Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Revista bimestral do
LECTORIUM ROSICRUCIANUM
DIANTE DA PORTA DA
COSMOLOGIA DE MANI
VERDADE” O RESTABELECIMENTO
DO FOGO SERPENTINO
UMA VISÃO
REVOLUCIONÁRIA DO “PERMANECE
MUNDO E DA ETERNAMENTE VOLTADO
HUMANIDADE PARA A TUA MISSÃO”
29 A CONSTITUIÇÃO DA IGREJA
33 O RESTABELECIMENTO DO
A revista Pentagrama convida o leitor a operar FOGO SERPENTINO
40 MANUSCRITOS DO TEMPO DE
MANI E DE SEUS DISCÍPULOS
43 A SABEDORIA É MAIS
IMPORTANTE NA LÍNGUA QUE
NO CORAÇÃO
1999
ANO VINTE E UM
© Stichting Rozekruis Pers. Reprodução proibida sem autorização prévia. NÚMERO 5
MANI, UM MENSAGEIRO QUE ABALOU O MUNDO
2
mente é admitida; ela tem um significa- de seu “companheiro”. Assim, a Alma-
do mais profundo. Tentaremos traçar -Espírito em seu microcosmo foi sendo
uma imagem disto. O mundo das forças seu guia no decorrer de sua longa via-
contrárias, a natureza dialética, um dia gem. A Alma-Espírito e o Espírito-Santo
foi separado da natureza divina. Mas, estavam unidos dentro dele. A partir
por mais que a natureza dialética não deste momento, ele ficou consciente de
faça parte da Fonte original, ela não que era um Apóstolo da Luz, um envia-
pode ter existência sem esta fonte; do. A palavra “apostolos” em grego quer
assim, tornou-se, por assim dizer, uma dizer “enviado” ou “mensageiro”. O A-
sombra do mundo original da Luz, que é póstolo da Luz é chamado para transmi-
o mundo do Espírito. Da mesma forma, tir aos homens a mensagem de Deus,
o homem dialético é uma sombra, uma do Reino da Luz, do Espírito.
aparência do Homem-Espírito original. Mani, que havia estudado todas as
Como todos os enviados, Mani esta- religiões precedentes, assim como as
va consciente, desde sua juventude, de religiões de seu tempo, achou que a
sua missão particular. Com doze anos, Verdade somente estava presente em
esta missão lhe foi confirmada por uma parte nestas religiões. Para ele, até
profunda revelação interior, que o tor- mesmo os evangelhos cristãos não são
nou claramente consciente de sua tare- autênticos: as ervas daninhas pululam
fa. Em seguida, ele estudou todas as dentro deles. Ele também rejeita o
religiões e filosofias. Com vinte e quatro Antigo Testamento porque, como diz,
anos, aconteceu uma segunda revela- mistura erros e enganos ao puro cristia-
ção por intermédio do “Outro” dentro nismo original e à mensagem de Jesus. Mani instruindo
dele, que ele chama de seu “gêmeo” ou Ele tinha a missão de restaurar a luz seus discípulos.
3
sobre o que restava da Verdade univer- tentes para colocá-los em plena luz.
sal nas grandes religiões, e daí arrancar Também o reprovam por ter baseado se-
as ervas daninhas: ele acreditava que us ensinamentos em revelações interio-
uma nova era estava começando, e res e pessoais. Mas não é isto o que
então o Chamado deveria ressoar de acontece, tanto hoje como sempre, com
novo, livre de qualquer desvio. todos os mensageiros e enviados? Não
O chamado, a doutrina de Mani, as- está escrito que tudo o que Jesus ensi-
sim como sua pessoa, abalaram o nava vinha de seu Pai? E não foi em uma
mundo. visão que Hermes Trismegisto entrou em
Seus pais provinham de uma família contato com a Verdade universal?
de príncipes: ele era filho de um rei. Mas Mani começava suas cartas à comu-
ele se sobressai principalmente como nidade com a fórmula: “Mani, Apóstolo
um portador de Luz, reunindo em si de Jesus Cristo”. Ele a havia escolhido
todas as faculdades, tanto humanas porque se considerava um autêntico
como divinas. Era um enviado da Luz, apóstolo de Cristo e sobretudo do Es-
grande mestre da Gnosis; e, ao mesmo pírito Santo, do qual Jesus dizia: “Eu
tempo, era cirurgião, médico sob todos vos enviarei o Consolador, o Paracleto”.
os aspectos, artista, pintor, escritor de Mani foi o fundador de uma religião
talento. Resumindo: ele foi um homem mundial que se espalhou do oceano
que possuía dons incrivelmente diversi- Atlântico ao oceano Pacífico e foi segui-
ficados, que teve inúmeros amigos e da durante mais de mil anos, da Es-
discípulos, mas que, por outro lado, foi panha à China, incluindo o Egito e qua-
ferido por uma hostilidade impiedosa, se todo o mundo árabe.
pois seu chamado e sua doutrina ques- Até bem pouco tempo, quase nada
tionavam as doutrinas aberrantes de havia sido descoberto destes aconteci-
seu tempo. Aqueles que queriam resta- mentos tão poderosos, principalmente
belecer e conservar as antigas religiões, porque sempre houve quem se esfor-
que se tornaram caducas, para manter çasse para fazer com que as pessoas
o poder sobre os homens, voltaram-se se esquecessem da mensagem de Luz
contra ele. Com força – pois era um ora- e para que ela desaparecesse e fosse
dor de talento dotado de um grande destruída. No epílogo de Jardins de Luz,
carisma – ele proclamava que eles ape- Amin Maalouf resume brilhantemente
nas estavam vendo a Verdade de forma este drama:
alterada e incompleta nas religiões exis- “De seus livros, objetos de arte e de
tentes, pois ela havia perdido sua pure- fervor, de sua fé generosa, de sua
za; e que, afinal, uma meia-verdade não busca apaixonada, de sua mensagem
passa de uma mentira. É por isso que de harmonia entre os homens, a nature-
era preciso re-ligar a humanidade à Ver- za e a divindade, nada mais resta. De
dade completa e pura. sua religião de beleza, de sua sutil reli-
Dizem que sua doutrina é um conjun- gião do claro-escuro, guardamos ape-
to de elementos tomados de outras dou- nas estas palavras: “maniqueístas”,
trinas. Não poderiam dizer melhor: ele re- “maniqueísmo”, que em nossas bocas
colheu os fragmentos da Verdade exis- se transformaram em insulto, porque
4
todos os inquisidores de Roma e da
Pérsia se uniram para desfigurar, para
apagar Mani. Seria ele tão perigoso que
foi preciso persegui-lo até mesmo em
nossa memória?
–– “Vim do país de Babel, dizia ele,
para fazer ressoar um grito em todo o
mundo.”
Durante mil anos, seu grito foi ouvi-
do. No Egito era chamado de ‘O apósto-
lo de Jesus’; na China, de ‘O Buda de
Luz’; sua esperança florescia às mar-
gens de três oceanos. Mas logo se ins-
talou o ódio, a perseguição. Os prínci-
pes deste mundo o amaldiçoaram; para
estes príncipes, ele se transformara no
‘demônio mentiroso’, no ‘recipiente re-
pleto do mal’ e, com seu humor raivoso,
no ‘maníaco’; sua voz, num ‘pérfido en- dentro de suas almas, buscando o cami-
cantamento’; sua mensagem, na ‘ignó- nho de volta para o Reino da luz: e isto
bil superstição’, na ‘heresia pestilenta’. vai acabar fazendo com que o Reino
Depois, os carrascos fizeram seu traba- das Trevas mergulhe no abismo.
lho, consumindo-lhe em um mesmo O único e poderoso “grito” ressoará pa-
fogo tenebroso os escritos, os ícones, ra sempre!
os mais perfeitos dos discípulos e aque-
las mulheres altaneiras que se recusa-
vam a cuspir em seu nome.” *
5
“CONTINUO FIRME DIANTE DA PORTA DA VERDADE”
6
sa à qual ele pertencia. Seus membros
eram fiéis a Cristo, que representava o
último desenvolvimento do homem
Jesus. Eles seguiam as regras estritas
de purificação do ritual mosaico.
Podemos considerá-los como sendo
aparentados, em espírito, aos essênios,
entre os quais, segundo algumas tradi-
ções, Jesus teria passado algum tempo.
De acordo com o “Codex Keulse”, é
nesta comunidade de “puros” que Mani
teria vivido durante vinte e um anos,
antes de tomar consciência de que esta-
va sendo chamado e de começar sua
obra em 240.
