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Jung & Corpo - nº 21

ISSN 1676-0387

Jung & Corpo


Jung & Corpo - nº 21

Jung & Corpo nº 21


ISSN 1676-0387
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Anita Ribeiro-Blanchard
Paulo Toledo Machado Filho
Sandra Maria Greger Tavares

Revisão Técnica
Ana Maria Galrão Rios
Anita Ribeiro-Blanchard
Juliana Martinez Serrano Guidugli
Regina Figueiredo
Sandra Maria Greger Tavares

Revisão Gramatical
Fátima Aparecida Garcia Loureiro Vares

Imagem de Capa
Mandala nepalense em sânscrito entrelaçada
ao símbolo chinês taoísta Yin e Yang

Diagramação
Felippe Romanelli
São Paulo – São Paulo, Brasil, 2021

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SUMÁRIO

EDITORIAL
Sandra Greger Tavares, Paulo Toledo Machado Filho..............................................................5

HOMENAGEM ÀS VÍTIMAS DA COVID-19...........................................................................9

O IMPACTO DO TRAUMA INFANTIL NA PSIQUE E NO CORPO DO ADULTO..........................13


Alessandra Nardelli R. Leite

O TRAUMA E A PSIQUE FEMININA NA PERSPECTIVA JUNGUIANA CORPORAL:


ANÁLISE DA ANIMAÇÃO KIRIKU E A FEITICEIRA...............................................................25
Luciana Ferreira do Amaral

CALATONIA E TOQUE SUTIL NA CURA DO TRAUMA..........................................................45


Claudia Herbert

SONHOS SOBRE CATÁSTROFES:


UMA COMPARAÇÃO JUNGUIANA ENTRE OS SONHOS DO NAZISMO
E OS SONHOS DA PANDEMIA DE COVID-19..........................................................................61
Sâmia Riachi

A DANÇA DAS POLARIDADES.............................................................................................89


Paulo Toledo Machado Filho.

UMA ANÁLISE JUNGUIANA DO CORPO PSÍQUICO


DE PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA.................................................................................97
Mariana Genta Salerno

A JORNADA DO HERÓI E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO DE SIMBA................................111


Eliwelton Gomes Batista, Sueli Adélia Volpiano Arruda

50 ANOS DA PRIMEIRA PUBLICAÇÃO SOBRE A CALATONIA:


O QUE MUDOU?............................................................................................................125
Sandra Maria Greger Tavares

INSTRUÇÕES PARA AUTORES......................................................................................135

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EDITORIAL

Entre 2020 e 2021, e ainda não sabemos até quando, enfrentamos a maior catástrofe
de nossa história: a pandemia do COVID-19, que assola a humanidade, já ceifou em nos-
so país cerca de 600 000 vidas, tragédia potencializada por uma gigantesca crise social e
política, que lançou nas ruas de nossas principais cidades uma multidão de desemprega-
dos e famintos. Crise que se intensifica ainda mais por meio da atitude profundamente
polarizada de nossa população e da incapacidade e completa falta de sensibilidade do
pior presidente que já governou o nosso país.
Os artigos que este ano recebemos para publicação refletem, de certo modo, o mo-
mento que apontamos acima: dos oito artigos recebidos, seis abordam algum tipo de
situação traumática, quer seja o trauma infantil e seus efeitos na vida adulta, o trauma
da ferida do feminino ou os traumas coletivos, históricos ou sociais e que nos afetam
indiretamente. Os autores não deixaram de apontar a Calatonia e outras técnicas de
abordagem corporal como recursos que, integrados à abordagem simbólica junguiana,
podem ser utilizados nos cuidados e tratamento das feridas traumáticas. Curiosamente,
observamos que as referências citadas pelos autores dos artigos que publicamos este
ano, fontes que em anos anteriores privilegiaram principalmente outros autores jun-
guianos ou pós-junguianos e temáticas mitológicas ou amplificações simbólicas, con-
vergiram neste momento, para autores como Kalsched, Levine, Sieff e Corrigan, entre
outros, que se relacionam, ou de algum modo aproximam-se do estudo dos transtornos
traumáticos através da área da neurociência. Vejamos os artigos.
Orientando sua atenção para os eventos traumáticos (psicológicos ou físicos) e os
atos de negligência entre cuidadores e bebês ocorridos na infância e a influência poste-
rior destes acontecimentos na vida e no corpo do adulto, Alessandra N. R. Leite desen-
volveu um cuidadoso estudo, em seu artigo “O impacto do trauma infantil na psique e
no corpo do adulto”.
Por meio da análise da história de Karabá no filme de animação “Kiriku e a Feiticeira”,
do diretor franco-belga Michel Ocelot, Luciana F. do Amaral, em seu artigo “O trauma e
a psique feminina na perspectiva junguiana corporal: análise da animação Kiriku e a Fei-
ticeira” também se debruçou sobre a referência traumática, procedendo a interessantes
amplificações sobre a dinâmica da psique feminina traumatizada em uma sociedade re-

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gida unilateralmente por valores patriarcais. A autora discute a ferida social produzida
pela violência contra a mulher, que configura um trauma histórico (Levine), correspon-
dente a um comportamento que se persevera por séculos e séculos a fio.
Outro contundente artigo, este de Sâmia Riachi, “Sonhos sobre catástrofe: uma com-
paração junguiana entre os sonhos do nazismo e os sonhos da pandemia do COVID-19”,
aborda o trauma coletivo. A autora coletou sonhos em diferentes locais durante o perío-
do inicial da pandemia do COVID-19 e os comparou com o relato dos sonhos do período
da II Grande Guerra, coletados pela jornalista Charlotte Beradt (Sonhos do III Reich). A
autora, mediante a análise dos sonhos que coletou baseada na perspectiva junguiana,
também constatou o estado de sofrimento psíquico dos brasileiros, sofrimento traduzido
pelos sonhos que envolvem a pandemia e também pelo momento político que vivemos.
Ampliando a produção de artigos tematizados pela Calatonia, a autora Claudia Her-
bert, em seu artigo “Calatonia e toque sutil na cura do trauma”, abordou a aplicação das
técnicas da Calatonia e outros toques sutis (Pethö Sándor) orientados para a cura do
trauma. A autora estudou, por meio de hipóteses recentes da neurociência, os efeitos
dos toques na ocorrência do recondicionamento psicofísico e da reorganização autonô-
mica, durante o tratamento da pessoa traumatizada.
Também a partir da abordagem sobre um contexto traumático, mas orientado para
o âmbito coletivo, social e político, e observando o funcionamento do cérebro de uma
pessoa incapaz de pensar com base em evidências, Paulo Machado fez, em seu artigo “A
dança das polaridades”, uma reflexão sobre a desinformação orientada (as fake news), a
polarização de opiniões e o debate sobre temas sensíveis que emergiram na atualidade
(questões étnicas e raciais, gênero, violência contra vulneráveis, etc.), por meio de am-
plificações embasadas na sabedoria essencial das mitologias e na perspectiva simbólica
da psicologia analítica.
Em outro artigo muito sensível, “Uma análise junguiana do corpo psíquico de pessoas
em situação de rua”, Mariana G. Salerno também refletiu sobre o trauma social e coleti-
vo, analisando o impacto da situação de rua no corpo psíquico de uma pessoa sem abri-
go. A partir da discussão sobre autores das áreas da psicologia analítica, da abordagem
corporal junguiana, da psicologia arquetípica e da psicologia socioambiental, a autora
verificou a importância da moradia para a estruturação da identidade de lugar.
“A jornada do herói e o processo de individuação de Simba” é um outro artigo em que
os autores, Eliwelton G. Batista e Sueli A. V. Arruda, procederam à análise de um filme
de animação, neste caso o “O Rei Leão”, filme produzido pela Walt Disney Pictures e diri-
gido por Roger Allers e Rob Minkoff, em 1994. Por meio de um estudo cuidadoso e bem
sistemático, os autores metaforizaram a história de Simba com o mitologema da jornada
do herói, de Campbell e com o processo de individuação.

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Finalmente, aproveitando a oportunidade assinalada pelo próprio título de seu arti-


go, “50 anos da primeira publicação sobre a Calatonia; o que mudou?”, Sandra Greger
fez uma retrospectiva histórica da técnica proposta por Sándor, desde sua primeira pu-
blicação, no Boletim de Psicologia da Sociedade de Psicologia de São Paulo, em 1969, e
o desenvolvimento de sua prática e desdobramentos posteriores, apontando suas pers-
pectivas atuais e futuras. A autora procede também a uma oportuna reflexão sobre as
correlações entre seus efeitos psicofísicos e os achados atuais do campo da neurociência.
A capa desta edição da revista Jung & Corpo traz a sua tradicional mandala, desta vez
na cor branca, simbolizando a pureza e a paz, e contrastando com o fundo de cor preta,
que assinala nossa consternação e profundo respeito às inúmeras famílias enlutadas por
suas perdas familiares em decorrência da pandemia do COVID-19. Dedicamos às vítimas
o poema do escritor, cordelista e poeta cearense Bráulio Bessa, “Os Inumeráveis”.
Boa leitura!

Sandra Greger Tavares


Paulo Toledo Machado Filho

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HOMENAGEM ÀS VÍTIMAS DA COVID 19

INUMERÁVEIS (2020)1

Bráulio Bessa
Chico César

André Cavalcante era professor


amigo de todos e pai do Pedrinho

O Bruno Campelo seguiu se caminho


Tornou-se enfermeiro por puro amor

Já Carlos Antônio, era cobrador


Estava ansioso pra se aposentar

A Diva Thereza amava tocar


Seu belo piano de forma eloquente

Se números frios não tocam a gente


Espero que nomes consigam tocar

1  O poema: “Os inumeráveis” de Bráulio Bessa, escritor, cordelista e poeta cearense, inspirado em dados
de um memorial às vítimas fatais da pandemia de COVID-19, teve por objetivo, segundo o autor, promover
conscientização sobre o fato de que estas e outras vítimas são muito mais do que números que se acumu-
lam nas estatísticas diárias, são pessoas e não podem ser esquecidas. O cantor, compositor e escritor parai-
bano Chico César compôs uma música baseada neste poema, cuja melodia se encaixou na métrica da letra.

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Elaine Cristina, grande paratleta


fez três faculdades e ganhou medalhas

Felipe Pedrosa vencia as batalhas


Dirigindo Uber em busca da meta

Gastão Dias Junior, pessoa discreta


na pediatria escolheu se doar

Horácia Coutinho e seu dom de cuidar


De cada amigo e de cada parente

Se números frios não tocam a gente


Espero que nomes consigam tocar

Iramar Carneiro, herói da estrada


foi caminhoneiro, ajudou o Brasil

Joana Maria, bisavó gentil.


E Katia Cilene uma mãe dedicada

Lenita Maria, era muito animada


baiana de escola de samba a sambar

Margarida Veras amava ensinar


era professora bondosa e presente

Se números frios não tocam a gente


Espero que nomes consigam tocar

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Norberto Eugênio era jogador


piloto, artista, multifuncional

Olinda Menezes amava o Natal.


Pasqual Stefano dentista, pintor

Curtia cinema, mais um sonhador


Que na pandemia parou de sonhar

A vó da Camily não vai lhe abraçar


com Quitéria Melo não foi diferente

Se números frios não tocam a gente


Espero que nomes consigam tocar

Raimundo dos Santos, um homem guerreiro


O senhor dos rios, dos peixes também

Salvador José, baiano do bem


Bebia cerveja e era roqueiro

Terezinha Maia sorria ligeiro


cuidava das plantas, cuidava do lar

Vanessa dos Santos era luz solar


mulher colorida e irreverente

Se números frios não tocam a gente


Espero que nomes consigam tocar

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Wilma Bassetti vó especial


pra netos e filhos fazia banquete

Yvonne Martins fazia um sorvete


Das mangas tiradas do pé no quintal

Zulmira de Sousa, esposa leal


falava com Deus, vivia a rezar.

O X da questão talvez seja amar


por isso não seja tão indiferente

Se números frios não tocam a gente


Espero que nomes consigam tocar

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O IMPACTO DO TRAUMA INFANTIL NA PSIQUE


E NO CORPO DO ADULTO

THE IMPACT OF CHILDHOOD TRAUMA ON THE ADULT PSYCHE AND BODY

Alessandra Nardelli R. Leite1

Resumo
O presente estudo tem como objetivo relacionar os eventos traumáticos ocorridos na infância, tanto os
traumas psicológicos e físicos, bem como os atos de negligência entre cuidador e bebê, além da influência
destes na vida e no corpo do adulto. O trabalho foi baseado na linha teórica junguiana.
Palavras-chave: Trauma, Corpo, Psique e Jung.

Abstract
The present study aims to relate the traumatic events that happen in childhood such as psychological and
physical traumas, as well as acts of negligence between caregiver and child and their influence on the
adult life and body. The work was based on the jungian theory.
Key words: Trauma, Body, Psyche and Jung.

1  Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e psicoterapeuta com Especiali-
zação em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP, e-mail: alenar-
delli.puc@gmail.com

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Introdução

O trauma emocional não é definido apenas por experiências dolorosas e assustado-


ras, mas também pelo impacto destas na vida do indivíduo, e seus efeitos a longo prazo,
segundo afirma Sieff (2019, p.23). Quando as experiências na infância são muito doloro-
sas e não há apoio do meio externo, ou seja, dos cuidadores, as experiências negativas
ficam armazenadas na psique, no corpo e no cérebro do indivíduo, alterando a trajetória
de sua vida.
Indivíduos vítimas de trauma emocional na infância, sofrem com a dissociação entre a
psique e o corpo, e em decorrência disto, tornam-se adultos defendidos, com receio de
viver a vida de forma plena e verdadeira. A dissociação permite que a vida do indivíduo
continue mesmo com a experiência do trauma, portanto, trata-se de um sistema que
protege, mas que ao mesmo passo, oprime. Esta dinâmica, na qual ocorre a dissociação,
não acontece apenas em nível mental, mas também corporal.
Quando o indivíduo se afasta de si mesmo, ele se distancia também de seu corpo.
Berthert e Bernstein (1986) explanam que o primeiro passo para a solução de problemas
tão complexos, como as vivências traumáticas por exemplo, consiste em tomar consci-
ência do corpo em sua totalidade. Mas, como enxergar a totalidade com uma psique
dissociada e fragmentada?
Nota-se, portanto, a relevância psicossocial ao se estudar o fenômeno do trauma
infantil, a fim de se compreender as possíveis patologias que possam vir a surgir na fase
adulta da vida do indivíduo. Destaca-se, ainda, a importância de se compreender não
apenas os danos sociais, mas também os danos na psique, no corpo e no cérebro emo-
cional, sendo este último passível de construção de novas redes neurais por meio do
processo psicoterapêutico, o qual será descrito adiante.

A dissociação e o sistema de defesa da psique traumatizada

A criança, que durante a sua infância se desenvolveu em um ambiente social e emo-


cional adequado, irá se diferenciar psicologicamente daquela que cresceu em um am-
biente hostil, e emocionalmente inadequado. É importante ressaltar que os cuidadores
possuem uma grande importância tanto na vida, quanto na construção do desenvolvi-
mento da personalidade da criança. De acordo com Kalsched (2019) apud Sieff (2019):

Se durante a infância o ambiente emocional for adequado, a criança se desenvolve como


um todo. A criatividade, a confiança e a autoestima se desdobram de forma orgânica e, du-
rante o amadurecimento, ela aprende a proteger seu “eu” emocional de maneira saudável.
No entanto, o desenvolvimento saudável fica comprometido quando o “eu” emocional é

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ameaçado repetitivamente. Isso pode acontecer por abuso ou negligência, se as necessi-


dades da criança são invalidadas ou se ela se sentir inadequada ou desprovida de alguma
característica essencial. De modo especial, se o “eu” está ameaçado e não há ninguém que
possa ajudar a metabolizar a dor, a criança entra na esfera do trauma psicológico (p. 38).

Entende-se, portanto, que é complexo para a criança compreender que os seus cuida-
dores sejam os responsáveis pelos danos emocionais, e pelos sentimentos negativos sen-
tidos por ela. Como as crianças dependem de seus cuidadores para sobreviver, não con-
seguem chegar à hipótese de que estes sejam os causadores de suas dores emocionais.
Desta forma, diante de tais dificuldades, a criança atribui a culpa a si mesma, como
se fosse ela a responsável pelas atitudes negligenciadas, abusivas ou físicas, desenca-
deadas por seus cuidadores. Ao fazer este movimento de atribuir a culpa a si, ocorre a
dissociação:

Uma reação normal à dor insuportável é se retirar; porém, sendo dependente de cuida-
dores, a criança não pode sair fisicamente. Em vez disso, uma parte do “eu” se retira. A
essência - a chamada vida: criativa, relacional e autêntica, que se encontra no âmago de
cada indivíduo - se esconde nas profundezas do inconsciente. Simultaneamente, outra parte
da psique cresce prematuramente. A divisão inicial da psique é um milagre, porque evita
a destruição psicológica, protege a essência, encapsulando-a. No entanto, também é de-
sastrosa, pois conduz a uma dissociação do que há de mais vital e criativo no indivíduo […]
A dissociação é um processo inconsciente, que ocorre fora do campo da consciência e da
percepção (SIEFF, 2019, p. 39).

Ao mesmo passo em que a dissociação é um sistema de defesa importante para a so-


brevivência da criança – e que permite que a vida exterior prossiga – há, por outro lado,
um grande custo interior e inconsciente, a longo prazo. As defesas são úteis, momenta-
neamente, e necessárias para manter o ego estruturado. Porém, se a defesa perdurar,
poderá estagnar o indivíduo em determinada fase de sua vida impedindo, assim, que o
mesmo siga o curso de seu desenvolvimento.
O sistema de defesa dissociativo, segundo Lloyd (2019) apud Sieff (2019), atuará como
uma voz crítica interna, na qual a criança rejeitará as partes de si julgadas inaceitáveis
por seus pais ou responsáveis, e criará um sistema falso, não autêntico, em relação à sua
verdadeira personalidade. A criança “fugirá” da dor associada às experiências traumá-
ticas, e da ameaça à desintegração. Esta é a única maneira que a criança encontra, para
sobreviver no meio em que vive. Todo este processo ocorre de forma inconsciente.
Os efeitos da dissociação serão sentidos por este indivíduo até a fase adulta, apre-
sentando maior insegurança em relação a si mesmo e ao outro, por exemplo. Segundo
Kalsched (2013), “à medida em que a criança traumatizada tem experiências intoleráveis
no mundo objetivo, o lado negativo do Self não se personaliza, permanecendo arcaico”
(p. 41).
O sistema de defesa tentará impedir a abertura da criança para o sofrimento. No
entanto, quando esta criança crescer, e se deparar com alguma situação que ative seu

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complexo traumático, poderá desencadear sensações que despertarão os sentimentos


associados ao trauma original.
Quando o trauma acontece, há sequelas psicológicas advindas deste, os quais podem
aparecer em forma de imagens, como nos sonhos. Jung (1928) apud Kalsched (2013),
chamava este agrupamento de imagens de “complexos de tonalidade afetiva”:

Um complexo traumático causa a dissociação da psique. O complexo não está sob controle
da vontade e, por essa razão, possui a qualidade da autonomia psíquica. Sua autonomia
consiste no poder de se manifestar independentemente da vontade e, até mesmo, em opo-
sição direta às tendências conscientes: ele se impõe tiranicamente à mente consciente. A
explosão de afeto é uma completa invasão do indivíduo, ela arremete contra ele como um
inimigo ou animal selvagem. Observei com frequência que o afeto traumático típico é repre-
sentado nos sonhos como um animal selvagem e perigoso, uma ilustração notável da sua
natureza autônoma, quando separado da consciência. (p. 31)

Desta forma, entende-se que as experiências dolorosas não desaparecem, mas estão
armazenadas no inconsciente constelando-se, portanto, como um complexo ativo e au-
tônomo, no que diz respeito à experiência traumática.
É importante ressaltar que o complexo é um acúmulo de energia, e se esta energia for
maior do que o ego, torna-se sintoma. Além disso, entrar em contato com os conteúdos
do complexo através de sonhos, como Jung pontuou, não significa necessariamente que
o indivíduo lidará emocionalmente com tais núcleos.
Jacobi (1990) afirma que “os complexos autônomos são, por natureza, inconscientes,
e aparecem como não pertencentes ao próprio “eu”, ou seja, como qualidades de obje-
tos ou pessoas estranhas, portanto, projetadas” (p. 22). Ao se entrar em contato com um
complexo, pode ser que haja tanto a identificação, quanto a projeção ou a confrontação
– sendo esta última, a única forma de se contribuir para a dissolução do complexo.
Entende-se, portanto, que confrontar um complexo não é uma tarefa fácil. Sendo as-
sim, o sistema de defesa fará de tudo para que o indivíduo não entre em contato com a
vivência traumática. Ademais, ao mesmo passo que o sujeito conseguirá viver a vida, não
a vivenciará de forma real e absoluta. Por conseguinte, de acordo com Kalsched (2013):
“no trauma, o objetivo da psique é a sobrevivência, e não a individuação” (p. 130).
Mais adiante, o mesmo autor refere que este é um caminho trágico, pois a psique fica
estagnada no trauma original, não considerando que, no decorrer da vida, passamos por
um processo de amadurecimento – a partir disto, outras defesas (antes inexistentes),
estarão disponíveis. A energia psíquica fica indisponível para o processo de individuação,
pois o único foco da defesa é proteger o indivíduo, de qualquer situação que represente
alguma ameaça.
Se a psique da criança traumatizada está focada na manutenção do sistema de defesa
– o qual, ao mesmo passo em que a protege, também a oprime – ela não dará abertura

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para que ocorra o acesso ao inconsciente de forma genuína, e evitando, portanto, um


possível caminho em direção à integração psíquica.
Em suma, Kalsched (2019) apud Sieff (2019), defende a ideia de que “o protetor in-
terno se volta contra o indivíduo que deveria estar protegendo, e se torna um opressor
interno” (p. 42). Este opressor interno evitará que o indivíduo se coloque, novamente,
em situações ameaçadoras. Este movimento poderá dificultar o crescimento deste in-
divíduo, pois existem tensões não traumáticas, que são fundamentais no processo de
crescimento e desenvolvimento da criança.
Ademais, para viver uma vida plena, com a exploração de múltiplas potencialidades,
ter-se-á que enfrentar os desafios e os conflitos inerentes ao processo de individuação.
Mas para o adulto vítima de trauma infantil, a “sobrevivência”, por vezes, será o caminho
mais provável.

A dissociação do corpo no trauma emocional

A dissociação física é igualmente prejudicial, e acompanha o trauma de infância. Ao


nos separarmos do corpo, nos distanciamos do sofrimento – afinal, as emoções são sen-
tidas no corpo: sentir aperto no peito, chorar, tremer, entre outros exemplos de reações
corporais desencadeadas por estados emocionais.
Distanciado do corpo, é difícil perceber sensações mais sutis ligadas ao estado emo-
cional. Desta forma, é imprescindível que o corpo seja incluído e trabalhado no processo
psicoterapêutico, para que o indivíduo viva de forma “incorporada”, e que não enxergue
o corpo como uma parte “apartada” de si mesmo.
Visto que o trauma vivenciado na infância pode promover uma desconexão com o
próprio corpo, Stromsted (2019) apud Sieff (2019), explica que as emoções e sensações
surgem no corpo, e que percorrem partes muito antigas do cérebro, como partes do he-
misfério direito, que é o lado do cérebro responsável pela vida emocional. Mais adiante,
a mesma autora pontua que: “quando a dor é demasiadamente grande para suportar,
obstruímos sua viagem ao consciente e à verbalização, aprisionando de forma dissocia-
da no corpo e na região inferior do cérebro direito” (p.102).
Quando a dissociação do corpo acontece, entende-se que o indivíduo fica sem uma
direção. Já que com a dissociação perdemos o acesso às emoções de forma verdadeira e
original, perde-se o contato com o real guia norteador de nossas ações – o corpo.
Stromsted (2019) apud Sieff (2019), explana que nascemos com potencial para de-
senvolvermos um relacionamento saudável com o corpo, contudo, os relacionamentos

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durante a infância afetam profundamente a percepção deste potencial. Mais adiante, a


autora afirma que:

Se formos envolvidos por amor e harmonia, quando bebês, essa memória será incorporada,
permitindo que nos transformemos em adultos possuidores de uma estrutura firme, que se
movem de maneira forte, graciosa, flexível e coerente. Se formos recebidos com ambivalên-
cia ou desapego, então pode haver regiões do nosso corpo que sejam duras, congeladas,
rígidas e amortecidas. Se formos tratados ora com carência emocional, ora com raiva, e em
outros momentos com desapego, então talvez o corpo se mova de maneira desorganizada
e conflitante (p.108).

A expressão corporal acometida pelo desamparo na infância pode ser representada,


por exemplo: por ombros afundados; pelo tronco inclinado para baixo; por membros
retraídos; ou dores persistentes sem motivo fisiológico, entre outros. Essas posturas po-
dem intensificar o olhar negativo e crítico, que será atribuído ao próprio indivíduo no
decorrer da sua vida, sentindo-se inadequado e comparando-se com outras pessoas.
Para Lowen (1979) apud Farah (2008): “A noção de identidade de uma pessoa, isto
é, a noção de “quem sou eu” provém, basicamente, da sensação de contato que essa
mesma pessoa é capaz de estabelecer com o próprio corpo” (p. 61). Se o adulto vítima
de trauma está dissociado de suas emoções e de seu corpo, como este terá, de forma
plena, a noção de sua identidade?
Caso o indivíduo possua uma autoimagem corporal negativa de si, terá a impressão
de que as outras pessoas enxergarão seu corpo de forma negativa. Ou seja, a imagem
que se cria do próprio corpo é exatamente a maneira como o indivíduo vive e se relacio-
na com o seu corpo – desenvolvendo, assim, a noção de sua identidade.
De acordo com Woodman (1980): “Quando sofre os efeitos de um complexo, o corpo
se torna o nosso acesso mais imediato ao problema” (p. 70). O corpo “corporifica” o
complexo.
Desta forma, podemos considerar que o sistema de defesa não atua e não fica gra-
vado somente na psique, mas também no corpo, podendo desenvolver, por exemplo,
doenças psicossomáticas. Estas patologias fazem o indivíduo finalmente notar este cor-
po, antes não visto. É através do sintoma que o mesmo procurará por tratamento, não
podendo mais evitar ou negar a presença deste.
Quando o indivíduo se disponibiliza a conhecer o seu corpo, este torna-se a sua “casa
de verdade”. Por conhecer o corpo, consequentemente, o indivíduo sente-se menos vul-
nerável, e permite que o outro o acesse melhor. A relação melhora não apenas consigo
mesmo, mas também com o outro.

O cérebro emocional: o funcionamento da fisiologia cerebral


advindo das relações humanas traumáticas

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No momento em que ocorre o trauma emocional, partes do cérebro que estão em


desenvolvimento são afetadas, pois são os primeiros relacionamentos interpessoais que
moldam o cérebro durante o desenvolvimento infantil.
De acordo com Schore (2019) apud Sieff (2019), “as primeiras fases da vida possuem
extrema importância, pois é neste momento que ocorrerá a formação do sistema emo-
cional do cérebro direito, e suas consequências duram a vida toda” (p. 258).
Compreendemos até aqui, que crianças que sofrem negligência de seus cuidadores
vivem uma situação difícil pois, ao mesmo tempo em que é necessário integrar o sofri-
mento, as vivências e circunstâncias tornam este movimento impossível naquele mo-
mento. Nijenhuis (2019) apud Sieff (2019), afirma que “o trauma de infância faz com que
o cérebro altere sua estrutura, tornando a integração especialmente difícil” (p. 184). É,
neste momento, que ocorre a dissociação.
Primeiramente, é importante se compreender a diferença entre o hemisfério direito
e o hemisfério esquerdo do cérebro. Cada um destes hemisférios processa informações
de formas diferentes. Schore (2019) apud Sieff (2019), traz uma visão geral de que o
cérebro esquerdo é o responsável pelo raciocínio, composto de um sistema consciente
de controle emocional, o qual é capaz de lidar com situações leves a medianas. Este
hemisfério é capaz de construir explicações lineares, e fornece visão detalhada e direta.
O oposto ocorrerá no hemisfério direito, que é chamado, também, de cérebro emo-
cional. Segundo Schore (2019) apud Sieff (2019):

O hemisfério direito processa todas as emoções intensas, negativas ou positivas: a raiva, o


medo, o pavor, a aversão, a vergonha, o desespero, o entusiasmo, a felicidade, e a alegria.
Quando o nível de estímulo emocional se torna intenso, o hemisfério esquerdo se desliga
e o hemisfério direito assume o controle. A janela de tolerância para emoções intensas de-
pende do funcionamento do cérebro direito (p. 220).

Entende-se que, para se desenvolver uma segurança emocional eficaz, é necessário


que ocorra o desenvolvimento do cérebro direito. Este desenvolvimento se dará através
do ambiente relacional durante a infância, da conexão entre o bebê e seu cuidador. Por-
tanto, compreende-se que o indivíduo vítima de trauma na infância, terá dificuldades
em desenvolver uma segurança emocional, devido à falta de recursos relacionais e, pos-
sivelmente, à escassez de conexão emocional com suas figuras de apego.
De acordo com Schore (2019) apud Sieff (2019), outros fatores tais como: a dificulda-
de em alimentar o bebê; o gerir os cuidados necessários para a sua sobrevivência; além
da relação conturbada com a figura de apego, podem gerar desequilíbrios. Estes, irão
afetar profundamente o crescimento do cérebro direito, impedindo o desenvolvimento
de um sistema emocional autorregulador saudável, e os efeitos podem durar por toda
a vida adulta.

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Jung & Corpo - nº 21

Assim, torna-se importante ressaltar que, nos primeiros anos de vida, os cuidadores
são os espelhos das crianças. A falta de um espelhamento positivo, caracterizado pela
negligência, comprometerá o desenvolvimento do cérebro emocional. Este comprome-
timento gera dificuldades na interação social, e no controle saudável dos estados emo-
cionais, tanto positivos quanto negativos. Como é possível controlar estados emocionais
e expressá-los de forma coerente, se o desenvolvimento desta parte do cérebro foi pre-
judicado? Desta forma, entende-se que a relação entre um bebê e seu cuidador moldará
o desenvolvimento do cérebro direito emocional da criança.
Contudo, a psicoterapia é um recurso facilitador, capaz de promover o desenvolvi-
mento das funções atribuídas ao cérebro direito. Segundo afirma Schore (2019) apud
Sieff (2019): “O ponto mais importante relativo à psicoterapia, é que o cérebro direito
é especialista em processar informações novas” (p. 221). Portanto, a psicoterapia pode
auxiliar o indivíduo na integração e elaboração de novas emoções, que antes estavam
pouco desenvolvidas, devido à negligência dos cuidadores.
Entretanto, é fundamental que, na relação entre paciente e terapeuta, haja um víncu-
lo suficientemente forte, a fim de que se favoreça o desenvolvimento do cérebro direito
do paciente.

O processo de cura do trauma emocional

Foi possível compreender até aqui, que o adulto traumatizado na infância irá se de-
parar com as consequências da dissociação. Essas consequências, por vezes, são difíceis
de serem enfrentadas pelo indivíduo. Quando isso acontece, pode haver o surgimento
de sintomas.
Tal sintoma, que será sentido pelo corpo, poderá se “materializar” e receber um
nome, como por exemplo: ataques de ansiedade, que causarão falta de ar e taquicardia;
a tristeza intensa, que poderá desencadear uma angústia representada, muitas vezes,
por uma dor no peito e nós na garganta; enxaquecas persistentes; dores de barriga, que
se tornam gastrite nervosa; entre outros. A partir disto, o adulto traumatizado não con-
seguirá mais fugir desta dor que se corporificará, e será convidado a enxergá-la.
Quando ele consegue acessar a dor, por meio do sintoma que emergiu, é neste mo-
mento que se iniciará o processo de cura. Para Nijenhuis (2019) apud Sieff (2019, a cura
do trauma emocional constitui-se em:

(…) integrar o trauma, o que exige: 1) síntese – os elementos da experiência traumática


precisam estar associados. 2) personificação – é necessário que o indivíduo se conscientize
de que o evento aconteceu com ele; 3) presentificação – a percepção de que o evento está
no passado. A cura também requer a fusão das diferentes partes em uma personalidade

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Jung & Corpo - nº 21

integrada. O trabalho de cura é invariavelmente sofrido, e pode levar a muitos anos, espe-
cialmente em caso de trauma crônico e grave (p. 195).

Neste modelo de cura, proposto pelo autor, é de extrema importância que as partes
dissociadas sejam identificadas, e se tornem conscientes. É necessário que o indivíduo
reconheça, para si mesmo, eventos da sua infância os quais ele considera que foram
traumáticos, e entender que estes ficaram no passado, embora exerçam influência em
sua vida atualmente.
É possível afirmar, portanto, que a cura requer a integração do trauma. As partes
dissociadas, as quais tem como principal função ajudar a criança a prosseguir com a sua
vida, precisam ser acessadas na fase adulta. Este acesso ajudará na compreensão de
que os eventos traumáticos fazem parte da sua história, e só assim as partes dissociadas
poderão ser integradas a uma personalidade coerente. É um processo bastante difícil e
desafiador, que requer paciência, coragem, e entendimento de que o que aconteceu não
foi culpa do traumatizado.
Por mais que um indivíduo traumatizado acredite que o caminho da negação de seus
sentimentos é o mais fácil, o mesmo irá sofrer com este movimento, pois não é possível
fugir daquilo que faz parte de nós. Lutar contra os medos e aflições, é uma batalha per-
dida.
A partir do momento que o indivíduo compreende que o caminho é acessar fielmente
seus conteúdos inconscientes, por meio do trabalho com os sonhos e técnicas corporais,
por exemplo, é dado o primeiro passo. Isto favorece tanto a ampliação, quanto a retoma-
da da progressão do processo de autoconhecimento, e da individuação.
O fato de se conectar com sentimentos que machucam, causam no indivíduo uma
sensação ameaçadora que o faz, cada vez mais, se afastar daquilo que ele precisa com-
preender, a fim de evoluir não só pessoalmente, mas também emocionalmente. Se as
defesas não são reconhecidas, não é possível haver cura. Para ir ao encontro da cura, é
necessário conhecer as defesas protetoras, e entendê-las como recursos que contribu-
íram para a sobrevivência no passado, mas que agora, na fase adulta, perderam a sua
função inicial, tornando-se mais um movimento de autossabotagem.
Renunciar a um sistema protetor que proporcionou a sobrevivência, e saltar para o
mundo desconhecido, é aterrorizante. Como se desfazer de algo, que forneceu proteção
durante a vida inteira? É muito complexo e difícil para o indivíduo entender este meca-
nismo de defesa que, ao mesmo tempo que o protege, também o afasta de si mesmo.
Além disso, caso o indivíduo não consiga fazer o movimento de enfrentamento da
dor, evitando qualquer situação que possa ativar o gatilho do trauma, poderá impedir
a si mesmo de vivenciar situações benéficas. Portanto, devido ao trauma, o mesmo se
fechará para novas experiências, com medo destas serem catastróficas como foram no
passado.

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Jung & Corpo - nº 21

A importância da terapia no processo de cura do trauma emocional

Um dos pré-requisitos mais importantes, em direção a cura do trauma emocional no


setting terapêutico, é o estabelecimento de uma relação de confiança e segurança entre
psicólogo e paciente, a fim de que se desenvolva uma atmosfera relacional favorável, a
qual permita a exposição das vulnerabilidades, medos e inseguranças do indivíduo. Se o
vínculo e a confiança não estiverem bem estabelecidos, de nada importará as técnicas
terapêuticas que serão utilizadas. Por isso que, de antemão, é importante que uma rela-
ção de confiança seja o primeiro passo a ser construído.
O adulto vítima de trauma emocional pode apresentar dificuldades em confiar nos
outros, e é provável que isto se estenda ao terapeuta. Entretanto, este indivíduo que
possui medo de confiar, ao mesmo tempo, desenvolve a necessidade de se relacionar
com alguém que lhe ofereça proteção. Ele terá medo de um possível abandono do tera-
peuta, e poderá ser afetado pelas ausências e atrasos do profissional, interpretando-os
como algo pessoal.
O corpo também tem memórias, entretanto, estas são implícitas. A cura do trauma
pode ser facilitada pelo trabalho direto com o corpo, a fim de liberar o que está preso em
seu interior, permitindo a reconexão entre o corpo e a psique, e favorecendo o acesso
do indivíduo à percepção de sua totalidade. Há diversas técnicas corporais que podem
auxiliar neste processo, porém, a utilização destas dependerá da história de vida de cada
paciente.
É impossível de se estabelecer que determinada técnica corporal seja benéfica, exclu-
sivamente, para indivíduos vítimas de trauma infantil. Entretanto, técnicas como movi-
mento autêntico; mindfulness; calatonia; trabalhos com máscaras; relaxação progressiva
de Jacobson; treinamento autógeno de Michaux, entre outros, podem ser alternativas
de trabalho corporal. Contudo, é imprescindível considerar-se a história do indivíduo, a
fim de se avaliar criteriosamente o sentido e a escolha de cada técnica corporal, durante
o processo terapêutico.
Outro benefício do trabalho corporal, é que este possibilita o acesso ao cérebro emo-
cional. O controle emocional e as defesas dissociativas são mediados pelo cérebro direi-
to emocional, e desta forma, a cura requer uma terapia capaz de trabalhar as funções
associadas a esta parte do cérebro.
Poderemos auxiliar o indivíduo a enfrentar suas dores, a conhecê-las, e a se familia-
rizar com elas, ao invés de negá-las. Todo este processo irá ao encontro do caminho da
individuação, o qual se sabe que é uma trajetória difícil, porém heroica.

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Conclusão

Quando o indivíduo vítima de trauma infantil se torna adulto, a vida emocional dele
e o seu mundo interior se diferenciam daqueles que não foram submetidos a uma si-
tuação traumática. O mundo do trauma faz o indivíduo crer, de uma forma implícita e
corporificada, que a sua vida e suas vivências foram prejudicadas.
Ao iniciar o movimento de compreensão do trauma, o indivíduo consegue dar o pri-
meiro passo em direção a sentir suas dores e medos, compreendendo que este conte-
údo faz parte dele – este ganho de consciência não faz compreender apenas a si, mas
também a relação com o outro. Este movimento de integração é o grande passo, tanto
para o início da conexão verdadeira entre mente e corpo, quanto para a ligação com as
partes que foram dissociadas.
Conclui-se, portanto, que o ponto inicial das nossas vivências mais puras e profundas,
tem o marco inicial na infância. O olhar cuidadoso que a criança necessita, irá determi-
nar o adulto que ela se formará no futuro. Adultos são crianças feridas, e para compre-
endermos o adulto temos que considerar a criança que este foi; a vida que levou; os
laços de afeto que foram criados, ou não.
Este estudo deixa como mensagem final, a relevância de nós, psicólogos, construir-
mos um olhar atento para a infância de nossos pacientes adultos, os quais constituíram
famílias e que passarão – se não tratados – seus traumas, em forma de projeção, adiante.
Para cuidarmos de uma flor, precisamos olhar primeiramente para a sua raiz – ali está
a base para que ela cresça e floresça. Se não tivermos um olhar cuidadoso para a raiz, de
nada adiantará regar as flores!

