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L557
Leituras de Zaratustra / Rosa Dias, Sabina Vanderlei, Tiago Barros, organizadores. - Rio
de Janeiro : Mauad X : FAPERJ, 2011.
Apresentação 11
O calcanhar de Zaratustra 73
Marcelo Lion
Vontade de poder:
a autossuperação como a dinâmica criadora da vida 171
Rebeca Furtado de Melo
Da redenção
Assim falou Zaratustra II: para uma interpretação 383
Oswaldo Giacoia Junior
Leituras de Zaratustra 9
Apresentação
Leituras de Zaratustra 11
faz uma leitura dos discursos “O canto noturno”, “O canto de dança” e “O can-
to do túmulo”, considerando-os como elementos-chave para compreensão do
estilo da obra. Kelly Stenzel P. de Souza e Eduardo Guerreiro B. Losso refletem
sobre a crítica de Nietzsche à modernidade a partir dos discursos “Da virtude
amesquinhadora” e “A festa do burro”. Marcelo de Carvalho, a partir do dis-
curso “Os renegados”, analisa a volta à devoção, considerada como metáfo-
ra da recusa ou rejeição diante da tarefa de autossuperação, entendida como
sentido principal do conceito nietzschiano de vontade de poder. Alexandre
Marques Cabral tem como intuito caracterizar a proposta última de Zaratustra
como geradora da consumação do ideário soteriológico do cristianismo.
A Parte III, “Autossuperação e sentido da terra”, reúne seis artigos que ana-
lisam as peculiares noções de vida e amizade no Zaratustra, assim como a valo-
rização da imanência presente na obra. Camila de Oliveira Silva traça algumas
considerações acerca da problemática da superação em Nietzsche, sobretudo
à luz do prólogo de Assim falou Zaratustra. Rebeca Furtado de Melo analisa
a vontade de poder e o eterno retorno como conceitos centrais da filosofia
de Nietzsche e chave fundamental para o entendimento de seu Zaratustra.
Marco Casanova busca responder à questão “o que pode um corpo?”. Marlon
Tomazella faz uma interpretação das figuras do camelo e do leão presentes no
primeiro discurso da obra. Luciano Arcella tece considerações sobre a amizade
a partir da primeira parte do livro. Maria Cristina Amorim Vieira reflete sobre
o “sentido da terra” a partir da leitura dos discursos “Das três metamorfoses”
e “Da Redenção”.
A Parte IV, intitulada “Alegria Trágica e eterno retorno”, é composta por
três artigos que tratam da importância do riso e da alegria na obra e de uma
de suas noções centrais: o eterno retorno. Roberto Machado escreve sobre a
tragicidade de Assim falou Zaratustra a partir da leitura do discurso “Da Visão
e do enigma”, no qual a alegria e o trágico se fazem presentes. Márcia Beatriz
Bello Pacheco aborda a obra pela perspectiva do teatro e investiga a possi-
bilidade de haver expressão filosófica por meio de uma estrutura cênica ao
analisar Zaratustra como personagem trágico da existência. Miguel Angel de
Barrenechea escreve sobre o eterno retorno com a finalidade de refletir sobre
uma nova concepção de memória.
A Parte V, “Criação de si e singularidade”, reúne seis artigos que tratam
da busca por tornar-se o que se é na filosofia de Nietzsche e na trajetória
do personagem Zaratustra. Scarlett Marton analisa a inter-relação entre vida
e obra na filosofia de Nietzsche que levou o autor a se identificar com seu
personagem Zaratustra. Gilvan Fogel comenta “Da Morte livre”, penúltimo
12 Apresentação
discurso da primeira parte da obra. Gustavo B. N. Costa analisa os discursos
“Dos desprezadores do corpo” e “Da redenção” com o intuito de investigar o
estatuto e as implicações da tarefa de criar a si de Zaratustra, simbolizada na
máxima de “tornar-se o que se é”. Ricardo de Oliveira Toledo escreve sobre a
busca de Zaratustra pelas terras natais do além-homem. Tiago Barros analisa
as figuras do camelo, do leão e da criança e aventa a hipótese do próprio per-
sonagem ter passado por tais transmutações no prólogo da obra. Danilo Bilate
analisa a tipologia do “nobre” ou “senhor”, o conceito de “pathos da distância”,
e o afeto da solidão para elucidar possíveis significações do nojo de Zaratustra.
A Parte VI, “Conhecimento e linguagem”, contém quatro artigos que ex-
ploram algumas das principais críticas de Nietzsche ao conhecimento ociden-
tal e as peculiaridades da linguagem utilizada em seu Zaratustra. Maria Cristina
Franco Ferraz interpreta o discurso “Das três metamorfoses”. Rosa Dias vê no
discurso “Do imaculado conhecimento” elementos críticos à filosofia de Scho-
penhauer. Oswaldo Giacoia Junior traduz e comenta “Da Redenção”. Sabina
Vanderlei escreve sobre o confronto de Zaratustra com os homens teóricos.
A Parte VII, “Obras de Nietzsche e a tradição”, reúne três artigos que pro-
põe diálogos do Zaratustra com outras obras de Nietzsche e com a história
da Filosofia. José Nicolao Julião situa o Zaratustra no conjunto da produção
intelectual de Nietzsche e lhe confere lugar de destaque como obra capital do
filósofo. O artigo de Adriany Mendonça e Alexandre Mendonça propõe uma
aproximação entre o Zaratustra e A gaia ciência a partir de sua sintonia concei-
tual. André Martins problematiza a influência do romantismo na obra.
Leituras de Zaratustra visa trazer para os estudantes, pesquisadores e para
o público em geral um aprofundamento dessa obra que, até hoje, suscita tão
ricas e esclarecedoras interpretações.
Leituras de Zaratustra 13
Parte I
Diálogos e influências
De Bactriana e as margens de Urmi à montanha e o ocaso1
Como introdução à leitura de Assim falou Zaratustra2
Mónica B. Cragnolini
Tradução de Rebeca Furtado de Melo
O que, afinal, pode significar uma “introdução” à leitura de Assim falou Zaratus-
tra? Quem poderia atribuir-se o direito de haver compreendido uma única linha para
poder escrever sobre a obra, dizer acerca da obra, explicar algo? Em virtude de que
me atribuo à possibilidade de tentar expressar qualquer coisa sobre o Zaratustra, que
práticas acadêmicas me levam a esta empreitada que já agora, desde o início, considero
impossível, incerta e infecunda? Que exercício de inutilidade estou praticando quando
escrevo estas linhas, quando busco as informações para as notas, quando pretendo que, a
1
Com esse título quero aludir à “procedência” do Zaratustra histórico (nascido em Bactriana) e a
seu “lugar” no Zaratustra nietzschiano (a descida da montanha, com a qual se inicia seu “ocaso”, sua
necessidade de transformação: de inventor do bem e do mal a negador de dualismos e dos grandes
valores). Conferir NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kristische Studienausgabe in 15 Bänden, (em
diante, KSA), Hrsg. von G. Colli und M. Montinari, Berlin/New York, De Gruyter/DTVA, 1980, KSA
3, Die fröhliche Wissenschaft, # 342, p. 571: “Quando Zaratustra completou 30 anos, deixou sua pátria
e o lago Urmi e foi para a montanha”.
Nota da tradução: Optamos por manter as indicações bibliográficas apontadas no original, traduzindo
livremente as passagens citadas, sem fazer qualquer tipo de correlação com as referências das tradu-
ções brasileiras, portanto, as páginas e demais informações bibliográficas indicadas são referentes aos
textos indicados no artigo original, em espanhol. Esta tradução foi revisada pela autora.
2
Artigo publicado na Revista de Filosofía, Universidad de Chile, v. LV-LVI, 2000, p. 39-56.
Leituras de Zaratustra 17
algum possível leitor, estas páginas sirvam para algo, permitindo-o localizar-se em alguma
perspectiva, facilitando, assim, algum caminho? Que perversa moral de abridor de trilhas
me move a esta tarefa? Por acaso, não sei que o Zaratustra não pode ser explicado? Não
sei, além disso, que para nada serve a leitura “tradicional” filosófica, a leitura que busca
argumentos e conexões, metáforas a serem traduzidas, raciocínios e pistas? Há aqui, por
acaso, “pistas”, existem grandes ideias por trás da águia e do leão, do funâmbulo e das
tarântulas, dos homens do mercado e do papa aposentado? Quis Nietzsche “dizer algo
mais” do que disse, existe algum “excesso de sentido” em estado embrionário que deva ser
explicitado, analisado, fragmentado, dissecado ao filosófico gosto vampírico?
Não sei muito bem para que e nem porque escrevi estas linhas que representam, em
parte, uma negação do que penso que há de ser uma leitura de Zaratustra. Mas as forças
seguem caminhos fortuitos e estranhos e talvez também seja necessária uma “localiza-
ção” do Zaratustra, uma coleta de materiais, nem que seja somente para dizer uma vez
mais: assim não se deve ler.
Porque “O caminho – não existe!”3
3
KSA 4, Also sprach Zarathustra (em diante, Za), “Vom Geist der Schwere”, n. 2, p. 245, Así habló
Zaratustra, (em diante, AZ), trad. A. Sánchez Pascual, Madrid: Alianza, vs. eds., p. 272.
4
Carta a Rohde, em NIETZSCHE, F., Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe, (em diante, KSB)
Hrsg. von G. Colli und M. Montinari, Berlin/New York, W. de Gruyter, 1986, Band 6, Nro. 490,
22/2/1884, p. 479.
5
Tal como Nietzsche indica em uma carta a Overbeck, 5/8/86, KSB 7, Nro. 729, p. 223, na qual ele
sugere que, talvez, Além do bem e do mal possa iluminar alguns aspectos dessa obra incompreensível
que é Zaratustra (“ein unverständliche Buch”).
6
FINK. E., La filosofía de Nietzsche, trad. A. Sánchez Pascual, Madrid, Alianza, 1980, p. 71.
18 Mónica B. Cragnolini
definitiva, é “obra de articulação” entre os dois grandes momentos críticos: o
que se inaugura com obras como Humano demasiado humano e aquele outro cuja
principal característica são os tons elevados, fortes e agressivos de Ecce homo,
O anticristo, etc.
Por que, depois de uma obra afirmativa como Assim falou Zaratustra, re-
tornar à crítica, ao martelo, agora exasperado e sem poupar adjetivo algum,
contra a cultura do Ocidente, mas, sobretudo, contra a religião monoteísta
judaico-cristã? Por que retornar aos temas do niilismo integral, da crítica, do
desmascarar ideológico, uma vez que já se havia indicado as vias de afirmação?
Não era o “não” – de Humano, de Aurora... – o caminho prévio ao “sim” de Za-
ratustra? Por que voltar à negação depois da afirmação?
Zaratustra inaugura a filosofia afirmativa do amor fati, do sim dito à vida
em todos seus aspectos: talvez a partir deste sim, da visão da possibilidade da
vida do homem desde esta nova forma de pensamento-práxis, o que se torna
mais urgente é, novamente, a necessidade da crítica, a necessidade de destruir
as bases da moral que impedem que a afirmação se constitua na forma de vida
própria do homem do Ocidente. Talvez por meio da afirmação se tenham tor-
nado mais visíveis as deficiências e as carências do homem metafísico, quem
sabe a afirmação tenha feito ressaltar os traços de sua indigência e enfermi-
dade. Contudo, também é certo que Nietzsche sabe que nenhuma argumen-
tação destrói as “razões” pelas quais nos aferramos a uma forma de vida, daí
que já não busque mais nestas últimas obras “razões” para argumentar sobre
conveniências, senão que se dedique a insultar e gritar: talvez assim o híbrido
de planta e de fantasma desperte, talvez desse modo o homem, que arrasta a
comodidade de seus costumes com pesados lemas morais, descubra sua pró-
pria mentira, descubra que “razões” o levam a venerar aquilo que considera o
“mais sagrado” e decida liberar-se delas. Porque o que conta aqui é a resposta
vital, a decisão, o dizer “ou tu ou eu” como disse Zaratustra ao pesado anão
que o impedia de avançar e superar-se.7 “Tu ou eu”, a moral das comodidades
disfarçadas de sagrados princípios (sagrada família), ou a aposta pela vida, que
é a aposta pelo risco e pelo incerto.
7
Conferir KSA 4, Za, “Vom Gesicht und Räthsel”, p. 199, trad., AZ, p. 225. Em “Da visão e do enigma”
se mostra o caráter de “decisão” que tem a assunção da ideia do eterno retorno, caráter que desenvolvo
mais adiante. Neste capítulo, Zaratustra conta uma visão: o mesmo subia uma montanha, apesar do
espírito de gravidade que o puxava para baixo. Zaratustra subia, oprimido por este peso, até que a “co-
ragem” (assassina de todo desalento) o obrigou a deter-se e dizer: “Alto lá, anão! Ou tu ou eu”. A partir
daí se sucede a outra visão, a do portal no qual se visualiza o eterno retorno e a importância do instante.
Leituras de Zaratustra 19
É certo que Nietzsche se referiu ao Zaratustra como “o livro santo” (reto-
mando uma frase de seu amanuense Peter Gast8) e como seu melhor livro,9
mas, também, ao mesmo tempo, como o livro de sua cura. Porque nesses dias,
empenhado em realizar a alquimia que o permitisse converter em ouro toda
enfermidade e decadência em sua pessoa, o Zaratustra se converteu no “salva-
dor de sua vida”.10 Porém, com a peculiar ambiguidade daquilo que cura (o
pharmakón grego: tanto remédio quanto veneno), o Zaratustra sana, mas, por
sua vez, abre abismos, propicia a cura, mas também é um perigo, já que é o
resultado de uma explosão, de uma grande dor,11 que pode dar à luz tanto o
positivo quanto a morte. Porque o Zaratustra é um desafio, uma provocação
a todas as religiões e uma chacota (mesmo a partir desta atribuição de “livro
sagrado”) a todas elas. O Zaratustra é também uma afronta ao homem do mer-
cado e da praça pública, para o homem que cultiva pequenas virtudes com o
objetivo de não ver a dor e o perigo dos riscos, das escolhas; Zaratustra é uma
provocação para o duelo ao douto e ao sábio, aos que creem que a sabedoria
se consegue nas academias buscando argumentos e conexões dedutivas, ou
esperando que do umbral da casa da sabedoria caia um pensamento para que
alguém possa se apropriar dele; o Zaratustra é uma bofetada para o filósofo
que crê que é possível marcar limites precisos entre pensamentos e literatu-
ra ou poesia, e não percebe por quais caminhos transita o pensar, além dos
caminhos marcados pelo seu “ofício”. O Zaratustra é também uma chacota
constante com os leitores, que buscam sinais e apontamentos na leitura, que
se reúnem ao entardecer junto ao fogo para “falar” de Zaratustra, mas são
incapazes de pensar nele.
A partir do ponto de vista da arquitetura de seu pensamento, Nietzsche
se referiu a esta obra como o “prefácio” ou a “antessala” de sua filosofia12
e, neste sentido, poderia-se pensar que Zaratustra “preanuncia” os temas de
sua filosofia. Contudo, a contínua alusão à “incompreensibilidade” da obra, à
necessidade de experimentá-la, parecerá mostrar que os “temas” em seu pen-
samento se traduzem em “práticas” ou que, uma vez desaparecido o dualis-
mo do mundo verdadeiro/mundo aparente, o pensamento não pode ser outra
8
Conferir carta a Köselitz de 21/4/83, em KSB 6, Nro. 405, p. 365.
9
Conferir carta a Overbeck de 1/2/83 em KSB 6, Nro. 372, p. 324.
10
Conferir carta a Ida Overbeck, meados de julho de 1883, KSB 6, Nro. 438, p. 406.
11
Uma grande dor, como a do parto: repetidas vezes, Nietzsche disse em suas cartas que ele deveria
desaparecer para que “seu filho, Zaratustra”, seja considerado. Conferir carta a Peter Gast, 27/4/83,
KSB 6, Nro. 407, p. 367, e a Elisabeth Nietzsche, na mesma data, Nro. 408, p. 368.
12
Conferir cartas a F. Overbeck, 8/3/84, KSB 6, Nro. 494, p. 485 (“Dieser Zarathustra ist nichts als eine
Vorrede, Vorhalle...”), e a Malvida von Meysenbug, KSB 6, Nro. 498, p. 490.
20 Mónica B. Cragnolini
coisa que práxis, o que poderia tornar mais acessível esse caráter decisivo que
exige a ficção do eterno retorno.
Por outro lado, talvez a linguagem de Zaratustra, como linguagem poéti-
ca, criadora, seja o mais próximo desta tentativa nietzschiana, na medida em
que, ali, a linguagem não é algo que “se descobre” (a voz ou expressão de um
fundamento), mas é, antes, a poiesis do pensador. Por isso, a “arquitetura” do
Zaratustra não é algo distinto de sua linguagem, nem sua linguagem é o “meio
de expressão” de seu filosofar. A linguagem de Zaratustra é o filosofar mesmo,
com esta linguagem Nietzsche está indicando outras vias para o pensamento
acostumado à mumificação conceitual e às habitualidades de empalhador. A
“linguagem poética” é o filosofar mesmo: daí as dificuldades indicadas quanto
à tentativa de buscar pistas, símbolos, alegorias. Porque não existe um “ou-
tro” que dê o significado, um sentido que “justifique” o uso de certos termos,
senão que o sentido se dá com o uso mesmo: daí a dificuldade de “tradução”
(com que outros termos explicaríamos as “metáforas” de Zaratustra?) e da
compreensão: como “compreender” sem buscar “explicar”, como “compreen-
der-vivendo”?
13
Parece que o primeiro encontro a sós entre Nietzsche e Lou foi o que aconteceu em Monte Sacro,
encontro que constituiu para Nietzsche o “sonho mais maravilhoso” de sua vida. Conferir PETERS,
H.F., Lou Andreas-Salomé. Mi hermana, mi esposa. Una biografía, trad. Ana M. de la Fuente, Bar-
celona, Paidós, 1995, p. 93 ss., F. NIETZSCHE- LOU VON SALOMÉ-P.REE, Documentos de un
encuentro, selecc., prólogo y notas de E. PFEIFFER, trad. A.M. Domenech, Barcelona, Laertes, 1982,
y JANZ, C.P., Friedrich Nietzsche, Vol 3, Madrid, Alianza, 1985, p. 102-103. Nietzsche fazia alusão a
este momento mágico com Lou como o “mistério do Monte Sacro”.
14
Conferir carta a Georg Ree, de julho de 1883, KSB 6, Nron. 435, p. 402.
Leituras de Zaratustra 21
“além do bem e do mal” para descobrir, em seguida, que o era somente no
sentido corrente do termo.15
Muitos elementos devem ser considerados nesta relação: a presença da
irmã Elizabeth, ciumenta das possibilidades de aproximação de Lou e de seu
irmão; o papel de Rée, apaixonado por Lou e respeitoso com relação ao seu
amigo; o lugar de Malwida von Meysenbug, a mulher maternal de “ideias libe-
rais” que propiciou a amizade dos três, mas logo preveniu a Lou que não podia
viver com dois homens; e as questões que estabelecem as relações de Lou com
os Wagner (de quem Nietzsche estava distanciado nessa época), as intrigas
de mães, irmãos(ãs) e conhecidos, e a opinião escandalizada das “pequenas
gentes” frente à comunidade dos três amigos...
Lou sempre havia cultivado a ideia de formar uma comunidade de estudos
e de amizade, e, de certo modo, Nietzsche apareceu, logo após Paul Rée, em
1882, como o terceiro componente da dita união. Não eram esses os planos do
pensador, que pretendia com Lou aquela exclusividade “possessiva” que ele
mesmo assinala para o amor entre os sexos. Daí sua frustração ante a negativa
do seu pedido de matrimônio – feito por intermédio de Rée – e diante dos ane-
los femininos: um quarto cheio de livros e flores e os “camaradas” de trabalho.
Esta amizade que Lou buscava, esse trato com pensadores, talvez tenha
sido uma constante em sua vida: suas viagens com Rilke e sua proximidade
a Freud assim parecem indicar. Do ponto de vista do “homem F. N”, ao con-
trário, Lou ocupa esse lugar “exclusivo” que poderia ocupar a mulher com a
qual se escolhe – ainda que um tanto precipitadamente – dividir a vida (se
falamos de escolhas precipitadas, Nietzsche já havia cometido algo similar ao
pedir a mão de Matilde Trampedach). O Nietzsche apaixonado pela esposa de
seu Pater Seraphicus, Cosima Wagner, que mais tarde foi a Ariadna das cartas
de sua loucura de Turim de 1889, encontrou em Lou aquela mulher que já não
era necessário disputar com ninguém (salvo, talvez, com Rée), mas que, con-
trariamente aos seus desejos, não aspirava o mesmo tipo de união e de relação
que ele. A mesma expressão “além do bem e do mal”, aplicada à comunidade
dos amigos e que parece tão nietzschiana, foi, na realidade, adotada por Lou
para demarcar com tons nietzschianos seus anelos de amizade. Porque Lou
não buscava adaptar-se a nenhum modelo “de fora”, mas, ao contrário, dese-
java viver de acordo consigo mesma, de acordo com seus próprios desejos, em
15
O sentido corrente do termo “imoral” refere-se à transgressão das normas morais, transgressão que
está em desacordo com um valor de fundamento de bem que transgride. Contrariamente, a moral “além
do bem e do mal” apontaria a desaparição dos grandes valores e, portanto, a desaparição do Bem e do
Mal como fundamentos da ação (o que não elimina, certamente, o “bom” e o “mau” com minúsculas).
22 Mónica B. Cragnolini
suas próprias buscas vitais.16 Daí que o choque de suas forças com as de Niet-
zsche não gerou o resultado que o pensador buscava, mas o que os intérpretes
sempre aludem como “o idílio trágico”, o amor que não pôde chegar a contar
sua história para além de dois ou três momentos mágicos e uma infinidade de
desencontros. O encontro “estelar” em São Pedro, no qual Rée e Lou iam para
escrever – Rée escrevia em um confessionário –, e a visita, sozinhos, ao Monte
Sacro, instante místico que Nietzsche sempre recordará, são apenas pequenos
pontos afirmativos numa história que foi transformada pouco a pouco num
cúmulo de incompreensões, frustrações, desencantos, intrigas, etc. Contudo,
os “registros” que ficaram desta história talvez sirvam para aprofundar mais
esse paradoxo do pensador que pode assumir máscaras diversas, como a de
quem exalta a amizade acima do amor sexual em virtude do seu caráter não
possessivo e que não cede, contudo, completamente aos desejos de amizade co-
munitária de seus amigos; a do homem que busca estar “além do bem e do mal”
e que em seguida sem rodeios acusa de “nada mais que imoral” a mulher ama-
da; a do pensador do risco e a do homem tímido, incapaz de declarar seu amor
a uma mulher e que necessita de um mediador-transmissor para essa tarefa.
Paradoxos que não servem para outra coisa senão para mostrar esse caráter
ambíguo, múltiplo e ambivalente do eu que se constitui de diferentes manei-
ras nos distintos embates de força, do eu que não é mais do que a densida-
de das forças num dado momento. Densidades diversas estabelecem marcos
daquele indivíduo a quem nomeamos “Nietzsche”, densidades que não tem
porque convergir nem terminar em uma suposta explicação – seja psicológica,
seja moral – de atitudes ou modos de agir.
Há quem buscou os vestígios de Lou no Zaratustra, ligando, por exemplo, a
paródia da frase “Se vais ter com mulheres, não esqueça o chicote” à fotografia
que Nietzsche, Rée e Lou tiraram no estúdio de Jules Bonnet, um conhecido
fotógrafo suíço, fotografia na qual Lou, com chicotes nas mãos, dirige em uma
carroça homens sob seu domínio, ou os rastros de seu amor frustrado em
suas referências às mulheres em geral. Há quem considerou que Zaratustra
não teria sido possível sem o “affaire Lou”, 17 e que foi a dor desse amor não
correspondido que gerou a obra.
Elucubrações à parte,18 poderia-se dizer que o Zaratustra é um “dispên-
16
Conferir Lou a Hendrik Gillot de março de 1882, em PFEIFFER, op. cit., p. 73.
17
Conferir, por exemplo, PETERS, op. cit., p. 137 ss.
18
Ainda que seja justo ressaltar que, quando Nietzsche faz referência a sua frustrada relação com Lou,
por exemplo, nas cartas a Rée, costuma citar frases do Zaratustra como paradigmas de certas condutas
(conferir em PFEIFFER, op. cit., p. 223 e 225, inter alia).
Leituras de Zaratustra 23
dio” excessivo (de saúde, de afirmação), uma mostra cabal dessa constante
alquimia nietzschiana de conversão do negativo, do pesado e decadente, em
ouro. Quando Nietzsche esboça a questão do seu amor por Lou, demonstra
que, depois de tudo (digamos: apesar de aquela história não poder ser contada
para além da frustração da não correspondência), ele poderia permitir-se “esse
dispêndio excessivo de amor”. Também o Zaratustra é um dispêndio excessi-
vo de amor, uma antieconomia do cuidado, uma plurieconomia da riqueza.
Nietzsche “dá demasiado” no Zaratustra, dá a si mesmo como sua obra, é ele
mesmo Zaratustra, possuidor da “virtude que dá presentes”, que em nada
necessita ser mesquinho porque está pleno de riquezas, que nada necessita
dar porque esta dando a si mesmo continuamente. Nietzsche “justificou” seu
desencontro a partir de sua grande capacidade de dar, o Zaratustra é “filho” de
uma capacidade similar.
19
Para as leituras de Nietzsche nos seus anos de Basileia, conferir CRESCENZI, Luca, “Verziech-
nis der von Nietzsche aus der Universitäts-Bibliothek in Basel entliehenen Bücher (1869-1879)”, em
Nietzsche-Studien, Berlin, Walter de Gruyter, Band 23, 1994, p. 388-442. O interesse por temas orien-
tais já se relata desde ano 1870, no qual consulta Die Religion des Buddha und ihre Entstehung, de
C. F. KÖPPEN, em 1871-2, Symbolik und Mithologie der alten Völker, besonders der Griechen, de
CREUZER, em 1878, Brahma und die Brahmanem, de M. HAUG, e Eranische Altertumskunde, de F.
SPIEGEL. Também deve-se frisar que o interesse por Schopenhauer o deve ter levado, necessariamen-
te, a uma aproximação do pensamento oriental.
20
Conferir Za, KSA 4, p. 201-202, trad. AZ, p. 227-228.
24 Mónica B. Cragnolini
São duas as correntes religiosas persas que se consideravam portadoras
do verdadeiro pensamento de Zoroastro: o mazdeísmo e o zurvanismo. O
mazdeísmo é dualista e admite em suas diversas variantes a existência dos
dois princípios aludidos em luta constante, seja como princípios eternos, seja
como princípios que mostram a potência de Ahuda Mazda: seu polo negativo e
destruidor (Angra Mainyu) e seu polo criador e renovador (Spenta Mainyu).21
Zurvan (na tradição do zurvanismo) é a figura divina do tempo infinito,
anterior aos dois princípios do bem (Ohrmazd ou Ormuz) e do mal (Ahri-
man), e indiferente aos mesmos, ainda que tenha sido seu criador.22 No zur-
vanismo, a ideia da temporalidade e dos ciclos é fundamental: existe um pacto
pelo qual Zurvan permite a Ahriman governar por nove mil anos, enquanto,
segundo outras formas de apresentação do tema, são os irmãos gêmeos que
pactuam um tempo de luta estendido somente a nove mil anos.
Em ambas as tradições, assim como em outras religiões euro-asiáticas,
aparecem a águia e a serpente (os animais emblemáticos do personagem de
Nietzsche) como evidência da luta constante do elemento solar e do elemento
terreno, binômio que expressa tanto a oposição quanto a complementaridade
dos princípios opostos de bem e de mal.
Em qualquer uma das versões (mazdeísmo: os dois princípios; zurvanis-
mo: princípio prévio ao bem e ao mal),23 permanece a luta entre o bem e o mal,
luta que move o mundo e que dá lugar a toda uma ascética de identificação,
por parte do iniciado, com o princípio divino bom. Ascética muito especial,
porque concedia a importância maior a esta vida e à renovação das forças vi-
tais: o mal era considerado como uma diminuição das forças, o bem, como o
fortalecimento das mesmas.
Zoroastro aparece nesta tradição como o homem que pode ensinar esse
caminho de possessão das forças e os elementos que compõe a lenda de sua
biografia serão resgatados no Zaratustra nietzschiano. O menino Zoroastro
nasce rindo, imediatamente depois de uma grande luz o anunciar durante três
dias, e também viverá numa caverna, como o personagem nietzschiano. Sua
vida será uma constante espera dos “sinais dos tempos”, como o Zaratustra
que, na quarta parte da obra, espera o sinal que chegará por meio do leão ri-
sonho e das pombas.
21
Esta última é a versão dos parsis de Índia, segundo HERNANDEZ CATALA, V. La Expresión de lo
divino en las religiones no cristianas, Madrid: B.A.C, 1972, p. 143.
22
Sobre o zurvanismo, ver ZAEHNER, R. C. Zurvan. A Zoroastrian Dilemma. Clarendon Press, Ox-
ford, 1955.
23
Para as diferenças entre mazdeísmo y zurvanismo ver HERNÁNDEZ CATALA, op. cit., p. 141 ss.
Leituras de Zaratustra 25
Assim como o Zaratustra nietzschiano parafraseia continuamente este livro
sagrado que é a Bíblia, sobretudo o Novo Testamento, o livro sagrado rela-
cionado com Zoroastro é o Zend Avesta, o qual Nietzsche leu a tradução de
Spiegel nos seus anos de Basileia. Redimir a Zoroastro em Zaratustra implica,
de certa maneira, parodiar, assim como se parodia, com as formas de escrita, o
Novo Testamento. Quando Zaratustra desce da montanha, já sabe aquilo que
o outro Zoroastro-Zaratustra, arauto da ideia do bem e do mal, nunca poderia
saber: que Deus está morto. A partir desta morte, a utilização de figuras relacio-
nadas com o fundamento divino se transforma em luto, mas também em piada
e na cura pelo riso (porque só com uma risada se mata).
Assim falou Zaratustra é “um livro para todos e para ninguém”, como indica
o seu subtítulo. Porque certamente qualquer um pode lê-lo, na medida em
que, frente ao caráter técnico e dificultoso dos tradicionais livros de filoso-
fia, este se apresenta como um livro de fácil leitura. Por isso, “para todos”:
aproxima-te e leia. Contudo: quem pode suportá-lo? Como é possível lê-lo e
permanecer igual, sem transformar-se?
24
Nachgelassene Fragmente 1887-1889, September 1888, 19 [1], #5, KSA 13, p. 541.
26 Mónica B. Cragnolini
necessidade de “revisar” atitudes, valores, hábitos, posições, seja para criticá-
-las, seja para afirmá-las. Por meio dele, a provocação: a reprovação ou adesão,
mas quase impossível é a indiferença. Porque não se pode permanecer indife-
rente quando se questionam os valores que constituem a própria cultura e a
forma de ser, não se pode permanecer indiferente quando ao filósofo o chama
de “híbrido de planta e fantasma”, ao homem da ciência, “consciencioso do es-
pírito”, ao homem religioso, “tuberculoso da alma”. Não se pode permanecer
indiferente porque o texto aponta como uma arma, o texto ataca e busca ferir,
o texto é um instrumento de combate, quer destruir e aniquilar. Há algo para
se destruir: a decadência, a enfermidade. Há inimigos, a escritura é também
uma estratégia de combate. Não existe nada aqui da “assepsia” filosófica, nem
da abstração e palidez könisberguense. À Elizabeth, Nietzsche escreve que o
Zaratustra não é um presente que se tenha que agradecer festivamente: ali não
existe nada para agradecer, ali deve haver dor da transformação, dor diante da
agressão, ruptura com as formas de configurações enfermas, ânsias de saúde...
Este texto, então, que qualquer um lê, ninguém o lê. Porque: quanto ha-
veria que se transformar para poder suportá-lo, como deveria mudar e ser dis-
tinto o homem atual, o homem das pequenas virtudes e da cultura das casas
iguais e das vidas semelhantes, homogêneas e reprodutivas, quanto se deveria
transmutar para poder entendê-lo, compreender-empreender uma frase, uma
linha? Porque, ali, a compreensão é um fazer, é uma tarefa, se lê e se vive ao
mesmo tempo, uma vez que quem escreve, escreve com a sua vida e com o seu
sangue, quem escreve entrega seu corpo na escrita. E quem lê não pode fazer
menos do que ler com seu corpo, com suas forças, com uma vontade de poder,
questionada em suas configurações e entrecruzamentos atuais, repudiada por
um escritor enfermo que se dá ao luxo de reprovar enfermidades piores do que
as que o afligem: essas enfermidades são a decadência, a trasmundanidade,
a elevação a sublimes cumes de atitudes que não são mais do que humanas,
demasiado humanas.
Há que se transformar, pois, para ler esta obra. Mas a mesma é apenas
um “umbral”, é “antessala de minha filosofia”, disse Nietzsche: o que existe,
então, “do outro lado do umbral”? Talvez o que exista seja a necessidade de
refazer, em virtude do perspectivismo e das próprias condições da vida, as
“ideias” nietzschianas, talvez o que exista seja a possibilidade que se abre após
essa passagem: a inexistência de “o caminho”. Porque se o Zaratustra é o anti-
dogma por excelência, o que existe depois do umbral ninguém, além de cada
um e nenhum, poderá nomear. Não existem “receitas” para depois, porque o
“depois” é o risco.
Leituras de Zaratustra 27
E a esta dificuldade – a incerteza que cria a ausência de lemas, normas ou
caminhos traçados, – se une outra: o problema do estilo. “Meu estilo é uma
dança, um jogo de todo tipo de simetrias, e um saltar e um zombar estas si-
metrias. Isto chega até a escolha das vogais”.25
O Zaratustra é a antiobra filosófica, que zomba dos métodos e das formas
expositivas de todo tratado sistemático, mas também, no outro extremo, é
chacota de toda dispersão da escrita que se considere “diferente” pelo mero
exercício dos opostos: pela prática da ausência de argumentações, pela busca
“sistemática” da desordem expositiva, pela simples repugnância pela dedução,
e pela tentativa de um imediatismo quase impensável. Zaratustra é jogo de
simetrias: existe uma arquitetônica da escrita que tece estruturas quase asce-
ticamente, existe um trabalho do conceito e da palavra que se descobre a cada
passo, mas também existe, em contrapartida, a chacota com respeito à dita
simetria, o sorriso e o riso frente à obra ordenada que se considera sistemá-
tica, ou perfeita, a desvalorização pela realização enquanto o excessivo amor
pode chegar a converter-se em escritura estéril, morta, atravessada por todos
os desígnios da mumificação filosófica que não suporta por demasiado tempo
o movimento dos conceitos. E aqui, ao contrário, se fala de dança dos concei-
tos, de jogos dionisíacos da exuberância e de dispêndio, mas, paradoxalmente,
simétricos: quer dizer, pautados, combinados, organizados.
O que é esta tensão da escritura zaratustriana, esta contínua oposição de
forças da desintegração que impelem a voar as imagens e os conceitos, arran-
cando-os de todo possível contexto mítico, histórico, epocal, escolástico ou
mnemotécnico, e, por outro lado, essa simetria, essa arquitetura das palavras
que transformam a obra em uma sinfonia, com seus movimentos, suas cadên-
cias, seus Leitmotivs? Existe, por acaso, outra obra na história do pensamento
que possa mostrar “praticamente”, a cada passo, tal tensão? Existe talvez ou-
tra obra que nos tenha mostrado a cada momento que é uma obra de filosofia
e, ao mesmo tempo, o tenha negado, terminado por gerar uma atitude de
impossibilidade de catalogação e localização, uma incerteza no leitor acostu-
mado aos gêneros, que se encontra, de repente, com o inclassificável?
Talvez o estilo do Zaratustra não seja outro que o estilo das forças, da ar-
quitetura que forma a vontade de poder em seu operar, os traços do mapa
que se forja para gerar ou configurar o real. Sinfonia e dança são os termos
que Nietzsche utiliza para caracterizar este movimento de forças. Sinfonia e
dança falam de dionisismo, de exaltação das forças, de desagregação e abun-
25
NIETZSCHE, F., KSB 6, Nro 490, cit., p. 479.
28 Mónica B. Cragnolini
dância, de dispêndio e de gasto, mas também fazem referência ao apolinismo
das regras e das simetrias, à busca das recônditas harmonias que permitem
configurar o que temporariamente se nomeia “realidade”. O Nietzsche que,
em O nascimento da tragédia, unido ainda ao espírito metafísico do wagnerismo
schopenhaueriano, pensava em termos de dualidade conteúdo–forma, maté-
ria–estilo, e utilizava os princípios “dionisíaco” e “apolíneo” para rechear os
respectivos compartimentos daquelas dicotomias, no Zaratustra apresenta o
dionisíaco, as forças em sua irrupção, como contendo em si mesmas as for-
mas, o elemento apolíneo de configuração, o que dá “harmonia” ou simetria
– ainda que momentaneamente – às forças.
Daí o rechaço dos “modelos” ou das influências por parte de Nietzsche.
Apontou-se que o Hiperión de Hölderlin representou um paradigma para a
construção do Zaratustra,26 se indicaram os laços com o Prometeo de Spitteler,
com Shelley, Lipiner, etc.27 Estas referências podem conter uma aproximação
de temas, alegorias simbólicas, mas nada além disso, porque talvez a ausência
de modelos se relacione com o caráter musical da obra, com essa tensão pela
qual se torna tão difícil estabelecer alguma diferença entre “forma” e “conte-
údo”, na medida em que a “forma” do Zaratustra é também o seu conteúdo,
quer dizer, não se pode pensar isoladamente um do outro, e tampouco se pode
considerá-los como dois polos. Aquela dualidade forma–conteúdo, imprópria
para a época da morte de Deus, talvez permita esquematizar alguns aspectos
da obra, mas impede que se compreenda sua radical incompreensibilidade, o
feito de que a “forma” é, ao mesmo tempo, o “conteúdo”. O que significa isso
para um pensar filosófico é algo que ainda, e não sem dificuldades, será ne-
cessário vislumbrar.
26
Tal como o faz GIAMETTA, S., em Nietzsche, il poeta, il moralista, il filosofo (Milano, Garzanti,
1991, cap. IX).
27
Conferir JANZ, C., op. cit., vol 3, p. 178 ss.
Leituras de Zaratustra 29
obra,28 praticando aquele pensar que pode enfrentar as palavras já não como
pedras difíceis de quebrar, mas como criações de sentido perspectivístico. Por
isso, “niilismo” é um termo sedimentado que Nietzsche toma de várias fontes
(sobretudo do niilismo russo, daquela caracterização dos “niilistas radicais”
com a qual a geração russa dos anos 40 marcou o pensar dos jovens dos anos
60) e “des”-sedimenta e “re”-sedimenta novamente, gerando múltiplos sen-
tidos para ele mesmo. As três figuras das três transmutações resultam, desta
forma, exemplos desse jogo com a linguagem, que permite abandonar em par-
te o fetichismo da palavra tão encantada com significações que é incapaz de
abordar os mesmos termos com sentidos diversos.
Porque a mesma afirmação que Nietzsche faz de ser o niilista mais per-
feito da Europa supõe essa outra convicção: a de ter vivido o niilismo em si
mesmo em todas as suas etapas, a de ser, de certo modo, não apenas o que
abriga desertos, mas também aquele que pode recriá-los, convertê-los em algo
distinto. Tais transformações se referem às transmutações pelas quais se deve
atravessar para poder se aproximar do sem sentido e do caos sem perecer
neles, as metamorfoses que permitam ao homem estar a par das progressivas
niilizações da terra e das formas de enfrentá-la. Porém, para estas formas de
enfrentamento não existem receitas, nem lemas, não existem dogmas, nem
protocolos: somente a possibilidade de arriscar-se, a assunção do risco que su-
põe a criação do filosófo-artista-criança. Por isso, talvez, também não se possa
falar em passos de uma evolução do camelo até a criança (evoluções que, para
Nietzsche, se tornariam um progresso com “meta final” repugnante), mas ao
contrário disso, talvez deveria-se dizer que o camelo, o leão e a criança conver-
gem e convivem: nas épocas, nos indivíduos, na história. Certo é que se deve
romper com os hábitos de camelo (a veneração, a abjeção, a adulação) para
ser leão, mas quanto de camelo ainda habita em um leão e como a criança tem
que ser sempre e novamente leão para poder seguir criando! Porque a criação
exige uma filosofia da tensão: um sim que só é possível a partir de um não que
nunca é totalmente de-negado.
Das diversas formas de recepção do pensamento de Nietzsche nos últimos
anos, a conversão do mesmo em um esteticismo aquiescente é, sem dúvida
alguma, a mais corrente. Essa conversão esquece ou deixa de lado a importân-
cia da crítica, assim como, em outros momentos da história do pensamento, o
que se apropriou de Nietzsche foi fundamentalmente o aspecto crítico. Nessas
circunstâncias, se transformou Nietzsche num crítico da cultura, esquecendo
28
Para os diversos sentidos do termo “niilismo” na obra de Nietzsche, conferir meu Nietzsche, camino
y demora. Buenos Aires: EUDEBA, 1998.
30 Mónica B. Cragnolini
os aspectos positivos de seu pensamento. Talvez nenhuma das duas reduções
seja desejável, porque parece que a filosofia nietzschiana encontra sua maior
força precisamente nessa tensão que se produz entre os aspectos negativos e
os positivos, nesse jogo entre o não e o sim que permite que a mesma não se
imobilize em catedrais de conceitos, nem se perca no puro imediato.
