao iniciar o movimento de compreensão do trauma, o indivíduo consegue dar o pri-
meiro passo em direção a sentir suas dores e medos, compreendendo que este conte-
údo faz parte dele – este ganho de consciência não faz compreender apenas a si, mas
também a relação com o outro. Este movimento de integração é o grande passo, tanto
para o início da conexão verdadeira entre mente e corpo, quanto para a ligação com as
partes que foram dissociadas.
Conclui-se, portanto, que o ponto inicial das nossas vivências mais puras e profundas,
tem o marco inicial na infância. O olhar cuidadoso que a criança necessita, irá determi-
nar o adulto que ela se formará no futuro. Adultos são crianças feridas, e para compre-
endermos o adulto temos que considerar a criança que este foi; a vida que levou; os
laços de afeto que foram criados, ou não.
Este estudo deixa como mensagem final, a relevância de nós, psicólogos, construir-
mos um olhar atento para a infância de nossos pacientes adultos, os quais constituíram
famílias e que passarão – se não tratados – seus traumas, em forma de projeção, adiante.
Para cuidarmos de uma flor, precisamos olhar primeiramente para a sua raiz – ali está
a base para que ela cresça e floresça. Se não tivermos um olhar cuidadoso para a raiz, de
nada adiantará regar as flores!
Referências
BERNSTEIN, Carol; BERTHERAT, Thérèse, O corpo tem suas razões: antiginástica e cons-
ciência de si. 11ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
FARAH, R.M. Integração psicofísica: o trabalho corporal e a Psicologia de C.G. Jung. 2ª
edição. São Paulo: Companhia ilimitada, 2008.
JACOBI, Jolande. Complexo, arquétipo, símbolo: na psicologia de C.G. Jung. 9ª edição.
São Paulo: Cultrix, 1990.
KALSCHED, Donald. O mundo interior do trauma: defesas arquetípicas do espírito pes-
soal. 1ª edição. São Paulo: Paulus, 2013.
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Resumo
O presente estudo analisou a história de Karabá na animação Kiriku e a Feiticeira (1998), com o objetivo
de exemplificar e amplificar a dinâmica da psique feminina traumatizada. Confrontou-se o conto com as
teorias sobre o trauma de Levine e Kalsched, e com outros conceitos da Psicologia Analítica, especialmen-
te o de Animus de Jung. A análise ofereceu subsídios para o manejo do trauma, além da possibilidade
de resgate e integração entre as polaridades feminina e masculina na psique, através da amplificação
simbólica do personagem Kiriku.
Palavras-chave: Trauma; Psique Feminina; Animus, Integração Fisiopsíquica.
Abstract
This study aimed at analyzing Karaba’s story from the animated film Kiriku and the Sorceress (1998), in
order to exemplify and explore the dynamic of the traumatized female psyche, by applying the theories of
trauma by Kalsched and Levine, as well as the Analytical Psychology, especially Jung’s concept of Animus.
Thus, it was possible to comprehend the trauma and the possibility of rescuing and integrating the polari-
ties of both the female and the male psyche through the symbolic role of the character Kiriku.
Key words: Trauma; Female Psyche; Animus; Physiopsychic Integration.
1 Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Especialização em Psicoterapia Analítica e
Abordagem Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae/ SP. e-mail: psi.famaral@gmail.com
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Introdução
Kalsched (2013) descreve o trauma como qualquer experiência que cause dor ou an-
siedade psíquica insuportáveis, de modo a sobrepujar as medidas defensivas habituais.
E acrescenta que, na prática clínica, já se sabe que as defesas patológicas têm um efeito
inadaptativo na vida posterior do paciente. Segundo o autor, a psique traumatizada sofre
uma dissociação significativa. Uma parte da consciência fica mais regredida, e a outra se
desenvolve precocemente, adaptando-se ao mundo exterior, e assumindo uma função
de cuidado ou proteção da parte que não se desenvolveu – ela fica, então, identificada
como o aspecto vulnerável e fragilizado da pessoa que sofreu o trauma. Nos sonhos ou
na mitologia, essa parte da personalidade que progrediu geralmente se apresenta como
uma figura poderosa, um “ser notável, benévolo ou malévolo, que protege ou oprime
o seu parceiro vulnerável, às vezes mantendo-o aprisionado internamente” (KALSHED,
2013, p. 16).
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com Levine (1999), os efeitos debilitantes do trauma seriam evitados por meio dessa
capacidade de acionar respostas fisiológicas eficazes ao evento ameaçador, fazendo com
que o indivíduo entre e saia, naturalmente, dessa resposta à situação.
E, de forma semelhante à descrição sobre os efeitos do trauma desenvolvida por Kals-
ched (2013), Levine (1999) postulou que o resultado desse processo gerador de sin-
tomas traumáticos, faz com que o indivíduo viva sob um constante estado de medo e
ansiedade, nunca sendo capaz de se sentir à vontade, com ele mesmo ou com o seu
mundo. Quando não resolvido, isto pode tornar a pessoa excessivamente cautelosa e
inibida. E as forças geradoras do trauma sendo tão poderosas, fazem com que as emo-
ções mobilizadas por ele incluam a fúria, o terror e a impotência. Além disso, da mes-
ma maneira que Kalsched (2013) descreveu a característica retraumatizante da psique
traumatizada, Levine (1999) afirmou que a energia acumulada é muito potente, a ponto
de levar o indivíduo a entrar em um circuito de repetições de situações, semelhantes
às vivenciadas com o trauma – colocando, dessa forma, em risco real a sua integridade
física e emocional. E isso acontece em uma tentativa inconsciente do corpo – que é visto
como uma unidade com a mente – de descarregar esse quantum energético, e fazer com
que os sintomas do trauma desapareçam.
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No contexto da Psicologia Analítica, Hillman (2020) foi o principal autor que proble-
matizou essa definição de Animus e Anima, desenvolvida por Jung. Para ele, a Anima
seria um arquétipo presente tanto em homens quanto em mulheres, equivalente a uma
figura feminina pertencente a qualquer pessoa, e que poderia ser relacionada com a
Alma humana, independente do sexo do indivíduo. Mas, ainda assim, essa teoria não en-
globa as questões multifacetárias de gênero. E nem tampouco o que poderia acontecer,
em termos de dinâmica psíquica, considerando essa realidade plural, na qual a interação
entre sexo biológico e gênero se manifestam de formas diversas em indivíduos – tra-
zendo ao mundo um vasto espectro de maneiras de expressão da sexualidade, através
dessa dança psíquica entre consciente e inconsciente, feminino e masculino. Contudo,
como o presente estudo focaliza a dinâmica do desenvolvimento da psique feminina nas
mulheres, para objetivos práticos, o conceito de Animus aqui utilizado foi o junguiano
tradicional, que é compreendido como a contraparte masculina inconsciente, presente
na psique da mulher. Foi explorada a ideia de Animus na psique feminina como a figura
do psicopompo, o qual ilumina o caminho do desenvolvimento psicológico, conduzindo-
-a à uma realização psíquica, por meio da integração de aspectos importantes do seu
lado masculino inconsciente (Animus), com a sua polaridade feminina consciente.
A natureza da psique humana faz com que a mesma esteja sempre orientada para
a integração das polaridades, ou conteúdos conscientes e inconscientes, por meio do
que Jung (2011) chamou de função transcendente. Essa função guia o processo de indi-
viduação, auxiliando o indivíduo a “defrontar-se com o Animus ou com a Anima, a fim
de alcançar uma união superior, uma Coniunctio Oppositorum (unificação dos opostos).
Este é um pré-requisito indispensável para se chegar à totalidade” (JUNG, 2011, p. 45).
De acordo com Johnson (1987), essa unificação “é a soma de todas as forças divergentes,
das energias e das qualidades que vivem dentro de nós e que nos fazem ser o que so-
mos: um indivíduo único” (p. 38). Sanford (1987) comparou a união dessas polaridades
femininas e masculinas ao “desejo que a alma tem de unir-se à consciência e forjar uma
personalidade indivisível e criativa” (p. 148).
Segundo Jung (2020), essa figura interna é uma construção dialética entre a imagem
coletiva do masculino e feminino, e as experiências que cada um tem ao longo da vida
como homens e mulheres. Logo, é imprescindível destacar-se a importância da cultura
nessa construção no imaginário coletivo, das imagens internas do masculino e do femi-
nino. De acordo com Jung (2020), cabe à mulher se dedicar a essa ampliação da consci-
ência, via relacionamento com sua figura masculina interior. Se ela falhar nessa tarefa, a
libido destinada a isso cai no inconsciente e ativa o arquétipo do Animus, tornando esse
complexo autônomo e negativo, podendo, dessa maneira, subjugar o eu consciente. Se-
ria dito, nesse caso, que o ego da mulher foi subjugado, dominado ou possuído pela
figura de seu Animus.
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“Os anjos sobem e descem a escada. Eles são todas as energias ascendentes e des-
cendentes, transitando pela coluna vertebral” (MIRANDA, 2015, p. 169). Esse fluxo ener-
gético deve estar a serviço do desenvolvimento humano, que acontece a partir da explo-
ração do seu mundo interior e da superação das dualidades, ou do casamento sagrado
dos opostos. Segundo Miranda (2015), Eros seria essa força, na coluna vertebral, que
auxilia o indivíduo, por meio dos relacionamentos, a superar esses antagonismos, “assi-
milando forças diferentes e contrárias, integrando-as numa só e mesma vontade” (MI-
RANDA, 2015, p. 169). O amor, simbolizado pelo binômio Animus e Anima, ying e yang,
seria a força que canaliza o retorno à unidade. Miranda (2015) faz, ainda, uma relação
entre Eros ou Amor e a imagem de Jesus, como a figura que representa a integração em
si dessa unidade, e que vem à Terra para mostrar ao ser humano o caminho da ascensão.
“Nos mistérios cristãos, o Filho de Deus desceu e o Filho do Homem se elevou” (MIRAN-
DA, 2015, p. 171). Nesse sentido, estando na coluna a possibilidade de desenvolvimento
psíquico, por meio da confrontação dos opostos e contradições, e da integração dessas
polaridades, é imprescindível para esse processo de transformação, identificar aonde es-
tão inscritos todos os problemas que essa estrutura possa estar apresentando, todas as
tensões, sofrimentos e bloqueios gerados pelo medo. Afinal, se por um lado estaria na
coluna a possibilidade de ascensão progressiva e realização, qualquer anomalia ou pato-
logia nessa estrutura certamente contribuiria para um bloqueio desse desenvolvimento.
Dahlke (2007) ressalta dois aspectos importantes sobre a coluna como estrutura: a
forma de serpente e a estrutura polar. A polaridade pode ser entendida simbolicamente,
ao considerarmos a representação da serpente bíblica na história de Adão e Eva, animal
que seduziu os primeiros seres humanos, e os atraiu para o mundo polar dos opostos,
por meio do pecado original. “É somente após provar o fruto proibido, que os seres
humanos são capazes de reconhecer sua oposição, ou seja, sua sexualidade, e passam
a cobrir suas vergonhas com as famosas folhas de figueira” (DAHLKE, 2007, p. 203). De-
vido ao pecado original, os seres humanos são expulsos do paraíso (unidade) e passam
a habitar, como homens e mulheres, o mundo dos opostos, ou o mundo inferior da ma-
téria. Dessa maneira, Dahlke (2017) ressalta que a medicina antiga tinha como objetivo
endireitar a víbora, ou seja, elevar o inferior. Por isso, o símbolo da medicina ser uma
serpente enrolada no bastão de Esculápio. “Eles estavam incumbidos, ainda, de livrar
a humanidade do cativeiro do mundo material inferior, e dar-lhes acesso aos aspectos
ideais superiores da realidade” (DAHLKE, 2007, p. 204). Da mesma forma, encontra-se
um paralelo com o conhecimento milenar indiano, relacionando o desenvolvimento hu-
mano à energia da serpente, a Kundalini, e à coluna vertebral. Segundo essa teoria, o
despertar dessa serpente energética, que primordialmente repousa no osso sacro, faria
com que ela se elevasse, passando pelos sete centros energéticos localizados ao longo
da coluna (chakras) e, atingindo o chakra superior ou craniano, faria com que a pessoa
se realizasse ou iluminasse.
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A serpente, que seduziu as (primeiras) pessoas para o mundo da polaridade, também lhes
permite, no plano energético, crescer para além da polaridade e retornar à unidade, ou seja,
à cura. Assim, a serpente se torna o símbolo de desenvolvimento (DAHLKE, 2007, p. 204).
Contudo, apesar da serpente como símbolo da polaridade, estar numa ótima posi-
ção para auxiliar na superação do mundo dos contrários, ela igualmente pode se tornar
um veneno se não for tratada adequadamente, com equilíbrio. “Somente o caminho do
meio leva ao objetivo, e ele somente pode ser percorrido quando as energias polares
laterais, a feminina e a masculina, estão equilibradas” (DAHLKE, 2007, p. 205).
Sinopse
Kiriku e a Feiticeira é um longa-metragem de animação franco-belga de 1998, e dirigi-
do por Michel Ocelot. O diretor do filme passou parte da infância na Guiné, onde conhe-
ceu a lenda africana de Kiriku. O filme retrata a história de um recém-nascido, dotado de
qualidades impressionantes: sabe falar, andar e correr velozmente. Ele nasce imbuído
de coragem e curiosidade, e desde cedo quer entender a situação difícil na qual vive a
sua aldeia. Apesar de ser ainda muito pequeno, ele é destemido e bastante criativo, e
se incumbe de resgatar o vilarejo do domínio de Karabá, uma feiticeira com fama de ser
cruel, e de ter devorado todos os guerreiros do povoado que tentaram enfrentá-la. Seu
povo resistia, mas viviam em um estado permanente de temor, amargura e desesperan-
ça. Com o auxílio de sua mãe e avô, figuras sábias que se destacam na história, Kiriku
descobre o segredo de Karabá e, além de ajudá-la a superar uma dor do passado, eles se
casam e, juntos, retornam à aldeia, restabelecendo a harmonia entre os seus habitantes.
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Antes de virar feiticeira, e de ser temida por todos da aldeia por sua crueldade, Kara-
bá era uma mulher comum, como contou o avô de Kiriku ao revelar a verdadeira história
da feiticeira. A circunstância que a transformou na personagem da mulher má, e que usa
o seu poder para causar o mal e, principalmente, atacar e aprisionar os homens, pode
ser aludida a um episódio de abuso sexual, que aparece na história como uma cena na
qual homens imobilizam Karabá para que um deles enfie um espinho em suas costas.
Nesse momento, ela experencia o que Levine (1999) descreve como um acontecimento
potencialmente ameaçador à vida, que faz com que a pessoa não consiga responder em
um nível instintivo e de modo eficaz ao episódio. Karabá é vítima de um ato violento, e
seu corpo, em toda a sua dimensão corporal e psíquica, reage a essa vivência, transfor-
mando-a profundamente. A partir desse fato, sua vida nunca mais seria a mesma.
“As forças energéticas que resultam no trauma são imensamente poderosas. As emo-
ções que são geradas pelo trauma incluem a fúria, o terror e a impotência” (LEVINE, 1999,
p. 79). Como explorado anteriormente, em episódios de trauma, essas forças energéti-
cas poderosas funcionam como protetores da psique a fim de que ela não seja comple-
tamente aniquilada. Ocorre uma dissociação, e a parte traumatizada regressa a um nível
inconsciente no qual ficará aprisionada. Karabá vive a fúria, o terror e a impotência no
ato que fere brutalmente a sua feminilidade. A partir disso, nenhuma expressão criativa
e espontânea dessa polaridade feminina poderá fazer parte da sua vida. Funcionando
em um modo estritamente defensivo, para impedir uma retraumatização e garantir a
sua sobrevivência, a parte traumatizada da psique de Karabá é alienada, e essa cisão
provoca a paralisação do seu processo de desenvolvimento psicológico, ou individuação.
“O que foi concebido para ser uma defesa contra um trauma adicional, torna-se uma im-
portante resistência a todas as expressões espontâneas desprotegidas do eu no mundo.
A pessoa sobrevive, mas não é capaz de viver criativamente” (KALSCHED, 2013, p.18)
O impacto do trauma, na dinâmica psíquica da Karabá, faz com que ela se transforme
na feiticeira que domina a todos, pela via do medo e poder cruel. E o que a teoria de-
monstra é que esse modo de atuação é uma manifestação de uma psique na qual o ego
atua, de forma polarizada e unilateral, sob influência dos aspectos destrutivos do Ani-
mus. Seus poderes mágicos funcionam como defesas arcaicas e, a partir delas, qualquer
nova expressão tende a ser atacada, geralmente avaliadas como ameaças ou possibilida-
des de retraumatização. Para Karabá, todos os homens representam essa ameaça e pre-
cisam ser eliminados. Os poderes mágicos (defesas), que ela adquiriu a partir do espinho
envenenado (trauma), garantem essa proteção. Mas dada a sua natureza ambivalente,
são defesas que a mantém em um ciclo de repetição psíquica do trauma, aprisionando-a
nesse padrão destrutivo de existência, e que boicotam toda e qualquer possibilidade de
desenvolvimento. Defesas arcaicas são forças antivida, e “o resultado é que muitos de
nós ficamos crivados de medo e ansiedade, e nunca somos totalmente capazes de nos
sentir à vontade conosco ou com nosso mundo” (LEVINE, 1999, p. 32). Por esta razão,
Karabá não confia em ninguém, nunca sai de casa ou fica de costas. Ela não pode relaxar,
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porque a base da sua existência está ancorada nesse sistema regulatório de autocuida-
do, que rechaça as situações que a psique cria, projetadas no mundo, de romper com
essa unilateralidade.
Esse funcionamento do processo traumático é evidenciado quando o avô de Kiriku diz
que Karabá seria capaz de matar – defesas arcaicas – quem tentasse retirar o espinho,
pois ela teria que reviver a situação, e entrar novamente em contato com uma dor muito
maior do que se possa imaginar. Essa ambivalência da psique traumatizada, que recria
as situações do trauma original, na tentativa de cumprir com a sua natureza sintética e
integrativa, é representada na história por todos os homens da aldeia que enfrentaram
Karabá. O objetivo deles era libertar a aldeia dos domínios cruéis da feiticeira ou, em ou-
tras palavras, era a psique dela recriando esses enfrentamentos para tirar a aldeia – po-
laridade do feminino reprimido da psique de Karabá – desse ciclo que faz a vida minguar
e perder toda a beleza. Não à toa, as mulheres não usavam as joias que possuíam. Esses
ricos e exuberantes acessórios ficavam escondidos, e o pouco que ainda restava lhes foi
retirado. A fonte de água secou, não havia mais guerreiros na aldeia (potência de vida),
e as mulheres apresentavam as características inferiores do feminino: eram amargura-
das, rancorosas, mentirosas e fofoqueiras. Outro aspecto de cisão da psique de Karabá
se encontra na figura arquetípica do Velho Sábio. Se a aldeia representa a feminilidade
reprimida de Karabá, o arquétipo do Velho Sábio também apresenta, na narrativa, a sua
versão inferior ou negativa. O homem mais velho da aldeia, que deveria ser o portador
da história do povo e dotado de sabedoria ancestral, aparece como a figura de um velho
rabugento, descrente e mal-humorado. E a polaridade numinosa e criativa, que está no
inconsciente de Karabá, é projetada na imagem do Velho Sábio ou Velha Sábia, que vive
no interior de uma montanha na floresta – uma região que está fora dos domínios do
poder destrutivo da feiticeira, e que pode ser relacionada com a expressão do feminino
na sua maior potência, sob figura da Mãe Natureza ou Pachamama.
Se a aldeia e seus moradores representam a porção feminina inferior incorporada
ao ego de Karabá, os guerreiros que tentam destruí-la e o seu comportamento cruel
e agressivo, simbolizam a atuação unilateral do ego da feiticeira, sob influência do seu
Animus negativo, ou seja, a polaridade masculina tirana e destrutiva da psique. E, se no
núcleo do complexo encontra-se uma mulher e sua feminilidade extremamente feridas e
fragilizadas, toda essa destrutividade no comportamento de Karabá pode ser interpreta-
da como uma defesa típica do trauma que atua em um nível bastante primitivo, visando
proteger a psique de novos episódios de dissociação. Sendo assim, é possível compre-
ender por que as tentativas de enfrentar a feiticeira, por meio do uso da força, fracas-
saram. Qualquer tentativa, que dialogue apenas com a manifestação destrutiva do seu
complexo, terá o mesmo destino. Ninguém consegue enfrentar o potencial devastador
das defesas sélficas, sem ser fulminado por elas. Por isso que os guerreiros, projeção do
Animus negativo de Karabá e da polaridade masculina, que reflete o modelo patriarcal
de domínio pela força e pela negação de qualquer valor do feminino, fracassam e são
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aprisionados. Para romper esse ciclo, faz-se necessária a presença de uma força ou figura
que, ao invés de confrontar as defesas de Karabá, seja capaz de contorná-las, enxergando
o que existe para além da manifestação do trauma, que é a dor profunda que ele oculta.
A possibilidade desse resgate será explorada a partir da análise do personagem Kiriku.
