Você está na página 1de 172

Mal ―

o lado sombrio da realidade

John A. Sandford

Edições Paulinas
Créditos

Título original:
Evil, the shadow side of reality
The Crossroad Publishing Co. New York
© John A. Sanford, 1981

Capa:
Dois sátiros, de Rubens (detalhe)
4345-1 ― ISBN 55-06-00834-0

© EDIÇÕES PAULINAS – 1988


Rua Dr. Pinto Ferraz, 183,
04117 São Paulo SP

Tradução: Sílvio José Pilon & João Silvério Trevisan


Revisão: Ivo Storniolo

Coleção Amor e Psique, dirigida por:


Dr. Léon Bonaventure, Pe. Ivo Storniolo e Profª. Maria Elci S. Barbosa

ISBN 85-05-00834-0
ISBN 0-8245-0526-3 (Ed. original)

Impressão—1988:
Gráfica de Edições Paulinas
Via Raposo Tavares, km 18,5
0550 São Paulo SP
Catalogação na Publicação Internacional (CIP)
Câmara Brasileira do Livro SP Brasil

Índice para Catálogo Sistemático:


— 1. Bem e Mal:Metafísica 111.84
— 2. Bem e Mal:Teologia dogmática cristã 233.7
— 3. Diabo:Teologia dogmática cristã 235.47
— 4. Mal e Bem:Metafísica 111.84
— 5. Mal e Bem:Teologia dogmática cristã 233.7
Introdução
à Coleção Amor e Psique

Na busca de sua alma e do sentido de sua vida o homem descobriu


novos caminhos que o levam para a sua interioridade: o seu próprio espaço
interior torna-se um lugar novo de experiência. Os viajantes desses caminhos
nos revelam que somente o amor é capaz de engendrar a alma, mas também o
amor precisa da alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicações
psicopatológicas para nossas feridas e sofrimentos, precisamos, em primeiro
lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo é que poderemos
reconhecer que essas feridas e sofrimentos nasceram de uma falta de amor.
Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e
transpessoal, para a nossa unidade e a realização de nossa totalidade. Assim,
a nossa própria vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade
primeira.
Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro, mas o psíquico, e
depois o espiritual. É a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma
toma seu sentido, o que significa que a psicologia pode de novo estender a
mão para a teologia.

Essa perspectiva psicológica nova é fruto do esforço para libertar a


alma da dominação da psicopatologia, do espírito analítico e do
psicologismo, para que volte a si mesma, à sua própria originalidade. Ela
nasceu de reflexões durante a prática psicoterápica, e está começando a
renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É uma nova visão do homem
na sua existência cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto cultural,
abrindo dimensões diferentes de nossa existência para podermos reencontrar
a nossa alma. Ela poderá alimentar todos aqueles que são sensíveis à
necessidade de colocar mais alma em todas as atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisamente restituir a alma a si
mesma e “ver aparecer uma geração de sacerdotes capazes de entenderem
novamente a linguagem da alma”, como C. G. Jung o desejava.
Agradecimentos

Quero agradecer às várias pessoas que me ajudaram na elaboração


deste livro. Minha especial gratidão aos meus amigos Robert Johnson e
Morton Kelsey, que leram o manuscrito e deram muitas sugestões úteis.
Agradeço também a Allan Anderson, Ph.D., cujas perspicazes observações
sobre os aspectos filosóficos do problema do mal me ajudaram
especialmente no último capítulo. Gostaria também de agradecer a Helen
Macey, por sua inestimável ajuda na preparação do manuscrito.
Introdução

Para aqueles que professam os credos judaico-cristãos, cuja doutrina


fala das boas intenções, justiça e benevolência do amor de Deus, a presença
do mal no mundo coloca questões perturbadoras e provoca, em sua vida
interior, efeito semelhante ao de uma comida indigesta. Para outros, a
realidade do mal é, talvez mais que tudo, um bloqueio que os afasta da fé
religiosa e os leva ao ateísmo, cinismo ou desespero. Para todos nós,
evidentemente, o mal é uma ameaça constante, porque tem poder de atacar e
destruir a alma humana ou extinguir nossas vidas através da guerra, doença
ou crime. Em última análise, o mal é um problema que ninguém consegue
evitar. Existem pessoas que, à maneira do avestruz, são especialistas em
esconder a cabeça na areia, até onde podem. No entanto, ninguém pode fugir
do mal quando começa a sofrer. O sofrimento sempre traz consigo o
problema do mal: ambos são companheiros, enquanto problema. A finalidade
deste livro é mais filosófica do que pastoral, pois ele visa mais ao problema
do mal do que ao problema do sofrimento. Ainda assim, a questão do
sofrimento está implícita em tudo o que será tratado aqui.
Com certeza, têm sido numerosos os esforços em se discutir o problema
do sofrimento. Já foram escritos muitos livros a esse respeito. Por que mais
um? Devo dizer, aliás, que não tenho aqui nenhuma pretensão de resolver o
problema do mal nem de fazer qualquer abordagem definitiva sobre a relação
entre o mal e Deus. A resposta é que pretendo dar à questão uma contribuição
específica, a partir da psicologia profunda, especialmente a Psicologia
Analítica de C. G. Jung.{1}

Examinar um problema a partir da perspectiva da psicologia do


inconsciente é como olhar de dentro para fora. Tome-se o exemplo de uma
bola: é possível olhar para o exterior dela. Imagine, no entanto, que você é
muito pequeno, tão pequeno que pode olhar para essa mesma bola a partir do
interior dela. Você teria então uma perspectiva inteiramente diversa.
Guardadas as proporções, essa é a mudança de referencial que ocorre quando
examinamos os problemas humanos através dos olhos do inconsciente. Ainda
que se trate dos mesmos problemas, eles agora parecerão diferentes.
Raramente se tratou o problema do mal a partir da perspectiva do
inconsciente. Assim também, a relação desse enfoque psicológico com a
tradição cristã e os ensinamentos bíblicos tem sido virtualmente ignorada.
Espero que este estudo ajude a cobrir tal lacuna.
O tema que percorre todo o livro é a natureza do mal, analisada sob a
ótica da religião e da psicologia. Mas cada capítulo pode ser lido como uma
unidade em si. O primeiro capítulo trata da realidade do mal; uma coisa pode
ser tida boa ou má, dependendo do ponto de vista do observador — o que traz
à tona a questão da existência ou não de uma perspectiva absoluta para o bem
e o mal. O segundo capítulo busca essa perspectiva na mitologia, para além
do ponto de vista humano particularizado. O terceiro capítulo examina a
relação entre o mal e Deus, conforme o Antigo Testamento, analisando-se
particularmente como o mal está relacionado com a ideia psicológica do
“lado escuro do si mesmo”. O quarto capítulo volta-se para o Novo
Testamento, detendo-se especialmente sobre a ideia que Jesus tinha do mal.
O quinto capítulo adentra o importante tema da Sombra — uma excepcional
contribuição da Psicologia Analítica à nossa compreensão do problema que o
mal coloca à consciência humana. O sexto e sétimo capítulos continuam a
discutir o problema da sombra, com uma análise das diferentes visões de
Jesus e de Paulo, além de um estudo sobre a instrutiva novela de Stevenson,
O Médico e o Monstro (The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde). O
oitavo capítulo examina os elementos que a mitologia judaica e cristã pós-
bíblica fornece para o sentido psicológico presente na ideia do diabo.

O último capítulo compara o pensamento cristão e o junguiano a


respeito do mal e sua relação com Deus, e merece atenção especial. A
psicologia junguiana corrobora e esclarece, de muitas maneiras, o ponto de
vista cristão. Na verdade, a Psicologia Analítica reivindica a si mesma o título
de sucessora da alquimia medieval, que não é outra coisa senão a parceira
mística do cristianismo da Igreja. Esse natural companheirismo das duas
disciplinas sofreu frequentes abalos quando entrava em cena a questão do
mal. Do ponto de vista cristão, a perspectiva junguiana pode revelar uma
perigosa adoção do princípio do mal. Por outro lado, do ponto de vista da
psicologia, a atitude cristã tem sido fortemente criticada como culpada de
expor a humanidade aos poderes do mal, já que parece insistir em que o mal
não tem substância em si mesmo. É possível que tal diferença de opiniões
quase tenha destruído uma das mais profundas amizades de Jung. Trata-se do
padre Victor White, um teólogo católico romano, que se interessou pela
psicologia junguiana num período em que praticamente ninguém a conhecia,
e se tornou amigo íntimo do Dr. Jung. No entanto, à medida que os anos
passaram, a amizade dos dois quase fracassou, devido às suas divergências
quanto à ideia da relação do mal com Deus. A amizade foi resgatada somente
quando, nos últimos dias de vida de Victor White, os bons sentimentos de
ambos interferiram, de modo que suas diferenças filosóficas foram vencidas.
Achei conveniente encerrar meu livro com a análise desse inquietante
problema. Espero que isso ajude a criar um terreno comum entre a psicologia
e o cristianismo, para que a difícil questão do mal possa ser discutida de um
modo mais cordial.
Vi certa vez um filme{2}, no qual um cavaleiro das Cruzadas volta
desanimado para casa e anseia por conhecer Deus. Ele ouve falar de uma
bruxa que está em vias de morrer na fogueira. Consegue encontrá-la
exatamente antes que ela seja devorada pelas chamas. “Diga-me, por favor,
onde posso encontrar o diabo”, pede a ela o cavaleiro. “Por que o senhor quer
encontrar o diabo? ”, pergunta-lhe a condenada: “Porque talvez o diabo possa
me falar de Deus”, responde o atormentado guerreiro. Quanto a mim, espero
que possamos, em nossas vidas, encontrar Deus de modo mais direto, sem
experimentar o tormento desse cavaleiro sem esperanças. Ainda assim, é
verdade que, se conseguirmos uma compreensão mais profunda da natureza
do mal e suas implicações, provavelmente estaremos aprendendo mais sobre
a natureza de Deus. Foi com tal esperança que escrevi este livro.
1.
O mal sob a ótica divina e a

ótica centrada no ego

Certa vez, num verão, resolvi plantar um pezinho de abóbora num


canteiro do meu jardim. À medida que ele ia crescendo, suas folhas grandes e
vigorosas iam se tornando tão decorativas quanto as plantas ornamentais que
eu tinha por ali. A cada manhã, lá ia eu contemplar a minha planta com o
maior prazer. E foi com grande alegria que vi as abóboras começando a
brotar, na base de cada uma das flores, tão amarelas e tão bonitas. No
entanto, certa manhã, deparei-me com um indício agourento: algumas folhas
do meu pé-de-abóbora estavam cobertas por pequenas manchas de um
pozinho esbranquiçado. As manchas foram crescendo, dia após dia, até que,
lenta, mas incessantemente, a praga esbranquiçada acabou por tomar toda a
planta, roubando sua força, secando seus frutos e transformando o que antes
era verde esplendoroso em pálida e doentia cor. Não pude fazer nada. Tentei
mais de um veneno contra a praga, mas sem sucesso. Até que não houve
outra alternativa a não ser arrancar a planta e jogá-la no lixo.
Nesse mesmo ano, plantei tomates. O resultado foi impressionante. Não
há nada mais luxuriante e vigoroso do que um pé-de-tomate, nem nada tão
saboroso, nutritivo e bonito quanto um tomate amadurecido no pé. Um dia,
quando fazia uma vistoria nas minhas plantas, descobri que um dos pés tinha
sido simplesmente cortado na base. No lugar onde havia uma planta em pleno
vigor, agora eu só via uns restos secos e um buraco no chão. A mesma coisa
aconteceu nos dois dias seguintes. Nem era preciso ser jardineiro experiente
para saber que algum tipo de roedor tinha invadido o meu jardim e estava
fazendo um belo serviço com os meus tomates. Desta vez, porém, consegui
salvar minhas plantas. Com o auxílio de uma armadilha, consegui agarrar o
ladrãozinho: um esquilo.

Para mim, a praga que destruiu minhas abóboras era um mal, tanto
quanto o esquilo — que foi neutralizado justamente por essa razão. Não sei
como a praga se sentiu. Mas não resta dúvida de que, para o esquilo, a
destruição dos meus pés-de-tomate era um gesto bom. Eu e minhas
armadilhas éramos, para ele, o mal. Ou seja, o que para mim era ruim, era
bom para ele — e vice-versa.

Em se tratando do mal, a primeira coisa com a qual nos defrontamos é


que, de um ponto de vista humano, sua conceituação depende sempre do
ângulo onde está o observador. Portanto, o que é tido como bom para alguém
pode perfeitamente ser mau para outro. Nicholas Berdyaev conta a definição
do mal, dada por um hotentote: “se eu roubo a mulher de um homem, isso é
bom; mas, se alguém rouba a minha mulher, isso é mau”{3}.
De 1616 a 1619, uma epidemia assustadora eclodiu nos territórios onde
é hoje o estado americano da Nova Inglaterra e dizimou a população indígena
local. Sabe-se que a enfermidade (provavelmente varíola) implantou-se na
região a partir da visita de um navio negreiro inglês. Não acostumados às
doenças do homem branco, os nativos naturalmente não estavam imunizados
a elas. Em 1620, os primeiros colonos puritanos — tão decantados nos livros
escolares — chegaram para se instalar definitivamente naquelas terras, e
encontraram-nas desocupadas graças ao extermínio da população nativa.
Segundo o historiador William Brandon, “os colonizadores puritanos
exultaram e agradeceram a Deus o fato de a violenta epidemia de 1616-1619
ter varrido os pagãos, deixando livres os caminhos para o Povo Escolhido”.
Ainda segundo Brandon, um clérigo puritano de então mencionava “os
maravilhosos desígnios que o Senhor Jesus Cristo dispusera, através da
Divina Providência, para permitir que seu Povo se estabelecesse no mundo
ocidental”. Esse homem de Deus referia-se ainda, com especial satisfação, ao
fato de que a peste atacava “principalmente jovens e crianças, que são
exatamente as sementes da raça”. Outro clérigo também observava que “com
isso evidenciava-se a extraordinária sabedoria e o admirável amor de Deus,
que enviou à terra seu Ministro (quer dizer, a morte), com a finalidade de
dizimar… os selvagens…”{4}.

Imagine-se, no entanto, que tal acontecimento, tão bom e


verdadeiramente ditado por Deus conforme a ótica dos puritanos, significou
um mal terrível do ponto de vista dos pobres indígenas. Enquanto para os
clérigos puritanos a epidemia devia ser atribuída ao amor e providência
divinos, nós, que temos um mínimo de sensibilidade, chocamo-nos com
aquela atitude egocêntrica e arrogante. As próprias palavras daqueles
puritanos nos parecem cheias de maldade. Aliás, é importante fazer aqui uma
distinção entre o que se poderia chamar de mal “moral” e o mal “natural”. A
praga que destruiu meus pés-de-abóbora é um exemplo de um mal natural —
tanto quanto os terremotos, as enchentes de proporções catastróficas ou até as
epidemias. Em contraposição, o mal moral advém de possíveis motivações
negativas existentes no coração mesmo dos seres humanos.

Não é nova a ideia de que o bem e o mal são conceitos relativos. Por
exemplo, o antigo filósofo chinês Chu Hsi — cujas reflexões ocorreram há
tanto tempo que ninguém sabe ao certo quando ele viveu — ensinava que o
bem e o mal não existem em si mesmos; ao contrário, eles são conceitos
aplicados às coisas de acordo com os benefícios ou prejuízos que trazem para
quem as manipula ou para o ser humano em geral. Dizia Chu Hsi que “em si
mesma, a natureza está além do bem e do mal, e ignora a nossa terminologia
egoísta”{5}. O mesmo pensamento aparece nas palavras de Hamlet, quando ele
diz a Rosencrantz: “Não existe nada que seja bom ou mau. É o pensamento
que o torna assim”{6}.

A teologia, no entanto, não se restringe ao ponto de vista humanista,


segundo o qual o bem e o mal são conceitos relativos, que dependem
exclusivamente do ângulo humano a partir do qual são enfocados. Nesse
caso, não haveria uma moral para a vida ou para o universo, nem existiria
qualquer tipo de ordem moral capaz de exercer controle sobre o ser humano
ao tratar-se de suas ambições egocêntricas, mesquinhas e destrutivas. Nas
guerras, por exemplo, é comum cada adversário protestar que Deus está do
seu lado. A própria Alemanha hitlerista estava convicta de que sua causa era
justa, ainda que, para o resto do mundo, o nazismo parecia estar possuído
pela maldade. A religião afirma que em algum lugar existe um Deus que
determina algo parecido com aquilo que se poderia chamar de padrão
objetivo ou absoluto, graças ao qual é possível discernir entrè o que é
verdadeiramente bom ou mau.

É aí que a psicologia vem ajudar-nos com sua distinção entre o ego e o


si-mesmo. O ego pode ser definido como o centro da personalidade
consciente, território do eu de cada um de nós com o qual estamos
conscientemente identificados. Trata-se daquela parte de nós responsável pela
vontade, pelas escolhas e pelo sofrimento na vida. Como ela tem uma certa
continuidade a nível de memória, sempre que dizemos “Eu fiz isto” ou “Eu
fiz aquilo” significa que é o nosso ego que está em questão. O si-mesmo é o
nome que a psicologia dá ao centro da personalidade total; por este motivo o
si-mesmo é algumas vezes chamado de Centro; portanto, o si-mesmo é um
nome dado à pessoa como um todo; é aquela parte central do todo da
personalidade que abrange o ego e o supera. Em linguagem religiosa, o si-
mesmo costuma ser chamado de “personalidade crística”.

Quando o ego focaliza a vida e seus próprios interesses, visando


unicamente a tirar proveito pessoal, nós falamos de “egocentrismo” — e
sabemos que o enfoque egocêntrico é estreito e limitado. O processo de
psicoterapia procura alterar os referenciais egocêntricos, introduzindo o ponto
de vista do si-mesmo. Quando a terapia é bem-sucedida, ocorre uma salutar
mudança dos referenciais conscientes egocêntricos para o ponto de vista mais
amplo do si-mesmo. As metas da psicologia e da religião, no que se refere ao
desenvolvimento da personalidade, são evidentemente idênticas — pelo
menos neste ponto — já que ambas se empenham em relacionar o ego das
pessoas a uma realidade mais abrangente que chamamos Deus ou si-mesmo.

Quando se diz que as coisas não são boas nem más, mas o pensamento
é que as torna assim, trata-se aí de um raciocínio a partir da ótica do ego. Se é
verdade que existe apenas um ponto de vista relativo sobre o mal, a pessoa
egocêntrica pode justificar, com base em suas próprias certezas, toda e
qualquer ação, que será avaliada conforme sua capacidade de satisfazer
ambições, anseios e desejos egocêntricos do seu autor. Grandes safadezas
podem ser justificadas dessa maneira. Ao contrário, existindo, a respeito do
mal, uma perspectiva divina, seja a partir do si-mesmo ou de Deus, então o
relativismo do ego pode ser demonstrado como aquilo que ele realmente é:
um exemplo a mais do egoísmo humano.

Como saber se existe uma perspectiva divina sobre o mal que seja
diferente da perspectiva do ego? A história de Moisés e do anjo-guia Khidr,
contada no Sura 18 do Corão, pode sugerir uma resposta.

Moisés e Khidr, que estão viajando juntos, chegam a uma aldeia.


Inexplicavelmente, Khidr afunda todos os barcos do lugarejo. Moisés se
espanta com tal gesto, que lhe parece uma maldade. Só mais tarde ele fica
sabendo que, ao afundar os barcos, Khidr evitara que tivessem sido roubados.
Com tal atitude, ele, na verdade, tinha protegido os barcos e os aldeões. A
seguir, Khidr se dirige a um jovem e o mata, deixando Moisés novamente
chocado com sua aparente maldade. Logo a seguir, no entanto, Moisés
descobre que o jovem estava prestes a matar seus pais, de maneira que fora
melhor ter sido morto que ter se tornado assassino dos próprios pais. Por
último, Khidr derruba um muro, para espanto de Moisés. Mais tarde,
entretanto, descobre-se que sob o muro havia um tesouro pertencente a dois
órfãos. Como Moisés continuava a se espantar com seus atos e repetidamente
ignorava a bondade neles inerente, Khidr vê-se obrigado a abandoná-lo.

Nessa história Moisés vê os acontecimentos a partir da limitada


perspectiva do ego, enquanto Khidr tem a perspectiva mais ampla do si-
mesmo. O ponto de vista de Moisés não é exatamente egocêntrico; nós até
que simpatizamos com suas violentas reações de horror frente ao
comportamento de Khidr. Porém sua ótica fica limitada pelo estreito âmbito
da consciência do ego. Khidr não possui tal limitação; ao contrário, vê a
situação completa num contexto muito mais amplo. Ele tem, por assim dizer,
a vantagem de agir sob a perspectiva divina.

De forma semelhante, no decorrer da psicoterapia ou no seu


conhecimento espiritual, muitas pessoas vão descobrir que um
acontecimento, por elas tido como inicialmente ruim, era de fato muito
positivo. Assim, por exemplo, durante alguma crise que desespera e esmaga,
muitos são forçados a suportar violentas transformações em sua
personalidade, e só mais tarde é que se dão conta de que aquilo era bom. Só
então percebem que a situação de desgraça vivida foi uma bênção que veio
provocar mudanças muito positivas. Na verdade, pode-se dizer que até uma
verdadeira cura só acontece quando a pessoa começa a ver o bem e o mal em
sua vida a partir da ótica mais abrangente do si-mesmo, ao invés do limitado
ponto de vista do ego. Não é exagero dizer que a cura espiritual é,
fundamentalmente, uma reavaliação dos conceitos de bem e mal, o que
significa uma consequente mudança do ego para o si-mesmo.

Conforme já sugeri, pode-se decidir o que é bom e o que é mau a partir


de qualquer uma das três seguintes perspectivas: 1) O ponto de vista
egocêntrico, ou seja, quando os acontecimentos se contrapõem ou ajudam
nossos objetivos, ambições e anseios egocêntricos. Por exemplo, o referencial
dos peregrinos puritanos era egocêntrico. Uma vez que a epidemia veio
facilitar seus propósitos, eles decidiram torná-la um bem, inclusive enquanto
parte do plano de Deus (sempre que nós recrutamos “Deus” para colocá-lo a
serviço do nosso egoísmo, o preço a pagar é muito alto). 2) O segundo ponto
de vista possível de determinar o que é bom ou mau provém do sentimento
humano. Isto ficou evidente na história de Moisés e Khidr. Inicialmente
Moisés teve reações de sentimento muito fortes contra o comportamento de
Khidr. A seguir, quando passou a ver as coisas tal como Khidr as via, Moisés
utilizou a mesma função-sentimento para considerar de modo diferente as
ações de Khidr e, no final das contas, concluir que eram boas. 3) O terceiro
ponto de vista possível para se determinar o que é bom ou mau poderia ser
chamado de perspectiva divina. Aquilo que, da ótica do ego humano, é bom
ou mau, pode ser o contrário se olhado da ótica divina. Não existe certeza
possível enquanto não pensarmos a partir da perspectiva mais abrangente do
si-mesmo ou, em linguagem religiosa, de Deus.

Pela sua capacidade de determinar o bem e o mal, a função-sentimento


é uma contribuição tão importante da psicologia à solução do presente
problema, que de fato ela merece ser analisada. É possível que, lendo sobre
os peregrinos puritanos, os quais alegraram-se com o sofrimento e a morte
dos indígenas, você tenha tido uma reação de repugnância e talvez até tenha
dito a si mesmo: “Que horror! ” Pois bem, esta foi uma reação do sentimento
e um exemplo daquilo que Jung chamou de “função sentimento”. Conforme
C. G. Jung demonstrou, as pessoas orientam-se na vida por uma ou mais das
quatro funções psicológicas por ele chamadas: pensamento, sentimento,
sensação e intuição. É a função-sentimento que nos impele a fazer afirmações
de avaliação, daí porque também ser conhecida como “função valorativa”.
Alguém com sua função sentimento bem desenvolvida tem capacidade de
sentir as coisas como boas ou más, belas ou horrendas, justas ou injustas.
Pessoas com pouco ou nenhum sentimento não conseguem reagir às situações
com um julgamento valorativo humano adequado. Graças a essa falha é que
elas têm maior probabilidade de se tornarem instrumentos do mal. Sem um
certo grau de desenvolvimento do sentimento, dificilmente alguém se
humanizará. Em outras palavras, é muito provável que tal pessoa venha a ter
uma perspectiva exclusivamente egocêntrica a respeito do mal{7}.
Atualmente, no mundo ocidental, a função sentimento tem sido muito
desvalorizada, o que é de lamentar, já que ela é essencial na luta contra o mal
moral. Assim, por exemplo, ao estudar os acontecimentos ocorridos na
Alemanha nazista, você talvez exclamasse: “Como foi possível que ninguém
reagisse a nível do sentimento? Não haveria uma voz, em algum lugar,
gritando contra tais horrores”? Existem outros exemplos semelhantes em
diferentes países do mundo, onde atrocidades cometidas contra as pessoas
não geraram qualquer reação a nível de sentimento que pudesse mitigar a
maldade.

Em contrapartida, pode-se também dizer que o mal no mundo ajuda a


incrementar a função sentimento. Se não existisse o mal, não haveria reações
de sentimento, o que torna o assunto paradoxal. A ideia é apenas uma
amostra do que se vai encontrar com maiores detalhes no decorrer deste
estudo; ou seja, que o mal é necessário, caso queiramos nos tornar
completamente humanos. Se um ser humano íntegro é alguém que sente,
então é preciso que o mal exista, para que nossa natureza sensitiva cresça e
viva.
No entanto, até a função sentimento, tal como vimos na história de
Moisés e Khidr, pode enganar-se, pois pode achar-se limitada dentro da
estreita fronteira da consciência do ego. Essa é a razão pela qual o ser
humano sempre almejou a perspectiva do si-mesmo ou, em outras palavras,
ansiou por ver a realidade tal como Deus a vê. A religião cumpriu sua parte,
apresentando à humanidade os Dez Mandamentos, seus códigos de
moralidade supostamente ditados por Deus e sua visão metafísica da vida.
Ora, justamente por transcender a ótica do ego é que esses códigos
representam a esperança de uma ideia mais abrangente do bem e do mal.

Ainda que de maneira muito mais modesta, também a psicologia


oferece ao ego a oportunidade de adquirir uma visão mais abrangente do bem
e do mal, sempre que incentiva um relacionamento com o si-mesmo. Uma das
maneiras de se fazer isso é através da análise dos sonhos. A psicologia pode
mostrar que os sonhos expressam o ponto de vista não do ego, mas do si-
mesmo. Portanto, estar em contato com seus próprios sonhos significa ter a
esperança de alterar a perspectiva pessoal do ego, à luz de uma realidade mais
ampla.
Dois exemplos práticos talvez deem uma ideia de como isso pode
ocorrer. No meu livro Healing and Wholeness{8}, apresentei resumidamente o
caso de um jovem aviador nazista que fez análise junguiana, em Berlim,
durante a II Guerra Mundial, por sofrer perda das cores na visão — uma
cegueira de fundo histérico. Considerado incapaz para tarefas militares, seus
superiores do exército mandaram-no para um tratamento analítico. A nível de
consciência, esse jovem aviador identificava-se totalmente com Hitler, com a
juventude nazista e os objetivos do III Reich. O analista quis saber dos seus
sonhos. E os sonhos acabaram vindo. Exceto que eram “exatamente o oposto
da vida” e, conforme palavras do próprio aviador, viraram tudo do avesso.
Em seus sonhos, Hitler aparecia como um homem mau, cujas mãos pingavam
sangue; enquanto isso, uma irmã que ele odiava e lutava na resistência
aparecia como uma santa cujo rosto era de um branco resplandecente.
Chocado com os sonhos, o jovem aviador decidiu investigar por conta
própria. Foi visitar um campo de concentração. O que ele viu acabou abrindo
seus olhos e o deixaram aterrorizado. Em carta ao analista, ele dizia então:
“Por muito tempo eu acreditei que o preto era branco. Agora, nem todas as
cores do mundo poderão me ajudar”. A seguir, matou-se. A revelação do bem
e do mal foi demasiada para ele.

Este caso ilustra todas as três perspectivas do mal. Inicialmente, o


jovem aviador estava identificado com uma visão egocêntrica do mal. Tudo o
que concordasse com seu desejo egoísta de ver triunfar a Alemanha nazista
era considerado bom. Mau era tudo o que se opusesse a isso. A seguir,
através dos sonhos, apareceu o ponto de vista do si-mesmo, que subverteu sua
atitude egocêntrica. Qual das duas perspectivas acabaria por se impor?
Confrontadas com esses dois pontos de vista, muitas pessoas se apegariam à
ótica egocêntrica, rejeitariam a ótica do si-mesmo e prosseguiriam como
antes. Mas esse jovem aviador tinha sentimentos demais. Sua função
sentimento reagiu violentamente contra as atrocidades do campo de
concentração, e isso fez a balança pesar a favor da perspectiva do si-mesmo.
Ainda que esse jovem aviador não tenha conseguido suportar o peso de sua
existência física sob tais circunstâncias, é de se esperar que a mudança tenha
salvo sua alma.

Citei um segundo exemplo em meu livro Dreams and Healing{9}. Trata-


se de uma senhora que tinha se curado do alcoolismo depois de muitos anos,
e frequentava os Alcoólatras Anônimos, onde tinha aprendido que sua
abstenção alcoólica dependia de sua honestidade perante si própria e os
outros. Certa vez, ela tomou emprestado um cassete da discoteca de sua
igreja, a fim de tirar cópia. Durante a transcrição, ela casualmente apagou o
original, além de não ter conseguido realizar a cópia. Por causa disso, acabou
simplesmente devolvendo o cassete estragado, sem dar maiores explicações.
Uma noite, ela sonhou que estava tendo uma relação sexual com um homem.
Perguntada a respeito desse homem, a paciente respondeu que ele era
horrível, desonesto e mentiroso. Aí o sentido do sonho ficou bem claro: ela
cedera e se deixara possuir por seu lado mentiroso. Tal análise levou-a a
contar a verdade ao encarregado da discoteca. Como se pode imaginar, não se
tratava de nada muito grave, de modo que o incidente se resolveu sem
maiores problemas.

De início, essa mulher agiu a partir do seu egoísmo, sem conseguir


defrontar-se com sua culpabilidade. Ocorre que seu sonho lhe apresentou o
ponto de vista do si-mesmo e destruiu suas racionalizações ao evidenciar que
ela de fato havia se deixado possuir pelo lado mentiroso e enganador. Aí,
então, sua função sentimento lhe disse: “Mas que coisa horrível! ” E levou-a
a contar a verdade de modo oportuno e saudável.

Onde poderíamos encontrar mais detalhes a respeito da perspectiva


divina, em relação ao bem e ao mal, a mesma que em psicologia chamamos
de perspectiva do si-mesmo? Um ponto de partida seria a mitologia, já que
ela pretende oferecer ao ser humano um ponto de vista mais abrangente do
que o do ego. É o que examinaremos a seguir.
2.
O problema do mal na mitologia

Como os seres humanos são forçados a reagir à vida em termos do bem


e do mal, não é nada surpreendente que as mitologias e as religiões do mundo
tenham sempre tentado, cada qual à sua maneira, explicar a presença do mal.
Foi através dos mitos que o homem antigo personificou tanto as forças
nocivas da natureza quanto o mundo espiritual que o ameaçava. Foi dessa
forma, também, que ele procurou um termo de convivência com os poderes
destruidores que afetavam tão profundamente a sua vida. Uma revisão de
alguns dos mais importantes mitos nos ajudaria a determinar as várias
maneiras pelas quais a humanidade tentou chegar a um acordo, espiritual e
psicologicamente, com o problema do mal.
Em sua autobiografia, C. G. Jung nos fala dos elgonyis, uma tribo
primitiva com quem ele viveu uns tempos, quando de suas viagens à África,
nos anos 20. Segundo Jung, os elgonyis acreditavam num Criador que havia
feito tudo bom e bonito. “Ele estava além do bem e do mal. Ele era mzuri,
quer dizer, bonito. E tudo o que ele criara era mzuri”. Certa vez, Jung
perguntou-lhes: “Mas o que dizer dos animais ferozes que matam seus
rebanhos? ” Eles responderam: “O leão é bom e bonito”. Jung pressionou-os:
“E o que dizer das doenças horríveis que atacam vocês? ” Eles responderam:
“A gente fica deitado no sol e é bom”.

Jung diz ter ficado muito impressionado com tal otimismo. Mas, “às
seis da tarde, esse otimismo tinha repentinamente desaparecido… Após o
pôr-do-sol, o mundo ficava diferente: tratava-se do mundo escuro do ayik —
do mal, do perigo, do medo. A filosofia otimista cedia lugar ao medo dos
fantasmas, enquanto as práticas mágicas tentavam oferecer proteção contra o
mal. E, no entanto, sem que houvesse qualquer contradição interior, o
otimismo retomava ao amanhecer”{10}.
Era assim que esse povo primitivo personificava as forças malignas
que, no seu entender, circundavam-no por todos os lados. Apesar de parecer
primitiva, essa perspectiva mitológica sobre o mal é mais acurada que a de
nossa visão moderna, a qual, por ser materialista e racionalista, nega a
existência de deuses e demônios, ignora a realidade da psique e,
consequentemente, tende a negligenciar o poder do mal. A coincidência entre
certas doenças e problemas psicológicos, as violentas explosões de forças
destrutivas na guerra, a postura de exploração do homem pelo homem e a alta
incidência de crimes — isso tudo leva à comprovação de que, via de regra, o
homem se comporta exatamente como se estivesse possuído pelo diabo. Os
homens antigos personificavam esses poderes do mal como seres ou espíritos
mitológicos. A psicologia moderna prefere chamá-los de arquétipos ou
complexos autônomos. Na verdade, a mitologia primitiva e a psicologia
analítica concordam em que a sorte e o destino do homem são, em medida
surpreendentemente larga, controlados por fatores psíquicos autônomos que
ultrapassam seu controle consciente.

Assim, a psicologia profunda e a mitologia primitiva compartilham a


mesma visão de mundo, porque ambas dizem que existe, para além de uma
realidade física e exterior, algo que pode ser chamado de realidade interior e
espiritual. Para a consciência humana, uma é tão autônoma e objetiva quanto
a outra. É claro que tal atitude contrapõe-se à visão de mundo mais corrente
em nosso tempo, que nega qualquer realidade além da que concerne à esfera
material e da mente consciente.
E, no entanto, a realidade do mal nos obriga a aceitar uma visão de
mundo mais abrangente, que leve em consideração tanto a realidade espiritual
quanto a material.

Claro que existem resistências a isso. O homem moderno prefere


acreditar que os males do nosso tempo não existem na alma humana ou na
esfera espiritual; ao contrário, ele pensa que tais males têm causas políticas e
econômicas, podendo ser eliminados com a mudança de sistema político,
com mais educação, condicionamento psicológico correto ou mais uma
guerra para acabar com o inimigo. Ele só não quer admitir que o inimigo
deve ser buscado justamente nos diabos e demônios presentes dentro dele
próprio.

Em seu excelente livro Myth, History and Faith, Morton T. Kelsey diz
o seguinte sobre a relutância em se encarar as origens do mal e a realidade do
princípio destrutivo: “Antes de mais nada, o homem leigo deste século tem
sofrido lavagem cerebral por parte do pensamento materialista. Num mundo
racionalista e materialista, não há lugar para coisas como o princípio da
destrutividade, cuja existência não pode ser admitida porque não se trata de
algo nem racional nem material. Ante a necessidade de considerar o mal
como algo possivelmente mais substancial do que a mera ausência do bem,
as pessoas são obrigadas a rever toda sua visão de mundo, o que é uma
tarefa muito dolorosa e bastante difícil. O melhor é simplesmente negar a
realidade de um princípio assim tão acabado”{11}.

À medida que a humanidade se desenvolveu mais, também a mitologia


se tornou mais sofisticada. Gradualmente foi surgindo um outro panteão de
deuses e deusas, dentre os quais houve quase sempre um que foi tido como o
autor do mal. Parece que algumas dessas mitologias precedem a ideia cristã
do mal.
Por exemplo: entre os egípcios, temos o deus mau, Set, que se
contrapõe a seu irmão bom, Osíris. Osíris torna a terra fértil, traz consigo a
água vivificadora e irradia a luz sobre o mundo. Tudo o que constitui uma
bênção à vida humana, tudo o que é benéfico e criativo vem dele. Set é seu
adversário permanente, a personificação do deserto árido e aquele que traz
consigo as trevas e a seca. Tudo o que é destrutivo e hostil à vida humana
advém dele.

O bom Osíris cai numa armadilha preparada por seu irmão mau. De
fato, Set constrói um lindo baú do tamanho exato de Osíris, convida o irmão
para uma grande festa e oferece o baú àquele que couber nele. Sem suspeitar
de nada, Osíris entra no baú. Set e seus cúmplices correm, fecham o baú com
pregos e atiram-no ao mar. Isis, mãe e esposa de Osíris, consegue encontrar e
resgatar o corpo de seu filho e amante. Mas Set também descobre os restos
mortais de Osíris e, para garantir sua destruição eterna, divide o corpo do
irmão em quatorze pedaços que são espalhados sobre a terra. No entanto, Isis
recupera o corpo desmembrado de Osíris, exceto seu falo, que Oxirrinco, o
grande caranguejo, tinha avidamente devorado, merecendo a maldição eterna
por gesto tão deplorável.

Depois disso, como não pode voltar a governar o mundo dos vivos,
Osíris passa a reinar sobre os Infernos, onde se toma juiz dos mortos. Seu
lugar entre os vivos é então ocupado por seu filho Horo que, tendo chegado à
maturidade, retoma a luta contra Set e derrama sobre a humanidade as
mesmas bênçãos que Osíris antes costumava espalhar.

Entre os escandinavos, o deus Loqui personificava o mal, em oposição


ao belo e amado Baldur. Baldur era tão belo que irradiava luz por onde
passava. Ninguém o igualava em sabedoria. Vê-lo simplesmente já era amá-
lo. Ele era o predileto tanto dos deuses quanto dos homens. Mas Loqui, deus
hostil e malévolo, que odiava Baldur, preparou-lhe uma armadilha.
Aparentemente, todos os seres vivos tinham se comprometido em não
prejudicar o belo Baldur — exceto a planta do visco, que havia sido
negligenciada a esse respeito. Loqui prepara uma flecha com a planta do
visco e se junta aos outros deuses, que brincavam de atirar coisas contra
Baldur, certos de que nada o feria. Loqui convence o cego Hod a apanhar a
flecha e arremessá-la em direção a Baldur. Hod concorda. E então, eis que a
flecha de visco transpassa o belo deus, que morre e afunda no chão.
A separação entre um deus mau e um deus bom é ainda maior no mito
iraniano (ou persa) de Aura-Mazda e Arimã. Aura-Mazda é quem derrama a
vida, a luz, a verdade e as bênçãos sobre os homens. De Arimã procedem a
morte, as trevas, as mentiras e as doenças dos seres humanos. O mundo onde
vivem os homens é o campo de batalha desses dois deuses, que disputam
como prêmio as almas humanas. Arimã não luta sozinho. Enquanto príncipe
dos demônios, ele comanda uma tropa de devas, seres malignos devotados ao
embuste e à falsidade. Assim como seu mestre, eles se empenham em destruir
o poder do bem que Aura-Mazda representa e pretendem encaminhar a
humanidade para o mal. Antes, a oposição entre bem e mal ou entre luz e
sombra nunca tinha sido tão claramente configurada como na religião
iraniana. Se Set e Osíris ou Loqui e Baldur são deuses que se disputam entre
si, trata-se sempre de duas entre muitas divindades, enquanto Aura-Mazda e
Arimã chefiam o panteão divino iraniano. Cada um dos dois lidera uma
metade do reino espiritual. E, no entanto, a mitologia iraniana é mais otimista
do que a dos escandinavos. No pensamento escandinavo, o mundo dos deuses
e do homem se despedaça num final melancólico — aquele apocalíptico
Gotterdammerung ou “Crepúsculo dos deuses”. Na mitologia persa, ao
contrário, conta-se que Aura-Mazda levará a melhor, no final do duelo
cósmico. É evidente que a mitologia persa influenciou o cristianismo. No
Novo Testamento, um dos nomes dados ao diabo é Belzebu, que significa
“senhor das moscas” e provém das lendas tradicionais sobre Arimã, de quem
se dizia que veio ao mundo sob a forma de uma mosca.
Mais tarde, o zoroastrismo reapareceu no maniqueísmo, doutrina criada
por Mani, que nasceu na Pérsia, por volta do ano 215 d.C. Mani ensinava que
luz e treva, bem e mal, criação e destruição estão em conflito constante.
Como os gnósticos, ele relacionava o mundo do espírito com o reino do bem,
enquanto o mundo material estava ligado à escuridão e ao mal. O homem
vive aprisionado no mundo das trevas e do mal porque ele vive preso em seu
corpo. A salvação do homem consiste em separar-se do seu corpo, através do
conhecimento verdadeiro, além da rejeição às paixões e ao apetite sexual, que
mantêm o ser humano cativo do mal, do princípio material. O maniqueísmo
significou um especial desafio ao cristianismo, em parte porque parecia-se
muito com ele. Para combatê-lo, é que santo Agostinho, seu principal
adversário no século IV d.C., reformulou a ideia do mal enquanto privatio
boni (privação do bem) — ideia essa que examinaremos mais de perto no
último capítulo.

Mas nem todas as mitologias tiveram a qualidade dualista do


zoroatrismo. Entre os gregos, por exemplo, não havia uma divindade que
personificasse o mal de forma isolada. Nem mesmo Hades, soberano dos
infernos, era mau. Ao contrário do diabo cristão, que domina as almas dos
condenados ao inferno, Hades era simplesmente o soberano do reino dos
mortos.
Na verdade, os gregos não precisavam de um diabo porque para eles
não existia um deus responsável pela origem de todas as coisas boas. Na
mitologia grega cada divindade é capaz tanto do bem quanto do mal. Assim,
os deuses gregos brigam escandalosamente entre si, muitas vezes são
mesquinhos e egoístas, além de tenderem ao ciúme, à ira e à conspiração.
Qualquer um deles pode derramar bênçãos sobre a humanidade necessitada.
Mas eles manifestam igual disponibilidade para destruir, especialmente
quando seu culto é negligenciado. A verdade é que os deuses e deusas da
Grécia Antiga raramente se preocupam com a vida humana, de um modo ou
de outro. Mas eles são vaidosos até o ponto de exigirem sua cota de atenção.
Somente Asclépio, deus da cura, que começou como um homem mortal e não
como alguém do Olimpo, pode ser considerado como uma divindade
preocupada com o bem-estar da humanidade. Também não se pode esquecer
Titã ou Prometeu, cuja dedicação aos homens levou-o a roubar o fogo do céu
e, em consequência, a sofrer um castigo cruel da parte de Zeus. Isso quer
dizer que são raras as exceções num panteão de divindades incrivelmente
desinteressadas pela felicidade dos homens. Num tal conjunto de deuses e
deusas, onde cada qual pode ser igualmente bom ou mau em relação aos seres
humanos, não existe necessidade de um diabo que personifique o princípio do
mal.
A mitologia dos indígenas americanos é singular pelo fato de abranger
tanto elementos monoteístas quanto politeístas. Entre os que habitavam o que
hoje são os Estados Unidos, havia a crença quase universal num Grande
Espírito cujo poder e autoridade sobre a vida eram absolutos. As divindades
menores, a humanidade e toda a natureza estavam sob o supremo controle do
Grande Espírito, que era bondoso e justo. Mas as qualidades do Grande
Espírito definiam-se de maneira bastante vaga. Apesar de bondoso, ele
comumente deixava o governo do mundo real sob a responsabilidade de
vários espíritos menores, de natureza e forma animal.

Esses espíritos menores eram forças espirituais que dirigiam as


atividades reais do universo e da natureza, de modo que o homem devia
constantemente solicitar sua ajuda e orientação. No contato com um ou mais
desses espíritos autônomos, um homem ou uma mulher poderiam receber
“remédio” para sua vida. Em geral eles eram forças benéficas, mas alguns
também eram responsáveis pelo mal. Os indígenas acreditavam que o homem
vive num mundo de forças construtivas e destrutivas, cujos componentes
podem ajudá-lo, mas também hostilizá-lo. Segundo os indígenas, a natureza
pode tanto cobrir a pobre humanidade de bênçãos quanto ser cruel para com
ela.
Muitas vezes, na mitologia indígena, a força maléfica era simplesmente
uma personificação ou abstração do lado destruidor da natureza. Os
iroqueses, por exemplo, acreditavam numa luta perpétua entre o deus da vida,
graças ao qual a natureza era cálida, fecunda e generosa, e Manto-de-Pedra, o
deus do gelo e do inverno, cuja função era destruir. Mas Manto-de-Pedra não
era um Arimã sedento de destruir a fibra moral da alma humana ou envolvido
numa luta desesperada para reinar sobre todo o universo; ao contrário, ele
parecia ser simplesmente o lado escuro, inflexível e cruel da natureza. Manto-
de-Pedra era a maneira iroquesa de personificar sua crença na vida como uma
luta constante entre a luz e as trevas, a sorte e o azar.
Algumas vezes, no entanto, os indígenas realmente atribuíam a origem
das coisas boas a certos seres espirituais e a origem das coisas más a outros.
Assim, não era incomum entre eles a existência de mitos como o dos dois
deuses irmãos que personificavam cada qual um aspecto da vida. Entre os
algonianos, por exemplo, o deus-herói Gluskap tinha seu irmão-lobo
Malsum, que era mau. Gluskap criou os lugares aprazíveis para se viver, a
comida boa, os animais mansos e a raça humana. Malsum, por sua vez, criou
as rochas, os matagais, os pântanos e os animais venenosos ou bravios.
Malsum também tentou matar Gluskap traiçoeiramente, através da única
planta (igualmente o visco) que era capaz de ferir seu irmão bom —
circunstâncias que lembram a história escandinava de Loqui e Baldur, ou a
lenda egípcia de Set e Osíris. Mas, em geral, os indígenas eram otimistas.
Nesta lenda particularmente, Gluskap acaba conseguindo escapar das tramas
malignas de Malsum e o vence.