Há duas citações no Codex (13 e 18)
que dizem que o Espírito Santo revelou-
-se internamente a ele sob a forma de “salvador”, como Buda (termo que signi- Mani, apóstolo
“Divino Companheiro”, o Anjo at-Taum, fica “o iluminado”, “o ressuscitado”, ou de Jesus Cristo
que o preparou para estabelecer uma “o desperto”) e Jesus (que no hebraico (ilustração síria).
nova religião do Espírito, uma Igreja “Iehoshuo” significa “Jeová salvador”).
interior, a serviço da Luz. Nos textos ”Quando meu corpo atingiu seu
maniqueístas coptas, este companheiro desenvolvimento, de repente, de impro-
é chamado de Saís e nos Kephalaia ele viso, desceu e surgiu diante de mim
é chamado de “O Paracleto Vivo”. O este espelho de mim-mesmo, tão belo e
transfigurista gnóstico Jan van Rijcken- tão sublime. Quando fiz 24 anos, no ano
borgh nos diz a respeito deste “Outro” em que Ardashir, o rei da Pérsia, sub-
em nós: meteu a cidade de Atra, onde o rei
Shapur, seu filho, foi coroado com o
“O Companheiro mora em nosso ser, grande diadema, no mês de Farmutí, o
Maravilha do Jardim das Rosas. oitavo dia da lua, o Senhor bem-aventu-
Sua voz fala sobre a única Vida, rado envolveu-me em piedade e me
E canta chamou para a sua graça, e enviou-me
Os louvores do Nirvana em nós.” do alto meu Gêmeo [...] Quando ele
veio, ele me libertou, me apartou e me
retirou do meio desta Lei na qual eu
“O sublime espelho de havia crescido. É assim que ele me cha-
mim-mesmo” mou, me escolheu e me separou do
meio destas pessoas”.*
7
UMA VISÃO REVOLUCIONÁRIA DO MUNDO E
DA HUMANIDADE
“O homem somente deve acreditar naquilo que vê com seus próprios olhos”. (Mani)1
8
tando-a por imagens. A essência da pios separados que eram eternos e
“doutrina dos dois princípios e dos três inconciliáveis: a Luz e as Trevas, o Espí-
tempos” de Mani é resumida pela rito e a Matéria.
seguinte fórmula, extraída do Compen- Na doutrina não-dualista do livro
dium chinês, texto encontrado em 1911, sagrado Bhagavad-Gita, encontramos
no Turquestão oriental e que expõe à uma fórmula parecida: “Sabe que tanto
atenção do pesquisador da verdade as Purusha (o Espírito Universal) como
regras fundamentais para entrar na reli- Pakriti (a Natureza) não têm origem e
gião: De início, é preciso distinguir os são eternos.”
dois princípios. Quem pede para entrar
para a religião deve saber que o princí-
pio da Luz e o princípio das Trevas têm, O mistério das profundezas e
cada um deles, naturezas separadas; das alturas
se ele não discernir isto, como poderá
aperfeiçoar-se? Em seguida, é preciso
entender os três momentos que são: o Mani relata suas experiências interio-
momento anterior, o momento médio e res da seguinte forma: “Nos anos em
o momento posterior.” 3 que Ardashir reinava na Pérsia, fui cres-
Assim estão expostos, sem rodeios, cendo e atingindo a maturidade. No pró-
os conceitos principais da concepção prio ano em que Ardashir [morreu], o
maniqueísta do mundo. É preciso, pri- Paracleto vivo desceu sobre mim, e me
Zoroastro em
meiro, fazer um esforço para pensar no falou. Ele me revelou o mistério oculto,
seu local de
universo antes do surgimento do espa- que estava escondido nos mundos e trabalho (miniatu-
ço e do tempo. Antes que a criatura pu- nas gerações: o mistério das Profun- ra flamenga do
desse ser formada, existiam dois princí- dezas e das Alturas. Ele me revelou o século XV).
9
Graças a trabalhos recentes, a ciên-
“A ALMA NÃO EVOLUI: cia e a mitologia já não nos parecem tão
ELA É!” opostas uma à outra. Parece que as
descobertas científicas corroboram cer-
tos mitos, apesar de sabermos que o
tempo sem dúvida foi “podando” estas
A alma guarda sua essência pró- histórias de um passado imemorial.
pria, em todas as circunstâncias. Para Mani, o surgimento do cosmo e
No que diz respeito a essa essên- sua organização a partir do caos são a
cia ela é imutável, porém conseqüência da mistura dos dois prin-
ela possui um poder muito forte, cípios que, em sua origem, estavam
radiante. A alma, portanto, não separados: o Espírito e a matéria, a Luz
vem a ser, ela é, pois existe antes e as Trevas. A ordem, a desordem e a
mesmo que as forças entrem em organização são inseparáveis na visão
atividade. Quando ela se move, maniqueísta: nosso universo físico seria
por exemplo, então não ocorre aí ao mesmo tempo mecanicamente per-
algo como um desenvolvimento ou feito, determinado, justificado, racional;
crescimento; não, ela “é”. Ela “é”, e também incoerente, demente, irracio-
diz Hermes, antes de qualquer nal, portador de destruição e de morte.
outra criação. Quando, em Nosso destino depende da aceitação e
seu conjunto, vemos a alma, a da resolução desta contradição lógica: o
personalidade e o corpo como o homem deve escolher entre a vida e a
homem oculto, então a alma já é morte. Entre a vida do Espírito e a morte
aí uma faculdade divina perfeita. da matéria, e a consciência que resulta
A alma já vive internamente desta decisão.
na perfeição. É por isso que
dizemos: ela “é”!
O inverso da teologia
tradicional
dezas e das Alturas. Ele me revelou o
mistério da Luz e das Trevas, o mistério
do conflito e da grande guerra que as Segundo Mani, o mundo é o produto
Trevas haviam provocado. Ele me reve- de um acidente, de uma queda. A partir
lou como a Luz venceu as Trevas jun- desta maneira de ver o mundo, ele se
tando-se a elas e como este mundo foi opõe às doutrinas religiosas e teológi-
estabelecido [...] Ele me esclareceu a cas tradicionais, que vêem a criação
respeito do mistério da formação de como um produto perfeito do criador, e
Adão, o primeiro homem. Ele me ins- assim não explicam a origem do mal. As
truiu sobre o mistério da árvore do teorias evolucionistas também são,
conhecimento, da qual Adão se alimen- acima de tudo, monistas. Elas se voltam
tou e por meio da qual seus olhos pude- para a ciência (darwinismo ou neo-dar-
ram ver; o mistério dos Apóstolos que winismo), filosofia e política, mística e
foram enviados ao mundo para estabe- profecia. Aqui, a criação e seu desenvol-
lecer as Igrejas [...] Assim me foi revela- vimento são a evolução do Uno, do na-
do, pelo Paracleto, tudo o que foi e tudo da rumo ao Espírito, que um dia irá
o que será, e tudo o que o olho vê e transformar o Mal em Bem.
tudo o que os ouvidos ouvem e o pen- Na doutrina de Mani não pode haver
samento pensa. Por meio dele aprendi a transformação ou mudança, mas unicamen-
conhecer todas as coisas; vi o Todo te um retorno à situação original, quando os
através dele, e tornei-me um só corpo e dois princípios estavam separados. Neste
um só espirito.” 4 sentido, não se trata de um retorno à Uni-
10
dade, percebido como a fusão de dois prin-
cípios antagônicos, tal como aparecem na O texto gnóstico da Pistis Sophia
maioria das doutrinas religiosas e místicas. encontra-se no British Museum,
No momento em que cada entidade voltar à em Londres (cat. MS. Add 5114)).
origem, estes princípios antagônicos serão Ele compreende 178 folhas de
neutralizados, pois já cumpriram sua tarefa. pergaminho que formam 356
A Igreja oficial e certos místicos cris- páginas de 22 X 16 cm. O texto
tãos condenavam a visão que Mani aparece entre duas colunas e
tinha do mundo e a achavam escanda- somente faltam 8 páginas ao todo.
losa. Agora que muitos textos perdidos Ele é composto de quatro partes,
foram descobertos e estudados com sendo que 34 páginas contêm o
profundidade, podemos dizer que Mani Evangelho da Pistis Sophia.
estava muito adiante de seu tempo, que Sem nenhum justificativa, o
seu pensamento e sua vida eram pro- nome Pistis Sophia foi dado ao
fundamente gnósticos e que ele sempre conjunto do códex a partir das
se dedicou a mostrar que a aventura notas de um expert em linguagem
interior, espiritual, não é compatível com copta. A Pistis Sophia e as três
uma simples filosofia. outras partes são conhecidas
Uma doutrina que coloca a salvação como o Códex Askewiano pois foi
do homem ou do mundo em um futuro adquirido em 1785 do legado de
próximo ou longínquo e não no presen- um médico londrino, o Dr. Askew.
te é “messiânica”: a salvação depende Sua assinatura se encontra na pri-
de um retorno do salvador. Ao contrário, meira página do manuscrito. Este
a doutrina gnóstica coloca a salvação é escrito em puro saédico, dialeto
do homem e da humanidade no presen- do Alto Egito. Dois copistas traba-
te. O gnóstico sabe que ele deve liber- lharam nele. O conteúdo provém
tar-se das influências do mundo antes aparentemente da escola de
de começar o caminho da transfigura- Valentino (século II d.C.) e apoia-
ção. “Para melhorar o mundo, comece se em textos mais antigos.
por você mesmo”, diz um velho ditado.