Referências

BERNSTEIN, Carol; BERTHERAT, Thérèse, O corpo tem suas razões: antiginástica e cons-
ciência de si. 11ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
FARAH, R.M. Integração psicofísica: o trabalho corporal e a Psicologia de C.G. Jung. 2ª
edição. São Paulo: Companhia ilimitada, 2008.
JACOBI, Jolande. Complexo, arquétipo, símbolo: na psicologia de C.G. Jung. 9ª edição.
São Paulo: Cultrix, 1990.
KALSCHED, Donald. O mundo interior do trauma: defesas arquetípicas do espírito pes-
soal. 1ª edição. São Paulo: Paulus, 2013.

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SIEFF, Daniela F. Compreensão e cura do trauma emocional: conversações com clínicos


e pesquisadores pioneiros.1ª edição. São Paulo: Paulus, 2019.
WOODMAN, M. A coruja era filha do padeiro: obesidade, Anorexia Nervosa e o Femini-
no Reprimido.1ª edição. São Paulo: Cultrix, 1980.

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O TRAUMA E A PSIQUE FEMININA NA PERSPECTIVA JUNGUIANA


CORPORAL: ANÁLISE DA ANIMAÇÃO KIRIKU E A FEITICEIRA

A JUNGUIAN APPROACH TO THE FEMALE PSYCHE AND TRAUMA: AN ANALYSIS OF


THE OF THE ANIMATED FILM KIRIKOU AND THE SORCERESS

Luciana Ferreira do Amaral1

Resumo
O presente estudo analisou a história de Karabá na animação Kiriku e a Feiticeira (1998), com o objetivo
de exemplificar e amplificar a dinâmica da psique feminina traumatizada. Confrontou-se o conto com as
teorias sobre o trauma de Levine e Kalsched, e com outros conceitos da Psicologia Analítica, especialmen-
te o de Animus de Jung. A análise ofereceu subsídios para o manejo do trauma, além da possibilidade
de resgate e integração entre as polaridades feminina e masculina na psique, através da amplificação
simbólica do personagem Kiriku.
Palavras-chave: Trauma; Psique Feminina; Animus, Integração Fisiopsíquica.

Abstract
This study aimed at analyzing Karaba’s story from the animated film Kiriku and the Sorceress (1998), in
order to exemplify and explore the dynamic of the traumatized female psyche, by applying the theories of
trauma by Kalsched and Levine, as well as the Analytical Psychology, especially Jung’s concept of Animus.
Thus, it was possible to comprehend the trauma and the possibility of rescuing and integrating the polari-
ties of both the female and the male psyche through the symbolic role of the character Kiriku.
Key words: Trauma; Female Psyche; Animus; Physiopsychic Integration.

1  Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Especialização em Psicoterapia Analítica e
Abordagem Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae/ SP. e-mail: psi.famaral@gmail.com

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Introdução

A cultura de desvalorização do feminino, advinda de uma sociedade pautada nos va-


lores patriarcais e de consequente supervalorização do masculino, promove atitudes
e comportamentos que ocasionam o que Levine (1999) chama de traumas históricos.
Esses comportamentos, arraigados no mundo contemporâneo e reproduzidos por sé-
culos, revelam feridas sociais ocultas. A desvalorização do feminino, que em uma de
suas manifestações aparece como violência contra a mulher, certamente poderia ser
considerada uma dessas feridas sociais. Mulheres reprimidas na expressão da sua femi-
nilidade, e violentadas nas mais diversas formas podem carregar em si feridas, as quais
permeiam o caminho de construção da sua identidade feminina. Elas podem acabar se
identificando com essa imagem inferior, e passar a atuar seguindo essa dinâmica. Em
termos junguianos, o ego da mulher estaria sob forte influência do complexo do Animus
Negativo, e a personalidade dela seria regida por essa figura tirana e destrutiva. Este
trabalho propõe um olhar para além das manifestações de violência e agressividade da
personagem Karabá, partindo do pressuposto que seu comportamento destrutivo pode
ser uma forma de falar sobre a dor que sente. A partir da amplificação simbólica do con-
to Kiriku e a Feiticeira, o objetivo do estudo foi compreender os impactos do trauma na
psique feminina e suas manifestações destrutivas, e relacioná-los ao comportamento da
personagem Karabá. Foi, também, propor um caminho de manejo do trauma, e a pos-
sibilidade de resgate e integração das polaridades femininas e masculinas criativas da
psique, traçando um paralelo entre o processo de desenvolvimento psíquico de Karabá
e a figura do personagem Kiriku.

O trauma sob a perspectiva de Peter Levine e Donald Kalsched

Kalsched (2013) descreve o trauma como qualquer experiência que cause dor ou an-
siedade psíquica insuportáveis, de modo a sobrepujar as medidas defensivas habituais.
E acrescenta que, na prática clínica, já se sabe que as defesas patológicas têm um efeito
inadaptativo na vida posterior do paciente. Segundo o autor, a psique traumatizada sofre
uma dissociação significativa. Uma parte da consciência fica mais regredida, e a outra se
desenvolve precocemente, adaptando-se ao mundo exterior, e assumindo uma função
de cuidado ou proteção da parte que não se desenvolveu – ela fica, então, identificada
como o aspecto vulnerável e fragilizado da pessoa que sofreu o trauma. Nos sonhos ou
na mitologia, essa parte da personalidade que progrediu geralmente se apresenta como
uma figura poderosa, um “ser notável, benévolo ou malévolo, que protege ou oprime
o seu parceiro vulnerável, às vezes mantendo-o aprisionado internamente” (KALSHED,
2013, p. 16).

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Jung & Corpo - nº 21

Segundo Kalsched (2013), quando se trata de um registro traumático, as defesas que


entram em ação são mais arcaicas e primitivas. E, ao invés de proteger a psique contra
um trauma adicional, elas são acionadas diante de qualquer expressão que seja inter-
pretada por esse sistema de autocuidado como um evento ameaçador, mesmo que ra-
cionalmente ele não o seja. E a consequência desse funcionamento é uma vida circuns-
crita a um nível de sobrevivência apenas, em que as expressões criativas e espontâneas
ficam mais restritas.
O autor ressalta que essa imagem interna, a qual atua como guardiã e protetora do
ego fragilizado – e geralmente representada simbolicamente por algum personagem
brutalmente destrutivo – por ser arquetípica, não corresponde à imagem traumática
real do mundo externo. No mundo interno do indivíduo, ela ganha uma potência destru-
tiva muito mais intensa. À figura demoníaca, que possui o mundo interior da vítima do
trauma, Jung (2011) chamou de Animus Negativo, ou atuação negativa desse arquétipo.
Ele afirma que, diante de uma tensão, “a função até então inofensiva, se ergue personifi-
cada contra a consciência, comportando-se mais ou menos como uma cisão sistemática
da personalidade, ou como uma alma parcial” (JUNG, 2011, p. 33).
É importante ressaltar dois aspectos dessa dinâmica ambígua do sistema de defesa
acionado em situações traumáticas, mencionados por Kalsched. O Self, representando
a totalidade psíquica, leva o indivíduo a reviver situações que se assemelham à experi-
ência real do trauma, numa tentativa de integrar as porções fragmentadas da psique.
Porém, como as poderosas defesas arcaicas são acionadas, nenhum aspecto da experi-
ência pode ser integrado de forma saudável. Contrariamente, a psique entende como
se o indivíduo estivesse revivendo a mesma situação traumática original, gerando um
processo contínuo de retraumatização. O outro aspecto desafiador, no sentido de in-
tegração e elaboração do trauma, é a construção e interiorização pela psique, dessa
figura opressora que continua perseguindo e assombrando o indivíduo, por meio de
manifestações do seu inconsciente, como os sonhos. Ou seja, mesmo que a situação
traumática já tenha cessado, a sua manifestação interna continua ativa, dando um ca-
ráter autotraumatizante à psique já traumatizada. Funciona “quase como se a pessoa
estivesse possuída por algum poder diabólico, ou sendo perseguida por um destino ma-
ligno” (KALSCHED, 2013, p. 20).
O autor Peter Levine, PhD em Biofísica Médica e Psicologia, especialista no trabalho
com trauma descreveu, em termos de causa e efeito, uma dinâmica do trauma conver-
gente com a teoria de Kalsched. Ele abordou o tema sob a perspectiva da Fisiologia,
mas o descreveu de maneira muito semelhante a Kalsched, ao afirmar que: “O choque
traumático ocorre quando experienciamos acontecimentos potencialmente ameaça-
dores à vida, que superam nossa capacidade para responder de modo eficaz” (LEVINE,
1999, p. 21).

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O autor começou buscando entender porque os animais selvagens são, praticamente,


imunes a sintomas traumáticos. Ele observou que no seu habitat natural, os animais pas-
sam constantemente por perigo de morte, porém, não mostram sinais de choque ou de
estresse pós-traumático. Répteis e mamíferos apresentam um repertório de respostas
primárias e instintivas, quando confrontados por ameaças avassaladoras. Elas podem ser
de três tipos: congelamento, luta ou fuga. Mas o interessante é que, logo após a ameaça
desaparecer eles passam, rapidamente, da reação inicial de choque para a de recupera-
ção. Portanto, é uma reação circunscrita à situação de perigo, ou seja, ela não se torna
crônica. Levine (1999) ressaltou que essas respostas de sobrevivência dos animais são
normais, saudáveis, e vantajosas em termos adaptativos e evolutivos. E como nós, seres
humanos, reagimos a situações semelhantes de ameaça à nossa sobrevivência? O autor
explica que, fisiologicamente, nossas respostas são basicamente as mesmas, ou seja,
acionamos o mesmo sistema de respostas primárias e instintivas, porém, por questão de
evolução biológica, as nossas respostas não são tão rápidas, pois não acontecem apenas
em um nível instintivo.
Os seres humanos possuem um aparato cerebral chamado, com frequência, de cé-
rebro trino, formado por três sistemas integrados. São eles: a porção mais primitiva ou
instintiva, conhecida como cérebro reptiliano; o cérebro emocional ou límbico; e a por-
ção que é somente humana, denominada de cérebro racional ou neocortex – evolutiva-
mente, a última porção do cérebro a se desenvolver. Ela deu aos seres humanos a capa-
cidade de exercer funções complexas, que os animais não exercem, como por exemplo,
a tomada de decisão a partir de um planejamento, construção de estratégia, reflexão e
avaliação de riscos.
E é justamente por conta dessa complexidade cerebral que, ao contrário dos animais,
Levine (1999) afirmou que humanos, quando ameaçados, nunca acham fácil resolver
o dilema: lutar ou fugir. De acordo com o autor: “Quando nos confrontamos com uma
situação de ameaça à vida, o nosso cérebro racional tende a ficar confuso, e a dominar
nossos impulsos instintivos” (LEVINE, 1999, p. 29). O autor afirma que é justamente essa
incerteza que o cérebro trino dos seres humanos apresenta – em relação à habilidade de
agir, de um modo que preserve a vida – que tornou a espécie humana particularmente
vulnerável aos poderosos efeitos do trauma. Os seres humanos são mobilizados fisiologi-
camente para responder, de forma eficaz, a uma situação de perigo, mas nem sempre con-
seguem fazê-lo. Isto acontece porque, “embora com frequência o nosso intelecto supere
nossos instintos naturais, ele não comanda a reação traumática” (LEVINE,1999, p. 19).
Em um processo traumático, frente ao que está sendo interpretado como perigo, o
corpo humano tensiona, e fica pronto para agir. Mas o medo pode fazer com ele se re-
tese, congele e colapse de terror. A resposta do corpo deveria se normalizar ao cessar a
reação protetora, porém “quando esse processo restaurador é bloqueado, os efeitos do
trauma ficam fixados, e a pessoa se torna traumatizada” (LEVINE, 1999, p.18). De acordo

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com Levine (1999), os efeitos debilitantes do trauma seriam evitados por meio dessa
capacidade de acionar respostas fisiológicas eficazes ao evento ameaçador, fazendo com
que o indivíduo entre e saia, naturalmente, dessa resposta à situação.
E, de forma semelhante à descrição sobre os efeitos do trauma desenvolvida por Kals-
ched (2013), Levine (1999) postulou que o resultado desse processo gerador de sin-
tomas traumáticos, faz com que o indivíduo viva sob um constante estado de medo e
ansiedade, nunca sendo capaz de se sentir à vontade, com ele mesmo ou com o seu
mundo. Quando não resolvido, isto pode tornar a pessoa excessivamente cautelosa e
inibida. E as forças geradoras do trauma sendo tão poderosas, fazem com que as emo-
ções mobilizadas por ele incluam a fúria, o terror e a impotência. Além disso, da mes-
ma maneira que Kalsched (2013) descreveu a característica retraumatizante da psique
traumatizada, Levine (1999) afirmou que a energia acumulada é muito potente, a ponto
de levar o indivíduo a entrar em um circuito de repetições de situações, semelhantes
às vivenciadas com o trauma – colocando, dessa forma, em risco real a sua integridade
física e emocional. E isso acontece em uma tentativa inconsciente do corpo – que é visto
como uma unidade com a mente – de descarregar esse quantum energético, e fazer com
que os sintomas do trauma desapareçam.

O arquétipo do Animus no processo de individuação da psique feminina nas mulheres

O Animus, no contexto da individuação da mulher, pode atuar tanto de forma criativa,


ajudando a transcender aspectos sombrios e patológicos da psique, quanto como um
núcleo para formação de um complexo destrutivo, relacionado a traumas vividos pela
psique feminina. Tudo depende da estrutura e postura do ego, frente aos conflitos que
emergem nesse processo. Apesar de existirem essas duas possibilidades de relação com
o Animus – a positiva ou a negativa – o estudo deu ênfase ao complexo de Animus ne-
gativo, posto que o foco foi a compreensão da dinâmica do trauma e do feminino ferido.
Whitmont (1991) considera a desvalorização do feminino um aspecto intrínseco à cul-
tura regida pelo ego patriarcal, cujos valores colocam a mulher em um lugar de natural
inferioridade, seja no aspecto físico, emocional ou intelectual. O mundo mítico-mágico,
representado pela expressão do feminino considerado sagrado em culturas matriarcais,
foi sendo relegado às profundezas do inconsciente coletivo. Suas manifestações, nessas
culturas patriarcais, tenderam a serem associadas à fenômenos destrutivos e maléficos.
Constelou-se então, nesse contexto, a imagem da mulher bruxa e feiticeira, cujo po-
der deveria ser controlado, subjugado e eliminado, para que se mantivesse a ordem da
sociedade regida pelo patriarcado. Nesse sentido, a violência contra a mulher poderia
ser considerada uma das manifestações nefastas da desvalorização histórica dos valores
femininos, tornando-se tema relevante de estudo. E para ressaltar a importância desse

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debate, foram levantados dados de realidade em relação a esse cenário, porquanto os


impactos no processo de desenvolvimento das mulheres e da sua estrutura psíquica
podem ser marcantes. A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), traz a definição
de violência contra as mulheres como “qualquer ato de violência de gênero que resulte
ou possa resultar em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais para as mulheres,
inclusive ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária de liberdade, seja em vida
pública ou privada” (OPAS, 2017). Segundo a OPAS, estimativas globais publicadas pela
OMS indicam que aproximadamente uma em cada três mulheres (35%) em todo o mun-
do, sofreram violência física e/ou sexual por parte do parceiro ou de terceiros durante
a vida. Globalmente, 38% dos assassinatos de mulheres são cometidos por um parceiro
masculino. No que se refere ao Brasil, a taxa de violência letal contra as mulheres como
um todo aumentou em 10% entre 2006 e 2014, refletindo o aumento desse tipo de vio-
lência em quase todos os estados (BRASIL, 2016).
Sobre a atuação de um arquétipo de importância central no processo de individuação
feminino, denominado por Jung como Animus (2011), sabe-se que ele, assim como o ar-
quétipo da Anima no desenvolvimento da psique masculina, influencia de forma intensa
a personalidade ou o ego do indivíduo. Jung (2011) descreve o arquétipo da Anima como
sendo a contraparte inconsciente do homem, sua alma, e cuja figura interna é formada
primordialmente pela introjeção que o homem faz da sua mãe e, posteriormente, das
outras figuras femininas com as quais se relaciona, sejam elas reais ou simbólicas. Por-
tanto, ele faz uma relação dessa figura da Anima com o Eros Materno. Em contrapartida,
o arquétipo do Animus é compreendido como a compensação masculina na mulher, sua
parte racional pouco (ou menos) desenvolvida e, por isso, vista por Jung como a razão
ou o espírito. É associado ao Logos Paterno, uma vez que essa figura também é formada
pela introjeção que a mulher faz da imagem simbólica de seu pai, bem como de outros
homens com os quais se relaciona. Jung (2011) explica que utiliza esses termos – Eros e
Logos – como meios de se compreender quais são os aspectos que mais se sobressaem
na personalidade dos homens e mulheres, ou os que estão mais acessíveis para serem
integrados à consciência.
As ideias de que nos homens essa figura interna, denominada Anima, apresenta ca-
racterísticas femininas e, analogamente, nas mulheres a personalidade inconsciente ou
Animus apresenta características masculinas, partem do pressuposto, como pontua San-
ford (1987), de que a mulher é feminina e o homem é masculino, e seus egos se iden-
tificam com as expressões de seu gênero. Levando-se em consideração o quanto já se
caminhou, no sentido de ampliar os debates e teorias sobre as questões de formação
de identidade de gênero, independente do sexo biológico do indivíduo, seria pertinente
debater a possibilidade de uso dos termos Animus e Anima para descrever elementos
femininos e masculinos presentes tanto nos homens quanto nas mulheres.

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Jung & Corpo - nº 21

No contexto da Psicologia Analítica, Hillman (2020) foi o principal autor que proble-
matizou essa definição de Animus e Anima, desenvolvida por Jung. Para ele, a Anima
seria um arquétipo presente tanto em homens quanto em mulheres, equivalente a uma
figura feminina pertencente a qualquer pessoa, e que poderia ser relacionada com a
Alma humana, independente do sexo do indivíduo. Mas, ainda assim, essa teoria não en-
globa as questões multifacetárias de gênero. E nem tampouco o que poderia acontecer,
em termos de dinâmica psíquica, considerando essa realidade plural, na qual a interação
entre sexo biológico e gênero se manifestam de formas diversas em indivíduos – tra-
zendo ao mundo um vasto espectro de maneiras de expressão da sexualidade, através
dessa dança psíquica entre consciente e inconsciente, feminino e masculino. Contudo,
como o presente estudo focaliza a dinâmica do desenvolvimento da psique feminina nas
mulheres, para objetivos práticos, o conceito de Animus aqui utilizado foi o junguiano
tradicional, que é compreendido como a contraparte masculina inconsciente, presente
na psique da mulher. Foi explorada a ideia de Animus na psique feminina como a figura
do psicopompo, o qual ilumina o caminho do desenvolvimento psicológico, conduzindo-
-a à uma realização psíquica, por meio da integração de aspectos importantes do seu
lado masculino inconsciente (Animus), com a sua polaridade feminina consciente.
A natureza da psique humana faz com que a mesma esteja sempre orientada para
a integração das polaridades, ou conteúdos conscientes e inconscientes, por meio do
que Jung (2011) chamou de função transcendente. Essa função guia o processo de indi-
viduação, auxiliando o indivíduo a “defrontar-se com o Animus ou com a Anima, a fim
de alcançar uma união superior, uma Coniunctio Oppositorum (unificação dos opostos).
Este é um pré-requisito indispensável para se chegar à totalidade” (JUNG, 2011, p. 45).
De acordo com Johnson (1987), essa unificação “é a soma de todas as forças divergentes,
das energias e das qualidades que vivem dentro de nós e que nos fazem ser o que so-
mos: um indivíduo único” (p. 38). Sanford (1987) comparou a união dessas polaridades
femininas e masculinas ao “desejo que a alma tem de unir-se à consciência e forjar uma
personalidade indivisível e criativa” (p. 148).
Segundo Jung (2020), essa figura interna é uma construção dialética entre a imagem
coletiva do masculino e feminino, e as experiências que cada um tem ao longo da vida
como homens e mulheres. Logo, é imprescindível destacar-se a importância da cultura
nessa construção no imaginário coletivo, das imagens internas do masculino e do femi-
nino. De acordo com Jung (2020), cabe à mulher se dedicar a essa ampliação da consci-
ência, via relacionamento com sua figura masculina interior. Se ela falhar nessa tarefa, a
libido destinada a isso cai no inconsciente e ativa o arquétipo do Animus, tornando esse
complexo autônomo e negativo, podendo, dessa maneira, subjugar o eu consciente. Se-
ria dito, nesse caso, que o ego da mulher foi subjugado, dominado ou possuído pela
figura de seu Animus.

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Jung & Corpo - nº 21

Uma ferramenta importante para o relacionamento com os conteúdos internos é o


mecanismo da projeção, a partir do qual imagens internas são confrontadas com o ob-
jeto externo, propiciando um movimento de diferenciação entre a realidade subjetiva
e objetiva. Jung (2020) ressalta que, como o arquétipo do Animus nunca coincide com
uma pessoa individual, é a partir dessa incoerência entre imagem interna e a realidade,
que a mulher tem a oportunidade de realizar a retirada das projeções, e reconhecer que
não tem que lidar com algo que está fora dela, mas com uma grandeza interior. “Nos
vemos diante da tarefa de aprender a conhecer a natureza e atuação dessa grandeza,
desse ‘homem em nós’, para depois podermos, mais uma vez, diferenciá-lo de nós mes-
mas” (JUNG, 2020, p. 30).
Porém, quando esse trabalho de diferenciação entre imagem interna e externa não
ocorre, os problemas decorrentes da relação com o Animus podem se manifestar. San-
ford (1987), diz que o Animus assume seu papel específico e sua função adequada, e
pode funcionar como um grande amigo da mulher, quando ela se relaciona correta e
conscientemente com essa figura interior. Todavia, pode assumir um papel destrutivo e
dominar o ego, caso seja relegado a uma vida nas sombras. Segundo ele, ao lidar com fi-
guras arquetípicas do inconsciente, o relacionamento delas com a consciência possibilita
a manifestação de aspectos positivos destas figuras, caso contrário, é o lado demoníaco
que será revelado. Nesse último caso, aponta Jung (2020), o complexo do Animus toma
a sua forma autônoma, e pensa e fala no lugar da mulher, sem que ela tenha consciência
da atuação dessa figura interna, que pode assumir características bastante destrutivas.
Esse tipo de manifestação do Animus não está a serviço da individuação da psique fe-
minina. De maneira oposta, ele assume a sua forma inferior na figura de um mago, com
poder de aprisionar qualquer possibilidade de desenvolvimento e manifestação criativa
da psique da mulher.
O fio condutor para o desenvolvimento psíquico integrativo se apresenta na tentativa
que a mulher precisa fazer, de compreender as figuras de Animus, que se revelam nas
suas projeções. Para que o Animus desempenhe seu papel indispensável no processo
de individuação, é preciso reconhecer a sua existência e aprender a dialogar com ele,
a fim de descobrir quais as necessidades, em termos de desenvolvimento, estão sendo
ocultadas ou reprimidas. E, assim, criar espaço psíquico para que elas se manifestem,
como transformações importantes para a realização mais integrada da psique da mulher.

Quando se consegue diferenciar-se do Animus, e se afirmar em relação a ele, em vez de se


deixar devorar por ele, então o Animus deixará de representar apenas um perigo tornando-
-se, ao contrário, uma energia criativa; e nós precisamos dela pois, por mais estranho que
isso possa parecer, somente incorporando esse ser masculino da alma, para que ele aí exer-
ça a função que lhe cabe, será possível ser realmente mulher no seu sentido mais elevado e,
já que ao mesmo tempo somos autênticas, cumprir nosso próprio destino humano (JUNG,
2020, p. 65).

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Jung & Corpo - nº 21

A coluna vertebral e o processo de individuação

Direita e esquerda, consciente e inconsciente, masculino e feminino, positivo e negativo...


todas as antinomias podem ser ultrapassadas no interior do homem, pelo casamento mís-
tico dos opostos. A coluna vertebral, eixo do corpo, é o lugar da realização dessa harmoni-
zação do homem geocêntrico, à imagem da Árvore do conhecer o bem e mal (MIRANDA,
2014, p. 165).

Ao analisar a simbologia da coluna vertebral, é possível traçar um paralelo entre essa


estrutura e o processo de individuação ou desenvolvimento psicológico, que tem como
meta a ampliação da consciência, a partir da integração de conteúdos inconscientes da
psique humana. As figuras ou complexos de Anima e Animus, representam essas pola-
ridades masculinas e femininas da psique que precisam ser integradas à personalidade,
para que o desenvolvimento psicológico ocorra. Paralelamente, considerando a dimen-
são corporal desse processo, pode-se dizer que a coluna seria o eixo do corpo e, como
mencionou Miranda (2104), o lugar da realização dessa harmonização do indivíduo.
Leloup (2015), traça um paralelo entre a coluna e os conteúdos inconscientes da psi-
que, ao afirmar que “nem sempre é possível escutar nossas costas, porque não a vemos”
(LELOUP, 2015, p. 109). Segundo a interpretação do autor, essa estrutura seria como
um mestre interno do indivíduo, ao qual se deve escutar e se deixar ser guiado por ele.
Como uma árvore da vida plantada no meio do jardim do Éden, simbolicamente, reen-
contrar a coluna, seria reencontrar o seu eixo interno e o eixo do mundo e, assim, encon-
trar novamente o lugar no paraíso. Para que esse desenvolvimento ocorra plenamente,
é indispensável que esse eixo central seja resistente e auxilie o indivíduo a se manter em
pé, ao enfrentar os desafios da existência. Portanto, terapeuticamente, é preciso identi-
ficar aonde estão localizados os elos mais frágeis dessa estrutura e fortalecê-los.
Para Miranda (2015), a coluna é uma estrutura central tão importante para o desen-
volvimento que, “arquetipicamente, abalar a coluna significa abalar o edifício inteiro”
(MIRANDA, 2015, p. 165). Segundo ele, a coluna representaria, simbolicamente, a possi-
bilidade de equilíbrio entre as dualidades e simetrias humanas. Isso se daria na medida
em que a coluna é posta como o eixo central do corpo humano, sendo o lado direito
dessa divisão representado pelo masculino, a vontade, o positivo, o fogo, o vermelho,
o vinho e o sol. E o lado esquerdo, pelo feminino, a intuição, o negativo, o ar, o branco,
a água e a lua. Entre esses dois polos está a coluna, a escada que une céu e terra e que
leva o homem, como uma energia vibracional, à ascensão. Ressaltando a importância de
se integrar equilibradamente essas duas energias opostas, Miranda (2015) afirma que o
indivíduo deixaria de ser para simplesmente existir, caso se desligasse de qualquer um
dos polos.

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Jung & Corpo - nº 21

“Os anjos sobem e descem a escada. Eles são todas as energias ascendentes e des-
cendentes, transitando pela coluna vertebral” (MIRANDA, 2015, p. 169). Esse fluxo ener-
gético deve estar a serviço do desenvolvimento humano, que acontece a partir da explo-
ração do seu mundo interior e da superação das dualidades, ou do casamento sagrado
dos opostos. Segundo Miranda (2015), Eros seria essa força, na coluna vertebral, que
auxilia o indivíduo, por meio dos relacionamentos, a superar esses antagonismos, “assi-
milando forças diferentes e contrárias, integrando-as numa só e mesma vontade” (MI-
RANDA, 2015, p. 169). O amor, simbolizado pelo binômio Animus e Anima, ying e yang,
seria a força que canaliza o retorno à unidade. Miranda (2015) faz, ainda, uma relação
entre Eros ou Amor e a imagem de Jesus, como a figura que representa a integração em
si dessa unidade, e que vem à Terra para mostrar ao ser humano o caminho da ascensão.
“Nos mistérios cristãos, o Filho de Deus desceu e o Filho do Homem se elevou” (MIRAN-
DA, 2015, p. 171). Nesse sentido, estando na coluna a possibilidade de desenvolvimento
psíquico, por meio da confrontação dos opostos e contradições, e da integração dessas
polaridades, é imprescindível para esse processo de transformação, identificar aonde es-
tão inscritos todos os problemas que essa estrutura possa estar apresentando, todas as
tensões, sofrimentos e bloqueios gerados pelo medo. Afinal, se por um lado estaria na
coluna a possibilidade de ascensão progressiva e realização, qualquer anomalia ou pato-
logia nessa estrutura certamente contribuiria para um bloqueio desse desenvolvimento.
Dahlke (2007) ressalta dois aspectos importantes sobre a coluna como estrutura: a
forma de serpente e a estrutura polar. A polaridade pode ser entendida simbolicamente,
ao considerarmos a representação da serpente bíblica na história de Adão e Eva, animal
que seduziu os primeiros seres humanos, e os atraiu para o mundo polar dos opostos,
por meio do pecado original. “É somente após provar o fruto proibido, que os seres
humanos são capazes de reconhecer sua oposição, ou seja, sua sexualidade, e passam
a cobrir suas vergonhas com as famosas folhas de figueira” (DAHLKE, 2007, p. 203). De-
vido ao pecado original, os seres humanos são expulsos do paraíso (unidade) e passam
a habitar, como homens e mulheres, o mundo dos opostos, ou o mundo inferior da ma-
téria. Dessa maneira, Dahlke (2017) ressalta que a medicina antiga tinha como objetivo
endireitar a víbora, ou seja, elevar o inferior. Por isso, o símbolo da medicina ser uma
serpente enrolada no bastão de Esculápio. “Eles estavam incumbidos, ainda, de livrar
a humanidade do cativeiro do mundo material inferior, e dar-lhes acesso aos aspectos
ideais superiores da realidade” (DAHLKE, 2007, p. 204). Da mesma forma, encontra-se
um paralelo com o conhecimento milenar indiano, relacionando o desenvolvimento hu-
mano à energia da serpente, a Kundalini, e à coluna vertebral. Segundo essa teoria, o
despertar dessa serpente energética, que primordialmente repousa no osso sacro, faria
com que ela se elevasse, passando pelos sete centros energéticos localizados ao longo
da coluna (chakras) e, atingindo o chakra superior ou craniano, faria com que a pessoa
se realizasse ou iluminasse.

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A serpente, que seduziu as (primeiras) pessoas para o mundo da polaridade, também lhes
permite, no plano energético, crescer para além da polaridade e retornar à unidade, ou seja,
à cura. Assim, a serpente se torna o símbolo de desenvolvimento (DAHLKE, 2007, p. 204).

Contudo, apesar da serpente como símbolo da polaridade, estar numa ótima posi-
ção para auxiliar na superação do mundo dos contrários, ela igualmente pode se tornar
um veneno se não for tratada adequadamente, com equilíbrio. “Somente o caminho do
meio leva ao objetivo, e ele somente pode ser percorrido quando as energias polares
laterais, a feminina e a masculina, estão equilibradas” (DAHLKE, 2007, p. 205).

Amplificação simbólica sobre a psique feminina ferida e as possibilidades de trans-


cendência do trauma: análise dos personagens Karabá e Kiriku na animação “Kiriku
e a feiticeira”

Sinopse
Kiriku e a Feiticeira é um longa-metragem de animação franco-belga de 1998, e dirigi-
do por Michel Ocelot. O diretor do filme passou parte da infância na Guiné, onde conhe-
ceu a lenda africana de Kiriku. O filme retrata a história de um recém-nascido, dotado de
qualidades impressionantes: sabe falar, andar e correr velozmente. Ele nasce imbuído
de coragem e curiosidade, e desde cedo quer entender a situação difícil na qual vive a
sua aldeia. Apesar de ser ainda muito pequeno, ele é destemido e bastante criativo, e
se incumbe de resgatar o vilarejo do domínio de Karabá, uma feiticeira com fama de ser
cruel, e de ter devorado todos os guerreiros do povoado que tentaram enfrentá-la. Seu
povo resistia, mas viviam em um estado permanente de temor, amargura e desesperan-
ça. Com o auxílio de sua mãe e avô, figuras sábias que se destacam na história, Kiriku
descobre o segredo de Karabá e, além de ajudá-la a superar uma dor do passado, eles se
casam e, juntos, retornam à aldeia, restabelecendo a harmonia entre os seus habitantes.

Karabá, a feiticeira ferida e o resgate da sua natureza feminina


Karabá, como a mulher que foi violentada por homens, e se tornou uma feiticeira
implacavelmente cruel e impiedosa, será relacionada, nesta amplificação, à ferida social
oculta mencionada por Levine (1999), fruto de uma cultura que há milênios vive sob a
regência de valores e atitudes predominantemente patriarcais, de exaltação do mascu-
lino e desvalorização do feminino. Dentre as manifestações observadas nesse modelo
social, o recorte aqui está na violência contra a mulher e nos impactos causados por esse
trauma, tanto na dimensão corporal quanto psíquica do feminino, explorados a partir da
história de Karabá.