Uma lenda indígena muito difundida, em várias versões, fala de um


espírito mau que não tinha corpo, mas tão-somente uma cabeça que rolava.
Na versão dos nat-chez, a história começa com dois irmãos, um dos quais
morre, mas sua cabeça, que continua viva, passa a perseguir o irmão
sobrevivente e sua esposa. Depois de muitas aventuras e fugas difíceis, o
sobrevivente acaba conseguindo se livrar da fantasmagórica cabeça de seu
falecido irmão e anular seus poderes. Entre os indígenas das florestas do
leste, era famosa uma lenda sobre o bem e o mal onde se falava dos gêmeos
Taweskare e Tsentsa. Ao nascer, o primeiro insistiu em sair do corpo da mãe
aos chutes, fato que acabou por matá-la. Ele mostrou-se destrutivo já desde o
começo, apesar de ter sido admoestado por seu irmão, que o aconselhara a
nascer de modo normal. Tsentsa, o irmão bom, tomou o caminho oposto, na
tarefa de criar o mundo. Mas, enquanto ele descansava, o malvado Taweskare
costumava desfazer todo o trabalho realizado pelo irmão. Assim, quando
Tsentsa criou as plantas comestíveis, Taweskare criou as montanhas
escarpadas e perigosas, os canyons profundos e inóspitos, os pântanos
isolados. Foi Tsentsa quem criou as árvores e os arbustos frutíferos.
Taweskare, no entanto, colocou espinhos em numerosas plantas.

Entre os pawnees, o poder do bem era representado pela Estrela da


Manhã ou do Norte, que ajudava o sol a nascer no céu, a cada dia. O poder do
mal era representado pela Estrela da Noite ou do Sul, que arrastava o sol para
os infernos, a cada noite. Enquanto a Estrela da Manhã protegia o ser
humano, a Estrela da Noite era uma perigosa inimiga da humanidade. No
entanto, o resultado final era otimista, pois a Estrela da Noite acabava
morrendo. Das perfurações nela praticadas por flechas mágicas, caíam
bênçãos sobre a humanidade.

Através de tais histórias, os índios reconheciam a óbvia existência do


mal no mundo. Mas não havia um ser exclusivo que se opusesse ao Grande
Espírito, nem diabo algum que tentasse deliberadamente corromper e seduzir
as almas humanas. A figura mais parecida com um verdadeiro diabo seria o
Embusteiro, fascinante personagem presente nos contos e lendas indígenas de
quase toda a América do Norte. Chamado pelos diferentes nomes de Coiote,
Saynday, Velho, Corvo, Aranha, Wisagatchak, Coelho ou Wakdjunkaga, o
Embusteiro é um ser moralmente inferior, que tem qualidades burlescas. Em
muitas lendas, por exemplo, ele é dono de um pênis gigantesco, que precisa
enlaçar sobre seus ombros quando está viajando. Além disso, ele pode
destacar de si mesmo o pênis e, mediante tal truque, envolve-se em muitas
proezas e aventuras sexuais geralmente proibidas aos varões indígenas. O
Embusteiro tem consciência pequena, mas um poder malévolo muito grande.
Por causa dele, mais do que ninguém, é que a criação não se realiza de uma
maneira tranquila. Ele está sempre, por assim dizer, jogando areia nas coisas
boas que o Grande Espírito realizou. Mas faz isso mais por atitudes estúpidas
e impensadas do que por intenção deliberadamente maldosa. O Embusteiro é
incapaz de qualquer esforço organizado para derrotar o Grande Espírito,
diferentemente do diabo cristão, que pode fazê-lo contra Deus. Além do
mais, muitas vezes o Embusteiro chega até a melhorar as situações, graças às
suas ações idiotas. Outras vezes, como na história da criação “0 Coiote e o
Monstro”, dos nez-perce, ele acaba se tornando uma figura heroica que
beneficia os seres humanos. Mais do que isso, suas trapaças normalmente
acabam se voltando contra si mesmo mais do que contra os outros — ou,
como diria Shakespeare, ele é mais vítima do pecado do que pecaminoso. Em
última análise, trata-se de uma figura cômica e, quem sabe, até enternecedora.
Assim, na mitologia dos indígenas norte-americanos não existe uma
divindade que corresponda ao diabo do cristianismo e do zoroastrismo. Aliás,
muitos indígenas ficavam perplexos ante a ideia cristã de um ser satânico.
Para eles, era um fato inegável que os seres humanos combinam dentro de si
mesmos tanto o bem quanto o mal. Não precisariam, portanto, recorrer à
existência do diabo para explicar por que certas pessoas têm coração mau,
enquanto outras têm bom coração. Para representar a natureza dualista da
humanidade, era comum eles pintarem seus rostos de branco num lado e de
preto no outro, por ocasião de cerimônias religiosas.

A ausência de ênfase numa divindade que personifique o mal moral


pode advir também do fato de que tal cultura era fundamentalmente uma
cultura da vergonha, mais do que do pecado. Em outras palavras, ao invés de
ser regulada pela ideia de uma divindade que formula regras para o homem e
o instrui sobre o pecado, a vida era regida pela vergonha e ostracismo que
uma tribo deixaria cair sobre o membro praticante de determinados tipos de
comportamento. Considerando que viver no interior da tribo era essencial
para a sobrevivência, esse sentimento de vergonha apresentava-se como uma
força poderosa para regular o comportamento humano. O sistema funcionava
tão bem que os indígenas não tinham necessidade de coisas como força
policial, leis complexas, cortes judiciárias, prisões e hospitais psiquiátricos —
que são, em nossas sociedades, elementos fundamentais na tentativa de
regular nosso comportamento.

Ainda assim, havia um forte sentimento do certo e do errado entre as


tribos americanas em geral. As trilhas do mal deviam ser evitadas,
enfatizavam os sábios da tribo. Para evitar que a alma humana caísse no mal
e se desviasse do verdadeiro caminho, o Grande Espírito enviava para a
humanidade sonhos, aos quais se devia dar a maior atenção. Dessa maneira,
para ter uma conduta correta em sua vida, o índio podia consultar essa fonte
de orientação, que tinha condições de guiá-lo para além de suas aspirações
egoístas. Na verdade, o problema do mal pesava muito na visão de certos
espíritos indígenas sensíveis. Após sua fracassada luta pela liberdade, em
1877, muitos índios nez-perce estavam morrendo, exilados nas reservas do
território indígena. Seu chefe José disse, então: “Eles foram enterrados nesta
terra estranha. 0 Grande Espírito, que reina no alto dos céus, parecia estar
olhando em outra direção, sem ver o que estava sendo feito ao meu povo”{12}.

Pode-se dizer que o ponto de vista sobre o mal, tal como expresso em
boa parte da mitologia indígena, situava-se mais ou menos entre a ideia do
mal, exemplificada nas mitologias dualistas dos escandinavos, egípcios e
persas, e a sintetizada mitologia dos gregos. É verdade que, no pensamento
indígena americano, não existe a representação específica de uma divindade
do mal opondo-se ao Grande Espírito, tal como Arimã opunha-se a Aura-
Mazda. No entanto, nela existem muitos mitos onde constam espíritos
menores que têm intenções indiscutivelmente maléficas e perturbam os
espíritos que ajudam o homem. Mas em todos esses mitos podemos notar
duas mensagens. Primeiro, existe um poder maligno autônomo que está
acima do controle do homem; segundo, na vida existe um equilíbrio de
opostos: a luz é sempre antagonizada pela treva. Quanto mais a luz (aspecto
positivo) é enfatizada e personificada pela figura de uma divindade benéfica,
tanto mais inevitável torna-se a encarnação do lado escuro num deus (ou
deusa) que é tão ruim e malevolente quanto a divindade da luz é boa e
benevolente.

A psicologia apresenta achados semelhantes, o que não é de admirar,


pois a mitologia é uma espécie de mapa da psique humana, uma
personificação das forças psíquicas arquetípicas e eternas que compõem o
universo interior dos seres humanos. Conforme examinaremos mais adiante
neste estudo, existe em nossa natureza um lado escuro inevitável, que recusa
ser assimilado aos nossos elevados ideais de bondade, moralidade e
comportamento humano ideal. Na verdade, quando nos empenhamos em ser
bons demais, acabamos engendrando, em nosso inconsciente, a reação
oposta. Se tentamos viver demais sob a luz, uma quantidade equivalente de
treva irá se acumulando dentro de nós. Se ultrapassamos os limites de nossa
capacidade natural para o amor e a bondade, acabamos criando dentro de nós
mesmos a parcela exata oposta de ódio e crueldade. A psicologia adverte as
pessoas contra a tentativa de quererem ser melhores do que são e insiste que,
ao invés de lutar demais por uma “bondade” forçada, o que importa é tomar
consciência e viver, não em função de ideais que não conseguimos
acompanhar, mas sim a partir do centro interior de cada um, que é o único
elemento capaz de nos colocar em equilíbrio. As bases da vida moral sofrem,
pois, uma mudança; ao invés de se lutar pelos mais altos ideais morais (ainda
que ideais morais também sejam importantes), enfatiza-se a luta por melhor
autoconhecimento, na crença de que os ideais e os valores morais do homem
só são efetivos no contexto de sua consciência. Quem procura ser bom e se
esquece de seu lado escuro, cai vítima desse mesmo mal que, apesar de
existir dentro de cada um de nós, é por nós negado.
Na linguagem mitológica, não se pode reverenciar uma divindade
benéfica, ligada à luz e ao amor, e negligenciar a divindade-irmã das trevas e
do mal. Exatamente quando Aura-Mazda procura estabelecer sua hegemonia
sobre o mundo é que Arimã guerreia contra ele. Justamente no momento em
que os deuses tentam tornar o belo Baldur invulnerável é que Loqui consegue
maquinar a trama para destruí-lo. Precisamente quando Isis protege Osíris em
detrimento de Set é que este tem condições de provocar a queda de Osíris.
Apenas entre os gregos não existe guerra entre os deuses — talvez disputas,
mas não guerras. Isso porque esses deuses e deusas eram sábios demais para
se pretenderem bons. Assim também a psicologia sugere que afastemos
qualquer pretensão a uma bondade que nos obrigue a esconder de nós o nosso
lado mau. Dessa maneira, estaremos seguindo o exemplo de Jesus. Quando o
homem rico lhe dirigiu a palavra chamando-o de “Bom Mestre”, Jesus
respondeu: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão só Deus”{13}.
3.
O problema do mal no Antigo Testamento

O resumo anterior de algumas das mais importantes mitologias sobre o


bem e o mal nos dá uma ideia de como a mente humana sempre se debateu
com esse problema e como tentou resolvê-lo. Verificamos como a figura de
um deus de pura maldade aparece nessas visões religiosas, salientando a
bondade e personificando sua origem numa figura divina distinta. Enquanto
ocidentais, no entanto, temos uma psicologia e uma perspectiva
inevitavelmente moldadas pela tradição judaico-cristã, independentemente de
acreditarmos ou não nos dogmas desses credos. Por causa dessa tradição,
vamos aqui dar maior relevância às ideias judaico-cristãs sobre o bem e o
mal, e sua relação com a psicologia. Agora, portanto, estudaremos o diabo e o
mal na Bíblia, começando pelo Antigo Testamento.
Existem, no Antigo Testamento, apenas quatro referências a Satanás
como sendo um ser sobrenatural. Todas as quatro encontram-se nos livros do
pós-exílio, ou seja, posteriores a 597 a.C. Além do mais, nenhuma dessas
referências é importante na narrativa do Antigo Testamento.

No livro do profeta Zacarias (Zc 3,11) o sumo sacerdote Josué aparece


com o anjo do Senhor, que fica ao seu lado para defendê-lo, enquanto Satã
fica do outro, como seu acusador. Aqui, Satã personifica um ser mau que
procura destruir a alma de Josué, contrapondo-se ao anjo que vai em defesa
de Josué. É verdade que esse Satã não tem poder de autonomia para destruir
Josué. Ele pode apenas acusá-lo perante Deus, na esperança de que Deus
executará a sentença.
Uma segunda passagem encontra-se em 1Cr 21,1, onde se reconta a
história originalmente apresentada em 2 Sm 24, de como Davi fez um
recenseamento do povo de Israel{14}. Na versão original, lê-se que Davi
decidiu fazer o censo, o que era um pecado, já que Iahweh proibira esse tipo
de cálculo — talvez por causa de uma antiga crença segundo a qual, caso
fossem contadas, as pessoas ficariam vulneráveis aos espíritos maus. No
entanto, na versão de Crônicas, diz-se que foi Satã quem “levantou-se contra
Israel e induziu Davi a fazer o recenseamento de Israel”. Aí, portanto, fala-se
de um poder do mal, que influencia o homem até levá-lo a quebrar a lei de
Deus, a fim de atingir seu objetivo de destruição.

Uma terceira passagem sobre Satã encontra-se no Sl 109,6 (versão do


rei James, da Inglaterra), num versículo sem maior interesse senão pelo fato
de referir-se a Satã no seu papel característico de acusador. Ali se 16:
“Coloca um homem iníquo acima dele e deixa Satã postar-se à sua direita”.

Finalmente, temos referências a Satã no livro de Jó, indiscutivelmente


as mais interessantes passagens do AT a esse respeito. Vê-se aí um estágio
provisório da separação entre o lado sombrio de Deus e ele mesmo,
estabelecendo-se uma personificação de Satã enquanto um ser separado que
se contrapõe a Deus. Na verdade, Satã é aí representado como um dos filhos
de Deus, habitando a corte divina. No livro de Jó, Satã parece ser parte da
família mais íntima de Deus, sem ainda ter-se tornado um adversário preciso
das intenções divinas. Contudo, ele é caracterizado como sendo diferente de
Deus em si e com capacidade de falar com Deus, como um ser separado dele.
É por causa do diálogo entre Deus e Satã que as desgraças se abatem sobre
Jó. Satã acusa Jó de ser infiel a Deus, dizendo que ele renunciaria a Deus
caso este não o cobrisse com tantas bênçãos. Para provar que Satã está errado
Deus o deixa cobrir Jó de desgraças. Por isso pode-se considerar Satã, no
livro de Jó, como uma espécie de ideia sombria e incerta no próprio Deus,
que acaba provocando uma boa dose de desgraças.
A razão de encontrarmos poucas referências a Satã no AT está no fato
de que aí o próprio Iahweh é o responsável pelo mal, de modo que a figura de
um demônio não é necessária. Há muitos exemplos no AT mostrando que os
antigos hebreus viam a Iahweh como a origem tanto do bem como do mal.
Por exemplo, considere-se Am 3,6: “Se acontece alguma desgraça na cidade,
não foi Iahweh quem agiu? ”; ou Is 45,5-7: “Eu sou Iahweh e não há nenhum
outro… Eu formo a luz e crio as trevas, asseguro o bem-estar e crio a
desgraça: sim, eu, Iahweh, faço tudo isto” {15}; ou Is 54,16: “Sabe que fui eu
quem criou o ferreiro que sopra as brasas no fogo e tira delas o instrumento
para seu uso; também fui eu quem criou o exterminador, com a sua função de
criar ruínas”{16}.

Um outro exemplo marcante dessa visão de Iahweh como o criador do


bem e do mal encontra-se em 1Sm 18,10. O rei Saul, tendo sido rejeitado por
Iahweh através de um oráculo anunciado pelo profeta Samuel que pronuncia
uma sentença condenatória sobre o rei, é acometido por depressões
frequentes. Seus conselheiros acabam por buscar um exímio músico, que vem
a ser Davi, a fim de aliviar o mau humor do rei. Contudo, o estado paranoico
do rei agrava-se cada vez mais, bem como seus temores; sua terrível obsessão
em relação ao próprio Davi chega ao ponto de um dia pegar uma lança e
arremessá-la contra Davi, ainda que sua música lhe desse algum alívio. A
Bíblia assim diz: “…um mau espírito da parte de Deus assaltou Saul…” No
Novo Testamento, como veremos, acessos de cólera e violência serão
atribuídos a um mau espírito da parte de Satã, enquanto na narrativa de Saul
diz-se que provém de Deus.

Sendo Iahweh uma totalidade de opostos, tudo provém dele, inclusive o


bem e o mal. Assim, para os antigos hebreus o mal não constituía um
problema. Eles acreditavam num único Deus e, se havia o bem e o mal no
mundo, se o homem sofresse uma tragédia ou fosse cumulado de bênçãos, se
sucumbisse a humores destrutivos e paixões más, tudo isso tinha sua origem
em Iahweh. Isso até que a consciência moral hebraica se desenvolvesse e eles
sentissem um certo incômodo na ideia de um Deus que aparentemente
enviava tanto o bem quanto o mal sobre a espécie humana.
Seria fácil explicar a concepção do AT dizendo tratar-se de uma
imagem primitiva de Deus, algo que interessasse apenas enquanto
desenvolvimento da ideia de Deus, mas não algo que precisássemos
considerar séria e longamente. Entretanto, por causa mesmo de seu caráter
primitivo, existe uma integridade básica na imagem de Deus encontrada na
literatura bíblica pré-exílica. Podemos de fato ficar bastante incomodados
com a ideia de que Iahweh é o responsável pelo bem e pelo mal, mas é o que
nos apresenta o monoteísmo claro e persistente. Os antigos hebreus, com seu
gênio religioso instintivo, compreendiam que há uma realidade subjacente a
todos os acontecimentos, sejam eles bons ou maus, e que eles procedem de
Iahweh. Esta é uma conclusão a ser encarada sem qualquer temor.

O filósofo religioso Aurobindo percebia tal unidade da mesma forma


que os antigos hebreus. Num breve comentário sobre a natureza do mal,
Aurobindo diz:

“Devemos olhar de frente a existência, se nosso objeto é chegar


a uma solução certa, qualquer que venha a ser. E olhar de frente a
existência é olhar Deus de frente; pois ambos não podem ser
separados… Este mundo de nossas batalhas e labutas é um mundo
devorador, destrutivo, perigoso e selvagem, no qual a vida existe
precariamente e a alma e o corpo do homem movem-se entre perigos
enormes; é um mundo em que a cada passo algo é esmagado e
arrebatado; aqui, toda respiração de vida é também respiração de
morte. Colocar a responsabilidade de tudo o que se apresenta como
mal ou terrível sobre os ombros de um demônio semi-onipotente, ou
atribuir-lhe parte na própria natureza, fazendo deste modo uma
oposição sem elo entre mundo-natureza e Deus-natureza — como se a
natureza fosse independente de Deus —, ou mesmo jogar a
responsabilidade sobre o homem e seus pecados — como se ele tivesse
uma voz preponderante ao fazer o mundo ou pudesse criar qualquer
coisa contra a vontade de Deus —, tudo isso não passa de artifício
bastante ingênuo para sentirmo-nos confortados… Devemos encarar
corajosamente a realidade e perceber que é Deus mesmo — e nenhum
outro — quem concebeu o mundo em seu ser e assim o criou… As
contradições do mundo são contradições de Deus e é somente através
da aceitação e penetração nesta teia de contradições que podemos
atingir o acordo com sua suprema harmonia, os vértices e a admirável
vastidão de sua Ananda transcendente e cósmica (Divino
Regozijo)”{17}.

Entretanto, como Rivkah Scharf-Kluger coloca em seu excelente livro,


Satã no Antigo Testamento{18}, existe um uso comum e universal do termo
Satã, que é mais fecundo para nossos propósitos. A palavra Satã foi aqui
usada somente quatro vezes com referência a um ser divino responsável pelo
mal; em outras passagens do AT ela aparece com seu significado original de
adversário. Nesses casos a palavra não denota um ser divino, mas é usada no
senso comum. Por exemplo, em 1Sm 29,4 Davi busca refúgio entre os
filisteus para escapar à fúria de Saul. Os filisteus planejam uma batalha
contra os israelitas e não desejam Davi junto a eles: “deixado na batalha ele
será um adversário (Satã) para nós”. E em lRs 11, 14.23 lemos que “o Senhor
suscitou contra Salomão um adversário (Satã): Abad, o edomita, da estirpe
real de Edom… e Deus suscitou contra Salomão um outro adversário (Satã),
Razon, filho de Elia- da… e ele foi um adversário (Satã) para Israel durante
toda a vida de Salomão” {19}.
De acordo com Scharf-Kluger, a palavra Satã, em sua forma verbal,
significa literalmente “perseguição por meio do impedimento de se fazer um
movimento livre para a frente”. Como substantivo significa “um adversário”
ou “um acusador”. Assim, a palavra era de uso frequente na linguagem
coloquial. De fato, o próprio Iahweh pôde provar-se como um adversário
(Satã) para o homem, como vemos na narrativa de Balaão em Nm 22{20}.

Balac, rei de Moab, ficou em pânico quando viu que os israelitas se


aproximavam de seu território. Balac enviou o profeta Balaão, esperando que
este amaldiçoasse os hebreus: “Pois eu o sei: aquele que tu abençoas é
abençoado, aquele a quem tu amaldiçoas é amaldiçoado”, diz Balac a respeito
de Balaão. Após alguma hesitação, Balaão consente ir à terra de Moab; sela
sua jumenta e parte. Isso excitou a ira de Iahweh, a ponto de Iahweh enviar
seu malak Iahweh (seu mensageiro, agente ou anjo) a fim de lhe barrar o
caminho. A jumenta vê o anjo de Iahweh na estrada e desvia-se, indo para o
campo. Balaão irrita-se. Espanca a jumenta e a faz retornar à estrada.
Seguiram pouco adiante e a jumenta viu de novo o anjo. Eles encontram-se
agora num caminho estreito ladeado de penhascos; a jumenta, amedrontada,
aperta Balaão contra o muro e Balaão açoita-a outra vez. Empreendem de
novo a jornada até que a jumenta vê o anjo numa passagem mais apertada
que a anterior; desta vez a jumenta simplesmente se joga no chão, recusando-
se a continuar a marcha, o que provoca a ira de Balaão, que a espanca a
golpes de bordão.
Começa então um diálogo entre Balaão e a jumenta sobre a recusa de ir
adiante, a jumenta argumentando que sempre serviu a Balaão e perguntando
por que ele agora a açoita, enquanto o profeta fala de sua frustração. O texto
salienta que “Iahweh abriu os olhos a Balaão” e ele viu o anjo de Iahweh
parado na estrada, tendo a sua espada desembainhada na mão. O temor
apodera-se do profeta e ele prostra-se com a face por terra. O anjo diz: “Por
que espancaste assim a tua jumenta, já por três vezes? Sou eu que vim barrar-
te a passagem; pois com minha presença o caminho não pode prosseguir. A
jumenta me viu e, devido à minha presença, ela se desviou por três vezes. Foi
bom para ti que ela se desviasse, pois senão já te haveria matado. A ela,
contudo, teria deixado com vida”. No final do relato o anjo permite que
Balaão prossiga seu caminho até Balac, advertindo, porém, de que não dirá
coisa alguma fora daquilo que Iahweh lhe diz. Logicamente Balaão não chega
a amaldiçoar o povo de Israel, assim como Balac havia desejado, mas declara
uma mensagem divina recebida, com a promessa do sucesso daquele povo.
A versão inglesa do rei James conta-nos que “…o anjo de Iahweh
postou-se na estrada para barrar seu caminho”. Segundo os hebreus, Iahweh
surgiu no caminho de Balaão como um Satã. Do ponto de vista dessa estória,
Deus pode vir a ser um Satã para nós, barrando nosso caminho como um
perigoso inimigo, e se não fosse a jumenta (a qual estaria representando a
vida instintiva de Balaão), o profeta teria caído nesse lado satânico de
Iahweh, que o teria destruído. Além do mais, Balaão, por deparar com a
faceta perigosa de Deus, que é o empecilho no seu caminho, toma-se mais
consciente. Existe um diálogo entre a vontade humana de Balaão e a vontade
divina de Iahweh, e então Balaão segue seu caminho tornando-se homem
mais consciente que antes, assim como alguém que deixou de lado seus
desejos pessoais em nome da vontade divina, para a qual ele se tornava agora
desperto.

A estória de Balaão nos mostra como Iahweh tinha, originalmente, um


lado escuro e destrutivo para o homem, capaz de agir como uma força
perigosa contra qualquer pessoa ingênua e desavisada. Dessas experiências
surgiu o refrão bíblico “O temor do Senhor, eis a sabedoria” (Jó 28,28). Do
ponto de vista da psicologia, Iahweh, no AT, representa o arquétipo do si-
mesmo, que consiste, como vimos no primeiro capítulo, na pessoa íntegra, e
no fato de que em cada um de nós há uma vontade maior e melhor
direcionada do que a do ego. Reconhecer a realidade e o poder do si-mesmo é
reconhecer em nós a existência de algo semelhante a uma mente divina, cujo
poder e autoridade superiores precisam ser admitidos. À medida que a estória
de Balaão mostra o anjo de Iahweh (que fica no caminho de Balaão como um
inimigo) personificando o si- mesmo, seu lado escuro e destrutivo nos é
apontado. De lato, se a criatura humana persistir em ir contra o si-mesmo, ou
seja, contra sua própria verdade mais profunda, esta pessoa se confrontará
com uma força destrutiva. Desse modo, a estória ilustra o lado escuro e
demoníaco de Iahweh no AT, assim como o lado escuro do si-mesmo.
Temos aqui a psicologia confirmando as imagens bíblicas. Nós nos
tornamos íntegros a partir do conteúdo do si-mesmo. Se, em nossas vidas,
persistimos numa maneira de agir que não está de acordo com esse conteúdo
para que haja uma integridade, podemos expe- rienciar o lado escuro do si-
mesmo através de distúrbios neuróticos e doenças físicas. Se não
considerarmos o poder que se coloca à nossa frente em prol de um
direcionamento equivocado na vida, poderemos, em suma, deparar com a
destruição. Acidentes, doenças, psicoses, fobias, fantasias compulsivas, tudo
pode ser manifestação da oposição emergente da consciência do ego por um
lado, e da demanda de integridade do si-mesmo, por outro. Ao aparecer um
distúrbio psicológico, podemos considerar o si-mesmo como um Satã dentro
de nós, como se fosse um adversário capaz de nos destruir, se insistirmos no
caminho errôneo em nossas vidas.

Balaão pôde impedir a tempo que tal fato ocorresse, ao ver o anjo de
Iahweh no seu caminho e tendo conseguido travar um diálogo com ele. A
conversa que se deu nessa estória é análoga ao diálogo que ocorre entre o ego
e o si-mesmo quando uma pessoa começa a se lembrar dos seus sonhos,
tentando entendê-los, ou quando se aplica a técnica para estabelecimento de
uma relação viva com o inconsciente, a qual C. G. Jung chamou de
“imaginação ativa”{21}.
Podemos considerar os sonhos como procedentes do mesmo centro
psíquico, tendo a função psicológica de expressar a vontade de Deus em
nossas vidas. Recordá-los, reagir frente a eles e dialogar com eles é como
estabelecer uma conversa com o poder que se fixou em nosso caminho. O
resultado disso é um entrosamento gradual do ego com os propósitos do si-
mesmo.

Balaão sem dúvida teria evitado o pânico se tivesse prestado atenção na


sua jumenta. Quando a jumenta voltou do atalho por ter visto o anjo no
caminho, apesar de Balaão não tê-lo feito, seria como experienciar uma
reação instintiva de nossos corpos, ou do inconsciente, como se déssemos
ouvidos a alguma coisa que poderia nos informar sobre uma direção
equivocada que poderíamos estar tomando na vida. Sensações físicas, sonhos
perturbadores, leves depressões ou ansiedades são como a jumenta na estória:
elementos de nossa vida instintiva relatando-nos sobre alguma coisa, em
algum lugar, que não está indo bem. Se prestarmos atenção a isso, poderemos
evitar uma série de problemas, deixando-nos guiar mais tranquilamente para
o encontro com o si-mesmo, representado pelo diálogo entre Balaão e o anjo
de Iahweh.

Essa é a maneira como a psicologia encara a estória. Não importa se ela


é historicamente verdadeira.

Fato ou conteúdo da imaginação, a estória incorpora o mesmo sentido


da verdade psicológica.

Ao nos depararmos primeiramente com o lado escuro do si-mesmo,


possivelmente nos sentiremos em confronto com o mal. É provável que o
problema que nos atormenta — nossa doença, ansiedade, depressão ou fobia
— seja vivido como circunstância má e, do ponto de vista humano, é esta
circunstância má que nos destrói até que seja combatida. A formação cristã
convencional de hoje leva-nos a dissociar esse mal dos sentimentos voltados
a Deus. As intenções de Deus, pensamos, são boas demais para que seja
enviada tal escuridão que se arrebata sobre nós, como um pai bem-
intencionado não nos visitaria com tal sorte de dolorosas experiências. A
passagem de Balaão, aliás, é apenas uma das muitas partes da Bíblia que nos
contam que Deus tem seu lado escuro também, e que se insistirmos no
caminho equivocado, poderemos cair na ira de Deus, que nos destruirá. Na
psicoterapia também podemos perceber que o estado de sofrimento que leva
alguém a uma determinada circunstância terapêutica, está ligada ao si-mesmo,
ou seja, à sua intensa demanda, sem a qual esse alguém que sofre não se torna
íntegro, a não ser que direcione suas atitudes na vida conforme as aspirações
do si-mesmo, e não do ego.

Por esta razão, faz-se necessário falarmos do lado escuro de Deus e do


lado escuro do si-mesmo. Considerando-se melhor a questão, parece-nos que
a circunstância má que vivenciamos tem o “intuito” de curar a direção
errônea que tomamos na vida. O que realmente está errado, o que realmente
está doente, é a maneira equivocada com a qual encaramos a vida, assim
como o desenvolvimento distorcido dos nossos egos. O sintoma da doença
que o si-mesmo produz é a consequência disso tudo, e pode ser visto como
um elemento de cura. Por este motivo Jung disse uma vez que não somos nós
que curamos a neurose; é ela que nos cura.
Como pudemos ver na estória de Balaão, há sobretudo uma certa
sutileza na maneira como o AT considera o papel do mal. Iahweh tem seu
lado escuro, um lado ameaçador capaz de arrebatar e destruir o homem caso
este persista nas suas ações ingênuas e mal encaminhadas. Como pudemos
ver através da nossa estória, é exatamente essa faceta de Deus que o homem
precisa encontrar para aumentar o grau de sua consciência. A imagem de
Deus luminosa e escura corresponde muito de perto ao arquétipo do si-mesmo
no que diz respeito às imagens do inconsciente, que não podemos
simplesmente desconsiderar, julgando-as primitivas. Precisamos encarar a
imagem de Deus dos antigos hebreus como uma totalidade de luz e escuridão,
como expressão de um dos aspectos da verdade sobre a relação entre o bem e
o mal.

Isso tudo certamente nos leva a uma visão paradoxal de Deus que chega
a ofender nossa sofisticada sensibilidade religiosa, ao acharmos que, em
certas situações, Deus poderia ser tão cegamente destrutivo como a própria
natureza, atingindo, ele próprio, pessoas que, como Balaão, são estúpidas o
suficiente para tornarem-se vítimas do seu lado satânico. Mas é precisamente
essa visão paradoxal a força da imagem de Deus no AT. Ela poderia levar um
estudioso a concluir que Satã “demonstra ser um princípio demoníaco-
destrutivo firmemente embasado no plano da salvação”{22}. De onde teria
vindo a salvação de Balaão se ele não tivesse entrado em contato com o
perigoso e escuro aspecto do anjo de Iahweh?
A realidade da vida é que a luz e as trevas não estão sempre
dissociadas, e às vezes nem sempre sabemos onde se encontra o bem e onde
se encontra o mal. Desse modo, Nikos Kazantzakis declara: “Alguém veio.
Decerto foi Deus, Deus… ou foi o diabo? Quem pode separá-los? Eles
trocam suas faces; Deus às vezes se torna escuridão total, o diabo, luz total, e
a mente do homem se torna confusa”{23}.
4.
O papel do diabo e do mal no Novo Testamento

Embora possamos admirar o monoteísmo corajoso e firme do AT,


podemos ter também dificuldade com a ideia de que Deus é fonte tanto do
mal quanto do bem. Isto significaria que Deus intenciona o mal e que lidaria
com o mal assim como com o bem? Ou seria ele amoral? Naturalmente,
então, queremos saber o que o Novo Testamento tem a nos dizer sobre o
problema.
Evidentemente muitas pessoas de tempos antigos também tinham ideias
secundárias sobre a visão de Deus no AT como a fonte do bem e do mal
igualitariamente e, quando passamos do AT para os evangelhos, somos
imediatamente pegos pelo proeminente papel de Satã que, como já vimos,
tem um insignificante papel no AT, sendo conspícuo seu papel no NT. É
óbvio que nos poucos séculos entre os últimos livros do AT e o começo da
atividade de Jesus, houve uma considerável mudança no pensamento dos
judeus sobre o mal, como podemos ver na literatura apócrifa do judaísmo que
se desenvolveu na era pós-exílica e em muitos dos apocalipses judaicos que
não estão no cânon judaico do AT. Encontramos aí um elevado
desenvolvimento da demonologia e angelologia. Estudiosos supõem que os
babilônios devem ter influenciado os judeus durante o período do exílio, pois
foi após essa época que teólogos judeus se interessaram por uma visão
dualista do bem e do mal. Seja qual for a razão, no tempo de Jesus os fariseus
e o povo comum daquele tempo estavam firmemente convencidos de que
havia toda uma hierarquia de espíritos bons e maus, e que Satã presidia os
últimos.
Considerando o papel importante de Satã no NT, notamos que ele tem
diversos nomes. Trinta e cinco vezes nos evangelhos ele é chamado de Satã;
trinta e sete vezes ele é o “diabolos” ou diabo; muitas vezes ele é o
“inimigo”{24} 1 e sete vezes ele é referido como Belzebu, que significa
“senhor das moscas”, e se refere, como já vimos, à divindade persa, Arimã.
No quarto evangelho também encontramos frequentes referências ao diabo,
citado muitas vezes como “príncipe deste mundo”{25}.2

Tendo em vista esses nomes, os apelativos “Satã” e “diabolos” (diabo)


são bem mais numerosos. Satã é um termo de origem hebraica que significa,
como já vimos, um ser que obstrui um movimento livre, de avanço, tornando-
se assim um adversário ou acusador. “Diabolos” é uma palavra grega usada
como equivalente de Satã. Seu significado literal na forma verbal quer dizer
“jogar atravessado”, como se o “diabolos” jogasse alguma coisa atravessada
no nosso caminho para interferir em nosso progresso. Na sua forma
substantiva, “diabolos” é também traduzido por acusador ou adversário, o
que corresponde estreitamente ao significado da palavra Satã.

Nos evangelhos, Satã é tido como responsável por uma infinidade de


doenças humanas. Ele envia agonias físicas e aflições à humanidade que
sofre; por exemplo, ele é considerado responsável pela doença da mulher que
por dezoito anos não podia ficar ereta, e que era conhecida como possuída
por Satã (Lc 13,16). Ele é tido também como responsável por aflições
mentais e, para assisti-lo nessas torturas que fazia aos homens, Satã possuía
um bando de demônios. Os vários demônios que se apossaram do país dos
gerasenos suplicaram a Jesus que não os mandasse para o abismo, e ele os
mandou para uma vara de porcos (Lc 8,28-34). Várias parábolas de Jesus
lidam com a atividade de Satã entre os homens, em especial a parábola do
semeador (Mc 4,15) e do joio (Mt 13,28). Mas Satã está interessado em
induzir o homem a se rebelar contra os propósitos de Deus, assim como
afligi-lo com o sofrimento. Lucas nos conta (22,3) que foi Satã que entrou em
Judas e maliciosamente inspirou-o a trair Jesus, e que Satã quis se apossar de
Pedro da mesma forma (Lc 22,31).
Assim, Satã, como seu nome indica, aparece nos evangelhos como um
espírito oposto a Deus, que joga todos os obstáculos que pode no caminho do
homem para a saúde e para a relação com Deus, e não apenas traz
maliciosamente o sofrimento à humanidade, mas também distancia o homem
de Deus, instigando-o ao pecado e à rebelião.
Considerando o papel proeminente do diabo nos evangelhos, é
interessante notar quão pouca atenção é dada à sua origem ou destino. Não
encontramos explicação nos evangelhos para a presença do diabo ou do mal
no mundo, e nem ao menos alguma notificação sobre seu fim último. Uma
das raras exceções possíveis para isso está em Lc 10,18 (um versículo que
iremos discutir num capítulo posterior com maiores detalhes) no qual Jesus
diz aos setenta e dois que estão voltando da missão: “Eu via Satanás cair do
céu como um relâmpago”! Nos evangelhos Satã é representado simplesmente
como desempenhando sua função. Aparentemente parecia óbvio para o povo
daquela época que houvesse tal criatura maléfica que perfazia seu papel
divinamente estipulado na vida.
Essa também parece ser a atitude de Jesus em relação ao diabo e ao
mal. Jesus certamente sabe a respeito do diabo. No começo de sua atividade,
depois do seu batismo e do recebimento do Espírito Santo, conta-se que Jesus
foi ao deserto para ser tentado por Satã. Somente depois de ter encontrado o
diabo, e as tentações do mal que ele despejou no caminho de Jesus para
persuadi-lo a empregar mal seu poder divino, Jesus assumiu sua missão. Mais
tarde Jesus frequentemente encontrava Satã ou seu bando de demônios,
principalmente no seu trabalho de cura, e evidentemente concordava com a
ideia popular de que muitas, se não todas, das doenças do corpo e do espírito
eram aflições do poder do mal.

Jesus parecia encarar o mal como parte inevitável da criação e não


achava necessário oferecer explicações para sua presença no mundo. Por
exemplo, na parábola do joio, Jesus assume a presença do diabo. Nesta
parábola um homem semeou boa semente, mas veio um inimigo e semeou
joio no meio do trigo: “…Deixai-os crescer juntos até a colheita”, aconselhou
Jesus, e “no tempo da colheita, direi aos ceifeiros: ‘Arrancai primeiro o joio e
atai-o em feixes para ser queimado; quanto ao trigo, recolhei-o no meu
celeiro’” (Mt 13,24-30). Mesmo que esta parábola seja da Igreja primitiva e
não de Jesus, ela parece condizente com sua atitude: neste mundo o trigo e o
joio, o bem e o mal, ambos crescem juntos. Apenas no fim o mal será
separado do bem e destruído.
De modo similar, em Mt 5,44-45, temos: “…orai pelos que vos
perseguem; desse modo vos tomareis filhos do vosso Pai que está nos céus,
porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre bons e maus e faz cair a
chuva sobre justos e injustos”. Aqui temos a imagem de Deus permitindo que
homens maus e bons, honestos e desonestos, vivam nesta terra, e que ambos
recebam o sol e a chuva da mesma maneira. Não há nenhuma tentativa de
Deus de eliminar a presença do mal no mundo.
Ao mesmo tempo que Jesus não levantou questões sobre a presença do
mal, ele também deixou claro que se o homem caísse em seu poder, isso seria
calamitoso para ele. Uma vez, ao se sentir desafiado pelos fariseus se ele
curasse no sábado, Jesus dirigiu-se a eles: “Eu vos pergunto se, no sábado, é
permitido fazer o bem ou o mal, salvar uma vida ou arruiná-la” (Lc 6,9). Fica
claro que Jesus sentia que o homem poderia fazer o mal ou fazer o bem, e que
qualquer das duas opções faria uma diferença.

Talvez o melhor exemplo da atitude de Jesus em relação ao mal se


encontre em Mt 18,5-7, quando Jesus fala do relacionamento com as
criancinhas no Reino dos Céus: “E aquele que receber uma criança como esta
por causa do meu nome, recebe a mim. Caso alguém escandalize um destes
pequeninos que creem em mim, melhor será que lhe pendurem no pescoço
uma pesada mó e seja precipitado nas profundezas do mar. Ai do mundo por
causa dos escândalos! É necessário que haja escândalos, mas ai do homem
pelo qual o escândalo vem! ”
A palavra “escândalo”, em grego, é skandalon, uma palavra que
significa obstáculo ou empecilho. Desde que a função do diabo é jogar
alguma coisa como um obstáculo atravessado no caminho de alguém,
podemos perceber que Jesus, ao se referir àqueles que se tornam obstáculos
para as criancinhas, está falando daqueles que caem no poder do mal. O mal,
diz Jesus claramente, é necessário (o porquê, ele não explica), mas de
qualquer forma, quando um indivíduo se torna instrumento do poder do mal,
a consequência é a mais grave possível.
Embora o diabo seja uma figura importante para Jesus, ele não faz da
sua atividade uma parte do projeto divino para eliminar o diabo ou o mal.
Nem vai para a cruz por causa das maquinações do diabo, mas sim para
obedecer a um projeto divino. Os ensinamentos de Jesus, como tentei mostrar
no meu livro The Kingdom Within{26}, estão basicamente de acordo com um
desenvolvimento da consciência e a totalização da personalidade. Podemos
dizer que em tudo o que Jesus disse, até nos eventos da crucificação e
ressurreição, a ênfase principal não está sobre o mal, mas sobre o
desenvolvimento do indivíduo e a relação do indivíduo com Deus. Se esse
problema está presente, parece estar implícito que o problema do mal cuidará
de si mesmo.

Não observamos uma visão dualística nos evangelhos como a que se


encontra, por exemplo, no folclore persa.

Temos, ao invés disso, uma espécie de dualismo, que está sob a capa de
um monoteísmo abrangente. Em outros termos, é como se na terra houvesse
um sistema de trabalho dualista, sendo os propósitos de Deus trapaceados,
quando possível, pelos propósitos de Satã. Mas, num sentido mais amplo, há
somente um grande projeto divino e um Deus acima de tudo. Sob esse ponto
de vista, teríamos Deus permitindo que o mal opere, evidentemente porque o
mal desempenha um papel essencial na economia divina. Podemos chamar
isso de “concepção monística do mal”{27}.
Podemos observar que este ponto de vista sobre o mal já se refletia nas
ideias de um dos primeiros filósofos cristãos, Orígenes, que dizia que a
criação como um todo estava lutando pela perfeição, e quando todas as
criaturas vivas alcançassem suas metas e se tornassem parte do plano eterno
de Deus, o diabo salvar-se-ia e o mal cessaria de existir. Isso implica que
Deus, através de seus próprios princípios e metas, estaria permitindo a
existência do mal e do diabo, e quando seus propósitos fossem atingidos e a
necessidade de um diabo fosse eliminada, o lado do bem venceria o mal.
Neste ponto há uma contribuição da psicologia analítica. A mais
profunda necessidade ou instinto que habita toda criatura viva, segundo Jung,
é a totalização de si mesmo. Na vida humana esse empuxo para a plenitude
não vem de nossas mentes conscientes, mas do centro inconsciente do nosso
ser, o si-mesmo. Essa necessidade de plenitude nasce em nós mesmos. Nosso
ser requer a presença de uma personalidade unificada, onde a mente
consciente e a mente inconsciente estejam unidas e não em oposição, e é por
isso que Jung define como “individuação” esse processo ao longo da vida que
almeja a plenitude, já que neste processo a meta é uma personalidade
indivisível e íntegra.

Em outras palavras, a plenitude surge apenas quando a personalidade


consciente expressa, de uma maneira unificada, o máximo que pode da sua
totalidade que, em grande parte, desconhecemos.
Para que isso aconteça, cada parte de nós deve perfazer sua função
exata, e a função apropriada do ego inclui tornar-se consciente, isto é,
psicologicamente iluminado e desperto. Mas o ego é como um urso sonolento
que prefere hibernar. Poucas pessoas se tornam conscientes sem terem que
tornar-se conscientes, ou serem guiadas pela necessidade. E é aí que entra em
cena o mal. Na maioria das vezes as pessoas começam a descobrir o caminho
para a consciência apenas quando se deparam de alguma forma com o mal:
enquanto dor, perda do sentido de vida, ou a sensação de que alguma coisa
parece ameaçá-las ou destruí-las. É apenas quando as pessoas se sentem
jogadas na fogueira que sua porção fraca é removida, permanecendo apenas
os elementos fortes, para então dar-se a individualização. Essa purificação só
acontece no contexto de uma certa intensidade de sofrimento e luta.
Paradoxalmente, se na vida não houver um poder que pareça se opor à
integridade, torna-se impossível chegar a tal integridade; portanto, do ponto
de vista da psicologia, o mal é uma necessidade para que ocorra a
individualização.
Podemos ligar a vida de uma pessoa com uma estória. Diz-se que todo
o mundo tem uma novela dentro de si — sua própria estória de vida.
Realmente é um tanto quanto impossível imaginar uma estória onde não
exista o mal. Se tudo o que acontecesse numa novela fosse sempre bom e
alegre, se nenhuma tragédia ocorresse/ se nenhum evento obscuro assustasse
alguém, se ninguém tivesse nenhum conflito moral, não haveria estória para
contar. É o mal que faz as coisas acontecerem, e esta é a razão pela qual
ficamos todos por ele fascinados ao lermos estórias terríveis nos jornais. Em
Fausto, o grande drama poético de Goethe, Mefistófeles fala sobre isso.

Ele diz que sem ele nada aconteceria no mundo e ainda assim as
pessoas não gostam dele! Por esta razão, quando Fausto lhe pergunta quem é,
Mefistófeles responde que é “parte da força do mal, ainda que produza o
bem”{28}.
Os sábios cristãos logo reconheceram a necessidade do mal num mundo
que procura um significado moral. Pode existir uma única vida no mundo
onde não haja injustiça? Pode existir liberdade humana verdadeira num
mundo em que as pessoas não sejam tentadas pelo poder maléfico para se
afastarem de Deus? Pode Deus trazer seus filhos para junto de si se não há
nenhum adversário que tenta atraí-los, desviando-os de Deus? Em suma,
pode haver crescimento da alma, afloramento da consciência, fibra moral,
personalidades vigorosas, sem que haja escuridão, pecado e destrutividade no
mundo de almas que lidam com forças opostas?

Logicamente isto tudo não nos impede de prosseguirmos questionando.


