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Rosa Dias, Sabina Vanderlei, Tiago Barros et al., 2011

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Nota dos editores


Excepcionalmente nesta obra a Editora, por solicitação dos organizadores, não
padronizou o livro pelas normas da ABNT, optando por seguir suas orientações
com relação à forma e localização das notas e referências bibliográficas.

Revisão (ortográfica e gramatical):


João Sette Camara
Projeto Gráfico:
Núcleo de Arte/Mauad Editora
Imagem da Capa:
“Retrato de Nietzsche”
Daniela Aparecida Gavaldão

Agradecimento à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo


à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – Faperj, pelo apoio recebido.

Cip-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

L557
Leituras de Zaratustra / Rosa Dias, Sabina Vanderlei, Tiago Barros, organizadores. - Rio
de Janeiro : Mauad X : FAPERJ, 2011.

Pesquisas de grupo de estudos, realizadas no período de 2006 a 2009 no Programa


de Pós-graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-7478-544-8
1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. Assim falou Zaratustra. 2. Niilismo
(Filosofia). 3. Filosofia - História. 4. Filosofia alemã. I. Dias, Rosa Maria. II. Ribeiro,
Sabina Vanderlei. III. Barros, Tiago Mota da Silva. IV. Fundação Carlos Chagas de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.
11-6730. CDD: 193
CDU: 1(43)
Sumário

Nota dos organizadores 9

Apresentação 11

Parte I – Diálogos e influências 15


De Bactriana e as margens de Urmi à montanha e o ocaso
Como introdução à leitura de Assim falou Zaratustra 17
Mónica B. Cragnolini – Tradução de Rebeca Furtado de Melo

O segredo abissal de Zaratustra 37


Tereza Cristina B. Calomeni

As transmutações do espírito no Zaratustra de Nietzsche 61


Vânia Dutra de Azeredo

O calcanhar de Zaratustra 73
Marcelo Lion

Parte II – Niilismo e Cristianismo 81


Zaratustra, compaixão e amor fati 83
Iracema Macedo

Uma interpretação de Das cátedras da virtude


como alegoria para o niilismo moderno 97
Joseane Vasques

Dos Cantos de Zaratustra 105


Maria Cristina dos Santos de Souza

Análise de “Da virtude amesquinhadora” e de “A festa do burro” 117


Kelly Stenzel P. de Souza e Eduardo Guerreiro B. Losso

Zaratustra: os renegantes e a falta de fé na não existência de Deus 129


Marcelo de Carvalho

Zaratustra: cristão consumado 147


Alexandre Marques Cabral
Parte III – Autossuperação e sentido da terra 165
O cenário do prólogo de Assim falou Zaratustra 167
Camila de Oliveira Silva

Vontade de poder:
a autossuperação como a dinâmica criadora da vida 171
Rebeca Furtado de Melo

Zaratustra ou o ponto máximo da integração:


“o que pode o corpo?” 187
Marco Casanova

A autoexperimentação e a guerra em “Das três metamorfoses” 203


Marlon Tomazella

O amigo Zaratustra: o sentido de amizade


no Livro I de Assim falou Zaratustra 215
Luciano Arcella – Tradução de Marco Antônio Gambôa

Sobre o sentido da terra 225


Maria Cristina Amorim Vieira

Parte IV – Alegria trágica e eterno retorno 237


A alegria e o trágico 239
Roberto Machado

Zaratustra e a possibilidade de rir de si mesmo:


“o terceiro olho do teatro” 245
Márcia Beatriz Bello Pacheco

O eterno retorno e a memória do futuro


na terceira parte do Zaratustra 257
Miguel Angel de Barrenechea

Parte V – Criação de si e singularidade 271


Nietzsche, reflexão filosófica e vivência 273
Scarlett Marton

Vida perfeita. Morte perfeita 283


Gilvan Fogel

O que pode o eu. A criação de si e a redenção dos acasos 301


Gustavo B. N. Costa
Zaratustra em busca de terras natais 317
Ricardo de Oliveira Toledo

O camelo, o leão e a criança na trajetória de Zaratustra 333


Tiago Barros

A propósito do nojo de Zaratustra:


a nobreza e o pathos da distância 343
Danilo Bilate

Parte VI – Conhecimento e linguagem 359


Das metamorfoses da interpretação 361
Maria Cristina Franco Ferraz

Do imaculado conhecimento: “olhos ébrios de lua” 373


Rosa Dias

Da redenção
Assim falou Zaratustra II: para uma interpretação 383
Oswaldo Giacoia Junior

Zaratustra, o homem teórico e o feminino 403


Sabina Vanderlei

Parte VII – Obras de Nietzsche e a tradição 415


O Assim falou Zaratustra como obra capital de Nietzsche 417
José Nicolao Julião

Zaratustra e a gaia ciência 431


Adriany Mendonça e Alexandre Mendonça

A experiência trágica na quarta parte de Assim falou Zaratustra 447


André Martins

Sobre os autores 467


Nota dos organizadores

Há diferentes maneiras de citar as obras de Nietzsche e os


pesquisadores que colaboraram com este livro utilizaram fontes
diversas de pesquisa, obras em alemão, francês, espanhol, italia-
no e inglês, além do português. O leitor encontrará referências
aos escritos nietzschianos através dos diferentes sistemas de si-
glas decorrentes das compilações de suas obras completas efetua-
das por Giorgio Colli e Mazzino Montinari (KSA e KGB), assim
como das numerações de aforismos ou pelo sistema autor, títu-
lo, ano e página. Não interviemos nas referências bibliográficas
dos artigos aqui presentes com o intuito de manter o estilo de
cada pesquisador. Dada a heterogeneidade das pesquisas que in-
tegram este livro, também optamos por não intervir em escolhas
como a tradução do título da principal obra referenciada ao lon-
go do livro (“Assim falou Zaratustra”/“Assim falava Zaratustra”),
assim como a grafia do adjetivo (“nietzschiano”/”nietzscheano”),
ou de conceitos como (“vontade de potência”/“vontade de poder”).

Leituras de Zaratustra 9
Apresentação

Leituras de Zaratustra consiste em uma coletânea de artigos sobre o livro


Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, escritos por alguns de seus pes-
quisadores. O projeto da publicação é resultado das pesquisas de um grupo de
estudos sobre a obra, realizadas no período de 2006 a 2009 no Programa de
Pós-graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj),
a partir de disciplinas ministradas pela professora doutora adjunta da Uerj Rosa
Dias e pela então professora doutora visitante da Uerj Iracema Macedo.
Esse estudo gerou grande interesse em pesquisadores de distintas forma-
ções (sobretudo pós-graduandos em Filosofia da Uerj, mas também profis-
sionais e estudantes de Letras, Artes, Ciências Sociais, Teatro, Psicologia e
Comunicação), vinculados a diversas instituições de ensino (dentre as quais
Uerj, UFRJ, Unirio, Ufop, UEL e UFC), que, sob a orientação e coordenação
de Rosa Dias, produziram os trabalhos que estão reunidos nesta coletânea,
que foi contemplada pelo Programa de Auxílio à Editoração (APQ 3) da Fun-
dação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(Faperj).
A Parte I, intitulada “Diálogos e influências”, contém quatro artigos que
investigam algumas das referências deste enigmático livro “para todos e para
ninguém” em sua interface com o zoroastrismo, com a mitologia grega, com
a filosofia de Nietzsche e com a tradição filosófica. Mónica B. Cragnolini es-
creve uma introdução para Assim falou Zaratustra. Tereza Cristina B. Calomeni
analisa a trajetória do personagem com o intuito de evidenciar a centralidade
que o pensamento do eterno retorno ocupa na obra. Vânia Dutra Azeredo re-
laciona o discurso “Das metamorfoses do espírito” com a história da filosofia.
Marcelo Lion explora a confluência entre “O canto do túmulo” e passagens da
mitologia do herói Aquiles presentes na Ilíada e na Odisseia.
A Parte II, “Niilismo e Cristianismo”, é composta por seis artigos que ex-
ploram temas relativos às diversas variantes do niilismo na filosofia de Niet-
zsche, assim como sua complexa relação com o cristianismo e com a figura
de Cristo. Iracema Macedo investiga as noções de compaixão e de amor fati na
filosofia de Nietzsche. Joseane Vasquez interpreta “Das cátedras da virtude”
como alegoria para o niilismo moderno. Maria Cristina dos Santos de Souza

Leituras de Zaratustra 11
faz uma leitura dos discursos “O canto noturno”, “O canto de dança” e “O can-
to do túmulo”, considerando-os como elementos-chave para compreensão do
estilo da obra. Kelly Stenzel P. de Souza e Eduardo Guerreiro B. Losso refletem
sobre a crítica de Nietzsche à modernidade a partir dos discursos “Da virtude
amesquinhadora” e “A festa do burro”. Marcelo de Carvalho, a partir do dis-
curso “Os renegados”, analisa a volta à devoção, considerada como metáfo-
ra da recusa ou rejeição diante da tarefa de autossuperação, entendida como
sentido principal do conceito nietzschiano de vontade de poder. Alexandre
Marques Cabral tem como intuito caracterizar a proposta última de Zaratustra
como geradora da consumação do ideário soteriológico do cristianismo.
A Parte III, “Autossuperação e sentido da terra”, reúne seis artigos que ana-
lisam as peculiares noções de vida e amizade no Zaratustra, assim como a valo-
rização da imanência presente na obra. Camila de Oliveira Silva traça algumas
considerações acerca da problemática da superação em Nietzsche, sobretudo
à luz do prólogo de Assim falou Zaratustra. Rebeca Furtado de Melo analisa
a vontade de poder e o eterno retorno como conceitos centrais da filosofia
de Nietzsche e chave fundamental para o entendimento de seu Zaratustra.
Marco Casanova busca responder à questão “o que pode um corpo?”. Marlon
Tomazella faz uma interpretação das figuras do camelo e do leão presentes no
primeiro discurso da obra. Luciano Arcella tece considerações sobre a amizade
a partir da primeira parte do livro. Maria Cristina Amorim Vieira reflete sobre
o “sentido da terra” a partir da leitura dos discursos “Das três metamorfoses”
e “Da Redenção”.
A Parte IV, intitulada “Alegria Trágica e eterno retorno”, é composta por
três artigos que tratam da importância do riso e da alegria na obra e de uma
de suas noções centrais: o eterno retorno. Roberto Machado escreve sobre a
tragicidade de Assim falou Zaratustra a partir da leitura do discurso “Da Visão
e do enigma”, no qual a alegria e o trágico se fazem presentes. Márcia Beatriz
Bello Pacheco aborda a obra pela perspectiva do teatro e investiga a possi-
bilidade de haver expressão filosófica por meio de uma estrutura cênica ao
analisar Zaratustra como personagem trágico da existência. Miguel Angel de
Barrenechea escreve sobre o eterno retorno com a finalidade de refletir sobre
uma nova concepção de memória.
A Parte V, “Criação de si e singularidade”, reúne seis artigos que tratam
da busca por tornar-se o que se é na filosofia de Nietzsche e na trajetória
do personagem Zaratustra. Scarlett Marton analisa a inter-relação entre vida
e obra na filosofia de Nietzsche que levou o autor a se identificar com seu
personagem Zaratustra. Gilvan Fogel comenta “Da Morte livre”, penúltimo

12 Apresentação
discurso da primeira parte da obra. Gustavo B. N. Costa analisa os discursos
“Dos desprezadores do corpo” e “Da redenção” com o intuito de investigar o
estatuto e as implicações da tarefa de criar a si de Zaratustra, simbolizada na
máxima de “tornar-se o que se é”. Ricardo de Oliveira Toledo escreve sobre a
busca de Zaratustra pelas terras natais do além-homem. Tiago Barros analisa
as figuras do camelo, do leão e da criança e aventa a hipótese do próprio per-
sonagem ter passado por tais transmutações no prólogo da obra. Danilo Bilate
analisa a tipologia do “nobre” ou “senhor”, o conceito de “pathos da distância”,
e o afeto da solidão para elucidar possíveis significações do nojo de Zaratustra.
A Parte VI, “Conhecimento e linguagem”, contém quatro artigos que ex-
ploram algumas das principais críticas de Nietzsche ao conhecimento ociden-
tal e as peculiaridades da linguagem utilizada em seu Zaratustra. Maria Cristina
Franco Ferraz interpreta o discurso “Das três metamorfoses”. Rosa Dias vê no
discurso “Do imaculado conhecimento” elementos críticos à filosofia de Scho-
penhauer. Oswaldo Giacoia Junior traduz e comenta “Da Redenção”. Sabina
Vanderlei escreve sobre o confronto de Zaratustra com os homens teóricos.
A Parte VII, “Obras de Nietzsche e a tradição”, reúne três artigos que pro-
põe diálogos do Zaratustra com outras obras de Nietzsche e com a história
da Filosofia. José Nicolao Julião situa o Zaratustra no conjunto da produção
intelectual de Nietzsche e lhe confere lugar de destaque como obra capital do
filósofo. O artigo de Adriany Mendonça e Alexandre Mendonça propõe uma
aproximação entre o Zaratustra e A gaia ciência a partir de sua sintonia concei-
tual. André Martins problematiza a influência do romantismo na obra.
Leituras de Zaratustra visa trazer para os estudantes, pesquisadores e para
o público em geral um aprofundamento dessa obra que, até hoje, suscita tão
ricas e esclarecedoras interpretações.

Rosa Dias, Sabina Vanderlei e Tiago Barros

Leituras de Zaratustra 13
Parte I

Diálogos e influências
De Bactriana e as margens de Urmi à montanha e o ocaso1
Como introdução à leitura de Assim falou Zaratustra2

Mónica B. Cragnolini
Tradução de Rebeca Furtado de Melo

Algum dia se sentirá a necessidade de instituições nas quais se viva


e ensine como eu entendo viver e ensinar; talvez, inclusive, se criem
cátedras especiais para a interpretação do Zaratustra. Porém,
estaria completamente em contradição comigo mesmo se hoje
esperasse ouvidos e mãos preparados para as minhas verdades: que
hoje não me escutem, que hoje não se saiba retirar nada de mim,
não só é compreensível, mas me parece inclusive justo.
(Ecce Homo, “Warum ich so gute Bücher schreibe”, 1).

0) Introdução – incerta – a outra introdução

O que, afinal, pode significar uma “introdução” à leitura de Assim falou Zaratus-
tra? Quem poderia atribuir-se o direito de haver compreendido uma única linha para
poder escrever sobre a obra, dizer acerca da obra, explicar algo? Em virtude de que
me atribuo à possibilidade de tentar expressar qualquer coisa sobre o Zaratustra, que
práticas acadêmicas me levam a esta empreitada que já agora, desde o início, considero
impossível, incerta e infecunda? Que exercício de inutilidade estou praticando quando
escrevo estas linhas, quando busco as informações para as notas, quando pretendo que, a

1
Com esse título quero aludir à “procedência” do Zaratustra histórico (nascido em Bactriana) e a
seu “lugar” no Zaratustra nietzschiano (a descida da montanha, com a qual se inicia seu “ocaso”, sua
necessidade de transformação: de inventor do bem e do mal a negador de dualismos e dos grandes
valores). Conferir NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kristische Studienausgabe in 15 Bänden, (em
diante, KSA), Hrsg. von G. Colli und M. Montinari, Berlin/New York, De Gruyter/DTVA, 1980, KSA
3, Die fröhliche Wissenschaft, # 342, p. 571: “Quando Zaratustra completou 30 anos, deixou sua pátria
e o lago Urmi e foi para a montanha”.
Nota da tradução: Optamos por manter as indicações bibliográficas apontadas no original, traduzindo
livremente as passagens citadas, sem fazer qualquer tipo de correlação com as referências das tradu-
ções brasileiras, portanto, as páginas e demais informações bibliográficas indicadas são referentes aos
textos indicados no artigo original, em espanhol. Esta tradução foi revisada pela autora.
2
Artigo publicado na Revista de Filosofía, Universidad de Chile, v. LV-LVI, 2000, p. 39-56.

Leituras de Zaratustra 17
algum possível leitor, estas páginas sirvam para algo, permitindo-o localizar-se em alguma
perspectiva, facilitando, assim, algum caminho? Que perversa moral de abridor de trilhas
me move a esta tarefa? Por acaso, não sei que o Zaratustra não pode ser explicado? Não
sei, além disso, que para nada serve a leitura “tradicional” filosófica, a leitura que busca
argumentos e conexões, metáforas a serem traduzidas, raciocínios e pistas? Há aqui, por
acaso, “pistas”, existem grandes ideias por trás da águia e do leão, do funâmbulo e das
tarântulas, dos homens do mercado e do papa aposentado? Quis Nietzsche “dizer algo
mais” do que disse, existe algum “excesso de sentido” em estado embrionário que deva ser
explicitado, analisado, fragmentado, dissecado ao filosófico gosto vampírico?
Não sei muito bem para que e nem porque escrevi estas linhas que representam, em
parte, uma negação do que penso que há de ser uma leitura de Zaratustra. Mas as forças
seguem caminhos fortuitos e estranhos e talvez também seja necessária uma “localiza-
ção” do Zaratustra, uma coleta de materiais, nem que seja somente para dizer uma vez
mais: assim não se deve ler.
Porque “O caminho – não existe!”3

1) O “lugar” de Assim falou Zaratustra


entre as obras de Nietzsche

Assim falou Zaratustra ocupa um posto muito especial entre as obras de


Nietzsche, e esta afirmação abarca muitos sentidos. Em primeiro lugar, Niet-
zsche considerou sempre esta obra num lugar à parte dentro de sua produção
filosófica, “uma espécie de abismo do futuro”,4 uma abertura aos temas de sua
filosofia afirmativa, e que não requeria explicação alguma (ainda que se possa
ressaltar que Além do bem e do mal, em mais de um aspecto, responde a uma
certa necessidade de explicitar certos temas do Zaratustra).5
Fink aponta para o fato de que esta obra “inaugura a fase terceira e defini-
tiva da filosofia de Nietzsche”;6 contudo, se considerarmos as obras posterio-
res a Zaratustra, talvez possamos afirmar que mais do que inaugurar a etapa

3
KSA 4, Also sprach Zarathustra (em diante, Za), “Vom Geist der Schwere”, n. 2, p. 245, Así habló
Zaratustra, (em diante, AZ), trad. A. Sánchez Pascual, Madrid: Alianza, vs. eds., p. 272.
4
Carta a Rohde, em NIETZSCHE, F., Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe, (em diante, KSB)
Hrsg. von G. Colli und M. Montinari, Berlin/New York, W. de Gruyter, 1986, Band 6, Nro. 490,
22/2/1884, p. 479.
5
Tal como Nietzsche indica em uma carta a Overbeck, 5/8/86, KSB 7, Nro. 729, p. 223, na qual ele
sugere que, talvez, Além do bem e do mal possa iluminar alguns aspectos dessa obra incompreensível
que é Zaratustra (“ein unverständliche Buch”).
6
FINK. E., La filosofía de Nietzsche, trad. A. Sánchez Pascual, Madrid, Alianza, 1980, p. 71.

18 Mónica B. Cragnolini
definitiva, é “obra de articulação” entre os dois grandes momentos críticos: o
que se inaugura com obras como Humano demasiado humano e aquele outro cuja
principal característica são os tons elevados, fortes e agressivos de Ecce homo,
O anticristo, etc.
Por que, depois de uma obra afirmativa como Assim falou Zaratustra, re-
tornar à crítica, ao martelo, agora exasperado e sem poupar adjetivo algum,
contra a cultura do Ocidente, mas, sobretudo, contra a religião monoteísta
judaico-cristã? Por que retornar aos temas do niilismo integral, da crítica, do
desmascarar ideológico, uma vez que já se havia indicado as vias de afirmação?
Não era o “não” – de Humano, de Aurora... – o caminho prévio ao “sim” de Za-
ratustra? Por que voltar à negação depois da afirmação?
Zaratustra inaugura a filosofia afirmativa do amor fati, do sim dito à vida
em todos seus aspectos: talvez a partir deste sim, da visão da possibilidade da
vida do homem desde esta nova forma de pensamento-práxis, o que se torna
mais urgente é, novamente, a necessidade da crítica, a necessidade de destruir
as bases da moral que impedem que a afirmação se constitua na forma de vida
própria do homem do Ocidente. Talvez por meio da afirmação se tenham tor-
nado mais visíveis as deficiências e as carências do homem metafísico, quem
sabe a afirmação tenha feito ressaltar os traços de sua indigência e enfermi-
dade. Contudo, também é certo que Nietzsche sabe que nenhuma argumen-
tação destrói as “razões” pelas quais nos aferramos a uma forma de vida, daí
que já não busque mais nestas últimas obras “razões” para argumentar sobre
conveniências, senão que se dedique a insultar e gritar: talvez assim o híbrido
de planta e de fantasma desperte, talvez desse modo o homem, que arrasta a
comodidade de seus costumes com pesados lemas morais, descubra sua pró-
pria mentira, descubra que “razões” o levam a venerar aquilo que considera o
“mais sagrado” e decida liberar-se delas. Porque o que conta aqui é a resposta
vital, a decisão, o dizer “ou tu ou eu” como disse Zaratustra ao pesado anão
que o impedia de avançar e superar-se.7 “Tu ou eu”, a moral das comodidades
disfarçadas de sagrados princípios (sagrada família), ou a aposta pela vida, que
é a aposta pelo risco e pelo incerto.

7
Conferir KSA 4, Za, “Vom Gesicht und Räthsel”, p. 199, trad., AZ, p. 225. Em “Da visão e do enigma”
se mostra o caráter de “decisão” que tem a assunção da ideia do eterno retorno, caráter que desenvolvo
mais adiante. Neste capítulo, Zaratustra conta uma visão: o mesmo subia uma montanha, apesar do
espírito de gravidade que o puxava para baixo. Zaratustra subia, oprimido por este peso, até que a “co-
ragem” (assassina de todo desalento) o obrigou a deter-se e dizer: “Alto lá, anão! Ou tu ou eu”. A partir
daí se sucede a outra visão, a do portal no qual se visualiza o eterno retorno e a importância do instante.

Leituras de Zaratustra 19
É certo que Nietzsche se referiu ao Zaratustra como “o livro santo” (reto-
mando uma frase de seu amanuense Peter Gast8) e como seu melhor livro,9
mas, também, ao mesmo tempo, como o livro de sua cura. Porque nesses dias,
empenhado em realizar a alquimia que o permitisse converter em ouro toda
enfermidade e decadência em sua pessoa, o Zaratustra se converteu no “salva-
dor de sua vida”.10 Porém, com a peculiar ambiguidade daquilo que cura (o
pharmakón grego: tanto remédio quanto veneno), o Zaratustra sana, mas, por
sua vez, abre abismos, propicia a cura, mas também é um perigo, já que é o
resultado de uma explosão, de uma grande dor,11 que pode dar à luz tanto o
positivo quanto a morte. Porque o Zaratustra é um desafio, uma provocação
a todas as religiões e uma chacota (mesmo a partir desta atribuição de “livro
sagrado”) a todas elas. O Zaratustra é também uma afronta ao homem do mer-
cado e da praça pública, para o homem que cultiva pequenas virtudes com o
objetivo de não ver a dor e o perigo dos riscos, das escolhas; Zaratustra é uma
provocação para o duelo ao douto e ao sábio, aos que creem que a sabedoria
se consegue nas academias buscando argumentos e conexões dedutivas, ou
esperando que do umbral da casa da sabedoria caia um pensamento para que
alguém possa se apropriar dele; o Zaratustra é uma bofetada para o filósofo
que crê que é possível marcar limites precisos entre pensamentos e literatu-
ra ou poesia, e não percebe por quais caminhos transita o pensar, além dos
caminhos marcados pelo seu “ofício”. O Zaratustra é também uma chacota
constante com os leitores, que buscam sinais e apontamentos na leitura, que
se reúnem ao entardecer junto ao fogo para “falar” de Zaratustra, mas são
incapazes de pensar nele.
A partir do ponto de vista da arquitetura de seu pensamento, Nietzsche
se referiu a esta obra como o “prefácio” ou a “antessala” de sua filosofia12
e, neste sentido, poderia-se pensar que Zaratustra “preanuncia” os temas de
sua filosofia. Contudo, a contínua alusão à “incompreensibilidade” da obra, à
necessidade de experimentá-la, parecerá mostrar que os “temas” em seu pen-
samento se traduzem em “práticas” ou que, uma vez desaparecido o dualis-
mo do mundo verdadeiro/mundo aparente, o pensamento não pode ser outra

8
Conferir carta a Köselitz de 21/4/83, em KSB 6, Nro. 405, p. 365.
9
Conferir carta a Overbeck de 1/2/83 em KSB 6, Nro. 372, p. 324.
10
Conferir carta a Ida Overbeck, meados de julho de 1883, KSB 6, Nro. 438, p. 406.
11
Uma grande dor, como a do parto: repetidas vezes, Nietzsche disse em suas cartas que ele deveria
desaparecer para que “seu filho, Zaratustra”, seja considerado. Conferir carta a Peter Gast, 27/4/83,
KSB 6,  Nro. 407, p. 367, e a Elisabeth Nietzsche, na mesma data, Nro. 408, p. 368.
12
Conferir cartas a F. Overbeck, 8/3/84, KSB 6, Nro. 494, p. 485 (“Dieser Zarathustra ist nichts als eine
Vorrede, Vorhalle...”), e a Malvida von Meysenbug, KSB 6, Nro. 498, p. 490.

20 Mónica B. Cragnolini
coisa que práxis, o que poderia tornar mais acessível esse caráter decisivo que
exige a ficção do eterno retorno.
Por outro lado, talvez a linguagem de Zaratustra, como linguagem poéti-
ca, criadora, seja o mais próximo desta tentativa nietzschiana, na medida em
que, ali, a linguagem não é algo que “se descobre” (a voz ou expressão de um
fundamento), mas é, antes, a poiesis do pensador. Por isso, a “arquitetura” do
Zaratustra não é algo distinto de sua linguagem, nem sua linguagem é o “meio
de expressão” de seu filosofar. A linguagem de Zaratustra é o filosofar mesmo,
com esta linguagem Nietzsche está indicando outras vias para o pensamento
acostumado à mumificação conceitual e às habitualidades de empalhador. A
“linguagem poética” é o filosofar mesmo: daí as dificuldades indicadas quanto
à tentativa de buscar pistas, símbolos, alegorias. Porque não existe um “ou-
tro” que dê o significado, um sentido que “justifique” o uso de certos termos,
senão que o sentido se dá com o uso mesmo: daí a dificuldade de “tradução”
(com que outros termos explicaríamos as “metáforas” de Zaratustra?) e da
compreensão: como “compreender” sem buscar “explicar”, como “compreen-
der-vivendo”?

2) Lou e o dispêndio excessivo de amor

Compreender-vivendo: também existe no Zaratustra uma vida que escreve


a si mesma, a do “homem F. N.” Assim falou Zaratustra encontra-se inextrica-
velmente unido a um episódio de amor que deu bastante material para a es-
crita, tanto a novelistas quanto a intérpretes e biógrafos: a comunidade “além
do bem e do mal” que tentaram formar Lou von Salomé, Friedrich Nietzsche
e Paul Rée. A relação com Lou teve para Nietzsche essa ambivalência e tensão
entre amor e ódio que caracteriza todo choque e encontro de forças e que en-
contra sua expressão mais pathética no amor dos amantes ou no dos amigos.
Lou foi tanto a discípula esperada quanto a mulher possuidora do “egoísmo
felino do qual não se pode amar”, tanto a guardiã do segredo do Monte Sacro13
quanto “a macaco magro”,14 a mulher que reputou-se imoral por encontrar-se

13
Parece que o primeiro encontro a sós entre Nietzsche e Lou foi o que aconteceu em Monte Sacro,
encontro que constituiu para Nietzsche o “sonho mais maravilhoso” de sua vida. Conferir  PETERS,
H.F., Lou Andreas-Salomé. Mi hermana, mi esposa. Una biografía, trad. Ana M. de la Fuente, Bar-
celona, Paidós, 1995, p. 93 ss., F. NIETZSCHE- LOU VON SALOMÉ-P.REE, Documentos de un
encuentro, selecc., prólogo y notas de E. PFEIFFER, trad. A.M. Domenech, Barcelona, Laertes, 1982,
y JANZ, C.P., Friedrich Nietzsche, Vol 3, Madrid, Alianza, 1985, p. 102-103. Nietzsche fazia alusão a
este momento mágico com Lou como o “mistério do Monte Sacro”.
14
Conferir carta a Georg Ree, de julho de 1883, KSB 6, Nron. 435, p. 402.

Leituras de Zaratustra 21
“além do bem e do mal” para descobrir, em seguida, que o era somente no
sentido corrente do termo.15
Muitos elementos devem ser considerados nesta relação: a presença da
irmã Elizabeth, ciumenta das possibilidades de aproximação de Lou e de seu
irmão; o papel de Rée, apaixonado por Lou e respeitoso com relação ao seu
amigo; o lugar de Malwida von Meysenbug, a mulher maternal de “ideias libe-
rais” que propiciou a amizade dos três, mas logo preveniu a Lou que não podia
viver com dois homens; e as questões que estabelecem as relações de Lou com
os Wagner (de quem Nietzsche estava distanciado nessa época), as intrigas
de mães, irmãos(ãs) e conhecidos, e a opinião escandalizada das “pequenas
gentes” frente à comunidade dos três amigos...
Lou sempre havia cultivado a ideia de formar uma comunidade de estudos
e de amizade, e, de certo modo, Nietzsche apareceu, logo após Paul Rée, em
1882, como o terceiro componente da dita união. Não eram esses os planos do
pensador, que pretendia com Lou aquela exclusividade “possessiva” que ele
mesmo assinala para o amor entre os sexos. Daí sua frustração ante a negativa
do seu pedido de matrimônio – feito por intermédio de Rée – e diante dos ane-
los femininos: um quarto cheio de livros e flores e os “camaradas” de trabalho.
Esta amizade que Lou buscava, esse trato com pensadores, talvez tenha
sido uma constante em sua vida: suas viagens com Rilke e sua proximidade
a Freud assim parecem indicar. Do ponto de vista do “homem F. N”, ao con-
trário, Lou ocupa esse lugar “exclusivo” que poderia ocupar a mulher com a
qual se escolhe – ainda que um tanto precipitadamente – dividir a vida (se
falamos de escolhas precipitadas, Nietzsche já havia cometido algo similar ao
pedir a mão de Matilde Trampedach). O Nietzsche apaixonado pela esposa de
seu Pater Seraphicus, Cosima Wagner, que mais tarde foi a Ariadna das cartas
de sua loucura de Turim de 1889, encontrou em Lou aquela mulher que já não
era necessário disputar com ninguém (salvo, talvez, com Rée), mas que, con-
trariamente aos seus desejos, não aspirava o mesmo tipo de união e de relação
que ele. A mesma expressão “além do bem e do mal”, aplicada à comunidade
dos amigos e que parece tão nietzschiana, foi, na realidade, adotada por Lou
para demarcar com tons nietzschianos seus anelos de amizade. Porque Lou
não buscava adaptar-se a nenhum modelo “de fora”, mas, ao contrário, dese-
java viver de acordo consigo mesma, de acordo com seus próprios desejos, em

15
O sentido corrente do termo “imoral” refere-se à transgressão das normas morais, transgressão que
está em desacordo com um valor de fundamento de bem que transgride. Contrariamente, a moral “além
do bem e do mal” apontaria a desaparição dos grandes valores e, portanto, a desaparição do Bem e do
Mal como fundamentos da ação (o que não elimina, certamente, o “bom” e o “mau” com minúsculas).

22 Mónica B. Cragnolini
suas próprias buscas vitais.16 Daí que o choque de suas forças com as de Niet-
zsche não gerou o resultado que o pensador buscava, mas o que os intérpretes
sempre aludem como “o idílio trágico”, o amor que não pôde chegar a contar
sua história para além de dois ou três momentos mágicos e uma infinidade de
desencontros. O encontro “estelar” em São Pedro, no qual Rée e Lou iam para
escrever – Rée escrevia em um confessionário –, e a visita, sozinhos, ao Monte
Sacro, instante místico que Nietzsche sempre recordará, são apenas pequenos
pontos afirmativos numa história que foi transformada pouco a pouco num
cúmulo de incompreensões, frustrações, desencantos, intrigas, etc. Contudo,
os “registros” que ficaram desta história talvez sirvam para aprofundar mais
esse paradoxo do pensador que pode assumir máscaras diversas, como a de
quem exalta a amizade acima do amor sexual em virtude do seu caráter não
possessivo e que não cede, contudo, completamente aos desejos de amizade co-
munitária de seus amigos; a do homem que busca estar “além do bem e do mal”
e que em seguida sem rodeios acusa de “nada mais que imoral” a mulher ama-
da; a do pensador do risco e a do homem tímido, incapaz de declarar seu amor
a uma mulher e que necessita de um mediador-transmissor para essa tarefa.
Paradoxos que não servem para outra coisa senão para mostrar esse caráter
ambíguo, múltiplo e ambivalente do eu que se constitui de diferentes manei-
ras nos distintos embates de força, do eu que não é mais do que a densida-
de das forças num dado momento. Densidades diversas estabelecem marcos
daquele indivíduo a quem nomeamos “Nietzsche”, densidades que não tem
porque convergir nem terminar em uma suposta explicação – seja psicológica,
seja moral – de atitudes ou modos de agir.
Há quem buscou os vestígios de Lou no Zaratustra, ligando, por exemplo, a
paródia da frase “Se vais ter com mulheres, não esqueça o chicote” à fotografia
que Nietzsche, Rée e Lou tiraram no estúdio de Jules Bonnet, um conhecido
fotógrafo suíço, fotografia na qual Lou, com chicotes nas mãos, dirige em uma
carroça homens sob seu domínio, ou os rastros de seu amor frustrado em
suas referências às mulheres em geral. Há quem considerou que Zaratustra
não teria sido possível sem o “affaire Lou”, 17 e que foi a dor desse amor não
correspondido que gerou a obra.
Elucubrações à parte,18 poderia-se dizer que o Zaratustra é um “dispên-

16
Conferir Lou a Hendrik Gillot de março de 1882, em PFEIFFER, op. cit., p. 73.
17
Conferir, por exemplo, PETERS, op. cit., p. 137 ss.
18
Ainda que seja justo ressaltar que, quando Nietzsche faz referência a sua frustrada relação com Lou,
por exemplo, nas cartas a Rée, costuma citar frases do Zaratustra como paradigmas de certas condutas
(conferir em PFEIFFER, op. cit., p. 223 e 225, inter alia).

Leituras de Zaratustra 23
dio” excessivo (de saúde, de afirmação), uma mostra cabal dessa constante
alquimia nietzschiana de conversão do negativo, do pesado e decadente, em
ouro. Quando Nietzsche esboça a questão do seu amor por Lou, demonstra
que, depois de tudo (digamos: apesar de aquela história não poder ser contada
para além da frustração da não correspondência), ele poderia permitir-se “esse
dispêndio excessivo de amor”. Também o Zaratustra é um dispêndio excessi-
vo de amor, uma antieconomia do cuidado, uma plurieconomia da riqueza.
Nietzsche “dá demasiado” no Zaratustra, dá a si mesmo como sua obra, é ele
mesmo Zaratustra, possuidor da “virtude que dá presentes”, que em nada
necessita ser mesquinho porque está pleno de riquezas, que nada necessita
dar porque esta dando a si mesmo continuamente. Nietzsche “justificou” seu
desencontro a partir de sua grande capacidade de dar, o Zaratustra é “filho” de
uma capacidade similar.

3) Quem é o Zaratustra de Nietzsche?


De Bactriana e o lago Urmi à montanha e o acaso

Zoroastro-Zaratustra: em seu curso de 1877, na Basileia, Nietzsche uti-


lizou a Simbólica de Creuzer, ainda que já tivesse lido anteriormente o Zend-
-Avesta, traduzido por Spiegel, e a arqueologia iraniana que este autor escreveu
posteriormente.19
Quem é o Zoroastro histórico? Oriundo de Bactriana, anunciado por três dias
e três noites de uma luz irrefreável, Zoroastro nasce rindo, talvez com a risada
que depois exibirá o pastor que arranca de sua garganta a serpente do niilismo.20
Nietzsche mesmo indicou, em Ecce homo, que, com a figura de Zaratustra,
de certa maneira, quis redimir o “inventor do bem e do mal”, na postulação
além do bem e do mal presente em sua obra. É que Zoroastro considerava
que o princípio da vida e do bem, Ahura Mazda, se encontrava em luta com o
princípio negativo, Ahriman, segundo algumas versões, ou que o bem e o mal
eram dois espíritos derivados do primeiro princípio.

19
Para as leituras de Nietzsche nos seus anos de Basileia, conferir CRESCENZI, Luca, “Verziech-
nis der von Nietzsche aus der Universitäts-Bibliothek in Basel entliehenen Bücher (1869-1879)”, em
Nietzsche-Studien, Berlin,  Walter de Gruyter, Band 23, 1994, p. 388-442. O interesse por temas orien-
tais já se relata desde ano 1870, no qual consulta Die Religion des Buddha und ihre Entstehung, de
C. F. KÖPPEN, em 1871-2, Symbolik und Mithologie der alten Völker, besonders der Griechen, de
CREUZER, em 1878, Brahma und die Brahmanem, de M. HAUG, e Eranische Altertumskunde, de F.
SPIEGEL. Também deve-se frisar que o interesse por Schopenhauer o deve ter levado, necessariamen-
te, a uma aproximação do pensamento oriental.
20
Conferir Za, KSA 4, p. 201-202, trad. AZ, p. 227-228.

24 Mónica B. Cragnolini
São duas as correntes religiosas persas que se consideravam portadoras
do verdadeiro pensamento de Zoroastro: o mazdeísmo e o zurvanismo. O
mazdeísmo é dualista e admite em suas diversas variantes a existência dos
dois princípios aludidos em luta constante, seja como princípios eternos, seja
como princípios que mostram a potência de Ahuda Mazda: seu polo negativo e
destruidor (Angra Mainyu) e seu polo criador e renovador (Spenta Mainyu).21
Zurvan (na tradição do zurvanismo) é a figura divina do tempo infinito,
anterior aos dois princípios do bem (Ohrmazd ou Ormuz) e do mal (Ahri-
man), e indiferente aos mesmos, ainda que tenha sido seu criador.22 No zur-
vanismo, a ideia da temporalidade e dos ciclos é fundamental: existe um pacto
pelo qual Zurvan permite a Ahriman governar por nove mil anos, enquanto,
segundo outras formas de apresentação do tema, são os irmãos gêmeos que
pactuam um tempo de luta estendido somente a nove mil anos.
Em ambas as tradições, assim como em outras religiões euro-asiáticas,
aparecem a águia e a serpente (os animais emblemáticos do personagem de
Nietzsche) como evidência da luta constante do elemento solar e do elemento
terreno, binômio que expressa tanto a oposição quanto a complementaridade
dos princípios opostos de bem e de mal.
Em qualquer uma das versões (mazdeísmo: os dois princípios; zurvanis-
mo: princípio prévio ao bem e ao mal),23 permanece a luta entre o bem e o mal,
luta que move o mundo e que dá lugar a toda uma ascética de identificação,
por parte do iniciado, com o princípio divino bom. Ascética muito especial,
porque concedia a importância maior a esta vida e à renovação das forças vi-
tais: o mal era considerado como uma diminuição das forças, o bem, como o
fortalecimento das mesmas.
Zoroastro aparece nesta tradição como o homem que pode ensinar esse
caminho de possessão das forças e os elementos que compõe a lenda de sua
biografia serão resgatados no Zaratustra nietzschiano. O menino Zoroastro
nasce rindo, imediatamente depois de uma grande luz o anunciar durante três
dias, e também viverá numa caverna, como o personagem nietzschiano. Sua
vida será uma constante espera dos “sinais dos tempos”, como o Zaratustra
que, na quarta parte da obra, espera o sinal que chegará por meio do leão ri-
sonho e das pombas.

21
Esta última é a versão dos parsis de Índia, segundo HERNANDEZ CATALA, V. La Expresión de lo
divino en las religiones no cristianas, Madrid: B.A.C, 1972, p. 143.
22
Sobre o zurvanismo, ver ZAEHNER, R. C. Zurvan. A Zoroastrian Dilemma. Clarendon Press, Ox-
ford, 1955.
23
Para as diferenças entre mazdeísmo y zurvanismo ver HERNÁNDEZ CATALA, op. cit., p. 141 ss.

Leituras de Zaratustra 25
Assim como o Zaratustra nietzschiano parafraseia continuamente este livro
sagrado que é a Bíblia, sobretudo o Novo Testamento, o livro sagrado rela-
cionado com Zoroastro é o Zend Avesta, o qual Nietzsche leu a tradução de
Spiegel nos seus anos de Basileia. Redimir a Zoroastro em Zaratustra implica,
de certa maneira, parodiar, assim como se parodia, com as formas de escrita, o
Novo Testamento. Quando Zaratustra desce da montanha, já sabe aquilo que
o outro Zoroastro-Zaratustra, arauto da ideia do bem e do mal, nunca poderia
saber: que Deus está morto. A partir desta morte, a utilização de figuras relacio-
nadas com o fundamento divino se transforma em luto, mas também em piada
e na cura pelo riso (porque só com uma risada se mata).

4) Como ler o Zaratustra?

Assim falou Zaratustra é “um livro para todos e para ninguém”, como indica
o seu subtítulo. Porque certamente qualquer um pode lê-lo, na medida em
que, frente ao caráter técnico e dificultoso dos tradicionais livros de filoso-
fia, este se apresenta como um livro de fácil leitura. Por isso, “para todos”:
aproxima-te e leia. Contudo: quem pode suportá-lo? Como é possível lê-lo e
permanecer igual, sem transformar-se?

Eu não me assombro de que não se compreenda meu Zaratustra, não faço


nenhuma reprovação: é um livro tão profundo, tão estranho, que ter com-
preendido seis frases, quer dizer, tê-las vivido, significa pertencer a uma
classe superior de mortais.24

Não se pode ler o Zaratustra e permanecer sendo o mesmo, porque esse


livro, como todas as obras de Nietzsche, é uma provocação, uma exigência, uma
explosão. O Zaratustra exige “decisões”. Isto não tem nada a ver com aquele
lema que desde Sócrates se considera próprio da “verdadeira” vida filosófica: a
harmonia vida–práxis, “viver como se pensa”. Não, não se trata disso, porque
aqui não se tenta viver como se pensa, mas, ao contrário, se pensa como se vive,
o pensamento é vida e a vida é pensamento, assim como a escritura não é algo
diferente da vida, mas é outra configuração da mesma. Não se trata aqui de
harmonias entre esferas separadas, ao contrário, é a “instalação” na imanência.
Exigir “decisões”: talvez seja este um dos aspectos principais do Zaratus-
tra, a partir do ponto de vista do seu caráter de obra transformadora. Porque
é certo que não se pode lê-lo sem experimentar transformações, sem sentir a

24
Nachgelassene Fragmente 1887-1889, September 1888, 19 [1], #5, KSA 13, p. 541.

26 Mónica B. Cragnolini
necessidade de “revisar” atitudes, valores, hábitos, posições, seja para criticá-
-las, seja para afirmá-las. Por meio dele, a provocação: a reprovação ou adesão,
mas quase impossível é a indiferença. Porque não se pode permanecer indife-
rente quando se questionam os valores que constituem a própria cultura e a
forma de ser, não se pode permanecer indiferente quando ao filósofo o chama
de “híbrido de planta e fantasma”, ao homem da ciência, “consciencioso do es-
pírito”, ao homem religioso, “tuberculoso da alma”. Não se pode permanecer
indiferente porque o texto aponta como uma arma, o texto ataca e busca ferir,
o texto é um instrumento de combate, quer destruir e aniquilar. Há algo para
se destruir: a decadência, a enfermidade. Há inimigos, a escritura é também
uma estratégia de combate. Não existe nada aqui da “assepsia” filosófica, nem
da abstração e palidez könisberguense. À Elizabeth, Nietzsche escreve que o
Zaratustra não é um presente que se tenha que agradecer festivamente: ali não
existe nada para agradecer, ali deve haver dor da transformação, dor diante da
agressão, ruptura com as formas de configurações enfermas, ânsias de saúde...
Este texto, então, que qualquer um lê, ninguém o lê. Porque: quanto ha-
veria que se transformar para poder suportá-lo, como deveria mudar e ser dis-
tinto o homem atual, o homem das pequenas virtudes e da cultura das casas
iguais e das vidas semelhantes, homogêneas e reprodutivas, quanto se deveria
transmutar para poder entendê-lo, compreender-empreender uma frase, uma
linha? Porque, ali, a compreensão é um fazer, é uma tarefa, se lê e se vive ao
mesmo tempo, uma vez que quem escreve, escreve com a sua vida e com o seu
sangue, quem escreve entrega seu corpo na escrita. E quem lê não pode fazer
menos do que ler com seu corpo, com suas forças, com uma vontade de poder,
questionada em suas configurações e entrecruzamentos atuais, repudiada por
um escritor enfermo que se dá ao luxo de reprovar enfermidades piores do que
as que o afligem: essas enfermidades são a decadência, a trasmundanidade,
a elevação a sublimes cumes de atitudes que não são mais do que humanas,
demasiado humanas.
Há que se transformar, pois, para ler esta obra. Mas a mesma é apenas
um “umbral”, é “antessala de minha filosofia”, disse Nietzsche: o que existe,
então, “do outro lado do umbral”? Talvez o que exista seja a necessidade de
refazer, em virtude do perspectivismo e das próprias condições da vida, as
“ideias” nietzschianas, talvez o que exista seja a possibilidade que se abre após
essa passagem: a inexistência de “o caminho”. Porque se o Zaratustra é o anti-
dogma por excelência, o que existe depois do umbral ninguém, além de cada
um e nenhum, poderá nomear. Não existem “receitas” para depois, porque o
“depois” é o risco.

Leituras de Zaratustra 27
E a esta dificuldade – a incerteza que cria a ausência de lemas, normas ou
caminhos traçados, – se une outra: o problema do estilo. “Meu estilo é uma
dança, um jogo de todo tipo de simetrias, e um saltar e um zombar estas si-
metrias. Isto chega até a escolha das vogais”.25
O Zaratustra é a antiobra filosófica, que zomba dos métodos e das formas
expositivas de todo tratado sistemático, mas também, no outro extremo, é
chacota de toda dispersão da escrita que se considere “diferente” pelo mero
exercício dos opostos: pela prática da ausência de argumentações, pela busca
“sistemática” da desordem expositiva, pela simples repugnância pela dedução,
e pela tentativa de um imediatismo quase impensável. Zaratustra é jogo de
simetrias: existe uma arquitetônica da escrita que tece estruturas quase asce-
ticamente, existe um trabalho do conceito e da palavra que se descobre a cada
passo, mas também existe, em contrapartida, a chacota com respeito à dita
simetria, o sorriso e o riso frente à obra ordenada que se considera sistemá-
tica, ou perfeita, a desvalorização pela realização enquanto o excessivo amor
pode chegar a converter-se em escritura estéril, morta, atravessada por todos
os desígnios da mumificação filosófica que não suporta por demasiado tempo
o movimento dos conceitos. E aqui, ao contrário, se fala de dança dos concei-
tos, de jogos dionisíacos da exuberância e de dispêndio, mas, paradoxalmente,
simétricos: quer dizer, pautados, combinados, organizados.
O que é esta tensão da escritura zaratustriana, esta contínua oposição de
forças da desintegração que impelem a voar as imagens e os conceitos, arran-
cando-os de todo possível contexto mítico, histórico, epocal, escolástico ou
mnemotécnico, e, por outro lado, essa simetria, essa arquitetura das palavras
que transformam a obra em uma sinfonia, com seus movimentos, suas cadên-
cias, seus Leitmotivs? Existe, por acaso, outra obra na história do pensamento
que possa mostrar “praticamente”, a cada passo, tal tensão? Existe talvez ou-
tra obra que nos tenha mostrado a cada momento que é uma obra de filosofia
e, ao mesmo tempo, o tenha negado, terminado por gerar uma atitude de
impossibilidade de catalogação e localização, uma incerteza no leitor acostu-
mado aos gêneros, que se encontra, de repente, com o inclassificável?
Talvez o estilo do Zaratustra não seja outro que o estilo das forças, da ar-
quitetura que forma a vontade de poder em seu operar, os traços do mapa
que se forja para gerar ou configurar o real. Sinfonia e dança são os termos
que Nietzsche utiliza para caracterizar este movimento de forças. Sinfonia e
dança falam de dionisismo, de exaltação das forças, de desagregação e abun-

25
NIETZSCHE, F., KSB 6, Nro 490, cit., p. 479.

28 Mónica B. Cragnolini
dância, de dispêndio e de gasto, mas também fazem referência ao apolinismo
das regras e das simetrias, à busca das recônditas harmonias que permitem
configurar o que temporariamente se nomeia “realidade”. O Nietzsche que,
em O nascimento da tragédia, unido ainda ao espírito metafísico do wagnerismo
schopenhaueriano, pensava em termos de dualidade conteúdo–forma, maté-
ria–estilo, e utilizava os princípios “dionisíaco” e “apolíneo” para rechear os
respectivos compartimentos daquelas dicotomias, no Zaratustra apresenta o
dionisíaco, as forças em sua irrupção, como contendo em si mesmas as for-
mas, o elemento apolíneo de configuração, o que dá “harmonia” ou simetria
– ainda que momentaneamente – às forças.
Daí o rechaço dos “modelos” ou das influências por parte de Nietzsche.
Apontou-se que o Hiperión de Hölderlin representou um paradigma para a
construção do Zaratustra,26 se indicaram os laços com o Prometeo de Spitteler,
com Shelley, Lipiner, etc.27 Estas referências podem conter uma aproximação
de temas, alegorias simbólicas, mas nada além disso, porque talvez a ausência
de modelos se relacione com o caráter musical da obra, com essa tensão pela
qual se torna tão difícil estabelecer alguma diferença entre “forma” e “conte-
údo”, na medida em que a “forma” do Zaratustra é também o seu conteúdo,
quer dizer, não se pode pensar isoladamente um do outro, e tampouco se pode
considerá-los como dois polos. Aquela dualidade forma–conteúdo, imprópria
para a época da morte de Deus, talvez permita esquematizar alguns aspectos
da obra, mas impede que se compreenda sua radical incompreensibilidade, o
feito de que a “forma” é, ao mesmo tempo, o “conteúdo”. O que significa isso
para um pensar filosófico é algo que ainda, e não sem dificuldades, será ne-
cessário vislumbrar.

5) Zaratustra como obra “antiniilística” por excelência

As três transmutações do espírito pelas quais deve atravessar o homem


(camelo, leão, criança) plasmam a aposta antiniilística de Nietzsche no Zara-
tustra, aposta que, paradoxalmente, é caracterizada por vezes como a do “nii-
lismo do futuro”. O termo “niilismo”, que Nietzsche utiliza em sentidos tão
diversos e ricos, adquire diferentes significações e antissignificações em sua

26
Tal como o faz GIAMETTA, S., em Nietzsche, il poeta, il moralista, il filosofo (Milano, Garzanti,
1991, cap. IX).
27
Conferir JANZ, C., op. cit., vol 3, p. 178 ss.

Leituras de Zaratustra 29
obra,28 praticando aquele pensar que pode enfrentar as palavras já não como
pedras difíceis de quebrar, mas como criações de sentido perspectivístico. Por
isso, “niilismo” é um termo sedimentado que Nietzsche toma de várias fontes
(sobretudo do niilismo russo, daquela caracterização dos “niilistas radicais”
com a qual a geração russa dos anos 40 marcou o pensar dos jovens dos anos
60) e “des”-sedimenta e “re”-sedimenta novamente, gerando múltiplos sen-
tidos para ele mesmo. As três figuras das três transmutações resultam, desta
forma, exemplos desse jogo com a linguagem, que permite abandonar em par-
te o fetichismo da palavra tão encantada com significações que é incapaz de
abordar os mesmos termos com sentidos diversos.
Porque a mesma afirmação que Nietzsche faz de ser o niilista mais per-
feito da Europa supõe essa outra convicção: a de ter vivido o niilismo em si
mesmo em todas as suas etapas, a de ser, de certo modo, não apenas o que
abriga desertos, mas também aquele que pode recriá-los, convertê-los em algo
distinto. Tais transformações se referem às transmutações pelas quais se deve
atravessar para poder se aproximar do sem sentido e do caos sem perecer
neles, as metamorfoses que permitam ao homem estar a par das progressivas
niilizações da terra e das formas de enfrentá-la. Porém, para estas formas de
enfrentamento não existem receitas, nem lemas, não existem dogmas, nem
protocolos: somente a possibilidade de arriscar-se, a assunção do risco que su-
põe a criação do filosófo-artista-criança. Por isso, talvez, também não se possa
falar em passos de uma evolução do camelo até a criança (evoluções que, para
Nietzsche, se tornariam um progresso com “meta final” repugnante), mas ao
contrário disso, talvez deveria-se dizer que o camelo, o leão e a criança conver-
gem e convivem: nas épocas, nos indivíduos, na história. Certo é que se deve
romper com os hábitos de camelo (a veneração, a abjeção, a adulação) para
ser leão, mas quanto de camelo ainda habita em um leão e como a criança tem
que ser sempre e novamente leão para poder seguir criando! Porque a criação
exige uma filosofia da tensão: um sim que só é possível a partir de um não que
nunca é totalmente de-negado.
Das diversas formas de recepção do pensamento de Nietzsche nos últimos
anos, a conversão do mesmo em um esteticismo aquiescente é, sem dúvida
alguma, a mais corrente. Essa conversão esquece ou deixa de lado a importân-
cia da crítica, assim como, em outros momentos da história do pensamento, o
que se apropriou de Nietzsche foi fundamentalmente o aspecto crítico. Nessas
circunstâncias, se transformou Nietzsche num crítico da cultura, esquecendo

28
Para os diversos sentidos do termo “niilismo” na obra de Nietzsche, conferir meu Nietzsche, camino
y demora. Buenos Aires: EUDEBA, 1998.

30 Mónica B. Cragnolini
os aspectos positivos de seu pensamento. Talvez nenhuma das duas reduções
seja desejável, porque parece que a filosofia nietzschiana encontra sua maior
força precisamente nessa tensão que se produz entre os aspectos negativos e
os positivos, nesse jogo entre o não e o sim que permite que a mesma não se
imobilize em catedrais de conceitos, nem se perca no puro imediato.
Filosofia da tensão: e talvez aí esteja a possibilidade de gerar “respostas”
para um presente que não pode ser aceito sem mais, para erradicar esse tipo
de amor fati do asno que termina por constituir a filosofia como um jogo es-
téril sem capacidade crítica. Leão e criança talvez constituam, neste sentido,
os modos de mostração do filósofo artista, que cria conceitos, mas, ao mesmo
tempo, transforma o filosofar numa re-sistência ao dado que, por mais que as-
suma que o dado é dado-interpretado, não o aceita de imediato, na medida em
que reconhece nele o jogo de forças que outros realizam e configuram. Leão
e criança em tensão, então, como contra-figura do douto camelo que só pode
pensar em meios assépticos, nos quais não se coloca nada em jogo porque
nada se joga. A criança, por outro lado, é quem joga, mas com essa seriedade,
dirá Nietzsche, das crianças ao jogar.
O camelo, a figura do homem decadente, mostra claramente que “o ho-
mem é um animal que venera” 29 e que, além disso, necessita humilhar-se para
suportar a vida.30 A vida se vive e se vê de baixo, de joelhos, quando está base-
ada em um fundamento divino (entendendo por Deus, aqui, tanto os deveres
sagrados quanto os laicos, os costumes burgueses e as pequenas comodida-
des, a linguagem e suas armadilhas, as pirâmides de conceitos e seus sistemas,
as filosofias do fundamento e seus substitutos, etc.). O camelo venerador ca-
minha pelo deserto,31 porque “no deserto habitaram desde sempre os verazes
(die Wahrhaftigen), os espíritos livres, como senhores do deserto”.32 O deserto
é o lugar do niilismo, do vazio de sentido (“Ai de quem abriga desertos!”) mas,
por sua vez, é o espaço de solidão que permite as transformações, na medida
em que representa o oposto da “praça pública”. A imagem do homem que vai
ao deserto sem seus deuses é a mesma do filósofo peregrino que abandonou a
cátedra precocemente, cerceando seus vínculos institucionais, e que demonstra
ter tido uma longa errância em gelo e desertos.33 Passar pelo deserto: lançar-se

29
FW 346, KSA 3, p. 579-581.
30
Por isso a imagem do espírito decadente é a do camelo, que carrega os “deveres” e se ajoelha para que
coloquem nele a carga. Conferir Za, KSA 4, “Von den drei Verwandlungen”, p. 29-31,trad. AZ p. 49-51.
31
Za, KSA 4, “Von den drei Werwandlungen”, p.30
32
Za, KSA 4, “Von den berühmten Weise”, p. 133, trad. AZ, p. 156.
33
Nachgelassene Fragmente 1887-1889, KSA 13, 16 [32], p. 492-493.

Leituras de Zaratustra 31
até o fundo do niilismo, da carência de sentido, apalpá-la e respirá-la com o
próprio corpo, para poder indicar as possibilidades de se sair daí.
Quem pode iniciar esta busca de caminhos é o leão, o espírito livre do nii-
lismo integral, que deve assumir a morte de Deus como a morte do fundamen-
to estruturador da metafísica, da moral e da religião. O leão-espírito livre, que
busca “olhar o outro lado de todas as medalhas”34 e, neste sentido, inaugura a
“filosofia da suspeita” com respeito aos grandes ideais e valores, leva a cabo a
tarefa de “desmascarar” os mesmos. Para desmascarar é necessária a força do
leão, seu rugido de ruptura com tudo o que aprisiona o indivíduo aos pesados
deveres ante os quais é necessário ajoelhar-se. Mas a mera ruptura não basta:
é necessária a força que permite criar, força da qual carece o leão, empenhado
no “não”, na negação de suas cadeias. Do mesmo modo, o espírito livre corre o
perigo constante desta negação que, por sua dureza, pode chegar a converter-
-se na busca de uma nova fé “talvez mais estreita”, em que possa se apoiar.
Porque aquilo que espreita o espírito livre é precisamente essa necessidade
humana, demasiado humana, de descansar em algum princípio, em algum
fundamento, com o consequente perigo de que esse princípio torne a transfor-
mar-se em princípio último e fundamento seguro como era Deus, a moral ou
os bons costumes. Por isso, a negação constante é impossível sem a criação.
Daí a criança: novo começo, possibilidade de criação, possibilidade de as-
sumir o mundo como jogo. Possibilidade, além do niilismo integral do espírito
livre e de sua filosofia de martelo, do “niilismo futuro” e do filósofo artista, o
homem do perspectivismo. Para a criança, nenhum jogo é o último ou verda-
deiro para além do momento e das circunstâncias em que o está jogando. Para
o filósofo artista, nenhuma perspectiva é a última, todas representam possi-
bilidades de criação, conjunção-disjunção momentânea de forças, nas quais
não existe nenhum “superjogador” que dite as regras apriorísticamente, nem
nenhum significado prévio ao jogo mesmo. O significado do jogo surge no
jogo em questão, não existe um “outro” que justifique e desvele a “verdade”
de suas significações (morto Deus, desaparece a fonte última dos sentidos
possíveis, o Sentido dos Sentidos).
Este “operar” da criança se pensa como similar à arte, na medida em que a
arte, como manifestação da Wille zur Macht, não busca sentidos fora de si, mas
gera suas próprias significações. A arte é o jogo por excelência, jogo de estru-
turação-desestruturação das belas formas, recônditas harmonias e estranhas
figuras. A arte é a manifestação do operar mesmo da vontade de poder, do jogo

34
Conferir  Menschliches, Allzumenschliches, KSA 2, “Vorrede”, n. 4-5, p.17-19.

32 Mónica B. Cragnolini
de forças que se acham em constante processo de aglutinação-desagregação,
gerando perspectivas sempre novas.
O filósofo-artista-criança cria valores outorgando um sentido (provisório)
ao nihil da falta de “para quê” (télos), de causa e de ordem do mundo, nihil que
não pode ser vivido sem mais pelo homem, que necessita, assim, “logicizar”
falsificar. As criações de conceitos (o jogo de criança) são ficções: perspectivas
que se assumem como tais, uma vez erradicada a ideia de verdade última. As
ficções se diferenciam das ideias metafísicas que movem a vida do camelo na
medida em que se assumem como falsificações, “esquemas-mapas” que são
necessários traçar sobre o caos para não se perder no abismo somente.
A diferença entre a criação destas ficções e da geração de fundamentos
últimos (arkhaí dos metafísicos), Zaratustra sugere em um dos seus sonhos.
O filósofo persa sonhou certa vez que era guardião do castelo da morte, com
uma tarefa específica: resguardar ataúdes de cristal a partir dos quais a vida
vencida o observava. Porém, um ruidoso vento abriu com força as portas do
castelo, lançando um ataúde que, ao se fazer em pedaços, liberou mil figuras
de criança, loucos, borboletas...35 O mesmo Zaratustra que é figura do persa
inventor do bem e do mal é a imagem do niilismo decadente que enclausura
a vida, mas o mesmo Zaratustra que é espírito livre é também o vento do nii-
lismo integral que destroça as concepções metafísicas do niilismo decadente
e permite, a partir do liberado, a criação de novas perspectivas. O filósofo
artista-criança gera sentidos, porém os mesmos possuem o caráter que Niet-
zsche podia atribuir a sua filosofia: o caráter de ligeireza que repugna todo
peso e imutabilidade.36

6) Zaratustra como antievangelho

Assim falou Zaratustra é uma grande paródia da fé cristã, paródia que se


torna evidente não só na contínua paráfrase dos textos bíblicos, mas também
na “festa do asno” e nesse grande antidogma que é a ideia do eterno retorno.
Entre as grandes ficções (vontade de poder, super-homem, etc.), o eterno
retorno apresenta uma especial ambivalência que o permite manifestar com

35
Za, KSA 4, “Der Wahrsager”, p.172 ss, trad. AZ, “El adivino”, p. 197 ss.
36
Za, KSA 4,  “Von Lesen und Schreiben”, p.49. «E também a mim, que sou bom com a vida, parece-
-me que as borboletas e as bolhas de sabão e o que mais há entre os homens da mesma espécie são o que
melhor conhecem a felicidade/ Ver voejar essas alminhas ligeiras, loucas, encantadoras, volúveis – isso
faz chorar e cantar a Zaratustra» .trad. AZ , p. 70.

Leituras de Zaratustra 33
força seu aspecto ficcional do ponto de vista moral, na medida em que é apre-
sentado como hipótese para a ação:

O que aconteceria, se num dia ou numa noite, um demônio se aproximasse


furtivamente em sua solidão mais solitária e te dissesse: “Esta vida, tal
como a vives agora e a tem vivido, deverás vivê-la ainda mais uma vez e
inumeráveis vezes, e nada de novo haverá nela”.37

Esta citação, talvez a mais insistentemente repetida na bibliografia nietzs-


chiana, descreve que, se tudo retornará, o homem, poderia assumir diversas
atitudes; mas, entre elas, existem duas que se constituem como “extremas”:
rechaçar tudo, caindo novamente no niilismo do sem sentido ou afirmar o
instante para que ele retorne como desejado. Esta afirmação do presente e
do acaso é o próprio dionisismo do amor fati, que se manifesta no “Era isto a
vida? Pois bem, uma vez mais!”. Este amor fati permite, em parte, devolver ao
homem o que o homem extraviou de si em altares de ideais ante os quais se
ajoelhar: o instante, o terreno, o acaso, o devir.
Por outro lado, para além do forte caráter ficcional, a noção do eterno re-
torno representa uma recusa da ideia de “tempo linear” em prol de uma cir-
cularidade sem começo nem fim e, com isso, refuta a noção de “progresso”
própria da modernidade. Daí que o “homem” capaz de assumir esta ideia me-
diante o amor fati tenha de ser “mais do que homem” ou “diferente em relação
ao homem até aqui”, quer dizer, “além-do-homem”. O Übermensch é o homem
que mantém em tensão necessidade e acaso, uma vez que as forças atuantes
em cada momento configuram-se em virtude de suas condições de aparição,
mas, por sua vez, seu atuar é ocasional, uma vez que nenhum deus determina
um fim ou estado ao que tudo tenda. O homem da necessidade e do acaso não
é mais o homem representativo das metafísicas bipolares que excluem o devir,
mas, ao contrário, é aquele que pode assumir o instante, esse efêmero fluir
detestado por toda a metafísica da permanência e do transcendente.
Junto ao aspecto de ficção para a ação, próprio do eterno retorno, muitas
vezes se indicou em que medida a ideia de eterno retorno implica a concep-
ção da antitemporalidade metafísica. Frente à temporalidade, seja linear, seja
circular, que aponte para uma finalidade – télos último da história –, a ideia do
eterno retorno rompe com toda noção de finalidade do tempo. É por isso que
Zaratustra diferencia sua ideia de eterno retorno da simples circularidade, no-

37
FW, KSA 3,§ 341, p. 570, trad. La ciencia Jovial, trad. J. Jara, Caracas, Monte Avila, p. 200. Para
uma detalhada análise deste aforismo, conferir SALAQUARDA, Jörg, “Der Ungeheure Augenblick”,
en NietZasche-Studien , Band 18, 1989, p. 317-337.

34 Mónica B. Cragnolini
ção presente em outras tradições e mitos antigos. Mas talvez mais importante
do que este caráter de “ideia antimetafísica” seja o de antidogma por excelên-
cia e sua “realização”, para além da argumentação, no âmbito da decisão.38
O ato da vontade de poder que afirma o instante implica uma ruptura com
o esquema religioso-metafísico, além do fato que significa afirmar o presen-
te – “o que escapa” para as religiões. Porque o eterno retorno é apresentado
por Nietzsche como “nova fé”, outra grande ironia do filósofo. Se há algo que
impossibilita a ideia do eterno retorno é a consideração da mesma como um
novo dogma do “quinto evangelho”: Não está rindo Nietzsche com estas pala-
vras? Não está parodiando como parodia na “festa do asno”?
Porque ao considerar o eterno retorno como “hipótese” da ação (“vive como
se este instante fosse se repetir”), ele se apresenta com uma peculiar ambiva-
lência, tendo em conta que, para que se cumpra como tal, é necessário que
negue seu próprio conteúdo: o retorno do mesmo. Quando decidimos dizer
“sim” ao instante em virtude do pensamento de que é melhor viver esse ins-
tante bem porque ele há de retornar, neste mesmo momento, no momento
da decisão, explodimos nossa própria hipótese, reduzindo a meras partículas
a ideia que nos impulsiona a agir. Porque nos move à afirmação a ideia de re-
petição (se este instante voltará, deveria vivê-lo da melhor maneira possível),
mas, neste momento em que decidimos afirmá-lo, destruímos nossa própria
hipótese, porque já não retorna ele mesmo, já transformamos o instante em
algo distinto por tê-lo querido. “Se retornasse”, retornaria transformado: a
decisão permite a modalização do acontecido e do que acontece.
Esta consideração da “mais alta ideia de Zaratustra” no sentido de uma
decisão, mostra um dos aspectos da luta que Nietzsche empreende contra a
metafísica, luta que, por mais que recorra a argumentações, acaba por mostrar
que nenhuma argumentação, no fim das contas, serve para tal tarefa. Porque,
enquanto tal, outra coisa se descobriu por debaixo das argumentações, confi-
gurando-as e dando a elas esse estilo abstrato de que se orgulham os filósofos:
a vontade de poder. Forças que geram ideias: então, não é possível destruir a
metafísica argumentando, se torna necessária uma decisão. Se o que permite
a adesão a um sistema filosófico determinado é a força ou a falta de força da
vontade de poder, então, em última instância, de nada serve a argumenta-
ção: é necessária a ação que decide, dizer basta a uma forma de vida, a uma
constituição “enferma” da vida. Por isso, mais do que “argumentar” contra a

38
A decisão é o que diz: “Alto lá, anão, ou tu ou eu”, ou o que permite que o pastor morda a cabeça da
serpente. Conferir  Za, KSA 4, p. 199 e 202 respectivamente.

Leituras de Zaratustra 35
temporalidade linear, afirmar o instante, conjugar no Kairos39 o tempo na es-
colha da própria chance. Amar “o que passa”: horror da metafísica que busca o
eterno por medo da vida. Amar “o instante”: dor da metafísica que o considera
permutável, superável. Amar o que traz o acaso, amor fati que abraça a vida
em todos os seus aspectos, mesmo os mais terríveis. Amar com laços mortais.
O eterno retorno é, então, uma decisão: não é uma “ideia” que se lê sim-
plesmente, é uma convocação, mas com um lema que se anula a si mesmo.
Não há aqui possibilidade de um lema que “uniformize” os homens, nem um
levantar de braços que afirme uma ideia: porque a afirmação é a negação do
que se afirma e, por isso, um antidogma, uma antilema, a negação da possibili-
dade de toda religião e de toda congregação de iluminados, seja em uma igreja,
seja em um partido político. Daí a grande paródia, de apresentar como “quinto
evangelho” ou “livro sagrado” o livro que zomba incessantemente da possibi-
lidade de conversão em dogma de sua própria crença, e o faz, precisamente,
convertendo em antidogma aquilo que poderia se tomar como um “lema para
a vida”: a ideia do eterno retorno.
Deste modo, também se poderia dizer que a própria leitura – qua leitura
para todos e para ninguém – se anula como leitura no sentido tradicional e se
transforma em práxis, em ação. Não se pode ler essa obra sem transformar-
-se, não existe leitura possível que não chegue às forças do leitor e as golpeie,
as maltrate, as obrigue a manifestar-se de alguma maneira: pela repulsão ou
pela sym-patheia, pela recusa ou pela afirmação. Porém, trata-se de leitura que
leva em si o selo deste caráter antidogmático, de modo tal que toda afirmação
do Zaratustra (a compreensão de suas ideias, a aquiescência frente às noções
de vontade de poder, além-do-homem, eterno retorno) significará, ao mesmo
tempo, sua negação: a recusa do próprio afirmado, para que o afirmado não se
transforme, por sua vez, em dogma, para que o afirmado não se converta em
canção de realejo e confirmação do sedentarismo de nossos hábitos. Porque
também o risco pode converter-se em máscara de sedentarismo e de temor.
Zaratustra se afirma-nega a si mesmo. Zaratustra implica uma leitura-práxis
que exige transformações, Zaratustra é demasiado para nós. Por isso devemos,
a cada momento, tentar engoli-lo como o pastor adormecido, e, por isso mes-
mo, estamos, a cada instante, cuspindo as interpretações do sedentarismo,
que nos proporcionam nossas necessidades de segurança.
Por tudo isso, de novo, não existe “o caminho”.

39
Para este tema, conferir “Concepto y símbolos del eterno retorno”, en CACCIARI, M., Desde Nietzs-
che. Tiempo, arte, política, trad. M. Cragnolini-A. Paternostro, Buenos Aires, Biblos, 1994, p. 99-138.

36 Mónica B. Cragnolini
O segredo abissal de Zaratustra

Tereza Cristina B. Calomeni

1.

Zaratustra, o anunciador do super-homem, o mestre do eterno retorno, é, como


Nietzsche, um extemporâneo, um inatual, um homem das alturas. O prólogo
do drama descrito em Assim falou Zaratustra tem início com uma referência
ao recolhimento de Zaratustra ao silêncio de uma caverna. Situada no alto
de uma montanha para onde havia se retirado aos 30 anos para o cultivo da
solidão e “de seu próprio espírito” e, afinal, de um certo olhar – intempestivo
– para a humanidade e para a cultura moderna. Clara alusão ao platonismo,
especialmente à alegoria da caverna, a primeira cena da narrativa apresenta um
louvor a Apolo, deus grego da luminosidade e do brilho, mas também um
agradecimento: pleno, vigoroso, radiante, luminoso, Zaratustra, fortalecido
pelo silêncio e pela solidão da reclusão na montanha, saúda o sol como grati-
dão por tudo o que aprendera, recluso, acima dos homens da planície. Lugar
de extemporâneos, dos criadores e dos fortes, o alto e a vida nas alturas põem
nas mãos de Zaratustra uma doce e alegre sabedoria que, conforme seu mais
íntimo e veraz desejo, será, gentilmente, oferecida aos homens. Saudar o sol
é expressão da alegria, do contentamento e da doçura que acumulara com a
experiência do “ar rarefeito das alturas”.
O movimento inicial de Zaratustra é um declínio, um “ocaso”. Alegre, “o
porta-voz da vida” deixa sua morada e sua refinada solidão e desce a monta-
nha aos 40 anos, idade da maturidade e da colheita. Decisão, vontade de um
espírito que se transformara, que se superara a si próprio e a moral dos velhos
valores metafísico-religiosos, os ideais transcendentes e as sombras de Deus, o
“ocaso” de Zaratustra é escolha determinada. Cansado de sua solidão e de sua
sabedoria “como a abelha do mel que ajuntou em excesso”,1 Zaratustra desce

1
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, “Prólogo”, 1, p. 33.