Filosofia da tensão: e talvez aí esteja a possibilidade de gerar “respostas”
para um presente que não pode ser aceito sem mais, para erradicar esse tipo
de amor fati do asno que termina por constituir a filosofia como um jogo es-
téril sem capacidade crítica. Leão e criança talvez constituam, neste sentido,
os modos de mostração do filósofo artista, que cria conceitos, mas, ao mesmo
tempo, transforma o filosofar numa re-sistência ao dado que, por mais que as-
suma que o dado é dado-interpretado, não o aceita de imediato, na medida em
que reconhece nele o jogo de forças que outros realizam e configuram. Leão
e criança em tensão, então, como contra-figura do douto camelo que só pode
pensar em meios assépticos, nos quais não se coloca nada em jogo porque
nada se joga. A criança, por outro lado, é quem joga, mas com essa seriedade,
dirá Nietzsche, das crianças ao jogar.
O camelo, a figura do homem decadente, mostra claramente que “o ho-
mem é um animal que venera” 29 e que, além disso, necessita humilhar-se para
suportar a vida.30 A vida se vive e se vê de baixo, de joelhos, quando está base-
ada em um fundamento divino (entendendo por Deus, aqui, tanto os deveres
sagrados quanto os laicos, os costumes burgueses e as pequenas comodida-
des, a linguagem e suas armadilhas, as pirâmides de conceitos e seus sistemas,
as filosofias do fundamento e seus substitutos, etc.). O camelo venerador ca-
minha pelo deserto,31 porque “no deserto habitaram desde sempre os verazes
(die Wahrhaftigen), os espíritos livres, como senhores do deserto”.32 O deserto
é o lugar do niilismo, do vazio de sentido (“Ai de quem abriga desertos!”) mas,
por sua vez, é o espaço de solidão que permite as transformações, na medida
em que representa o oposto da “praça pública”. A imagem do homem que vai
ao deserto sem seus deuses é a mesma do filósofo peregrino que abandonou a
cátedra precocemente, cerceando seus vínculos institucionais, e que demonstra
ter tido uma longa errância em gelo e desertos.33 Passar pelo deserto: lançar-se
29
FW 346, KSA 3, p. 579-581.
30
Por isso a imagem do espírito decadente é a do camelo, que carrega os “deveres” e se ajoelha para que
coloquem nele a carga. Conferir Za, KSA 4, “Von den drei Verwandlungen”, p. 29-31,trad. AZ p. 49-51.
31
Za, KSA 4, “Von den drei Werwandlungen”, p.30
32
Za, KSA 4, “Von den berühmten Weise”, p. 133, trad. AZ, p. 156.
33
Nachgelassene Fragmente 1887-1889, KSA 13, 16 [32], p. 492-493.
Leituras de Zaratustra 31
até o fundo do niilismo, da carência de sentido, apalpá-la e respirá-la com o
próprio corpo, para poder indicar as possibilidades de se sair daí.
Quem pode iniciar esta busca de caminhos é o leão, o espírito livre do nii-
lismo integral, que deve assumir a morte de Deus como a morte do fundamen-
to estruturador da metafísica, da moral e da religião. O leão-espírito livre, que
busca “olhar o outro lado de todas as medalhas”34 e, neste sentido, inaugura a
“filosofia da suspeita” com respeito aos grandes ideais e valores, leva a cabo a
tarefa de “desmascarar” os mesmos. Para desmascarar é necessária a força do
leão, seu rugido de ruptura com tudo o que aprisiona o indivíduo aos pesados
deveres ante os quais é necessário ajoelhar-se. Mas a mera ruptura não basta:
é necessária a força que permite criar, força da qual carece o leão, empenhado
no “não”, na negação de suas cadeias. Do mesmo modo, o espírito livre corre o
perigo constante desta negação que, por sua dureza, pode chegar a converter-
-se na busca de uma nova fé “talvez mais estreita”, em que possa se apoiar.
Porque aquilo que espreita o espírito livre é precisamente essa necessidade
humana, demasiado humana, de descansar em algum princípio, em algum
fundamento, com o consequente perigo de que esse princípio torne a transfor-
mar-se em princípio último e fundamento seguro como era Deus, a moral ou
os bons costumes. Por isso, a negação constante é impossível sem a criação.
Daí a criança: novo começo, possibilidade de criação, possibilidade de as-
sumir o mundo como jogo. Possibilidade, além do niilismo integral do espírito
livre e de sua filosofia de martelo, do “niilismo futuro” e do filósofo artista, o
homem do perspectivismo. Para a criança, nenhum jogo é o último ou verda-
deiro para além do momento e das circunstâncias em que o está jogando. Para
o filósofo artista, nenhuma perspectiva é a última, todas representam possi-
bilidades de criação, conjunção-disjunção momentânea de forças, nas quais
não existe nenhum “superjogador” que dite as regras apriorísticamente, nem
nenhum significado prévio ao jogo mesmo. O significado do jogo surge no
jogo em questão, não existe um “outro” que justifique e desvele a “verdade”
de suas significações (morto Deus, desaparece a fonte última dos sentidos
possíveis, o Sentido dos Sentidos).
Este “operar” da criança se pensa como similar à arte, na medida em que a
arte, como manifestação da Wille zur Macht, não busca sentidos fora de si, mas
gera suas próprias significações. A arte é o jogo por excelência, jogo de estru-
turação-desestruturação das belas formas, recônditas harmonias e estranhas
figuras. A arte é a manifestação do operar mesmo da vontade de poder, do jogo
34
Conferir Menschliches, Allzumenschliches, KSA 2, “Vorrede”, n. 4-5, p.17-19.
32 Mónica B. Cragnolini
de forças que se acham em constante processo de aglutinação-desagregação,
gerando perspectivas sempre novas.
O filósofo-artista-criança cria valores outorgando um sentido (provisório)
ao nihil da falta de “para quê” (télos), de causa e de ordem do mundo, nihil que
não pode ser vivido sem mais pelo homem, que necessita, assim, “logicizar”
falsificar. As criações de conceitos (o jogo de criança) são ficções: perspectivas
que se assumem como tais, uma vez erradicada a ideia de verdade última. As
ficções se diferenciam das ideias metafísicas que movem a vida do camelo na
medida em que se assumem como falsificações, “esquemas-mapas” que são
necessários traçar sobre o caos para não se perder no abismo somente.
A diferença entre a criação destas ficções e da geração de fundamentos
últimos (arkhaí dos metafísicos), Zaratustra sugere em um dos seus sonhos.
O filósofo persa sonhou certa vez que era guardião do castelo da morte, com
uma tarefa específica: resguardar ataúdes de cristal a partir dos quais a vida
vencida o observava. Porém, um ruidoso vento abriu com força as portas do
castelo, lançando um ataúde que, ao se fazer em pedaços, liberou mil figuras
de criança, loucos, borboletas...35 O mesmo Zaratustra que é figura do persa
inventor do bem e do mal é a imagem do niilismo decadente que enclausura
a vida, mas o mesmo Zaratustra que é espírito livre é também o vento do nii-
lismo integral que destroça as concepções metafísicas do niilismo decadente
e permite, a partir do liberado, a criação de novas perspectivas. O filósofo
artista-criança gera sentidos, porém os mesmos possuem o caráter que Niet-
zsche podia atribuir a sua filosofia: o caráter de ligeireza que repugna todo
peso e imutabilidade.36
35
Za, KSA 4, “Der Wahrsager”, p.172 ss, trad. AZ, “El adivino”, p. 197 ss.
36
Za, KSA 4, “Von Lesen und Schreiben”, p.49. «E também a mim, que sou bom com a vida, parece-
-me que as borboletas e as bolhas de sabão e o que mais há entre os homens da mesma espécie são o que
melhor conhecem a felicidade/ Ver voejar essas alminhas ligeiras, loucas, encantadoras, volúveis – isso
faz chorar e cantar a Zaratustra» .trad. AZ , p. 70.
Leituras de Zaratustra 33
força seu aspecto ficcional do ponto de vista moral, na medida em que é apre-
sentado como hipótese para a ação:
37
FW, KSA 3,§ 341, p. 570, trad. La ciencia Jovial, trad. J. Jara, Caracas, Monte Avila, p. 200. Para
uma detalhada análise deste aforismo, conferir SALAQUARDA, Jörg, “Der Ungeheure Augenblick”,
en NietZasche-Studien , Band 18, 1989, p. 317-337.
34 Mónica B. Cragnolini
ção presente em outras tradições e mitos antigos. Mas talvez mais importante
do que este caráter de “ideia antimetafísica” seja o de antidogma por excelên-
cia e sua “realização”, para além da argumentação, no âmbito da decisão.38
O ato da vontade de poder que afirma o instante implica uma ruptura com
o esquema religioso-metafísico, além do fato que significa afirmar o presen-
te – “o que escapa” para as religiões. Porque o eterno retorno é apresentado
por Nietzsche como “nova fé”, outra grande ironia do filósofo. Se há algo que
impossibilita a ideia do eterno retorno é a consideração da mesma como um
novo dogma do “quinto evangelho”: Não está rindo Nietzsche com estas pala-
vras? Não está parodiando como parodia na “festa do asno”?
Porque ao considerar o eterno retorno como “hipótese” da ação (“vive como
se este instante fosse se repetir”), ele se apresenta com uma peculiar ambiva-
lência, tendo em conta que, para que se cumpra como tal, é necessário que
negue seu próprio conteúdo: o retorno do mesmo. Quando decidimos dizer
“sim” ao instante em virtude do pensamento de que é melhor viver esse ins-
tante bem porque ele há de retornar, neste mesmo momento, no momento
da decisão, explodimos nossa própria hipótese, reduzindo a meras partículas
a ideia que nos impulsiona a agir. Porque nos move à afirmação a ideia de re-
petição (se este instante voltará, deveria vivê-lo da melhor maneira possível),
mas, neste momento em que decidimos afirmá-lo, destruímos nossa própria
hipótese, porque já não retorna ele mesmo, já transformamos o instante em
algo distinto por tê-lo querido. “Se retornasse”, retornaria transformado: a
decisão permite a modalização do acontecido e do que acontece.
Esta consideração da “mais alta ideia de Zaratustra” no sentido de uma
decisão, mostra um dos aspectos da luta que Nietzsche empreende contra a
metafísica, luta que, por mais que recorra a argumentações, acaba por mostrar
que nenhuma argumentação, no fim das contas, serve para tal tarefa. Porque,
enquanto tal, outra coisa se descobriu por debaixo das argumentações, confi-
gurando-as e dando a elas esse estilo abstrato de que se orgulham os filósofos:
a vontade de poder. Forças que geram ideias: então, não é possível destruir a
metafísica argumentando, se torna necessária uma decisão. Se o que permite
a adesão a um sistema filosófico determinado é a força ou a falta de força da
vontade de poder, então, em última instância, de nada serve a argumenta-
ção: é necessária a ação que decide, dizer basta a uma forma de vida, a uma
constituição “enferma” da vida. Por isso, mais do que “argumentar” contra a
38
A decisão é o que diz: “Alto lá, anão, ou tu ou eu”, ou o que permite que o pastor morda a cabeça da
serpente. Conferir Za, KSA 4, p. 199 e 202 respectivamente.
Leituras de Zaratustra 35
temporalidade linear, afirmar o instante, conjugar no Kairos39 o tempo na es-
colha da própria chance. Amar “o que passa”: horror da metafísica que busca o
eterno por medo da vida. Amar “o instante”: dor da metafísica que o considera
permutável, superável. Amar o que traz o acaso, amor fati que abraça a vida
em todos os seus aspectos, mesmo os mais terríveis. Amar com laços mortais.
O eterno retorno é, então, uma decisão: não é uma “ideia” que se lê sim-
plesmente, é uma convocação, mas com um lema que se anula a si mesmo.
Não há aqui possibilidade de um lema que “uniformize” os homens, nem um
levantar de braços que afirme uma ideia: porque a afirmação é a negação do
que se afirma e, por isso, um antidogma, uma antilema, a negação da possibili-
dade de toda religião e de toda congregação de iluminados, seja em uma igreja,
seja em um partido político. Daí a grande paródia, de apresentar como “quinto
evangelho” ou “livro sagrado” o livro que zomba incessantemente da possibi-
lidade de conversão em dogma de sua própria crença, e o faz, precisamente,
convertendo em antidogma aquilo que poderia se tomar como um “lema para
a vida”: a ideia do eterno retorno.
Deste modo, também se poderia dizer que a própria leitura – qua leitura
para todos e para ninguém – se anula como leitura no sentido tradicional e se
transforma em práxis, em ação. Não se pode ler essa obra sem transformar-
-se, não existe leitura possível que não chegue às forças do leitor e as golpeie,
as maltrate, as obrigue a manifestar-se de alguma maneira: pela repulsão ou
pela sym-patheia, pela recusa ou pela afirmação. Porém, trata-se de leitura que
leva em si o selo deste caráter antidogmático, de modo tal que toda afirmação
do Zaratustra (a compreensão de suas ideias, a aquiescência frente às noções
de vontade de poder, além-do-homem, eterno retorno) significará, ao mesmo
tempo, sua negação: a recusa do próprio afirmado, para que o afirmado não se
transforme, por sua vez, em dogma, para que o afirmado não se converta em
canção de realejo e confirmação do sedentarismo de nossos hábitos. Porque
também o risco pode converter-se em máscara de sedentarismo e de temor.
Zaratustra se afirma-nega a si mesmo. Zaratustra implica uma leitura-práxis
que exige transformações, Zaratustra é demasiado para nós. Por isso devemos,
a cada momento, tentar engoli-lo como o pastor adormecido, e, por isso mes-
mo, estamos, a cada instante, cuspindo as interpretações do sedentarismo,
que nos proporcionam nossas necessidades de segurança.
Por tudo isso, de novo, não existe “o caminho”.
39
Para este tema, conferir “Concepto y símbolos del eterno retorno”, en CACCIARI, M., Desde Nietzs-
che. Tiempo, arte, política, trad. M. Cragnolini-A. Paternostro, Buenos Aires, Biblos, 1994, p. 99-138.
36 Mónica B. Cragnolini
O segredo abissal de Zaratustra
1.
1
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, “Prólogo”, 1, p. 33.
Leituras de Zaratustra 37
alegremente. Como o sol que declina de sua morada nas alturas e vem caindo
lenta e decididamente todos os dias para iluminar a terra e a vida dos homens,
como o sol que, à noite, escondido “atrás do mar”, leva “ainda a luz ao mundo
ínfero”2, Zaratustra assume a necessidade e a urgência do declínio, vem à terra
plana, desce à planície em que habitam os homens modernos para, também,
aos seus olhos, iluminar a vida moderna com um presente: o futuro, o inabi-
tual, o incomum, a renovação. A mensagem inscrita em sua alma solitária e o
presente protegido em suas mãos de criador deverão ser, julga ele, motivo de
alegria e de júbilo para os homens.
Instalado por dez anos em sua caverna no alto da montanha, Zaratustra
acredita ter conquistado maturidade suficiente para descer às profundezas e
aos abismos, suficiente destreza para se abandonar, outra vez, ao convívio com
os homens, suficiente grandeza para dar aos homens o que tem em excesso.
Ao descer, ainda não sabe que a primeira hora lhe reserva surpresas desagra-
dáveis e decepções desconcertantes. Ainda não sabe que o caminho a percor-
rer até “tornar-se quem é”, o mestre do eterno retorno, deverá ser árduo, árido,
pedregoso, porque sempre dificultado pela incompreensão dos modernos, os
homens da planície. O alegre mensageiro não espera a radical mediocridade de
seus contemporâneos, presos ainda a determinados valores e ideais próprios
de uma interpretação moral da existência. Transformado, livre do peso do ide-
al transcendente, Zaratustra terá que entender, ao longo de sua dramática
trajetória, que a modernidade é ainda herdeira da “velha tábua de valores”
constituída pelo platonismo e consagrada pela religião cristã e, de certa forma,
pela modernidade; ao longo de sua trajetória, terá que entender a resistência
dos “homens iguais” à ousadia do criador de novos valores.
Na planície, as nuvens são pesadas para Zaratustra. O tempo não é acolhe-
dor de sua intempestividade; não se escuta seu verbo; suas estranhas razões
e palavras “estridentes” não são compreendidas. Resplandecente, Zaratustra
aparentemente ainda não sabe que deverá enfrentar um longo caminho até
poder revelar a novidade mais escondida, o seu segredo mais visceral – a ale-
gria da constatação e da aceitação do eterno retorno de todas as coisas que, em
Nietzsche, é artifício de exacerbação do niilismo para a recuperação da relação
trágica, gentil e amorosa, com a existência. De posse de novo olhar para a
cultura, diferente do olhar que o orientara em sua metafísica de artista, com o
drama de Zaratustra, Nietzsche quer mostrar a necessidade da superação da
interpretação metafísico-cristã da existência e a urgência da aceitação da vida
2
Ibid.
3
Ibid.
4
Ibid., p. 33-34.
5
Cf. “Dos transmundanos”, p. 56.
6
Ibid., p. 58.
Leituras de Zaratustra 39
tustra, a “taça que quer transbordar” seu excesso, escolhe correr o risco de
“esvaziar-se” e de se enfraquecer: esta é a grande prova, este, o grande perigo
a enfrentar em sua trajetória e no convívio com os homens – relacionar-se com
os modernos sem se deixar contaminar definitivamente por sua doença, por
sua fraqueza, por sua tolice, por sua esterilidade. Se a solidão favorece a dure-
za, a coragem e a força, virtudes de um grande homem, expedientes de repúdio
do niilismo, a um só tempo, assustador e estéril, acercar-se dos homens fracos
e escravizados – aqueles que, medíocres, “desconfiam dos solitários” e os con-
fundem com “ladrões” – pode levar à exaustão, ao desânimo, ao niilismo mais
torpe e impotente e à passividade, tal como se vê no capítulo “O adivinho”:
“Tudo é vazio, tudo é igual, tudo foi!”.7
No entanto, Zaratustra, amoroso, tem necessidade de se (re)encontrar
com o humano. Apesar de Nietzsche requerer a retradução do homem à na-
tureza, Zaratustra não quer ser apenas “um urso entre os ursos, um pássaro
entre os pássaros”;8 não é como o “velho” da floresta que se distancia dos
homens e de sua imperfeição e precariedade para amar e louvar a Deus; Zara-
tustra não odeia nem despreza os homens. A solidão, não raras vezes invocada
por Nietzsche como necessária, preventiva e purificadora, não é sinal de desin-
teresse ou sintoma de inatividade, mas expediente imprescindível ao exercí-
cio da filosofia, condição insuperável de configuração do pensamento. Apesar
do extremo perigo, Zaratustra, dono de uma “dúplice vontade”,9 proclama o
super-homem, mas também entende que é preciso prender-se aos homens com
“sólidas correntes”.10 A despeito do risco sempre presente e de certos momen-
tos de desencanto – mais tarde, ao ouvir o adivinho, por um tempo, torna-se
igual aos homens tristes e cansados11 –, Zaratustra acaba por ser salvo por sua
sabedoria, por seu amor aos homens, pela ciência de sua missão, por seu riso
excessivo e transbordante e, sobretudo, pelo segredo que a própria vida a ele
confia.
Determinado e destemido, Zaratustra deixa a companhia do “velho”, des-
ce, luminoso, e chega à cidade, mais precisamente à “praça do mercado”, a
fim de entregar à multidão, que espera ansiosa por um espetáculo de um “fu-
nâmbulo”, o presente aos homens destinado, mas é logo surpreendido por
uma decepção: o presente, o super-homem – o novo “sentido da terra”, “o raio
7
Ibid., “O adivinho”, p. 166.
8
Ibid., “Prólogo”, 2, p. 35.
9
Ibid., “Da prudência humana”, p. 175.
10
Ibid.
11
Ibid., “O adivinho”, p. 166.
12
Ibid., “Prólogo”, 7, p. 44.
13
Ibid., “Prólogo”, 3, p. 36.
14
Ibid.
15
Ibid., “Prólogo”, 8, p. 45.
16
NIETZSCHE, A gaia ciência. Livro V, “Nós, os impávidos”, aforismo 343, “O sentido de nossa
jovialidade”, p. 233.
Leituras de Zaratustra 41
o homem moderno não tem habilidade para pensar tragicamente a existência
e vislumbrar as novas formas de vida que da morte de Deus – cuja observação
faz com que o texto seja uma crítica da modernidade – podem decorrer. Um
dos importantes ensinamentos de Zaratustra aí se exprime: a morte de Deus,
ainda que possa ceder espaço ao niilismo passivo, pode, por outro lado, abrir
“caminho para novas auroras”,17 favorecer a aparição de “novas estrelas” e
“novas noites”,18 promover o surgimento de inauditas promessas de futuro.
Vingar-se de Deus, matando-O como se mata uma testemunha inoportuna,19
não é suficiente para que o moderno compreenda inteiramente o significado
deste fato incontestável. A despeito de o homem moderno ter matado Deus
e colocado no lugar dos valores divinos valores humanos, ainda espera com-
preender o sentido e a finalidade últimos da vida, ainda se perde em ilusões e
crê em ficções como identidade, substância, sujeito, causalidade e, sobretudo,
ainda acredita na verdade, ainda abriga em si o ideal ascético. É neste sentido
que se pode admitir que, apesar das diferenças entre o niilismo negativo e
o niilismo reativo, Nietzsche reconhece a íntima relação que entre eles se
configura: ambos acolhem o ideal ascético, a vontade de verdade, a vontade que,
inaugurada pelo gesto socrático-platônico, anima a cultura ocidental e acaba
por consolidar um tipo de relação – nociva – entre o homem e a existência,
porque, diante da exigência de uniformidade, ignora o “estranho” e “questio-
nável” do existir. O homem moderno mata Deus mas continua acreditando e,
mais do que isto, querendo a verdade. Na ciência, portanto, mas também nas
ideias modernas, permanece o desejo de verdade – uma das sombras de Deus – e,
no limite, a infame desvalorização da vida.
Frente à constatação do desconhecimento da morte de Deus – constatação
vislumbrada na ocasião do encontro com o “velho” da floresta –, compreende
Zaratustra: o super-homem não pode ser aceito pela multidão, não pode ser
desejado pelo povo. Ao anunciar o super-homem, Zaratustra, que, ao descer, pa-
rece desconhecer a ignorância do povo em relação à morte de Deus, anuncia um
futuro possível para o homem, mas é levado a reconhecer que o super-homem
tem que ser querido pelo homem: “O super-homem é o sentido da terra. Fazei
vossa vontade dizer: ‘Que o super-homem seja o sentido da terra!’”20 Zaratus-
tra compreende que, mesmo sem Deus, o homem pode ter um futuro, mas
sabe também que, apesar da abertura promovida pela morte de Deus, o homem
17
Id., Assim falou Zaratustra, “De velhas e novas tábuas”, p. 236.
18
Ibid.
19
Cf. parte IV.
20
Ibid., parte III, p. 36.
21
Ibid.
22
Ibid., “Prólogo”, 5, p. 41.
23
Ibid.
24
Ibid., “Prólogo”, 4, p. 38.
25
Ibid., “Prólogo”, 5, p. 41.
26
Ibid., p. 42.
Leituras de Zaratustra 43
levado a concluir: “‘Eles não me compreendem: eu não sou a boca para esses
ouvidos. Demasiado tempo, decerto, vivi na montanha, por demais escutei os
córregos e as árvores’”.27
Entristecido – intuindo a dificuldade de compreensão de seu pensamento
abissal? –, Zaratustra escolhe outro procedimento. Depois de caminhar carre-
gando o corpo do “funâmbulo” morto, depois de, faminto, bater à porta de um
eremita da floresta, Zaratustra dorme, e, ao acordar, subitamente se lhe apre-
senta uma verdade decisiva: “‘Uma luz raiou em mim: de companheiros, eu
preciso, e vivos – não de companheiros mortos e cadáveres, que levo comigo
aonde quero”.28 A partir daí, muda de tática: com o fracasso do seu primeiro
pronunciamento, admite o equívoco de falar para a multidão. E entende: é
preciso falar para poucos. Zaratustra não quer companheiros mortos, como o
“funâmbulo” – sua primeira “pescaria” – que, quase morto, “gravemente feri-
do e com os ossos partidos”,29 caíra aos seus pés em decorrência de um gesto
do “palhaço da torre”. Em Do homem superior, relembra sua “estultice” ao falar
para a multidão: falara para todos e, com isto, falara para ninguém! Esta é a
primeira lição aprendida por Zaratustra. “Atrair muitos para fora do rebanho
– foi para isso que vim”.30
Ao longo do caminho, esta súbita verdade se radicaliza e se confirma no co-
ração de Zaratustra: nem todos são fortes ou intempestivos, criadores, artistas
ou crianças; nem todos podem romper com a moral consoladora, com as ideias
que, supostamente, aliviam a dor da existência mediante a postulação de um
mundo ideal, supostamente insubmisso às transformações; nem todos podem
abdicar da procura de uma razão para o existir e, sobretudo, para o sofrimen-
to; nem todos sabem viver sem as promessas do Deus cristão ou o consolo
do mundo ideal ou da verdade; nem todos podem entender a existência como
força e vontade de potência; nem todos são aptos ao sim à vida e à rebelião contra
a interpretação moral da existência; nem todos podem aguentar o pensamento
trágico. Zaratustra haverá de referir-se a poucos homens, terá de procurar por
companheiros privilegiados: os fortes, os criadores, os destruidores dos velhos
valores, os dionisíacos, os grandes homens, os superiores, aqueles que, por
sua constituição fisiológica e grande saúde, podem “afiar as foices”31 para a co-
lheita e para a festa, construir uma nova tábua de valores, querer o super-homem
27
Ibid.
28
Ibid., “Prólogo”, 9, p. 47.
29
Ibid., “Prólogo”, 6, p. 43.
30
Ibid., “Prólogo”, 9, p. 47.
31
Ibid.
2.
32
Ibid., p. 48.
33
Ibid., “A hora mais solitária”, p. 178.
34
Ibid., p. 181.
35
Ibid., p. 180.
Leituras de Zaratustra 45
tanha e da caverna – início da parte II do texto36 –, Zaratustra, que jogara uma
semente para vê-la brotar, mostrara-se impaciente ao deixar aqueles “que [...]
amava”, porque “muito, ainda, tinha para dar-lhes”,37 mas, agora, depois de
tantas experiências difíceis, está cansado, sem força, desanimado. Zaratustra
não é mais o mesmo, aquele que outrora declinara da solidão de sua caverna,
alegre e luminoso diante da possibilidade de um futuro exuberante vir a se
construir depois da morte de Deus. Seu andar já não é mais o de um “dançari-
no”, como dissera, no “Prólogo”, o “velho” da floresta. No trajeto da descida
e no convívio com os homens e seus discípulos, aos poucos compreende a
estranheza provocada pelo presente que oferecera aos homens e o escárnio da
multidão que o ouvira na “praça do mercado” e, mais importante, constata a
imperiosa necessidade de reversão da concepção metafísico-religiosa de tem-
po – extremamente nociva à cultura e responsável pela vingança e pelo ressen-
timento contra a vida – para a recuperação da relação trágica com a existência;
mas, agora, depois de enfrentar alguns infortúnios e de se submeter a cons-
trangimentos e ameaças, está abatido, “amedrontado”, assustado, exangue,
sem vitalidade para o anúncio definitivo de sua ideia do eterno retorno. Des-
cendo de sua montanha para, de novo, conviver com os homens, Zaratustra
sabe de seu desejo: reanimar a modernidade depois da morte de Deus, mostrar
aos homens a força da vontade criadora e propor a instituição de uma nova
tábua de valores a partir da negação dos valores tradicionais para a superação
dos dualismos que caluniam e empobrecem a vida; afirmar definitivamente
a vida e a vontade de viver e de criar por meio da sugestão do super-homem e,
mais tarde – depois da compreensão de que o super-homem não é suficiente
para a redenção –, mediante a proclamação do eterno retorno. Depois das mais
variadas experiências, Zaratustra adquire a ciência de que o eterno retorno –
“alguma coisa mais elevada do que toda a reconciliação”38 com o tempo – é o
instrumento privilegiado para a redenção de uma cultura essencialmente niilis-
ta como a moderna, para a superação da moral metafísico-cristã, mas, agora,
depois de se constranger e enfrentar os mais diversos obstáculos, não se sente
em condições de pronunciar o eterno retorno com o vigor e a determinação
necessários. Apesar de ter compreendido por que grandes perigos o aguarda-
vam em seu caminho, Zaratustra se enfraquece e desanima. Ainda que tenha
identificado vida e vontade de potência, e, com isto, reconhecido a vida como o
mais alto valor, ainda que tenha se aproximado da sabedoria dionisíaca, onde
36
Cf. “O menino com o espelho”, p. 111.
37
Ibid.
38
Ibid., “Da redenção”, p. 174.
39
Ibid., “De grandes acontecimentos”, p. 162.
40
Ibid., p. 163.
41
Ibid., “Da redenção”, p. 174.
Leituras de Zaratustra 47
e maior maturidade, a importância e a necessidade do isolamento: convém subir
a montanha, refugiar-se mais uma vez na solidão para deixar vir à tona seu se-
gredo mais velado. Era necessária a volta à montanha para se preparar e assumir
seu pensamento trágico, finalizar seu aprendizado com uma afirmação talvez mais
incisiva acerca do eterno retorno, para se tornar, enfim, o “mestre do eterno retor-
no”. “Realizar uma coisa grande é difícil; mas o mais difícil é ordenar alguma
coisa grande”,42 dissera-lhe sua solidão em sua “hora mais silenciosa”. A última
solidão de Zaratustra é seu perigo derradeiro: exige coragem a proclamação do
eterno retorno, instrumento de superação da vingança contra o tempo passado;
exige ousadia a afirmação incondicional da vida, a atitude trágico-dionisíaca.
Depois de deixar as Ilhas bem-aventuradas, Zaratustra sobe e desce o monte
para se entregar a uma viagem pelo mar em direção à “outra costa” e, poste-
riormente, à solidão de sua caverna. Perto da meia-noite tem início o “cami-
nho da grandeza”,43 o percurso do destino a um só tempo cruel e radiante – o
caminho para o segredo, para o abismo, para a dor e a solidão mais fundas, e,
ao mesmo tempo, para o mais elevado cume. Amedrontado, fragilizado para
enfrentar seu próprio abisso – “‘Está acima das minhas forças!’”44 –, Zaratus-
tra, no entanto, certo de que não deve se poupar, obedece à voz da solidão:
“‘Que importa a tua pessoa, Zaratustra! Fala a tua palavra e despedaça-te!’”.45
Pela manhã, Zaratustra embarca no navio de “estrangeiros”; depois de dois
dias de silêncio, sem responder “nem a olhares nem a perguntas”,46 diante
dos “intrépidos buscadores e tentadores de mundos por descobrir”,47 rompe
“o gelo de seu coração”48 e dá início à descrição da revelação de sua visão do
maior e mais estranho enigma – “a visão do ser mais solitário”49 –, descrição
que se prolonga nos dois capítulos seguintes ao capítulo “Da visão e do enig-
ma”: “Da bem-aventurança a contragosto” e “Antes que o sol desponte”.
Não bastassem as lembranças de “suas muitas peregrinações solitárias
desde a juventude”,50 mais um perigo apresentara-se “recentemente” no ca-
minho de Zaratustra até sua solidão, na subida do monte em direção ao mar:
42
Ibid., “A hora mais silenciosa”, p. 179.
43
Ibid., “O viandante”, p. 188.
44
Ibid., “A hora mais silenciosa”, p. 178.
45
Ibid., p. 179.
46
Ibid., “Da visão e do enigma”, 1, p. 191.
47
Ibid.
48
Ibid.
49
Ibid.
50
Ibid., “O viandante”, p. 187.
51
Ibid., “Da visão e do enigma”, 1, p. 191.
52
Ibid., p. 192.
53
Ibid.
54
Ibid., “Da visão e do enigma”, 2, p. 193.
Leituras de Zaratustra 49
e a interpretação trágica, cuja distinção Nietzsche, de certa forma, já apontara
em O nascimento da tragédia.
O destemor, a coragem e a decisão de Zaratustra, a afirmação e a aceita-
ção imponderáveis e incondicionais da vida apesar do aparente infortúnio da
possibilidade do eterno retorno de todas as coisas, e, mais ainda, o desejo do
retorno – “Outra vez!” – levam o “anão” a saltar, “curioso”, das costas do co-
rajoso Zaratustra para se postar, junto com ele, “diante de um portal”.55 Com
o pulo do “anão”, interrogando sobre os dois caminhos que se encontram no
“portal”, Zaratustra inicia sua “reflexão” sobre o tempo:
“Olha esse portal, anão!”, prossegui; “ele tem duas faces. Dois caminhos
aqui se juntam; ninguém os percorreu até o fim. Essa longa rua que leva
para trás: dura uma eternidade. E aquela longa rua que leva para frente – é
outra eternidade. Contradizem-se esses caminhos, dão com a cabeça um no
outro: – e aqui, nesse portal, é onde se juntam. Mas o nome do porta está
escrito no alto: ‘momento’. – mas quem seguisse por um deles – e fosse
sempre adiante e cada vez mais longe: pensas, anão, que esses caminhos
iriam contradizer-se eternamente?”56
55
Ibid.
56
Ibid.
57
Ibid.
58
Id. A gaia ciência, aforismo 341, “O maior dos pesos”, p. 230.
59
Cf. CALOMENI, Tereza Cristina B. A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retor-
no em Nietzsche. In: Cadernos Nietzsche, 18, 2005, p. 102.
Leituras de Zaratustra 51
postulação do círculo e prefere, com alguma intenção, deixar em suspenso a
possibilidade de ser o seu eterno retorno uma afirmação do tempo circular.
Repreendendo o “anão”, Zaratustra prossegue em sua tentativa de “refle-
tir” sobre o tempo para “concluir” sobre o eterno retorno. Tal como no aforis-
mo de A gaia ciência, também no Zaratustra, na conversa com o “anão”, está
presente a ideia de que tudo o que está no tempo revém, necessariamente, na
“mesma ordem e sequência”. Falando baixo, “cada vez mais baixinho”60 por-
que tem “medo de [seus] próprios pensamentos e do que eles [ocultam]”61,
Zaratustra sugere: se o passado e o futuro são eternos, todas as coisas já acon-
teceram, e, de novo, acontecerão; se o passado é eterno, tudo o que está por vir
já esteve no mundo; se o futuro é eterno, tudo o que já aconteceu acontecerá
mais outra(s) vez(es); não há, pois, possibilidade de que ocorram aconteci-
mentos sempre novos: “Tudo aquilo, das coisas, que pode acontecer, não deve
já, uma vez, ter acontecido, passado, transcorrido? [...] Porque tudo aquilo, de
todas as coisas, que pode caminhar, deverá ainda, uma vez, percorrer – também
esta longa rua leva para a frente!”.
Diante das ponderações inabituais de Zaratustra, o “anão” não responde;
o “anão” desaparece. Por que silencia o “perneta”? Por que foge o “espírito de
peso”? Intui que o eterno retorno a que aludira não é propriamente idêntico ao
sentido que Zaratustra confere ao pensamento do retorno e que, além disto, o
eterno retorno, na boca de um herói trágico como Zaratustra, é tão somente uma
simbologia destinada a recusar e destruir concepções simplistas e equivocadas
como a sua? Reconhece a tarefa concedida por Zaratustra ao eterno retorno,
afirmar, como hipótese, o retorno de todas as coisas para radicalizar o niilis-
mo moderno a ponto de destruir a concepção metafísico-religiosa de tempo, a
concepção responsável pela vingança, pelo remorso e pelo ressentimento con-
tra a vida e contra o passado, e para promover a aceitação da existência no que
ela tem de mais precário e problemático? Assim formulado, o eterno retorno é
um “peso” que ele, pequeno demais, é incompetente para suportar.
Como conciliar o aparente determinismo de que se reveste o pensamento
do eterno retorno com a reação e o impacto que Nietzsche pretende provocar
nos homens a quem seja dado o privilégio de ouvi-lo, como indica o aforismo
de A gaia ciência? A não afirmação do círculo, o aborrecimento com o “anão”,
e a tranquilidade diante das ponderações dos “animais” em “O convalescente”
sugerem que Nietzsche afirma o eterno retorno como círculo e como retorno do
60
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, “Da visão e do enigma”, 2, p. 194.
61
Ibid.
3.
Leituras de Zaratustra 53
no mais ermo lugar”,62 Zaratustra vê um “jovem pastor contorcer-se, sufoca-
do, convulso, com o rosto transtornado, pois uma negra e pesada cobra pendia
de sua boca”.63 Piedoso, tenta ajudá-lo a arrancar a “cobra” de dentro de si,
impressionado com o pedido de socorro do cão e com o “asco” e o “horror”
vislumbrados no rosto do “pastor”. O esforço, de início inútil, converte-se em
sugestão de uma solução definitiva: “‘Morde! Morde! Decepa-lhe a cabeça!
Morde!’”,64 grita, exasperada, “alguma coisa de dentro” de Zaratustra, o seu
“horror”, o seu “ódio”, o seu “asco”, a sua “compaixão”, “todo o [seu] bem e
o [seu] mal”.65 O “pastor” morde a “cobra”; resoluto, cospe-a fora.
A nova visão, o novo enigma é, na verdade, uma antecipação do que virá
descrito no capítulo “O convalescente”. “Que vi eu, então, em forma de ale-
goria? E quem é aquele que, algum dia, há de vir? Quem é o pastor em cuja
garganta a cobra assim se insinuou? Quem é o homem em cuja garganta se
insinuará tudo o que há de mais negro e pesado?”66 Necessário esperar por
algumas insinuações posteriores para compreender que a visão de Zaratustra
é uma “antevisão” de si próprio. O “pastor” é o próprio Zaratustra, e a “co-
bra”, o “grande fastio” que Zaratustra sente pelo homem, o niilismo passivo,
o niilismo provocado pela conclusão de que também o último homem voltará
eternamente. A grande dificuldade é esta, neste momento: se tudo retorna,
retornará o homem mesquinho.
O capítulo “Da visão e do enigma” – que, em parte, revive “O adivinho”
– contém indicações importantes à compreensão do significado do eterno retor-
no; no entanto, ainda não é o lugar de uma proclamação decisiva, o que leva
a crer que, neste momento, Zaratustra ainda não é, inteiramente, refratário
ao contágio do niilismo. Ainda há necessidade de Zaratustra, andarilho como
Nietzsche, continuar sua “viagem por mar”; “quando [se acha] a quatro dias
de distância das ilhas bem-aventuradas e dos amigos”, Zaratustra pode supe-
rar “toda a sua dor”.67 Então, “vitorioso e com passo firme, novamente em pé
no seu destino”,68 referindo-se à “prova” do eterno retorno, pode falar “à sua
exultante consciência”:69 “estou no meio de minha obra, indo para os meus fi-
62
Ibid.
63
Ibid., p. 199.
64
Ibid.
65
Ibid.
66
Ibid.
67
Ibid., “Da bem-aventurança a contragosto”, p. 196.
68
Ibid.
69
Ibid.
70
Ibid.
71
Ibid., p. 197.
72
Ibid., p. 192.
73
Ibid.
74
Ibid., p. 199.
75
Ibid., “Da virtude amesquinhadora”, 1, p. 203.
76
Ibid.
77
Ibid.
Leituras de Zaratustra 55
igualdade, socialismo e Estado. As ideias modernas não se constituíram como
“tônico” ou “estimulante”, mas tão somente como novas formas de niilismo
e decadência. A modernidade não conseguira se transformar em uma cultura
de estilo, conquistar uma grande saúde, superar sua extrema mediocridade e pe-
quenez, reviver a força e o vigor que Nietzsche encontra nos gregos trágicos,
pré-socráticos, que vencem o horror da existência por meio da arte trágica. A
cultura moderna, em especial a cultura alemã, confundira educação com “do-
mesticação”, porque não exaltara a singularidade, mas a igualdade, fazendo
dos jovens seres dóceis demais e enfraquecidos. A modernidade mantivera-se
aprisionada a determinadas virtudes, todas elas “amesquinhadoras”, incapa-
zes e impertinentes a uma cultura superior. O homem fora desumanizado, do-
mesticado, tornara-se um “animal de rebanho” quando deveria, para se com-
preender como avaliador e criador, ser o lugar de uma educação para o “cultivo
de si”. Os modernos ainda não sabem querer – são homens de “meio-querer”.
Mas Zaratustra não pode se compadecer do infortúnio da modernidade; dirá o
capítulo “O regresso”: a compaixão será seu último perigo.
Triste ainda, Zaratustra discursa sobre a “virtude amesquinhadora” e sobre a
“gente pequena”, a gente moderna que quer o “bem-estar” e confunde “resigna-
ção” com “covardia”, “moderação” com “mediocridade”. O homem moderno, por
diversas vezes repudiado por Nietzsche, é um homem mesquinho e pobre porque
mesquinha e pobre sua relação com o mundo. O moderno ainda está preso às
ideias de finalidade e sentido, não vê a inocência do mundo, o “céu-acaso”: não
percebe que poderia abrir no “céu” um “novo infinito” e se tornar a “tempestade”
capaz de varrer as nuvens mais pesadas e escuras. Diante da mesquinharia dos
homens modernos, Zaratustra, mais uma vez, aponta para a necessidade, tantas
vezes manifesta, de reafirmar a alma solitária daquele que é o anunciador do raio
para marcar sua diferença em relação àqueles que louvam a igualdade e deixam-se
impressionar pelo aparente fulgor dos novos ídolos, os ídolos modernos. Antes
de regressar à solidão para abraçar seu segredo abismal, antes de subir o “monte”
para pregar a recusa da velha hierarquia de valores e sugerir “nova tábua de valo-
res”, Zaratustra define-se e a seu tipo – o destruidor de ídolos.
