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Uma investigação acerca da imagem

James Hillman (Zurique) tradução: Nelson Shuchmacher Endebo

“Estas coisas que comigo por demais discuto


Por demais explico” T. S. Eliot, Quarta-feira de cinzas1

Símbolo e imagem. Quando me perguntam – como rotineiramente ocorre nas discussões após minhas
palestras – “porque você não fala de símbolos?”, “qual a diferença entre uma imagem, uma imagem
arquetípica, e um símbolo?”, eu respondo com uma confissão: eu venho de Zurique; no último quarto de
século eu tenho vivido em um mundo de símbolos. Eles já não cativam a minha atenção. Todos em Zurique
falam sobre símbolos, os pesquisam, escrevem teses sobre eles: o cisne, a caverna, a flecha, o número
cinco, claro-escuro, o calcanhar ferido, a panturrilha2, joelho, coxa, cintura... Todos eles símbolos, e eu
também já trabalhei com eles. Isso porque, segundo a escola de Zurique, não logramos compreender
materiais psíquicos, sobretudo os sonhos, sem conhecimento dos símbolos. Ou, nas palavras do Mestre,
para fazer justiça a um sonho é preciso:
Adotar uma técnica combinada que, por um lado, baseie-se nas associações do sonhador e, por
outro, preencha as lacunas provenientes do conhecimento dos símbolos pelo intérprete.
(Essa afirmação, por sinal, está na Interpretação dos Sonhos3, p. 374 de Sigmund Freud)
Mas seriam esses símbolos (cisne, flecha, caverna, cinco) imagens? Não; devemos dizer que eles
não são, assim estabelecendo desde o ponto de partida uma clara distinção entre símbolo e imagem.
Contudo, propomos também que os símbolos tornam-se imagens quando particularizados por um
contexto, ambiência [mood] ou cena específicos, isto é, quando qualificados com precisão. Esse é o critério
que devemos ter em mente conforme avançamos. Vejamos como ele funciona - tomemos um sonho:
Em algum tipo de caverna, uma caverna escura. No ponto onde piso, o lugar decliva para trás.
Havia ali um cisne branco com flechas cravejadas em seu peito por todos os ângulos. Creio que
haviam cinco flechas. Senti-me incapaz de respirar ali, e voltei-me desesperado em direção da –
cintiliante - luz do dia, apressando-me sem olhar para trás. Nessa pressa, porém, eu pareço perder
controle da minha perna, a direita, creio que na altura do joelho, e minha perna tremia em todas
as direções conforme eu me adiantava.

Nesse sonhos os símbolos são as flechas, a caverna, o cisne, o cinco, o joelho, etc. Eu poderia pesquisá-
los em um dicionário de símbolos, ou em um índice às obras de Jung. Tal pesquisa constitui o primeiro
passo da “amplificação”. Ao levantar mais informações a respeito dessas palavras, para além das minhas
próprias associações pessoais (por exemplo: machuquei meu joelho aos três anos; flechas me remetem à

1
[N. do T.] Na tradução de Ivan Junqueira para os poemas completos, ed. Nova Fronteira, 1981.
2
[N. do T.] O original é “calf”. Pode ser tanto “panturrilha” quanto “bezerro”. Optei pelo primeiro porque parece
fazer mais sentido em uma lista de partes do corpo.
3
[N. do T.] Na edição standard brasileira publicada pela editora Imago.
São Sebastião; sempre me disseram que cisnes são lindos, porém perigosos), eu adquiro um contexto
cultural mais amplo, aprendo algo a respeito de como tais símbolos figuram na imaginação em geral ao
longo da história da arte, da religião e do folclore.
Assim venho a descobrir que cavernas são locais onde estamos protegidos, onde mistérios
ocorrem, onde deuses nascem e crianças são criadas, onde escondem-se segredos, tesouros e crimes; que
as cavernas foram frequentemente imaginadas como portais de entrada para um mundo inferior. E
aprendo que cisnes são aves de deuses elevados, inspiracionais: Eros, Afrodite Urânia, e Apolo. Eles
remetem ao amor e à morte nas mitologias, a melancólicos vôos de longa distância; essas alvas aves
d’água pertencem à fenomenologia da anima, de princesas de pescoços longos, de ninfas marinhas e
donzelas, e sobretudo de combinações peculiares de feiúra e beleza, de água e ar, de orgulhosa bruteza
e extrema suavidade. E assim por diante com as flechas, os numerais cinco, os joelhos, peito, brilho, etc.
O campo desse tipo de conhecimento é a simbologia: o estudo dos símbolos. O uso consciente do
cisne e da flecha, da caverna e do joelho, em um poema, pintura ou balé, chama-se simbolismo (por uso
consciente desejo indicar seu emprego visando a obtenção de efeitos emocionais e estéticos, sobretudo
aqueles que estendem as fronteiras de um evento a fim de torná-lo universal. Outro tipo de uso
consciente é o emprego de símbolos visando transmitir um determinado significado que se esconde nos
símbolos, como na alegoria). Aquele que usa símbolos, e as escolas que incentivam o uso deles para tais
fins, são chamados simbolistas. Simbolistas podem criar impressões duradouras mediante o uso de figuras
culturais tradicionais; ou a justaposição simbólica em arranjos interessantes; ou a alteração sugestiva de
suas formas corriqueiras. O símbolo per se não é nem bom, nem ruim, e obras simbólicas variam do
majestoso ao kitsch. A simbolização enquanto ato psicológico espontâneo refere-se ao agrupamento de
significâncias sob forma comprimida, seja tal forma uma imagem sensível, um objeto concreto, ou uma
fórmula abstrata. A simbolização ocorre à noite, em nossos sonhos, e durante o dia, em nosso discurso.
Trata-se de uma atividade tão fundamental que parece-nos tão incompreensível quanto a própria
consciência e, nesse sentido, ela não está sujeita ao nosso escrutínio. Portanto, quando eu falo de
simbolização eu digo mais especificamente: ver imagens simbolicamente, ou converter imagens em
símbolos. – Muitíssimo já se escreveu sobre isso que condensei nesse parágrafo, o qual nos servirá de
orientação preliminar.
Um símbolo conserva pelo menos uma idéia principal em uma imagem – a caverna conserva a
idéia, por exemplo, de mistério, e a apresenta sob forma sensível. (Um símbolo, todavia, também conserva
uma imagem em, por e para sua idéia principal – uma consequência preocupante à qual retornaremos
mais adiante). Tanto a imagem quanto a idéia compartilham algo de geral sobre a experiência humana,
que perdura no tempo. Isto é, um símbolo condensa um conjunto de convenções que tendem à
universalidade. Não importe onde ou quando figurarem caverna, cisne ou flecha, tais símbolos tendem a
agregar agrupamentos de idéias similares. Sua própria “convencionalidade” é indício de nosso
reconhecimento dos símbolos. É também aquilo que determina o majestoso ou o kitsch, pois os símbolos
trazem consigo a profundidade e o poder da história e da cultura, as experiências humanas mais gerais no
universo, as quais são tanto verdades inefáveis, quanto banalidades. O cisne é um excelente exemplo
disso: pode ser imensamente poderoso ou meramente trivial, dependendo do – bem, do que?
Dependendo, acima de tudo, de como o cisne, a imagem, aparece.
Consequentemente, duas vias abrem-se adiante. Podemos abordar imagens mediante símbolos,
ou símbolos mediante imagens. Se focamos no “quando” e “onde” de uma imagem em sua generalidade
ou convencionalidade, adotamos um olhar simbólico. No entanto, se examinamos o como de um símbolo
em sua particularidade e peculiaridade assumimos, então, um olhar imagístico.
A terapia normalmente trata as imagens por intermédio dos símbolos, e esse método tem
vantagens notáveis. (As desvantagens são numerosas demais, e demasiado desastrosas, para arrolarmos
aqui). Recapitulemos essas vantagens.
Primeiramente, ao nos confrontarmos com o sonho e ao buscarmos o seu significado, nós
preenchemos as lacunas de nossas associações pessoais com nosso conhecimento dos sonhos, como dizia
Freud. Nós aprendemos essa abordagem simbólica durante nosso treino analítico; ela é também uma
consequência necessária da ênfase que Jung dá ao sonho manifesto: havendo um leão, tem-se um leão,
e não um tigre ou um urso. Uma vez que o sonho tenha sido específico, nós igualmente havemos de sê-
lo, se ansiamos orbitar seu significado com nossa interpretação. Temos que saber em que diferem
simbolicamente os leões dos tigres e ursos, para irmos direto ao ponto e não tergiversar demais sobre o
leão do sonho, tratando-o como “animalidade”, “instinto”, “poder” ou “imago pai” – afirmações que
poderíamos facilmente fazer a respeito de tigres e ursos – e águias e locomotivas. Ou seja: a abordagem
simbólica ajuda-nos a localizar uma imagem no interior da tradição da imaginação.
Uma segunda vantagem dessa abordagem é que ela alivia o sonhos de sua força opressora
estritamente pessoal. Ao ampliarmos o espectro, já estamos praticando terapia; ao investigarmos um
símbolo nós reconectamos, rememoramos, nosso lugar na grande imaginação. Essa abordagem rende
uma abertura para a cultura.
Uma terceira vantagem deriva da segunda. Os símbolos têm escopo e eco. Qualquer evento visto
simbolicamente ganha em dimensão; torna-se universalizado, vem a transcender sua aparência imediata.
Sentimo-nos tocados pelos grandes significados. Símbolos concedem grandiosidade – e inflações e ilusões
de grandeza. Mas aí já estaríamos a discutir desvantagens; passemos, portanto, para o próximo ponto.
Quando atentamos para as duas vias, a simbólica e a imagística, notamos que elas não constituem
alternativas de fato. Todo processo psíquico é uma imagem, diria Jung. Símbolos aparecem, e só podem
aparecer, em imagens e como imagens. Eles são abstrações de imagens (de outro modo nós não
poderíamos recuperá-los). Os únicos cisnes que podemos encontrar como tais estão nos dicionários e
índices. Todos os outros cisnes – palitos de fósforos Swan4, lago dos cisnes, cisnes no rio Coole; cisnes a
estuprar Leda, ou a puxar a biga de Afrodite – encontram-se em contextos, ambiências e cenas específicas.
Cada símbolo é articulado, vivificado ou mortificado, pela imagem que lhe apresenta. Um símbolo só pode
se manifestar em uma imagem.
Mas talvez o símbolo seja uma certa espécie de imagem – uma vasta imagem universal? Uma
grande ave branca defunta é certamente um símbolo. É só pensarmos no albatroz. Mas isso também não
funcionará muito bem, pois perderemos com isso a imagem do cisne na caverna, uma caverna particular
com seus sentimentos específicos, e do cisne morto por flechas, ou com flechas, atravessando-lhe o peito,
cinco flechas para ser mais exato, e tudo isso acompanhado de minhas emoções e ações.
Em outras palavras, imagens generalizadas e convencionalizadas (grande ave branca) terão suas
peculiaridades características apagadas. Assim não podem mais ser propriamente chamadas de imagens.
Qualquer imagem tomada como símbolo, ao receber uma dimensão universal, deixa de ser uma imagem.
A abordagem simbólica contradiz a imagística, e isso basicamente porque, ao oferecer generalidade, o
tratamento simbólico sacrifica a precisão.
Finalmente, um sonho é uma imagem por causa desses contextos, ambiências e cenas específicos.
Ele não é um símbolo. Isto fica patente no fato de que não se pode ampliar o sonho como tal, somente
seus símbolos. Estes podem ser removidos do sonho, pesquisados, pintados, interpretados – mas nada
disso é o sonho, a imagem. Dito de outro modo: um sonho é uma imagem integral - não importa o quão
fragmentária, quão equivocada - que intra-relaciona suas próprias imagens, entre as quais pode haver
símbolos. Um símbolo pode ser um elemento de uma imagem, mas pode haver imagens desprovidas de
quaisquer símbolos.
O Contestador entra em cena: “Alto lá! Tudo isso pode até estar certo se você estiver propondo
uma nova teoria, mas isso nada tem a ver com a maneira como Jung define o símbolo:
Semiótica é toda visão que interpreta a expressão simbólica como análoga de uma designação
abreviada de um algo conhecido. Simbólica é a visão que interpreta a expressão simbólica como a

