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A pesquisa qualitativa

Enfoques epistemológicos e metodológicos

Jean Pou part


Jean-Pierre Deslauriers
Lionel-H. Groulx
Anne Laperrière
Robert Mayer
Alvaro Pires

-
:.gradução de Ana Cristina Nasser

EDITORA
VOZES
Petrópolis
Amostragem e pesquisa qualitativa: ensaio teórico e
metodológico*

Álvaro P. Pires

Meu objetivo principal é fazer um ensaio metodológico sobre a


amostragem nas pesquisas qualitativas em ciências sociais, mas também
desejo contribuir para uma reorientação da maneira como a questão da
amostragem em geral se apresenta (nas pesquisas qualitativas ou
quantitativas). Por isso, examinarei de mais perto as noções de “amostra” e de
“população”, e tentarei propor uma concepção geral da metodologia que não
desqualifique nem um procedimento qualitativo, nem quantitativo.
Certamente, será preciso ater-se ao que algumas questões aqui suscitadas
chamam de debates e de desenvolvimentos posteriores.
A palavra “amostra” pode conter uma dupla significação. No sentido
estrito ou operacional, ela designa exclusivamente o resultado de um
procedimento visando extrair uma parte de um todo bem determinado; no
sentido amplo, ela designa o resultado de qualquer operação visando
constituir o corpus empírico de uma pesquisa. É no âmbito deste segundo
sentido que se deve entender aqui a referida palavra. Assim compreendida,
a noção de amostra concerne tanto as grandes investigações por
questionário quanto as pesquisas referidas a um único individuo. Nós
retornaremos a isso.
Evidentemente, busco também atingir o objetivo pedagógico de dar uma
visão de conjunto dos tipos de amostras na pesquisa qualitativa, da forma mais
clara possível. Para facilitar a compreensão, eu os ilustrarei por meio de
estudos empíricos. Entretanto, essa tarefa não é fácil, por várias razões. Em
primeiro lugar, é próprio da pesquisa qualitativa ser flexível e descobrir-
construir seus objetos, à medida que a pesquisa progride. Consequentemente, a
amostra pode; às vezes, modificar-se consideravelmente, no decorrer do
processo, em relação ao delineamento

* Agradeço imensamente, por seus comentários críticos a este texto, a Fernando Acosta. Jean-Pierre Deslauriers, Jocelyne
Dorion, Lionel-Henri Groulx, Guy Houchon, Gilles Houle, Danielle Laberge, Anne Laperritre, Robert Mayer, Colette Parent,
Martine Perrault e Jean Poupart.
1 Martel livremente, aqui, a definição de Rose (1982: 49), para quem a amostragem “the selection t'fsmtius jar study”,iuna
vez que de também da uma acepção ampla A sua definição.

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de pesquisa. As estratégias de amostragem são, então, portadoras de uma parte
razoavelmente grande de imprevisível. Ora, este “involuntário da obra”, para
falar como Rojtman (1980: 13), introduz uma espécie de dificuldade na
descrição das diferentes amostras e na escolha de suas denominações. Em
segundo lugar, é difícil, e mesmo impossível, descrever o procedimento de
amostragem, sem fazer referência ao projeto de construção progressiva do
objeto como um todo. Compreende-se por que ainda não existe, ao menos que
eu saiba, um estudo dando uma visão geral da amostra qualitativa, pois e mais
simples apresentá-la no contexto de uma problemática unificada de pesquisa
(“estudo de caso”, “pesquisa com entrevistas sobre as representações sociais”,
etc.). Em terceiro lugar, a pesquisa qualitativa toma formas muito
diversificadas, o que torna quase impossível um inventário detalhado das
diferentes adaptações da amostra aos diferentes objetos. Em quarto lugar,
colocam-se dificuldades de ordem conceitual. Diversos critérios ou princípios
de amostragem (aqueles de saturação, diversificação, caso negativo, indução
analítica, etc.) são formulados no contexto de pesquisas específicas, e depois
retomados para servir a outros fins. Se, por um lado, esses usos variados
indicam, certamente, a riqueza dos referidos princípios e a possibilidade de
aplicá-los, alias, de forma criativa, eles criam, por outro lado, uma
multiplicidade de sentidos que não são pertinentes em todos os casos. Enfim, a
pesquisa qualitativa utiliza, amiúde, uma grande variedade de dados (slice of
data2), heteróclitos no mais, que foram, às vezes, obtidos por acaso, ou sem
nenhum critério sistemático. Alguns pesquisadores até fazem a coleta de dados
sem qualquer projeto específico, esperando que, um dia, eles possam servir
para alguma coisa. A maioria dos estudos integra esses dados heteróclitos a um
corpus empírico sistematicamente constituído, enquanto outros se baseiam
exclusiva e retrospectivamente nesse conjunto de dados impreciso quanto à sua
lógica de seleção3. A arte do pesquisador consiste, assim, em saber tirar partido
de seus dados; isto é, em construir satisfatoriamente seu problema de pesquisa
e sua analise, a partir dos dados de que dispõe. É, portanto, fútil querer
construir critérios formais de amostragem. Evidentemente, as considerações a
seguir só se aplicam aos conjuntos de dados sistematicamente constituídos.
Como eu já o havia mencionado, este estudo se apresenta, em grande
parte, como um ensaio e não se deve esperar que ele esgote o assunto. Por
outro lado, ele não é um catálogo de regras inflexíveis. E melhor concebê-lo
como uma “caixa de ferramentas”, coin a qual se estabelece uma espécie de
diálogo, visando resolver os problemas de construção de uma boa pesquisa.

2. TOTIICI esta expressão clássica, “camadas ou fatias de dados”, de Glaser e Strauss (1967: 65),
3.A interessante pesquisa de Goffman (1974) sobre Les cadres de l'experience ilustra bem essa situação. Uma das principais
fontes de seus dados consiste em anedotas tiradas da imprensa, tendo, aparentemente, pouco valor. Ele escreve a esse respeito:
“Esses dados comportam n uma fraqueza suplementar: eu os havia selecionado, ao longo dos anos, por felicidade, segundo
critérios que permanecem misteriosos, que evoluíram com o tempo, e que eu não poderia encontrar mesmo se eu o guises-se”
(GOFFMAN, 1974: 23).
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Explicitemos, desde o início, três premissas deste estudo. A primeira é
que a qualidade científica de uma pesquisa não depende do tipo de amostra, e
também não mais da natureza dos dados (quantitativo ou qualitativo), mas sim
do fato de ela ser, no conjunto, “bem construída”. A segunda é que “as
escolhas técnicas mais 'empíricas' são inseparáveis das escolhas mais 'teóricas'
de construção do objeto” (BOURDIEU, 1992: 197). A terceira é que a função
da metodologia não consiste em ditar regras absolutas de saber-fazer, mas
principalmente em ajudar o analista a refletir para adaptar o mais possível seus
métodos, as modalidades de amostragem e a natureza dos dados, ao objeto de
sua pesquisa em via de construção.
1. Questões teóricas e metodológicas gerais sobre a amostragem
Dois tipos 'de dados: as letras e os números5
Há duas grandes maneiras de produzir dados ou provas empíricas: o
qualitativo e o quantitativo. Creio que as diversas amostras deverem ser
apresentadas em função dessa primeira escolha, no que concerne ao tratamento
dos dados. Em lugar de dizer, então, inicialmente, que há duas grandes
modalidades de amostragem, a probabilística (resultado aleatório) e a não-
probabilística, o metodologista deveria apontar que existem dois grandes tipos
de dados ou provas. Depois disso, ele apresentaria, para cada tipo, as diferentes
modalidades de amostragem e as espécies de amostras. Mas, por quê?
Deve-se dizer que a importância conferida à probabilidade estatística, na
pesquisa qualitativa, acarreta uma alteração de sentido e desqualifica,
particularmente, a amostra qualitativa. Efetivamente, a amostragem
probabilística foi tida como a forma por excelência de amostragem. Além
disso, a amostra acidental, que é uma forma inadequada para a pesquisa
quantitativa, é, geralmente, colocada na categoria das amostras não-
probabilísticas; dai, a sua desvalorização. Ora, ordenar as amostras qualitativas
com as amostras quantitativas não-probabilísticas arrisca imprimir às primeiras
a conotação negativa que se acabou de dar às últimas.
A segunda razão é que a distinção probabilistica/não-probabilística é,
talvez, pertinente para os dados quantitativos, mas não o é para os dados
qualitativos. Para estes últimos, a distinção fechada se faz entre a amostragem
por caso único (single case) — por exemplo, um local, uma pessoa — e a
amostragem por casos múltiplos.
Enfim, a classificação usual não permite descrever convenientemente as
principais espécies de amostras qualitativas. Frequentemente, ocorre que se
classifiquem
,
4. Retomo, aqui, uma expressão de Bourdieu (1992: 57). Hamel (1993: 53) chamou atenção para a importância dessa
observação, em relação as,questões metodológicas era geral, e também ao estudo de caso.
1. Tomo essa expressão de meu colega Gillesq-loule (1981), que a utilizou para designar, de maneira
ligurada, o qualitativo e o quantitativo.
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todas as amostras qualitativas na categoria geral dita “amostra teórica”, ou “por
escolha racional”. Esta categoria se torna, então, um verdadeiro porta-tudo. O
termo se presta também à confusão, pois existem amostras quantitativas por
escolha racional.
No quantitativo, há tendência em valorizar mais as regras técnicas de
amostragem do que os princípios de adequação entre o tipo de amostra e o
objeto da pesquisa (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 1973:
59). No qualitativo, é o inverso: enfatizam-se mais as relações entre a amostra
e o objeto, do que as regras técnicas de amostragem. Até um certo ponto, essas
tendências se justificam. Negligenciar as regras técnicas no quantitativo pode
deturpar ou falsear os resultados, considerando-se as relações que a formação
quantitativa mantém com a teoria estatística. As regras técnicas adquirem,
assim, grande importância. No qualitativo, considerando sua independência
frente à teoria estatística, é a relação entre o objeto de estudo e o corpus
empírico que conta mais. Grosso modo, no qualitativo, os erros técnicos de
amostragem acarretam problemas menos graves, ou mais fáceis de corrigir;
mas, em contrapartida, deve-se manifestar uma vigilância crescente quanto as
relações entre o objeto e o corpus empírico. Certamente, pode-se dizer que a
reflexão técnica sobre a amostragem no quantitativo tende, quando se a
superestima, a esvaziar a importância do objeto; assim como a reflexão sobre o
objeto no qualitativo tende, se superestimada, a esvaziar a importância de algu-
mas regras técnicas. Tive a impressão de que esses riscos respectivos são
alimentados, em parte, pelos manuais de metodologia: uns negligenciam a
reflexão sobre o papel dos objetos, enquanto outros concedem pouco espaço
aos critérios de amostragem. Decorre dai a falsa impressão de que o
procedimento quantitativo tem a vantagem de ser mais rigoroso, embora corra
o risco de ser menos pertinente; enquanto o procedimento qualitativo seria
mais pertinente, ao preço, todavia, de uma falta de rigor. Porém, como o
assinala Bourdieu (1992: 199), não se deve confundir rigidez com rigor.
Certamente, não é errado dizer que as pesquisas qualitativas constituem
seu corpus empírico de una maneira, não-probabilística. Esta é a sua
característica mais imediatamente visível. Contudo, não convém utilizar esse
critério como principio diretivo para à classificação geral das amostras. Deve-
se refletir sobre o estatuto dos dados para falar em amostra; e não falar em
amostra a para refletir sobre o estatuto dos dados. Explorarei, então, a hipótese
de que há, primeiramente uma distinção estratégica a estabelecer entre a
amostra qualitativa e a amostra quantitativa, antes de determinar as diferentes
modalidades de amostragem para uma e para a outra. O objetivo principal
dessa cisão é respeitar a lógica própria aos dois tipos de construção. A figura 1
ilustra essa hipótese, ainda que ela possa ser alvo de desacordos na escolha das
denominações, número de possibilidades apontadas, etc.
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FIGURA 1
Dois grandes tipos de dados, diferentes mod tlidades de amostragem e
diferentes tipos de amostras

- Amostras acidental
- Amostra de volume
Amostragem não-
- Amostra por cotas
probabilística
- Amostra por escolha racional
- Amostra por bola de neve
O quantitativo
(os “números”)
- Amostra aleatória simples
- Amostra sistemática
Amostragem
- Amostra estratificada
probabilística
- Amostra por conglomerados -
Amostra arcolar
Dois grandes tipos
- Amostra de ator
de dados Amostragem por - Amostra de meio institucional
caso único ou geográfico
- Amostra de acontecimento

O Qualitativo - Amostra por contraste


(as letras) - Amostra por homogeneização
Amostragem por - Amostra por contraste-
casos múltiplos ou aprofundamento
multicasos - Amostra por contraste-
saturação
- Amostra por busca do caso
negativo

As estruturas convencional e aberta de pesquisa


1

Um rápido exame de um determinado número de pesquisas nos leva a


constatar que alguns analistas empregam a noção de amostra e outros não. Esta
diferença de linguagem é reveladora de duas estruturas-tipo da pesquisa
empírica. Chamarei a primeira de estrutura fechada ou convencional, e a
segunda, de estrutura aberta ou paradoxal.
No primeiro modelo, a situação do pesquisador é tal que lhe é
impossível pesquisar toda a sua população e ele decide retirar dela uma
amostra bem definida. Tomemos um exemplo dado por Rose (1982: 49).
Suponham uma pesquisadora

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que queira conhecer as relações entre o pertencimento a uma organização e o
sentimento de impotência entre os estudantes (nível teórico). Suponham
também que ela tenha optado por uma pesquisa quantitativa e decidido retirar
uma amostra de 400 estudantes da universidade X, em 1980, nos Estados
Unidos. Trata-se de uma estrutura convencional, uma vez que ela construiu sua
pesquisa por meio de uma amostra (400 estudantes), retirada de uma
população empiricamente limitada (a universidade X, em 1980, nos Estados
Unidos). Ela generaliza, assim, num primeiro momento, os resultados obtidos
junto à sua amostra, ao resto dessa população bem determinada no tempo e no
espaço. Tais pesquisas têm “dois patamares empíricos” sucessivos bem
precisos: passa-se de uma amostra operacional A (definida como tal) a uma
população P (igualmente definida como tal). Uma simples sondagem de
opinião termina; geralmente, nesses dois patamares empíricos. Mas quando
esse modelo é completo, o que ocorre amiúde nas pesquisas cientificas, há um
segundo momento de generalização, ou um “terceiro patamar”, durante o qual
são formuladas proposições de ordem teórica (passagem da população P a uma
população, ao mesmo tempo, mais heurística e menos dependente do contexto
de realização da pesquisa). No exemplo dado, a estrutura está completa,
porque, de um lado, a pesquisa comporia dois patamares empíricos, e, de outro
lado, a pesquisadora busca também obter resultados teóricos (empiricamente
fundamentados), que ultrapassam a sua população (a universidade X, em 1980,
etc.). Esses resultados se aplicariam, por exemplo, a todos os estudantes
universitários nos Estados Unidos, e inclusive a todos os estudantes nos países
ocidentais.
No passado consagrou-se a expressão segundo a qual “só existe ciência
do geral6”, para indicar esse projeto - próprio à atividade cientifica - de
generalização teórica para além da população propriamente dita do
pesquisador (de seu universo de análise específico). Esses resultados
heurísticos constituem uma outra forma de generalização, que eu caracterizarei
de analítica ou teórica. Com isso, quero dizer que ela ultrapassa os limites da
descrição ou da explicação aplicadas unicamente à população P, tal qual esta
foi definida para fins de amostragem. Se a pesquisa for bem conduzida, esses
resultados teóricos, certamente, um fundamento empírico. Nesse sentido, eles
são mais do que hipóteses a priori; eles são esclarecimentos teóricos,
empiricamente fundamentados, e virtualmente passíveis de serem aplicados
noutro local. Evidentemente, quando se pressupõe sua pertinência, alhures, a
base empírica desses esclarecimentos se torna menos potente. Ganha-se no
piano heurístico, mas perde-se no plano das nuanças empíricas.
6. Ver sobre isso as reflexões bastante pertinentes de Hamel (1993). Minha posição não é diferente da dele. Eu me limito a
indicar que o conhecimento cientifico visa a um acesso ao “global”, que ultrapassa não apenas a singularidade, mas também
a “população” empírica da pesquisa propriamente dita. Entretanto, como o enfatiza Hamel, não se deve ver nessa máxima
uma negação do singular: a sociologia não pode apreender seu objeto, a sociedade, em sua totalidade (p. 49-50), e o singular
permite também esclarecer a globalidade (p. 52 e 72). 159
A estrutura aberta é mais manifesta e difícil de caracterizar. Ela
compreende grosso modo a pesquisa experimental ou quase experimental, os
estudos de caso único, e mesmo a situação-limite em que o pesquisador analisa
(quantitativa ou qualitativamente) toda a sua população do ponto de vista que
lhe interessa. Para facilitar a compreensão, eu darei, primeiramente, três
exemplos, e depois tentarei caracterizar a referida estrutura sob um ponto de
vista metodológico.
Porterfield e Gibbs (1960) realizaram uma pesquisa qualitativa sobre
todas as 955 pessoas, cujo suicídio foi oficialmente reconhecido na Nova
Zelândia, entre 1946 e 1951. Os pesquisadores não falam em amostra (pois
eles consideraram todos os casos), e sua pesquisa é apresentada por outros
(ROSE, 1982: 58), como sendo referida a “toda a população” de casos
(conhecidos), durante esse período7. Ora, como eles analisam toda a
população, eles não tem necessidade de generalizar uma amostra operacional
(alguns casos de suicídio entre 1946 e 1951) para a sua população (todos os
casos de suicídio, durante esse período). E eles acreditam que seus resultados
ultrapassam sua população P (o conjunto das 955 pessoas). Por terem
considerado todos os casos, eles não têm necessidade de fazer uma generaliza-
ção empírica (de sua amostra para sua população), antes de proceder à
generalização analítico-teórica: eles passam diretamente do nível empírico ao
nível teórico.
Blau (1960) realizou uma pesquisa quantitativa quase experimental. Ele
queria demonstrar que os valores sociais exercem uma coerção externa sobre
os membros de um grupo, independentemente dos valores interiorizados pelos
indivíduos. Ele constrói seus dados a partir de 60 assistentes sociais de uma
agenda pública de ajuda social e demonstra que existem efeitos estruturais. Ele
também não fala em amostra. Efetivamente, ele não pretendia - e nem o
necessitava - generalizar seus resultados para outros assistentes sociais da
agência que não haviam sido objeto da investigação. Ele queria mostrar que os
efeitos estruturais existem, e pouco importa que se seja, ou não, um assistente
social, e que se trabalhe, ou não, em uma agência de ajuda social. Pode-se
dizer (num sentido, sem dúvida, um pouco diferente) que ele pesquisou
também toda a sua população, pois ele passa diretamente de seu corpus
empírico ao patamar teórico (a demonstração da existência de efeitos
estruturais). Do mesmo modo que Galileu - para falar como Bourdieu (1992:
57) - “não teve necessidade de repetir, indefinidamente, a experiência do plano
inclinado, para construir o modelo da queda dos corpos8”, Blau não tinha ne-
cessidade de repetir, alhures, sua demonstração com outras pessoas.
 7..
7. É preciso deixar de lado a questão dc, período, porque esse, entre 3946 e-1951, não foi retirado, pelos pesquisadores.
como amostra (no sentido estrito) de uni outro pertodei”mais amplo.
8. Ver Hamel (1993: 51), que valoriza essa passagem de Hourdieu, para enfatizar que um caso particular, bem construído,
deixa desce particular.