Zaratustra demonstra seu imenso “nojo” pelo homem mesquinho, pelos
“mestres da resignação”, pelos “amigos do bem-estar”: “‘‘Sim! [...] Eu sou
Zaratustra, o ímpio: onde encontrarei os meus pares? E são meus pares to-
dos aqueles que se dão a si mesmos a sua vontade e repelem de si toda a
resignação”.78 Os modernos não podem compreendê-lo: submissos ainda às
78
Ibid., “Da virtude amesquinhadora”, 3, p. 207.
79
Ibid., “De velhas e novas tábuas”, 29, p. 256.
80
Ibid., “O regresso”, p. 220.
81
Ibid.
Leituras de Zaratustra 57
No capítulo “O convalescente”, “não muito após seu regresso à caverna”,82
Zaratustra não pode mais se esquivar do anúncio do eterno retorno. “Levanta-te
da minha profundeza, pensamento abismal! [...] Eu, Zaratustra, o defensor
da vida, o intercessor da dor, o assertor do círculo – chamo-te a ti, ó meu
abismal pensamento”.83 Ao pronunciar tais palavras, Zaratustra cai “ao solo
como morto”84 e permanece assim, adoentado, longamente; Zaratustra cai, e
caído permanece por longo tempo: confirma-se a visão do “pastor” sufocado
pela “cobra”. Apenas ele ouvira o “pensamento dos pensamentos”. Depois de
longo tempo, Zaratustra volta a si, mas se mantém quieto e “prostrado” por
exatos sete dias, quando, então, ouve as animadoras palavras de seus animais.
“Ó Zaratustra, [...] já faz sete dias que estás deitado, com olhos pesados;
não queres, finalmente, pôr-te outra vez de pé? / Sai desta caverna; o mun-
do está à tua espera como um jardim. Brinca o vento com intensos per-
fumes, que te procuram; e todos os córregos gostariam de seguir os teus
passos. / Por ti, que ficaste sozinho sete dias, anseiam todas as coisas. Sai
desta caverna! Todas as coisas querem ser teus médicos! / Veio a ti algum
novo conhecimento, amargo, doloroso?’”85
82
Ibid., “O convalescente”, p. 257.
83
Ibid.
84
Ibid., p. 223.
85
Ibid.
86
Ibid., “O regresso”, 2, p. 259.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
87
Ibid., p. 262.
88
Ibid.
89
Cf. CALOMENI, Tereza Cristina B. A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno
retorno em Nietzsche. In: Cadernos Nietzsche. São Paulo: USP, 2005, nº 18. Neste texto, são analisadas
algumas das dificuldades postas pelo pensamento do eterno retorno.
Leituras de Zaratustra 59
______. Assim falou Zaratustra; um livro para todos e para ninguém. 9. ed. Rio de Janei-
ro: Bertrand Brasil, 1998. 3 v.
______. Ecce homo; como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1995.
______. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
1
Esse texto, apresentado agora com alguns acréscimos, tem uma versão aproximada em meu livro
Nietzsche e a aurora de uma nova ética.
Leituras de Zaratustra 61
revisão do ser, do conhecer e do agir. O além-do-homem poderia consistir em
uma projeção nietzschiana de um ideal de ser, de conhecer e de agir para além
das proposições que o antecederam. Nesse caso, a questão refere-se à possi-
bilidade de, em criticando os construtos anteriores da história da filosofia,
não fazer do seu discurso um novo ideal, ou, mesmo que se altere a formula-
ção, uma outra construção que, prescindindo das categorias usuais, introduza
outras categorias que desempenhem função similar. Comecemos, então, por
perguntar: que transformação se processa com o discurso nietzschiano que
lhe permite colocar-se para além da tradição? Em que medida a formulação
de uma interpretação e a admissão de que só existem interpretações viabiliza
compreender a ação e o conhecimento sem pretensões totalizadoras, ou, qui-
çá, uma forma de contemplar a totalidade sem lançar mão da universalidade?
Em segundo lugar, supondo-se que se leve a bom termo as questões anterio-
res, como não conferir às transmutações que se sucedem ares de dialética?
Como não fazer da história pensante, mesmo enquanto interpretação, a resul-
tante das transmutações da vontade de potência com vistas a um dado fim?
Essas são, sem dúvida, questões que atravessam a proposição de um sujeito
ético2 e cuja resposta permite não só compreender o ético em Nietzsche, mas
precisar a sua inserção na história da filosofia.
Em termos da compreensão nietzschiana da história da filosofia, pode-se,
realmente, atribuir-lhe a realização de uma crítica em seu conjunto. Mesmo
que alguns pensadores sejam alvos privilegiados, no sentido de terem suas
teses postas à prova dada a universalidade das suas concepções, eles aparecem
como alvos por terem introduzido interpretações importantes, que nortearam,
em um dado momento histórico, concepções de mundo, conhecimento e ação.
2
Em nossa ótica, assentar o ético na perspectiva do trágico e introduzir, assim, uma nova dimensão
do sujeito ético foi o que motivou Nietzsche com a introdução do além-do-homem enquanto prescinde
de uma concepção de subjetividade. Isso requereu a investigação e crítica dos sentidos conferidos, no
decurso da história do pensamento, ao ser, ao homem, ao corpo, à vontade, à consciência, à razão, à
liberdade e à ação. Interligados, desde a introdução da vontade de potência enquanto interpretação,
esses conceitos passam por reorganizações estatutárias, já que o filósofo alemão propõe uma outra
relação e hierarquia entre eles. Ao unir homem e mundo, ser e fazer, Nietzsche quer bem mais do que
criticar as construções que o antecederam pela introdução da dualidade e da fixidez nos registros do
vir-a-ser, mas construir outro registro. Ora, se estes conceitos figuraram dentro de uma visão de mundo
que propunha um tipo de sujeito e de ação, há de se propor uma outra visão de mundo e de ação que
dê vazão à multiplicidade de perspectivas, à vontade de potência enquanto imposição de interpretação
e ao além-do-homem como sujeito ético inserto nessa construção. Nesse sentido, em nossa avaliação,
Nietzsche redefine os termos e impõe a perspectiva do além-do-homem como sujeito ético enquanto
expressão viva do trágico, sujeito esse que reúne, em seu efetivar-se, um redimensionamento da ação e
a proposição do conhecimento como ficção reguladora, pois compreende e propõe os signos no registro
de indícios do estado dos impulsos. Cf. AZEREDO, V. Nietzsche e a aurora de uma nova ética. São
Paulo: Humanitas/Fapesp/ EditoraUnijuí, 2008.
3
ZA I, “Das três transmutações”.
4
Ibid.
5
Ibid.
Leituras de Zaratustra 63
gica que o obriga a ajoelhar-se para poder se situar no mundo. Por meio da impo-
sição dessa perspectiva, o homem, enquanto vontade de potência, manifestaria o
ser mais que o caracteriza, ainda que mediante a submissão àquilo que ele mesmo
estabelece. Por isso, Zaratustra, em seu discurso, refere-se à atitude de abaixar-se
para estancar a altivez: “Não é isto: abaixar-se, para fazer mal a sua altivez? Dei-
xar brilhar sua tolice, para zombar de sua sabedoria?”;6 a atitude de desviar-se da
imposição de sua própria perspectiva quando esta já está sedimentada: “Ou é isto:
apartar-nos de nossa causa, quando ela festeja sua vitória? Galgar altas montanhas,
para tentar o tentador?”;7 a atitude de busca incessante do inatingível: “Ou é isto:
nutrir-se de bolotas e grama do conhecimento e por amor à verdade sofrer fome na
alma?”;8 a atitude de se submeter a todo sofrimento e contratempo como necessi-
dade de carga manifesta no ardor à verdade: “Ou é isto: entrar na água suja, se for
a água da verdade, e não afastar de si frias rãs e sapos que queimam?”;9 e, por fim,
a atitude de ser benevolente, compassivo e temente: “Ou é isto: amar aqueles que
nos desprezam e estender a mão ao espectro quando ele nos quer fazer medo?”.10
Ora, no discurso de Zaratustra, todas essas facetas caracterizam o camelo: “Todo
esse pesadíssimo o espírito de carga toma sobre si: igual ao camelo, que, carrega-
do, corre para o deserto, assim ele corre para seu deserto”.11
Se a terra é a imagem da dimensão em que se postulam sentidos, o deserto
o é a da recusa em estabelecê-los. Correr para seu deserto equivale a correr
para onde é impossível criar, já que se nega a dimensão postuladora. Daí o
além-do-homem devolver o sentido à terra enquanto o camelo corre para seu
deserto. Não se trata, em Nietzsche, de uma oposição que possa resultar em
superação da condição anterior, mas de uma transformação que se processa
em determinada condição. Logo, o além-do-homem não carrega fardos, pois
não é um espírito de carga. O camelo, por seu turno, não corresponde a um
estágio de todo o espírito, no sentido de se atribuir a Nietzsche a proposição
de um espírito absoluto que passaria por evoluções, mas uma interpretação do
espírito que, durante um grande período, tornou-se regente. Quando afirma-
mos que se pode ler “Das três transmutações” como heteronomia, autonomia
e amor fati, ressaltamos que, nesse texto, Nietzsche retoma interpretações que
6
Ibid.
7
Ibid.
8
Ibid.
9
Ibid.
10
Ibid.
11
Ibid.
12
ZA III, “Dos renegados”.
Leituras de Zaratustra 65
uma consequência necessária da vida, do seu crescimento”.13 É o modo humano
de tratar as dissolvências orgânicas que se torna determinante para explicar
algumas valorações, pois, em termos de sua condição, a décadence é um processo
que se pode caracterizar pela ausência total de hierarquia entre os impulsos,
demandando sua dispersão e desagregação. Não há uma escolha ou mesmo uma
ação que precipite os homens a esse processo, pois a transformação geradora de
uma dispersão instintual processa-se em silêncio, ataca os órgãos e o organismo
como um todo, promovendo uma espécie de atrofia de suas potencialidades. A
incidência dessa marcha, entretanto, faz parte do mundo orgânico e enquanto
tal, configura-se de modo natural. Daí a afirmação recorrente de que o declínio
tem de ser querido, pois as investidas dissolventes desse processo acabam por
intensificar sua marcha. Ora, é o processo decadencial crescente e a luta travada
contra ele que Nietzsche perscruta nas avaliações dos filósofos, visto que, desde
o início, professam acerca da vida aquilo que, por sua condição de viventes,
não seria professável: “Acerca da vida, os mais sábios proferiram em todos os
tempos o mesmo juízo: não vale nada...”.14 Combater a décadence não promove a
sua superação, visto que o combate aos instintos, procedimento, de certo modo,
unânime entre os decadentes, não gera a mudança de condição, não viabiliza
uma superação da décadence; ao contrário, perpetua esse processo pela constru-
ção de artifícios que permanecem sendo sua expressão. Por conseguinte, segun-
do Nietzsche, “[é] “um autoengano dos filósofos e moralistas pensar que já saem
da décadence ao fazerem guerra contra ela”. Isso se processa porque o “sair está
fora de sua força: mesmo aquilo que escolhem como remédio, como salvação, é
apenas, outra vez, uma expressão da décadence – eles alteram sua expressão, não
a eliminam propriamente”.15 Assim, para o pensador alemão, não há artifícios
possíveis que promovam uma alteração desse registro a partir de um combate
a ele. Em termos de patologia, está vedada toda e qualquer transformação en-
quanto resultante da perspectiva do doente, pois o mesmo não pode, a partir
de si, infirmar as sequências desse estado. Desse modo, deve ser compreendida
a sua afirmação de que o “sair” está fora de sua força. As transformações do
espírito estão ligadas à sua condição, por isso, inclusive, há distinções entre o
camelo, o leão e a criança. O além-do-homem manifesta uma condição de pleni-
tude orgânica, de saúde, que viabiliza o construir de sua interpretação enquanto
distancia-se completamente das duas posições anteriores.
13
14 [75] da primavera de 1888.
14
CI, “O problema de Sócrates”, § 1.
15
Ibid.
16
ZA I, “Dos ultramundanos”.
17
Ibid.
18
Em “Das cátedras e da virtude”, Nietzsche procura desvalorizar as virtudes como são entendidas
tanto no sentido de disposição para a prática do bem quanto de boa qualidade moral. A imagem do
sábio com seus quarenta pensamentos faz Zaratustra rir, porque entende a virtude de uma outra forma.
Daí ele conceder ao sábio conhecimentos no que concerne ao sono e não à ação. Em “Dos ultramun-
danos”, é a introdução do conceito de corpo que permite a Nietzsche distinguir as condições orgânicas
nas interpretações, desde a interpretação das condições. Em “Dos desprezadores do corpo”, o filósofo
parte da seção anterior e faz a distinção entre pequena e grande razão, mostrando que o corpo, na
condição de grande razão, é quem interpreta, mas que aqueles que o desprezam, como os espíritos de
suportação, não podem ser ponte para o além-do-homem.
19
ZA I, “Das cátedras da virtude”.
Leituras de Zaratustra 67
deitados”.20 Portanto, há possibilidade de um termo, no sentido de mudança
radical de perspectiva em que outra noção de virtude surgirá, pois o tempo
dessa compreensão já passou. É a criança, enquanto assimilação do vir-a-ser,
que permite o advento do além-do-homem; entretanto, antecede ao criar pelo
simples prazer de fazê-lo à crença na determinação do querer enquanto outra
interpretação de mundo, conhecimento e ação. Nas palavras de Zaratustra: “no
mais solitário deserto ocorre a segunda metamorfose: em leão se torna aqui o
espírito, liberdade quer ele conquistar, e ser senhor do seu próprio deserto”.21
Se o camelo corresponde ao espírito de carga, o leão aparece para desvencilhar-
-se dos fardos. Esse é o sentido da busca por liberdade: nas palavras de Zaratustra,
o leão “[p]rocura, ali, o seu derradeiro senhor: quer tornar-se-lhe inimigo, bem
como do seu derradeiro deus, quer lutar para vencer o dragão”.22 Na sequência do
texto, é a figura do dragão que a personagem esclarece, num primeiro momento,
dizendo quem é: “Qual é o dragão ao qual o espírito não quer mais chamar se-
nhor nem deus? ‘Tu deves’ chama-se o grande dragão. Mas o espírito do leão diz
‘Eu quero’”.23 Posteriormente, o que ele encarna: “Valores milenares resplendem
nessas escamas; e assim fala o mais poderoso de todos os dragões: ‘Todo o valor
das coisas resplende em mim. Todo valor já foi criado e todo o valor criado sou
eu’”.24 Ora, em nossa argumentação, Nietzsche introduz uma hipótese histórico-
-interpretativa da história da filosofia que se divide em três momentos cuja dife-
rença reside no modo pelo qual se compreende o estabelecimento do valor, pelo
papel atribuído ao sujeito na sua criação, assim como pela compreensão de sujeito
que vigora. Ao introduzir a figura do leão, o filósofo quer assinalar a passagem
que se processou da heteronomia absoluta, quando mundo, conhecimento e ação
eram interpretados a partir da projeção do valor em um absoluto e o homem era
uma criatura diante de um criador, para a crença de que, no sujeito, reside a fonte
da criação. Ainda assim, a conquista processa-se no deserto e é dele que o leão se
tornará senhor. Tem-se aqui um indicativo de que, mesmo na segunda transmu-
tação do espírito, o criar permanece distante do simples prazer de fazê-lo, isto é,
do exercício espontâneo de criar valores, de doar sentidos: “Criar novos valores
– isso também o leão ainda não pode fazer; mas criar para si a liberdade de novas
criações – isso a pujança do leão pode fazer”. 25
20
Ibid.
21
(ZA I, “Das três transmutações”)
22
Ibid.
23
Ibid.
24
Ibid.
25
Ibid.
26
ZA I, “Da árvore no monte”.
27
ZA I, “Das alegrias e das paixões”.
Leituras de Zaratustra 69
decurso da história. É sob esta ótica que ele pode se dirigir à história da filoso-
fia em seu conjunto, procurando mostrar as ilusões presentes numa e noutra
formas de construção. Em Crepúsculo dos ídolos, na seção “História de um erro”,
Nietzsche faz, igualmente, uma leitura da história da filosofia em seu conjun-
to, a partir da instituição das crenças e da sua posterior dissolução. Em que
pese à distinção de quatro formas de interpretação, podemos, da mesma forma,
agrupá-las, desde a perspectiva da heteronomia, da autonomia e do começo
de uma nova interpretação com Zaratustra que, ao suprimir a distinção entre
mundo verdadeiro e mundo aparente, situa o homem na compreensão trágica
da existência, visto que o mundo aparece agora com contradições, imperfeições,
sofrimentos, etc. Se há uma virada da humanidade, é porque se redimensiona a
sua inserção no mundo, ao compreendê-lo não mais como ser ou não ser, mas
como vir-a-ser. O homem, com isso, vive o fim do mais longo erro e transmuta-
-se, transforma-se, vem a ser outro para além de bem e de mal, de verdade e de
erro, de essência e de aparência, enfim, como outro sujeito, um sujeito ético,
pois, na perspectiva do vir-a-ser, não há mais separação entre ser e agir.
As imagens da terra e do deserto têm por objetivo assinalar a diferença
entre um horizonte de esterilidade e outro de fertilidade em termos de cons-
trução da exterioridade, isto é, referentes ao caráter irrestrito de criação e de
destruição que pertence, por condição, ao homem e ao mundo. Por meio das
expressões do espírito, como camelo, leão e criança, são as inserções do ho-
mem no mundo que ganham relevo. Com o deslocamento da avaliação de uma
perspectiva de heteronomia ou de autonomia para a de afirmação irrestrita do
vir-a-ser, é a inocência que lhe é inerente que se estende ao horizonte humano:
“Inocência é a criança, e esquecimento, um começar-de-novo, um jogo, uma
roda rodando por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim.
Sim, para o jogo do criar, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: sua
vontade quer agora o espírito, seu mundo ganha para si o perdido do mundo”.28
Em sua inocência intrínseca, a criança condensa, simultaneamente, o ul-
trapassamento das interpretações morais centradas quer na finalidade, quer
na liberdade da vontade, inaugurando uma dimensão de afirmação irrestri-
ta. Nesse caso, sem finalidade e sem responsabilidade nos planos pessoal e
cosmológico, posto que é na condição do vir-a-ser que o agir se manifesta
como afirmação, criação, em suma, como jogo de interpretações. Imagem da
compreensão nietzschiana do mundo, o jogo concentra, ao mesmo tempo, o
esquecimento e a criação. Por um lado, são as interpretações introduzidas pe-
las vontades de potência que, no horizonte do jogo, constroem, promovendo
28
ZA I, “Das transmutações”.
29
BM, § 212.
Leituras de Zaratustra 71
gica. Inocente porque não há culpas ou justificativas da existência para além
da eternidade imanente em que se processa a construção dos sentidos e dos
valores. Trágica, uma vez que, encarnando todos os sentidos, contempla os
lados não desejáveis da vida. É a doutrina do eterno retorno, como círculo
mundano de interpretações, que permite a Nietzsche, suspendendo o movi-
mento de progressão da ideia na história da filosofia, redimensionar a relação
entre tempo, mundo e eternidade e situar o agir em uma nova dimensão, qual
seja, a do amor ao necessário.
Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: não querer nada de
outro modo, nem para adiante nem para trás, nem em toda eternidade.
Não meramente suportar o necessário e menos ainda dissimulá-lo – todo
idealismo é mendacidade diante do necessário –, mas amá-lo...30
30
EH, “Por que sou tão esperto”, § 10.
31
EH, “Assim falava Zaratustra”, § 8.
32
15 [20] do outono de 1881.
Marcelo Lion
Leituras de Zaratustra 73
camente pertinentes em comum. Subterrânea, a comunidade entre os textos
não é imediatamente dada e revelada, ela exige o trabalho de escavação na
busca de vasos comunicantes e de toda espécie de túneis intraterrenos. Pois
será justamente no subterrâneo que poderemos assistir à conjugação entre as
ações dos personagens, a conversa se faz abaixo do mundo dos vivos, no reino
ínfero dos mortos e dos habitantes das profundezas. O interesse estará parti-
cularmente voltado para a comunicação entre vivos e mortos. O sentimento
de proximidade com a morte atrai para si os mortos. Tal experiência afetiva de
permanência no limiar entre a vida e a morte tem o poder de afastar do vivente
a frivolidade. A própria vida necessita, a partir daí, ser tomada de modo mais
denso em sua urgência.
A tensão que perpassa todo o poema da Ilíada é sustentada pela situação
de proximidade com a morte vivida por Aquiles. A vulnerabilidade do herói e
sua suscetibilidade à morte trazem à cena o aspecto trágico do poema. A seu
encargo foi deixada a decisão sobre uma vida inglória e duradoura longe dos
campos de batalha ou a morte prematura em guerra. A escolha inicial está en-
tre reter-se na memória dos homens do porvir ou sucumbir ao esquecimento
que segue a qualquer forma ordinária de existência. Pela eternidade era ne-
cessário pagar com a vida, somente a morte asseguraria a eterna glorificação
de seus feitos entre os mortais. Conforme a célebre admoestação trazida por
Tétis, sua mãe:
1
Ilíada, Canto 9, 411-16.
2
Ibid., 608.
74 Marcelo Lion
por direito a Aquiles: a bela Briseida. A reação do herói é de uma ira contida,
ele se retira do primeiro plano da cena por não poder rivalizar com seu superior
hierárquico. Afasta-se, mas permanece em um acampamento próximo. Aquiles
atrasa sua decisão, ele não retorna à guerra nem retorna à sua terra. A suspensão
causada por esse momento indeciso constitui o terreno sobre o qual a epopeia é
tramada. Um terreno nebuloso, o momento de uma vida na iminência da morte.
A nobreza do comportamento de Aquiles é posta em evidência na cena em que
ele recusa os dotes que Agamenon lhe oferece para que volte à guerra. Apesar
dos discursos proferidos pelos três embaixadores – o multiardiloso Odisseu, o
velho preceptor Fênix, e o fortíssimo guerreiro Ájax –, sua resposta continua
sendo negativa. Jamais poderia entrar em uma guerra justamente para defender
a honra de quem havia retirado a sua própria, mesmo que lhe fossem ofertadas
regalias e a promessa de devoção a seu nome. Aquiles manifesta o desejo de ser
cultuado pelo seu valor – pois são precisamente essas ações de recusa e afasta-
mento que o atestam, que confirmam seu valor e seus valores.
Uma personalidade extremamente tempestuosa aliada a um nobre senso
de honra e justiça, são esses fatores e valores que o compelem a retornar ao
campo de batalha para enfrentar novamente os troianos e, entre eles, Héctor, o
maior dentre os defensores de Ílion, assassino de Pátroclo. É unicamente para
vingar a morte de seu amigo que Aquiles decide se impor. Fica claro que o que
o traz de volta para o combate, e, daí, para a morte, não é o anseio de glória,
mas sua vontade de retaliação ao crime cometido.
O cumprimento do destino fatal de Aquiles não é exposto nesse grande
poema homérico, o filho de Peleu não morre nos versos da Ilíada. É possível,
todavia, pressentir em todos os seus momentos a iminência da morte, já pre-
nunciada por sua mãe, a ser provocada pela mesma desmesura que o caracteri-
za durante sua vida. Mesmo sendo o mais forte guerreiro, não há comparação
possível com um deus imortal. Ele terá de perecer, então, vítima do mesmo
ímpeto que o impulsiona. Seu calcanhar é a sua alma, por ela ele vive e atua,
por ela deverá sucumbir. O imbatível Aquiles terá de ser abatido por uma
flecha envenenada, lançada justamente pelo menos aguerrido dos guerreiros
troianos, Páris, que aí conta com o poderoso auxílio do deus flecheiro, Apolo.
No Canto 11 da Odisseia, Homero narra o episódio do encontro entre o
astuto Odisseu e o fantasma de Aquiles. Em sua jornada de retorno a Ítaca,
Odisseu desce ao reino dos mortos em busca de conselhos sobre seu trajeto,
o que lhe poderia ser indicado apenas pelo adivinho Tirésias. Chegando ao
Hades e tendo obtido as informações que precisava, o herói passa a encontrar
seus antigos companheiros e familiares. Conversa, entre outros, com o sobe-
Leituras de Zaratustra 75
rano dos gregos, Agamenon, que lhe relata o modo pelo qual foi atraiçoado e
morto por sua esposa, Clitemnestra, aliada com o amante, Egisto.
A conversa travada com Aquiles gira sobre o desejo de retorno à vida ex-
presso por alguém que já a abandonou. Aquela opção crucial entre a aquisi-
ção da glória eterna ou a longa persistência em uma vida ordinária é reposta.
Dessa vez, todavia, não se mostra para a consciência do herói que vive suas
aventuras, mas é observada e avaliada pelo espectro daquele que já reconhece-
ra como encerrada sua passagem pela Terra.
Inicialmente, Aquiles expressa seu espanto pela presença de Odisseu, vivo, no
reino dos mortos: “Tua imaginação não tem limites. Como viestes parar no hades,
morada de finados descerebrados, fantasmas de mortais cansados de viver?”.3
Odisseu encontra Aquiles em uma posição de destaque, como soberano
entre os mortos. Ao ser elogiado por reinar sobre os que já haviam passado
pela terra, o filho de Tétis diz ser preferível viver, mesmo em condição des-
favorável, a ser rei diante de fantasmas. Naquele momento, investe contra
Odisseu as seguintes palavras: “Não tentes embelezar a morte na minha
presença, meu atilado Odisseu. Preferiria como cabra de eito trabalhar para
outro, um pobretão, a ser rei desse povo de mortos”.4
Nesse momento e por essas palavras, ele refaz a escolha que havia selado
seu destino.
A partir daí, a conversa gira em torno do filho de Aquiles e de seu pai,
que ainda não haviam morrido. O Peleide deseja saber primeiramente sobre
seu filho, se é um homem honrado e um guerreiro valoroso, o que Odisseu
prontamente confirma. Então, ao perguntar sobre o destino de seu pai, reitera
o desejo de tornar à vida. Não, porém, como homem comum, mas como o
mesmo guerreiro que havia sido, para defender a honra de Peleu e o posto de
soberano que poderia ter sido usurpado por malfeitores.
Fala-me também desse homem notável, Peleu, se tens notícias dele. Ele
ainda manda sobre a imensidão dos mirmidões ou já o tiraram do poder na
Hélade e em Ftia por causa da idade? [...] Eu gostaria de sentir o calor dos
raios de sol para socorrê-lo, como quando eu combatia na planície de Troia.
Eu aniquilava batalhões para defender nosso povo. Se pudesse voltar, por
breve que fosse , para a casa do meu pai, minha fúria e a força de meus bra-
ços os poriam de joelhos, se é que esses desgraçados o apearam do poder.5
3
Odisseia, Canto 11, 474-76.
4
Ibid., 487-90.
5
Ibid., 493-503.
76 Marcelo Lion
Desta vez, o desejo de retorno toma a forma de um lamento nostálgico, o
suspiro por uma revitalização impossível. A sua revolta é despertada pela mera
possibilidade de ver seu pai, vivo, mas destituído do poder, porque velho.
Zaratustra empreende, tal como Odisseu, uma viagem ao reino dos mor-
tos. Esta cena é descrita em um discurso, que, não por acaso, é construído sob
a forma de um canto. “O canto do túmulo” é o último da sequência de três
proferidos por Zaratustra na segunda parte do livro (são eles: “O canto notur-
no”, “O canto de dança” e “O canto do túmulo”). Situado exatamente no cen-
tro da segunda parte do livro, o texto apresenta a experiência de uma jornada
a uma silenciosa ilha, lá onde Zaratustra se põe a conversar com seus mortos.
Entre os trechos dos cantos da Ilíada e da Odisseia brevemente expostos e
esse “canto do túmulo”, pergunta-se: em que ponto eles se iluminam mutua-
mente, onde eles se tornam obscuros e refratários uns aos outros? O que está
implicado nessa conjugação, e o que pode ser complicado e desdobrado por
meio desse amálgama?
“O canto do túmulo” é antecedido por perguntas que versam sobre a conti-
nuação da vida de Zaratustra. Surgidas como um lamento de tristeza vindo da
escuridão, são questões que trazem consigo a sensação de cansaço diante do
prolongamento da vida. Ouvindo o ressoar da voz da noite, Zaratustra encerra
seu “canto de dança” com um pedido de perdão:
Como? Ainda vives, Zaratustra? Por quê? Para quê? Onde? De que modo?
Não é loucura, viver ainda?
Ah, meus amigos, é a noite que assim pergunta dentro de mim. Perdoai-me
a minha tristeza! Fez-se noite: perdoai-me que se fez noite!”.6
O lamento sussurrado pela noite traz em seu bojo a suspeita sobre o inte-
resse que ainda provoca a persistência na vida, a suspeita da perda completa
desse interesse, quem fala aí é a voz de uma profunda desconfiança de si. Em
busca de respostas ou a fim de insuflar seu ânimo abatido, Zaratustra decide
corajosamente empreender uma viagem marítima até o local onde jazem seus
mortos. Chegando à silenciosa ilha dos Túmulos, ele mostra sua gratidão pe-
las figuras queridas, enterradas em seu passado. Sensações sutis são trazidas
por esses antigos companheiros, o doce perfume das recordações o faz chorar.
Zaratustra, então, lamenta terem morrido prematuramente. Ao ser entoado,
“o canto do túmulo” evoca precisamente o sentimento de desilusão pelo re-
conhecimento de perdas inexoráveis. Os olhares amorosos de sua juventude,
6
Assim falou Zaratustra, “O canto de dança”.
Leituras de Zaratustra 77
seus instantes divinos, os espíritos bem aventurados, suas esperanças, enfim,
todo seu passado é trazido nesse instante a sua frente, desfila diante de si;
aparece agora, todavia, como visão fantasmagórica, sem carne e sem sangue.
Só pode haver sentimento de perda para quem ainda reconhece a presen-
ça do que foi perdido. O passado provoca seu efeito justamente ao atuar, ao
aparecer e tomar seu espaço na memória de quem por ele passou. É daí que
provém toda a angústia, a sensação de algo irrecuperável, que ficou definitiva-
mente para trás, mas que, apesar disso, ainda persiste no coração, provocando
melancolia. Inteiramente tomado por esse tormento, Zaratustra se dirige a
seus mortos com essas palavras:“Ainda sou o mais rico e o mais invejável, eu,
o mais solitário dos solitários! Porque eu vos tive e vós ainda me tendes”.7
Subitamente, em meio a essa atmosfera fúnebre, um deus flecheiro se in-
terpõe entre Zaratustra e seus companheiros. A flecha disparada atinge justa-
mente seu ponto vulnerável, seu coração.
Sim, contra vós, meus queridos, sempre a maldade desferiu flechas – para
atingir meu coração! E o atingiu! [...] Contra o que eu possuía de mais
vulnerável, foi desferida a flecha: e isso éreis vós.8
7
Ibid., “O canto do túmulo”.
8
Ibid.
78 Marcelo Lion
tasmas; instantes sagrados e dias felizes, por noites angustiadas de insônia;
caminhos felizes, por atalhos imundos; caridade e compaixão, por desprezo
e receio; a fé em sua virtude, por descrença; seus mais profundos sacrifícios,
por uma devoção afetada. Todo esse processo de degradação provoca a morte
daquilo que em Zaratustra permanecia como o bem mais frágil, aquilo em que
ele depositara toda sua fé e devotara seus maiores sacrifícios: a sua sagrada es-
perança. O último efeito do veneno provocou nele o silêncio definitivo. Último
triunfo de um deus malevolente que, tendo persuadido seu melhor cantor, o
impediu de realizar sua dança mais sublime. Zaratustra se ressente, por fim,
pela imobilidade a que seu corpo fora condenado.
E, noutro tempo, eu quis dançar como ainda não dancei: quis dançar para
além de todos os céus. Então, aliciastes o meu cantor preferido.
E, então, ele entoou uma tétrica e horripilante nênia, buzinando, ai de
mim, nos meus ouvidos como lúgubre trompa!
Oh, cantor assassino, instrumento da malvadez, e mais inocente que todos!
Já estava eu preparado para a melhor das danças: com teu canto, então
assassinaste meu enlevo!
Somente dançando sei falar em imagens das coisas mais elevadas; e, assim,
ficou-me silenciada nos membros a minha mais elevada imagem!
Silenciada e irredenta ficou-me a minha mais elevada esperança! E morre-
ram-me todas as visões e consolações da minha juventude!”.9
Quer caminhar, no seu passo, com meus pés, a minha vontade; inabalável
é seu ânimo, e invulnerável.
9
Ibid.
Leituras de Zaratustra 79
Invulnerável eu sou somente no meu calcanhar. Ali continuas vivendo e
sempre igual a ti mesma, ó pacientíssima! Continuas abrindo caminho por
entre todos os túmulos!
Em ti ainda vive o que ficou irredento (Unerlöste) da minha juventude; e,
como vida e juventude, estás aqui sentada, esperançosa, nos amarelados
escombros dos túmulos.
Sim, ainda és, para mim, a destruidora de todos os túmulos; salve, ó minha
vontade! E só há ressurreição (Auferstehungen) onde há túmulos.”10
Só então, por essa via indireta, pode-se suspeitar que, talvez, aqueles fan-
tasmas cansados com os quais Odisseu conversa já não sejam mais os heróis
que guerreavam em torno às muralhas de Ílion, que talvez aquele espectro
que diz preferir uma vida comum e longeva já não seja mais Aquiles. Homero
é preciso, a Odisseia fala de uma imagem, um ídolo, um ícone, a Ilíada, de um
homem. O herói não é o fantasma que reina sobre os mortos, mas o guerreiro
que segue obstinado até o último instante de sua vida, obediente ao seu pró-
prio código de valores, à sua conduta nobre, ao sentimento de honra e ao seu
caráter personalíssimo, obediente, por fim, à sua própria revolta. Exercer o
combate a todo tempo em situação limite, na iminência da morte prefigurada,
precisamente nisso reside o interesse de sua jornada. É a conjugação de sua
força sobre-humana com sua fragilidade demasiado humana que atrai todos
os tempos para si. É em sua vida eternamente gloriosa, tantas vezes repetida
e retomada, somente aí, que Aquiles também é invulnerável.
Talvez, então, aquela viagem ao reino dos mortos seja apenas mais uma das
artimanhas do multiastucioso Odisseu... ou do poeta e fingidor Zaratustra.
Referências Bibliográficas
10
Ibid.
80 Marcelo Lion
Parte II
Niilismo e Cristianismo
Zaratustra, compaixão e amor fati
Iracema Macedo
1
NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003, p.119.
Leituras de Zaratustra 83
A compaixão
2
LA ROCHEFOUCAULD, François, Duc de, Máximas e reflexões. Trad. Leda Tenório da Mota. Rio
de Janeiro: Imago Ed., 1994.
84 Iracema Macedo
“De mais virtudes se precisa para suportar a fortuna que o infortúnio”
(máxima 26);
“O mal que praticamos não atrai tanta perseguição e ódio quanto nossas
boas qualidades” (máxima 29);
“Se não tivéssemos defeitos, não agradaria tanto notá-los nos outros” (má-
xima 31);
“O interesse fala toda espécie de língua e faz toda espécie de papel, mesmo
o de desinteressado” (máxima 39);
“O interesse que uns cega, é a luz de outros” (máxima 40);
“Para a maior parte dos homens, o amor da justiça não é mais que temor
de sofrer injustiça” (máxima 78);
“O silêncio é o partido mais seguro para quem de si mesmo desconfia”
(máxima 79);
“Apraz aos velhos dar bons conselhos, como consolo por já não estarem em
condição de dar maus exemplos” (máxima 93);
“Pode um ingrato ser menos culpado de sua ingratidão do que quem lhe
fez o bem” (máxima 96);
“Somos às vezes tão diferentes de nós mesmos quanto dos outros” (má-
xima 135);
“Há casamentos bons mas não os há deliciosos” (máxima 113);
“Muitas vezes fazemos o bem para mais impunemente podermos fazer o
mal” (máxima 121);
“Preferimos falar mal de nós mesmos a não falar de nós” (máxima 123);
“A recusa de louvores é desejo de ser louvado duas vezes” (máxima149);
“Entram os vícios na composição das virtudes tanto quanto os venenos na
composição dos remédios” (máxima 182);
“Piedade é muitas vezes sentir nossos próprios males nos males de ou-
trem, é hábil previdência das desgraças em que podemos cair; socorremos os
outros para constrangê-los a nos socorrerem em ocasião oportuna, e são os
serviços que prestamos, a bem dizer, um bem que por antecipação nos faze-
mos” (máxima 521);
“Quem fala bem de nós nada de novo nos ensina” (máxima 303);
“Não podem as pessoas fracas ser sinceras” (máxima 316);
“Haveríamos de ter vergonha de nossas belas ações se o mundo visse tudo
que as motiva” (máxima 409);
Leituras de Zaratustra 85
“O maior esforço da amizade não está em revelar aos amigos nossos defei-
tos, mas em fazê-los ver os seus” (máxima 410);
“Muitas vezes mais orgulho pomos que bondade em lastimar as desgraças
dos inimigos: é para fazê-los sentir que estamos acima deles que lhes mostra-
mos compaixão” (máxima 463);
“Nada mais raro que a verdadeira bondade: mesmo os que pensam ser
bondosos muitas vezes são somente fracos e complacentes” (máxima 481);
“O fim do bem é um mal e o fim do mal é um bem” (máxima 520);
“A ruína do próximo agrada a amigos e inimigos” (máxima 521);
“Mais é preciso estudar os homens do que os livros” (máxima 550);
“Mais apreciamos aqueles a quem fazemos bem do que aqueles que bem
nos fazem” (máxima 557).
86 Iracema Macedo
Kant, mas convocava Darwin como aliado para a justificação do altruísmo como
primeiro sentimento moral ligado instintivamente à conservação da espécie.
Rousseau, um século antes, havia chegado a essa hipótese mesmo antes dos
progressos científicos do século XIX. No Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens, ele nos diz que há dois impulsos naturais, anterio-
res à razão, que constituem a base do direito natural: um é o nosso próprio bem-
-estar e conservação, e o outro “nos inspira uma repugnância natural por ver
perecer e sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes.3
E ainda mais, nas páginas seguintes do mesmo discurso, escreve que a piedade
representa um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a ação do
amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie.
Essa pesquisa não tem como propósito decidir entre o pensamento niet-
zscheano ou de Rousseau acerca da compaixão. Pretendo, no entanto, enten-
der que, com bastante coerência, a crítica à compaixão se articula com uma
perspectiva trágica e jovial que estaria na visão de um homem soberano em
Nietzsche como se apresenta no Assim falou Zaratustra. Note-se que vários
discursos desse livro, por exemplo, têm como cerne uma crítica à compaixão.
Pois, que eu visse o sofredor sofrer, disto eu me envergonhei, pela sua pró-
pria vergonha; e, quando o ajudei, atentei duramente contra sua altivez.
Grandes favores não geram gratidão, senão ressentimento; e o pequeno be-
nefício, quando não é esquecido, ainda acaba tornando-se um verme roedor.5
3
ROUSSEAU. Os pensadores. Trad. Lourdes Santos Machado. Editora Nova cultural. São Paulo,
1999, p. 47.
4
NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003, p. 117.
5
Ibid., p. 118.
Leituras de Zaratustra 87
O desejo de suscitar compaixão seria também, por outro lado, uma forma
de poder, a maneira que um espírito fraco tem de atingir e ferir o bem-estar e a
boa consciência, ou jovialidade de um espírito forte. Uma atitude compassiva
poderia muitas vezes intervir em um grande destino, pois muitas vezes a dor
é necessária e, ao poupar o outro de uma dor, interferimos e lhe tiramos uma
grande oportunidade de expansão e fecundidade.
No aforismo 49 de Humano, demasiado humano intitulado “Benevolência” (
Wohlwollen), ele opõe à misericórdia, à compaixão e ao sacrifício, a boa índo-
le, a amabilidade, a cortesia de coração como emanações mais respeitáveis e
recomendáveis do chamado altruísmo. Entendemos que, em vez de socorrer a
fraqueza e nos enfraquecermos com isso, ou seja, em vez de sofrermos juntos,
podemos irradiar nossa força e alegria a ponto de contagiar os mais frágeis e,
com isso, elevá-los à sua própria força sem diminuir a nossa. Lembro aqui pa-
lavras de Zaratustra: “Em verdade, já fiz muito pelos que sofrem; mas sempre
me pareceu fazer coisa melhor quando aprendi a melhor alegrar-me”.6
As relações de forças e o exercício de poder passam a ser no Humano, dema-
siado humano, antes da elaboração do conceito de vontade de poder publicado
pela primeira vez em Assim falou Zaratustra, o tecido constitutivo das ações hu-
manas. Bem e mal, justo e injusto são entendidos como relações de equilíbrio
de poder. Na casta dominante, bom e justo é aquele que pode retribuir o bem
com o bem e o mal com o mal, que pode ser grato e vingativo. Somente nes-
sa casta se constitui um autêntico senso de confiança e comunidade e nossa
moralidade atual seria oriunda de uma casta que soube manter essa coesão de
forças. Na casta dos oprimidos, os laços da comunidade não se fortaleceriam
pela falta de poder e confiança em relação a todo outro que seria considerado
ameaçador e inimigo.
Por outro lado, o sentimento de poder está intrinsecamente relacionado ao
sentimento de prazer, de modo que poderíamos estabelecer que o prazer, como
sentimento de conservação e fortalecimento da existência, e o desprazer, como
sentimento de ameaça à conservação e enfraquecimento da existência, são os
motivos condutores da cultura humana em sua perspectiva não metafísica.