Leituras de Zaratustra 37
alegremente. Como o sol que declina de sua morada nas alturas e vem caindo
lenta e decididamente todos os dias para iluminar a terra e a vida dos homens,
como o sol que, à noite, escondido “atrás do mar”, leva “ainda a luz ao mundo
ínfero”2, Zaratustra assume a necessidade e a urgência do declínio, vem à terra
plana, desce à planície em que habitam os homens modernos para, também,
aos seus olhos, iluminar a vida moderna com um presente: o futuro, o inabi-
tual, o incomum, a renovação. A mensagem inscrita em sua alma solitária e o
presente protegido em suas mãos de criador deverão ser, julga ele, motivo de
alegria e de júbilo para os homens.
Instalado por dez anos em sua caverna no alto da montanha, Zaratustra
acredita ter conquistado maturidade suficiente para descer às profundezas e
aos abismos, suficiente destreza para se abandonar, outra vez, ao convívio com
os homens, suficiente grandeza para dar aos homens o que tem em excesso.
Ao descer, ainda não sabe que a primeira hora lhe reserva surpresas desagra-
dáveis e decepções desconcertantes. Ainda não sabe que o caminho a percor-
rer até “tornar-se quem é”, o mestre do eterno retorno, deverá ser árduo, árido,
pedregoso, porque sempre dificultado pela incompreensão dos modernos, os
homens da planície. O alegre mensageiro não espera a radical mediocridade de
seus contemporâneos, presos ainda a determinados valores e ideais próprios
de uma interpretação moral da existência. Transformado, livre do peso do ide-
al transcendente, Zaratustra terá que entender, ao longo de sua dramática
trajetória, que a modernidade é ainda herdeira da “velha tábua de valores”
constituída pelo platonismo e consagrada pela religião cristã e, de certa forma,
pela modernidade; ao longo de sua trajetória, terá que entender a resistência
dos “homens iguais” à ousadia do criador de novos valores.
Na planície, as nuvens são pesadas para Zaratustra. O tempo não é acolhe-
dor de sua intempestividade; não se escuta seu verbo; suas estranhas razões
e palavras “estridentes” não são compreendidas. Resplandecente, Zaratustra
aparentemente ainda não sabe que deverá enfrentar um longo caminho até
poder revelar a novidade mais escondida, o seu segredo mais visceral – a ale-
gria da constatação e da aceitação do eterno retorno de todas as coisas que, em
Nietzsche, é artifício de exacerbação do niilismo para a recuperação da relação
trágica, gentil e amorosa, com a existência. De posse de novo olhar para a
cultura, diferente do olhar que o orientara em sua metafísica de artista, com o
drama de Zaratustra, Nietzsche quer mostrar a necessidade da superação da
interpretação metafísico-cristã da existência e a urgência da aceitação da vida

2
Ibid.

38 Tereza Cristina B. Calomeni


“como ela é” por meio da formulação do pensamento do eterno retorno – anun-
ciado, pela primeira vez, no aforismo 341 de A gaia ciência – e da confirmação
da ideia de amor fati – expresso no primeiro aforismo da parte VI da mesma
obra. Dadivoso, Zaratustra quer levar aos homens um presente – o super-ho-
mem –, anunciado, por ora, no prólogo, como futuro, promessa, meta, novo
“sentido da terra”. Do alto da montanha, iluminado e cheio de vida, Zaratus-
tra, “a taça que quer transbordar”,3 quer voltar à terra para que “sua água es-
corra dourada, levando por toda a parte o reflexo da [sua] bem-aventurança!”.4
O tempo da descida revela um Zaratustra transformado. A luz que agora o
ilumina provém de uma metamorfose, da superação de si e da moral tradicio-
nal metafísico-religiosa. Zaratustra não fora desde sempre alegre e radiante.
Outrora, antes de sua ruminação intempestiva e solitária, antes da preparação
de sua altiva alma de criador, subira a montanha, exilara-se na caverna, ainda
influenciado pelo peso de Deus e da transcendência5 e naturalmente decep-
cionado com o convívio, nada alentador, com os homens, seus contemporâ-
neos. A convivência com os homens, fora, de certa forma, desanimadora, e
Zaratustra escalara as alturas por entender a necessidade da distância e do
isolamento. Qual fênix, Zaratustra, no alto da montanha, renasce, cria-se ou-
tra vez, fortifica-se, volta ao fogo e ao vigor. Por isto, como um “dançarino”,
como uma “criança”, desce ao vale mais forte, mais íntegro, mais pleno, de-
terminado como convém a um criador de novos valores, a um legislador de
si mesmo que, generoso, quer ensinar aos homens uma nova vontade, uma
vontade redentora.6
No caminho de descida às profundezas e aos abismos, Zaratustra encon-
tra um “velho” – primeira personagem a aparecer na trama – que, deixando
sua “sagrada choupana”, o reconhece: Zaratustra é aquele que havia subido
a montanha carregando suas próprias cinzas. A interpelação do “velho” de-
monstra a transformação de Zaratustra, que, provavelmente, havia sido um
crente, preso às postulações da cultura metafísico-cristã, ele mesmo iludido
como os transmundanos, atrelado ao niilismo negativo, o niilismo que desqua-
lifica a vida em nome da existência de uma outra vida, posta no além da terra.
A despeito de ouvir do “velho” da floresta a advertência de que poderia,
não repartir ou compartilhar, mas esvaziar-se ao se dirigir aos homens, Zara-

3
Ibid.
4
Ibid., p. 33-34.
5
Cf. “Dos transmundanos”, p. 56.
6
Ibid., p. 58.

Leituras de Zaratustra 39
tustra, a “taça que quer transbordar” seu excesso, escolhe correr o risco de
“esvaziar-se” e de se enfraquecer: esta é a grande prova, este, o grande perigo
a enfrentar em sua trajetória e no convívio com os homens – relacionar-se com
os modernos sem se deixar contaminar definitivamente por sua doença, por
sua fraqueza, por sua tolice, por sua esterilidade. Se a solidão favorece a dure-
za, a coragem e a força, virtudes de um grande homem, expedientes de repúdio
do niilismo, a um só tempo, assustador e estéril, acercar-se dos homens fracos
e escravizados – aqueles que, medíocres, “desconfiam dos solitários” e os con-
fundem com “ladrões” – pode levar à exaustão, ao desânimo, ao niilismo mais
torpe e impotente e à passividade, tal como se vê no capítulo “O adivinho”:
“Tudo é vazio, tudo é igual, tudo foi!”.7
No entanto, Zaratustra, amoroso, tem necessidade de se (re)encontrar
com o humano. Apesar de Nietzsche requerer a retradução do homem à na-
tureza, Zaratustra não quer ser apenas “um urso entre os ursos, um pássaro
entre os pássaros”;8 não é como o “velho” da floresta que se distancia dos
homens e de sua imperfeição e precariedade para amar e louvar a Deus; Zara-
tustra não odeia nem despreza os homens. A solidão, não raras vezes invocada
por Nietzsche como necessária, preventiva e purificadora, não é sinal de desin-
teresse ou sintoma de inatividade, mas expediente imprescindível ao exercí-
cio da filosofia, condição insuperável de configuração do pensamento. Apesar
do extremo perigo, Zaratustra, dono de uma “dúplice vontade”,9 proclama o
super-homem, mas também entende que é preciso prender-se aos homens com
“sólidas correntes”.10 A despeito do risco sempre presente e de certos momen-
tos de desencanto – mais tarde, ao ouvir o adivinho, por um tempo, torna-se
igual aos homens tristes e cansados11 –, Zaratustra acaba por ser salvo por sua
sabedoria, por seu amor aos homens, pela ciência de sua missão, por seu riso
excessivo e transbordante e, sobretudo, pelo segredo que a própria vida a ele
confia.
Determinado e destemido, Zaratustra deixa a companhia do “velho”, des-
ce, luminoso, e chega à cidade, mais precisamente à “praça do mercado”, a
fim de entregar à multidão, que espera ansiosa por um espetáculo de um “fu-
nâmbulo”, o presente aos homens destinado, mas é logo surpreendido por
uma decepção: o presente, o super-homem – o novo “sentido da terra”, “o raio

7
Ibid., “O adivinho”, p. 166.
8
Ibid., “Prólogo”, 2, p. 35.
9
Ibid., “Da prudência humana”, p. 175.
10
Ibid.
11
Ibid., “O adivinho”, p. 166.

40 Tereza Cristina B. Calomeni


que rebenta da nuvem negra chamada homem”12 –, não é bem recebido, não
é bem-vindo, não é compreendido pelos homens que o ouvem falar. “Eu vos
ensino o super-homem!”13, pronuncia Zaratustra diante da multidão, sugerin-
do, com suas palavras, uma nova forma de conceber o homem. “O homem é
algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?”14, diz ele, até certo
ponto esperançoso. Inútil: aqueles que presenciam o seu discurso não são
simples como “pastores de cabras”; ao contrário, orgulham-se de sua “instru-
ção”. Não será gratuito o conselho dado mais tarde pelo “palhaço da torre”:
“‘Vai-te embora desta cidade, ó Zaratustra [...]; muitos são os que, aqui, te
odeiam. Odeiam-te os bons e os justos, e chamam-te seu inimigo e despre-
zador; odeiam-te os crentes da verdadeira fé, chamam-te um perigo para a
multidão’”.15 A multidão ainda não quer o super-homem e ainda não está pre-
parada para o segredo abissal de Zaratustra, a trágica intuição do eterno retorno.
Luminoso ainda, Zaratustra não pode desanimar frente ao fracasso, mas
seu insucesso é compreensível: o homem da “praça do mercado”, o homem
do povo, o homem histórico, o homem moderno, niilista, doente, tagarela,
tolo, imerso em sua contemporaneidade, escravizado à imediaticidade de seu
tempo, incapaz de compreender a força da criação ainda não tem pleno conhe-
cimento ou plena compreensão do significado de um fato singular e decisivo
de sua época, fato que, no texto, é o pressuposto fundamental da possibili-
dade de conquista do super-homem, da aceitação do eterno retorno e, em última
instância, do projeto, até certo ponto, iconoclasta, de transvaloração de todos
os valores: a morte de Deus, o grande e mais espetacular acontecimento da mo-
dernidade anunciado por um insensato, no aforismo 125 de A gaia ciência, e
retomado agora, no prólogo. Se o homem moderno mata Deus e, com isto, os
valores transcendentes, entretanto, não tem ainda o espírito preparado nem
para a dádiva de Zaratustra, nem para seu segredo abismal, porque não aqui-
lata a importância da morte de Deus para o futuro, não percebe o sentido da
bendita expressão Deus está morto!, a abertura por ela promovida, as chances
de inovação que dela advêm. No aforismo 343 de A gaia ciência, Nietzsche re-
conhece: “o evento é demasiado grande, distante e à margem da compreensão
da maioria.”16 Ao longo de sua trajetória, Zaratustra haverá de perceber que

12
Ibid., “Prólogo”, 7, p. 44.
13
Ibid., “Prólogo”, 3, p. 36.
14
Ibid.
15
Ibid., “Prólogo”, 8, p. 45.
16
NIETZSCHE, A gaia ciência. Livro V, “Nós, os impávidos”, aforismo 343, “O sentido de nossa
jovialidade”, p. 233.

Leituras de Zaratustra 41
o homem moderno não tem habilidade para pensar tragicamente a existência
e vislumbrar as novas formas de vida que da morte de Deus – cuja observação
faz com que o texto seja uma crítica da modernidade – podem decorrer. Um
dos importantes ensinamentos de Zaratustra aí se exprime: a morte de Deus,
ainda que possa ceder espaço ao niilismo passivo, pode, por outro lado, abrir
“caminho para novas auroras”,17 favorecer a aparição de “novas estrelas” e
“novas noites”,18 promover o surgimento de inauditas promessas de futuro.
Vingar-se de Deus, matando-O como se mata uma testemunha inoportuna,19
não é suficiente para que o moderno compreenda inteiramente o significado
deste fato incontestável. A despeito de o homem moderno ter matado Deus
e colocado no lugar dos valores divinos valores humanos, ainda espera com-
preender o sentido e a finalidade últimos da vida, ainda se perde em ilusões e
crê em ficções como identidade, substância, sujeito, causalidade e, sobretudo,
ainda acredita na verdade, ainda abriga em si o ideal ascético. É neste sentido
que se pode admitir que, apesar das diferenças entre o niilismo negativo e
o niilismo reativo, Nietzsche reconhece a íntima relação que entre eles se
configura: ambos acolhem o ideal ascético, a vontade de verdade, a vontade que,
inaugurada pelo gesto socrático-platônico, anima a cultura ocidental e acaba
por consolidar um tipo de relação – nociva – entre o homem e a existência,
porque, diante da exigência de uniformidade, ignora o “estranho” e “questio-
nável” do existir. O homem moderno mata Deus mas continua acreditando e,
mais do que isto, querendo a verdade. Na ciência, portanto, mas também nas
ideias modernas, permanece o desejo de verdade – uma das sombras de Deus – e,
no limite, a infame desvalorização da vida.
Frente à constatação do desconhecimento da morte de Deus – constatação
vislumbrada na ocasião do encontro com o “velho” da floresta –, compreende
Zaratustra: o super-homem não pode ser aceito pela multidão, não pode ser
desejado pelo povo. Ao anunciar o super-homem, Zaratustra, que, ao descer, pa-
rece desconhecer a ignorância do povo em relação à morte de Deus, anuncia um
futuro possível para o homem, mas é levado a reconhecer que o super-homem
tem que ser querido pelo homem: “O super-homem é o sentido da terra. Fazei
vossa vontade dizer: ‘Que o super-homem seja o sentido da terra!’”20 Zaratus-
tra compreende que, mesmo sem Deus, o homem pode ter um futuro, mas
sabe também que, apesar da abertura promovida pela morte de Deus, o homem

17
Id., Assim falou Zaratustra, “De velhas e novas tábuas”, p. 236.
18
Ibid.
19
Cf. parte IV.
20
Ibid., parte III, p. 36.

42 Tereza Cristina B. Calomeni


pode permanecer infiel à terra, acreditar nos “desprezadores da vida”21, blas-
femar contra a existência.
Ao longo do seu trajeto, Zaratustra haverá de compreender que o homem
moderno ainda não olha a existência e a temporalidade com inocência e gen-
tileza. Como ainda não se decidiu pela travessia, pensa ainda moralmente e
prefere o que Nietzsche denomina o último homem, o “mais desprezível dos
homens”,22 aquele que tudo torna pequeno, o “pulgão” “inextirpável”,23 aque-
le que não sabe o que é criar, que não possui um “grande anseio”, que não é
nem pode ser ponte para o super-homem. Sem preparo para a assunção do acaso
e do devir sem metas ou finalidade, sem estofo para assumir o caráter pers-
pectivístico do conhecimento, sem amor incondicional pela vida, ainda não
entende bem o niilismo reativo provocado pela decretação da morte de Deus,
pela decadência dos valores supremos.
O povo da “praça do mercado”, incompetente para traçar para si uma
“meta”, ri – zomba – de Zaratustra, de sua oferta, de sua alegre novidade:
prefere ver o espetáculo do “funâmbulo” a ouvir a mensagem de Zaratustra.
Diante da preferência da multidão, Zaratustra insiste: “O homem é uma corda
estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo.
[...] O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode
amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso”.24 Ao perceber a recusa e
o riso do povo, impressionado com o escárnio da multidão, Zaratustra, cuja
metamorfose é originada da compreensão do sentido da morte de Deus, passa a
falar do último homem”, o homem dos “pequenos prazeres” e do “conforto”, o
homem que, não sendo criador, mantém a velha tábua de valores metafísico-
-religiosos: “Vede! Eu vos mostro o último homem”.25 O povo, em algazarra,
confirma o vaticínio do “velho” da floresta; o povo da “praça do mercado”
pede a Zaratustra o último homem: “‘Dá-nos esses últimos homens, ó Zaratus-
tra! [...]– Transforma-nos nesses últimos homens!’”.26
A recusa do presente determina o começo do sofrimento de Zaratustra;
têm início seu espanto e seu desconsolo. O alegre e radiante Zaratustra sofre
sua primeira grande decepção e se entristece. Diante da reação inesperada,
decepcionante e constrangedora da multidão, Zaratustra, sombrio e silente, é

21
Ibid.
22
Ibid., “Prólogo”, 5, p. 41.
23
Ibid.
24
Ibid., “Prólogo”, 4, p. 38.
25
Ibid., “Prólogo”, 5, p. 41.
26
Ibid., p. 42.

Leituras de Zaratustra 43
levado a concluir: “‘Eles não me compreendem: eu não sou a boca para esses
ouvidos. Demasiado tempo, decerto, vivi na montanha, por demais escutei os
córregos e as árvores’”.27
Entristecido – intuindo a dificuldade de compreensão de seu pensamento
abissal? –, Zaratustra escolhe outro procedimento. Depois de caminhar carre-
gando o corpo do “funâmbulo” morto, depois de, faminto, bater à porta de um
eremita da floresta, Zaratustra dorme, e, ao acordar, subitamente se lhe apre-
senta uma verdade decisiva: “‘Uma luz raiou em mim: de companheiros, eu
preciso, e vivos – não de companheiros mortos e cadáveres, que levo comigo
aonde quero”.28 A partir daí, muda de tática: com o fracasso do seu primeiro
pronunciamento, admite o equívoco de falar para a multidão. E entende: é
preciso falar para poucos. Zaratustra não quer companheiros mortos, como o
“funâmbulo” – sua primeira “pescaria” – que, quase morto, “gravemente feri-
do e com os ossos partidos”,29 caíra aos seus pés em decorrência de um gesto
do “palhaço da torre”. Em Do homem superior, relembra sua “estultice” ao falar
para a multidão: falara para todos e, com isto, falara para ninguém! Esta é a
primeira lição aprendida por Zaratustra. “Atrair muitos para fora do rebanho
– foi para isso que vim”.30
Ao longo do caminho, esta súbita verdade se radicaliza e se confirma no co-
ração de Zaratustra: nem todos são fortes ou intempestivos, criadores, artistas
ou crianças; nem todos podem romper com a moral consoladora, com as ideias
que, supostamente, aliviam a dor da existência mediante a postulação de um
mundo ideal, supostamente insubmisso às transformações; nem todos podem
abdicar da procura de uma razão para o existir e, sobretudo, para o sofrimen-
to; nem todos sabem viver sem as promessas do Deus cristão ou o consolo
do mundo ideal ou da verdade; nem todos podem entender a existência como
força e vontade de potência; nem todos são aptos ao sim à vida e à rebelião contra
a interpretação moral da existência; nem todos podem aguentar o pensamento
trágico. Zaratustra haverá de referir-se a poucos homens, terá de procurar por
companheiros privilegiados: os fortes, os criadores, os destruidores dos velhos
valores, os dionisíacos, os grandes homens, os superiores, aqueles que, por
sua constituição fisiológica e grande saúde, podem “afiar as foices”31 para a co-
lheita e para a festa, construir uma nova tábua de valores, querer o super-homem

27
Ibid.
28
Ibid., “Prólogo”, 9, p. 47.
29
Ibid., “Prólogo”, 6, p. 43.
30
Ibid., “Prólogo”, 9, p. 47.
31
Ibid.

44 Tereza Cristina B. Calomeni


e o eterno retorno. Ciente de que o ódio dos “bons” e dos “justos” se justifica
por ser ele um destruidor da velha tábua de valores e, portanto, um criador,
Zaratustra procura por companheiros. Criador, Zaratustra quer falar àqueles
que podem compreendê-lo, àqueles que, afinal, podem avaliar os perigos e as
promessas de seu abismo e de seu pensamento abismal. Zaratustra haverá de
ponderar: importa procurar pelos raros, aqueles que podem avaliar o significado
e o alcance do pensamento do eterno retorno – os solitários, os fortes, vigoro-
sos, os que permanecem de pé frente à oscilação, própria da existência, entre a
precariedade e o gozo. Deixando o corpo morto do “funâmbulo”, resoluto, diz
Zaratustra ao seu coração: “Cantarei minha canção aos que vivem solitários”.32
As palavras de Zaratustra são pronunciadas ao meio-dia, a hora sem som-
bras, poética expressão da superação dos dualismos metafísico-religiosos. Re-
vestida de silêncio e prudência, altivez e determinação, esta é a hora da pri-
meira e sutil alusão à repetição eterna de todas as coisas. Integram-se abismo
e silêncio; comprometem-se decisão e travessia.

2.

Bem mais adiante, no final da parte II, ao ouvir o murmúrio assustador da


solidão de sua “hora mais silenciosa”,33 Zaratustra, uma vez mais, vai-se embora,
“abandonando os amigos”.34 Outra vez deve subir a montanha, exilar-se em
sua caverna, reencontrar a solidão e o silêncio para acolher e, mais tarde, reve-
lar seu segredo abissal. Zaratustra, desgastado, reluta e sofre, mas finalmente
admite a necessidade de ver-se em isolamento para amadurecer e tornar-se,
outra vez, a “criança” sem pudor de sua ciência. Mais uma vez, precisa fortale-
cer-se, precisa conquistar força suficiente para falar aos homens de seu pensa-
mento mais escondido. “Ah, meus amigos! Alguma coisa teria para dizer-vos,
alguma coisa ainda teria para dar-vos. Por que não a dou? Serei avarento?”,35
pergunta ele, ao final do capítulo “A hora mais silenciosa”.
Zaratustra não é mesquinho ou avaro; a avareza não é atributo de um tipo
dadivoso e amoroso como Zaratustra. Ao contrário: Zaratustra descera de sua
caverna por amor aos homens e vontade de dar-lhes de presente o futuro, o
novo “sentido da terra”. Também em sua segunda retirada à solidão da mon-

32
Ibid., p. 48.
33
Ibid., “A hora mais solitária”, p. 178.
34
Ibid., p. 181.
35
Ibid., p. 180.

Leituras de Zaratustra 45
tanha e da caverna – início da parte II do texto36 –, Zaratustra, que jogara uma
semente para vê-la brotar, mostrara-se impaciente ao deixar aqueles “que [...]
amava”, porque “muito, ainda, tinha para dar-lhes”,37 mas, agora, depois de
tantas experiências difíceis, está cansado, sem força, desanimado. Zaratustra
não é mais o mesmo, aquele que outrora declinara da solidão de sua caverna,
alegre e luminoso diante da possibilidade de um futuro exuberante vir a se
construir depois da morte de Deus. Seu andar já não é mais o de um “dançari-
no”, como dissera, no “Prólogo”, o “velho” da floresta. No trajeto da descida
e no convívio com os homens e seus discípulos, aos poucos compreende a
estranheza provocada pelo presente que oferecera aos homens e o escárnio da
multidão que o ouvira na “praça do mercado” e, mais importante, constata a
imperiosa necessidade de reversão da concepção metafísico-religiosa de tem-
po – extremamente nociva à cultura e responsável pela vingança e pelo ressen-
timento contra a vida – para a recuperação da relação trágica com a existência;
mas, agora, depois de enfrentar alguns infortúnios e de se submeter a cons-
trangimentos e ameaças, está abatido, “amedrontado”, assustado, exangue,
sem vitalidade para o anúncio definitivo de sua ideia do eterno retorno. Des-
cendo de sua montanha para, de novo, conviver com os homens, Zaratustra
sabe de seu desejo: reanimar a modernidade depois da morte de Deus, mostrar
aos homens a força da vontade criadora e propor a instituição de uma nova
tábua de valores a partir da negação dos valores tradicionais para a superação
dos dualismos que caluniam e empobrecem a vida; afirmar definitivamente
a vida e a vontade de viver e de criar por meio da sugestão do super-homem e,
mais tarde – depois da compreensão de que o super-homem não é suficiente
para a redenção –, mediante a proclamação do eterno retorno. Depois das mais
variadas experiências, Zaratustra adquire a ciência de que o eterno retorno –
“alguma coisa mais elevada do que toda a reconciliação”38 com o tempo – é o
instrumento privilegiado para a redenção de uma cultura essencialmente niilis-
ta como a moderna, para a superação da moral metafísico-cristã, mas, agora,
depois de se constranger e enfrentar os mais diversos obstáculos, não se sente
em condições de pronunciar o eterno retorno com o vigor e a determinação
necessários. Apesar de ter compreendido por que grandes perigos o aguarda-
vam em seu caminho, Zaratustra se enfraquece e desanima. Ainda que tenha
identificado vida e vontade de potência, e, com isto, reconhecido a vida como o
mais alto valor, ainda que tenha se aproximado da sabedoria dionisíaca, onde

36
Cf. “O menino com o espelho”, p. 111.
37
Ibid.
38
Ibid., “Da redenção”, p. 174.

46 Tereza Cristina B. Calomeni


estariam a força e a disposição de afirmar o eterno retorno? Reconhecer-se e a
seus propósitos, compreender o motivo dos riscos que enfrentara e enfrentará
até o final de sua rota, admitir a necessidade da constante superação de si e do
niilismo decorrente das ameaças de incompreensão, ponderar e concluir sobre
o despreparo dos homens modernos auxiliam na determinação de anunciar o
eterno retorno, mas não impedem que os terríveis aborrecimentos postos em
sua trajetória levem-no ao abatimento, ao medo, ao desânimo e, muitas ve-
zes, ao asco e ao nojo. Zaratustra sente-se exaurido: parece intuir que o eterno
retorno – o pensamento, para ele, exultante – não escapará da incompreensão
e da ameaça dos fracos e das forças reativas, assim como não pudera fugir da
incompreensão sua proposta inicial do super-homem.
Triste, Zaratustra “abandona os amigos” para se deixar apoderar pela co-
ragem imprescindível: enfrentar o maior e mais fundo abismo para subir ao
mais alto cume; acirrar o niilismo para tentar superá-lo. Por que Zaratustra
sobe outra vez a montanha? “‘É chegado o tempo! É mais que chegado o
tempo!’”,39 dissera sua “sombra”, no capítulo “De grandes acontecimentos”.
“Os maiores acontecimentos não são as nossas horas mais barulhentas, mas
as mais silenciosas”,40 ouvira ele da “hora mais silenciosa”. Eram necessários
o silêncio e a distância para dar voz ao abismo interior e fazer vencer a força de
criação que nele habita apesar de todas as ameaças e incompreensões.
No curso da conturbada trajetória, “perigosos” e “escuros” foram os cami-
nhos de Zaratustra; sua doutrina correra perigo; seus inimigos rondaram-no,
à espreita de sua fraqueza, olharam-no de soslaio diante de muitos dos seus
discursos; os “bons” e os “justos” desde sempre o estranharam; a mediocridade
dos modernos fizera-se crescente, apesar da morte de Deus. Zaratustra tem mo-
tivos suficientes para o medo e o cansaço. Não por acaso, o capítulo “Da reden-
ção”, que se referira ao eterno retorno ao aludir à vontade maculada pelo fardo
do passado e refletira sobre a ação do “espírito de vingança” contra o caráter
irrevogável do tempo, terminara sob o tom da interrogação: “Alguma coisa mais
elevada do que toda a reconciliação, deve querer a vontade que é vontade de
poder; mas como chegar lá? Quem lhe ensinaria também o querer para trás?”.41
Ainda que, ao longo do percurso, vá se tornando quem é – “Torna-te quem tu
és!” é o emblema da tragédia –, mediante o enfrentamento corajoso dos mais di-
versos perigos e impedimentos e, especialmente, pela aproximação da sabedoria
dionisíaca, Zaratustra é levado a perceber outra vez, e agora com mais prudência

39
Ibid., “De grandes acontecimentos”, p. 162.
40
Ibid., p. 163.
41
Ibid., “Da redenção”, p. 174.

Leituras de Zaratustra 47
e maior maturidade, a importância e a necessidade do isolamento: convém subir
a montanha, refugiar-se mais uma vez na solidão para deixar vir à tona seu se-
gredo mais velado. Era necessária a volta à montanha para se preparar e assumir
seu pensamento trágico, finalizar seu aprendizado com uma afirmação talvez mais
incisiva acerca do eterno retorno, para se tornar, enfim, o “mestre do eterno retor-
no”. “Realizar uma coisa grande é difícil; mas o mais difícil é ordenar alguma
coisa grande”,42 dissera-lhe sua solidão em sua “hora mais silenciosa”. A última
solidão de Zaratustra é seu perigo derradeiro: exige coragem a proclamação do
eterno retorno, instrumento de superação da vingança contra o tempo passado;
exige ousadia a afirmação incondicional da vida, a atitude trágico-dionisíaca.
Depois de deixar as Ilhas bem-aventuradas, Zaratustra sobe e desce o monte
para se entregar a uma viagem pelo mar em direção à “outra costa” e, poste-
riormente, à solidão de sua caverna. Perto da meia-noite tem início o “cami-
nho da grandeza”,43 o percurso do destino a um só tempo cruel e radiante – o
caminho para o segredo, para o abismo, para a dor e a solidão mais fundas, e,
ao mesmo tempo, para o mais elevado cume. Amedrontado, fragilizado para
enfrentar seu próprio abisso – “‘Está acima das minhas forças!’”44 –, Zaratus-
tra, no entanto, certo de que não deve se poupar, obedece à voz da solidão:
“‘Que importa a tua pessoa, Zaratustra! Fala a tua palavra e despedaça-te!’”.45
Pela manhã, Zaratustra embarca no navio de “estrangeiros”; depois de dois
dias de silêncio, sem responder “nem a olhares nem a perguntas”,46 diante
dos “intrépidos buscadores e tentadores de mundos por descobrir”,47 rompe
“o gelo de seu coração”48 e dá início à descrição da revelação de sua visão do
maior e mais estranho enigma – “a visão do ser mais solitário”49 –, descrição
que se prolonga nos dois capítulos seguintes ao capítulo “Da visão e do enig-
ma”: “Da bem-aventurança a contragosto” e “Antes que o sol desponte”.
Não bastassem as lembranças de “suas muitas peregrinações solitárias
desde a juventude”,50 mais um perigo apresentara-se “recentemente” no ca-
minho de Zaratustra até sua solidão, na subida do monte em direção ao mar:

42
Ibid., “A hora mais silenciosa”, p. 179.
43
Ibid., “O viandante”, p. 188.
44
Ibid., “A hora mais silenciosa”, p. 178.
45
Ibid., p. 179.
46
Ibid., “Da visão e do enigma”, 1, p. 191.
47
Ibid.
48
Ibid.
49
Ibid.
50
Ibid., “O viandante”, p. 187.

48 Tereza Cristina B. Calomeni


no início da rota de encontro do eterno retorno, confidencia aos “marinheiros”,
tivera que enfrentar um “anão”, um “espírito da gravidade”, seu “demônio”
e “mortal inimigo” – o representante do pensamento metafísico-cristão, da
racionalidade, da moralidade, do niilismo –, que procura colocá-lo para baixo,
“pingando chumbo em [seus] ouvidos e pensamentos como gotas de chumbo
no [seu] cérebro”.51 Ao subir, ao percorrer o caminho do criador, Zaratustra,
já oprimido, é ameaçado pelo “anão”.
Solitário, Zaratustra resiste às insinuações de um tal “espírito de peso” e
apela para a coragem, visto que o haviam deixado o “orgulho” e a “esperte-
za”. Certo de que a coragem mata a morte, munido de coragem e protegido
pelo destemor dos fortes – que, ousados, enfrentam seus abismos –, Zaratus-
tra decide, encara e desafia o “anão”; afinal, dentro dele, como expressão de
seus instintos e afetos vitais, encontram-se forças criativas capazes da vitória:
“‘Anão! Ou tu ou eu!’”.52 Zaratustra afirma a vida e sua vontade criadora: “Era
isso, a vida? Pois muito bem! Outra vez!”.53 Primeira observação um pouco
mais clara da aceitação do eterno retorno, primeiro anúncio um pouco mais
explícito daquilo que o “espírito da gravidade”, na opinião de Zaratustra, não
pode compreender. “‘Alto lá, anão [...]. Ou eu ou tu! Mas eu sou o mais forte
dos dois: tu não conheces o meu pensamento abismal! Esse – não poderias
suportá-lo!’”.54 O “anão” é fraco, inapto a compreender o que diz Zaratustra;
à vida não dedica um amor incondicional. A riqueza do amor fati não acolhe
em si: o “anão” não (re)conhece a imponderável relação entre o eterno retorno
e o amor fati. O “espírito da gravidade” não pode, pois, conhecer o sentido
atribuído por Zaratustra ao eterno retorno; não é um tipo (re)conciliado com o
tempo: o “anão” vê a vida com peso, não tem leveza de ave ou de dançarino e
não ama a si mesmo, dirá o capítulo “Do espírito da gravidade”. Ao contrário
de sua moral – anã, pequena, pesada e fraca –, Zaratustra fala de bem e de mal
não mais como “conjeturas” de “adivinhos e astrólogos”, mas como valores
históricos singulares, conforme dissera em “De mil e um fitos”. O “anão” é,
pois, em princípio, o homem da interpretação moral da existência, interpre-
tação forjada desde a instituição da metafísica, quando filosofia e trágico se
separam, dando lugar à conjugação entre filosofia e moral; o “anão” é débil
demais e incapaz de pensar a vida tragicamente. O diálogo entre o “anão” e
Zaratustra é, neste caso, expressão do diálogo entre a interpretação racional

51
Ibid., “Da visão e do enigma”, 1, p. 191.
52
Ibid., p. 192.
53
Ibid.
54
Ibid., “Da visão e do enigma”, 2, p. 193.

Leituras de Zaratustra 49
e a interpretação trágica, cuja distinção Nietzsche, de certa forma, já apontara
em O nascimento da tragédia.
O destemor, a coragem e a decisão de Zaratustra, a afirmação e a aceita-
ção imponderáveis e incondicionais da vida apesar do aparente infortúnio da
possibilidade do eterno retorno de todas as coisas, e, mais ainda, o desejo do
retorno – “Outra vez!” – levam o “anão” a saltar, “curioso”, das costas do co-
rajoso Zaratustra para se postar, junto com ele, “diante de um portal”.55 Com
o pulo do “anão”, interrogando sobre os dois caminhos que se encontram no
“portal”, Zaratustra inicia sua “reflexão” sobre o tempo:

“Olha esse portal, anão!”, prossegui; “ele tem duas faces. Dois caminhos
aqui se juntam; ninguém os percorreu até o fim. Essa longa rua que leva
para trás: dura uma eternidade. E aquela longa rua que leva para frente – é
outra eternidade. Contradizem-se esses caminhos, dão com a cabeça um no
outro: – e aqui, nesse portal, é onde se juntam. Mas o nome do porta está
escrito no alto: ‘momento’. – mas quem seguisse por um deles – e fosse
sempre adiante e cada vez mais longe: pensas, anão, que esses caminhos
iriam contradizer-se eternamente?”56

O “anão” compreende que, falando do espaço, Zaratustra quer, na verdade,


falar do tempo: “‘Tudo o que é reto mente!’, murmurou, desdenhoso, o anão”.
‘Toda verdade é torta, o próprio tempo é um círculo’”,57 diz ele, apressado
e leviano. A resposta do “anão” é a mais óbvia das respostas: se o passado
encontra-se com o futuro, o tempo é um círculo; se passado e futuro são duas
eternidades que se enlaçam no “instante”, o tempo não é linear. Também ele,
o “espírito de peso”, recusa o tempo linear e conhece o velho pensamento do
retorno e do círculo, também ele parece informado da doutrina antiga da cir-
cularidade do tempo. De imediato, parece que, ao aludir ao círculo, o “anão”
se refere ao eterno retorno que Zaratustra irá comunicar porque, de imediato,
ao problematizar a contradição entre passado e futuro e recusar a dimensão
linear e sucessiva do tempo, Zaratustra, assim como o “anão”, parece afirmar
o movimento circular de todas as coisas. No entanto, supõe-se que o “anão”
não entenda o sentido que Zaratustra quer atribuir ao pensamento do retorno.
Embora não desminta aberta e claramente o “anão”, Zaratustra não afirma
que o tempo é circular, e, curiosamente, não argumenta contra as afirmações
do “anão”. “Zangado”, Zaratustra considera por demais simplista e superficial

55
Ibid.
56
Ibid.
57
Ibid.

50 Tereza Cristina B. Calomeni


a solução apresentada pelo “anão”: concluir, rapidamente, pelo tempo como
círculo é esconder o essencial e anular a complexidade e a densidade do eterno
retorno que ele, Zaratustra, quer anunciar. O assunto é por demais complexo,
confuso, complicado, é grave demais para ser reduzido de forma tão imatura,
irrefletida e apressada.
Diante da provocação de Zaratustra, o “anão” afirma imediatamente o
círculo porque seu olhar talvez se volte, espontaneamente, para a doutrina
antiga; mas Zaratustra sabe que a concepção arcaica não é propriamente equi-
valente àquele que lhe parece ser o “pensamento dos pensamentos”; sabe que,
se assim fosse, nada acrescentaria a uma situação problemática e difícil como
a que enfrenta a modernidade. Onde estaria a originalidade do pensamento
se Nietzsche tivesse apenas repetido uma doutrina tão antiga e inadequada à
modernidade? Se o eterno retorno de Zaratustra fosse repetição do pensamento
arcaico, não poderia dispor da força que Nietzsche quer lhe atribuir para favo-
recer o surgimento de uma nova cultura; não seria instrumento privilegiado
para a consagração da transvaloração de todos os valores.
Na conversa com o “anão”, Zaratustra não admite claramente que o tempo
é um círculo. Todavia, em A gaia ciência, texto em que se proclama a repetição
imponderável de todas as coisas, o peso mais pesado é anunciado por dois ar-
gumentos básicos: repetição eterna e movimento circular de todas as coisas
no tempo. Diz o aforismo 341: “tudo o que há de indizivelmente grande e pe-
queno em tua vida há de retornar e tudo na mesma ordem e sequência”.58 Do
mesmo modo, não são poucos os Fragmentos póstumos em que Nietzsche, para
se referir ao eterno retorno, recorre à ideia de tempo circular. No texto do Zara-
tustra, também há a sugestão do círculo – por meio de metáforas e símbolos,
como a “serpente”, o “anel”, a “roda” –, mas não é Zaratustra quem fala do
movimento circular: o pensamento do círculo é próprio do discurso do “anão”
e, mais tarde, no capítulo “O convalescente”, dos “animais de Zaratustra”.
Nietzsche insinua o argumento da circularidade em A gaia ciência e o expõe em
Fragmentos póstumos, mas Zaratustra não afirma o círculo.
Zaratustra não afirma o círculo; no entanto, é significativo que não se de-
fenda da postulação do “anão” com muita veemência.59 O silêncio de Zaratus-
tra não pode significar o assentimento da concepção anã, mas, por que, apesar
de mostrar-se “zangado”, Zaratustra silencia ao invés de argumentar contra a
leviana resposta do “anão? Tudo indica que Zaratustra percebe a utilidade da

58
Id. A gaia ciência, aforismo 341, “O maior dos pesos”, p. 230.
59
Cf. CALOMENI, Tereza Cristina B. A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retor-
no em Nietzsche. In: Cadernos Nietzsche, 18, 2005, p. 102.

Leituras de Zaratustra 51
postulação do círculo e prefere, com alguma intenção, deixar em suspenso a
possibilidade de ser o seu eterno retorno uma afirmação do tempo circular.
Repreendendo o “anão”, Zaratustra prossegue em sua tentativa de “refle-
tir” sobre o tempo para “concluir” sobre o eterno retorno. Tal como no aforis-
mo de A gaia ciência, também no Zaratustra, na conversa com o “anão”, está
presente a ideia de que tudo o que está no tempo revém, necessariamente, na
“mesma ordem e sequência”. Falando baixo, “cada vez mais baixinho”60 por-
que tem “medo de [seus] próprios pensamentos e do que eles [ocultam]”61,
Zaratustra sugere: se o passado e o futuro são eternos, todas as coisas já acon-
teceram, e, de novo, acontecerão; se o passado é eterno, tudo o que está por vir
já esteve no mundo; se o futuro é eterno, tudo o que já aconteceu acontecerá
mais outra(s) vez(es); não há, pois, possibilidade de que ocorram aconteci-
mentos sempre novos: “Tudo aquilo, das coisas, que pode acontecer, não deve
já, uma vez, ter acontecido, passado, transcorrido? [...] Porque tudo aquilo, de
todas as coisas, que pode caminhar, deverá ainda, uma vez, percorrer – também
esta longa rua leva para a frente!”.
Diante das ponderações inabituais de Zaratustra, o “anão” não responde;
o “anão” desaparece. Por que silencia o “perneta”? Por que foge o “espírito de
peso”? Intui que o eterno retorno a que aludira não é propriamente idêntico ao
sentido que Zaratustra confere ao pensamento do retorno e que, além disto, o
eterno retorno, na boca de um herói trágico como Zaratustra, é tão somente uma
simbologia destinada a recusar e destruir concepções simplistas e equivocadas
como a sua? Reconhece a tarefa concedida por Zaratustra ao eterno retorno,
afirmar, como hipótese, o retorno de todas as coisas para radicalizar o niilis-
mo moderno a ponto de destruir a concepção metafísico-religiosa de tempo, a
concepção responsável pela vingança, pelo remorso e pelo ressentimento con-
tra a vida e contra o passado, e para promover a aceitação da existência no que
ela tem de mais precário e problemático? Assim formulado, o eterno retorno é
um “peso” que ele, pequeno demais, é incompetente para suportar.
Como conciliar o aparente determinismo de que se reveste o pensamento
do eterno retorno com a reação e o impacto que Nietzsche pretende provocar
nos homens a quem seja dado o privilégio de ouvi-lo, como indica o aforismo
de A gaia ciência? A não afirmação do círculo, o aborrecimento com o “anão”,
e a tranquilidade diante das ponderações dos “animais” em “O convalescente”
sugerem que Nietzsche afirma o eterno retorno como círculo e como retorno do

60
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, “Da visão e do enigma”, 2, p. 194.
61
Ibid.

52 Tereza Cristina B. Calomeni


mesmo com uma intenção bem determinada. Pode-se ver aí a primeira e incon-
testável indicação de que Nietzsche quer afirmar o eterno retorno do mesmo não
propriamente para assegurar a veracidade de um discurso sobre a realidade
do tempo como círculo e a repetição do mesmo – embora repita, enfaticamen-
te, que é o mesmo que retorna –, mas para atingir outro objetivo: provocar o
homem e incitá-lo a uma nova relação com a vida e a temporalidade por meio
da negação de categorias tradicionalmente utilizadas para a interpretação da
existência, como se a adesão a outra forma de concepção do tempo – ainda
que fictícia – pudesse livrar o homem do peso dos valores metafísico-cristãos,
permitindo a constituição de um outro tipo de relação entre o homem e a
temporalidade, o homem e a existência, o homem e o sofrimento. Não há
possibilidade de o eterno retorno ser a postulação da realidade última do tem-
po. Nietzsche não falaria do estatuto do tempo como algo objetivo e exterior.
Como seria possível conciliar uma afirmação categórica sobre o tempo com as
contundentes críticas anteriores? Por enquanto, tudo indica que Zaratustra
reconhece que, apesar de o círculo e a repetição do mesmo não representarem
integralmente seu pensamento, as ideias de movimento circular e de repetição
têm alguma serventia. Não sem reservas – tanto que Zaratustra se aborre-
ce com o “anão” –, ao postular o eterno retorno, Nietzsche permite, proposi-
talmente, que o tempo seja entendido como círculo e o eterno retorno, como
doutrina fatalista de repetição do igual para recusar a concepção habitual de
tempo que, opondo passado e futuro, condena o passado e leva o homem a
esperar por um futuro melhor mediante a desqualificação do presente. A pos-
tulação do retorno e ideia de tempo como círculo podem ser compreendidas
como integrantes do projeto de acirramento do niilismo moderno, o “estranho
hóspede da modernidade”. Parte de sua filosofia experimental, o eterno retorno
é, para Nietzsche, expediente de condução à era trágica, à era da afirmação
incondicional da vida, à era do sim dionisíaco à existência e aos seus aspectos
mais infames, dolorosos e precários, à era da alegre afirmação da existência,
apesar da dor e do sofrimento.

3.

Uma súbita e inusitada visão interrompe a conversa entre Zaratustra e o


anão”; uma segunda cena é configurada no relato de Zaratustra aos “mari-
nheiros”: depois de ouvir o uivo de um cão e de apiedar-se de um lamento
inusitado, como se estivesse “no meio de selvagens rochedos, sozinho, ermo,

Leituras de Zaratustra 53
no mais ermo lugar”,62 Zaratustra vê um “jovem pastor contorcer-se, sufoca-
do, convulso, com o rosto transtornado, pois uma negra e pesada cobra pendia
de sua boca”.63 Piedoso, tenta ajudá-lo a arrancar a “cobra” de dentro de si,
impressionado com o pedido de socorro do cão e com o “asco” e o “horror”
vislumbrados no rosto do “pastor”. O esforço, de início inútil, converte-se em
sugestão de uma solução definitiva: “‘Morde! Morde! Decepa-lhe a cabeça!
Morde!’”,64 grita, exasperada, “alguma coisa de dentro” de Zaratustra, o seu
“horror”, o seu “ódio”, o seu “asco”, a sua “compaixão”, “todo o [seu] bem e
o [seu] mal”.65 O “pastor” morde a “cobra”; resoluto, cospe-a fora.
A nova visão, o novo enigma é, na verdade, uma antecipação do que virá
descrito no capítulo “O convalescente”. “Que vi eu, então, em forma de ale-
goria? E quem é aquele que, algum dia, há de vir? Quem é o pastor em cuja
garganta a cobra assim se insinuou? Quem é o homem em cuja garganta se
insinuará tudo o que há de mais negro e pesado?”66 Necessário esperar por
algumas insinuações posteriores para compreender que a visão de Zaratustra
é uma “antevisão” de si próprio. O “pastor” é o próprio Zaratustra, e a “co-
bra”, o “grande fastio” que Zaratustra sente pelo homem, o niilismo passivo,
o niilismo provocado pela conclusão de que também o último homem voltará
eternamente. A grande dificuldade é esta, neste momento: se tudo retorna,
retornará o homem mesquinho.
O capítulo “Da visão e do enigma” – que, em parte, revive “O adivinho”
– contém indicações importantes à compreensão do significado do eterno retor-
no; no entanto, ainda não é o lugar de uma proclamação decisiva, o que leva
a crer que, neste momento, Zaratustra ainda não é, inteiramente, refratário
ao contágio do niilismo. Ainda há necessidade de Zaratustra, andarilho como
Nietzsche, continuar sua “viagem por mar”; “quando [se acha] a quatro dias
de distância das ilhas bem-aventuradas e dos amigos”, Zaratustra pode supe-
rar “toda a sua dor”.67 Então, “vitorioso e com passo firme, novamente em pé
no seu destino”,68 referindo-se à “prova” do eterno retorno, pode falar “à sua
exultante consciência”:69 “estou no meio de minha obra, indo para os meus fi-

62
Ibid.
63
Ibid., p. 199.
64
Ibid.
65
Ibid.
66
Ibid.
67
Ibid., “Da bem-aventurança a contragosto”, p. 196.
68
Ibid.
69
Ibid.

54 Tereza Cristina B. Calomeni


lhos e deles voltando; por amor de seus filhos, deve Zaratustra completar-se a
si mesmo”.70 Zaratustra ainda não se decidira a ir ao encontro de seu segredo,
“amarrado” que estava “pelo amor pelos [seus] filhos” e despreparado para o
difícil momento; mas agora pode avaliar melhor o que já ouvira, anteriormen-
te, de sua “hora mais silenciosa”: “‘Já é mais que chegado o tempo!’”.
“Antes que o sol desponte” evidencia, mais uma vez, que também Zaratus-
tra deve se preparar. Zaratustra ainda não é um herói trágico suficientemente
forte para a afirmação do eterno retorno, sua “prova” derradeira: ouvir o segre-
do, entregar-se ao abismo, aceitar plenamente a dor e o sofrimento, louvar a
dolorida existência e o retorno eterno: “eu mesmo preciso completar-me; por
isso, evito, agora, a ventura e me ofereço a toda a desventura – para a minha
derradeira prova e conhecimento de mim mesmo”.71 É chegada a sua hora, a
hora do teste mais doloroso, da prova mais difícil, a hora do enfrentamento
mais grave, a hora do anúncio do eterno retorno. Repelindo a “hora bem-aven-
turada” em que a “felicidade chegou cada vez mais perto dele”,72 Zaratustra
espera “a noite toda pela sua desventura; mas [espera] em vão”:73 ainda não
pode se entregar, ainda não pode ser surpreendido por seu pensamento abis-
sal; ainda não está em condições de se deparar com o seu próprio abismo.
“Ainda não chegou a hora da minha derradeira batalha – ou, justamente, estará
chegando?”.74
Como a retardar o difícil encontro com seu abismo, Zaratustra ainda não
segue imediatamente em direção à sua montanha e à solidão. Antes do “re-
gresso” ao isolamento das alturas e ao “ar rarefeito” da montanha, ainda ca-
minha por entre povos diferentes, “percorre muitos caminhos e [faz] muitas
perguntas, informando-se de várias coisas”75 porque quer]\ “saber o que, no
meio tempo, se dera com o ser humano: se ele se tornara maior ou menor”.76
Refletindo sobre a modernidade, tristonho, Zaratustra conclui: “Tudo tornou-
-se menor!”.77 A mediocridade dos homens, confirma ele, aumentara. Nada
fizeram em favor da cultura e da expressão de uma “superabundância de vida”
ou de uma “vida ascendente” as modernas ideias de evolução, progresso,

70
Ibid.
71
Ibid., p. 197.
72
Ibid., p. 192.
73
Ibid.
74
Ibid., p. 199.
75
Ibid., “Da virtude amesquinhadora”, 1, p. 203.
76
Ibid.
77
Ibid.

Leituras de Zaratustra 55
igualdade, socialismo e Estado. As ideias modernas não se constituíram como
“tônico” ou “estimulante”, mas tão somente como novas formas de niilismo
e decadência. A modernidade não conseguira se transformar em uma cultura
de estilo, conquistar uma grande saúde, superar sua extrema mediocridade e pe-
quenez, reviver a força e o vigor que Nietzsche encontra nos gregos trágicos,
pré-socráticos, que vencem o horror da existência por meio da arte trágica. A
cultura moderna, em especial a cultura alemã, confundira educação com “do-
mesticação”, porque não exaltara a singularidade, mas a igualdade, fazendo
dos jovens seres dóceis demais e enfraquecidos. A modernidade mantivera-se
aprisionada a determinadas virtudes, todas elas “amesquinhadoras”, incapa-
zes e impertinentes a uma cultura superior. O homem fora desumanizado, do-
mesticado, tornara-se um “animal de rebanho” quando deveria, para se com-
preender como avaliador e criador, ser o lugar de uma educação para o “cultivo
de si”. Os modernos ainda não sabem querer – são homens de “meio-querer”.
Mas Zaratustra não pode se compadecer do infortúnio da modernidade; dirá o
capítulo “O regresso”: a compaixão será seu último perigo.
Triste ainda, Zaratustra discursa sobre a “virtude amesquinhadora” e sobre a
“gente pequena”, a gente moderna que quer o “bem-estar” e confunde “resigna-
ção” com “covardia”, “moderação” com “mediocridade”. O homem moderno, por
diversas vezes repudiado por Nietzsche, é um homem mesquinho e pobre porque
mesquinha e pobre sua relação com o mundo. O moderno ainda está preso às
ideias de finalidade e sentido, não vê a inocência do mundo, o “céu-acaso”: não
percebe que poderia abrir no “céu” um “novo infinito” e se tornar a “tempestade”
capaz de varrer as nuvens mais pesadas e escuras. Diante da mesquinharia dos
homens modernos, Zaratustra, mais uma vez, aponta para a necessidade, tantas
vezes manifesta, de reafirmar a alma solitária daquele que é o anunciador do raio
para marcar sua diferença em relação àqueles que louvam a igualdade e deixam-se
impressionar pelo aparente fulgor dos novos ídolos, os ídolos modernos. Antes
de regressar à solidão para abraçar seu segredo abismal, antes de subir o “monte”
para pregar a recusa da velha hierarquia de valores e sugerir “nova tábua de valo-
res”, Zaratustra define-se e a seu tipo – o destruidor de ídolos.
Zaratustra demonstra seu imenso “nojo” pelo homem mesquinho, pelos
“mestres da resignação”, pelos “amigos do bem-estar”: “‘‘Sim! [...] Eu sou
Zaratustra, o ímpio: onde encontrarei os meus pares? E são meus pares to-
dos aqueles que se dão a si mesmos a sua vontade e repelem de si toda a
resignação”.78 Os modernos não podem compreendê-lo: submissos ainda às

78
Ibid., “Da virtude amesquinhadora”, 3, p. 207.

56 Tereza Cristina B. Calomeni


ideias de finalidade, causalidade, sujeito e livre-arbítrio, reforçam, a partir de-
las, a velha hierarquia de valores que, embora partida, ainda vigora na moder-
nidade. O solo da modernidade é demasiado “delicado” e “fofo” para compre-
ender a dureza da alma de Zaratustra, a necessidade de convivência entre a
ternura e a dureza. Os modernos não são duros como convém a legisladores
e a criadores; não têm a dureza necessária à superação de si e de seus valores.
“Tornai-vos duros”, diz Nietzsche, em “De velha e novas tábuas”. Bater com
o “martelo” em ídolos e deuses para destruí-los exige dureza. Enquanto “os
criadores são duros” – “Duríssimo é somente o mais nobre”79 –, os modernos
arranjam-se em torno de justificativas inaceitáveis e procedem a uma pobre
e miserável avaliação de sua própria cultura. Intempestivo, Zaratustra espera
o “grande meio-dia”, a hora em que, anunciado o eterno retorno, será possível
atacar o niilismo em sua raiz mais funda: a dualidade de mundos, o dualismo
de valores, a desvalorização da existência, fundamento da filosofia ocidental
de Platão a Kant.
Andarilho, Zaratustra continua a atravessar diferentes cidades antes de re-
gressar à sua montanha. Finalmente, dois dias depois de pronunciar-se sobre
os “renegados”, em “lágrimas”, chega à sua caverna. Finalmente, pode ouvir,
outra vez, a “meiga” voz de sua solidão. A solidão, companheira sua insepará-
vel, parece a única apta a compreender que, entre os homens, Zaratustra não
pudera ver-se em companhia, não pudera se encontrar e a seu segredo. No diá-
logo com sua companheira insubstituível, reafirma a importância do isolamen-
to para o encontro com o abismo. “‘Ó solidão! Ó solidão, minha pátria! Tempo
demais selvagemente vivi em selvagens terras estranhas, para não regressar
sem lágrimas’.”80 “Ó Zaratustra, eu sei de tudo: e que, no meio de muitos,
estavas mais abandonado, mais só, do que algum dia estiveste comigo!”81 A
solidão sempre fora, para Nietzsche, o ambiente propício à ruminação. Não por
acaso, também o aforismo de A gaia ciência põe o “demônio” em contato com
a “hora mais solitária” do homem para o anúncio do eterno retorno. Na solidão
mais funda, Nietzsche faz aparecer o eterno retorno. Embora tenha descido da
caverna para estar com os homens, em solidão, Zaratustra livra-se do “cheiro
dos humanos” mais sórdidos e pode escapar ao “ruído” insuportável do lado
de baixo, ao zunido inconveniente das “moscas da feira”. Em solidão, pode
reencontrar o lugar privilegiado para sua expressão e sua palavra. Em solidão,
não está abandonado; abandonado estivera quando estivera entre os homens.

79
Ibid., “De velhas e novas tábuas”, 29, p. 256.
80
Ibid., “O regresso”, p. 220.
81
Ibid.

Leituras de Zaratustra 57
No capítulo “O convalescente”, “não muito após seu regresso à caverna”,82
Zaratustra não pode mais se esquivar do anúncio do eterno retorno. “Levanta-te
da minha profundeza, pensamento abismal! [...] Eu, Zaratustra, o defensor
da vida, o intercessor da dor, o assertor do círculo – chamo-te a ti, ó meu
abismal pensamento”.83 Ao pronunciar tais palavras, Zaratustra cai “ao solo
como morto”84 e permanece assim, adoentado, longamente; Zaratustra cai, e
caído permanece por longo tempo: confirma-se a visão do “pastor” sufocado
pela “cobra”. Apenas ele ouvira o “pensamento dos pensamentos”. Depois de
longo tempo, Zaratustra volta a si, mas se mantém quieto e “prostrado” por
exatos sete dias, quando, então, ouve as animadoras palavras de seus animais.

“Ó Zaratustra, [...] já faz sete dias que estás deitado, com olhos pesados;
não queres, finalmente, pôr-te outra vez de pé? / Sai desta caverna; o mun-
do está à tua espera como um jardim. Brinca o vento com intensos per-
fumes, que te procuram; e todos os córregos gostariam de seguir os teus
passos. / Por ti, que ficaste sozinho sete dias, anseiam todas as coisas. Sai
desta caverna! Todas as coisas querem ser teus médicos! / Veio a ti algum
novo conhecimento, amargo, doloroso?’”85

A conversa com os “animais”, logo após o soerguimento de Zaratustra do


leito, assim como o capítulo “Da visão e do enigma”, sugere que também eles
pensam conhecer o eterno retorno. Repondo o pensamento do círculo, dizem
eles, ao fim de sete dias de convalescença de Zaratustra: “Tudo vai e tudo vol-
ta; eternamente gira a roda do ser”.86 Idênticas – ou quase – às ponderações
do “anão” são as palavras dos “animais”. Na concepção natural dos “animais”,
o eterno retorno pode-se justificar como círculo: nos “animais”, o eterno retorno
não provoca qualquer reação desagradável, maldita ou constrangedora – os
“animais” não têm o peso da responsabilidade moral. Animais não precisam
declinar, enfrentar seus terríveis abissos, ultrapassar, corajosamente, em dire-
ção à outra margem; animais não conhecem a necessidade da decisão ou do
amor fati, da trágica afirmação do existir. Só aquele que se depara com o niilis-
mo mais fundo pode reconhecer a necessidade da coragem para afirmar a exis-
tência. Ao ouvir o discurso dos “animais”, Zaratustra sorri. Mais complacente
com os seus “animais” do que fora anteriormente com o “anão”, Zaratustra

82
Ibid., “O convalescente”, p. 257.
83
Ibid.
84
Ibid., p. 223.
85
Ibid.
86
Ibid., “O regresso”, 2, p. 259.

58 Tereza Cristina B. Calomeni


repudia, mais uma vez, o pensamento do círculo como “modinha de realejo”.
Inquieto, Zaratustra põe-se a lembrar do extremo perigo presente na acei-
tação do eterno retorno – a volta do pequeno homem –, mas é interrompido por
seus “animais” que, a esta altura, sugerem-lhe o “canto” como mais próprio
a um convalescente. Diante da fatalidade do regresso do “pequeno homem”,
Zaratustra reconhece, mais uma vez, a distinção do canto como “consolo” e
“cura”. “Porque vê, Zaratustra! Para os teus novos cantos, precisas de novas
liras. Canta e transborda, ó Zaratustra, cura a tua alma com novos cantos;
para que possas carregar com teu grande destino, que ainda não foi destino de
nenhum ser humano!”87 Finalmente, é reconhecido por seus “animais” o “mes-
tre do eterno retorno”. “Pois bem sabem os teus animais, ó Zaratustra, quem
és e quem deves tornar-te: és o mestre do eterno retorno – este, agora, é o
teu destino!”88 O eterno retorno, a afirmação incondicional, trágico-dionisíaca,
da vida, instrumento de superação da interpretação metafísico-cristã da exis-
tência, o “pensamento vitorioso” não pode ser anunciado nem compreendi-
do pela linguagem habitual, a linguagem lógico-discursiva, representativa e
conceitual. Anuncia-se o que dirá Nietzsche em Ecce homo: a linguagem mais
conveniente a Zaratustra é a do “ditirambo dionisíaco”; o canto é o lugar pri-
vilegiado à expressão do amor pela eternidade da existência. Zaratustra está
silente: o eterno retorno, fundamental ao projeto de transvaloração de todos os
valores, não pode ser acolhido pela linguagem tradicional. Retorna Nietzsche
à exortação da arte.
Ao ouvir o segundo discurso dos “animais”, que, de todo modo, ultrapassa
as conclusões do “anão”, Zaratustra, em íntima conversa com sua alma, silen-
cia. Que segredo guarda o silêncio de Zaratustra?89

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALOMENI, Tereza Cristina B. A redenção da temporalidade; a trágica intuição do


eterno retorno em Nietzsche. Cadernos Nietzsche, São Paulo, USP, n, 18, 2005.
NIETZSCHE. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Berlim/Munique: Walter de
Gruyter/DTV, 1980.

87
Ibid., p. 262.
88
Ibid.
89
Cf. CALOMENI, Tereza Cristina B. A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno
retorno em Nietzsche. In: Cadernos Nietzsche. São Paulo: USP, 2005, nº 18. Neste texto, são analisadas
algumas das dificuldades postas pelo pensamento do eterno retorno.

Leituras de Zaratustra 59
______. Assim falou Zaratustra; um livro para todos e para ninguém. 9. ed. Rio de Janei-
ro: Bertrand Brasil, 1998. 3 v.
______. Ecce homo; como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1995.
______. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

60 Tereza Cristina B. Calomeni


As transmutações do espírito
no Zaratustra de Nietzsche1

Vânia Dutra de Azeredo

Neste texto, procederemos a uma leitura de “Das três transmutações do


espírito” constante na I parte de Assim falava Zaratustra, como uma exposição
referente à História da Filosofia em que se processaria a alternância de três
estágios. O primeiro estágio seria a completa determinação do camelo; o se-
gundo, a autonomia do leão; e o terceiro, a inocência da criança, correspon-
dendo respectivamente a Sócrates/Platão, a Descartes/Kant e, finalmente, a
Nietzsche. Trata-se de uma leitura historiográfica da referida seção em que se
processaria o embate de perspectivas determinante da compreensão de cada
momento histórico do pensamento filosófico. A seleção dos filósofos deve-se,
por um lado, às críticas de Nietzsche endereçadas a eles no conjunto de sua
obra, e, por outro, à importância de uma determinada visão do ser, do conhe-
cer e do agir que se constituíram como emblemáticas na história da filosofia
e que foram introduzidas por esses pensadores. Nela, vemos as oscilações de
poder que se processam no seu próprio devir, excluindo por completo a noção
de fato e remetendo toda exposição ao conceito de interpretação tão caro a
Nietzsche. Do mesmo modo, consideramos a leitura proposta, o que, todavia,
não a exime de variados problemas teóricos.
Ora, a exposição de Nietzsche, tomada sob o aspecto do sentido das trans-
mutações do espírito como alternância das interpretações do ser, do conhecer
e do agir, suscita a ideia de uma evolução, de passagem de um estágio a outro.
Caso se tome “Das três transmutações” como imagens correspondentes a mo-
mentos que se sucederam na história da filosofia como interpretações do ser,
do conhecer e do agir, somos lançados a dois tipos de problemas concernentes
ao estatuto do discurso nietzschiano. Primeiro, o além-do-homem teria de
manifestar-se no terceiro estágio, em um momento vindouro, na condição de

1
Esse texto, apresentado agora com alguns acréscimos, tem uma versão aproximada em meu livro
Nietzsche e a aurora de uma nova ética.

Leituras de Zaratustra 61
revisão do ser, do conhecer e do agir. O além-do-homem poderia consistir em
uma projeção nietzschiana de um ideal de ser, de conhecer e de agir para além
das proposições que o antecederam. Nesse caso, a questão refere-se à possi-
bilidade de, em criticando os construtos anteriores da história da filosofia,
não fazer do seu discurso um novo ideal, ou, mesmo que se altere a formula-
ção, uma outra construção que, prescindindo das categorias usuais, introduza
outras categorias que desempenhem função similar. Comecemos, então, por
perguntar: que transformação se processa com o discurso nietzschiano que
lhe permite colocar-se para além da tradição? Em que medida a formulação
de uma interpretação e a admissão de que só existem interpretações viabiliza
compreender a ação e o conhecimento sem pretensões totalizadoras, ou, qui-
çá, uma forma de contemplar a totalidade sem lançar mão da universalidade?
Em segundo lugar, supondo-se que se leve a bom termo as questões anterio-
res, como não conferir às transmutações que se sucedem ares de dialética?
Como não fazer da história pensante, mesmo enquanto interpretação, a resul-
tante das transmutações da vontade de potência com vistas a um dado fim?
Essas são, sem dúvida, questões que atravessam a proposição de um sujeito
ético2 e cuja resposta permite não só compreender o ético em Nietzsche, mas
precisar a sua inserção na história da filosofia.
Em termos da compreensão nietzschiana da história da filosofia, pode-se,
realmente, atribuir-lhe a realização de uma crítica em seu conjunto. Mesmo
que alguns pensadores sejam alvos privilegiados, no sentido de terem suas
teses postas à prova dada a universalidade das suas concepções, eles aparecem
como alvos por terem introduzido interpretações importantes, que nortearam,
em um dado momento histórico, concepções de mundo, conhecimento e ação.

2
Em nossa ótica, assentar o ético na perspectiva do trágico e introduzir, assim, uma nova dimensão
do sujeito ético foi o que motivou Nietzsche com a introdução do além-do-homem enquanto prescinde
de uma concepção de subjetividade. Isso requereu a investigação e crítica dos sentidos conferidos, no
decurso da história do pensamento, ao ser, ao homem, ao corpo, à vontade, à consciência, à razão, à
liberdade e à ação. Interligados, desde a introdução da vontade de potência enquanto interpretação,
esses conceitos passam por reorganizações estatutárias, já que o filósofo alemão propõe uma outra
relação e hierarquia entre eles. Ao unir homem e mundo, ser e fazer, Nietzsche quer bem mais do que
criticar as construções que o antecederam pela introdução da dualidade e da fixidez nos registros do
vir-a-ser, mas construir outro registro. Ora, se estes conceitos figuraram dentro de uma visão de mundo
que propunha um tipo de sujeito e de ação, há de se propor uma outra visão de mundo e de ação que
dê vazão à multiplicidade de perspectivas, à vontade de potência enquanto imposição de interpretação
e ao além-do-homem como sujeito ético inserto nessa construção. Nesse sentido, em nossa avaliação,
Nietzsche redefine os termos e impõe a perspectiva do além-do-homem como sujeito ético enquanto
expressão viva do trágico, sujeito esse que reúne, em seu efetivar-se, um redimensionamento da ação e
a proposição do conhecimento como ficção reguladora, pois compreende e propõe os signos no registro
de indícios do estado dos impulsos. Cf. AZEREDO, V. Nietzsche e a aurora de uma nova ética. São
Paulo: Humanitas/Fapesp/ EditoraUnijuí, 2008.