160
O terceiro exemplo é a pesquisa qualitativa de Goffman (1961) sobre
alguns aspectos da vida social dos doentes mentais. Ela foi realizada
principalmente no Hospital St. Elisabeth, em Washington, durante um ano. Ele
enfatizou a maneira como o doente vivia subjetivamente suas relações com o
meio hospitalar e buscou descrever fielmente essa situação, a partir do ponto
de vista do próprio doente. Ele também destacou as propriedades e as
características sociológicas das instituições especializadas na vigilância das
pessoas. Aqui, o pesquisador também não fala em amostra. Isto não é
surpreendente, pois seu objetivo é descrever, de modo exaustivo, um universo
de análise, o Hospital St. Elisabeth, segundo a perspectiva que lhe interessa.
Trata-se de uma abordagem total do local, no contexto de um
problema:particular de pesquisa. Pode-se, então, igualmente dizer, num sentido
diferente dos dois precedentes, que ele pesquisou toda a sua população, pois,
aqui também, não há propriamente “resto” empírico. Cobre-se tudo no
universo de análise que se pretende pesquisar. Evidentemente, o universo de
análise como tal (o meio) é mais amplo do que o corpus empírico (observações
feitas), mas aquilo que não se viu resulta menos de uma parte da população
não observada, do que de um “fora” da pesquisa.
Digamos, então, abruptamente, que esse modelo aberto é caracterizado
por pesquisas que analisam, de certa forma, uma população na totalidade, e
que passam diretamente de seu corpus empírico a um nível teórico global. Não
há, aqui, dois patamares bem distintos ao nível empírico. Também não é
surpreendente que o pesquisador não apresente seus dados Como passando de
A a P. mas sim, que ele passe, de preferência, diretamente ou quase, dos dados
(A ou P) ao patamar teórico (universos gerais). O nível teórico toma a forma
de um patamar único, ou de um continuum, muito pouco balizado. Desde
então, ao invés de descrever o procedimento de amostragem (não houve
amostra, no sentido operacional do termo), o analista descreve seu corpus
empírico: ele especifica do que ele é composto e quais são as suas
características. Por certo, pode-se frequentemente imaginar um universo mais
geral do qual essa população seria, por sua vez, uma amostra. Dato paradoxo
aparente da estrutura aberta não existe aqui um procedimento operacional de
amostragem, porém pode-se dizer também que esse corpus empírico constitui
uma amostra, no sentido amplo. A noção de amostra invade a de população, e
elas tendem a se sobrepor (ver a figura 2). O paradoxo se deve também ao fato
de que o pesquisador dá a entender que ele pesquisou toda a sua população, o
que significa dizer que ele não tem necessidade de generalizar (para a sua
população), mas, no entanto, ele produz, mesmo assim, uma (outra) forma de
generalização (analítico-teórica).

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FIGURA 2
Duas estruturas-tipo de pesquisa

Esse breve exame suscita uma questão: o que é uma amostra e o que é
uma população?
A noção de amostra
Como nós o vimos, a noção de amostra salta aos olhos nas pesquisas
com uma estrutura convencional. Nesses casos, quando se sabe que não se
pode apreender tudo, a ideia de que se deve escolher ou selecionar uma parte
do todo nos leva, automaticamente, a pensar em termos de amostra.
Inversamente, quando se é levado a pensar em uma amostra, associa-se esta
noção essencialmente à ideia de escolha ou de seleção.
Em contrapartida uma pesquisa com uma estrutura aberta, a ideia de
amostra não vem naturalmente à mente. O analista designa, então, seu material
pelas expressões “corpus empírico”, “população”, “totalidade”, “estudo-
piloto”, “estudo de caso”, etc. Por quê? Talvez porque, na falta de um
procedimento operacional de amostragem. à ideia de escolher ou selecionar
não apareça como uma etapa essencial da metodologia, ou concernente a ela.
A ideia de seleção dos casos é, em parte, absorvida pela ideia da escolha do
caso ou do objeto, ou neutralizada pela ideia de completude. O pesquisador
sabe que deve fazer observações sistemáticas e pertinentes acerca de uma ou
de várias questões, mas também considera que pode abordar o conjunto de seu
material empírico, Certamente, todo pesquisador sabe que pode acrescentar
outros conjuntos de material empírico, embora, no que diz respeito a um
conjunto especifico, ele tenha grosso modo considerado tudo em relação aos
seus problemas de pesquisa. A ideia central que resulta é, então, aquela da
escolha do objeto, acompanhada daquela de totalidade da base empírica
relativamente a enunciados teóricos (mais do que a ideia de seleção).

162
Pressente-se o problema: cada estrutura de pesquisa comporta uma
diferente ideia central de amostra. Daí a questão: existe uma ideia comum à
amostra em sentido amplo? Em minha opinião, a ideia central de uma noção
geral de amostra deveria ser comum aos dois tipos de estrutura de pesquisa.
Ela reside, assim, menos nas ideias parciais e conexas de seleção ou de
totalidade - que me parecem, contudo, inevitáveis, por sua vez, no número de
situações -, do que na ideia de considerar uma pequena quantidade de qualquer
coisa para esclarecer alguns aspectos gerais do problema: trata-se de pesquisar
isto para basear um aquilo; é a ideia de extrapolar, deslocar, transcender,
colocar em relação, ou ainda dar uma ideia ou um esclarecimento sobre
alguma outra coisa com a ajuda de um ou de vários elementos que possam se
referir a isso. Pode-se ter uma ideia (ou um certo tipo de ideia) de uma
sociedade de uma determinada época, por meio de um indivíduo que nela te-
nha vivido; lançar uma luz sobre uma instituição, descrevendo um exemplo
particular ou localizado da mesma; examinar brevemente as características das
pessoas que estão encarceradas, descrevendo a população de uma prisão (ou
uma amostra operacional desta população), etc. O objetivo da amostra (no
sentido amplo) consiste, portanto, em dar base a um conhecimento ou um
questionamento, que ultrapasse os limites das unidades, e mesmo do universo
de análise, servindo para produzi-lo. A bem dizer, não é porque se deve
selecionar que se extrai uma amostra; e, inversamente, também não é porque
se considera um conjunto completo localizado que não se faz uma
amostragem; é, antes, porque se fala mais que se transforma, de qualquer
modo, em amostra, aquilo sobre o que, se baseia para se falar a respeito. A
observação sistemática visa fundamentar ou “documentar” alguns aspectos da
realidade, que são, por sua vez, passiveis de se deslocar. A observação traz,
portanto, em si mesma os germes da amostragem; ou seja, a capacidade de
ultrapassar a si mesma. Persiste, todavia, no qualitativo e no quantitativo, uma
tensão entre essas duas grandes estruturas-tipo de pesquisa, seja entre a
estrutura na qual o pesquisador tem a nítida impressão de que ele faz uma
amostragem, ou aquela em que ele tem a impressão de tudo abranger.
A noção de população
Para ilustrar meus objetivos, utilizarei livremente um bom exemplo
dado por Beaud. Tomemos, diz ele, uma experiência banal: a preparação de
um prato. Antes de servi-lo,
há um gesto que geralmente fazemos: nos o provamos. 0 próprio principio
da sondagem e das técnicas que ele implica (dentre os quais, o da
amostragem) encontra-se assim formulado: nos colhemos informação
Sobre uma fração (amostra) do todo (população) que nos queremos
pesquisar 1...1 (BEAUD, 1984: 178).

163
Este exemplo constitui uma das maneiras mais pedagógicas de
introduzir a questão da amostragem e de mostrar, como bem o ressalta Beaud
(1984: 178), que “nós todos fazemos amostragem, sem o saber”. Provar um
prato significa que “nós calhemos informação sobre uma fração (amostra) do
todo (população) que nos queremos pesquisar” (ibid.). Também se poderia
dizer, num sentido mais amplo, que provar um prato é obter “observações”
para poder falar de alguma coisa. Mas, de que, exatamente, pode-se falar?
Ora, a noção de população apresenta uma dificuldade particular.
Quando nos retiramos uma amostra de nomes dc pessoas de uma lista,
sabemos, intuitivamente, que se repetirmos esta operação, as chances serão
pequenas de obtermos exatamente os mesmos nomes que da primeira vez. A
ideia de uma certa relatividade na composição interna da amostra aparece
imediatamente. Em contrapartida, a noção de população, nossa lista de nomes,
adquire geralmente a forma de um todo natural, de um “já aí”.
Se voltarmos ao exemplo do prato, parecerá evidente a todos nós que
essa amostra que degustamos nos autoriza a falar do prato que está na panela.
Podemos dizer, por exemplo, se ele esta demasiado salgado, ou não. A panela
aparece, então, naturalmente, coma sendo a nossa população. Ora, se nosso
objetivo é saber a quantidade de sal, a panela constitui efetivamente a nossa
população, mas somente porque nossa finalidade, aqui, é a de saber se o prato
está demasiado salgado, ou não. Efetivamente, não se deve perder de vista que
“população” é um conceito, e não uma circunstância natural, e que os
contornos deste conceito são dados pelas diferentes finalidades de nossa
pesquisa. Evidentemente, se a finalidade é fazer uma estimativa da quantidade
de sal no prato, este último remete à população e toma a forma de uma
fronteira natural, em razão inclusive da escolha que fazemos quanto ao que
queremos saber ou projetar como conhecimento. Aqui não temos a intenção,
ao menos num primeiro momento, de ir além da panela ou de nosso universo
de análise (nível empírico): queremos apenas generalizar de nossa colherada
(amostra) à panela (população). Chamemos isso de uma generalização
empírica ou fechada. Mas, o que acontece se nós modificarmos nossos
objetivos?
Suponhamos, agora, que esse prato é uma sopa de corações de palmitos
e que nós jamais tenhamos provado este tipo de sopa. O provar nos possibilita,
então, em certos níveis, não somente dizer algo sobre a população figurada na
panela (universo de análise), como também sobre as sopas de corações de
palmitos em geral, e mesmo sobre as sopas, simplesmente. No que concerne a
essa finalidade, o fato de que a sopa seja demasiado salgada, ou não, é muito
menos importante, senão insignificante. Essa outra “população” - aquela de
todas as sopas de corações de palmitos - corresponde ao que Sjoberg e Nett
(1968: 129-130) chamaram de universo geral. Tudo se passa, então, como se
nossa colherada de sopa fosse, ao mesmo tempo, uma amostra da panela e uma
amostra (no sentido amplo e não operacional) dessa 164
população mais geral ainda. É que não existe, aqui, uma grande diferença entre
nossa colherada de sopa e a panela inteira, para generalizar a essa população ao
nível teórico. Degustando a colherada de sopa, nós degustamos, ao mesmo
tempo, a sopa na panela e esse gênero de sopa de corações de palmitos em
geral. Efetivamente, se mais tarde alguém nos perguntar se já provamos uma
sopa de corações de palmitos, responderemos que “sim”, sem hesitação. O que
significa dizer que: “Nos já examinamos uma amostra (uma colherada) ou uma
população (uma panela cheia) desse tipo de sopa”.
Notemos que a panela, que era nossa população, toma-se aqui, num
sentido muito amplo, uma “amostra” dessa outra imensa população geral, mas
não se trata de uma amostra operacional. Por quê? Porque nos não, tínhamos
essa população geral diante de nós, sob a forma de uma lista, antes de
extrairmos nossa “panela”. Ao extrairmos nossa colherada, temos diante de
nós a panela e, em principio, todas as partículas do caldo tem a mesma
probabilidade de surgir cm nossa colherada. Neste caso, temos uma amostra
operacional; mas não no primeiro. É por isso que necessitamos de um quarto
conceito, o do universo geral (que se situa ao nível teórico).
Pode-se, então, conceber a amostra e a população como sendo uma
relação de universos variáveis9 (da panela, das sopas de corações de palmito,
etc.) e dos projetos variáveis do conhecimento (verificar se está demasiado
salgado, saber o que é uma sopa de corações de palmitos, etc.). É dizer
também que os conceitos de amostra e de população “vagueiam” ou se
modificam em função de nosso projeto de conhecimento, o qual também muda
de nível: passamos do nível empírico - consistindo em saber se nossa sopa na
panela X, em tal dia, estava muito salgada - ao nível teórico, visando dar-nos
um conhecimento geral do que é uma sopa de corações de palmitos (universo
geral).
Uma última observação. Suponhamos que preparemos uma sopa e
comamos tudo sem pensar em prová-la previamente: pode-se dizer que
tenhamos retirado uma amostra? Isso depende. Em primeiro lugar, e bastante
provável que não tenhamos essa impressão, pois, em vez de provar para ter
uma ideia do todo, nos simplesmente o comemos. Consequentemente, nós não
fazemos uma amostragem. Em contrapartida, se começamos a explicar a
outras pessoas, posteriormente, o que é um creme de corações de palmitos,
com base nessa experiência, ele se torna uma amostra. Essa situação
corresponde grosso modo aquela de Goffman (1974), que selecionou, ao longo
dos anos, sem objetivo muito preciso, um material empírico heteróclito. No
início, não era ainda uma amostra do que quer que fosse. Mais tarde, esse
material servindo de base para a sua pesquisa tornou-se, retroativamen-

9, Agradeço a. minha colega Danielle Laberge, do departamento de sociologia da Universidade do Quebec em Montreal,
por me haver sugerido essa expressão bastante adequada e sugestiva aos meus objetivos.