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Jung & Corpo - nº 21

Antes de virar feiticeira, e de ser temida por todos da aldeia por sua crueldade, Kara-
bá era uma mulher comum, como contou o avô de Kiriku ao revelar a verdadeira história
da feiticeira. A circunstância que a transformou na personagem da mulher má, e que usa
o seu poder para causar o mal e, principalmente, atacar e aprisionar os homens, pode
ser aludida a um episódio de abuso sexual, que aparece na história como uma cena na
qual homens imobilizam Karabá para que um deles enfie um espinho em suas costas.
Nesse momento, ela experencia o que Levine (1999) descreve como um acontecimento
potencialmente ameaçador à vida, que faz com que a pessoa não consiga responder em
um nível instintivo e de modo eficaz ao episódio. Karabá é vítima de um ato violento, e
seu corpo, em toda a sua dimensão corporal e psíquica, reage a essa vivência, transfor-
mando-a profundamente. A partir desse fato, sua vida nunca mais seria a mesma.
“As forças energéticas que resultam no trauma são imensamente poderosas. As emo-
ções que são geradas pelo trauma incluem a fúria, o terror e a impotência” (LEVINE, 1999,
p. 79). Como explorado anteriormente, em episódios de trauma, essas forças energéti-
cas poderosas funcionam como protetores da psique a fim de que ela não seja comple-
tamente aniquilada. Ocorre uma dissociação, e a parte traumatizada regressa a um nível
inconsciente no qual ficará aprisionada. Karabá vive a fúria, o terror e a impotência no
ato que fere brutalmente a sua feminilidade. A partir disso, nenhuma expressão criativa
e espontânea dessa polaridade feminina poderá fazer parte da sua vida. Funcionando
em um modo estritamente defensivo, para impedir uma retraumatização e garantir a
sua sobrevivência, a parte traumatizada da psique de Karabá é alienada, e essa cisão
provoca a paralisação do seu processo de desenvolvimento psicológico, ou individuação.
“O que foi concebido para ser uma defesa contra um trauma adicional, torna-se uma im-
portante resistência a todas as expressões espontâneas desprotegidas do eu no mundo.
A pessoa sobrevive, mas não é capaz de viver criativamente” (KALSCHED, 2013, p.18)
O impacto do trauma, na dinâmica psíquica da Karabá, faz com que ela se transforme
na feiticeira que domina a todos, pela via do medo e poder cruel. E o que a teoria de-
monstra é que esse modo de atuação é uma manifestação de uma psique na qual o ego
atua, de forma polarizada e unilateral, sob influência dos aspectos destrutivos do Ani-
mus. Seus poderes mágicos funcionam como defesas arcaicas e, a partir delas, qualquer
nova expressão tende a ser atacada, geralmente avaliadas como ameaças ou possibilida-
des de retraumatização. Para Karabá, todos os homens representam essa ameaça e pre-
cisam ser eliminados. Os poderes mágicos (defesas), que ela adquiriu a partir do espinho
envenenado (trauma), garantem essa proteção. Mas dada a sua natureza ambivalente,
são defesas que a mantém em um ciclo de repetição psíquica do trauma, aprisionando-a
nesse padrão destrutivo de existência, e que boicotam toda e qualquer possibilidade de
desenvolvimento. Defesas arcaicas são forças antivida, e “o resultado é que muitos de
nós ficamos crivados de medo e ansiedade, e nunca somos totalmente capazes de nos
sentir à vontade conosco ou com nosso mundo” (LEVINE, 1999, p. 32). Por esta razão,
Karabá não confia em ninguém, nunca sai de casa ou fica de costas. Ela não pode relaxar,

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porque a base da sua existência está ancorada nesse sistema regulatório de autocuida-
do, que rechaça as situações que a psique cria, projetadas no mundo, de romper com
essa unilateralidade.
Esse funcionamento do processo traumático é evidenciado quando o avô de Kiriku diz
que Karabá seria capaz de matar – defesas arcaicas – quem tentasse retirar o espinho,
pois ela teria que reviver a situação, e entrar novamente em contato com uma dor muito
maior do que se possa imaginar. Essa ambivalência da psique traumatizada, que recria
as situações do trauma original, na tentativa de cumprir com a sua natureza sintética e
integrativa, é representada na história por todos os homens da aldeia que enfrentaram
Karabá. O objetivo deles era libertar a aldeia dos domínios cruéis da feiticeira ou, em ou-
tras palavras, era a psique dela recriando esses enfrentamentos para tirar a aldeia – po-
laridade do feminino reprimido da psique de Karabá – desse ciclo que faz a vida minguar
e perder toda a beleza. Não à toa, as mulheres não usavam as joias que possuíam. Esses
ricos e exuberantes acessórios ficavam escondidos, e o pouco que ainda restava lhes foi
retirado. A fonte de água secou, não havia mais guerreiros na aldeia (potência de vida),
e as mulheres apresentavam as características inferiores do feminino: eram amargura-
das, rancorosas, mentirosas e fofoqueiras. Outro aspecto de cisão da psique de Karabá
se encontra na figura arquetípica do Velho Sábio. Se a aldeia representa a feminilidade
reprimida de Karabá, o arquétipo do Velho Sábio também apresenta, na narrativa, a sua
versão inferior ou negativa. O homem mais velho da aldeia, que deveria ser o portador
da história do povo e dotado de sabedoria ancestral, aparece como a figura de um velho
rabugento, descrente e mal-humorado. E a polaridade numinosa e criativa, que está no
inconsciente de Karabá, é projetada na imagem do Velho Sábio ou Velha Sábia, que vive
no interior de uma montanha na floresta – uma região que está fora dos domínios do
poder destrutivo da feiticeira, e que pode ser relacionada com a expressão do feminino
na sua maior potência, sob figura da Mãe Natureza ou Pachamama.
Se a aldeia e seus moradores representam a porção feminina inferior incorporada
ao ego de Karabá, os guerreiros que tentam destruí-la e o seu comportamento cruel
e agressivo, simbolizam a atuação unilateral do ego da feiticeira, sob influência do seu
Animus negativo, ou seja, a polaridade masculina tirana e destrutiva da psique. E, se no
núcleo do complexo encontra-se uma mulher e sua feminilidade extremamente feridas e
fragilizadas, toda essa destrutividade no comportamento de Karabá pode ser interpreta-
da como uma defesa típica do trauma que atua em um nível bastante primitivo, visando
proteger a psique de novos episódios de dissociação. Sendo assim, é possível compre-
ender por que as tentativas de enfrentar a feiticeira, por meio do uso da força, fracas-
saram. Qualquer tentativa, que dialogue apenas com a manifestação destrutiva do seu
complexo, terá o mesmo destino. Ninguém consegue enfrentar o potencial devastador
das defesas sélficas, sem ser fulminado por elas. Por isso que os guerreiros, projeção do
Animus negativo de Karabá e da polaridade masculina, que reflete o modelo patriarcal
de domínio pela força e pela negação de qualquer valor do feminino, fracassam e são

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Jung & Corpo - nº 21

aprisionados. Para romper esse ciclo, faz-se necessária a presença de uma força ou figura
que, ao invés de confrontar as defesas de Karabá, seja capaz de contorná-las, enxergando
o que existe para além da manifestação do trauma, que é a dor profunda que ele oculta.
A possibilidade desse resgate será explorada a partir da análise do personagem Kiriku.
Outro aspecto ainda importante da história dessa personagem a ser analisado, refe-
re-se ao local onde o espinho foi introduzido em seu corpo. Primeiramente, vale ressal-
tar a referência que Leloup (2015) faz às costas como o inconsciente, ou seja, a porção
psíquica que não se tem acesso fácil. Por isso que Karabá, na história, fica refém dos
efeitos manifestos na sua psique, consequência do evento traumático. Ela não dispõe de
recursos conscientes para lidar com a dor original do trauma. E o espinho, introduzido
em um local no qual ela não consegue retirar sozinha, simboliza essa incapacidade ou
paralisia psíquica. A coluna vertebral também é a representação da escada evolutiva do
indivíduo, por meio da circulação de energia vital, polarizada entre energias de quali-
dades masculinas e femininas, e que precisam ser integradas. Dessa forma, o espinho
introduzido bem no centro dessa estrutura justifica o bloqueio do desenvolvimento de
Karabá, e o desequilíbrio entre essas polaridades que marcam a sua personalidade. “Na
coluna vertebral, inscrevem-se todas as tensões e sofrimentos e bloqueios gerados pelo
medo” (MIRANDA, 2014, p. 173). No caso de Karabá, retirar o espinho significaria libe-
rar novamente o fluxo energético vital, e abrir a possibilidade para o equilíbrio entre os
polos masculino-feminino; porém, isso também significaria enfrentar novamente o seu
maior medo, que seria reviver a dor do trauma. Por último, é possível traçar um paralelo
entre o evento traumático e um ato de abuso sexual, ao relacioná-los com o significado
da coluna vertebral como a serpente bíblica, que seduz os primeiros humanos a provar
do fruto proibido, fato que os relega ao mundo polarizado e inferior da matéria e da
inconsciência. Após ser violentada sexualmente, ação simbolizada na história pela intro-
dução do espinho na sua coluna vertebral, Karabá passou a viver de maneira unilateral
e inconsciente a respeito das forças que passaram a atuar e ditar o seu comportamento.
Quando Karabá sai do palácio e ruma para a floresta determinada a recuperar as joias,
é possível, mais uma vez, fazer uma relação com as forças antivida das defesas próprias
da dinâmica psíquica do trauma. No momento em que a feiticeira adentra o território da
floresta, toda a natureza morre instantaneamente, simbolizando a paralisação do fluxo
natural da vida na psique traumatizada. Logo, assim que o espinho, símbolo do trauma, é
retirado e Karabá se percebe livre da dor, a natureza volta a florescer, ainda mais exube-
rante. Nessa cena, aparece novamente a ambivalência da dinâmica psíquica do trauma.
Karabá, sem o espinho (trauma), perde os seus poderes mágicos (defesas). Não sente
mais dor, mas agora está vulnerável à possibilidade de vivenciar episódios semelhantes
ao trauma original. Ela ressalta essa ambivalência, quando diz que o fato de perder os
poderes e deixar de ser uma feiticeira, voltando a ser a mulher que era no passado, traz
sorte e azar simultaneamente. Ela superou a dor do episódio de violência que a feriu tão
profundamente, porém seu ego continua atuando sob influência do complexo do Ani-

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mus negativo. Ou seja, feiticeira ou não, ela ainda enxerga os homens como potenciais
abusadores, imagens desse masculino opressor e violento do contexto patriarcal.
A psique de Karabá não está mais traumatizada, mas seu ego segue atuando unilate-
ralmente a partir da relação com a figura interna de aspectos destrutivos do masculino,
sendo essa figura uma construção dialética entre a realidade interna e externa, cons-
ciente e inconsciente. “O Animus, quando possui uma mulher, passa a ser destruidor
dos relacionamentos humanos e dos valores do Eros” (SANFORD, 1987, p. 47). A história
confirma essa hipótese quando Karabá diz a Kiriku que nunca se casará, porque não quer
ser empregada de ninguém. Karabá continua sendo vítima dos julgamentos de seu Ani-
mus, contudo, aqui nota-se que já existe a possibilidade de diálogo com o complexo, por
meio da figura mediadora de Kiriku, representante do potencial numinoso do masculino.
Como Sanford (1987) ressalta, se os julgamentos do Animus não forem enfrentados e
desafiados, ele acaba por anular a verdade psicológica mais profunda que a mulher pos-
sui. Porém, quando existe o diálogo com o inconsciente, e essa verdade é compreendida
e aceita, o lado positivo do Animus tende a aparecer. Karabá aceita a sua mais profunda
verdade ao reconhecer o valor do masculino de Kiriku, concordando que ele é diferente
dos outros homens e assentindo em beijá-lo. Esse beijo simboliza a união sagrada citada
por Johnson (1987), que seria a integração dessas duas polaridades masculina-feminina
da natureza humana. O casamento entre Karabá e Kiriku representa o reencontro do
caminho de desenvolvimento psicológico, ou processo de individuação. Essa união é a
totalidade da psique dessa personagem se realizando plenamente. A personagem de
Karabá espelha a possibilidade de transformação e transcendência do trauma de todas
as mulheres oprimidas, e feridas em seu feminino. Ela conta, através dessa narrativa, a
história do resgate da alma da mulher, e da feminilidade no mundo.

A relação de Karabá e Kiriku e a possibilidade do enfrentamento e manejo do trauma


O papel do personagem Kiriku pode ser explorado sob diferentes perspectivas em
termos de interpretação, a partir da teoria junguiana, e de possibilidades de amplifica-
ção simbólica. Contudo, o foco desta pesquisa está no estudo da dinâmica do trauma
na psique feminina. Logo, o personagem de Kiriku será interpretado a partir de duas
perspectivas: da psique feminina traumatizada, sendo considerado, assim como todos
os demais elementos analisados na história, como uma figura intrapsíquica de Karabá;
e da perspectiva do trauma, fazendo-se uma relação da figura do personagem com as
possibilidades de enfrentamento e manejo do trauma, de acordo com as teorias de Le-
vine e Kalsched.
Quando Kiriku nasce, a aldeia está prestes a perder o último guerreiro, o tio do me-
nino, que se prepara para partir para as terras de Karabá com o intuito de enfrentá-la,
assim como fizeram todos os outros homens daquele pequeno povoado. Partindo do

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Jung & Corpo - nº 21

pressuposto de que os homens da aldeia representam a projeção do Animus negativo


da feiticeira, ou seja, a sua porção psíquica masculina destrutiva, o nascimento de Kiri-
ku, que acontece quando a aldeia vai perder o último homem, pode ser compreendido
como o início da transformação psíquica da personagem. Nesse momento, a partir da
figura de Kiriku e do que ele representa, começa a ser questionado e desconstruído o
funcionamento egóico patriarcal de Karabá, que oprime os valores femininos e domina
por meio da força. Kiriku simboliza a abertura psíquica para o resgate das polaridades
feminina e masculina nas suas versões superiores, que estavam inconscientes até então.
Portanto, sendo Kiriku um representante dos valores masculinos numinosos, é possível
fazer uma relação deste personagem com a imagem do Animus positivo de Karabá.
O nascimento de Kiriku é marcado pelas perguntas que a criança já vem ao mundo
fazendo. Curioso e inocente, ele quer entender a razão do povo da aldeia estar viven-
do sob circunstâncias tão desfavoráveis. A mãe de Kiriku, uma mulher diferenciada em
relação as demais mulheres da aldeia, trata com naturalidade os fenômenos impressio-
nantes a respeito do nascimento de seu filho, como o fato dele saber falar, ser esperto e
curioso. Ela responde a todas as suas perguntas pacientemente. De forma contrária, as
demais pessoas da aldeia dão a Kiriku respostas evasivas e generalistas sobre Karabá, e a
razão dela ser tão cruel com aquele povoado. Nesse cenário, a mãe de Kiriku simboliza-
ria o feminino intuitivo, amoroso e nutridor, a manifestação positiva do arquétipo mater-
no na psique de Karabá. E dessa potência do feminino nasce o fruto da transformação:
Kiriku, como o Animus positivo – ou psicopompo – que atua como uma tocha, iluminan-
do o caminho para que a feiticeira reencontre a sua alma. Ele faz isso a partir do que é
próprio da função do Animus positivo: iluminar o caminho por meio do conhecimento
e da compreensão. Kiriku, que já nasce com o dom da fala (Logos), exerce esse papel a
partir das muitas perguntas que faz desde o seu nascimento, e não se contenta com as
respostas superficiais que recebe. Esse tipo de funcionamento esquivo e repreensivo,
por outro lado, é típico do Animus negativo em ação. É aquela voz interna que recrimina
e critica qualquer comportamento, seja qual for a situação em que se encontre, e que
utiliza explicações generalistas e não pautadas na lógica, como as do velho da aldeia. Ele
responde a Kiriku sobre a razão da crueldade de Karabá, dizendo que ela é má porque é
uma feiticeira.
Os valores de Kiriku não são reconhecidos pelo povoado, elemento simbólico da
psique traumatizada de Karabá, e paralisada em seu desenvolvimento. A parte intuiti-
va da sua psique (mãe de Kiriku), sabe que ele é especial, assim como o seu avô, outra
representação arquetípica da porção preservada e intuitiva da psique de Karabá. Kiriku
é especial pelo seu tamanho, e também pela inocência, pureza, e inteligência atenta e
livre. Esses são os atributos que abrem caminho para o diálogo com o complexo do Ani-
mus negativo ou do trauma. Pequeno e inocente, ele faz as perguntas que ninguém ousa
fazer a Karabá, por temer a sua cruel retaliação. Mas a feiticeira não enxerga em Kiriku
uma figura ameaçadora. Em outras palavras, o menino simboliza a potência de diálogo

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Jung & Corpo - nº 21

com o trauma, contornando as defesas que o protegem, chegando até o núcleo de dor,
o espinho. Por isso que ele é o único que descobre o segredo de Karabá, pois também
é o único que possui os recursos necessários para retirá-lo. Kalsched e Levine ressaltam
a importância dessa abordagem cuidadosa no manejo do trauma, contornando as de-
fesas que protegem o ego fragilizado, mas que, paradoxalmente, também inviabilizam
a integração de conteúdos necessários para que o processo de individuação se realize.
Segundo Levine (1999), “precisamos deslizar com suavidade para dentro do trauma, e
depois nos retirar gradualmente, como se ele fosse uma armadilha chinesa” (p. 44).
Kiriku, curioso, inocente, pequeno e amoroso, simboliza, portanto, a possibilidade de
enfrentamento e manejo desse complexo. Com essa imagem da armadilha chinesa, ele
elabora um plano minucioso para conseguir concluir a sua missão, e retirar o espinho
com os dentes, em um ato preciso e delicado.
Para destruir os efeitos mortais do Animus, a alma da mulher “precisa estar cheia de
um espírito mais poderoso do que o do Animus destruidor, e sua capacidade para o Eros
e o relacionamento deve estar viva” (SANFORD, 1987, p.48). Kiriku representa esse po-
tencial transformador na psique de Karabá. No final, ele retira o espinho e a livra da dor.
Mesmo assim ela não consegue enxergar a possibilidade de se abrir novamente para o
amor. Sem as suas defesas, teme ser novamente ferida. Porém, Kiriku, representando os
valores elevados do masculino, tem a capacidade de afastar as forças do mal, manifes-
tações do ego de Karabá atuando de maneira unilateral sob influência do Animus nega-
tivo, que projeta no homem a figura do opressor. “Os opostos dentro de nós se acham
tão afastados entre si, que somente a grande força unificadora do Eros consegue reuni-
-los” (SANFORD, 1987, p. 118). Kiriku é a representação do Animus positivo de Karabá, e
cumpre o seu papel de guiar e acompanhar as mudanças e transformações de sua alma,
como um verdadeiro psicopompo. E Kiriku é, também, a simbolização dessa grande força
unificadora, o Amor, que une os princípios femininos e masculinos em uma totalidade
psíquica, simbolizada na história pelo casamento entre Kiriku e Karabá.

Considerações Finais

Para muito além da compreensão do trauma, como um evento singular e incapaci-


tante na vida do indivíduo, causando dor intensa e transformações profundas em seu
corpo e espírito, este estudo propôs um olhar para o trauma, especificamente da psique
feminina, como um fenômeno e uma ferida psicossocial. Algo que está intrinsecamente
relacionado com as formas e possibilidades de ser homem e ser mulher, em uma so-
ciedade de valores patriarcalizantes, cuja lógica se concentra em exaltar o masculino
e associar a sua manifestação a poder, superioridade e opressão e, em contrapartida,
inferiorizar e subjugar o feminino e a expressão da feminilidade. Nesse contexto, todos

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Jung & Corpo - nº 21

os tipos de violência são reproduzidos com relação às mulheres há séculos, afirmação


que atualmente pode ser comprovada por meio de dados estatísticos alarmantes. Um
dos legados desse trauma histórico são mulheres de corpos feridos, e almas que não se
realizam plenamente. Mulheres que, como Karabá, tem a sua personalidade e compor-
tamento marcados por esse trauma, cuja dinâmica psíquica e manifestações na maneira
de atuar no mundo foram aprofundadas neste estudo.
Assim, a partir dos pressupostos teóricos do trauma apresentados nesta pesquisa,
foi possível traçar um paralelo entre a dinâmica da psique traumatizada e o comporta-
mento da personagem Karabá. Sob o impacto do trauma que sofreu, a feiticeira tem sua
personalidade tomada pelo aspecto negativo do complexo do Animus. Funcionando em
um modo estritamente defensivo, para impedir uma retraumatização e garantir a sua
sobrevivência, ela passa a atuar como a mulher cruel e impiedosa descrita no conto. E
a partir dessa cisão psíquica, expressões criativas e espontâneas das polaridades tanto
femininas quanto masculinas poderão ser integradas a personalidade egóica, pois serão
interpretadas pelo sistema de defesa típico de situações traumáticas, como uma ameaça
à integridade psíquica e, portanto, ficarão inacessíveis a um nível inconsciente. É possí-
vel relacionar o Animus Negativo com o complexo do trauma, e afirmar que a agressi-
vidade no comportamento da personagem, é uma demonstração do Animus Negativo
ou do trauma em ação. E, se no núcleo desse complexo encontra-se uma mulher e sua
feminilidade extremamente feridas e fragilizadas, toda essa destrutividade no compor-
tamento de Karabá pode ser interpretada como uma defesa típica do trauma, que atua
em um nível bastante primitivo, para garantir a preservação do ego já fragilizado, e um
funcionamento psíquico precário em termos de desenvolvimento.
De acordo com Jung (2020), para que o Animus deixe de representar um perigo e
torne-se uma energia criativa, possibilitando que a mulher incorpore esse ser masculino
ou polaridade masculina da alma, é preciso que ela se diferencie desse complexo, e se
afirme em relação a ele. Sanford (1987) ressalta o papel dos relacionamentos, nessa
dinâmica de diferenciação entre os conteúdos inconscientes e conscientes da psique. E
o que está na base desse processo é o mecanismo da projeção, cujo papel é justamente
propiciar esse movimento de discriminação entre a figura interna projetada e a pessoa
externa com a qual o indivíduo se relaciona. A personagem Karabá segue aprisionada
em um ciclo destrutivo, característico do trauma de se relacionar com o outro (a figura
externa), por meio da projeção do seu masculino interno bélico, até o surgimento de
Kiriku. Ele aparece na história como uma possibilidade de quebrar esse ciclo do trauma,
tão paralisante em termos de desenvolvimento psíquico, justamente pelos atributos que
apresenta.
A partir da perspectiva de que todos os elementos do conto podem ser amplificados
simbolicamente, tendo como referência a dinâmica psíquica de Karabá, é possível fazer
uma relação da mãe de Kiriku com o Arquétipo Materno positivo da feiticeira. Dele nasce

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essa força masculina criativa e transformadora, simbolizada por Kiriku, que precisa ser
integrada ao ego de Karabá. Mas, como se trata de uma dinâmica de trauma, esse diá-
logo com as figuras internas da psique torna-se viável somente por meio de um manejo
específico e adequado, considerando a complexidade das defesas envolvidas nesse tipo
de construção psíquica. Faz-se necessária uma abordagem cuidadosa e amorosa, que
contorne as poderosas defesas, na história simbolizadas pelos poderes mágicos de Kara-
bá, que impedem o acesso aos conteúdos inconscientes que precisam ser integrados à
consciência. Nesse sentido, o personagem Kiriku, curioso, inocente, pequeno e amoroso,
simbolizaria a possibilidade de enfrentamento e manejo desse complexo, justamente
por apresentar atributos que tornam possível o acesso ao trauma, a partir de uma atua-
ção que passa despercebida pelas defesas do Self. Ele aparece na história para resgatar
Karabá do ciclo destrutivo e paralisante no qual ela se encontra, causado pelo trauma
que sofreu, e cumpre o seu papel atuando como o Animus Positivo da mesma, guiando
e acompanhando as mudanças e transformações da alma dessa personagem feminina.
Miranda (2005) chama de Eros, ou Amor, a força integradora dos princípios masculinos
e femininos, resgatando a unidade da alma. Logo, Kiriku é, também, a simbolização des-
sa grande força unificadora, o Amor, que une essas energias de qualidades opostas e
complementares em uma totalidade psíquica, a Coniunctio Oppositorum de Jung (2001),
simbolizada na história pelo casamento entre Kiriku e Karabá.

Referências

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no Brasil [recurso eletrônico]: indicadores nacionais e estaduais. N. 1 - Brasília: Senado
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Jung & Corpo - nº 21

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CALATONIA E TOQUE SUTIL NA CURA DO TRAUMA1

CALATONIA AND SUBTLE TOUCH IN TRAUMA CURE

Claudia Herbert2

Resumo
Este artigo aborda a aplicação das técnicas Calatonia e Toque Sutil na cura de traumas. Uma defi-
nição e algumas informações essenciais sobre os efeitos do trauma serão apresentadas primeiro,
seguidas de uma exploração da lógica científica e dos princípios específicos para a aplicação da
Calatonia e do Toque Sutil na cura do trauma.
Palavras-chave: Calatonia, Trauma, Toque Sutil e Cura.

Abstract
This article discusses the application of Calatonia and Subtle Touch techniques in trauma healing.
A definition and some essential information about the effects of trauma will be presented first,
followed by an exploration of the scientific logic and specific principles for applying Calatonia
and the Subtle Touch in trauma healing.
Key words: Calatonia, Trauma, Subtle Touch and Healing.

1  Artigo publicado originalmente como capítulo do livro Calatonia e Toques Sutis: uma abordagem neu-
rocientífica (BLANCHARD, 2020).

2  PhD em psicologia clínica, registrada no The Health and Care Professions Council (HCPC) e
membra-associada da British Psychological Society (BPS). Supervisora de psicologia clínica certi-
ficada pelo Applied Psychology Practice Supervisor (RAPPS), Psicoterapeuta Cognitivo Compor-
tamental (UKCP/BABCP), Consultora de EMDR e Consultora de Crianças e Adolescentes EMDR
(acreditados pela EMDR Europa), Schema Therapist (ISST), especialista internacional em trauma.
Treinada em várias modalidades de terapias somáticas, incluindo Calatonia e Toque sutil. E-
-mail: claudia.private@oxdev.co.uk

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Eventos traumáticos podem ter um efeito profundo e devastador em nosso


funcionamento saudável na vida. O trauma é definido como qualquer situação
(ou evento) experimentada como excessiva, descontrolada, ameaçadora ou pe-
rigosa para poder ser processada e trabalhada de forma coesa no momento. Sob
tais circunstâncias, nosso sistema nervoso é desregulado e fragmentos da cons-
ciência e diferentes aspectos ou partes do Eu são formados para nos permitir
sobreviver ao trauma (VAN DER HART et al., 2006). Essa fragmentação do Eu
consiste no isolamento de suas partes para ajudar a lidar com um trauma para
seguir com a vida cotidiana como ela se apresenta, enquanto outras partes
armazenam as impressões emocionais, fisiológicas e sensoriais do trauma.
Essa divisão acontece automaticamente e é governada por processos incons-
cientes do nosso sistema nervoso autônomo; assim, partes diferentes geral-
mente são apenas parcialmente e às vezes nem um pouco conscientes uma
da outra. Esse processo é chamado de dissociação. Por exemplo, as partes
de enfrentamento mantêm as máscaras ou papéis que apresentamos ao mun-
do exterior, de modo que parecemos estar funcionando bem e aparentemente
“normais”. Esses aspectos também são referidos como “personalidade(s) apa-
rentemente normal(is)” – apparently normal personality(ies) (ANP) (VAN DER
HART et al., 2006). Esses aspectos protetores do Eu ajudam a nos adaptarmos
ao que um ambiente exige que façamos para garantir nossa sobrevivência. Isso
permite a sobrevivência contínua no que pode ser um ambiente emocional, fí-
sico ou espiritualmente tóxico em circunstâncias nas quais a fuga não parece
possível, por exemplo, durante os estágios iniciais do desenvolvimento. Os ou-
tros aspectos que mantêm as memórias emocionais, fisiológicas e sensoriais não
processadas do trauma, incluindo as respostas de enfrentamento adquiridas du-
rante esse evento, são denominadas “personalidades emocionais” – emotional
personalities (EPs) (VAN DER HART et al., 2006).
Para regular as sobrecargas emocional, fisiológica e sensorial mantidas nos
sistemas de memória das EPs, a ANP tenta empregar várias estratégias para
organizar a vida de uma maneira que mantenha essas partes dissociadas de
nossa consciência, por meio da chamada “barreira dissociativa”. Por exem-
plo, a experiência traumática pode não ser totalmente lembrada ou apenas
parcialmente lembrada; da mesma forma, certos lugares ou questões que
podem ativar memórias dolorosas também podem ser evitados. Embora es-
ses mecanismos tenham uma função adaptativa baseada na sobrevivência,
eles carregam consigo altos custos pessoais, impedindo que uma pessoa se
experimente conscientemente na vida.
Além disso, essas estratégias geralmente não funcionam perfeitamente
e as situações no aqui e agora que podem se assemelhar a aspectos da ex-
periência traumática passada podem atravessar a barreira dissociativa. Isso

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Jung & Corpo - nº 21

acionará as EPs, causando flashbacks angustiantes e fazendo o sujeito reex-


perimentar fragmentos da experiência passada e outros sintomas desconfor-
táveis. Na prática clínica, isso significa que os pacientes que sofreram traumas
alternam entre sentirem-se entorpecidos ou desligarem suas emoções e sen-
sações corporais, lutando para regular seus sentimentos, o que pode resultar
em uma sobrecarga emocional ou sensorial incontrolável. Frequentemente
são hipervigilantes; ansiosos; amedrontados; facilmente aterrorizados; sob
permanente tensão e pressão; e, consequentemente, têm dificuldade para
relaxar e se soltar.
A janela de tolerância (OGDEN et al., 2006; SIEGEL, 2010), que descreve a
zona ou o intervalo em que os pacientes podem tolerar e regular confortavel-
mente suas emoções, é muitas vezes muito estreita. Isso resulta em reações in-
controláveis de hiper ou hipoexcitação em resposta a eventos percebidos como
gatilhos de reatividade à experiência traumática passada, tornando o compor-
tamento dos pacientes imprevisível e fazendo sua vida muito desconfortável.
Dependendo da natureza, gravidade, longevidade, idade do desenvolvimento
e recursos disponíveis no momento do trauma, os pacientes variarão em seu
grau de dissociação. Se os pacientes sofreram traumas repetidos e complexos,
eles podem experimentar a si mesmos como múltiplas identidades totalmente
separadas, fenômeno diagnosticado como transtorno dissociativo de identida-
de (TDI) (VAN DER HART et al., 2006), que podem não estar conscientes umas
das outras. Essas identidades podem ter personalidades completamente dife-
rentes, com diferentes posturas corporais, expressões faciais, vozes, gêneros,
gostos, comportamentos, escolhas de vida e até metabolismos fisiológicos. As
memórias dos eventos traumáticos são muito fragmentadas e geralmente não
são acessíveis ao paciente de forma consciente.
Os pacientes podem ter um senso distorcido da realidade, flutuando entre
sentirem-se sob constante ameaça ou perigo e se envolverem em comporta-
mentos de correr riscos, comprometendo sua segurança. Eles podem, inclusive,
ter atitudes das quais não se lembram posteriormente. Dificuldades na concen-
tração e foco nas tarefas são frequentemente um problema e a memória geral
pode ser prejudicada.
O objetivo da terapia de trauma é permitir que os pacientes se tornem cada
vez mais conscientes da natureza traumática e do conteúdo de suas experiências
passadas, para que gradualmente sejam capazes de lembrar e processar suas
experiências traumáticas na segurança do “aqui e agora”. Isso permitirá que sen-
timentos esmagadores e o terror congelado (dormente), bem como estratégias
inúteis de enfrentamento baseadas na sobrevivência, adquiridas pelas partes
traumatizadas, afrouxem seu controle. Memórias anteriormente fragmentadas

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ou inacessíveis podem ser processadas e, como consequência, a integração gra-


dual das várias partes da identidade de uma pessoa em um Eu completo e coeso
pode ser alcançada. Esse trabalho é um processo de cura profundamente espiri-
tual e transformacional, no qual os pacientes são auxiliados a sair do abismo de
seu próprio terror para encontrar e (re)descobrir seu Eu único e autêntico, que
se torna o curador das partes traumatizadas.
É uma honra profunda para todo terapeuta do trauma ser capaz de testemu-
nhar um processo tão sagrado. De fato, Peter Levine (LEVINE, 2005) se referiu ao
processo de cura do trauma como uma das quatro rotas pelas quais a ilumina-
ção pode ser alcançada. As outras rotas são morte, sexualidade sagrada (tantra)
e meditação. A terapia verbal pode, até certo ponto, ser útil para uma pessoa
entender suas experiências de vida, o contexto e a natureza de seu trauma, seus
padrões de enfrentamento subjacentes e a maneira pela qual ela pode ter tido
que se desassociar de seu Eu único e autêntico, por razões de sobrevivência.
No entanto, facilitar que uma pessoa mude fundamentalmente e transforme
alguns dos padrões de sobrevivência, profundamente arraigados e baseados
em traumas, em um caminho para um crescimento positivo, requer uma abor-
dagem muito mais profunda, integrativa e holística (HERBERT, 2020). Um dos de-
safios terapêuticos é que muitas dessas estratégias de enfrentamento base-
adas na sobrevivência sejam controladas pelo sistema nervoso autônomo e, no
contexto do passado, as experiências traumáticas sejam armazenadas como fun-
cionalmente adaptáveis pelos intrincados sistemas de memória do corpo, mente
e alma. Isso explica a razão pela qual os pacientes podem logicamente saber que
seu comportamento de sobrevivência, com base na experiência traumática, não
pode mais atendê-los no contexto de sua vida aqui e agora. Mas, apesar disso,
quando se percebem engatilhados na reatividade aos menores indícios traumá-
ticos, sentem-se descontrolados e impotentes para mudar isso, apesar de suas
melhores intenções.
A razão para isso é que os processos autonômicos, especialmente quando
fazem parte de diferentes aspectos dissociados do Eu, não podem ser contro-
lados pela mente racional, porque são governados por vias neurofisiológicas
(CORRIGAN, 2014; LANIUS et al., 2014) diferentes da via do sistema mental ra-
cional-lógico. Por exemplo, uma de minhas pacientes, Rebecca (nomes foram
modificados para manter o anonimato), uma mulher de 40 anos que foi abusada
sexualmente por um período prolongado durante sua infância e adolescência,
utilizava o álcool para lidar com sua angústia e dor. Ela estava lutando contra a
dependência do álcool durante toda a sua vida adulta e veio à terapia com essa
demanda.

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Cognitivamente, ela abraçou completamente sua intenção de parar de beber


e pôde continuar assim, até que um evento gatilho inesperado em sua vida co-
tidiana a levou de volta às experiências traumáticas angustiantes. Nesse ponto,
uma parte diferente dela assumiu o controle, governada por respostas autonô-
micas, e ela não pôde impedir que suas lembranças traumáticas fossem entor-
pecidas com o álcool.
Esse ciclo parecia interminável, apesar de ela ter participado de grupos de
apoio ao controle do álcool e de várias outras formas de terapias no passado,
incluindo terapia cognitiva-comportamental focada no trauma, Trauma-Focused
Cognitive-Behavioral Therapy (TF-CBT) (COHEN et al., 2006), terapia de dessen-
sibilização e reprocessamento por meio de movimentos oculares Eye Movement
Dissensitization and Reprocessing (EMDR) (SHAPIRO, 1989; SHAPIRO; FORREST,
2016) e terapia psicodinâmica.
Isso levanta a questão sobre que tipo de terapia pode ajudar os pacientes a
transcenderem esses desafios e transformarem suas respostas autônomas e in-
conscientes em escolhas conscientes que possam ser mantidas. Essencialmente,
essa ajuda requer a religação das vias subjacentes que geram respostas auto-
nômicas, baseadas na sobrevivência, em um sistema que permita a avaliação
realista de cada situação do aqui e agora, para que escolhas de comportamentos
saudáveis e apropriados possam ser feitas.
Essa proposta de religação é baseada no entendimento de que o trauma é
mantido por meio de processos eletroquímicos complexos, que são acionados
em nível neurobiológico por estruturas específicas do sistema límbico na região
do mesencéfalo. Isso inclui regiões como o tálamo, a amídala, o hipocampo, o
hipotálamo e a substância periaquedutal cinzenta, que respondem ao ambiente
externo e interno de um paciente traumatizado interpretando as informações
como perigosas e inseguras, que em verdade, no aqui e agora, seriam seguras
para o paciente processar (HERBERT, 2017). Assim, essencialmente, o trauma é
mantido por um sistema de sinalização neurofisiológico complexo, autonômico
e que opera com informações do passado, que não se aplicam mais com preci-
são à realidade do aqui e agora. Portanto, esse processo de religação requer o
envio de informações novas para esse sistema de sinalização autonômica que
permite experimentar momentos de calma, em vez de reativar as respostas de
hiper ou hipoexcitação. A terapia de EMDR, bem como a TF-CBT, foram consi-
deradas terapias muito eficazes para o Transtorno de Estresse Pós-Traumático
(TEPT) (SEIDLER & WAGNER, 2006). Ambas são recomendadas como tratamen-
tos de escolha para o TEPT pelo Instituto Nacional de Excelência Clínica no Rei-
no Unido (NATIONAL INSTITUTE FOR HEALTH AND CARE EXCELLENCE, 2005) e
pela Organização Mundial de Saúde (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2013).

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No entanto, para pacientes gravemente traumatizados, que podem ser hiper-


sensíveis, os protocolos-padrões do EMDR e do TF-CBT precisam ser especial-
mente adaptados.
Em geral, há um consenso de que o trabalho com sobreviventes de abuso
infantil e outras formas de trauma crônico deva ser orientado por fases multi-
modais (que integrem várias modalidades de tratamento) e graduais, que não
tenham intenção de resolver o trauma “de uma vez” (KORN, 2009). É aqui que a
Calatonia e o Toque Sutil (FARAH, 2017; SÁNDOR, 1982) podem ser trazidos como
métodos terapêuticos para apoiar e auxiliar na cura de traumas. Uso as técnicas
de Calatonia e Toque Sutil há mais de nove anos e muitos de meus pacientes
consideram essas técnicas bastante úteis em suas jornadas de cura de traumas.
Embora as técnicas da Calatonia e do Toque Sutil ainda não tenham sido ava-
liadas quantitativamente, os resultados de várias pesquisas neurocientíficas re-
centes (LOEKEN et al., 2009; MCGLONE et al., 2014) podem prover justificativas
científicas sobre a eficácia dessas técnicas na cura de traumas. Recentemente,
dois sistemas diferentes de receptores nervosos para toque foram detectados.
Existem os chamados nervos mielinizados dos mecanorreceptores de baixo
limiar que registram o toque na pele. Eles têm uma função discriminativa ime-
diata, ajudando a avaliar a natureza do toque, para que a pessoa responda ao
estímulo tátil pronta e adequadamente. Esse sistema retransmite nossas experi-
ências diárias de toque, por exemplo, se roçarmos em um móvel e precisarmos
ajustar nossa distância, isso tem vantagens óbvias para nossa sobrevivência.
No entanto, há também outra via privilegiada de nervo periférico, um sistema
de aferentes chamados C-tácteis (CTs), que responde a estímulos táteis gentis e
agradáveis de natureza social (LOEKEN et al., 2009). Esse sistema nervoso tem
uma função muito diferente (MCGLONE et al., 2014).
Os aferentes CTs registram velocidades que se assemelham ao tipo de toque
lento e terno que uma mãe ou pai usaria para acariciar um bebê (três cm por
segundo na pele). Verificou-se que o toque suave diminui a produção de corti-
sol ativado por estresse, permitindo o aumento do desenvolvimento celular no
hipocampo, impactando positivamente a função de memória de curto e longo
prazo (MILES et al., 2006). Também foi demonstrado que o toque suave diminui
a pressão arterial (KNOX; UVNÄS-MOBERG, 1998) e aumenta os limiares de dor
(OLAUSSON et al., 2008).
Em nível neurobiológico, existem evidências de que ocitocina, opioides, se-
rotonina e dopamina sejam liberados em resposta a esse toque suave, expresso
por meio da estimulação dos aferentes CTs, levando a uma sensação de aumen-
to do bem-estar psicológico, felicidade e calma. Curiosamente, McGlone e cole-

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Jung & Corpo - nº 21

gas (MCGLONE et al., 2014) sugeriram que, em uma perspectiva mais ampla, os
CTs podem ser considerados um sistema aferente que se preocupa basicamente
com a representação do Eu, em vez de se concentrar em eventos externos.
Essa perspectiva apresentaria uma razão pela qual os métodos da Calatonia
e do Toque Sutil permitem uma conexão interna agradável e segura com o Eu:
essas técnicas não reativam o sistema circular de manutenção de trauma com
a conexão autônoma. Poderíamos supor que esse uso sutil, ao longo do tempo,
leve ao surgimento de novas respostas fisiológicas em um paciente e ao possível
enfraquecimento das respostas circulares autônomas ao trauma, previamente
estabelecidas.
Outra justificativa para a aplicação das técnicas da Calatonia e de Toque Sutil
como parte da terapia de trauma especializada refere-se à atividade cerebral em
pacientes traumatizados. Embora o trauma não tenha sido processado e integra-
do, os pacientes frequentemente se encontram em estados repetidos de hipera-
lerta em resposta a uma sensação de ameaça que ativa as ondas cerebrais gama
de alta frequência (oscilando até 100 Hz). Isso leva à liberação química de neu-
rotransmissores excitatórios, como cortisol, noradrenalina, glutamato e outros,
pressionando a frequência cardíaca, a pressão sanguínea, o sistema imunológico
e outras funções metabólicas de uma pessoa. Esses hormônios do estresse pare-
cem fazer com que os receptores de glutamato, chamados receptores glutama-
térgicos (receptores de ácido a-amino-3-hidroxi-5-metil-4-isoxazolepropiônico;
AMPA), sejam ativados na superfície pós-sináptica da amídala lateral e, devido
ao ambiente químico criado por esses neurotransmissores, desencadeiem a fos-
forilação deles, o que os ancora permanentemente no lugar e fixa o conteúdo do
trauma como memória no hipocampo para referência futura (RUDEN, 2011). Es-
ses receptores de AMPA ativados podem contribuir para a estimulação contínua
da amídala e de outras estruturas límbicas, mantendo uma pessoa traumatizada
trancada em seu circuito de hiperexcitação do estresse.
Em contraste, foram encontrados que movimentos suaves e o toque lento,
leve e suave podem gerar ondas cerebrais delta (48 Hz), levando a um estado
meditativo, levemente sonolento ou hipnagógico (KIM et al., 2007). As ondas
cerebrais delta também estão associadas aos estágios 3 e 4 de nossas fases do
sono e têm sido associadas à liberação de neurotransmissores calmantes, como
serotonina, ácido gama-aminobutírico (GABA) e ocitocina. A liberação desses
neurotransmissores calmantes tem um efeito positivo, restaurador e prazero-
so em uma pessoa. Além disso, foi proposto (CLEM; HUGANIR, 2010; KIM et
al., 2007) que esses neurotransmissores calmantes criam um ambiente rico em
cálcio, o que permite a produção de uma enzima que despotencializa esses re-
ceptores AMPA ativados na amídala lateral, interrompendo, assim, o circuito es-

51
Jung & Corpo - nº 21

tressante da hiperestimulação. De acordo com essa hipótese, o toque calmante


pode ser usado tanto para a decodificação do trauma quanto na Havening Tech-
nique (RUDEN, 2011).
Embora sejam necessárias pesquisas mais específicas para Calatonia e Toque
Sutil, pode-se propor que qualquer método terapêutico que permita ao pacien-
te experimentar uma alternativa, subjetivamente sentida, às suas respostas au-
tonômicas orientadas à sobrevivência, justifica uma consideração genuína de
inclusão no tratamento do trauma.
Com os pacientes que sofrem de trauma complexo de desenvolvimento, cer-
tos aspectos precisam ser considerados ao usar Calatonia e Toque Sutil. Em pri-
meiro lugar, muitos pacientes tiveram experiências passadas de toque aversivo,
total isolamento e abandono (sem toque) ou ambos, que geraram efeitos nega-
tivos. A perspectiva de toque para esses pacientes é, portanto, frequentemente
um gatilho traumático em si, que os leva para fora de sua janela de tolerância
em um ciclo de hiper ou hipoexcitação. O toque terapêutico no trauma deve ser
abordado com muito cuidado e é necessário identificar o momento apropriado
para introduzir essa técnica com segurança.
Trabalhei com alguns pacientes com traumas muito complexos, sendo ne-
cessários vários anos de terapia profunda especializada em trauma (HERBERT,
2020), focada predominantemente na intensa construção de segurança, anco-
ramento, estabilização, geração de recursos, reparo do apego e reconheci-
mento, por parte desses pacientes, de seus sistemas de organização internos
antes de contemplar a possibilidade de qualquer forma de toque.
Esse processo requer uma avaliação abrangente e contínua do terapeuta
de trauma antes de decidir se o toque pode ser apropriado e de como pode-
ria ser introduzido para ser útil e não reativar memórias de trauma do passa-
do ou ciclos negativos de excitação. Isso é de extrema importância porque, a
menos que a administração da Calatonia e do toque sutil pareça segura para
um paciente, ela se tornará mais um gatilho e não alcançará o efeito dese-
jado de desativar as redes de respostas adquiridas anteriormente (e agora
inúteis).
Às vezes, quando a Calatonia é tentada e um paciente ainda não parece se
sentir confortável com essa forma de toque, é muito melhor honrar e validar
os sentimentos desse paciente em relação a tal situação em vez de continuar.
Dessa forma, a confiança pode ser estabelecida e, portanto, é possível voltar
à Calatonia mais tarde na terapia, quando o paciente se sentir pronto.
Em segundo lugar, é muito importante que o terapeuta de trauma reconheça
respostas dissociativas em seus pacientes e avalie cuidadosamente quando e

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Jung & Corpo - nº 21

como elas podem operar em cada um deles. Por exemplo, os pacientes que so-
freram abuso físico e/ou sexual quando crianças, muitas vezes tiveram que criar
respostas dissociativas complexas para sua sobrevivência, o que lhes permitiu
ser compatíveis com o agressor (frequentemente pais, familiares próximos ou
amigos da família) para sobreviver, receber qualquer forma de atenção ou rece-
ber qualquer atitude percebida como amor.
Eles podem ter dado a permissão para serem tocados e talvez até mostrado
algum tipo de prazer, dependendo da natureza de suas circunstâncias traumáti-
cas. Esses pacientes podem hospedar várias partes da personalidade dissociada:
algumas que passivamente se deixaram ser tocadas pelo agressor, bem como a
ele obedecer; outras que sentiram pavor de serem tocadas; e, por fim, outras
que odiavam o toque.
Ao trabalhar com esses pacientes, é importante que seu sistema de orga-
nização interno seja explorado e que as partes da personalidade sejam cons-
cientizadas, tanto no paciente quanto no terapeuta, antes de tentar qualquer
trabalho com contato corporal.
É importante lembrar, nesse contexto, que as memórias de trauma e os pa-
drões de resposta que as diferentes partes da personalidade mantêm são atem-
porais e codificadas em seu contexto original. Isso significa que essas partes
dissociadas (embora agora sejam partes da personalidade do paciente em um
corpo adulto) ainda mantêm as informações emocionais e sensuais de como
elas se sentiram no momento do abuso (o que provavelmente ocorreu quando
estavam em um corpo muito mais jovem).
As impressões sensuais em particular são fonte de culpa e grande ambivalên-
cia com relação às circunstâncias do abuso, já que muitos perpetradores de abu-
so sexual procuram engajar o corpo da vítima em respostas eróticas, o que leva
a vítima a se perceber como um(a) participante voluntário(a) no abuso. Uma vez
que o sistema organizador interno tenha sido entendido (o que pode levar mui-
tos meses ou anos de terapia especializada em trauma), é importante envolver
as partes relevantes na determinação e no controle de como os pacientes que-
rem ser tocados e onde, a fim de proporcionar uma experiência de toque segura
e curativa.
Isso, junto a outras técnicas específicas de processamento de trauma, pode
permitir a liberação e a ressignificação de padrões codificados no passado. Não
se pode enfatizar o suficiente que o toque deve sempre ser administrado de
uma maneira que seja segura para o paciente no presente. Uma parte essencial
da terapia do trauma inclui uma relação de trabalho colaborativa entre o tera-
peuta e o paciente.