Não poderia Deus ter feito tudo de outro modo? Deus, na sua infinita
sabedoria e poder, não poderia ter esboçado um mundo menos hostil que este,
que parece tão severamente ingrato pelo modo como muitas pessoas vivem?
Esta é uma questão a que os evangelhos não respondem. Eles simplesmente
sugerem que as coisas são o que são.

Essa visão sobre o mal tem um grande mérito. Uma das coisas é que ela
condiz com a visão do mal nos evangelhos e explica por que Jesus não fez
mais a respeito do mal, não tentou explicá-lo ou acabar com ele. Mas há
também um perigo nesse ponto de vista, pois pode tornar-se uma resposta
demasiadamente otimista e confiável. É quase como afirmar que o mal não é
realmente mal, mas outra forma de mascarar e dissimular o bem, já que, em
última análise, ele promove o bem. Ninguém, que de fato tenha sido tocado
pelo mal, poderá aceitar qualquer atitude de complacência para com ele. O
mal realmente é mal, ou pelo menos o experienciamos assim. Nem sempre a
presença do mal garante a individuação e o desenvolvimento da vida. É
verdade que não se alcança a mais elevada plenitude sem a luta com o mal,
mas este, quando é demasiadamente frequente, acaba vencendo ou
destruindo, ou faz com que a fibra moral do homem se desgaste muito. A
atitude de aceitação do mal comentada acima pode estar correta, mas se ela
nos leva a ter uma forma complacente de lidar com o mal, nossa atitude é
errônea.
Por esta razão Jesus estava certo ao dizer: “Ai do mundo por causa dos
escândalos! É necessário que haja escândalos, mas ai do homem pelo qual o
escândalo vem! ” É um aviso oportuno de que, apesar do mal ser necessário a
fim de que o plano espiritual de Deus seja levado adiante e para que haja uma
individuação, ainda permanece o fato de haver, a nível humano, experiências
da presença de um mal acirrado, simplesmente por se achar que ele é de
alguma forma necessário. Fiquemos, ao menos, em alerta para o perigo de
cair numa solução intelectual estéril do problema, o que nos faria evitar o
significado profundo da resposta ao mal, que por si só nos dá uma apreciação
da sua realidade.
No entanto, essa mensagem sobre o mal que encontramos nos
evangelhos e em Orígenes não é o único ponto de vista no NT. Na igreja
primitiva cedo se desenvolveu um pensamento diferente sobre o mal, que
mais tarde se manifestou nos ensinamentos sobre o Anticristo, tendo como
resultado o que podemos chamar de dualismo, qualquer que seja o ponto de
vista.
Victor Maag, no artigo mencionado acima, aponta para a doutrina do
Anticristo como não constando nos ensinamentos de Jesus, nem mesmo nos
de Paulo. Seu primeiro aparecimento, segundo ele, está na segunda epístola
aos Tessalonicenses (que ele presume não ser da autoria de Paulo). O mais
antigo cristão leigo, diz ele, não demonstrava saber nada a respeito do
Anticristo. Certamente Jesus nunca mencionou tal ideia; mas, na segunda
epístola aos Tessalonicenses encontramos um ensinamento bem
fundamentado de que quando vier o fim do mundo, um certo “filho da
perdição” aparecerá, e se oporá a Deus aqui na terra, o que precipitará uma
luta final, apocalíptica, resultando no fim do mundo, na vitória de Cristo e na
destruição do mal. Não encontramos ainda o termo “Anticristo” na segunda
epístola aos Tessalonicenses, mas todo o seu conteúdo dá os ingredientes
para a ideia, que florescerá nas epístolas de João e no livro do Apocalipse, de
que, no último dia, Cristo e um Anticristo travarão uma luta final pela
supremacia.

No livro do Apocalipse temos Deus de um lado e Satã de outro. Na luta


apocalítica Cristo é o representante de Deus na terra e o Anticristo o de Satã.
A luta se sucede na terra e dó mesmo modo no céu, tanto que a vitória de
Cristo sobre o Anticristo implica na vitória de Deus sobre Satã. E quando
Cristo vence o Anticristo e o mal é destruído para sempre, aqueles que
estavam do lado do mal compartilham o eterno e terrível castigo reservado ao
Anticristo.
De onde derivou este temeroso ensinamento sobre o mal se não dos
evangelhos? Victor Maag liga as principais ideias do livro do Apocalipse e da
segunda epístola aos Tessalonicenses com as escrituras apócrifas e os
pseudo-epígrafos judaicos. Essas ideias se parecem certamente com o
dualismo total dos antigos persas. Mas Victor Maag adverte que tal
ensinamento não o cristão, já que não afirma que a salvação já foi alcançada
por Cristo na cruz, mas posterga-a para um dia vindouro. Os fiéis ainda não
estão salvos. A cruz não foi eficaz. É preciso que tudo espere pela chegada
final, quando virá a salvação. Esta é uma das principais razões pela qual o
Apocalipse demorou tanto para entrar no cânon do NT, e, como mostra-nos
Maag, pela qual Lutero e Zwinglio deram pouca importância ao que eles
denominaram de “…um livro não cristão”{29}.

O que encontramos então no NT é que não há só um ponto de vista


sobre o mal, sua origem e sua função na economia divina, mas dois pontos de
vista. O primeiro, que chamamos de “visão monística do mal” é o ponto de
vista dos evangelhos e de Jesus. O segundo é um dualismo aberto, no qual
Satã e o mal não têm parte na economia divina, e pertence aos documentos da
Igreja primitiva, assim como à segunda epístola aos Tessalonicenses e ao
Apocalipse. Qual é o ponto de vista cristão? É duro percebermos como
qualquer ponto de vista sobre o mal, que não seja o dos evangelhos ou das
partes mais antigas do NT (como os escritos de Paulo), e que nega a salvação
através da crucificação de Cristo, pode ser encarado como o ponto de vista
cristão. No entanto, a segunda visão, mais que a primeira, tem caracterizado a
atitude geral da Igreja com relação ao mal através dos séculos.

Isso fica evidente no fatalismo de Orígenes com sua ideia de que no


final dos tempos o diabo também seria calvo. Quando o concilio de
Constantinopla em 553 considerou a visão de Orígenes como uma heresia e
excomungou o mais brilhante pensador cristão da Igreja antiga, ele o fez com
base nos ensinamentos sobre o Anticristo, os quais rejeitavam a noção de que
o diabo poderia ser salvo ou ter, ao menos, algum espaço junto ao montante
de coisas divinas. Como Maag nos relata, Orígenes, neste aspecto, estava
mais perto da atitude monística de Jesus e do AT, enquanto o ponto de vista
do concilio de Constantinopla voltava ao dualismo zoroastriano.
A psicologia tem um comentário a esse respeito. O extremo dualismo
do livro do Apocalipse sugere uma divisão violenta e insolúvel na atitude
psicológica da Igreja primitiva. É como se a psique desse momento da Igreja
estivesse dividida, e isso fosse projetado na visão metafísica e apocalíptica do
Anticristo. Tal divisão entre o bem e o mal, que existia nas mentes dos
primeiros cristãos, é evidente em muitos lugares, mas em nenhum deles é tão
evidente quanto na representação que o Apocalipse nos dá daqueles que irão
ser salvos. É-nos assegurado que ainda depois da vitória final de Cristo sobre
o Anticristo, somente 144.000 pessoas colherão os frutos da vitória. Eles são
os únicos cujas vidas foram puras o suficiente para merecerem a salvação, em
particular aqueles que nada tiveram a ver com mulheres. O Apocalipse nos
diz:

Cantavam um cântico novo diante do trono, dos quatro seres


vivos e dos Anciãos. Ninguém podia aprender o cântico, exceto os
cento e quarenta e quatro mil que foram resgatados da terra. Estes
foram os que não se contaminaram com mulheres: são virgens. Estes
seguem o Cordeiro, onde quer que ele vá. Estes foram resgatados
dentre os homens, como primícias para Deus e para o Cordeiro. Na
sua boca jamais foi encontrada mentira: são íntegros.{30}”

Fica claro neste contexto que a imagem do pecado e do mal é muito


diferente da que nos é transmitida pelos evangelhos. Nestes o diabo é
representado como cumprindo seu dever, tolerado por Deus, aparentemente
porque pertence ao propósito divino último. Mas agora Satã e o Anticristo
são totalmente divorciados de um relacionamento com qualquer propósito
divino. Nos evangelhos Jesus apresenta uma atitude humanitária e tolerante
frente às faltas humanas. Ele pode, por exemplo, fazer uma citação paradoxal
a Simão, o fariseu, que havia criticado a mulher de má reputação, tendo ela
lavado os pés de Jesus com suas lágrimas de amor: “Mas aquele a quem
pouco foi perdoado mostra pouco amor”{31} .8 Mas no Apocalipse o padrão
para o comportamento humano é tão elevado que não é de se estranhar que só
um pequeno fragmento da humanidade é salvo. Se para aqueles que forem
salvos ser virgens é uma condição, eles não podem nunca ter deitado com
alguém, nem uma única vez, e nenhuma falha é permitida. No Apocalipse é
nítida a bondade do homem como instrumento de salvação e não a cruz;
qualquer deslize que leve o homem à imperfeição, o conduz para sempre ao
terreno do diabo.

Se é verdade, como a psicologia sugere, que a segunda atitude para com


o mal emergiu devido a uma divisão da psique cristã, que não foi curada,
devemos então examinar esta divisão mais detalhadamente. Nos próximos
três capítulos entraremos na questão desta divisão psicológica entre o que a
psicologia chama de ego e o que denomina como sombra. Mas antes de o
fazermos, devemos pelo menos lançar um olhar para a atitude dos orientais e
sua forma de pensar sobre o problema do mal, pois agora estamos em
condições de vê-lo em contraste com a posição cristã.

Na filosofia hindu, o bem e o mal são ilusões e o oposto de ambos está


em Brama (Deus). Desde que se dá este tipo de existência terrestre, ambos (o
bem e o mal) são necessários, ou pelo menos inevitáveis, mas eles não têm
espaço na natureza de Deus. Desde que Deus não é responsável pelo bem e
pelo mal, nem ainda ligado a um ou a outro (no pensamento hindu Deus não
pode estar “ligado” a nada), não há necessidade de um diabo originador do
princípio do mal, uma vez que existem muitas forças demoníacas para
personificar os elementos ruins do mundo.
Se o mal é uma ilusão para o homem e também uma necessidade à
medida que a sua experiência acontece neste mundo, não é necessário que o
homem lute contra o mal. A salvação não é alcançada através de preceitos
morais, mas pelo direcionamento que se faz do conteúdo do ego, dos desejos
e das paixões. Isto acontece não para livrar o homem do pecado, mas da
ilusão. Morrendo a ilusão na pessoa, sua alma estará preparada para escapar
deste mundo e se dissolver no Nirvana (união com Deus).

Para que isso aconteça, a alma precisa estar purificada e esta é a função
do carma. A vida de todo ser acumula um certo carma, que é, grosseiramente
falando, a “justa sobremesa” de uma pessoa em suas diversas vidas. Os
acontecimentos aos quais estamos fadados na vida, o sofrimento ou a alegria
pelos quais passamos não são outra coisa senão o carma que trazemos
conosco como consequência de nossa ignorância ou maldade em existências
prévias. Este carma precisa ser vivido; sua demanda faz com que devamos
segui-lo para que progridamos e purifiquemos nossas almas. Mas o
preenchimento do carma, e isto deve ser sublinhado, não é para que sejamos
punidos pelos pecados, mas para que limpemos nossas almas, equilibrando a
balança da vida. Na realidade, ao se alcançar a conscientização correta, pode-
se deixar o carma de lado, mas este é o caminho que só os iogues conseguem
traçar. A pessoa comum deve corresponder ao seu carma de uma forma
correta, na expectativa de que o carma da sua próxima existência seja mais
ameno.
Já que as condições negativas na vida não são outras que aquelas do
carma, não há qualquer mérito em tentar superar o mal. O doente, o sofredor
e o pobre estão cumprindo o caminho do seu carma de uma vida prévia e
nada se pode fazer para ajudá-los porque isto poderia desviar o cumprimento
da missão divina. A tarefa própria do homem não é se opor ao mal, lutar
contra o pecado humano ou buscar amenizar o sofrimento, mas trabalhar para
permitir que a consciência das pessoas abrace a vontade de Deus através da
renúncia ao ego pessoal, à vontade e aos desejos.

É óbvio que a visão hindu do mal é diferente da cristã. O cristianismo


nos diz que Deus criou o mundo bom e perfeito; o hinduísmo diz que Deus
não está ligado ao que o homem chama de bem ou mal. O cristianismo diz
que o mal surgiu através de um adversário de Deus; o hinduísmo diz que tal
conceito sobre o mal é totalmente desnecessário e é uma afronta ao sublime
monoteísmo. O cristianismo diz que a raiz do problema do homem é o
pecado contra as leis de Deus; o hinduísmo diz que o problema do homem é a
sua ignorância. O cristianismo diz que o homem deve viver de maneira
correta e que seu débito moral foi pago por Cristo a fim de que pudesse
reencontrar Deus; o hinduísmo diz que o homem se salva através de seus
próprios esforços e que deve encontrar o nível adequado de consciência e se
divorciar dos desejos terrenos, e este será o passo para a salvação. O
cristianismo diz que Deus considera o homem, observa sua alma e julga suas
ações; o hinduísmo diz que Deus considera o homem assim como o oceano
considera a gota de chuva que cai nas suas profundezas. Enfim, no hinduísmo
o homem é tudo, porém dissolve-se como indivíduo dentro de Deus, como a
gota de água se dissolve no mar. (Paradoxalmente, a gota não continua
existindo dentro do oceano?) O cristianismo, por outro lado, fala sobre a
multiplicidade de santos ao redor do trono na vida futura. Seria difícil
encontrarmos duas visões mais divergentes. Não é de se admirar que os
orientais e os ocidentais pensem de modo tão diferente e tenham perspectivas
psicológicas tão divergentes.
De fato, para os ocidentais, a filosofia hindu é o desenvolvimento da
ideia de reencarnação. A ideia de que a alma humana nasce e renasce várias
vezes neste mundo não é um pensamento exclusivo dos hindus (por exemplo,
alguns filósofos gregos antigos a tinham), mas certamente o pensamento
oriental é sua principal raiz. A noção de reencarnação é muitas vezes uma
resposta satisfatória para o problema do mal, pelo menos da injustiça, pois
afirma que não há injustiça, uma vez que tudo o que acontece é exatamente
correto. Se uma pessoa tem um duro destino na vida, não há injustiça, mas
representa a resposta aos pecados de uma vida anterior, ou pelo menos
representa o que é necessário para a purificação da alma nesta vida. Assim,
tudo o que acontece é como deveria ser.
Por esta razão muitas pessoas encontram satisfação na doutrina da
reencarnação, dizendo aos outros como ela lhes dá força para prosseguir
vivendo esta vida. Outras pessoas ainda são capazes de integrar a ideia de
reencarnação no seu cristianismo, pelo menos para a sua própria satisfação,
ainda que sem um fundamento maior para a concepção da ideia{32}. Por outro
lado, outros acham que a ideia da reencarnação é uma catástrofe. “Eu nunca
vou querer voltar a este mundo outra vez! “ É o sentimento que estas pessoas
expressam e, para elas, a ideia de haver renascimento aniquila sua coragem.

A doutrina da reencarnação tem outra dificuldade: parece uma afronta


ao sentimento humano. Se alguém pensar nos horrores de Dachau e
Auschwitz, as mortes estúpidas de 32.000.000 de pessoas durante a Segunda
Guerra Mundial e exemplos similarmente chocantes e maléficos do que
aparece como mal indubitável, parece uma afronta para o sentimento humano
de que as vítimas dessas barbáries estivessem vivendo seu carma apropriado
correspondente a vidas prévias. De qualquer forma, a doutrina da
reencarnação é uma das ideias que permite que uma exploração científica seja
viável. Não há meio de se provar a realidade da reencarnação. Mas o que
pode ser provado é que o ser humano pode desenvolver o processo
psicológico chamado individuação. Para que isto aconteça tem que haver um
despertar da parte da pessoa para o que a psicologia chama de personalidade
sombria. Como já sugeri, o problema da sombra provou ser a pedra sobre a
qual os cristãos antigos tropeçaram, o que resultou numa psique cristã
dividida e na atitude com relação ao mal descrita no Apocalipse. É com este
problema da sombra que vamos lidar agora.
5.
A Sombra

O termo “sombra”, como conceito psicológico, refere-se ao lado


obscuro, ameaçador e indesejado da nossa personalidade. Nossa tendência,
no desenvolvimento de uma personalidade consciente, é buscarmos
incorporar uma imagem daquilo que gostaríamos de ser. As qualidades que
pertenceriam a essa personalidade consciente, mas que não estão de acordo
com a pessoa que queremos ser, são rejeitadas e vêm a constituir a sombra.

Edward C. Whitmont aponta muito bem esta ideia quando diz que “o
termo ‘sombra’ se refere à parte da personalidade que foi reprimida por causa
do ego ideal”{33}. O “ego ideal” é formado pelos ideais ou padrões que
modelam o desenvolvimento do ego ou a personalidade consciente. Esses
ideais do ego podem ser frutos da sociedade, da família, dos grupos com os
quais se convive ou as regras religiosas. Podemos selecioná-los de forma
consciente e deliberada, ou então esses ideais podem operar de modo mais ou
menos inconsciente no desenvolvimento do ego.

De modo geral, esses padrões de ideal que direcionam nosso modo de


ser e de agir pertencem a nossa cultura de acordo com as necessidades da
sociedade e com os padrões morais judaico-cristãos. Assim, a sociedade nos
diz que não podemos furtar, assassinar ou agir de alguma forma socialmente
destrutiva, sem que sejamos punidos. A maioria de nós se conforma, mais ou
menos, a esses padrões e, consequentemente, nega e reprime o ladrão e o
assassino que existem dentro de nós. O código moral judaico-cristão vai além
e nos incita a ser amáveis, tolerantes, sexualmente castos etc. Tentando nos
conformar aos padrões ideais rejeitamos nosso lado agressivo, vingativo e de
impulsos sexuais incontroláveis.
Não há dúvida de que nossos pais são de extrema importância na
formação do ego ideal, uma vez que eles reforçam certas condutas, quando as
aprovam, e rejeitam outros tipos de comportamento ou os punem, quando os
desaprovam. Há certos tipos de organizações de formação de caráter — como
os de escoteiros e grupos semelhantes com códigos de conduta e padrões de
comportamento — que acabam exercendo um papel na construção da
personalidade consciente.
No curso do desenvolvimento psicológico, identificamo-nos com o ego
ideal, rejeitando as qualidades que o contradizem. Mas essas qualidades que
foram rejeitadas não cessam de existir simplesmente porque a elas lhes foi
negada uma expressão direta. Ao contrário, elas permanecem dentro de nós e
formam a segunda personalidade que a psicologia denomina de sombra.

É como se os seres humanos tivessem dentro de si todo o espectro do


potencial de comportamento humano, mas algumas dessas potencialidades
são excluídas em prol do desenvolvimento de uma personalidade consciente
específica. As regras religiosas reconhecem essa necessidade e é por isso que
possuímos uma moralidade religiosa que é punitiva. Como exemplo,
consideremos os Dez Mandamentos. Não haveria a necessidade da existência
de mandamentos que dizem “não roubarás”, “não cometerás adultério”, “não
matarás”, se não houvesse a possibilidade de cometermos tais atos. Se
seguirmos os Dez Mandamentos, as tendências psicológicas, por eles
proibidas, ficarão incluídas na sombra.

Em nossos sonhos a sombra aparece na figura do mesmo sexo de quem


sonha, a qual não aceitamos, tememos ou a ela reagimos como se fosse um
ser inferior. De fato, uma das maneiras de conhecermos a sombra é através da
análise de nossos sonhos. A figura do sonho que representa a sombra, ou um
aspecto da personalidade da sombra, é sempre do mesmo sexo do sonhador,
já que a sombra personifica qualidades que poderiam fazer parte do ego.
Existe uma distinção entre a sombra e a anima ou o animus que personificam
as qualidades femininas no homem e as qualidades masculinas na mulher{34}.
Um homem, por exemplo, tem certas qualidades femininas que abrange sua
anima, mas os elementos de sua sombra rejeitam qualidades masculinas que
passam a atuar como um alter ego. De fato, em casos de personalidade
dividida, a sombra pode verdadeiramente usurpar o papel do ego. Um bom
exemplo disto pode ser encontrado no livro, que mais tarde passou a ser
filme, chamado “As Três Faces de Eva”. Nesta estória, Eva-Branca é a
personalidade de ego usual e Eva-Negra corresponde à sombra. Às vezes,
Eva-Branca dá lugar a Eva-Negra e esta, então, passa a viver sua vida. É
interessante observarmos que, enquanto Eva-Negra sabe tudo sobre Eva-
Branca, Eva-Branca nada sabe a respeito de Eva-Negra. Isso acontece pelo
fato de sermos, normalmente, ignorantes a respeito da nossa sombra, que leva
uma vida autônoma dentro de nós, enquanto a sombra, como parte do
inconsciente, sabe tudo o que se passa na nossa consciência.

Frequentemente pensamos a sombra como sendo ativa, como sendo a


personificação de nossa tendência de agir agressivamente, impulsivamente ou
algo semelhante, mas a sombra também pode ser uma figura passiva
enquanto personificação de uma fraqueza que nós quase não percebemos.
Assim como T. S. Elliot uma vez escreveu:

Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a resposta
Cai a sombra{35}.

A personalidade da sombra também pode ser encarada como uma vida


não vivida. O famoso poema Fausto de Goethe é um bom exemplo disso.
Fausto, um professor de cinquenta anos de idade, estudante brilhante e
professor de renome, chegou ao final de sua carreira. Sua vida perdeu o
sentido, sua alma tornou-se como um deserto e ele estava até próximo ao
suicídio. É quando Mefistófeles entra em cena e os dois fazem um acordo: se
Mefistófeles fizer com que Fausto permaneça nesta vida tendo todas as fortes
emoções e experiências da vida humana, quando morrer deverá entregar sua
alma ao diabo. O acordo é selado com sangue e a estória continua mostrando
como Fausto abandona seu papel de professor e intelectual para viver sua
vida, até então não vivida, de sentimentos, de emoções, de eros, poder e sexo.

Esta estória aponta também para as valiosas qualidades da sombra. Até


agora descrevemos a personalidade da sombra em termos negativos, porém a
sombra de fato possui muitas qualidades vitais que podem ser adicionadas à
nossa vida e fortalecê-la se soubermos nos relacionar com elas devidamente.
No caso de Fausto, por exemplo, as energias não utilizadas na personalidade
da sombra trouxeram-no de volta à vida e lhe deram nova vitalidade. Nós
precisamos das energias de nossas vidas não vividas, especialmente quando
alcançamos a meia-idade, que é uma fase em que toda energia até então usada
começa a se esvair. (É lógico que este contato deve se dar através de um
reconhecimento psicológico da personalidade da sombra e uma integração da
sombra, e não através de uma mera liberação do lado obscuro de nossa
personalidade para que viva concretamente por si mesmo).
Por outro lado, ainda que entremos em contato com a personalidade da
sombra de modo correto, ela pode ser um choque para a nossa personalidade
consciente. Poderia ser, por exemplo, o caso de um homem que tenha tentado
ser um gentil “cristão” nas suas relações com as pessoas, tendo reprimido sua
agressividade, e esta aparece agora, como parte da sua sombra. Se ele for
capaz de integrar algo de sua capacidade de agressividade, isso poderá ajudá-
lo a tornar-se mais forte, uma pessoa mais resoluta, pois como James Hillman
disse uma vez, a raiva pode desencadear uma reação saudável perante uma
situação intolerável. Sem nossa sombra, então, podemos bloquear a
capacidade de reagirmos de forma saudável em situações na vida que
começam a se tornar intoleráveis para nosso espírito. Um exemplo dessa
saudável agressividade seria a de Jesus ao expulsar os cambistas do
Templo{36}. Para o espírito de Jesus era intolerável que aquelas pessoas
profanassem o Templo de Deus, usando-o para o comércio, e assim ele se
zangou e os expulsou. Obviamente, a capacidade de Jesus direcionar sua
raiva fortificou sua personalidade, a qual não teria tal força se ele tivesse
embotado essa capacidade de reação.

Do mesmo modo, um homem ou uma mulher que tenham cortado seus


sentimentos de instintos sexuais-eróticos podem necessitar de um contato
com esses sentimentos a fim de obter energias vitais para um relacionamento
saudável com o sexo oposto.
Até o ladrão que existe em nós pode ser salvador. Se, por exemplo,
estamos em contato com nosso próprio lado do ladrão astuto, provavelmente
não seremos pegos pelas outras pessoas, já que o ladrão da sombra nos fará
agir como as pessoas que trapaceiam e enganam umas às outras. Para dar um
exemplo, uma vez conheci um homem que se aposentou após vinte anos de
serviço militar. Era um homem sincero, honesto, mas ingênuo, com pouca
experiência no árduo mundo dos negócios. Ele tinha guardado alguns
milhares de dólares, com os quais entrou em três negócios no espaço de um
ano. Em todos ele foi ludibriado, não por seus concorrentes, mas pelos
próprios sócios, e no final daquele ano havia perdido todo seu dinheiro. Este
é um caso onde teria sido vantajoso para ele se tivesse entrado em contato
com seu próprio lado astuto. Não seria o caso deste homem ter agido de
maneira desonesta, mas sua astúcia poderia ter-lhe dado a percepção
necessária da malícia das outras pessoas, o que o protegeria da trapaça.
Assim diz Jesus: “…sede prudentes como as serpentes e sem malícia como as
pombas”{37}.

Outra ajuda importante que a sombra nos dá é o senso de humor. Uma


análise do humor nos mostra que, frequentemente, quem ri é a personalidade
da sombra{38}. Isto acontece porque o humor expressa muito das nossas
emoções subjacentes, inferiores ou temidas. Por essa razão, um outro modo
de obtermos um conhecimento da nossa sombra é através da observação do
que induz o senso de humor, já que o riso faz com que a sombra seja liberada
sem perniciosidade.

O humor dos indígenas americanos pode ser tomado como um outro


exemplo. Eram um povo sexualmente casto. A vida sexual era extremamente
regulada e o esquema da tribo de tal forma confinante, que não havia muita
oportunidade para que homens e mulheres burlassem os códigos
estabelecidos para a conduta sexual. Mas eles tinham um personagem
mitológico, a respeito do qual já comentamos rapidamente, chamado Coiote
ou Embusteiro, que era extremamente liberado de qualquer restrição sexual.
Deverá ser lembrado que o coiote possuía um pênis bem longo e era capaz de
destacá-lo do resto do corpo, o que lhe dava a possibilidade de realizar
diversas proezas sexuais. Há um episódio em que o Coiote avista algumas
mulheres atraentes, que tomam banho num riacho, e então se esconde numa
brecha, destaca seu pênis que boia pela água e tem experiências sexuais
hilariantes com as mulheres. Depois volta até o Coiote que, sem dúvida, não
pode ser descoberto e punido. Para os indígenas esta estória era objeto de
espontânea gargalhada, já que os instintos sexuais suprimidos encontravam
um jeito substitutivo de se expressarem.
Pessoas com a sombra demasiadamente reprimida têm a tendência a
barrar seu senso de humor. Parecem estar sempre julgando e condenando as
outras pessoas, como o caso do fariseu que desconsiderou a mulher de má
reputação na estória de Lc 7,36-50. No entanto, Jesus respeitou a mulher e
disse que, tendo sido perdoada cm sua vida, ela teria também uma grande
capacidade para amar, o que faltava ao fariseu, pois ele nunca havia cometido
erros, de modo que nunca se confrontou com sua sombra.

Desse modo a personalidade da sombra está relacionada ao ego ideal,


mas há pessoas cujo ego ideal é diferente do da maioria de nós. Os marginais,
por exemplo, podem ter um ego ideal que valoriza bastante a agressão, a
brutalidade e ações antissociais. Aqui a personalidade da sombra pode ser
clara, ou seja, pode incorporar impulsos mais generosos, afáveis e
socialmente aceitáveis. Como exemplo temos Starr Daily, um homem que
intencionalmente havia se tornado um criminoso. Ao atingir a meia-idade ele
era uma criatura sofrida que vivia num confinamento solitário, quando teve
uma marcante experiência com Cristo. Como consequência, sua vida interior
despertou e ele passou a viver o resto de seus dias como um homem amável e
dedicado ao bem-estar de seus semelhantes. Starr Daily narra sua estória no
livro Love Can Open Prison Doors. Não sabemos o que se passou com sua
personalidade criminosa de antes, mas fica claro que a partir de sua
experiência com Cristo, seu lado de amor, até então reprimido e negado, pôde
emergir. Entretanto, a maioria de nós tenta viver a partir de seu lado mais
afetivo, honesto e socializado, e geralmente, quando falo da sombra, penso
nela em seu sentido mais obscuro, como algo dentro de nós que contém esse
lado negro contrário à nossa tentativa de seguir uma vida benigna que nos
permitirá receber a aprovação dos outros e, suponhamos, de Deus.

É certo que haverá a figura da sombra na nossa personalidade. Para que


possamos desenvolver uma personalidade consciente, faz-se necessário que
nos identifiquemos com alguma coisa, e isto significa que inevitavelmente
excluamos o seu oposto. É importante que as crianças se identifiquem com os
atributos psicológicos próprios que se processam no decorrer do seu
crescimento, e não se identifiquem com a sombra, pois se houver uma
identificação muito grande com a sombra, dá-se um choque com o ego e
fatalmente surge um obstáculo. Individuação e totalidade tornam-se possíveis
somente quando a personalidade consciente tem uma certa atitude moral. Se
as pessoas se identificarem demais com seu lado trapaceiro, desonesto e
violento, sem um mínimo sentimento de culpa ou reflexão a esse respeito, sua
totalidade pode não acontecer.

Sob esse aspecto, entretanto, fazer com que as crianças se desenvolvam


de modo correto não é algo simples. Neste caso, a doutrina moral dos pais, da
Igreja, da sociedade, é ineficaz, e pode até ser destrutiva. O tipo de vida que
os pais de fato levam, e o grau de sua própria honestidade psicológica são
muito mais importantes. A pregação moralista provinda de pais hipócritas é
pior do que se não houvesse nenhuma. O que é de importância mais
fundamental para o desenvolvimento da sombra, e um eventual trabalho de
elaboração do problema da sombra, é o vínculo que deve existir entre pais e
filhos. Desde a tenra infância a criança necessita de um vínculo afetivo com a
mãe e/ou com o pai, ou com alguém que seja um substituto materno ou
paterno apropriado. Dessa maneira, cria-se um fundamento para a vida moral,
já que, em última análise, a vida moral é fruto do passado e das ligações de
uma pessoa, assim como sua capacidade para ter sentimentos humanos. Em
algumas crianças esse vínculo nunca se estabelece e as defesas emocionais
necessárias contra o lado mais obscuro da sombra acabam não existindo ou
são muito fracas. Isso acontece no crescimento de personalidades criminosas
ou sociopatas, devido a uma identificação do ego com a sombra.

Ao mesmo tempo em que os pais encorajam os filhos para que se


identifiquem com suas características mais positivas, reforçando a
honestidade, o cuidado com outras pessoas etc., não devem fazer com que as
crianças criem uma divisão com seu lado obscuro. Como veremos, a sombra
é mais perigosa quando a personalidade consciente perde o contato com ela.
Tomemos como exemplo a agressividade. Logicamente não é permitido às
crianças dar vazão a seus impulsos agressivos, uma vez que estes são
destrutivos para os outros. Ao mesmo tempo, constitui-se uma lacuna para
elas a perda total de contato com a raiva, já que a raiva, como vimos, dá-nos
sempre uma resposta saudável. Se um pai diz “você é um mau menino por
estar com raiva de sua irmã”, existe aí o perigo de a criança sensível poder
reprimir sua raiva para receber a aprovação de seu pai. Isto resulta numa
separação da personalidade da sombra, que é autônoma e possivelmente
perigosa, sem mencionar a perda do contato com a energia vital que a raiva
produz. Isto se torna especialmente destrutivo se os pais permitem a si
mesmos agir com agressividade, mas não à criança. “Eu posso ficar nervoso,
mas você não”, é geralmente a postura de fato que os pais tomam. Assim, os
pais têm um estreito caminho a seguir. Se por acaso uma criança se torna
furiosa com sua irmã ou irmão, a atitude deveria ser algo como “é
compreensível que você fique com raiva de sua irmã, mas você não pode
jogar pedras nela”. Isto encoraja a criança a desenvolver restrições
necessárias aos instintos e afetos mais violentos, sem produzir uma divisão
com seu lado obscuro.

Sendo inevitável possuirmos a personalidade da sombra, a sombra é


chamada um arquétipo. Dizer que algo é um arquétipo significa que ele é um
bloco essencial para a construção da personalidade. Ou, usando-se a palavra
na sua forma adjetiva, ao dizermos que alguma coisa é “arquetípica”,
queremos dizer que é típica de todos os seres humanos. Desse modo, é típico
de todos os seres humanos, no próprio desenvolvimento da personalidade
consciente, haver sempre a companhia do seu oposto, a sombra. Devido ao
fato de a sombra ser um arquétipo, ela tem sido, frequentemente,
representada através de mitos, contos de fada e na grande literatura, como,
por exemplo, na novela de Robert Louis Stevenson, O médico e o monstro,
uma estória extremamente instrutiva que mais adiante veremos em detalhes.

É muito importante que os pais não castiguem os filhos com rejeição.


Talvez o melhor castigo que eles possam aplicar seja um castigo temporário,
ou seja, acabou e está acabado. Certamente o pior que pode ser feito é a
retirada do afeto e da aprovação, a fim de se cbter o controle sobre o
comportamento dos filhos. Quando isso ocorre, as crianças recebem a
mensagem de que são más; além disso, elas se tornam responsáveis pelo mau
humor da mãe ou do pai, o que as leva a ter sentimentos de culpa e
autorrejeição. Para lidar com pais assim, algumas crianças podem tentar
desesperadamente se conformar a modos de comportamento aceitáveis aos
pais, o que resultará mais tarde numa divisão com a sombra.
Se os pais pretendem lidar de forma bem-sucedida com a personalidade
da sombra de uma criança, eles precisam aceitar e estar em contato com suas
próprias sombras. Pais que têm dificuldade em aceitar seus próprios
sentimentos negativos em prol de reações nobres, têm também dificuldade
em ter uma aceitação criativa do lado escuro da criança. Note-se, porém, que
não quero dar o sentido de permissividade para o termo aceitação. Pais que
são permissivos para todo tipo de comportamento não ajudam seus filhos. Na
sociedade humana há formas de comportamento que não são aceitáveis e as
crianças devem aprender isto, como também serem capazes de estabelecer,
por si mesmas, um controle dessas formas de comportamento. Num ambiente
permissivo a capacidade da criança de desenvolver seu próprio sistema
regulador do comportamento fica embotada. Então o desenvolvimento do ego
será muito fraco e não possibilitará à criança, quando adulta, se relacionar
com a sombra.

Podemos perceber que ser pai requer tato, consciência, paciência e


sabedoria fora do comum, em se tratando com criatividade o problema da
sombra. Não se pode ir muito além em direção à permissividade, nem em
direção à restrição extremada. A chave para isso é a própria consciência dos
pais a respeito do problema da sua sombra, assim como sua capacidade de
aceitar a si mesmos e, ao mesmo tempo, desenvolver sua própria força de ego
para que possam estar em contato com seus próprios afetos. Na vida familiar
em geral, e principalmente em se tratando de pai ou mãe, é um ponto crucial,
e o problema da sombra pode ser encontrado e trabalhado, pois sempre há
sentimentos negativos constelados na família. Por exemplo, algumas vezes,
um dos pais terá sentimentos negativos direcionados para a criança —
quando a criança não se comporta adequadamente, ou está aborrecendo, ou
interferindo na vida independente dos pais, ou requisitando em demasia
sacrifícios em dinheiro, tempo ou energia. Sob a dureza da vida familiar, as
pessoas seguramente experienciam divisões dentro de si mesmas. O amor por
uma criança pode ser contradito por um rancor momentâneo; o desejo sincero
de fazer o melhor pela criança pode ser contradito por poderosos sentimentos
de raiva e rejeição. Desse modo podemos ver o quão divididos nós somos, e
este autoconfronto gera a consciência psicológica. É aqui que está um grande
valor da personalidade da sombra: o confronto com a sombra é essencial para
que haja o desenvolvimento do autoconhecimento.

Pelo fato de a sombra ser um arquétipo, ela está constantemente


reaparecendo ao longo da vida. De fato, algumas pessoas parecem estar
fadadas a viver a personalidade da sombra para o benefício do resto de nós. A
personalidade criminosa é um exemplo. Em muitos casos é difícil, se não
impossível, reeducar uma personalidade inclinada para o crime, no sentido de
adaptá-la a estilos de vida mais socialmente aceitáveis. Nesses casos pede
parecer que esses criminosos estão tão possuídos pelo arquétipo da sombra
que são compelidos a vivê-lo vida afora. Isso significa que, até que a espécie
humana se torne mais consciente da sombra, algumas pessoas estarão fadadas
a carregá-la. Curiosamente, a sombra consegue alcançar a consciência, apesar
de tudo, já que ninguém pode evitar saber que vivemos numa sociedade onde
algumas pessoas têm intenções criminosas. Felizmente, a atuação desta
verdade, na prática, faz com que amenizemos nossa atitude de julgamento das
pessoas, ao mesmo tempo que nos cura de qualquer tendência
excessivamente sanguinária para com a reforma potencial das pessoas com
inclinações criminosas.

A questão de como lidar e se relacionar com a sombra é extremamente


intrigante. A Igreja sempre soube a respeito da sombra, mas sem ter utilizado
o mesmo termo, e nos deixou de sobreaviso contra o lado escuro de nós
mesmos. Apesar disso, ainda não nos deu uma resposta para o problema
espiritual que a sombra nos coloca. Quando confessamos nossos pecados, por
exemplo, estamos entrando em contato com a presença da sombra.
Consideremos o título Confissão Geral à página 6 do Book of Common
Prayer of The Episcopal Church, de 1928: “Nós erramos, e vagamos longe
de teus caminhos como ovelhas perdidas. Temos seguido demais as
aspirações e desejos dos nossos próprios corações. Ofendemos tuas sagradas
leis. Deixamos de fazer aquilo que deveríamos ter feito e fizemos aquilo que
não deveríamos ter feito, e não há justiça em nós”.

Ou ainda, de outro modo, na da página 75: “Nós permitimos e


lamentamos as várias espécies de pecados e fraquezas, que nós, de tempos
em tempos, temos cometido lamentavelmente, por pensamento, palavra e
ato”. Psicologicamente, aquilo que dentro de nós agiu contra as leis sagradas
de Deus, fez aquelas coisas que não deveríamos ter feito, e fracassou ao fazer
aquilo que idealmente deveríamos realizar, é a sombra.

São Paulo colocou muito claramente a questão da sombra, e o problema


que ela apresenta para as consciências cristãs, na epístola aos Romanos:

“Realmente não consigo entender o que faço; pois não pratico o


que quero, mas faço o que detesto. Ora, se faço o que não quero, eu
reconheço que a Lei é boa. Na realidade, não sou mais eu que pratico
a ação, mas o pecado que habita em mim. Eu sei que o bem não mora
em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu
alcance, não, porém o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu
quero, mas pratico o mal que não quero”{39}.

São Paulo tem um ideal para si mesmo, mas descobre que alguma coisa
a mais, no seu interior, está barrando sua capacidade de realizar esse ideal.
Algum elemento inserido em sua personalidade contradiz seu ego ideal e o
induz a atuar por caminhos que o afligem, criando nele um despertar para a
necessidade de salvação. Este outro alguém contido nele, que chama de
pecado, é a sombra. Como são Paulo lidou com este seu lado é um assunto do
qual trataremos no próximo capítulo. No entanto, é evidente que a existência
da personalidade da sombra coloca um grande problema para a consciência
judaico-cristã.

A maneira mais comum com que as pessoas tentam lidar com o


problema da sombra é simplesmente negar a sua existência. Isso acontece
porque o despertar da sombra traz culpa e tensão, e nos força a uma difícil
tarefa espiritual e psicológica. Por outro lado, a negação da sombra não
resolve o problema, mas simplesmente deixa-o pior. Por conseguinte, não só
perdemos o contato com os aspectos positivos desse lado obscuro de nós
mesmos, como também o projetamos em outras pessoas. Projeção é um
mecanismo psicológico inconsciente que ocorre sempre que uma parte de
nossa personalidade, quando ativa, não tem relação com a consciência. Essa
parte não reconhecida, mas muito viva em nós, projeta-se sobre outras
pessoas de tal modo que vemos algo nos outros que realmente é uma parte de
nós mesmos, o que provocará resultados negativos à medida que os
relacionamentos se processam. Se outras pessoas carregam para nós a
projeção do nosso próprio lado obscuro, que odiamos, reagiremos a elas de
modo condizente. Passaremos então a odiá-las ou temê-las e não as veremos
como elas são, com compreensão e discernimento objetivo, mas iremos
encará-las a partir de nossa sombra menosprezada. Por essa razão, quando
encontrarmos alguém que odiamos, faremos bem em parar e perguntar a nós
mesmos se nosso ódio não teria emergido porque alguma coisa em nós, da
qual não gostamos, foi projetada sobre a outra pessoa. Nem sempre será o
caso. Às vezes odiamos ou não gostamos de outras pessoas pelo fato de que
elas agem conosco de modo inconveniente, mas outras vezes este é o caso e,
quando isso acontece, o relacionamento com a outra pessoa é severamente
perturbado pelo nosso próprio inconsciente.

Isto pode acontecer especialmente no caso de áreas de preconceito


racial. No preconceito racial vemos as pessoas de uma certa raça, grupo
religioso ou minoria étnica a partir da sombra. Assim, os negros carregam a
projeção da sombra dos brancos e vice-versa; os judeus, dos gentios, e assim
por diante. Naturalmente, esse preconceito cego, baseado na projeção da
sombra, impede a possibilidade de eros, que sempre leva ao relacionamento
entre os indivíduos. Um caso extremo seriam os nazistas que, identificados
com o culto de sua própria superioridade, projetaram suas qualidades
inferiores nos judeus, com as desastrosas consequências que conhecemos
bem através de Buchenwald e Dachau. Em se tratando do problema da
projeção, grupos religiosos organizados são especialmente culpados, já que
estes têm uma tendência de projetar suas sombras coletivas em outros grupos
que diferem em termos de crença. Quanto mais rigidamente as pessoas
mantêm certas ideias religiosas dogmáticas, mais ficam inclinadas a projetar
suas sombras nos membros de outros grupos religiosos, cujas variadas
opiniões teriam o efeito desagradável de inculcar dúvida. Assim, protestantes
têm carregado a sombra dos católicos romanos e vice-versa, gentios carregam
a sombra dos mórmons e os judeus a dos cristãos, enquanto todas as pessoas
que não conservam suas próprias crenças teológicas de modo fixo têm a
tendência de carregar a sombra de membros de grupos fundamentais. Desde
que as pessoas, em tais circunstâncias, estão totalmente inconscientes das
suas sombras e do mecanismo da projeção, cometeram-se atrocidades
terríveis em nome de Cristo, sem culpa consciente. Os cristãos têm carregado
consigo convicções contra os judeus, os católicos romanos tiveram suas
inquisições e os protestantes decapitaram os católicos romanos, tudo em
nome do amor de Cristo. Quando a sombra é projetada, o indivíduo não
percebe as sinistras intenções nela existentes, como o inimigo velado da
dúvida interior, ou as baixas motivações da voracidade e do
autoengrandecimento que têm estado por detrás das inúmeras atrocidades de
tempos passados.

Os exemplos citados nos mostram que existe também a sombra


coletiva, assim como a individual. Um grupo, cultura ou nação tem um
determinado ego ideal, que em troca cria a sombra coletiva. Assim, os
nazistas tinham um ego ideal coletivo de uma superioridade ariana,
correspondente a uma sombra coletiva. Os Estados Unidos, com o ego ideal
coletivo do “destino manifesto” (a doutrina sustentada pelos Estados Unidos
no século XIX de que o destino manifesto do homem branco era possuir o
continente norte-americano), criou uma sombra coletiva, que os índios
americanos puderam experienciar, quando exterminados de uma maneira que
foi tão bárbara e cruel quanto o atentado nazista para exterminar os judeus.
Podemos notar que, à medida que os indivíduos inseridos num grupo ou
nação se tornam idênticos à consciência cultural, também eles pertencerão à
sombra coletiva.
É necessário haver uma consciência individual considerável para que se
evite essa espécie de identificação tal que as qualidades da sombra individual
e da sombra coletiva da nossa cultura e tempo tornam-se inevitavelmente
interligadas.

Quando compreendermos como uma parte da sombra não assimilada


pode ser projetada com tais efeitos prejudiciais, começamos a avaliar o
problema da sombra e sua gravidade, e o quanto este problema psicológico
está estreitamente ligado ao problema do mal. Por exemplo, a guerra pode ser
compreendida enquanto um problema da sombra, o que aumenta a
importância do problema à medida que as consequências de uma guerra hoje
são muito mais temíveis do que foram no passado. A guerra não nos dá
somente a oportunidade de projetarmos nossa sombra no inimigo; ela
virtualmente nos leva a fazer isso, pois um ser humano só pode ser levado a
matar outro se ele despersonalizar a outra pessoa. Assim, o inimigo precisa
sempre ser visto como “bárbaro” ou “gooks” ou “imperialista”, e nunca
enquanto um ser humano como nós mesmos, sendo pai e mãe, filho e filha, o
que seria difícil demais para levar-nos a matá-lo. Além disso, a guerra é o
meio socialmente aceito para que permitamos extravasar nossa sombra.
Durante a guerra muitos impulsos negativos, que devem ser renegados
socialmente, são encorajados pelo próprio povo, tanto que o que seria
encarado como uma psicopatologia em casa, no exterior pode ser chamado de
heroísmo. Não seria exagero dizer que, apesar de vedarmos os reais motivos
para irmos à guerra com slogans políticos e jargões devotos, a guerra pode
ser advinda da sombra não reconhecida e alienada que deseja expressar sua
natureza sombria. Muitos povos primitivos, como os indígenas americanos,
reconheciam esse fato e submetiam os guerreiros que regressavam aos ritos
de purificação, antes de retornarem à vida da aldeia.