Os adeptos do messianismo querem o
contrário: primeiro, querem melhorar o cas, particularmente nos períodos de
mundo e esperam que haverá uma grandes transformações cósmicas e
grande mudança a partir disto; para a- intercósmicas, como acontece hoje com
tingir esta finalidade, eles justificam to- o início da Era de Aquário que varre
dos os meios. todos os valores antigos. A humanidade
A história da humanidade mostra que inteira está sendo tocada por estas duas
estas duas tendências opostas sempre correntes. De um lado, o chamado diz:
estiveram presentes em todas as épo- “Não deixem para depois! Hora est!” e,
11
pessoal do ser. Esta franco-maçonaria
PODEMOS PROVAR A “QUEDA” pessoal é realmente fundamental para
CIENTIFICAMENTE? atingir a fonte original no interior do ser.
12
física relativista e quântica, do conceito
de complexidade, e da recente teoria do Mani ensina que há duas ordens
caos confirmam a visão paradoxal de de natureza: o Paraíso da Luz,
nosso universo, submetido a dinâmicas que se estende ao Norte, a Leste
contrárias tal como Mani encarava o e a Oeste; e o Reino das Trevas,
mundo, e mostra que os conceitos de ao Sul. O Paraíso da Luz é condu-
ordem, de desordem e de organização zido pelo Pai do Universo.
são inseparáveis. Os conceitos de Em uma ilustração, ele está situa-
“acaso” e “desordem” somente surgiram do no centro de Doze Seres de
como o desenvolvimento de teorias so- Luz. Em uma outra, ele está
bre transferência de energia entre molé- rodeado por cinco elementos (o
culas, átomos e partículas; em seguida, éter, o ar, a luz, a água e o fogo)
com o princípio de Heisenberg, que que estão relacionados com a
enuncia a impossibilidade de determinar razão, o espírito,
ao mesmo tempo a velocidade e a posi- a inteligência, o pensamento e a
ção de uma partícula, e, finalmente, compreensão. O Reino das Trevas
com a teoria do Big Bang. compreende cinco regiões que
À primeira vista, estas duas visões do também correspondem a estes
mundo não estão tão afastadas uma da cinco elementos e aspectos huma-
outra. Suas próprias descobertas obri- nos. A tarefa do homem
gam a ciência moderna a refletir sobre é auxiliar os deuses a fazer a
as semelhanças, concorrências e anta- separação entre a Luz e as Trevas
gonismos a respeito dos conceitos de – a separação ente o Bem e o
ordem e desordem, ou caos. Para Mani, Mal. Para sustentar o homem
a saída era evidente, pois ele bebia de nesta tarefa, este recebe o “Nous”
uma outra fonte. (espírito superior), que lhe comu-
Mas semelhança não significa identi- nica o conhecimento de sua
dade. Ciência e espiritualidade (que não Pátria original. O “ Nous” lhe faz
devem ser confundidas com misticismo) ver que ele está submetido às for-
aparecem como duas leituras conver- ças das trevas. Se ele despertar
gentes do universo, mas sua essência e do sono do esquecimento, terá
seus métodos continuam irremediavel- o poder de auxiliar todas as almas
mente estranhos e irredutíveis como o – todos os raios de Luz – a se
mostram de maneira exemplar as con- libertarem da matéria.
versas muito “maniqueístas” de Krish-
namurti e do físico D. Bohm, relaciona-
dos no livro Le temps aboli.
nenhum desprezo por suas teorias, e
penso que para maioria elas são boas e
justificadas. Se, de minha parte, escrevo
“Vejo as portas divinas em de forma diferente sobre inúmeras coi-
meu espírito” sas, isto não se deve a uma vontade
deliberada nem a uma atitude de dúvida
em relação ao que eles afirmam [...]
O seguinte extrato do livro Aurora pois, de minha parte, não adquiri minha
Nascente, de Jacob Boehme também “ciência” por meio de estudo [...], mas
explica isto: Certamente, caro leitor, como vejo as portas divinas em meu
compreendo bem o pensamento dos espírito e sinto também o impulso ne-
astrólogos [astrônomos]. Aliás, já li cessário para isto, escreverei o que é
algumas linhas de seus escritos e sei justo aos meus olhos e não reconhece-
muito bem como eles descrevem as rei sobre isto a autoridade de nenhum
órbitas do sol e das estrelas; não tenho homem.6
13
A doutrina de Mani, assim como a de
Jacob Boehme, que pode ser compara-
da à dele, era em verdade uma revela-
ção. Ora, o que é revelado não pode ser
encontrado pelo pensamento racional,
por mais racional que seja, porque a re-
velação deve ser compreendida aqui
como uma visão súbita e interior, ina-
cessível à razão humana. Em termos
modernos, falamos aqui de “visão pene-
trante” como as visões que alguns eru-
ditos do passado tiveram, de modo par-
cial, ou muitos dos gigantes espirituais,
que as tiveram em sua totalidade.
Tanto ontem como hoje, esta revela-
ção é recebida no momento em que a
alma liberta religa-se ao Espírito divino.
Em um momento como este, há uma
“iluminação interior”. Os maniqueus e os
gnósticos cristão chamavam esta efu-
são do Espírito na alma de “Cristo” ou
de “Paracleto”. Enquanto esta experiên-
cia interior não for vivida, o cientista ou
o pesquisador espiritual terá dificulda-
des em aprofundar-se no verdadeiro
conteúdo dos textos de Mani e de Jacob
Boehme.
É claro que, nesta busca do verdadei-
ro sentido da mensagem de Mani, o
pensamento especulativo ou a interpre-
tação simbólica não são suficientes.
“Deus nos revelou isto por meio de seu
Espírito; pois o Espírito tudo sonda, até
mesmo as profundezas divinas” (Pri-
meira Epístola de Paulo aos Coríntios,
2:10)
E Mani escreve: “O homem somente
deve acreditar naquilo que vê com seus
próprios olhos”.
1
Khephalaia 142, citada por H. C. Puech,
O Maniqueísmo, no livro História das Reli-
giões, tomo 2, edições La Pléiade, p. 556
2
Jacob Boehme, Da assinatura das coisas,
tradução francesa P. Deghaye, Grasset, p. 37.
3
Nahal Tajadod, Mani, o Buda de Luz, edi-
ções Cerf, p. 63.
4
Kephalaia 1.
5
Jan van Rijckenborgh, Arquignosis
Egípcia, tomo 4, capítulo XXVIII.
6
Jacob Boehme, A Aurora Nascente, citado
por G. Wehr em Jacob Boehme, edições
Albin Michel, p. 54, edição brasileira pela
Editora Paulus, 1998.
14
A SENDA DO MANIQUEÍSMO
15
Foi assim que, no século VIII os ma-
niqueus chegaram ao país dos uiguros,
um povo turco que dominou a Mongólia
de 744 a 840. Os uiguros converteram-
se à “religião da Luz” e o maniqueísmo
tornou-se durante oitenta anos a religião
de Estado deste povo.
O maniqueísmo (assim como outros
movimentos gnósticos como o dos bogomi-
los e dos cátaros) teve uma influência mar-
cante sobre a cultura da época, dando
forma a uma autêntica “civilização gnósti-
ca” que levou ao mais alto grau os valores
sociais, morais e espirituais que se encon-
tram tanto no budismo como no cristianis-
mo ou no zoroastrismo originais.