62 Vânia Dutra de Azeredo


Assim, a contraposição direta, por exemplo, a Platão, Descartes e Kant. São al-
vos por terem fundado algo. Todavia, enquanto compartilham a perspectiva da
necessidade de fundamento, igualam-se, e, por isso, Nietzsche crê distanciar-
-se radicalmente deles. A leitura de “Das três transmutações”, como momen-
tos do “espírito” na história do pensamento, pode ser remetida à interpretação
respectiva de Sócrates/Platão como camelo; Descartes/Kant, como leão; e, por
fim, Nietzsche, expressando a criança: “Três transmutações, nomeio-vos, do
espírito: como o espírito se torna camelo e o camelo, leão, e o leão, por fim,
criança”3. Em ambos os casos, há uma interligação entre mundo, conheci-
mento e ação que permite fazer, quer da substância, quer do sujeito, o polo a
partir do qual eles emanam. No primeiro momento, teríamos a heteronomia;
no segundo, particularmente em Kant, a autonomia legisladora; e, no terceiro,
um para-além dessas duas perspectivas. Há diferenças marcantes que separam
o além-do-homem nietzschiano das concepções de sujeito assentadas seja na
noção de substância, seja na de uma subjetividade-autoafirmativa.
Repensar a relação homem/mundo e a ação do homem no mundo aparece,
nos textos de Nietzsche, como questão essencial, ora tratando de dissolver con-
cepções, ora tratando de propor interpretações. Assim, por exemplo, “Das três
transmutações” dissolve e propõe perspectivas. Na primeira transmutação, é a
figura do camelo que expressa a assimilação desmedida do outro como detentor
do valor. É o momento da história do pensamento em que o transcendente de-
termina mundo, conhecimento e ação. Por isso, há, simultaneamente, uma carga
enorme para o espírito e a busca dessa carga. Tem-se, igualmente, na ótica de
Nietzsche, uma interpretação que liga projeção e projetor, isto é, o espírito tem
de suportar uma grande carga que ele mesmo reclama: “Muito de pesado há para
o espírito, para o espírito forte, que suporta carga, em que reside o respeito: pelo
pesado e pelo pesadíssimo reclama sua força”.4 A imagem do camelo expressa um
momento de heteronomia absoluta, pois se trata de um espírito de carga que per-
gunta pelo que há de mais pesado para submeter-se a esse peso: “O que é pesado?
Assim pergunta o espírito de carga, assim ele se ajoelha, igual ao camelo, e quer
ser bem carregado. O que é pesadíssimo, ó heróis? Assim pergunta o espírito de
carga, para que eu o tome sobre mim e me alegre de minha força”.5
Afastando a deliberação da perspectiva do camelo, assim como de todas as
outras, Nietzsche o leria a partir de uma interpretação de sua condição fisioló-

3
ZA I, “Das três transmutações”.
4
Ibid.
5
Ibid.

Leituras de Zaratustra 63
gica que o obriga a ajoelhar-se para poder se situar no mundo. Por meio da impo-
sição dessa perspectiva, o homem, enquanto vontade de potência, manifestaria o
ser mais que o caracteriza, ainda que mediante a submissão àquilo que ele mesmo
estabelece. Por isso, Zaratustra, em seu discurso, refere-se à atitude de abaixar-se
para estancar a altivez: “Não é isto: abaixar-se, para fazer mal a sua altivez? Dei-
xar brilhar sua tolice, para zombar de sua sabedoria?”;6 a atitude de desviar-se da
imposição de sua própria perspectiva quando esta já está sedimentada: “Ou é isto:
apartar-nos de nossa causa, quando ela festeja sua vitória? Galgar altas montanhas,
para tentar o tentador?”;7 a atitude de busca incessante do inatingível: “Ou é isto:
nutrir-se de bolotas e grama do conhecimento e por amor à verdade sofrer fome na
alma?”;8 a atitude de se submeter a todo sofrimento e contratempo como necessi-
dade de carga manifesta no ardor à verdade: “Ou é isto: entrar na água suja, se for
a água da verdade, e não afastar de si frias rãs e sapos que queimam?”;9 e, por fim,
a atitude de ser benevolente, compassivo e temente: “Ou é isto: amar aqueles que
nos desprezam e estender a mão ao espectro quando ele nos quer fazer medo?”.10
Ora, no discurso de Zaratustra, todas essas facetas caracterizam o camelo: “Todo
esse pesadíssimo o espírito de carga toma sobre si: igual ao camelo, que, carrega-
do, corre para o deserto, assim ele corre para seu deserto”.11
Se a terra é a imagem da dimensão em que se postulam sentidos, o deserto
o é a da recusa em estabelecê-los. Correr para seu deserto equivale a correr
para onde é impossível criar, já que se nega a dimensão postuladora. Daí o
além-do-homem devolver o sentido à terra enquanto o camelo corre para seu
deserto. Não se trata, em Nietzsche, de uma oposição que possa resultar em
superação da condição anterior, mas de uma transformação que se processa
em determinada condição. Logo, o além-do-homem não carrega fardos, pois
não é um espírito de carga. O camelo, por seu turno, não corresponde a um
estágio de todo o espírito, no sentido de se atribuir a Nietzsche a proposição
de um espírito absoluto que passaria por evoluções, mas uma interpretação do
espírito que, durante um grande período, tornou-se regente. Quando afirma-
mos que se pode ler “Das três transmutações” como heteronomia, autonomia
e amor fati, ressaltamos que, nesse texto, Nietzsche retoma interpretações que

6
Ibid.
7
Ibid.
8
Ibid.
9
Ibid.
10
Ibid.
11
Ibid.

64 Vânia Dutra de Azeredo


construíram mundo, conhecimento e ação. Daí a possibilidade de pensar a his-
tória da filosofia, de Sócrates até Descartes, como expressão da heteronomia
do espírito; de Descartes até Nietzsche, como autonomia; e, em Nietzsche,
como amor fati, isto é, encarnação da tragicidade capaz de suportar a constru-
ção de um sujeito ético que prescinde da concepção de sujeito. Em que pese
às diferenças que separam esses filósofos, em Nietzsche podemos agrupá-los
desde um mesmo eixo central, qual seja, ora a projeção da submissão, ora a
postulação da autodeterminação; entretanto, em ambos está a impossibilidade
de assimilar sua dimensão criadora.
Na ótica nietzschiana, a impossibilidade de criação relaciona-se diretamen-
te com a sua interpretação acerca da condição fisiológica e, nesse sentido,
aplica-se tanto à submissão e à projeção quanto à autodeterminação. Em Cre-
púsculo dos ídolos, Nietzsche afirma haver um problema referente aos filósofos,
qual seja, a desagregação de seus impulsos, explicitada na luta travada por eles
contra esses impulsos. O seu argumento procura mostrar as características
manifestas, de um modo geral, nos pensadores: julgamento da vida, conde-
nação da sensualidade – e, de um modo geral, dos sentidos –, e a suprema
valorização da introspeção em sua relação direta com o decréscimo instintual.
De um lado, buscam tangenciar a harmonia, não obstante negarem qualquer
anuência aos sentidos. De outro, exacerbam as possibilidades racionais de
promover a autoconservação, visando à superação de uma certa degeneres-
cência lhes imposta por sua própria condição. O seu querer e o seu agir, nessa
perspectiva, refletem um estado, já que são os impulsos, em Nietzsche, que
determinam o querer, o sentir e o pensar. Nesse sentido, deve ser compreen-
dida a afirmação de que “pudessem eles de outra maneira, também haveriam
de querer de outra maneira”.12 É o processo de agregação ou não dos impulsos
que viabiliza qualquer expressão, daí a relação direta estabelecida entre o po-
der de uma maneira e o querer de um modo correspondente.
Com a introdução do conceito de décadence, o filósofo alemão passa a expli-
car o processo valorativo como um todo a partir dos pares contrapostos cria-
ção/inversão, possibilitando inserir nessa disjunção as próprias produções fi-
losóficas. A décadence não é descrita como um mal-estar passageiro, mas como
resultado das relações dos impulsos entre si que acabam por determinar uma
reversão de configurações hierarquizadas. É a sua interpretação relativa à fi-
siologia que fornece a Nietzsche tal conceito, possibilitando-lhe compreender
o ascender e o declinar como movimentos pertencentes à vida. Na sua visão,
“o declínio, a exclusão não são algo que deva ser condenado em si: trata-se de

12
ZA III, “Dos renegados”.

Leituras de Zaratustra 65
uma consequência necessária da vida, do seu crescimento”.13 É o modo humano
de tratar as dissolvências orgânicas que se torna determinante para explicar
algumas valorações, pois, em termos de sua condição, a décadence é um processo
que se pode caracterizar pela ausência total de hierarquia entre os impulsos,
demandando sua dispersão e desagregação. Não há uma escolha ou mesmo uma
ação que precipite os homens a esse processo, pois a transformação geradora de
uma dispersão instintual processa-se em silêncio, ataca os órgãos e o organismo
como um todo, promovendo uma espécie de atrofia de suas potencialidades. A
incidência dessa marcha, entretanto, faz parte do mundo orgânico e enquanto
tal, configura-se de modo natural. Daí a afirmação recorrente de que o declínio
tem de ser querido, pois as investidas dissolventes desse processo acabam por
intensificar sua marcha. Ora, é o processo decadencial crescente e a luta travada
contra ele que Nietzsche perscruta nas avaliações dos filósofos, visto que, desde
o início, professam acerca da vida aquilo que, por sua condição de viventes,
não seria professável: “Acerca da vida, os mais sábios proferiram em todos os
tempos o mesmo juízo: não vale nada...”.14 Combater a décadence não promove a
sua superação, visto que o combate aos instintos, procedimento, de certo modo,
unânime entre os decadentes, não gera a mudança de condição, não viabiliza
uma superação da décadence; ao contrário, perpetua esse processo pela constru-
ção de artifícios que permanecem sendo sua expressão. Por conseguinte, segun-
do Nietzsche, “[é] “um autoengano dos filósofos e moralistas pensar que já saem
da décadence ao fazerem guerra contra ela”. Isso se processa porque o “sair está
fora de sua força: mesmo aquilo que escolhem como remédio, como salvação, é
apenas, outra vez, uma expressão da décadence – eles alteram sua expressão, não
a eliminam propriamente”.15 Assim, para o pensador alemão, não há artifícios
possíveis que promovam uma alteração desse registro a partir de um combate
a ele. Em termos de patologia, está vedada toda e qualquer transformação en-
quanto resultante da perspectiva do doente, pois o mesmo não pode, a partir
de si, infirmar as sequências desse estado. Desse modo, deve ser compreendida
a sua afirmação de que o “sair” está fora de sua força. As transformações do
espírito estão ligadas à sua condição, por isso, inclusive, há distinções entre o
camelo, o leão e a criança. O além-do-homem manifesta uma condição de pleni-
tude orgânica, de saúde, que viabiliza o construir de sua interpretação enquanto
distancia-se completamente das duas posições anteriores.

13
14 [75] da primavera de 1888.
14
CI, “O problema de Sócrates”, § 1.
15
Ibid.

66 Vânia Dutra de Azeredo


A leitura das seções da primeira parte de Assim falava Zaratustra confirma essa
distinção. Em “Dos ultramundanos”, por exemplo, Nietzsche relaciona a projeção
de um Deus com a condição de doença. Primeiramente, diz: “Bem e mal, prazer
e dor, eu e tu – tudo parecia-me colorida fumaça diante de olhos criadores. Que-
ria o criador desviar o olhar de si mesmo – e, então, criou o mundo”.16 Depois,
acrescenta: “Um cansaço, que, num único salto, um salto mortal, quer chegar ao
marco extremo, um pobre ignorante cansaço, que já não quer nem mesmo querer:
esse criou todos os deuses e ultramundanos”.17 De fato, o espírito de carga tem
necessidade de fardos e, por isso, os cria e os carrega. Ao introduzir a vontade de
potência como instância da criação, Nietzsche quer elucidar, simultaneamente,
o sentido ou valor de uma interpretação e o seu móvel; em vista disso, relaciona
saúde e doença com o corpo, multiplicidade de vontades de potência, enquanto
introdutor de perspectivas. O termo espírito designa, nesse caso, tanto as inter-
pretações quanto a condição de saúde ou doença que está na base da interpreta-
ção, pois, em Nietzsche, essas instâncias só suportam uma distinção com vistas
a determinar o valor da interpretação. As seções “Das cátedras da virtude”, “Dos
ultramundanos” e “Dos desprezadores do corpo”,18 especialmente, dirigem-se ao
espírito de suportação, respectivamente, à imagem do camelo e do deserto.
Em “Das cátedras da virtude” Zaratustra afirma: “‘Para todos esses decan-
tados sábios das cátedras, era a sabedoria um sono sem sonhos: não conhe-
ciam nenhum melhor sentido da vida’”.19 Ora, qual camelo que carrega fardos,
os sábios das cátedras carregavam sua virtudes, não pela sua singularidade ou
distinção, mas pela necessidade do fardo enquanto sentido da vida. O filósofo
ressalta que tal comportamento ainda permanece, indicando que o espírito de
carga se faz presente mesmo que uma tal interpretação de mundo, conheci-
mento e ação tenha perdido a hegemonia: “Ainda hoje há uns quantos deles,
iguais a este pregador da virtude e nem sempre tão honestos; mas o seu tem-
po acabou. E não demorarão ainda em pé por muito tempo: eis que já estão

16
ZA I, “Dos ultramundanos”.
17
Ibid.
18
Em “Das cátedras e da virtude”, Nietzsche procura desvalorizar as virtudes como são entendidas
tanto no sentido de disposição para a prática do bem quanto de boa qualidade moral. A imagem do
sábio com seus quarenta pensamentos faz Zaratustra rir, porque entende a virtude de uma outra forma.
Daí ele conceder ao sábio conhecimentos no que concerne ao sono e não à ação. Em “Dos ultramun-
danos”, é a introdução do conceito de corpo que permite a Nietzsche distinguir as condições orgânicas
nas interpretações, desde a interpretação das condições. Em “Dos desprezadores do corpo”, o filósofo
parte da seção anterior e faz a distinção entre pequena e grande razão, mostrando que o corpo, na
condição de grande razão, é quem interpreta, mas que aqueles que o desprezam, como os espíritos de
suportação, não podem ser ponte para o além-do-homem.
19
ZA I, “Das cátedras da virtude”.

Leituras de Zaratustra 67
deitados”.20 Portanto, há possibilidade de um termo, no sentido de mudança
radical de perspectiva em que outra noção de virtude surgirá, pois o tempo
dessa compreensão já passou. É a criança, enquanto assimilação do vir-a-ser,
que permite o advento do além-do-homem; entretanto, antecede ao criar pelo
simples prazer de fazê-lo à crença na determinação do querer enquanto outra
interpretação de mundo, conhecimento e ação. Nas palavras de Zaratustra: “no
mais solitário deserto ocorre a segunda metamorfose: em leão se torna aqui o
espírito, liberdade quer ele conquistar, e ser senhor do seu próprio deserto”.21
Se o camelo corresponde ao espírito de carga, o leão aparece para desvencilhar-
-se dos fardos. Esse é o sentido da busca por liberdade: nas palavras de Zaratustra,
o leão “[p]rocura, ali, o seu derradeiro senhor: quer tornar-se-lhe inimigo, bem
como do seu derradeiro deus, quer lutar para vencer o dragão”.22 Na sequência do
texto, é a figura do dragão que a personagem esclarece, num primeiro momento,
dizendo quem é: “Qual é o dragão ao qual o espírito não quer mais chamar se-
nhor nem deus? ‘Tu deves’ chama-se o grande dragão. Mas o espírito do leão diz
‘Eu quero’”.23 Posteriormente, o que ele encarna: “Valores milenares resplendem
nessas escamas; e assim fala o mais poderoso de todos os dragões: ‘Todo o valor
das coisas resplende em mim. Todo valor já foi criado e todo o valor criado sou
eu’”.24 Ora, em nossa argumentação, Nietzsche introduz uma hipótese histórico-
-interpretativa da história da filosofia que se divide em três momentos cuja dife-
rença reside no modo pelo qual se compreende o estabelecimento do valor, pelo
papel atribuído ao sujeito na sua criação, assim como pela compreensão de sujeito
que vigora. Ao introduzir a figura do leão, o filósofo quer assinalar a passagem
que se processou da heteronomia absoluta, quando mundo, conhecimento e ação
eram interpretados a partir da projeção do valor em um absoluto e o homem era
uma criatura diante de um criador, para a crença de que, no sujeito, reside a fonte
da criação. Ainda assim, a conquista processa-se no deserto e é dele que o leão se
tornará senhor. Tem-se aqui um indicativo de que, mesmo na segunda transmu-
tação do espírito, o criar permanece distante do simples prazer de fazê-lo, isto é,
do exercício espontâneo de criar valores, de doar sentidos: “Criar novos valores
– isso também o leão ainda não pode fazer; mas criar para si a liberdade de novas
criações – isso a pujança do leão pode fazer”. 25

20
Ibid.
21
(ZA I, “Das três transmutações”)
22
Ibid.
23
Ibid.
24
Ibid.
25
Ibid.

68 Vânia Dutra de Azeredo


“Poder criar para si a liberdade de novas criações”, eis a potência do leão.
Efetivamente, o dragão tirava do espírito toda e qualquer competência, já que
expressava todo valor. Logo, há de anteceder ao criar a conquista da liberdade
para fazê-lo. Todavia, a liberdade como autonomia é uma ilusão para Nietzsche,
posto que ser livre equivale tão somente ao exercício da força. O leão, entretanto,
nas palavras de Zaratustra, conquista a liberdade para a criação. Ora, novamente
podemos recorrer à condição do avaliador e ler nessa metamorfose o rompimento
com a heteronomia, mas não uma defesa da autonomia por parte de Zaratustra;
pois, ao retirar do leão a possibilidade de criar, ele o situa, igualmente, em uma
perspectiva que se deixa determinar por algo, nesse caso, trata-se da crença na
liberdade. Por isso, em “Da árvore no monte”, Zaratustra diz ao jovem que o evi-
tava: “Ainda não estás livre, ainda procuras a liberdade. Tresnoitado e insone, fez-te
essa procura”, e, na sequência, acrescenta: “Ainda és, para mim, um preso imagi-
nando a liberdade”.26 Ora, o ato de desvencilhar-se das tábuas milenares e fixar-se
na crença da autodeterminação promove uma transformação, qual seja, surge, de
fato, a possibilidade da criação. Todavia, se o criar pertence a uma natureza hu-
mana imutável, cuja liberdade da vontade determina o valor, está-se igualmente
preso em uma espécie diferente de determinação. Outrora, todo valor já havia
sido criado, cabendo ao espírito, na condição de camelo, carregá-lo. Posteriormen-
te, a crença na liberdade fez a natureza humana ser criadora do valor e o espírito,
na condição de leão, quis conquistar o direito de criar. Contudo, à medida que se
vincula a criação a uma determinação da natureza humana, dribla-se igualmente
a perspectiva de condição, isto é, dos impulsos, forças, vontades de potência como
instâncias da criação. Eis um ponto interessante na leitura de Nietzsche, pois, ao
rejeitar a heteronomia como domínio dos valores, rejeita, outrossim, a autonomia
legisladora. Tanto a leitura da determinação externa quanto a da autodetermina-
ção são estéreis na sua perspectiva, pois fixam o criar ou em uma natureza divina
ou em uma ideia de natureza humana. Daí a impossibilidade de situar o ético
nesse tipo de determinação. Em “Das alegrias e das paixões”, aparece essa dupla
rejeição quando o filósofo, ao falar da singularidade da virtude, rejeita, ao mesmo
tempo, Deus e a noção de natureza humana na base de seu estabelecimento. Na
afirmação de Zaratustra, “Não o quero como uma lei de Deus, não o quero como
uma norma e uma necessidade humanas.27
Com efeito, Deus e natureza humana são, na visão de Nietzsche, os eixos
centrais das interpretações de mundo, conhecimento e ação que vigoraram no

26
ZA I, “Da árvore no monte”.
27
ZA I, “Das alegrias e das paixões”.

Leituras de Zaratustra 69
decurso da história. É sob esta ótica que ele pode se dirigir à história da filoso-
fia em seu conjunto, procurando mostrar as ilusões presentes numa e noutra
formas de construção. Em Crepúsculo dos ídolos, na seção “História de um erro”,
Nietzsche faz, igualmente, uma leitura da história da filosofia em seu conjun-
to, a partir da instituição das crenças e da sua posterior dissolução. Em que
pese à distinção de quatro formas de interpretação, podemos, da mesma forma,
agrupá-las, desde a perspectiva da heteronomia, da autonomia e do começo
de uma nova interpretação com Zaratustra que, ao suprimir a distinção entre
mundo verdadeiro e mundo aparente, situa o homem na compreensão trágica
da existência, visto que o mundo aparece agora com contradições, imperfeições,
sofrimentos, etc. Se há uma virada da humanidade, é porque se redimensiona a
sua inserção no mundo, ao compreendê-lo não mais como ser ou não ser, mas
como vir-a-ser. O homem, com isso, vive o fim do mais longo erro e transmuta-
-se, transforma-se, vem a ser outro para além de bem e de mal, de verdade e de
erro, de essência e de aparência, enfim, como outro sujeito, um sujeito ético,
pois, na perspectiva do vir-a-ser, não há mais separação entre ser e agir.
As imagens da terra e do deserto têm por objetivo assinalar a diferença
entre um horizonte de esterilidade e outro de fertilidade em termos de cons-
trução da exterioridade, isto é, referentes ao caráter irrestrito de criação e de
destruição que pertence, por condição, ao homem e ao mundo. Por meio das
expressões do espírito, como camelo, leão e criança, são as inserções do ho-
mem no mundo que ganham relevo. Com o deslocamento da avaliação de uma
perspectiva de heteronomia ou de autonomia para a de afirmação irrestrita do
vir-a-ser, é a inocência que lhe é inerente que se estende ao horizonte humano:
“Inocência é a criança, e esquecimento, um começar-de-novo, um jogo, uma
roda rodando por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim.
Sim, para o jogo do criar, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: sua
vontade quer agora o espírito, seu mundo ganha para si o perdido do mundo”.28
Em sua inocência intrínseca, a criança condensa, simultaneamente, o ul-
trapassamento das interpretações morais centradas quer na finalidade, quer
na liberdade da vontade, inaugurando uma dimensão de afirmação irrestri-
ta. Nesse caso, sem finalidade e sem responsabilidade nos planos pessoal e
cosmológico, posto que é na condição do vir-a-ser que o agir se manifesta
como afirmação, criação, em suma, como jogo de interpretações. Imagem da
compreensão nietzschiana do mundo, o jogo concentra, ao mesmo tempo, o
esquecimento e a criação. Por um lado, são as interpretações introduzidas pe-
las vontades de potência que, no horizonte do jogo, constroem, promovendo

28
ZA I, “Das transmutações”.

70 Vânia Dutra de Azeredo


a criação. Por outro, é o mundo, como círculo de interpretações que retornam
sem cessar, que requer o esquecimento da virada, pois, nesse sentido, cada
partida é um começar-de-novo, e cada começar-de-novo é, por si mesmo, ino-
cente. Estabelecendo uma implicação recíproca entre começar-de-novo e ino-
cência no vir-a-ser, o filósofo alemão requer alguém que seja capaz de perceber
e viver essa condição. Em vista disso, o anúncio do além-do-homem remete
à perspectiva da criança no sentido da inserção em outra perspectiva que ex-
prime a proposição de um agir diverso; afinal, nas palavras de Zaratustra: “sua
vontade quer agora o espírito, seu mundo ganha para si o perdido do mundo”.
Três transmutações do espírito foram nomeadas por Nietzsche através de
Zaratustra: camelo, leão, criança. Norteadoras do ser, do conhecer e do agir,
aparecem na história da filosofia como interpretações importantes, cuja di-
versidade manifesta-se, sob um aspecto, no modo como se interpreta, e, sob
outro, na compreensão do interpretar enquanto base de ambos. Ora, a filoso-
fia de Nietzsche introduz a interpretação como única dimensão postuladora
e propõe uma interpretação que, postulando o vir-a-ser como ser, introduz a
multiplicidade em todo acontecer exigindo uma nova compreensão de mundo,
conhecimento e ação. É enquanto abertura para a doação de sentidos que essa
interpretação julga devolver ao mundo o valor e, ao homem, um universo de
possibilidades. O homem, entretanto, para poder efetivamente encarná-la, terá
de estar para além de todo o bem e o mal anteriores, terá de se colocar para
além do homem criatura, para além do homem niilista, enfim, para além das
interpretações que se centram seja na heteronomia, seja na autonomia, seja na
recusa debilitada do interpretar. Daí esse homem ser, para Nietzsche, um além-
-do-homem, pois o termo além compreende a mudança radical de perspectiva
que se processa, simultaneamente, em termos de compreensão e condição, in-
troduzindo, em vista disso, outro tipo de ação. Afinal, o além-do-homem niet-
zschiano, ao compreender o trágico, promove uma nova expressão do ético,
apresentando-se, em vista disso, como “‘o mais solitário, o mais oculto, o mais
divergente, o homem além do bem e do mal, o senhor de suas virtudes, o trans-
bordante de vontade; precisamente a isto se chamará grandeza: pode ser tanto
múltiplo como inteiro, tanto vasto como pleno’”.29
Mas à virada radical que viabiliza a manifestação de um outro tipo de sujei-
to, o além-do-homem como expressão do trágico e ético, antecede a mudança
de perspectiva no que concerne à temporalidade. Somente com a inclusão da
eternidade no mundo, à existência é conferida sua dimensão inocente e trá-

29
BM, § 212.

Leituras de Zaratustra 71
gica. Inocente porque não há culpas ou justificativas da existência para além
da eternidade imanente em que se processa a construção dos sentidos e dos
valores. Trágica, uma vez que, encarnando todos os sentidos, contempla os
lados não desejáveis da vida. É a doutrina do eterno retorno, como círculo
mundano de interpretações, que permite a Nietzsche, suspendendo o movi-
mento de progressão da ideia na história da filosofia, redimensionar a relação
entre tempo, mundo e eternidade e situar o agir em uma nova dimensão, qual
seja, a do amor ao necessário.

Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: não querer nada de
outro modo, nem para adiante nem para trás, nem em toda eternidade.
Não meramente suportar o necessário e menos ainda dissimulá-lo – todo
idealismo é mendacidade diante do necessário –, mas amá-lo...30

Ora, qual é a resposta de Nietzsche à pergunta de Zaratustra, senão sua


pergunta acerca do próprio Zaratustra: “Por que ‘Zaratustra’? O grande esforço
sobre si da moral”, e a definição que elabora da tarefa de Zaratustra entendida
como sendo também a sua: “Ele é afirmativo a ponto de justificar, de redimir
mesmo tudo o que passou. [...] Redimir os que passaram e transmutar todo ‘Foi
em um ‘Assim o quis’ – isto sim seria para mim a redenção”.31 Outra vez, a re-
denção, presente em Assim falava Zaratustra e em Ecce homo, é definida pela afir-
mação do que foi. Novamente, a tarefa de Zaratustra e de Nietzsche é determina-
da pela afirmação suprema, por querer tudo o que houve sem dissimulações. De
novo é a travessia trágica da existência humana que, ao compreender a ausência
de sentidos e valores preestabelecidos, afirma sua condição de criadora de valores
mudando radicalmente sua ação de uma assimilação passiva para uma criação ati-
va, ainda que como expressão de uma dada condição que assim pode atuar. Qual
a relação com o grande esforço sobre si da moral, senão entender a afirmação
profunda, a aquiescência suprema desde uma perspectiva ética, desde um grande
meio-dia na história ocidental, em que o querer é redimido da bem-aventurança e
do castigo, do dever e da culpa, do ser e do dever ser? O grande esforço sobre si da
moral ao qual se chega com o ensinamento do eterno retorno e a transvaloração
dos valores não é outro que o amor ao destino, em suma, o amor fati como nova
perspectiva: “Primeiro o necessário – e este ainda belo e perfeito que ele te será
permitido ter! ‘Ama o necessário’ – amor fati, eis o que será minha moral”.32

30
EH, “Por que sou tão esperto”, § 10.
31
EH, “Assim falava Zaratustra”, § 8.
32
15 [20] do outono de 1881.

72 Vânia Dutra de Azeredo


O calcanhar de Zaratustra

Marcelo Lion

Invulnerável eu sou somente no meu calcanhar


(Assim falou Zaratustra, “O canto do túmulo”)

Assim falou Zaratustra estabelece uma comunicação intensa com a tradição


literária e filosófica do Ocidente. Nele ressoam os demais escritos do próprio
Nietzsche, anteriores e posteriores, ressoa, da mesma forma, toda a história
da filosofia. Através do recurso à proliferação intensa de imagens, algo que
ocorre em cada trecho da obra, são sugeridas relações simbólicas entre textos
de origens diversas. Sua leitura exige, portanto, a atenção voltada para a deci-
fração de injunções que aí foram postas dissimuladamente pelo seu autor. As
imagens que aí se fazem presentes atuam como enigmas por sobre a perspicá-
cia do leitor, forçando-o a percorrer caminhos diversos no intuito de procurar
pontos associativos, coincidentes ou discrepantes, com outras fontes, outros
autores e obras, sejam elas de cunho literário, artístico, religioso ou filosófico.
A exposição de algumas dessas conjugações, que são meras possibilidades,
permite a consideração mais detida sobre as características e as consequências
de certos ajuntamentos apenas insinuados de forma velada no texto. A des-
coberta, ou, por vezes, a criação e o desdobramento desses pontos de contato
possibilitam o vislumbre de certas passagens do próprio Zaratustra iluminadas
por outras fontes. Por outro lado, isso torna possível uma nova mirada sobre
os escritos com os quais Nietzsche estabelece o diálogo.
O texto que se segue pretende unicamente explorar a confluência entre
um dos discursos de Zaratustra e extratos selecionados das duas grandes epo-
peias homéricas. Se o livro de Nietzsche pretende se comunicar com a tra-
dição, nada mais propício do que procurar o diálogo com os escritos que se
encontram na origem da tradição literária e filosófica ocidental, poemas que
estabeleceram definitivamente os parâmetros da cultura no Ocidente. A sua
justaposição surge da constatação da presença de uma série de ações simboli-

Leituras de Zaratustra 73
camente pertinentes em comum. Subterrânea, a comunidade entre os textos
não é imediatamente dada e revelada, ela exige o trabalho de escavação na
busca de vasos comunicantes e de toda espécie de túneis intraterrenos. Pois
será justamente no subterrâneo que poderemos assistir à conjugação entre as
ações dos personagens, a conversa se faz abaixo do mundo dos vivos, no reino
ínfero dos mortos e dos habitantes das profundezas. O interesse estará parti-
cularmente voltado para a comunicação entre vivos e mortos. O sentimento
de proximidade com a morte atrai para si os mortos. Tal experiência afetiva de
permanência no limiar entre a vida e a morte tem o poder de afastar do vivente
a frivolidade. A própria vida necessita, a partir daí, ser tomada de modo mais
denso em sua urgência.
A tensão que perpassa todo o poema da Ilíada é sustentada pela situação
de proximidade com a morte vivida por Aquiles. A vulnerabilidade do herói e
sua suscetibilidade à morte trazem à cena o aspecto trágico do poema. A seu
encargo foi deixada a decisão sobre uma vida inglória e duradoura longe dos
campos de batalha ou a morte prematura em guerra. A escolha inicial está en-
tre reter-se na memória dos homens do porvir ou sucumbir ao esquecimento
que segue a qualquer forma ordinária de existência. Pela eternidade era ne-
cessário pagar com a vida, somente a morte asseguraria a eterna glorificação
de seus feitos entre os mortais. Conforme a célebre admoestação trazida por
Tétis, sua mãe:

Pés-de-prata, a deusa Tétis, madre, me avisou: um destino dúplice fadou-


-me a morte como termo. Fico e luto em Troia: não haverá retorno para
mim, só glória eterna; volto ao lar, à cara terra pátria: perco essa glória
excelsa, ganho longa vida; tão cedo não me assalta a morte com seu termo.1

A certeza da aquisição da glória não fora, entretanto, o móvel do reingresso


do filho de Peleu na batalha. É o próprio Aquiles que diz, em certo momento,
ao seu preceptor Fênix: “Desdenho glórias”.2 Surgindo diante de seus pares
desprovido da avidez por riquezas ou honrarias que não as que lhe pertences-
sem por direito, o que o move é, em todos os casos, a acentuação do traço mais
marcante de seu caráter: o sentimento de nobreza. Aquiles deve observar, em
todas as suas ações e decisões, a obediência a uma norma de conduta estrita,
pautada e medida pela honra, peculiar ao grande guerreiro. O acontecimento
que marca o início da narração da Ilíada trata justamente do momento do
ultraje da honra, em que o soberano Agamenon retira o dote que pertencia

1
Ilíada, Canto 9, 411-16.
2
Ibid., 608.

74 Marcelo Lion
por direito a Aquiles: a bela Briseida. A reação do herói é de uma ira contida,
ele se retira do primeiro plano da cena por não poder rivalizar com seu superior
hierárquico. Afasta-se, mas permanece em um acampamento próximo. Aquiles
atrasa sua decisão, ele não retorna à guerra nem retorna à sua terra. A suspensão
causada por esse momento indeciso constitui o terreno sobre o qual a epopeia é
tramada. Um terreno nebuloso, o momento de uma vida na iminência da morte.
A nobreza do comportamento de Aquiles é posta em evidência na cena em que
ele recusa os dotes que Agamenon lhe oferece para que volte à guerra. Apesar
dos discursos proferidos pelos três embaixadores – o multiardiloso Odisseu, o
velho preceptor Fênix, e o fortíssimo guerreiro Ájax –, sua resposta continua
sendo negativa. Jamais poderia entrar em uma guerra justamente para defender
a honra de quem havia retirado a sua própria, mesmo que lhe fossem ofertadas
regalias e a promessa de devoção a seu nome. Aquiles manifesta o desejo de ser
cultuado pelo seu valor – pois são precisamente essas ações de recusa e afasta-
mento que o atestam, que confirmam seu valor e seus valores.
Uma personalidade extremamente tempestuosa aliada a um nobre senso
de honra e justiça, são esses fatores e valores que o compelem a retornar ao
campo de batalha para enfrentar novamente os troianos e, entre eles, Héctor, o
maior dentre os defensores de Ílion, assassino de Pátroclo. É unicamente para
vingar a morte de seu amigo que Aquiles decide se impor. Fica claro que o que
o traz de volta para o combate, e, daí, para a morte, não é o anseio de glória,
mas sua vontade de retaliação ao crime cometido.
O cumprimento do destino fatal de Aquiles não é exposto nesse grande
poema homérico, o filho de Peleu não morre nos versos da Ilíada. É possível,
todavia, pressentir em todos os seus momentos a iminência da morte, já pre-
nunciada por sua mãe, a ser provocada pela mesma desmesura que o caracteri-
za durante sua vida. Mesmo sendo o mais forte guerreiro, não há comparação
possível com um deus imortal. Ele terá de perecer, então, vítima do mesmo
ímpeto que o impulsiona. Seu calcanhar é a sua alma, por ela ele vive e atua,
por ela deverá sucumbir. O imbatível Aquiles terá de ser abatido por uma
flecha envenenada, lançada justamente pelo menos aguerrido dos guerreiros
troianos, Páris, que aí conta com o poderoso auxílio do deus flecheiro, Apolo.
No Canto 11 da Odisseia, Homero narra o episódio do encontro entre o
astuto Odisseu e o fantasma de Aquiles. Em sua jornada de retorno a Ítaca,
Odisseu desce ao reino dos mortos em busca de conselhos sobre seu trajeto,
o que lhe poderia ser indicado apenas pelo adivinho Tirésias. Chegando ao
Hades e tendo obtido as informações que precisava, o herói passa a encontrar
seus antigos companheiros e familiares. Conversa, entre outros, com o sobe-

Leituras de Zaratustra 75
rano dos gregos, Agamenon, que lhe relata o modo pelo qual foi atraiçoado e
morto por sua esposa, Clitemnestra, aliada com o amante, Egisto.
A conversa travada com Aquiles gira sobre o desejo de retorno à vida ex-
presso por alguém que já a abandonou. Aquela opção crucial entre a aquisi-
ção da glória eterna ou a longa persistência em uma vida ordinária é reposta.
Dessa vez, todavia, não se mostra para a consciência do herói que vive suas
aventuras, mas é observada e avaliada pelo espectro daquele que já reconhece-
ra como encerrada sua passagem pela Terra.
Inicialmente, Aquiles expressa seu espanto pela presença de Odisseu, vivo, no
reino dos mortos: “Tua imaginação não tem limites. Como viestes parar no hades,
morada de finados descerebrados, fantasmas de mortais cansados de viver?”.3
Odisseu encontra Aquiles em uma posição de destaque, como soberano
entre os mortos. Ao ser elogiado por reinar sobre os que já haviam passado
pela terra, o filho de Tétis diz ser preferível viver, mesmo em condição des-
favorável, a ser rei diante de fantasmas. Naquele momento, investe contra
Odisseu as seguintes palavras: “Não tentes embelezar a morte na minha
presença, meu atilado Odisseu. Preferiria como cabra de eito trabalhar para
outro, um pobretão, a ser rei desse povo de mortos”.4
Nesse momento e por essas palavras, ele refaz a escolha que havia selado
seu destino.
A partir daí, a conversa gira em torno do filho de Aquiles e de seu pai,
que ainda não haviam morrido. O Peleide deseja saber primeiramente sobre
seu filho, se é um homem honrado e um guerreiro valoroso, o que Odisseu
prontamente confirma. Então, ao perguntar sobre o destino de seu pai, reitera
o desejo de tornar à vida. Não, porém, como homem comum, mas como o
mesmo guerreiro que havia sido, para defender a honra de Peleu e o posto de
soberano que poderia ter sido usurpado por malfeitores.

Fala-me também desse homem notável, Peleu, se tens notícias dele. Ele
ainda manda sobre a imensidão dos mirmidões ou já o tiraram do poder na
Hélade e em Ftia por causa da idade? [...] Eu gostaria de sentir o calor dos
raios de sol para socorrê-lo, como quando eu combatia na planície de Troia.
Eu aniquilava batalhões para defender nosso povo. Se pudesse voltar, por
breve que fosse , para a casa do meu pai, minha fúria e a força de meus bra-
ços os poriam de joelhos, se é que esses desgraçados o apearam do poder.5

3
Odisseia, Canto 11, 474-76.
4
Ibid., 487-90.
5
Ibid., 493-503.

76 Marcelo Lion
Desta vez, o desejo de retorno toma a forma de um lamento nostálgico, o
suspiro por uma revitalização impossível. A sua revolta é despertada pela mera
possibilidade de ver seu pai, vivo, mas destituído do poder, porque velho.
Zaratustra empreende, tal como Odisseu, uma viagem ao reino dos mor-
tos. Esta cena é descrita em um discurso, que, não por acaso, é construído sob
a forma de um canto. “O canto do túmulo” é o último da sequência de três
proferidos por Zaratustra na segunda parte do livro (são eles: “O canto notur-
no”, “O canto de dança” e “O canto do túmulo”). Situado exatamente no cen-
tro da segunda parte do livro, o texto apresenta a experiência de uma jornada
a uma silenciosa ilha, lá onde Zaratustra se põe a conversar com seus mortos.
Entre os trechos dos cantos da Ilíada e da Odisseia brevemente expostos e
esse “canto do túmulo”, pergunta-se: em que ponto eles se iluminam mutua-
mente, onde eles se tornam obscuros e refratários uns aos outros? O que está
implicado nessa conjugação, e o que pode ser complicado e desdobrado por
meio desse amálgama?
“O canto do túmulo” é antecedido por perguntas que versam sobre a conti-
nuação da vida de Zaratustra. Surgidas como um lamento de tristeza vindo da
escuridão, são questões que trazem consigo a sensação de cansaço diante do
prolongamento da vida. Ouvindo o ressoar da voz da noite, Zaratustra encerra
seu “canto de dança” com um pedido de perdão:

Como? Ainda vives, Zaratustra? Por quê? Para quê? Onde? De que modo?
Não é loucura, viver ainda?
Ah, meus amigos, é a noite que assim pergunta dentro de mim. Perdoai-me
a minha tristeza! Fez-se noite: perdoai-me que se fez noite!”.6

O lamento sussurrado pela noite traz em seu bojo a suspeita sobre o inte-
resse que ainda provoca a persistência na vida, a suspeita da perda completa
desse interesse, quem fala aí é a voz de uma profunda desconfiança de si. Em
busca de respostas ou a fim de insuflar seu ânimo abatido, Zaratustra decide
corajosamente empreender uma viagem marítima até o local onde jazem seus
mortos. Chegando à silenciosa ilha dos Túmulos, ele mostra sua gratidão pe-
las figuras queridas, enterradas em seu passado. Sensações sutis são trazidas
por esses antigos companheiros, o doce perfume das recordações o faz chorar.
Zaratustra, então, lamenta terem morrido prematuramente. Ao ser entoado,
“o canto do túmulo” evoca precisamente o sentimento de desilusão pelo re-
conhecimento de perdas inexoráveis. Os olhares amorosos de sua juventude,

6
Assim falou Zaratustra, “O canto de dança”.

Leituras de Zaratustra 77
seus instantes divinos, os espíritos bem aventurados, suas esperanças, enfim,
todo seu passado é trazido nesse instante a sua frente, desfila diante de si;
aparece agora, todavia, como visão fantasmagórica, sem carne e sem sangue.
Só pode haver sentimento de perda para quem ainda reconhece a presen-
ça do que foi perdido. O passado provoca seu efeito justamente ao atuar, ao
aparecer e tomar seu espaço na memória de quem por ele passou. É daí que
provém toda a angústia, a sensação de algo irrecuperável, que ficou definitiva-
mente para trás, mas que, apesar disso, ainda persiste no coração, provocando
melancolia. Inteiramente tomado por esse tormento, Zaratustra se dirige a
seus mortos com essas palavras:“Ainda sou o mais rico e o mais invejável, eu,
o mais solitário dos solitários! Porque eu vos tive e vós ainda me tendes”.7
Subitamente, em meio a essa atmosfera fúnebre, um deus flecheiro se in-
terpõe entre Zaratustra e seus companheiros. A flecha disparada atinge justa-
mente seu ponto vulnerável, seu coração.

Sim, contra vós, meus queridos, sempre a maldade desferiu flechas – para
atingir meu coração! E o atingiu! [...] Contra o que eu possuía de mais
vulnerável, foi desferida a flecha: e isso éreis vós.8

Quem são os mortos de Zaratustra? A quem ele se dirige e dá a palavra? Quais


são as imagens retidas em sua juventude? Onde estava depositada a sua mais alta
esperança? Em que tempo se situa a meiga eternidade compartilhada com seus
companheiros? Essas questões, depreendidas diretamente do texto, suscitam ou-
tras, de ordem indireta: Zaratustra fala aí sobre a vida de Nietzsche? Trata-se da
exposição das marcas deixadas por suas vivências? Apresentam-se aí os fantas-
mas de seus desapontamentos políticos, filosóficos, estéticos, e até mesmo uni-
versitários, ou ainda amorosos? É possível pensar, de outro modo, na história da
Alemanha tal como Nietzsche a vivencia? Ou na história recente da Europa? Ou
se trata da história da própria humanidade, que, tendo abandonado seus anelos
juvenis, sua crença na eternidade, seus mais elevados e sagrados valores, sente
agora o cansaço e a perda da vitalidade? Seria então o homem do presente um ser
fatigado e melancólico, para quem o seu passado surge como um fruto desperdi-
çado? Teria o homem se transformado nesse ser descrente de tudo, inclusive de si,
descrente de todo porvir, das gerações futuras, do seu próprio futuro?
O que segue no texto é a descrição de uma espécie de envenenamento
provocado pela maldade. Seres divinos são substituídos por repugnantes fan-

7
Ibid., “O canto do túmulo”.
8
Ibid.

78 Marcelo Lion
tasmas; instantes sagrados e dias felizes, por noites angustiadas de insônia;
caminhos felizes, por atalhos imundos; caridade e compaixão, por desprezo
e receio; a fé em sua virtude, por descrença; seus mais profundos sacrifícios,
por uma devoção afetada. Todo esse processo de degradação provoca a morte
daquilo que em Zaratustra permanecia como o bem mais frágil, aquilo em que
ele depositara toda sua fé e devotara seus maiores sacrifícios: a sua sagrada es-
perança. O último efeito do veneno provocou nele o silêncio definitivo. Último
triunfo de um deus malevolente que, tendo persuadido seu melhor cantor, o
impediu de realizar sua dança mais sublime. Zaratustra se ressente, por fim,
pela imobilidade a que seu corpo fora condenado.

E, noutro tempo, eu quis dançar como ainda não dancei: quis dançar para
além de todos os céus. Então, aliciastes o meu cantor preferido.
E, então, ele entoou uma tétrica e horripilante nênia, buzinando, ai de
mim, nos meus ouvidos como lúgubre trompa!
Oh, cantor assassino, instrumento da malvadez, e mais inocente que todos!
Já estava eu preparado para a melhor das danças: com teu canto, então
assassinaste meu enlevo!
Somente dançando sei falar em imagens das coisas mais elevadas; e, assim,
ficou-me silenciada nos membros a minha mais elevada imagem!
Silenciada e irredenta ficou-me a minha mais elevada esperança! E morre-
ram-me todas as visões e consolações da minha juventude!”.9

Somente após a constatação definitiva dessa morte, Zaratustra sente-se capaz


de se apresentar como um sobrevivente, aquele que sobrevive ao envenenamento,
aquele ao qual nem mesmo a seta de um deus conseguiu aniquilar. O segredo de
sua sobrevida está no reconhecimento de algo em si mesmo que não se confunde
com seus mortos – este algo é precisamente seu calcanhar, sua vontade, que o
compele a atravessar túmulos. Só então se percebe que seu inimigo e sua mal-
dade não eram outros que não ele próprio, que, ao desferir a flecha contra seu
coração, mata aquilo que nele constituía sua vulnerabilidade: seu jovem coração,
suas mais sublimes esperanças, seu anseio de eternidade, seu cantor. Morrendo
isso nele, Zaratustra se torna invulnerável. Atravessando a ilha de seus mortos,
a um só tempo, deixando-os para trás e trazendo-os consigo, conquista o direito
de retornar à plenitude de sua vida. Zaratustra sobrevive ao superar a si mesmo.

Quer caminhar, no seu passo, com meus pés, a minha vontade; inabalável
é seu ânimo, e invulnerável.

9
Ibid.

Leituras de Zaratustra 79
Invulnerável eu sou somente no meu calcanhar. Ali continuas vivendo e
sempre igual a ti mesma, ó pacientíssima! Continuas abrindo caminho por
entre todos os túmulos!
Em ti ainda vive o que ficou irredento (Unerlöste) da minha juventude; e,
como vida e juventude, estás aqui sentada, esperançosa, nos amarelados
escombros dos túmulos.
Sim, ainda és, para mim, a destruidora de todos os túmulos; salve, ó minha
vontade! E só há ressurreição (Auferstehungen) onde há túmulos.”10

Só então, por essa via indireta, pode-se suspeitar que, talvez, aqueles fan-
tasmas cansados com os quais Odisseu conversa já não sejam mais os heróis
que guerreavam em torno às muralhas de Ílion, que talvez aquele espectro
que diz preferir uma vida comum e longeva já não seja mais Aquiles. Homero
é preciso, a Odisseia fala de uma imagem, um ídolo, um ícone, a Ilíada, de um
homem. O herói não é o fantasma que reina sobre os mortos, mas o guerreiro
que segue obstinado até o último instante de sua vida, obediente ao seu pró-
prio código de valores, à sua conduta nobre, ao sentimento de honra e ao seu
caráter personalíssimo, obediente, por fim, à sua própria revolta. Exercer o
combate a todo tempo em situação limite, na iminência da morte prefigurada,
precisamente nisso reside o interesse de sua jornada. É a conjugação de sua
força sobre-humana com sua fragilidade demasiado humana que atrai todos
os tempos para si. É em sua vida eternamente gloriosa, tantas vezes repetida
e retomada, somente aí, que Aquiles também é invulnerável.
Talvez, então, aquela viagem ao reino dos mortos seja apenas mais uma das
artimanhas do multiastucioso Odisseu... ou do poeta e fingidor Zaratustra.

Referências Bibliográficas

Homero. Ilíada; volume I; tradução Haroldo de Campos; introdução e organiza-


ção Trajano Vieira; São Paulo, SP: ARX, 3a Ed, 2002.
___ Ilíada; volume II; tradução Haroldo de Campos; São Paulo, SP: ARX, 2002.
___ Odisseia; volume II: Regresso; tradução, introdução e análise de Donaldo Schü-
ler; Porto Alegre, RS: L&PM, 2007.
Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Nin-
guém. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

10
Ibid.

80 Marcelo Lion
Parte II

Niilismo e Cristianismo
Zaratustra, compaixão e amor fati

Iracema Macedo

“Ai de todos os que amam e ainda não atingiram uma


altura acima da sua compaixão!”
( Assim falou Zaratustra, “Dos compassivos”1)

Um dos ensaios de Martin Heidegger inicia-se com esta questão: Quem é o


Zaratustra de Nietzsche? A leitura atenta do título da obra Assim falou Zaratustra
pode nos trazer, segundo Heidegger , uma indicação decisiva. Não só o título,
mas diversas passagens do livro sugerem que Zaratustra fala, que Zaratustra é
um porta-voz, um Fürsprecher. Heidegger assinala que essa palavra em alemão
significa, entre outras coisas, aquele que fala em favor de algo, em defesa de
alguma coisa, uma espécie de advogado. Cumpre-nos, portanto, descobrir do
que Zaratustra é um porta-voz, o que advoga, quais as notícias nos traz.
Heidegger menciona ainda uma passagem do capítulo “O convalescente”
em que o próprio Zaratustra se declara como um Fürsprecher, um porta-voz da
vida, um porta-voz do sofrimento e do círculo.
Sendo porta-voz do sofrimento como podemos entender a forte crítica pre-
sente nos discursos de Zaratustra contra a compaixão? Sendo porta-voz da
vida e do círculo, quais conceitos, além do eterno retorno e da vontade de
poder, estariam irrigando o texto de Nietzsche?
A proposta desse pequeno estudo é investigar não exatamente conceitos
como eterno retorno e vontade de poder, mas dois outros conceitos correlatos,
o amor fati e a compaixão, como temas anteriores à elaboração do livro Assim
falou Zaratustra e como tecido constitutivo desse livro. Nossa intenção é inves-
tigar como se formaram esses conceitos antes de sua elaboração decisiva nas
palavras de Zaratustra.

1
NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003, p.119.

Leituras de Zaratustra 83
A compaixão

Em que momento da obra nietzscheana começa a aparecer com mais niti-


dez a crítica à compaixão?
O filósofo começa o segundo capítulo do livro Humano, demasiado humano
(1878) denunciando a negligência do pensamento no tocante às observações
psicológicas, deixa-se de lado o mais rico tema de conversa que é o homem e
não dedicamos mais nenhum tempo aos que procuram observar os homens
em sociedade, com seus ciúmes, invejas, bondade, gratidão, entre tantas e
tantas facetas. Ele vai evocar particularmente La Rochefoucauld, como uma
grande mestre do século XVII, que sem nenhuma pretensão de moldar o ho-
mem, sem nenhuma pretensão de recompensa das virtudes e punição dos
vícios, sem nenhuma ideia de formação de uma consciência moral interior
faz observações altamente perspicazes sobre a realidade humana. Nietzsche
indaga quais os homens cultos que teriam lido esse pensador e denuncia que
alguns poucos que o leram, apenas o insultam.
É , tendo esse ponto de partida, que o ataque à moral começa a se esboçar
no pensamento nietzscheano. Ele procura aliados fora da tradição metafísica,
esses moralistas franceses que eram, em alguns casos, aristocratas que fre-
quentavam as cortes, os salões, as mulheres coquetes. É a partir dessa origem
muito pouco ‘credenciada’ que se inicia a reflexão de Nietzsche com respeito
ao tema da compaixão que, segundo ele, é o cerne da constituição moral após
a hegemonia do cristianismo. O problema da compaixão que poderia ser par-
ticularmente algo superficial passa a ser o centro da reflexão sobre a moral em
Nietzsche.
Como a denúncia do pensamento nietzscheano a esse desconhecimento
dos homens cultos, em relação a quase todos os moralistas franceses, é bas-
tante incisiva, antes de continuar essa exposição, apresentarei algumas máxi-
mas de La Rochefoucauld que, de alguma maneira, nos inserem nessa atmos-
fera do que Nietzsche quer dizer com observações psicológicas. Essa digressão
poderá parecer um pouco extensa, mas me parece extremamente necessária
para o desenvolvimento da questão.
Selecionei então alguns trechos do livro de máximas de La Rochefoucald
(1613-1680):2
“Não são nossas virtudes mais do que vícios disfarçados” (epígrafe);

2
LA ROCHEFOUCAULD, François, Duc de, Máximas e reflexões. Trad. Leda Tenório da Mota. Rio
de Janeiro: Imago Ed., 1994.

84 Iracema Macedo
“De mais virtudes se precisa para suportar a fortuna que o infortúnio”
(máxima 26);
“O mal que praticamos não atrai tanta perseguição e ódio quanto nossas
boas qualidades” (máxima 29);
“Se não tivéssemos defeitos, não agradaria tanto notá-los nos outros” (má-
xima 31);
“O interesse fala toda espécie de língua e faz toda espécie de papel, mesmo
o de desinteressado” (máxima 39);
“O interesse que uns cega, é a luz de outros” (máxima 40);
“Para a maior parte dos homens, o amor da justiça não é mais que temor
de sofrer injustiça” (máxima 78);
“O silêncio é o partido mais seguro para quem de si mesmo desconfia”
(máxima 79);
“Apraz aos velhos dar bons conselhos, como consolo por já não estarem em
condição de dar maus exemplos” (máxima 93);
“Pode um ingrato ser menos culpado de sua ingratidão do que quem lhe
fez o bem” (máxima 96);
“Somos às vezes tão diferentes de nós mesmos quanto dos outros” (má-
xima 135);
“Há casamentos bons mas não os há deliciosos” (máxima 113);
“Muitas vezes fazemos o bem para mais impunemente podermos fazer o
mal” (máxima 121);
“Preferimos falar mal de nós mesmos a não falar de nós” (máxima 123);
“A recusa de louvores é desejo de ser louvado duas vezes” (máxima149);
“Entram os vícios na composição das virtudes tanto quanto os venenos na
composição dos remédios” (máxima 182);
“Piedade é muitas vezes sentir nossos próprios males nos males de ou-
trem, é hábil previdência das desgraças em que podemos cair; socorremos os
outros para constrangê-los a nos socorrerem em ocasião oportuna, e são os
serviços que prestamos, a bem dizer, um bem que por antecipação nos faze-
mos” (máxima 521);
“Quem fala bem de nós nada de novo nos ensina” (máxima 303);
“Não podem as pessoas fracas ser sinceras” (máxima 316);
“Haveríamos de ter vergonha de nossas belas ações se o mundo visse tudo
que as motiva” (máxima 409);

Leituras de Zaratustra 85
“O maior esforço da amizade não está em revelar aos amigos nossos defei-
tos, mas em fazê-los ver os seus” (máxima 410);
“Muitas vezes mais orgulho pomos que bondade em lastimar as desgraças
dos inimigos: é para fazê-los sentir que estamos acima deles que lhes mostra-
mos compaixão” (máxima 463);
“Nada mais raro que a verdadeira bondade: mesmo os que pensam ser
bondosos muitas vezes são somente fracos e complacentes” (máxima 481);
“O fim do bem é um mal e o fim do mal é um bem” (máxima 520);
“A ruína do próximo agrada a amigos e inimigos” (máxima 521);
“Mais é preciso estudar os homens do que os livros” (máxima 550);
“Mais apreciamos aqueles a quem fazemos bem do que aqueles que bem
nos fazem” (máxima 557).

Na temporada em Sorrento, quando a gênese do livro Humano, demasiado


humano se fazia, eram esses, entre outros pensamentos dos moralistas fran-
ceses, que eram lidos. Muitas dessas máximas poderiam ainda servir para
elucidação de vários pensamentos escritos por Nietzsche; no aforismo 50, é
ainda um outro texto de La Rochefoucauld que é evocado. Nietzsche cita neste
mesmo aforismo a ideia de Platão de que a compaixão enfraquece a alma. Ao
longo de suas outras obras falará ainda de Kant, Spinoza e mesmo Aristóteles
como pensadores que não enxergaram na compaixão uma virtude e nem o
cerne da ação moral.
O ataque de Nietzsche à compaixão é um dos pontos fundamentais para
se entender a sua crítica à moral cristã e também à moral schopenhauriana e a
pedra de toque para a proposição de uma filosofia da afirmação trágica da vida.
Isso que pode parecer uma aparente idiossincrasia do pensamento de Nietzs-
che torna-se, a partir de 1878, um tema insistentemente frequente.
As perguntas que se colocam é por que foi dada tal importância a esse
tema. Em segundo lugar, tentar-se-á desenvolver a hipótese de que uma moral
da compaixão, nos termos em que Nietzsche a colocou, seria essencialmente
contrária à afirmação da vida e à jovialidade, ao amor ao destino, a uma pos-
sível filosofia trágica.
No tocante à importância do tema, podemos dizer que Nietzsche teria en-
contrado na compaixão a virtude fundamental e basilar da moral ocidental que
ele tencionava atacar. Mesmo Paul Rée, em seu livro sobre a Origem dos senti-
mentos morais, tentando discutir as origens naturais da moral, havia rompido
com uma fundamentação metafísica da mesma, rompendo explicitamente com

86 Iracema Macedo
Kant, mas convocava Darwin como aliado para a justificação do altruísmo como
primeiro sentimento moral ligado instintivamente à conservação da espécie.
Rousseau, um século antes, havia chegado a essa hipótese mesmo antes dos
progressos científicos do século XIX. No Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens, ele nos diz que há dois impulsos naturais, anterio-
res à razão, que constituem a base do direito natural: um é o nosso próprio bem-
-estar e conservação, e o outro “nos inspira uma repugnância natural por ver
perecer e sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes.3
E ainda mais, nas páginas seguintes do mesmo discurso, escreve que a piedade
representa um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a ação do
amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie.
Essa pesquisa não tem como propósito decidir entre o pensamento niet-
zscheano ou de Rousseau acerca da compaixão. Pretendo, no entanto, enten-
der que, com bastante coerência, a crítica à compaixão se articula com uma
perspectiva trágica e jovial que estaria na visão de um homem soberano em
Nietzsche como se apresenta no Assim falou Zaratustra. Note-se que vários
discursos desse livro, por exemplo, têm como cerne uma crítica à compaixão.

Em verdade, não gosto dos misericordiosos, que se deleitam, felizes, em


sua compaixão: por demais carecerem de pudor.
Se hei de ser compassivo, não quero que assim me chamem: e, quando o
sou, então, de bom grado, à distância.
De bom grado, também, encubro a cabeça e fujo antes que me reconhe-
çam; e o mesmo mando que façais vós, meus amigos.4

Podemos entender que Nietzsche vê na compaixão uma grande objeção à


superação do homem, uma grande objeção à nobreza. A atitude compassiva
seria estratégia de poder do fraco que não tem outra forma de exercer sua
força senão socorrendo miseráveis.

Pois, que eu visse o sofredor sofrer, disto eu me envergonhei, pela sua pró-
pria vergonha; e, quando o ajudei, atentei duramente contra sua altivez.
Grandes favores não geram gratidão, senão ressentimento; e o pequeno be-
nefício, quando não é esquecido, ainda acaba tornando-se um verme roedor.5

3
ROUSSEAU. Os pensadores. Trad. Lourdes Santos Machado. Editora Nova cultural. São Paulo,
1999, p. 47.
4
NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003, p. 117.
5
Ibid., p. 118.

Leituras de Zaratustra 87
O desejo de suscitar compaixão seria também, por outro lado, uma forma
de poder, a maneira que um espírito fraco tem de atingir e ferir o bem-estar e a
boa consciência, ou jovialidade de um espírito forte. Uma atitude compassiva
poderia muitas vezes intervir em um grande destino, pois muitas vezes a dor
é necessária e, ao poupar o outro de uma dor, interferimos e lhe tiramos uma
grande oportunidade de expansão e fecundidade.
No aforismo 49 de Humano, demasiado humano intitulado “Benevolência” (
Wohlwollen), ele opõe à misericórdia, à compaixão e ao sacrifício, a boa índo-
le, a amabilidade, a cortesia de coração como emanações mais respeitáveis e
recomendáveis do chamado altruísmo. Entendemos que, em vez de socorrer a
fraqueza e nos enfraquecermos com isso, ou seja, em vez de sofrermos juntos,
podemos irradiar nossa força e alegria a ponto de contagiar os mais frágeis e,
com isso, elevá-los à sua própria força sem diminuir a nossa. Lembro aqui pa-
lavras de Zaratustra: “Em verdade, já fiz muito pelos que sofrem; mas sempre
me pareceu fazer coisa melhor quando aprendi a melhor alegrar-me”.6
As relações de forças e o exercício de poder passam a ser no Humano, dema-
siado humano, antes da elaboração do conceito de vontade de poder publicado
pela primeira vez em Assim falou Zaratustra, o tecido constitutivo das ações hu-
manas. Bem e mal, justo e injusto são entendidos como relações de equilíbrio
de poder. Na casta dominante, bom e justo é aquele que pode retribuir o bem
com o bem e o mal com o mal, que pode ser grato e vingativo. Somente nes-
sa casta se constitui um autêntico senso de confiança e comunidade e nossa
moralidade atual seria oriunda de uma casta que soube manter essa coesão de
forças. Na casta dos oprimidos, os laços da comunidade não se fortaleceriam
pela falta de poder e confiança em relação a todo outro que seria considerado
ameaçador e inimigo.
Por outro lado, o sentimento de poder está intrinsecamente relacionado ao
sentimento de prazer, de modo que poderíamos estabelecer que o prazer, como
sentimento de conservação e fortalecimento da existência, e o desprazer, como
sentimento de ameaça à conservação e enfraquecimento da existência, são os
motivos condutores da cultura humana em sua perspectiva não metafísica.
O perigo dessa visão calcada nas observações psicológicas das ações hu-
manas é o sentimento de suspeita e diminuição por tudo o que até então foi
considerado grandioso e digno no homem. No início do livro, Nietzsche nos
pergunta se não deveríamos estar quase desumanizados para pensar dessa
forma. Com essa ideia, entendemos a ironia do título do livro: é o próprio

6
Ibid., p.117.

88 Iracema Macedo
humanismo, a centralidade e o poder do homem no contexto geral do mundo
que estão sendo postos em xeque. O homem bom e racional e a equação entre
conhecimento do bem e ação moral deixam de valer como critérios.
A moral passa a ser, nas hipóteses de Nietzsche, obediência a costumes,
a uma tradição, a uma hierarquia de bens fundada por uma comunidade.
Ser moral é agir conforme a tradição, ser imoral é violá-la. Essas tradições e
hierarquia de bens são necessárias para a constituição de qualquer convívio
durável entre os homens; por outro lado, estão em permanente oscilação e
mutabilidade e não há nada que garanta que o que é moral em uma cultura
não possa ser imoral em outra. Não há padrão fixo de avaliações. O próprio
sujeito não é uma medida fixa e não pode ajuizar de modo completo, exato e
justo sobre coisa alguma. Nossa fatalidade contemporânea seria, segundo o
diagnóstico de Nietzsche, o fato de que nem mesmo nosso conhecimento de
qualquer coisa pode se dar de maneira total, exata, completa e justa. Esse seria
um dos traços trágicos da contemporaneidade, sendo o trágico aí entendido
como explicitação da nossa condição humana não metafísica e não ainda como
o novo pathos dionisíaco que só reaparecerá literalmente no quinto livro de A
gaia ciência, publicado não em 1882, mas em 1886. Observe-se que o termo
Dioniso, enquanto ligado a uma nova concepção trágica da existência, não
será citado nenhuma vez, e desaparece da obra publicada para só ressurgir nas
publicações de 1886, depois do Assim falou Zaratustra. Algumas ocorrências
fortuitas aparecem na primeira edição de A gaia ciência, mas não se encontram
conectadas com uma significação filosófica relevante.
Apesar dos aspectos corrosivos do livro que proponho como fundamental
para o entendimento do que será a posterior filosofia trágica de Nietzsche, ou
seja, apesar da possibilidade trágica não afirmativa que poderia ser o resultado
dos escritos do Humano, demasiado humano tal como o próprio Nietzsche prevê no
aforismo 34, encontramos aí possibilidades de um restabelecimento da cultura
como tessitura humana. Essa possibilidade já foi aludida quando ele diz que os
homens precisam estar preparados para o domínio da terra. No capítulo quinto,
no entanto, toda uma proposta de cultura superior é esboçada a partir de uma
compreensão de uma moral como condição necessária para a conservação de
um povo, assim como das atitudes que violam essa moral como condições para
a possibilidade do novo em uma dada cultura. Sem o contínuo movimento de
uma moral e de uma imoralidade, não há elevação e superação de valores.
Além disso, toda a ideia de espírito científico como busca esclarecida da
verdade é associada à necessidade da arte como intensificadora do prazer da
existência. No segundo livro do Humano, demasiado humano, no aforismo inti-

Leituras de Zaratustra 89
tulado “contra a arte das obras de arte”, passamos a entender também o início
de uma nova reflexão sobre o significado do conceito de arte para Nietzsche.
Ciência e arte passarão a ser complementares, assim como descritas também
no prefácio autocrítico ao Nascimento da tragédia, escrito em 1886: será preciso
ver a ciência pela ótica da arte e a arte pela ótica da vida. Se pensarmos que em
Humano, demasiado humano, uma possível caracterização da ciência é dada como
sendo a imitação da natureza em conceitos, podemos entender que imitação
da natureza significaria possivelmente imitação do próprio movimento criador
existente na vida e a ciência não seria descobertas de verdades absolutas e
constantes, mas pura e simplesmente criação de conceitos com os quais pode-
mos estabelecer as condições e possibilidades de uma cultura.

Amor fati

Apesar de todas as críticas à compaixão, há em Nietzsche uma filosofia do


amor, da dádiva e da coragem, um amor que diz sim e, nesse sentido, apresen-
to a segunda parte deste trabalho.

Se, contudo, tens um amigo que sofre, sê uma casa de repouso para o seu
sofrimento, mas, ao mesmo tempo, uma cama dura, um leito de campanha:
será o melhor modo de ajudá-lo.
E se um amigo proceder mal contigo, fala-lhe assim: Perdôo-te o que me
fizestes; mas, o que fizesses a ti – como poderia perdoá-lo?
Assim fala todo o grande amor; ainda supera até o perdão e a compaixão.
Devemos segurar firmemente o nosso coração; porque se o soltamos, quão
depressa lá se vai também a cabeça!7

A ideia é que esse grande amor pode ser entendido como amor fati. Nos-
sos estudos indicam que, em toda a obra nietzscheana, a expressão amor fati
será poucas vezes mencionada literalmente, mas, nas poucas vezes em que
aparece, é dita com tal força e com tal intensidade que não podemos deixar de
compreendê-la como uma noção fundamental de seu pensamento, noção essa
que associaremos ao que se pode chamar uma filosofia trágica.
Serão priorizadas algumas passagens textuais que são talvez as únicas em
que Nietzsche menciona literalmente a noção de amor fati. A primeira dessas
passagens aparece em A gaia ciência e as outras, sequencialmente, no Ecce homo,
em O caso Wagner e nos fragmentos de 1888, publicados postumamente.

7
Ibid., p. 119.

90 Iracema Macedo
É em 1882, no início do livro IV de A gaia ciência, no aforismo 276, que
Nietzsche publica pela primeira vez algo sobre o amor fati.

Hoje cada um se permite exprimir seu desejo, seu mais caro pensamento;
assim eu vou dizer o que desejo hoje de mim mesmo, e qual foi o primeiro
pensamento que preencheu meu coração este ano, um pensamento que
deve ser a razão, a graça e a suavidade de toda a minha vida! Eu quero
aprender cada vez mais a considerar a necessidade das coisas como o belo
em si – assim, eu serei um daqueles que tornam as coisas belas amor fati:
que seja este de agora em diante o meu amor! Eu não vou fazer guerra
contra o feio, eu não o acusarei mais, eu não acusarei nem mesmo os acu-
sadores. Suspender o olhar, que esta seja minha única forma de negar. Eu
não quero, a partir desse momento, ser outra coisa senão pura afirmação.

O que há de necessário nas coisas parece ser o fato de que essas coisas
são simplesmente coisas, isto é, elementos pertencentes a um mundo que se
transforma, que muda, que devém. Afirmação da própria transitoriedade. Amar
o que há de necessário nas coisas é amar o que de certa forma não permanece,
não pode ser previsto, amar mesmo o desconhecido, mesmo o incompreensível.
Lembremos que beleza, para Nietzsche, é o que seduz em favor da existên-
cia, e arte é intensificação da vida, e essa intensificação só será possível se a
vida for assumida necessariamente em sua plenitude, mesmo com seus males
e dores, mesmo com sua finitude.
Ainda a propósito do amor fati, Nietzsche escreve no Ecce homo: “Minha
fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja
para trás, seja para a frente, seja em toda eternidade. Não apenas suportar
o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o
necessário – mas amá-lo.”8
Parece ser fundamental essa noção do idealismo entendido como falsidade
perante a necessidade. Pode-se inclusive notar também nessa passagem uma
certa dimensão ética do amor fati. Amar a fatalidade é um modo de realizar a
grandeza, o homem seria pequeno se sucumbisse diante dela, se resignando
ou se tornando indiferente. Amar representa aqui uma condição da criação.
O amor fati é um sim, não é negação, nem indiferença, é um querer. Prefigu-
ra, portanto, uma intensa vontade de pertencimento ao mundo, uma vontade
transfiguradora e criadora que deseja realizar a vida mesmo em suas possibili-
dades mais estranhas e difíceis.

8
Id. Ecce Homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 51.

Leituras de Zaratustra 91
Deleuze vislumbrou essa perspectiva como um outro tipo de imperativo,
que poderíamos denominar de um imperativo aristocrático. Ele faz uma re-
lação entre o imperativo categórico de Kant, que nos indica a agir conforme
uma máxima que possa se tornar lei universal, e o imperativo nietzscheano,
segundo qual, diante de cada coisa e de cada ação, deveríamos nos perguntar
se desejamos isso ainda um número infinito de vezes, esse seria para nós um
outro centro de gravidade.
E é conduzido por uma ideia de jogo de dados que ele escreve sobre a no-
ção de amor fati nietzscheana no primeiro capítulo de Nietzsche e a filosofia (cujo
título é “O trágico”). Transcrevo aqui partes do texto deleuzeano:

Os dados que são lançados e os dados que caem [...] os dados uma vez
lançados são a afirmação do acaso, a combinação que formam ao cair é a
afirmação da necessidade [...]. Nós devemos, pois, relacionar a mais alta
importância à seguinte conclusão: à dupla causalidade-finalidade, probabi-
lidade-finalidade, à oposição e a síntese desses termos, Nietzsche substitui
a correlação dionisíaca acaso-destino. Não uma probabilidade repartida vá-
rias vezes, mas todo o acaso em uma vez: não uma combinação final deseja-
da, querida, esperada, mas a combinação fatal, fatal e amada, o amor fati.9

Essa noção de acaso realçada por Deleuze parece ser fundamental para o
entendimento do conceito de trágico que pretendemos delinear.
O aforismo 277 de A gaia ciência, imediatamente posterior ao aforismo 276,
que trata do amor fati, intitula-se “Providência pessoal”(Persönliche Providenz);
nele, Nietzsche escreve que, por mais que neguemos ao belo caos da existên-
cia toda razão boa e solícita, nós temos uma habilidade prática e teórica para
arrumar os acontecimentos, e tudo resulta sempre como algo que não podia
faltar, algo que tinha que acontecer, seja o que for. Os exemplos dados por
Nietzsche são sugestivamente simples: “tempo bom ou tempo ruim, a perda de
um amigo, uma doença, uma calúnia, a carta que não chegou, a torção de um
pé, a olhada numa loja, um sonho, uma trapaça” tudo isso acabará se revelando
como “algo de profundo sentido e utilidade justamente para nós!” E a argumen-
tação segue mostrando que essa seria talvez a maior tentação para deixar de crer
em alguma divindade cuidadosa que conhece todo fio de nossa cabeça.
Uma investigação da noção de caos e acaso na obra de Nietzsche será, em
nosso estudo, de extrema relevância para o tecido constitutivo de uma filoso-
fia trágica. Tanto o acaso dos acontecimentos que nos ocorrem quanto o acaso

9
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Op. cit., p. 31. Tradução livre.

92 Iracema Macedo
e o caos constitutivo de toda criação, o caos sobre o qual nos debruçamos
como sobre uma matéria-prima para gerar, por exemplo, a beleza. Lembremos
a passagem de Zaratustra: “É preciso ter um caos dentro de si para gerar uma
estrela dançante, tendes ainda um caos dentro de vós”.
Ainda no quarto livro de A gaia ciência, outros aforismos são reveladores
dessa nova filosofia trágica de Nietzsche, após a primeira fase de juventude em
que tragédia e obra de arte estavam intrinsecamente ligadas. Nesse momento
posterior a 1878, a tragédia é ora o risco da total ausência de referências está-
veis, como na pergunta do citado aforismo 34 de Humano, demasiado humamo:
“mas nossa filosofia não se torna assim uma tragédia?”, ora o início de uma
experiência de afirmação da existência, como veremos no aforismo referente
ao eterno retorno; mas, em ambos os casos, um outro registro da filosofia trá-
gica se apresenta: o registro do conhecimento trágico como mutável, passível
de transformação e reaprendizagem, desconfiado do que é sólido e das opini-
ões petrificadas. Nesse sentido, já no segundo volume do Humano, demasiado
humamo, em “O andarilho e sua sombra”, no aforismo 332, Nietzsche afirmava
que não nos faríamos queimar por nossas opiniões, tão pouco seguros nos
sentimos acerca delas, mas pelo direito de ter opiniões e de poder mudá-las.
Ora, se o sujeito constituinte do conhecimento não é uma medida fixa e imu-
tável, e se o mundo que ele conhece é também oscilante, nada impede que
haja um deslizamento contínuo em nossas opiniões, não estamos presos a
um caráter único, a uma única forma de pessoa, a uma única possibilidade de
vida. Ao conceito de alma imortal, Nietzsche nos acrescenta a ideia de muitas
almas mortais (viele sterbliche Seelen) que não cessam de se transformar. Essa
ideia pode ser encontrada no aforismo 17 do segundo volume do Humano,
demasiado humano. Somos, enquanto sujeito plural, um feixe de muitas almas,
uma multiplicidade. Também a partir do aforismo 305 desse segundo volume
entendemos que, para exercício dessa multiplicidade, é preciso saber perder-
-se a si mesmo de vez em quando. Para um pensador, seria prejudicial estar
sempre ligado a uma só pessoa, a um único olhar.
Voltando a A gaia ciência e ao aforismo 341 desse livro, intitulado “O maior
dos pesos”, cujo aspecto ético citamos anteriormente nas reflexões de Deleuze
sobre a ideia do eterno retorno: embora literalmente a expressão não apareça
no aforismo, a hipótese da fatalidade e da aceitação da repetição de tudo que
nos acontece será posteriormente entendida por Nietzsche como critério de
afirmação dessa vida em Assim falou Zaratustra. Não se pode deixar de notar
que o aforismo seguinte se intitula Incipit tragoedie (“A tragédia começa”), e
nele se inicia o texto que será retomado em fevereiro de 1883 no prólogo de

Leituras de Zaratustra 93
Assim falou Zaratustra. Ainda que o termo tragédia possa se referir a uma obra
literária de conteúdo filosófico que Nietzsche irá começar a escrever, podemos
também entender a expressão Incipit tragoedie como o registro definitivo de
que um pensamento trágico está sendo realmente assumido pelo autor a par-
tir desse momento. Dioniso volta a aparecer com sentido de afirmação trágica
da vida a partir do quinto livro de A gaia ciência, escrito em 1886. E o Zara-
tustra de Nietzsche é, como na lembrança de Heidegger citada no início desse
texto, um advogado da “vida, do sofrimento e do círculo”, uma crítica a todo
espírito de vingança contra a terra e contra o tempo e sua transitoriedade.
Como já fiz notar, minha hipótese de trabalho acentua toda a elaboração de
ideias e opiniões feitas por Nietzsche nos dois volumes do Humano, demasiado
humano, de modo que vejo uma corrente contínua entre os argumentos de
corrosão da cultura e de seus eixos estáveis e a face mais afirmativa da filoso-
fia de Nietzsche que se apresenta em A gaia Ciência e nos escritos ulteriores,
particularmente em Assim falou Zaratustra.
Encerro este pequeno texto então com as palavras que arremetam o dis-
curso de Zaratustra a respeito dos compassivos:

Mas lembrai-vos, também, destas palavras: todo o grande amor está ainda aci-
ma de sua própria compaixão, porque, ainda, quer – criar o amado! Ao meu
amor ofereço mim mesmo e, do mesmo modo, o meu próximo – assim fala
todo criador. Mas todos os criadores são duros. Assim falou Zaratustra.10

Referências Bibliográficas

Obras de Nietzsche:

Os estudos foram feitos a partir da edição alemã Sämtliche Werke, Kritische


Studienausgabe, em 15 volumes, organizada por G. Colli e Mazzino Montinari
(Berlim/, New York, Walter de Gruyter na edição de bolso de 1999.
Como auxílio para estudos, recorreremos à edição francesa Oeuvres philo-
sophiques complétes, organizada por G. Colli e Mazzino Montinari, e editada em
Paris pela Gallimard.
Para estudos e citações em português, utilizamos todos os títulos traduzi-
dos até agora por Paulo César de Souza nas edições da Companhia das Letras,

10
NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Op. cit., p.119.

94 Iracema Macedo
além de O nascimento da tragédia, (tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1992), Assim falou Zaratustra (tradução Mário Silva. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, 2003), e o volume sobre Nietzsche da coleção “Os
pensadores” (tradução de Rubens Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Sobre Nietzsche:

COLLI, Giorgio. Après Nietzsche. Paris: Éditions de l’Éclat,1987.