Outro aspecto ainda importante da história dessa personagem a ser analisado, refe-
re-se ao local onde o espinho foi introduzido em seu corpo. Primeiramente, vale ressal-
tar a referência que Leloup (2015) faz às costas como o inconsciente, ou seja, a porção
psíquica que não se tem acesso fácil. Por isso que Karabá, na história, fica refém dos
efeitos manifestos na sua psique, consequência do evento traumático. Ela não dispõe de
recursos conscientes para lidar com a dor original do trauma. E o espinho, introduzido
em um local no qual ela não consegue retirar sozinha, simboliza essa incapacidade ou
paralisia psíquica. A coluna vertebral também é a representação da escada evolutiva do
indivíduo, por meio da circulação de energia vital, polarizada entre energias de quali-
dades masculinas e femininas, e que precisam ser integradas. Dessa forma, o espinho
introduzido bem no centro dessa estrutura justifica o bloqueio do desenvolvimento de
Karabá, e o desequilíbrio entre essas polaridades que marcam a sua personalidade. “Na
coluna vertebral, inscrevem-se todas as tensões e sofrimentos e bloqueios gerados pelo
medo” (MIRANDA, 2014, p. 173). No caso de Karabá, retirar o espinho significaria libe-
rar novamente o fluxo energético vital, e abrir a possibilidade para o equilíbrio entre os
polos masculino-feminino; porém, isso também significaria enfrentar novamente o seu
maior medo, que seria reviver a dor do trauma. Por último, é possível traçar um paralelo
entre o evento traumático e um ato de abuso sexual, ao relacioná-los com o significado
da coluna vertebral como a serpente bíblica, que seduz os primeiros humanos a provar
do fruto proibido, fato que os relega ao mundo polarizado e inferior da matéria e da
inconsciência. Após ser violentada sexualmente, ação simbolizada na história pela intro-
dução do espinho na sua coluna vertebral, Karabá passou a viver de maneira unilateral
e inconsciente a respeito das forças que passaram a atuar e ditar o seu comportamento.
Quando Karabá sai do palácio e ruma para a floresta determinada a recuperar as joias,
é possível, mais uma vez, fazer uma relação com as forças antivida das defesas próprias
da dinâmica psíquica do trauma. No momento em que a feiticeira adentra o território da
floresta, toda a natureza morre instantaneamente, simbolizando a paralisação do fluxo
natural da vida na psique traumatizada. Logo, assim que o espinho, símbolo do trauma, é
retirado e Karabá se percebe livre da dor, a natureza volta a florescer, ainda mais exube-
rante. Nessa cena, aparece novamente a ambivalência da dinâmica psíquica do trauma.
Karabá, sem o espinho (trauma), perde os seus poderes mágicos (defesas). Não sente
mais dor, mas agora está vulnerável à possibilidade de vivenciar episódios semelhantes
ao trauma original. Ela ressalta essa ambivalência, quando diz que o fato de perder os
poderes e deixar de ser uma feiticeira, voltando a ser a mulher que era no passado, traz
sorte e azar simultaneamente. Ela superou a dor do episódio de violência que a feriu tão
profundamente, porém seu ego continua atuando sob influência do complexo do Ani-
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mus negativo. Ou seja, feiticeira ou não, ela ainda enxerga os homens como potenciais
abusadores, imagens desse masculino opressor e violento do contexto patriarcal.
A psique de Karabá não está mais traumatizada, mas seu ego segue atuando unilate-
ralmente a partir da relação com a figura interna de aspectos destrutivos do masculino,
sendo essa figura uma construção dialética entre a realidade interna e externa, cons-
ciente e inconsciente. “O Animus, quando possui uma mulher, passa a ser destruidor
dos relacionamentos humanos e dos valores do Eros” (SANFORD, 1987, p. 47). A história
confirma essa hipótese quando Karabá diz a Kiriku que nunca se casará, porque não quer
ser empregada de ninguém. Karabá continua sendo vítima dos julgamentos de seu Ani-
mus, contudo, aqui nota-se que já existe a possibilidade de diálogo com o complexo, por
meio da figura mediadora de Kiriku, representante do potencial numinoso do masculino.
Como Sanford (1987) ressalta, se os julgamentos do Animus não forem enfrentados e
desafiados, ele acaba por anular a verdade psicológica mais profunda que a mulher pos-
sui. Porém, quando existe o diálogo com o inconsciente, e essa verdade é compreendida
e aceita, o lado positivo do Animus tende a aparecer. Karabá aceita a sua mais profunda
verdade ao reconhecer o valor do masculino de Kiriku, concordando que ele é diferente
dos outros homens e assentindo em beijá-lo. Esse beijo simboliza a união sagrada citada
por Johnson (1987), que seria a integração dessas duas polaridades masculina-feminina
da natureza humana. O casamento entre Karabá e Kiriku representa o reencontro do
caminho de desenvolvimento psicológico, ou processo de individuação. Essa união é a
totalidade da psique dessa personagem se realizando plenamente. A personagem de
Karabá espelha a possibilidade de transformação e transcendência do trauma de todas
as mulheres oprimidas, e feridas em seu feminino. Ela conta, através dessa narrativa, a
história do resgate da alma da mulher, e da feminilidade no mundo.
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com o trauma, contornando as defesas que o protegem, chegando até o núcleo de dor,
o espinho. Por isso que ele é o único que descobre o segredo de Karabá, pois também
é o único que possui os recursos necessários para retirá-lo. Kalsched e Levine ressaltam
a importância dessa abordagem cuidadosa no manejo do trauma, contornando as de-
fesas que protegem o ego fragilizado, mas que, paradoxalmente, também inviabilizam
a integração de conteúdos necessários para que o processo de individuação se realize.
Segundo Levine (1999), “precisamos deslizar com suavidade para dentro do trauma, e
depois nos retirar gradualmente, como se ele fosse uma armadilha chinesa” (p. 44).
Kiriku, curioso, inocente, pequeno e amoroso, simboliza, portanto, a possibilidade de
enfrentamento e manejo desse complexo. Com essa imagem da armadilha chinesa, ele
elabora um plano minucioso para conseguir concluir a sua missão, e retirar o espinho
com os dentes, em um ato preciso e delicado.
Para destruir os efeitos mortais do Animus, a alma da mulher “precisa estar cheia de
um espírito mais poderoso do que o do Animus destruidor, e sua capacidade para o Eros
e o relacionamento deve estar viva” (SANFORD, 1987, p.48). Kiriku representa esse po-
tencial transformador na psique de Karabá. No final, ele retira o espinho e a livra da dor.
Mesmo assim ela não consegue enxergar a possibilidade de se abrir novamente para o
amor. Sem as suas defesas, teme ser novamente ferida. Porém, Kiriku, representando os
valores elevados do masculino, tem a capacidade de afastar as forças do mal, manifes-
tações do ego de Karabá atuando de maneira unilateral sob influência do Animus nega-
tivo, que projeta no homem a figura do opressor. “Os opostos dentro de nós se acham
tão afastados entre si, que somente a grande força unificadora do Eros consegue reuni-
-los” (SANFORD, 1987, p. 118). Kiriku é a representação do Animus positivo de Karabá, e
cumpre o seu papel de guiar e acompanhar as mudanças e transformações de sua alma,
como um verdadeiro psicopompo. E Kiriku é, também, a simbolização dessa grande força
unificadora, o Amor, que une os princípios femininos e masculinos em uma totalidade
psíquica, simbolizada na história pelo casamento entre Kiriku e Karabá.
Considerações Finais
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essa força masculina criativa e transformadora, simbolizada por Kiriku, que precisa ser
integrada ao ego de Karabá. Mas, como se trata de uma dinâmica de trauma, esse diá-
logo com as figuras internas da psique torna-se viável somente por meio de um manejo
específico e adequado, considerando a complexidade das defesas envolvidas nesse tipo
de construção psíquica. Faz-se necessária uma abordagem cuidadosa e amorosa, que
contorne as poderosas defesas, na história simbolizadas pelos poderes mágicos de Kara-
bá, que impedem o acesso aos conteúdos inconscientes que precisam ser integrados à
consciência. Nesse sentido, o personagem Kiriku, curioso, inocente, pequeno e amoroso,
simbolizaria a possibilidade de enfrentamento e manejo desse complexo, justamente
por apresentar atributos que tornam possível o acesso ao trauma, a partir de uma atua-
ção que passa despercebida pelas defesas do Self. Ele aparece na história para resgatar
Karabá do ciclo destrutivo e paralisante no qual ela se encontra, causado pelo trauma
que sofreu, e cumpre o seu papel atuando como o Animus Positivo da mesma, guiando
e acompanhando as mudanças e transformações da alma dessa personagem feminina.
Miranda (2005) chama de Eros, ou Amor, a força integradora dos princípios masculinos
e femininos, resgatando a unidade da alma. Logo, Kiriku é, também, a simbolização des-
sa grande força unificadora, o Amor, que une essas energias de qualidades opostas e
complementares em uma totalidade psíquica, a Coniunctio Oppositorum de Jung (2001),
simbolizada na história pelo casamento entre Kiriku e Karabá.
Referências
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JUNG, Emma. Animus e Anima: uma introdução à psicologia analítica sobre os arqué-
tipos do masculino e feminino inconscientes. São Paulo: Editora Pensamento Cultrix,
2020.
KALSCHED, Donald. O mundo interior do trauma: defesas arquetípicas do espírito pes-
soal. São Paulo: Paulus, 2013.
KIRIKU E A FEITICEIRA. Direção: Michel Ocelot. França/Bélgica/Luxemburgo: Fran-
ce 3, 1998. (74 min). Disponível em: <YOUTUBE: https://www.youtube.com/
watch?v=Q4IuNCxQ-gs> acesso em 13 abril 2021.
LELOUP, Jean-Yves. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2015.
LEVINE, Peter A. O despertar do tigre curando o trauma. São Paulo: Summus, 1999.
MIRANDA, Evaristo Eduardo. Corpo Território do Sagrado. São Paulo: Edições Loyola
Jesuítas, 2014.
OPAS, BRASIL. Violência contra as mulheres. Folha informativa. Brasília, DF: OPAS Brasil,
nov. 2017. Disponível em: <https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_conten
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acesso em 12 dez. 2020.
SANFORD, John A. Os parceiros invisíveis: o masculino e o feminino dentro de cada um
de nós. Tradução I. F. Leal Ferreira – São Paulo: Paulus, 1987.
WHITMONT, Edward C. O retorno da Deusa. São Paulo: Summus, 1991.
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Claudia Herbert2
Resumo
Este artigo aborda a aplicação das técnicas Calatonia e Toque Sutil na cura de traumas. Uma defi-
nição e algumas informações essenciais sobre os efeitos do trauma serão apresentadas primeiro,
seguidas de uma exploração da lógica científica e dos princípios específicos para a aplicação da
Calatonia e do Toque Sutil na cura do trauma.
Palavras-chave: Calatonia, Trauma, Toque Sutil e Cura.
Abstract
This article discusses the application of Calatonia and Subtle Touch techniques in trauma healing.
A definition and some essential information about the effects of trauma will be presented first,
followed by an exploration of the scientific logic and specific principles for applying Calatonia
and the Subtle Touch in trauma healing.
Key words: Calatonia, Trauma, Subtle Touch and Healing.
1 Artigo publicado originalmente como capítulo do livro Calatonia e Toques Sutis: uma abordagem neu-
rocientífica (BLANCHARD, 2020).
2 PhD em psicologia clínica, registrada no The Health and Care Professions Council (HCPC) e
membra-associada da British Psychological Society (BPS). Supervisora de psicologia clínica certi-
ficada pelo Applied Psychology Practice Supervisor (RAPPS), Psicoterapeuta Cognitivo Compor-
tamental (UKCP/BABCP), Consultora de EMDR e Consultora de Crianças e Adolescentes EMDR
(acreditados pela EMDR Europa), Schema Therapist (ISST), especialista internacional em trauma.
Treinada em várias modalidades de terapias somáticas, incluindo Calatonia e Toque sutil. E-
-mail: claudia.private@oxdev.co.uk
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gas (MCGLONE et al., 2014) sugeriram que, em uma perspectiva mais ampla, os
CTs podem ser considerados um sistema aferente que se preocupa basicamente
com a representação do Eu, em vez de se concentrar em eventos externos.
Essa perspectiva apresentaria uma razão pela qual os métodos da Calatonia
e do Toque Sutil permitem uma conexão interna agradável e segura com o Eu:
essas técnicas não reativam o sistema circular de manutenção de trauma com
a conexão autônoma. Poderíamos supor que esse uso sutil, ao longo do tempo,
leve ao surgimento de novas respostas fisiológicas em um paciente e ao possível
enfraquecimento das respostas circulares autônomas ao trauma, previamente
estabelecidas.
Outra justificativa para a aplicação das técnicas da Calatonia e de Toque Sutil
como parte da terapia de trauma especializada refere-se à atividade cerebral em
pacientes traumatizados. Embora o trauma não tenha sido processado e integra-
do, os pacientes frequentemente se encontram em estados repetidos de hipera-
lerta em resposta a uma sensação de ameaça que ativa as ondas cerebrais gama
de alta frequência (oscilando até 100 Hz). Isso leva à liberação química de neu-
rotransmissores excitatórios, como cortisol, noradrenalina, glutamato e outros,
pressionando a frequência cardíaca, a pressão sanguínea, o sistema imunológico
e outras funções metabólicas de uma pessoa. Esses hormônios do estresse pare-
cem fazer com que os receptores de glutamato, chamados receptores glutama-
térgicos (receptores de ácido a-amino-3-hidroxi-5-metil-4-isoxazolepropiônico;
AMPA), sejam ativados na superfície pós-sináptica da amídala lateral e, devido
ao ambiente químico criado por esses neurotransmissores, desencadeiem a fos-
forilação deles, o que os ancora permanentemente no lugar e fixa o conteúdo do
trauma como memória no hipocampo para referência futura (RUDEN, 2011). Es-
ses receptores de AMPA ativados podem contribuir para a estimulação contínua
da amídala e de outras estruturas límbicas, mantendo uma pessoa traumatizada
trancada em seu circuito de hiperexcitação do estresse.
Em contraste, foram encontrados que movimentos suaves e o toque lento,
leve e suave podem gerar ondas cerebrais delta (48 Hz), levando a um estado
meditativo, levemente sonolento ou hipnagógico (KIM et al., 2007). As ondas
cerebrais delta também estão associadas aos estágios 3 e 4 de nossas fases do
sono e têm sido associadas à liberação de neurotransmissores calmantes, como
serotonina, ácido gama-aminobutírico (GABA) e ocitocina. A liberação desses
neurotransmissores calmantes tem um efeito positivo, restaurador e prazero-
so em uma pessoa. Além disso, foi proposto (CLEM; HUGANIR, 2010; KIM et
al., 2007) que esses neurotransmissores calmantes criam um ambiente rico em
cálcio, o que permite a produção de uma enzima que despotencializa esses re-
ceptores AMPA ativados na amídala lateral, interrompendo, assim, o circuito es-
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como elas podem operar em cada um deles. Por exemplo, os pacientes que so-
freram abuso físico e/ou sexual quando crianças, muitas vezes tiveram que criar
respostas dissociativas complexas para sua sobrevivência, o que lhes permitiu
ser compatíveis com o agressor (frequentemente pais, familiares próximos ou
amigos da família) para sobreviver, receber qualquer forma de atenção ou rece-
ber qualquer atitude percebida como amor.
Eles podem ter dado a permissão para serem tocados e talvez até mostrado
algum tipo de prazer, dependendo da natureza de suas circunstâncias traumáti-
cas. Esses pacientes podem hospedar várias partes da personalidade dissociada:
algumas que passivamente se deixaram ser tocadas pelo agressor, bem como a
ele obedecer; outras que sentiram pavor de serem tocadas; e, por fim, outras
que odiavam o toque.
Ao trabalhar com esses pacientes, é importante que seu sistema de orga-
nização interno seja explorado e que as partes da personalidade sejam cons-
cientizadas, tanto no paciente quanto no terapeuta, antes de tentar qualquer
trabalho com contato corporal.
É importante lembrar, nesse contexto, que as memórias de trauma e os pa-
drões de resposta que as diferentes partes da personalidade mantêm são atem-
porais e codificadas em seu contexto original. Isso significa que essas partes
dissociadas (embora agora sejam partes da personalidade do paciente em um
corpo adulto) ainda mantêm as informações emocionais e sensuais de como
elas se sentiram no momento do abuso (o que provavelmente ocorreu quando
estavam em um corpo muito mais jovem).
As impressões sensuais em particular são fonte de culpa e grande ambivalên-
cia com relação às circunstâncias do abuso, já que muitos perpetradores de abu-
so sexual procuram engajar o corpo da vítima em respostas eróticas, o que leva
a vítima a se perceber como um(a) participante voluntário(a) no abuso. Uma vez
que o sistema organizador interno tenha sido entendido (o que pode levar mui-
tos meses ou anos de terapia especializada em trauma), é importante envolver
as partes relevantes na determinação e no controle de como os pacientes que-
rem ser tocados e onde, a fim de proporcionar uma experiência de toque segura
e curativa.
Isso, junto a outras técnicas específicas de processamento de trauma, pode
permitir a liberação e a ressignificação de padrões codificados no passado. Não
se pode enfatizar o suficiente que o toque deve sempre ser administrado de
uma maneira que seja segura para o paciente no presente. Uma parte essencial
da terapia do trauma inclui uma relação de trabalho colaborativa entre o tera-
peuta e o paciente.
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Essa relação terapêutica deve ser sentida como sólida e capaz de empoderar
o indivíduo o suficiente para que possa expressar e compartilhar suas necessida-
des com o terapeuta. Da mesma maneira, os terapeutas têm que se sentir anco-
rados e centrados para que possam sintonizar profundamente as necessidades
de seus pacientes, mantendo limites seguros e saudáveis. Mesmo para pacien-
tes que sofreram um trauma menos complexo, é importante que o terapeuta te-
nha consciência de possíveis respostas dissociativas ao considerar a introdução
e administração de Calatonia e Toque Sutil.
Indicadores de dissociação podem ser, por exemplo, alterações no padrão
respiratório; voz; movimento dos olhos; rastreamento e olhar; agitação; inquie-
tação; mudanças na postura corporal; alterações no tônus muscular; padrões
repetitivos de micromovimento; espaçamento (quando o olhar perde o foco e a
pessoa não parece presente no aqui e agora) e entorpecimento em partes espe-
cíficas do corpo. Tais reações precisam ser tratadas pelo terapeuta por meio, por
exemplo, da exploração mútua dos possíveis gatilhos e técnicas de estabilização,
para permitir que o paciente ancore-se (grounding) novamente e volte à sua
janela de tolerância. Se o paciente já estiver familiarizado com a Calatonia ou
o Toque Sutil, elementos dessas técnicas poderão ser incluídos como parte do
processo de estabilização e ancoramento.
Em terceiro lugar, o momento adequado para usar a Calatonia e o Toque Sutil
como parte da terapia de trauma precisa ser cuidadosamente adaptado às ne-
cessidades individuais de cada paciente. Como uma observação ampla, descobri
que, quanto mais complexo e grave o trauma e mais fragmentada a personalida-
de do paciente, mais tempo levará até que a aplicação da Calatonia e do Toque
Sutil seja sentida como segura o suficiente para ser útil para um paciente. Tam-
bém observei que, em pacientes capazes de receber contato tátil, a Calatonia
costuma ser um primeiro passo muito útil para as experiências de contato.
Um dos benefícios da Calatonia é que ela segue um conjunto de movimentos
prescritos que, com o tempo, tornam-se previsíveis para os pacientes. Isso pode
parecer muito reconfortante e continente, especialmente para pacientes para
quem o toque foi uma fonte de insegurança e imprevisibilidade no passado. Para
muitos pacientes, quando seus pés são tocados, esse evento não dispara tantos
gatilhos como se estivessem sendo tocados em outras partes do corpo. No en-
tanto, isso não pode ser assumido e deve ser cuidadosamente explorado com
cada paciente.
Por exemplo, uma de minhas pacientes, Victória, que sofria de TDI como con-
sequência de abuso institucional grave, não conseguia tolerar qualquer forma
de contato físico. Após vários anos de terapia especializada em trauma, essa pa-
ciente me permitiu mostrar a ela a sequência de toques da Calatonia em uma
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das minhas mãos. Ela então tentou essa sequência com ela mesma em uma
de suas mãos. Gradualmente, essa paciente conseguiu, sob seu próprio con-
trole, permitir-me tocar suas mãos, mais tarde, seus pés e, eventualmente,
tornou-se muito confortável em deitar-se completamente vestida, mas sem
as meias, em cima de uma cama de massagem, apreciando toda a sequência
de Calatonia, inclusive na cabeça. Ela também relatava frequentemente ver
cores, ouvir sons e sentir que estava sendo ajudada por uma presença divina,
que ela experimentou como muito reconfortante e profundamente relaxan-
te e curativa.
O toque na Calatonia é realizado de maneira tão sutil, leve e conscientemente
sintonizada que a maioria dos pacientes nunca foi capaz de experimentar an-
teriormente essa qualidade de toque na vida (BLANCHARD; COMFORT, 2020).
Os pacientes costumam se surpreender com o quão profundamente relaxante
e alimentadora a Calatonia é, quando são capazes de experimentá-la. Costumo
conduzir sessões de duas horas com muitos dos meus pacientes de trauma e
acho útil para a maioria deles oferecer a Calatonia na última parte da sessão de
tratamento de trauma, regularmente (HERBERT, 2006).