165
te, a sua amostra; o que significa dizer que Goffman adaptou seu objeto e seu
discurso aos dados que havia coletado.
As noções de “universo de análise” e de “universo geral”
Utilizei sem precisar devidamente as noções bastante importantes de
“universo de análise” e de “universo geral”, propostas por Sjoberg e Nett
(1968: 129-130), e desenvolvidas por Rose (1982: 56-65). Para eles, o
universo de análise corresponde à noção clássica de população (ao nível
empírico); e universo geral, ao universo do fenômeno ao qual a teoria se aplica
ou se refere (ROSE, 1982: 56), ou seja, às outras “populações”, ao nível
teórico. No exemplo da sopa, a panela corresponde ao universo de análise,
enquanto o universo geral engloba o conjunto de sopas de corações de
palmitos. Esta última noção é muito importante, porque ela relativiza a noção
operacional de população (universo de análise); ela não é mais vista corno o
ponto final da pesquisa e é colocada, por sua vez, em relação com as finalida-
des da pesquisa. Salientarei, agora, o fato de que o universo geral pode ser
múltiplo e variável (universos gerais) e que a noção de universo de análise
deve ser ligeiramente reformulada para melhor acomodar as pesquisas com
uma 'estrutura aberta.
Deve-se tomar a noção de universo de análise ao pé da letra: o universo
sobre o qual o pesquisador trabalha, ou que ele tem ao seu alcance (a panela, a
universidade X onde ele constrói a sua lista de estudantes, o hospital onde ele
faz suas observações, etc.). Essa maneira de conceituá-la permite incluir mais
facilmente as duas estruturas de pesquisa: aquela segundo a qual se retira uma
amostra operacional (estrutura fechada), e aquela segundo a qual se constitui
um corpus empírico como uma totalidade particular (estrutura aberta). Pode-se
dizer, então, que toda pesquisa empírica tem um universo de análise, mas que
nem toda pesquisa empírica retira uma amostra operacional. Assim, se o
analista faz observações em um. hospital, seu universo de análise é o hospital
X, e não o conjunto (impreciso) dos hospitais semelhantes. Estes últimos
fazem parte dos universos gerais (campo de aplicação da teoria, ou dos
resultados teóricos da pesquisa). Do mesmo modo, a exemplo de Porterfield e
Gibbs (1960), se o analista estuda todos os casos de suicídio conhecidos
durante um período determinado, esta “lista” constitui o seu universo de
análise. No caso de uma pesquisa com uma estrutura fechada, o universo de
análise se define como o “conjunto de todas as unidades empíricas que
o:pesquisador estabelece como a base de sua pesquisa e da qual de retira uma
amcistra” (ROSE, 1982: 56). Por exemplo, a lista de todos Os estudantes
inscritos na universidade X, em tal país, em uma tal data, e a partir da qual
retira-se uma amostra operacional. A figura 3 é baseada em Rose (1982: 65),
mas foi desdobrada e transformada para dar conta das modificações propostas.
166
FIGURA 3
A amostragem segundo as duas estruturas-tipo de pesquisa

167
Dois exemplos de estrutura convencional ou fechada
A fim de fixar melhor essas ideias, vejamos dois exemplos de pesquisas
com uma estrutura convencional de amostragem, uma quantitativa e a outra,
qualitativa.
Retornemos, primeiramente, ao exemplo adaptado de Rose (1982: 50,56),
sobre a pesquisadora que quer conhecer as relações entre o pertencimento a uma
organização e o sentimento de impotência entre os estudantes. Pode-se encontrar
ai uma amostra de estudantes da universidade X, em 1980, uma população ao
nível empírico, determinada pela lista de todos os estudantes desta universidade,
em 1980 (seu universo de análise), e uma ou várias populações ao nível teórico
(seus universos variáveis gerais). Tais universos gerais são, por exemplo, o
conjunto dos estudantes nos Estados Unidos, nos países industrializados, ou,
ainda, os estudantes em geral. O exemplo 1 da figura 4 resume a situação. Nesta
figura, eu utilizo duas vezes, intencionalmente, o conceito de população para
mostrar que ele pode se deslocar de um nível a outro e é variável (no sentido de
que há várias populações gerais possíveis embutidas na noção de população no
sentido estrito).
O exemplo 2 é tirado da pesquisa qualitativa de Martel (1,994) sobre as
representações das mulheres vitimas de violência, em um diário montrealense,
entre 1886 e 1989. Para constituir a amostra, ela delimitou dois blocos
teoricamente importantes de quatro anos cada qual, no início (1886-1889) e no
final (1986-1989) de seu período global. Em princípio, todos os artigos de
imprensa referentes ao seu objeto, durante esses dois subperíodos, poderiam ser
considerados em vista da análise. Entretanto, ela aplicou o princípio de saturação,
o que significa que ela não teve de completar a coleta dos dados para toda a
duração desses dois blocos. Quando a informação se tornava claramente
repetitiva, ela considerava que a informação para seu subperíodo estava saturada e
que ela podia encerrar a coleta de dados para esse período. Numa segunda etapa,
ela fez incursões intermitentes, mas sistemáticas, em todos os 20 anos (ou seja,
em 1910,1930, 1950 e 1970) para identificar, se necessário, as mudanças nas
representações. Para cada um desses anos, o principio de saturação foi mais uma
vez aplicado. Assim, a pesquisa comporta uma amostra (os artigos destacados),
um universo de análise bem determinado (La Presse, entre 1886 e 1989) e
também um ou vários universos gerais, uma vez que ela permite conhecer as
representações das mulheres vitimas de violência, não somente no diário La
Presse, mas também em Montreal e na sociedade quebequense em geral, etc. (ver
o exemplo 2 da figura 4).
Vê-se que, na estrutura fechada; os três conceitos (amostra, universo de
análise, universo geral) são bem distintos uns dos outros, de um ponto de vista
operacional. Essas duas pesquisas têm também uma estrutura completa: dois
patamares empíricos (ou uma etapa intermediária bem ¡marcada) e um terceiro
patamar que ultrapassa seu universo de análise (a primeira ;”população”). Para
construir satisfatoriamente
168
FIGURA 4
Dois exemplos de pesquisas quantitativas e qualitativas com uma estrutura
convencional ou fechada

169
sua pesquisa, os pesquisadores devem aqui, primeiramente, poder generalizar seus
resultados no interior do próprio nível empírico. Isso significa, por exemplo, que
Martel (1994) deve, num primeiro momento, passar dos artigos analisados a
totalidade dos artigos não-analisados do jornal La Presse (1886-1989), para que,
depois, sua pesquisa possa produzir um esclarecimento teórico mais global sobre
a percepção das mulheres vítimas de violência na sociedade quehequense.
Notem que as pesquisas, tanto quantitativa como qualitativa, são obrigadas
a tornar mais flexível sua ligação com o universo de analise, para produzir um co-
nhecimento heurístico. Mas, para que esses resultados teóricos sejam reconheci-
dos como tais (e não como hipóteses a priori), é preciso que a parte empírica seja
“bem construída”. As duas pesquisas fazem, primeiramente, uma generalização
empírica, mas uma o faz por meio de uma análise estatística, e a outra, por meio
de uma análise qualitativa. Pode-se designar essa generalização qualitativa pelo
nome de indução empírico-analítica, para distingui-la, de um lado, da
generalização empírico-estatística, e, de outro lado, da generalização teórica
própria às duas pesquisas. Nos dois casos, a generalização empírica é apenas uma
etapa intermediária do processo global de generalização. Cada vez que se
ultrapassa o nível empírico, passa-se de uma amostra a uma população (universo
de análise), e depois, desta população a outras (universos variáveis gerais). Este
segundo passo, o mais pertinente para a teoria, apresenta uma particularidade: de
um lado, ele depende da boa qualidade da construção empírica, mas, de outro
lado, ele é necessariamente menos protegido pelo corpus empírico. Efetivamente,
algumas variações em relação aos resultados são possíveis, quando se aplica esse
conhecimento, alhures. Obtemos, por meio desse conhecimento teórico
empiricamente fundamentado, um conhecimento empírico virtual relativamente a
outros universos de análise.
As pesquisas que apresentam uma estrutura convencional incompleta
terminará bruscamente no universo de análise. Tal seria o caso de uma
investigação visando apenas prognosticar a intenção de voto dos canadenses (P), a
partir de uma amostra (A), em um momento bem determinado no tempo. O nível
teórico é, portanto, explicitamente ausente ou muito pobre, pois a pesquisa é
guiada por uma finalidade descritiva simples, consistindo em querer representar
satisfatoriamente, no plano do universo de análise, uma intenção de voto. Os
pesquisadores estão conscientes de que os resultados são passíveis de
modificação, a curto prazo, e não visam atingir resultados teóricos (universo
geral). Estes últimos são os únicos a ter uma capacidade de divagação: o que eles
perdem em precisão e em detalhes, eles o ganham em seu alcance heurístico e em
seu potencial criador de novos problemas de pesquisa. Eles são também menos
perecíveis, resistindo melhor à prova do tempo. As informações estritamente
concernentes ao universo de análise tornam-se mais rapidamente obsoletas e
necessitam ser, mais frequentemente, atualizadas.

170
Dois exemplos de estrutura aberta ou paradoxal

Em sua pesquisa quantitativa, Blau (1960) busca mostrar que existem


efeitos estruturais; isto é, que os valores de um grupo exercem pressões externas
sobre seus membros, independentemente de seus valores interiorizados. Ele
escolheu uma agência pública de ajuda social, situada em uma grande cidade
americana, e relacionada à clientela urbana mais pobre. Durante um período de
observação na agência, ele constatou que os assistentes sociais são organizados
em unidades de cinco ou seis, sob a autoridade de um supervisor. Os membros de
12 unidades foram entrevistados, com um total de 60 entrevistas. Blau não
especifica se havia outras unidades na agência e, em caso afirmativo, como essas
12 unidades foram selecionadas. Em realidade, não se tem necessidade dessa
informação. Pode-se dizer que se trata de uma amostra quantitativa não-
probabilística por escolha racional: Blau escolheu o lugar da observação, as
unidades e o número de unidades, em função dos critérios teóricos e
metodológicos que ele havia fixado para fazer a sua demonstração.
Por suas finalidades teóricas, vê-se que ele não quer produzir nenhum
conhecimento sobre os órgãos públicos, em particular. Seu objeto corresponde
aos efeitos estruturais nos grupos em geral. Seus universos variáveis gerais são,
portanto, os grupos. Além disso, seu universo de analise - a agência pública X de
ajuda social - não tem uma significação teórica para além do fato de servir de
local para a sua pesquisa. Seus dados não são uma amostra operacional da agência
e nem mesmo se sabe se Blau pesquisou, ou não, todos os assistentes sociais.
Mas, sabe-se que seu corpus é composto de 60 assistentes e que sua finalidade
teórica não o impede de fazer uma primeira generalização empírica (estatística)
dos resultados a um restante eventual e não-observado de seu universo de análise.
Ele pode passar diretamente ao nível teórico. Quando se diz que esse corpus e sua
amostra, modifica-se o sentido desta criação para lhe conferir uma acepção ampla:
os 60 assistentes sociais são, assim, uma amostra dos universos gerais, e não de
seu universo de análise (agência) [ver o exemplo1 da figura 5].
O exemplo da pesquisa qualitativa de Goffman (1961) é menos unívoco.
Após uma observação direta durante um ano em um hospital, ele destaca, entre
outras coisas, o que ele considera serem as características das instituições “totais”.
Por exemplo, na vida social corrente, dispomos, geralmente, de três locais
diferentes - para dormir, para nos divertir e para trabalhar -, com parceiros
diferentes, e sob autoridades diferentes; as instituições totais eliminam as
fronteiras que separam esses três campos de atividades. Os internados são
colocados em um único local, com os mesmos parceiros, e devem se submeter a
uma única e mesma autoridade. Goffman busca, portanto, analisar o
funcionamento, os mecanismos e os processos próprios ao hospital psiquiátrico, e
também alguns efeitos deste ambiente, sob o ponto de vista dos doentes. Segundo
a classificação aqui proposta, trata-se de uma amostra de meio social ou
institucional por caso único.
171
FIGURA 5
Dois exemplos de pesquisas quantitativa e qualitativa com uma estrutura
aberta ou paradoxal

172
Os universos variáveis gerais são os asilos psiquiátricos, no Estado de
Washington, nos Estados Unidos, ou mesmo alhures, e, em diferentes graus, os
diversos estabelecimentos especializados na vigilância dos seres humanos
(prisões, etc.10). Mas, o que acontece com as noções de amostra e de universo de
análise? Ao escolher o hospital X, Goffrnan considerou uma amostra, ou
pesquisou uma “população” (isto é, um universo de análise total)? E se ele tomou
uma amostra, trata-se de uma amostra dos outros manicômios, ou somente do
hospital St. Elisabeth? Consequentemente, várias opções conceituais tornam-se
possíveis no imaginário do pesquisador; Examinarei, aqui, as três principais.
Em primeiro lugar, poder-se-ia dizer, simplesmente, que Goffman
pesquisou manicômio X integralmente, sob tal ângulo e no contexto de uma
problemática teórica precisa. Seu corpus é, portanto, apresentado como tendo sido
constituído a partir de um exame referente ao conjunto de sua população.
Consequentemente, noção de amostra operacional se esvai em benefício da de
universo de análise, como numa pesquisa de estrutura aberta. Dir-se-á que ele
pesquisou todo o seu universo de analise, sob o ponto de vista dos internados. E a
ideia que nos vem à mente, quando falamos em um estudo de caso.
Essa representação foi mais usual na tradição da Escola de Chicago.
Efetivamente, muitos dos pesquisadores consideraram seu corpus empírico como
sendo a analise de um todo completo, mesmo se eles aí permanecessem somente
alguns meses. Cooley (1928: 128), por exemplo, recomenda que o pesquisador
qualitativo pesquise principalmente as instituições e os grupos que não são
demasiado grandes para prejudicar uma abordagem direta e total. Pode-se
reformular livremente essa recomendação da seguinte forma: “De preferência, o
pesquisador qualitativo não deve retirar uma amostra, nem considerar uma fatia
excessivamente extensa (como a cidade de Nova York); ele deve se contentar em
considerar uma população de tamanho manipulável”. Shaw (1930: 2), em seu
estudo sobre a vida de um único jovem, entende que é preciso pesquisar a
“historia total do caso”. O analista deve “se assegurar de obter o retrato o mais
completo possível dos acontecimentos sucessivos ocorridos na vida dos jovens
delinquentes” (p. 14). Becker (1966: p. vi) considera também que o pesquisador
“que colhe uma historia de vida deve tomar as medidas para se certificar de que
abrange tudo o que se quer saber e que nenhum fato ou acontecimento importante
seja negligenciado”. Ora, essas noções de “história total”, de “retrato completo”,
ou essa vontade de “tudo abranger”, são incompatíveis com a noção de amostra
operacional e correspondem àquela de população. Rose (1982: 56) apresenta
também a prisão onde Garabedian (1963) realizou sua pesquisa como seu
Universo de análise (sua população), e as prisões em geral como seu universo
geral. Além disso, o fato de escolher tal ou qual aspecto da realidade, para
observá-lo, não coloca dificuldade particular quanto a

10. Ver as observações de lObert Castel (p. 11), em sua apresentação da obra de Goffman (1961)

173
representação da totalidade. Em realidade, isso não e muito diferente da escolha
que faz um pesquisador que propõe esta ou aquela pergunta em um questionário.
Do mesmo modo que as questões escolhidas não são uma amostra daquelas que
se teria podido propor sobre outros temas, as observações que se faz não são
consideradas aqui como uma amostra operacional das observações que se teria
podido fazer sobre outros aspectos.
Uma outra opção consiste em dizer que o manicômio X (como um todo),
nos Estados Unidos, em uma época determinada, constitui a amostra de Goffman.
Mas, então, trata-se, como no caso de Blau, de uma amostra dos universos gerais.
A noção de amostra é empregada, assim, em sentido amplo, como sinônimo de
universo de análise (população). A questão “amostra de quê?”, deve-se responder:
“dos manicômios, em geral”. Deslocamos, assim, o sentido da palavra população
para populações em geral. Esta modificação no sentido das palavras não muda as
características metodológicas da pesquisa. A generalização que o pesquisador faz
é principalmente teórica ou analítica, porque ele passa diretamente do nível
empírico ao nível teórico (ver a figura 5). A opção passa ainda a imagem de uma
estrutura aberta, já que não há separação nítida entre a noção de amostra e a de
universo de analise.
A terceira opção, por fim, consiste em considerar toda pesquisa como
estruma Fechada. Alguns metodologistas veem, assim, todo corpus empírico
como sendo necessariamente uma amostra operacional constituída por um certo
número de dias de observação, de sublocais visitados e de entrevistas realizadas
no hospital X, e isso mesmo que o pesquisador não tenha retirado formalmente
uma amostra. Hubermann e Miles (1991: 62) argumentam, por exemplo, que o
simples fato de que o pesquisador vá observar um único meio já significa que ele
considerou uma amostra: Evidentemente, esta observação não é falsa, mas, não é
pertinente. Por quê? Porque o sentido da palavra amostra não é mais o mesmo.
Em uma pesquisa com uma estrutura aberta o pesquisador não se detém a
apresentar seu corpus como uma amostra operacional de seu universo de análise.
Basta-lhe mostrar como ele constituiu seu corpus e indicar qual é o seu universo
de análise. É que seu objetivo final não o leva aqui a fazer uma generalização
empírica, a partir de seu material, ao restante de seu universo de análise não-
observado, antes de passar ao plano teórico. Goffman e Blau visam fundamentar
empiricamente um conhecimento que se dirige diretamente ao nível teórico. Isso é
uma característica desse gênero de pesquisa. Em contrapartida, nas pesquisas
apresentando uma estrutura fechada, o pesquisador não tem escolha: ele deve
proceder, anteriormente, a uma generalização empírica mais formal de seu corpus
ao seu universo de análise. Martel (1994) deveria se certificar de poder estender,
primeiramente, sua análise dos artigos do jornal ao próprio jornal, antes de
generalizar deste jornal ao nível teórico. Se um outro pesquisador descobrisse que
havia, em um outro diário, nesse mesmo período, uma outra representação das
mulheres vitimas de violência, os resultados teóricos de Martel deveriam ser
parcialmente corrigidos, para dar conta deste fato novo.
174
Pode-se também objetar a Huberman e Miles que seu objetivo se torna
contra-intuitivo em pesquisas como a de Blau. Efetivamente, de que nos adianta
saber que Blau destinou tantos dias e tantas horas à observação em seu campo de
pesquisa, se seus resultados não estão diretamente relacionados às características
de seu campo? Mesmo no caso de Goffman, isso também não à útil, já que suas
observações não visam conhecer o que ele não viu em seu campo de pesquisa,
mas sim em falar sobre o que ele observou e que esta virtualmente acontecendo
em outros campos (universos gerais).
Assim sendo, apenas as duas primeiras opções me parecem apropriadas
(ver o exemplo 2 da figura 5). Não e surpreendente que os estudos qualitativos
por caso único tenham privilegiado, sobretudo, a primeira opção. Como elas
visam a um conhecimento completo do caso, não se utilizará a noção de amostra,
e, se assim for feito, não se lhe conferirá uma acepção ampla.
Não posso explicar aqui, em detalhes, por que a pesquisa de Goffman
permite várias representações diferentes, enquanto a de Blau não levanta essa
dificuldade. Digamos que Blau tem por seu universo de análise - a agência -
somente um interesse metodológico. Ela desempenha o papel de um mero
laboratório de pesquisa. Em contrapartida, Goffman tem um interesse sociológico,
ou “substancial”, por seu universo de análise sua pesquisa refere-se a ele. Por
outro lado, há diferenças em termos das representações entre o qualitativo e o
quantitativo. Em razão da natureza da observação quantitativa, que é mais
centrada, ela divaga menos: ela é fixada pela forma que adquire a coleta dos
dados. O analista que estuda todos os casos de uma população, sob o aspecto que
lhe interessa (por exemplo, todos os casos de suicídio, durante um período), dá
imediatamente a impressão de ter tudo visto sobre este aspecto. Em realidade, ele
observou tudo o que reteve em sua tabela, e, se esta se refere aos dossiês, ela
acrescenta uma segunda redução àquela já realizada pelo dossiê. Nas pesquisas
qualitativas por observação participante, o olhar do analista é menos fixado de
antemão, e se desloca, incessantemente, de um ponto a outro. A imagem da
população ou da amostra pode, assim, mais facilmente emergir.