______. Écrits sur Nietzsche. Trad. de l’italien par Patrícia Farazzi. Paris: Éditions de
L’Éclat, 1996.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1988.
______; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad. de Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Munöz. Rio de Janeiro: Editora 34,1992.
_____. “A ilha deserta e outros textos”. Org. de David Lapoujade. Org. da edição
brasileira e revisão técnica de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006.
Heidegger, Martin. Qui est le Zarathoustra de Nietzsche? Essais et Conférences I. Pa-
ris, Gallimard, 1958.

Outras obras citadas:

LA ROCHEFOUCAULD, François (Duc de). Máximas e reflexões. Trad. Leda Tenó-


rio da Mota. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
Rousseau. Os pensadores. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural,
1999.

Leituras de Zaratustra 95
Uma interpretação de Das cátedras da virtude
como alegoria para o niilismo moderno

Joseane Vasques

Qualquer tentativa de compreensão de Assim falou Zaratustra que se dete-


nha a fragmentos, focalizando elementos isolados, corre o risco de resultar
injusta com as intenções mais próprias do autor. Zaratustra é, sem dúvida,
um livro complexo e indivisível, um conjunto orgânico de imagens que se im-
plicam e iluminam mutuamente e que, deste modo, exigem a atenção a seus
múltiplos contextos, bem como a consideração da totalidade dos mesmos.
Com efeito, esta necessidade imposta pela unidade da obra já foi indicada por
Heidegger em sua análise do subtítulo Um livro para todos e para ninguém –, ao
advertir não ser este um livro “para nenhum da horda dos curiosos de toda
parte adventícios, que se embriagam e se extasiam com passagens isoladas,
com frases e ditos [...] e assim caem em delírios e vertigens cegos”.1 Mas,
por outro lado, há sempre a possibilidade de, sem perder de vista o caráter
orgânico da obra e a plena ciência dos limites inerentes a qualquer interpre-
tação parcial, apropriarmo-nos de alguns de seus “momentos” na exploração
dos sentidos emergentes de suas imagens. Pois, vale lembrar, Heidegger tam-
bém afirma ser Zaratustra um livro “para cada homem enquanto homem; para
cada um, sempre e à medida que este se faz, em sua essência, digno de ser
pensado”.2 É, portanto, num duplo intuito de perscrutação e de proposição
que o presente artigo procura interpretar “Das cátedras da virtude” como ale-
goria para o niilismo moderno, visando identificar neste discurso as principais
características dos modos de vida e pensamento predominantes na moderni-
dade, sabidamente alvejados pela filosofia crítica de Nietzsche.
Este é o segundo discurso de Zaratustra, situado logo no início da trajetó-
ria do personagem, após sua descida da montanha e seus primeiros contatos

1
HEIDEGGER, Martin. “Quem é o Zaratustra de Nietzsche?” in Ensaios e conferências, p. 87.
2
Ibid.

Leituras de Zaratustra 97
com o povo depois dos dez anos de reclusão. Neste ponto, com vistas à melhor
compreensão do contexto em que se insere a passagem a ser investigada e
em favor dos objetivos aqui almejados, faz-se necessário ressaltar alguns dos
elementos apresentados no prólogo, quais sejam: a anunciação da “morte de
Deus”, a postulação do “super-homem”, a caracterização do “último homem”,
a incompreensão e a rejeição dos ensinamentos de Zaratustra por parte do
povo. Primeiramente, a anunciação da “morte de Deus” permite-nos relacio-
nar já os primeiros discursos com a problemática da modernidade, na medida
em que esta se configura justamente a partir do declínio do poder da Igreja e
dos valores erigidos pelo Cristianismo. Segundo Machado:

A “morte de Deus”, condição, pressuposto histórico dos principais temas


expostos no Zaratustra, é a constatação do niilismo da modernidade, é o
fato de que “a fé no Deus cristão deixou de ser plausível”; é a evidência
de que a fé em Deus, que servia de base à moral cristã, se encontra mina-
da, de que desapareceu o princípio em que o homem cristão fundou sua
existência.3

Com relação a este aspecto específico, é interessante notar que em “Das


cátedras da virtude”, o saber não se encontra diretamente vinculado à ideia de
Deus, nem mesmo é possuído ou pronunciado por algum tipo de sacerdote
religioso em sentido estrito, cuja função seria a de mediador do poder divi-
no. Diferentemente, quem aqui detém a verdade é um ser humano, ou mais
precisamente, um sábio, vivo e profano, reputado a Zaratustra como exímio
conhecedor do sono e da virtude. Assim, seria possível identificar nesta preemi-
nência do saber humano sobre o divino a condição, moderna por excelência,
de “substituição da autoridade de Deus e da Igreja pela autoridade do homem
considerado como consciência ou razão; a substituição do desejo de eterni-
dade pelos projetos de futuro, de progresso histórico; a substituição de uma
beatitude celeste por um bem-estar terrestre”.4
Mas, se a força da ideia de Deus e sua efetivação no poder exercido pela
Igreja impunham sua legitimidade através da promessa de uma bem-aventu-
rança na além-vida eterna – expressão da negação da vida presente, corpórea
e mutante, é importante frisar –, pode-se dizer que, em termos essenciais,
muito pouco se altera com a substituição da sabedoria divina pela humana.
Isto porque o mesmo homem que “mata Deus” procura assumir seu papel ne-
gador da vida, estabelecendo “novos” valores “superiores”, como a ciência ou

3
MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 47.
4
Ibid., p. 48.

98 Joseane Vasques
o Estado, por exemplo, diante dos quais deve se submeter. Perceba-se, pois, o
caráter de uma tal substituição que, longe de instituir uma efetiva transforma-
ção, finda por corroborar as forças prejudiciais ao movimento vital.
Não por acaso, a virtude defendida pelo sábio aparece ladeada por uma
imagem que parece assinalar esta continuidade da negação da vida: a imagem
do sono. Muito mais do que isto, o sono aparece como o elemento determi-
nante de toda virtude humana, como finalidade e diretriz da vida presente. É
certo que esta metáfora pode sugerir diversas interpretações, dentre as quais,
segundo os objetivos da presente análise, convém destacar: as ideias de repou-
so, passividade ou entorpecimento; a ideia de finalidade, já que o sono é o que
se espera, em geral, para depois da jornada de um dia; a ideia da morte como
“descanso eterno” ou compensação pelos sofrimentos da vida. Note-se, por-
tanto, na importância atribuída ao sono, a persistência de um valor extrínseco
como propósito máximo da existência humana, assim como do enaltecimento
da “morte” em detrimento da vida. Sem dúvida, torna-se nítida a prevalência do
homem como proclamador da verdade e da virtude, mas este mesmo homem
procura agora, reativamente, ocupar a lacuna deixada pelo esvaziamento dos va-
lores antes “estabelecidos por Deus”, dando continuidade à tendência negadora
da vida promovida anteriormente pela religião. Sendo assim, muito embora a
constatação da “morte de Deus” revele a decadência dos valores sobre os quais
se assentava a moral cristã, é interessante observar a relevância dada à virtude
enunciada pelo sábio – a quem “muitos respeitavam e remuneravam”, e diante
do qual “todos os jovens se aglomeravam”. Esta virtude, embora não mais se
relacione diretamente com a velha noção de “pecado”, norteadora das ações do
homem cristão, continua a ter seu norte num elemento transcendente, ainda
que disfarçado, representado pela metáfora do sono, indicadora da insistência
da negação da vida em função de uma pretensa recompensa futura.
As prescrições do sábio insinuam a presença de um outro traço caracterís-
tico da sociedade moderna, na qual os homens procuram afanosamente pela
comodidade e pelo bem estar. Pois sua sabedoria diz:

Dez vezes és obrigado a reconciliar-te contigo mesmo; pois é penoso ven-


cer-se a si mesmo e dorme mal o irreconciliado.
Dez vezes cumpre-te achar durante o dia; de outro modo, ainda procuras
verdades durante a noite, pois tua alma ficou com fome.
Dez vezes deves rir, de dia, e estar alegre; do contrário, à noite, te incomo-
dará o teu estômago, esse pai das aflições.5

5
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra, “Das cátedras da virtude”.

Leituras de Zaratustra 99
Talvez seja possível traçar um paralelo entre o teor destas prescrições e
o caráter do “último homem”, apresentado no prólogo. Zaratustra desce da
montanha e torna aos homens porque quer presenteá-los com o ensinamento
do “super-homem” e, com isto, indicar a necessidade de superação do homem,
a premência do estabelecimento de uma meta superior em direção à qual se
possa conduzir afirmativamente a vida, em favor da criação de novos valores.
Mas os homens que encontra na cidade não são receptivos a sua dádiva justa-
mente por não serem capazes de enxergar para além da própria “mesquinha
satisfação”. Zaratustra tenta, então, demovê-los pela caracterização do “últi-
mo homem”, ápice da decadência para a qual ruma a humanidade, mas, para
sua decepção, este que seria o mais desprezível dos homens passa a ser deseja-
do pela multidão. A apresentação do “último homem” nos interessa, porquan-
to parece permitir a aproximação entre a personalidade deste tipo e o modo
de vida apregoado pelo sábio em “Das cátedras da virtude”. Melhor dizendo,
mesmo que os ouvintes do sábio não sejam ainda os “últimos homens”, há
nos ensinamentos por eles recebidos a clara indicação de um caminho a ser
divisado por aqueles que procuram, sobretudo, “pequenos prazeres para o dia
e pequenos prazeres para a noite; mas respeitam a saúde”.6 A exposição feita
por Zaratustra torna suficientemente clara esta afinidade:

A terra, então, tornou-se pequena e nela anda aos pulinhos o último ho-
mem, que tudo apequena. Sua espécie é inextirpável como o pulgão; o últi-
mo homem é o que tem vida mais longa.
‘Inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, piscando o olho.
Abandonaram as regiões onde era duro viver: porque o calor é necessário. Cada
qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega: porque o calor é necessário. [...]
De quando em quando, um pouco de veneno: gera sonhos agradáveis. E
muito veneno, no fim, para um agradável morrer.7

A virtude proclamada pelo sábio parece intencionar um modo de vida se-


melhante ao descrito e, para além disto, a interpretação da situação retratada
em “Das cátedras da virtude” pode ser ainda aprofundada a partir da análise
do caráter do “último homem”. Admita-se como um dos sentidos da expres-
são utilizada – “último homem” – o de término da humanidade, que pode
ser remetido a duas concepções constantemente atacadas por Nietzsche: a
ideia de fim dos tempos, de juízo final, pertinente à mentalidade cristã; e

6
Ibid., prólogo, § 5.
7
Ibid.

100 Joseane Vasques


seu correlato na modernidade, a ideia de acabamento da razão, personifica-
da no exemplar humano mais desenvolvido, mais justo, perfeito: o homem
moderno. A crítica nietzschiana à cultura moderna que se funda nestas duas
concepções tem como um de seus desdobramentos a denúncia da crença no
“encanecimento do homem”, que, no limite de seu desenvolvimento, é alçado
ao posto mais alto da escala evolutiva, terminando por conformar-se com sua
“senilidade” e esperar pelo próprio fim, visto que nada mais tem a criar. Se,
com alguma liberdade, aproxima-se esta crença moderna na “velhice humana”
da ideia de “último homem” apresentada em Zaratustra, e se, ao mesmo tem-
po, considera-se o fato de os ouvintes do sábio das cátedras da virtude serem
notadamente jovens, pode-se concluir não ser este ainda o tempo do “último
homem”. Mas, por outro lado, conforme já mencionado, é possível vislumbrar
na virtude apregoada pelo sábio os indícios morais de um “último homem”
que advém, e perceber neste vislumbre a peculiaridade do niilismo moderno
que apregoa o fim como justificação de uma conduta adequada, cômoda e pre-
tensamente saudável. De fato, quando nos reportamos àquela interpretação
do sono como “finalidade” ou como “morte”, revela-se uma vez mais a conso-
nância entre a virtude do sábio e o ethos moderno acusado por Zaratustra já na
antevisão do tipo “último homem”.
A presente interpretação de “Das cátedras da virtude” como alegoria para
a modernidade pode encontrar suporte na consideração dos três tipos de nii-
lismo estabelecidos por Deleuze: o “niilismo negativo” como “momento da
consciência judaica e cristã”, o “niilismo reativo” como “momento da cons-
ciência europeia”, e o “niilismo passivo” como “momento da consciência
búdica”.8 Que se adote aqui uma perspectiva linear, o discurso em questão,
conforme já mencionado, não parece situar-se num momento de predomínio
da verdade divina, que corresponderia ao “niilismo negativo”, em que “a ideia
de Deus exprime a vontade de nada, a depreciação da vida”.9 Com efeito, a si-
tuação descrita em “Das cátedras da virtude”, posterior ao anúncio da “morte
de Deus”, na qual o sábio (humano) detém um conhecimento depreciador da
vida, assemelha o ponto de vista do niilismo reativo: “A vida reativa no lugar
da vontade divina, o Homem reativo no lugar de Deus, o Homem-Deus não
já o Deus-Homem, o Homem europeu”.10 Note-se, portanto, como a utilização
da tipologia deleuziana parece reforçar os traços que fazem de “Das cátedras
da virtude” uma espécie de retrato, metafórico, mas bastante contundente,

8
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. “O super-homem contra a dialética”, § 3.
9
Ibid.
10
Ibid.

Leituras de Zaratustra 101


do niilismo mais típico da modernidade. No mesmo sentido, esta perspecti-
va parece apontar para a consequência do “niilismo passivo”, pois, segundo
Machado:

Zaratustra chama a atenção para o perigo de que, depois do niilismo da


morte de Deus, ou da substituição de Deus pelo homem reativo, o niilismo
continue não apenas mudando de forma, mas atingindo sua etapa mais
terrível: o desaparecimento de toda vontade, a ausência de todo valor, o
fim do amor, da criação, do anseio. Pois o último homem não é o que, para
usar uma ideia explicitada por Deleuze, prefere um nada de vontade, isto é,
extinguir-se, passivamente, a uma vontade de nada?11

A indicação de um tal aprofundamento da negação da vida, iniciada pelo


estabelecimento de valores transcendentes pelo Cristianismo e corroborada
pela sobreposição dos valores instituídos pelo homem ressentido, pode ser
percebida não somente a partir da mencionada afinidade entre a virtude do
sábio e o modo de ser do “último homem”. Para além disto, a conversão da
negação da vida em passividade pode ser identificada na própria metáfora do
sono, especialmente se salientada sua interpretação como repouso e ausência
de vitalidade. Quer dizer, mais do que prescrever um modo de vida confor-
mado e condizente com o bom sono, mais do que prenunciar o aparecimento
do “último homem” como personificação final da degenerescência, o sábio da
virtude sinaliza para a vinda de um estágio de adormecimento da vontade ou,
em termos deleuzianos, de “niilismo passivo”.
Considerando-se, pois, os resultados alcançados pela presente investiga-
ção, torna-se clara a possibilidade de leitura do discurso “Das cátedras da vir-
tude” como síntese do niilismo moderno. Isto porque todas as ramificações da
cultura moderna atuantes na negação da vida baseiam-se num ponto comum:
a atitude humana diante da própria existência, e esta, por sua vez, encontra-
-se aqui condensada em imagens bastante expressivas. O homem moderno
emerge da “morte de Deus”, mas não consegue desvencilhar-se do fantasma
divino por não saber criar para além de uma virtude fraca, sombria e entorpe-
cente. Seu anseio por um sono tranquilo presentifica pequenas doses de morte
travestida em bem-estar, sua projeção no futuro não oferece alternativas à re-
signada extinção. Entretanto, se não se pode negar a morbidez de um tal prog-
nóstico, o olhar mais acurado é capaz ainda de detectar na mesma imagem que
serve de metáfora à negação a possibilidade da afirmação. É esta precisamente
a riqueza da imagem: a de só valer por suas possíveis interpretações. Com

11
MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 56.

102 Joseane Vasques


efeito, se o sono pode, de fato, representar a morte, ele já não é morte, e a todo
sono pertence também um despertar. Que se remonte novamente ao prólogo,
pois que nele se encontram duas relevantes menções ao ato de despertar que
podem auxiliar a construção de um sentido ainda diverso para a alegoria per-
tinente ao discurso “Das cátedras da virtude”. Primeiramente, nas palavras do
santo ao reencontrar Zaratustra após a descida da montanha e constatar sua
transformação:

Não me é desconhecido, este viandante; passou por aqui há muitos anos.


Chamava-se Zaratustra; mas está mudado.
Naquele tempo, levavas a tua cinza para o monte; queres, hoje, trazer o
fogo para o vale? Não receias as penas contra os incendiários?
Sim, reconheço Zaratustra. Puro é seu olhar e não há em sua boca nenhum
laivo de náusea. Não será por isso que caminha como um dançarino?
Mudado está Zaratustra, tornou-se uma criança, Zaratustra, despertou, Za-
ratustra; que pretendes agora, entre os que dormem?12

A segunda referência ao despertar de Zaratustra ocorre no final do prólogo


e, do mesmo modo, antecede um momento de transformação:

Longamente dormiu Zaratustra, e não somente a aurora passou sobre seu


rosto, mas também, a manhã toda. Finalmente, seus olhos se abriram: admira-
do, olhou Zaratustra a floresta e o silêncio, e, admirado, olhou a si mesmo.
Levantou-se, então, depressa, como um navegador que vê repentinamente
terra, e exultou: porque viu uma nova verdade. E assim, então, falou ao
seu coração:
Uma luz raiou em mim: de companheiros, eu preciso, e vivos – não de com-
panheiros mortos e cadáveres, que levo comigo aonde quero.13

Semelhante nas duas passagens, a função do ato de despertar torna-se evi-


dente: consagra um momento de importante mudança, de transição de um es-
tado de enfraquecimento a um outro de potencialização. Além disso, pode-se
perceber sua relação com a conquista da inocência ou da clarividência, impli-
cando uma decisão. Portanto, ainda que em “Das cátedras da virtude” Zara-
tustra nada diga a respeito desta possibilidade e, muito pelo contrário, encerre
seu discurso com uma frase quase fatalista – “Bem-aventurados são os que

12
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra, prólogo, § 2.
13
Ibid., § 9.

Leituras de Zaratustra 103


tem sono: porque breve adormecerão” –,14 a metáfora do sono parece ser-nos
suficiente para, ao menos implicitamente, apontar para a transformação, na
medida em que cont’em em si, potencialmente, por assim dizer, o despertar.

Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad. de António M. Magalhães. Porto:


RÉS – Editora, s.d.
HEIDEGGER, Martin. Quem é o Zaratustra de Nietzsche?. In: ______. Ensaios e
conferências. Trad. de Gilvan Fogel. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.
MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997.
NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civi-
lização brasileira, 2000.

14
Ibid., “Das cátedras da virtude”.

104 Joseane Vasques


Dos Cantos de Zaratustra

Maria Cristina dos Santos de Souza

Antes de iniciarmos nossa segunda leitura completa da obra Assim falou Za-
ratustra, de Friedrich Nietzsche, a fim de escrever o presente texto, sabíamos
que nos depararíamos com a ideia fundamental que norteia o pensamento de
Nietsche, qual seja, a vontade de poder, e que esta ideia está expressa na obra de
forma alegórica e épica. No entanto, há mais. Já o prólogo exige que abando-
nemos a via do discurso linear e lógico que nos embota a capacidade de apre-
ensão da verdade e nos convida, então, a trilhar o caminho da desconstrução
de nosso olhar, pois constatamos que Nietzsche fala de forma enigmática. Esta
única exigência faz com que, ao iniciar, nos sintamos bastante desconfortáveis.
Resulta que somos lançados, de entrada, na experiência da falta de sentido, o
que quer dizer, percorremos os capítulos como se estes fossem um conjunto de
fragmentos. Somos tomados pela sensação de que o essencial nos escapou e de
que Nietzsche fala como os oráculos. Enfim, nossa confiança no que pensamos
saber se exaure, descobrimos que temos de recomeçar partindo da origem, e
mais, que não temos garantias de que compreenderemos o pensamento de Niet-
zsche, não por alguma incapacidade de expressão de nosso filósofo, mas por du-
vidarmos que sejamos capazes de nos colocar à altura de um filósofo que soube
recriar a linguagem da filosofia frente à tradição racionalista legitimadora de
uma linguagem que tem em séria conta, sobretudo, os critérios da coerência e
da objetividade. De certa forma, do início, ficamos em um impasse angustiado.
No entanto, se prosseguimos e suportarmos permanecer nas trilhas da obs-
curidade durante uma considerável extensão da primeira parte até a segunda
parte, com certeza somos tocados pela vivacidade do pensamento de Nietzsche
e começamos a evoluir em lampejos de ideias em consonância com sua escrita
aforística e luminosa. Foi o que ocorreu conosco até explodirmos em uma com-
preensão unitária e feliz ao chegarmos à altura dos cantos de Zaratustra.
Na segunda parte de Assim falou Zaratustra, encontramos três cantos: “O
canto noturno”, “O canto de dança” e “O canto do túmulo”. Quando nos de-

Leituras de Zaratustra 105


paramos com estes três cantos, sentimos que tudo que nos apresentava vago
e fragmentado parecia se ligar em um sentido. Começamos a entrar nesta
atmosfera de sentido já nos capítulos que antecedem os cantos. São eles: “Das
tarântulas” e “Dos famosos sábios”. Pensamos, também, que os dois capítu-
los que seguem imediatamente o último canto, intitulados “Do superar-se a
si mesmo” e “Dos seres sublimes”, são conclusivos das ideias apresentadas
nos Cantos. Desse modo, nos centraremos aqui nos três cantos e nos capí-
tulos que os ladeiam, admitindo a necessidade de, em algumas ocasiões, nos
remetermos a outros, pois consideramos que os três cantos representam o
primeiro momento da obra em que eclode uma unidade de sentido resultante
da construção dos capítulos anteriores e que prepara o desdobramento e a
resolução dos capítulos posteriores. Nos permitiremos ainda a recorrência a
outras obras de Nietzsche, que apresentam, de forma desdobrada e mais ex-
plícita, ideias que, em Assim falou Zaratustra, encontram-se expostas de forma
alusiva e alegórica.
Antes de abordamos mais diretamente os cantos, partiremos do prólogo,
pois pensamos que, no primeiro canto, o noturno, há uma referência funda-
mental ao prólogo. Tanto em um quanto em outro, Nietzsche se utiliza do
parâmetro da luz como base de reflexão sobre a vontade de poder, que enten-
demos ser a ideia norteadora da obra como um todo.
O prólogo nos conta que durante dez anos viveu Zaratustra na montanha
recebendo diariamente a luz do sol, fonte da sabedoria adquirida por ele neste
tempo de recolhimento. A sabedoria, vivenciada como aquisição irradiada de
um astro, denuncia seu caráter elevado e universal, e também seu caráter de
dádiva. A ação desta dádiva está representada, especificamente e sobretudo,
pelo levante, pela aurora de cada dia. É o que faz Zaratustra dizer ao sol: “São
dez anos que sobes a minha caverna”.1
Entretanto, apesar de ter passado um tempo considerável afastado do con-
vívio dos homens, Zaratustra não havia se retirado do mundo, como o sol
não havia deixado de iluminar a totalidade deste mundo, no qual Zaratustra
havia encontrado um lugar de elevação (a montanha). A medida do mundo
aparece denunciada nos limites constituídos pela serpente (limite da terra)
e pela águia (limite do céu). Isto fica claro pelas seguintes palavras: “já se te
haveriam tornado enfadonho a tua luz e este caminho, sem mim, a minha
águia e a minha serpente”.2 Nesta citação, podemos também reconhecer a

1
Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra, p. 33.
2
Ibid.

106 Maria Cristina dos Santos de Souza


admissão de Zaratustra sobre a necessidade do sol relativamente aos entes
por ele iluminados. Esta declaração no mínimo nos espanta, pois admitir que
a luz precisa dos que são dela carentes é como admitir que o supremo bem
depende das coisas que dele participam, contrariando o postulado platônico.
Esta ideia parece também ir na contramão do que o Ocidente cristão sempre
compreendeu como autossuficiência de Deus em relação às criaturas por ele
criadas. Mas como Zaratustra afirma, é a felicidade do sol, e não ele mesmo,
que depende dos que ele ilumina, enquanto ela pode ser compreendida como
o que há de supérfluo (Überfluss), como abundância, profusão que apenas
pode ser escoada em conjunção com o que tem necessidade da luz. O Über-
fluss quer transbordar, como um fluxo de água que, ao correr sobre a terra,
elege as brechas e os fossos secos como seus veios.
Zaratustra quer descer a montanha, como o sol não deixa de oferecer sua
luz e seu calor ao mundo. Ele diz: “Por isso, é preciso que eu baixe às profun-
dezas, como fazes tu à noite, quando desapareces atrás do mar, levando ainda
a luz ao mundo ínfero, ó astro opulento!”. O ocaso do sol é parâmetro, para
Zaratustra, da necessidade de sua própria integração, como homem, no mun-
do no qual habita. Ele sabe sobre a origem e a verdade de todos os mundos e
épocas, mas vive em um mundo determinado. Como este mundo não é eterno,
Zaratustra também não o é. Como o sol tem seu ocaso na perspectiva de um
horizonte particular, Zaratustra precisa descer a montanha e tomar para si,
como homem, a responsabilidade pela finitude de seu mundo. Com ele, Za-
ratustra também conhecerá seu fim. Mas ele está acima dos demais homens,
pois, ao mesmo tempo que quer e necessita participar do mundo, participa
também da mais alta sabedoria sobre ele.
Assim, a descida da montanha é marco do início do ocaso de Zaratustra.
Ele quer o seu ocaso, como a luz necessita da escuridão para ser luz, para ilu-
minar. Ele louva a noite por amor à escuridão, por amar a condição do pleno
exercício da luz. Zaratustra quer dar aos que realmente necessitam receber:
“Ó seres escuros, noturnos, somente vós criais o calor, haurindo-o dos corpos
luminosos! Somente vós bebeis o leite e o bálsamo dos ubres da luz!”.3
Zaratustra quer seu ocaso, como quem quer o destino de seu mundo. Este
destino encontra-se em finalização, em conclusão. Zaratustra terá seu ocaso
e, neste sentido, ele entrará em consonância com o ocaso de seu mundo. Não
podemos deixar de perceber que a referência feita por Nietzsche aqui é ao
mundo ocidental.

3
Ibid., p. 135.

Leituras de Zaratustra 107


O que Zaratustra espera dos homens, como o sol espera da terra, é que não
esqueçam o núcleo de vontade que perpassa suas supostas aquisições, como um
foco perene de insatisfação no cerne de toda realização, e que a falta, a privação,
longe de atuar como fator de frustração, deve inspirar a disposição conquista-
dora e criadora do que por ela é ansiado. Por isso ele diz: “Eu desejaria dar e
distribuir tanto, que os sábios dentre os homens voltassem a alegrar-se de sua
loucura e os pobres, de sua riqueza”.4 O transbordamento da vontade, sob a
forma da irradiação da luz na escuridão, desencadeia o emparelhamento dos
polos opostos do excesso e da falta, da luz e da sombra, do ocaso e do levante.
Arriscamo-nos a pensar que genuinamente a vontade, como fonte e medida de
tudo que acede à existência, não se detém nem em seu excesso nem em sua fal-
ta, mas investe tanto em um quanto em outro polo como estratégia de sua auto-
potencialização, como um dardo que, após lançado, traduz tudo em que roça em
seu trajeto em propulsão da força que ele já carrega consigo ao ser arremessado.
Imediatamente antes do capítulo “O canto noturno”, temos o capítulo
“Dos famosos sábios”. Neste, Zaratustra fala aos sábios que se arrogam a
posse da “sabedoria”, sabedoria que, neste caso, é definida pelas expectativas
e necessidades mais baixas e vulgares. Ele fala aos “venerados” sábios: “Em
tudo alardeais uma excessiva familiaridade com o espírito; e da sabedoria, com
frequência, fazeis um asilo de indigentes e um hospital para maus poetas”.5
Ele tem em mira os que se contentam com o conhecimento do que há de mais
contingente e indigno, cujo mérito reside em satisfazer motivações tacanhas
e doentes e não em conhecer a verdade: “Servistes o povo e a superstição do
povo, todos vós, sábios famosos – e não à verdade! E, justamente por isso,
tributam-vos veneração”.6
Neste canto, Zaratustra revela o homem e seu mundo de valores e de ci-
ência como vontade de poder. O homem, revelado pelos valores de bem e de
mal como vontade de instituir valores, e pela ciência como vontade de saber,
denuncia que a moral e a verdade são buscadas como alvos de poder. Por
meio do homem a vontade almeja a mais alta criação e a mais alta sabedoria.
Quem são, então, os famosos sábios, dos quais Zaratustra pode dizer: “Ne-
nhum forte vento e vontade vos arrastam. Nunca vistes uma vela correr ao
mar, arredondada, inflada e tremendo pela impetuosidade do vento?”.7 São
aqueles que lançam verdades ao povo como valores absolutos e incitam-no a

4
Ibid., p. 33.
5
Ibid., p. 134.
6
Ibid., p. 132.
7
Ibid., p. 135.

108 Maria Cristina dos Santos de Souza


escorraçar os que fazem da vontade ao mesmo tempo o motor e o objeto de
sua sabedoria, dissimulando, assim, o núcleo de vontade que alimenta sua
sede de vingança contra os que assumem sua natureza anelante. Zaratustra,
reconhecendo-se como um ser de vontade, diz: “igual à vela, tremendo pela
impetuosidade do vento, corre no mar a minha sabedoria – a minha selvagem
sabedoria! Os famosos sábios são movidos pela mesma vontade, mas, ao con-
trário dos que são iguais a Zaratustra, revoltaram-se contra ela.
Neste ponto, percebemos a oportunidade de nos referirmos ao capítulo
“Das Tarântulas”, que antecede “Dos famosos sábios”. Zaratustra afirma sobre
as tarântulas: “Vingança, é o que trazes na alma: onde quer que mordas, cresce
uma negra escara. Com vingança faz seu veneno a alma rodopiar!”.8 Elas são
animais que atacam suas presas de modo furtivo, saltando sobre elas a partir
de tocas escuras, onde ocultam seu ser perigoso e venenoso. Pensamos que
poderíamos considerar o aspecto repugnante e traiçoeiro da tarântula como o
lado oculto, encoberto, do famoso sábio que se vale do povo, das disposições
mais baixas do homem, para adquirir força contra suas presas mais desejadas,
contra os que podem querer tudo o que ainda não é, e podem entregar-se sem
ressentimento, como matéria, a uma vontade ainda mais alta: Zaratustra e
seus iguais. A tarântula oculta seu veneno, seu ímpeto pela destruição lenta da
vítima, como um sábio pode encobrir suas verdadeiras motivações com seus
valores de justiça e de bem. Zaratustra confirma: “E, quando se chamam a si
mesmos “os bons e os justos”, não esqueçais que, para tornarem-se fariseus,
nada lhes falta – senão o poder!”.9 Como sábio aclamado pelos instintos mais
baixos, ele é o guardião das palavras de virtude, justificada como pendor de
nivelamento de todos os instintos superiores aos níveis mais vis, nos quais
desejam fundamentar seu preceito da “igualdade de todos”. Em nome desta
ficção da verdade, projetam um mundo, não menos fictício, que defendem
como fundamento desta verdade.
Apregoando o mundo da verdade já conquistada, que deve apenas ser con-
sumida, desfrutada e utilizada como justificativa de deleites infinitos e “espi-
ritualizados”, conjuram os que compreendem que a verdade ainda deve ser
conquistada e que se entregam de corpo e de espírito aos fins da busca e da
luta por ela. O espírito de vingança dos que se arrogam ser os possuidores
da verdade ergue-se, sobretudo, então, contra o espírito da busca: “Por que a
verdade está ali: não está ali o povo? Ai daquele que a procura!”.10

8
Ibid., p. 129.
9
Ibid., p. 130.
10
Ibid., p. 132.

Leituras de Zaratustra 109


Por esta descrição do tipo do “famoso sábio”, podemos correr o risco de
admitir que Nietzsche tem em vista o homem moderno do conhecimento,
referido por ele em diversas obras. Ele é o representante do que atualmente se
pode denominar “verdade”. Outro risco que achamos que podemos correr de-
corre de também considerarmos que o mundo em ocaso, para o qual se dirige
Zaratustra, consiste no mundo concebido pelo parâmetro científico moderno.
O homem da ciência é aquele que se arroga o conhecimento sobre a existência
a partir do julgamento prévio dela, julgamento prévio que ele fundamenta
surpreendentemente na negação de seu objeto.
Ora, os eruditos justificam a existência pela verdade. No entanto, no caso
da ciência, o que motiva a busca não é nunca o amor da verdade. Ela não
aspira à verdade como forma de abrandar o sofrimento pela falta de valor da
vida, e, não tem, em contrapartida, nenhuma intenção de dotá-la de sentido.
O que significa que não é um verdadeiro amor pelo saber que a faz pulsar? O
que quer a ciência, então? Antes de tudo é necessário pensar como a ciência
empreende seu ofício, o conhecimento. Ela se dedica ao conhecimento das
coisas que já não estão em devir, ou seja, coisas das quais a vida já se retirou
ou, no mais, a substitutos representativos, frios e áridos, das coisas, os con-
ceitos. Assim, nas coisas vivas ela seleciona os atributos que se mantêm mais
regularmente e por mais tempo e os congela em definições. Segundo estes
atributos, ela desmembra, disseca, divide infinitamente seus objetos – antes
de tudo, então, estes são os objetos da sua avidez, da sua perseverança e de
sua minuciosidade –, colocando a nu e em separado suas partes para, depois,
novamente juntá-las, como num jogo de quebra-cabeças.
Ora, não é sob todos os ângulos que a vida é concebida sob a égide da ne-
gação, mas, sobretudo, sob o ângulo dos fracos, dos que não suportam o peso
das contradições da existência, dos que farejam a ameaça de destruição e que,
para justificar sua fragilidade diante da verdade, forjam a representação de sua
fuga como ascese para o bem.
Na verdade, as duas atitudes fundamentais diante da vida se erguem fren-
te ao profundo sofrimento a ela inerente. Sempre se é pessimista, ou seja, o
problema mais importante da vida gira sempre em torno da dor. Mas, para
Nietzsche, existem dois tipos básicos de sofredores: os que sofrem por pri-
vação e os que sofrem por abundância. Ora, somente os fortes sofrem de su-
perabundância e buscam o seu alívio no transbordamento da força. A vida
apenas é percebida a partir desse parâmetro do excesso da força. O forte sente
em toda parte a correspondência à sua potência e ao seu vigor. Neste sentido,
as contradições inerentes à existência, o horror, o absurdo, mesmo a morte,

110 Maria Cristina dos Santos de Souza


são considerados apenas meios do processo maior e hegemônico de recriação
incessante da vida. Se o forte pode fazer convergir sua força para a geração
e a estilização da vida, ou seja, destituir a destruição de um valor absoluto e
integrá-la na unidade maior do que ele pode engendrar, seu sofrimento é so-
brepujado pelo prazer insubstituível da criação, a partir do qual ele se dispõe
em consonância com o prazer universal inerente ao processo da existência. Ele
considera a dor sob a perspectiva e o efeito da força e, então, em si mesma,
sem consequências. Nietzsche comenta que, em outra obra que pensamos
estar em estreita consonância com Assim falou Zaratustra, para os mais lúcidos
as contradições constitutivas do existir correspondem a “um estímulo a mais
[...] precisamente tais contradições nos seduzem para o existir”11 Esta dis-
posição é a origem do que ele denomina a “moral dos senhores”, dos fortes.
Não obstante a “moral dos senhores” advir da afirmação da existência, ela
não expressa uma espécie de otimização da existência, um encobrimento dos
processos mórbidos, questionáveis, um afastamento das afecções dolorosas,
porquanto seu comprometimento com a verdade e com a plena manifestação
da vida, então, sem mascaramentos e subterfúgios, a dispõe em referência a
uma espécie de pessimismo, o da força. Conforme Nietzsche afirma ainda em
Ecce homo, o dizer sim sem reservas é afirmar tudo o que é estranho, duvi-
doso, doloroso, absolutamente problemático, o qual resulta não somente da
mais elevada, porém, da mais profunda percepção da realidade. E diz ainda:
“Apreender isso requer coragem e, condição dela, um excesso de força: pois
exatamente tanto quanto a coragem pode ousar avançar, exatamente segundo
esta medida da força nós nos aproximamos da verdade”.12
Zaratustra se dirige a estes homens vigorosos na busca da verdade: aos que
podem colocar em risco suas aquisições, expectativas tangíveis e seus valores
amparados nestas expectativas, em nome de um tempo ainda não criado, ainda
não validado, cuja medida seja a vontade de poder. Esta disposição extemporâ-
nea reflete-se como luz transbordante de Zaratustra que, em verdade, lança-se à
escuridão do mundo visando deixar às claras o cerne deste universo como von-
tade de poder. A luz de Zaratustra anseia por imiscuir-se no meio das sombras
para se reencontrar no curso declinante do mundo como vontade em ascensão;
mundo que já quer, pela vontade dos despertados de seu sono de sonhos ele-
vados, como Zaratustra, precipitar-se, assumir sua condição ocidental, doar-se
como vontade de poder à consecução de outro mundo já em seu levante.

11
Id. Nietzsche contra Wagner, Wagner como apóstolo da castidade, parte 2, p. 64.
12
Id. Ecce Homo, O Nascimento da Tragédia, p. 63.

Leituras de Zaratustra 111


A partir deste ponto, podemos nos adiantar em “O canto de dança”. Ao
embrenhar-se na escuridão, Zaratustra assume as diversas formas do mundo,
validadas pelas verdades e pelos valores reconhecidos pela maioria dos ho-
mens. Porém, com seus fiéis e raros seguidores, dispõe-se à procura de fontes
sempiternas do despertar de mundos, guardadas e protegidas por sombras
benfazejas, que salvaguardam um ininterrupto vicejar da vida, envolvendo-o
em suas penumbras, contra o espírito de vingança.
Ora, Zaratustra reconhece que traz a escuridão em si mesmo sob a forma
de um espírito de gravidade, que ele mesmo identifica com o Diabo, reco-
nhecido por todos os homens como o verdadeiro “senhor do mundo”. Neste
sentido, ele encerra em si todo o peso do mundo.
Embrenhando-se em uma floresta com seus seguidores, ele avista don-
zelas a dançar, e diz a elas: “Eu sou uma floresta, sem dúvida, e uma noite
de árvores escuras; mas quem não teme minha escuridão, encontra também
roseirais, debaixo dos meus ciprestes”13. Poderíamos compreender que Zara-
tustra se refere aqui a sua vigorosa vontade que jorra como a luz no seio da
escuridão. O peso das verdades do mundo que Zaratustra carrega consigo, na
condição de homem entre outros homens, não o impede de associar-se à dan-
ça. Se ele mesmo ainda não pode dançar com as jovens, mas apenas entoar o
louvor à dança, ele as apresenta à divindade inocente, livre, sedutora e gracio-
sa do amor (Cupido – o correspondente de Eros, em grego), como seu parceiro.
O que perscruta Zaratustra na dança que se desenrola? A vida, e mais do
que isto, o caráter imperscrutável da vida. A vida, que seduz Zaratustra como
dança de divinas donzelas cuja companhia é o amor; a vida, que “é uma isca
com que as mais velhas carpas ainda se deixam fisgar”; a vida, mutável, volun-
tariosa e selvagem como uma mulher sem virtude, a qual Zaratustra compara
sua sabedoria; vida que seduz sem que se saiba o que ela seja, e a que a sabe-
doria nada acrescenta a não ser a admissão de que ela é imperscrutável. Ele
não compreende plenamente por que a vida é bem-sucedida em aliciar todos
para si, como o mais venerado, o mais amado, o mais querido. É esta consta-
tação que fecha o capítulo “O canto de dança”, o que leva Zaratustra a dizer:
“Qualquer coisa desconhecida há a meu redor, olhando, pensativa”. Após as
donzelas terem se retirado, Zaratustra foi lançado novamente à noite, com-
preendendo tristemente que as questões que ele havia lançado à vida, foram,
por ela, devolvidas a ele, sem resposta, como uma terrível tentação da morte:
“Como? Ainda vives, Zaratustra? Por quê? Para onde? Onde? De que modo?

13
Id. Assim falou Zaratustra, p. 138.

112 Maria Cristina dos Santos de Souza


Não é loucura, viver ainda?”. Neste ponto, não podemos deixar de lembrar
a resposta do Sileno ao rei Midas, citado por Nietzsche em O nascimento da
tragédia, quando o último pergunta ao primeiro sobre o sentido da existência.
O Sileno responde a contragosto ao rei que antes os homens não tivessem
nascido, e já que nasceram, o melhor seria que logo morrerem.
Nesta altura, podemos, então, partir para “O canto do túmulo”. No início do
Canto, Zaratustra avista do mar a ilha dos túmulos, onde jaz sua juventude, o
frescor de sua vida, quando, então, esta reluzia como via de múltiplos caminhos
igualmente divinos e trilháveis. Zaratustra diz: “Assim, em boa hora, falou, nou-
tro tempo, a minha pureza: ‘Divinos deverão ser, para mim, todos os seres’”.14.
Para lá ele se conduz triste, como que para uma terra perdida, mas porta consi-
go “uma sempre verde coroa da vida”. Ele diz: “Ainda sou o mais rico e o mais
invejável – eu, o mais solitário dos solitários! Por que eu vos tive e vós ainda
me tendes. Dizei: para quem, como para mim, caíram da árvore tais sumarentos
frutos?”.15 Não poderíamos pensar que a juventude de Zaratustra representa os
vigorosos horizontes abertos ao mundo ainda em sua origem? Em seu levante?
Contudo, no meio do canto Zaratustra lamenta: “Noutro tempo, anelei por felizes
presságios: então, pusestes em meu caminho uma monstruosa e repelente coruja.
Ai de mim, para onde fugiu o meu anelo?”. Nesta queixa não estaria Zaratustra
aludindo à oposição erguida na origem do mundo entre a sedução de uma única
e consoladora verdade sobre a existência e a vontade de infinitos, seguramente
incertos, mas também florescentes horizontes? Para onde se retirou o anelo de
Zaratustra? O que ainda pulsa na nostalgia de Zaratustra? Ele mesmo nos indi-
ca a resposta: “Sim, qualquer coisa invulnerável e que não pode tumular-se há
em mim, qualquer coisa que fende rochas: chama-se a minha vontade [mein Wille].
Silenciosa e inalterada, procede através dos anos”.16 Como, entretanto, perma-
neceu inalterada a vontade (Wille) de Zaratustra lançada, ainda que resguardada,
no destino do mundo que chega a sua consecução? No capítulo seguinte, “Do
superar a si mesmo”, Zaratustra volta a falar aos mais sábios e novamente nos dá
uma preciosa indicação: “‘Vontade de conhecer a verdade’ chamais vós, os mais
sábios dentre os sábios, àquilo que vos impele e inflama?”.17
Nietzsche nos conduz, então, ao cerne da “vontade de verdade” (Wille zur
Wahrheit) por meio das palavras de Zaratustra aos famosos sábios: “Quereis,
primeiro, tornar todo existente possível de ser pensado: assim chamo eu à vossa

14
Ibid., p. 141.
15
Ibid., p. 140.
16
Ibid., p. 143.
17
Ibid.

Leituras de Zaratustra 113


vontade! [...] Mas ele deve submeter-se e dobrar-se a vós! Assim quer a vossa
vontade. Liso, deve tornar-se, e súdito do espírito, como seu espelho e reflexo”.
18
A palavra que o termo “tornar” traduz do original alemão, colocado em itálico
por Nietzsche, é machen, que podemos traduzir também precisamente pelo ver-
bo “fazer”. Além deste verbo, Nietzsche usa sich fügen (submeter-se) e sich biegen
(dobrar-se). Estes verbos nos sugerem o caráter de vontade de poder incutido
nas ações dos famosos sábios: fazer, submeter, dobrar. Os valores de bem e de
mal, as apreciações valorativas tecidas sobre o existente, supostamente embasa-
das no conhecimento sobre ele, assumiram a forma de um mundo, na medida
em que foram impostas como as únicas e válidas representações de mundo.
Com estas representações, o que se busca é nivelar todo o existente à fra-
queza. No povo é incutida a ideia de que a luta deve ser travada contra o exis-
tente. Segundo a famosa sabedoria, toda verdade é verdade sobre o existente,
a qual ele deve ser convertido, como à sua redenção, sua negação. O existente
deve ser subjugado por valores. Ele deve ser desejado no que não existe, em
sua ideia, em sua verdade, em seu conceito. Entretanto, poderíamos pergun-
tar: como pode ser justificado o temor relativo ao existente? Por que ele ainda
pode representar um perigo sob a forma de um conceito insípido? Na vontade
de poder que nele está investida.
Zaratustra reconhece a vontade de poder na forma da vontade de verdade,
negadora de si mesma, que move a sabedoria dos instintos mais baixos, a
tábua dos valores de bem e de mal, a partir dos quais a existência é avaliada.
Assim, ainda que a vontade de verdade se disfarce em vontade de nada, não
pode negar-se como vontade, pois como poderia investir o nada, negando sua
natureza anelante? Nisto reside seu próprio risco. Zaratustra, dirigindo-se ao
famoso sábio, o adverte: “E tu também, que buscas o conhecimento, és apenas
uma senda e uma pegada da minha vontade; em verdade, a minha vontade de
poder caminha com os pés da tua vontade de conhecer a verdade!”.
Para dobrar e submeter a vida, o sábio se vale de valores forjados, produtos
de uma avaliação sobre a existência, ainda que os critérios sejam buscados em
níveis inferiores. O que no existente pode avaliar a própria vida? Certamente
não a própria vida. Em si mesma ela é desprovida de critérios de valor. A vida,
e a morte, seu fim, são condições nas quais está mergulhado todo existente.
Então, o que existe quer sempre mais do que a vida mesma. Mesmo os que
anelam a vida eterna, os negadores da vida, pois esta só pode ser concebida
enquanto em parceria com seu perecimento, querem mais do que ela. Podemos

18
Ibid.

114 Maria Cristina dos Santos de Souza


contar, para nos esclarecer a este respeito, com as palavras de Zaratustra: “Mui-
tas coisas o ser vivo avalia mais alto do que a própria vida; mas, através mesmo
da avaliação, o que fala é – a vontade de poder!”19 Os valores morais confecciona-
dos pelos conhecedores da vida são anunciados como imperecíveis, entretanto,
seu único foco de perenidade é a vontade de poder que neles pulsa e os arrasta à
destruição. Zaratustra adverte: “Colocastes a vossa vontade e os vossos valores
no rio do devir; uma velha vontade de poder revela-me aquilo em que o povo
acredita como sendo o bem e o mal”.20 Mesmo que a tábua de valores seja dis-
posta contra a vida, pela força da vontade de poder ela corre perigo, e conduz
a sua própria superação, “um poder mais forte, uma nova superação nasce dos
vossos valores: faz ela romperem-se o ovo e a casca do ovo”.21
No capítulo “Dos seres sublimes”, Zaratustra anuncia a superação da vida
e a de seus valores. O que deve ser superado é a casca que envolve o germe
do novo nascimento. Entretanto, ao romper-se a casca, qual forma assumirá o
novo ser? Da casca do ovo emerge o ser superado que superou a si mesmo des-
truindo, a partir de dentro, os próprios limites. O ser que superou a si mesmo
ainda não pode assumir a aparência do novo ser, pois ele ainda não superou
sua própria ação, a de superação. Zaratustra ressalta a feiura, a ferocidade cul-
tivada por tanta espera, a tez ainda tensa, seu aspecto maltrapilho deste novo
nascido, e diz: “tempo demais permaneceu na sombra, o penitente do espírito,
e suas faces tornaram-se pálidas; quase morreu de fome nesta espera”.22
A grandeza da obra de superação de si encobre, por ora, a aparência divina
do tão esperado. Não obstante a luta não ser mais necessária, ele traz as mar-
cas da conquista usurpada. Falta a ele superar a contradição constitutiva do
movimento de superação de si. Seu último golpe deve ser desferido contra a
necessidade de toda ação em vista da contemplação. Ele brilha sobretudo por
sua grandeza, mas deveria brilhar por sua beleza. Zaratustra diz: “Sim, ó ser
sublime, ainda, algum dia, deverás ser bonito e segurar o espelho diante da
tua beleza”.23 O ser sublime, mas não belo ainda, traz em sua alma e em seu
corpo as marcas da luta contra si mesmo; mas, ainda, precisa travar a luta con-
tra seu espírito opositor. Ainda busca a elevação pela superação do que há de
mais baixo, mas deverá defrontar-se com a própria superação como ato puro
e contemplá-la. Da luta deve poder assumir apenas a sua forma, seu brilho.

19
Ibid., p. 146.
20
Ibid., p. 144.
21
Ibid., p. 146.
22
Ibid., p. 148.
23
Ibid., p. 149.

Leituras de Zaratustra 115


A vontade de poder deve, por meio de sua aparência, poder contemplar-se
em si mesma e não apenas no que ela quer ou no que ela quer submeter. Ela
quer a si mesma, inteira e assumida em sua forma: sem atos, sem objeto, sem
resistências, mas em uma individuação perfeita. Zaratustra arremata: “É este,
com efeito, o segredo da alma: somente depois que o herói a deixou, dela se
acerca, em sonho – o super-herói. Apenas no super-herói reside a esperança
de um novo mundo”.
Para melhor descrever a aparência desse ser vindouro, pensamos que po-
demos nos valer da descrição do deus Apolo encontrada em A visão dionisíaca
do mundo:

Ele é o “aparente” por completo: o deus do sol e da luz na raiz mais pro-
funda, o deus que se revela no brilho. A “beleza” é seu elemento: eterna
juventude o acompanha. [...] aquela delimitação comedida, aquela liberda-
de distante das agitações mais selvagens, aquela sabedoria e calma do deus
escultor. Seu olho precisa ser “solarmente” calmo: mesmo que se encole-
rize e olhe com arrelia, jaz sobre ele a consagração da bela aparência”.24

A partir do ocaso do mundo, do Ocidente, que é também o seu, Zaratustra


anuncia um novo levante, como o sol lhe ensinara, durante os dez anos em
que ele permaneceu na montanha: a vontade pode, ao mesmo tempo, reali-
zar-se no ciclo ininterrupto de nascimento e de perecimento dos mundos e
contemplar-se como movimento perfeito em si mesmo.

Referências Bibliográficas

NIETZSCHE, F. “Also sprach Zarathustra I-IV”. In: Kritische Studienausgabe. Berlin:


de Gruyter, 1988.
______. Assim falou Zaratustra. 15. ed. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Edi-
tora Civilização Brasileira, 2006 .
______. Ecce homo – como alguém se torna o que é. Trad. de Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
______. A visão dionisíaca do mundo. Trad. de Marcos Sinésio P. Fernandes e Maria
Cristina dos S. de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner. Trad. de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das letras, 1999.

24
Id. A visão dionisíaca do mundo, cap. 1, p. 7-8.

116 Maria Cristina dos Santos de Souza


Análise de “Da virtude amesquinhadora”
e de “A festa do burro”

Kelly Stenzel P. de Souza


Eduardo Guerreiro B. Losso

Introdução

Abordaremos dois discursos de Assim falou Zaratustra – “Da virtude ames-


quinhadora”, na terceira parte, e “A festa do burro”, na quarta parte – para
focar a severa crítica de Nietzsche à modernidade e aos alemães, crítica que
fundamenta-se em outros de seus livros, em especial em Além do bem e do
mal, com o qual cotejaremos. Mostraremos então, pelos olhos de Nietzsche, o
retrato do povo, os “últimos homens”, e de tipos sofisticados que se sobres-
saem na sociedade: os “homens superiores”. Analisaremos a expectativa de
Zaratustra ao deparar-se com a realidade acerca de seu povo e sua esperança
na possibilidade de encontrar ali “companheiros” no caminho da transvalora-
ção advinda de sua compaixão pelos homens – este, o seu derradeiro pecado.

O último homem

Em “Da virtude amesquinhadora”, Zaratustra, após muitas viagens e pes-


quisas, retorna à sua terra natal para saber “o que, nesse meio tempo, se dera
com o ser humano: se ele se tornara maior ou menor”1. Os conterrâneos de
Zaratustra representam os contemporâneos de Nietzsche, ou seja, o homem
moderno, mais especificamente, o alemão que, no livro, Zaratustra reencontra
com surpresa e decepção.
Ao chegar, Zaratustra nota que haviam sido construídas umas casas tão
pequenas que até pareciam de brinquedo, onde só podiam habitar “bonecas de

1
ZA, III, §1, p.175.

Leituras de Zaratustra 117


seda ou criaturinhas gulosas”,2 porém, varões e homens da espécie de Zaratustra
necessitavam abaixar-se para nelas entrar. Ele constata que tudo está menor neste
ínterim e se pergunta: “Oh, quando poderei voltar à minha terra [Heimat] sem
mais precisar abaixar-me – abaixar-me diante dos pequenos!”.3
Neste discurso Nietzsche descreve este povinho como sendo de criaturinhas
frágeis, fracas, acomodadas, sentimentais e cansadas, modestas e mansas. Trata-
-se de pessoas doentes e contagiosas, usam os dedos, porém não sabem usar os
punhos. São bonecas de seda, criaturinhas pequenas, moscas, piolhos, mancos,
e não tem varonilidade. Segundo Nietzsche, este é o retrato do homem moder-
no que cultiva um estilo de vida regrado, disciplinado, direcionado para a vida
prática; trabalha em nome do progresso que proporcionará bem-estar, conforto e
tranquilidade para uma longa vida saudável, pacata, serena, pacífica e controlada.
Eles constituem uma sociedade civilizada, bem comportada, na qual as pessoas
moderadas e satisfeitas sentem-se protegidas, aconchegadas e consoladas. O bom
comportamento de todos e o bom funcionamento de tudo são conquistados me-
diante a ordem, a regularidade, a uniformidade, a moderação e a sensatez: tudo o
que Nietzsche despreza. Observa-se que o povo já é um tipo, um tipo coletivo que
caracteriza um fenômeno moderno. No interior de um ambiente bíblico, reconhe-
cemos, imediatamente, o tipo social pequeno-burguês que predomina na atuali-
dade. A dissonância histórica entre um e outro produz ressonâncias filosóficas.
Este homem tem muitas facetas. Sua obsessão pelo progresso os faz rígi-
dos e metódicos, com seu “compasso e ritmo de tique-taque”.4 Poupam-se de
todos os esforços, para não se cansarem ainda mais, e desejam que o progresso
da ciência e da sociedade traga-lhes conforto e segurança. São ainda mais bai-
xos e fracos do que os religiosos. Estes pretendem usar todas as suas forças
para controlar sua vontade, isto é, ainda possuem a potência da vontade, ainda
que sob controle. O homem moderno, no entanto, tem uma vontade morta,
não sabe mais querer, pois sua doutrina da felicidade e da virtude impõe o mesmo
desejo a todos os homens: “a maioria é apenas meio do querer de outrem.
Alguns são autênticos, mas a maioria é de maus atores”.5 Desta forma, o que,
nos seres pequenos, sobrevive da religiosidade, só contribui para enfraquecê-
-los ainda mais, pois no seu caso são sentimentos falsos e hipócritas, tais
como: a bondade, a compaixão e a resignação. Até suas virtudes são pequenas
e mesquinhas, e sua felicidade é “felicidade de moscas”. Tudo isso deixou-os

2
Ibid.
3
Ibid.
4
Ibid., p. 176.
5
Ibid.

118 Kelly Stenzel P. de Souza e Eduardo Guerreiro B. Losso


estéreis e doentes. Temem os “ventos fortes”, tossem: “eu ouço nela somente
sua rouquidão – pois qualquer corrente de ar os enrouquece”.6 Virtude, para
eles, é tudo o que torna o homem manso e modesto e, desta forma, transforma
o homem “no melhor animal doméstico do homem”. Se os socialistas se espan-
tam com a dominação do homem pelo homem por meio do trabalho, Nietzsche
enfoca o aspecto disciplinar, que vai ser posteriormente desenvolvido por Fou-
cault. Tamanha fraqueza, mansidão e pequenez, segundo Nietzsche, promoveu
a emancipação feminina, pois obrigou as mulheres a masculinizarem-se.7
Este homem, também designado pelo filósofo como o “homem bom”,
tornou-se o senhor de sua época, apesar de ter, seguindo a moral cristã, per-
sonalidade de servo.
Com relação a este povo moderno, principalmente o alemão, Jörg Sala-
quarda faz um bom apanhado, em seu artigo “Zaratustra e o Asno”, acerca da
posição de Nietzsche a esse respeito:

No Quinto Livro da Gaia ciência, o filósofo descreve o processo em cujo


decorrer se desenvolveu a entronização progressiva do “homem bom”,
a entronização do tipo homem que, assim como o fraco e inofensivo,
deixa o rebanho tranquilo e cuja imposição definitiva significaria o sur-
gimento do “último homem”. [...] mas somente a Revolução Francesa
passou o cetro completa e solenemente ao “homem bom” (ao cordeiro,
ao asno, à gansa, a tudo o que é incuravelmente superficial e espalhafa-
toso e a tudo o que está maduro para o hospício das “ideias modernas”.8

O trecho corrobora, nesse sentido, a seguinte passagem:

É que, hoje, os pequenos homens do povinho tornaram-se os senhores;


pregam todos a resignação e a desinibição e a cordura e a consideração
pelos outros e o longo etcétera das pequenas virtudes.
O que é de natureza feminina, o que provém da condição servil e, especialmen-
te, a mixórdia plebeia: isso, agora, quer tornar-se o senhor de todo o destino
humano. Oh, nojo! nojo! nojo!9

A repulsa aristocrática de Nietzsche quer separar o que deve e o que não


deve dominar, o que mereceria ocupar o tempo de todos, formar indivíduos
fortes, e o que só existe para diminuir e fragilizar o caráter.

6
Ibid., p. 177.
7
BM, §239, p.129.
8
SALAQUARDA, 2005, p.183.
9
ZA, IV, “Do homem superior”, §3, p.288.

Leituras de Zaratustra 119


A morte de Deus

Na quarta parte, em “O mais feio dos homens”, enquanto procura por um ho-
mem que grita por socorro, Zaratustra encontra num vale tenebroso uma criatura
inominável e tão repugnante que o fez sentir-se envergonhado por vê-la. Zaratus-
tra a reconhece como o mais feio dos homens: o assassino de Deus. Zaratustra acusa-
-o: “Não suportaste aquele que te via – que te via sempre e até o mais fundo do teu
ser, ó tu, o mais feio dos homens! Tiraste vingança contra essa testemunha!”.10
O mais feio dos homens é uma alegoria que representa, em primeiro lugar,
o último homem, o homem moderno que, como vimos anteriormente, ape-
quena a humanidade, reduz ao mínimo a potência humana. Este homem ama
a si mesmo, é orgulhoso de suas conquistas e quer acreditar que construiu um
mundo melhor com sua ciência. Mas, no fundo de sua alma, ele esconde uma
grande vergonha e toda a fealdade, sujeira e pobreza de seu espírito.
O assassino de Deus concorda com Zaratustra e confessa que o homem não
poderia deixar viver uma testemunha que “via, com olhos que viam tudo – via
as profundezas e o âmago do homem, toda a sua oculta vergonha e fealdade”.11
Declarou que este Deus precisava morrer, caso contrário, o homem não su-
portaria viver. Deus morreu, ironicamente, por causa de sua compaixão pelos
homens, o seu assassino operou a passagem ao ato por causa da repulsa por
si mesmo. Os dois motivos do assassinato não condizem com a envergadura
do feito. O mais estranho é o fato de que Zaratustra também tem nojo não
só deste personagem, como também da “mixórdia plebeia”; porém, Deus não
sente abjeção por nada. Sua falta de “pudor”12 se torna, também, um fator de
domesticação, por um lado, e tortura afetiva, por outro.
O assassinato de Deus representa um ato grandioso do qual o homem não
era digno. Porém, este homem, o último dos homens, o menor homem, conse-
guiu alterar a história da humanidade de forma irreversível, sendo a morte de
Deus o grande rompimento com a história anterior e o ápice de seu reinado.
Como confessou o mais feio dos homens: “Devasto e torno intransitável todo
o caminho em que piso”.13 Também o louco na praça, no famoso aforismo 125
de A gaia ciência, afirma que todos os que nascerem após este ato pertencerão
à outra história. Antes e depois de Cristo, antes e depois do assassinato: a

10
ZA, IV, p.266.
11
Ibid., p. 268.
12
Ibid.
13
Ibid., p. 267.

120 Kelly Stenzel P. de Souza e Eduardo Guerreiro B. Losso


semelhança de importância do messias cristão com o antimessias niilista é
considerável.
Em segundo lugar, o mais feio dos homens representa o homem superior.
O homem superior pertence a esta mesma sociedade: é também um homem
moderno e pequeno, porém, ele não é satisfeito, não aceita esta realidade,
não pode conviver nem consigo mesmo. Ele despreza a plebe e acusa-a de não
respeitar a grande desgraça, fealdade e malogro. Ele, ao contrário, reconhece
sua feiura, e sente tanto desprezo por si mesmo que se refugiou no ermo vale
e desejava mesmo ir ter com Zaratustra em busca de um consolo. Zaratus-
tra também reconheceu nele este seu grande desprezo: “Ainda não encontrei
ninguém que tão profundamente se desprezasse a si mesmo: isto também é
elevação. [...] Amo os grandes desprezadores”.14 Ao contrário da compaixão
de Deus, o autodesprezo contém um potencial de superação; entretanto, falta
a ele a segunda e definitiva passagem ao ato: saltar o abismo do niilismo.

O homem superior

Os homens superiores representam o homem moderno europeu, assim


como o último homem; porém, trata-se de um outro tipo, justamente por não
ter se acomodado como os outros. Ele não aceitou este estilo de vida burguês.
Ele sofre dos mesmos sintomas que o último homem – o niilismo –, mas tem
uma certa consciência disso que o faz angustiar-se de forma insuportável em
suas fraquezas, doenças e grande miséria.
Os homens superiores são: o adivinho, anunciador do grande cansaço; o
rei da direita e o rei da esquerda, que traziam um burro e fugiam dos “bons cos-
tumes” e da “boa sociedade” em busca de um homem mais elevado do que
eles para reinar na Terra; o homem consciencioso do espírito, cientista a quem os
meios-termos do espírito repugnam; o velho feiticeiro, um artista, trapaceiro
e vaidoso que enfeitiçou a todos, mas cansou-se de si mesmo e procura por
alguém honesto; o último papa, que, sem ofício e sem senhor após a morte de
Deus, busca o mais piedoso dos homens; o mais feio dos homens, o maior des-
prezador de si mesmo; o mendigo voluntário, que, constatando que os ricos de
hoje são plebe revestida de ouro, largou sua riqueza e fugiu para o meio dos
pobres, que não o aceitaram; e o viandante e sombra, que seguia Zaratustra e
muitas coisas aprendeu, mas agora nada mais lhe importa, não há nada que ele
ame e nunca encontrou seu lar. Zaratustra diz, a respeito deste último, que ele

14
Ibid., p. 269.

Leituras de Zaratustra 121


perdeu o caminho e corre grande perigo, pois neste momento está vulnerável
a qualquer fé ou ilusão, a qualquer coisa que seja acanhada e firme. Zaratustra
estava certo, como veremos adiante, porém, todos os homens superiores esta-
vam nesta mesma situação.
Todos estes são homens do grande desprezo, da grande náusea, do grande
anseio, do grande tédio, e por isso, Zaratustra os ama e tem neles esperança.
Contrário ao niilismo do povo, eles representam um niilismo que contém em si
uma saudável insatisfação. Eles representam aqueles que não sabem viver nos
dias de hoje, que não aprenderam a resignação, “os que não querem viver, salvo
se aprendam de novo a ter esperança – salvo se aprendam de ti, ó Zaratustra, a
grande esperança!”.15 Na quarta parte do livro, eles vêm à floresta de Zaratustra
clamando por ele. Zaratustra, recolhido em sua caverna já há muitos anos, é
induzido a ir em seu auxílio, incorrendo no derradeiro pecado a ele reservado:
a compaixão pelos homens (justamente o que levou Deus à morte). Convidou
cada um destes homens desesperados à sua caverna. Lá esclareceu que não es-
perava por eles, mas por homens ainda melhores, mais fortes, elevados e vito-
riosos do que eles: seus filhos, em quem deposita sua mais alta esperança. Mas,
logo em seguida, em “Do homem superior”, Zaratustra lhes fez um discurso.
No aforismo 125 de A gaia ciência, o homem louco chega à praça gritando
por Deus, e todos riem e troçam dele, até que ele declara que Deus está mor-
to e que “Nós o matamos – vós e eu!”.16 Da mesma forma, Zaratustra relata aos
homens superiores, neste discurso, sua experiência no início de sua jornada
(Prólogo), quando desce da montanha à procura dos homens e chega à praça
com seu discurso acerca da vinda do super-homem, e todos riem e caçoam dele.
Zaratustra adverte seus hóspedes: “na praça do mercado, ninguém acredita em
homens superiores”,17 pois acreditam que todos os homens são iguais perante
Deus. Mas, afirma Zaratustra, agora que Deus morreu, o perigo se foi, e, en-
tão, tornou-se possível aos homens superiores renascerem, diferenciarem-se da
plebe, tornarem-se os novos senhores, superando os pequenos homens e suas
pequenas virtudes, que representam o maior perigo para o super-homem.
Este povinho quer conservar o homem, mas o homem deve ser supera-
do. Diz Zaratustra: “Deus morreu; nós queremos, agora, que o super-homem
viva”.18 Estes homens superiores são pontes por sobre as quais passará gente
superior a eles. O futuro do homem corre através deles. Zaratustra afirma que,

15
ZA, IV, “A saudação”, p. 282.
16
GC, §125, p.134.
17
ZA, IV, “Do homem superior”, §1, p. 287.
18
Ibid., §2, p. 288.

122 Kelly Stenzel P. de Souza e Eduardo Guerreiro B. Losso


para isso, devem aprender a rir de si mesmos e para além de si, a apoiarem-se
em suas próprias pernas e a dançar; devem ter coragem, animosidade e olhar
o abismo com altivez.
Mas estes homens vieram a Zaratustra apenas para buscar refrigério, con-
solo e um bom ar para respirar. Como disse o feiticeiro, “esse Zaratustra, o
qual me parece, amiúde, semelhante a uma bela máscara de santo – Como um
novo e estranho disfarce em que se compraza o meu mau espírito, o melancó-
lico demônio”.19
Então, ao ouvi-los rindo e festejando alegremente, Zaratustra sente-se feliz
e vitorioso, pois, aparentemente, o espírito de gravidade, o pudor e a náusea
haviam deixado-os, e eles próprios tornaram-se seguros de si, sinal de que a
cura estava a caminho e de que, enfim, eram convalescentes.

A Festa do burro

Porém, ao adentrar a caverna, Zaratustra depara-se com um culto religioso.


Todos os homens superiores, devotos, rezavam ao burro e o louvavam. Com
relação à figura do burro nesta parte, temos duas pistas do próprio Nietzsche.
Salaquarda e Henning Ottniann afirmam que “o burro não se refere a
Apuleio,20 mas à festa do burro: festa medieval do louco, dos bobos (feast of
fools)”.21 Referem-se também a uma carta de Nietzsche a seu amigo Gersdorff,
em 9 de maio de 1885 – a primeira pista. Nela, Nietzsche conta que acabara
de postar no correio um exemplar do quarto livro de seu Zaratustra para ele,
e outros dois para Overbeck e Köselitz. No fim da carta, lhe diz que “um belo
trecho sobre um velho mistério caiu sobre mim”, e cita duas linhas do Conduc-
tus ad tabulam, de Sens: “Adventavit Asinus / Pulcher et fortissimus” (“Chegou o
asno / Belo e muito forte”).
Estes versos fazem parte de uma cantiga latina que era cantada nestas Festas
do Burro medievais, mais tarde incorporada nas cerimônias da Festa dos Bo-
bos. Estas festas foram realizadas em vários países da Europa. Segundo Sharon

19
ZA, IV, “O canto da melancolia”, §2, p. 299.
20
Lucius Apuleius, escritor latino (Madaura, atual Argélia, c. 125 – Cartago, c. 180). Estudou em Roma
e Atenas. Casado com uma viúva rica, foi acusado pelos parentes de sua esposa de haver utilizado
magia para obter seu amor. Defendeu-se através de uma célebre apologia, que se conservou até nossos
dias. Sua obra mais famosa é Metamorphoseon Libri XI (Onze livros de metamorfose), mais conhecida
como O asno de ouro.
21
OTTNIANN, 2000, p. 62.