4
[N. do T.] Em inglês, cisne é “swan”. Aqui Hillman dá uma série de referências culturais usando a palavra Swan,
algumas impossíveis de traduzir.
melhor formulação possível de um algo relativamente desconhecido, e que portanto não se deixa
expressar de maneira mais clara ou característica. (OC 6:543)

“A sua distinção entre símbolo e imagem nada mais é do que a que Jung faz entre signo e símbolo. Tu
estás a reconverter símbolos em signos, ao passo que um dos grandes avanços de Jung foi ter distinguido
os dois, dando à psicoterapia uma nova teoria do símbolo. A teoria dos símbolos de Jung insiste que eles
são íntegros, e não meros elementos; ela reitera sua inefabilidade fundamental, seu mistério e
ambiguidade paradoxal. É por isso que eles ‘vivem’ e são capazes de transformar nossa vida psíquica. Mas
tu sabes disso tão bem como eu; porque então falas sobre símbolos em termos de dicionários e
ampliações? Acreditar que podemos captar o significado de um símbolo assim lhe buscando é ignorar
completamente a teoria de Jung”.
Meu amigável Contestador estabelece uma útil distinção entre a teoria do símbolos de Jung e a
prática de investigá-los5. Isso permite-me delinear meu método nessas notas. Eu almejo ser operativo.
Busco inquirir permanecendo fiel aos fenômenos de fato. Desejo falar do que fazemos, e não do que
achamos que fazemos. Isso significa diferenciar o método de Jung de sua metodologia ( - dica de James
Heisig. Ver também Stephanie de Voogd mais adiante nessas páginas). Métodos são a maneira como
fazemos as coisas, e metodologias são as “-logias” que alegamos para justificar o que fazemos. A primeira
se trata de tática; a segunda, de estratégia do quartel, de definições teóricas e de planos para executá-
las. A questão “o que é um cavalo?” pode ser legitimamente respondida com uma definição ou descrição
do cavalo. Posso respondê-la também indicando, apontando para um cavalo ou cavalos. Se uma criança
faz a pergunta, eu não responderia melhor do que indicando-lhe um cavalo. Além do que, e isso é de suma
relevância, o ato de indicar pode ser realizado em um relato de um sonho sobre cavalos, citando uma
linha de verso, imaginando [fantasying] um cavalo. Indicar quer dizer cavalo-em-apresentação, cavalo em
imagem. Ao invés de responder afirmando o que é um cavalo, respondemos dizendo ou mostrando com
o que um cavalo se parece – (um cavalo é como o animal que vimos puxar a carreta do leiteiro no filme
ontem à noite; é como nosso cachorro, só que muito maior e com pêlo mais brilhoso, e você pode montar
nele e correr rápido; você se lembra do policial em frente à parada? Bem, ele montava um cavalo).
Com esse método indicativo eu procuro retornar ao fenômeno: símbolo em operação ao invés de
símbolo em definição. Essa diferença pode sair do nosso controle: se a definição ou descrição do cavalo
já não parece mais cobrir aquilo que efetivamente vemos quando indicamos o cavalo, o entendimento de