Mas, por volta de 840, cem mil guerrei-
ros quirguizes se abateram sobre a capital
do estado dos uiguros. Os maniqueus fugi-
ram para o Sul e tomaram a rota da seda,
principalmente a cidade de Turfan. No iní-
cio de nosso século, diversas missões
científicas russas e alemãs encontraram
principalmente vestígios arqueológicos de
um mosteiro maniqueu, assim como
esplêndidos afrescos e manuscritos. Sob o
“Que a religião da Luz circule!” impulso das comunidades maniquéias
reagrupadas em torno de mosteiros e tem-
plos, reconstituiu-se uma civilização nobre
O “sacrifício de Mani”, o imenso “acon- e refinada que, depois das invasões ára-
tecimento no céu”, segundo a terminolo- bes, integrou-se à cultura do Islã e da qual
gia dos gnósticos shiítas, não deveria ser ainda hoje encontramos vestígios na arqui-
em vão. No decorrer do quarto século, o tetura, na escrita, na pintura, na música, na
maniqueísmo deveria conhecer sua mais medicina e nos contos.
forte expansão, espalhando-se pelo Também devemos aos missionários
Egito, pela Tunísia, pela Argélia e até a maniqueus a lenda de Buda como ficou
Hungria. Em direção ao Oriente, na conhecida no Ocidente a partir do sécu-
península arábica, no Turquestão oriental lo XIII, sob o nome de Conto de Josa-
e até às fronteiras da China e ao longo phat e Barlaam, e provavelmente o mito
da fabulosa “rota da seda”, que ainda do Graal. Se lembrarmos que o nome
existe, e que era uma poderosa via de de Mani significa “vaso” ou “pedra”, es-
circulação de pensamentos e de idéias. tes dois sentidos nos ligam diretamente
Mani dizia: “Que a religião da Luz circule ao símbolo do Graal.
como uma mercadoria de paz e de tran-
qüilidade!”. À imagem de seu mestre, os
missionários maniqueus desejavam ar-
dentemente espalhar a “religião da Luz” Parsifal, o “Persa louco”, o
absolutamente sem luta. Suas palavras e “Louco Perfeito”
Ilustração seus atos tocavam as populações e por
tirada de
Parsivalnama,
toda a parte as autoridades eram favorá-
texto maniqueu veis a eles: assim eles foram estabele- A lenda do Graal, por intermédio de
do século XIII. cendo suas comunidades. Parsiwalnameh, de origem persa, che-
16
gou à Europa no início o século XIII sob
o nome de Parsifal de Wolfram von ANULAR SISTEMATICAMENTE A
Eschenbach. Já G. de Sède, falando NOVA DOUTRINA
sobre Mani em seu livro O segredo dos
Cátaros, diz que “seus adversários liga-
vam [...] seu nome à palavra grega Há algumas dezenas de anos, foi descoberto na
“mania”, que significa “loucura” e fazem Hungria um manuscrito que expunha as regras
dele um “Parsi fol” (em francês = um da fundação da “ fé cristã”. Este manuscrito mos-
“parsi” louco). trava ponto por ponto como deveria ser
Este jogo de palavras não é inocente estabelecida a igreja “ cristã”: primeiro, anulando
e lembra que os adeptos de Zoroastro, o sistematicamente tudo o que era maniqueísta;
fundador da religião da Pérsia antiga, segundo, propagando a doutrina; e terceiro,
chamavam-se uns aos outros de “par- suprimindo todo adversário da nova doutrina.
sis”, ou seja, “os puros”, como os cáta- É patente que o maniqueísmo na Hungria e o
ros”, e deram seu nome à Pérsia. cristianismo original têm as mesmas raízes. Isto,
Na narrativa do Graal, Perceval ou por causa de sua descendência comum (os citas
Perlesvaux, Parzival ou Parsifal, é cha- e os hunos) e pelo fato de que, sob o reino dos
mado de “Louco Perfeito” por causa da partas, as tradições das comunidades mani-
pureza de suas intenções e de seu queístas do monte Ural correspondiam às dos
desejo, que ele impulsiona ao longo de hunos, e que a arte pictórica desta época utiliza-
toda a sua vida, de buscar o Absoluto va símbolos gnósticos. A própria coroa da
representado pelo Graal. Hungria é constituída por símbolos maniqueus.
Os trabalhos do professor austríaco
F. von Sutschek estabeleceram a possi- Fontes:
bilidade de uma origem indo-iraniana do L’ Inquisition au temps des Arpades, Feher M.
mito do Graal cujos vestígios estão, Jenö, edições Transilvânia, Buenos Aires, 1956.
segundo ele, evidentes em Parsifal. A La cosmologie orientale et les influences mytho-
lenda foi transmitida a W. von Eschen- logiques qu’ évoque la couronne de Hongrie,
bach por um trovador provençal que se Badiny Jòs Ferenc, Buenos Aires, 1986.
chamava Kyot, e pensava-se que ele L’ Enseignement de Mani, Szokoli, Katalin –
mesmo teria descoberto essa lenda em Takàes, György, Vonzàskör, Miskolc, 1987.
Toledo, em um manuscrito árabe desco-
17
nhecido, cujo autor era um “pagão” ex- nidade ismaelita, que sucumbiu doze
perimentado em ciências naturais, cha- anos depois de Montségur, nas mesmas
mado Flégétanis. Além disso, existe condições. O islamólogo H. Corbin lem-
uma narrativa persa de origem mani- bra que a “Cavalaria espiritual” constitui,
quéia que foi descoberta em 1931 e que com o ciclo da Profecia e do Imamat, os
foi intitulada Parsiwalnameh, cujo tema equivalentes ao “Chamado e Resposta”
central é O canto da pérola e algumas de Mani. Ou de “Pistis Sophia” de Va-
outras lendas que serviram de base à lentino, uma terceira corrente que per-
lenda de Parsifal. As semelhanças entre mite transformar a revelação do Alcorão
estas narrativas e as versões ocidentais em uma realidade vivenciada.
de Parsifal são surpreendentes. Setecentos anos mais tarde, é no
coração da antiga Pérsia doravante isla-
mizada que o sacrifício de Mani ressur-
giu por meio de figuras como Al-Hallâdj
A influência da doutrina de Mani (cerca de 858 - 922), que foi morto, co-
no Ocidente mo Mani, por ter dito “Eu sou a Ver-
dade”; de Suhravardi (1155-1191), o
fundador da “Filosofia da Luz”, por ter
O nome dos personagens em Parsi- clamado abertamente que “Deus pode
walnameh e no Parsifal de W. von Es- fazer surgir profetas depois de Maomé”;
chenbach assemelham-se estranha- ou ainda Ibn Arabi (1165-1240), cujo
mente: Gajmurat / Gaschmuret; Trefe- nome significa “o maior dos mestres”, “o
zand / Trevizent; Na Fartus / Amfortas; discípulo de Jesus”, que afirmou, depois
Clinschor / Klingsor; Arta Churus / Artus. de ter tido uma visão, que “Soube então
Este manuscrito, que infelizmente não que minha palavra atingiria os dois hori-
pôde ser encontrado, confirmaria a zontes: o do Ocidente e o do Oriente” e
influência que o Irã pré-histórico e islâ- que escreveu: “Oh, maravilha, um jar-
mico exerceu sobre o cristianismo oci- dim entre as chamas [...] meu coração
dental por meio de seus textos simbóli- tornou-se capaz de todas as formas;
cos que veiculavam o ideal da “Cava- uma pradaria para as gazelas, um con-
laria Espiritual”, por meio do zoroastris- vento para os monges, um templo para
mo, do maniqueísmo, do ismaelismo, ou os ídolos, uma Ka’aba para o peregrino,
de movimentos sufistas da Espanha as Tábuas do Tora, o Livro do Alcorão.
andaluz. Certas tradições situavam o Eu professo a religião do Amor, e qual-
castelo do Graal na Pérsia, atual Irã, na quer direção que tome sua montaria, o
fortaleza de Alamut, sede da Frater- Amor é minha religião e minha fé”.
A obra imensa escrita e pintada de
Mani, os templos maniqueus, a civiliza-
ção maniquéia, de tudo não resta quase
nada: o maniqueísmo detém o título
pouco invejado de “a religião mais per-
seguida de toda a história”. Serge Hutin
escreve: “Com raros intervalos de tole-
rância ou de favor, os maniqueus foram
vítimas de uma repressão feroz, de
massacres metódicos a ferro e a fogo.”
Até o século XIX, o conhecimento e o
estudo do maniqueísmo somente se
baseou em testemunhos indiretos, geral-
Amuletos mente devidos a adversários como Agos-
nestorianos em tinho, cuja obra deveria lançar as bases
ouro. ideológicas da Inquisição, a qual, a partir
18
de 1231, perseguiu sistematicamente “o das) para que fosse conhecida e reco-
abominável sacrilégio da heresia”. nhecida a importância do maniqueísmo
Na Hungria, por exemplo, é evidente como religião universal e para que a
que os cristãos conseguiram apagar herança gnóstica do passado suscitas-
desta forma todos os vestígios do mani- se algum interesse.
queísmo pacífico e não-violento. Isto po-
de ser observado pelo fato de que não
foi encontrado nenhum testemunho pro-
vando que o maniqueísmo desempe- Ressurgimento do pensamento
nhou um papel preponderante nesta gnóstico
região.