Leituras de Zaratustra 123


Turner, que escreveu a respeito das que ocorreram na Inglaterra, as festas do
burro medievais eram celebradas no dia do nascimento de Jesus e duravam dois
dias. Um burro era adornado ricamente e solenemente conduzido em procissão
até as portas da catedral enquanto um coro cantava diversos hinos – o princi-
pal deles sendo o Conductus ad tabulam, de Sens – em sua homenagem, e todos
dançavam e cantavam ao seu redor imitando seus zurros. Estas festas foram
categoricamente proibidas, sob as penas mais severas, pelo Conselho da Basileia
de 1431, pois ridicularizavam e desmoralizavam a igreja, uma vez que os sacer-
dotes participavam ativamente das celebrações.22
A segunda pista Nietzsche nos dá ao citar este mesmo trecho do Conductus
ad tabulam, também no aforismo 8 de Além do bem e do mal, livro que escreveu
logo após terminar a quarta parte de Assim falou Zaratustra:

Em toda filosofia há um ponto no qual a “convicção” do filósofo entra em


cena: ou para falar na linguagem de um antigo mistério:
“Adventavit asinus
pulcher et fortissimus”
[Chegou o asno
belo e muito forte]23

Ressalta, dessa associação, mais um dado importante: a adoração ao burro,


que inspirou Nietzsche a compor essa passagem, lembra, por sua vez, o episó-
dio do bezerro de ouro24 como uma paródia ao antigo testamento. Segundo a
Bíblia,, Moisés se ausentara há vários dias e o povo, sentindo-se abandonado
e perdido, pediu a Arão que lhes apresentasse um deus a quem pudessem
seguir, na falta de Moisés. Ao regressar, Moisés, tal qual Zaratustra, depara-
-se com uma festa que o povo celebrava ao novo deus, o bezerro de ouro, e,
possesso, castiga-o e ensina-lhe que Deus é irrepresentável.
O acontecimento bíblico está implícito na fala do Papa na caverna, quando
ele diz:

Aquele que disse ‘Deus é um espírito’ – foi quem deu na terra, até agora, o
maior passo, o maior salto no rumo da descrença; não é fácil remediar tal
palavra, na terra!.25

22
TURNER, 1830, p. 113-114.
23
BM, §8, p.14.
24
Êxodo, 32.
25
ZA, IV, “A festa do burro”, §1, p.314.

124 Kelly Stenzel P. de Souza e Eduardo Guerreiro B. Losso


Ele se refere a Moisés, que, precisamente neste episódio do bezerro de
ouro, é quem, ao afirmar que Deus é irrepresentável, marca o momento em
que o judaísmo se afasta do politeísmo e instaura a transcendência divina na
teologia. Nietzsche, com toda a sua ironia, neste episódio da Festa do Burro,
se utiliza, para afirmar a imanência, de uma narrativa semelhante àquela que o
judaísmo usou, no episódio do bezerro de ouro, para afirmar a transcendência.
A fala do Papa sobre o “maior passo rumo à descrença” nos leva a refletir
sobre a proibição das imagens, que é a maior abstração possível no momento
histórico do Êxodo. Ela é o princípio da transcendência e é um dos fatores que
marcam o início do pensamento ocidental, que levará ao niilismo. Ou seja,
a existência na transcendência é uma existência além da existência, por isso
ela nega todo o existente. O povo sente dificuldade em sustentar algo para
além das imagens, ainda com essa radical abstração – como “Disse o Senhor a
Moisés: Tenho observado este povo, e eis que é povo de dura cerviz”26 –, quer
dizer, é uma proposta muito racional para um povo. O princípio de abstração
é o princípio da razão: razão leva à dúvida, posteriormente, à descrença (nii-
lismo). Então, algo fora do existente não ia durar muito tempo neste mundo.
Podemos dizer que o princípio da transcendência contém, em si, seu fim.
Sendo assim, a morte de Deus representa a negação da transcendência, é a
transcendência negando a ela mesma e, a partir deste momento, não há mais
transcendência.
Não há como não relacionar a descoberta de Nietzsche, que foi a fonte da
festa do burro de Zaratustra, com o bezerro de ouro do capítulo 32 do Êxodo,
em que o povo adora uma imagem e não o espírito transcendente divino, que
não se pode apreender pelos sentidos. Impõe-se a seguinte correlação: mesmo
os homens superiores recaem nas fraquezas do povo, isto é, mesmo eles alie-
nam-se no culto das imagens. O aforismo 269 de Além do bem e do mal analisa a
necessidade de “a multidão, os homens cultos, os entusiastas” manifestarem
uma “grande veneração” pelos “grandes homens”, que são levados ao extre-
mo de adorar um deus, “e o ‘deus’ era um pobre animal de sacrifício!”27. Este
trecho ecoa o aforismo 55, em que o instinto de crueldade religiosa chega ao
ponto, nos tempos modernos, de “sacrificar Deus ao nada”.28 Quando a ne-
cessidade de veneração, ligada à incapacidade de sustentar sua própria força
frente à negatividade, é somada ao instinto de crueldade contra si mesmo (em

26
Exo 32:9.
27
BM, p.167.
28
BM, p.54.

Leituras de Zaratustra 125


termos freudianos, uma sorte de masoquismo moral), a negatividade trans-
cendente é transformada em negação niilista.
A proibição judaica das imagens (Bildverbot), princípio básico da abstração,
da negatividade transcendente, a qual o povo não consegue assimilar, é aqui
alegoria para a negatividade do perspectivismo nietzschiano, que a inverte,
valorizando o corpo e a imanência. Enquanto todos procuram adorar alguma
coisa (justificando o receio de Zaratustra com relação ao viandante) e não su-
portam a escuridão do abismo niilista, chegando ao ponto de recair na alegria
vulgar, Zaratustra mantém sua alegria solitária em meio ao silêncio de locais
ermos. Porém, tal nova ascese é uma antiascese tradicional: Nietzsche quer
valorizar a sensibilidade, mas sem resvalar no gozo fácil da multidão; trata-se
de um aprimoramento fino, aristocrático, dos sentidos e dos instintos, que ob-
jetiva o aperfeiçoamento da afirmação da vida. Porém, os homens superiores
preferem não apenas sacrificar o Deus transcendente como também a chance
de trabalhar com Zaratustra para a superação do homem, em nome de adorar
o burro e sua fácil afirmação de qualquer coisa.
O homem superior tem as mesmas inquietações de Nietzsche: não aceita
esse mundo moderno, concorda ser este o pior dos mundos, mas está buscan-
do a resposta no lugar errado (“O essencial neles não é que desejem ir para
trás, mas que desejem ir embora. Um pouco mais de força, impulso, ânimo,
senso artístico: e desejariam ir para além – não para trás! –”).29 Mas este “re-
trocesso” os faz regredir ao povo hebreu, que disse a Arão: “Faze-nos um deus
que marche à nossa frente”.
Zaratustra decepciona-se ao perceber que, embora sejam grandes despre-
zadores, falta-lhes animosidade, coragem para dar o último (e mais difícil)
passo. Percebe que, embora eles não possam viver neste mundo, também não
podem ajudar a construir outro. Não é ao acaso que tornam a cair em ten-
tações mesquinhas. Entre a insatisfação e a recaída, nada acontece de novo.
Compreende que estão em um entre-lugar e que lá permanecerão.
No entanto, Zaratustra não fica aborrecido. Ao contrário, declara que passa
a gostar ainda mais deles, agora que estão felizes. Constata que a invenção
de tal festa é um sinal de sua convalescência, pois aquele povinho medíocre
é estéril, e “só os convalescentes sabem inventar tais coisas!”.30 Mais curio-
samente, Zaratustra pede-lhes: “E se voltardes a celebrá-la, esta festa do bur-
ro, fazei-o por amor de vós, fazei-o, também, por amor de mim. E em minha

29
BM, §10, p.16.
30
ZA, IV, “A festa do burro”, §3, p.317.

126 Kelly Stenzel P. de Souza e Eduardo Guerreiro B. Losso


memória!”,31 remetendo-nos, inevitavelmente, a Jesus na Santa Ceia que, ao
dar aos discípulos seu corpo e sangue em forma de pão e vinho, lhes diz: “fazei
isto em memória de mim”.32
Podemos dizer que a festa do burro é um presente – involuntário – de
Zaratustra aos homens superiores, o substituto do presente que ele desejava
dar aos homens, no prólogo, quando descia de sua montanha ensinando-lhes
o amor à terra, ao corpo e à vida, pois, no discurso seguinte, o mais feio dos
homens faz uma emocionante declaração:

Só por causa do dia de hoje – estou contente, pela primeira vez, de ter vivi-
do a vida toda. [...] Vale a pena viver na terra: um só dia, uma só festa com
Zaratustra ensinaram-me a amar a terra.
“Era isso – a vida?” – hei de dizer à morte. “Pois muito bem! Outra vez!”’33

Conclusão

A narrativa fabulada por Nietzsche da relação entre Zaratustra e os per-


sonagens-chave por ele criados – o último homem, o mais feio dos homens, e
os homens superiores – apresenta, a partir de um modelo estilístico bíblico,
a descrição, avaliação, apreciação e crítica de Nietzsche a fenômenos centrais
da sociedade moderna do século XIX.
Os personagens do livro, com exceção do protagonismo de Zaratustra, são
representações típicas de modos de vida da época “decadente” do pensador.
O mais feio dos homens encarna o típico burguês envergonhado, que co-
meteu o ato mais heroico por motivos indignos e com objetivos desprezíveis.
A grandeza de seu ato não corresponde à pequenez de seus propósitos e à
mediocridade de sua visão de mundo.
Zaratustra, em meio a essa legião de fracassados, é um herói cuja tragé-
dia está no fato de ele ser profundamente solitário por ser essencialmente
atípico.

31
Ibidem.
32
1Coríntios 11:24.
33
ZA, IV, “O canto ébrio”, §1, p.318.

Leituras de Zaratustra 127


Referências Bibliográficas

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128 Kelly Stenzel P. de Souza e Eduardo Guerreiro B. Losso


Zaratustra: os renegantes e a falta de fé
na não existência de Deus

Marcelo de Carvalho

Partiremos da morte de Deus para investigar, no capítulo “Os renegados”,1


um fenômeno que se revela como sua consequência direta, ou seja, a volta à
devoção, considerada como metáfora da recusa ou rejeição diante da tarefa de
autossuperação, sentido áureo do conceito nietzschiano de vontade de poder.

Foi ainda lá que recolhi, no caminho, a palavra “super-homem” e a con-


vicção de que o homem é algo que deve ser superado. De que o homem é
uma ponte e não um ponto de chegada e que lhe cabe dizer-se feliz do seu
meio-dia e crepúsculo como caminho para novas auroras [...]eu amo os que
não desejam conservar-se. De todo o coração, amo os que estão no ocaso:
por que vão (a) caminho (em direção) do outro lado.2

Antes de referir-nos aos itens anunciados, vamos traçar, nas palavras do


filósofo, as coordenadas do drama cósmico da morte do divino. Em A gaia ci-
ência (§125), um louco, empunhando uma lanterna, põe-se em busca de Deus,
em pleno dia, no mercado. Caracterizado em modo quase profético, ele traz a
notícia do assassinato de Deus por parte dos homens, tragédia que toma ime-
diatamente, como afirmamos, a dimensão de um drama cósmico, de uma in-
versão da ordem natural, tamanha a sua grandeza: a humanidade deicida bebeu
o mar, apagou o horizonte com uma esponja e desatou a terra do sol, que ago-
ra cai em toda direção, vagando no vácuo infinito. Perderam-se os parâmetros
de localização: não existem mais “em cima” e “embaixo”. Assassinos incon-
soláveis, convém aos homens prepararem-se para a iminente manifestação da
praga bíblica do fedor de um Deus podre, porque irremediavelmente morto e,
portanto, putrefato. Tal ato, incomensurável em relação a qualquer preceden-
te, transforma a própria história, elevando-a tanto que só será reconhecível

1
Assim falou Zaratustra, parte III.
2
Z, p.204/206.

Leituras de Zaratustra 129


por gerações futuras. É um acontecimento irreconhecível para os contemporâ-
neos do louco, o que assinala a intempestividade de sua fala. Verifica-se aí outra
analogia bíblica: como todo bom profeta, o homem louco também reconhece
o gap kairológico em que se encontra o evento narrado. Veio cedo demais, ainda
não é seu tempo. O evento está a caminho, mas, apesar disto, a humanidade
ainda não o percebeu. E, assim, do mercado, o louco dirige-se a várias igrejas,
qualificadas como mausoléus e túmulos de Deus.
O aforismo anterior,3 ao descrever o horizonte infinito que descortina-se
da abertura do mar – cuja experiência relaciona-se, intimamente, com o acon-
tecimento da morte de Deus, como pode ser verificado no aforismo 343 da
mesma obra –, caracteriza a situação paradoxal daqueles então impossibilita-
dos de retornar a qualquer terra firme, isto é, qualquer solo seguro para a sus-
tentação de suas existências. “Deixamos a terra firme e embarcamos! Queima-
mos a ponte [...] cortamos todo laço com a terra”.4 Mesmo que o oceano não
esteja em tormenta, ele é infinito, e, neste contexto, infinitude assinala o mais
temível. O perigo é sentir saudades da Terra (como Grund/fundamento), pois
já não há mais nenhuma terra para a qual regressar.
Com o advento da morte de Deus, o mar que se abre revela um tipo sin-
gular de infinitude no mesmo instante em que perde seu ilusório substrato
absoluto. Desmorona a metafísica pródiga de fundamentos e, com ela, eviden-
temente, tudo aquilo que ela sustentava. A razão disto pode ser encontrada no
aforismo 343 (GC). Neste texto, a morte de Deus é identificada com a descré-
dito no Deus cristão, o que gera o colapso em “toda a nossa moral europeia”.5
Trata-se, portanto, de uma experiência dúplice. Por um lado, a morte de Deus
assinala a supressão dos esteios metafísicos sustentadores da compreensão
ocidental de mundo. Deus, neste sentido, identifica-se com uma instância on-
tológica “em si”, isto é, absoluta, que funciona como fundamento último da
totalidade. Por outro lado, o Deus cristão suprimido identifica-se com a fonte
de sentido realizador da existência humana. À medida que este sentido, mesmo
que diferenciadamente, transpassou a história do Ocidente, legitimando práti-
cas e justificando ações, sua morte é o colapso da “moral europeia”, o que abre
as portas para a assunção do niilismo como a experiência da nadificação dos
valores e sentidos justificadores da existência. A crise da metafísica, mesmo
tornando patente o niilismo, abre o mundo para uma “nova infinitude”.6 A

3
GC, §124.
4
Ibid., p.147.
5
Ibid., §343.
6
Cf, GC, §374, p.278-279.

130 Marcelo de Carvalho


infinitude não mais será caracterizada como um atributo divino, por oposição
à finitude das criaturas. Infinitude é o modo de aparição do mundo fora de
toda avaliação metafísica do mesmo. O mundo que se abre, sem fundamentos
últimos, aparece em seu aspecto abissal. Isto o marca com o selo da infinitude,
enquanto qualidade que o caracteriza.
Esse é o evento/discurso pressuposto pela figura de Zaratustra, em seu
aspecto decisivo e irremediável.7 Desancoramo-nos dos valores metafísicos
(gregos-judaicos-cristãos), sem a possibilidade de voltar atrás, ao encontro de
qualquer instância absoluta. A morte de Deus é irremediável, a não ser que
aqueles que pretendem rejeitá-la, paradoxalmente, passem a adorar burros
que dizem sim8 ou a venerar, na ciência, reflexos da verdade absoluta. Vamos
considerar, então, os renegados9 como aqueles que renegam a morte de Deus e,
portanto, preferimos usar o termo em sua forma ativa: renegantes, e não rene-
gados, visto que, sem sofrer nenhuma rejeição, são eles mesmos que rejeitam
a morte de Deus.
A ciência mascara a negação do horizonte infinito mencionado, tentando
reencontrar alguma certeza, algum saber absoluto que justifique a realidade.
Inúteis tentativas de voltar ao substrato ilusório, inautêntico e, sobretudo,
superado.10 O que era firme dissolveu-se e ficou para trás, sem deixar rastros
que não sejam vãos simbolismos ou simples metáforas. Por isso, “aqueles que
renegam” vivem à noite, na escuridão, sem poder voltar à uma terra que já
não existe mais.
Iludidos, os renegantes representam uma mera ficção do Ocidente. Um de-
sejo de retroceder, causado pelo pânico do nada, do vazio, da total falta de
fundamento (Abgrund, abismo) focalizado pelo diagnóstico do filósofo italiano
Severino, ao comentar a afirmação nietzscheana de que o remédio cogitado
pelo Ocidente para o mal do devir (na rigorosa hipostatização do absoluto
eterno e imutável) foi pior do que a própria doença que pretendia curar, pois
encerra o fluxo do real no imobilismo das múmias (egipcismo). Severino vê no
pensamento aristotélico a afirmação de que a filosofia nasceria do terror provo-
cado pelo senso de imprevisto causado à vida pelo devir. Portanto, conhecendo
as causas do devir, a filosofia forneceria remédio contra a dor ou terror da
vida, ao substituí-los pelo sentido de uma fundamentação estável da realidade.

7
Z, Prólogo, 2.
8
Ibid., IV, p.311-314.
9
Ibid., III.
10
Cf. GC, §344.

Leituras de Zaratustra 131


Como contemplação das causas do devir, a filosofia libertaria a humanidade da
degradação contínua da existência, razão pela qual o filósofo grego afirma que
“só os filósofos poderiam ser felizes”. Outro remédio ocidental contra o terror
causado pelo devir da vida encontra-se na redução técnico científica da experi-
ência. Seguindo a análise de Severino, o mito, visto como explicação unitária
dos eventos do mundo, também funcionaria como remédio contra o terror do
imprevisível. O mito, porém, não sendo conhecimento verdadeiro (mas sim
fabuloso) das causas dos eventos naturais, não nos oferece mais do que um
remédio incerto. Somente o “conhecimento verdadeiro, epistêmico, da origem
e do sentido do mundo” – o que equivale a dizer: somente a verdade (episteme)
constitui remédio efetivo contra as dores derivadas do devir mundano. O pa-
radoxo, neste caso, instaura-se ao notarmos que o conhecimento verdadeiro
constitui-se remédio para a doença da vida, no mesmo instante em que revela
o devir (doença) como lei da realidade, sob o cruel aspecto de perene “sair e
retornar ao nada por parte das coisas do mundo”.11
O aforismo 343 de A gaia ciência descreve o motivo – ou a razão do medo – que
faz retroceder aqueles que, inicialmente, pareciam corajosos desbravadores do
mundo novo, do mar aberto, que os faz retroceder à adoração fictícia de pseudo-
valores absolutos, representados pela ciência e pelo burro que diz sim (assinalado
por Jörg Salaquarda como figura alegórica da estupidez e da falta de esprit do povo
alemão, da inércia e rigidez de espírito dos europeus): “uma iminente sequência
de ruptura, declínio, destruição, cataclismo [...] uma lógica de horrores”, que pa-
rece não ter encontrado outro “profeta do eclipse e do ensombrecimento solar”
que a divulgue, fora Zaratustra, que tenta carregar-se com tal fardo.

[...] mas sim uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento,
encorajamento, aurora... De fato, nós filósofos e “espíritos livres”, ante a
notícia de que “o velho Deus morreu”, nos sentimos como iluminados por
uma nova aurora: nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressen-
timento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre [...]
enfim nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo,
novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o
mar, o nosso mar está novamente aberto e, provavelmente, nunca houve
tanto “mar aberto”. 12

Mantendo a temática da morte de Deus como eixo dinâmico da narrativa


zaratustriana, nossa atenção converge para uma vasta configuração tipológica

11
In: SEVERINO, E.: La filosofia contemporânea. p.7/16.
12
GC: p.234.

132 Marcelo de Carvalho


da figura denominada homem superior, nossa personagem principal, aqui em
sua faceta renegante, como aquele que renega e retrocede diante do mar que
se abre.
Eugen Fink, em A filosofia de Nietzsche,13 sintetiza as diversas manifestações
desta figura central. Por enquanto, nos bastará recolher algumas indicações
para retomarmos este autor mais à frente. Segundo Fink, o homem superior é
“o homem do grande desgosto, que já não pode viver no meio das lamúrias
dos pequenos homens importunos, que não encontram nenhuma satisfação na
existência moderna afastada do Deus que ela abandonou”. Sabe da morte de
Deus, despreza o “existir inautêntico”, assinala Fink, mas ainda não realizou
o grande salto em direção à autenticidade de uma existência renovada na assun-
ção do devir como elemento essencial da existência, sem o amparo da noção
ilusória de uma substância infinita e eterna, substituto metafísico da causa
concreta das coisas, causa da realidade. São todos alienados e desesperados
pela falta de ousadia e coragem para deixarem-se metamorfosear na novidade
profetizada por Zaratustra. Por isso, clamam por ele como exemplo e antídoto
contra o espírito de vingança, revolta contra a dor de uma vida limitada, contra
o homem ocidental (europeu), doente de si mesmo.14 Zaratustra representa
aquele que, afirmando o fim do absoluto, supera o sofrimento pela assunção
da própria contingência, “sobrevive à morte de Deus”, vence o desespero na
afirmação de uma vida original que tem suas raízes no riso sagrado, na dança
dionisíaca (“aprendei a rir de vós próprios e a dançar como uma estrela”) e no
alegre saber da vontade de poder e do eterno retorno, conhecimento que funda o
conceito de além do homem.
A figura do homem superior encerra em si uma notável ambiguidade: colo-
cando-se entre dois mundos, no intermezzo, é o cidadão da ruptura que não
sabe viver a vida de “hoje” (contemporaneidade) e, por isso mesmo, é admi-
rado pelo mestre do devir. Representa a ponte para aquilo que deve vir depois
dele. É só “o degrau, o começo provisório”. Além disto, este homem é superior
somente se comparado ao homem comum, do qual se distingue, cativando
com isto mesmo a admiração e o respeito de Zaratustra, visto que resulta in-
completo e decadente quando considerado polaridade do além do homem. Outro
aspecto que confirma a valência decisiva da figura do homem superior é o fato de
representar a última grande tentação ou pecado que ameaça Zaratustra, para
quem a compaixão pelas angústias do homem superior representaria o risco da

13
Fink, A filosofia de Nietzsche, p. 123-127.
14
FOGEL, G. Lendo da visão e do enigma, p.83/114.

Leituras de Zaratustra 133


decadência. Quando uma existência se degrada, devemos deixá-la exaurir-se
para que algo novo possa surgir de sua dissolução. Para Fink, estas perso-
nagens são figuras de Zaratustra, que com eles compartilha um sofrimento
comum. São sombras, possibilidades de sua alma que saberá, porém, em con-
clusão, superar a armadilha encerrada no sentimento vulgar da compaixão – o
retroceder – atingindo sua efetiva maioridade na total entrega à própria obra.
Como se pode depreender da parte IV de Assim falou Zaratustra, todas as
figuras do homem superior são metáforas do medo da novidade, da situação de
impasse diante da incapacidade de superação de si mesmo, em direção ao além
do homem. Mesmo se o desejo de projetar-se para além de si, não mais em
termos metafísicos, mas, em consonância com o contínuo embate de forças
que constituem o real, continua operante na humanidade, o tremendo vazio
deixado pelo desaparecimento de Deus, eterno e infinito – forma moderna de
horror vacui – desnorteia as figuras que gritam desesperadas na floresta. Este
medo impede a metamorfose, a definitiva liberação do fantasma de um Deus
morto. Freia a transformação e a conversão da existência ao si mesmo. O ho-
mem superior deve tornar-se o Abgrund que, em si, é, aprendendo a viver na
ausência do Absoluto. O medo os mantém alijados de qualquer autenticidade,
inseridos numa vida decadente que desprezam e da qual fogem. As diversas
formas de recuar, temendo, diante da transfiguração exigida pela morte de
Deus, são diferentes nomes assumidos pela figura do homem superior que ainda
não soube construir para si um modus vivendi que aceite a perda do seu senti-
do absoluto. Todas as formas de existência superior são desdobramentos da
mesma “promessa frustrada”, ou seja, da afirmação de uma nova humanidade
valente e ousada o bastante para substituir o vício de projetar-se, como essên-
cia, para além de si mesmo, pelo desejo de resolver-se no embate das forças
presentes que constituem o real, tornando-se, desse modo, aquilo que se é.
Essas considerações podem ser compreendidas à luz da ideia de vontade
de poder tematizada explicitamente por Zaratustra no capítulo “Do superar si
mesmo”.15 O que se compreende por vontade de poder pode ser depreendido
mediante dois aspectos centrais deste conceito: a autossuperação e o coman-
do estruturador da pluralidade. Vontade de poder não é desejo de controle. À
medida que Deus morre e o “em si” é suprimido, o devir se manifesta como o
traço essencial de um mundo organizado por meio do embate de uma miríade
de elementos distintos, que Nietzsche chamará de forças. Do embate desta
pluralidade, a singularização dos seres passa a se estabelecer pela hierarqui-
zação desta diversidade de elementos, por ação do comando de um deles. Por

15
Cf. Z, II, p.126-129.

134 Marcelo de Carvalho


isso Zaratustra, ao tematizar o corpo enquanto estruturação relativa da mirí-
ade de forças, diz: ”o corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um
único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor”.16 Corpo,
nome para a estrutura una e complexa dos elementos distintos em relação
conflitiva, formado por um princípio organizador e sintetizador dos demais.
Por isso, ele é a grande razão. À medida que o mundo sem Deus não possui
razões eternas, a racionalidade que assinala o sentido da realidade é conquis-
tada pela organização hierárquica de um conjunto de elementos diversos em
devir. Sem a relação entre pastor e rebanho, a singularidade vital dos seres é
inviabilizada. Por outro lado, esta mesma dinâmica, enriquecendo de novos
elementos a capacidade de configuração desta força hierarquizadora, continu-
amente a conduz aos caminhos da autossuperação. À medida que o devir não
cessa com a hierarquização do múltiplo, quanto mais elementos entrarem na
existência de um singular, mais ele eleva o poder do princípio que define uma
singularidade. Neste sentido, a vontade de poder aparece como a dinâmica de
geração de unidade e autossuperação do vivente. Ela diz respeito à dinâmica
agonística das forças e à estrutura hierárquica do todo. Por isso, cada vivente
está imerso sempre no devir das forças e tem, como tarefa, assumi-lo para
elevar seu próprio poder de realização, que o torna singular.
Agora, superando a individualidade, o panorama é o nada absoluto, o as-
sustador vazio total, que faz a espécie dos homens superiores tremer, lançando-se
na incógnita de uma vida que não se deixaria mais determinar por princípios
absolutos e imutáveis. Vamos então buscar a especificidade deste temor ou
bloqueio, esperando que tal esclarecimento, uma vez alcançado, possa servir à
compreensão da inteira dinâmica subentendida na questão.
O capítulo “Dos renegados” apresenta o efeito mortificante que o retorno
à devoção tem sobre a própria paisagem: torna-se cinzento o que antes era
flórido. Os renegantes, que até a pouco entusiasmavam-se com a possibili-
dade do novo conhecimento, estão já cansados e acomodados, negam a pos-
sibilidade de se reconfigurar, englobando o devir das forças em suas malhas
vitais que competem por primazia no contínuo processo de criação do mundo
e do singular. Murcharam, tornaram-se velhos porque voltaram à devoção,
enganando-se deliberadamente, com hipóteses metafísicas ou propostas de
conhecimento absoluto, no total esquecimento da morte de Deus. O aforismo
344 de A Gaia Ciência discute a crença incondicional no valor absoluto da Ver-
dade, sobre a qual repousa a própria ciência: “nada é mais necessário do que
a Verdade”:

16
Z, I, p.51.

Leituras de Zaratustra 135


[...] nossa fé na ciência repousa ainda numa crença metafísica – que tam-
bém nós, que hoje buscamos o conhecimento, nós, ateus e antimetafísicos,
ainda tiramos nossa flama daquele fogo que uma fé milenária acendeu,
aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a verdade, de
que a verdade é divina... Mas como, [...] se o próprio Deus se revela como
a nossa mais longa mentira?17

Para Nietzsche, nada nos resta efetivamente do divino senão: o erro, a ce-
gueira e a mentira. Em tal modo torna-se mais complexo o movimento de volta à
devoção daqueles que anteviram a morte de Deus. Ao medo do mar aberto, como
horizonte para a afirmação de si e do mundo, fora do contexto de uma fundamen-
tação teológica do real, vemos agora adicionar-se a “vontade de verdade” como
instinto propulsor do conhecimento científico, vontade esta que é um tipo da
vontade de poder, porém, em dissonância com sua dinâmica de realização.
No prólogo 2, Zaratustra encontra-se com o eremita da floresta que, solitá-
rio, vive na adoração de seu Deus. Conversam e, logo, Zaratustra percebe que
deve afastar-se rapidamente, caso contrário, poderia tirar-lhe alguma coisa,
pois o velho santo ainda não tinha notícia de que Deus estava morto. Todo o
discurso de Zaratustra, como já assinalado, pressupõe a morte de Deus. Ele
parte disto. E, portanto, se Deus morreu, não há mais nenhuma transcendên-
cia que funde ou instaure a relação do homem com as coisas. Como vimos,
com a morte de Deus, experimenta-se a falta de qualquer poder absoluto de
determinação da existência. Não existe mais o em si das coisas ou do mundo.
O que resta é o conjunto das relações que criamos entre nós e com as coisas. É
a rede de forças que competem, integrando-se, para juntas constituírem tudo
aquilo que se dá no real. E tais relações se tornam o princípio a partir do qual
as coisas aparecem: a perspectiva, como conjunto das relações que nos consti-
tuem, determinando a possibilidade de que nós e as coisas apareçamos como
tais. Como fica evidente no aforismo 374 de A gaia ciência, surgimos somente
na perspectiva. Somos aquilo que aparecemos, nós e as coisas, dentro do com-
plexo de relações que nos constitui. Portanto, assumir esta experiência seria, a
nosso ver, a tarefa que mais assusta aos renegantes. Além do que aparece, nada
existe. Não se dá nenhum em si das coisas, nenhuma transcendência que dê
garantia sobre a estabilidade do real. A morte de Deus, suprimindo o absoluto
– o em si – perspectiva toda e qualquer realidade.
O capítulo que analisamos inicia com a descrição do espírito de inovação,
o ímpeto de conhecimento da realidade – após a supressão do em si – que,

17
GC, p.236.

136 Marcelo de Carvalho


inicialmente, tomava conta dos jovens corações. É o mesmo panorama post
mortem Deus, no qual vimos afirmar-se a imagem do mar aberto18 que, ca-
racterizando-se pela supressão do princípio absoluto, abre à humanidade um
novo horizonte infinito de compreensão do real. Nos encontramos diante de
um “monstruoso mundo desconhecido”.19 Por isso, os renegantes renegam e
voltam atrás. Desse modo, a condição necessária para ingressar no horizonte
descortinado é a coragem de elaborar, ex novo, princípios de reestruturação
da realidade sem recurso a pressuposições transcendentes. Tarefa árdua. Mas
qual a lógica de constituição deste horizonte que se abre? Como proceder na
interpretação do real a partir do “mar aberto”? O texto informa que os rene-
gantes saíam de manhã cedo, o que qualifica a aurora como gênese de uma
nova interpretação, com pés valentes (do conhecimento), que, porém, logo se
cansam. As imagens, que traduzem a mudança que precede o recuo, definem
o caráter drástico do evento. Trata-se de uma desistência, de uma rendição.
Pés valentes se cansam, tornando-se caluniadores do valente conhecimento
de outrora. Dançarinos arrependidos curvam-se, rastejando para a cruz. Jo-
vens poetas livres e iluminados agora repousam na escuridão, ao lado de uma
estufa. Ouviram o anúncio de Zaratustra, mas foi em vão, visto que poucos
corações conseguem manter vivos a coragem e o entusiasmo. Todos os outros
são covardes, banais e supérfluos.
Focalizamos aqui um tipo de homem, que ouve o chamado profético e se
aventura em busca de uma configuração mundana diferente da tradicional
que, ao mesmo tempo, revela sua efetiva carência de fundamento com a
superação da metafísica. Mas logo retrocedem à devoção. Esta tipologia será
enriquecida por um aceno, que deve fazer-se breve, ao der Menschen-Schmerz,
homem-dor,20 metáfora histórica do homem ocidental, doente de seu pró-
prio destino de devir, mergulhado numa dor abissal e em revolta contra a im-
potência em reformar e corrigir sua vida efêmera. Assim, Zaratustra-homem
ocidental afunda inerte na melancolia e faz-se escuta interior de seu destino
de dor: recolhimento e rendição, exposição total à dor, que o tornam “corpo”
como singularidade vital. A viagem/história do Zaratustra (viandante) é este
destino, solidário com aqueles para os quais “viver é muito perigoso”. Será
a intensidade desta escuta que libertará seu discurso. Torna-se assim mais
complexa a situação limite do homem superior que tomamos como tema de
estudo.

18
Ibid., 124.
19
Ibid., §374.
20
FOGEL, G. Lendo da visão e do enigma.

Leituras de Zaratustra 137


Na verdade, os renegantes não ousam aprofundar-se no novo conhecimen-
to. Acovardam-se, por temor da novidade, renunciam à dura luta até aqui
descrita, e voltam à devoção. Por cansaço, deixam de penetrar no mar aberto
das infinitas possibilidades de reinterpretação do fato vital que impõe como
condição uma nova solução para a integração do binômio ser–devir.
A volta à devoção troca a entidade, mas conserva a especificidade de seu
topos originário, de modo que, como vimos, o aforismo 344 de A gaia ciên-
cia (“Ainda somos devotos”) põe em questão o “lugar ontológico” ocupado,
desde sempre, pela divindade. O mesmo Deus reveste-se de uma nova más-
cara. A ciência revela-se, então, propícia à preservação do sentido de um
ente infinito, no que concerne a sua inabalável crença na existência de um
sentido absoluto da verdade. A crença nas hipóteses formuladas integra o
procedimento científico, mesmo se, ao serem confirmadas, hipóteses viram
evidências, tornando, por isso mesmo, obsoleta a própria crença inicial. O
que move o espírito científico é um certo tipo de existência, aquele que se
deixa orientar por uma crença na verdade enquanto fundamento absoluto
do mundo.
O que busca quem faz ciência?, perguntaria Nietzsche. Buscam a verdade.
Portanto, o filósofo assinala a crença na verdade como principal característica
da ciência de sua época. Ainda existe ali o lugar do absoluto, ocupado pela
verdade. Ainda existe crença em algo imutavelmente dado, algo que não é
fruto das relações instauradas pela dinâmica vital. A verdade enquanto tal é
um dado absoluto, um fato em si. Ao mesmo tempo, a crença na verdade cientí-
fica como dado a-relacional, absoluto, instaura uma pressuposição moral, nos
moldes do seguinte raciocínio: a crença na verdade orienta toda existência,
logo, o engano ou ilusão é coisa má, enquanto a verdade, o dado em si, seria
o bem. Surge nesta indagação o diagnóstico de um temperamento existencial
dominante no procedimento científico, chamado de vontade de verdade, modu-
lação da existência que encontra justificativa neste recurso à verdade, ao co-
nhecimento científico como configuração de um mundo de coisas totalmente
confiáveis e positivas, ou seja, como saber absoluto.
Sem Deus, o em si se reduz a algo ilusório. Sem um substrato último como
fundamento, tudo é ilusão. Agora, tudo encontra explicação como resultado
da hierarquia das forças, o que significa dizer que tudo é perspectiva. A rea-
lidade é este contínuo processo de configuração da existência, no qual não se
dá jamais nenhuma estabilidade originária. Neste fluxo de afirmação e de-
molição, a vontade de verdade, vista anteriormente, busca um eixo fixo que
proporcione a estabilização da existência instável.

138 Marcelo de Carvalho


Alcançamos aqui o cerne de nossa proposta interpretativa, ao percebermos
que, diante do mar aberto com a morte de Deus, os renegantes, os homens supe-
riores apelam novamente à estabilidade e confiança, que acabavam de perder
no momento da dissolução da divindade. O homem renegante ocidental, so-
brevivente à morte de Deus, não consegue formular um novo conhecimento
ontológico que sustente a existência, a sua própria e a do mundo, sem recorrer
à tradicional estabilidade última e fundamental. Queremos a estabilidade a
qualquer custo. A ciência reinscreve no mundo uma nova versão metafísica
que resgata o Deus morto. Com tal subterfúgio estratégico, a civilização mo-
derna suprime a dor pela corrosão causada pelo devir. Tenta suprimir o terror
pela absolutização do devir que decorreria da hipótese de um Deus, definiti-
vamente, morto.21
Fundamental à questão que nos propomos analisar, da recuada do sujeito
diante da imponente tarefa decorrente do fim da metafísica, é o tema, central
em Nietzsche, do processo de singularização dos entes. A questão da con-
quista do próprio (Selbst), que traz consigo a transvaloração do devir, que não
é mais somente aniquilação, mas vem a ser resgatado enquanto elemento ne-
cessário ao processo de geração da singularidade, necessário à constituição do
si próprio.; situação análoga àquela do artista que, aprofundando sua pesquisa
estética, muda de fase, transformando-se, ou suspende a produção por um
determinado período, colhendo do devir novos estímulos criativos. O terrível
escorrer do ente no nada torna-se, então, elemento necessário à potencializa-
ção da singularidade do artista.
Zaratustra aproveita a abertura do mar – horizonte semântico – como pos-
sibilidade de reconfiguração da realidade, fazendo da instabilidade da exis-
tência (devir) um estágio imprescindível à singularização dos viventes, o que
Nietzsche realiza valendo-se, instrumentalmente, dos conceitos cardinais de
vontade de potência e de eterno retorno, assim como da sua nada tradicio-
nal noção de valor como condição relativa de existência, possibilitadora da
autossuperação de cada singular. Assimilam-se, assim, outros princípios de
configuração da realidade que, em vez de fugir do devir, o assumem como
elemento necessário à dinâmica da realidade. É neste cenário que o renegante,
ao assumir o desafio, prova a própria impotência e volta atrás.
Segundo Nietzsche, a modernidade surge abalando antigos fundamentos
metafísicos, mas, num segundo momento, reconstitui o recurso ao eterno, ou
seja, a própria modernidade também faz parte do grupo dos renegantes, assim

21
Cf. GM, III.

Leituras de Zaratustra 139


como faria parte da tradição ocidental rejeitar sua efetiva situação de contin-
gência, insegurança e incerteza, mascarando-a com nuances absolutas.
Zaratustra, portanto, inicia o capítulo confessando o engano que o vitimou
ao considerar certos homens capazes de adentrar no novo horizonte da morte
de Deus. Na realidade, o tempo ainda não teria manifestado sua dimensão de
kairós transformador. O profeta do além do homem será o único a tornar-se
mestre do eterno retorno, conquistando uma efetiva singularização para si
próprio. Todas as outras figuras voltam atrás. O autor afirma, então, que, para
aqueles da sua mesma espécie, a vida será aventura. Mas a espécie de Zara-
tustra é formada, paradoxalmente, por um só indivíduo, ele mesmo: “nessas
primaveras [...] não deverá acreditar quem conhece a lábil e covarde espécie
humana”.22 Se o mar abriu-se, viver passa a significar busca por outros princí-
pios de reconfiguração da totalidade que ainda não estão dados e que, portan-
to, mais do que buscados, devem ser criados na ousadia da assunção do devir
como direção necessária à realização de nossas individualidades.
Vemos, assim, configurar-se, de modo cada vez mais claro, o processo para
o qual os homens superiores voltam suas costas. Temos já tantas sugestões
do porquê o fazem. Agora começamos a compreender também qual o proces-
so que eles rejeitam, voltando atrás. Eles rejeitam este contínuo e delicado
processo de configuração da realidade e, nela, da própria identidade. A vida
é um processo de autossuperação. É esta tarefa que lhes desperta cansaço,
medo ou comodismo. Eles não ousam aventurar-se à conquista da valoração
não metafísica da própria existência. Renunciam a esta tarefa que exige árduo
esforço e sabedoria para superar diversos perigos. É o “demônio” de cada um
que, mirando à vida cômoda, nos sugere a existência de um Deus, diz o autor,
apelando a uma paradoxal inversão.
Pode-se compreender a crítica nietzschiana aos renegantes por meio de
uma rápida alusão à sua compreensão da compaixão. Nietzsche opõe-se
à ideia religiosa de compaixão à medida que revalorizou a positividade do
devir: Deixe que as flores murchem. Não há nisso nada a lamentar... deixe
consumar-se aquilo que não deve ser preservado. Sua deterioração é neces-
sária para transformar-se na afirmação de outrem. Segundo a seção 7 de O
anticristo, a compaixão tem como objetivo conservar o que está maduro para
o desaparecimento”,23 o que inviabiliza a possibilidade de transfiguração vital
de um tipo em degeneração. Se Zaratustra fosse compassivo com os renegan-

22
Z, p.186.
23
AC, §7, p.13.

140 Marcelo de Carvalho


tes, não viabilizaria a possibilidade de superação de um tipo vital covarde e
decadente. O devir representa, para os tipos em degeneração, a fonte de uma
aniquilação necessária para a sua metamorfose vital.
Antes de renegar a árdua tarefa de refundação da própria existência e da
vida como um todo, sem recorrer a ilusões metafísicas, os homens superiores
ousaram aventurar-se no mar aberto até optarem, definitivamente, pela volta
à devoção, concebendo o novo deus da ciência como vontade de verdade, no
processo de conhecimento do real. Para entrar no mar aberto, é preciso ser
corajoso o bastante para deixar-se transfigurar na busca por outro princípio de
determinação que não seja o ente perfeitíssimo e eterno da tradição filosófica
e religiosa ocidental. Até aqui, nosso profeta permanece o único que ousou pe-
netrar nesta vida outra, em solidão e sem Deus, na tentativa de formular uma
justificação da existência não mais sob bases transcendentes ou escatológicas,
mas sim estéticas, na consideração da vida como uma forma permanente de
criação do seu próprio principium individuationis. A vida como uma obra de arte
surge como válida alternativa à morte do fundamento do Ocidente. Significa,
para cada um, ocupar-se, constantemente, com a reconfiguração do ser que
lhe é próprio, no âmbito do embate de forças que constituem a rede perene de
integração e dissolução do real, sem nenhuma instância de transcendência. A
fundamental tarefa da existência é a conquista da individuação que seja conso-
ante com o ambíguo e instável movimento deveniente do real. Tornar-se o além
do homem significaria, então, instaurar-se, sustentando-se numa “estabilidade
nunca estável”.
Vimos claramente o aforismo 344 (GC) opor-se à possibilidade de uma
fundamentação última da realidade: a ciência rompe com fabulações metafí-
sicas da realidade, formulando uma objeção lógica que desmoraliza a neces-
sidade de crença nas hipóteses doutrinárias que parece dominar o processo
científico, pois, ao demonstrarem-se verdadeiras, visto que são fundamenta-
das na teoria, não há mais necessidade de crença. Caso contrário, a polêmica
se resolve ainda mais facilmente, pois seria absurdo acreditar numa hipótese
que se demonstrou falsa. A ciência representa, portanto, a ruptura da crença.
Mesmo se, ambiguamente, sugere a questão metafísica como pressuposto me-
todológico da ciência, que é a crença na verdade, no formato seguinte: acredi-
tamos que exista uma verdade e que seja possível alcançá-la.
Permanece ativa, na atitude científica diante do mundo, a pressuposição da
crença na verdade. A ciência é o meio pelo qual se dá a verdade. Ela pressupõe
a vontade de verdade, assim como o próprio ateísmo revela, em si, um duplo
pressuposto concernente à verdade, quando afirma verdadeira a não existên-

Leituras de Zaratustra 141


cia de Deus e o saber que Deus não existe. Deste ponto de vista, portanto, o
ateísmo torna-se crença na não existência de Deus. O ateu acredita que Deus
não exista. Assim, a negação ateísta de Deus, por paradoxal que seja, por
pressupor a vontade de verdade, reinscreve a presença de Deus (verdade, em si,
absoluta)
Porém, no caso de Nietzsche, o ateísmo não é um postulado teórico, mas a
consequência do imperativo histórico da morte de Deus. À medida que o em
si é inviável, Deus morre e o real passa a ser produto de múltiplas relações.
Tudo o que se dá na realidade é um dos múltiplos modos do configurar-se de
relações, nos quais cada elemento em questão impõe-se aos outros, tentando
submetê-los ao seu comando. Como já dito, o real traduz-se em configurações
instantâneas de forças, como vontade de poder.
Por isso, o ser é fruto de um modo de conquista de si mesmo por meio
da assunção do devir, como integração de novos elementos que nos deter-
minam essencialmente. Neste sentido, o que o Ocidente chamou de verdade
nada mais é do que uma instância ontológica situada para além do devir. Tal
perspectiva descaracteriza a vida, pois projeta para a existência um sentido
que se situa fora da própria existência. A verdade, portanto, seja sob o viés
do ateísmo teórico ou do teísmo, alimenta a despotencialização da vida dos
singulares.
Voltamos à pergunta genealógica nietzschiana, agora sobre o valor dos
valores. Ou seja, que tipo de singularidade é essa que instaura valores con-
soantes ou não à dinâmica da vontade de potência? Os valores metafísicos
cristãos condicionam um tipo de existência (de vontade de potência) fraca
porque o ente ou tipo de ser (o próprio) em questão não consegue assimilar o
devir como elemento para a configuração de si mesmo. Deve, portanto, alijar
o devir. Avaliar o valor significa avaliar que tipo de existência se configura, em
consonância ou não com a dinâmica da vontade de poder. Neste caso, a vonta-
de de verdade é um tipo de vontade de poder que, de certa forma, está contra
a determinação, em modo autêntico, de si mesmo.
Aqueles que agora estão cansados antes entraram no mar que se abriu com
a morte de Deus. Tinham assumido o desafio da busca por outros princípios
de determinação da realidade, mas enfraquecem, renegam o caminho aventu-
roso de uma vida sem absoluto, retrocedendo à devoção. São renegantes que
renunciam e voltam à adoração de Deus. A crença constitui-se justamente no
consentimento a alguma instância ontológica em si. Essa é a volta de Deus. Os
renegantes resgatam Deus porque acovardam-se e rejeitam a tarefa de refunda-
mentação não metafísica da existência.

142 Marcelo de Carvalho


A segunda parte do nosso capítulo apresenta uma tipologia mista de rene-
gantes, todos sublimando o enfrentamento do mar aberto na adoração de novos
absolutos, substitutos da ideia de Deus. O autor parece sugerir que aqueles que
retornam à devoção, à novas formas de devoção (máscaras do absoluto) seriam,
ao mesmo tempo, covardes em confessá-lo. Deus aparece de novo na Moderni-
dade, embutido nas várias formas do niilismo/Iluminismo europeu que libera
os últimos homens (homem moderno) dos pressupostos religiosos, restauran-
do, por outras vias, velhos ideais. São os inimigos da mensagem do Zaratustra.
Pensam ser evoluídos, mas são devotos sem coragem de confessá-lo.
A sentença de Nietzsche é impiedosa: “mas rezar é uma vergonha, para
quem tenha consciência”.24 É o projeto moderno da crítica kantiana aos fun-
damentos do real que torna essa entrega ao dado vergonhosa. A acusação é
dirigida contra toda uma época que não levou a sério sua proposta inicial.
Amedrontaram-se e recuaram, voltaram atrás arrependidos, renegando seu
próprio projeto. Agora querem rezar subrepticiamente, sem poder assumi-lo.
A modernidade assassinou Deus, como algo em si, separado das relações do
real e, sucessivamente, formulou subterfúgios para mantê-lo vivo, sob certas
máscaras. A realidade é um conjunto de relações em devir, como vimos, é von-
tade de potência, e a indagação genealógica nietzscheana (de onde provém tal
valor? Qual o valor destes valores?) revela que o em si nasce de um modo de
ser desta vontade de potência.
Então, Deus foi ressuscitado pelo tipo (configuração) de vontade de po-
tência que se diz cansado diante do esforço de recriar-se no horizonte de aber-
tura do mar: o tipo do cansado, que entra no mar e deve recriar a si mesmo
e a inteira realidade, transvalorando valores, ou seja, revelando a dinâmica
da vontade de potência como lugar de criação dos valores e, por isso mesmo,
pervertendo a visão metafísica de um ser em si, eterno e imutável. Os rene-
gantes recuaram porque não realizaram tal tarefa. Transvalorar é a tarefa que
surge junto à compreensão trágica da vida, geradora do tipo do além do homem,
o mesmo vivente que somos e que aprende a existir em consonância com a
dinâmica da vontade de potência, ou seja, instaurando, incessantemente, va-
lores necessários para a determinação constante de sua própria singularidade,
na crucial assunção do devir como elemento propulsor do processo que, per-
petuamente, constitui e recompõe a realidade.
Os covardes que recuam pelo medo de enfrentar o novo horizonte perten-
cem à espécie que teme a luz e que, por isso mesmo, vive à noite metendo a

24
Z, p.187.

Leituras de Zaratustra 143


cabeça na névoa. Aqui, a noite é o lugar do descanso, por ter superado o perigo
de entrar na nova via e ser tragada pela ausência de em si, de sentido, de fun-
damento. Rejeitaram a dificuldade da formulação de um princípio do real que
não se reduza à superada dicotomia metafísica. Agora descansam tranquilos,
na noite. Porém, nessa hora ninguém festeja. Falta alimento. Não há peixes.
Fora de Deus existe só o niilismo. E começam a caçar “beatos de alma sensí-
vel”, novos adeptos para formar novos rebanhos, nos quais se fortalecem pela
ausência de singularidade que não são capazes de constituir para si próprios.
Adquirem sentido só no comum, no geral, que não requer o esforço de singu-
larização do próprio de cada um.
Avançamos então a hipótese de que padeçam da falta de uma forte fé ateís-
ta, conforme o que dissemos anteriormente, capaz de instaurar, em seus fracos
corações de renunciantes, a força da crença na possibilidade de um modo de
vida derivante da radical convicção da não existência de Deus. Falta-lhes uma
nova fé, a saber, a fé que gera confiança e sentido em um mundo sem Deus.
Surgem, assim, sete modos de vida renegante, na noite, que são tipologias
dessa espécie de covardes notâmbulos, de fraca fé ateísta, que não conseguem
acreditar na vida inserida em contexto puramente contingente, sem um supor-
te absoluto. São eles:
1. Os que voltam a dizer “Oh, bom Deus”, como crianças.
2. Os que observam as aranhas dizerem: “Fazem-se boas teias, debaixo
das cruzes”.
3. Os que jogam seus caniços em pântanos onde não há peixes.
4. Os que aprendem a tocar harpa com poetas líricos.
5. Os que aprendem a arrepiar-se com sábios doidos, à espera de espíritos.
6. Os que escutam um velho gaiteiro tocar coisas tristes.
7. Os que se tornaram guardas noturnos e rondam despertando velhas
coisas.

Tais figuras tentam preservar suas existências decadentes despertando


velhas coisas adormecidas (metafísica), desesperadamente fugindo da tarefa
da transvaloração. São covardes que percebem que deus morreu, mas temem
viver sem ele. Tendo vislumbrado a morte de Deus, por covardia de encarar a
transvaloração, despertam velhas coisas. Basicamente, alimentam a volta do
passado metafísico em cinco discursos sobre velhas coisas:
1. Pais humanos preocupam-se mais com os filhos do que Deus.
2. Deus está velho demais.

144 Marcelo de Carvalho


3. Só ele mesmo poderia provar que tem filhos.
4. Deus nunca provou nada porque exige que acreditemos nele.
5. Como todos os velhos, Deus sente-se beato na fé.

É uma humanidade desiludida com o Deus dos cristãos. Prefere o huma-


nismo, mas continua devota. Não percebe a inutilidade da dúvida sobre Deus,
que já morreu. Insiste em duvidar de Deus (niilismo), mas conserva o lugar do
em si, porque não crê ser possível viver sem ele. Porque ainda tem fé em Deus,
apesar de ser teoricamente ateia. É o que faz a modernidade que, apesar de ser
crítica e cética sobre Deus, continua sob a sua sombra.25
A cena destes lamentos aflitos faz Zaratustra rir tanto que o coração lhe
cai no diafragma, apesar de os velhos deuses terem morrido ao ver um deles
proclamar-se único. Zaratustra ri porque, nele, o riso transfigura e destrói.
Mas os renunciantes não possuem a coragem deste riso e desta transfigura-
ção. Preferem viver cinicamente sob a presença da sombra de Deus, mesmo
sabendo que o mar se abriu porque Deus morreu. É que lhes falta outra fé,
a fé que permite entrever um sentido mesmo no mundo cujo próprio Deus
morreu.

Referências Bibliográficas

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Zarathustra di F. Nietzsche. Milano/Udine: Mimesis Filosofie, 2009.
FINK, Eugen. A filosofia de Nietzsche. Trad. de Joaquim Duarte Peixoto. Lisboa:
Presença, 1983.
FOGEL, Gilvan. Lendo “Da visão e do enigma”. Cadernos Nietzsche, São Paulo, GEN
(Grupo de estudos Nietzsche)., 2009.
JASPERS, Karl. Nietzsche: Introduction à sa philosophie. Paris: Gallimard, 1989.
(Collection Tel).
MARTON, Scarlett. Em busca do discípulo tão amado. Uma análise conceitual do
Prólogo de Assim falava Zaratustra. Revista Impulso, Piracicaba, v. 12, n. 28, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para nin-
guém. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
______. Also sprach Zarathustra / Ainsi parlait Zarathoustra. Paris: Aubier Flamma-
rion, 1969, 2 v.

25
Cf. G.C., §108.

Leituras de Zaratustra 145


______. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia da
letras, 2009.
______. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
______. O anticristo: maldição ao cristianismo e Ditirambos de Dionísio. Tradução
de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SALAQUARDA, Jörg. Zaratustra e o asno. Uma investigação sobre o papel do asno
na IV parte do Assim falava Zaratustra de Nietzsche. In: MARTON, Scarlett (org.).
Nietzsche na Alemanha. São Paulo: Discurso, 2005.
SEVERINO, Emanuele. La filosofia contemporanea. Milano: Rizzoli, 1986.
STEGMAIER, Werner. Antidoutrinas. Cena e doutrina em Assim falava Zaratustra
de Nietzsche. Cadernos Nietzsche, São Paulo: GEN (Grupo de estudos Nietzsche),
2009.

146 Marcelo de Carvalho


Zaratustra: cristão consumado

Alexandre Marques Cabral

1.

A história das interpretações da obra de Friedrich Nietzsche possui um tra-


ço notadamente ateísta e anticristão que não é fruto do acaso. A própria obra
nietzschiana fornece elementos que favorecem tal linha interpretativa. O fato de
Nietzsche ter se autointitulado imoralista, ter defendido o ateísmo como “segun-
da inocência”, ter sido crítico contundente da teologia cristã, além de ter sido ad-
versário da compreensão cristã de mundo dão ensejo às hipóteses hermenêuticas
que fazem de Nietzsche um ateu consumado, um descrente e ímpio. No entanto,
a base que sustenta tal compreensão da obra nietzschiana encontra-se, sobretudo,
na crítica empreendida por Nietzsche à visão metafísica de mundo, que, segundo
o seu entendimento, caracteriza-se por cindir o real em dois planos ontológicos
qualitativamente e axiologicamente distintos, além de opô-los de tal modo que
um destes matizes funcione como princípio estruturador do outro. Justamente
porque a metafísica sempre foi o esteio sustentador dos discursos ocidentais
acerca do sagrado e da teologia cristã, o embate nietzschiano contra a metafísica
abriu espaço para a compreensão ateísta e anticristã de sua obra. O problema é
que o pensamento de Nietzsche não se limita somente a empreender a dissolu-
ção do pensamento metafísico, mas caracteriza-se, sobretudo, por refundamentar
o pensamento a partir de bases não metafísicas. É justamente neste novo eixo
hermenêutico que Nietzsche reinscreve a experiência do sagrado nos interstícios
da dinâmica de realização do mundo. Tal experiência é aqui o primeiro objeto de
tematização em questão. Ela se dá, sobretudo, na discussão em torno da questão
do tempo, no capítulo “Da visão e do enigma” de Assim falou Zaratustra. À medida
que a fala do protagonista dá-se a partir do acontecimento da morte de Deus1

1
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, Prólogo, n. 2.

Leituras de Zaratustra 147


e da ideia de vontade de poder como ser de todo vivente,2 o presente texto,
para alcançar a proposta inicial almejada, vê-se compelido a elucidar tais ope-
rativos conceituais com o fito de esclarecer como a temática do sagrado está
presente na questão do eterno retorno do mesmo. A segunda questão a ser
abordada decorre diretamente da primeira, a saber, a consumação do ideário
cristão em Nietzsche, a partir da experiência da redenção em Assim falou Zara-
tustra. Porquanto a recaracterização do tempo é o pressuposto necessário para
repensar a redenção humana na obra nietzschiana, o conceito de redenção
presente no capítulo “Da redenção” de Assim falou Zaratustra, articulado com
o conceito de eterno retorno do mesmo, possibilita compreender a proposta
soteriológica zaratustriana como a consumação do cerne da mensagem cristã,
que centraliza-se na experiência mesma da redenção. Conquanto os pressu-
postos da redenção zaratustriana sejam outros que os da metafísica cristã, o
ideário cristão não só subsiste como se consuma em Assim falou Zaratustra. Se
isto é verdade, há, nessa obra, uma mensagem soteriológica evidente. Esclare-
cer a consumação da ideia de redenção cristã na obra de Nietzsche, a partir de
Assim falou Zaratustra, é, portanto, a proposta final deste texto.

2.

“Da visão e do enigma” começa narrando uma certa viagem que Zaratustra e
alguns tripulantes faziam em um navio. Este navio “vinha de longe e rumava para
mais longe”.3 Nele estavam “intrépidos buscadores e tentadores de mundos por
descobrir”.4 O que tais imagens significam pode ser esclarecido à medida que se
reconduza a fala de Zaratustra à sua experiência fundamental: a morte de Deus.
O próprio prólogo da obra mostra que a fala de seu protagonista se articula dire-
tamente com o acontecimento de que “Deus está morto”.5 Trata-se do lugar do
qual emergem a fala e o drama de Zaratustra. Este lugar aparece junto à imagem
do mar; é isto que está explícito no final do aforismo 343 de A gaia ciência, que
tematiza a ideia da morte de Deus:

De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o velho deus
morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora nosso coração
transborda de gratidão, espanto, pressentimentos, expectativa –, enfim, o ho-

2
Ibid., p. 143-147.
3
Ibid., p. 191.
4
Ibid.
5
Ibid., p. 35.

148 Alexandre Marques Cabral


rizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim nossos
barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é
permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar
está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”.6

A citação articula a abertura do mar com o acontecimento da morte de Deus.


Em um primeiro momento, poderia parecer que Nietzsche estaria postulando
“a abertura do mar” como consequência de alguma prova da inexistência de
Deus. Tal perspectiva é alijada na consideração nietzschiana da morte de Deus.
Esta não se relaciona com a racionalidade como instância capaz de atestar lo-
gicamente a inexistência de Deus como princípio religioso de justificação de
mundo. O aforismo citado começa dizendo que a morte de Deus dá-se justa-
mente com o fato de que “a crença no Deus cristão perdeu crédito”.7 Trata-se,
portanto, do fato de que, na modernidade, o “Deus cristão” não mais possui
força de persuasão na capacidade de conformação vital da totalidade dos viven-
tes humanos. O que Nietzsche entende por “Deus cristão” está em consonância
com a compreensão teológico-metafísica de Deus. Deus aí aparece sob duplo
aspecto. O primeiro se refere a uma certa região ontológica que ele ocupa, que
funciona primordialmente como índice primário de estruturação da totalidade
dos entes. Deus não é um ente entre os entes; ele é a causa eficiente dos entes,
ou seja, Deus é o único ente que, por prescindir de um outro ente como seu
fundamento estruturador, possui como atributo o adjetivo de criador. Disto se
depreende que a totalidade dos entes não somente é dependente de Deus, como
é estruturada hierarquicamente pelo próprio Deus. À medida que Deus se ma-
nifesta como destituído de potência passiva, no caso da compreensão tomista,
ele “existe necessariamente por si mesmo”,8 o que o faz ser simples, único e ab-
soluto. A especificidade da criatura, neste sentido, manifesta-se em seu caráter
plural, ontologicamente composta de ato e potência e suscetível à ação do devir.
Porquanto as criaturas não são autossuficientes, como já assinalado, elas depen-
dem do seu criador. O fato de o criador não se imiscuir essencialmente com o
devir faz do âmbito ontológico assumido por Deus um plano suprassensível e
transcendente. Destarte, o devir tem em Deus o seu esteio e sua justificação on-
tológica. Por outro lado, o “Deus cristão” não aparece somente como princípio
metafísico justificador do mundo; ele aparece sobretudo como aquele que exige
uma entrega existencial para a conformação da totalidade da existência huma-

6
NIETZSCHE, A Gaia Ciência, §343, p. 234.
7
Ibid., p. 233.
8
AQUINO, Compêndio de Teologia, 1977, p. 27.

Leituras de Zaratustra 149


na. Ele funciona portanto como sentido determinador da totalidade das ações
do homem, o que gera a necessidade de uma certa crença. A crença no “Deus
cristão” refere-se à entrega total da existência ao princípio ontológico configu-
rador do todo. Nesta confiabilidade, o homem é “apoderado pela potência do
ser-em-si”,9 o que possibilita à existência humana conformar-se de tal modo
que não seja corroída pelo poder niilizante do devir. Deus então aparece como
fornecedor de segurança existencial em meio à força do devir.
A abertura do mar presente como pressuposto da fala de Zaratustra acontece à
medida que a morte de Deus é assumida como oportunidade e lugar de conquista
de outro tipo de compreensão do modo de estruturação da totalidade dos se-
res e de conformação da existência humana. À medida que Deus morre, subtrai-
-se qualquer possibilidade de inferir-se um plano ontológico em-si como agente
justificador e estruturador do plano deveniente. Não há mais como dicotomizar
o real em instâncias ontológicas qualitativamente distintas. O mundo aparece,
então, fechado em si mesmo, sem instâncias metaempíricas que o justifiquem.
Dissolveram-se as oposições criador –criatura, corpo–alma, sensível–suprassen-
sível, transcendência–imanência. Em outras palavras: a morte de Deus deflagra
a falência das categorias metafísicas como operadores conceituais mobilizadores
das interpretações de mundo, o que gera o colapso de todo tipo de metanarrativa
racional. Consequentemente, a morte de Deus engendra um certo vácuo existencial
(niilismo), à medida que as categorias metafísicas não somente determinavam
narrativas, mas sobretudo norteavam a constituição vital humana. Como Niet-
zsche assinala no aforismo 125 de A gaia ciência,10 com a morte de Deus, sumiu o
mar, o horizonte, o sol; não há em cima e embaixo, ou seja, a metafísica entrou
em crise, pois nada em-si justifica o real. A razão disto está no fato de que a morte
de Deus não deflagra a mera morte da compreensão medieval de mundo, mas
acena, outrossim, para a derrocada do espaço ontológico que possibilitou esta
compreensão de mundo. Morreu a possibilidade de acessar o em-si e de conceber
o seu espaço. Por causa disto, o mar se abre. A abertura do mar indica a vigência
do mundo liberta das avaliações metafísicas do real. Neste novo horizonte ganha
sentido falar de eterno retorno do mesmo e do sagrado. Mas como isto se articula?

9
TILLICH, A coragem de ser, 1991, p. 134.
10
2002, p. 197-198.

150 Alexandre Marques Cabral


3.

Em meio à experiência da supressão das dicotomias metafísicas, Zaratustra


passa a apresentar a doutrina do eterno retorno sob a forma de enigma, rom-
pendo com as estruturas metafísicas de demonstração, que necessitam subsu-
mir o devir para inferir o em-si. No enigma, o que está em jogo é a sintonia
não racional que Nietzsche constantemente denomina vivência [Erlebnis] como
o índice de realização de um determinado fenômeno. Justamente isto fora eri-
gido por Zaratustra na narrativa do eterno retorno. Nela, Zaratustra aparece
em ascensão em meio a um caminho cheio de pedras, acompanhado do anão,
o espírito de gravidade, seu “demônio e mortal inimigo”.11 A imagem do anão
concretiza, na passagem em questão, um modo niilista de compreensão do real
à luz da morte de Deus. Ele aparece como o demônio de Zaratustra, à medida
que sua compreensão do real não viabiliza a superação dos perigos manifestos
com a morte de Deus.12 Esta, por suprimir o em-si, liberta o devir das amarras
do suprassensível. Agora, o devir passa a vigorar como semantema primário do
mundo. O perigo desta determinação de mundo é obstaculizar a presença de
qualquer tipo de configuração estável para a existência, o que faz da vida algo
inviável. Justamente isto norteia o “espírito de gravidade”. Ele puxa para baixo
e faz decair, ou seja, aniquila qualquer empreendimento de engendramento de
conformações vitais. O espírito de peso faz do devir um peso insuportável para
a existência. Isto é deflagrado no diálogo que se dá entre o anão e Zaratustra.
O caráter demoníaco do espírito de peso se patenteia quando este diz a Za-
ratustra: “Ó Zaratustra, pedra da sabedoria, pedra de funda, destroçador de es-
trelas! A ti mesmo arremessaste tão alto; mas toda a pedra arremessada deve
cair!”.13 A compreensão demoníaca do devir mostra que qualquer ação é des-
provida de sentido, pois ela será corroída e o não-ser subtrairá as pretensões
de estabilização do ser. Justamente esta compreensão não permite a Zaratustra
empreender sua subida e, assim, intensificar o seu movimento de adentramento
no modo de constituição do real, o que resulta na decisão de Zaratustra de fazer
calar o demônio para continuar seu caminho. A decisão referida acena para a
singularidade de Zaratustra ante a assunção do devir como elemento constitu-
tivo da essência do mundo. Se o devir é essencial, então o pensamento que o
integra na experiência não niilista de um mundo destituído de transcendência

11
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, p. 191.
12
Cf. CASANOVA, O Instante extraordinário, p. 221-249.
13
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, p. 192.

Leituras de Zaratustra 151


só pode ser considerado “pensamento abissal”.14 Isto porque, por abissalidade,
compreende-se o caráter desfundamentado do fundamento do real. Porquanto
o devir não é sustentado por nenhuma instância em-si, o mundo não possui
fundamentação última, o que o faz ser sem-fundo ou abismo. O pensamento
que supera os perigos do niilismo é o eterno retorno do mesmo.
Zaratustra apresenta o eterno retorno a partir da imagem de um portal. Este
conjuga duas vias que duram uma eternidade: o passado e o futuro. Se tradi-
cionalmente tais direcionamentos da temporalidade aparecem desquitados, Za-
ratustra os vê sinteticamente unidos no instante [Augenblick]. A questão é que,
inicialmente, o espírito de peso compreendeu tal imagem à luz de sua compreen-
são niilizante: “Tudo o que é reto mente, murmurou, desdenhoso, o anão. Toda a
verdade é torta, o próprio tempo é um círculo”.15 Tais afirmações não passam de
uma consequência lógica a partir da conexão entre os elementos manifestos com
a morte de Deus. Conforme o em-si se esvai, o mundo fecha-se em si mesmo e
passa a se determinar a partir do embate entre elementos relacionais distintos.
Assim, o devir passa a cadenciar o processo de determinação de um mundo finito.
No entanto, porquanto toda corrupção abre espaço para a reconfiguração do real,
à medida que os elementos em jogo no mundo são delimitados, a série de combi-
nações entre eles é também finita. Ora, a morte de Deus alijou qualquer tipo de
teleologia, o que leva o mundo a ser marcado indelevelmente por uma certa cao-
ticidade, “não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem,
divisão, forma, beleza, sabedoria” (...).16 Porque caótico, finito e sempre em devir,
as configurações do mundo eternamente retornam, marcando o tempo com o selo
da circularidade. Tal compreensão mostra, portanto, que a circularidade do tempo
engendra um processo de igualação das conformações do real. O devir seria a re-
petição ou igualação do que é e do que foi. Isso configura uma certa experiência de
existência. Se tudo eternamente retornará identicamente, então não há poder de
diferenciação e concomitantemente, poder de futuração da realidade. Logo, “toda
pedra arremessada deve cair”,17 isto é, não há sentido que justifique as ações, pois
agir é atestar a impossibilidade de se experimentar qualquer tipo de estabilidade
existencial. Se tudo retorna identicamente, viver não vale a pena, pois tudo o que
se realiza deve cair, ou seja, dissolver-se.
Se a fala do anão faz do círculo uma força niilizante, Zaratustra compreende
o círculo a partir da determinação do instante. É a partir do instante que se com-

14
Ibid., p.193.
15
Ibid.
16
NIETZSCHE, A Gaia Ciência, §109, p. 136.
17
Id., Assim falou Zaratustra, p. 192.

152 Alexandre Marques Cabral


preende a copresença de passado e futuro, ao mesmo tempo que se compreen-
dem suas respectivas diferenças. No instante, tudo que pôde acontecer e tudo
que pode acontecer é decidido.18 Isto é: a eternidade aparece no instante à me-
dida que este conjuga em si a totalidade temporal. A eternidade, neste sentido,
não é aquilo que nunca termina. A eternidade é a copertinência da totalidade do
tempo na singularidade do instante. Ora, como assinala o texto, o instante con-
juga o que pôde ser e o que ainda pode ser naquilo que está sendo. Neste sentido,
Nietzsche está conjugando o tempo com o modo como o mundo a cada vez se
conforma. Isso conjuga o eterno retorno do mesmo com o conceito de vontade
de poder, pois, por vontade de poder, Nietzsche compreende “o mundo visto de
dentro, o mundo definido e designado conforme o seu ‘caráter inteligível’”,19 ou
seja, toda configuração de mundo é um modo de determinação da vontade de
poder. Se a eternidade é incorporada à dinâmica da própria temporalidade, ela
refere-se à vontade de poder como modo de ser de um mundo temporal.
Como, então, compreender a relação entre vontade de poder e eterno
retorno?

4.

O conceito nietzschiano de vontade de poder emerge diretamente do acon-


tecimento da morte de Deus e de suas respectivas consequências ontológicas.
Porquanto a morte de Deus suprime a presença de toda e qualquer dimensão
em-si no real, o mundo passa a viger inteiramente na superfície fenomênica.
Como Nietzsche diz no prólogo de A gaia ciência: “Esses gregos eram super-
ficiais – por profundidade”.20 O que ele vê nos gregos é o que emerge, sobre-
tudo, da morte de Deus: não há profundidade no real, pois sua densidade
ontológica acontece na superfície. Justamente por isso, como já dito, o devir
apresenta-se como elemento essencial na semântica constitutiva do mundo.
O mundo não é deveniente somente porque incessantemente muda. O devir
é inerente ao mundo sobretudo porque, com a morte de Deus, não há esta-
bilidade ou meta alcançável que estanque a processualidade dos fenômenos.
Quaisquer configurações do real nunca são definitivas. Se na metafísica o de-
vir justifica-se necessariamente por causa de algum elemento metaempírico
(eu, ousia, Deus, ideia, etc.), após a morte de Deus, as configurações do real

18
Ibid., p. 193.
19
NIETZSCHE, Além do bem e do mal, §36, p. 40.
20
Id., A Gaia Ciência, p. 15.

Leituras de Zaratustra 153


serão marcadamente relacionais. Se não há em-si, a relação não poderá ser
pensada à luz dos relata (dos polos que se relacionam), como em Aristóteles,21
mas os relata surgem da relação, ou seja, a relação não é o elemento de liga-
ção entre duas instâncias ontológicas hipostasiadas, mas toda configuração e
conformação do real já se dá como fruto de relações. O mundo passa, então, a
determinar-se como produto de um jogo entre elementos relacionais distintos.
Tais elementos se determinam justamente na dinâmica das relações, o que faz
do real uma paisagem determinada por múltiplos elementos em relação contí-
nua e em devir. Justamente porque falta qualquer fundamento último na reali-
dade, os elementos relacionais são responsáveis pelo devir, que se torna patente
na alteração das configurações do todo entendido como arranjo relativo destes
mesmos elementos relacionais distintos. Se os elementos relacionais nunca se
estabilizam totalmente, é porque se relacionam agonisticamente entre si. Cada
elemento afirma a si mesmo para configurar o real segundo seu modo de ser;
ao mesmo tempo, cada elemento resiste à autoafirmação dos demais. Nietzsche
denominou tais elementos de “força” justamente porque eles devem impor a si
mesmos (autoafirmação) e resistir aos demais para configurar o real, segundo
seus modos próprios de realização. Como cada força deve buscar estruturar as
demais forças e, assim, conformar o real em um modo de ser, cada força nada
mais é do que um princípio sintético de conformação do mundo.
O que Nietzsche entende por vontade de poder caracteriza primeiramente
o modo próprio de ser da força.22 Em um segundo momento, a vontade de po-
der caracteriza o arranjo relativo que resulta do embate entre as forças. É que
o embate entre forças engendra algo como uma “estrutura social”,23 à medida
que o princípio relacional com maior capacidade de se autoafirmar torna-se um
“afeto de comando”24 e passa a determinar a singularidade do ente, isto é, passa
a determinar seu modo próprio de ser. O vetor estruturador da malha relacional
(afeto de comando, próprio) caracteriza-se por ser vontade de poder, visto que
por vontade Nietzsche compreende o caráter pulsional de cada força, que, a
partir de si mesma, sem fundamentos para além de si, impõe-se com o intuito
de conformar o real segundo seu modo de ser. À medida que uma determinada
força estrutura as demais segundo sua dinâmica, ou seja, gera a síntese orga-
nizadora do arranjo de forças, o poder emerge da intensidade da capacidade
autoafirmativa do afeto de comando de cooptar as demais forças e obrigá-las a

21
Cf. Aristóteles, Metafísica, p. 153-155.
22
Cf. MÜLLER-LAUTER, A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, p. 70-80.
23
NIETZSCHE, Além do bem e do mal, § 12, p. 19.
24
Ibid., §19.