É difícil descrever em termos gerais como um indivíduo chega a


reconhecer sua própria sombra, pois esse processo acontece de maneira
individual. Já mencionamos o fato de a sombra se ocultar por detrás do nosso
riso. Vimos também que a sombra aparece nos nossos sonhos como uma
figura menosprezada, temível e inferior, do mesmo sexo que nós. Desse
modo, o estudo do humor e da vida onírica nos dão os elementos sobre a
natureza da sombra. Há também lapsos de linguagem, esquecimentos
inconscientes e nossas fantasias.

Lapsos de linguagem, como Freud nos mostrou, têm um mecanismo


inconsciente por detrás, e frequentemente é a sombra a causadora desses
lapsos curiosos do discurso. Consideremos como exemplo uma conhecida
minha, “boa cristã”, que ficou furiosamente zangada com outra mulher, mas
não podia encarar o fato. Ela me disse: “eu falei com ela de modo
malevolente”. No entanto, ela quis dizer que havia falado de modo veemente,
mas escapou-lhe o termo malevolente, pois o que havia no seu coração era o
rancor para com a outra pessoa, mas ela não tinha sido capaz de reconhecê-lo.

Esquecimentos inconscientes também podem ter suas raízes na sombra.


Alguém nos telefona convidando para uma festa. Não queremos ir; no
entanto, não arranjando uma desculpa, na hora acabamos aceitando o convite.
Chega o dia da festa e só depois, repentinamente, vemos que esquecemos de
ir. Por que esquecemos? Foi um mecanismo da sombra, nossa parte que
simplesmente não queria ir, e que desde o primeiro instante em que o convite
tinha sido aceito, procurou um jeito para que a ida à festa não acontecesse.

Assim, se refletirmos sobre nossos lapsos de linguagem e


esquecimentos inconscientes, podemos percorrer o outro lado de nós mesmos
que tem pensamentos e planeja atitudes que, ao nível consciente, não somos
capazes de aceitar.
Nossas fantasias também nos dão dicas. O caixa da mercearia nos dá
troco para Cz$ 20,00, quando lhe pagamos Cz$ 10,00. Se formos honestos,
apontaremos seu engano, devolvendo-lhe seu troco, mas, por um instante, se
atentarmos para nosso processo interior, talvez pensemos: “Você bem que
poderia guardar este dinheiro”. De fato, em algumas situações poderíamos
agir exatamente assim.

A sombra se expressa em todo tipo de fantasia. Por exemplo, nossas


fantasias sexuais podem ser preenchidas com a sombra a partir do momento
em que fantasiamos relações sexuais com qualquer pessoa, em todo tipo de
circunstâncias, sentindo-nos tão culpados por essas fantasias a ponto de
mantê-las cuidadosamente ocultadas dos outros e talvez até de nós mesmos.
A maioria de nós imediatamente suprime uma fantasia sombria quando ela
ocorre. Pode também tratar-se de uma fantasia de violência. Suspeito que há
poucas pessoas que uma vez ou outra não tiveram a fantasia de que seus
maridos, esposas, filhos ou pais tivessem morrido. Com horror de nós
mesmos podemos imediatamente suprimir tais pensamentos tão obscuros de
se encarar. De fato, tais fantasias sombrias podem simplesmente estar nos
revelando que nosso espaço pessoal não está sendo suficiente, que nossas
vidas estão muito afetadas pelas vidas dessas outras pessoas e que alguma
coisa em nós “precisa ser” extravasada, para que possamos viver nossa vida
pessoal.

As fantasias da sombra geralmente se referem ao sexo, dinheiro e


poder. Quando há suficiente oportunidade dentro da coletividade, podemos
até dar vazão a essas fantasias. Por exemplo, podemos nos permitir trapacear
grandes instituições quando não pensaríamos em defraudar os indivíduos.
Provavelmente há poucas pessoas que não tenham conjecturado diversos
meios de burlar leis, por exemplo, não pagando impostos, ainda que não
trapaceassem seus vizinhos. Lembro-me de um conhecido que teve um
acidente de carro. Ele me contou que foi a sete oficinas, obteve sete
diferentes orçamentos, deixou os dois mais altos a cargo da companhia de
seguros (a diferença dos orçamentos mais alto e mais baixo era considerável
neste caso) e simplesmente embolsou a diferença entre o que a companhia de
seguros lhe pagou pelos orçamentos mais altos, e a quantia que ele realmente
pagou à oficina que tinha orçamento mais barato. Mas conheci-o como
camarada “honesto”, que nunca teria me defraudado de tal maneira.

A sombra é um elemento tão forte, que quando se trata de dinheiro há


até um sistema de contratos em nossa sociedade criado com o propósito
expresso de afugentar a sombra. Um contrato de negócios explicita em
detalhes o que cada parte fará e frequentemente produz sanções em caso de
haver uma falha dentro do acordo. Os contratos acabaram sendo uma
necessidade de nossa cultura, já que uma pessoa pode deliberadamente de-
fraudar a outra, ou porque achamos conveniente esquecer o que prometemos
quando se trata de um assunto de nosso próprio proveito. Um indígena
americano não teria precisado de tal acordo, pois sua palavra pessoal serviria
como instrumento, mas nossa cultura de poder monetário exagerou demais o
problema da sombra, enquanto a despersonalização do nosso meio de vida
criou condições para que usássemos outros seres humanos como objetos e
não os víssemos enquanto indivíduos.

É por isso que o meio mais eficaz para que vislumbremos a natureza da
nossa sombra é trabalhando nossas relações humanas. Outras pessoas terão
objeções quanto à nossa sombra e nos apontarão o que estamos fazendo a
elas. Ouviremos o que os outros têm a nos dizer e, acatando suas objeções de
coração, quando válidas, chegaremos a um reconhecimento da nossa sombra.

Devido à situação perigosa que resulta da não percepção da sombra,


faz-se necessário um reconhecimento da psicologia. Entretanto, este
reconhecimento deve ser observado no particular e não simplesmente ser
generalizado. Alguém pode pronunciar todo tipo de confissões generalizadas,
e ainda perder totalmente o confronto com seu lado obscuro pessoal.
Devemos ser capazes de dizer sobre nossa sombra o que disse o rei, na peça
de Shakespeare, A Tempestade, sobre o repulsivo Caliban: “Esta coisa de
obscuridade, eu a reconheço minha”{40}.

Pelo fato de devermos enxergar nossa sombra específica, quando


olhamos no espelho e vemos nosso reflexo sombrio há uma grande
resistência. Parte dessa resistência talvez seja o medo de que, se
reconhecermos a sombra, ela nos sobrepuje; temos horror de nos depararmos
com nosso lado obscuro por medo de sermos tomados por ele. Na prática, dá-
se exatamente o oposto; deixamo-nos ser tomados pela sombra quando não a
identificamos, pois, a sombra não identificada tem seus próprios meios de
defesa, como pudemos ver no caso da projeção.

Um excelente estudo sobre a sombra, e o que acontece quando não é


reconhecida, pode ser encontrado na novela de John Knowles, mais tarde um
filme, A Separate Peace. Nessa estória há dois amigos, um deles um atleta
superior, que mexe com seu amigo brincando com ele amigavelmente, porém
de um modo irritante que faz surgir em seu amigo ciúmes e ressentimento.
No entanto, essas emoções obscuras não são encaradas e, um dia, o amigo
atleta se posiciona perigosamente num galho alto de uma árvore, exibindo
suas proezas atléticas, quando o amigo mexe o galho, ainda que levemente,
causando um acidente fatal para o atleta, que cai. “Terei eu realmente
causado o movimento do galho? ”, o amigo se pergunta. Ele prefere achar
que não, mesmo sabendo que o fez. Este é o modo como funciona a sombra
quando não reconhecida. Se ele tivesse sido capaz de enfrentar abertamente
seus sentimentos de inveja e ressentimento ou, melhor ainda, se tivesse
expressado esses sentimentos para o amigo, o terrível acidente não teria
acontecido. Cada vez mais, à medida que vamos fundo nas coisas, chegamos
à conclusão de que a repressão da sombra não é a resposta.
Um dos motivos da nossa resistência em chegar à sombra é a culpa que
isso engendra. É desconfortável suportarmos a culpa e preferimos evitá-la
quando podemos. Pode-se observar a resistência da culpa nas crianças, que
encontram uma série de maneiras para evitar o peso da acusação por
situações que elas tenham causado.
Muitas pessoas não amadurecem espiritualmente desse estágio infantil
e simplesmente não querem carregar o fardo da culpa pelo mal pessoal ou
omissões pelas quais elas são responsáveis. Entretanto, ninguém escapa do
problema da culpa. Muitas pessoas carregam um considerável sentimento de
culpa na maior parte do tempo, mas trata-se de uma culpa falsa. Isso significa
que as pessoas se sentem culpadas pelas coisas erradas e não se
responsabilizam por aquilo que, em suas vidas, seria de sua verdadeira
responsabilidade. A falsa culpa nos paralisa, mas quando assumimos o
apropriado fardo da responsabilidade pela pessoa imperfeita que somos,
então não somos paralisados, mas nossa personalidade efetivamente cresce e
se aprofunda.

Isto produz um considerável problema moral, ou melhor, traz-nos um


problema moral oculto para a consciência, pois temos que lidar com ele num
nível de responsabilidade: o que faremos com nossa sombra? O quanto
permitiremos que o nosso lado obscuro se expresse? Negar totalmente a vida
da sombra, como já apontamos, é correr o risco de ter nossas energias
embotadas. Há vezes em que devemos permitir que uma parte da nossa vida,
não vivida, viva para que possamos armazenar novas energias para viver.
Além do mais, se nos direcionamos somente para sermos bons e perfeitos,
tornamo-nos odiáveis, já que muito da energia vital em nós é negada. Por
essa razão, não há pessoas mais perigosas na vida do que aquelas que
decidiram fazer o bem. Pode-se até dizer que, à medida que tentamos exceder
nossa capacidade de bondade natural, nós fazemos o mal, e não mais o bem,
porque nosso estado antinatural gera uma acumulação de obscuridade no
inconsciente. Todavia, tornar-se uma pessoa íntegra não significa dar licença
à sombra. Nós não integramos nossa personalidade se, de uma pessoa
demasiadamente correta, mudamos para alguém que vive todos os impulsos,
ou sem nenhuma restrição moral ou social.
O que é importante, como já foi mencionado antes, mas que deve ser
dito novamente para enfatizar, é que reconheçamos o lado sombrio de nós
mesmos. Só esse reconhecimento produz uma mudança poderosa e benéfica
na consciência, o que ajuda muito a nossa humildade, senso de humor e
capacidade para sermos menos críticos com relação às outras pessoas. É
essencial o desenvolvimento de uma personalidade consciente e, portanto, de
individuação. Pode-se considerá-la como base para uma verdadeira
moralidade individual.
Pode-se observar que escrúpulos moralistas sobrevivem por causa das
sanções existentes, e as pessoas não têm nenhum conhecimento de si
mesmas, tendo uma moralidade a nível coletivo. Uma moralidade mais
elevada pode surgir apenas através do autoconhecimento. Além do mais, os
valores morais sustentados pelas pessoas somente são eficazes com o alcance
da consciência. Quando não atentamos para nossas inclinações, para a
obscuridade e o mal, nossa cegueira faz com que nossos códigos morais e
nosso senso de valor sejam ineficazes. E, quando prevalecem condições de
ignorância, a sombra permanece como uma figura autônoma que não está
relacionada com o resto da personalidade. Por essa razão, uma verdadeira
moralidade precisa andar lado a lado do conhecimento pessoal da sombra.
Esta é uma das grandes contribuições que a psicologia oferece para a
resolução do problema do mal.

Detive-me com detalhes na questão da sombra porque, quando este


assunto vem à tona, as pessoas geralmente perguntam o que elas têm a ver
com o seu lado sombrio. Assim, tentei fornecer algumas dicas para o
reconhecimento da sombra, de maneira mais consciente. Entretanto, cada
solução para o problema da sombra é individual, e cada pessoa precisa, em
última análise, descobrir seu próprio e adequado caminho para viver
criativamente seu lado obscuro. Sendo o problema da sombra tão importante
quanto grande parte do problema do mal em geral, continuaremos com o
assunto nos dois próximos capítulos.
6.
Jesus, Paulo e a sombra

Nos capítulos anteriores fiz o comentário de que a Igreja não nos foi de
grande ajuda para lidarmos com a sombra. Agora examinaremos as razões
disso com mais detalhes, e proponho que o façamos, contrastando a atitude
de Jesus com a de Paulo, no tocante ao problema da sombra.
Primeiramente faz-se necessária a introdução de outro conceito
psicológico: a persona. A palavra “persona” significa “máscara”, e deriva de
“persona” ou máscara, usada por atores dramáticos da Grécia e da Roma
antiga para representar as personagens. A psicologia compreende a persona
como a máscara que usamos quando saímos para o confronto com o mundo e
as outras pessoas. Seria como a capa externa da nossa personalidade de ego.
A persona é a primeira parte em nós que as outras pessoas veem, e a nossa
parte que queremos que elas vejam.

A persona tem uma função social e psicológica útil. Por exemplo, você
pode estar se sentindo horrível e vulnerável num certo dia, mas, como você
deve desempenhar suas várias atividades e se encontrar com outras pessoas,
você não pode permitir que sua vulnerabilidade seja vista por todos. Seu
estado interno às vezes deve ser ocultado, e você precisa fazer uso da sua
persona a fim de exercer certas funções. Assim, uma persona adequada é
uma parte necessária da habilidade do ego para se relacionar com a vida e as
pessoas. Thayer Greene, um analista junguiano de Nova forque, apontou em
seu artigo “Confessions of an Extrovert” (Quadrant, Winter 1975, Vol. 8, § 2,
pp. 21-32) que a persona tem um papel ainda mais positivo do que a criação
da aparência. Como ele sugeriu, a antiga máscara ou persona que os gregos e
romanos usavam não pretendia identificar os atores, mas servia como objeto
de melhor expressão das personalidades que eles representavam. Deste modo,
a persona também pode ser o órgão da personalidade através do qual
expressamos certas coisas a respeito de nós mesmos para os outros.
Por exemplo, se você for a uma festa e cuidadosamente vestir suas
melhores roupas, adotando maneiras graciosas e charmosas, não significa que
você está tentando esconder seu verdadeiro si-mesmo para os outros. Pode ser
que, através da persona das roupas e da maneira adotada, você esteja
expressando melhor um lado seu, e se relacionando melhor com os outros de
uma forma particular. É por isso que a vestimenta e a moda em geral são tão
populares e até necessárias, pois a vestimenta adequada nos ajuda a expressar
a persona correta para uma determinada situação.

O problema da persona surge quando nos identificamos demais com


ela. Quando achamos que somos aquela persona que estamos vestindo, a
persona está sendo mal-empregada. As pessoas que se identificam com a
persona usam-na como máscara ou disfarce. Sua personalidade real fica
oculta e elas ficam limitadas pelo papel representado pela persona. Além do
mais, quando há identificação com a persona, o contato com o lado sombrio e
obscuro da personalidade é certamente perdido. Assim, a identificação com a
persona leva ao artificialismo, falsidade e superficialismo da personalidade.
Algumas vezes outras pessoas nos incentivam a adotar uma
determinada persona e se sentem de maneira não confortável conosco se não
assumimos tal persona. Por exemplo, é muito comum que membros de uma
congregação tenham expectativas quanto à persona de um pastor ou ministro,
em termos de bondade, gentileza e amabilidade. Estes são os papéis que o
pastor ou ministro teriam que assumir segundo as expectativas. Outros
profissionais, assim como médicos ou psicoterapeutas, também têm persona,
pois deles espera-se um determinado padrão de comportamento. Para o
psicoterapeuta, como para o pastor ou ministro, poderia não haver a
expectativa de ser bom, mas supõe-se que ele abranja tudo, e que o médico
detenha todo o saber e seja incapaz de cometer erros. Se aceitarmos uma
persona que alguém nos entrega, e a adotarmos como sendo nossa, e
moldarmos nossa personalidade consciente segundo ela, logicamente
estaremos perdendo uma parte de nós mesmos. Assim, uma persona tende a
ser inevitavelmente compensada pelo nosso mundo interno, ou seja, em
algum lugar do inconsciente o oposto exato daquela persona será constelado.

Jesus parecia estar ciente tanto da persona como da sombra.


Consideremos, por exemplo, a passagem em Lc 18,18-19, onde o jovem rico
vem a Jesus com uma pergunta: “ ‘Bom Mestre, que devo fazer para herdar a
vida eterna?’ Jesus respondeu: ‘Por que me chamas de bom? Ninguém é bom,
senão só Deus!’ “ Fica claro que Jesus percebeu que a persona de ser bom
estava sendo-lhe entregue, e ele a devolveu imediatamente.

A clareza que Jesus tinha sobre a persona e os perigos espirituais


advindos da identificação com ela é mostrada na sua atitude com relação aos
fariseus. Jesus diz: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Sois
semelhantes a sepulcros caiados, que por fora parecem bonitos, mas por
dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda imundície. Assim também
vós: por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de
hipocrisia e de iniquidade”{41}. 1
A referência aos “sepulcros caiados”, que parecem bonitos por fora, é
uma referência à persona que os escribas e fariseus tinham adotado para eles
mesmos, enquanto “ossos de mortos” e “toda imundície” é uma imagem do
interior do homem, ou da sombra, que compensa esta identificação com a
persona. Jesus era bastante tolerante com a maioria das fraquezas humanas,
mas fica indignado com esta identificação com a persona e o ocultismo da
sombra, porque isso era algo psicologicamente desonesto, levando a uma
autojustificação, falta de compaixão e rigidez espiritual.
Através dessas duas ilustrações, fica claro que Jesus estava atento para
aquilo que estamos chamando de persona, como também para a sombra, o
que veremos em breve. Paulo, por outro lado, estava pouco consciente de
uma e de outra. Ainda que Paulo demonstrasse ser capaz de uma acuidade
psicológica para ver a si mesmo e sua natureza ambígua, não encorajava
outros a imitarem seus esforços espirituais e a se confrontarem com o
problema da persona e da sombra. Ao contrário, ele encorajava a repressão
do problema pedindo às pessoas que negassem, por um lado, a existência da
sua sombra e encorajando-as, por outro, a se identificarem com uma persona
de bondade, luz e amor. Assim, enquanto Jesus chamava para um
crescimento da consciência psicológica e para a coragem espiritual de
enfrentar o problema da nossa natureza ambígua, Paulo pregava justamente o
contrário, que é a repressão.

A passagem em Rm 7, de onde faço uma citação no último capítulo,


revela a introspecção mais profunda de Paulo:

Sabemos que a Lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido como


escravo ao pecado. Realmente não consigo entender o que faço; pois
não pratico o que quero, mas faço o que detesto. Ora, se faço o que
não quero, eu reconheço que a Lei é boa. Na realidade, não sou mais
eu que pratico a ação, mas o pecado que habita em mim. Eu sei que o
bem não mora em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem
está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo. Com efeito, não faço o
bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero. Ora, se eu faço o
que não quero, já não seu eu que estou agindo, e sim o pecado que
habita em mim{42}.

Nessa passagem Paulo está consciente da ambiguidade de sua


personalidade; ele concebe que há um outro poder dentro dele que faz com
que ele aja de modo contrário às suas melhores intenções. Podemos
reconhecer que Paulo está falando sobre a ambiguidade entre o ego ideal e a
sombra sobre a qual estivemos discutindo. Infelizmente Paulo recusa aceitar
esta tendência oposta como sendo uma parte dele mesmo. Ele declara que não
é, sobretudo, seu eu que age desta forma, mas “o pecado que habita em
mim”. Isso acarreta uma recusa da parte de Paulo em aceitar a sombra como
uma parte legítima e inevitável de sua própria natureza; além disso, deixa
como única possibilidade possível, ao invés de se tentar algum outro caminho
de solução, a ruptura com a própria sombra. Como já vimos, isto não resolve
o problema, mas apenas o aprofunda.
Enquanto Paulo mostra alguma lucidez sobre a ambiguidade de seu
comportamento nesta passagem de Romanos, há outras passagens onde ele
curiosamente parece desconhecer a significação de suas palavras e fantasias.
Um magnífico exemplo disto é encontrado em Gl 5,12. Aqui Paulo adverte os
gálatas de que os cristãos judaizantes que o seguiram estavam requisitando
que os neófitos cristãos adotassem as práticas judaicas, especialmente a
circuncisão. Paulo fica irado com esses cristãos judaizantes que estavam
desfazendo boa parte de seu duro trabalho, e ele conclui sua discussão contra
eles através das seguintes palavras: “Que se façam mutilar de uma vez
aqueles que vos inquietam! ” (Literalmente, “desejo que todos aqueles que
estão sendo causa de distúrbio fossem mesmo mais a fundo e se castrassem”).
Paulo tem aqui uma sórdida fantasia de seus inimigos circuncidadores,
ao, acidentalmente, castrarem-se. Podemos perdoá-lo por esse pensamento, é
lógico, pois sabemos o que é estar irado e que tipos de pensamentos nós
mesmos poderíamos ter sob tais circunstâncias. O que não é perdoável é a
incapacidade de Paulo de ver o contraste entre sua fantasia vingativa, por um
lado, e suas frequentes admoestações às pessoas da comunidade cristã de que
elas nunca deveriam se irar, mas, antes, mostrar somente a prática do amor,
da paciência e do perdão. Paulo age para com os seus convertidos cristãos da
mesma forma que um pai faz com relação aos seus filhos: a ira é reservada à
prerrogativa paterna, enquanto se espera dos filhos que eles sejam modelos
de um comportamento perfeito.

Paulo insiste repetidamente com suas comunidades cristãs que pensem


e se comportem somente de acordo com o que podemos chamar de seu lado
claro. Amor, paciência, perdão, gentileza, prudência e falta de ambição
pessoal são recomendados à prática e à observância. Ira, agressão, desejos ou
fantasias sexuais e emoções em geral devem ser negadas. A ética psicológica
de Paulo tem o efeito de desenvolver uma persona coletiva. E sua pressão
sobre seus cristãos convertidos para adotarem tal persona resultou na
repressão de tudo aquilo que a contradiz. Há muitas passagens onde Paulo
entrega esta persona às suas comunidades. Talvez algumas ilustrações sejam
úteis{43}.
Na passagem de Gálatas, quando Paulo expressa seu desejo de que seus
inimigos se castrem, ele avisa seus cristãos convertidos:

Ora, eu vos digo, conduzi-vos pelo Espírito e não satisfareis os


desejos da carne. Pois a carne tem aspirações contrárias ao espírito e
o espírito, contrárias à carne. Eles se opõem reciprocamente, de sorte
que não fazeis o que quereis. Mas se vos deixais guiar pelo Espírito,
não estais debaixo da Lei. Ora, as obras da carne são manifestas:
fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, rixas,
ciúmes, ira, discussões, discórdia, divisões, invejas, bebedeiras, orgias
e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos previno, como
já vos preveni: os que tais coisas praticam, não herdarão o Reino de
Deus. Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade,
benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio. Contra
estas coisas não existe lei. Pois os que são de Cristo Jesus crucificaram
a carne com suas paixões e seus desejos… Não desanimemos na
prática do bem, pois, se não desfalecermos, a seu tempo colheremos.
Por conseguinte, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com
todos, mas sobretudo para com os irmãos na fé{44}.

Obviamente, não teria sido necessário Paulo advertir seus convertidos


tão enfaticamente se não houvesse uma poderosa tendência dentro deles,
como há dentro de todos nós, de dar permissão exatamente àquelas paixões
que Paulo censura. Esta parte de nós forma a personalidade da sombra, e a
questão é, o que fazer com ela? Paulo está certo quando diz que se dermos
vazão a todos os nossos impulsos e completa licença às nossas emoções e
desejos, isto poderá ser destrutivo. Não se trata de nos permitirmos cometer
todo tipo de ação sem limites. O problema consiste em que, como já vimos,
uma identificação unilateral com o lado claro, e a repressão do lado escuro,
nada resolverá. Paulo nos aconselha para que “não desanimemos na prática
do bem”. Se isso fosse fácil Paulo não teria precisado dizê-lo. Há uma parte
em nós que recusa se identificar com um só lado, o qual Paulo concebeu
como bondoso. Um esforço unilateral condizente com o ego ideal de Paulo
somente irá reforçar e intensificar a divisão contida em nós e, então divididos,
nossa sombra se torna inimiga.

Em Romanos, Paulo, ainda mais enfaticamente, pede uma identificação


unilateral com a bondade: “A ninguém pagueis o mal com o mal; seja vossa
preocupação fazer o que é bem para todos os homens, procurando, se
possível, viver em paz com todos, porquanto de vós depende. Não façais
justiça por vossa conta, caríssimos, mas dai lugar à ira, pois está escrito: A
mim pertence a vingança, eu é que retribuirei, diz o Senhor”{45}.
Algo soa como uma advertência nesta passagem. É totalmente provável
que, em oposição ao mal, nós próprios nos tornemos mal, e a desforra é um
motivo perigoso. Como diz um antigo ditado espanhol, “a desforra é o gesto
mais doce nos lábios de quem está no inferno”. Mas Paulo vai longe demais
quando nos adverte para estarmos interessados somente nos ideais mais
elevados, manifestando-os aos outros, uma vez que tal façanha somente pode
ser realizada adotando-se uma persona que contradiga muito da nossa
verdade, e até dos nossos sentimentos indesejáveis. Por exemplo, o que foi
feito daquela parte de Paulo que sonhou com a vingança para seus
adversários com sua cruel sugestão de autocastração? Se nos identificarmos
somente com nossos “ideais mais elevados”, necessariamente direcionaremos
nossas partes menos nobres de nossa natureza para longe da consciência, e
ainda quando elas se manifestam consideravelmente em fantasia ou ação,
somos capazes de permanecer ingenuamente inconscientes de quem
realmente somos.
Paulo é quase sempre antagônico à emoção. Sua tendência é ver a ira, o
desejo sexual e as sensações eróticas como mal. Desde que as emoções se
originam no corpo, isto é, são acompanhadas por mudanças psicológicas
mensuráveis, isso acarreta uma rejeição da natureza física da criação humana.
Dessa forma Paulo cai num gnosticismo psicológico. Os gnósticos eram um
grupo religioso do início da era cristã que rejeitavam o universo material e o
ser físico do homem como inerentemente maus. A teologia de Paulo, assim
como a da Igreja primitiva de modo geral repudiavam o gnosticismo por
causa de sua identificação do mundo material com o mal, e se apoiavam
firmemente na atitude cristã de encarnação, pois a realidade física é parte do
plano de Deus. Mas, na sua ética e psicologia, Paulo demonstra o espírito
gnóstico que comanda seu interior. “Mas vesti-vos do Senhor Jesus Cristo e
não procureis satisfazer os desejos da carne”{46}, declara Paulo na epístola
aos Romanos. O sexo é encarado pela maioria como mal; nunca se considera
que a sexualidade possa ser uma expressão válida de amor e relacionamento.
Ela deve sempre ser uma licenciosidade, deve ser instigada por Satã, e nunca
é permitida, exceto nos confinamentos estritos do casamento, e ainda assim é
uma concessão à fraqueza humana enquanto o caminho mais elevado na vida
seria totalmente sem sexo{47}.

Paulo também ditou uma persona especial ao clero e às mulheres. Por


exemplo, em 1Tm ele diz dos anciãos:
É preciso, porém, que o epíscopo seja irrepreensível, esposo de
uma única mulher, sóbrio, cheio de bom senso, simples no vestir,
hospitaleiro, competente no ensino, nem dado ao vinho, nem briguento,
mas indulgente, pacífico, desinteresseiro. Que ele saiba governar bem
a sua própria casa, mantendo os seus filhos na submissão, com toda
dignidade. Pois se alguém não sabe governar bem a sua própria casa,
como cuidará da Igreja de Deus? Que ele não seja um recém-
convertido, a fim de que não se ensoberbeça e incorra na condenação
que cabe ao diabo. Além disso, é preciso que os de fora lhe deem um
bom testemunho, para não cair no descrédito e nos laços do diabo{48}.

Em outras palavras, os clérigos devem viver uma dose extra de


bondade. Sua persona deve ser tal que mesmo ninguém fora da Igreja possa
criticá-los. Fica claro que se convivendo com tal persona não se produzirá
um ser humano autêntico, mas apenas um homem que representa uma
postura. Ainda hoje, na prática, a maioria dos membros do clero se sente mais
ou menos compelida em vivenciar esses ideais, apresentando tal imagem às
pessoas. Suas comunidades, da mesma forma, têm a expectativa de tais
comportamentos do seu clero e não aceitam que eles se voltem para possuir
um ordinário punhado de barro nos seus sapatos.

Mas a maior dificuldade com a atitude tomada por Paulo é que não só
as ações, como também as emoções e fantasias são encaradas como mal. Para
Paulo, ter emoções e fantasias “ruins”, ainda que não expressas, é próprio de
uma pessoa má. Assim, o ruim não é justamente a expressão da raiva, mas a
raiva em si; não exatamente uma vida sexual promíscua, mas as próprias
fantasias sexuais, que provêm de Satã.
Entretanto, nossas emoções e fantasias são incontroláveis. São o que
são e vêm de fontes inconscientes. Todas as pessoas, inclusive Paulo, têm
fantasias obscuras de tempos em tempos, e enquanto pudermos negá-las,
reprimi-las ou utilizá-las como acusação a algum poder demoníaco ou a outra
pessoa, não há como nos livrarmos delas. As nossas fantasias e emoções que
nos amedrontam pertencem ao fundo obscuro e sombrio do inconsciente. Se
não podemos encará-las e aceitá-las, tornamo-nos pessoas divididas. Ao dizer
que não é a ação, mas o pensamento em si mesmo que consiste em pecado, a
ética de Paulo coloca o homem numa posição intolerável.

Um interessante contraste à ideia de Paulo sobre o que torna um


homem santo, pode ser encontrado nos escritos de um santo homem, indígena
sioux, Lame Deer, que escreve:

Doença, cadeia, pobreza, alcoolismo — eu tive que experienciar


tudo isto por mim mesmo. O pecado faz o mundo girar. Você não pode
ser tão imutável, tão inumano querendo ser puro, como se sua alma
estivesse embrulhada num saco plástico durante todo o tempo. Você
tem que ser ambos, Deus e diabo. Ser um homem curandeiro significa
estar exatamente no meio da confusão, e não, defender-se dela.
Significa experienciar a vida em todas as suas fases. Significa não ter
receio de ser profundamente marginalizado e bancar o bobo uma vez
ou outra. Isto também é sagrado{49}.

E em outro lugar ele anota:


Os brancos pagam o orador para ser “bom”, saber comportar-se
em público, usar colarinho, manter distância de certos tipos de
mulheres. Mas ninguém paga o índio curandeiro para que seja bom,
comportar-se e agir respeitavelmente. O wicasa wakan (homem santo)
apenas age de acordo com ele mesmo. Foi-lhe dada a liberdade — a
liberdade de uma árvore ou de um pássaro. Esta liberdade pode ser
bela ou feia; não importa muito{50}.
A atitude de Paulo com relação às mulheres e à persona pode ser
encontrada na primeira epístola a Timóteo. Depois de ter colocado as
mulheres nos seus devidos lugares, inferiores aos homens, ele acrescenta:
“Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que, com modéstia,
permaneça na fé, no amor e na santidade”{51}.
Tal passagem nos faz querer saber o que aconteceu com a salvação
através de Cristo. Já que as mulheres estão salvas pela maternidade e por uma
vida modesta, temos que assumir que a salvação através de Cristo é reservada
somente aos homens. Nem ao menos nos é dito o que acontece às mulheres
que são incapazes, por uma ou outra razão, de ter filhos, ou que sejam
atraídas para seguir uma vida diferente da vida da maternidade. Pela vida
devotada que a mulher tem que viver, é óbvio que não sobra para ela o direito
à sombra. Mas quem pode ter sempre uma “fé, caridade e santidade
constantes? ” O que uma mulher faz quando fica zangada, ressentida,
frustrada, irritada, ou apenas exausta de dar o melhor de si mesma? Qualquer
que já tenha tido a tarefa de se responsabilizar pelo desenvolvimento de
crianças pequenas, sabe da impossibilidade de estar sempre sendo um modelo
de santidade, e de como suas emoções escuras podem emergir, uma vez ou
outra, sob o cotidiano de uma maternidade ou sob o estresse de um
casamento falido. Mas Paulo não oferece nenhuma alternativa à mulher,
sendo resoluto em cortar-lhe seu lado obscuro e fazendo com que ela se sinta
mal, caso o demonstre. Isto não é apenas impossível, como também
indesejável. A mulher, como o homem, precisa do lado escuro de si mesma
para se tornar um indivíduo. Além do mais, não é somente a raiva que
incomoda as crianças, mas a raiva reprimida, não reconhecida.
Instintivamente os filhos captam a raiva quando é expressa de alguma forma,
mas não conseguem definir o tipo de rejeição que ocorre em pais que são
incapazes de encarar seu lado sombrio.
Não pretendo aqui ser muito duro para com Paulo. Ele deu muitas
contribuições positivas para a vida cristã, e em muitos aspectos foi uma
pessoa marcante e exemplar. Além do que, não é o próprio Paulo o
responsável pelas atitudes unilaterais que ilustrei, mas, de modo geral, a
Igreja Primitiva. Paulo diz essas coisas porque elas constituem a atitude
dominante da Igreja primitiva que ele representa. O problema não é que
Paulo seja uma pessoa má, mas uma personalidade historicamente
condicionada que, apesar de ter sido inspirado por algumas ideias, não
acompanhou as opiniões coletivas que prevaleceram a respeito do problema
psicológico da persona e da sombra. Jesus estava suficientemente consciente
para ser capaz de transcender o pensamento coletivo de sua época. Paulo não
foi capaz disso. É uma pena que a Igreja preferiu seguir os encaminhamentos
de Paulo ao ensinamento de Jesus neste assunto. Mas isso foi inevitável.
Dado o nível geral de consciência da Igreja, certamente os ensinamentos de
Jesus seriam desmerecidos, enquanto as palavras de Paulo seriam seguidas,
considerando-se onde estavam as pessoas naquela época. Todavia, é uma
pena, já que uma boa parte do dano psicológico poderia ter sido evitado se os
ensinamentos de Jesus tivessem sido seguidos em prol da dinâmica da
personalidade humana.

Vimos que Jesus sabia sobre a persona e que ele denunciou o perigo
espiritual da identificação com a máscara. Na citação de Mateus que já
consideramos, vimos que Jesus comparou as pessoas identificadas com a
persona com um sepulcro caiado, que por fora parece bonito, mas por dentro
está cheio de ossos de mortos e de toda imundície. Como pudemos observar,
esta corrupção interna é como a personalidade da sombra quando vista em
contraste com a persona. A questão é como entrar em contato com a sombra.
Vimos que reprimi-la não é uma solução, tampouco identificarmo-nos com
ela e dar vazão plena a nossos impulsos e obscuridade. Isso não seria uma
integração ou solução para o problema, mas simplesmente uma mudança de
um oposto para outro. A divisão interna ainda permaneceria. Felizmente
Jesus nos deu algumas sugestões de como lidar com o problema.
Consideremos este versículo de Mateus: “Assume logo uma atitude
conciliadora com o teu adversário, enquanto estás com ele no caminho, para
não acontecer que o adversário te entregue ao juiz e o juiz ao oficial de
justiça e, assim, sejas lançado na prisão. Em verdade te digo: dali não sairás,
enquanto não pagares o último centavo”{52}. Naquela época era costume que
os adversários num caso judicial viajassem juntos para a corte, na esperança
de que resolvessem a disputa e não precisassem enfrentar o julgamento.
Assim, teríamos que acatar esta fala de Jesus como um aviso para que esse
costume fosse seguido. A dificuldade da sua interpretação está na dureza das
palavras quanto ao seu valor; poderia ter sido um aviso comum que qualquer
poderia ter dado. Há também a dificuldade da última sentença: se não
fizermos isto, diz Jesus, o árbitro nos enviará à prisão.

Entretanto, a passagem contém um sentido extraordinário se a


tomarmos do ponto de vista psicológico. Neste caso o oponente com que
temos de entrar em acordo está dentro de nós; trata-se da personalidade da
sombra que se opõe à nossa persona e com a qual temos que nos relacionar
de alguma forma, e Jesus está nos dizendo que nossa tarefa é fazer as pazes
com nosso adversário interior no decorrer de nossas vidas. Se não o fizermos,
haverá um ajuste de contas final e nós o estaremos pedindo a Deus. Notemos
que não é o adversário, a sombra, que será punido, mas o ego. É tarefa da
consciência encarar, reconhecer e tentar a reconciliação com todos os
aspectos da nossa personalidade. É o nosso trabalho ou opus psicológico, e se
falharmos nesta tarefa, evidentemente o esperaremos de Deus.
O castigo de que fala Jesus na sua imagem é o de ser jogado na prisão
até que o último centavo seja pago. É de crucial importância o processo de se
tornar uma pessoa psicologicamente consciente, ligando todos os aspectos da
personalidade com a vida consciente; recusamos esta tarefa na vida somente
quando nos vemos em risco. Tornar-se uma pessoa consciente é um árduo
trabalho, mas o preço a ser pago se permanecermos inconscientes é muito
maior.

Outra passagem de Jesus bastante conhecida sobre o problema da


sombra é a parábola do filho pródigo, encontrada em Lc 15,11-32:

“Um homem tinha dois filhos. O mais jovem disse ao pai: ‘Pai,
dá-me a parte da herança que me cabe’.
E o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, ajuntando
seus haveres, o mais jovem partiu para uma região longínqua,
dissipando sua herança numa vida devassa. E gastou tudo. Sobreveio à
região uma grande fome e ele começou a passar privações. Foi, então,
empregar-se com um dos homens da região, que o mandou para os
campos cuidar dos porcos. Ele queria matar a fome com as bolotas que
os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. E caindo em si, disse:
‘Quantos empregados de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui,
morrendo de fome! Vou-me embora, procurar meu pai e dizer-lhe: Pai,
pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu
filho. Trata-me como um dos teus empregados’. Partiu, então, e foi ter
com o pai. Ele estava ainda ao longe, quando o pai viu-o, encheu-se de
compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos. O
filho, então, disse: ‘Pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou
digno de ser chamado teu filho’. Mas o pai disse aos servos: ‘Ide
depressa, trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe um anel
no dedo e sandálias nos pés. Trazei o novilho cevado e matai-o;
comamos e festejemos, pois, este meu filho estava morto e tornou a
viver; estava perdido e foi reencontrado! ‘ E começaram a festejar.
O filho mais velho estava no campo. Quando voltava, já perto de
casa ouviu músicas e danças. Chamando um servo, perguntou-lhe o
que estava acontecendo. Este lhe disse: ‘É teu irmão que voltou e teu
pai matou o novilho cevado, porque o recuperou com saúde’. Então ele
ficou com muita raiva, e não queria entrar. O pai saiu para suplicar-
lhe. Ele, porém, respondeu ao pai: ‘Há tantos anos que te sirvo, e
jamais transgredi um só dos teus mandamentos, e nunca me deste um
cabrito para festejar com os meus amigos. Contudo, veio este teu filho,
que devorou teus bens com prostitutas, e para ele matas o novilho
cevado! ‘ Mas o pai lhe disse: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o
que é meu é teu. Era preciso que festejássemos e nos alegrássemos,
pois o teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi
reencontrado!’ “

Novamente defrontamo-nos com o problema da ambiguidade humana.


Todos nós temos dentro um irmão mais velho, que se conforma às
expectativas sociais, e um irmão mais novo, um lado sombrio que quer
“viver”. As consequências de se dar vazão a esse lado sombrio são
desastrosas; o comportamento do filho pródigo simplesmente o conduz à
ruína. Mas, no momento crucial, o irmão mais novo se torna consciente. A
parábola nos diz que ele “caiu em si”. “Cair em si” é ver a sombra, a
realidade obscura que somos, e este é o momento em que a salvação e a
totalidade são possíveis.

A parábola conclui com a tentativa do pai de reconciliar os dois filhos


hostis, através de sua própria atitude amorosa. Não fica claro se o coração
duro do irmão mais velho amolece e faz com que ele aceite seu irmão caçula
ou não. Se ele o tivesse feito, isso acarretaria uma reconciliação interna das
duas metades da personalidade, o estabelecimento de uma ponte de salvação
entre a conformidade social e a sombra rebelde.
Ao sugerir que a parábola possa ter essa interpretação psicológica, não
estou querendo dizer que esse seja o único significado da parábola. A beleza
dos ensinamentos de Jesus é que a maior parte do que ele disse tem
significado em diversos níveis: social, ético, teológico e psicológico. Mas é o
significado psicológico que aqui nos interessa.

Uma razão pela qual o problema da sombra tem sido ignorado pela
Igreja é que ele nos leva a situações paradoxais e nos confronta com a
necessidade de uma ética paradoxal. Não gostamos de paradoxos, e a
tradicional consciência cristã em particular prefere que as coisas sejam
traduzidas em preto ou branco. Infelizmente, a aceitação do nosso lado
sombrio não permite isso, pois a sombra, com todo o seu potencial para o
mal, também contém o que é necessário para o bem mais elevado: a
santidade. Eis a razão pela qual a discussão sobre a sombra sempre leva a um
paradoxo.
Um exemplo disso pode ser encontrado em Lc 7,36-50, uma estória que
já comentamos brevemente. Nesta envolvente estória Jesus está jantando com
um dos fariseus, quando uma mulher de má reputação chega até ele, chora e
banha seus pés com lágrimas. O fariseu observa a cena com espanto e diz a si
mesmo que se Jesus soubesse quem era essa mulher ele nada faria por ela.
Jesus intui o que o fariseu está pensando e o desafia. “Suponha que haja duas
pessoas”, diz ele, “cada qual devendo uma soma de dinheiro a um credor, um
devendo o dobro que o outro devia. Agora suponha que o credor tenha
perdoado a ambos. Qual deles seria mais agradecido? ” Resta ao fariseu
responder que o que mais foi perdoado amaria mais o credor. “Este, diz
Jesus, é o caso dessa mulher. Ele ainda acrescenta que quando chegou à casa
do fariseu ninguém banhou seus pés, mas aquela mulher os lavou com as
próprias lágrimas por causa do seu amor e gratidão. Então ele faz esta
afirmativa paradoxal: ‘Por esta razão, eu te digo, seus numerosos pecados lhe
estão perdoados, porque ela demonstrou muito amor’ ”.

O paradoxo do qual Jesus fala destrói qualquer tentativa de se ver as


coisas em preto ou branco. Expressar nosso lado sombrio, como o fez aquela
mulher, é cometer muitos pecados. Jesus deixa claro que do seu ponto de
vista a mulher teve que mudar seu modo de vida. Por outro lado, fazê-lo de
modo seguro, como o fariseu, e permanecer alheio à potencialidade de
pecado que há cm nós e nossa necessidade de perdão, é cortar a capacidade
de compaixão e amor. Se apenas agirmos com cuidado e proteção na vida,
nunca chegaremos a saber quem somos; a vida é para ser vivida na sua
totalidade se quisermos nos tornar íntegros, e é melhor sermos perdoados do
que sermos autojustificados.
O ponto de vista de Jesus é talvez melhor sintetizado num versículo
frequentemente polêmico de Mt 5,48: “Portanto, deveis ser perfeitos como o
vosso Pai Celeste é perfeito”. O problema aqui é que a maior parte dos
leitores perde o significado da palavra grega traduzida por “perfeito”.
Perfeito, para nós, significa sem mancha ou marca; essa ideia nos sugere o
tipo de perfeição sem culpa que Paulo incutia em seus cristãos convertidos;
isto é, uma vida sem qualquer desvio, ira ou pensamentos e desejos egoístas.
Uma vida assim como vimos, é psicologicamente impossível, e se nos
embrenharmos nesse tipo de perfeição, somente criaremos uma divisão em
nós. Mas o termo grego em Mt 5,48 não se refere à pureza, e sim à
integridade. A palavra traduzida para o português como “perfeito” é, em
grego, teleios, que significa levado à integridade. Ela é derivada da palavra
grega telos, que significa o final ou chegada, e é a palavra da qual deriva
nossa palavra teleologia, que é o ramo da filosofia que estuda a meta final da
vida. Literalmente o versículo seria traduzido assim: “Portanto, deveis ser
íntegros como vosso Pai Celeste é íntegro”.
O que Jesus urge, portanto, é que nossas vidas e personalidades tornem-
se íntegras, atinjam a meta final para a qual foram destinadas. Isso envolverá,
necessariamente, o reconhecimento da sombra e a aceitação dessa parte de
nós mesmos como parte inevitável da nossa totalidade. A solução do
problema da sombra que Jesus sugere, então, envolve o crescimento da
consciência psicológica e a maturidade espiritual pelo reconhecimento do
nosso lado obscuro tanto quanto do nosso lado claro; ele não nos chama à
repressão da sombra e à identificação com a persona.

