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Sumário

PREFÁCIO

Tempo e Analista -Adélia Bezerra de Meneses


r3

INTRODUÇÃO
23

NUM CERTO TEMPO


25
Relembrando Jung
29
Um Campo Ftrtil
73

DEZ ANOS DEPOIS


Il3
A Terapia como Oficio
II7
Sonhos, um Mundo Sem Limites
153

Sutilezas e Desafios da Transferência


167 '
PERCURSO
195

Jornada até Jung


1 99

Quem é Dono do Ar?


2ll

CARTAS
215
I4 de março cú I979
Teste Tipológico de Jung para Fátima e Roberto Garnbini por H . K. Fierz
218/219
JI de maio de I988
Carta de Marie-Louise von Franz
220/221

A voz E o TEMPO: o que o tempo fez com minha voz, minha expres-
são. No decorrer dos últimos trinta anos, durante os quais me dediquei
ao ofício da psicoterapia, acumularam-se em algum ponto do trajeto
que leva das entranhas à mente, passando pelo coração, camadas sobre
camadas de sentimentos, observações, pensamentos, aprendizados,
experimentos, descobertas, questionamentos, formulações, tomadas
de posição. O tempo operou sobre essa estratigrafia de impressões e
acabou revelando seu poder de moldar toda essa massa plástica sutil
e transformá-la em palavra pronunciada, que agora apresento como
texto dedicado a jovens terapeutas em busca de seus caminhos e de
suas verdades.

10 ROllERTO GAMBINI
PREFÁCIO

Tempo e Analista
Adélia Bnerra de Meneses

Já vestindo a ~ú do artista
O tempo arrebata-llN a garganta
O wlho (l1ntor rubindo IUJ palco
ApenaJ abre a wz, e o tzmpo canta.
CHICO B UA RQU E

EssEs VERSOS de Chico Buarque, de Tempo e Artista, que tematizam


o tempo como instância criadora, ecoam singularmente em A Voz e o
Tempo de Roberto Garnbini. Com efeito, nessa canção que expressa a
relação do artista com o Tempo, subjaz a ideia platônica do enthou.iias-
mo (de en + theós-. com um deus dentro): o artista é aquele ser pela bom
de quem fala o daimon, fala a divindade. O poeta - o artista, em geral.
é porta-voz.
Transcrevo aqui algumas estrofes dessa canção:

Imagino o artista num anfiteatro


Onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela.

Modelando o artista ao seu feitio


O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca,
Como contrapesos de um sorriso:
A V() /. f (l 11 ~11 •, 1 li
inventado, se exige que o profissional entre não apenas com o seu saber
J(t vc,tíndn a pele d !l arrí6t.a
(forja.do a custo de emulo, rigor, método, disciplina), mas, na sua plena
O témpc,, arrclma-lhc a ~argan ta
O vclh0 can tt>r fü híndo w p:alro rubjetívidade, CtJm o que ele é. E illSO em contextos de alto tônu&afetivo
Ar r:m ~ ahrc 1i vm:, e o tr:rnpo c:rnra. - de troca, de circul_ação de energia psíquica - em que emoção se torna
r... J categoria cognitiva.
Longe de com,tituír como que uma e1,pécie de elenco de diretivas a
N() :rnlireatm, ffib o céu d~ c•trd a<i
!Jm cnnei;r1,1 cu ímagí wi joveOM analísta.8, ou c1Jnselhos prátioos de um profissional experiente
O nde, ,,um rc:l:rnv; n tempo ít.lca.ncc a w11ríà e dt.'tentor de uma técnica a &er transmitida a principiantes, A Voz
l': arrí, tll, ,, ínlinít.iJ.
(1 e tJ Tempo condensa aquilo que é o cerne, o caroço, o esscnciaJ para j
alguém que se entrega a 1,ua atividade co-rrw a um destino.uH oje sou
Aqui 1J artíllta ,x; oferece como 1,uporte p'tlra açãt, de urn Outm: é pmfirn.damente cas a.do com minha profusão, que não pode ser outra", l
1
tela para pintura., dcixa-r,c modelar, empre11t:1-lhc a própria pde, tem diz Roberto Cambí ni a p. 35. A metáfora matrímoníal nã.o é artifício
ret6ríro; ela ~ la ,J grau uc.J A •
comprometimento de que se rc:ve6ttu• para 1
~ua ~rganta por ele arrebatada, cc<lc- lhe a vm. Atravélj dele, 0 Tempo
í,)Çt , l rá 4ue FIC c-x~minar () yw: é ClJfi(; Tcmp•J, que nãn é (116) rcsr onflávcl ele et1sa e~lha C(Jm{) via de realização integra~ vínculo apaíx0nado, 1
por decadência e finitudt, maÍ'.! um à~cntc qlJ.(.; madura, matura, MlV>na interpelação dedaiva para germinar vída, condição inapelável para a 1
- e) vinho e 1 ,~ hmncn!í. De um lad(.J, num nível mítico, o Tempo é uma indíviduar.,.w. Não se trata assím de um mero utrabalho", mas resposta
ei1pédc de príncípiCJ primordiaJ de criação, como na cotrn,.,gonía Mfica; a um chamamento a que n ão pode se esquivar. Ser terapeuta, dei,~a
de o utM luk,, é: metáfora da maturídack, d.tquílo qu_c a C".r.pcriéncía perspectiva, si:> pode flCr cnmpreendí.do íntegralmentc como vuação
trama e o ,ndcru;a.. (e na raiz c-tímológ.i.ca dcssa palavra, embute-se o termo v oz .. . ). Não é,
MM o yu.c é &ignificativo, e ab1tOlutamc-ntc & -urpreendcntc, é que .u, para qoc-m é v m- vocado, uma das pos5ibilída.dcs de realização, mas a
c~,w lhcr o tftuln para o 11cu livro, Rl,bcrto Gambiní não crmhecía c;ita possibilidade, que, 6e abortada, levaria a uma mutilação.
c.ançv) <lc Chico. Ao Iler-lhe aprc!>Cntada, ficou e-vidente a 1Jintonía, e Tcmo11 neste livro a transcrição de uma fala, molda.da cm palavra
q1Je ()/j clm que Chíw Buarque t.ecc entre o Tempo e o Artihta valem íropressa, com o fim de lhe assegurar permanência e difusão para al h11
p.tra "Tempo e o Anafüta, como &e verá. do círculo re1ttrito (e prívíJcgiado!) de ouvintes que criaram a ind1.11pcn
Cum cfeiw, ri yue i;e lerá nc!Jte lívr<J 11ão rdle•/.bec, de um terapeuta, &ávcl es<.-uta: com-O dirá o próprio Autor, ele acredita na conversa. E'-!>ª
claboraçõeii tel.,ri(a.r,, decant.tçãJ, de leituras e ettudu!i, cons trução de fala, agora escrita, continua a ressoar nos nossos ouvidos comu vc>2,
caminhv11 abt.nlutamentc não corríyu.drui, para se peni,ar a terapia e a conservando o calor da palavra humana, da oralidade que é 1,ua man.:a
vida, e v_Jbrctudo, algo yue radica na cmpíria e quc é fru to da jntcração de: origem.
v ,m u p-.u.:íentc, no rjCU 'Jhcíar quutidíann d1:J o m~ lt6ri(), em síntoní- 'frata-;,e de urna fala em dois tempos, quando Robert(, foi 1,d 1ci1adn,
zaçito rente a ~ubjetivida.de dl) outro. por grupos diferentes, a di5com :r sobre seu ofício. Primcin , 1c·111 p<,
E aqui 0 Autor empreende um c1;forço pungente de apanhar a mola, HJ97, quando o Autor tínha já dez.erwvc anos de excrcícir> de pri,f1• .,,
1> nervo do ~u ofí.cí,J de terapeuta - e1>5a profis!>ã.o em que, maÜ; do
Sc;çumfo tempo: 2008, quand(J ele comemora trinta ai,,,.,.,.,11m, a11al I t~
que cm quaJ{Jut.-r 'JUtra que ao b ng<>dor, r.éc.·1Jl,(fij cJ f,Cf humano tenha jun~iano.

A V fl/ 1 1, J I M 1'11
Se é verdade que ao escolher o título parn seu novo livro, Roberto hiermgamor, o processo de individuação numa de suas faKs, cm 4ue o
Gambini ainda não conhecia a canção de Chico Buarque, é verdade Rei e a i{ ai nha devem mergulhar no ban ho mcrcuri.&J qur prc,•edc o
também que não apenas o título a evoca: essa ideia de um Tempo casamento Ju masruJino com o feminino. Uma hcla intt'rpreraçfo, que
criador marca singularmente o seu texto, e comparece, literalmente mostra de relance o perfil do oneirocrítico.
explicitada, no capítulo "A Terapia como Oficio", no que ele chama de Pois bem, como ele tratará do mesmo tema no fo la dr 20,18~ N11nia
"reflexão básica": dicção personaJíssima e nova, ele situará a trnrn,fcr€n1 i,1 dcn1r11 d,,
O que é que aprendo com minha vida para poder entender melhor a vida arquétipo da busca de ser compreendido, como uma neeno,idrule r .10 Vl tal
do Outro? O que é que fui amadurecendo, que ilusões fui perdendo, como fui quanto ser amado. E numa reflexão radicaJmen r~ on~i na l, que 11 fü ,
mudando meu vocabulário, como fui rc- entendendo a teoria, o que o tempo faz estará calcada em nenhuma bibliografia jun~iona ou <H1tr,1, 111,1!1 "e
comigo? Não assim: o tempo me envelheceu. Mas: qual a mudança na reflexão embasará na empiria, no "livro"' vivo que ele tem sc111rn· '1 1:1111 1· dr ,_.
que o tempo trouxe? (p. 121).
na poltrona que o defronta, Roberto vai desenvol ver u111 p ~ 11-.,Hnr11111
segundo o qual o que está em jogo na transferência é e,..,,, 1,11,1 d11rw11
E o que é interessantíssimo é ver, em pouco mais de dez anos, a são arquetipica, como que uma "pulsão de busca por um outro 1p1r mt·
ação desse Tempo criador, é flagrar sua passagem na reflexão do Autor. compreenda". Ser conhecido, para conseguir ser: uma necc1i~id.1.d t li.,~ ••.1,
Em 1997 ele já carrega sua sólida formação iniciada como sociólogo na radical, fundante do ser humano; e a percepção de que esse cou he, 1rnr 11
usP, expandida no Mestrado em Ciências Sociais em Chicago, testada to só se faz junto com o outro, em comunhão.
como docente de Ciência Poütica na Unicarnp, redirecionada para a Um outro exemplo daquilo em que eu vejo um adensamento 11 0
Psicologia Analítica e plenamente desabrochada no Instituto Jung de rumo de um pensamento ardidamente original também dirá respcitn
Zurique: ele é aquilo que se pode chamar um analista junguiano pleno, a sonhos. Endossando a extrema valorização junguiana do material
criativo, de posse dos ricos veios abertos pelo pensamento de Jung e onírico e o efeito transformador do trabalho com sonhos, e, sempre,
pela convivência com os junguianos da primeira geração (foi orientan- assinalando a importância de atuar segundo um "método", o segundo
do, na sua tese em Zurique, de Marie-Louise voo Franz). Pois bem: é tempo avança. E é assim que na entrevista de 2008, Roberto, propondo
extremamente instigante verificar, por exemplo, ao tratar de um mesmo um inusitado símile para o trabalho do analista com o sonho, constrói
tema, quais alterações, depois de dez anos, suas reflexões sofreram; o a inesperada metáfora da diálise. Para dar conta daquilo que conven-
que foi incorporado, o que foi destilado. cionalmente se chama "interpretação" de um sonho, ele recorre a uma
Vamos a alguns exemplos. metáfora tão orgânica, tão entranhadamente corporal, fisiológica: a
Tomo em primeiro lugar o tema da transferência. Em 1997, ele abor- necessidade de o sangue circular fora do organismo que o produziu,
da esse assunto inclusive através de alguns "sonhos de transferência", correr nas veias de um Outro, e voltar, processado e enriquecido. É isso
analisando um deles, em que urna paciente sonha que prepara para si para ele a "interpretação": a matéria do sonho, como o sangue, precisa
e para O analista um banho de ofurô. E aí o vemos, em pleno domínio circular em outras veias, ser retransfundida no analista, passar pelo seu
da sua teoria e do seu método, apontar nesse sonho, usando da ampli-
ficação, as imagens do Rosarium Philosophorum em que Jung se baseou
1. Imagem que ele próprio cunhou, para tàlar do paciente: ·um üvro numa poltrona"
para escrever sobre Transferência, vendo nessas figuras alquímicas o (p. m).

16 ROBERTO GA MBINI A VO Z E O T E MP O 17
circuito psíquico e emocional, e daí retornar oxigenada, transformada. Ao articular suas reflexões, Roberto G ambini fisga aquilo que por
Sai daquele que o produziu, não passa por uma máquina, mas sim por vezes está no limite do dizível. Aliás, é esta unia J as quaHdades que fa-
outro ser humano, o único que poderia lhe trazer, não oxigênio, não zem seu texto, em alguns momentos, bordejar o poético: e: a experiência
simplesmente ar, mas, eu diria,pneuma (= espírito). Belíssima imagem poética que traz a possibilidade de comu11gar l.'.U 111 o i11cxprirn ívcl, o não
para se dizer que, na aventura humana, precisamos do Outro: racional, o transcendente - que encerra m uit;1-, ve'Lci, a medula mesma
da realidade. A poesia nomeia, articula, coloca t· 111 prdav1llH realidades
[ ... ] um pensamento extremamente transformador ou benéfico à alma que confusamente sentimos, e vivemos, mas C)ll C 11 ílo 1,abc-1ia111os expres-
se origina numa pessoa que está péssima. Ela não tem condições de abrigar sar. E o Autor faz isso muitas vezes através de inrnr~ctui, prc1 pk iu11do nos
aquele pensamento, de fazer nada com ele. Conta-o para o terapeuta. Este o
uma apreensão sensorial, plástica, da realidade.
recebe, processa-o e o devolve para o paciente, seu dono. Desenha-se então
um círculo, uma rotação. E aí temos numa casca de noz todo o mistério da Assim, a imagem do solo cultivável: onde outro!> utili1:1 n.1111 11·/I ÍflJl
transferência, todo o mistério da relação anaütica (p. 155). analítico, Roberto Gambini usa essa metáfor;.1 agrk 11l:1 1•,11,1 l,d.11 do
"espaço de metro e meio entre as duas poltronas", solo cult 1vadl) 11 'i \l J.I 111
Mas - e isso é importante - não se cai em nenhum impressionismo mãos e onde acontece o trabalho analítico, ou como eh- d i·, 1r 11,·1.Hl.1
terapêutico, não se facilita na exigência, não se abdica do método. mente, o seu efício - palavra que lhe é cara e que remete: :10 11111 v, 11,11
E um terceiro momento de extraordinária decantação ou destilação de do rito. Ele nunca usa os termos "trabalho", "atividade profi ~~i1111.il", 111 1
ideias dirá respeito às reflexões sobre a dor - matéria-prima com a qual mesmo "profissão"; mas em determinada altura, fala em operarf' , luho,,1,_,
trabalha privilegiadamente qualquer terapeuta, como diz o Autor, "por officiare. E então seu estilo, de espontânea e desataviada fl.ui clc·1, ~ 111'1.1
acreditar que a única maneira de começar a cuidar da alma é lidar com uma certa solenidade quase ritualística, com o timbre desses vetu•,hl9
sua dor e não com sua plenitude feliz, porque nesse caso a pessoa não termos latinos. E um pouco mais adiante, ele dirá: "É a minha lavoura!
estaria no consultório, mas regozijando-se com a vida" (p. 133). E como E nem sei mesmo por que chamei isso de 'ofício'"(p. 157). Ele pode 11110
um engaste tenso, a ideia, de insuspeitada fecundidade, de que: ''A alma, saber, mas acho que seu inconsciente sabe. Sabe da ligação entranhadu
no estado de dor, gera. [ ... ] E o que por ela é gerado é de vital impor- entre "lavoura" e "ofício", palavra de etimologia latina, vinda d e opus
tância, não devendo ser confundido com felicidade. Não se deve pensar + facere = fazer a obra, fazer o trabalho. Oficiar - as palavras guardam
que o fundo da terapia seja um nível mágico onde a dor estanca" (p. 134). dentro de si a força da origem, mesmo que a desconheçamos. Pois Opus,
Roberto Gambini ousa ir fundo nessa reflexão, vai para o limite das de uma raiz etimológica usada na língua religiosa, vincula-se ao sagrado,
coisas: a terapia seria um trabalho de "tocar um cerne obscuro que nos e é o mesmo termo dos alquimistas para a Obra que perfazem na sua
apavora, e que até preferiríamos ignorar, que é o coração da agonia, por- retorta; diz respeito às "obras" de um Autor, às "obras" de um artista,
que lá, em seu mais íntimo, pulsa e vibra uma força de renascimento e mas se reserva sobretudo para a agricultura, o cultivo do campo. Assim
restauração do que foi destruído e caiu nas trevas da sombra" (p. 136). E temos, reunidos num só núcleo, o cultivo do solo, a produção criativa
a dor pode ser uma força criativa ou letal - mas dessa tensão se tira uma e o trabalho alquímico de realizar a integração do indivíduo: Oficiar.
formidável energia. Fizeram-se necessários trinta anos de um oficiar E aí se pode experimentar o poderoso enriquecimento da pessoa, cm
analítico para se conseguir verbalizar algo de tal intensidade e verdade? contato fertilizante com o outro.
Aqui também o Tempo agiu, o tempo decantou.
A VOZ I'. O T E M PO
18 ROBERTO GAMRINI
Ainda uma observação se faz necessária sobre o Autor deste livro, A voz pesada hum pouco alevantand,l
cujo pensamento flui em águas da interdisciplinariedade, articulando [ .. .]
História e Psique. Creio poder dizer que ele foi germinado na Maria C'hum saber só d e experiências feit o,
Taes palavras tirou do experto peito.
Antônia - a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da usP, sediada
na rua desse nome até 19681 - e que marcou singularmente aqueles Ouçamos essas palavras, o calor dessa vo.,,, rnold:ul:t i: 11 1 paJavra im-
que por lá passaram, sobretudo nos anos tensos e intensos da década pressa, nas páginas que se seguirão.
de 1960. Efetivamente, pode-se dizer que muito de Roberto Gambini
é fruto da Maria Antônia, esse espaço-tempo de agudo espírito crítico
e reflexão sobre a realidade sociocultural brasileira, cm que toda uma
geração de estudantes intencionava apaixonadamente entender o Brasil,
e mudá- lo. E onde se forjava aquilo que Antonio Candido chamou de
"pensamento radical".
Mas voltemos a A Voz e o Tempo. Trata-se, enfim, neste livro, de uma
voz que, como a do Velho do Restdo de Camões, é voz de resistência,
e brota do peito experimentado. Com efeito o Velho do Restelo, que
aparece numa ~s mais tocantes passagens de Os Lusfadas3, é um perso-
nagem de "experto peito", isto é, experimentado coração, que, assistindo
às despedidas dos marinheiros embarcados na Armada de Vasco da
Gama daqueles que lhes são caros (mães, mulheres, filhos, amigos), tes-
temunha a dor humana. E nesse momento em que se articula a "Grande
História" (dos Descobrimentos) à "pequena história" (de seres humanos
que sofrem), o velho tem a coragem da compaixão e, confrontando-se
ao imperativo de glória e fama dos Grandes Navegadores, resgatando
a subjetividade e os sentimentos, defende o mundo dos afetos. (Tudo a
ver com quem deixou de ser Professor de Ciência Política para se tornar
terapeuta.) Pois aqui Roberto Gambini também, como esse personagem,

2. Em dezembro de 1968, aconteceu nessa rua a guerra estudantil em que se travou a sim-
bólica batalha cu Esquerda>< Direita (usP >< Mackenzie); atingido o velho e querido
prédio cinzento de colunas gregas cu Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP
(FFCL) pelos coquetéis molotov lançados a pa.rtir do ediBcio fronteiriço, foi o Curso
cu
de Ciências Sociili,junto com os demais Faculdade de Filosofia da Universidade
d.e São Paulo, transplantado para a Cidade Univer5itária.
3. Camões, OJ Lu.súuias, Canto 1v, estrofe. xc1v.

20 ROBtllTO G AMBINI
A V O Z E O TPM PO 2r
Introdução

RESOLVI COMEMORAR trinta anos de trabalho em meu consultúrio e-.


crevendo este livro, uma revisão do fio que conduziu uma parte csscn1..;al
de minha vida e de tudo o que pensei sobre o meu ofício. Ele muüo dcvr
ao encorajamento de Adélia Bezerra de Meneses. Certamente po r ser
uma grande conhecedora de teoria e critica literária, ela devotou a meus
textos um olhar tão amoroso que acabou por convencer-me a publicá-
-los, julgando que seriam de interesse para outras pessoas, especialmente
jovens terapeutas em formação, aos quais, no próprio título, este livro é
dedicado. Ela me ajudou a organizá-los e apresentou-me a seu amigo
Plínio Martins Filho, da Ateliê Editorial, que se interessou em publicá-los.
Pouco hábil que sou em questões de informática. beneficiei-me enor-
memente da ajuda que me deu Pedro Bolle, porque nem de colocar os
vários esboços numa mesma pasta na tela do computador era capaz. A
mão de um faz o que a do outro não sabe.
Este livro nasceu falado. A primeira parte, que intitulei "Num Cer-
to Tempo", compõe-se de duas palestras proferidas em novembro de

AVO ZE O TE M PO 11
1997 num centro de estudos junguianos chamado Filemon, fundado Num Certo Tempo
pelos amigos e colegas Arnnéris Maroni, Fátima Rodrigues, Jasmim
Rodrigues, Caio Kugelmas e Dornelis Benato. Sou grato a todos eles,
especialmente a este último, que se deu ao trabalho de transcrever as
fitas naquela ocasião e compor uma apostila de circulação restrita. O
meu exemplar, guardei-o e nunca o folheei, a não ser agora, quando revi
minhas falas e fiz algumas adaptações.
A segunda parte, "Dez Anos Depois", resultou da gravação de várias
horas de depoimento a Adélia e Enrico Lippolis, primeiro na casa dela
em dezembro de 2007 e posteriormente no meu sítio em Araras, no
interior de São Paulo, em fevereiro de 2008.
O leitor perceberá que retomo, na segunda parte, temas e ideias
já expostos na primeira, dez anos antes. Mesmo correndo o risco de
repetir-me, quis deixar registradas as mudanças de enfoque, quiçá um
certo aprofundamento, novas nuances, porque isso tudo foi obra do
Tempo.
Na terceirá parte, a que dei o título de "Percurso", conto como foi
minha jornada intelectual até chegar a Jung. Ela termina com um tex-
to curto, que escrevi co~o epflogo para uma coletânea publicada em
Londres pela editora Karnac Books, organizada pela amiga e colega
Ann Casement, sob o título de "Who OwnsJung?" (Qyem é dono de
Jung?). Minha resposta é: ninguém.

24 RO B E RTO G AMBJN I
Relembrando Jung

Tornar-se Analista

UM GRUPO DE PESSOAS ME CONVIDA para falar sobre terapia. Sq ~11i ·


rei de improviso um fio que vai se armando à medida que prossigo e que:
emana do nosso contato consciente e inconsciente neste momento.
Vou começar contando um pouco a minha trajetória. Ningu~m
escolhe racionalmente ser analista junguiano - é a minha impressão e
o que tenho observado. Não levo muito a sério quando alguém muito
Página 26: Jung tinha duas mesas de trabalho, nas quais escreveu sua vasta obra e mi- jovem diz que quer fazer a faculdade e se tornar um analista junguiano
lhares de cartas. Esta, fotografada em 1960 por Tim Gidal, localizava-se em sua ampla
depois de formado. Não combina ser terapeuta junguiano com juven-
biblioteca, onde, no outro extremo da sala, sentava-se com seus pacientes ao lado da
janela com vista para o lago de Zurique. Nota-se o retrato de sua esposa, Emma, com tude demasiada e não me parece ser um tipo de profissão na qual se
quem esteve casado por mais de cinquenta anos, e logo abaixo, uma foto da pedra cúbica possa entrar de maneira suave como em outras, porque acredito que o
cujas faces esculpiu e que se encontra em seu refugio em Bollingen, na outra extremi- trabalho terapêutico, na linha junguiana, acaba sendo a exteriorização
dade do lago: Em C. G. Jung Word and lmage, Aniela Jafé (ed.), Princeton University
de um processo interno que, em geral, não é linear, nem leve, nem agra-
Press, 1979, p. 5.
dável - o que talvez já seja uma marca do começo do exercício dessa
Página 27: A segunda mesa de Jung, numa sala pequena ao lado da biblioteca, pouco
iluminada, intimista e reservada, na qual passava horas em introspecção, escrevendo e
profissão, se formos ver como as pessoas chegam a ela. Talvez isso tenha
cuidadosamente ilustrando o só recentemente publicado Livro Vermelho, e trabalhando a ver com a própria proposta da Psicologia Analítica e talvez não; o que
nos textos que requeriam maior concentração. Foto de Roberto Gambini, 2002. sei é que, no meu caso, o caminho não foi linear. O mesmo se deu com

A VOZ F. O TEMPO 2()


vários de meus colegas e amigos, o que já é um tema interessante para havia um curso maravilhoso chamado C iências Sociais, onde se poderia
se pensar. Pratico a terapia junguiana, conforme a aprendi no Instituto estudar todas essas matérias. Essa foi então minha csco.lha, um curso que
C. G.Jung de Zurique, há dezenove anos (estamos em 1997). A primeira iria me dar meios de entender a realidade social , decifrar o ser humano
pessoa que atendi, sentados ambos numa sala com duas poltronas iguais, e atuar no mundo. Achei estimulante a ideia, li-/, o~ dois vestibulares,
conforme recomendava Jung, foi exatamente em outubro de 1978. para Direito na Pontifícia Universidade C atóli ca de S.io Paulo e para
Para mim foi muito importante descobrir quandó e como comecei a Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Ciências e l ,<'Iras (FFC L) da
fazer o trabalho terapêutico sem sabê-lo, pois na verdade comecei como Universidade de São Paulo, entrei nas duas fac uldad ts t: as frequentei
"prototerapeuta". Vou contar como foi. O momento de escolha da uni- uma pela manhã e outra à tarde. A Faculdade de Di n:it·o logo 111 c decep-
versidade que se vai cursar é arquetípico: a encruzilhada da opção. No cionou; apesar de tê-la cursado até o fim , fazendo no quinto a 110 todos os
meu caso, não escolhi uma, mas duas, porque não me sentia livre para exames em segunda chamada por excesso de faltas, ~ll"abci 111c fi ,rm amlo
escolher uma só, que era a que eu queria; meu pai insistia que eu satisfi- advogado, o que deixou meu pai orgulhoso, mas o <liplo111a e a 1·artci ra
zesse também o seu desejo. Ele, que me observava desde pequeno, com da Ordem dos Advogados não me serviram rigorosamente para nada . t)
razão ou sem, dizia assim: "Este menino tem jeito para falar em público, curso de Ciências Sociais me encantou, porque me estimulou a c 11 frt•11 1;1r
vai ser advogado". Era uma das alternativas ideais em que naquela época uma série de leituras de ótima qualidade, que até hoje me são prcl·ioi-a:.' .
pensava um pai numa família de classe média (Medicina, Engenharia ou Achei que então estava tudo resolvido. Não haveria mais lta111 arat y,
Direito), e ele agiu como outros certamente fariam e fizeram e começou porque no meu segundo ano universitário, em 1964, ocorreu o golpt·
a me influenciar nesse sentido desde muito cedo. O desejo de meu pai militar. Era ideologicamente impossível imaginar-me diplomata d e
tornou-se mais palatável para mim quando lhe acrescentei um desejo uma ditadura. Abandonei então o projeto da diplomacia atrelada a1 >
meu, que seria ingressar no Itamaraty após bacharelar-me em Direito, e sonho de viver fora do Brasil e acabei me contentando com a ideia de
ingressar na carreira diplomática,já que eu gostava tanto de línguas e cul- tornar-me um intelectual algo à esquerda, que era o que os bons inte-
turas estrangeiras e ansiava por poder viver longe da casa paterna. Parte lectuais, salvo algumas raras exceções, eram. Um intelectual um tanto de
de minha decisão foi portanto acatar sua preferência, complementando-a esquerda era alguém preocupado com a realidade social brasileira, que
com um prosseguimento escolhido por inclinação pessoal. fazia pesquisas e ensinava, e achei que isso estava bom para mim. Então
No decorrer do terceiro ano colegial, recebi a forte influência de uma me preparei para exercer essas atividades, o que acabou me levando, em
professora de Filosofia, Nilce Cervone, que, entre outras coisas, descor- 1968, para a Universidade de Chicago, onde fui fazer pós-graduação
tinou para os alunos a existência do Cinema Novo, da Nouvelle Vague de em Ciências Sociais, para estudar mais, para aprender mais, para ter
Goddard, os filmes de Bergman, Antonioni e Kurozawa, entre outros - experiências: completei o mestrado e qualifiquei-me para um PhD em
estamos falando de 1962, em São Paulo, que então abrigava a Sociedade Ciência Política, que depois abandonei. Meu tema era a Utopia.
de Amigos da Cinemateca. Ela nos despertou o interesse para estudos Em 1971, ainda em Chicago, recebi um convite da Universidade E s-
etnográficos, literatura, filosofia, e informou que na rua Maria Antônia' tadual de Campinas, cujo reitor, Zeferino Vaz, favorecia a contratação

1. Onde então se localizava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da usP, até 2. Deixo para o final deste livro, no capítulo intitulado "Jornada até Jung", a reconstrução
1968. do fio de meada que alinhavou meus anos de formação intelectual.

,o RO R E RTO G AMRINI A VO Z E O TEMPO Jl


cada vez mais aversivos os textos <lc C iência Política que devia ler p ara
de pessoas da minha geração que voltavam do exterior com seus títulos
preparar aulas que me deixavam cada vez m:tis tcnso.
e qualificações. No ano seguinte estabeleci-me naquela cidade, assumi
Como bem notara meu pai, eu de fato 1in ha li ma certa facilidade
meu posto de professor de Ciência Política, comecei a trabalhar e ponde-
para me expressar. Minhas aulas atraíam, :déni d,,~ LTrc.i de qua re nta
rei com meus botões que a partir de então a profissão era essa, muita aula,
alunos inscritos, outros tantos matriculados c 111 1111tr:1 s Fal·11ld:1dcs. Eu
muito estudo, muita pesquisa, reuniões sem fim e debates acalorados.
me empolgava e improvisava; não expunha tcxlol> do p rflµ; r:1 11 11t.J:t que
Tinha gente muito boa lá e comecei a dar aulas com empenho e dedica-
cabia na matéria falar do Brasil, começava a so h :1.r a. lí11µ11a e arndi sar
ção, embora com um pequeno mal-estar, porque eu não me interessava
a ditadura do ponto de vista cultural e existcnc i:ll, 11 q1w ,,t1111 a 1111 vi 11
exatamente por política, que no entanto era a minha atribuição. Qyando
tes interessados em ouvir alguém que expressasse opi11i11c•:; p1·1Íf~' '"" '•,
se reuniam os intelectuais de esquerda para discutir os rumos da política
porque se vivia uma época em que a juventude estava u 111q, lct.1111 1· 11t 1·
brasileira sob intervenção militar, eu participava sem na verdade estar
despolitizada e muito desorientada. Fui então introdu•/,i11do n ,. ►1 11 lt ,1 1" ,
presente. O que me interessava eram outras leituras e outras coisas fato
' de que mais gostava, de Maquiavel a Hobbes, de Rousseau .i IVl :I\ W, ·
que me causava um incômodo estranhamento: "Se sou dessa turma, por
ber e Marx, mas já associando-os a outros que nada tinhan1 :1 vr 1 111111
que não gosto de fazer o que eles fazem?" Eu não assinava nem o Estado
o programa de leituras, como Castafieda, Krishnamurti, Yog:111 .u n\.l ,.
nem a Folha de S. Paulo; não gostava de ler esses jornais regularmente
Jung-imagine-se,num curso de Política!-o que mais t 111ai s (' \ 1 i l ,1\' ,t
porque não era aquele o tipo de leitura e de informação que alimentava
os alunos. O curso foi andando, foi evoluindo e eu evidcntl·n1 r 11 11- 11 1\ ll
ânsias e de_vaneios que eu nem mesmo sabia quais fossem.
O que me entusiasmava de fato já era outra coisa e eu não sabia di- sabia muito bem aonde ia chegar. O ponto de chegada, e não dc; 11 1ti1n 11
reito o que era, nem que nome tinha. O mal-estar crescia. Por exemplo, muito, foi que de repente travei e não consegui continuar com css~,.., J 11
um dia anunciava-se que a eminente economista Maria da Conceição las cujo rumo me escapava do controle.Não foi nada fácil esse l m >CCl'lt: • 1,
Tavares ia dar um seminário e todos se excitavam. Seus alunos, muitos mas o que interessa aqui é que o nó a que cheguei foi o que acabou 11,c
dos quais posteriormente assumiram importantes funções no governo, levando para a análise. E foi em seus meandros que finalmente se co 11
discutiam ardorosamente a política econômica, mas eu me retraía e não figurou com absoluta clareza que minha vocação não era ser cientista
me ocorria praticamente nada a dizer. político, mas terapeuta.
Eu tinha 28 anos e estava lendo O Profeta 3, de Gibran Khalil Gibran,
enquanto meus colegas faziam seminários sobre O Capital. Logo em Pro to terapeuta
seguida, mergulhei na autobiografia de Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões,
já tendo anteriormente lido vários escritos de Freud. Eu gostava era de Meu protoconsultório foi minha sala de professor na U nicamp. Ao lado
literatura, teatro, música, artes plásticas, tomando-se por conseguinte de_ outros deveres, todo professor devia reservar alguns horários sema-
nais para receber alunos e dirimir suas dúvidas. Eles chegavam, eu os re-
cebia e eles diziam mais ou menos assim: "Você deu essa bibliografia aí
3· R_eleio O seguinte trecho, na p. 27, grifado nessa época: "O trabalho é o amor Jeito
para O trabalho de fim de semestre mas não achei o texto na biblioteca
vzs{vel. E se _não podeis trabalhar com amor, mas somente com desgosto, melhor seria que
abandonásseis vosso trabalho e vos sentásseis à porta do templo a solicitar esmolas daqueles então como é que eu faço?" Eu sabia de imediato que era um pretexto'
que trabalham com alegria". para o aluno poder dizer outras coisas e aceitava o jogo. Entrávamos,

]2 ROBERTO GAMBINI /\VOZEOTEMI'() 3,


eu fechava a porta, ambos nos sentávamrn; e eu perguntava: "Como é universitárias. Nunca me havia pa:,sado pela cabeça estudar psicologia ou
mesmo o problema com o livro?" e ele: "Pois é, não achei o texto". Eu fazer análise. Não, isso não estava no meu universo de cogitações. Na mi-
prosseguia: "E como é que você está? Você está bem?" Ele começava a se nha consciência não havia um prc~eto de que eu iria me tomar ter:i.peuta,
abrir: "Não estou muito bem não. Tive um1 briga desgraçada com meu mas acabei me tomando apesar do que não sabia. E também não apareceu
pai, fugi de casa e não voltei mais". Eu dava corda: "Há quanto tempo ninguém para me dizer: "Mas que interessante isso que está aconte:endo
você está fora de casa?" Ele: "Um mês". "E você está morando onde?" com você". Em geral, as coisas mai.s importantes da vida ocorrem sem que
- "Estou na casa de um colega". Um professor não pode dispensar um rncê possa trocar ideias com ninguém e você acab.i. elaborando - ou abor-
aluno que esteja passando por uma situação dessas e simplesmente tando - do jeito que consegue.
cobrar a leitura dos textos recomendados . Eu, pelo menos, sentia que Hoje, olhando para trás, vejo claramente que era mesmo urm. voca-
era meu dever não só ensinar, mas cuidar da pessoa do aluno. "Tchau c;ão _tentando achar uma brecha para vir para fora e adquirir cor.torno,
então. Pm,so voltar a conversar com você outra vez?""Pode, na semana e que a depressão que me abalava nesses tempos era o avesso do nome
que vem, no mesmo horário." e da forma. Foi uma dolorosa crise pessoal que ocasionou a virada. A
Daí a pouco bate na porta uma aluna: "O livro tal, eu não achei na partir do instante em que o inconsciente ejetou a figura do terapeuta e
biblioteca". - "Mas como vai você?" - "Estou grávida." - '~\ tua família tomou corpo meu desejo de a q·.1alquer custo ir buscar uma formação
sabe que_ você está grávida?" - "Não, eu nã.o sei o que fazer, estou deses- adequada, já não pude mais conceber a mim mesmo de outra forma,
perada, o que você acha que é melhor fazer?" Então abordei a questão :,enão como aquela que se anunciara em minha exígua sala de professor
se preten:lia abortar ou não. O terceiro do dia entrava e dizia: "Estou ouvindo as dores de alma de meus alunos. Hoje sou profundamente
muito mal porque estou fumando maconha direto há três semanas e casado com minha profissão, qu,::: não pode ser outra.
tive uma bad, estou pirando e não entendo mais nada". Indaguei: "Es- Com o tempo, surgiu uma organização na m :,nha consciênci2. e um
pere um pouco, como é esse negócio de estar ficando louco? O que foi . direcionamento de minha libido: minha maneira de viver é prai:icar o
que aconteceu? Como ei,tá a sua cabeça? No que você tem pensado? diálogo terapêutico. Qyando se ouve outras pessoas falarem de suas
Você está entendendo as coisas?" - "Não, não estou." - "Então vamos profissões, às vezes se encontra algo análogo. Tenho uma amiga, a pia-
conversar... ". Assim estava a maioria drn; alunos. Eu achava que tinha nista Clara Sverner, que diz ficar doente se não tocar de seis a oito horas
que ouvir e me entregava totalmente a esses momentos, usando todos por dia o seu instrumento. Trata -se de uma necc:, sidade absolutamente
os recursos de que dispunha para lidar com essas situaçõe~ - o que criou imperiosa. Nós também trabalhamos isso todos os dias. Até mai~.. Uma
vínculos fortes entre mim e esses alunos, tanto que alguns perduram vez em Zurique, num seminário, foi mencionado o exemplo do 1xülnri
até hoje. Estive em Campinas há um mês e houve gente dessa turma no russo Mikhail Baryshnikov que, para poder dançar como devi ~, tinh a
que foi me encontrar, porque se lembrava desses tempos . Ouvir marca. que treinar diariamente a musculatura do corpo durante um númc111
Ser ouvido, ainda mais. análogo de hora.s. O analista, pela mesma razão., tem que treina r o 11 f.1J

Importante, no decorrer da análise que comecei a fazer logo em seguida, de suas ferramentas. Usar bem a ferramenta é fazer uma intcrp1 t' l ,l\•II'
foi perce':>er que comecei a exercer um oficio (a "prototerapia") por intuição. com precisão na hora certa, detectar a voz da anima imi scuindo ••~ 111

Ao fazê-lo, de algum modo, eu estava deh:ando aflorar uma vocação que fala exaltada de um homem, perceber um com rlcxl> 111:iníll' ,t.111.111
Sl'
não tinha dado sinais de vida quando racionalmente fiz minhas escolhas inesperadamente, discernir a formação <lc um sín 1holo. S1· , 11 1 11 11,

IWUERTO GAMBINl 11 V!)/ ! CI 1 1 ~ li 11


H
·
tremar - ad.1an t·, L apenas possuir a teoria no
o uso dessas f,erramentas, nao Era o que se apre:;entava e me submeti à triagem 4 Comecei a tera p iJ e
intelecto. O ofício tem que :, er tão treinado quanto as mãos da pianiS t ª d,~sde o início me sentia muito e:;quisito, porque era uma terapia sem
ou o corpo do bailarino. , . . d iálogo. Por mais estranho que fo sse era o que eu podia ter e fi q u ei mai .-.
A psicote:rapia, da maneira como nós a conhecemos, e uma atividade de um ano desperdiçando-me numa fala com as paredes , sem resuJtado
interseccional, com um fundamento na cifncia e outro na arte. Esse algum, enquanto 1 depressão me fostigava como um vento gelad o .
cruzamentc, gera um exerd:io único. De modo que ela requer tanto o Nos Estados Unidos dos anos 1~160 estava em voga a terapia de g·upo
preparo científico, como o treino constante do desempenho criativo do e foi para uma dessas que me dirigi em seguida. Eu sentia que aq u ele
ofício. E a formação deve i.~var em conta esses dois lados de maneira tipo de terapia não chegava aonde tinha que chegu, não chegava perto
equilibrada, inclusive deve transmitir esse conceito de dupla mcoragem, d<: mim e eu não recebia o que precisava - tanto assim que dessa expe-
porque não se forma um terapeuta com uma perna só. rif ncia não guardo nenhuma marca, apenas urna crônica engraçada, se
Q.yis dizer isso a vocês para contar como é que cheguei ao meu não t{vesse doído.
grande compromisso de vida. Conheci Freud antes de conhecer Jung Foi por essas alturas que, tendo produzido uma t,::se de mestrado, que
e interessei·-me muitíssimo pelas leituras dt: sua obra. Com:> na época aliás até hoje considero benfeita5, voltei para o Brasil e passei a trabalhar
dessas leituras solitárias et. não fazia psie:málise, levei Fr-~ud muito na Universidade Estadual de Campinas. Nesta época, nos anos 1970 ,
para o campo racional e o contato com sua obra provoco1-1 em mim o psicodrama estava muito em voga, então lá fui procurar alguns p si-
uma postura detetivesca. E u ficava o tempo todo concentrando-me em codramatistas daqui de São Paulo pedindo para ser aceito num grupo.
flagrar lapsos de linguagem ou indícios do inconsciente em mim e nos Participei durante um ano e meio talvez; era um pouco melhor do q ue a
meus colegas da Universidade de Chicago. Q.yando li as histórias de tenpia de grupo, m:1s também não me tocou, porque ~u tinha necessidade
casos, achava que também era um caso e qu.e nesse sentido devia estar de aprofundar certas questões e não dava tempo porque era muita gc::nte
constantemente a me autoanalisar. Passei um bom período ruminando
querendo ter sua vei. Você fala um pouquinho e daí é chamado para subir
o passado, à cata de eventos esquecidos que eu pudesse entender à luz
no tablado e encenar o que vinha ~endo dito, inter::ompido a qualc uer
da Psicologia Freudiana, da maneira como cu a compreendia em meio
altura da própria fala, pego de surpresa, a critério do diretor. Eu gos~ava
a meus estudos sobre sistemas políticos comparados.
de tentar criar uma imagem ou uma cena que repr,~sentasse o confüto
interior que vinha descrevendo, ma:; não gostava do que o diretor fazi a
Emaios de Terapia com o material, parecia que ele se empenhava para re.:;olver um problema,
ma:; eu nã~ sentia que o problema ficasse resolvido. Então ele dizia: "Vej a
Nesse período, durante invernos cinzentos e gélidos que não acabavam
o _que voce faz com sua familia, vocf faz isso, faz aqt:ilo", mas para mi m
mais, resolvi fazer terapia. Foi o meu batismo, em 1968. Eu n:io tinha di-
nao bastavam esses tipos de comentários que não me atravessavam a pdc
nheiro para fazer psicanálise, pois vivia de b.)lsas de estudo e não tinha
nem tocavam a alma atônita.
visto de trabalho. A unidade de assistência 2.os alunos da Universidade
de Chicago me ofereceu uma coisa chamada terapia rogeriana, porque
Carl Rogern trabalhava e ensinava na instituição, tendo fundado um 4. Descrevo uma dessai sessões no capítulo "Jornada até Jun!);" _
centro onde seus alunos treinavam com estudantes a preços :;imbólicos. 5. ~)~D1I;lol]ogo_de Getz.lio Vargas - Influênc.'a A/emâ e A mcri,~1111,, d1 tr11 11 1, · o l ·." ,t,1,/,, /\, '' '•
, ,,10au o, Sunbolo, l987-
_1 (> IWllEllTO GAMBINI

i\ V O ' , 1., ll l' I 1\ 1 1'(1 1.


Jung
a Psicologia Ji.:.nguiana. O Instituto Jung era uma organização muito
Só fui sossegar quando foi parar na análise junguiana, que começou em particular, corr:. qualidades e defeitos que assumia sem o menor pudor.
fins de 1973. Havia muito poucos analistas junguianos naquela época em O primeiro problema do lnstit.1to Jung é que o próprio Jung era contra
São Paulo, dzya para contar nos dedos de uma mão. Pro::urei um deles. a fundação de1;se Instituto, m:i.s seus discípulos, no fim dos anos 1940,
Na experiência com esse analista senti que podia finalmente me soltar pensaram - em parte com razão, porque a fam~., a obra e a importância
e já não precisava procurar mais nada. E a seu pedido tive que fazer um de Jung cresciam muito-, que er·a importante ter um lugar, enquanto
pacto comigo mesmo, que era o de apenas fazer análise e não ler Jung. ele ainda vivesse, onde se começasse a transmitir suas ideias c.om sua
Para mim foi complicado porque eu queria muito ler e também poder participação. Ele foi voto vencido, mas C. A. Meier, discípulo proe-
refletir, mas ele me disse: "O seu intelecto é um perigo, você tem que \ minente nos neios acadêmicos, aliado a Jolande Jacoby, Aniela Jaffé,
sacrificá-lo". Ele estava equivocado. Hoje sei que ele estava errado, mas analistas ingleses e americanos, acabou convencendo-o de que era
obedeci e entrei na aventura sem poder me apoiar no pensamento e no melhor fundar um Instituto do que deixar cres<"er o movimento de seus
intelect::l. De novo com meus botões: "Bom, se tem que ~er assim, então seguidores sem nenhum controle ou direcionamento, evitando-:,e assim
que assim seja". Entrei na experiência e entreguei-me à análise jun- um desvirtuamento de suas ideias. No fim ele acabou concoróando, o
guiana, tendo porém que abdicar da pmsibilidade de, ao mesmo tempo, Instituto foi fundado em 1948 ou 1949. Há uma impactante fala inau-
pensar :1.poiado em Jung a respeito do c;ue estava vivendo. Essa análise gural de Jung para a primeira turma de aluno~ do Instituto, publicada
durou quatro anos e rendeu muitos, muirns frutos. Na sequência fui para no livro C. G. Jung: Entrevistar e Encontros, na qual ele recomenda aos
a Suíça, e aí o pensamento estava liberado. Ganhei um presente muito alunos que procurem estabelecer um contato interior com um velho
bonito de minha mulher, Fátima, no meu aniversário: os dezoito volu- de um milhão de anos que existe dentro de cada um. Parece que ele
mes dos Collected Wórks de Jung. Grande intuitiva que era, ela entendeu preferia esse mestre ...
que mi:ilia mente estava com fome, poi~. durante a análi~.e no Brasil essa
dimensão havia ficado presa. Do jeito que sou, eu tinha que estudar Jung
Psicologia ]unguiana: Observação x Sistematização
como t"antos outros autores que para mim haviam de:, pertado muito
menos interesse do que ele. Ela gastou o que tinha e o que não tinha e Mal começou a Psicologia Junguiana a ser ensinada e já havia um
de repente chegam pelo correio alguma;:; caixas pesadas que ocuparam o certo mal-estar, porque o próprio Jung, numa carta de 19546, diz que
centro de nossa sala. Senti uma gratidão e um prazer enormes: agora eu não quer segu:idores junguianos, não quer formar um movimento jun
ia começar uma nova análise em inglês com alguém que fora analisado guiano, não quer que ninguém seja junguiano. O que ele diz é mais ou
pelo próprio Jung, ia ler e estudar, que é o meu jeito de funcionar.Jamais menos o seguinte, segundo me recordo: "Observei a psique dura nte
digo para um paciente meu não ler. Confio nos livros e os prezo muito. toda a minha vida, observei alguns fatos que acredito serem fa tos cm
píricos, porque se alguma out ra pessoa for ob:;ervar, vai observar algo
Instituto C. G. Jung parecido, e dei um nome a e:,ses fatos; mas :1ão fiz uma ço11 st ru\, l•>
teórica, não tenho um edifício teórico, portanto, não tcnh<1 11, u :1 11'11
Foi portanto quando comecei a viver com a Fátima em Zurique, a
estudar Jung, a fazer análise, que se deu meu grande encontro com 6. Voltarei a essi carta mais adiante, qu:mdo constanHi a , rdi·n-111i.1•,,

38 ROBERTO GAMBll'II 1\ \1 li / 1 11 1 l l',f • 11


ria a transmitir e não quero que uma teoria seja erigida, porque uma sincronicidade7, o espectro psicoidc da psiqucK. ou a alegada incapa -
teoria pode impedir a observação". Essa é a posição de Jung, muito cidade de se lidar com a transferência na t·ernp 1a jung uiana.
corajosa e muito boa, mas por outro ladc, complicada, quando se pen- Em seu livro de memórias, que cm part·l'. cscn:wu Je pr()prio punh o
sa na transmissão de seu conhecimento. A Psicologia Junguiana tem e em parte ditou a sua então secretária /\nil'la J:111 { l"111 :-.cus úlrimos
uma marca de origem, que é o paradoxo de ser uma psicologia difícil anos de vida, há uma passagem que sint<.;ti'./,a ;1 di ::;ç111 d :í 111·ia k1 sica da
de ser transmitida. Se vo,:ê sistematiza d 1!mais a Psicolo§;ia Junguiana, ruptura que viria a separar os doi:, grand<.:s p c:-.q11i ::;1dc,rn, da p Kiqu •· . Vale
trai o espírito do Jung; mas se não a sistematiza, você não a difunde. J. pena ler o parágrafo todo:
É a marca de origem. N :io há como se fo.gir disso. Vejam, o que está
Tenho ainda uma viva lembranca de Freud me d1 •1,1·11ll (I : " I\ l,·11 1 •' ' " 11111g ,
acontecendo hoje pelo mundo afora é que a Psicologia Junguiana prometa-me nunca abandonar a teoria sexual. É o qu i; i11q 1, 11 ta, ,·-,wm 1,il11 11 · • 1
\
está perdendo as suas c~.racterísticas de origem, está se deformando. te! Olhe, devemoi, fazer dela um do gma, um baluartl' inaldaV<' I" . F.1,· 11 1' d 11 1.1
Grandes traços, grandes qualidades que ela teve estão desaparecendo. isso·cheio de ardor, como um pai que diz ao filho: ''Pn111w 1:1 111 ,· 11111 ,1 • ,,, ,, . , ,
Há debares muito sérios,. que vou tentar aqui ventilar com vocês. Vejo meu caro filho: vá todos os domingos à igreja!"Um ta 1to l' S\'a111;1,l J l(' I H 111111 · 1
11
,

perigos, mas também há saídas por outros lados. Alguns analistas que -lhe: "Um baluarte:_ contra o quê?" Ele respondeu-·me: "(.·,11 111 :, ., • H l.1 •1, 1

lodo negro do ... " Aqui ele hesitou um momento e fnt:io ;11·n• :,, 1·11t ll11 " ,1,,
foram colaboradores diretos de Jung chegam a dizer que a Psicologia
ocultismo!" O que me alarmou em primeiro lugar foi u "bal11:11·1,·" 1 " '" d, 11·.
Junguiana não se transmite através dos institutos, não se transmite ma": um dogma, Lsto é, uma profis:;ão de fé indiscutível surµ;e :ll't' ll,I '• q11.u1ol1,
através das universidades, onde nem é muito bem aceita ou compre- se pretende esmagar uma dúvida, ele uma vez por todas. N ão se trata 111 .ti r, ,h
endida, mas através do contato pessoal entre analista e analisando, um julgamento óentífico, mas revela somente uma Yontade de pod t•1' w•.111l.11
porque só assim certas coisas podem ser sentidas e isso tem que ser Esse choque foriu o cerne de nossa amizade. Eu sabia que ja111 ;1i f> l '' dr 11.1 1

complementado com um estudo muito sério, que pode ocorrer dentro concordar com essa posição. Freud parecia entend•:!r por "ocultis1111 .", ·11""
ximadamente, tu:lo o que a filosofia e a religião - assim como a p :-.irnl111•.i.1
de um instituto ou não.
nascente - diziam da alma. Mas para mim a teoria. sexual era t ão '\ ,ndt ,i"
Deve portanto haver uma experiência e um estudo, mas não ne-
isto é, não demonstrada, ainda mera hipótese como tantas outras con, Tp,·••t·,
cessariamente através de uma instituição. Outros dizem assim: "Não, especulativas. Eu considerava uma verdade cienti:ica como uma hip<'1tl':-.e,
isso é uma coisa elitista, medieval, é a velha relação entre mestre e momentaneamente satisfatória, m:ts não um artigo de fé eternamente válido·•.
discípulo, isso acabou no mundo moderno, não pode ser, a Psicolo-
gia Jung;uiana tem que estar nas Universidades, tem que ter textos Jung lamentava que Freud temesse esse "lodo", do qual ele próprio
didáticos, tudo tem que ser publicado". Na verdade, as duas coisas havia sido o pioneiro em extrair conteúdos profundos. Jung de fato
estão acontecendo. Não sou absolutamente contrário à difusão das
ideias de Jung, porque senão parece que a gente est,í tratando de 7. "Correlação eni:re estados interiore:; e eventos exteriore ; e, portanto, um paralelismo
mistérios órficos, o que evidentemente não é o caso. É importante temporal, espacial e de significado entre condição psicológica e evento físirn" (apud
haver dJusão, porém aspectos e conhecimentos há, que devem ser Dicionário ]unguiano, dirigido por Paolo F. Pieri, São P:mlo, Vozes, 2002, p. 4 67).
8. "Semelhante à psique, ou quase psí:iuico. Diz Jung: 'Parece-me provável qu ~ a wnla
apresentados com o tanto de rigor e precisão necessários para que
<leira natureza do arquétipo não possa ser levada à consciência, isto é, seja tran sn· n
não sejam interpretado, como misticismo - que foi aliás a maldição dente, motivo pelo qual eu a define, psicoide'" (op. cit., p. 401).
lançada por Freud sobre Jung-, como por exemplo os fenômenos de 9. Memórias, Sonhos, Reflexões, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005, p. rJ6 .

"º ROJI .E RTO GAMBINI /\V07.EOTEMl' O ,, 1


mergulhou nele, não para tornar-se ocultista, mas para lançar luz sobre diálogo com outras Ciências. Portanto a Psicanálise conquistou um lugar
fenômenos que poderi~.m tornar-se óbvios, como de fato se tornaram. no debate acadêmico, por exemplo, com a Filosofia, com o Marxismo,
O discípulo foi mais longe do que o mestre. com a Antropologia Estrutunl, com a Semiótica, com a Linguística,
com algumas linhas das Ciências Humanas, cc,m a Psiquiatria e com a
Literatura, a poesia, o teatro, o cinema e as artes plásticas. Uma. ciência
]unge Freud
transdisciplinar recente, como a Psicopedagogia, já elege a Psicanálise
Então vejo, nesse fim dos anos 1990, os seguintes probl,~mas: há ~esco- como interlocutor privilegiado. Os pedagogos, por exemplo, tomam
bertas fundamentais feitas pela Psicologia Junguiana, que muito \dife- Piaget e vão debater com Freud. Lá está a Psicanálise como participante
rem daquelas feitas pela Psicologia Freudiana - ainda bem! - porque estabelecida de um certo debate intelectual do nosso século. A P~.icologia
não haveria sentido algum em se repetir aquilo que Freud muito bem Junguiana não está nesse lugar do debate, em parte porque escolheu,
descobriu e formulou. Jung afirmou claramente que não se via obrigado i como já mencionei, devido à sua marca de origem, ficar um pouco fora
a refrasear certas coisas que Freud deixcu muito bem ditas. Então basta deste meio; mas contraditoria:nente, disso extraiu um certo grau - na
entender Freud, não é preciso repetir o que ele disse. verdade, um complexo - de inferioridade por não ser convidada para esse
O que Jung se propunha era dizer o que Freud não disse, porque ele banquete. Se ele um lado recuwu o debate, depois ficou envergonhada
parte de outros pressupostos, outros pontos de vista. Suas proposições ou inferiorizada por não estar lá. É uma situaçio deveras embaraçosa10 •
psicológicas foram vividas por ele e por outras pessoas, em seguida ela- Surgiu enfao uma certa te1.dência, entre os junguianos, de se for-
borada, teoricamente, discutidas, e é exatamente esse tipo de coisa que talecerem através da adoção de procedimentos freudianos, como se
corre o risco de se perder no momento presente. O risco de perda de um isso os legitimasse num terreno de inseguran~:a. O analista junguiano
certo e,pírito decorre elo rumo que a Análise Junguiana vem tomando, que aprende o uso da técnica psicanalítica, com seu típico manejo da
da maneira como vem ,endo praticada, do modo como a pesquisa vem transferência e da resistência, que faz interpr,~tações nesse campo d a
sendo definida, das escolhas sobre os aspectos que se privilegiam ou não. maneira como é concebida pela Psicanálise, que pensa o momento
Se for escolhido um caminho em vez de outro, talvez algumas ideias analítico como repetição do VLvido, que concebe o material reprimiclo
que vieram à tona gra,;as ao trabalho de Jung - e sabemos que essas como sendo aquilo que uma vez esteve na consciência, que en-:cnd<.: <,s
ideias ficaram reprimidas na cultura ocidental durante séculos - possam sonhos como exclusiva manifostação de desejos infantis, esse an:tli sta
voltar 2. ser reprimidas. Por quê? Porque a consciência coletiva pode não junguiano está na verdade pensando e operando como um psicanalista .
ser capaz de retê-las. Uma percepção a respeito da psique veio à tona, Alguns usam divã. De um lado se diz que esse sincretismo é positiv;1
emergiu, recebeu uma formulação e poce ser perdida de novo. Para mim, mente uma aproximação de linhas até então divergentes. Di?;o qu<· 11 ;10 .

essa é uma das questões mais sérias quando se debate o estado atual da A Psicanálise até hoje não lucrou rigorosamente nada com a a 1r11xi111.1 1

Psicologia Junguiana. ção que lhe fez a Psicologia Analítica, talvez tenha antes se n1111p1 u i d, ,
Um dos problemas em torno dessa questão é o famoso complexo de com o reconhecimento tardio dos descendemcs do prinripal d (' , 1·11, ,,
inferioridade dos junguianos perante os freudianos. Os nossos colegas do círculo vienense original. O resultado dessa tcndêrwia {' :t, n••,, 1• 111 1
freudianos contam com uma literatura ampla, sólida, profunda, legiti-
mada por instituições, grupos que atingiram o poder, estabeleceram um IO . Ver "Qt('ll1 é Dono do Ar?", ao fina.! tkst:e livn,., p. 2 11 .