A Calatonia parece complementar e integrar belamente os métodos de pro-
cessamento de trauma mais ativos – como EMDR, TF-CBT, técnica de Havening e
técnica de Modelo de Recursos Abrangentes (COMPREHENSIVE RESOURCE MO-
DEL; SCHWARZ; CORRIGAN, 2016), que consistem em recriar narrativas na forma
de imagens e/ou trabalho de transformação da sombra, que, com muitos de
meus pacientes, ocorrem nas partes iniciais da sessão de terapia. Inversamente,
para os pacientes que já tenham se acostumado a receber a Calatonia, também
posso usá-la no início de uma sessão de terapia de trauma para ajudar a ancorar,
gerar recursos e estabilizar um paciente desregulado, a fim de facilitar outros
trabalhos subsequentes durante a sessão.
As técnicas de Toque Sutil podem ser introduzidas quando um paciente de
trauma se sente seguro e familiarizado com a Calatonia e à vontade para ser to-
cado por seu terapeuta. Em seguida, essas técnicas podem ser usadas para tra-
balhar em áreas específicas do corpo nas quais a energia é bloqueada, impedin-
do os pacientes de sentirem a si mesmos. As técnicas de Toque Sutil podem ser
usadas para eliminar bloqueios nos corpos físico e energético (corpo sutil) de um
paciente e podem ser úteis para ancoramento, estabilização e autorregulação.
A aplicação de Calatonia e Toque Sutil na cura de traumas exige que o tera-
peuta de traumas se sintonize cuidadosamente com o processo terapêutico e
com as necessidades do paciente em todos os momentos. Treinamento abran-
gente e experiência em trabalhar com trauma são igualmente necessários.
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CATASTROPHE DREAMS:
A JUNGIAN COMPARISON BETWEEN NAZI DREAMS
AND COVID-19 PANDEMIC DREAMS
Sâmia Riachi1
Resumo
O presente artigo busca comparar os relatos de sonhos de pessoas oriundas de diferentes locais interna-
cionais, coletados durante o período inicial da pandemia de COVID-19, com relatos de sonhos de outro
período de catástrofe como o Terceiro Reich, coletados por Charlotte Beradt. O objetivo é realizar uma
leitura contemporânea da teoria de Jung e das produções do autor acerca do nazismo, atentando-se às
similaridades destes conteúdos.
Palavras-chave: Sonhos, Nazismo, COVID-19.
Abstract
This article seeks to compare dream reports of people from different parts of the world collected during
the initial period of the COVID-19 pandemic with dream reports from another catastrophe period such
as the Third Reich, collected by Charlotte Beradt. The objective is to carry out a contemporary reading
of Jung’s theory and the author’s productions about Nazism, paying attention to the similarities of these
contents.
Key words: Dreams, Nazism, COVID-19.
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Introdução
Em março de 2020 vimos algo inédito acontecer: o mundo inteiro parou. Talvez em
alguma criação artística, uma ficção científica ou algo parecido, esse cenário já tivesse
sido acessado – mas não exatamente na vida concreta, não em uma sociedade pautada
por tantas tecnologias, e tão prepotente como a atual.
Raul Seixas já trazia isso em sua canção “O dia em que a terra parou”, do seu álbum
de mesmo título, criado há quarenta e três anos (1977), tendo acessado muito antes,
uma ideia do que se vive atualmente. A música teve como inspiração o filme de ficção
científica “The day the Earth stood still”, lançado em 1951, sob a direção de Robert Wise.
Como Raul, Robert e outros artistas mostram a todos, que a arte tira o indivíduo da con-
cretude da vida, e o leva a estados mais profundos do ser, colocando-o em contato com
conteúdos ainda muito distantes da consciência. Por essa razão, muitas vezes, as obras
destes artistas não são compreendidas pela sociedade no momento de sua criação, mas
se tornam compreensíveis anos após a sua conclusão, trazendo enorme surpresa pelas
sincronicidades e símbolos que apresentam.
O COVID-19, um vírus absolutamente avassalador, colocou o homem diante de uma
pandemia mundial, e uma situação coletiva de ameaça à vida levando, até o momento,
cerca de quatro milhões de pessoas à morte no mundo.
Uma das principais formas de contenção da pandemia foi o isolamento social, o qual
colocou o ser humano em contato com o seu mundo interno, e de uma maneira abrupta.
Durante essa paralização inesperada, conteúdos extremamente profundos foram mobi-
lizados em cada um e, simultaneamente, ocorreram sonhos intensos, relatados diaria-
mente pelas mídias sociais globais. Tais sonhos trazem a complexidade de uma realida-
de, que permanece se instalando a cada dia, e que angustia a toda a humanidade.
Esta dura realidade está fazendo, então, com que os seres humanos entrem em con-
tato, de forma intensa e caótica, com sua sombra. Para além disso, o Brasil vive uma crise
política que acirra os antagonismos, e divide ainda mais a sua população, fomentando
a cultura do ódio, da polarização, da divisão. Isso faz com que brasileiros, residentes no
Brasil, tragam relatos curiosos e contundentes de sonhos acerca do momento, além de
instabilidades e incertezas.
Este artigo é resultado de uma pesquisa acerca de relatos de sonhos, fornecidos vo-
luntariamente por pessoas que habitavam locais diferentes do mundo, durante o perí-
odo inicial da pandemia causada pelo COVID-19. O objetivo do trabalho foi comparar
estes relatos entre si, bem como compará-los aos relatos oníricos coletados por Char-
lotte Beradt (2017), durante a ascensão nazista, e descritos no livro “Sonhos do Terceiro
Reich” – outro período de catástrofe. A partir da análise destes relatos, buscou-se fazer
uma releitura da visão de Jung a respeito do nazismo, verificando-se possíveis similari-
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dades destes conteúdos com o momento vivenciado atualmente por todos, em especial
no Brasil.
Sempre houve, em qualquer época, sonhos horríveis, cujas origens não estão apenas nas
tensões internas de indivíduos altamente sensíveis (poetas como Hebbel e Lichtenberg ti-
veram sonhos infernais), ou em uma situação ameaçadora particular vivida por uma pessoa
comum, mas sim em uma situação ameaçadora coletiva (2017, p. 38).
Entre as temáticas que surgiram nos sonhos do nazismo, Beradt (2017) destaca:
- a vida sem paredes, um movimento coletivo que elimina a vida privada, e que co-
loca o indivíduo em uma situação de extrema vulnerabilidade, o que, segundo a autora,
fazia com que o indivíduo só pudesse viver a sua intimidade em seus sonhos;
- a sensação de ser ignorado, e não ser visto em seu sofrimento, o que mostra que a
situação coletiva de ameaça era vivida de forma individual e solitária;
- a sensação de culpa, em quem se expressava de maneira genuína, mas de forma
diferente da que era imposta e esperada, coletivamente, no regime nazista;
- a sensação de não encontrar alegria em mais nada, o que é entendido como perce-
ber-se em um mundo sem perspectivas de mudança;
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- a angústia de ver risco em tudo, o que, ao ver da autora, faz com que o indivíduo se
perceba imerso em uma atmosfera persecutória, aparentemente sem fim;
- a percepção de que o bem comum vem antes do bem pessoal, o que, no caso do
nazismo, “justificava” as ações criminosas de Hitler, o qual tinha um objetivo de criar
uma raça ariana e, para isso, eliminava violentamente quem não fosse “puro”, e não
atendesse a este ideal;
- a sensação de não ser compreendido nem por si próprio, como forma de se criar
defesas, na tentativa de o indivíduo esconder de si mesmo os sentimentos mais genuí-
nos, que diferissem do que era adequado, segundo a cultura nazista;
- a sensação de estar em um “Big Brother”, a sensação de saber-se vigiado o tempo
todo;
- a sensação de sentir-se indefeso, o que, segundo Charlotte, é um arquétipo presen-
te e visível em um estado totalitário;
- a existência do não herói, aquele que não consegue reagir, que não promove ações
ou atrocidades, mas apenas não ações;
- a sensação de “vontade atrofiada”, uma paralização da vida; a tentativa de trans-
cender a realidade imposta, tentando-se reestabelecer a vida;
- antissemitismo imposto e a sensação de impotência, criando repulsa, inclusive às
pessoas próximas, como familiares que não fizessem parte da raça pura, e que poderiam
simbolizar uma ameaça à vida do indivíduo;
- a existência do “grupo dos desprezados”, os que seriam perigosos por serem dife-
rentes da ideologia da raça ariana, trazida e fomentada por Hitler e que, de certa forma,
deveriam ser excluídos e/ou eliminados;
- a sensação de estar fazendo algo errado, em relação a qualquer expressão genuína
individual, que diferisse da imposição feita coletivamente;
- A presença de pessoas atuantes, que conseguiam se defender da realidade impos-
ta, o que seria um movimento de resistência;
- a presença de sonhos com soluções criativas, e que mostravam a possibilidade de
continuidade da vida;
- sonhos que mostravam que a realidade era mais séria do que parecia, quando o
indivíduo se percebia sendo e atuando exatamente como lhe foi imposto, sem escolha
alguma, ainda que não concordasse com tal atitude;
- a presença de sonhos que refletiam a dificuldade de resistência, tentativa realizada
mesmo diante de um cenário repleto de atrocidades, como forma de sobrevivência;
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- a sensação de não ser acolhido em nenhum lugar, por ter que fugir de sua terra
mãe, e não encontrar abrigo em nenhum outro local;
- a presença da indagação “como será o futuro?”, em um contexto de inúmeras ins-
tabilidades, e a possibilidade de perda de raízes. E, principalmente;
- a necessidade de se reconhecer o totalitarismo, quando o caminhar coletivo era
imposto, retirando-se quaisquer possibilidades de expressões individuais que fossem di-
ferentes deste movimento.
A respeito deste último tópico, o totalitarismo, a autora afirma que
Essa também é a lição de todas as fábulas políticas sonhadas no Terceiro Reich, que – como
todas as fábulas – contêm não apenas explicações, mas também alertas: de que as manifes-
tações do totalitarismo precisam ser reconhecidas – antes que as capas e os capuzes sejam
removidos, como no sonho do guia das montanhas; antes que nos impeçam de dizer “eu” e
nos obriguem a falar de tal maneira que não entendamos a nós próprios; antes que a “vida
sem parede” tenha início. (BERADT, 2017, p. 160)
Sobre Hitler, Dunker (2017, p. 19), que escreveu o prefácio da primeira edição do
livro de Charlotte Beradt lançado no Brasil, afirma que este “unificou seus inimigos dis-
seminando a cultura do ódio, do medo e da suspeita”, e complementa o seu raciocínio
com uma frase de Beradt: “Acirrar antagonismos naturais, criar antagonismos artificiais,
formar grupos nocivos ou de elite, e jogar um contra o outro, são os princípios básicos
da ditadura totalitária” (DUNKER apud BERADT, 2017, p. 20).
A pesquisa realizada pela jornalista, acerca da vida onírica durante o Terceiro Reich,
veio ao encontro dos objetivos desta pesquisa, que observou como se comporta a psique
de um grupo de pessoas em um estado coletivo de ameaça à vida. Seu livro é uma das
poucas referências do trabalho com sonhos durante um período crítico da humanidade –
por isso, foi fundamental no desenvolvimento deste trabalho e, coincidência ou não, pa-
rece apresentar conteúdos similares aos dos sonhos da pandemia, em especial, no Brasil.
Segundo Jung (2000), os sonhos são produtos espontâneos da psique e agem como
ponte, conectando consciente e inconsciente por meio de símbolos. Para Jung, os so-
nhos provam a existência dos arquétipos, e nos colocam em contato não só com o in-
consciente pessoal, mas também com o inconsciente coletivo, mostrando a capacidade
simbolizadora das pessoas.
Jung propõe que
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Voltemo-nos agora para a questão do modo pelo qual pode ser provada a existência de
arquétipos. Visto que estes produzem certas formas anímicas, temos que explicar onde e
como podemos apreender o material que torna tais formas visíveis. A fonte principal está
nos sonhos, que têm a vantagem de serem produtos espontâneos da psique inconsciente,
independentemente da vontade, sendo, por conseguinte, produtos da natureza, puros e
não influenciados por qualquer intenção consciente (JUNG, 2000, p. 58-59).
Os soldados em luta sonhavam muito menos com a guerra do que com suas casas. Os psi-
quiatras militares admitiram, por princípio, retirar um homem do front se começasse a so-
nhar com muitas cenas de guerra; o que significaria que ele não tinha qualquer defesa psí-
quica contra impressões vindas do exterior. (JUNG, 2016, p. 330).
Os sonhos extrassensoriais, de acordo com Matoon (2013), são sonhos que escapam
de uma compreensão lógica e consciente – mostram processos psíquicos paralelos, que
trazem percepções muito próximas e, em detalhes, de uma situação real, ainda não vivi-
da pelo sonhador, a qual só é confirmada quando ocorre na vida consciente, a manifesta-
ção de tais aspectos do sonho. Os sonhos extrassensoriais também trazem informações
importantes, não só para o sonhador mas para outras pessoas.
Além da classificação de sonhos proposta por Matoon (2013), considerou-se também
os sonhos de transcendência, definidos como os sonhos que refletem formas criativas
de conduzir o sonhador à totalidade. Afinal, como diz Jung:
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Neste caso, o conhecimento dos símbolos é indispensável, pois é nestes que se dá a união
de conteúdos conscientes e inconscientes. Da união emergem novas situações ou estados
de consciência. Designei, por isso, a união dos opostos pelo termo ‘função transcendente’
(2000, p.524).
O momento coletivo que se está vivendo é refletido pelos relatos nas redes sociais,
e neste sentido, pode-se fazer um paralelo com a seguinte afirmação de Jung: “Uma
comunidade é um organismo, uma simbiose, e formamos um tipo de organismo aqui en-
quanto pensamos juntos; e se algo perturbador surge nesse organismo, alguma mente
recebe a perturbação e diz: ‘Olhem’” (JUNG, 2017, p. 55).
Experiências deste tipo são comuns em tribos indígenas e outros povos ancestrais,
que permanecem conectados com sua essência mais primitiva e compartilham tais ex-
periências como guias, mensagens dos deuses. Atualmente, nos sonhos compartilhados
em rede, de forma virtual, percebe-se este organismo afetado, mostrando que o proble-
ma de um é um problema de todos.
As descrições dos sonhos da pandemia de COVID-19 apresentam temáticas seme-
lhantes, mesmo sendo relatadas em países e continentes diferentes, como se todos os
humanos estivessem experimentando, simultaneamente, as mesmas percepções tam-
bém em sua vida onírica e, através dela, estivessem buscando soluções para os conflitos
atuais vividos no coletivo. Segundo Gui:
O que será que estão sonhando, enquanto humanidade que busca, em uníssono, uma
solução para o momento de tantas incertezas?
Jung, em seu livro “Aspectos do Drama Contemporâneo” (1974), cita que a sociedade
alemã estava muito mais comprometida com o nazismo do que se poderia supor, aler-
tando que um fenômeno coletivo de tal proporção reflete a sombra e culpa pessoais, de
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cada indivíduo que compunha essa esfera da sociedade. Como um sintoma grupal, um
indivíduo tomado pelo mal, reflete o mal não conscientizado de todo o seu entorno.
Segundo Jung, olhar para o coletivo implica, necessariamente, olhar para si, enquan-
to indivíduo que compõe este sistema. Assim como Hitler não é apenas uma figura que
existe fora, mas uma expressão do arquétipo do mal que habita em cada ser, como parte
da natureza humana. Essa imagem, dura de ser integrada, é possível de ser vista apenas
fora, enquanto este aspecto não for conscientizado e aceito, por cada indivíduo pesso-
almente.
Perceber o mal, que também é parte de cada ser, é algo que exige um grande esforço
moral, uma tarefa difícil. E esta dificuldade é o que faz projetar-se o mal, tirando-se a
própria parcela de culpa, a partir da não conscientização dele. Para Jung, a sombra só
é passível de ser conscientizada se o indivíduo assumir que ela também está presente
nele, e é esse o movimento que pode trazer mudanças pessoais e coletivas. Para exem-
plificar isso, Jung criou a expressão “culpa coletiva”.
Sobre a culpa coletiva, Jung sugere olhar-se para o fenômeno social com o sentimen-
to de inferioridade, o que faz perceber que as pessoas são parte deste fenômeno. Dife-
rentemente de olhar para o mesmo fenômeno com o sentimento de superioridade, no
qual o indivíduo percebe-se como alguém à parte, não atingido pelo mal, afastando-se
de sua responsabilidade.
Colocar a responsabilidade no outro, seja lá quem for esse outro, apenas afasta do
indivíduo a sua possibilidade de mudança pois, se o mal está fora, não há nada que o
próprio indivíduo possa fazer, visto que ninguém muda ninguém. Sendo assim, o indiví-
duo se coloca em uma situação ilusória de que o que precisa mudar está fora dele, o que
não contribui em nada para o seu desenvolvimento pessoal e, consequentemente, para
o desenvolvimento coletivo.
Com esta visão do mal, ninguém muda pois, se a culpa está fora, o problema é do ou-
tro, e nunca da própria pessoa. Desta forma, perpetua-se uma comunidade que vive de
uma forma absolutamente infantil, distanciada da responsabilidade que cabe a cada um,
enquanto indivíduo que compõe essa sociedade. Quando o ser humano puder perceber
a sua “participação solidária na culpa” (Jung, 1974, p. 18), a mudança será possível, in-
dividual e coletivamente.
Segundo Dunker (2021), a culpa é um sentimento que leva o indivíduo ao passado,
diferentemente da responsabilidade, que o traz ao presente. A culpa seria a primeira
etapa do processo, que lhe conduziria à reparação de algum dano cometido, por meio de
atitudes éticas. E assim, compreende -se o questionamento ético dos fins e dos meios,
para se alcançar tal responsabilidade. Ele diz que: “Enquanto a culpa individualiza, tanto
na autoria do ato, quanto na tipificação do crime, a responsabilidade convoca à resposta,
convida a posicionar a pergunta e envolve um trabalho coletivo” (n.p.).
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Dunker acrescenta:
Jung (1974) diz que o sentimento de culpa pode ser visto, de uma forma pelo âmbito
jurídico e, de outra forma, como fenômeno psíquico. Juridicamente, a culpa é o senti-
mento vivido pela pessoa que violou algum direito de outra, mas, psiquicamente, a culpa
é o sentimento que reflete muitos outros âmbitos. Como em um sistema familiar, no
qual um de seus integrantes pode expressar um sintoma que diz respeito a todo aquele
núcleo, trazendo à tona a necessidade de mudança de todo aquele sistema. Para Jung,
a culpa aumenta à medida em que ela não é conscientizada, o que a faz, em algum mo-
mento, eclodir de forma desastrosa – ou seja, a inconsciência de que somos culpados é
o que aumenta a nossa culpa.
Jung afirma que
Pode-se objetar que a culpa coletiva é um preconceito e uma condenação injusta. Sem dú-
vida ela o é, mas é precisamente isso que constitui a sua essência irracional: ela jamais se
pergunta pelo justo e o injusto, ela é uma nuvem sinistra que se levanta no lugar de um
crime inexpiado. É um fenômeno psíquico e, deste modo, dizer que o povo alemão carrega
uma culpa coletiva não significa condená-lo, mas apenas constatar um fato existente. Pene-
trando mais profundamente na psicologia desse fato, logo reconhecemos que o problema
da culpa coletiva comporta um aspecto bem mais amplo e significativo do que o simples
preconceito coletivo (1974, p. 20).
Segundo o autor, ninguém vive isolado numa concha, nem psíquica nem fisicamente.
Todos são uma parte de um sistema, que funciona bem ou mal, ou melhor, bem e mal.
Assumir isso é admitir, para si mesmo, que ele também funciona bem e mal e, a partir
dessa percepção, pode-se adquirir consciência e buscar mudanças, mas sempre partindo
do princípio de que ambos os estados existem – dentro e fora do indivíduo, e do coletivo.
Se todos são excitados pelo crime – no caso do cenário político do Brasil, por exem-
plo, são contaminados pelas correntes políticas – e acusam, no outro, o sentimento de
ódio e vingança, o mesmo sentimento se acende neles. Assim, falam nessa mesma lin-
guagem, dessa mesma natureza, dessa mesma culpa e essência, que habita em todos
eles. E percebem que o sentimento de ódio e de vingança não é apenas do outro, mas
também dele, e essa é a grande chave para a mudança de consciência.
Ainda em Jung, podemos encontrar a seguinte afirmação:
É um fato inegável que o mal alheio rapidamente se transforma no próprio mal, na medida
em que acende o mal da própria alma. O assassinato acontece, em parte, dentro de cada
um e todos, em parte, o cometeram. Seduzidos pela fascinação irresistível do mal, todos nós
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No momento em que o mal irrompe no mundo, ele já eclodiu por toda parte no âmbito psí-
quico. A toda ação corresponde uma reação, que provoca tanta ou mais destruição do que a
ação criminosa, pois o mal deve ser totalmente erradicado. Para não sermos contaminados
pelo mal, precisaríamos propriamente de um “rite de sortie” que consistiria na declaração
solene da culpa e da absolvição posterior do juiz, do verdugo e do público (JUNG, 1974, p. 22).