154 Alexandre Marques Cabral


se conformar ao seu respectivo modo de realização. Destarte, a vontade não se
refere a nada subjetivo, e o poder não significa controle. A dinâmica de reali-
zação das forças deflagra a vontade de poder como lógica intrínseca à relação.
O processo relacional que determina o real, por ser determinado por uma certa
agonística, deflagra a vontade de poder como modo de ser da força e modo de
ser dos arranjos de força que caracterizam a singularidade (si mesmo – próprio)
dos entes. Porquanto a estabilidade engendrada pelo próprio não é metafísica, a
determinação de cada ente está ligada ao seu poder de assunção do sempiterno
embate entre as forças e dos novos elementos que daí emergem como fonte de
elevação do poder de determinação de si mesmo. Isto caracteriza a autossupera-
ção intrínseca à vontade de poder, proclamada por Zaratustra.25 Autossuperação
não é ser outro si próprio, mas integrar o devir como elemento potencializador
do modo de determinação do próprio (Selbstsein – si mesmo). Ao integrar o devir
no próprio, Nietzsche integra os dois lados da dicotomia metafísica na compre-
ensão do mundo: o ser e o devir. O ser é o próprio (o si mesmo), o elemento
definidor da singularidade do ente, que dá à existência uma certa estabilidade
poeticamente engendrada. Já o devir é a sempiterna presença da agonística re-
lacional entre as forças, posto que o real nunca se estabiliza, por não conter
fundamentação metafísica que subsuma o devir.26
Se a temporalidade do mundo é caracterizada pelo eterno retorno, este nada
mais é do que o horizonte de desdobramento da própria vontade de poder. Toda
conformação da vontade de poder, em outras palavras, possui a eternidade como
seu horizonte. No instante, certa configuração da vontade de poder conecta em
si todo passado e decide todo futuro. Isto conjuga tudo o que foi e o que será na
singularidade do instante que abarca o que está sendo. O passado é uma oferta,
e o futuro, uma tarefa que se impõe no instante. Em cada instante, portanto, dá-
-se a experiência de uma certa plenitude ontológica. Consequentemente, o devir
temporal não funciona como argumento e elemento de rebaixamento do peso
ontológico das conformações singulares da vontade de poder. O fato de os ins-
tantes mudarem não retira a dignidade ontológica das conformações da vontade
de poder. Por isso, a alternância dos instantes mostra somente que o devir nunca
corrói a plenitude que se dá polimorficamente. A cada instante, a plenitude do
real se dá em cada conformação da vontade de poder. Assim, o que retorna no
eterno retorno não é a mesmice das combinações entre as forças, mas a plenitude
ontológica que acontece em cada conformação singular da vontade de poder na
singularidade do instante. Ora, mas o que isto tem a ver com o sagrado?

25
Cf. NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, p. 143-147.
26
Cf. CASANOVA, op. cit., §24.

Leituras de Zaratustra 155


5.

Severino Boécio definiu a eternidade como “total possessão, simultânea


e perfeita, de uma vida interminável”.27 São Tomás, ao assumir a definição de
Boécio, pensou que a eternidade só poderia pertencer a Deus, visto que o que a
caracteriza é justamente ser contrária a qualquer tipo de sucessão. Ou seja: para
São Tomás, o devir é a antítese da eternidade. Este pensamento deflagra uma pré-
-compreensão ontológica: os seres suscetíveis ao processo de geração e corrupção
não são ontologicamente plenos. Por isso, a tradição sempre compreendeu o sa-
grado como algo que de alguma forma suspende o devir, mesmo que momenta-
neamente. Para compreender a ideia de sagrado na tradição, bastam as seguintes
palavras de Mircea Eliade: «o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à re-
alidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer
ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia”.28 A hierofania (manifestação
do sagrado) seria, portanto, uma ontofania, isto é, uma manifestação de densidade
de ser. Todo sagrado confere à existência uma plenitude de ser. Neste sentido, a
partir do que foi assinalado, pode-se compreender a visão tradicional de sagrado
como a tentativa de projetar em um plano metaempírico a densidade ontológica
estruturadora do real. Assim, o conceito de eternidade funciona como atributo da
dimensão da plenitude ontológica referida. Por isso é que Deus, a alma, as essên-
cias, etc. sempre fizeram parte do universo do sagrado.
A refundamentação ontológica do real a partir do binômio vontade de po-
der–eterno retorno do mesmo empreendida por Nietzsche reinscreve o sagrado
no discurso filosófico, porém, fora da compreensão metafísica de mundo. O
sagrado continua sendo o signo da plenitude ontológica e ainda possui como
atributo a eternidade. Porém, ele não mais exclui de si o devir. Porquanto a
eternidade inscreve-se no modo de ser de cada instante, Nietzsche o marca com
o selo da polimorfia. Isto porque os instantes se alteram. Assim, alternam-se
as conformações do real. Se em cada instante e em cada conformação dá-se a
eternidade, a eternidade é polimórfica. Por isso, o sagrado torna-se polimórfico.
Se, como ficou claro a partir de Boécio, o sagrado (Deus) é eterno porque nele,
simultaneamente e perfeitamente, dá-se uma certa plenitude ontológica (ou vi-
tal), a plenitude nietzschiana, ao ser transporta para o instante e porque este se
multiplica sempre, engendra uma experiência polimórfica do sagrado. À medida
que o real transforma-se em cada passo da sua passagem, dá-se de diferentes
formas a sacralidade da existência. Esta nunca passa com a passagem, mas plu-

27
BOÉCIO, apud S. Tomás, op. cit., p. 28.
28
ELIADE, O sagrado e o profano, p.18.

156 Alexandre Marques Cabral


raliza-se. Se Deus sempre foi Deus por ser ontologicamente pleno e, assim, por
não se coadunar totalmente com o mundo, com Nietzsche, o divino não deixa
de existir, mas renasce polimorficamente em cada instante que abarca o vir-a-ser
do mundo. Deus morreu para que o sagrado pluralmente renascesse no mundo.
As informações precedentes impõem por si só a questão: o que se en-
tende por redenção? Mais: como o eterno retorno e a vontade de poder po-
dem engendrar redenção? E ainda: qual a relação da questão do sagrado em
Nietzsche-Zaratustra com a ideia de que Zaratustra é um cristão consumado?

6.

O que Nietzsche compreende por redenção aparece no capítulo «Da reden-


ção» de Assim falou Zaratustra. Imediatamente, o texto desconstrói a imagem tra-
dicional de redenção, a partir do diálogo de Zaratustra com um corcunda. Este,
porta-voz das configurações vitais malogradas, pede a Zaratustra para curar os
aleijados, ou seja, “sarar cegos e fazer andar os paralíticos”.29 Para o corcunda,
este seria o preço a ser pago por Zaratustra para que sua doutrina tivesse adesão
plena dos aleijados. Trata-se da ideia tradicional de redenção como reaquisição
de uma perfeição ontológica perdida por meio da ação de um princípio causal
exógeno. Como o Cristo dos evangelhos, o milagre de Zaratustra assinalaria o
tipo de redenção compreendido pela tradição. À medida que o discurso de Za-
ratustra se perfaz em consonância com o modo de ser da vontade de poder, que
determina o ser de tudo o que é, nenhuma redenção pode ser pensada fora da
rearticulação da própria vontade de poder que marca um determinado vivente.
Somente a autorreconfiguração de um tipo vital específico pode responder pela
sua respectiva redenção. Isto já assinala o fato de o discurso nietzschiano da re-
denção pensar o resgate da perfeição ontológica perdida, a partir da vontade de
poder e não de quaisquer modos de identificações existenciais com quaisquer
tipos de hipóstases metafísicas. Se cada reconfiguração de um tipo específico da
vontade de poder depende da reconstituição de seu jogo de forças, o pedido do
corcunda torna-se inviável. Nas palavras irônicas de Zaratustra:

Se ao corcunda tirarmos a corcunda, tiramos-lhe o espírito – é o que ensina


o povo. E, se ao cego se dá a vista, vê ele demasiadas coisas ruins na terra:
a tal ponto que amaldiçoa aquele que o sarou. Aquele, porém, que faz ca-
minhar um paralítico, causa-lhe o maior dos danos: porque, mal pode ele
caminhar, pegam seus vícios a correr, arrastando-o consigo – é o que o povo

29
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, p.170.

Leituras de Zaratustra 157


ensina a respeito dos aleijados. E por que não deveria Zaratustra aprender
também do povo, se o povo aprende de Zaratustra?30

Corcunda, aleijado e paralítico são tipos ou conformações específicas da


vontade de poder dissonantes de sua dinâmica própria de realização. Ao vetor
singularizador do vivente, Zaratustra chamou espírito.31 O espírito (si mesmo ou
próprio) do outro, como dito, não pode ser arrancado de fora do próprio viven-
te, razão pela qual Zaratustra não pode redimir o modo de ser alheio, pois toda
transmutação do espírito32 depende de uma autorrearticulação vital do singular.
Isto explica por que tirar a corcunda do corcunda é uma maldição. Destarte,
para Zaratustra, a redenção não pode ser considerada como fruto de ação exó-
gena na vida do singular. A redenção aparece a partir da autotransfiguração da
vontade de poder constitutiva do existente. Mas como isto acontece? A chave
para compreender isto se encontra na ideia de vontade cativa, pois a vontade de
poder não redimida é aquela que encontra-se “em cativeiro”.33 O que Zaratustra
entende por cativeiro da vontade pode ser vislumbrado na seguinte passagem:

O querer liberta: mas como se chama aquilo que mantém em cadeias o


libertador?
“Foi assim”: é este o nome do ranger de dentes e da mais solitária angústia
da vontade. Impotente contra tudo que está feito – é ela um mau espectador
do passado. Não pode a vontade querer para trás; não pode partir o tempo e
o desejo de tempo – é esta a mais solitária angústia da vontade.34

Porquanto a vontade de poder caracteriza-se por ser um princípio ontoló-


gico performático, visto que ela é passível de múltiplas configurações por não
possuir nenhum fundamento último hipostasiado e pelo fato de ela ser sempre
o resultado do modo como ela se autodetermina, sua configuração cativa de si
mesma caracteriza-se por uma relação específica com o tempo. O tempo apa-
rece como sucessão linear de agoras atomizados; por isso, por um lado, a “lei
do tempo” passa a ser o “devorar seus filhos”,35 ou seja, cada agora é destruído
pelo agora que o sucede, o que leva os agoras a se relacionarem de modo ex-
trínseco. Por outro lado, o que foi, o passado, “está feito”, ou seja, está dado,

30
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, p.170.
31
Cf. id., Além do bem e do mal, §230, p.122-123.
32
Cf. id., Assim falou Zaratustra, p.51-53.
33
Ibid., p.172.
34
Ibid.
35
Ibid., p. 173.

158 Alexandre Marques Cabral


não podendo ser corrigido ou revivido, pois é um átomo autônomo em relação
ao agora presente. Sua relação com o agora presente é extrínseca e alienada.
Da vontade cativa de si mesma, portanto, surge a experiência do tempo como
passagem de agoras atomizados. Para tal configuração vital, o caráter fluídico
do tempo passa a ser uma maldição para a existência e assinala a culpabilidade
ontológica da vida. Por isso, diz Zaratustra: “É isto o que há de eterno no castigo
da existência: que a existência deve de novo e sempre tornar-se ato e culpa!”.36
Para a vontade de poder cativa, a existência é culpada, ou seja, seu modo de ser
é equivocado, o que abre as portas para reivindicar mudanças estruturais no
tecido da vida. A razão disto não é difícil de ser compreendida: a atomização do
passado passa a ser sintoma de falta de densidade ontológica no real. O fluxo
temporal assinala a corruptibilidade dos seres, o que mostra a falta de plenitude
ontológica dos entes. Mesmo que o agora que passou tenha sido extremamente
significativo para alguém, o fato de ele passar mostra uma falha incorrigível. O
mesmo acontece com os erros passados: à medida que passam, não podem ser
reapropriados e corrigidos, sendo fonte de remorsos e frustração. Disto emerge
um tipo de conformação vital que visa castigar e corrigir a existência. A este
Zaratustra denominou «espírito de vingança»,37 pois a vingança aqui referida é
o tipo de reivindicação que exige da vida uma determinação estrutural que ela
por constituição não pode ter.38 A tais conformações vitais, que determinam os
aleijados de todo gênero, Zaratustra anuncia seu conceito de redenção:

Todo o “Foi assim” é um fragmento, um enigma e um horrendo acaso – até


que a vontade criadora diga a seu propósito: “Mas assim eu o quis! Assim
hei de querê-lo”.
Mas quando falou de tal maneira? E quando isso se dará? Já a vontade se
desatrelou da sua própria loucura?
Já a vontade se tornou o seu próprio redentor e trazedor de alegria? Desa-
prendeu o espírito de vingança e todo o ranger de dentes?
E quem lhe ensinou a reconciliação com o tempo e alguma coisa mais ele-
vada do que toda reconciliação?
Alguma coisa mais elevada do que toda reconciliação deve querer a vontade
que é vontade de poder, – mas como chega lá? Quem lhe ensinaria também
a querer para trás?39

36
Ibid.
37
Ibid., p.172.
38
Cf. FOGEL, «A determinação do espírito de vingança», p.117-121.
39
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, p. 173-174.

Leituras de Zaratustra 159


A redenção acontece com a gênese da “vontade criadora”. Esta nada mais
é do que a realização da vontade de poder consoante a sua dinâmica autossu-
peradora.40 Porquanto a vontade de poder se constitui a partir da assunção do
devir das forças como meio de intensificação do poder de determinação de uma
determinada conformação vital, a autossuperação corresponde à «fortificação» de
uma específica malha de forças por meio da assunção e incorporação de novos
elementos relacionais e da preservação de seu princípio hierárquico, seu afeto de
comando. Tal movimento autossuperador é por si só criativo, posto que engendra
novas configurações do real por incorporar o devir como elemento necessário
para sua autodeterminação. Este tipo de vontade de poder diz: «Mas assim eu o
quis! Assim hei de querê-lo.» Se, para a vontade cativa, o passado (atomizado)
vigora como obstáculo para seu desdobramento, o que faz da vingança seu dis-
positivo de automanutenção, para a vontade criativa, por assumir o devir como
elemento necessário para sua expansão vital, o passado não vige como obstáculo,
nem o futuro é um problema intransponível. Por quê? Porque o tempo não apa-
rece mais como conjunto de agoras atomizados, e o devir não assinala carência
ontológica. Neste tipo da vontade de poder, aparece a reconciliação entre passado,
presente e futuro. Como? A resposta já foi dada: pelo eterno retorno do mesmo.
Na vontade criadora, a eternidade aparece como horizonte de determinação do
mundo, pois o instante, como visto, é o princípio sintético do que foi e do que
será no desdobramento do que está sendo. O passado, portanto, está presente
no instante, determinando o que será, na decisão do que está acontecendo. Isto
mostra que todo real está vigente no instante. Mesmo que o instante mude, não
muda o fato de que todo instante sempre abarca uma plenitude ontológica, pois
todo devir não aniquila o fato de que em cada instante a totalidade do real está
presente. Justamente aí se dá a redenção de uma existência cativa de plenitude vi-
tal. Somente na assunção da vontade criativa o tempo aparece como casa da eter-
nidade e o sagrado passa a ser o lastro do vivente. Mas o que isto tem a ver com
a consumação do cristianismo? Por que afirmou-se inicialmente que Zaratustra,
com seu conceito de redenção, consumou o cristianismo?

7.

O cerne do cristianismo é a salvação, que se identifica com a redenção sobre-


tudo da decadência constitutiva do homem. Esta decadência, antes de referir-se
aos desvios pontuais de atos isolados do homem, diz respeito à queda adâmica

40
Cf. ibid., p.143-147.

160 Alexandre Marques Cabral


do paraíso.41 A narrativa do Gênesis diz que a tentação gerada pela serpente no
paraíso foi querer elevar Adão e Eva à condição divina, rompendo sua finitude
constitutiva: «Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. Por-
que Deus sabe que no dia em que dele comerdes [o texto se refere ao fruto da
árvore do conhecimento] se vos abrirão os olhos e, como Deus [grifo nosso], se-
reis conhecedores do bem e do mal”.42 A ruptura com o estado paradisíaco gera
a necessidade de redenção. Esta se caracteriza por ser a reconquista do paraíso
perdido, lugar em que havia plena integração do homem com sua finitude e com
Deus. Esta experiência abarca a eternidade, que assinala a plenitude de densidade
ontológica na existência humana. Para o cristianismo, após a queda adâmica, a
história se desenvolve em duas direções: a divina e a demoníaca. A primeira, a
que aqui interessa, constitui a própria história da salvação, enquanto patenteia o
plano divino de redenção da criação. Deus teria paulatinamente enviado disposi-
tivos salvíficos: decálogo, ritos, normas sociais, profetas, etc. Porém, a plenitude
salvífica encontra-se em Jesus de Nazaré, reconhecido como Cristo, como fica cla-
ro em duas passagens do evangelho de João: “As minhas ovelhas ouvem a minha
voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão,
e ninguém as arrebatará da minha mão”.43 “Porque Deus amou ao mundo de tal
maneira que deu o seu filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça,
mas tenha a vida eterna. Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para
que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele”.44 Estes textos
já evidenciam o sentido último da soteriologia cristã.
Salvador da humanidade, Jesus foi comparado a Adão.45 Agora, Jesus é o
“novo Adão”,46 o que significa que ele é a fonte de uma nova humanidade, a
humanidade redimida: “E, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas
antigas já passaram; eis que se fizeram novas”.47 Em outras palavras: Jesus é
o resgate do paraíso perdido e a reaquisição da eternidade na história. Parti-
cipar, pela fé, da experiência de Cristo é reinscrever na existência a densidade
ontológica que se esvaiu na queda adâmica.48 Mas, se a redenção é antecipada
pela fé, sua derradeira concretização se dá para além da história. É isto que su-

41
Cf.Gn 3.
42
Gn 3, 4-5.
43
Jo 10-27-28.
44
Jo 3-16-17.
45
Cf. Rm 5, 12-21.
46
BOFF, Jesus Cristo libertador, p.112.
47
2 Cor 5, 17.
48
Rm 3-5.

Leituras de Zaratustra 161


gerem algumas passagens do evangelho de João e grande parte dos textos pau-
linos.49 A experiência da ressurreição de Cristo viabilizou, para a comunidade
cristã nascente, o paradigma do que seja a plena redenção humana. Como a
história não patenteou integralmente o Reino de Deus, cujo teor apareceu
plenamente na ressurreição de Jesus, a salvação passou a ser concebida como
evento post mortem. Isto possibilitou pensar a experiência da eternidade para
além do tempo histórico. O sentido deste arcabouço teórico-existencial está
presente em Nietzsche-Zaratustra, ainda que modificado.
A redenção nietzschiana, que acontece na assunção da vontade de poder cria-
tiva e do tempo na condição de eterno retorno do mesmo, manifesta-se como
resgate da plenitude ontológica perdida por um tipo vital em dissonância da di-
nâmica da vontade de poder. É esta alienação vital que torna possível o discurso
zaratustriano da redenção. Assim como no cristianismo, a redenção anunciada
por Zaratustra acontece através da experiência da eternidade. Obviamente, a
eternidade nietzschiana não se coaduna com a cristã pelo simples fato de a se-
gunda opor-se ao devir temporal, enquanto em Nietzsche a eternidade é móvel,
pois ela se refere ao teor ontológico dos instantes, que sempre se diferenciam.
No entanto, os dois pensam a redenção-salvação como reconquista de um tipo
vital sintonizado com o sagrado. O problema é que o cristianismo, sobretudo
por influência do arcabouço conceitual helênico, pensou o sagrado metaem-
piricamente, enquanto Nietzsche considerou o sagrado como modo de ser do
mundo como articulação de vontade de poder-eterno retorno do mesmo. Como,
então, pode-se dizer que Nietzsche-Zaratustra consumou o cristianismo?
O que move Nietzsche-Zaratustra é a possibilidade da salvação da décadence
vital do homem. Sua proposta, em última instância, é dotar o real de pleno peso
ontológico. Isso caracteriza o ideário cristão: tornar presente e vigente o velho
paraíso perdido. Se o “lugar” de reconquista do paraíso se diferencia e se as con-
cepções ontológicas são outras se comparadas com as do cristianismo, o ideário
de Nietzsche-Zaratustra é o mesmo. Mesmo que a força da genealogia nietzs-
chiana tenha colocado em suspenso grande parte dos valores e ideais cristãos,
o que moveu Nietzsche sempre foi a ideia soteriológica da redenção, da qual o
cristianismo foi o maior disseminador na história. Se os cristãos divulgaram o
nome de Cristo, Zaratustra dissemina o além-do-homem, o redentor criado por
Nietzsche. Se o cristianismo não conseguiu vislumbrar a possibilidade de salva-
ção no tempo, Nietzsche-Zaratustra fez do tempo a casa do sagrado, da reden-
ção e da eternidade. Por isso, Zaratustra-Nietzsche consumou o cristianismo,
já que antecipou para a Terra a plenitude que o cristianismo enxergou no Céu.

49
Cf. 1Cr 15, 1-19.

162 Alexandre Marques Cabral


Se consumar é levar algo à sua plena condição, Zaratustra, com a encarnação da
eternidade no instante, nada mais é do que um cristão consumado.

Referências Bibliográficas

A BIBLIA sagrada. São Paulo: SBB, 2003.


ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edipro, 2006.
AQUINO, São Tomás de. Compêndio de teologia. Rio de Janeiro: Presença, 1977.
BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador. Petrópolis: Vozes, 2009.
CASANOVA, Marco Antônio. O instante extraordinário: vida, história e valor na obra
de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
FOGEL, Gilvan. A determinação do espírito de vingança. In: ______. Verdade, co-
nhecimento e poder: as concepções revolucionárias do homem e do mundo. Rio de
Janeiro: Univerta/UFRJ, 1990.
MACHADO, Roberto. Zaratustra: tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1999.
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder de Nietzsche. São Paulo:
Annablume, 1997.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2003a.
______. Para além do bem e mal. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005.
______. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003b.
TILLICH, Paul. A coragem de ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

Leituras de Zaratustra 163


Parte III

Autossuperação e sentido da terra


O cenário do prólogo de Assim falou Zaratustra

Camila de Oliveira Silva

O objetivo deste artigo é traçar algumas considerações acerca da proble-


mática da superação em Nietzsche, sobretudo à luz do prólogo de Assim falou
Zaratustra. A metáfora fundamental que aí encontramos (do homem como
“ponte”) nos introduz e indica de forma decisiva a postura radical que Niet-
zsche assume diante da tradição do pensamento filosófico. Perguntemo-nos,
então: qual é a peculiaridade de seu caminho, de seu percurso na filosofia?
O que ele se propõe ultrapassar? A superação da metafísica é o que Nietzs-
che visa. O ideal de verdade é o seu permanente alvo de ataque. Com efeito,
temos que o empreendimento do pensamento de Nietzsche é um ambicio-
so, polêmico e ousado projeto de desconstrução do parâmetro com o qual a
tradição filosófica alicerçou e arquitetou a história do seu pensamento. Com
isso, Nietzsche pretendeu denunciar e evidenciar a difamação da vida que foi
promovida e difundida por meio da crença em ideais ultraterrenos. Digamos,
portanto, que o que subjaz a estrutura desse texto é a ardorosa defesa da vida
por Nietzsche, em outras palavras, pode-se dizer que o que o move é uma luta
incessante, uma guerra contra uma determinada violência em relação à vida,
violência tal que pode ser compreendida como a avaliação negativa, a desclas-
sificação deste mundo por um pressuposto além-mundo. Dito isso, cabe-nos
identificar qual é o estatuto desse amor nietzschiano à vida. Para tanto, pode-
mos tomar como fio condutor duas passagens de Nietzsche que nos introdu-
zem à potência desse seu amor. Em A gaia ciência ele assim o diz: “É o amor
a uma mulher da qual se duvida”.1 Já em Assim falou Zaratustra, no discurso
“Do grande anseio”, temos: “Ó minha alma, ensinei-te o desprezo, não o que
chega como um verme roedor, mas o grande, o amoroso desprezo, que mais
ama onde mais despreza”.2

1
GC, Prólogo, §3.
2
ZA, III, “Do grande anseio”.

Leituras de Zaratustra 167


A imodéstia de Nietzsche afirma em Ecce homo que a figura de Zaratustra
foi o maior presente feito à humanidade.3 Duas asserções de sua obra Crepús-
culo dos ídolos nos conduzem à compreensão dessa colocação, a saber: no capí-
tulo denominado “Moral como Antinatureza”, Nietzsche destaca que “A vida
acaba onde o ‘Reino de Deus’ começa”.4 E destaca, inversamente, no capítulo
da História de um erro o começo de Zaratustra,5 identificando-o à supressão
do mundo verdadeiro e, por conseguinte, ao “apogeu da humanidade”. A raiz
dessa problematização é a incisiva crítica de Nietzsche ao ideal de verdade,
em outras palavras, a crítica da preponderância de um formato de concepção
do real como uma mera aparência de uma verdade transcendente. É a partir
daí que Nietzsche diagnostica a configuração moral do conhecimento, isto é,
a constatação de que coexiste com a ilusória crença de que há em algum lugar
alguma verdade a ser conhecida, o preconceito moral de que a suposta verda-
de diz respeito ao bem enquanto a aparência é identificada ao mal, em suma,
ao erro. Posto isso, podemos retomar a abordagem inicial: qual o estatuto do
amor nietzschiano à vida? O que reflete a ligação do amor com um grande
desprezo? O que significa a compreensão que Nietzsche tem do Zaratustra
como um grande presente, como a manifestação de um decisivo começo e, por
conseguinte, o apogeu da humanidade?
Pode-se dizer, inicialmente, que Nietzsche apresenta Zaratustra como o
andarilho que foi atravessado pela necessidade de ultrapassagem de si mesmo
e, ao mesmo tempo, como a voz que anuncia o discurso da necessidade de
superação da configuração do homem vigente e sua atitude negativa, niilista e
dogmática perante a vida. Digamos que inversamente ao propósito de conhe-
cer a verdade, Zaratustra seria aquele que reconheceu na verdade o caráter de
uma construção, de uma criação, ou seja, ela não é um “em si”, não é dada. É
justamente este questionamento que abre a possibilidade de uma dissolução
da verdade como um absoluto. Pensar uma coisa como dada consiste em ex-
cluir tanto a ideia de desconstrução quanto de construção e/ou reconstrução,
mas implica, no entanto, as noções de manutenção e obediência. A conside-
ração, contudo, da verdade como uma construção reflete a não sustentação da
verdade por si, ou seja, reflete a não sustentação do “em si”. Com efeito, isso
desembocará no reconhecimento da insustentabilidade de um ideal de verda-

3
“Entre minhas obras ocupa o meu Zaratustra um lugar à parte. Com ele fiz à humanidade o maior
presente que até agora lhe foi feito.” EH, Prólogo, §4.
4
CI, “Moral como Antinatureza”, §4.
5
“Meio-dia; momento da sombra mais breve; fim do longo erro; apogeu da humanidade; INCIPIT
ZARATUSTRA [começa Zaratustra]” CI, “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente fábula”, §6.

168 Camila de Oliveira Silva


de, a insustentabilidade da crença em um transcendente, em outras palavras,
a morte de Deus.
O cenário do prólogo de Assim falou Zaratustra tem como pano de fundo o
desmoronamento da arquitetura pela qual construímos a nossa compreensão
de mundo. Podemos encontrar neste contexto uma cena decisiva que reúne
de forma embrionária a problemática da superação do homem ante o cenário
da morte de Deus. Uma cena que se coaduna com uma mensagem crucial de
Zaratustra: a cena diz respeito a um funâmbulo que se pusera ao caminho
da travessia de uma corda “estendida entre duas torres” e “suspensa sobre a
praça e o povo”.6 E a mensagem de Zaratustra anuncia que “o homem é uma
corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abis-
mo”. E ainda acrescenta que “o que há de grande, no homem, é ser ponte, e
não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso.”7
Quando Zaratustra desce do cume de sua solidão, ele o faz com o propósito de
dar aos homens o presente de sua sabedoria, isto é, o ensino do super-homem, e
isso ele o faz porque diz amar os homens. Ora, aqui evidencia-se, então, o cerne
do amor nietzschiano expresso por meio de Zaratustra, ou seja, o amor que vis-
lumbra a possibilidade da superação do niilista desprezo à vida, o amor que vê a
possibilidade do recomeço, do nascimento de uma revitalização da vida. Podemos
nos perguntar: o que a vida diz a esse viandante? No discurso “Do superar a si
mesmo”, Zaratustra assim falou: “E este segredo a própria vida me confiou: “Vê”,
disse, “eu sou aquilo que deve sempre superar a si mesmo”.8 Sendo assim, podemos
identificar a trajetória de Zaratustra como uma maneira de corresponder à vida, e
desta forma ele quer ver a ultrapassagem dessa lógica niilista que atravessa a vida,
isto é, superar a diminuição desta que é feita em nome de um suposto além. Fazer
isso é buscar o encaminhamento para o super-homem.
Podemos dizer que a síntese dos discursos de Zaratustra expressa, de certa
forma, uma “doutrina da vida”. Existe uma “reivindicação” de uma postura
ressignificada para com ela, uma postura, digamos assim, profundamente ele-
vada, grandiosa... À luz do primeiro grande personagem de Assim falou Zara-
tustra podemos nos inspirar para concluir esta breve introdução ao prólogo: o
grande astro Sol, na ponte para o poente, mergulha aceso no abismo no cair
da noite, mas, no alvorecer se levanta elevando toda a profundidade... Diga-
mos, então, que o projeto de Zaratustra é acordar um novo amanhecer, pois

6
ZA, Prólogo, §6.
7
Ibid., Prólogo, §4.
8
Ibid., II, “Do superar a si mesmo”.

Leituras de Zaratustra 169


este será o reflexo da conquista da grandeza. O discurso “O viandante” pode
nos remeter a isso quando lemos o seguinte: “Somente agora percorres o teu
caminho da grandeza! Cume e abismo – resolveram-se numa única coisa! ”.9
Logo, quando Nietzsche diz que a crença no ideal é um erro que expressa
covardia,10 manifesta-se aí a outra dimensão do amor nietzschiano à vida, a
saber: não só atravessar a vida almejando e se apoiando no possível consolo de
um além-mundo, mas ser atravessado por toda a sua potência sem se desviar
da sua dimensão trágica.
Embora a nossa análise se detenha na tentativa de abordar o alcance do que
Nietzsche coloca como o “começar” de Zaratustra, não podemos deixar de des-
tacar que se pode identificar a culminância desse projeto e desse processo por
meio da criança que Zaratustra apresenta no discurso “Das três metamorfoses”.
Em suma, ele se refere a ela como um “novo começo”, que significa, sobretudo,
o enaltecimento do caminho do criador e um “sagrado dizer sim”.11
Em conclusão, podemos atentar para estas palavras de Nietzsche:

Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem de ser co-
mandada, torna-se “crente”; inversamente, pode-se imaginar um prazer e
força na autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito
se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é em se
equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em dançar até mesmo à
beira de abismos. Um tal espírito seria o espírito livre por excelência.12

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra. 17. Ed. Trad. de Mário da Silva.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008a.
______. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2001.
______. Ecce homo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2008b.
______. Crepúsculo dos ídolos. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.

9
Ibid., III, “O viandante”.
10
“Erro (- a crença no ideal-) não é cegueira, erro é covardia...” EH, Prólogo, §3.
11
ZA, I, “Das três metamorfoses”.
12
GC, §347.

170 Camila de Oliveira Silva


Vontade de poder:
a autossuperação como a dinâmica criadora da vida

Rebeca Furtado de Melo

Sabemos que a obra de Nietzsche possui uma particularidade importante


no que diz respeito à tentativa de fazer uma filosofia pós-metafísica.1 Niet-
zsche não rompe apenas com a noção do que consistia a filosofia até ele e
se propõe a pensar o mundo para além das categorias metafísicas até então
vigentes. Ao contrário, ele também apresenta uma transformação no modo de
fazer filosofia, ou seja, na forma de escrever. É fácil observar como os textos
nietzschianos são marcados por uma sofisticação literária, que não se resume
apenas à recorrente escrita aforismática, mas, sobretudo, ao estilo irônico,
metafórico e tantas vezes caricatural com que Nietzsche escreve. Poderíamos
dizer que, em Assim falou Zaratustra, Nietzsche alcança um ápice na ousadia
estilística e beleza literária com um livro encantador, cheio de enigmas confes-
sos ou silenciados2 difíceis de decifrar. Porém, não desejamos aqui somente
desfrutar do prazer literário ao ler a narrativa sobre a saga de Zaratustra, mas,
sobretudo, interessa-nos a tentativa de nos relacionarmos com a obra de uma
maneira conceitual, a fim de reconstruir o arcabouço teórico que se encontra
na base de todo o texto, na medida em que tais noções, além de possibilitarem
o livro como uma obra filosófica, justificam essa maneira artística de fazer
filosofia, como tentaremos demonstrar.
Ao mesmo tempo, sabemos do perigo de, ao tentarmos entender concei-
tualmente o texto, recairmos numa análise estéril da obra, lida que é tão cri-
ticada por Nietzsche, em tantos momentos de sua obra (inclusive, no próprio

1
No decorrer do texto evidenciaremos melhor o que entendemos por ¨pensamento pós-metafísico¨,
caracterizando o que foi a metafísica para Nietzsche e discutindo como e por quese torna uma tarefa
superá-la não apenas para Nietzsche, mas para o pensamento contemporâneo em geral.
2
Um dos discursos de Zaratustra se chama “Da visão e do enigma”, e nele Zaratustra narra um enig-
ma aos tripulantes de um navio com os quais ele viajava. O enigma consiste na primeira comunicação
do eterno retorno presente no livro (p. 190).

Leituras de Zaratustra 171


Zaratustra)3, quando rechaça a academia e o academicismo. Por outro lado, pa-
rece-nos fundamental para toda e qualquer experiência vital com o texto, e para
além dele, qualquer experiência de pensamento, perceber o que está em jogo na
obra, como e por que ela surge e, ao mesmo tempo, qual é o lugar e papel que
ela ocupa dentro da própria história da filosofia, para não recairmos no outro
extremo tão igualmente criticável de apenas repetirmos incessantemente frases
de efeito, sem termos qualquer experiência ou relação autêntica com elas.4
Por isso, buscaremos acompanhar de maneira sucinta os acontecimentos
da história da filosofia e do pensamento nietzschiano, a fim de possibilitar
algo assim como o Zaratustra, que é um livro radicalmente diferente daquilo
que temos costume de nos relacionar no campo filosófico. Quando dizemos
que a maneira de escrever, o estilo literário nietzschiano, é justificado pela sua
filosofia, o que estamos afirmando é que o estilo de escrita de Nietzsche não

3
No segundo livro, há um discurso chamado “Dos doutos”, no qual Nietzsche critica pesadamente
uma maneira de se fazer filosofia, afastando completamente Zaratustra desta figura dos doutos: os
eruditos e acadêmicos que se relacionam com o pensamento “sentados friamente na sombra fria”,
apenas como “espectadores”, e que trabalham “habilidosamente” e “como moinhos”. Imagens que
nos remetem à análise “puramente conceitual”, que se pretende isenta, desinteressada, e, por isso,
com validade “científica”. Uma análise que disseca todo e qualquer texto, sem qualquer relação vital
com ele, uma vez que apenas busca reconstruir as articulações formais dos conceitos. Contrário a isso,
Nietzsche apresenta o Zaratustra que, “abrasado por pensamentos próprios”, precisa ir “ao ar livre”,
imagem que traz à tona uma experiência de pensamento que é sempre própria e autêntica e que, por
isso mesmo, parece vazia quando se tenta tratá-la de maneira meramente conceitual. Zaratustra afirma:
“por ninguém, até aqui, fui eu ouvido pior do que pelos doutos” (ibid., p. 158). Há ainda outra figura
importante, que descreve uma relação estéril com o conhecimento: um dos homens superiores, homens
característicos do mundo niilista, apresentados no quarto livro, chamado o consciencioso do espírito. É
a figura do homem que é absolutamente especializado em um tema e que, por isso, declara sem receios:
“em questões de espírito não é fácil alguém ser mais severo, escrupuloso, preciso e intransigente do
que eu” (ibid., p. 295), aquele que dedicou a vida a especializar-se num tema e de tudo mais não sabe
nada, “bem apegada ao meu saber, acampa minha negra ignorância” (ibid., p. 296). Um conhecimento
tão maximamente especializado que perde qualquer relação fundamental com a existência, mantendo-o
maximamente alienado.
4
Não por acaso, o discurso que sucede o “Dos doutos” é o “Dos poetas”, no qual Zaratustra também
se afasta dos poetas, dizendo “Cansei-me dos poetas, antigos e novos: superficiais são todos ao meu
ver, e mares sem profundidade [...]. Em verdade, o seu próprio espírito é o mais pavão dos pavões e
um mar de vaidade!” (ibid., p. 160-161). Neste discurso, Zaratustra acusa os poetas de “não pensarem
bastante a fundo” e de se apresentarem sempre com vistas a agradar o público, sem ter em si a medida
do que se fala. Para além da figura dos poetas, nos parece que há outra ainda mais relevante, que é a do
“louco que o povo chamava o macaco de Zaratustra”, “que aprendera a arremedar um pouco o fraseado
e as inflexões de seus discursos” (ibid., p. 214). A este que aprende a repetir as palavras de Zaratustra,
ele diz: “‘Cala-te de uma vez!’, exclamou Zaratustra; ‘há muito que tuas palavras e tuas ações me
causam náusea! [...]. Mas a tua palavra de louco me prejudica, mesmo nos pontos em que tem razão!
[...]. Tu, com minha palavra, farias sempre – uma injustiça’” (ibid., p. 214-215). O louco, macaco de
Zaratustra, é aquele que diz “o mesmo” que Zaratustra, pois repete suas palavras, mas mesmo quando
emprega palavras com razão, prejudica e repugna Zaratustra, pois as palavras não são frutos de uma
experiência autêntica do que está sendo dito, mas apenas um arremedo, uma repetição, que não passa
de uma forma de manifestar seu espírito de vingança.

172 Rebeca Furtado de Melo


é de maneira alguma uma escolha arbitrária, mas, ao contrário, uma atividade
consoante e coerente que evidencia a relação que se pode ter com a escrita a
partir da tentativa de experimentação de um pensamento e de uma vida pós-
-metafísicos. Neste contexto, a importância do conceito de vontade de poder
(Wille zur Macht) vem à tona, e a afirmação de que este conceito é um dos fios
condutores da obra se justifica, na medida em que a própria vida vai se apre-
sentar para Nietzsche como vontade de poder, como a dinâmica incessante e
criadora de vida que prescinde de princípios metafísicos, tal como tentaremos
mostrar a seguir. Assim, vontade de poder passa a ser um conceito central
para acompanharmos o pensamento nietzschiano como um todo e, em espe-
cial, a obra Assim falou Zaratustra, narrativa de uma filosofia que é a máxima
expressão da vontade de poder: a realização de uma atividade essencialmente
artística em seu caráter criador e perspectivístico.

***

“Vontade de conhecer a verdade” chamais vós, os mais sábios dentre os


sábios, àquilo que vos impele e inflama?
Vontade de que todo o existente possa ser pensado: assim chamo eu à vossa
vontade!
Quereis, primeiro, tornar todo o existente possível de ser pensado; pois, com
justa desconfiança, duvidais de que já o seja.5

Assim começa o discurso de Zaratustra intitulado “Do superar a si mes-


mo”. Nele, Zaratustra se refere a interlocutores específicos, “os mais sábios
dentre os sábios”, quer dizer, aos homens do conhecimento, aos filósofos,
àqueles em que em todas as épocas buscaram da maneira mais rigorosa a
verdade. A filosofia, em geral, consiste, para Nietzsche, justamente no que ele
denomina “vontade de verdade”, ou, como se encontra formulado na passa-
gem, na “vontade de que todo o existente se torne pensável”, isto é, cognos-
cível, explicável e determinável a partir de princípios metafísicos que possam
estruturar e dar um sentido à realidade como um todo. Para que sejam capazes
de explicar e fundamentar a realidade incondicionalmente, esses princípios
precisam ser absolutamente seguros, imutáveis e universais, servindo para
atribuir sentido e valor para todo e qualquer fenômeno que, por seu caráter
efêmero, mutável e condicionado carece de fundamentação ontológica para

5
“Do superar a si mesmo”, p.143.

Leituras de Zaratustra 173


que seja conhecido. Quando Zaratustra diz que “Quereis, primeiro, tornar
todo o existente possível de ser pensado, pois, com justa desconfiança, du-
vidais de que já o seja”, ele realça a necessidade metafísica de postular uma
dimensão suprassensível para o conhecimento, na medida em que a possibili-
dade irrestrita de se pensar o mundo está para além dele mesmo. Quer dizer,
a metafísica precisará instaurar uma instância suprassensível para explicar o
mundo sensível, uma vez que deseja encontrar a verdade acerca da realidade,
uma verdade que seja assegurada e imutável, ou seja, que esteja para além da
efemeridade e inconsistência de todo e qualquer fenômeno.
Com o objetivo de encontrar fundamentos com a consistência ontológi-
ca necessária para explicar a realidade, a metafísica instaura uma dicotomia
mundo sensível/mundo suprassensível, mundo verdadeiro/mundo aparente,
ser/devir, inteligível/sensível, etc. No entanto, ao estabelecer tal cisão, ela não
permanece apenas restrita à explicitação desses dois âmbitos contrapostos,
mas também elege um dos lados da dicotomia como parâmetro de valoração
e julgamento do outro.
É por isto que a passagem de Zaratustra continua da seguinte maneira:
“Quereis ainda criar o mundo diante do qual possais ajoelhar-vos”,6 pois, de-
sejando escapar da indeterminação, inconsistência e efemeridade dos fenôme-
nos em geral, a metafísica toma o Ser como critério do devir e, por meio desta
dicotomia, adota o mundo suprassensível como princípio de valoração dos
entes sensíveis. O mundo suprassensível passa, assim, a funcionar como pa-
râmetro ontológico do sensível, pois, a partir da assunção da identidade entre
Ser = Transcendente = Verdade = Bem = Belo, etc., define-se valorativamen-
te o oposto, o mundo sensível, como a aparência, o falso, o mal, a ilusão, o
efêmero e assim por diante. O mundo suprassensível designa nesse contexto
o mundo dos fundamentos metafísicos, “o mundo diante do qual (o homem)
pode se ajoelhar”, por não estar condicionado ao caráter de ilusão do devir,
mas, ao contrário, possuir toda constância, imutabilidade e validade irrestrita,
assegurando, desta maneira, a possibilidade de se falar em conhecimento e
verdade, anteriormente impossibilitados pela inconstância e imprevisibilidade
dos fenômenos.
Contudo, a passagem continua, Zaratustra ainda afirma:

É essa a vossa vontade, ó os mais sábios dentre os sábios, como vontade de


poder, e também quando falais do bem e do mal e das apreciações de valor.
[...] Colocastes a vossa vontade e os vossos valores no rio do devir; uma ve-

6
Ibid., p. 144.

174 Rebeca Furtado de Melo


lha vontade de poder revela-me aquilo em que o povo acredita como sendo
o bem e o mal. [...] Não o rio é o vosso perigo e o fim do vosso bem e mal,
ó os mais sábios dentre os sábios, mas aquela mesma vontade, a vontade
de poder – a inesgotável e geradora vontade de viver.7

Paradoxalmente, o que temos nessa passagem é a clara afirmação nietzs-


chiana de que tal vontade de verdade, assim como as binárias instaurações de
bem e mal, também são manifestações da vontade de poder. O ato de criação
de valores, mesmo esses que se estabelecem a partir de dicotomias metafísi-
cas são, portanto, expressões da vontade poder. Nietzsche ainda afirma que a
moral dos povos, suas crenças em determinados valores de bem e mal estão
expostas ao rio do devir, quer dizer, ao tempo e às transformações incessantes
que a passagem do tempo impõe, mas que este não representa o perigo para
o fim dos valores estabelecidos. Ao contrário, o que é perigoso para este é a
mesma vontade de poder. Nietzsche parece estar afirmando, nesse trecho, que
a vontade de poder não só é a dinâmica de instauração dos valores morais e
da metafísica, como também é a dinâmica de dissolução de tais valores e tipo
de vida. Isto seria dizer que a vontade de poder é a dinâmica de configuração
e desintegração de todo tipo de vida, inclusive da metafísica e da moral biná-
ria. Contudo, tais afirmações resultam em uma série de questões ainda não
compreendidas como, por exemplo, qual é o estatuto da metafísica enquanto
vontade de verdade e em que medida ela também pode ser entendida como
vontade de poder? Ou, caso essa afirmação seja possível, qual é a diferença
entre a vontade de verdade e vontade de poder e, desta maneira, qual é a dife-
rença entre a metafísica tradicional e o pensamento nietzschiano? E, ainda, se
toda criação de valores é resultante da vontade de poder, qual é o sentido em
se falar em uma transvaloração de todos os valores que tente escapar de uma
essência metafísica, dicotômica e moral?
Porém, para podermos responder essas perguntas e compreendermos o que
está em jogo, o próprio Zaratustra nos antecipa o fato de que ainda é preciso
“acrescentar algumas palavras sobre a vida e o modo de ser do vivente”, isto é,
precisamos ainda, antes de tentar respondê-las, descrever e explicitar em que
consiste exatamente a vontade de poder. Por isso, Zaratustra prossegue:

Mas, para que compreendais minhas palavras do bem e do mal, quero acres-
centar, ainda, minha palavra sobre a vida e o modo de ser de todo o vivente.
O vivente, eu segui, percorrendo os maiores e menores caminhos, a fim de
conhecer seu modo de ser. [...]

7
Ibid., p. 144.

Leituras de Zaratustra 175


Mas, onde quer que eu encontrasse vida, ouvi, também, falar em obediên-
cia. Todo vivente é um obediente.
E, em segundo lugar: manda-se naquele que não pode obedecer a si mes-
mo. É este o modo de ser do vivente.
E foi esta a terceira coisa que ouvi: que mandar é mais difícil que obedecer.
E não somente porque quem manda carrega o peso de todos que obedecem
e é fácil que este peso o esmague. [...]
Onde encontrei vida, encontrei vontade de poder.8

A afirmação nietzschiana na passagem é maximamente abrangente: “onde


encontrei vida, encontrei vontade de poder”. Se atentarmos para o que foi dito
recentemente, podemos afirmar que vontade de poder é o modo de ser de todo
vivente, isto é, ela designa o modo como toda configuração vital se dá. Quando fa-
lamos em modo de ser, ressaltamos que caráter tem a nomeação dessa dinâmica.
Em outras palavras, assinalamos que vontade de poder é, portanto, o como se
dá a vida, ou seja, a descrição do processo ôntico de formação e desagregação
das configurações de vida no interior do devir. Vontade de poder é, sobretudo, o
pensamento que leva às últimas consequências o projeto nietzschiano de pensar
pós-metafisicamente, quer dizer, não mais procurar princípios suprassensíveis
para explicar e estruturar a vida e o mundo fenomênico. A partir da constata-
ção da morte de Deus,9 percebemos que o desafio nietzschiano será pensar um
mundo10 que não mais possua carência ontológica, ou seja, que se autodetermi-
ne, sem precisar de instâncias ou princípios metafísicos para além dele mesmo.
Assim, temos algumas “pistas” para pensar o que seja propriamente a
vontade de poder. Na medida em que a vontade de poder descreve o como a
vida se dá, e que Nietzsche deseja pensar um mundo que se autodetermine,

8
Ibid., p. 144 e 145.
9
O recorrente tema da morte de Deus nos parece ser central na filosofia nietzschiana, uma vez que
todo pensamento pós-metafísico de Nietzsche surge como uma resposta a este fenômeno. Deus, aqui,
refere-se ao Deus Cristão (Cf. A gaia ciência, aforismo 343), mas não abrange somente Ele; ao con-
trário, inclui todas as configurações do mundo suprassensível no decorrer da história da filosofia oci-
dental. A morte de Deus refere-se não só ao esvaziamento dessas categorias, mas também à supressão
do próprio espaço da cisão binária da metafísica. Entendemos, portanto, morte de Deus, aqui, como o
fenômeno que ilustra a condição do mundo contemporâneo e que consiste na crise do pensamento me-
tafísico, por representar a supressão da possibilidade de se continuar pensando por meio de dicotomias
entre o mundo sensível e suprassensível. Sobre o tema indicamos ver o aforismo 125 de A gaia ciência.
Para uma interpretação do tema ler: “A sentença nietzschiana: ‘Deus está morto’.” de Heidegger (para
referências completas, ver bibliografia).
10
Sobre a discussão do que consista o mundo em Nietzsche, indicamos o aforismo 109 de A gaia ci-
ência, no qual Nietzsche discute e recusa várias hipóteses tradicionais da história da metafísica acerca
da gênese e da definição do que seja o mundo.

176 Rebeca Furtado de Melo


a vontade de poder é, justamente, a descrição dessa dinâmica de autocriação,
autodeterminação da vida. Mas, se a partir de agora não se deseja mais pensar
em nenhuma categoria a priori que esteja para além dessa dinâmica de geração
de vida, então todos os elementos em jogo precisam se determinar, de alguma
maneira, a posteriori. Para se pensar uma determinação a posteriori dos ele-
mentos, Nietzsche vai experimentar o pensamento da vontade de poder, que
afirma que as configurações se dão por meio de uma estrutura essencialmente
relacional, na qual cada elemento só conquista a determinação que é a sua a
partir do embate relacional com os demais elementos.
É por isso que Deleuze destaca a importância de que, na filosofia nietzs-
chiana, se pense por meio do conceito de forças, argumentando que não seria
suficiente, por exemplo, se, no lugar de força, se usasse o conceito de átomos,
uma vez que o átomo ainda possui uma determinação originária própria. Ao
contrário disso, o conceito de força resguarda uma indeterminação originá-
ria que só se conquista no embate com outra força. Ou seja, “O conceito de
força é, portanto, em Nietzsche, o de uma força que se relaciona com uma
outra força”.11 A vida pensada a partir do conceito de força é essencial e ori-
ginariamente relação, isto é, pensar a vontade de poder como a dinâmica de
autodeterminação de forças guarda o caráter perspectivista12 e múltiplo, sem
fundamentos suprassensíveis a priori que estejam para além do próprio emba-
te de forças característico da vontade de poder.
Vontade de poder é, portanto, a descrição da dinâmica de embate entre for-
ças, ou, como Nietzsche também irá chamar mais tarde, “quanta-de-poder”,13
que se autodeterminam na própria relação uns com os outros. A noção de
quanta-de-poder é ainda mais alusiva, uma vez que traz no nome o que está em
jogo no embate relacional no qual consiste a vontade de poder, a saber, o poder
que se concorre e conquista no embate com os demais quanta, caracterizando,
desta maneira, uma dinâmica de resistência e comando.
Esse embate entre quanta, portanto, consiste numa relação de disputa que
estabelece hierarquias entre as forças em relação. Um quanta se mostra um

11
Deleuze, 1976, p.5.
12
Mais uma vez, aludimos a um aforismo da A gaia ciência, o 374, no qual Nietzsche problematiza o caráter
perspectivístico da existência, que por meio da impossibilidade de determinar qualquer princípio último que
sirva como limite para o perspectivismo, considera que o mundo encerre “infinitas perspectivas”.
13
“Se eliminarmos estes ingredientes: então não resta coisa alguma, mas quanta dinâmicos em uma
relação de tensão com todos os outros quanta dinâmicos: cuja essência consiste em sua relação de ten-
são com todos os outros quanta em sua ‘produção-de-um-efeito’ sobre os mesmos – a vontade de poder
e não um Ser, não um devir, mas um pathos é o fato mais elementar, a partir do qual apenas se dá um
devir, um produzir-um-efeito...” (KSA 13, OP, 14 (79), ps. 259 apud CASANOVA, p. 300)

Leituras de Zaratustra 177


tanto mais forte à medida que impõe, na relação com os demais, o poder
interpretativo que é. Nietzsche ressalta o caráter hierárquico da relação entre
forças por meio das determinações de mando e obediência explicitados nos
trechos da passagem anteriormente citada: “Todo vivente é um obediente”,
“manda-se em quem não sabe obedecer a si mesmo”, e, ainda, “mandar é
mais difícil que obedecer”.14 As três asserções acerca do modo de ser do vi-
vente apontam diretamente para o estabelecimento de relações de poder por
meio de mando e obediência. Uma vez que o conceito de força aponta para a
relação com outras forças, ou seja, uma vez que cada força só conquista sua
determinação no embate com as demais, percebemos que o modo de ser do
vivente é, sobretudo, uma luta, um embate, uma concorrência entre forças a
fim de estabelecer relações de poder nas quais algumas forças mandam e ou-
tras obedecem. Dizer que algumas forças mandam significa apontar para o pa-
pel central que alguns elementos desempenham na ordenação hierárquica das
forças inerentes à relação. Essa relação é a concorrência, na qual os elementos
se configuram, ordenam, criam unidades marcadas pela hierarquização dos
quanta-de-poder. Todo vivente obedece ao poder que é, o que significa dizer
que um vivente se estrutura de acordo com uma hierarquia tal de forças que
o constitui que, por sua vez, está em embate incessante com as demais forças.
Cada quanta-de-poder obedece ao poder que emerge da relação de forças em
jogo em sua configuração vital, ou seja, todo quanta-de-poder obedece a si
mesmo. Ao mesmo tempo, porém, esse poder só se determina quando con-
corre com os demais, e, assim, estabelece relações de poder, que constituem
uma hierarquização dos elementos envolvidos no embate, no qual se obedece
àqueles quanta que desempenham um papel fundamental na configuração de
vida que constituem. Esses quanta-de-poder são sempre perspectivísticos,15 na

14
2008, p. 144 e 145.
15
Nos parece muito claro que haja uma relação essencial entre o perspectivismo nietzschiano e a
vontade de poder, tanto que nos parece ser absolutamente possível cambiar os termos força, quanta-de-
-poder e perspectiva com legitimidade. Com respeito a isso, teríamos que discutir mais detidamente o
tema, articulando melhor o caráter interpretativo das forças, por meio das relações de poder. Uma força
é sempre uma perspectiva que tenta se impor sobre as outras, o que é o mesmo que dizer que as forças
estão em constante embate, produzindo sempre um modo singular de ordenação da multiplicidade de
forças por meio das hierarquias. A este respeito, conferir CASANOVA, O instante extraordinário: “A
perspectiva viabiliza o olhar porque se impõe de maneira imperativa através da multiplicidade origi-
nariamente amorfa como um catalisador e provoca o aparecimento de uma unidade vital singular” (p.
291) “Perspectiva não é aqui o nome de um aspecto possível da mera relação posicional dos sujeitos
diante de um mundo previamente definido em seu conteúdo essencial, mas o nome para o modo de
constituição de todas as possíveis aparições tanto de sujeitos quanto de um mundo” (p. 293) “Elas co-
mandam o processo de nossa auto-constituição, (...) em todo e qualquer ato da vontade deparamo-nos
com um pensamento que comanda porque um modo singular de ordenação da pluralidade própria ao
mundo fenomênico sempre tem lugar aí através de uma luta originária contra outros modos singulares

178 Rebeca Furtado de Melo


medida em que resguardam essa indeterminação originária. No entanto, atu-
ando sobre a multiplicidade de elementos em jogo, eles geram uma espécie de
direcionamento. Isto é, no embate se formam hierarquias de perspectivas, nas
quais cada quanta impõe afirmativamente sua força interpretativa. Nele, pers-
pectivas mais fortes funcionam como catalisadores que produzem a síntese de
uma configuração vital específica, que nada mais é do que uma configuração
plural de forças que formam uma unidade vital provisória. As perspectivas que
mandam são o que poderíamos chamar de perspectivas integradoras, na medi-
da em que são capazes de integrar as demais numa “malha de poder”, produ-
zindo um direcionamento perspectivístico na síntese constituída. Ao mandar,
porém, uma perspectiva não faz outra coisa senão obedecer ao seu próprio po-
der que precisa se rearticular juntamente com novas configurações de poder.
As hierarquias não são fixas, as perspectivas estão numa dinâmica de per-
sistente embate. Por isso, a perspectiva que manda, o quanta de maior poder
sintetizador, produtor de integração, está sempre sob o risco de não ser mais
capaz de dominar. Daí ser mais difícil mandar, pois se está, a todo o momento,
correndo o risco de não conseguir integrar novos elementos e de, a partir daí,
não dar conta de se atualizar como novas configurações de realidade, sendo
“esmagado”, dominado pela total desintegração da unidade que sintetizava.
Por isso, cada configuração de vida é apenas uma configuração relativa e provi-
sória que precisa sempre se conquistar uma vez mais a fim de se conservar. Toda
conservação só pode se dar a partir de uma superação: “E este segredo a própria
vida me confiou: ‘Vê’, disse, ‘eu sou aquilo que deve sempre superar a si mesmo’.16
A vontade de poder não apenas nomeia a esta dinâmica de mando e obe-
diência, como também diz respeito à necessidade incessante de superação. A
conservação a partir da vontade de poder, portanto, só é possível como eleva-
ção – superação. Isto quer dizer que, para manter qualquer configuração de
vida conquistada, é preciso se superar, elevando sua capacidade de integra-
ção para além da que já havia estabelecido e, desta maneira, constantemente
estar em movimento de superação de si mesmo. Não existe a possibilidade
de estabilização de forças neste embate. Desta maneira, qualquer tentativa
de mera conservação é um declínio, como Heidegger frisa: “O poder mesmo

passíveis de ordenação e se mostra como um imperativo tanto para a multiplicidade dispersa dos ele-
mentos integrantes de cada acontecimento do real quanto para o estabelecimento de nosso Si próprio
em meio a estes acontecimentos” (p. 294). Para uma interpretação contrária do tema que entende o
perspectivismo como uma teoria do conhecimento independente do conceito de vontade de poder, que
diria respeito somente à ontologia nietzschiana, a qual ainda resguardaria “um em si” impossível de ser
acessado, conferir: MARQUES, António. Para uma Genealogia do Perspectivismo.
16
Do Superar a si mesmo, p. 145.

Leituras de Zaratustra 179


só é na medida em que e porquanto ele permanece um querer-ser-mais po-
der [...]. Somente uma elevação mais poderosa pode fazer com que se escape
da tendência para o declínio”.17 A vontade de poder, portanto, é sempre von-
tade de mais poder, vontade de autossuperação, e isto vai além da própria
autoconservação como configuração biofísica de qualquer vivente. É por isso
que Nietzsche continua a passagem da seguinte maneira:

Muitas coisas o ser vivo avalia mais alto do que a própria vida; mas, através
mesmo da avaliação, o que fala é – a vontade de poder!” –
[...] Em verdade, eu vos digo: um bem e um mal que fossem imperecíveis –
isso não existe! Cumpre-lhes sempre superar a si mesmos.
Com os vossos valores e palavras de bem e do mal, exerceis poder, ó vós,
que estabeleceis valores.18

Nesta passagem, se introduz uma nova questão, a questão do valor. O que


temos aqui é a afirmação de que a avaliação e o estabelecimento de valores
é também vontade de poder, na medida em que é uma maneira de exercer-
-ampliar poder. Nietzsche diz num fragmento póstumo: “O ponto de vista do
‘valor’ é o ponto de vista das condições de conservação-elevação em relação
a conformações complexas de duração relativa no interior do devir”19.20 Criar
valores, portanto, é criar condições de elevação de poder, o que quer dizer que
a criação de valores é um exercício da vontade de poder. Essa criação não é
uma eleição subjetiva de valores, mas, ao contrário, é o próprio acontecimento
de um tipo de vida. Os valores criados expressam as condições para um certo
tipo de vida exercer-elevar poder, e, por isso, antes de qualquer coisa, valores
são sintomas de tipos de vida, na medida em que podemos identificar um tipo
de vida por meio das condições que ele estabelece para ampliar seu poder, por
meio dos valores que cria.
O tipo de vida que cria valores que se pretendem universais e imutáveis é
também um tipo de vontade de poder, pois a partir disso pretende exercer po-

17
Heidegger, 2007, p. 55.
18
Ibid., p. 146.
19
O aforismo segue dizendo: “(...) – ‘Conformações de domínio’; a esfera do dominante constante-
mente crescendo ou periodicamente diminuindo; ou, em favor e em detrimento das circunstâncias (da
alimentação -)
- ‘Valor’ é essencialmente o ponto de vista para o acréscimo ou a diminuição destes centros domina-
dores (‘pluralidades’ de qualquer modo, mas a ‘unidade’ não está de maneira nenhuma presente na na-
tureza do devir) (...) Não há nenhuma vontade: há pontuações volitivas que constantemente aumentam
ou perdem o seu poder.” (KSA 13, OP, 11(73), p.36).
20
Apud CASANOVA, 2003, p.307.

180 Rebeca Furtado de Melo


der, se conservar, criando as condições necessárias para tal. Porém, na medida
em que tal conservação “não existe, cumpre-lhes sempre superar a si mesmo”;
o que ocorre é que, por serem valores que pretendem ser absolutos, irrestritos
e imutáveis, ou seja, que procuram se conservar sem transformações, eles
evidenciam um tipo de vontade de poder que subverte a própria noção da
vontade de poder, tentando obscurecer seu aspecto perspectivístico e sua a
necessidade de autossuperação.
A partir disso, portanto, já podemos pensar a afirmação inicial nietzschia-
na de que vontade de verdade é também vontade de poder. A metafísica é uma
maneira específica da vontade de poder,21 uma vez que é também uma confi-
guração de vida e uma estratégia de expansão de poder, que, por sua especifi-
cidade, precisa da segurança da imutabilidade dos princípios metafísicos para
se constituir. A estratégia deste tipo de vida, portanto, consiste em obscurecer
seu caráter de vontade de poder, não se projetando como uma perspectiva
que precisa se autossuperar, mas desejando incessantemente encontrar algum
princípio que esteja para além dessa dinâmica de autossuperação e possa, com
isso, se assegurar de si prévia e irrestritamente por meio de uma conservação
estática.
O que acontece é que, na medida em que a metafísica também é vontade de
poder, sua tentativa é frustrada e os valores que ela postula são sintomas desse
tipo de vida decadente. Decadente apenas porque desejam conservar-se sem
elevação e, portanto, já estão em processo de perda de poder. Esses valores já
“nascem” em declínio; quando são criados, já estão fadados a sucumbir pela
tentativa de manter seu caráter imutável. É por isso que Nietzsche afirma que
o perigo para estes valores é a própria vontade de poder, pois é a dinâmica da
vontade de poder que, ao exigir a autossuperação como condição para a con-
servação, condena tais valores à sua extinção. Assim, a morte de Deus nada
mais é do que a culminação de um declínio que já estava latente no momento
mesmo da instauração dos princípios metafísicos. Na medida em que a meta-
física é a tentativa de encontrar princípios que se conservem imutáveis, ela é a
própria sentença da sua impossibilidade de conservação, que só seria possível
por meio de um exercício de autossuperação.

***

21
“Os valores supremos até aqui são um caso especial da vontade de poder; a moral mesma é um caso
especial da imoralidade” (Fragmentos do início do ano de 1888, 14(137), p.321 apud CASANOVA,
2003, p. 142).

Leituras de Zaratustra 181


Dissemos, no início do texto, porém, que a narrativa do livro é essencial-
mente o caminho de autossuperação de Zaratustra, e, assim, expressão da
própria vontade de poder. Isto se torna evidente não só pela necessidade de
superar os valores da metafísica e de criar valores próprios, mas, também,
desde seu exílio à montanha aos 30 anos e o início de seu ocaso ao retornar à
convivência com os homens,22 a maneira com a qual se inicia o prólogo do li-
vro, até a superação da compaixão pelos homens superiores,23 cena com a qual
o livro termina; a narrativa da vida de Zaratustra é a narrativa de um exercício
de superação de si mesmo. As diversas recaídas, as retiradas à solidão, as re-
tomadas, o desejo de ter companheiros, o processo convalescente, tristezas,
grandes alegrias, danças e cantos, realçam o aspecto de que todo discurso de
Zaratustra é fruto de uma experiência, de uma filosofia experimental, a qual se
conquista como um exercício de um caminho próprio, por meio de superações
de si mesmo.
Toda “sabedoria” e afirmação de Zaratustra só são legítimas enquanto ex-
periências de autossuperação e, por isso mesmo, advertem quanto à impossi-
bilidade de tomar qualquer discurso como doutrina dogmática a ser seguida,
na medida em que são expressões de configurações momentâneas da vontade
de poder que precisam incessantemente se lançar para além de si mesmas
para não se tornarem imediatamente decadentes. Desta maneira, não são ver-
dades conquistadas definitivamente, mas expressões verazes de um processo
incessante de constituição de si e, nesta medida, uma conquista provisória
que impele uma vez mais ao “caminho do criador”, que só pode ser trilhado a
partir de uma dinâmica incessante de integração-destruição-conservação-elevação
que caracteriza a vontade de poder.
Desta maneira, uma questão se torna evidente: a autossuperação não é
uma dinâmica que possa ser entendida como progresso ou evolução – e por
isso, o romance não é um romance de formação no sentido de que o Zaratus-
tra do final do livro representa o ápice de um processo gradual conquistado
durante todo o livro. Expliquemo-nos melhor: a dinâmica da autossuperação
não pode ser entendida como um processo evolutivo, na medida em que não
há qualquer “fim último”, “meta final” que sirva como telos para o qual tudo
se encaminha e, portanto, cada “estágio” alcançado represente uma aproxi-

22
“Aos trinta anos de idade, deixou Zaratustra sua terra natal e o lago da sua terra natal e foi para a
montanha. (...) E no fim, contudo, seu coração mudou (...)‘Vê! Esta taça quer voltar a esvaziar-se e
Zaratustra quer voltar a ser homem.’ Assim começou o acaso de Zaratustra.” (Prólogo, § 1, p. 33 e 34).
23
“‘Compaixão! Compaixão pelo homem superior!’, exclamou; (...) Pois muito bem! Isso – já teve o
seu tempo!” (O Sinal, p. 381).

182 Rebeca Furtado de Melo


mação deste. Zaratustra não é “melhor” ou “mais evoluído” quando termina
o livro; suas sucessivas autossuperações não representam qualquer conquista
de estágio. Ao contrário, descrevem uma dinâmica que se anula em si mesmo,
uma vez que toda conquista alcançada é sempre já insuficiente. Além disso,
sua superação não significa algo como um acúmulo de poder que se possa
armazenar, porque as configurações são a cada vez diversas, isto é, as forças se
rearticulam a todo o momento, impossibilitando qualquer tipo de conquista
definitiva. Quer dizer, uma autossuperação não assegura em nada que essa
possa se manter ou se atualizar diante de novas articulações de forças.
Diversas autossuperações tampouco representam mais evolução, uma vez que
a autossuperação não é algo que se possa quantificar para comparar. Projetar-
-se para além de si a fim de ser capaz de integrar as novas articulações, ou seja,
autossuperar-se, em verdade, é a única maneira de se viver e, por isso, também,
não faz muito sentido pensar em evolução. Viver implica decadência e impele à
autossuperação. Desta maneira, as configurações de vida são sempre relativas,
provisórias, na medida em que estão em constante declínio e precisam incessan-
temente se rearticular por meio da autossuperação para se conservarem.
Poderia se questionar o prefixo “auto” na medida em que, ao se superar, a
configuração se transforma em outra. Porém, o prefixo aponta para o fato de
essa transformação incluir um “outro de si mesmo”. Isto é, na medida em que
os demais elementos colocam em risco a configuração que se é, conservar-se
significa exatamente integrar tais novos elementos que o ameaçavam. A todo
o instante, novos elementos entram em jogo e novas articulações de perspec-
tivas se estabelecem para integrar o novo. Zaratustra é a narrativa do caminho
de uma vida, que é marcado por encontros de perspectivas que ameaçam e co-
locam em risco o que se é e, desta maneira, cobram a superação de si mesmo.
Neste sentido, a narrativa da vida de Zaratustra é uma descrição da dinâmica
vontade de poder.
Para além disso, enquanto dinâmica de autossuperação, não se pode pen-
sar na possibilidade de encontrar uma forma de configurar-se que se assegure
de si mesmo previamente. Quer dizer, a vontade de poder é uma dinâmica
na qual não há garantias a priori. Se Zaratustra é a descrição de uma vida que
se realiza a partir da autossuperação, não podemos pensar em configurações
finais definitivas, pois não é possível se assegurar de sua conservação antes do
embate entre perspectivas que sintetiza a configuração. Quer dizer, uma vez
que as perspectivas, as forças, só se constituem a partir da relação, a autossu-
peração envolve a dificuldade “de carregar o peso de todos os que obedecem”
e o risco de “que este peso o esmague”. Todo mando é “um tentame e uma

Leituras de Zaratustra 183


ousadia”, é um incessante “colocar-se em risco”,24 risco de não ser mais capaz
de integrar o novo.
Toda configuração de vida está exposta à decadência incontornável, o pró-
prio Zaratustra é exemplo disto, uma vez que recai, decai e se supera tantas
vezes no decorrer do livro. Mesmo após superar “seu derradeiro pecado”, a
saber, a “compaixão pelo homem superior”,25 ele não está definitivamente
imune à “novas tentações”, pois não atinge qualquer configuração final. Mas,
ao contrário, continua completamente exposto ao declínio e, portanto, à ne-
cessidade de seguir superando a si mesmo.

***

Há um aforismo póstumo no qual Nietzsche diz: “A obra de arte, onde ela


se manifesta sem o artista, por exemplo enquanto corpo, enquanto organiza-
ção [...]. Conquanto o artista é apenas um estágio prévio. O mundo enquanto
uma obra de arte que gera a si mesma”.26 Em tal aforismo, Nietzsche descreve
o próprio mundo como uma obra de arte, pelo caráter essencialmente criador
da vida. Isto significa dizer que vontade de poder é uma atividade de auto-
produção criativa a partir de relações perpectivísticas que criam as diversas
configurações de vida. A arte, desta maneira, passa a ser uma manifestação
humana correlata da própria dinâmica de autoprodução da vontade de poder.
Somente na medida em que a própria vida é vontade de poder, ou seja, ativi-
dade incessante autocriadora, é que o mundo pode ser visto como uma obra
de arte sem o artista.
Desta maneira, a filosofia, como uma configuração específica de vida, tam-
bém não passa de uma criação artística resultante de embates de forças. Toda
metafísica é uma configuração perspectivística de forças. Porém, marcada por
um tipo específico de perspectiva, que poderia ser caracterizado como vontade
de poder rebelada, na medida em que tenta subverter a lógica relacional ao
buscar princípios absolutos, imutáveis e incondicionais para além da dinâmica
da vontade de poder.
Uma filosofia em consonância com a vontade de poder é uma filosofia que
se reconhece como uma atividade criadora, que assume seu caráter perspecti-
vístico e não se propõe a ser nada para além disso. Desta maneira, se declara

24
Do superar a si mesmo, p. 145.
25
O Sinal, p.381.
26
Apud HEIDEGGER, 2003:502.

184 Rebeca Furtado de Melo


como uma experiência de embates de forças, uma experiência das vontades
de poder que é. Nietzsche pode escrever como escreve pois sua escrita é um
exercício de vontade de poder. Sua filosofia é uma criação artística em conso-
nância com a dinâmica criadora da vida, expressão dos embates entre forças
que compõe seu tempo, seu pensamento, sua vida. Desta maneira, os limites
entre vida, arte, filosofia e literatura se tornam elusivos.
A filosofia nietzschiana é, sobretudo, um embate de perspectivas, que a
todo o momento se colocam em risco, testando suas possibilidades de inte-
gração e constante autossuperação. É por não buscar estabelecer conceitos de-
finitivos que segue escrevendo em aforismos, poesias e narrativas. É também
por isso que tantas vezes seus termos possuem uma variação enorme de signi-
ficado, evidenciando o caráter experimental e provisório característico não só
de toda filosofia e pensamento, mas, sobretudo, da própria vida. O Zaratustra,
em todos os sentidos, é a plena realização disto.