,1.2 ltOIIERTO GAMBINI .i\ \! t) / 1 ! 1 1 1 f\ 1 • 11 11


• síqwcas como se fossem
a crença de que é possível estabe1ecer 1eis P ' . .
descaracterização da Análise Junguiana, ?. medida que seus praticantes - , · está permeada de wbJetI -
leis naturais, po rque toda afirmaçao ps1qmca . .
vão procurar na Psicanálise elementos que supostament'! lhes faltem.
vidade. A Física. Submolecular comprovou que o próprio microscópio,
Grifo a palavra supostamt:nte. ,
que torna poss1vel a o b servaçao,
- mtenere
· 1: no obieto
J
a ser investigado.
Portanto, o único jeito de se fazer psicologia é s1bendo que se observa
Psicokgia Analítica: Sua Marca o nível da realidade no qual a própria pessoa do investigador interfere.

A meu v,er, o desafio da Psicologia Analítica é honrar i;ua marca d'ê


origem. Ninguém foge da história de sua concepção, porque é isso que Psicologia Analítica e Empiria
nos const:itui. A Psicologia Analítica foi forjada da maneira como foi,
como um modo de pensar contra a corrente, e sempre foi ~.ssim. A força O que Jung fundamentalmente pleiteava é o esUtuto empírico de suas
da Psicologia Analítica não é ter cinquenta mil adeptos, sua força é sua descobertas. Ele dizia assim, com minhas palavras: "Se chamo algo de
profundidade. Ela não se fortalece porque chega ao pode r, mas porque sombra, estou dando um nome e não importa o nome que se escolha
chega pe:~to de um tipo wntemporâneo d.e gnose, caminr..o difícil e exi- dar; estou observando e observo repetidamente que as pessoas tt:m um
gente porque requer a capacidade de compreender fenômenos definidos lado que não está incluído na sua autodefinição; se lhes for perguntado
por Jung como psique objetiva ou polo psicoide, inconsciente coletivo, se esse lado existe, dirão que não, mas observando-se seus sonhos e seu
intersecç:ão entre o plane, material e o nã.o material, concücionamento comportamento fica patente a existência dessa dimensão não reconhe-
da consciência pelas categorias do espa1;0 e do tempo, pela regência cida pelo sujeito". O mesmo se dá com os termo; animus e anim11.Jung
mítica e pela influência dos arquétipos. Nós sabemos que Jung abor- dizia ter escolhido essas duas palavras para nomear um fator psíquico
dou certos aspectos ou desenvolveu certa.s ideias que hoje estão sendo existente e operante na psicologia respectivamente da mulher e do ho-
corroboradas pela vanguarda da Física ~:1,ântica, da Biolcgia Evolutiva, mem; descreveu o que observou e depois procurou paralelos na mitolo-
da AstroGsica, da Neurociência, da Ciência da Religião, d~. Genética, da gia e na literatura. Os nomes, para ele, eram apen;1s nomes, e não ~-coisa.
Antropologia; ou seja,Jung era um pensador intuitivo que vislumbrava Percebe-se que a base da Psicologia Junguiana é uma descü;ão de
remotos horizontes. Ele foi capaz de entr,ever certas realié.ades e tentou fenômenos empíricos e não é à toa que o trabalho de Jung começou
relatá-laE servindo-se da :linguagem mais científica que conseguiu.Jung num laboratório do Hospital Psiquiátrico Burghõlzli, nos arredores
tentou expressar suas intuições em termos racionais para que pudesse de Zurique. O experimento de associação, que foi a área em que Jun~
ser entendido por outros, mas só depois de muita resistênda intelectual começou a trabalhar, é na verdade muito simples, e depende apena!.
e ideológica é que começam a surgir corroborações e convergências. de observação atenta e metódica. Jung pretendeu construir uma visao
Como, por exemplo, a ideia de que é impossível observar a psique fora do ser humano em cima de fatos observáveis e, como dizia. antci;, fi ~IU
da psique. Isso quer dizer que é impossível ser totalmente objetivo intuição o levou a perceber certos fenômenos ou certos fatos e. 11 c i·k
quando se fala da psique, porque se trata da psique olhando para si mes- sabia não estarem incluídos na visão racional cio século xx. J11~ 1~ i·,.,
ma. Não há portanto conhecimento objetivo da psique. O conhecedor, um homem muito informado, ~.abia o que a Pslcolo~ia E)qw1 i11w 1,1.1\
inapelavelmente, interfere no ato de conhecimento. Entfo ele tem de estava fazendo, sabia o que a P~.icanálisc pensavn e sahia O q 1w 11 \· 1\ 1 ,
levar em conta o dado subjetivo. Não faz mais o menor sentido manter sofia dizia. Ele tinha um panar.ama muito bom das ~ ic1\\ in.., 11 , 1 ti' 1 ,\

44 ROBERTO GAMBINI
1', VII/ 1 p 1 \ M 1•1
Portanto tinha a percepção de que, ao descrever aquilo que denominou pesquisa, que foi exatamente o que Jrng fez. Tendo coletado material, e
sincronicidade, estava comunicando a existência de um fenômeno que reflei:ido,Jung contou histórias, que hoje fazem rir bca parte dos anal Ls-
nenhuma dei;sas outras disciplinas estava em condições de observar. E ""' tas junguianos. E eu quero contar uma ou Ju as aqui. O uvi essas risad1s,
seu estilo de validação costumava ser o de lembrar que o me:;mo fenô- não aqui no Brasil, mas numa reunião da Sociedade S11í~·a de Psicologia
meno, com outro nome talvez,já era do conhecimento dos antigos, ou Analítica, da qual sou talvez um dos únicos mcnihros brasileiros. Como
seja: sempre esteve disponível para a observação. não pretendo fazer plrte desses que dão risada, cnloL·,1- 11H.: entre aqueli~s
que enfrentam a árdua tarefa de continuar estudando e pn;q11i sando até
poder entender coisas que são muito complicadas e del ira das.
Ponte entre a Consciência e o Inconsciente
Vou contar uma dessas histórias. Em 1996 caiu u1r1 1vii10 da T AM logo
Jung toma, por exemplo, a :_ deia de que os sonhos não são apenas a após a decolagem, n os arredores do aeroporto de Cong()ril, a~. 1·m Sao
realização de desejos, mas podem estar aludindo simbolicamente a Paub, tendo morrido todos os passageiros. Segundo 11otir io11 a i111p rrn
algo que ainda vai acontecer. Ora, é arriscado dizer isso, porqJe sempre sa, uma das vítimas era um homem que tinha duas fdhi11h:1 s 1wq111·11.1s,
houve muitc, folclore a respeito do caráter oracular dos sonhos. No fim uma de meses e outra de dois anos e pouco. Logo ceé u, eh: dn,11"di11 ,1·
do século x1x, como hoje, seria possível encontrar publicações do tipo das filhas e foi para o aeroporto. Olu.ndo eram oito :1oras da 111:111k1 _a
A Profecia dcs Sonhos, porque estes sempre se prestaram a elu cubrações filha maior acordou, chamou a mãe e perguntou onde esta va 11 p:ii . /\
supersticiosas.Jung vai além de Freud, porque tem a coragem de mexer mãe respondeu que de tinha ido para o Rio de Janein e voh-ari a :, II PÍ I r.
em algo muito malvisto. Ao afirmar que certos sonhos podem antecipar A m ::nina disse que não, que o pai não voltaria mais "porqu c o aviao ,·;1i11 "
fatos futuros Jung lembrará que isso não é novidade nenhuma, basta (no passado). Eram oito horas da manhã; o avião caiu às oito e d czc si,;1; 11·
consultar o Velho Testamemo e ler o sonho de Jacó, ou de José no Egito, minutos. O que aconteceu no caso dessa menininha? Talvez as crian ,·a:-.
ou do Faraó, ou os de José no Evangelho, ou o antiquíssimo sonho de tenham um canal sensível que lhes permite captar informações de fo t is
Gilgamesh anunciando sua futura liderança sobre seu povo, bem como ocouidos em outra dimensão temporal ou espacial. Dezessete minut ll:--
o de Nabucodonosor anunciando sua queda. Jung legitima suas pro- antes da morte do pai ela entrou em contato com uma onisciência , lo
postas com o conhecimento antigo, mas dominando muito 1)em a base inconsciente. Sua p~:ique foi até um ponto onde o que ia acontece~ j:1
empírica e observável do que está afirmando. tinha acontecido.
O que n,) s diz Jung a re:, peito dos sonhos que antecipam o futuro? Pua mim, esse fato tem enorme:; consequências. Eu o tenho m1:n-
Para entendermos essa que:, tão temos que partir da concepção de que cionado em palestras proferidas para educadores, porque - o que fa,: a
uma parte nossa não é conhecida, é inconsciente, ou seja, uma parte nossa educação? Enche de entulho esse poço artesiano. O que a educação faz
trafega numa faixa que não está presa às leis :lo tempo e do e1,paço. Aqui- é anular essa sensibilidade incompatível com o an.al estado de com-
lo que é futuro para a minha consciência não o é para outra parte minha, preensão do real para tornar "normal" uma criança ,::uja única supor.ta
pois já existe em outra dimensão não sintonizada com a consciência. Isso desadaptação é apenas ser sensível. Acabamos todos perdendo. É sabido
não tem na.da a ver com pr,~visão, mas com uma faixa que não se torna que não usamos mais do que dez ou quinze por cento da capacida:le
consciente . Então você fica diante do seguinte: ou nega a existência do nosso cérebro e ·:emos um tipo ele funcionamen to psicológico q ue
dessa faixa, ou a aceita porque vê indícios empíricos e daí parte para a se c,mtcnta apenas com essa fração. O resto não us2mos, a não ser l ll l
IWII F HTO G AMllINI
/\ vo ·~ E o T t-:1\ 1 1'0
estados al:erados de consciência, momentos extraordinários da vida de escolha algo correspondente à sua maneira de ser e pensar, à sua forma-
uma pessoa. A psicologia de_Jung leva isso em conta; ele afirmav~ que, ção. Por exemplo, quem estudou medicina tem mais possibilidades de
mesmo no decorrer de urna vida normal e corrente, uma pe,soa pod'e ter aproximar-se da genética, neurologia, endocrino logia, psiquiatria, psi-
contato com níveis do ser que não são habituais. E, se o ocorrido nesse cossomática ... Eu não tenho aces:;o a essas áreas, portanto pesquisl), por
momento fugaz da vida em que alguém tece a experiência desse contato exemplo, as conexões entre cultura .e alma, entre História e psique.
com algum nível profundo do ser for registrado, mantido :! integrado à 1

consciência, certamente tal fato acarretará consequências críticas sobre


a maneira como essa pesrna viverá sua vida.
Jung e a Psiquiatria
Uma das grandes liçõe:; da PsicologiaJunguiana é que é preciso estar A Dra. Nise da Silveira, entre nós, foi pioneira na aplicação das ideias de
sempre atento, como terapeuta, porque a qualquer momento podem Jung no tratamento da esquizofrenia12 • Seu método de trabalho, dando
surgir indicações de que está havendo um micromome::ito de gnose. condições aos pa-:ientes internados no Hospital Psiquiátrico D. Pedro
Temos que perceber que há situações em que alguém, por sentir de fato i::, em Engenho ele Dentro, no Rio de Janeiro, de expressarem imagens
o que é uma sincronicidade, começa a fazer uma ponte ern:re a consciên- do inconsciente através da arte não teve até hoje paralelo em nenhum
cia e o inconsciente: uma pequena conexão que, talvez, promova todo outro país. As mandalas espontaneamente desenhadas ou pintadas por
um novo desenvolvimento, cabendo ao terapeuta apenas dirigir um foco, alguns, cuja função estruturadora dos estados de caos interior foi por
dar ênfafe, acolher e valorizar o fenômeno ocorrido. Naquele momento ela descoberta empiricamente, chegaram em 1954- ao conhecimento de
pode estar nascendo uma união entre o ego e o inconsciente. Para isso Jung, que nelas encontrou uma comprovação de sua hipótese sobre o
tenho nfo só que estudar o volume vn das Obras de Jung11 , mas espe- inconsciente coletivo. Mas infelizmente esse tipo de pesquisa não se
cialmente estar atento ao momento em que algo significativo ocorre na propagou entre nós, justamente essa criação absolutamente brasilei-
vida do paciente, na minha ou entre ambos. A terapia é um trabalho ra. - o que só pode ser explicado por nosso com·Jlexo coletivo d:! não
a quatro mãos e em certas configurações o inconsciente do terapeuta sabermos valorizar o que é nosso 13_
e o do paciente entram em sintonia. Passamos do prosajco ao sublime Até mesmo na Suíça, onde floresceu, essa área de investigação ef:tá de
em cinco minutos, e aceito tanto um como o outro, sempre à espreita saparecendo. Em Zurique já existiu uma Clínica Psiquiátrica Junguiana
do momento em que pode dar-se essa abertura da consciência para a (a de Zürichberg) que foi absolutamente de vanguarda. Foi fundada
percepç:io do psicoide, para a percepção desse algo que, ts vezes, não se em 1964, por doü, anilisandos e discípulos de Jung: C. A. Meier, diretor
consegue formular com precisão por falta de categorias clue extrapolem científico e H. K. Fierz, diretor clínico. Os dois foram colaboradores de
as que a racionalidade vigente aceita. Jung na área da Psiquiatria. Eles pesquisaram a hipótese segundo a qual
Porta.nto, no meu modo de ver, dizer que somos junguianos signi- na esquizofrenia deve haver um componente quínúco, uma toxina q1w l
fica continuar a pesquisar os grandes temas que Jung formulou, o que
evidentemente varia conforme as inclinações pessoais. Qye cada um u. Ver, entre outros, Museu de Imagens do Inconsciente, Rio de Janeiro, 1\. 11n1 •. 11 110 cl 1
Educação e Culti1ra, 1980; Imagens d,1 Incomciente, Rio ck Ja11eiro, Alhan1li1 ,1 1, 1&1 ,
Os Inumeráveis E1tados do Ser, Rio de Janeiro, Ministério , ln C11lt111 ,1, ICJ ~
Tl. Estuc/os sobre PsicologiaAr.:a/{tica. Obras Compl~tas de C. G.]ung, Petrópolis, Vozes, r98r, 11. Ver meu 011h'os500 - Uma Conv('rsa sohre a Alma flrasi/c .· 1t1, l•: 1111rv1,,1,1 ., 1 Ih 1 1li 1
vol. vn, Parte II, "O Eu e o Inconsciente". São Pau ln, SJ,NA( ', 1999, cap. 8, "Noss;>s Cnmpkxo~".

ROBf,:RTO GAMBIN '


/\. \ 11/ I li I I f\1 1 li
liberada por uma forte descarga emocional e que altera ,, ~ncionamento reversão de posicionamento dos conteúdos de uma polaridade psíquica
cerebral. Jung disse is:,o em 1907, em ,eu estudo sobre a demência pre- em direção à oposta. Píndaro i;eria também uma referência central, p ois
coce'4 e hoje a hipótese está cientificamente comprovada, embora não se seu famoso verso, "Torna-te ,::> que tu és", retomado por Nietzsche e
dê o devido crédito a de por sua descoberta pioneira. l\,las o que se pode provável fonte de Jung, é o fundamento filosófico antigo de todo o con -
constatar é que a pesquisa psiquiátrica iniciada por Jur..g não vem tendo ceito de indiv:,duação e da relação entre ego e Se!f, sendo este último a
a continuidade que merecia, o que é u:na enorme perda. verdadeira matriz da individu.ilidade. O dito socrático "Conhece-te a ti
Jung lançou ideias riquíssimas no campo da psiquiatria, como por mesmo" aparece em Jung com mais peso, e em outra vertente, do que o
exemplo a de que, se o introvertido tiver um surto, provavelmente este "Penso, logo e:>isto" de Descartes, encarado aliá3 por Jung sob a ótica de
será de natureza maníaca; no caso do extrovertido, com muita probabi- crítica à racionalidade. O mundo das ideias de Platão é uma das fontes do
lidade O surto será esquizofrênico. Isso porque Jung pensava no sistema conceito de arquétipo. Também são constantes e fartas, por parte de Jung,
autorregulador da psique. A experiência acumulada ::le trabalhos com as referências ao Velho e ao Novo Testamento, especialmente o ''Sermão
psicóticos na Clínica de Zürichberg é um material r lquíssimo, que no da Montanha'', onde aliás encontra apoio para sua teoria da projeção,
entanto não tem tido seguimento. Hoje já não exi:,te mais, em país nas alusões de Jesus à trava exi:,tente no olho do observador que se julga
algum, uma clínica psiquiátrica junglliana que alie tratamento medica- em condições de detectar o cü:co no olho alheia15• Jung cita fartamente
mentoso e interpret2.ção do inconsciente. os primeiros pensadores da Igreja cristã, os filó:,ofos da Idade l\1édia, os
alquimistas, Goethe, e os filó ~;ofos romântico~ como Carus, Schiller e
Schopenhauer, até chegar a Nietzsche, sobre qu,::m realizou durante anos
Jung e os Pensadores
um seminário ::-ocado em sua di;cutida obra Assim Falou Zaratust,-d 6. Jung
Percebo a esta altura o quanto me faz pensar a questão das muitas áreas manteve vasta correspondência, ainda em grande parte inédita .. em que
abertas por Jung e abandonadas com o passar do tempo e o rumo geral sustentava discussões teóricas com Ludwig Binswanger, com Heidegger,
que foi seguindo o "movimento" de seus seguidores. Por exemplo, a rela- Bertrand Russell, Paul Tillich, com a maioria dos teólogos de sua época,
ção de Jung com a Filosofia é uma área que foi muito pouco explorada. especialmente o pastor Victor ·White, assim corno se correspondeu co111
Na minha formação analítica não foram dadas aulas te Filosofia, porq~e alguns dos cie::itistas mais proeminentes de seu tempo, como Vlolt~a 11~
havia uma certa hesitação, ou despreparo, por parte dos analistas e proles- Pauli'7 e Konrad Lorenz18, entre outros. Mas h.1via um certo tahu de se
sores, de fazer essa costura crítica entre Jung e os filó:,ofos que o influen- falar de irifluências intelectuais sobre o pensamento de Jung, come, se d e I i
ciaram. A ênfase maior foi sempre dada à relação entre o pensamento de vesse sido um gênio pairando acima do partilhamento de ideias - l'mhora
un•r e dos filósofo:; da Antiguidade, porque ele próprio constantemente ele próprio, muito honestamen te, sempre tivesse reconhecido o l ontT:iri , >.
J b O .
alude a alguns deles . A Heráclito, por exemplo, que o inspirou para teon- Parte dessa cfütorção deve-se ao fato de Anieh Jaffé, a qu em l'lc- dit1111
zar sobre a dialética entre polos opos·:os, a enantiodromia, ou seja, a brusca
15. "Sermão da l\lontanha", Mateus r1-5.
Ver a respeito seu artigo "Novas Considerações sobre a E i;quizofrenia", publicado 1 6. N ietzsche's Zarathustra -Notes oftJ.•e Seminar Gh,cn i11 t<J. /·/ -"U'I• 1'1 i 111 T t " 11, 11.. 11111 , "
14. , , h ·
em em Obras Completas, vol. m, par;igrafo 548: "Conside rando~se que ~té º}e_ os Series xc1x, 1,J88, dois volumes .
1957
processos psicológicos que poderiam ser responsabilizados pdo efeito esqmz~f~e1~,1co 1 7·Ver A tom mui Archc~ypc. 'Jhe Pa11li,.'f1111g /,dias, t<).1 2 1w;S, l ., ,11 d , 111, H, 111 11, , 11. , •• , .. ,
não foram descobertos, admito a possib:.lidade da existência de uma causa toX1ca . 18. Ver Ki11i So/0 ,11011 '.,· Ri11g, T,ondon . Mcthucn a11d ( ·,. _ l ,t.l , 111 : , ,

~o nonERTO GAMBINI 1\ \' ( 1 • 1 41 1 1 1 1 1 1


22

suas merLórias em seus últimos anos de vida (1959-1960), influenciada -10s Confirmado tal fato, detecta-·se a existência de uma ponte unindo

sem dúvida por uma for:e transferência idealizadora, te r omitido os pensamentos convergentes. Por exemplo, quando Bion fala das estr u tu-
autores que o próprio Jung apontava como tendo sido seus mentores ra; mentais, ou quando privilegia e pensamento como nível suprem o da
e inspiradores no início c_e sua carreira: Pierre Janet, Wilhelm Wundt, re:ilidade psíquica, do qual decorreriam as mais ilusórias experiências
William James e Théodore Flournoy' 9 . Marie-Louise voo Franz, na bio- psicológicas, está-se muito perto do que Jung propunha décadas antes,
grafia em que insere Jung no contexto histórico e retoma as correntes de quando dizia que alguém tem o pensamento como função dominante
pensamento que o alimentaram, contribuiu para ampliar e:;se panorama OL. está fascinado por um arquétipo. Bion usa a expr,::ssão alucinação, não

do jogo permanente de ideias que inspiram os grandes pensadores 2 º. nc, sentido psiqui:itrico, mas no de que uma pessoa é imbuída de um
Entre os pesquisadore5 brasileiros, a professora Amnéri ; Maroni tem pensamento mágico ou pensamento primitivo que determina sm:,s vi-
feito valiosas contribuiçêies nesse sentido, especialment<: num estudo vências. Ora, na década de 1920 Jung dizia exatamente isso apoiand o-se
em que ::ocaliza exatam,!nte a lacuna onde se ocultava a intersecção em antropólogos, : orno Lévy-Brühl, que estudavan a mente primitiva,
entre a psicologia analítica e o romantismo alemão Mas nunca tive 21
• o animismo e apa:•ticipation mysti~ 1ue.Jung afirmava que assim como os
conhecimento de pesquisas na mão comrária, ou seja, a influência do povos primitivos, nós também cor.struímos pensamentos mágicos. Ele
pensamento de Jung ou a inspiração que evidentemente nele buscaram re:8.etia sobre a existência de mito, inconscientes que regem a vida de
autores como Mircea Eliade, Claude Lévi-Strauss, Gaston Bachelard, urna pessoa, adotando uma visão ::_brangente com relação à miríade de
Heinz Kohut ou D.W. Winnicott, que não obstante, f:abe-se lá por pro~uções 1:1í~icas da humanidade, diferentement,~ de Freud ao eleger
quais motivos, nunca mencionam o norre de Jung. ~ mito _de Edipo como única e exclusiva estrutura regente, no plano
Tenho uma hipótese, ou melhor, uma desconfiança, já que não me m::onsciente, do destino individual com seus conflitos e neuroses. Ora
encontro em condições de embasá-la: \\.'ilfred Bion leu Jung, apreciou isso é parecido, para dizer pouco, com o que recente mente escreveu Bion~
certas ic.eias suas, desenvolveu-as a seu modo mas jamds mencionou
a fonte.
Para os seguidores de Freud,Jung continua sendo visto como detra- Jung e a Arte
tor e dei;ertor do movirrento psicanalítico, para o qual aüás contribuiu ~ ~ontato de Jung com a arte também foi intenso e profícuo,J. Ele
enorme.nente em seus primórdios, tendo-se a impressã,) de que a me-
dn:ia que certas imagens brotam não da psicologia pessoal do artist·t
lhor forma de puni-lo é ,) ostracismo e o desmerecimento. É muito fácil (d tferentemente d:i interpretação ele Freud em seu . b fi , ,
pesquisar isso, basta ver a cronologia das obras e fazer um trabalho de d d _ ensaio so re a isura
as uas maes na tela Madona e o Menino com Santana de Leon: .J
acompanhamento de t{xtos publicados de um e de outro e compará- D- V- ·) d , .uuo
,1 mc1 'mas e um nível comum tanto ao artista, quanto aos cn1trns

19. Fro11: India to the Planet Mars - A Case oJ M ultiple Personality w :th I maginary Lan-
22. C[ Sonu Shamdasani,Jung and the J\,faking ofM odem Ps vcho/, ,
guage r, Princeton, Princet,) n University Press, 1994. Esse ensaio pioneiro (1899) sobre Science, Cambridge Cambridg U . _ . P . ogy .- lht' n rn11,1 ,,t ,,
· e mver,ity ress 20 0 , espc · J.!
as visões de uma médium inspirou Jung a encetar estudo análo go cm Símbolos de Without Freud", p). II-lJ . ' .>> n · mente O c:1p111d ,, ,1 111 ,1,
Tran!formação, vol. v de suas Obras Completas.
2_1. Ver seus ensaios sc bre James Joyce e Picasso em O r, . . .
zo. C. GJung - Son Mythe da;u notre Temps. XV (1as 0'omJ ComJ'fetas. Ver tamb , eh_. . e . r ,Sf' 11 1/ d //li /lrt. .
1 ' // t i
(.
./1'1/, 1 I \ ',1
~, . .f111'K, o Poeta da Alma, São Paulo, Summus E ditorial, 1998.
' cm u stmn , a11lard / . 11111 1 I111
./1111g, Paris, Stock, 19 88. · ' ·• · •·•· " .1:111,111, ·,; r 1,

~-\ UOBEWl'O GAMBIN J


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membros da sociedade, que chamou de inconsciente coletivo. Aniela era precipuamente a construção de teorias sistematizadoras; p ropunha
J affé iniciou uma pesqui:,a nesse sentido, publicada em "Cl Simbolismo que se resistisse ao tentador apelo de formar conclusões e domim r áreas
nas Artes Plásticas", capítulo do livro mais divulgado de Jung, O Homem recém-abertas. Sua preocupação era o prosseguimento da obse rvação
e seus Símbolos24 , onde identifica arquétipos que aparecem na pintura, por e da pesquisa, o contínuo esforço de inaugurar categorias de apreensão
exemplo. Trata-se de urna linha importrntíssima de pei;quisa, que po- da realidade ainda não regulamwtadas pelo estab!ishment do saber. D e
derá evidenciar como em certos momentos históricos estio constelados certa forma, legou a diferentes discípulos a sugef:tão de cumprirem esse
certos temas arquetípicos, sendo verdadeiros artistas aqueles capazes de papel, de acordo com as especialidades e propensões de cada um.
representar e dar formas a conteúdos inconscientes comuns a toda uma
época2 5, ou mesmo antecipá-los. Primeiros Junguianos
Aqui no Brasil, seria interessante, por exemplo, tomar a pintura mo-
dernista e comentar quais arquétipos do inconsciente coletivo brasileiro Coube então a C. A. Meier, psiquiatra e analista, relativament•~ mais
estavam vindo à tona na década de 1920 e não antes. A fase chamada velho que os demais e bastante 2.traído por posiç-5es acadêmicas, ~cupar
de Pau-Brasil, na obra de Tarsila do Amaral, demonstra claramente o a cátedra que fora de Jung na Ef:cola Politécnica de Zurique. Meier dei-
sentido de encantamento mágico presente na cultura popular rural ao xou uma obra inportante, que inclui uma série ele estudos, intitulada A
mesmo tempo que se implanta a sociedade industrial. A figura do índio Empiria do Inconsciente, ainda nãc traduzida para e, português. Outro livro
e do negro também aparece nesse período, na pintura da mesma Tarsila e interessantíssim) seu, seguindo os paralelos que Jung costumav:1 fazer
seus contemporâneos, como Lasar Segai., na obra de Mário de Andrade com o mundo antigo, é A Incubação na Antiguidade e a Moderna .Psicote-
e na música de Villa-Lobos, diferentemente de sua apari~:ão na obra dos rapia. Alguém já leu esse livro? Nele o autor estuda o arquétipo grego da
poetas e romancistas românticos do Indigenismo no século XIX ou nas psicoterapia, suas práticas e rituais em Epidauro, centro de peregri flações
óperas de Carlos Gome1:. Para mim, isso significa o seguinte: é o momen- ao qual acorriam os enfermos, b.1cos e aflitos de todas as partes da atual
to em que a psique brasileira começa a buscar sua raiz, estabelecendo uma Europa em busca dos poderes curativos do dern; Asclépios (Esculápio
conexão com o arquétipo do Anthropos, termo cunhado por Jung para para os romanos), traçando paralelos formais e de sentido com a prática
referir-se à configuração humana nua e crua, desprovida çe roupagens de moderna da psicoterapia, como que dizendo que não há nada de tã,) nDvt)
época. Nos momentos de crises e redefinições de paradigmas culturais, o assim sob o sol. Lápides de pedra em que eram gravados os sonhm tidt l :-.
que jaz no fundo da águ:1 momentaneamente emerge, e a arte é o melhor e interpretados durante o período de incubação do enfermo e$tão att"·
registro desse fenômeno ainda tão pouco compreendido. hoje preservadas em museus e o :rntor comenta alguns. O pequen o kit P
Jung abriu uma série de linhas a serem percorridas em busca de no qual eram acomodados os peregrinos para dormir e sonhar clu11i :t\ ·;1
novos conhecimentos e era como se deixasse claro que o objetivo não -se kliné, de onde derivam tanto a palavra reclinar como clínica. Al )!;1tl·1 11
i:em uma difi.cuBade que não consegue resolver. dirige- se an u ti l·i:1111i- ,
24 . O Hcmem e seus Símbolos, 7. ed., concepção e org. Carl G.Jung, Rio de Janeiro, Nova que lhe pergunta se teve algum ~onho: ora, esse t: o fondanH·nll 1 11 1t1 )'." ,
Fromeira. :lfquetípico, da moderna terapia junguiana, que Jung considn:l\':\ li, , , ln1 .,
25 Contemporaneamente, Rafael Lopcz-Pedra·la fez uma inspirada interpretação da
.
pintl ra de Anselm Kiefe: em seu livro La Ps1cofogía de Anselm Kifer, em que aborda de modos histór lcos de se cuidar da psique.
a expressão da sombra coletiva expressa nas cbras do artista.

II OII E llTO C./\MBIN [ \ \ t)/ 1 ti 1 1 -. 11 11


Outra cois:1 que Meier fez foi montar um laboratório de pe:;quisa do cobertas de Eugen Bleuler e Jung, nus l·omo di:-dpL ln deste últim o
sono, na já mencionada Clínica de Zurichberg, lá pelo início dos anos privilegiava as expres~ões do inconsci .: 11 tc do pac ie nte para ter acesso
1950, onde se faziam experiências com voluntários que aceitavam o des- a conflitos para este irreconciliáveis, p;1ra os q11:1Í Hprol'l1rava ap resenta1
conforto de dormir numa cama de laboratório com eletrodm: afixados um pc nto médio de superação num mnrn c 11tn psin11<'1).! i1 ·11 es pecial, qu e
em determinados pontos do crânio para posterior exame do , gráficos era m,~stre em detectar, quando a estrc1tura id ca cior1al e ~1111)l·ional e n -
exibidos pelo eletroencefalograma, com o propósito de pesquisar a rijecida pode tornar-Ee permeável à fmção tnt1ts(1 ·11d, ·11/i', nltt ro tcrm c
variação de c,ndas cerebrais durante o sono e a detecção do .n omento cunhado por Jung pa ra aludir ao "terceiro não dad, i". 011 :-l·j a, a supe -
exato do sonho e da onda qu,~ lhe correspondia26 • Hoje já se sabe muito ração das oposições dicotômicas pelo aparecimc 11to 11 ,1 n n11,1·it· rn·i,t de
mais sobre o período do sono denominado REM (Rapid Eye Movement), uma terceira posição. Fierz foi um grande pesq ui sad,ir d:1 af'it11de, d :.
mas na época essa era uma pesquisa orgânic:1 de ponta estimulada por eficácia, da esperteza mercurial e da criatividade do tn: q w111 :1, ll"11d< 0

Jung, que nu:.1ca abandonou :a. conexão psicofüica para entender a psique, deixado pérolas escritas em um livro chamado Priq111111 ri,1.J1111,i:, 11i,111r1
muito embora sua inclinação fosse para o estudo do primein termo, a . M arie-Louise von Franz herdou ele Jung os mara vi lho:-us , :1 1111'0·;
psique. Material proveniente: dessa época pioneira foi utilizado durante dos contos de fadas, ela alquimia, da üncronicidade, do t·st 11d11 d <, 1 ·, 11 ·
minha formação, e lembro-me de nossa surpresa ao aprender que, ao tínuo espaço-tempo e: dos sonhos preparatórios da m ori-c. ( ) p ri , 1 li' i" >
despertar, cinco ou seis períodos de sonho, com duração mé:lia de três campo foi aberto quando Jung analis ou o conto "O Espírito 11t\ ·.;n 11,1
minutos cada um, são muitas \;CZCS sintetizados num único relato con- Garn.fa" 27, o único analisado de maneira exaustiva em sua ob ra f'll 1, 1,
tínuo, muitas vezes percebido pelo narrador do sonho como mudança cada ~várias outras interpretações suas, constantes de seus st:rni n:írit) ,,
abrupta de cena. Lembro-me também como era interessante comparar permrnecem inéditas). Marie-Louise von Franz foi su a grande <;xc.: gc t 1
um relato feito pelo sonhador quando dei:perto para esse fim assim e continuadora nessa:, várias áreas de pesquisa. Seus livros sobre a Iq ui
que termin:1va o período RI:M, e suas recore.ações da mesma sequência mia tornam mais compreensíveis as ideias que Jung desenvolveu rn 1
onírica algumas horas depois, com tantas p::rdas de detalhe, precisão e seus próprios escritos sobre o assunto , seja devido a urn enorme talcnt · )
amálgama de imagens. didático, seja porque de, quando publicou Psicologia e Alquimia, em 1tJ4 4-,
Na mesma clínica, e contemporaneam,::nte ao trabalho de Meier, procurava arduamente uma linguagem científica para tratar de assuntos
Karl Heinrich Fierz, psiqi.:,iatra e analista, assumiu a pesquisa da psi- eminentemente simbólicos e não racionais.Jung descobriu que a meti-
coterapia aplicada à clínica psiquiátrica, à intersecção entre o analista fora dquímica, toda da baseada na imaginação, era fundamentalmente
e o psiqui:ltra, mostrando que as duas atitudes podem e devem ser uma projeção de processos psíquicos inconscientes sobre as reaçõe: s
compatíveis. Fierz defendi:1 a ideia de que um analista precisa entender da matéria submetida a operações protoquímicas: ele discerniu psique
profundamente de psicopatologia, perceber como e quando ela se ma- onde só se viam boba,5ens supersticioi:as (bem de acordo com as últimas
nifesta no consultório ou na clínica e que tipo de atitude o terapeuta palavras de Freud a ele dirigidas, conforme mencionado anteriormeme
deve assumir. Entendia a ,::squizofrenia, por exemplo, segundo as des- de que naufragariam. lama negra do ocultismo). A es~a autora devemos'
hoje a clara compreensão de que o trabalho realizado pelos alquimistas
26. A onda ,:crebral Alpba corre,;ponde ao estado m ental do sonho. Ver David Foulkes,
'llH· i'Jychology ofSleep, New York, Charles Scribner's Sons, 1966, p. 17. 27. C f. "O Espírito de M ercúrio", Estudos A/químicos, vol. xm das Obras Compll'lus.

HOBl-:RTO G/\MIIINI
/\ VOZ E O TEMPO
~7
- labora1:órios, fornos~
metafóricos, em latim, como So/utio, Coagulatío, Putrifactío etc., q ue
flexão e1n que procur<l. t,1t eote uma autorre-
··
pesso al ou esp1ntual. \,.~'\\(:),.<tas à parte - era bas1c· ~fls Jesenvo1v1mento
. a meu ver rotulam e literalizam processos psíquicos inconsciente , que
melhor seria nomear menos e entender mais, segundo o próprio ,~stilo
antes de ser afetada p~ ~\ 1:1 gue hoje denominarrl' 00 s últimos anos
de uma linguagem proveniente da psique em sua condição de matéri a
um elo perdido, do 9lt llJ l:lbra-prima, e;truturad~u t1íl localização de
nuidade entre a alqui~~l /~<ll
de Parkinson, consi stie J1lantinha a conti-
natural - cuidado, portanto, com a linguagem do Ego quando fala de
um domínio que não é o seu.
na Idade Média. Essa. l,_~ti.g sempre suspeitara, qvintigo, e a praticada
Von Franz é a grande continuadora da obra de Jung, não só pefo que
a obscuras biblioteca.~ ~\:~<l.tilbe, originada no Egit0 es esforços e visitas
ços de seu colaboradCl ~ ~ ~%erta demandou enord: (graças aos esfor- produziu, mas porque manteve vivo o espírito de :)esquisa e o laborioso
, ~- 'tt . ,JJº exame de fontes primárias muita:; vezes indecifráveis. Há dois no tórios
árabe do seculo IX de ~ %..ivos no Oni:nte Me izadº ,) manuscrito
Hall Ar-Rumuz, trac\'\ ~C) Abt), até que foi loc~{]roiJl, denominado estudos seus sobre áreas vizinhas à Física e à Matemática, sem jamais
resisto à tentação de ~ltjl:ltia de Muhammad ibfl de Enigmas 2 8 • Não perder o ponto de vista psicológico e as intersecç ões ocorridas na cons-
da profundidade de ~ ~lt l:l ~orno O Escl1recimerd a pequena amostra
6 ciência. Um deles é Number ana' Time, em que <.colheu uma hipótese
obscuros de épocas p \~(traduzo do inglês) u.-f1 r os testemunhos de Jung de que valeria a pena é:studar os números como arquétipos
. ~ ~ ve dementares da consciência e o tempo como uma categoria condicio-
tentaram evolmr par<l. ~itl <tpacidade de compree1'poje, seres humanos
'l,. tja8 em que, .corno aindll-,i nante de seu modo de processar informações. Sobre interpretação de
Penso ser mesmo pi) --~ mitos e contos de fada, Marie-Louise von Franz escreveu vários livros·
f:azen do experimentos ~ h' l\,
. do ego. Diz von Frafl e d e 10rma
1: alguma '
tive o privilégio de participar de seu último seminário sobre o assunto
trabalhando direta~eti.~\~l que nosso autor não esÓ~:s rrieditação de yoga,
como um corpo sutil ti_ ~ l~"s mas sim urna espécie nª época encarada
no Instituto C.G. Jung, em que , sem uma anotação diante dos olhos,
. • . . . ºfi ~ is v' ,ca, . liscorreu durante horas, sem perder o fio, sobre um intrincado conto
1
1slam1co isso s1g01 ca \\ l ()bt a vida endossomát:1 e)C!O do misticismo
. bli Jt. ti_ e su 00 t
romeno intitulado ''A Gata" (enoneamente traduzido como "O Gato"
que devia ser su matj_ ._.~ t~tior do corpo. [... ] No '\ta era seu Eros, [ .. .]
, 29 ~ ~ • ,.1l d .
h uman.L . ~ "- tuatéria-prima do alquw· 5 operan o na psique n a edição brasileira). Sobre sonhos, escreveu O Caminho dos Sonhos, em
O analista inglês ~ tti. Espírito criativo de pev ·:Juc comenta sonhos narrados e filmados por pessoas na rua, e Os Sonhos
. •1 "' Morte, onde f;ão analisados sonhos relatados a terceiros por pessoas
Jung p :ira uma comJJ ~\ iu a trilha aberta por
ções com a homeop<\~~~ <ltcIEdinger também se,&~i, fa:iendo aproxima ffn seus últimm, dias de vida, ou durante episódios de morte clínica,
de cad:1 etapa isolad, \'\. ~Silo moderna é.a alqui~\çãO própria a parti 1· lt sen~olven~o a hipótese, tambc!m aventada por Jung mas não pesqui-
contribuiç~o, ~ast~n.t q<l. ~ tentand~ ~ma conce1~ 0 ffleu _entender, sua 'i:ttfa sistematicamente, de que a última tarefa dos sonhos é nos preparar
certa tendencia re1~ ~ tj_?bra alqu1m1ca 3º. Segtill ,ero estlmulado um; 1 11•1ra .ª ~orte - de fato, segundo e, material indica , para um certo tipo d e
\t
lstinta da de von Fran:i, õeS clínicas termo :, UHll'tnm_dade da energia psíquica após seu desligamento do corpo. Tive
tj~ta de se aplicar a situ1ç º nportunidade dt traduzir a ambos e os considero fundamentais para u

28. 7he ?Iearin~ efEnig~ l1'11halho junguiano com sonhos. Sobre os sonhos da Antiguidade .:la fn
Mane-Lowse
. von Fr ~ ~ t_ • ai Comment:a r: 11, p, , ,
1.n/ogtC !l ma brilhante e erudita interpretação (seu livro chama-se Drertn 11" ) dm
29 · Op. ctt,, p. 66.
. A
1\ .L p-,Jf''" gc
~ 'fisturical Jntroduct:'on and '-'JJllld, t9 ,'·
30 . Ver seu 1
1vro nato111i · ~ , ul E' IS . ef ~i'1 1tlios registrac.os de personagens do calibre de Sócrates, 'I ,·m íi.t u 1 li-·.•
· rt clição partJc ar. .gg w1tz .
,; 1~dro!c"mp1r1. r\1,rh,il, Mónica: mãe de Santo Agostinho, da mãe d e Sao l ) , i 11 1i, w.•,,
_s8 IH)JlEIITO CAMt <1 _ . 1/il '
tt 1\;qu,'. OSimbofisn·o Afrpd1111t'tJ
1~ /\ V il :/ 1 li 1 1 1\ 11 ' 11 ', 'I
1
e de René Descartes, sempre localizando os personagens no c?ntexto Janet, William James e Théodorc J, lourri oy; rn liriu de s ikn c io se pulcra l
histórico de sua mentalidade. E seguindo o mestre, também deixou a longa e íntima relação de Jung m m ' l i )l]i W o ltl : ~li a c x- anali sa nda ,
tarefas para os que com eh estudaram ou fizeram análise, muitos dos di:;cípula e amante, analogamente;\ 0111i s,;i , , do 1" ,I rl' it () ví 11 cu lo e 1trc
quais hoje reunidos num centro de estud<, e formação, na Suíça, que o n estre e Sabine Spielrein, sua p acil'lll l' d .t l' l" 'l I d 11 11 11-. pi ral B11rg-
leva seu nome e é uma alternativa à formação tradicional no Instituto hólzli e em seguida sua amante, in spir;HIOJ .1 d :1 1 n 11 , •· (', ,ln d, · rf/J Í lll a
de Zuriqu,~ (onde aliás há atualmente doü;, devido a uma séria dissen- (a1;sim como em seguida viria a phntar 11 :1 111 ,·111 <· ,11· 1:, ,.1,d .1 11 ,H; :t•> de
são). Duaf longas pesquisas sobre sonhos de mulheres grávidas foram 7h2natos ou pulsãc, de morte), sem no enta111 " l n , 1•1 r l11d,, <, 1111·11·,· id o
programadas; a primeira, coordenada por Regina Abt, procura indícios cr,~dito por suas i novadoras contribuiçõcs 1'. A1 1i ,-l.1 l.il k 1,111 rl w11 I'"
fornecidos pelo próprio inconsciente sobre o mistério da origem da vida blicou um belo livro, Word and l mage, ofercct·1Hl11 1111 1.1 ,·1•,,1<> 1•.1 r. il ,l.1
(Dream Chi/d - Creation a.'1d N ew Life in Dreams ofPregna nt Women) e vida e da obra de Jung através de bem escoU1ido ~ t'\11·11,,•, , , 1,· f " ''
a segunda, ainda em andamento, focaliza o outro polo, o destino final raras, especialmen te fac-símiles d e p áginas m11 l·,1 a,,, ,... , 1•. t,1. ,I, ,,,
da existência. diírios de Jung, onde este ano tava e desenhava seu ~ ~11 1il 1<>', ,. , , , ,, , , ,.
A Barbara Hannah coube - ou talvez Jung tenha diretamente lhe famosos Livro Preto e Livro Verme lho-3 2 • Ela tam b(- 111 1·-., rc ·\ 1·11 •, d , , "
sugerido -- dar continuid,.de às pesquisas com o processo por ele cria- tema da morte nu.m livro em conjunto com Mari c - l ,011i ·,c , , ,,, 1 , .11 >, ,
do e batizado de "imaginação ativa", que oarece ter sido a m enina dos
Liliane Frey-Rohn intitulado A lv.Torte à Luz da PJirolox i11, :d rn 1 , 1, 1111 ,
olhos do mestre, que mui-:o a praticava como meio de tomar objetivos
peculiar estudo p~icológico sobre visões de espírit os e a l111:i•, d,, 1111 1,. ,
e mesmo p ersonalizados certos conteúdos do inconsciente, estimulando
mundo, intitulado Apparitions. Jung se interessou muito 111 ,r pvr1 1· 111, . ,, ,
a formaç ào de símbolos e permitindo ao ego um confronto ativo com
extrassensorial, manteve uma correspondê ncia o"Jjetiva e i1,1,·l, ·, 111 .il
outros núcleos da psique que o influenciam. O livro da Barbara Hannah
mente audaciosa com J. B. Rhine, controverso pe1:quisad or anH·, i, :11 1<,
é o primeiro a tratar do assunto e tem por título Active I magination -
d2. paranormalidade e telepatia. Qyando Jung se ir1teressava por :1!.~111 11
As Developed by C. G.JunJ~ antes dele, só havia os comentários de Jung
assunto, não havia preconceito que o d etivesse, indo semp re atr:í~ d<,
sobre os :produtos da im~tginação ativa e das pinturas da paciente que
que lhe pedia sua enorme curiosidade. E ssa é uma das áreas abe rta:, j H>t
lhe forneceu material para seus Visions ,)eminar, ainda inéditos entre
Jung que encolheu; ninguém, que ;e saiba, teve a coragem ou a vn n tad, ·
nós. Marie-Louise von Franz também aborda o tema em ~euA/chemica!
de retomar esse afsunto, muito embora possa no futuro vir a ser ITco 11
Imagination. O livro de H annah, seguindo as pegadas de Jung, apresenta
siderado em decorrência de descobertas da ciência ''séria", especialm e nte
e analisa material de pa:ientes da autora. Barbara Har.nah também
a neurociência. Será então precis o novamente reconhecer o vang u ar -
escreveu uma emocionante biografia de Jung.
dismo de Jung, p•)r mais denegrido que possa te r sido em sua ép oca,
Aniela Jaffé editou a :mtobiografia de Jung. Hoje, depois de conclu-
certamente para seu grande desg osto e sentimento de incompree nsão.
dentes pesquisas feitas pelo historiador da Psicologia Analítica Sonu
Shamda:;ani sobre os trechos originais de Jung e as várias interferências
dessa aurora, revelou-se que ela tanto expandiu fantasiosamente quanto Jr. Seus escritos, de importância histórica inegável continu am em grande p ·t · 1·
ate, hOJe,
• ' . . a1 <.: 111 n 11, is
omitiu fatos cruciais da vida dele.Jaffé omitiu, como já mencionado, a
.12 Este último, com comentários de S011u Shamdas·in·1 c0 1· puhl ·,c·td 1·
infiuênc la sobre o pensamento de Jung exercido pelas ic.eias de Pierre _ . • , , 11 , o, cm e< ,.,., o /,1,
-J1111tle, pela Ed1tort Vozes em 2oro. ·
fi o l!C>BF.l!'J'O GAMBINJ

A IO í'EOTF l\ 11 ' 0 l, 1
Liliane Frey-Rohn, qJe era filósofa antes de tornar-se ~nalista, estu- Edward Edinger publicou um importante trabalho, Ego e Ar7uét1JX,,
dou de modo sistemático a relação teórica entre conceitos/equivalentes, lindamente ilustrado, como aliás parece ser uma predileção dos junguia
paralelos ou antagônico:, no pensamento dos dois grandes mestres em nos, em que de talha hipóteses formuladas déca:ias antes por J ung, no
seu livro From Freud to Jung. Por exemplo, pondera como o conceito volume VII de sua Obra Coligida' 3, onde este aborda a relação entre! o ego
de trauma no primeiro ::>cupa o lugar de complexo no segundo, libido e o inconsciente. Esther Harding, americana, concentrou-se na pskologia
para urr.. e energia psíquica para o outro, método causal e hermenêutico, feminina, sendo clássico seu livro Womans Mysteril-s. Erich Neumann, com
inconsCiente pessoal e inconsciente coletivo, sonhos cono indicadores quem Jung nerr.. sempre concordava, publicou dois importantes estudos,
de desejos reprimidos ou como manifestações do inconsciente, entre a História das O rigens da Consciência e A Grande l -1ãe, além de um ensaio
outros pares contrastantes de ideias. Seu trabalho não esgota o estudo interpretativo do mito de Eros e Psique, que contrasta com outro, escri to
crítico e comparado de ambas as teorias, mas foi o primeiro passo. Essa a partir do prisma da psicologia masculina, por l\-1arie-Louise von Franz,
área, na verdade, não progrediu muito. entitulado O Asno de Ouro. Neumann publicou também A Criança, im-
Outra das discípulas de Jung da primeira geração, Linda Fierz-David, portante estudo sobre as estapas do desenvolvimento da psicologia i.nfantil.
praticamente desconhecida dos leitores brasileiros, ficou : : om o gosto de
Jung pela Antiguidade. É de sua autoria um trabalho imerpretativo das Emp1'ria x Teoria
pintura5 murais da Vila dos Mistérios, t: m Pompeia (int Ltulado Womens
Dionysicm Initiation: Vi/la of the Mysteri ~s Frescoes), especialmente os de A primeira geração junguiana produziu muito, como se vê, seguindo as
uma sala onde é representado um ritual de iniciação feminina sobre o qual várias áreas desbravadas e as hip óteses que Jung :tventava, tendo-lhe evi-
não se :,abe praticamente nada, pois não se tem conhecimento de fontes dentemente sido impossível de:;envolver por completo tudo o que seu
escrita~ sobre os chamados mistérios femininos. O tema da série de pin- pensamento intuitivo concebia. Jung foi um pai profícuo, que deixou
turas é a. gradual transformação de uma menina em matrona, processo em uma rica herança para seus seguidores, estimulando em todos capacida-
que uma figura masculina alada, interpretada pela autora como personi- des criativas muitas vezes por e les próprios insuspeitadas. Mas o cu sto
ficação do animus, depois de fustigá-la com um chicote a conduz para a do discipulado era caro. Diferentemente de Freud,Jung não controlava
maturidade. A ideia do trabalho é documentar historicamente o processo nem censurava essa leva de produção teórica e investigativa, bastand u
de individuação e, durante parte dele, o difícil relacionamento da mulher lembrar que en : : orajava cada qual a seguir a trilha de suas inclin aç<>cs .
com o animus, fortalecendo a ideia de que Jung, ao invés de ser arbitrário Creio que JÜng era movido por um forte espírito de liberdade de p t: 11
/

ou fan-:asioso ao descrever figuras do in,:onsciente como animus e anima, sarnento que o fazia temer tornar-se refém de seus próprios pupil o:-,,
estava na verdade trazendo de volta à consciência algo que era do conhe-· que na tentativa de sistematizarem o que ele mesmo havia deixado t ·111
cimento dos gregos e romanos, pelo menos em termos míticos e rituais. aberto, acabassem por prendê-lo numa gaiola mtntal que ele abo1ni11a v:1.
Jolande Jacoby foi talvez a discípufa. mais afeita a sistematizar a psi-
cologia do mestre, dela escrevendo um resumo que nüo foi do inteiro
.B - E não "Obras Completas", como erroneamente é trad uzido "Cnll1 ·c1.-. I \-\ 111 k•, " ""
agrado de Jung. Há um livro seu, porém, que ajuda o estudante a com- "Gesammelte V\.'erke" na edição bra::ileira da Editora V< ,zes. t\ i11t! :1 1wn 11 ,111, ,, 111 11 11
preender melhor certos termos que ài; vezes se confundem - trata-se ditos textos qu ~, quando vierem a públiro, compor:io t:dw ·/ 11i111.1 \'11 1111, ,. ., , 11 , ..
apenas os vinte j:í publicados.
do livro Complexo, Ar5ruétipo e Símbolo.