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Sobre assumir a própria culpa, Jung (1974, p. 24) diz: “Se os homens soubessem a
vantagem que representa encontrar a própria culpa, que dignidade e elevação da alma
isso significa! Entretanto, parece que essa compreensão ainda não despertou em parte
alguma”.
Jung (1974) diz que é a partir do reconhecimento da sombra – que traz tanto aspectos
positivos quanto negativos, mas ainda inacessíveis à consciência – que o indivíduo passa
a ter maior consciência acerca de sua totalidade. Por isso, é fundamental o reconheci-
mento da própria sombra, caso contrário, tudo o que não for reconhecido em si será
projetado e atribuído ao outro, seja o bem, seja o mal. Mais comumente, percebe-se
que o mal é projetado e, com a criação de antagonismos políticos, por exemplo, cria-se
a sensação de ameaça externa, já que devido à projeção, o próprio indivíduo não pode
lidar com os seus conteúdos, o que lhe causaria um sentimento de inferioridade.
Sobre a Alemanha nazista e seu sentimento de inferioridade, Jung diz:
O complexo de inferioridade, quando não reconhecido pelo ego, passa a agir de for-
ma autônoma, levando o indivíduo à atuação absolutamente inconsciente, também co-
nhecida como acting out. Um líder tomado pelo próprio sentimento de inferioridade,
pode influenciar milhares de outros indivíduos e, todos em massa, podem responder ao
complexo ativado.
Sobre os sintomas de histeria que identificava em Hitler, Jung (1974) cita como carac-
terísticas: “a cegueira acerca do próprio caráter; a admiração autoerótica de si mesmo;
depreciação e atormentação dos demais; projeção da própria sombra; falsificação men-
tirosa da realidade; desejo de impressionar os outros e de se impor; blefes; e impostu-
ras” (p. 24). E conclui:
Todos os histéricos são, por isso, espíritos atormentados e atormentadores, porque não
querem sentir a dor de sua própria inferioridade. Uma vez que ninguém pode sair da própria
pele e abandonar a si mesmo, o mal que se encontra em toda parte é o mal de si mesmo.
Chama-se isso de neurose histérica (JUNG, 1974, p. 24).
Jung nos diz que a histeria de um líder reflete a histeria da própria nação. Assim, não
seria o líder exatamente o único problema, mas toda essa nação. Em relação a Hitler,
Jung ainda diz:
No rosto desse demagogo se podia ler uma triste falta de formação que produziu uma pre-
sunção delirante, uma inteligência mediana dotada de astúcia histérica, e uma fantasia de
poder adolescente. Seus movimentos eram todos artificiais e pré-estruturados por um cére-
bro histérico, que só se preocupava em causar impressão. Ele se comportava publicamente
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como alguém que conduz sua própria biografia, comportando-se, nesse caso, como o herói
sinistro, “durão”, “demoníaco” das novelas baratas e do mundo imaginário de um público
infantil, que apenas conhece o mundo através das “divas” dos filmes de segunda categoria
(JUNG, 1974, p. 25- 26).
A partir da inconsciência de seu próprio mal, um líder pode guiar milhões de pessoas
para este mesmo caminho inconsciente, evoluindo para um caráter inconsciente grupal,
no qual não é mais possível prever os danos, por ser um movimento de massa, que passa
a ser tomado pelo complexo ativado.
Sobre a inocência, Jung (1974, p. 27) diz: “[...] a grande maioria dos alemães não es-
tava devidamente informada, e por isso era tão fácil entregar-se aos discursos de Hitler
de maneira demoníaca [...]”.
Uma coisa é ser seduzido por um discurso, e outra, absolutamente diferente, é não
reagir aos atos desvairados. A não reação também é parte da histeria, ou da parte histé-
rica do indivíduo, que não consegue juntar essas duas informações – ou seja, o bem e o
mal que coabitam o seu ser. Jung (1974, p. 28) usa o termo “inferioridades psicopáticas”,
para se referir ao indivíduo dissociado. Estamos dissociados à medida que estamos tam-
bém separados do nosso próprio mal, projetando-o em outra figura. Na histeria, há uma
separação maior dos opostos, o que gera uma tensão energética mais forte; é um “Eros
da distância”.
Segundo Jung
A essência da histeria consiste numa dissociação quase que sistemática, numa desvincula-
ção dos pares de opostos que normalmente se encontram estreitamente ligados, o que pro-
voca, muitas vezes, uma cisão da personalidade, ou seja, um estado em que realmente uma
mão não sabe o que a outra faz. Em geral, ocorre um espantoso desconhecimento acerca
das próprias sombras, conhecendo-se apenas as boas intenções. E quando não é mais pos-
sível negar o mal, surge o “super-homem e o herói” que se enobrece pela envergadura de
suas metas (1974, p. 28).
Sem uma profunda noção de psicopatia, e uma forte convicção de que o demoníaco está
sempre entre nós – e não só em suas formas criminosas extremas – escondemo-nos na
negação e na inocência espantada, este espanto que também abre as portas para o pior.
Mais uma vez: observe como a tirania política vive às custas da massa ingênua, e como uma
massa ingênua deixa-se enganar pela tirania. A inocência parece pedir o mal (HILLMAN,
1996, p. 256).
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Jung & Corpo - nº 21
Se um indivíduo não pode olhar para o mal em si, ele o verá nos demais. Assim, os
indivíduos formam uma nação na qual o mal é visto sempre no externo, o que os conduz
a um abismo psicológico, que só poderá ser percebido por meio de uma situação-limite,
tal como uma catástrofe, como se deu na Alemanha.
Sobre a consciência acerca da própria culpa, Jung relata:
Os fatos falam uma linguagem bem mais clara e quem não pode compreendê-la não pode
ser ajudado. O que fazer com essa visão pavorosa é algo que cada um deve descobrir por si
mesmo. Na verdade, pouco se ganha em perder de vista a própria sombra, ao passo que o
conhecimento da culpa e do mal que habitam em cada um traz muitas vantagens. A consci-
ência da culpa oferece condições para a transformação e melhoria das coisas. Como se sabe,
aquilo que permanece no inconsciente jamais se modifica, e as correções psicológicas são
apenas possíveis no nível da consciência. A consciência da culpa pode, portanto, converter-
-se no mais poderoso movente moral (JUNG, 1974, p. 36).
A aceitação consciente da culpa coletiva seria um grande passo para frente. No entanto, isso
ainda não significa uma cura assim como o neurótico não se cura através da simples com-
preensão. Ainda é preciso responder às perguntas: De que maneira eu convivo com essas
sombras? Que atitude é necessária para se viver apesar do mal? Para se encontrar respostas
adequadas a essas perguntas, faz-se necessária uma renovação mental abrangente que não
pode provir de alguém especial, devendo ser conquistada por cada um. Também as velhas
fórmulas que um dia tiveram validade, não podem ser aplicadas irrefletidamente, pois as
verdades eternas não podem ser transmitidas mecanicamente. Elas precisam ser geradas
novamente em cada época pela alma humana (JUNG, 1974, p. 37).
Método
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Jung & Corpo - nº 21
A amostra deu-se por relatos de pessoas que estavam vivendo o cenário da pande-
mia, tinham curiosidade sobre o tema dos sonhos e, voluntariamente, enviaram seus
sonhos por meio dos canais já descritos. Ao todo, foram recebidos 213 sonhos, sendo
170 do Brasil (80%) e 43 de outros países (20%), a saber, Portugal, Canadá, Espanha,
Estados Unidos, África do Sul. Foram disponibilizados três meios de envio dos sonhos:
Instagram, e-mail e site (anônimo). Dos 213 sonhos recebidos, 36% foram enviados via
Instagram, 12% via e-mail e 52% via site. Em relação ao gênero, 91% dos sonhos foram
de mulheres (principalmente na faixa dos 20 aos 40 anos, e 9% dos sonhos foram de ho-
mens. Também foram recebidos sonhos de crianças. As idades dos sonhadores variaram
dos 4 aos 69 anos.
A partir destes dados, realizou-se uma revisão bibliográfica, um levantamento esta-
tístico, e uma comparação entre o material onírico coletado por Charlotte Beradt e os
sonhos coletados durante o período inicial da pandemia de COVID-19.
Os sonhos da pandemia, para efeitos de comparação, foram classificados em: com-
pensatórios, prospectivos, traumáticos, telepáticos, e de transcendência. Como não se
conhecia a realidade de cada sonhador, os sonhos compensatórios foram classificados
de acordo com a compensação coletiva da atitude consciente, também coletiva.
Os sonhos classificados como prospectivos trouxeram uma combinação antecipatória
de possibilidades, e foram descritos desta forma pelos próprios sonhadores. Os sonhos
classificados como traumáticos foram os que trouxeram alguma situação de guerra, ca-
tástrofe, mortes, violência, e outras situações de ameaça à vida.
Já os sonhos telepáticos, foram classificados desta forma por apresentarem sincroni-
cidades distantes da realidade do sonhador. Por fim, os sonhos de transcendência foram
os sonhos que trouxeram alguma tentativa de elaboração da atual crise humanitária
vivenciada.
Resultados
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Sonhos que expressam a sensação de ser ignorado, e de não ser visto em seu sofri-
mento individualmente.
- exemplo de sonho no nazismo:
Uma mulher com cerca de trinta anos, sem profissão, mimada, liberal, cultivada [...] “Estou
sentada, muito bem arrumada e penteada, trajando um vestido novo, no camarote da ópe-
ra, que é enorme, com muitos balcões, e desfruto dos olhares de admiração. Apresentam ali
minha ópera favorita, A flauta mágica. Depois do trecho ‘Das ist der Teufel sicherlich’ (É com
certeza o diabo), um esquadrão da polícia entra marchando com passos fortes, diretamente
em minha direção. Com a ajuda de uma máquina, eles constataram que, ao ouvir a palavra
‘diabo’, eu pensara em Hitler. Vejo-me suplicando por ajuda, em meio a todas as pessoas
vestidas solenemente. Mudas e inexpressivas, elas se olham, mas nenhum rosto mostra
compaixão. Ainda que o velho senhor no camarote vizinho pareça, sim, distinto e bondoso,
quando tento olhar para ele, ele cospe em mim”. Aquilo que ela designa como “mudez” e
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Jung & Corpo - nº 21
“inexpressividade” dos rostos, foi chamado pelo dono da fábrica de “vazio” [...]. Assim, pes-
soas bem diferentes empregam o mesmo código para apresentar um fenômeno oculto do
ambiente, ou seja, a atmosfera de indiferença total, que é produzida pela coerção e sufoca
o espaço público (BERADT, 2017, p. 48).
Estava numa casa estranha, com tudo aberto, não havia acolhimento. As pessoas que eu
gostava estavam longe, não conseguia tocá-las, parecia que não consideravam a minha pre-
sença... ou estavam dormindo, ou conversavam entre si. Lá fora fazia frio, havia vento e um
céu negro, com manchas alaranjadas (escuras). Eu chamava meu filho para ir fazer compras
(comida), mas ele, que também era meu irmão, não conseguia encontrar sapatos que lhe
coubessem para sair comigo. Eu tinha muiiiiito medo de sair sozinha no escuro vasto, que
via das janelas e portas abertas da minha casa (que ficava no alto), eu reclamava comigo
mesma, de ser só eu que tinha de encarar aquela situação, pois sempre tinha de ir às com-
pras, mas ao mesmo tempo, sentia que meu irmão/filho devia ficar no seu quarto (que era
quentinho e que todos os que eu amava estavam) (MULHER 1, 40 ANOS, 07/05/2020).
- comparativo
Neste sonho da pandemia, a sonhadora relata a indiferença que sente quando, mes-
mo diante de pessoas queridas, não há acolhimento. Que é preciso seguir só, na ten-
tativa de se manter protegida do vírus. Relata que não é possível tocar as pessoas que
ama, e parece não ser vista pelas mesmas. No livro, Charlotte Beradt (2017) fala que a
catástrofe é coletiva, mas que cada indivíduo precisa lidar com ela de forma individual.
Sonhos nos quais o sonhador percebe-se fazendo algo que não acredita.
Essa classificação também inclui a sensação de se ver, de alguma forma, tomado pelo
novo sistema, e de querer fazer parte dele como forma de sobrevivência, o que mostra
a dificuldade de resistir mesmo diante de atrocidades.
- exemplo de sonho no nazismo:
Uma mulher mais velha, que garantiu ser “contra tudo de erótico e contra Hitler”, me con-
tou: “Sonho muito frequentemente com Hitler e Göring. Eles querem algo de mim. Em vez
de dizer ‘Eu sou uma mulher honrada’, digo, ‘Mas eu não sou nazista’. E isso lhes agrada
ainda mais (BERADT, 2017, p. 137).
Sonhei que estava participando de um jogo real, em que precisava matar pessoas. Quem
matasse mais pessoas, ganhava o jogo. Éramos divididos em times, e me deram uma arma
com silenciador, o cenário era tipo um galpão, com algumas salas. Um lugar que nunca vi
na vida real. No começo tive a sensação que estava jogando obrigada (não lembro direito),
senti medo, ansiedade, mas logo comecei a gostar e a comemorar cada morte. Não lembro
de ver sangue, acho que as mortes não eram muito realistas. Havia uma mulher que ficava
em uma sala separada, e que era a chefe disso tudo, eu tinha um relacionamento bom com
ela, mas não me lembro de muitos mais detalhes (MULHER 2, 25 ANOS, 20/04/2020)
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- comparativo
Neste sonho, a sonhadora relata um jogo que, inicialmente, parecia ser obrigada a jo-
gar, mas depois via-se comemorando as mortes. Ela comenta que parecia ter um bom re-
lacionamento com a chefe, relato similar ao do sonho do nazismo relacionado à mesma
temática já que, em ambos, as pessoas se associam ao líder, mesmo que pareçam não
querer fazê-lo. Durante a pandemia, tem-se percebido um movimento tanto consciente
quanto inconsciente, de afastamento de tudo aquilo que representar um risco, inclusive
relativo às pessoas queridas. E nas situações de luto, por exemplo, em que houve morte
por covid-19, os doentes não puderam receber visitas. E quando há morte, acontece
dela não ser ritualizada, o que pode levar a uma banalização da mesma – esta vai sendo
naturalizada, como foi no nazismo.
É celebrado o ‘Dia da União da Nação’ (uma data festiva com o mesmo objetivo de fato exis-
tia, mas não com esse nome – é muito significativo que essa moça a tenha escolhido para o
seu sonho). No vagão-restaurante de um trem em movimento, há mesas enormes, com lon-
gas fileiras de pessoas sentadas. Estou sozinha em uma mesa pequena. Uma canção política
soa tão engraçada que começo a rir. Sento-me em outra mesa, mas disparo a rir novamente.
De nada adianta; levanto-me, quero sair, mas penso: ‘Talvez não seja tão engraçado se eu
cantar junto’. E começo a cantar (BERADT, 2017, p. 128).
Estava em uma espécie de sala de teatro em que o palco tinha profundidade, e víamos pra-
ticamente quilômetros de distância. Determinado momento começamos a ver o mar, e no
começo a água respeitava o limite da plateia, mas aos poucos, pequenas ondas começavam
a entrar nesse espaço, e no começo entendíamos como parte do espetáculo, algo interati-
vo, mas cada vez mais, as ondas subiam mais, e começamos a ficar assustados. Quando as
ondas começaram a ganhar metros de distância algumas pessoas foram levadas por elas, eu
consegui me proteger em uma coluna de concreto dessa vez, e assim que essa onda passou
uma bomba que parecia atômica explodiu no mar, muito distante dali mas dava para ver o
cogumelo se formando, foi quando percebemos que a próxima onda varreria todos, e co-
meçamos a subir para as cadeiras mais altas. Todos correndo e desesperados. Quando veio
essa onda muito maior, já estava em uma altura segura, mas muitas pessoas foram varridas
por ela (HOMEM 1, 29 ANOS, 26/03/2020).
- comparativo
O sonho começa em uma sala de teatro, local onde os complexos são encenados e,
inicialmente, a encenação parece ocorrer muito distante da perspectiva do sonhador.
No desenrolar desta encenação, algo que parece ser parte do espetáculo começa a se
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Jung & Corpo - nº 21
aproximar e a envolver o expectador, de forma cada vez mais ameaçadora, e ele passa a
ser parte do espetáculo também, junto com outras pessoas que estavam no local.
Este sonho parece trazer uma visão muito próxima do que se pode ver até o momen-
to: pequenas ondas do vírus, que começaram em locais distantes, e foram aumentando,
progressivamente, até a chegada de ondas muito maiores, atingindo o mundo todo e
levando, até o momento, aproximadamente quatro milhões de pessoas à morte.
Segundo Jung, o mar representa o ventre da natureza, e apresenta um movimento
similar ao do inconsciente, que envia ondas de consciência ora possíveis de serem as-
similadas, ora devastadoras, quando rompem as barreiras da consciência, em um mo-
vimento de sístole e diástole, como o próprio desenvolvimento psíquico se dá. Muitos
sonhos relatados durante o período inicial da pandemia, trouxeram imagens do mar
neste mesmo contexto de catástrofe.
Este sonho também representa um movimento de ser varrido coletivamente pelas
ondas do vírus e do inconsciente, mostrando que o que parecia estar longe foi se aproxi-
mando, e ficando mais ameaçador a cada dia. O sonho mostra, inicialmente, a confiança
de que as ondas eram parte do espetáculo, e no seu desenrolar, elucida a busca pela so-
brevivência diante de um cenário que ficou absolutamente descontrolado, cada vez mais,
despertando o instinto de autopreservação em cada indivíduo, em especial, no Brasil.
Estou no cinema, é uma sala grande e está muito escuro. Tenho medo, pois, na verdade, eu
não poderia estar ali. Só os membros do partido podem ir ao cinema. Então entra Hitler, e
fico com ainda mais medo. Mas ele não só me permite ficar, como também se senta do meu
lado, e coloca seu braço sobre meus ombros (BERADT, 2017, p. 137).
Sonhei que estava em casa, com alguns parentes, mas alguma coisa não estava certa... logo
depois todos foram para uma outra casa. Eu voltei para a minha sozinha, porque tinha que
cuidar dos cachorros e trancar a casa, e ouvi um barulho no escritório. Fui até lá e era um
homem roubando o computador. Comecei a gritar “Socorro, é da casa 247”, e ele só olhou
para mim calmamente e disse “Acho que estamos gritando muito né? ”. Ele vestia uma cami-
sa listrada verde e branca, e uma calça jeans (MULHER 3, 22 ANOS, 24/04/2020)
- comparativo
Em ambos os exemplos de sonhos com esta temática, percebe-se uma atmosfera de
coerção, um silêncio assustador, mas que denuncia o sentimento de se estar nas mãos
do inimigo. Há medo, e uma agressividade implícita.
78
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Estava dentro do carro em Santos, com meu namorado e dois amigos na Avenida Ana Costa,
olhava para os prédios e não conseguia reconhecer onde estava, se estávamos em direção
à praia ou o porto, comentava isso com eles. Até que já era noite, e fomos jantar na casa
de um homem bem rico, antes de ir embora para São Paulo. Na casa deste homem, de
quem não lembro a feição, mas tinha cabelos grisalhos e usava terno preto. Tinham algu-
mas empregadas, todas negras com turbante na cabeça, no sonho me lembro que parecia
que tínhamos voltado na época da escravidão, e aquilo me incomodava demais. Era gentil
com elas, e uma delas me agradava por isso, trazia comida para mim e etc. Sentamos em
uma mesa de vidro redonda para comer, na hora de ir embora, um dos amigos do meu na-
morado descia para arrumar o carro e demorava demais, ficava irritada, e de repente uma
das empregadas me mostrava, no fundo da casa, uns papéis que comecei a pegar porque
poderiam incriminar o Bolsonaro (estávamos na casa dele), eu colocava vários papéis na
bolsa. Apressava os meninos para ir embora antes de ele chegar, porém não deu tempo, e
seguranças começavam a nos revistar; todos saiam pela porta, na minha vez achavam os pa-
péis na bolsa, dizia que ele tinha me dado, eles me pegavam, e via na mesa umas massinhas
de modelar sendo preparadas, e então a minha punição era comer a massinha para poder
ir embora, tinha muito medo, fiquei revoltada e dizia que não iria comer, xingava bastante
(MULHER 4, 26 ANOS, 06/04/2020).
Sonhei com Hitler, estávamos em um sítio. Fazíamos uma prova por escrito. A partir dessa
prova, era feita uma triagem. Tirei nota cinco, mas na hora de lançar não prestei atenção se
tinha tirado nota cinco ou cinco e meio. Vi que um homem tinha tirado cinco e meio, por
isso fiquei na dúvida se lancei os décimos ou não (depois vim a descobrir que cada décimo
fazia diferença) [...]. Em um outro momento, vi que as mães que faziam parto lá no sítio,
seguiam um procedimento: tinham o filho, mas não podiam ter contato com o bebê. O pai
era colocado em uma espécie de quadrado com muita água, ele tinha que mergulhar e girar
uma manivela debaixo da água, para que pudesse ter contato com o bebê. Nisso, o bebê já
estava morto, o pai seria morto naquele momento. A mãe iria passar pelo mesmo procedi-
mento [...] (MULHER 5, 37 ANOS, 16/03/2020).