53
Jung & Corpo - nº 21

Essa relação terapêutica deve ser sentida como sólida e capaz de empoderar
o indivíduo o suficiente para que possa expressar e compartilhar suas necessida-
des com o terapeuta. Da mesma maneira, os terapeutas têm que se sentir anco-
rados e centrados para que possam sintonizar profundamente as necessidades
de seus pacientes, mantendo limites seguros e saudáveis. Mesmo para pacien-
tes que sofreram um trauma menos complexo, é importante que o terapeuta te-
nha consciência de possíveis respostas dissociativas ao considerar a introdução
e administração de Calatonia e Toque Sutil.
Indicadores de dissociação podem ser, por exemplo, alterações no padrão
respiratório; voz; movimento dos olhos; rastreamento e olhar; agitação; inquie-
tação; mudanças na postura corporal; alterações no tônus muscular; padrões
repetitivos de micromovimento; espaçamento (quando o olhar perde o foco e a
pessoa não parece presente no aqui e agora) e entorpecimento em partes espe-
cíficas do corpo. Tais reações precisam ser tratadas pelo terapeuta por meio, por
exemplo, da exploração mútua dos possíveis gatilhos e técnicas de estabilização,
para permitir que o paciente ancore-se (grounding) novamente e volte à sua
janela de tolerância. Se o paciente já estiver familiarizado com a Calatonia ou
o Toque Sutil, elementos dessas técnicas poderão ser incluídos como parte do
processo de estabilização e ancoramento.
Em terceiro lugar, o momento adequado para usar a Calatonia e o Toque Sutil
como parte da terapia de trauma precisa ser cuidadosamente adaptado às ne-
cessidades individuais de cada paciente. Como uma observação ampla, descobri
que, quanto mais complexo e grave o trauma e mais fragmentada a personalida-
de do paciente, mais tempo levará até que a aplicação da Calatonia e do Toque
Sutil seja sentida como segura o suficiente para ser útil para um paciente. Tam-
bém observei que, em pacientes capazes de receber contato tátil, a Calatonia
costuma ser um primeiro passo muito útil para as experiências de contato.
Um dos benefícios da Calatonia é que ela segue um conjunto de movimentos
prescritos que, com o tempo, tornam-se previsíveis para os pacientes. Isso pode
parecer muito reconfortante e continente, especialmente para pacientes para
quem o toque foi uma fonte de insegurança e imprevisibilidade no passado. Para
muitos pacientes, quando seus pés são tocados, esse evento não dispara tantos
gatilhos como se estivessem sendo tocados em outras partes do corpo. No en-
tanto, isso não pode ser assumido e deve ser cuidadosamente explorado com
cada paciente.
Por exemplo, uma de minhas pacientes, Victória, que sofria de TDI como con-
sequência de abuso institucional grave, não conseguia tolerar qualquer forma
de contato físico. Após vários anos de terapia especializada em trauma, essa pa-
ciente me permitiu mostrar a ela a sequência de toques da Calatonia em uma

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Jung & Corpo - nº 21

das minhas mãos. Ela então tentou essa sequência com ela mesma em uma
de suas mãos. Gradualmente, essa paciente conseguiu, sob seu próprio con-
trole, permitir-me tocar suas mãos, mais tarde, seus pés e, eventualmente,
tornou-se muito confortável em deitar-se completamente vestida, mas sem
as meias, em cima de uma cama de massagem, apreciando toda a sequência
de Calatonia, inclusive na cabeça. Ela também relatava frequentemente ver
cores, ouvir sons e sentir que estava sendo ajudada por uma presença divina,
que ela experimentou como muito reconfortante e profundamente relaxan-
te e curativa.
O toque na Calatonia é realizado de maneira tão sutil, leve e conscientemente
sintonizada que a maioria dos pacientes nunca foi capaz de experimentar an-
teriormente essa qualidade de toque na vida (BLANCHARD; COMFORT, 2020).
Os pacientes costumam se surpreender com o quão profundamente relaxante
e alimentadora a Calatonia é, quando são capazes de experimentá-la. Costumo
conduzir sessões de duas horas com muitos dos meus pacientes de trauma e
acho útil para a maioria deles oferecer a Calatonia na última parte da sessão de
tratamento de trauma, regularmente (HERBERT, 2006).
A Calatonia parece complementar e integrar belamente os métodos de pro-
cessamento de trauma mais ativos – como EMDR, TF-CBT, técnica de Havening e
técnica de Modelo de Recursos Abrangentes (COMPREHENSIVE RESOURCE MO-
DEL; SCHWARZ; CORRIGAN, 2016), que consistem em recriar narrativas na forma
de imagens e/ou trabalho de transformação da sombra, que, com muitos de
meus pacientes, ocorrem nas partes iniciais da sessão de terapia. Inversamente,
para os pacientes que já tenham se acostumado a receber a Calatonia, também
posso usá-la no início de uma sessão de terapia de trauma para ajudar a ancorar,
gerar recursos e estabilizar um paciente desregulado, a fim de facilitar outros
trabalhos subsequentes durante a sessão.
As técnicas de Toque Sutil podem ser introduzidas quando um paciente de
trauma se sente seguro e familiarizado com a Calatonia e à vontade para ser to-
cado por seu terapeuta. Em seguida, essas técnicas podem ser usadas para tra-
balhar em áreas específicas do corpo nas quais a energia é bloqueada, impedin-
do os pacientes de sentirem a si mesmos. As técnicas de Toque Sutil podem ser
usadas para eliminar bloqueios nos corpos físico e energético (corpo sutil) de um
paciente e podem ser úteis para ancoramento, estabilização e autorregulação.
A aplicação de Calatonia e Toque Sutil na cura de traumas exige que o tera-
peuta de traumas se sintonize cuidadosamente com o processo terapêutico e
com as necessidades do paciente em todos os momentos. Treinamento abran-
gente e experiência em trabalhar com trauma são igualmente necessários.

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Jung & Corpo - nº 21

Para os terapeutas poderem atingir esse nível de habilidade, precisarão ter


se submetido ao seu próprio trabalho de cura de trauma, incluindo nesse tra-
tamento a terapia focada no corpo. Em resumo, trabalhar com trauma é uma
habilidade complexa, que requer o processamento gradual de experiências ad-
versas passadas e a eventual integração de aspectos ou partes do Eu que foram
dissociados para garantir a sobrevivência no momento do trauma. Essa integra-
ção só pode acontecer se forem criadas diferentes condições internas e externas
no corpo e na mente de um paciente, bem como na realidade de sua vida no
aqui e agora.
Usei a Calatonia e Toque Sutil em todo o espectro de experiências traumáti-
cas, desde traumas de abuso no desenvolvimento precoce e prolongado, incluin-
do pacientes que sofreram de TDI, até traumas de incidentes múltiplos e únicos.
Isso requer uma hábil adaptação individualizada e a combinação de todas es-
sas abordagens na terapia de trauma de cada paciente. Sem uma investigação
científica completa, é difícil discernir quais aspectos específicos da terapia do
trauma levaram à cura de um paciente e que papel a Calatonia e o Toque Sutil
tiveram nesse processo. No entanto, a observação clínica sugere que a Calatonia
e o Toque Sutil são capazes de induzir a um nível de relaxamento que muitos
pacientes com trauma não haviam conseguido acessar anteriormente.
Isso levanta a hipótese de que, em um nível neurofisiológico, a Calatonia e o
Toque Sutil permitem ao corpo estabelecer novas conexões no sistema nervoso
central que neutralizam os sintomas psicofisiológicos do estresse, tensão ou hi-
perestimulação relacionada ao trauma (BLANCHARD; COMFORT, 2020). Essa in-
tegração neuronal deve levar a uma ampliação da janela de tolerância da zona de
conforto emocional de um paciente. A observação clínica sugere que os pacien-
tes se tornam mais receptivos ao processamento do trauma, pois estão apren-
dendo a se autorregular e são menos acionados por vislumbres de seu trauma.
As técnicas da Calatonia e do Toque Sutil parecem capazes de regular as ati-
vidades das ondas cerebrais dos pacientes por diminuição das frequências e
de permitir que eles acessem sentimentos de positividade, calma, bem-estar e
equilíbrio interno. Alguns de meus pacientes conseguiram entrar em profundos
estados transcendentes de felicidade durante a sessão de Calatonia, relatando
terem visto cores e imagens ou experimentado sensações que geralmente têm
um efeito muito pacífico, restaurador e calmante sobre eles.
Embora sejam necessárias pesquisas mais específicas e direcionadas, a expe-
riência clínica sugere que a integração da Calatonia e do Toque Sutil na terapia
de trauma especializada pode desempenhar um papel importante na ponte en-
tre as abordagens orientadas para o corpo e a mente. Assim, apoia-se e possibi-

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lita-se um processo profundo de cura de traumas que trabalha para a eventual


incorporação (embodiment) do Eu autêntico de uma pessoa.

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Jung & Corpo - nº 21

SONHOS SOBRE CATÁSTROFES:


UMA COMPARAÇÃO JUNGUIANA ENTRE OS SONHOS DO NAZISMO
E OS SONHOS DA PANDEMIA DE COVID-19

CATASTROPHE DREAMS:
A JUNGIAN COMPARISON BETWEEN NAZI DREAMS
AND COVID-19 PANDEMIC DREAMS

Sâmia Riachi1

Resumo
O presente artigo busca comparar os relatos de sonhos de pessoas oriundas de diferentes locais interna-
cionais, coletados durante o período inicial da pandemia de COVID-19, com relatos de sonhos de outro
período de catástrofe como o Terceiro Reich, coletados por Charlotte Beradt. O objetivo é realizar uma
leitura contemporânea da teoria de Jung e das produções do autor acerca do nazismo, atentando-se às
similaridades destes conteúdos.
Palavras-chave: Sonhos, Nazismo, COVID-19.

Abstract
This article seeks to compare dream reports of people from different parts of the world collected during
the initial period of the COVID-19 pandemic with dream reports from another catastrophe period such
as the Third Reich, collected by Charlotte Beradt. The objective is to carry out a contemporary reading
of Jung’s theory and the author’s productions about Nazism, paying attention to the similarities of these
contents.
Key words: Dreams, Nazism, COVID-19.

1 Psicóloga pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Especialização em Psicoterapia Analítica e


Abordagem Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP, e-mail: samiar.psi@gmail.com

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Introdução

Em março de 2020 vimos algo inédito acontecer: o mundo inteiro parou. Talvez em
alguma criação artística, uma ficção científica ou algo parecido, esse cenário já tivesse
sido acessado – mas não exatamente na vida concreta, não em uma sociedade pautada
por tantas tecnologias, e tão prepotente como a atual.
Raul Seixas já trazia isso em sua canção “O dia em que a terra parou”, do seu álbum
de mesmo título, criado há quarenta e três anos (1977), tendo acessado muito antes,
uma ideia do que se vive atualmente. A música teve como inspiração o filme de ficção
científica “The day the Earth stood still”, lançado em 1951, sob a direção de Robert Wise.
Como Raul, Robert e outros artistas mostram a todos, que a arte tira o indivíduo da con-
cretude da vida, e o leva a estados mais profundos do ser, colocando-o em contato com
conteúdos ainda muito distantes da consciência. Por essa razão, muitas vezes, as obras
destes artistas não são compreendidas pela sociedade no momento de sua criação, mas
se tornam compreensíveis anos após a sua conclusão, trazendo enorme surpresa pelas
sincronicidades e símbolos que apresentam.
O COVID-19, um vírus absolutamente avassalador, colocou o homem diante de uma
pandemia mundial, e uma situação coletiva de ameaça à vida levando, até o momento,
cerca de quatro milhões de pessoas à morte no mundo.
Uma das principais formas de contenção da pandemia foi o isolamento social, o qual
colocou o ser humano em contato com o seu mundo interno, e de uma maneira abrupta.
Durante essa paralização inesperada, conteúdos extremamente profundos foram mobi-
lizados em cada um e, simultaneamente, ocorreram sonhos intensos, relatados diaria-
mente pelas mídias sociais globais. Tais sonhos trazem a complexidade de uma realida-
de, que permanece se instalando a cada dia, e que angustia a toda a humanidade.
Esta dura realidade está fazendo, então, com que os seres humanos entrem em con-
tato, de forma intensa e caótica, com sua sombra. Para além disso, o Brasil vive uma crise
política que acirra os antagonismos, e divide ainda mais a sua população, fomentando
a cultura do ódio, da polarização, da divisão. Isso faz com que brasileiros, residentes no
Brasil, tragam relatos curiosos e contundentes de sonhos acerca do momento, além de
instabilidades e incertezas.
Este artigo é resultado de uma pesquisa acerca de relatos de sonhos, fornecidos vo-
luntariamente por pessoas que habitavam locais diferentes do mundo, durante o perí-
odo inicial da pandemia causada pelo COVID-19. O objetivo do trabalho foi comparar
estes relatos entre si, bem como compará-los aos relatos oníricos coletados por Char-
lotte Beradt (2017), durante a ascensão nazista, e descritos no livro “Sonhos do Terceiro
Reich” – outro período de catástrofe. A partir da análise destes relatos, buscou-se fazer
uma releitura da visão de Jung a respeito do nazismo, verificando-se possíveis similari-

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dades destes conteúdos com o momento vivenciado atualmente por todos, em especial
no Brasil.

O trabalho de Charlotte Beradt com os sonhos do nazismo

No período em que se configurou a ascensão de Hitler na Alemanha, e antecedeu a


Segunda Guerra Mundial (1933 a 1939), a jornalista Charlotte Beradt realizou um tra-
balho cuidadoso de coleta de relatos oníricos, com cerca de trezentos sonhos, os quais
foram analisados e despertaram a atenção para algumas temáticas, compiladas no livro
“Sonhos do Terceiro Reich”.
Em seus estudos, a autora percebeu que os sonhos trouxeram percepções de um
cenário que estava por vir, e que alguns indivíduos, inspirados por seus sonhos, tiveram
atitudes que garantiram sua sobrevivência diante de tal catástrofe.
Charlotte fala sobre a possibilidade de se sonhar fenômenos político-psicológicos,
e em suas observações, ela relata algumas percepções que chamam a atenção, por se-
rem similares às que foram percebidas neste trabalho com os sonhos na pandemia. Em
ambos os cenários, existe uma situação ameaçadora coletiva, que desperta de forma
desastrosa o instinto de sobrevivência, e faz a psique atuar de forma mais intensa –
como tentativa de compreender o momento de tantas instabilidades, alertando para os
próximos passos, os quais poderiam garantir a continuidade da vida.
De acordo com Beradt:

Sempre houve, em qualquer época, sonhos horríveis, cujas origens não estão apenas nas
tensões internas de indivíduos altamente sensíveis (poetas como Hebbel e Lichtenberg ti-
veram sonhos infernais), ou em uma situação ameaçadora particular vivida por uma pessoa
comum, mas sim em uma situação ameaçadora coletiva (2017, p. 38).

Entre as temáticas que surgiram nos sonhos do nazismo, Beradt (2017) destaca:
- a vida sem paredes, um movimento coletivo que elimina a vida privada, e que co-
loca o indivíduo em uma situação de extrema vulnerabilidade, o que, segundo a autora,
fazia com que o indivíduo só pudesse viver a sua intimidade em seus sonhos;
- a sensação de ser ignorado, e não ser visto em seu sofrimento, o que mostra que a
situação coletiva de ameaça era vivida de forma individual e solitária;
- a sensação de culpa, em quem se expressava de maneira genuína, mas de forma
diferente da que era imposta e esperada, coletivamente, no regime nazista;
- a sensação de não encontrar alegria em mais nada, o que é entendido como perce-
ber-se em um mundo sem perspectivas de mudança;

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Jung & Corpo - nº 21

- a angústia de ver risco em tudo, o que, ao ver da autora, faz com que o indivíduo se
perceba imerso em uma atmosfera persecutória, aparentemente sem fim;
- a percepção de que o bem comum vem antes do bem pessoal, o que, no caso do
nazismo, “justificava” as ações criminosas de Hitler, o qual tinha um objetivo de criar
uma raça ariana e, para isso, eliminava violentamente quem não fosse “puro”, e não
atendesse a este ideal;
- a sensação de não ser compreendido nem por si próprio, como forma de se criar
defesas, na tentativa de o indivíduo esconder de si mesmo os sentimentos mais genuí-
nos, que diferissem do que era adequado, segundo a cultura nazista;
- a sensação de estar em um “Big Brother”, a sensação de saber-se vigiado o tempo
todo;
- a sensação de sentir-se indefeso, o que, segundo Charlotte, é um arquétipo presen-
te e visível em um estado totalitário;
- a existência do não herói, aquele que não consegue reagir, que não promove ações
ou atrocidades, mas apenas não ações;
- a sensação de “vontade atrofiada”, uma paralização da vida; a tentativa de trans-
cender a realidade imposta, tentando-se reestabelecer a vida;
- antissemitismo imposto e a sensação de impotência, criando repulsa, inclusive às
pessoas próximas, como familiares que não fizessem parte da raça pura, e que poderiam
simbolizar uma ameaça à vida do indivíduo;
- a existência do “grupo dos desprezados”, os que seriam perigosos por serem dife-
rentes da ideologia da raça ariana, trazida e fomentada por Hitler e que, de certa forma,
deveriam ser excluídos e/ou eliminados;
- a sensação de estar fazendo algo errado, em relação a qualquer expressão genuína
individual, que diferisse da imposição feita coletivamente;
- A presença de pessoas atuantes, que conseguiam se defender da realidade impos-
ta, o que seria um movimento de resistência;
- a presença de sonhos com soluções criativas, e que mostravam a possibilidade de
continuidade da vida;
- sonhos que mostravam que a realidade era mais séria do que parecia, quando o
indivíduo se percebia sendo e atuando exatamente como lhe foi imposto, sem escolha
alguma, ainda que não concordasse com tal atitude;
- a presença de sonhos que refletiam a dificuldade de resistência, tentativa realizada
mesmo diante de um cenário repleto de atrocidades, como forma de sobrevivência;

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Jung & Corpo - nº 21

- a sensação de não ser acolhido em nenhum lugar, por ter que fugir de sua terra
mãe, e não encontrar abrigo em nenhum outro local;
- a presença da indagação “como será o futuro?”, em um contexto de inúmeras ins-
tabilidades, e a possibilidade de perda de raízes. E, principalmente;
- a necessidade de se reconhecer o totalitarismo, quando o caminhar coletivo era
imposto, retirando-se quaisquer possibilidades de expressões individuais que fossem di-
ferentes deste movimento.
A respeito deste último tópico, o totalitarismo, a autora afirma que

Essa também é a lição de todas as fábulas políticas sonhadas no Terceiro Reich, que – como
todas as fábulas – contêm não apenas explicações, mas também alertas: de que as manifes-
tações do totalitarismo precisam ser reconhecidas – antes que as capas e os capuzes sejam
removidos, como no sonho do guia das montanhas; antes que nos impeçam de dizer “eu” e
nos obriguem a falar de tal maneira que não entendamos a nós próprios; antes que a “vida
sem parede” tenha início. (BERADT, 2017, p. 160)

Sobre Hitler, Dunker (2017, p. 19), que escreveu o prefácio da primeira edição do
livro de Charlotte Beradt lançado no Brasil, afirma que este “unificou seus inimigos dis-
seminando a cultura do ódio, do medo e da suspeita”, e complementa o seu raciocínio
com uma frase de Beradt: “Acirrar antagonismos naturais, criar antagonismos artificiais,
formar grupos nocivos ou de elite, e jogar um contra o outro, são os princípios básicos
da ditadura totalitária” (DUNKER apud BERADT, 2017, p. 20).
A pesquisa realizada pela jornalista, acerca da vida onírica durante o Terceiro Reich,
veio ao encontro dos objetivos desta pesquisa, que observou como se comporta a psique
de um grupo de pessoas em um estado coletivo de ameaça à vida. Seu livro é uma das
poucas referências do trabalho com sonhos durante um período crítico da humanidade –
por isso, foi fundamental no desenvolvimento deste trabalho e, coincidência ou não, pa-
rece apresentar conteúdos similares aos dos sonhos da pandemia, em especial, no Brasil.

O trabalho com sonhos na psicologia junguiana

Segundo Jung (2000), os sonhos são produtos espontâneos da psique e agem como
ponte, conectando consciente e inconsciente por meio de símbolos. Para Jung, os so-
nhos provam a existência dos arquétipos, e nos colocam em contato não só com o in-
consciente pessoal, mas também com o inconsciente coletivo, mostrando a capacidade
simbolizadora das pessoas.
Jung propõe que

65
Jung & Corpo - nº 21

Voltemo-nos agora para a questão do modo pelo qual pode ser provada a existência de
arquétipos. Visto que estes produzem certas formas anímicas, temos que explicar onde e
como podemos apreender o material que torna tais formas visíveis. A fonte principal está
nos sonhos, que têm a vantagem de serem produtos espontâneos da psique inconsciente,
independentemente da vontade, sendo, por conseguinte, produtos da natureza, puros e
não influenciados por qualquer intenção consciente (JUNG, 2000, p. 58-59).

Durante a pandemia, houve um fenômeno coletivo de alteração na qualidade do


sono, e maior percepção da vida onírica, com diversos relatos de sonhos mais intensos
nas redes sociais, além da sensação coletiva de “sonhar mais”. Este fenômeno mostra
não só a capacidade, mas também a necessidade simbolizadora, que o momento de
crise e instabilidade mundial tem despertado nas pessoas, mostrando a psique atuando
massivamente em sua função autorregulatória.
Segundo Matoon (2013), os sonhos podem ser classificados em compensatórios,
prospectivos, traumáticos ou extrassensoriais (telepáticos ou proféticos).
A maioria dos sonhos, de acordo com Matoon (2013), são compensatórios, pois bus-
cam estabelecer o equilíbrio psíquico do sonhador, fornecendo os recursos necessários
para que ele seja levado à totalidade e não à cisão, corrigindo a unilateralidade que este
indivíduo possa estar vivendo.
Os sonhos prospectivos têm uma função antecipatória, como se pudessem levar a
um entendimento prévio de uma determinada situação, a partir de uma combinação de
possibilidades, podendo antecipar soluções ou situações catastróficas.
Ainda segundo a autora, os sonhos traumáticos refletem uma situação traumática vi-
vida por um indivíduo, e tendem a ser recorrentes. Sobre este tipo de sonho, Jung (2016
apud Matoon, 2013) nos diz:

Os soldados em luta sonhavam muito menos com a guerra do que com suas casas. Os psi-
quiatras militares admitiram, por princípio, retirar um homem do front se começasse a so-
nhar com muitas cenas de guerra; o que significaria que ele não tinha qualquer defesa psí-
quica contra impressões vindas do exterior. (JUNG, 2016, p. 330).

Os sonhos extrassensoriais, de acordo com Matoon (2013), são sonhos que escapam
de uma compreensão lógica e consciente – mostram processos psíquicos paralelos, que
trazem percepções muito próximas e, em detalhes, de uma situação real, ainda não vivi-
da pelo sonhador, a qual só é confirmada quando ocorre na vida consciente, a manifesta-
ção de tais aspectos do sonho. Os sonhos extrassensoriais também trazem informações
importantes, não só para o sonhador mas para outras pessoas.
Além da classificação de sonhos proposta por Matoon (2013), considerou-se também
os sonhos de transcendência, definidos como os sonhos que refletem formas criativas
de conduzir o sonhador à totalidade. Afinal, como diz Jung:

66
Jung & Corpo - nº 21

Neste caso, o conhecimento dos símbolos é indispensável, pois é nestes que se dá a união
de conteúdos conscientes e inconscientes. Da união emergem novas situações ou estados
de consciência. Designei, por isso, a união dos opostos pelo termo ‘função transcendente’
(2000, p.524).

A função social dos sonhos

O momento coletivo que se está vivendo é refletido pelos relatos nas redes sociais,
e neste sentido, pode-se fazer um paralelo com a seguinte afirmação de Jung: “Uma
comunidade é um organismo, uma simbiose, e formamos um tipo de organismo aqui en-
quanto pensamos juntos; e se algo perturbador surge nesse organismo, alguma mente
recebe a perturbação e diz: ‘Olhem’” (JUNG, 2017, p. 55).
Experiências deste tipo são comuns em tribos indígenas e outros povos ancestrais,
que permanecem conectados com sua essência mais primitiva e compartilham tais ex-
periências como guias, mensagens dos deuses. Atualmente, nos sonhos compartilhados
em rede, de forma virtual, percebe-se este organismo afetado, mostrando que o proble-
ma de um é um problema de todos.
As descrições dos sonhos da pandemia de COVID-19 apresentam temáticas seme-
lhantes, mesmo sendo relatadas em países e continentes diferentes, como se todos os
humanos estivessem experimentando, simultaneamente, as mesmas percepções tam-
bém em sua vida onírica e, através dela, estivessem buscando soluções para os conflitos
atuais vividos no coletivo. Segundo Gui:

O trabalho do “sonhar social” situa o sonho e o sonhador em um meio social, focalizando


a atenção no contexto social e cultural dos sonhos e dos sonhadores. [...] O “sonhar social”
relativiza a noção de que os sonhos são posses pessoais; essa ideia segue uma variação de
concepção de Bion (2006a) de que há “pensamentos em busca de um pensador” para suge-
rir que há “sonhos em busca de um sonhador”. Da mesma forma, acompanha certas intui-
ções culturais de povos que valorizam o sonho como portador de informações subliminares,
temores e expectativas sociais, tal como observou Jung (GUI, 2010, p. 20).

O que será que estão sonhando, enquanto humanidade que busca, em uníssono, uma
solução para o momento de tantas incertezas?

A visão de Jung sobre o nazismo

Jung, em seu livro “Aspectos do Drama Contemporâneo” (1974), cita que a sociedade
alemã estava muito mais comprometida com o nazismo do que se poderia supor, aler-
tando que um fenômeno coletivo de tal proporção reflete a sombra e culpa pessoais, de

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Jung & Corpo - nº 21

cada indivíduo que compunha essa esfera da sociedade. Como um sintoma grupal, um
indivíduo tomado pelo mal, reflete o mal não conscientizado de todo o seu entorno.
Segundo Jung, olhar para o coletivo implica, necessariamente, olhar para si, enquan-
to indivíduo que compõe este sistema. Assim como Hitler não é apenas uma figura que
existe fora, mas uma expressão do arquétipo do mal que habita em cada ser, como parte
da natureza humana. Essa imagem, dura de ser integrada, é possível de ser vista apenas
fora, enquanto este aspecto não for conscientizado e aceito, por cada indivíduo pesso-
almente.
Perceber o mal, que também é parte de cada ser, é algo que exige um grande esforço
moral, uma tarefa difícil. E esta dificuldade é o que faz projetar-se o mal, tirando-se a
própria parcela de culpa, a partir da não conscientização dele. Para Jung, a sombra só
é passível de ser conscientizada se o indivíduo assumir que ela também está presente
nele, e é esse o movimento que pode trazer mudanças pessoais e coletivas. Para exem-
plificar isso, Jung criou a expressão “culpa coletiva”.
Sobre a culpa coletiva, Jung sugere olhar-se para o fenômeno social com o sentimen-
to de inferioridade, o que faz perceber que as pessoas são parte deste fenômeno. Dife-
rentemente de olhar para o mesmo fenômeno com o sentimento de superioridade, no
qual o indivíduo percebe-se como alguém à parte, não atingido pelo mal, afastando-se
de sua responsabilidade.
Colocar a responsabilidade no outro, seja lá quem for esse outro, apenas afasta do
indivíduo a sua possibilidade de mudança pois, se o mal está fora, não há nada que o
próprio indivíduo possa fazer, visto que ninguém muda ninguém. Sendo assim, o indiví-
duo se coloca em uma situação ilusória de que o que precisa mudar está fora dele, o que
não contribui em nada para o seu desenvolvimento pessoal e, consequentemente, para
o desenvolvimento coletivo.
Com esta visão do mal, ninguém muda pois, se a culpa está fora, o problema é do ou-
tro, e nunca da própria pessoa. Desta forma, perpetua-se uma comunidade que vive de
uma forma absolutamente infantil, distanciada da responsabilidade que cabe a cada um,
enquanto indivíduo que compõe essa sociedade. Quando o ser humano puder perceber
a sua “participação solidária na culpa” (Jung, 1974, p. 18), a mudança será possível, in-
dividual e coletivamente.
Segundo Dunker (2021), a culpa é um sentimento que leva o indivíduo ao passado,
diferentemente da responsabilidade, que o traz ao presente. A culpa seria a primeira
etapa do processo, que lhe conduziria à reparação de algum dano cometido, por meio de
atitudes éticas. E assim, compreende -se o questionamento ético dos fins e dos meios,
para se alcançar tal responsabilidade. Ele diz que: “Enquanto a culpa individualiza, tanto
na autoria do ato, quanto na tipificação do crime, a responsabilidade convoca à resposta,
convida a posicionar a pergunta e envolve um trabalho coletivo” (n.p.).

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Jung & Corpo - nº 21

Dunker acrescenta:

Se a culpa é com o passado, e se a responsabilidade emana da possibilidade de compartilhar


a experiência presente, a implicação, como movimento do desejo, parte do presente, vai ao
passado e projeta-se para o futuro. A implicação não apenas individualiza, repara, recons-
trói ou compartilha, ela cria uma espécie de compromisso com um novo mundo possível
(2021, n.p.).

Jung (1974) diz que o sentimento de culpa pode ser visto, de uma forma pelo âmbito
jurídico e, de outra forma, como fenômeno psíquico. Juridicamente, a culpa é o senti-
mento vivido pela pessoa que violou algum direito de outra, mas, psiquicamente, a culpa
é o sentimento que reflete muitos outros âmbitos. Como em um sistema familiar, no
qual um de seus integrantes pode expressar um sintoma que diz respeito a todo aquele
núcleo, trazendo à tona a necessidade de mudança de todo aquele sistema. Para Jung,
a culpa aumenta à medida em que ela não é conscientizada, o que a faz, em algum mo-
mento, eclodir de forma desastrosa – ou seja, a inconsciência de que somos culpados é
o que aumenta a nossa culpa.
Jung afirma que

Pode-se objetar que a culpa coletiva é um preconceito e uma condenação injusta. Sem dú-
vida ela o é, mas é precisamente isso que constitui a sua essência irracional: ela jamais se
pergunta pelo justo e o injusto, ela é uma nuvem sinistra que se levanta no lugar de um
crime inexpiado. É um fenômeno psíquico e, deste modo, dizer que o povo alemão carrega
uma culpa coletiva não significa condená-lo, mas apenas constatar um fato existente. Pene-
trando mais profundamente na psicologia desse fato, logo reconhecemos que o problema
da culpa coletiva comporta um aspecto bem mais amplo e significativo do que o simples
preconceito coletivo (1974, p. 20).

Segundo o autor, ninguém vive isolado numa concha, nem psíquica nem fisicamente.
Todos são uma parte de um sistema, que funciona bem ou mal, ou melhor, bem e mal.
Assumir isso é admitir, para si mesmo, que ele também funciona bem e mal e, a partir
dessa percepção, pode-se adquirir consciência e buscar mudanças, mas sempre partindo
do princípio de que ambos os estados existem – dentro e fora do indivíduo, e do coletivo.
Se todos são excitados pelo crime – no caso do cenário político do Brasil, por exem-
plo, são contaminados pelas correntes políticas – e acusam, no outro, o sentimento de
ódio e vingança, o mesmo sentimento se acende neles. Assim, falam nessa mesma lin-
guagem, dessa mesma natureza, dessa mesma culpa e essência, que habita em todos
eles. E percebem que o sentimento de ódio e de vingança não é apenas do outro, mas
também dele, e essa é a grande chave para a mudança de consciência.
Ainda em Jung, podemos encontrar a seguinte afirmação:

É um fato inegável que o mal alheio rapidamente se transforma no próprio mal, na medida
em que acende o mal da própria alma. O assassinato acontece, em parte, dentro de cada
um e todos, em parte, o cometeram. Seduzidos pela fascinação irresistível do mal, todos nós

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Jung & Corpo - nº 21

possibilitamos, em parte, a matança coletiva em nossas mentes, e na razão direta de nossa


proximidade e percepção. Com isso, estamos irremediavelmente imiscuídos na impureza do
mal, qualquer que seja o uso que dele fizermos. Nossa indignação moral cresce em virulên-
cia e desejo de vingança, quanto mais forte arder em nós a chama do mal. Disso ninguém
pode escapar, pois somos todos humanos e pertencemos igualmente à comunidade dos
homens (JUNG, 1974, p. 21).

Ninguém muda o coletivo, mas todos podem se transformar individualmente e, as-


sim, cada pessoa pode se conscientizar e promover mudanças de atitudes, viabilizando
a mudança deste coletivo. Em outras palavras, a transformação do todo só pode ocorrer,
se for mobilizada individualmente.
Jung também afirma que o mal observado no líder de uma nação, expressa o mal que
já estava tomando forma na própria comunidade:

No momento em que o mal irrompe no mundo, ele já eclodiu por toda parte no âmbito psí-
quico. A toda ação corresponde uma reação, que provoca tanta ou mais destruição do que a
ação criminosa, pois o mal deve ser totalmente erradicado. Para não sermos contaminados
pelo mal, precisaríamos propriamente de um “rite de sortie” que consistiria na declaração
solene da culpa e da absolvição posterior do juiz, do verdugo e do público (JUNG, 1974, p. 22).