Assim, a diferença essencial entre os ensinamentos de Paulo e os de


Jesus pode se expressar tal como: Paulo nos incita a uma expressão unilateral
de “bondade”; Jesus faz com que nos tornemos completos e íntegros. A ética
psicológica de Paulo pode ser apenas composta por repressão, isto é, por uma
sistemática inconsciência da sombra. A ética de Jesus pode apenas ser
alcançada tornando-se consciente da sombra, enfrentando uma consequente
tensão, delineando um processo de desenvolvimento que se processa apenas
quando a consciência da sombra é alcançada. A atitude de Paulo, como
pudemos observar, é expressão da atitude geral de sua época. Com o passar
dos séculos a Igreja não caminhou significativamente nesse ponto. Tendo isso
em vista, a Igreja não alcançou a consciência mais elevada de Jesus, mas
permaneceu num nível psicológico inferior. O resultado foi a perpetuação e
agravamento da divisão do homem, em vez da solução do problema da
sombra.
É por isso que o Novo Testamento finaliza onde finaliza: com o livro
do Apocalipse. Nesse livro há uma clivagem e dualidade metafísicas entre
Deus e Satã, o que reflete o problema sem solução da própria alma do
homem. Acabada a bênção de Jesus dos evangelhos, cuja atitude foi capaz de
unir os opostos, temos ao invés disto uma representação de bondade
extremamente unilateral, que certamente constela seu oposto. No Apocalipse
vemos revelado não a natureza última de Deus, mas o problema não resolvido
do homem projetado no domínio metafísico.
Sem dúvida, muitas pessoas objetarão contra tal interpretação dos
ensinamentos de Jesus e preferirão a relativa clareza e simplicidade do ponto
de vista paulino. Uma das razões é que não estamos habituados a ter uma
dimensão psicológica do cristianismo; outra seria o quão difícil parece o
caminho de Jesus, sendo um tanto incabível esperarmos que a humanidade o
siga. Jesus mesmo viu que seu caminho não era fácil: “Entrai pela porta
estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição.
E muitos são os que entram por ele. Estreita, porém, é a porta e apertado o
caminho que conduz à Vida. E poucos são os que o encontram”{53}.

Sem dúvida, o caminho que Jesus nos prescreveu é um caminho que


exige muito de nós. Tornar-se psicologicamente consciente e encarar
honestamente a própria ambiguidade pode ser difícil e doloroso, ê de se
esperar que, desde o começo, aqueles que adotaram o nome de Jesus
conseguiram evitar ver as consequências de seu ensinamento sobre tudo isso.
Pois o caminho de Jesus é um caminho individual. Ele nunca pode ser
percorrido coletivamente ou em massa. É por isso que Jesus o compara à
“porta estreita”, pois somente uma única pessoa por vez pode atravessá-la;
em contraste, a multidão pode descer pelo amplo e espaçoso caminho que
leva à perdição. Tão logo alguém reconheça a sombra pessoal, tal
personalidade inicia o caminho para a sua consciência individual. Apesar do
sofrimento, é a porta estreita que conduz à Vida.
Ainda poder-se-ia argumentar que dificilmente podemos esperar que o
comum da humanidade preencha a demanda psicológica da ética de Jesus.
Entregues a si mesmas, pode-se dizer, as pessoas certamente sucumbirão ao
pecado, arruinando suas vidas e negando seu criador. Melhor seria dizer a
elas o que fazer, como agir e o que evitar, em vez de admoestá-las para uma
crescente consciência psicológica, que a maioria das pessoas não quer.

Este ponto de vista foi eloquentemente discutido pelo Grande


Inquisidor, no capítulo do mesmo nome da novela de Dostoievsky, Os Irmãos
Karamazov. Nessa fantasia Cristo retoma, e longe de ser recebido com
alegria pelo Grande Inquisidor, que é líder da Igreja que sustenta o nome de
Cristo, ele foi aprisionado. O velho visita Cristo na prisão, e o acusa de ter
voltado para perturbar e quebrar o trabalho que a Igreja vinha fazendo em seu
nome. A Igreja, diz o Grande Inquisidor, “corrigiu” o trabalho de Cristo.
Cristo colocara sobre a humanidade a exigência impossível de as pessoas se
tornarem livres, o que certamente as faria miseráveis, e somente poucos
seriam capazes de corresponder de alguma forma. Felizmente a Igreja viu a
difícil condição do homem e fez as necessárias correções nos ensinamentos
de Jesus. A Igreja tinha a felicidade do homem em mente — Cristo não — e
então tirou-lhe o peso da liberdade. Agora, diz o Grande Inquisidor, Cristo
não tem o direito de voltar e acrescentar qualquer coisa ao que ele já havia
dito.

O Grande Inquisidor existe em qualquer lugar onde os homens


substituam um modo de viver coletivo e inconsciente pela ética livre de
Jesus. O Estado pode se tornar o Grande Inquisidor quando rouba a liberdade
do indivíduo, ainda que o faça em nome da felicidade de seu povo. A Igreja
também pode se tornar o Grande Inquisidor, e Paulo, sem perceber, iniciou o
processo, quando entregou às suas comunidades a exigência de que fossem
boas, mais do que conscientes.

Como Dostoievsky deixa claro, o elemento destrutivo na atitude do


Grande Inquisidor é que ele retira a liberdade do homem. A ética de Jesus,
apesar de sua exigência, não retira a liberdade do homem, liberdade que
envolve a necessidade de assumirmos o peso da escolha e do conflito
psicológicos, escolha e conflito que perpassam todos os ditos e ações de
Jesus. Quando o filho pródigo decidiu desperdiçar sua vida, o pai, na
parábola, não tentou impedi-lo, assim como Deus não interferiu na liberdade
da mulher, que lavou os pés de Jesus, em levar uma vida de pecado. E
quando o jovem rico foi embora tristemente depois de Jesus ter dito a ele que
deveria vender tudo o que possuía e dar aos pobres, a estória não nos conta
que Jesus correu atrás dele na rua pedindo para que ele mudasse de ideia{54}.
O maior valor ético, de acordo com Jesus, é tornar-se uma pessoa livre, e isto
significa ser uma pessoa consciente.
A ética de Paulo tira a liberdade do homem. Quando somos impelidos a
estar de acordo com o padrão de bondade que a autoridade coletiva nos
impõe, e a reprimir tudo o que vai contra essa consciência coletiva, perdemos
nossa liberdade; não se espera mais que sejamos pessoas conscientes,
responsáveis por nós mesmos. Na ética de Jesus o homem é deixado diante
das alternativas que a vida lhe coloca, o problema da sua própria
ambiguidade e a necessidade de uma honestidade psicológica. O crescimento
da consciência tem para Jesus um valor muito mais alto do que a
conformidade à “bondade”. A liberdade é o mais alto valor psicológico
porque ela por si só possibilita o desenvolvimento da consciência e do amor.
Pode ser bem verdade que este seja o motivo por que somos criados como
seres ambíguos, pois a ambiguidade é a pré-condição do desenvolvimento
psicológico consciente. Existe uma razão pela qual somos criados com uma
natureza dualística: a dualidade é a pré-condição para o nosso
desenvolvimento psicológico consciente.
7.
O problema da sombra e do mal no estranho caso de

“O Médico e o Monstro”

Há um brilhante estudo sobre o mal e a sombra na pequena novela de


Robert Louis Stevenson, O Estranho Caso de o Médico e o Monstro{55}.
Escrita por volta de 1886, esta excitante estória de mistério trata, de maneira
notável, da natureza ambígua da espécie humana, já que a estória de
Stevenson antecipou Freud por uma década e Jung mais ainda do que isso.

Estranho Caso de o Médico e o Monstro é uma estória que poucas


pessoas leram, mas que é familiar para quase todos. “Jekyll e Hyde” se
tornou parte da nossa conversa diária, que faz todos saberem, por exemplo, o
que significa uma manchete de revista como “Terá sido o estrangulador de
Hillside um Jekyll e Hyde?”{56} É uma pena que muita gente não tenha lido o
conto de fato, pois não somente é uma estória interessante, literariamente
falando, já que escrita por um brilhante contista, mas também um grande
insight psicológico no tocante ao problema da sombra. A estória deve ter sido
especialmente excitante quando os ingleses e americanos a leram pela
primeira vez no final do século XIX; é uma estória de mistério, e a chave do
mistério — que o médico e o monstro são uma e a mesma pessoa — só é
revelada ao leitor bem no final. Quando uma estória tem uma ressonância
significativa para as pessoas em geral, a ponto de quase todos terem ouvido
falar de seu tema central, podemos estar certos de que o conto tem qualidade
arquetípica. Neste caso o arquétipo envolvido é o da sombra, e O Médico e o
Monstro postou-se firmemente em nossa imaginação comum. Em algum
lugar dos nossos corações sabemos que há um Jekyll e Hyde dentro de cada
um de nós, e é como se pessoalmente não tivéssemos um discernimento da
nossa própria sombra. Sendo os arquétipos tão numinosos, isto é, tão
carregados de energia emocional, eles nos fascinam, ainda que não os
compreendamos.
A natureza arquetípica do conto será exemplificada mais adiante, pela
maneira como a estória foi escrita. No seu livro autobiográfico Across the
Plains{57}, Stevenson nos diz como escreveu suas estórias. Ele nos conta que
foi muito bem assessorado pelas suas “pessoinhas” ou “duendes”, a quem
sempre pediu auxílio quando o dinheiro — e, portanto, uma outra estória —
tornou-se necessário. “Meus duendes insones”, diz ele, “realizam para mim
um ‘serviço honesto’, e delineiam contos que eu nunca poderia fazer por mim
mesmo. Eles trabalham a noite toda se for preciso, e até nos sonhos, para
definir enredos e personagens que preencherão minha imaginação com
pistas necessárias para a elaboração dos contos”. Assim aconteceu com o
estranho caso de O Médico e o Monstro. “Há muito estive tentando escrever
uma estória sobre este assunto”, diz Stevenson, “para encontrar um corpo,
um veículo para aquela sensação intensa da existência dupla do homem que
às vezes precisa aflorar e massacrar a mente de toda criatura pensante…
Durante dois dias fiquei quebrando a cabeça por algum enredo ou algo
assim, e na segunda noite sonhei com a cena na janela, e em seguida a cena
se dividiu em duas, na qual Hyde, perseguido por algum crime, tomou a
poção e sofreu a transformação na presença dos perseguidores”. É evidente
que Stevenson primeiro sonhou com Jekyll e Hyde, o que indica que o
próprio inconsciente lhe forneceu diretamente o tema da estória.

Em que medida o sonho de Stevenson a respeito de Hyde e sua


preocupação geral com o problema da sombra é uma reflexão de suas
próprias lutas psicológicas, e em que medida Stevenson, como artista, está
preocupado com esse problema geral da espécie humana, não
aprofundaremos aqui, mas o leitor interessado poderá ver um excelente
estudo sobre Stevenson lendo o livro de Barbara Hannah, Striving for
Wholeness{58}. O que nos interessa agora é o conto e o que ele tem a nos dizer
sobre o problema da sombra e do mal. Devido ao fato de a maior parte das
pessoas provavelmente não ter lido a estória, ou talvez tê-la lido há algum
tempo, incluo aqui uma sinopse do conto. O leitor já familiarizado com a
estória poderá ler diretamente o comentário que se segue à sinopse.

Sinopse do estranho caso de “O Médico e o Monstro”

A estória começa com um advogado, Sr. Uttterson, deparando-se


com o mistério de uma porta. Utterson, descrito como um homem
“magro, alto, empoeirado, tristonho e, ainda de algum modo, amável”,
está dando seu passeio semanal com um amigo, Richard Enfield, “um
homem muito conhecido na cidade”. Nessa ocasião particular seu
passeio os levou a uma “ruazinha num quarteirão movimentado de
Londres”. Lá havia uma porta misteriosa, sem sineta ou aldrava,
“empolada e desbotada”, toda marcada pelos escolares, e em estado
de estrado geral, sem que por uma geração tivesse aparecido alguém
para consertar esses estragos. “Você tinha reparado naquela porta? ”
pergunta Enfield ao modesto Utterson, e prossegue contando uma
estranha estória. Enfield estava voltando para casa tarde da noite
quando, de repente, viu um jovem baixo, de constituição forte, andando
pesadamente a passos largos e, da outra direção, uma garotinha
correndo velozmente rua abaixo. Os dois se encontraram e o homem
socou a menina e, calmamente, começou a pisotear o corpo dela,
deixando-a no chão a gritar. “Foi pavoroso assistir”, comentou
Enfield. “Não parecia um homem; era como se fosse um amaldiçoado
Juggernaut{59}”. A menina havia gritado, e seus berros atraíram as
pessoas que vieram correndo, inclusive Enfield, que correu atrás do
ofensor e o trouxe de volta para a cena horripilante. A menina não
estava machucada, mas havia algo no homenzinho que fez despertar a
fúria dos que lá estavam. Enfield viu um médico que havia sido
chamado “ficar pálido como doente e com desejo de matá-lo”. E as
mulheres estavam “selvagens como harpias”. “Nunca vi um círculo de
fisionomias tão odiáveis”, Enfield acrescentou, “e o homem no meio
com uma espécie de frieza negra, zombeteira… agindo como se fosse
realmente Satã”.
Já que matar o homem estava fora de cogitação, a multidão exige
dele algo para a família da criança, a fim de reparar o que fez, e o
horrendo homem acaba concordando em pagar cem libras. Ele então
tira uma chave, entra pela porta estranha, e logo aparece com um
cheque que provava ser verdadeiro, com fundos para aquela soma de
dinheiro. O cheque estava assinado por um homem muito conhecido na
cidade, contou Enfield, aquele que é “o máximo da retidão e justeza…
uma das pessoas que age de acordo com o que chamamos de maneiras
corretas”. Enfield supôs que se tratasse de um caso de extorsão, e que
aquele homem repugnante tivesse feito algo ao bom homem, talvez
através do seu vigor, mas em respeito ao nome do homem correto da
cidade, Enfield parou de fazer mais perguntas.
Utterson está mergulhado em seus pensamentos. “Há um ponto
sobre o qual eu gostaria de perguntar”, diz ele, “…o nome daquele
homem que pisoteou a criança”.
“Era um homem chamado Hyde”, Enfield responde. “Não é fácil
descrevê-lo. Há algo errado em sua aparência; algo desagradável,
alguma coisa detestável. Nunca vi homem tão detestável e ainda
desconheço a razão disso. Ele deve ser deformado em algum lugar, ele
passa uma forte sensação de deformidade, no entanto eu não poderia
especificar o ponto”.
Utterson está chocado, pois reconhece o nome do homem que
assinou o cheque! Como veremos a seguir, o homem é cliente de
Utterson, o respeitável Dr. Henry Jekyll. Os dois amigos fazem um
acordo de não mais tocarem naquele assunto e Utterson volta para
casa pensativo, abre o cofre e retira o testamento do Dr. Henry Jekyll.
Esse estranho documento, elaborado exclusivamente pelo médico, já
que Utterson havia se recusado a ter qualquer coisa com isso,
ordenava que em caso de desaparecimento dele por três meses, todos
os bens de Jekyll seriam conferidos a Hyde, sem qualquer
questionamento. O testamento já havia sido detestável para Utterson
antes, mas agora que ele sabe que Hyde é um homem de caráter
sinistro e deplorável, o documento parece-lhe ainda pior e mais
inexplicável do que nunca.
Com toda sua agitação, Utterson vai à casa do Dr. Lanyon,
amigo mútuo do Dr. Jekyll e dele, e lhe pergunta se conhece o
misterioso Hyde. Mas tudo o que Utterson descobre é que os dois
médicos, que já foram amigos bem próximos, agora estão distanciados.
“Faz mais de dez anos que Henry Jekyll tornou-se muito esquisito”, diz
Lanyon a Utterson. “Ele começou a perturbar minha cabeça mais e
mais… Vi e tenho-o visto muito pouco. Um palavrório tão pouco
científico”, exclama Lanyon, e sua face “tornou-se repentinamente
rubra”. Utterson volta para casa, mas não consegue dormir. Em sua
mente torturada ele continua vendo a imagem de Hyde, mas,
certamente, nunca viu sua face”. Se ao menos pudesse ver Hyde”,
pensa Utterson, “talvez o mistério fosse desvendado e eu pudesse
dormir novamente”. Então Utterson começa a frequentar a área ao
redor da porta misteriosa que leva ao laboratário de Jekyll e,
finalmente, seu empenho não é em vão quando vê um homem jovem,
pequeno, aparentemente deformado, que se aproxima da porta e saca a
chave.
“Utterson aproximou-se e o tocou no ombro assim que ele
passou. ‘Mr. Hyde, suponho?’ “
“Mr. Hyde deu um salto para trás com uma sonora parada
respiratória. Mas seu medo foi apenas momentâneo e, mesmo não
olhando o advogado face a face, respondeu friamente: ‘Este é o meu
nome. O que você quer?’ “
“ ‘Vejo que você está entrando’, respondeu o advogado. ‘Sou um
velho amigo do Dr. Jekyll, Utterson da rua Gaunt. Você deve ter
ouvido meu nome. Foi conveniente encontrá-lo agora, pois acho que
você poderia me receber’ “.
“ ‘Você não encontrará o Dr. Jekyll. Ele não está em casa’,
respondeu Mr. Hyde, virando a chave. E então, de repente, mas ainda
sem encará-lo, ‘Como você soube a meu respeito?’ “
“ ‘De sua parte’, disse Utterson, ‘poderia fazer-me um favor?’ “
“ ‘Com prazer’, respondeu o outro. ‘Em que posso servi-lo?’ “
“ ‘Será que o senhor poderia deixar-me ver seu rosto?’
perguntou o advogado”.
“Mr. Hyde pareceu hesitar, mas então, como que sob uma
repentina reflexão, encarou-o com ar de desafio, e ambos se fixaram
por alguns segundos. ‘Agora poderei reconhecê-lo novamente’, disse
Utterson. ‘Poderá ser útil’ ”.
Sim, retrucou Mr. Hyde, ‘o nosso encontro veio a calhar, e à
propos, o senhor deveria ter meu endereço’. E lhe deu o número de
uma rua no bairro de Soho”.
“ ‘Meu Deus!’, pensou Utterson, ‘Será que ele também está
pensando a respeito do testamento?’ Mas não expressou essa
preocupação, e apenas resmungou algo em resposta ao endereço”.
“ E agora’, disse o outro, ‘como soube a meu respeito?’ ”
“ ‘Pela descrição’, foi a resposta”.
“ ‘Descrição de quem?’ “
“ ‘Temos amigos em comum’, disse Utterson”.
“ ‘Amigos em comum?’, repetiu Mr. Hyde um tanto asperamente.
‘Quais são eles?’ “
“ ‘Jekyll, por exemplo’, disse o advogado”.
“ ‘Isso ele nunca lhe disse’, gritou Mr. Hyde, com um ímpeto de
ira. ‘Não pensei que o senhor pudesse estar mentindo’ “.
“ ‘Ora’, disse Utterson, ‘esta não é uma linguagem apropriada’
”.
“O outro ficou transtornado e deu uma risada selvagem para, no
momento seguinte, com uma extraordinária rapidez, abrir a porta e
desaparecer pela casa adentro”.
Utterson viu Hyde, mas sua mente não está mais aliviada que
antes, e por mais feio que fosse Hyde, nada “podia explicar aquela
estranha repugnância, aversão e medo com que Utterson o encarara.
‘Ó meu pobre Henry Jekyll’, Utterson diz a si mesmo, ‘olhando para
seu novo amigo é como se eu pudesse ver o sinal de Satã encravado em
seu rosto’
Desse modo Utterson decide visitar Henry Jekyll. Poole, o
mordomo, o reconhece e o recebe, mas o Dr. Jekyll não está. Utterson
acha isso um tanto estranho, desde que viu Hyde entrando pela porta
ao lado, mas Poole conta-lhe que até os empregados praticamente
nunca veem Hyde, eles têm instruções para obedecer-lhe, e que Hyde
frequentemente entra e sai pela porta do laboratório.
Utterson fica intrigado com esse fato. Assim que chega em casa,
vem-lhe à mente a possibilidade de Jekyll estar envolvido num grande
problema. Ele supõe que o horroroso Mr. Hyde é capaz de extorquir
Jekyll por alguma razão. Além do mais, o que aconteceria se Hyde
soubesse que o testamento lhe deixa todos os bens? O resultado disso
seria um desastre! Utterson decide que deve ajudar seu amigo Henry
Jekyll. “Se Jekyll me permitir, se Jekyll me deixar”.
Duas semanas depois Utterson é convidado para um jantar, e
finalmente tem a oportunidade de conversar com Jekyll. Então pela
primeira vez no conto encontramos com a figura central de Henry
Jekyll, descrito como “um homem de meia-idade, alto e bem-
apessoado, com uma expressão de dissimulação talvez, mas com todos
os sinais de capacidade e gentileza — daria para se notar em seu jeito
que reservava uma doce e sincera afeição por Utterson”.
Utterson consegue permanecer depois que os outros convidados
se retiram, e finalmente pode conversar com seu amigo e cliente a
respeito do testamento e do misterioso Mr. Hyde. Mas ele recebe
poucos esclarecimentos. Com relação ao testamento, Jekyll não quer
discutir o assunto, mas quando o nome de Hyde é levantado, e Utterson
conta como encontrou o homem, “a simpática fisionomia do Dr. Jekyll
torna-se pálida até os lábios, e seus olhos ficam sombrios. ‘Não quero
ouvir mais nada’, diz ele. ‘Este é um assunto que achei que tivéssemos
combinado evitar’ “.
Utterson insiste, e Jekyll afirma que seu relacionamento com
Hyde realmente é doloroso, e sua posição é estranha, mas este é um
problema que “não pode ser amenizado através da conversa”. Quando
Utterson pede a Jekyll para que confie nele, Jekyll diz que ele é
querido, mas que pode apenas dizer uma coisa a Utterson: “no
momento em que eu quiser, posso me livrar de Hyde”. A conversa
conclui com Jekyll pedindo e recebendo a garantia do amigo Utterson
de ajudar Hyde na eventual ausência de Jekyll, que declara: “Eu
realmente tenho um grande, um enorme interesse naquele jovem”.
Mas Utterson constatou uma coisa: Jekyll e o Dr. Lanyon
tiveram um desentendimento mais sério do que ele havia suposto.
Jekyll se refere a Lanyon como “aquele fingido, pedante, ignorante,
espalhafatoso”. Está zangado com Lanyon por este ter objeções ao que
chama de “heresias científicas de Jekyll”. Jekyll conclui: “nunca me
desapontei tanto com um homem como com Lanyon”.
Sentindo-se derrotado em seus esforços para fazer vir à tona o
mistério de Mr. Hyde, Utterson é obrigado a calar-se. Mas um ano
depois acontece um episódio que não só choca Londres inteira pela sua
“singular ferocidade”, mas que também faz redespertar em Utterson
sua necessidade de desvendar o mistério do estranho relacionamento
entre o Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Num final de tarde uma empregada,
olhando pela janela, vê um velho caminhando pela rua e, do outro
lado, um jovem feio com uma bengala, que ela reconheceu de uma
visita que ele havia feito a seu patrão — um tal de Mr. Hyde, do qual
ela tinha desgostado de imediato. Quando os dois se cruzam, de
repente o jovem começa a bater no velho impiedosamente com a
bengala, derrubando-o no chão para depois pisoteá-lo até massacrar
seus ossos. A empregada desmaiou e, quando acordou, o velho estava
caído morto na calçada, o assassino tinha desaparecido, mas metade
da bengala com a qual aquilo tinha sido feito estava caída na sarjeta
— a outra, sem dúvida, tinha sido levada embora. Chamaram a polícia
e encontraram uma carteira, um relógio de ouro e uma carta junto ao
corpo da vítima. A carta trazia o nome de Mr. Utterson.
Na manhã seguinte a polícia visitou Utterson, que conseguiu
identificar o velho como um seu cliente. Sr. Carew, personalidade
famosa e bem conhecida em Londres. Quando soube que a empregada
havia identificado o assassino como um tal Mr. Hyde, Utterson ficou
chocado, mas quando lhe mostraram a bengala quebrada, empalideceu
ao reconhecer que ele próprio a havia dado ao amigo Henry Jekyll
vários anos antes.
Logicamente Utterson tem o endereço de Hyde, e leva a polícia
até Soho, uma região lúgubre da cidade. “Esta era a casa do favorito
de Henry Jekyll, um herdeiro de um quarto de milhão de libras
esterlinas”. Batem à porta do apartamento e uma velha de ar maléfico
responde, de má vontade, que aquele apartamento realmente era de
Mr. Hyde, mas que ele o havia deixado há menos de uma hora. A
polícia entra no apartamento e percebe que a mobília era luxuosa e de
bom gosto, mas que os cômodos tinham sido remexidos recentemente,
pois as roupas estavam espalhadas em todos os lugares, e havia pilhas
de papel que tinham sido queimadas rapidamente. Entre os destroços a
polícia encontra o resto de um talão de cheques que havia resistido ao
fogo, e a outra metade da bengala. A polícia acha que agora
certamente pode encontrar o culpado; eles apenas precisam aguardar
nas proximidades do banco para que ele apareça quando for sacar o
dinheiro. Mas o problema não era tão simples. Ele não tinha família,
não havia fotografias, somente poucas pessoas o tinham visto e
somente num ponto as pessoas concordavam quanto à sua descrição:
“uma sensação assombrosa de deformação implícita”. Assim, parece
que Hyde até o momento tinha conseguido efetuar uma fuga total e
completa.
Utterson, novamente ansioso pelo amigo, retorna à casa de
Jekyll, onde é recebido por Poole e conduzido ao laboratório do
médico, sendo a primeira vez que este o recebia nessa parte da casa.
Aqui então o amigo o cumprimenta, mas não é o médico vigoroso de
sempre, e sim um Dr. Jekyll que demonstra estar profundamente
doente, que não se levanta para receber o visitante, mas ergue uma
mão fria e o cumprimenta com voz mudada. “Você não foi louco o
suficiente para esconder esse companheiro?”, pergunta Utterson assim
que a conversa se concentra no trágico assassínio e no Hyde
perseguido. “Utterson”, diz Jekyll, “eu juro por Deus, eu juro por
Deus que nunca o verei novamente. Dou minha palavra de honra
que neste mundo eu e ele estamos quites. Tudo se acabou. Ele
realmente não quer minha ajuda; você não o conhece tanto quanto eu;
ele está seguro, muito bem seguro; anote minhas palavras, ninguém
mais ouvirá falar nele”.
Em seguida, durante a conversa, Utterson sugere a ideia de que
Hyde poderia querer matá-lo, já que tem direito a todos os bens
segundo o testamento. “Você escapou lindamente”, declara Utterson.
“Muito mais que isso”, retrucou o médico gravemente, “aprendi uma
lição, ó Deus, Utterson, e que lição aprendi!” E por um momento
cobre o rosto com as mãos.
Utterson está de alguma forma seguro novamente, ainda que
ressentindo o estranho comportamento do amigo, mas antes que ele
saísse, Henry Jekyll lhe entrega uma carta para ler, uma carta que ele
havia recebido do próprio Hyde, e que dizia sucintamente que o Dr.
Jekyll já havia mais do que pago a Hyde aquilo que lhe devia, e que
ele, Hyde, tinha um meio de escapar e de viver num lugar seguro.
Jekyll pede conselho ao amigo, e Utterson leva a carta para estudar o
assunto. Mas, movido por uma estranha inspiração, Utterson leva a
carta a um amigo, Sr. Guest, perito em grafologia. Eles têm a
oportunidade de ter em mãos uma segunda carta, escrita pelo próprio
Dr. Jekyll, e Guest compara as duas caligrafias. São da mesma pessoa,
conclui ele, diferenciando apenas na inclinação, mas com uma
considerável semelhança. Utterson ficou chocado: “Henry Jekyll
falsificando para um assassino!’, diz a si mesmo. E seu sangue gelou
nas veias”.
Dessa maneira o mistério se torna ainda maior, o tempo vai
passando, e não há sinal de Mr. Hyde. Na verdade, não se ouvia mais
sobre sua vida depravada, sua insensibilidade e violência, e o ódio
guardado por todos aqueles que o conheceram. O próprio Hyde, tendo
desaparecido, fez com que todos pouco a pouco ficassem tranquilos.
Havia também uma nova vida para Henry Jekyll. Ele saiu da reclusão,
renovou a amizade com Utterson e Lanyon, tornou-se até mais
dedicado às boas obras, e “também estava mais inclinado para a
religião”.
E foi assim por mais de dois meses, até que Utterson, que tinha
sido visitante diário da casa do amigo, um dia viu a porta da casa de
Jekyll ser fechada na sua cara. “O médico está recluso em casa”,
disse-lhe o mordomo Poole, “e não vê ninguém”. Várias outras vezes
Utterson teve que voltar assim da casa de Jekyll. Finalmente decide
consultar o Dr. Lanyon sobre o problema, e o encontra à beira da
morte. Não foi simplesmente sua deterioração física que assustou
Utterson, mas também “o olhar e a específica maneira que revelava
um profundo terror instalado na sua mente”. Quando Utterson traz à
tona o assunto sobre Jekyll, Lanyon reclama: “Não quero ver ou ouvir
nada mais sobre o Dr. Jekyll!” Não há explicação nenhuma a
Utterson, mas apenas acrescenta que nada pode ser feito e que ele não
deseja ouvir nada mais sobre esse “amaldiçoado assunto”.
Perplexo, Utterson volta para casa e escreve a Jekyll
perguntando sobre a briga infeliz com Lanyon, e se queixa de estar
sendo excluído da casa. Pela resposta de Jekyll, Utterson constata que
a discussão com Lanyon é irreversível: “Não culpo nosso velho
amigo”, escreve Jekyll, “mas compartilho sua opinião de que não
devemos mais nos encontrar. Pretendo daqui em diante levar uma vida
de extrema reclusão; você não deve ficar surpreso, e tampouco duvidar
de minha amizade, se minha porta está sempre fechada até para você.
Você deve deixar-me prosseguir no meu próprio caminho obscuro. Eu
me impus uma punição e um perigo que não posso nomear”.
Pouco depois disso Lanyon morre. Na noite seguinte ao funeral,
Utterson, bastante afetado, recebe uma carta cuidadosamente lacrada,
enviada por Lanyon pouco antes de sua morte, onde estava escrito:
“Confidencial: para as mãos de G. J. Utterson somente, e em caso
deste falecer antes, destruí-la sem ler”.
Relutante, Utterson abre o lacre, e dentro encontra outro
envelope fechado, sobre o qual lê: “Não abrir até a morte ou
desaparecimento do Dr. Henry Jekyll”. Havia aqui novamente uma
alusão ao possível desaparecimento de Henry Jekyll! Antes fora uma
nota no testamento de Jekyll, agora a inscrição no envelope interno da
carta, com a caligrafia do falecido Dr. Lanyon. A ética profissional fez
com que Utterson se contivesse, mantendo a carta fechada e deixando
de ler seu conteúdo, para guardá-la novamente.
Utterson continua tentando ver o amigo Jekyll, e continuamente é
mandado de volta, o que faz com que ele se desencoraje aos poucos.
Poole conta-lhe que o médico está agora mais confinado do que nunca,
que raramente sai do laboratório, tornou-se silencioso, anda
deprimido, e que aparenta sempre ter algo em mente.

Como grande romancista que é, Stevenson deixa a cargo do leitor juntar


as diversas peças do quebra-cabeça: o misterioso relacionamento de Jekyll e
Hyde, o desaparecimento quase miraculoso de Hyde, a visível decadência e
confinamento de Jekyll após dois meses de uma vida mudada, a morte
inexplicável de Lanyon, o rompimento inexplicável dos dois amigos, a carta
“falsificada”, o misterioso envelope que não pode ser aberto até que Jekyll
faleça ou desapareça, e que chegou às mãos de Utterson através de Lanyon
antes de sua morte, e agora o inexplicável confinamento de Jekyll.

Desmotivado a voltar a visitar Jekyll, Utterson vai aos poucos


perdendo o interesse em desvendar o mistério, até que um dia um
terrível incidente o motiva novamente. Aconteceu num domingo,
quando Utterson e Enfield davam o passeio habitual que os levou mais
uma vez à rua de Londres onde havia a porta misteriosa do laboratório
do Dr. Jekyll. Justamente quando os dois amigos comentavam com
alívio e satisfação o caso misterioso de Hyde ter chegado ao fim,
puderam avistar o Dr. Jekyll parado na janela do prédio como um
“prisioneiro desconsolado”. Os dois amigos cumprimentaram-no com
entusiasmo, e por alguns segundos Jekyll retribuiu os cumprimentos
calorosos, quase que aceitando o convite deles para descer, quando “o
sorriso desapareceu de seu rosto dando lugar a uma expressão de tal
desespero e horror, que fez com que os dois homens empalidecessem”.
A janela foi batida, e os dois homens que estavam na rua
entreolharam-se cheios de horror. “Deus nos perdoe, Deus nos
perdoe”, disse Utterson. E os dois foram embora caminhando
silenciosamente.
Pouco depois desse episódio veio a última noite. Utterson estava
acomodado diante da sua lareira, quando recebe uma visita
inesperada: Poole, o mordomo, que vem porque pensa que algo
enlouquecedor tivesse acontecido ao seu patrão, insiste que Utterson o
acompanhe até a casa. E assim faz Utterson, que é recebido com alívio
pelos empregados, dentre os quais uma moça assustada, que cai num
“choro histérico”. Poole leva Utterson até a porta do laboratório, de
onde grita: “Utterson pede para vê-lo, doutor!” Uma voz lá de dentro
responde: “Diga a ele que não quero ver ninguém!” Mas a voz não era
de Jekyll! De volta ao saguão principal, Poole relata que durante toda
semana ouvia-se um choro contínuo, dia e noite, de alguém de dentro
do laboratório pedindo um tipo qualquer de remédio; duas ou três
vezes por dia Poole encontrava instruções num papel jogado do lado
de fora da porta do laboratório para que ele fosse ao boticário para
obter uma versão pura de uma droga urgentemente necessitada. Mas
não importava quantas vezes a prescrição fosse executada, pois sempre
resultava insatisfatória para quem quer que estivesse no laboratório
esperando com tamanho desespero. Poole conta que uma vez ele
próprio viu aquela criatura, um homem com uma máscara no rosto,
que apareceu na porta para procurar a droga que tinha sido trazida.
“Se era o meu patrão”, exclamou Poole Dara Utterson, “por que ele
gritava como um rato e fugia de mim?” Sim, havia alguém no
laboratório, alguém estranho, e “uma vez eu o ouvi chorando como
uma mulher ou uma alma penada”.
Os dois homens, apesar de relutantes, concluem que
provavelmente Jekyll tinha sido morto, e que o misterioso intruso só
podia ser Edward Hyde; eles sentem agora que não há outra saída a
não ser arrombar a porta do laboratório. Mais uma vez eles chamam
por Jekyll antes de concretizar essa decisão desesperadora.
“Jekyll”, gritou Utterson, “exijo vê-lo”. Mas não houve resposta.
“Utterson”, disse uma voz, “pelo amor de Deus, tenha piedade!” “Ah,
não é a voz de Jekyll — é a de Hyde!”, gritou Utterson. E os dois
arrombaram a porta.
De repente Utterson e Poole estão dentro do laboratório. Nada
se move. Então eles veem o corpo de um homem, ainda se contraindo,
que claramente acabara de se envenenar. É o corpo de Edward Hyde,
vestido com roupas grandes demais para ele, do tipo que serviriam
para o Dr. Jekyll. Eles vasculham todo o laboratório à procura do
corpo de Jekyll, mas nada encontram. Sobre a mesa há um livro
piedoso que pertencia ao bom médico, mas com inscrições grosseiras e
blasfêmias nas margens. Finalmente descobriram uma proveta que
com certeza tinha sido usada muitas vezes, e cuja visão de algum modo
os tocou com horror. Por fim encontraram três envelopes. O primeiro
contendo um testamento, feito por Henry Jekyll, que deixava todos os
seus bens para Gabriel John Utterson. O segundo era uma breve
mensagem com a letra do médico instruindo Utterson para que lesse a
carta que o Dr. Lanyon havia lhe enviado. O terceiro era um “pacote
considerável lacrado em diversos pontos”. Utterson decide chamar a
polícia, mas primeiro lê a carta de Lanyon.

A carta do Dr. Lanyon

Quatro dias antes de escrever para Utterson, Lanyon recebera


uma carta de Henry Jekyll pedindo-lhe com veemência que adiasse os
eventuais compromissos daquela noite e fosse à sua casa, forçasse a
porta do armário do seu laboratório (Poole tinha ordens para permitir
que Lanyon assim o fizesse) e removesse tudo o que lá houvesse. Fazia
também parte do pedido de Jekyll que Lanyon levasse aquele material
para a casa dele e o aguardasse à meia-noite para receber a pessoa
que se apresentaria em nome de Jekyll, e que lhe entregasse o conteúdo
do armário.
Lanyon prossegue relatando que decidiu agir de acordo com o
pedido, e que foi ao laboratório de Jekyll, tirou do armário o que
pareceu ser “simplesmente um sal cristalino de cor branca”. À meia-
noite bateram à porta de sua casa, e Lanyon conta como encontrou um
homem pequeno, agachado, apoiado nos pilares do pórtico, vestido
com roupas exageradamente grandes para ele, que poderia ser
engraçado se não fosse tão asqueroso. Impacientemente, o homem, que
era Hyde, exigiu o pó, e “ao ver a substância, deu um suspiro tão alto e
com tão grande alívio, que fiquei petrificado”.
Assim que aquele homem pequeno e asqueroso consumiu a
droga, começou a sofrer horríveis e profundas transformações diante
dos olhos de Lanyon, até que se transformou na pessoa de Henry
Jekyll. E Lanyon conclui sua carta: “Não consigo colocar no papel o
que ele me contou depois. Eu vi o que vi, ouvi o que ouvi, e minha alma
está perturbada; e ainda agora, quando toda aquela cena me vem à
mente, eu me pergunto se acredito no que vi, e não sou capaz de
responder. Minha vida ficou abalada até as raízes. Não tenho mais
sono; um terror mortal se apossa de mim em todas as horas do dia e da
noite. Sinto que meus dias estão contados e que devo morrer, e ainda
assim morrerei incrédulo”. Em seguida, Utterson, petrificado, leu o
envelope maior, com o

Depoimento completo de Henry Jekyll sobre o caso

A narrativa de Jekyll pode ser resumida como segue. Ele começa


com uma descrição de si mesmo e da sua vida. Escreve que nasceu
para um grande destino. “Sempre procurei ser respeitado pelos
homens sábios e bons e, como seria de supor, tinha toda a garantia de
um futuro distinto e honrado”. O pior dos seus defeitos, Jekyll observa,
“foi sempre uma certa vivacidade voraz” que parecia devidamente
contida, mas a qual, no entanto, ele “achava difícil de conciliar com
seu desejo imperioso de andar de cabeça erguida e manter, ao mesmo
tempo, um ar grave e contido perante as pessoas”. “Portanto”,
continua ele, “acabei disfarçando meus prazeres, e depois de ter vivido
anos de reflexão, comecei a olhar em volta e me dar conta do meu
progresso e posição no mundo; passei a viver uma vida de profunda
duplicidade”. Continua relatando como se sentia culpado de certos
deslizes na vida que ele encarava como “uma mórbida sensação de
vergonha”. Possuía, segundo suas anotações, uma “natureza
dualística”, além do que, “esses dois lados meus estavam sendo
derrotados; não era mais a mim mesmo quando deixava de lado essas
restrições e caía na vergonha, do que quando trabalhava em pleno dia,
para o avanço dos conhecimentos ou para o alívio de dores e
sofrimentos”. Por tudo isso Jekyll conclui que “o homem, na verdade,
não é um, mas dois”. Ele até conjectura que o homem poderia
eventualmente ser conhecido como um mero conjunto de conteúdos
multifacetados, incongruentes e independentes. Dessa forma, chega a
reconhecer “a radical e primitiva dualidade do homem”.
Neste ponto Jekyll conta que começou a considerar “a ideia de
separação desses dois elementos. Se cada um… pudesse ser
armazenado em identidades separadas, a vida poderia ser aliviada de
tudo o que fosse insuportável”. Ele começou a fazer um experimento
produzindo, eventualmente, uma droga que poderia resultar na
separação de suas duas personalidades, comprando de um
determinado químico o último ingrediente necessário para sua
composição. Então Jekyll tomou a droga e começou a sofrer profundas
mudanças: “Eu me sentia mais jovem, leve e com meu corpo mais
solto; e ao lado de tamanha ousadia, uma série de imagens sensuais
desordenadas passavam como uma correnteza na minha imaginação,
uma solução para os deveres e obrigações, uma desconhecida, porém
não inocente, liberdade da alma. Durante o primeiro instante dessa
vida nova conheci a mim mesmo como mais fraco, dez vezes mais
fraco, vendido como escravo ao meu mal original; e, naquele momento,
o pensamento me envolvia e me deliciava como vinho”. Ele então
olhou-se no espelho e viu aquela pessoa com a qual já estamos
familiarizados: o corpo pequeno, jovem, e de algum jeito deformado,
de Edward Hyde.
“Este, também”, Jekyll observa, “era eu mesmo”. E assim Jekyll
recebeu Hyde, e conclui: “todos os seres humanos… são compostos de
bem e mal; e Edward Hyde, sozinho no seu mundo, era o mal puro”.
Agora Jekyll sabia que bastava ingerir a droga para que se
transformasse em Hyde, podendo mergulhar em todos os pra- zeres que
até então havia proibido a si mesmo, ou havia se entregado a eles
apenas com culpa e ansiedade de ser descoberto. Para facilitar ainda
mais, ele arranjou o outro apartamento, onde Hyde poderia viver como
desejava, e também escreveu o testamento que tinha desagradado tanto
a Utterson. No começo seus prazeres eram apenas “indignos”, mas,
nas mãos de Hyde, eles tornaram-se logo “monstruosos”. Mas Jekyll
não se sentia culpado, pois “era Hyde, apesar de tudo, e Hyde sozinho
que era o culpado”. Jekyll não se tornou pior; aparentava o homem
com boas qualidades, que poderia até, se possível, dar um jeito de
desfazer o mal feito por Hyde. E assim a consciência se apagou.
Tudo ia acontecendo como Jekyll havia planejado, até que num
dia sombrio ele percebeu que havia se transformado em Hyde mesmo
sem ingerir a droga! “Sim. Eu tinha ido dormir como Henry Jekyll;
quando acordei era Edward Hyde”. Jekyll ficou horrorizado. Como
poderia voltar à sua forma e personalidade normais? Ele encontrou a
solução ao ingerir a droga, que dessa vez o reverteu de Hyde para
Jekyll novamente.
Devido a essa experiência um tanto quanto temível, Jekyll sentiu
que agora devia escolher entre as duas personalidades. Foi uma
escolha difícil, mas finalmente ele decidiu permanecer como Jekyll,
apesar de não desistir do outro apartamento, nem ao menos destruir as
vestes de Edward Hyde, que ele guardava em seu gabinete. Durante
dois meses ele levou uma vida fortemente rígida, até que “começou a
ser torturado por sofrimentos e angústias, como se Hyde estivesse
lutando para libertar-se. Finalmente, num momento de fraqueza moral,
fiz a mistura e engoli aquela substância transformadora”.
Foi nessa época que Hyde matou o Dr. Carew. “No mesmo
instante fui despertado por aquele espírito dos infernos que começou a
se enfurecer. Como que me divertindo, espanquei aquele corpo frágil,
experimentando prazer a cada murro até que o cansaço começou a
surgir, e foi então que, de repente, no auge do meu delírio, senti uma
pontada no coração e fui acometido de um arrepio gelado de terror”.
Então, quando Hyde tomou a droga e sua personalidade de costume
emergiu novamente, Jekyll escreveu que “Henry Jekyll, com lágrimas
que corriam de gratidão e remorso, caiu de joelhos e ergueu suas mãos
unidas a Deus”.
A partir desse momento, Jekyll percebeu que não poderia mais
ser Hyde porque agora Hyde era um homem procurado pela polícia.
Agora ele precisava se confinar à “melhor parte da minha existência”.
Assim, Jekyll mais uma vez passou a viver uma vida dedicada ao bem,
até que um dia, assim que sentou no parque refletindo que ele era,
afinal de contas, “como meus vizinhos… comparando-me com os
outros, comparando minha boa vontade efetiva com a indolente
crueldade da negligência deles”, de repente ele se transformou em
Hyde! Agora a situação era desesperadora. Ele não podia ser visto em
público, e ainda que voltasse para casa como Hyde, seus próprios
empregados não o deixariam entrar. Foi nessa ocasião que ele
escreveu a carta a Lanyon, e com o auxílio do médico, conseguiu ter a
droga em mãos e tornar-se Jekyll novamente.
Agora Jekyll vivia o horror do seu outro eu, mas constatou que
não mais poderia evitar transformações não desejadas em Hyde mesmo
sem tomar a droga. Desse modo ele foi obrigado a viver no
confinamento do seu laboratório, onde poderia ter acesso à droga
quando isso acontecia. Mas Jekyll descobriu também que precisava de
uma quantidade de droga cada vez maior para que da forma de Hyde
se tornasse novamente Jekyll. “Os poderes de Hyde”, ele observou,
“pareciam crescer com o enfraquecimento de Jekyll”. E então a droga
começou a faltar!
Logicamente agora ele estava confinado no laboratório,
frequentemente caindo na forma de Edward Hyde. Foi com essa forma
que uma vez Poole o viu na porta do laboratório com seu rosto
mascarado. Desesperado, ele mandava Poole, repetidas vezes, buscar
por toda Londres a substância correta com a qual produzia uma nova
provisão da droga, mas ela sempre falhava. Apenas aos poucos ele foi
percebendo que “minha primeira provisão não era pura, e foi
justamente aquela impureza desconhecida que deu efeito à droga”.
Jekyll conclui a carta

(E com isso Stevenson também conclui a estória):

Passou-se uma semana, e finalizo agora este depoimento sob a


influência da última das velhas poções. Esta, portanto, é a última vez,
como milagre, que Henry Jekyll pode ter seus próprios pensamentos ou
ver sua própria face (como está tristemente alterada agora!) no
espelho. Não posso me estender muito neste escrito; pois, se até agora
minha narrativa escapou da destruição, foi graças a uma combinação
de muita prudência e sorte. Se os ímpetos da mudança ocorrem em
mim no ato de escrever, Hyde fará o papel em pedaços; mas se eu me
for após tê-la efetuado, provavelmente o maravilhoso egoísmo dele e o
seu imediatismo salvarão, mais uma vez, estas palavras da ação de sua
maldade. E realmente, o juízo final, que está cada vez mais próximo de
ambos, ele e eu, já o mudou e o atingiu. Daqui a meia hora, quando
novamente incorporarei aquela odiável personalidade para sempre, sei
como me sentarei na minha cadeira, tremendo e chorando, ou
continuarei andando de um lado para o outro deste aposento (meu
último refúgio terrestre) e, num êxtase doloroso e amedrontado, darei
ouvidos a todo e qualquer som de perigo. Será que Hyde morrerá no
cadafalso? Ou encontrará coragem suficiente para libertar-se por suas
próprias mãos no último momento? Só Deus sabe. Para mim é
indiferente. Este é o momento real da minha morte, e tudo o que
acontecer daqui para frente refere-se a outra pessoa. Aqui, então, ao
depor a pena e começar a lacrar minha confissão, ponho um fim à vida
deste infeliz Henry Jekyll.