5
[N. do T.] A expressão em inglês é “look up”, literalmente “procurar”. Aqui o sentido de procurar é o sentido de
investigar; no caso, em dicionários e índices.
cavalos que ganhamos pela teoria (descrição) torna-se então ilusório. Ele já não se conforma mais com os
cavalos de fato. Eu creio que isso venha ocorrendo com o “símbolo” na psicologia analítica.
O que acontece nas trincheiras da psicoterapia parece bem diferente do plano. Quando jungianos
falam ou escrevem sobre um sonho com um ovo ou um caixão, ambos não permanecem dentro da
imagem, dentro do contexto que precisamente os qualifica; tampouco são o ovo ou o caixão “a melhor
formulação possível de um algo relativamente desconhecido” (a definição de símbolo segundo Jung). No
mais das vezes, o ovo tende a ser uma “designação abreviada” (signo) de fertilidade, crescimento ou
feminilidade; e o caixão, a mãe negativa ou a morte. Esses símbolos tornam-se suplentes para conceitos.
Enquanto a teoria de Jung os declara desconhecidos, na prática nós simplesmente sabemos o que
significam à primeira vista. Nossa prática com símbolos não mais corresponde à teoria que temos sobre
eles.
Esse estado de coisas veio a acontecer com o desenvolvimento progressivo da simbologia. Nós já
não praticamos a teoria jungiana dos símbolos pois eles deixaram de ser os “desconhecidos” de outrora.
Passamos por uma mudança histórica. Freud, Jung e a segunda geração reivindicaram vastas porções
dessa “linguagem esquecida”. A consciência hoje está altamente desperta para símbolos de vários tipos.
Parece-me, portanto, que a terceira geração esteja buscando um retorno ao desconhecido, que até
recentemente residia no símbolo, precisamente na exploração da imagem. (Afinal, nossa principal
preocupação não é nem o símbolo, nem a imagem, mas o desconhecido, que é a fonte de toda psicologia
de profundidade.)
O sonho como imagem remete-nos novamente ao desconhecido. Na imagem permanecemos
nele. Não há outro lugar para onde ir. Apenas ele mesmo pode dizer-nos algo sobre si. Deixamos em
suspenso, portanto, nossa consciência coletiva que sabe o que são os sonhos, o que fazem, o que
significam. A prática com sonhos-enquanto-imagens interdita a nossa teoria baseada na abordagem
simbólica. Não desejamos enviesar a experiência fenomênica de sua incognoscibilidade e nossa
inconsciência sabendo, de antemão, que eles são mensagens, dramas, compensações, indicações de
prospectos, funções transcendentais. Queremos atingir a imagem sem a defesa que nos é conferida pelos
símbolos.
Contestador: “Isso é ingenuidade. Mesmo que tu removas ou suspendas as suposições de Jung,
tu simplesmente irás substitui-las por outras. Tu deves ter uma outra abordagem; precisas de
instrumentos. O que tu fazes com os sonhos?”
A primeira suposição é que um sonho é uma imagem, e que uma imagem é completa assim como
ela se apresenta. (Pode-se elaborá-la e aprofundá-la ao longo do trabalho, mas tudo deve já estar ali; a
imagem é um todo desde o princípio). Em seguida, supomos que tudo nela é necessário, o que sugere que
tudo aquilo que é necessário já estivesse nela. Assim chegamos à regra: “atenha-se à imagem” em sua
presentação precisa (o cenário cavernoso decliva para trás; apresso-me sem olhar para trás; as flechas
penetram o peito por todos os ângulos; o cisne é grande (e não pequeno) e está morto (e não doente, ou
vivaz, ou nadando) e branco (e não incolor, ou negro)).
Mesmo se as imagens fossem menos detalhadas (“qualquer número de flechas”, “algumas
flechas”, ou “acho que havia flechas”), qualquer coisa que for dita faz parte da precisão da imagem. Não
entendamos “precisão” como reprodução de detalhes em ectacromo de alta resolução – quanto maior e
mais nítida, melhor. Precisão significa aquilo, qualquer coisa, que se apresenta. Basicamente é isto: as
qualidades de fato da imagem. Vagueza, obscuridade, indiferença – e imprecisão, também – são afinal
qualidades (eu me senti “meio jururu”; “o sonho foi vago”; “consigo recordar apenas de um fragmento”
– isso tudo é precisão da imagem). Quanto mais precisão, mais insights de fato.
Em contraste com a imagem, o símbolo se destaca de sua ambiência [mood] e cena (por exemplo,
as cinco flechas no cisne, tomadas como símbolo, tornam-se “a flecha” ou “flechas”). Sendo assim, o
símbolo não dispõe de localização sintática ou gradação tonal, não guarda sentimento, não estabelece
nenhuma relação necessária com sua vizinhança imediata. Nada há de intrínseco à flecha, quer ela
atravesse o cisne, o peito do cisne ou que haja cinco delas. É essa saliência dos símbolos que permite-nos
amplificá-los. Essa saliência também encoraja-nos a analisar, a decompor o sonho em partes, a investigar
os símbolos um a um, e a encontrar significado mediante a decodificação de suas inter-relações. A
abordagem simbólica tende a fraturar a imagem; ela é iconoclástica.
A abordagem imagística considera cada aspecto do sonho como uma imagem (cisne na caverna,
flechas no peito, apressar-se em direção à luz do dia), e que essas imagens são intra-relacionadas.
Nenhuma das imagens pode ser tratada isoladamente, e a elucidação de uma ilumina as demais. As
imagens são intrínsecas umas às outras: na “caverna-cisne-morto” o meu “apressar-me” tem como norte
um brilho; consiste em “apressar-me sem olhar para trás”, um “apressar-me para não escorregar no
declive”; para mim, não olhar para trás é apressar-me. Todas as imagens do sonho aderem, coerem,
inerem – essa inerência6 é fundamental para uma imagem. Patricia Berry (“An Approach to the Dream”,
Spring 1974) defendeu o caso do sonho como imagem com tamanha competência que eu não sinto
necessidade de fazê-lo novamente. A isso ela deu o nome de simultaneidade da imagem. Todas as partes
são correlativas e contemporâneas (em linguagem filosófica, as partes são vinculadas por “relações

6
[N. do T.] Hillman usa o termo arcaico inhesion.
internas”). Ponto similar a respeito de simultaneidade e de intra-relações é feito por Rudolf Ritsema em
suas traduções do I Ching (oferecidas nessas páginas desde 1970). Ele se refere a eles como a “sintaxe do
imaginal”.
4. Imagem Arquetípica – Um. Jung diz que os arquétipos per se são incognoscíveis, irrepresentáveis,
indizíveis. Tomemos isso não como um enunciado metafísico, mas operacional. Utilizemo-lo, observando
como o irrepresentável-indizível opera nas imagens.
Nós já progredimos do arquétipo como substantivo para o arquetípico como adjetivo. Esse
progresso não é ninharia! Isso porque nós acabamos de atravessar um dos matagais mais antigos da
filosofia, com suas questões espinhosas sobre participação entre universais e particulares, númenos e
fenômenos, possíveis e efetivos. Ao invés de começar com dois eventos distintos – arquétipo e imagem –
e perguntar como eles se relacionam, nós começamos com um evento – a imagem arquetípica. Nós não
temos que retirar o “arquetípica” da “imagem” pois, como fica evidente ao o fazermos, o arquetípico
elude nossas faculdades e torna-se incognoscível, irrepresentável, indizível. Desde já seríamos impedidos
pela incognoscibilidade daquilo que pretendíamos investigar. Claramente, parece-nos mais fecundo
indagar as modificações que uma imagem, ao ser declarada “arquetípica”, sofre, se é que sofre alguma.
Assim temos mais chances de encontrar aquilo que o “arquetípico” indica do que se iniciássemos a
investigação com uma pergunta teórica, como “o que são os arquétipos?” De fato, nós sequer precisamos
diferenciar arquetípico de imagem; devemos apenas indagar o que particularmente atrai, em uma
imagem, o modificador “arquetípico”. Nosso foco permanece, portanto, nas imagens.
O que é, entretanto, que chamamos de arquetípico em uma imagem? A primeira resposta,
“símbolos ou o simbólico”, simplesmente desloca o problema (se os símbolos tornassem arquetípicas as
imagens, haveríamos apenas de redirecionar nossa pergunta. A questão então seria “qual a diferença
entre o simbólico e o arquetípico?” A não ser que consigamos discernir a diferença, teríamos que admitir
que os dois equivalem, de modo que um redunda no outro). Creio, contudo, que possamos encarar o
símbolo de frente se considerarmos nosso exemplo do sonho.
Seria esse sonho arquetípico por causa de seus símbolos, caverna, flecha, cisne, escuro-claro? Em
caso positivo, qualquer sonho (imagem) que contenha um símbolo é arquetípico. Para que ele seja
arquetípico, basta haver uma árvore, um animal, ou mesmo outra pessoa (criança, sombra, animus,
anima) no sonho. Extensão ao absurdo – sim, aceitemos a proposição de que são os símbolos que tornam
as imagens arquetípicas. Tentemos operar com tal proposição, a despeito de não conseguirmos
estabelecer a fronteira entre aquilo que é e que não é símbolo. (Carros são símbolos? Supermercados?
Cestas de supermercado? Sacolas? Filas de caixa? A menina do caixa? O rapaz que ajuda a trazer as sacolas
até o carro? O cachorrinho amarrado do lado de fora, à espera do dono?)
O Contestador: “Peraí, peraí! Jung uma vez disse: ‘Se uma coisa é ou não é um símbolo depende
sobretudo da atitude da consciência a observá-lo’. A menina do caixa e essas sacolas podem, portanto,
ser encaradas como símbolos. Estou seguro de que poderia ampliá-las em termos míticos e rituais a fim
de fazer-lhe ver a natureza simbólica de tais coisas”.
O deslocamento que Jung opera sobre o problema do símbolo, de uma espécie de objeto a um
tipo de atitude do sujeito, parece-nos ser de grande ajuda – mas será mesmo? Isso me faz pensar no
enunciado de Edward Casey, segundo o qual a imagem não é o que vemos, mas como a vemos. Apela-se
para um modo de olhar. Porém que modo? Se olhar assumindo uma atitude simbólica significa encarar as
coisas como símbolos, estamos meramente adentrando outra questão, que respondemos com mais uma
tautologia.
Até agora logramos afirmar apenas que, por causa de Freud e Jung, nós podemos perceber
símbolos onde antes não podíamos. Eles desenvolveram a nossa consciência simbólica. Freud ajudou-nos
a ver (ou ouvir) “sacola” como símbolo sexual (feminino); por causa de Jung, reconhecemos “a menina do
caixa” como uma figura da anima e, atravessando suas estreitas pistas até o mundo aberto, como um rite
de sortie. Uma vez adotada essa atitude simbólica, podemos de fato enxergar qualquer coisa como
símbolo. Mas nós só passamos a adotá-la e a enxergá-los pois aprendemos o que são os símbolos
mediante a amplificação, a simbologia (freudiana, jungiana, cristã, do tarô, etc.). Logo, tal atitude
simbólica também se baseia no que fazemos ou fizemos para que pudéssemos ver algo como símbolo.
Voltemo-nos agora para os sonhos. Foquemos em um no qual aparecem oito grandes símbolos.
É bom que se diga: afirmamos que eles são símbolos indicando o que as pessoas fazem a fim de assim
chamá-los. Elas os armazenam e os procuram em repositórios: dicionários, índices – de mitos, contos de
fada e folclore, de temas nas artes, religiões, e da psicologia de profundidade. Primeiramente, temos o
sonho reduzido a seus símbolos. Operação I:
Às margens de um rio, um bebê brinca com uma cotovia e uma pérola. Flores crescem por
todos os lados. Uma velhaca7 carrega consigo uma caixa com merda.

Você poderia me dizer porque isso não funciona?