Sendo assim, quando o indivíduo se percebe parcialmente responsável pelo fenô-


meno coletivo, ele pode tomar ações em prol de seu desenvolvimento. Diferentemente
de quando o indivíduo mantém a esperança no Estado, isentando-se da própria culpa,
situação em que, segundo Jung:

O nível do instinto de autopreservação cai, na proporção em que aumentam as esperanças


no Estado, o que é um mau sintoma. Depositar esperanças no Estado significa que se espera
em todos (= Estado), menos em si mesmo. Todos se apoiam uns nos outros, num falso senti-
mento de segurança, pois o apoio de dez mil é como um apoio no ar. A diferença é que não
mais se percebe a insegurança (JUNG, 1974, p. 23).

Percebe-se, assim, que o nível de autopreservação cai, na medida em que aumentam


as esperanças no Estado; quando o nível de autopreservação aumenta, em contraparti-
da – o que pode ser observado, em especial, nos sonhos – sente-se que não há nenhuma
confiança no Estado. Neste caso, a citação anterior exemplifica melhor o momento que
vivemos no Brasil, com o atual líder político.
Podemos pensar em duas formas diferentes de se infantilizar uma população: dando
tudo o que ela precisa, de forma assistencialista; ou dizendo ser um salvador, que irá pro-
porcionar o que for necessário, ainda que nada, de fato, seja feito. Ambas as formas cor-
roboram para a não responsabilização individual, frente a qualquer fenômeno coletivo.
Ainda sobre a isenção da própria culpa, Jung (1974, p. 23) diz: “Como somos um povo
de ‘oitenta milhões’, possuímos a convicção de que os ‘outros’ é que são culpados pelos
danos, e nem conseguimos sequer nos atribuir qualquer responsabilidade ou culpa”.

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Jung & Corpo - nº 21

Sobre assumir a própria culpa, Jung (1974, p. 24) diz: “Se os homens soubessem a
vantagem que representa encontrar a própria culpa, que dignidade e elevação da alma
isso significa! Entretanto, parece que essa compreensão ainda não despertou em parte
alguma”.
Jung (1974) diz que é a partir do reconhecimento da sombra – que traz tanto aspectos
positivos quanto negativos, mas ainda inacessíveis à consciência – que o indivíduo passa
a ter maior consciência acerca de sua totalidade. Por isso, é fundamental o reconheci-
mento da própria sombra, caso contrário, tudo o que não for reconhecido em si será
projetado e atribuído ao outro, seja o bem, seja o mal. Mais comumente, percebe-se
que o mal é projetado e, com a criação de antagonismos políticos, por exemplo, cria-se
a sensação de ameaça externa, já que devido à projeção, o próprio indivíduo não pode
lidar com os seus conteúdos, o que lhe causaria um sentimento de inferioridade.
Sobre a Alemanha nazista e seu sentimento de inferioridade, Jung diz:

De fato, os sentimentos de inferioridade produzem alto grau de sugestibilidade e tentativas


compensatórias de imposição, buscando enaltecer a massa e demonstrar com furor as “ha-
bilidades alemãs” até o terror e fuzilamento de reféns [...] Nenhum desempenho intelectual
ou técnico do mundo pode desafiar a inferioridade do sentimento (JUNG, 1974, p. 416)

O complexo de inferioridade, quando não reconhecido pelo ego, passa a agir de for-
ma autônoma, levando o indivíduo à atuação absolutamente inconsciente, também co-
nhecida como acting out. Um líder tomado pelo próprio sentimento de inferioridade,
pode influenciar milhares de outros indivíduos e, todos em massa, podem responder ao
complexo ativado.
Sobre os sintomas de histeria que identificava em Hitler, Jung (1974) cita como carac-
terísticas: “a cegueira acerca do próprio caráter; a admiração autoerótica de si mesmo;
depreciação e atormentação dos demais; projeção da própria sombra; falsificação men-
tirosa da realidade; desejo de impressionar os outros e de se impor; blefes; e impostu-
ras” (p. 24). E conclui:

Todos os histéricos são, por isso, espíritos atormentados e atormentadores, porque não
querem sentir a dor de sua própria inferioridade. Uma vez que ninguém pode sair da própria
pele e abandonar a si mesmo, o mal que se encontra em toda parte é o mal de si mesmo.
Chama-se isso de neurose histérica (JUNG, 1974, p. 24).

Jung nos diz que a histeria de um líder reflete a histeria da própria nação. Assim, não
seria o líder exatamente o único problema, mas toda essa nação. Em relação a Hitler,
Jung ainda diz:

No rosto desse demagogo se podia ler uma triste falta de formação que produziu uma pre-
sunção delirante, uma inteligência mediana dotada de astúcia histérica, e uma fantasia de
poder adolescente. Seus movimentos eram todos artificiais e pré-estruturados por um cére-
bro histérico, que só se preocupava em causar impressão. Ele se comportava publicamente

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Jung & Corpo - nº 21

como alguém que conduz sua própria biografia, comportando-se, nesse caso, como o herói
sinistro, “durão”, “demoníaco” das novelas baratas e do mundo imaginário de um público
infantil, que apenas conhece o mundo através das “divas” dos filmes de segunda categoria
(JUNG, 1974, p. 25- 26).

A partir da inconsciência de seu próprio mal, um líder pode guiar milhões de pessoas
para este mesmo caminho inconsciente, evoluindo para um caráter inconsciente grupal,
no qual não é mais possível prever os danos, por ser um movimento de massa, que passa
a ser tomado pelo complexo ativado.
Sobre a inocência, Jung (1974, p. 27) diz: “[...] a grande maioria dos alemães não es-
tava devidamente informada, e por isso era tão fácil entregar-se aos discursos de Hitler
de maneira demoníaca [...]”.
Uma coisa é ser seduzido por um discurso, e outra, absolutamente diferente, é não
reagir aos atos desvairados. A não reação também é parte da histeria, ou da parte histé-
rica do indivíduo, que não consegue juntar essas duas informações – ou seja, o bem e o
mal que coabitam o seu ser. Jung (1974, p. 28) usa o termo “inferioridades psicopáticas”,
para se referir ao indivíduo dissociado. Estamos dissociados à medida que estamos tam-
bém separados do nosso próprio mal, projetando-o em outra figura. Na histeria, há uma
separação maior dos opostos, o que gera uma tensão energética mais forte; é um “Eros
da distância”.
Segundo Jung

A essência da histeria consiste numa dissociação quase que sistemática, numa desvincula-
ção dos pares de opostos que normalmente se encontram estreitamente ligados, o que pro-
voca, muitas vezes, uma cisão da personalidade, ou seja, um estado em que realmente uma
mão não sabe o que a outra faz. Em geral, ocorre um espantoso desconhecimento acerca
das próprias sombras, conhecendo-se apenas as boas intenções. E quando não é mais pos-
sível negar o mal, surge o “super-homem e o herói” que se enobrece pela envergadura de
suas metas (1974, p. 28).

Assim, configura-se a imagem do salvador, que é percebido como a solução de todos


os conflitos e, por pura inocência, acredita-se que não é preciso nada além de confiar
que este mesmo ser, absolutamente inconsciente de si, irá conduzir da melhor forma
toda a nação.
Sobre a inocência, Hillman (1996) diz:

Sem uma profunda noção de psicopatia, e uma forte convicção de que o demoníaco está
sempre entre nós – e não só em suas formas criminosas extremas – escondemo-nos na
negação e na inocência espantada, este espanto que também abre as portas para o pior.
Mais uma vez: observe como a tirania política vive às custas da massa ingênua, e como uma
massa ingênua deixa-se enganar pela tirania. A inocência parece pedir o mal (HILLMAN,
1996, p. 256).

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Se um indivíduo não pode olhar para o mal em si, ele o verá nos demais. Assim, os
indivíduos formam uma nação na qual o mal é visto sempre no externo, o que os conduz
a um abismo psicológico, que só poderá ser percebido por meio de uma situação-limite,
tal como uma catástrofe, como se deu na Alemanha.
Sobre a consciência acerca da própria culpa, Jung relata:

Os fatos falam uma linguagem bem mais clara e quem não pode compreendê-la não pode
ser ajudado. O que fazer com essa visão pavorosa é algo que cada um deve descobrir por si
mesmo. Na verdade, pouco se ganha em perder de vista a própria sombra, ao passo que o
conhecimento da culpa e do mal que habitam em cada um traz muitas vantagens. A consci-
ência da culpa oferece condições para a transformação e melhoria das coisas. Como se sabe,
aquilo que permanece no inconsciente jamais se modifica, e as correções psicológicas são
apenas possíveis no nível da consciência. A consciência da culpa pode, portanto, converter-
-se no mais poderoso movente moral (JUNG, 1974, p. 36).

Ainda sobre aceitar a culpa coletiva, Jung conclui que:

A aceitação consciente da culpa coletiva seria um grande passo para frente. No entanto, isso
ainda não significa uma cura assim como o neurótico não se cura através da simples com-
preensão. Ainda é preciso responder às perguntas: De que maneira eu convivo com essas
sombras? Que atitude é necessária para se viver apesar do mal? Para se encontrar respostas
adequadas a essas perguntas, faz-se necessária uma renovação mental abrangente que não
pode provir de alguém especial, devendo ser conquistada por cada um. Também as velhas
fórmulas que um dia tiveram validade, não podem ser aplicadas irrefletidamente, pois as
verdades eternas não podem ser transmitidas mecanicamente. Elas precisam ser geradas
novamente em cada época pela alma humana (JUNG, 1974, p. 37).

Jung afirma que o reconhecimento da própria culpa é só o primeiro de muitos passos


da jornada de autoconhecimento, pois, a partir dessa percepção, é necessário criar pos-
siblidades de estar no mundo, modificando a própria forma de existir. A mudança se dá
não apenas pela conscientização, mas também pela ação que provém dessa percepção,
e que pode levar à transformação de padrões, que antes eram inacessíveis à consciência.

Método

Este trabalho trata-se de um estudo teórico com revisão narrativa, e comparação


do material onírico descrito no livro “Sonhos no Terceiro Reich” (BERADT, 2017), com
os sonhos coletados na pandemia de COVID-19. Os sonhos, objeto de análise, foram
enviados de forma voluntária pelos sonhadores, por meio de página na internet, e-
-mail e Instagram “Sonho, logo existo”, criados pela autora para este fim. O período de
coleta deu-se entre 14 de março a 30 de junho de 2020, início do cenário mundial de
isolamento social.

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A amostra deu-se por relatos de pessoas que estavam vivendo o cenário da pande-
mia, tinham curiosidade sobre o tema dos sonhos e, voluntariamente, enviaram seus
sonhos por meio dos canais já descritos. Ao todo, foram recebidos 213 sonhos, sendo
170 do Brasil (80%) e 43 de outros países (20%), a saber, Portugal, Canadá, Espanha,
Estados Unidos, África do Sul. Foram disponibilizados três meios de envio dos sonhos:
Instagram, e-mail e site (anônimo). Dos 213 sonhos recebidos, 36% foram enviados via
Instagram, 12% via e-mail e 52% via site. Em relação ao gênero, 91% dos sonhos foram
de mulheres (principalmente na faixa dos 20 aos 40 anos, e 9% dos sonhos foram de ho-
mens. Também foram recebidos sonhos de crianças. As idades dos sonhadores variaram
dos 4 aos 69 anos.
A partir destes dados, realizou-se uma revisão bibliográfica, um levantamento esta-
tístico, e uma comparação entre o material onírico coletado por Charlotte Beradt e os
sonhos coletados durante o período inicial da pandemia de COVID-19.
Os sonhos da pandemia, para efeitos de comparação, foram classificados em: com-
pensatórios, prospectivos, traumáticos, telepáticos, e de transcendência. Como não se
conhecia a realidade de cada sonhador, os sonhos compensatórios foram classificados
de acordo com a compensação coletiva da atitude consciente, também coletiva.
Os sonhos classificados como prospectivos trouxeram uma combinação antecipatória
de possibilidades, e foram descritos desta forma pelos próprios sonhadores. Os sonhos
classificados como traumáticos foram os que trouxeram alguma situação de guerra, ca-
tástrofe, mortes, violência, e outras situações de ameaça à vida.
Já os sonhos telepáticos, foram classificados desta forma por apresentarem sincroni-
cidades distantes da realidade do sonhador. Por fim, os sonhos de transcendência foram
os sonhos que trouxeram alguma tentativa de elaboração da atual crise humanitária
vivenciada.

Resultados

Tipos de sonhos na pandemia:


Sonhos de Brasileiros (Geral), enviados por brasileiros que residem no Brasil, e por
brasileiros que residem ou estavam fora do Brasil, quando enviaram os seus sonhos.
Sonhos de Brasileiros (Brasil): enviados por brasileiros que residem no Brasil.
Sonhos de Brasileiros (Outros países): enviados por brasileiros que residem ou esta-
vam fora do Brasil, quando enviaram os sonhos.

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Tabela 1 – Tipos de sonhos na pandemia, de brasileiros residentes no Brasil e de brasi-


leiros residentes (ou que estavam) em outros países, recebidos durante o período inicial
da pandemia.

1) Sonhos de Brasileiros 2) Sonhos de Brasileiros 3) Sonhos de Brasileiros


Tipos de Sonhos
(Geral) (Brasil) (Outros Países)
n % n % n %
Compensatórios 119 56 87 51 32 76
Traumáticos 71 33 67 39 4 10
Transcendentes 13 6 8 5 5 12
Prospectivos 7 3 6 4 1 2
Telepáticos 3 1 3 2 0 0
Total 213 100 171 100 42 100

Fonte: Sonho, logo existo (e-mail, site e Instagram)


Nota geral: quantidade de sonhos recebidos no projeto “Sonho, logo existo” (classificados por tipos de
sonhos e local de envio), e suas respectivas porcentagens.

Comparação qualitativa entre os sonhos da pandemia e os sonhos do nazismo

Os seguintes sonhos foram comparados qualitativamente, por temática, seguindo os


critérios de Beradt (2017). Verificou-se que todas as temáticas observadas pela autora,
nos sonhos do período do nazismo, também estiveram presentes nos sonhos da pande-
mia, o que deu início a este trabalho.
Seguem alguns comparativos:

Sonhos que expressam a sensação de ser ignorado, e de não ser visto em seu sofri-
mento individualmente.
- exemplo de sonho no nazismo:

Uma mulher com cerca de trinta anos, sem profissão, mimada, liberal, cultivada [...] “Estou
sentada, muito bem arrumada e penteada, trajando um vestido novo, no camarote da ópe-
ra, que é enorme, com muitos balcões, e desfruto dos olhares de admiração. Apresentam ali
minha ópera favorita, A flauta mágica. Depois do trecho ‘Das ist der Teufel sicherlich’ (É com
certeza o diabo), um esquadrão da polícia entra marchando com passos fortes, diretamente
em minha direção. Com a ajuda de uma máquina, eles constataram que, ao ouvir a palavra
‘diabo’, eu pensara em Hitler. Vejo-me suplicando por ajuda, em meio a todas as pessoas
vestidas solenemente. Mudas e inexpressivas, elas se olham, mas nenhum rosto mostra
compaixão. Ainda que o velho senhor no camarote vizinho pareça, sim, distinto e bondoso,
quando tento olhar para ele, ele cospe em mim”. Aquilo que ela designa como “mudez” e

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Jung & Corpo - nº 21

“inexpressividade” dos rostos, foi chamado pelo dono da fábrica de “vazio” [...]. Assim, pes-
soas bem diferentes empregam o mesmo código para apresentar um fenômeno oculto do
ambiente, ou seja, a atmosfera de indiferença total, que é produzida pela coerção e sufoca
o espaço público (BERADT, 2017, p. 48).

- exemplo de sonho na pandemia – “A casa estranha” (autointitulado):

Estava numa casa estranha, com tudo aberto, não havia acolhimento. As pessoas que eu
gostava estavam longe, não conseguia tocá-las, parecia que não consideravam a minha pre-
sença... ou estavam dormindo, ou conversavam entre si. Lá fora fazia frio, havia vento e um
céu negro, com manchas alaranjadas (escuras). Eu chamava meu filho para ir fazer compras
(comida), mas ele, que também era meu irmão, não conseguia encontrar sapatos que lhe
coubessem para sair comigo. Eu tinha muiiiiito medo de sair sozinha no escuro vasto, que
via das janelas e portas abertas da minha casa (que ficava no alto), eu reclamava comigo
mesma, de ser só eu que tinha de encarar aquela situação, pois sempre tinha de ir às com-
pras, mas ao mesmo tempo, sentia que meu irmão/filho devia ficar no seu quarto (que era
quentinho e que todos os que eu amava estavam) (MULHER 1, 40 ANOS, 07/05/2020).

- comparativo
Neste sonho da pandemia, a sonhadora relata a indiferença que sente quando, mes-
mo diante de pessoas queridas, não há acolhimento. Que é preciso seguir só, na ten-
tativa de se manter protegida do vírus. Relata que não é possível tocar as pessoas que
ama, e parece não ser vista pelas mesmas. No livro, Charlotte Beradt (2017) fala que a
catástrofe é coletiva, mas que cada indivíduo precisa lidar com ela de forma individual.

Sonhos nos quais o sonhador percebe-se fazendo algo que não acredita.
Essa classificação também inclui a sensação de se ver, de alguma forma, tomado pelo
novo sistema, e de querer fazer parte dele como forma de sobrevivência, o que mostra
a dificuldade de resistir mesmo diante de atrocidades.
- exemplo de sonho no nazismo:

Uma mulher mais velha, que garantiu ser “contra tudo de erótico e contra Hitler”, me con-
tou: “Sonho muito frequentemente com Hitler e Göring. Eles querem algo de mim. Em vez
de dizer ‘Eu sou uma mulher honrada’, digo, ‘Mas eu não sou nazista’. E isso lhes agrada
ainda mais (BERADT, 2017, p. 137).

- exemplo de sonho na pandemia:

Sonhei que estava participando de um jogo real, em que precisava matar pessoas. Quem
matasse mais pessoas, ganhava o jogo. Éramos divididos em times, e me deram uma arma
com silenciador, o cenário era tipo um galpão, com algumas salas. Um lugar que nunca vi
na vida real. No começo tive a sensação que estava jogando obrigada (não lembro direito),
senti medo, ansiedade, mas logo comecei a gostar e a comemorar cada morte. Não lembro
de ver sangue, acho que as mortes não eram muito realistas. Havia uma mulher que ficava
em uma sala separada, e que era a chefe disso tudo, eu tinha um relacionamento bom com
ela, mas não me lembro de muitos mais detalhes (MULHER 2, 25 ANOS, 20/04/2020)

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- comparativo
Neste sonho, a sonhadora relata um jogo que, inicialmente, parecia ser obrigada a jo-
gar, mas depois via-se comemorando as mortes. Ela comenta que parecia ter um bom re-
lacionamento com a chefe, relato similar ao do sonho do nazismo relacionado à mesma
temática já que, em ambos, as pessoas se associam ao líder, mesmo que pareçam não
querer fazê-lo. Durante a pandemia, tem-se percebido um movimento tanto consciente
quanto inconsciente, de afastamento de tudo aquilo que representar um risco, inclusive
relativo às pessoas queridas. E nas situações de luto, por exemplo, em que houve morte
por covid-19, os doentes não puderam receber visitas. E quando há morte, acontece
dela não ser ritualizada, o que pode levar a uma banalização da mesma – esta vai sendo
naturalizada, como foi no nazismo.

Sonhos que escancaram a realidade, apesar de sua estranheza.


Exemplo de sonho no nazismo:
Sonho de uma moça de uns vinte anos, aluna da escola de comércio, 1934:

É celebrado o ‘Dia da União da Nação’ (uma data festiva com o mesmo objetivo de fato exis-
tia, mas não com esse nome – é muito significativo que essa moça a tenha escolhido para o
seu sonho). No vagão-restaurante de um trem em movimento, há mesas enormes, com lon-
gas fileiras de pessoas sentadas. Estou sozinha em uma mesa pequena. Uma canção política
soa tão engraçada que começo a rir. Sento-me em outra mesa, mas disparo a rir novamente.
De nada adianta; levanto-me, quero sair, mas penso: ‘Talvez não seja tão engraçado se eu
cantar junto’. E começo a cantar (BERADT, 2017, p. 128).

Exemplo de sonho na pandemia – “Teatro real” (autointitulado):

Estava em uma espécie de sala de teatro em que o palco tinha profundidade, e víamos pra-
ticamente quilômetros de distância. Determinado momento começamos a ver o mar, e no
começo a água respeitava o limite da plateia, mas aos poucos, pequenas ondas começavam
a entrar nesse espaço, e no começo entendíamos como parte do espetáculo, algo interati-
vo, mas cada vez mais, as ondas subiam mais, e começamos a ficar assustados. Quando as
ondas começaram a ganhar metros de distância algumas pessoas foram levadas por elas, eu
consegui me proteger em uma coluna de concreto dessa vez, e assim que essa onda passou
uma bomba que parecia atômica explodiu no mar, muito distante dali mas dava para ver o
cogumelo se formando, foi quando percebemos que a próxima onda varreria todos, e co-
meçamos a subir para as cadeiras mais altas. Todos correndo e desesperados. Quando veio
essa onda muito maior, já estava em uma altura segura, mas muitas pessoas foram varridas
por ela (HOMEM 1, 29 ANOS, 26/03/2020).

- comparativo
O sonho começa em uma sala de teatro, local onde os complexos são encenados e,
inicialmente, a encenação parece ocorrer muito distante da perspectiva do sonhador.
No desenrolar desta encenação, algo que parece ser parte do espetáculo começa a se

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Jung & Corpo - nº 21

aproximar e a envolver o expectador, de forma cada vez mais ameaçadora, e ele passa a
ser parte do espetáculo também, junto com outras pessoas que estavam no local.
Este sonho parece trazer uma visão muito próxima do que se pode ver até o momen-
to: pequenas ondas do vírus, que começaram em locais distantes, e foram aumentando,
progressivamente, até a chegada de ondas muito maiores, atingindo o mundo todo e
levando, até o momento, aproximadamente quatro milhões de pessoas à morte.
Segundo Jung, o mar representa o ventre da natureza, e apresenta um movimento
similar ao do inconsciente, que envia ondas de consciência ora possíveis de serem as-
similadas, ora devastadoras, quando rompem as barreiras da consciência, em um mo-
vimento de sístole e diástole, como o próprio desenvolvimento psíquico se dá. Muitos
sonhos relatados durante o período inicial da pandemia, trouxeram imagens do mar
neste mesmo contexto de catástrofe.
Este sonho também representa um movimento de ser varrido coletivamente pelas
ondas do vírus e do inconsciente, mostrando que o que parecia estar longe foi se aproxi-
mando, e ficando mais ameaçador a cada dia. O sonho mostra, inicialmente, a confiança
de que as ondas eram parte do espetáculo, e no seu desenrolar, elucida a busca pela so-
brevivência diante de um cenário que ficou absolutamente descontrolado, cada vez mais,
despertando o instinto de autopreservação em cada indivíduo, em especial, no Brasil.

A necessidade de se reconhecer o totalitarismo.


- exemplo de sonho no nazismo – Uma empregada doméstica de 33 anos sonha:

Estou no cinema, é uma sala grande e está muito escuro. Tenho medo, pois, na verdade, eu
não poderia estar ali. Só os membros do partido podem ir ao cinema. Então entra Hitler, e
fico com ainda mais medo. Mas ele não só me permite ficar, como também se senta do meu
lado, e coloca seu braço sobre meus ombros (BERADT, 2017, p. 137).

- exemplo de sonhos na pandemia – “Invasão” (autointitulado):

Sonhei que estava em casa, com alguns parentes, mas alguma coisa não estava certa... logo
depois todos foram para uma outra casa. Eu voltei para a minha sozinha, porque tinha que
cuidar dos cachorros e trancar a casa, e ouvi um barulho no escritório. Fui até lá e era um
homem roubando o computador. Comecei a gritar “Socorro, é da casa 247”, e ele só olhou
para mim calmamente e disse “Acho que estamos gritando muito né? ”. Ele vestia uma cami-
sa listrada verde e branca, e uma calça jeans (MULHER 3, 22 ANOS, 24/04/2020)

- comparativo
Em ambos os exemplos de sonhos com esta temática, percebe-se uma atmosfera de
coerção, um silêncio assustador, mas que denuncia o sentimento de se estar nas mãos
do inimigo. Há medo, e uma agressividade implícita.

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Jung & Corpo - nº 21

- exemplo de sonhos da pandemia: “Santos e Bolsonaro” (autointitulado)

Estava dentro do carro em Santos, com meu namorado e dois amigos na Avenida Ana Costa,
olhava para os prédios e não conseguia reconhecer onde estava, se estávamos em direção
à praia ou o porto, comentava isso com eles. Até que já era noite, e fomos jantar na casa
de um homem bem rico, antes de ir embora para São Paulo. Na casa deste homem, de
quem não lembro a feição, mas tinha cabelos grisalhos e usava terno preto. Tinham algu-
mas empregadas, todas negras com turbante na cabeça, no sonho me lembro que parecia
que tínhamos voltado na época da escravidão, e aquilo me incomodava demais. Era gentil
com elas, e uma delas me agradava por isso, trazia comida para mim e etc. Sentamos em
uma mesa de vidro redonda para comer, na hora de ir embora, um dos amigos do meu na-
morado descia para arrumar o carro e demorava demais, ficava irritada, e de repente uma
das empregadas me mostrava, no fundo da casa, uns papéis que comecei a pegar porque
poderiam incriminar o Bolsonaro (estávamos na casa dele), eu colocava vários papéis na
bolsa. Apressava os meninos para ir embora antes de ele chegar, porém não deu tempo, e
seguranças começavam a nos revistar; todos saiam pela porta, na minha vez achavam os pa-
péis na bolsa, dizia que ele tinha me dado, eles me pegavam, e via na mesa umas massinhas
de modelar sendo preparadas, e então a minha punição era comer a massinha para poder
ir embora, tinha muito medo, fiquei revoltada e dizia que não iria comer, xingava bastante
(MULHER 4, 26 ANOS, 06/04/2020).

- exemplo de sonhos da pandemia – Um dos primeiros sonhos recebidos no canal


“Sonho, logo existo”:

Sonhei com Hitler, estávamos em um sítio. Fazíamos uma prova por escrito. A partir dessa
prova, era feita uma triagem. Tirei nota cinco, mas na hora de lançar não prestei atenção se
tinha tirado nota cinco ou cinco e meio. Vi que um homem tinha tirado cinco e meio, por
isso fiquei na dúvida se lancei os décimos ou não (depois vim a descobrir que cada décimo
fazia diferença) [...]. Em um outro momento, vi que as mães que faziam parto lá no sítio,
seguiam um procedimento: tinham o filho, mas não podiam ter contato com o bebê. O pai
era colocado em uma espécie de quadrado com muita água, ele tinha que mergulhar e girar
uma manivela debaixo da água, para que pudesse ter contato com o bebê. Nisso, o bebê já
estava morto, o pai seria morto naquele momento. A mãe iria passar pelo mesmo procedi-
mento [...] (MULHER 5, 37 ANOS, 16/03/2020).

- exemplo de sonhos da pandemia – “Paquistão e Brasil” (autointitulado):

Sonhei que estava em uma praia de Ilhabela – praia do Oscar (é minha cidade, mas estou
em SP com a minha mãe). Estava tendo alguma aula da PUC e os colegas de sala estavam lá,
em particular um amigo próximo, quando de repente alguém gritou que os soldados do Pa-
quistão haviam chegado e que a guerra começaria, outro alguém disse que seria impossível
começar uma guerra entre Paquistão e Brasil, visto que o Brasil é muito pacífico. Os solda-
dos chegaram por um mar manso, e começaram a vir na direção das pessoas que estavam
na aula aberta. Quando estavam chegando perto, todos saíram correndo, tentei voltar da
praia para a estrada, mas o caminho era uma rampa em zigzag e não daria tempo. Os solda-
dos estavam muito perto de mim. Saí correndo e pulei no mar, foi um pulo bem gostoso. De
repente mudou a cena, estava na PUC, mas a PUC não era a PUC: era um lugar muito maior,
com vários andares e bem velho. Estavam todos um pouco assustados, o lugar tinha marcas
da ditadura. Os paquistaneses estavam lá, e eles mandavam na população, hora de comer
e hora de trabalhar. A comunidade puquiana era escrava. Eu corria de um andar para outro
procurando alguma coisa, em um prédio velho (MULHER 6, 27 ANOS, 20/04/2020).

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- exemplo de sonhos da pandemia – “Dia entre amigos” (autointitulado):

Fui junto com um amigo visitar uma amiga nossa, que acabou de ganhar bebê. Chegando
lá, ela começou a contar uma história sobre uma casa antiga, próxima à sua casa. Dizendo
que era um lugar em que mantinham homens de inteligência excepcional presos (no estilo
DOPS – Departamento de Ordem Política e Social – da ditadura militar), e que tudo foi des-
coberto depois que um dos homens colocou fogo no lugar (nesse momento vejo a cena do
que aconteceu: um professor conta para os alunos o que irá fazer e como eles devem fugir,
depois mostra as pessoas saindo, e diante dos policiais assumindo toda a responsabilida-
de, para os alunos ficarem livres, fica claro que muitas pessoas morreram), e agora o lugar
era uma espécie de panificadora. Depois a minha amiga nos convida para ir à casa de uns
amigos dela, para um almoço. No caminho, passamos em frente ao antigo DOPS, e em um
impulso o meu amigo entra, na hora eu fico petrificada e falo para ele sair, nisso um homem
sai de lá e nos entrega uma cesta de pães, e eu proíbo o meu amigo de comer, dizendo que
a energia do lugar ainda é muito pesada. Chegamos na amiga dela, era uma casa simples,
com uma cozinha do lado de fora estilo sítio, a casa tinha uma saída que era um restaurante
da família e dá para outra ponta da rua, e em frente tinha uma casa. O almoço era para a
amiga da minha amiga apresentar a nova namorada para a família e os amigos, o clima era
muito feliz em um dia ensolarado. Depois fomos para praça, fiquei sentada tomando sol, e
percebi que estava sendo picada por formigas, mas mesmo incomodada permaneci lá. No
final da tarde fiquei triste, porque teria de sair de lá e encontrar o meu namorado, o fato é
que eu tinha descoberto que ele estava me traindo, e teria que conversar com ele (MULHER
7, 28 ANOS, 09/05/2020).

- comparativo
Este sonho menciona o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), criado du-
rante a ditadura militar, órgão responsável pela repressão de movimentos que diferissem
dos ideais de ordem do regime militar no Brasil, e apresenta atmosfera muito similar aos
relatos dos sonhos do Terceiro Reich, descritos no livro de Charlotte Beradt (2017), nos
quais o totalitarismo se apresenta. O atual presidente do Brasil é militar e vai, dia a dia,
preenchendo cargos públicos com outros militares, trazendo a ameaça constante de re-
torno deste mesmo cenário de repressão, totalitarismo e autoritarismo, que já foi visto
em outros momentos, e que foi devastador em todos os âmbitos. O sonho também traz
o risco que existe em compartilhar e se nutrir de tais ideais.

- exemplo de sonhos da pandemia – “Voltando no tempo” (autointitulado):

Essa noite sonhei que estava sendo incorporado por um espírito, após isso, com ele incor-
porado, fui até uma casa aonde havia crianças, que iriam ser levadas por algum órgão do
governo, porém o pai delas não queria que as levassem. Eu, de alguma forma, consegui
convencer esses homens de não as levar, após isso, o pai me agradeceu, e comecei um
processo de retornar ao ponto em que fui incorporado, porém fui mais além e retornei em
uma velocidade tão rápida que voltei no tempo bem antes da incorporação desse “espírito”
– nesse momento, fiquei tão impressionado que acabei acordando... já é a segunda vez na
semana que sonho voltando no tempo (HOMEM 2, 51 ANOS, 20/04/2020).

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Conclusões

De acordo com as comparações realizadas, percebeu-se que os sonhos traumáticos


de brasileiros que estão no Brasil, representam 39% da amostra brasileira, em compara-
ção com 10% de sonhos traumáticos de brasileiros que estão fora do país. Este dado traz
a hipótese de que os brasileiros residentes no Brasil, estão em um sofrimento psíquico
maior, trazendo sonhos similares aos que Jung (2016 apud MATOON, 2013) descreveu,
originalmente relatados por psiquiatras militares da Segunda Guerra Mundial, de indiví-
duos que não estavam mais aptos a lutarem. Esta situação parece apontar para a forte
crise política brasileira, pautada pela violência e cisão, que normaliza e instiga o ódio,
acirrando os antagonismos.
Em contrapartida, 76% dos sonhos de brasileiros que estão fora do país são compen-
satórios, em comparação com 51% dos sonhos de brasileiros que se encontram no país.
Estas configurações apontam para a forma pela qual a dinâmica compensatória da psi-
que atuou na dimensão coletiva, em ambos os contextos, para confrontar o sofrimento
vivido, a partir das restrições impostas socialmente para a contenção do vírus. Neste
sentido emergiram, em ambos os casos, sonhos que reforçam a necessidade de se estar
próximo à natureza, em atividades habituais, em locais onde há espaço, com reuniões
entre amigos e familiares, sem menção ao vírus. No entanto, acredita-se na hipótese
de que os 51% de sonhos compensatórios de brasileiros, os quais estão em sua terra
natal, refletem apenas metade da população que parecia, naquele momento, estar mais
consciente da necessidade de integrar conteúdos antagônicos, e que emergiram frente
ao cenário da pandemia. A popularidade do atual presidente prossegue diminuindo, na
medida em que ele permanece negando e agravando a crise instalada pelo vírus e pela
política, o que justifica, também, os 39% dos sonhadores que relataram sonhos traumá-
ticos, os quais mostram o caos vividos por quase metade da população que participou
da pesquisa.
Há mais relatos de sonhos de transcendência no exterior, 12%, sendo que no Brasil,
são apenas 5%. Isso pode mostrar que em países onde os cidadãos sentem-se mais segu-
ros, a chance de sonhar cenários possíveis para nossa continuidade como espécie, e de
transcender um contexto de crise, é mais de duas vezes maior do que no Brasil.
Comparando os sonhos da pandemia de COVID-19 com os do nazismo, percebeu-se
muitas similaridades em todas as temáticas propostas por Beradt (2017), sobretudo nos
sonhos que faziam referência a uma ditadura totalitária. Nesse sentido, muitos sonhos
da pandemia, por exemplo, faziam menção a Hitler, ao regime militar e às torturas sofri-
das em ambos os cenários.
Mundialmente, percebeu-se um movimento intuitivo de compartilhar sonhos, reesta-
belecendo-se um olhar atento para a sabedoria dos mesmos. Quase que instintivamen-

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te, as pessoas passaram a perceber a importância desses conteúdos oníricos, e também


do compartilhamento com os demais seres que estão envolvidos na mesma situação, na
busca por perspectivas de mudança.
Os sonhos da pandemia, relatados por brasileiros que residem no Brasil, apresentam
mais temáticas de catástrofe e de autopreservação o que, segundo Jung, pode acometer
indivíduos menos confiantes no Estado. Por ter sido esta última a temática mais frequen-
te para os sonhadores do Brasil – que sofrem diante de um cenário político polarizado,
e de um governo que apresentou inúmeras falhas, negações e responsabilidades em
relação ao estado caótico percebido – é possível pensar-se que Beradt (2017) trouxe
uma visão muito assertiva, quando falou que se sonham também fenômenos político-
-psicológicos, e apontou como isso afeta a cada um e à comunidade como um todo. Nes-
te sentido, pode-se considerar, de acordo com a perspectiva junguiana, que os sonhos
são uma reação natural de autorregulação, tanto da psique individual como da coletiva.
A função compensatória manifestada pelos sonhos, tenta corrigir uma atitude unilateral
da consciência, pessoal ou coletiva, buscando reestabelecer o seu equilíbrio, em busca
da totalidade psíquica.
Confirmou-se a hipótese que de o cenário político no Brasil teve forte influência nas
temáticas dos sonhos relatados, e aqui encontra-se um paralelo com a visão de homem
junguiana, na medida em que ninguém vive em uma concha – todos vivem em uma co-
munidade, e todos são parcialmente responsáveis pelo cenário coletivo que enfrentam
atualmente.
Do mesmo modo que Beradt (2017) percebeu que os sonhos do Terceiro Reich anteci-
param o cenário que viria, observa-se que os sonhos do início da pandemia mostraram,
de forma antecipatória, que não haveria outro meio de sobreviver a não ser pela própria
responsabilização e cuidados diante do vírus – o que se foi confirmando, de forma cada
vez mais clara, até o presente momento, um ano e meio após o início do isolamento so-
cial. Percebeu-se – e percebe-se – que o Estado, de fato, teve uma participação absoluta-
mente negativa e que, assim como foi percebido nos sonhos, realmente a sobrevivência
não veio porque houve um Estado que protegesse a sua nação. Antes, um Estado que
dificultou, que negou e que matou mais de meio milhão de brasileiros, negligenciando
atuações efetivas e imediatas para a contenção do vírus, estimulando o negacionismo,
e expondo a população a falsos medicamentos preventivos, gerando um problema de
saúde pública ainda maior. Os sonhos haviam alertado sobre a necessidade de autopre-
servação, que se percebe, a cada dia mais, ser fundamental para garantir a possibilidade
de continuidade da vida.
A descrição de Jung acerca do líder nazista, assemelha-se às características atribuídas
ao atual líder no Brasil, que construiu um governo fascista que tem levado a sociedade
ao caos, assim como o até então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, aliado
do presidente brasileiro que, da mesma forma, até janeiro de 2021, coordenou uma

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política que levou à morte mais de 400 mil pessoas, consequências nefastas da liderança
autoritária.
De fato, os sonhos também nos chamam a atenção para a necessidade de que cada
indivíduo assuma a sua parcela de responsabilidade diante do todo, o que, na perspec-
tiva junguiana corresponde à única forma possível de desencadear uma mudança coleti-
va. Cada um se preserva e aí, então, a sociedade pode ser preservada.
No início deste trabalho, buscou-se encontrar a função transcendente nos sonhos
coletivos, a qual pudesse indicar possibilidades de saídas criativas. Mas, na verdade, o
presente resultado coloca o indivíduo cara a cara com a sombra; assim, o mal se mantém
inconsciente na medida em que continua a ser projetado no outro. Percebeu-se que os
sonhos têm uma função sistêmica, que se expressa nos canais coletivos, ou seja, político
e social, e permanecem sendo um caminho precioso para o nosso processo de individu-
ação – individual e coletivo. Também foi observado que relembrar e narrar os sonhos,
são formas de estabelecer contato com o nosso mundo inconsciente, e com todas as
possibilidades de conscientização que surgem a partir dele.
Assim como diz Ribeiro (2019), os sonhos são um portal para se vislumbrar possíveis
futuros para todos enquanto espécie e, a partir da interação com seus conteúdos, po-
der retornar-se às sabedorias de ancestrais que possibilitaram a humanidade chegar até
aqui.
Dentre as percepções decorrentes desta pesquisa, a comparação entre sonhos de
brasileiros que estão no Brasil e que estão fora do país, foi a que mais despertou curio-
sidade, em especial pelo momento político que os brasileiros que estão no país vivem,
assim como a sensação de impotência diante de tantas atrocidades, fake news e, sobre-
tudo, das maldades vistas e, por que não, cometidas. A não confiança no Estado relatada
nos sonhos, o medo, a imposição, o instinto de autopreservação, são fatos absolutamen-
te condizentes com o atual momento vivido na pele por todos.
O trabalho desperta para a necessidade de se criarem meios que proporcionem o au-
toconhecimento de maneira coletiva, seja pelo compartilhamento de sonhos (já iniciado
genuinamente), seja por meio de terapias grupais, seja pela arte ou por outros meios
que proporcionem, de maneira coletiva, a percepção dos opostos que habitam em nós.
Apesar do mal, como prosseguir na busca por um novo amanhã?
Encerra-se este trabalho, então, com uma linda canção de Chico Buarque, que coloca
a todos frente a frente com o mal, dentro e fora de cada um, e faz relembrar que o de-
senvolvimento acontece em espiral, enquanto se dá voltas em torno de um tema que já
se vivenciou, e continuará a vivenciar-se em outros tempos e níveis de consciência!