O perigo dessa visão calcada nas observações psicológicas das ações hu-
manas é o sentimento de suspeita e diminuição por tudo o que até então foi
considerado grandioso e digno no homem. No início do livro, Nietzsche nos
pergunta se não deveríamos estar quase desumanizados para pensar dessa
forma. Com essa ideia, entendemos a ironia do título do livro: é o próprio
6
Ibid., p.117.
88 Iracema Macedo
humanismo, a centralidade e o poder do homem no contexto geral do mundo
que estão sendo postos em xeque. O homem bom e racional e a equação entre
conhecimento do bem e ação moral deixam de valer como critérios.
A moral passa a ser, nas hipóteses de Nietzsche, obediência a costumes,
a uma tradição, a uma hierarquia de bens fundada por uma comunidade.
Ser moral é agir conforme a tradição, ser imoral é violá-la. Essas tradições e
hierarquia de bens são necessárias para a constituição de qualquer convívio
durável entre os homens; por outro lado, estão em permanente oscilação e
mutabilidade e não há nada que garanta que o que é moral em uma cultura
não possa ser imoral em outra. Não há padrão fixo de avaliações. O próprio
sujeito não é uma medida fixa e não pode ajuizar de modo completo, exato e
justo sobre coisa alguma. Nossa fatalidade contemporânea seria, segundo o
diagnóstico de Nietzsche, o fato de que nem mesmo nosso conhecimento de
qualquer coisa pode se dar de maneira total, exata, completa e justa. Esse seria
um dos traços trágicos da contemporaneidade, sendo o trágico aí entendido
como explicitação da nossa condição humana não metafísica e não ainda como
o novo pathos dionisíaco que só reaparecerá literalmente no quinto livro de A
gaia ciência, publicado não em 1882, mas em 1886. Observe-se que o termo
Dioniso, enquanto ligado a uma nova concepção trágica da existência, não
será citado nenhuma vez, e desaparece da obra publicada para só ressurgir nas
publicações de 1886, depois do Assim falou Zaratustra. Algumas ocorrências
fortuitas aparecem na primeira edição de A gaia ciência, mas não se encontram
conectadas com uma significação filosófica relevante.
Apesar dos aspectos corrosivos do livro que proponho como fundamental
para o entendimento do que será a posterior filosofia trágica de Nietzsche, ou
seja, apesar da possibilidade trágica não afirmativa que poderia ser o resultado
dos escritos do Humano, demasiado humano tal como o próprio Nietzsche prevê no
aforismo 34, encontramos aí possibilidades de um restabelecimento da cultura
como tessitura humana. Essa possibilidade já foi aludida quando ele diz que os
homens precisam estar preparados para o domínio da terra. No capítulo quinto,
no entanto, toda uma proposta de cultura superior é esboçada a partir de uma
compreensão de uma moral como condição necessária para a conservação de
um povo, assim como das atitudes que violam essa moral como condições para
a possibilidade do novo em uma dada cultura. Sem o contínuo movimento de
uma moral e de uma imoralidade, não há elevação e superação de valores.
Além disso, toda a ideia de espírito científico como busca esclarecida da
verdade é associada à necessidade da arte como intensificadora do prazer da
existência. No segundo livro do Humano, demasiado humano, no aforismo inti-
Leituras de Zaratustra 89
tulado “contra a arte das obras de arte”, passamos a entender também o início
de uma nova reflexão sobre o significado do conceito de arte para Nietzsche.
Ciência e arte passarão a ser complementares, assim como descritas também
no prefácio autocrítico ao Nascimento da tragédia, escrito em 1886: será preciso
ver a ciência pela ótica da arte e a arte pela ótica da vida. Se pensarmos que em
Humano, demasiado humano, uma possível caracterização da ciência é dada como
sendo a imitação da natureza em conceitos, podemos entender que imitação
da natureza significaria possivelmente imitação do próprio movimento criador
existente na vida e a ciência não seria descobertas de verdades absolutas e
constantes, mas pura e simplesmente criação de conceitos com os quais pode-
mos estabelecer as condições e possibilidades de uma cultura.
Amor fati
Se, contudo, tens um amigo que sofre, sê uma casa de repouso para o seu
sofrimento, mas, ao mesmo tempo, uma cama dura, um leito de campanha:
será o melhor modo de ajudá-lo.
E se um amigo proceder mal contigo, fala-lhe assim: Perdôo-te o que me
fizestes; mas, o que fizesses a ti – como poderia perdoá-lo?
Assim fala todo o grande amor; ainda supera até o perdão e a compaixão.
Devemos segurar firmemente o nosso coração; porque se o soltamos, quão
depressa lá se vai também a cabeça!7
A ideia é que esse grande amor pode ser entendido como amor fati. Nos-
sos estudos indicam que, em toda a obra nietzscheana, a expressão amor fati
será poucas vezes mencionada literalmente, mas, nas poucas vezes em que
aparece, é dita com tal força e com tal intensidade que não podemos deixar de
compreendê-la como uma noção fundamental de seu pensamento, noção essa
que associaremos ao que se pode chamar uma filosofia trágica.
Serão priorizadas algumas passagens textuais que são talvez as únicas em
que Nietzsche menciona literalmente a noção de amor fati. A primeira dessas
passagens aparece em A gaia ciência e as outras, sequencialmente, no Ecce homo,
em O caso Wagner e nos fragmentos de 1888, publicados postumamente.
7
Ibid., p. 119.
90 Iracema Macedo
É em 1882, no início do livro IV de A gaia ciência, no aforismo 276, que
Nietzsche publica pela primeira vez algo sobre o amor fati.
Hoje cada um se permite exprimir seu desejo, seu mais caro pensamento;
assim eu vou dizer o que desejo hoje de mim mesmo, e qual foi o primeiro
pensamento que preencheu meu coração este ano, um pensamento que
deve ser a razão, a graça e a suavidade de toda a minha vida! Eu quero
aprender cada vez mais a considerar a necessidade das coisas como o belo
em si – assim, eu serei um daqueles que tornam as coisas belas amor fati:
que seja este de agora em diante o meu amor! Eu não vou fazer guerra
contra o feio, eu não o acusarei mais, eu não acusarei nem mesmo os acu-
sadores. Suspender o olhar, que esta seja minha única forma de negar. Eu
não quero, a partir desse momento, ser outra coisa senão pura afirmação.
O que há de necessário nas coisas parece ser o fato de que essas coisas
são simplesmente coisas, isto é, elementos pertencentes a um mundo que se
transforma, que muda, que devém. Afirmação da própria transitoriedade. Amar
o que há de necessário nas coisas é amar o que de certa forma não permanece,
não pode ser previsto, amar mesmo o desconhecido, mesmo o incompreensível.
Lembremos que beleza, para Nietzsche, é o que seduz em favor da existên-
cia, e arte é intensificação da vida, e essa intensificação só será possível se a
vida for assumida necessariamente em sua plenitude, mesmo com seus males
e dores, mesmo com sua finitude.
Ainda a propósito do amor fati, Nietzsche escreve no Ecce homo: “Minha
fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja
para trás, seja para a frente, seja em toda eternidade. Não apenas suportar
o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o
necessário – mas amá-lo.”8
Parece ser fundamental essa noção do idealismo entendido como falsidade
perante a necessidade. Pode-se inclusive notar também nessa passagem uma
certa dimensão ética do amor fati. Amar a fatalidade é um modo de realizar a
grandeza, o homem seria pequeno se sucumbisse diante dela, se resignando
ou se tornando indiferente. Amar representa aqui uma condição da criação.
O amor fati é um sim, não é negação, nem indiferença, é um querer. Prefigu-
ra, portanto, uma intensa vontade de pertencimento ao mundo, uma vontade
transfiguradora e criadora que deseja realizar a vida mesmo em suas possibili-
dades mais estranhas e difíceis.
8
Id. Ecce Homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 51.
Leituras de Zaratustra 91
Deleuze vislumbrou essa perspectiva como um outro tipo de imperativo,
que poderíamos denominar de um imperativo aristocrático. Ele faz uma re-
lação entre o imperativo categórico de Kant, que nos indica a agir conforme
uma máxima que possa se tornar lei universal, e o imperativo nietzscheano,
segundo qual, diante de cada coisa e de cada ação, deveríamos nos perguntar
se desejamos isso ainda um número infinito de vezes, esse seria para nós um
outro centro de gravidade.
E é conduzido por uma ideia de jogo de dados que ele escreve sobre a no-
ção de amor fati nietzscheana no primeiro capítulo de Nietzsche e a filosofia (cujo
título é “O trágico”). Transcrevo aqui partes do texto deleuzeano:
Os dados que são lançados e os dados que caem [...] os dados uma vez
lançados são a afirmação do acaso, a combinação que formam ao cair é a
afirmação da necessidade [...]. Nós devemos, pois, relacionar a mais alta
importância à seguinte conclusão: à dupla causalidade-finalidade, probabi-
lidade-finalidade, à oposição e a síntese desses termos, Nietzsche substitui
a correlação dionisíaca acaso-destino. Não uma probabilidade repartida vá-
rias vezes, mas todo o acaso em uma vez: não uma combinação final deseja-
da, querida, esperada, mas a combinação fatal, fatal e amada, o amor fati.9
Essa noção de acaso realçada por Deleuze parece ser fundamental para o
entendimento do conceito de trágico que pretendemos delinear.
O aforismo 277 de A gaia ciência, imediatamente posterior ao aforismo 276,
que trata do amor fati, intitula-se “Providência pessoal”(Persönliche Providenz);
nele, Nietzsche escreve que, por mais que neguemos ao belo caos da existên-
cia toda razão boa e solícita, nós temos uma habilidade prática e teórica para
arrumar os acontecimentos, e tudo resulta sempre como algo que não podia
faltar, algo que tinha que acontecer, seja o que for. Os exemplos dados por
Nietzsche são sugestivamente simples: “tempo bom ou tempo ruim, a perda de
um amigo, uma doença, uma calúnia, a carta que não chegou, a torção de um
pé, a olhada numa loja, um sonho, uma trapaça” tudo isso acabará se revelando
como “algo de profundo sentido e utilidade justamente para nós!” E a argumen-
tação segue mostrando que essa seria talvez a maior tentação para deixar de crer
em alguma divindade cuidadosa que conhece todo fio de nossa cabeça.
Uma investigação da noção de caos e acaso na obra de Nietzsche será, em
nosso estudo, de extrema relevância para o tecido constitutivo de uma filoso-
fia trágica. Tanto o acaso dos acontecimentos que nos ocorrem quanto o acaso
9
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Op. cit., p. 31. Tradução livre.
92 Iracema Macedo
e o caos constitutivo de toda criação, o caos sobre o qual nos debruçamos
como sobre uma matéria-prima para gerar, por exemplo, a beleza. Lembremos
a passagem de Zaratustra: “É preciso ter um caos dentro de si para gerar uma
estrela dançante, tendes ainda um caos dentro de vós”.
Ainda no quarto livro de A gaia ciência, outros aforismos são reveladores
dessa nova filosofia trágica de Nietzsche, após a primeira fase de juventude em
que tragédia e obra de arte estavam intrinsecamente ligadas. Nesse momento
posterior a 1878, a tragédia é ora o risco da total ausência de referências está-
veis, como na pergunta do citado aforismo 34 de Humano, demasiado humamo:
“mas nossa filosofia não se torna assim uma tragédia?”, ora o início de uma
experiência de afirmação da existência, como veremos no aforismo referente
ao eterno retorno; mas, em ambos os casos, um outro registro da filosofia trá-
gica se apresenta: o registro do conhecimento trágico como mutável, passível
de transformação e reaprendizagem, desconfiado do que é sólido e das opini-
ões petrificadas. Nesse sentido, já no segundo volume do Humano, demasiado
humamo, em “O andarilho e sua sombra”, no aforismo 332, Nietzsche afirmava
que não nos faríamos queimar por nossas opiniões, tão pouco seguros nos
sentimos acerca delas, mas pelo direito de ter opiniões e de poder mudá-las.
Ora, se o sujeito constituinte do conhecimento não é uma medida fixa e imu-
tável, e se o mundo que ele conhece é também oscilante, nada impede que
haja um deslizamento contínuo em nossas opiniões, não estamos presos a
um caráter único, a uma única forma de pessoa, a uma única possibilidade de
vida. Ao conceito de alma imortal, Nietzsche nos acrescenta a ideia de muitas
almas mortais (viele sterbliche Seelen) que não cessam de se transformar. Essa
ideia pode ser encontrada no aforismo 17 do segundo volume do Humano,
demasiado humano. Somos, enquanto sujeito plural, um feixe de muitas almas,
uma multiplicidade. Também a partir do aforismo 305 desse segundo volume
entendemos que, para exercício dessa multiplicidade, é preciso saber perder-
-se a si mesmo de vez em quando. Para um pensador, seria prejudicial estar
sempre ligado a uma só pessoa, a um único olhar.
Voltando a A gaia ciência e ao aforismo 341 desse livro, intitulado “O maior
dos pesos”, cujo aspecto ético citamos anteriormente nas reflexões de Deleuze
sobre a ideia do eterno retorno: embora literalmente a expressão não apareça
no aforismo, a hipótese da fatalidade e da aceitação da repetição de tudo que
nos acontece será posteriormente entendida por Nietzsche como critério de
afirmação dessa vida em Assim falou Zaratustra. Não se pode deixar de notar
que o aforismo seguinte se intitula Incipit tragoedie (“A tragédia começa”), e
nele se inicia o texto que será retomado em fevereiro de 1883 no prólogo de
Leituras de Zaratustra 93
Assim falou Zaratustra. Ainda que o termo tragédia possa se referir a uma obra
literária de conteúdo filosófico que Nietzsche irá começar a escrever, podemos
também entender a expressão Incipit tragoedie como o registro definitivo de
que um pensamento trágico está sendo realmente assumido pelo autor a par-
tir desse momento. Dioniso volta a aparecer com sentido de afirmação trágica
da vida a partir do quinto livro de A gaia ciência, escrito em 1886. E o Zara-
tustra de Nietzsche é, como na lembrança de Heidegger citada no início desse
texto, um advogado da “vida, do sofrimento e do círculo”, uma crítica a todo
espírito de vingança contra a terra e contra o tempo e sua transitoriedade.
Como já fiz notar, minha hipótese de trabalho acentua toda a elaboração de
ideias e opiniões feitas por Nietzsche nos dois volumes do Humano, demasiado
humano, de modo que vejo uma corrente contínua entre os argumentos de
corrosão da cultura e de seus eixos estáveis e a face mais afirmativa da filoso-
fia de Nietzsche que se apresenta em A gaia Ciência e nos escritos ulteriores,
particularmente em Assim falou Zaratustra.
Encerro este pequeno texto então com as palavras que arremetam o dis-
curso de Zaratustra a respeito dos compassivos:
Mas lembrai-vos, também, destas palavras: todo o grande amor está ainda aci-
ma de sua própria compaixão, porque, ainda, quer – criar o amado! Ao meu
amor ofereço mim mesmo e, do mesmo modo, o meu próximo – assim fala
todo criador. Mas todos os criadores são duros. Assim falou Zaratustra.10
Referências Bibliográficas
Obras de Nietzsche:
10
NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Op. cit., p.119.
94 Iracema Macedo
além de O nascimento da tragédia, (tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1992), Assim falou Zaratustra (tradução Mário Silva. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, 2003), e o volume sobre Nietzsche da coleção “Os
pensadores” (tradução de Rubens Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Sobre Nietzsche:
Leituras de Zaratustra 95
Uma interpretação de Das cátedras da virtude
como alegoria para o niilismo moderno
Joseane Vasques
1
HEIDEGGER, Martin. “Quem é o Zaratustra de Nietzsche?” in Ensaios e conferências, p. 87.
2
Ibid.
Leituras de Zaratustra 97
com o povo depois dos dez anos de reclusão. Neste ponto, com vistas à melhor
compreensão do contexto em que se insere a passagem a ser investigada e
em favor dos objetivos aqui almejados, faz-se necessário ressaltar alguns dos
elementos apresentados no prólogo, quais sejam: a anunciação da “morte de
Deus”, a postulação do “super-homem”, a caracterização do “último homem”,
a incompreensão e a rejeição dos ensinamentos de Zaratustra por parte do
povo. Primeiramente, a anunciação da “morte de Deus” permite-nos relacio-
nar já os primeiros discursos com a problemática da modernidade, na medida
em que esta se configura justamente a partir do declínio do poder da Igreja e
dos valores erigidos pelo Cristianismo. Segundo Machado:
3
MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 47.
4
Ibid., p. 48.
98 Joseane Vasques
o Estado, por exemplo, diante dos quais deve se submeter. Perceba-se, pois, o
caráter de uma tal substituição que, longe de instituir uma efetiva transforma-
ção, finda por corroborar as forças prejudiciais ao movimento vital.
Não por acaso, a virtude defendida pelo sábio aparece ladeada por uma
imagem que parece assinalar esta continuidade da negação da vida: a imagem
do sono. Muito mais do que isto, o sono aparece como o elemento determi-
nante de toda virtude humana, como finalidade e diretriz da vida presente. É
certo que esta metáfora pode sugerir diversas interpretações, dentre as quais,
segundo os objetivos da presente análise, convém destacar: as ideias de repou-
so, passividade ou entorpecimento; a ideia de finalidade, já que o sono é o que
se espera, em geral, para depois da jornada de um dia; a ideia da morte como
“descanso eterno” ou compensação pelos sofrimentos da vida. Note-se, por-
tanto, na importância atribuída ao sono, a persistência de um valor extrínseco
como propósito máximo da existência humana, assim como do enaltecimento
da “morte” em detrimento da vida. Sem dúvida, torna-se nítida a prevalência do
homem como proclamador da verdade e da virtude, mas este mesmo homem
procura agora, reativamente, ocupar a lacuna deixada pelo esvaziamento dos va-
lores antes “estabelecidos por Deus”, dando continuidade à tendência negadora
da vida promovida anteriormente pela religião. Sendo assim, muito embora a
constatação da “morte de Deus” revele a decadência dos valores sobre os quais
se assentava a moral cristã, é interessante observar a relevância dada à virtude
enunciada pelo sábio – a quem “muitos respeitavam e remuneravam”, e diante
do qual “todos os jovens se aglomeravam”. Esta virtude, embora não mais se
relacione diretamente com a velha noção de “pecado”, norteadora das ações do
homem cristão, continua a ter seu norte num elemento transcendente, ainda
que disfarçado, representado pela metáfora do sono, indicadora da insistência
da negação da vida em função de uma pretensa recompensa futura.
As prescrições do sábio insinuam a presença de um outro traço caracterís-
tico da sociedade moderna, na qual os homens procuram afanosamente pela
comodidade e pelo bem estar. Pois sua sabedoria diz:
5
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra, “Das cátedras da virtude”.
Leituras de Zaratustra 99
Talvez seja possível traçar um paralelo entre o teor destas prescrições e
o caráter do “último homem”, apresentado no prólogo. Zaratustra desce da
montanha e torna aos homens porque quer presenteá-los com o ensinamento
do “super-homem” e, com isto, indicar a necessidade de superação do homem,
a premência do estabelecimento de uma meta superior em direção à qual se
possa conduzir afirmativamente a vida, em favor da criação de novos valores.
Mas os homens que encontra na cidade não são receptivos a sua dádiva justa-
mente por não serem capazes de enxergar para além da própria “mesquinha
satisfação”. Zaratustra tenta, então, demovê-los pela caracterização do “últi-
mo homem”, ápice da decadência para a qual ruma a humanidade, mas, para
sua decepção, este que seria o mais desprezível dos homens passa a ser deseja-
do pela multidão. A apresentação do “último homem” nos interessa, porquan-
to parece permitir a aproximação entre a personalidade deste tipo e o modo
de vida apregoado pelo sábio em “Das cátedras da virtude”. Melhor dizendo,
mesmo que os ouvintes do sábio não sejam ainda os “últimos homens”, há
nos ensinamentos por eles recebidos a clara indicação de um caminho a ser
divisado por aqueles que procuram, sobretudo, “pequenos prazeres para o dia
e pequenos prazeres para a noite; mas respeitam a saúde”.6 A exposição feita
por Zaratustra torna suficientemente clara esta afinidade:
A terra, então, tornou-se pequena e nela anda aos pulinhos o último ho-
mem, que tudo apequena. Sua espécie é inextirpável como o pulgão; o últi-
mo homem é o que tem vida mais longa.
‘Inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, piscando o olho.
Abandonaram as regiões onde era duro viver: porque o calor é necessário. Cada
qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega: porque o calor é necessário. [...]
De quando em quando, um pouco de veneno: gera sonhos agradáveis. E
muito veneno, no fim, para um agradável morrer.7
6
Ibid., prólogo, § 5.
7
Ibid.
8
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. “O super-homem contra a dialética”, § 3.
9
Ibid.
10
Ibid.
11
MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 56.
12
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra, prólogo, § 2.
13
Ibid., § 9.
Referências Bibliográficas
14
Ibid., “Das cátedras da virtude”.
Antes de iniciarmos nossa segunda leitura completa da obra Assim falou Za-
ratustra, de Friedrich Nietzsche, a fim de escrever o presente texto, sabíamos
que nos depararíamos com a ideia fundamental que norteia o pensamento de
Nietsche, qual seja, a vontade de poder, e que esta ideia está expressa na obra de
forma alegórica e épica. No entanto, há mais. Já o prólogo exige que abando-
nemos a via do discurso linear e lógico que nos embota a capacidade de apre-
ensão da verdade e nos convida, então, a trilhar o caminho da desconstrução
de nosso olhar, pois constatamos que Nietzsche fala de forma enigmática. Esta
única exigência faz com que, ao iniciar, nos sintamos bastante desconfortáveis.
Resulta que somos lançados, de entrada, na experiência da falta de sentido, o
que quer dizer, percorremos os capítulos como se estes fossem um conjunto de
fragmentos. Somos tomados pela sensação de que o essencial nos escapou e de
que Nietzsche fala como os oráculos. Enfim, nossa confiança no que pensamos
saber se exaure, descobrimos que temos de recomeçar partindo da origem, e
mais, que não temos garantias de que compreenderemos o pensamento de Niet-
zsche, não por alguma incapacidade de expressão de nosso filósofo, mas por du-
vidarmos que sejamos capazes de nos colocar à altura de um filósofo que soube
recriar a linguagem da filosofia frente à tradição racionalista legitimadora de
uma linguagem que tem em séria conta, sobretudo, os critérios da coerência e
da objetividade. De certa forma, do início, ficamos em um impasse angustiado.
No entanto, se prosseguimos e suportarmos permanecer nas trilhas da obs-
curidade durante uma considerável extensão da primeira parte até a segunda
parte, com certeza somos tocados pela vivacidade do pensamento de Nietzsche
e começamos a evoluir em lampejos de ideias em consonância com sua escrita
aforística e luminosa. Foi o que ocorreu conosco até explodirmos em uma com-
preensão unitária e feliz ao chegarmos à altura dos cantos de Zaratustra.
Na segunda parte de Assim falou Zaratustra, encontramos três cantos: “O
canto noturno”, “O canto de dança” e “O canto do túmulo”. Quando nos de-
1
Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra, p. 33.
2
Ibid.
3
Ibid., p. 135.
4
Ibid., p. 33.
5
Ibid., p. 134.
6
Ibid., p. 132.
7
Ibid., p. 135.
8
Ibid., p. 129.
9
Ibid., p. 130.
10
Ibid., p. 132.
11
Id. Nietzsche contra Wagner, Wagner como apóstolo da castidade, parte 2, p. 64.
12
Id. Ecce Homo, O Nascimento da Tragédia, p. 63.
13
Id. Assim falou Zaratustra, p. 138.
14
Ibid., p. 141.
15
Ibid., p. 140.
16
Ibid., p. 143.
17
Ibid.
18
Ibid.
19
Ibid., p. 146.
20
Ibid., p. 144.
21
Ibid., p. 146.
22
Ibid., p. 148.
23
Ibid., p. 149.
Ele é o “aparente” por completo: o deus do sol e da luz na raiz mais pro-
funda, o deus que se revela no brilho. A “beleza” é seu elemento: eterna
juventude o acompanha. [...] aquela delimitação comedida, aquela liberda-
de distante das agitações mais selvagens, aquela sabedoria e calma do deus
escultor. Seu olho precisa ser “solarmente” calmo: mesmo que se encole-
rize e olhe com arrelia, jaz sobre ele a consagração da bela aparência”.24
Referências Bibliográficas
24
Id. A visão dionisíaca do mundo, cap. 1, p. 7-8.
Introdução
O último homem
1
ZA, III, §1, p.175.
2
Ibid.
3
Ibid.
4
Ibid., p. 176.
5
Ibid.
6
Ibid., p. 177.
7
BM, §239, p.129.
8
SALAQUARDA, 2005, p.183.
9
ZA, IV, “Do homem superior”, §3, p.288.
Na quarta parte, em “O mais feio dos homens”, enquanto procura por um ho-
mem que grita por socorro, Zaratustra encontra num vale tenebroso uma criatura
inominável e tão repugnante que o fez sentir-se envergonhado por vê-la. Zaratus-
tra a reconhece como o mais feio dos homens: o assassino de Deus. Zaratustra acusa-
-o: “Não suportaste aquele que te via – que te via sempre e até o mais fundo do teu
ser, ó tu, o mais feio dos homens! Tiraste vingança contra essa testemunha!”.10
O mais feio dos homens é uma alegoria que representa, em primeiro lugar,
o último homem, o homem moderno que, como vimos anteriormente, ape-
quena a humanidade, reduz ao mínimo a potência humana. Este homem ama
a si mesmo, é orgulhoso de suas conquistas e quer acreditar que construiu um
mundo melhor com sua ciência. Mas, no fundo de sua alma, ele esconde uma
grande vergonha e toda a fealdade, sujeira e pobreza de seu espírito.
O assassino de Deus concorda com Zaratustra e confessa que o homem não
poderia deixar viver uma testemunha que “via, com olhos que viam tudo – via
as profundezas e o âmago do homem, toda a sua oculta vergonha e fealdade”.11
Declarou que este Deus precisava morrer, caso contrário, o homem não su-
portaria viver. Deus morreu, ironicamente, por causa de sua compaixão pelos
homens, o seu assassino operou a passagem ao ato por causa da repulsa por
si mesmo. Os dois motivos do assassinato não condizem com a envergadura
do feito. O mais estranho é o fato de que Zaratustra também tem nojo não
só deste personagem, como também da “mixórdia plebeia”; porém, Deus não
sente abjeção por nada. Sua falta de “pudor”12 se torna, também, um fator de
domesticação, por um lado, e tortura afetiva, por outro.
O assassinato de Deus representa um ato grandioso do qual o homem não
era digno. Porém, este homem, o último dos homens, o menor homem, conse-
guiu alterar a história da humanidade de forma irreversível, sendo a morte de
Deus o grande rompimento com a história anterior e o ápice de seu reinado.
Como confessou o mais feio dos homens: “Devasto e torno intransitável todo
o caminho em que piso”.13 Também o louco na praça, no famoso aforismo 125
de A gaia ciência, afirma que todos os que nascerem após este ato pertencerão
à outra história. Antes e depois de Cristo, antes e depois do assassinato: a
10
ZA, IV, p.266.
11
Ibid., p. 268.
12
Ibid.
13
Ibid., p. 267.
O homem superior
14
Ibid., p. 269.
15
ZA, IV, “A saudação”, p. 282.
16
GC, §125, p.134.
17
ZA, IV, “Do homem superior”, §1, p. 287.
18
Ibid., §2, p. 288.
A Festa do burro
19
ZA, IV, “O canto da melancolia”, §2, p. 299.
20
Lucius Apuleius, escritor latino (Madaura, atual Argélia, c. 125 – Cartago, c. 180). Estudou em Roma
e Atenas. Casado com uma viúva rica, foi acusado pelos parentes de sua esposa de haver utilizado
magia para obter seu amor. Defendeu-se através de uma célebre apologia, que se conservou até nossos
dias. Sua obra mais famosa é Metamorphoseon Libri XI (Onze livros de metamorfose), mais conhecida
como O asno de ouro.
21
OTTNIANN, 2000, p. 62.
Aquele que disse ‘Deus é um espírito’ – foi quem deu na terra, até agora, o
maior passo, o maior salto no rumo da descrença; não é fácil remediar tal
palavra, na terra!.25
22
TURNER, 1830, p. 113-114.
23
BM, §8, p.14.
24
Êxodo, 32.
25
ZA, IV, “A festa do burro”, §1, p.314.
26
Exo 32:9.
27
BM, p.167.
28
BM, p.54.
29
BM, §10, p.16.
30
ZA, IV, “A festa do burro”, §3, p.317.
Só por causa do dia de hoje – estou contente, pela primeira vez, de ter vivi-
do a vida toda. [...] Vale a pena viver na terra: um só dia, uma só festa com
Zaratustra ensinaram-me a amar a terra.
“Era isso – a vida?” – hei de dizer à morte. “Pois muito bem! Outra vez!”’33
Conclusão
31
Ibidem.
32
1Coríntios 11:24.
33
ZA, IV, “O canto ébrio”, §1, p.318.
Marcelo de Carvalho
1
Assim falou Zaratustra, parte III.
2
Z, p.204/206.
3
GC, §124.
4
Ibid., p.147.
5
Ibid., §343.
6
Cf, GC, §374, p.278-279.
7
Z, Prólogo, 2.
8
Ibid., IV, p.311-314.
9
Ibid., III.
10
Cf. GC, §344.
[...] mas sim uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento,
encorajamento, aurora... De fato, nós filósofos e “espíritos livres”, ante a
notícia de que “o velho Deus morreu”, nos sentimos como iluminados por
uma nova aurora: nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressen-
timento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre [...]
enfim nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo,
novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o
mar, o nosso mar está novamente aberto e, provavelmente, nunca houve
tanto “mar aberto”. 12
11
In: SEVERINO, E.: La filosofia contemporânea. p.7/16.
12
GC: p.234.
13
Fink, A filosofia de Nietzsche, p. 123-127.
14
FOGEL, G. Lendo da visão e do enigma, p.83/114.
15
Cf. Z, II, p.126-129.
16
Z, I, p.51.
Para Nietzsche, nada nos resta efetivamente do divino senão: o erro, a ce-
gueira e a mentira. Em tal modo torna-se mais complexo o movimento de volta à
devoção daqueles que anteviram a morte de Deus. Ao medo do mar aberto, como
horizonte para a afirmação de si e do mundo, fora do contexto de uma fundamen-
tação teológica do real, vemos agora adicionar-se a “vontade de verdade” como
instinto propulsor do conhecimento científico, vontade esta que é um tipo da
vontade de poder, porém, em dissonância com sua dinâmica de realização.
No prólogo 2, Zaratustra encontra-se com o eremita da floresta que, solitá-
rio, vive na adoração de seu Deus. Conversam e, logo, Zaratustra percebe que
deve afastar-se rapidamente, caso contrário, poderia tirar-lhe alguma coisa,
pois o velho santo ainda não tinha notícia de que Deus estava morto. Todo o
discurso de Zaratustra, como já assinalado, pressupõe a morte de Deus. Ele
parte disto. E, portanto, se Deus morreu, não há mais nenhuma transcendên-
cia que funde ou instaure a relação do homem com as coisas. Como vimos,
com a morte de Deus, experimenta-se a falta de qualquer poder absoluto de
determinação da existência. Não existe mais o em si das coisas ou do mundo.
O que resta é o conjunto das relações que criamos entre nós e com as coisas. É
a rede de forças que competem, integrando-se, para juntas constituírem tudo
aquilo que se dá no real. E tais relações se tornam o princípio a partir do qual
as coisas aparecem: a perspectiva, como conjunto das relações que nos consti-
tuem, determinando a possibilidade de que nós e as coisas apareçamos como
tais. Como fica evidente no aforismo 374 de A gaia ciência, surgimos somente
na perspectiva. Somos aquilo que aparecemos, nós e as coisas, dentro do com-
plexo de relações que nos constitui. Portanto, assumir esta experiência seria, a
nosso ver, a tarefa que mais assusta aos renegantes. Além do que aparece, nada
existe. Não se dá nenhum em si das coisas, nenhuma transcendência que dê
garantia sobre a estabilidade do real. A morte de Deus, suprimindo o absoluto
– o em si – perspectiva toda e qualquer realidade.
O capítulo que analisamos inicia com a descrição do espírito de inovação,
o ímpeto de conhecimento da realidade – após a supressão do em si – que,
17
GC, p.236.
18
Ibid., 124.
19
Ibid., §374.
20
FOGEL, G. Lendo da visão e do enigma.
21
Cf. GM, III.
22
Z, p.186.
23
AC, §7, p.13.
24
Z, p.187.
Referências Bibliográficas
25
Cf. G.C., §108.
1.
1
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, Prólogo, n. 2.
2.
“Da visão e do enigma” começa narrando uma certa viagem que Zaratustra e
alguns tripulantes faziam em um navio. Este navio “vinha de longe e rumava para
mais longe”.3 Nele estavam “intrépidos buscadores e tentadores de mundos por
descobrir”.4 O que tais imagens significam pode ser esclarecido à medida que se
reconduza a fala de Zaratustra à sua experiência fundamental: a morte de Deus.
O próprio prólogo da obra mostra que a fala de seu protagonista se articula dire-
tamente com o acontecimento de que “Deus está morto”.5 Trata-se do lugar do
qual emergem a fala e o drama de Zaratustra. Este lugar aparece junto à imagem
do mar; é isto que está explícito no final do aforismo 343 de A gaia ciência, que
tematiza a ideia da morte de Deus:
De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o velho deus
morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora nosso coração
transborda de gratidão, espanto, pressentimentos, expectativa –, enfim, o ho-
2
Ibid., p. 143-147.
3
Ibid., p. 191.
4
Ibid.
5
Ibid., p. 35.
6
NIETZSCHE, A Gaia Ciência, §343, p. 234.
7
Ibid., p. 233.
8
AQUINO, Compêndio de Teologia, 1977, p. 27.
9
TILLICH, A coragem de ser, 1991, p. 134.
10
2002, p. 197-198.
11
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, p. 191.
12
Cf. CASANOVA, O Instante extraordinário, p. 221-249.
13
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, p. 192.
14
Ibid., p.193.
15
Ibid.
16
NIETZSCHE, A Gaia Ciência, §109, p. 136.
17
Id., Assim falou Zaratustra, p. 192.
4.
18
Ibid., p. 193.
19
NIETZSCHE, Além do bem e do mal, §36, p. 40.
20
Id., A Gaia Ciência, p. 15.
21
Cf. Aristóteles, Metafísica, p. 153-155.
22
Cf. MÜLLER-LAUTER, A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, p. 70-80.
23
NIETZSCHE, Além do bem e do mal, § 12, p. 19.
24
Ibid., §19.
25
Cf. NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, p. 143-147.
26
Cf. CASANOVA, op. cit., §24.
27
BOÉCIO, apud S. Tomás, op. cit., p. 28.
28
ELIADE, O sagrado e o profano, p.18.
6.
29
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, p.170.
30
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, p.170.
31
Cf. id., Além do bem e do mal, §230, p.122-123.
32
Cf. id., Assim falou Zaratustra, p.51-53.
33
Ibid., p.172.
34
Ibid.
35
Ibid., p. 173.
36
Ibid.
37
Ibid., p.172.
38
Cf. FOGEL, «A determinação do espírito de vingança», p.117-121.
39
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, p. 173-174.
7.
40
Cf. ibid., p.143-147.
41
Cf.Gn 3.
42
Gn 3, 4-5.
43
Jo 10-27-28.
44
Jo 3-16-17.
45
Cf. Rm 5, 12-21.
46
BOFF, Jesus Cristo libertador, p.112.
47
2 Cor 5, 17.
48
Rm 3-5.
49
Cf. 1Cr 15, 1-19.
Referências Bibliográficas
1
GC, Prólogo, §3.
2
ZA, III, “Do grande anseio”.
3
“Entre minhas obras ocupa o meu Zaratustra um lugar à parte. Com ele fiz à humanidade o maior
presente que até agora lhe foi feito.” EH, Prólogo, §4.
4
CI, “Moral como Antinatureza”, §4.
5
“Meio-dia; momento da sombra mais breve; fim do longo erro; apogeu da humanidade; INCIPIT
ZARATUSTRA [começa Zaratustra]” CI, “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente fábula”, §6.
6
ZA, Prólogo, §6.
7
Ibid., Prólogo, §4.
8
Ibid., II, “Do superar a si mesmo”.
Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem de ser co-
mandada, torna-se “crente”; inversamente, pode-se imaginar um prazer e
força na autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito
se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é em se
equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em dançar até mesmo à
beira de abismos. Um tal espírito seria o espírito livre por excelência.12
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra. 17. Ed. Trad. de Mário da Silva.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008a.
______. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2001.
______. Ecce homo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2008b.
______. Crepúsculo dos ídolos. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.
9
Ibid., III, “O viandante”.
10
“Erro (- a crença no ideal-) não é cegueira, erro é covardia...” EH, Prólogo, §3.
11
ZA, I, “Das três metamorfoses”.
12
GC, §347.
1
No decorrer do texto evidenciaremos melhor o que entendemos por ¨pensamento pós-metafísico¨,
caracterizando o que foi a metafísica para Nietzsche e discutindo como e por quese torna uma tarefa
superá-la não apenas para Nietzsche, mas para o pensamento contemporâneo em geral.
2
Um dos discursos de Zaratustra se chama “Da visão e do enigma”, e nele Zaratustra narra um enig-
ma aos tripulantes de um navio com os quais ele viajava. O enigma consiste na primeira comunicação
do eterno retorno presente no livro (p. 190).
3
No segundo livro, há um discurso chamado “Dos doutos”, no qual Nietzsche critica pesadamente
uma maneira de se fazer filosofia, afastando completamente Zaratustra desta figura dos doutos: os
eruditos e acadêmicos que se relacionam com o pensamento “sentados friamente na sombra fria”,
apenas como “espectadores”, e que trabalham “habilidosamente” e “como moinhos”. Imagens que
nos remetem à análise “puramente conceitual”, que se pretende isenta, desinteressada, e, por isso,
com validade “científica”. Uma análise que disseca todo e qualquer texto, sem qualquer relação vital
com ele, uma vez que apenas busca reconstruir as articulações formais dos conceitos. Contrário a isso,
Nietzsche apresenta o Zaratustra que, “abrasado por pensamentos próprios”, precisa ir “ao ar livre”,
imagem que traz à tona uma experiência de pensamento que é sempre própria e autêntica e que, por
isso mesmo, parece vazia quando se tenta tratá-la de maneira meramente conceitual. Zaratustra afirma:
“por ninguém, até aqui, fui eu ouvido pior do que pelos doutos” (ibid., p. 158). Há ainda outra figura
importante, que descreve uma relação estéril com o conhecimento: um dos homens superiores, homens
característicos do mundo niilista, apresentados no quarto livro, chamado o consciencioso do espírito. É
a figura do homem que é absolutamente especializado em um tema e que, por isso, declara sem receios:
“em questões de espírito não é fácil alguém ser mais severo, escrupuloso, preciso e intransigente do
que eu” (ibid., p. 295), aquele que dedicou a vida a especializar-se num tema e de tudo mais não sabe
nada, “bem apegada ao meu saber, acampa minha negra ignorância” (ibid., p. 296). Um conhecimento
tão maximamente especializado que perde qualquer relação fundamental com a existência, mantendo-o
maximamente alienado.
4
Não por acaso, o discurso que sucede o “Dos doutos” é o “Dos poetas”, no qual Zaratustra também
se afasta dos poetas, dizendo “Cansei-me dos poetas, antigos e novos: superficiais são todos ao meu
ver, e mares sem profundidade [...]. Em verdade, o seu próprio espírito é o mais pavão dos pavões e
um mar de vaidade!” (ibid., p. 160-161). Neste discurso, Zaratustra acusa os poetas de “não pensarem
bastante a fundo” e de se apresentarem sempre com vistas a agradar o público, sem ter em si a medida
do que se fala. Para além da figura dos poetas, nos parece que há outra ainda mais relevante, que é a do
“louco que o povo chamava o macaco de Zaratustra”, “que aprendera a arremedar um pouco o fraseado
e as inflexões de seus discursos” (ibid., p. 214). A este que aprende a repetir as palavras de Zaratustra,
ele diz: “‘Cala-te de uma vez!’, exclamou Zaratustra; ‘há muito que tuas palavras e tuas ações me
causam náusea! [...]. Mas a tua palavra de louco me prejudica, mesmo nos pontos em que tem razão!
[...]. Tu, com minha palavra, farias sempre – uma injustiça’” (ibid., p. 214-215). O louco, macaco de
Zaratustra, é aquele que diz “o mesmo” que Zaratustra, pois repete suas palavras, mas mesmo quando
emprega palavras com razão, prejudica e repugna Zaratustra, pois as palavras não são frutos de uma
experiência autêntica do que está sendo dito, mas apenas um arremedo, uma repetição, que não passa
de uma forma de manifestar seu espírito de vingança.
***
5
“Do superar a si mesmo”, p.143.
6
Ibid., p. 144.
Mas, para que compreendais minhas palavras do bem e do mal, quero acres-
centar, ainda, minha palavra sobre a vida e o modo de ser de todo o vivente.
O vivente, eu segui, percorrendo os maiores e menores caminhos, a fim de
conhecer seu modo de ser. [...]
7
Ibid., p. 144.
8
Ibid., p. 144 e 145.
