Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
CONTOS DE FADA
vida, antes buscados no campo do universo mental, �
:X:,
Filosófico, intelectual e religioso, leva-nos agora ao campo
Ja própria vivência da realidade da alma . Foi pela rii
experiência que se abriram caminhos novos em busca
o
esses assuntos. )>1
z
o
(/)
o
("')
z
cn
e
. �: m
�
o
)>
PAULUS
•
Coleção AMOR E PSIQUE Contos de fadas e histórias mitológicas
A ansiedade e formas de lidar com ela nos contos Marie-Louise von Franz
O feminino de fadas, V. Kast
Aborto -perda e renovação, E. Pattis A Individuação nos contos de fada, M.·L. von
As deusas e a mulher, J.S.Bolen Fram:
A femlni//dade consciente • entrevistas cam A interpretaçôo dos contos de fada, M.·l. von
Marlon Woodman, M.Woodrnan Franz
Ajóia na ferida, R. E. Rothenberg A psique Japonesa: grandes temas e contos de
A mulher moderna em busco da a/mo: Gwa fadasjaponeses, H. Kawai
jungu/ano da mundo visívele do mundo invisível, A sombra e o mal nos contos de fada, M.·L von
J.Singer Franz
A prostituta sagrada, N. Q. Corbett Mitos de criação, M.·l. von Franz
A virgem grávida, M. Woodrnan Mltologemas: encarnações do mundo invísivel,
J.Hollis
Caminho para a Iniciação feminina, S. B. Perera O Gato, M.·L. von Franz
Destino,amor e êxtase, J.A.Sanford O que conta o conto?, J.Bonaventure
O medo do feminino, E. Neurnann
A INDIVIDUAÇÃO
O significado arquetrpico de G//gamesh, R. S.
Os mistérios da mulher, EstherHarding Kluger
Variações sobre o tema mulher, J.Bonaventure
Opuer
O masculino
Curando a alma masculina, G.Jackson
Hermes e seus filhos, R. L.-Pedraza
•
•
Livro do puer, J.Hillman
Puer aeternus, M.·l. von Franz NOS CONTOS DE FADA
Relacionamentos
No meio do vida: Uma perspectiva Junguiana,
M.Stein Amar, trair, A. Carotenuto
Os deuses e o homem, J. S.Bolen Eros e phatos, A.Carotenuto
O pai e a psique, A P. Lima Filho Incesto e amor humano, R. Stein
Não sou mais a mulher com quem você se casou,
Sob o sombra de Saturno,J. Hollls
A.B.Fllenz
Psicologia e religião No caminho para as núpcias, L.S. Leonard
Os parceiros invisíveis: O masculino e o feminino,
A alma celebro: Preporaçôo para a nova religião, J. A.Sanford
L.W.Jaffe
A doença que somos nós, J. P. Dourley Sombra
Ajornada da alma, J.A. Sanford Mal, o /ado sombrio da realidade, J.A. Sanford
Deus, sonhos e revelação, M. Kelsey • Os pantanais da alma,J.Hollis
Nesta jornada que chamamos vlda,J. Holllis • Psicologia profunda e nova ética, E. Neumann
Rastreando os deuses, J. Hollis Outros
Uma busca interior em psicologia e relíglão, J.
Hillman Alimento e transformação, G.Jackson
Ansiedade cultural, R. L.-Pedraza
Sonhos A terapia do Jogo de areia: Imagens que curam
• Aprendendo com os sonhos, M. R. Gallbach a alma e desenvolvem a personalidade, R. Am
• Breve cursa sobre os sonhos, R.Bosnak mann
• O mundo secreto dos desenhos: Uma abordagem Conhecendo a si mesmo, D. Sharp
Consciência solar, consciência lunar, M. Stein
junguiana da cura pela arte, G. M.Furth Dioniso no exmo: Sobre a repressão da emoção
Os sonhos e a cura da alma,J. A. Sanford e do corpo, R. l.·Pedraza
• Sonhos e ritual de cura, C. A. Meier Meditações sobre os 22 arcanos maiores do tarô,
• Sonhos e gravidez, M. R. Gallbach anónimo
Envelhecimento • No espelho de Psique, E. Neumann
O abuso do poder na psicoterapia e na medicina,
A passagem do meio, J.Hollis serviço social, sacerdócio e magistério, A. G.<raig
A solidão, A.Storr O caminho da transformação, E. Perrot
A velha sábia, R. Weaver O despertar de seu filho, C. de Truchis
Despertando na meia-idade, K. A.Brehony O projeto l:den, J. Hollis
-/2
Envelhecer, J. R. Pretat Psicoterapia, M.·L. von Franz
Meia-idade e vida, A.Bermann Psiquiatria Junguiano, H. K. Fierz
No meio da vida, M. Stein Saudades do paraíso: Perspectivas psicológicas
O velho sábio, P. Middelkoop de um arquétipo, M. Jacoby ,/
PAULUS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasíteira do Uvro, SP, Brasil)
ISBN 978-85-349-1462·8
8 9
divíduo, não apenas pelo que ele pensa, mas principal existe dentro da pessoa. Devemos até constatar hoje,
mente pelo que ele é. com certa tristeza, que com demasiada facilidade se es
Isto me leva a fazer algumas considerações a respei conde por baixo do termo brilhante de "análise didática"
to da formação dos psicoterapeutas da escola junguiana. uma realidade que é busca do poder, de aprender uma
linguagem, uma cultura, muito mais do que um aprofun
Já no tempo em que Jung situava sua psicoterapia damento da experiência interior. Existe uma verdadeira
apenas dentro do campo da medicina, ele impôs como deformação. Assim vemos que não se deve nunca asso
necessidade absoluta que o terapeuta se submetesse a ciar, como forçosamente interdependentes, análise e in
uma análise pessoal (em 1912). Por motivos de ordem dividuação. Pode-se até perguntar com o próprio Jung o
social, chamamos a isto, hoje, de análise didática. Esta que vale um diploma de faculdade de medicina, psicolo
exigência acarreta duas evidências: a primeira é que, e gia ou qualquer outra instituição, quando se trata de
isto sabemo-lo, quase sempre é urna problemática pes conduzir e ajudar alguém no seu processo de individua
soal difícil que orienta um indivíduo para este tiI?o de ção. O que importa é o homem na sua totalidade na re
atividade profissional. A segunda é que a personalidade lação analítica. Mesmo que a situação analítica seja um
real do analista tem função curativa por excelência na lugar de privilégio para a individuação, não é o único.
terapia. Vê-se, daí, a necessidade absoluta de que el� te ô mais importante é o sentido do símbolo, da alma, do
nha passado por uma análise. Mas isto se torna amda legítimo amor em relação a si mesmo e aos outros, o
mais imprescindível quando a análise deixa o campo da respeito, qualidades que se adquirem igualmente fora
medicina e da clínica para tornar-se o lugar privilegiado desta situação especial. A melhor análise é a vida, como
da individuação. Fica assim evidente que o psicoterapeuta Jung sempre gostava de repetir. A alma humana não se
(se é que ainda este termo é apropriado) não pode con conhece apenas dentro do consultório do analista, mas
duzir outra pessoa além de onde ele mesmo foi. Qualquer na experiência da vida tal como é vivida com todas as
que seja a importância da técnica e dos conhecimentos, suas implicações. Toda experiência interior tem que ser
o essencial são as suas qualidades humanas. Assim, o seu mediada pela relação com o outro. Nunca alguém se in
principal instrumento terapêutico é sua própria alma. dividualiza sozinho, e a finalidade da individuação não
"Só a alma para curar a alma". O objetivo do analista é é ficar só: pelo contrário, é estar em relação, cada um a
despertar a vida da alma, cultivá-la, fazê-la crescer, em seu modo.
resumo estar a serviço do Si-mesmo e torná-lo presente. Daí a importância, para quem queira tornar-se ana
É o alfa e o ômega de toda análise para Jung, usando fista, de achar um analista que o aceite como paciente,
uma expressão tipicamente bíblica, quando são Paulo se e com quem sinta afinidade. No decorrer do trabalho
refere ao Cristo como Anthropos, o Alfa e o ómega. Esta analítico, ao confrontar-se consigo mesmo, ao ser posta
referência Jung a retoma para definir a "transferência" à prova a sua capacidade de se colocar a si mesmo em
o que não nos causa estranheza, pois a relação com o questão, ele se revela a seu analista, revela suas qualida
Si-mesmo é também uma relação com os outros homens, des, seus dons, suas exigências, sua maturidade, sua vo
e ninguém pode ter uma ligação com estes se não a tiver cação. Começa a definir-se esta vocação, e neste momen
consigo mesmo. to, continuando sua análise pessoal, começa devagarinho
Seria no entanto um erro acreditar que a análise a abrir-se a outros conhecimentos. Sempre ocorrem jun
pessoal ou didática cria, por si só, uma relação viva com tas, como vimos acima, prática e teoria.
o Si-mesmo e leva à experiência com o Si-mesmo. O ana Ninguém pode contestar a validade de tal modelo
lista não pode despertar outra coisa senão aquilo que já para a formação do analista, que aliás é velho como o
10 11
mundo. Assemelha-se a um trabalho artesanal que se rea· tem mães nut �izes que protegem o crescimento, inspira
Uza num clima de calor humano, que depende muito de doras ou confide ntes; outros serão do tipo xamã inicia
avaliação e de apreciação subjetivas. O· analisando, no dores ou gurus, se nsibilizadores do corpo etc. Portanto,
decorrer do processo, a medida em que vai adqu irindo o modelo de médico é apenas uma variedade entre tan
maior maturidade vai tendo maior sentido da realidade tas outras, e até normas da prática médica diferem. Jung
do mundo interior, e pode ir assumindo toda a responsa não cessava de re petir que tudo dependia da equ ação
bilidade de sua vocação. pessoal, isto é, do mito individual do terapeuta.
Quando se tenta parcialmente institucionalizar esta
Ser analista é, antes que profissão, principalmente formação, o que acontece é que transformação e rela
uma exigência interior, uma paixão pela alma humana, ção pessoal são deslocadas para uma instituição, para
um modo de viver a sua criatividade, pois a prática da
análise é uma arte, a arte de criar a alma. n_ela serem dissolvidas. Não só o caráte r pessoal e priva
tivo desaparece, mas tanto o analisando quanto o analis
As exigências do Si-mesmo é que nos mostram o nos ta encontram-se entre duas normas: de um lado a da I
viver a nossa própria natureza individual para o bem-es e por outro lado, a das exigências individuais. Inevitavel
tar da sociedade. A individuação representa um risco to mente, no momento de a formação se institucionalizar,
tal para quem a empreende não lhe deixando escolha ela se oficializa segundo os critérios da consciência coleti
alguma. va, e a individuação torna-se estandardizada. Mede-se a
Neste trabalho de formação do analista, de acordo formação em horas de análise, comportamento, conteú
com Jung, a regra não é a análise chamada didática. �os do consciente. A análise tende assim a tornar-se prá
Ela não tem nada de espetacular; a finalidade essencial tica de um método, o bom emprego de uma técnica em
é remeter a pessoa a si mesma, ao seu centro, à su a iden vista da resolução de problemas. O objetivo buscado na
tidade. O essencial, portanto, para a formação dos tera análise institucionalizada entra em contradição com o
peutas da corrente junguiana, é o confronto consigo mes que ela é em si, pois inevitavelmente confunde-se com o
mo e com os outros. · Nunca Jung re ivindicou patente, objetivo b uscado pela instituição. Portanto, colocar em
monopólio, e xclusividade, territorialismo. Nunca entre questão a validez da institucionalização da formação é o
gou diploma para ninguém, ne m qualquer reconhecimen mesmo que colocar em questão o problema da relação
to social; pelo contrário, só nos pe diu para sermos fiéis g:;1po-in�ivíduo. Esta pergunta foi dirigida a Jung, que
. nao hesitou em responder, bem cônscio do que dizia:
à nossa voz interior. Não é de estranhar .pois que a
formação do analista seja estritamente individual, já que "Até um pequeno grupo é regido por um espírito de
ela é orientada para a individuação que é sempre única grupo, fonte de sugestão. Qu ando é bom, pode ter muito
e singular. bons efeitos, mas às custas da autonomia espiritual e
moral do indivíduo. O grupo r eforça o ego. . . O Si-mes
Dependendo da arte e do estilo individual - por mo, por outro lado, é diminuído e relegado a um se
su a vez dependentes do mito próprio de cada analista gundo plano para o proveito da média ... Mas em vista
- apresenta-se uma série de modelos de prática: alguns da inclinação notável dos seres humanos a se agarrem
são grandes sacerdotes do culto da alma, outros confes uns aos outros e dos 'ismos', em vez de encontrar nos
sores, diretores espirituais, outros pastores da alma, che gruFOS � segurança e a autonomia da qual precisam mais
fes de grupo; existem os sofistas, os educadores, os prag que tudo, há o perigo de que o indivíduo faça do grupo
matistas, os conse lheiros práticos ou ainda os biologistas seu pai e sua mãe e fique assim tão dependente, infantil
que examinam no mínimo detalhe o relato da vida; exis- e inseguro quanto era antes".
12 13
Não é por acaso que dentro da Associação Interna bra poderiam ser vistos de frente e tornarem-se fonte
cional de Psicologia Analítica, que agrupa u:_n grand� criativa e libertadora de vida.
número de analistas junguianos, se faça questao de dei
xar abertas todas as alternativas possívei_s de formação Marie Louise Von Franz, como especialista e amante
do analista, sem privilegiar nenhuma. Assim, J?ode-�� ter de contos de fada, nos propõe neste livro a análise de
formação unicamente in�ividua� com u� anah_sta _fil�a�o sua estrutura e dinamismo. Ela escolhe alguns dos mais
a esta Associação, ou a formaçao atraves de 1::is !Itmçao típicos que tratam da individuação. Seu grande mérito
particular, como o Instituto C. G. Jung de 2:unch; po é ter reintroduzido, em linguagem moderna, o que nossas
de-se obtê-la igualmente através de ui:na soc1ed�de na avós gostavam de contar aos seus netinhos, aqueles neti
cional. Mas qualquer que seja o camm�o segmdo por nhos que éramos e ainda somos. Se a linguagem que a
cada um o certo é que a equação ser analista e ser men: autora usa é junguiana, a individuação não o é, pois é
bro de �ma sociedade qualquer é mistificação. A ��en:I· um processo da natureza. Assim ao mesmo tempo que
dade de um analista não se pode medir pela sua hhaçao desmistifica o que parece unicamente pertencer aos "bem
a uma instituição. Mas então como medi-la? -aventurados analisados", a autora consegue colocar ao
alcance de todos a realidade humana contida nestes con
Diante da riqueza e da diversidade da árvore plan tos. Ela nos mostra que a individuação não é um estado,
.
tada por Jung, a resposta é clara: est� qualidade de ana mas um processo que vai se aprofundando e que sempre
lista lhe é conferida pela sua capacidade de expressar pode ser mais aprofundado e completado. "A realização
seu verdadeiro ser em cada situação da vida, e de estar plena de Si não sei o que é", diz Jung, "nunca encontrei
ao serviço do Si-mesmo. Somente pode responder com até hoje um homem que a tivesse alcançado". Talvez a
o que é e sua coragem de ser. individuação seja, antes de mais nada, assumir a sua
Porém mesmo que o indivíduo só seja portador de própria condição humana tal qual se apresenta, e vivê-la
espírito criativo e do sentido de �ndividuação, �xiste com todas as suas implicações e riquezas, sempre se re
uma tendência natural do homem a viver em comumdade. ferindo ao Centro que é ao mesmo tempo o objetivo e a
Tanto é isso verdade que, por tocl_.a parte, surgem peque própria vida. Aquele que souber deixar-se pegar pelo es
nas comunida des cujo único objetivo é cultivar a alma pírito que flui das linhas deste livro há de reencontrar
dentro de uma verdadeira relação humana. Estas �e:iue a importância da imaginação como processo essencial da
nas comunidades se sobrepõem às estruturas soc1�1t, e vida da alma. Além disto, vai se apercebendo de que está
profissionais e até, muitas vezes '. s�o total��nt� 1:ide ,:\dquirindo a paixão da autora pelo sentido da alma e de
pendentes. Algumas há com o obJetn,:o �e vivencia 1�te tudo o que for humano. Se ao mesmo tempo o leitor
rior mais aprofundada, outras com a ideia , de uma onen
. prestar atenção aos seus sonhos, vai se surpreender ao
tação psicoterápicà própria. Neste tipo de comumda�es perceber que as imagens e os temas de seus sonhos são
é O Si-mesmo que regula e ordena as relaç�e?. Aqui a um tanto diferentes depois da leitura deste livro. De fato,
comunhão entre os indivíduos baseia-se em ahmdades e� da maneira como olhamos o inconsciente ele nos aparece.
pirituais unicamente, o que permite m3:ior abert1:1ra, mais A finalidade deste livro é precisamente fazer-nos ter um
respeito, liberdade interior e a gratuidade, pois o que novo olhar sobre nós mesmos.
existe em cada um é ao mesmo tempo algo �ue transcen Quando alguns anos atrás pedi a Marie Louise Von
de a todos, o Centro unificador. Se fosse assim, �ada um Franz a permissão de publicar seus livros em português,
poderia existir na sua singularidade e na s�a mdepen eu lhe contei o sonho que tíve: "Situa-se numa rua da
dência · não haveria necessidade de opos1çao . entre as periferia de São Paulo. Lá encontro-me com Von Franz
comun'idades. Os conflitos, os caprichos do ego, a som- e lhe digo: mas não a convidei para dar um seminário?
14 15
...
Neste momento, ela vê-se rodeada de centenas de jovens
e com um ar benevolente ela me diz que é a eles que
cabe compreender, e "é por isso que estou·com eles".
A autora me respondeu simplesmente que tinha procura
do traduzir em termos da existência cotidiana o que Jung
traduziu em termos intelectuais: "de fato, é verdade, é 1
aos jovens que me dirijo". O Papagaio branco
São Paulo
Léon Bonaventure
16 17
à mulher, que a lançasse numa prisão. O mordomo
não teve coragem de matar as crianças, mas en A .bru �a �oi-se embo ra e quando o irmão regres
cerrando-as numa caixa de vidro atirou-as ao rio e, sou a irma disse-lhe que tinha muita vontade de ter
em seguida, encarcerou a Condessa. uma font e de água prateada. O menino achou aqui
lo um absurdo, que eles não precisavam de fonte
Acontece, porém, que naquele dia um velho, que nenhuma, que não ia buscar nada. Mas a menina
andava pescando no rio, encontrou a caixa e, pu t ant ? o afligiu e apoquentou que ele, afinal, resol
xando-a na sua rede para fora d'água, encontrou as .
veu ir. Aga rrando o cântaro, saiu em busca da fonte
crianças envoltas num lindo pedaço de b rocado de
seda. Ele e a mulher decidiram ficar com as crian :p_ra �eada ..seguindo o caminho indicado pela fei
ticeira, ve10-1he ao encontro um velho que ao sa
ças para criar e, para que ninguém visse a estrela 1
ela lhe assegura que este será o últi mo. _ o mem i:i o tecido e se recrimina por isso.
iss e, p r fim , se dis- Voltando a visi tá-la, a feiticeira encontra-a e�
faz com que a irmã prometa o o
lágrimas . Disfarçando a própria satisfação, a velha
põe a sair em busca do papagaio.
21
20
acons elha-a a não se afligir; diz que o menino vai
voltar, que ele deve t er-se encantado com as coisas Fica a tal ponto pensativo que se esquece de comer
lindas que encontrou no jardim e por certo demo fitando distraído, o prato.
rou um pouco mais, esquecendo-se da hora! S eria O papagaio, que está sempre pousado no om
melhor ir buscá-lo, quem sabe se ele havia perdido bro, da _menma, c:bserva de repente qu e o· Conde
esta mmto pensativo e lhe diz que se quiser saber a
o caminho de volta?! E assim a velha bruxa acabou
por persuadir a menina que, ansiosa por saber o verdade a resp�ito do que anda pensando, que tra
que acontecera com o irmão, resolve sair a sua te de_ 11;-andar tirar a esposa da prisão, e ela então
procura. Seguindo pela mesma direção que vira o lhe dira quem são as crianças.
irmão tomar, também ela se encontra com o velho O Cond e vai para casa, tira a Condessa d a pri
_
que lhe p ergunta quem tanto a odeia a ponto de sao e ouve-a contar exatamente o que acontecera
enviá-la para lá. A menina lhe diz estar à procura e ela lhe diz também que seus filhos podem ser re�
do irmão, por ela enviado em busca do papagaio,
conhecidos por uma estrela que trazem à testa. Ao
que não r egressara. O v elho, então, conta que seu ver as crianças, a Cond essa logo as reconh ece ti
irmão tinha virado pedra, porque não atendera a ra-lhes a faixa da testa e apresenta-as ao Co�de
seus conselhos. Mas ela não deveria se entristecer, Convencido da maldade do mordomo, o Conde man�
da .matá-lo. Mas a velha bruxa, percebendo os acon
pois ainda poderia salvar o irmão se fizesse exata tecm;1entos, c�::msegue fugir antes que a peguem. D es
mente o que ele ia ensinar. O v elho aconselha-a, tal
como fizera a seu irmão, r ecomen dando-lhe muito se dia �m diant e, o Con de e a Condessa viveram
.
felizes Junto aos filhos e nunca mais se separaram
para ser realmente cuidadosa, não espantar o papa
do papagaio branco.
gaio, e sobretudo, esperar até que ele estivesse b em
adorm ecido, pois só então poderia agarrá-lo e man
tê-lo b::!m seguro. E a menina segue os conselhos do Lembrem-se de que é sempre de bom alvitre contar
ancião, espera o papagaio adormecer bem para en o� :personagens, �n �es de começar a interpretar uma his
_
tão agarrá-lo; neste exato momento todas as está tona. Esta pnnc1prn por um quaternário composto pelo
tuas de pedra retornam à vida, inclusive seu irmão Conde, pel� Condessa . . e _os dois fil�os; mas o grupo vem
zinho, e muitos homens, entre os quais se encontra a ser s�cc10nado, d1v1d1do pelas mtrigas do mordomo,
va o Conde, o próprio pai d as crianças, que há al que mais ta�d� �e associa à feiticeira. Por alguma razão
gum tempo também fora em busca do papagaio e de se sent, e nub1do e em lugar de matar as crianças lan
Ç?·as na agua e de:pms . contrata uma feiticeira para ma
s e petrificara. _
ta-las. Assim, as crianças são afastadas, e a Condessa en
Todos ficaram encantados com a m enina que
os salvara. Então, as crianças resolveram convidá c::,arcera?ª· Quan�o às crianças, após serem lançada� na
agua, sao r ecolhidas pelo velho pescador e sua mulher.
-los para um gran de banquete, durante o qual o Agora a situação é tal que na Corte só permanecem três
menino conta que não sabem quem são seus pais, p�s�o�s: o Conde, o mordomo e, em segundo plano, a
pois haviam sido encontrados por um p escador, fe1t�ceira, enqi:anto no inconsciente existe novo quater-
dentro de uma caixa de vi dro. Aí, o Conde pede 12áno: o das cnanças, mais o pescador e sua mulher mas
para ver o pedaço de seda que traziam na cabeça, e esses dois últimos morrem .
ao ver o pano reconhece seu próprio brasão borda
do na seda, coisa que o faz suspeitar cada v ez mais �ot�-se, porém, que sempre há uma tendência a se
constltmr u:11 quadro em torno das duas figuras de crian
de que aqu elas crianças são seus próprios filhos
ças, as quais parecem atrair perfeição. No primeiro ar-
22 23
ranjo o mordomo se encontra em segundo plano, mas lo
go contrata a bruxa que é a figura atuante cujos ato.s ordena seja ela destruída, lançada à prisão e tudo o mais.
são dissociativos. Depois, surge o papaga10 . branco, fi. Esse primeiro tema se encontra em diversas histórias
européias. Provém de lendas medievais, nas quais santàs
gura inteiramente . nova, que unifica o quaternário ori
ginal. Assim, eis novamente o Conde, a Condessa, e as mulheres eram assim injuriadas.
duas crianças com estrela na testa; desta vez, porem, , Na maioria desses paralelos medievais, como em
centralizados pelo papagaio, fato evidenciado pela última Marienkind e outros, a inocente mulher que dá à luz
frase do relato, quando é dito que eles nunca mais . se filhos miraculosos e que depois é caluniada e lançada
à prisão, sempre é perseguida diretamente por uma bru
separaram. Isso parece constituir a gara1:1tia de que .º xa, ou qualquer outra personagem feminina maléfica, en
quaternário não mais será seccicmado pois, como m':1s
quanto aqui ocorre estranha complicação, pois primeiro
tarde se comprovará pelas ampliações sobre o papaga10,
_ _
ele tudo sabe. Isto nos dá a certeza de que esse ultimo aparece o mordomo e só posteriormente ele é substituí
do pela bruxa.
quaternário· consiste num sólido grupo de quatro pes O tema do papagaio, que diz a verdade e· que con
soas, uma vez que o espírito da verdade e da sabedoria .
está capacitado a protegê-lo para sempre. O mordomo � siste numa espécie de espírito da verdade, não é euro
p�u; ele emigrou da tndia para a Espanha, e daí para
eliminado, a feiticeira aguarda algures novas oportum dentro de nossa história, provindo de uma coletânea
dades para pôr em prática suas artimanhas - po:quan persa, que mais tarde discutiremos.
to, no que se refere ao presente caso, ela nada mais pre
tende. De qualquer modo, ela não passava de simples con Os temas da fonte prateada e do carvalho de ouro
tratada, o que equivale a dizer que, pessoalmen��, el� têm sua origem em duas fontes alquímicas e devem ter
não tinha interesse algum em destruir aquela familia, so entrado na história através de alguma parábola alquími
tendo feito o que fez por dinheiro; por outro l�do, o ca, provavelmente da autoria de Bernardus Trevisanus,
mordomo tinha um motivo emocional para sua açao des do século XVI. Porém, isso é mera suposição, podendo
trutiva. eles provir de qualquer outra origem, visto tratar-se de
Assim, o que aqui se pode observar é um movimento temas alquímicos bastante populares. Como se sabe, a
de uma configuração completa de quatro personagens des Espanha é um dos países em que a alquimia foi introdu
truída restaurada no inconsciente, novamente destru1da _ zida, desde seus primórdios, pelos árabes, nos séculos X
e, por' fim, restabelecida no âmbito consciente humano. e XI. Foi na Espanha que se traduziu para o latim al
guns dos mais antigos tratados árabes sobre alquimia.