Sonhei que estava em uma praia de Ilhabela – praia do Oscar (é minha cidade, mas estou
em SP com a minha mãe). Estava tendo alguma aula da PUC e os colegas de sala estavam lá,
em particular um amigo próximo, quando de repente alguém gritou que os soldados do Pa-
quistão haviam chegado e que a guerra começaria, outro alguém disse que seria impossível
começar uma guerra entre Paquistão e Brasil, visto que o Brasil é muito pacífico. Os solda-
dos chegaram por um mar manso, e começaram a vir na direção das pessoas que estavam
na aula aberta. Quando estavam chegando perto, todos saíram correndo, tentei voltar da
praia para a estrada, mas o caminho era uma rampa em zigzag e não daria tempo. Os solda-
dos estavam muito perto de mim. Saí correndo e pulei no mar, foi um pulo bem gostoso. De
repente mudou a cena, estava na PUC, mas a PUC não era a PUC: era um lugar muito maior,
com vários andares e bem velho. Estavam todos um pouco assustados, o lugar tinha marcas
da ditadura. Os paquistaneses estavam lá, e eles mandavam na população, hora de comer
e hora de trabalhar. A comunidade puquiana era escrava. Eu corria de um andar para outro
procurando alguma coisa, em um prédio velho (MULHER 6, 27 ANOS, 20/04/2020).
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Fui junto com um amigo visitar uma amiga nossa, que acabou de ganhar bebê. Chegando
lá, ela começou a contar uma história sobre uma casa antiga, próxima à sua casa. Dizendo
que era um lugar em que mantinham homens de inteligência excepcional presos (no estilo
DOPS – Departamento de Ordem Política e Social – da ditadura militar), e que tudo foi des-
coberto depois que um dos homens colocou fogo no lugar (nesse momento vejo a cena do
que aconteceu: um professor conta para os alunos o que irá fazer e como eles devem fugir,
depois mostra as pessoas saindo, e diante dos policiais assumindo toda a responsabilida-
de, para os alunos ficarem livres, fica claro que muitas pessoas morreram), e agora o lugar
era uma espécie de panificadora. Depois a minha amiga nos convida para ir à casa de uns
amigos dela, para um almoço. No caminho, passamos em frente ao antigo DOPS, e em um
impulso o meu amigo entra, na hora eu fico petrificada e falo para ele sair, nisso um homem
sai de lá e nos entrega uma cesta de pães, e eu proíbo o meu amigo de comer, dizendo que
a energia do lugar ainda é muito pesada. Chegamos na amiga dela, era uma casa simples,
com uma cozinha do lado de fora estilo sítio, a casa tinha uma saída que era um restaurante
da família e dá para outra ponta da rua, e em frente tinha uma casa. O almoço era para a
amiga da minha amiga apresentar a nova namorada para a família e os amigos, o clima era
muito feliz em um dia ensolarado. Depois fomos para praça, fiquei sentada tomando sol, e
percebi que estava sendo picada por formigas, mas mesmo incomodada permaneci lá. No
final da tarde fiquei triste, porque teria de sair de lá e encontrar o meu namorado, o fato é
que eu tinha descoberto que ele estava me traindo, e teria que conversar com ele (MULHER
7, 28 ANOS, 09/05/2020).
- comparativo
Este sonho menciona o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), criado du-
rante a ditadura militar, órgão responsável pela repressão de movimentos que diferissem
dos ideais de ordem do regime militar no Brasil, e apresenta atmosfera muito similar aos
relatos dos sonhos do Terceiro Reich, descritos no livro de Charlotte Beradt (2017), nos
quais o totalitarismo se apresenta. O atual presidente do Brasil é militar e vai, dia a dia,
preenchendo cargos públicos com outros militares, trazendo a ameaça constante de re-
torno deste mesmo cenário de repressão, totalitarismo e autoritarismo, que já foi visto
em outros momentos, e que foi devastador em todos os âmbitos. O sonho também traz
o risco que existe em compartilhar e se nutrir de tais ideais.
Essa noite sonhei que estava sendo incorporado por um espírito, após isso, com ele incor-
porado, fui até uma casa aonde havia crianças, que iriam ser levadas por algum órgão do
governo, porém o pai delas não queria que as levassem. Eu, de alguma forma, consegui
convencer esses homens de não as levar, após isso, o pai me agradeceu, e comecei um
processo de retornar ao ponto em que fui incorporado, porém fui mais além e retornei em
uma velocidade tão rápida que voltei no tempo bem antes da incorporação desse “espírito”
– nesse momento, fiquei tão impressionado que acabei acordando... já é a segunda vez na
semana que sonho voltando no tempo (HOMEM 2, 51 ANOS, 20/04/2020).
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Conclusões
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política que levou à morte mais de 400 mil pessoas, consequências nefastas da liderança
autoritária.
De fato, os sonhos também nos chamam a atenção para a necessidade de que cada
indivíduo assuma a sua parcela de responsabilidade diante do todo, o que, na perspec-
tiva junguiana corresponde à única forma possível de desencadear uma mudança coleti-
va. Cada um se preserva e aí, então, a sociedade pode ser preservada.
No início deste trabalho, buscou-se encontrar a função transcendente nos sonhos
coletivos, a qual pudesse indicar possibilidades de saídas criativas. Mas, na verdade, o
presente resultado coloca o indivíduo cara a cara com a sombra; assim, o mal se mantém
inconsciente na medida em que continua a ser projetado no outro. Percebeu-se que os
sonhos têm uma função sistêmica, que se expressa nos canais coletivos, ou seja, político
e social, e permanecem sendo um caminho precioso para o nosso processo de individu-
ação – individual e coletivo. Também foi observado que relembrar e narrar os sonhos,
são formas de estabelecer contato com o nosso mundo inconsciente, e com todas as
possibilidades de conscientização que surgem a partir dele.
Assim como diz Ribeiro (2019), os sonhos são um portal para se vislumbrar possíveis
futuros para todos enquanto espécie e, a partir da interação com seus conteúdos, po-
der retornar-se às sabedorias de ancestrais que possibilitaram a humanidade chegar até
aqui.
Dentre as percepções decorrentes desta pesquisa, a comparação entre sonhos de
brasileiros que estão no Brasil e que estão fora do país, foi a que mais despertou curio-
sidade, em especial pelo momento político que os brasileiros que estão no país vivem,
assim como a sensação de impotência diante de tantas atrocidades, fake news e, sobre-
tudo, das maldades vistas e, por que não, cometidas. A não confiança no Estado relatada
nos sonhos, o medo, a imposição, o instinto de autopreservação, são fatos absolutamen-
te condizentes com o atual momento vivido na pele por todos.
O trabalho desperta para a necessidade de se criarem meios que proporcionem o au-
toconhecimento de maneira coletiva, seja pelo compartilhamento de sonhos (já iniciado
genuinamente), seja por meio de terapias grupais, seja pela arte ou por outros meios
que proporcionem, de maneira coletiva, a percepção dos opostos que habitam em nós.
Apesar do mal, como prosseguir na busca por um novo amanhã?
Encerra-se este trabalho, então, com uma linda canção de Chico Buarque, que coloca
a todos frente a frente com o mal, dentro e fora de cada um, e faz relembrar que o de-
senvolvimento acontece em espiral, enquanto se dá voltas em torno de um tema que já
se vivenciou, e continuará a vivenciar-se em outros tempos e níveis de consciência!
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APESAR DE VOCÊ
Chico Buarque (1978)
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
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Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
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Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
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Referências
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BUARQUE, C. Apesar de você. Direção Artística: Roberto Menescal. Brasil, Polygram,
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DUNKER, Christian. Culpa, responsabilidade e implicação. São Paulo: Ubu, [2021].
Disponível em: <https://blog.ubueditora.com.br/culpa-responsabilidadee-implicacao/>
acesso em: 27 jan. 2021.
DUNKER, Christian. O sonho como ficção e o despertar do pesadelo. In: BERADT,
Charlotte. Sonhos no Terceiro Reich. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 9-26.
GUI, Roque Tadeu. Matriz do sonhar social: um dispositivo de intervenção em psicologia
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Brasília, Brasília, DF, 2010.
HILLMAN, James. O código do ser: uma busca do caráter e da vocação pessoal. Rio de
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JUNG, C. G. Aspectos do drama contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1974.
JUNG, C. G. Seminários sobre análise de sonhos: notas do seminário dado em 1928-
1930 por C. G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2017.
JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.
MATTOON, Mary Ann. Como entender os sonhos. São Paulo: Paulus, 2013. Coleção
Amor e Psique.
RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
SEIXAS, R. O dia em que a terra parou. Produção: Marco Mazzola. Rio de Janeiro: Warner
Music Brasil, 1977.
WISE, R. The Day the Earth Stood Still. Direção de Robert Wise. Califórnia: 20th Century
Fox, 1951.
https://www.letras.mus.br/blog/o-dia-em-que-a-terra-parou-raul-seixas-analise/
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Resumo
Observando a polarização que o debate acerca de temas importantes que recentemente tem emergido,
como as questões étnicas e raciais, a violência contra pessoas vulneráveis e saúde pública; e que tem se
ressentido com a desinformação, a intolerância e a intransigência de determinados grupos, além da uni-
lateralidade das próprias pessoas comuns, o autor propõe, percorrendo a sabedoria essencial das mitolo-
gias e embasado pelo enfoque da psicologia junguiana, uma reflexão profunda sobre as questões acima
referidas.
Palavras-chave: Polarização de opiniões; Neurodesenvolvimento; Sensibilidade metacognitiva.
Abstract
Recent debates on important themes such as ethnic and racial issues, violence Against vulnerable popu-
lations and public health, have given way to ever greater polarization of opinion. Furthermore, certain
groups in society have become radicalized and marked by the sharing of desinformation on social media,
along with intolerance and intransigence When faced with opposing views. This article seeks to address
these fator in depth, together with the unilateral and inflexible visiono of a commonly-represented subset
of individuals in society. The author proposes a deep reflection of these issues by running through the
essential wisdom of mythologies with a basis in Jungian psychology.
Key words: Polarization of opinions; Neurodevelopment; Metacognitive sensitivity.
1 Texto baseado na palestra realizada em 17/04/2021 no ciclo de palestras Saberes Essenciais, organiza-
do pelo Centro de Estudos Universais AUM, em São Paulo.
2 Psiquiatra, Sociólogo com Mestrado em Antropologia Social pela USP, psicoterapeuta junguiano corpo-
ral pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP, docente e coordenador do curso Jung & Corpo, Especialização em
Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP. Email: ptmachadof@uol.
com.br
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serviam para sua orientação em áreas ermas ou nos desertos. Já os povos sedentários,
que se dedicaram à agricultura, orientavam seus valores para a terra e suas configura-
ções míticas; para aqueles que olhavam para o céu, prevaleciam as referências arque-
típicas patriarcais, o espírito invisível, o pai do céu, enquanto que para os lavradores, o
princípio matriarcal corporificado à mãe-terra era a principal referência. Além das oposi-
ções céu-terra, masculino-feminino, corpo-espírito, é também importante assinalarmos
o tema mitológico das oposições sol e lua, que se tornariam referências fundamentais
nas configurações dos ciclos do tempo e do calendário.
Mas, direcionando nossa atenção para o momento atual, estamos vivendo uma si-
tuação completamente atípica, em meio a uma devastadora pandemia provocada pelo
coronavírus (SARS-CoV-2), denominada COVID-19 pela Organização Mundial de Saúde
(OMS, 2019), tragédia agravada por uma severa crise ética e moral que vem afetando os
valores coletivos, e produzindo entre nós uma crise política sem precedentes em nossa
história.
Observamos, neste momento, o comportamento humano profundamente polariza-
do, em meio a questões de alta densidade afetiva, cujo debate nos colhe em estado
de absoluta vulnerabilidade. Assim, emergem questões como a violência doméstica; o
alto índice de feminicídio; o racismo e o racismo estrutural; a intolerância de gênero e
a homofobia, a psicofobia; além de outras questões coletivas amargas, como a destrui-
ção da Floresta Amazônica e dos biomas do Cerrado e do Pantanal – estas, em meio a
uma crise climática global – e a invasão de territórios e massacre de etnias indígenas.
Vê-se, também, uma ostensiva concentração de riquezas, através de alguns conglome-
rados econômicos, em detrimento do aumento exponencial e escandaloso da fome e
da pobreza. Junte-se a isso tudo o autoritarismo e negacionismo do Estado, acoplados à
desinformação e à vilania do comportamento político.
Como podemos interpretar este momento, caracterizado por tão elevada polarização
do comportamento humano? Neste momento distópico e disjuntivo que estamos viven-
do, teríamos perdido, do ponto de vista coletivo, as noções milenares de sentido ou ca-
minho? Qual é o espírito desta época, em que nos tornamos tão egoístas e polarizados?
Que tempo é esse que estamos vivendo?
Sem dúvida, teríamos muita coisa para falar sobre a violência da injunção patriarcal
neste país, marcado historicamente pelo genocídio indígena e a escravidão, e o com-
portamento predatório na relação com a natureza, mas, no contexto deste artigo, não
será possível abarcar todas as temáticas míticas e arquetípicas, correspondentes a estas
marcas perversas de nossa história.
Pensando sobre o tempo que estamos vivendo, o filósofo coreano Byung-Chul Han
(HAN, 2019, p. 27), apoiando-se na reflexão de Vilén Flusser3, fala sobre o tempo, di-
3 Filósofo checo-brasileiro
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ferenciando-o em três formas: o tempo das imagens, que é o tempo mítico; o tempo
dos livros, que é o tempo histórico; e o tempo dos bits, que é o tempo da sociedade de
informação, que é este em que nós estamos inseridos.
Sobre o tempo dos bits, Han refere ser um tempo pontual, que não tem horizonte
mítico nem histórico: “é um tempo des-teologizado ou des-teleologizado” em um “uni-
verso-bit” “atômico” ou uma espécie de “universo mosaico” (HAN, 2019, p. 28). Afirma,
um pouco mais adiante, que nesse “universo-ponto”, não há imagens ou livros, apenas
possibilidades flutuantes.
Refletindo sobre o processo de globalização acelerada pelas novas tecnologias, o fi-
lósofo observa que isso implica em um distanciamento do espaço cultural. Afirma que,
em consequência do fenômeno da hipercultura ou hiperculturalidade, em que as infor-
mações nos inundam e os conteúdos heterogêneos ficam apinhados, o conhecimento
do “chão”, dos “códigos biológicos da terra” são desnaturalizados, implicando em uma
“remitologização, reteologização e renacionalização” (HAN, 2019, p. 25).
Em outro livro, o filósofo coreano afirma também, o que é muito importante, que
o mundo digital é pobre em alteridade, observando-se que nos círculos virtuais o Eu
pode mover-se praticamente desprovido do sentido de realidade: “desgasta-se corren-
do numa roda de hamster, que gira cada vez mais rápido em torno de si mesmo” (HAN,
2017, p. 91).
O comportamento binário do usuário das redes sociais é condicionado à polarização
e dependência emocional dos “I like” em detrimento dos “I dislike”, e ao confinamento
desencadeado pelos algoritmos das plataformas digitais, que restringem e condicionam
as mensagens recebidas ao interesse demonstrado pelos cliques disparados, aprofun-
dando o comportamento polarizado do indivíduo.
Observando o comportamento polarizado através do funcionamento do cérebro e
seus neurocircuitos, precisamos falar inicialmente sobre as emoções. As nossas emo-
ções – como raiva, tristeza, alegria, medo, asco, juntamente com os circuitos neurais de
recompensa e punição – relacionam-se com o instinto de sobrevivência, e os processos
homeostáticos de autorregulação de nosso meio interno: ligam-se aos mecanismos de
preservação da vida, e são filogeneticamente bastante arcaicas, tendo se desenvolvido
há milhões de anos, e localizam-se nas camadas mais profundas de nosso cérebro, nas
regiões do diencéfalo e subcorticais.
O neurologista gaúcho André Palmini faz uma interessante consideração, observando
a importância do córtex cerebral na modulação de nossas emoções. Esta área cerebral,
que se desenvolveu sobrepondo-se àquela outra área, é de desenvolvimento bem mais
recente (aproximadamente 200.000 anos), e permitiu o surgimento das funções psíqui-
cas mais complexas, como a linguagem, a memória, o juízo de valor – seria graças a esta
área que os seres humanos desenvolveram as artes, a literatura, a ciência, a religião e as
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leis. Como consequência, estabeleceu-se uma interação entre os novos circuitos (basea-
dos na “razão”, conforme o autor citado), e a circuitaria mais arcaica, ligada à preserva-
ção da vida, como se fosse um duelo “emoção x razão”, e que se constitui, na opinião de
Palmini, no “marco neural” da civilização, pois “pela primeira vez na história da vida na
terra, apareceu um animal equipado para modular as emoções” (PALMINI, 2020, p. 11).
Ocorre que a evolução do córtex no ser humano não inativou os outros circuitos mais
arcaicos, conforme observa Palmini, como as “potentes” estruturas subcorticais que
atendem aos instintos, o que torna o ser humano, ao mesmo tempo, um animal muito
perigoso, quando sua ação instintiva é orientada para uma ação destrutiva.
O autor considera, um pouco mais adiante, que as regras e as leis que a nossa razão
criou têm como base “coibir expressões emocionais inaceitáveis dentro do contexto ci-
vilizatório da vida em sociedade” (PALMINI, 2020, p.11). É importante considerar que a
capacidade de cada ser humano modular suas emoções é muito variável, e que ainda
somos suscetíveis às influências que alteram a nossa capacidade de controle, como o
álcool, as drogas, o estresse, etc.
Palmini apresenta a hipótese de que o sistema cortical humano de controle das rea-
ções emocionais, além de frágil, é também “suscetível a uma sabotagem contínua, tô-
nica, que vai sub-repticiamente tirando de ação sucessivas camadas de controle, que
podem fazer a reação emocional ocorrer antes do clímax” (PALMINI, 2020, p. 14). Infor-
ma que ruminações recorrentes e decorrentes de frustrações anteriores, e memórias
traumáticas, interferem nesse limiar de controle, o que pode induzir a uma resposta
excessiva, e determinar um comportamento anômalo e polarizado.
A capacidade de avaliação também pode ser afetada por estímulos contraditórios e
constantes, que podem proceder a uma sabotagem nos construtos da razão, como se
observa atualmente no comportamento coletivo de negacionismo diante da pandemia,
justamente em seu momento mais grave, e na banalização do impacto provocado pelo
número absurdo de mortes decorrentes do COVID-19.
Jung afirmou a mesma coisa com outras palavras, numa época em que o conhecimen-
to existente sobre o cérebro não era tão avançado à respeito dessas reações coletivas,
postulando que quando as emoções ultrapassam um determinado ponto crítico e eleva-
-se a temperatura afetiva, “a razão perde sua possibilidade efetiva”, sendo substituída
por “uma espécie de possessão coletiva que, progressivamente, conduz a uma epidemia
psíquica”, prevalecendo “todos os elementos da população que levaram a uma existên-
cia antissocial, tolerada pela ordem da razão” (JUNG, 2019, p. 14).
Retornando ao neurologista gaúcho, Palmini (2020) nos informou, em conferência re-
alizada no congresso Brain XP Experience (realizado em 25/07/2020), que fortes convic-
ções, como religião e política por exemplo, podem impactar o processo de interpretação
de evidências. Observou como em uma pessoa com elevada convicção, o impacto neural
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para evidências contrárias é pequeno, enquanto que as pessoas com baixa convicção são
mais reflexivas, não hesitando em mudar de opinião conforme o que se evidencia.
Na mesma conferência, o neurologista referiu-se também à sensibilidade metacogni-
tiva (SM), que corresponde à “capacidade de refletir baseado em evidências” (PALMINI,
2020). O conferencista afirmou que o pensamento radical, a intolerância dogmática, o
fanatismo e o autoritarismo expressam uma baixa sensibilidade metacognitiva. Obser-
vou que questões políticas e religiosas, por exemplo, ativam a rede neural Default, o que
implica que o indivíduo tenda a prestar mais atenção a si mesmo do que àquilo que vem
do mundo. Por outro lado, evidências contrárias ativam áreas cerebrais como a ínsula
e a amígdala, fazendo com que o indivíduo com baixa SM se sinta ameaçado e produza
sentimentos aversivos, desencadeando reatividade contrária e não permitindo avalia-
ções ponderadas.
Mais uma vez, complementando o raciocínio com uma impressionante atualidade,
Jung adverte sobre a periculosidade que esses elementos (evidentemente com baixa
SM) podem representar (quando não se permitem avaliações ponderadas), quando o
estado emocional de tais indivíduos “corresponde a um grupo de população que se acha
coletivamente exaltada por preconceitos afetivos e fantasias de desejos impulsivos”
(JUNG, 2019, p. 15).
Jung afirma, mais adiante, que tais quimeras, “baseadas em ressentimentos fanáticos,
fazem apelo para a irracionalidade coletiva, encontrando aí um solo frutífero, na medida
em que exprimem certos motivos e ressentimentos também presentes em pessoas nor-
mais, embora adormecidos pelo manto da razão e da compreensão” (JUNG, 2019, p. 15).