J<OIIERTO GAMBJNI
\ \ Cl / 1 1 1 1 t " 1 Iº 11 ,.,
É nesse sentido que se deve talvez entender os surpreendentes termos ,:: perceber o que está acontecendo; para isso, devo adotar uma P ::>Stllra
com que se dirige a um ,:orrespondente ,1a Holanda, como veremos um de analista, uma atitude. Então o terapeuta tem que ter uma ati ~ de e
uma teoria.
pouco mais adiante.
A teoria é sem dúvida importante, mas deve ser elaborada a partir
da descoberta de mate:rial empírico nào estudado e n:ío unicamente Atualizar Jung
com rearranjos de conceitos, quando se parte da mesma base de onde
partiram as abstrações iniciais. Nesse segundo caso, o o')jeto de conhe- Para mim, a teoria junguiana me dá mais ou menos aquilo de que
cimento se rarefaz e apenas a nomenclamra se adensa. Se eu cobrir esta preciso para trabalhar, mas não :;,choque ela deva parar por aí, d e jeito
mesa sobre a qual me apóio de objetos estranhos, estará na hora de se nenhum. Ela já está defasada. A obra de Jung ef:tá inteira baseada em
propor uma teoria para compreender e explicar o que é cada um deles, dados científicos dos anos 1920 até os anos 1950. Incorporar a seu pensa-
qual o conjunto que fa2,em e a relação c,ue se estabelece entre as partes me~to, sem descaracterizá-lo, a impressionante massa de conhecimento
e o todo. Mas se não houver nada de novo sobre a me:;a, não é neces- que vem crescendo em proporção geométrica exige um enorme eBforço
sário ficar re-teorizando a própria teoria existente, o que facilmente de síntese e uma certa coordenaç:io de iniciativas. Mas nós analistas nos
descambaria num exercício intelectual estéril. vemos mais como livre-pensadores individualistas do que como times
Há hoje uma tendência no mundo inteiro, em certos círculos que trabalhando em projetos comum para organizar e selecionar conheci-
se autodenominam pós-jung\Jianos, de adotar, por exemplo, conceitos mento. Não é uma crítica: não somos cientistas. Somos terapeut~.s que
de Melanie Klein para uso de terapeutas junguianos, o Se!Jfalso, o Self eventualmente c:riam pensamento.
verdadeiro, o Se!fdo Kohut, o Selfdo Bion, o Selfde algum outro ... Para Durante minha formação, ensinava-se a Antropologia citada nos
mim essas ginásticas teóricas são meno:; produtivas do que, repetindo a hvros de Jung e não o que foi produzido de 1958 em diante, depois de
metáfora, dispor algo novo sobre a mes1 que nos espante e não se saiba Lévy-Bruhl, Marcel Mauss e Sir John Frazer. Na (:poca posterior à deles
dizer ao certo do que Ee trata. O Brasil está repleto de fenômenos hu- ocorreu uma veré.adeira revolução na Antropologia, e no entanto nem o
manos e culturais que mal conseguimos explicar: o acei,so aberto ao in- estruturalismo era mencionado. Atualizar Jung é uma tarefa gigantesca.
consciente coletivo, o transe mediúnico, o êxtase coletivo, o sincretismo Jun~ gostava de História, e a possibilidade de historicizar a psique me é
inusita:lo, por exemplo. Defrontemos-nos com essas nossas realidades; F~tlcularmente cara. Os historiadores preferidos de Jung eram Arnold
aí sim vamos precisar de teoria expandida. Mas a gr:mde prioridade 1oynbee e Jacob Burckhardt, que davam especial atenção ao "esnírito
contiff.1a sendo a pesquisa. A teoria que Jung elaborou, pelo menos das épocas", paralelo ao conceito junguiano de "consciência coL~tiva".
para al_guns, entre os quais me incluo, ainda dá pano para muita manga. l\1~s hoje, se tive~se a pretensão de tornar-me um teórico junguia11o, cu
Teoria é um caminho, um apoio, uma ajuda para se poder andar no ~ena q~e es~d_ar História de novo e tomar conhecimento das ruptura~ t.:
escuro. Como queremos entrar no escuro, precisamos de alguma luz, por m~v~ç~es teonca:;, dos saltos qualitativos da pesquisa contemporúnca, a
mais fraca que seja, para não dar com a cabeça na parede. Então a teoria H1st~na das mentalidades, da vida privada etc. Se alguém SO'l,tllho ".011
é um mapeamento prévio. A teoria me sugere algo possível a respeito scgl.llr atualizar cinquenta anos de conhecimento contcrnporânc,:n 1111111 ,1
de uma pessoa que não conheço ainda. Mas num dado momento vou ,unpla gama de as:mntos, esse alguém será um gênio, e ncs~c ,·ai-; 11 \' 1111 ,11,, 11
ter que deixar aquela teoria de lado e observar o que est:i à minha frente elaborar sua próp:~ia teoria holístic1e ao invés, <l C• ti C,lr
, Cl-i
, •t lll \ :li\\.\q 1ll11g ,
64 :WBERTO GAMBINI
1\ 1/ q / 1 • \ 1 t 1\ 1 1' 11 h
Mas o ponto forte da carta, qu<. devia sn n1ai s r rntl1 ccido e praticado
Jlv.1ultidisciplinaridade do que realmente é, prefiro manter nas prc'>f' ri as 1 •:tl:i vr:1:. do a ttt rn, qu e
Durante os anos de minha formação, ao lado da leitura da vasta obra traduzo do inglês:
publicada em inglês e dos textos todos de :,eus discípulos que mencionei Só me resta esperar e desejar que· ningué 111 :-.,· 1011 w " j1111i•,t11.11 111". N:111 dc-
acima, interessei-me sobremaneira por seus seminários, alguns na oca- frndo doutrina alguma, apenas descrevo fato.:; ,. :q11 c•,.• 111,, , ,·11 ,1•. , , 11 ,, 1·1 H, I)(··,
sião ainda não publicadm, mantidos na forma original transcrita a partir qJe considero dignas de discussão. Critico a psicc) l11g1;1 l1, ·11d1 :111 :1dni d,1 :1M· u
viés e estreiteza, e •)S freudianos devido a um ccrtll c~1111 ''" 1,,_., u 1.. , . ,, , . , 1,1 1in
de anota,;ões estenográficas, e especialmente por sua correi:pondência. O
d,~ intolerância e fanatismo. Não pnclamo uma dll11lrn1.1 1,11 ·.l,·rri 111111.1d:t ,.
que maii: me interessava não eram tanto as cartas trocad~,s entre Freud abomino "seguidores cegos". Deixo :i. todos livn:s p:1r:t lid i111•i11, .. 111 , "· 1.,1, ,~ .1
e Jung, hoje verdadeiros documentos históricos, mas aquelas em que seu modo, uma vez que reivindico esi:a mesma liberdad e p:11 .i 1,1111, '\, , 11 11 11,"
respondia a perguntas de uma variedade enorme de mi1;sivistas, onde completo os fatos cue Freud descreve e o modo como ll:, 1r:11 .1. .l, ·•.d1 'I'" ,, .i ·
muitas vezes era possível detectar germe, de futuros des~nvolvimentos ta.m ao teste da razfo crítica e do senfo comum. Apena:: di scrn cl,, 111, , I" ' .11,J"
teóricos, ideias no nascd.ouro. Eu aprendia muito lendc essas cartas e à interpretação dos mesmos, que Freud propôs de mo,Jo dc-ll 1<H1 ·,11.11·1•l11 11 111 ,
ir.satisfatório. Uma vez que a psique não é apenas pes~oal e dl' l,1,jr·, d, ·~ 1, 1"
uma, em particular, deixou em minha formação uma marca indelével.
nos apoiar na psico logia dos povos primitivos, bem como na hi :-, t1111 .1, l,1 1 ,, 11 1, .
Ela foi escrita em janeiro de 1946 ao Dr. J. H. van der Hoop, a quem para poder explicar a psique, ao me~:mo tempo evitando certo ~ 1•1 1·, ' "' ', ,1 11•,
Jung se dirige como "caro colega". Nela há dois assuntos importantís- rrédicos e biológicos. Um exemplo do método incorreto de FH·11d 1,,.d, •,, ,
simos. O primeiro é a C◄)municação feita por Jung de que vinha tendo encontrado em sua, obras Totem e Tc.:bu ou O Futuro de uma I/11s,w. Ncl.1 ·. '•t 11
muito prazer em trabalhar cm conjunte, com antigos oponentes e que pressupostos doutrinários levaram a conclusões errôneas. Sua uH llºt º ! " , . 1.. .1, ,
problema do incesto é igualmente insatisfatória34 •
juntos haviam fundado um Instituto para o Ensino da Psicoterapia na
universidade de Zuriqu :! . Na ocasião, o rema de discussão do grupo era
a psicologia da transferência e Jung alrde ao espírito positivo do rela- Essa é a postura de Jung, e par:1 dar continuidade a seu mod o ( k 1·11
cionamento entre todos.Jung propunha uma colaboração entre as várias carar o fenômeno psíquico é preciso de colaboraçilo, estudo, convcrgt' ll
escolas (do grupo dirigente participavam Gustav Bally e Hans Ban- eia de profissionais, diálogo e intercâmbio de ideiaf: e descobertas. Mas .i
ziger, da Sociedade Suiça de Psicanáfüe, ao lado de Kurt Binswanger boa troca é a que tem um vetor, pois não se pode trocar tudo. C om um
e Medard Boss, fundadores da psicologia existencial, entre outros), füico quântico, por exemplo, seria interessante d:scutir até que ponto
com propósito de proporcionar treinamento a médicos e psicólogos ei,paço e tempo são categorias condicionantes ou percepções rehtiva-
O
rnente ilusórias da consciência. C aso ele entre no debate, o que teremos
educacionais, ao lado da criação de clínicas psicoterapêuticas na uni-
1
p:ua trocar? Ele poderia explicar as descobertas d a física quântica e eu
1
versidade para atendimento a seus alunos. Devido à oposição de outr~s
:1
departm1entos da universidade, o grupo funcionou desde sua ~~daçao,
lr.e relataria um sonho. Por exemplo: na semana passada um pac iente
i
disse o seguinte: "Eu tive um sonho que me deix,)u muito perturbado,
em .:,8, até sua dissolução em 1948. Esse fato corr_iprnva a vis~º- mul-·
19 porque eu desmontava o meu relógio e depois não conseguia mais
tidisciplinar e integradora defendida por Jung, muito ao contrano_ do
tT.ontá-lo do jeito que era antes, pois os dois ponteiros se juntavam um
separatismo rebelde que erroneamente se lhe tem atribuído em muitos
ensaios históricos incompletamente fundamentados.
3•1· C:. G.Jung Letters, Princeton, Princeton University Press, 1073, vol. 1, pp. 404 - ,1c,/,_

A v oz E O 'l"E~11'C>

66 ROBERTO GAMBINI
sobre o outro. Não viravam um ponteiro :;ó; não, ambos S·~ juntavam e ideia de que a Pi:icologiaJunguiana estabelece u'.Il estilo bastant,~ dife -
um deles ficava de pé, 0 que impedia que eu fechasse o rdógio com a renciado de pensar e trabalhar que dá conta dos desafios que en::renta.
tampa''. Comentei que ne 1:se caso estávamos diante da terceira dimensão, Considero importante o que os outros pensaram, mas não ache bom
porque com dois ponteiros convencion:tlmente disposto:; estamos no rnlada mista de ideias, porque ao fim e ao cabo j:í não se tem goi;to de
campo da bidimensionalidade, com tempo e espaço tais quais os conhe- nada, o tudo vira nenhum. Prefirn um bom psica:1.alista ortodoxo a um
cemos. N.[as no sonho surge uma dimensão adicional: esse :relógio é uma que sincretize escolas, porque do primeiro posso conhecer as categorias
impossibilidade técnica, mas é um símbolo. Para este paciente, que não com que reflete. Mas se um psicanalista freudiano começar a fa.ar de
é um cientista, o que esse sonho sugere é que é possível nesse momento arquétipo,já não sei bem o que tem em mente. Ou se é uma coi:,a, ou
haver uma alteração de certas categorias de sua consciência, de sua visão outra. A diferença deve ser reconhecida, respeitada e mantida enquanto
da realidade. Nessa altura do debate, seria possível propor ao físico a ttl. Há diferenças metodológicas? Teóricas? Há uma diferença d e pos-
ideia de que o inconsciente, servindo-se ele sua linguagem própria, está t.Ira -terapêutica? Há: que sejam reconhecidas. Carregamos todos nós
trabalhando questões próximas das que interessam à física quântica, que essas diferenças porque somos todos herdeiros do difícil e dramático
por seu lado também utiliza a linguagem que lhe é peculiar. E quando rompimento entre Jung e Freud.
a ele dig::> "sonho", estou di'LcnJo que se trata da mesma mente que ele, Seria absurdo se houvesse ape nas uma teoria para explicar a p:,ique;
eu ou O paciente temos ,.: usamos, apenas funcionando em outra onda essa pretensa teoria seria falsa. É :.mpossível que uma teoria só dê conta
cerebral. onde "do inconsciente'', ou seja, de uma reflexão ainda não da psique, devido à sua enorme multiplicidade de dimensões e facetas.
assimilada, brotam d e111cntos q11c podem ser integrados à discussão Jung a considerava o objeto mais complexo de todos, tão difícil de co-
intelectual do tema. De minha posição no diálogo, baseado em Jung, eu nhecer como~ª vastidão do cosmos ou a ínfima dimensão da partícula
poderia lembrar-lhe que em certos mitos e contos de fada há situações subatômica. E portanto absolutamente necessário que haja teoria:, con-
fantásticas em que o protagonista atrave:;sa uma porta, 0 .1 uma fenda, e
1
trastantes e que ~e saiba claramente quais são suas diferenças, porque
percebe que está cem ar.os mais velho, ou toda a aldeia ador~eceu p~~ cada uma poderá enfocar apenas um aspecto e temos que aceitar nossa
cem anos e quando ele desperta o temp:> não passou; ou entao o hero1 relatividade e nossa limitação. É: uma tarefa emocionalmente difíc il,
senta-se no tapete mági -:o e sai voando, livre do condicic,namento espa- porque nossa "sombra científica" acaba arrogantemente querendo ser
cial e da gravidade. Não estariam Mythos e Logos em certas conjunturas capaz de ver~ todo, mas a verdade é que nunca se vê o todo qu an do
históricas procurando c,::>mpreender as mesmas coisas? se trata da psique: nunca se vê o ~:er humano por inteiro, nunca se tc1 11
consciência total das variáveis que configuram o momento em que se d:í
0 ato de observação, há sempre urna fatia imensa de desconhecimc u, ,
1
Identidade ]unguiana
~'le é o que se chama de inconsciente. O que se pode fazer t a 1•l' l fü '
Ser jur,guiano não significa ser devot,::,, nem defensor acrítico, nem falar .daquilo
_ que se vê , ac e1· t an d o essa c1rcunstancia
· , · como parlt· J,1
fechado a outras linhas, mas, por outro lado, também não implica condiçao humana., em que não é possível ter-se consci(•nria dt" t 11 dn. l•'
abandc,nar certas ideia:: apenas por serem difíceis de compreender, ou º!na utopia inflada e perigosa ter-se a pretensão de csgot:1r o j 11, .,ti .•
por se achar que a psi.:ologia junguiana por si só não seja suficiente ciente, ou de dar conta do real como um todo. ( > ohjt·ti\'o ,1. 1, 1 1• 1.. ,. , ,
para embasar uma identidade intelectual ou terapêutica. Defendo a rn as pensar de uma maneira tal, Cf Ltc se p~)ss ;i rcn 11tlin n ;1 1111 •• , 1•11 1 _1 ,1,,

68 J(OBERTO GAMBJNI 1\ \' t l / 1 P 1 1 :\ l 1'1 ,


desconhecido. Falamos do que vemos e Gilamos sobre o que não seco- Jung nos deu mostras do que um ego laboriow e assim conectado
nhece, m2.s sabendo que está aí. "Invocadc ou não, o desconhecido está com uma base mais profunda é capaz de produzir: uma obra exi-ensa ,
presente", diria eu parafraseando uma conhecida frase de Jung inscrita q.1e quando .finalmente publicada em sua integridade (finalmente obra
no frontispício de pedra que encima a porta de entrada de sua casa em "completa" e não mais "coligida", como ainda é) terá talvez trinta volu -
Küsnacht, à beira do lago de Zurique (no original, Voca/us atque non mes. O ego de Jung era inspirado e sempre tinha algo a fazer (em bora
relaxasse lendo romances policiais ou jogando paciéncia). Por que, como
vocatus Deus aderit).
Com uma postura des:;as se cresce; enquanto a psicologia não puder pode ser? Tudo indica que é porque aquela porti nha, de onde bo ta a
adotá-la, assemelhar-se-á a uma g,u:ota pretensiosa, como o adolescente inspiração que vem do inconsciente, estava sempre aberta. Além disso,
que faz pronunciamentos peremptórios sem saber direito de que está fa- ele descobriu um modo particular de focar a imaginação naquela figura
lando. Efsas pretensões d e estar dando c<nta do todo são ingenuamente interior que batizou de anima, com quem travava diálogos e discus-
séíes - mas não revelou a ninguém os segredos dessa prática - tendo-a
Jt
juvenis. preciso reconhecer n não conhecido para avan çar.
Diziam os que com ele conviveram que era impressionante conversar concebido como mediatriz entre o inconsciente e o consciente. É como
com o velho Jung, dado o grau de conexio inconsciente com o interlo- ei,tar diante da entrada de uma caverna: lá começ:1 o inconsciente e no
cutor que se estabelecia nns contatos pessoais. Nos seus últimos anos liniar da porta Jung via a .figura de uma mulher. Ela tem portanto a
possibilidade de trafegar entre os dois mundos. As vezes, usando cria-
de vida •- ouvi de alguérn que cst"eva pr<sente - foi-lhe ,)ferecida uma
tivamente sua imaginação,Jung Die perguntava o que via do lado de lá
festa em seu jardim, a q 1.1c n>rnparcccu 11m grande número de pessoas
e ela lhe "respondia", o que por ele era sentido como um insight que o
de seu drculo. Uma <la!, homenagens e,-a o plantio de uma árvore. O
levava a alguma nova ideia, percepção ou intuiçãc,.
jardinci··o, de quem aliá:, Jung sempre gostava de ouvir a opinião sobr~
os mais sérios assuntos, ton.1.ou a pá e começou a abrir uma cova. O si-
A relação de Jung com as mulheres sempre foi constante e intensa;
e1as o rodeavam e o inspiravam. l\l[uitas testemunharam que no contato
lêncio geral pesava.Jung quebrou-o em alta voz, como q~e c~ptan~o a
com ele sentiram sua criatividade liberada, e de fato grande número
fantasia que a todos contaminava: "Parem de pensar que isso e a mmha
ddas produziu tn.balhos de valor, como já mencionado. Sendo a a:'tima
covà'. Ele ainda era a á rvore arraigada, e não a cova sepulcral.
uma força arquetípica que cria todo um sistema de expectativas do hcmem
Ouvi O testemunho de pessoas que únda procuravam Jung, em sua
cem respeito à mul'1er, analogamente Jung esperava, e recebia, as semen -
idade avançada, para sessões de análise. O paciente sentava-se ~ ~em
tes que elas plantavam em sua mente.Jung consid~rava que o prin : ípi o
preâmbulos Jung começava a falar algo aparentemente aleatono e
feminino, em tudo oposto ao fálico, com seu pod~r regenerador{. doa-
depois de algum temp=>, no decorrer de sua fala, acabava formulando
dor de vida, era o grande valor reprimido da cult1ra, posição est,. qlll:
exatarr..ente a solução do problema que a pessoa estava esperando para
o levou a confrontar certos dogmas cristãos que degradavam a m~itú ia
relatar. Mas não há ni,so nada de extraordinário, uma vez que ~ pro-
e o corpo, criando uma das cisõe~ responsáveis pela unilateralidade 1.k
osta que ele fez e pôs ,~m prática era exatamente aproximar consciente
nosso tempo.
~ inconsciente, que ele chamava de processo de individuação. Seu _e~o,
maduro e vigoroso, havia se transformado num instrumento de prec1sao ,
m bom trabalhador de uma causa, ur:1 ego que dava passagem para o
;eif, expressava-o e agia conforme a inspiração que este infundia. .,, ,. , , , , •• , r \\ t 1·,,
ROBERTO GAMBINI
Um Campo Fértil

NA ÚLTIMA VEZ, o que acabou tomando corpo foi um co111c ·11t.11111


:neu sobre as várias áreas que Jung desbravou no decorrer dt -.,·11 1, ,1
balho, as quais, segundo meu m ,:) do de ver, não têm sido dcvjd:1 t11 c11tl'
exploradas, disso resultando um lamentável abandono de um riw fc~Í\T
de hipóteses de pesquisa. Há portanto ainda muito trabalho de atuali
zação de ideias a ser feito, cotejando-se o conjunto dos conhecimc11tos
a que ele teve acesso no período compreendido entre os anos 19~:o e os
anos 1950 com os avanços das várias disciplinas com as quais dialogou.
Jung dizia a cada pessoa que fazia análise com ele e pretendia tornar-se
terapeuta que descobrisse sua própria verdade, seus alicerces, e que exer-
cesse o ofício a partir de seus p róprios fundamentos e convicções. De
modo que há muitas maneiras de se fazer um trabalho junguiano. Creio
porém que há ideias claras por ele traçadas que podem ser aproveita
das da maneira mesma como ele as formulou. Algumas exigem muito
estudo e reflex~.o, sendo sua assimilação lenta e trabalhosa. Segundo
entendo, e assim fui formado, a :Psicologia Analítica não é padronizatla;

1\ VOZ 1': O TFM 1•0 n


n ão há urna atitude padrão que um terapeuta deva aprender ou absorver, partir de uma p erspectiva psicanalítica. /\rl10 i11 1port a11te mantn isso
passando cm seguida a exercer o oficio de modo programado. Isso não é em mente para sabermos o que se cst;í 1;1'1L· t1d () t· 1·<1111 '1;1 1-,e cm qu ai s
nem bom, nem mau, de um lado tem vantagens, de outro é.esvantagens. pressupostos se trabalha.Jung d izia qu<· alµ;1111 ~i · ()11'111:-. n-rla111 c1 te 1-ao
A inevitável desvantagem é sentir-se às vezes perdido, sem clareza a realização de desejos, mas não todos. Ele n·,·111 il wt 1:1q1w :d_i_; u1 1~ .., 111ho~
respeito do caminho a seguir. Não hú modelo para quem escolhe essa elaboram e satis fazem um desejo incon sc ie 111<· i11c,111111:11 ívl' I ,·01n 11 t·go,
via. A vantagem é que es1:a proposta permite a criatividade individual mas para ele esse é apenas um f lpo de so nho, 1•:111 (' ,1,· 11111 1,,du 11111i1 ,1
e a individuação do próprio terapeu ta, ahrc espaço para que as trans- mais amplo. Aí ,:omeça a divergência com Frl'lld .
formaçõe:; sofridas por este se mani foste m na maneira como trabalha. Mas a diferença fundamental é que, na vi sao j1111r;11i :111 .1, 11111 .111d1 0
Essa característica claram ente di feren cia ~1 terapia junguia1a das outras é um produto n::1.tural d a m e nte- e ele usa cxa ta11 11 ·111 1· 1·•,•,.1 ,·, 1111 ·•.•..1,1
formas de atendimento. A questão é dclicJ.da porque, às vezes, uma m á -· completo em si mesmo, sem disfarces nem <.. c1H, 111 ;1 c, , 11111 ,1 .f.•, 1111 .1
prática pode passar despercebida como ~endo uma análi se junguiana -; ão a respeito de um estado interior, envolvendo dt·s1·j,1•, 11 11 11 . 11 11.,
normal, c,uando na verda::le está sendo falha e mal fund amentada. De ·.1ma passagem f m que Jung se 5erve de uma me tftti ,rn, 1·q1111, .11 .111do 11
modo qu,~ é preciso ter alguns critérios bem definidos qmndo nos ava- ;onho a uma fo ·:ografi.a da situa ção psíquica, tii ada por 11111 l1,1 11r,1.t1 ..
liamos a :iós mesmos ou a trabalhos alhe los. E ssa dificuldade é devida distinto do ego , que olha para uma ce na de um ;lllg ul t1 d1 ·.1 11 ,r,, , 1,.
à ausência de um formato claro e padronizado. :1.dotado por este último. O ego fotografa uma sirua~·ão cxi ·, 11°11, 1.d I" 1, ,
prisma consciente que lhe é pe culiar. Ao passo que o s"nh n 11r. 1·.11 . 1
1 mesma cena p or outro prisma. A função primordi al du •,111 il 111 ,
Sonhos
p ortanto fornecer uma imagem diversa daquela com que st· 1kl ,.111 • .,
Vou começar com sonhes, porque gosto muito de trabalhar com eles ,::onsciência.
e também por tratar-se de uma questão central na terapia junguiana. Qyal o sentido e a utilidade de incluir so nhos em nosso di tl ,11•.• ,.•
Mais uma vez, é preciso lembrar que Jung adotou uma visão muito As vezes uso es:;a analogia parn explicar a alguém que come<;:1 a t 1.1
específica, muito nova, a respeito da função dos sonho:; no processo ·Jalhar comigo: da mesma form:1 que um médico se apoia em cx,unr· h
terapêuttco e da maneira de interpretá-los. A antiga divergência en- de laboratório para avaliar a sitt:ação de saúde de um paciente e tl'st'ar
tre Jung e Freud ainda \'ige, quer dizer, trabalhamos numa área onde hipóteses diagnósticas, um sonho pode cumprir para mim uma funç iio
convivem posições teóricas muito distintas, que levam a resultados ou equivalente. Meu primeiro diagnóstico baseia-se nos sonhos rebtados
práticas completamente diferentes. Como consideramos da última aas primeiras sessões, às vezes exatamente na primeira, sonhado n a
vez isso não é necessariamente um sinal de imaturidade da psicologia véspera. Para mim, ele não está revelando o de sejo do pacient,~, mas
'
do inconsciente; nas palavras do próprio Jung, não se poderia desejar expressando o modo como está estruturada uma certa situação ou u m
a existência de uma ciência unificada para tratar do fenômeno mais -:erto momento da sua vida. Nessa concepção, o sonho é uma constata-
complexo de todos, o fenômeno psíquico. Não há portanto motivo •; ão e assim deve ser encarado e tratado, como um dado a partir do qual
algum para se criar celeumas ou comparações, basta constatar o fato ,e começa a conhecer o paciente independentenente d e seu s d esejo s
e cada um ser o que é. Se você se coloca numa perspectiva junguiana, ucaicos reprimidos e até mesmc de suas associas:ões de ideias no ph~no
seu trabalho com sonhos será totalmente diverso daquele praticado a ·)iográfico.

l(OIIERTO GAMBINI
74 1\ VOZ F O T 1•: 1\ 1 l'O
O Sonho Enquanto L inguagem O Trabalho com Sonhos

A ideia é a seguinte: o sonho é uma linguagem utilizada pela mente A questão para nós é: como trabalhar com esse material? O que se pod e
quando esta se encontra numa onda distinta daquela correspondente fazer com um sonho? Algumas declarações de Jung a esse respeito j á
ao estado de vigília, com a peculiaridade de que esta última não com- se tornaram clá:;sicas. Lembro-me de uma passagem em que relata que
preende essa linguagem,. como se a con ;ciência falasse e entendesse quando um paciente o procurava, ele não sabia mais sobre o problema
latim e o sonho, sânscrito, com al g un s termos em latim para criar deste do que a própria pessoa, porque levava em conta que o p aciente
uma ponte mínima de compreensão. EHtiio uma parte nossa, que só obviamente era inteligente, havia pensado o melhor que podia sobre sua
funciona quando outra e;tá desativada, pensa de uma maneira própria situação, até chegar a um ponto onde empacava, não havendo p ortanto
e fala urna linguagem universal, qu e p( ,de ser estudada, comparada nenhuma razão para que ele,Jung, enquanto tera ~euta, pudesse saber de
e finalmente compreeniida (mais do que "interpretada"). Percebe- antemão algo que o paciente ignorava. "Não sou. - dizia Jung, e cito de
-se que da é transcultural e atemporal. (brnndo estudados sob esse memória - mais inteligente do que ele e não tenbo acesso a informações
prisma, percebemos que os sonhos qu e nos chegaram da Antiguidade além das que me relata, mas há uma coisa que posso fazer melh or do
babilônica, israelita, grega e romana s1:rvcm-se de uma linguagem que ele: ouvir o que seu inconsciente está dizendo."
análoga à dos sonhos contemporâneos. E ssa linguagem não mudou; Essa postura clássica de Jung remonta, historicamente, à co nsulta
baseia-s,e primordialme:1.te em imagen s e não em conceitos abstratos. ao oráculo. A ideia ou arquétipo, se vocês quiserem, é esta: quando a
Sua estrutura, segundo entendia Jung, é a mesma do drama, conforme consciência está perdida e não tem mais a partir do que se orientar, ela
elaborado pela cultura grega em especial, mas não exclusivamente. O consulta outra fo nte. Se você literalizar essa situação, você se dirige
sonho portanto tem urna estrutura dr.1 mática, fala urna linguagem ao oráculo de Delfos, consulta :l pitonisa, alguém que fala por você e
baseada em imagens e é essencialmente um pensamento, que difere diz algo a seu respeito a partir de um obscuro canal que o consulente
de outros por transcorrer num estado d:1 mente e numa onda cerebral não sabe acessar. Jung enfatiza, porém, que essa fala "oracular'' bro ta
peculiares. O sonho é .ima reflexão, um comentário, uma tentativa do interior da própria pessoa, bastando invocá-la, ouvi-la e procurar
de compreensão produzida todas as noites. Nossa vida portanto compreendê-la. Em sua obra coligida, bem como em seu M emória.,,
transcorre acompanhada por duas categorias de pensamento, um Sonhos e Rejlexõe, e suas cartas e seminários, há m uitos exemplos cm qu e
consciente e outro não, sobre aquilo que fazemos ou nüo, sobre o que relata situações desse tipo, quando nada sabia d(I que estava aco11tc rc n
está acontecendo conosco. Se integramos ou não esse segundo tipo do com a pessoa sentada à sua frente. Um sonho então é conta,fo L' , :1
de pem;amento chamado sonho, se o interpretamos ou não é outra partir deste, o problema toma forma e ganha nome. Essa é po is 110~s:t
questão; mas é fato que esse fenômeno mental ocorre para todo mun- postura fimd~nte, enquanto terapeutas junguianos, ao trahalharn1« 1);
do, todas as noites, toda vez que o cérebro entra num~. certa faixa de com sonhos. E uma consulta ao outro lado da mente, na cnnvi(·,;: it1 d t·
funcionamento, como a pesquisa contemporânea sobn~ sono e sonho que desse procedimento advirão informações que podn;i o L' OIH li 111 1 •1
tem demonstrado. Lim: compreens:io mais ampla do quadro atual do pa c Í L' lll't ·.
l~ssa postura ie encarar o sonho como fonte ,Jc inf~11 -111 :,, .,u, ,, 11 •.i . , .
1
~:orno um canal de conhecimento, leva ~\ qu t:s t;11 . de ~:ti 1.-r ',e- , .. ,.., , ,1 1 1 d
l!<.llllrn T o GAMlllN ·.
,, \' t , , 1 , , 1 1 1\ 1 1 11
é puro ou não, se pode ser manipulado ou não. Na visão junguiana, um porque é muito trabalhoso o esforço de compreender sua linguag(m . O
sonho não é manipulado e não pode sê- lo pelo ego. Segundo Jung e diálogo é maltratado e menosprezado e, nesse sentido, a análise é uma
seus seguidores, por mais que se treine, 1ÜLO se consegue interferir no escola, porque através do trabalho analítico o indivíduo vai aprenc.endo
mecanismo e no fenômeno do sonho. Portanto, nossa práti ca baseia-se a conversar com :;eu inconsciente. Essa é uma fu nção educativa d a aná-
no postulado de que o sonho é um produto confiável, não contaminado lise. O analisand,) vai aprendendo um pouco de~sa linguagem. raro t
por manipulações do ego, embora o rnatcri ,tl de que é feito 3eja por este alguém atravessar um período relativamente longo de análise jungJiana
conhecido. Não é adequado dizer que o ,onho seja "o ir.consciente". (não sendo o obji!tivo aprender a interpretar sorúos) e não começar a
O sonho usa material da consciência, porque se não o fizesse esta não compreender essa linguagem, compreender que sonhar com o filhl) não
teria como compreendê-lo, não poderia ri .:conhecer as imagens que o s.gnifica necessariamente o próprio filho, ou que um objeto estranho
compõem. É possível até pensarmos que durante o sonho apareçam possa ser um símbolo transformador criado pela psique. Passa-se então
muito mais coisas, mas se não forem fomiJjarcs à nossa cornciência, não a valorizar o que surgiu pela via elo sonho, reconhecendo a pertin,~ncia
do material simbólico para aquek momento da vida.
temos como retê-las, não há pcm:iras, não h:í. nomes para estranhezas e
Jung dizia que uma das funçõei, da análise é eduativa: o aprendizado
o contato não se realiza. Dccorn.: portante que a matéria de que é feito
d,1Jenomenologia do inconsciente. E como é peculiar ao seu estilo sempre
o sonho -- the stujf of dremm, corno dizia Shakespeare - é consciente:
procurar uma dimensão histórica, ele sempre mencionava exemplos
são paisagens, pessoas, co.isas, situac;õcs que conhecemo ;;; o que não
p:1ra lembrar que •!SSa prática não foi inventada por ele. Na Antiguidade
conheço, não posso idcn tifü·,u , 11nnH.:ar •! muito menos reter. Mas a
greco-romana, e isso já é de conhecimento geral, ,)s sonhos traziam in-
estrutura do sonh o não é re i ta pda minha consciência, ass .m como não
formações, bons ou maus augúrim para o indivíduo ou para a coletivida-
o é a forr:1ação de s.í mbolos t: a cs1.:olha da imagem que o expressa. Aí
de. Era hábito na época registrar o sonho e levá-lo para o oneirocrítico;
é que est:í. o grande matu-ial do tmbalho terapêutico. Jung pretendeu
enfim, essa prática está incorporada em nossa consciência coletiva.Jung
ter descoberto um n.ívcl fon omcno.lógico, empírico, observável, no qual
mostrou que isso também existe nos povos assim chamados primitivos e
ocorre algo portentoso, o u f.eja, o ser humano produz uma informação
que essa prática pode ser observada em provavelmente todas as culrnras
sobre si mesmo que de in.ediato não compreende, e essa informação é
(nós sabemos, mas Jung não teve ocasião de tomar conhecimento do
pura. Vale a pena tentar compreendê-la, porque ela leva rnnde se deve
fato por falta de literatura publicada em inglês ou alemão em sua é poca,
chegar. _ que nossos índios atribuem enorme importância aos sonhos, cabendo
Jung diz coisas do seguinte tipo: os wnhos não mentem, nao tra-
aos pajés interpretá-los, geralmente em termos coletivos e profét co~) .
zem algc, além do que a consciência do mjeito seja ~~pa~ de absorve~, Ou seja, não há novidade alguma em se falar disso, acho que Jung apr
evoluem paralelamente ao desenvolvime1to da cons~iencia, sempre ali
m.s atualizou essa:, tradições e~ krmos cientifico:;, mas não há 11 c1il111
presente:,, como um Outro inominado que com ela dialoga. Qyando se
ma diferença fundamental de procedimento. Ness-;! sentido, a prn1 0-.1:1
encara sonho dessa maneira, já estamos pensando no Outro dentro
O freudiana é diferente da herança histórica, enquanto a jun~ui,111 :1 11: 10 (1
nós um interlocutor íntimo que conversa conosco, em·::,ora, em geral,
de , F é. Um bom terren:> para discussão, caso se julgue oport1111:1 .
essa conversa quase sempre transcorra fora de sintonia. ,_ por que mes-
Os sonhos da Antiguidade cit2dos e ~·omcntar os po r _11111 1~ , · 11 1 •. 11. ,
mo? Porque esse interlocutor não é percebido nem valonzado, por~ue
obra são especialmente o de Nabu,:odonosor, l'lll li"'' 1,n11l 1.1 ;1, •'• I'' ·· d, ,
não se lembra o que dele emanou, porque não se gosta do que ele disse,

78 ROBERTO GAMBINI
rei a grande árvore da vida; o de Gilgamesh, de cerca de quatro mil anos
atrás, em qu,::: uma estrela cai do céu sobre a tc:rra; o de Jacó, em que uma na abertura da tese. Uma vez, noi; anos 1970, Fátima, minha mulh er,
escada une O céu e a terra, e muitos outros . Como eu dizia na sessão mais um pequeno grupo de antropólogos e eu estávamos fazendo pes-
passada, essa foi uma área gue quase ninguón seguiu a não ser Marie- qu:sa na reserva indígena de Araribá, perto de Baurn, no interior de :, ão
-Louise von Franz, que puh.icou um belíssimo livro em que interpreta Paulo, onde foram aldeados pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio)
sonhos históricos e bíblicos com referencia ao contexto cultural de cada ínc'. ios terenas e caingangues que haviam sido expulsos de seus terri-
época específica. A partir desses sonhos históricos ela recomtrói todo o tórios ancestrais rn:. época da abertura da estrada de ferro Noroeste do
clima intelectual da época e inst,tla cada um num nicho de pensamento Estado. Naquela época eu fazia análise junguiana e é claro que indo lá
temático que lhe dá sentido. . faz ~r uma pesquisa antropológica eu me interessasse por eventualmente
Recomendo a leitura do sonho de Sócrates para quem qmser co- tomar conhecimen-:o de sonhos indígenas. Minha tarefa de campo con-
nhecer um pouco essa linha de trabalho. Resumidamente: e, Daimo~, o sistia em preenche: um questionário com dados econômicos relativos
à produção de mandioca e descrev,~r qual era a situação de vida dessa
espírito ou gênio de Sócrates, lhe aparece e decl~ra mais_ ou 1~~n~~ (cito
de memória) o seguinte: "Sócrates, você devia fazer mais musica .Jung população. Qyando terminava o questionário, várias vezes indaguei a
usa muito esse sonho para ilustrar a fnnção compensatória do incons- alguns índios se eles sonhavam. Um ou outro disse que sim, perguntei
ciente, dizendo: 0 inconsci,~ntc de Sócrates sabia que ele esi:ava ficando como era o sonho e eles me contaram. Mas um homem me relatou um
muito unilateral, identificando-se exclusivamente com o pensamento. sonho tão impressionante, que me inspirou a fazer :1 tese que fiz. Eu já
Como a pi;ique é um sistema autorrcgulat<irio que visa a integraç~o de
1 considerava que um sonho podia resumir uma problemática coletiva e
partes fragmentárias nurr, todo único, urna parte centr~l- do filosofo,
i não apenas individual. Resumidamente, o sonho desse índio, chamado
l
1 Jasone, era assim: ele ia até o cemitfrio antigo dos índios guaranis (ele
que não sua consciência, s:1be que ele es~á fic~ndo ~eseqmlibrado_e lhe_
não pertencia a essa etnia, mas sim ao povo terena\ onde estavam en-
sugere urr. pouco mai·s de música , ou seJa: nao esta _ . faltando sentimen
to? Para enfatizar o sentimento no intuito de equilibrar o pensamento terrados os velhos ancestrais que tinham morrido h:i muitas gerações e,
quando entrava no cemitério, apareceram uns horrens brancos que o
exacerbado configura-se e símbolo da música, que os gregos era~ be~
aga:raram à força. Ele sentiu muito medo e em seguida esses hom<:ns
capazes de entender. Se ccnsiderarmos esse sonho como uma satisfaçao 0
levaram a um cruzeiro que lá estava e o crucificaram de cabeça para
de desejo não se pode fazer uma an áli se d esse t"ipo, porque . -nesse
. caso
. se
baixo. O.!Iando ele me contou esse sonho, fiquei :ibsolutamente i .
circunscreve o sonho a uma problemática. pessoal. Na ~is·w Junguiana 111
pre~:sionado. Essa imagem dramática ficou trabalhando por cinco a, ,os
pode-se tomar um grande sonho de um indivíduo emmente co~o re-
na minha mente e foi o estopim ele um longo trabalho de pcscill is:1
presentando um problema da cultu~a corr~o um todo numa certa epoca
histórica e análise da psicologia dos primeiros missionários jcsu í1:,~.
histórica. Esse é o posicionamento Jungutano. _ _
pan: poder tentar interpretá-la: o que quer dizer pa::a nós hra sikiru. ,
Na tes,~ que escrevi em Zurique como r,:::quisito para minha formaça~ 1
imagem de um índb crucificado de cabeça para baixo?'
de analista, fiz uma análtse da correspondência dos jesu[tas no Brasil
no século usando o conceito de somára para estudar de ~ue ~o~o
XVI,

os índios receberam a proJeçao · eª· Essa era a mmha ideia,


. _ d ª sombra cns .
1; ohcrto Gambini, E spelho l~idio -A F o111wr,10 ,li, ,·//1110 t:,, 1 1/,·11 ., , :,,,,, 1•.
uma 1onga pesquisa
1. ,1 ., \.
r.
mas o qce me levou a ia,,er
r. · , foi um sonho, que cito 11
1\ lundi/fcrcciro Nolllc, 2000, p. 17. 1

Ho JWl!ERTO GAMBINI
\ \l i l , 1 1 1 1 1 1\ 11 • 1
para você o vestido estava do avesso". Lúcia lê essa carta na presença de>
Os Sonhos e a Compreensão d,! uma Cultura
filho e da nora e diz assim: "Como o s sonhos são incríveis! Imaginem, a
A postura junguiana a respeito de sonhos, seus postulados e a teoria Cecília Meireles teve esse sonho comigo, o que será que isso quer dizer?"
que os acompanha produz um certo tipo de terapia e inspira um tipo Nesse instante o filho perguntou: "Você não reparou que está vestind()
particular de pesquisa. De novo, são duas fo1has: um estilo de se fazer um penhoar cor-de-rosa pelo avesso?" C2.!iando se ouve um relato dcss<:
terapia com base em sonhos e um tipo de pesquisa cultural que pode quiilate é impossível não parar para pensar. O que é isso, entre duas
ser feita com base nesse tipo de material. Esse último é um campo ri- grandes amigas, que uma sonhe com a outra e no momento do relato
quíssimo e muita pesquisa pode ser fcit,i a partir de sonhm, registrados do sonho manifesta-se aquilo que Jung chamou de sincronicidade, que
em livros de memórias e depoim entos ck escritores, artistas e poetas é como que um corte temporal e espacial na consciência corriqueira
brasileiros. Há sonhos de índios, de 1-rianças, de figuras históricas, e para produzir um estado transcendente? A indagação sobre o mistfrio
com a adoção dessa perspectiva pode- se trabalhar com eles para tentar que nos rodeia impõe-se sem medi ações do intelecto.
entender melhor nossa cultura e nnssa psicologia. !Em sua riqueza, um sonho é desde instrumento terapêutico, até aber-
tura para a gnose. Ou seja, há um certo tipo de sonho que nos faz pensar
sobre o que é isso que chamamos de realidade, em que faixa estamos,
Símbolo
que inimaginados canais de comunô.cação existem entre as pessoas, tudo
Venho há anos coletando mate rial, porq\!lc tenho um pr~jeto, que não aquilo que não conseguimos explicar racionalmente. Tenho a impressão
sei se um dia vou realizar ou não, de escrever um livro que seria uma de que coletar esse tipo de material é muito importante para se discu-
exemplificação de como He trabalha com ''. ,imbolismo. Eu queri~ enc~~- tir justamente isto: onde se locali2.a a fronteira da nossa consciência?
trar uma maneira de cla:;sifiear o simbolismo e escrever um livro util, Colocada essa indagação, já extrapolamos o âmbito da terapia, já n fü~
a partir <lla minha prática, sobre certos procedimentos p~ra transliterar estamos usando o sonho unicamente como recurso terapêutico, mai
símbolos. Vou escolher a1gumas áreas que me tocam mais de perto, por como material de conhecimento. Essa é uma preciosa área de pesquisl,
exemplo, todo O simbolismo relacionado à casa - só esse t?pos pree_nch~- o sonho como comentário feito pelo nosso pensamento não conscientt
1
ria centenas de páginas - · ao lado do simbolismo do corpo, do_s amm~1s, a respeito do que a realidade seja.
das cidades, da geografia, dos acidentes da natureza etc. S~r~a ~reciso
- senão O livro seria uma Enciclopédia Britamca. Pre- Abordagem do Sonho em Terapia
f:azer uma Seleça0 , . .
tendo, se vier a concretizar esse projeto, marrar alguns sonhos br~sile1r~s-
Vou contar um, porque esse sonho é uma pérola. Tenho ~1m am1~0 CUJ~ Vejamos urna questão prática do trabalho com sonhos. Eu peço sonhot
mãe é uma grande escritora, Lúcia Machado de Alme1d~,_ded1c~da a Digamos que meu paciente me traga um sonho e eu o ouvi. Com o pa:,sa·
literatura infanto-juveriil. Lúcia era muito amiga de Ccc1lia Me~reles, dos anos, fico cada vez mais descontiraído, porque não espero entender l h
a grande poetisa, e as ,duas trocavam .,;:artas. Ouvi de ~eu am1g~ a

segum
· te maravilha: Cecília Meireles escreve para sua estimada amiga
, nh · '
l imediato o sonho assim que relataclo. Começo a ouvir e digo para n1i11
mesmo: "Incrível esse sonho maluco, não tem pé nem cabeça e lll'll1 s,.r
por onde começar". Digo isso na maior tranquilidade porque sei, p,r,
dizendo: "Qyerida Lúcia, tive um lindo sonho com voce, so e1 que no~
conversávamos e você usava um vestido cor-de-rosa, mas quando olhei experiência, que a partir disso, alguma coisa vai corncçar a :tl·n11lc n •1.

1\ VU i' 11 !I ' I I" ;li 1•11


82 ROBERTO GAMBINO
Acho que uma boa postura é simplesm e nte ouvir a narrativa, sem lembra que O sonho tem uma lysis, gue tem uma estrutura, você a refaz
se cobrar absolutamente nada, qu e von; vai interpretar, que você vai e confere: quais são os personagens? ~ai é a situ ação inicial, guaJ é
entender, que você tem qm: falar ,dµ; uma coisa inteligente, que você 0
cenário, (Jual é a proposta da açào? ~ial é a peripécia, o conflito
tem que ext rair algum comentário importante. Não, não force absolu- irresolúvel, onde está o clímax? Tem lysis? (no drama grego, o ponto
tamente nada. Receba o relato Jn so nho, ck.ixe-o infiltrar-se, absorva- culminante da tragédia, quando o conflito é resolvido). Às vezes esse
-o e aí - isso é uma experiência suhj c i-iva d1; cada um - alguma coisa elemento não aparece, o sonho acaba antes de chegar ao fim, por que
começa a acontecer. Às vezes aplico as regra:; da interpretação, às vezes serái~ Será porque a situação ainda não está madura, ou porque o pa-
não aplico regra nenhuma, p orqu e in es peradamente um fio de meada ciente não reteve na memória as indicações do sonlf0 sobre a resoluçifo
se apresent::1.; outras vezes, mesmo apli ca ndo as regras, nada se insi- do conflito?
nua. Comec:o então a garimpar, a trab:Llhar junto ao pacien te, a pedir
associações. Você pode nã,) di ze r nada , mas simplesmente lembrar
Sonhos e A ssociação
que o sonho tem uma dimensão objetiva e uma subjetiva - em qual
delas vamo:, nos concentrar ? Às vezes surg,; uma imagem 11a mente e ~ando não vejo claro, tento localizar as figuras, exam ino o ego onírico
de supetão lanço uma pergunta ao paciente; a surpresa muda o rumo e procuro perceber em que aspecto este difere do ego vígil, o que ele faz
de seu pensamento e uma ;1ova área abrc- i,c, propiciando outro fluxo e corno participa ou não da ação do sonho. Ou então recorro à clássica
associativo. regra freudiana da livre-associação. Você pode propor que o paciente
Outras vezes começo c<>1110 se eu estivesse dando uma aula. Não associe e aí é preciso uma certa arte, porque a associação tem que Sl;r
importa por onde você começa, todos os caminhos levam a Roma. Se livre, mas muitas vezes não é. O paciente pode ficar contaminado com
você está na atitude d e alei ta, de interesse, de querer captar algo novo, o estilo do terapeuta ~ preferir só falar aquilo que combina com O modo
sublinhar u ma palavra nu nca antes pronunciada, não importa o cami- do ~erapeuta pensar, e nada surge de novo. Pode-se propor que O pacie n-
nho seguid o, você acaba entrando num território fértil. Há casos em te simplesmente diga a primeira coisa que lhe vem à mente associad a
que eu e O paciente entramos juntos, outras vezes um dos dois desata a tal imagem do sonJ10, evitando qualquer censura. Veio alguma coisa,
0 nó. Nesse preciso instante intuo que alguma coisa muito importante ma~ a pessoa n_ão fala, fica com vergonha, ou acha que é bobagem e a
vai tomar forma e terei a c•portunidade de dizer algo que nunca disse omitt.;. A ma~eir~ junguia~a de usar a livre-associação de ideias propos-
antes para esse paciente, p•Jrque nunca soube formular ou porque não ~a por Freud e deixar o paciente associar livremente e num certo ponto
entendia direito, ou porque não tive coragem, ou porque não era 0 mterr~mp~~ pa~a ~vitar que ele se afa; te da imagem do sonho e a perca .
momento adequado. E ocorre então, numa certa sessão dirigida por Na p!'.i icanálise e diferente, porque nesse caso O sonho pode ser apen as
um sonho, ser possível dizer algo importante e o paciente poder ouvir o pretexto, o ponto de partida para chegar a outra coisa, a um conl't:ií
no devido contexto. do reprimido; mas na terapia junguiana não é assim. Se você quer ~,·
Como cüsse no começo, quando não se sabe o que fazer aplicam-se aproximar do âmago do sonho não deve se desviar dde e tornar 011 ,r,
as regras -- para isso é bom tê-las. Você le mbra que o sonho. é co~- caminho , mas rodeá-lo por todos os" l·td
, os. S e a assoc1·;h;ao
- n>n u·1; 011 :1 11
pensatóric•, então pensa: "Esse sonho está compensando um_a situaçao .longe demais, você tem que perceber o momento de n ·torn:ir :'i iiii:1 ,,, .1, ,
consciente, que dialética é essa? Você lembra que o sonho e uma fala, que estava a ponto de ser abandonada. ··

.'\ V t ) / 1' t ) I I t\ 1 1• 1 1
ROIH; RTO GAMBINI
analista tem que procurar conhecimento em muitas áreas e uma d elas
Sonhos e AmplfficrlfâO é simbolismo, algo que não se para de aprender. Na minha experiência,
Mencionei a compensação, a estrutura dramática do sonhü, a discrimi- estamos constantemente absorvendo material de elucidação simbólica.
nação dos personagens, a identificaçào do conflito e a livre-associação. A Acho que todo dia estou aprendendo alguma coisa na área do simbo-
outra regra que se pode aplicar quando necessário é a amplificação. Qie lismo, basta estar atento. Não é só lendo O R amo de Ouro de J ames
regra é essa? Qye procedim ento é esse? 1:: um procedimento pelo qual F razer ou a coleção de ensaios de G aston Bachdard sobre água, ar, fogo,
o analista, com a participação do paciente, se este tiver alguma fami- terra, espaço, devaneio; ou estudando (que insematez!) dicionários de
liaridade c:om o tema, proçura no seu arsenal de imagens uma parecida símbolos. Esbarra-se a qualquer momento com objetos ou situações
com a que intriga no sonho. A imagem é então amplificada, expandida, que podem se revestir de uma dim ensão simbólic:t - é uma quest~.o de
contextuaüzada pelo método comparn tiV•l, em que se penetra nos vá- modulação do pensamento e de observação. Pode·-se aprender sozinho
rios sistemas simbólicos, como o mitológico, o artístico, o religioso, o a entender o significado de símbolos.
poético, o alquímico (este particularmente valorizado por Jung). Então Qiando comei:ei a fazer análise, eu vinha com a cabeça feita pela
se alguém sonhou que pôs no fogão aces,l uma panela cheia de excre- universidade e queria aplicar o intelecto ao trabalho analítico. Está
mentos, ele provavelmente pensará: "Qye loucura, será que esse sonho certo, a gente também trabalha com a cabeça. Ainda bem que ela mu-
diz que sou masoquista, que como merda. que estou desadaptado, que dou, porque senão eu teria me tornado um analista acadêmico. Mas
não amo a minha família, que estou mal com a minha função nutritiva?" naquela altura, eu achava que seria possível montar um fichário de
O analista, aplicando a regra da amplifica<;ão, investiga: "Um momento, símbolos por ordem alfabética, começando com Abacate e terminando
onde é que tomei conhecimento de uma imagem análoga de colocar fe- em Zulu. Comecei o tal fichário, está guardado em algum canto de
zes dentro de um recipiente e pôr no fogo para cozinhar?" Na alquimia minhas estantes. Era assim: na ficha de abacate estava marcado número
uma das formas da maté ria-prima é a desprezível merda. A alquimia 1, página 80, número 2, página 140 e depois outra ficha listava os livros
preceitua que se você puser a matéria-prima dentro de uma panela sobre lidos, numerado d~ r a n. Se eu quisesse pesquisar "abacate" eu teria que
o fogo um processo de lenta transformaçãc, tem início. Não vou declarar loc:alizar o tal livro, na página tal, os outros mais,juntar tudo, sintetizar,
que o sonho é alquímico, mas vou justapor essa imagem à do sonho e abstrair, e então eu teria elementos para entender o simbolismo dessa
aí já contamos com uma base de reflexão que faz sentido. O aspecto fruta. Isso era antes do surgimento dos computadores, no início dos
incompreensível e bizarro, no plano pessoal, já não está isolado, mas anos 1970. Esse pg tenso arquivo de Dr. Pardal, actbei percebendo, era
assemelhado a uma fantasia do inconsciente coletivo. O paciente tem a materialização de meus processos de arquivamento sistemático da
que olhar para a sua merda, tudo o que nele é sombrio, com o propósito memória. Felizmente dei-me conta de que minha mente é muito mais
de transformá-la. Foi a amplificação que deu lugar a essa ideia. rápida e criativa do que o arquivo, e as fichas, dispensáveis, porq1 ,e a
mente arquiva por si mesma. Então deixei de escrever em fichas tudo o
que aprendo, porque senão não vou fazer outra coisa e vou ficar ci,cre
Símbolo: Uma Leitura Psíquica
vendo, escrevendo, num esforço sem fim.
Uma coisa é amplificação, que é um procedimento; outra é o símbolo, Ao mesmo tempo, descobri outra coisa: quando você está s i1üoni ·1 111 1.,
que é um conteúdo que :-;e busca tornar \nteligível. Jung dizia que um com a compreensão do simbolismo, o arquivo interno cst:,Í Sl.' tnp r,· •,r

A VO :I. J,', O T F ~II' "


,...
86 ROBERTO GAMBINI
'
refazendo e aí acontece a1go muito animador. Na hora em que você está em Ciências Sociais, muitas veze~ romc1.;ávam1 >S ;1 disl:utir ideias ~obre
aflito remoendo o bendito sonho do ah: Lc.l.tc, aquilo que você precisa saúde pública no Brasil. Entrávamos nurn di:íloJ ;o lh e soHcítava
1· 1·11
lembrar vem sozinho. Por isso dizem q11c os junguianos são místicos! que me expusesse suas ideias, o que .lh e p rupnn ··iu1J11v;1 111n rerto :tque -
Mas não há nada de extraordinário ni sso, trata-se apenas do funciona- cimento emocional. Eu estava mantcndP viva, 1,:11·:1 ,·lc:, um:t Ü.HHi"i'Í<>
mento natural da mente e da memória cn1 estado de atenção. Se houver que ele havia perdido, a de estimar-se. Assínt r; ll1 1u f, pl\1"-t•t·g·11i11do, at<:
numa sessão um momento de conex:io tom o inconsciente, o que for que um dia ele teve o seguinte sonho: estava 11un 1,1 1•,11-,;1, ~lfll' 11 :1u a a a
necessário lembrar aparecerá para que o propósito - não o esforço - de sua mas na qual agora morava. A casa estava rnuít , 1dr·s:11111111;1da , 1i1d1.1
compreender o sonho se realize. cômodos fechado s e muita coisa para ser conscrta1 i.1; ,1 p11r1 ,t dP:, li1 1111w,
É preciso arejar um pouco esse arquiv< 1e saber que essa área é funda- e8tava arrebentada e de noite entravam mendigc s qtw 1:i 1.1111 ,1, 1111i1 .
1

mental para o treino do analista. A ssirn como o pianista tem que treinar Ele sabia que tinha que arrumar essa casa - até aí 1·11 l1.1 vi .1 í' t1t1•111 l1d1J
a agilidade dos dedos, o bailarino a da rm1sculatura dos braços e pernas, todo .o simbolismo da casa como um retrato de l'ô t1 :1 P" .'I ,1 1.1 ,, i111 1h,,l• ,
o poeta a das palavras, nó s temos que treinar a compreensão. Precisamos pfdquica, mas o importante é o que vem em seguida. Ek v. 11 i\ 11 b,11d w11< ,
saber ler, não academicamente, mas piüqukamente, quer dizer, você vai e quando olha na privada, dentro dela vê uma tart:m1g uí11li.1 t · 11·· 11 •1. ,
vendo as coisas passarem por perto e conversarem com você. E tudo isso "1enho que dar a descarga"- e então acorda. Sempre r11i i1t1 cn·•,,,i1I,,
é um treino para o ofício. para aquela hora cm que o que foi assimilado pdo simbolismo da tartaruga. Se eu não soubesse nada ;1 l't",1w1l1 ) 1, .1,,
tem que funcionar para ~;e poder liJar wrn o sofrimento alheio, não é perceberia que esse homem estava a ponto de desistir de t:11d11, :,t • , 11 ",t.1
para acumular erudição. a descarga. A tartaruga naquele contexto era um símbolo do ,\'!'(/.'
Em que se baseia esse simbolismo? Aí é que entra a par!(' qw 1,
analista tem que saber. Na China antiga o casco d a tartaruga, (;u111 ·,u,1
Alguns Sonhos lnteipretados
composição de h1:xágonos, era considerado um oráculo e havia i11k1
Agora me veio à mente uma ilustração desse tópico do conhecimento pretes que, estudando-o, faziam p revisões ou o interpretavam d e n 1( 111, >
simbólico. Um senhor me procurou para análise porque estava deprimi- análogo ao I Ching. Os oráculos com entranhas ou partes de ani ,11ai:,
do. Trata-se de um médico de muito valor que sempre trabalhou na área são anteriores aos baseados em grafismos. A tartaruga simboliza lc ,ngl' -
de saúde pública, tendo participado da elaboração de importantes po- vidade, introversã,) e um tipo de sabedoria silenciosa que não é ap ren-
líticas governamentais para a área. Dedicou-se a essa atividade durante dida, portanto é distinta da inteligência do ego, é uma sabedoria cm
os últimos trinta anos. Como estava severamente deprimido, achava que estado inconsciente. Ela simboliza a espera da manifestação de um valor
não valia nada e que ninguém nunca mais iria chamá-lo para trabalhar, oculto, que às vezes se introverte :1 tal ponto que tie torna indetect ávcl
já que se considerava carta fora do baralho. Sentia-se como alguém por estar fechado Hobre si mesmo. Na alquimia há imagens em que uma
que literalmente perdera o valor. Enfrentava uma série de problemas série de objetos simbólicos, uma caveira, um vaso alquímico, uma t<>cha
familiares e financeiros <JUe o faziam sofrer. Começamo!:i a trabalhar e com fogo, por exemplo, está empilhada sobre o casco de uma tartaruga,
adotei com ele a atitude de valorizar enfaticamente seu saber acumulado, que, apoiada em suas patas, constitui o símile da baHe segura do processo
suas experiências e realizações, ouvindo de mim o que não era no mo- d e transmutação da matéria bruta. Na mitologia do hinduísmo há uma
mento capaz de se dizer a si mesmo. Como lhe contei que era formado famosa imagem na qual o eixo do mundo se apoia sobre o case,.> de