Pergunta: Não seria o velho o oposto do mordomo? No caso em questão, torna-se relativamente possível
- Não. O velho é o oposto da bruxa. Pode-se dizer descobrir os elementos que constituíram o arcabouço da
que ele exerce ação contrária à �a feiticeira. Enqu�nto história. Porém se a interpretamos como um sonho ou
esta está sempre tentando destruir, ele fornece o antido como uma história simbólica, ela se mostra inteiramente
to para as suas ações, contribuindo para o encontro e a coerente, dotada de sentido completo, apesar de ser cons
integração do papagaio . tituída por uma análgama de elementos diversos. Isso
. . , . é algo que sempre provocou grande celeuma, porque,
Vamos, primeiramente, considerar a h1stona . do :p�n tratando-se de contos de fada, os historiadores literários
to de vista racional. O relato é uma mescla hterana.
A primeira parte se refere a uma mulher que dá à luz são sem:Hre de opinião de que uma vez comprovado que
dois filhos enquanto o marido se acha ausente � é calu parte da· história provém de um dado país e parte de
niada por alguém que se corresponde com o mando, que outro, já não se trata mais de conto original e sim de
um amontoado de relatos sem maior significação. Espe-
24
25
ro, entretanto, conseguir convencer que uma história, lação às mulheres e a tudo o mais, constituindo-se numa
mesmo se constituída de diferentes elementos já conhe
espécie de idéia nacional do que seja o homem nobre, o
cidos, ainda assim é coerente, pois traz em si um signi
modelo de conduta: o Dom Quixote, por exemplo. Esse
ficado especificamente compensatório para a atitude cons
ciente do país em que é relatada. Portanto, o fato de os Cond� repres�nta, portanto, tal ideal, se bem que atue de
temas imigrarem e, de tal história ser como um produto maneira rnusitada: em lugar de seguir o costuine e casar
inconsciente, compensatório para uma situação conscien -se por dinheiro, ou para locupletar de ouro seu brasão
te específica, não constitui, afinal, nenhuma contradição. ele deixa de se casar com alguma rica americana para es�
Mas nada melhor para convencer-nos disso do que, sim posar uma pobre camponesa. Conseqüentem.ente, revela
plesmente, começarmos a interpretar a história. -se capaz de atender a um sentimento individual e não
A primeira cena não se passa, como freqüentemente unicamente às injunções sociais e convencionais. Conse
acontece, na Corte de algum Rei, mas sim no castelo de gue seguir os ditames de seu coração em lugar de ater-se
um Conde. Como se sabe, os principais eventos de um à� regras �oletivas. Esta é provavelmente a razão por ter
conto de fada acontecem nas mais baixas camadas da sido agraciado com aqueles dois maravilhosos filhos com
população, quer seja em meio a soldados desertores, alei es�rela na testa, assim como talvez seja essa mesma a
jados, quer seja entre aqueles que, nada tendo para co razão de nã°. ter sido excluído do quaternário, nele per
mer, são levados pela pobreza a buscar refúgio nas flo manecendo Juntamente com a esposa e os filhos mira
restas. Os heróis das histórias ou são pessoas desse tipo culosos. Isso demonstra que o Conde não precisa ser
ou, então, são de sangue real: barões, condes etc. , ou renovado nem removido como o velho Rei, pois não há
seja, membros das mais altas camadas da população. nada de errado com ele, ao contrário do que ocorre em
O Rei geralmente representa o consciente coletivo tantos contos de fada que no final da história o velho
dominante. Ele simboliza o conteúdo central do cons Rei é retirado ou deposto, sendo substituído pelo filho.
_
ciente coletivo e, assim, ele tem importância vital para Aqui o contexto central está correto e portanto não mu
determinado contexto cultural, para dado grupo huma da, provavelmente pelo fato de esse Conde ter um rela
no, ou nação, achando-se naturalmente sempre exposto cionamento correto e normal, humano e afetivo com o
à influência cambiante do inconsciente coletivo. princípio feminino.
E uma guerra externa que vem separar o Conde de
Um rico Conde não corresponderia exatamente à sua fa-:11�lia e trazer à baila o mordomo. Faz-se porém
mesma coisa, pois ele não representa a atitude dominan necessano colocar aqui uma indagação, pois deve haver
te, mas, pode-se, dizer, s01nente uma parte dela. De modo al�o de errado no primeiro contexto familia! completo,
geral, ele não representaria tanto uma atitude central :i:;01s esse Conde não apresenta sequer um bom instinto
consciente predominante no grupo, quanto o modelo, ou humano ao apoiar-se totalmente no mordomo e a ele con
estilo, de uma "boa conduta" generalizada. Ora, num país fiar sua própria esposa e tudo mais, enquanto se encon
de ordem ou sociedade aristocrática, o povo encara os trava ausente. Ele devia ser mesmo muito carente de
condes e gente semelhante como superiores, os quais de certo discernimento humano e, como sabemos, são justa
vem servir de modelos de comportamento - persona inente as pessoas que psicologicamente pouco conhecem
gens a cujos moldes o próprio povo poderia se adaptar. da yropna , _
Na Inglaterra, o ideal de cavalheiro tem que ser mantido �o.mbra e de seu lado sombrio as que têm
mais probabilidade de se tornarem vítima de influências
vivo por aqueles que pretendem ser cavalheiros. Na Espa maléficas.
nha, existem os magnatas, nobres que observam as mais Quando a pessoa conhece todas as possibilidades do
minuciosas regras de comportamento e de honra em re- mal contidas em si mesma, desenvolve uma espécie de
26 27
segunda visão, ou seja, a capacidade de farejar a mesma mas principalmente sobre os justos, porque os injustos
coisa nos outros. Uma mulher ciumenta que se apercebe lhes roubam os guarda-chuvas 1 ...
do próprio ciúme sempre o haverá de reconhecer nos Se pensarmos um pouco na civilização espanhola, e
olhos de outra. Portanto, a única maneira de não se an se considerarmos o fato de ter sido a Espanha que deu
dar pelo mundo qual inocente tolo, bem educado, pro origem a Dom Quixote e sua famosa história, verificare
tegido por pai e mãe contra todos os males existentes. e, mos que esse problema de cavaleiro puro e perfeito,
conseqüentemente, iludido, enganado, dando ouvidos a fora de contato com os problemas da realidade é, real
mentiras e sendo roubado a cada esquina, consiste em mente, um problema espanhol, ou pelo menos é proble
descer até as profundezas do próprio mal, o que em ge ma da aristocracia espanhola.
ral torna possível desenvolver um reconhecimento ins Quanto ao mordomo, ele talvez não seja tão diabóli
tintivo dos correspondentes elementos entrevistas nou co ou malvado quanto a princípio parece, porque sim
tras pessoas. plesmente se enamorou da solitária e muito linda Con
Assim, não importa o que a princípio se diga desse dessa, fato muito humano, bem humano. É apenas sua
perfeito Conde, certo é ser ele um tolo simplório, pri p_:::1.ixão que o arrebata, todos os seus ulteriores feitos
meiro por ter um tal mordomo, e segundo, porque quan malévolos decorrem do seu primeiro passo errado que
do este lhe escreve caluniando sua esposa, ele, ingenua foi o de se enamorar e tentar seduzir a Condessa, e de suc1
mente, acredita em tudo. Nem sequer pensa em primeiro raiva ao ver-se repelido. No entanto, ele mesmo não se
escrever à mulher contando-lhe ter ouvido coisas terrí atreve a matar as crianças. A princípio, arrastado por
veis a seu respeito e perguntar-lhe o que ela teria a dizer uma paixão erótica, vê-se depois forçado a disfarçá-la, e
sobre o assunto, mas logo se deixa cair na _armadilha. assim vai se adentrando cada vez mais no seu lado som
Então pode-se mesmo dizer que ele parece ser um cava brio. É sua natureza apaixonada que o leva a toda es
lheiro nobre, uma figura-modelo .de comportamento hu pécie de dificuldades. Isso, como sabemos, também é
mano sociocultural que estaria muito bem não fosse por problema dos países latinos do extremo sul da Europa,
sua espantosa falta de percepção instintiva da situação onde a paixão erótica é muito forte, conseguindo facilmen
real. Assim pode-se entender a razão por que, no final te varrei::- do homem os seus ideais de comportamento
da história, ele se sente seguro em poder contar com o consciente.. A sombra não integrada da paixão sexual nos
papagaio, que possui todo o conhecimento que lhe falta. homens em posição de mando é que abre portas à in
. Dessa forma, se examinarmos o que acontece na história, fluência obscura do lado sombrio do arquétipo-mãe.
iremos constatar que tudo está certo, exceto que as pes
soas se encontram fora de contato com a realidade e Sabemos que em todos os países euro-latinos do sul
nada sabemos do que se passa. Elas são tolas e alienadas o arquétipo da Grande-Mãe ainda hoje se encontra bem
do mundo, e afinal passam a contar com uma criatura mais vivo do que na região dos países nórdicos. Ela
demoníaca, bem duvidosa e malvada, pois o papagaio desempenha papel importante nos antecedentes culturais
não é assim tão belo quanto sugere sua branca pluma e no inconsciente dos atuais povos daqueles países que
gem, muito embora venha, daí em diante, a poupar-lhes ainda se encontram sob seu domínio, visto ter sido ela o
trabalho. Sua integração é essencial e toda a história se arquétipo predominante na civilização mediterrânea, mui
movimenta em direção a essa meta. to antes do cristianismo. Nas civilizações de predominân
cia matriarcal a impulsividade animal dos homens é to·
Como todos sabem, Cristo advertiu seus discípulos
a serem sábios como serpentes, e isso é geralmente es lerada e cultivada em proporção bem maior que na vida
das sociedades patriarcais.
quecido; a cada dia a chuva cai sobre justos e injustos,
29
28
Na maioria das sociedades patriarcais, que são ge Na presente história constatamos quão vivo ainda se
ralmente as que possuem um ideal de lealdade e um ob encontra tal problema na Espanha, pois o mordomo, a
j�tivo espiritual, é comum existirem i�iciaçõ_e� e regra_s partir do momento que se enamora da Condessa e é por
tendentes a domesticar e a superar a 1mpuls1v1dade am ela repelido, passa a fazer toda espécie de atos maldosos.
nial e sexual do homem por meio da autodisciplina mi Bem característico é o fato de ele evocar a bela projeção
litar, uma vez que aqueles impulsos contrariam toda o� da sombra, isto é, a alegação da Condessa ter tido um ca
dem espiritual, bem como contrapõem-se a toda orgam so com um negro, dando à luz filhos mestiços, sendo o
zação militar e a todas as instituições concebidas pelo negro o símbolo mais propício à projeção do lado som
Logos masculino. Nas civilizações em que o elemento fe brio. O mordomo inventa um negro que nunca existiu.
minino predomina mais, o ideal militar de autodisciplina para lançar sobre ele sua própria culpa. O apareci
geralmente não é tão predominante, havendo, porta�to, mento de um figurante-sombra representado por um
menor repressão a tais impulsos. Por outro lado, porem, negro é coisa típica dos contos de fada espanhóis, por
isso também se torna problema, pois surge o mesmo tipo causa da violenta invasão de árabes e mouros ocorrida
de perturbação que vamos encontrar nessa his�ória e �ue na Idade Média, e por ter acontecido com os espanhóis
é, por exemplo, a razão por que o espanhol e o ulti,
�o o mesmo que aconteceu com outras sociedades de bran
dos povos europeus a necessitar de to�radas p�ra, sim cos que projetaram todo o primitivo e obscuro de seu
_ da 1mpuls1v1dade se
bolicamente, expressar a superaçao lado sombrio em tais "negros".
xual por meio da autodisciplina.
O Conde, na sua inocência, ou melhor, em toda a
Como Jung certa vez explicou, os povos do norte da sua estupidez, acredita no mordomo e lhe ordena que
Europa não precisam mais de touradas. Quando muito, mate o negro e as crianças e encarcere a esposa. O mor
seus homens precisariam, isso sim, reanimar os touros, domo, que não ousa matar as crianças, coloca-as, ao in
alimentando-os bem com a forragem de gordas pastagens vés disso, numa caixa de vidro que lança ao rio. A partir
e mostrar-se bem bondosos para com eles, uma vez que de histórias como a de Sargon, Moisés e Ramsés III, esse
- como humoristicamente observou - estamos na era mito da criança miraculosa, que em lugar de ser morta
das poltronas confortáveis, na qual os homens têm pre é lançada ao rio dentro de uma caixa de vidro, vem
guiça até mesmo de tocar guitarra à janela das moças! sendo repetidamente contada· pelo mundo através de
Na Espanha, entretanto, a tourada ainda não foi abolida, inumeráveis relatos. Lembrem-se, por exemplo, do mito
e o grande feito simbólico da arte de autodisciplina, que d� Perseu e de inúmeros contos de fada, como aquele
o toreador necessita para cumprir sua tarefa de sobre de "Os três cabelos do Diabo", nos contos de Grimm.
pujar o touro, parece ainda possuir grande significado. Caso desejem uma relação completa desse tema, consul
No sul da França, embora· haja touradas, os touros não tem o livro de Otto Rank (infelizmente, em alemão):
são mortos. Na Espanha essa prática vai entrando em de Der Mythus von der Geburt des Helden (O mito do nas
cimento do herói), onde se encontram muitas histórias
clínio, mas ainda não ficou decidido se vão acabar com paralelas a essa. As crianças ora são colocadas numa
ela ou não. Chegou-se, ao que parece, a uma situação em cesta, ora em caixa ou esquife de vidro; outras vezes,
que a referida prática já não contém nenhum signi são diretamente lançadas à água, expostas aos elemen
ficado simbólico, o que faz todas as outras críticas quan tos.
to ao fato de se constituir esse um ato cruento, odioso e É interessante notar como, psicologicamente, atuam
tudo o 'mais, prevalecer contra o entusiasmo que até en de maneira estranha aqueles que pretendem desvencilhar
tão se apoderava do povo ao assistir a tais façanhas. -se de tais crianças - diríamos mesmo que agem de ma-
30 31
neira neurótica, ou seja, ambígua: ao mesmo tempo que A caixa de vidro é um tema típico dos contos de fada.
buscam destruir, tentam fazer algo para salvar as crian Um dos mais famosos é aquele da Branca de Neve colo
ças. A mão esquerda desconhece o que faz a mão di cada no esquife de vidro pelos anões. Por isso é que deve
reita e acaba por agir ainda melhor que a mão direita. mos indagar a razão dessa caixa de vidro, principalmen
É como se essas pessoas não conseguissem decidir se vão te nessa história que supomos ter surgido por volta do
ou não destruir a criança em questão. século XV ou XVI, época em que o vidro era ainda muito
valioso.
Matar, do ponto de vista psicológico, equivale a uma Em certos escritos alquímicos o vidro é comparado
repressão total. É muito comum as pessoas sonharem a uma substância miraculosa. Por se poder ver através
estar matando alguém ou algum animal, ou mesmo te dele como se não existisse matéria, era considerado ima
rem sonhos horríveis, que eu creio, todos os meus anali terial (aqui convém que se pense de maneira ingênua,
sandos tiveram, nos quais algo de morto retorna à vida, como na época medieval), e assim como o cristal tam
ou um cadáver subitamente abre os olhos e se move e b�m era símbolo da matéria espiritual. Além do �ais, o
assim por diante. Como se pode perceber, tal conteúdo
caracterizado como morto, acha�se tão fora do âmbito vidro tem ainda a grande vantagem de ser isolante, e de
conservar o calor dentro de seu ambiente. Por isso é que
da consciência e do campo de percepção de quem sonha, alquimistas e químicos atribuíam ao vidro tais qualida
quanto o morto acha-se fora da vida. Poder-se-ia dizer des miraculosas, permanecendo até hoje como um dos
que tal conteúdo está completamente reprimido, na me melhores materiais isolantes que existe, razão pela qual
dida em que não pode mais manifestar-se, nem mesmo nos é tão útil. O vidro também nos isola daquilo que po
indiretamente através de sintomas neuróticos ou de qual demos chamar de nossa atividade animal; ele nos separa
quer outra forma no âmbito da consciência. Como se do que não podemos pegar e, por outro lado, nos dá ca
sabe, todas as civilizações temem os revenants, a volta lor; não se pode constatar através dele, no sentido origi
dos mortos, dos fantasmas; e por isso os revenants é um nal de tangere, tocar, mas pode-se ver através do vidro.
tema psicológico muito difundido, visto que fatores com Mentalmente não se está isolado. Pode-se ver pratica
pletamente reprimidos, às vezes, saem de suas tumbas e mente qualquer coisa através . dele, sem que nada seja
voltam a perseguir as pessoas. prejudicado, pois é como se não existisse.
O mordomo é mal sucedido na execução de seu plano. . O vidro é, portanto, um material que sem nos isolar
Ele coloca as crianças numa caixa de vidro - eis aí mais 1_ntelectualmente das coisas isola-nos do contato animal.
outra coisa estranha: por que não colocá-las numa caixa Por isso é que as pessoas que se sentem emocionalmente
de madeira, bem mais barata e mais fácil de obter? isoladas usam a seguinte comparação: "É como se hou
Além do quê, haveria menor chance de as crianças serem vesse entre nós uma parede de vidro" - entre mim e
pescadas. Naturalmente, colocando-as numa caixa de vi ele, o� entre mim e o que me cerca. Isso significa: "Vejo
dro, onde qualquer pessoa, à distância de 200m poderia perfeitamente o que se passa, consigo conversar com as
vê-las, sua intenção era, de fato, que alguém as retirasse pessoas, mas o calor do contato animal e afetivo está
da água. Constata-se novamente a estranha ambigüidade isolado por uma parede de vidro". Costuma-se dizer de
da ação: querer matar as crianças,. e não desejar fazê-lo. uma pessoa que tenta um comportamento indiferente,
Coloca-as, portanto, numa caixa de vidro, para que al ou de uma mulher que pareça estar envolta numa parede
guém as encontre. Percebe-se que ele não é inteiramente de vidro: "Você não vai conseguir se aproximar dela".
mau,· porque com sua mão esquerda está agindo contra Pode-s: ter uma discussão intelectual com tais pessoas,
si mesmo. mas nao se pode sequer conceber a existência de um
32 33
co ntato caloro so po rque a isso se antepõe a tal parede
de vidro. tino individ�al especial ou escolhido. O santo suíço, Ni
Desse mo do, as crianças se vêem, então , em situação colau de Flue, quando ainda se encontrava no ventre
de ficarem isoladas do plano de c ontato humano e lan materno, segundo a lenda, viu uma estrela e durante
çadas à água. Ser lançado à água é ser entregue ao sua vida sempre se referia a isso , dizendo que a ele cabia
destino - a pesso a po de ser levada para qualquer lu trazer luz à escuridão de sua época. Compreendera cla
gar: arrebatada e destruída, ou arrebatada e salva; fica _ ramente sua visão.
entregue ao fluxo da vida. Aqui também a atitude do .No Egito, por exemplo , o Rei ( e posteriormente tam
m ord o mo é estranha, pois ele poderia tê-las enterrado bém o povo comum) possuía diversas almas. Uma a Ka
no caixão de vidro ! No entanto , co mo Pilato s, ele lava �ons�s1:_ia .em vitalidade herdada, em p otência se�ual �
as mãos de to da culpa! Argumenta: "Bem, se eu o s lanço mtehgenc1a. A outra, a Ba, era a parte imortal, a indivi
na água, já não me cabe respo nsabilidade alguma no duali�ade pré-consciente e que so brevive depois da mor
que lhes ac ontecer". A torrente da vida naturalmente te. Po ;s a Ba, hieroglificamente, tanto é representada por
sustenta as crianças, conduzindo -as às mãos de quem as um passara co mo po r uma estrela. Aqui, portanto , a es
salva. �rela_ . também representa o núcleo imo rtal, específico e
Até agora conseguimos interpretar a história sem md1v1d ual da personalidade. Como observa o professor
precisarmo s discutir o significado das crianças. Pro vavel Jacobsohn, em seus comentários sobre "Fatigado H o men1
mente vo cês já no taram que circundei o assunto, po is to r do Mundo com sua Ba", a alma Ba não é exatamente
na-se mais fácil compreender o significado de um per idêntica �o que atualmente chamamos de SELF, porque
sonagem quando se pode enxergar o papel que ele de este contem também e1ementos que nós hoje atribuímo s
sempenha dentro da história. Ora, o próprio fato de essas à perso nalidade consciente. Tal coisa se deve ao fato de
crianças serem atiradas à água já estabelece paralelo que, se recuarmos 4.000 an os ( o que é necessário para
entre elas e os muitos heróis, mito lógico s e religio sos, compreender aquele escrito ), vamos co nstatar que mui
de diferentes civilizações. Embo ra elas não realizem t<;> do que h o je atribuímos ao ego pessoal e ao ego cons
quaisquer feitos heróicos na primeira parte da história, ciente, naquela época ainda fazia parte do que ago ra
p o demos afirmar que são c omparáveis ao s he:óis de denominamos "self".
outro s mitos, que também nasceram de modo miraculo No tempo dos romanos, to do homem possuía seu
so e também f o ram expo stos a ac ontecimentos seme genius, assim com o toda mulher romana tinha sua juno,
lhantes. espécie de demôni o protetor. O genius era representado
Além disso , as duas crianças trazem uma estrela 1:ª por um jovem e brilhante dançarino trazendo uma co r
nucópia repleta de fruto s, a quem cada ro mano no dia
testa o utro sinal típic o do herói. A maio ria d o s heróis
de seu nascimento , oferecia um sacrifício em pro l de
1
38 39
Agarrando o gato, tomou de uma espada e disse que al ro de execuções. De repente, um dos pns10neiros que
guém deveria dizer ou fazer algo que o salvasse, caso estava ao lado de Van der Post, um homem que já havia
contrário, ele o mataria. Mas, ninguém fez coisa alguma, sido torturado e que se achava muito doente, declarou
e ele, então, matou sumariamente o animal, dando fim -lhe, com brilho nos olhos, achar-se prestes a cometer
ao perturbador complexo. Mais tarde, tendo o seu discí uma ação salvadora. Os demais não tinham a mínima
pulo preferido regressado da aldeia aonde fora fazer com idéia do que ele tencionava fazer quando, subitamente,
pras, o. Abade lhe perguntou o que teria ele feito. O dis no pior momento, o homem sai da fila de prisioneiros
cípulo, tirando as sandálias colocou-as sobre a cabeça, formada no pátio e se encaminha ao Comandante do
e o Abade exclamou: "Você teria salvo o gato!" campo ( tamanha era a ousadia que ninguém se atreveu
Esta é apenas uma dentre as incontáveis leituras a segurá-lo), e então ele lhe dá um beijo! Do ponto de
de Ko'ans budistas que têm como objetivo exprimir a vista dos japoneses, aquilo constituía um insulto tão vil,
atuação desse Self criança. E a espontaneidade autên e para os ocidentais uma coisa tão chocante, que todos
tica, a capacidade de fazer a coisa certa. Os sapatos re ficaram paralisados de espanto. Toda discussão cessou,
presentam o ponto de vista de afirmação; basta sim os prisioneiros retornaram a suas celas, os oficiais a seus
plesmente que você reverta seu ponto de vista para que postos. Quanto ao homem, pagou o insulto com a pró
o gato não mais importe, nem constitua problema, pois pria vida, mas salvou a situação, sendo que, mais tarde,
você abre mão da pretensão do seu próprio ego. Se todos o oficial japonês guardou um chumaço dos cabelos dele
os monges tivessem aberto mão da pretensão de seus a fim de oferecê-lo no templo de seus ancestrais, quando
egos, o gato não mais teria importância. Era somente retornasse ao lar, demonstrando assim o profundo res
na "mente ilusória" de seus egos que este gato realmen peito que sentia por alguém que tivera a genialidade de
te existia, então era necessário que eles houvessem in cometer um ato tão idiota, tão infantil, tão louco e, no
vertido aquele ponto de vista para que o gato tivesse entanto, tão redentor, num momento tão crucial.