9
O recorrente tema da morte de Deus nos parece ser central na filosofia nietzschiana, uma vez que
todo pensamento pós-metafísico de Nietzsche surge como uma resposta a este fenômeno. Deus, aqui,
refere-se ao Deus Cristão (Cf. A gaia ciência, aforismo 343), mas não abrange somente Ele; ao con-
trário, inclui todas as configurações do mundo suprassensível no decorrer da história da filosofia oci-
dental. A morte de Deus refere-se não só ao esvaziamento dessas categorias, mas também à supressão
do próprio espaço da cisão binária da metafísica. Entendemos, portanto, morte de Deus, aqui, como o
fenômeno que ilustra a condição do mundo contemporâneo e que consiste na crise do pensamento me-
tafísico, por representar a supressão da possibilidade de se continuar pensando por meio de dicotomias
entre o mundo sensível e suprassensível. Sobre o tema indicamos ver o aforismo 125 de A gaia ciência.
Para uma interpretação do tema ler: “A sentença nietzschiana: ‘Deus está morto’.” de Heidegger (para
referências completas, ver bibliografia).
10
Sobre a discussão do que consista o mundo em Nietzsche, indicamos o aforismo 109 de A gaia ci-
ência, no qual Nietzsche discute e recusa várias hipóteses tradicionais da história da metafísica acerca
da gênese e da definição do que seja o mundo.
11
Deleuze, 1976, p.5.
12
Mais uma vez, aludimos a um aforismo da A gaia ciência, o 374, no qual Nietzsche problematiza o caráter
perspectivístico da existência, que por meio da impossibilidade de determinar qualquer princípio último que
sirva como limite para o perspectivismo, considera que o mundo encerre “infinitas perspectivas”.
13
“Se eliminarmos estes ingredientes: então não resta coisa alguma, mas quanta dinâmicos em uma
relação de tensão com todos os outros quanta dinâmicos: cuja essência consiste em sua relação de ten-
são com todos os outros quanta em sua ‘produção-de-um-efeito’ sobre os mesmos – a vontade de poder
e não um Ser, não um devir, mas um pathos é o fato mais elementar, a partir do qual apenas se dá um
devir, um produzir-um-efeito...” (KSA 13, OP, 14 (79), ps. 259 apud CASANOVA, p. 300)
14
2008, p. 144 e 145.
15
Nos parece muito claro que haja uma relação essencial entre o perspectivismo nietzschiano e a
vontade de poder, tanto que nos parece ser absolutamente possível cambiar os termos força, quanta-de-
-poder e perspectiva com legitimidade. Com respeito a isso, teríamos que discutir mais detidamente o
tema, articulando melhor o caráter interpretativo das forças, por meio das relações de poder. Uma força
é sempre uma perspectiva que tenta se impor sobre as outras, o que é o mesmo que dizer que as forças
estão em constante embate, produzindo sempre um modo singular de ordenação da multiplicidade de
forças por meio das hierarquias. A este respeito, conferir CASANOVA, O instante extraordinário: “A
perspectiva viabiliza o olhar porque se impõe de maneira imperativa através da multiplicidade origi-
nariamente amorfa como um catalisador e provoca o aparecimento de uma unidade vital singular” (p.
291) “Perspectiva não é aqui o nome de um aspecto possível da mera relação posicional dos sujeitos
diante de um mundo previamente definido em seu conteúdo essencial, mas o nome para o modo de
constituição de todas as possíveis aparições tanto de sujeitos quanto de um mundo” (p. 293) “Elas co-
mandam o processo de nossa auto-constituição, (...) em todo e qualquer ato da vontade deparamo-nos
com um pensamento que comanda porque um modo singular de ordenação da pluralidade própria ao
mundo fenomênico sempre tem lugar aí através de uma luta originária contra outros modos singulares
passíveis de ordenação e se mostra como um imperativo tanto para a multiplicidade dispersa dos ele-
mentos integrantes de cada acontecimento do real quanto para o estabelecimento de nosso Si próprio
em meio a estes acontecimentos” (p. 294). Para uma interpretação contrária do tema que entende o
perspectivismo como uma teoria do conhecimento independente do conceito de vontade de poder, que
diria respeito somente à ontologia nietzschiana, a qual ainda resguardaria “um em si” impossível de ser
acessado, conferir: MARQUES, António. Para uma Genealogia do Perspectivismo.
16
Do Superar a si mesmo, p. 145.
Muitas coisas o ser vivo avalia mais alto do que a própria vida; mas, através
mesmo da avaliação, o que fala é – a vontade de poder!” –
[...] Em verdade, eu vos digo: um bem e um mal que fossem imperecíveis –
isso não existe! Cumpre-lhes sempre superar a si mesmos.
Com os vossos valores e palavras de bem e do mal, exerceis poder, ó vós,
que estabeleceis valores.18
17
Heidegger, 2007, p. 55.
18
Ibid., p. 146.
19
O aforismo segue dizendo: “(...) – ‘Conformações de domínio’; a esfera do dominante constante-
mente crescendo ou periodicamente diminuindo; ou, em favor e em detrimento das circunstâncias (da
alimentação -)
- ‘Valor’ é essencialmente o ponto de vista para o acréscimo ou a diminuição destes centros domina-
dores (‘pluralidades’ de qualquer modo, mas a ‘unidade’ não está de maneira nenhuma presente na na-
tureza do devir) (...) Não há nenhuma vontade: há pontuações volitivas que constantemente aumentam
ou perdem o seu poder.” (KSA 13, OP, 11(73), p.36).
20
Apud CASANOVA, 2003, p.307.
***
21
“Os valores supremos até aqui são um caso especial da vontade de poder; a moral mesma é um caso
especial da imoralidade” (Fragmentos do início do ano de 1888, 14(137), p.321 apud CASANOVA,
2003, p. 142).
22
“Aos trinta anos de idade, deixou Zaratustra sua terra natal e o lago da sua terra natal e foi para a
montanha. (...) E no fim, contudo, seu coração mudou (...)‘Vê! Esta taça quer voltar a esvaziar-se e
Zaratustra quer voltar a ser homem.’ Assim começou o acaso de Zaratustra.” (Prólogo, § 1, p. 33 e 34).
23
“‘Compaixão! Compaixão pelo homem superior!’, exclamou; (...) Pois muito bem! Isso – já teve o
seu tempo!” (O Sinal, p. 381).
***
24
Do superar a si mesmo, p. 145.
25
O Sinal, p.381.
26
Apud HEIDEGGER, 2003:502.
Referências Bibliográficas
Marco Casanova
1
KSA13, OP, 14(152), p. 333.
O que conto é a história dos próximos duzentos anos. Descrevo o que está
por vir, o que não pode mais se dar de outra forma: a ascensão do niilismo.
Esta história já pode ser contada agora: pois a necessidade mesma está aqui
em obra. Este futuro fala já em cem sinais, este destino anuncia-se por toda
parte; para esta música do futuro todos os ouvidos estão aguçados. Toda a
nossa cultura europeia movimenta-se há muito em uma torturante tensão
que cresce década a década, como em direção a uma catástrofe: inquieta,
violenta, precipitada: como uma corrente que quer chegar ao fim, que já não
lança os sentidos sobre si, que tem medo de lançar os sentidos sobre si.2
Mas qual é o caráter desta catástrofe que aponta para a origem do pen-
samento nietzschiano e para a própria conjuntura na qual nos encontramos
agora? O que Nietzsche entende por niilismo? Em que medida ele afina dispo-
sitivamente nossa existência como um todo e marca ao mesmo tempo o hori-
zonte de onde precisam partir os caminhos possíveis de sua superação? Uma
passagem de um outro fragmento da mesma época do anteriormente citado
fornece-nos uma primeira via de resposta a estas questões. O fragmento tem
o título deveras sugestivo de “Crítica ao niilismo”:
2
KSA13, OP, novembro de 1887 – março de 1888, 11(41), p. 189.
3
KSA13, OP, novembro de 1887 – março de 1888, 11(99), p. 47-48.
4
Conferir Martin Heidegger, Nietzsche II, p. 60-63.
5
KSA13, OP, novembro de 1887 – março de 1888, 11 (99), p. 47-8.
6
KSA12, OP, outono de 1887, 9(60), p. 364.
7
A assunção da dor como causa da condenação do devir experimenta uma restruturação a partir do
conceito vontade de poder. Nos escritos da primeira fase do pensamento nietzschiano, a dor é dire-
tamente compreendida como o fundamento da negação do modo originário de ser da vida, enquanto
na última fase ela passa a se mostrar como sintoma da negação. A dor passa a ser o sintoma de uma
vontade de poder fraca, de uma incapacidade de resistir ao embate com as outras vontades de poder.
8
KSA13, OP, 11(50), p. 24.
9
Quanto à compreensão nietzschiana deste aprisionamente na sensibilidade e à sua ligação com o
caráter empírico da linguagem, conferir a formulação presente no escrito póstumo “Sobre verdade e
mentira no sentido extra-moral”: KSA1, VMI, p. 878-79. Conferir também o volume das anotações
para as preleções do semestre de inverno de inverno de 1871/72 até o semestre de inverno de 1874/75.
Em especial, “Apresentação da retórica antiga”, §3, p. 425-26.
10
Cf. a definição de poih/sij dada por Platão no diálogo “Sofista”, 219b.
11
KSA1, CI II (1), p. 250.
Onde reconheço os meus iguais. – Filosofia, tal como a entendi e vivi até ago-
ra, é a procura voluntária também pelos lados amaldiçoados e infames da
existência. A partir de uma longa experiência que me foi dada por uma tal
viandança através do gelo e do deserto, aprendi a ver tudo o que filosofou
até aqui de outra maneira: a história velada da filosofia, a psicologia de seus
grandes nomes veio à luz para mim. “O quanto de verdade suporta, o quanto
de verdade ousa um espírito?” – isto se tornou para mim o próprio medidor
de valores. O erro é uma covardia... toda conquista do conhecimento nasce
da coragem, da rigidez frente a si mesmo, do asseio contra si mesmo... Uma
tal filosofia-experimental, tal como a vivo, antecipa a título de um ensaio
mesmo as possibilidades de um niilismo fundamental: sem que com isto
se diga que permanece parada junto a um não, junto a uma negação, junto
a uma vontade de não. Ela quer muito mais atravessar até o polo inverso
– até um dizer-sim dionisíaco ao mundo, tal como ele é, sem subtração, sem
exceção e escolha – ela quer o eterno curso circular – as mesmas coisas, a
mesma lógica e não lógica dos nós. O estado mais elevado que um filósofo
pode alcançar: postar-se dionisiacamente frente à existência –: minha fór-
mula para isto é amor fati...12
12
KSA13, OP, início do ano – verão de 1888, 16(32), p. 492.
13
KSA12, OP, outono de 1885 – outono de 1886, 2(108), p. 112. O que está entre travessões foi
inserido por mim.
Posto que reconhecemos em que medida o mundo não pode mais ser inter-
pretado com estas três categorias e que com esta intelecção o mundo co-
meça a tornar-se sem valor para nós, precisamos perguntar de onde provém
nossa crença nestas três categorias – experimentemos se não é possível
abandonar a crença nelas. Se desvalorizamos estas três categorias, então
a prova de sua inaplicabilidade para o todo não é mais razão alguma para
desvalorizar o todo.14
14
KSA13, OP, novembro de 1887 – março de 1888, 11(99), p. 48-9.
15
Cf. W. Müller-Lauter, “Nietzsches Lehre vom Willen zur Macht”, em Nietzsche Studien 3.
16
KSA13, OP, Início do Ano de 1888, 14(93), p. 270-71.
17
Ibid., p. 371.
18
KSA12, OP, outono de 1885 – início do ano de 1886, 1(115), p.
19
KSA13, OP, novembro de 1887 – março de 1888, 11(73), p. 36.
20
KSA13, N, Beginning of 1888, 14(186), p. 373-74.
21
Michel Haar, “Nietzsche et la Métaphysique”, p. 28.
22
KSA12, OP, Outono de 1887, 9(91), p. 385.
23
Conferir Volker Gerhard, Vom Willen zur Macht. Anthropologie und Metaphysik der Macht am
exemplarischen Fall Friedrich Nietzsche, Teil 3, VIII, 5, “Wille ist Wille zur Macht”, p. 265: “Vontade
– na forma admitida por Nietzsche – é o conceito para a unidade atual das aspirações de preponderância
e comando. Ela designa o impulso vetorial a partir de uma multiplicidade de exteriorizações de força e
se baseia na dinâmica vivenciada de uma pulsão dominante”.
24
KSA13, OP, Novembro de 1887 – Março de 1888, 11(73), p. 36.
Fraqueza da vontade: isto é uma parábola que pode levar ao erro. Pois não
há nenhuma vontade, e consequentemente nem uma forte, nem uma fraca.
A pluralidade e a desagregação dos impulsos, a carência de sistema entre
eles resulta como ‘vontade fraca’; a coordenação destes impulsos sob o
predomínio de um único resulta como ‘vontade forte’; – no primeiro caso
tem-se a oscilação e a falta de um fiel da balança;27 no segundo, a precisão
e a clareza da direção.28
Em segundo lugar, uma disposição para colocar sempre uma vez mais em
jogo os arranjos já alcançados no interior de um embate determinado e de
25
KSA13, OP, início do ano de 1888, 14(81), p. 261. Quanto ao problema da tensão entre auto-
-conservação e auto-elevação no pensamento da vontade de poder, conferir a primeira parte do livro
“Nietzsche: Die Dynamik der Willen zur Macht und die ewige Wiederkehr” de Günter Abel.
26
KSA4, Z I, “Dos Desprezadores do Corpo”, p. 51.
27
O termo fiel da balança traduz aqui o termo alemão “Schwergewicht”. Este termo é decisivo, uma
vez que ele está ligado ao aforismo que expõe pela primeira vez nas obras publicadas em vida por Niet-
zsche o pensamento do “eterno retorno do mesmo”. O aforismo 341 de “A gaia ciência” tem o título “O
peso mais pesado” (Das grosste Schwergewicht). A tradução em português perde a ambiguidade consti-
tutiva do alemão: o peso mais pesado é também o maior fiel da balança, a medida de todas as medidas.
28
KSA13, OP, início do ano de 1888, 14(219), p. 394.
29
KSA13, OP, novembro de 1887 – março de 1888, 11(73), p. 36-7.
30
Cf. René Descartes, “Meditações Metafísicas” I e II.
31
KSA3, GC, Prefácio 3, p. 350-51.
Marlon Tomazella
1
A paginação de todas as referências a textos de Nietzsche são da KSA e todas as traduções são do autor.
2
Za/ZA, Das Três Metamorfoses, KSA IV, p.29.
3
Ibid.
4
“Há talvez um sofrimento devido mesmo à super abundância? Uma tentadora bravura do olhar mais
agudo, que exige o terrível como inimigo, como digno inimigo, no qual pode pôr a prova sua força? No
qual quer aprender o que é “temer”? (GT/NT, Tentativa de autocrítica, p.12, KSA I).
5
Za/ZA, Das Três Metamorfoses, KSA IV, p.29.
6
Ibid.
7
Primeira epístola de Paulo aos Coríntios 1,18-21 e 3,19.
8
“A negação de Nietzsche à verdade não nega a possível justeza de uma declaração ou a não contradi-
ção de uma afirmação. Não há como negar que alguém fala, enquanto fala, ou que se contradiz quando
o faz. Observações ou julgamentos também podem, absolutamente, segundo Nietzsche, valer como
‘verdadeiros’ ou ‘falsos’. Mas, de uma sentença verdadeira deste tipo não se deduz a existência da ‘Ver-
dade’, tampouco quanto que, da correta afirmação ‘O tempo passa’ (Es wird Zeit), não se pode concluir
pelo ‘Ser’ de alguma coisa, talvez o ser do ‘Tempo’ ou do ‘Passar’ (Werden) do tempo. Mas, segundo
Nietzsche, toda a filosofia, desde Platão, baseia-se em tais deduções”. (GERHARDT, 1988, p.16/17).
9
Za/ZA, Da Redenção, p. 180.
10
Za/ZA, Das Três Metamorfoses, KSA IV, p. 30.
11
Za/ZA, Da Redenção, KSA IV, p. 180.
12
Ibid., p. 181.
13
Esta constatação em “Da redenção” me remete diretamente à segunda dissertação de Para a genea-
logia da moral, onde Nietzsche investiga a origem da má consciência. Com suas reflexões em torno do
sentimento de dívida que as sociedades humanas em geral sentem por seus ancestrais, na sessão 19 ele
elabora a hipótese do surgimento de deuses na mente humana através da supervalorização, do crescente
temor e fantasia que proporcionou o exaltado engrandecimento das figuras antepassadas a ponto de
assumirem características divinas. Na sessão 20, ele demonstra as consequências deste sentimento de
dívida/culpa, quando a concepção que se passou a ter de um deus assumiu proporções tão gigantescas,
como a forma e atributos do deus cristão: a entidade para quem este homem deve é tão grandiosa,
que sua dívida, por consequência, se torna tão imensa que é impossível pagá-la, restando então, como
alternativa de equiparação e justiça, o castigo eterno.
14
“’Poder’ significa uma real possibilidade dada, ou melhor dizendo: a ‘efetividade de uma possibi-
lidade’. ‘Vontade de poder’ quer dizer então o querer real, isto é, não ilusório, de expandidas chances
de ação. A vontade de poder forte é, assim, a decidida insistência no presente de possibilidades reais”
(GERHARDT, 1988, p. 27).
15
Za/ZA, Da Árvore na Montanha, KSA IV, p. 53.
16
Ibid., p. 59.
17
Ibid., p. 43.
18
Faço questão de lembrar aqui o quanto os termos inveja (Neid), ciúmes (Eifersucht) e desconfiança
(Miβtrauisch) aparecem anteriormente em Nietzsche com um sentido conceitual bastante semelhante,
ainda que não estivesse em jogo a consumação do conceito “vontade de poder”. Cito em particular
trechos do texto A disputa de Homero: “A guerra e o desejo de vitória foram reconhecidos: e nada
separa tanto o mundo grego do nosso como a coloração derivada de peculiares conceitos éticos, como
por exemplo, da Eris e da inveja (des Neides)” (KSA I, p. 786). E também: “(...) sem inveja, ciúmes
(Neid Eifersucht) e ambição competitiva, tanto o Estado helênico, como o homem helênico degene-
ram” (KSA I, p. 792). Ou ainda: “Como, porém, a juventude em processo educativo era educada com
a competição uns com os outros, assim também estavam em competição entre si os seus educadores.
Os grandes mestres musicais Píndaro e Simonides mostravam a desconfiança ciumenta (Miβtrauisch-
eifersüchtig) um ao lado do outro” (KSA I, p. 790). (NIETZSCHE, A Disputa de Homero in Cinco
Prefácios para Cinco Livros não Escritos, KSA I). Também há a recorrência destes termos no próprio
Assim falou Zaratustra, tanto no sentido da “inveja boa” que move para a competição e para o aperfei-
çoamento, quanto no da “inveja ruim”, que somente corrói e aniquila.
19
Lembro que não se trata do sentido clássico da força que a razão deve impor aos instintos, pois aqui
no caso, não importa este tipo de diferenciação metafísica; trata-se de forças que não se separam por
meio deste típico modo de cisão, pois são todas, em última instância, oriundas do corpo e relacionadas
aos seus distintos interesses.
20
A respeito disso é possível fazer uma ponte novamente com Para a genealogia da moral, onde na sessão
20 da segunda dissertação Nietzsche relaciona o ateísmo com uma segunda inocência, e faço esta citação
por me dar a liberdade de estabelecer relação entre o leão de “Das três metamorfoses” com a descrença
definitiva no símbolo máximo da pretensão de permanência vingativa absoluta na figura do deus cristão:
“(...)então o homem poderia deduzir com razoável probabilidade, a partir do inexorável declínio da crença
no deus cristão, que já se daria agora também um considerável declínio da consciência humana de culpa;
sim, não é de se rejeitar a perspectiva de que a completa e conclusiva vitória do ateísmo devesse libertar a
humanidade de todo este sentimento de culpa com relação ao seu começo, sua causa prima. Ateísmo e um
tipo de segunda inocência pertencem um ao outro. (NIETZSCHE, 1994, §20 in KSA V, p. 330).
21
Za/ZA, Das Três Metamorfoses, KSA IV, p. 29/30.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
22
FW/GC, A Grande Saúde, §382.
Luciano Arcella
Tradução de Marco Antônio Gambôa
1
NIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra I. Berlin: De Gruyter, 1999, p.77.
2
Id. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário Silva. 13ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005, p. 87.
3
Na verdade, Nietzsche escreveu o aforismo “Amizade estrelar” (gaia ciência, aforismo 279) em
referência a Richard Wagner, ao passo que Lou queria considerá-lo como se tivesse sido em referência
a Paul Rée.
4
Zarathustra: 88.
5
Ibid.
6
Sobre a caráter reativo da dialética, cf. DELEUZE, G. Nietzsche et la philosophie. Paris: Presses
Universitaires de France, 1962.
7
Este conceito aparece no aforismo 338 da Gaia Ciência, que diz: “quero ensinar-lhes aquilo que
hoje tão pouca gente compreende e esses pregadores da compaixão menos ainda: – a alegria comum”
(Verificar tradução).
8
Mantenho a tradução sugerida pelo autor a partir da versão italiana que emprega “congioire” – do
alemão die Mitfreude (N. do T.)
9
Zarathustra: 88.
A tradução em português “razão de ser” não corresponde à expressão utilizada por Nietzsche “deine
10
12
Zarathustra, I: 82.
13
Ibid.
14
Ibid.
Como grita a criança na escuridão para se fazer um sinal de sua própria pes-
soa, que no medo infinito se sente faltar, assim os homens que na solidão da
própria alma vazia se sentem faltar, se afirmam inadequadamente, fingindo o
sinal da pessoa que não têm, “o saber” como se já em suas mãos. Não ouvem
mais a voz das coisas que lhes diz “tu és”, e na escuridão não têm a coragem
de permanecer, mas procura, cada qual, a mão do companheiro e diz: “eu sou,
tu és, nós somos”, para que o outro lhe faça eco e lhe diga: “nós somos, nós
somos, porque sabemos, porque podemos dizer a nós mesmos as palavras do
saber, do conhecimento livre e absoluto”. Assim se atordoam um ao outro.
Assim, já que nada têm, e nada podem dar, se adagiam em palavras que
fingem a comunicação: já que não podem fazer com que o seu mundo seja
o mundo dos outros, fingem palavras que contém o mundo absoluto, e de
palavras nutrem o seu tédio, de palavras se fazem um curativo para a dor,
15
Zarathustra I: 83.
16
Filósofo italiano que nasceu em Gorizia, em 1887, e suicidou-se em 1910, depois de ter concluído
sua tese de graduação em filosofia, intitulada A persuasão e a retórica, publicada pela Ed. Sansoni,
Firenze, 1958 .
Com isto dizem: somos chamados para sermos úteis aos nossos semelhan-
tes e para servi-los; e como nós, o nosso vizinho, e o vizinho deste. De tal
modo cada um serve aos outros, e ninguém tem como sua missão existir
em vista de si mesmo; todos vivem, ao invés, em vista dos outros. Vemos
assim uma tartaruga, que se apoia sobre uma outra, a qual, por sua vez, en-
contra sustentação em uma outra, e assim por diante. Se cada um encontra
o próprio escopo em um outro, ninguém tem em si um escopo para existir,
e este existir um para o outro é a mais cômica das comédias.18
17
MICHELSTAEDTER, Carlo. La persuasione e la retorica. Firenze: Ed. Sansoni, 1958: 60.
18
NIETZSCHE, F. Obras. Milando: Adelphi, vol.IV, tomo I, 3 [64]: 103.
19
Zarathustra, I: 83.
20
Ibid.
21
Ibid.
22
Ibid.
23
Ibid.
24
Zarathustra, I: 84.
Referências Bibliográficas
Para as obras de Nietzsche foi utilizada a versão do original em alemão: Also sprach
Zarathustra. Berlim: De Gruyter Verlag, 1999.
Para a versão em português: Assim falou Zarathustra. Tradução de Mário Silva. 13ª
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
Para as obras completas foi utilizada a redação em italiano editada por COLLI,
Giorgio & MONTINARI, Mazzino. Milano: Edizioni Agelphi, 1968 ss.
1
Za/ZA, Prólogo.
2
GM/GM II § 24.
3
HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências, p. 121.
4
BURKETT, W. Greek Religion, p. 159.
5
BAILLY, A. Diccionaire Gréc Français.
6
GM/GM III,§ 1.
7
Hannah Arendt, em sua obra A condição humana, p. 19, demonstra estranhamento ante a declaração
de um jornalista americano em 1957, que saúda a exploração do espaço ao ser enviado o primeiro
satélite artificial, como “o primeiro passo para libertar o homem da terra”. Tal declaração, longe de ser
apenas uma opinião fortuita, expressa um antigo sonho do homem moderno no sentido de ir “além” da
terra. Diz H.Arendt: “A terra é a quintessência da condição humana e, ao que sabemos, sua natureza
pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles
podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício.”
8
GM/GM III,§11.
9
Za/ZA, Prólogo.
10
HEIDEGGER. In Ensaios e Conferências, p. 48.
11
GM/GM III,§23.
12
COMTE, A. Discurso sobre el espiritu positivo, p.19-22.
13
Ibid., p.57.
14
Ibid., p.57-8.
15
HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências, p.155.
16
Ibid.
17
Za/ZA, Prólogo.
18
HEIDEGGER, M. Carta sobre o Humanismo, p.20.
19
Id. In Ensaios e conferências, p. 156.
20
Id. Quem é o Zaratustra de Nietzsche In Ensaios e conferências, p.155.
21
Ibid., p.155-6.
22
Ibid., p.91
23
Za/ZA II 20.
24
Za/ZA II 20, “Da redenção”.
25
Ibid.
26
Ibid.
27
Ibid.
28
Ibid., p. 112.
29
Za/ZA III 2, “Da visão e do enigma”.
30
GM/GM II § 24.
31
Za/ZA II 20, “Da redenção”.
32
Za/ZA, Prólogo.
33
Za/ZA III 13, “O convalescente”.
34
ATLAN,H. Le clonage Humain.
35
HEIDEGGER. Os conceitos fundamentais da metafísica § 22-b.
36
Id. Heráclito, p. 207.
37
Za/ZA II 20, “Da Redenção”.
38
Za/ZA I 1, “Das três metamorfoses”.
39
DARWIN, C. The origin of species.
Meus irmãos, para que é preciso o leão no espírito? Do que já não dá conta
suficiente o animal de carga, suportador e respeitador?
Criar novos valores – isto também o leão ainda não pode fazer; mas criar a
liberdade de novas criações – isto a pujança do leão pode fazer.43
O leão possibilita transpor o que é mais arraigado e o que deve ser trans-
posto na tradição – aqueles que contrariam a vida, os valores absolutos. Mas
até mesmo a recusa radical do leão não é garantia para se criar novos valores,
porque mesmo um poderoso negar pode não ser suficiente ao mais difícil, a
afirmação, o sim à vida. Para isto, é preciso saber esquecer; não apenas negar,
pois, mesmo na negação, ainda existe recalcitrância contra o passar. Esquecer
trata-se de um exercício capaz de absorver o passado, superando o ressenti-
mento, e reinstalando a possibilidade do novo, a possibilidade de criar. Tal
capacidade de esquecer revela uma rara saúde, uma grande saúde,44 capaz de
cicatrizar feridas e recompor-se de perdas,45 mesmo as mais difíceis, pois, se
assim não fosse, o passado se superporia ao presente, tornando-se o coveiro
deste e, simultaneamente, do futuro. Eis que se dá, então, a terceira metamor-
fose – o leão se transforma em criança:
Mas dizei, meus irmãos, o que poderá fazer uma criança, que nem sequer
pôde o leão? Por que o rapace leão precisa tornar-se criança?
40
Za/ZA II 20, “Da Redenção”.
41
EH/EH, “Por que sou tão sábio”, 1.
42
HEIDEGGER. Nietzsche, Vol I, p. 382.
43
Za/ZA I 1, “Das três metamorfoses”.
44
FW/GC, §382.
45
GM/GM, II, 24.
Assim, o que faltaria ao leão no espírito para vir a ser criança e completar a
terceira metamorfose? Não seria afirmar o passar? O leão muito pôde, pois foi
a sua força que derrubou o tu deves do espírito, a preponderância do peso dos
valores. O leão pôde até mesmo negar os chamados ideais ascéticos, os valores
absolutos. Mas, se pôde tanto, o que lhe faltaria para se tornar criança? Falta
aquela vontade afirmadora do sagrado sim, que quer o eterno retorno47 porque
não afirma o passado apenas como o que já foi, ou o presente como o agora, ou
o futuro como o que virá, mas todo o passado, presente e futuro se inscrevendo
nesta vontade. É assim que conquista o seu mundo, a sua terra, enquanto ala-
vanca e base para o futuro – a vida em seu eterno movimento.
46
Za/ZA I 1, “Das três metamorfoses”.
47
Za/ZA III 13.
Roberto Machado
1
Essas ideias são aprofundadas em meu livro Zaratustra, tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Zahar,
3ª edição, 2001.
Assim falou Zaratustra, um livro para todos e para ninguém trasladou a filosofia
do campo da ciência para o âmbito da arte, e Nietzsche-dramaturgo trouxe à
cena seus principais conceitos através de Zaratustra, o personagem principal
desta tragédia.1
O discurso filosófico passou a ser pensado sob uma nova perspectiva: ar-
tística, criativa, como cenas de uma peça dramática, redefinindo, assim, as re-
lações entre teatro e filosofia. Nietzsche-encenador descortinou a trajetória de
Zaratustra mediante metáforas, paródia e poesia. Apenas a título de exercício,
poderíamos imaginar a primeira cena de Zaratustra de modo teatral:
Cenário: Alto da montanha (nível de praticável superior), raiar do dia (luz
âmbar para a aurora).
Cena 1:
ZARATUSTRA (despertando e reverenciando o sol): Ó espetáculo diário
testemunhado nos últimos dez anos: já é hora de ter o meu ocaso! Aben-
çoa a taça que quer transbordar para que possa escorrer por toda a parte o
reflexo da tua bem-aventurança!
(mudança de luz)
Cena 2: Na floresta (folhas secas ao chão)
Zaratustra encontra um velho:
(VELHO consigo mesmo): Conheço este viajante. Passou por estas matas
há muitos anos. Seu nome é Zaratustra. (pausa) Como está mudado!
(a Zaratustra): Bom dia, jovem senhor. Vejo que após um longo período
1
Zaratustra é o herói cujo destino trágico é sofrer e, ao enfrentá-lo, ao final de sua saga, terá alcança-
do o júbilo da vitória: a superação de si mesmo. Diferentemente da concepção clássica, a interpretação
nietzscheana valorizará a afirmação dos infortúnios como aspectos inerentes ao cumprimento do desti-
no. Este estará atrelado à alegria, como expressão da aceitação do sofrimento.
2
Sobre o Zaratustra, Deleuze dirá: “Nietzsche o concebe inteiramente na filosofia, mas inteiramente
também para a cena. (...) Ele sonha com uma música de teatro como máscara para ‘seu’ teatro filosó-
fico, já teatro da crueldade, teatro da vontade de potência e do eterno retorno.” Cf. DELEUZE, Gilles.
“Conclusões sobre a vontade de potência e o eterno retorno”, de 1967, In: A ilha deserta e outros
textos., p. 166.
3
Conceito nietzscheano segundo o qual o homem se veria diante da possibilidade de repetir eternamen-
te tudo o que por ele foi vivenciado: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver
mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada
suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder
novamente, tudo na mesma sequencia e ordem”. Tal hipótese só seria bem quista pelo homem afirmativo,
o ator do teatro do mundo que repetiria a mesma cena eternamente como num primeiro abrir de cortinas.
Posteriormente voltaremos a este tema. Cf.NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, §341, p. 230.
4
NIETZSCHE, F. Ecce Homo: como alguém se torna o que é, p. 82-84.
5
Sobre o termo”caiu sobre mim” Maria Cristina Franco Ferraz afirma: “A ideia de revelação, de ins-
piração, é sugerida pelas expressões utilizadas: ‘ocorrer’, ‘ter a ideia’ (o expressivo verbo einfallen,
composto por cair [fallen] e ‘dentro’[herein] e, mais particularmente, ‘assaltar’, ‘cair sobre’ (über-
-fallen, composto a partir de fallen e über, ‘sobre’), nas quais se sugere o aspecto súbito, involuntário,
por assim dizer ‘exterior’ tanto de uma revelação quanto de uma inspiração.” Cf. Nietzsche, o bufão
dos deuses, p. 82.
6
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra I, p. 89-91.
7
Ibid., p. 66-67.
8
Id., Genealogia da Moral, p.14.
9
Na terceira dissertação de Genealogia da moral, Nietzsche critica o final de Parsifal, de Wagner:
“(...) Isto, como disse, teria sido propriamente digno de um grande trágico: o qual, como todo artista,
somente então chega ao cume de sua grandeza, ao ver a si mesmo e à sua arte como abaixo de si – ao
rir de si mesmo”. Cf. Op. cit., p. 89.
10
NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia. p. 24.
11
Tragédia em grego ou “canto do bode”: os que cantavam no sacrifício ritual do bode que expurgava
a cidade de suas impurezas, ou os que cantavam nos festivais para receberem um bode como prêmio.
12
NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, p.57-58.
13
Ibid., p. 52.
14
Cf. MACHADO, R. Nietzsche e a verdade, p. 17.
15
Verificamos a relação entre alteridade e estado dionisíaco: “O homem, simples mortal, em êxtase
e entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se ‘anér’, isto é, um herói, um varão que
ultrapassou o ‘métron’, a medida de cada um. Tendo ultrapassado o métron, o anér é, ipso facto, um
‘hypocrités’, quer dizer, aquele que responde em êxtase e entusiasmo, isto é, o ATOR, um outro”. Cf:
BRANDÃO, J. Teatro grego: tragédia e comédia, p.11.
16
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. §78, p.106.
17
Segundo PAVIS: “Este princípio estético vale para qualquer linguagem artística: aplicado ao teatro,
ele abrange as técnicas ‘desilusionantes’ que não mantém a impressão de uma realidade cênica e que
revelam o artifício da construção dramática ou da personagem.”O distanciamento brechtiano estaria
mais próximo ao “terceiro olho do teatro” nietzscheano, uma vez que a atitude do espectador é crítica,
o que.permitiria o rir de si mesmo. Cf. PAVIS, P. Dicionário de teatro, p. 106-107.
18
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. §107, p.132.
O eterno retorno não faz retornar o mesmo e o semelhante, mas ele próprio
deriva de um mundo da pura diferença. Cada série retorna não só nas ou-
tras que a implicam, mas por ela mesma, porque ela não é implicada pelas
outras sem ser, por sua vez, integrante restituída como aquilo que as impli-
ca. O eterno retorno não tem outro sentido além deste: a insuficiência de
origem assinalável, isto é, a designação da origem como sendo a diferença,
que relaciona o diferente com o diferente para fazê-los retornar enquanto
tais. Neste sentido, o eterno retorno é bem a consequência de uma diferen-
ça originária, pura, sintética, em si (o que Nietzsche chamava de vontade
19
Gerd Bornheim afirma sobre o “teatro didático” de Bertolt Brecht (1929-1933): “Ao invés de expe-
rimentar o diálogo com o público, ou algum tipo de participação com ele, o que Brecht faz é cortar isso
que parece um mal pela raiz: o público deixa de existir. Então, todo o mundo é ator. E todo mundo é
espectador ao mesmo tempo.” Esclarecemos que o distanciamento brechtiano desta fase tem objetivos
diferentes do proposto por Nietzsche, logrado através do “terceiro olho”. Conforme o mesmo autor em
O sentido e a máscara: “Brecht, ao contrário, não ri: assume a impossibilidade de camuflar a consci-
ência história e todas as suas fatalidades.” Cf. BORNHEIM, Teatro: Cena Dividida, p.119 e O sentido
e a máscara, p. 113.
Analogamente, quando se representa uma peça teatral, por mais que se repi-
ta a mesma obra por anos seguidos, uma apresentação jamais será igual à outra:
a plateia será diferente, o jogo da contracenação, distinto, assim como as pau-
sas, as reações do público, enfim, a cada noite sempre haverá um outro brincar.
Passemos à análise do funcionamento do mecanismo de distanciamento
por meio do “terceiro olho do teatro” do homem que quer se desvencilhar do
peso da seriedade dos doutores da gravidade, isto é, pelo ângulo do ator-es-
pectador. Este homem estaria se olhando de fora da ação (espectador), como
um voo de águia, sobre as cenas de dor e sofrimento em que estivesse partici-
pando (ator). Ele se veria por cima das cenas e, ao mesmo tempo, participando
das mesmas sem que, no entanto, se envolvesse com elas. Dessa maneira,
teria condição de libertar-se das amarras do estabelecido pelos dramaturgos
da seriedade.
Quê? Você ainda necessita do teatro? É ainda tão jovem? Seja inteligente,
busque a tragédia e a comédia ali onde são representadas melhor! Onde
tudo é mais interessante e interessado. Sim, não é tão fácil permanecer
apenas espectador então – mas aprenda isso! E em quase todas as situa-
ções que lhe forem difíceis e dolorosas você terá uma pequena porta para
a alegria e um refúgio, mesmo se as suas próprias paixões o acometerem.
Abra o seu olho de teatro, o terceiro grande olho que olha para o mundo
pelos outros dois!21
20
Cf. DELEUZE, G. Diferença e repetição, p. 182-184.
21
NIETZSCHE, F. Aurora. § 509, p. 254.
A partir deste quadro, Zaratustra será aquele que irá criar um futuro, que
será uma ponte para o devir deste aleijado, que não vê sentido para a vida.
Zaratustra- Dioniso trará o riso, a dança, a leveza, em resposta ao homem-alei-
jão, disforme, reduzido a restos de um campo de guerra; homem que lutou
contra a própria vida, que fez da existência um nada, que não via mais sentido
em seguir seu caminho. Zaratustra-artista aponta para a possibilidade de um
olhar para vida como obra de arte e aposta no riso, no canto e na dança, como
maneiras de sair das trincheiras de si mesmo.
Se buscarmos as condições em que a primeira parte de Zaratustra foi es-
crita, chegaremos a momentos bastante difíceis pelos quais Nietzsche passava
e que, não obstante, significaram a mola propulsora à criação de sua obra
mais importante: rejeitado por ter seu pedido de casamento recusado por Lou
Salomé e decepcionado com a irmã por ela ter se casado com um antissemita,
terminou a primeira parte de seu livro exatamente no dia da morte de Richard
Wagner, com quem manteve uma das mais fortes e polêmicas relações. Isto
sem falar na falta de leitores para seus livros – talvez em consequência de ha-
22
Id., Assim falou Zaratustra II“Da redenção”, p. 169.
[...] louvado seja esse espírito de todos os espíritos livres, a ridente tem-
pestade, que sopra pó nos olhos de todos os pessimistas e ressentidos! E é
isto que tendes de pior, ó homens superiores: que nenhum de vós aprendeu
a dançar como convém – a dançar para além de vós mesmos! Que impor-
tância tem, se vos malograstes! Quantas coisas ainda são possíveis! Apren-
dei, portanto, a rir para além de vós mesmos! Levantai vossos corações, ó
exímios dançarinos, bem alto, mais alto! Sem esquecer-vos, tampouco, do
bom riso! Esta coroa do homem ridente, esta coroa de rosas entrelaçadas:
a vós, meus irmãos, atiro esta coroa! Eu santifiquei o riso; ó homens supe-
riores, aprendei – a rir!24
23
Em “A saudação” Zaratustra se depara com vários personagens em sua caverna a quem chamará de
“seus hóspedes”. Cf. Assim falou Zaratustra, p. 325-331.
24
Op. cit. “Do homem superior”, p. 333-346.
25
Op. cit. “O despertar”, p. 361-365.
Pois que sejamos capazes de dar essa risada de ouro, que consigamos rir
dessa maneira nova e sobre-humana, e que, de cima de nossos voos sobre
nossas cenas do teatro da vida, possamos filosofar às custas de todas as coisas
sérias e pesadas que tentem nos impor.
26
NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal §294.“O vício olímpico”, p. 177.
Introdução
1
Este trabalho é uma versão ligeiramente modificada de um artigo que publiquei anteriormente,
intitulado: “Nietzsche: eterno retorno e a memória do futuro”.
2
Nietzsche reconhece a importância dos estudos históricos, mas destaca que eles têm sentido quando
são úteis para fomentar, para desenvolver a vida: “Certamente precisamos da História, mas não como o
passeante mimado no jardim do saber (...) precisamos dela para a vida e para a ação. (...) Somente na me-
dida em que a história serve á vida queremos servi-la”. NIETZSCHE, Friedrich. II Consideração Intem-
pestiva. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 7.
3
“(...) seria necessário saber exatamente qual é o tamanho da força plástica de um homem, de um
povo, de uma cultura; penso esta força crescendo singularmente a partir de si mesma, transformando
e incorporando o que é estranho e passado, curando feridas, re-estabelecendo o perdido”. Ibid., p. 10.
4
Conforme a interpretação nietzschiana, os homens que carecem dessa força plástica do esquecimen-
to sempre estão expostos a sofre exageradamente, a adoecer pelo excesso de memória: “Há homens
que possuem tão pouco esta força que, em uma única vivência, em uma única dor, frequentemente
mesmo em uma única e sutil injustiça, se esvaem incuravelmente em sangue como que através de um
pequenino corte (...)”. Ibid.
5
Nietzsche considera que a memória surge no esquecido bicho-homem quando sofre pressões sociais
para comportar-se dentro de normas previsíveis, quando ele está obrigado a cumprir exigências impos-
tas pela comunidade, quando não pode esquecer, já que deve responder a uma promessa empenhada:
“Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecer é uma força, uma forma de
saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento
é suspenso em determinados casos – nos casos em que deve prometer (...)”. NIETZSCHE, Friedrich.
Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, II, 1.
6
“Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada
para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento? (...) talvez nada exista de
mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que sua mnemotécnica. ‘Grava-se algo a fogo,
para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória’ (...)”. Ibid., 3.
7
“(...) eis a utilidade do esquecimento ativo (...) espécie de guardião da porta, de zelador da ordem
psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, espe-
rança, orgulho, presente, sem o esquecimento (...)”. Ibid., 1.
8
Lembremos o relato bíblico, quando Deus cria a Terra, todos os seres do mundo e o homem num
lapso de sete dias. Nessa criação, tudo era perfeito, o único que podia sair ou quebrar com a perfeição,
era o homem, que ao possuir livre arbítrio tinha a possibilidade de desacatar as diretrizes divinas,
semeando imperfeição naquilo que era perfeito, eterno, paradisíaco.
9
Cf. Timeu, onde Platão descreve a origem do mundo; também A república, livro X, quando através
do mito de Er, soldado morto em batalha, mas que volta à Terra para contar como é o outro mundo,
relata as vicissitudes do homem antes de nascer, antes de reencarnar e voltar à Terra. O outro mundo,
mundo das ideias, é um lugar ideal, para além da corrupção, do tempo terrestre, das precariedades do
mundo sensível.
10
No Fédon são descritas as últimas horas de vida de Sócrates, que após longa prática da filosofia,
conseguiu enxergar perfeitamente o mundo das ideias, conseguiu re-lembrar as essências, e está total-
mente tranquilo pois não voltará a encarnar, rompendo o ciclo que o trazia à terra, ao corpo, as dores;
ele, após sua morte, viverá no mundo ideal, só em contato com as essências, da verdade, afastado dos
sofrimentos terrestres, pois “nesta vida nos aproximaremos da verdade a não ser afastando-nos do
corpo (...) e permanecendo puros de todas as suas imundícies até que o Deus venha nos libertar. (...)
livres da loucura do corpo, conversaremos (...) com homens que usufruirão a mesma liberdade e co-
nheceremos por nós mesmos a essência das coisas (...)”. Platão. Fédon. In: Obras completas. Madrid,
Aguilar, 1966, 66a./67c.
11
“Vontade – é este o nome do libertador e trazedor de alegria (...). Mas, agora, aprendi também isto:
a própria vontade ainda se acha em cativeiro. O querer liberta: mas como se chama aquilo que mantém
em cadeias também o libertador? ‘Foi assim’: é este o nome do ranger de dentes e da mais solitária
angústia da vontade. Impotente contra todo o que está feito – é ela um mau espectador de todo o pas-
sado”. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998,
“Da redenção”.
12
“O querer liberta; e que inventa a própria vontade, para livrar-se da angústia e zombar da sua prisão?
Doido, ai de nós, torna-se todo o prisioneiro! E pela doidice redime-se, também, a vontade prisioneira.
Que o tempo não retroceda, é o que a enraivece; ‘Aquilo que foi’ – é o nome da pedra que ela não pode
rolar”. Ibid.
13
Em “Da redenção”, a impossibilidade de agir naquilo que já foi, a impotência diante do passado po-
deria ser ultrapassada ao afirmar tudo aquilo que foi. Será necessário querer para trás: “Todo o ‘Foi as-
sim’ é um fragmento, um enigma e um horrível acaso – até que a vontade criadora diga a seu propósito:
‘Mas assim eu o quis’ – Até que a vontade criadora diga a seu propósito: ‘Mas assim eu o quis! Assim
hei de quere-lo!’ (...) Alguma coisa mais elevada do que toda a reconciliação deve querer a vontade
que é vontade de poder – mas como chegar lá? Quem lhe ensinaria também o querer para trás?”. Ibid.
14
NIETZSCHE, Friedrich. Ibid., “Da visão e do enigma”, 2.
15
“O pastor, porém, mordeu, como o grito lhe aconselhava; mordeu com rija dentada! Cuspiu bem
longe a cabeça da cobra – e levantou-se de um pulo”. Ibid.
16
Ibid.
“Da visão e do enigma” ilustra a atitude daquele que, após jogar fora o
cansaço niilista diante da eterna repetição dos fatos, celebra a vida na sua
totalidade. Segue-se, na sequência do Zaratustra, o sugestivo capítulo “Do
convalescente”, que aprofundará a concepção do eterno retorno. Nessa cena,
Zaratustra é retratado depois de ficar durante sete dias descansando, repondo
17
A noção de amor fati, amor ao fado, é fundamental na filosofia nietzschiana e traduz a celebração de
todas as instâncias da existência, das mais belas às mais dolorosas e medonhas. Vejamos sua formula-
ção na autobiografia de Nietzsche: “amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente,
seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo o idealismo
é mendacidade ante o necessário – mas amá-lo...”. NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. São Paulo:
Companhia das Letras, Por que sou tão inteligente, 10.
18
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. “O convalescente”, 2.
Criação de si e singularidade
Nietzsche, reflexão filosófica e vivência1
Scarlett Marton
“Com a minha melhor isca fisgo hoje para mim os mais raros peixes humanos!”2
– exclama Zaratustra. “Não se quer apenas ser compreendido, quando se escreve,
mas também, por certo, não ser compreendido”, afirma Nietzsche. É no âmbito da
relação entre autor e leitor que autor e personagem situam as questões estilísticas.
Ao escolher um estilo, burilá-lo, aprimorá-lo, Nietzsche/Zaratustra seleciona o seu
leitor. Repele quem lhe é estranho; atrai quem é do seu feitio. “Não é de modo al-
gum uma objeção contra um livro, se quem quer que seja o acha incompreensível”,
declara; “talvez isto mesmo fizesse parte das intenções do escritor, – ele não queria
ser compreendido por ‘quem quer que seja’. Todo espírito, todo gosto mais eleva-
do, escolhe para si os seus ouvintes, quando quer comunicar-se; ao escolhê-los,
impõe limites a ‘os outros’. Aí têm origem todas as leis mais sutis de um estilo:
elas afastam, criam distância, proíbem ‘a entrada’, a compreensão, como se diz,
– enquanto abrem os ouvidos dos que são de ouvidos aparentados aos nossos”.3
Tudo se passa como se o estilo fosse um mot de passe, uma mensagem cifrada, uma
senha. Apresentando-a, Nietzsche/Zaratustra lança sua isca; decifrando-a, o leitor
dele se mostra digno. É assim que se estabelece a cumplicidade entre eles. É nisto
que reside a condição básica para que se comuniquem.
Ora, para comunicar, é preciso partir de um solo comum. Não basta ter as mes-
mas ideias, abraçar as mesmas concepções. Tampouco basta atribuir às palavras
o mesmo sentido ou recorrer aos mesmos procedimentos lógicos. É preciso bem
1
Texto publicado numa versão anterior na Revista Tempo Brasileiro 143 (outubro-dezembro 2000), p.41-54.
2
Assim falava Zaratustra IV, “O sacrifício do mel”. Cf. também Ecce homo, Para além de bem e mal,
§ 1, em que Nietzsche afirma que, a partir de Para além de bem e mal: “todos os meus escritos são anzóis:
quem sabe eu entenda de pesca tanto quanto ninguém?... Se nada mordeu, não foi culpa minha. Faltavam
os peixes...” Utilizo as edições das obras de Nietzsche (Werke. Kritische Studienausgabe. Berlim: Walter
de Gruyter & Co., 1967/ 1978) e de sua correspondência (Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe.
Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1975/ 1984) organizadas por Colli e Montinari. Salvo indicação em
contrário, é de minha responsabilidade a tradução dos textos de Nietzsche aqui citados.
3
A Gaia Ciência § 381.
4
Para além de Bem e Mal § 268.
5
Ibid.
6
Ibid.
7
Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 4.
8
Ibid.
9
Cf. Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 4: “Bom estilo em si – pura estupidez, mero ‘ide-
alismo’, algo como o ‘belo em si’, como o ‘bom em si’, como a ‘coisa em si’...”
10
Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 2. Em nota à margem de sua tradução, Sanchez Pas-
cual observa que as expressões “antiasno” e “anticristo” se acham relacionadas, uma vez que, na Roma
antiga, os pagãos zombavam de Cristo, representando-o na forma de asno (cf. Ecce Homo. Madri:
Alianza Editorial, 15ª reimpressão, 1995, nota 77).
11
Em Assim falava Zaratustra, é desta maneira que o protagonista se refere ao asno: “Que oculta sabe-
doria é essa, a de ter orelhas compridas e somente dizer sim e nunca dizer não! Não criou ele o mundo à
sua imagem, ou seja, o mais estúpido possível?” (Assim falava Zaratustra IV, “O despertar”, 2ª Subseção)
12
Sigo, aqui, a interpretação de Jörg Salaquarda (cf. “Zaratustra e o asno. Uma investigação sobre o
papel do asno na Quarta Parte do Assim falava Zaratustra de Nietzsche”, in discurso 28 (1997), tra-
duzido do alemão por Maria Clara Cescato. São Paulo: Departamento de Filosofia da Universidade de
São Paulo, p.167-208). Ao tratar das convicções, Salaquarda distancia-se de uma linha interpretativa
que remonta ao trabalho em quatro volumes de Gustav Naumann (Zarathustra Commentar. Leipzig: H.
Haessel Verlag, 1899-1901), o primeiro estudo de fôlego sobre Assim falava Zaratustra. E, ao lidar com
as perspectivas consolidadas, acaba por diagnosticar as que norteiam as interpretações dos autores com
quem dialoga, dentre eles Otto Gramzow (Kurzer Kommentar zum Zarathustra. Charlottenburg: Georg
Bürkners, 1907), Hans Weichelt (Zarathustra-Kommentar. Leipzig: Felix Meiner, 2ª edição, 1922) e Au-
gust Messer (Erläuterung zu Nietzsches Zarathustra. Stuttgart: Strecker und Schröder, 1922).
13
Para além de Bem e Mal § 5.
14
Fragmento póstumo (256) 10 [150] do outono de 1887.
15
Cf. O anticristo, prefácio: “É somente o depois de amanhã que me pertence. Alguns homens nascem
póstumos”. Cf. também Crepúsculo dos ídolos, Sentenças e setas, § 15 e Ecce homo, Por que escrevo
livros tão bons, § 1.
16
Cf. por exemplo na Gaia ciência a passagem intitulada “Nós, os incompreensíveis”, onde se lê: “Já nos
queixamos de ser mal compreendidos, desconhecidos, confundidos, caluniados, mal ouvidos ou não ouvidos?
Esta é justamente a nossa sorte – oh! por muito tempo ainda! digamos, para ser modestos, até 1901; é também
a nossa distinção; não nos estimaríamos o bastante, se desejássemos que fosse de outro modo” (§ 371).
17
Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 4.
18
Cf. PAUTRAT, Versions du Soleil. Paris: Seuil, 1971, em particular, p.336.
19
A propósito do poema didático, cf. carta a Erwin Rohde de 24 de março de 1874.
20
Cf. carta a Peter Gast de 2 de abril de 1883.
21
Cf. respectivamente carta a Peter Gast de 1º de fevereiro de 1883, carta a Ernst Schmeitzner de 13
de fevereiro de 1883, carta a Malwida von Meysenbug de 20 de abril de 1883.
22
É o que afirma Salaquarda: “todas essas caracterizações põem em evidência um aspecto importante
(do livro), mas somente um aspecto. (...) Mas cada um dos aspectos citados também não é correto, na
medida em que a rubrica se altera, quando nela se inclui a obra” (“A concepção básica de Zaratustra”,
in Cadernos Nietzsche 2 (maio de 1997), traduzido do alemão por Scarlett Marton. São Paulo: Depar-
tamento de Filosofia da USP, p.18).
23
Cf. carta a Ernst Schmeitzner de 13 de fevereiro de 1883.
24
Cf. carta a Franz Overbeck de 05 de agosto de 1886.
25
Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 1.
26
Cf. Assim falava Zaratustra I, “Das moscas do mercado”; Assim falava Zaratustra I, “Da virtude que
dá”, 2ª subseção; Assim falava Zaratustra IV, “A canção bêbada”, 4ª subseção.
27
Cf. Assim falava Zaratustra I, “Do novo ídolo”; Assim falava Zaratustra IV, “Colóquio com os reis”,
1ª Sub-seção; Assim falava Zaratustra IV, “Do homem superior”, 1ª e 5ª Subseções.
28
Ditirambos de Dioniso, “O Lamento de Ariadne”.
29
Que se lembre da epígrafe aos quatro primeiros livros da Gaia ciência:
“Moro em minha própria casa,
Nada imitei de ninguém
E ainda ri de todo mestre,
Que não riu de si também.
Sobre minha porta”
30
A propósito da necessidade da solidão, cf. Assim falava Zaratustra I, “Das moscas do mercado”;
Assim falava Zaratustra I, “Do caminho do criador”. Cf. também meu ensaio “Silêncio, solidão”, in
Nietzsche, seus leitores e suas leituras. São Paulo: Barcarolla, 2010, p. 62-82.
31
Cf. Ecce homo, Prólogo, § 4, que comenta esta passagem: “Não será Zaratustra, com tudo isso, um
sedutor? Mas o que diz ele mesmo, quando pela primeira vez retorna para sua solidão? Exatamente o
contrário daquilo que algum ‘sábio’, ‘santo’, ‘redentor do mundo’ e outro décadent diria em tal caso...”
32
Cf. Mateus 5, 43-44: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, po-
rém, vos digo: Amai os vossos inimigos”. Nietzsche retoma, aqui, a ideia já presente em Assim falava
Zaratustra I, “Do amigo”.
33
Esta passagem lembra outra que se encontra nos Ensaios de Emerson, cuja edição alemã Nietzsche
possuía em sua biblioteca. Cf. Versuche, traduzido para o alemão por G. Fabricius. Hannover: 1858, p.351.
34
Cf. Assim falava Zaratustra, Prefácio, 9ª sub-seção, onde se lê: “Vede os crentes de toda crença!
Quem eles odeiam mais? Aquele que quebra suas tábuas de valores, o quebrador, o infrator: – mas este
é o criador” (Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho para o volume Nietzsche – Obras Incomple-
tas. São Paulo: Abril Cultural, 2ª edição, 1978 (Coleção “Os Pensadores”)).
35
Cf. Assim falava Zaratustra I, “Do caminho do criador”, onde se lê: “‘Quem procura facilmente se
perde a si mesmo. Todo ficar só é culpa’ – assim fala o rebanho”.
36
Cf. Mateus 10, 33: “Mas aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai”.
37
Assim falava Zaratustra I, “Da virtude que dá”, 3ª subseção. Tradução de Rubens Rodrigues Torres
Filho, id., ibid.).
38
Ecce Homo, Prólogo, § 4.
39
Cf. Assim falava Zaratustra III, “O andarilho”; Assim falava Zaratustra III, “Da bem-aventurança
a contragosto”; Assim falava Zaratustra III, “Da virtude que apequena”, 1ª subseção. Cf. ainda Assim
falava Zaratustra III, “Dos renegados”, 1ª subseção: “Vivências do meu feitio virão também ao encon-
tro de quem for do meu feitio”.
40
A esse respeito cf. Alexander Nehamas (Nietzsche. Life as literature. Harvard: Harvard University
Press, 1985, em particular a introdução e o primeiro capítulo), que entende buscar Nietzsche quem está
aberto para comprometer-se com um estilo de vida análogo ao seu.
41
Nietzsche faz aqui um jogo de palavras entre Einsiedler (solitário) e Zweisiedler (termo por ele
forjado para referir-se à solidão de duas pessoas que estão juntas). Jogo de palavras similar encontra-se
em Assim falava Zaratustra I, “Do novo ídolo”. Cf. também Assim falava Zaratustra IV, “A saudação”.
42
Assim falava Zaratustra, Prefácio, 9ª subseção.
43
Assim falava Zaratustra II, “Dos poetas”.
44
Assim falava Zaratustra I, “Do ler e escrever”.
45
Fragmento póstumo 4 [271] do verão de 1880. Cf. também o fragmento póstumo 4 [285] do mesmo
período, onde se lê: “Sempre escrevi minhas obras com todo o meu corpo e a minha vida; ignoro o que
sejam problemas ‘puramente espirituais’”.
46
Cf. Friedrich Nietzsche in seinen Werken. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1983; em português,
Nietzsche em suas obras. São Paulo: Brasiliense, 1992. Guiada pela ideia de que “o instinto religioso”
sempre governou a “essência” e o “pensamento” do filósofo, a autora acaba por fazer uma leitura bas-
tante peculiar de alguns dos temas centrais presentes em sua reflexão. A morte de Deus transforma-se,
assim, em “desejo de endeusamento de si mesmo”; o além-do-homem converte-se em “representação
de uma pura ilusão divina”; o eterno retorno torna-se parte integrante de uma “mística”.
47
Assim falava Zaratustra III, “O andarilho”.
48
Caminhando em outra direção, alguns comentadores procuraram estabelecer um paralelismo entre o
pensamento nietzschiano e a filosofia existencialista ou até chegaram a tomar Nietzsche por precursor
do existencialismo. É o caso de Jaspers (cf. Nietzsche – Einführung in das Verständnis seines Philo-
sophierens. Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1950, em especial a última parte) e, de certa maneira,
também o de Kaufmann (cf. Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Antichrist. Nova York: The World
Publishing Co., 10ª edição, 1965), em particular a primeira parte.
49
Cf. Ecce homo, Prólogo, § 4: “Dentre meus escritos, meu Zaratustra ocupa um lugar à parte” e Ecce
Homo, Assim falava Zaratustra, § 6: “Esta obra ocupa um lugar inteiramente à parte”.
50
Fragmento póstumo 14 [47] da primavera de 1888.
51
Ecce Homo, Por que sou tão esperto, § 10.
52
Fragmento póstumo16 [32] da primavera/ verão de 1888.
53
A Gaia Ciência § 276.
54
A esse propósito, Derrida desenvolve instigante investigação, que o leva a afirmar: “A biografia de um
‘filósofo’, não a consideramos mais como um corpus de acidentes empíricos, que deixa um nome e uma
assinatura fora de um sistema, que se ofereceria a uma leitura filosófica imanente, a única tida por filoso-
ficamente legítima. [...] Nem as leituras ‘imanentistas’ dos sistemas filosóficos, sejam elas estruturais ou
não, nem as leituras empírico-genéticas externas jamais interrogaram a dynamis dessa borda entre a ‘obra’
e a ‘vida’, o sistema e o ‘sujeito’ do sistema” (Otobiographies. Paris: Galilée, 1984, p. 39-40).
Gilvan Fogel
1.
“Eu vos mostro a morte que aperfeiçoa, que se torna, para o vivo, um agui-
lhão e uma promessa. ... Sua morte morre aquele que se aperfeiçoa ... É pre-
ciso aprender a morrer assim ... Morrer assim é o melhor; o segundo, porém,
é: morrer em combate e prodigalizar uma alma grande ... Eu vos louvo minha
morte, a morte livre, que me vem, porque eu quero”.
O texto citado é uma passagem da parte I de Assim falava Zaratustra. En-
contra-se no discurso intitulado “Vom freien Tode”, Da morte livre, isto é, sobre
a morte livre, a respeito da morte livre, talvez, melhor, a partir da morte livre.
Antes de mais nada, este título não fala, como poderia parecer a algum apres-
sado e em dia com as coisas de hoje, do direito de livre escolha da morte, não
é defesa do suicídio e também não é apologia da boa morte, da morte assistida,
que seria a eutanásia. Antes, o título quer dizer: A respeito da liberdade para a
morte – livre para a morte, livre na morte. Mas o que significa isso?
Tanto no título quanto no corpo do discurso, morte não fala de um final de
linha, no sentido, talvez, de se atingir um ponto de chegada, um objetivo (ou
uma meta) pré- e pro-posto. Assim, este objetivo, que seria a realização da
vida, este fim ou meta (sentido, ideal) estaria fora, para além da própria vida.
Morte, no título e no discurso citados, também não fala de nenhuma transi-
ção, de nenhuma passagem para alguma imaginada, desejada, aspirada ou so-
nhada sobrevida, além vida. Morte, aqui, também não é destruição, ruína. Não
é o fim, o desfecho da vida animal, não é o fechamento do ciclo biológico, não
é o colapso das funções vitais (bio-fisiológicas, neurológicas), não é a “falência
múltipla dos órgãos”, em alguma UTI.
Morte, aqui, fala de perfeição, de cumulação – “Eu vos mostro a morte que
cumula, que aperfeiçoa”, den vollbringenden Tod, isto é, a morte que não é outra
coisa senão a vida que vem a si própria toda cheia, toda cumulada (“voll”) de si
2.
Zaratustra diz: “Eu vos louvo a minha morte, a morte livre, que vem a mim
porque eu quero”.
O eu, que é quem diz quero, é Zaratustra. E Zaratustra não é um eu qual-
quer. Ele é o porta-voz de vida, isto é, a fala da própria vida, quando esta
dialoga consigo mesma, ou seja, quando se pensa, pois pensar, filosofar, já
disse Platão, é o diálogo da alma (psyché, vida) consigo mesma. É vida, desde
si, falando de si e para si – expondo-se, auto-expondo-se.
Assim sendo, quando diz “a morte que vem a mim porque eu quero”, é a
morte que a própria vida quer – “eu vos louvo a minha morte”, isto é, a mor-
te que é própria de vida, que vem ao encontro de vida, assim cumulando-a,
aperfeiçoando-a. Assim, esta morte é constitutiva de vida, a perfaz essencial-
mente, levando-a ou trazendo-a assim à perfeição – um “voll-bringender Tod”.
É, portanto, a morte que, em vindo ou sobrevindo à vida, faz da vida ainda
mais vida ou mesmo toda a vida, no sentido que esta se enche toda, vem a ser
toda, se cumula em auto-a-per-feiçoamento. Morte que faz, que torna vida
perfeita – e isso porque livre!? João é João, Pedro é Pedro, maximamente João
e maximamente Pedro à medida que cada qual participe deste jogo da vida, à
medida que cada qual se faça lugar, hora e testemunha (mártir!) deste modo
radical ou essencial de vida, de viver, quer dizer, de ser, de existir. E, lembre-
mos: modo essencial significa o modo, a via pela qual vida realiza ou concretiza
sua essência, isto que ela própria e realmente é, a saber, verdade e história. Es-
peremos, no entanto.
Por outro lado, quando diz “eu quero”, a tendência é ouvir-se neste “quero”
um ato de vontade própria, no sentido de uma decisão ou de uma deliberação
do eu, subentendendo-se sob eu um indivíduo, uma pessoa, e sob indivíduo
ou pessoa entende-se uma consciência autônoma, uma subjetividade em si. O
“quero” seria a expressão da faculdade ou do poder da vontade, uma delibe-
És uma nova força e um novo direito? [...] Dizes-te livre? Quero ouvir teus
pensamentos dominantes e não que escapaste de um jugo. És um tal que
tenhas direito a escapar de um jugo? Há aqueles que, ao jogarem fora [ao se
desfazerem de] sua condição de servo, jogam fora seu último valor. Livre
de quê? Que importa isso a Zaratustra? Clara, limpidamente, deve dizer-me
teu olho: livre para quê?1
4.
Foi perguntado: “És uma nova força e um novo direito?” Força diz poder-ser
ou possibilidade de ser de vida. E isso é, precisa ser ou tornar-se um direito,
isto é, uma prerrogativa e uma razão de ser, uma absoluta necessidade ou um
destino. E é preciso reivindicar com toda força, com toda determinação o que
se é, a saber, a possibilidade (o direito) que se é, que se precisa vir a ser. Este
1
NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra, parte I, “O caminho do Criador”.
5.
2
Cf. NIETZSCHE, F., Assim falava Zaratustra, Prólogo, n. 4
6.
7.
Que seja agora a hora de, à luz desta passagem de abertura do discurso “Da
morte livre”, se tentar melhorar a compreensão, até agora tanto difusa quanto
confusa, de vida e de morte, de nascer, viver e morrer. Primeiro, morte não é
algo fora da vida, além vida. Vida não é algo, melhor, não é o espaço de tempo
ou o pedaço entre nascimento e morte. Nascimento não é o ainda não de vida e
morte o já não mais também de vida.
Nascimento, assim como morte, é uma dimensão, uma abertura, ou seja,
uma possibilidade ou uma aptidão de vida. Melhor: uma pré-disposição de
vida. Portanto, algo, coisa do estrito e exclusivo interesse de vida. Como já dis-
semos, não vida no sentido biológico, fisiológico, mas a vida banal e direta que
dizemos ser o humano viver, o ser homem, o ver, que é ser sempre já aberto
e disposto, pré-disposto para, isto é, ser nascido para e, neste sentido, vir à luz.
3
NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra, parte I, “Da morte livre”.
4
Ibid.
5
Ibid.
8.
6
Ibid.
9.
10.
7
Cf. HERÁCLITO, fragmento 118, Diels.
8
Cf. Guimarães Rosa, em discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, quando, referindo-se à
morte de seu antecessor, João Neves da Fontoura, escreveu: “Foi há mais de 4 anos a recém. Vésper lu-
zindo, ele cumprira. De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias
profundezas” (ROSA, Guimarães. Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora, , 1968, p. 85).
Gustavo B. N. Costa
1
Cf. MACHADO, R. Zaratustra, tragédia nietzscheana. p.30.
Por que tal sou eu, no mais fundo do meu ser e desde o início: alguém que
tira, que tira a si, para cima, para o alto [ziehend, heranziehend, hinaufziehend,
aufziehend], um tirador [Zieher], criador [Züchter] e tratador [Zuchtmeister],
que não em vão, um dia, determinou a si mesmo: “Torna-te quem és!”. 3,4,5
2
DELEUZE, Gilles. “Conclusões sobre vontade de potência e eterno retorno” (1967) in A Ilha deserta.
Trad. Luiz B. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 163.
3
Não sem razão esse discurso situa-se na quarta e última parte do livro, escrita apenas em 1885, dois
anos após as duas primeiras e um após a terceira, e publicada apenas em 1891. A compreensão de ter-se
tornado o que se é pressupõe um “olhar para trás” a transmutar acasos em necessidade. Porém, é uma
tarefa, como Zaratustra mesmo afirma, que deve ter sido, um dia, determinada. Um pouco antes, em
“O convalescente”, Zaratustra escuta de seus animais: “Pois bem sabem os teus animais, ó Zaratustra,
quem és e quem deves tornar-te: és o mestre do eterno retorno – este, agora, é o teu destino” (p.262). E
um pouco depois, no discurso “A Sanguessuga”, ao apresentar-se ao homem consciencioso em quem
descuidadamente ele pisara, afirma: “eu sou quem devo ser” (p.294).
4
As citações com referências entre parênteses, em que não consta o nome do autor, são de Nietzsche.
Optou-se por fazer referência não ao ano de publicação da edição utilizada de uma obra, mas à sua
abreviatura conforme legenda que consta na referência bibliográfica. Após a sigla consta o título ou
o número do capítulo em algarismos romanos (quando existem), seguido do número do aforismo ou
seção em algarismos arábicos e da página em que se encontra. No que diz respeito à tradução dos frag-
mentos póstumos contidos nos volumes da edição crítica das obras completas de Nietzsche (COLLI,
G; MONTINARI, M. Nietzsche: Sämtliche Werke – Kritische Studienausgabe) tomou-se como auxílio
as traduções de Flávio Kohte para a seleção intitulada Fragmentos finais (Brasília: UNB, 2002) e de
Marcos S. P. Fernandes e Francisco J. D. de Moraes para a seleção de fragmentos intitulada Vontade de
poder (Rio de Janeiro: Contraponto, 2008).
5
Z, “O Sacrifício do mel”. p. 283.
6
Z, “Dos Desprezadores do corpo”. p. 59-61.
7
KSA, XIII:14[79], 1888.
8
Z, “Dos Desprezadores do corpo”. p. 60.
9
KSA, XII:1[87], 1885-6.
10
M/A §109, 79-81.
11
GB/BM§17, 21-22.
12
Z, “Dos Desprezadores do corpo”, 59-61.
13
Ibid.
14
Conforme este fragmento do verão-outono de 1882 (3[1]) citado em nota por W. Müller-Lauter, o
filósofo dirá: “‘Eu e mim são sempre duas pessoas diferentes’”. “Também meu mim’ é ‘fingido e inven-
tado’”. (Apud MÜLLER-LAUTER, W. A Doutrina da vontade de poder em Nietzsche p. 79, nota 58).
15
KSA, XII:2[148], 1885-6.
16
KSA, XII:7[54], 1886-7.
17
KSA, XII:2[151], 1885-6.
18
KSA, XII:2[148], 1885-6.
19
GB/BM§34, 39.
20
FW/GC §121, 145.
21
GB/BM§4,11.
22
FW/GC§354, 248.
23
Como salienta Gilles Deleuze, a “morte de Deus” tira do Eu a sua única garantia de identidade, sua
base substancial unitária: “Deus morto, o Eu se dissolve ou se volatiza, mas de certa maneira, abre-se
a todos os outros Eu, papéis e personagens cuja série deve ser percorrida como outros tantos aconteci-
mentos fortuitos” Cf. DELEUZE, G. Op. cit., p. 156.
Porém:
[...] nossa opinião sobre nós mesmos, que encontramos por trilhas erradas, o
assim chamado “Eu”, colabora desde então na feitura de nosso caráter e desti-
no. – [grifo nosso].24
A aparente dubiedade deste aforismo não deve impedir que tenhamos dele
uma boa compreensão. De fato, são precisamente os “graus mais baixos” de
nossos “processos e impulsos interiores” que tecem “a trama de nosso caráter
e destino”. Porém, só temos acessos aos “graus superlativos” de tais impulsos,
que nos chegam na forma de opiniões, e costumamos atribuir a um Eu – o
que só atesta o nosso mal-conhecer acerca de nós mesmos. No entanto, tais
opiniões são “as únicas que nos são conhecidas”, que desde então colaboram
“na feitura de nosso caráter e destino”. Embora constituído a partir de um
“hábito gramatical”, fruto de uma ilusão, e ainda por cima incapaz de atingir
pelo conhecimento os processos mesmos que o constituem, é com o eu – com
as opiniões erradas que temos acerca de nós mesmos – que podemos criar a
nós próprios, nosso “caráter e destino”. É só como ilusão que se constitui o
eu; mas isso não abole a necessidade dessa ilusão25 para a vida, ao contrário:
“O erro acerca da vida é necessário à vida”.26
Mas de que maneira atua esse eu fictício na tarefa de conferir sentido à
multiplicidade que é o corpo? Ainda que seja possível e até necessária a cria-
ção fictícia de um eu a conferir unidade de sentido à multiplicidade que se é,
ficaria ainda patente a pouca ou nenhuma autonomia e poder que tem o assim
chamado Eu para dominar a grande razão que é o corpo, ou seja, para assumir
as rédeas de si, ou do si, relegando este ao acaso. Nesse sentido, poderíamos
24
“O assim chamado ‘Eu’”. M/A§115, 87-88.
25
Müller-Lauter aponta, referindo-se a Nietzsche, “para a necessidade de ignorância, ou até de
autoengano, tanto para a manutenção como para o aumento de poder daquela organização que é o
homem. [...] Devemos conquistar uma apreciação elevada ‘também para o não-saber, o ver grossei-
ramente, o simplificar, o perspectivo’. Vale especialmente para o nosso espírito que ‘interpretar-se
falsamente poderia ser útil e importante para a sua atividade’” Cf. MÜLLER-LAUTER, W. A Doutrina
da vontade de poder em Nietzsche. p.129.
26
MA/HH §33, 39-40.
27
Z, “Do Superar a si mesmo”, p.143.
28
Cf. MACHADO, R. Op. cit., p.101.
29
Z, “Da Redenção”, p.172-3.
30
Ibid., p. 170.
31
Ibid.
32
Ibid., p.172.
33
Castigo: palavra mendaz que, atribuída à vingança, confere a esta uma “consciência limpa”: “tudo
perece, tudo, portanto, deve perecer” (Z, “Da Redenção”, p.173). E como não se pode “querer para
trás” (Id., p.173), o próprio querer e a vida tornam-se um castigo. Tal relação entre culpa e castigo, aqui
efetivada na tentativa de vingança contra o tempo, prenuncia o que, como sabemos, Nietzsche virá a
desenvolver futuramente na segunda dissertação de Genealogia da moral, sob os temas do ressenti-
mento e da má-consciência (GM, Segunda dissertação).
34
Z, “Da Redenção”, p. 172.
35
R. Machado explicita os três tipos de redenção aqui expostos: a vingativa, que procura a redenção
pela afirmação da eternidade; a insuficiente, pela projeção da redenção do passado no futuro – essa, a
que Zaratustra propaga no início de sua trajetória –, e a redenção afirmativa, que pressupõe uma nova
visão de tempo que supere a oposição entre passado e futuro Cf. MACHADO, R. Op. cit., p.104-5.
36
Z, “Da Redenção”. p. 172-3.
37
Ibid., p.174.
38
P. 171, grifo nosso.
39
Z, “Das Velhas e novas tábuas”§30, p. 256-7.
40
“Do Grande anseio”. p. 264.
41
Ibid., p.172, grifo nosso.
42
“Imprimir no devir o caráter de ser – essa é a mais elevada vontade de poder. Que tudo retorna é a
mais extrema aproximação de um mundo do devir ao mundo do ser: cume da consideração” (Cf. KSA,
XII: 7[54], 1886-87.
43
Z, “O Sacrifício do mel”. p.283.
Seja dito entre nós que não é necessário, absolutamente, livrar-se com isso
da “alma” mesma, renunciando assim a uma das mais antigas e venerá-
veis hipóteses: como sói acontecer à inabilidade dos naturalistas [...]. Está
aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da alma: e
44
Z, “Do Superar a si mesmo”, p.145.
45
Ibid.
46
Ibid.
47
Z, “Das Velhas e novas tábuas”§4, p. 236-7.
48
XIII:14[219], 1888.
49
GB/BM§188,76-78.
50
GD/CI-IX §47, 96-97.
51
KSA, XIII:14[61], 1888.
O que somos livres para fazer – Pode-se lidar com os próprios impulsos como
um jardineiro, [...] de maneira tão fecunda e proveitosa como uma bela fruta
numa latada. Pode-se fazer isso com o bom ou o mau gosto de um jardineiro
[...]; pode-se também deixar a natureza agir e apenas providenciar aqui e ali
um pouco de ornamentação e limpeza, pode-se, enfim, sem qualquer saber e
reflexão, deixar as plantas crescerem [...] e lutarem entre si até o fim – pode-se
mesmo ter alegria com esta selva, e querer justamente essa alegria, ainda que
traga também aflição. Tudo isso temos liberdade para fazer; mas quantos sabem
que temos essa liberdade? Em sua maioria, as pessoas não creem em si mesmas
como em fatos inteiramente consumados? Grandes filósofos não imprimiram sua
chancela a este preconceito, com a doutrina da imutabilidade do caráter?55
52
GB/BM§12, 18-19.
53
GD/CI-IX §47, 96-97.
54
EH-II§8,46-48.
55
M/A §560, 279.
56
FW/GC §335, 222-225.
Em verdade, também não gosto daqueles para os quais todas as coisas são
boas e este é o melhor dos mundos. A esses chamo onicontentes.
Onicontentamento que quer saborear tudo: não é o melhor dos gostos!
Respeito as línguas e os estômagos rebeldes e exigentes, que aprenderam a
dizer “eu” e “sim” e “não” (grifo nosso).
57
MA/HH §292, 195-6.
58
FW/GC §319, 213-214.
59
GD/CI-IX §38, 88.
60
FW/GC§276.
61
Z, “A Ceia”.
62
“I-A” : a onomatopeia refere-se ao zurrar do burro e tem homofonia com o “sim” alemão: “ja”. Cf.
Id., 2005, p.333, 362, 364-369.
63
Z, “Do Espírito de gravidade” §2, p.232.
64
Z, “Da Virtude amesquinhadora” §3, p.207.
65
M/A §218, 161.
66
MA/HH §108, 85.
67
GB/BM§213, 108.
68
DELEUZE, 2007, p. 164.
69
GD/CI-IX §8, 67-68.
Concluindo com uma possível resposta à nossa questão inicial, por meio
da afirmação de todo o passado e de todo acaso em destino, o eu confere à
multiplicidade de impulsos que somos a sua unidade de sentido – ou de estilo,
para usar uma expressão de seus escritos primevos.71 Trabalho artístico que
culmina com a criação de si, expressa na máxima de tornar-se o que se é.
E é ao ensinar isso que Zaratustra torna-se o que ele é:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
70
FW/GC §299, 202.
71
UB/CoEx-II §4,35.
72
Z, “Das Velhas e novas tábuas”§3, p. 236-237.
1
Como aponta o prólogo, aos 30 anos Zaratustra deixa o lago da sua pátria e sobe a montanha, viven-
do nela por 10 anos. Por um lado, o texto pode sugerir que Nietzsche compreendia os 40 anos como
a idade da maturidade masculina. Por outro, é importante notar que a idade de Nietzsche, ao iniciar a
escrita do livro, era de praticamente 40 anos. Os dez anos a que se refere, de algum modo, fazem men-
ção ao período que esteve em Basileia, ministrando aulas na universidade da cidade suíça. É razoável
dizer que o filósofo encontrou um análogo na figura mítica do próprio Zoroastro, o qual iniciou sua
missão também aos 30anos de idade, tendo deixado a montanha em que viveu isolado para passar 10
anos pregando (Cf. DALGADO e PIEL, 1982). J. P. Stern considera que a escolha de Nietzsche por
Zoroastro (Zaratustra) é porque este velho profeta persa é o fundador da mais antiga religião dualista
conhecida. É ele quem originalmente apresenta a batalha entre o bem e o mal como aquilo que move
o centro de todas as coisas. Por esse motivo, seria oportuno que em Nietzsche fosse o proclamador do
fim do reinado do bem e do mal (STERN, 1978, p. 55), o que é confirmado pela leitura do parágrafo
terceiro de “Porque sou um destino” de Ecce homo (Cf. EH, “Porque sou um destino”, § 3, p. 110-111).
Para maiores esclarecimentos, recomenda-se a leitura de NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Lettres à
Peter Gast: Tome Premier. Introduction et notes d’André Schaeffner. Monaco: Editions du Rocherid.,
1957, p. 195-204.
2
Z, “Do país da cultura”, p. 163.
3
Ibid., “Da virtude dadivosa”, p. 107.
4
A mudança aqui referida pode estar relacionada a reorientações no próprio pensamento de Nietzsche
durante a lacuna temporal entre a primeira e a segunda partes da obra em questão. De acordo com Scar-
lett Marton, o espaço de tempo entre a escrita das referidas partes é de seis meses. Em suas palavras:
“Em fevereiro de 1883, (Nietzsche) criou em dez dias a primeira parte de Assim falou Zaratustra – um
livro para todos e para ninguém; em julho do mesmo ano, escreveu a segunda parte também em dez
dias; e apenas dez dias foram suficientes para redigir, em janeiro de 1884 a terceira; um ano depois,
elaborou a quarta e última” (MARTON, 2005, p. 17).
5
Z, “O menino do espelho”, p. 116.
6
Embora a tradução mais indicada para a expressão Vater- und Mutterländern seja “terras paternais e
maternais” (ou “terras de pais e de mães”), no decorrer do texto opta-se pelo uso de “terras natais”, pois
o que se tem em vista aqui é mais o que se nasce em tais terras do que seus progenitores. Além do mais,
a tradução da referida expressão não é uma unanimidade, fazendo surgir alguns problemas relativos ao
sentido da expressão no interior da sentença “Von allen Bergen schaueich aus nach Vater- und Mutter-
ländern”. Enquanto Eduardo Fonseca também fala de “terras natais” (Cf. NIETZSCHE, F. W.. Assim
falava Zaratustra. São Paulo: Editora Hemus, s.d., p. 93), Maurice de Gandillac traduz a expressão por
“patries et terres maternelles” (Cf. NIETZSCHE, F. W.. Ainsi parlait Zarathoustra. Paris: Gallimard,
1971, p. 155) e Walter Kaufmann por “fatherlands and motherlands” (Cf. NIETZSCHE, F. W.. “Thus
spoke Zarathustra”. In. The portable Nietzsche. New York: The Penguin Books, 1976, p. 223).
7
Prefere-se aqui a tradução de Übermensch por “além-homem”. No entanto, respeita-se nas citações a
tradução escolhida pelos intérpretes.
8
Z, “Nas ilhas Bem-Aventuradas”, p. 119-120.
Tornei então para trás, cada vez mais apressado: assim cheguei até vós, ho-
mens atuais; assim cheguei ao país da cultura. Pela primeira vez vos olhei com
olhos favoráveis e com bons desejos. E que me sucedeu? Apesar do medo que
me invadiu... pus-me a rir! Nunca meus olhos viram algo que fosse tão bizarro.
9
Na primeira parte de Assim falava Zaratustra, a ideia da morte livre sugere que se aproveita mais
de uma vida bem vivida, buscando uma constante superação de si, do que se entregar a uma vida sem
ação. Entra em cena algo semelhante à doutrina de Sileno, que aparece em O nascimento da tragédia:
“O melhor de tudo é parta ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso,
porém, o melhor para ti é logo morrer” (GT/III, p. 36). No entanto, isso deve ser encarado com res-
salvas. Somente aquele que, segundo Nietzsche, não vive a tempo deveria não ter nascido. Para este,
a morte seria uma solução e a única coisa com alguma importância para alguém supérfluo. Logo, a
morte livre seria uma forma de “retirada oportuna”. Esta não deve ocorrer diante da degeneração de
si mesmo, mas num instante de plenitude, quando se é mais amado (Cf. Z, “Da morte livre”, p. 103).