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APESAR DE VOCÊ
Chico Buarque (1978)

“Amanhã, vai ser outro dia

Amanhã vai ser outro dia


Amanhã vai ser outro dia....

Hoje você é quem manda


Falou, tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia

Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir

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Quando o galo insistir


Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia

Inda pago pra ver


O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir

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Que esse dia há de vir


Antes do que você pensa

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia

Você vai ter que ver


A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia

Você vai se dar mal


Etc. E tal
Lá lá lá lá laiá”

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Referências

BERADT, Charlotte. Sonhos no Terceiro Reich. São Paulo: Três Estrelas, 2017.
BUARQUE, C. Apesar de você. Direção Artística: Roberto Menescal. Brasil, Polygram,
1970.
DUNKER, Christian. Culpa, responsabilidade e implicação. São Paulo: Ubu, [2021].
Disponível em: <https://blog.ubueditora.com.br/culpa-responsabilidadee-implicacao/>
acesso em: 27 jan. 2021.
DUNKER, Christian. O sonho como ficção e o despertar do pesadelo. In: BERADT,
Charlotte. Sonhos no Terceiro Reich. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 9-26.
GUI, Roque Tadeu. Matriz do sonhar social: um dispositivo de intervenção em psicologia
clínica. 2010. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de
Brasília, Brasília, DF, 2010.
HILLMAN, James. O código do ser: uma busca do caráter e da vocação pessoal. Rio de
Janeiro: Editora Objetiva, 1996.
JUNG, C. G. Aspectos do drama contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 1974.
JUNG, C. G. Seminários sobre análise de sonhos: notas do seminário dado em 1928-
1930 por C. G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2017.
JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.
MATTOON, Mary Ann. Como entender os sonhos. São Paulo: Paulus, 2013. Coleção
Amor e Psique.
RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
SEIXAS, R. O dia em que a terra parou. Produção: Marco Mazzola. Rio de Janeiro: Warner
Music Brasil, 1977.
WISE, R. The Day the Earth Stood Still. Direção de Robert Wise. Califórnia: 20th Century
Fox, 1951.
https://www.letras.mus.br/blog/o-dia-em-que-a-terra-parou-raul-seixas-analise/

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A DANÇA DAS POLARIDADES1

THE DANCE OF POLARITIES

Paulo Toledo Machado Filho2

Resumo
Observando a polarização que o debate acerca de temas importantes que recentemente tem emergido,
como as questões étnicas e raciais, a violência contra pessoas vulneráveis e saúde pública; e que tem se
ressentido com a desinformação, a intolerância e a intransigência de determinados grupos, além da uni-
lateralidade das próprias pessoas comuns, o autor propõe, percorrendo a sabedoria essencial das mitolo-
gias e embasado pelo enfoque da psicologia junguiana, uma reflexão profunda sobre as questões acima
referidas.
Palavras-chave: Polarização de opiniões; Neurodesenvolvimento; Sensibilidade metacognitiva.

Abstract
Recent debates on important themes such as ethnic and racial issues, violence Against vulnerable popu-
lations and public health, have given way to ever greater polarization of opinion. Furthermore, certain
groups in society have become radicalized and marked by the sharing of desinformation on social media,
along with intolerance and intransigence When faced with opposing views. This article seeks to address
these fator in depth, together with the unilateral and inflexible visiono of a commonly-represented subset
of individuals in society. The author proposes a deep reflection of these issues by running through the
essential wisdom of mythologies with a basis in Jungian psychology.
Key words: Polarization of opinions; Neurodevelopment; Metacognitive sensitivity.

1  Texto baseado na palestra realizada em 17/04/2021 no ciclo de palestras Saberes Essenciais, organiza-
do pelo Centro de Estudos Universais AUM, em São Paulo.

2  Psiquiatra, Sociólogo com Mestrado em Antropologia Social pela USP, psicoterapeuta junguiano corpo-
ral pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP, docente e coordenador do curso Jung & Corpo, Especialização em
Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP. Email: ptmachadof@uol.
com.br

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O símbolo taoista, caracterizado por dois peixes entrelaçados em sentidos contrários,


dentro de uma circunferência – um deles, escuro com olho branco, e outro branco com
o olho escuro – representa o equilíbrio das forças positivas e negativas do universo, pre-
sentes e atuantes como duas forças antagônicas fundamentais e complementares, o YIN
e o YANG, que fazem parte da natureza e nos remetem à ideia da totalidade. Este símbo-
lo da totalidade, por sua antiguidade, atesta também que a relação entre as polaridades
é uma preocupação dos seres humanos há milênios.
O conceito de Tao, conforme definido no Tao Te Ching (LAO TSE, 1997), é de tradução
muito difícil. Encontramos versões que o traduzem como “sentido”, outras como “cami-
nho” ou “curso”. Jung (1984, pp. 36-37) refere-se à luz como sinônimo do Tao, considera
que luz também é o equivalente simbólico de consciência. Jung afirma, um pouco mais
adiante, que se o Tao for compreendido como “caminho consciente”, cuja função é unir
o que está separado em nossa psique, nós nos aproximamos de um conceito bastante
psicológico: a realização do Tao como conscientização dos opostos, e equivalendo ao
conceito de individuação: processo que, como o Tao, não pode ser completamente defi-
nido, e só pode ser realizado através da experiência.
O mitólogo Joseph Campbell (1990, p. 6), relacionava esta noção de Tao, como senti-
do ou caminho, com a noção de mito, que ele definia como “experiência de vida” ou “ex-
periência de estarmos vivos”. Referia que viver a vida em sua plenitude correspondia a
seguir o nosso mito – mito que, segundo ele, indicaria as “pistas para as potencialidades
espirituais da vida humana”. Tanto para Jung como para Campbell, o Tao dizia respeito
ao caminho interior de cada um de nós em busca de sua alma.
Aproximando-nos um pouco mais do Ocidente, e em um período um pouco mais re-
cente, Platão e seu discípulo Aristóteles divergiram acerca da compreensão que cada um
tinha da realidade. Para Platão, a realidade seria produto de nosso pensamento ou de
nossa imaginação sendo, portanto, psíquica, enquanto que Aristóteles sustentava que a
realidade corresponderia ao que é observado através dos sentidos, sendo aquilo que se
apresenta sensível à percepção. Na primeira parte de seu livro Tipos Psicológicos, Jung
(2011) discute essa questão, observando que ambos, na realidade, divergiam falando a
mesma coisa, sendo que Platão, orientado pelo pensamento, expressava-se como faz
o introvertido, e Aristóteles, orientado pela sensação, expressava-se de maneira extro-
vertida. Esta divergência se prolongaria na história do mundo ocidental, indicando que,
muitas vezes, a polarização de pontos de vista ocorre como consequência de avaliações
diferentes, através das diversas disposições de consciência que caracterizam as variadas
tipologias psíquicas.
A questão das polaridades apresenta-se universalmente na mitologia e na história
das religiões, conforme a relação que cada povo tem com o seu sistema de valores e o
ethos com o qual convive. Os povos nômades, e aqueles dedicados ao pastoreio, relacio-
navam-se principalmente com os arquétipos celestes ou uranianos os quais, inclusive,

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serviam para sua orientação em áreas ermas ou nos desertos. Já os povos sedentários,
que se dedicaram à agricultura, orientavam seus valores para a terra e suas configura-
ções míticas; para aqueles que olhavam para o céu, prevaleciam as referências arque-
típicas patriarcais, o espírito invisível, o pai do céu, enquanto que para os lavradores, o
princípio matriarcal corporificado à mãe-terra era a principal referência. Além das oposi-
ções céu-terra, masculino-feminino, corpo-espírito, é também importante assinalarmos
o tema mitológico das oposições sol e lua, que se tornariam referências fundamentais
nas configurações dos ciclos do tempo e do calendário.
Mas, direcionando nossa atenção para o momento atual, estamos vivendo uma si-
tuação completamente atípica, em meio a uma devastadora pandemia provocada pelo
coronavírus (SARS-CoV-2), denominada COVID-19 pela Organização Mundial de Saúde
(OMS, 2019), tragédia agravada por uma severa crise ética e moral que vem afetando os
valores coletivos, e produzindo entre nós uma crise política sem precedentes em nossa
história.
Observamos, neste momento, o comportamento humano profundamente polariza-
do, em meio a questões de alta densidade afetiva, cujo debate nos colhe em estado
de absoluta vulnerabilidade. Assim, emergem questões como a violência doméstica; o
alto índice de feminicídio; o racismo e o racismo estrutural; a intolerância de gênero e
a homofobia, a psicofobia; além de outras questões coletivas amargas, como a destrui-
ção da Floresta Amazônica e dos biomas do Cerrado e do Pantanal – estas, em meio a
uma crise climática global – e a invasão de territórios e massacre de etnias indígenas.
Vê-se, também, uma ostensiva concentração de riquezas, através de alguns conglome-
rados econômicos, em detrimento do aumento exponencial e escandaloso da fome e
da pobreza. Junte-se a isso tudo o autoritarismo e negacionismo do Estado, acoplados à
desinformação e à vilania do comportamento político.
Como podemos interpretar este momento, caracterizado por tão elevada polarização
do comportamento humano? Neste momento distópico e disjuntivo que estamos viven-
do, teríamos perdido, do ponto de vista coletivo, as noções milenares de sentido ou ca-
minho? Qual é o espírito desta época, em que nos tornamos tão egoístas e polarizados?
Que tempo é esse que estamos vivendo?
Sem dúvida, teríamos muita coisa para falar sobre a violência da injunção patriarcal
neste país, marcado historicamente pelo genocídio indígena e a escravidão, e o com-
portamento predatório na relação com a natureza, mas, no contexto deste artigo, não
será possível abarcar todas as temáticas míticas e arquetípicas, correspondentes a estas
marcas perversas de nossa história.
Pensando sobre o tempo que estamos vivendo, o filósofo coreano Byung-Chul Han
(HAN, 2019, p. 27), apoiando-se na reflexão de Vilén Flusser3, fala sobre o tempo, di-

3  Filósofo checo-brasileiro

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ferenciando-o em três formas: o tempo das imagens, que é o tempo mítico; o tempo
dos livros, que é o tempo histórico; e o tempo dos bits, que é o tempo da sociedade de
informação, que é este em que nós estamos inseridos.
Sobre o tempo dos bits, Han refere ser um tempo pontual, que não tem horizonte
mítico nem histórico: “é um tempo des-teologizado ou des-teleologizado” em um “uni-
verso-bit” “atômico” ou uma espécie de “universo mosaico” (HAN, 2019, p. 28). Afirma,
um pouco mais adiante, que nesse “universo-ponto”, não há imagens ou livros, apenas
possibilidades flutuantes.
Refletindo sobre o processo de globalização acelerada pelas novas tecnologias, o fi-
lósofo observa que isso implica em um distanciamento do espaço cultural. Afirma que,
em consequência do fenômeno da hipercultura ou hiperculturalidade, em que as infor-
mações nos inundam e os conteúdos heterogêneos ficam apinhados, o conhecimento
do “chão”, dos “códigos biológicos da terra” são desnaturalizados, implicando em uma
“remitologização, reteologização e renacionalização” (HAN, 2019, p. 25).
Em outro livro, o filósofo coreano afirma também, o que é muito importante, que
o mundo digital é pobre em alteridade, observando-se que nos círculos virtuais o Eu
pode mover-se praticamente desprovido do sentido de realidade: “desgasta-se corren-
do numa roda de hamster, que gira cada vez mais rápido em torno de si mesmo” (HAN,
2017, p. 91).
O comportamento binário do usuário das redes sociais é condicionado à polarização
e dependência emocional dos “I like” em detrimento dos “I dislike”, e ao confinamento
desencadeado pelos algoritmos das plataformas digitais, que restringem e condicionam
as mensagens recebidas ao interesse demonstrado pelos cliques disparados, aprofun-
dando o comportamento polarizado do indivíduo.
Observando o comportamento polarizado através do funcionamento do cérebro e
seus neurocircuitos, precisamos falar inicialmente sobre as emoções. As nossas emo-
ções – como raiva, tristeza, alegria, medo, asco, juntamente com os circuitos neurais de
recompensa e punição – relacionam-se com o instinto de sobrevivência, e os processos
homeostáticos de autorregulação de nosso meio interno: ligam-se aos mecanismos de
preservação da vida, e são filogeneticamente bastante arcaicas, tendo se desenvolvido
há milhões de anos, e localizam-se nas camadas mais profundas de nosso cérebro, nas
regiões do diencéfalo e subcorticais.
O neurologista gaúcho André Palmini faz uma interessante consideração, observando
a importância do córtex cerebral na modulação de nossas emoções. Esta área cerebral,
que se desenvolveu sobrepondo-se àquela outra área, é de desenvolvimento bem mais
recente (aproximadamente 200.000 anos), e permitiu o surgimento das funções psíqui-
cas mais complexas, como a linguagem, a memória, o juízo de valor – seria graças a esta
área que os seres humanos desenvolveram as artes, a literatura, a ciência, a religião e as

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leis. Como consequência, estabeleceu-se uma interação entre os novos circuitos (basea-
dos na “razão”, conforme o autor citado), e a circuitaria mais arcaica, ligada à preserva-
ção da vida, como se fosse um duelo “emoção x razão”, e que se constitui, na opinião de
Palmini, no “marco neural” da civilização, pois “pela primeira vez na história da vida na
terra, apareceu um animal equipado para modular as emoções” (PALMINI, 2020, p. 11).
Ocorre que a evolução do córtex no ser humano não inativou os outros circuitos mais
arcaicos, conforme observa Palmini, como as “potentes” estruturas subcorticais que
atendem aos instintos, o que torna o ser humano, ao mesmo tempo, um animal muito
perigoso, quando sua ação instintiva é orientada para uma ação destrutiva.
O autor considera, um pouco mais adiante, que as regras e as leis que a nossa razão
criou têm como base “coibir expressões emocionais inaceitáveis dentro do contexto ci-
vilizatório da vida em sociedade” (PALMINI, 2020, p.11). É importante considerar que a
capacidade de cada ser humano modular suas emoções é muito variável, e que ainda
somos suscetíveis às influências que alteram a nossa capacidade de controle, como o
álcool, as drogas, o estresse, etc.
Palmini apresenta a hipótese de que o sistema cortical humano de controle das rea-
ções emocionais, além de frágil, é também “suscetível a uma sabotagem contínua, tô-
nica, que vai sub-repticiamente tirando de ação sucessivas camadas de controle, que
podem fazer a reação emocional ocorrer antes do clímax” (PALMINI, 2020, p. 14). Infor-
ma que ruminações recorrentes e decorrentes de frustrações anteriores, e memórias
traumáticas, interferem nesse limiar de controle, o que pode induzir a uma resposta
excessiva, e determinar um comportamento anômalo e polarizado.
A capacidade de avaliação também pode ser afetada por estímulos contraditórios e
constantes, que podem proceder a uma sabotagem nos construtos da razão, como se
observa atualmente no comportamento coletivo de negacionismo diante da pandemia,
justamente em seu momento mais grave, e na banalização do impacto provocado pelo
número absurdo de mortes decorrentes do COVID-19.
Jung afirmou a mesma coisa com outras palavras, numa época em que o conhecimen-
to existente sobre o cérebro não era tão avançado à respeito dessas reações coletivas,
postulando que quando as emoções ultrapassam um determinado ponto crítico e eleva-
-se a temperatura afetiva, “a razão perde sua possibilidade efetiva”, sendo substituída
por “uma espécie de possessão coletiva que, progressivamente, conduz a uma epidemia
psíquica”, prevalecendo “todos os elementos da população que levaram a uma existên-
cia antissocial, tolerada pela ordem da razão” (JUNG, 2019, p. 14).
Retornando ao neurologista gaúcho, Palmini (2020) nos informou, em conferência re-
alizada no congresso Brain XP Experience (realizado em 25/07/2020), que fortes convic-
ções, como religião e política por exemplo, podem impactar o processo de interpretação
de evidências. Observou como em uma pessoa com elevada convicção, o impacto neural

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para evidências contrárias é pequeno, enquanto que as pessoas com baixa convicção são
mais reflexivas, não hesitando em mudar de opinião conforme o que se evidencia.
Na mesma conferência, o neurologista referiu-se também à sensibilidade metacogni-
tiva (SM), que corresponde à “capacidade de refletir baseado em evidências” (PALMINI,
2020). O conferencista afirmou que o pensamento radical, a intolerância dogmática, o
fanatismo e o autoritarismo expressam uma baixa sensibilidade metacognitiva. Obser-
vou que questões políticas e religiosas, por exemplo, ativam a rede neural Default, o que
implica que o indivíduo tenda a prestar mais atenção a si mesmo do que àquilo que vem
do mundo. Por outro lado, evidências contrárias ativam áreas cerebrais como a ínsula
e a amígdala, fazendo com que o indivíduo com baixa SM se sinta ameaçado e produza
sentimentos aversivos, desencadeando reatividade contrária e não permitindo avalia-
ções ponderadas.
Mais uma vez, complementando o raciocínio com uma impressionante atualidade,
Jung adverte sobre a periculosidade que esses elementos (evidentemente com baixa
SM) podem representar (quando não se permitem avaliações ponderadas), quando o
estado emocional de tais indivíduos “corresponde a um grupo de população que se acha
coletivamente exaltada por preconceitos afetivos e fantasias de desejos impulsivos”
(JUNG, 2019, p. 15).
Jung afirma, mais adiante, que tais quimeras, “baseadas em ressentimentos fanáticos,
fazem apelo para a irracionalidade coletiva, encontrando aí um solo frutífero, na medida
em que exprimem certos motivos e ressentimentos também presentes em pessoas nor-
mais, embora adormecidos pelo manto da razão e da compreensão” (JUNG, 2019, p. 15).
Jung também fez uma séria advertência, referindo-se à tragédia provocada pelo povo
alemão e que afetou o mundo todo, na II Grande Guerra, do perigo que ocorre, quando
um psicopata megalomaníaco “assume a responsabilidade”. Esse personagem foi descri-
to por Jung como possuindo:

Uma completa cegueira acerca do próprio caráter, a admiração autoerótica de si mesmo,


a depreciação e atormentação dos demais, (...), a falsificação mentirosa da realidade, o
“querer impressionar” e impor, os blefes e imposturas reúnem-se naquele homem que foi
dado como clinicamente histérico (JUNG, 2018, p. 37).

A descrição que Jung faz de Hitler parece se repetir no modelo de certos líderes au-
toritários da atualidade, inclusive neste momento, aqui no Brasil, e que podem conduzir
toda uma população para o abismo. Os mesmos arquétipos que Jung constatou terem
sido mobilizados no inconsciente coletivo alemão, exprimindo primitividade, violência
e crueldade, parecem estar se expressando novamente em nosso meio, na atualidade.
Ele observou, acerca dos movimentos de massa, que eles são de natureza arquetípica,
considerando que todo arquétipo traz em si o bem e o mal, o que há de mais baixo e o
mais elevado, o que explica seus efeitos tão contraditórios.

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Por tudo isso, podemos afirmar que o único meio de enfrentarmos o perigo devas-
tador da massificação inconsciente, e da polarização do pensamento e das opiniões,
além da elevação da consciência coletiva através da educação e da cultura, é olharmos
cuidadosamente para dentro de nós próprios. Enquanto cada um de nós não conseguir
resolver e elaborar internamente os efeitos da dança das polaridades em nossa própria
psique, superar as unilateralidades, e conseguir abstrair o impacto afetivo da enorme
quantidade de mensagens e desinformações que nos inundam – principalmente através
das redes sociais e da mídia eletrônica – não conseguiremos restabelecer a capacidade
de pensar através de evidências, e deixar de olhar para o outro como um potencial anta-
gonista. Sem essa condição, será difícil a construção de uma sociedade mais empática e
respeitosa às suas diversidades.

Referências

CAMPBELL, J. (1988) O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.


FLUSSER, V. Ponderar o tempo. In: Laboratório de Artes e Aparatos (2001/2002) p. 126-
130.
HAN, B. C. (2005) Hiperculturalidade. Petrópolis, Vozes, 2019.
HAN, B. C. (2010). Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
JUNG, C. G. (1921). Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, C. G. e WILHELM, R.W. (1931). O Segredo da flor de ouro. Petrópolis: Vozes, 1984.
JUNG, C. G. (1945). Depois da catástrofe. In: ___. Aspectos do drama contemporâneo.
Obras completas de C. G. Jung. vol. 10/2. Petrópolis: Vozes, 2018, pp. 28-51.
JUNG, C. G. (1958). O bem e o mal na psicologia analítica. In: ____. Civilização em
transição. Obras completas de C. G. Jung. vol. 10/3. Petrópolis: Vozes, 2019, pp. 203-215.
LAO TSE. Escritos do curso e sua virtude: Tao Te Ching (trad. de Mario B. Sproviero). São
Paulo: Mandruvá, 1997.
PALMINI, A. (2020). A inevitabilidade orgásmica da raiva e a sabotagem do controle
mental. Brain TV Magazine. Porto Alegre, Instituto de Ciências Integradas, 2020.
PALMINI, A. (2020). A polarização de opiniões: bases cerebrais de nossas opiniões.
Conferência proferida no Congresso (online) BRAIN XP EXPERIENCE, 2020, em
25/07/2020.

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UMA ANÁLISE JUNGUIANA DO CORPO PSÍQUICO


DE PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

AN JUNGUIAN ANALISIS OF THE PSYCHIC BODY OF A HOMELESS PERSON

Mariana Genta Salerno1

Resumo
O presente trabalho busca analisar o impacto da situação de rua no corpo psíquico de uma pessoa sem
abrigo, considerando-se a importância da moradia para a estruturação de identidade de lugar, a partir da
discussão de autores da Psicologia Analítica, da Abordagem Junguiana Corporal, da Psicologia Arquetípica
e da Psicologia Socioambiental.

Palavras-chave: População de Rua; Corpo Psíquico; Jung.

Abstract
This work focusses on analyzing the impact of the street’s situation on the psychic body of a homeless
person, considering the importance of a house in structuring an identity of place, based on discussions
between Analytical Psychology authors, Body Approach from Jung, Archetypal Psychology and Psychology
Social-Environmental.

Key words: Homeless Person; Psychic Body; Jung.

1  Psicóloga pela PUC-SP e psicoterapeuta com Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem


Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP; e-mail: marigsalerno@gmail.com

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Introdução

As reflexões sobre a moradia, o abrigo, a casa e o espaço privado, trazem luz sobre o
quanto a questão do habitar influencia na organização da representação do corpo e da
identidade, na medida em que possibilita uma conexão com o mundo interno e auxilia
na segurança psíquica. Ao se habitar uma moradia, pode-se experimentar que se vive
saindo e entrando; que se leva o corpo e a alma para passear; que se pode ausentar, ou
até isolar-se. A consciência e a segurança do habitar se fazem necessárias, pois o abrigo
é a base para o retorno da alma, sempre que se ausenta de sua morada.
A experiência do habitar regula as fronteiras interpessoais, na medida em que pos-
sibilita ao indivíduo ficar isolado, ao mesmo tempo em que o torna acessível para o
outro (HALL, 1977). A casa é o primeiro universo, é o seu próprio canto no mundo (BA-
CHELARD, 1993), e abrir a porta desse universo particular para o estrangeiro, é receber
o outro em si. A sociabilidade e a privacidade podem ser conciliadas ao se habitar uma
casa, pois ter uma morada é essencial para lidar com a inclusão nos contextos social e
coletivo, e ao mesmo tempo, com a exclusão. Do mesmo modo, a noção de tempo e de
lugar são importantes para a definição da noção do eu – além do corpo – estendendo-se
para os lugares que o sujeito ocupa, e com que se relaciona (AUGÉ, 1995).
É o sujeito também um lugar, mas para ser um lugar é preciso que a relação do corpo
com o espaço transforme-o em um lugar único, a fim de que deixe de ser apenas um
espaço ocupado. Se o indivíduo se vê pequeno diante do mundo, é possível que desen-
volva uma postura mais curvada diante das coisas, uma forma única de o indivíduo se
relacionar com o espaço. Por intermédio do corpo, de como se habita o mundo, e de
como se relaciona com ele, gera-se uma transformação do espaço em um lugar. Bache-
lard (1993) reafirma que “a alma vem inaugurar a forma, habitá-la, comprazer-se nela”
(p. 6), sendo o corpo aquele que abriga a alma.
O espaço é só um espaço se não há o habitar de alguma alma. A experiência da alma
com o espaço constrói a forma, o transforma em um habitar da alma, realizando-se
como um lugar. Para Tuan (1983), o lugar é o espaço vivenciado, apropriado e habitado,
ao qual se atribui um significado e um valor. Portanto, para o autor, o espaço se trans-
forma em lugar de acordo com a experiência que o indivíduo tem, na sua relação com
ele. Ainda de acordo com o autor, o lugar pode existir apenas no plano simbólico, no
imaginário; e habita-se determinado lugar, ao se imaginar sua alma nele, habitando-o.
E os não-lugares? Augé (1995) traz a reflexão sobre o não lugar, que corresponde aos
espaços de circulação, tais como passarelas de rua, de metrô ou de aeroportos, e que
são de usos temporários. Esses não-lugares, que são praticamente descartáveis, impe-
dem o indivíduo de formar vínculos afetivos com eles. Quem para e se situa no cotidia-
no, no meio da rua, embaixo da ponte ou dentro do metrô?

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Uma vez que se situar é fundamental para que se compreenda uma situação, coloca-
-se a seguinte questão: situar-se é um privilégio dos que tem abrigo, de quem possui
raízes sólidas? Como ficam as pessoas cujo sítio é a rua, as pessoas em situação de rua,
cujos corpos não estão contidos por um abrigo usual e regular?
Afinal, quem são estas pessoas que vivem em situação de rua no Brasil? De acordo
com normativas do município de São Paulo:

Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui


em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, e a
inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e
as áreas degradadas, como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou
permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como
moradia provisória (SÃO PAULO, 2020a, p. 1).

Estes são indivíduos que também buscam, e necessitam, situarem-se no espaço so-
cioambiental. É necessária uma conscientização mais aprofundada sobre a vulnerabili-
dade de pessoas que vivem em situação de rua, e sobre o fato de que fazem parte da
totalidade do espaço em que todos habitam. Existem diversos movimentos sociais que
desenvolvem intervenções, tanto no sentido de retomar a dignidade como garantir os
direitos desses indivíduos, além de contribuírem com a ampliação dessa conscientização
necessária.
Pesquisas apontam o crescimento do número de indivíduos em situação de rua no
município de São Paulo:

Segundo a pesquisa feita pela empresa Qualitest Ciência e Tecnologia LTDA, 24.344 pessoas
estão em situação de rua na cidade de São Paulo. Destas, 11.693 estão acolhidas e 12.651
em logradouros públicos ou na rua. O último censo, realizado em 2015, identificou 15.905
pessoas (SÃO PAULO, 2020b, p. 1).

A população em situação de rua cresceu 140% a partir de 2012, chegando a quase 222 mil
brasileiros em março deste ano (…). Entre as pessoas sem moradia estão desempregados
e trabalhadores informais, como guardadores de carros e vendedores ambulantes. (SÃO
PAULO, 2020b, p. 2)

Em tempos nos quais se veem cada vez mais pessoas em situação de rua, torna-se
relevante um estudo das condições psicossociais destes indivíduos, por meio do qual
possa se aprofundar a compreensão acerca das particularidades da vida psíquica e so-
cial, daqueles que não tem onde se situar e nem de onde partir, para simplesmente ser.
Vidas nas quais, muitas vezes, não há vínculos familiares, empregatícios ou situacionais,
e que foram relegadas à sombra da sociedade.

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Reflexões sobre a casa

Ao longo dos anos, o homem criou casas com formas às quais se adaptou melhor.
Com janelas para o sol entrar, o vento circular, e o contato com o mundo acontecer.
Com portas, para estarem abertas quando se quer receber o outro; fechadas, para se
privar do contato e se proteger. As chaminés funcionam para a fumaça seguir o seu fluxo
ascensional, e assim como as emoções, sobem com sua pressão e aliviam o ambiente.
O corpo, habitando esta estrutura, traz a necessidade de adaptar o ambiente ao seu
bem-estar e proteção. Às vezes com grades, portas a sete chaves, ou vidros antirruídos
nas cidades, o ser humano criou a estrutura de sua casa e fez surgir, ao mesmo tempo,
o conceito de intimidade individual e familiar e a sua identidade, possibilitando, desta
forma, o devaneio e a solidão, como diria Bachelard (1993).
Lucena (2007) recorda que “a casa é uma metáfora da família, e no momento em que
ela é tomada, acaba-se a vida e a estirpe” (p. 2). A casa traz as lembranças da família, e
representa o lugar no qual o indivíduo experimenta seu primeiro pertencimento, o pri-
meiro sistema coletivo de que faz parte. Se lhe é tirada, sua raiz material lhe é roubada.
O que isso significa? A raiz do ser humano, sua ancestralidade, sua origem, são experien-
ciadas pelo indivíduo na casa onde nasceu, e onde foi cuidado por seus familiares. A casa
comporta as raízes da árvore familiar e o passado ancestral, auxiliando na construção da
identidade da pessoa.
“A casa é o abrigo primordial do homem, ela o acolhe e o faz sonhar; na casa, ele
pode desfrutar a solidão” (LUCENA, 2007, p. 2). Aquietar-se, acolher-se, recolher-se –
são formas de lidar com a solidão, proporcionadas por um abrigo. A casa proporciona
a sensação da presença ao seu habitante, além de conter as imagens inconscientes, os
devaneios e os sonhos do abrigado. O voltar-se para dentro, para o mundo interior, para
o Si-Mesmo, é um convite e uma possibilidade, revelados por meio da relação primordial
do homem com seu abrigo.
Está-se na alma, ou seja, o corpo é uma casca de penumbra que contém a alma, mas a
alma se localiza nos arquétipos, e ela se expressa, entre outras possibilidades, por meio
da vivência de intimidade proporcionada pela casa, funcionando para a solidão como
abrigo para o devaneio. De acordo com Bachelard (1993), “a casa é uma das maiores for-
ças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem” (p. 26).
O lugar, diferente do espaço, tem uma particularidade, um nome e a face de um deus,
carrega uma lembrança, tornando possível o reconhecimento de si (BARCELLOS, 2018).
A alma habita um lugar arquetípico, um lugar que tem a personalidade de um deus, uma
imagem e uma forma de ver o mundo, pelos óculos arquetípicos de cada deus. Ou seja,
a alma, a psique, além de ser contida pelo corpo, habita uma condição arquetípica, uma
forma de pensar, de se vestir, e de enxergar o mundo externo, pelas lentes dos arquétipos.

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Segundo Barcellos (2018), “estamos na alma, fora…do lugar-comum. A noção de es-


paço, assim como aquela de tempo, ao serem enormidades – ou infinidades – localizam-
-nos apenas na angústia do desconhecimento” (p. 16). Isto é, o espaço e o tempo são
reflexões de infinidades que nos situam no desconhecido, no inconsciente, onde o ego
se vê angustiado frente ao que não domina. A alma, o tempo e o espaço, situam-se no
imaginário do ser humano.
O reconhecimento de si é possibilitado, porque se faz o exercício de se interiorizar, de
olhar para dentro, capacitando o reconhecimento de quem se é e de onde se vem, de
qual é a raiz que estrutura o ser. A morada envolve o corpo, “acolhendo o homem do frio,
como uma mãe que envolve um cobertor nos ombros do filho” (LUCENA, 2007, p. 4).
Na ausência de barreiras físicas evidentes, segundo Hall (1977), costumam surgir nor-
mas que ajudam a limitar a intimidade. Um guarda-chuva, um papelão, um cobertor.
Quando o corpo é a única morada, sem muros, paredes e limites, ele continua a buscar
formas de limitar sua intimidade, de se preservar e se proteger, se acolher e de relaxar.
Dentro de quatro paredes, o corpo circula e se utiliza do espaço nos limites que elas
impõem. Ele é restrito por paredes, boxes, tetos, muros, portões, varandas, corredores.
Os lugares definem, e organizam, o modo do corpo se mover dentro da morada. O corpo
reconhece seu lugar – “ (…) somos um lugar. O que somos apresenta um lugar (...), um
ponto de partida, de irradiação do nosso ser. O que somos afirma um lugar, diz o que
pertence a nós, ao que somos pertencidos” (BARCELLOS, 2017, p. 3).
A busca por saber onde se está, “em que pé está? ”, em que lugar se encontra, é
natural do ser que se organiza quando encontra suas raízes, quando as reconhece no
materno, no ancestral, na morada. O abrigo traz pertencimento. Se pertence àquela
cidade, àquele bairro, àquela família. Se pertence. “Pertencer pertence à constelação
arquetípica do abrigo. Nela também estão o ventre, a mãe, a terra natal, e o túmulo. (…)
abrigo é sempre um continente, pois o abrigo contém, realiza sua vocação de conter”
(BARCELLOS, 2017, p. 5). A contenção do corpo psíquico dentro do espaço privado, é
uma das essências do abrigo.
Existem indicadores de poder associados ao sítio onde o indivíduo se situa, se é no
bairro x ou no bairro y. Por mais que implícitos, estes indicadores simbolizam posiciona-
mentos sociais e status sociais. Além disso, o autor também ressalta que o próprio corpo
também é lugar com relação ao mundo, ele é o receptáculo de lugares. A alma e o corpo
recebem o espaço e o habitam, sendo os ambientes uma encarnação de nossa existência
(HALL, 1977).
Segundo o pensamento de Sommer (1973), ao habitar o espaço, cria-se um espaço
pessoal, uma área carregada de conteúdos emocionais, sendo construídos limites invi-
síveis que cercam o corpo do indivíduo. O espaço pessoal é um território portátil, ele é
levado junto ao corpo do indivíduo, e é criado por essa zona emocionalmente carregada,

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a qual representa uma margem de segurança que o indivíduo, e todos os animais, têm
como exigência de sobrevivência (GLIBER, 2007).
Tendo-se em vista que o espaço pessoal é criado por limites emocionais, invisíveis, e
por uma área que circunda o corpo, este difere do espaço territorial que, por sua vez,
é fisicamente demarcado – e geralmente defendido – criando não só uma privacidade,
como também um sentimento de posse (GLIBER, 2007). O espaço territorial se cria tanto
com paredes e muros numa casa, como com papelão, guarda-chuva e cão de guarda,
entre outros demarcadores em situação de rua.

Reflexões sobre o corpo psíquico

A alma habita um corpo, e ele envolve e encarna a personificação deste e/ou daquele
deus, trazendo face e identidade. Jung, em 1917, segundo Jaffé (1986), discutiu o fe-
nômeno da sincronicidade, que aponta para a unidade entre psique e matéria, alma e
corpo.
Reis afirma que os fenômenos sincronísticos demonstraram, citando Jaffé (1982),
que “o ser se baseia numa essência até́ o momento desconhecida, que é tanto material
como psíquica” (REIS, 2002, p. 3). Corpo é psique, e psique é corpo, e o indivíduo é tanto
material quanto psíquico, é almado e encarnado. Assim, de acordo com Reis “não sendo,
portanto, antagonismos irreconciliáveis o mundo exterior e o interior, o espiritual e o físi-
co, mas aspectos do fundo psicóide da realidade em que ambos se baseiam” (2002, p. 3).
O corpo psicofísico é a morada para revelação de nossa alma (psique), ele é o recep-
táculo e o veículo das imagens do inconsciente, as quais são fornecidas à consciência.
O corpo expressa a alma, e é a morada para os arquétipos. Reis (2002) recorda Jung em
“Nietzsche’s Zarathustra”, no qual se referiu ao Si-Mesmo como a totalidade de corpo e
psique, sendo a alma (psique) a vida do corpo, e o corpo a manifestação do Si Mesmo,
ressaltando que se o Si-Mesmo não for representado na vida em sua natureza, se ma-
nifestaria em sintomas no corpo e fobias, de forma negativa. “A linguagem corporal é
como a onírica, anuncia e denuncia, fornecendo, assim, símbolos à consciência” (REIS,
2002, p. 4).
O corpo pode ser entendido como símbolo de um fato psicológico, isto é, o corpo
entendido como uma expressão psicológica, e sendo ele considerado como material e
concreto, a psique também pode ser compreendida como uma dimensão que se apre-
senta, primeiramente, em experiências biológicas. O corpo é uma casca que envolve a
vida psíquica, um cosmos particular e, portanto, a psique se expressa não só no corpo,
como também na vida objetiva.
De acordo com Jaffé (1986):

102
Jung & Corpo - nº 21

Jung denominou o arquétipo como “psicóide”, ou seja, como um fenômeno semelhante


à alma. Psicóide é um conceito adjetivo, que exprime a possibilidade de algo ser tanto
psíquico como não- psíquico. (...) Jung vê no arquétipo psicóide uma ponte para o assunto
em geral. A rigorosa separação de psique e mundo é abolida (p. 26).