sido salvo. O discípulo, porém; expressou aquilo tudo Foi tudo inspiração da criança divina. Algo que ja
não em palavras mas por meio do mais simples, imedia mais poderia ter sido planificado. Mesmo que se tivesse
to e sincero gesto, que o Abade entendeu imediatamente. decidido fazer algo de imprudente e tolo a fim de mudar
A criança é isso, essa capacidade absolutamente es o eixo, ou o pivô da situação humana, jamais se teria
pontânea, que há na pessoa, de salvar uma situação. concebido tal coisa. No entanto, um abaissement du ni
Numa discussão, por exemplo, na qual você sente que as ,-·eau mental (um rebaixamento do nível mental), num
coisas vão mal e que algo poderia ser feito desde que homem que já se encontrava enfermo, fê-lo, inspirado
você tivesse a idéia certa, porém, quanto mais você se pelo inconsciente, realizar aquela idéia, que ele conside
r:oncentra nisso com seu ego, tanto mais você se vê rava um gesto de amor, um gesto de reconciliação. Em
bloqueado! Geralmente, quanto mais se pretende dizer a bora não tendo sido assim interpretada e compreendida,
coisa certa, tanto mais confuso se fica. Mas, se pela deu certo, salvando a vida de várias pessoas.
graça de Deus a pessoa se encontra no Tao, isto é, em E por isso que existem tantos mitos em que a crian
posição justa, a criança existente nela achará a expres ça divina caminha em meio de leões e tigres. Tigres e
são exata ou fará a coisa certa. leões são emoções negativas e destrutivas. Geralmente
Num dos seus mais recentes livros, Laurens van der quando ocorrem situações humanas destrutivas é por
Post se refere a uma situação pela qual passou quando que a emoção destrutiva se acha acumulada e, então, nin
estava num campo de conc.entração japonês. Vinha ocor guém consegue sair da situação. Mas existe o mito da
rendo ali um terrível conflito e já se previa grande núme- criança que põe a mão no leão ou acaricia uma cobra,
40 41
e isso quer dizer que algo deixou de ser presa da emoção da. Por conseguinte, ela tem um relacionamento ambíguo
negativa, algo que contínua a ser legítimo e espontâneo com a figura masculina, que embora atue de maneira he
e que, portanto, pode agir redentoramente. Há casos e róica, faz o que lhe é dito para fazer, como um tolo, pro
mais casos de situações humanas em que somente uma vavelmente como o pai, e acaba por cometer um erro.
ação desse tipo pode salvar. Todos nós trazemos isso A menina é mais inteligente, mas também mais próxima
conosco, e às vezes, basta que o reconheçamos para que do mal, pois atende às insinuações da feiticeira.
nos vejamos a salvo, ou para que voltemos a encontrar Devemos, portanto, encarar esse casal de crianças
o justo caminho; e é esta a razão de ser a criança um de maneira mais diferenciada e dizer que, como um to
símbolo do Self. Na interpretação dos sonhos, porém, o do, elas são símbolo de renovação de vida, de uma nova
problema reside no fato de a criança freqüentemente ser personalidade; mas que o lado feminino parece achar-se
símbolo da sombra infantil, algo que às vezes precisa até mais próximo da obscuridade e do princípio do mal,
mesmo ser sacrificialmente trucidada, ou então criada que é um tanto rejeitado pela atitude predominante. Na
com muita severidade. casa do Conde sabemos que o mal não é suficientemente
· Quanto a nossa história, não há dúvidas, pois o sinal levado a sério, e na menina existe um elemento capaci
das estrelas caracteriza claramente as crianças como um tado a constatar o lado escuro e até mesmo capaz de
aspecto do Self e não como parte infantil da personali solucionar toda a situação no final. Não fosse a menini
dade, ou algo do gênero. Podemos, portanto, considerá nha, nossa história teria um resultado inteiramente er
-las aqui como esse núcleo de espontaneidade, o âmago rôneo. Podemos observar aqui um aspecto geral da mi
do ser vivente. genuíno, a quem ocorrem as idéias justas tologia cristã onde, desde o início, a partir de Eva e da
e salvadoras. É isso que a criança representa aqui, além serpente do Paraíso, pensou-se que o elemento feminino
de simbolizar, naturalmente, a renovação da vida. estivesse mais próximo do lado sombrio da vida, mais
Há nesta história um irmão e uma irmã. Na mitolo próximo do mal e mais vulnerável às inspirações maléfi
gia elaborada, bem como nos escritos alquímicos, a crian cas. No entanto, pelo menos desde a divulgação do fato
ça divina, às vezes, é caracterizada com um hermafrodi da Virgem Marfa, o símbolo feminino é também chama
ta. Isso porém jamais ocorreria num conto de fada, on do de símbolo da salvação. Assim é que em muitos dos
de nunca aparecem fíguras assim tão "perversas". Em hinos à Virgem Maria se declara ter ela corrigido os
lugar de um hermafrodita como símbolo característico erros de sua irmã Eva, ou então, diz-se que Eva trouxe
da união dos opostos, inclusive dos opostos macho e fê ª? mundo a morte e o pecado, enquanto Maria dela nos
mea, é freqüente figurar nos contos de fada um casal salvou, dando à luz o Salvador. Portanto, pelo menos
de irmãos, o irmão e a irmãzinha que juntos formam a em nossa civilização, o elemento feminino é visto, de
totalidade hermafrodita do Self. Eles representam a inte certa forma, mais próximo do aspecto sombrio e malé
gração em seu aspecto masculino-feminino. Apesar disso, fico, embora seja visto também, algumas vezes, como
nós não podemos considerá-los apenas como um dúplice
aspecto, masculino e feminino, de uma só coisa, porque um elemento redentor. A Virgem Maria é responsável,
em fase ulterior de nossa história eles de fato se dividem por exemplo, pelo fato de Deus se ter tornado homem
e, influenciada pela feiticeira, a irmãzinha acaba por agir ent �o, se se con�iderar isso uma deterioração - não qu�
_
destrutivamente contra o irmão. Ela o impele três vezes assim seJa considerado, mas poderia sê-lo - pode-se di
para a morte, embora depois o socorra, pois na quarta zer que ela, exatamente pelo fato de ter trazido Deus ao
vez é ela mesma quem vai capturar o papagaio. Assim, domínio humano, trouxe a salvação. Por conseguinte, o
depois de quase matar o irmão acaba por salvar-lhe a vi- elemento feminino é considerado, seja por bem ou por
42 43
mal, como mais prox1mo do elemento humano, como teriam de ser admitidos! Mas isso, por sua vez, era con
mais próximo do que é menos espiritual, menos absoluto. trário a uma outra regra segundo a qual não era permi
1'-la lctade Mécua, a Virgem Maria era considerada co- tido que os animais tivessem iguais direitos no Céu.
1no sendo especialmente afável para com os pecadores, E então, que fazer? Recorreu-se a todos os especialistas
colocando-os sob seu manto. Quando Deus se mostrava em leis canônicas, a todos os santos, a toda gente e até
um tanto severo demais e queria condená-los, ela sim a Deus Pai. Afinal, este teve a idéia de recomendar que
plesmente lançava seu manto sobre eles, dizendo: "Acon fossem perguntar a Santa Catarina de Sena. Após ter
tece que eles são meus filhos". Assim ela os protegia do ouvido a história, ela simplesmente abanou a cabeça,
aspecto maléfico e vingativo de Deus. Maria é humana, dizendo: Mais c'est bien simples, donnez-leur une âme,
por demais humana, podendo por isso mesmo ser um mais une petite! (Mas é muito simples, dêem-lhes uma
pouco mais compreensiva quando erramos. Ela não se alma, mas uma pequenina). Aí está a maneira feminina
acha tão distante de nós, e consegue encarar as coisas de pensar, e de resolver problemas impossíveis!
de maneira relativa, razão pela qual intervém sempre
com uma boa palavra a nosso favor. Diz a Deus: "Ora, Como estão lembrados, nós de início constatamos
tu não podes ser assim tão severo com aqueles antro e_xistirem três quaternários no decorrer da história. Po
póides lá da terra!" Essa é a imagem típica do elemento <lfimos também estabelecer quatro "estágios", tanto para
feminino como reconciliador do divino com o humano, demonstrar um padrão-espaço como um padrão-tempo.
do espiritual com o terreno, do bem com o mal. No primeiro "estágio", há um leão, lá onde a água da
Como vocês sabem, as mulheres sempre arrazoam vida pode ser colhida para formar a fonte que brota no
por exceções e não acreditam em regras. Se chegam a quintal. No segundo "estágio" está a serpente sob a ár
estabelecê-las ou a acreditar nelas, isso se deve ao ânimus. vore das bolotas de ouro e prata. Depois vem o pa
Por si próprias, elas sempre acham que o que pensam é pagaio, que é ao mesmo tempo o terceiro e o quarto
o certo, sem jamais se preocuparem quanto a haver ou estágios, porque de início trouxe destruição para o me
não regras para isso. Essa é a tendência mais natural nino e depois vida e solução para a menina; ele desem
da mulher. A seguinte história de Anatole France exem penha, portanto, uma dupla função, agindo duas vezes
plifica bem a natureza feminina: como "estágio", no decorrer do conto. As crianças vão
Era uma vez um santo muito míope, que foi para a ele duas vezes, primeiro o menino que é destruído, e de
uma ilha cujo povo ele queria converter e onde, para sua pois a menina que põe tudo em ordem. Daí em diante, a
alegria, todos acorreram à praia vestidos corri suas me feiticeira desaparece, e o fator"dirigente", ou seja, aquele
lhores roupas - todos de fraque e camisa branca - dan que leva avante a ação, passa a ser o papagaio, pois é ele
do-lhe a entender que estavam ansiosos por serem bati que aconselha o Conde a tirar a mulher da prisão e a in
zados. Mas o santo, um tanto tímido, não querendo apro vestigar o que há com as crianças; desde então, é ele quem
ximar-se muito - provavelmente por ter esquecido os dirige e quem murmura ao ouvido das pessoas os con
óculos - ali mesmo, do próprio barco, batizou a todos, selhos, o que resulta na restauração do quaternário ori
mantendo certa distância; acontece porém que, infeliz ginal (Conde, Condessa e as duas crianças). Já agora,
mente, eram todos pingüins . . . Por causa disso estabele o quaternário é centralizado e dirigido pelo papagaio,
ceu-se no Céu uma terrível discussão, pois todo aquele pois que a última frase do conto indica o verdadeiro
que recebe batismo tem alma imortal e portanto tem resultado da história: "e eles nunca mais se separaram
direito a ser admitido no Céu e, agora, segundo as pró do papagaio". Daí em diante, o quaternário está seguro
prias regras masculinamente estabelecidas, os pingüins e nunca pode vir a ser seccionado, como o foi o primeiro,
44 45
porque o papagaio, que é uma espécie de espírito de
verdade, olhará por ele. Ex�st: t:ma espé�ie �e espírito de ação que impulsio
Dentro desse esquema, existe a princípio um quater na a h1stona. No pnme1ro quaternário, ele .é represen
nário humano ( o do pescador, sua mulher e as duas tado pela som�r:1 �e um homem mau; no segundo, re
crianças) que é seccionado pela morte e pelo mordomo presenta-o a feiticeira, e depois, nos dois últimos está
através da feiticeira. O terceiro, é um quaternário da gios, o papagaio, havendo portanto uma espécie de trans
natureza, formado pelo leão, pela serpente e pelo papa f r �ação do fa �o� dirigente. Poder-se-ia dizer que, a prin
':
gaio, este em sua dúplice função. Nesse estão ausentes c�p10, o fator d1ngente é inteiramente m<iléfico, até sur
os seres humanos, pois trata-se de uma mandala natural; �ir �n:1
que se opõ � - o velho sábio age contrariamente
.
e vocês vão notar que ela tem muito a ver com o sim a fe1t1ce1�a, ou seJa, um fator positivo se contrapõe a
bolismo alquímico. Portanto, os dois quaternários huma �n:1 negativo. ,um diz, vai e faz isso, para que as crianças
nos são, por assim dizer, puxados para baixo até che seJam dest�mdas; enquanto o outro diz o que fazer para
garem à mandala natural, não humana, para em seguida que elas se�am salvas. A Jibido que estimula a ação assu
se renovarem, porém, trazendo em si um pouco de na me, paulatinamente, um outro caráter; a princípio pa
tureza do espírito animal. Antes, eles contavam apenas r�ce se� :purame 1;1te negativa, depois ambivalente, e por
_
com o espírito maléfico do mordomo para guiá-los, ago fim pos1t1va. Venf1ca-se, portanto, nessa história aparen
ra, porém, são dirigidos pelo papagaio branco. temente .ingênua, a existência de uma estrutura muito
sutil.
Assim, as crianças são lançadas à água e passam a
viver com os pescadores, os quais não deveriam achar-se Per'!,unta.� Mas a história não acaba assim, não é mesmo?
no limiar do consciente coletivo por estarem em camada Sena estavel essa quaternidade?
mais baixa da população ou, por assim dizer, mais à
sombra, mais perto da natureza. Tal fase permanece - Bem ... por assim dizer, ela é relativamente está
inteiramente encoberta, é o mistério oculto do qual nada vel, pois o papagaio é muito inteligente; ele é o espírito
se conhece, sendo necessária uma viagem perigosa para da verdade e a gente percebe que, caso apareça um
se chegar até lá, daí se retorna ao limiar da consciência outro mordomo a tentar novas artimanhas ele desde
coletiva, porém já trazendo o novo elemento em forma logo o impedirá. Percebe-se, assim, que o úl�imo grupo
de papagaio. de quatro pessoas acha-se mais seguro, pois conta com
:É este o ritmo estrutural da história. Uma vez tra
u:11-a espécie d� espírito de experiência e sabedoria de
,
çado o esquema, poder-se-á praticamente ver-lhe o signi ,oda q:1e esta Junto dele e que, até certo ponto, deverá
_
ficado. Ao que parece, é como se o modelo de compor p�o�ege-lo. Mas, assim como você se sente um tanto em
tamento perfeito estivesse demasiadamente apartado da duv1da quanto a esse último quaternário, também eu me
_
natureza, como se toda essa série de eventos levasse a smto!
uma integração relativa e parcial da natureza. Digo re Pergunta: Seria a presença do elemento sombrio do pa
lativa e parcial, esperando que vocês aceitem isso, por pagaio que faz com que esse quaternário não seja es
enquanto, sem que saibam o porquê, mas posteriormen tável?
te abordarei a versão pérsica ou iraniana, quando vocês
poderão constatar em maior profundidade, sendo a inte B �m, isso depende, pois, também poder-se-ia di
.zer que, Justamente pelo fato de esse papagaio incluir o
gração bem mais completa. Aqui, porém, existem apenas
uns arranhões superficiais que não chegam a revelar o mal, ele é, mais estável. Nele se acha integrada certa
todo, mas somente uma parte. dose de mal, certa dose de naturalidade que constitui
uma proteção contra o mal.
46
47
Pergunta: Na primeira quaternidade, foi o elemento som -pássaro, de quem ele destitui a pele animal, obrigando-a
brio do mordomo que promoveu a transformação; agora, em seguida, a desposá-lo. Algum tempo depois, porém,
temos o elemento sombrio no papagaio. Eu me pergunto ela reencontra sua pele, ou ele comete o erro de espan
se, com o tempo, não virá ele a fazer o mesmo? cá-la ou de chamá-la peixe, ou algo do tipo, o que não
poderia ter feito e, então, ela torna a desaparecer. Muitas
- Sim, com o tempo o papagaio pode vir a mudar. histórias terminam assim, havendo outras que simples
A história não conta, mas sua dúvida tem certa razão mente partem daí virando histórias sobre uma busca, ou
· de ser; pelo que eu pude perceber nunca houve uma ve: então, sobre o marido faltoso que sendo abandonado
dadeira solução nos contos de fada. Uma estrutura esta morre de melancolia, ou se mata, ou fica adoentado para
vel é sempre destruída e substituída por outra estru o resto da vida, ou ainda passa oito anos peregrinando
tura estável relativamente melhor. :É como uma melodia até o fim do mundo para, então, reencontrar a esposa.
eterna, ela termina em uma nota suspensa enquanto se Pode haver, efetivamente, histórias nas quais tenham
espera que outra recomece. Essa é a razão pela qual os sido reunidos os dois tipos de história: o da busca e o
contadores de história do Oriente são levados a contar de sereia ou de noiva-pássaro. Portanto, também nós
mais de cinqüenta histórias, uma após à outra, em se possuímos tais configurações, mas elas nunca são tão
qüência, pois está tudo no inconsciente, nada completa longas quanto as orientais. Mas a tendência para girar
mente percebido. Para citar Goethe: Gestaltung, Umges sempre em torno. do contexto do qual proveio também
taltung, desew'gen. Sínnes e1,vige Unterhaltung - "For ocorre no nosso tipo de histórias, porque de certo modo
mação e transformação, eterno entretenimento do espí as camadas mais profundas do inconsciente são como
rito eterno". uma espécie de onda em permanente movimento que
Pode-se dizer que uma estrutura estável só pode ser continua pelas profundezas. O contador de histórias é,
encontrada num ser humano que a integre; aqui, entre por assim dizer, apanhado nesse ritmo, tendendo a fazer
tanto, o que se encontra é somente o modelo arquetípi o mesmo.
co. Trata-se apenas de uma estrutura relativamente es No Oriente, o contador de histórias geralmente con
tável, em contraposição a uma completamente instável. tinua seu relato por todo o .dia e as pessoas que vão
Mas a impressão de que tal quaternidade possa vir a de chegando ouvem-no por certo tempo, deixam algum di
sabar é certa, pojs uma nova história pode principiar! nheiro e vão-se embora. Há no entanto gente preguiçosa
E pode começar, por exemplo, assim: era uma vez um -que fica sentada por ali o dia inteiro, de maneira que
Conde, uma Condessa e duas crianças que tinham um ele pode fazer com que a história prossiga sempre, pelo
papagaio muito querido; o Conde tinha medo de qu_e o simples acréscimo de um novo trecho, seguindo assim
papagaio fosse roubado, por isso colocou-o numa ga10la certo ritmo vital. Supõe-se que tal espécie de movimento,
de ouro cuja chave ele guardou debaixo do travesseiro que é a do padrão inconsciente dos sonhos, deva conti
da esposa, mas então um malvado vem da floresta e rou nuar durante o dia. Não sonhamos somente à noite, mas
ba o papagaio, aí surge um herói etc ... Assim, caso você provavelmente, mesmo durante o dia temos uma espécie
seja um oriental e bom contador de histórias, facilmente de processo onírico subterrâneo, do qual não nos aper
se adaptará ao novo ritmo. cebemos. Cremos que tal coisa acontece porque, às ve
De certo modo, é nisso que consistem os contos �e zes, durante o dia, as pessoas cometem um erro ao falar,
fada. Em nossos países só existem reações em cadeia mencionando alguém que conheceram aos vinte anos e
parciais; como, por exemplo, nas �istórias em que o que esqueceram, enquanto comentam, "que engraçado
herói agarra um peixe, ou uma sereia, ou uma mulher- eu me referir à tia Fulana de Tal" e então, nessa mesma
48 49
·-··· -··--·-·--··-------------
noite sonham com a tal tia. Ao que parece, essa tia já consigo saber o que é ... " Ao que Jung retorquiu: "Eu
estava constelada no sonho diurno, pois o erro ocorreu tamb�m não sei, mas procure alguma mulher e pergun
enquanto falavam, embora, até a noite o sonho não pu te-lhe, elas geralmente enxergam essas coisas que nós
desse ocorrer a não ser como lapsus linguae. Há tam homens não vemos".
bém gente que simplesmente olhando para o interior de ?bservação: Isso é verdade, pois embora a mulher atenda
si mesma consegue observar seus "sonhos" diurnos. Pes a� su�estões da fei:iceira e a7sim c8:use destruição, tam
soas muito intuitivas conseguem provocar em si mesmas bem e ela quem ve como sair da situação.
uma condição hipnagógica, no momento em que o dese e te conto o elemento masculino, o mordomo, a
. � �o provoca destruição, mas, quando o elemento
prmc1p
jem; e aí então simplesmente olham para dentro e vêem �
o que se passa no inconsciente, embora poucas sejam destrutivo _ passa a· ser o feminino, a menina ouve-o e
as que o conseguem. depois age, ora aceitando-o, ora rejeitando-o. Ela age
Ao interpretar o significado das duas crianças mar tanto como Eva quanto como Maria. Na Idade Média
cadas por estrela, mencionei o fato de ser a menina Eva era considerada como a mulher que trouxe a morte'
quem traz a solução. Nesse perigoso estágio da história, e Maria, a que nos redimiu da morte. A menina atu�
o menino sucumbe às artimanhas da bruxa e é a menina c;o�C: ambas numa só personalidade, provocando a des
quem salva a situação - capturando o papagaio e tra !rmçao : então, evitando-a. O resultado, na história é a
zendo-o consigo. Não podemos, portanto, considerar as mtegraçao desse sábio papagaio sobrenatural.
crianças apenas como um símbolo do Self, como um sím Portanto, diríamos que as crianças representam um
,
s1mbolo do Self em seu status nascendi, achando-se cons
bolo hermafrodita da união dos opostos; existe aí uma
leve ênfase que mostra ser o elemento feminino o mais telado e ativado apenas no inconsciente, de certo modo
positivo, ou pelo menos que mostra estar ele mais à ainda não integrado ou percebido no consciente. Há uma
altura da situação que o elemento masculino. Se, no en vaga_ evidência quanto ao aspecto feminino ser O mais
tanto, considerarmos que, pela estrutura geral, o proble ativo e o r:na�s �mportante dos dois. Freqüentemente
ma consiste em fazer emergir o espírito da natureza, is ocorre a ex1stencia de um garotinho e sua irmã como
so vem confirmar a velha idéia de que o elemento fe dúplices h �rói: d � u 1:_1a histó�ia como, por exemplo, no
minino se acha mais próximo do espírito da natureza e cont � da.s irmaos , Joao e Mana ,, , onde, a princípio, cabe
por isso ele atua aqui como fator de salvação. Esta é a a Joa <? o desempenho de certa função positiva. Quando
razão de eu ter contado a história de Anatole France os na1s levam-nos para a floresta é ele quem junta as
que mostra como a mente feminina consegue pensar por pedrinhas e vai jogando-as pelo percurso, de modo a reen
exceções; ela é menos passível de se deixar prender pela �ontrar ? caminho de casa. Mais tarde, no entanto, João
trama de suas próprias proibições e normas e por isso e que foi tal� deixando-se agarrar pela bruxa que o teria
_
mesmo é que se acha de certo modo mais perto da natu comido, se nao fosse Maria ter a feliz idéia de empurrá-la
reza. Jung sempre fez notar que na mente das mulheres pa�a �entro �o forno, salvando tanto ela mesma como
existe aquHo que ele chamava de mente natural, uma o :rma�. Aqm também há uma ênfase na menina, e se
espécie de displicência, mas também uma veracidade que evidencia a mente maléfica de Maria que se assemelha
falta à mente masculina, porém, quando integrada pode à da bruxa. A maneira dela se comportar com a bruxa
ser de grande utilidade. Sei, por exemplo, de certo ho não é lá muito elegante, mas é muito oportuna e salva a
mem analisado por muito tempo, que disse: "Sinto-me situação.
mais ou menos bem, mas noto que de algum modo as yerifica-se aq1:1i uma constelação semelhante que
coisas para mim não andam lá muito certas; só que não precisa ser entendida como compensatória. Na atitude
50 51
consciente predominante existe, provavelmente, demasia que o inconsciente está a agitá-los ou persegui-los, mas
da ênfase nos valores masculinos e, por isso mesmo, os não sabem ainda do que se trata. Logo que tal coisa se
valores femininos compensatórios são postos em evidên manifesta, seja através de uma imagem, de um sonho,
cia; a mente natural das mulheres e o seu aparente ma um impulso inconsciente ou ainda um tic nerveux, ou o
lefício - ou, por assim dizer, a sua atitude irracional - que quer que seja (pois há milhares de formas de uma
é o que se evidencia como fator de importância. coisa assim se manifestar), então, vocês podem afirmar
Geralmente, quando um símbolo aparece em forma tratar-se disso ou daquilo, distinguindo-a e separando-a
dúplice subentende-se que o que ele simboliza está se (pelo menos relativamente) do restante da psique in
aproximando do limiar da consciência. No simbolismo consciente. Pode-se a partir daí, afirmar sua diversidade,
numérico, o número 2 é sempre considerado como dife sua diferença daquilo que é uma coisa vaga e total a
renciação ou diversidade. Da série de números naturais que se dá o nome de psique inconsciente. É provavelmen
que se sucedem ao 1, pode-se dizer, retrospectivamente, te por isso que os conteúdos, quando totalmente incons
que o 2 é um número que ainda não chega a sê-lo real cientes são, por assim dizer, contaminados pelo total do
mente. Existe discordância quanto ao assunto; os chi inconsciente - só quando eles possuem certa carga é
neses afirmam que o 2 não é número, enquanto os que se tornam diferenciados, aproximando-se do limiar
pitagóricos declaram que ele ainda não é bem um número, e tornando-se diversificados em relação ao restante do
mas apenas o início de um. A maioria dos sistemas sim inconsciente.