Apesar de não terem um laço visível
com os bogomilos e com os cátaros, As traduções dos textos gnósticos
podemos considerar que estes foram descobertos em Nag-Hammadi (em
seus sucessores. Bastava pronunciar a 1945), no Egito, e de alguns textos es-
palavra “maniqueu” para arriscar a pró- sênios de Qumram (em 1947), inaugu-
pria vida. “Ser confundido com a seita raram um movimento mundial do ressur-
maldita, esta era a pior sorte que pode- gimento do pensamento gnóstico que
ria ameaçar um grupo cismático ou não permite mais que se ignore a exis-
herético”, escreveu Decret. Foi preciso tência e a doutrina de Mani. Hoje, é um
esperar a descoberta de um sítio ar- fato conhecido de todos que as tradu-
queológico que revelou uma comunida- ções destes manuscritos demoraram
de maniquéia no Turquestão chinês e muito tempo para surgir, e que foram
manuscritos originais no Egito (em levadas a cabo sem muito entusiasmo.
A Rota da Seda
1930), especialmente os Salmos, as O que, porém, nem todos sabem é que ligava o Ocidente
Kephalaia, as Homílias, as Cartas de Jan van Rijckenborgh e Catharose de ao Oriente até o
Mani (que hoje se encontram destruí- Petri não hesitaram em fundamentar mar da China.
19
sua doutrina gnóstica sobre o pensa-
HINO mento de Mani desde antes da Se-
gunda Guerra Mundial, principalmente
no semanário da época A Luz da Rosa-
Eles o fizeram subir na cruz Cruz, publicação da Fraternidade da
para levá-lo à morte, Rosa-Cruz, Ordem dos Maniqueus. Foi
e fizeram dele um rei. assim que foi-se preparando um renas-
Eles o coroaram, cimento mundial do gnosticismo. Atu-
porque ele havia rebaixado almente, o conceito de “Gnosis” não é
suas realezas. mais misterioso ou insólito. A propaga-
Eles o vestiram com um manto ção da doutrina de Mani e a renovação
porque ele havia roubado das idéias que decorrem deste fato
seus poderes. levaram um grande número de pessoas
Eles o revestiram de púrpura, à prática da não-violência em um
porque ele havia rompido mundo de lutas incessantes. A imagem
suas paixões. marcante e atraente da alma que está
Eles o colocaram um cravo prisioneira da matéria sempre está
nas mãos, falando de perto aos buscadores. Este é
porque ele havia registrado o drama do homem que luta para se
seus pecados. libertar da escuridão, a fim de encontrar
Eles lhe deram vinagre a saída para o mundo da Luz, ou, como
para beber expressa um hino maniqueu: Um vento
misturado com mirra do Norte que sopra sobre nós: este é
porque estavam sofrendo. Mani. Levantemos a âncora com ele e
Eles o traspassaram com façamos a viagem rumo ao país da
uma lança, Luz.”
porque ele havia destruído
suas imagens.
20
DA ILUMINAÇÃO À PROFECIA
Desde sua juventude, Mani foi refra- (Keph. I) Sua mensagem foi ensinada em
tário à lei que seus correligionários todas as línguas, proclamada em todas as
cidades e se espalhou mais longe do que
lhe impuseram. “No meio destes ho-
qualquer outra religião.” Minha igreja se
mens, caminhei com sabedoria e propagará em todas as cidades, meu
malícia.” Depois, ele critica aberta- Evangelho atingirá todos os países” (Keph.
mente certas práticas alimentares 154). Ele funde em uma só tradição espiri-
seguidas por eles e destaca como tual o Oriente e o Ocidente, a gnosis de
Buda, o dualismo de Zoroastro e o mono-
única pureza “a pureza da Gnosis”.
teísmo do cristianismo. Sua intenção é que
esta religião universal possa transformar o
Trazido diante do conselho da ordem, mundo pela não-violência e pela ausência
ele foi acusado de dissidência e depois de luta. A fim de assegurar a conservação
excluído da comunidade. Acompanhado e a transmissão de sua doutrina, ele toma
de seu pai e de dois discípulos, ele voltou cuidado de registrar pessoalmente seu
para o local onde nasceu, e depois foi conteúdo por escrito, ilustrando-o com cali-
para a Índia, seguindo o rastro do apósto- grafias e pinturas. “Jamais foram escritos
lo Tomás. Depois da morte de Ardashir ou revelados livros comparáveis aos que
(242 A C.), ele voltou para a Pérsia. Se- escrevi”, diz ele
gundo algumas fontes, ele já tinha elabo-
rado o projeto do primeiro templo mani-
queu. De Shapur, sucessor de Ardashir, “Minha esperança espalhou-se por
ele recebe a autorização para ensinar toda a terra habitada”
sua mensagem no império persa.
Apesar de sua enfermidade (ele era
manco), percorreu o império a pé em to- A progressão da nova religião é fulgu-
dos sentidos. Em Kephalaia 76, ele decla- rante e aceita em inúmeros ambientes,
ra “Ter percorrido o mundo literalmente em razão de seu realismo. Em 270, sete
correndo sobre a ponta dos pés”, pregan- anos antes da morte de Mani, a “Santa
do a boa nova por toda a parte, o Igreja”, como Mani a chamava, foi im-
Evangelho vivente, implantando comuni- plantada em toda a Pérsia. No exterior, a
dades e edificando templos. Além disso, rede das missões se estendeu, como ele
ele envia seus discípulos ao estrangeiro, mesmo dizia, “de Leste a Oeste”.
intimando-os a “vagar perpetuamente pelo Mas a expansão considerável do
mundo, pregando a doutrina e guiando os maniqueísmo e o fato de que Mani pare-
homens na Verdade”. De acordo com ce para muitos como o verdadeiro suces-
Mani, a nova religião da Luz não deve sor de Zoroastro suscita a hostilidade e a
conhecer nenhum limite em sua difusão. inveja dos sacerdotes que haviam levado
“Minha esperança chegou até o Ocidente os reis sassânidas ao poder. Nesta
do mundo e em todos os lugares da terra época, Mani fazia parte do séquito do rei
habitada, e também na direção do Norte e Shapur e o acompanhava em suas expe-
do Sul. Nenhum dos apóstolos que me dições como conselheiro e médico.
precederam jamais fizeram algo assim! Depois da morte de Shapur (em 271),
21
começa um período de perseguição “Liberai meu espírito de sua prisão!”
impiedosa. Por instigação do sacerdote
Kirdir, Mani é preso e deve comparecer
diante do novo chefe do império sob a Os últimos momentos de sua existên-
acusação de “crimes contra Deus”. Con- cia foram consagrados a sua Igreja: ele
denado à morte, ele foi lançado na prisão transmite o archote do Espírito a seus
em uma quarta-feira, preso a correntes companheiros mais próximos. Dentre
que pesavam 25 quilos, que o impediam eles, Sissínio, que o sucederá como
de movimentar-se. guia da comunidade maniquéia. Esta
22
designação pessoal de um sucessor e conduzi-me para fora deste mundo. Página de rosto
de um livro
desencadeia a permanência de uma Ó pai, ó homem original,
maniqueu em
autêntica hierarquia espiritual durante abre as portas ao meu lamento, soguidiano tardio.
1000 anos. Aos discípulos que testemu- que ele chegue às alturas. No verso, sete
nharam o seu fim, ele dá a missão de Virgem de Luz, eleitos (Chotscho,
continuar “a guerra santa dos filhos da e vós, Anjos, século VIII-IX d.
Luz contra os filhos das Trevas”, que escutai minha súplica, C.)