7
A palavra é hag, que tem a conotação também de “mulher decrépita” e até mesmo de “bruxa”.
Constestador: “Não há envolvimento emocional algum; nada acontece a ninguém. É como se nada
ali importasse. Trata-se de uma imagem sem maior significância e, portanto, não pode ser chamada de
arquetípica”.
Eu creio que essa imagem não possa ser chamada de arquetípica porque ela não satisfaz o
“critério do decoro” (Rosamund Tuve). A imagem é inadequadamente expressa: oito símbolos prenhes de
significado amontoados em um enunciado. Esse estilo enunciativo indiferente não lhes é apropriado.
Sozinhos os símbolos não bastam; é preciso algo mais para que a imagem seja arquetípica. Este algo
parece ser, acima de tudo, uma questão de estilo – o estilo dá valência às coisas. Precisamos não só de
símbolos; necessitamos um gênero que os incorpore. De outro modo, seria como varrer a imagem-poder
do Cristo, esverdeado, sangrando na cruz, em uma genérica pintura italiana sentimental do século XIX.
Portanto, operação II:
Era uma vez um bebê às margens de um rio, que brincava o dia todo, todo dia, com uma
cotovia e uma pérola. Flores cresciam por todas as partes circundando o bebê. Certo dia
uma velhaca passou por ali carregando uma caixa cheia de merda.

Agora ordenamos os símbolos no gênero do conto de fadas, satisfazendo com isso o critério do decoro
(recurso aos gêneros épico ou trágico seria “indecoroso”). Mesmo com tudo isso, a imagem ainda não
parece merecer o epíteto “arquetípica”. Temos a impressão aqui que a história mal começou. O pouco
que há de narrativa ali parece-nos fragmentário. Não há conflito, enredo, ou tensão moral que nos prenda
durante a leitura. Jung diz que os arquétipos são portadores de significado: essa imagem não carrega
nenhum mensagem significante. Se pudermos dizer “e daí?” para uma imagem, ela dificilmente será
arquetípica. Tentemos, assim, uma terceira operação:
Eu observava um bebê, às margens do rio, brincando com uma cotovia e uma pérola.
Flores cresciam em volta dele quando (“de repente”, ou “até que”, ou “entretanto”) uma
velhaca surgiu carregando consigo uma caixa cheia de merda.

Duas coisas mudaram. Primeiro, há um sonhador, um observador, com o qual podemos nos identificar;
segundo, há uma ruptura, um “hiato” peculiar na imagem (quando, de repente), introduzida por uma
disjunção. Agora a imagem apresenta tensão interna, um princípio de enredo, uma faísca de antecipação.
Contestador: “Ainda não a vejo como arquetípica. Ela simplesmente não é grande o bastante.
Muito embora tenha o tom do conto de fadas (decoro) e exiba várias imagens universalmente conhecidas
(símbolos), ela permanece distante e artificial. Sei que o mesmo poderia ser dito sobre quase todas as
imagens arquetípicas – mandalas, relógios cósmicos, visões paradisíacas, castelos de contos de fada – mas
não há nada aqui que nos ofereça mistério, emoção ou sentido. Permita-me reescrever os oito símbolos
em uma imagem que eu chamaria de arquetípica. Operação IV:
Uma velhaca, parecida com a mãe da minha mãe, tinha um bebê chorão dentro de uma
caixa que ela depositava ou recuperava das águas de um rio. De repente uma cotovia
mergulhou do céu, despejando flores e merda em cima deles, e eis que surgiu uma pérola
na caixa. No início senti-me atemorizado, mas logo em seguida, aliviado.

“Dá para ver o que eu fiz. Agora há emoção na própria imagem (‘chorão’, ‘de repente’, ‘mergulhou do
céu’). Além disso, um maior envolvimento pessoal do sonhador (‘Senti-me atemorizado”, “a mãe da minha
mãe”). Há também ambiguidade: ‘ela depositava ou recuperava’. Não sabemos portanto o que planeja a
velhaca; temos um mistério negativo-positivo. Ademais, temos os temas mitológicos da mulher anciã
(mãe da mãe, mãe dupla, Grande Mãe) que ameaça a criança por expô-la; o animal prestativo, o resgate
que vem de cima, e pelos opostos (flores e cocô). E, para finalizar, o negócio inteiro é uma narrativa.
Temos uma história de transformação. Podemos chamar essa imagem de arquetípica?”
O melhor jeito de testarmos uma hipótese é tentando falsificá-la. Portanto, tentemos retrabalhar
a imagem, removendo-lhe tudo que utilizamos para torná-la “arquetípica” – hiato disjuntivo, narrativa,
antecipação enorme, os opostos e a ambiguidade, o envolvimento emocional e, por fim, os temas
mitológicos, incluindo o enredo transformativo. Não trabalhemos com mais, e sim com menos. Operação
V:
Às margens de um rio raso e claro um bebê sentado brinca ociosamente com uma cotovia
cantarolante em sua mão direita e uma pérola espelhante em sua mão esquerda ao redor
do bebê crescem flores de narciso e dente-de-leão carrega uma velhaca uma caixa com
merda.

Essa última versão é um retorno à primeira. Foram removidos os temas da transformação, dos opostos,
da criança abandonada; a ambivalência dominante, o animal prestativo; o sonhador-observador. Bem
como a emoção e a narrativa. Mais do que isso, a pontuação desapareceu, desorganizando o ritmo, a
sintaxe e a ênfase. Tudo o que havíamos feito para chegar ao “arquetípico” sumiu.
A principal diferença entre a quinta versão e a primeira é que ali alguns dos símbolos foram
precisamente especificados. Mesmo que nenhum emoção seja expressa, há ambiência e cenário. Os
símbolos – sem que se introduza quaisquer novas conexões entre eles ou entre os afetos – passaram a
fornecer contexto uns aos outros (lembre-se que eu havia dito, no início, que esses elementos italicizados
eram importantes para fazer, de símbolos, imagens).
Lendo e relendo a imagem, ouvindo-a uma e outra vez, aprendemos que sentar-se à margem do
rio raso é sentar-se como um bebê; que sentar-se como um bebê é ter uma cotavia na mão direita, e que
isso ocorre quando uma caixa repousa nas mãos de uma velhaca; quando narcisos e dentes-de-leão
florescem, o rio tem águas claras e rasas; ou talvez que as flores criam uma velha. Aprendemos que,
quando a merda é posta numa caixa, o rio é claro e raso, e o bebê brinca ociosamente. O que faz o bebê
com uma pérola espelhante, polida? Ele brinca com ela, ociosamente; e isso ocorre quando o rio tem
águas claras. Quando bebês brincam, velhacas carregam; quando estas carregam merda, aqueles brincam
com cotovias. E tudo ocorre como está, como o fluxo do rio e a passagem da velha?
Mais do que isso: o que exatamente brinca ociosamente? O bebê? Ele brinca livremente [about]
(ao invés de brincar com [with])8? Quando há pérolas e cotovias, as flores são dentes-de-leão e narcisos,
a elas nutrem uma velhaca [growing a hag]. Pérola espelhante, reflexão aperolada, à sua esquerda – não
falo da mão esquerda [left]. Não há mão esquerda. Quiçá a reflexão aperolada esteja “abandonada ao
redor [left around] do narciso infante9” (assim mesmo, sem pontuação), e quando se abandona a pérola
(porque não há mão esquerda? Porque a velha carrega consigo?) o rio torna-se raso. De qualquer modo,
sabemos que isso ocorre quando o bebê se senta e brinca ociosamente com uma cotovia na mão direita,
ou quando ele simplesmente se ocupa com uma tal cotovia. Flores nutrem por todos os cantos uma
velhaca, mesmo quando o cantar de cotovias é simultâneo à livre brincadeira com pérolas, e à caixa com
fezes.
Um significado mais profundo começa a ressoar conforme dissecamos esse canto, esse tal cantar
de versos de uma imagem como se esta fosse uma canção canônica ou uma fuga (ou como se tivesse sido
escrita por James Joyce ou Gertrud Stein). A imagem se amplifica sem, no entanto, o ato de amplificar;
isto é, seu volume cresce mediante aquilo que Berry chamara de “re-enunciação” [restatement]. Em
termos alquímicos, o que temos feito aqui é uma iteratio da prima materia: reiteração incessante do
mesmo opaco material “a-psicológico”, abrindo mais e mais possibilidades para o surgimento de conexões
e para a emergência de padrões psíquicos. A psique emerge, mas não através de mensagens lineares
dadas por sentidos interpretativos. Pelo contrário, a psique emerge quando nós nos fundimos [merge]
com o labirinto de imagens, ou nele nos perdemos. Re-enunciação e iteratio são também modos de
admissão de nossa desorientação [lostness] diante da imagem, o que, por sua vez, acresce valor à imagem.
Fosse esse seu sonho em uma sessão de terapia, o encadeamento sequencial de analogias haveria
de parecer-lhe familiar no que diz respeito a suas fantasias e condutas, suas ambições, seus estilos de
reflexão e sexualidade, suas atitudes em relação a si mesmo, à vida, às mulheres mais velhas, aos meninos,