A VOZ E O TEMPO 8q
88 R O BERTO GAMBINI
uma tartaruga marinha; nesse eixo o d<.: us l'.l'iador Vishnu enrola uma -se exagerar, pode-se acreditar estar vendo n111 o ni tdc na verdade só há
serpente com a qual, puxando-a pelas duas extremidades, provoca na chumbo. Então não estamos no tcrrc111, da i-; g:trnntin K, mas no ofício
água do mar um movimento rotató rio do qual tudo se origina. Se eu suado, ou seja; trabalhar, ver, sentir1 an:Üi K1ll'. N,1cl11 vc 111 liícil. Qpando
não soubesse absolutamente nada a rl' spcitú da tartaruga não ficaria se está habituado a lidar com simboli slll n 1•n t ,I'. li1 í'1·:, ~1· nc,·ndcm.
mobilizado pelo sonho. Essas amplifirac;üc~, que aqui reproduzo sem Q,yando ouço sonhos em que aparece um rio, 1111111 .11 vn 1e ·, 111n11 ponte,
muita precisão, rapidamente cngaülhanun- r;c em minha mente numa uma criança pequena, certos animais, ouro, pc·d1w, 1•ll'1 111:,: I',, 11111.1 lu7,,
típica reação contratransferencial, ou sej a: cu pensava por ele, eu tentava grandes fenômenos da natureza, a união dos opo•, tw, 1· 111 q11,tlqu1·r d:u::
entender o que o sonho raciocinava. p1)r ck, mentalmente imobilizado sua8 formas, certos órgãos do corpo, certas figur:t'- "" 11• 11 ,1•, li l•.tori,·as,
pela depressão. Minha mobiüzas·ão psíqu ica era exatamente aquilo que sei na hora que algum conteúdo relevante estú l t·11 l.111d11 nl,111 1 :111ti ·
não acontecia nele, pois ele estava aplast;tdo por seu estado autodepre- nho até a consciência. Aí tenho que me segurar p.1 n1 111111 1•111 n , .111 o
ciativo. Como achava que nada se nianifcst',ll'ia em sua psique que lhe adiante dos bois, p ara não entrar no estado de cnri1 si:11,11111. Poull,1 11,.
mostrasse algum caminho, era crn rnim qu ,~ o símbolo agia. Comecei pés no chão, converso comigo mesmo: "Espera, vamo~ v1· 1 ',l' i 1, < 11,,u,
a tatear, procurando palavras plausíveis p.im lhe dizer: ''A casa está de vamos devagar, olha pelo avesso . ,.". Conforme a co11clu·i,111 , 1 q tw
fato toda d esarranjada, ma~: e essa tartaruga na latrina? Olhe, sei que chegue, exp onh o para o paciente ú que refleti a partir da i 11 •,11p,.11 ,tu
você está deprimido e que perdeu qualquer reconhecimento de seu provocada pelo símbolo. O rumo que a análise tomará pndt: d1•p t•11d1·1
próprio valor. Mas esse contato pode ser ret;omado e esse quadro pode desse momento.
mudar". E mencionei alguma coisa simpks a respeito de a tartaruga Vou dar outro exemplo. Vou relatar-lhes os sonhos de doi ~ hrn111,11,
simbolizar um valor que n:lo devia ser mandado esgoto a baixo. Duas nos seus trinta e cinco anos, que se defrontam com uma crise de 1.' ll',1 i·
sessões depois ele interrompeu a terapia, dizendo que não podia gastar mento, ou seja, a temida entrada num novo modo de funcionar. Amho:,
dinheiro, q ue não queria mais e parou. N ão fiz nenhum esforço para sentem a dificuldade desse passo e têm medo do que vem pela fn: nt\'.
retê-lo, por considerar que ralvez assim devt;sse ser. Passa- se algum tem- Discutimos a situação deles e aguardamos os comentários que eventt 1al·
po e certo dia leio no jorn:u que ele havia sido convidado para ocupar mente seus sonhos pudessem oferecer para trabalh ar esse processo.
um cargo de destaque n o J\1inistério da Saúde, que aceitou, retomando O primeiro homem está adaptado, trabalha, tem uma família e pro-
su as atividades. Para mim, quando li essa n<)tícia, esse desenvolvimento cura ocupar seu lugar profissional na sociedade; seu caso não é extren10,
estava prefigurado naquela imagem da tartaruga que podia ir embora mas isso não o exime de sofrer e debater-se com problemas íntimos. St.!u
n a privada, se ele desse a descarga. sonbo: ele está sentado em meio a u m grupo composto por mineradores,
Há portanto situações em que a compreensão de um símbolo estra- tod0s bandidos, e ele tem duas pepitas de ouro. Uma está no bolso da
tegicamente inserido numa sequência onírica fornece uma pista para calça e a outra na sola do sapato, pr~sa com uma fita adesiva e ele está
0 aprofundamento da reflexão do terapeuta, que assim consegue tocar, conversando com esses mineradores. Daí ele cruza a perna desse jeito que
como uma agulha de acupu ntura, um ponto onde jaz aprisionada pelos nós homens cruzamos, em que a sola do sapato fica exposta, e encosta a
pensamentos uma energia renovadora panl a vida do paciente. perna na do bandido. Nesse momento, ele se dá conta de que O bandido
É fácil fazer isso? Não é. Dá certo sempre? Não, nem sempre. Tem vê a pepita na sola de seu calçado e a quer para si, caso contrário o bando
seus riscos? Tem seus riscos. Pode-se errar na leitura simbólica, pode- não o deixará ir embora. Então ele p ensa assim no soriho: "Vou entrc~m

C)O RO B E R T O CAMBINI
A V OZ E O TEMPO ()1
essa para poder salvar a outra". Ele tira a pepit·a de ouro da sola do sapato Um m ês depois, esse mesmo pacic11t t: s1>11li :1 , pt<' está luta ndo jud ô
e diz: "D e fato eu ia roubá-los, mas vocês me pegaram no pulo, tome com uma mulher japonesa e, no m eio da 1111:1 , <·11· !-lt 11t c i1lr:t\·:""io c r{,tica
aqui", sentindo-se muito esperto porque ci,t·:\ indo embora com a outra por ela e a luta acaba virando um. jogo sc 11 s11:tl 1·111 rl· ,,!(, e illjílt'L1 c1111t ra
.
escondida no bolso. E ele me conta esse srn1 110 no segumtt: tom: sta
"E , quem devia lutar. Agora é preciso ter alg11111.1 11->1;,1, , d11 q, w J1111 g di z
vendo, não estou tão mal assim, estou sabendo escapar dos bandidos". a respeito da anima na psicologia masrnli11 a, lc1 nh r.111d, 1 q111: pnra l·k
Olhei para ele e disse: "Você se conten ta sn com a metade do seu valor". trata-se de um fenômeno e não de um nome a1 w1u :-. 1:. ,11 11 •~111111,, · · a q11i
Ele perguntou o que eu queria di 7,cr, e res pondi: "Esse sonho está que- me apoio em von Franz, "a anima é um sisl'c111 .1 ~1<· i""- 1'' '' 1a 1ív :1•. q, w
rendo dizer que você entrega para o ha11cl ido metade daquilo que você o homem tem em relação à m ulher". Na pak s1ra ,11 11l'11111 1• ·k 1i 11 1c
possui de valioso e você se contenta rnm is·m. Qye bandido é esse?" Ai é à anima como n1ediadora entre o ego e o incnn:;(·Ín11t- , ,'11 i111," 1111L1 "
que está a. questão: o paci<!ntc tem que entender que mecanismo é esse lado do funcionamento da consd ência de um ln11w1 11. ,, l. 1il 11 ' I w ,·1,
em seu íntimo que diminui seu senso de valor. É um complexo que come não-controla e que portanto exerce enorme pode r sol ,n · ·.11.1 •, ,·111 1"•" ' ·.
metade daquilo que ele vale e faz com q11c s,: sinta mal, apesar de achar-se e fantasias. A anima influencia o modo como urn li ,lf1)1'11 1 t. ,; 111 11 ,1
esperto, não por não ter valor, mas po r n:\o integrá-lo na consciência e leitura de si e das mulheres que o rodeiam, nelas se pruj \' t.111.I" 1 • 1, ..
agir em consequência. E sperteza não seria bem o termo. mem vê sua anima, o contraponto feminino de seu ego, 11;1•, 111 11 1 1, · . ]I

O que foi que me perm itiu cntr;tr nesse sonho dessa maneira? Foi ter esperando que correspondam a uma imagem femini11 ,1 1, ,i11 , , 1t.1 ·
associad o o simbolismo da pepi ta de ouro ao da sola do sapato. A partir características que não pertencem necessariamente às rn11lh c 11" 1, ·.11 ·
de então, o sonho clareo11. A sola <lo sapato é a base sobre a qual nos A confusão não é pouca, porqu.~ é muito difícil. distin g11i r o qw 1 .1
assentamos, nos posicionam os, tomamos 11ma atitude. Segundo o sonho, mulher e o que é a anima.Como se as mulheres estivessem t:tc rn :11 1l!'1il •
essa base contém ouro, mas esse valor 1ü .o está integrado, porque está saindo de nossas costelas.
preso com uma fita adesiva e, na verdade, ele o retira ~e lá e o re~a~sa Meu paciente está lutando judô com sua aníma: confronto 1 <1111 .1
para sua sombra, uma parte sua que provavdmente maquina subterfüg~~s anima. O que é isso, trocado em miúdos? Esse indivíduo tem que .1,· t •fl ,11
para não tomar posições. Há portanto um complexo atuando na reg1ao as contas e pôr ordem em toda uma área de emoção e erotisff1, > q1 11'
da sombra, que sua consciência desconhece, e não se pode prever q~anto provavelmente não reconhece como realidade psíquica própria. F dc\'l"
tempo passará até que o ego se posicione e atraia para s~ a energia de ter presente que, se é para incorporar aquela pepita que entrega p;tra o s
que está investido o complexo. Um sonho como esse pe~m1te~que s_e f~ça bandidos (não sou eu quem o diz, mas a sequência do sonho ante rior),
um corte transversal no problema e se nomeie uma s1tuaçao psiqmca o que tem a fazer agora é lutar com suas emoções inconscientes e vamos
que paciente não é capaz de elaborar, dizendo por ex~mplo: "Se~ ~ue ver o que decorre desse confronto entre ego e emocionalidade. E o qu e
O
tenho valor e capacidade, mas dentro de ~im um ~ecamsm~, pat~logico_ a.contece? Surge ,) erotismo. Então o trabalho com as próprias emo~:õcs
subverte as coisas e acabo não conseguindo realizar nada • Evidente é um trabalho que pode se tornar algo apaixonante. Sei disso porque
mente não é assim que de fala, mas: "As coisas não dão certo, parece conheço sua história, sei que há um a área na qual não consegue penetra r
que há uma conspiração contra mim, os outros p~~sam na m:nha frente porque nela estão armazenadas vivências emocionais que lhe carn1aram
e roubam as oportunidades que tanto busco etc . . Ele se ve e se sente dor, verdadeiras derrotas em sua vida. Então eu lhe digo: "Você p recisa
assim, mas sonho vê por dentro, onde está o verdadeiro problema. saber como a an ima encarou as suas derrotas e ,l versão que lhc8 dc11 .
O O

A VO Z E O TEM l' ll
<)2 RP BERTO GAMBINI
Enquanto você não descobri r o ponto de vi sta e o julgamento da anima, um trabalho precioso sobre o anim us baseado numa leitura do livro
ou seja, o teor emocional que essas vivê ncias tiveram, e que pode ser bíblico de Tobias3, em que analisa o desenvolvimento do animus e a
revisto, você não vai conseguir recup era r ,HJuda pepita, aquela parte que conscientização de sua existência, p or parte <la mulher, como um fo.rte
está faltando; e isso deve ser feito no clillla de Eros, como um gesto de fator de estruturação do ego. A questão do anirnus sempre deu margem
amor por si mesmo". A análise tambérn é urna briga erótica. a muita discussão. As feministas acusaram Jung <lc apresentar uma ima-
Na abertura do seu ensaio sobre a Psirologia da Transferéncia, Jung gem elevada da anima e outra muito negativa do animus. Não concordo
reproduz a epígrafe: B ellica pax, •v1t!n11.1· tlulr,•, suave ma/um • (Uma paz com essa crítica. Jung postula a isonomia entre essas duas instâncias
belicosa, u m a ferida doce, u m ma.! suave). h so é o trabalho psíquico e arquetípicas. São estruturas paralelas, cada qual regendo uma esfera
isso é a transferência. ~ando esse pac:icnt..; está lutando judô com a própria. Há uma certa tendência d e se referir amb< >s os fenômenos à
japonesa e ao mesmo tempo ele sente atra<:ão por ela, aí se encontra mesma pessoa, mas esse não foi o pensamento de J u ng.
uma belíssima indicação de qu e entrou na trilha certa para trabalhar O que Jung entendia é que a m ulher carrega dentro de si um com-
com a anima. ~al é minha atitude? N rw vou ser o juiz dess:a luta, mas panheiro que, numa fase inicial e menos conscient<: de sua vida, pode
o espectador que torce e o in centiva a d,u· uma gravata nas emoções que atordoá-la com uma torrente de autocríticas e opiniões rígidas, avessas
o fizeram s<:ntir-se cronicamentc derrotado. ao teste do contraditório; numa fas e subsequente, d epois de observado
Passam-se quinze dias, e agora el e so nha que está lutando com um e reconhecido em sua influência, esse interlocutor interno pode levá·•la
psicopata qu e o ofendeu. O proble ma extrapola a esfera da anima, da a territórios cada vez mais elevados ela reflexão que, em última instância,
emocionalidade negativa. A au topcrccpç·ão expressa no sonho - não no é o da compreensão espiritual da vida psíquica. O arquétipo do animus
discurso do ego - u sa um termo pesad o para qualificar o autoengano é portanto, para a m ulher, o arquétipo do conhecimento da verdade psíquica.
como um aro intrinsecam ente imoral e lesivo à consciência. O que vou Acho essa uma colocação inovadora. E para o homem, o arquétipo da
observar agora? ~ e o caminho avança: do bandido, a quem o paciente anima é o que lhe p ermite o conhecimento da verdade amorosa. Por que ele
pretendia enganar, passamos para o psicopata, com quem luta. O con- diz isso para o homem? Porque a p sicologia feminina é mais apta a
fronto está Instalado, o ego assumiu uma posição frente à negatividade caprar a realidade d <!sse sentimento.
inconsciente. E assim a terapia prossegue.
Mais Sonhos
Animus/Anima
Agora o segundo exemplo. Trata-se de um homem na mesma fai xa
Perguntam-- me por que Jung debruçou-se mais sobre a figura da ani- de idade do anterior e com uma problemática parecida. Um sonho
ma do que d e sua contraparte na psicologia feminina, que denominou seu que me pareceu muito significativo exemplifica um tipo sirnpk s
animus, espírito. É por ter j1Jlgado que nesse assunto as mulheres é que de simbolismo. Eis o relato: ele está andando de Komhi na rna d11
deviam tomar a palavra. N ossa colega e amiga Fabíola da Luz escreveu bairro onde passou a infância. De repente a rua acaba e a l<ornhi 11 .11,
pode continuar. A rua acaba como se o chão tivesse ti: rn1i11ad< ,, t· 111 11 ,

2. Epígrafe de A Psicologia da T m nsferéncia, em A Prdtica da Psicoterapia, vol. XVI das


Obras Completas. 3· /2' História de Tohias - Um E studo .wbre o A nin111 s ,· fJ J>i,i. S,111 l '.11il .. , I· •,, 11 1, , , 1., . ,,

RO B E RTO GAMBINI .'\ \' Cl , 1 f 11 1 1 i\ l l ' t 1 .


a Kombi cai num plano mais baixo, qu e {: ,)utra rua; aí ele bate nos nesse ponto? Ele descobre uma saúfo d e 1·111 cr,e;f1H·ia. Isso sig nifica qu e
outros carros e fica preso dentro ele seu veículo, achando que não a saída já existe, ou que ele pode vir :1 d cscnhri l:1. 1'('11:m: "É possível
tem saída. De repente ele percebe qu e na Kombi há uma saída de achar uma s,úda, ela ainda não acont(' t'C ll 111:1 . , ,·-, 1:1 1·qrn, tl' lad a, ou sejt".,
emergência, bastando deslocar o p:1r:1· 1iri sa. Ele sai por essa abertura a trama inconsciente armou a possibi lidade de 11111 :1 -, ,1íd:1". Se a tram f.
levando consigo uma bicicleta. O que l'ssc paciente diz é que não vê inconsciente não a tivesse armado, de nada adi :1111 :11 i:, 1, l\'r:q>( 'Ul"a s uar
saída para a situação em que se c11rn111 ra, que sua vida chegou ao ponto a camisa e tentar fazer as melhores i11terprcl:ll;11t", d1 , 11u11 1i l11, porq ue
que chegou e não há mais rcJll édio, qu e k11111m emprego que abomina, não passariam de meras palavras. A interprc Ll\':t() ,·. ,.;•, ·11r11 11111 i11 stru -
que está vivendo uma vida qu e dl'tl' s t:i, e cp1e não consegue imaginar mento para captar o que está acontecendo no i1H't lf1 ',<i1·111 c·. /\ a\·fi1,
como tudo isso poderia m11d:1r. No pl:1110 consciente ele diz: "Não está aí. Enquanto o in consciente não engendrar o :1r, l' ll: I 'I'" d.1 -.:1i'd:1 ,
tem saída". E esse sonho es1:í rvi d1·11ft'nw11tc comentando algo a esse que nada mais é que uma ordenação do pensamc 111, , :1tn ·l:1d1 1 .1 11111 : 1

respeito. De que nos faLi c~sc ~rnilw ? Prin1d.ro de uma Kombi; uma nova possibilidade de agir, não tem saída mesmo. Pod ·· l1 avt·1 , , ,r1 •,,· ll1, ,,
rua que acaba; uma mudarn;:1 dl' nívi-1; :1 descoberta (aí esti a surpre- conversa, encorajamento, sugestão, mas não tem saíd a d1·1iv.1. l•: 111:11,
sa) de uma saída e, depoi s, :1 hir i1·k1:1 . S íml,olos. Se você tiver algum aqui vejo: o arquétipo da saída~ que remonta ao passado a11i11 1:il , l1 ,11 1lt·
acesso a essa linguage m t: p1 >t,h ÍVl'I 1radu '/,ir esse sonho em termos que da emboscada do predador, ou seja, a possibilidade d e fii g ir t· l" ,1 ,q ,.1
a consciência entenda . O <j lll' s1· pt>d t· di %er> Bom, há algo que ele faz salvando a vida, aqui aparece de maneira prosaica, mas, Sl'. , 111 i '.,1' n 11, ,.,
que já se esgotou. Pa sso c111:111 :1 falar no sc;~uinte estilo: o jeito de se amplificar, chegaremos aos labirintos cuja saída é um desafio ,·1 ,1 ::1t 1t i.1
sentir Korn bi na vida c f'iq r li1111 ·ionando do mesmo modo desde a e à coragem, ou às cavernas com corredores e passag~ns qu e parl' n ·tt ,
infância cst:í csµ;M :1<h O q11L' ,: uma Komhi? É uma coisa pesadona, nunca mais se abrirem para a luz.
antiquada - ela é útil, mas nfo ll' tn ~ra\·a nenhuma. Serve para carre- Foi ele mesmo, n o sonho, que percebeu que havia uma saída d, ·
gar volume:; pesa dos, para I r:ibalhar, ma:; não tem o mínimo charme, emergência. Isso significa que esse indivíduo pode usar os peq uc un•,
dificuha a visão cxtcrna, é um t-rambolho, um veículo antiquado que recursos de que dispõe para redirecionar seus pensamentos. Q1aJ {- ;1
não se modernizou. atitude do terapeuta? É fazer o paciente pensar, porque, como a sai<la
Esse homem estava se sentindo sem grnç;1., sem o menor atrativo pes- está constelada, se ele pensar de uma forma nova será capaz de chegar
soal, achava que as mulheres não viam nele nada que valesse a pena, ele a uma situação diferente. E a bicicleta?
também não via em si nada que prestasse, estava um pouco gordo, era Vejam, então, a progressão das imagens: Kombi n a rua do passado
uma Kombi personificada. Agora, o que diz o sonho? "Sai desse nível que se esgotou, mudança de nível, aparece a saída de emergência e então
que já se esgotou e entra em outro." Ao mudar de nível ele tem um cho- a bicideta, ou seja: _ele não vai mais andar de Kombi, mas vai pedalar. O
que, acha que agora vai ser pior ainda (o m ~do de mudar), porque diz: que é a bicicleta? E a força própria, ele tem que transformar a própria
"Bom, esgotou, mas se eu mudar vai ser pior ainda". É uma imagem de energia em dinamismo motor. E a bicicleta não precisa de rua, faz-s L:
medo, porque no sonho a Kombi bate nos outros carros. Então parece o caminho conforme o terreno e o rumo. Portanto, aqui já entramos
que é um grande desastre, que agora vai ter sangue, vai ter morte, vai ter num l:ampo mercurial, de transformações. Não é preciso uma avenida.
não sei o quê e que ele vai ficar preso dentro dessa nova e infeliz situação, O padente talvez diga: "Só posso mudar minha vida se tudo estive r
ainda pior do gue antes. Não tem saída. Mas o que acontece no sonho bem definido e traçado na minha frente". Não, a bicicleta sintetiza a
ROBERTO GAMB!NI
A VOZ E O TEMPO <) 1
energia necessária para que ele consiga faz er um ziguezague conforme frágil casquinha de noz, e se tiver sort'e vocí· ftt r:i vt ss; 1ra a vida, em cim a
as demandas de suas circunstâncias. dessa casquinha, sem afundar". Se o b,1.rn1 vir;1r, ., p< •i,..,, >:l perdeu a base,
Não será isso um mero otimismo dn lcrapeuta? ~ando é que sei por exemplo num surto psicótico. ~ w rir ('()11 :.t')J,Ui l' 11:idar, rn crgu lhar,
que caí nesse estado? Tenho que analisar, tenho que checar. Então vou debater-se, sair das águas e voltar para o harq11 ir il ll , , , cl11111a ;1 poi< i\·:10 l:rH
observar como o paciente está, pode sl: r gue na sessão seguinte ele que se navega sobre as grandes forças do i11çom rn ·111 1·. I·'. .11 : <jlll' r :id a um
esteja pior do que na anterior, pode s<·r que durante um mês ele fique faça a ma viagem do jeito que conseguir, poi :, a vr·11h k ,. ,.. ,,,a: 111 ·,,, 11ao
mal, ou durante três meses. A checagem não é assim imediata, Lfia sessão estamos em cima de terra, mas flutuando sobre 111 1, < •11 .1111, '11 w,,, 11 11awl
seguinte. Tenho que saber como é que avalio o processo em curso e uma O que significa isso? Não sabemos medir, nem vrr di ll:L, 1111 111 1•,, , q, ,,. j111
das maneiras de fazê-lo é observar o so11 ho seguinte. no fundo do inconsciente coletivo, cujo melhor sí, 1ti lu l,, ,· , , , 11 .11
O próximo sonho: ele está num harquinho no mar e nesse barco há Jun~~ nos diz que há muitos conteúdos que vêm ;\ 1111,,1, · 111 ,lit,•1••111t·•·
um aparelho de sonar, que l.t11\·a pulsos ,Jc onda para m edir a profun- momentos da História; num certo período um q11111' 1.1 d11 ,. 11 w 1 ,I'. • < 1·
didade e detectar o que há lá no füudo . Esse sonar está ligado a uma aHsimilado pela consciência; posteriormente, outro. Na vi •.;1, , j,1111•,11 1.111 ,1
maquininha que faz um gráfico no papel, que ele obsern. Aí começa eHse fenômeno é responsável pelas grandes mud,r. nça~ k va i,,,, .. 1· , 1,
<

a aparecer uma indicação no p;r:íf ico de que lá no fundo do mar há um mentaJidade em certos períodos históricos, preccdcn, l< > :I', 11 111 , 1., 11 ,, ., •
cardume de baleias. Ele fica olhando o grMico. Depois ele está fora socioeconômicas e políticas, que justamente decorre ri am, -. , · 111 , l, 111',

do barco e alguém enfia sua cabc,;a na .í.gua, ele sente que aquilo é um ter sido a causa primeira, da aparição de novos conte údo:: 11 11 i ·" ''I'"
afogamento e levanta a cabe,.;a. da consciência coletiva . O mar é um demento perfeito para 1n vi 11 ·1 ,
Qyal é a estrutura do sonho? Ternos o sonhador e esse "alguém" que projeção de algo profundo e desconhecido, porque observa11do <, ., , , 1 1

tenta afogá-lo, o mar, o barco no qual se encontra, esse aparelho que pode ver sua superfície ondulada ou espelhada. Desde que o h o 111 · 11 1 <'
permite a visão do fundo; ele olha para o gráfico e fica sabendo que lá homem o mar recebeu essa projeção e até hoje ainda recebe. O s dw·,
se encontra um cardume de baleias. Essa é a primeira parte do sonho. grandes elementos, o mar e o céu, desde o Paleohtico, abrigam 111yll"J',
Na segun da é que alguém enfia sua cabeça na água, ele sente que é um a fantasia religios:1 projetiva.
afogamento e a levanta. Lá está então meu paciente levando sua vidinha de ego sobre o ma 1.
Qyal é O elemento mais importante desse sonho? O sonhador num E o sonar? Vejam, é esse sonar que permite saber que existem baleias.
barquinho no mar é uma coisa e a baleia é outra. Voltemos à <iJ.Uestão da Então, o que digo a ele? Só podemos saber das baleias indiretamente,
necessidade de se saber algo sobre simbolismo. Se você nfto souber nada n~io as vemos. O sonho portanto diz ao ego consciente que no in..:ons ·
a respeito da baleia, pode mecanicamente dizer que a baleia é a mãe dele, ciente dele há vida, há força, há algo representado por um símbolo, e ele
que não é O que digo. Em certos contextos, a baleia pode ser um símbolo só pode saber que essas coisas existem indiretamente, através do sonar
materno mas depende da presença de fatores diferenciais. Jing usou e seu gráfico, que é a análise. Mas é preciso que eu saiba dizer-lhe o
' ·
· essa · no mar. L er.n bram-se.;i que são essas baleias, senão ele não fará conexão alguma, pensando 9u c
mmto 1magem de uma pessoa num barqumho
·
Jung dizia assim (cito a meu modo): "Vocês querem _um retrato, sem reto- n~to tem nada a ver com elas, que não são um problema seu - qu ando
ques, da precariedade do ego face ao inconsciente? E como v~cê e_star no na verdade são a saída que procw-a, em nível mais profundo do C] ll l' a
mar, num bote. Isso é O ego. O inconsciente é o oceano e voce .esta numa saída da Kombi em que ficou preso.

/\ VOí'. I•: O TE~t 1'0


R<)BERTO GAMBINI
Anim.ais e i'Vlatlria Simbólica repen te começa a aparecer um vulto 1·11or11u· (jlll' , ,arc1·e 11111 subm arin o
se aproximando. O mergulhador scnt i11 11111it11 11 ,l'dn (1·111110 pos terior-
Como men cionei na palestra preced c11tl', l' preci">o conhecer certas pecu - me nte relatou). E le .fica ab solutamcnt 1· i11111v1 ·I l ' aq111·l, · :111i111al in1cnso
liaridades da vida animal p:.ira p o d er L' 11tcrn kr como se tormlram matéria se achega e roça ~eu corpo, como que 1ú l'l1d1 ) 11111 1·.1 1i, ,1111. /\ l>ak ,a viu
simbó lica. A s baleias, ao lado d os dics l' µ,~1t ns, se rpentes, peixes, pássaros, o merg ulhador e quis fazer um contato, IPl':11 1tl,1 " l1•111·11w11 tl' . 1: ,l, nc:;
cav-alos, m o rcegos, lobos 011 sapqs - 11 ,l VL·nl ,1de, :i rigor, a fauna como um como esse ensinam m uito sobre projet: ôl's 11 cg.11 '" ·'" 1· l1 •1.1 i•,
todo - receber:1.m projeções de to dns os t ipm, por parte do ser humano, M e ncionei o filme para o paciente q ue, claro, •h· 11d1, 1, 1·111 111'1n·11 1ad1 ,,
como se fosse m espelhos. Um:1 qucstan mu ito séria, que levou a ações j á sabia disso. Usei então palavras d o segujnt l' tip , i:
predatórias e destrutivas de lo n~o :tlcanç,-, são as projeções n egativas
Olhe, nesse seu sonho es tamos vendo que ce rta~ co i, .,... , 1'l ',, 111 1,, ",•111 ·, r,1.1 ~·,
que recaíram so bre certos a.nim:1i s. D.1 li sta acima, separemos a b aleia, o
ou "se nso de orienração" que você n ão con hece e m:ga , 11 11", 11111 . ,.,,, 11 11 , ,,,,i ,,111
gato, a serpente , o m o rceg,'), o l,iho e n sapo. O homem sempre projetou
O so nar comprova que existem. Então, você está recc l,n1dt1 1111 , ,, 11 , 1," 11 , 1,, ,1,
maldade n a b:1Jei.a, pericuJosidack, ins tinto as!!-assino. Lembremo-nos indireta provinda de um nível profundo seu. N ão ad i:11i1 :i p111 ., , ,d 11 1 111
de Moby Dick. Essas caracrerbl'irns n:\o s:10 d a essência da baleia, mas á1-,r ua e querer olhar direto, porque você se afoga. Você nan I'""<' , ,li, ,,, 1 11 , 1 ,,
do ser hu man o . Sempre h 0uve um:1 ,:.,r:1.n:1 <'Xterminadora com relação às inconsciente diretament'c, co mo quem to ma LSD para co n 1" '' 1·1 " ,1 1,•, d,, 1.id,
baleias e :linda h oje, apes:Lr d o •, avan~·o s do est·udo do comportamento Fazer i~so equivale a uru afogamenco, p o rque a terra e o 11 1:11." , , ► 1, ,., 1, 11 1,
e o inco nsc ie nte sf o d ois mundos. Não po demos p e11e tra1 1,c, "" ,, 11 ,,, 11 ,, 1,
a nimal , é pouco o que se :,ah c .1 respeito delas - ou das tartarugas! E las
d ire tame nte . Então tem os que aprender ú que é o son ar, q1 11 · 1: ; 1 , 111 .,. 1 11111 1
têm um modo de funcio 11a r q11 c :1 ciênci a não explica ainda. Algumas mcdiána.
espécies migram segu in do sem pre a mesma rot a, do Hemisfério Norte
at é o Sul. nad am sem parnr e fi na lmente chegam à mesma praia onde E prossegui:
procriam e ond e nascerair . T od o ano elas vão e voltam, orientadas como?
As fantasias ind cam que existe a lg u m .1 co isa no i 1 re rior de u,na p,•, ,,,,, 1
Ninguém sabe explicar. S abc-:;c que são capazes de em itir sons de uma E t1se so 1ar pode se r com o um capr:ido r d e fantasias.
ce rta frea uência que se p :·opa!!am pela água e t ransmitem info rmações.
T eriam e· as uma linguagem? Orientam-se pel a posição do sol e d as es- _Por exe ~pl o, a lguém insa ti s fe ito c:> m seu e mprego ac ha que 11 : 11 1
trelas, pel as co rre n t es marítimas? Parece q u e se comunicam canrando! O vai conseguir n ad:1 m e lh or; mas, se so uber entrnr na e~fer a da fa tHasi:1 .
que é que a ba leia pode representar? A balfia rep resenta o Self, u m nú cleo dt· repe nte pode pescar alguma inspiração qu e ve m direto do i1wo ,1s
d e fun cionarr e nto d o ser h u mano do q u al só temos uma pál ida ideia, cie nte, como o pei.xe 1'e m do m ar. I s:-o se ria o so nar, utilizado para
d o tado de recurso s que o ego n ão co mpreende e com o qua.l manté m fin s p n ticos.
0
uma relação e xtremamente p c,b re, porque projc;ta fanta sia -; , o ti ,do, o u O p.tc ie nte es ta va d t.: primic.lo q ua ndo e11trou no consultório, mas dis-
n ad a, sobre ef~ a instâ n ci;;,_ que man té m o barco sobre a água. se qu~ cstava bem qua nd o saiu . P o r qut ago ra ele se sen t e bem? Porqul' ,
Vi urr. filme d o explo rado- m arítimo Jacq11 cs Cou stea u que nun ca arraves de ssa sess:io, d t· aJguma m a ne ira, ele entrou em contato ,:orn
vou esquecer. Pela prime ira vc1,, co m um ,. câma ra subaq u ática, u_m mer- aquela parte sua rçprese ntada p e la baJ t." ia . Como terapeuta, sei que :'is
gu lhad o r filmo u aqu ela bal eia d e trinta e cin co metros d e comprimento, VC Les é possível propici .Lr essa co n exão, o utras vezes não. É essa hi st <'>ri:1
a ma io r de to.la s. Nas prirneir:lS ce n as vê -se al'e nas uma águ a tu rva e de que m e cabe acompanhar, exercendo o o ficio e roendo se us o ssos .

roo íl C II P. ln O GAM8 1 Nl A VOZ F. ll Tl-'. 1\11'0

1
e não se escondendo. Ou seja, o sonh o prescreve extroversão para o
Sonho e Interpretaçrío, Ainda introve rtido deprimido.
Depois daquele sonho que acabamos de rnmcntar, o paciente teve outro: Qyando se enfrenta uma situação dessas é preciso ter uma atitude
ele estava numa rua onde havia um twrnilto, operários do sindicato terapêutica dara. Se esse paciente quif;er refugiar-se na depressão, ar-
fazendo uma greve, movimento de tra nset111 tcs, polícia, corre-corre. Ele gumentarei com seu próprio sonho, explicando que ele corre o risco de
vê essa cena, fica com medo e quer se protq.;cr. Atrás dele há uma porta, perder o caminho. Em seu caso, a depressão seria realmente uma esco-
daquelas de aço ondulado, que cst:í abaixada; ele a força porque quer lha defensiva para não ter que enfrentar os desafios da vida.Já outro pa-
refugiar-se atrás dela. Tenta levantá -la m:u, não consegue; a porta está ciente, com uma configuração distinta ou vivendo 11m processo diverso,
trancada. Então ele não pode se protl.:gL: r <lo tal tumulto de rua. Daí ele talvez tenha que entrar em depressão e viver essa dolorosa experiência,
diz que não dava para ver o tu multo, mas que este estava ocorrendo. E qu e no entanto pode promover um aprofundamento da psique. Há uma
aí o que acontece? Aparecem dois am igus s1:us, ficando um de cada lado. certa clínica em São Paulo na qual um paciente que estava abusando de
Ele dá a mão para um e para o outro,<' assi m fira entre ambos. Ele diz cocaína foi internado; quando fui visitá -lo, reclamou: "Esta clínica está
que "parecia uma corrente de saJ vamcnto. Sabe quando alguém vai se me deixando deprimido".Ao que respondi: "Mas é exatamente do que
afogar no mar, um dá a mão para o ()litro, para o outro, para o ou tro, até você precisa". Ele estava num estado maníaco causado pelo consumo
chegar lá? Então, nós estávarnc,s assim". Este é o sonho. abusivo de cocaína, ou seja, sua única saída seria a depressão, a neces-
Bom, regra elementar: você pcrgmit,l quem são esses dois amigos, sária e rigorosa introversão, o olhar para seu interior em silêncio, para
como eles são. Porque você es ta rú supondo que esses dois amigos re- contrabalançar a atitude extrovertida excessiva que o empurrava cada
presentem aspectos do sonhad úr, aos qu,ús ele tem que dar a mão. O vez mais para o mundo externo e suas loucuras . Mas ele conseguiu uma
sonho diz que não é para ele se csconder atrás da porta, mas ficar na licença psiquiátrica, foi correndo em bu sca do que necessitava e nunca
rua. Existe tumulto ou não? Será que nãc, é o medo que só existe em mais voltou - nem para a clínica, nem para a análise.
sua mente? O sonho parece indicar: não introva ter, não se esconder atrás
de nada, não ficar dentro de uma toca, não ficar fechado dentro de casa Transferência
e de si, m as assumir sua presença no mundo.
Qyem são esses amigos? São colegas de profissão e me ncionei Considrremos agora alguns sonhos que aludem à transferência. O já
anteriorme n te que ele está insatisfeito com seu trabalho. ~al é mencio1:1ado ensaio de Jung sobre a Psicologia da Transferl ncia não é facil
uma característica desses amigos? Em que diferem do sonhador? Ele de ler. E seu único texto publicado sobre o assunto, e nele o autor vai
respondeu: "Gosto muito de 11m deles, porque é muito sensível". Eu até o fundo da questão. (2.liem se propõe a praticar a análise na tradição
pergunto em que sentido. "Ele fala das coisas que sente." E o outro? junguiana deve estudar atentamente esse texto. Para Jung a transferência
"É uma pessoa muito inteligente, que se destaca, porquê sempre que é o alfa e o ômega da terapia, mas não uma panaceia. Para um pacicnl'c,
há uma reunião ele fala e e.xpõe suas opiniües." Vocês entenderam, trabalhar a transferi~ncia com todas as suas explicitações é um remédío e
não é? O sonho está dizrndo : meu amigo, ass uma a sua sensi bilidade para outro é um veneno. O terapeut:l deve saber quando conv<.':m :iho rda
e sua inteligência e vá p ara a rua, para o mercado, vá batalhar, vá se -la explicitamente e quando não. Uma análise pode pcrlc itarnrntr di ·.
posicionar, porque se você quer chegar a algum lugar será por essa via, pensar o discurso focado na transferência, embora ela se111pn· 1", Í:-.ta .1

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102 RO liE RT Cl G AMBINI

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questão é saber se ela deve ser tratada sem pre d.a mesma maneira.Jung, escolas junguianas, como por exemplo a de Londres, não é r~ssa a atitud e
como é sabido, discorda da linh a freudian:l segundo a qual a interpreta- adotada, pois seus adeptos postulam que é preciso trabalhar exaustiva-
ção da transferência é condição sine q1111 11 0 11 da análise, ou seja, conviria mente a tran sferência. Vo n Franz declara textnalmcnte, nesse artigo,
incentivá-la, provocá-la e interpret;'t- b para fi nalmente d issolvê-la. A não concordar com a posição assumida pda Escola ele Londres. Vê-se
maneira junguiana de trabalhar a tran sh:r(: ncia. é radicalmente distinta portanto que o assunto é polêmico mesmo no interior da comunidad e
da maneira freudiana. No ern;aio a qu e ;iludi, Jung diz, textualmente, junguiana internacional, não há unanimidade. I sso é bom ou ruim? Re-
que não o escreveu para principiamcs, rna:; para pessoas com suficiente pito, isso é uma questão de escolha de atitude e de orientação teórica.
experiência do assunto. Considera pnivisúrias suas observações e enfa- A transferência, diz von Franz, se instala na primeira fas e do processo
tiza que é preciso muito, muit o estudo nt·ssa área. Na abertura, como e o analista deve aceitar aquilo que foi transferido sobre ele e desempe-
já mencionei, de parafraseia os al<ptirnista:-; e declara em epígrafe que a nhar um pouco aquele determinado papel., pois essa é uma necessidad e
transferência é uma paz bc•licos, ,, 11111t1_J;'r id,1 doce, um mal suave. do pacien te. Muitas vezes constela-se uma transferência m aterna, espe-
O procedimento de Ju ng é, ) scµ;nintc: de escolheu um texto alquí- cialmente se a analista for mãe. Mas eu já recebi muita projeção materna,
mico, onde há uma série de µ; ravuras, e considerou que essas gravuras no caso de pacientes que precisam ser cuidados, precii,am sentir que são
representavam aquilo que acn ut cçc no fenôme no da transferência. En- amados, da maneira como são. Há de sua parte uma urgente necessidade
tão ele passa a analisar cada u r11a d essas imagens, algo que reproduzir de ter a vivência de um sentimento ou atitude provindos do âmbito
aqui nos levaria longe dei ru is. materno e, nessa linha de trabalho, não é o caso de você chegar para o
Outro livro que também g, ,sra ria de lhes recomendar é de Marie- paciente e começar de imediato a desmo ntar esse com plexo. Não, vive-
-Louise vem Franz, e se chama A y choth erapy. T rata-se de uma coleção -se com ele ou ela essa situação duran te al~~m tempo. Atuando a partir
de escritos que estavam e:;p,us, >S cm várias revistas. Esse livro t~ muito do arquétipo materno, você o ajuda a crescer, você o nutre, dirige a ele
importanre porque trata de assH ntos como: a função inferior, a imagina- seu olhar e sua energia, at<: chegar num ponto em que será fundamental
ção ativa, a dimensão religiosa da análise, a atitude religiosa ou mágica como.: çar a desmanchar essa projeção, porque, é bom sempre lembrar,
com relação ao inconsciente, alguns aspectos da transferência, projeção, toda transferência é uma forma de projeção. Chegará o momento em
psicologia de grupo, a visão de Jung sobre as drogas etc. C om relação à que o analista deve dizer: "Já é hora de você mesmo cuidar de seu cres-
transferência, surpreendentemente e a despeito de sua inquestionável cimento e pegar nas próprias mãos isso tudo que tenho carregado por
autoridade intelectual como exegeta de Jung, J\,,1arie-Loui:-;e von Franz você"'. Esse momento deve ser avaliado com extrema precisão.
declara-se insuficientemente qualificada para pronunciar-se sobre os Agora, o fundamental, já que vou ter que resumir aqui algo vasto e
aspectos mais profundos do fenômeno, uma vez que o próprio Jung, profundo, ou seja, a diferença entre a postura junguiana e a freudiana, é
quando terminou sua última grande obra, /'v!ysta ium Coniunctionis, afir- que, no primeiro caso, a transferência envolve uma dimensâo arquetípi::a
mou não ter esgotado o assunto mas ter ido até onde conseguiu chegar, e não apenas uma dimensão pessoal. G.!ier dizer: numa sala temos du as
havendo ainda muito a ser dito sobre esse com plexo tema, pessoas entabulando um relacionamento íntimo e uma está incons-
Na PsicologiaJunguiana, para tratar de t ransforência, há antes de tudo cientemente projetando algo sobre a outra, mas a questã o transcende
uma atitude de respeito e de uma certa humildade com relação ao tema , a ambas e é maior dl) que a equação pessoal que a ambas envolve. Ora,
tanto por parte de Jung Cl)mo de von Franz. No entanto, em algumas isso não (: nada fácil de elucidar, para nã.o dizer dissecar. O que Juii g

10 4 llOII ERTO C.AMRTNT A vo;,. E O Tl-:1\11'()


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pede é que se ten ha em mente sempre que o que está em jogo pode ter O que ele quis transmitir para Mary Mcllon é que, se suportasse a
urna dimensão e um significado ínsuspcitados. frustração, ela acabaria sentindo dentro de si a abertura de uma dimen-
O que está em jogo na transferência é nHtitas vezes a questão do amor. são para ela ainda desconhecida.
A tração física, vontade de ter uma rclaç;io conjugal, vontade de teí uma Então, vejam, se você reduz o que está acontecendo entre o par
experiência concreta. Isso é o que pode parecer, isso é o que pode ser analítico a uma dimensão apenas pessoal e ignorar a arquetípica, você
sentido, até de maneira dolorosa, pelo paciente homem ou mulh er (a perde o grande e fica com o pequeno. E ssa é uma discussão muito im-
combinação dos sexos aí não impo rta), porque muitas vezes o que tem portante. Não existe esse diálogo entre junguianos .,; psicanalistas p ara
que ser trabalhado é a frustração ou é a clnddação do que sente um e debater essa questão. Para Jung o hierosgamos (cm grego, o casamento
do que sente o outro. É uma exp eriência pessoal., mas se tivermos em divino, a união de deus e deusa) é o mais apto símbolo da transferência
mente que esse fenômeno tem urna dimeu:-;rto arquetípica, o que está em porque í:11guma coisa numa pessoa e na outra quer SI.! unir. É o mistério
j ogo não é o amor de um por outni, é a qu(:~tão do Amor com a maiús- da individuação mütua. Vocês já pensaram nisso? Num casamento ou
culo, e pode ser que o paciente - e o analista também - só comece a ter numa terapia pode estar ocorrendo um processo de individuação mútua,
contato verdadeiro com um:1 dinicn:;ão até então desconhecida do amor, ou seja, o processo de um afeta o processo do outro. Este processo não
pela primeira vez, ali dentrú daquela sala. Então se esse trabalho com pode ser reduzido e resolvido num plano rasteiro e literal, porque nesse
a transferência não andar bcm, essa experiência i niciática é abortada. caso deixa-se de compreender e interrompe-se um desenvolvimento
Jung se refere com extrema srnsibilidade a essa questão numa carta psíquico que pode ir mtúto fundo. Jung vê na base desse processo um
escrita em r94r para uma amcrícana chamada Mary Mellon, que fez casamento interior, o casamento ou unifi cação de fragmentos interiores
análise com ele e ficou apaixonada·'. É muito tocante essa carta, já a li que só pode ocorrer se houver amor. Esse processo de integração não
várias vezes. Jung tenta explicar para uma mulher que está apaixonada pode chegar ao fim sem uma experiência de amor, porque só o amor nos
por ele que o grande objetivo n;lo é que ele corresponda àquela paixão, coloca num estado no qual nos dispomos a arriscar tudo para atingir
mas que ambos se deem conta de que é uma coisa muito grande dentro outro plano de funcion amento consciente, com menos divisões e con-
de um vaso peq ueno. Entiio é preciso ampliar aquele vaso, para que flitos int ernos. Jung diz que só por essa via é possível a vivência do Self.
ambos possam crescer interiormente. Ele diz ~ue, no caso da relação
deles, o que estava em jogo era o mistério da conjunção. Ou seja, aquilo
Sonhos e Transferência
que podia unificar-se no âmago de cada um em consequência da relação
que tinham. São palavras de Jung, dirigidas a e]a: Uma paciente minha, que está, como todos os pacientes estão, lutando
com as dificuldades de sua vida, com as infelicidades, os sofrimentos,
Esse amor não é transferência ,e não é uma simpatia ou uma amizade no
os caminhos que não se abrem, as sensações todas advindas de uma
sentido ordinário, é algo mais primitivo, mais primevo e mais espiritual do
que qualquer coisa que se possa descrever.[ ... ] Aí não há distância, mas uma neurose, sonhou o seguinte: ela se encontra numa sorveteria e vê dentro
presença imediata, é um segredo eterno. de um invólucro de plástico um cálice de rubi. Pensa então: "Será que
é para eu pôr sorvete dentro desse cálice?" Ela não o faz, mas quando o
4
. Carta de 18 de abril de 1941. C. G.]ung Letters, Princetoo University Prcss, 1973, vol. 1, toca com a língua, sente que é doce. Ela achou o sonho lindo, devido à
PP· 2 97- 2 99. exuberância da imagem do cálice de rubi - mas não basta achar li11do,

J06 ROBERTO GAMBINI


AV(lZF.1lT F.l\1l'O !Oi
é preciso alcançar um entendirn.ento a res peito do que essa pre ciosa rênc:ia, hií uma imagems em que o rei e a rainha, nu s, estão entra nd0
i magem encerra. Aí entra o conhcci111 c 111·0 ck s.i mbolismo. O que é a numa espécie de banheira, chamada "fonte de mercú rio", para o banh o
sorveteria, 0 que é o sorvete, o que é n doce, o que é o vazio, o que é o alquímico transformador. Jung interpret;1 essa ce na com referência ao
rubi e o que é o cálice? O cálice é o lu ga r ,mde se juntam as substân- par analú:ico, mergulliado no processo psíquico. Se i1iterpretarmos essa
cias. Esse sonho alude à transferê ncia. /\ ind icação é de que na psique imagem ,apenas no plano corpóreo, ou de sati sfa ~· ão de ck:sejo, o verda-
da paciente já existe a possibilidade dl' se unificarem substâncias até deiro sen tido se esvai. Um desejo existe. E la se desnuda, é apreciada e
então separadas. Por isso o cálice <- prn·ios,>, vermelho como a p aixão. o detalhe: da celulite é int eressante, porque a ccJulite é um acréscimo , é
Percebo a transferência sutilme11tc t'X pn:ssa através do sonho. No mun - como se t :la estivesse dizendo: "Você está me vendo co mo sou, mas tem
do interno dessa mulher há um ,·;í(in:: da p,1ixão, da transubstanciação, muita coisa aqui que não sou eu, são coisas com qu,_: foi me encobri n-
do Graal. Aqui estou amplifi cando, como é fácil perceber. É preciso do". Ela c omeça a p reparar o banho e o sonho deix a cm suspenso se o
conhecer esses cálices todos, csp1·ciali11cnl'c seu sfmile, o vaso alquímico, analista vai ou não entrar no banho com ela.
receptáculo imaginário onde se j1-11Ham o feminino e o masculino, o ma- Na sequência da::; imagens do mencionado livro de Jung, o ca~al
t erial e o espiritu al, o conscíentl.' e o incons( icnt,~. O equivalente desses entra no banho, e em se6•1.iida envolve-se num enla._:e sexual embai"Co
processos sutis d e conjunção d e opostos é a própria transferência. Mas da água. Os dois ei;tão imersos em território inconscie nte. Depo is
l ~
eu sei onde estou pisando; a im 1gl'll1 do cúlice me orienta e me ajuda dessa imersão amorosa eles adquirem asas, e na cena seguinte estiío
e ter lucidez. N ão tem o essa transfrréncia e não preciso me proteger
interpondo anteparos, limites, di stâncias, palavras explicativas, p orque i /i'
1
mortos. Dos cadáveres eleva-se a alma sob a forma de um passarinho.
Cai a chuva. O casaJ renasce num só corpo com duas cabeças, uma de
já está dito no sonho em q11c m·vcl está o q ue é real e não ilusói:io. No 1
homem e outra de mulh er. O final da h is tória é a união dos oposto s,
começo d a sessão, a paciente d eclarou que se sentia absoluta.mente
simboliZ;:tda pelo hermafrodita alado. Se eu não conhecesse isso n ;io
vazia; e ela acho u essa coisa preciosíssima, o cálice vazio. Achei muito
poderia abordar a imagern do analista e d a paciente entran do no banho
importante ela não ter posto sorvete no cálice de rubi, porqu e seria
e perceber que se baseia num arquétipo d o inconsciente coletivo, o da
incongruente usar uma joi:a como cone de sorvete. O sorvete é apenas união de opostos int'ernos.
um prazer sensorial. A do1;ura do rubi remete à ferida doce dos alqui-
Para ti:rminar, um sonho de trarn;ferência de um homem, que tam -
mistas,já mencionada. A transferência dói, mas é doce. O amor dentro
bém é terapeuta e sonha que ele e eu temos uma clínica juntos, num
da transferência faz sofrer mas, ao mesmo t,!mpo, é terno. É um conflito
terreno muito grande. Estou lá com ele n a nossa clínica e lá está uma
exasperador; quem vive isso, sabe.
m~lher que foi sua p acie nte, mas de que m eu é que tenho agora que
Vejamos ago ra a situação d e outra paciente. Ela encontra c m seu
cuidar. Ela veio lá para pagar a ele o que lhe devia pelo tratamento
sonho a mim e a minha mulher, nos cumprimenta e nos abraça. Na
prévio e agora ela vai ser atendida por mim, na clínica co njunta. E s ta
cena seguinte estamos só eu e ela. Ela se d espe e elogio sua beleza. Ela
mulher veste um ta illeur "cor-de-gdo-porta-de-ho · pi·t I"
diz que está com celulite, eu não digo nada. Ela começa a p reparar um :s a e seu ros !'< 1
está todo pintado de bran co, como o de uma atriz que ele viu unia v,·,
ofurô para um banho com o analista. Na mesma noite eh sonha que
teve dois filhos, nasceram dois bebês. Eu podia ouvir esse sonho e ficar
representando a peç:t Es1,erando Godot (Eva
-r 1·1m a ) . E sst· e, o son 1 , >
1
w
apreensivo. Na obra de Jung, a que já fiz alusão, Psicologia da Tranifc-
5. T 1·ata -S<' da fii.,'l1ra 4, i rise rida no parágrafo 454 , o('. cit.
!08 l!O B F. R'fO CA MBINI