2. A amostragem e alguns tipos de amostras na pesquisa qualitativa


A figura 1 apresentou as amostras qualitativas, segundo uma divisão em
dois grandes grupos: a amostragem por caso único e por casos múltiplos. Essa
classificação não é nem absoluta, nem exaustiva, mas dá uma noção de diversas
espécies de amostras e permite esclarecer algumas questões metodológicas.
Limito-me, aqui, à questão da amostragem de microunidades sociológicas, como
as de atores sociais, de instituições, de documentos e de algumas unidades
geográficas de tamanho reduzido. Consequentemente, não tratarei, diretamente,
por exemplo, de um estudo de caso referente ao conjunto da cidade de Nova
York, ou à crise dos

175
mísseis cubanos. Deixo também de lado as pesquisas históricas, mais particular-
mente, aquelas que se estendem num longo período, ou que se referem a
problemáticas complexas. Ocorre que algumas reflexões possam, eventualmente,
ajudar a pensar outras situações ou estratégias de amostragem. Por outro lado,
todas as denominações apresentam algumas dificuldades, mas me contentarei em
esclarecer as noções de caso único e de casos múltiplos, assim como a de amostra
de acontecimento.
Especifiquemos, também, que trabalhos tomam uma forma híbrida, ou não
se deixam facilmente classificar como pesquisa por caso único ou por casos
múltiplos, e isto por razões diversas11.

A amostragem por caso único das microunidades sociais


O modo mais simples de elucidar o que é uma amostragem por caso único
consiste em começar simplesmente apresentando seus tipos, a partir de exemplos
de pesquisa, e em examinar, em seguida, sua caracterização conceitual.
Retirei três tipos de amostras por caso único: a amostra de ator (que toma a
forma de dois modelos), a amostra de meio, geográfico ou institucional, e a
amostra de acontecimento (ou de enredo).

A amostra de ator
Aqui, o corpus empírico se constitui essencialmente em torno de uma
pessoa, ou de uma família. Geralmente, obtém-se um relato oral ou escrito da
pessoa em questão, ou dos membros de uma família. Três vias são
frequentemente adotadas para colher esse relato: a) documentos pessoais escritos
espontaneamente pela informante e sem interferência do analista (autobiografias,
cartas, diários íntimos, etc.); b) documentos escritos pelo informante, a pedido do
analista (com ou sem orientação sistemática ou pedidos de revisão); c) uma ou
mais entrevistas em profundidade com a mesma pessoa.
Este tipo de amostra se inscreve geralmente no contexto das pesquisas
denominadas biográficas. Grosso modo, há dois tipos de histórias de vida. A
história de vida dita completa é aquela que se refere à vida de um individuo ou de
uma família em seu conjunto, e que tende, em princípio, a abranger as principais
dimensões. Por certo, priorizam-se necessariamente alguns temas, o que implica
na au-

11. A obra sob a direção de Bourdieu (1993), La misere du monde (A misetia do mundo, Ed. vozes). e um exemplo. Ele
apresenia sírios escudos de caso realizados por pesquisadores diferentes em torno de uma problematica comum.
Separadamente, cada pesquisa constitui um miniestudo de caso; dispostas conjuntamente, elas projetam uma imagem
global que difere daquela que cada uma delas apresenta individualmente.
176
sência ou na sub-representação de outros12. A segunda e a história de vida
segmentada ou tópica, porque ela se articula em torno de um tema central e só
procura abranger algumas dimensões ou problemáticas específicas da vida do
autor (vida profissional, experiência de divórcio, etc13).

A amostra de Meio, geográfico ou institucional


Escolhe-se um “meio” como universo de análise para a constituição do
corpus empírico; por exemplo: uma área da cidade (WIRTH, 1928; WHYTE,
194314). um hospital Psiquiátrico (GOFFMAN, 1961), uma periferia
(BAUMGARTNER, 1988), etc. O universo de análise se apresenta ao analista de
forma não parcelada e como sendo passível de uma apreensão em sua totalidade.
A amostra de meio não exige, necessariamente, que todas as observações sejam
feitas em um único local, mas tão simplesmente que elas sejam tratadas como se
referindo globalmente a um mesmo meio. Goffman (1961), por exemplo,
concentrou suas observações no hospital St. Elisabeth, em Washington, mas
também fez observações em outros hospitais. Entretanto, suas observações não
tinham o objetivo de distinguir os hospitais entre si, mas sim fornecer um retrato
global aprofundado de um mesmo tipo de instituição “total”, bem como da
carreira moral dos doentes mentais.

A amostra de acontecimento ou de enredo


Muito prosaicamente se afirmara que a amostra de acontecimento ou de
enredo toma como ponto de fundamentação empírica um acontecimento que, por
via de regra, é relativamente raro, do ponto de vista da frequência: um escândalo
político, um rumor, uma crise, um motim, uma intervenção brutal das forças da
ordem, um assunto judiciário extraordinário, etc. A pesquisa de Morin (1969)
sobre um rumor referente ao desaparecimento de moças nos provadores das lojas
dos comerciantes judeus na cidade de Orléans, a pesquisa de d’Acosta (1987)
sobre um dossiê judiciário de corrupção política na cidade de Anjou, e ainda, a de
Martel (1996) sobre um dossiê judiciário da Corte Suprema do Canadá
relativamente ao suicídio assistido (“o caso Sue Rodriguez”), são exemplos desse
gênero de amostra. Certamente, nada impede que o analista escolha um
acontecimento ordinário, como um caso usual dos tribunais.

12. As pesquisas de Shaw (1930), de Lewis (1961) e de Letellier (1971) seriam bons exemplos disso.
13.A pesquisa de Sutherland (1937) sobre o “ladrão profissional” ilustra esse tipo de pesquisa. Aqui, retomo grosso modos
distinção de Kluckhohn (1945: 157) e de Decaia (1970: 221-222).
14. No caso da pesquisa de Whyte não se deve confundir o objeto (sobretudo o grupo) com a amostra. No inicio, ele
pretendia estudar um bairro pobre (slum district) e foi isto que ele escolheu (WHYTE, 1943: 283).
177
Chamo de acontecimento menos um fato bruto do que um fato institucional
(ou cultural) singular e mesmo único, que se produz graças às instituições ou à
cultura que. por esta razão, possibilita-nos aprender as mesmas em ação. O corpus
empírico pode, às vezes consistir em alguma coisa da qual não se pode retirar
senão um único exemplo, mesmo uma atestação inédita. Essas pesquisas, para
tomar uma bela expressão de Morin (1969: 248), referem-se a “reveladores
significantes”, sejam eles fortuitos inopinados, contingentes, únicos, ou ainda, ao
contrário, típicos ou reveladores dc banalidades. Esse tipo de amostra enfatiza o
acontecimento (institucional ou cultural) a partir do qual essas pesquisas se
estruturam: um rumor, um escândalo político, um embate moral, um acidente, etc.
Talvez se possa dizer que o interesse do pesquisador recai aqui mais sobre um
acontecimento que ele julga estratégico para o conhecimento do que sobre um
meio social ou uma história de vida.
De um ponto de vista metodológico, essas pesquisas remetem, geralmente,
a um universo de análise segmentado, multirramificado, e formado por diversas
camadas ou superfícies de cobertura, colocando frente a frente várias instituições,
atores sociais, etc. Em comparação com os dois outros tipos de amostras, o
analista pode mais frequentemente experimentar uma certa dificuldade para
representar a sua própria pesquisa, sob o ângulo de uma apreensão da “totalidade”
do fenômeno, ou para concebê-la como um sistema fechado. Em outras palavras,
o pesquisador se dá conta de que não examinou o seu universo de análise (sua
população) de modo total, e de que também não é possível extrair uma amostra
operacional, no sentido próprio. do termo: ele deve escolher dentre os elementos
visíveis ou acessíveis de seu universo de análise segmentado. Nas pesquisas que
recorrem a uma amostra de meio ou de ator, pode-se falar (com algumas reservas)
em uma observação “completa” (all-around study); naquelas que recorrem a uma
amostra de acontecimento, geralmente e não se pode fazê-lo devido ao seu objeto,
uma vez que se deve recortar teoricamente o objeto, à medida que se recorta e se
apreende uma parte significativa e enigmática do acontecimento. Perpassa-se, por
vezes, o que Ginzburg (1980) lindamente denominou um “paradigma do indício”,
que lembra o modelo da semiótica médica; baseia-se nos vestígios, indícios,
traços desprezados ou não-observados, “nos resíduos, nos dados marginais
considerados como reveladores” (p. 11), para retornar “a uma realidade complexa
que não e diretamente experimental” (p. 14). Uma outra dificuldade consiste em
que alguns aspectos do acontecimento podem plantar suas raízes na zona dos
“dados ocultos” (hidden data), particularmente difíceis de evidenciar, ou cujos
vestígios são difíceis de seguir.
Tomando a noção de Veyne (1971: 36), pode-se dizer que a amostra de
acontecimento é uma amostra de enredo. Ela tem ligações objetivas, mas não
contornos naturais e predeterminados. Contudo, quando ela se apresenta ao
analista sob uma forma pré-construída pela ação institucional, como num caso
judiciário, ela pode

178
adquirir, sob um certo ângulo, contornos naturais, pois ela é, então, um fato insti-
tucional (no sentido de SEARLE, 1969: 91-92). Duas situações podem se
apresentar. Na primeira, exemplificada pela pesquisa de Morin (1969), o enredo
não tem contornos naturais e o analista é solicitado a recortá-lo diretamente, ao
seu modo, para constituir seu corpus empírico e seu objeto. Na segunda, ilustrada
pela pesquisa de d'Acosta (1987), é a justiça administrativa e penal que recorta,
primeiramente, o enredo originário e constrói sobre ele um novo enredo. Alguns
estratagemas (enredo primário) se transformam, assim, cm um caso judiciário de
corrupção (enredo secundário).
Adaptando as observações de Veyne (1971: 23-24), podem-se distinguir,
nos dois casos, o “campo dos acontecimentos”, que constitui o domínio virtual do
enredo, e o “universo de analise” de extensão variável, que o analista recorta antes
ou depois que outros cortes (institucionais) sejam produzidos e outros enredos
sejam construídos. Se o enredo não apresenta contornos institucionais claros, o
corpus empírico é uma ruptura que se opera diretamente, a partir das ligações
objetivas do enredo primário. Se o enredo tem contornos institucionais, a situação
é, ao mesmo tempo, mais simples e mais complicada, Ela é mais simples, porque
a instituição torna visível ou acessível o enredo, fazendo uma primeira pre-
construção dele. Ela é mais complexa, porque a instituição não só recorta o
enredo primário (antes do analista), como o transforma, ao mesmo tempo, no
sentido pleno do termo, em alguma outra coisa: ela participa do enredo. A
amostra abrange, assim, dois campos de acontecimentos virtuais superpostos e
eventualmente unificados e transformados: o campo do enredo pré-institucional
ou de fora da instituição, e o campo institucional do enredo (que é, geralmente, a
criação de um novo enredo). O analista deve, então, ter isso em conta.

A caracterização da amostragem por caso único


Que não nos equivoquemos: preocupo-me, aqui, com a distinção
metodológica entre amostragem por caso único e amostragem por casos
múltiplos, tratando-se de pesquisas microssociais; e não com a caracterização das
pesquisas chamadas de “estudos de caso”, em seu conjunto15. A dificuldade é que
não é possível, nem desejável, separar completamente a reflexão metodológica
sobre as pesquisas que recorrem a uma amostragem por caso único, da tradição do
estudo de caso. Porém, este último adquiriu significações diversas na sociologia
americana e foi até mesmo empregado como sinônimo de pesquisa qualitativa
(PIRES, 1982: 17; PLATT, 1983; 1992). Há vinte e cinco anos, tenta-se lhe
atribuir um significado mais técnico, mas ainda não há consenso muito claro
sobre os limites

15.A este respeito, pode-se consultor Yin (1994) e Stake (1994).


179
dessa noção. Seja como for, distinguirei, aqui, apenas duas variantes-tipo de pes-
quisa por caso único (ver o quadro .1). Ambas variantes referem-se às unidades de
análise de tamanho reduzido e têm necessariamente em comum apenas um único
critério: o de poder representar suas amostras, singularmente. Os segundo e
terceiro critérios permitem distinguir uma variante da outra. O quarto é mais um
critério de oportunidade. Ele visa, principalmente, chamar atenção para o fato de
que, contrariamente ao que se dá, às vezes, a entender, os estudos de caso podem
adotar uma única técnica principal de coleta dos dados (documentos, por
exemplo). Ele também ajuda a caracterizar a variante convencional segundo a
tradição da Escola de Chicago, já que ela privilegiava técnicas múltiplas de coleta
dos dados. Enfim, como eu trato da amostra qualitativa em geral, também devo
distinguir entre o estudo de caso único e o que Stake (1994:237) chamou de “o
estudo coletivo de caso” (collective case study). Por razões pedagógicas, apresen-
tarei essas pesquisas na seção destinada a amostragem por casos múltiplos, limi-
tando-me, aqui, a fazer alguns esclarecimentos sobre dois critérios dessas duas
variantes do estudo de caso único.

O corpus empírico no singular


Pode-se dizer que a pesquisa por caso único se baseia num corpus empírico
que é representado no singular e que implica a ideia de fazer um estudo em pro-
fundidade desse único caso. Tem-se um caso único, quando à pergunta “qual E a
principal base empírica deste estudo?” responde-se: “E tal pessoa, tal família, tal
meio (ou tal instituição), tal acontecimento”. Vê-se que a noção de “caso único”
abrange uma grande variedade de situações (HUBERMAN & MILES, 1991: 47):
as pesquisas baseadas em uma pessoa, um caso judiciário, uma escola, uma peri-
feria, etc. O caso pode ser, portanto, simples ou complexo (STAKE, 1994: 26).
Como o observa Stake (p. 47), nos fazemos um estudo de caso, porque acredita-
mos poder aprender alguma coisa a partir de um único caso. Nosso caso - como
ele o diz - “é um dentre vários” (p. 47). Por outro lado, a escolha adquire uma
importância particular, já que nós temos apenas um caso, e são as suas
características que darão as condições de existência do objeto. Assim como há um
grande número de estudos quantitativos insignificantes, os exemplos de estudos
de casos superficiais - como o lembram Hubertnan e Miles (1991: 22) - também
não são raros. Entretanto, quando o caso particular é bem escolhido e “bem
construido” (Bourdieu), ele deixa de ser particular e pode contribuir de forma
significativa para o conhecimento. Em um estudo de caso, não nos interessamos
unicamente pelas especificidades do caso em questão (ainda que elas possam ser
valorizadas e importantes), mas também por sua capacidade de servir de via de
acesso a outros fenômenos ou a outros aspectos da realidade.

180
QUADRO I
Critérios de caracterização de duas variantes de pesquisa qualitativa por caso único
referentes às microunidades sociais (“estudos de caso”)

Variante convencional Variante não-convencional


1. Corpus empírico representado sin- 1. Corpus empírico representado singu-
gularmente e descrição em profundidade. larmente e descrição em profundidade.
2. Amostra de ator ou de meio. 2. Amostra de acontecimento (ou de en-
redo).
3. Universo de análise fechado (com
contornos físicos “naturalmente de- 3. Universo de analise potencialmente
terminados”). Ele toma a forma de um multirrarnificado, segmentado, ou fazendo
sistema integrado (boimded system). Fa- intervir diversas instituições de modo direto.
cilidade de falar de Um olhar sobre o Necessidade de recortar o enredo para fins
conjunto. de descrição empírica. Dificuldade, e
mesmo impossibilidade, de falar de uma
4. Adotam-se, usualmente, na mesma observação completa.
pesquisa, varias técnicas principais de
coleta dos dados (observação in situ, en- 4. Pode-se adotar uma única técnica
trevistas, documentos, etc.). principal de coleta de dados (ex.: do-
cumentos), com ou sem outras “fatias de
dados” (slice of data).