10
Z, “Do país da cultura”, p. 163.
11
Ibid., p. 163. O título em alemão é Vom Lande der Bildung, possuindo várias versões em Português.
Mário Ferreira dos Santos (Cf. Ibid.) e Mário da Silva (Cf. Id., 2005a) o traduzem como “Do país da
cultura”. Eduardo Nunes Fonseca utiliza “O país da civilização” (Cf. Id., s.d.). Na tradução francesa
de Maurice de Gandillac consta “Du pays de la culture” (Cf. Id., 1971). Vale dizer que o termo Bil-
dung também pode ser traduzido como formação, constituição e educação. Este último caso ocorre na
tradução para a língua inglesa de Walter Kaufmann: “On the land of education” (Cf. Id., 1976). Inde-
pendente de qual for a escolha do tradutor, parece que Nietzsche está falando de um povo que é o que
é porque foi formado a partir de elementos que lhe eram externos. Uma formação como essa aponta
para algo como a mera erudição. Por sua vez, esta não caminha, em geral, de mãos dadas com a criação.
12
Cf. Z, “Do menino do espelho”, p. 113.
13
Ibid.
14
Cf. ibid., p. 164.
15
Cf. ibid.
16
Ibid., “Do país da Cultura”, p. 164.
17
A expressão Wahr-Träume pode ser traduzida por “sonhos de verdade”, como visto anteriormente.
18
Z, “Nas ilhas Bem-Aventuradas”, p. 120.
19
Cf. Z, “Das antigas e das novas tábuas”, XIII, p. 268.
20
Se já não há mais uma vontade (metafísica) que impele todas as coisas a um infindo desejo de sa-
ciedade, conduzindo o homem ao sofrimento, encontra-se espaço para uma vontade que é afirmativa
(positiva) em seu constante desejar, em sua insaciabilidade. Como escreve Deleuze, “a filosofia da
vontade, segundo Nietzsche, deve substituir a antiga (vontade) metafísica: ela a destrói e a ultrapassa
[...]. Tal como a concebe, a filosofia da vontade tem dois princípios que formam a alegre mensagem:
querer é igual a criar e vontade é igual a ter alegria” (DELEUZE, 1976, p. 6).
O verdadeiro mundo foi abolido por nós: que mundo restaria? O mundo
aparente talvez? Mas não! Com o verdadeiro mundo também abolimos o
mundo aparente. (Meio-dia; instante da mais curta sombra; fim do mais
longo erro; topo da humanidade; incipit Zaratustra.)21
A citação deixa margem para se afirmar que, embora andar entre os ho-
mens da civilização causasse espanto a Zaratustra, ele teria que se esforçar,
pois estava na hora exata para que sua mensagem fosse anunciada. Pode-se
ponderar que a humanidade estava tomada pelo sentimento do vazio do hu-
mano, da não justificação de tudo o que fizera ao longo da sua história, como
se a imaginasse como mero fruto de casualidades – o que poderia lhe parecer
ruim. Em certa medida, faltava ao homem, além da iluminação do “eterno
retorno”,22 encontrar uma nova alegria numa existência alforriada do mundo
verdadeiro, de outro mundo, do não prazer na vida e na terra. Em contraparti-
da, não se desejava mais retornar e percorrer novamente os caminhos do erro.
Consequentemente, era o tempo oportuno para Zaratustra prosseguir, para
anunciar o advento do além-homem.
Deve-se observar com exatidão o que ocorria na Europa e como Nietzsche
vê seu papel nesse contexto. J. P. Stern tenta explicitar qual seria de fato a
mensagem de Zaratustra. Antes de qualquer outra coisa, deve-se mencionar
que o comentarista enxerga o além-homem apregoado em Assim falava Zara-
tustra como uma coletividade, e não como um indivíduo. Em seguida, refere-se
ao além-homem como aquele que não está fechado para o mundo, mas abre-se
para ele, quer receber não só o que de melhor tem para oferecer, também quer
suas vicissitudes. Nas palavras de Stern, “nele [no além-homem], os vícios
21
GD, “Como o verdadeiro mundo finalmente se tornou uma fábula”, p. 18.
22
Ainda de maneira pouco desenvolvida, a iluminação a que se refere aqui aparece pela primeira vez
no aforismo 341 de A gaia ciência.
23
STERN, 1978, p. 65.
24
A tradução portuguesa do livro de Stern utiliza a expressão “vontade de poder” (Cf. Ibid.).
25
STERN, 1978, p. 65.
26
Cf. HEINRICH, Mann. O pensamento vivo de Nietzsche. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins
Fontes, 1977, p. 98.
27
Frederick Coppleston, citando um trecho de Assim falava Zaratustra em relação ao pessimismo, faz
o comentário a seguir. “Os homens ‘não têm de fugir à vida, como os pessimistas, mas, como alegres
convivas de um banquete, que desejam as suas taças novamente cheias, dirão sim à vida: Uma vez
mais!’. Desta maneira, Nietzsche desenvolveu-se fora de Schopenhauer e se, por um lado, temos o pes-
simismo de Schopenhauer combinado com um ideal predominantemente negativo de comportamento,
temos, por outro, o otimismo de Nietzsche combinado com um ideal predominantemente positivo e
30
Z, “Do imaculado conhecimento”, p. 167.
31
Ibid., p. 168.
32
Ibid., “Da prudência humana”, p. 197.
33
Ibid., p. 196.
34
MA, # 236, p. 150.
35
Ibid.
36
A expressão utilizada por Nietzsche para se referir à pátria de Zaratustra é meine Heimat (“minha
pátria”).
37
Z, “O regresso à pátria”, p. 243.
38
Mais uma vez Nietzsche retoma Humano, demasiado humano: “É chamado de espírito livre aquele
que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição
e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é uma exceção, os espíritos
cativos são a regra” (HA, # 225, p. 143). E o filósofo já adianta que é sobretudo no Estado que o espírito
livre se transforma num sem-lugar, sendo-lhe imposto o exílio.
39
Cf. Z, “Do seguir adiante”, p. 235.
O presente e o passado sobre a terra... ai meus amigos, eis para mim o mais
insuportável; e eu não viveria se não fosse um visionário daquilo que há de
vir. Um vidente, um voluntário, um criador e uma ponte para o futuro – e
também, ai, até certo ponto, um aleijado no meio dessa ponte: tudo isto
é Zaratustra. E vós sempre vos interrogastes: “Para nós, quem é Zaratus-
tra? Como lhe podemos chamar?” [...] Eu ando entre homens como entre
fragmentos do futuro: desse futuro que meus olhares aprofundam [...]. A
vontade não pode querer para trás.40
40
Ibid., “Da redenção”, p. 190.
41
MACHADO, 2001, p. 135.
42
Ibid.
43
Ibid., p. 136.
44
Não há como não ver no texto a seguir um paralelo com a democracia, que em outros momentos
da filosofia de Nietzsche é posta em xeque. Eis o texto de Assim falava Zaratustra: “Aqui está a pior
das hipocrisias que tenho encontrado entre os homens: até os que mandam fingem as virtudes dos que
obedecem. ‘Eu sirvo, tu serves, nós servimos’, assim salmodeia a hipocrisia dos governantes. [...] Toda
bondade que vejo é pura fraqueza, toda justiça e piedade, fraqueza pura. São corretos, leais e benévolos
uns com os outros, como são corretos, leais e benévolos entre si os grãos de areia”. Faz parte de “Da
virtude amesquinhadora” (p. 223), e embora este texto aponte para uma interpretação genealógica da
história do amesquinhamento da virtude e da decadência do homem, é no contexto cultural de Nietzsche
que isso alcança seu ápice. Os grandes inimigos nietzschianos no Estado moderno eram seus sistemas
políticos, criados para o nivelamento dos indivíduos e para o fim da hierarquização social. A democracia
e o socialismo estavam baseados numa verdade quase tão metafísica quanto aquelas que embasaram os
Estados absolutistas, com uma ressalva: escondiam-se atrás de um pensamento científico. Contudo, nada
mais eram do que superstições, crendices num passado natural no qual o homem era um bom selvagem,
tendo sido corrompido pela vida em sociedade, sua cultura e civilidade (Cf. MA, # 473 & GB/V, § 203).
45
RIBEIRO, 1999, p. 32.
46
Cf. GB/I, § 6.
47
Cf. Z, “Da virtude amesquinhadora”, p. 223.
48
Z, “Dos três males”, p. 253.
49
Como relembra Nietzsche, falando de seu Zaratustra: “O problema psicológico no tipo do Zaratustra
consiste em como aquele que em grau inaudito diz Não, faz Não a tudo a que até então se disse Sim,
pode, no entanto, ser o oposto de um espírito de negação; como o espírito portador do mais pesado
destino, de uma fatalidade de tarefa, pode, no entanto, ser o mais além e mais leve – Zaratustra é um
dançarino –: como aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade, que pensou o ‘mais
abismal pensamento’, não encontra nisso, entretanto, objeção alguma ao existir, sequer ao seu eterno
retorno – antes uma razão a mais para ser ele mesmo o eterno Sim a todas as coisas (...)” (EH, “Assim
falou Zaratustra”, VI, p. 90).
50
Z, “Ao meio-dia”, p. 346.
Tiago Barros
1
Para as citações de Assim falou Zaratustra, utilizamos a tradução de Mário da Silva, mas, com relação
ao termo Verwandlungen des Geistes, optamos pela tradução “transmutações do espírito”, proposta por
Rubens Torres nas obras incompletas de Nietzsche da coleção “Os pensadores”.
2
Em seu primeiro diálogo com o povo, Zaratustra afirma: “Eu vos ensino o super-homem. O homem
é algo que deve ser superado. Que fizeste para superá-lo? [...] Outrora, o delito contra Deus era o maior
dos delitos; mas Deus morreu e, assim, morreram também os delinquentes dessa espécie. O mais terrí-
vel, agora, é delinquir contra a terra e atribuir mais valor às entranhas do imperscrutável do que ao sen-
tido da terra!”(Prólogo, §3, p.36). Nas citações, reproduzimos a tradução de Übermensch como «super-
-homem», feita por Mário da Silva, mas, ao longo de nosso texto, privilegiaremos «além-do-homem».
3
Surpresa perceptível no seguinte trecho: “Quando ficou só, Zaratustra falou assim ao seu próprio
coração: ‘Será possível? Esse velho santo, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto!’”
(Prólogo, §2, p.35).
4
Cf. Prólogo, §5, p.42: “’Dá-nos esses últimos homens, ó Zaratustra!’, gritavam. – ‘Transforma-nos
nesses últimos homens! E nós te damos de presente o super-homem!’”.
5
Cf. Prólogo, §7, p.44: “Estou ainda longe deles e o sentido do que eu falo não diz nada aos seus
sentidos. Ainda sou, para os homens, um ponto intermediário entre um doido e um cadáver.”
6
Cf. Prólogo, §9, p.47: “Uma luz raiou em mim: não à multidão fale Zaratustra, mas a companheiros!
Não deve Zaratustra tornar-se pastor e cão de um rebanho!”
7
LAMPERT, Nietzsche’s teaching, p.32.
8
Cf. Prólogo, §9, p.47: “Atrair muitos para fora do rebanho – foi para isso que vim. Deverá irar-se
comigo a multidão e o rebanho: ‘ladrão’, quer chamar-se Zaratustra para os pastores. Pastores, digo eu,
mas eles se dizem os bons e os justos. Pastores, digo eu, mas eles se dizem os crentes da verdadeira fé.
Olhai-os, os bons e os justos! A quem odeiam mais que todos? Àquele que parte suas tábuas de valores,
o destruidor, o criminoso – mas esse é o criador.”
9
Cf. Prólogo, §9, p.47: “De companheiros, eu preciso, e vivos – não de companheiros mortos e cadáve-
res, que levo comigo aonde quero. Preciso, sim, de companheiros vivos, que me sigam porque querem
seguir-se a si mesmos”. Cf. também III, “Do espírito de gravidade”, §2, p.233: “’Este, agora, – é o meu
caminho; – onde está o vosso?’; assim respondia eu aos que me perguntavam ‘o caminho’. Porque o
caminho – não existe!”. Cf., por último, I, “Da virtude dadivosa”, §3, p.105: “Retribui-se mal um mestre
quando se permanece sempre e somente discípulo. [...] Tomai cuidado com que não vos esmague uma
estátua! [...] Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra! Sois os meus crentes; mas
que importam todos os crentes! Ainda não vos havéis procurado a vós mesmos: então, me achastes. Assim
fazem todos os crentes; por isso, valem tão pouco todas as crenças. Agora, eu vos mando perder-vos e
achar-vos a vós mesmos; e somente depois que todos me tiverdes renegado, eu voltarei a vós.”
10
Para Héber-Suffrin, “Zaratustra começa com uma alegoria, que ilustra as três etapas da transmuta-
ção. Ele nos ensina como, partindo-se da obediência passiva do camelo, que sempre aceita as cargas
que lhe são impostas, se deve derrubar todo o fardo dos valores, com a selvagem brutalidade do leão,
e depois passar à criação de valores novos, com a originalidade inocente da criança.” (HÉBER-SU-
FFRIN, O “Zaratustra” de Nietzsche, p.120-121).
11
HÉBER-SUFFRIN, O “Zaratustra” de Nietzsche, p.121.
12
FINK, A filosofia de Nietzsche, p.76.
13
Importante destacar que o camelo é constantemente associado ao peso que carrega, sobretudo, tendo
em vista o fato de o principal inimigo de Zaratustra ser justamente um pesado espírito de gravidade. No
discurso “Do espírito de gravidade”, estes dois personagens chegam a ser identificados e boa parte da
descrição do camelo é transcrita com o intuito de caracterizar este “inimigo ferrenho, mortal e nato” de
Zaratustra: “Nós carregamos fielmente conosco, nas duras costas e por ásperos montes, aquilo que rece-
bemos em dote! E, se suamos, nos dizem: ‘Sim, a vida é um pesado fardo!’ Mas somente o homem é um
pesado fardo para si mesmo! E isso procede de que carrega às costas demasiadas coisas estranhas. Tal
como o camelo, ajoelha-se logo e deixa que o carreguem bem. Especialmente o homem forte, com espí-
rito de suportação, ao qual inere o respeito: de demasiadas palavras e valores estranhos e pesados carrega
ele mesmo suas costas – e, então, a vida parece-lhe um deserto!” (“Do espírito de gravidade”, §2, p.231).
14
I, “Das três metamorfoses”, p.53.
15
Prólogo, §4, p.38.
16
Prólogo, §2, p.34.
17
Cf. Prólogo, §1, p.33: “Aos trinta anos de idade, deixou Zaratustra sua terra natal e o lago de sua
terra natal e foi para a montanha. Gozou ali, durante dez anos, de seu próprio espírito e da solidão, sem
deles se cansar. No fim, contudo, seu coração mudou [...]”.
18
Neste sentido, o trecho “E mais de um que foi para o deserto e sofreu sede com as feras, queria
apenas não se sentar em torno da cisterna na companhia dos sujos cameleiros” (“Da canalha”, II, p.126)
pode ser interpretado como uma referência à própria vida de Zaratustra por aparentemente tratar do que
teria motivado sua ida para o isolamento, descrita no prólogo. Neste contexto, os “cameleiros” podem
ser compreendidos como os contemporâneos de Zaratustra que contribuíam para a manutenção dos
antigos valores que produziam os “camelos”, tão repudiados e combatidos por ele.
19
I, “Dos trasmundanos”, p.57.
Com isso, fica claro que o objetivo de sua referência foi o de “reverter”,
“transvalorar” os efeitos do moralismo metafísico e dualista que teria sido
inaugurado pelo místico persa.24 Nessa medida, consideramos que o mitológi-
co profeta persa parodiado criticamente por Nietzsche representa a transmu-
tação do espírito em camelo por ter sido o primeiro a atribuir à vida uma in-
terpretação moral e dualista que, posteriormente, foi retomada e desenvolvida
20
I, “Do ler e do escrever”, p.67.
21
II, “A hora mais silenciosa”, p. 179.
22
Ibid., p.180.
23
Ecce homo, “Por que sou um destino”, §2, p.111.
24
Outras versões das primeiras linhas do Prólogo do livro também indicam a estreita relação do per-
sonagem de Nietzsche com esta tradição oriental. Por exemplo, no último aforismo do livro IV de A
Gaia Ciência está escrito que “Quando Zaratustra fez trinta anos de idade, abandonou sua terra e o lago
de Urmi e foi para as montanhas.” (Gaia Ciência, §342, 231) e, em um fragmento póstumo intitulado
“Meio-dia e eternidade – apontamentos para uma nova vida”, da época em que Nietzsche redigia a
primeira parte do livro, lê-se: “ Zaratustra, nascido às margens do lago Urmi, deixou sua terra natal aos
trinta anos, foi para a província de Aria e, nos dez anos de sua solidão na montanha, escreveu o Zend-
-Avesta.” (Fragmento Póstumo 11[195] da primavera-outono de 1881).
Referências bibliográficas
25
O oposto, portanto, de sua subida, quando marchava carregado por cinzas com a finalidade de se
afastar dos homens. Enquanto sua subida à caverna no topo da montanha foi “pesada”, sua descida é
marcada pela leveza, expressa através da graciosidade da dança e da pureza de seu olhar.
Danilo Bilate
1
Sobre a classificação do nojo como um afeto, ver o fragmento póstumo 26[95] do verão-outono de
1884: “O ‘bom ser humano’ – sem os poderosos afetos [Affekte] do ódio, da indignação, do nojo [des
Ekels], sem hostilidade – é uma degeneração ou um autoengodo”.
2
Ecce Homo, Assim falou Zaratustra, §6.
Com essa crítica sutil à inquisição, pela recusa à afirmação egoica contra
a qual ela lutava, Nietzsche ironiza a concepção de bondade do catolicismo e
3
Isto é, o amor ao fatum, amor ao destino, amor ao necessário, ou, como diz a célebre passagem:
“Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: – assim me tornarei
um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! [...] E, tudo soma-
do e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!” (A gaia ciência, §276).
4
Sobre isso, ver “A experiência trágica na quarta parte de Assim falou Zaratustra”, de André Martins,
texto que faz parte deste mesmo livro. A conferir especialmente com o excelente capítulo “A parte qua-
tro do Zaratustra e a vivência do amor fati”. O autor mostra de forma original a importância do quarto
livro como maturação do eterno retorno como amor fati e, por consequência, a recusa nietzscheana de
fazer do Zaratustra um romance de formação.
5
Prólogo, §3.
Como fortes ventos, queremos viver acima deles, vizinhos das águias, vizi-
nhos da neve, vizinhos do sol: assim vivem os ventos fortes.
E, tal como um vento, quero, algum dia, soprar no meio deles e, com o meu
espírito, tirar o respiro ao seu espírito: assim quer o meu futuro.
Em verdade, um forte vento é Zaratustra para todas as baixuras; e este con-
selho ele dá aos seus inimigos e a tudo o que cospe e escarra: “Guardai-vos
de cuspir contra o vento!”’.6
Se o capítulo “Da canalha” parece ter sido construído todo ele pela afetação
repulsiva, Nietzsche dá mostras de repudiar essa própria repulsa. O lamento
do canto do túmulo não é outra coisa. Nele, Zaratustra diz: “noutro tempo,
jurei abandonar todo nojo” e, então, pergunta, com ares de nostalgia: “Para
onde fugiu, então, o mais nobre dos meus juramentos?”.7 Há como que uma
6
Parte II, Da canalha.
7
Parte II, O canto do túmulo.
Terei visto, algum dia, tamanho nojo e lívido horror num rosto? Talvez ele
estivesse dormindo e a cobra lhe coleasse pela garganta adentro – e ali se
agarrasse com firme mordida.
Minha mão puxou a cobra e tornou a puxá-la – em vão! Não arrancou a
cobra da garganta. Então, de dentro de mim, alguma coisa gritou: “Morde!
Morde!”.
“Decepa-lhe a cabeça! Morde!” – assim gritou alguma coisa de dentro de
mim, assim o meu horror, o meu ódio, o meu nojo, a minha compaixão,
todo o meu bem e o meu mal gritaram de dentro de mim, num único grito.9
Somente do amor deve alçar voo o meu desprezo e o meu pássaro acautela-
dor; não de um pântano! [...] O que te faz grunhir, em primeiro lugar? Foi
que ninguém te lisonjeasse bastante; – por isso foste sentar-te junto dessa
imundície: para teres motivo de grunhir muito – para teres motivo de mui-
ta vingança! Porque é vingança, ó louco vaidoso, todo o teu espumar, bem
o adivinhei!
8
Parte II, “Dos seres sublimes”.
9
Parte III, Da visão e do enigma, §2.
[...] odioso e motivo de nojo é, para ele [para o prazer consigo], aquele que
não quer defender-se, o que engole venenosos escarros e maus olhares, o
homem por demais paciente, que tudo suporta, que se dá por satisfeito
com qualquer coisa: porque esses são modos de servo.
Que alguém seja servil ante os deuses e os divinos pontapés ou diante dos
homens e das estúpidas opiniões humanas: toda a sorte de servilismo, des-
preza esse bem-aventurado egoísmo.11
10
Parte III, Do passar além.
11
Parte III, Dos três males, §2.
12
Parte III, §2.
13
A passagem é muito semelhante à presente em “Da canalha”, já citada. No entanto, se lá havia uma
pergunta – “Schuf mein Ekel selber mir Flügel und quellenahnende Kräfte?” – aqui há uma exclamação
e, portanto, uma afirmação peremptória: “der Ekel selber schafft Flügel und quellenahnende Kräfte!”. A
tradução utilizada varia de “forças divinatórias”, no primeiro caso, para “forças pressagas”, no segundo.
14
Parte III, De velhas e novas tábuas, §14.
Portanto, na parte III, Zaratustra ainda se afeta pelo asco, e essa afetação
enfraquecedora da vida é vivenciada justamente no momento em que ele vis-
lumbra o eterno retorno. Isso porque a hipótese do retorno eterno de todas as
coisas, se verdadeira, conclui o retorno do pequeno homem. Ora, é o próprio
Nietzsche quem desvenda o enigma da cobra na garganta do pastor. Zaratus-
tra é o pastor que tem a cobra presa à garganta e arranca-lhe a cabeça. E é o
grande fastio pelo homem ou o grande nojo do homem18 que é representado
pela imagem da cobra. Ao contrário do homem servil, “que não quer defender-
-se” e “engole venenosos escarros”19 – a metáfora do veneno pode ser aproxi-
mada da imagética do enigma – Zaratustra elimina, pelo menos em sua visão,
o nojo com uma “mordida”. Mas o nojo continua recorrente.
Na parte IV do livro, a relação de Zaratustra com o asco é conturbada: ele, por
vezes, reconhece estar enojado e, outras vezes, se nomeia como o “sem nojo”.
Inicialmente, o afeto surge como característica dos homens superiores ou dos
15
Ibid., §28.
16
Parte III, O convalescente, §1.
17
Ibid., §2.
18
A palavra Ekel deve ser relacionada, como feito de modo evidente e constantemente por Nietzsche, a
Verachtung (desprezo, desdém), principalmente, mas também a Verdruss (desgosto, aborrecimento) ou
Uberdruss (fastio, tédio) e outras semelhantes. Embora todos esses termos não sejam sinônimos exatos
na língua alemã, Nietzsche os usa de modo bastante aproximado. Assim, o desprezo e o desgosto não
são indiferentes, mas re-ativos, re-pulsivos, enojados. O fastio é pelo excesso de algo que, excessivo,
se torna repulsivo. E assim por diante.
19
Trechos já citados da parte III, Dos três males, §2.
20
Como é dito depois, na parte IV, em “A saudação”.
21
Parte IV, “Colóquio com os reis”, §1.
22
Parte IV, “O feiticeiro”, §2.
23
Parte IV, “O mendigo voluntário”.
24
Parte IV, Do homem superior, §3.
25
Parte IV, O canto da melancolia, §2.
26
Parte IV, A sanguessuga.
27
Parte IV, O despertar, §1.
28
Fragmento Póstumo 26 [224] do verão-outono de 1844.
29
Gaia Ciência, §55.
30
Além do bem e do mal, §265.
31
Ibid., §287.
32
Gaia Ciência, §294.
33
Fragmento Póstumo 25[101] da primavera de 1884)
34
Repito a passagem: “Outrora, eram mal a dúvida e a vontade de afirmar o ser próprio [selbst]. Nesse
tempo, o enfermo tornava-se herege ou feiticeira: como herege ou feiticeira sofria e queria fazer sofrer”
(Assim falou Zaratustra, parte I, “Do pálido criminoso”).
35
No fragmento póstumo 25[203] da primavera de 1884, Nietzsche escreve: “Mal-entendido da glória
pensada como motivo dos fazedores criativos!! Vanité é instinto de rebanho; orgulho, [Stolz] assunto
do boi da frente”. Nessas duas passagens (também o 25[350] da primavera de 1884 citado acima)
contemporâneas, Nietzsche parece, uma vez mais, subverter o significante, nesse caso, “orgulho”. No
25[203], que poderia contradizer nossos argumentos, “orgulho” significa o sentimento ressentido do
“boi” que se julga à frente do resto do “rebanho”. Já no 25[350], “orgulho” parece significar algo com-
pletamente diferente, como vimos.
36
Além do bem e do mal, §212.
37
Falo em busca por semelhantes “de força” para que não se confunda com a busca do não nobre pela
semelhança caracterológica, mote do “instinto de rebanho”. De fato, para o nobre, a identificação com
o outro é parcial e seu foco é o amor egoico, mas, justamente esse amor narcísico faz com que o outro
seja sempre um estranho, um não eu. Nesse sentido, a amizade é um paradoxo e a tensão entre solidão
e amizade é uma tensão constante. Como afirma o fragmento 7[103] da primavera-verão de 1883: “O
prazer no seu-igual como um autodesdobramento só é possível quando se tem prazer em si próprio.
Quanto mais é esse o caso, todavia, tanto mais o estranho nos vai contra o gosto: o ódio e o nojo ao
estranho são do mesmo tamanho que o prazer consigo”.
38
Genealogia da moral, III, §14)
39
Fragmento Póstumo 25[435] da primavera de 1884)
40
Gaia Ciência, §381)
41
Ver Além do bem e do mal, §271)
42
Além do bem e do mal, §284)
43
Ver Genealogia da moral, II, §23)
44
Crepúsculo dos ídolos, Incursões de um extemporâneo, §37)
45
Fragmento Póstumo 25[9] da primavera de 1884)
46
Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”, §2. Ver também o §8)
Os doentios são o grande perigo do homem [...] são os mais fracos, os que
mais corroem a vida entre os homens, os que mais perigosamente envene-
nam e questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós [...] [são
eles que tem aquele olhar que] é um suspiro! ‘Quisera ser alguma outra
pessoa’, assim suspira esse olhar: ‘mas não há esperança. Eu sou o que sou:
como me livraria de mim mesmo? E no entanto – estou farto de mim!’... Nes-
se solo de autodesprezo, verdadeiro terreno pantanoso, cresce toda erva
ruim, toda planta venenosa [...] aqui pululam os vermes da vingança e do
rancor [...] oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar,
como anseiam ser carrascos!47
Os mais fracos são aqueles que, ao contrário dos nobres, não amam su-
ficientemente a si mesmos e, por isso, não são senhores de si. Fartos de si,
cansados de si, se auto desprezam48 e desse autodesprezo fazem nascer a vin-
gança, o rancor e o ressentimento. Os carrascos vingativos, rancorosos e res-
sentidos são homens que, por não amarem e confiarem em si mesmos, preci-
sam se medir pelo outro e se fazer valer pela violência ao outro:
47
Genealogia da moral, III, §14.
48
Ver Fragmento Póstumo 25[353] da Primavera de 1884.
49
Genealogia da moral, I, §10.
Por esse motivo é que, no campo da política, Nietzsche tece raivosos co-
mentários contra o princípio de igualdade da democracia e do socialismo pré-
-marxista. Por isso o elogio a figuras como a de Napoleão ou regimes político-
-culturais como o hindu definido pelo Código de Manu, contrastados com a
crítica feroz à Revolução Francesa e a Rousseau51. Nietzsche percebe a neces-
sidade de se pensar em um sistema político que reconheça a desigualdade
fundamental entre os homens e, por conseguinte, a importância do estabeleci-
mento da hierarquia, sustentada pelo pathos da distância: “Hoje ninguém mais
tem coragem para direitos especiais, para direitos do senhor, para um pathos da
distância... Nossa política está doente dessa falta de coragem!”52.
Não apenas a política, mas toda a cultura moderna é alvo constante das
críticas nietzscheanas. A ideia mesma de que os homens são iguais e merecem
direitos e exigências iguais é parte da lógica de “degeneração e diminuição
do homem, até tornar-se o perfeito animal de rebanho [...] essa animalização
do homem em bicho-anão”. Ao se reconhecer esse percurso decadente, expe-
rimentamos um novo tipo de nojo, o nojo pelos homens: “Quem já refletiu
50
Ibid.
51
Ver Crepúsculo dos ídolos, “Incursões de um extemporâneo”, §48.
52
O anticristo, §43.
E, para que não reste dúvida quanto ao que desprezo, a quem desprezo: é
o homem de hoje, o homem do qual sou fatalmente contemporâneo. O ho-
mem de hoje – eu sufoco com a sua respiração impura... Em relação ao passa-
do, eu sou, como todo homem do conhecimento, de uma grande tolerância,
isto é, magnânimo autocontrole: com sombria cautela eu atravesso o mundo-
-hospício de milênios inteiros, chame-se de “cristianismo”, “fé cristã”, “Igre-
ja cristã” – evito responsabilizar a humanidade por suas doenças mentais.
Mas meu sentimento se altera, rompe-se, tão logo entro na época moderna,
na nossa época. Nossa época sabe... O que antes era apenas doente agora é
indecente – é indecente ser cristão hoje em dia. E aqui começa o meu nojo.55
53
Além do bem e do mal, §203.
54
Genealogia da moral, I, §11.
55
O anticristo, §38.
56
Ibid., §37.
57
Ecce Homo, Por que sou tão sábio, §8.
58
Ibid., §6.
59
O anticristo, §38.
Torna-se necessário, portanto, superar esse grande nojo para que se sus-
tente o amor a um ideal de homem, a um tipo de homem por vir e para que
se evite, assim, a resignação passiva e inerte com a plebe, com a morosidade
escrava, com a vulgaridade do presente. A tarefa a que o §203 de Além do
bem e do mal se referia só pode ser compreendida, portanto, como a tarefa de
guiar o futuro da humanidade, de criar novos valores e de fazer surgir o além-
-do-homem [Übermensch]. Por esse motivo, Zaratustra, “o mais solitário dos
solitários”,61 disse:
60
Genealogia da moral, III, §14.
61
Assim falou Zaratustra, “O canto do túmulo”.
62
Assim falou Zaratustra, I, O prólogo de Zaratustra, §3.
63
Assim falou Zaratustra, IV, Do homem superior, §3.
Referências Bibliográficas
MARTINS, André. A experiência trágica na quarta parte de Assim falou Zaratustra. Ar-
tigo que faz parte deste mesmo livro.
NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kristische Studienausgabe in 15 Bänden, Hrg.
von Giorgio Colli und Mazzino Montinari, Munchen, Berlin und New York: Deuts-
cher Taschenbuch Verlag und Walter de Gruyter, 1980.
_____. Fragmentos do espólio: primavera de 1884 a outono de 1885. Seleção e trad.
de Flávio R. Kothe. Brasília, Ed. UnB, 2008.
______. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. de Mário
da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006a.
64
O anticristo, §57.
65
Fragmento Póstumo 26[117] do verão-outono de 1884.
66
“Do espírito de gravidade”, parte III, §2.
Conhecimento e linguagem
Das metamorfoses da interpretação
1
A esse respeito, cf. Nove variações sobre temas nietzschianos (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002),
capítulos 1 e 4, bem como o capítulo 6 de Homo deletabilis (Rio de Janeiro: Garamond/Faperj, 2010).
2
Remeto, aqui, ao segundo capítulo de Nove variações sobre temas nietzschianos, livro já mencio-
nado.
3
Todas as citações e referências ao texto estarão remetidas à obra completa, em minha tradução: Also
sprach Zarathustra, in Sämtliche Werke, op. cit., volume 1, p. 29-31.
4
Cf., a esse respeito, o parágrafo 13 da primeira dissertação da Genealogia da moral, no qual Niet-
zsche mostra de que maneira a condição de possibilidade dos valores morais reside, inicialmente, no
gesto nada inocente de se separar a força de sua manifestação. Cf., igualmente, a leitura desse texto re-
alizada por Deleuze, in Nietzsche et la philosophie (Paris: PUF, 1962), p. 140-142, e meu ensaio “A Ge-
nealogia e suas vozes: o cordeiro e a ave de rapina”. In PASCHOAL, Antonio Edmilson; FREZZATTI
Jr, Wilson Antonio (org.). 120 Anos de Para a genealogia da moral, (Ijuí: UNIJUÍ, 2008), p. 147-157.
5
Sirvo-me aqui da noção de “personagem conceitual”, proposta e desenvolvida por G. Deleuze e F.
Guattari em O que é a filosofia? (São Paulo: Editora 34, 1992), conceito operatório bastante pertinente
em se tratando de Nietzsche, cujo pensamento muitas vezes se formula e modula polifonicamente, por
meio de vozes de personagens audíveis nos textos.
6
Cf., a esse respeito, o parágrafo inicial da segunda dissertação da Genealogia.
7
Cf. Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen, in Nietzsche, op. cit., vol. 1, p. 830, minha
tradução.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Rosa Dias
1
Em seus rascunhos, Nietzsche tinha outro título para “Do imaculado conhecimento”: “Aos
contemplativos”.
Chorus Mysticus
O perecível
É apenas símile
O imperfectível
Perfaz-se enfim.
O não dizível
Culmina aqui.
O Eterno-Feminino
Acena, céu-acima.2
Mas por que o texto começa com um símile, uma imagem sensível ou
uma alegoria? É Nietzsche mesmo quem responde a essa questão em Além
do bem e do mal, no aforismo 128: “Quanto mais abstrata for a verdade que
queres ensinar, tanto mais ainda precisas seduzir para ela os sentidos.” Então,
utilizando-se de uma alegoria, Nietzsche quer trazer para as noções abstratas,
para determinados conceitos que se cristalizaram de modo a impedir que se
tenha acesso a eles, imagens que os tornem “palpáveis, tácteis e visíveis”.
Conclamando os sentidos do leitor, antes de imprecar contra os contem-
plativos, Nietzsche faz uma comparação: a gravidez falsa da lua e a lascívia dos
homens do “puro conhecimento”. Todo o texto é uma alegoria da vontade de
conhecer, identificada com a lua cheia.
Ela, que aparecia na linha do horizonte, vermelha e pesada, como uma fê-
mea que quer dar à luz um sol, no “céu-acima”, revela-se branca, fria e estéril.
2
CAMPOS, Haroldo, Deus e Diabo no Fausto de Goethe, p.61.
ou deveria ser necessária uma raça de eunucos para guardar o grande ha-
rém da história universal? Eis aí a quem a pura objetividade cairia muito
bem. Quase parece que seja preciso vigiar a história para que só saiam dela
histórias e não acontecimentos.4
3
Der Mond, a lua é, em alemão, substantivo do gênero masculino.
4
NIETZSCHE, F., Segunda Consideração Intempestiva, Da utilidade e desvantagem de história para
a vida, p.43.
5
SCHOPENHAUER, A., O mundo como vontade e como representação,§38.
6
Ibid., §36.
Nesse texto, Zaratustra aparece como intérprete da vida, e vida, para ele,
é vontade de potência. Ela não é um princípio metafísico, como a vontade de
existir ou de viver de Schopenhauer, não se manifesta, ela é simplesmente
outra maneira de se dizer a vida, de definir a vida. Foi a própria vida quem
revelou a Zaratustra o que ela é: vontade de potência. Foi ela quem lhe con-
fiou outro segredo: “Eu sou, disse ela, aquilo que sempre deve superar a si
mesmo”. Todavia, para que o homem possa corresponder a esse desejo íntimo
da vida, é necessário que tenha se libertado daquele ressentimento que lhe foi
inoculado pela tradição metafísica: o desprezo pela vida, pelo corpo, pela terra,
pelo devir e por tudo o que foi caluniado em nome do verdadeiro mundo. Fica
claro para Zaratustra que ele precisa trazer o homem de volta à vida, de supe-
rar o niilismo e de estabelecer uma aliança entre ela e o homem.
Sob esse aspecto, a ideia mais importante do texto é a definição da vida
como vontade de potência no sentido de autossuperação. No trecho citado,
essa ideia está na afirmação de Zaratustra “criar para além de si”. Em Das
tarântulas, ele diz: “A vida deve sempre superar a si mesma.” Criação e trans-
formação perpétua caracterizam bem a vida. Ela é conquista, superação das
resistências, capacidade de novas relações e, nesse sentido, é dom, criação e
amor. Toda criação é comunhão. O pensador, o criador e o amoroso são uma
mesma pessoa.
Assim, sintetizando as observações apresentadas, podemos ver que a von-
tade de potência aparece como uma nova exigência: a criação. E esse aspecto
não existe na filosofia de Schopenhauer, que reduzia a arte a uma pura con-
templação. Querer é criar. E a vontade de potência como força criadora leva
também implícita a ideia de autossuperação, isto é, a superação sempre de um
estado já alcançado. A vida criativa possui uma tendência – ela está sempre
criando e não se detém jamais em sua tarefa. Seu objetivo é crescer e crescer
sem deter-se em uma posição dada, uma operação que é imanente, já que
realiza tudo em vista de si mesma, e não de algo externo. Autossuperação é
7
NIETZSCHE, F., Ecce homo, “Por que sou tão esperto”,§ 10.
Referências bibliográficas
CAMPOS, Haroldo. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Editora Perspec-
tiva, 1981.
FOGEL, Gilvan. Conhecer é criar. São Paulo: Editora Discurso Editorial e Editora
Unijuí,2003.
MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997.
NIETZSCHE, F., Assim falou Zaratustra. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977.
______. Also sprach Zarathustra, Zämtliche Werke. Edição Crítica organizada por
G.Colli e M. Montinari. Berlim/ Nova York, Walter de Gruyter,1988. Vol.4.
______. Asi Hablo Zaratustra. Trad. de Andrés Sánchez Pascual, Madrid: Alianza
Editorial, 1994.
______. Ecce Homo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2001.
______. Segunda consideração intempestiva. Da utilidade e desvantagem da história para
a vida. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará,2003.
______. Obras incompletas. São Paulo Abril Cultural, Coleção Os Pensadores.
______. A Gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
______. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Trad. de Jair Bar-
boza. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
No presente artigo, meu objetivo é tomar como ponto de partida uma pas-
sagem célebre do segundo livro de Assim falou Zaratustra, intitulada “Da reden-
ção”, para, lastreado nela, empreender uma aproximação entre a filosofia de
Nietzsche e o pensamento zen-budista, tocando os seguintes aspectos cardi-
nais da reflexão nietzscheana: principio pela questão da verdadeira subjetivi-
dade, pela superação da ilusão consistente em identificar o si-próprio (Selbst,
Self) com a unidade da consciência de si; sob essa ótica, abordo interessantes
pontos de comunicação entre o pensamento do amor fati e a doutrina budista
do karma, visando descerrar um horizonte para uma tematização particular da
questão da liberdade da vontade como problema filosófico.
No caminho dessa reflexão, proponho uma retomada do conceito de vontade
de poder – nuclear na filosofia madura de Nietzsche, ao qual vinculo uma inter-
pretação da psicologia do ressentimento, chamando a atenção para a produtivida-
de teórica e existencial da relação entre tempo, vontade e finitude, em cuja conste-
lação pode-se problematizar a raiz metafísica da impotência, bem como a essência
da vingança, ressentimento e formações aparentadas. Saúde e doença, enfermi-
dade e convalescença, força e fraqueza, reação e espontaneidade são temas que
adquirem uma compreensão alargada a partir da ligação supramencionada.
Redenção (Erlösung) é liberação da impotência rancorosa experimentada
pela vontade na vivência do passar do tempo, especialmente como impossi-
1
NIETZSCHE, F. Also Sprach Zarathustra II. Von der Erlösung. In: Sämtliche Werke. Kritische Stu-
dienausgane (abreviado como KSA.). Ed. Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin, New York,
München: de Gruyter, DTV. 1980, vol. 4, p. 177 – 182. Não havendo indicação em contrário, as tradu-
ções são de minha autoria.
2
Cf. Mateus 15, 30: “Uma grande multidão dirigiu-se a ele, levando-lhe os aleijados, os cegos, os
mancos, os mudos e muitos outros, e os colocaram aos seus pés; e ele os curou”.
Quando Zaratustra tinha dito isso ao corcunda e para aqueles dos quais
este era advogado e porta-voz, voltou-se profundamente aborrecido para
seus discípulos e disse:
‘Em verdade, meus amigos, eu caminho entre os homens como entre frag-
mentos e membros de homens!
Para meus olhos, o que há de mais terrível é encontrar o homem destroça-
do e espalhado como sobre um campo de batalha e de matança.
E que meus olhos fujam do agora para outrora – eles encontram sempre o
mesmo: fragmentos e membros e espantosos acasos – mas não homens!
O agora e o outrora sobre a terra – ai!, meus amigos, são, para mim, o que
há de mais insuportável; e eu não saberia viver, se não fosse ainda um vi-
dente daquilo que tem de vir.
Um vidente, alguém que quer, um criador, ele mesmo um futuro e uma
ponte para o futuro – e, aí, inclusive, como que um estropiado junto a essa
ponte: tudo isso é Zaratustra.