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1 llj

l.
O que v emos aqui? O analista es t,i n:cehendo a tarefa de tratar da inevitável que um faça algo pelo outro, represe nte algo p ara o o utro. Não
anima do paciente. Ele transfere para mim a continuação de uma tarefa se trata evide ntemente de dar conselhos 011 resolver pro blem as práti cos
que ele próprio completou até certo ponto, n:ccbeu a recompensa, mas do p aciente, tarefa esta mais adequada a um a tera pia ocupacional. Na
deixou a anima a meio cam inho, toda l·<)n rntl t rajando esse tai!leur e esfera p síquica, alguém p recisa cuidar do qu e aind a n ão n asceu e essa é
ainda por cima com o rosto pintado d e h r:tnco, Digo então : "Ela está a tarefa do analista. Depois que veio à l11z, co m ci;a-·se cuidadosame n te
desse jeito porque ela quer mostr ar que n;io gostou muito do que você a entreg ar o bebê p ara a mãe. O t rabalho mais import ante é na reali -
fez com ela". C o mo no próprio so11lio d e lembrou da atriz, p rossigo: dade aq uele feito com o feto, quand o só o terapeuta tem condições d e
"Talvez a sua anim a tenha as caractc rist'icas d e uma atriz, no b om e enxergar e valorizar aqui.lo que ainda não tem cara nem nome. Portanto,
no mau sentido, talvez tenh a u ma g rand e personalidade e precise de aceito sentimentos com.o dependência, gratidão, amor, ,:obrança, raiva,
um palco para poder se express.n , ma s es tá incrédula e desesperançada desejo de exclusividade e de atenção especial, por co nsiderá-los como
que isso venha a o.c orrer, co m o em f ,:.1f'arll7do Godot, que é uma peça inevitáveis nessa fase de gestação. O grande teste p ara um analista é a
extremamente n iilista, porque ( ;odot, corn iptc.la de God, nunca chega". hora que ele constata qu e consegue supor tar o p eso e a responsabilidade
Então sua anima, como b oa atri z t lUl' é, re vela sua faceta descrente de da transferência.
tudo. E foi tran sferida p ara o ;1nali sl'a a tarefa de analisar essa anima A s vezes uma q u estão transferencial, como vim os, é apontada p or
para que revele por fim su a verdad e ira face ocm disfarces e çomece um sonho - então abo.cda-se dire tamente o assun to. Caso contrá~io,
seriamente a çriar. Sabe m o qu e ac ont'<.:ceu c om esse paciente um o estilo junguiano, pelo menos seg undo a Escola de Zurique, é d e ir
tempo depoi s? Ele começou a escrever de um j eito como nunca havia vivendo o processo sem falar exaustivamente dele. Deixa-se acontecer
feito antes, e di z ia: "Não S<'i o q ue está acon tecendo comigo, mas estou observa- se. Se o pacien te também for terapeuta, este igualmente ob~
botando tal fúria p ara fo ra, qu e t enh o m ed o do que estou escrevendo". serva; se quiser fazer uma pergunta o analista pode se abrir com toda a
Essa é a a:•iima começando a se expressar. Na hora em que corneçou a coragem e sinceridade. Mas não esmiuçamos a tran sferéncia, ficamos
estabelecer um contato diferente, a grande atóz entrou em cen a, mas com a ferida doce.
não está mais .com o rosto pintado de branco e nem com aqude traje
formal, porque despertou nele uma indignação reprimida associada a
um certo episó dio de sua vida. Aquela liberação emocional através da
Um Bre'ue Relato
escrita era tudo o que a a1lima queria. Term ino com um relato que ouvi de meu analista, o Dr. Karl Heinó ch
Fierz, em ~eus tempos de Zurique.Jung era muito corajoso. Ele passou
O Desafio Supremo por uma . s1tuação cd ~ica .d e transferência que teria apavora do a qualquer
um de nos. Uma paciente borderline entro u numa transferência amorosa
A transferência é o desafio sup remo da análise. Não existe receita. À s cada vez mais forte. Ela disse para Jung q ue uma voz lhe tinha decl ara -
vezes ela é um a carga pesadíssima, às vezes n ão pesa nada, em alguns
~º <jUe O amor deles era abençoado por Deus e que iriam se casar. / 111 w
casos atrapalha, em outro s ajuda. Seja como for, cm toda terapia o pmais negou o que ela d º · dº · · · .-.
rzia, porque enten ia que aqmlo .f azia parll' d l·
analista está carregando p ara o paciente algum aspecto que este não seu prooesso de cura,. Ela deli rava.· "]·3em, D r. J ung,eu pmarq11e1ad
·, ·
1 .1r :1
consegue integrar e que talvez ainda nem esteja manifesto. 'Então é ! do nosso casamento" . EJ.e perguntou quµ,n d o se ria. · r•,la
r.
l n·sp()11d('11 q 1w
11 0 1! 0 11E R TO G AMBINI
1
!\ V , ) ,, 1•; 11 1 1 /1 1 1•, , I li

i:
a data estava próxima. Mandou imprimir os convites com os nomes de
ambos, o lugar e a data marcada. Comunicou que já estava preparando
Dez Anos [>epois
a cerimônia. Jung começou a fior preocupado. Ele não sabia o que fa-
zer, mas tinha entrado nessa hisl'ória l·om t:tl c0Jt1vicção interior, que o
seguinte aconteceu: a paciente de rcpcnt~ ouviu a voz de Deus, quepe-
remptoriamente ordenava: ''Dcs10:1nrhc css,: casamento". Ela obedeceu
a essa voz suprema, como havia fr i ro ( íltn a c>utra., de muito menor peso,
cancelou tudo e declarou: "Dem; me duddou". O fato de ter "ouvido a
voz de Deus" teve um tremendo impacto regenerador sobre sua siituação
psicológica.Jung aceitou o dclíriio trnnsf~rencial, acreditando que fazia
parte de um processo maio r e JlltH ÍS prol'i,ndo de autorregub.ção.
1

il
1

IIZ ROBf.RTO GAMBINI

, '
.A Terapia como Ofício

Trin ta Anos e Duas Poltronas

SE E U NAo TIVESSE passado um longo período de tempo sempre na


presença de outra pessoa sentada na poltrona à minha frente, não teria
havido de minha parte elaboração alguma que eu pudesse apresentar
como merecedora de alguma atenção de um eventual leitor benevolente.
E se tivesse passado apenas um ano, poderia ter havido uma reflexão,
mas ela corresponderia a uma vivência breve. Essa longa lida, que a
outros qualifica para uma aposentadoria, criou um campo de escuta,
de fala, de busca, de reflexão, que foi pouco a pouco ger:ando ideias e
observações. Isso jamais teria acontecido se eu tivesse fu::ado sozinho
na minha mesa de trabalho, durante trinta anos, diante d~. uma monta-
nha de livros, uma folha ,.de papel ou uma tela de compurador. Porque
. do or Tim Gidal em 1960 no canto de sua biblioteca em
Página II4: Jung fotografa _P E C G Jun ,7 Word and Jmage, Aniela Jafé (ed.),
o que estou querendo apresentar aqui n ão é um produto intelectual,
que recebia visitantes ou pacientes. m . . " teórico, refinado e pesquisado solitariamente. O que qufiro apresent:u-
Princeton University Press, 1979, P· 146.
é algo qu~ jamais poderia ter sido feito na solidão, porque eu não teria
obília o mesmo abajur, o mesmo quadro e os
O esmo lugar a mesma m ' R b o material, eu teria que inventar, ou rever :-:i. literatura, ou d i.scutir teoria.
Página II5: m ' d tornou históricos. Foto d•! o erto
mesmos livros, depurados da presença e quem os
Não foi ai;sim.
Gambini, :2002.
A VO Z t,; () T l•: l\ 1 1'11 l i ,'
O encontro de duas pessoas criou um campo gerador de material de um certo tempo o profissional aJ, 11111 r• 11111 , 1, ,., ,1, 1111 •,l'guro e testado,
para reflexão sobre a vida - tanto a cxt·crna, 1-'a ctual e histórica, quanto o seja da srrtuação em que trabalha, seja dn 111.,1 n ,,ri , 11 111 'lll l' opera. Po is
p rocesso interio [, paulatinameni-c narrad< 1, <1uc evoluía, involuía, parava nunca se daria o caso etn que, apói: várí,,: .. 1111 111 , Ir• ,·11 ,·1n cin, quando
numa encruzilhada, atingia variados estad os de ser - o que também a maioria dos problemas, das queixas ou da:, ,, 1111 ,1v11", , 'l111 k a i; tivesse
dizia respeito a mim enquanto pessoa C t<.:rapeuta. ~er dizer, e u não sido expressa, um terapeuta pudesse confir11t a1 I'·" " 11 1 11 in 11111 : ";\h, isso
fui um agente constante e imut.ivcl durante trint a anos, deparando-me aqui eu conheço muito bem", "isso aqui eu sei ,·\ 1,11.11 " 1 "1r1•,<• aqui eu
com alguém em estado m u tan ti.-, niai s es tTnturado, menos estruturado, compreen do perfeitamente"- e então ele iria se 111 , 11 ,1111 11, ,.., ,d111r de si,
mais falante, m enos falante. N :io, cu t·:unb ém, n esse processo, tinha a senhor da situação, exínüo, maduro, como naturah, 1r- 11f r , k l1 / 11n•11 t·c
minha vida externa e interna :1fr ladas por processos ou situações es- ocorre eim tantas ou tras profissões. Por exemplo, u11 ,, 111 ·11r, i,111 pt;d 1• st·
sencialmente an álogos aos daq11cla pessoa sentada à minha frente. O sentir, com o passar do itempo, com um domínio tl CllÍ • 1 , , . 11111, 1,n h 1·
que eu mantinha, como é funçan <lc qual quer t erapeuta, era a mesma cimento especializado que legitimamente o tornam d o 11, 1 , 1., ,, ,, 11.11. 1lc , ,
postura de estar no exercído ck 11m papd , e fazer o trabalho que me Ou um professor, um en1presário, u1.n cientista, um const rut111 N , e, •. ,, .,
cabia. Mas eu era um parti cipai 1t c tão camh iávd, tão sujeito a va riáveis do terapeuta, pelo menos como entendo e vivo a profissã•,, 11 :H, , . 1•,t. 1111
quanto o pacien te. Nesse t<-rnpo todo passei por uma doença grave, atra- Porque sempre existe um dado indisponível, uma pergunta st·111 , ,···I" 1 , 1.1,
vessei períodos difíceis no plano p<'ssoal, acumulei conquistas, sucessos, um não--saber a respeito das leis profundas que governam a vida ,,., v, 1 .,
frustraçõe:-;, perdas, aprcnd izag'-: ns. ser, a relação entre mente e corpo. f: fáciJ teorizar e dizeir: "I--H um 1,, e,
cesso evolutivo de conhecimento de todos os componentes da p si, 11w, 1 lc ·
O "Q1./:,-
j te W· " úO
_, ,.,-,
.1. erapeufa
como a i.::onsciência funciona, de como pode ser alterada p or disfun \·• H ": .
e patologias, de quais as posturas terapêuticas mais promissoras . . . " e
Nesse campo, q ue represe nto como uma pequena área de dois metros bom ter essa retaguarda, ela nos orienta um pouco. :Mas a vida que n o s
quadrados, onde se situam dua.s poltronas colocadas frente a fm:nte - e cabe viver ainda é infinitamente mais complexa e enigmática do qut:
que, a rigor, pode ser em qu alquer lugar, contan.to que haja um p ouco de todo es$e acúmulo de um saber ainda fundamentalmente acadêmico .
proteção e privacidade - naquele diminuto espa.ço geográfiw ocorreram Não posso afirmar que toda e qualquer terapia terá um final feliz. Li-
coisas de uma tal intensidade, de uma tal riqueza e com tantas incógni- dar.~os _com vidas humanas, percursos e caminhos regidos por algumas
tas, com tantos fatos não explicados, que elas alimentaram uma reflexão varlave11, controláveis e por outras, certan1ente em maior n úmero, incon-
constante e cr escente. Certamente, cada paciente que entrou nesse trolá~eii, e não detectáveãs ou nomeáveis. E u jamais diria que um terapeu-
processo e nesse espaço foz a sua própria reflexão, para entender o que ta aplicaLdo, estudioso, criterioso e cuidad<>so, que supervisiona seus casos
aconteceu consigo, o que foi vivido. E o t,~rapeuta também faz a sua. e se cerç:a de todas as precauções, acaba com o tempo tornando-se seguro,
No meu caso, essa reflexão é fundamental, porque não encaro o ofício'
de terapeuta como sendo da mesma natureza que outros, em que depois
me re1~istra, o _Dicionário dí:. Etimo/ouia
, o- • a traba!lho agrícola • Ambas ..1s assoc1açoes
· - - ao
Opus A.lqwnuco e ao cultw o agncola - terão tudo a ver com O tr·tbalh t ª •
. . , o erape11t1.co,
1. Em latim, ojjicium se origina de O]~(i)-jici-um, de opuJfacere, fazer um trabalho, fazer como se verá mais adiant,!. Devo esse {"Sclarecimento a Adéli B d M
uma obra. E ,o termo opus, o mesmo usado na alquim:ia, diz respeito também, confor-
,. . .
que o elabora no P refaoo, que a bem dizer não sei se mereço.
ª ~-zerra e eneses,

rr8 1!0111-:R'fO GAMBINI


A VOZ E O TEMPO
u9
eficiente e senhor de si. Não. Minha visão do :lffiadurecirnento do tera- !I um enfisema pulmonar que o impedia de subir ladeiras ou escadas - e
1
peuta é o contrário disso tudo. Ele é alguém - é assim que me sinto - que Küsnach t, onde morava, é uma colina à beira do lago de Zurique, toda
cada vez mais se dá conta da limitação, do inexplicável, do imponderável, em planos inclinados. Lembro-me dele entrando vagarosamente na
e, ao mesmo tempo, do aparecimento do bcné-fico, do salutar, do restau- biblioteca em que me atendia, sentando-se com vagar e esperando a
rador, do reestruturador, daquilo que cri a fuümo, entusiasmo e clareza na respiração voltar ao normal para iJúciarmos a sessfo. Mas a partir de
mente, daquilo que aprofunda sentimentos, que leva uma pessoa a inovar, então eRe se concentrava e tínhamos conversas fantástkas. Eram seus
a criar, a transpor antigos problemas. Mi uha percepção desse conjunto últimos anos de vida; e1e veio a falecer pouco tempo depois.
todo é cada vez mais aguçada, mas nfío (011sidero que saiba o que causou Como sempre vivi e terei que viver do meu trabalho, alimento a
exatamente cada uma dessas manifosta\·h ;s, quando, como e por que, e fantasia e o desejo de poder fazê-lo até o fim de minha vida. Eviden-
qual teria sido minha particip,tção ativa, Pnclc pus e onde não pus a mão. temente "não posso" .ficar surdo nem mudo, mas até cego acho que dá
para .ficar. Acima de tudo é preciso poder ouvir e expressar-se, é preciso
lembrar e é preciso ter illm coração que sinta e uma mente que reflita.
Trabalho para Todtl a Vida
Esse é o analista mínimo. Mesmo paralítico, ele reflete.
Há portanto sempre uma reflexão r111 curso, que espero niio cesse nunca.
O desejo de um terapeuta, creio que de muitos, é poder trabalhar até
O Tempo e o Analista
o fim da vida. Até porque a gentr pode perder certas habilidades ou
certas forças, mas não a capacidade de t!Xcrcer o ofício. A gente pode Reflexão básica: o que é que aprendo com minha vida para poder en-
se locomover pior, ter meno", força física, perder certos recursos, mas tender melhor a vida do outro? O que é que fui amadurecendo, que
isso não interfere no essenci~l. Conheci em São Francisco um analista ilusões fui perdendo, como fui mudando meu vocabulário, como fuj re-
chamad,J Dr. Joseph Htnderson (r903-wo7) numa comemoração no -entendendo a teoria, o que o tempo fez comigo? Não assim: o tempo me
Instituto Jung de São Francisco. Qyando ele chegou, no topo de seus envelheceu. Mas: qual a mudança na reflexão que o tempo trouxe?
cem anos de idade, aprumado e elegante de terno, gravata ,e bengala, A modalidade de reflexão a que me refiro não é acadêmica, no sentido
e sabendo que ainda aluava como analista, solicitado que era pelos de tJue mão é um diálogo travado com a literatura especializada, nem ne-
colegas já maduros e experientes, parecia que eu via entrar na sala um cessaria1:::1ente voltado ao que os colegas estão fazendo e produzindo. De
majestoso carvalho antigo. Era uma coisa impressionante ck se ver, e certa forma, é uma reflexão solitária., originada num diálogo com outra
conversar com ele foi inesquecível. C onheci na Suíça muitoi; analistas pessoa, mas a partir de u1m certo ponto a referência básica é interna,
idosos e perfeitamente lúcidos, a maioria dos quais havia feito análise
com o próprio Jung. Tive uma analista, a Dra, Hilde Biswanger, filha do
fundador da Psicologia Existencial, Ludwig Biswanger, e muitas vezes
Caminho Personalíssimo
ela me atendeu deitada numa cama devido a fortes dores na coluna - N o início, a reflexão se apoia sobre um conhecimento teórico uma
ela ficava deitada, e eu na poltrona. Ela mal conseguia se mexer, mas , . '
tecn1ca e uma prática. O terapeuta pode optar por seguir o caminho
estava completamente atenta, funcional, conectada. Meu outro analista, acadêmico, vinculando-se a uma universidade, a um instirutto de pesquisa,
0 Dr. Karl Heinrich Fierz, nos últimos :mos da nossa relaçfo, sofria de dar aulai;, transmitir o co,nhecimento teórico junguiano, ou de qualquer
12 0 lt •1RER'f 0 GAMBINI
A VOZ F. O TEMl'O l .! I
outro autor de sua preferência, publica r rasos clínicos, ensinar. Essa é e nos anos subsequentes, além de w a v:lf-111 J'l'l>d11<,·an Qá mencionei que
uma modalidade, mas não é a minha . Minha reflexão não é acadi:mica ainda hoje há um volume de materi:il int:, lit 11q11:11,1• 111 0 grande quanto 0
no sentido de que, para mim, o diálogo rnrn outros autores de certa for- publicado), li a maior parte da obra de Sl·111-o d i~,,·1111.il, :,, 11q 11 e já me refe ri
ma desvia minh a atenção do diálogo rn n1 o meu paciente, que me traz na primeira parte, além dos textos cL'ts~ irn!, de ,ltt·., 1 l\1 ;•111·t', Sigm u nd
matéria bruta. O meu colega esc ritor llH' trn matéria elaborada. E não Freud e Eugen Bleuler. Estudei também a o h1 :1 , li- ..111di1.t:1•; da g eração
m e sinto cOJÚort:ável em assimilá- l:t e 11 s,í la rorqu e não fui eu que a gerei anterior à minha, como Mario Jacoby, Ro bert S 11·í1,, l\lli 1 h;11·I Fnrdliam,
a partir de um contato direto com o desalio representado pela proble- M ary-Ann Mattoon, Nise da Silveira, e tamhrn1 11 , d1111, i1tl1 :, g t·rn,J lo,
mática do pacien te. N ão m e sin w hem fa½eHClo isso. Posso acompanhar como Luigi Zoja,John Beebe, Francesco Donfr:11 H1••,, o, , lr•11lu' la11lrn1
com interesse e satisfação o cami 11 ho 911 <.: :seguiram amigos e colegas que outros.Mas chegou um momento em que minha 1-,n l, · 1•· ,, 1"•·11' ti1111 11<:
começaram comigo trinta e cin c,, anos at-rás, pessoas que eu conheço há leitura, inclusive d e revistas e anais de congressos, 1•ii d i, 11 i11111l!ll r, p 111 il
:linda m ais tempo, quando nenhum de nôs era terapeuta. É emocionante dar lugar a outro tipo de interesse intelectual. Não q1w 1,·,tl i.1, , u1 qd,·
ver o caminho que cada um segt1i11 e :ts ront ribuições que vêm dando. tado um conhecimento necessário, longe disso, mas n 1, •11 l.11 11 1• 11 w 11
Mas a rd lexão não acadêm ica qu e 111e interessa não abre para os prazer começaram a buscar outras paragens - por exempl , ,, ,•• ,11,d, J' d,·
lados, foca para a frente - que <: o nde está uma pessoa, sua dor e seu componamento animal, de arqueologia evolutiva, a recen :-1; pn 1, l11 1, ,11 , , l.i
enigma, olhando nos meus o lh os, e eu nos seus: esse é o livro que leio, ferreira cultura ciern:ífica baseada no evolucionismo d e D a rwin , e 1-o n 11p, '-".
traduzo, grifo e anoto. U m li vro num a poltrona, sempre, Literatura, de romances e biografias a Carlos Dru lll 1110 111 1 d ,·
Há m om entos em que essa refl exão fi ca difícil, fica crítica - muitas Andrad e e João Guimarães Rosa.
vezes, paradoxal men te, porque foi incorporando novos conhecimentos
No momento em que estou juntando ideias para este livro, n1i 1il1:1
e experiências, que me fizeram rea lmente testar tudo aquilo em que
leitura de cabeceira é E m Busca do Tempo Perdido, de Marcel Prou s t. 1~
acreditava, prop osições teóricas, form ul ações o u posturas quf eu vi-
qu:rndo leio Proust, dou-me conta de que ele foi um profundo conli r..:rc
nha pond o em práti ca. H :i ideias qu e abandonei, porque chegou um
dor da alma e de Psicologia. No segundo volume da Recherche,À Son:lm,
m omen to em que d eixei d e acreditar nelas, tendo percebido qu e eram
das Raparigas em Flor, que começa a compor a p artir de 1909, várias
pensarnenros que se esgotaram, ou que veladamente continham certas
vezes Proust usa a palavra "Inconsciente", diz a respeito de sonhos
idealizações, certo romanüsm o, um certo grau d e ilusão, ou vinham
coisas fantásticas é' inovadorament e emprega o termo ''projeção"! Ele
carregadas de dem asiada emocionalidade, eram projetivas e até m esmo
ent endia o que era proj eção, sem ter jamais lido (ao que consta) nada
reat ivas. Tudo isso eu fui hi.rgando. E outras ideias, outras poncl.crações
do que Freud veio a publicar sobre o assunto. Proust era um mestre ao
e reflexões foram tomando seu lugar.
an:tlisar o que Jung veio posteriormente a denominar Penona, a mást.:ara
social, a falsidade daquele fascinante mundo arist ocrático parisiense
Leituras qu e tanto frequentou, compreendendo em profundidade as motiva-
ÇÕl~S e os desejos ocultos de seus protagonistas. Proust entendia como
Qy ando comer ei a estudar J u ng, a leitura de sua obra, sua correspon -
a cultur~, a época e a soci~dade moldam uma peflsoa e sua trajetória,
dência e seus seminários não publicados absolutamente me ap;1ixonou ,
sempre a_procura d e uma dimensão que ele chamaya a parte não visível
era a minh a lei tura prioritária. Na minha época de formação n a Suíça,
dos relacionamentos, que é onde a alma está presente (" d
, ... engana 0
/ ,'], HOJH'. RTO GA M B I N I

A V O Z E O TEMPO
r23
sucede, como uma projeção de lanterna mágica diante da seguinte, qua ndo se
p ela aparência do corpo, como se é neste inundo onde n ão p ercebemos
trocou o vidro), enfim, todos esses mistfaios que j ulgamos n ão conhecer e nos
diretamente as almas ... "). A leitura de Proust me inspira m ais do que quais somos na verdade iniciados quas,~todas as noites, assim como no outro
2
a de um livro de Psicologia. grande mistério do aniquilamento e da ressurreição (pp. 4-70-471) •
Como nunca vi Proust citado em tex tos de Psicologia, rep roduzo
aqui d u as pas~agens em que fica patc 11 tç Hlíl profunda com p ree nsão do A tualizar-se - algo fundam entau p ara u m médico, um cirurg i ão,
mun d o dos sonhos, ambas retiradas do 8 ( g-uudo volume de su.-a obra. A um cientist a, quer dizer, ler as revistas am ericanas o u inglesas (Natitre,
primeira~nas p áginas 250-251: Science etc.) qu e ofi cializam o progresso do saber nessas áreas é fün-
damen tal nesses ca.s os. Um analista também p od e b uscar segurança e
Fazendo ao mesmo tempo oi; papéis dr l<'araó e de José, pus-me a inter-
eficiência através d:a atualização contínua; mas no meu caso, no m eu
pretar meu sonho. Não ignorava eu qu <.: cm muitos sonhos não se deve fazer
p aradigma de analista in seguro, n ãlo é esse o rumo mais atraente. A
caso da aparência das pessoas, que poJ c,n ci;tar disfarçadas e haver mudado
de rosto, corno esses santos mutilados Ja1, catedrais, que arqueólogos ig- prop osta junguiana pressupõe op çô es individu ais e eu fiz e continuo
norantes recompuseram, colocando nos om bros de um a cabeça de outro e fazendo as minhas, tod as de alto prreço. Não sou liw e-d ocente d a Uni-
confundindo atributos e nomes. Os nomes que adotam as pessoas em sonhos versidade, nem o serei, porque não é esse o m eu caminho, e não foi isso
podem induzir-nos a erros. D eve reconh ecer-se a criatura amada tão só pela o que escolhi. A mim interessa men os estar a par d o que os melhor es
intensidade da dor que sentimos . E a minha d<>r me disse qu e, embora con-
vinte autores estão ,escrevendo e dizendo sobre tais ou quais assuntos
vertida durante o sonho em rapaz, a pessoa cuja recente falstdade me fazia
penar era Gilberte. do que ter um insigbt ou uma experiência própria d e compreen são, d e
r eflexão, de elaboração, nascid a naquele dimin uto espaço entre du1as
Lemb remo-nos de que A l 11te1-prctaçiio dos Sonhos, de Freud, é de 1900, p oltron as como um olho d'água. Há uma enorme força p síquica r,1as
e que À Sombra das Rap,1rigas em Flor provém dos inúm eros cadernos inte rações que nascem nesse campo compartilh ado . O paciente pruiti-
manuscritos a p artir de 1909, acrescentando-se q ue n ão consta, em cipa , mesm o que passivamente, ou in conscientemente, d a form ação d e
n enhum a das biografias escritas sobre o grande escritor, que tenh a tido n ov:as configurações, de n ovas image ns, de novas visões. P ara mim, essa
conhecimento o u se interessado p ela obra do vienense. é a riqueza do trabalho analítico n a lin ha j u nguiana.
Mas há outro trecho -ainda mais impressionan te, que d esta vez n os
remete ao que Jung dirá trinta anos depois:
Conversa
Subitamente adormecia e caía nesse sono pesado em que se desvendam
para nós <) regresso à juventude, a retomada dos anos passados, os sentimentos E xiste um tipo d e conversa da qu a l brotam conteú dos insusp eitad ,)i-
perdidos, a desencarnação, a transrnigração das almas, a evocação dos mortos, pelos interlocu tores, Em meu livro Outros Quinhentr;s - Uma Convrna
as ilusões da loucura, a regr.::ssão aos reinos mais elementares da natureza (pois sobre a Alma B 1·asileíra l, uma longa entrevist a com trin ta e três h o r ,1:-,
se dizem que muitas vezes vemos animais em sonhos, quase sempre esquece-
~ e _dur~~;º con d uzida pela j o rnalista Lucy D ias, h á um p osfáci o q n<·
mos que nós próprios, no sonho, somos um animal privado dessa razão que
projeta súbre as coisas uma luz de certeza; aí só oferecemos. pelo contrário, mt1tule1 O M ilagre da C onversa", o n d e digo : "Uma conversa n ·nt rad., ,
ao espetáculo da vida, uma visão duvidosa e a cada minuto aniqll ilada pelo
esq uecimento, desvanecendo-se a realidade precedente ante aquela que lhe 2 . .Minha
edição é de São Paulo, Globo, 2 0 06 .
3- Lucy Dias e Roberto Gambini, op. t"Ít., pp. 22 1- 1, 2 4 .

ll4 R P llER T O G AMB IN I


\ \' \ ) , ' 1 ll J 1 1\1 1 1 '
orientada por uma busca significativa, tem esse maravilhoso poder de um homem recurvado, descalço, coberto por um sac o d e estopa, p< •-
abstrair o tempo, as distrações, os segu 11cl< >s pensamentos, e fazer surgir <lendo-se ver suas pernas do joelho para baixo, que no sonho m e le m -
exatamente aqui.Ío que parece ter um desc_j o próprio de se transformar bravam as pernin has finas do Gandhti. E essa figura bizarra, andando
em palavra". Hoje vou além: não é que a rn11vcn,a seja uma arte no sen- assim flexionado, pasi;a por esses doutores, que nem se dão conta de sua
tido de cultivo da erudição, não; é um mom ento em que a alma pode se presença e continuam discutindo Psi cologia Junguiana. Essa criatura
manifestar. E se a sintonia estiver boa, a al111a serve-se de nossa voz. Faz prossegue em minha direção, e quando passa do meu lado, levanta 1.1
bem para quem ouve e para quem fala. 1:: 1 hro que para isso acontecer saco de estopa que lhe cobre a cabeç:it e percebo que é Jung em pessa;a.
não se pode ficar repetindo opiniões rolctivas . Conversa pode ser uma Ele pisca para mim, como que dizendo: "Psiu, não co nta pra eles qut:
bobagem, uma perda de tempo, um nada. O u pode ser algo que cria vida. sou eu.1"E m seg111
- ·d a ,co bre novamente a cabeça c peucebo que ele es t.;á
Ora, terap ia é an tes de mais nada, e se mpre, uma conversa. Faça·· se dela sempre olhando para o chão; à medida que anda~aquií e~ abaixa-se e
o que se quiser e o que se conseguir. apanha pepitas de ouro. Aí termina o sonho.
C om o tempo vim a entendê--lo. Percebi que era u m modelo, para
O Verdadeiro Diploma mim, de como ser analista, que era uma mane ira de me posicionar
perante a PsicologiaJ1unguiana, a Academia, o deb ate teórico etc. Resu,-
Eu me formei no Instituto C.G .Jung cm 1981, tendo cumprido todos
midarnente, meu sonh.o diz que aqueles que discutem a teoria junguiana
os requisitos acadêmicos, text, is, relatos de caso, quinze exames orais,
~erderam !ung e não o reconhecem quando está presente. Perde-se 0
um trabalho feito em claw;ura d u rante seis hons (deve ser uma tradição
Vlvo, e_cultiva-se o escúto, fala-se mais do que se vive . M as O VI. vo .ain
· d
a
medieval!), centenas de horas de análise, dezenas e dezenas de horas
estafa, embora Jung tenha morrido em r961. Há um .espírito em J .
de supervisão, apreciação periódica por um comitê de três analitstas dos h' ung,
a uma proposta que permanece mui to viva e para a qual vale a pena
mais experienltes e no fim uma tese, que no m eu caso foi O Espelho Ín-
colaborar a fim d e que assim se manternha e evolua. Há. uma hum · td d ,
dio - uma tese acadêmica , segundo os padrões da Universidack: de São em Ju 1 a <-,
, n~, porque aqur::1e saco de estop a lembra um mendig S . -
Paulo, com método, rigor, arcabouço teórico, exame e interpretação de ponernc1a pública - t . , . º· ua un
fontes primárias, propositura e exame d<:! hipóteses, conclusã.o funda - , nao em a menor un portancia, e o q ue está fazendo
po d e ate passar despeircebido.
mentada empírica e teoricamente, tudo direitinho: recebi um diploma
em Psicologia Analítica. O que é olhar para o chão? O lhar irara o chão é olhar P
reles condição h u man a, nossa vida tal ual é sem . ara a no~s a
Mas o meu verdadeiro dipk,ma não foi aquele, e sim um sonho. Vejo
sôes~ o nosso dia a dia, a nossa realid/ad~ mai: básic~n:i~~s, sem ~u -
à minha direita três doutores discutindo Psítcologia Junguiana. Eles
media nte a figura de Jung, que nesse e hão há e . ~-- iz ~ so n C>,
trajam longas togas pretas e trazem na cabeça aquele capelo com borlas
de serem apanhadas O q - . p p1tas d e ouro, a espera.
que se usa nas solenidades formais da Academia. Estão o:; três discutin - . ue sao pepttas de ouro;i Al . .
so; portanto, no meu reles d' d' · go muito val1o --
do teoria junguiana. Olho para eles, compreendo o que estão fazendo , 1a a ia 1,iosso encontrar d l
corresponde a um insirrht · uma e as, l)ll t
e sei perfeitamente que não pertenço e nem desejaria pertencer àquele o ' um momento de conex~ fi
sentimento, de compreensã d 'd I ao p ro unda C<>tn o
grupo. É um a atividade distinta da minha: aquilo não sou eu . Do lado . o a vt a, e e transcendência
m.aior que, pelo que entend d ' d' . 'um rno 111t·11t u
esq uerdo do meu campo visual vejo entrar urna figura muito estranha, " . . . o, e, e serr iligentementt, b .
uma postura Junguian a" diante da . ;i _ . . ·~ usc,tdo u , 111 "
1!( •11 1-:f!TO GAM !IINl vic.a. N ao pai a tm lt-' - 1
r}.(1
- a o, 111:1 ~ p .11 .1

A " O % I• o T F ~ li • li
1.
descobrir por si. Não se trata de buscar o céu do pensamento rarefeito, camada da terapia, é a queixa do pa l Íl·11f · ,. •.11,1 ,. p1•t l:tf ,va de poder
mas de percebê--lo no chão: é uma possibilidade, uma escolha, um ser compreendido por a~,guém, q ue po),1-, ,1 ,1i11d .1 lu I•, 1 l,1 n que llC~t.c
interesse predomin'a nte. O fato de as perna·, lem brarem as d e Gandhi momento inicial já está se form ando 11a:. l:11 11 .1!, i,1 •, do l'•' 11 IIIC' .,qui lo
é significativo, porque ele foi um ser hu mano raro, igualm ente autor que veio a ser chamado de transferência, 1111 1:1 ·,1 ·111· d, 1111, •,,·11 ·, 1111 ,lti fil -
de uma proposta radical de recu sar a violência como meio eficaz para cetadas e sutis a respeito do terapeuta, do:; pod1·1<•·, •1 •11 1 \ , nt11.tl11w11 , 1·
derrubar o domínio b ritânico : "Ol,tcro .libertá -los do p reconceito tenha e do que acont:ecer:á na terapia, compo1H'11fl"•, f 111d.u1,, 111.11 p,1 , ,1
que têm contra nós, no qual estão aprisionados. Eu não estou" (cito que se estabeleça um vínculo operacional que v:11 d11 ui• 11.1\·1 1 ,11 , 11
de memória) . Uma proposta, uma postura. Gandhi deve ter olhado insondávd.
muito para o chão, e nele certamente encontrou uma luz nova, uma No terap euta também., a cada início de terapia, 1;J1, 11 ,1 •,1 11111, , 111111
vez que sua não violência é estranha à tradição mítica do Hinduísmo. guração específica relativa àquele p aciente, que é w n.1 11' 1 , 11 , 1., .1p11 , 11
Sinceramente espero que as centelhas de Jung e G andhi sejam man- são, uma constituição rápida de um núcleo de hipotv, c· 11111 1,11 ., 11 11
tid as acesas pelo surgimento de luzes renovadas. Esse sonho é o meu conjunto de sentimentos, uma primeira leitura, um a 1.·1.·1 1.1 .q ,11 , 11 .,1, ,
diploma de analista. por talvez n ão ser cap az de d ar conta d o trabalho, ou 1~•.' lu 111111 t 11 ,.,
confiança e en tusiasmo, um desejo claro d.e enfrentar o de.,afÍt>, rnt 11 1111
resistênd.a difícil de superar.
Terapia
V:irias coisas pod em con stelar-se , e te m início um rdac io 11:111w1, r..
Posso então dizer que cada sessão de análise é um momento dle ficar nessa camad a ou n essa modalidade, com muita p assagem d e i1 d111
olhando para o chão. Tenho absoluta certeza de que as pepitas estão m ações por parte do paciente, que reconta a história de su a vida ,. , Ir ·
lá - e o que são, nesse caso? A fala inesperada, capaz de mobilizar os suas dificuldades. A lguns relatam a própria história como produto , lt·
aspectos imobilizados da psiqu e do paciente: a fala capaz de tocar a ações alh eias: "Eu sou assim e assim porqiue m eu pai .. . e depois min ha
ferida, não para fazer doer mais, mas para sensibilizá-la de um modo tal m ãe .. . e então fui despedido ... e minha m ulher me aban.donou . .. ": l>~
que o paciente sinta que aquela ferida pode ter uma evolução. Uma fala outros o fizeram soti.-er, e aqui está de agora diante de m im . Já ou t1 a~
que possa abrir novas perspectivas ou suscitar novos questionamentos: pessoas não vão contar st,1a história dessa :forma, m as: "Desd e que eu era
isso são as pepitas. Sinto fisicam ente quando esse estado é ativado: uma criança eu m e sentia mal. . . tinh a d jficuJ dades com tal ooisa .. . achava
vibração no plexo solar, muitas vezes uma aceleração do ritmo Cí:J.rdíaco, que . . . ". As histórias podem ser contadas de m aneira e¼trovertid a ou
um jeito de falar pausado e preciso, porque sei que aquela fal a é de outra introvertíd a; varia muito essa primeira h~stória, variam o tom e a clave
qualidade, sua fonte não é o ego habitual. em que é entoada.
O que se tem de início é um esboço de autobiografia~com um ana-
Camadas da Terapia lista que não fica ouvindo em silênc:io, mas pontua a nan ativa: "Você
está se contradizendo, p orque há p ouco d isse isso, e agora, aquilo", por
O que tenho a dizer sobre terapia não é por comparação com outras exemplo. O primeiro esboço de história começa a ser tra1; ado. Passa·•se
escolas e linhas, mas no sentido de perscrutar as camadas da consciên - entüo a trabalhar com os diagnósticos preliminares. É muito impor-
cia localizadas abaixo da superfície. A camada externa, ou a primeira tante ou~rir do terapeuta: "Tudo indica", "parece". Ou eni-ão: "Pelo gue
IJ8 ROBERT O GAMBINI
A VO Z E a, TEMPO 12 1)
estou l)odendo perceber vo.cê tem uma canH·tcrística assim e assim, um
) I ))
vai trabalJrnndo sua hipótese com esses doi~ tipns d e fonte p rimária: .
oriunda da ,·onsciência e a gue emerge do incom:cicnte. Ambas dl eve ~
--
padrão tal, ou há um mecanismo pcrnil·iuso nessa ou ~aquel~ area etc.
Mapeia-se um p_ouco O terreno, tcmatin se·, sempre h1pote tica_m~nte. ser primária s, não filtradas . Até mesmo a foJ1tc inconsciente é às veze-
E essas h ipóteses serfo trabalhad as e< ,1110? N a boa trad1çao ~a um pouco deturpada, porque pode-se cair na tetittação d e elevar a nar-
Faculdade de Filosofia da u sP, da ru :1 Mana Antônia: corno material rativa à categoria de obra literária; nota-se que o material foi traba.i.had~
empírico de primeira mão. Fontes p ri n, :írias - que é o m aterial que demais. É nccesi;ário portanto ser muito precisP e cuidado so oom fA:
0
paciente traz. Às ve;~es, não é prinüriq, r nesse caso não é de tanta fonte primár ia inconsciente, para que não se descaracterize. ,,
serventia. Um relato muito intclcct11:1 lizadn e arrumado co rresponde Já estamo~ em o utra camada da terapia, quando de posse de um rum~
ao que nas Ciências Sociais dcnomi11 :1 se fonte secundáiria, que n~ ou de uma busca ,com algum grau de orientação a respeito do cam inh~
situação terapêutica oculta m:1is do q11 r rcvda o que se procura, que e a .seguir, ficando i mplícito no que estou dizendo que não estamos tra~
0 nervo exposto. É como esn1dar um llilji:t·o classificando tudo o que já balhando com modelos de normalidade, nem de adaptação. Essa não éf'a
foi dito a seu respeito. Prefiro ir :is !'o111cs primárias do pac~ente e lidar a itradição junguiana e não é assim que vejo o andamento da terapia. H á
com materi•al empírico inspirador de hi pótrscs. Se o material não lhes · · que nao
outros sma1s, - esses. Procuro ver, sim,
. se uma pessoa esta' fi camd o~
der sustentação, continua- ~.c :t c11 µ;c 11Llmr novas e melhores hipóteses. mais adaptada a si mesma, se está adquirindo um p•erfi.l mais defini<{io e~
U m bom trabruho de pcsq,uisa l' também ;tquele em que 1,e possa ao individual, um modo próprio de compreender-se -- esses para ·m im são ft
fi m dizer: a hipótese 11ão rt >i co mpro\oada. Pode-se reconsÍtderar uma sinais d e percurso, pois trabalhamos com a ideia de individuação. Isso«
hipótese que se julgava váli, Li e comprovar que ela nã~) se suste~ta. ? nã.o significa que a pessoa fiqu e mais feliz e sua vida mais fácil , mas que fi
pacien-~e ouve algo como: "Parcn.: que_<• problema, o no da questao nao começa a seguir o ,q ue parece ser o seu verdadeiro caminho. «
está aqui, cum o você scmpn; achou. E outr;:l. coisa, vamos procurar em O utra camada então foi atingida, porque se eomeça a discutir destin o,
outro lugar". Trabalha-._ c com hipótese~ que vão se sucede~1dü, ou sendo ou: é possível escolher o caminho? Exis te livrc-;lrbítr. io? Existe a possibi-
4
modificadas, e casos h:í. cm que um a boa hipótese no rteia de fa to um lidade de se mudar de vida? As ideias são pedras ou sfo pássaros? Minha 4
longo profícuo trabalho.
c vidl tem que ser sempre assim? Serfo eternas minhas escravid ões? Serei 4
O objeti•:o é O aprofundamento da comp reensão do p_r~blema pos- sempre condicionadlo pelo passado? Você começa a questionar, p:tra valer, •
tulado pela hipótese, sempre com base no mate~ial empmrn: as falas, te!11las muito doídoi; e angustiantes. Será que estou preso num;1 gai-ola 4
os fa tos e O material incon sciente. Na tradlição Jungu1ana, os sonhos com a porta aberta r não saio dela? Será que tenho possibilidades e rnãn
colab o ram com a terapia, porque complementam a visão i:onscien~e as aproveito porque sou covarde, me habituei, acho que minha vida só
do paciente e trazem para o terapeuta aspectos que _aqu~le '. lão ~abena pode ser vivida assim, ou porque certos papéis me:: aprisionam: m e u
formular. O sonho é a segund a fala do paciente; a primeira e O discurso ~apd profissio_nal, ~ eu papel na fam ília, no grupo, a imagem social que
1
consciente, até onde ele consegue chegar com a sua inteligência, su,l tive e. acalentei, aquilo
. , acham de mi·m ... 1r
que os outro~ voce• co tn<,\:J a
sensibilidade e sua memória. Porque a visão e a fala elo ego têm um ques;t.1onar essas coisas todas, e às vezes é preciso defrontar - se t:om-
. . p en
limite: diga:n os que abrangem cento e oitt: nta g raus. Mas. fal~am os sam1~ntos radicais, que exigem muitit ousadia m oral ,,," •ac-•1·i•rcta, n 1 11.· ~\ ., ,,,
outros centc, e oitenta, que estão nas co titas. \I sso vem por out ra via, atra- de si: perder vínculos, posição, recursos, poderes, '-10 C)ttsa r ,, .. - -
•, S, H 111h :li 1 1
vés do sonh o, da fantasia es: pontânea, da imaginação ativa. O analista dad<~ pelo dcsej· ido. Se você está infdiz com sm
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j)C) .• -~
,o.; 1,,10 I H ) l\ l •'l\ ' ,11
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q() ll! l llE l:T O G AMBIN1 i\ \ ' {l / 1 \ ) ·11 ~11'1\


1 1
dessa po~.sibilidade evoh1tiva. O trab:dl), 1 ,· 01 u a p~iquc destina-se a
fma.nceiro e queria trabalhar com arte, pn:parc-se para lidar com g;rand.es tornar melhores as pess0:as. Idealisrno? N:10, p:1r;1 n1 i rn isi,o é um dado
riscos materiais e psicológicos. Há momentos cm que tudo fica. mui.to em pírico. Vejo acon tecer. É real e tang.ívt 1.
grave e extrem o. Mud o de p~rceri,1 conju~,Ll? De ideologia política?
Mudo hábitos afetivos e sexuais, modo húbitos de consumo? Estilo de
A Fala da Alma
vida, cidade, país? Vou começar a aprcscnt,u uma face para o mundo
que nunca ousei exibir antes, passJ rci .., fazer coisas inauditas? Não é Sei que es tou fazendo um retrato impressio nist:1, 111,l'• pt ni.•,igo 1ns
brincadeira de criwça, e nem seguir nnkns de um terapeuta. Não se camadas da terapia. E la acaba atingindo seu n 1ve l 111,1i •. t' t>lll<Wl'tHc
trata de aprovação, não se trata de ter µ;a rnntias, não, o jogo é outro: a quando $e começa a dar nome às dores da alma. ( ).11 :11 1d :i lii 1:dti1 i: i,1 l·
gradual percepção de um sentido, de mna necessidade interna, de u ma desponta o foco, o àmago sobre o qual é preciso d,:sn>I ,rít 111.11lt'ir 11-,
escolha. Nada disso deve depender 1k autorização de espécie alguma. E novas de falar: o paciente aprendendo a expressar a pnrii 11·í.1 al,1 1,1, citi,
também não se pode esperar um atestal\o de futuro sucesso. junto com o terapeuta, começando ambos a p erceber o que i, ig 11 i!i, ;t
Na jornada terapêutica - e a icki,, é que o paci~nte não vá sozinho, essa palavra, que não designa um apêndice, um órgão intt:rno, 11 1:u, 11111 a
m:1s acompanhado - às vezes ele vai parar cm lugares terríveis: em dimensão sutil da realidade, que se expande do p aciente para O n 111 111 1,,
ci1n a do muro, à beira do abi smo, no mundo subt errâneo, no inferno, e com este o conecta de modo renovador. Aí entramos no wrdad<'i 1 ,
na loucura, promiscuidade, cndansuramcnto, ascetismo, superstição,
campo de operação.
esbanjamento, excesso de simholi'.la\·ão . .. e o terapeuta vai junto. Apon- Segundo vejo, a terapia junguiana, por caminhos mais ou mcn, 1~
tan.do debatendo dialoo-andc•, J $SI 1mindo urna posição. E claro, é uma torh 1osos , mais longos ou não, mais penosos ou não, acaba levando ao
' ' b
obrigação m oral do terapeuta avis31r o paciente quando este se aprmüma encon tro da alma - que, é evidente, não está no melhor dos estados. Va-
d emais de um terreno perigoso t.: antiético, ou que acarrete riscos à
mos tentan~o de_scobrir em que estado eb está, se silencia,..-la, deturpada,
saúde ou à vida. Por exemplo, eu r1ão posso apoiar alguém que diga: "O negada, rac10nalizada, suihm etida, machucada, doente, ferid a. Qianclo
espírito de Dioni:So e de P an encarnou cm mim, e eu quero viver uma se percebe ~ais ou men06 qual o estado em que se encontra, tem início
v~da sexual desenfreãda e livre, porque esse é o desejo da minha alma" .
uma tentativa de ouvi-ia. :Se estiver silenciada, nada dirá. Convém então
Ou se uma pessoa começar a dilapidar os bens da família, ou adquirir
' ~ de asa s, murnrnnos
calar e ouvir um bau,r , • e sussurros - às vezes a fala
hábitos que se chocam com a lei e a moral estabelecida - e não ~:stou da alma i.:_ uma lágr·1 m·a, um suspiro,
·
, que esperamos venh a a adquirir
falando de casos patológicos, mas de caminhos que às vezes beiram o
eloquencia.
trágico. Aí o terapeuta se manifesta. Mas não estou defendendo pice~on-
Há_sei1npre uma dor na alma. A prnposta é acolhê- la - e isso dói para
ceitos conservac1ores nem b,) m-mocismo. Q_yer dizer, não posso dizer os dms , cada um_ na su a poltron a - por
. acreditar
. que a ú nica man eira
simplesmente: "Cuidado com esse mundo da imaginação, porque isso
~ com~ç:ar a cuidar da alma é lidar com sua d or e não c.om sua pleni-
vai desligá-ia da realidade" . Há maneiras e maneiras de se entrar em
de ~~l.iz,, porque nesse caso a pessoa não estaria n o consultório m :is
cada um de5ses mundos. . ~ . o - se com a v1· dl a. E ai, entramos num terreno inexplorad
regoz1pnd ' o e
O que p ropo nho e procuro acima de tudo, exercen do o ofkio de
m istenoso, n o qual cert~.s coisas ocorrem que mal consigo form ul
terapeuta, é a evolução do humano. A terapia junguiana, pelo m enos,
,nas creio que também a freud iana, b aseia-se num reconhecimento
m as mesmo assim são tangíveis, porque segundo observo, u ma V<:,
A VOZ E O TEMPO

\'
110111•: llT0 e AMB I NI
. sua d or, a a lm ,,1 p1.:1u
reco nhecid a e aceita . . .. b,·-. qtw- está sendo aco lhida
iJustrado qu e, por assim ser, cau sa so li·im ento à alm a. Se assim fo sse-,
pelos braçof. dessas duas pessoas. O 1110vi 11 1t·nro iniciaJ não~ de cura; a
bas taria edu car o ego, fazer com q ue si rnplcsmcnt c perce besse que não
d or, presente, começa a gerar um tipo d\' l<ll \'ª totalm ente d iferente da
é o reí da psique e que portanto deve :;<.: rnrvar, p ~1ra q ue então a alma
torça do ego. É uma força moral. 0 u111a 1;1r1 a reflexiva, é uma ~oirça de
posicionamento dos sentim enrm, 111n:1 ;11i1 udc it icomum e rad1ee1l que d espoillte e os d o is fiq uem de bem. lntrin sc<.:am <:n tc, o ego não é ini --

a porta ao estado atual do pacicn1c alµ;o :1tll< s_ aUH_ente. , .


m ig o d a alma; é antes seu instrumento. É um abs urdo pensar num se r
A alma, no estado de dor, gem. ( ' 011111 1·la u faz amda e para mim uma vivo dotado de alma mas desprovido de ego, porque tal criatura seria
(irea d e mistério, mas sei que is~o ar1i11t cn·. E o q ue por ela é gerado é comp.Letam<.:nte in operante, in cap az de agir e <.lc c,;tar no mundo.

<le vital importância, não dcvcrnl1> ~l'r 1·011 fo ndido com felicidade . N ão E p ode-se muito bem p en sar que em outras épocai, históricas n ão
~.e deve pensar que o fundo da tera pia s1ja um nível m ágico onde a dor tenha havido guerra entre ego e aJ ma - é o qu e imagíno quando exami-
estanca. N ão sei se algum dia a :il1 11 a d ieµ;a a nã.o sentir mais dor. Mas no as pinturas rupestres da Serra da Capivara, no Piau.í, por exemplo4.
sei, por observação, que de 11111 1·~tad,i irn nhiliz:tdo ou submetido e~a Ou em outras culturas, em outras fases com di stin tas configurações d a
passa a gerc:.r, vai transm11ta ,1d o 1, cu so li·illl i.:n to cm algo que eu podena co nsciê ncia. Hoje, coletivamente, poderíamos sim afirm ar que ego
O
denominar mod ulação d a dnr. 1·: u111:1 dor ,1ue passa a doer sem doer; guer ocupar muito espaço, e gue não deixa espac;o pair a a aJma. Mas
,
dói mas alimen ta. Ao m n, 1•11i l t' 111p,1 q1ll' <k>i, co nforta. É um paradoxo. minha maneira de abordar e de t raballur essa que:,tão não é eliminan-
C omo tão bem d izia l'a111t •t· ~: do o eg·o; ~roponh o que ele trabaJhe em co njunto , que vire do avesso,
que se revep, se recompreenda, se perce ba de um m od, > taJ que p ssa
O a m o r I fo~1, (jllt' ,11d (' , 1·1 11 ,,e 1·c 1 d esenvolver uma c:1paci dade de acolher a d or da al ma h
0

É uma Ccrida 1,uc clt> i r 11.111 , (' ' " 111c . _ _ · e c egar a uma
m tegraçao, nao a um reforço da cisão M·ts enfim sera' qu e r ·
É um co11t c11 t;1 111c11to eh-•,,· 111tn1 1c . · , , , 101 o ego que
(: dor qu · d c,:, ti 11:1 , ('Jll don . cau_so u ~ssa si tuação psíquica? Não sei, acho que o fenômeno é m u ito
ma is am plo e mais I d .
, .. ~ . co mp exo O gue 81 mples mente atribulr ao ego a
A prenda mo~ ,· 0 111 o gra n, k poeta: Camôts refere- se ao amo r - e onde existenc1a de pathos em nossa vida.

está o amor, lá cqf10 a dor e a alma - numa transfiiguração do sentnmento


comum, porque o que dói, d ói, e o que não dói ) não dói. E aqu i es tou
Dor da Alma
tentando elaborar um estado de dor que vai de1,abrochando e faze ndo
surgir modalidades ou sin to nias que estavam completamente aprisio - N â0 nos contentemos com uma tent ativa estreita de expli cação
.
nadas , e que ao qu ebrarem o gesso criam beleza, amor, profundidad e, pod e has·er uma razão mais profunda para que a h umanidad~º:q:
poesia, con hecimen to, se ntido. Júnão é mais a m esma dor su rda origin al. tenha que sofrer ~s dore'. da alma, não porque o ego tenha sido tirâ:~o
mas p orque ela so evolu1rá trabalh an d o . d ,
, .
essa Otlca passam a ter uma finaJid d t com
fi essas ores, que segundo
A A lma e o Ego a e rans ormadora. Ai; pessoas h 0 . ,
sentem na aJma o qu e es tá acontece ndo no planera S" - h JC
Fica claro, portanto, que n;io trabalho co m um mod elo du alis ta de luta · · t . nao ouvcr
perene entre ego e aJma, c:o mo se o prim eiro fosse um tirano po uco 4. CC metJ artigo "Sou] on Stone" S,p . 6 p
' rrng 7 · · syche and Natt :\1 () I
11. pp. r;-90. . lrl', . cw r l':t l\ s, 1117 h, \ PI.
IJ 4 ROBERTO GA MBIN I