Referências Bibliográficas

CASANOVA, Marco Antônio. O instante extraordinário: vida, história e valor na obra


de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
CRAGNOLINI, Mónica. De Bactriana e as margens de Urmi à montanha e o ocaso: como
introdução à leitura de Assim falou Zaratustra. Tradução: Rebeca Furtado de Melo.
Artigo publicado neste mesmo livro.
DELEUZE, Nietzsche e a filosofia. Trad. de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily
Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
HEIDEGGER. A sentença nietzschiana: “Deus está morto”. Trad. de Marco Antônio
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______. Nietzsche I. Trad. de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Uni-
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Marques, António. Para uma genealogia do perspectivismo. In: ______. Sujeito e
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______. Assim falou Zaratustra. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008.

Leituras de Zaratustra 185


Zaratustra ou o ponto máximo da integração:
“o que pode o corpo?”

Marco Casanova

O que pode o corpo? Nós não o definimos ao dizer que ele é


um campo de forças, um meio que fornece o alimento para
uma pluralidade de forças aí em disputa. Pois, de fato, não
há “meio”, campo de forças ou batalha. Não há quantidade
de realidade, toda realidade é já quantidade de força. Nada
além de quantidades de força “em relação de tensão” umas
com as outras. Toda força está em ligação com outras, seja
para obedecer, seja para comandar. O que define um corpo é
a ligação entre as forças dominantes e as forças dominadas.
(Gilles Deleuze, Nietzsche e a Filosofia, p. 45)

O pensamento nietzschiano é essencialmente marcado pelo acontecimen-


to de uma crise. Esta crise não envolve apenas a mudança superficial de um
conjunto de traços contingentes em uma determinada conjuntura, mas aponta
para uma transformação radical no próprio coração da realidade como um
todo. A partir da experiência inexorável de um esgotamento total dos próprios
modos de constituição da existência por meio de padrões metafísicos de refle-
xão, os homens encontram-se repentinamente diante de um mundo despro-
vido de seus pontos cardinais de estruturação e uma vez mais infinitamente
aberto em suas possibilidades de realização. A verdade como princípio de fun-
damentação da totalidade vem à tona em seu caráter de fábula, e o interesse
por ela mostra-se, então, em articulação com um anseio por “esquematização,
por imposição de tanta ordem ao caos quanto é suficiente para a necessidade
prática”1 de um certo tipo de homem. O empenho por verdade e conhecimen-
to aparece como o resultado não de um esforço imaculado por descobrir o
modo de ser imutável da realidade, mas como uma via de escape frente a este

1
KSA13, OP, 14(152), p. 333.

Leituras de Zaratustra 187


modo mesmo: frente à soberania originária do devir. Tem início com isto um
tempo em que passa a vigorar toda uma nova lógica dos acontecimentos. Exa-
tamente como encontramos descrito de maneira exemplar em um fragmento
póstumo datado entre novembro de 1887 e março de 1888:

O que conto é a história dos próximos duzentos anos. Descrevo o que está
por vir, o que não pode mais se dar de outra forma: a ascensão do niilismo.
Esta história já pode ser contada agora: pois a necessidade mesma está aqui
em obra. Este futuro fala já em cem sinais, este destino anuncia-se por toda
parte; para esta música do futuro todos os ouvidos estão aguçados. Toda a
nossa cultura europeia movimenta-se há muito em uma torturante tensão
que cresce década a década, como em direção a uma catástrofe: inquieta,
violenta, precipitada: como uma corrente que quer chegar ao fim, que já não
lança os sentidos sobre si, que tem medo de lançar os sentidos sobre si.2

Mas qual é o caráter desta catástrofe que aponta para a origem do pen-
samento nietzschiano e para a própria conjuntura na qual nos encontramos
agora? O que Nietzsche entende por niilismo? Em que medida ele afina dispo-
sitivamente nossa existência como um todo e marca ao mesmo tempo o hori-
zonte de onde precisam partir os caminhos possíveis de sua superação? Uma
passagem de um outro fragmento da mesma época do anteriormente citado
fornece-nos uma primeira via de resposta a estas questões. O fragmento tem
o título deveras sugestivo de “Crítica ao niilismo”:

O niilismo enquanto estado psicológico tem ainda uma terceira e derradeira


forma. Dadas estas duas intelecções, a de que com o devir nada é intentado e
de que sob todo devir não vige nenhuma grande unidade, na qual o singu-
lar possa submergir plenamente como em um elemento de máximo valor:
então permanece como via de escape a condenação de todo este mundo do
devir como uma ilusão e a criação de um mundo que se encontra para além
deste último, enquanto um mundo verdadeiro. Logo que o homem descobre,
porém, como este mundo só foi construído por carecimentos psicológicos
e como ele não tem absolutamente nenhum direito a este mundo, surge a
última forma do niilismo, que encerra em si mesma a descrença em um mundo
metafísico – que veda uma crença em um mundo verdadeiro. Sobre este ponto
de partida afirma-se a realidade do devir como a única realidade, veda-se
qualquer tipo de desvios ardilosos em direção ao trasmundo e a falsas di-
vindades – mas não se suporta este mundo que já não se quer negar...
O que aconteceu no fundo? O sentimento da ausência de valor foi concretiza-
do, quando se compreendeu que o caráter conjunto da existência não pode

2
KSA13, OP, novembro de 1887 – março de 1888, 11(41), p. 189.

188 Marco Casanova


ser interpretado nem com o conceito de “meta”, nem com o conceito de
“unidade”, nem com o conceito de “verdade”. Nada é concretizado e alcança-
do através daí; falta a unidade preponderante em meio à multiplicidade do
acontecimento: o caráter da existência não é “verdadeiro”, é falso... Não se
tem mais simplesmente nenhuma razão para se convencer de um mundo
verdadeiro...
Em resumo: as categorias “meta”, “unidade” e “ser”, com as quais inseri-
mos um valor no mundo, foram uma vez mais retiradas por nós – e agora o
mundo parece desprovido de valor.3

O trecho encerra em si os elementos necessários para uma interpretação


da concepção nietzschiana do fenômeno do niilismo e estabelece, ao mesmo
tempo, esta concepção em ressonância de fundo com o modo histórico de com-
preensão da realidade. Ele inicia-se com uma alusão ao niilismo como estado
psicológico. Esta alusão não transforma imediatamente o niilismo em uma vi-
vência interna qualquer porque a expressão “estado psicológico” não está aqui
associada a nenhuma teoria psicológica no sentido vulgar do termo. Psicologia
é aqui pensada em sintonia com o conteúdo significativo originário do termo
grego yuch/, que descreve a vitalidade da vida como um todo. O niilismo como
estado psicológico aponta, assim, para a extensão máxima do niilismo até o
cerne da vida (yuch): para a concretização do niilismo como determinação da
totalidade.4 Esta concretização tem, por sua vez, três momentos estruturais. Os
dois primeiros momentos, que se encontram elaborados nos cadernos nietzs-
chianos de maneira minuciosa, aparecem na passagem citada apenas nomeados.
O niilismo como estado psicológico entra em cena em primeiro lugar quan-
do se compreende “que com o devir nada é intentado”, e, em segundo lugar,
quando se constata “que sob todo devir não vige nenhuma grande unidade, na
qual o singular possa submergir plenamente como em um elemento de máximo
valor”.5 Suprimem-se, portanto, nestes dois momentos, a ideia de uma meta
(te/loj) do devir e de um progresso paulatino em direção a esta meta (Leibniz e
Hegel), assim como dissipa-se também a suposição da existência de uma subs-
tância orgânica única previamente constituída sob o devir e capaz de sistema-
tizar todos os acontecimentos singulares da realidade (Espinoza e Schelling).
Por meio disso somos confrontados com uma experiência de mundo, na qual
este se apresenta como absolutamente desprovido de qualquer sentido ulterior
ou subjacente ao movimento ininterrupto de sua constituição deveniente. Esta

3
KSA13, OP, novembro de 1887 – março de 1888, 11(99), p. 47-48.
4
Conferir Martin Heidegger, Nietzsche II, p. 60-63.
5
KSA13, OP, novembro de 1887 – março de 1888, 11 (99), p. 47-8.

Leituras de Zaratustra 189


experiência radicaliza-se ainda mais a partir do perecimento da terceira e última
linha de fuga frente à absoluta soberania deste movimento.
O devir não tem nenhuma meta derradeira (te/loj) para a qual tende na-
turalmente, nem tampouco repousa sobre uma unidade substancial capaz de
estabelecer de fora uma necessidade para cada uma de suas conformações cir-
cunstanciais. Apesar de não possuir uma tal meta ou repousar sobre uma tal
unidade, ele não precisa ser imediatamente assumido como a verdade única do
real. Sempre persiste ainda a possibilidade do empreendimento de uma cisão da
totalidade em dois mundos ontologicamente distintos e da associação do mun-
do do devir com o meramente ilusório, inverídico e aparente: sempre persiste
ainda a possibilidade de divisão da realidade em um mundo verdadeiro e um
mundo aparente. Nas palavras de Nietzsche: “permanece como via de escape
a condenação de todo este mundo do devir como uma ilusão e a criação de um
mundo, que se encontra para além deste último, enquanto um mundo verda-
deiro”. O problema inerente a esta terceira via está expresso por meio de duas
palavras contidas na passagem citada: condenação e criação. A aparição do mundo
verdadeiro não provém de uma postura livre e desinteressada em relação ao ca-
minho do conhecimento, mas parte de uma condenação do devir como o caráter
soberano da realidade. De acordo com uma formulação paradigmática presente
em uma anotação do outono de 1887: “O homem busca ‘a verdade’: um mundo
que não se contradiga, não iluda, não se altere, um mundo verdadeiro – um mun-
do no qual não se sofre: contradição, ilusão, mudança – causas do sofrimento!
Ele não duvida que haja um mundo como deve ser; ele gostaria de buscar o ca-
minho até este mundo”.6 O devir como o contraditório por excelência causa-nos
dor e impede o desenvolvimento pleno de uma dinâmica de autoasseguramen-
to. Ele ilude-nos em meio à sua transformação incessante porque não é em si
mesmo nada além de ilusão. Ele precisa ser assim condenado e corrigido, uma
vez que sua própria natureza confunde-se com as causas primordiais de nos-
so sofrimento e insegurança.7 Esta condenação fundamenta o aparecimento do
mundo verdadeiro como um contraponto ao mundo do devir. O aparecimento
do mundo verdadeiro não se dá, porém, a partir de uma simples descoberta de
uma instância previamente dada e constituída, ele aponta para um certo proces-
so criativo. Mas em que medida o mundo verdadeiro advém efetivamente de um

6
KSA12, OP, outono de 1887, 9(60), p. 364.
7
A assunção da dor como causa da condenação do devir experimenta uma restruturação a partir do
conceito vontade de poder. Nos escritos da primeira fase do pensamento nietzschiano, a dor é dire-
tamente compreendida como o fundamento da negação do modo originário de ser da vida, enquanto
na última fase ela passa a se mostrar como sintoma da negação. A dor passa a ser o sintoma de uma
vontade de poder fraca, de uma incapacidade de resistir ao embate com as outras vontades de poder.

190 Marco Casanova


processo criativo? O que legitima a afirmação nietzschiana citada? Um fragmen-
to de novembro de 1887 – março de 1888 auxilia-nos na tarefa de responder a
estas questões: “O ‘mundo verdadeiro’, como quer que tenha sido pensado até
agora, sempre foi o mundo aparente uma vez mais”.8
A suposição da existência de um mundo verdadeiro implica necessaria-
mente uma cisão entre verdade e aparência, entre coisa-em-si e fenômeno.
Esta cisão pressupõe que tenhamos um acesso real a este mundo verdadeiro:
que possamos considerar uma coisa em sua constituição essencial completa-
mente apartada de todas as suas relações. Só estaríamos em condições de levar
a cabo uma tal consideração, se pudéssemos nos libertar de uma maneira qual-
quer de nosso aprisionamento na sensibilidade e concebêssemos por meio
disso o mundo verdadeiro em sua constituição pura: se tivéssemos uma possi-
bilidade qualquer de alcançar um conhecimento do mundo que não possuísse
nenhuma fenomenalidade e estivesse em conexão com o que se encontra para
além de toda aparência. Exatamente neste ponto apresenta-se de qualquer
forma um problema de todo insolúvel. Precisamos nos desprender inteira-
mente de toda ligação sensível com o mundo, mas não temos absolutamente
nenhum meio de levar a termo este desprendimento. Precisamos cunhar um
caminho metodológico adequado para este conhecimento, mas sempre aca-
bamos por inserir subrepticiamente neste caminho a marca de nossa própria
constituição empírica.9 A diferenciação entre fenômeno e coisa-em-si vai
com isto paulatinamente se dissipando, pois toda e qualquer tentativa de uma
determinação da coisa-em-si sempre acaba por trazê-la uma vez mais até o
interior do fenômeno e, assim, necessariamente fracassa. A partir da vivência
reiterada deste fracasso surge o espaço para a apreensão do mundo verdadeiro
como uma mera reduplicação do mundo aparente. Conquanto a supressão da
concepção mesma de um mundo verdadeiro equivale à dissolução de toda e
qualquer dimensão previamente dada da realidade, não se pode senão concluir
pelo caráter criador de todas as configurações possíveis da aparência. Como
um modo de determinação da aparência, o mundo verdadeiro nasce de um
processo “poético” .10

8
KSA13, OP, 11(50), p. 24.
9
Quanto à compreensão nietzschiana deste aprisionamente na sensibilidade e à sua ligação com o
caráter empírico da linguagem, conferir a formulação presente no escrito póstumo “Sobre verdade e
mentira no sentido extra-moral”: KSA1, VMI, p. 878-79. Conferir também o volume das anotações
para as preleções do semestre de inverno de inverno de 1871/72 até o semestre de inverno de 1874/75.
Em especial, “Apresentação da retórica antiga”, §3, p. 425-26.
10
Cf. a definição de poih/sij dada por Platão no diálogo “Sofista”, 219b.

Leituras de Zaratustra 191


Nós tivemos a oportunidade de acompanhar nos parágrafos anteriores o
ponto de sustentação da afirmação nietzschiana do mundo verdadeiro como
uma ilusão produzida através de um processo criativo de conformação. O
aquiescimento à incontornabilidade deste caráter ilusório abre as portas si-
multaneamente para o aparecimento da terceira forma de concretização do
niilismo como estado psicológico, como o pathos fundamental da totalidade:
“Logo que o homem descobre como este mundo só foi construído por careci-
mentos psicológicos e como ele não tem absolutamente nenhum direito a este
mundo, surge então a última forma do niilismo, que encerra em si mesma a
descrença em um mundo verdadeiro – que veda uma crença no mundo verdadei-
ro”. Diante da impossibilidade de continuar pressupondo a existência de um
mundo verdadeiro, o homem vê-se enfim entregue radicalmente à incessante
constituição e dissolução da aparência. Não há mais nenhuma dimensão onto-
lógica estável propiciando o espaço para o desenvolvimento do conhecimento,
mas tudo decai em um vir-a-ser ininterrupto. Sem uma meta para além do devir,
sem uma substancialidade una imanente ao devir e sem um plano ontológico estável para
além do devir, o niilismo vem à tona em sua máxima extensão. Mas o que é assim em
síntese o niilismo? De acordo com a definição nietzschiana, a total desvalori-
zação do mundo por meio do desaparecimento dos fundamentos mesmos da
compreensão metafísica de realidade. Para além da definição expressa, a sujei-
ção de toda realidade ao devir. O niilismo ganha termo no momento em que
o devir é assumido como a única marca determinante de todos os aconteci-
mentos da totalidade. Uma passagem da Segunda consideração intempestiva (“Da
utilidade e da desvantagem da história para a vida”) esclarece-nos um pouco
mais este ponto: “Tomai como exemplo mais extremo um homem que não
possuísse de modo algum a capacidade de esquecer e que estivesse condenado
a ver por toda parte um devir: um tal homem não acredita mais em seu próprio
ser, não acredita mais em si, vê tudo fluir em pontos móveis para fora um do
outro e se perde nesta torrente do devir: como o leal discípulo de Heráclito,
quase não se atreverá mais a mover o dedo”.11 Niilismo é, portanto, neste con-
texto, o resultado de uma incapacidade de esquecer em certa medida o devir.
Nós perguntamos então: como se dá um tal esquecimento? Esquecer o devir
é o mesmo que lidar negativamente com o seu caráter soberano, ou será que
este esquecimento aponta para alguma instância afirmativa? Até que ponto é
possível superar o caráter niilista do devir sem recair imediatamente em uma
das três categorias metafísicas anteriormente apontadas? É preciso de alguma
forma esquecer o devir para conquistar algum peso ontológico para a realidade. O

11
KSA1, CI II (1), p. 250.

192 Marco Casanova


solo de enraizamento deste esquecimento repousa sobre uma perspectiva que
transforma a vida como um todo em experiência do conhecimento. O próprio
Nietzsche explicita esta transformação em um fragmento decisivo datado en-
tre o início do ano e o verão de 1888:

Onde reconheço os meus iguais. – Filosofia, tal como a entendi e vivi até ago-
ra, é a procura voluntária também pelos lados amaldiçoados e infames da
existência. A partir de uma longa experiência que me foi dada por uma tal
viandança através do gelo e do deserto, aprendi a ver tudo o que filosofou
até aqui de outra maneira: a história velada da filosofia, a psicologia de seus
grandes nomes veio à luz para mim. “O quanto de verdade suporta, o quanto
de verdade ousa um espírito?” – isto se tornou para mim o próprio medidor
de valores. O erro é uma covardia... toda conquista do conhecimento nasce
da coragem, da rigidez frente a si mesmo, do asseio contra si mesmo... Uma
tal filosofia-experimental, tal como a vivo, antecipa a título de um ensaio
mesmo as possibilidades de um niilismo fundamental: sem que com isto
se diga que permanece parada junto a um não, junto a uma negação, junto
a uma vontade de não. Ela quer muito mais atravessar até o polo inverso
– até um dizer-sim dionisíaco ao mundo, tal como ele é, sem subtração, sem
exceção e escolha – ela quer o eterno curso circular – as mesmas coisas, a
mesma lógica e não lógica dos nós. O estado mais elevado que um filósofo
pode alcançar: postar-se dionisiacamente frente à existência –: minha fór-
mula para isto é amor fati...12

“O quanto de verdade suporta, o quanto de verdade ousa o espírito?” Nes-


tas palavras repousa o sentido próprio à ideia nietzschiana de uma filosofia
experimental. O que se encontra nomeado por meio do termo verdade não
se confunde com noções metafísicas como essência, quididade ou substância,
mas nos remete imediatamente para o devir como o traço originário de todas
as configurações do real. Como encontramos formulado em uma anotação
do outono 1885-outono de 1886: “O mundo que nos diz respeito [o único
mundo que podemos por fim de algum modo conhecer] está ‘em fluxo’, como
algo deveniente”.13 Filosofia experimental é, portanto, algo que gira desde o
princípio em torno da afirmação do devir como o traço primordial da totali-
dade. Esta afirmação não implica, contudo, necessariamente a assunção das
consequências niilizantes para a existência, que vêm à tona com a desvalo-
rização de categorias tradicionalmente vigentes. Decisiva em relação a esta

12
KSA13, OP, início do ano – verão de 1888, 16(32), p. 492.
13
KSA12, OP, outono de 1885 – outono de 1886, 2(108), p. 112. O que está entre travessões foi
inserido por mim.

Leituras de Zaratustra 193


verdade é muito mais a determinação da capacidade de suportá-la e mesmo de
buscá-la em nome da constituição de uma existência plena. “Uma tal filosofia-
-experimental antecipa a título de um ensaio mesmo as possibilidades de um
niilismo fundamental”: ela considera sem subterfúgios os efeitos de uma re-
dução de toda realidade ao devir e tem clareza quanto à imediata impressão
de ausência completa de valor que tem lugar junto com esta redução. Ela não
“permanece parada porém junto a um não, junto a uma negação, junto a uma
vontade de não”. Ela não se deixa levar pela aparente vigência inconteste da
relação entre o devir e a nadificação de todas as configurações do real ou de
todas as ações possíveis no real, mas encontra no devir mesmo um caminho
efetivo de conquista de um sim, de uma afirmação, de uma vontade de sim.
De acordo com o prosseguimento da anotação anteriormente citada sobre o
niilismo como estado psicológico:

Posto que reconhecemos em que medida o mundo não pode mais ser inter-
pretado com estas três categorias e que com esta intelecção o mundo co-
meça a tornar-se sem valor para nós, precisamos perguntar de onde provém
nossa crença nestas três categorias – experimentemos se não é possível
abandonar a crença nelas. Se desvalorizamos estas três categorias, então
a prova de sua inaplicabilidade para o todo não é mais razão alguma para
desvalorizar o todo.14

Se é possível compatibilizar a máxima positividade na existência com a as-


serção do caráter soberano do devir, nada mais justo do que investigar agora os
traços estruturais desta compatibilidade. No que concerne a esta investigação,
é necessário retornar mais incisivamente à noção de filosofia experimental.
A descrição nietzschiana da expressão “filosofia experimental” estabelece a
capacidade de suportação e de exposição voluntária ao devir como princípio de
avaliação. O valor de um homem, de um povo ou de uma cultura está marcado
para Nietzsche pela grandeza dessa capacidade. A determinação desta grande-
za não se dá, por sua vez, em um mero espaço lógico-representativo universal,
mas se perfaz sim no interior de cada existência singular. A existência é em
outras palavras o lugar de realização de uma experiência incessante, na qual
o que está em jogo é justamente a possibilidade de conquistar positivamente
o seu próprio em meio à vigência soberana do devir. O ponto de sustentação
desta experiência aponta para o sentido da concepção nietzschiana da vontade
de poder. Vontade de poder é um termo que trabalha em sintonia plena com
a assunção do devir como a verdade. Ela não designa uma substância trans-

14
KSA13, OP, novembro de 1887 – março de 1888, 11(99), p. 48-9.

194 Marco Casanova


cendente que controla o movimento da totalidade de fora, nem tampouco um
princípio subjacente ao qual toda configuração fenomenal pudesse ser reduzi-
da.15 Ela é muito mais o nome para o acontecimento que tem lugar na própria
superfície fenomênica. Os traços centrais deste acontecimento evidenciam-se
em meio a uma certa compreensão do modo de ser originário da totalidade.
Nietzsche escreve em uma anotação do início do ano de 1888 intitulada “Von-
tade de poder enquanto conhecimento”:

Crítica do conceito de ‘mundo verdadeiro e mundo aparente’. Destes, o pri-


meiro é uma mera ficção, cunhada a partir das coisas mais fictícias. O ‘caráter
de aparência’ pertence ele mesmo à realidade: ele é uma forma de seu ser.
Isto é, em um mundo, no qual não há nenhum ser, um certo mundo calculá-
vel de casos idênticos precisa ser primeiramente criado através da aparência:
um tempo, no qual observação e comparação tornam-se possíveis. A ‘apa-
rência’ é um mundo estabelecido e simplificado, junto ao qual trabalhamos
nossos instintos práticos. Ela é para nós plenamente correta: a saber, nós
vivemos, nós podemos viver nela: prova de sua verdade para nós... O mundo,
abstraindo-se de nossa condição de viver nele, o mundo que não reduzimos a
nosso ser, nossa lógica e nossos preconceitos psicológicos não existe enquan-
to mundo ‘em si’. Ele é essencialmente mundo-relacional.16

O fragmento traz consigo os elementos necessários para a determinação da


compreensão nietzschiana do modo de ser do real e para a visualização do solo
de enraizamento primordial da “vontade de poder”. Ele inicia-se com uma alu-
são àqueles dois conceitos estruturais da história da metafísica que considera-
mos anteriormente: mundo verdadeiro e mundo aparente. Estes conceitos não
descrevem apenas dimensões periféricas desta história, mas indicam um pon-
to de partida fundamental para todas as suas mais diversas configurações. No
momento em que a metafísica vem à tona, ela empreende imediatamente uma
cisão na realidade como um todo e passa a considerar um dos lados desta cisão
como critério ontológico para o outro. Para além da contingência fugaz do que
está sujeito à lógica da geração e corrupção, surge com isto o mundo do em si,
o mundo das substâncias eternas e imutáveis. Como vimos, o problema desta
concepção reside justamente na possibilidade mesma de acesso a este mun-
do. Por se mostrar como um âmbito desprovido de qualquer fenomenalidade
e apartado de toda relação temporal finita, o mundo verdadeiro só pode ser
alcançado por meio de um radical abandono de toda mistura com a empiria.

15
Cf. W. Müller-Lauter, “Nietzsches Lehre vom Willen zur Macht”, em Nietzsche Studien 3.
16
KSA13, OP, Início do Ano de 1888, 14(93), p. 270-71.

Leituras de Zaratustra 195


A aproximação de um tal âmbito pressupõe, portanto, que podemos de algum
modo empreender o movimento do conhecimento para além de todo contato
com o aparente. Se suprimirmos completamente este contato, não resta po-
rém conteúdo algum para o conhecimento e não nos deparamos senão com o
vazio. Como encontramos formulado em uma outra anotação da mesma época
da supracitada: “A contradição entre o mundo aparente e o mundo verdadeiro
reduz-se à contradição entre ‘mundo”’ e ‘nada’”.17 Conquanto não se tem con-
teúdo algum para o mundo verdadeiro e ele se confunde então com o nada,
não se pode senão concluir que “o ‘caráter de aparência’ pertence ele mesmo à
realidade, que ele é uma forma de seu ser”. Tudo passa a mostrar-se em resumo
a partir de uma incontornável ligação com a aparência e a determinação própria
ao aparente surge como intrínseca à realidade mesma. O que caracteriza por
sua vez o aparente é sempre a presença de uma multiplicidade de elementos. O
próprio Nietzsche explicita esse caráter plural do aparente em uma passagem
de um fragmento póstumo datado entre o outono de 1885 e o início do ano de
1886: “Não há nenhum acontecimento em si. O que acontece é um grupo de
fenômenos interpretados e reunidos por uma essência interpretativa”.18 O que
temos a cada instante na aparência é assim um processo sintético de unificação
e organização da multiplicidade constitutiva de todo fenômeno.
Nós descobrimos acima a multiplicidade como traço determinante da apa-
rência. Diante de uma tal compreensão, podemos agora dar um passo à frente
e alcançar o cerne da concepção nietzschiana do modo de ser originário da
totalidade. Toda aparência sempre abarca em si mesma uma série de elemen-
tos em uma certa disposição relacional. Estes elementos não se encontram
desde o princípio dados na realidade, de modo que só experimentam algum
tipo de transformação através da interferência de uma força extrínseca. Muito
ao contrário, a própria constituição de cada elemento tem lugar no interior
do aparecimento de uma forma possível de relação. Em termos nietzschianos:
“não há nenhuma unidade derradeira duradoura, nenhum átomo, nenhuma
mônada: aqui também “o ente” é primeiramente inserido por nós”.19 Neste
sentido, tudo gira aí em torno dos princípios de organização das unidades
aparentes, dos grupos de fenômenos sintetizados em toda aparência. À medi-
da que cada dimensão da aparência só conquista a sua determinação própria
por meio de uma tal dinâmica de unificação e sempre se mostra por meio
disso como um componente essencial da relação, todas as suas dimensões em

17
Ibid., p. 371.
18
KSA12, OP, outono de 1885 – início do ano de 1886, 1(115), p.
19
KSA13, OP, novembro de 1887 – março de 1888, 11(73), p. 36.

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geral encerram em si a possibilidade de interferir e de resistir na formação da
unidade. Como esta possibilidade indica necessariamente a presença de uma
lei imanente constitutiva de cada processo singular de configuração destas
dimensões, todas elas apontam para forças originárias que só descobrem o
que são através de uma luta por impor umas às outras seus respectivos mo-
dos de organização. O mundo em sua instância mais principial não envolve
assim uma série inumerável de entes simplesmente dados que são a cada vez
interpretados e trazidos para um arranjo específico por um outro ente dado
qualquer, mas se revela inversamente pela máxima indeterminação da multi-
plicidade de princípios de composição de cada unidade aparente. Exatamente
como está formulado em um fragmento de 1888:

Os físicos acreditam em um ‘mundo verdadeiro’ à sua maneira: uma firme


sistematização dos átomos em um movimento necessário, o mesmo para
todos os seres. Assim, o ‘mundo aparente’ é para eles reduzido à parte do
ser universal e universalmente necessário que é acessível a todo e qualquer
ser do seu próprio modo (acessível e também ao mesmo tempo adaptado –
subjetivado). Mas eles se equivocam. O átomo que eles inserem é inferido
de acordo com a lógica do perspectivismo da consciência – e é, portanto,
ele mesmo uma ficção subjetiva. Esta imagem do mundo que eles cons-
troem não difere essencialmente em nada da imagem de mundo subjetiva:
ela é apenas construída com sentidos mais amplos, mas não obstante com
nossos sentidos – E em todo caso eles deixam algo de fora da constelação
sem o saber: precisamente este perspectivismo necessário, em virtude do
qual todo e qualquer centro de força – e não apenas o homem – perfaz todo
o resto do mundo a partir de seu próprio ponto de vista; isto é, a partir de
suas medidas, sentimentos, formas, de acordo com sua própria força – [...]
Minha ideia é: todo e qualquer corpo específico luta para se tornar senhor
sobre todo o espaço, para estender sua força (– sua vontade de poder:) e
para reverter todas as resistências à sua extensão. Mas ele encontra con-
tinuamente esforços similares por parte dos outros corpos e termina por
chegar a um arranjo (“união”) com aqueles dentre os corpos que são su-
ficientemente relacionados com ele: então eles conspiram conjuntamente
por poder. E o processo continua.20

Acompanhamos a compreensão nietzschiana do modo de ser originário do


mundo. Se estivéssemos em condições de suprimir toda aparência, não encon-
traríamos depois disto o mundo verdadeiro ou o mundo em si. Ao contrário,
depararíamo-nos com uma multiplicidade radicalmente indeterminada de

20
KSA13, N, Beginning of 1888, 14(186), p. 373-74.

Leituras de Zaratustra 197


princípios dinâmicos de estruturação de todo o espaço que sempre carecem
de um embate com os outros princípios da mesma natureza para alcançar
uma efetiva concretização. Para denominar o estado conjunto desta multi-
plicidade originariamente indeterminada, Nietzsche utilizou-se do termo
“caos”. Tal como se encontra expresso paradigmaticamente em uma passa-
gem do livro Nietzsche et la métaphysique, de Michel Haar: “O que Nietzs-
che chama de ‘Chaos’ designa esta indeterminação primordial da vontade
de poder. Indeterminada em si, ela pode assumir múltiplas formas que são
também máscaras: ela é ‘Proteu’. Informe por excesso de possibilidades,
o Chaos significa por um lado não a desordem, mas a multiplicidade de
pulsões, o horizonte inteiro das forças”.21 Caos é, portanto, o solo de en-
raizamento de todas as configurações possíveis do real, uma vez que todas
elas sempre surgem através de uma luta que aí tem lugar. Em meio à con-
cepção nietzschiana do caos originário, conquistamos uma via de acesso ao
conteúdo significativo do termo “vontade de poder”. Vontade de poder não
possui nada em comum com o simples anseio por exercer um domínio so-
bre um certo conjunto de entes, mas descreve muito mais a vida do embate
mesmo que transpassa o cerne do acontecimento primordial da realidade.
Conforme vimos, os princípios de estruturação da aparência encontram-se
inicialmente em um âmbito de total indeterminação porque só se determi-
nam por meio de uma luta com os outros princípios de estruturação. Como
não há possibilidade alguma de um equilíbrio total entre as forças e de uma
consequente adiaforia, cada luta impõe um direcionamento específico. A
cada momento tem-se, com isto, a formação de um arranjo singular das
forças, assim como este arranjo provém da articulação de todas elas em
uma direção resultante. Vontade é, por sua vez, o termo nietzschiano para
a designação deste movimento de estruturação das forças originariamen-
te em jogo a partir de um direcionamento singular. Nietzsche afirma em
uma anotação do outono de 1887: “Todo acontecimento, todo movimento,
todo devir é a fixação de relações de grau e de força: uma luta”.22 Antes do
empreendimento de uma tal fixação não nos deparamos com uma essen-
cialidade indiferente às diversas composições da superfície, assim como
para além do mundo fenomênico não vige uma vontade-em-si que encontra
posteriormente expressão em suas objetivações. Ao contrário, a represen-
tação imaginária da supressão de todas as relações de força aponta para a
concentração de uma pluralidade caótica de puras possibilidades “dinâmi-

21
Michel Haar, “Nietzsche et la Métaphysique”, p. 28.
22
KSA12, OP, Outono de 1887, 9(91), p. 385.

198 Marco Casanova


cas” de integração. Uma vez que estas possibilidades “dinâmicas” já estão
desde sempre em luta umas com as outras, elas se expõem a partir de uma
composição e de uma consequente preponderância de um direcionamento
singular. Vontade é aqui o nome para o despontar de um imperativo a partir de
um tal direcionamento.23 Como o que nasce deste imperativo é um arranjo de
toda uma pluralidade de elementos em jogo em um determinado aconte-
cimento sob o controle de um único princípio de ordenação, toda vontade
traz consigo uma certa injunção de poder. Nas palavras de Nietzsche: “O
grau de resistência e o grau de poder-sobre – é disto que se trata em todo
acontecimento”. Vontade de poder é, com isto, o nome do modo de reali-
zação de todos os acontecimentos da totalidade, uma vez que todos estes
acontecimentos surgem mediante uma luta entre possibilidades de condu-
ção do processo constante de composição das forças em jogo na realidade
e que esta luta sempre resulta no aparecimento de uma via imperativa de
expansão destas forças sob o domínio interpretativo de uma possibilidade
em específico.
O último parágrafo mostrou-nos o sentido da expressão nietzschiana “von-
tade de poder”, e trouxe, ao mesmo tempo, consigo, em sua concretude má-
xima, o horizonte de constituição própria desta expressão. Vontade de poder
descreve o modo de ser do embate originário entre princípios de estruturação
de “conformações complexas (de domínio) de duração vital relativa no inte-
rior do devir”.24 Nós nunca temos, por conseguinte, uma única vontade de
poder, mas tudo se dá desde o princípio por uma luta entre vontades de poder.
Do mesmo modo, não se tem em momento algum uma interrupção defini-
tiva da luta e a cristalização do real em uma de suas possíveis configurações
complexas. O que está em jogo em todos os acontecimentos em geral não é
uma busca de um estado de máxima satisfação e o anseio por se manter neste
estado. Ao contrário,

[...] a vontade de acumulação é específica para o fenômeno da vida,


para a alimentação, a geração, a herança, para a sociedade, o estado, o
hábito, a autoridade [...]. Não apenas constância da energia, mas eco-
nomia maximal do gasto: de maneira que o querer-vir-a-ser-mais-forte é a
partir de cada centro de força a única realidade – não autoconservação, mas

23
Conferir Volker Gerhard, Vom Willen zur Macht. Anthropologie und Metaphysik der Macht am
exemplarischen Fall Friedrich Nietzsche, Teil 3, VIII, 5, “Wille ist Wille zur Macht”, p. 265: “Vontade
– na forma admitida por Nietzsche – é o conceito para a unidade atual das aspirações de preponderância
e comando. Ela designa o impulso vetorial a partir de uma multiplicidade de exteriorizações de força e
se baseia na dinâmica vivenciada de uma pulsão dominante”.
24
KSA13, OP, Novembro de 1887 – Março de 1888, 11(73), p. 36.

Leituras de Zaratustra 199


apropriação, querer-vir-a-ser-senhor, querer-vir-a-ser-mais, querer-vir-
-a-ser-mais-forte.25

O pensamento da vontade de poder implica, portanto, o acontecimento de


um determinado processo de integração de uma multiplicidade de elementos,
assim como a colocação em jogo a cada instante do resultado alcançado em
todo arranjo específico. A partir desta formulação, conquistamos a possibili-
dade de compreender a afirmação zaratustriana de que “o corpo é uma grande
razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um
rebanho e um pastor” e de que “o espírito (enquanto a pequena razão) é ape-
nas um instrumento e um brinquedo da grande razão”.26
Exatamente como vimos anteriormente, a compreensão nietzschiana do
modo de ser originário da realidade aponta para uma luta sempiterna entre
múltiplos centros interpretativos de força que só se determinam efetivamente
por meio de uma capacidade de exercer e de resistir ao poder dos outros centros
de força em geral. Vontade de poder, enquanto a expressão que concentra em si
mesma o conteúdo significativo próprio a essa compreensão, envolve, portanto,
dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, uma vontade de poder é tanto
maior quanto maior é a sua capacidade de integração da pluralidade. Tal como
Nietzsche mesmo o formula em um fragmento do início do ano de 1888:

Fraqueza da vontade: isto é uma parábola que pode levar ao erro. Pois não
há nenhuma vontade, e consequentemente nem uma forte, nem uma fraca.
A pluralidade e a desagregação dos impulsos, a carência de sistema entre
eles resulta como ‘vontade fraca’; a coordenação destes impulsos sob o
predomínio de um único resulta como ‘vontade forte’; – no primeiro caso
tem-se a oscilação e a falta de um fiel da balança;27 no segundo, a precisão
e a clareza da direção.28

Em segundo lugar, uma disposição para colocar sempre uma vez mais em
jogo os arranjos já alcançados no interior de um embate determinado e de

25
KSA13, OP, início do ano de 1888, 14(81), p. 261. Quanto ao problema da tensão entre auto-
-conservação e auto-elevação no pensamento da vontade de poder, conferir a primeira parte do livro
“Nietzsche: Die Dynamik der Willen zur Macht und die ewige Wiederkehr” de Günter Abel.
26
KSA4, Z I, “Dos Desprezadores do Corpo”, p. 51.
27
O termo fiel da balança traduz aqui o termo alemão “Schwergewicht”. Este termo é decisivo, uma
vez que ele está ligado ao aforismo que expõe pela primeira vez nas obras publicadas em vida por Niet-
zsche o pensamento do “eterno retorno do mesmo”. O aforismo 341 de “A gaia ciência” tem o título “O
peso mais pesado” (Das grosste Schwergewicht). A tradução em português perde a ambiguidade consti-
tutiva do alemão: o peso mais pesado é também o maior fiel da balança, a medida de todas as medidas.
28
KSA13, OP, início do ano de 1888, 14(219), p. 394.

200 Marco Casanova


arriscar-se assim a sucumbir em meio à integração de novos elementos. O que
temos, em outras palavras, são “pontuações volitivas que constantemente au-
mentam ou perdem seu poder”.29 A maior vontade de poder é com isto aquela
que está em condições de abarcar o maior número de elementos sob uma úni-
ca lei de integração em meio à aparição de elementos sempre novos. Tomando
este ponto como critério para a delimitação da grandeza de uma força, não é
difícil perceber a consistência da afirmação zaratustriana do corpo como uma
grande razão. Se considerarmos as teorias modernas acerca do caráter primá-
rio do “espírito” entendido em sua essência subjetiva, este aparece como a
instância mais simples e desprovida de mistura, como um dado imediato da
consciência.30 Uma análise mais atenta revela, porém, o caráter absolutamente
derivado da subjetividade. Para que a palavra eu seja expressa, faz-se necessá-
rio, nos termos nietzschianos, toda uma série de relações causais inusitadas
que passam completamente despercebidas para a consciência. Tal como apare-
ce no prefácio número 3 de A gaia ciência:

Não somos sapos pensantes, aparelhos de objetivação e registro com vís-


ceras friamente dispostas. Precisamos constantemente gerar nossos pensa-
mentos de nossa dor e dar-lhes maternalmente tudo o que temos em nós
de sangue, coração, fogo, desejo, paixão, sofrimento, consciência, destino,
fatalidade. Viver significa para nós transformar incessantemente tudo o
que somos e tudo o que nos diz respeito em luz e fogo: não podemos agir de
outra maneira.31

À medida que a subjetividade é realmente a instância mais derivada, ela é


a que mais pressupõe inconscientemente momentos do processo de integra-
ção, mas não é de modo algum a que mais se mostra como capaz de abarcar
com clareza a multiplicidade constitutiva deste processo. Em contrapartida,
o corpo vive como a unidade radical de todos os elementos deste processo,
e mesmo o espírito (a subjetividade) não é senão um instrumento: algo que
o corpo utiliza para se expressar. Mas qual seria, então, o ponto máximo da
integração? O que pode, afinal, o corpo?
A resposta a estas questões devolve-nos para o cerne da ideia nietzschiana
de uma filosofia experimental. O quanto pode o corpo não se decide de ante-
mão em um âmbito de pura abstração, mas sim, no interior de uma exposição
existencial ao devir e de uma consequente busca por elementos sempre novos

29
KSA13, OP, novembro de 1887 – março de 1888, 11(73), p. 36-7.
30
Cf. René Descartes, “Meditações Metafísicas” I e II.
31
KSA3, GC, Prefácio 3, p. 350-51.

Leituras de Zaratustra 201


a serem integrados em sua malha complexa de dominação. A experiência des-
ta exposição alcança sua máxima intensidade em meio a uma transformação
do corpo singular em solo de afirmação da realidade como um todo. Nietzsche
descreve esta afirmação no final do fragmento anteriormente citado sobre a
noção de filosofia experimental:

Uma tal filosofia experimental, tal como a vivo, antecipa a título de um


ensaio mesmo as possibilidades de um niilismo fundamental: sem que com
isto se diga que permanece parada junto a um não, junto a uma negação,
junto a uma vontade de não. Ela quer muito mais atravessar até o polo in-
verso – até um dizer-sim dionisíaco ao mundo, tal como ele é, sem subtra-
ção, sem exceção e escolha – ela quer o eterno curso circular – as mesmas
coisas, a mesma lógica e não-lógica dos nós. O estado mais elevado que
um filósofo pode alcançar: postar-se dionisiacamente frente à existência –:
minha fórmula para isto é amor fati...

Através do dizer-sim dionisíaco ao mundo sem subtração, sem exceção e


escolha, o corpo singular perde o seu caráter temporal limitado, do mesmo
modo que o devir se mostra para além de sua primeira face negadora das
diversas configurações do instante. O corpo singular surge agora como lu-
gar de síntese da totalidade do tempo, e o devir mesmo passa a promover a
constituição da singularidade em sua dinamicidade vital. Passado, presente e
futuro estão aqui integrados em sua unidade instantânea, e o devir se alia ao
movimento de realização de um próprio. O postar-se dionisiacamente frente à
existência é, assim, em última análise, o ponto máximo da integração, porque
esta postura eleva a integração à totalidade. O corpo em plena unidade com a
sua determinação enquanto vontade de poder estende o processo de integra-
ção à totalidade do tempo e redime todo o passado e todo o futuro da pretensa
carência do devir. Diante desta experiência, o corpo uno consegue enfim dizer:
Era isto a vida? Então, uma vez mais!

202 Marco Casanova


A autoexperimentação e a guerra
em “Das três metamorfoses”

Marlon Tomazella

O prólogo de Assim falou Zaratustra narra as peripécias vividas pelo prota-


gonista, desde seu exílio em florestas montanhosas, até o seu retorno junto
aos homens para compartilhar a sabedoria que adquirira. Após sua decepção
frente à constatação de que ainda não havia ouvidos adequados para a ver-
dade que ele trazia, inicia-se a sequência dos discursos de Zaratustra. Logo
em suas primeiras linhas, Nietzsche anuncia que são três as transformações
pelas quais passa (ou deve passar) o espírito humano: a primeira seria o trans-
formar-se em camelo, a segunda, de camelo em leão, e a terceira, de leão
em criança. Comecemos pelo início das transformações: o camelo. Sua figura,
como uma primeira transformação do espírito humano, é caracterizada como
a que abriga dentro de si o respeito e a força que exige aquilo que há de mais
pesado e difícil. Para que nos possam fazer sentido de fato estes adjetivos “pe-
sado” e “difícil” (expressos por uma única palavra em alemão: schwer, no caso,
no superlativo, das Schwerste), e para que o espírito do camelo possa saber o
que realmente pode ser entendido como difícil ou pesado em oposição a fácil
e leve, ele tem que perguntar pelo “que é” o difícil e o pesado. Diante de sua
pergunta ocorre a própria ação, pois, para se saber de fato o que é pesado, há
de se carregar vários distintos pesos. Deste modo, com sua pergunta, dá-se
justamente o ajoelhar-se para receber, para ser carregado, “bem carregado”.1,2
E, para além disso, ocorre a pergunta pelo que é mais pesado e mais difícil,
e a resposta pode se dar com certa altiva vivacidade acerca da maximização
do pensamento sobre o adjetivo schwer: “que eu o tome [o que há de mais
pesado] sobre mim e minha força se alegre”.3 Este espírito interpreta o que há
de mais pesado e as maiores dificuldades como meios para avaliar o nível de

1
A paginação de todas as referências a textos de Nietzsche são da KSA e todas as traduções são do autor.
2
Za/ZA, Das Três Metamorfoses, KSA IV, p.29.
3
Ibid.

Leituras de Zaratustra 203


sua força: ele quer carregar, suportar, ele precisa disso, este experimento lhe
é essencial, pois é somente assim que ele pode conhecer melhor as audácias
a que pode se arriscar, e somente por meio desta terrível experimentação de
si mesmo ele poderá saber que lutas poderá empreender.4 É por meio desta
coragem que ele pode saber até que ponto – caso seja derrotado numa destas
guerras – é capaz de suportar a humilhação, ele precisa conhecer os limites de
seu orgulho. Por isso, o “humilhar-se para ferir o seu orgulho”,5 na postura
do camelo, não soa humilde ou resignado, de modo que o “ter orgulho de si”
seja algo a ser reprovado e condenado. Este “humilhar-se” propositalmente é
o que pode ocasionar o orgulho num sentido específico e elevado, na condição
de um sentimento que pode fazer com que o camelo se sinta cada vez mais
forte por se saber resistente às máximas dimensões de suas forças contrárias.
Alguém pode, então, objetar que isso não ocorre assim “deliberadamente”,
pois, como o texto evidencia mais a frente, o camelo se refere ao sentido da
obrigação moral expressa pelo imperativo “tu deves” (du sollst); mas entendo
que este imperativo é uma força interna que manda algo obedecer dentro do
camelo, mas não com a finalidade da própria obediência, não é isso que mais
parece interessar ao camelo. Ele precisa de um imperativo forte e decidido
porque, o que este mando ordena, é o que há de mais terrível e penoso, e, por
isso, é somente com um imperativo muito autoritário e dominador que se
torna possível que ele não retroceda. É uma ordem que manda que se submeta
ao mais pesado e difícil visando outra finalidade que não a de simplesmente se
submeter: há uma experimentação de si em jogo, o propósito é testar, avaliar-
-se, e um diagnóstico confiável acerca disso de que se está querendo saber só
ocorre levando-se o experimento às últimas consequências. O imperativo é
necessário porque ele é uma força no camelo que manda em outras forças que
possivelmente não querem se submeter.
Logo em seguida ao exemplo da humilhação, Nietzsche cita uma outra
ilustração do que há de mais pesado/difícil: “Deixar brilhar sua insensatez,
para zombar de sua sabedoria”.6 Isso, a princípio, pode se assemelhar a uma
passagem bíblica que diz que a sabedoria dos sábios é uma tolice, uma loucura
frente à verdade revelada e inexplicável proferida pelos profetas da doutrina

4
“Há talvez um sofrimento devido mesmo à super abundância? Uma tentadora bravura do olhar mais
agudo, que exige o terrível como inimigo, como digno inimigo, no qual pode pôr a prova sua força? No
qual quer aprender o que é “temer”? (GT/NT, Tentativa de autocrítica, p.12, KSA I).
5
Za/ZA, Das Três Metamorfoses, KSA IV, p.29.
6
Ibid.

204 Marlon Tomazella


judaico-cristã: a verdade única de Deus.7 A partir desta perspectiva, o camelo
estaria sendo compreendido como um estágio da história referente ao próprio
Ocidente, com seus dois milênios de submissão aos valores impostos por este
posicionamento frente à existência: de que o Ser Absoluto reside por trás do
caráter efêmero e ilusório da vida do corpo, do tempo e da consciência. Porém,
interpreto o sentido desta afirmação de outro modo. Que sabedoria seria essa
que incorreria em motejos e zombarias? Por que isso se referiria à força para
suportar o mais pesado e o mais difícil? O zombar da própria sabedoria pode
ser pensado a partir da própria história da filosofia ou das religiões. Ambas
costumam recorrer à alegação da seriedade, da universalidade e do caráter
verdadeiro de suas afirmações. Aqueles tidos como sábios na história – em
sua grande maioria – carregaram consigo certo pendor, e mesmo devoção,
pela verdade, ainda que fosse de uma verdade pagã. O caráter universalizante
desta verdade é citado em belas palavras por Nietzsche numa obra dentre as
que precedem a escrita de Zaratustra e prepara o terreno de destruição neces-
sária para a grande criação que irrompe das elaborações transformadas de seu
pensamento. Trata-se do aforismo 110 de A gaia ciência, intitulado “A origem
do conhecimento”:

O intelecto, durante o imenso curso do tempo, não criou nada além de


erros; alguns deles se fizeram úteis e mantenedores da espécie: quem com
eles se deparou ou os recebeu de herança, lutou sua luta por si e por seus
descendentes com maior ventura. Tais errôneos artigos de fé que sempre
novamente foram herdados, e finalmente se tornaram quase o tipo e fun-
damento da existência humana, são, por exemplo, esses: de que existem
coisas duráveis, de que existem coisas iguais, de que as coisas, matérias e
corpos existem, de que uma coisa é como ela aparece, que nosso querer é
livre, que uma coisa que é boa para mim também o é em si e por si mesma.

Este trecho aponta para o caráter insensato, sem fundamento e absurdo da


origem do conhecimento – ainda que este absurdo tenha sido salutar para o
homem, proporcionando alguns benefícios, como a sua preservação, que foi
garantida por meio de um mínimo de consenso a partir do qual (ainda que
por meio de absurdos) ele conseguiu que o outro, o diferente, assumisse cer-
ta familiaridade suficiente para ser possível conviver com ele. Neste sentido,
afirma Nietzsche num outro aforismo do mesmo livro, o 76, intitulado “O
perigo maior”:

7
Primeira epístola de Paulo aos Coríntios 1,18-21 e 3,19.

Leituras de Zaratustra 205


Não é a verdade e a certeza que é o oposto do mundo dos loucos, mas sim a
generalidade e obrigatoriedade de uma crença, em suma, o que não é faculta-
tivo nos julgamentos. E o maior trabalho dos homens até então foi o de con-
cordarem uns com os outros sobre muitas coisas para se estabelecer uma lei
da concordância – indiferentemente se essas coisas são verdadeiras ou falsas.

A necessidade da “concordância” se refere inevitavelmente a certa rejeição


da diferença, da mudança, do acaso, do inexplicável, do subjetivo e do particular.
Parece-me que Nietzsche se refere, aqui, por meio do termo Weisheit, à sabedoria
dotada deste conjunto de características e exigências, que somente são possíveis
de serem levadas a cabo por meio da perspectiva de que existem certas coisas de
que não se ri, pois se referem a assunto indiscutivelmente sério e verdadeiro. Este
caráter da inconsciência de que justamente isso ou aquilo que se defende tão ar-
duamente como verdade séria e válida para todos pode ser um grande erro, uma
enorme quimera, uma inconcebível tolice, é o que me parece que Nietzsche está
querendo dizer ao falar sobre aqueles que seriam portadores da Weisheit. Deste
modo, é necessário zombar desta sabedoria por meio deste “deixar brilhar” a in-
sensatez. Esta tarefa exige demais e é penosa à beira do insuportável, porque o ca-
melo ainda está experimentando a sua força, e vislumbrar com olhos zombeteiros
aquilo que se teve em tão alto valor durante tanto tempo é um verdadeiro desafio
em que questões decisivas estão sendo colocadas à prova. Não falo aqui ainda do
alcance do que seria uma compreensão alegre e comediante do saber, ainda trato
de um momento preliminar e necessário, que é a avaliação da possibilidade de se
assumir uma postura, o que, no caso, só pode se dar se houver força suficiente
para viver, agir e tomar para si as consequências desta decisão. Obviamente, não
se trata de não considerar a validade lógica de afirmações e atos necessários para
a convivência e compartilhamento de sentido (não vou dar risada diante do aviso
sobre a necessidade real de me apressar para fazer algo importante por ter pouco
tempo, por exemplo); mas sim, de poder levar em consideração, de uma forma
menos grave, alguns elementos específicos destas convenções, que se referem ao
valor e legitimidade de certas universalizações (como, por exemplo, estabelecer
conceitos que abranjam a totalidade do sentido a ele vivencialmente vinculado,
como pressupor a existência do tempo ou da necessidade).8

8
“A negação de Nietzsche à verdade não nega a possível justeza de uma declaração ou a não contradi-
ção de uma afirmação. Não há como negar que alguém fala, enquanto fala, ou que se contradiz quando
o faz. Observações ou julgamentos também podem, absolutamente, segundo Nietzsche, valer como
‘verdadeiros’ ou ‘falsos’. Mas, de uma sentença verdadeira deste tipo não se deduz a existência da ‘Ver-
dade’, tampouco quanto que, da correta afirmação ‘O tempo passa’ (Es wird Zeit), não se pode concluir
pelo ‘Ser’ de alguma coisa, talvez o ser do ‘Tempo’ ou do ‘Passar’ (Werden) do tempo. Mas, segundo
Nietzsche, toda a filosofia, desde Platão, baseia-se em tais deduções”. (GERHARDT, 1988, p.16/17).

206 Marlon Tomazella


Assim, para o camelo, não basta carregar o peso e passar pelas dificulda-
des; o camelo, conhecido animal de carga dos desertos, foi astutamente utili-
zado por Nietzsche como um dos estágios de transformação do espírito por-
que, assim como para este figurativo animal de carga não basta carregar, para
o vivente não basta viver, ele quer mais do que isso, ele quer se tornar mais
do que sua atual configuração. Mas para saber até que ponto se pode chegar,
é preciso saber primeiro qual é o nível de força que se tem. É preciso primeiro
carregar consigo estes terríveis pesos e dificuldades, para, depois, poder-se
estar convencido – a partir do diagnóstico da força que se tem – de que é
possível se aventurar e exigir a conquista de um deserto só seu. A imagem do
segurar a mão do fantasma quando este vem nos assombrar é, a meu ver, uma
das mais belas metáforas do alcance do aprendizado com o enfrentamento das
piores adversidades.
A partir do momento do alcance do suficiente conhecimento de si mesmo
para ousar exigir mais do que a suportação dos pesos, o camelo se torna leão,
ainda que esta consciência, atitude e afronta, somente se tornem possíveis
devido ao estágio precedente. O camelo se experimentou e percebeu que era
forte o suficiente para seguir pelo seu próprio deserto, e não ser mais camelo.
O leão – até então, camelo – agora quer liberdade, por isso ele precisa
de seu próprio deserto, de sua mais profunda solidão. Para esta conquista,
ele tem que travar uma luta derradeira, que se dá com um imenso monstro
fabuloso, fruto da invenção de imaginações excitadas de decisivos contadores
e inventores de histórias e valores. Ele é um dragão, e seu nome, “Tu deves”.
Após perceber o tamanho de sua força, o camelo vira leão, porque se torna ca-
paz de negar, de afrontar. E o que ele nega e afronta é justamente o imperativo
moral, a norma que vigora a partir do peso atribuído ao tempo, à tradição. Ele
tem que lutar contra a força que não quer que novos valores sejam criados,
que quer a permanência do mesmo.
Esta luta remete o meu pensamento diretamente para outro discurso,
contido no livro chamado “Da redenção”: levando-se em consideração que a
vontade do homem é desejosa demais, por conta do poder de sua imaginação
e de sua predisposição à expansão, esta vontade cria os artifícios que estão
nos limites de suas possibilidades para a realização de seus fins. Para além da
imensa variedade de impossibilidades que se lhe apresentam, esta vontade se
depara com uma inexorável força perante a qual ela nada pode: trata-se da ine-
vitabilidade do tempo, que a tudo consome e aniquila todas as prepotências
e pretensões humanas. O homem avalia, julga, pondera e acaba por atribuir
determinados valores às coisas; e estes valores, estas coisas e o próprio ho-

Leituras de Zaratustra 207


mem são consumidos e aniquilados por esta força soberana. Mesmo as mais
altas, nobres e santas valorações estão submetidas à força desta verdade que
tudo solapa. Por conta disso, ele sente o amargo gosto da impotência frente
à incontornável constatação de que o “era” (es war) é uma força maior, que
humilha a sua debilidade que não pode romper, que não pode afrontar a força
do tempo. Perante esta constatação, pode-se sentir a mais solitária e profunda
tristeza. Esta tristeza carregada de vontade precisa inventar algum meio para
escapar desta prisão, cujas grades enferrujadas de melancolia oprimem e en-
cerram. Um meio que esta vontade sofredora arruma para a fuga impossível
é exercer a sua terrível vingança se voltando contra o mundo. O seu corpo
e o seu desejo é o que lhe há de mais próximo no mundo. Então, como um
meio de se rebelar contra a evidência de sua fraqueza, ela faz o corpo sofrer, e
tudo mais que é natural, que devém, a natureza e a existência dos entes como
um todo; colocando-se, assim, em oposição ao “era”, afrontando o tempo por
meio da teimosa manutenção de estabilizações (do tempo, do passar). Esta
teimosia assume, então, um caráter justiceiro e virtuoso, tornando-se puni-
ção, castigo (Strafe). Esta punição ocorre com a declaração de regras que se
contrapõem ao devir, estabelecendo sua imponência por meio de máximas
com pretensões de validade para todos os humanos em todos os tempos, por
meio do caráter inabalável da moralidade dos costumes, que fulgura em todas
as escamas do dragão. Deste modo, já que o próprio “querer é sofrer, e que
não se pode querer para trás, então o próprio querer e toda a vida deviam ser
castigo”.9 O caráter natural do querer sedento de superação de si (de vida)
fica, assim, submetido à obrigação de negá-lo, perpetuando-se o modo de ser
do homem numa mesma determinada configuração. A sua libertação se torna
loucura porque ele pretende se vingar encarcerando o mundo e os valores em
sua prisão, que quer a todo custo que o que “era” continue sendo.
As escamas do dragão, que têm escrito seu próprio nome Du sollst, equi-
valem a famosos e consagrados mandamentos que se mantiveram vivos para
muito além da vida de seus inventores: “valores milenares brilham nestas
escamas”,10 mas com um tal grau de imperatividade irrestrita, que o dragão
não se digna lembrar do caráter voluntarioso e interessado dos indivíduos que,
em algum momento, criaram tais valores. Além disso, é afirmado pelo próprio
dragão que todo o valor das coisas brilha em suas escamas, o que significa que
a pretensão deste sentido estabilizador manifestado em seu mais alto grau na
perpetuação de determinados valores quer se impor de tal modo que não haja

9
Za/ZA, Da Redenção, p. 180.
10
Za/ZA, Das Três Metamorfoses, KSA IV, p. 30.

208 Marlon Tomazella


fuga possível. Trata-se da vontade impotente que faz da vingança sua rebelião.
O enfrentamento diante do Du sollst lança luz numa ameaça, que é a de
incorrer no delito, uma desobediência merecedora de punição (Strafe). Assim,
a própria vida e a morte, o passar e o perecer do curso das coisas, assumem o
sentido negativo de pagamento de uma dívida, pois “esta é a própria justiça,
aquela lei do tempo, que deve devorar suas crianças”,11 e é exigida a redenção
em meio ao “fluxo das coisas e do castigo “existência””.12 Mas trata-se de uma
redenção impossível, pois não há como fazer parar de rolar esta pedra cha-
mada “era” ou “foi”, “passou”, “não é mais”. Se não há como concertar este
“erro” inerente ao cerne das coisas e de nossa humanidade em meio às coisas,
então o castigo precisa não ter fim para ser equivalente a tamanha dívida. O
que já foi não pode ser destruído, a punição não dá conta de tal tarefa. Então,
a punição chamada “existência” acaba por ser a própria culpa, pois estaríamos
em dívida por termos vindo a este mundo passageiro, falso e ilusório, em que
tudo que se chama por vida é na verdade somente a morte se insinuando.
Esta contradição se torna inadmissível, resta, então, a culpa e, se é uma dívida
que não se tem como pagar, que o castigo seja eterno.13 E para que o leão não
seja acometido pela má consciência decorrente da interiorização desta violenta
imposição externa, que vai contra sua natureza afirmativa de si, ele precisa
não aceitar esta arbitrariedade destruidora do novo, que reside no tu deves de
toda e qualquer tábua de valores já criada e com ímpetos de expansão irrestri-
ta e indiscriminada, que sufoca a força pela novidade, a “efetividade de uma
possiblidade”.14 Então, ele diz “eu quero” (ich will), e este querer se refere à
decisão de não aceitar a sujeição a forças que querem reprimir sua expansão,
forças estas que têm, no fundo, um rancor pela ousadia e coragem que reside

11
Za/ZA, Da Redenção, KSA IV, p. 180.
12
Ibid., p. 181.
13
Esta constatação em “Da redenção” me remete diretamente à segunda dissertação de Para a genea-
logia da moral, onde Nietzsche investiga a origem da má consciência. Com suas reflexões em torno do
sentimento de dívida que as sociedades humanas em geral sentem por seus ancestrais, na sessão 19 ele
elabora a hipótese do surgimento de deuses na mente humana através da supervalorização, do crescente
temor e fantasia que proporcionou o exaltado engrandecimento das figuras antepassadas a ponto de
assumirem características divinas. Na sessão 20, ele demonstra as consequências deste sentimento de
dívida/culpa, quando a concepção que se passou a ter de um deus assumiu proporções tão gigantescas,
como a forma e atributos do deus cristão: a entidade para quem este homem deve é tão grandiosa,
que sua dívida, por consequência, se torna tão imensa que é impossível pagá-la, restando então, como
alternativa de equiparação e justiça, o castigo eterno.
14
“’Poder’ significa uma real possibilidade dada, ou melhor dizendo: a ‘efetividade de uma possibi-
lidade’. ‘Vontade de poder’ quer dizer então o querer real, isto é, não ilusório, de expandidas chances
de ação. A vontade de poder forte é, assim, a decidida insistência no presente de possibilidades reais”
(GERHARDT, 1988, p. 27).

Leituras de Zaratustra 209


em todo espírito desbravador e aventureiro. Este “eu quero” destrói o proble-
ma colocado referente à impotência da vontade perante o es war, porque este
“já foi” é querido também, exatamente do modo como foi; o “já foi” é querido
como “assim eu quis”. Deste modo, posso pensar o seguinte: se é assim que
as coisas ocorrem (ou seja, passam), eu quero este passado como passado, não
quero mantê-lo assumindo um espaço para além do que lhe é devido; assim,
quero agora e vou continuar querendo. Deste modo, o leão nega toda a força
que visa a permanência irrestrita, para efetuar a determinação necessária que
propicie sua liberdade para criar valores e a si mesmo. Por isso, ele precisa
tomar para si primeiramente o direito para criar novos valores. Ele ainda não
os cria, pois antes precisa agir como animal que rouba, que pega, que toma,
por isso ele precisa ser guerreiro. Ele luta com o dragão, ainda precisa negá-
-lo, e, com isso, declarar sua inocência, pois não deve nada, e, por isso, não
precisa se submeter à culpa mansamente. Ele luta porque quer ser livre, mas
não abrigando em si ainda o potencial plástico que cria valores novos, valores
seus, pois ele ainda se ocupa com a conquista do espaço para que a capacida-
de criativa possa ser colocada em prática. E é somente com a atitude da luta,
assumindo a posição de guerreiro, que é possível a preparação de sua trans-
valoração e exposição da nobreza existente nele: “O nobre quer criar o novo e
uma nova virtude”.15 Assim, por meio da interpretação do leão como guerreiro
é possível pensá-lo como aquele que está ocupado em destruir e que, por isso,
ainda não pode se dedicar à tarefa de criar.
Para buscar um auxílio acerca da concepção em torno do sentido do guer-
reiro e da própria guerra, recorro ao discurso “Da guerra e dos povos guerrei-
ros”, no qual aparece, em vez de um auxílio, um descaminho que colocaria em
xeque e em contradição a interpretação que estou me propondo a elaborar sobre
o caráter belicoso do leão, que é aquele que diz “eu quero”. Pois num trecho
deste discurso aparece a seguinte afirmação: “Para um bom guerreiro soa mais
agradável o ‘tu deves’ do que o ‘eu quero’. E tudo o que é amado por vós de-
veis deixar que vos seja ordenado”.16 Com isso, evidenciar-se-ia uma explícita
contradição sobre o sentido do espírito daquele que luta. Como é possível que
sejam pensados em pé de igualdade aquele que diz “eu quero” com o que se
simpatiza com a submissão que lhe ordena o “tu deves”? Para que este proble-
ma seja compreendido, é importante atentar para a diferença de sentido do “tu
deves” nos dois distintos momentos: no primeiro (no caso do leão), é preciso
lutar contra o “tu deves” porque ele aparece como uma força exterior, de uma

15
Za/ZA, Da Árvore na Montanha, KSA IV, p. 53.
16
Ibid., p. 59.

210 Marlon Tomazella


tradição, de valores alheios, que não querem permitir que seja consumada e
revelada a máxima potencialização deste querer que quer ser independente e so-
brepujar esta força externa que se lhe contrapõe, e, por isso, o “eu quero” se tor-
na propriamente a força oposta que pretende lutar por sua livre determinação.
Por outro lado, o sentido da afirmação do trecho citado aponta para um outro
modo de compreensão, em que o “tu deves” se refere a uma instância interior,
a algo aceito, escolhido e – acima de tudo – amado pelo indivíduo em questão.
Faço uso dos termos “interior” e “exterior” para me referir à diferença entre
aquilo que é imposto por uma norma injustificada ou que não corresponde aos
anseios do “indivíduo” (entendido como impulso dominante), em oposição a
uma regra colocada e instituída pelo próprio indivíduo a si mesmo, o que, ape-
sar de salientar um certo sentido de liberdade entendida classicamente como
autonomia, aponta para um sentido belicoso residente na própria escolha e em
sua concretização nos atos. Pois Nietzsche lida com um modo de compreender
a subjetividade e a constituição de todo e qualquer ente como compostos por
multiplicidades de interesses e forças que se contrapõem entre si, que lutam
umas com as outras no “interior” do indivíduo e de todos os entes, destituindo-
-os de uma identidade fixa. Lutam para assumir o controle e o poder, e, neste
momento (o da luta), é importante que as forças que assumam a soberania se-
jam aquelas que possibilitem a criação da liberdade para novas criações. É neste
sentido que, em “Das alegrias e paixões”, diz Zaratustra: “Meu irmão, a guerra
e a batalha são males? Mas é necessário esse mal, são necessárias a inveja e a
desconfiança e a calúnia entre as virtudes. Veja como cada uma de suas virtudes
é desejosa pelo ponto mais alto: ela quer todo o teu espírito, para que seja seu
arauto, ela quer toda a tua força na cólera, no ódio e no amor”.17, 18
Aqui se evidencia que o indivíduo não é pensado como uma unidade refe-
rente ao conceito kantiano de sujeito autônomo, mas propriamente como um

17
Ibid., p. 43.
18
Faço questão de lembrar aqui o quanto os termos inveja (Neid), ciúmes (Eifersucht) e desconfiança
(Miβtrauisch) aparecem anteriormente em Nietzsche com um sentido conceitual bastante semelhante,
ainda que não estivesse em jogo a consumação do conceito “vontade de poder”. Cito em particular
trechos do texto A disputa de Homero: “A guerra e o desejo de vitória foram reconhecidos: e nada
separa tanto o mundo grego do nosso como a coloração derivada de peculiares conceitos éticos, como
por exemplo, da Eris e da inveja (des Neides)” (KSA I, p. 786). E também: “(...) sem inveja, ciúmes
(Neid Eifersucht) e ambição competitiva, tanto o Estado helênico, como o homem helênico degene-
ram” (KSA I, p. 792). Ou ainda: “Como, porém, a juventude em processo educativo era educada com
a competição uns com os outros, assim também estavam em competição entre si os seus educadores.
Os grandes mestres musicais Píndaro e Simonides mostravam a desconfiança ciumenta (Miβtrauisch-
eifersüchtig) um ao lado do outro” (KSA I, p. 790). (NIETZSCHE, A Disputa de Homero in Cinco
Prefácios para Cinco Livros não Escritos, KSA I). Também há a recorrência destes termos no próprio
Assim falou Zaratustra, tanto no sentido da “inveja boa” que move para a competição e para o aperfei-
çoamento, quanto no da “inveja ruim”, que somente corrói e aniquila.

Leituras de Zaratustra 211


campo de batalhas. Se existe luta dentro do espírito humano, existem forças
opostas; e se forças lutam, ocorrem, por conseguinte (ainda que de forma pro-
visória), determinados vencedores e determinados derrotados. Assim, quando
Nietzsche aponta para a importância de o guerreiro receber bem o “tu deves”,
não me parece se tratar meramente do sentido da disciplina militar ou sujei-
ção aos costumes constituídos de forma obediente, irrefletida e mansa; mas
se refere ao sentido de submissão à hierarquia de uma força maior que manda
dentro dele, porque realmente deve mandar, porque é a mais apropriada e
forte – sem ser tirânica, porque, em vez de subjugar as outras forças, as utiliza
e organiza conforme seus interesses. Assim, estaria sendo dito que o indiví-
duo abriga dentro de si também forças que não correspondem à concordância
com sua ação e decisão. Mas o importante é que, mesmo que elas existam e
discordem, se submetam e obedeçam a estas que são mais dignas de se manifes-
tarem.19 Neste sentido, para que o guerreiro seja realmente guerreiro, é preciso
que ocorra a constante determinação no interior dele de forças que mantenham
seu domínio, de modo que consigam fazer com que as forças submetidas se
mantenham submetidas e sob uma lógica de organização, em prol dos interes-
ses da força dominante. É esta obediência, resultante da guerra interior prévia,
em vistas de um determinado propósito, a que Nietzsche se refere. Pois a deso-
bediência poderia dizer respeito ao espírito anárquico em que todas as vozes, in-
discriminadamente, têm direito de se manifestarem conquistando espaço. Mas,
para que o guerreiro seja guerreiro, as forças referentes ao sentimento de medo
e covardia, por exemplo (que ele também abriga dentro de si), têm que obede-
cer ao domínio da altivez corajosa que quer imperar para possibilitar de fato a
concretização do guerreiro enquanto tal. A partir, então, da bravura do leão, que
rouba, que toma para si a liberdade de seu amor, é possível alcançar a inocência
(Unschuld), pois, perante o “tu deves”, ele consegue dizer que não, que não deve,
não tem culpa e nem dívida (Schuld) com o passado e seus valores.20

19
Lembro que não se trata do sentido clássico da força que a razão deve impor aos instintos, pois aqui
no caso, não importa este tipo de diferenciação metafísica; trata-se de forças que não se separam por
meio deste típico modo de cisão, pois são todas, em última instância, oriundas do corpo e relacionadas
aos seus distintos interesses.
20
A respeito disso é possível fazer uma ponte novamente com Para a genealogia da moral, onde na sessão
20 da segunda dissertação Nietzsche relaciona o ateísmo com uma segunda inocência, e faço esta citação
por me dar a liberdade de estabelecer relação entre o leão de “Das três metamorfoses” com a descrença
definitiva no símbolo máximo da pretensão de permanência vingativa absoluta na figura do deus cristão:
“(...)então o homem poderia deduzir com razoável probabilidade, a partir do inexorável declínio da crença
no deus cristão, que já se daria agora também um considerável declínio da consciência humana de culpa;
sim, não é de se rejeitar a perspectiva de que a completa e conclusiva vitória do ateísmo devesse libertar a
humanidade de todo este sentimento de culpa com relação ao seu começo, sua causa prima. Ateísmo e um
tipo de segunda inocência pertencem um ao outro. (NIETZSCHE, 1994, §20 in KSA V, p. 330).