***
Podemos começar comparando a descrição de Henry Jekyll com a de
Edward Hyde. Vimos que Jekyll era um “homem de meia-idade, alto, bem-
apessoado, com uma expressão de dissimulação talvez, mas com todos os
sinais de capacidade e gentileza”. Então não há razão para supormos que
Jekyll não tivesse boas qualidades. Apenas a alusão a uma “expressão de
dissimulação” denuncia o fato de que por trás da bondade de Henry Jekyll
escondia-se uma pessoa de caráter mais dúbio. Mais tarde Jekyll se descreve
em maiores detalhes como um homem que “sempre procurou ser respeitado
pelos homens sábios e bons”. Isso nos mostra que, além da sua reserva
natural de bondade e gentileza, Henry Jekyll tinha uma necessidade de ser
aprovado pelos seus amigos e assim assumia a postura perante a humanidade,
ou seja, adotava uma persona agradável que o faria aprovado e respeitado
pelos outros.
Jekyll apontou outro lado da sua personalidade que, no entanto,
contrasta com sua persona: “uma certa vivacidade voraz”. Isso acabou
levando-o a procurar alguns prazeres na vida, os quais achava difícil de
conciliar com o “desejo imperioso” de andar de cabeça erguida. Aí então,
observa Jekyll, ele adotou “mais do que um ar grave e contido perante as
pessoas”. Em outras palavras, a maneira como Jekyll se continha em público
representava uma máscara para ocultar dos outros um lado da sua
personalidade que ele não queria que ninguém visse, o qual ele encarava com
“uma sensação mórbida de vergonha”. Como consequência, Jekyll escreveu:

“Eu disfarcei meus prazeres”, e “passei a viver uma vida de


profunda duplicidade”.

Jekyll revela discernimento psicológico. Estava consciente da dualidade


de sua própria natureza, e declara que “o homem, na verdade, não é um, mas
dois”. Ele podia até chegar à conjectura de que o homem é feito de um
sortimento inteiro formado de partes, e que a personalidade não é uma só,
mas é como uma cidade de pessoas, fato que a moderna psicologia profunda
corrobora. Jekyll via sua dualidade como “absoluta” e primitiva, isto é,
arquetípica, portanto desde o começo presente como um aspecto fundamental
da estrutura psicológica básica do homem. Munido com essa espécie de
lucidez psicológica a respeito de si mesmo, Jekyll poderia ter atingido um
elevado desenvolvimento de consciência, mas falhou e não o alcançou devido
a um erro psicológico fundamental, como veremos.

Hyde é descrito como jovem, cheio de energia demoníaca, pequeno e


de alguma forma deformado. Ele é um Juggernaut, não um homem, mas uma
pessoa que evocava ódio nos outros à sua simples visão. É dono de uma
frieza negra e sarcástica, e é incapaz de ter qualquer sentimento humano,
embora tenha um mínimo de consciência que o torna capaz de sentir-se
culpado. A jovialidade de Hyde nos mostra a retenção de energia não
utilizada, pela personalidade sombria de Jekyll. A sombra, como vimos,
contém a vida não vivida, e entrar em contato com a personalidade da sombra
é como receber infusão de energia nova, jovem. O tamanho e a aparência
deformada de Hyde indicam que, como personalidade da sombra, Hyde não
desabrochou para o mundo. Tendo vivido quase sempre na obscuridade do
inconsciente, sua aparência é deformada, como uma árvore forçada a crescer
no meio das pedras e na sombra de outras árvores. A falta de consciência de
Hyde, que Jekyll descreveu como uma “solução para os deveres e obrigações
“, é também uma característica da personalidade da sombra. É como se a
sombra deixasse os sentimentos e obrigações morais a cargo da personalidade
egoica, enquanto luta para poder fazer viver impulsos internos proibidos, sem
os efeitos mitigantes do senso do certo e errado.
Talvez o dado mais importante que obtemos sobre Edward Hyde é
fornecido por Jekyll ao comentar sobre quando se transformou em Hyde com
a droga pela primeira vez: “Eu conheci a mim mesmo… como mais fraco,
dez vezes mais fraco, vendido como escravo ao meu mal original…”
Primeiramente Jekyll viu-se com uma certa “vivacidade voraz”, um lado de
busca de prazer que poderia ter levado ao malefício, e nada mais. Mas assim
que se torna Hyde ele percebe que é muito mais maléfico do que poderia
supor. Temos, a partir dessa descrição, que a personalidade da sombra
começa com nosso lado sombrio pessoal, mas que em certo ponto alcança um
nível mais profundo e arquetípico do mal, que é tão forte que Jekyll podia
definir Hyde como ele, sozinho, sendo o puro mal entre as pessoas. Nas mãos
desse arquétipo do mal, Jekyll pretendia buscar o prazer perdido, o que logo
se tornou uma atividade verdadeiramente satânica, como exemplifica o
episódio do terrível assassínio do Dr. Carew, que foi realizado por puro
divertimento de destruição maléfica. Podemos ver essa mesma qualidade
satânica emergindo em situações em que a pessoa mata outras a sangue frio,
na guerra ou crime, sem remorso evidente. Trata-se do arquétipo do mal que
nos choca e ao mesmo tempo nos fascina, fazendo-nos absorver com horror a
leitura diária dos jornais. C. G. Jung escreveu uma vez que: tornamo-nos o
que fazemos. Isso nos ajuda a compreender ainda melhor a razão da morte de
Jekyll. Uma vez tendo decidido ser Hyde, mesmo que por um instante, ele
tende a tornar-se Hyde. A decisão proposital de fazer o mal leva-nos a nos
transformar em mal. É por isso que experienciar os mais obscuros impulsos
da sombra não é uma solução para o problema da sombra, já que facilmente
podemos nos tornar possuídos pelo mal numa tentativa dessas. Isso atesta a
natureza arquetípica do mal, e uma das qualidades dos arquétipos é a sua
capacidade de se apossar do ego, que é como estarmos sendo devorados pelos
arquétipos ou identificados com eles.

O próprio Jekyll se torna consciente desse perigo depois de se ver


transformado em Hyde de maneira involuntária. Isso foi um choque enorme
para ele. Sua expectativa tinha sido de ser capaz de fazer Jekyll se tornar
Hyde e vice-versa, de acordo com sua vontade. Mas agora ele percebe que
Hyde está vencendo. A confiança inicial que o levou a afirmar, “no momento
em que eu escolher, posso me livrar de Mr. Hyde”, agora não tem mais
sentido. Essa atitude de Jekyll demonstra indiferença tal com relação ao mal,
que o predispôs a ser possuído por ele. Tal atitude surge novamente na cena
em que Jekyll se senta na praça e reflete que é, apesar de tudo, “como seus
vizinhos”, e se compara favoravelmente com outros homens, apontando sua
boa vontade efetiva em contraste com a indolente crueldade da negligência
dos outros. Ao ignorar e desconsiderar os poderes do mal, juntamente com
seu desejo de escapar da tensão causada pela duplicidade de sua natureza,
Jekyll acaba facilitando o caminho para sua destruição final.
Nesse momento da estória, Jekyll resolve não ter mais nada com a parte
Hyde da sua personalidade, e chega até a declarar a Utterson, “eu juro por
Deus, eu juro por Deus que nunca o verei novamente. Dou minha palavra de
honra que neste mundo eu e ele estamos quites. Tudo se acabou”. E Jekyll
realmente tenta não ter mais nada com Hyde. Ele renova sua vida de antes e
se dedica mais do que nunca às boas ações, e pela primeira vez torna-se
devotado à religião.

Devemos encarar o fato de que a devoção de Jekyll à religião significa


que ele entrou em contato com a religião através de seus preceitos formais,
talvez ligando-se a algum tipo de igreja. Sabemos, logicamente, que a religião
de Jekyll não é sincera. Ele nada sabe a respeito de Deus, mas espera se
defender do domínio de Hyde através de suas próprias pretensões religiosas e
da religião formal. Hoje, sem dúvida, a maioria das pessoas se utiliza da
religião dessa maneira, principalmente dos credos religiosos que, além de
depreciar os pecados humanos, ameaçam o homem que peca com punições e
encorajam as boas ações como sinal de salvação. Essa espécie de religião
tende a atrair membros que, consciente ou inconscientemente, lutam para
reprimir suas personalidades sombrias.
Mas a tentativa do Dr. Jekyll foi em vão, e agora Hyde está mais forte
dentro dele. Enquanto personalidade da sombra, Hyde continua existindo no
inconsciente, e está agora, mais do que nunca, lutando para se libertar, ou
seja, possuir a personalidade de Jekyll, para que ele viva do modo que deseja.
O lado obscuro se fortaleceu demais, e falha o esforço de controlá-lo e
armazená-lo trancado no porão da psique, porque Hyde é mais forte que
Jekyll. Dessa maneira, Stevenson nos diz que viver e externalizar a sombra
não é a resposta; tampouco o é a sua repressão, porque as duas opções fazem
com que a personalidade se divida em duas.
Há também a falta de sinceridade e a pretensão religiosa de Jekyll.
Tanto sua religião quanto seu desejo de se livrar de vez de Hyde são criados
pelo desejo de autopreservacão, e não pelos sentimentos morais. Jekyll quer
conter Hyde não por razões espirituais, mas apenas pelo medo da destruição.
No fundo, existe ainda uma ânsia pelo mal não reconhecida, que fica evidente
no fato de que Jekyll, ainda em face à grande decisão de não ter mais nada
com Hyde, não destrói as roupas dele, nem desiste do outro apartamento em
Soho. Nesse ponto poderíamos dizer que a única forma pela qual Jekyll
poderia evitar ser tomado pelo mal seria o preenchimento de sua alma por um
espírito mais poderoso que o do mal; mas, permitindo se tornar Hyde, Jekyll
esvaziou sua alma e o mal pôde possuí-lo.

O erro fundamental de Henry Jekyll foi seu desejo de escapar da tensão


dos opostos que estavam constelados dentro dele. Como tivemos
oportunidade de ver, ele era uma pessoa dotada de uma consciência
psicológica razoável, mais que a maioria das pessoas, pois ele sabia que tinha
uma natureza dupla; estava consciente de que nele havia um outro cujos
desejos estavam em contraste com a sua habitual procura de aprovação pelos
outros. Se ele tivesse deixado crescer essa consciência, carregando a tensão
dos opostos dentro de si, isso o levaria ao desenvolvimento de sua
personalidade; na linguagem que temos utilizado, ele teria alcançado a
individuação. Mas Jekyll optou pelo consumo da droga transformadora para
evitar essa tensão, e assim podia ser ambos, Jekyll e Hyde, e ter, ao mesmo
tempo, os prazeres e benefícios de viver sem culpa ou tensão ambos os lados
da sua personalidade. Para Jekyll isso funcionou de maneira notável, porque
ele não se sentia responsável por Hyde. “Isso foi obra de Hyde, apesar de
tudo, e só Hyde é o culpado”, declarou ele.
Isso nos dá a chave de como o problema da sombra pode ser
enfrentado. Se encararmos com sucesso o nosso drama com a sombra, a falha
de Jekyll nos mostrará o caminho: o sucesso poderá estar em assumir a tensão
que Jekyll recusou. Tanto reprimir o conhecimento da sombra quanto
identificar-se com ela são tentativas de escapar da tensão produzida pelos
opostos, tentativas de “perder de vista os deveres” que juntos constituem
nossos lados claro e escuro. Logicamente o motivo é escapar da dor do
problema, mas se o escape leva ao desastre psicológico, suportar a dor poderá
dar a possibilidade de caminhar para a totalidade.
Suportar tamanha tensão causada pelos opostos é como uma
crucificação. Devemos ficar como alguém que está suspenso no meio de dois
opostos, e isso é um estado doloroso de se suportar. Mas, em tal estado de
suspensão, a graça de Deus é capaz de operar dentro de nós. O problema da
nossa dualidade nunca poderá ser resolvido ao nível do ego, o que não
permite uma solução racional. Todavia, quando há consciência de um
problema, o si-mesmo, a Imago Dei dentro de nós, pode operar e provocar
uma síntese irracional da personalidade.

Em outras palavras, se carregamos o peso dos opostos da nossa


natureza de forma consciente, o processo secreto, irracional e saudável que
opera inconscientemente poderá ser benéfico e trabalhar voltado para a
síntese da personalidade. Esse saudável procedimento irracional, que
contorna uma infinidade de obstáculos aparentemente intransponíveis, possui
uma qualidade particularmente feminina. A mente masculina, lógica e
racional, é que declara que opostos tais como ego e sombra, luz e
obscuridade, nunca podem se unir. Entretanto, o espírito feminino é capaz de
chegar a uma síntese onde a lógica diz que não se pode encontrá-la. Por essa
razão é importante notarmos que são poucos os personagens femininos na
estória de Stevenson e, quando ocorrem, aparecem sempre sob uma luz
negativa. No livro não há nenhuma figura de maior destaque que seja mulher.
Jekyll, Enfield, Utterson, Poole, Guest, o perito em caligrafia, Dr. Lanyon —
todos são homens. As figuras femininas têm apenas uma breve menção. Há a
mulher que cuidava do apartamento de Hyde, uma mulher de “ar maléfico”,
fria e semelhante a uma bruxa. Há uma breve menção da empregada
amedrontada que Utterson encontra quando vai à casa de Jekyll na noite final,
e ela é descrita como “chorando histericamente”. Há também, é claro, a
menininha que foi pisoteada, e as mulheres que se agrupam ao redor de Hyde,
que eram “selvagens como harpias”. Até Hyde, no laboratório na última
noite, é descrito como “chorando como uma mulher ou uma alma penada”. A
única vaga alusão positiva a uma mulher ou ao feminino é a empregada que
testemunhou o assassínio do Dr. Carew, mas Stevenson nos diz que ela
desmaiou ao ver a cena.
Em suma, o feminino é tido com uma conotação ruim na estória de
Stevenson. É frio e maléfico, fraco e ineficaz, ou é vitimizado, e isso sugere
que o espírito feminino se tornou inoperante, sendo incapaz de ajudar na
situação. Traduzindo em linguagem psicológica, podemos dizer que, quando
a consciência psicológica é recusada, como Jekyll a recusou, nossa parte
feminina, nossa própria alma, enfraquece e adoece, caindo no desespero e na
tragédia, pois é o poder feminino que pede ajudar a encontrar um caminho
que seria, de outra maneira, um problema insolúvel.

Um comentário sobre Utterson vem a calhar. O retrato de Utterson é


um testemunho da eficiência de Stevenson como romancista pois, ainda que a
maior parte da narrativa nos seja contada através de seus olhos e
experiências, ele próprio nunca é tema central. Seu caráter é engenhosamente
delineado. Gostamos de Utterson e podemos imaginá-lo em nossa mente,
assim como seguir seus pensamentos, sentimentos e reações, ainda que o
centro da estória sempre brilhe, através dele, sobre o mistério central de
Jekyll e Hyde, de forma que Utterson nunca é a figura principal. Devido a
isso podemos ter a tendência de encarar Utterson como um instrumento
literário, uma figura necessária para que a estória nos seja narrada e não um
personagem que teria algo a nos ensinar sobre os mistérios do bem e do mal.
Na realidade Utterson é mais importante do que poderia parecer. Ele é a
figura humana cuja sensibilidade se acentua com o mal e em cuja consciência
toda a estória do bem e do mal, ego e sombra, finalmente emerge. Ele
representa o ser humano que tem uma função sentimento suficientemente
forte para chocar-se com o mal e poder assim resistir a ser tomado por ele. É
exatamente essa função sentimento que dá a capacidade ao ser humano de
reagir com horror às profundezas do mal, que foi fraca em Jekyll e totalmente
ausente em Hyde.

É também necessário que o mal seja eventualmente conhecido por


alguém. Os feitos de Jekyll e Hyde eram um segredo, mas os segredos têm
um modo de tentar emergir. Todo segredo é compelido por forças internas
ocultas em direção à consciência humana, e por essa razão as ações do mal
emergem eventualmente no despertar da humanidade em geral ou de alguém
em particular. Notemos, por exemplo, que logo no início da estória a mente
de Utterson é torturada por algo que desconhece, e ele não consegue dormir.
Esse é um sinal certo de que o inconsciente está perturbando Utterson e
procura encontrar um meio de trazer à sua consciência a terrível e obscura
vida secreta de Jekyll e Hyde. Assim, na estória, é a consciência de Utterson
que se torna o recipiente do conhecimento do mal, e dessa forma ele
representa o ego no seu aspecto melhor e mais humano, uma espécie de
pessoa redentora, cujo despertar da percepção do que acontece, e os
sentimentos horrorizados, promove uma defesa humana contra o domínio dos
poderes da obscuridade sobre a vida humana.
E como fica o Dr. Lanyon? Ele também surgiu para se deparar com a
natureza do mal, mas de modo equivocado. Lanyon não desvendou o mistério
de Jekyll e Hyde como o fez Utterson e, quando toda a extensão do mal o
atingiu, isso foi demais para ele. Viu o mal muito repentinamente, e teve com
ele um confronto profundo demais, sem a necessária preparação ou o suporte
necessário. E aí está o outro lado do tornar-se consciente do mal. Devemos
estar cônscios dele, mas enxerga-lo profunda e ingenuamente demais pode
causar-nos um choque do qual não podemos nos recuperar.

A droga demoníaca da qual Jekyll se utilizou para conseguir


transformar-se em Hyde merece um comentário, principalmente neste
presente momento da história em que nos vemos rodeados por todos os lados
de drogas com efeitos alteradores da mente. Tenho notado frequentemente
que, pelo menos em alguns casos, o álcool parece mudar uma personalidade
como a de Jekyll em Hyde. Uma pessoa é de um jeito até que toma algumas
doses para então aflorar o lado obscuro da personalidade. Em alguns casos
pode ser que a extrema necessidade de beber seja a luta da sombra para se
afirmar, como na nossa estória, onde Hyde fazia com que Jekyll tomasse a
droga para viver sua própria vida obscura.
Podemos também notar que, ainda que a parte maléfica de Jekyll o
tenha destruído, ela também destruiu a si própria. Assim que Jekyll se viu
completamente possuído por Hyde, o próprio Hyde morreu através do
suicídio. Isso é muito significativo, porque nos demonstra que o mal
eventualmente se sobrepõe, acarretando sua própria destruição.
Evidentemente, o mal não é capaz de permanecer por si mesmo, mas
consegue existir somente quando há alguma coisa boa por detrás que o
alimenta; esse é o ponto que veremos mais de perto no Capítulo Nono.
Finalmente este é o momento apropriado para fazermos alguns
comentários de como podemos lidar com o mal. Quando o mal se manifesta,
há uma tendência de querer se opor a ele diretamente. Às vezes devemos
fazê-lo, mas, como Laurens van der Post uma vez colocou, nesta oposição
direta ao mal há o perigo de nos tornarmos iguais ao mal a que nos opomos.
Um exemplo disso seria o comportamento dos americanos na guerra do
Vietnã. Os americanos entraram na guerra ostensivamente, para se oporem ao
mal dos vietcongs e comunistas vietnamitas do Norte, que estavam
assassinando e cometendo outras atrocidades. Mas, quando a guerra
terminou, eles se haviam tornado culpados de atrocidades tão perversas
quanto as cometidas pelos comunistas. Porque o mal é contagioso.
Dificilmente alguém se aproxima do mal sem ficar contaminado e afetado por
ele, e isso nos mostra que lidar com o mal é um problema.
Muitas vezes, a não ser que o mal tenha um oponente, ele simplesmente
crescerá, fortificando-se mais do que nunca. A pior coisa a ser feita em
relação ao mal é apaziguá-lo. Quando a Inglaterra de Chamberlain quis
apaziguar o mal na Alemanha de Hitler, o mal simplesmente aumentou. Até a
nível de vida familiar isto é verdade. Apaziguar uma criança turbulenta e
exigente, simplesmente alimenta e fortalece as qualidades negativas da
criança. Do mesmo modo, um marido ou uma mulher que procura aplacar o
comportamento carente do outro, apenas faz com que essas más tendências
aumentem.

Sou grato a Marie-Louise von Franz pelo grande número de


descobertas ao lidar com o mal no seu A Sombra e o Mal nos Contos de
Fada{60}. Ela mostra que nos contos de fada não há uma maneira uniforme de
se lidar com o mal. Primeiro lida-se com ele de uma forma, depois de outra,
dependendo das circunstâncias. Às vezes devemos nos opor ao mal de modo
resoluto; às vezes devemos nos aproximar dele indiretamente. Comumente
devemos ir ao encontro do mal com firmeza e consciência, mas outras vezes,
pelo menos no momento, precisamos olhar para o outro lado. No entanto,
devemos sempre saber o que estamos fazendo, porque o mal só pode ser
dominado por uma consciência superior.
A estória de Jekyll e Hyde nos mostra que o mal é fascinante; essa é
uma qualidade do mal que já havíamos apontado. Por causa de sua fascinação
o mal tem um considerável poder sobre a alma humana; esse poder é tão
grande que C. G. Jung disse que apenas duas coisas poderiam deter uma
pessoa de cair em poder do mal: se a alma da pessoa for preenchida com um
poder maior que o poder do mal, ou se a pessoa pertencer a uma calorosa e
receptiva comunidade humana. Jung certa vez escreveu a William W., um
fundador do “Alcoólatras Anônimos”: “Estou fortemente convencido de que
o princípio do mal que prevalece neste mundo dirige a necessidade espiritual
não-reconhecida para a perdição, a não ser que seja neutralizada, ou por uma
compreensão real da religião, ou por um muro protetor da comunidade
humana. Um homem comum, desprotegido da ação dos fatores mencionados,
e isolado na sociedade, não consegue resistir ao poder do mal”{61}.

Jung mencionou os perigos do isolamento. Nunca é demais enfatizar


esse perigo. Nos tempos atuais, os assassinos de sangue frio, por exemplo,
são pessoas emocionalmente isoladas. Ao contrário, aqueles que tiveram uma
ligação amorosa com outras pessoas têm um mínimo de proteção contra o
pior perigo do mal. Por essa razão o condicionamento na tenra infância é
extremamente importante. O fato de ter tido ligação afetiva com os pais ou
substitutos é um auxílio para que uma alma tenha o calor do sentimento
humano, que é a defesa última contra o mal. Por outro lado, onde não ocorre
esse vínculo o perigo de sucumbir ao mal é muito maior, tanto como vítima
quanto como perpetrador.

A estória de Jekyll e Hyde nos mostra que a possessão é a pior forma


do mal. A alma de Jekyll tornou-se possessa por Hyde, e com isso deu-se a
destruição. Quando os poderes do mal não são considerados com suficiente
seriedade há maior chance de que ocorra a possessão pelo mal. Von Franz
aponta os perigos do “frevel”. Frevel é palavra alemã que denota atitude de
falta de cuidado. A palavra “frivolous” em inglês (em português frívolo) é
sua derivada. Por exemplo, as pessoas que tomam drogas descuidadamente
sem dar a devida atenção aos perigos de sua experiência estão sendo frevel.
Mas há muitas maneiras de se desconsiderar os poderes do mal, e todas as
vezes que isso acontece o perigo aumenta.
O poeta William Blake disse certa vez: “As formas vêm do céu, mas a
energia vem do inferno”. Poderíamos dizer que a incumbência da vida é unir
esses dois opostos. Essa é uma das razões por que a sombra é tão fascinante
para nós, pois a sombra, como vimos na estória, contém muita energia, e a
energia exerce uma fascinação subjugadora sobre nós. Mas não podemos
vivenciar a sombra sem sermos cautelosos, senão, como já vimos, ela não
será de muita ajuda para nós. A sombra não pode ser negada, mas deve ser
tratada sob a luz de uma autoridade mais elevada. As religiões do mundo
reconheceram essa afirmativa e instruíram a humanidade na arte de viver a
consciência de Deus. Entretanto, o fato de que hoje para muitas pessoas os
caminhos tradicionais de mediação da consciência de Deus não são eficazes,
uma parte delas agora se volta para a psicologia, para a relação com o Deus
interior, que a psicologia denomina de si-mesmo. No decorrer do processo
nossos sonhos são de grande importância e infalivelmente informam-nos,
entre outras coisas, quando nossa alma está em perigo. Pode-se entender por
que os indígenas americanos diziam que o Grande Espírito enviava sonhos à
humanidade para que não caminhássemos na obscuridade, caindo no poder
do mal.
8.
O diabo na mitologia e

no folclore pós-bíblicos

Já vimos como o diabo apareceu no Antigo e no Novo Testamentos.


Agora é o momento de observarmos o papel do diabo na mitologia e no
folclore da era pós-bíblica.
Um dos muitos nomes do diabo é Lúcifer. É um nome curioso para ele,
porque significa “o portador da luz”, uma vez que comumente associamos
seu nome aos poderes das trevas.

O nome é derivado dos versículos bíblicos e do uso que os primeiros


Padres da Igreja deles fizeram. Em Is 14,12-15 temos:

“Como caíste do céu,


ó estrela d’alva, filho da aurora!
Como foste atirado à terra,
vencedor das nações!
E, no entanto, dizias no teu coração:
‘Hei de subir até o céu,
acima das estrelas de Deus
colocarei o meu trono,
estabelecer-me-ei na montanha da Assembleia,
nos confins do norte.
Subirei acima das nuvens,
tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo.’
E, contudo, foste precipitado no Xeol,
nas profundezas do abismo.”

Estes versículos sem dúvida originariamente se referiam a Babilônia, a


grande cidade que havia conquistado o Oriente próximo, mas que, por seu
turno, foi derrotada e posta abaixo. Os Padres da Igreja, no entanto, se
utilizaram desses versículos para simbolizar a queda de Satã das alturas de
Deus, e construíram, à sua volta, uma lenda elaborada do anjo Lúcifer, sua
morada original com Deus, sua pretensão ao poder e sua derradeira queda do
céu à terra. O empenho deles foi reforçado por um outro versículo da Bíblia,
Lc 10,18, no qual Jesus diz aos setenta e dois discípulos que retornaram
triunfantes da sua missão de ensinar e curar: “ Eu via Satanás cair do céu
como um relâmpago! ”

De acordo com os Padres da Igreja, Satã originariamente habitava com


Deus, como um de seus principais anjos, e seu nome original era Lúcifer, o
portador da luz, verso de Is 14,12 traduzido pela Bíblia de Jerusalém como
“estrela d’alva”. Mas Lúcifer foi vítima dos pecados da vaidade, presunção e
ambição; ele não estava contente de ser um dos anjos de Deus e queria
usurpar poder celeste. De fato, dizem que ele realmente tinha a audácia de
querer sentar-se no trono de Deus.
Em face a essa afronta, Miguel Arcanjo se armou contra Lúcifer e o
expulsou do céu. Lúcifer caiu na terra onde habitou no inferno, e passou a
exercer seu domínio sobre o mundo. Com essa vantagem, o anjo decaído
procurou fazer das almas da humanidade parte de seu reino, regendo a terra
como havia tentado reger o céu. “Dessa maneira, então”, diz Orígenes,
“aquele ser uma vez existiu como luz antes de ter-se perdido e caído neste
lugar, e ter sua glória transformada em pó”{62}.

Arquelau, um bispo da Igreja primitiva, escreve: “Por essa razão,


também alguns anjos, recusando-se a se submeterem aos mandamentos de
Deus, resistiram à sua vontade; e um deles realmente caiu como um
relâmpago na terra… E aquele anjo — que foi posto abaixo para a terra, não
sendo mais admitido em nenhuma das regiões do céu —, agora ostenta-se
entre os homens, iludindo-os e seduzindo-os para que se tornem
transgressores como ele próprio, e ainda agora ele é um adversário dos
mandamentos de Deus”{63}.
Não é difícil encontrar paralelos entre essa mitologia cristã e o
pensamento zoroastriano, Aura-Mazda sendo representado por Miguel
Arcanjo e Arimã por Satã ou Lúcifer. Há um reflexo disso também no
evangelho de São João, onde o diabo é repetidamente chamado de “príncipe
deste mundo”, e a terra é geralmente representada como sob seu poder,
enquanto Cristo desce das alturas para ganhar almas, colocando-as longe da
influência dele. Assim, diz Jesus a seus discípulos antes da sua crucificação:
“Já não vos falarei muito, pois o príncipe deste mundo vem”{64}.

A lenda de Lúcifer também foi partilhada pelos pensadores judeus, e o


Talmude tem uma interessante variação da estória. Na versão talmúdica a
queda de Lúcifer aconteceu porque ele tinha ciúmes do homem. Quando
Adão foi criado, assim ensinavam os rabinos, todos os anjos tinham que
curvar-se perante o novo rei da terra, mas Satã ficou com ciúmes e se recusou
a fazê-lo e, por isso, foi expulso do céu.
Acompanhando Satã veio uma legião de demônios e diabos menores;
acreditava-se que os pensamentos maléficos que entram na mente e no
coração da humanidade eram inspirados por essa legião demoníaca. Como já
vimos, eram esses vários poderes das trevas que as pessoas da era do NT
supunham que causassem doenças, levassem a humanidade ao pecado e
trouxessem aflições mentais. O último teólogo conhecido a ter calculado de
fato o número dos demônios de Satã é o teólogo de Basiléia, Martinus
Barrhause. De acordo com seus cálculos, o número exato era de
2.665.866.746.664 — dois trilhões, seiscentos e sessenta e cinco bilhões,
oitocentos e sessenta e seis milhões, setecentos e quarenta e seis mil,
seiscentos e sessenta e quatro{65}. Com tão vasto exército à disposição do
demônio não é de se admirar que a humanidade seja vítima de tantos
dissabores.

A lenda de Lúcifer explica muito bem como o mal entrou no mundo


dos homens; entretanto, não explica por que Deus permitiu que isso
acontecesse. Parece injusto que o anjo infrator, que foi tido como indesejável
no céu, fosse enviado à terra para incomodar a humanidade. O que a
humanidade tinha feito para merecer ter em casa um exilado tão mal-vindo?
Poder-se-ia pensar que Deus fosse mais nobre ao lidar com os problemas de
sua própria casa do que simplesmente jogá-los sobre a desprotegida
humanidade.

Apesar dessa deficiência, a lenda de Lúcifer permanece uma estória


instrutiva. Sob o ponto de vista psicológico, a estória descreve um arquétipo,
ou seja, uma típica e inevitável parte da psique humana e o modo como ela
funciona. Considerada a partir desse ponto de vista, a lenda descreve uma
ruptura fatal da psique humana, de tal forma que uma psique que era
originariamente íntegra tornou-se dividida contra si mesma. A ruptura no céu
corresponde a uma ruptura na psique humana, e esta cisão, como já vimos, é
exacerbada na consciência cristã pela dificuldade que temos de lidar com a
sombra. De acordo com essa estória, parece que o diabo realmente se
apoderou da psique do homem ocidental, pois o poder obscuro do mal
arquetípico incita nossas consciências, promove dificuldades e traz
destruição.

A lenda deixa claro que não nos atrevamos a ter muita confiança na
humanidade, tampouco que sejamos ingênuos demais sobre as soluções para
o problema do mal. Por exemplo, se o mal é um poder arquetípico na psique
humana, como sugere nossa lenda, então nem o melhor ambiente possível em
que as pessoas cresçam e vivam evitará a presença do mal. Pode-se até
afirmar que as personalidades criminosas incorrigíveis constituem uma
representação viva desse poder arquetípico. Tampouco podemos assegurar
que todo comportamento maléfico na humanidade desapareceria se toda
criança recebesse pais ideais, com muito amor e afeto. Embora isso, sem
dúvida, pudesse ajudar, o fato é que muitas crianças não recebem esse tipo de
pais, e o fato de isso não acontecer e elas estarem rodeadas de forças obscuras
atesta o poder do arquétipo em romper a vida humana. E até na criança
abençoada com uma educação através de pais positivos há sempre a
possibilidade de um desvio fatal para que o mal se aloje. Tal é o poder do
arquétipo.
A lenda também nos relata qual é o âmago do arquétipo do mal: a busca
do poder. O pecado de Lúcifer foi tentar tomar o lugar de Deus no trono do
céu. Foi a sede de poder que o derrubou e levou a espécie humana a tal
situação. A nível psicológico esse poder destrutivo pode ser visto como uma
qualidade arquetípica do ego humano que quer se impor ao si-mesmo. Trata-
se da tendência obscura formada em nossa estrutura de ego para tentar
estabelecer a dominação deste sobre toda a psique, ao invés de permitir que o
centro divino da psique dite as leis. Nessa perspectiva, o egocentrismo
humano está na essência do problema do mal moral. Por isso o grande
esforço das religiões, como o cristianismo, é o de superar essa busca de poder
e ajudar o homem a se relacionar humilde e corretamente com Deus como
seu centro.
É muito significativo que a primeira coisa que aconteceu a Jesus depois
de ter recebido o Espírito Santo, depois do batismo, foi seu encontro com
Satã no deserto, um Satã que é claramente uma personificação do poder, pois
ele diz a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem
em pães”. E “Se és Filho de Deus, atira-te para baixo”. E finalmente, depois
de ter mostrado a Jesus todos os reinos do mundo, “tudo isto te darei, se,
prostrado, me adorares”{66}.

Do ponto de vista moderno, a lenda de Lúcifer pode parecer ingênua e


fantástica, mas não deveríamos menosprezar sua sabedoria. Pelo fato de a
lenda de Lúcifer lidar com um arquétipo deu-se a sua invenção em primeiro
lugar. Podemos dizer que a mente humana é compelida a inventar tais
estórias a fim de expressar e se relacionar com seus próprios fundamentos
arquetípicos. Hoje em dia já não criamos nem seguimos lendas como esta,
mas a mente criadora de mitos, tendo se desvencilhado da sua função própria,
produz mitos distorcidos. Isso significa que o “diabo” é agora visto nos
outros e as figuras mitológicas de Deus e Satã, brigando entre si, são
projetadas no mundo político, com os russos desempenhando o papel de
adversários dos norte-americanos e vice-versa. Seria melhor se trouxéssemos
de volta nossos mitos divinos do que cair no estado paranoico da mente
produzido pela mitologia projetada sobre outras pessoas.
No folclore popular o diabo tem vários jeitos e formas. No NT, por
exemplo, lemos que o diabo pode se transformar num anjo de luz. São Paulo
nos relata: “…E não é de estranhar, pois o próprio Satanás se transfigura em
anjo de luz”{67}. Também pode aparecer em forma humana, como na estória
de Fausto, onde o diabo, ou um de seus empregados, aparece como
Mefistófeles e age como um homem cínico, esperto e perceptivo. Ele pode
aparecer numa forma extraordinariamente fria, como uma pessoa que
incorpora todas as qualidades odiáveis e repugnantes dos homens, mas ao
mesmo tempo ele pode aparecer em forma extraordinariamente bela, como
um homem extremamente atraente, ou até como uma mulher bela e sedutora.
Foi sob essa forma que ele tentou seduzir o devoto santo Agostinho, ou assim
o santo acreditou. Sob a forma de animal, o diabo aparece tipicamente como
leão rugindo, dragão feroz, serpente, lobo, ou um cão negro. Em seu conjunto
de animais estão incluídos morcegos, ratazanas, ratos, vermes e moscas.
Dentre as identidades humanas do diabo, uma das mais importantes é a
propensão para aparecer como sacerdote. Comenta-se que não há nada de que
ele mais goste do que vestir-se como padre e, se possível, ocupar um púlpito.
Mas, de acordo com a lenda, sua verdadeira identidade é sempre traída por
seu claudicar, tido como o resultado da sua queda do céu.
O diabo também tem muitas cores. Preta é uma das suas favoritas, mas
também usa vermelho e azul. A expressão “the blues”{68} diz-se provir da
associação da cor azul com o diabo.

O macaco é uma outra forma das representações teriomórficas do


diabo. De fato, às vezes ele é chamado de “o macaco de Deus” por causa da
maneira como imita a divindade. Os primeiros cristãos perceberam a estreita
semelhança entre muitos dos mitos gregos e algumas estórias cristãs, como o
paralelo entre a estória de Asclépio, o deus da cura, e Cristo. Os primeiros
cristãos afirmavam que essa afinidade foi obra do diabo, que tentava desviar
o povo da verdadeira adoração a Deus para a falsa adoração das divindades
gentílicas, através da invenção de contos gentílicos muito semelhantes aos
cristãos.

Esse aspecto do diabo, que também é o do deus Mercúrio, trai sua


estreita identificação com o inconsciente, que também tem uma natureza de
Mercúrio, sendo primeiramente uma coisa e depois outra, assumindo
primeiro uma forma simbólica e depois outra. O inconsciente tem realmente
uma qualidade demoníaca. Contém, como já vimos, as qualidades
desagradáveis da nossa natureza, que rejeitamos do consciente. Ele se recusa
a ser absorvido por uma consciência monolítica, preferindo constantemente o
paradoxo a uma expressão da verdade que, embora clara, esteja separada do
lado sombrio. É também um embusteiro, pois o inconsciente está repleto de
trapaças que têm, como efeito último, trapacear um alargamento da
consciência; mas, no momento em que o faz, parece ser o próprio diabo. É
lógico que esse é somente um dos aspectos do inconsciente. Ele tem também
um profundo aspecto moral e representa uma verdade última da qual nunca
podemos escapar, mas, como o lado demoníaco também aí está, o
inconsciente é visto com suspeita. Ele pode facilmente ser visto como o diabo
por aqueles que têm receio do paradoxo e necessitam da segurança daquilo
que é supostamente a mais absoluta e inflexível verdade.
Mas o aspecto do diabo de maior revelação psicológica, na mitologia
pós-bíblica, talvez seja a maneira como ele se encontra conectado com os
atributos das divindades pagãs reprimidas. O diabo, por exemplo, geralmente
é representado na forma de cabra porque as divindades pagãs das florestas
apareciam sob a forma de cabra. O casco clivado pode ser visto como o casco
de Pã, que assim retoma, e seus chifres são como os de Dionísio. Entretanto,
diz-se também que os chifres do diabo têm sua origem num deus cornípero,
adorado numa religião da natureza da antiga Inglaterra, e conhecido como
Wicca.
Nessa religião da natureza, na Inglaterra, havia duas divindades: uma
feminina e benéfica deusa da cura e da fertilidade, e um masculino e benéfico
deus cornígero. Por cerca de mil anos desde a chegada do cristianismo na
Inglaterra, a Igreja tolerou a velha religião, talvez porque não tenha tido força
suficiente para combatê-la. Mas finalmente desenvolveu-se um movimento
para reprimir a antiga religião, que culminou numa revolta contra a mesma,
promovida em 1484 pelo papa Inocêncio VIII. A partir desse momento,
Wicca passou para o submundo e foi então que as bruxas, com suas vassouras
e gatos pretos, começaram a aparecer no folclore inglês, bem como as
imagens da antiga deusa da natureza, voltando agora sob uma sinistra forma
por ter sido rejeitada.

Foi depois disso que começou a ser popular a representação do diabo


com chifres, o velho deus de chifres voltando como diabo, por ter se tornado
objeto de repressão. Assim, verdadeiramente, “os deuses da antiga religião
sempre se tornam os diabos da nova”{69}.
Isso indica que a figura do diabo é uma representação ou personificação
dos aspectos da psique humana que foram reprimidos e, consequentemente,
banidos para o inconsciente. O cristianismo foi capaz de absorver muitos dos
papéis e funções das antigas divindades pagãs, mas não todos. Por exemplo, a
função de Zeus, deus-pai e autoridade última sobre todos os outros deuses da
Grécia Antiga, foi absorvida na imagem cristã de Deus Pai. E Apolo,
inspirador da razão, harmonia e ordem, foi absorvido na fé cristã pela razão e
capacidade da civilização. Asclépio também foi integrado no cristianismo,
pois suas funções de cura foram captadas por Cristo, sendo ele próprio um
curandeiro, ou pelos santos, que continuaram tendo uma influência de cura
sobre a humanidade necessitada. Mas outras divindades não foram
representadas no espírito cristão. Dionísio, por exemplo, deus do êxtase, do
abandono aos poderes da natureza, dos instintos e do prazer ilimitado, não
teve um espaço dentro do espírito cristão. Tampouco Pã, a divindade que
vagava pelas florestas e expressava o espírito da natureza selvagem. Muito
menos Afrodite, deusa do eros, da união sexual, a inspiradora do amor, que
unia o touro e a vaca, cavalo e égua, homem e mulher, num abraço prazeroso
e criador de vida. Seus caminhos eram muito divergentes e diferentes do
espírito da moralidade cristã para serem incluídos na visão cristã. Esses
deuses e deusas negligenciados e rejeitados, e as funções psicológicas que
eles personificam, foram se tornando objeto da repressão cristã e
reapareceram na arte pós-bíblica e no folclore como o diabo.
Por essa razão o diabo é temido, pois temos medo do que reprimimos, e
ficamos ansiosos em face àqueles elementos reprimidos que estão dentro de
nós, lutando para se reafirmarem. Não é de se admirar que o diabo perturbe
constantemente a paz de nossas mentes e rompa o estado consciente, pois o
que é reprimido e negado, ao reemergir deixa confuso o status quo da
consciência.

Se observarmos ainda do ponto de vista psicológico, podemos perceber


que o diabo, nesse sentido, aparece como um mal relativo. Se o diabo
personifica o que foi rejeitado e negado, então o mal aparente que o envolve
poderia ser dissipado se os elementos rejeitados e reprimidos fossem
reaceitos pela consciência. Há uma parte dividida e expulsa da psique que,
causando rupturas, realmente age de maneira diabólica. Seu efeito sobre a
consciência é perturbador e, caso nos possua inteiramente, será destrutiva.
Além do mais, se os conteúdos psíquicos rejeitados estão por demais
divididos e expulsos, eles tendem a cair nas mãos de uma escuridão mais
profunda da essência do mal e acabam agindo, para todo o mundo, como um
poder maligno. A meta, no entanto, é resgatar sempre a parte perdida, tê-la de
volta do seu estado alienado ou mau, e exigi-la como parte do todo.
Historicamente o cristianismo tem falhado em perceber sua tarefa de obter de
volta, e não rejeitar, essas partes perdidas de nós mesmos, por mais malignas
que possam parecer.
Tentamos exorcizar, através da repressão, projeção sobre os outros e
várias formas de negação e magia, o que não deveria ser exorcizado, mas
tornado consciente e integrado. Só então nossas próprias partes rompidas, as
divindades perdidas, perderão seu efeito perturbador.

Desse modo, a redenção do diabo é uma importante tarefa psicológica a


ser realizada, pois não podemos ser íntegros se não recuperarmos as partes
perdidas de nós mesmos. Entretanto, os perturbadores Dionísio, Pã e Afrodite
deveriam estar na atitude cristã convencional e também pertencem à
totalidade humana. Eles não são maus em si mesmos, mas acrescentam a cor,
a vitalidade e o eros de que necessitamos para que nos tornemos pessoas
íntegras.
Pode ser que isso tenha estado na mente de Orígenes muitos séculos
atrás quando ele falou da necessidade da derradeira redenção do diabo, um
ensinamento que já mencionamos brevemente no capítulo quarto. No final da
história, disse Orígenes, o diabo também deveria ser salvo, pois se ele não
fosse salvo a criação original de Deus não estaria completa. Além do que,
afirmou Orígenes, o diabo foi parte da criação e do plano de Deus, e assim,
no final, depois que o seu papel impertinente, mas necessário como
perturbador da consciência do homem estiver finalizado, o diabo também
deveria ser resgatado para a integridade de Deus. Mas a visão de Orígenes
não encontrou popularidade dentro da Igreja, e finalmente ele foi condenado
pelo seu ensinamento num concilio da Igreja que se deu no século VI{70}.

Jung diz que primariamente, no mundo, o diabo deve ser incluído como
o quarto elemento para que emerja a totalidade. Jung contrasta muitas vezes
o aspecto trinitário da teologia cristã com os símbolos quaternários da
totalidade que são produzidos pelo inconsciente. Ou seja, enquanto o
cristianismo representa Deus como tendo uma natureza triuna, Pai, Filho e
Espírito Santo, o inconsciente, através dos sonhos, mitos e visões, representa
espontaneamente a totalidade como uma estrutura quaternária. Jung sente
que, se nossa imagem de Deus é uma representação da totalidade, o símbolo
cristão está incompleto. Falta alguma coisa à sua trilogia, e um quarto
elemento deve ser acrescentado para que se torne completo. Esse quarto é o
diabo. Isso significa que, para que haja uma totalidade, o inconsciente, que
contém tudo o que foi reprimido e tem um sentido maligno, precisa ser
também incluído na nossa perspectiva. Somente quando os três se tornarem
quatro, nós nos tornaremos completos.

O quarto elemento ausente é caracterizado por Jung como uma imagem


diabólica masculina, que ele às vezes descreve como a quarta ou inferior
função psicológica; mas, outras vezes, o quarto ausente é representado como
o feminino, pois é o lado feminino da vida que tem sido muito rejeitado pelo
masculino que, dominado pela luz, busca ordenar a consciência. Com certeza,
o lado feminino luminoso, positivo e mais aceitável foi incluído no
catolicismo romano na imagem da Virgem Maria, mas o lado Yin, terra, eros,
foi rejeitado, e o protestantismo está desprovido de toda essa simbologia.
Desse modo o quarto elemento é geralmente representado como o espírito
feminino ausente da psique que, tendo sido rejeitado, tornou-se semelhante a
uma bruxa no homem moderno, perturbando sua vida e sua consciência,
jogando lhe um feitiço ruim porque tornou-se vingativo.