8
[N. do T.] Hillman usa um trocadilho difícil de reproduzir aqui. Play about seria como “brincar ao redor de”, “brincar
sem focar no uso próprio do objeto”. Em contraste, play with seria mais direto, uma brincadeira engajada com o
objeto (i.e. usar as peças do Lego para montar um castelinho de Lego vs. usar as peças do Lego como bolinhas de
gude). Esse parágrafo inteiro é crivado de construções antigramaticais, com sintaxe quebrada, por exemplo, e verbos
utilizados de formas novas.
9
[N. do T.] Hillman aqui explora as ambiguidades potenciais do termo left, que denota esquerda (no caso, mão
esquerda), mas também é o pretérito perfeito do verbo to leave (deixar, abandonar).
ao crescimento, às fezes. O sonho adquiriria valor - aquele acentuado senso de importância que
costumamos chamar de arquetípico. O “arquetípico” agora resulta de uma operação que não é dada com
a imagem, mas com o que acontece com ela – uma função do fazer e não uma função do ser. (Postergamos
uma discussão mais detalhada sobre a natureza específica desse “fazer”, e sua relação com o fazer-
animíco [soul-making], para um próximo capítulo). A imagem ganha em valor, torna-se mais profunda e
envolvente, isto é, torna-se mais arquetípica conforme elaboramos seus padrões. Nesse aspecto seguimos
estritamente Jung:
Imagem e sentido são idênticos; e na medida em que a primeira adquire forma, o segundo
torna-se mais claro. De fato, o padrão sequer pede interpretação: ele retrata o próprio
significado. (OC 8, §420)

Ele retrata. Ele cria um retrato de. Na medida em que a forma emerge, emerge também o significado. A
confecção de imagem = significado. E tudo isso sem as nossas estratégias costumeiras de interpretação.
O Contestador: “Mas eu devo intervir, pois creio que tu interprestaste, sim. Tu desviaste o canto
em uma direção somente – para condenar a brincadeira ociosa. Tu és contra sentar-se como um bebê e
refletir e ter uma cotovia. Eu poderia ter cantado tudo de outro modo, ressaltando a importância de
cantar, da esquerda, da reflexão, a qual permite que o rio carregue as fezes assim como a velha. Em outras
palavras, a imagem poderia ser lida com maior ênfase no papel acolhedor da mãe natureza e no valor da
brincadeira passiva”.
Não há dúvidas de que uma imagem nos envolve em um complexo; obviamente, nós desviamos
o canto na direção do complexo. Não há trabalho objetivo, científico ou puro com imagens. Nós sempre
somos nós nas imagens, e somos inconscientes precisamente por causa disso.
Contudo a sua intervenção é interpretativa, Contestador, uma vez que ela isola um ou dois temas
e os arruma em conformidade com um significado (“papel acolhedor da mãe natureza e no valor da
brincadeira passiva”). Você deixou de fora as palavras: azul-claro, raso, narciso; você não lidou com as
palavras de fato, como “dente-de-leão”, “brincadeira livre”, e “narciso infante” (de modo que o bebê
desaparece). Eu concedo-lhe o desvio do qual sou acusado, mas ele não é do mesmo tipo que o seu. Isso
porque você se ateve à imagem, ao passo que meu desvio deriva dela e continuamente retorna à ela.
Além do mais, eu gostaria de adicionar sua contestação ao canto, mais como um comentário rabínico
subjacente a cada linha, como um modo de enriquecê-las, do que como uma interpretação alternativa.
Eu insisto: o que fizemos não foi interpretação.
Talvez deveríamos tomar nota de alguns dos gestos interpretativos mais comuns, a fim de reiterar
com mais clareza o que nós não fizemos com a imagem.
1) Nós não amplificamos os símbolos (bruxa, rio, pérola, etc.) referindo-lhes a suas mitologias, folclores,
etc.
2) Buscamos não isolar ou atribuir peso maior a partes específicas. Não tentamos imaginar o sonho a
partir de uma figura central como o “rio raso” ou, como no outro caso, “o cisne morto”. Esse seria um
gesto valioso se fôssemos desestabilizar a configuração em uma nova imagem para algum fim
terapêutico; contudo, tal gesto seria essencialmente interpretativo ao invés de imagístico. Ele
mobiliza a imagem a serviço de uma visão geral das imagens.
3) Nós não lemos as imagens simbolicamente (rio, bruxa e fezes como símbolos da Grande Mãe da Vida
(Kali)). Isso nos levaria à interpretação do Contestador, que distorce a imagem. Pois aqui o rio é azul-
claro e raso, e não se assemelha à mulher decrépita e sequer carrega as fezes em suas águas (essa
interpretação naturalmente avançaria essa abordagem, insistindo que os aspectos azul claro e raso
são fascinações da anima, tendo como pólo contrário a velha e as fezes. A mesma configuração que
Kali apresenta).
4) Não utilizamos um modelo desenvolvimentista, atribuindo funções psicodinâmicas às imagens: o
cisne como “função de sentir-se morto”; o apressar-se com a perna direita machucada como
“extraversão inferior”; a bruxa como um “complexo da mãe” ainda “não transformado”.
5) Tampouco adicionamos, ou procuramos recuperar, qualquer emoção; assim como não ensaiamos
abstrai-la do todo (tratando o sonho como “um sonho de medo” ou “de prazer”). Tentamos garantir
que o sentimento na imagem permanecesse nela, que a atmosfera não se separasse de sua cena.
6) Não pressionamos a imagem em uma narrativa de sequências dramáticas: sentar e brincar enquanto
a vida passa leva a flores de narciso, e isso tudo termina na merda do complexo da mãe. Ou, como
em outro caso: buscar a luz do dia é o desfecho, o final da história, a resolução dramática. Uma
imagem não tem lísio. O tempo passa, mas a imagem permanece resistente à “resolução”. Uma
imagem não tem lísio porque não é um drama – a não ser que a tratemos como um.
7) Sem drama nós não precisamos de um antagonista. O sonhador, portanto, não atua no papel central
do herói; ele está entrelaçado, de modos específicos, no padrão da imagem.
8) Não moralizamos a imagem, dizendo que tal parte é positiva, tal negativa, ou julgando-as regressivas
ou progressivas.
9) Não a programatizamos, derivando dela um programa de ação (sonho como mensagem): “Você não
deveria permitir que o feminino carregasse a merda para você”. Ou: esse sonho lhe adverte sobre
“seu fraco lado direito”, ou “o poder da mãe de lidar com a morte” (cinco flechas). Ou: “retorne à
caverna e fale com o cisne, para revivificá-lo”.
10) Não a sexualizamos, algo que poderíamos ter feito com, por exemplo, a brincadeira manual com
pássaros e pérolas.
11) Não a patologizamos, algo que poderíamos ter feito com, por exemplo, a visão da mulher como
velhaca a carregar uma caixa com fezes ou, ainda, se nos concentrássemos no joelho sintomático e
na ansiedade.
12) Não a personalizamos, identificando as figuras com o sonhador, ou qualquer pessoa de seus círculos
de convívio. Assim, jamais nos dirigimos diretamente ao sonhador, embora a imagem sempre o tenha
feito indiretamente, e tenha se dirigido a seu convívio mediante as analogias (como a pedagogia de
David Miller, de ensinar a relevância dos mitos por analogias). Poderíamos ter personalizado a
imagem ao mostrar a “atitude do ego”, donde nos dirigiríamos ao sonhador como se ele fosse a figura
na caverna ou às margens do rio. Não raro, esse dirigir-se ao sonhador torna-se um ato de suave
condescendência10 contra o sonhador, lembrando-lhe o que ele deveria ter feito de diferente no
sonho: na hora H você fez algo errado, e portanto machucou seu joelho. Se você não tivesse agido
assim, você não teria machucado seu joelho, e tudo teria ficado bem. Ou: você não deveria fugir do
escuro, ou não deveria mergulhar tão fundo no inconsciente, pois ele te domina [overwhelm]. Ou:
você matou um animal e é incapaz de encarar esse fato.
13) Não tentamos, portanto, corrigir o sonho, dizendo como ele deveria ter se passado.
14) Não o mitologizamos, o que poderíamos facilmente ter feito com o narciso, a reflexão, a água;
também não atribuímos a imagem a um lócus arquetípico no complexo materno, ao puer, ou a um
deus qualquer.
Apesar de tudo, e isso é de se admirar, muitas dessas implicações da imagem – e novamente recorro a
Patricia Berry – emergiram conforme prosseguíamos com nosso canto e tecelagem [weaving]. As
interpretações apareceram indiretamente. Tudo o que fizemos foi “nos ater à imagem”, isto é,
permanecer fiéis ao texto de fato. Como Berry sugere, texto e contexto se referem à tecelagem:
A palavra “texto” é relacionada ao tecer. Ser fiel a um texto é sentir e seguir as malhas de
sua tecedura... o sonho é sensação, tem textura, é entrelaçado por padrões que dão-lhe
um contexto pleno e acabado... a imagem em si mesma tem textura.

O que eu fiz com aquele exemplo foi pôr em prática sua abordagem do sonho.

10
[N. do T.] Hillman aqui emprega outro trocadilho, difícil de traduzir: “...this adressing the dreamer becomes a
dressing down of the dreamer...”. O sentido idiomático de “to dress down” é “vestir mais à vontade” (vestir uma
camiseta ao invés de um terno, por exemplo).
5. Imagem arquetípica – Dois. Concedamos as primeiras palavras ao Contestador: “A jornada inteira até
agora dependeu de imagens poéticas. Deus do céu – cisnes! E agora cotovias e bebês! Vejamos então se
conseguimos fazer algo de arquetípico desse sonho, um sonho bem café-com-leite sem símbolos
grandiosos, quiçá sem símbolo algum”.
Minha irmã dirige meu Chevy e tem uma cerveja a seu lado. Ela faz uma parada no meio-
fio para dar um telefonema, para alguém vir consertar a pia da cozinha. Eu vejo, pela
janela da cabine telefônica, que ela não tem um centavo.