bólicos só admite os números simbólicos a partir do 3, Existe um limiar da consciência que tem, acima de
pois o 2 é apenas uma diferenciação, ou diversificação le, o ego como centro dos conteúdos conscientes e, abai
do um, onde alguma coisa existe em contraposição a xo dele, aquilo que vagamente denominamos de incons
outra coisa, to heteron ou thateron, em linguagem platô ciente. Ao falarmos de inconsciente, empregamos uma
nica; o 2 corresponde portanto, a "diversidade". Pode-se conceituação que o caracteriza como um todo contínuo,
afirmar ser esta uma absoluta conditio sine qua non como o é na física um campo magnético. William James
da consciência discriminativa, a de se conseguir estabe já comparou o inconsciente a um "campo". A um dado
lecer a singularidade e a diversidade. Se não consigo momento, um conteúdo emerge e, no instante em que
distinguir um objeto de outro, ou um objeto de um su atinge o limiar secciona-se ern duas partes. Uma, é o
jeito, se me encontro ainda mergulhado no sentido total aspecto que posso postular, ao passo que a outra per
da unicidade, então encontro-me em estado relativamente _manece no inconsciente e, geralmente, é por isso que
inconsciente; estou dentro da unidade de vida, que tudo quando se tem imagens oníricas de completa duplicação,
abrange, mas não estou consciente. sonha-se com uma pessoa duplicada, ou então, com dois
A consciência não pode ser separada da capacidade gatos, dois cachorros, duas árvores ou duas casas se
de discriminar; discriminação significa ver e ser capaz de melhantes, e assim por diante. Daí podemos apenas con
estabelecer diferenciação entre as coisas. Se um conteú cluir que algo está começando a dividir-se, vindo uma
do se acha totalmente dentro do inconsciente, então ele parte a ser apreendida pela conciência, enquanto a ou
provavelmente é até o seu próprio oposto, ele é tudo. tra vai esvanecer-se na camada abaixo. No estágio se
Vamos supor, por exemplo, que vocês tenham a vaga e guinte, o conteúdo emerge um pouco mais, já tem um
desagradável sensação de que algo se agita dentro do oposto, uma sombra que, por sua vez, torna-se definida.
próprio inconsciente. Vocês ainda não sonharam nem fan Quando o conteúdo realmente transpõe o limiar, então
tasiaram coisa alguma, só sentem que a energia de vocês sua diversificação (altruidade) também ingressa no cam
vai-se acumulando. A única coisa que conseguem dizer é po da consciência. Existem, contudo, muitos e muitos
52 53
motivos mitológicos de opostos: o cachorro b�m e o Há certas pessoas que entram em análise declarando
mau, um pássaro branco e outro preto, e assim P<:r pretender curar-se disso ou daquilo, desejando isso ou
diante, um dos quais se caracteri�a por achar-se mais aquilo, mas algumas vezes, quer o mencionem ou não,
próximo da consciência, sendo por isso mesmo ch�ma�o guardam algures, num escaninho, algo que já têm por
de bom de brilhante etc.; quanto ao outro, mais dis decidido. Isso é coisa já resolvida e que não precisa ser
tante da' consciência, é por isso mesmo considerado mais discutida na análise - seja qual for o caminho que ela
negativo. tome, esse assunto é algo que não precisa ser menciona
Portanto, a duplicidade significa que algo ati1;1giu do nem comentado. E então, cada vez que as associações
0 limiar da consciência, algo ainda um tanto
amb1guo oníricas ameaçam levá-las ao tal escaninho, elas experi
que a consci ência ainda não sabe discer :3-ir dé que se mentam estranha sensação e imediatamente mudam de
trata, por achar- se ainda enlead a no contm uum dm � d� assunto, interrompendo as associações, de maneira que
mais conteúdos inconscientes. No presente caso, sena li temos que esperar largo tempo até poder supreendê-las
cito supor que a meniI:i.a fosse. a parte !'ºm?ria, po_is essa in flagranri, quando cometem algum erro cuja conexão
parte se encontra mais próxima do ambito_ do mc?ns não percebem imediatamente. E quando se torna preciso
ciente e, como já se ressaltou, por ser ela mfluenc1ada dizer-lhes que prossigam e abram a tal gaveta, elas de
pelas insinuações e pelas sugestões maldo _ mfeno .
sas 1ª bruxa, claram haver pensado que aquilo não tinha importância!
encontra-se mais perto do lado sombr io : Tu�o
. Caso tal reação ocorra, fiquem certos de que a coisa é
está demasiadam ente dentro dos proces sos de vida nao altamente explosiva, do contrário tais precauções teriam
percebidos e muito pouco integr ados em qualq uer rea sido desnecessárias . Trata·se de algum complexo "quen
lização cultural . te", ainda não integrado.
Quando um símbolo do Self se manifesta como crian Por trás do nascimento dessas crianças, encontra-se
ça, isso significa que ele surge. na espontaneidade do s r uma terrível possibilidade de novos eventos psicológicos
_ theon�a,
humano e nos processos de vida, mas sem muita e de percepções, o que levou a consciência a reagir de
sem muito Weitanschauung ou capacidade espiritual da maneira tão resistente. A tendência de seccionar, de cor
consciência coletiva de chegar a integrá-lo ou ?etermin� tar fora uma metade, provém ela ação do mordomo que
-lo. :e.
mais um evento do que algo compreensivel ou, di já interpretei e que é, realmente, ditada por sua am
gamos, é mais uma possibilidade do que um fato consu- bição de querer ele próprio casar-se com a Condessa.
mado. Bm casos assim, há uma dupla possibilidade de reação
Recapitulando os eventos da história: o Conde, ca negativa, sombria. Ou tem-se a técnica de escaninho, que
sando-se com moça pobre, casou-se abaixo _ de sua con consiste em deixar fora o novo conteúdo, ou então, tem
dição social e, portanto, já se expressa nisso um� cert� -se a sombra pretendendo absorver a nova coisa, de acor
necessidade, ou tendência, de renovar a propna _ _ vida, v1- do com o próprio desejo da pessoa.
Essa é a idéia de uma assimilação sombria da coisa,
taEzando-a nas camadas inferiores. Por ter ele dado um
passo tão positivo, sua esposa dá à lu7: ª9-':1elas duas assimilação que serve aos propósitos do ego. :e.muito
crianças com estrela na testa. O que s1gnit1ca que, a freqüente as pessoas abordarem o inconsciente com in
partir daí, até mesmo os conteúdos mais profund?s, urna tuitos utilitários muito bem definidos. Pode-se afirmar
nova forma de vida, se constela. Toda �ez, por�m, �ue que mesmo o desejo de melhorar, ou de querer ser cura
_
algo de positivo se constela no mcons do, até certo ponto também constitui objetivo egoístico.
�::iente, ha pengo Ainda assim é mero desejo interesseiro de se conseguir
de que a consciência se obstine contra isso.
ajuda do inconsciente. O desejo de ser saudável é, até
54
55
certo ponto, um desejo legítimo do ego e portanto o in d� �r�sto, o pescadir de h �mens, ou o Rei�pescador, da
consciente colabora com ele, visto ser isto legítimo e historia do Graal {Martim-Pescador, Kzngfish). Nos
normal; às vezes, porém, quando a pessoa deseja apenas contos de fada, freqüentemente esse grande arquétipo
isso do inconsciente, passado um certo tempo começam a p�rece em forma discreta e moderna, como nessa his
a surgir sonhos negativos mostrando que ele quer guiar toria o pescador e sua mulher, porém, desde que se re
a pessoa para mais além e não apenas curar dado sinto corde os antecedentes arquetípicos atribuídos aos pes
ma; algo a mais é desejado pelo próprio inconsciente; c:1dores, compreender-se-á que, sob forma arquetípica,
ou, a pessoa fica curada do sintoma e aí o inconsciente sao eles o pai e a mãe original, o pai-espírito e a mãe-na
apresenta a sua conta! Isto, isso, e mais aquilo, tudo t_ureza qu� a�otam os conteúdos reprimidos, a possibi
tem de ser cumprido; e caso a pessoa não obedeça, o lidade de 111d1viduação.
sintoma retorna! No entanto, se tudo tivesse de permanecer como es
Já várias vezes vi isto acontecer. É corno se a pessoa tá, nada mais aconteceria; as crianças ali continuariam
então tivesse de se pôr, efetivamente, a caminho da in a viver felizes, por serem modestas e nada terem em si
dividuação, para seu próprio bem e não apenas para se de ambiciosas, assim permanecendo para sempre ao lado
sentir melhor, ou para dormir melhor, para voltar a ser dos pais. Mais tarde provavelmente viriam a aprender a
potente ou qualquer outra coisa. A conta tem de ser paga, profissão de pescadores e assim continuariam a viver,
pois uma vez aberta a torneira, não há como impedir ocultamente. Portanto, torna-se necessário que um novo
que a água flua. Toda abordagem interesseira do incons evento impulsione a história. O pescador e sua mulher
ciente, ou um simples intuito de nos aproveitar dele, pro mo�r�m, o que significa que tais figuras arquetípicas,
voca efeitos destrutivos; exatamente como estamos co pos1t1vas mas relativamente humanas, e protetoras da
meçando a constatar que acontece em relação à natu quele conteúdo, tornam a desaparecer no inconsciente,
reza exterior. Porque se nos limitamos somente a ex ao passo que o mordomo volta a interferir, enviando uma
plorar nossas florestas, os animais e minerais da terra, bruxa.
perturbamos o equilíbrio biológico e vamos ser forçados, Nessa altura dos acontecimentos, o irmão e a irmã
nós mesmos ou as gerações vindouras, a pagar um preço vivem sozinhos, fato que constitui um convite à inter
bem alto por isso. A natureza parece querer conservar venção da feiticeira e à do velho sábio. A bruxa aparece
seu próprio equilíbrio e estabelecer sua própria integri quando o menino se encontra fora de casa e diz: "Olhe,
dade biológica, sem se deixar explorar por planos utili �ua casa é mesmo encantadora, muito bonita, mas, sabe,
taristas e unilaterais. você precisa ter aquela fonte de água da vida aqui, no seu
Esse mordomo corresponderia, portanto, a uma es quintal; só então vai ficar tudo perfeito!" E assim desper
pécie de atitude ávida e egoísta que interfere e espedaça ta a cobiça na menina, sendo o menino enviado em busca
aquele primeiro quaternário em que o Conde não se de tal fonte, guardada por um leão que tem estranha
encontra à altura da situação. A parte valiosa é colocada capacidade de manter os olhos abertos enquanto dorme
na caixa de vidro, que já interpretei, e é lançada ao e fechados quando em vigília, de modo que a água tem
fluxo de vida inconsciente; mas o pescador e sua mulher de ser colhida enquanto ele está de olhos abertos. O ga
apanham as crianças e com elas formam novo quater rotinho foi bem sucedido nessa primeira vez. Surgem
nário em lugar oculto. A figura do pescador é óbvia, outros requisitos, mas é preciso que nos detenhamos
pois ele é, pela própria profissão, aquele que retira as neste primeiro estágio.
coisas da água, das profundezas, conseqüentemente é o
arquétipo do salvador, do sábio. Basta que se lembre * Veja Memórias de Jung (N. T.).
56 57
A feiticeira não é difícil de ser interpretada, porque
nos contos de fada geralmente ela representa o lado escu as crianças Jª não se mostram de acordo, o menino se
ro da grande deusa terra. Nos países europeus, como se sente ameaçado pela menina, recusando-se a partir ime
sabe, o culto das deusas da terra praticamente desapare diatamente, a menina faz cena e chora. Então, essa fa
ceu e os aspectos positivos do arquétipo-mãe, nos países mília, tão harmoniosa no inconsciente, acha-se dilacera
católicos, foram integrados na figura da Virgem Maria, da. Ao que parece, o inconsciente tende para a desarmo
ao passo que os negativos e destrutivos, o lado da morte, nia � fim de que a coisa venha a aflorar à consciência.
foram reprimidos no inconsciente. Nos países protestan As vezes, ao analisar pessoas que já foram anali
tes, todo arquétipo-mãe, sob quaisquer de seus aspectos, sadas por um bom tempo, e que por 'isso estão razoa
foi completamente eliminado da vida religiosa. Daí o fato ve!mente equilibradas e capacitadas a manter tal equilí:·
do arquétipo da mãe-terra, da mãe-natureza, desempe bno, tanto consigo mesmas quanto com seus processos
nhar tão importante papel em todos os contos de fada inconscientes, observa-se que elas trazem sonhos de con
europeus. A bruxa também desempenha apenas o lado flito, mas terríveis. Ao chegar, o analisando vai declaran
destrutivo do princípio arquetípico feminino, o princípio do: "Não posso dizer-lhe muito ... estou trabalhando e
da morte, da doença, da desintegração, ou ainda, daquilo ei:n casa vai tudo bem ... " - "O que é que você sonhou?"
que se poderia chamar de malefício da inconsciência e E então, de um puro céu de anil surgem os sonhos mais
que até certo ponto, resiste à consciência: intriga, cobiça, tenebrosos a respeito de guerra e de pavorosa luta!
arrebatamentos, enfim, todos aqueles impulsos que são Outro dia, uma dessas pessoas me trouxe um sonho
descobertos quando se examina o que fazem as bruxas horrível: ele, a mulher e mais alguém, os três, haviam co
nos diversos contos. Elas em geral intrigam, envenenam, m �tido Juicídio, tomando pílulas para dormir! Pergun
matam ou comem gente, caluniam as pessoas para que tei-lhe: Onde aconteceu isso? ... " E ele: "Não sei! Eu
umas briguem com as outras. Tais as principais ativi tentei pensar por mim mesmo, mas não houve meio de
dades, tanto das feiticeiras mitológicas como também descobrir!" Em tal caso, só resta esperar, pois significa
das humanas. que o inconsciente deseja o conflito e quer provocar
A bruxa é contrabalançada pelo velho sábio, que uma explosão, no cenário relativamente harmônico, para
sempre diz ao menino o que ela está tramando e que o que algum nível mais elevado venha a ser atingido. Esse
ajuda a ir adiante. Poder-se-ia afirmar que, aqui, a ver analisando a quem me refiro, por exemplo, ainda não
dadeira batalha se trava entre o velho sábio e a feiti preencheu completamente seu esquema. Sente-se clara
ceira, pois as crianças não se encontram, absolutamente, mente que ele poderia ser bem mais do que é, pois vive
em condições de enfrentar a situação. Por terem perdido uma vida menos importante e menos plena, uma vida de
seus pais pescadores, elas agora ganham outros, um mau horizonte mais limitado do que aquela que está capaci
e um bom, a bruxa e o velho sábio que, de certo modo, tado a viver. Em tais circunstâncias, o inconsciente pro
substituem os benévolos pescadores. Esses, porém, estão voca uma explosão na harmonia já alcançada a fim de
em conflito e procuram estabelecer conflito entre irmão que nos sonhos a mesma se possa estabelecer em plano
e irmã, de modo que, no inconsciente subsiste uma fa �ais elevado, e então, ocorrem esses misteriosos lampe
mília harmoniosa, mas a desarmonia se manifesta desde Jos de um conflito inconsciente. No entanto isso nunca
que o velho se interpõe aos planos da velha bruxa e permanece apenas em sonhos, pois decorrido certo tem
esta procura jogar a menina contra o irmão. Lembre-se po, algo acontece no exterior, ou na consciência da pes
que até mesmo o menino exclama: "Você acaba me ma soa, algo que equivale àquelas coisas catastróficas. Limi
tando com seus caprichos!" Essa é a primeira vez que to-me a fazer notar que, freqüentemente, o sonho catas
trófico surge primeiro e que ele certamente não é resul-
58
59
tante de conflito consciente, ou de um comportamento vez se desentendem, por causa de a menina atender às in�
errôneo qualquer, mas que tal conflito é, realmente, cria sinuações da bruxa.
ção espontânea do inconsciente, o qual por si mesmo o A seguir surge o motivo da fonte, quando o menino
estabelece no intuito de demolir algo de limitado para tem de apanhar um cântaro e ir buscar a tal água da
edificar algo de mais vasto. vida. É uma água mágica, pois basta que ele derrame
Também pode acontecer que as pessoas tracem cer- um pouquinho dela no quintai da casa para que dali
. to tipo de mandala e se tenha a impressão de que elas, jorre uma fonte igualzinha, sendo evidente que só a ma
°
por sua imaginação ativa, acham-se dentro de tal man gia da água da vida consegue produzir tal milagre. Po
dala. Talvez se pense que o desenvolvimento desse núcleo deríamos prosseguir indefinidamente a desenvolver es
interior da personalidade se processe como o de uma se tema da miraculosa fonte da vida porque, como sa
árvore, pelo desenvolvimento paulatino de novos anéis. bem, esse tema mitológico é internacional, existe em qual
Ou talvez se pense que alguém possa traçar uma man quer lugar. Mas o fato de a água dessa fonte ser de prata
dala de um jeito e, mais tarde, diferenciá-la de outro já nos fornece um campo de ampliações mais específico,
jeito; mas isso não é verdade. Geralmente os sonhos de oµ seja, o do simbolismo da alquimia. Somente na alqui
monstram que isso não é dirigido por uma tendência mia se encontra, precisamente, esse mesmo tema da água,
consciente mas que é sempre esfacelado inteiramente e, em geral de prata ou ouro, tema que indica a probabi
então, reconstituído. É como se a natureza produzisse lidade de nossa história ter origens alquímicas.
um modelo completo e depois o destruísse para voltar a Freqüentemente, desde os textos primeiros, datados
produzir outro mais diferenciado. O processo não é adi do século I, ou ainda nos famosos textos de Zózimo do
tivo, pois tem ritmo bem mais complicado, e freqüente século III (embora tais temas provenham de épocas
mente acontece que, no intuito de obter um grande pro mais remotas), os alquimistas buscam explicar parábo
gresso da consciência, o inconsciente primeiramente des las e temas semelhantes através de um aprofundamento
faz cada coisa, e a pessoa, uma vez engajada neste cami ( insight) dos processos materiais; até mesmo Zózimo re
nho, se vê constantemente perturbada pela impressão de lata os sonhos que teve a respeito. O assunto de tais
não ter entendido coisa alguma e por tudo lhe parecer parábolas que foram tanto construídas, como correspon
novamente perdido. Chega até a duvidar de que algu dem a autênticos sonhos de antigos alquimistas, já pro
ma vez tenha entendido alguma coisa ou que tenha es vinha de remotas tradições da mitologia geral. Exemplo
tado consciente e em harmonia. É como se a pessoa se disto são os mitos religiosos das populações que assimi
encontrasse outra vez no mesmo estado em que estava, laram motivos provindos do folclore, inicialmente trata
antes de ter dado início à própria análise. Isso, entre dos a nível mitológico e posteriormente colocados no
tanto, é coisa inteiramente normal e, além do mais, tal âmbito do folclore. Também na alquimia se evidenciava
condição depressiva não é real, mas apenas parece sê-lo, o esforço para exemplificar, ou explicar, processos mis
pois trata-se de uma fase em que a harmonia é desfeita teriosos através de analogias folclóricas e vice-versa. O
para que seja novamente elaborado um centro mais di folclore teria emprestado às parábolas alquímicas e simi
ferenciado. lares as suas histórias.
Nos contos de fada, aquela estrutura harmoniosa No nosso conto, a fonte não consiste num poço ou
também é desintegrada; entre o velho e a bruxa se esta fonte de' ouro e prata, como acontece normalmente na
belece uma horrível tensão que se transmite ao compor alquimia, e em muitas outras histórias. Na alquimia,
tamento do menino e da menina, os quais pela primeira Mercúrio, a misteriosa figuração da prima materia, é em
60 61
geral um líquido misterioso, o elixir da vida, a água eter do se pergunta a alguém como vai passando, a pessoa
na, que dá origem à prata e ao ouro; ele ou produz prata responde: "Ora, está acontecendo uma porção de coisas,
e ouro, ou se constitui, desde o início, de prata e ouro. nem todas agradáveis, mas posso dizer que vou vivendo
Aqui, porém, só é ressaltada a prata, o que mais uma vou muito bem" Existem altos e baixos, mas você sent;
vez põe em evidência o elemento feminino, visto que, que, empregando um termo técnico mais atual, para a
segundo a tradição alquímica, o ouro é atribuído ao sol, comparação - vai-se navegando mais ou menos dentro
e a prata à lua. A prata representa o feminino e o metal da faixa do radar - você está onde deve, e daí experi
corruptível. Como sabem, a prata facilmente preteja e mentar essa sensação absolutamente maravilhosa de es
tem de ser constantemente limpa, ao contrário do que tar vivo. Consegue-se aceitar até mesmo as vicissitudes e
acontece com o ouro; por isso mesmo representa ela o dificuldades do destino e da vida humana, desde que se
perenemente mutável, a lua que está constantemente a aceite esse contato básico com o fluxo da libido no in
obscurecer, e novamente posta a brilhar no céu, é devora consciente. Essa é a razão pela qual enfocamos e insis
da por demônios. :e: a lua, portanto, que preside a toda timos tanto a respeito da interpretação dos sonhos, por
natureza corruptível, desde a época de Aristóteles; é ela que só assim podemos saber para onde se dirige o fluxo
que controla a menstruação das mulheres e tudo o que da libido inconsciente, para então tentarmos adaptar nos
se transforma na natureza. Acima de sua esfera princi so movimento consciente a esse fluxo, pois só assim nos
pia a esfera divina e incorruptível, a de natureza regida sentimos vivos. Nesse caso, ainda que nada de mais acon
pelo sol e pelo firmamento. A umidade, a morte, o femini teça em nossas vidas, ainda que tenhamos que cumprir
no, as enfermidades das mulheres, a corrupção dos me qualquer tarefa aborrecida, ou mesmo a despeito de
tais - tudo pertence ao âmbito de influência da lua, sen quaisquer frustações, sentimo-nos interiormente vivos.
do a prata seu metal específico. Ela é a noiva do ouro, Uma das melhores maneiras de avaliar a importância
a mulher corruptível, que tem de ser transformada antes desse sentimento consiste, talvez, em já se ter tido oca
que ela própria possa se tornar ouro. sião de analisar algum milionário, ou alguém que já pos
Por isso, se a bruxa chama a atenção da menina pa sua tudo aquilo que se possa desejar do mundo exterior,
ra o fato de estar faltando uma fonte de prata ela tem ou que esteja apto a consegui-lo. Gente que pode ter car
toda razão, pois desde o início do conto estamos saben ro, roupas, casa, tudo o que queira; gente que possa ir
do que, de algum modo, o elemento feminino não vem aonde quiser e que, dentro de limites saudáveis, possa
sendo suficientemente destacado, e que é a integração da ter o que bem entender, mas que se não tiver fluxo de
natureza e do elemento feminino o que •está faltando. vida, nada tem a fazer com tudo aquilo! Em geral as pes
A bruxa, portanto, embora tenha por objetivo a destrui soas projetam o fluxo de vida sobre objetos exteriores,
ção, está, de fato, como freqüentemente acontece, traba imaginando que se tivessem uma esposa diferente, ou
lhando para o bem, porque essa fonte prateada represen mais dinheiro ou coisa semelhante, atingiriam a meta;
ta o aspecto feminino do fluxo de libido inconsciente. mas isso é pura projeção que se torna ainda mais eviden
Em geral, pode-se afirmar· que a água da vida, ou te no caso de alguém que de fato já tenha tudo isso,
o que é simbalizado por ela, é o que o homem sempre porque então se apercebe de que a questão não é essa!
buscou. É aquilo que possuímos no Paraíso e perdemos. O que as pessoas realmente buscam, mesmo que projetem
Simbolicamente representa aquela experiência psicológi em objetos exteriores, é a sensação de estarem vivas.
ca que se poderia considerar como a sensação de que a Isso é o que de mais elevado se pode atingir, pelo menos
vida está fluindo de modo significativo. Às vezes, quan- nesta vida, e por isso mesmo compara-se a qualquer es-
62 63
pec1e de experiência religiosa e mística, visto ser esta a
que transmite ao máximo aquela sensação. Ora, pode-se
djzer que se alguém teve essa experiência de vida, ela é cio. Ele é a divindade que encerra em si o mistério da
de certa forma uma experiência místico-religiosa! Os mís rnorte e do renascin1ento. Por isso, os egípcios, às vezes,
ticos medievais, por exemplo, afirmavam que a íntima representavam esse mistério com dois leões: um simbo
experiência de Deus é fonte de vida, e os Zen-budistas Hzando o sol poente, a Oeste, e outro simbolizando o
afirmam que quando atingem o Samadhi é como se be sol nascente, a Leste. O leão sugere aquele momento
bessem um copo de água fresca após a sequidão de um místico em que o sol atinge o ponto da meia-noite sob a
deserto. terra para, então, retornar do sol poente, portador de
Em todas as civiHzações e em todo contexto cultu morte, pois os egípcios associavam o sol poente à morte
ral constata-se ser isso algo de comparável a uma expe e à velhice. No Egito esse leão dúplice representava
riência de completa satisfação de plenitude de vida, e aquele momento místico da transicão entre morte e res
aqui é a mesma coisa. Pois é isso o que está faltando no surreição, o ponto de retorno do sol em direção ao
nosso conto, sendo, justamente, essa água prateada o Leste, como um aspecto de vida ressurgida no instante
que vem suprir tal experiência dotada de certo toque da meia-noite, pois o caminho do Deus-sol, acima do ho
feminino. Ela corresponde à vitalidade, mas no âmbito rizonte e abaixo da terra, representava a transformação
da lua e não no da experiência espiritual, mais elevada. da libido em direção à consciência e, novamente, de vol
Aqui, a alusão às águas prateadas significa que a experiên ta ao inconsciente.