O universo de análise fechado


A variante convencional se caracteriza também pelo fato de que o
universo de análise é fechado; ou seja, tem contornos físicos “naturalmente
determinados” (por exemplo, urna pessoa, uma escola, etc.), adquire a forma de
um “sistema integrado” (SM1TH, apud STAKE, 1994: 236) e permite uma
observação “completa” (all-around study) e, frequentemente, “direta”
(COOLEY, 1928: 128). A ideia central é a de que o universo de análise - ou as
fronteiras do caso - forma uma unidade natural (mais do que conceitual),
permitindo uma observação direta e completa por parte do analista. Por exemplo,
o estudo de uma pessoa, uma escola, ou uma periferia, atende grosso modo a
essas condições: são “conjuntos” possuindo contornos naturalmente
determinados e apreensíveis como um todo.
Esse critério coloca três dificuldades: a do tamanho, a da completude e a
do sentido da noção de “contorno natural”.
A primeira se formula assim: quão amplo um “sistema” (ou um universo
de análise) pode ser para que ainda se possa vê-lo como um estudo de caso único,
retirado de uma microunidade de análise? Uma pesquisa sobre uma cidade do
porte

181
de Nova York seria considerada como extraída de uma microunidade? Vê-se
bem que esta questão não pode receber uma resposta decisiva. No âmbito da
variante convencional aqui considerada, o tamanho é um aspecto importante, cm
razão dos efeitos que produz sobre o tipo e a escala de observação do analista. De
fato, quanto maior a unidade mais a observação é realizada à distância, abstrata e
incompleta; inversamente, quanto mais a unidade é restrita, mais se pode afirmar
ter feito uma análise em profundidade, de perto e completa do ponto dc vista
privilegiado. Assim, Cooley (1918: 128) privilegia uma escala cartográfica
reduzida e propõe que o estudo de caso (variante convencional) seja concebido
como um estudo direto e completo, que se distingue dos estudos indiretos,
parciais e mais abstratos. Nessa ótica, o estudo de uma cidade como Nova York
não satisfaz a esse critério da variante convencional. Evidentemente, não se deve
“privilegiar” essa escala reduzida de forma abstrata, pois tudo depende dos
objetos que nós nos atribuímos, mas convém ser advertido sobre as diferenças
entre os diversos modelos.
E o que significa um estudo “completo”? Estamos todos conscientes do
fato de que a realidade é inesgotável. Znaniecki (1934: 256) já havia advertido o
analista de que “nenhuma esperança pode ser mantida de que uma análise possa
ser suficientemente desenvolvida para ser final16. Além disso, como toda
“escolha e tratamento dos dados são operações 'cognitivas' sobre a 'realidade', que
poderiam ser definidas ciamo a elaboração de um resumo” (Ramognino,
1.992:55), seria ilógico se esperar que um tal resumo pudesse ser “completo”, no
sentido de tudo ver, tudo incluir, tudo dizer, etc. Um resumo completo é uma
contradição e, além do mais, ele seria inútil. O objeto é necessariamente
construído. É preciso, assim, considerar a noção de “completude” por oposição à
noção de amostra operacional, e não como sinônimo de correspondência ponto
por ponto com a realidade. Ela quer simplesmente dizer que o pesquisador está
numa situação na qual ele pode afirmar ter observado de perto o conjunto de seu
universo de análise, de sua “população”, em relação ao problema de pesquisa.
Enfim, a ideia de um contorno natural é reforçada, aqui, pelo tipo de
amostra privilegiada: uma pessoa, um meio, etc. A “materialidade” do objeto
facilita a tarefa do analista e justifica satisfatoriamente a sua percepção de ter tido
acesso ao conjunto de sua população (universo de analise). Porém, nós havíamos
visto que existe. um tipo de pesquisa na variante não-convencional (concernente
aos acontecimentos), que se situa a meio caminho entre um “contorno natural”
definido e um “contorno segmentado”. É o caso de uma pesquisa baseada em um
dossiê judiciário. Se aplicarmos, então, essa ideia de modo flexível, essa
“materialidade” poderá

16. Bourdier, Chamboredon e Passeron escrevem nesse mesmo sentido: “[...] nas situações reais da prática científica, não se
pode esperar construir problemáticas ou teorias novas senão sob condição de renunciar à ambição impossível, [...], de tudo
dizer sobre tudo e na boa .ordem (BOURD1ER: CHAMBORECION; PASSERON, 1973: 23)
182
servir para o pesquisador reduzir a escala de seu universo de análise e apresentar
seu estudo como tendo sido “completo” em um nível determinado.

A seleção do caso
Eis alguns critérios que influem na escolha do caso:
 a pertinência teórica (em relação aos objetivos iniciais da pesquisa);
 as características e a qualidade intrínseca do caso;
 a tipicidade ou a exemplaridade;
 a possibilidade de aprender com o caso escolhido17;
 seu interesse social;
 sua acessibilidade à investigação.
Em geral, há uma relação, ao mesmo tempo, de competição e de
complementaridade entre esses diferentes critérios. Por outro lado, é preciso, em
qualquer circunstância, ter em conta os dois primeiros. Um caso rico, mas mal
adaptado ao problema, exige que se escolha um outro caso, ou que se modifique o
problema; um caso pobre, mas bem adaptado ao problema, incita-nos a pesquisar
um outro caso. Descartemos qualquer mal-entendido concernente à noção de
exemplaridade. Geralmente, ela não se confunde com a ideia de “exemplo”, pois
o caso não usualmente escolhido para ilustrar uma tese que teria sido inteiramente
construída antes, sem este caso; a tese que emerge do estudo de caso é um
resultado de pesquisa, no sentido de que ela se baseia nele, ou decorre em parte
desse caso. Em resumo, “exemplaridade” significa tanto tipicidade (“caso
típico”), quanto possibilidade empírica de apreender, descobrir ou demonstrar.
Nesta Ultima acepção, seu sentido se torna vizinho ao de possibilidade de
aprender (quarto critério).

Três eixos teórico-metodológicos principais

Os estudos qualitativos (de caso único) de microunidades se caracterizam,


usualmente, por três eixos de finalidades teórico-metodológicas principais (ver a
figura 618). Em cada eixo, encontra-se uma espécie de tensão - ou de competição
- entre dois polos, dos quais um detém o papel dominante e o outro um
secundário em relação a tal ou qual aspecto da pesquisa, por se tratar de
diferentes finalidades teóricas que nós atribuímos. Exatamente por essa razão,
algumas pesquisas se arti-

17. Stake (1994: 243) ressalta particularmente a importância desse critério. “Aprender com o caso” indica um certo interesse
por um procedimento indutivo: Se o objetivo principal da pesquisa é testar modelos teóricos, esse critério se torna, pela forca
das coisas, menos importante ou adquire um outro significado.
18. Abordo esses eixos no contexto dos estudos de caso único, mas eles podem também auxiliar a caracterizar as pesquisas
qualitativas por casos múltiplos. '
183
culam aos dois polos de um mesmo eixo. Além disso, uma mesma pesquisa pode
se caracterizar em função de mais de um eixo. Por exemplo, no estudo de Morin
(1969), retira-se uma dominância dos polos B, D e E; no de Shaw (1930), os
polos dominantes são A, C e E.

FIGURA 6
Três eixos de finalidades teórico-metodológicas principais

O eixo do especifico e do geral

O primeiro eixo indica a opção no que se refere ao interesse pelo


fenômeno em si, ou enquanto possibilidade de abordar algumas questões
teóricas. Certamente, o interesse pelo acesso a um geral empiricamente
fundamentado exige constantemente uma boa construção do específico, para se
proteger dos desvios de sentido; porem, nota-se, na maioria dos estudos, uma
propensão a se vincular a um ou a outro. Evidentemente, pode-se lamentar, por
vezes, uma enorme falta de equilíbrio entre esses polos. Algumas pesquisas se
tornarão, então, ou demasiado abstratas, ou demasiado empíricas. No primeiro
caso não se veem mais ligações entre os enunciados teóricos e o corpus empírico.
Tudo se passa como se o analista não necessitasse da pesquisa para manter esses
objetivos. No segundo, a pesquisa não demonstra seu valor teórico. Se a
descrição empírica for, por outro lado, muito bem feita, esse corpus empírico
possibilitará uma reflexão teórica a posteriori por um outro pesquisador.
Efetivamente, há pesquisas cujo principal objetivo é simplesmente construir um
corpus empírico, ou ainda, “restabelecer os fatos” sobre uma
184
questão qualquer. Algumas investigações, qualitativas ou qualitativas, visam, so-
bretudo, informar, reavaliar uma situação de interesse pratico (por exemplo, re-
construir as etapas de um julgamento controvertido), ou ainda, orientar uma in-
tervenção política, ou clínica.
Ao ir em direção ao polo B, o pesquisador demonstra um interesse pelo
objetivo explícito de ter acesso a um conhecimento geral sobre alguns aspectos
da vida institucional, cultural, ou psicológica. Pode-se também reconstruir um
caso com o objetivo de pôr à prova uma ou várias teorias cientificas atuais, ou
propor novas hipóteses de pesquisa.

O eixo dos comportamentos e da sociedade

O segundo eixo ilustra o fato de que uma pesquisa pode principalmente ter
por objetivo a compreensão de certos comportamentos (problemáticos), enquanto
o objetivo de uma outra é a compreensão de certos aspectos da cultura ou da
sociedade. Em número de pesquisas, o primado de um ou de outro desses
objetivos bastante claro. Pode-se encontrar essa polarização mesmo nos estudos
de caso único com uma amostra de ator. Por exemplo, Shaw (1928) privilegia a
compreensão do desvio, enquanto Lewis (1961) se atém a aspectos da vida
social. Evidentemente, há também pesquisas que atuam nos dois quadros, como a
obra clássica de Sutherland (1937), que, ao fazer a genealogia de um
comportamento desviante, mostra, ao mesmo tempo, como este “ofício” - o do
“ladrão profissional” - é socialmente construído. A atividade do ladrão
profissional aparece, então, como uma inscrição individual no contexto de um
estilo de vida social (way of life). Torna-se ladrão profissional, assim como se
torna policial ou advogado. De um lado, a pesquisa desconstrói as explicações
teóricas orientadas sobre a hipótese da patologia (ao sugerir uma explicação
voltada para uma psicossociologia da normalidade), e, de outro lado, ela nos
ensina muito sobre o funcionamento das instituições sociais. A figura do ladrão
profissional é, portanto, aquela pela qual se pode compreender a estrutura e o
funcionamento do sistema, para parafrasear Morin (1969: 247). As noções-chave
de estilo de vida e de oficio possibilitam ler essa pesquisa em duas direções.
Chamarei o primeiro tipo de pesquisa de “modelo comportamental”, e o segundo,
de “modelo societario”19 (ver a figura 7)

O modelo comportamental e a amostra de ator único

Por razões variadas e complexas, que vão da ambiguidade de certas


formulações aos vieses positivistas, passando por problemas teóricos de difícil
resolução, este modelo - aplicado a um único ator - foi o mais controvertido das
pesquisas qualitativas. Contentar-me-ei, aqui, em ilustrar a discussão, por meio
de alguns aspectos de uma pesquisa clássica da Escola de Chicago (SHAW,
1930).

19. Shaw (1930: 7) faz, de um certo modo, alusão a esses dois modelos.
185
FIGURA 7
Dois modelos teóricos da amostragem por caso único (amostra de ator)

Objetos de estudo

186
No todo, as pesquisas que adotam este modelo tinham ao menos três
objetivos conjugados: a) um interesse metodológico; b) um interesse teórico; e c)
um interesse pragmático ou clinico. O primeiro buscava mostrar o valor da escuta
empática (sympathetic appreciation), e do ponto de vista do interior e de baixo
(da mensagem from “down there”) para uma compreensão do caso. O segundo
visava enunciar hipóteses (e não uma teoria) sobre comportamentos
problemáticos e ressaltar a importância dos conceitos-chave de “processo”
“interação”, “reação”, “definição da situação”, etc. Por fim, o último procurava
reorientar a relação de ajuda, fornecendo novas pistas para o tratamento do
sujeito e,de outros indivíduos em uma situação social e pessoal semelhante.
Ninguém duvidava do fato de que essas pesquisas pudessem inspirar
hipóteses teóricas interessantes, com uma certa base empírica, e tampouco de sua
capacidade de atender convenientemente aos objetivos metodológico e
pragmático. É mais a questão da generalização teórica a todos os
comportamentos “delinquentes”, e também a da construção de teorias com base
numa única pessoa, que fazem correr muita tinta. A pesquisa de Gratton (1996),
por exemplo, explicita claramente que não se podem compreender todos os casos
possíveis de suicídios de jovens, a partir de um único caso, ainda que,
eventualmente, este possa ser suficiente para ilustrar uma modalidade deste
comportamento. Ora, se isso é verdade para o suicídio, a situação é ainda mais
delicada em relação à “delinquência”, e isto por ao menos duas razões.
Primeiramente, o número de comportamentos passíveis de serem rotulados como
“delinquentes” é muito maior (exemplo: trapacear, destruir, bater, difamar, matar,
agredir sexualmente, apropriar-se do que pertence ao outro, etc.) do que o
número de comportamentos chamados de “suicidas”. Depois, o rótulo de
“delinquência” depende de uma lei e da reação social das pessoas, o que não é o
caso do suicídio. Este último problema é de ordem epistemológica e só se tornou
evidente muito mais tarde (PIRES, 1993a). Uma só pessoa não pode, portanto,
dar acesso à compreensão de todos esses comportamentos problemáticos
considerados de maneira abstrata.
Porém, essas pesquisas podem ser utilizadas para esclarecer os
comportamentos do informante que estão no centro da investigação, e também
possibilitam apreender certos mecanismos e situações capazes de provocar a
emergência de comportamentos problemáticos. Elas podem também ajudar a
construir, por meio de outros casos, casos-tipo empíricos, à luz dos quais se torna
possível explicar melhor algumas formas contextuais de comportamentos
problemáticos. Esse tipo de pesquisa, como vimos, tenta obter uma série de
fontes de dados referente à história de vida do indivíduo, incluindo seu relato
pessoal (own story, own account, personal document) o mais completo possível.
Essas fontes de dados podem compreender informações médicas, jurídicas,
depoimentos de outros informantes, etc. O objetivo é construir uma história
completa (total case history), dai a ideia de ter

187
tudo observado em seu universo de analise20. O movimento do pensamento é,
aqui, centrípeto: o indivíduo e seus comportamentos estão no centro das
preocupações, e faz-se convergir para ele essa variedade de fontes de
informação21. A direção teórica principal do olhar é clara: deseja-se compreender
determinadas condutas.
Indiretamente, e de maneira um pouco inesperada, descobriu-se uma outra
utilidade para essas pesquisas: elas servem como uma forma de “avaliação”
crítica das teorias (BECKER, 1966: x-xii). Efetivamente, trata-se de uma forma
aberta de crítica, porque, em lugar de expor primeiramente a teoria que ela deve
testar, a pesquisa leva muito simplesmente a uma descrição em profundidade
especifica e individualizada de um caso. Esta descrição aparece, assim, por força
das circunstâncias, como um desafio aberto - ou como um “caso negativo” (p. xi)
-, lançado às teorias que se aplicam a esse caso.

O modelo societário

Neste modelo, o pesquisador orienta seu olhar no sentido inverso do


precedente: em lugar de ter em mente certos comportamentos que ele quer
compreender ou explicar, ele parte da história pessoal de um ator social; do
escudo de um meio, ou de um acontecimento, para apreender determinados
aspectos da organização social, das instituições, ou da cultura. O pensamento
adota, aqui, um movimento centrifugo: a compreensão do caso, enquanto tal,
cede lugar a um conhecimento mais geral que o próprio caso.
Nas pesquisas com ator único, quando o analista bebe em outras fontes de
dados que o relato de vida, estas visam menos explicar os comportamentos do
sujeito do que determinados aspectos ou mecanismos da vida social e cultural de
seu grupo ou da sociedade. Tudo se passa como se o ator não tivesse, aqui, senão
um interesse metodológico, na medida que é por sua mediação que se apreendem
os modos de vida, que se detecta o funcionamento das instituições, etc., verdadei-
ros alvos do conhecimento.
Geralmente, a tipicidade do caso é, aqui, menos importante do que suas
qualidades intrínsecas (sua “riqueza”), ou do que as oportunidades que ele
oferece para esclarecer certos aspectos da vida social. As circunstâncias, a
sensibilidade ou a habilidade do pesquisador para descobrir o caso desempenham
um papel indiscutível. E também, quanto mais o caso abre novos caminhos para
a reflexão ou para outros materiais empíricos, mais há possibilidades de ser um
“bom caso”. Eu insisto no fato de que, aqui, a raridade do acontecimento,
enquanto tal, é muito pouco

20. A história pessoal e a parte mais importante de uma história integral (SHAW, 1930: 2).
21. A, pergunta: “O que nos revela a historia de vida pessoal?”, Shaw (1930: 3) responde: ela revela informações úteis sobre
pelo menos três aspectos da conduta do informante: 1) seu ponto de vista; 2) a situação social e cultural a qual ele corresponde;
e 3) a sequência de experiências e de situações em sua vida.
188
relevante; não é a frequência do flash de luz que importa, mas sim o que ele
permite ver. Além disso, a raridade pode ser integrada como significativa na
análise.
Na amostra de ator, o vivido, a perspicácia, a boa capacidade de expressão
do informante, e seu papel objetivo nos acontecimentos, ou na estrutura social,
são fundamentais. Além disso, como L :tellier (1971: 18-19) bem o observa a
respeito, preciso se desvencilhar da ideia de que o bom informante é aquele que
não possui nenhuma originalidade. Ao contrário, “a originalidade relativa de um
informante-chave apresenta até algumas vantagens” (p. 18), na medida que nos
permite ver melhor o que nos interessa22.
A coleta dos dados se faz em função das necessidades da análise e da
construção teórica: à medida que se colocam questões, ou que se formulam
hipóteses, buscam-se os elementos empíricos para prosseguir ou encerrar a
análise. Em qual momento deve-se por um fim a esta tarefa sem fim? Quando se
tem material suficiente já investido pela reflexão teórica para sustentar as
análises, verdadeiros resultados de pesquisa.
Na amostra de ator ou de meio, com alguns casos de amostra de
acontecimento, também se cessa a tarefa, quando se acredita ser possível dizer
que se “fez o giro” do universo de análise, ou de um subconjunto dele; isto é,
quando se coletaram todos os dados disponíveis ou suficientes, tendo em vista as
finalidades da pesquisa. Pesquisadores empregam, aqui, a noção de saturação
(empírica), para designar o fato de que a coleta dos dados (sobre um único caso)
não mais traz informações suficientemente novas, para justificar o aumento do
corpus empírico23. Porém, outros não o fazem, como Baumgartner (1988), uma
vez que a aplicação desse princípio em um estudo de caso Mike, (sistema
fechado) é menos importante.
As pesquisas que recorreram a uma amostra de acontecimento e a um
universo de análise aberto enfrentam uma situação mais difícil. Os dados
potencialmente pertinentes são múltiplos e estão dispersos em diferentes locais.
O princípio de saturação é, aqui, em geral, completamente inadequado e ilusório:
mais frequentemente, o pesquisador recorta e constrói, mas não satura nada do
ponto de vista empírico, pois ele junta pedaços de um subsistema ao outro, sem
jamais “fazer o

189
giro”. Pode-se dizer que ele segue um caminho que ele próprio traçou, que ele
desenha uma trama, um pouco como o historiador “que recorta a história à [sua]
vontade”, pois “ela não tem articulação natural” (VEYNE, 1971: 23). O analista
encontra-se, portanto, em uma situação mais desconfortável, justamente devido a
sua liberdade de desenhar os contornos de sua história.