Como já havíamos mostrado no exemplo da sacola de supermercado, nós podemos enxergar símbolos
em qualquer lugar se elaborarmos os substantivos por amplificação. Podemos, portanto, ver símbolos
aqui também: o Chevrolet como veículo psicodinâmico; a irmã como alma; a cerveja como bebida ritual
fermentada, normalmente feita ou distribuída por mulheres; o centavo como peça de prata...
Nesse diretíssimo exemplo (no gênero do realismo social) nós somos intimados a abandonar os
ecos poéticos e os simbolismos. Somos desafiados a ser arquetípicos sem ser simbólicos, sem
dependermos de valores semi-ocultos armazenados em palavras “grandiosas” (flores, pérola, merda,
etc.). Comecemos a brincadeira, mãos à obra:
Quando minha irmã dirige, a pia de sua cozinha precisa de reparos. Quando minha irmã dirige,
ela telefona da rua. Ou é meu Chevy que dirige minha irmã, e que o resultado é a pia do lado-irmã da
minha vida não mais funcionar? Isto é: será que é a necessidade de reparo da pia da cozinha do lado-irmã
da minha vida o que dirige minha irmã atrás do volante do meu Chevy? Ela não tem um centavo quando
tem uma cerveja. Será que ela está fora de si com essa cerveja11? Eu vejo12 minha irmã na cabine. Eu só a
vejo quando ela está numa cabine, atrás de uma janela; somente quando ela estaciona. Só quando ela
telefona. Onde há uma irmã que telefona, não há uma irmã que dirige. Alternativamente, há tanto uma
irmã telefonando quanto uma irmã dirigindo, e entre elas há o estacionar. Portanto, o que essa imagem
diz sobre meu instinto relativo à irmã [sister-drive13]? Ela diz que eu consigo vê-lo quando ele está preso
em uma cabine, pois esta tem uma janela por onde consigo ver minha irmã. Estar na cabine é tanto uma
maneira de ligar, de ficar em contato, quanto um distanciamento (tele), um isolamento entre paredes-de-
vidro. Quando vista, minha irmã não tem um centavo – daí que ela está encurralada [curbed], pressionada

11
[N. do T.] Esse parágrafo segue o estilo discutido na nota 7. Aqui ele emprega um trocadilho entre a cerveja ao
lado da irmã (she has a beer beside her), com “estar fora de si” (“is she beside herself with beer”).
12
[N. do T.] Todas as ocorrências do verbo “ver” nesse parágrafo são polissêmicas. O trocadilho aqui é “see through”:
“ver através de (a janela da cabine...)” mas também algo figurativo: to see through to it significa “fazer algo até o
fim” ou, ainda, “perceber a essência de uma coisa, penetrando-lhe até seu centro”. Essa passagem precisa ser lida
com essa polissemia irreproduzível em mente.
13
[N. do T.] Outro trocadilho entre o verbo “to drive” (dirigir) e o substantivo “drive” (instinto).
[curbed] para consertar sua pia [sink]14. Seu tipo de pia, o lugar de sua pia, é a cozinha. Será afundar
[sinking] seu tipo de cozinha? Na cozinha é onde ela afunda [sinks] – e para isso ela chama o conserto.
A essa altura eu creio que já tenhamos aprendido que uma imagem não precisa conter quaisquer
símbolos ou temas normalmente considerados arquetípicos. Uma imagem não precisa ser chocante,
bizarra ou doentia, para ser efetiva. Uma imagem não precisa ter sua emoção literalizada (“eu senti
medo”). Não é necessário que haja grandes afetos ou palavras explicitamente emotivas para que se possa
sentir a atmosfera de uma imagem, ou seu peso emocional. A emoção enquanto atmosfera, enquanto
uma certa percepção de texturas, já está dada em toda imagem. Nenhuma das implicações mais forçosas
de uma imagem precisa ser evidente literalmente, pois tais implicações emergem, como queria Jung,
justamente quando os padrões são retratados com precisão. Não é preciso que saibamos se a irmã ocupa
a ordem de sujeito ou de objeto, se ela bebe ou não, ou até mesmo se o sonhador é homem ou mulher,
se ele tem uma irmã ou sete, se há ali um problema financeiro tematizado, etc. Conforme percorremos o
campo da elaboração do sonho [dream-work], as analogias sequenciais ressoam com muitos aspectos de
minha vida: minha alma íntima [inner soul], minha irmã externa, meu problema de instinto [drive
problem], meu problema na cozinha, meu problema com a bebida, meu problema com o dinheiro, meus
problemas de comunicação, minha depressão agravante [sinking depression]; como eu chamo o conserto,
como eu sou visto15 [how I get in-sights], como me param, e assim por diante. Todas essas analogias
podem ser tecidas a partir das implicações do sonho, e adquirem precisão na intra-relação que
estabelecem com a imagem com um todo. É como observar mecanismos de engrenagem em ação:
quando isso ocorre, aquilo decorre. Engrenagens. Eu recebo imagens para meus problemas, e como elas
funcionam de fato em relação umas com as outras. Até mesmo outros problemas, outrora inconscientes,
começam a emergir na medida em que percorro os entrelaçamentos da imagem; assim como emergem
também novas implicações para esses problemas e suposições.
As implicações e suposições em meu canto estavam embaralhadas. Eu consideraria todos os
enunciados do tipo “quando/logo” e “apenas” como implicações, e todas as perguntas e conclusões
(“portanto”) como suposições.
Mas o que fazer com o arquetípico? Como é que ele se encaixa nisso tudo? Recusamos-lhe
entrada pelo simbólico, e nas seções seguintes recusar-lhe-emos identidade com a emoção e a
universalidade. Desse modo, como resposta, creio que devamos nos referir o “arquetípico” a essas