A 1'0 1/, I·. (> 1· 1, ~11 •11


que m sinta essa dor, aí o plane ta est:u-á pcnlid, , mesmo. E ntão, devemos tipos. Não é uma eloquência retórica, não é um uso das palavras o u
sem pre n os p erguntar se aquilo qu e i11i ci:tlmcnte se manifesta como dor, das emoçóes usadas para discutir argumentos usuais , mas é como qu e
ai n dAa q ue mui tas vezes negada e não 11 omc:1.d a, não pod erá conter em uma subversão da maneira de se con siderar coisas costumeiras. Parece
seu amago u 111a m atena , · m1stenosa
· · · ·
e t r:u1 sfc>rmadora, que no entanto que a alma, ferida, ao mesmo tempo fica forte naquilo que declara; é
nenhum a psicologia define nem co11l·L· i111:t , co mo se fo sse um território como se com isso ganhasse não uma legitimidade, mas espaço, acesso
inacessível à elaboração men tal e ao c11t ('f 1diw ento. Portanto, encaro a para abordar temas lJUe não costumam ser abordados. Ent ão, esse é um
t .
erap ia como um trabalho capaz de tocar 11111 cerne obscuro que nos apa- dos efeitos desse mistério que busco formular - e por isso se justifica
vora, e que até preferiríamos igno rar, qu, · l; o roração da agonia, porque lá, que uma terapia dê valor à dor. Porque poderia ser dito: isso é um viés
em seu m ais íntimo, pulsa e vib ra lllll:t l<iJ\·a de renascimento e restaura- depressivo da terapia, ou um gostar da dor. O que estou dizendo é
ção d o que foi destruído e cai u nas rrcv:1s ela sombra. Algo portentoso: exatamen te o oposto. É que essa dificíli m a relação com a própria dor
ma_s é difícil chegar nessa m eclul a psíq11ica g;cradora de energias vitais, ou com a alheia promove inovações. E .como venho repetindo, a mim
assim como os grandes físic os, dc11t-rc os q rn ais Einstein, descobriram intcressa.m as inovações do conhecimen to e do discurso da alma - dis-
q ue no tn terior do átom o est,1varn apri si, maJ-,1s energias Jescomunais. A tinto daquele proferido pelo intelecto e pela razão.
fissão da dor e do átomo pode m lev:tr ::t bo mba, ao suicídio e ao massacre A razão e o intdecto podem ancorar a expressão d a alma; m as a
- o u à energia nuclear. ./2' verdad, , / r;11 r' 111,r/s1' ronhece a exfi'nsão dessafa rça origem dessa expressão está nela mesma, e não nos p rimeiros. Essa
criativ a ou letal contida ::m f'J/ado j >ol ,'fl t'ia / no átomo da dor. força penetrante advém do fato de que só a alma que habitou o Hades
F ica assim evidente <JLI C a rcfl cx;ío q ue vai e vem no pequeno esp aço consegue lançar luz sobre obscuridades que a luz da razão não ilumina.
entre duas p oltronas, ao longo do te m po, fü ndamentalmen te gira em Sua luz é outra. É como se a alma que sofreu adquirisse o poder de se
torno desse tema. Como cheg ar nesse caroço? Como fazer acontecer a iluminar a si mesma, para se revelar. O que ela faz é apenas revelar-se;
exp eri é:nciú Qi e riscos se corre, o qu e se descobre? E o q ue se mani- o resto. é com a gente. Qier dizer: a alma somos nós. Mas quando se
festa ? Será que isso é uma hipótese válida, ou uma ilusão? A prova, a revela, é o nosso ego, é a nossa consciência, é o nosso humano, dema-
única cabal e d efinitiva. é o que pode evoluir na própria vida das pessoas, siadamente humano que tem a tarefa de fazer alguma coisa com o que
e o que es tas vierem a dizer em testemunho. fo i revelado, ou a revehção se perde. A revelação é dada, ela é um dom .
Pois o uso dizer que a origem do dom é a dor.
H á uma ideia muito antiga, expressa no mito de Qyíron, o Curador
Dor da Alma, Ainda
Ferido, de que a possibilidade de curar advém da experiência de conhe-
Q ueri:t ain d a acrescentar q ue a alma doída adquire uma forç a, um a cer a dor. No entanto aqui não estou me referindo especialmente à capa-
radic a:.id ad c: surpreendente em sua m aneira de se expressar e de enten cidade de curar, mas àquilo que é produzido pela almuloída: ela produz
d er as coisas. É como se, p or sofrer, a alm :1 se tornasse m ais ousada 1· algo, não se estiola, nfo fica lami: : ntando eternamente. Algo ocoi:re na
mais co raj osa nos co m entários que tem a fazer sobre este m undo, sua s alma ferida. Ela expressa algo, ela passa a iluminar algo. Complemento
d esg raças, verdades e belezas. A dor a torn a mais eloguen te, mais JH' ,~ntão: a terapia i uma escuta, não exatamente da fala do pacient,;, ma~
nc t rante, m ais surpreendente, e esse seu m odo de assim falar, p od emo~ :lo processo transformador da alma doída, do que esta p assará a di zer. I•:
reconhecer e m escritores, ;1rtistas, pensadc,res, inovadores de todos o~ preciqo um ouvido muito atento para isso, para não se confu ndire i ,1
q(, IUHll : w r n G A M !ll :-J I ! 1 V O i' F \l T I·, ~ 1 I ' ( 11
essas expressões da alma com as oriundas d< , ego, Elas não são a mesma 11 E ntão, não tern nada de xeque-mate. Tem arado, plantio, cultivo e buSG1
coisa, e há que se ter um ouvido que ouc;a csqa melodia aním ica, porque ele vida. Scr:í que brota uma flor n ova daqui, uma árvore que cresça, um a
na verdade são essas manifestações que vao revelar qual é o processo da doce fruta tropical? T rabalhando com essa metáfora. n ão faz sentid<)
pessoa na cümen são anímica, ob_jeto este a HCr reconh ecido e mais estu- para mim trabalhar com a ideia d e alta, mais adequada ao oficio m édico.
dado. O mais fundo que consigo tocar ncstc• momento é que o trabalho É claro que se o paciente com eça a.desprezar a terapia, ou a faltar, ou
terapêutico tem que ouvir essa matéria fu gidia, sem no entanto dirigir a envolver- se ml'nos, o terapeuta sozinho não pode continuar a traba-
o andamen to dos passos: são apenas dll :tS pessoas falando, ouvindo e lhar num campo que não é apenas seu, mas também do outro. Eles são
aprendendo a prestar atenção no so n1 de a·;as batendo. m eeiros. Se o ou1ro se ausenta, o trabalho no cam po cessa e a braquiária
vai tomando conta de tudo. U m bom número desses campos mal arados
O "Solo" do Trabalho 1,·mpêutico foi parar no a.rqu ivo m orto: o paciente foi-se embora. Algun s, diferente -
m ente, partiram porque já tinham frutos na cesta. Ótim o, era a sua hora
O trabalho é realizado por duas pessoas, cl~-sc entre duas pessoas. Duas d e partir. É claro que todos devem ir embora um dia, o dificil é saber
pessoas agem e há um "entre", que gcoµ;raficamen t·c é esse um metro e meio como, e quando. Mas alguns não abandon am m ais o a rado.
quadrado entre as duas poltronas. Mas essa Pletragcm é tanto física quanto Esse trabalho ·agrícola com a alma na realidade n ão para nunca,
imaterial. Alguns chamam esse espaço de "terceiro analítico". Como essa como n a atividu.de rural propriamen te dita. C om o a propriedade é
e,-xpressão não é minha, não a us, >. É um solo virtual, que vai ser arado, cava- compartilhada, esse campo não <5 propriedad e n em de um, nem de ou-
do, irrigado, plantado, cuidado, de vez cm quando ele pega fogo, de vez em tro. <2.1tan to m ais nele trabalho, mais prática adquiro de estar perto da
quando seca, inesperadamente brota de novo. Há apenas duas pessoas - no alma. E quan to mais o pacien te de sua parte trab alh a, a nalogamente vai
jogo de xadrez há um tabuli.!iro entre ambas c os parceiros ficam deslocando adquirindo um h ábito, um aprendizado, uma inclinação, u m a eficácia
as peças segundo certas e~tratégias ocultas para derrotar o oponente. Na para sintonizar os cambiantes es tados d e sua própria alm a, ou da alheia,
terapia, também há um tabuleíro, também há um jogo, m as muito mais ou da grande anima 1nundi.
complicado do que um jogo de xadrez, Wàr ou palavras cruzadas.Também Se encarado como quinhão de vida, fati a valiosa da realidade, esse
há certas regras e personagens fictícios, e :unbos mexem nas pe,;as. Qye rerreno, nunca desaparecerá e ficará sob os cuid ados d e ambos, quem
jogo é esse? Qy.ando ternúna, e se há ou não um vencedor, vai depender i,abe ate mesmo se expanda e inclua a p resença d e outras pessoas num
da concepção em que se baseia a terapia. Para mim , não é em xeque-mate contexto que passa a extrapolar as velhas duas poltron.,'1s d o come:o. De
que o jogo termina: "D ei um xeque- mate na tu a neurose, ela está vencida, repen te são três poltronas, são cinco são vinte Amplia- se
eis aqui tua almà'. Qyem entr:1 no jogo comigo faz parte de um laborar!', d . ' · um camp <)
<~n" e, se oficia ~ gurru~ co_is,a. Mas na vigência d a terap ia, o campo "ct i -
um operc,re, um o.fficiare. E a melhor metáfora para o suposto tabuleiro é a
lTe 'tssa terra vi_rtu~ rnv1S1vel, p orém real, é geradora de uma produ~·ã, >
do vaso alquímico em cujo interior a m atéria brnta, inominada e disforme
que deve ser cmdada., frequentada, observad a. O que n asce nas - . " ,
transmuta-se em valor qc.e vai adquirindo forma e nom e. . " \ 'l , ' - <..: C C II
ire," .i ce ula da dor, que con tém força germinal tran sformad or;t, n;1, >
Mas a metáfora a que recorro com mais fre quência é mesmo a de solo ~sta na m t d al.
, , en e º, an 1sta, nem na do p aciente. E n q u an to ac1 l·d i1:11
virtual. I mage m antiga, tão vet usta quanto a origem da agricultura, de qu e ,1uc esta forç a esta na men te d o analista O p ·tci•· nte 1 •. .
. _ , ' " ] U ll1 ,lfll'lT 11\111 1.1
11111 solo potencialmente fértil pode produzir frnto, alimento, fl ores, Vida . :;i tu.1-')·ao transfcrencwl , cm deco rrência d·t q u·t.1 -. · ,
' ' ]110_1 ( l a ll!l1.l Jl:11 l 1• tpr.
qK U >B E l! 'l 'O (;AMHIN !
I\ \' ll / 1 li 1 1 ~ 1 1' , , 1 .,
cient íficas, teoria: ; psiallógicas ou, como •~u me referia no começo, não provir a
é sua sobre a figura do anali!.ta: "O analista ine cura". Perma.necendo
do procedimento acadêmico. Se esse mito me ajuda a trabalhar, me 1juda a
nesse nível, o p aciente não aden tra outro, ljllt' lhe é desconhecido po-
enten der o fi: nún rcno humano personificado no paciente, me ajuda a entender
rém fortal ecedor. O fenômeno vivo, o ll:1 1úrncno crucial não está nem o mumdo, e ci1 vejo que dá bons frutos, eu o mantenho e sigo pautando-me
na mente de um, nem na do outro, mas cntr,.; ambas. É por isso que por ele e te nt an do compreendê-lo melirior, mas não tenho garantia algum a
sozinho não se consegue operar a tT,11 1srnutação da dor, porque sozi- de que até o fim dos nneus dias de trab21 lho esse mito não possa ser alterado
nho só reflito, como um espellho, o <]lll' está inscrito apenas em minh a pelo ,que acontecer na minha vida e na de um paciente, ou p ela aquisição de
novo5 conhecimentos e novos insights. Na minha concepção de terapia, não i;e
mente. E o p aciente sozinho 1ambém n flo pode fazer n ada, porque lhe
trabaílha com um conhecimento fixo, imutável e testado. É um posicionament o,
falta essa interação. É m uito im por1:u 1t c perceber q ue numa primeira é um eterno exame de hipóteses em busoi. dos desenvolvimentos, uma atençã.o
fase - e fui paciente durante muitos ano -.; - inevitavelmente ~tribui-se dirigida ao que vai aco1ntecendo na vida das pessoas, e na minha própria.
esse p oder, que afirmo estar n o n úc k o da céllula da dor, ao s.-1ber e ao
poder do analista. Mas o ouro nfto cs tú n ndc :se julga encontr,í.- lo. Se o
analista tiver alguma sahedoiria, útimo, q ue a coloque a serviço desse Alma: I napnsionável
processo e de sua elucid;1ção. É no campo ar,ivcl da psique que está o
fenômeno, portan to na vida como 11 111 todo, fora dos muros do consultó- c.:reio que essa é a única atitude reflexiva compatível com o qu e ap.J-
rio, que agora pode ser represi:ntadn como o t,cmenos dos antigos gregos, rentemen te é a natureza da alm a: efa não é nem estável, nem fixa, e s-
truturada ou definida, mas, pelo contr:írio, como indicam seus próprios
o lugar proteg ido.
Uma hora o p aciente pa rte, est':í for a. M as não se tornará, assim símbolos, fugidia, indefinível, irredutível a outra coisa que não si mesma.
sempre espero, um a pessoa rni- d is,111/ analisada, assumindo ares de Sendo ela aparentemente assim, pan:ce-me plausível[ sustentar que :a
pretensa superioridade e nomea.ndo comportam entos alh eios. Longe, reflexiio que busca reconhecê-la onde nem sempre ela parece estar deve
muito longe disso. Não. É uma saíd a da regifo protegida pel os muros emular seu estilo. Refiro- me p ortarnto a um a reflexão que n ão devi:-
do setting terapêutico para o rnundo, e o início de uma m aneira de lidar deixar- se seduzir p elo prazer d a construção de um m ajestoso ed ifício
com ab solutamente qualquer questão do mundo pela percepção da dor. teórico, o u da proposí. tura d e co nceitos que p airem acima de qualquer
O que d e novo é muito estra.nho, porque parece que a pessoa vai ficar discussão, ou de verdades testad as p da experiência. P ara m im, essa:;
masoquista, ou atraída pelo i;ofrimento indiscriminado._O que espero preten sões alimentam o ego de um ratedrático, de alguém que que.r
deixar claro é que agora o indivíduo sabe que o que atrai seu olh ar, em co nco rrer ao Prêmio Nobel, de alguém que que r fi car o dono do terreno.
qualquer contexto, em qualq uer magni tude, é aqu ela substá~cia que P ara mim, são incompatíveis com a natureza da alm a.
oculta luz sob O manto d a dor. Com eçamos então a viver e a lidar com E af to ma corpo mi nha grand e preocupação com a crescente b anali-
esse mito - a palavra é t:ssa mesma - mythos cm oposição a logos. ZJ.Ção do termo "alm a'', com uma certat retórica vaidosa que tem ganho
volume e espaço e que fala da alma rn mo se j á a conhecesse em todm
Nesse sentido venho tecendo toda essa reflexão:
o s seus m istérios . Ach o que aí j á não se está mais fala ndo dela, m .ts ele
har com
núcleo da dor faz com q1Le acabe se libertando o que
[, ... J tra bal -eu interior
O
d
uma luz de nova; verdades, uma luz re1;enera or:1,
uma d im ensão d a p sique que p assou a fazer p arte do eg o, e se cria um.,
esta preso n 0 ~ , _ _. . _ · ..1-
enorme confusão p orque p arece que é a alma falando, mas não ~- J\in
- d d 'da Uma an.rmaç.;io como est-1 naa, prov1na Jamais do proceu1
ena ora e V1 . '
mento mental que obedece às Ie:1s do logos, que eng:endra precipuamente teorias d:1 é o ego falando - uma língua nova. A mentalidade contempot :im.1.
A \ " lJ/. I· () l"I ~1 l'í l
H <> IIER'i"O GAMB ! N l
11 º
em certos círculos, tem produzido um di scu rso que parece espelhar a O que tanto me atrai e intere:,sa ao mesmo t empo m e preocupa.
alma, mas que acaba revelando- se um 1·a11 1inho de distanciamento e, Como ens i11ar essa matéria sutil sem que isso vire um manual, um a
fi nalmente, de perda do que pretendia l·:q1 1untr.. Então é p reciso ficar teoria :1ltisso11ante ou um discurso elevado? Isso me preocupa m u ito,
olhando para o ch ão. porque é prec iso aprender uma p ostura, um posicioname nto adotado
Não se deve tratar isso que e, ta1nos r h;1 mando de alma como u m desde a Antiguidade e lindamente pra ticad o pelas populações aborí-
objeto de conhecimen to, com a cx pcc t:tliv,t de que com o tem po ou genes das Américas, do Alasca à Patagônia, que é o respeito diante do
com um certo n úmero de pesqui sas possa J-i.nalmente ser dominad o e mistério, a reverência d iante do numin oso. Se alguém entende o q ue
compreendido. O átomo, sim. A alma , não . Porque a natureza de am- quer di zer "nu minoso'\ como Rudolf Otto definiu, e J ung ad o tou, é
bos é diferente. Não quero alime ntar desejos de u m conhecimento que ridículo pretender-se aprisioná-lo no interior de uma teoria explicativa,
acabe aprisionando a alma dentro de u111 a p;;tiola, para que eh caníte, que porque a partir desse in stante fatal o n uminoso deixa de sê-lo. Aliás,
nem um passarinh o. Talvez ela rn 11t·c, mas 11 ão voará mais. Espero que muito p'.u ecido com o q ue a física subatômica ensin a: na hora em que
ela voe sempre, e que tenhamos ~crn prc qul'. voar atrás dela. Recuso-me o pesquisador pretende observar o fen ômeno subatôm ico através do
a conceber a alma como al~o q1 1c fin :drn cntc eu pegue no voo. Assim microscópio,já se aJterou aquilo mesmo q ue ele queria observar. Eu não
como ninguém vai pegar ,~o m ,1s 111 :10~ um passarinho no céUl . Q,ye sei como os físicos lidam com isso, mas faz parte de nosso ofício pensar
sempre voem alto os pássaros! sobre o modo corno os terapeutas o fazem. Quer dizer, a substância
A cho que essa ideia é imporl:1ntc porque orie.nta toda uma li nha de p ~íquica mais preciosa n ão pode ser do m inada, não p ode ser observad a
pesquisa, d,: desenvolvimcrto tcm.üico e de vocabulário. Aprecio enor- diretamente, não p ode S<'~r decodificada p elo intelecto. O que se p d
. . o ~
memente o conh ecimento dos processos d a psi que e da busca de seu s1~-' e compree~d-e r a ~o stura que o intelecto deve a&sumir perante esse
âmago, mas não quero com ele criar um domínio que acaba afas u ndo o par,tdoxo - ele e m teligente, é capaz d e entender' 1· d
. . . . ,ogos em na a co n-
própri o fenômeno que se q uer rnnhcccr. Segundo concebo, as imagens tnbu1 tr~ves t1~0 ~e conquistador. Sua melhor postura seria a de aceitar
da alma são as image ns do inaprisionável, daqu'ilo que não posso reter, algo marnr e d1stmto de si. Sim, invoquemos a alma mas - fu
t emos com palavras t . · , nao a a g ~n-
que não posso agarrar, que não posso contn. Por exemplo, as águas do _
- e eou as, porqur semo ela se dissipa. A prova disso
rio que não param de correr, as nuvens, o voo dos pássaros, a lu z d a ma-
s:o elucu~rações q~e acabam ficando chatas, áridas e re petitivas. Ou
nhã. Não se segura uma nuvem .J á é quase lugair-comum, referirndo -sc
p ;~· ban,;is,_e daqui a po uco começa-se a falar di sso nas conversas de
ao sentido grego de psyche, represen tar a alma como borboleta: pegue-a so a na te ev1são. Pode-se ter certeza de que aí a alma foi embo d
com mãos delicadas, porqu e as asas são foigeis. Ora, o guc p ro ponho eé rr . < • • • •
ec1,.o ir procura-la p n ão se sabe m ais onde Myth
ra e vez,
é que não :;e qu eira pegar nada, quebrando asa ou não. EsHe terreno { isso muit o b em · . • , · . os representav a
. se voce correr atras das musas ela:, escapam· um ,
escorregad io e~, única saída para não resva lar é a humildade ao falar e vapor t• , • h · a e
' ou ia e nac o, uma é nuvem, outra é orvalho
ao conceber; e nun ca no sentido de fraqueza, mas no de compreend ei O fu idi · , · . .·
g o urucorn10, por exemplo, que é um símbolo medieval f I
a d iferença de qualidade entre 11ma coisa ch am ada co nsciéncia e um :1 essas características. Qiando os caçadores eh ' in la
coisa chamada alma. Se cu comp reender a diferença dessa& qualid ade s, d esa1)arec ia O E , ,· J\lí , egavam perto dem · ,
. . , .
sp111to ,.1ercuno na Al u· . . 1 a.is, C1<.:

o fen ômeno consciência eu abordo de um a maneira; o fen ômen o alm :1 não se de ixa a d . , y im1a, 1gua m e nte escapa l '
: . preen er. Vemos assim que essa fugacidad , :l- .1
e11 abordo de outra. nos e mais precioso tem C]Ue se ·r- e e ,19111 o q ut·
r ace1 a nesses exatos rermos.
, . , .'. Hll lli' R ro 1;/\M IS) N J

t\ Voz t•: () 'I' E~ 1 1' l l


1 1;
Os índios br:tsileiros têm uma vari edad l' eno rme d e mitos que expli- sua dinâ mica. Há propostas terapêut icas d e que o paciente "co ·w ersc"
cam a orige m a.iúmica d as doencas. A lg ul'.· 11 , cst:í mal, os pajt:s se reúne~ com essas fi g uras interiores. A imagi nação ativ3. é u rna técnica cri ad J
e dizem: "Esta p essoa está m al porqul' s u :1 al m a a ab andono u e foi p or J u ng que propici a, entre omras coisas, esse ..:ontato. E no folclo r•.:
·untar-se a seus parentes ra aldeia d :1s al11 1as, onde se casou e por:ant_o j ungu iano i1 1rc rnacion al, em cír<:ulos relativamente fechados, ouve-se
J · " () · , f: em então ntua1s pessoas dizcrc lll : "Meu Se!fme aconselhou a fazer isso ou aquilo", por
não quer mais reto rn ar ao corpo enlcr111o . s paJeS az
com o fito de a traí-la d e volta, tocando lhutas sagradas e ch~calho~ e cxem p lo. N ão quero de forma alguma dar a im pressão de que es to11
entoando os câ nticos apropriados dura11tl' noites e dias segU1dos ate a desqualifi ca ndo práticas desse tipo; minha questão é o utra. O que me
·r evoltar desfazendo o s ví n i.: 11h h extracorpóreos que acabara preocupa é a passagem de experiências internas sutis para o plano de re-
al ma ouvi , , fi ·d· latos análogos a casuísmos factuais, como se o fe nômeno interno e o ex-
de estabelece r. Na p sicologia xarn:'i11ica a alma igualmente e; ug1. ta,
de ser dom.inada e corrc - sc se mpre o n· ~co d e pe rdf•- . la . 1•
terno estivessem no mesmo pla no o ni-ológico, obedecessem às mesm as
- -~ muito '
nao po alrn - b clonou leis e princípios e pud essem ser a.bordados com as mesmas categoria~;
n1u ito duro quan do num certn dia pan.: n· que a , a no ~ a an
, . . a que nos rest'l fa ze r(· tent ar al-rm-la de volta para qu e e termos de lingu agem. O inefável, co mo indica o próprio nom e, não
- e a un1ca cois '
pode ser p ronunciado! Ou, quando muito, é preciso usa r uma linguagem
a vida pulse de novo.
mais refin ada - p or e.'\.emplo a poé tica - para captar o sutil. Senão - e
esse é para mim n problema - us:1-se o pri sma d o ego para relatar algo
que exis te exa tamente num te rritório n ão abrang ido por esse prism a.
resta a um gra nde Esse é. segundo penso, o n ó da qu es tão episte mológica : como con.hecer
.ál go corn o Se/f f Lunb1:rn Ulll tcn,a que se p (
O d1 o - d Jung O Seif em a lgo que está fora de minha área de con h ecim e nto consciente. Creio na
. d :tl-ente ndido s. Sqçuudo a l oncepçao e ' . .
numero e m " . . . ,, em Sonhos, M emorias e p ossibilidade d esse co nhecimento, qu e torna con sciente o que ante s não
- Selbst trad uzid•) crnno S 1- rnc ,mo .
al emao, , 1 f, · 0 termo em in - er a: nus cuidado com a maneira de fal.ar. A d escoberta, a compreensão ,
, ll o -es na década de I<)70, , nas o qu e p reva eceu o1 .
R e_;.ex . - con ~c1ente co m o o ficar sabendo, o sen t ir, ocorrem em logos, ou no coração. Em ambos .
A , ntendido , em contrapos1çao ao ego ~ '
g les mesmo) e e d d . d a p síquica, qu e, sen do um a apenas qu a ndo c0 n stn úda a ponte. Só e ntão a palavra terá o pod~r de
d e es t rutu ra or a vi
o centro re gula o r d . ssado diretam e nte, m as ape invo ca r realidadef. ainda n ão classificáveis .
. - , uetípica, não po e ser ace , .
compos1çao ,uq fi d de maneira prop icia, lhe A ques tão da a 11ima , para os homens, ta mbém cria estados dificíl im os
, d • uando ~ ;te , con gura o ., .
nas a traves •J ego q dº , cL: formação e e:xpenenc1,l , de se entender, por exemplo, po r que se foi tomado por uma emocio-
tive por apr e n iza >,
dá passagem. S empre re ' . d , m elho r n ãf) aludir a algo n ,tlidade inco ntrolável qu e alte ra o s a licerces do ego. Como defondo
. - d ser expenmenta o e . .
que se o Selj nao pu er h. , ·t se atraente. Pode - se p erfe1 o dire ito às opções, qu e cad a um faça as suas. De min h a parte, já que
. indo n uma ipo:5 a .
que se acab a na resurn ·,s m ais din:tos e preciso..,, só posso testemu n har o qu e vivo, sei que certos estado~; , segundo J ung
. b n d o o ego - e m termc .
tamente p erce e r qu a f: 1 partir d e um ponto de v1st:1 provoc:1dos p or um a ativação do arqu é tipo da anima, podem de um
. 1. ,d _ a •re ix: n sa o u a a a ' .
guando o iru: iv1 u o .:, : . - h b. l E sta é ali ás, uma área n lad o tomar um homem irascível o u empático, melancó üco ou sen-;ível ,
. ê n cia cgo1ca a J tua . '
distinto d e sua consC1 . ·, .- M as d a mesma form :1 m d ind rável o u criativo - são exemplos soltos . Se, nu m momento ,tfor -
v 1.o p esquisa e teortZ<½ ao. '
quíssima para o b ser aç, ' . " mbra" é p reciso saber-si· tu "lado, percebo que ei;tou sensívd, não fico "conversando co m a ,mi
"al " 1n inu1 animus o u so '
que os te rm üs ma ' ' ' d. bre o Self, seu s s ímbolo s e m//"- si mples men te fico sensível! E ntrego-me a esse es tado e o e:- :r~·(),
do que se está falando quan do se isc ur sa so '
AV Oí'.EOJ'Fl\11' 0 l .j\

1.1 .1
1!0 111•: Wl'0 C/\MH I N I
nada mais. E q u ando não estou, regi stro e lamento. Não gosto muito num estado alterado de consciê1K i:, 111 ,1\'•··. d .,, l1.1 d,• l·ip11 u11 d..; our ra
de bruxarias da psiqu e, um caminho din-to p:.tra o autoengano. Fico drog a alucinatc,ria (supostame11t c r,(·1•1-l.1d111 ,1 , l,1 1,·Hl.1d!'/ 1· ( ' lll:10 ver
com Fernando Pessoa: a única coisa qul' 11fo me engana é que pedra é com olhos de s:ibio nossa realic'. ad( · i 1111, il, ,1,_ 1, ., 1 1··.· ,· 11 w .1 11,1 1·1 •;0 q ue
pedra, experiência é experiência, você é unu pessoa real. A trad ição de na quarta-feir,1 estava num estado de · 111 11 111 111!.1 , l,, 1 •1111 ·, rtr, ,,t/1,11l0,
Jung presta-se às mais variadas práticas, rn,ts eu retenho como alicerce pode ter um rn,)mcnto de clareza pcrn: p1i 1·.1 ,. 1-I, .1tí , ,1 l > •111 1 •,,. 111u l1·
de meu trabalho e de minha re.fl.cüo aqw·k Jung que conhecia tanto a concluir disso? Q_ye somos plásticos_,mu t;ivc·i·., 111 , 1, 1, il ,,.1, ,, . , I' w ·., 1111 , ,..,
pedra como seu símbolo. regiidos por constelações de fatores inten11>~, q 11, ,1 ·•. l11,1111, , . , 11 11111.1
configuração a outra , que não somo,s monol>l o, ·11 ·. 11. 111 I '' 1111 .1r 1, , " 1 1·
inalteradas, não: variamos. Mas cuidado: se alg ui'·11 1l ,. 11 .11 11 .1, il ,, '. ,, , 111,
vai comandar e controlar essa dinâmica toda, _í ,í l': 111 1 , 11, 11, ,
1
:• 1,11, 1, ,
Mas seria possível, p or parte dn ego lºIJ JIH> 1x :rgunta Enrico - cultivar
Diz a sabedoria oriental que a únic a maneira Jc S( i 1111 ,1 ,r1, , ., 1 , , , 1 , ,
uma capacidade de expressar , , S,·(j; 1 H 1 ( k recon hecer quando isso ocor-
é mr:·ditando e parando de pensar. Naquele m orn ell!" 1·111 , 11, , ,
re? Costumo falar muito di s:--o na s ~csscks terapêuticas. O eg;o, nosso 1
fora do efeito do pen samento, o ego se aquieta. Pa.rc,:e 11" ' 1.111 1, , ,,, "
estado mental corriqueiro, é 11nss.1 ek sg r,t\'ª e nossa salvação. Se acaso 1
melhor destino para o ego é o aquie ~1mento. Esse é se u nwll 11 ,1 , :, 11, .. .
vier a perdê-lo, você estará del irant e, IÍffa de si ,já não será mais você. O
sua melhor utopia: Utm ego sereno e testemunha de si nH:si 111 , •,, 1,, 1,,
ego é nossa consciê ncia l1 ,1hit11:1l, no ssa permanência. E é um problema
A calmar o ego seria o mesmo que anulá-lo? Não. (h1and () 11 ,,,1., !',\'J ,
de bom tam an ho, po.rq lle ta1 1to pod e causar desastres terríveis, como
e instruído é q ue o ego se torna o melhor trabalhador Jo j>I' " ,... . ,,
realizar cois;1_,; maravilhc>sas. Su as características peculiares fazem-n o
de dcscondicionamento e expansão da consciência. Porque d l l '
acreditar muii-o cm ~i 1n,:s mo colllo se ndo o dono da casa, o senhor do 11 111
soldado raso, não um general. Sua função é trabalhar, obrar, n 11 11
territóri ,>, o a~.scnto da individualidad e e da rc;1lidade psíquica, tendendo 11
u~n~ a~elha, como u m boi. A medi tação, dialeticamente, depoi s llc
portanto a uma grave unilakralidadc, elegen do a parte como sendo o
d1mmuu as dimensões do ego, gera a,;ão focada ,;:: eficaz nos momentc ,:-,
todo. C onh ecer sua rclativic.L1de, sua posição específica, seus enganos,
j inflações e os papéis inovadores que possa vir a desempenhar já é um
belo exercíci o de pós-graduação. O paradoxo da condiç'ão p:;icológica
de atividade. Seu alvo é a vida e sua,, contingências, não uma fo.ntas ia
de Nirvana. Vivê-la com o laborioso auxilio de um ego lúcido serei >
1l '
1 fi . '
e ciente, sabedor de suas limita(;ões, que nos ajude a fazer O que tem o s
é que tenho que usar o próprio ego para con hecê-lo - ele é ;10 mesmo
a fazer, desde prepara r comida e cuida r dos nossos até realizar trabalho
tempo o suje ito e o objeto de conhecimento. Um eJpelho nafrente de outro. O
~ue n os cabe e evoluir. Q_ye esse tão falado ego possa ser promotor de
Não há outro meio, não h á um apoio exrerno onde firm ar a alavanca de
vtda! Como di~em os críticos lit,;::rários, a "fortuna crítica" da terapia, as
um olh :u mais abrangente. Devo então desenvolver a inteligência psico
centenas de milhares de páginas escrít tas sobre a estrutura e a dinâmica
lógica cio meu ego, sua ética , sua honestidade diante do que é e do qu e
do ego muitas vezes criam falsos ide ais ou postulam estado · · -
produz, para que, como Narc iso, possa olhar para si mesmo e falar de si , . , , . ' s mat111g 1-
1e1s, ,o que e pes:;1mo. O trabalho terapêutico não visr fazer ·
- o que está muito além de se r fácil. "Reflexão": voltar-se sobr,:: si mesmo. •1 O paciente
.;:orrer com viseira atr;is de uma cenoura. A avalia,·ão tera ~ tº d
Como percebo que o ego me engana? Re pito: é através do pró p ri, • _ , ,· peu 1ca e um :l
p essoa nao e sua colocação na maratona mas seu grau d -
enganador. Não há outra fimção disponível.. A proposta n ào é entrar e percep~ao d. 1
re al H. lad e u111ca
, . da psique. '

HOllE IITO G AMBINI

A VO Z E o 'l'Flltl'll
Percepção d o real - ach o que é esse nosso grande desafi o. Qyando "organização da experiência" (expressão do mestre Ann:onio Candido) - através
digo "real", refi ro-me a algo que não esteja encoberto por ilusões, por da ca tarse (q ue 1oão. é "sublim ação"!) as emoções são mobilizadas, a psique
expurga algu e arn tnJ a uma ordem mova.]
au toenganos, devaneios, fa ntasias, fa lsi<ladcs, projeções - coisa que o
lado prestidigitad or de nossa mente adora fazer, ~ es tre que é em criar
filmes , cenários, personagens e roteiros, fa tn que a P sicologia descobriu
e já co nhece bastante bem: a fantasia e o fantasma passam. a ser mais
R egozijo
reais d o que a vi d a. Esqu em aticam en te: localizamos um a dor na alm a; da sofre. Por quê?
Porque algo lhe falta, não é reconhecida e est á ferid a. Já vimos esse
Administrar ,, Dor percurso tod? e suas várias ramificações. M as agora podemos chegar
a: a ai.m a sofre quando impedida de sentir alegria. Por quê? P~r não
Que cada um possa encontrar o qu e lhe aplaca a dor. P ara alguns a mú- conhecer o regozijo. E que é regozijo? 5 É ficar feliz com o que se tem e
sica, a poesia, a arte, a conversa, o reco lhimento, a prece, a contemplação o _que se é. Ninguém, n a nossa literatura, disse m elhor .do que O j agunço
de uma árvore, a ação eficaz , a se nsação do corpo, a concentração, o Riobaldo, em Gr,ande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa:
ó cio, o estudo, a criação, o praz.cr são bálsamos, tônicos e elixires. Para
M e alegrei de estrelas.
o utros, o trab alho maníaco, a ve locidade, o ,ü cool, a maconha, a cocaína Sumo bebi de mim.
e o ecstasy, o conteúdo da gelackira, o ba.ra1ho, o cartão de crédito acio-
nado em cad eia. Cada um procura o alivio que para si funciona. M as a E sta última é uma fras e lapidar de nossas letras, aludindo a esse m aná
P sicologia elegeu certos cri térios a respeito dos alivias . Um deles, para Sl~rtanej o que aleg ra o coração espinhoso e aton mentado de Riobaldo
mim o ma is radical e coraj oso, é dar nome à dor. Às vezes esse batism o a~uele que quer atravessar. A expressão "regozij ar-se" respinga catoli ~
tarda, porque o n o me se escondeu, e só u m é p reciso. OJ.smo e d eve ser indecifrável p ara o m enino que vai à aula de catecismo.
Para cer t as pessoas, como Enrico Lippolis, ouvir a tri steza de um O regozijo é um a experiência p ossível de se viver, ou então não p ass a
Noturno de Cho pin o ajuda a m atizar a própria dor que sente. Dor cura de figura ~etórica. "Minh'alma se alegra" neste fi m de tarde em que, na
dor! A dor expressa pela via da arte am ain a a outra, própria, reb aixad a companhia de du as pessoas queridas, falo diante de um microfome de
e se m fo rm a. [Incluo aqu i o belo come ntário de Ad élia Bezerra d e ~'.·~vador digital. Precisa muito? É o que tem os agora, é O que pode ser
Meneses: vrvido. M as p or que de repente não nos regoziJ. amos? Por que s@mos
, . :io
Não é por qLLe a dor ga nha contorno ? Uma percepção con fu rn e indistinta neuroticos_. u porque condições existenciais o impedem? C ertamente
de do r ad quire fo rma. E a form atação bás ica, para mim, é dad_a pela p~ a~ra as duas coisas. N ossos fantas m as ainda n os assustam e atemorizam. E
0
poética; a do En.rico é através da música; ou també m poderi a ser plast_1ca m ~~ento histó rico da hum anidade e do planeta n ão são lá muito
(através das form as). A poesia dá nome, nomeia. A verdade é que toda ~rte lida propiciado res de regozijo.
com sofrime nto. Inclusive, na Li re ratura, a gente vê que os bon:; sentime ntos
e as realizações felizes não tém lu_gar; na Li teratura, a Poesia é sofrim ento; os
grandes romances são sofridos. ~ a velha catarse do Aristótel_cs. Por ~ue as 5· Cf. Ri obaldo, em Grande Sertão: Veredas: "A.h, um recanto tem miúdos rem .
aond d . . - ' rmsos,
pessoas vão assistir a um a Tragédia? Porque a arte tem um efeito, que e o da ' e o _emonw 11ao consegue espaço de entrar, então, em meus grandes pa hlcios.
N o co raçao da gen1e. M eu sertão, me u regozijo!"

R O B E R T O CAMB I N I
A V , l :,: Eu '(' J-:~ l l'!l
' -l'J
;t
Neurose Agora, isso é uma dessas coisas que estão ou inconscie nt,.!s, ou au 1
sentes, ou enterradas numa pessoa. Qyal é p ara cada um su a im agem ,
O mal de nosso tempo e a neurose são o antirregozijo . O neurótico de vida regente? Se fizermos uma pesquisa, o que quer a maioria? Quer
1
não se compraz com nada, a com eçar consigo próprio - que 'é a fonte ter sucesso, qt1er ter dinheiro, quer subir na escala social, ter urr.a famíl ia
(
do "sumo de mim''. E nem com o outro. Então, o que é a neurose? A e uns tantos rilhos, ter um carro especial, casa na praia, garar.tias p ara
neurose é uma deformação do estado das coisas, é um funcionamento às a velhice. A lis ta não vai muito além disso, porque pouco se fala d e f
avessas . Qier dizer: eu como para me satisfazer. Sou neurótico? Como outra ordem de coisas. E é confuso mesmo, para todo mundo, porque •
e sinto culpa. A neurose alterá o dado e seu signo; é um funcionamento "imagem de vida" não consta da pauta habitu,tl de ponderações, n ão é •
p ervers@, porque fica tudo pelo avesso. Os males são bem conhecidos: assunto de conversa, não é algo que se pare p ara p ensar. Mas :,e devia. •
culpa, inferioridade, frustração, carên cia, ansiedade, incompetência,
irritação, ineficiência etc. Se estou neuró tico, estou funcionando contra
O Q ue N ão Se Sabe

a corrente, contra o fluxo e contra o sentido das coisas. ~er dizer, é
algo que tem que ser trabalhado para ser alterado. Jung foi breve: "O
neurótic o é um desadaptado de si. mesrno". É um antisser, de viés, a
Eu admito a existência de algo ou de uma dimensão que não é conhe- •
cida. Porque ela de vez em quando se manifesta, ou p orque progressi- I
contrapelo. Acredito que o ser humano <~. capaz de serenidade, regozijo, vamente vai se dando a conhecer. Basta você estudar o saber human o f
amorosidade, solidariedade, compaixão, criatividade, ética, reparação, e a história da ciência. Inconsci,:!nte, saber: a m esma etimologia, não é?ó' f
mais valores que se queira acrescentar à lista. Se não acreditasse nisso,
não faria sentido exercer o ofício que escolhi.
? con hecim ento aumentou , ficou-se conhecendo mais do q ue antes. t
E possível conhecer mais; ent:lo, h á sempre algo a conhecer. (2,yal é O •
Não sei qual o telos, a finalidade da natureza. Se pensarmos darwinia- taman ho, o nome desse algo? Eu não sei. É imenso como as galáxias? 41
namente, lembraremos ,que a vida começou ao acaso, e que um proto-
Eu não sei. M as h á algo, par~ se-r ~rogressivamente conh ecido, em nossa
zoário acabou se desdobrando até cobrir de vid a um planeta. Mas não mente e fora dela. Isso e muito diferente do qu,i dizer que o incon scien- 4
sei qual é a finalidade desse processo. Sei que transcorre sem cessar há te foi extraído da consciência, onde supostam e nte estava oculto. Então 4
mais de dois bilhões de anos. Para onde vai a nave, se a humanidade ten- você vai resgatü-lo, e o reinsere nela. Nesse procedimento, permanece-se 4I
de a uma mdhora, a uma evolução .. . eu não sei, está além de mim, não sempre dentro do mesmo território. Na visão junguiana, a nomeação 41
posso falar disso. Agora. nós, que somos macacos um pouco mais aptos, de conteúdos mconscientes lida com realidad,:!s que nunca dantes es - t
com a nossa capacidade de representar e de ter ideias, com bina com tiveram n a consciência, podendo portanto alterá-la em sua n atureza t
nossa vida termos um te/os, uma meta, uma utopia que sej a. E minha expandindo-a, gerando novas atitudes e valore:9. A intuição pode leva/ t
proposta é simplesmente poder dizer: que nos tornemos seres humanos até esse des~onhec~do, ou uma inteligência ob~ervadora - 0 qu e não é I
melhores. É uma escolha. Para mim está bom. Fico muito inquieto ao a mesma coisa_que m telecto; ot1o coração, o sentimento podem levar a I
ouvir: "Ah, minha meta é ap render a lidar com frustração". Para mim novas percepçoes. Sonhos, devaneios, sincroniddades, também podem
é pouco. Agora, se você escolheu isso para a sua vida, é assim que você apontar para novos horizontes. A visão junguiana lembra um ca min ho 4I
viverá. Se eu disser que a minha imagem de vida é que esta se regozija . 4
co nsigo própria, e que pode criar maravilhas, está bom, não está? 6. Ciência, inconsciente: vem d a raiz Je seio - o verbo seio., sabL'r.

R O IHRTO r. AM III N I
·\ v o ·, F ll I Fl\1l ' t l
Não se está no interior de um território que a tudo circunscreva, a vida,
o mundo e o mistério. O que se busca é precisamente transcender os
limites do próprio território que nos aprisiona, condicionando nossa
percepção. Somente a inteligência desperta é capaz de dar salto de tal
magnitude. Sonhos, um Mundo Sem Limites

DET E NH AM O-NOS AGORA u m pouco no fas cinante assunto dos


sonhos na terapia junguiana, que já rendeu tanta teoria, tanto ensi-
namento, discussão, exemplificação e uma vasta produção publicada
em livros, artigos e anais de congressos em vários países a partir da
segunda década do século xx, alguns anos depúis das primeiras pu-
blicações de Freud e seus discípulos. O que mais me interessa neste
momento não é discorrer sobre a diferença entre as duas escolas, ou
sumarizar tudo o que já foi dito a respeito do tema, mas tentar pôr em
palavras o tipo de reflexão que ocorre quando ouç:o um sonho relatado
por alguém, seja numa sessão terapêutica ou mesmo em outra situação
qualquer, porque é distinto da que se verifica em outros momentos da
prática clínica. É como se ocorresse independente de qualquer esforço
dírigido pelo pensamento lógico. Prefiro portanto referir-me aqui a
"reflexão" e não tanto a "interpretação". O termo ideal é "tramcodi-
ficação": o sonho relatado incita a mente atenta a produzir u m tipn
de reflexão específica e única, que só se dá no momento da escu ta dn

l 'j 2 ROJIERTO CAM 8 1 Nl A VO Z F. O ' I' F ~1 1'0

l
etc. - coisas sobre as quais já se escreveu muit o - meu interesse, minha.
relato onírico e produz no terapeuta uma fala e um pos1cionamento
ênfase hoje, é o que podería mos chamar de "ato transcendente": sai~
diferenciados. N esse sentido digo que essa r~fiexão provocada por um sonho
de uma equação que aprisiona e entrar em outro nível mental. I sto-
é a florda terapia.
Essa questão é delicada no treino de jovens terapeutas, que de início acontece basicamente porque um sonho foi contado, e um t erapeuta~
que trabalha com essa matéria deixou-se mobilizar até o ponto de
querem s:lber quais são os truques ocultos e as técnicas reservadas a
conectar-se com essa qualidade reflexiva de natureza peculiar, distinta
4
iniciados para se interpretar sonhos: o que será que significa "aranha",
"voar", "morrer", a cor vermelha, o número cinco etc. - e evidentemente evidentemente de um aconselhamento, de uma prescrição médica ou ~
o caminho não é por aí, mas deixar-se afetar pelo sonho e ao mesmo de uma adve1 tência corretiva. Não, não é isto. O terapeuta gerou algo ~
tempo m anter rigorosamente os procedimentos metodológicos. O ob- inesperado. Deu vazão, deu voz, foi veículo de um pensamento que na «
jetivo é experimentar um tipo de reflexão de outra qualidade, relativa verdade teve sua origem no próprio paciente. E cá estamos de novo no t
àquilo qu e no momento não pode ser enunciado pelo interlocutor de- mistério: um pensamento extremamente transformador ou benéfico à t
vido ao simples fato de não estar presente em sua consciência. alma se origina numa pessoa que está péssima. Ela não tem condições C
de abrigar aquele pensamento, de fazer nada com ele. Conta-ô para o C
terapeuta. E ste o recebe, processa-o e o devolve para o paciente, seu
Circulação da Matéria Pensante
dono. D esenh a-se então um círculo, uma rotação. E aí temos numa t
1
~ ando ouço um sonho 1~ começa a tom,tr forma em meH íntimo esse casca de noz tódo o mistério da transferência, todo o m istério da rela-
1

tipo especial de reflexão que venho tcnrnndo descrever, a expectativa ção analítica. Como um vaso se comunica com outro? C omo círculam
que abrigo é a ele que meu paciente, ao ouvir o que inicio a verbalizar, substâncias sutis?
mude de sintonia, ou de faua de pensamento, e saia do âmbito de É como se o sangue de m eu paciente fos se transfu ndido para a
ideias ou equações nas quais ele ou ela se debate ou gir:1 em falso; e minha veia, cirtulasse em mim, e fosse re-transfundido nele. É: 0 d ele,
que aquela reflexão provocada por u m sonho reorganiz,! sobre nova não o m e~, que de algum m odo passou por mim. Por quê? Porque
base sua situação psicológica, o modo de se sentir, de pensar sobre si estou ofi.ciando um procedimento que é uma diálise reflexiva . A sua
mesmo. Sei muito bem qlle, quando isso acontece, esse novo patamar matéria pensante não pode fluir em você, porque você está sofrendo
fo i criado por aqu ilo que chamamos de lnconsciente. ~er dizer, há você está tomado por emoções bloqueadoras, você está mal, você está'
algo em nós que está querendo propor outra maneira de pensar ou de confuso, você está fora de foco · Mas ela está lá em voceA , a ma t ena
, ·
sentir. N ão conseguimos mudar um estado mental a seco, por meio _p e~sant~. Ela surgiu co~o sonho, ou como símbolo, ou como imagem.
de aconsrlhamento, confi dências ou desabafos, mas graças à entrada Dai voce a conta para mim. O meu ofício é recebê-la e fazê- la circuhr
em cena Je um sonho e da reflexão que ele possa propi,::iar, momen- dentr~ de mim - com um método. N o método junguiano amplifico 0
to em que se manifesta ,1ma fo rça capaí', de alterar o e~tado mental tnaten al, faço comparações, tento compreender os símbolos em tod· .
. d ,\ ,\
daquele momento, e u ma janela para outra visão se abre: esse é o sua van e ade, localizo e nomeio o dram a , O conflito , O a n d am ento uJ n
efeito t ra nsformador do trabalho co m sonhos. Além de coisas já enredo etc. Essas coisas todas eu faço. E ntão , eu c·irculo aque1a maten· :1
sabidas , do tipo: "Ah, agora entendi o que é que eu estou realmente pensante para a qual você não tem uso no m omento , voceA11 ;;,,O "ª , l
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faze ndo", ou "meu sonho mostra que minha sombra está muito ativada" que fazer com aquilo e não é por falta de inteli,:rênc
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·1" rn·\ , .1 , · \
«, • S llCV' l \l a11
rq ROll l': RT O G A M B I NI /\ VO Z E (l 'l' F !\li' \\
e stado mental e à sintoni::i. em que você se encontra. Entã•), eu a deixo seguramente dizer que não entendi um sonho, ou que dele n ão era ca
percorrer meus circuitos mentais adequados àquela situação e a devol- p az de fazer gato e sapato. Mas mudo e vazio n unca fiquei. Como pode
vo a você. Esse movimento e deslocamento da matéria p ,~ nsante, que isso ocorrer? J\.1udo, vazio e indiferente, nunca fiquei. Então, d e algum a
a areja, de alguma forma a torna inteligível: esse é o ato terapêutico. forma, deve ser parecido com ouvir música ou ler um poema. Você já
Então, diferentemente de um freudia n o, não digo: "O ato terapêutico teve a experi1:ncia de ouvir u ma música ou ler um poema e não lhe
é a interpretação", mas: "O ato terapêuti,~o é a circulação da matéria acontecer absolutamente nada? Alguma coisa acontece, nem que seja
pensante p roduzida pelo paciente, mediante o oficiar do terapeuta, que mínima. Entiío, algum tipo ele contato se es tabelece com "algo". No
a devolve de modo a pode r ser recolocadil no lugar onde nasceu e ao meu trabalho esse "algo" se chama "matéria pensante formulada p ela
qual pertence, o interior de sua p sique" . Então você percebe que "in- nossa parte inconsciente" - que é distinta de outras matérias, a crônica,
terpretaçào" fica muito pequeno, apenas um aspecto, um detalhe. Mas a narrativa, a fala autointerprerativa; trata-se de uma matéria e:;pecífica,
isso ninguém pode fazer ~:ozin ho, precisa- se d e um Outro. Porque não psicomental. Eu ouço e absorvo essa matéria, entro em contato com ela,
posso destacar de mim essa matéria onfrica, depositá-la no vácuo e e ela produz u ma reação em mim. E eu creio que esse é o produto da
esperar q11e retorn e arejada e tran sformad a. O que seria o vácuo capaz terapia. Não e:.tou portanto dize ndo: "O produto da terapia é terminar
de faze r com ela? Tudo o que posso fazer sozin ho é coloc:í-la no papel, a transferência:.", ou "o produto da terapia é resolver a questão edipiana" .
registr á - LI, guardá-la paru qm:, quando estiver num outro estado, eu Essas frases n ão são minhas, não está em mim pronunciá-las. Não são
consiga o ficiar minha pr,Jpria matéria p ::íquica - o que aliás é o~tro minhas, não sei o que signific:tm, elas não fazem parte do meu mo do
dos alvos da terapia: que um dia alguém não precise mais do analista. de pensar, do meu modo de ser e d o meu modo de operar.
Você agor a sabe colocar- je na posição do oficiante. Esse é o alvo. Aí O que venho formulando é minha vivência, é aquilo que eu pratico,
é aquilo em que acredito e pret endo continuar praticando. E sinto, sim,
terminou a análise, você continua sozinh< ).
qu e há não urn domínio a set conquistado com o tempo, mas uma
crescente familiaridade. Ol,1er dizer: cada vez mais isto me é familiar.
O Oficiar Terapéutico Da primeira vez que tentei, n ão era; mas foi ficando. Então, esse es-

Agora de novo, reparem -- será que isso qu e estou tentand o des~rever ~


tado do terapeu ta de processar uma. certa matéria é um exercício q ue
repito, e acabei me acostumando a ele. E precü;o dele. Não posso ficar
um a ~uer.tão técnica, algo para ser tratado tecnicame nt~~ Não e. I sso e
? Como um produto d a rica plasticidade da men · muito tempo sem sua aparição . Ol,1ando fico mltito tempo sem oficiar,
para ser trata d o como .
em férias, ou em alguma outra situação, num hospital, ou resolvendo
te, que de repe nte se entr,::ga a esse modo de foncio~ar._Pc:rmanecem~ ~
, . do~ trabalhos d a m,~nte. E a tecm ca apresenta-se coisas de outra natureza, se conversar com alguém acabo pergu11tando :
portanto no d o mmio ~ .
lg'.:> pequeno quase um acessório. Técnica alg u "Você teve um :mnho esta noit,:?" Fiz isso com índios da tribo teren a,
nesse contexto como a , . ,
r ~ n o d e tal valia. Você não pode tr em ar alg uc11 1, numa reserva indígena em São Paulo, pergunte i aos zorós no extrem o
ma pro d u z u m 1enome ,, _
· - · e no fim vai dar certo . Nao , Norte do Mato Grosso, a crianças kamaiurás no Parque Nacio nal do
dizendo: "Faça assim, a~ sim e assim, qu .
e to terap êutico mas por outras vias. T este munho: em tnnL1 Xingu, na Índia, na Itália, na S uíça, na praia, no nosso sítio no intcri,)l·
b u sca- se o 1a · , d e São Paulo. É: a minha lavoura! E nem sei mesmo por que l h:mH' i
anos de ofício, pouquíssimas vezes ouvi um so nh o e n ão _acontL·n·11
· eu não tive absolutarnente nada para dtzcr. 1\ ,s~•
1 isso de "ofício".
nada em mim, ou
/1 VOZ E O TFl\ll'l 1 •
),
f(()l l ER'l'O t ; /IMIIIN I
Qyando você faz uma interpretação de um texto de literatura, você como uma janela CJUC se abre para a vida da pessoa. N ão existem wnhos quij

está oficiando, está fazendo um trabalho que tem uma sequência - coloquem uma condenação definitiva do indivíduo .. • 41
cada um de nós tem o seu. Agora, esse ofício da terapia, h á por certo
várias m aneiras de fazê-lo, como também há muito clichê, muito mal-
-entendido na hora de d,~screver e relatar de que se tratl. E reafirmo,
Aiq11c Enquanto um SistemaAuto-regulatório t •
em nom e da justeza: ap rendi isso tud o com Jung e o que disseram N unca usei· <:ssa cxpressao
- e nunca pensei· msso,
· - d e fitl
em con d en açao
seus disdpulos. nitiva. E de novo: essa é a visão junguiana prospectiva. Jung concebefl
a psique corrio um sistema autorregulatório, o que acho procedente. a,11
corpo, igualmente, é um sistGma autorregulat:ório. Se você sofrer uma@
Complexidade da Psique
invasão de b;ictérias, o corpo está organizado de modo a sempre tentar@
Jung várias vezes reiterou que a psique 6 1·ão complexa que seria impos- manter a h igidt.:ü, quer dizer, a vida. Não é só o nosso corpo, 1.sso podet]j
sível hav~r apenas uma téoria que a cxpl\casse, e apenas uma maneira ser observado cm qualquer ser vivo: a vida se organiza de n1aneira ªti
de lidar com ela. Se assim fo sse, estaria dl'monstrado que tão complexa autopreservar- sc. Portanto, qHando surge um,L ameaça, u m auque, um
assim ela não seria. Então 1 está certo e é bom que haja várias abordagens trauma, um a mutilação, uma perda, h á uma tentativa de reorgan ização e ~
e várias m aneiras de se tentar ch egar a algum lugar e de se praticar a Jt
readaptação. emocionante observar árvores mutiladas por uma pod a 1
arte. Para mim a prova d,1s nove é o que diz o paciente. Ele entra num insensata lançando brotos de um galho decepado, numa, diríamos, deses-1
trabalho baseado numa e erta linha teórica e declara que esse trabalho perada luta pela vida. O que obviamente não significa que não haja morte,4
o ajuda. Um outro escolhe uma terapia ele outra linha, e diz o mesmo. doença ou destruição, mas a natureza do corpo vivo opera ~o sentid o d e 4
E stá bem assim, não é preciso mais do que isso. Nós não estamos aqui q~e ele se autorrcgule. Analog,Lmente, e há m ui to tempo, J ung já dizia: a t
discutindo quem é dono da verdade. E ssa discussão niio me engaja. ~sique tenta St' a~torregular. O ra, qual é a parte que tenta se regular? Não 4
Agora, é provável que com o passar do tempo mais coi•;as venham a e O ego, porque, digamos, o ego ou a consciência estão abalados, não estão
ser conhecidas com maior precisão. A n,~urociência está trazendo um funcionando bem. E ntão há de ser uma outra parte - que ele chamou "a 4
monte de informações que não estavam presentes quando a psicoterapia part~ desconhecida" (= inconsc\ente). Há uma outra parte, d esconhecida, 4
foi inve n tada. E haverá o utras que virão de outras áreas, especialmente que interage com esta primeira - com qual finalidade? Para Jjrocurar 4
através d a transdisciplin aridade. Acho que certas práticas psico tera- 0 ~ ;i U 1 -
que. ma regu açao dos processos mantenedores da vida. E ntão, os 4
pêuticas irão caducar, se esvaziar, e deixarão de ser prati.::adas, porque
sonh~~' p_ara J u ng, são um diálogo entre a p .1rte n ão controlada e a 4
revelar-se-ão infrutíferas com as mudanças de mentalid ade. Nosso
consc1encia,_pata fazer com que: esta se reposicione, caso esteja demasia- 4
terreno é móvel pela base. damente umlateral ou abrigando associações de pensamentos · ,__,
- ' 1,uage ns
e emoçoes que a autoagridem. Essa é a ideia i\gora eu n ão d ' ·
Pergun ta Enrico : . ·' , 1na que
o son ho sunplcsmente traz a solução. O sonho mobili· · ,
. . za o SUJe tto p ara
Você disse que o sonho permi te ao paciente Lbertar-se de uma equação ou que este atmp um patamar diECtin to daqu ele ern que su bl . . 1

de um estàdo mental, e alcançar um outro patamar - como se o sonho sempre


. ·a1 . , a pro ~rnat ,ra
exmenc1 se afopva. E dessa m udança de plano d .
e · que po em adVI r 1 ) ....
veiculasse uma possível saída ou solução. O sonho sempre daria uma esperança, eIementes wrmadores de uma mudança de s1·tuaça- o , .
' ps1qu1ca.
ROII F. RTO GAMB JNI
i\ VO Z ~: o T 1-:1\1 1' >
negra - que e:9tou gestando alguma coisa. E desconfio que o que está
Reflexão Posta em Movimento pelo Inconsciente
sendo gestado é uma atitude nova com relação ao meu filho. Mas nesse
A bem da verdade, ainda não sabemos muito bem como é que o pensa- momento não tenho a menor ldeia de qual seja. Acho que vai demorar
mento funciona. O pensamento muitas vezes gira em círculos, se repete, uns dois dias. Eu sinto que está cozinhando. Mas neste momento não
se fixa, se equivoca ... o pensamento é o problema; é ao mesmo tempo sei dizer nada". A amiga com quem o pai estava conversando era tão
um triunfo e uma desgraça. Então, muitas vezes o sonho está dialo- sensível que evitou entrar com suas ideias, apenas ficou com o amigo
gando com um certo pe11samento que a ,;onsciência mantém atuante, o e disse: "Deve ser isso mesmo. Então espere esses dois dias". D aí o pai
qual exerce um efeito causador de sofrimento e é dotado de um poder disse: "Eu não :;ei dizer nada agúra; quando eu souber, talvez escn!Va uma
de moldar a ação ainda muito pouco cúnhecido pela ciência positiva carta a meu filho". Dois dias depois esse homem escreveu algumas linhas
- embora esse fenômeno tenha sido dcs<:oberto há milênios pelo saber endereçadas ao filho, e essa carta foi um divisor de águas que ab riu um
intuitivo e pré-científico. novo caminho, tanto no relacionamento, como 11a maneira como ambos
Se entendermos qual é a função dessa reflexão posta etn movimento se sentiam e se colocavam um frente ao outro. Então, você vê, o sonho
pelo inconsciente (o relato orúrico), estaremos em melh,Jres condições não estava trazendo a solução, dizendo: "Faça assim!" Ele não J'e tratou
de combater toda essa onda de ansiedade sobre interpretação certa ou uma cena em que o pai faz isso ou aquilo, não remeteu a nenhum pai
errada, 11obre premonição, sobre: "Ah, cu tenho que seguir cegamente rrútico, a nenhuma cena, não postulou nem cr'iou nenhuma saída. O
os meus sonhos ... ". Arn.iedadcs. O antídoto é a prática de um tipo sui sonho apenas disse: "Concentre-se na possibilidade de que algo esteja
sendo gestado no âmago de seu luto: algo novo Então, não se trata das
generis de reflexão.
Darei um exemplo. Um homem estava muito, muito preocupado com coisas que você estava pensando antes. Pare de pensar naquelas coisas, e
o filho, sofrendo, exaurindo-se e perdendo muita energia vital e mental, fique esperando para ver o que é a coisa nova que vai aparecer". E assim
sem saber qual seria a mdhor atitude a tomar, num estado relativamente foi. Então você vê o que é que o :;onho fez com o sonhador. Ele o colocou
numa outra posição psíquica e mental, e como houve um andamento, um
grave de coisas, por estar o filho descontrolado, desorientado, a tal ponto
cuidado, um procedimento, aquilo chegou no qi1e eu digo que é o alvo:
que ele, pai, acabou esgotando seus recursos internos a respeito de que
uma ação. Mas eu poderia dizer que esse pai, como você ou eu, como
tipo de atitude paterna deveria tomar. Então teve um sonho: no sonho
todo mundo - podemos ter milhares de sonhos como esse, e nãô fazer-
esse pai se via grávido, vestido com uma túnica preta longa. Era tudo.
mos nada com eles. Esquecemo~nos deles, que :1ssim não ati.ngetn esse
Só isso. Esse pai perceb~u que um sonhó como esse metecia o tipo de
ponto de matuntção. E por acaso deveria ser diferente? Acho que não. É
reflexão a que venho aqut me referindo, mas ele não era capaz de elaborar
uma hybris, uma arrogância, uma onipotência pensar que aproveiuremos
nada, a não ser o óbvio, dizendo para si mesmo: "Estou grávido de alguma
absolutamente todos os sonhos t~ os iremos espretner e peneirar p:tra que
coisa". :Mas não ia além. Então o que ele fez? O que qualquer pessoa, cm
revelem tudo o 9ue neles possa estar contido. Proceder assim é querer ser
qualquer tempo, em qualquer cultura, fatia: chamou uma pessoa amiga
um semideus! E arvorar-se em algo que já nos tira do que para mim é a
para conversar. Não é uma terapia, não é ii.ada. É uma pes9oa amiga, que
condição humarta, que é viver uma digna imperfeição.
também sabe conversar desse assunto. Relatou-lhe o sonbo e o mero ato
Tanto a psicanálise clássica como a anális<~ junguiana sub- rcpt i-
de relatâAo já começou a. surtir um efeitc,. Porque, logo d épois de termi-
ciamente estimulam o paciente - e cobram! - a seguir esse p< ri~o o
nada a breve narrativa, esse pai disse asslm: "É no meu luto - a túnica
A VO'l. g O T~Ml'Cl !hl
J60 ROBF.RTO GAMBINI
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caminho obsessivo. Eu sou contra. Um insight simplesmente acontece alma. Muito. Como nunca. C om todos os momentos difícets e duro~
quando acontece - como a chuva. Será que todos os son.b.os têm essa que fazem parte disso. E co1n visitas a mérucos, uso de remédios quc4
intenção e se prestam a um tratamento desse tipo? Tive certos sonhos, não fazem efoito, e muito sofrimento. Num certo dia marcado para me~
dos quais não me esquecerei jamais, que tiveram uin papel determinante retorno ao cons ul tório depois de um breve período de descanso, senti'I
em minha vida. Isso atesto, assino e dou depoimento. E posso contar, -me mal e não coust:gui ir trabalhar. Eu estava num estado insuportáve1@
se for o caso. Como conheço, na história dos meus paci<entes, alguns e senti várias cois,ts péssimas: culpa, vergonha, preocupação ,~om meu~
sonhos que redirecionaram os processos que viviam. Mas será que a vida estado, incap,tcidadc de reagir, tudo isso. E com medo de como seria o~
deveria ser conduzida diariamente assim? Eu acho insuportável imagi- dia seguintt:, porq ue a maneira como esse sofrimento de aln1a se ma-
nar-me a tal ponto fracassado, porque vivi sessenta e três ahos e não foi nifestava no meu corpo era como uma narcolepsia: uma necessidade~
assim que as coisas se de1•am. Então, é melhor dizer, como Guimarães infinda de dorm ir. Liguei para uma velha amiga, uma pess(,a muito ~
Rosa, que "viver é perigosó", porque a gen te corre perigos. perde coisas, querida, e pedi para ela me fazer companhia. Conversamos um poucoM
erra, desatina ... Mas de repente você nãc1erra, você consegue e acerta. e quando ela foi embora, decidi: "Esta noite n:io vou dormir, vou passar~
Tudo isso porque, de novo, eu quero manter no auge da c:onsciência a a noite em chtro e de manhã estarei melhor e conseguirei t1 abalhar" ◄
possibilid ade de alcançar a experiência empírica e compl«!ta de sonhar, E fiq~ei lendo o meu Proust . Ma~ quando eram três horas d ,1 manhã •
relatar, promover um est:1do reflexivo no terapeuta, entender e poder fiquei cansad,j, com a cabeça mwto ch eia d e pensament os, e resolvi •
fazer algt1ma coisa com o entenrudo. dormir um pouco. i
Não quero deificar nem tornar esotéricos os sonhos, nem tampou- E aí tive u m sonho. Olhem que maravilha: sonhei que t:ontra o ,
co colocar a mim ou a ningttém aquém da capacidade de lidar com fundo_a~~,d~ céu ~tpareciam t~ês :r"ores da vida. Era o próprio sonho ,
eles, muito menos atribuir a quem quer que seja o poder constante de que dizia: Sa,) as arvores da \'lda . Uma, duas, três . Não eram árvo res
extrair-lhes a quintessência. Conheço pes~oas muito simples que fazem naturais, mas trabalhadas· artisticamente: a fi guração arquetipica da
coisas lindas com seus sonhos, da maneira mais despretenaiosa possível, árvore da vida. Eu via as três árvores, daí elas desciam, pen,~trav am
porque sonhar faz parte do modo human,J de ser. E sempre, se~pre,_os no mar, desfaz.iam-se a assumJ.am a forma de algas. Como se o sonho
sonhos rn~am uma linguagem que de óbvio não tem nada, Isso e assim, russesse: "Aí está a forma, agora a forma se desfez e está no mar num
e não há o que dizer sobre isso, porque é ássim. estágio mais ptimitivo da evolução". Mas eu vi na minha frente essas
Então, vocês veem,já e.,ciste um conhecimento teórico, metodoló~i,c~, três árvores da vida, belas e perfeitas. Qyando acordei, disse para mim
técnico, bastante bom. E le pode ainda ser muito aprimotado, mas p e mesmo: "A vida está presente, a vida está conversando comigo'1• Se no
bastante bom. Minha preocupação é como entender o efoito do sonho, pensamento doloroso posso sentir que estou ficando velho, que estou
a experiência do sonho, o que sua narração provoca. perdendo meus recursos, que as coisas vão pior.ar - decadência - uma
parte de mim diz: "Não! Continua a viver o teu processo de árvore que
é o ser, é a afirmação plena do aer. Tira para fora e põe na terra as três
Sonho das Três Árvorés da Vida
árvores que caíram no mar". Qy.em é que falou isso em mim, para mim?
Vou dar um exemplo pe:~soal, já que vocês querem tant que eu seja
1
) Não foi a minha amiga que disse isso. Não li issú no Proust. Fui don' ii, ,
pessoal. Tenho passado por uma fase longa de muito S()frimento de cansado e temeroso e uma parte minha me "disse" isso.