O eixo da descrição em profundidade e da comparação

O terceiro eixo indica a tensão entre um estudo de caso único e um estudo


coletivo de casos (Stake), ou ainda, entre um escudo de caso único e uma
pesquisa por multicasos. Stake (1994: 241) tem razão em dizer que a comparação
duma tarefa que compete com a descrição em profundidade. Não se podem
privilegiar, ao mesmo tempo, todas as formas de projeção da realidade. A
utilidade de cada possibilidade depende dos aspectos da realidade que se
pretende satisfatoriamente mostrar a custa da deformação e do obscurecimento
de outras. A descrição em profundidade deixa ao leitor cuidado de fazer suas
próprias comparações com base na “boa descrição” fornecida (p. 241).
Evidentemente, a noção de “profundidade” é relativa. Uma entrevista de duas
horas permite fazer uma descrição “mais em profundidade” (e menos extensa) do
que um questionário; porém, uma pesquisa por caso único de um ator com,
digamos, 100 horas de entrevistas, atinge um grau mais alto de descrição em
profundidade. Cabe especificar que a questão do grau e da forma da descrição
“em profundidade” não corresponde a nenhum ideal em si: sua boa medida ou
forma de dependem dos objetos.

A questão da “generalização”

Além de algumas observações de ordem geral, tratarei aqui,


exclusivamente, da questão da generalização nos estudos de caso único, adotando
o modelo societário24.
Digamos, primeiramente, que há diferentes significações e formas de
generalização e que nenhuma delas seja aplicável a todos os tipos de pesquisas,
de dados, ou ainda, a todos os objetos. Não farei distinção entre os termos
“generalização”, “inferência”, ou “indução”, empregados pelos autores.
Entretanto, para facilitar a exposição e esclarecer alguns pontos, gostaria de
distinguir entre dois níveis de generalização (empírica e teórica) e dois tipos de
generalização empírica (estatística e empírico-analítica). Efetivamente, a
generalização empírica pode tomar uma forma numérica (ou estatística), ou uma
forma empírico-analitica. Ela é própria às pesquisas qualitativas. Toda pesquisa
(qualitativa ou quantitativa) comportando um interesse teórico produz,
igualmente, generalizações teóricas. O pesquisador

24. Nós já examinamos as contribuições e os limites dos estudos de caso único tom uma amostra de ator, adotando um
modelo comportamental. Não posso desenvolver mais esta questão, aqui.
190
qualitativo emprega uma única expressão, “generalização (ou indução) analítica”,
para designar os dois níveis de generalização: a generalização empírico-analítica
e a generalização teórica (ou também analítico-teórica).
Lembremos que as pesquisas com uma estrutura aberta sejam elas
qualitativas ou quantitativas, não produzem generalização empírica propriamente
dita. Como elas examinaram, por assim dizer, toda a sua população, e não tem
uma amostra operacional, elas só levam as generalizações analítico-teóricas. Os
estudos de caso único qualitativos (modelo societário) pertencem a este gênero
de pesquisa. O fato de ter um único caso não impede uma certa forma de
generalização. Isso não significa que se possa generalizar tudo sobre tudo, e não
importa de qual forma.
Examinemos, agora, os dois tipos de generalização. O termo “inferência
estatística” designa o conjunto dos procedimentos e princípios estatísticos que se
emprega, quando se pretende realizar uma pesquisa quantitativa sobre uma
população (universo de análise) que não se pode examinar na totalidade. Deve-
se, assim, retirar uma amostra operacional dessa população; descrever e analisar
esta amostra, e, em seguida, generalizar os resultados (inferência estatística) para
a sua população de referência. Uma sondagem sobre a intenção de voto de uma
população recorre à inferência estatística, porque se toma uma amostra e se
generalizam os resultados para o conjunto da população. É evidente que uma
pesquisa qualitativa não pode nem fazer inferências estatísticas, nem mesmo
descrever quantitativamente um fenômeno, determinando sua frequência, sua
distribuição, etc. Certamente, isto não quer dizer que o pesquisador qualitativo
não pode estimar, qualitativamente, ordens de grandeza, de intensidade, de
distribuição, de tipicidade, etc. Contudo, ele não pode quantificar essas
estimativas.
A pesquisa quantitativa também procede, para além da inferência
estatística, a uma série de outras inferências que se pode chamar de analíticas,
teóricas, ou analítico-teóricas25. E essa inferência nem sempre é subordinada à
inferência estatística. Como o enfatizam Morrison e Henkel (1970: 193), por
ocasião de um debate concernente aos testes estatísticos de significação, não se
deve confundir a “teoria estatística” com a “teoria social”, ou mais globalmente,
com o raciocínio teórico tal como ele se apresenta em cada disciplina; e nem a
significação estatística com a significação “substantiva” (p. 192). A pesquisa
qualitativa também faz essa inferência analítico-teórica ou cientifica.
Mas, como se denomina a inferência empírica que se encontra em
algumas pesquisas qualitativas, e que tem uma função metodológica equivalente
à da infe-

25. Alguns autores, falando a partir de uma disciplina, empregam expressões cow “inferência sociológica', “psicológica”, etc.
para distingui-la da inferência estatística. Eu prefiro a expressão “generalização (ou inferência) teórica”, analítico-teórica”, ou,
simplesmente, “analítica”, porque ela é comum às diferentes disciplinas, No mesmo sentido, pode-se também distinguir mais
simplesmente a inferência estatística da inferência cientifica (MORRISON & HENKEL, 1970: 198., ATKINS & )A.RREI,
1,979: 89).
191
rência estatística? Essa inferência empírica qualitativa tem uma denominação
consagrada: “indução analítica”. No qualitativo, como eu o mencionei
anteriormente, utiliza-se o mesmo termo para os dois níveis de generalização.
Isto se justifica porque é muito raro, no qualitativo, que se possam separar
nitidamente os dois níveis, mais particularmente nas pesquisas com uma estrutura
aberta. Entretanto, para chamar atenção para a diferença entre esses dois níveis,
eu a denomino aqui “generalização empírico-analítica”, ou tão simplesmente
“empfrica”.
Znaniecki (1934: 250-251) propôs uma distinção entre a “indução
estatística” (ou “enumerativa”) e a “indução analítica”26. Esta distinção é
importante, para que se possam compreender as diferentes modalidades de
generalização. A primeira, diz ele, procura na realidade as características que são
comuns a um grande número de casos e, em razão de sua generalidade (ou de sua
extensão), presume que elas sejam essenciais para cada caso. A indução analítica,
ao contrário, procura em um caso concreto (ou em um pequeno número de casos)
as características que lhe (ou lhes) são essenciais (ou as propriedades
constitutivas) e as generaliza, presumindo que, por serem essenciais, elas devam
se aplicar a outros casos similares.
A inferência analítica ou teórica permite também apreender na vida social
aspectos dessa realidade, que são “vagos por essência” (MOLES, 1990: 12); isto
é, que é absolutamente impossível determinar de outra maneira do que
qualitativamente. Por exemplo, dizer que se mede quantitativamente o “poder”
de um grupo em relação a um outro significa, em geral, muito simplesmente, que
se propõe uma precisão, que, paradoxalmente, não é rigorosa: isto é, uma
precisão que “não é conforme com as leis da razão” (p. 12), porque não é
conforme com a natureza do objeto.
Viu-se, por outro lado, que as pesquisas qualitativas por caso único com
uma estrutura aberta não seguem um procedimento metodológico nítido de
generalização em duas etapas27: elas passam diretamente de seu universo de
análise aos universos gerais (nível teórico). Esta generalização - como toda
generalização teórica proveniente de uma pesquisa quantitativa - é, então, ao
mesmo tempo fundamental e fluida; isto é, ela poderá sofrer adaptações parciais,
quando for aplicada a outros contextos de pesquisa (outros universos de análise).
Os resultados analíticos são essencialmente plásticos ou maleáveis; ou seja, uma
vez produzidos, eles têm a capacidade de serem moldados por futuros usuários.
Esses estudos de caso único do modelo societário visam ao conhecimento
dos mecanismos sociais, das instituições sociais, da cultura, etc. A generalização
designa, então, as inferências analíticas feitas a partir das observações sobre a
estrutura, os processos e o funcionamento de um sistema ou da vida social. O
estudo de caso

26. Os termos empregados são “enumerative induction” e “analytic induction”. Vet tamban Uncles-mith (1947: 21).
27. Evidentemente, isso seria também um inconveniente para as pesquisai4uantitativas, como a de Blau (1960); porém, com
os números, este tipo de dificuldade passa desapercebido.
192
permite também compreender algumas questões relativas as transformações
sociais e culturais, pois se pode apreender a cultura e os mecanismos sociais em
ação, a partir dos fenômenos “normais”, rotineiros, que, sem serem extremos ou
excepcionais, revelam-se como excelentes fios condutores para a análise de
diferentes aspectos da sociedade. Pode-se também apreende-los, como o observa
Morin (1969: 249-251), a partir de fenômenos e situações extremas
“paroxisticas”, “patológicas” (para o sistema), que desempenham um papel
“revelador”.
Enfim, as pesquisas desse gênero suscitam, às vezes, um certo
inconveniente frente à ideia de generalização, tal como se a compreende
intuitivamente. É que, quando elas são bem realizadas, elas possibilitam uma
descrição em profundidade, dando lugar a uma riqueza de detalhes e a uma
valorização de alguns traços distintivos. Esse aprofundamento produz um efeito
de individualização do caso, que, considerado em sua totalidade, aparece, desde
então, como impossível de “generalizar”. Do mesmo modo que se diz que cada
pessoa é “única”, quando se a aprecia nos detalhes, o pesquisador pode descobrir,
após uma descrição em profundidade que seu caso é único. É o problema de
escala e de projeção: os processos de aprofundamento e de generalização são
orientados em direções opostas. Em um estudo de caso concernente à ordem
moral em um subúrbio (suburb), Baumgartner exprime bem esse inconveniente:
Nenhum vilarejo (town) pode, provavelmente, representar todos os outros
(all of suburbia), e tampouco a falta de traços particulares passíveis de distingui-
la dos outros lugares. No entanto, o estudo de um único vilarejo nos dá um meio
acessível de reunir uma informação detalhada que pode lançar uma luz (offer
insights) sobre uma grande variedade de conjuntos análogos
(BAUMGARTNER, 1988: 14).
Na realidade, o estudo de caso representa em diversos níveis outros casos,
e o pesquisador ou o leitor podem generalizar no sentido de que eles podem reter
em espírito crítico uma série de explicações capazes de ajudá-lo a compreender o
que se passa alhures (generalização analítica, plástica). Mas, este não é o case no
todo, e, em seus menores detalhes; que são generalizados. E no convém
especificar abusivamente o conteúdo da generalização analítica, pois ela é
perfeitamente operacional no plano do pensamento e da criação. Toda tentativa
nessa direção seria vã e reduziria exatamente o que a generalização apresenta
como vantagem, seu alcance heurístico e seu conteúdo polivalente28. Busca-se,
ao longo da análise, um equilíbrio entre algumas precisões e algumas distensões,
cm vista de atingir um alcance mais heurístico. A questão-chave para essas
amostras não é, portanto, por exemplo: Quantos hospitais é preciso considerar
para se falar no conjunto dos Hospitais?; mas, sim: Quais são as propriedades e
quais são os processos característicos desse sistema?;

28. Há, neste sentido, um paralelo entre esse tipo de generalização e o que Zadeh, pesquisador em física matemática na
Universidade de Columbia, chamou de “conceitos fluídos” (fuzzi concepts). Ver Moles (1990: 39).
193
Como ele funciona e quais efeitos ou funções pode-se extrair dele?, etc. É certo
que se a pesquisa for malfeita, qualquer generalização se tornará inaceitável.

A amostragem por casos múltiplos das microunidades sociais


As pesquisas qualitativas que recorrem à amostragem por casos múltiplos
(ou multicasos) adquirem duas formas-tipo: a das entrevistas com vários
indivíduos e a dos “estudos coletivos de casos” (STAKE, 1994: 237). Para
facilitar a exposição, apresentarei as pesquisas por casos múltiplos referindo-me,
principalmente, as pesquisas que fazem uso das entrevistas. Os estudos coletivos
de casos recorrem, sobretudo, a amostras por contraste-aprofundamento. Eu
tratarei delas, então, neste momento. No que concerne a amostragem por casos
múltiplos, as pesquisas baseadas em documentos são similares, em diversos
níveis, as pesquisas por entrevistas.

O eixo das representações sociais e das experiências de vida

Um quarto eixo de finalidades teórico-metodológicas caracteriza mais


particularmente as pesquisas por entrevistas (ver a figura 8):
Um primeiro grupo de pesquisas visa, sobretudo, “apreender e dar conta
dos sistemas de valores, normas, representações, símbolos próprios a uma
cultura, ou uma subcultura” (MICHELAT, 1975: 2329). Pretende-se conhecer as
ideologias ou atitudes dos indivíduos pertencentes a diferentes classes sociais,
diversos meios, partidos políticos, etc. O estatuto conferido ao entrevistado é o de
um indivíduo que é o “portador da cultura e das subculturas as quais ele pertence
e das quais ele é representativo” (ibid.: 232; grifo meu). Ele é uma espécie de
base de uma das constelações do sistema de valores societário. Neste sentido, não
á necessário que o indivíduo lenha vivido uma experiência particular, ou seja,
detentor de um conhecimento específico. Assim, se nós quisermos conhecer a
imagem que categorias diferentes de pessoas têm da justiça, nossa escolha não
será limitada aos indivíduos que tinham uma experiência de vida com a justiça
(os detentos, por exemplo), ou que são peritos neste campo; bastará pertencer a
uma sociedade possuindo esse tipo de instituição.
As pesquisas do segundo grupo se interessam, sobretudo, pelas
experiências de vida, pelas instituições e pelas práticas sociais em geral. O
estatuto do entrevistado é, portanto, outro. Cada indivíduo é menos o portador de
um subsistema de valores, do que um informante, no sentido estrito do termo:
necessita-se dele para obter algumas informações sobre o objeto. Trata-se, assim,
de conhecer seu ponto de vista sobre o desenvolvimento dos fatos ou o
funcionamento de uma instituição

29. Sobre a utilização da entrevista e sobre a amostra nesse tipo de pesquisa, ver o excelente artigo de Michelat (1975), que,
em minha opinião, continua insubstituível.
194
ou de apreendê-lo através de sua própria experiência: de dar conta de seus
sentimentos e percepções sobre uma experiência vivida; de ter acesso aos valores
de um grupo ou de uma época que ele conhece a título de informante-chave, etc.
Evidentemente, o pesquisador se reserva sempre o direito de ir além da
informação dada por cada informante, e de contextualizá-la convenientemente,
confrontá-la com outros fatos e abordá-la de maneira crítica. Porém, uma tal
escolha metódica implica, ainda assim, que haja menor interesse pelo que o
interlocutor acredita, do que pelo que ele sabe, ou acredita saber, por tê-lo
diretamente vivido ou observado. Notem que o acesso à dimensão factual passa
necessariamente pela mediação da subjetividade dos entrevistados.
Convém distinguir, portanto, a partir de um ponto de vista metodológico, a
certeza expressada pelo entrevistado da certeza que o analista tenta alcançar.
Como há risco de erro dos dois casos, devem-se colocar duas dúvidas metódicas,
que não se situam no mesmo momento da pesquisa, e que são relativamente
diferentes. Primeiramente, a certeza do informante sobre um fato deve sempre ser
vista como uma forma de crença: não porque ele está convencido de que as
coisas se passam de uma certa maneira que elas efetivamente são assim. Quando
um dos entrevistados diz que “sabe” que as coisas aconteceram assim, isto
significa, simplesmente, que ele está certo disso. Neste sentido, “saber” não
significa que é verdade, mas apenas que se está convencido disto
(WITTGENSTEIN, 1958: 31-32). Mas depois é precisa também dosar essa
dúvida, porque não se pode fazer pesquisa com base nos fatos, apenas duvidando.
Efetivamente, deve-se, de um lado, estar atento, e mesmo desconfiado, em
relação as representações, e, de outro lado, garantir certos conhecimentos, sob
pena de renunciar à pesquisa de um “conhecimento aproximado”, segundo a
formula de Bachelard. A pesquisa aparece, assim, como um modo particular de
construir nossa própria convicção e de apresentá-la em circunstâncias definidas.
E tenhamos em mente a experiência: “eu acreditava que eu o sabia” (p. 33).
FIGURA 8
Um quarto eixo de finalidades teórico-metodológicas
11

195
Os princípios de diversificação e de saturação

Abordarei, agora, dois critérios-chave, que foram indicados para orientar o


pesquisador nas pesquisas qualitativas por casos múltiplos: o critério de
diversificação e o de saturação. Até um certo ponto, estes dois critérios estão
ligados, uma vez que há duas formas de diversificação: externa e interna. A
diversificação interna resulta do Processo de saturação.