Jung também fez uma séria advertência, referindo-se à tragédia provocada pelo povo
alemão e que afetou o mundo todo, na II Grande Guerra, do perigo que ocorre, quando
um psicopata megalomaníaco “assume a responsabilidade”. Esse personagem foi descri-
to por Jung como possuindo:
A descrição que Jung faz de Hitler parece se repetir no modelo de certos líderes au-
toritários da atualidade, inclusive neste momento, aqui no Brasil, e que podem conduzir
toda uma população para o abismo. Os mesmos arquétipos que Jung constatou terem
sido mobilizados no inconsciente coletivo alemão, exprimindo primitividade, violência
e crueldade, parecem estar se expressando novamente em nosso meio, na atualidade.
Ele observou, acerca dos movimentos de massa, que eles são de natureza arquetípica,
considerando que todo arquétipo traz em si o bem e o mal, o que há de mais baixo e o
mais elevado, o que explica seus efeitos tão contraditórios.
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Por tudo isso, podemos afirmar que o único meio de enfrentarmos o perigo devas-
tador da massificação inconsciente, e da polarização do pensamento e das opiniões,
além da elevação da consciência coletiva através da educação e da cultura, é olharmos
cuidadosamente para dentro de nós próprios. Enquanto cada um de nós não conseguir
resolver e elaborar internamente os efeitos da dança das polaridades em nossa própria
psique, superar as unilateralidades, e conseguir abstrair o impacto afetivo da enorme
quantidade de mensagens e desinformações que nos inundam – principalmente através
das redes sociais e da mídia eletrônica – não conseguiremos restabelecer a capacidade
de pensar através de evidências, e deixar de olhar para o outro como um potencial anta-
gonista. Sem essa condição, será difícil a construção de uma sociedade mais empática e
respeitosa às suas diversidades.
Referências
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Resumo
O presente trabalho busca analisar o impacto da situação de rua no corpo psíquico de uma pessoa sem
abrigo, considerando-se a importância da moradia para a estruturação de identidade de lugar, a partir da
discussão de autores da Psicologia Analítica, da Abordagem Junguiana Corporal, da Psicologia Arquetípica
e da Psicologia Socioambiental.
Abstract
This work focusses on analyzing the impact of the street’s situation on the psychic body of a homeless
person, considering the importance of a house in structuring an identity of place, based on discussions
between Analytical Psychology authors, Body Approach from Jung, Archetypal Psychology and Psychology
Social-Environmental.
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Introdução
As reflexões sobre a moradia, o abrigo, a casa e o espaço privado, trazem luz sobre o
quanto a questão do habitar influencia na organização da representação do corpo e da
identidade, na medida em que possibilita uma conexão com o mundo interno e auxilia
na segurança psíquica. Ao se habitar uma moradia, pode-se experimentar que se vive
saindo e entrando; que se leva o corpo e a alma para passear; que se pode ausentar, ou
até isolar-se. A consciência e a segurança do habitar se fazem necessárias, pois o abrigo
é a base para o retorno da alma, sempre que se ausenta de sua morada.
A experiência do habitar regula as fronteiras interpessoais, na medida em que pos-
sibilita ao indivíduo ficar isolado, ao mesmo tempo em que o torna acessível para o
outro (HALL, 1977). A casa é o primeiro universo, é o seu próprio canto no mundo (BA-
CHELARD, 1993), e abrir a porta desse universo particular para o estrangeiro, é receber
o outro em si. A sociabilidade e a privacidade podem ser conciliadas ao se habitar uma
casa, pois ter uma morada é essencial para lidar com a inclusão nos contextos social e
coletivo, e ao mesmo tempo, com a exclusão. Do mesmo modo, a noção de tempo e de
lugar são importantes para a definição da noção do eu – além do corpo – estendendo-se
para os lugares que o sujeito ocupa, e com que se relaciona (AUGÉ, 1995).
É o sujeito também um lugar, mas para ser um lugar é preciso que a relação do corpo
com o espaço transforme-o em um lugar único, a fim de que deixe de ser apenas um
espaço ocupado. Se o indivíduo se vê pequeno diante do mundo, é possível que desen-
volva uma postura mais curvada diante das coisas, uma forma única de o indivíduo se
relacionar com o espaço. Por intermédio do corpo, de como se habita o mundo, e de
como se relaciona com ele, gera-se uma transformação do espaço em um lugar. Bache-
lard (1993) reafirma que “a alma vem inaugurar a forma, habitá-la, comprazer-se nela”
(p. 6), sendo o corpo aquele que abriga a alma.
O espaço é só um espaço se não há o habitar de alguma alma. A experiência da alma
com o espaço constrói a forma, o transforma em um habitar da alma, realizando-se
como um lugar. Para Tuan (1983), o lugar é o espaço vivenciado, apropriado e habitado,
ao qual se atribui um significado e um valor. Portanto, para o autor, o espaço se trans-
forma em lugar de acordo com a experiência que o indivíduo tem, na sua relação com
ele. Ainda de acordo com o autor, o lugar pode existir apenas no plano simbólico, no
imaginário; e habita-se determinado lugar, ao se imaginar sua alma nele, habitando-o.
E os não-lugares? Augé (1995) traz a reflexão sobre o não lugar, que corresponde aos
espaços de circulação, tais como passarelas de rua, de metrô ou de aeroportos, e que
são de usos temporários. Esses não-lugares, que são praticamente descartáveis, impe-
dem o indivíduo de formar vínculos afetivos com eles. Quem para e se situa no cotidia-
no, no meio da rua, embaixo da ponte ou dentro do metrô?
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Uma vez que se situar é fundamental para que se compreenda uma situação, coloca-
-se a seguinte questão: situar-se é um privilégio dos que tem abrigo, de quem possui
raízes sólidas? Como ficam as pessoas cujo sítio é a rua, as pessoas em situação de rua,
cujos corpos não estão contidos por um abrigo usual e regular?
Afinal, quem são estas pessoas que vivem em situação de rua no Brasil? De acordo
com normativas do município de São Paulo:
Estes são indivíduos que também buscam, e necessitam, situarem-se no espaço so-
cioambiental. É necessária uma conscientização mais aprofundada sobre a vulnerabili-
dade de pessoas que vivem em situação de rua, e sobre o fato de que fazem parte da
totalidade do espaço em que todos habitam. Existem diversos movimentos sociais que
desenvolvem intervenções, tanto no sentido de retomar a dignidade como garantir os
direitos desses indivíduos, além de contribuírem com a ampliação dessa conscientização
necessária.
Pesquisas apontam o crescimento do número de indivíduos em situação de rua no
município de São Paulo:
Segundo a pesquisa feita pela empresa Qualitest Ciência e Tecnologia LTDA, 24.344 pessoas
estão em situação de rua na cidade de São Paulo. Destas, 11.693 estão acolhidas e 12.651
em logradouros públicos ou na rua. O último censo, realizado em 2015, identificou 15.905
pessoas (SÃO PAULO, 2020b, p. 1).
A população em situação de rua cresceu 140% a partir de 2012, chegando a quase 222 mil
brasileiros em março deste ano (…). Entre as pessoas sem moradia estão desempregados
e trabalhadores informais, como guardadores de carros e vendedores ambulantes. (SÃO
PAULO, 2020b, p. 2)
Em tempos nos quais se veem cada vez mais pessoas em situação de rua, torna-se
relevante um estudo das condições psicossociais destes indivíduos, por meio do qual
possa se aprofundar a compreensão acerca das particularidades da vida psíquica e so-
cial, daqueles que não tem onde se situar e nem de onde partir, para simplesmente ser.
Vidas nas quais, muitas vezes, não há vínculos familiares, empregatícios ou situacionais,
e que foram relegadas à sombra da sociedade.
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Ao longo dos anos, o homem criou casas com formas às quais se adaptou melhor.
Com janelas para o sol entrar, o vento circular, e o contato com o mundo acontecer.
Com portas, para estarem abertas quando se quer receber o outro; fechadas, para se
privar do contato e se proteger. As chaminés funcionam para a fumaça seguir o seu fluxo
ascensional, e assim como as emoções, sobem com sua pressão e aliviam o ambiente.
O corpo, habitando esta estrutura, traz a necessidade de adaptar o ambiente ao seu
bem-estar e proteção. Às vezes com grades, portas a sete chaves, ou vidros antirruídos
nas cidades, o ser humano criou a estrutura de sua casa e fez surgir, ao mesmo tempo,
o conceito de intimidade individual e familiar e a sua identidade, possibilitando, desta
forma, o devaneio e a solidão, como diria Bachelard (1993).
Lucena (2007) recorda que “a casa é uma metáfora da família, e no momento em que
ela é tomada, acaba-se a vida e a estirpe” (p. 2). A casa traz as lembranças da família, e
representa o lugar no qual o indivíduo experimenta seu primeiro pertencimento, o pri-
meiro sistema coletivo de que faz parte. Se lhe é tirada, sua raiz material lhe é roubada.
O que isso significa? A raiz do ser humano, sua ancestralidade, sua origem, são experien-
ciadas pelo indivíduo na casa onde nasceu, e onde foi cuidado por seus familiares. A casa
comporta as raízes da árvore familiar e o passado ancestral, auxiliando na construção da
identidade da pessoa.
“A casa é o abrigo primordial do homem, ela o acolhe e o faz sonhar; na casa, ele
pode desfrutar a solidão” (LUCENA, 2007, p. 2). Aquietar-se, acolher-se, recolher-se –
são formas de lidar com a solidão, proporcionadas por um abrigo. A casa proporciona
a sensação da presença ao seu habitante, além de conter as imagens inconscientes, os
devaneios e os sonhos do abrigado. O voltar-se para dentro, para o mundo interior, para
o Si-Mesmo, é um convite e uma possibilidade, revelados por meio da relação primordial
do homem com seu abrigo.
Está-se na alma, ou seja, o corpo é uma casca de penumbra que contém a alma, mas a
alma se localiza nos arquétipos, e ela se expressa, entre outras possibilidades, por meio
da vivência de intimidade proporcionada pela casa, funcionando para a solidão como
abrigo para o devaneio. De acordo com Bachelard (1993), “a casa é uma das maiores for-
ças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem” (p. 26).
O lugar, diferente do espaço, tem uma particularidade, um nome e a face de um deus,
carrega uma lembrança, tornando possível o reconhecimento de si (BARCELLOS, 2018).
A alma habita um lugar arquetípico, um lugar que tem a personalidade de um deus, uma
imagem e uma forma de ver o mundo, pelos óculos arquetípicos de cada deus. Ou seja,
a alma, a psique, além de ser contida pelo corpo, habita uma condição arquetípica, uma
forma de pensar, de se vestir, e de enxergar o mundo externo, pelas lentes dos arquétipos.
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a qual representa uma margem de segurança que o indivíduo, e todos os animais, têm
como exigência de sobrevivência (GLIBER, 2007).
Tendo-se em vista que o espaço pessoal é criado por limites emocionais, invisíveis, e
por uma área que circunda o corpo, este difere do espaço territorial que, por sua vez,
é fisicamente demarcado – e geralmente defendido – criando não só uma privacidade,
como também um sentimento de posse (GLIBER, 2007). O espaço territorial se cria tanto
com paredes e muros numa casa, como com papelão, guarda-chuva e cão de guarda,
entre outros demarcadores em situação de rua.
A alma habita um corpo, e ele envolve e encarna a personificação deste e/ou daquele
deus, trazendo face e identidade. Jung, em 1917, segundo Jaffé (1986), discutiu o fe-
nômeno da sincronicidade, que aponta para a unidade entre psique e matéria, alma e
corpo.
Reis afirma que os fenômenos sincronísticos demonstraram, citando Jaffé (1982),
que “o ser se baseia numa essência até́ o momento desconhecida, que é tanto material
como psíquica” (REIS, 2002, p. 3). Corpo é psique, e psique é corpo, e o indivíduo é tanto
material quanto psíquico, é almado e encarnado. Assim, de acordo com Reis “não sendo,
portanto, antagonismos irreconciliáveis o mundo exterior e o interior, o espiritual e o físi-
co, mas aspectos do fundo psicóide da realidade em que ambos se baseiam” (2002, p. 3).
O corpo psicofísico é a morada para revelação de nossa alma (psique), ele é o recep-
táculo e o veículo das imagens do inconsciente, as quais são fornecidas à consciência.
O corpo expressa a alma, e é a morada para os arquétipos. Reis (2002) recorda Jung em
“Nietzsche’s Zarathustra”, no qual se referiu ao Si-Mesmo como a totalidade de corpo e
psique, sendo a alma (psique) a vida do corpo, e o corpo a manifestação do Si Mesmo,
ressaltando que se o Si-Mesmo não for representado na vida em sua natureza, se ma-
nifestaria em sintomas no corpo e fobias, de forma negativa. “A linguagem corporal é
como a onírica, anuncia e denuncia, fornecendo, assim, símbolos à consciência” (REIS,
2002, p. 4).
O corpo pode ser entendido como símbolo de um fato psicológico, isto é, o corpo
entendido como uma expressão psicológica, e sendo ele considerado como material e
concreto, a psique também pode ser compreendida como uma dimensão que se apre-
senta, primeiramente, em experiências biológicas. O corpo é uma casca que envolve a
vida psíquica, um cosmos particular e, portanto, a psique se expressa não só no corpo,
como também na vida objetiva.
De acordo com Jaffé (1986):
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Ao mesmo tempo, a situação de rua é uma experiência individual de alguns dos membros
mais vulneráveis da sociedade, caracterizada pelo abandono, desespero, baixa autoestima
e negação da dignidade, consequências graves para a saúde e para a vida. O termo ‘situação
de rua’ não só descreve a carência de moradia, como também identifica um grupo social.
O estreito vínculo entre a negação de direitos e uma identidade social, distingue a falta de
moradia da privação de outros direitos socioeconômicos (ONU In BRASIL, 2018, p. 1)
Uma análise feita pelo IPEA (2020) constatou que 81,5% dessa população se encontra
em municípios com mais de 100 mil habitantes, 56,2% no Sudeste, 17,2% no Nordeste e
15,1% no sul do Brasil. (IPEA, 2020, p. 1).
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Uma pessoa em situação de rua no Brasil, pode ser um reflexo da urbanização e dos
grandes centros, onde há grande movimento por busca por emprego. Segundo Santos
(2009), a situação do migrante – aquele que sai de uma região para outra – é caracteriza-
da como “fruto de uma determinação geográfica, que mantém relações estreitas com a
procura de trabalho” (p. 6). Pode-se deduzir a dificuldade que é encontrada nesta busca
e, por consequência, o grande número de pessoas ficando sem condições de ter uma
moradia nas grandes cidades. Portanto, além de se situar às margens da sociedade, esta
população é excluída da possibilidade de desenvolver as potencialidades que o lugar e o
pertencimento oferecem, sendo vítima diariamente das decorrências do não-lugar.
Martins (1997) critica o uso do termo exclusão social como conceito, mas admite ser
um fenômeno equivalente à pobreza. Ele sustenta a tese de que não há exclusão, mas
contradição, pois uma vez que os excluídos ameaçam a ordem do sistema, eles fazem
parte deste sistema. Nesta linha de raciocínio, não se trata de ruptura de laços sociais,
mas de um determinado tipo de ligação. O autor sustenta a contradição de se compreen-
der a exclusão como uma forma de inclusão “conveniente e necessária à mais eficiente
(e barata), reprodução do capital. E, também, ao funcionamento da ordem politica, em
favor daqueles que dominam” (MARTINS, 1997, p. 20 apud, LEAL, 2004, p. 9). Neste
sentido, a população de rua faz parte de um todo sistêmico, que só é excluída, porque
há quem esteja incluído. “A sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir de outro
modo, com suas próprias regras, segundo a sua própria lógica” (MARTINS, 1997, p. 32
apud LEAL, 2004, p. 10).
Augé (1995) define o lugar como identitário, relacional e histórico, discutindo a ideia
de o lugar ser uma potência de construção de identidade, de relação, e de história. Por-
tanto, segundo o autor, um espaço que não pode ser definido com essas potências, de-
finirá o não lugar (1995, p. 73). Os não lugares passam a serem caracterizados por locais
com os quais os sujeitos, em geral, não estabelecem nenhum tipo de vínculo relacional,
enquanto os ocupam. O autor os caracteriza como “dessimbolizados”. Sob tal perspecti-
va, Reis (2002) elenca os não lugares como “espaços de circulação” (p. 5). As pessoas em
situação de rua, costumam viver nestes “não lugares” descritos por Augé.
Como vimos, a morada física traz uma estruturação e um contorno para a encarnação
da alma, sendo o ambiente uma possibilidade de encarnação da nossa existência (HALL,
1977), da expressão dos lugares arquetípicos onde a alma habita. As pessoas em situa-
ção de rua, carecem de um lugar que lhes dê contorno ao corpo e que, então, possibilite
a vivência de encarnação, ou seja, ofereça a possibilidade de viver no mundo objetivo
com o corpo e com a alma, sair do imaginário e trazer essa experiência para a carne. As
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O conceito de corpo em Sándor, se refere a um corpo vivido, e é nesse “fluxo vital” que
nos enredamos quando nos aproximamos do corpo de outrem e o tocamos, confundindo
com esse corpo, o nosso próprio, para depois resgatá-los transformados pela experiência
comum. (…) o corpo recebe uma dimensão relacional em que se supera a oposição de um
interior e de um exterior. (p. 05).
O corpo de uma pessoa em situação de rua perde grandes oportunidades, que a vida
relacional traz de transformação. Greger (2020) está dizendo que o corpo, na relação
com outros corpos, se transforma. Assim como a alma se anima com outras almas, crian-
do alma. A morada é essencial para os vínculos e para as relações de intimidade, pois é
por meio deles que a pessoa se reconhece, que ela se vê, que cria a sua imagem corporal
e, assim, se resgata transformada. Greger (2020) conclui que:
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psique busca formas de preservar o mundo imaginal, que é o mundo da alma (psique), e
mesmo sem estruturas físicas, a alma, através da sua função de imaginação, traz para a
realidade objetiva a função da casa na vida de cada ser humano. A vivência arquetípica
da morada, sempre estará presente em cada um de nós.
Conclusão
As reflexões sobre o corpo psíquico das pessoas em situação de rua coincidem com
as preocupações sobre a sociedade como um todo – como uma malha de teia sistêmica,
que permite enxergar essa totalidade social e, trazendo à luz, que estas pessoas podem
ser compreendidas como um produto do funcionamento do sistema sociopolítico atual.
Seguindo o pensamento de Martins (1997), chamá-las de excluídas traz a reflexão de
que, conceitualmente, só há exclusão se houver inclusão – como uma teia, um depende
do outro para existir. Portanto, o uso do termo exclusão, no que diz respeito às pessoas
em situação de rua, traz consigo a reflexão sobre a forma pela qual esta população é
incluída neste sistema.
As pessoas em situação de rua vivem em extrema pobreza, e esta reflexão faz com
que se perceba, como contraponto, a população incluída, os que têm recursos para se
inserir de forma dominante no sistema social. Portanto, a pobreza se torna quase como
condição para existir a riqueza, uma não existe sem a outra. O que leva a se refletir sobre
o sistema capitalista atual, em que a exclusão se torna “conveniente”, a fim de se manter
a estrutura do capital vigente. Portanto, apesar de a constatação dessa forma de exclu-
são ser um dado de que há uma ruptura de laços, sejam relacionais ou empregatícios,
essa ruptura faz criar uma outra forma de ligação com o mundo, que passa a fazer parte
da sociedade – ou seja, se constroem outras formas de inclusão social, mesmo em con-
dições de exclusão e extrema pobreza.
Levando-se em consideração de que a alma é o princípio da relação, e de que os cor-
pos se transformam na relação com outros corpos, a população de rua constrói outro
tipo de ligação com os outros, com o espaço, com o corpo e com o mundo. É uma forma
diferente, porém parte de um todo sistêmico, no qual os corpos psíquicos não deixam de
procurar abrigo, contenção e pertencimento, concluindo que eles pertencem à socieda-
de – de uma forma ou de outra, eles pertencem!
Sendo assim, chamar as pessoas em situação de rua de excluídos, tira a responsabi-
lidade dos que estão incluídos, pois a disponibilidade de recursos para a população não
é igualitária para o sistema inteiro. O que leva, então, a uma renda centralizada, refle-
tindo numa condição que segundo Martins (1997 apud LEAL, 2004), pode ser definida
como perversa e/ou patológica de existir para os excluídos, para que o sistema continue
funcionando como está. Os incluídos dependem dos excluídos, para se manterem onde
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estão. Portanto, não é possível olhar para a parcela da população de rua, sem discutir o
sistema vigente.
Com isso, se por um lado o corpo psíquico da população de rua carece de recursos
materiais para construir abrigo, aconchego, privacidade – e em decorrência, para expe-
rimentar alguns limites no processo de construção da identidade, do senso de pertenci-
mento e relação – ao mesmo tempo, ainda que sem os recursos concretos e objetivos,
a população de rua sobrevive na psique do mundo, no mundo da alma, da imaginação.
“Anima loci: a alma em cada lugar e em cada coisa, em mim e no mundo, presente na
beleza e na feiura de todos os lugares, e de todas as coisas” (BARCELLOS, 2018, p. 16).