(Turfan M 49-11)
23
“VIM PARA FAZER RESSOAR UM GRITO EM
TODO O MUNDO”
“Eu, Mani, apóstolo de Jesus Cristo Desta maneira, ele pôde unificar os
de acordo com a vontade de Deus, aspectos libertadores do passado, e no-
do Pai da Verdade de onde prove- vamente a mensagem de Jesus Cristo
pôde ressoar como a luz interior da al-
nho, que vive e é por toda a eterni-
ma e a força viva do Espírito divino.
dade, que era antes de todas as coi-
sas e será depois de todas as coi-
sas. Tudo o que foi e tudo o que será A mensagem da Igreja cósmica
existe por sua Força. D’ Ele prove- da Luz
nho e d’ Ele serei. E assim fui ema-
nado de sua verdade. Esta verdade Em meio a um mundo invejoso e ciu-
eu a anunciei a meus irmãos. A paz, mento, que se esforçava para sobreviver
eu a anunciei aos filhos da paz. com seus dogmas e poderes ocultos,
Preguei a esperança à raça imortal. Mani espalhou a mensagem libertadora
de uma Igreja de Luz cósmica e univer-
Fiz uma escolha e indiquei o cami-
sal, que está “mais perto do que pés e
nho do alto aos que desejavam a- mãos”. A semente da Luz a que nos
profundar-se nesta verdade”. referimos aqui está oculta no coração
de cada pessoa. Ela dá a compreensão
(Extraído da introdução do Evangelho da força para se libertar da ignorância
Vivente de Mani) paralisante e dos desejos animais que
impedem que a alma possa se desen-
volver.
Foi entre 215 e 276 d. C., quando a O tempo estava maduro para isto e a
Pérsia e Roma estavam envoltas em intervenção de Mani encontrou eco em
muitas guerras, que Mani apareceu pu- inúmeros corações. A reação destes
blicamente. Desde sua juventude ele es- corações foi tão poderosa que a nova
tava preparando sua vocação interior de religião se expandiu com toda a veloci-
libertar a humanidade. Com esta finali- dade sobre as vastas regiões do mundo
dade, ele se serviu dos textos sagrados daquela época. O Livro dos Salmos de
de seus predecessores de culturas dife- Mani, que foi conservado, dá testemu-
rentes, mas também de suas próprias nho desta dinâmica irradiante, do entu-
experiências no decorrer das quais a siasmo inspirado dos maniqueus. Eis
Plenitude que penetra tudo alimentou um destes textos:
seu conhecimento interior. “Nós, que somos da raça dos filhos
Baseando-se neste alimento espiri- da Luz, oferecemos nossa flor a Mani!
tual, ele fez a síntese da única mensa- Jesus Cristo coloca a coroa sobre tua
gem anunciada em todas as religiões cabeça com alegria, Mani, filho bem-
autênticas: o Evangelho macrocósmico amado. Pois seu edifício que foi profa-
e microcósmico universal da libertação, nado, tu o reconstruíste; seu caminho
tal como ele se revela no mistério de que continuava oculto, tu o iluminaste;
Jesus. sua doutrina que estava obscurecida, tu
24
a clarificaste; sua sabedoria que estava penetra a ordem das Trevas, mas as
mascarada, tu a elucidaste. Trevas continuam separadas da Luz.
Citemos ainda um outro texto deste Esta idéia central das duas naturezas
livro: é fundamental na doutrina de Mani,
“Quero glorificar-te, assim como em todos os movimentos
pedra angular, inalterável, que se desenvolveram a partir desta
eternamente a mesma. Gnosis. Ora, o homem que tem seu eixo
Alicerce inabalável, ajustado para a linha horizontal sempre
Cordeiro atado à cruz da natureza, se oporá e sempre perseguirá os fiéis
tesouro oculto na terra, do gnosticismo maniqueísta. O fato de
Jesus, filho do orvalho da manhã, tantos perseguidores organizados du-
seiva de todas as árvores, rante séculos terem agido nas regiões
doçura de todos os frutos, que se estendem da Europa Ocidental
olhar do céu, até a China demonstra o profundo enrai-
guardião de todos os tesouros, zamento da doutrina da libertação e o
herói que carrega o universo, quanto os homens de boa vontade esta-
alegria de todas as criaturas, vam ligados a ela com seus corações e
paz dos mundos. suas almas.
É uma maravilha falar de ti.
Estás no interior, estás no exterior.
Estás lá em cima, estás aqui embaixo.
Estás perto e estás longe. Uma falsa imagem da ordem
Estás oculto e manifesto. da Luz
Cala-te, e, no entanto, falas.
Tu és a glória por inteiro.”
Havia realmente um dualismo na
Na Igreja maniquéia trata-se do sétu- visão maniqueísta conforme condenado
plo processo do despertar da Alma- pela Igreja de Roma? O conceito de
-Espírito libertando-se do mundo das “dualismo” se refere a duas forças, dois
ilusões. Isto somente poderá acontecer princípios equivalentes, porém opostos.
quando deslocarmos a importância de Entretanto a ordem da Luz e a ordem
nossas vidas para o coração espiritual: das Trevas sobre as quais Mani fala não
o coração do microcosmo que é uno são equivalentes! A ordem das Trevas é
com o coração do macrocosmo divino. a imagem refletida e deformada da
Diante das Trevas, Mani opõe o Reino ordem da Luz. A ordem da Luz é unida-
universal divino da Luz que é onipresen- de: nela não reina nenhuma dualidade.
te e tudo penetra. Para ele, o Reino da Na ordem das Trevas, que é a imagem
Luz é a origem e o fim de todas as deformada da ordem da Luz, tudo tem
almas. seu contrário e todos estes contrários,
Muitos textos maniqueus afirmam por sua alternância, vão se suprimindo
que a Luz e as Trevas são inconciliáveis uns aos outros: aí reina a dualidade.
na alma. O mesmo acontece com a No centro do microcosmo se manifes-
consciência da alma vivente e a incons- ta o próprio alicerce do universo. Este
ciência do homem da natureza. Esta é a princípio superior é o elo que liga o
razão porque Mani fala do Espírito da macrocosmo e o microcosmo. É por isso
Verdade, que vem para libertar o ho- que Jesus diz: “O Pai e eu somos um”.
mem da ilusão deste mundo. Ele esten- Mani qualificava o estado em que Jesus
de um espelho a seus contemporâneos, Cristo se encontrava de “a rosa sublime
para que eles possam ver o universo e do Pai”. Este princípio supremo da cons-
para mostrar, desta forma, que há duas ciência divina é a base de todas as cria-
ordens de natureza: a natureza da Luz e ções novas e verdadeiras. Enquanto
a natureza das Trevas. A ordem da Luz esta criação continuar em união cons-
25
ciente com sua origem divina, ela irá bri- permiti que meus inimigos apagassem
lhar por causa desta consciência. Mas, minha lâmpada. Na longa corrida, che-
se ela romper por iniciativa própria o guei onde raramente alguém chegou.
laço que a une com a Luz, ela cairá na Cumpri esta corrida até o seu bom fim.
escuridão crescente das trevas. A an- Voltei à minha pátria cantando e jubilan-
gústia, a doença, o sofrimento e a morte do. Vê, consegui até escapar deste cor-
caracterizarão sua existência. Em um po mortal”.
microcosmo ou em um cosmo como Em um outro fragmento, lemos:
este, a Luz se apagará. Sua animação “A cruz de luz que a vida universal
é ilusória e os pólos opostos da dualida- nos estende, eu a reconheço e nela
de irão determinar seu curso a partir tenho fé, pois minha alma é um reflexo
de então. dela e todas as vidas são alimentadas
É assim que surgiu a “mistura” da Luz pela Luz. Mas os cegos não podem
e das Trevas, de onde o homem deve compreender isto”.
tentar sair. Com a mensagem do Reino Palavras parecidas com estas encon-
universal da Luz, da qual todos os tram-se no Novo Testamento: “Estou no
homens tinham uma centelha, Mani ten- Pai e o Pai está em mim[...] O Pai e eu
tou libertar seus contemporâneos da somos um [...] Sem mim nada podeis.”
desorientação e do obscurecimento de As trevas não compreendem estas pala-
sua consciência dividida. vras: elas as qualificam de blasfêmias e
partem em luta contra a Luz, demons-
trando, desta forma, que a dualidade
está nelas.
“Escapei do mundo do erro”
26
trários. Eles sofrem com o isolamento, gem do princípio divino que está pre-
que faz nascer o medo e a oposição. sente dentro do ser humano. Este prin-
Eles percebem que o sofrimento, tanto o cípio central deve ser libertado e preser-
seu próprio como dos outros, vai vado de qualquer desejo animal, de
aumentando a cada dia. Eles observam qualquer inconsciência e ilusão. Somen-
que vão afundando cada vez mais pro- te esta liberdade poderá permitir que o
fundamente na matéria (chamando este homem voe rumo ao Espírito que o
estado de “estar bem”) e que isto os criou.
aprisiona. E eles vão vendo que, debai-
xo do colorido da “melhora”, a matéria
vai sendo desnaturada.