O espírito feminino está associado com o mundo e a carne, pois a terra


é o domínio da Grande Mãe. A antiga fórmula de batismo da Igreja, desde
pelo menos o século III, pede que o padre pergunte ao iniciado na fé: “ Você
rejeita o mundo, a carne e o diabo? ”. Dessa forma o mundo e a carne estão
associados com o mal, ainda que por alguma razão isso não esteja claro, uma
vez que o mundo e a carne são ambos tidos como parte do plano e criação de
Deus. De fato, não é apenas o cristianismo que associa o mundo e a carne
com o mal, mas também o gnosticismo. O cristianismo é uma religião de
encarnação, uma religião que declara que Deus se encarnou — “E o verbo se
fez carne” — como afirma o evangelho de são João. Foi o gnosticismo que
dividiu ti criação em duas e disse que o espírito era o bem e a matéria o mal,
e que Deus reinou somente no céu enquanto o mal presidiu a terra.
A atitude gnóstica, rejeitada teologicamente pela Igreja depois de
séculos de brigas e debates teológicos, venceu no dia em que, acima de tudo,
conquistou a ética e a psicologia cristãs. Isso pode ser observado na atitude
cristã tradicional em relação à vida sexual e ao prazer, uma atitude coerente
com a afirmativa de que o sexo seria realizado apenas com os propósitos de
procriação. De fato, até santo Agostinho declarou que era pecado se alguém
nele encontrasse prazer{71}. A ideia de que o prazer sexual pudesse ter um
espaço no plano de Deus como meio de se expressar amor e proximidade,
uma forma de intimidade física que acompanha a intimidade psicológica, ou
ainda apenas para se ter um bom momento e expressar a alegria de viver, foi
rejeitada como sendo do diabo porque, de acordo com o gnosticismo, o corpo
era o mal.
Essa rejeição do espírito feminino pode ser vista na fascinante lenda
pós-bíblica de Lilit, a primeira mulher, e mais tarde a mulher de Satã, cujo
nome significa literalmente “pertencente à noite”.

A lenda de Lilit é baseada em dois versículos bíblicos, Is 34,14 que fala


do lugar a ser habitado por Edom, inimigo derrotado de Israel:

Os gatos selvagens conviverão aí com as hienas,


os sátiros chamarão os seus companheiros.
Ali descansará Lilit,
e achará um repouso para si.

A segunda e mais importante referência bíblica é encontrada em Gn


1,26-27, onde lemos: “Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem,
como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves
do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam
sobre a terra’ ”.

Deus criou o homem à sua imagem,


à imagem de Deus ele o criou,
homem e mulher ele os criou.

Esses versículos implicam que, quando Deus criou a humanidade, ele


criou o homem e a mulher. Ele não fez como na estória encontrada em Gn 2,
quando criou primeiro Adão, e depois, como um segundo pensamento, Eva, a
mulher.

A lenda de Lilit volta a esse versículo. O que aconteceu com a primeira


mulher que Deus criou? — (não Eva, mas a primeira mulher a que se refere a
pergunta acima). As fontes judaicas respondem a essa questão, sendo a mais
antiga o Alfabeto de Ben Sira, e mais tarde a lenda é elaborada no Talmude,
Targum e Cabala. De acordo com a lenda judaica, o problema começou
porque a primeira mulher, Lilit, não queria ser submissa a Adão.
(Evidentemente ela foi a primeira mulher liberacionista). Ela não obedecia a
Adão, e ambos discutiam por que reivindicava direitos iguais a Adão para
chefiar a família. Mas Deus ficou do lado de Adão, e Lilit foi expulsa do
Éden; foi então que Deus criou Eva da costela de Adão para tomar o lugar de
Lilit como sua esposa. Lilit não foi apenas exilada, mas também
excomungada e tornada estéril.
Por muito tempo Lilit vagou chorando e sentindo-se rejeitada, até que
encontrou Samael, chefe dos anjos decaídos, que é o diabo, para então tornar-
se sua esposa. (Tudo indica que Samael era mais aberto à igualdade dos
sexos). Como espírito feminino rejeitado, Lilit tornou-se negra, planejou
represália e, juntamente com Samael, tramou contra a humanidade,
conspirando a retirada de Adão e Eva do jardim do Éden. É por isso que a
serpente foi inserida no jardim do Éden. De fato, escritores cristãos que
partilharam da estória de Lilit com seus contemporâneos judeus diziam, às
vezes, que a serpente no Paraíso era Lilit e não o diabo.

Mesmo postos fora do Paraíso, Adão e Eva não foram destruídos


completamente, praças à ação salvadora de Deus; assim, a revanche de Lilit
não estava completa, nem ainda sua agonia estava aliviada. Dessa maneira ela
se tornou inimiga das mulheres mortais e suas crianças, um espírito furioso
da noite que, por inveja e vingança, tentava destruir bebês recém-nascidos e
criancinhas, ainda que às vezes dissessem que ela não queria destruir as
crianças, mas apenas abraçá-las e acalentá-las.

Aqui nos deparamos novamente com a verdade psicológica


exemplificada: o que rejeitamos volta-se contra nós. Nesse caso, é o espírito
feminino que foi negado, reprimido e rejeitado, e que consequentemente
torna-se um espírito maligno. Contudo, se o processo fosse revertido, ou seja,
se o que foi rejeitado fosse amado e reassumido, será que ele não deixaria o
domínio do mal e retomaria ao bem? Além do mais, podemos nos tornar
íntegros sem isto? Certamente neste tempo da história, é o espírito feminino,
o obscuro poder Yin, que tem sido negado e rejeitado tanto nos homens
quanto nas mulheres; é ele que agora atrapalha o nosso sono e perturba
nossas almas, mas somente ele pode nos tornar inteiros sendo incluído
novamente no círculo de nosso reconhecimento, amor e aceitação.
O diabo, personificando o que é temido e reprimido, tem outras
representações que estiveram em voga numa ou outra época. Por exemplo,
durante a Idade Média o diabo era associado com a razão humana. O
pensamento racional, o novo método científico que apenas começava a
surgir, e a tentativa de investigar e entender os segredos da natureza foram
considerados pela Igreja como obras do diabo. O diabo era até personificado
como um estudioso famoso, e descobertas como as de Galileu, que
contradiziam as crenças eclesiásticas tradicionais, eram tidas como obras de
Satã. Essas novas descobertas, evidentemente, a atitude repensada e o método
científico que os gerava eram ameaças para a velha crença e segurança em
que as consciências se arraigavam. Essas ameaças trouxeram a possibilidade
de um transbordamento do inconsciente, pois o ego sempre constrói uma
muralha de defesa contra o inconsciente, encarando como mal tudo o que
ameaça essa defesa. Novamente vemos a verdade: o que não entendemos
estamos propensos a temer, e o que tememos temos a tendência de reprimir, e
o que reprimimos, para nós é o diabo.
Quando o puritanismo ficou em voga na Inglaterra e parte do norte da
Europa, o diabo era retratado como um artista ou músico que seduzia os
homens nas formas de criatividade e empreendimento. Dizia-se que o diabo
era particularmente bom dançarino, e que ele podia aparecer como um jovem
que fascinava uma moça com sua dança, e com ela dançava até que ela caísse
para então levá-la carregada. Os puritanos, logicamente, não reprimiam a
razão da mesma forma que faziam com o lado prazeroso e dionisíaco da vida.
Para eles era esse lado da vida que reaparecia no medo do diabo dançarino.
Mais uma vez observamos a verdade psicológica exemplificada: o que é
negado tende a voltar como um poder obscuro.
O diabo é também onipresente no folclore. Nunca se sabe quando ele
pode estar emboscado. É lógico que é porque o inconsciente também é
onipresente. Podemos reprimir certas coisas que não entendemos e delas
temos receio, mas não escapamos delas. Elas nos seguem para onde quer que
vamos, porque em última análise elas são nós mesmos. Assim, o diabo
também é inescapável e deve-se estar constantemente em guarda contra ele.

Outra razão para a onipresença do diabo é que tudo o que pertence ao


inconsciente e foi reprimido luta pela religação com a consciência. É como se
colocássemos algumas coisas no porão de casa e fechássemos bem a porta.
Essas coisas, porém, não querem permanecer no porão. Elas se tomam diabos
e arrombam a porta, procurando uma forma de escapar do estado de
confinamento e voltar ao mundo da consciência. Dessa forma eles criam
ansiedade, já que tendemos a ter medo do retomo daquilo que foi reprimido.
Mas essa tentativa dos conteúdos reprimidos de alcançar a consciência não é
simplesmente uma tentativa de perturbar a consciência ou obter revanche. O
movimento é em direção à luz da consciência, porque isso é necessário para
que ocorra lima redenção psicológica. Não importa o quão malignos esses
conteúdos separados na psique possam parecer, e não importa o quão
maliciosas sejam suas artimanhas; há sempre a possibilidade de redenção se
eles puderem alcançar a consciência. Paradoxalmente, a redenção dessas
nossas partes perdidas são também resultado da nessa própria redenção. Isto
é, podemos ser íntegros apenas quando ajudarmos a redimir os nossos diabos.
O impulso dos conteúdos psíquicos diabólicos reprimidos em direção à
consciência pode ser considerado como parte do impulso para a individuação,
porque precisamos incluir essas partes divididas em nós mesmos para nos
tornarmos íntegros. Quando há uma ruptura muito grande na psique, a
condição interna se assemelha à da guerra, e o resultado é uma situação
perigosa. Se a consciência é sobrepujada há o perigo de uma enantiodromia,
isto é, a oscilação de um oposto para o outro. Se os demônios que reprimimos
comandarem a consciência, isso não será integração, mas uma derrota para o
ego. A totalidade poderá emergir somente quando ambos os lados da moeda
estiverem sendo representados na consciência ao mesmo tempo, quando
permanecermos conscientes tanto do nosso lado claro como do nosso lado
escuro.

Não é de se admirar que o diabo seja temido. E há ainda um curioso


aspecto do diabo que aparece no folclore popular, que é a sua confiabilidade.
Isso pode ser observado nas famosas estórias de “pacto diabólico”. Nesses
contos um ser humano faz um acordo com o diabo, geralmente para obter sua
ajuda a fim de alcançar algum objetivo. O que é interessante nessas estórias é
que o diabo pode ser trapaceado, porque ele sempre mantém sua palavra e
segue o acordo, mas o parceiro humano é livre para enganá-lo se para isso
tiver uma chance. Os poderes divinos, que não estão ligados aos termos do
contrato, poderão interceder e trapacear o diabo no último momento. O fato
de que a palavra do diabo é reconhecidamente confiável e que a do parceiro
humano não o é, aparece no pormenor de que nesses contratos o ser humano
sempre deve assinar seu nome com sangue, enquanto a palavra do diabo é
válida por si mesma.

A lenda de Teófilo, do século XVI, é um bom exemplo. Teófilo era um


clérigo muito estimado que recebera uma oferta de assumir o bispado, mas
recusou-a modestamente. O novo bispo, com inveja da popularidade de
Teófilo e ressentido com a modéstia cristã que ele possuía, depôs o clérigo da
posição que ocupava dentro da Igreja. Para recuperar sua posição, Teófilo fez
um pacto com o diabo, concordando, em troca da ajuda que receberia, em
negar Cristo e a Virgem. No dia seguinte Teófilo estava reintegrado. Quando
estava próximo o final da vida, Teófilo, cônscio do duvidoso pacto com o
diabo, jejuou e orou por quarenta dias e quarenta noites para a Virgem,
pedindo perdão. Finalmente ela ficou compadecida, tomou o documento do
diabo que continha a assinatura de Teófilo e destruiu-o no fogo. No final o
diabo foi trapaceado, ainda que tenha cumprido a palavra ajudando Teófilo a
atingir seu objetivo.

Lendas como essa foram se desenvolvendo com a famosa estória de


Fausto que atingiu seu ápice no famoso poema de Goethe. Nesse conto o
diabo também cumpriu sua palavra, e Mefistófeles fez tudo o que Fausto
queria e mandava. Mas, no final, quando Mefistófeles está esperando que a
alma de Fausto deixe o corpo ao morrer a fim de levá-lo para o inferno, os
anjos enviam querubins divinos para que espalhem pétalas de rosa sobre a
cena. Momentaneamente Mefistófeles se distrai com a erótica chuva de rosas
e os charmosos querubins, e naquele instante a alma de Fausto,
desprendendo-se do corpo, é levada para o céu pelos anjos. Dessa maneira o
diabo foi novamente enganado.

Tais estórias mostram o fato de que ainda que os conteúdos


inconscientes possam parecer diabólicos e serem realmente perigosos, eles
têm sua própria espécie de integridade, enquanto o ego pode enganar no
processo de individuação.

Agora é um momento propício para que façamos uma pausa e


reavaliemos nossa investigação sobre o problema do mal. De fato, vimos
muitos diferentes aspectos do que o mal é, ou aparenta ser.
Primeiramente, vimos que o que aparenta ser um adversário e uma
força maléfica, pode, às vezes, ser chamado propriamente de lado obscuro do
si-mesmo. Ou seja, quando a consciência humana se volta contra a totalidade
divina, inevitavelmente ela constela o lado sombrio de Deus que a confronta
como um adversário perigoso, e até destrutivo. Vimos um exemplo disso na
estória de Balaão, no AT. Esse poder obscuro, no entanto, não importando o
quão destrutivo possa ser, não pode ser considerado como intrinsecamente
maligno. Ao contrário, um bem positivo pode advir de tal confronto, e um
avanço na consciência poderia se dar através de tal encontro, o que não
aconteceria de outra forma. Até a destruição, que o lado obscuro do si-mesmo
pode trazer, pode ser considerada boa no sentido de que destrói o que não é
válido na vida.

Em segundo lugar, vimos que a visão do mal contida nos evangelhos


implica que o mal é necessário para o propósito divino, e que a psicologia
compartilha desse ponto de vista porque percebe que, sem o mal, o processo
do desenvolvimento que denominamos individuação, que é o crescimento da
consciência, não poderia se realizar. De acordo com essa visão, embora o mal
seja realmente mal, há, entretanto, um propósito maior para o qual ele deve
servir.

Em terceiro lugar, vimos que o problema do mal e do diabo é


complicado pelo problema da sombra humana. Há inevitavelmente uma parte
de nós que resiste à demanda da consciência de ser perfeita, inteiramente
clara, sem pecados, falhas, pensamentos repreensíveis, fantasias ou impulsos.
Trata-se da personalidade da sombra. Essa personalidade da sombra pode
parecer maligna, e pode até estar de acordo quando está cindida demais do
todo. Ela, contudo, não pode ser considerada como inteiramente má, pois se a
sombra for reconhecida e aceita, ela então perderá seu caráter satânico e
ainda terá a capacidade de acrescentar à personalidade valor, força e
amplitude.
Em quarto lugar vimos que o diabo é uma personificação da busca de
poder do ego. Há algo dentro de nós que quer colocar o ego contra o si-
mesmo, o ser humano contra a vontade divina. A lenda personificou isso
como Lúcifer, cujo poder acarretou sua expulsão do céu. Aqui finalmente
podemos supor que temos um mal definitivo, mas ainda aqui pode-se
suspeitar que se esse impulso para o poder não estiver presente, O processo
completo de redenção não poderia acontecer. Psicologicamente falando, isso
significa que é necessário um certo impulso de poder para que o ego se
diferencie suficientemente para ter uma eventual experiência de confronto e
reconciliação com Deus.

Finalmente, vimos que o diabo pode ser uma figura que personifica o
que foi reprimido por não se encaixar nos ideais e crenças da consciência
dominante. Nesse caso o diabo se torna uma espécie de figuração da sombra
coletiva, uma personagem cuja obscuridade compensa uma atitude consciente
por demais unilateral e rígida. Apesar das temíveis e maliciosas artimanhas
que tal poder cindido e alienado pode realizar, a obscuridade que envolve a
figura do diabo deve ser considerada como um mal relativo, uma vez que ele
se transforma quando é integrado.

Um mal relativo pode ser definido como mal aparente que, em certas
circunstâncias, pode ser mudado para melhor, ou ser considerado necessário
para o propósito de um bem maior. O que é intrinsecamente um mal, por
outro lado, é um poder que funciona para uma destrutividade absoluta e é
incapaz de ser alterado do seu estado maligno. Assim, nossa investigação
sobre o mal nos mostrou que boa parte do mal que encontramos é, em última
análise, um mal relativo. Contudo, a estória de O Médico e o Monstro sugere
que há um mal intrínseco ou arquetípico, desde que a personalidade de Hyde,
tendo absorvido a de Jekyll, demonstrou a mais absoluta destrutividade. Fica
clara a necessidade de considerarmos mais a fundo a ontologia do mal, e é o
assunto que desenvolveremos no próximo capítulo.
9.
A ontologia do mal

O problema do mal no cristianismo primitivo

O problema do mal não está resolvido na teologia cristã. O principal


impulso do pensamento nos primeiros tempos da Igreja foi direcionado à
natureza de Cristo, ao modo como Cristo salvou o homem e ao
relacionamento de Cristo com Deus Pai. A cristologia ocupou de tal modo o
pensamento que a discussão sobre o mal e o relacionamento do mal com
Deus foi amplamente posta de lado. Desse modo, até hoje não temos uma
declaração definitiva sobre a natureza do mal nos credos cristãos, e
praticamente nenhuma doutrina oficial a respeito do mal.

Entretanto, ao mesmo tempo em que a Igreja primitiva não concentrou


suas energias para resolver o problema do mal, ela também não deixou
totalmente de considerá-lo. Como já vimos, a realidade do mal era uma
preocupação inicial dos evangelhos, como também das pessoas na Igreja
primitiva. De fato, a Igreja primitiva estava tão desperta para a realidade do
mal, que as primeiras teorias da reconciliação foram expressas em termos
dessa realidade. Como foi que a morte de Cristo na cruz salvou a humanidade
e capacitou o homem a estar novamente em união com Deus? Essa foi uma
grande questão com a qual a Igreja se debateu, e sua primeira explicação foi a
de que a morte de Cristo na cruz salvou o homem do diabo e do poder do
mal.
Havia duas teorias da reconciliação nessa linha: a teoria do resgate e a
teoria da vitória. Conforme a primeira, a morte de Cristo resgatou o homem,
trazendo-o de volta do poder do mal. De acordo com a segunda, Cristo, na
cruz, venceu os poderes do mal e assim libertou o homem do poder do mal.
A teoria do resgate dizia que o diabo havia se apoderado da alma do
homem, tentando-o ao pecado. Isso foi feito originariamente no jardim do
Éden através do diabo, que teria aparecido na forma de serpente. Devido ao
pecado do homem, sua alma estava agora prisioneira do diabo. Mas Deus
decidiu salvar o homem oferecendo seu filho Cristo ao diabo, como meio de
resgatar a humanidade. Se o diabo libertasse o homem, Deus lhe daria seu
filho em troca. No entanto, tratava-se de um subterfúgio, pois Cristo, sendo
perfeito e isento de culpa, não poderia ser pego pelo diabo. Evidentemente
Deus sentiu que era justo recorrer a tal estratagema ao lidar com o diabo,
visto que este também havia apelado a um estratagema para se apoderar do
homem através da tentação original no jardim do Éden.

A teoria do resgate foi popular dentro da Igreja primitiva, conservando


uma posição proeminente por muitos séculos. Orígenes, Gregório de Nissa e
Irineu eram seus adeptos no oriente, enquanto no ocidente predominava a
teoria inicial da reconciliação, representada por Agostinho e Gregório
Magno. Ainda no final do século XII encontramo-la representada no
pensamento de Bernardo de Clarával e Pedro Lombardo. Gregório Magno,
por exemplo, disse que a humanidade de Cristo foi o engodo que fez com que
o diabo mordesse a isca da cruz e com isso fosse ludibriado, e Pedro
Lombardo, quem comparou a cruz com uma ratoeira alimentada com o
sangue de Cristo{72}. A teoria do resgate foi, e ainda é, uma teoria muito
popular na Igreja grega, pois, entre os cristãos orientais, Satã e sua legião de
demônios eram poderes muito reais e a ajuda sobrenatural era considerada
essencial para que a humanidade não fosse destruída por eles. Sem dúvida,
uma boa parte da força dessa teoria veio das experiências dos cristãos que
sentiam que Cristo de fato derrotou o mal, tomando assim suas vidas
possíveis.
Nos evangelhos, duas passagens são citadas como base da teoria do
resgate: Mt 20,27-28, onde se lê, “…e o que quiser ser o primeiro dentre vós,
seja o vosso servo. Desse modo, o Filho do Homem não veio para ser
servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”. A palavra
grega traduzida por resgate é lytron, que literalmente significa um preço pago
para conseguir a redenção. Uma pessoa poderia, por exemplo, pagar um
lytron a fim de redimir um escravo da servidão. Passagens das epístolas
citadas em apoio a essa ideia incluem: 1Cor 6,20; 7,23; 1Pd l,18s; Tt 2,14; Ef
1,14.
A teoria da vitória é como a teoria do resgate no que diz respeito ao
diabo que é vencido por Cristo na cruz, mas há menor ênfase na culpa do
homem e na necessidade de um resgate, e maior ênfase sobre a luta cósmica
entre Cristo e Satã, uma batalha que termina com a vitória de Cristo através
da crucificação. A cruz é, portanto, o campo de batalha entre Cristo e Satã, o
lugar de uma luta cósmica entre as forças de Deus e as forças do mal. Essa
era a ideia favorita de Orígenes, que a sustentava juntamente com a teoria do
resgate, e que falou de Cristo triunfando sobre os principados e potestades,
fazendo deles uma exibição e superando-os com sua cruz{73}.

A teoria da reconciliação foi também a base do exorcismo cristão. Foi


usada, por exemplo, por Lactâncio que, em The Divine Institutes, descreve o
poder da cruz para expulsar demônios, fazendo assim com que as almas e os
corpos dos homens se libertem do poder do mal{74}. De fato, até os dias de
hoje, quando fazemos uma afirmação positiva sobre um fato de boa sorte, e
supersticiosa ou piamente batemos na madeira, estamos admitindo a vitória
de Cristo na cruz sobre Satã. A madeira sobre a qual batemos representa a
madeira da cruz que tem o poder de afastar Satã, que poderia, de outro modo,
ouvir o que dissemos e tomar a nossa porção de boa sorte. Referências
escriturísticas dessa teoria podem ser encontradas na Igreja primitiva em Cl
2,15; Hb 2,14; 1Jo 3,8.
Essas antigas teorias da reconciliação, sustentadas em termos da
realidade do mal, prevaleceram fortemente, até que santo Anselmo (1033-
1109) escreveu o livro Cur Deus Homo, onde as teorias do resgate e da
vitória foram superadas pela teoria que passou a ser conhecida como teoria
da satisfação ou teoria vicária. De acordo com essa visão, não era o diabo
quem deveria receber uma satisfação, mas Deus. O pecado de Adão não
havia entregue o homem nas mãos do diabo, mas tinha sido uma ofensa a
Deus; portanto, era a justiça de Deus que precisava de satisfação. Mas a
humanidade pecadora nunca poderia se redimir de seus pecados diante de
Deus Todo-Poderoso, e então o próprio Deus ofereceu um sacrifício pelo
pecado do homem na pessoa de Cristo na cruz. Assim Cristo pagou a dívida
para o homem, e isso satisfez a exigência de justiça divina.

O ponto importante para nossos propósitos é a ênfase que a Igreja


primitiva dava ao mal, o qual era tão real para os cristãos da época que a
missão de Cristo foi definida em relação ao mal. De fato, uma razão para o
sucesso da teoria da satisfação vicária de Anselmo foi que as teorias
anteriores pareciam dar um peso grande demais ao mal, destacando o diabo
como um rival poderoso de Deus, tão poderoso que Deus teve que recorrer ao
que aparentava ser um subterfúgio para libertar o homem. Sem dúvida, os
proponentes da teoria da vitória teriam afirmado que a reconciliação não foi
um mero truque, mas a asserção da realidade última — que tem o poder de
vencer o mal.

De certo nada disso explicou a origem ou a natureza do mal. Se havia


apenas um Deus, e se Deus era justo e bom, e se Deus amava a humanidade e
criou um mundo bom, por que havia tanto mal no mundo? E Deus
simplesmente permitiu esse mal ou criou o mal deliberadamente? Afinal de
contas, qual era o lugar último do diabo no plano divino das coisas? Essas
eram as questões com as quais a Igreja primitiva se debateu ocasionalmente,
mas não as resolveu.
Vimos que no AT o mal podia ser atribuído a Deus sem nenhum
sentimento de contradição. Todavia, assim que a consciência do homem foi
se aprimorando, e assim que a imagem que o homem tinha de Deus enfatizou
as qualidades de amor e justiça de Deus, não foi mais possível afirmar que
Deus era o autor tanto do mal como do bem, a não ser que fossem fornecidas
algumas explicações que poderiam resolver as aparentes contradições que tal
declaração poderia criar.

Foram tentadas várias soluções. Uma linha de pensamento se baseava


na ideia de que a origem do mal está no homem, e não em Deus. Foi o
homem, afinal, que havia sucumbido às tentações no jardim do Éden e, com
isso, o mal entrou na criação divina, que era perfeita. Na verdade, o homem
era uma criação própria de Deus, e poder-se-ia perguntar por que Deus teria
criado uma criatura tão fraca; mas a resposta foi que se o homem era para ser
aquilo a que se destinava, ele tinha que ter livre-arbítrio, e isso significava a
capacidade de escolher tanto o mal como o bem. De acordo com essa visão,
omne bonum a Deo, omne malus ab hominem — todo bem pertence a Deus e
todo mal deriva do homem.

Essa solução para o problema do mal era afirmada frequentemente na


Igreja primitiva, e tinha o mérito de absolver Deus de qualquer
responsabilidade pelo mal —, ou algo semelhante. Mas, num outro sentido,
ela fez retroceder a questão sobre quem, afinal, tinha posto a serpente no
jardim do Éden. Quem era responsável pela criação que colocou uma
tentação tão maligna diante do homem, uma criatura notoriamente frágil
dentro do reino moral? Além do mais, isso fez com que o homem fosse um
criador com Deus, pois se o homem criou o mal por livre e espontânea
vontade, então ele era um criador de coisas a seu bel-prazer. Além do mais,
isso de nada adiantava para explicar a existência de males naturais, tais como
doenças, terremotos, tempestades violentas e outras calamidades que foram
trazidas pela natureza e não pela escolha moral do homem.

Uma segunda tentativa para solucionar o problema do mal foi o


ensinamento de que Deus deliberadamente permitiu o mal em sua criação
para criar um universo no qual os poderes morais do homem pudessem ser
exercitados e a alma do homem pudesse ser purificada, limpa e desenvolvida.
De acordo com essa visão, sem o mal não haveria um mundo no qual a
natureza do homem pudesse ser perfeita. Um líder proponente dessa visão foi
o bispo de Lião, Irineu, que encarava a queda do homem como uma bênção,
pois isso era essencial para o desenvolvimento do homem à perfeição. “O
destino original do homem não foi ab-rogado pela queda; a verdade é que a
queda tem, no seu significado, a intenção de levar os homens a atingirem a
perfeição à qual eles se destinam”{75}.
Orígenes, como já vimos, também foi um proponente desse ponto de
vista. Deus permitiu o mal, disse Orígenes, porque sem lutar contra o mal, a
alma humana não poderia propriamente desenvolver-se. De fato, o próprio
diabo era tão parte do plano de Deus que ele também seria salvo quando o
drama divino estivesse finalmente concluído no final dos tempos e toda a
criação recuperasse a união com Deus. O mal então não existiria mais, porque
não seria mais necessário.

Lactâncio também aceitou a necessidade do mal para o propósito de um


bem maior:
Deus designou que deveria haver distinção entre coisas boas e coisas
más; que devemos conhecer, através do que é mau, as qualidades do
que é bom, e também as qualidades do que é mau a partir do que é
bom; e nem pode ser entendida a natureza de um sem a existência do
outro. Assim, Deus não excluiu o mal a fim de que a natureza da
virtude ficasse evidente. Como poderia a paciente tolerância ter
significado se não houvesse aquilo que devêssemos tolerar? Como
poderia a fé devota a Deus ser digna de louvores se não houvesse
algo que nos quisesse afastar de Deus? Por tudo isso ele permitiu aos
injustos serem mais poderosos, para serem capazes de compelirem ao
mal; e ser mais numerosos para que a virtude fosse preciosa por ser
rara.{76}
Como exemplo final desse ponto de vista na Igreja primitiva citarei
Recognitions of Clement, um documento cristão antigo de origem
desconhecida, mas comumente atribuído a Clemente, bispo de Roma, e as
Homílias Clementinas, do mesmo autor. Clemente afirmou que Deus tem
duas mãos que cumprem seu propósito, uma boa, outra má, e que há dois
reinos que correspondem a esses dois lados de Deus, um, o reino do céu, e
outro, o reino da terra, com dois reis acima desses reinos. “Esses dois
líderes”, diz ele, “são as mãos ágeis de Deus, ávidas para lhe antecipar a
execução de sua vontade”. Ele cita Dt 32,39: “sou eu que mato e faço viver,
sou eu que firo e torno a curar”, como evidência dessas duas mãos de Deus,
e continua dizendo: “Ele mata através da mão esquerda, ou seja, através da
maligna, que tem sido tão serena como se encontrasse júbilo em afligir os
ímpios. E ele serve e beneficia através da mão direita, isto é, através da boa,
que foi feita para o regozijo nas boas ações e salvação dos justos. Elas não
têm sua essência fundamental fora de Deus: não há outra fonte primordial”.

Que as últimas intenções de Deus sejam voltadas para o bem é uma


indicação da visão escatológica de Clemente, que é semelhante a de
Orígenes, pois Clemente sugere que no final de todas as coisas o princípio do
mal será transformado, uma vez que não será mais necessário: “Os maus,
tendo servido a Deus sem culpa até o fim do mundo presente, podem tornar-
se bons por uma mudança em sua composição”{77}.
O otimismo básico de Clemente sobre a bondade fundamental de Deus
está também refletida no fato de que, enquanto o reino terrestre é dado ao
diabo, o reino do céu é reservado ao bem: “Deus estabeleceu dois reinos e
constituiu dois mundos, entregando o cosmos presente ao domínio do mal,
porque este é pequeno e não demoraria a passar. Mas prometeu ao bem
reservar-lhe o mundo vindouro, pois o bem, evidentemente, é grande e
eterno”{78}.

A doutrina da Privatio boni

Houve uma outra abordagem do problema do mal proposto por


pensadores cristãos pela qual Jung mostrou grande interesse: a doutrina da
privatio boni. Aristóteles foi o primeiro a sugerir essa ideia em sua
Metafísica, quando afirmou que o mal não era verdadeiro e, portanto, não
existia em si mesmo. Na Igreja essa ideia tornou-se conhecida como privatio
boni (privação do bem), tendo sua origem com Orígenes. Encontrou logo
seguidores em Basílio de Cesareia, Dionísio, o areopagita, santo Agostinho e
muitos outros, incluindo Tomás de Aquino. A ideia básica da doutrina da
privatio boni é que só o bem possui substância; o mal não teria substância
própria, mas uma existência apenas no sentido de diminuição do bem.

Orígenes, por exemplo, denominou o mal de “falta acidental de


perfeição”. Em outras palavras, o mal passou a existir quando a criação se
desviou da perfeição que Deus almejava. Entretanto, como já vimos,
Orígenes também encarava o mal como parte do plano total de Deus e achava
que o diabo deveria ser definitivamente redimido.

O influente teólogo do oriente, Basílio de Cesareia, afirma: “O mal é


uma privação do bem… O mal, portanto, não se fundamenta em sua
existência própria, mas decorre da mutilação da alma”{79}. As palavras
gregas traduzidas como “privação” e “mutilação” são stéresis e promasin. A
primeira também significa “perda”, e a segunda é originária do verbo grego
peráo, que significa aleijar ou incapacitar. Portanto, a ideia é de que o mal é
uma perda de bondade, não tem nenhuma substância em si mesmo, mas
ocorre através de um aleijamento ou incapacidade da perfeição da alma.
Talvez santo Agostinho tenha elaborado a doutrina da privatio boni
mais do que qualquer outro pensador cristão. Ele assim o fez, como vimos no
capítulo segundo, em resposta a Mani, o filósofo religioso persa cuja tentativa
de resolver o problema do mal resultou em dualismo. Foi uma tarefa difícil
para Agostinho a de manter o monoteísmo cristão e a persistência cristã na
bondade do mundo e da sua criação divina, e ao mesmo tempo explicar a
existência do mal sem atribuir culpa a Deus ou fazer do mal um princípio
adjunto e semelhante a Deus. Na tentativa de resolver o problema Agostinho
recorreu à doutrina da privatio boni, declarando em suas Confissões: “…
porque sei que o mal não é nada mais que uma ausência do bem, até que no
final ele deixe de pertencer ao todo”{80}. De acordo com Agostinho, o mal
deixaria de existir no final porque, em última instância, o plano de Deus para
a criação seria realizado de modo perfeito. Se o mal existe desde que não há
um preenchimento completo, por definição o mal deixa de existir quando a
criação for completamente realizada.

Críticas de Jung à Privatio boni

Jung atacou a doutrina da privatio boni, submetendo-a a minuciosa


crítica. Como já vimos, a doutrina da privatio boni não é um ensinamento
cristão oficial sobre o mal, mas apenas uma das diversas abordagens do
problema que pode ser detectada entre os pensadores cristãos. Entretanto,
Jung não está muito correto quando diz que, “de acordo com a doutrina da
Igreja, o mal é meramente a ‘carência acidental de uma perfeição’ ”{81}, já
que não há uma doutrina única da Igreja em relação a isso. As críticas de
Jung, porém, são importantes e merecem um exame cuidadoso e minucioso.
Elas podem ser resumidas da seguinte maneira:

(1.) - Pelo fato de a privatio boni encarar o princípio do mal como


insubstancial e isolar o mal de qualquer relação divina integral, a figura de
Cristo, tal como se apresenta no dogma da Igreja, é necessariamente
unilateral. Cristo é somente bondade, amor, justiça e perdão; nele não há
nenhum vestígio de obscuridade ou malícia. Como resultado dessa
unilateralidade, o lado obscuro aparece na imagem do Anticristo, uma figura
que compensa a unilateralidade da imagem de Cristo. Como escreve Jung, “o
símbolo de Cristo falha em relação à totalidade no sentido psicológico
moderno, já que não inclui o lado obscuro das coisas, mas o exclui
especificamente na forma de um oponente luciferiano”{82}. E em outro lugar
ele acrescenta: “A figura dogmática de Cristo é tão excelsa e sem mácula, que
tudo o mais fica obscurecido diante de sua presença. Na realidade, ela é tão
unilateralmente perfeita que exige um complemento psíquico (isto é, o
Anticristo), a fim de equilibrar a balança”{83}. E, novamente, “no conceito
cristão… o arquétipo (da totalidade), está irremediavelmente dividido em
duas metades irreconciliáveis, o que definitivamente leva a um dualismo
metafísico — a separação final entre o reino do céu e o mundo flamejante dos
malditos”{84}.

Jung contrasta a figura de Cristo unilateralmente clara com a natureza


do si-mesmo empírico, tal como aparece nos sonhos, visões e outros símbolos
do processo de individuação. Como ele nota, é a natureza do si-mesmo que
faz com que os opostos se unam, ainda que eles sejam o bem e o mal. “Pois é
no si-mesmo que bem e mal estão de fato muito mais próximos do que
gêmeos idênticos! ”{85} E, “no si-mesmo empírico luz e sombra formam uma
unidade paradoxal”{86}. A ideia é de que a totalidade, que só é viável através
do arquétipo do si-mesmo, combina todas as coisas numa unidade paradoxal,
tanto o claro como o escuro, o masculino e o feminino, o bem e o mal. Já que
essa unidade é essencial ao si-mesmo, quando a figura de Cristo, que para o
homem ocidental é a imagem do si-mesmo, e, como já vimos, trata-se de uma
imagem unilateral e clara, o oposto — o lado obscuro — tem que surgir
necessariamente em algum lugar, e isto acontece na imagem cindida do
Anticristo. De acordo com Jung, a atitude cristã não poderia conter a imagem
do si-mesmo como uma união de opostos por causa de sua inabilidade em
aceitar paradoxos. “Para os cristãos, nem Deus e nem Cristo poderiam ser um
paradoxo; eles tinham que ter um único significado, e isso constituiu uma
verdade até os dias de hoje”{87}.
Em outro lugar Jung escreve: “O si-mesmo é uma união de opostos par
excellence, e é onde ele difere essencialmente do símbolo de Cristo. A
androginia de Cristo representa a concessão fundamental que a Igreja fez para
o problema dos opostos. Há um estado de conflito aberto em relação à
oposição entre a luz e o bem de um lado, e a obscuridade e o mal de outro, já
que Cristo representa simplesmente o bem, e o diabo, seu complemento, o
mal. Essa oposição constitui o problema real que até o presente ainda não se
encontra solucionada. No entanto, o si-mesmo é absolutamente paradoxal
pelo fato de que ele representa, em todos os aspectos, lese, antítese e, ao
mesmo tempo, síntese”{88}.

Desse modo Jung percebe que a imagem de Cristo, como símbolo da


totalidade, é contradito pelo fato psicológico de que o si-mesmo não é
unilateralmente luminoso, assim como Cristo é representado pela Igreja, mas
combina luz e obscuridade numa unidade paradoxal e, quando a metafísica
conflita com os fatos, deve haver uma objeção. Jung escreve: “Tenho que
criar polêmica quando a metafísica transgride a experiência e a interpreta de
uma maneira que não se justifica empiricamente”{89}.

(2.) - Jung se torna um tanto quanto entusiasmado quando ataca a


privatio boni porque ele acredita que a separação entre o mal e a divindade
causou resultados prejudiciais para a humanidade. A imagem compensada e
dividida do Anticristo resultou na autonomia do princípio do mal. O mal não
está mais relacionado com o todo, mas é inteiramente livre para agir por si
mesmo, o que resulta numa humanidade vitimada pelo mal, com desastrosas
consequências.
Se a afirmativa de que o mal é “nada mais que a ausência do bem”
fosse verdadeira, isso não seria tão ruim, já que não se esperaria tanto poder
de um princípio que não tenha nenhuma substância em si mesmo. De fato,
não é esse o caso; pelo contrário, o mal é extraordinariamente real.

Jung considera que a doutrina da privatio boni tende a diminuir a


realidade do mal, e que isso prejudica a humanidade. A falha de se encarar o
mal seriamente fez com que se criasse uma tendência a tornar as pessoas suas
presas, sendo tomadas pelo mal e perpetrando-o, ou tomando-se suas vítimas.
Além do que, diz Jung, o sentimento humano é contra a doutrina da privatio
boni, ou qualquer doutrina que de forma semelhante não se detenha sobre os
sofrimentos da humanidade, propiciando o enfraquecimento do preparo
psicológico para se reconhecer e lidar com o mal.

(3.) - Finalmente Jung encontra uma objeção lógica à doutrina da


privatio boni: ele percebe que o homem é compelido a pensar em termos de
bem e mal, embora tanto um quanto outro são julgamentos humanos e não
sabemos o que eles são em si mesmos. Ele atesta que não podemos pensar no
bem sem pensar no mal. Eles são um “par de opostos logicamente
equivalentes… Do ponto de vista empírico não podemos dizer mais do que
isso… Teríamos que afirmar que o bem e o mal, sendo metades coexistentes
de um julgamento moral, não derivam um do outro, mas estão sempre juntos.
O mal, assim como o bem, pertence à categoria dos valores morais”{90}. E em
outra parte, numa de suas cartas, ele escreve: “A nível prático, a doutrina da
privatio boni é moralmente perigosa, porque ela subestima e não se dá conta
do mal e, ao mesmo tempo, enfraquece o bem, porque o priva de seu oposto
necessário: não há branco sem preto, direita sem esquerda, acima sem abaixo,
quente sem frio, verdade sem erro, luz sem escuridão etc. Se o mal é uma
ilusão, o bem é igualmente uma ilusão. Essa é a razão pela qual sustento que
a privatio boni é ilógica, irracional e até uma bobagem”{91}.

Assim, o argumento de Jung que se opõe à doutrina da privatio boni


tem três pontos:

1) A imagem unilateralmente luminosa de Cristo contradiz o fato de


que o si-mesmo é uma combinação dos opostos.

2) A divisão e isolamento entre o mal e a divindade deu a ele


demasiada autonomia, com resultados desastrosos para a humanidade,
especialmente quando a doutrina da privatio boni tranquiliza os homens
numa falsa sensação de segurança ao negar a realidade do mal, ainda que o
sentimento humano esteja contra tal negação.

3) A objeção lógica de que se dizemos que o bem é real também


devemos dizer que o mal é real, já que o bem e o mal são um par de opostos
logicamente equivalentes.

Já mencionamos o fato de que Jung sentiu que o símbolo trinitário


divino estava incompleto, uma vez que ele deve ser um símbolo da
totalidade, e que o símbolo do quaternário seria mais representativo da
totalidade. Eis o momento propício para compreendermos mais
profundamente a razão de Jung pensar dessa maneira.
Jung não inventa o símbolo quaternário para a totalidade, mas é capaz
de mostrar que ele advém espontaneamente dos símbolos do inconsciente
para representar o todo. A totalidade, portanto, parece possuir uma estrutura
quaternária, desde que o número quatro aparece cada vez mais como número
simbólico altamente importante no que concerne ao fundamento da
totalidade. Temos os quatro evangelhos na doutrina cristã, a importância do
número quatro nos ritos dos indígenas americanos, as quatro direções da
bússola, os quatro ângulos do quadrado, as quatro funções da psique e muitas
outras manifestações do número quatro como número que inclui tudo o que
pertence a um estado total, inteiro. Na teologia, Jung argumenta que ao
símbolo trinitário falta completude, devido à sua estrutura triádica; o que
deve ser incluído para que se forme uma totalidade é o lado obscuro que se
encontra ausente. Como já vimos, ele é representado de várias formas, como
o diabo, o feminino, ou a quarta função esquecida e, do ponto de vista cristão,
todas essas representações foram rejeitadas por não estarem de acordo com a
imagem unilateral mente luminosa e masculina da divindade que o
cristianismo adotou.

As várias formas de representação do elemento ausente que


complementaria a quaternidade deixam esse aspecto um tanto quanto
confuso. Por exemplo, Jung escreve: “No simbolismo oriental o quadrado…
tem o caráter do yoni: a feminilidade. O inconsciente de um homem é
feminino e é personificado pela anima. A anima também pertenceria à função
‘inferior’, e por essa razão tem frequentemente um caráter sombrio; de fato,
às vezes ela própria assume o caráter do mal. Como regra, ela é a quarta
pessoa, o obscuro e o atemorizante útero materno, que é de natureza
essencialmente ambivalente. A divindade cristã é una em três pessoas. Dentro
do drama celeste a quarta pessoa é indubitavelmente o diabo. Na versão
psicológica mais inofensiva ele é meramente a função inferior”{92}.
No entanto, o problema pode ser esclarecido quando compreendemos
Jung ao mencionar que a totalidade não pode ser representada sem que o
inconsciente seja incluído. O inconsciente, que é onde se deposita tudo aquilo
que é moralmente suspeito e sujeito a objeções para a consciência cristã,
frequentemente aparece sob uma luz dúbia. Ele é algumas vezes representado
(pelo menos pela consciência humana) como a anima (uma figura feminina),
outras vezes como diabo, ou ainda como a quarta função esquecida da psique.
Assim, o “quarto ausente”, isto é, o inconsciente, pode ser representado por
qualquer dessas três figuras.

Uma crítica à visão de Jung da Privatio boni

O posicionamento de Jung que considera o relacionamento de Deus


com o mal não recebeu a atenção que merece entre os cristãos e outros
pensadores. No entanto, não passou totalmente despercebido, tendo sido
cuidadosamente revisto ao menos por um filósofo religioso, H. L. Philp que,
no seu livro Jung and the Problem of Evil, faz a Jung a lisonja de levá-lo a
sério. Alguns dos argumentos de Philp são dignos de atenção.

Philp rejeita a ideia de que a quaternidade, como Jung a considerou,


possa ser tomada como uma representação simbólica de Deus, porque ela
“exalta o mal para sempre”. Em sua visão isso cria um Deus amoral, porque
se a própria divindade constitui o bem e o mal, o mal é inevitável e eterno, e a
amoralidade é entronizada para sempre, pois, se há bondade, o mal não está
longe, e assim cria-se um círculo que gira eternamente”{93}.
Ele ressalta que, como diz Jung, se o sentimento humano se revolta
contra a ideia de que o mal não é substancial, revolta-se mais ainda contra a
ideia de que Deus, a fonte fundamental da vida, é inerentemente maligno. Em
suma, Philp acha repugnante, do ponto de vista do sentimento humano, a
ideia de Jung de que Deus contém o bem e o mal, da mesma forma que Jung
acha que a doutrina da privatio boni é repugnante do ponto de vista do
sentimento humano, porque similarmente declara que o mal é irreal, dando a
impressão de fazer troça do sofrimento humano.

Philp também tenta invalidar o argumento de Jung de que a doutrina da


privatio boni é ilógica, uma vez que o bem e o mal são logicamente
equivalentes e, por isso, afirmar que a existência de um é postular
necessariamente a existência do outro. Não é bem assim, argumenta Philp,
pois nem todas as qualidades têm seu oposto lógico. Com certeza fora
implica dentro, acima implica abaixo, mas o sol seria quente ainda que nada
fosse conhecido numa condição mais fria. Ele sente que, da mesma maneira,
podemos postular o bem sem necessariamente ter que pensar no mal.

Allan Anderson, professor de estudos religiosos na Universidade do


Estado de San Diego, apoia a posição de Philp neste ponto{94}. Ele ressalta
que o bem e o mal não são opostos logicamente equivalentes porque um não
deve ser entendido em relação ao outro, mas em termos de uma norma. Nesse
caso decidimos o que é bom e o que é mau ao observarmos como o
significado do mal depende do significado do bem.