162 ROaERTO GAMBINI \ vo ;r 1\ Ú TE M 1'11


Self profundidade e atuar no mundo com o que possivelmente de mel hor
tenhamos, para qu e possamos fazer uma pequena diferença n.tsso gue
Então, se alguém me pergunta à queima-roupa: "De que modo o Self nos cerca, sem arroµ;â ncia, hero ísmo ou superioridade, dando as5im con-
se manifesta na tua vida?", respondo: o Selfse manifesta na minha vida sistência empírica ;t essa experiência a que chamamos alma. E o nome,
inesperadamente, quando 9into um amor no coração, quando percebo afinal, não im1 ,orta tanto assim - pode-se até adotar outro. Troca-se o
em mim uma força de lutar contra as forças antivida; quando sei que nome, mas h:í. uma dimensão sutil, uma experiência chamada alm a. E ao
há clareza em minha mente; quando olho para o mundo e parece que o dizer isso, ou~~º dentro de mim uma voz de alerta, de que até a palavra
entendo, o u entendo as pessoas, ou sinto uma conexão com inexplicá- "alma" está se b;tnalizando. Círctdos de discussão há em que o tema virou
veis fios qne a tudo unem' num sutil tecido de sentido; aí o Self está se feij ão com arwz: tudo é alma, tudo vale se feito em seu nome. Dessas
manifestando na minha 011 na su a vida. Mas p ensando bem, para que discussões resulta um palavrório imponente, quase um tópico literário.
usar esse estranho termo mal traduz ido do alemão, "Self";, Você pode Para mim, a alrna n ão é um asfünto leve: seu âmbito é grave e pouco
chamar d o que quiser, n ão faz diferença. Eu acho que isso é uma expe- verbalizável, ca io contrário o ouro em pó é varrido pelo vento.
riência hwnana eterna. Provavelmente, os índios do Xingu i,abem o que
é isso. Na Antiguidade sabiam, no Oriente bramânico e budista sabiam.
Jesus sabia . Kri shnamurti i:abia. N ós somo!, feitos assim, a pérola se faz
em nossa ostra. E prefiro _, é u ma questão de gosto - mant·e r o vocabu-
lário e a teorização nos termo s mais simples possíveis. Tendo sempre
como referência uma experiência vivida e vivível. N ada de hipostatizar,
de postular, de dizer; "se você fizer assim e assado, você ,:hegará lá': -
porque fic a parecendo que está todo mundo tentando subir a ~s~a~ana
dos escolhidos e dos iniciados ... daí você começa a beirar o misticismo,
0 esoterismo, a religião, a ascese, criando-se inevitavelment•~ um a tabela
olímpica de colocações prngressivas, segundo grau, tercei ro, ~uarto, e
desse ponto em diante já não somos mais cuidadores e pesquisadores
. . 1
d a alma, mas rosa- cruzes •~ maçons. I sso pma1s.

Alma, Ainda e Se1npre

H á portanto m uito O que conhecer, h á mu;tas ilusões e fant asias de que


é preciso nos livrarmos, e voltemos ao princípio: todo esse tr~ball~o, to_d a
essa aventura, t o do esse ga ·sto - porque o pacien te gasta ml Hto dmheiro,
o terapeu 1-a se gasta - é fe -·ito em nome de se buscar uma .evolução para.
0
simples ser humano que somos, para que possamos viver co m m ais

ROB f: RT O G AMRINI
A VO Z E O TEMl'l l
L

Sutilezas e Desafios da Transferência

)J
,_
1


PARA MIM, não ( cômodo e não é fácil falar d e transferência, por uma C
questão de fo rmação. Porque Jung não aborda muito a transferência, e C
'
quando o faz, escolhe expressar-se de maneirá metafórica, servindo-se
de um texto ctlquímico e, mesmo lançando mão desse recurso, muitos ~
aspectos permanecem extremamente obscurM , sendo muito difícil apli-C
car clinicamente todo aquele conjunto de ensinamentos que ele trans-C
mitiu ao leitor. Fica não obstante evidente q11e Jung sabia muito bem,
que existe um fenômeno charnado transferência e que trabalhava com •
essa dimensãú, mas ele escolheu - de novo uma questão de ops:ão - não ,
lançar sobre o fenômeno da transferência o foco de luz d e sua reflexão.«
\ nem transformá-lo no eixo de seu trabalho analítico com seus pacien tcs.
4
1 Portanto, ele 11ão desenvolveu nem uma teori;l, nem uma técnica, nem
um uso especialmente enfatizàdo da transferê ncia - diferentemente d a 4
conduta clínica e teórica assuinida por Freud. Não pretendo aqui fa·,, er 4
julgamento de valor algum, discutindo se uma abordagem é supcri1 lr ;\ ~
outra. Digo apenas que são e~colhas. Continuo defendendo a idc i;1 d t· C

AV O '/. F O 'l'Fl\11•0 1( 1 • e
que nJo procede prati.:ar ambos os esttlos ao mesmo tempo. Talvez seja de valores, impo--.to de renda, controvérsias político-ideológcas com a
uma lunitação minha, talvez outros teiapeutas encontrem uma maneira m ãe. H á um temário, mais do que um temário, há uma mod alidad(... d<.
frutífera de combinar ambas as matrizes. Como esse não é meu estilo, sentimento prcsrntc no relacionamento mãe-filho, e isso se m a.mfes ta,
não u , o, nem sei usar a transferência I! os acontecimen tos que dela de- num plano rebatido, no relacionamento analítico. O terapeuti. pode n ão
correm como material precípuo gerador do tipo d e informação de que perceber esse jogo de papéü;, ou perceber, chegar a enunciá-lo, o mes
lanço mão para trabalh ar. Na prática, J)ercebo a dinârrúca transferencial mo podendo se dar com o paciente - para n1im a questão não é ta n to
com os olhos semicerrados, sabendo que ela está ocorrendo e procuran - perceber ou não perceber, a questão é: qual é o conteúdo importante, o
do silenciosamente urn certo entendimento do que se passa. Vou então que é que um ser hum ano ainda quer resolver com esse personagem que
tentar dizer o que entendo por isso. a gente chama d e mãe? Qycr expressar uma gratidão por ter recebido
O ànalista, necessariamente, tem que saber prestar-se ao papel de a vida, quer !>e queixar por não ter recebido o que merecia? Q_ycr dar
receber projeções. Há ,1ma necessidade; na psique de todo mundo, de po- sequência a uma conversa interrompida, por que am bos se afastaram,
der dirigir-se a figuras da sua biografia. ou a figuras independentes desta, ou por que a mãe m orreu, ou por que eles romperam a relação? Isso
mas que povoam o imaginário human,1. Há uma neces:lidade imperiosa tudo são contingências. M a8 o fundamental é esse diálogo único que
de reltcionar-se com essas figuras, de conversar com elas, de reagir a elas, se d á entre uma pessoa e a mãe. A sua própria, ou aquela figura que
de averiguar e resolver algumas questt5es, de pôr certas pendências em até um h om,:!m pod e encarnar. Se observarmos com atenção 1 veremos
pratm1limpos, de rememorar situaçõe'.~ emocionalmente carregadas, de que essa conversa t em u m tum, um certo vocabulário, uma 8emântica
fazer perguntas a essa , figuras, de con+'e rir pela segunda ou terceira vez própria. Dadas as escolhas que fiz, quando surge essa com·ersa eu a
se a reação desse personagem é a m esma de sempre, ou se m udou. Todo aceito e desempenho o personagem mãe, pvdendo ou não explicitar
mundo tem portanto uma necessidade eterna de uma conversa com a no mamente esse tipo de transferência. Procuro antes de tudo desatar
mãe. E ssa conversa tal vez tenha ocorrido com a própria mãe, talvez não; o nó, esgotar essa necessidade até então não saciada. O obje1·ivo dessa
ela m ,~sma talvez já não viva m ais. Mas a necessidade de sentir de novo, empreitad a tod a é a d espersonificação do arqué tipo materno _projetado
ou de alterar, o que se senti u na relação com a mãe, essa sim permanect·. sobre o analista, até que, para dizer como Maiakóvski em seu poema,
E pode ser atuada em vários ambientes, em várias relações, incl usive "a mãe seja a terra, e o pai, pelo menos o U niverso".
numa terapia, mesmo q ue o terapeuta seja um h omem. Ocorrem por- A mãe então n ão é mais uma figu ra da psique em busca d~ um ator
tanto situações em qt- e o paciente co]oca-se na situação emocional de que a represente: esgotada a personalização, a m ãe se espalha pelo m un -
filho ou filha, e conve1 t a com a mãe; ou a própria, ou a M ãe, no sentido do, ou se aloj a no in terior do sujeito, como instância gerad ora de vida .
geral, Mas guem é esse! interlocutor chamado "Mãe"? É: um interlocutor L embremo- nos de que a tr -m sferência é uma modalidade de projeção.
muito específico, de quem , o que está na posição filial, t:spera com preen - A projeção consiste em se perceber externam ~nte algo que só é real no
são, amor incondicionaJ, aceitação, incentivo, apoio, perdão. plano interno.
N ão estou pensando em pessoas que tiveram um a relação boa ou m.i N a minh a experiência de trinta anos nunca tive que passar por at, 1
, com a mãe, e que reso·veram ou não uma relação particular com ela. E u tos ou conflitos difíceis d e suportar em d ecorrência de t ransfcn~·, 1l 1.1
dir,ia: uma parte nossa sempre quer co nversar com "a m ãe". E essa con - maternas ou paternas tão inamovíveis que abalassem o relaciona11 w111,,
versa.~ típi ca e única. Você não discute necessariame nte futebol, a bolsa Mas situações desse tipo são conhecidas na literatura, e cxi 'l ll-11 1 1 ,

168 R ORFRTO G AMBI 'li A VOZ F O T t'l\l l't1 I 1


várias práticas. Qyer dizer, a transferência paterna ou materna pode se O que fundamentalmente me preocupa é dar condições para que O
transformar num obstáculo à continuação da análise, numa fixação, e drama se desc nrok, que ele atravesse todas as suas etapas, considerando
daí nada mais decorre; pode gerar atuações por parte do paciente, às que o teatro, 110 sentido grego, é uma exterionzação da maneira como
vezes completamente inadequadas, exageradas e perigosas, porque este a psique funcio1 ia.
se apegou a um jogo de imagens, uma cena crônica de personagens de É uma ideia que tenho às vezes exposto: a origem do teat"o grego ◄
teatro, e o enredo daquele drama teatral se congelou num <.:erto ponto, está na psiqul', c a genialidade dos gregos foi transpor algo que ocorre 1
e não evolui mais. Mas no teatro de verdade não há congelamento da diariamente n,, âmbito da psique para um palco. Com atores e com um i
ação dram:itica. texto, compos1o por dramaturgos geniais. Eles eram geniais porque co- 1
nheciam o tca ro interno. Criatam personagens que são réplicas dos que
1
Teatro da Psique nos habitam. Para mim, a grandeza do teatro grego é precisamente essa.
1
Qyando se fal ,t cm transferênda, estamos falando em personagens, que
Examinemos o teatro grego. N o teatro grego que conhecemos, o desenro- nada mais são do que criações da nossa mente. Nós vemos pessoas, mas 4
lar da trama não se paralisa 11u m ponto sem seguimento. Qyai1do lidamos além delas, vcinos personagem,. Às vezes o personagem fica entre mim •
com os personagens da psique, é a imaginação que confere movimento à e a pessoa; entre o paciente e ell, pode haver um personagem, que é uma •
trama. Personagens: aquilo que apenas parecemos ser na apa.rência deve ficção do prim eiro, ou minha. E a mim cabe trabalhar de tal maneira que, ,
fixar-se. M inha grande preocupação é com o fluxo da estrutut.a dramática ~o ~evido tem~o, esse personagem q~e se interpõe se esvaia, perca subs- i
em que nossos personagens interiores des~mpenham seus papéis. E m tanc1a, e o paciente comece a ver a rmnha pessoa, ou eu a ele, sem véus.
cada relação terapêutica há uma estrutura gue visa desenvolver-se numa De novo, fiz uma escolha junguiana. Para ajudar o paciente a atravessar
certa direção. Não estou dizendo que a história seja sempr.e edificante, o personagem que há entre ele e mim, revelo e exponho algo d e minha
ela pode culminar num parricídio ou matricídio simbólicos. Você às pesso\ O feres o um p~uco_ d~ minha realidade!, um pouco do tneu ser. ~
vezes tem que matar uma itnago parental muito negativa, m as você mata C omo. Respondendo a maiomt das perguntas que me fazem, saciando a •
a imago, n:ío o arquétipo. Se você teve na vi.da uma experiência com um m aioria d as curiosidades, compartilhando aquilo que considere que faça
pai ou uma mãe terríveis, que causaram urn dano para a sua psique e o sentido compartilhar. Desfazendo as idealizações positivas, ao m ostrar os
seu desenvolvimento, e isso agora é uma iinagem interna, essa imagem me~s defeitos, as minhas impe.tfeições, as minhas atribulações humanas,
tem que sc~r destruída, par~l que se reconfigure - não para que você fique a rmnha cara, ús vincos do meu rosto, a tristeza ou o brilho do olhar, um
desprovidó de uma imago materna ou paterna. Se você não a abrigar den-
telefonema de casa no m eio d e Uma sessão ... Faço isso conscientemente
tro de si, não vai poder ser pai e mãe de ninguém, nem biologicamente,
para permitir ao paciente saber que o que está sendo trabalhada é uma'
nem psicologicamente. A vida é uma sucesiião de pais e filhos, de pessoas
relação com un1a pessoa em tudo igual a ele. Visando esvaziar uma galeria
que se geram, se cuidam e se educam. Ent:ão, como pensar que alguém
de_pe~sonagens que entre nós se interpõe, mas que não obstante, num
mata o arquétipo da mãe ou do pai? O arquétipo, não! M ás você pode pnmetro momento tenho que aceitar.
matar o c(,mplexo terrível 1 que seria o fundonamento e o efeito daquela
_Se um pa~ient~ quiser trabalhar comigo e não tiver personap;cm,, -;u, t
mesma imago. Então, eu não estou dizendo que seja sempre um entrecho
psique estara rhwto pobre, estará adormecida - eles são bet~l v· 1 1
leve. Nessas histórias da psique pode correr sangue. A . d d llll 11,,
,l
ss1m sen o, entro da minha sala estarão meu pacie t · l
n e,111111 llJW,·1,.1
170 ROII E RTO GAMBINI
A VOZ . , o 1'11\1 1 11
1 '
e todo um elenco que a seu turno entra em cena. Às vezes tanto eu do além que bai xamm em nosr;a sala - é apena:; pura psique e suas variá-
quanto o paciente temos que desempenhar personagens - sei disso e veis sintonias. P11rn psique extensa no espaço. Não precisamos recorrer
o faço, pois escolhi não desmanchar o jogo. Não quero desconstruí-lo, a doutrinas i l' iri:írirns sobre ''manifestações", porque as doutd nas ex-
pois o mantenho em benefício do processo da alma. Considero que se a plicam tudo l ' o que nos interessa é observar por nós mesmos e tentar
alma se multifaz, apresentando-se sob uma variedade de máscaras, qu e alcançar coml'rt·c11 ~ôcs novas a partir da experiência. O que se mani-
entrem todas, na esperança de que um dia a própria alma tire a máscara festa é a psiq ue . A psique povoa. Ela não está lá dentro de um órg ão
sob a qual se disfarça. Há momentos cm que a terapia é um verdadeiro meu, meu cért brn, meu coração: ela povoa o ambiente e lhe transmite
bal masqué, um jogo de fanrasiados ingênuos. A gente mal i,e dá conta. modulações. l<la nito é visível. evidentemente. Às vezes revela- se nos
Na contratransferência, eu é que estou projetando um personagem no gestos. Às VC Z L'S 111 11 ou outro dos parceiros dá corpo à person.-1 visível
meu paciente, e o estou tratando e reagindo a ele como um persona- do personagc nt interno, seja at-ravés da voz, nos movimentos do braço
gem meu. Por isso se recomenda que um ànalista se submeta a uma e da mão, Ja maneira de falar, do timbre, da escolha do vocabulário, do
longa análise, para que po'3Sa discriminar em si o fenôm eno da con- tom emociona l, do olhar... quem quiser ver, vê.
tratransferé.ncia e conhecer seus próprios mascarados. O analista pode Mas obscrvl' m c·rn que deli cado terreno de sutilezas nos e:1contra-
se enganar a respeito daquda pessoa que e:;tá na sua frente, porque os mos: é muito mais refinado do que teatro. É muito mais sutil do que
seus fantasmas são capazes de se interpor entre ambos, o que torna a arte do ator, do diretor e do dramaturgo juntos. Por quê? Porque se
bastante difícil o trabalho a ser feito. Ele tem que perceber, consertar, conhece menos, 11:i poucos nomes para desig nar tudo o que ocorre
voltar atrás, reconhecer que errou, e aí é em benefício do p:tciente que nessa cena, nc!;sc palco íntimo e sigiloso. E quanto às ferramentas de
- aí, sim, e isso eu faço - é preciso expor a contratransferência, que se trabalho? Como você vai lidar com essas asas de borboleta com ferra-
tornou prejudicial para o paciente. Fiz um erro de julgamento, abriguei mentas de ferr->, pontiagudas e cortantes? Lembram pinças e ganchos
sentimentos que esse paciente não merece, por causa da minha contra- da Idade Médi,1. Estão velhas, defas adas, inadequadas. Qye conj unto de
transferência. Qyer dizer, aí foram os meu s personagens que atuaram. ferramentas, conceitos e procedimentos temos para mexer ness~ coisas?
Agora, quc. fique claro: não é que eu me mantenha áuliw enquanto Nessa situação, um colega com uma boa formaç:ío psicanalítica sente-se
terapeuta, ,;ompletamente depurado, apena s o paciente sendo portador muito mais seguro <lo que eu, porque usa as fenamentas que su;t escola
de personagens: eu também tenho os meus! Então, estamos ambos lhe dá, tendo sido exaustivame-nte treinado pa ra aplicá-las segundo o
lidando com um campo intermediário, en tre nós dois, que é povoado, endosso e o consenso teórico da Escola Psicanalítica, que sabe o que é
densamente povoado. É cheio de falas, s,!ntimentos, memórias, evo- bom para o paciente. Eu nunca sei, de saída.
cações, im pulsos, que alimentam nossa co::wersa. Cada co11Versa, c_ada
sessão é tr·,:tmada pelos personagens que e~tão presentes naquele dia.
Psicanálise e Práhca Analítica J unguiana
Esses p<:rsonagens instigam a ação. E é muito tocante, numa sessão,
observar a repentina mudança do rumo da conversa, poi:; é como se Eu me submeti à Psicanálise, mais de uma ve:l - e não fo i pc-r mn:1
·
tivesse sa11' lo de cena um 1,
1Yrupo de atores e entrado outro, com outro curiosidade, mas por busca de ajuda. E confes:-;o que nu ma da!l vez,·,
temário. Ora, convenhamos, estamos tra1'ando de uma matéria sutil, não senti um e[eito benéfico para a minh a psique. N ão estou f 11 ,•nd,,
que não tem nada de esotérica, não diz respeito a supostas entidades um julgamento genérico, mas essa foi a minha experi ência. E111 01 11, 1

172 l{OII JI. HTO GAMBINI 1 '


ocasião houve sim um contato profundo e mobilizador de importantes O u talvez para cheg,u- à cond usfw 1.k qtt<' t• :1 1t'jU l.11c11d11 t•t 1,1do al~11111~
mudanças, efeito do calor humano e da personalidade libertária do psi-
canalista com quem permaneci por algun s anos num rico e estimulante
coisa, ou que algu ma coisa não d.í certo.
,,
f//1

diálogo. Na verdade, de ortodoxo ele não tinha nada, mas era portador
de um forte Eros e de um genuíno descji1 de comunhão. N ão obstante
essa experiência extremamente positiva, eu me sentiria um usurpador
Mais Sobre T rrm .f ·ri 11ti, ,

M as o que eu queria transmitir aqui é guc h:í 1111111 0 111 ,11· , JJl11 ·
,,fl
u, . .
se usasse ferramentas, teorias e conceitos que não são meus, que não fui ter~peu~a e um paciente do que sonha a nobsa v;, lilor,11(1.1 . 11., 1111111 . .

treinado a manipular segundo um certo ponto de vista teórico, porque mais. Na~ s~ ~onhece tudo i:> que se p assa nas ürC'a:-. 111:, i-, 1n , 111d11.1 " •
facilmente poderia errar a mão, ferir e deixar cair no chão a ferramenta. nossa subJe11VIdade e nos fatos menos compreensívci :-. de 11 11 ... , 11 ,, \111,
Ato falho, por exemplo, não é complicado de observar; não familiar, para e há escolhas a serem fei tas, pois é nessa zona de lus1:o !,,.., l 1 ,, '1 !11 ,1 ,, , ,
mim, é <) assim chamado "manejo da transferência". Por exemplo, um balho acontece, é nessa zona lunar, fugidia e rarefeita. O q111· w ,, ,, 1,,,,
1 1
paciente meu uma vez me contou, lastimando, que ao iniéiar sua sessão é que um paciente está narrando fatos, está ~ontando urna lii,, 1111 1, 1,, ,1/1'
com um psicanalista de determinada linha, contou que estava muito está fazendo uma queixa, e o analista está ouvindo. I sso é o r c 11.q1tt\', . .
chateado por ter raspado a lateral de seiJ carro ao estacioná-lo, ao que mas está ocorrendo muito m ais do q ue isso. E esse muito m th,q,11 ilJ' t'•
o analista retrucou: "Isso é uma agressão a mim. Você raspou o carro ~ verdadeira matéria do trabalho psíquico. lf com pensamento'> d(·•.-.. -
porque estava com raiva de mim''. Eu não sei dizer coisa!! do gênero. O tipo em mente que reflito sobre a natureza da transferência.
que quero dizer é simplesmente que essa não foi a minha escolha, não A Psicarnilise diz, e acho que com razão, que se não houver tr:1ti1-. h.~
é a minha escola, eu não sei fazer isso. Tudo o que pretendo é refletir rên~a não é possível desenvolver a análise. Portanto, esse p roccs:,1 1 , /!J'
sobre a maneira como pratico nosso oHcio, que provavelmente não é
comum e corrente nem mesmo na inovação dita pós-junguiana.
s~rgimento de personagens 1 de percepção no outro de coisa.s (Jll <' na,,,.
sao da sua na~eza _pessoal, é fund amental para que ocorra e, procc1-.1,(....
O que aqui exponho é o que aprendi, o que pensei, o que desenvolvi. O esperado, repito, e uma contínua evolução, ou melhor, uma contfrn,:.
Minha trajetória é conh ecida, e compõe •se de passos e etapas. A manei-
ra como entendo a prática clínica é fruw dessa travessia. Se me pergun-
tarem se trabalhar assim é fácil, eu diri:i que é dificílim o. Mas quando
m etamorr:,ose da transferênôa. P essoalmente, sinto-me incornodad <.
qua_ndo ~ a uma transferência positiva demais. Não me sint'o bem
ser id~alizado, ao s~r visto cotno melhor do gue sou , mais capaz do l}ll<
,H.
estou no ofício - e é diariamente - esqueço que é difícil e mergulho
~ou - . isso tudo me incomoda mui to. Tento desmanchar essa p ercepçfü.
naquela área, porque confio que esteja fazendo aquilo que deva ser feito
irrealista e e&tabelecer um terreno onde o paciente m e p erceb..a •
por mirh, e que aquilo resultará num movimento transformador para o · · h um pou -
co mais na mm a humanidade, sem me levar para áreas elevadas d .~
meu paciente - e isso eu observo criteriosamente. C om muito método, que o d" t · d ema.i~
is anciam e mim. Suporto transferências de todos os tipos - ct~
com rigor. Faço um registro escrito após o término de cada sessão de
tenh o _que s1.1~ortá-las .- e alguns processos n ão me cu stam esfon,-os.
análise. Portanto, tenho três décadas de sessões escritas. Porque preciso
demasiados, nao me cnam o m enor problema É al . •
observ:1r. Para mim, es:;a é minha grande pesquisa, que nunca poderei d . · go que sei qu l' est.,
: contecen o,Ne ~ vo, le~o aqwlo adiante, porque acredito no auda1ncnt1 .
publicar,já que é regid a pelo sigilo - mas ela é fu ndam ental para mim .
o processo. ao me smto à vontade p ara ficar d . d
Tenho que observar, para ver o que acontece. O u pará me reorientar. iscorren o :,obre l' l-<"t .
tema enquanto tema, enquanto foco. A situ - , ,r . ..
açao trans rcrc \rta l (' -,1.• ·
174 l<OBER TO GAMBINJ

AV OZEOT~· ~ ll'll 1 \ •


lá, m as evito dirigir- me exatamente a ela. Alternativamenté, opto por 1\,fario J acoby, escreveu lindam en te a t•..,1,e r,•tt1wif 11 1>1 1 l' le q ue 1111111.,-.
1

concentrar- me no conteúdo declarado da conversa (com um ouvido vezes uma an áli se termina e as d t1a,; !'<'·,•,,,;, , , 11t ll t1n1.1111 líJ, ,11 1.1 ,. J'CII
para outros conteúdos não explicitados), ou no movimen to do fio de uma genuína amizade, por um vcrd:rdl'i ru ,,,•11 1111 11 ·11 1" .111101,,.,0. ,,cio
associações do paciente, que se expressa através de uma fala oriunda
resto da vid a. Porque aquefas du a::; 1ws. . n,1 •. \'Jn- 1.111 1 11 1u·1•, d, 111,t .1.
d a transferência. Fica claro, isso? São duas coisas: vou para uma e não
de interlocui;ão, de colaboração, que n i:11 :1 r11 11111 .1 l, .,•w ,,,,/,d,, I'·"·'
para a outra. M as repito: não estou afirmando que esteja certo ou errado,
sentimentos duradouros . R aramente, m as 1:1 11 lw111 t'\ t•, 11, " " )',' ,1111111
digo apem .s que esse é o jeito que faço, foi assim que tive minhas me-
H á casos em que o par encerra a análise e i1 1il' i,1 11111 .1 11 l.1,,.111, ''"I '"· ri,
lhores exp«}riências de análise no período de minha formação, quando
umarelaçãoamorosa. Conheçováriosquedciam l t' ll11 e >, 11, 11 .,, 11 111
ouvia de meu analista, muito mais idoso do que eu, que essa havia sido
descobriu o seu amor no out-ro. Isso existe, taml ll' r11 , 11 .1, , ,. , 11,., 1" .,
a maneira como Jung o tratara. Para mim e.ra portanto uma questão de
ou urna brin,:adeira, mas é bastante raro. Como é p o i.•, J\ , · / , . , , , ,, , ,,
escolher o caminho que eu queria seguir. Já naquela época 9e falava, no
rer? Duas p essoas não se encontraram em q ualqu er /11_!',:1 1 t!,J 11 1t 1111,,.
Instituto C. G. Jung de Zurique, de outr:ts abordagens, por exemplo
encontraram--se dentro de um consultório, de um t t'mc11 0 1, l,, 1,r ,11 ,, , 11
a da escola junguiana de Londres, que tentava várias aproximações
ambas um genuíno sentimento de amor, elaf se jun tar:1111 (' ;,, , 11 ,1111
com a psicanálise. Como tenho uma afinidade intelectual, de valores 1
a viver amoMsamente juntas. Essa é uma situação com p lic 1d1 . 1,,1. 1,
e de princípios, com o Jung que me foi apresentado por ::i.nalistas que
porque infringe todos os tabus, todas as advertências. Ponp1i ·, ,. , /. 11 ,.
trabalharam diretamente com ele, sigo essa linha e a partir de um certo
é uma wna de perigo. E a po!!sível sedução de p arte a p ar te ? !•: 1, 11.. ,,.
momento comecei a traça r meu próprio c,iminho.
de engano de j ulgamento? Qµando é o paciente que está sei 1Lm 11 cf,, •
Qu~~do é o Mrapeuta? Aquilo é uma atuação visando tirar provcit11 , l.1
T ransferência e Sentimentos Genuínos posiçao de urn ou de outro p ara se conseguir uma coisa d esc jada :· •\
1
a história é outra. ·
É possível haver sentimentos verdadeiros entre um analista e um
paciente, já que entre ambos há tantos personagens, há tanto éter, há ~ ~as ~ ~ eu assunto não é este. O meu assunto é dizer que :t tra i i sfi_·
;anta fu maça? A minha r(sposta é que sim. A minha resposta é positiva, re,ncia nao impede o surgimen to de sentimentos e de vínculos. A g ora,
porque, com o andamento do processo, que é uma longa interlocução, ha uma prática, h á um p rocedimento que recomenda que, na vigê nci a
do trabalh 0 a1í · d
um longo dar-se a conhecer, um longo cuidar de partes feridas e sofri- , . ait tico, a ote-sc uma certa reserva, evitem-se coisas que

das, ou m al estruturadas, ou afetadas por ,~moções negativas - ao longo ate podenam ser atraentes, e que até podem nos dar vontade de faze r,
mas que em geral não que .. h · d
desse processo muitas vezes surge uma condição que d:í nascimento , - n ao ap exceções ~ eve-se procurar evitar.
a sentimentos, que não puderam aparecer antes, que não puderam Por exem~lo, conviver fora do consultório, ampliar o relacionamento na
esfera social. Jsso é urna . ,
ser experimentados daqtiela maneira, anteriormente, na vida de uma praxe, um costume, mas ha exceções. Porque
sabe se e · t ali '
pessoa. Então afumo: o processo transferencial e contratransferencial - ' XIs e. an stas e pacientes fazerem um trabalho criatfro j untos,
não impede o surgiment,) de sentimento9 que não sejam ilusórios nem ou um outro trabalho qualquer, ou participarem de algo. N es~es caso~
projetivos, partilhados por seres reais e não por personagens. As duas
coisas andam juntas. Urn analista suíço da geração anterior à minha, I. PCf. M ario Jacoby, O Encont ro A nclítico. Tranife1-ência ,. R elacionamento //, ._
auJo, Cultrix, 1995 . "'1' 111", , ,,, •

17fi ll <•BF, RTO G A M lllN I

AV 0 1/ F O TF \ J l ' l> I '


é fundamental confiar na le:ritimidade
.'.)
dos sentimentos , nos valores e difícil d e ser obtida, para se lid ar rn111 11111ll' l1<11111·11 111 •111 1plt-xo dcii1.1t ,.
na ética, e na adequação das pessoas. M as é lógico que essa área requer Eu pessoalme11tc nao gosto nem dl' •,~.1 ,111 ·, i1·, l.1d 1·, 111 111 d c •,, ,1 10 1c 1·p, ao
muito cuidado, muita atenção e muita discriminação. Porque ela tem do fenômeno d ifícil de lidar. Por is,.1, c11lll •11 11 1P 111111P , ,1 111 111l 1n, lantn
os seus riscos. ~al é o risco? É gerar ilusão, alimentar algo que não é para trab alhar e liJ~u- com a questão, q11 a11t n p ,11 ,t 11 111•111 .,.,11w l'l.1.
real, que n ão se apoia numa base psíquica autêntica, m as apenas numa A transferên cia é u m fe n ômeno <1u c j:1 fll1 1 11111 ,1 l, 1 111•.. 1 l11 •, tn11.1,
fantasia. E ntão, isso tem que ser cuidado. Esse campo é, como o m undo, quer dizer, é p,)ssível estudar cronologica11 ll'lll ,· 1 1111111 e , 111 .111 d,, l." 11 ·1111
cheio de maravilhas e de perigos . Porque, afinal de contas, uma terapia cunhou esse termo, quando d etectou sua apa ri ~·.1,,, 111 ·., 11 , ,,11 1dt, q 1,,
é uma relação de cuidado, é cuidar ela psique. É uma relação de cui- - e lá se vai u m século - e como isso alimentou 1111111.1 t,, ,, 1,1, 1111 111 ,1
dado, não é uma relação para ganhar dinheiro, para fazer coisas, para discussão técnica e, como digo; o assunto virou 11111 tl·111.1 11 ·,1 i, 1d11 ,111·
se distrair, para se divertir, para passar o tempo, para facilitar certos iniciados. Usa-se muito jargão: não é um assur1to q ue •,1 d 1 11 1t.1 111il,l1
aspectos da vida de ambos. Não, ela é uma relação de cuidado. Não camente, há toda uma aura que reveste a questão, e urna ;i 11'I ,1 .1 I'' il 1 1111, 1,
se pode perder de vista esse aspecto fundamental. Eu, como terapeuta, da qual não participo.
estou constantemente cuidando, protegendo. Nas relações humanas, em
Pessoalment e, prefiro encarar os fenô menos que o con\·111 11' 11 111 1,
todas elas existe t ransferência. Então aquilo que ocorre no consultório
rapia como faws conh ecidos &t humanidade d esde sem pre , 11;1,, , , ,, 11<,
não é nenhu ma anomalia. :3ó que no consultório aquilo adquire um
ocorrências qm: surgiram pela p rimeira vez a partir da prátic a ti'1 :q " ·11
sentido mais amplo e mere ce uma reflexão maior, uma atenção m ais
tica. Vejo duas facetas para o fenômeno da transferência. Um a, q1w, .1
depurada, e conforme a escola que se segue, lida-se com a questão de
dificuldade de conhecer o outro na sua objetividade, na sua real 11:111111 ·
u ma maneira ou de outra.
za: uma pessoa ser conhecida p or outra. Esse é um aspecto, dcp ii~ v1 ,, ,
falar de um segundo. Então: as pessoas se enganam umas com rc b\ ,1,,
Transferência, o Cerne da Questão às outras. E m qualquer situação, não é apenas numa terapia. P en sa '-l'
que fulano é assim, e descobre ·se que ele não é. Ou a gente pcrrd w
Noto que um traço comum de quem exerce ;l profissão de terapeuta, ou
aquela pessoa d:t mesma maneirá que em outro cônteJ-..1:o p erceb eu out ra
está se preparando para exercê-la, é a manifestação de uma ansiedade
por ela evocada: e passamos a achar que esta é po rtadora das qualid ades
muito grande a respeito do tema da t ransferfocia, como se houvesse um
da primeira - mas isso sou eu q uem sente e pode não ser a realidade
aprendizado muito longo, muito complexo e muitos segredos guardados
da outra pessoa. Nessas condições, posso sentir que tal pessoa tem um
pelos mais velhos ou pelos p "'ofessores, de forma que um grande número
atributo p aterno com relação a mim, mas esse é um sen timento :tpen as
de pessoas fica se perguntando: "Qyando <~ que vou aprender a lidar
~eu, um~ q~esl'ão minha, porque eu comparo ;tlguém com O
pai que
com a transferência, ou a compreender esse fenômeno?" - como se isso
tive ou n ao tive, parto da necessidade que tenho ou não de pai-· vocês
fosse uma diplomação, ou u ma iniciação. H á muita ansieda.de. Analis-
1em b~a~ que aludi a um teatro ele personagens desempenhando papéis
tas em formação perguntam-se uns aos outros: "Você já trabalha com
dramaticos? Ess :,i questão de até que ponto um indivíduo pode co ·lhccn
transferência?", como se fo$se um estágio pós-graduado, quando você
outro está presente desde os p rimórdios da sodabilidad h
já está num patamar mais elevado. Então, até na profissão dos terapeu - , _ e uman a L' r
funçao do lento desenvolvimemo de uma modalidade d · 1· , ·
tas existe muita ansiedade sobre a aquisição de uma capacidade muito • e a llltc J: 'l' lh ' I.\
que permite a compreensão da interação social E:sse t , · 1''
· ema 1g-ua 11w111 l'
l!Oll lrnTO C AM RJNJ

A VOZ F o T I· 1\ 1 l' l 1
1, "

ti
es tá presente nos mitos e na literatura de todos os tempm;>que expres- tempo realmente chegam a :;e co 1d1c.:, 1·1 :i t"1111cl11 :' 1\ di1,( 11 •, 4:111 111:1i ., rk :1
sam o engano, a ilusão, a pseudopercepção do outro. é aquela que mo:;tra como(: diJ-fr il ,·0 1111, ·11· 111, 1)1 1111 ,•,, 11111 li111i1.1,·111 •i,.
O que estou tentando desenvolver aqui é uma abordagem sócio-his- do próprio aparato humano de qu1; l:i11 ~·:111 1,,,. n1 .1,, 11 ,11 ,1 ,, r ~1· 11·11 i11 d e
tórica para evitar tratar a questão da transferência de maneira apenas conhecer se_i a o que fór. LoGalizo porr :1111, , ,1 1r,111 •,!1•tc •11 , i:i 111 , i111 c1i,1r
técnica, e de modo a amajnar ansiedades decorrentes da postulação de desse fenôm eno maior.
um segredo ou de proficiência técnica. Qyero abrir um prisma para
e nquadrar a transferêncill como um fon ômeno amplo, ,rasto, antigo,
DimensãoArquetzpica da 'J',·,111J.F11'11 , 1,1
próprio d a condição humana. E m encion1!i dois ângulos.
Um ângulo é este, e rep lto: nos relacionamentos humanos sempre foi Outro aspecto que me ajuda a compreend er a 1r:111 ~f1·1t ·11t i.i ,. \ 1 1.,
e sempre ·jerá difícil conh,!cer outra pc~soa, como nós dizemos hoje, de não, novamente, como produto específico da rcla,·:1111,·1:q11 ·11 t11 u, ,1111
maneira objetiva, na sua objetividade, ou na sua real manc.: ira de ser. A apenas nela viceja, mas como um comportamento IH111 1;111, 1111 1 "1 ,1 .
psicologia explicou por que é tão difícil chegar à outra pessoa por uma a meu ver, uma raiz muito profunda e antiga, que eu p11d1 ·1,.1 , l, ,1,,1.11
via desprcrvida de mediações, e um dos mecanismos responsáveis pela de "arquétipo da busca pelo outro". Mas também não pn.: vi ~, , 11 •,.11 , •,·. 11
dificuldad e é a projeção, ao lado de outros. Todos nós temo9 imaginação, expressão, n:ío é exatamente essa expressão que importa . () 'I" ' 1111
alimentamos fantasias, embelezamos o qu.:: é feio, não reconhecemos às porta para mim é o seguinte: entre animais das várias espfril'·, 11.1 111 11
vezes o valor lá onde ele Je encontra, ocultamos preconceitos e juízos instinto gregário, que não é só o do acasalamento, é o instinf ,, dt' ,...1.,1
formados e peremptórios. Isso é humano, ocorre em qualquer cultura, junto.Muito; tipos de animais procuram-se uns aos outros e ,: 011\'i,·1· 111 ,
época ou lugar. Não é apenas na relação terapêutica que vai aparecer alguns em grupos altamente organizados e hierarquizados. M:,, .,,, .
esse fenômeno segundo o qual o paciente irá perceber na pessoa do entre os animais é perceptíwil essa busca do outro, da companhi:i dn
terapeuta aspectos, qualidades, defeitos 01j atributos que não estão lá. outro, do viver junto com o outro. E na evolução dos antropoides <· du
Uma maneira maravilhosa de refletir sobre isso é ler a obra de Marcel nosso Homo sapiens, essa busca pelo outro ficot1 muito mais inténsa e fi1i
Proust, e~ se grande mestre de psicologia - e volto a ele. No decorrer adquirindo significado, foi adquirindo uma elaboração, uma explicação,
dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido o narrad,)r vai, com o uma organização.
passar do tempo, mostrando como sua petcepção dos personagens que Poder-se-i à então dizer que existe um instinto humano de procurar
cria a partir de vivências reais vai aos poucos mudando, pois o narrador um outro, e já não vamos ficar no nível da con1panhia, da autoproteção
vai descobrindo cada vez mais a verdadeira personalidade das criaturas ou do acasalamento. Trata-se da busca de um outro capaz de me tompreen -
que num momento apar~cem como enc ántadoras, nobres e elevadas, de,: Num prirheiro momento foi dito: é muito difícil um ser humano
mas de qilem o passar do tempo revela um lado sombrio, ínesperado e compreender o outro. E num segundo: mas o ser humano é portador
desconcertante. A questão do engano a respeito do outro é aprofundada de um instinto de procurar um semelhante que o compreenda, que o
de forma magistral e sublíme por Proust •~m sua vasta obra. A meu ver, decifre, que o veja como é. Reconhecemos portanto a presenç:i de doi s
portanto, o problema do conhecimento do outro ultrapassa a Psicologia movimentos opostos, porque não é fácil conh11cer o outro, e niio é f~k il
e torna-s e um tema filosófico. Será que alguém é capaz de conhecer encontrar aquele que eu tanto desejo encontrar, que é aquele que ll H '

alguém po r completo? Será que as pessoas que convivem durante muito compreende, e com quem eu posso ser exatamente aquele q 1e s1,11 c

180 RO I\E RTO GAMBINI A VOZ E O TE~ l 1' ll


a
como sou, pressentindo que a compreensão do outro voltada a mim o relacionamento tt:r:1pêutico, sabendo que isso faz parte da mallL'Í r• 1

me ajuda a ser int egralmente. Os termos da questão poderiam ser: a humana de fC co111p1>rtar. E com isso já se elimina um pou cc, de an sil'•
transferência é a m anifest:ição contemporânea, observada e teorizada dade e dista11cia 11 1c11to. a
na terapia, de um fenômeno geral, um comportamento arquetípico, no As ideias qu l' 1·s tou defendendo não são correntes, porque não estou
sentido de que ele é anterior às formas culturais - sendo antes de mais colocando o f'o ro du trabalho terapêutico nisiio que se chama relaciona•
nada uma pulsão de busca por um outro que nos compreenda. mento de tran:- lc:1c11 ria e contratransferência, porque estou co nvencido•
Na terapia isso fica muito sensível e agudo, porque é claro que o d e que muitas Vt'/,(' !-1 tal postura pode levar a uma perda de proporçãol
paciente e:;tá procurando esse alguém. O grande desejo de um paciente a uma distori;ão cl ,1q11ilo que está acontecendú, baseada na ideia de qlll..
é encontrar uma pessoa que o compreenda até naquelas áreas onde ele se os instru11 H.· nto:.. <lc análise da transferência forem suficientem entc..:t
próprio não se compreende. E aí pode OL0rrer uma transferência ini- afiados e cfi ,:a'le:,, l'onsegue~se promover uma transformação, umal
cialmente negativa: o paciente colocar nos olhos do analista um olhar conscientiza~·fio, u111 efeito, que acredito ser mais uma fantasia do qucl
que não é o deste, mas de outro, por exemplo, o de alguérn que não o uma realidade. I
compreendia. E embora o analista esteja tentando compreendê-lo, o Prefiro cons id<·rar seriamente um aspecto do comportamento hu
paciente pode sentir que e:;.t e não seja capaz de fazê-lo. E pode bem ser mano, que é a hu ~(':1 por alguém que me compreenda, como disse ant·ei-~
que não h:ija nada de objetivo nessa sensação. Agora, o que me ajuda a Não é a mesma coisa que dizer: procuro alguém que me ame. A busca a t
lidar no di;i a dia, sentado na frente de uma pessoa, e eu me lembro disso que me refiro é niai,>r e mais ampla do que o desejo de ser amado, de se , 4
constantemente - através da troca d e olh,ues - é que aquela pessoa está protegido, ou de t(·r uma companhia. Espero que proceda eu dizer qu e .
fazendo uma coisa que qualquer ser humano faria: ela está esperando no fund o se t1 ata de uma questão ontológica, no seguinte sentid o : o m eu 4
que eu, com o terapeuta, sej a capaz de compreendê-la, que seja capaz de ser, para podn tornar-se consciente de si mesmo, precisa de um outro t
conhecê-LJ. Sei muito bem que isso é difícil de fazer, de parte a parte. que o v~ja da mnndr~ Aco~o creio s~r a minha, e única, maneira de ser.
Para que cu consiga chegar a conhecê-la, e ela sentir-se conhecida, é Se vivo cs~u ex pcnencia - e muita gente vive, não estou pensa ndo
4
preciso um ofício. Nosso ofício tentamos exercê-lo, mas rssa situação em terapia, mas cm relaciona.mentos humancls - se vivo experiê ncias «
de base não é produto exclusivo da terapia '. é anterior a ela. É assim que onde sinto que estou sendo compreendido, decifrado, aceito, percehido C
o ser humano existe. por um Outro, dialeticamente essa minha sen:;ação de que o Outro m e 4
Gosto de entregar-me a essas percepçõrs paleontológicas ou biológi- percebeu refo t'ça meu próprio ser e lhe confere mais realidade, criando J
cas para e:;capar do aprisionamento técnico. Porque este cria ansiedade -se então, provavelmente, um processo de vir- >1-ser, de desdobramento t
no terapeüta, no paciente, no terapeuta etn formação; cria uma falsa do ser - que é precisamente o que Jung chama de individuaçãlJ. E ntão: 1
expectativa de que chegará o dia em que ó profissional domine e con- como o próprio Jung disse q11e a individuação não pode ser levada a
1

trole o def.afio - não gosto dessa ideia de que finalmente se conquistou cabo solitariamente, não adianta retirar-se para o alto da mo r t anh ;i, t·
o domínio - e quando se concentra demJsiado foco nes~a questão, o fic ar analisando os próprios sónhos durante Yinte anos , fie·,tr f~,l,t' . 1h 1n
próprio foco excessivo tira de foco outros aspectos que, a meu ver, não autoanálise e autorreflexões, supondo a pessoa que , urna vc·Z t (•1•llllll · 1
,h ,l
podem sei' perdidos. O que proponho é portanto uma certa tranquili- essa tarefa, é hora de descer d >t montanha e voltar ~' ''-'()tl) t \ 11H
· 1 1
:11 l' llll l l\
zação e wna aceitação mais esclarecida da maneira como :;.e estabelece estado individuado, ou seja, tornada um ser p·tra si t'\ . .
' ' ' • l Slll.1 , 1111 1111 1 •, 1 1

JIOB~: RTO CAMBINI


,\ \'O i' 1". ll 111\11'11 d i
completo em si. Não. E sse processo se vive no relacionamento, na vida o que é que de fat o ,u.:ontece quando pessoas i!stão p rocurand,, pcssoas?
e m sociedade, no atrito com as outras pessoas, no embate, nisso que ()_yando se p recil-> a romper a barreira da solidão? Qyer dizfr, rompe r
se cham a interação social - tão bem estudada pela Sociologia clássica. a barreira d a solidao não é apenas ter alguém fisicamente p róximo. A
Ora, o aspecto sutil e não observável. pois não se trata de um com- verdadeira solid a, , 6 cu não ter ninguém que m e conheça - não social -
portamento, mas de uma vivência interna, é o que me interessa formular. mente, ou pela li:-, la de telefone -mas alguém que tenha acesso à minha
Há um anseio por este outro ciente <le mim - e só parn não perder a interioridad('.. /\. pessoa só, nesse sentido, realmente é uma p essoa que
conexão, embora eu não possa desenvolvê-la aqui - o ápice desse com- sofre, creio cu, p ol'lJll C ela n ão despertou en1 ninguém o interesse d e
preendedor absoluto é a figura de D eus. Por ser ele onisciente, e no que empreender cs:-.c :,t~rio esforço de vir a conhecê-la. A solidão sociológica
diz respeito a mim, segundo a fantasia cio a concepção de Deus que se é um isolam..:nto, 0 uma ausé\ncia de terceiro~. M as a solidão p sicológica
tem nas religiões do O cidente, D eus está olhando para mim o tempo é não merecer q111• v11/ rn p essoa.faça o esforço de 1tos conhecer. A partir deste
inteiro, está acompanhando todos os 1l1!!us pensamento:,, minhas boas ponto, estao,os pensando e t rabalhando com a ideia de conhecimento.
e más ações, minhas histórias, e coJT10 níio posso fazer nada escondido Qyero e pre ciso qu e alguém me conh eça. Se sinto que alguém m e
dele, então ele me conh ece totalmente - o que para muitas pessoas é conhece, eu sou 111ais; e ao ser mais, eu passo a me conhecer. A terapia
um grande alívio. Há pessoas que dccl ai-am que só Deus as compreen- é uma prática <.k:,:-.;1 necessidade. É uma prátk a feita com certos cuida-
de, e n o dia em que elas estiverem ao s<:u lado estarão plenas e felizes, dos, com certos ci rntroles, corn certos conhedmentos adquiridos, com
po rque àlguém finalmente as compreendeu. Na verdade muitas pessoas certas obscrvaçocs, mas no âmago, cada ve,,; que chega um paciente,
dialogam. com Deus, n:1S suas preces , nas suas imaginações ativas, de ele vem com cs:-.a esperança: será que essa cn atura, que talve:t se torne
um mod o e num estilo com que não con seguem dialogar com ninguém meu analista, i-cm a capacidade de me conhecer e de me compreender?
mais, p orque ali a pessoa se dirige a u m Alguém que julga ser seu pro- Parece-me quc uma das raz.ões pelas quais um paciente pt~rmanece
fundo conhecedor e n ão seu critico; um conhecedor que não critica, no esforço da te rapia - porque é sem dúvida um esforço, que custa
apenas. Mas não estam os aqui na esfera teológica, de defender a ideia de muito, dá tr:- :. baU1 0 e é longo - é porque de alguma maneira isso estú
um Deus conhecedor. O que procuramos é reconhecer e compreender acontecendo. E se não estiver, eu diria para o paciente que é melhor ir
essa necessidade humana de ter a vivência de ser conhecido. embora, porque de não encontrou aquilo que estava procurando. Ou
E se digo que isso t um problema o ntológico, estou dizendo que seja, esse desejo e essa neces~idade são legítimos. Uma pesso.1 quer ser
a relação a dois, a díadé, o eu-tu promove esse estado de explicitação compreendida po r outra, exatamente porque não está sendo capaz de
do ser-para- o- outro e para si mesmo que ao mesmo t~mpo alimenta compreender-se a si mesma. E nós podemos chamar isso d e transfe-
um processo de autocon hecimento. Podemos estão adotar os seguintes rência. Mas também podemos não chamar, e ficar com essa visão mais
termos: 0 autoconhecimento não se ati11ge no alto da montanha ou no ampla. Tecniéamente falando, se não h ouver tima transferência é muito
fundo da caverna, mas numa relação, primeiro na esperança de que o difícil fazer um trabalho terapêutico. Mas t(ocando as palavras: se o
outro tenha esse conh<~cimento de mirh; e à medida que o outro me paciente não estiver com essa procura, de alguém que lhe promova u ni a
conhecê, eu passo a m e reconhecer. Creio ser esse um dos fenômenos sensação de estar sendo conhecido, também não h á terapia . E l ' t Hl\1 1
mais su tis e mais difíceis de descrever numa terapia, especialmente em evito apegar--me demasiadamente a certas palavras - embora ;1s ad orc ,
termos técnicos; mas até em termos não técnicos, em termos filosófico s, mas sem reificação - não importa muito o 11ome que sc df pa r;1 ,~•., ,,

A VO Z E O
0

1:O B E HT O GA MBINI l'l'~l l '1l


1

o que impo rta é compreender o nível sutil, o valor da experiência de Há mais, rdati vo ao "conhecer": o termo grego gnosco d eu em part e 1
vida , e isso é simples de se observar. Porque não é agradável conviver origem ao nn~so , rm hi'rcr, que se formou através do latim cog11osco, rum
1
com uma p essoa que sentim os ser incapaz de nos compreender ou de +gnosco, ronh,'ffr r1J111, aí assumindo enorme i~npor~ância o :refix o rum ,
1
nos perceber do jeito que so mos. Sente- se n a pele, no clima, no olhar. que designa ( , , 11H 111 icação, partilha, experiência conjunta. So se conhece
Isso não é ag radável, não é propício para a nossa expressão, n osso estar,
nosso ir sendo.
com o outro, v11 1, 111m1nhãa2.
É bem o (]I H' t· 11 estou tentando formular. Is10 referenda totalmente o •
'
Não que a percepção deva ser positiva e nunca negativa; o problema que estou bw.rn 11d1\ porque d igo que há um anseio arquetípico de que •
é que ela é enviesada, defeituosa, dcfonrnmte, porque até a percepção o outro me c1111lw1;a para que eu me conheça; sozinho não há conhe1
sagaz dos m eus defeitos por algu é m pode ser algo que me doa, mas cimento. E o q1w ',l" busca é onde estão essas pessoas: quem s;io elas? f
que reconheço ser real. Porque mesmo 110 incômodo posso dizer: "Mas Não sei SL v n .at.amente essa a ideia que norteia a formação de •
essa pessoa me vê!" Ela consegue inclusive perceber algo de negativo jovens tcrapc 11 ta s. N ão sei se essa ideia fica minimamente clara para ,
e m mim, que eu mesmo tenho d.ifi culdade de perceber. Ela apontou; eles. Meu te 11 1, ,r l " que não fique. A noção predominante nos círculos~
ora, é uma fina percepção. É: por isso ciue urn paciente suporta quando de estudo e r 1rn1a,·ão é a de que o domínio e a aplicação correta das~
o terapeuta aponta a sua sombra, se o processo caminhar dessa manei- técnicas no st'lti 11,1~ tl'rapêutico promoverá a c;bra . Em definitivo, não•
ra . Porque o paciente sente assim: "O meu terapeuta está vendo algo estou alinhaclo com esse pensamento. Acho que a obra - sim , e que,
neg ativo meu, que eu não vejo". :Mas o que<~ mais importante? O meu obra! - não 0 fi.:i t a assim, e tàlvez nem estejamos falando da mesma ,
mal-estar de ver nomeado algo neg ativo meu, ou a capacidade de ver do obra. Para mim, al l: rn do contato com a dor da alma há uma questão,
o utro? É a capacidade de ver do tenq)cuta, <fue vem em primeiro lugar, crucial de c01 r h cci menta.
como experiência para o paciente. Ent::-w, n:í,o se espera que ele só veja
o belo, mas que veja o justo e o verdadeiro.
Rxpecificidade de Cada Ser f.{umano
Eu queria poder dizer: o ','Jer como p e1w/Jer, o ver como conha er o outro.
Acho que e ssa é a grande busca por parte de todo mundo. por parte A busca desst: conhecimento específico faz p arte desse conjunto de ati - •
d o paciente , em particular, e, no que diz respeito ao terapeuta, faz par- vidades humanas dirigidas a esse fim, porque cada ser humano é ún.ico, (
te de seu oltcio, o ofício de tentar ver. Maf não é simplesmente para e muitas vez e~; é como se fosse preciso começar do zero.Jung dizia que 4
corresponde r ao desejo do paciente, pelo qu e se é pago, isso seria uma a melhor mancirn de começar um trabalho con1 um paciente é esquecer 4
visão pequena . É um laborar ativo por parte do terapeuta, porque é tudo, tudo o que se sabe, tudci o que se aprendeu, tudo que ~e viu o s 4
um desafio para ele tambéM e é precisame11te isso o que faz dele um outros fazereni, como se fosse possível- mas na verdade, ao pé da lctra,
4
terapeuta. Perceber o outro, perceber o não óbvio, o não manifesto, o não é. Trata-s~ antes de um p osicionamento mental e psicológico qu e
n ão revelado , aquilo que ainda não nasceu, aquilo que está em estado d1z . "E srou neste momento d.iante de alguém que nunca vi a n l l'~, e
. assim:
1
de latência, ou se ntimentos que às vezes nem o paciente sabe nomear, nunca vi outro igual, e minha tarefa é procurar algo único" . D evo J' lll
estados de espírito, estados da mente . .. Isso é o ofício do t1 irapeuta, e tanto precaver~me do erro de dizer: "Ah, o casú dessa pessoa é ig u:d :1,,
não é fácil exercê -lo. E send o esse também ó desejo do paci e nte, fazer
n trab alho faz sentido para :tmbos. 2. Aqui foi novamente Adélia quem me elucidou.