cia de vida que se busca não é a experiência espiritual Provavelmente devido, também, às suas origens egíp
medieval, mas sim aquela vitalidade que provém do pla cias, o leão, no simbolismo medieval, ainda era consi
no terreno e corruptível da vida humana, expressando-se derado como agente de ressurreição. A lenda de que os
em linguagem alquímica. A prata é atributo da lua, e às leõezinhos permanecem mortos desde que a leoa' os dá
vezes também de Vênus ( embora na maioria dos textos à luz até que o leão se põe a rugir sobre eles, tra
a esta se atribua o cobre), sendo portanto, a prata, atri zendo-os à vida, repete-se em todos os bestiários medie
buída ao feminino em geral. vais. Provavelmente essa história corresponde a uma re
A fonte de água de prata se encontra bem guardada percussão da antiga mitologia do leão como agente de
por um leão, e como vimos que a água prateada corres ressurreição, tendo a ver com o mistério do sol e da vida,
ponde a um simbolismo alquímico, convém, agora, desen em sua transição rítmica entre consciência e incons
volver também a idéia atribuída ao leão. Como é sabido, ciência.
o leão desempenha tremendo papel em todos os simbo Ao embalsamarem seus cadáveres, os egípcios colo
lismos alquímicos, tendo provavelmente ingressado no cavam-nos sobre uma mesa de mármore que trazia em
campo da linguagem alquímica em razão do papel por cada extremidade uma cabeça de leão voltada para fora,
ele desempenhado no ritual fúnebre dos egípcios. As em direções opostas. Alguns de vocês provavelmente já
sim, a Esfinge, cujos remanescentes podem ser escalados viram, no Museu do Cairo, uma dessas mesas de már
em Giza, é de fato o retrato de um Rei egípcio em for n1ore semelhantes a camas, com cabeça de leão em cada
ma de leão, isso porque o Rei, quando ressurgido em extremidade e com pés em feitio de patas de leão. Sobre
sua forma pós-mortal é, freqüentemente, representado tais mesas, chamadas de leito de morte e de ressurreição,
por um leão, animal que corresponde a um antigo sím com pequenos orifícios através dos quais os líquidos
bolo da ressurreição no complicado ritual fúnebre egíp- podiam escorrer e escoar, eram colocados os cadáveres
quando se procedia ao ritual bastante repulsivo e com-
64 65
plicado do embalsamamento. Enquanto o corpo do rei ja
zia em seu leito, ele ficava nas profundezas do mundo dissolvido a fim de ser renovado, muito freqüentemente
subterrâneo. Enquanto o sacerdote lhe retirava o cérebro vem ele a ser devorado por um leão, ou então ele mesmo
e as entranhas e lavava o corpo com cloreto de sódio, se tra1:1sforma num leão. Num complicado relato de Ca
sua alma se achava, por assim dizer, habitando o mun non R1pley, por exemplo, a Rainha volta a gerar O Rei e
do subterrâneo, voltando a ressurgir quando terminava enquanto este se acha em seu útero, ela tem de come;
o processo de mumificação. carne �e leão, a fim de prover o embrião de alimento
· Portanto, o leão também era o guardião do mundo apropnad<;>, de modo que o Rei venha a renascer como
subterrâneo, o guardião desse n1isterioso processo sub o novo Rei dos Reis. Jung menciona tal assunto no capí
terrâneo que transforma a morte em vida. Em tudo o tulo "8;ex" do se�undo volume de sua grande obra sobre
.
que digo aqui restrinjo-me de certa forma às citações alquimia, fl.!Ysterzum conjunctionis, onde amplia tanto 0
dos textos egípcios. Como esse simbolismo da alquimia tein:a �o leao, como o da dieta-de-leão da Rainha, através
ocidental provém principalmente do Egito e, como a al de mumeros textos alquímicos referentes ao leão.
quimia principiou em época mais recente no Egito já Diz Jung que o Rei para ser renovado tem, primei
helenizado, os alquimistas utilizaram tal símbolo por ramente, de ser transformado em sua natureza ctônica.
acharem analogia entre a transformação da matéria em Pode-se, portanto, concluir que o leão represente a natu
ouro, e a transformação do corpo mortal do Rei em :e.za �tônica, o asp�cto terreno do sím!Jolo do Rei, 0 que
forma imortal como múmia. A idéia consistia em certo e mteiramente confirmado pelo material egípcio. Ao mor
tipo de analogia primitiva: assim como o sacerdote de re.:, o Rei vai para o interior da terra, para o reino do
Anúbis toma os restos mortais do Rei egípcio, ou seja, leao, on�e �em a s�r transformado. Se o Rei representa
.
seu cadáver, e por meio de uma operação química trans a consc1encia coletiva predominante, isso significa que,
forma-o num ser imortal, assim também é preciso tomar para �er renovada, a consciência coletiva predominante
os metais mortais da prata e do cobre que são corruptí ou a 1magem central de Si-mesmo, que predomina em
_
veis, estragan1 e corroem e, através de uma operação dado ambiente cultural, tem de tornar a cair, de tem
química, transformá-los em matéria incorruptível, ou se pos em tempos, no inconsciente, para ali ser renovada.
ja, em ouro. Tal analogia de conceituação é completa e Nas trib?s primitivas, por exemplo, dá-se um completo
eles até mesmo se referiam a suas operações químicas obscurecimento cultural enquanto o Rei está morto. Há
como a uma taricheusis, que quer dizer: mumificação. certas tribos nas quais durante o interregno - enquanto
Dizem eles ser preciso taricheuein, mumificar os metais, o chefe morreu e seu sucessor ainda não foi eleito -
para transformá-los em ouro. todo mundo pode roubar e matar. Isso significa que to·
Em outras palavras, o processo de individuação, tal das as regras culturais de comportamento decente estão
como o entendemos atualmente, era, no Egito, projeta por terra. Por três dias dá-se um completo escurecimen
do em processos de além-morte que ocorriam com o ca to de consciência: a cobiça, o assassínio, o crime, enfim,
dáver, enquanto os alquimistas projetavam-no em suas t ?das as !revas conseguem prevalecer por um dado pe
.
operações químicas de transmutação de metais. Nisto o nodo. Existe, a1nda, uma forma bastante suavizada nos
leão sempre desempenhou o papel de agente paradoxal rituais medievais e antigos referentes ao Rei do carnaval:
postado entre a morte e a vida, entre manhã e noite; durante um certo dia do ano quem governa não é o Rei,
mas sim . algum bobo ou criminoso condenado que recebe
ele rege ambos os aspectos e promove a renovação. Em
textos alquímicos posteriores, quando o velho Rei é a coroa, podendo, por esse único dia, dominar a cidade
inteira, participar de todas as folias, ter todas as mulhe-
66
67
res e tudo o que desejar, antes de ser executado. Isso re
presenta o lado ctônico, a sombra do Rei que impera povo, �ntão � . influência disruptiva, aliada a lutas por
,
prest1g10 e vaidade aparece. Por isso é que, por exemplo,
durante o interregno.
Indícios ainda mais suavizados da mesma coisa en os pequenos grupos cristãos primitivos que possuíam
contram-se nas anistias concedidas por crimes passados, verdadeiro laço espiritual, chegando até mesmo a se cha
ao ser nomeado um novo regente. As prisões são, então, marem mutuamente de Irmão ou Irmã, em Cristo, gru
abertas para que o passado possa ser aniquilado, e para pos esses de escravos ou mercadores, gente inteiramente
que advenha um novo início. Essa é a forma mais suavi ignorada, sobrepujaram todo o poder estabelecido do
zad� daqueles rituais um tanto bárbaros do passado, nos Império Romano. Setenta anos após a morte de Cristo,
quais, por um dado período de tempo se permitia a obs Plínio a eles se referia, dizendo: "Torturei uns poucos
curidade completamente destrutiva, ou seja, tudo aquilo escravos, mas nada pude descobrir a não ser uma ridícu
que normalmente as leis do Chefe e da tribo mantinham la superstição!" Por quê? Porque o Império Romano
não mais possuía vida espiritual religiosa capaz de man
como abolido e tabu passava a ser permitido nesse perío
do. Diríamos que o lado mais obscuro do inconsciente tê-lo unificado e, por isso mesmo, estava destinado a
tem permissão de manifestar-se diretamente no momen perecer na contínua luta pelo poder em que mutuamente
to em que não somente o Rei está morto, como tam se empenhavam os pequenos e os grandes peixes. Aqueles
bém, para a tribo primitiva, até Deus está morto. O Deus grupos exclusiv'Js que tinham um novo Deus ao seu lado
deles está morto, pois, o Rei é a encarnação do princípio representavam o Rei que naquele momento se renovava.
espiritual. Esse é o momento de completá desorientação, Eles venceram porque eram as únicas pessoas capazes
momento que praticamente corresponderia a uma disso de trabalhar por algo que se achava acima deles, ou ain
da de manter a paz entre si, em prol de um objetivo
ciação psicótica a um completo escurecimento da cons
ciência na vida de um indivíduo. Ultimamente tais mo mais elevado. Se as pessoas não estão ligadas a um obje
mentos de obscurecimento cultural da consciência têm tivo comum não conseguem se suportar, pois se irritam
demasiadarr1ente uma com as outras.
sido mais do que freqüentes e, infelizmente, seu número
ainda pode vir a aumentar, pois estamos vivendo uma Estamos outra vez em situação semelhante, porque
época em que o velho Rei morreu e está se renovando a morte do velho Rei e a época em que o leão predomina
nas profundezas. Durante tal escurecimento impera o como representante do poder e dos impulsos para o pres
leão, uma das imagens principais da sombra do Rei. tígio é uma situação arquetípica que eternamente se re
Negativamente, o Jeão representa o princípio do po pete na vida humana - razão pela qual há leões debaixo
der e, também aí, a moderna analogia é clara, pois, onde dos tronos e as pessoas os denominam de "leão de Judá",
quer que uma estrutura cultural ou civilizatória não mais por representarem o princípio do poder.
possua objetivo religioso, ocorrem lutas políticas entre O leão não é exclusivamente negativo, visto ter duas
ditadores e grupos exclusivos que determinam o destino cabeças. Segundo os egípcios, ele encara a morte, mas
inteiro de uma civilízação. Num grupo pequeno, isso sig também encara a renovação, pois ele é símbolo antigo
nificaria não estarem as pessoas ligadas por qualquer da ressurreição. Em astrologia ele representa o solstício
objetivo espiritual comum mais elevado, motivo pelo de verão, pois representa calor, luz, paixão e renovação.
qual começam, então, a brigar a respeito de quem vai Em Mysterium conjuntionis, Jung enfoca não sõ o aspec
ser Presidente, Tesoureiro e tudo o mais. Caso não haja to de poder como também o impulso sexual que o leão
um símbolo ainda mais poderoso capaz de unificar o às vezes representa. Poder-se-ia dizer que ele representa
qualquer impulso de paixão bastante quente, seja de
68
69
poder ou de sexo. Jung apresenta muitos exemplos, es Por isso é que existe grande perigo em liberar uma
pecialmente o do leão verde da alquimia, que é associa depressão assim tão profunda, porque às vezes é esse
do a Vênus e representa o impulso do sexo, o desejo o momento de suicídio. Quando o afeto e a ânsia de vida
sexual e sua paixão, sendo este o aspecto mais positivo se liberam, e não conseguem ser satisfeitos de imediato,
do leão. Sempre, porém, que o leão aparece, sabe-se que essa pessoa é capaz de se matar. Antes, a avidez não era
a personalidade se acha em confronto com fortes e apai sequer reconhecida mas, uma vez reconhecida e então
xonados desejos, paixões e afetos, mais fortes que o ego. frustada - quando o leão não consegue imediatamente
Um leão também pode representar ira. Lembro-me o que deseja - a pessoa pode vir a matar-se. Portanto, é
de alguém que, estando furioso com certo membro da muito perigoso permitir que tal leão escape de sua jaula
família, sonhou que se via obrigado a fechar a porta negra, de seu estado de mumificação. Não obstante, uma
contra um leão que repetidamente investia querendo in vez que se chegue a debelar a crise, então pode-se contar
vadir-lhe o quarto. Aí não se tratava nem de poder nem de com toda a vida de que antes se carecia. O impulso de
sexo, mas simplesmente de um terrível afeto animal. Co vida se manifesta com grande força, e é sobre isso que
mo Rei dos animais, o leão representa tal espécie de im se pode trabalhar; a personalidade está viva e deseja
pulso, que é poderosíssimo. Se um ser humano perde seu algo que busca com paixão. Aí, então, é só uma questão
ponto de apoio religioso, ele se desintegra, tornando-se de integrar o leão de modo que ele não venha a destruir
presa fácil de afetos, tais como sexo, poder, além de ou tudo; o segundo passo da transformação consiste em do
tros impulsos e desejos. Isso corresponde ao interregno, mar o leão. Por isso é que o alquimista disse: "Se o leão
época em que o símbolo ou ideal predominante se en tornar e erguer-se, tome da espada e decepe-lhe as pa
contra morto e as serpentes e os leões estão de ronda. tas", porque ele quer pôr suas garras em tudo, quer agar
É o momento em que a personalidade é avassalada pela rar tudo; é preciso que ele seja domado e pacificado.
cobiça. No entanto, um leão é algo de intensamente vivo, É mais ou menos isso o que o leão representa em
e no caso de uma pessoa achar-se enferma, ela sente-se termos psicológicos. Pode-se dizer que onde quer que
terrivelmente contente ao manifestar alguma ambição, se encontre a fonte da vida, ali também se encontra o
impulso sexual, ou um afeto qualquer, pois é nisso que leão; pois onde quer que se encontre uma pérola ali está
consiste a vida. um dragão a cobri-la com seu corpo, e onde quer que
Muito freqüentemente é durante essas fases, bastan h é;lja um tesouro lá também se encontra uma serpente
te inseguras e passivas de melancolia, que o leão ronda enroscada nele, e onde quer que esteja a água da vida,
e se põe a rugir. Em tais fases, as pessoas simplesmente ali está o leão a guardá-la. Não se pode chegar perto do
se recostam, tomam pílulas, e para elas nada mais tem Self e do significado da vida, sem que se passe pelo fio
significado. Quando se lhes oferece alguma coisa, elas, da navalha da cobiça e das trevas, e dos aspectos som
profundamente enfadadas e deprimidas, mal voltam a brios da personalidade. A pessoa nem mesmo sabe se
cabeça; aí, então, pode-se estar certo de que - não sem é ou não necessário cair e penetrar nisso algumas vezes,
pre, mas amiudamente - estão desejando algo tão deses mas parece não haver outro modo de assimilar tal ma
peradamente, que nem sequer o admitem para si mes terial. É por isso que as pessoas não gostam de nós; é
mas. Em geral, consegue-se adivinhar, através de sonhos, que muito freqüentemente por causa da análise, o garo
o que é que elas tão loucamente desejam e, então, subita to muito bonzinho e a menina muito bem comportadinha
mente a melancolia se transforma, sendo completamente se tornam absolutamente insuportáveis. Encaradas do
sobrepujadas pela avidez. ponto de vista social, as pessoas em análise freqüente-
70 71
mente se tornam absolutamente impossíveis. Por quê? plo, que a única coisa terrível que pode acontecer a
Porque temporariamente se tornam leões ou serpentes. uma mulher é ela ser bem sucedida numa trama de
Desejam as coisas e das mesmas se apoderam, fazem poder. Se a trama for frustrada tudo bem, mas se ela
cenas e causam todo tipo de mal, a ponto dos demais consegue o que quer, então está perdida, o mesmo se
exclamarem! "Aí está o resultado de mandá-los para a pode dizer em relação aos homens. Se um homem quer
análise!" A vida não pode ir adiante sem antes ir para ser o chefe da matilha, deixem que ele o seja! Isto é
baixo. Não há um novo Rei, enquanto ele não passar o que de pior se pode fazer para ele, porque o leão que
um dia no leito do leão, sendo desintegrado. As pessoas visa o objeto exterior está dormindo, ou seja, está pro
que têm desejos ávidos e não o admitem, nem para si fundamente inconsciente e, por assim dizer, inteiramen
n�esmas, procurando em vez disso se comportarem con te cego.
vencional e corretamente, estão simplesmente perdidas. 1·
Cada paixão, porém, tem seu aspecto simbólico. Is
Portanto, o leão tem que ser liberado, mas então so se observa melhor quando se depara com pessoas que
torna-se destrutivo, e suas patas têm que ser decepadas. são loucas por dinheiro. Elas raramente se mostram ávi
Ele é aquilo que é terrível, aquilo que tem de ser perma das do dinheiro pelo dinheiro, pois para elas o significa
nentemente enfrentado. Mas aqui - agora eu coloco do do dinheiro é bastante simbólico. Nele são projeta
uma questão capital referente ao tema e a todo o conto dos a plenitude de vida, o poder, ou a liberdade. "Se eu
- aqui, o menino tem de roubar do leão a água da vida, tivesse dinheiro, não teria que me submeter a injunções
enquanto este está dormindo de olhos abertos. Ele tem sociais". No dinheiro é também projetada a segurança
que rapidamente. apanhar a água e fugir antes que o - que ali não está e é por esta razão que as pessoas
leão acorde. O menino, por si mesmo, não enfrenta se mostram tão apaixonadas por ele. O mesmo se dá
o leão. Não vamos julgar ·se isso é bom ou é mau; va quanto à paixão sexual, pois uma vez obtido aquilo que
mos opinar sobre isso, através do conto persa paralelo e se almejava, imediatamente se descarta o que se obteve.
subseqüente a esse, quando, então, saberemos como ava Não era bem aquilo! Pensou-se que fosse mas não era.
liar esta história. No entanto, ali havia algo de simbólico, como na neu
Agora nos deparamos com o intrigante motivo por rose do tipo Dom Juan, em que é sempre a mãe quem
que o leão dorme de olhos abertos, e está desperto o homem anda buscando, ou uma bela mulher. Mas as
quando tem os olhos fechados. Quase me matei tentando ?im que ele dorme com ela, ele descobre que o mistério
descobri-lo, e agora pretendo deixá-los bastante curiosos. que andava buscando não se encontra ali - e, então,
Já cogitaram a respeito? Pois bem: quando a natureza abandona-a para recomeçar a busca, e assim sucessiva
apaixonada e ávida tem os olhos abertos, ela olha para mente, pois ele afetivamente busca algo que é simbólico,
o objeto exterior. Quando meu leão tem os olhos abertos, e sua busca está somente na projeção exterior.
ele é um leão poder que busca alguma importante posi Poàe-se, portanto, afirmar que quando a paixão fe
ção, e quando é um leão sexo, então eu procuro algures cha os olhos torna-se mais consciente, ou seja, desde
um parceiro, ou desejo algo mais; quando meu leão está que se tenha uma visão interior do verdadeiro objeto de
de olhos abertos e olha para um objeto externo, então um impulso de paixão, pode-se ver o significado simbó
ele representa o que se denomina de paixão cega! A pai lico daquilo que está sendo objeto dos impulsos e, en
xão é cega, a cobiça é cega e, geralmente, quando se tao, tem�se o verdadeiro ouro. A paixão está desperta,
cede a uma delas cai-se de cabeça em alguma odiosa mas voltada para dentro e, exteriormente, é con;.o se ela
armadilha. Por isso mesmo é que Jung disse, por exem- estivesse dormindo. Nesse caso, renuncia-se ao desejo
72 73
das coisas exteriores que, por sua vez, desaparece e se coisa pelo simbolismo de meus sonhos; portanto, por
aquieta. Ora, o menino de nossa história não enfrenta o que haveria eu de me meter nisso?" Elas tentam obter
leão, pois colhe a água da vida enquanto o leão está a água da vida e, simplesmente, deixam o leão fora de
dormindo, ou seja, quando ele está de olhos abertos, o cena, o que até certo ponto conseguem.
que significa que ele se encontra em estado de cega avi
dez e, portanto, nem repara que seu maior bem está Isso pode ser feito com bastante sucesso, desde que
sendo roubado. o verdadeiro e principal objetivo interior da vida não
Separar o fluxo da vida do fator avidez seria o esteja aí; pois, pode-se, por assim dizer, deixá-lo de lado.
mesmo que perceber que aquilo que o ser humano busca Mas com isso a pessoa acaba fugindo de um processo
não é o objeto desejado, mas a água da vida: o verda do sofrimento. Se enfrenta o leão antevendo que no final
deiro objetivo é estar vivo de maneira significativa. A ele vai ter que ser morto, ela passa por certas coisas
avidez é uma cegueira que pode perfeitamente ser posta que, do contrário, não teria oportunidade. Sentir-se tor
fora do contexto. O menino se esgueira, passa diante do turado pela própria paixão é bastante significativo, em
leão e sai, e quando este acordar bem, o menino já bora não seja agradável, e é por esse motivo que certas
está de posse da água; é tarde demais! pessoas procuram eximir-se, por saber antecipadamente
Talvez seja essa a maneira feminina de comportar quais seriam as conseqüências. Mas, desta forma, elas se
-se: um herói, em lugar disso, teria subjugado o leão, furtam de uma espécie de fogo de cozimento que, se
tal como Hércules, por exemplo, teve que fazê-lo. Aqui, tivessem a ele se submetido estariam mais "cozidas", ao
existe unicamente a idéia de não confrontar-se. Acho que passo que não o fazendo elas permanecem um tanto
por causa dessa artimanha discretamente evasiva de não
(;
cruas ,,
lutar com o leão e sim usar astúcia com ele, é que a Retornando à nossa história, o menino sumiu do
bruxa consegue voltar outra vez. É um tanto desprezível leão, colhendo a água enquanto ele estava de olhos
comportar-se assim, simplesmente se furtando à paixão. abertos. Desse modo, conseguiu formar uma fonte de
Há pessoas que a certo estágio da análise se vêem pi·ata no quintal de sua casa, onde vivia com a irmã.
presas de uma selvagem e apaixonada transferência com Mas a velha feiticeira aparece de novo e verifica não ter
o analista e, então, já não conseguem mais se libertar conseguido matá-lo. Por isso, torna a lançar o veneno da
disso, por não quererem levar uma bordoada na cabeça. ambição na mente da menina, falando-lhe do carvalho
Se virarem leão, elas evidentemente levarão bordoadas cujos frutos são bolotas de prata encimadas de ouro.
em conseqüência, mas como não gostam de ser tortura Esse fruto é símbolo da unificação dos opostos, a prata
das, deixam o leão bem guardadinho no bolso, e nunca o e o ouro, metal lunar e metal solar. Basta que o menino
mostram. O que quer dizer que elas jamais confessam quebre um pequeno galho, um raminho do carvalho, e
sua transferência apaixonada. As mulheres agem assim o plante no quintal, para que ali brote outro igualmente
apoiando-se no animus dizendo: "Ora, eu sei que ele não belo. Mais uma vez ele se põe a caminho e novamente
está enamorado por mim e, portanto, devo ser razoável"; lhe vem ao encontro o velho sábio, que o aconselha a
"Meu analista é casado ... " ou sabe Deus o que mais! montar um cavalo para dirigir-se até o carvalho. E. pre
Desse modo elas jamais permitem que seu leão escape e, ciso, porém, ficar atento com a serpente guardiã, somente
então, declaram (o que não se pode negar): "Também quebrar o ramo da árvore quando ela esconder a cabeça
sei que o principal objetivo de meu processo analítico para dormir. O menino assjm procede e obtém o galho.
não é ter um caso amoroso com o analista; sei de tal A seguir, vem o terceiro episódio, o do papagaio branco.
74 75
Temos que amplificar as idéias referentes a esse es drologia ( ciência das árvores), de Ulysses Aldrovandus,
tranho carvalho. Assim como já fizemos examinando o onde também se encontra uma maravilhosa descrição dos
simbolismo alquímico do terna da água de prata, assim efeitos da anima no homem, especialmente quando ele
também vamos conseguir desvendar outros simbolismos se acha sozinho em meio à natureza, pois, então ela se
alquímicos relacionados ao carvalho e, até mesmo, des põe a arreliá-lo com fantasias. Ela é uma incertíssima
cobrir uma conexão entre este e a fonte de prata, men amásia, uma bem-amada muito incerta.
cionada na segunda parte de Mysterium conjunctionis O túmulo é dedicado a um certo Sr. Quinfus Vorco
( Os paradoxos), de Jung. Nesse texto ele se refere a vá nius Agathoni. Eles não consideraram o ponto que abre
rios comentários alquímicos, entre outros, concernen viava Quinto em Qu, e, então, leram como se fosse Quer
tes a uma inscrição (fictícia?) bastante misteriosa exis conius Agathoni, sendo quercus, um carvalho, projetado
tente numa antiga pedra tumular supostamente dedicada em tal nome. Um outro alquimista, para explicar o nome
a Lucius Agatho. Existe uma maravilhosa coleção de do homem, trouxe à baila um poema italiano da época,
tratados sobre isso, onde todos os mais diferentes eru referente ao carvalho do sol e da lua, que representa o
ditos da época tentaram explicar esta misteriosa inscri mundo elementar.