14
[N. do T.] Encurralada e pressionada (curbed). Curbed deriva do substantivo “curb” (meio-fio). Pia é o substantivo
“sink”, que também é o verbo “to sink” (afundar). Esse segundo trocadilho é repetido até o final do parágrafo.
15
[N. do T.] Outro trocadilho intraduzível. “How I get in-sights” literalmente quer dizer como “eu sou visto dentro”
(da cabine). Figurativamente: como “eu tenho meus insights, minhas idéias, intuições profundas”.
múltiplas implicações da imagem. O que torna arquetípica uma imagem é a grande riqueza que podemos
minar nela. Uma imagem arquetípica é uma imagem rica, embora sua superfície mostre apenas uma lata
de cerveja em um Chevy sobre o meio-fio.
Essa riqueza subliminar é somente outra maneira de referência à sua profundidade invisível, como
Plutão é outra maneira de falar de Hades. Nosso exercício com a imagem nos deu uma apreciação
renovada da natureza inescrutável de qualquer imagem, mesmo a mais medíocre, quando ela morre em
seu simples aspecto cotidiano. Ela adquire mais camadas, uma nova e mais complicada textura. E
conforme nós prosseguimos confeccionando imagens, novas implicações surgem, mais suposições e
analogias despertam em nós. Uma imagem é como uma fonte inesgotável de insights. Mitologicamente,
falamos aqui de Hades, que no Renascimento neoplatônico foi o deus mais profundo e misterioso, aquele
que rendeu mais insights.
A profundidade só tornou-se aparente, todavia, na medida em que nos aprofundávamos nela, em
que nos perdíamos nela; e conforme chegávamos cada vez mais fundo, mais profunda ela se tornava. Por
um lado, sua inerência ficou mais evidente – cada vez mais interna e coerente. Passamos a senti-la
necessária. Cada parte era necessária para cada uma das outras partes, uma escassez econômica, tudo
caminhando junto. Por outro lado, ela tornou-se cada vez mais misteriosa e inescrutável. Isto é, a imagem
tornou-se ao mesmo tempo mais coerente e mais oculta. Heráclito tê-la-ia chamado de “harmonia
oculta”, a qual também se refere ao mundo inferior (ver meu “The Dream and the Underworld”, Eranos-
42, 1973). Há uma conexão invisível no interior da imagem, a qual é sua alma. Se, como diz Jung, “a
imagem é psique”, porque então não dizer que “as imagens são almas”, e que nosso trabalho é encontra-
las em sua condição de almas? Eu cheguei a falar disso antes, uma vez como “favorecimento amigável”
[befriending], outra como imagens-como-animais. Agora eu carrego esses sentimentos além, a fim de
demonstrar operacionalmente como podemos encontrar a alma da imagem e compreendê-la. Podemos
imaginá-la ativamente mediante jogos de palavras, que são também um modo de falar com a imagem e
de deixá-la falar. Observamos seu comportamento – como ela interconecta, através de analogias, com os
diferentes âmbitos da minha vida. Isso é de fato distinto de interpretação. Nenhum amigo ou animal
deseja ser interpretado, ainda que anseie, por dentro, ser compreendido.
Podemos, da mesma maneira, chamar de “amor” a profundidade inescrutável da imagem, ou pelo
menos dizer que não podemos alcançar a alma da imagem sem amá-la.
Uma vez que tenhamos atingido a alma da imagem, muitos dos demais gestos interpretativos (já
mencionados) tornam-se desnecessários. Eles podem ser encarados como meios de dar à imagem uma
alma ao conectá-la à pessoa do sonhador. As conexões ocultas, porém, são as melhores, já dizia Heráclito,
pois já estão dadas ali, a priori, na pessoa do sonhador que as sonhara. As conexões não devem ser
ejetadas à força para fora, para a vida (literal), através de associações pessoais ou interpretações
personalistas. Nós podemos ressaltar a importância do sonho sem contudo precisar reduzi-lo à ordem
pessoal. (Mais adiante discutiremos os vários gestos redutivos que os analistas empregam a fim de fazer
os sonhos “valerem”). Todas essas distinções, portanto, entre dentro e fora, pessoal e arquetípico,
subjetivo e objetivo, são, na melhor das hipóteses, heurísticas. Quando nos empenhamos a trabalhar
imagens a fundo utilizando analogias metafóricas, as conexões ocultas se ramificam em todos os níveis,
em todos os lugares. Além disso, essas conexões operacionalmente previnem separações em tais
binômios teóricos.
Gostaria de fazer duas observações de passagem. A primeira: nosso método pode ser empregado
por qualquer pessoa, envolvida ou não, com análise. Ele não requer nenhum conhecimento especial –
embora reconhecemos que a perícia com os símbolos pode culturalmente contribuir para enriquecer a
imagem, e o conhecimento linguístico e lexical pode ajudar a “ouvir” melhor a imagem. Ao permitir que
a própria imagem se pronuncie, sugerimos que as palavras e seus arranjos (sintaxe) são minas anímicas.
Mas a mineração não requer ferramentas técnicas modernas (caso o fizesse, ninguém jamais teria
compreendido um sonho ou uma imagem antes do advento da psicologia moderna!). Contudo, o que
ajuda de fato a mineração é um olhar afinado com a escuridão (mais tarde haveremos de retornar à
questão relativa ao treinamento, de como preparar o olho para ler a imagem, e o ouvido para ouvi-la). A
segunda: não se pode tomar nosso método literalmente, como se todos os sonhos só pudessem ser
filtrados de acordo com a Nova Técnica Verbal de Hillman. As demonstrações que oferecemos aqui não
são do Novo Método, mas de um modo pelo qual podemos expor certas considerações teóricas e práticas
relativas às imagens. Há muitas coisas que se pode fazer com sonhos e imagens. É de suma importância
que reconheçamos, em nossa atividade como analistas, o que é que temos feito e pressuposto, e o que
poderíamos fazer de diferente, o que mais poderíamos fazer as imagens falarem, se pudéssemos escutá-
las com mais atenção.
Dito isso, podemos então ensaiar uma declaração sobre o que é que torna uma imagem
“arquetípica”. Concluímos que nossos critérios axiomáticos – estrutura dramática, universalidade
simbólica, emoção pronunciada – não são requeridos em nossas operações fáticas com uma imagem. Ao
invés disso, percebemos que a qualidade arquetípica emerge quando a) retratamos precisamente a
imagem; b) nos atemos à imagem enquanto a ouvimos metaforicamente; c) descobrimos a necessidade
no interior da imagem; d) experimentamos a inesgotável riqueza analógica da imagem.
Uma vez que qualquer imagem pode satisfazer esses critérios, qualquer imagem pode ser
considerada arquetípica. Enquanto descrição de imagens, a palavra “arquetípica” se torna redundante.
Perdeu sua função descritiva. O que é que ela indica então?
Ao invés de indicar um algo, “arquetípico” aponta na direção de algo, e esse algo é o valor16. Ao
atribuir o qualificador “arquetípico” a uma imagem, nós a enriquecemos ou potencializamos [empower]
com a mais ampla, variegada e profunda significância. Em nosso emprego do termo, “arquetípico” é uma
palavra de importância (no sentido de Whitehead), uma palavra que agrega valor.
Vimos que a palavra não isola uma imagem das demais: a imagem Chevy-cerveja-centavo
ofereceu-nos tanta riqueza e profundidade como a caverna-cisne-joelho, ainda que esta fosse mais
simbólica. Em que pese ela não adicionar nenhum elemento descritivo, a palavra “arquetípico” valoriza a
imagem, indicando fecundidade (Langer) e geratividade (Erikson). Nós precisamos do termo para
estimular nossa busca, para nos fazer sentir a importância transcendente da imagem. A fecundidade e
geratividade sugeridas pelo “arquetípico” são de um tipo especial, e apontam em uma direção especial.
Isso foi indicado em meu uso de palavras como inescrutável, padronizado, oculto, rico, anterior, profundo,
necessário, permanente; todas elas palavras que usei para ressaltar um senso de valor. Todas as imagens
adquirem esse valor conforme seu volume se estende mediante a nossa elaboração das imagens [by
means of our image-making work].
Se estendermos essa conclusão para outras áreas em que utilizamos “arquetípico”, como, por
exemplo, a nossa própria psicologia, diremos que a psicologia arquetípica é uma psicologia do valor. E
nosso modo apelativo tem por objetivo restaurar a psicologia em seu volume mais amplo, rico e profundo,
a fim de fazê-la ressoar com a alma, quando a descrevemos como inescrutável, múltipla, anterior,
gerativa, e necessária. Dado que todas as imagens podem assumir esse sentido, assim também pode toda
psicologia ser arquetípica quando liberada de sua superfície, e penetrada até seu volume oculto.
“Arquetípico” aqui se refere a um tipo de gesto, e não a uma coisa. De outro modo, a psicologia
arquetípica torna-se tão somente uma psicologia de arquétipos.
“Tão somente uma psicologia de arquétipos” significaria uma psicologia que toma o arquetípico
como um adjetivo derivado de um substantivo. Assim, devemos dirigir a esse substantivo, arquétipo,
qualquer questão concernente ao “arquetípico”. Isso favorece o sentido denotativo do arquetípico,
descritivo de estruturas fundamentais, abstrações propostas aduzidas de mitos e textos religiosos; de