O princípio de diversificação

Apresenta-se a diversificação - mais do que a representatividade estatística


- como o critério principal de seleção, no que se refere as amostras qualitativas
por usos múltiplos (GLASER & STRAUSS, 1967: 50-63; MICHELAT, 1975:
236). Efetivamente, essas pesquisas são, em geral, solicitadas a dar o panorama
mais completo possível dos problemas ou situações, uma visão de conjunto, ou
ainda, um retrato global de um problema de pesquisa. Daí, portanto, a ideia de
diversificar os casos, de modo a incluir a maior variedade possível,
independentemente de sua frequência estatística30.
Este princípio pode adquirir duas formas: 1) a diversificação externa
(inter-grupo) ou o contraste; 2) a diversificação interna (intragrupo).
A primeira se aplica quando a finalidade teórica consiste em apresentar
um retrato global de uma questão, ou contrastar um amplo leque de casos
variados. As pesquisas sobre as atitudes e as representações sociais, que recorrem
as entrevistas, interessam-se, geralmente, pela comparação entre o ponto de vista
dos indivíduos em diferentes subculturas, posições de classe, categorias sociais,
etc. Elas adotam, portanto, o princípio de diversificação externa ou de contraste.
Como o observa Michelat:
É, sobretudo, importante escolher indivíduos os mais diversos possíveis.
[...] A amostra é, portanto, constituída a partir dos critérios de
diversificação, em função de variáveis que, hipoteticamente, são
estratégicas para obter exemplos da maior diversidade possível das
atitudes pressupostas em relação ao tema pesquisado (MICHELAT,
1975:236).
A segunda forma, ou seja, a diversificação interna ou intragrupo, remete a
uma finalidade teórica diferente. Digamos, de uma maneira imprópria, que, neste
caso, pretende-se apresentar um “retrato global”, mas somente no interior de um
grupo restrito e homogéneo de indivíduos, Imaginemos o seguinte tema de
pesquisa: a imagem da justiça penal entre as operárias e os operário
quebequenses. Aqui, o

30. O critério de diversificação pode ser invocado em outras circunstâncias, como nos estudos de caso único com urna
amostra de meio, pare ressaltara necessidade de “fazer o giro” desse universo de análise.

196
analista não busca saber o que todos os quebequenses pensam da justiça penal,
mas somente uma determinada categoria social de quebequenses. Ele não deve,
portanto, constituir sua amostra pela diversificação (externa) entre os
quebequenses, escolhendo, por exemplo, uma operária, um pequeno comerciante,
etc. Ao contrário, o primeiro critério é a homogeneidade de sua amostra: somente
os membros da classe operaria são admissíveis. Mas, em seguida, o pesquisador
deve se ater diversificação interna de seu grupo (homogeneizado): escolher
operários e operárias urbanos e rurais, de diferentes setores, sindicalizados e não,
jovens e idosos, etc. Trata-se mais de um estudo exaustivo ou em profundidade
de um grupo restrito, do que de uma visão global de um grupo heterogêneo.
Esse procedimento de diversificação interna de um grupo que é, guardadas
as devidas proporções, mais restrito, faz parte integrante do processo de saturação
empírica. O pesquisador deve optar, aqui, entre o interesse pela comparação e o
interesse pela descrição em profundidade, pois se ele privilegiar o contraste
intergrupo, ele não poderá diversificar demais no interior de cada grupo. Sua
amostra seria impossível de tratar qualitativamente. A diversificação externa é,
por assim dizer, vertical, e não permite esgotar a diversificação interna (dita
horizontal). A primeira tem por efeito reduzir as possibilidades de saturação no
interior de um grupo, para ganhar em termos da dispersão e da comparação
intergrupe31. O princípio de saturação é, então, oposto ao de contraste, ou de
diversificação externa: quanto mais se tende ao contraste (eixo vertical), mais é
difícil atingir a saturação, no interior de cada novo grupo considerado.

O princípio de saturação

Ao que eu saiba, deve-se o conceito de saturação a Glaser e Strauss (1967:


61-71). Ele será retomado e modificado, posteriormente32 Hoje, o uso nos
permite falar em dois tipos Ele saturação: a “saturação teórica” (thoretical
saturation) e o que eu denominei a “saturação empírica”. Na realidade, encontra-
se em Glaser e Strauss (p. 62) referências aos dois aspectos (empírico e teórico)
do conceito, embora eles não distingam um do outro e privilegiem a ideia de
saturação teórica. Por outro lado, eles apontaram satisfatoriamente as funções
metodológica e operacional do conceito de saturação, que são semelhantes nos
dois tipos.
Para Glaser e Strauss (1967), a saturação teórica se aplica a um conceito
(category) e significa que ele emerge dos dados e é depois confrontado com
diferentes contextos empíricos, sendo objetivo do pesquisador desenvolver as
propriedades

31. Para evitar uma confusão semântica, é melhor não falar em saturação, pala designar o lato de cobrir todos os contrastes
intergrupos possíveis; isto d, toda a diversidade externa, é preferível, então, falar em exaustividade, e não em saturação.
32, Ver Denzin (1970: 82-96), Blankevoort, Landreville e Pires (1979: 184) e Bertaux (1980: 205. 207-208; 1981:37).

197
do conceito e assegurar-se de sua pertinência teórica e de seu caráter heurístico.
Quando, após aplicações sucessivas, os dados não acrescentam nenhuma
propriedade nova ao conceito, pode-se dizer que o conceito criado está saturado
(category’s theoretical saturation33). O conceito de saturação teórica se relaciona
à sua abordagem e é menos importante para meus objetivos, salvo como segundo
plano para compreender a saturação empírica.
A saturação empírica, ou “de conhecimento”, para empregar o termo de
Bertaux (1981: 37), por oposição a saturação teórica, aplica-se mais aos próprios
dados, ou aos aspectos do mundo empírico pertinentes ao analista, do que às
propriedades dos conceitos enquanto tais. A saturação empírica designa, assim, o.
fenômeno pelo qual o pesquisador julga que os últimos documentos, entrevistas
ou observações não trazem mais informações suficientemente novas, ou
diferentes, para justificar uma ampliação do material empírico34.
A descoberta do “fenómeno da saturação” é anterior à criação do conceito,
por Glaser e Strauss. Encontrando suas raízes na indução analítica, o fenômeno
se traduz pela ideia de que, se a análise dos dados de um grupo é bem feita, “nós
não temos mais nada de importante para descobrir sobre o grupo do que estes
dados concernindo por uma acumulação suplementar de dados pertencendo ao
mesmo grupo” (ZNAN1ECKI, 1934: 249). Lembremos que não se deve pedir ao
princípio de saturação o que nenhuma pesquisa pode fazer: dar conta do real em
sua totalidade.
A saturação é menos um critério de constituição da amostra do que um
critério de sua avaliação metodológica. Ela cumpre duas funções capitais: de um
ponto de vista operacional, ela indica em qual momento o pesquisador deve parar
a coleta dos dados, evitando-lhe, assim, um desperdício inútil de provas, tempo e
dinheiro; de um ponto de visita metodológico, ela permite generalizar os
resultados para o conjunto do universo de analise (população) ao qual o grupo
analisado pertence (generalização empírico-analítica).
Salientemos, no entanto, que, em geral, o processo de saturação empírica
exige que se tenha tentado, durante a coleta dos dados, maximizar a
diversificação interna ou intragrupo. A diversificação interna é particularmente
importante nas pesquisas comportando entrevistas. Por outro lado, ela não se
aplica, necessariamente, as pesquisas exclusivamente documentais. Neste caso, é
simplesmente a ausência de temas novos que produz a saturação (cf. MARTEL,
1994).

33. Ver a definição do conceito de perda social (social loss) por Glaser e Strauss (1967: 106-107; 111-112).
34. Bertaux dá uma definição semelhante da saturação (de conhecimento): “A saturado é o fenômeno pelo qual, realizado um
certo número de entrevistas (biográficas ou não, aliás), o pesquisador ou a equipe em a impressão de não descobrir mais nada
de novo, ao menos no e concerne ao objeto sociológico da investigação (BERTUX, 1980: 205).

198
A amostra por contraste

O objetivo da amostra por contraste com entrevistas é abrir os caminhos


para a comparação (externa), ou para uma espécie de “totalidade heterogénea”.
Empreende-se aqui a construção de um mosaico, ou de uma maquete pela
mediação de um número diversificado de casos. Trata-se, assim, idealmente
falando, de garantir a presença, na amostra, de ao menos um representante (de
preferência, dois) de cada grupo pertinente em relação ao objeto da investigação.
Michelat (1975: 236) aponta que o contraste pode ser pesquisado por meio de
duas espécies de “variáveis estratégicas”:
 as variáveis gerais, correntemente utilizadas nos estudos quantitativos,
como o sexo, a idade, a profissão ou a classe social, a região, etc.;
 as variáveis específicas, relacionadas diretamente ao problema
pesquisado e cuja pertinência é conhecida pelo pesquisador, ou então,
simplesmente, presumida. A escolha dessas variáveis resulta tanto das
pesquisas anteriores, como de hipóteses teóricas que nos levam a
suspeitar de sua importância enquanto “fonte de diferença”.
Não se trata, portanto, de visar a uma representatividade numérica na
amostra (por exemplo, um membro de um partido político minoritário contra dez
membros de um partido majoritário), em relação ao universo de análise
(população), mas tão simplesmente em ter um ou dois exemplos por grupo, pois,
de qualquer maneira, a representatividade estatística não serve, aqui, para nada:
“Assim, os que invocam certos grupelhos terão tanto espaço na amostra, quanto
os aderentes ou os eleitores de alguns partidos de massa” (MICHELAT, 1975:
236). Se o objeto da pesquisa se refere a uma experiência vivida, como o parto,
tenta-se produzir o contraste de maneira semelhante, mas tendo em conta o fato
de que todas as informantes tiveram, por outro lado, essa experiência comum.
Michelat (1975: 245) argumenta que, no âmbito das pesquisas sobre as
atitudes, a experiência mostra que após umas trinta ou quarenta entrevistas tem-
se material suficiente para cessar a coleta dos dados, com a informação
suplementar não acrescentando grande coisa (em matéria de diversidade). Como
se torna difícil tratar qualitativamente a informação para além de quarenta ou
cinquenta entrevistas em profundidade, o limite prático do método coincide de
maneira ideal com o ponto de exaustividade dessa problemática. Contudo, essa
coincidência não ocorre, necessariamente, em relação a outros objetos; uma
escolha teórica também se impõe. De um lado, na amostra por contraste, o
pesquisador sabe quantos sujeitos ele gostaria de ter para cada categoria, bem
como o número total de categorias; ele tem, portanto, uma ideia do número total
de entrevistas que ele terá em sua amostra, antes de ir a campo.
Mas, como se coloca a questão da generalização empírico-analítica nas
pesquisas por contraste com entrevistas? Fazendo referência a estas pesquisas,
Fichelet, Fichelet e May observam que:

199
Cada entrevista - se ela tiver sido bem realizada e bem analisada, e,
particularmente, relacionada com o que é (socialmente, culturalmente,
etc.) a pessoa entrevistada - representará bem mais do que uma entrevista
com uma pessoa: o que nos importa no que ela veicula é muito mais do
que atitudes ou representações “pessoais'', as atitudes e as representações
dos grupos aos quais pertence ou se vincula a pessoa. Se for mais sobre o
indivíduo se exprimindo que se baseia a coleta da informação, será sobre
ele, enquanto membro de múltiplos grupos sociais, enquanto expressão de
seu multipertencimento, enquanto “modelo” das estruturas da vida social,
que recairá a análise (FICHELET; FICHELET; MAY, 1970: 2).
A representatividade ou a generalização se baseia, então, primeiramente,
numa hipótese teórica (empiricamente fundamentada), que afirma que os
indivíduos não são todos intercambiáveis, já que eles não ocupam o mesmo lugar
na estrutura social e representam um ou vários grupos. Eles são, assim,
portadores de estruturas e de significações sociais próprias a esses grupos. EÉ
graças a um conjunto de características comuns, particulares a cada grupo, que se
podem destacar algumas tendências e generalizar para todos os indivíduos em
situação semelhante. Essa hipótese é, evidentemente, dosada pelos múltiplos
pertencimentos do indivíduo e pelo fato de que ele não é a expressão de uma
regularidade monótona determinada por seu lugar na estrutura social. Vê-se
surgir, assim, a possibilidade de resultados inesperados e de zonas nebulosas.
Todavia, a generalização empírica encontra também uma outra base numa
boa descrição interna de cada caso e na subsequente comparação com os outros
casos. Como o diz Bourdieu (1993: 8), agrupando em torno de um caso outros
casos que são como suas variantes, colocam-se em evidencia a representatividade
de cada caso analisado. Não é, portanto, por saturação, mas por comparação, que
se chega, aqui, à generalização. São as diferenças entre os grupos que vêm
reforçar a pertinência da descrição proposta para cada grupo.

A amostra por homogeneização!

O analista pretende pesquisar, aqui, um grupo relativamente homogêneo;


isto e, “um meio organizado pelo mesmo conjunto de relações socioculturais”
(BERTAUX, 1980: 205): dos operários, dos advogados, dos desempregados, ou
uma comunidade religiosa, etc. O controle da diversidade externa se faz pela
própria escolha do objeto. Certamente, algumas categorias sociais ou
socioprofissionais apresentarão, mesmo assim, uma maior diversidade do que
outras. Uma vez que o pesquisador tenha escolhido o grupo específico, com base
em quais critérios deverá, então, escolher seus informantes?
É o princípio da diversificação interna que se aplica: trata-se de tomar os
informantes mais diversos possíveis no grupo, a fim de maximizar a análise
extensiva do grupo escolhido. Algumas variáveis gerais devem ser ainda
consideradas, como o

200
sexo, a idade, o nível de instrução, etc.; porém, são habitualmente as variáveis
particulares ao grupo (e à problemática) que contam mais (diferentes papéis, anos
de experiência, etc.). Se necessário, pode-se reduzir, ou reajustar o tamanho do
grupo, dizendo, por exemplo, que serão pesquisados somente os advogados da
função pública, etc. Mas, também se pode iniciar a pesquisa e, após uma melhor
determinação do objeto, buscar a diversificação dos informantes.
Nessa espécie de amostra, é muito difícil prever o número de entrevistas,
Se variáveis estratégicas tiverem sido estabelecidas pela constituição da amostra,
o número e o cruzamento delas darão uma ideia aproximada do número de
entrevistas (uma ou duas para cada subcategoria). Mas, uma vez iniciada a
pesquisa, isso pode se transformar radicalmente, em função da orientação que
toma a construção do objeto. As dificuldades práticas podem também obrigar a
modificar os critérios. Cessa-se, aqui, a coleta dos dados, quando se obtém a
saturação empírica. E por esta razão que se faz usualmente a análise, à medida
que a coleta dos dados progride.
O que se denomina uma “amostra por fileira”, em “cascata”, ou “por bola
de neve” (snowball sample) designa, geralmente, um modo de construir a
amostra por homogeneização, ou a amostra de acontecimento (estudo de caso
único). Esta técnica é muito útil quando o acesso aos dados é difícil ou o material
concerne aos “dados ocultos” (hidden data). Esses problemas podem ser devidos
a modalidade, ou dispersão, particular de certos grupos, à natureza intimista
delicada de algumas questões, a atitudes de autodefesa do grupo, etc. Graças a
um primeiro informante ou a um especialista, o pesquisador tem acesso ao
próximo, procedendo, então, por contatos sucessivos. Nesse caso, deve-se refletir
a posteriori sobre o alcance e os limites da amostra para adaptar o objeto e os
objetivos as informações as quais se pôde ter acesso.
Em geral, as pesquisas que recorrem à amostra por homogeneização
permitem descrever a diversidade interna de um grupo e autorizam a
generalização empírica por saturação.

Duas estratégias de contraste reduzido

Há duas estratégias diferentes ligadas a finalidade teórica, em virtude da


qual se pretende introduzir um determinado grau de comparação externa, sem
buscar necessariamente dar uma visão completa ou exaustiva do assunto. Em
geral, deseja-se aqui obter uma certa diversificação externa, e, ao mesmo tempo,
desenvolver mais a fundo a análise de pelo menos um dos subgrupos
considerados. A primeira estratégia consiste em constituir uma amostra por
“contraste-aprofundamento”; a segunda, por “contraste-saturação”.