A rua, um espaço de circulação, um espaço que muitas vezes carece do reconhecer-se
no outro, da transformação advinda da relação com o outro, dificilmente tende a ser
um espaço reconhecido como um lugar com alma. O autor descreve que “o contraste
da ideia de ‘lugar’ com a de ‘espaço’ afirma que ‘lugar’ tem um nome, uma face, uma
particularidade, uma lembrança, um projeto, uma profundidade absorvente, tornando
possível, nosso reconhecimento” (p. 15).
O corpo psíquico das pessoas em situação de rua carece de estrutura objetiva, de
tijolos, recursos financeiros e materiais, que construiriam espaços a serem ocupados,
em função da relação humana, familiar. É possível considerar-se, no entanto, que há
– mesmo no espaço da rua – uma construção de um espaço pessoal, de uma busca de
intimidade e delimitações, que ressignificam espaços e objetos, permanecendo em sua
casa imaginal, ainda que sem uma casa concreta. Sem o concreto, lhe resta o mundo
imaginal e, com isso, a realidade imaginal em que vivem as pessoas em situação de rua,
se torna cada vez mais distante da realidade da população que não mora na rua, daque-
les que possuem recursos materiais, dificultando ainda mais o reconhecimento entre
essas populações.
As pessoas em situação de rua não são favorecidas na criação de vínculos, de identi-
dade, de pertencimento; não são favorecidas na construção de um lar, de uma relação,
e de uma transformação. E como a realidade objetiva não lhe favorece em termos de
recurso material, a população de rua se situa na imaginação, em um complexo processo
de construção de consciência do corpo psíquico. O processo de conscientização das pes-
soas em situação de rua é, então, prejudicado, pois o ser humano é um ser relacional –
ele necessita do concreto material, que vai propiciar o encontro de corpos psíquicos em
processo de transformação e de conscientização de si, por meio da relação com o outro.
Assim, a população de rua carece de estrutura para o aprofundamento na consciência, e
para o fortalecimento do ego (parte consciente da psique), na conscientização das ima-
gens inconscientes do corpo psíquico.
É possível considerar-se, então, que as pessoas em situação de rua, ao não possuírem
recursos materiais para construir uma casa física, se acolhem e sustentam relações fa-
miliares e sociais de forma diferenciada. As pessoas em situação de rua sobrevivem com
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Referências
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Resumo
A jornada do herói pode ser utilizada como uma referência ao nosso herói interno, que passa por di-
versas fases do desenvolvimento rumo à individuação, enfrentando conflitos, ganhando novos recursos,
ampliando saberes e, por fim, percorrendo caminhos que inicialmente não imaginava. A animação “O
Rei Leão” apresenta todas as características da jornada do herói. Em sua trajetória durante a história, o
personagem principal Simba inicia – e termina o filme – com a música que já nos apresenta um aspecto
importante do tema: o ciclo sem fim. Este artigo apresenta uma análise simbólica do desenvolvimento de
Simba e dos demais personagens, com base na Psicologia Analítica. Percebe-se a evolução de Simba, que
assume o papel de herói ao compreender seu próprio caminho, após passar um período de elaboração de
seus conteúdos emocionais.
Palavras-chave: Jung, Rei Leão, Jornada do Herói.
Abstract
The Hero’s Journey can be used as a reference about our internal hero who goes through various stages
of development towards individuation, facing conflicts, gaining new resources, expanding knowledge and,
finally, walking through paths that were not initially imagined. The animation “The Lion King” presents all
the characteristics of the hero’s journey. In his trajectory throughout the story, the main character Simba,
begins and ends the film with the music that already introduce us with an important aspect of the theme:
Circle of Life. This article presents a symbolic analysis of Simba and others characters’ development, based
on Analytical Psychology. Simba’s evolution can be seen, as he assumes the role of a hero by understan-
ding his own path after going through a period of preparation for his emotional contents.
Key words: Jung, The Lion King, The Hero’s Journey.
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Introdução
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- recusa do chamado
Este é o momento da escolha, e ocorre antes de o herói se lançar em sua aventura –
ele experimenta a indecisão, e pode pensar em recuar. Está diante da encruzilhada do
medo, e para superar este desafio, precisará que ocorra: alguma mudança no contexto;
um agravamento na ordem das coisas; ou criar motivação suficiente, por meio de uma
inspiração e apoio de um mentor.
- encontro com o mentor
O mentor tem o papel de capacitar o herói, a fim de enfrentar o desafio perante o
desconhecido que o espera, podendo aparecer como um sábio, um velho, um mago ou
um instrutor. Ele o preparará e fará orientações, podendo até presentear o herói com
um equipamento mágico para ajudá-lo, em sua jornada, a conquistar seu desafio. O
mentor motiva o herói e, se for preciso, assume uma postura firme para encorajá-lo. En-
tretanto, ele vai até um certo ponto, pois daí em diante é papel exclusivo do herói seguir
em frente, rumo ao desconhecido.
- travessia do primeiro limiar
Este é o momento em que o herói, finalmente, dá um passo adiante e entra em sua
aventura. Ele está comprometido com o seu desafio, se propõe a superar os obstáculos
e a lidar com as consequências, ao enfrentar o problema que lhe foi apresentado. Assim,
a história começa a se desenvolver – é, então, marcada pela ação e pelo desenrolar das
decisões e ações do herói, bem como por suas consequências, uma vez que ele venceu
seu medo e decidiu agir. Ao ingressar em sua jornada, já não existe mais a possibilidade
de desistir.
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- provação
Neste estágio, o herói precisa enfrentar seus maiores desafios – externos e internos
– lidando com medos, e indo ao extremo para enfrentar forças hostis. A ameaça de um
perigo mortal se aproxima sendo, então, experienciado um momento de tensões, preo-
cupações e luta. A provação traz em cena o momento de vida ou morte psicológica, em
que o herói poderá desistir ou voltar ao seu mundo com os tesouros conquistados e,
assim, será reconhecido como um cavalheiro em seu lugar de origem. O herói superará a
provação quando decidir prosseguir para o enfrentamento e, desta forma, quando sente
a morte de perto e sobrevive, algo novo renasce no herói, o qual o transformará.
- recompensa
Após passar pela provação e sobreviver, o herói pode comemorar sua vitória e obter
suas conquistas. Aqui, é possível perceber que o herói consegue o reconhecimento so-
bre aquilo que foi traçado como objetivo, no início de sua jornada.
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A inspiração para este artigo surgiu da necessidade de se refletir sobre o papel pa-
terno na sociedade, tendo em vista as diversas discussões acerca das responsabilidades
desta figura na estruturação do ego, como forma de compreender sua importância para
o desenvolvimento pessoal e coletivo, rumo à individuação. A animação escolhida é uma
das poucas produções de contos que aborda, mais diretamente, a relação pai e filho, e
levanta questões sobre o papel do patriarcado na estruturação egóica, e seus reflexos na
atuação do indivíduo em sociedade.
A seguir, será descrita a jornada de Simba rumo à realização de seu papel como rei,
correlacionando a trajetória do herói, segundo a proposta de Vogler (2019), com o de-
senvolvimento psicológico, de acordo com a Psicologia Analítica. Além de Simba, será
apresentada uma visão simbólica relacionada a outros personagens da história.
Segue uma breve descrição dos personagens analisados na animação “O Rei Leão”
(1994):
- Simba: protagonista da história, tem sua vida retratada desde a concepção até a
sua ascensão como rei. Surge, inicialmente, como um filhote de leão, que se desen-
volve ao longo da jornada ao enfrentar diversos desafios, sendo possível perceber as
mudanças de comportamento em cada fase: infância, adolescência e vida adulta.
- Mufasa: pai de Simba, surge na história como o rei. Sua principal função é a de
transmitir ao filho conhecimentos sobre o reino e a vida, considerando tanto o papel
objetivo de gerenciamento, quanto questões mais elevadas do espírito. Sua posição é
invejada pelo irmão, que planeja destroná-lo.
- Scar: antagonista da história, é o irmão do rei e tio de Simba. Apresenta grande
desejo de poder e quer estar no comando do reino, mais pelo título de rei do que
pelas obrigações regenciais. Vilão principal do enredo, manipula e cria estratagemas
envolvendo Simba e Mufasa, para conseguir o que quer – o trono.
- Nala: melhor amiga de Simba e, posteriormente, sua companheira. Se envolve
com o herói em suas principais aventuras, e o inspira a enfrentar a culpa e a lutar pelo
que é seu por direito. Tem a função de musa inspiradora.
- Timão e Pumba: amigos de Simba, que o resgatam e o ajudam numa situação de
crise, após a morte do pai. Fazem uma integração e facilitação da vida de Simba na
floresta. Mostram, para o pequeno leão, outras possibilidades na vida, ensinando-o a
se nutrir de alimentos diferentes do hábito do protagonista, bem como a não enfren-
tar situações muito dolorosas, por meio do lema “Hakuna Matata” (Sem problemas).
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- Rafike: é o macaco ancião, que atua como o conselheiro do rei, tanto a Mufasa
quanto, posteriormente, a Simba. Com uma postura de guia espiritual, Rafike facilita
a comunicação do mundo concreto com o mundo dos espíritos, auxiliando Simba a
voltar para seu caminho. Tem conexão com os aspectos mais intuitivos, e luta por
aquilo que é importante.
Primeiro Ato
- mundo comum
Inicialmente, o filme apresenta uma canção com os temas do ciclo sem fim, e do nas-
cimento de Simba. Este nascimento de uma nova consciência, é vivenciado por meio de
um ritual de apresentação da nova vida para o reino. Neumann (1991) traz uma leitura
mitológica sobre o desenvolvimento infantil, descrevendo as fases do desenvolvimento
da criança em algumas etapas e, entre elas, aponta o estágio do “solar guerreiro”, na
qual há a identificação da criança com os arquétipos do Selves – masculino e paterno
– bem como a entrada no patriarcado. O próximo estágio de desenvolvimento seria o
“solar racional”, fase em que há a evolução da função discriminatória, e o predomínio da
função da razão: logos. Este sol surge no filme logo no seu início, na música introdutória
em que se diz que “desde o dia em que ao mundo chegamos, caminhamos rumo ao sol”,
sinalizando a busca por uma ampliação de consciência como um processo natural da
psique.
No momento seguinte da animação, Simba desperta o pai para que este o leve para
conhecer o reino. Então Mufasa, o atual rei, explica que as dimensões do reino abran-
gem todo território que o sol toca e ilumina. O rei, aqui identificado como símbolo do
Self, comunica-se com o Ego em desenvolvimento (Simba). Edinger (2006), ao falar dos
aspectos simbólicos da alquimia aponta que, na visão dos alquimistas, o sol tem conexão
com o ouro – princípio do masculino, leão, rei, luz e consciência.
O Ego em desenvolvimento vai se diferenciando do Self, conforme o processo apre-
sentado por Edinger (1989) formando, afinal, o eixo Ego-Self. Pode-se compreender esse
diálogo pai-filho, Self-Ego, como o movimento que se dá no processo de individuação,
em que o Ego amplia os horizontes de percepção consciente, ao entrar em contato com
as informações fornecidas pelo Self.
Quando Mufasa aponta que o reino é tudo o que o sol toca, e que o pequeno leão não
poderá ir à parte sombria, no cemitério de elefantes, o Ego em formação inicia o proces-
so de percepção de limites da consciência, e seu primeiro contato com o tema da morte.
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- aventura
Depois do diálogo com seu pai, Simba conversa com seu tio Scar, o irmão fragilizado
do rei, que apresenta comportamentos e posturas diferentes das de Mufasa represen-
tando, simbolicamente, a Sombra. Pode-se compreender a Sombra como o campo psí-
quico que contém desejos reprimidos; motivações questionáveis moralmente, ou com
valores inferiores ao da consciência; impulsos não civilizados; fantasias infantis; mágoas;
sentimentos rejeitados, e ressentimentos. A Sombra vai se tornando, assim, um local de
armazenamento daquilo que não foi permitido ao Ego vivenciar.
Nesta cena, Scar aguça a curiosidade de Simba e, utilizando-se de suas habilidades
de articulação, cria uma argumentação a fim de induzir o pequeno a visitar o cemitério,
área apresentada anteriormente como proibida e distante da consciência, ou seja, mais
um elemento sombrio. A sombra presente em Scar atua movida pela inveja e pelo dese-
jo de poder, ao querer assumir a posição de rei de forma ilegítima.
Simba, por sua vez, canta que o que mais quer é ser rei, como forma de se tornar
aquilo que seu pai é, e o que ele nasceu para ser um dia. Na cena, nota-se uma inflação
egóica esperada em seu estágio de desenvolvimento, diferentemente de seu tio, que
quer a posição de rei sem ter o direito a ela. Desta maneira, percebe-se que frente ao
desejo de ser rei, os dois personagens têm motivações diferentes evidenciando, assim, a
polaridade inspiração versus inveja – ou como apresentado por Byington, a polarização
entre a inveja criativa e a inveja fixada. De acordo com o autor “[...] quando fixada e
defensiva, a inveja torna negativa e destrutiva a sua criatividade. Ao invés de fortalecer
e ampliar, ela restringe a Consciência e passa a atuar no crescimento da Sombra” (Bying-
ton, 2005, p. 5).
Simba desobedece ao pai e convida Nala (princípio do feminino), como parceira na
aventura para conhecer o cemitério de elefantes, local em que as hienas exiladas pelo rei
vivem. Representando traços rejeitados pela consciência, e levados à sombra, as hienas
surgem como um símbolo de perigo e ameaça ao Ego.
Simba é atacado pelas hienas e, no último momento, sendo socorrido pelo pai, é
depois repreendido e orientado por este. Pode-se entender esta parte do filme como o
momento em que o Ego recebe um apoio do Self, a fim de enfrentar os desafios da vida.
Ao mesmo tempo em que é repreendido por seu pai, Simba recebe, mais uma vez, uma
orientação sobre seus limites, o que propicia um contorno de Ego. Ao abordar o tema de
forma firme e compreensiva, Mufasa constela em Simba um complexo paterno positivo,
ao acolher o filho em seu medo e o ajudando a entender que esta emoção está presente
em todos. “No complexo paterno originalmente positivo do filho, o ego se identifica com
seu complexo paterno que define, de modo amplo e coletivo, o que é normal e desejá-
vel” (KAST, 1997 p. 131).
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- recusa ao Chamado
No momento seguinte, Scar leva Simba para um vale onde conversam sobre uma sur-
presa que ele está preparando. O tio provoca o pequeno leão a treinar seu rugido, esti-
mulando a inflação de ego do príncipe, que gostaria de ter uma potência similar à do pai.
No entanto, Simba é enganado pelo tio que, junto com as hienas, provoca o estouro da
manada de gnus (búfalos). Ao saber que o filho corria perigo, Mufasa tenta salvá-lo, mas
depois de deixar Simba em um local seguro, pede ajuda ao seu irmão Scar que, numa
atuação de defesa psicopática perversa o joga do penhasco, ocasionando a sua morte.
A ação de Scar pode ser vista, simbolicamente, como uma atuação da defesa psicopá-
tica que, para atingir seus objetivos, utiliza-se de recursos como dissimulação, mentira,
manipulação, além da função volitiva e ética distorcidas, no intuito de conquistar o que
quer. “Na defesa psicopática, a função estruturante da vontade é envolvida pela defesa,
o que a torna dolosa e capaz de atingir o máximo da gravidade da sociopatia e da delin-
quência”. (Byington, 2019 p. 225)
Scar convence o pequeno leão de que ele é o culpado pela morte do pai, e o manda
fugir. Em seguida, envia as hienas para matarem Simba que consegue, porém, escapar
das investidas das feras – seu tio, no entanto, acaba por desconhecer que ele saiu vivo.
Nota-se, também, que a cena retrata um momento de possessão do ego em formação,
pela sombra. Este filhote ainda está desenvolvendo seus recursos internos para se tor-
nar rei um dia, mas tanto o tio quanto as hienas e os gnus surgem como elementos da
sombra, que possuem e amedrontam o ego. Esta possessão do ego, então, faz com que
ele não consiga identificar os recursos necessários para sair do contexto periculoso. No-
vamente, o ego é resgatado pelo pai, que aqui representa, ao mesmo tempo, o complexo
paterno positivo e o Self (por ser o rei).
Simba foge para a floresta, recusando-se a enfrentar a situação de perda do pai, por
sentir-se responsabilizado por ela. Lá, é acolhido pelos novos amigos – Timão e Pum-
ba – que o encorajam a esquecer o passado, tendo como inspiração a música Hakuna-
-Matata, que para eles têm o significado de se viver sem problemas. Aqui, o personagem
tem uma retração da energia psíquica para o mundo interno, para o inconsciente (repre-
sentado pela floresta). Apesar desse movimento de recolhimento, compreende-se que
o leão apresenta como função principal da consciência, a intuição extrovertida. Pode-se
notar, ainda, a compensação inconsciente quando ele aprende com os novos amigos –
que representam sua função inferior, a sensação introvertida – a comer uma variedade
de insetos, e a conter seus instintos de leão. Jung (2013a) aponta que o inconsciente
do tipo intuitivo guarda semelhanças ao tipo sensação, pois “[...] o pensar e o sentir
são relativamente reprimidos e formam, no inconsciente, pensamentos e sentimentos
arcaico-infantis [...]” (p. 383)
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Rafike: - O passado pode doer, mas você pode fugir dele, ou aprender com ele.
Na sequência, Rafike conta que conhece o pai de Simba, e o leva para um local mais
profundo na floresta, a fim de facilitar o canal de comunicação entre Simba e o símbolo
do pai (imagem projetada no rio e no céu), o qual estava interrompido pela culpa que
Simba carregava por acreditar que tinha matado o pai. Pode-se dizer que, neste momen-
to, o mentor está facilitando o reestabelecimento do eixo Ego–Self.
Simba aprofunda-se no olhar para dentro de si, e consegue acessar um campo numi-
noso de experiência, ao ver a imagem de Mufasa refletida no lago e depois nas nuvens,
como um deus dizendo para ele lembrar-se de quem ele é. Esse encontro com o Self fez
com que Simba saísse do estado de inconsciência, o que inspirou seu caminho de volta
para a individuação. Após lembrar-se de quem ele é, e recuperar o acesso à sua potência
criativa, sua energia psíquica sai de uma atitude introvertida, voltando a ser direcionada
para o mundo externo, e para a conquista daquilo que é seu por direito.
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- travessia do limiar
Ao reencontrar seu propósito como rei, Simba percorre um longo deserto, que fica
entre a floresta em que esteve temporariamente e sua residência natal. A travessia do
herói pode ser vista como a experiência do ego que, após entrar em contato com algo
numinoso, sente-se tocado a ponto de rever suas escolhas. Sua energia psíquica estava
retida no inconsciente, por conta do contato com os elementos sombrios possessivos de
sua infância. Agora, essa energia volta a ser direcionada para o enfrentamento de seus
conflitos do momento, com o ego mais fortalecido e alinhado com o Self. Após ganhar
consciência de quem é e de seu papel no mundo, o ego busca sua individuação, e isso
pode ser notado na cena em que Simba passa pelo deserto sozinho.
Segundo ato
- teste de coragem, aliados e inimigos:
Chegada a hora de enfrentar seus medos internos e seu próprio julgamento, Simba
recebe o apoio de aliados como Nala, Timão e Pumba, Rafike e, posteriormente, das le-
oas que ficaram na Pedra do Rei. O herói nota que a postura de Scar frente ao reino gera
devastação, desequilíbrio, escassez e desvitalização.
Pode-se compreender esse cenário como um estágio depressivo da psique, que após
ser dominada pela sombra se viu sem recursos para se manter ativa. Dentro desse con-
texto empobrecido de recursos, Scar – representando a sombra – atua culpando os ou-
tros pelo fracasso de seu reinado, não aceitando críticas à sua gestão deficitária. Simba,
então, com um ego mais fortalecido, percebe que é necessário retomar o controle da
situação, e junto com seus aliados, que simbolizam os recursos que ele desenvolveu en-
quanto estava fora, prepara-se para uma luta importante.
- aproximação do objetivo
Nesse momento, Simba observa o discurso do tio, que termina numa agressão à sua
mãe, Sarabe. Após ver esta ser punida, Simba surge diante de todos para enfrentar Scar
e, consequentemente, tem que lidar com a culpa que lhe fora atribuída pela morte de
seu pai. Seu aparecimento é acompanhado de um forte relâmpago, que pode ser com-
preendido como um lampejo de consciência, que traz novos recursos para a psique em
um momento de enfraquecimento.
Logo após seu surgimento, Simba se vê numa tensão bélica com seu adversário, re-
presentando a polaridade ego-sombra. O ego percebe os danos gerados na psique, mas
a sombra não está disposta a perder o status conquistado. Desta forma, Scar acusa Simba
como responsável pela morte de Mufasa, e Simba precisa lidar com seu complexo de culpa.
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- provação máxima
Em meio à tensão presente, Simba e Scar lutam no cenário repleto de chamas. O fogo
representa o início de uma transformação no reino, uma calcinatio (Edinger, 2006) que
poderá purificar o reino, e o primeiro passo para isso é lidar com as emoções inflamadas,
com a raiva ardente.
A luta entre os leões é compreendida como o enfrentamento dos elementos da som-
bra, quando chegam à consciência. Por vezes, são elementos confusos, desconexos e
acusatórios, mas ao enfrentá-los, o Ego do herói poderá assimilar sua defesa neurótica
que gerou culpa, compreendendo que os fatos eram diferentes do que tinha entendido
a princípio, e que havia sido manipulado pelo plano de Scar no início da história.