16
[N. do T.] Hillman utiliza, nessa ordem, as expressões “to point at something” e “to point to something”. To point
at seria como “indicar algo diretamente” (este lápis). To point to seria “indicar algo indiretamente”, apontando na
direção de algo (“entre naquela rua à direita, depois do sinal”).
instituições sociais (como a família e o Estado); do comportamento animal (como a construção de ninhos);
de idéias científicas e filosóficas (como causalidade); de formas artísticas (como o épico).
Na grande maioria dos contextos em que encontramos a palavra “arquetípico”, sobretudo em
relação à imagem (“essa é uma imagem arquetípica”), o arquetípico poderia ser prontamente substituído
por algum dos contextos de fundo dos quais depende, seja ele mítico, religioso, institucional, instintivo,
filosófico ou literário.
Há, todavia, uma diferença nuançada entre dizer “o círculo é uma idéia científica ou filosófica” e
dizer “o círculo é uma idéia arquetípica”. O arquetípico adiciona a implicação de uma estrutura
fundamental, de base geralmente humana, um universal necessário e consequente. O círculo não é
apenas uma idéia científica; ele é básico, necessário, universal. É esse tipo de valor que o predicado
“arquetípico” atribui.
Todavia, se passarmos a tomar literalmente essa implicação valorativa, começaremos a crer que
essas raízes básicas, esses universais, são. Teremos então transitado de um adjetivo de valor para uma
coisa, uma substancialidade inventada, chamada arquétipo, que pode ser utilizada para “garantir” nossa
noção de valor arquetípico, donde que somos forçados a reunir evidências em culturas em todo o mundo
e a fazer afirmações empíricas sobre o que se define como indizível e irrepresentável.
Nós não precisamos compreender o arquetípico nesse sentido literal. Daí que todas as
implicações que a palavra “arquetípico” carrega (fundamental, profundo, universal e necessário)
contribuem para o valor de uma dada imagem qualquer.
Infelizmente, contudo, aquele sentido literal prevalece. Logo, quando uma imagem é chamada de
arquetípica, o que convencionalmente se denota é que se está na presença de um padrão instintivo
básico, ou de uma idéia filosófica fundamental, ou de um tema religioso universal. Se é isso que o
arquetípico veio significar, o que fazer, então, da psicologia? Não teríamos nós já resvalado na
metapsicologia, ou até mesmo na metafísica, examinando um empíreo de abstrações, reunindo
evidências para literalizá-las ainda mais? Se nossa situação for essa, das duas uma: ou nós deixamos por
assim mesmo, aumentando nosso envolvimento com nossos colegas nos campos da religião, da filosofia
e das instituições sociais, ou nos voltamos para a psicologia como operação contínua sobre as imagens
anímicas, onde o termo arquetípico conota ao invés de denotar, dá importância ao invés de informação,
evoca ao invés de descrever, e dá prosseguimento à investigação das imagens ao reconhecer seu valor.
Uma definição descritiva de “arquetípico” nos colocaria de volta em um caminho já percorrido.
Estaríamos investigando as imagens nos termos de seus arquétipos, e terminaríamos mais uma vez na
simbologia: imagens da Grande Mãe, do Herói, dos tantos deuses. Seguir essa direção seria ficar no
encalço da psicologia analítica, o que poderia significar (e que às vezes significou com Jung, i.e. seus Tipos)
uma psicologia analisadora17 e uma análise da psicologia (ver o artigo de Wolfgang Giegerich nessas
mesmas páginas), mas que no entanto veio a significar uma psicologia da análise, de analistas para
analistas. De maneira análoga, estaríamos reproduzindo o ocorrido com a psicologia de profundidade
[depth psychology], a qual primeiramente significava uma psicologia aprofundada, aprofundando a
psicologia para além das meras funções conscientes, mas que tornar-se-ia uma psicologia de
profundidades literalizadas, ou do “inconsciente”.
Respondemos à questão “o que é uma imagem arquetípica?” com uma investigação da imagem
(e não do arquétipo), com um resultado um tanto inesperado. Este nos levou a revisar o próprio
“arquetípico”, pois percebemos que ele não “dizia” nada de direto a respeito da imagem. Vimos daí
emergirem dois modos operacionais da palavra “arquetípico”, o descritivo e o valorativo, e que eles
constituem duas direções possíveis em nosso trabalho: podemos estimular e aperfeiçoar uma psicologia
descritiva dos arquétipos (ver Murray Stein nessas páginas), e podemos prosseguir revisando a psicologia
no sentido valorativo do arquetípico. Essa re-visão implica que o termo mais preciso para nossa psicologia
em sua definição operacional é “revisão”. Em nosso ofício, somos mais revisionistas do que
“arquetipistas”; ou, nós evocamos arquétipos (deuses e mitos) a fim de revisar a psicologia. O valor da
psicologia arquetípica para a psicologia revisionista é que aquela fornece um instrumental metafórico dos
mais amplos, ricos e profundos. Está em conformidade com o valor anímico que pretendemos atribuir e
encontrar em nosso trabalho.
O perigo do primeiro modo é que ele pode tornar-se literal; do segundo, que ele pode tornar-se
um exercício plenamente fenomenológico. O primeiro pode coagular-se e, antes que nós percebamos,
pode nos estrangular com uma nova tipologia – deuses e deusas como modelos estereotípicos em uma
rígida rede que determina o lugar de todas as coisas. O segundo pode ser como um solvente, de modo
que movemos palavras para lá e para cá em um vácuo existencial, cada coisa equivalente a qualquer outra
em uma incessante linha de analogias. Como disse Robert Romanyshyn, a fenomenologia e a psicologia
arquetípica precisam uma da outra. A fenomenologia precisa da noção de estruturas míticas ao fundo,
assim como seus valores fundamentais; a psicologia arquetípica precisa ter diante de si a noção des-
literalizante, às vezes bem humorada, da metáfora. Assim, ambos os sentidos do arquetípico, o descritivo
e o operacional, precisam um do outro. Ambos ocorrem juntos nas imagens das quais derivam
originalmente.

17
No sentido de “uma psicologia que analisa”. Evitei o termo “psicologia analítica” pois este possui uma carga
tradicional e histórica que Hillman não indica na passagem.
8. Redução e Analogia. Todo o propósito de trabalhar com sonhos é ressaltar sua importância. Os analistas
tentam fazê-lo efetuando vários tipos de redução. Por exemplo: “subir na calçada e entrar em casa”
significa penetrar a vagina e desejar regressar à mãe = redução sexual. “Subir na calçada...” significa
chegar em casa na hora tal, o meu escritório e nosso relacionamento = redução de transferência. “Subir
na calçada...” se refere à sua atitude em relação ao lar, à esposa e à família = redução personalista. “Subir
na calçada...” apresenta a condição fundamental da vida na Terra, viajar e habitar, e voltar para casa =
redução existencial.
Todas essas interpretações redutivas, o próprio gesto redutivo, emergem como ingênuas
tentativas psicológicas de materializar o sonho (Berry, “On Reduction”, Spring 1973). Como se, ao
concentrar e condensar o sonho em um único sentido, reduzi-lo-íamos à sua essência e, assim, senti-lo-
íamos mais tangivelmente, com maior impacto sobre nós.
Podemos também promover o sonho mediante analogias. A analogia segue outro conceito da
matéria, o conceito de extensão. Ao espalharmos o sonho, revelando-lhe conexões em várias partes, a
imagem adquire densidade e pode inclusive me fazer crer que sou eu que estou em seu território, que
sou eu quem está no sonho, e não o sonho que está em mim.
Analogia é uma palavra usada na anatomia comparada para se referir a uma relação na qual há
uma semelhança de função, mas não de origem. Por exemplo, há analogias entre a velhaca com a caixa
com merda e as anciãs das lendas, as bruxas dos contos de fadas, a deusa Kali, cadáveres em caixões, até
mesmo memórias da minha avó, ou de uma antiga professora de escola fedorenta: eles se parecem;
funcionam de modos parecidos; provocam sentimentos parecidos. Mas não é preciso que demos um
passo adiante e digamos que a velhaca é uma imagem do arquétipo da Grande Mãe; pois essa relação,
expressa no genitivo “da”, seria uma relação de origem: o arquétipo da mãe gera a velhaca (e outras
imagens) do arquétipo. As analogias nos mantém dentro da função operacional da imagem, em seus
padrões de semelhanças, sem postular uma origem comum para elas. O termo operativo é “como”. Isto
é como aquilo. Um sonho:
Há um cão preto, com uma cauda longa, mostrando-me seus dentes. Estou terrivelmente
aflito.

Procurar analogias é um procedimento fácil. Nós simplesmente perguntamos ao sonhador: “Como é esse
cão, essa cena, essa aflição?” E ouvimos: É como um som repentino, que nos faz saltar com medo; é como
vir até aqui, esperando que você desvende tudo o que eu estou dizendo; é como a raiva – às vezes eu fico
tão raivoso (ou faminto) que eu poderia arrebentar com qualquer um que se aproxime de mim; é como a
minha úlcera, que fica raivosa e faminta ao mesmo tempo; é como a cara da minha mãe, os dentes dela;
é como voltar para casa após o trabalho, já depois de escurecer, e temer que minha mulher vá latir, e
pular sobre mim; é como morrer – tenho tanto medo! – a morte é tão nefasta, tão baixa, tão degradante;
é como um filme que assisti quando pequeno, que exibia cães pretos, e tive que deixar a sala por causa
do medo que senti; é como o deus chacal, Anubis; é como Mefistófeles no Fausto; como eu mesmo,
quando sinto tesão – quero simplesmente abocanhar a carne e foder como um cão nas ruas, em qualquer
lugar; é como se o cão fosse uma serpente de cauda longa. E assim por diante.
Aqui vislumbramos a principal diferença entre buscar analogias e interpretar. Se tomássemos
qualquer uma das analogias acima como o significado da imagem, perderíamos as demais. Teríamos
restringido a imagem a somente uma instância de importância. As analogias são múltiplas e não eliminam
as demais; também não eliminam o cachorro. Elas preservam a imagem viva, retornando a ela a cada vez
para nela encontrar sentidos inéditos. A interpretação a transforma em um significado.
A analogização é como a minha fantasia Zen, na qual o sonho é o professor. Cada vez que você
diz o que a imagem significa, você leva um tapa na cara. O sonho torna-se um Koan quando o abordamos
por meio da analogia. Se você literalizar um sentido, “interpretar” um sonho, você perde o fio da meada,
você perde seu Koan. (Pois o sonho é a coisa, e não o que ele significa). E aí precisa de um tapa para trazê-
lo de volta à imagem. Uma boa análise do sonho é aquela em que se toma mais e mais tapas, mais e mais
analogias; o sonho expondo-lhe todo o seu inconsciente, a matéria básica de sua vida psíquica.
O Contestador: “Vejo que você está a dizer que mais é melhor. Quanto mais puder dizer sobre o
cão, melhor, e maior a certeza de que não sabe o que ele significa! Isso te leva a todos os lugares. E eu
não vejo a diferença entre o método freudiano de associar tudo pela memória, e o método jungiano de
amplificar tudo pela história e cultura. Ambos têm por efeito a perda da imagem – precisamente o que
queremos preservar.
“Ademais, analogizar parece-me pouco prático. Na terapia nós precisamos ir aonde o problema
realmente reside, à essência. Certamente duas ou três analogias serão mais relevantes para o problema
do paciente do que os dentes de sua mãe, ou, sei lá, o Mefistófeles de Goethe. Não há hierarquia de
analogias? Elas são todas igualmente boas? Não seria o caso de dizer que, na terapia, a analogia depende
daquela experiência de “A-há!”, daquele “sinal” do paciente, que nos diz quando devemos parar, quando
chegamos ao ponto?”
Saber quando e onde parar, como disseram tanto David Miller quanto Howard McConeghey, é o
segredo de toda arte. Essa é uma noção quase animal do essencial – não apenas atávica, ou dada, mas
uma habilidade refinada pela prática com as imagens. Mas não se trata desse maldito “sinal” mágico! Eis
uma das Grandes Ilusões da terapia – lhe direi porque em um próximo artigo.

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