HOIIP.R)·o GA MIIINI /\ VO Z F O 1 1 ~ 1 1' 11 tl


caso 32, e ao caso 85, e ao 94.Já sei. Esse cai nesta categoria; este outro, por conhecer. E o rc;H to é o quê? Jt classificação e tran sm issiío desse
naquela" - exatamente o que por exemplo um dermatologista faz: este conhecime nt( ? 1~ i1uplantação de novos circuitos n euronais? D igo que
é um caso de psoríase. Ou um dentista, um advogado, u m mecânico não, o conh ec i111< · 11 1n é continuado. É claro q ue escalam-se p atam ares,
d e automóvel. N essas outra5 atividades, vocc vê casos classificáveis: o como numa a1 11 Íí',1d<': depois de um certo tempo você tem u rna ideia
prob lema é geralmente causado p elo mesmo fator, pode ter certeza, isto bastante razo; \ "( ' ! ;i rl·Speito d a outra pessoa. Mas pode-se dizer que o
causa aquilo, mexe aqui que vai dar resultad1J ali. Você já fe2. isso, deu ciclo se fcchrn , e q11e o conhecimento está completo? Não po~so fazer
certo, faça outra vez e certamente vai dar cerco de novo. t al afirmação, 1n m , :1 óposta. T enh amos em mente a antiga ide.i.a do vir
Esse paradigma está completamente deslocado, especialmente para a ser: n ão são p rc wcssos? A s pessoas n ão est:ío em processo!' Como
quem segue :1 visão junguianai, segundo a qual cada ser humano é único, poderei prevt: r o q11,· quer que seja?
como as impressões digitais, ou a íris, ou a composição genética, ou os E ai entra d e 11< \\'0 o trabalho do terapeuta consigo próprio. Eu d iria
traços da face. Esse fato incontestáve l foi a pl'ópria natureza que engen- que com o p as'.;:ir d,J tempo - fiei que repito um p ouco, mas vá lá - este
drou, pois entre os atuais seis bilhões de ser~s hum anos, somados aos não fica m ai s ~cg wn, não fica mais senhor da situação, não fica tirando
incontáveis outros que os precederam não há dois iguais, como não há de letra, não Jic n j :i sabendo de antemão, m as - e nisso vale a pena
duas árvores: dois crepúsculos ou doi s sonho~ idênticos. Nós humanos trabalhar - o h"rapvuta tem que refinar sempre, sempre o seu olhar e a
somos todos iguais e no entan to cada um ~ único. Ora, o difícil é perceber sua sen sibilid :ide. Ele é obrigad o, p elo ofício, i refinar seus órgãos de
claramente e:;se um, é perceber esse indivíduo. O desafio inicial com que percep ção. Todo o HCu instrumental sensorial, reflexivo, intuitivo, capta-
se defronta o terapeuta em seu ofício é precisamente voltar para a estaca tivo, extrassemorial , seja o que for: as antenas, ó aparato para conhecer.
zero a cada vez. Na verdade, de não volta Literalmente para a estaca zero, Essa é a tarefa do oficiante, e é exatam ente essa a que deve aprender. A
mas é como se fos se. É uma p,::sq uisa g ue vai C<Jmeçar do "zero"~ e é uma experiênci a tt:n: esse aprendizado e o tempo o modula.
busca de conhecim ento, então: conhecimento que :. . o meça a se r construí- Estamos por ta nto na área do conh ecimento, diversa po rém d e
do. Senão, você cai nos estereótipos, nos preconceitos, n a matéria julgada, u ma pesquis;t cie ntífica. Duas pessoas sentadas fre n te a frente ,
najurisprudéncia terapêutica, no já conhecido. no dt{jà-vu. Será possível tão sim ples nH ' nte co m o se e iitivessem esperando o ônibus chegar,
que depois d~ trin ta anos de prática qualquer paciente que me apareça seguindo um a pauta de conversa absolutam ente não p rogr amad a,
seja um dt{jà--vu? Já vi isso, já sei, já conheço ... Recuso-me a trabalhar que pode n u m minuto passar d o prosaico ao sublime. Não 11e pode
assim, porqu,i uma postura dc!sse tipo me ent<:dia e não m e interessa. eliminar a fala rasteira, porqu e ela também faz parte d os conteúdos
Num caso assim, poder-se~ia então dizer <JUe um terapeuta tem pra- da subjetividade. E ao pratic.ir com co n stância esse exercíd.o, m ui-
zo de validad e, p o rque depoü: de alguns anos ele j á viu tanto que não há tas vezes dei-me conta de que no meio de u ma conversa banal, ou
mais nada de novo sob o sol. e fica igual a u in relojoeiro h ábil, porque que começou de maneira totalm en te d espretensiosa, factual demais
conhece os mecanismos de relógios, no fundo todos iguais. Não, não. ou superfi cial, repentinamente se ace nde uma pequena chama e dt:
E como sempre repito que to da essa questão gira em torno d,.! escolhas, improviso d esp onta um se ntido e abre-se u m campo d e apr<Jfund a-
escolho trab alhar assim: semp re, a cada vez , há algo que se vai conhecer mento. I sso acontece, isso é empírico, é só preciso ter um a nen~· ;in
e que n ão erà conhecido antes. Porque senão pensaríamos que depois t ranquila. N ão vai acontecer o tempo intei ro, não vai ac o ntecer
de um certo número de sesHões o terapeuta já conh eceu o que havia t odos o s di as. Nós não operarhos na faixa sutil o temp o todo, 11 1,1,

188 ROJlER'! ' ü G/\MBINI ,\ VO Z F. (l TF l\11' >


certamente somos capazes de eventualmente contatar essa faixa cond uzido àrbitrariamcnte e anna l toda l,, ,,t t6111i,·,1 h,11-wi: ),(' 11.1 oh
1
menos densa. servação. Alguns procedimen tos são frn t1fr111·,, c111t 1,,.., 11,111. l '.ir,1 11 1i111 :,.
A certa altura mencionei que a entrada repentina de um sonho numa técnica é uma q11l'-. l:io de aprendi zado ,·1,111 .1 1n tlll,I, d,· 11) 1111, , 111d1, _
conversa altera completamente não apenas seu rumo mas, no que diz zir minimame11t, · unt processo evita ndo qtw 111.il,1:~II, g. r,11 do l'fc 11n .,
respeito ao terapeuta, seu estado de füncíonamento mental, como logo desestruturadorC" s, . J\.1as não passa di sso, é qu,1-.1 11111 ·'1'' ' 11 li 1.,,I,, d1 f!
a seguif o do paciente, qu e perceberá naquele ofício com a matéria bom senso. E nan acredito que o mero apn:11di1,1d11 t i•, llll 1, 11.111 .!111 IIH f!
pensante um tremendo esforço de ron hccé·-lo, através do seu sonho. Aí li
temos outra maneira de a pessoa se sc1Hir rnnhecida. Não pela interpre-
tação, lançada de imediato; não, é o p ro~cs,o de ficar circulándo aquela
alguém num tcr:1pc11ta.

Pesquisa
.,
íiJ
matéria, de fic ar tirando as pregas, cxplicmdo (ex-plicare), descompli-
cando, aí está o esforço de conhecer. E qu:1nJo eu digo conhecer o outro, Qyando comece i a atender, meu analista ,Lconselhou 11 1t· ,1 ,. ,1 11 \1 ,fA
que fique bem claro: não me refiro npena~ a conhecer a personalidade todas as sessões, e todos os sonhos que eu ouvisse. T enho g1w1,l.1,l 1 ,, .. f/f
do outro ou sua biografia. Isso é prnwo. Não é só conhecm a persona- meus arquivos a pri1ncira se~são que realizei, em outub ro dl' 1,,,. .,
,l1 fl'
lidade: é conhecer progre:;sivallln1tv nívei s acima de níveis do estado lá para cá, s,~mprc :tnotando 1 colecionei ceni-enas e centena '> d l' f 111111, iJf
do ser. Não é assim: "Eu t ívc tal rr:11;;10, v, >cê me com preende?" - "Ah, com relatos de scswcs e sonhos, material sen1 dúvida sui gm1 ri11 lt·,· 111, ~
compreendo que você teve l'ssa rca, ao, inrque você é asi;im, o outro a seu car~ter sif ~oso, q~e n o de~id~, m omento será :~do ele qu('Í111,1d, ,
te agrediur então você ... " Isso p :11 a n,im é a capa, a tampa da história, P~rgunte1-lhe: !•, Lllll mde-mémoire? Ele respondeu: Não, vncC:· dn1· 1,·.
41
"compreender" nesse senti, 1<> n,m l' conhc1 ·cr. Não, o objetivo é conhe- g1strar dadog rekva ntes porque, afinal de contas, o trabalho tcrapeu t 1P1
cer o funcio namento de p1'<1rçssos que mal chegam a ser nomeados. E com o inconsciente é uma p esquisa". E ssa foi a palavra-chave. (h,.u,dJi
sabemos que alguns s,io a lta1rn:11tc desejáveis, como: quebrar vícios de ele aludiu à pesqui sa, convenci-m e de imediàto. M as nunca tnai:-. n·11,9
pensamcnro, desmon tar ci, cuit< ,s rep<.:ti tivo ~ de reação emodonal, mudar mames o tema, para que eu pudesse saber com precisão de q11c tipo lk~
uma visão de mundo, libertar-se do passado ou libertar-se de ideias ou pesquisa se tratava. H oje co11stato com alegria que, transcor tido tod(\9
hábitos ar•risionadores, ou de uma estreitcl✓a da mente etc - processos esse tempo, consigo respo nd~r a mim mesmo que p esquisa é essa: 11 111: 9
desse tipo é que precisam ser conhecidos, cm cada pessoa de um jeito. grande_busca de ro:1~ecimento dos fenômenos da p sique. H á pequ ena~
Defrontamo-nos portanto com u m grande arco de busca de conheci- ~notaçoes s~quenrnus que sãó germes de fu t11ras expansões desse desc•
mento. E evidentemente 11ão se trata d e educar um paciente, pois não pdo conhecimento. D ados bi.ográficos, por exemplo: " ... tudo com eçou
participamos de uma relação pedagógica. A relação é ontológica. porque minha avó se casou c,)m meu avô contra a vontad e p aterna, dal j
resultando u m drama famili àr que chegou até mim porque . .. " - nãnli
são p ara mim peças fundamt ntais, nem intensamente detertninantcslil
"Técnica"
do que procuto conhecer. Com o passar do tem po, os d ados biogr:í hcn!-,ii
Q,µando se adota uma visão desse tipo, a q11estão das técnicas utilizadas vão fic ando rada vez mais di stantes. Q,µand c, busco conhecl t n I n1111 -4i
no trabalho clínico torna-se absolutameme secundária. D tsnecessário n~o é _no sen t~do em qu~ o faz um biógrafo, um ge nealogist a, m, lllll4i
dizer que é preciso servir ~se de alguma, posto que o processo não é h1ston ador. Nao sou muito b om para reprodll'l..Ír cm dctnlhc ,1 hi !', 1111 1 ,
19
190 ROB ~ RTO GAMBINJ /\ V o ;r E n T f, 1\ 1' 11
da vida de um p aciente, porque o ângulo de visão é distinto daquele inexplicáveis , 1ue vivc t1 , Mas no romance não 8C tirn sabendo qual é 0
adotado pelo biógrafo, pelo ghostwriter ou pelo entrevistador. Há m odos 1 conhecimento qm· o doutor da cid ade teve <lde, e p ara que serviu , ou
diversos de co mpor -se um clossiê sobre uma pessoa, d esde ,j modelo seja, se afinaJ o c·x jal-(unço ac:abou compreen dendo o sentid > de su,t
1

policial até o cun-iculum vitae e a b io?;r.tfia. Mas aqui é outn) conheci- travessia. Pern,i t:1111 me uma brincadeira: se eu foss e o d outor da cidade
mento que se busca. Repito: acho que essa ideia não está muito bem ouvindo Rioh;tldo dnitiando sua saga por dias a fio, numa certa altura
colocada nos cursos de formação de analista 1 nem na imagetn que se eu teria lhe d iln : "M !.:n caro, não era com o diábo que você deveria ter
tem de terapia na mentalidade corrente. A ideia que se tem de terapia feito o pacto, m11 s rom Diadorim". P ara mim, isso é terapia. Se o doutor
é muito distorcida e muito pobre, qu ando se observa como as novelas, da cidade rea lnwn tr estivesse conhecendo o Riobaldo, ele tinha que
o s filmes ou até m esmo a literatu ra fi ccionalizam sessões de análise. abrir a boca e 11 ao ~1) ficar ouvindo! Qye outro personagem na literatura
Sustento i::nfaticamente a ideia de que o âmago da questão é uma brasileira é um hom1.:m tão sequioso de ser conhecido como R iobaldo ?
busca do conhecimento do :3er, da sua dor e da sua "lógica''. E tanto Ele é um gra r•dt· t·11ig-,na: "Decifra-me!" A fas e da vida em que ocorre
podem os pensar q ue a alma só p ode ser conhecida inicialmente no seu a análise, ou qut· 1·-;sc pedido desesperado é foito, é crucial. Como eu
estado de dor, como igualmente poderíamos conceber que o :ger, sendo queria ter pod ido 1·orwersar C<)m Riobaldo enquan to D iadorim ainda
mais amplo do que ela, tem o mesmo desejo de ser conhecido. Ai cabe era vivo! A an:íli st· na fase crepuscular da vida, ou depois que tódos os
usar termos como processos men tai s, ci rcu i.tc-s neuronais e coisas desse dados foram Ltn\·adns, é reflexiva e não mais ittiva: a vida já foi vivida.
tipo. A biografia, portanto, é àpen;ts um orga11izador de dados segundo Nesse caso, o sentido da análisé é a reparação, é finalmente a compreen-
uma linha cronológica, algo que uma p L·ssoa quer contar de r:i, mas no são do que foi a vida, sendo a grande tônica a possibilidade ou não de
fundo não é :1 biografia literalizad ..l que ela qHer co ntar. E la quer contar serem praticados atos reparadores. Mas no meío da vida, nel mezzo dei
outra coisa, e como não sabe fazê-lo, conta com o biografia, como uma cammin, ainda se pode agir, mudar de rumo, mudar de escolha. A tra-
história. É por isso que depoís de um tempo a esqueço. vessia ainda n:10 te rminou.
Riobaldo, em Grande Sertão: Veredm. de Guimarães Rosa, introduz Ou seja, nwus c:tros, tenho àqui discorrido sobre um conhecimento
um termo estupendo, que já adoto : ele quer contar ao senhor da cidade não bizantino, mas útil, capaz de promover vida. A função dessa pesqui-
não a coisa, mas a "sobre-coisa". Qycrn não sabe falar da sobre-coisa, sa que é a tera pia, essa busca de conhecimento, é promover, expandir e
conta a biografia. A propósiro, Riobaldo tem um profu ndo desejo de renovar a vid a. Busco um conhecimento pungente capaz de iluminá-la.
ser conhecido. E julga que encontrou alguém capaz de fazê-lo; o doutor Se não for par,.t isso, não vale a pena.
da cidade. E ele começa sua narrativa porque quer ser conhccido 3 • To-
das aquelas dúvidas e contradições, violência, amor e loucura, as coisas

_ Cf. Riobald,1: "Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; ma:; a principal
3
quero conta r é o que eu não sei se sei, e que pode ser ,jue o senhor saiba" ( p. 175). M ais
adiante: "A ente sabe mais , de 1jm homem é o que ele esconde" (p. 256),
5
E ainda: "E.•4 queria decifrar as c,iisas que são importàntes. Queria entenaer do medo e
da coragem, 1, da gã que empurra a gente para faze r tan ms atos, dar corpo a,) suceder. O
que induz a gente para as más a,;ões estranhas" (p. 7,,).

A VO Z E O TFMP<l !<)!
J l )2 RORER ' r Q GAMBINI
Jornada até Jun,i:

A ÉPOCA É :\ D ÉC ADA DE 1960 , quando meu principal c sfo1\o 111t c•


lectual era absorver as principais ideias e teorias que buscavarn at I t· l. 11
as Humanid,ldcs a uma intervenção efetiva na realidade s,icia l. l '.t1 1

tinha dezoito anos, frequent2.va a Faculdade de Direito de rnanhi1 t' a


de Ciências Sociais à tarde. E studava muito. Eu gostava, como ainda
gosto, da bus,:a de conhecimehto e não demo~ou muito para ficar claro
que minha vocação não era a advocacia, na ve:rdade um sonhcj de meu
pai que ele t:mto queria ver r'ealizado. Mas e-le não estava totalmente
enganado ent sua intuição, porque acabei d.e fato me torn:indo um
defensor de causas difíceis.
Éramos todos uns apaixon.tdos na Faculdade de F ilosofia, Ciências e
Página r96: JJng escrevendo em sua mesa, que já virnos antes. Foto de 1945. O arranjo
L etras, um dos mais criativos segmentos da Universidade de t\ão Paulo
dos objetos é disti nto, salvo o pe1fUeno vaso de três p ~s. Em C. G. jung: L etters, Gerhard daquela época. A elite da inlelligentsia brasileira ensinava lá, cm ii11:1
Adler (ed. ), Princeton Universíty Press, 1973, p. 283. sintonia com o pensamento §ocial europeu. Estudávamos Ofi clái;•,i c11•.
Página r 97-' Foto tirada em 20 0 2 do mesmo ângulo.<) vazio conclama a memória. Foto - O Príncipe ele Maquiavel, O Leviatã de H ohbes, O Co11tmto So,·i,d , lc,
de Roberto Gambini. Rousseau, O Espírito das Le~: de Montesquieu, excertos dt' l ,c11·~,., .,, ,

A \ '<>/ F t l l 1 1\. l't , 1 1 11 ,


, .
e Souza, que iamrn, u11vtr nas s, ,k 11l , ,
. I1.11.•,,.1.,
, ll' 1c~• t d;t FaculJa<l.c
.., .
de:
lado Jo Suicídio e das Reerras
o· a'o Método Socio/ó,rico
e, ,
de Durkhei'tl ' A De-
'li , . · ., ( 11 edvd C, nJulo
mo..Tt1ci41 na América, de Tocqueville, Os Argonautas do Pacífico Ocidental, Filosofia, Ciênciat-d ' Lrtras, ao ladn <1" l ,11 i.1111 1 t IIH ·• 1 •
Procópio Fe riei a dl' C'amargo. M,1•, q111•111 111.11 •, 1111· ·
111 JI 11 e 11riou e cn!.1
·
de .Malinowski, Ideologi.a e Utopia, de Karl Mannheim (com seu im-
1
nou a pcnsar, dc 1111 tod a essa pli iadc, (ÍH t,1 ·111 d11 :i, l. Pm1b lkig uc.:lman,
1
portante capítulo sobre os estilos de pensamento), para finalm ente nos
concentrarmos nos dois grandes pi.lares do pensamento social, a obra com su a obra i11t1t11Ltda Formação />0/1/1111 ,/(1 n, 11,I, V II I qtl(' pronirn O

completa de Max\ Veber (A Ética Pi-atestante e o Espírito do Capitalismo, fio explicativo d.l', 11111<lanças sociais e11 1 11<1',h ll p, u•, 1h·•,d1• 11 Al oli,·ill>
Economia e Sociedade) e a d e Karl M:u-x ( O D ezoito Brumáric de Luís (retomando Jo.tq1 11111 Nabuco) até a irniµ, 1,,,,10 ' li l11 11n,1,,11 1 du povo
Bonaparte, Co1itribuiçáo para a Crftfr,1 da Economia Política, A Ideologia no complexo I ak1·i1 0, aliás um d tulo seu. Cun, , l.1 ,q '' l' 111li IIl''" q 11i i.. ir
Alemã, O Manifesto do Partido Comu,zijf,1 e O Capital) ; ao lado d,! Engels, fo ntes prim áii ,11,, 11 formular h ,pó teses h istrni, ,l ', 1· :1 li l 11w 1, d11 11, 1

especialmente A Origem da Fatnília, da Propriedade Privada e do Estado exposição dos a , r. i, mcn tos.
e Do SocialistrQ Ut6pico ao Cientifico. Naquela época ainda eram raras Tod a essa ha~c tc11rica, cuidadosamcn rc con st, 111d,1 .1111 , ,q 11 11, ,1 1n,l' t1 1
as traduções etn português, d{ modo que minha geração era forçada a franca oposiçáo ,l l>Ociologia fu r.ciornuista 111 •11 •,.111ll'llt li
lltl l t'fif.111:t l' iltt

desenvolver a capacidade de k r ing-lb,, francês 1 italiano e espai1 hol - o conservad or crn geral, acabou nos levando a to1 lm, ,111ill,t 11•1q 1ll i 1.1<, 1,,
que acabou nos abrindo muitlS portas no fut11ro. Um pequeno grupo crítica dos estu lo:i brasileiros tt'adicionais. /\ nH>1.l.1 1•111.1,, 1•1,1 11·1•,111
organiwu um seminário semai1al para dcstrinc1i.ar as n ovidades teóricas vê-los da persp1·Lti va dos dominad os do sistema. Nos idt·ntili, .111,1111 1 , ,.
criadas por Claude Lévi- Strat1ss em snas obras Antropologi.a E.ttrutural, todos com os vdo n.:s, os pon tos de vis ta e o sofr mcnto da s 111 .u,• ,1., d, ,
O Pensamento Selvagem, Estn. turw R!t:mentar!s do Parentesco 1~ O Cru possuídas d e 11 0 '-IS<l país, empurr:.tdas para as m argens de t 11 11:1 s 1H wd.1d, ·
e o Cozido, tão logo eram pub:ica<l as cm Paris. A cabeça fervilhava, as capitalista suhd .:sc nvolvida.
discussões eram animadas, ainda que um tanto pretensiosas . Mas não tare nu muito para que eu com eçass,~ a se ntir um n ·t to dl' i,,

A outra face da moeda era o estudo d os grand es autores brasilei- conforto in tclec tual. A visão marxista d a socied ade e da Histó ria , t·n t ,11,
ros, de Euclides da Cunha ern Os Sertoes a Gilber to Freyre f' m Casa d omi na nte, par~cia-me un ilateral e rígida dem 1.is, e logo percebi q,u·
Grande e Senzala, de Joaquim Nabuco cm seu O Abolicionismo a Sér- limitava m eu livre- pe nsamento. Se naquele meio alta mente politizado
gio Buarque e.e H ollanda em Rai;us do Rrasi/1 de Caio P rado Jr. , que eu ousasse exp1 cssar incipientei opin iões ou gnmes de uma rdlcx:ío
muito nos influ.enciava, especialmente em Jfistória Econômica do Brasil pessoal, era preciso enfrentar u ma dura oposição e a ácida crír.ica da
e Formação do Brasil Contemp,râneo, a Celso Furtado, q ue ao lado do patrulha intelec tual esquerdista, q ue to lerava m al o d esacordo. O
primeiro nos ajudava a entender o Brasil de forma crítica, con1 seus li- credo oficial ern q ue o homem é um produto d ,~ sua posição d e classe
vros fundamer tais Formação d, Brasil Contempcrâneo, D esenvoldmento e na estrutura social; a cultura, a arte, a religião e a m e ntalidade seriam
Suhdesenvolvi,riento e Dialética do D esenvolvimento. H avi a ainda Otávio uma superestrutura, p rodu to se -::u ndário n ecessariamente distorcido L'

Tarquínio de Souza, Raymundo Faoro e a produção recente d1~ nossos diretamente co ndic ionado pelo m odo d e produção econômi ca capi -
professores Fl )restan Fernandes, Fernando 1 knriq ue Cardoso, Otávio tali sta. P roust, p or exemplo, era vis to por algu os mais radicai fi c01111,

lanni, Egon Schaden, Maria Isaura Pereira de ~ ciroz, Ruy Coelho m ero reacio náno, no sen tido d e que não escrevia n em se intc rvs<;, l\•.1
(que d eu um curso sobre Mari:el Proust!), Francisco W effo rt, L eôncio pela luta d e clas~es. C ertas busc:1s intelectuais n iio al i nhadas (qu1· c 1;1111
M a rtins Rodrigues, sem esque::er o grande A1ro nio Candido de M ello cada vez m ais ai, m inhas) eram portanto encarachs co m o <.:on t r:11 t<'V1 111 1

JJO l! O IHRl"C1(;AMB JN I
, 1 Vll '/ 1 O l' l 1\11 ' 11 '•1 1
cionárias e não d e · . d .
viam ser estimu1a as, seJ á. por professore:, ou mesmo de Bach e 1\1ozart a Bartok e Stravi ,wky, d,• lkut ln e· lfollin.{ Ston c;s a
por colegas.
Ravi Shankar, passando por Thc \,V li11,J:111i• Jopl111 '-'~, minha favo rit ~1,
E u era u m aluno de not··.,.' s alt as, o que me perm1tm,
· · no crtt1co
' · ano d e
Nina Simone. T ive aulas de dança l ' y,w1 e , 1111•1 v{lrhtll vc·z1•1, 110 n:atro
r96S, uma mudança d e situação, época em <tue nossa queridá rua Maria da Universidade. Vivi numa comu11id:1dc·, ilr P11• 1,, , ,1!,elo, rc '1l'l'r, :1 rnle i
Antônia se transformava numa praça de gue!rra, ocupad a pelas forças da descalço e fü.J Ut"Í mo lhado quando c ho vi.1 . lkl11 11 , 1dt111a pi, icrnklk:t
repressão militar, tendo sido a Faculdade invadida e vários professores até a últim::i go t':1.
presos e logo em seguida violentame nte at:ncada pelos membros do Co- Fui aos poun>s tomando consciência d ,· q11, 111,l.1 !.., .,, , h,w.,1g1:111
mando de C aça aos C omunistas, do qual fa.~iam parte aluno,; do vizinho intelectual ,~ c11lt11 ml tão devotadamente acL 1u11 ,d., , 111 qo.,-. ,. 11ad .1 11w
C ol~gio 1\1ackenzie. Nessé período negro perdi para sempre amigos ajudava na mi11ha longa bu sca de autocomp rcc·11•.. 1n. V11lt<•1 11w r 11t i10
qu endos e d esesperei-me ,::om a prisão e Mrtura de muitoE, outros. para Freud. Li :-. uas obras n1ais importante:, l' dn 1d1 11,,._ .,,,, ., ,..,, 11•v1·r
Pois bem , em agosto de 1968 parti para ds Estados U nidos para pós- meus sonhos c111 fi chas de pesquisa qu e guard:,v:, c 111 , · ' ' " ·'"' oi, 11 w1.il
-graduação em C iências Sociais na Universidade de C hicago, onde -com o se fazia 1i.1 época. Era um experimcnfo ro111p l, ·1,,11 1r·11t1· 1,111 11 .1 1111
p ermaneci até r97r. A ntes de deixar a família e o país, lembro-me de Tentei interpreta- los por mfoha conta, mas :wal,,tva ,,,· 1111111 , h111,•11d,,
u m a impo rt ante conversa que tive com uni querido amigo mais velho, a algo parecido com o que havia lido em seus livro-. , ,01111 .,,. f11 ,.i.r 1,1
que foi p ara m im um p ai intelectuaJ , o so•ciólogo Cândido Procópio todos sonh<Js de l )ora.Além disso, um persistente st:nti111l'11 n 111, d1 ,l.i
Ferreira de Camargo, honiem sensívc:I de aguçada intelig,f ocia e pen- que algo in<;;xpJi cávd para mim acabaria por fim fazcn<lo Fn•tal r J\ 1111 ,
samento Hvre, para quem a visão de Max Weber era mais ampla do confluírem na m<::srna velha caixa da qual eu tentava escapai·.
q u e a de Karl Marx. E u comuniquei a cJe minha ansied ade intelectual Aí acontéceram minhas primeiras experi ências com psicot'c1·:1pí.1 /\
usando como m etáfora um ·1 imagem que espontaneam ente ;!pareceu em U niversidade de C hicago é o berço da psicologia de C arl R oge r:,, l ' c1;1
m inha m ente enqu anto tentava cxpJicar-Jbe minhas dúvidas: a teoria um atendir1'lento nessa linha que oferecia aos estudantes q ue prm:ura
m arxista era para mim como um rcrãngulo com linhas e ângulos cur- vam ajuda. U ma depressão havia se instalado e não me largava. <-Oic.:
vos d e um lado, o que visualmente sugeria que nem tudo i;e encaixava frustração! Eu sentava-me ém frente a um :·apaz um pouco mais velho
p erfeitam ente conforme s,~ propalava. Ele compreendeu, concordou e do que eu e dizia: "Acho qt1e estou ficando deprimido, é milito sofrido
me encoraj ou a seguir minhas próprias incbnações, especiaL:nente agora e esse céu iiempre cinzento toma tudo ainda pior". E ele: "Então você
que ia ter início uma experiência no exterior. acha que e:3:tá deprimido, é tão sofrido, e esse céu cinzento toma tudo
Minha estadia americana foj muito rica 1 mas as longas noites lendo pior". Eu olhava para a cara dele e não sabia o que dizer. Sen tia-me
livros e artigos que não ac2bavam mais, centenas de horas de aulas e se- insultado e achava que ele tra um robô faztndo sua lição de casa para
minários, d ezenas de trabalhos e relatórios de leitura não foram capazes posterior supervisão, e dep,jis de um tempo fui- me embora.
de endireitar a p arte torta cio retângulo. A lgo faltava sempre, embora eu A terapia de grupo foi ainda pior. É ramós umas dez pessoas, tão <li
tivesse m e deliciado em pâralelo lendo boa literatura (1h:,m as Mann, ferentes entre si que era difícil surgirem relacionamentos. Sentávamm
Herman n Hesse, André G íde), os Diários de A n ai"s Nin, m uito Fernan- em círculo e seguíamos os comandos de um psiquiatra e uma assistcttt l'
do Pessoa e teatro contemporâneo (Ionesco 1 Beckett, Arrabail). Eu ouvia social, um casal parental grotesco que tentava extra.ir algum se11t id,
música todas as noites em meu pequeno quarto na Casa Internacional, daquele caos de queixas di:iparatadas em m eio ao barulho <Jll l' 11 gi 1111 1

HODl•; RTO GAMBINI /\ V P I. t' () TI ~11 • 11 /11


202
. I 1 1 1 (, .,· n viµ,l-rn i: r 11rirn,o
fazia. N u nca pude capt ar qual a proposta daquilo tudo, t ão em vog a, turado por arquétipoti 1r,U1scultm.1 1•; t' L í' \1 1).1, 1 ' .Ili • '
1
para mim uma exp eriência d esagradável e estéril. Fui em bora. fenôm eno m eio biologiw e meio t1a11r.11·111lc•11f ,tl !
Eu visitava regularmente uma pequena livraria nos arred ores d o cam- E ra incvit:lvcl , 1u(· um alto nrn n, d(· li, •111111 "<"' l' H1,t•,~,c <º > H:tii du a~ í
. fi .· . . .. 1 , , ,111t•1l•11I•· " i, i111livid11n~
pus, onde mensalm ente deixava uma par te de mi nha bolsa de estudos. abord agens, :1ss111 1 c1m1t> caua.m -;t: p,11,11 1, , ,, • , ,
111
não obstante o L,10 d,; que este cert ;un c 11I <' ,11•,1 , ~H 111 ,1n11•t1l l" :til IIH" '• º •
Um b elo dia a capa d e u m livro me atraiu. E ra o rosto d e Jung em sua
autobiografia, Memórias, Sonhos, R,:fll'xbes. C om p rei- o e escrevi na pri- tempo que p< ,ssuí un , mun d o ín terior. I•: a 11 1i1'l, 011 111 1•1tf1 1·11t. 1r O ,udir o,,
1
m eira pági na., como faço ate: hoje : "Cl1 il'.ttgo. Inverno d e 1971 ' . Pressen ti longo e solit;irio ,,,·un.•sso de tentar inte~rar 111 1l m-. ,H , 111,11 1, 1 , dt• vi •,1:i ~
q ue finalmen te tinha em mãos aqui lo que h á t anto tempo procurava um a vez qu e nao n:i minh a d ecisão nem nw 11 ~t·1111111111111 ,,111td11 1 111 11,1
para endireitar as linhas tortas de m e\l rcl'ângulo.
Foi assin1 que J u ng entrou em min h a vi d a.
parte de min ha lc,1niação qw~eu tanto aprl!ri,wa .
Voltando ao reta 11gulo to rt<J, houve de fato :dµ.u,·1 11 q 111 ,11 111 1'11 111

h orizontes,abri 11d o uma po n te in telcr t ua l - tn l' lhrn d11, 11,l 11. Hr 111 1,1111 i
1,1111 • ' '
....

p olim que, como unia cat ap ulta, m e lam,:ari:t do 1,•1111 , 11,, , , J lf, •v1 ·1 11, 1, •i
A s Ciência~ Sociais, esp ecialmente a Sociologia fundada no Marxismo, d as C iências Sociais noutro d omínio ainda clci-:co1tl 11·1 1,111, 1 11 11 1•, 1 .1 1 "i
são discipli nas extrovertid::is. Su a fa sdnaçãó é pelo objeto externo: os eia eu in tuía. voam lo sobre o m uro de p edra nuo1 1:qwt,· ,ili 111 .111 f
1
fatos sociais deve m ser encarados como cvisas, caso contrário não há E sse auto1 , uni fi lósofo alemão, que n a épo ca e11si 11:'. va ~ i.u,_ l 1111•1· 1•, 1d.1 i
base possível para a objetivid ade, sua maior pretensão. O g rande alvo des d e H arvard e l'o h:un bia, era 1:~rbert Marcuse, cups H~r1ai 11'.1 1 11d1 ,1•
dessas ciências é descob rir e anali sar cstrHturas, conflitos en tre grupos, ram minha g.crn,·ao cm 1968 em vanas p artes do mundo. l ,1 " l ' I I~• liv, •,.. f .JW1
relações de pod er, p ossibili d ades de ruptw a e mud ança e, final m en te, Homem Unir/imemional eErose Civilização quando amda cm< 'hi, :11',''• 1 i
as leis que regulam a marcha da Hi st()ria. Funções, comp<Jrtamentos, obviamente 1ivros dess-e tipo 11ão estavam nas listas d e leitura - cran1 .,,il-.i
nor mas, p adrões: os seres h 11manos d evem !-Cr co mpreendidos pelo que versivos d emais p,tra a mentalídade conservadora d os sociólogos :u1 wrir.~
faz em , a despeito de sua su bj etivid ad e e indinações pessoa)s, na verda- nos. Eu subl nhava tod as as págmas, porque para mim ele foi o pri1 nci ttl
de postos de lado e tidos como m enos re1enntes p ara o con hecimento a propor um a reorganização d o pe nsamento social estabelecido. •
do que as reações d e m assa, por exemplo, 1 jue pod eriam se-guramente Apanho o volume n a m inha estante, colocado que est ava c n tr<t
ser estudadas em escala m enor através da o hservação d e cam undo ngos P lat ão e Sri A urobindo. A s p ág in as estão am arelecidas p elo suor dW
numa gaiola. meus dedos 1 ele exala um o lor acre, m as sin to uma súbita t ernu ra ao
A P sicologia J unguiana, como logo desrnbri, é pelo con trário uma segurá-lo d e novo n as m ãos d epois d e tantos anos. C ito u m p arágraf<,
disciplina int rovert ida. O .::.traente objeto e-xterno, tão valot'izad o e ad- contundente:, na página 123 (minha ed ição é d a B eacon Press, B osto1f
mirado pelas outras correntes d e p ensamen to, é neste caso subst ituído 1969, e traduzo): "O mundo d a experiência imediata - o m uncfo e, .
por fenômenos internos difíceis d e d efini_-<, observar e m en surar, tais
como estados de espírito, se ntimentos, vagas sensações, fantasias, pen-
samentos, distúrbios p atológico s, sonh os, delírios, aberrações; tudo isso
desembocando nessa hipótese incôm od a p;tra as Ciências Sociais, a de
um incons ciente - sem faJar na de um in conscien te coletivo - estru-
que vivemrn1- deve ser co m preendido, transformado e su bve rtid D pa,e
tornar-se o que realmente é' •
1

G.!iando li essa passagem , h á mais de trê&d écad as, u ma r o rra ,1h1


- se de par em par, para que Jung log o a segiiir por ela cntrn ~se .
quer dizer que o que as coisas são - pen sava com m eu s hnt<H'~ , ., 1p
i.
Ft,1.,~
8

'ti
2 0 ,! HO RF RTO c;AM B I N I 1\ V(li' l li 1 1 ~li"
realment~·· som os, e, mwto · d o que o olho vê e deve ser Hberado atra-
· mais inglês é da Vintagc Books, Ncw York, J<J,56 , e 1rndmm), Jun.l( crnocut,l
vés da subversão dos condicionamentos vigentes? Eu suspirava .. . essa seu sonho f,obrc a chan,a bruxu.kantc de HUU. fo ntcrna 11uma tcmpcSt.l
era a linha torta de meu retângulo, e jsso também era eu_- Finalmente de noturna e diz: "Míllha própria compreensão é o único tesouro que
~a~a encontrado um apoio teórico e füo11ófico seguro pat a consolidar possuo, e o mai" r d(· todos. A.inda que infiiútamcntc pequena e frágíl
ideias que a intuição viera persistentemente engendrando em minha em comparaçiío , 0 111 os poderes da escuridíí.o, ainda é uma luz, minha
mente ang ustiada. própria luz".
Poderia também citar outra passagem, na página 183, cm que Mar- Eu não teria ,;ido capaz, naquela fase de minha vida, de encontrar
cuse afirm a que os intelectuais devem tornar-se "pacientes" a serem palavras m:lis c11r11tÍVilS e e.ncorajadoras do que essas em n1il páginas
"curados de suas ilusões, enganos, obscuridades, enigmas insolúveis, de Durkhetm, vVl•hc•r, Marx ou L évi-Strauss! Sem aquela p equena luz,
questões irrespondíveis, fantasmas e espcvtros". todo o conheci 111 1.· 1110 que eu pudesse ter :itdquirido seria seco como
Bem, isso já era demais. Passei então ai tdaciosamente a admitir que palha - aut'om·f<·1c111c e atitoconfirmatório - quando tudcJ o que eu
todo o meu aprendizado prévio, tra11smitido por intelectuais engaj a- precisava era de ar ír1·sco e coragem para seguir adiante.
dos, devia. ser criticamente revi sto :-uh urna nova luz ... mas qual luz? C omo esti vesse nn épo<~a inconscientemente cozinhan do u m au-
Marcuse foi p or certo um grande p<.! 11sadw crítico, mas a despeito de dacioso de:;ejo de mudar de profissão (dei-me conta disso mais tarde,
ter aberto uma porta para qlll: muito~ outros penetrassem em territó- retrospectivami:nt c, na análise; na verdade, a~ raízes de meu lado tera-
rio novo, ele próprio ficou cm seu lirni:1r ~ não a atravessou. Por quê? pêutico est:io :fi 11ra,fa:i na infância), fiquei exultante e surpreso quando li
Provavelmente porque nu 11ca abandonou ,j domínio da m<~nte racional, a respeito de urn ,.k scnvolvimento paralelo na própria carreíra de Jung
perdendo assim a experib,cia de sua gêrncJ1, a psique. Não se pode falar que vivia um conílito por manter um vínculo duplo, com a psiquiatria
dela sem estar nela - e nda de não estava, por mais liberadoras que suas e a arqueologia (p . .t09): "Era como se dois rios tivessem se unido e
ideias tive ssem sido, como de fi1to o foram. uma só grande torrente me carregasse inexoravelmente na direção de
Minha leitura seguinte, a mais pcnctrnnte e poderosa de todas até distantes alvos". Com o ternpo, também consegui abrir um canal para
então (r973), foi Mem6rim1Sonhos, Re.ftexó,'s, a autobiografia de Jung. O a confiuê~da das :\guas opostas nas quais nadava. Talvez não seja lá um
caminho no intelecto para receber essa kitura já estava pavimentado, grande rio, mas é certamente a corrente que me impulsiona pela vida
mas eu ansiava por mergulhar em águas psíquicas profundas (algum às vezes ca1mamcnte, outra~ vezes com forte turbulência.
tempo depois iniciei uma ànálise junguiana em São Paulo, com um dos
•**
raros profissionais então existentes).
Esse livro foi meu Admirável Mundo (interior) Novo. Eu não parava O pensamento social, na i;egunda metade do século xx, erigiu uma
de ler e st1blinhar, e a cad;i cinco minutos acrescentava mais uma peça intricada catedral mental. Parecia - e era tão convincente! -· que o alvo
a uma visão ampla que agora eu podia compreender, refi<:tir sobre ela havia sido ;~tingido: o fenômeno humano h avia sido explicado em toda
e desenvolvê-la, já não mais usando apenas a intuição. No capítulo a sua complexidade, estando o comportamento social tão claramente
''Anos de l~studante" encoiltrei a bússola de que precisava para orientar compreendido e conceitualizado como, digamos, uma reação quírni , ,1
minhas buscas, suavizando- minhas agonia11 ao tomar conhecimento das num laboratório.
dele. Para citar apenas duas passagens: na pági na 88 (minh a edição em

20 6 IWBP.ltTO GAMB ! NJ A VO ,'. I' () ·1 J' ~11•1 1


Mas como tenho tentado rememorar, algo - pelo menos para mim,
. ...-:
visão peculiar de Junp; sob re o .111con sc1c1J ,·. te C<>mo uma .,
Jiincnsão Í<~>•
embora atualmente haja um reconhecimento geral de que as Ciências mada não apenas de matci·t'al repnrn1t . • 1o, 111 as ,t,·>e ...,
contc.;udrn;

que nun _•. . . .
Sociais têm um viés e um limite - em definitivo faltava no que então
se considerava como seúdo uma ampl n e profunda compreensão da
,
chegaram a ser c011},ncntc~, .
virou d <.:, c,l e,. ,
., b. ·" p·ii·a baixo muitas teon_,.. ., 4""'
Humanidade. '
J
que tentavam 1.: xpl in 1r por que e como o ser humano faz o que faz.
Psique, como aos poucos foi aprendendo, está dentro mas também e~. . . .
O que faltava, exatamente? Segun do hoje vejo, duas coisas, e tratarei i fora, onde apan·rl' projetada, como que à espera de ser reconhecida ell""f
delas em sequência. Em primciríssi mo lu.~;lr, a Psique estava fora da tela. sua natureza. A Pt-iitJllC nutre o Sentido, e: a busca de significado é~
Em segundo, um certo tipo dt: rcln.do11ainento humano -~ do qual o en-
1 maior de todas as motivações para a mudança pessoal ou h istórica . . , .
contro analítico é um exemplo - b:u,cado na Psique e qw:: vai além dos ~ anto ao sq~11 mJo aspecto ausente, o que descobri estu.d~do_Ju~
limites impostos pela convenção, pelo dc!'lcmpenho de papéis, pela edu-
cação e pela mentalidade coletiva. Foi Jung quem abriu para mim essas
duas magníficas portas, <;onduzindo- rn c para fora do confinamento na
i e tendo passado, a pítrtir de 197~, por longos anos de an~ se, e ~
quando se participa d\; um relacionamento e se elege a Psique co
pedra angular,{: poss(vd atihgir níveis de in-t:imidade, compartilhamerr'
catedral em direção a um espaço mental não mapeado e limitado. e descoberta que IH II H' a experimentei antes em relacionam ento algl
É um fato document~do, sim, CJ HC as C iências Sociais interessavam- mesmo nas melhorei, mnizüdes ou na relação com um mestr"e. O rela<tr'
-se por variáveis psicológicas, mas cstM referiam-se precipuamente namento baseado na Psiq,~e possui sempn: esse terceiro elemento, alJI'
a reações de massa, con1portamc11t·o l'011dicionado, ideologia, valores poderíamos denn111i11ar ab1~tura e respeito pelo desconhecido, abalan. .
religiosos determinando escolhas, adn pt ação, coerção g1:upal, padrões nossa arrogância nn seu ârhago, como se o Grande pudesse de reper.
adquiridos, aculturação etc. - e, no oui-to lado do espe:ctro, compor- revelar-se na virada ele uma esquina. •
tamento desagregador c::>u antissocial, i11olamento, anomia, violência,
sociopatia, e assim por dlante.
No d,:;mínio dessas d ências, a Psique enq uadrava-se na Psicologia ••
Jt
Social. evidente que, tivesse eu iniciado minha carrei!ra acadêmica
no campo da Psicanálise (freudiana, uma vez que nos anos 1960 não
t•
havia en sinamento junguiano algum naf-i universidades), a história que
eu estari.a contando aqut seria outra.
Jung, na qualidade di;: componente novo em minha estrutura inte-
•t
lectual, subverteu os termos da equação social ao postuliar a primazia 4
da realidade psíquica, cóncebida como matriz tanto d<:1 pensamento 4
como da ação. Como fui aos poucos aprendendo, Psique não quer dizer 4
"mecani~mos psicológicos", como motivos ocultos, inte11ções secundá-
rias, complicados jogos émocionais, conflitos familiares, choque entre
geraçõei;. N ão: Psique é um território sem fronteiras, que parte do que
é conheódo, ao alcance da mão, até o in:ilcançável e o desconhecido. A

208 RO BER T O GAMBIN I


/\ V O '/ l• l \ , l M l' , 1
i
(l!iem é D ono do Ar?

1
1

J11N 1: ,,. ,,, 11" 1 111 •, 1·1 l<AÇÃ O, um p unhad o d e sementes esp argidas por
u 111 f 11r1,· v1•11 1, , ·,, ,1,.,, 11 vastidão do p ensam en to racional.Jung foi antes
1k 11 1,1i ,, 1111d.1 11111 1 1rlt11de.Jung recolocou a faceta que faltava no prisma
d., , 1111•, , i1 •111 i .1 ' w 11 ll'g'1tdo, o <~onjunto d e suas propostas e formulações,
11 .1 ,1 1 11111 ;1 1, 11 H1 ti111hrada com as insígnias da marca registr:11da. Pelo
111111 1.1 1 i11 . •o1 1 1. 1, 'I 1111 rscs de trabalho e suas descob ertas foram uma
d :1d1 1 ,1 11111.1 i, 11'111r11 , l·i.)fam sua resp osta p essoal aos paradoxos da
11 ·.il 1.f ,1d1·, .1,, 11 1, 1 11<•1 11 •1 do conhecimen to e à dor e beleza da vida. Para
:.í111 , ·1, 1,11 , 1•11 1111 ,t, 11111 na frnsc, que a quintess&n cia de su a contribuição
1, ,, .1 I" 11 p n •.i 111 , ,1 , j, 11111 trtodo de ser e de p ensrtr: aquilo que cm1tum a se r
1 11;1111 ,11 1, 1 ,1, "·,i".' n11 111dr1 exterior" ou "realidacle"vai m uito além do qu e
1w 1,, 111 11 111111 , ( 1 , 1111v 1H· f-oi feito p ara quem quisesse aceitá- lo : tl'nt :11
1" ,, • 11, f' l.11" " " '• l'l'Va\·:no cuidadosa, constante e progrcs!iiva d .1,
1 11, n ,1

111 :1111Jt • 1.11, ,11 , h, 011 ,11 1:1l'icnlc cm todos os n íveis d a cxperi(nria, c111
1 .,il ,1 •• r,, , 1, .,, ,, , 1 H~.io do scut ido da cxistênri:t. "] nconscicntl'", pa 1,1 l' f1 •
'' ·
1
" , , ,q w1 1,i,, .11111 1 1111•11 1t,· d<' 111i nlt :1 bi ografia ou1el a sua qu e r o 11hcn·1 111 1·.

A Vil / I· (l l' I ~1 1'11 ' li


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de que o in,~onscientc ck8cja to.1 11:11· s,: rn11 i,, n:111 t, ' ' . ~
mal, mas aquela parcela da realidade que não é levada em conta simples- 1 11 •111 111 · 11 ,, 1 (C)IJl11111 1• •
tórico sendo capa·t, ck absorver um rl'rto 1;~1~ º'. t ' • • • • .. •
mente porque não pode ser diretamente observada, mensw·ada, descrita . 1 , . , , •11 c- 1·1 t okt 1v~1. ~ 1111, .,, ,
a elasticidade dos d eterminante~ t . a <: onst ' - •
ou conceituada. Jung sabia que o desconhecido existe e a tarefa de sua
vida consistiu em inventar ou descobrir modos e ferra.mentas para
sentido J ung era 11111 evolucionista, sempre· rq.,c ti ndo ciuc ª P · 1f
1 11
•t
. ~ . ó . . ')( >hr·,Jns - scin ro11 • ,.,.,, •
tende a avançar ~'.rn <l u-cçao a ternt nos m e l ( , · · .:,
abordar o inabordável, cun har termos para referir-se ao transcendente
sugerir, como dclorrência, que a hum anidade! esteja a caminho de ""'·I
e abrir espaço para o não-manifesto no terreno da experiência - no seu
caso, as áreas menos iluminadas da psiquC'.
evolução étka. Pam Jung, a op osição entre o bem e o mal e sua man di t
· · · h umana e' um pro blem.•1 •ms olu' vel • Su·1
tação na cxpcncnrin • psic:1 ,h.w ,, 1.1 t
Inspiração é ar. E como sabe qu alquer nativo das Américas desde
tempos in1emoriais, ninguém é dono do ar, ninguém é dono do ven-
inteira bascia-sc na ideia de que tudo o que o ser humano pode f ,l/' t
a esse respeito é rn :<>nhecer que cada um de nós é portador d e aml 111 •
to, ninguém é dono da luz do sol. E sses bens estão fora do comércio
os princípios, por t:1.11 to qualquer p rojeção compensatória nã,J pal->•rn d,t
humano, não se pode vendê-los nem comprá-los. U ma ideia doada à
coletividade não é propriedade privada. de ninguém. Até mesmo os
uma vã tentativa de evi tar o peso de sermos ,X>mo somos. A o d cs1 n •vt t
e an alisar a som bm, rnn de seus conceitos b asilares, Jung q ucrí;t qwt
copyrights um dia expiram. A fina r:rn1ada de pigmento que recobre
o teto da Capela Sistina pode.: 1wr p topri1~dade do Vaticano, mas não reconhecêssemos ooss:i. imperfeição, nossa condição de anjo s c 1fd, 1·t
nossa emoção ao cont emplar as t' btl1pcnd::is imagens criadas pela têm- porém capazes d e fazer escolhas éticas e ansumir a respongabilid:u.l,.
pera. Observar o inconsci<: ntc e' 11n1a ;lt'itU<le, uma inclinaçfiio, um gosto por nossas açõe~. Em sua visão, a humaniditde é uma espécie dot :111 -
pessoal, uma escolha, um o fiei o, u 111 a vocação: é gratuito, como observar da possibilicladc de redimir o próprio mal que causa. A corn1ciên ci:1 , '"t
o voo dos pássaros ou a da tl\'ª das 1•strcl as, somente ela) é o pt>nto crítico de mutação.
O olhar junguiano hrn;,.:a o outru lado da lua. Procura não tanto a Jung sabia que no interior profundo de cadla ser humano repow;a 1111 ~
face por detrás da máscar<1, mas o q1w se oculta atrás da própria face. sereno silêncio. Ele ofereceu à mentalidade corrente um conceito I k •T,1 1
Jung quis chegar ao limite possível de no:1SO conhecimento acerca do como um agent·c capaz de transformar-se, a ponto de tornar-se o scrv 111, ia
mistério dá morte e da orii~em da vida; ele 11companhou palmo a palmo de uma instilncia interna mais abrangente. O ego pode ser silcnci;u 1, 1, tt
o fio de seda que une o físico e o psíquico e procurou perceber a unidade incessante fluxo de pensamentos que o ocupa pode repousar,d imi1111111 d, I
subjacente à diversidade e. à dualidade. Jung sempre tentou atingir o sua velocidade e dando condições para o surgimento de in tt:rva l1 1:-. d,.
útero, a matriz de onde se originou a corniciência; ele qui~ conhecer o te~po entre um pensamento e outro. Aparee<~então um novo n ; l, , d1· , 11 •
molde primário das forma8-pensamento, a ligação entre imagem e ação, mmado estado de transcendência nas práticas orientais de medit a, ,ll • ( l
o elo sutil entre alma e cultura. O que ele no fundo queria era poder Ser pode então ser testemunhado por uma consciência cgoicn e i,, ·1111,hl.~
olhar nos nlhos a alma do mundo e compreender seus gritoll e sussurros. cuja única função passa a ser reconhecer aqli.ilo que assomh ,11-.;11 111 1111.
Este era seu alvo: ouvir a fala das pedras e decifrar su a grarnática. se manifesta diante de si. É nesse sentido que usava a palavr;1 rd, r.' ,,1
Jung queria discernir url!l. rio numa estátua, compreend1.:r a vida e a Para Jung esi;e vazio era na ve rdade a plenitude, o ouro dos ah l' 111 rn 11• 1
mente conio fluxos incess:untes e perceber os sonhos como realidades possibilidade de vivenciar, e n,ão apenas pensa.r, a ontolog ia. 1
1,111 , , 11 1 .t,t
vivas. Ele queria honrar a aspiração à con:;ciência qu e jaz ado rmecida A vcrd~dc psíquica só pode ser encontra<la por <{lll'lll •1
em todos os aspectos negligenciados da existência. J 1.111 ~ tinha certeza 1 .l111.\'il haucu, sem arrogância intelectual. C'orn·spoudl' .1 d,·, , 1 1111 ••

21.l IH>lll-'l!'l'O G AMBINI


A V II / 1 n l i ,11,, •·


grande no pequeno. Os ma.is preciosos insights que emergenn. das cama-
das profundas do inconsciente e se oferecem a quem souber procurá-
-los e reconhecê-los são verdadeiras pepitas de ouro. A per'Jona é uma
função psíquica incapaz desse tipo de colhdta. A psicologi~t junguiana
não poderá jamais ser reduzida a unrn técni.ca de exercício profissional
ou de manejo de transferência no settinK terapêutico, nem muito menos
confinada a um código acadênüco, cxatan)ente por ser urn modo de
observar, pensar e fazer no qual se fu ndem objetividade e arte, ciência
e poesia, formação e iniciaç:ão. A objetivicb.de que praticamos é e deve
ser contaminada pela alma,. pois sem sua rnediação o mundo, tanto in-
terior com<:j exterior, nos é íncompreensíveL Nunca usaremos aventais
brancos nem trabalharemm; com. instnun~ntos de precisão, f.ejam testes
ou diagnósticos - assim corno nnnct 8Crcmos neofreudianos.
Digo outra vez: sentimeruos ,k itiforioridade profissional podem ser
uma defesa que impede o mais profundo com o Stlf. Nós jun-
cü11! ;1t o

guianos ten1os um complex0 de lwr:11 H,'a - aínda não aprendemos a her-


dar com serenidade. Alann:ttnn nnl'i r rH11 a ideia de que a herança possa
ocultar um problen1a patcri m, ou q11t~ a1nca(.:e nossa liberdade criativa.
Ninguérn é dono de Jun ~. Mas podcmo9 coletar as pepitas de ouro
que encontran10s pelo can tinho e nos t·o rnarmos a árvore única que
cada um, desde o começo, (!Stá fadado a ser,

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