Eles se espantam com a beleza
de tuas asas
27
Eles nem te conheceram,
nem te compreenderam. Em 276, Mani foi acusado de
O pecado está em grande confusão, heresia, aprisionado e, sem
pois de repente escapaste dele dúvida, levado à morte. Morreu
e não o seguiste depois de 26 dias de prisão.
em sua falta de rumo. Não é provável que tenha sido
E o fogo de seus demônios crucificado como se diz. É preciso
tu os extinguiste considerar esta crucificação como
com tua crescente virtude. a imagem dos sofrimentos e da
Confundiste os caçadores, morte de Jesus. Segundo os
que queriam caçar-te. textos de Turfan, parece que ele
Desfizeste suas armadilhas. pôde transmitir suas últimas
E olha como eles se espantam instruções a seus discípulos
com a beleza de tuas asas; na prisão.
agora que, magnífica,
te elevas com as águias, (M. Boyce, A reader in manichaean
middle Persian and Parthian,
rumo ao pombal da liberdade”. edições Leyde, 1975).
Transmissão perseverante da
mensagem te para o mundo astral, onde as forças
demoníacas roubavam a luz das almas.
É por esta razão que os maniqueus ten-
Quando Mani voltou à corte do rei taram libertar-se de todos os desejos.
Bahram, em 273, teve que se apresen- Eles também evitavam prejudicar os
tar diante de um tribunal, que o acusava homens, os animais e as plantas, para
de traição em relação à igreja do Estado não ferir a cruz de luz cósmica nestas
da Pérsia, e que o condenou à morte. criaturas (e portanto a alma divina). Aos
Assim terminou sua vida e sua Alma- olhos de seus contemporâneos, eles
Espírito voltou para a região da Frater- passavam por loucos a maior parte do
nidade da Vida. tempo, porque se mantinham afastados
A Igreja da Luz dos maniqueus tinha do mundo e por isso era preciso perse-
perdido seu guia, mas ela mostrou-se gui-los e exterminá-los. Palavras como
suficientemente forte para continuar, di- mania e maníaco mostram a profundi-
ante da organização inimiga que crescia dade do rastro que esta luta contra a
rapidamente. Assim, foi sempre trans- Luz deixou na humanidade.
mitindo a mensagem libertadora e fun-
dando comunidades: no Oriente, no
Norte da África, nos Balcãs, nos
Pirineus.
Os guardiães da Igreja interior da Luz
foram combatidos por Roma e extermi-
nados. Mas ele já tinham semeado lar-
gamente, para que pudessem nascer as
futuras Fraternidades dos bogomilos,
nos Bálcãs, e dos cátaros, nos Pirineus.
Todas as fraternidades transmitiam a
mesma mensagem, mas adaptando sua
linguagem ao tempo e às circunstâncias.
Nos primeiros séculos do cristianis-
mo, a atenção se voltava essencialmen-
28
A CONSTITUIÇÃO DA IGREJA
DE MANI
O método iniciático de Mani visa o sa. Então, ela chama pelo Espírito de
restabelecimento da unidade entre Luz, que vem em seu auxílio:
“Ele coloca seu Espírito, que é Amor,
a alma e o Espírito, pois é seu esta-
no espírito do Novo Homem.
do de separação que é a causa da Seu Pensamento, que é Fé, no pensa-
dualidade. Esta unificação acontece mento do Novo Homem, o qual ele liberta.
por meio de um processo quíntuplo, Seu Discernimento, que é a Perfeição,
simbolizado, entre outros, pelos cin- no discernimento do Novo Homem.
Sua Compreensão, que é Paciência,
co degraus do estrado que condu-
ele a coloca na compreensão do Novo
zem ao trono vazio do “Bema”. Homem.
E a Sabedoria, que é Razão, na ra-
Os dois princípios do Sol e da Lua, do zão do Novo Homem.
Espírito e da alma existem desde sem- Ele purifica a imagem da Palavra pe-
pre dentro de nós, mas eles não estão cadora e a coloca em sua palavra [..]
mais unidos. O processo do restabeleci- O espírito das Trevas é aprisionado. [...]
mento da ligação é descrito da seguinte Por outro lado, o Novo Homem reina
maneira, em um salmo maniqueu: em seu Amor, sua Fé, sua Perfeição,
“Cinco são as Grandezas que reinam sua Paciência, sua Sabedoria”
desde o princípio. Todas emanaram do (Kephalaia 38, a partir da tradução
Espírito único. O Espírito Santo vem em direta do copta para o Inglês, por R.
cinco forças. A alma o recebe em cinco Allberry).
órgãos. Ele liberta os membros da alma e
os destaca dos cinco membros do pecado.
Estes cinco membros do pecado, assim O Bema é a festa da Paixão de
desatados, ele os prende. Ele eleva então Mani, assim como a festa da
os membros da alma, os reconstrói, os Ressurreição de Manu, o Homem
purifica e a partir deles, forma um novo original. Ele era celebrado em
Homem, que é o Filho da Justiça”. memória da morte e da ressurrei-
ção interior de Mani. O Bema, trono
Em um texto extraído dos Kephalaia, vazio no alto de uma escada de
Mani ensina detalhadamente como a cinco degraus, também é o símbolo
alma, ou o homem interior preso dentro do do processo quíntuplo do renasci-
corpo, vai sendo pouco a pouco liberto mento da alma pelo método do
pelo Espírito de Luz. Ele mostra as cinco Chamado e da Resposta, que
forças da alma: o pensamento, a razão, a encontra-se na forma de rogação e
reflexão, a inteligência e o sentimento. de louvor dos salmos maniqueus.
Elas estão ativas nas diferentes partes
do corpo (ossos, nervos, veias, carne e Tradução Hannedouche S.,
pele) e são dominadas pelo espírito das Maniqueísmo e Catarismo, ed. dos
Trevas, que reina no corpo. É a lembran- cadernos de estudos cátaros,
ça de sua origem, de sua pura forma pri- edições Arques, 1967, p.32.
mitiva, que desperta a alma que está pre-
30
TEXTO EXTRAÍDO DOS SALMOS
Alma, Alma,
lembra-te do éon da Luz.
És uma batalhadora.
És a ovelha que vagueia no deserto.
Teu pai está te procurando
e por teu amor
o pastor saiu em tua busca.
Ó Alma, levanta-te
nesta casa cheia de pesares,
ladrões e demônios.
Não te enganes.
Todos querem tua vida.
Caçadores de morte
eles pegam o pássaro na armadilha
e quebram suas asas,
para impedir que ele volte ao ninho.
Ó Alma, levanta-te!
Volta para tua Pátria.
Já te libertaste dos laços que
te prendem.
Entra na morada da alegria.
32
O RESTABELECIMENTO DO FOGO
SERPENTINO
33
qualificado como “espiritual” no ocultis- Mas o filho mantinha firmemente as
mo. De fato, ele é mais sutil do que os rédeas da Alma.
dois primeiros, mas tão material quanto Como uma rede sobre peixes, ele a
eles. Enfim, o germe de um corpo men- estendeu acima deles; ele a fez cair co-
tal ou corpo do pensamento é freqüen- mo chuva sobre as profundezas abis-
temente chamado de intelecto. No sais, como nuvens de água pura.
entanto, ele ainda não está desenvolvi- Ela lançou-se em meio a eles, tal co-
do e também pertence à região da vida mo um lampejo fulgurante, penetrou em
material. suas entranhas e os prendeu a todos,
sem que eles o soubessem”.
34
“ PERMANECE ETERNAMENTE
VOLTADO PARA A TUA MISSÃO”
37
ENCONTRO DO CAMINHO HORIZONTAL E DO
CAMINHO VERTICAL
38
derna da transfiguração, transmitida não podia compreender a doutrina nem
pela Rosacruz Áurea, trata-se de aspi- sondar suas profundezas, saiu deste
rar à purificação do ser humano, à liber- caminho e converteu-se ao catolicismo
tação da alma e à efusão do Espírito romano, amargurado e decepcionado.
divino. Esta terceira fase pode ser com- Entretanto, quando um ouvinte era
parada à fase em que os “pneumáticos” impulsionado por um ardente desejo do
conseguiam atingir seu objetivo, entre coração e queria prosseguir, ele podia
os maniqueus. Os “eleitos” provam, entrar na Igreja interna.
assim, a unidade que transcende as
dimensões do tempo e do espaço,
assim como o ciclo da vida e da morte. Uma estrutura vertical
Este processo começa no mundo das e horizontal
forças contrárias A centelha de Luz –
que é o germe do verdadeiro Homem –
deve ser liberta dos véus da matéria de Enfim, havia um grupo de pessoas
acordo com o tríplice processo alquími- que continuavam no exterior porque
co: separar, purificar, reunir. As fases não queriam ou não podiam seguir a
“hílica” e “psíquica” são consideradas doutrina. Entretanto, quando se torna-
como a preparação para a efusão do vam conscientes do caminho da liber-
Espírito na alma. Um homem só é ver- tação interior que Mani ensinava a
dadeiro quando o Espírito se manifesta seus discípulos, eles podiam tornar-se
nele. Sócrates falava neste contexto so- “crentes” e até mesmo “eleitos”, como
bre seu daimon. Mani, falava de seu Paulo de Tarso que, de perseguidor
“Gêmeo” ou “Duplo”. Ibn Arabi e Krish- dos primeiros cristãos, tornou-se “a-
namurti falavam a respeito da interven- póstolo de Jesus”, e a quem as comu-
ção de seu “eterno Companheiro”. Her- nidades maniquéias ocidentais tinham
mes Trismegisto, falava sobre o acesso em alta estima.