A amostra por contraste-aprofundamento

Este tipo de amostra se aplica ao “estudo coletivo de casos”, e se situa


numa zona cinza entre o caso único e o multicasos. As pesquisas que se baseiam
na
201
amostra por contraste-aprofundamento são um pouco como estudos de caso úni-
co, realizados de modo a se completar ou a estabelecer uma comparação. Quando
se pesquisam dois casos semelhantes, essa estratégia se aproxima da amostra por
homogeneização. Mais usualmente, a finalidade teórica consiste, aqui, no
contraste; por exemplo, a comparação entre duas escolas ou três famílias de um
meio social diferente. De um ponto de vista teórico, ela se caracteriza por três
ideias-mestra: 1) a comparação entre um certo número de casos (via de regra,
reduzido); 2) cada caso tem um certo volume de material empírico e é objeto de
uma descrição em profundidade; e 3) cada caso é exposto de uma forma
relativamente autônoma, mesmo que o fato de justapor todos os casos em uma
mesma obra possibilite acrescentar informações, estabelecer comparações, ou dar
uma melhor visão de conjunto do problema. A imagem dominante é a de
diversas peças de um mosaico, ou de uma constelação de casos sabre uma
problemática determinada, O segundo critério é o menos importante, pois o que
conta é que os casos sejam - para falar como Bourdicu (1993: 9) - concebidos e
construídos como “conjuntos autossuficientes”. Notemos que esta estratégia pode
ser eventualmente utilizada para dar uma visão de conjunto de um assunto; assim
sendo, o número de microinvestigações pode ser bastante elevado e a finalidade
de contraste reduzido não se aplica.
Tomemos o exemplo dado por Stake (1994: 242) de uma pesquisa sobre a
tomada de reféns. O pesquisador começa por elaborar um quadro de diferentes
situações deste gênero: um roubo de banco, um desvio de avião, por sequestro
por um grupo religioso, um pai que rapta seu próprio filho, etc. Em seguida, ele
pesquisa pelo menos dois destes casos, tratando cada qual como um caso único,
mesmo que faça comparações entre eles. Não se acumulam, aqui, vários casos de
um mesmo tipo (por exemplo, dois roubos de banco), mas se contrastam
acontecimentos que, em hipótese, são relativamente diferentes, a fim de ver o que
resulta da descrição em profundidade de cada um deles e de sua comparação.
Em geral, o pesquisador sabe de antemão quantos casos irá abordas e não
utiliza a noção de saturação para proceder à generalização empírica. De fato, ele
não vê a necessidade de saturar a categoria de acontecimentos, “tomadas de
reféns nos roubos de banco”, para generalizar o conjunto desses acontecimentos35
ao nível empírico. Um único caso bem construído pode lhe permitir separar as
características essenciais associadas a esse gênero de acontecimentos35. As
observações quanto à generalização (teórica) — que eu havia feito na secção
destinada as amostras por caso único - convêm aqui. Além disso, pode-se
reforçar a representatividade de cada tipo acontecimento, comparando um ao
outro, como na amostra por contraste.

35. De fato, a questão segunda não faz sentido aqui “em qual momento devo parar de acrescentar outros casos do mesmo
gênero a fim de generalizar para a sua população respectiva?”

202
A decisão de pôr fim à coleta dos dados se aplica, portanto, a cada caso
(acontecimento) separadamente; isto é, aos dados verticais (analise em
profundidade), e não aos dados horizontais (acumulação de casos), e é
semelhante à decisão que se toma em um estudo de caso único. Se o pesquisador
decide utilizar a noção de saturação, é no sentido de atingir a exaustividade de
cada universo de análise: ela não concerne a acumulação extensiva dos dados
para generalizar, ao nível empírico, para a população correspondente; mas se
refere, isso sim, a uma acumulação intensiva e completa. A noção de saturação,
ou, melhor ainda, de exaustividade, não conserva, aqui, senão sua função
operacional: ela nos diz quando parar a coleta vertical sugerindo que “se fez o
giro” do caso concreto (all-around study).

A amostra por contraste-saturação

Esta forma de amostra se refere mais as pesquisas baseadas em entrevistas


(ou documentos) que podem acumular vários casos, justamente porque elas são
em si mesmas menos complexas, ou são tratadas de maneira menos complexa
(em lugar de fazer, por exemplo, 100 horas de entrevistas com um informante,
serão feitas duas, com vários). Assim como Grell (1986: 163), pode-se dizer que
o relato, aqui, é geralmente oral (entrevistas gravadas e integralmente transcritas),
curto (duas horas, aproximadamente) e tópico (ele não se reporta à vida completa
do entrevistado).
O tipo de técnica ou de material empírico permite combinar, segundo a
finalidade teórica que o pesquisador se atribui, a amostra por contraste (em uma
escala reduzida) e a amostra por homogeneização (por saturação). Geralmente,
não convém ultrapassar 50 ou 60 entrevistas, uma vez que, como eu o assinalei
mais acima, torna-se difícil tratar o conjunto do material. Evidentemente, tudo
isso depende ainda do objeto da pesquisa.
Ilustrarei esse modelo, reportando-me a um programa de pesquisa mais
amplo sobre os custos sociais do sistema penal. Uma das pesquisas deste
programa se refere, particularmente, aos justiceiros masculinos oriundos de
diferentes classes sociais36. Pelo tema, vê-se já o interesse teórico por um certo
grau de comparação. Mas, de outro lado, nós queríamos aprofundar alguns
subgrupos e explorar outros deles, o que exigia a limitação do contraste. O
interesse pela exploração de zonas desconhecidas nos incitava também a manter,
no procedimento, uma certa abertura a ajustamentos, no decorrer do processo. As
variáveis para construir a amostra foram escolhidas em função das finalidades
teóricas, da experiência no campo e da revisão de pesquisas. Nós optamos, então,
por uma amostra construída em dois tempos. Durante o primeiro tempo, nós
visávamos a 24 informantes, devendo cada uma de nos-
36. Encontrar-se-á uma descrição mais detalhada da metodologia em Blankevoort, Landreville e Pires (1979: 184-188), ou
em Landrevifle, Blarikevoort e Pires (1981). Ela também foi objeto de dois artigos específicos (PIRES;
LANDREViLLE;BLANKEVOORT, 1981; PIRES, 1989).

203
sas categorias ser representada por um indivíduo. Num segundo tempo, após uma
primeira análise, havíamos previsto proceder à pesquisa de 30 ou 40 outros casos,
a partir dos quais tentaríamos construir casos-tipo empíricos, e saturá-los.
As três variáveis julgadas pertinentes para constituir a amostra e buscar o
contraste eram: a intensidade do contato como sistema judiciário, o tipo de
infração e a classe social (portanto, duas variáveis especificas e uma geral). A
primeira variável foi operacionalizada em função de três etapas do processo
penal (após convocação, após processo, após sentença); para a segunda,
escolhemos quatro tipos de infrações; e, por fim, as diferentes classes e frações
de classe foram divididas, hipoteticamente, em duas categorias: as classes e
camadas polarizadas para cima e as classes e camadas polarizadas para baixo. •
Em realidade, nós encerramos o primeiro tempo de coleta dos dados após
18 entrevistas, e não 24, como previsto: Também abandonamos a primeira
variável. No final da segunda etapa, tínhamos um total de 42 entrevistas, das
quais 12 com pessoas de diversos grupos “favorecidos” (polarizados para cima) e
30 com pessoas provenientes de diferentes grupos “desfavorecidos” (polarizados
para baixo). Não encontramos nenhum caso pertencente à alta burguesia, e
somente dois casos eram oriundos da burguesia média. Os outros casos do grupo
favorecido eram de pequenos comerciantes bem estabelecidos e de alguns
membros (ou seus filhos) de camadas superiores da nova pequena-burguesia.
Ao longo da analise, tentamos diferentes formas de reagrupar as
entrevistas, em função dos resultados empíricos significativos. O objetivo, aqui,
era explorar a possibilidade de construir casos-tipo empíricos. Nós nos demos
conta da homogeneidade interna de cada caso-tipo, assim como de sua
capacidade de contraste com os outros. No final, nós destacamos seis casos-tipo:
1) classe burguesa, infrações econômicas; 2) nova pequena-burguesia, delitos
“tradicionais” (assassinato, violação, roubo qualificado); 3) jovens da (pequena)
burguesia (tradicional), delitos “tradicionais”; 4) classe proletária, delitos
“tradicionais”; 5) excluídos, pequenos delitos contra os bens; 6) infrações ao
código de transito.
Cabe notar que as variáveis constitutivas da amostra não coincidem ponto
por ponto com os casos-tipo estabelecidos após a análise final. Isto revela a
dimensão indutiva dos casos-tipo, a despeito de uma parte de pré-construção
teórica, e também serve para ilustrar a transformação entre a “amostra inicial” e a
“amostra final”. Com essa nova categorização em casos-tipo, pressupõe-se que a
saturação não possa ser obtida em relação a todos esses casos, e nem da mesma
forma. Por força das circunstâncias, e apesar de nossos esforços, cerca de dois
terços das entrevistas foram realizadas junto a homens pertencendo as camadas
subalternas e, principalmente, ao proletariado precário”. Os casos-tipo 4 e 5
foram de longe os melhor saturados. No que concerne aos outros, nós
maximizamos a saturação, procedendo de modo inverso. Em lugar de acrescentar
as entrevistas para abranger a categoria inicial, nós a estreitamos, juntando outras
qualificações. Assim, por exemplo, a categoria geral
204
“burguesia/justiça penal”, do inicio, tomou a forma de três casos-tipo mais
contextualizados, que não esgotam tudo o que se pode encontrar como variedade
no sistema penal (realidade empírica) concernente a este grupo. Os casos de
corrupção, por exemplo, não foram examinados, nem o do político implicado em
um pequeno caso de roubo. Em resumo, nós reduzimos o alcance teórico da
população (universo de análise mais restrito) para a qual aplicar uma
generalização empírica.
Evidentemente, a comparação entre cada caso-tipo (como nas pesquisas
com uma amostra por contraste) reforça também a representatividade de cada um
deles, considerado separadamente. Além disso, nós pudemos destacar algumas
características da justiça penal, alguns mecanismos de produção de custos
sociais, e alguns mecanismos de neutralização próprios a cada caso-tipo, para os
quais não e necessário recorrer a saturação para atingir a generalização teórica.
No que diz respeito as características e mecanismos, passa-se diretamente da
amostra aos universos gerais, como nos estudos de caso único. Estes resultados
permanecem, portanto, válidos. até que sejam - como todo resultado na ciência -
aprofundados, corrigidos, transpostos a campos não-explorados, etc., por outras
pesquisas referentes ao tema.
A amostra por busca do caso negativo
Digamos, de imediato, que um “caso negativo” e uma prova que anula as
hipóteses explicativas do pesquisador, ou que aparece como uma “exceção” ao
seu modo de ver e de apresentar as coisas, etc. Ele é, para retomar a expressão de
Weber, um “fato inconveniente”, ou ainda, um contra-exemplo. A pesquisa por
busca do caso negativo consiste em formular uma hipótese para explicar um
problema, e tentar, em seguida, “destruí-la”, procurando provas contrarias (casos
negativos); isto é, capazes de questioná-la. A pesquisa termina, quando se
consegue encontrar urna formulação da explicação que resista a todos os casos
conhecidos, sem exceção.
Pelo que eu saiba, as pesquisas baseadas nesse tipo de amostra são muito
raras, pois este procedimento só pode ser aplicado a um número reduzido de
problemas teóricos e de objetos de pesquisa. Ao que tudo indica, ele foi
concebido para resolver enigmas relativos a algumas formas particulares de
experiências pessoais. Ele foi orientado, portanto, para a explicação dos
comportamentos, e não teria sido utilizado no contexto do modelo societário. Eu
o ilustrarei por meio da pesquisa de Lindesmith (1947), referindo-me à de
Cressey (1953). Trata-se de pesquisas bem conhecidas na sua área, muito bem
construídas, e que chegaram a resultados convincentes. Além disso, elas
apresentam a particularidade de ter conciliado a abordagem da Escola de
Chicago, a pesquisa qualitativa e uma concepção positivista estrita da ciência.
Para avaliar este procedimento, é preciso entendê-lo como uma resposta
radical dos pesquisadores qualitativos à crítica que argumentava que era
impossível generalizar e verificar hipóteses a partir da pesquisa qualitativa.
Ultrapassando o próprio
205
procedimento, essas pesquisas suscitaram o interesse pelos casos, negativos ou os
“contracasos-tipo”, mesmo que não se chegue a reconhecer - como este modelo o
faz - o seu poder de invalidar inteiramente o quadro teórico de referência.
O problema teórico da pesquisa de Lindesmith (1947: 3) é o “fato de que
algumas pessoas que experimentam os efeitos das drogas a base dc ópio, e que as
utilizam durante um período de tempo suficiente para criar a dependência física,
não se tornam dependentes da droga (do not become addicts), enquanto outras,
submetidas ao que, aparentemente, seriam as mesmas condições, tornam-se
dependentes”. Ele narra que este problema constituía um verdadeiro enigma para
o qual a literatura especializada não tinha uma resposta satisfatória. Ele adotou
um procedimento permitindo-lhe testar e corrigir hipóteses para explicar esse
fenômeno, de modo que a explicação final fosse baseada na observação e
pudesse ser considerada como uma teoria universal concernente a este problema
preciso. A teoria se pretende universal, no sentido pleno do termo: sua aplicação
não se limita aos americanos que são dependentes do ópio, menos ainda aos
usuários das camadas inferiores, e nem mesmo aos usuários do século XX; ela
não.se limita a “nenhum período histórico” (LINDESMITH, 1947: 4).
Certamente, Lindesmith não procura nem determinar as características do
opiômano, nem explicar o comportamento de consumo de drogas enquanto tal.
Cressey (1953: 16) apresentou uma boa descrição do método utilizado por
essas pesquisas. Eu a reproduzo, com pequenas modificações, para tomar em
consideração o procedimento de Lindesmith:
1)Dá-se inicio, definindo o problema (caracterizar o enigma) e
delimitando o fenômeno a ser estudado.
2)Formula-se, de um modo ou de outro, uma primeira hipótese
explicativa do fenômeno.
3)Executa-se a busca dos “casos negativos” (the search for negative
evidence): estudam-se um ou alguns casos à luz dessa hipótese para
verse ela resiste a essas verificações.
4)Todo caso negativo encontrado deve nos levar, seja a reformular a
hipótese, ou a redefinir o problema, de modo a considerar ocaso
negativo, isto é, a fugir à refutação introduzida pelo caso; essa nova
definição devi, então, ser mais precisa do que a primeira.
5)Dá-se continuidade a esse procedimento de exame de co, de
reformulação de hipótese, ou de redefinição do problema, até que se
possa formular uma explicação de alcance universal, que não seja
questionada por nenhum dos casos examinados. Efetivamente, à
medida que uma nova proposição explicativa é enunciada, tenta-se
alterá-la nas entrevistas seguintes e também confronta-la com as
entrevistas precedentes, até que não se encontre mais nada capaz de
refutá-la.

206
6) Por fim, devem-se examinar todos os casos pertinentes referidos na
literatura especializada, para verificar se eles, por sua vez, constituem,
ou não, casos negativos.
Eis, em resumo, as principais características desse procedimento:
 Trata-se de construir teorias comportamentais para a mediação de um
procedimento visando verificar hipóteses que sejam confrontadas com
os dados.
 O objetivo é chegar à urna forma de generalização explicitamente
determinista e universal.
 O problema de pesquisa e estritamente limitado, ainda que a
explicação seja geral, isto é, aplicável a qualquer manifestação desse
fenômeno preciso.
 Adota-se uma perspectiva positivista estrita, segundo a qual a mesma
causa deve sempre produzir o mesmo efeito.
Esses pesquisadores justificam a generalização que eles propõem por meio
da noção de indução analítica, e eles tem razão. Porém, é preciso ter em mente
que a indução analítica não se aplica somente a esse procedimento estrito da
busca do caso negativo, e também que ela não exige os mesmos pressupostos
filosóficos. Os outros modelos de pesquisa procedem também por indução
analítica, mas num outro contexto filosófico. Notemos, de passagem, que a
crítica puramente filosófica é, aqui, ineficaz: não basta dizer “eu sou contra o
determinismo”, para refutar os resultados obtidos. Em relação a determinados
objetos, postulados estritos desta ordem podem produzir resultados satisfatórios.
É preciso ver também que esse modelo não é mais inspirado numa lógica
puramente indutiva, como se poderia ser levado a pensar. Esses autores não
defendem que se deva fazer um grande número de observações confirmando a
hipótese, antes de poder generalizá-la. Eles tentam, de preferência, alterar uma
hipótese. Mais importante: a hipótese explicativa inicial não deve provir
diretamente das observações empíricas; basta que ela possa ser alterada por casos
negativos. Entretanto, eles aceitam da indução a ideia de que a teoria não pode
entrar em conflito com nenhuma manifestação empírica pertinente.
A seleção dos temas é feita em função de sua pertinência em relação ao
problema proposto. É impossível prever o número de entrevistas ou de
observações. Lindesmith (1947: 5) entrevistou cerca de cinquenta opiômanos em
varias ocasiões, durante um longo período de tempo, e uma dezena de outros,
uma única vez. Além disso, ele examinou os casos apresentados na literatura,
para ver se encontrava indicações que pudessem refutar sua hipótese explicativa.
Cressey (1953: 25, 27, 30) realizou 133 entrevistas, com uma média de 15 horas
para cada sujeito, e também consultou cerca de 200 casos coletados por um
colega (E. Sutherland) e vários relatórios publicados, em busca de um caso
negativo. Cabe notar, contudo, que este vasto material empírico não propõe o
mesmo problema para a análise, pois esta é muito centrada, em razão do caráter
circunscrito do problema. A coleta de dados é considerável, mas apenas uma
pequena parte das informações é retida
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para a analise e o relatório final. Essas pesquisas apresentaram resultados interes-
santes, mas o rigor do modelo assim como suas características básicas o tornam
pouco apropriado a maioria dos problemas de pesquisa.

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