Scar, ao acreditar que já havia vencido a disputa, confessa que foi o autor do crime
contra Mufasa. Simba se recupera, e faz Scar confessar seu ato diante de todos. Com-
preende-se este momento como a representação da função do complexo do Ego (Jung,
2013c), que busca assimilar à consciência, conteúdos do inconsciente e elementos exte-
riores. A sombra quer ser integrada e vista, por isso, o ato confessional de seu tio.
- recompensa
Após vencer a batalha contra seu tio, Simba permite que ele vá embora e nunca mais
volte ao reino. Contudo, Scar não se dá por vencido e, em sua última tentativa de reto-
mar o poder, ataca seu sobrinho de surpresa. Neste instante, o herói não hesita em sua
escolha, e empurra seu tio de cima da pedra – logo em seguida, ele é atacado e devorado
pelas hienas.
Tendo em vista que Scar representa a sombra de Simba, quando o herói opta por
expulsar seu tio do reino, evita pôr fim ao seu complexo. O conteúdo da sombra de
Simba não podia simplesmente ser afastado, pelo contrário, deveria ser resolvido. Des-
se modo, quando Scar ataca-o pela última vez, o herói decide enfrentar sua sombra e,
com sua vitória definitiva, integrar este conteúdo – o que representou a conquista de
sua recompensa.
Terceiro ato
- caminho de volta
Logo após o término da luta de Simba com Scar, seu reino – que ainda estava em
chamas – recebe o choro vindo dos céus. A chuva, que caía na terra, representou a nova
vida no reino, e o início de uma nova consciência.
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- ressureição
Durante seu domínio, Scar atuava por meio de atitudes intimidadoras e perversas.
Isto fez com que o medo e a submissão se espalhassem por todo o reino e, como con-
sequência, toda a terra tornou-se infértil, sem frutos, sem vegetações – desprovida de
vida. Com a chegada da chuva e o anúncio da nova consciência, a terra volta a ser abas-
tada simbolizando a esperança que ressurgiu nos animais do reino.
Além disso, a ressurreição de Simba, que ocorre em sintonia com a fertilidade da
terra, representa o momento da retomada da energia psíquica do leão agora adulto,
uma vez que seu complexo de culpa foi ressignificado. E ele, ao assumir seu papel de rei,
retoma seu processo de individuação – sua consciência se individualiza, e se diferencia
da consciência dos demais. Segundo Jung,
Qualquer avanço começa sempre com a individuação, isto é, começa com o indivíduo abrin-
do novo caminho através de terreno até então não desbravado, depois de haver-se cons-
cientizado de sua própria individualização. Para chegar a isto, deve ele primeiramente retor-
nar aos fatos fundamentais de seu próprio ser, independentemente de qualquer autoridade
ou tradição, e tomar consciência de sua diferenciação. Se conseguir conferir um valor à sua
consciência ampliada, ele provocará uma tensão entre os opostos que lhe fornece estímulos
para seus progressos posteriores (JUNG, 2013d, p. 111).
- retorno transformado
Ao completar sua jornada, Simba se torna rei e regressa mais sábio. Seu reino está
próspero, o que denota que a vida voltou ao seu estado normal. O herói se encontra no
mesmo local que sua jornada teve início, e agora, devido a sua consciência estar amplia-
da, compreende que nada mais será igual como era anteriormente.
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Ademais, Simba não se encontra mais sozinho – ele inicia seu reinado ao lado de Nala
e torna-se pai, o que simboliza o encontro dele com sua Anima. No processo de individu-
ação de Simba, a concepção de seu filhote mostra a vida dando sequência, como símbo-
lo de sua prosperidade. Retorna, assim, ao ponto inicial do ciclo sem fim, representando
a totalidade da psique.
Conclusão
Referências
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Resumo
O presente artigo apresenta um breve histórico do método calatônico criado por Pethö Sándor no cenário
da Segunda Guerra Mundial na Europa na década de 1940. Reflete sobre os desdobramentos teóricos,
técnicos e pedagógicos deste método, especificamente a respeito das correlações entre seus efeitos psi-
cofísicos e os achados do campo atual das neurociências. Finalmente discute sua pertinência para imple-
mentação no sistema de saúde, público e privado, por se utilizar de tecnologia leve, de fácil aplicação,
baixo risco, acessível e com capacidade de adaptação a diferentes serviços, contextos e populações.
Palavras-chave: Calatonia, Sándor, Corpo e Jung.
Abstract
This article presents a brief history of the calatonic method created by Sándor in the context of World War
II in Europe in the 1940s. It reflects on the theoretical, technical and pedagogical developments of this
method, specifically regarding the correlations between its psychophysical effects and the findings from
the current field of neurosciences. Finally, it discusses its relevance for implementation in the public and
private health system, as it uses light technology, easy to apply, low risk, accessible and capable of adap-
ting to different services, contexts and populations.
Key words: Calatonia, Sándor, Body e Jung.
1 Artigo publicado originalmente como capítulo do livro “Calatonia e Toques Sutis: uma abordagem neu-
rocientífica” (BLANCHARD, 2020).
2 Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica, Doutora em Psicologia do Desenvolvimento Humano e com Pós
Doutorado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), psicoterapeuta com Especialização
em Cinesiologia Psicológica e docente do Curso de Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem
Corporal do Instituto Sedes Sapientiae/SP e pesquisadora científica da SES/SP. E-mail: gregerusp@gmail.com
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A Calatonia, tal como criada e descrita por Sándor (1969), é uma técnica de condi-
cionamento psicofísico realizada por meio de uma sequência de nove toques sutis e
estacionários nos dedos e solas dos pés; no calcanhar; e na convergência tendinosa da
região posterior da perna, com um décimo toque opcional na cabeça. Utiliza a sensibili-
dade cutânea como ponto de partida e proporciona a percepção de múltiplas qualidades
de estímulos pelo toque na pele (pressão, temperatura, dor, vibração e outros). Essa
vivência multissensorial sintetiza particularidades perceptivas e aperceptivas; ou seja,
permite que a pessoa possa organizar de forma relativamente definida os estímulos per-
cebidos e, ao mesmo tempo, atribuir significados a eles.
O tipo de toque praticado na Calatonia apresenta como características principais: a
sutileza – como se fosse possível tocar uma bolha de sabão –; a monotonia – toques
aplicados em ritmo lento e padrão repetitivo, em um ambiente com estímulos reduzidos
(ou seja, sem ruídos, luzes, odores etc.) –; e a simetria – toques nos pés e pernas rea-
lizados simultaneamente nos dois lados do corpo. Ao aplicar a Calatonia, é importante
que “deixemos a mente livre para passar o que tiver que passar”, como costumava su-
gerir Sándor, sem gerar e nutrir expectativas e julgamentos por parte tanto do terapeuta
quanto do paciente.
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Podemos supor, com base nas afirmações de seu criador, Pethö Sándor (1982), que
os efeitos promovidos pela Calatonia apontam para a promoção de estados alterados de
consciência, aqueles em que ocorre um rebaixamento do controle do sistema nervoso
central frente à monotonia dos estímulos e à atenção focalizada nos toques. Apontam
também para a regulação do tônus psicofísico, devido ao ajuste espontâneo do nível de
tensão muscular – esquelética e visceral – e psicológica do organismo. Por fim, os efeitos
também apontam para o equilíbrio dinâmico de diversas funções vegetativas (respira-
ção, circulação, batimentos cardíacos etc.); para a expansão da sensibilidade propriocep-
tiva (ligada à localização espacial do corpo) e de consciência corporal; e para a formação
e percepção de imagens, ideias, sonhos e outras manifestações psíquicas associadas a
processos e sintomas psicofisiológicos.
Todas essas manifestações mobilizam a plasticidade cerebral porque os toques inu-
sitados da Calatonia ativam circuitos e conexões não habituais entre os neurônios. Por
exemplo, tocando-se levemente os pés, “desafia-se” o sistema nervoso, pois não exis-
tem tantos registros na memória desse tipo de estímulo mais sutil nos pés. Os pés estão
habituados com estímulos mais densos, já que recebem continuamente formas intensas
de estimulação por sustentarem o corpo todo em oposição à força da gravidade quando
nos encontramos na posição ereta e ao caminhar.
Ao trabalhar com o corpo desse modo sutil e novo, a abordagem de Sándor “surpre-
ende” o sistema nervoso, o intelecto e a alma da pessoa, e a transporta para a fronteira
entre os mundos objetivo e subjetivo, consciente e inconsciente, corpo e psique. O pa-
ciente se sente acolhido e contido no contexto de um ritual que vai desde a preparação
cuidadosa do ambiente, a entrega aos toques e a auto-observação até o retorno guia-
do e progressivo ao estado habitual de presença. O terapeuta, por sua vez, além de se
manter atento ao paciente, também observa suas próprias reações físicas e psíquicas,
mantendo-se focado em um “terceiro ponto” a ser mentalmente projetado entre ele e
o paciente. Esse terceiro ponto imaginário, como indicava Sándor, atua simbolicamente
como uma estratégia para lembrar o terapeuta de que esse encontro entre as duas psi-
ques é regulado por uma dinâmica exponencial que transcende paciente e terapeuta.
Sándor construiu um método de trabalho – o método calatônico – por meio de uma
inovadora metodologia de investigação que partiu de suas experimentações no contexto
clínico e social para então buscar articulações teóricas. No campo teórico, seu método
integra os fundamentos provenientes principalmente de três áreas do conhecimento: a
psicologia analítica de Jung, a psicologia organísmica e a cinesiologia psicológica.
O repertório teórico que sustenta o método calatônico subentende a visão de Sándor,
que, tal como Jung e em equivalência aos princípios da psicologia organísmica (SÁNDOR,
1982), concebe o ser como totalidade (biopsicossocial) e inclui as manifestações físicas,
psíquicas, conscientes ou inconscientes. Para Sándor, “qualquer dimensão da experiên-
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cia pode ser um ponto de partida para atingir a totalidade do organismo e as respostas
deste serão sempre totais” (SÁNDOR, 1982, p. 5-6).
A perspectiva da cinesiologia psicológica complementa a fundamentação da Calato-
nia, partindo do estudo dos movimentos (cinesiologia) relacionados ao sistema muscu-
loesquelético, mas voltando-se também à movimentação da musculatura lisa das vísce-
ras. Sándor procurou estabelecer associações entre os movimentos internos e externos,
seus significados em termos psicológicos, a imagem corporal (a representação internali-
zada do corpo que corresponde à autoimagem) e suas formas típicas de expressão cor-
poral, em termos estéticos e culturais.
O método calatônico engloba uma ampla variedade de técnicas (DELMANTO, 1997)
que incluem a Calatonia, mas não se restringem a ela. Essas técnicas não pressupõem
atender a queixas específicas, mas, de modo geral, visam promover a regulação do tônus
psicofísico, aquele equilíbrio único para cada ser e contexto.
Eventualmente, Sándor recorria de modo natural a técnicas de outras disciplinas,
que englobavam desde métodos ativos (respiratórios, de movimentação e expressão
corporal) a métodos passivos (introspecção imaginativa e meditação), entre outros. O
importante para ele era considerar a escolha das técnicas, em uma perspectiva nitida-
mente junguiana e em uma combinação exclusiva entre as necessidades inconscientes
do paciente, suas características de personalidade, sua situação consciente e as condi-
ções do vínculo estabelecido entre paciente e terapeuta naquele momento do processo
terapêutico.
Do ponto de vista metodológico, Sándor priorizou a observação atenta e sensível,
a descrição profunda e detalhada de nuances da experiência e a intersubjetividade na
construção do conhecimento, sempre embasadas na interação somática e empática com
o outro e com a realidade. No entanto, embora tenha enfatizado a perspectiva qualitati-
va nas suas investigações, sempre reconheceu a importância de desenvolver pesquisas
quantitativas experimentais, particularmente sobre os efeitos psicofísicos da Calatonia.
Assim, Sándor navegou nos mares da experiência e da ciência em busca de novos
horizontes, integrando perspectivas e disciplinas, contrapondo paradoxos e investigando
pontos de contato entre diferentes planos da realidade e do ser. Aproximou-se do que
Barthes (1988) codificou como a autêntica interdisciplinaridade ou mesmo a transdis-
ciplinaridade, que consiste em “criar um objeto novo que não pertença a ninguém” (p.
99). Ou seja, Sándor intentou realizar novas sínteses entre os fenômenos observados e
descobrir elementos, encorajando seus alunos a fazerem o mesmo.
O que dizer sobre o criador de um método tão inovador como a Calatonia, que intuiu,
com mais de 50 anos de antecedência, complexas descobertas do campo atual das neu-
rociências e preconizou uma forma integrativa, inclusiva e transdisciplinar de produção
do conhecimento e atuação clínica, na primeira metade do século XX?
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É o próprio Sándor (1982) que inclui, entre os fundamentos multilaterais de seu tra-
balho, “as pesquisas mais recentes [na época] sobre a formação reticular, as representa-
ções vegetativas no córtex e sobre os proprioceptivos periféricos” (p 93). Sándor indicou
também, ao se referir à constelação de imagens durante o processo de aplicação da
Calatonia, a existência de “evidências singulares a respeito da participação dos diversos
segmentos do sistema vegetativo na formação de imagens e da importância do cerebelo
na coordenação dos fragmentos delas” (SÁNDOR, 1982, p. 109).
Ao vislumbrar, inúmeras vezes, o desenvolvimento futuro de uma área de pesquisa
biopsíquica, voltada a investigações mais amplas em campos como os da psicologia e da
medicina experimental, Sándor destacou a importância do “estudo da integração entre
fenômenos psíquicos e físicos, associados à aplicação do método calatônico” (SÁNDOR,
1962, p. 93). Ele utilizou, de modo visionário, processos como o reflexo de orientação
(PAVLOV, 1927), desencadeado a partir de toques inusitados, como os toques sutis da
Calatonia, para redirigir a atenção e reinstaurar a motivação. Aproveitou também a sin-
cronização de redes neuronais de larga escala para promover a autorregulação do pró-
prio cérebro, por meio da conectividade cerebral que é facilitada quando o cérebro está
desperto em estado de repouso. Nesse estado, ocorrem processos de interesse psico-
terapêutico, como os processos aperceptivos e de mind wandering (divagação mental).
Diante das hipóteses sobre os fundamentos multilaterais da técnica, o reflexo de
orientação, a sincronização de redes neuronais e a divagação mental, faz-se cada vez
mais presente a necessidade de desenvolver pesquisas quantitativas e qualitativas que
forneçam evidências científicas sobre a eficácia do método calatônico.
Em um cenário mundial que demanda práticas de saúde baseadas em evidências
científicas que sejam mais inclusivas e voltadas para a promoção da saúde e prevenção
de agravos, em ampla escala, o método criado por Sándor oferece a possibilidade de uti-
lização tanto pelos sistemas públicos de saúde quanto pelo sistema mais individualizado
e privado da prática clínica.
A Calatonia e os Toques Sutis ainda não se encontram entre as práticas oficialmente
oferecidas pelo sistema público de saúde brasileiro, embora muitos profissionais do Sis-
tema Único de Saúde (SUS) empreguem a Calatonia nesse contexto. Porém, as técnicas
de Sándor têm sido cada vez mais utilizadas no sistema privado, sendo bastante inclusi-
vas, no sentido de utilizarem tecnologia leve, de fácil aplicação, baixo risco, acessível e
com capacidade de adaptação a diferentes serviços, contextos e populações.
Por suas qualidades de implementação, da mesma forma que foi utilizado nos cam-
pos de refugiados durante a Segunda Guerra Mundial, o método calatônico torna-se
elegível para incorporação como estratégia da Política Nacional de Práticas Integrativas e
Complementares (PNPIC) (BRASIL, 2016), entre outros contextos, como é o caso da Rede
de Atenção Psicossocial (RAPS) do SUS, em que se realizam intervenções na área de saú-
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O interesse pela formação profissional no método calatônico tem sido cada vez mais
pronunciado no Brasil e em outros países. Muito se tem discutido sobre as formas de
disseminação e ensino desse método tão rico, peculiar e complexo, em busca da cons-
trução de eixos pedagógicos. Sándor alertara que:
Por causa da sua divulgação tão ampla [a Calatonia e outras técnicas de relaxamento
correlatas] estão expostas a alterações indevidas e experimentações pouco sérias. As-
sim usadas por pessoas não adequadamente preparadas, podem causar resultados ne-
gativos, devido a inesperadas comutações neurovegetativas ou pela manipulação irres-
ponsável do estado hipnoide que surge no decorrer usual do condicionamento e assim
torna-se patente que em círculos profissionais deve haver esclarecimento adequado
[…] e que aqueles que queiram aplicar [estas técnicas] possam ter a oportunidade de
treiná-las (1982, p. 4).
Embora a aplicação da Calatonia não implique sérios riscos, há recomendações que
devem ser seguidas para o desenvolvimento de uma boa prática, baseadas em sólida
fundamentação teórica e postura ética. Os cuidados para a aplicação da Calatonia, em
contexto de psicoterapia ou não, envolvem desde a escolha e preparação do ambiente
adequado para seu desenvolvimento – preservando-se as condições de conforto, não
interrupção e sigilo das observações relatadas pelos pacientes – até a consideração de
critérios de exclusão. Essas recomendações são extensivamente discutidas nos cursos de
preparo de profissionais.
Torna-se evidente que o terapeuta que pretende utilizar o método calatônico deve se
submeter à vivência pessoal dentro desse enfoque terapêutico, além de buscar forma-
ção continuada e, a princípio, desenvolver seu trabalho sob a supervisão de profissionais
certificados.
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nº 20, 2020:
• BALANÇO DA REVISTA “JUNG & CORPO”: 20 Anos
• HOMENAGEM À ELIANA PEREIRA E OLIVEIRA CARREIRÃO – Poema “Canto para a Terra”
• CALATONIA E PSICOTERAPIA – Um Estudo de Caso
• O MITO DA MATERNIDADE COMPULSÓRIA – Uma Visão Junguiana
• NESTE CORPO MORA UMA PUÉRPERA – Quem Cuida do Corpo de Quem fez Outro Corpo?
• A MULHER NORDESTINA: Estereótipo e Experiência
• RELATO DE UM MODELO INTERVENTIVO PARA MANEJO DO ESTRESSE DO PROFESSOR
• DEPRESSÃO E RISCO DE SUICÍDIO NA ADOLESCÊNCIA: Uma Abordagem Junguiana
• A PESTE NA HISTÓRIA, NA ARTE E NA LITERATURA
• MEMÓRIA E ARTE: Um Relato sobre o Ensino de Arte para Crianças com Paralisia Cerebral
• VIDA E OBRA DE FRANCIS BACON: A Busca de Integração
nº 19, 2019:
• HOMENAGEM - Dr. Carlos Amadeu Botelho Byington
• HOMENAGEM - Cleide Trovato
• ENTRE CONTOS DE FADAS E FILMES CONTEMPORÂNEOS:
A Travessia de Duas Personagens Femininas na Busca na Individuação
• MITOLOGIA HINDU, SÍMBOLOS E CASAIS ARQUETÍPICOS
• PSICOYOGA
• O ÚTERO FERIDO E O PODER TRANSFORMADOR DA CALATONIA
• A IMAGEM CORPORAL DE SACERDOTES CATÓLICOS NA PERSPECTIVA JUNGUIANA CORPORAL
• A NEUROCIÊNCIA DOS SÍMBOLOS: DA EVOLUÇÃO À REPRESENTAÇÃO NEURAL
• O IMPACTO EMOCIONAL DA VIRTUALIZAÇÃO DO CORPO
EM INDIVÍDUOS COM INTERAÇÕES REMOTAS DE TRABALHO
nº 18, 2018:
• OS SONHOS, JUNG E A ESPIRITUALIDADE
• O BRILHO DO MALANDRO: o Trickster enquanto Complexo Cultural do Brasil
• CORPO E JUNG: Apontamentos em Direção à Pós-modernidade
• SOMBRA E HUMOR
• ESTUDO SOBRE OS SÍMBOLOS E PRODUÇÕES SIMBÓLICAS
DA OFICINA DE ESPIRITUALIDADE EM CUIDADOS PALIATIVOS
• RESILIÊNCIA E TRABALHO: Reflexões sob a Perspectiva
da Psicologia Analítica com Abordagem Corporal
• “UM GOLPE DO DESTINO”: Quando o doente é o profissional da saúde
nº 17, 2017:
• VIDA RELIGIOSA E MULHERES CONSAGRADAS:
Os caminhos da individuação feminina numa proposta Junguiana
• O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO E A FORMAÇÃO DO TERAPEUTA JUNGUIANO CORPORAL
• A RELAÇÃO DA MULHER COM A MEIA-IDADE
• TOCANDO MENTES, CORPOS E ALMAS EM TERAPIA:
Ampliando e estimulando Conexões Neuronais
• O CONCEITO DE RESISTÊNCIA PARA FREUD, REICH, LOWEN E NO YOGA
• INTENSIDADE E LEVEZA EM UM MUNDO EM TRANSIÇÃO
• POR TRÁS DE DIVERTIDA MENTE - uma Análise Psicológica da Animação da Pixar
• RESENHA: As Múltiplas Faces do Self. Walter Trinca, Vetor Editora, 2016.
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