“A alma, que em termos conceituais é chamada de psique é, antes de racionalizá-la,


experiência, imagem e metáfora” (BARCELLOS, 2018, p. 10). A totalidade da psique, o Si-
-Mesmo para Jung, é composta de matéria e alma, ou seja, corpo e alma que, em suma,
é o que se chamou de corpo psíquico. A alma é a vida da matéria, portanto, o corpo psí-
quico é aquele que é vivido na matéria por meio de imagens e metáforas, e preenchido
pela experiência do Si-mesmo. Seria o corpo visto como campo dos afetos, das imagens
e das experiências, e não como máquinas e matérias orgânicas? O corpo sem alma é
apenas matéria, carne e osso, e a alma é quem dá vida, experiência, emoção e imagem
ao corpo. “O carbono do corpo é simplesmente carbono. Portanto, ‘no seu âmago’, a
psique é simplesmente ‘mundo’” (JAFFÉ, 1986, p. 26). Psique e corpo, alma e mundo, já
não se separam, após a compreensão do fenômeno psicóide.

Reflexões sobre pessoas em situação de rua.

Existem cerca de 101.854 pessoas vivendo em situações de rua no Brasil, conforme


estimativa realizada em 2016 pelo IPEA. Segundo a pesquisa, essa população convive
diariamente com a violência física e psicológica, impostas de diversas formas, seja pela
exclusão social, ou pelas intervenções violentas por parte dos policiais ou de fiscais, e até
da população em geral. Agressões, tentativas de homicídio, preconceito, discriminação e
desprezo, são algumas das experiências diárias vividas por essa população (IPEA, 2020,
p. 1).
O relatório do Conselho dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas
– ONU – assinala que “a situação de rua é uma crise global de direitos humanos, que
requer uma resposta global e urgente”, acrescentando que,

Ao mesmo tempo, a situação de rua é uma experiência individual de alguns dos membros
mais vulneráveis da sociedade, caracterizada pelo abandono, desespero, baixa autoestima
e negação da dignidade, consequências graves para a saúde e para a vida. O termo ‘situação
de rua’ não só descreve a carência de moradia, como também identifica um grupo social.
O estreito vínculo entre a negação de direitos e uma identidade social, distingue a falta de
moradia da privação de outros direitos socioeconômicos (ONU In BRASIL, 2018, p. 1)

Uma análise feita pelo IPEA (2020) constatou que 81,5% dessa população se encontra
em municípios com mais de 100 mil habitantes, 56,2% no Sudeste, 17,2% no Nordeste e
15,1% no sul do Brasil. (IPEA, 2020, p. 1).

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Jung & Corpo - nº 21

Uma pessoa em situação de rua no Brasil, pode ser um reflexo da urbanização e dos
grandes centros, onde há grande movimento por busca por emprego. Segundo Santos
(2009), a situação do migrante – aquele que sai de uma região para outra – é caracteriza-
da como “fruto de uma determinação geográfica, que mantém relações estreitas com a
procura de trabalho” (p. 6). Pode-se deduzir a dificuldade que é encontrada nesta busca
e, por consequência, o grande número de pessoas ficando sem condições de ter uma
moradia nas grandes cidades. Portanto, além de se situar às margens da sociedade, esta
população é excluída da possibilidade de desenvolver as potencialidades que o lugar e o
pertencimento oferecem, sendo vítima diariamente das decorrências do não-lugar.
Martins (1997) critica o uso do termo exclusão social como conceito, mas admite ser
um fenômeno equivalente à pobreza. Ele sustenta a tese de que não há exclusão, mas
contradição, pois uma vez que os excluídos ameaçam a ordem do sistema, eles fazem
parte deste sistema. Nesta linha de raciocínio, não se trata de ruptura de laços sociais,
mas de um determinado tipo de ligação. O autor sustenta a contradição de se compreen-
der a exclusão como uma forma de inclusão “conveniente e necessária à mais eficiente
(e barata), reprodução do capital. E, também, ao funcionamento da ordem politica, em
favor daqueles que dominam” (MARTINS, 1997, p. 20 apud, LEAL, 2004, p. 9). Neste
sentido, a população de rua faz parte de um todo sistêmico, que só é excluída, porque
há quem esteja incluído. “A sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir de outro
modo, com suas próprias regras, segundo a sua própria lógica” (MARTINS, 1997, p. 32
apud LEAL, 2004, p. 10).
Augé (1995) define o lugar como identitário, relacional e histórico, discutindo a ideia
de o lugar ser uma potência de construção de identidade, de relação, e de história. Por-
tanto, segundo o autor, um espaço que não pode ser definido com essas potências, de-
finirá o não lugar (1995, p. 73). Os não lugares passam a serem caracterizados por locais
com os quais os sujeitos, em geral, não estabelecem nenhum tipo de vínculo relacional,
enquanto os ocupam. O autor os caracteriza como “dessimbolizados”. Sob tal perspecti-
va, Reis (2002) elenca os não lugares como “espaços de circulação” (p. 5). As pessoas em
situação de rua, costumam viver nestes “não lugares” descritos por Augé.

Reflexões sobre a casa e o corpo psíquico de pessoas em situação de rua.

Como vimos, a morada física traz uma estruturação e um contorno para a encarnação
da alma, sendo o ambiente uma possibilidade de encarnação da nossa existência (HALL,
1977), da expressão dos lugares arquetípicos onde a alma habita. As pessoas em situa-
ção de rua, carecem de um lugar que lhes dê contorno ao corpo e que, então, possibilite
a vivência de encarnação, ou seja, ofereça a possibilidade de viver no mundo objetivo
com o corpo e com a alma, sair do imaginário e trazer essa experiência para a carne. As

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envolturas da casa trazem um lugar para os devaneios, imaginações e vivências incons-


cientes, contendo-os em um determinado espaço e, com isso, trazem um lugar para a
encarnação dos devaneios, colocados em prática na relação com o outro, o que a casa
também permite. Assim, as pessoas em situação de rua carecem de um lugar, a fim de
abrigar os devaneios e encarnar sua existência.
A casa é o primeiro universo do ser humano (BACHELARD, 1993), e nela se abriga todo
o primeiro mundo daquele indivíduo, suas primeiras vivências objetivas, e as primeiras
encarnações de sua alma, isto é, a expressão arquetípica de onde a alma habita naquele
determinado momento. As primeiras vivências relacionais se dão neste primeiro univer-
so, ou seja, as primeiras expressões do ser junto a seu mundo imaginário, é a casa que
permite serem vivenciadas. Portanto, a casa onde se nasce, é o primeiro abrigo para um
corpo no qual habita uma alma, e uma alma que habita um lugar arquetípico. Diante das
restrições impostas pela situação de rua, a população que vive nesta condição apresenta
uma redução da possibilidade de encarnar para se relacionar, aumentando a possibili-
dade de ausência de um lugar para conter as primeiras memórias e devaneios e, conse-
quentemente, para a expressão de seu ser e de sua identidade.
Ao se situar na rua, a noção de que há um “eu” que não é um “outro” e, consequen-
temente essa separação, pode ficar comprometida. A casa abriga as experiências rela-
cionais que dizem quem se é ao se expressar, ou melhor, em qual lugar arquetípico a
alma se encontra e se expressa – e na restrição dessa vivência, a imagem corporal pode
ser alterada, ao carecer de um lugar que contenha e encarne suas características. Desta
forma, a noção de “eu” pode ficar comprometida.
Sem o abrigo físico, o corpo busca por contorno e privacidade através de cobertores,
papelões ou guarda-chuvas (HALL, 1977), buscando uma contenção para a alma, uma in-
timidade para o corpo, e um calor para a existência. O corpo não deixa de buscar formas
de contorno e envoltura para a encarnação da existência, e através das sensações cor-
porais de calor, de algo que o envolva, os limites do corpo humano e suas fronteiras são
experienciados, sendo estes essenciais para o envolvimento do eu. Com isso, o corpo
busca a encarnação da alma e sua expressão, mesmo sem abrigo. Porém, a possibilidade
de êxito é dificultada sem a morada, ao carecer de uma contenção para o corpo, e sem
essa contenção, o inconsciente e a atividade do imaginário não possuem nem espaço
nem tempo para se expressar – eles atravessam livremente a fronteira da consciência.
Se a estrutura consciente não tiver suas fronteiras bem estabelecidas, ela é inundada
pelas imagens do inconsciente, isto é, as potencialidades do indivíduo invadem a parte
consciente como uma enchente, reduzindo a possibilidade de o ego – parte consciente
– sustentar as fronteiras e receber na luz potenciais inconscientes, para então viabilizar
a realização da “encarnação” do corpo e da existência do ser.

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A alma é, segundo Barcellos (2018), imagem, experiência e metáfora, e isto signi-


fica que ela se expressa através de imagens, metáforas e experiências. Sendo assim,
o conceito de não-lugar de Augé (1995), o qual se refere a espaços geralmente pouco
propícios à criação de vínculos e, consequentemente, à formação de identidade – que
se constrói, também, através destes – pode ser uma experiência de um lugar sem alma,
onde a alma não se demora e, portanto, não se reanima com outras almas.
Segundo Greger (2020):

O conceito de corpo em Sándor, se refere a um corpo vivido, e é nesse “fluxo vital” que
nos enredamos quando nos aproximamos do corpo de outrem e o tocamos, confundindo
com esse corpo, o nosso próprio, para depois resgatá-los transformados pela experiência
comum. (…) o corpo recebe uma dimensão relacional em que se supera a oposição de um
interior e de um exterior. (p. 05).

O corpo de uma pessoa em situação de rua perde grandes oportunidades, que a vida
relacional traz de transformação. Greger (2020) está dizendo que o corpo, na relação
com outros corpos, se transforma. Assim como a alma se anima com outras almas, crian-
do alma. A morada é essencial para os vínculos e para as relações de intimidade, pois é
por meio deles que a pessoa se reconhece, que ela se vê, que cria a sua imagem corporal
e, assim, se resgata transformada. Greger (2020) conclui que:

A imagem corporal mais definida e conscientizada decorre da melhor apropriação do


corpo, indispensável ao processo de formação da identidade. A imagem corporal e o auto-
conceito, portanto, se equivalem. Esta vai-se desenvolvendo como um produto da relação
do indivíduo com os outros, e da concepção pessoal do próprio corpo, em um processo
dinâmico. (p.10)

A imagem do corpo de qualquer indivíduo se estabelece mediante a relação com


os outros, assim como o corpo se transforma a partir da relação com outros corpos, e
se reconhece. Não há transformação, desenvolvimento e formação de identidade, sem
a relação com os outros e com o ambiente. Portanto, as pessoas em situação de rua
encontram obstáculos objetivos para a formação de identidade, e para a construção de
imagem corporal. As almas destes corpos os relembram que o ser humano é um ser re-
lacional. E a casa traz, muito bem definida, a sua função de relação.
Segundo Santos (2009), “as pessoas em situação de rua compõem suas existências a
partir dos meios de que a rua dispõe, recriando e adaptando o lar” (p. 12) – por exemplo,
os viadutos urbanos, que assumem a função de teto e de parede para as pessoas que
dele se apropriam; ou postos de gasolina, que representam um teto para se abrigar da
chuva e, eventualmente, um lugar de sossego para dormir.
Portanto, a casa pode ser vivida através da imaginação, do mundo imaginal, que signi-
fica a realidade psíquica de cada um dos indivíduos; a rua sendo ressignificada como lar,
trazendo à luz da imaginação, o que a morada proporciona para o corpo e para a alma. A

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psique busca formas de preservar o mundo imaginal, que é o mundo da alma (psique), e
mesmo sem estruturas físicas, a alma, através da sua função de imaginação, traz para a
realidade objetiva a função da casa na vida de cada ser humano. A vivência arquetípica
da morada, sempre estará presente em cada um de nós.

Conclusão

As reflexões sobre o corpo psíquico das pessoas em situação de rua coincidem com
as preocupações sobre a sociedade como um todo – como uma malha de teia sistêmica,
que permite enxergar essa totalidade social e, trazendo à luz, que estas pessoas podem
ser compreendidas como um produto do funcionamento do sistema sociopolítico atual.
Seguindo o pensamento de Martins (1997), chamá-las de excluídas traz a reflexão de
que, conceitualmente, só há exclusão se houver inclusão – como uma teia, um depende
do outro para existir. Portanto, o uso do termo exclusão, no que diz respeito às pessoas
em situação de rua, traz consigo a reflexão sobre a forma pela qual esta população é
incluída neste sistema.
As pessoas em situação de rua vivem em extrema pobreza, e esta reflexão faz com
que se perceba, como contraponto, a população incluída, os que têm recursos para se
inserir de forma dominante no sistema social. Portanto, a pobreza se torna quase como
condição para existir a riqueza, uma não existe sem a outra. O que leva a se refletir sobre
o sistema capitalista atual, em que a exclusão se torna “conveniente”, a fim de se manter
a estrutura do capital vigente. Portanto, apesar de a constatação dessa forma de exclu-
são ser um dado de que há uma ruptura de laços, sejam relacionais ou empregatícios,
essa ruptura faz criar uma outra forma de ligação com o mundo, que passa a fazer parte
da sociedade – ou seja, se constroem outras formas de inclusão social, mesmo em con-
dições de exclusão e extrema pobreza.
Levando-se em consideração de que a alma é o princípio da relação, e de que os cor-
pos se transformam na relação com outros corpos, a população de rua constrói outro
tipo de ligação com os outros, com o espaço, com o corpo e com o mundo. É uma forma
diferente, porém parte de um todo sistêmico, no qual os corpos psíquicos não deixam de
procurar abrigo, contenção e pertencimento, concluindo que eles pertencem à socieda-
de – de uma forma ou de outra, eles pertencem!
Sendo assim, chamar as pessoas em situação de rua de excluídos, tira a responsabi-
lidade dos que estão incluídos, pois a disponibilidade de recursos para a população não
é igualitária para o sistema inteiro. O que leva, então, a uma renda centralizada, refle-
tindo numa condição que segundo Martins (1997 apud LEAL, 2004), pode ser definida
como perversa e/ou patológica de existir para os excluídos, para que o sistema continue
funcionando como está. Os incluídos dependem dos excluídos, para se manterem onde

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estão. Portanto, não é possível olhar para a parcela da população de rua, sem discutir o
sistema vigente.
Com isso, se por um lado o corpo psíquico da população de rua carece de recursos
materiais para construir abrigo, aconchego, privacidade – e em decorrência, para expe-
rimentar alguns limites no processo de construção da identidade, do senso de pertenci-
mento e relação – ao mesmo tempo, ainda que sem os recursos concretos e objetivos,
a população de rua sobrevive na psique do mundo, no mundo da alma, da imaginação.
“Anima loci: a alma em cada lugar e em cada coisa, em mim e no mundo, presente na
beleza e na feiura de todos os lugares, e de todas as coisas” (BARCELLOS, 2018, p. 16).
A rua, um espaço de circulação, um espaço que muitas vezes carece do reconhecer-se
no outro, da transformação advinda da relação com o outro, dificilmente tende a ser
um espaço reconhecido como um lugar com alma. O autor descreve que “o contraste
da ideia de ‘lugar’ com a de ‘espaço’ afirma que ‘lugar’ tem um nome, uma face, uma
particularidade, uma lembrança, um projeto, uma profundidade absorvente, tornando
possível, nosso reconhecimento” (p. 15).
O corpo psíquico das pessoas em situação de rua carece de estrutura objetiva, de
tijolos, recursos financeiros e materiais, que construiriam espaços a serem ocupados,
em função da relação humana, familiar. É possível considerar-se, no entanto, que há
– mesmo no espaço da rua – uma construção de um espaço pessoal, de uma busca de
intimidade e delimitações, que ressignificam espaços e objetos, permanecendo em sua
casa imaginal, ainda que sem uma casa concreta. Sem o concreto, lhe resta o mundo
imaginal e, com isso, a realidade imaginal em que vivem as pessoas em situação de rua,
se torna cada vez mais distante da realidade da população que não mora na rua, daque-
les que possuem recursos materiais, dificultando ainda mais o reconhecimento entre
essas populações.
As pessoas em situação de rua não são favorecidas na criação de vínculos, de identi-
dade, de pertencimento; não são favorecidas na construção de um lar, de uma relação,
e de uma transformação. E como a realidade objetiva não lhe favorece em termos de
recurso material, a população de rua se situa na imaginação, em um complexo processo
de construção de consciência do corpo psíquico. O processo de conscientização das pes-
soas em situação de rua é, então, prejudicado, pois o ser humano é um ser relacional –
ele necessita do concreto material, que vai propiciar o encontro de corpos psíquicos em
processo de transformação e de conscientização de si, por meio da relação com o outro.
Assim, a população de rua carece de estrutura para o aprofundamento na consciência, e
para o fortalecimento do ego (parte consciente da psique), na conscientização das ima-
gens inconscientes do corpo psíquico.
É possível considerar-se, então, que as pessoas em situação de rua, ao não possuírem
recursos materiais para construir uma casa física, se acolhem e sustentam relações fa-
miliares e sociais de forma diferenciada. As pessoas em situação de rua sobrevivem com

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poucos recursos para se transformar nas relações sociais, se conscientizar a partir do


efeito dessas relações sobre si, e para criar e fortalecer a sua identidade. Sendo assim, o
corpo psíquico da população de rua vive no mundo imaginal, o mundo da alma, mesmo
que este não seja visto e conscientizado a olho nu.

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A JORNADA DO HERÓI E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO DE SIMBA

The Hero’s Journey and Simba’s Individuation Process

Eliwelton Gomes Batista1


Sueli Adélia Volpiano Arruda2

Resumo
A jornada do herói pode ser utilizada como uma referência ao nosso herói interno, que passa por di-
versas fases do desenvolvimento rumo à individuação, enfrentando conflitos, ganhando novos recursos,
ampliando saberes e, por fim, percorrendo caminhos que inicialmente não imaginava.  A animação “O
Rei Leão” apresenta todas as características da jornada do herói. Em sua trajetória durante a história, o
personagem principal Simba inicia – e termina o filme – com a música que já nos apresenta um aspecto
importante do tema: o ciclo sem fim. Este artigo apresenta uma análise simbólica do desenvolvimento de
Simba e dos demais personagens, com base na Psicologia Analítica. Percebe-se a evolução de Simba, que
assume o papel de herói ao compreender seu próprio caminho, após passar um período de elaboração de
seus conteúdos emocionais.
Palavras-chave: Jung, Rei Leão, Jornada do Herói.

Abstract
The Hero’s Journey can be used as a reference about our internal hero who goes through various stages
of development towards individuation, facing conflicts, gaining new resources, expanding knowledge and,
finally, walking through paths that were not initially imagined. The animation “The Lion King” presents all
the characteristics of the hero’s journey. In his trajectory throughout the story, the main character Simba,
begins and ends the film with the music that already introduce us with an important aspect of the theme:
Circle of Life. This article presents a symbolic analysis of Simba and others characters’ development, based
on Analytical Psychology. Simba’s evolution can be seen, as he assumes the role of a hero by understan-
ding his own path after going through a period of preparation for his emotional contents.
Key words: Jung, The Lion King, The Hero’s Journey.

1 Psicólogo pela Universidade de Santo Amaro, psicoterapeuta, pós-graduando em Psicoterapia Analítica


e Abordagem Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP. email: psicologoeliwelton@gmail.com
2 Psicóloga pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Caetano do Sul, psicoterapeuta, Especialista
em Somatic Experience Practionner (SEP) pela Somatic Experience Trauma Institute, pós graduanda em
Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP. email:
suelivolpiano@yahoo.com

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Introdução

Campbell (2007) descreveu o processo de jornada de um herói, como um ciclo que


ocorre em três grandes estágios: a partida, a iniciação e o retorno, sendo que em cada
destes estágios ocorrem etapas. No estágio da partida, há “o chamado da aventura”;
“a recusa do chamado”; “o auxílio sobrenatural”; “a passagem pelo primeiro limiar”, e
“o ventre da baleia”. Já na iniciação, apresenta-se “o caminho de provas”; “o encontro
com a deusa”; “a mulher como tentação”; “a sintonia com o pai”; “a apoteose”, e “a
bênção última». E, finalmente no retorno, vê-se “a recusa do retorno”; “a fuga mágica”;
“o resgate com auxílio externo”; “a passagem pelo limiar do retorno”; “o senhor dos dois
mundos”, e “a liberdade para viver”.
Vogler (2009) propôs uma revisão do material apresentado por Campbell (2007), in-
dicando que a jornada não precisa ocorrer somente em situações heroicas, pois o pro-
tagonista das histórias em geral está presente em vários contextos – ainda que seja no
mergulho dentro de si mesmo, ou no contato com outras pessoas. Dessa forma, ele
salienta que o protagonista de qualquer narrativa pode ser considerado o herói de sua
própria jornada. Levando isso em conta, Vogler sintetizou as etapas anteriores descritas
em doze estágios, contemplados em três atos, sendo que “cada ato envia o herói num
certo caminho, com uma intenção ou objetivo específico, e que o clímax de cada ato
muda a direção do herói, designando uma nova meta” (2009, p. 18).
Seguem os atos e seus desafios:

Primeiro ato - Preparação para a aventura


- mundo comum
No primeiro ato temos, inicialmente, a apresentação do mundo comum, que é o mo-
mento de conhecer a vida cotidiana do personagem protagonista. Nessa fase, percebe-
-se a vida rotineira da qual o herói é tirado, para poder introduzir-se em um mundo
especial, novo e estranho. A força do destino mostra o contraste entre o mundo comum
do herói, e o mundo especial em que ele vai entrar.
- chamado à aventura
O herói é, então, convidado a solucionar um problema, o qual perturbou a ordem das
coisas; a empreender uma aventura; a transpor um desafio o qual, algumas vezes, pode
ser o mal que deve ser reparado; ou a uma provocação que altera o equilíbrio natural,
que pode ser: conquistar um tesouro, realizar uma vingança, obter justiça ou realizar
um sonho. Quando o herói se vê diante do chamado à aventura, ele não poderá mais
permanecer no conforto de seu mundo comum – neste momento, está estabelecido o
objetivo a ser conquistado por ele.

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- recusa do chamado
Este é o momento da escolha, e ocorre antes de o herói se lançar em sua aventura –
ele experimenta a indecisão, e pode pensar em recuar. Está diante da encruzilhada do
medo, e para superar este desafio, precisará que ocorra: alguma mudança no contexto;
um agravamento na ordem das coisas; ou criar motivação suficiente, por meio de uma
inspiração e apoio de um mentor.
- encontro com o mentor
O mentor tem o papel de capacitar o herói, a fim de enfrentar o desafio perante o
desconhecido que o espera, podendo aparecer como um sábio, um velho, um mago ou
um instrutor. Ele o preparará e fará orientações, podendo até presentear o herói com
um equipamento mágico para ajudá-lo, em sua jornada, a conquistar seu desafio. O
mentor motiva o herói e, se for preciso, assume uma postura firme para encorajá-lo. En-
tretanto, ele vai até um certo ponto, pois daí em diante é papel exclusivo do herói seguir
em frente, rumo ao desconhecido.
- travessia do primeiro limiar
Este é o momento em que o herói, finalmente, dá um passo adiante e entra em sua
aventura. Ele está comprometido com o seu desafio, se propõe a superar os obstáculos
e a lidar com as consequências, ao enfrentar o problema que lhe foi apresentado. Assim,
a história começa a se desenvolver – é, então, marcada pela ação e pelo desenrolar das
decisões e ações do herói, bem como por suas consequências, uma vez que ele venceu
seu medo e decidiu agir. Ao ingressar em sua jornada, já não existe mais a possibilidade
de desistir.

Segundo ato - é hora da ação


- testes, aliados e inimigos
No segundo ato, o herói acabou de passar pelo primeiro limiar. Agora, é hora de
explorar e conhecer o funcionamento do mundo especial; é o momento em que ele
encontra novos desafios, passando por testes e fazendo aliados e inimigos, o que torna
possível a ele conhecer e aprender as regras desse mundo.
- aproximação da caverna oculta
Esta é a fronteira de um lugar perigoso para o herói, aquele lugar às vezes profundo,
subterrâneo, o aspecto mais ameaçador para ele no mundo especial – a caverna oculta.
A representação da caverna oculta, na mitologia, pode ser a terra dos mortos, onde o
herói pode ser desafiado a descer ao submundo para resgatar o tesouro que o aguarda
e, nesta aproximação, terá que enfrentar a morte e o perigo.

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Jung & Corpo - nº 21

- provação
Neste estágio, o herói precisa enfrentar seus maiores desafios – externos e internos
– lidando com medos, e indo ao extremo para enfrentar forças hostis. A ameaça de um
perigo mortal se aproxima sendo, então, experienciado um momento de tensões, preo-
cupações e luta. A provação traz em cena o momento de vida ou morte psicológica, em
que o herói poderá desistir ou voltar ao seu mundo com os tesouros conquistados e,
assim, será reconhecido como um cavalheiro em seu lugar de origem. O herói superará a
provação quando decidir prosseguir para o enfrentamento e, desta forma, quando sente
a morte de perto e sobrevive, algo novo renasce no herói, o qual o transformará.
- recompensa
Após passar pela provação e sobreviver, o herói pode comemorar sua vitória e obter
suas conquistas. Aqui, é possível perceber que o herói consegue o reconhecimento so-
bre aquilo que foi traçado como objetivo, no início de sua jornada.

Terceiro ato – a volta para casa


- caminho de volta
No início do seu retorno, no terceiro ato, o herói confronta-se com aspectos ainda
não lidados – há um enfrentamento final com a sombra, presente em sua jornada. Po-
dem haver perseguições, reflexões e reconciliações, oriundas das ações que teve neste
mundo especial, em consequência daquilo que fez.
- ressureição
O estágio da ressureição é o momento da luta final, do maior desafio. O inimigo,
contra as expectativas do herói, surge novamente, oferecendo um grande perigo para as
pessoas ou objetos que ele defende. O desafio final exige da figura do herói uma intensa
força, externa ou interna, para seguir em sua jornada. Ao vencer este desafio, o herói
está pronto para retornar.
- retorno com o elixir
O herói volta para seu local de origem recebendo, assim, o reconhecimento pela sua
trajetória. Ele passa por todos os desafios presentes, e volta com novas ideias, visões ou
objetos, trazendo o “elixir”, o resultado de seu sucesso. Neste estágio, ele pode compar-
tilhar seus novos saberes, se tornando senhor ou senhora de dois mundos, o do comum
e o do especial.

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Jung & Corpo - nº 21

Análise Simbólica da Jornada do Herói de Simba na Animação “O Rei Leão”

A inspiração para este artigo surgiu da necessidade de se refletir sobre o papel pa-
terno na sociedade, tendo em vista as diversas discussões acerca das responsabilidades
desta figura na estruturação do ego, como forma de compreender sua importância para
o desenvolvimento pessoal e coletivo, rumo à individuação. A animação escolhida é uma
das poucas produções de contos que aborda, mais diretamente, a relação pai e filho, e
levanta questões sobre o papel do patriarcado na estruturação egóica, e seus reflexos na
atuação do indivíduo em sociedade.
A seguir, será descrita a jornada de Simba rumo à realização de seu papel como rei,
correlacionando a trajetória do herói, segundo a proposta de Vogler (2019), com o de-
senvolvimento psicológico, de acordo com a Psicologia Analítica. Além de Simba, será
apresentada uma visão simbólica relacionada a outros personagens da história.
Segue uma breve descrição dos personagens analisados na animação “O Rei Leão”
(1994):
- Simba: protagonista da história, tem sua vida retratada desde a concepção até a
sua ascensão como rei. Surge, inicialmente, como um filhote de leão, que se desen-
volve ao longo da jornada ao enfrentar diversos desafios, sendo possível perceber as
mudanças de comportamento em cada fase: infância, adolescência e vida adulta.
- Mufasa: pai de Simba, surge na história como o rei. Sua principal função é a de
transmitir ao filho conhecimentos sobre o reino e a vida, considerando tanto o papel
objetivo de gerenciamento, quanto questões mais elevadas do espírito. Sua posição é
invejada pelo irmão, que planeja destroná-lo.
- Scar: antagonista da história, é o irmão do rei e tio de Simba. Apresenta grande
desejo de poder e quer estar no comando do reino, mais pelo título de rei do que
pelas obrigações regenciais. Vilão principal do enredo, manipula e cria estratagemas
envolvendo Simba e Mufasa, para conseguir o que quer – o trono.
- Nala: melhor amiga de Simba e, posteriormente, sua companheira. Se envolve
com o herói em suas principais aventuras, e o inspira a enfrentar a culpa e a lutar pelo
que é seu por direito. Tem a função de musa inspiradora.
- Timão e Pumba: amigos de Simba, que o resgatam e o ajudam numa situação de
crise, após a morte do pai. Fazem uma integração e facilitação da vida de Simba na
floresta. Mostram, para o pequeno leão, outras possibilidades na vida, ensinando-o a
se nutrir de alimentos diferentes do hábito do protagonista, bem como a não enfren-
tar situações muito dolorosas, por meio do lema “Hakuna Matata” (Sem problemas).

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Jung & Corpo - nº 21

- Rafike: é o macaco ancião, que atua como o conselheiro do rei, tanto a Mufasa
quanto, posteriormente, a Simba. Com uma postura de guia espiritual, Rafike facilita
a comunicação do mundo concreto com o mundo dos espíritos, auxiliando Simba a
voltar para seu caminho. Tem conexão com os aspectos mais intuitivos, e luta por
aquilo que é importante.

Primeiro Ato
- mundo comum
Inicialmente, o filme apresenta uma canção com os temas do ciclo sem fim, e do nas-
cimento de Simba. Este nascimento de uma nova consciência, é vivenciado por meio de
um ritual de apresentação da nova vida para o reino. Neumann (1991) traz uma leitura
mitológica sobre o desenvolvimento infantil, descrevendo as fases do desenvolvimento
da criança em algumas etapas e, entre elas, aponta o estágio do “solar guerreiro”, na
qual há a identificação da criança com os arquétipos do Selves – masculino e paterno
– bem como a entrada no patriarcado. O próximo estágio de desenvolvimento seria o
“solar racional”, fase em que há a evolução da função discriminatória, e o predomínio da
função da razão: logos. Este sol surge no filme logo no seu início, na música introdutória
em que se diz que “desde o dia em que ao mundo chegamos, caminhamos rumo ao sol”,
sinalizando a busca por uma ampliação de consciência como um processo natural da
psique.
No momento seguinte da animação, Simba desperta o pai para que este o leve para
conhecer o reino. Então Mufasa, o atual rei, explica que as dimensões do reino abran-
gem todo território que o sol toca e ilumina. O rei, aqui identificado como símbolo do
Self, comunica-se com o Ego em desenvolvimento (Simba). Edinger (2006), ao falar dos
aspectos simbólicos da alquimia aponta que, na visão dos alquimistas, o sol tem conexão
com o ouro – princípio do masculino, leão, rei, luz e consciência.
O Ego em desenvolvimento vai se diferenciando do Self, conforme o processo apre-
sentado por Edinger (1989) formando, afinal, o eixo Ego-Self. Pode-se compreender esse
diálogo pai-filho, Self-Ego, como o movimento que se dá no processo de individuação,
em que o Ego amplia os horizontes de percepção consciente, ao entrar em contato com
as informações fornecidas pelo Self.
Quando Mufasa aponta que o reino é tudo o que o sol toca, e que o pequeno leão não
poderá ir à parte sombria, no cemitério de elefantes, o Ego em formação inicia o proces-
so de percepção de limites da consciência, e seu primeiro contato com o tema da morte.

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- aventura
Depois do diálogo com seu pai, Simba conversa com seu tio Scar, o irmão fragilizado
do rei, que apresenta comportamentos e posturas diferentes das de Mufasa represen-
tando, simbolicamente, a Sombra. Pode-se compreender a Sombra como o campo psí-
quico que contém desejos reprimidos; motivações questionáveis moralmente, ou com
valores inferiores ao da consciência; impulsos não civilizados; fantasias infantis; mágoas;
sentimentos rejeitados, e ressentimentos. A Sombra vai se tornando, assim, um local de
armazenamento daquilo que não foi permitido ao Ego vivenciar.
Nesta cena, Scar aguça a curiosidade de Simba e, utilizando-se de suas habilidades
de articulação, cria uma argumentação a fim de induzir o pequeno a visitar o cemitério,
área apresentada anteriormente como proibida e distante da consciência, ou seja, mais
um elemento sombrio. A sombra presente em Scar atua movida pela inveja e pelo dese-
jo de poder, ao querer assumir a posição de rei de forma ilegítima.
Simba, por sua vez, canta que o que mais quer é ser rei, como forma de se tornar
aquilo que seu pai é, e o que ele nasceu para ser um dia. Na cena, nota-se uma inflação
egóica esperada em seu estágio de desenvolvimento, diferentemente de seu tio, que
quer a posição de rei sem ter o direito a ela. Desta maneira, percebe-se que frente ao
desejo de ser rei, os dois personagens têm motivações diferentes evidenciando, assim, a
polaridade inspiração versus inveja – ou como apresentado por Byington, a polarização
entre a inveja criativa e a inveja fixada. De acordo com o autor “[...] quando fixada e
defensiva, a inveja torna negativa e destrutiva a sua criatividade. Ao invés de fortalecer
e ampliar, ela restringe a Consciência e passa a atuar no crescimento da Sombra” (Bying-
ton, 2005, p. 5).
Simba desobedece ao pai e convida Nala (princípio do feminino), como parceira na
aventura para conhecer o cemitério de elefantes, local em que as hienas exiladas pelo rei
vivem. Representando traços rejeitados pela consciência, e levados à sombra, as hienas
surgem como um símbolo de perigo e ameaça ao Ego.
Simba é atacado pelas hienas e, no último momento, sendo socorrido pelo pai, é
depois repreendido e orientado por este. Pode-se entender esta parte do filme como o
momento em que o Ego recebe um apoio do Self, a fim de enfrentar os desafios da vida.
Ao mesmo tempo em que é repreendido por seu pai, Simba recebe, mais uma vez, uma
orientação sobre seus limites, o que propicia um contorno de Ego. Ao abordar o tema de
forma firme e compreensiva, Mufasa constela em Simba um complexo paterno positivo,
ao acolher o filho em seu medo e o ajudando a entender que esta emoção está presente
em todos. “No complexo paterno originalmente positivo do filho, o ego se identifica com
seu complexo paterno que define, de modo amplo e coletivo, o que é normal e desejá-
vel” (KAST, 1997 p. 131).

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- recusa ao Chamado
No momento seguinte, Scar leva Simba para um vale onde conversam sobre uma sur-
presa que ele está preparando. O tio provoca o pequeno leão a treinar seu rugido, esti-
mulando a inflação de ego do príncipe, que gostaria de ter uma potência similar à do pai.
No entanto, Simba é enganado pelo tio que, junto com as hienas, provoca o estouro da
manada de gnus (búfalos). Ao saber que o filho corria perigo, Mufasa tenta salvá-lo, mas
depois de deixar Simba em um local seguro, pede ajuda ao seu irmão Scar que, numa
atuação de defesa psicopática perversa o joga do penhasco, ocasionando a sua morte.
A ação de Scar pode ser vista, simbolicamente, como uma atuação da defesa psicopá-
tica que, para atingir seus objetivos, utiliza-se de recursos como dissimulação, mentira,
manipulação, além da função volitiva e ética distorcidas, no intuito de conquistar o que
quer. “Na defesa psicopática, a função estruturante da vontade é envolvida pela defesa,
o que a torna dolosa e capaz de atingir o máximo da gravidade da sociopatia e da delin-
quência”. (Byington, 2019 p. 225)
Scar convence o pequeno leão de que ele é o culpado pela morte do pai, e o manda
fugir. Em seguida, envia as hienas para matarem Simba que consegue, porém, escapar
das investidas das feras – seu tio, no entanto, acaba por desconhecer que ele saiu vivo.
Nota-se, também, que a cena retrata um momento de possessão do ego em formação,
pela sombra. Este filhote ainda está desenvolvendo seus recursos internos para se tor-
nar rei um dia, mas tanto o tio quanto as hienas e os gnus surgem como elementos da
sombra, que possuem e amedrontam o ego. Esta possessão do ego, então, faz com que
ele não consiga identificar os recursos necessários para sair do contexto periculoso. No-
vamente, o ego é resgatado pelo pai, que aqui representa, ao mesmo tempo, o complexo
paterno positivo e o Self (por ser o rei).
Simba foge para a floresta, recusando-se a enfrentar a situação de perda do pai, por
sentir-se responsabilizado por ela. Lá, é acolhido pelos novos amigos – Timão e Pum-
ba – que o encorajam a esquecer o passado, tendo como inspiração a música Hakuna-
-Matata, que para eles têm o significado de se viver sem problemas. Aqui, o personagem
tem uma retração da energia psíquica para o mundo interno, para o inconsciente (repre-
sentado pela floresta). Apesar desse movimento de recolhimento, compreende-se que
o leão apresenta como função principal da consciência, a intuição extrovertida. Pode-se
notar, ainda, a compensação inconsciente quando ele aprende com os novos amigos –
que representam sua função inferior, a sensação introvertida – a comer uma variedade
de insetos, e a conter seus instintos de leão. Jung (2013a) aponta que o inconsciente
do tipo intuitivo guarda semelhanças ao tipo sensação, pois “[...] o pensar e o sentir
são relativamente reprimidos e formam, no inconsciente, pensamentos e sentimentos
arcaico-infantis [...]” (p. 383)

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- encontro com o mentor


Esta fase da jornada inicia-se com a chegada de Nala à floresta (inconsciente), e o
reconhecimento de ambos após uma luta. Este reencontro gera emoções de alegria,
esperança e confusão pois, para Nala, Simba havia morrido e para Simba, Nala sabia que
ele foi o responsável pela morte do pai. Tal confusão foi gerada pelos discursos divergen-
tes de Scar, que contou coisas diferentes para públicos distintos. Nala representa para
Simba o que Jung (2013b) definiu como a Anima, a qual atua como um psicopompo, fa-
zendo com que o leão consiga assumir seu devido papel de rei, despertando-o para uma
mudança completa de seu estado naquele momento. Seu aparecimento fez Simba des-
pertar para encarar feridas do passado, entrar em contato com sua história, e despertar
para seu caminho de individuação.
Após entrar em crise pelo pedido feito por Nala, Simba tem um encontro com Rafike,
personagem que representa tanto a figura de um mentor, quanto a do Velho Sábio. Esta
presença gera algumas reflexões no rei em ascensão, convidando-o a olhar para dentro
de si e encontrar o pai. O mentor bate na cabeça de Simba e eles têm o seguinte diálogo:

Simba: - Ai! Porque me bateu?

Rafike: - Não importa, é passado.

Simba: - Mas ainda dói!

Rafike: - O passado pode doer, mas você pode fugir dele, ou aprender com ele.