ção que, afinal, resume-se numa projeção de algum tipo
de história de ânima. ( Escreve Jung, no § 69). Diz o poema:
Num jardim adornado de miraculosas flores
Dentre as inúmeras interpretações dadas pelos brotam uma rosa rubra e uma rosa branca.
comentaristas eu gostaria de mencionar uma que Bem no centro um grande carvalho cresceu
me parece merecer ser salva do esquecimento. É ela E eis que dele saltaram quatro sóis.
a opinião expressa por dois amigos de Malyasius
( veja p. 127), e diz que Lucius Agatho foi, realmen Na versão latina, dizia-se que as flores do carvalho
te, uma pessoa, mas que Aélia era uma "mulher não eram apenas quatro sóis, mas que dele brotavam, co
fictícia", ou mesmo um "gênio mau" em forma de mo flores, o sol e a lua.
mulher, ou então algu1n "espírito insubmisso" que, Como observa Jung, isso provavelmente constitui
segundo um deles, "flutua pelos ares" e segundo o uma vaga reminiscência do famoso carvalho do antigo
outro, habita na terra, onde está "enclausurada e filósofo Pherecydes. Esse filósofo interpretava o mundo
fixada dentro de um carvalho de Juno"; "duende inteiro como sendo um imenso carvalho, sobre o qual
silvestre, ninfa ou hanadríade" ela, ao ter sido o se estendia um manto onde estavam bordadas todas as
carvalho queimado e decepado, viu-se obrigada a coisas, de modo que nosso mundo, em verdade, é o bor
buscar outra morada e, por isso, foi encontrada dado que foi lançado sobre o carvalho-mundo.
"como morta nesse sarcófago". Outro importante texto, relativo à conexão existente
entre a fonte e o carvalho, pode ser encontrado em pa
Diz Jung que, segundo tal teoria, Aélia é a anima de rábola escrita pelo famoso Bernardus Trevisanus ( Conde
Agatho que foi projetada num "carvalho de Juno" (§ 70 de March e Trevis, que viveu de 1406 a 1490).
e ss ). O carvalho pertence a Júpiter, mas é igualmente
consagrado a Juno. Tanto as ninfas como todos os de Diz Jung: ( § 74)
mais espíritos femininos das árvores são, naturalmente, Ele conta a parábola de um adepto que encon
projeções de anima. A interpretação se encontra na Den- tra uma límpida fonte represada na mais fina pedra
76 77
e "fixada ao tronco de um carvalho", tudo circun serpente que contrasta com o leão da fonte prateada.
dado por um muro. Ali o Rei se banha e busca a O ramo, co� seu fruto, tem que ser roubado enquanto a
renovação. Um velho, Hermes o mistagogo, explica serpente estiver com a cabeça escondida. Isso não é tão
como foi que o Rei mandou erigir tal banheira, ins paradoxal quanto o caso do leão, pois o normal é uma
talada num velho carvalho "fendido ao meio". A fon serpente esconder a cabeça quando adormece. No terceiro
te era rodeada por espesso muro e "a princípio esta estágio ocorre o mesmo com o papagaio, que esconde a
va engastada em uma pedra dura e brilhante e, de cabeça sob a asa, posição óbvia de dormir.
pois, no buraco de um carvalho".
PERGUNTA: Com referência à bolota de prata, seu cálice
Como Jung faz notar, nessa parábola não existe Rai de"'.eria s�r feminino,. mas aqui é de ouro, ou seja, mas
nha. Já interpretei em algum lugar essa parábola, quan culmo. Visto ser o cálice, geralmente, símbolo feminino
do disse achar muito provável que seu autor fosse homos haveria nisso alguma inversão?
sexual, sendo talvez esse o motivo pelo qual o elemento
feminino só aparecesse assim, de maneira tão inumana e Sim, é curioso que ocorra aqui uma inversão. Seria
primitiva. É provável, diz Jung, que o carvalho desde de esperar que o cálice, o recipiente, fosse feminino,
então passe a substituir a Rainha, e neste caso torna-se e que a bolota fosse de ouro. Tal coisa deve estar rela
interessante o fato de ser ele oco, estar fendido ao meio cionada ao fato de que, em nossa história, tudo se en
e conter em si aquele receptáculo ou bacia. Representa, contre mudado, ou não muito compreensível, visto não
portanto, a mãe em forma dúplice, o princípio materno se adentrar ela suficientemente pelo problema da alqui
e a fonte de vida. O banho do Rei é, por assim dizer, mia. Até 03:de consigo julgar, isso estaria psicologica
um útero materno no qual ele se renova. E então Jung mente relac10nado ao fato de o cálice também significar
prossegue citando outros textos alquímicos que se reve Auffassung, apreensão, ou compreensão de alguma coisa,
lam mais ou menos influenciados por essa clássica e fa neste caso, digamos, do processo de assimilação psíquica.
mosa parábola do Conde de Trevis. Nos países mediterràneos, o paganismo pré-cristão e sua
Acho provável que tal parábola também tenha in continuidade foi assimilado de uma maneira especial
fluenciado nossa história. Caso estejam lembrados, afir mente feminina, ou seja, estética e poeticamente, sem
mamos que o elemento feminino que faltava, o elemento que fosse considerado seriamente do ponto de vista fi
mãe, parece constituir o problema da nossa história, e l?sófico e religioso. Uma grande parte do paganismo
que tanto a fonte como o carvalho parecem representar estético e poético é posta de lado, simples e dogmati
símbolos maternos, dos quais provém a renovação. Con camente. É esse o meio de deixar que as coisas corram
transtando com a fonte de prata, que implica unicamen sem que se faça delas um problema de Logos - donnez
te no elemento feminino, o carvalho contém ambos os -1 eur une âme, mais une petite - que é a maneira femini
elementos, visto as bolotas serem de prata e ouro, uni na de conciliar as coisas incompatíveis. Poder-se-ia, por
ficando, portanto, os opostos sol e lua, macho e fêmea. tanto, afirmar que o ouro, símbolo da meta do processo
Assim é que, dirigindo-se para o âmago do inscons alquímico, é assimilado, captado, ou apreendido, por um
ciente, o símbolo que o irmão tem de trazer de volta tor modo feminino. O mesmo se deu na Renascença, quando
na-se cada vez mais essencial e importante. Esse miste se cogitou em reviver a antiguidade pagã, mas essa reno
rioso carvalho-mundo, que representa a matriz e o lugar vação permaneceu apenas no âmbito das coisas estéticas
e dos jogos poéticos, excluindo-se desse âmbito alguns
de renovação, tem como guardiã, no inconsciente, uma
poucos filósofos. E apesar de alguns papas romanos se-
78 79
rem muito entusiastas em relação à renovação, eles não A mesma coisa freqüentemente acontece em situação
fizeram disso problema religioso. Poucos foram aqueles analítica, pois de nada adianta mexer com camadas mais
que apontaram certas dúvidas quanto a essa revivifica profundas do inconsciente, se a consciência não se en
ção da antiguidade, mas mesmo assim, isso jamais se contra preparada. Em tais casos, geralmente, surge uma
tornou uma briga, cisão ou um problema real. Se ocorre tendência natural e instintiva a desviar-se, ou evitar o
é porque a anima é conciliadora de opostos e, do ponto confronto, algo em que certamente o analista não deve
de vista do sentimento, as coisas mais impossíveis po interferir. Se o analisando se sente inclinado a fugir de
dem ser conciliadas. Nos países mediterrâneos há grande certos problemas, é preciso que se considere a possibili
predominância de arquétipos de mãe e de anima, muito dade de não se achar ele apto a confrontar-se com tal
mais do que nos países do norte da Europa. Lá existe camada mais profunda e, nesse caso, desviar-se do pro
essa conciliação de opostos; o que para os do Norte, blema essencial denota sabedoria.
parece incompatível, no Sul é satisfatória e esteticamente Sabemos, pelos trabalhos de Jung, a quão profundas
contornado. Isso pode achar-se relacionado ao cálice de águas nos leva o simbolismo alquímico. Trata-se, nem
ouro: o receptáculo é feminino, a compreensão da meta mais nem menos, de uma espécie de secreta tendência
do filósofo é feminina, não reside no Logos e sim em religiosa compensatória, relacionada com a doutrina cris
Eros. tã oficial, do mesmo modo como os sonhos relacionam-se
Apanhar o ramo enquanto a serpente não vê é a com a consciência, ou seja, em parte compensatória.
repetição do tema de contornar a coisa central, o que Portanto, se o problema do leão e da serpente fosse as
constrasta com certos temas alquímicos, já por mim ci sumido, isso significaria que se estaria levando em conta,
tados, em que o dragão guarda o carvalho, mas o herói de maneira mais séria, o problema da atitude não cristã,
tem de matá-lo. Aqui o dragão, ou serpente, que se equi da atitud� pagã. Pode-se imaginar o que isso significaria
valem mitologicamente, não precisa ser sobrepujado, mas numa Espanha católica! A atitude hispano-católica é, até
apenas logrado, enquanto dorme. Portanto, o confronto certo ponto, responsável por essa fuga à confrontação
com os elementos, mais uma vez é evitado, sendo somen com o problema do leão e da serpente. Na versão origi
te arrebatado o fruto do inconsciente. nal (versão persa) essa história não apresenta o proble
ma de uma doutrina eclesiástica, mas ela foi assim al
Isto sugere certa superficialidade que provavelmente terada para adaptar-se à situação do país em que está
deve correlacionar-se ao fato de serem crianças o herói sendo contada.
e a heroína da história e, conseqüentemente, toda ela Também poder-se-ia dizer que a relativa suavidade e
desenrolar-se numa linha infantil. O herói é um símbolo a pouca dramaticidade da história são reveladoras da si
de renovação da personalidade, mas, ainda em status tuação psicológica nacional dentro da qual ela surgiu,
11ascendi, ou seja, em nível infantil, não ocorrendo ali isto é, a principal fonte de experiência religiosa está
nenhuma confrontação real com as camadas mais pro contida na doutrina e na Igreja católica e, conseqüente
fundas do inconsciente. É o velho sábio que aconselha mente, as tendências subjacentes acham-se relativamente
essa maneira superficial de ser, como a melhor maneira despotencializadas, motivo pelo qual as camadas mais
de eles escaparem às dificuldades, portanto, não devemos básicas do inconsciente permanecem intocadas.
criticá-la, e sim aceitá-la como justa. Ela corresponde a A bruxa, porém, ainda não está satisfeita e por isto
uma certa atitude sábia, a de não nos engajarmos em volta a lançar o veneno do desejo no coração da menina,
conflitos enquanto não estivermos aptos para tal. dizendo: "Bem, mas vocês ainda precisam conseguir um
80 81
papagaio e eu conheço um muito valioso, pois quem o do papagaio). Trata-se ele uma coletânea de novelas orien
obtiver ficará rico para sempre; seu irmão devia ir bus tais, semelhante às Mil e uma noites. Como é sabido, nas
cá-lo agora mesmo". Desta vez o irmãozinho tem um Mil e uma noites o Rei pretende matar Sherazade. Para
claro pressentimento de algo, e percebendo que a tarefa retardar a própria morte, ela, todas as noites lhe conta
iria ser demasiado difícil, tenta eximir-se. Até mesmo uma nova história, até que o rei, findas as mil e uma noi
revida à irmãzinha: "Desse jeito você vai acabar me tes, acha-se tão cativado por eia que não mais tenciona
matando!'', mas a irmã insiste. Ele, então, parte em matá-la.
busca do papagaio, e de novo o velho encontra-se com O Tuti-Nameh é a história de um jovem mercador
ele e lhe diz o que fazer. "Você vai chegar a um lindo que se acha terrivelmente apaixonado por sua jovem es
jardim todo arborizado e cheio de pássaros", diz ele, "e posa, sentindo-se ambos muito felizes juntos, até que ele,
logo vai aparecer um lindo papagaio que irá pousar so um dia, vai ao mercado e ali lhe oferecem um papagaio.
bre uma pedra circular ( aí vemos novamente a pedra Ele declara não poder pagar mil moedas de ouro por
circular que cobre a mina de água, da parábola de Tre um pássaro tão tolo, mas o proprietário afirma-lhe que o
visanus), aí ele começará a dar voltas e a dizer: 'Não pássaro até conhece o Alcorão de cor. A isso o mercador
haverá alguém que me queira aprisionar? Se ninguém gos responde indagando qual a utilidade de um pássaro citar
ta de mim, que me deixem só! Então, o papagaio meterá o Alcorão, uma vez que ignora o significado das palavras
a cabeça debaixo da asa, e você pode capturá-lo; mas que diz, e mesmo recitando todos os versículos da ora
não seja muito precipitado, porque se o agarrar antes ção, isso não implica que quem o ouça deva orar! Por
de estar completamente adormecido, ele escapará e você que haveria ele de dar mil moedas de ouro por tal papa
será transformado em pedra e ali ficará com todos os gaio? As respostas dadas pelo papagaio são sempre poé
que anteriormente já estiveram nesse local". ticas e, então, "fervente como o mar, canoro como rou
Tudo se passa como o velho previu, mas o menino xinol", exclama ele: "Eu te louvo, Sâid, pois o que dizes
sente-se um tanto nervoso. Logo que o papagaio esconde não é insensato e sim correto, mas só se aplica aos de
a cabeça na asa, ele precipitadamente estende a mão. Foi mais pássaros e bichos, não a mim. De meu coração
cedo demais! O papagaio levanta vôo e o menino fica transbordam pérolas de sabedoria, preciosas gemas do
petrificado e não retorna. conhecimento da verdade; nem mesmo o futuro é por
:É claro que precisaríamos aprofundar-nos mais no mim ignorado e o próprio sobrenatural é apreendido por
estudo desse papagaio, porém, no momento, eu preferiria m'inha inteligência. Quem seguir meus conselhos se põe
ainda não abordar esse problema de maneira mais pro a caminho da felicidade". Em seguida, ele declara seu
funda porque, como se constatará, isso fará com que deseJo de ser comprado pelo mercador, pois não queria
nos adentremos demais no problema ulterior da história. cair em mãos de algum tolo que não lhe reconheça o
Por enquanto basta lhes dizer que, em algumas dessas valor e que venha a torturá-lo. Sâid então lhe responde:
séries de histórias árabes, o papagaio corresponde a uma "Pois bem, principio a sentir-me bastante inclinado a
espécie de Hermes Mercúrio, de um psicopompo que fa. comprar-te mas, como vês, toda a minha fortuna consis
la a verdade ( embora de maneira dúbia), o qual, por te nestas mil moedas de ouro". "Tal conversação", diz-lhe
isso mesmo, leva as mais variadas histórias dramáticas a o papagaio, "é bem própria de um homem com teu
um final positivo. . discernimento e inteligência, mas tenho a fazer-te uma
Existe uma versão pérsico-turca de um famoso bvro sugestão. Existe no mercado uma especiaria que hoje
intitulado Tutí Nameh, the book of the parrot (O livro pode ser adquirida a preço bem baixo, mas que em três
82 83
dias virá a ser procurada por todos os mercadores dos "Estás absolutamente certa!" e passa a fazer-lhe uma sé
arredores e, então, dar-se-á um incrível aumento de seu rie de elogios poéticos, e de elogios ao seu futuro aman
preço e com isso ganharás muito dinheiro". Sâid aceita te, dando inteira aprovação, mas que ele ainda precisa
-lhe o. conselho e assim ganha mais 5.000 moedas de ou va meditar cuidadosamente sobre todo o assunto. Desse
ro, de modo que consegue comprar o papagaio. Chega modo ele consegue acalmá-la, e passa a noite inteira a
até a comprar-lhe uma esposa, e então passam todos a pensar como fazer. Na tarde seguinte, Mâhi-Scheker vol
viver um quaternário: Sâid, sua mulher, o papagaio e ta a enfeitar-se e a dirigir-se ao papagaio, o qual nova
sua fêmea. mente a lisonjeia, dizendo que embora fosse Sâid quem
Então, certo dia o papagaio lhe faz ver a vantagem o comprara, era ela quem o alimentava, mas que ela
de se fazer uma viagem além-mar, e o jovem Sâid fica tivesse cuidado para que não acontecesse com ela o mes
tão impressionado que resolve partir, revelando à mulher mo que acontecera a Fulana de tal. . . "Ah! E o que foi?"
sua intenção. Esta chora e se lamenta, mas Sâid, para pergunta Mâhi-Scheker. "Ora, a história é muito compri
consolá-la, explica quanto isso lhes será vantajoso, ao da e não posso contá-la agora", diz o papagaio, e continua:
que ela retruca dizendo que em tempos anteriores ele "a noite já vai avançada, e eu pensei tanto no assunto que
não a teria deixado nem um segundo sequer. Apesar dis passei a noite inteira acordado, agora, mal consigo man
so, Sâid consegue acalmá-la e se põe a caminho. Após ter os olhos abertos". Ela então consente em ir descansar,
sua partida, a esposa, que se chamava Mâhi-Scheker, porém, na noite seguinte, vai ao encontro do papagaio e
freqüentemente se aproxima da gaiola do papagaio para este lhe conta uma longa história à maneira oriental, e a
queixar-se. Passado um ano, porém, ela se apaixona por manhã desponta e já é tarde demais. Outra noite perdida!
um belo rapaz da vizinhança e, após leve conflito moral, E assim, como a Sherazade das Mil e uma noites,
decide ir avante e encontrar-se com ele. Sentindo-se, no todas as noites o papagaio conta a Mâhi-Scheker uma
entanto, um pouco preocupad�, lembra-se que seu marido história linda e diferente, impedindo-a desse modo, de
lhe recomendara que, caso algum dia ela viesse a se ena cometer adultério, até que é chegado o dia em que o
morar de um outro jovem, pelo menos buscasse aconse marido regressa. Aí, então, o papagaio relata a coisa to
lhar-se com o papagaio. Ela porém, achando-se mais à da e dá-se a reconciliação geral. Como prêmio por haver
vontade com outra mulher, revela seu plano à fêmea do salvo toda a situação, pelo que a esposa também se
papagaio. Ao que esta exclama: "Oh! Por Deus! Isso é sente agradecida, o papagaio só pede que o ponham em
imoral, não deves fazer isso, tens que ser fiel a teu ma 11berdade, e que lhe permitam voar para onde quiser.
rido!" O fato provoca tal fúria na mulher do mercador E assim eles vivem felizes e juntos para sempre, e o
que esta, agarrando o pássaro, torce-lhe o pescoço, ma papagaio vem visitá-los de tempos em tempos. A histó
tando-o. Mas sua fúria foi tamanha que ela nem mais ria termina com uma exortação moral dizendo que tais
desejou ir ao encontro do rapaz, e esperou a noite se contos devem ser ton�ados muito a sério e sobre os quais
guinte para, então, voltar a enfeitar-se, apesar de ainda se deve meditar bem.
experimentar vagas crises de consciência. Desta vez, diri Existe muito mais, guanto a esse papagaio, mas aqui
ge-se ela ao próprio papagaio e revela-lhe seus planos, pode-se ver que e]e atua como uma espécie de espírito
enquanto este se diz: "Ai de mim, em que encrenca es levemente paradoxal, vagamente ambíguo, mas com in
tou metido! Se lhe disser que não deve ir, serei morto, tuitos positivos. Nessa versão do Tuti-Nameh, ele pode
como o foi ontem a minha esposa. Por outro lado, po ser comparado à famosa figura do Khidr, primeiro anjo
rém, tenho que impedi-la de ir!" E assim responde-lhe: ele Alá que, como recordarão os que leram a interpre-
84 85
tação do 18? Surá do Alcorão feita por Jung, também bons embora não seja esse o seu principal propósito.
atua desse mesmo e estranho modo, ou seja, com uma No conto de Tuti-Nameh ele efetivamente se utiliza da
espécie de moral mais alta e mais paradoxal. Considera- avidez por dinheiro para fazer com que o mercador o
do mais ingenuamente, como o é Moisés no 18? Surá do . .,; compre e aí começa a dar conselhos os mais diversos,
Alcorão, sua aparência é de moralidade, mas seu verda não apenas concernentes a dinheiro. A bruxa, porém, só
deiro significado é a procura de uma forma mais eleva- vê vantagem material, o que nos leva de volta ao que
da de cumprir a vontade de Deus, uma forma mais alta mencionei anteriormente: essa eterna tendência humana
de discernimento ético. De certo modo, porém, o papa de explorar a natureza e, considerando-se que também o
gaio se comporta de maneira ambígua, porque parece
inconsciente é natureza pura, de explorar também a este
aprovar o caso de amor, e de forma bem desonesta, ao
modo igualmente utilitário. Está certo que isso venha da
cumular Mâhi-Scheker de lisonjas e toda espécie de lou boca de uma feiticeira, por ser coisa tão completamente
vores poéticos, consegue iludi-la, visando seu próprio
destrutiva quanto o é a exploração da natureza.
bem. Tal veneno freqüentemente se evidencia, por exem
Há outros contos fantásticos turcos nos quais o pa plo, nas pessoas que lêem Jung com infantilidade, por
pagaio se revela, ao contrário, nitidamente destrutivo, co- se aperceberem que, obviamente, o fato de estar bem
mo por exemplo, no caso de certa mulher que se enamo- com o inconsciente faz com que a pessoa se sinta me
ra de um jovem no sentido positivo do termo, e que, se lhor. Aí então, tais pessoas passam a obedecer a seus
gundo a história, tinha que possuí-lo, é o papagaio quem sonhos, no intuito dissimulado de se tornarem um fi
a delata ao inimigo. Percebe-se, portanto, ser o papa gurão da sociedade, ou o mais atraente dos homens aos
gaio um personagem muito ambíguo, geralmente posi�i- olhos das mulheres, ou Deus sabe o que mais estejam
vo, mas às vezes, também, surgindo no contexto da his pretendendo, e repentinamente ficam furiosos quando se
tória como caluniador e destrutivo. Mesmo aqui ele ain- apercebem de que tal coisa não dá resultado. Essa espé
da conserva algo dessa ambigüidade mercurial na sua cie de trama infantil de querer explorar o inconsciente
maneira de se mover em círculos enquanto exclama: e de estabelecer metas por razões puramente conscientes
"Não existirá aí alguém que me queira aprisionar? Nin já se insinuou até o íntimo do relacionamento deles c�m
guém que me queira prender? Se ninguém me quer, en o próprio inconsciente. Como se sabe, o processo de m
tão que me deixem só!" Pode-se constatar que ele não se dividuação, segundo o que se pode ler a cada página dos
impõe a ninguém, ele é o espírito da natureza: se a gen livros de Jung, consiste em se tornar alguém feliz consigo
te o captura, muito bem! Mas ele possui essa mesma mesmo e não em alguém se tornar feliz como num jar
atitude evasiva que os alquimistas sempre lamentam em dim de infância. Não obstante, o tal veneno está sempre
Mercúrio, ao qual eles buscam e que sempre escapa ao a insinuar-se, vezes sem conta. Ele é a bruxa que destrói
alcance humano. a pureza de intenções no relacioname�to com o próp�io
A feiticeira não vê esse aspecto do papagaio, ela so inconsciente, que está sempre a sugerir algum proposito
mente afirma que quem o capturar ficará rico por toda errôneo.
a vida e, pelo conto de Tuti-Nameh, constatamos que o
papagaio é perfeitamente capaz de urdir artimanhas mui Mais tarde vamos ter de aprofundar-nos muito mais
em seu significado, mas, por enquanto, suponhamos ��e
to concretas, tal como essa de enfrentar o problema da
bolsa de valores! Também neste campo ele se encontra o papagaio represente algo como uma verdade fugidia
que possamos obter de produtos incon.:'cie�tes. E�a nos
muito bem atualizado e consegue dar conselhos muito
é sugerida por sonhos e visões, em reaçoes 1nconsc1entes,
86 87
por exemplo, com uma imprecisão de tons não muito de aquela fantasmagoria e tem de ser mantido cativo por
acordo com nossos pontos de vista conscientes, embora longo tempo antes de declarar a verdade.
não difira deles.