3
Cf. Mateus 16, 13-15: “Chegando Jesus à região de Cesareia de Filipe, perguntou aos seus discípu-
los: ‘Quem os outros dizem que o Filho do Homem é?’. Eles responderam: ‘Alguns dizem que é João
Batista; outros, Elias; e, ainda outros, Jeremias ou um dos profetas’. ‘E vocês’, perguntou ele: ‘Quem
vocês dizem que eu sou?’”.
4
Cf. Gênesis 6, 5: “O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda
a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal”. A tradução luterana
desse versículo tornou-se proverbial na Alemanha. Nietzsche a retoma quase ipsis verbis na expressão
“all mein Dichten und Trachten”.
5
Cf. as palavras de Mefistófeles nos versos 1.338-1.340 do Fausto, de Goethe: “Eu sou o espírito que
nega! E com razão, pois tudo o que nasce, é digno de perecer”.
‘’Cronos’’ (em língua grega ‘’Κρόνος’’), divindade correspondente, na mitologia grega, ao Saturno
dos romanos, é um dos seis titãs, filho de Urano, que teve seis filhos com Reia: Zeus, Deméter, Hades,
Héstia, Poseidon e Hera. Cronos representa a passagem de divindades antigas arcaicas para os deuses
olímpicos, liderados por Zeus. De acordo com a narrativa mítica, a esposa de Urano era Gaia (a Terra);
cada vez que Gaia tinha um filho, Urano o devolvia ao ventre de Gaia, que, desgostosa com isso, conce-
beu um estratagema com seu filho Cronos: ela transformou o próprio seio em uma pedra com formato
de lâmina e a deu para Cronos, instrumento com o qual Cronos castrou Urano, seu pai, enquanto este
se encontrava em sono profundo. O sangue de Urano derramou-se sobre a vagina de Gaia, dando
origem aos Gigantes, às Eríneas e às Melíades. Os testículos de Urano, lançados por Cronos no mar,
originaram uma espuma de esperma, que gerou Afrodite, a deusa do amor. Após esses acontecimentos,
foi rico e pródigo o reinado de Cronos sobre os deuses, conhecido como ‘’Idade Dourada’’. Porém, de
acordo com uma profecia, Cronos deveria ser vencido por um de seus próprios filhos, razão pela qual,
temendo uma revolta, ele passou a devorar os filhos que gerava. A profecia, no entanto, acabou por se
cumprir: Zeus, auxiliado por sua mãe, Reia, venceu e destronou Cronos, na guerra conhecida como
titanomaquia, depois da qual Zeus libertou seus irmãos e desterrou os titãs para o Tártaro.
6
“Na origem, acha-se Caos, sorvedouro sombrio, vácuo aéreo onde nada é distinto. É preciso que Caos
se abra como uma goela (káos está associado etimologicamente a kásma: boqueirão, kaínó, kaskó,
kásmómai: abrir-se, ter a boca aberta, escancarar-se) para que a Luz (aithér) e o Dia, sucedendo-se à
Noite, aí se introduzam, iluminando o espaço entre Gaia (a terra) e Ourános (o céu) doravante desu-
nidos. A emergência do mundo prossegue com o aparecimento de Póuros (o mar), que surge, por seu
turno, de Gaia. Todos esses nascimentos sucessivos, sublinha Hesíodo, operam-se sem a intervenção
de Eros (amor): não por união, mas por segregação. Eros é o princípio que aproxima os opostos –
como o macho e a fêmea – e que os une. Enquanto não intervém, a gênese processa-se por separação
dos elementos previamente unidos e confundidos (Gaia gera Ouranos e Póuros). Nesta ... versão do
mito, reconhece-se a estrutura de pensamento que serve de modelo a toda física jônia. Cornford dá
esquematicamente a seguinte análise: 1. no começo, há um estado de indistinção onde nada aparece;
2. desta unidade primordial emergem, por segregação, pares de opostos, quente e frio, seco e úmido,
que vão diferenciar no espaço quatro províncias: o céu de fogo, o ar frio, a terra seca, o mar úmido; 3.
os opostos unem-se e interferem, cada um triunfando por sua vez sobre os outros, segundo um ciclo
indefinidamente renovado, nos fenômenos meteóricos, na sucessão das estações, no nascimento e na
morte de tudo o que vive, plantas, animais e homens. [Nota 12: O ano compreende quatro estações, do
mesmo modo que o cosmo compreende quatro regiões. O verão corresponde ao quente, o inverno ao
frio, a primavera ao seco, o outono ao úmido. No curso do ciclo anual, cada ‘força’ predomina durante
um momento, devendo em seguida pagar, segundo a ordem do tempo, o preço de sua ‘injusta agres-
são –Anaximandro, fr. 1–, cedendo, por sua vez, lugar ao princípio oposto. Através desse movimento
alternado de expansão e de recuo, o ano volta periodicamente ao seu ponto de partida. – Também o
corpo do homem compreende os quatro humores ... que dominam alternadamente segundo as esta-
ções.]. As noções fundamentais em que se apoia esta construção dos jônios: segregação a partir da
unidade primordial, luta e união incessante dos opostos, mudança cíclica e eterna, revelam o fundo do
pensamento mítico onde se enraíza sua cosmologia. Os filósofos não precisam inventar um sistema de
explicação do mundo: acham-no pronto. [Nota 13: A luta dos opostos, figurada em Heráclito por Póle-
mos, em Empédocles por Neikos, exprime-se em Anaximandro pela injustiça – ádikia – que cometem
reciprocamente uns aos outros. A atração e a união dos opostos, representadas em Hesíodo por Eros,
em Empédocles por Philia, traduzem-se em Anaximandro pela interação dos quatro princípios, depois
que eles se separam. É esta interação que dá nascimento às primeiras criaturas vivas, quando o ardor do
sol aquece o lodo úmido da terra. Para G. Thomson ... esta forma de pensamento que se poderia chamar
uma lógica da oposição e da complementaridade, deve ser posta em relação com a estrutura social mais
arcaica: a complementaridade na tribo dos dois clãs opostos, exógamos com inter-casamentos. A tribo,
escreve G. Thomson, é a unidade dos opostos. Quanto à concepção cíclica, Cornford mostra igual-
mente a sua persistência nos milésios. Como o ano, o cosmo torna ao seu ponto de partida: a unidade
primordial. O Ilimitado – apeíron – é não só origem, mas fim do mundo ordenado e diferenciado. É
princípio – arké – fonte infinita, inesgotável, eterna, de onde tudo provém, onde tudo torna. O Ilimitado
é ‘ciclo’ no espaço e no tempo.” (VERNANT, J-P. Mito e Pensamento entre os Gregos. Trad. Haiga-
nuch Sarian. São Paulo: Difusão Europeia do Livro. Ed. Universidade de São Paulo, 1973, p. 297s.).
7
“O que foi, não é mais; tanto quanto aquilo que nunca foi. Mas tudo o que é, nesse mesmo instante
já terá sido. Por isso, o mais insignificante presente permanece, em termos de realidade (Wirklichkeit),
em face do mais significativo passado, como algo que é, em comparação com o nada – pelo que aquele
uma coisa re relaciona a outra como algo que é em relação com o nada. Para nosso assombro, existimos
de súbito, depois de inumeráveis milênios nos quais não existimos, para, depois de um curto tempo,
ter novamente de voltar a não ser por igual tempo -. pois por meio dela, abre-se o espaço para uma
ordem de coisas totalmente diferente daquela da natureza. Por causa disso Kant é tão grandioso. A cada
ocorrência de nossa vida pertence apenas por um instante o é; daí para diante, ela pertence para sempre
ao foi. A cada noite nos tornamos mais pobres de um dia.” (SCHOPENHAUER, A. Parerga und Para-
lipomena II. Cap. XI,§ 143. Adendo à Doutrina da Nadidade da Existência).
Numa “concisão lapidar, diz uma vez Anaximandro: ‘De onde as coisas têm seu nascimento, ali tam-
bém devem ir ao fundo, segundo a necessidade; pois têm de pagar penitência e ser julgadas por suas
injustiças, conforme a ordem do tempo’. Enunciado enigmático de um verdadeiro pessimista, inscrição
oracular sobre a pedra limiar da filosofia grega, como te interpretamos? O único moralista seriamente
intencionado de nosso século, nos Parerga (II, capítulo 12, suplemento à doutrina do sofrimento do
mundo, apêndice e conexos), depõe sobre nosso coração uma consideração similar. ‘O verdadeiro
critério para julgamento de cada homem é ser ele propriamente um ser que absolutamente não deveria
existir, mas se penitencia de sua existência pelo sofrimento multiforme e pela morte: o que se pode
esperar de um tal ser? Não somos todos pecadores condenados à morte? Penitenciamo-nos de nosso
nascimento, em primeiro lugar, pelo viver e, em segundo, pelo morrer’. Quem lê essa doutrina na fisio-
nomia de nossa sorte humana universal e já reconhece a má índole fundamental de cada vida humana
no simples fato de nenhuma delas suportar ser considerada atentamente e mais de perto – embora nosso
tempo habituado à epidemia biográfica pareça pensar de outro modo, e mais favoravelmente, sobre a
dignidade do homem – quem, como Schopenhauer, ouviu, ‘nas alturas dos ares hindus’, a palavra sa-
grada do valor moral da existência, dificilmente poderá ser impedido de fazer uma metáfora altamente
antropomórfica e de tirar aquela doutrina melancólica de sua restrição à vida humana para aplicá-la,
por transferência, ao caráter universal de toda existência”. (NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época
Trágica dos Gregos. In: Os Pré-Socráticos. Seleção de textos de José Cavalcante de Souza. Coleção
Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 23).
Epílogo do Corcunda
8
“Mit Bucklichten darf man schon bucklicht reden”. Jogo de palavras: Com corcundas (Bucklichten),
já se pode falar corcundamente, a modo de corcunda.
9
“Mit Schülern darf man schon aus der Schule schwätzen”. Novo jogo de palavras: Com discípulos/
escolares (Schülern), já se pode falar a modo da escola (Schule), ou escolasticamente.
10
Mahavaipulya-buddhavatamsaka-sutra apud Ôkochi, R. Nietzsches Amor Fati im Lichte von Karma
des Buddhismus. In: Nietzsche-Studien Band-I, 1972, p. 63. As palavras entre colchetes vêm do origi-
nal em sânscrito.
11
ÔKOCHI, R. Nietzsches Amor Fati im Lichte von Karma des Buddhismus. In: Nietzsche-Studien
Band-I, 1972, p. 70.
12
Ibid., p. 74.
14
ÔKOCHI, R. Nietzsches Amor Fati im Lichte von Karma des Buddhismus. In: Nietzsche-Studien
Band-I, 1972, p. 74.
15
Apud ibid., p. 71.
Uma tal filosofia experimental, como eu a vivo, antecipa até mesmo, a modo
de experimento, as possibilidades do niilismo fundamental: sem que com isso
fosse dito que ela permaneça em um não, numa negação, numa vontade de
não. Pelo contrário, ela quer, antes, transitar para o inverso disso tudo – para
um dionisíaco dizer-sim ao mundo, como ele é, sem subtração, exceção, escolha
– ela quer o ciclo eterno –, as mesmas coisas, a mesma lógica e não lógica dos
elos. Estado supremo que um filósofo pode alcançar; postar-se dionisiacamen-
16
NIETZSCHE, F. Fragmento Póstumo da primavera – outono de 1884, nr. 25[214]. In: Sämtliche
Werke. Kritische Studienausgabe. Ed. G. Colli und M. Montinari. Berlin, New York, Munchen: de
Gruyter, DTV. 1980, vol. 11, p. 70.
17
Id., Fragmento Póstumo da primavera – outono de 1884, nr. 25[159], p. 55.
Wende der Not é a única grande vitória, porque é a própria necessidade que
se in-flexiona, reflexiona, e, assim, acolhe-se e aprova-se em sua totalidade.
Talvez não seja por acaso que Nietzsche tenha escolhido exprimir essa vivên-
cia decisiva no contexto alegórico de um fatalismo fatalismo “russo”, aproxi-
mado por ele paradoxalmente com o Budismo:
18
Id., Fragmento Póstumo da primavera – verão de 1888, nr. 16[32], vol. 12, p. 492.
19
Id., Also Sprach Zarathustra. III. Von den alten und neuen Tafeln, vol. 4, p. 246s.
20
Id., Ecce Homo. Por que sou tão sábio, 6. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p. 30s.
Todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais
precisamente, um agente; ainda mais especificamente, um agente culpado
suscetível de sofrimento – em suma, algo vivo, no qual possa sob algum
pretexto descarregar seus afetos, em ato ou in effigie [simbolicamente]:
pois a descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de
entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de
qualquer espécie. Unicamente nisto, segundo minha suposição, há de se
encontrar a verdadeira causação fisiológica do ressentimento, da vingança e
quejandos, ou seja, em um desejo de entorpecimento da dor por meio do afeto.21
21
Id., Genealogia da Moral. III, 15. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
1998, p. 116.
Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou assado, por se
achar nessas circunstâncias, nesse ambiente. A fatalidade do seu ser não pode
ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será… Cada um é necessário,
é um pedaço de destino, pertence ao todo, está no todo – não há nada que possa
julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isto significaria julgar, medir,
comparar, condenar o todo… Mas não existe nada fora do todo!
O fato de que ninguém é mais feito responsável de que o modo do ser não
pode ser remontado a uma causa prima, de que o mundo não é uma unidade
nem como sensorium nem como ‘espírito’, apenas isto é a grande libertação –
22
Id., A Gaia Ciência. Aforismo 341. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2001, p. 230.
Nietzsche, por seu turno, expressa essa mesma vivência num capítulo de
Assim falou Zaratustra significativamente intitulado “Da redenção”:
23
Id., Crepúsculo dos Ídolos. Os quarto grandes erros (8). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 46s.
24
ÔKOCHI, R. Nietzsches Amor Fati im Lichte von Karma des Buddhismus. In: Nietzsche-Studien
Band-I, 1972, p. 70.
25
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. II: Da Redenção. In: KSA. op. cit., p. 177s.
26
HEIDEGGER, M. Que Significa Pensar? Trad.Paulo R. Schneider. In: Schneider, P. R. O Outro
Pensar. Ijuí: Editora Unijuí, 2005, p.182s.
De acordo com essa tese, entre o Eu e o Todo existe uma relação de depen-
dência: não se pode aprovar uma vivência singular – portanto, aquela que aqui
e agora se processa em mim – sem com isso pressupor o todo. Sendo assim, o
que se aprova (acolhe, bendiz, afirma) não é propriamente minha decisão, mas
uma autoaprovação do todo, a partir de mim, em mim, ou seja, a máxima re-
conciliação possível entre a parte e o todo, entre a singularidade e o universal.
ÔKOCHI, R. Wie man wird, was man ist. Gedanken au Nietzsche aus östlicher Sicht. Darmstadt :
27
Sabina Vanderlei
1
Comunicação apresentada no VI Simpósio Internacional Assim Falou Nietzsche: Nietzsche e as Ci-
ências, em novembro de 2009.
2
De acordo com a tese de Oswaldo Giacoia Jr. exposta em seu artigo “Nietzsche e o Feminino”. In:
Natureza Humana, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 09-32, 2002.
3
Crepúsculo dos ídolos, “O que devo aos antigos”, § 5.
4
Scarlett Marton, por exemplo, distingue três períodos na produção intelectual de Nietzsche. O pri-
meiro, entre 1870 e 1876, abrange: O drama musical grego, Sócrates e a tragédia, A visão dionisíaca
do mundo, O nascimento da tragédia, Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, Cinco
prefácios para cinco livros não escritos, A filosofia na época trágica dos gregos e as Considerações
extemporâneas. O segundo período, de 1876 a 1882, inclui os dois volumes de Humano, demasiado
humano, Miscelâneas de opiniões e sentenças, O andarilho e sua sombra, Aurora, A gaia ciência (até
a quarta parte). O terceiro e último período, de 1882 a 1888, engloba Assim falou Zaratustra, a quinta
parte de A gaia ciência, Ensaio de autocrítica e outros prefácios, Para além de bem e mal, Genealogia
da moral, O caso Wagner, Nietzsche contra Wagner, Crepúsculo dos ídolos, O anticristo, Ecce homo,
Ditirambos de Dionisos, além de frgmentos póstumos. (MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças
cósmicas aos valores humanos. p. 25).
5
Crepúsculo dos ídolos, “O problema de Sócrates”, § 4.
6
Ibid., §1 a 12.
7
Ibid., § 9.
8
Ibid., § 10.
9
Ibid.
Necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores
deverá ser colocado em questão – para isso é necessário um conhecimento das
condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram
e se modificaram [...]. Tomava-se o valor desses valores como dado, como efe-
tivo, como além de qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou
hesitação em atribuir ao “bom” um valor mais elevado que ao do “mau”, mais
elevado no sentido da promoção, da utilidade, da influência fecunda para o ho-
mem (não esquecendo o futuro do homem). E se o contrário fosse verdade?15
10
Ibid.
11
Além do bem e do mal, § 206.
12
Crepúsculo dos ídolos, “A razão na filosofia”, § 1.
13
Ibid., § 3.
14
MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos, p. 25.
15
Além do bem e do mal, “prólogo”, § 6.
[...] o valor do mundo está na nossa interpretação [...]; O mundo que nos
importa em certa medida é falso, ou seja, não é um estado de coisas, mas o
resultado da invenção e do arredondamento de uma escassa soma de ob-
servações; ele se encontra “no fluxo” como algo que se transforma, como
uma falsidade que está sempre se deslocando, que nunca se aproxima da
verdade: pois não existe “verdade” alguma.18
16
“Fragmento póstumo 2[132], de outono de 1885 – outono de 1886”. In: Sabedoria para depois de
amanhã. Seleção dos fragmentos póstumos por Heinz Friedrich; Tradução Karina Janini. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
17
Crepúsculo dos ídolos, “prólogo”.
18
Fragmento póstumo 2[108] de outono de 1885 – outono de 1886, op. cit.
19
A Vontade de Poder, § 1059 (1884). Utilizamos a edição em português traduzida por Marcos
Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes, com apresentação de Gilvan Fogel, Ed.
Contraponto. Optamos por cotejar com a tradução para a língua inglesa em função das datas dos
fragmentos, que estão colocadas entre parêntesis. The Will to power. Tradução de Walter Kaufmann &
R. J. Hollingdale. Org. Walter Kaufmann. New York: Vintage Books, 1967.
20
MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. p. 25.
21
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade, p. 7
22
Crepúsculo dos ídolos, “A razão na filosofia”, § 1.
23
Assim falou Zaratustra, “Dos visionários do além-mundo”.
24
Ibid., “prólogo”, § 9.
25
A Vontade de Poder, § 641 (1883 – 1888), op. cit.
26
Assim falou Zaratustra, “Por que sou um destino”, §3.
27
Ecce homo, “Por que sou tão sábio”, §1.
28
Assim falou Zaratustra, “Dos famosos sábios”.
29
Ibid., “Dos seres sublimes”.
30
Ibid., “A sanguessuga”.
31
Ibid., “Da ciência”.
32
Ibid., “Do ler e escrever”.
33
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Nietzsche e o Feminino”. In: Natureza Humana, p. 17.
34
Além do bem e do mal, § 232.
35
Ibid., § 239. Não é desse feminino que trataremos nesse escrito. O debate sobre o feminino na filoso-
fia de Nietzsche também é polêmico e remetemos o leitor à bibliografia no final deste artigo.
36
Ibid., §232.
37
Ibid., “O canto da dança”.
38
Ibid., “Do superar-se a si mesmo”.
39
Ibid., “Um outro canto da dança”.
40
Ibid., “A hora mais silenciosa”.
41
Ibid.
42
Ibid., “O canto noturno”.
43
Ibid., “Os sete selos”.
44
“Fragmento póstumo 10[20], Junho – julho de 1883”, op. cit.
45
Além do bem e do mal, “prólogo”.
46
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Nietzsche e o Feminino”. In: Natureza Humana, p. 11.
47
A gaia ciência, “prólogo”, § 4.
48
BRANDÃO, Junito. Mitologia grega volume I, p. 291
49
“Fragmento póstumo 26[68], verão - outono de 1884”, op. cit.
50
Crepúsculo dos ídolos, “Máximas e flechas”, §16.
Referências Bibliográficas
51
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Nietzsche e o Feminino”. In: Natureza Humana, p. 13.
52
Assim falou Zaratustra, “Do imaculado conhecimento”.
53
Ibid.
1
Para Lou Andréas Salomé foram enviadas duas cartas em 1882, 27.\28. 6. 1882, KGB 6\213 e 3.7.
1882, KGB 6\217. No mesmo ano foi enviada uma carta a Overbeck com conteúdo semelhante em
relação à periodização de seu pensamento, 9.9.1882, KGB 6\225.
2
KGB, 9/340.
3
Quem sugeriu a Nietzsche essa sistemática de leitura de começar pelas obras de juventude, foi Georg
Brandes, que, depois de ter recebido exemplares dos primeiros livros, confessa numa carta de 7 de
março de 1888 o seu equívoco de ter começado sua leitura pelo AFZ. Cf. Curt Paul Janz - Friederich
Nietzsche, 3 B., Carl Hanser Verlag, 1979. Vol. 3, p. 266 ss.
4
EH, Prefácio, 4.
5
Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Verl. Reclam, 1931.
6
Nietzsche, 2 B. – Pfullingen: Ghunter Neske Verlag, 1961. B. I, p.17.
7
No mesmo estudo, Heidegger chama a atenção para uma carta de Nietzsche a Peter Gast de 7.4.1884,
na qual é dito que o AFZ serviria como um vestíbulo (Vorhalle) à VP, uma espécie de porta de entrada
para o edifício principal. Nietzsche já havia enviado, em 8.3.1884, ao próprio Peter Gast, uma carta
com conteúdo idêntico, e também para Meysenburg, em duas outras cartas, no final de março e no
início de maio do mesmo ano.
As alternativas de divisão
8
Não que não houvesse alternativas para a divisão da obra de Nietzsche antes da edição crítica; o
exemplo mais clássico é a proposta de Charles Andler, que, em seu livro Nietzsche, sa vie et sa pensée,
de 1958, no tomo II, p.12-16, chama a atenção para o hábito de se dividir a obra de Nietzsche em três
partes, tal como se convencionou: primeira fase, pessimismo romântico (1868-1876); segunda fase,
positivismo cético (1876-1881) e a terceira fase, período de reconstrução (1882-1888). E propõe uma
divisão em duas partes, que correspondem às duas grandes intuições de Nietzsche: a primeira, com
a descoberta da filosofia de Schopenhauer, que lhe impulsionou a elaboração do seu pensamento até
1881; a segunda, com a visão do eterno retorno, em AFZ e nas obras posteriores. Todavia, Andler não
dispunha ainda do instrumental que autores mais recentes dispõem, e que possibilita a ciência do texto
em Nietzsche. Refiro-me, sobretudo, à publicação da edição crítica.
Como tenho dito, foi a primeira vez que eu trouxe à luz aquelas hipóteses
genealógicas, às quais estes tratados são dedicados, com torpeza, que eu
seria o último a querer ocultar-me, ainda sem liberdade, sem dispor de uma
9
Cf. HDH, II, § 39.
10
Cf. HDH, I, §§ 108, 238.
11
GM, prefácio, 4.
12
Essas informações podem ser constatadas, sobretudo, nas intenções de Nietzsche declaradas na cor-
respondência de setembro a outubro de 1888, como por ex: a Paul Deussen, em 14-09; a Georg Bran-
des, em 13-09, essas citadas por Montinari. Mas também a Carl Fuchs, em 06-09; a Meta von Salis, em
07-09; ao editor Naumann, em 07-09; a Heinrich Köselitz (Peter Gast), em 12-09; à irmã, em 14-09;
a Overbeck, em 18-10; etc.
13
Montinari chama a atenção, em “Nietzsche Lesen: Die Götzen-Dämmerung”, in Nietzsche-Studien,
13, 1984, para o fato de que Cr.I constitui um projeto paralelo ao projeto da Transvaloração de todos
os valores, seria então produto do material de VP. Mas Nietzsche, sobretudo nas cartas mencionadas
na nota anterior, se refere a Cr.I. como pertencente ao projeto da Transvaloração.
Depois de concluída a parte da minha tarefa que diz sim, veio em seguida
a metade da mesma que diz não e que atua pela negação: a transvaloração
mesma dos valores até agora vigentes, a grande guerra, – a evocação de um
dia de decisão.
14
EH, III, “AFZ”, 1.
15
As referências ao AFZ, nas últimas obras de Nietzsche, não se restringem apenas às aparições em Eh,
mas se encontram, também, em outras; p.ex.: em o AC, na introdução e nos parágrafos 53 e 54; em Dd,
alguns dos ditirambos pertencem ao AFZ (“Só doido! Só poeta!”, “Entre as filhas do deserto”); Cr.I,
“Como o ‘verdadeiro mundo’ acabou por se tornar uma fábula” e como o próprio Montinari chama a
atenção, as últimas linhas de Cr.I se referem ao eterno retorno, “concepção básica” do AFZ.
16
Stegmaier insere também, nessa suposta quarta fase, os prefácios tardios (1886) de Nietzsche para
algumas de suas obras das duas primeiras fases.
17
É bom lembrar que Stegmaier, em sua obra, Interpretationen Hauptwerke der Philosophie - Von Kant
bis Nietzsche, Reclam, Stuttgart, 1997, considera o AFZ como a Hauptwerk de Nietzsche. Segundo ele,
devido a impossibilidade de Nietzsche de elaborar a sua verdadeira Hauptwerk, ele acabou por nomear
o AFZ como tal. Cf. p. 402-443.
18
Cf. Cr.I., “O que devo aos antigos”, 5.
19
Cf. GM, prefácio, 4.
20
Stegmaier em seu livro, Nietzsches ‘Genealogie der Moral’, questiona a ideia que as obras após
AFZ sejam consideradas esclarecimentos de esclarecimentos (vide p. 26). Entretanto, Salaquarda
chama a atenção para duas cartas de Nietzsche: uma para Overbeck, de 7-4-1884 e outra para Resa
von Schirnhofer, do início de maio de 1884, nas quais Nietzsche se refere a Aurora e também a A
Gaia Ciência como um esclarecimento antecipado (vorweggenommene Erläuterung) ao Zaratustra.
Cf. SALAQUARDA, J. – “Fröhliche Wissenschaft zwischen Freigeisterei und neuer ‘Lehre’” – in
Nietzsche-Studien, 1997, p. 169.
21
Cf., também, os parágrafos 53, e 54 do AC, a referência ao AFZ no final de Nietzsche contra Wagner
e o grande número de citações em EH.
22
Utilizo-me aqui da tradução de Rubens Torres Filho, in Os Pensadores, p. 311-12.
23
Ibid., p.332.
E a isso que haveis dado o nome de mundo, isso deve ser criado primeiro
por vós: é isto o que a vossa razão, vossa imagem, vossa vontade, vosso
amor devem tornar-se! E, na verdade, para vossa bem-aventurança, homens
do conhecimento! [...] Criar – essa é a grande redenção do sofrimento, é o
que torna a vida mais leve. Mas para que o criador exista são necessários o
sofrimento e muitas transformações. (AFZ, II,2).
Adriany Mendonça
Alexandre Mendonça
1
Cf. Ecce homo, “Prólogo”, § 2.
2
Ibid., “Por que sou um destino”, § 8.
3
Ibid., “Além do bem e do mal”, § 8.
4
Ibid., “Por que sou um destino”, § 2.
5
Ibid., “Assim falou Zaratustra”, § 6.
6
Ibid., “Aurora”, § 2.
7
Ibid., “A gaia ciência”.
8
Por vezes, a expressão “frölich Wissenchaft” é utilizada até mesmo de um modo irônico, como é o
caso da seção 293 de Além do bem e do mal. Neste texto, contra o culto do sofrimento e da compaixão
que ele supõe estar no bojo da decadente cultura europeia, Nietzsche receita o potente “amuleto do
gai saber”, acrescentando entre travessões – “frölich Wissenchaft, para que os alemães possam me
entender. Com isso, ele sugere uma significativa distância entre a “gaya scienza” e sua cultura natal.
9
A este respeito, vale checar o que afirma a seção 107 do livro em questão: “necessitamos de toda arte
exuberante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade de
pairarmos acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós”.
Não é divertido que mesmo os filósofos mais sérios, normalmente tão rigo-
rosos em matéria de certezas, recorram a citações de poetas para dar força e
credibilidade a seus pensamentos? – e, no entanto, uma verdade corre mais
perigo quando um poeta a aprova do que quando a contradiz! Pois, como
diz Homero: “Os poetas mentem demais”. 10
10
Ibid., § 84.
“Mas o que foi que, um dia, te disse Zaratustra? Que os poetas mentem
demais? Mas também Zaratustra é um poeta.
Acreditas, agora, que, nisso, ele falou a verdade? Por que acreditas?”
O discípulo respondeu: “Eu creio em Zaratustra”. Mas Zaratustra meneou
a cabeça e sorriu.
“A mim, a fé não me beatifica” – disse – “mormente a fé em mim. Mas
admitamos que alguém tenha dito, com toda a seriedade, que os poetas
mentem demais: ele tem razão – nós mentimos demais”.11
11
Cf. Assim falou Zaratustra, “Dos poetas”.
12
Cf. A gaia ciência, § 54.
13
Ibid., § 335.
14
Ibid., § 1.
15
Ibid., § 1.
Todos esses elementos que até então procuramos destacar como os prin-
cipais eixos desenvolvidos ao longo do texto de A gaia ciência – valorização
das aparências, exploração dos procedimentos artísticos, incitação à adoção
de uma relação estética com a existência e apologia do riso e da alegria –,
além de se articularem entre si, de se implicarem uns em relação aos outros,
como procuramos mostrar, convergem para a criação desse lugar – o plano de
imanência – a partir do qual vem a público pela primeira vez o pensamento do
eterno retorno:
16
Ibid., § 327.
17
Ibid., § 341.
Referências Bibliográficas
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? Trad. de Bento Prado Jr. e
Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
NIETZSCHE, Friedrich. Werke. Kritische Gesamtausgabe (KGW). Ed. Giorgio Colli &
Mazzino Montinari. Berlin, New York: Walter de Gruyter, 1967 sq.; Briefe, Kritische
Studienausgabe (KSB). Ed. Giorgio Colli & M. Montinari. Berlin, New York, Mün-
chen: Walter de Gruyter, DTV, 1986. Disponíveis em www.nietzschesource.org
______. Sämtliche Werke. (KSA) Edição crítica organizada por Colli e Montinari, 15
volumes. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1980.
______. O nascimento da tragédia. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
______. Humano, demasiado humano. Trad. de Paulo César Souza. São Paulo: Brasi-
liense, 2000.
______. Humano, demasiado humano II. Trad. de Paulo César Souza. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2008.
______. Aurora. Trad. de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
______. A gaia ciência. Trad. de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2001.
______. Assim falou Zaratustra. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1998.
______. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992.
______. Genealogia da moral. Trad. de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988.
André Martins
1. Introdução
1
Este artigo foi originalmente publicado com o título “Romantismo e tragicidade no Zaratustra de
Nietzsche”, nos Cadernos Nietzsche, n. 25, em 2009.
2
O nascimento da tragédia, Tentativa de autocrítica, § 2.
3
Utilizamos para este livro a tradução brasileira: O nascimento da tragédia. Trad. de J. Guinsburg. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. A tradução dos demais livros é nossa.
4
O nascimento da tragédia, Tentativa de autocrítica, § 3.
5
Ibid.
6
Ibid., § 7.
7
Ibid.
8
Ecce Homo, ‘O Nascimento da tragédia’, §1.
9
Cf. Igualmente Heidegger, M. Nietzsche. Pfullinger: Neske, 1961, que aponta cinco termos capitais
da doutrina de Nietzsche (o niilismo, a transvaloração de todos os valores, o super-homem, a vontade
de potência, e o eterno retorno).
10
LÖWITH, K. Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkehr des Gleichen. Stuttgart: Kohlhammer, 1935.
11
FINK, E. Nietzsches Philosophie. Stuttgart : Kohlhammer, 1960.
12
ANDLER, C. Nietzsche, sa vie, sa pensée. Paris: Gallimard, 1958.
13
Nietzsche refere-se ao romantismo como ligado ao niilismo, à hipersensibilidade, à décadence, à
fraqueza vital, a um descontentamento e a uma insatisfação incuráveis, (Cf. entre outros, O nascimento
da tragédia, Tentativa de autocrítica, §7; A gaia ciência, §24 e 370; Crepúsculo dos ídolos, Divagações
de um extemporâneo, §50. In: NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe, 15 volu-
mes. Berlim, Walter de Gruyter, 1988), e, portanto, à dificuldade em suportar a realidade, que encontra
expressão e abrigo no idealismo.
14
E, num certo sentido, está implicado no próprio perspectivismo, como na teoria nietzschiana das
pulsões e dos instintos, em sua crítica ao niilismo, e em seus conceitos de fisiologia e da grande saúde.
15
Como por exemplo, quando em O nascimento da tragédia, §16 e 17, Nietzsche descreve sob os termos
de alegria metafísica e consolo metafísico o sentimento de júbilo e prazer que sentimos ao nos identifi-
carmos com a vida, afirmando-a e aprovando-a com suas dores e aniquilamentos inerentes ao seu devir.
16
Notadamente Fichte, Schelling, Schopenhauer e Hegel.
17
Cf. CHENET, X. ‘Kant et l’Idéalisme Allemand’. In : Morichère, B. . (org.) Philosophes et philoso-
phies, t. 2. Paris : Nathan, 1992.
18
Cf. HEINE, H. Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha. São Paulo: Iluminu-
ras, 1991.
19
Observemos que, analogamente, o mesmo ocorre com Spinoza em relação ao racionalismo e mesmo
à ordem geométrica: são heranças de seu solo cultural e de sua época. Assim como a arte em Nietzsche,
constituem intrinsecamente sua forma de expressão e, portanto, participam do sentido de suas filoso-
fias. Porém, participam como expressão, não modificando fundamentalmente propriamente seu sentido
filosófico. Mas esta perspectiva demanda um desenvolvimento argumentativo e demonstrativo que não
caberia no escopo deste texto.
20
Que poderíamos, guardadas as diferenças, aproximar da ideia de “solo epistêmico” de Foucault.
21
Cf. MACHADO, R. Zaratustra tragédia Nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.28-31.
22
Cf. BORCHERDT, H. ’Bildungsroman’. In: Reallexikon der deutschen Literaturgeschichte, 2. Ber-
lim: Walter de Gruyter, 1958 2; Jacobs, J. Wilhelm Meister und seine Brüder. Untersuchungen zum
deutschen Bildungsroman. München: W. Fink, 1972; Selbmann, R. Der deutsche Bildungsroman.
Stuttgart: J. B. Metzler, 1984.
23
Cf. MACHADO, R. op. cit., p.30 e 137; Janz, C. P. Friedrich Nietzsche Biographie. München:
Hansen, 1978.
24
De fato, dentre os romances de formação, há dois que são repetidamente elogiados por Nietzsche
desde o início dos anos 1880: Henrique o verde, de Gottfried Keller, de 1855, e Nachsommer, de Adal-
bert Stifter, de 1857. Ambos, contudo, são bem particulares, pois, no primeiro, considerado “realista”
(e não romântico), o herói é uma espécie de anti-herói, cuja formação fracassa; e, no segundo, a própria
ideia de formação é posta em questão, ao apresentar o desejo de um destino heroico e fora do comum
como fonte de sofrimento e de frustração. Os elogios que faz a estes autores talvez indiquem uma
crítica de Nietzsche a esse gênero de romance.
25
Se consideramos os conceitos não necessariamente no sentido nietzschiano da crítica a Sócrates, como
forma de denegação dos instintos, de fachada para o moralismo, de exigência de explicação ainda que
por causas imaginárias (Crepúsculo dos ídolos, “O problema de Sócrates”); mas sim, no de termos utili-
zados por um autor com um sentido nuançado próprio à sua filosofia – como, por exemplo, quando, em
O nascimento da tragédia, §16, Nietzsche utiliza o termo “conceito do trágico [Begriff des Tragischen]”.
26
O nascimento da tragédia, §16.
27
Retomado em Ecce Homo, “O nascimento da tragédia”, §3. Sua ideia ou intuição atravessa, a nosso
ver, toda a obra de Nietzsche, expressa de maneiras diversas.
28
Uma vez que “o valor da vida não pode ser avaliado. Não por um vivo, pois ele é parte, e mesmo objeto,
do litígio, e não juiz; tampouco por um morto, por uma outra razão” (Crepúsculo dos ídolos, “O problema
de Sócrates”, §2). Ou ainda: “Uma condenação da vida feita por um vivo é, no fim das contas, apenas um
sintoma de um certo tipo de vida: a questão de saber se esta condenação é justificada ou não sequer se co-
loca. Seria preciso se situar fora da vida, e, aliás, conhecê-la tão bem como ninguém, como muitos, como
todos que viveram, para ter apenas o direito de abordar o problema do valor da vida. Quando falamos de
valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: é ela que nos força a criar valores, é a vida que ‘valora’
através de nós a cada vez que criamos valores” (Crepúsculo dos ídolos, “A moral como antinatureza”, §5).
29
Crepúsculo dos ídolos, O que devo aos antigos, §5.
30
“O nascimento da tragédia foi minha primeira transvaloração de todos os valores”.
31
Cf. GANDILLAC, M.; DELEUZE, G. Dates et événements de la vie de Nietzsche de l’Automne
1882 à la fin 1884. In : Nietzsche, F. Ainsi parlait Zarathoustra. Paris: Gallimard, 1985, p.395-402.
32
Ecce Homo, ‘Assim falava Zaratustra’, §5.
33
Cf. por exemplo Crepúsculo dos ídolos, A moral, uma antinatureza, §6.
34
Cf. GANDILLAC, M.; Deleuze, G. Les manuscrits. In: Nietzsche, F. Ainsi parlait Zarathoustra.
Paris : Gallimard, 1985, p. 403-406.
35
Ecce Homo, Assim falou Zaratustra, §1.
36
MACHADO op. cit., p.153. LAMPERT, L. Nietzsche’s teaching: an interpretation of ‚Thus spoke
Zarathustra. New Haven: Yale Univ. Press, 1986, também enfatiza, sobretudo, as três primeiras partes
do Zaratustra.
37
MACHADO 13, p. 145.
38
Ecce Homo, Assim falou Zaratustra, §1.
39
Assim falou Zaratustra, II, O canto de dança)
40
No sentido de um amor à vida apenas luminoso, isto é, no que a vida é fonte de prazer e não de
desprazer.
41
MACHADO, 1997, p.95.
42
Assim falou Zaratustra, IV, O outro canto de dança.
43
Ibid., Os sete selos.
44
Ibid., A oferta de mel.
45
Ibid.
46
Ibid., O grito de angústia.
47
Ibid., A saudação.
48
Ibid.
49
Ibid., O mendigo voluntário.
50
Cf. KSA XII, 9[8]; Crepúsculo dos ídolos, “A moral, uma antinatureza”, § 1 e 3.
51
Assim falou Zaratustra, IV, Entre as filhas do deserto.
52
Ibid., O despertar, 2.
A dor diz: “Passa! Vai-te, dor!”. Mas tudo o que sofre quer viver para ama-
durecer, para conhecer o prazer e o desejo – o desejo das coisas longínquas,
mais altas, mais claras. “Quero herdeiros, diz tudo o que sofre, quero fi-
lhos, não é a mim que quero”. Mas o prazer não quer ter filhos nem herdei-
ros – o prazer deseja-se a si mesmo, quer a eternidade, o Retorno.
53
Ibid., O canto da embriaguez, 1.
54
Ibid., A festa do burro.
55
Ibid., O canto da embriaguez, 1.
56
Ibid., O canto da embriaguez, 2.
57
E até “O outro canto da dança”.
58
Assim falou Zaratustra, IV, O canto da embriaguez, 5.
59
Ibid., O canto da embriaguez, 6.
Notemos que, se antes, ao final da parte três, é a dor [Weh] que diz “Pas-
sa!” a Zaratustra, mesmo que entendamos que Zaratustra também deseja que
ela passe, já no final da parte quatro é Zaratustra e os homens que à dor [zum
Weh] dizem “Passa!”. Se, em “O outro canto da dança”, há uma oposição en-
tre dor e prazer, indicada pela adversativa “Mas” (Doch): a dor diz “passa”,
mas todo prazer quer a eternidade, e, por isso, insiste-se em viver – apesar
da dor; já em “O canto da embriaguez”, não se diz apenas à dor que passe,
mas também que volte; e que volte porque todo prazer quer a eternidade. Para
se ter novos momentos prazerosos, para que eles voltem sempre e mais, e
mais intensamente, agora se entende, não adianta odiar a dor, querer que ela
passe, sentimo-la querendo nos destruir. É preciso entender – e sentir – que
prazer e dor estão amorosamente enlaçados. Somente desejando a vida como
um todo, com prazer e dor, é que o prazer, real e não ideal, pode ser sentido
e vivido como eterno. Não se trata mais de sensações agradáveis, mas, agora
sim, de um amor fati, de um amor ao fatuum, à efetividade como um todo. Que
a contrariedade volte, não por um suposto masoquismo, por um amor à dor
em si, mas porque ela é parte integrante, e mesmo desafiadora e estimulante,
do prazer de viver.
É somente neste décimo canto, no qual a ebriedade dionisíaca supera e
engloba a alegria e a leveza da dança, que Zaratustra expressa, em toda sua
profundidade e clareza, intensidade e sentimento, o amor fati, base de sua
60
Ibid., O canto da embriaguez, 10.
61 Ibid., O sinal.
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