Na sequência, Rafike conta que conhece o pai de Simba, e o leva para um local mais
profundo na floresta, a fim de facilitar o canal de comunicação entre Simba e o símbolo
do pai (imagem projetada no rio e no céu), o qual estava interrompido pela culpa que
Simba carregava por acreditar que tinha matado o pai. Pode-se dizer que, neste momen-
to, o mentor está facilitando o reestabelecimento do eixo Ego–Self.
Simba aprofunda-se no olhar para dentro de si, e consegue acessar um campo numi-
noso de experiência, ao ver a imagem de Mufasa refletida no lago e depois nas nuvens,
como um deus dizendo para ele lembrar-se de quem ele é. Esse encontro com o Self fez
com que Simba saísse do estado de inconsciência, o que inspirou seu caminho de volta
para a individuação. Após lembrar-se de quem ele é, e recuperar o acesso à sua potência
criativa, sua energia psíquica sai de uma atitude introvertida, voltando a ser direcionada
para o mundo externo, e para a conquista daquilo que é seu por direito.

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- travessia do limiar
Ao reencontrar seu propósito como rei, Simba percorre um longo deserto, que fica
entre a floresta em que esteve temporariamente e sua residência natal. A travessia do
herói pode ser vista como a experiência do ego que, após entrar em contato com algo
numinoso, sente-se tocado a ponto de rever suas escolhas. Sua energia psíquica estava
retida no inconsciente, por conta do contato com os elementos sombrios possessivos de
sua infância. Agora, essa energia volta a ser direcionada para o enfrentamento de seus
conflitos do momento, com o ego mais fortalecido e alinhado com o Self. Após ganhar
consciência de quem é e de seu papel no mundo, o ego busca sua individuação, e isso
pode ser notado na cena em que Simba passa pelo deserto sozinho.

Segundo ato
- teste de coragem, aliados e inimigos:
Chegada a hora de enfrentar seus medos internos e seu próprio julgamento, Simba
recebe o apoio de aliados como Nala, Timão e Pumba, Rafike e, posteriormente, das le-
oas que ficaram na Pedra do Rei. O herói nota que a postura de Scar frente ao reino gera
devastação, desequilíbrio, escassez e desvitalização.
Pode-se compreender esse cenário como um estágio depressivo da psique, que após
ser dominada pela sombra se viu sem recursos para se manter ativa. Dentro desse con-
texto empobrecido de recursos, Scar – representando a sombra – atua culpando os ou-
tros pelo fracasso de seu reinado, não aceitando críticas à sua gestão deficitária. Simba,
então, com um ego mais fortalecido, percebe que é necessário retomar o controle da
situação, e junto com seus aliados, que simbolizam os recursos que ele desenvolveu en-
quanto estava fora, prepara-se para uma luta importante.

- aproximação do objetivo
Nesse momento, Simba observa o discurso do tio, que termina numa agressão à sua
mãe, Sarabe. Após ver esta ser punida, Simba surge diante de todos para enfrentar Scar
e, consequentemente, tem que lidar com a culpa que lhe fora atribuída pela morte de
seu pai. Seu aparecimento é acompanhado de um forte relâmpago, que pode ser com-
preendido como um lampejo de consciência, que traz novos recursos para a psique em
um momento de enfraquecimento.
Logo após seu surgimento, Simba se vê numa tensão bélica com seu adversário, re-
presentando a polaridade ego-sombra. O ego percebe os danos gerados na psique, mas
a sombra não está disposta a perder o status conquistado. Desta forma, Scar acusa Simba
como responsável pela morte de Mufasa, e Simba precisa lidar com seu complexo de culpa.

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- provação máxima
Em meio à tensão presente, Simba e Scar lutam no cenário repleto de chamas. O fogo
representa o início de uma transformação no reino, uma calcinatio (Edinger, 2006) que
poderá purificar o reino, e o primeiro passo para isso é lidar com as emoções inflamadas,
com a raiva ardente.
A luta entre os leões é compreendida como o enfrentamento dos elementos da som-
bra, quando chegam à consciência. Por vezes, são elementos confusos, desconexos e
acusatórios, mas ao enfrentá-los, o Ego do herói poderá assimilar sua defesa neurótica
que gerou culpa, compreendendo que os fatos eram diferentes do que tinha entendido
a princípio, e que havia sido manipulado pelo plano de Scar no início da história.
Scar, ao acreditar que já havia vencido a disputa, confessa que foi o autor do crime
contra Mufasa. Simba se recupera, e faz Scar confessar seu ato diante de todos. Com-
preende-se este momento como a representação da função do complexo do Ego (Jung,
2013c), que busca assimilar à consciência, conteúdos do inconsciente e elementos exte-
riores. A sombra quer ser integrada e vista, por isso, o ato confessional de seu tio.

- recompensa
Após vencer a batalha contra seu tio, Simba permite que ele vá embora e nunca mais
volte ao reino. Contudo, Scar não se dá por vencido e, em sua última tentativa de reto-
mar o poder, ataca seu sobrinho de surpresa. Neste instante, o herói não hesita em sua
escolha, e empurra seu tio de cima da pedra – logo em seguida, ele é atacado e devorado
pelas hienas.
Tendo em vista que Scar representa a sombra de Simba, quando o herói opta por
expulsar seu tio do reino, evita pôr fim ao seu complexo. O conteúdo da sombra de
Simba não podia simplesmente ser afastado, pelo contrário, deveria ser resolvido. Des-
se modo, quando Scar ataca-o pela última vez, o herói decide enfrentar sua sombra e,
com sua vitória definitiva, integrar este conteúdo – o que representou a conquista de
sua recompensa.

Terceiro ato
- caminho de volta
Logo após o término da luta de Simba com Scar, seu reino – que ainda estava em
chamas – recebe o choro vindo dos céus. A chuva, que caía na terra, representou a nova
vida no reino, e o início de uma nova consciência.

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Jung & Corpo - nº 21

Considerando o fogo como elemento principal da calcinatio (Edinger,2006), pode-se


compreender este cenário como a transformação das emoções intensas e raivosas, pelo
fogo que purifica e retira tudo o que precisava ser queimado. Complementarmente, a
água é o elemento da solutio (Edinger,2006), que pode ser vista como a solução da situ-
ação – água que abranda o incêndio, que acalma os ânimos e traz, como chuva, o choro
necessário para restaurar as emoções e transformar o que foi destruído.
É nesse cenário que surge o desafio final de Simba. Rafike aparece novamente como
seu mentor, e aponta para a Pedra do Rei, sinalizando ao leão que estava na hora de as-
sumir seu papel oficial no reinado. A decisão de Simba fica evidente quando ele caminha
sobre a pedra. Após tantas provações e lutas, Simba encontra-se novamente no mundo
comum, em seu lugar de origem, e pronto para assumir o que é seu por direito – o trono.

- ressureição
Durante seu domínio, Scar atuava por meio de atitudes intimidadoras e perversas.
Isto fez com que o medo e a submissão se espalhassem por todo o reino e, como con-
sequência, toda a terra tornou-se infértil, sem frutos, sem vegetações – desprovida de
vida. Com a chegada da chuva e o anúncio da nova consciência, a terra volta a ser abas-
tada simbolizando a esperança que ressurgiu nos animais do reino.
Além disso, a ressurreição de Simba, que ocorre em sintonia com a fertilidade da
terra, representa o momento da retomada da energia psíquica do leão agora adulto,
uma vez que seu complexo de culpa foi ressignificado. E ele, ao assumir seu papel de rei,
retoma seu processo de individuação – sua consciência se individualiza, e se diferencia
da consciência dos demais. Segundo Jung,

Qualquer avanço começa sempre com a individuação, isto é, começa com o indivíduo abrin-
do novo caminho através de terreno até então não desbravado, depois de haver-se cons-
cientizado de sua própria individualização. Para chegar a isto, deve ele primeiramente retor-
nar aos fatos fundamentais de seu próprio ser, independentemente de qualquer autoridade
ou tradição, e tomar consciência de sua diferenciação. Se conseguir conferir um valor à sua
consciência ampliada, ele provocará uma tensão entre os opostos que lhe fornece estímulos
para seus progressos posteriores (JUNG, 2013d, p. 111).

- retorno transformado
Ao completar sua jornada, Simba se torna rei e regressa mais sábio. Seu reino está
próspero, o que denota que a vida voltou ao seu estado normal. O herói se encontra no
mesmo local que sua jornada teve início, e agora, devido a sua consciência estar amplia-
da, compreende que nada mais será igual como era anteriormente.

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Ademais, Simba não se encontra mais sozinho – ele inicia seu reinado ao lado de Nala
e torna-se pai, o que simboliza o encontro dele com sua Anima. No processo de individu-
ação de Simba, a concepção de seu filhote mostra a vida dando sequência, como símbo-
lo de sua prosperidade. Retorna, assim, ao ponto inicial do ciclo sem fim, representando
a totalidade da psique.

Conclusão

Observando-se a trajetória de Simba, é possível notar que há uma correlação com


a jornada do herói, uma vez que ele passa pelas fases definidas por Campbell (2007) e
Vogler (2009). Na história, o herói encontra-se inicialmente em seu mundo comum ao
receber o chamado da aventura; tem momentos de recusa a este chamado; encontra
suporte de um mentor e de aliados, bem como de uma musa; enfrenta dificuldades. E
ao vivenciar a aventura final, ele ganha a recompensa da saberia como senhor de dois
mundos, ampliando sua consciência e obtendo novos recursos, para reinar de forma
próspera e inspiradora.
Conclui-se, desse modo, que a história de Simba é uma ferramenta válida para a am-
plificação simbólica do processo de individuação da psique, pois traz múltiplos elemen-
tos que exemplificam a dinâmica da evolução interna. Nota-se, também, que Simba lida:
com a construção egóica; elabora o complexo paterno; enfrenta elementos da sombra;
encontra-se com sua Anima; elabora sua Persona de rei; interrompe e reestabelece o
diálogo do Ego com o Self; tem a experiência do contato com algo numinoso; tem movi-
mentos regressivos e progressivos da energia psíquica, trabalhando sua função inferior;
fortalece suas estruturas internas; além de ressignificar seu caminho, por meio do con-
tato com suas emoções conflituosas.

Referências

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123
Jung & Corpo - nº 21

EDINGER, E. F. Ego e arquétipo. São Paulo: Cultrix, 1989.


EDINGER, E. F. Anatomia da psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo:
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2013b. (Obras completas de C. G. Jung, v. 9/1).
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NEUMANN. E. A criança - estrutura e dinâmica da personalidade em desenvolvimento
desde o início de sua formação. São Paulo: Cultrix, 1991.
O REI LEÃO. Direção: Roger Allers, Rob Minkoff. Roteiro Linda Woolverton, Lorna Cook.
Título original The Lion King. Animação, Aventura, Musical. Estados Unidos: Walt Disney
Pictures, 1994. Disney Plus (89 minutos).
VOGLER, C. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, Sinergia, Ediouro, 2009.

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50 ANOS DA PRIMEIRA PUBLICAÇÃO SOBRE A CALATONIA:


O QUE MUDOU?1

50 YEARS OF THE FIRST PUBLICATION ON CALATONIA: WHAT HAS CHANGED?

Sandra Maria Greger Tavares2

Resumo
O presente artigo apresenta um breve histórico do método calatônico criado por Pethö Sándor no cenário
da Segunda Guerra Mundial na Europa na década de 1940. Reflete sobre os desdobramentos teóricos,
técnicos e pedagógicos deste método, especificamente a respeito das correlações entre seus efeitos psi-
cofísicos e os achados do campo atual das neurociências. Finalmente discute sua pertinência para imple-
mentação no sistema de saúde, público e privado, por se utilizar de tecnologia leve, de fácil aplicação,
baixo risco, acessível e com capacidade de adaptação a diferentes serviços, contextos e populações.
Palavras-chave: Calatonia, Sándor, Corpo e Jung.

Abstract
This article presents a brief history of the calatonic method created by Sándor in the context of World War
II in Europe in the 1940s. It reflects on the theoretical, technical and pedagogical developments of this
method, specifically regarding the correlations between its psychophysical effects and the findings from
the current field of neurosciences. Finally, it discusses its relevance for implementation in the public and
private health system, as it uses light technology, easy to apply, low risk, accessible and capable of adap-
ting to different services, contexts and populations.
Key words: Calatonia, Sándor, Body e Jung.

1  Artigo publicado originalmente como capítulo do livro “Calatonia e Toques Sutis: uma abordagem neu-
rocientífica” (BLANCHARD, 2020).

2  Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica, Doutora em Psicologia do Desenvolvimento Humano e com Pós
Doutorado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), psicoterapeuta com Especialização
em Cinesiologia Psicológica e docente do Curso de Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem
Corporal do Instituto Sedes Sapientiae/SP e pesquisadora científica da SES/SP. E-mail: gregerusp@gmail.com

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Passaram-se mais de 70 anos desde as primeiras experiências conhecidas de aplica-


ção da Calatonia por Sándor na Europa, no contexto da II Guerra Mundial, na década de
1940, e 52 anos da publicação, no Boletim de Psicologia da Sociedade de Psicologia de
São Paulo, em 1969, no Brasil, do artigo em que Sándor apresentou a descrição original,
fundamentada e detalhada da Calatonia, inaugurando, assim, a disseminação científica
desse relevante método somático.
Quando me perguntam por que me interessei pela Calatonia e como ela pode ser uti-
lizada, lembro-me sempre de uma cena do filme Jardim Secreto (HOLLAND , 1993), uma
adaptação do conto de Frances Hodgson Burnett (BURNETT, 1911), em que as crianças
abrem um portão coberto de heras, fechado e esquecido há muitos anos, e se deparam
com um fantástico jardim, que devolve a vida para pessoas adoecidas e amortecidas
pelo sofrimento. Sándor, por meio da Calatonia, abriu “portas, desatou amarras, retirou
véus” (SÁNDOR, 1982) para reencontrarmos a potência que resiste em cada um de nós,
mesmo nas situações mais difíceis. Foi assim meu encontro com a Calatonia e seu cria-
dor: um convite para entrar no “jardim secreto”; ultrapassar barreiras; atravessar pontes
entre diferentes dimensões da psique; ir além de uma postura científica mais rígida e
exclusivamente racional; e me surpreender com a sutileza do toque e o aprofundamento
das reflexões.

História, Fundamentação e Perspectivas

A Calatonia, tal como criada e descrita por Sándor (1969), é uma técnica de condi-
cionamento psicofísico realizada por meio de uma sequência de nove toques sutis e
estacionários nos dedos e solas dos pés; no calcanhar; e na convergência tendinosa da
região posterior da perna, com um décimo toque opcional na cabeça. Utiliza a sensibili-
dade cutânea como ponto de partida e proporciona a percepção de múltiplas qualidades
de estímulos pelo toque na pele (pressão, temperatura, dor, vibração e outros). Essa
vivência multissensorial sintetiza particularidades perceptivas e aperceptivas; ou seja,
permite que a pessoa possa organizar de forma relativamente definida os estímulos per-
cebidos e, ao mesmo tempo, atribuir significados a eles.
O tipo de toque praticado na Calatonia apresenta como características principais: a
sutileza – como se fosse possível tocar uma bolha de sabão –; a monotonia – toques
aplicados em ritmo lento e padrão repetitivo, em um ambiente com estímulos reduzidos
(ou seja, sem ruídos, luzes, odores etc.) –; e a simetria – toques nos pés e pernas rea-
lizados simultaneamente nos dois lados do corpo. Ao aplicar a Calatonia, é importante
que “deixemos a mente livre para passar o que tiver que passar”, como costumava su-
gerir Sándor, sem gerar e nutrir expectativas e julgamentos por parte tanto do terapeuta
quanto do paciente.

126
Jung & Corpo - nº 21

Podemos supor, com base nas afirmações de seu criador, Pethö Sándor (1982), que
os efeitos promovidos pela Calatonia apontam para a promoção de estados alterados de
consciência, aqueles em que ocorre um rebaixamento do controle do sistema nervoso
central frente à monotonia dos estímulos e à atenção focalizada nos toques. Apontam
também para a regulação do tônus psicofísico, devido ao ajuste espontâneo do nível de
tensão muscular – esquelética e visceral – e psicológica do organismo. Por fim, os efeitos
também apontam para o equilíbrio dinâmico de diversas funções vegetativas (respira-
ção, circulação, batimentos cardíacos etc.); para a expansão da sensibilidade propriocep-
tiva (ligada à localização espacial do corpo) e de consciência corporal; e para a formação
e percepção de imagens, ideias, sonhos e outras manifestações psíquicas associadas a
processos e sintomas psicofisiológicos.
Todas essas manifestações mobilizam a plasticidade cerebral porque os toques inu-
sitados da Calatonia ativam circuitos e conexões não habituais entre os neurônios. Por
exemplo, tocando-se levemente os pés, “desafia-se” o sistema nervoso, pois não exis-
tem tantos registros na memória desse tipo de estímulo mais sutil nos pés. Os pés estão
habituados com estímulos mais densos, já que recebem continuamente formas intensas
de estimulação por sustentarem o corpo todo em oposição à força da gravidade quando
nos encontramos na posição ereta e ao caminhar.
Ao trabalhar com o corpo desse modo sutil e novo, a abordagem de Sándor “surpre-
ende” o sistema nervoso, o intelecto e a alma da pessoa, e a transporta para a fronteira
entre os mundos objetivo e subjetivo, consciente e inconsciente, corpo e psique. O pa-
ciente se sente acolhido e contido no contexto de um ritual que vai desde a preparação
cuidadosa do ambiente, a entrega aos toques e a auto-observação até o retorno guia-
do e progressivo ao estado habitual de presença. O terapeuta, por sua vez, além de se
manter atento ao paciente, também observa suas próprias reações físicas e psíquicas,
mantendo-se focado em um “terceiro ponto” a ser mentalmente projetado entre ele e
o paciente. Esse terceiro ponto imaginário, como indicava Sándor, atua simbolicamente
como uma estratégia para lembrar o terapeuta de que esse encontro entre as duas psi-
ques é regulado por uma dinâmica exponencial que transcende paciente e terapeuta.
Sándor construiu um método de trabalho – o método calatônico – por meio de uma
inovadora metodologia de investigação que partiu de suas experimentações no contexto
clínico e social para então buscar articulações teóricas. No campo teórico, seu método
integra os fundamentos provenientes principalmente de três áreas do conhecimento: a
psicologia analítica de Jung, a psicologia organísmica e a cinesiologia psicológica.
O repertório teórico que sustenta o método calatônico subentende a visão de Sándor,
que, tal como Jung e em equivalência aos princípios da psicologia organísmica (SÁNDOR,
1982), concebe o ser como totalidade (biopsicossocial) e inclui as manifestações físicas,
psíquicas, conscientes ou inconscientes. Para Sándor, “qualquer dimensão da experiên-

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Jung & Corpo - nº 21

cia pode ser um ponto de partida para atingir a totalidade do organismo e as respostas
deste serão sempre totais” (SÁNDOR, 1982, p. 5-6).
A perspectiva da cinesiologia psicológica complementa a fundamentação da Calato-
nia, partindo do estudo dos movimentos (cinesiologia) relacionados ao sistema muscu-
loesquelético, mas voltando-se também à movimentação da musculatura lisa das vísce-
ras. Sándor procurou estabelecer associações entre os movimentos internos e externos,
seus significados em termos psicológicos, a imagem corporal (a representação internali-
zada do corpo que corresponde à autoimagem) e suas formas típicas de expressão cor-
poral, em termos estéticos e culturais.
O método calatônico engloba uma ampla variedade de técnicas (DELMANTO, 1997)
que incluem a Calatonia, mas não se restringem a ela. Essas técnicas não pressupõem
atender a queixas específicas, mas, de modo geral, visam promover a regulação do tônus
psicofísico, aquele equilíbrio único para cada ser e contexto.
Eventualmente, Sándor recorria de modo natural a técnicas de outras disciplinas,
que englobavam desde métodos ativos (respiratórios, de movimentação e expressão
corporal) a métodos passivos (introspecção imaginativa e meditação), entre outros. O
importante para ele era considerar a escolha das técnicas, em uma perspectiva nitida-
mente junguiana e em uma combinação exclusiva entre as necessidades inconscientes
do paciente, suas características de personalidade, sua situação consciente e as condi-
ções do vínculo estabelecido entre paciente e terapeuta naquele momento do processo
terapêutico.
Do ponto de vista metodológico, Sándor priorizou a observação atenta e sensível,
a descrição profunda e detalhada de nuances da experiência e a intersubjetividade na
construção do conhecimento, sempre embasadas na interação somática e empática com
o outro e com a realidade. No entanto, embora tenha enfatizado a perspectiva qualitati-
va nas suas investigações, sempre reconheceu a importância de desenvolver pesquisas
quantitativas experimentais, particularmente sobre os efeitos psicofísicos da Calatonia.
Assim, Sándor navegou nos mares da experiência e da ciência em busca de novos
horizontes, integrando perspectivas e disciplinas, contrapondo paradoxos e investigando
pontos de contato entre diferentes planos da realidade e do ser. Aproximou-se do que
Barthes (1988) codificou como a autêntica interdisciplinaridade ou mesmo a transdis-
ciplinaridade, que consiste em “criar um objeto novo que não pertença a ninguém” (p.
99). Ou seja, Sándor intentou realizar novas sínteses entre os fenômenos observados e
descobrir elementos, encorajando seus alunos a fazerem o mesmo.
O que dizer sobre o criador de um método tão inovador como a Calatonia, que intuiu,
com mais de 50 anos de antecedência, complexas descobertas do campo atual das neu-
rociências e preconizou uma forma integrativa, inclusiva e transdisciplinar de produção
do conhecimento e atuação clínica, na primeira metade do século XX?

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Jung & Corpo - nº 21

É o próprio Sándor (1982) que inclui, entre os fundamentos multilaterais de seu tra-
balho, “as pesquisas mais recentes [na época] sobre a formação reticular, as representa-
ções vegetativas no córtex e sobre os proprioceptivos periféricos” (p 93). Sándor indicou
também, ao se referir à constelação de imagens durante o processo de aplicação da
Calatonia, a existência de “evidências singulares a respeito da participação dos diversos
segmentos do sistema vegetativo na formação de imagens e da importância do cerebelo
na coordenação dos fragmentos delas” (SÁNDOR, 1982, p. 109).
Ao vislumbrar, inúmeras vezes, o desenvolvimento futuro de uma área de pesquisa
biopsíquica, voltada a investigações mais amplas em campos como os da psicologia e da
medicina experimental, Sándor destacou a importância do “estudo da integração entre
fenômenos psíquicos e físicos, associados à aplicação do método calatônico” (SÁNDOR,
1962, p. 93). Ele utilizou, de modo visionário, processos como o reflexo de orientação
(PAVLOV, 1927), desencadeado a partir de toques inusitados, como os toques sutis da
Calatonia, para redirigir a atenção e reinstaurar a motivação. Aproveitou também a sin-
cronização de redes neuronais de larga escala para promover a autorregulação do pró-
prio cérebro, por meio da conectividade cerebral que é facilitada quando o cérebro está
desperto em estado de repouso. Nesse estado, ocorrem processos de interesse psico-
terapêutico, como os processos aperceptivos e de mind wandering (divagação mental).
Diante das hipóteses sobre os fundamentos multilaterais da técnica, o reflexo de
orientação, a sincronização de redes neuronais e a divagação mental, faz-se cada vez
mais presente a necessidade de desenvolver pesquisas quantitativas e qualitativas que
forneçam evidências científicas sobre a eficácia do método calatônico.
Em um cenário mundial que demanda práticas de saúde baseadas em evidências
científicas que sejam mais inclusivas e voltadas para a promoção da saúde e prevenção
de agravos, em ampla escala, o método criado por Sándor oferece a possibilidade de uti-
lização tanto pelos sistemas públicos de saúde quanto pelo sistema mais individualizado
e privado da prática clínica.
A Calatonia e os Toques Sutis ainda não se encontram entre as práticas oficialmente
oferecidas pelo sistema público de saúde brasileiro, embora muitos profissionais do Sis-
tema Único de Saúde (SUS) empreguem a Calatonia nesse contexto. Porém, as técnicas
de Sándor têm sido cada vez mais utilizadas no sistema privado, sendo bastante inclusi-
vas, no sentido de utilizarem tecnologia leve, de fácil aplicação, baixo risco, acessível e
com capacidade de adaptação a diferentes serviços, contextos e populações.
Por suas qualidades de implementação, da mesma forma que foi utilizado nos cam-
pos de refugiados durante a Segunda Guerra Mundial, o método calatônico torna-se
elegível para incorporação como estratégia da Política Nacional de Práticas Integrativas e
Complementares (PNPIC) (BRASIL, 2016), entre outros contextos, como é o caso da Rede
de Atenção Psicossocial (RAPS) do SUS, em que se realizam intervenções na área de saú-

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Jung & Corpo - nº 21

de mental (GREGER TAVARES, 2010), desde que os profissionais tenham as qualificações


e recebam o treinamento necessário.
A abrangência do método calatônico permite que nele se fundamentem diversas es-
tratégias terapêuticas – reconstrutivas, de apoio, preventivas, emergenciais, de promo-
ção de saúde e pedagógicas. Portanto, sua utilização não se restringe aos campos da
Psicologia e da Psicoterapia, estendendo-se a diversas áreas – como Medicina, Fisiote-
rapia, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional –, apresentando, em sua prática, resultados
promissores e surpreendentes em diversos contextos de atuação, que merecem mais
atenção, estudo e reconhecimento.

Calatonia: Disseminação e Formação Profissional

O interesse pela formação profissional no método calatônico tem sido cada vez mais
pronunciado no Brasil e em outros países. Muito se tem discutido sobre as formas de
disseminação e ensino desse método tão rico, peculiar e complexo, em busca da cons-
trução de eixos pedagógicos. Sándor alertara que:
Por causa da sua divulgação tão ampla [a Calatonia e outras técnicas de relaxamento
correlatas] estão expostas a alterações indevidas e experimentações pouco sérias. As-
sim usadas por pessoas não adequadamente preparadas, podem causar resultados ne-
gativos, devido a inesperadas comutações neurovegetativas ou pela manipulação irres-
ponsável do estado hipnoide que surge no decorrer usual do condicionamento e assim
torna-se patente que em círculos profissionais deve haver esclarecimento adequado
[…] e que aqueles que queiram aplicar [estas técnicas] possam ter a oportunidade de
treiná-las (1982, p. 4).
Embora a aplicação da Calatonia não implique sérios riscos, há recomendações que
devem ser seguidas para o desenvolvimento de uma boa prática, baseadas em sólida
fundamentação teórica e postura ética. Os cuidados para a aplicação da Calatonia, em
contexto de psicoterapia ou não, envolvem desde a escolha e preparação do ambiente
adequado para seu desenvolvimento – preservando-se as condições de conforto, não
interrupção e sigilo das observações relatadas pelos pacientes – até a consideração de
critérios de exclusão. Essas recomendações são extensivamente discutidas nos cursos de
preparo de profissionais.
Torna-se evidente que o terapeuta que pretende utilizar o método calatônico deve se
submeter à vivência pessoal dentro desse enfoque terapêutico, além de buscar forma-
ção continuada e, a princípio, desenvolver seu trabalho sob a supervisão de profissionais
certificados.

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No Brasil, o ensino formal do método da Calatonia tem se dado predominantemente


por meio de disciplinas ou módulos específicos, oferecidos em cursos de graduação de
Psicologia, particularmente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e
em cursos de pós-graduação lato sensu, como o curso de especialização em Psicologia
Analítica e Abordagem Corporal – Jung & Corpo, promovido pelo Instituto Sedes Sapien-
tiae, em São Paulo.
Com a crescente disseminação do método calatônico, tornou-se necessário definir
critérios e procedimentos para orientar o planejamento e a proposição de novos cursos.
Desse modo, criou-se uma Comissão de Ensino, vinculada ao Centro de Integração e
Desenvolvimento (CID), grupo de caráter informal e composto por ex-alunos do Sándor,
cuja denominação foi inspirada na sigla utilizada por ele em apostilas confeccionadas e
distribuídas em seus cursos, e que tem por objetivo preservar os princípios originais da
Calatonia. Como parte dessa iniciativa do CID, o site www.calatonia.org mantém infor-
mações atualizadas sobre esses critérios pedagógicos e divulga os cursos oferecidos por
profissionais qualificados.
A divulgação da produção científica, associada aos estudos sobre o método calatô-
nico, tem ocorrido, no Brasil, por meio de publicações de artigos – especialmente nas
revistas Hermes e Jung & Corpo – em livros, dissertações e teses sobre o tema e median-
te apresentações em eventos científicos, nacionais e internacionais. Essa disseminação
ultrapassou fronteiras e se estendeu a outros locais, como EUA e países europeus como
a Hungria, terra natal de Sándor. São crescentes e diversificadas as iniciativas de difusão
internacional, por meio de cursos, workshops, palestras e publicações.
Para finalizar, como bibliografia básica, recomenda-se a publicação de Sándor (1982)
sobre a Calatonia e, como textos complementares, são sugeridas as várias publicações
feitas no Brasil e internacionalmente, nos últimos 25 anos: Blanchard et al (2019).; Blan-
chard e Comfort (2020); Delmanto (1997; 2008); Farah (1995; 2016 e 2017); Gonçalves
et al (2007).; Greger Tavares (2010); Greger Tavares et al (2015).; Horta et al (2012); Lor-
thiois (2008); Rios et al (2010).; Seixas et al (2009) e Spaccaquerche (2012).

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tivas. São Paulo: Vetor, 2012. 

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INSTRUÇÕES PARA AUTORES

I. Modalidade de Artigos aceitos:


1. Ensaio Científico: Artigo elaborado com base na exposição das ideias e pontos de
vista do(s) autor(es) sobre determinado tema, tecendo reflexões, seja a partir de dados
empíricos (de acordo com o método científico), ou por meio de ampliação simbólica de
alguma produção cultural, artística ou de outro tipo de experiência, destacando-se a
criatividade, a originalidade e o senso crítico do autor. Espera-se que um ensaio conte
com uma breve introdução, o desenvolvimento das ideias e uma conclusão, além das
citações e referências.
2. Artigo de Revisão: Artigo que organiza, apresenta, analisa, discute e atualiza
informações já publicadas, por meio de revisões narrativas da literatura científica, de
acordo com a perspectiva do(s) autor(es). Espera-se que contenha uma Introdução,
em que se apresente o tema estudado e o(s) objetivo(s) do artigo, o Desenvolvimento,
apresentando os conceitos e as ideias principais abordadas e a Conclusão do estudo
teórico, além das citações e referências.
3. Relato ou Estudo de Caso Clínico: Artigo descrevendo e analisando, em
profundidade, um ou mais casos atendidos e investigados pelo(s) autor(es), por meio
do estabelecimento de correlações teóricas e amplificações simbólicas. Esse tipo de
relato deve conter os seguintes elementos: Introdução; Relato do(s) caso(s) (história de
vida, queixa/demanda, procedimentos utilizados na intervenção realizada (se for o caso)
e breve descrição do processo ou relacionamento terapêutico); Análise do(s) caso(s);
Discussão (comparação com análise de casos semelhantes) e Considerações Finais, além
das citações e referências. Neste tipo de publicação, deve-se obter (e anexar) autorização
(livre e esclarecida) por escrito da(s) pessoa(s) objeto do(s) relato(s), para que o estudo
seja divulgado, para esta finalidade e publicação específica. A(s) identidade(s) do(s)
paciente(s) devem ser preservadas.

II. Carta do(s) Autor(es):


Deve ser feita e enviada uma carta assinada pelo(s) autor(es), declarando ser o
trabalho inédito e que autoriza(m) sua submissão à revista e que o citado texto não foi
e nem será oferecido a outro periódico. Em caso de aceitação do artigo para publicação,

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após revisão por pares, o(s) autor(es) declaram a transferência dos direitos autorais
à Revista Jung & Corpo, incluindo os direitos para sua publicação on line, sendo que o
artigo se tornará propriedade exclusiva da revista.

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em português,
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do título, com rodapé em algarismo arábico informando nome, formação, titulações em
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Resumo: com no máximo 3 linhas em Times, 10, em português e em inglês;
Palavras-Chave: três palavras chaves em português e inglês, respectivamente abaixo
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com créditos e em formato eletrônico Bitmap (bmp) e JPEG(.jpg). As figuras devem ter boa
qualidade de exibição e aderir a um tamanho máximo de 600×400 pontos. Recomenda-
se que cada figura não exceda o tamanho do arquivo de 512kb. Imagens cedidas por
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e espaço pós-paragrafo, seguindo as indicações para o formato do estilo do artigo, de
acordo com modalidade (conforme descritas abaixo):
• subtítulos: ao longo do texto devem ser em maiúsculas e minúsculas, negrito, fonte
Times New Roman, tamanho 12;não se numerando os subtítulos;
• citações ao longo do texto: seguem norma ABNT, entre aspas duplas e separadas
por parágrafo se mais de 3 linhas, com indicação do(s) autor(es) e do ano e da(s) página(s)

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e consultadas entre parenteses. Exemplo: De acordo com Progoff (1985, p.161), “o


homem é por sua (....) a sociedade”. OU ...parte–se do princípio de que “o homem é por
sua própria natureza social” (PROGOFF, 1985, p.161).
• transcrições: trechos de outros autores no corpo do texto devem ser feitos sem
aspas, em fonte Times New Roman, tamanho 10, itálico, constando o sobrenome do
autor, ano e página e entre parênteses.
• referências bibliográficas: devem seguir as normas da ABNT, em ordem alfabética,
pelo último sobrenome do autor ou instituição da obra (ou título de entrada, caso a
autoria não esteja declarada), seguido por título seguido por ponto, cidade e ano de
publicação separados por vírgula da data de publicação (ano) do documento, separados
por dois pontos e data final de publicação por vírgula ou volume e número abreviados:
Exemplo para artigo: RIOS, A. M. G.; RIBEIRO, A. J. Rituais sagrados de cura. Hermes,
v. 8, n.1, p.40-49, 2005.
Exemplo para livros: TÓTORA, S. Ética da vida e o envelhecimento. In: CÔRTE, B.;
MERCADANTE, E. F.; ARCURI, I.
G. (Orgs.). Envelhecimento e velhice: um guia para a vida. São Paulo: Vetor, 2006.
p.157-164.
Exemplo de citação de teses e dissertações: ALMEIDA, L.H.H. Danças Circulares
Sagradas. Imagem corporal,qualidade de vida e religiosidade segundo uma abordagem
junguiana. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) – Faculdade de Ciências Médicas,
UNICAMP. Campinas, 2005.
Exemplo para trabalhos de congressos: AMARAL, L. A. Atividade física e diferença
significativa/deficiência: algumas questões psicossociais remetidas à inclusão/convívio.
In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ATIVIDADE MOTORA ADAPTADA. Curitiba: SOBAMA,
2001. p.30–31.

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Jung & Corpo - ISBN 1676-0387


Revista de Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal

nº 20, 2020:
• BALANÇO DA REVISTA “JUNG & CORPO”: 20 Anos
• HOMENAGEM À ELIANA PEREIRA E OLIVEIRA CARREIRÃO – Poema “Canto para a Terra”
• CALATONIA E PSICOTERAPIA – Um Estudo de Caso
• O MITO DA MATERNIDADE COMPULSÓRIA – Uma Visão Junguiana
• NESTE CORPO MORA UMA PUÉRPERA – Quem Cuida do Corpo de Quem fez Outro Corpo?
• A MULHER NORDESTINA: Estereótipo e Experiência
• RELATO DE UM MODELO INTERVENTIVO PARA MANEJO DO ESTRESSE DO PROFESSOR
• DEPRESSÃO E RISCO DE SUICÍDIO NA ADOLESCÊNCIA: Uma Abordagem Junguiana
• A PESTE NA HISTÓRIA, NA ARTE E NA LITERATURA
• MEMÓRIA E ARTE: Um Relato sobre o Ensino de Arte para Crianças com Paralisia Cerebral
• VIDA E OBRA DE FRANCIS BACON: A Busca de Integração

nº 19, 2019:
• HOMENAGEM - Dr. Carlos Amadeu Botelho Byington
• HOMENAGEM - Cleide Trovato
• ENTRE CONTOS DE FADAS E FILMES CONTEMPORÂNEOS:
A Travessia de Duas Personagens Femininas na Busca na Individuação
• MITOLOGIA HINDU, SÍMBOLOS E CASAIS ARQUETÍPICOS
• PSICOYOGA
• O ÚTERO FERIDO E O PODER TRANSFORMADOR DA CALATONIA
• A IMAGEM CORPORAL DE SACERDOTES CATÓLICOS NA PERSPECTIVA JUNGUIANA CORPORAL
• A NEUROCIÊNCIA DOS SÍMBOLOS: DA EVOLUÇÃO À REPRESENTAÇÃO NEURAL
• O IMPACTO EMOCIONAL DA VIRTUALIZAÇÃO DO CORPO
EM INDIVÍDUOS COM INTERAÇÕES REMOTAS DE TRABALHO

nº 18, 2018:
• OS SONHOS, JUNG E A ESPIRITUALIDADE
• O BRILHO DO MALANDRO: o Trickster enquanto Complexo Cultural do Brasil
• CORPO E JUNG: Apontamentos em Direção à Pós-modernidade
• SOMBRA E HUMOR
• ESTUDO SOBRE OS SÍMBOLOS E PRODUÇÕES SIMBÓLICAS
DA OFICINA DE ESPIRITUALIDADE EM CUIDADOS PALIATIVOS
• RESILIÊNCIA E TRABALHO: Reflexões sob a Perspectiva
da Psicologia Analítica com Abordagem Corporal
• “UM GOLPE DO DESTINO”: Quando o doente é o profissional da saúde

nº 17, 2017:
• VIDA RELIGIOSA E MULHERES CONSAGRADAS:
Os caminhos da individuação feminina numa proposta Junguiana
• O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO E A FORMAÇÃO DO TERAPEUTA JUNGUIANO CORPORAL
• A RELAÇÃO DA MULHER COM A MEIA-IDADE
• TOCANDO MENTES, CORPOS E ALMAS EM TERAPIA:
Ampliando e estimulando Conexões Neuronais
• O CONCEITO DE RESISTÊNCIA PARA FREUD, REICH, LOWEN E NO YOGA
• INTENSIDADE E LEVEZA EM UM MUNDO EM TRANSIÇÃO
• POR TRÁS DE DIVERTIDA MENTE - uma Análise Psicológica da Animação da Pixar
• RESENHA: As Múltiplas Faces do Self. Walter Trinca, Vetor Editora, 2016.

Edições anteriores disponíveis para compra:


sedesjungecorpo@gmail.com

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Jung & Corpo - nº 21

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