O problema é idêntico àquele da fugacidade do es
O papagaio tem que ser agarrado quando coloca a
pírito do inconsciente, e quem quer que tenha passado
cabeça sob a asa, coisa que sugere um tema diferente:
pela experiência de lidar com o próprio inconsciente bem
aqui, é o próprio objeto que tem de ser capturad': en
quanto está adormecido, ao passo que no caso da agua sabe quanto ele, às vezes, consegue fazer-se escorregadio.
e do ramo, era o guardião do objeto que precisava estar B isso que tanto irrita, principalmente quando se está
<'!m conflito e se anseia por um conselho, pois, em lugar
adormecido. Isso está relacionado ao fato aparente de de mostrar-se bonzinho e dizer o que é preciso fazer, e
· ser o papagaio muito fugidio; seu sono é muito leve, e, quando fazer, qual criança bem comportada uma vez
se não o agarramos enquanto ele está inconsciente, ele que se está disposto a também ser criança bem compor
levanta vôo e foge, como acontece na nossa história (na tada e obediente - os sonhos realmente parecem estar
versão persa original, acontece o mesmo, pois o papa
caçoando da gente! Dizem: "Pode fazer isso, ou pode
gaio nunca adormece e sempre foge das flechadas). O fazer aquilo! " Parecem estar dando conselhos, mas sem
motivo principal consiste, portanto, nessa fugacidade, e pre nos resta uma dúvida, e aí depois de se discutir o so
_
é isso que deixa o irmãozinho nervoso, sôfrego e ans10so nho com o analista durante uma hora, acaba-se decla
por atingi-lo. rando ter ficado na mesma, sem saber o que o sonho
A fugacidade do espírito da verdade na natureza e significa, pois tanto pode significar uma coisa, como po
lindamente descrita, no início da Odisséia, no relato de de significar exatamente o contrário. Portanto, você está
Menelau a Telêmaco ( que andava em busca do pai, Ulis sendo iludido, e quanto mais se sentir impelido a se dei
ses) de como ficara encalhado na ilha de Faros. Tive xar arrebatar por ansiedade ou mau humor, tanto pior.
ram de encontrar Proteus, o Rei do Mar, para poderem Geralmente, quando se continua a observar os sonhos
partir. Ao meio-dia Proteus põe-se a contar seu re �anh? sem que se faça qualquer movimento precipitado, a si
e depois deita-se e adormece. Menelau e seus companhei tuação se esclarece e, eventualmente, se consegue ter um
ros tinham de precipitar-se sobre ele, agarrá-ló e dele
obter a verdade a fim de descobrirem qual o deus que sonho que exemplifica claramente a questão, ou então a
tão bruscamente interrompera a viagem de Menelau, e própria consciência se apercebe do que convém fazer.
como deveriam eles retornar ao lar. Logo que Proteu é -Neste caso, chega-se a uma decisão sem precisar de so
capturado, transforma-se primeiramente em leão, depois nho, tendo-se a clara noção do que será preciso fazer e,
em serpente, em pantera, num grande javali, em seguid � então, é a isso que a pessoa se apegará, não importando
em água e depois em árvore. Sua mudança de forma e o que o inconsciente pense· do assunto; a solução pela
tão rápida e freqüente que Menelau e seus três compa agonia da dúvida, a solução por meio de uma terceira
nheiros têm de agarrá-lo com toda firmeza, sem deixá-lo, alternativa também ocorre. Mas é preciso ter esteio, ter
enquanto ele não reassumir sua forma própria, a de força de personalidade interior para suportar tal agonia.
Proteu, o velho Rei do Mar. Nesse preciso instante, Pro Como se sabe, a pressa pertence ao diabo, como dizem
teu indaga: "Então meu filho, que desejas?" E� g:�go os alquimistas, e toda precipitação ou ansiedade nervo
o velho Rei o Mar tem por nome Nemertes, que s1gmfica sa por uma solução rápida é sintoma de fraqueza e de
"o voraz", mas a despeito do fato de ele jamais enganar, infantilidade psicológicas. O pânico é realmente catas
falando sempre a verdade, ele passa através de toda trófico, no trato com o inconsciente.
88
89
A fugacidade desse espírito da natureza, porém, sem beça. Depois de ter escamoteado esse tema retorno a
pre nos lança em tal situação, e é assim que atua, tam ele, porque tal como o fez a serpente, o papagaio tem
bém, o papagaio. Seja quem for que o capture tem o
de esconder a cabeça.
direito de levá-lo, mas, se não puder é melhor deixá-lo Em alquimia, a serpente é geralmente representada
sozinho. Também acontece que, em situações de conflito, como serpente que morde a própria cauda, a famosa
o inconsciente às vezes não se refere ao conflito. Um Ouroboros, sendo isso considerado como uma unifica
homem, inseguro quanto a divorciar-se ou não passa dia ção de opostos, de cabeça com a cauda. A cauda, às
e noite atormentado, a subir e descer os degraus da dú vezes, é interpretada como coisa fálica, pois entra pela
vida, ao mesmo tempo seus sonhos lhe falam de coisa boca da serpente, sendo a cabeça interpretada como ex
inteiramente diversa, exatamente como se o conflito tremidade feminina. Ela abrange, portanto, os opostos
consciente não existisse. O justo seria desligar-se de tudo macho e fêmea. O mais freqüente, na alquimia, é que a
e dar atenção ao inconsciente, mas às vezes a consciência cabeça da sepente Ouroboros seja considerada como o
se acha tão presa à própria maneira de ver e às próprias e1emento significativo positivo na matéria-prima, o seu
idéias sobre a resolução dos conflitos que o inconsciente elewento espiritual; e a cauda é o elemento destrutivo,
nem sequer é ouvido; é então que ele, metaforicamente venenoso. Há vários textos gregos que dizem que se deve
falando encolhe os ombros dizendo: "Se ninguém gosta
considerar apenas a cabeça, quando se lida com a ser
de mi�, ninguém precisa me prender", como diz o pa
pente, deixando-se de lado a cauda, ao passo que outros
pagaio. Assim como esse pap�gaio, o . incons�iente tam
_ , textos dizem que toda serpente deve ser cozida, pois é
bém não assume qualquer atitude m1ss10nana, se bem
ela a matéria-prima. Mas se há algo de dúbio é na cauda,
que, no fundo, pareça ser benévolo. e não na cabeça. Isso naturalmente se refere ao conflito
Para ser capturado, é preciso que o papagaio es milenar da civilização ocidental, entre os chamados as
teja adormecido, assim como a serpente e o leão também pectos espirituais e os chamados aspectos físicos ou ma
tinham que estar dormindo ( embora o último de olhos teriais do processo psíquico e do inconsciente. Onde
abertos) para que os preciosos objetos por eles guard� quer que haja influência de espiritualização volta-se a
dos pudessem ser colhidos. Aqui, a esperteza do papaga10 verificar essa preferência pela cabeça em detrimento da
é que tem de ser sobrepujada, ao contrário do que acon cauda da serpente, sendo essa cauda mencionada como
tece na história original do Tuti-N ameh, onde o papa algo a ser jogado fora como terra damnata, que é como
gaio se parece bem mais com um miss�onário, p�is ele a chamaram os últimos alquimistas latinos, a terra con
quer de fato ajudar Sâid, se bem que disso tambem lhe denada que deve ser lançada fora, e não integrada na
advenha vantagem. Ele pretende ser livre, não quer cair obra alquímica. Em outros textos, tanto a cabeça quan
nas mãos de um tolo qualquer e, mais uma vez, mostra to a cauda pertencem à obra, sendo caracterizadas como
-se igualmente evasivo, tanto na história persa quanto na fálico e o receptivo, os extremos material e espiritual de
nossa. Portanto existem diferentes versões sobre o tema uma só e mesma coisa.
do papagaio, como constatamos ao ampliar o te:na, mas
vamos nos ater a nossa versão, na qual ele precisa estar PERGUNTA: Por que é que você se refere a um assim
adormecido. Isso torna óbvio que o choque daquilo que chamado aspecto mental e a um assím chamado aspecto
denominarei de inconsciência, a alerta vivacidade do pa físico do mundo?
pagaio, tem que ser outra vez evitado, assim como precisa
ser evitado o choque com a serpente que esconde a ca- Porque atualmente temos uma visão dividida do mun
do a partir do nosso ponto de vista teórico consciente.
90
91
Duvido que isso seja mais que uma mera divisão cons O confronto direto com o espírito do inconsciente
ciente de um fenômeno. Portanto, a bem da clareza, refi não ocorre em momento algum dessa história, de modo
ro-me a ele como algo assim chamado. Como Jung indica que só o que permanece é uma certa atitude de explo
em seus escritos, estamos provavelmente abordando um ração consciente, de se levar vantagem sempre que possí
único e mesmo fenômeno, o qual, quando observado de vel. Mas como dessa vez não foi possível, quem de fato
dentro, parece psíquico e que, se observado estatistica começa a triunfar é a feiticeira. Ela manda a menina ir
mente e a partir do exterior, manifesta-se como físico. ver o que acontecera ao irmão, na esperança de que en
tão possa agir de modo a conseguir destruir os dois. No
Jamais. constatei que no simbolismo alquímico a ca entanto, a menina tem mais sorte que o irmão - ela
beça da serpente fosse negativa, por isso me parece mui de fato aguarda até que o papagaio esteja profunda
to inusitado, aqui, esse tema de que a serpente tenha n1ente adormecido e, então, consegue agarrar o pássaro.
que esconder a cabeça, quando esta não é perigosa. Do O final da "história já não é de grande interesse, e
ponto de vista mais primitivo, mais natural, está claro de agora em diante já se pode resolver a coisa toda:
que, escondendo a cabeça, a serpente tem menor chance o papagaio é o espírito da verdade, ele traz à tona a
de ver o garotinho e, portanto, de picá-lo. No entanto verdade, o bem é recompensado, o mal é punido, o ve
isso não é lá muito certo, pois segundo se lê em Brehem, lho quaternário familiar é restabelecido, já agora cen
as serpentes têm vista muito curta e péssimo senti1o de tralizado pelo papagaio que, provavelmente, lhes trará
_ _
olfato. Possuem outros meios de saber se algum m1m1go riquezas e bons conselhos até o fim de seus dias, ou
se aproxima. Parece que se aperceb� disso �través de pelo menos assim o esperamos.
vibrações da terra a seu redor e c01sas assim ( exata Mas ainda não terminamos o tema desse papagaio.
mente como ainda não se descobriu, mas a concentra Até aqui apenas fiz um esboço dele, a fim de encerrar
ção de perc�pção sensorial numa cabeça de serpente é, esta história. O problema é cheio de dificuldades e de
decididamente, muito limitada). Elas parecem ter sua impedimentos. Ainda não analisamos a petrificação, que
capacidade de percepção difusa p:>r todo ? corpo. Os advém da tentativa de capturar o papagaio às pressas.
sapos têm capacidade de percepçao parecid?, porque, Vamos aprofundar-nos mais no assunto com o próximo
quando se destrói o olho de um sapo, ele assim mesmo conto, "O Banho Badgêrd", mas agora vou lhes adiantar
ainda consegue enxergar vagamente através da umidade . um pouco acerca dele.
da pele, e somente quando a pele se resseca é que � le Aqui temos um extrato do poema Tuti-Nameh, refe
fica cego. Conseqüentemente, em tais camadas infe�10- rente ao papagaio. O Tuti-Nameh principia, é claro,
des da vida animal existe uma certa dose de sentido "Em nome de Alá" e pelo poema que se segue:
perceptivo algo difusa, mas até agora não sabemos bem
como isso funciona, nem conhecemos os detalhes. Mas Por várias maneiras hei de louvar o Senhor,
provavelmente, se uma serpente �sco�de a cab�ça, con o exaltado Senhor de toda sabedoria,
siderando isso de maneira mais simplista, ela nao enxer o qual pelo dom da fala distinguiu o homem
ga, da mesma forma como um pássar_:> que esconde a acima de todos os seres viventes.
cabeça sob a asa e não vê, podendo enta? se: captur�do Aquele que houve por bem erguer a cabeça dizendo
�
Mas aqui surge, mais uma vez, o vago 1:1tmto de evita� Eu lhes concedi honra.
um confronto direto com a serpente, assim como de evi Muitas mil vezes também quero bendizer
tar o confronto com o papagaio. o Senhor da profecia, luminosa estrela,
92 93
preciosa gema. pois sabemos que absolutamente não se compreende o
Na arca das preciosas pedras do falar que um pássaro pensa, ou faz o que não impede que
residem orgulho e júbilo de todo ser terreno. ele, às vezes, consiga conversar em linguagem compre
Maomé, o eleito, o pássaro falante que tinha ensível aos humanos. E por fim, mas não menos impor
consciência tante, está o fato de ser ele, também, um símbolo de
de não falar apenas por seu bel-prazer. Maomé.
O rouxinol canoro cuja boca proclamou somente Talvez devamos considerar esse poema da história
pura revelação como um adendo, pois duvido que pertença à versão ori
Quem por retos caminhos conduz à redenção ginal. Pode ser que o símbolo do papagaio, o fugaz es
os que se agarram às cordas de sua lei. pírito da verdade que repentinamente põe-se a falar do
inconsciente, tivesse sido identificado com Maomé por
Como se pode ver, Maomé é aqui chamado de "pás algum devoto muçulmano, pois o papagaio é o único a
saro falante", sendo naturalmente esse pássaro falante dizer a verdade. Pela corda da lei do Alcorão, Maomé
o papagaio, e no texto do verso ele é chamado de "rou retira as pessoas do labirinto deste mundo e as conduz
xinol canoro", outro pássaro que também revela a pura à eterna beatitude. A gente não pode deixar de comparti
verdade sem nunca falar de seu desejo - diríamos que lhar um pouco com Sâid quando ele, ao encontrar-se
ele nunca fa]a a partir do ego - mas ele é instrumento com o papagaio pela primeira vez, achou que, ainda que
de anunciação da divina verdade de Alá. Assim, segundo este lesse os versículos do Alcorão, isso nada significaria,
esse poema introdutório, Maomé é identificado com o porque ele não entendia o que lia! Ele apenas "papa
papagaio porque esse é o pássaro que fala a absoluta gueia" os versos do Alcorão, e ninguém precisa atendê
verdade. -lo, mesmo que ele os chamasse à oração, cada um se
Em outro trecho da história, diz-se que o papagaio limitaria a erguer os ombros, dizendo; "Ora, é só um
é "der Beredsamkeit Quelle - wundersamer Gedanker papagaio e não um ser humano quem está falando!"
Türschwelle" (a fonte da palavra o liminar de estra Portanto, considerando ainda que em outras histórias
nhos e maravilhosos pensamentos). Isto é dito do papa turcas o papagaio se manifesta como destruidor e demo
gaio justamente numa espécie de aparte em meio ao níaco, e que na presente versão ele é o culpado de ter
texto, enquanto o papagaio, referindo-se a si mesmo, diz petrificado tanta gente, talvez nos seja permitido colo
estar repleto de pérolas de sabedoria, de preciosas ge ca'r uma certa dúvida em relação ao nosso papagaio, as
mas de conhecimento da verdade; tem o coração trans sim como a Maomé, indagando-nos se também ele não
bordante e conhece tanto o futuro como as coisas so expressaria essa perigosa tendência de repetir, mecani
brenaturais. Tudo isso, realmente, diz respeito à inter camente, as verdades religiosas originais fazendo, por tal
pretação que já procurei dar, ou seja, ao fato de ser modo, com que as pessoas permaneçam inconscientes e
ele um símbolo da misteriosa verdade da qual fala o tornando-se, por isso mesmo, um espírito destrutivo.
inconsciente, limiar de maravilhosos pensamentos. Isso Isso vem, mais uma vez, exemplicar a terrível in
significa ser ele um fenômeno "limiar", pois sugere ma compatibilidade existente entre a psique consciente e a
ravilhosos pensamentos do inconsciente em seu falar. psique inconsciente do ser humano, algo com que nos
Talvez seja o fato paradoxal de um pássaro falar em defrontan10s,. e que se transforma no mais urgente dos
linguagem humana que o torna um símbolo tão apro conflitos. Quando, por exemplo, estão em questão as
priado. Tal símbolo sugere ser ele algo de não humano, maiores verdades, os problemas religiosos, até que pon-
94 95
- r
to se faz necessano que as verdades já formuladas se eia profundos, que petrificam a sociedade inteira, seus
jam repetidas, ou seja, que delas se faça uma lei cons indivíduos e seu desenvolvimento. :É claro que se pode
ciente, um lema ou uma opinião consciente, de forma retrucar: "Sim, mas isso só se dá com aqueles que não
que as pessoas tornam-se papagaio repetindo mecani sabem agarrar o papagaio", o que de fato é verdade.
camente tais verdades? Pois sendo verdades; não se pode Através de toda essa camada de tradição mecânica, ain
simplesmente pretender mudá-las! De que serviria, por da é possível apreendê-lo e compreender o seu signifi
exemplo, que depois de se ter compreendido que dois cado original, em sua essência vital e primordial e, nesse
e dois são quatro, se dissesse: "Ora, que me importa, caso, a petrificação não se verifica. Se ainda se consegue
estou farto de ouvir todos dizerem que dois e dois são ler um desses textos de revelação, ou uma dessas expe
quatro! De agora em diante vou passar a afirmar que riências religiosas com os olhos da alma, então ele ainda
dois e dois são cinco, só pelo gosto de mudar!" Sabe-se transmite a vida e o significado originais e, em tal caso,
perfeitamente bem que tal coisa é impossível. Se uma a petrificação não ocorre. Mas isso depende de se agar
coisa é uma verdade, então ela é sempre verdade e todo rar o papagaio no momento certo, na ocasião em que
o mundo tem de concordar com isso, pois de outro mo ele não consiga escapulir. Se a pessoa se descuida, o
do seria, simplesmente, ridículo! Por outro lado, para significado original lhe escapa e ela se deixa desviar por
aqueles que a verdade religiosa (a do Alcorão, por exem palavras. Quem quer que tenha estudado teologia, ou
plo ou a dos ensinamentos de Buda) é a verdade, então que tenha analisado teólogos, em qualquer civilização,
só existe uma única possibilidade, que é a de ora em saberá a que me refiro. :É uma questão de deixar-se pren
diante passar a repeti-la como uma verdade matemática. der por palavras e frases sem significado algum, por
Mas então, olhe o papagaio! Vai-se escorregando até ficar uma espécie de jogo intelectual com discussões formais;
igual a esse papagaio que, pelo menos na opinião de e no que se refere à essência do significado e da expe
Sáid, fala sem saber o que está dizendo - ficando, por riência original, nada mais subsiste.
assim dizer, igualzinho a um mecanismo autômato. Hoje Este é o lado perigoso do papagaio, o lado que não
em dia poder-se-ia tomar o gravador por um papagaio e, é posto em evidência na riossa história, mas ao qual se
então, deixá-lo repetir sempre a mesma verdade. Todas as alude no poema introdutório do Tuti-Nameh, quando diz
religiões de livro, aquelas que se fundamentam em uma ser Maomé o pássaro que conduz à redenção por justos
verdade revelada "de uma vez para sempre", vêem-se na caminhos aqueles que se agarram à corda da sua lei.
tural e imediatamente ameaçadas pelo aspecto negativo 'Isso quer dizer que somos exatamente como camelos,
do símbolo do papagaio e, conseqüentemente, pela pe ou cordeiros, enfileirados à corda puxada por Maomé e
trificação. que, desde que caminhemos em fila, chegaremos à meta.
Agora nós compreendemos o espírito de petrifica Não é preciso pensar, nem buscar o caminho, nem fazer
ção, pois quem cair vítima desse espírito papagueador, qualquer esforço individual ou pessoal; basta apenas que
no sentido negativo da palavra, fica psicologicamente pe se permaneça dentro daquele limite, ou cercado, para que
trificado, não mais havendo desenvolvimento possível pa isso nos leve diretamente ao Paraíso, ou como está im
ra ele. E não só o ser humano se petrifica, mas também plícito em nosso conto, à petrificação! Desse modo cons
toda uma civilização, como se comprova pela história, tata-se que os contos de fada estão relacionados à cons
em suas diversas variantes. Quando isso ocorre, apare ciência coletiva, assim como os sonhos estão relaciona
cem aqueles habituais mecanismos religiosos, litúrgicos dos à consciência individual; existe aí uma vaga função
e outros, destituídos de qualquer significado ou experiên- compensatória que aponta certos perigos que na cons-
96 97
c1encia não se acham indicados abertamente senão por
modo simbólico.
No mundo islâmico existe terrível cisão entre o mo
vimento Suniita e o Shiita. Este último sempre se esfor
çou por manter-se do lado compensatório do inconscien
te, assim reagindo contra a petrificação do movimento
Suniita, da escola ortodoxa, que se ateve à interpretação
2
literal do Alcorão e de suas regras. Dentro das seitas Os banhos de Bâdgerd
Shiitas, o simbolismo alquímico floresceu. Oitenta por
cento dos grandes alquimistas árabes pertenceram aos
Shiitas e não à seita Suniita, fato esse para nós bastante
revelador porque, como observa Jung, o simbolismo al
químico, assim como a Alquimia em geral, constituiu um
movimento subterrâneo compensatório, não só da Euro
pa cristã, como também da civilização árabe, dentro da . . Agor3: ��egamos a um conto de fada persa que, na
qual exerceu ele, exatamente, a mesma função. Também ·rnmha op1mao, exerceu influência direta sobre O nosso
ali a alquimia pertencia aos movimentos subterrâneos conto espanhol, "O Papagaio Branco". Intitula-se "O Se
complementares mais místicos, os quais se contrapu �re- � 11
o dos Banhos Bâd��rd". A palavra "Bâdgerd" signi
nham à petrificação da consciência coletiva por modo fica. Castelo do Nada . Portanto, se traduzido seu tí
bastante semelhante ao da Idade Média em relação a tulo significa: "O Segredo dos Banhos do Ca�telo do
nós. Na Pérsia, especialmente, tais seitas Shiítas e Ismae N�da". O heró! dest� história chama-se Hâtim Tâi, sendo
_
litas floresceram assim como floresceu a alquimia. Nesse �a1 o nome tribal. Ele pertence à tribo Tâim, sendo Hâ
país o desenvolvimento foi maior, fato que se vê re t1m o seu nome real. A história faz parte de um romance
fletir até mesmo em materiais tão simples quanto estes, n:uito conhecido, na qual Hâtim Tâi consta como tendo
os contos de fada. Em decorrência disso estabeleceu-se s�d? um personagem histórico, porém, algumas das his
um relacionamento com a natureza e um início de ciên torias em que aparece são folclóricas, o que mais uma
cia natural, ambos sempre relacionados a tal âmbito de vez demonstra que naqueles países os romances freqüen
pensamento. temente se deturpam e viram histórias de gente simples.
· Hâtim Tâi parece ter sido um personagem histórico
e, embora alguns de seus poemas tenham sido conserva
dos, dele mesmo pouco se sabe. Dizem que foi cavaleiro
e poeta, famoso por sua grande generosidade, tendo vivi
do por volta do século VI ou VII da era cristã, por isso,
_
n� h�er �tura, ele se tornou um ideal de generosidade.
D 1str1�uiu toda a sua fortuna aos pobres e, pelo que se
_
diz, e ;'�ste em seu túmulo um enorme recipiente de pedra
qu� e mterpr �tado como sendo a vasilha da qual ele ia
retirando o alimento que, dia-a-dia, distribuía aos pobres
de todas as suas terras. A todos ele convidava e alimenta
va, e quem quisesse podia ir a sua corte e ali residir.