A norma através da qual determinamos o que é bom e o que é mau,


podemos dizer, é o bem mais elevado da totalidade. O que deprecia ou destrói
a totalidade chamamos de mal, e aquilo que sustenta, impulsiona ou mantém
a totalidade chamamos de bem. Podemos pensar a totalidade sem ter que
pensar no seu oposto. De acordo com essa visão, Jung se equivocou ao deixar
de ver que o bem e o mal, de acordo com o ponto de vista humano, são
definidos em termos de uma norma que está além de ambos.
Pelo menos em uma passagem o próprio Jung parece reconhecer que o
bem e o mal devem ser definidos em termos de alguma norma. Em Aion ele
escreve: “O ‘bem’ é aquilo que parece condizente, aceitável ou valorizado a
partir de um certo ponto de vista; o mal é o seu oposto”{95}. Aqui o bem e o
mal são determinados de um “certo ponto de vista”, e esse ponto de vista
sugere que há uma norma que determina o que é o bem e o que é o mal. Do
ponto de vista humano egocêntrico essa “norma” é, sem dúvida, o que
corresponde ao nosso prazer, conveniência ou planos. Por exemplo, na
ilustração que usamos anteriormente, para os colonizadores puritanos do país,
a praga que atingiu os indígenas foi um bem, mas sem dúvida os indígenas
consideraram aquela praga um mal, cada qual julgando o que era bem ou mal
em termos da norma dos desejos pessoais. Mas de um ponto de vista mais
amplo aquela norma poderia ser uma totalidade concernente ao bem ou mal
relativos.

Jung, pelo menos ocasionalmente, também falou de uma meta em que


toda a vida se empenha e a partir da qual o bem e o mal podem ser julgados.
Essa visão teleológica sobre o bem e o mal está refletida em Aion, onde Jung
diz: “Lutar pela teleiosis — completamento — …não é somente legitimar,
mas reconhecer no homem uma peculiaridade inata que fornece à civilização
uma de suas raízes mais fortes. Essa luta é tão poderosa que até poderá
tornar-se uma paixão que coloca todas as coisas a seu serviço”{96}. Sempre
que Jung iguala o bem e o mal como um par de opostos unificados no si-
mesmo, mais que julgamentos adquiridos pela humanidade em termos da
norma de totalidade, ele se distancia da sua atitude teleológica.

Anderson também argumenta que a doutrina da privatio boni não nega


a realidade do mal, mas define sua natureza. Jung, como vimos, acha a
doutrina repugnante porque “anula a realidade do mal”{97} e declara que o mal
é “alguma coisa que não existe”{98}. Isso não é assim, diz Anderson, pois a
doutrina da privatio boni não nega a realidade do mal, mas constata o que é o
mal. Ela afirma que enquanto o mal existe, ele somente pode existir vivendo
do bem, e não por si próprio.

Se o mais elevado bem é a totalidade, e se dizemos que o bem é aquilo


que a promove e o mal é o que busca destruir essa totalidade, então podemos
ver em que sentido é verdadeira a impossibilidade de existência do mal por si
próprio, ainda que ele seja real. Suponhamos que a totalidade estivesse
perfeitamente estabelecida. Então não haveria base para a existência do mal,
pois não haveria nada que fosse destrutivo; tudo estaria incluído no todo. Ou,
suponhamos que a totalidade fosse completamente destruída. Mais uma vez o
mal não poderia existir, pois se não houvesse nada mais a ser destruído, o mal
deixaria de existir.
Consideremos a analogia da doença e da saúde. Podemos dizer que a
doença é uma diminuição ou privação da saúde, e que a doença, embora
muito real para a vida humana, não pode existir por si mesma, mas isso não
nega sua existência. Se todas as criaturas vivas fossem perfeitamente
saudáveis, não haveria doenças. E se uma doença consegue destruir
completamente um organismo saudável, essa doença também deixa de existir.
Por exemplo, se uma pessoa sucumbe a uma doença como a cólera, e uma
vez que a saúde do corpo daquela pessoa foi totalmente destruída, a doença
do cólera deixa de existir pois, como pode haver uma doença exceto num
meio relativamente saudável? A bactéria do cólera continuaria a existir, mas
não seria considerada doença até que fosse ativada num corpo saudável. Até
destruir um organismo ela seria inofensiva.
Uma reformulação do problema do mal

À luz dessas considerações vejamos se podemos reformular o problema


do mal, de modo que sejam incluídas as críticas de Jung e os argumentos
contra essas críticas.
Primeiramente, porém, devemos esclarecer alguns termos. Uma coisa
que dificulta o apego aos argumentos de Jung na análise sobre o mal é que às
vezes ele não define os termos. Isso dá ao conteúdo um certo deslize; quando
achamos que estamos nos assegurando de alguma coisa, de repente ela nos
frustra. Por exemplo, Jung parece intercambiar os termos obscuro e mal sem
considerar definições precisas para esses termos. Por exemplo, ele fala da
“oposição entre a luz e o bem de um lado, e a obscuridade e o mal de outro”.
O obscuro e a luz certamente parecem caminhar juntos para formar um todo,
justamente como a noite e o dia coexistem para completar um ciclo inteiro,
mas isso não significa que o mal e o bem coexistam juntos em alguma
espécie de totalidade eterna. O que é obscuro não é necessariamente mal, mas
pode ser complemento necessário da luz. De fato, temos instintivamente a
sensação de que o escuro e a luz realmente pertencem um ao outro, e que um
mundo onde tudo fosse luz e dia, sem escuridão e nenhuma noite, seria
intolerável. Ideias como essas nos seduzem, levando-nos a aceitar a ideia de
que o mal caminha eternamente junto com o bem, mas isso não é
necessariamente assim. “Sombra” é outra palavra que Jung usa sem um
significado preciso. A sombra não é necessariamente um mal, mas Jung usa
essa palavra de modo a implicar que ela o seja. Da mesma maneira o preto
não é necessariamente um mal, ainda que seja contrastado com o branco.

Mais importante ainda é o fato de que Jung raramente delineia


distinções claras entre as diferentes experiências do mal. A palavra mal
aparece nos escritos de Jung como se tivesse sempre um único significado,
ainda que haja diferentes experiências que chamamos de mal e sumarizamos
no final do último capítulo. Por exemplo, a experiência do lado obscuro de
Deus ou do si-mesmo não pode ser considerada como intrinsecamente
maligna porque tem um propósito específico. Ainda que o lado obscuro de
Deus seja destrutivo, ele somente destrói aquilo que não se adapta a uma
existência. O d’abo, como a personificação dos elementos da personalidade
que foram reprimidos e negados, também é apenas relativamente maligno,
pois essas qualidades podem ser redimidas e o mal, então, alterado. Já
pudemos observar que o mal se intensifica à medida que aumenta uma
condição de dissociação. Assim, a sombra que observamos em nosso estudo
de O Médico e o Monstro parece se tornar mais maléfica quanto mais cindida
da consciência e, portanto, passar a viver autonomamente sem relação com a
totalidade. Dessa forma há condições e níveis de mal que deverão ser
considerados na exposição.

No entanto, ocasionalmente, Jung faz distinção entre experiências


diferentes a respeito do mal. Em Aion, por exemplo, ele diz: “Está dentro dos
limites da possibilidade, o homem reconhecer o mal relativo de sua
natureza, mas é uma experiência rara e estraçalhadora para ele fitar a face
do mal absoluto”{99}. Infelizmente Jung não elabora o modo como ele vê a
distinção entre o mal absoluto e o mal relativo. Mas, desde que alguma coisa
que é absoluta existe inteiramente por si mesma, devemos supor que Jung se
refere a um mal que não está condicionado a nada mais. Entretanto, isso
anularia a existência do bem, desde que um absoluto descarta o outro. Dizer
que há mal absoluto significa que não pode haver bem absoluto. Falar de um
mal absoluto é como anunciar de modo reverso uma doutrina da privatio
boni. Poder-se-ia então afirmar que o mal é absoluto, e que o bem é aquilo
que diminui o mal, mas o bem não pode existir por si mesmo separadamente
do mal, já que alguma coisa não é absoluta se seu oposto tem uma existência
equivalente.

Entretanto, podemos encarar a afirmativa de Jung acima citada como


tendo um significado emocional. Isto é, em alguns casos sentimos que
estamos olhando para algo que é apenas relativamente maligno e que,
portanto, poderia ser redimido, e em alguns casos observamos algo que é
intrinsecamente maligno, tendo, dessa maneira, um efeito mais horrorizante.
Em termos da ideia da privatio boni, uma entidade demonstra as qualidades
do mal intrínseco quanto mais dissociada estiver do todo, ainda que o mal
intrínseco não possa existir separadamente daquilo que ele se destina a
destruir. Em termos da privatio boni somente a totalidade (o bem) é absoluta,
e o mal, enquanto pode existir tanto de forma relativa quanto de uma forma
mais pura ou intrínseca, não pode existir separado da totalidade que procura
destruir.

O próprio Jung fala sobre salvar o mundo e a alma do homem através


da assimilação e transformação do mal. Por exemplo, numa entrevista com
Mircea Eliade, realizada na Conferência de Eranos em 1952, Jung declarou:
“O grande problema na psicologia é a integração dos opostos. Pode-se
deparar com esse tipo de coisa em toda parte e a qualquer nível. Em
Psycholoey and Alchemy (cap. 12) tive a oportunidade de me interessar pela
integração de Satã. À medida que Satã não for integrado, o mundo não
ficará curado e o homem não estará salvo. Mas Satã representa o mal, e
como pode o mal ser integrado? Há apenas uma possibilidade: assimilá-lo, o
que significa elevá-lo ao nível da consciência. Isso é feito, digamos, através
de um processo simbólico muito complicado que é mais ou menos idêntico ao
processo psicológico de individuação”{100}. Agora, se o mal pode ser
assimilado e integrado, e com isso o mundo ser curado, então fica nítida a
impossibilidade de ele ser absoluto, já que não se pode mudar a natureza de
um absoluto. Aqui Jung demonstra estar dizendo que o mal não é absoluto,
mas relativo, e que a relatividade do mal é julgada em termos da norma da
totalidade. Isso é exatamente o que a doutrina da privatio boni diz, numa
linguagem levemente diferente.

Jung critica a Igreja por negligenciar a incumbência de lidar com o mal.


Tendo a Igreja recusado a tarefa, esta caiu nas mãos da alquimia, e hoje nas
da psicologia para que complete o trabalho. Jung escreve em uma de suas
cartas: “A psicologia histórica cristã pensa mais numa supressão do mal do
que num complexio boni et mali. Desse modo a alquimia tentou a ideia de
uma determinada transformação do mal visando a sua futura integração.
Nesse sentido tratou-se mais de uma continuação do pensamento de
Orígenes onde até o diabo, em última instância, poderia ser redimido”{101}.
A ideia da transformação do mal, previamente mencionada, sugere que
há realmente alguma coisa chamada totalidade no que se refere à definição do
mal. Entretanto, no caso de Orígenes, não era o mal a ser redimido, mas o
diabo: a figura do diabo seria salva, mas não o mal nela existente. Os efeitos
destrutivos do diabo seriam anulados, mas o diabo, como uma criatura de
Deus em quem uma vez o mal residiu, seria resgatado.
Tentemos reformular a situação no que diz respeito ao mal. Podemos
dizer que o mal intrínseco é uma força destrutiva que destrói a totalidade. No
entanto, o que é maligno pode ser redimido quando libertado de uma
condição dissociada e destrutiva para se reintegrar no todo. O processo de
integração psicológica tem esse objetivo. Podemos dizer que aquilo que está
dissociado é relativamente maligno porque o mal ali contido varia de acordo
com seu estado de dissociação. Dessa forma, Hyde primeiramente parecia ser
apenas turbulento e ridiculamente estranho, mas, à medida que a dissociação
da personalidade de Jekyll aumentava, Hyde se tornava cada vez mais o mal
puro. Porém não podemos falar num mal absoluto sem antes subordinarmos o
bem ao mal.
Muitas pessoas rejeitam as ideias de Jung, como Philp, que se rebelou
com o que ele chamou de entronização do mal, porque Jung deu a impressão
de afirmar que o mal tem uma existência absoluta. Realmente não acho que
foi isso que Jung quis dizer. Jung disse que há uma condição maligna genuína
que pode ser alterada quando essa condição é transformada e seus conteúdos
legítimos integrados no todo. Mas, a partir do momento em que Jung não
clarifica essa ideia, e insiste em falar do mal como se ele fosse absoluto,
pode-se concluir, a partir da impressão obtida, que Jung quis entronizar um
mal absoluto como parte da divindade.

O fato de que Jung não acreditava que Deus fosse uma combinação do
bem e do mal absoluto é demonstrado, acredito, em sua biografia, onde
discute Deus como amor{102}. Como muitos outros que o antecederam, Jung é
incapaz de explicar o mistério do amor, mas diz que o reino de eros escapa à
nossa compreensão racional e moldes racionais de representação. Ele acha
que as palavras de São Paulo, em 1Cor 13, “dizei tudo o que deve ser dito;
nada pode ser acrescentado”. Jung constata que “somos, no sentido mais
profundo, vítimas e instrumentos do ‘amor’ cosmogônico” e que na “frase
‘Deus é amor’, as palavras afirmam a complexio oppositorum da divindade”.
Além do mais, isso não difere muito da posição cristã expressa na privatio
boni. Dizer que Deus é o Summum Bonum ou que Deus é um amor
cosmogônico é dizer a mesma coisa. Jung também não sente que ao se
afirmar que Deus é amor faz-se necessário também afirmar o oposto, que
Deus também deve ser odiado. Neste caso, evidentemente Jung não tem
nenhuma dificuldade em considerar o amor sem ao mesmo tempo colocar o
ódio como oposto lógico, com existência igualmente substancial.
O fato é que, às vezes, Jung é frustrantemente inconsistente em seus
argumentos ao confrontar o mal e Deus. Sua inconsistência não seria
dificultosa se ele não fosse tão inflexível em sua posição a cada ponto dessa
inconsistência.

Uma revisão das objeções de Jung

Vamos agora nos deter novamente nas objeções de Jung à doutrina da


privatio boni à luz dessa reformulação. Lembremo-nos de que as objeções de
Jung se situam em três áreas. Primeiramente Jung sentiu que a doutrina
declarava que o mal era insubstancial, não tendo realidade, portanto, e que
isso significou uma ofensa à sensibilidade humana, pois o mal é
experienciado como muito real. Podemos agora perceber que a doutrina da
privatio boni, propriamente entendida, não nega a realidade do mal, mas
declara o que é o mal e sob quais condições existe. Porém ela diz que o mal
não pode existir por si mesmo. Se, por exemplo, o poder do mal triunfasse
completamente, toda a totalidade seria destruída. Mas isso resultaria
igualmente na destruição do mal, pois, sendo um poder de destruição, o mal
pode existir apenas em virtude de alguma coisa para destruir.

Essa conclusão está de acordo com o I Ching{103}. Consideremos o


hexagrama 36, Ming I — Darkening of the Light. Esse hexagrama retrata
uma situação na qual o sol mergulhou sob a terra e está, portanto,
obscurecido, ou seja, um estado no qual o poder obscuro ou maligno está em
ascensão. Na sexta linha desse hexagrama lê-se:

Não há luz, mas escuridão.


Primeiro ele escalou o céu
depois precipitou-se nas profundezas da terra.

Em seu comentário sobre essa linha Richard Wilhelm diz:


Aqui a escuridão chega ao ápice. O poder das trevas alcançou no
início uma posição tão elevada que podia ferir todos os que seguiam a
luz e o bem. Porém, no final, ele perece, vítima de sua própria
escuridão. O mal sucumbe inexoravelmente no momento em que
supera por completo o bem, por ter assim consumido a força à qual
devia sua existência.

Encontramos uma filosofia semelhante sobre o mal no hexagrama 23,


Po — Splitting Apart. Nesse hexagrama uma situação maligna é
desencadeada com as linhas obscuras estando prestes a galgar o cume e
provocar a queda da última linha firme e luminosa, exercendo sobre ela sua
influência corrosiva. O texto da sexta linha desse hexagrama diz:

Um grande fruto ainda não foi comido.


O homem superior recebe uma carruagem.
A casa do homem inferior se desintegra.

O comentário de Richard Wilhelm sobre essa linha é:

Aqui a desintegração chega ao final. Quando o infortúnio esgota


suas forças, retornam épocas melhores. A semente do bem permanece,
e é justamente quando o fruto cai ao chão que o bem renasce de sua
semente. O homem superior recupera influência e eficácia. Ele é
sustentado pela opinião pública, como se estivesse sobre uma
carruagem. A maldade do homem inferior volta-se contra ele próprio.
Sua casa é destruída. Aqui se manifesta uma lei da natureza. O mal
não é nefasto apenas para o bem, mas termina por destruir-se a si
próprio. Pois o mal, vivendo somente da negação, não pode subsistir
em si mesmo.

É interessante compararmos essas citações do I Ching com uma


afirmação de santo Agostinho:
O mal… não pode existir em qualquer lugar exceto em algo
bom… Pois pode haver coisas que são boas, sem que haja qualquer
mal nelas, tal como o próprio Deus e os seres celestiais superiores;
mas não pode haver coisas más sem as boas, pois se os males nada têm
a destruir, eles não são males; se eles danificam algo, eles diminuem
sua bondade; e se a danificam ainda mais, é porque ainda existe
alguma bondade que pode ser diminuída; e se eles a consomem
totalmente, nada de sua natureza permanece para ser destruída. E
assim, não haverá nenhum mal pelo qual poderá ser destruído, uma vez
que, então, não há nada de bom que permaneceu na natureza que
qualquer malefício possa diminuir{104}.

Uma segunda objeção de Jung à doutrina da privatio boni contradiz os


fatos psicológicos: os símbolos do si-mesmo incluem o escuro assim como o
claro; combinam o bem e o mal num todo paradoxal. O si-mesmo não é
apenas claro, mas escuro e claro; não é apenas bom, mas bom e mau ao
mesmo tempo. Essa ideia é verdadeira se reconhecermos que o que é escuro
não é necessariamente maligno, e que não é o mal que está incluído na
totalidade do si-mesmo, uma vez que o mal é, por definição, destrutivo para a
totalidade. O mal relativo perfaz um mal destrutivamente à medida que não
está incluído na totalidade das coisas, mas quando a totalidade se instaura a
destruição cessa, dando lugar à união dos elementos. Em outras palavras, o
si-mesmo inclui o “diabo” como personificação daquilo que foi rejeitado, mas
que pode, em última análise, ser incorporado ao todo. Jung está correto ao
dizer que o “quarto” ausente é necessário para que ocorra a totalidade. Mas o
poder do mal não pode ser considerado alojado no coração do si-mesmo ou da
ordem divina que, presumivelmente, está além do si-mesmo empírico. A
natureza do si-mesmo, como arquétipo da totalidade, deve excluir e negar o
poder do mal, que é um princípio de destruição. Não há nem ao menos
qualquer evidência empírica de que o si-mesmo possua algum dos atributos
do mal. Ao contrário, onde o si-mesmo se manifesta, encontramos um valor
supremo, um verdadeiro Summum Bonum, e o poder do mal é anulado.

Finalmente, há a objeção lógica de Jung de que o bem traz junto a ideia


do mal. Podemos ver que esse não é necessariamente o caso, se por bem não
nos referimos ao julgamento humano sobre o que é bom e o que é mau, mas à
norma básica pela qual avaliamos o que é bom e o que é mau. Essa norma
pode ser chamada de Bem (com letra maiúscula) ou Totalidade. É claro que
ao considerarmos a integridade não temos que pensar no seu oposto, assim
como podemos sentir, experienciar e pensar a saúde sem necessariamente
pensarmos na doença.
Como tivemos a oportunidade de ver, Jung não tinha inclinação para
envolver-se com a metafísica, mas sentiu-se impelido a fazê-lo porque no
caso da privatio boni ele sentiu que a metafísica estava transgredindo a
experiência de modo que empiricamente não se justificava. Mas acho que
agora podemos perceber que a doutrina da privatio boni não conflita com os
fatos empíricos. Realmente o Summum Bonum da doutrina da privatio boni se
parece muito com o si-mesmo de Jung, desde que o “Bem” da privatio boni
se refere ao preenchimento perfeito de um propósito ou função. No entanto, a
doutrina permanece metafísica. Dizer que é possível haver um Deus que é um
Summum Bonum não é provar que de fato assim seja. Ninguém, portanto,
pode dizer que sabe o que é o Último. Tudo o que sabemos é que talvez tudo
o que existe seja um mundo no qual uma força trabalha para a totalidade e
outra trabalha contra a totalidade, e que não há nada além disso. Esse é um
ponto que devemos examinar com muito cuidado, mas primeiramente vamos
rever a posição cristã sobre o mal à luz do que já dissemos, como também
algumas correções na posição cristã que se tornam de primordial importância
com a posição de Jung frente ao mal.

Outra visão da posição cristã

Tentei mostrar que a doutrina da privatio boni é uma ideia filosófica


que merece ser defendida. É interessante observarmos que ela não descarta as
outras atitudes cristãs antigas sobre o mal, que já mencionamos. Por exemplo,
a privatio boni, como já observamos, não descarta de maneira alguma a
realidade do mal. Como já vimos, a posição cristã original que encontramos
nos evangelhos e na Igreja primitiva era tão ciente dessa realidade que sua
teoria da expiação foi expressa em termos do problema do mal.

A doutrina da privatio boni, compreendida de forma correta, não


contradiz a posição tomada por Clemente e outros de que o mal é permitido
por Deus a fim de cumprir seu propósito. Se a totalidade é o bem mais
elevado, e se deve ser realizada, então tudo o que é criado deve perfazer sua
própria função. A função peculiar do ego é concluir a consciência. Parece que
isso não seria possível sem a atividade do mal. É somente quando nos
voltamos contra o mal que a consciência atinge determinado nível. Assim,
paradoxalmente, Deus permitiria o mal porque, ainda que ele seja uma
ameaça para a existência da totalidade, esta seria impossível sem o mal no
sentido espiritual.
Essa posição já foi sintetizada nas afirmações anteriores. Se assim é,
pode ser que também Orígenes esteja correto e que, no final da história, o mal
também deixe de existir, pois sua função peculiar seria ultrapassada no drama
cósmico e, portanto, deixaria de ser necessária. Encontramos uma afirmação
igualmente paradoxal do filósofo russo Nicholas Berdyaev: “É igualmente
verdade que existe no mundo uma fonte obscura do mal e que, no sentido
final da palavra, não existe nenhum mal”{105}.

Jung diz exatamente o mesmo. Numa discussão sobre o papel do diabo,


ele escreve:

A questão com a qual nos confrontamos aqui é a posição


independente de uma criatura dotada de autonomia e eternidade: o
anjo decaído. Ele é o quarto, a “recalcitrante” figura do nosso
simbolismo… Como em Timaeus, o adversário é a segunda metade do
segundo par de opostos, sem o qual a alma do mundo não estaria
inteira e completa, assim também o diabo deve ser incluído ao trias
como tó èn tetartón (o um como o quarto), para que se faça dele uma
totalidade… Através da intervenção do Espírito Santo, porém, o
homem está incluído no processo divino, o que significa que o princípio
da separação e autonomia contra Deus — que é personificado em
Lúcifer como o oponente da vontade de Deus — nele também está
incluído. Não houvesse essa vontade, não haveria criação, nem
qualquer economia da salvação. A sombra e a vontade oposta são as
condições necessárias para toda realização. Um objeto sem vontade
própria, e capaz, se necessário, de se opor ao seu criador, e sem outras
qualidades senão as do criador, não tem existência independente e é
incapaz de uma decisão ética. Na melhor das hipóteses é apenas uma
peça do mecanismo de um relógio a que o criador precisa dar corda
para fazê-lo funcionar. Todavia, Lúcifer talvez tenha sido aquele que
mais entendeu a vontade divina que lutava para criar um mundo, e
quem exerceu aquela vontade com maior veemência. Pois, rebelando-
se contra Deus, ele se tornou o princípio ativo da criação que, por si
mesmo, opôs a Deus uma vontade contrária. Pelo fato de Deus assim
ter desejado, vemos em Gn 3 que ele deu ao homem o poder de ter sua
vontade de outra forma. Se ele não tivesse feito assim, teria criado
apenas uma máquina, e a encarnação e a redenção nunca teriam
acontecido.{106}

Citei Jung por extenso porque esse texto mostra que ele realmente está
muito próximo ao pensamento cristão original no que diz respeito ao mal.
Seria difícil, por exemplo, diferenciar entre o que Jung diz aqui e o que Irineu
disse sobre a bem-aventurança da queda do homem, já que em prol dessa
discussão teríamos que levar em conta a redenção de Cristo.

No entanto, permanece um otimismo básico na atitude cristã referente


ao mal que não encontramos em Jung. Sem negar a realidade do mal ou
desconsiderar seu poder destrutivo e a ameaça que representa para a
humanidade, o símbolo cristão da crucificação e ressurreição aponta para
uma última conclusão otimista para o drama divino. A ressurreição simboliza
a indestrutibilidade última da totalidade. Trata-se de um modo de dizer que,
em última análise, não importa o que façam as forças do mal; a integridade da
totalidade não pode ser destruída. É por isso que Cristo ressurge
vitoriosamente ainda que depois aparentemente tenha sido destruído pelas
forças do mal.

A nível psicológico, isso corresponderia à indestrutibilidade do si-


mesmo. Seria um modo de dizer que quando o si-mesmo é realizado, há uma
invulnerabilidade quanto aos poderes do mal; os poderes destrutivos não
podem destruir o si-mesmo realizado. A nível humano isso significa que se o
ser humano torna-se centrado e relacionado com o si-mesmo, há certa
proteção contra o mal, e quando o centro da personalidade é estabelecido, tal
indivíduo é amparado por uma força sobre-humana para resistir e superar os
poderes do mal.

O otimismo cristão a respeito do mal, no entanto, não se baseia numa


visão otimista deste mundo ou da natureza humana. O mal não será superado
porque as pessoas são boas, e nem porque o mundo é ou possa ser sempre um
bom lugar. Ele somente poderá ser superado pela virtude do poder superior
de Deus. A natureza humana permanece vulnerável demais às influências do
mal, e Jung está correto quando diz que não deveríamos ser muito otimistas
nesse aspecto. E o mundo, à medida que podemos prever, permanecerá
sempre um imperfeito caldeirão cheio de tumultos e problemas, mas um
mundo no qual alguns indivíduos poderiam atingir a consciência.

Novamente estamos falando a linguagem da metafísica. Não podemos


saber cientificamente qual é o último plano da vida, ou ainda se esse plano
existe. A certo ponto o conhecimento para, e a fé toma seu lugar. O único
conhecimento empírico a esse respeito pode ser detectado no fato psicológico
de que se a vida de uma pessoa está estabelecida na totalidade do si-mesmo,
então parece que há certa permanência e indestrutibilidade que se delineia
numa proteção para que a alma não sucumba ao mal. E, quem sabe, essa alma
possa resistir da mesma forma numa vida para além da morte.
Nossa argumentação está agora girando num círculo vicioso, com
paradoxo sobre paradoxo. Vimos que o mal pode ser necessário para fazer
emergir a totalidade, uma vez que a totalidade pode ocorrer apenas quando
todas as criaturas realizarem sua função própria, e parece que a consciência
humana moral e psicológica só poderá se desenvolver em face ao mal. No
entanto, parece que o mal é parte do plano de Deus. Voltamos à ideia de
Clemente de que Deus tem uma mão direita e uma esquerda, com as quais
leva adiante sua vontade. Ainda que consideremos essa ideia, ao mesmo
tempo também dizemos que a totalidade não inclui o mal e que, quando ela é
estabelecida ou destruída, o mal deixa de existir.

Assim, é correto que neste estudo sobre a ontologia do mal deveríamos


descobrir que as conclusões se perdem e não aparecem juntas, e que a
resposta final nos escapa. A pior coisa no mundo seria supor que o problema
do mal foi solucionado tanto no plano intelectual quanto no emocional. É
melhor que fiquemos imaginando, com uma alusão para estarmos certos
sobre a relação entre o mal e Deus, mas sem nenhuma resposta final. Estamos
mais próximos da descoberta da verdade quando contemplamos Deus como o
grande mistério, do que supor que reduzimos Deus a uma verdade final que
pode ser entendida em termos humanos.

Tentei argumentar que a posição da privatio boni diante do mal é


possível e não é inconsistente com os fatos psicológicos. O trabalho de Jung,
porém, tornou imperativo que a postura típica convencional quanto ao mal
evidenciada pela maioria dos cristãos deve ser significativamente alterada.

Por exemplo, quando Jung diz que nossa imagem da totalidade deve ser
desdobrada de três para quatro, ele está psicologicamente correto, à medida
que isso significa que deve haver um deslocamento de uma atitude baseada
puramente na posição da consciência para uma atitude que inclua da mesma
forma o inconsciente. Isso significa o reconhecimento e a inclusão do diabo.
Como já vimos, isso não quer dizer que o mal intrínseco seja aceito ou
“entronizado”, como Philp colocou, mas que a necessidade do mal seja aceita
e se faça uma tentativa de transformá-lo. A nível operacional isso significa
uma tentativa de incluir e integrar à nossa atitude consciente tudo aquilo que
pertence à nossa totalidade essencial que foi rejeitada, cindida e reprimida no
inconsciente.
Esse processo de integração não acontece quando a atitude consciente
permanece rígida, unilateral e apenas baseada no lado luminoso das coisas.
Tal processo só é possível se for aceito o lado obscuro da vida e do si-mesmo.
E o sucesso final desse processo só pode acontecer se a consciência estiver
disposta a aceitar uma visão paradoxal da totalidade, disposta a elaborar uma
solução mais a nível individual que coletivo para os problemas da vida e da
personalidade. Em suma, nunca podemos ser “perfeitos”, ou seja, sem
mácula, culpa ou imperfeição, mas podemos nos mover em direção à
totalidade que é, como diz Jung, um estado altamente paradoxal.

A atitude tradicional cristã, como tem sido mediada pela Igreja, é de


rejeição absoluta. Recusou aceitar o lado sombrio da personalidade,
rejeitando o lado obscuro do si-mesmo. Insistiu num modelo de perfeição e
não reconheceu a necessidade ou até o valor da totalidade que é obtida
através da imperfeição, e não da perfeição. Ao refutar a natureza paradoxal da
totalidade, exclui especificamente o aspecto feminino da vida e da
personalidade. Essa atitude não contribuiu para trazer um estado de luz e
perfeição, mas aumentou o mal ao direcionar partes da personalidade para um
estado de ruptura. Por conseguinte, a atitude cristã convencional deve se
voltar para uma retomada e considerar a necessidade da redenção daquilo que
caiu nas mãos do mal, ainda que isso envolva uma descida à perigosa
dimensão do inconsciente.
Sumário

Mal O Lado Sombrio da Realidade

Créditos

Introdução à Coleção Amor e Psique

Agradecimentos

Introdução

1. O mal sob a ótica divina e a ótica centrada no ego

2. O problema do mal na mitologia

3. O problema do mal no Antigo Testamento

4. O papel do diabo e do mal no Novo Testamento

5. A Sombra
6. Jesus, Paulo e a sombra
7. O problema da sombra e do mal no estranho caso de “O médico e o
monstro”

8. O diabo na mitologia e no folclore pós-bíblicos

9. A ontologia do mal
A doutrina da Privatio boni
Críticas de Jung à Privatio boni
Uma crítica à visão de Jung da Privatio boni
Uma reformulação do problema do mal
Uma revisão das objeções de Jung
Outra visão da posição cristã

Sumário

Sinopse

O Autor

NOTAS
Sinopse

(conforme corpo do livro físico)

O problema do mal é um dos mais difíceis e complicados para a


humanidade. Todos, em todos os tempos e lugares, procuraram abrir
perspectivas para compreender e responder a essa desafiadora questão, sem
chegar, contudo, a uma solução definitiva. Com singular clareza, John A.
Sanford considera o mal a partir de diferentes perspectivas — psicologia,
Bíblia, mitologia, folclore, literatura, filosofia e teologia — e o resultado é
este livro perspicaz, profundo e prático.
A contribuição do autor é particularmente valiosa para os estudiosos de
ética, moral e teologia, mas, em última análise, interessa a todos, pois todos
nós, queiramos ou não, estamos envolvidos no problema do mal.
O Autor
(Conforme interior do livro fisico,
porém atualizado em 2018 pela Wikipedia)

John A. Sanford, analista junguiano norte-americano e padre


episcopal, trabalhou em tempo integral no aconselhamento e, como autor,
tendo se dedicado, também, a aulas em cursos de extensão. Os livros
anteriores escritos por Sanford incluem The Kingdom Within, Lippincott,
1970; Healing and Wholeness, Paulist Press, 1977; Dreams and Healing,
1978; e “Os Parceiros invisíveis”, Edições Paulinas, 1987
Com pouco mais de 20 anos, Sanford ingressou no Seminário
Teológico Episcopal, seguindo o pai, avô e bisavós, tendo se ordenado
sacerdote em Cambridge (1955), bacharelado em filosofia, graduado Phi Beta
Kappa e obtido grau honorário de Doutor em Divindade por seu trabalho com
a religião e da psicologia. Ele dominava a mitologia e língua grega e a
história do índio americano e era estudante dedicado de Carl Jung (psicologia
analítica).

Morava e trabalhava em San Diego, como atuando psicoterapeuta e


analista junguiano, dando palestras e escrevendo livros, inclusive sobre
estudos sérios de interpretação de sonhos, combinando espiritualidade e
ciência, bem como romances e lendas dos índios americanos. Em 2002/2003
apresentou sinais da doença de Alzheimer, vindo a óbito em 2005, aos 76
anos de idade.
{1}
Daqui em diante, sempre que eu falar em psicologia, neste livro, estarei me referindo
especificamente à psicologia de C. G. Jung, mais propriamente chamada de Psicologia Analítica.
{2}
Acho que se trata do filme sueco O Sétimo Selo. Como estou fazendo as citações de memória, é
possível que elas não estejam muito exatas.
{3}
Nicholas Berdyaev, The Destiny of Man, Harper Torchbook, New York, 1960, p. 18. Os grifos são
meus.
{4}
William Brandon, The Last Americans, McGraw-Hill, New York, 1974, p. 02
{5}
Veja Will Durant, Our Oriental Heritage, Simon & Schuster Inc., New York, 1935, p. 734.
{6}
William Shakespeare, Hamlet, Príncipe da Dinamarca, Ed. Abril Cultural, São Paulo, 1981, p.
238.
{7}
Veja Marie-Louise von Franz e James Hillman, Jung’s Typology, Spring Publications, New York,
1971, especialmente o artigo de Hillman sobre a função sentimento
{8}
John A. Sanford, Healing and Wholeness, Paulist Press, New York, 1977, p. 14
{9}
Idem, Dreams and Healing, Paulist Press, New York, 1978, pp. 22-23.
{10}
C. G. Jung, Memories, Dreams, Reflections, Pantheon Books, New York, 1961, pp. 267 ss.
{11}
Morton T. Kelsey, Myth, History and Faith, Paulist Press, New York, 1974, p. 35
{12}
The Great Chiefs, Time-Life Books Inc., Alexandria (U.S.A.), 3’ edição, 1975, p. 183
{13}
Marcos 10,17-18
{14}
Bíblia, abreviações: Cr: “Crônicas”; Sm: “Samuel”; Sl: “Salmos” [Nota Revisor]
{15}
Bíblia, abreviações: AT: “Antigo Testamento” Am: “Amós” Is: “Isaias” [Nota Revisor]
{16}
A Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas, São Paulo, nova ed., revista, 1985.
{17}
Sou grato ao amigo Bea Burch por esta citação do livro de Satprem, Sri Aurobindo, or The
Adventure of Consciousness, Harper & Row Publishers, New York, 1970, p. 163. Originalmente
publicado por Sri Aurobindo Ashram Press, Pondicherry, Índia, 1968.
{18}
Morthwestern University Press, 1967. Agradeço a Rivkah ScharfKluger por todos os grandes
insights sobre o papel do mal no Antigo Testamento e, especialmente, por sua análise da estória de
Balaão.
{19}
Bíblia, abreviações: Rs: “Reis” Nm: “Números” [Nota Revisão]
{20}
Há duas tradições sobre a estória de Balaão e ambas estão no capítulo 22 do livro dos Números.
Estamos seguindo o texto mais antigo, que começa no versículo 22
{21}
John A. Sanford, Healing and Wholeness, Paulist Press, New York, 1977, pp. 140-148.
{22}
Rivkah Scharf-Kluger, Satan in the Old Testament, Northwestern University Press, 1967, p. 161,
citando Gerhard von Rad
{23}
Nikos Kazantzakis, The Last Temptation of Christ, Simon & Schuster, New York, 1960, p. 15.
{24}
Cf. Lc 10,19 e Mt 13,28, apesar destes versículos poderem ser da Igreja primitiva e não
originariamente de Jesus. Veja Norman Perrin, Rediscovering the Teaching of Jesus, Harper and
Row, New York, 1967, pp. 112-113
{25}
Cf. Jo 12,31; 14,30; 16,11.
{26}
John A. Sanford, The Kingdom Within, J. B. Lippincott, 1970, Paulist Press, 1980, New York
{27}
Emprestando um termo de Victor Maag de seu artigo “O Anticristo”, do volume Evil, Evanston,
I11.: Northwestern University Press, 1967.
{28}
Faust, Goethe, trad. Charles E. Passage, Indianapolis, Ind., Bobbs-Merrill Co. Inc., 1965, p. 49.
{29}
Maag, Victor “O Anticristo”, p. 79
{30}
Ap 14,3-5. Itálicos impressos como na Bíblia de Jerusalém.
{31}
Veja Lc 7,36-50.
{32}
Veja Geddes MacGregor, Reincarnation in Christianity, Wheaton, I11.: Theosophical Publishing
House, 1978, pelo mais completo argumento que conheço de que a reencarnação é uma doutrina
com apoio da Bíblia e da Igreja primitiva. Do meu ponto de vista o argumento dele não é eficaz,
apesar de que ele certamente deve merecer crédito por tentar desenvolver um argumento
satisfatório, praticamente sem nenhuma evidência!
{33}
Edward C. Whitmont, The Symbolic Quest, Princeton University Press, Princeton,, N. J. 1978, p.
160
{34}
John A. Sanford, Os Parceiros Invisíveis, Ed. Paulinas, São Paulo, 1987. Veja no livro uma
explicação mais completa de como o animus e a anima negativos funcionam em mulheres e
homens
{35}
P. W. Martin, Experiment in Depth, Routledge & Kegan Paul, 1955, p. 77.
{36}
Mc 11,15-17
{37}
Mt 10,16
{38}
Cf. O livro de Harvey Mindess, Laughter and Liberation, Nash Corp., New York, 1971
{39}
Rm 7,15-19
{40}
William Shakespeare, The Tempest, 5º Ato, Cena 1, Linha 275
{41}
Mt 23,27-28
{42}
Rm 7,14-20
{43}
Outras passagens que lidam com o problema da persona-sombra incluem: 1Cor 4,5; 5,1-3; Rm
1,18-32; 2.8:2-21; 13,11-14; 12,9-21: 16,19-29; Fl 1,11; 2,3-5; 2,15; Cl 3,5-25; Ef 5,2-20; 1Tm 1,8-
11; Tt 1,5-9.
{44}
Gl 5,16-24 e 6,9-10
{45}
Rm 12,17-19
{46}
Rm 13,14
{47}
Cf. 1Cor 7,1-11
{48}
1Tm 3,2-7. É questão disputada pelos especialistas se Paulo escreveu ou não a 1ª epístola a
Timóteo. Biblistas católicos romanos conservadores e o bispo J. A. T. Robinson, no seu Redating
the new Testament (Filadélfia, Westminster, 1976), acreditam que ele escreveu. Outros estudiosos
modernos acreditam que ele não o fez. Por razões que estão claras na p. 86, não é importante quem
foi o autor da primeira epístola a Timóteo, uma vez que o ponto de vista de Paulo e os da Igreja
primitiva geralmente não diferem muito no que diz respeito ao problema da sombra.
{49}
John Fire/Lame Deer e Richard Erdoes, Lame Deer-Seeker of Visions, Simon & Schuster, New
York, 1972, p. 79
{50}
Ibid., p. 156
{51}
1Tm 2,15. Cf. Tm 2,9-15; 5,3-8
{52}
Mt 5,25-26.
{53}
Mt 7,13-14
{54}
Mt 19,16-22
{55}
O médico tem no original inglês o nome de Dr. Jekyll e o monstro chama-se Mr. Hyde. Aqui
usaremos ambas as indicações para os personagens (N do T).
{56}
Time, 7 de maio de 1979, p. 26.
{57}
Robert Louis Stevenson, Vol. IX, Across the Plains, The Darvos Press, N. Y., 1906. Veja também
suas outras novelas The Master of Ballantrae e The Weir of Hermiston, que lidam muito com o
mesmo tema.
{58}
Barbara Hannah, Striving Towards Wholeness, G. P. Putnam’s Sons, N. Y., 1971
{59}
“Juggernaut”: ídolo de Krishna, levado anualmente em procissão num grande carro, sob cujas
rodas os fanáticos se lançavam. A partir disso, designa a crença cega num ídolo ou ideal, que causa
a destruição cruel do indivíduo fanatizado (N. Ed.)
{60}
Marie-Louise von Franz, A Sombra e o Mal nos Contos de Fada, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985.
{61}
C.G. Jung, Letters, 2, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1975, p.624
{62}
Orígenes, De Principis, Livro I, capítulo V.
{63}
Archelaus, The Disputation with Manes, Ante-Nicene Fathers, Eerdmans Series, p. 205.
{64}
Jo 14,30. Cf. 12,31 e 16,11.
{65}
Maximilian Rudwin, The Devil in Legend and Literature, I.ji Salle, 111.: Open Court Publishing
Company, 1973
{66}
Mt 4,1-11.
{67}
2Cor 11,14.
{68}
A palavra blue, em inglês, também significa melancolia, depressão e estados de espírito
semelhantes, bem como sua forma plural blues. Em alguns casos, o termo pode significar algo
indecente ou profano (N. do T.).

{69}
Stewart Farrar, What Witches Do, New York, N. Y.: Coward, McCann & Geogliagan, Inc., 1971,
p. 31
{70}
Algumas autoridades dizem que esta condenação foi feita no ano 553 no Quinto Concilio de
Constantinopla, mas outros dizem que ocorreu no ano 543 num concilio local daquela cidade. Cf.
Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. II, p. 791. (Grand Rapids, Mic.: Wm. B.
Eerdmans Publishing Co., 1963. Reproduzido por um acordo especial com o editor original, Chas.
Scribners Sons, 1910)
{71}
Cf. A Cidade de Deus, Livro XIV, capítulos 16-17 e 23-24, e Livro XVI, cap. 25.
{72}
Bernard, Moralia XXXIII-7; Peter Lombard, Liber Sententiarum III, Dist., XIX, 1.
{73}
Cf. Comentário sobre João, de Orígenes, cap. 37
{74}
Para um mandamento de exorcismo interessante, expresso nesses termos, veja Lactantius, The
Divine Institutes, cap. L
{75}
Hamack, História do Dogma, vol. 2, p. 271. Veja especificamente Against Heresies, de Irineu. L.
4, cap. 37-39. e L. 3. can. 20, de Ante-Nicene Fathers, Wm. B. Eerdman Publishing Co, vol. I,
1885.
{76}
Lactantius, Divine Institutes, L. 5, cap. 7.
{77}
Clementine Homelies, Homilia 20, cap. 3, cf. VIII, 130, 179, 180, 183, 184. Cf.
Reconhecimentos, vl. 8, 140.
{78}
Citado por Jung em Aion CW 9,2. Pantheon Books, N. Y., 1959, p. 55.
{79}
Hexaemeron, II. 5. Citado por Tung, Ibid, op. 46-47.
{80}
Agostinho, Confissões, Livro III, cap. VIII — Eerdmann Series
{81}
C. G. Jung, Aion, p. 41
{82}
Ibid., p. 41
{83}
Ibid., p. 42
{84}
Ibid., p. 43
{85}
C. G. Jung, CW 12, Psicologia e Alquimia, Princeton, N. J. Princeton University Press, 1953, p.
21.
{86}
Jung, Aion, p. 42
{87}
Ibid., p. 46. Esta é uma asserção estranha de Jung, uma vez que a teologia cristã é extremamente
paradoxal. Cristo é totalmente humano e totalmente divino, a ideia de um Deus que morre mas
ressuscita, o pensamento de que o poder celeste se encarna na carne — são pensamentos altamente
paradoxais
{88}
C. G. Jung, CW 12, Psicologia e Alquimia, Princeton, N. J. Princeton University Press, 1953, p.
19.
{89}
Jung, Aion, p. 54
{90}
Ibid, p. 47
{91}
C. G. Jung, Letters 2, Princeton University Press, Princeton, N. J., 1975, p. 61.
{92}
Jung, Psicologia e Alquimia, p. 192.
{93}
H. L. Philp. Jung and the problem of evil, New York, N. Y.: Robert M. McBride Co., 1959. p.
43.
{94}
Em aulas e conferências particulares.
{95}
Jung, Aion, p. 53 (destaques meus).
{96}
Ibid, p. 69
{97}
Ibid, p. 46
{98}
C. G. Jung CW 14, Mysterium Comvictionis, Princeton University Press, Princeton, N. J., 1963,
p. 79.
{99}
Jung, Aion, par. 19 (itálicos meus).
{100}
R. F. C. Hull e William McGuire, eds. C. G. Jung Speaking, Princeton University Press, N. J..
1977, p. 227.
{101}
Jung, Letters 2, p. 401 (destaques meus).
{102}
C. G. Jung, Memories, Dreams, Reflections, New York, N. Y.: Pantheon Books, 1961, Sec. 3,
cap. 12, “Late Thoughts”. Sou grato ao amigo Morton T. Kelsey por me recordar essa passagem
relevante
{103}
Richard Wilhelm, Tr„ The I Ching, Pantheon Books, New York, N. Y., 1953, 3rd. printing, pp.
153 e 102-103 (itálicos meus)
{104}
Contra adversarium legis et prophetarum, I, 4s, citado por Jung em Aion, p. 50.
{105}
Nicholas Berdyaev, Meaning of the Creative Act, Collier Books Edition, 1962, p. 138
{106}
C. G. Jung, CW 11, (“Psicologia e Religião”) A psychological approach to the Trinity, par. 290,
Pantheon Books, New York, N. Y., second printing, 1963.

Versão Digital — 2018:


Digitalização: Lili
Produção ePub:

Você também pode gostar