à “Natureza Perfeita”, enquanto que Jan As comunidade maniquéias, assim
van Rijckenborgh o designa como “O como as primeiras comunidades budistas
Outro” dentro de nós. ou gnóstico-cristãs, apresentavam uma
Os crentes ou os ouvintes da comuni- estrutura ao mesmo tempo horizontal
dade maniquéia eram membros da e vertical. A estrutura vertical correspon-
“Igreja que foi chamada”. Para eles, de ao caminho que conduz da matéria
ainda não se tratava de levar uma vida ao Espírito divino. A estrutura horizontal
interior como era exigida dos eleitos. mostra o triângulo equilátero da liberda-
Eles descobriam a doutrina exterior de, igualdade e fraternidade de todos
antes de se engajarem no processo de os homens. A linha horizontal e a linha
transformação interior. A História conta vertical se encontram no ponto em que
que Agostinho, Pai da Igreja de Roma, os homens que “se converteram” e
ficou apenas na fase dos ouvintes. “se prepararam” têm a possibilidade de
Durante 9 anos ele fez parte do círculo ser tocados pelo Espírito Santo e
exterior da Fraternidade maniquéia do de seguir o caminho que conduz à imor-
norte da África. Quando ele achou que talidade.
39
MANUSCRITOS DO TEMPO DE MANI E DE SEUS
DISCÍPULOS
40
grega: Mani-Vita (o texto traz o título
“Sobre em que seu corpo se tornou”).
Este manuscrito, do século IV ou V foi Mani escreveu um livro que ele chamou de Evangelho
encontrado no Egito e está registrado Vivo e que seus discípulos chamaram de Evangelho
sob o código Keulse Codex. Este codex de Mani. O texto se apóia no livro ilustrado
dá uma resposta definitiva à questão da “Ardahang” . As ilustrações e decorações deste livro
origem do maniqueísmo. É um texto em apresentam uma grande conformidade com as
pergaminho, em um formato pequeno, iluminuras do próprio Mani. No total, ficaram conheci-
de 192 páginas. Uma parte dele já de- dos sete livros de Mani: O Evangelho Vivo, o Tesouro
sapareceu. As pranchas do texto não da Vida, Os Atos, O Livros dos Mistérios, o Livro dos
medem mais do que 3,5 cm de altura Gigantes, O Livro de Preces, Os Salmos e As Preces.
por 2,5 cm de largura e compreendem, Eles formam, em conjunto, o Heptateuco, do qual
em média, 23 linhas. apenas restam citações. Os Kephalaia (Fundamentos
Quase todos os manuscritos, afres- da Fé) escritos em língua copta contêm citações de
cos e miniaturas que foram encontrados Mani, que em sua origem eram em siríaco. Mani
na Ásia Central provêm do Oásis de declara que seus predecessores – Jesus, Zoroastro,
Turfan. O arqueólogo Le Coq descreve Buda – não escreveram sua doutrina. Eles instruíram
sua descoberta assim: “todo o chão da seus discípulos, que escreveram em seguida as
peça estava recoberto de uma camada palavras de seus mestres “ como eles se
de 8 cm de espessura de uma matéria lembravam delas”.
enegrecida, mole e úmida, e por toda a Para o rei Shapur, Mani fez um conjunto de desenhos
parte surgia ouro e cores. Depois de conhecido como Sabuharagan. Ardahang é o livro
examiná-la, percebemos que esta em que ele transmite sua doutrina sob a forma de
camada espessa era feita de livros imagens alegóricas e o Ardahang Wifras dá as
maniqueus completos. Eles estavam explicações. Mani achava muito importante que sua
danificados pela umidade e apodreci- doutrina fosse transmitida na língua e segundo as tra-
dos, mas não dilacerados ou rasgados dições de cada país. Isto explica, sem dúvida, porque
por adversários eventuais. Muitos apre- as interpretações ocidentais contêem nuanças de
sentavam iluminuras. Alguns, depois de cristianismo, enquanto que os textos
serem secos, apresentaram linhas de iranianos oferecem símbolos persas e os
cores brilhantes. Entretanto, apesar de textos da Ásia Central e da China apresentam
todos os nossos esforços, não conse- metáforas budistas.
guimos salvar estes textos de tão gran-
de valor”.
41
A SABEDORIA É MAIS IMPORTANTE NA LÍNGUA
QUE NO CORAÇÃO
43
corações, ela se torna como a criança “Vê”, disse-lhe o Apóstolo, “vou te
que foi posta no mundo, de modo que convencer a afirmar a fé em teu coração
podemos ver sua beleza. Assim aconte- e vou instruir-te de tal modo que isto
ce com a sabedoria que proclamamos, fique evidente para ti. Esta sabedoria é
exprimindo-a com o coração. Ela vai semelhante à criança sobre a qual fala-
crescendo cada vez mais. Sua grande- mos. Uma mulher a concebeu. Quando
za e magnificência vão redobrando con- ela nasceu, seu pai, sua mãe e seus
forme sua beleza e seu esplendor vão- parentes se rejubilaram, mas outros
se revelando aos olhos dos que a ou- ficaram aflitos, pois eles são estranhos
vem, e ela vai crescendo diante de para ela. Eles não pertencem ao seu
ti [...] e tu te maravilhas do que estás círculo. Eles não se rejubilam por causa
proclamando. desta criança porque ela não pertence à
Ainda uma vez, assim acontece com família deles. O mesmo acontece com a
a sabedoria: quando ela está oculta no sabedoria. Quando a boca do mestre a
ser humano, antes de ser proclamada, proclama, os que pertencem a ela a
ela parece um [lampejo] do fogo que recebem e se rejubilam com ela, mas os
está oculto na madeira. Mas esta que lhe são estranhos não se rejubilam
madeira [contém] o lampejo do fogo, [...] e não a aceitam. É como a luz do
enquanto que a veste de fogo [que está] fogo da qual te falei, que provém da
na madeira ainda não se manifesta. madeira [e se manifesta] para fora, dian-
Agora, vê: [...] colocamos o lenho dentro te dos olhos de todos. Quem vê perce-
de casa. Não é possível que ele ilumine be a luz que provém da madeira, mas o
esta casa enquanto a luz continuar den- cego, não. Aquele em quem o Espírito
tro dele: somente quando ele for coloca- está (o Nous) tem a sabedoria; quando
do sobre o fogo, então a luz sairá dele e ele a ouve, ele a recebe. Aquele em
é possível que esta casa fique inteira- quem o Espírito não está, que lhe é
mente iluminada pela luz de um só estranho, não a recebe e nem a ouve”.
lenho. Assim acontece com a sabedoria Quando o discípulo ouviu isto, rejubi-
que se encontra no coração humano. lou-se. E convenceu-se em seu coração
Ela é como o fogo que está oculto na daquilo que ele (Mani) lhe havia ensina-
madeira: enquanto sua luz não se mani- do. Então, inclinou-se e, tomando o seu
festar, seu esplendor estará oculto no lugar, sentou-se.
coração. Mas, quando um ser humano a
proclamar, seu esplendor se revelará
aos olhos e aos ouvidos de muitos.”
Novamente o discípulo falou ao Após-
tolo: “Se a sabedoria é semelhante ao
exemplo que me deste, por que certos
homens se rejubilam quando ouvem a
palavra da sabedoria e a honram, ao
passo que a outros ela não traz nenhu-
ma alegria enquanto a ouvem, e eles (Kephalaïa 7:84, a partir da tradução direta
nem a honram?” do copta para o inglês, por Allberry)
44
“Queremos colocar Mani em plena luz,
a luz da Gnosis, pois chegou a hora em que
muitos estarão buscando a Luz dentro de suas almas”.
abalou o mundo, p. 5)