98
99
Quanto ao túmulo de Hâtim Tâi, o mais interessante é
em busca dos Banhos Bâdgerd, o Castelo do Nada.
que há também em torno dele, uma mandala formada Partiu para o deserto e, diante das portas da cida
por figuras de oito mulheres dispostas nos quatro can
de, encontrou-se com um velho que o convidou a
tos, os cabelos soltos segundo o costume das mulheres
sua ca,5� e lhe perguntou para onde se dirigia, ao
enlutadas do Oriente, tendo por centro aquele recipiente
de pedra, símbolo de sua generosidade. Como se vê, para que Hat1m respondeu que ia em busca dos Banhos
Bâdgerd. Após longo silêncio, disse o velho: "Jo
uma velha alquimista junguiana, isso constitui uma fan vem, que inimigo te envia em busca dos Banhos
tasia extremamente feliz. Mas não é apenas a minha fan
Bâdgerd? Ninguém sabe onde se encontram eles·
tasia que se sente feliz ao saber da existência de tal mo só o que sei é que nenhum daqueles que saíram �
numento num túmulo; o povo daquelas paragens tam
sua procura jamais voltou. Na cidade de Qâ'tan há
bém parece ter sentido a mesma reação. Na Enciclopédia um Rei, cujo nome é Hârith, que colocou uma fi
do Islã está escrito que até os dias de hoje existem ainda
leira de guardas em torno da cidade para que todo
contos populares que aludem ao fato de achar-se esse aquele que ande à procura dos Banhos Bâdgerd
túmulo localizado algures, contos que a ele se referem _ lev do a sua presença; ninguém sabe por que
seJa
como a um lugar numinoso, como o castelo do Graal. �
ele faz isso, nem se ele mata as pessoas ou se as
Como o Graal, também ele precisa ser descoberto através
de misteriosa busca, havendo a seu respeito inúmeras len ?eixa ir". Hâtim, porém, responde-lhe que precisa
ir e que �ei:s vai ter que protegê-lo, pois não pre
das de fantasmas e milagres. Até agora ninguém o encon tende desistir da tarefa. Então, o velho abençoa
trou ou descobriu. Portanto, o túmulo de Hâtim Tâi é Hâtim, repetindo-lhe: "Volta! Esse Banho é um lu
uma verdadeira analogia com o Graal. No folclore persa gar enfeitiçado que ninguém sabe onde fica, pois
desempenha o mesmo papel que, mais tarde, o Graal vem dali jamais alguém regressou!", e assim por diante.
a desempenhar no folclore celta e germânico, visto ser
Mas, ante a persistência de Hâtim, o velho lhe ensi
este também um túmulo e um recipiente, respectivamen na como seguir o caminho, dizendo-lhe que tome a
te guardado e carregado por mulheres. Surgiram até mes
direita e que, quando ch�gar a uma montanha em
mo teorias nas quais o tema do túmulo está relaciona
,::ujo sopé houver muitos ciprestres e para além se
do ao tema do Graal de nossos países, tendo este sido estender o deserto, deverá virar às esquerda - o
importado do Oríente. A esse respeito, aliás, eu não es camínho da direita é menos difícil, porém, mais
tou assim tão certa. Quanto ao assunto daquele túmulo, perigoso.
nós o lemos em Prados de Ouro, de Masudi. Assim, pa
rece ter sido esse o único legado histórico do Hâtím Tâi Hâ�i�, então, prossegue o caminho e chega a
que, por seu caráter altamente simbólico, até hoje ficou uma aldeia em cujas proximidades há muita gente
.
gravado na fantasia do povo da Pérsia e do Iraque. reumda, sentada ou dançando numa espécie de fes
tança com muita comida. Ele vai ao encontro da
Assim relatam eles a fantástica história de Hâtim quela gente e pergunta-lhes a razão de estarem tão
Tâi, "O Segredo dos Banhos Bâdgerd": alegres. Respondem-lhe que existe, no deserto, um
poderoso dragão e que, quando este assume forma
"Quando a serviço da Rainha Husn Banu, Hâ
humana, todas as jovens da cidade são trazidas a
tim Tâi assumiu, como o sétimo dentre seus muitos sua presença, e durante um grande festival ele es
encargos ( ele é um desses cavaleiros que assumem colhe a moça de que mais gosta. Agora estão todos
tarefas a cumprir para seu Rei ou Rainha), o de 1r celebrando esse festival, mas não por se sentirem
100 101
Quanto ao túmulo de Hâtim Tâi, o mais interessante é
em �usca dos Banhos Bâdgerd, o Castelo do Nada.
que há também em torno dele, uma mandala formada
Partm para o deserto e, diante das portas da cida
por figuras de oito mulheres dispostas nos quatro can
de, encontrou-se com um velho que o convidou a
tos, os cabelos soltos segundo o costume das mulheres sua ca_s� e lhe perguntou para onde se dirigia, ao
enlutadas do Oriente, tendo por centro aquele recipiente q�e Hat1m respondeu que ia em busca dos Banhos
de pedra, símbolo de sua generosidade. Corno se vê, para
Badgerd. Após longo silêncio, disse o velho: "Jo
uma velha alquimista junguiana, isso constitui uma fan vem, que inimigo te envia em busca dos Banhos
tasia extremamente feliz. Mas não é apenas a minha fan Bâdgerd? Ninguém sabe onde se encontram eles·
tasia que se sente feliz ao saber da existência de tal mo só o que sei é que nenhum daqueles que saíram �
numento num túmulo; o povo daquelas paragens tam
sua procura jamais vo1tou. Na cidade de Qâ'tan há
bém parece ter sentido a mesma reação. Na Enciclopédia ui:n Rei, cujo nome é Hârith, que colocou uma fi
do Islã está escrito que até os dias de hoje existem ainda leira de guardas em torno da cidade para que todo
contos populares que aludem ao fato de achar-se esse aquele que ande à procura dos Banhos Bâdgerd
túmulo localizado algures, contos que a ele se referem seJa_ lev do a sua presença; ninguém sabe por que
como a um lugar numinoso, como o castelo do Graal. �
ele faz isso, nem se ele mata as pessoas ou se as
Como o Graal, também ele precisa ser descoberto através
de misteriosa busca, havendo a seu respeito inúmeras len ?eixa ir". Hâtim, porém, responde-lhe que precisa
ir e que �ei:s vai ter que protegê-lo, pois não pre
das de fantasmas e milagres. Até agora n;inguém o encon tende desistir da tarefa. Então, o velho abençoa
trou ou descobriu. Portanto, o túmulo de Hâtim Tâi é Hâtim, repetindo-lhe: "Volta! Esse Banho é um lu
urna verdadeira analogia com o Graal. No folclore persa gar �nfei:içado que ninguém sabe onde fica, pois
desempenha o mesmo papel que, mais tarde, o Graal vem .
dah Jamais alguém regressou!", e assim por diante.
a desempenhar no folclore celta e germânico, visto ser Mas, ante a persistência de Hâtim, o velho lhe ensi
este também um túmulo e um recipiente, respectivamen na como seguir o caminho, dizendo-lhe que tome a
te guardado e carregado por mulheres. Surgiram até mes direita e que, quando ch�gar a uma montanha em
mo teorias nas quais o tema do túmulo está relaciona
,::ujo sopé houver muitos ciprestres e para além se
do ao tema do Graal de nossos países, tendo este sido estender o deserto, deverá virar às esquerda - o
importado do Oriente. A esse respeito, aliás, eu não es camínho da direita é menos difícil, porém, mais
tou assim tão certa. Quanto ao assunto daquele túmulo, perigoso.
nós o lemos em Prados de Ouro, de Masudi. Assim, pa
rece ter sido esse o único legado histórico do Hâtirn Tâi Hâ�i�, então, prossegue o caminho e chega a
que, por seu caráter altamente simbólico, até hoje ficou uma aldeia em cujas proximidades há muita gente
.
gravado na fantasia do povo da Pérsia e do Iraque. reumda, sentada ou dançando numa espécie de fes
tança com muita comida. Ele vai ao encontro da
Assim relatam eles a fantástica história de Hâtim quela gente e pergunta-lhes a razão de estarem tão
Tâi, "O Segredo dos Banhos Bâdgerd": alegres. Respondem-lhe que existe, no deserto, um
poderoso dragão e que, quando este assume forma
"Quando a serviço da Rainha Husn Banu, Hâ humana, todas as jovens da cidade são trazidas a
tim Tâi assumiu, como o sétimo dentre seus muitos sua presença, e durante um grande festival ele es
encargos ( ele é um desses cavaleiros que assumem colhe a moça de que mais gosta. Agora estão todos
tarefas a cumprir para seu Rei ou Rainha), o de 1r celebrando esse festival, mas não por se sentirem
100 101
dispostos a isso. São forçados a fazê-lo e só Deus selado e do qual ele tem que sair. Se conseguir, es
sabe qual será a moça escolhida e deles arrebatada. tará tudo bem, ele pode receber a noiva; caso não
O fato é que estão todos em absoluto desespero, consiga, terá que dar a Hâtim 2 mil diamantes para
embora finjam estar alegres. Aí, Hâtim exclama: serem entregues à noiva. É claro, o djin acha graça
"Então, este festival tão alegre é, na verdade, um. e, julgando ainda possuir sua força mágica, mete-se
dia muito triste para vocês", e todos concordam dentro do barril, do qual, naturalmente, não con
com isso. Hâtim declara que vai permanecer ali e segue mais sair e no qual o povo ateia fogo. Pede
ver o que pode fazer. Então, Hâtim é colocado ao socorro, n1.as é dolorosamente queimado, até mor
lado do Rei desse país, e por ele fica sabendo que rer, após o quê, Hâtim faz com que o barril seja
o dragão é uma espécie de djin (gênio) de natureza enterrado bem fundo no chão. Então declara ao po
muito destrutiva. Hâtim pede ao Rei ordenar ao vo - agora todos podem dedicar-se às verdadeiras
povo que se faça exatamente o que ele mandar. festanças, porque a desgraça chegou ao fim. O Rei
Quando o dragão escolher uma de suas filhas, eles presenteia-o com muito ouro e muita prata, mas ele,
deverão contar ao dragão que ali se encontra um de acordo com sua natureza generosa, distribui tu
nobre jovem que lhe ordenou que a moça não seja do entre os pobres e, passados três dias, põe-se no
entregue sem sua permissão e, se em sua fúria o vamente a caminho.
djin pode destruir o reino inteiro em um ano, o Depois escala a montanha e chega então ao
tal jovem pode mandá-lo de volta ao deserto em imenso deserto, através do qual passa dias vagando,
um segundo. às vezes bebendo água de fresca nascente, às vezes
Tudo acontece como previsto e, quando o dra bebendo água estagnada. Por fim vai dar a uma bi
gão chega como um djin, e a ele são apresentadas furcação do caminho e fica hesitante quanto à di
todas as moças, o povo· dá-lhe o recado de Hâtim, reção a tomar, a da esquerda ou a da direita, e fica
concluindo que nenhuma moça deve ser entregue. confuso, mas ele acha que o velho lhe aconselhara
O djin diz: "Pois bem, que venha aqui o tal moço!" tomar a esquerda e assim o faz. Passado certo tem
Quando Hatim se aproxima, diz-lhe o djin: "Jo po, porém, sente-se inseguro e, então, lembra-se do
vem, eu nunca te vi antes por aqui. Por que desen velho ter-lhe aconselhado tomar a direita. Pensa,
caminhas este povo, que antes me obedecia?" Hâ então, que é necessário retornar, mas aí perde-se
tim replica que não intenciona interferir em nada, num emaranhado de espinhosos arbustos e sente-se
mas que, no país de onde provém, o noivo tem que muito infeliz, e pensa que o velho é quem estava
passar por algumas cerimônias antes de esposar sua certo, pois tal caminho é repleto de horrores e que
prometida. O djin pergunta quais eram tais cerimô os espinhos, certamente, fa-lo-ão meter-se em gran
nias e Hâtim lhe dec1ara ter trazido consigo um des dificuldades".
talismã, herança de seus ancestrais, o qual é colo Aqui não sou eu quem está confundindo; existe
cado dentro da água que o noivo deverá beber. Aí, no relato uma observação em que se declara que,
Hâtim coloca o talismã dentro da água que o djin a este ponto, todos se sentem confusos, pois até mes
bebe mas, naturalmente, é tudo um engodo, pois o mo o próprio contador de histórias se embaraçou
tal talismã retira os poderes do dragão. A segunda nas touceiras de espinhos. Pelas recriminações das
cerimônia, declara Hâtim, consiste em que o noivo quais Hâtim se torna alvo, parece que ele ainda se
se enfie dentro de um enorme barril que então é mantém no caminho errado, aquele contra o qual
102 103
fora prevenido. No entanto, ele consegue desvenc� e a passar com ele uma temporada. Após certo tem
lhar-se e, então, vê animais que correm em sua di po, o Rei chega até a pedir a Hâtim que fique ali
reção. Parecem vorazes raposas, chacais e panteras, para sempre, enquanto Hâtim vai presenteando-o
dos quais Hâtim, aterrorizado, procura fugir o mais com novas pedras preciosas, de modo a manter o
rapidamente possível, embora não saiba como es Rei sempre favorável a ele. Ao mesmo tempo, vai
capar. Ao estacar, trêmulo e hesitante, surge repen sempre sugerindo que ainda lhe resta um pedido a
tinamente o velho, a dizer-lhe: "Jovem, deverias dar fazer. O Rei pensa, naturalmente, que Hâtim pre
maior atenção às palavras das pessoas mais velhas tende pedir-lhe a filha em casamento e acaba por
e mais experientes, em lugar de desprezar-lhes os oferecê-la, mas Hâtim responde: "Não, eu nem mes
conselhos! Agora, empunha teu talismã contra es mo pretendo esposar tua filha", e mostra-se tão ar
ses animais e vê o poder de Alá!" Hâtim lança o diloso no diálogo que o Rei Hârith lhe promete aten
talismã e o velho desaparece, enquanto a terra se der seu desejo, desde que isso lhe seja possível. So
torna, primeiro amarela, depois negra, depois ver mente após Hârith ter-se comprometido a lhe aten
de e, por fim, vermelha; e ao surgir essa cor, os der o pedido, ou a realizar-lhe qualquer desejo, é
tais animais se tornam totalmente furiosos, estraça que Hâtim lhe declara que seu desejo é ver os Ba
lhando-se uns aos outros. Hâtim surpreende-se ante nhos Bâdgerd.
aquela súbita inimizade e ante ao fato de os animai�
_ Ao ouvir tal coisa, o Rei senta-se e curva a ca
se voltarem contra si mesmos em lugar de mvesti
beça em silêncio, enquanto Hâtim lhe diz: "Que tens
rem contra ele, mas agradece a Deus e, recolhendo
tu, ó Rei, por que estás tão triste?" Replica o Rei:
seu talismã, retoma o caminho.
"Jovem, muitos são os pensamentos que me vêm à
Mais adiante, vai dar numa floresta de bronze, mente; o primeiro, é o de que fiz voto de jamais
repleta de farpas de metal que lhe perfuram os s� permitir que alguém vá aos Banhos Bâdgerd (mas
patos e lhe dilaceram os pés. Hâtim envolv� os pes jurara satisfazer-lhe o desejo, de modo que agora se
em ataduras e prossegue, mancando. Entao, sur vê preso entre as duas promessas), e o segundo
gem gigantescos escorpiões, de olhos fulgurantes co pensamento é o de que nenhum daqueles que para
mo olhos de lobos, porém o velho torna a aparec�r, ali foram jamais voltaram, e seria uma pena permi
mostrando-lhe como deverá lançar ao chão o talis tir que tal coisa acontecesse a tão nobre e belo jo
mã· a terra torna a assumir outra vez aquelas co vem; e, por fim, penso que caso não te dê permis
res' todas e ao surgir o vermelho, os escorpiões in são para ires lá, estarei quebrando a promessa que
vestem un; contra os outros, com tal ferocidade, acabo de fazer-te e, portanto, não sei como devo
que deles não resta nenhum vivo. agir!" Ao que Hâtim retrucou: "ó Rei, se Deus as
A seu devido tempo, Hâtim acaba por chegar a sim o quiser, hei de regressar com vida e rever-te,
cidade de Qâ'tan e, então, coloca nos próprios b�l portanto, deixa-me ir!" O Rei, então, erguendo-se,
sos dois preciosos diamantes, dois precioso� rubis, abraça-o em sinal de consentimento e declara que
,
duas pérolas e aí, dirigindo-se para o palac10 real, vai ajudá-lo, mostrando-lhe o caminho. Então Hâ
declara ser mercador vindo de Shahabad. Pede para tim deixa o Rei e segue alegremente seu caminho,
ver O Rei Hârith e, então, entrega-lhe todas aquelas conversando com os cavaleiros que o Rei lhe con
preciosas gemas. Mostrando-se muito amigável, o cedera. Logo adiante, ele avista um estranho objeto
, Rei convida-o para tomar assento junto ao trono que lhe parece uma cúpula a recobrir o topo de
104 105
uma alta montanha, e indaga a seus seguidores o to, disse a si mesmo, acontecesse o que aconteces
que é. Estes explicam-lhe que aquilo é o portal dos se, era preciso prosseguir. Disse, pois, adeus a to
Banhos Bâdgerd, que atingirão dentro de sete dias. dos os seus companheiros e, dando mais uns pou
Decorridos os sete dias encontram um imenso cos passos, transpôs o portal. Ao voltar-se para ver
exército e Hâtim indaga o que significa aquilo. Seus se os seus companheiros o seguiam, não avistou
companheiros contam que Sâman Idrak é o guar mais nada, ne1n porta nem gente, apenas um de
dião dos Banhos, que ali mantém aquele exército serto sem fim, a estender-se até onde a vista alcan
para recusar entrada a qualquer pessoa que não çava. Só então se apercebeu, pela primeira vez, o
possua permissão do Rei de Qâ'tan ( lugar de onde que significava o nome de Banhos Bâdgerd, o Cas
vinha Hâtim). Hâtirn, então, mostra a permissão telo do Nada, e compreendeu que, agora que trans
que traz consigo e é levado à presença do guardião, pusera o portal, estava caminhando para a própria
mas o c01nandante do exército declara sua desapro morte. Dizendo a si n1esm.o: "Bem, Hâtim, neste de
vação, considerando Hâtim um tanto louco, por que serto hás de enterrar teus ossos", olhou em torno,
rer entrar ali. mas, por onde quer que olhasse, nada mais via a
Sâman Idrak, proprietário daquele exército e não ser o imenso deserto que o rodeava. Então,
guardião dos Banhos, interpela-o: "Estás tão �an continuou a andar a esmo.
sado da vida, jovem, que não atentas no que te digo? Passados muitos dias, divisou uma figura hu
Ainda é tempo. Se recuares, salvarás tua vida, mas mana que vinha caminhando em sua direção e, ao
se prosseguires, hás de lamentar tua obstinação e aproximar-se mais, notou tratar-se de um jovem
por ela hás de pagar com a própria vida!" Ao cons que trazia um espelho. O moço saudou Hâtim, mos
tatar, porém, que nada demoveria Hâtim de seu in trando-lhe o espelho no qual Hâtim se mirou, per
tento , Sâman Idrak conduziu-o até os banhos, . e Hâ-' guntando ao moço se ele era barbeiro e se por ali
tim olhou para o imenso portal que se ergma ate se poderia encontrar um banho. (Nesses banhos
as nuvens; jamais vira tão gigantesca porta em orientais havia sempre um barbeiro, pois as pes
toda a vida! Por cima dela, havia uma inscrição em soas geralmente se barbeavam ao mesmo tempo
caracteres sírios, que dizia: "Este lugar encantado, que se banhavam, e os barbeiros sempre traziam
construído na época do Rei Gayomardo, perdurará consigo um espelho). Então, Hâtim indaga onde
muito tempo como um sinal, e todo aquele que cair ficam os banhos e o rapaz responde que ficam um
sob seu encantamento jamais dele voltará a es pouco mais adiante. Hàtim pergunta se são esses
capar, pois o espanto e horror serão seu fado.. Pa os Banhos Bàdgerd, ao que o moço responde: "Sim,
decerá de fome e sede. Certamente, enquanto viver esses mesmos". Hâtim se alegra, indagando por
ser-lhe-á permitido comer dos frutos do jardin 1; e que o moço saíra de lá. Este responde que faz par
ver o que há a ser visto neste lugar, mas muito te dos seus deveres ir ao encontro dos forasteiros
dificilmente conseguirá tornar a sair". que ali chegam, a fim de conduzi-los aos Banhos e,
Após ter lido aquilo Hâtim pensou que, efeti assim, ganhar sua propina. "Se quiseres", diz ele,
vamente, aquela inscrição já revelava o segredo dos "podes seguir-me até os banhos e eu espero receber
Banhos; portanto, para que ir adiante? Estava a a parte do teu dinheiro que for supérflua". "Está
ponto de recuar, quando se apercebeu de que ainda bem", responde Hâtim, "fiz longa viagem e gostaria
não descobrira o verdadeiro segredo e que portan· muito de poder tomar um banho".
106 107
E continuaram a caminhar até que, após uma encontrar a morte nestas águas das quais te é im
milha, surgiu diante deles uma imensa cúpula que possívei escapar!" "Bom", pensa ele, "se o homem
parecia chegar aos céus, e Hâtim, então, indaga se defronta com a morte, só lhe resta voltar os
sobre aquele edifício, sendo informado de que aqui olhos para Deus todo misericordioso", e aí, põe-se a
lo era o Banho Bâdgerd. Ao chegarem, o barbeiro rezar: "Oh! Deus, coloquei toda a minha força a
tomou a dianteira, dizendo a Hâtim para segui-lo teu serviço e só possuo uma vida; porém, mesmo
e este obedece. Mas, ao querer fechar a porta atrás que eu tivesse mil vidas, ainda assim haveria de
de si, Hâtim constata já se encontrar emurado por submetê-las a tua vontade. Faça-se, pois, a tua vonta
uma parede de pedra, pondo-se a pensar que ja de!" Assim, ele tenta consolar-se, mas a água sobe
mais conseguiria sair dali! Então o barbeiro o con cada vez mais alto. Começa a nadar e a água con
duz ao banho, aconselhando-o a entrar, enquanto tinua subindo, subindo, e carregando-o para o alto,
ele vai à procura de um pouco de água quente. ao nível da cúpula ·central dos banhos. Cansado de
Hâtim, porém, faz-lhe notar ser impossível entrar nadar, ele tenta agarrar-se a ela e descansar um
no banho assim, todo vestido, era preciso uma toa pouco, mas no momento em que toca aquela pedra
lha. O barbeiro, então, lhe traz a toalha, e Hâtim, circular, ribomba um tremendo trovão e ele, repen
despindo-se, entra no banho. O barbeiro retorna tra tinamente, se vê de pé num deserto em que, até
zendo um jarro de água quente que lhe derrama so onde a vista pode alcançar, só existe desolação.
bre a cabeça. Por mais duas vezes o barbeiro re "Bem", pensa ele, "se escapei da inundação, tam
torna trazendo água, 1nas na terceira vez, quando bém é possível conseguir escapar ileso do restante
joga água quente-sobre a cabeça de Hâtim, ouve-se dessa absurda mágica".
um imenso trovão e o local inteiro fica envolto em Por três dias e três noites caminhou ele, até
trevas, achando-se Hâtim em meio a completa es que conseguiu avistar um alto edifício. Na espe
curidão e inteiramente confuso. Quando a escuri rança de encontrar alguém vivendo ali, para lá se
dão vai lentamente se desvanecendo, o barbeiro e dirige, avistando um grande jardim em torno do
o banho haviam ·desaparecido, permanecendo só a edifício. O portão está aberto mas, logo que Hâtim
cúpula, que agora mais parece uma abóbada ro o transpõe, o jardim repentinamente desaparece e,
chosa, e o lugar está cheio de água que sobe até ao voltar-se para sair, já não encontra sequer um
as canelas de Hâtim. Este, aterrorizado e surpreso, vestígio do portão, é tudo um absurdo! "Ora",
procura entender que espécie de mágica absurda é pensa ele, "que nova tortura será esta? Não terei
aquela - enquanto isso, a água começa a atingir ainda conseguido sair desse círculo mágico?" En
-lhe os joelhos; aí, ele mexe de um lado para outro, quanto isso, o jardim reaparece e, como ele se
procurando uma porta que n§.o encontra em lugar vê forçado a permanecer . ali, resolve percorrê-lo.
algum; e logo mais, a água lhe atinge a cintura. As árvores estavam repletas de frutas e havia to
Horrorizado, ele busca a seu redor uma saída, sem da espécia de flores das mais lindas cores. Ele
descobri-la, e eis que a água já lhe chega ao queixo! estava faminto e, por isso, colheu uma porção de
Durante esse tempo Hâtim vai pensando ser esse o frutas, mas por mais que comesse, nunca ficava
motivo pelo qual todos aqueles que vinham aos ba satisfeito. Comeu bem meia tonelada delas, mas con
nhos não regressavam, e se diz: "Eles simplesmente tin1-1.ava sempre com a mesma fome. Tendo, porém,
se afogaram, assim como tu, Hâtim, também vais recuperado a coragem, prosseguiu, reconfortado. Ao
chegar mais perto do castelo, viu muitas estátuas
108 109
de pedra ali plantadas, como se fossem ídolos ou de ouro e atirou no papagaio; mas o papagaio voou
deuses. Indagou-se, surpreso, qual seria o signifi para o teto, a flecha falhou e as pernas de Hâtim
cado delas, mas não havia ninguém para desven se petrificaram até os joelhos. O papagaio esvoaçou
dar-lhe o segredo. retornando a seu posto e exclamou, zombeteiro: "Se
Enquanto estava ali, parado, absorto em pensa gue teu caminho, jovem! Este lugar não é para ti!"
mentos, um papagaio, de dentro do castelo, pôs-se 1:_mpunhando o arco e a flecha, Hâtim procurou, en
a chamá-lo, dizendo: "Por que estás aí parado, jo tao, saltar para perto do pássaro de modo a ficar
vem? Como conseguiste chegar até aqui, e por que mais próximo do que da outra vez, mas teve que
é que já dás por finda a tua vida?" Ouvindo-lhe a p�rar a uns cem passos do papagaio, porque seus
voz, Hâtim olhou para cima e, então, avistou a en pes estavam tão pesados que ele não conseguiu
trada do castelo, sobre a qual se lia a seguinte ins _
movimentar-se mais. As lágrimas vieram-lhe aos
crição: "Oh! servo de Deus: provavelmente tu ja olhos, e:1qu_anto p�nsava: "Que horror! Ter que vi
mais deixarás este lugar com vida. Os Banhos Bâd ver aqm, dia e noite, em tão mísero estado! Atira
gerd foram encantados por Gayomardo que, tendo outra vez, Hâtim, ao menos para que fiques petrifi
saído à caça, certa vez, encontrou um diamante de cado como os outros!"
um brilho radiante como o sol e opalescente como
a lua. Ele, então, apanhou-o e, maravilhado, mos E ele atira uma segunda vez, erra novamente e
trou-o a seus cortesãos e aos eruditos, perguntando fica petrificado até o umbigo. O papagaio, que nova
-lhes se jamais haviam visto urna gema semelhante, mente voara para o teto, volta a repetir, como an
ao que todos responderam, afirmando que ninguém tes: "Vai-te daqui, jovem! Este lugar não é para ti!"
nunca vira algo igual. Então, Gayomardo declarou Hâtim dá um novo salto, empunhando o arco e a
que a pedra iria ser guardada em lugar onde nin flecha, mas outra vez se encontra a cem passos do
guém jamais a pudesse descobrir e, para protegê-la, papagaio. Então exclama, chorando: "Que ninguém
criou toda essa magia e construiu os Banhos Bâd perca a n'leta da própria vida, como eu!" Como
gerd. Até mesmo o papagaio em sua gaiola está su ainda lhe restava uma flecha, Hâtim, mirando o pa
jeito a seus encantamentos! Oh! servo de Deus, pagaio, gritou: "Deus é grande!" e, fechando os
dentro do castelo, sobre um trono de ouro, verás olh?s, atirou. Ao contrário de todas as suas, expec
um arco e flecha. Caso pretendas escapar daqui, tativas a flecha atingiu o alvo. Ergueu-se uma
tens que tornar o a.rco e a flecha e com eles matar nuvem de pó, um trovão troou pelos ares e a terra
o papagaio, pois se o atingires, quebrar-se-á o en escureceu. Confuso com todo aquele barulho Hâ
canto; mas se não acertares, hás de virar estátua tim pensou ter virado estátua. Mas, cessado � tro
de pedra". vão e tendo o moço aberto os olhos, o jardim, a
Terminando a leitura Hâtim contemplou as es gaiola, o trono ouro, o arco e a flecha, tudo de