212 Marlon Tomazella


Parece-me que é neste sentido que é importante se compreender a obedi-
ência e, consequentemente, a crítica ao espírito vingativo residente no princí-
pio democrático que prega a igualdade expressa no discurso “Das tarântulas”,
no qual Nietzsche aponta a velada impotência que clama e exige por igualdade
por ser fraca, sendo que, por meio da igualdade, poderia ela também expor
e até concretizar seus interesses. Deste modo, o “eu quero” do leão carrega
consigo também o “tu deves”, ainda que neste outro sentido.
Nietzsche encerra o percurso referente ao estágio do leão dizendo o se-
guinte: “Como o que há de mais sagrado, ele amou outrora o “tu deves”: agora
ele deve também considerar a loucura e a arbitrariedade como o que ainda há
de mais sagrado, para que ele roube a liberdade de seu amor; precisa-se do
leão para este roubo”.21 Se aqui é afirmado que o camelo amava o “tu deves”,
é preciso compreender que esse amor – como todo amor costuma ser – apri-
siona aquele que é dele acometido. Aprisiona no sentido de fazer com que
se busque, volte-se em direção ao objeto do amor; é desta atração que o leão
traz a libertação. O amor se dava pela busca dos mais pesados dos pesos não
porque os pesos eram objetos de amor do camelo, mas sim por causa do amor
que ele sentia pela sensação de potência proporcionada nele a partir da cons-
tatação da capacidade de sua força. Com isso, obviamente, o leão não extirpa
de si o próprio amor ao deixar de ser camelo, mas o torna livre para não mais
precisar carregar. O camelo se tornou leão porque já estava suficientemente
convencido de sua força e, por conta disso, não precisava mais praticar este
teste dentro de si, mas sim fora, efetivando sua força avaliada e descoberta.
Para tanto, é necessário o confronto decisivo, que ele vence.
Com a vitória, por fim, o leão pode se tornar criança, pois aprendeu sobre
o poder salutar que tem o esquecimento, que lhe possibilita não se remeter
à constante lembrança somente a partir da qual se faz possível toda máxima
moral, cujas pretensões, além de universalizantes, são de um caráter está-
tico. A não estabilização decorrente do não excesso de memória possibilita
um outro modo de lidar com o voltar-se para a origem; pois o esquecimento
proporciona o recomeçar, sempre novamente, como se tudo tivesse, a cada
recomeço, novos sentidos e prenhes novidades. Em vez da seriedade da regra,
a descontração divertida do jogo. Em vez de querer parar a roda do tempo,
ser a própria roda que gira por meio de uma impulsão que brota viçosa de si
mesma. No lugar de maldizer o passageiro, fugidio e fugaz movimento, ser
o próprio e sempre renovado e inédito “primeiro movimento”, ocasionando

21
Za/ZA, Das Três Metamorfoses, KSA IV, p. 29/30.

Leituras de Zaratustra 213


com isso uma firme reconciliação com o modo de ser das coisas. Assim se afir-
ma de forma “sagrada” o devir, o passar; entende-se o devir como um jogo de
criar e destruir que se manifesta por todos os lados por meio da finitude, que
pode, então, passar a ser abençoada; compreende-se como eterno o próprio
jogo do mundo de se finitizar eternamente.
Com este discurso, Nietzsche aponta as fases do caminho que é necessário
ser percorrido por aquele que quer conhecer a si mesmo e tornar-se aquilo que
de fato é. Trata-se de um novo “ideal” a ser buscado e experimentado individu-
almente, que significaria a reconciliação na história do homem, a reconciliação
dele consigo mesmo e com a vida:

Um outro ideal corre a nossa frente, um ideal maravilhoso, tentador e cheio


de perigos, para o qual não gostaríamos de convencer ninguém, porque a
ninguém cabe tão facilmente este direito: o ideal de um espírito cuja ingenui-
dade (quer dizer, sem ter a intenção) e transbordante abundância e poder
[Mächtigkeit], brinca com tudo o que até hoje se chamou de sagrado, bom,
intocável e divino. Para quem o que há de mais alto – aquilo justamente
em que o povo tem a sua medida de valor – já não significaria nada mais do
que perigo, declínio, humilhação ou, pelo menos, entretenimento, ceguei-
ra, temporário autoesquecimento. O ideal de um bem-estar e bem-querer
humano-para-além-do-humano que parecerá frequentemente e suficiente-
mente inumano, por exemplo, quando se lhe colocar ao lado toda a serie-
dade terrena até hoje, todo tipo de solenidade no comportamento, palavra,
tom, olhar, moral e dever, como sua mais viva paródia involuntária – e com
o qual, apesar de tudo, talvez a grande seriedade comece pela primeira vez, o
verdadeiro ponto de interrogação seja pela primeira vez colocado, o destino
da alma mude, o ponteiro se mova, a tragédia comece... 22

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GERHARDT, Volker. Nietzsches ästhetische Revolution in Phatos und Dintanz: Studien


zur Philosophie Friedrich Nietzsches. Reclam, Stuttgart, 1988.
NIETZSCHE, F.. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Herausgegeben
von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. München/Berlin/New York: Deutscher
Taschebuch Verlag/Walter de Gruyter, 1988.

22
FW/GC, A Grande Saúde, §382.

214 Marlon Tomazella


O amigo Zaratustra: o sentido de amizade
no Livro I de Assim falou Zaratustra

Luciano Arcella
Tradução de Marco Antônio Gambôa

O tema da amizade representa assunto fundamental no primeiro livro da


obra Assim falou Zaratustra, de Nietzsche, além de ser também central em todo
seu sistema filosófico. “Do amor ao próximo” é o título de um discurso do
profeta no qual esta problemática é enfrentada a partir da valoração negativa
dada ao conceito de próximo.
Observemos como este termo pode ser utilizado tanto em sentido espacial
quanto temporal: em alemão (nächst, adjetivo; das Nächste, substantivo – uti-
lizado por Nietzsche na expressão Liebe zum Nächste), assim como em portu-
guês, admite as duas acepções: naquela espacial, próximo é quem está perto, é
o outro, o diferente de nós; já na acepção temporal, é o que acontece logo em
seguida a um determinado evento.
Quanto ao contrário deste termo, o distante (em alemão fern, adjetivo; das
Fernst, substantivo), também este apresenta uma dupla acepção, ou seja, espa-
cial e temporal, com a diferença de que, para se indicar o sentido temporal, há
também um outro termo, isto é, a palavra “futuro”, em alemão künftig ou das
Künftige, de modo que, à duplicidade dos sentidos espacial e temporal do termo
“próximo”, opõe-se um par de termos, o primeiro dos quais contendo uma ideia
de distância espaço-temporal (fern indica os dois tipos de distância); o segundo,
referindo-se ao futuro. Apresenta, portanto, apenas a concepção temporal.
“Mais alto do que o amor do próximo está o amor do distante e do futuro
[zum Fernsten und Künftigen1] ...”.2 O jogo de palavras é utilizado por Zara-
tustra a fim de manifestar a vontade de distanciar-se de uma presença que é

1
NIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra I. Berlin: De Gruyter, 1999, p.77.
2
Id. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário Silva. 13ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005, p. 87.

Leituras de Zaratustra 215


totalmente contingente, ou seja, a forma atual do ser humano a partir de sua
pressuposta centralidade, evidenciando, assim, um princípio fundamental do
pensamento nietzscheano, desde Humano, demasiado humano até a gaia ciência.
Este princípio indispensável à criação do super-homem; mensagem decisiva
de Zaratustra em seu projeto na direção do ser futuro que ambiciona.
De qualquer modo, trata-se de um esforço, de um processo que procede
por negações, pelo qual não se indica aquilo que se deve ou se quer realizar, mas,
ao contrário, o que não deve acontecer, o que se deve laboriosamente evitar. Pelo
menos até que o conceito puramente negativo de próximo, entendido como alte-
ridade, seja substituído pela palavra “amigo” (Freund), que exprime uma presença
absoluta, isto é, independentemente das distâncias espacial e temporal. Presença
que não pertence ao conceito de próximo, associado este à ideia de distância: uma
distância exígua, mas por meio da qual o próximo é outro, o diferente de nós, a
alteridade dialética com a qual nos confrontamos e da qual se libera o amigo, na
condição de produto da nossa afeição e do nosso amor.
Reaparece aqui aquele motivo não apenas poético, mas ideologicamente
significativo da “amizade estelar” que Nietzsche perseguia no seu trabalhoso
relacionamento com Lou von Salomé;3 amizade cósmica, enquanto capaz de
exprimir, na superação do espaço e do tempo, a eternidade do ser.
“Não o próximo, eu vos ensino, mas o amigo. Que seja o amigo, para vós,
a festa da terra e um presságio do super-homem.”4
Não se obtém com isso a definição de super-homem, mas apenas uma in-
dicação na trilha do caminho, um sinal de orientação para poder atingir algo
que ainda não se possui. Assim é que a capacidade e a consciência de uma
“amizade estelar” constituem ao mesmo tempo a ratio cognoscendi e a ratio
essendi do super-homem.
“Eu vos ensino o amigo, que traz dentro de si o mundo pronto, um invó-
lucro do bem – o amigo criador, que tem sempre um mundo pronto para dar
de presente.”5
Diferentemente do próximo, o amigo não é o outro de si, não represen-
ta uma diversidade contraditória, expressão do procedimento reativo da

3
Na verdade, Nietzsche escreveu o aforismo “Amizade estrelar” (gaia ciência, aforismo 279) em
referência a Richard Wagner, ao passo que Lou queria considerá-lo como se tivesse sido em referência
a Paul Rée.
4
Zarathustra: 88.
5
Ibid.

216 Luciano Arcella


dialética,6 mas, na sua capacidade de “com-alegrar-se”,7 8 compartilha com o
seu alter ego a plenitude do ser, a sua potência como livre e incansável criação.
“E, tal como se lhe desenrolou todo, enrola-se de novo, o mundo, para ele,
em voltas sucessivas, como o nascer do bem pelo mal, como os fitos surgindo
do acaso.”9
A forma oximórica que retira o sentido do termo “fim”, privado do seu
nexo causal, além de possuir um caráter poético, serve para resolver a con-
tradição do existente e do seu devir, tornando-o, por isto mesmo, consciente-
mente ocasional. É assim que a forma poética, como expressão eficaz de um
ser não mediato da racionalidade dialética, resulta como a mais adequada.
Portanto, é no centro deste argumentar que se coloca o contraditório con-
ceito de amizade, de tal modo que exprima ao mesmo tempo o si e o outro de
si; em outras palavras, a um outro que é também si mesmo. Na afetiva indife-
renciação entre eles, os amigos não se enfrentam dialeticamente, mas tendem a
uma enriquecedora unidade na reiterada troca paritária, não diferentemente de
como se repropõe o fluxo ininterrupto do devir do mesmo (o eterno retorno).
O amigo é o diferente-igual, assim como é o tempo na sua repetitiva e simultâ-
nea criadora circularidade, semelhante de algum modo ao rio de Heráclito. A ami-
zade pode transformar o próximo-outro das relações humanas no distante-presente
de uma humanidade reencontrada, princípio graças ao qual Nietzsche subverte o
nexo temporal, para “que o futuro e o distante sejam, para ti, a razão de ser do teu
hoje: no amigo, deves amar o super-homem, como a tua razão de ser”.10,11
Saber ser amigo, saber erguer a amizade a distância cósmica e a destino
estelar, constitui a prova de força para o super-homem, isto é, para quem não
sucumbe às terríveis tentações do demônio que ameaça o eterno retorno.
O mesmo assunto é tratado no discurso de Zaratustra intitulado “Do ami-
go”, contido ainda no primeiro livro. É a sua presença que faz com que ele não

6
Sobre a caráter reativo da dialética, cf. DELEUZE, G. Nietzsche et la philosophie. Paris: Presses
Universitaires de France, 1962.
7
Este conceito aparece no aforismo 338 da Gaia Ciência, que diz: “quero ensinar-lhes aquilo que
hoje tão pouca gente compreende e esses pregadores da compaixão menos ainda: – a alegria comum”
(Verificar tradução).
8
Mantenho a tradução sugerida pelo autor a partir da versão italiana que emprega “congioire” – do
alemão die Mitfreude (N. do T.)
9
Zarathustra: 88.
A tradução em português “razão de ser” não corresponde à expressão utilizada por Nietzsche “deine
10

Ursache”, que quer dizer “causa de ti”.


11
Zarathustra: 88.

Leituras de Zaratustra 217


afunde no abismo do solipsismo, de uma hiperavaliação do ego na sua pesada
presunção. Amigo é a recusa à dialética por meio da qual o confronto com o
outro é útil à reafirmação do eu. Amigo significa renúncia do próprio eu para
abandonar-se ao outro qual sublimação de si mesmo. É a marca daquela capa-
cidade de superar-se, única via que conduz à “grande saúde”.
Se o eu é por sua própria natureza enfermo, não pode ser tratado, a menos
que se elimine o mal pelas raízes, renunciando à hipertrofia do eu, seja por
exprimir-se num diálogo pelo ensimesmamento, seja pelo retorno a si na sín-
tese dialética depois de se ter alienado no outro.
“Eu e mim estão sempre em colóquio por demais acalorado; como poderia
suportar-se tal coisa sem um amigo?”12
Diferentemente do outro ou do próximo, do amigo não se retira nada para
poder se reafirmar, porque a ele se dá sem esperar contrapartida. Ele, além
disso, permite a possibilidade de afastamento do louco debate consigo mesmo
e com a sua esquizofrênica autorreferencialidade.
“Sempre, para o eremita, o amigo é o terceiro; e o terceiro é a cortiça que
não deixa o colóquio dos dois ir para o fundo.”13
Neste ponto, o discurso se divide entre racionalidade e emotividade, e, se
em nível racional se refere ao diálogo entre o Eu e o Mim, em nível emotivo se
refere àquele isolamento real que Nietzsche experimentava e do qual procurou
sempre fugir por meio daquela amizade estelar com pessoas para ele ambigua-
mente caras – de Kóselitz a Wagner, a Rée, a Lou von Salomé –, por quem teve
esperanças e sofreu desilusões, sem, por isso, renunciar ao bem da amizade.
Não obstante às contingentes traições, Nietzsche esforçava-se em recuperar as
amizades por meio daquela perspectiva cósmica que o liberava dos momentâ-
neos mal-entendidos, conduzindo-o para além da vaidade e do ressentimento.
Desilusões à parte, Nietzsche sabia que, tanto em termos teóricos quanto
em termos emotivamente pessoais, precisava da amizade como fármaco para
curar-se de um mal que pertencia ao último homem.
“A nossa fé nos outros revela aquilo que desejaríamos acreditar em nós
mesmos. O nosso anseio por um amigo é o nosso delator.”14
Mas, agora, do seu contínuo escavar, da sua incessante mudança de pers-
pectiva, eis que surge uma dúvida também em relação ao amigo, produzindo a

12
Zarathustra, I: 82.
13
Ibid.
14
Ibid.

218 Luciano Arcella


suspeição de que até mesmo esta abertura em direção ao amigo pudesse ser o
sinal de uma carência, ou seja, que o amigo não representasse a abertura para
uma alteridade respeitada na sua individualidade, mas apenas uma confirma-
ção de si mesmo.
Ciente deste risco, Nietzsche sugere uma atitude complexa, situada entre
a psicologia e a lógica, ritmicamente contraditória (a contradição rítmica se
traduz na harmonia da música e da dança).
“‘Sê, ao menos, meu inimigo!’ – assim fala o verdadeiro respeito, que não
ousa pedir amizade.
Se queremos ter um amigo, devemos querer, também, guerrear por ele; e,
para guerrear, é preciso poder ser inimigo.”15
O sentido desta expressão se encontra na antítese indicada pela palavra
“respeito – pedir”, ou, melhor ainda, no momento em que o termo alemão é
Ehrfurcht, que não é apenas “respeito”, mas “respeito profundo”, “veneração”,
entre “veneração” e “pedir”. O primeiro termo indica um se dar sem pedir,
sem esperar receber algo em troca; já o segundo, ao contrário, uma necessida-
de de quem, na sua solidão, procura a voz que possa preencher o vazio de sua
própria carência.
A fim de evidenciar esta atitude de quem pede ajuda ao outro por necessi-
dade, citamos o que escreve Carlo Michelstaedter16 em relação ao que consi-
dera a “retórica da existência”:

Como grita a criança na escuridão para se fazer um sinal de sua própria pes-
soa, que no medo infinito se sente faltar, assim os homens que na solidão da
própria alma vazia se sentem faltar, se afirmam inadequadamente, fingindo o
sinal da pessoa que não têm, “o saber” como se já em suas mãos. Não ouvem
mais a voz das coisas que lhes diz “tu és”, e na escuridão não têm a coragem
de permanecer, mas procura, cada qual, a mão do companheiro e diz: “eu sou,
tu és, nós somos”, para que o outro lhe faça eco e lhe diga: “nós somos, nós
somos, porque sabemos, porque podemos dizer a nós mesmos as palavras do
saber, do conhecimento livre e absoluto”. Assim se atordoam um ao outro.
Assim, já que nada têm, e nada podem dar, se adagiam em palavras que
fingem a comunicação: já que não podem fazer com que o seu mundo seja
o mundo dos outros, fingem palavras que contém o mundo absoluto, e de
palavras nutrem o seu tédio, de palavras se fazem um curativo para a dor,

15
Zarathustra I: 83.
16
Filósofo italiano que nasceu em Gorizia, em 1887, e suicidou-se em 1910, depois de ter concluído
sua tese de graduação em filosofia, intitulada A persuasão e a retórica, publicada pela Ed. Sansoni,
Firenze, 1958 .

Leituras de Zaratustra 219


com palavras significam quanto não sabem e daquilo que precisam para
lenir a dor, ou tornarem-se insensíveis à dor.17

De maneira muito similar se expressou Nietzsche nos Fragmentos póstumos


de março 1875:

Com isto dizem: somos chamados para sermos úteis aos nossos semelhan-
tes e para servi-los; e como nós, o nosso vizinho, e o vizinho deste. De tal
modo cada um serve aos outros, e ninguém tem como sua missão existir
em vista de si mesmo; todos vivem, ao invés, em vista dos outros. Vemos
assim uma tartaruga, que se apoia sobre uma outra, a qual, por sua vez, en-
contra sustentação em uma outra, e assim por diante. Se cada um encontra
o próprio escopo em um outro, ninguém tem em si um escopo para existir,
e este existir um para o outro é a mais cômica das comédias.18

Nestes termos, a amizade aparece como completa expressão de carência,


de falta de “persuasão” de um sujeito que procura no outro a própria razão
de existir e, na “retórica” da confirmação por parte do outro, revela a sua falta
de consistência. Assim, é contra a amizade implorada para a confirmação de
si e de uma vida da qual se é carente que Nietzsche articula a capacidade de
ser inimigo para se traduzir na liberdade da não necessidade, metonímia do
dar sem esperar receber. Ao inimigo, com efeito, não se pede, mas se oferece a
coragem da luta, a liberdade do agir e o reconhecimento da honra, sobretudo
quando se é vencido. Saber ser inimigo é, portanto, sinal de uma amizade que
não pede, mas que dá a própria força e reconhece aquela dos outros.
“No amigo, deve-se, ainda, honrar o inimigo. Podes acercar-te do teu ami-
go sem bandear-te para o seu lado?”19
Transformar o amigo em inimigo para elevar o inimigo a amigo é o que Niet-
zsche propõe, contemporaneamente inatual, agudamente presente com a sua
inobservada admoestação, posto que, como ele diz, para chegar a este sentir,
para não “temer [a nossa] nudez”, preciso é ser deuses, e, de fato, “se fôsseis
deuses, então, sim, estaríeis no direito de envergonhar-vos de vossos trajos!”20
Deuses ou super-homens, argumenta o filósofo nesta busca incessante dos
elementos capazes de qualificar quem sabe andar além dos limites desta ma-
nifestação do humano historicamente determinada.

17
MICHELSTAEDTER, Carlo. La persuasione e la retorica. Firenze: Ed. Sansoni, 1958: 60.
18
NIETZSCHE, F. Obras. Milando: Adelphi, vol.IV, tomo I, 3 [64]: 103.
19
Zarathustra, I: 83.
20
Ibid.

220 Luciano Arcella


“Nunca te enfeitarás bastante para teu amigo: porque deves ser, para ele,
uma flecha e um anseio no rumo do super-homem.”21
Neste sentido, deve-se entender o agone, a luta recíproca que não se funda
em uma dialética entre homem e homem, mas entre amigo e amigo, simbo-
lizando o único confronto, aquele interior, capaz de conduzir para além da
reatividade da dialética e do seu ressentimento.
Trata-se, portanto, de um processo identitário que não contém contradi-
ções, quer dizer, de um livre jogo, sem constrições nem finalidades, que pode-
ria ser entendido também como luta, contanto que o seu fim, a vitória, consis-
ta em deixar para trás o velho tipo humano por uma nova forma de existência
em sua gaia inocência mesma.
“Que é, afinal, fora daí, o rosto do teu amigo? É o teu próprio rosto num
espelho tosco e imperfeito.
Já olhaste o teu amigo dormindo? Não te assustaste de que fosse aquele o
seu aspecto? O homem, meu amigo, é algo que deve ser superado.”22
Nesta identidade ditada por um sentimento de amor, oposto à procurada
prevaricação da dialética, este anulamento do outro em si, o dado que se há de
deixar para trás é o homem atual na sua brutalidade, mas não certamente em
favor de um homem mais belo e mais são, produto de uma moral eugenética,
mas em favor do não homem, culminância da “grande saúde”.
O amigo é também o duplo, para o qual se precisa sentir o mesmo amor que
se sente para si, ou melhor, para o si que tem que vir, e não aquele que deve ser
abandonado para que nasça o super-homem. Por isso, é preciso que se esteja
sem piedade no confronto com o amigo, se a ele se ama, assim como sem pieda-
de em relação a si mesmo, caso se queira ir além da decadência do próprio eu.
“Que a tua compaixão seja um adivinhar: para que saibas, primeiro, se o
teu amigo quer compaixão. Talvez ele ame em ti o olho impassível e o olhar
fito na eternidade.”23
Nietzsche iludiu-se ao pensar que poderia ter doado esta mesma eterni-
dade à amada Lou e ao amigo Rée, mas os dois riram, não para zombar dele,
mas por incompreensão, pela incapacidade de representarem a livre criação
do eterno retorno, tido, por eles, como uma teoria fantástica, produto de uma
pessoa doente, à qual provavelmente queriam bem, só que com um amor cheio

21
Ibid.
22
Ibid.
23
Ibid.

Leituras de Zaratustra 221


de compaixão, algo que Nietzsche abominava por ser a expressão de uma de-
sigualdade, de um relacionamento de força entre dominante e dominado, e
não a expressão de uma relação paritária como deve ser aquela entre amigos.
Assim queriam os três originariamente, como componentes de uma trin-
dade projetada, convivendo em Paris ou em Viena para dividirem mais do que
um simples apartamento (verdadeiro escândalo para aqueles tempos), mas para
compartilharem também suas emoções e a ânsia de conhecer. Mas Rée não sou-
be continuar a ser seu amigo, e, quanto a Lou, esta ficou ligada em demasia
à competição de um ambíguo jogo de amor no qual sabia ser a dominadora
absoluta. A ela mesma pode ser referida a seguinte consideração de Nietzsche:
“Tempo demais, esteve escondido na mulher um escravo e um tirano. Por isso,
ainda não é a mulher capaz de amizade: conhece somente o amor [...]. Ainda
não é a mulher capaz de amizade. Mas dizei-me, vós, homens, quem de vós é
capaz de amizade?”24
Por fim, o homem, como a mulher, ambos se revelam demasiado humanos.
Porque eles, vencedores ou vencidos, em uma luta de vaidade que não leva
além da individualidade emotiva que se reconhece no enfrentamento, não têm
a capacidade de transformar o amor para o outro ou para si mesmo no amor
pela vida, ou, mais ainda, por aquilo que conduz para além da vida, ou seja,
para o além do homem.
Surge aqui a tentação de se perguntar se Nietzsche foi capaz de experi-
mentar um tal sentir, se pôde sentir aquele amor que procurou com a força do
intelecto e da paixão, pergunta que vai além de sua construção filosófica, e à
qual se pode tentar dar uma resposta apenas quando se busca compreender a
sensibilidade daqueles tempos. Ele, provavelmente, em detrimento de sua te-
oria, teve que sucumbir à indecifrabilidade do amor, às suas vitórias e derrotas
parciais, traduzidas ora por momentânea exaltação, ora por ciúmes e ressen-
timento. Porém, ao mesmo tempo, foi sabedor da própria debilidade que lhe
adveio da advertência quanto ao risco de ser ele mesmo o “último homem”, e
da necessidade de seguir além de si mesmo, por uma filosofia que guiasse com
ele a humanidade em direção à própria liberdade.
Concretamente, ele procurou na amizade e no amor uma força antidialé-
tica e não reativa, capaz de conduzir para além do egoísmo de uma existência
parcial rumo à fraternidade cósmica de um universo dançante.
Analisei de maneira parcial a profundidade do conceito de amizade levado
adiante por Nietzsche na elaboração de seu pensamento para concluir que

24
Zarathustra, I: 84.

222 Luciano Arcella


o saber ser “amigo” é forma identificadora e construidora do super-homem.
Neste sentido, digo que Zaratustra é, acima de tudo, o amigo.

Referências Bibliográficas

Para as obras de Nietzsche foi utilizada a versão do original em alemão: Also sprach
Zarathustra. Berlim: De Gruyter Verlag, 1999.
Para a versão em português: Assim falou Zarathustra. Tradução de Mário Silva. 13ª
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
Para as obras completas foi utilizada a redação em italiano editada por COLLI,
Giorgio & MONTINARI, Mazzino. Milano: Edizioni Agelphi, 1968 ss.

AA.VV. Friedrich Nietzsche, «Tempo Brasileiro», 143, Outubro-Dezembro, 2000.


ARCELLA, L. Oltre la storia: Nietzsche. Mimesis: Milano, 2003.
________. L’innocenza di Zarathustra. Considerazioni sul I Libro di Così parlò Zarathus-
tra, di F. Nietzsche. Milano: Mimesis, 2010.
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DELEUZE, G. Nietzsche et la philosophie. Paris : Presses Universitaires de France,
1962.
JANZ, C. P. Vita di Nietzsche. Roma-Bari: Laterza, 1980-1982, 3 v.
FOUCAULT, M. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In : ______. Dits et écrits. Paris:
Gallimard, 1994.
GIAMETTA, S. Commento allo Zarathustra. Milano: Bruno Mondadori, 1996.
MICHELSTAEDTER, C. Opere. Firenze: Sansoni, 1958.
NAUMANN, G. Zarathustra-Kommentar. Leipzig : Verlag von H. Haeffel, 1899-1901.
RAYMOND, D. Nietzsche ou la grande santé. Paris : L’Harmattan, 1999.
SALOMÉ, L. V. Friedrich Nietzsche in seinen Werken. Wien: Karl Konegan Verlag,
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WERLE, J. M. Nietzsches Projekt “Philosophie des Lebens”. Würzburg: Königshausen
& Neumann, 2003.
ZULETA, E. Comentarios a Así hablaba Zarathustra, de F. Nietzsche. Medellín: Hom-
bre Nuevo Editores, 2006.

Leituras de Zaratustra 223


Sobre o sentido da terra

Maria Cristina Amorim Vieira

No prólogo de Assim falou Zaratustra,a questão do sentido da terra emerge no


discurso que Zaratustra faz aos homens do mercado: ele os exorta a que não
se distanciem da terra e que não percam o sentido da terra em detrimento de
uma vida ultraterrena.
“Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos
que vos falam em esperanças ultraterrenas !”1
Zaratustra roga aos homens que permaneçam fiéis à terra. Seu discurso
busca lembrá-los de que a terra é o que lhes é dado, e isto também significa
aceitá-la como um limite, que simultaneamente possibilita e alimenta de vida,
mas que é finito. A questão deste limite torna-se essencial porque se trata de
aceitar a finitude. No discurso de Zaratustra aos homens, fidelidade à terra diz
finitude, e, assim, busca renunciar a todas pretensões de substituir, de ultra-
passar, de destruir, ou da terra se desfazer, o que vem traduzir um empenho
de busca, no sentido de uma maior imersão na realidade.2
Uma das questões que a fidelidade à terra também suscita é de uma va-
loração de tudo o que diz vida. Por muito o homem se esqueceu da terra em
nome de uma vida ultraterrena, tal como atesta o privilégio do suprassensí-
vel sobre o sensível, espírito sobre o corpo, proporcionado pelo platonismo e
cristalizado pela tradição cristã. Ao homem foi dada a terra, mas ele perdeu
este elã com a vida quando daquela se afastou. Deste modo, de onde partiria o
apelo de Zaratustra? Não se trata tão somente de vida enquanto vida animal,
ou vegetal ou humana nos limites da zoologia, da botânica ou mesmo da me-
dicina, no sentido em que não se esgota nem se expressa apenas nos recursos
da ciência. Do mesmo modo, terra não se restringe à superfície do planeta, às
suas vegetações, relevos ou climas; não se trata apenas da terra descrita pelo
geógrafo, ou vista pelo astronauta de sua nave, ou cultivada pelo agricultor ou

1
Za/ZA, Prólogo.
2
GM/GM II § 24.

Leituras de Zaratustra 225


destruída por tantos outros. Tampouco se trata da terra da razão.3 Falar em
terra exige que nos voltemos a outras experiências e exercícios de questionar
para não cairmos no reducionismo esquemático das ciências, sejam exatas ou
biológicas.
Uma das experiências mais ricas que chegou até nós, e que busca traduzir
a terra como mãe, encontramos na mitologia grega, na qual a terra era cultu-
ada na figura de uma deusa, Deméter41, também conhecida como a deusa do
trigo, da fertilidade, das colheitas. Deméter vem de Geméter, onde Ge diz gerar,
e “méter”, mãe, a mãe terra.5 Assim, Deméter é mãe no sentido de tudo o
que brota, floresce, frutifica, na terra. Deméter evoca todas as possibilidades
de desdobramentos e modos de ser, de vida. No mito, Deméter tem sua filha,
Perséfone, raptada por Hades, deus dos mortos, e passa a vagar pelo mundo
aos prantos, a sua procura; deste modo, tudo o que havia sobre a terra seca e
involui, até que Zeus, dela se compadecendo, concede-lhe que Perséfone passe
consigo seis meses no mundo de cima, na superfície, e seis meses com Hades,
seu esposo, no mundo de baixo, o mundo dos mortos.
Mas a que parece Zaratustra se referir ao dizer que os homens se esque-
ceram da terra? Como se deu o esquecimento desta mãe dadivosa? Nietzsche
aponta em outra obra sua, A genealogia da moral, uma questão por ele nomeada
ideal ascético6 e seus múltiplos desdobramentos. Ideal ascético é como chama
o ideal cuja pretensão não é responder à terra, acolhendo sua maternagem,
mas responder pela terra, substituindo-lhe a criatividade.7 O ideal ascético vai
impulsionar e nortear o homem porque sempre traz entre seus fundamentos
o menos sofrer, ou a promessa de uma vida mais longa ou ainda de uma outra
vida.8 Tais promessas são muitas vezes suficientemente poderosas para pre-
tender responder pela vida. Fidelidade à terra diz recusa a todo ideal de outra
vida, de esperanças ultraterrenas.9 Hoje é a ciência e a técnica que de modo

3
HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências, p. 121.
4
BURKETT, W. Greek Religion, p. 159.
5
BAILLY, A. Diccionaire Gréc Français.
6
GM/GM III,§ 1.
7
Hannah Arendt, em sua obra A condição humana, p. 19, demonstra estranhamento ante a declaração
de um jornalista americano em 1957, que saúda a exploração do espaço ao ser enviado o primeiro
satélite artificial, como “o primeiro passo para libertar o homem da terra”. Tal declaração, longe de ser
apenas uma opinião fortuita, expressa um antigo sonho do homem moderno no sentido de ir “além” da
terra. Diz H.Arendt: “A terra é a quintessência da condição humana e, ao que sabemos, sua natureza
pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles
podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício.”
8
GM/GM III,§11.
9
Za/ZA, Prólogo.

226 Maria Cristina Amorim Vieira


mais eficiente respondem pelo ideal ascético, na medida em que pretendem
dar conta do real10. Nietzsche critica na ciência moderna sua pretensão de
arauto da realidade, como se esta última pudesse ser resumida a códigos e
equações científicas. Assim procedendo, a ciência passa a crer apenas em si
mesma, reforçando mais do que nunca o ideal ascético e tornando-se um de
seus melhores refúgios. Este ideal, diz Nietzsche, ninguém melhor o expressa
do que os doutos, os homens de ciência, afirmando uma vida subordinada a mo-
delos, que se impõe excluindo as diferenças, excluindo o erro, o imprevisto.
Ao comentar na Genealogia da moral que a ciência moderna hoje preten-
de responder pela vida, e traduzir o real como “a verdadeira filosofia da
realidade”,11 Nietzsche está se referindo à ciência positiva, que privilegia os
fatos passíveis de experimentação e demonstração, assim como um método
estritamente descritivo que mostra as relações constantes entre os fatos que
se expressam por leis e que por isso os tornam previsíveis. O positivismo
afirma a ciência como a única e autêntica fonte de conhecimento verdadeiro,
considerando o “conhecimento metafísico e o teológico” como etapas que an-
tecedem aquele verdadeiro12. A ciência positiva busca traduzir o real, prevê-lo
e dar-lhe contornos. Seu principal representante, Auguste Comte, afirma que
“a palavra positivo designa o real, por oposição ao duvidoso: neste aspecto
convindo plenamente ao novo espírito filosófico”13 Contudo, ao ter tal preten-
são, acaba por circunscrever a ciência nos moldes dos ideais absolutos. Assim
como pretende dizer o que seja o conhecimento verdadeiro, o conhecimento
positivo pretende afirmar o que seja útil em oposição ao inútil, a certeza à
indecisão e o preciso ao vago14, visando a melhoria progressiva da humanida-
de. Podemos retomar a crítica nietzschiana na atualidade, particularmente em
relação às chamadas ciências da vida, como a biologia e a medicina, nas quais
ecoam fortes influências do pensamento positivo, ou melhor, do neopositivis-
mo, movimento cuja ênfase está no sentido de progressão, particularmente
visível em áreas como a biologia molecular e a genética. O notável resultado
destas áreas em termos de conquistas, como o controle e a manipulação de có-
digos genéticos desde as bactérias até o homem, veio obscurecer, pelo menos
momentaneamente, a possibilidade de estas ciências se colocarem em questão
para além do universo científico.

10
HEIDEGGER. In Ensaios e Conferências, p. 48.
11
GM/GM III,§23.
12
COMTE, A. Discurso sobre el espiritu positivo, p.19-22.
13
Ibid., p.57.
14
Ibid., p.57-8.

Leituras de Zaratustra 227


Do mesmo modo, a terra da razão, a mesma da ciência e da técnica, pos-
sibilitou o encurtamento das distâncias, fazendo com que nos desloquemos
e nos comuniquemos rapidamente; e por outro, diminuiu a proximidade15. A
proximidade é o que nos permite acolher o real respeitando e resguardando a
sua dinâmica. Nas palavras de Martin Heidegger: “A proximidade aproxima o
distante sem violar-lhe e sim resguardando a distância”16. Ao tentar impor ao
real a sua realidade e dinâmica próprias, a ciência e a técnica violam o que de-
veriam resguardar. Deste modo, não possibilitam a proximidade, acentuando
a distância. Zaratustra prossegue seu discurso ao povo do mercado dizendo
ser aquele que ensina o super-homem:

Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado.


Que fizestes para superá-lo? Todos os seres, até agora, criaram algo acima
de si mesmos; e vós quereis ser a baixa-mar dessa grande maré cheia e
retrogradar ao animal, em vez de superar o homem?17

Der Über-Mench, o super-homem, é anunciado por Zaratustra como o sentido


da terra. Ou seja, Zaratustra não ensina o super-homem como aquele que se
coloca acima do humano, como um ideal a ser atingido. Über significa intensi-
ficação, intensificação do humano, do que é mais próprio ao homem. É deste
modo, e unicamente assim, que pode ser o sentido da terra. Mas de que modo
pode o super-homem realizar-se e completar-se enquanto sentido da terra?
A tradição metafísica buscou definir o homem como animal racional.18 Tal
determinação aprisiona o homem na teia do já determinado. O racional acopla-
-se ao animal para distinguir o homem dos demais animais ditos não racionais.
Consequentemente, a concepção de vida se restringe e se apequena. Tal concep-
ção busca o paralelo entre o homem, o animal e o vegetal, sendo que o homem
se distingue dos demais seres como aquele mais privilegiado. O homem sabe
que vai morrer, diferentemente dos outros animais, que ignoram a morte como
morte. “Os mortais são os homens. São assim chamados porque podem mor-
rer. Morrer significa: saber a morte, como morte. Somente o homem morre. O
animal finda”.19 Este saber é um limite que pode provocá-lo no sentido de uma
maior intensificação da vida, podendo vir a ser propulsor de mais vida, como
também pode redundar em sua conservação, como no caso do predomínio da

15
HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências, p.155.
16
Ibid.
17
Za/ZA, Prólogo.
18
HEIDEGGER, M. Carta sobre o Humanismo, p.20.
19
Id. In Ensaios e conferências, p. 156.

228 Maria Cristina Amorim Vieira


razão. Assim, na condição de animal racional, o homem é atravessado e definido
pela razão, pelo privilégio da razão. Contudo, por mais que esta tente responder
pelo real e por suas manifestações na realidade, esbarra sempre nos limites do
não-racional. Então, perguntamo-nos: seria o super-homem, enquanto sentido
da terra, esta não razão? Assim sendo, esta não traria outras possibilidades ou
forças que traduziriam uma não consciência? Quais seriam estas possibilidades
não conscientes? Seriam aquelas tais como a magia, a mística ou a arte, que
não visam à razão e que parecem se aliar à terra enquanto a terra é o que passa
? Se assim for, estas não estariam sendo abafadas ou inibidas pelo domínio do
racional, na medida em que procuram desarticular o que a razão busca articular,
ou seja, corrigir a terra e a vida e controlar o tempo em seu passar?
Sentido da terra não ressoa como uma tentativa de realização do percurso
dos valores do humanismo metafísico, mas como uma dinâmica de busca e
de transformação da vida, na medida em que não cabe em uma determinada
interpretação de mundo, nem tenta fundar princípios para o homem enquanto
animal e racional.20 Por isso, talvez hoje o maior desafio para o homem seja
submeter-se à terra21. No momento em que este se sente mais do que nunca se-
nhor da terra, é simultaneamente o momento em que mais lhe nega fidelidade.
Submeter-se à terra seria reafirmar a fidelidade à mesma por muito esquecida.
Diante de uma realidade em que o homem se pretende o senhor absoluto da
terra, a intensificação do seu elã vem a ser um de seus maiores desafios. A per-
gunta pelo Zaratustra de Nietzsche, assim como pelo super-homem, pretende
nos lançar no movimento de busca pela terra. Heidegger diz ter sido Nietzsche
o primeiro pensador a fazer a pergunta decisiva a respeito do momento históri-
co em que o homem se confronta com a possibilidade de ser o senhor da terra:

Mas de onde vem o clamor pela necessidade do super-homem? Por que o


homem não é mais suficiente? Porque Nietzsche reconhece o instante his-
tórico em que o homem se prepara para entrar na total dominação da terra.
Nietzsche é o primeiro pensador que, considerando a história do mundo tal
como esta pela primeira vez nos chega, coloca a pergunta decisiva e a pensa
através de toda a amplitude metafísica. A pergunta é: O homem, enquanto
homem, em sua constituição de essência até hoje vigente, está preparado
para assumir a dominação da terra? Se não, o que então precisa acontecer
com o homem atual, de modo que ele se submeta à terra e assim cumpra a
palavra de um velho testamento?22

20
Id. Quem é o Zaratustra de Nietzsche In Ensaios e conferências, p.155.
21
Ibid., p.155-6.
22
Ibid., p.91

Leituras de Zaratustra 229


Deste modo, o que seria necessário ao homem, para que viesse a se sub-
meter à terra? É também Heidegger quem nos lembra uma outra passagem
de Nietzsche no capítulo “Da redenção”,23 em Assim falou Zaratustra, que tal-
vez possa clarificar um pouco mais esta questão. Ali, Zaratustra nos fala em
um espírito de vingança como uma vontade, a qual diz ser preciso redimir.24
A caracterização mais explícita que Nietzsche faz deste espírito de vingança
enquanto vontade é quando diz tratar-se de uma vontade contra o tempo.25
Contra o tempo significa contra o “foi assim”, contra o passar do tempo, con-
tra sua transitoriedade. Esta vontade, assim, se obstina por ser o que não pode
controlar, não pode voltar atrás.
“Foi assim: é este o nome do ranger de dentes e da mais solitária angústia
da vontade. Impotente contra o que está feito – é ela um mau espectador de
todo o passado”.26
A terra é o transitório, o que passa, o que a tradição acentua como o que
não deveria ter sido, negando-a. Tal vingança contra o passar toma corpo em
sua forma mais espiritual, os ideais ascéticos, ou ideais absolutos. Contudo,
a mera inversão do sensível pelo suprassensível, proporcionada pela tradição
platônico-cristã, não é o que parece mais decisivo quando Nietzsche fala da
mais profunda vingança da vontade contra o tempo,27 mas sim, o privilégio
e a cristalização que os ideais supratemporais ou ideais ascéticos assumem
como absolutos. É isto o mais determinante nesta recalcitrância da vontade
contra o tempo. Também para Heidegger, não é a oposição entre sensível e
suprassensível que é determinante, na qual há o privilégio entre o que seria
verdadeiramente real sobre o que não seria. O mais decisivo seria a fissura28
que vai se estabelecendo e passando a determinar toda a relação com o real, na
medida em que traz a fragmentação do que antes era unidade.29
A tradição platônico-cristã contribuiu para um entendimento de tempo
linear, progressivo e encaminhado a um juízo final, o que veio reforçar a ideia
de correção da vida. Se a promessa de uma outra vida confortou a dor e a mor-
te, por outro lado, distanciou o homem da terra, perpassando-o de temores e
dúvidas. Fragilizado frente à vida e distanciado da terra, o homem parte em

23
Za/ZA II 20.
24
Za/ZA II 20, “Da redenção”.
25
Ibid.
26
Ibid.
27
Ibid.
28
Ibid., p. 112.
29
Za/ZA III 2, “Da visão e do enigma”.

230 Maria Cristina Amorim Vieira


busca de cada vez maior controle e asseguramento. A vida torna-se objeto de
um interesse cada vez mais voltado para um sentido estrito, biológico, alvo
das ciências da vida e, cada vez menos, no sentido das experiências humanas,
seu destino, sua imersão na realidade.30 São os ideais ascéticos sobrepondo-se
e norteando a vida.
O espírito de vingança procura entender a vida como submissa ao tempo,
daí sua obstinação contra o passar do tempo. Tal entendimento gera impo-
tência e ódio, quanto ao que não se pode mudar. A redenção do espírito de
vingança de que fala Nietzsche não se trata da dissolução de toda a vontade, de
um niilismo exacerbado, mas de uma mudança na qualidade da vontade que,
de negadora, torna-se afirmativa do passar do tempo: “Até que a vontade cria-
dora diga a seu propósito: Mas assim eu o quis! Assim hei de querê-lo!”. 31Tal
afirmação insere e inaugura uma outra relação com o real. Sintonizado com o
passar, este movimento que vem a ser um ultrapassar permite ao homem ser
ponte,32 trazendo simultaneamente a dor e alegria, possibilitando a submissão
do tempo à vida, afirmando-a em sua inteireza, em seu eterno retorno.33 A
aceitação da subordinação do tempo à vida implica a aceitação e o acolhimen-
to do limite que a vida traz, em sua finitude, na recusa à onipotência de que
tudo se pode. É através do limite que é possível percebermos o ilimitado; a
realidade se desdobrando nesta tensão e, por outro lado, e radicalmente seu
oposto, é a impotência, que reduz todos os limites em um só, pela negação de
todas as possibilidades. É o que se vê nos últimos estágios do niilismo, em que
todos os valores da tradição entram em crise e se dissolvem. É neste momento
da crise que se torna possível a redenção do espírito de vingança. Mas, para
isto, é necessário afirmar a vida em sua inteireza afirmando o tempo em seu
passar. O espírito de vingança quer a submissão da vida, quer controlá-la para
controlar o tempo. Tal é a perspectiva de todos ideais de juventude eterna, da
clonagem34 de substituição de todos os modelos da vida e do vivo.
Assim, o estranhamento deste limite, hoje tão evidente por meio do não
limite da ciência e da técnica, vem acentuar o distanciamento do homem de
tudo o que diz terra. E de que modo a razão negaria a finitude negando a terra?
Finitude não é uma condição estranha ao homem, mas o modo fundamental

30
GM/GM II § 24.
31
Za/ZA II 20, “Da redenção”.
32
Za/ZA, Prólogo.
33
Za/ZA III 13, “O convalescente”.
34
ATLAN,H. Le clonage Humain.

Leituras de Zaratustra 231


de nosso ser35. A razão pretende controlar, medir, cercear, destruir tudo o que
não se subordina ao seu terreno, que é o da lógica. A lógica, como doutrina do
pensamento correto36 possibilita a cristalização e o pleno desenvolvimento do
viés racional, sobretudo por meio da ciência e da técnica modernas, buscando
assegurar ao homem o controle da terra.
Tais valores buscam justificar a vida e, deste modo, não conseguem afirmá-
-la em sua plenitude, apenas atêm-se a ela na medida em que esta se lhes
submete. Nesta busca por adequação, está-se uma vez mais tentando subordi-
nar a vida a sistemas, cristalizá-la em ideais, muitas vezes meras convenções.
Na medida em que a vida encontra-se em permanente transformação, ao se
buscar fixá-la em verdades estáveis e constantes, tais verdades reforçariam a
recalcitrância contra o passar, expressa por uma vontade que parece querer se
apropriar do próprio tempo, pois este “é a pedra que não pode rolar”.37 Neste
sentido, a existência é afirmada ainda no âmbito do espírito de vingança, do
que deve ser ou deveria ter sido, o que vem a acentuar mais ainda o distancia-
mento da terra. Então, perguntamo-nos: como pode o homem submeter-se à
terra e à vida?
No primeiro discurso de Assim falou Zaratustra (“Das três metamorfoses”),
vemos um espírito de suportação como um camelo, aquele que carrega todo o
peso de uma tradição e busca corresponder suportando todo o fardo que esta
lhe impõe e exige. O camelo no espírito, aquele que vem a ser o espírito de
nossa tradição ocidental, não crê possível a criação de novos valores. “O que
há de mais pesado?, pergunta o espírito de suportação; e ajoelha como um
camelo e quer ficar bem carregado”.38
Para Nietzsche, tudo o que vem intensificar a vida é valor, mas trata-se de
valor como condição de vida; a vida buscando se superar e ir além de suas me-
didas, indo além dela própria. É este aspecto de acentuação, de intensificação
da vida que Nietzsche enfatiza quando diz valor; e não vida no sentido empre-
gado pela ciência da época, ou seja, mais particularmente, o darwinismo, que
acentua a luta pela existência39, ou mesmo o positivismo, que pretende que
a ciência dê conta de todo o real. Para Nietzsche, os valores que intensificam
a vida seriam os mais altos em sua hierarquia. Isto pressupõe um olhar, uma

35
HEIDEGGER. Os conceitos fundamentais da metafísica § 22-b.
36
Id. Heráclito, p. 207.
37
Za/ZA II 20, “Da Redenção”.
38
Za/ZA I 1, “Das três metamorfoses”.
39
DARWIN, C. The origin of species.

232 Maria Cristina Amorim Vieira


perspectiva, uma vontade de poder.40 Uma das dificuldades que aqui se apresen-
ta é discernir o que vem intensificar a vida. Sabemos que o carácter perspectivis-
ta41 da vida é que vai estabelecer e selecionar o que a projeta e amplia daquilo que
a retrai e empobrece. Instauração de novos valores seria estabelecer as condi-
ções que viessem assegurar sua intensificação, projetando-a e ampliando-a em
suas possibilidades. Isto não se refere às circunstâncias que levam à sua conser-
vação. Estas favoreceriam uma não vida, entravando-a, inibindo-a, atrofiando-a,
ao favorecer um não-valor. Assim, o princípio para a criação de novos valores
dá-se no âmbito da vontade de poder42. O momento da recusa, da negação aos
valores da tradição metafísica, dá-se por meio de uma profunda crise. Para tal
negação, é necessário o leão no espírito, a segunda metamorfose:

Meus irmãos, para que é preciso o leão no espírito? Do que já não dá conta
suficiente o animal de carga, suportador e respeitador?
Criar novos valores – isto também o leão ainda não pode fazer; mas criar a
liberdade de novas criações – isto a pujança do leão pode fazer.43

O leão possibilita transpor o que é mais arraigado e o que deve ser trans-
posto na tradição – aqueles que contrariam a vida, os valores absolutos. Mas
até mesmo a recusa radical do leão não é garantia para se criar novos valores,
porque mesmo um poderoso negar pode não ser suficiente ao mais difícil, a
afirmação, o sim à vida. Para isto, é preciso saber esquecer; não apenas negar,
pois, mesmo na negação, ainda existe recalcitrância contra o passar. Esquecer
trata-se de um exercício capaz de absorver o passado, superando o ressenti-
mento, e reinstalando a possibilidade do novo, a possibilidade de criar. Tal
capacidade de esquecer revela uma rara saúde, uma grande saúde,44 capaz de
cicatrizar feridas e recompor-se de perdas,45 mesmo as mais difíceis, pois, se
assim não fosse, o passado se superporia ao presente, tornando-se o coveiro
deste e, simultaneamente, do futuro. Eis que se dá, então, a terceira metamor-
fose – o leão se transforma em criança:

Mas dizei, meus irmãos, o que poderá fazer uma criança, que nem sequer
pôde o leão? Por que o rapace leão precisa tornar-se criança?

40
Za/ZA II 20, “Da Redenção”.
41
EH/EH, “Por que sou tão sábio”, 1.
42
HEIDEGGER. Nietzsche, Vol I, p. 382.
43
Za/ZA I 1, “Das três metamorfoses”.
44
FW/GC, §382.
45
GM/GM, II, 24.

Leituras de Zaratustra 233


Inocência é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda
que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer “sim”; o
espírito, agora, quer a sua vontade, aquele que está perdido para o mundo,
conquista o seu mundo.”46

Assim, o que faltaria ao leão no espírito para vir a ser criança e completar a
terceira metamorfose? Não seria afirmar o passar? O leão muito pôde, pois foi
a sua força que derrubou o tu deves do espírito, a preponderância do peso dos
valores. O leão pôde até mesmo negar os chamados ideais ascéticos, os valores
absolutos. Mas, se pôde tanto, o que lhe faltaria para se tornar criança? Falta
aquela vontade afirmadora do sagrado sim, que quer o eterno retorno47 porque
não afirma o passado apenas como o que já foi, ou o presente como o agora, ou
o futuro como o que virá, mas todo o passado, presente e futuro se inscrevendo
nesta vontade. É assim que conquista o seu mundo, a sua terra, enquanto ala-
vanca e base para o futuro – a vida em seu eterno movimento.

Notação das obras de Friedrich Nietzsche:

As siglas aqui adotadas das obras de Nietzsche seguem aquela da Edição


crítica utilizada por Colli e Montinari (Kritische Studienausgabe. Berlin, Walter
der Gruyter, 1980). As siglas das referidas obras em língua portuguesa vêm
precedidas por aquelas em alemão. De um modo geral, o algarismo romano
anterior ao arábico refere-se à parte do livro citada, e o arábico, ao capítulo ou
ao aforismo. No caso da obra Assim falou Zaratustra, Za/ZA, o algarismo roma-
no refere-se à uma das quatro partes da obra, e o arábico ao discurso.
EH/EH – Ecce Homo
Za/ZA – Also sprach Zaratustra /Assim falou Zaratustra
GM/GM – Zur Genealogie der Moral/ Genealogia da moral
FW/GC – Die fröhliche Wissenchaft/ A gaia ciência

46
Za/ZA I 1, “Das três metamorfoses”.
47
Za/ZA III 13.

234 Maria Cristina Amorim Vieira


Referências Bibliográficas

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Universitária, 2000.
ATLAN, Henri (org.). Le Clonage humain. Paris: Éditions du Seuil, 1999.
BAILLY, Anatole. Dictionaire de grécfrancais. Paris: Hachette, 1950.
BURKETT, Walter. Greek Religion. Transleted by John Raffan. Massachusetts: Harward
University Press, 1994.
COMTE, Auguste. Discurso sobre el espíritu positivo. Version y prólogo de Julian Ma-
rias. Madrid: Alianza, 2000( 9a ed.)
DARWIN, Charles. The Origin of Species. London: Penguin Group, 1985 (reprinted).
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Tradução e notas de Emmanuel
Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
______. Ensaios e conferências. Trad. de E. Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia Ca-
valcanti Shuback. Petrópolis: Vozes, 2002.
______. Heráclito. Trad. de Márcia Shuback. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.
______. Nietzsche. Trad. de Pierre Klossowiski. Paris: Gallimard, 1981, v. 1.
______. Os conceitos fundamentais da metafísica. Trad. de Marco Antonio Casanova.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. Sämtlich Werke. Kritische Studienausgabe. Ed. Crítica sob
orientação de Colli e Montinari. Berlin: Walter der Gruyter, 1980.
______. Obras incompletas. Coleção os Pensadores. Trad. Rubens Torres Filho. São
Paulo: Abril, 1978.
______. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989
(6ª Ed.)
______. Genealogia da moral. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.

Leituras de Zaratustra 235


Parte IV

Alegria trágica e eterno retorno


A alegria e o trágico1

Roberto Machado

Um dos principais objetivos de Nietzsche, ao criar uma filosofia trágica


filosofia que tem como ideia mais importante a afirmação do eterno retorno, é
possibilitar uma “gaia ciência”, um saber alegre, um pensamento que defende
a alegria de viver, uma alegria incondicional com a vida, com a realidade, uma
aprovação jubilatória da existência.
São muitos os textos de Nietzsche que vão neste sentido. Privilegiarei,
para pensar a alegria e sua relação com o trágico, o lugar em que esse tema é
apresentado com maior relevância: Assim falou Zaratustra. Acredito que esse
livro pode ser considerado o ápice de sua filosofia porque é nele que, para ser
coerente com a ideia de trágico como tentativa de escapar da racionalidade
conceitual, sistemática, teórica da filosofia, Nietzsche utiliza uma forma de
expressão artística, mais precisamente, uma linguagem poética construída de
forma narrativa e dramática. Assim, a passagem mais elucidativa da relação
entre a alegria e o trágico se encontra em um de seus capítulos mais impor-
tantes: “Da visão e do enigma”, na terceira parte do livro. Há, no final desse
capítulo, um trecho que pode ser chamado de “a serpente e o pastor”, no qual
a forma de expressão artística do trágico é bem marcante.
A visão – que dá sentido ao título do capítulo – é narrada por Zaratustra, de
volta à solidão de sua caverna, depois de abandonar seus discípulos, durante
uma viagem de navio por alto mar, longe de qualquer porto seguro, a corajo-
sos marinheiros que «empreendem longas viagens e não gostam de viver sem
perigo». Esta visão é a seguinte: Zaratustra se encontra no meio de selvagens
rochedos, sozinho, no mais ermo lugar. É então que vê um jovem pastor dei-
tado contorcer-se, sufocado, em convulsão, com o rosto transtornado, cheio
de náusea e horror, pois uma negra e pesada serpente pende de sua boca.

1
Essas ideias são aprofundadas em meu livro Zaratustra, tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Zahar,
3ª edição, 2001.

Leituras de Zaratustra 239


Zaratustra tenta puxar a serpente, mas não consegue arrancá-la da garganta
do pastor. Grita, então, que ele a morda e lhe decepe a cabeça. O pastor segue
o seu conselho, morde, cospe bem longe a cabeça da serpente e levanta-se de
um pulo. Zaratustra conclui o relato de sua visão enigmática descrevendo o
pastor imediatamente depois de tomar essa decisão: «Não mais pastor, não
mais homem – um ser transformado, transfigurado, que ria! Nunca até aqui,
na terra, riu alguém como ele ria.”
Para interpretar essa visão é preciso apreender o significado de seus dois
principais componentes; é preciso saber, primeiro, quem é o jovem pastor;
segundo, o que é a negra e pesada serpente. Ora, dois trechos de “O convales-
cente”, capítulo da terceira parte do Zaratustra, e igualmente importante sobre
o assunto, permitem esclarecer essas questões. O primeiro diz explicitamente
que o jovem pastor em cuja garganta se insinuou a negra e pesada serpente
é o próprio Zaratustra. Zaratustra, portanto, está narrando aos marinheiros
uma visão, ou melhor ainda, uma antevisão que ele teve dele mesmo. Pois
não se deve esquecer que Assim falou Zaratustra não é um livro sistemático e
argumentativo; é um livro que utiliza livremente as formas de expressão da
epopeia, da tragédia e do romance de formação para apresentar a trajetória ou
o processo de aprendizado de Zaratustra, seu personagem central, até ele se
tornar um herói trágico, um filósofo trágico.
O que é, então, a serpente negra e pesada? Diz «O convalescente»: «O gran-
de fastio que sinto do homem – isto penetrara em minha garganta e me su-
focava; e aquilo que proclamava o adivinho: ‹Tudo é igual, nada vale a pena, o
saber nos sufoca›». Penso que há, nessa referência ao fastio, à náusea, ao nojo
pelo homem, uma indicação importante de que a serpente negra e pesada
simboliza o niilismo que sufoca Zaratustra enchendo-lhe de náusea e horror.
Niilismo é uma palavra utilizada por Nietzsche que vem do termo latino nihil,
que significa nada, nulidade. Não há dúvida de que a serpente negra e pesada
simboliza o niilismo, pois o adivinho é, no livro, um personagem que nega a
vida, um personagem para quem a vida tem valor de nada.
Mas é indispensável salientar que se trata de um tipo específico de niilis-
mo; não propriamente o niilismo considerado como desvalorização da vida em
nome de valores superiores, seu primeiro sentido, o niilismo negativo, criado
pelo platonismo e pelo cristianismo – esse platonismo para o povo –, que
julgam e desvalorizam a vida temporal a partir de um mundo suprassensível
e eterno considerado como bom e verdadeiro. Também não propriamente o
niilismo entendido como desvalorização dos valores superiores, o niilismo
moderno, burguês, niilismo reativo da “morte de Deus”, reação explícita aos

240 Roberto Machado


valores superiores instaurados pela criação do Deus cristão: substituição de
Deus considerado como fundamento pelo homem considerado como condição
de possibilidade, para usar essa expressão de Kant.
A serpente negra e pesada simboliza o niilismo passivo causado pela im-
possibilidade de suportar que não haverá um aperfeiçoamento do homem no
sentido de um progresso da humanidade, isto é, que o homem pequeno, fra-
co, reativo, vingativo, doente sempre existirá. Parece-me inclusive que um
dos grandes interesses do pensamento de Nietzsche para nossa atualidade é
ele ter previsto com muita antecedência a derrocada do otimismo moral que
marcou o mundo ocidental desde o final do século XVIII até algumas décadas
atrás. Pois, efetivamente, Nietzsche sentiu como ninguém que o maior peri-
go que traz a morte de Deus é o aumento do niilismo no sentido da própria
transformação do niilismo reativo em um novo e ainda mais devastador tipo
de niilismo: o «niilismo passivo», representado em Assim falou Zaratustra pelo
adivinho, personagem inspirado em Schopenhauer, que se lamenta dizendo
em seu saber triste: inútil foi todo o trabalho, tudo é vazio, tudo é igual, tudo
foi, nada vale a pena, o saber nos sufoca. Esse tipo mais terrível de niilismo
é o do homem que está cansado demais até para morrer, e só vê uma saída:
extinguir-se passivamente.
Os dois tipos anteriores de niilista eram expressões de uma vontade de
negar a vida, mas ainda em nome de valores superiores à vida, sejam valores
divinos ou humanos, metafísicos ou antropológicos. Diferentemente deles,
o niilista passivo é alguém que não tem mais esperança em Deus, como tem
o niilista negativo, mas também não acredita mais em progresso humano,
histórico, como o niilista reativo: considera que o homem não deu certo, e
se entristece por isso. O mais difícil de suportar na vida é a ideia de que não
há esperança de eternidade ou de tempo futuro que venha corrigir o instante.
Daí o perigo do niilismo passivo. Daí também a dificuldade do pensamento
trágico: afirmar que o homem pequeno sempre existirá e, ao mesmo tempo,
não cair no niilismo pessimista desesperado do adivinho, de que nada mais
vale a pena.
Não há dúvida de que o objetivo de Nietzsche, ao criar uma filosofia trági-
ca, elaborada principalmente a partir de Assim falou Zaratustra, é vencer o nii-
lismo: do homem do passado e sua crença em Deus; do homem do presente e
sua aposta no homem futuro; do possível homem do futuro e sua ausência de
valor e até mesmo de vontade. Por outro lado, parece haver grande proximida-
de entre a perspectiva trágica de Nietzsche e a de um niilista passivo, a ponto
de ele mesmo ter usado a palavra niilismo também em um sentido positivo,

Leituras de Zaratustra 241


afirmativo. A meu ver, foi para tornar possível uma perspectiva trágica que va-
cine contra a náusea, o nojo, o fastio, o sufoco característicos do niilismo pas-
sivo, e a tristeza que ele acarreta, que Nietzsche teve o pensamento do eterno
retorno, o mais importante, difícil e enigmático de toda a sua filosofia. Penso,
deste modo, que é o tema do eterno retorno que melhor permite equacionar a
difícil relação entre niilismo e trágico na filosofia de Nietzsche, vindo inclusive
daí a relevância tão grande que tem o Zaratustra em sua obra.
Não vou fazer aqui, evidentemente, uma exposição aprofundada do pensa-
mento nietzschiano do eterno retorno. Mas posso, pelo menos, indicar em que
ele consiste de uma maneira geral, para destacar o elemento mais importante
desse pensamento vertiginoso.
Quando se examina o pensamento nietzschiano do eterno retorno, encon-
tram-se nele dois aspectos. Em primeiro lugar, o que se pode chamar uma
doutrina física ou cosmológica que defende a circularidade do tempo e o mo-
vimento circular e repetitivo de todas as coisas no tempo. Ela consiste, ini-
cialmente, em negar, contra o platonismo e o cristianismo, que o tempo tenha
um instante inicial, isto é, que exista um estado de ser antes do devir, e que
o tempo tenha um instante final, isto é, que exista um estado do ser depois
do devir; o tempo é infinito, não tem início nem fim. Além disso – e não se
pode deixar de lado esse componente da doutrina, pois Nietzsche o salientou
todas as vezes que escreveu sobre o tema, inclusive nos fragmentos póstumos –,
ela consiste em afirmar que, se o tempo é infinito e as forças, que compõem
um mundo finito, são finitas, o curso do tempo não pode ser uma variação
contínua de estados novos: é um eterno retorno do mesmo. Esse tema é apre-
sentado dramaticamente em Assim falou Zaratustra. Foi inclusive o assunto da
conversa não terminada de Zaratustra, imediatamente anterior à visão do pas-
tor e da serpente, com o anão, personagem importante do livro, seu demônio
e mortal inimigo, o espírito de gravidade, o espírito de negação, caracterizado
como aquele que, em vez de dizer “meu bem, meu mal”, diz “bem para todos,
mal para todos”. Mas isso não é tudo.
Em segundo lugar, o eterno retorno é, direi utilizando uma terminologia
de Deleuze, uma doutrina ética – e não propriamente moral. Com isso, quero
salientar que, enquanto a moral se funda em valores universais, transcenden-
tes ou transcendentais, a ética avalia as condutas tomando como referência
“normas de vida”, “modos de existência” singulares e imanentes que dizem
respeito não ao Bem ou ao dever, mas à força, à potência, à intensidade. Neste
sentido, o eterno retorno é um pensamento que diz respeito à vontade hu-
mana e não ao mundo, e que Nietzsche enuncia da seguinte forma: “Se em

242 Roberto Machado


tudo que você quiser fazer, você começar por se perguntar: ‘Quero fazê-lo um
número infinito de vezes?’ isso será para você o mais sólido centro de gravida-
de...” Dito com outras palavras: “tudo que você quiser, queira-o de tal modo
que também queira o eterno retorno”.
Ora, a meu ver, entre os dois aspectos do eterno retorno, há um privilé-
gio marcante do pensamento ético sobre o cosmológico. Por quê? Primeiro
porque, se é verdade que Nietzsche escreveu alguns fragmentos procurando
provar o eterno retorno cosmológico ou a ideia de que tudo realmente retor-
na, jamais publicou esses fragmentos tal como foram escritos. Quando a ideia
aparece – pouquíssimas vezes – em seus livros, é mais em tom de questão
do que de resposta. Como acontece, por exemplo, na conversa de Zaratustra
com o anão, na qual quem diz que o tempo é circular não é o personagem que
representa Nietzsche no livro, mas o anão, um representante do niilismo. E,
em seguida, quando Zaratustra lhe pergunta se o instante – o momento atual
– retornará eternamente, o que acontece? O anão, incapaz de suportar o peso
do pensamento trágico, simplesmente foge, desaparece, e a questão do eterno
retorno cosmológico fica sem resposta. Nos textos publicados por Nietzsche,
seu pensamento abissal aparece como um teste, um desafio.
Esse é o primeiro motivo por que considero o pensamento do eterno re-
torno mais um pensamento ético do que cosmológico. Mas há um segundo,
e principal: a vontade de potência do homem só se liberta do niilismo na me-
dida em que é capaz de querer o eterno retorno de todas as coisas como uma
maneira de fazer justiça às coisas terrenas, mesmo que efetivamente elas não
retornem; isso, de fato, pouco importa. O que importa é viver como se cada
instante da vida fosse retornar eternamente. Para Nietzsche, querer a eterni-
zação do instante vivido, pela afirmação de seu eterno retorno, é amar a vida
com o máximo de intensidade, a intensidade do amor fati, o amor do fato, do
acontecimento.
Daí por que considero o eterno retorno – a ideia de que a vida retorna eter-
namente – como uma hipótese, uma suposição, uma ficção, uma nobre men-
tira poética que põe em cena um desafio ético. Fundamentalmente, o eterno
retorno é o pensamento trágico capaz de levar, ou elevar a vontade do homem
a seu máximo de potência, ao tornar possível, sem introduzir oposição de
valores, a afirmação de tudo o que foi, é e será. Afirmar eticamente o eterno
retorno é ter a coragem de dizer a respeito de qualquer acontecimento: “Foi
assim! Assim eu quis!”, “Era isso a vida? Pois muito bem! Outra vez!”. Se o
pensamento do eterno retorno exige coragem, é porque é difícil suportar a
ideia trágica de não esperar uma eternidade ou um tempo futuro, bons e ver-

Leituras de Zaratustra 243


dadeiros, que venham corrigir o instante presente. Aí reside inclusive o perigo
de identificar o homem trágico com o niilista passivo.
Qual é, então, a diferença entre os dois? Tal como interpreto, é uma dife-
rença de perspectiva. É o fato de a vontade humana ser afirmativa ou negativa
em face da realidade ou da vida como ela é. Se a serpente é, ao mesmo tempo,
a serpente alada, a serpente enrolada no pescoço da águia que voa em amplos
círculos nas alturas – símbolo do eterno retorno –, e a serpente pesada que,
no chão, penetra na garganta do homem (símbolo do niilismo passivo); se ela
simboliza, ao mesmo tempo, o eterno retorno e o niilismo passivo, é porque,
diante da mesma realidade, o homem sem Deus ou sem ídolos, sem esperan-
ças extraterrenas ou esperanças futuras, pode sentir-se sufocado e triste ou
alegrar-se, pode considerar que nada tem valor na vida ou que “nada tem valor
na vida, a não ser o grau de potência”, pode ser um niilista passivo, esgotado,
exausto, triste, ou um niilista “ativo”, cuja vontade atinge o máximo de potên-
cia ao afirmar alegremente o eterno retorno.
O nascimento da tragédia, primeiro livro de Nietzsche, considerava a tragédia
um antídoto para a sabedoria pessimista que proclamava que o bem supremo
era não ter nascido e o segundo dos bens morrer o quanto antes. E fazia isso
mostrando que a finalidade da tragédia, ao apresentar o sofrimento como des-
tino do herói trágico, é produzir alegria, uma alegria que não é mascaramento
da dor, nem resignação, mas a expressão de uma resistência ao próprio sofri-
mento. Do mesmo modo, Assim falou Zaratustra vê no pensamento do eterno
retorno o remédio capaz de curar a doença do niilismo passivo – que julga a
vida sem sentido e sem valor – tornando sublime o que parece horrível.
Deste modo, a questão trágica por excelência «você reafirmaria sua vida
tal como ela tem sido?» pode acarretar duas respostas práticas, duas atitudes
existenciais: a tristeza do niilismo passivo ou a alegria provocada pelo desejo
do eterno retorno. Pois, para quem tiver a coragem de enfrentar, encarar, as-
sumir esse pensamento abissal, a vida se transformará, criando a leveza sobre-
-humana do riso, ou, melhor ainda, a leveza de um riso sobre-humano, como
aconteceu com o jovem pastor, ao morder a serpente e decepar-lhe a cabeça.
É essa mordida, esse ato, essa decisão trágica que faz com que a vida deixe
de ser opressiva, transformando o homem em alguém que é portador de uma
alegria trágica. É o que penso que foi sugerido por essa visão enigmática do
Zaratustra, quando apresenta o pastor depois de ter mordido a cabeça da ser-
pente como “um ser transformado, transfigurado, que ria”.

244 Roberto Machado


Zaratustra e a possibilidade de rir de si mesmo:
“o terceiro olho do teatro”

Márcia Beatriz Bello Pacheco

Assim falou Zaratustra, um livro para todos e para ninguém trasladou a filosofia
do campo da ciência para o âmbito da arte, e Nietzsche-dramaturgo trouxe à
cena seus principais conceitos através de Zaratustra, o personagem principal
desta tragédia.1
O discurso filosófico passou a ser pensado sob uma nova perspectiva: ar-
tística, criativa, como cenas de uma peça dramática, redefinindo, assim, as re-
lações entre teatro e filosofia. Nietzsche-encenador descortinou a trajetória de
Zaratustra mediante metáforas, paródia e poesia. Apenas a título de exercício,
poderíamos imaginar a primeira cena de Zaratustra de modo teatral:
Cenário: Alto da montanha (nível de praticável superior), raiar do dia (luz
âmbar para a aurora).
Cena 1:
ZARATUSTRA (despertando e reverenciando o sol): Ó espetáculo diário
testemunhado nos últimos dez anos: já é hora de ter o meu ocaso! Aben-
çoa a taça que quer transbordar para que possa escorrer por toda a parte o
reflexo da tua bem-aventurança!
(mudança de luz)
Cena 2: Na floresta (folhas secas ao chão)
Zaratustra encontra um velho:
(VELHO consigo mesmo): Conheço este viajante. Passou por estas matas
há muitos anos. Seu nome é Zaratustra. (pausa) Como está mudado!
(a Zaratustra): Bom dia, jovem senhor. Vejo que após um longo período

1
Zaratustra é o herói cujo destino trágico é sofrer e, ao enfrentá-lo, ao final de sua saga, terá alcança-
do o júbilo da vitória: a superação de si mesmo. Diferentemente da concepção clássica, a interpretação
nietzscheana valorizará a afirmação dos infortúnios como aspectos inerentes ao cumprimento do desti-
no. Este estará atrelado à alegria, como expressão da aceitação do sofrimento.

Leituras de Zaratustra 245


voltas a estas paragens e também que te tornaste criança, que despertaste.
Tens o olhar puro e nenhum laivo de náusea em tua boca. Talvez por isso
caminhes como um dançarino. O que pretendes entre os que dormem? Na
solidão em que vivias, podias ser transportado como se vivesses no mar...e
agora voltas à terra. Ai de ti!
ZARATUSTRA (entusiasmado): Amo os homens!
VELHO: Também pensava da mesma maneira, mas agora amo a Deus, não
mais aos homens. O ser humano é por demais imperfeito, e o amor aos
homens me mataria.
ZARATUSTRA: Bastou falar em amor que... (interrompe) Trago aos ho-
mens um presente. (...)
A partir do anúncio de que trazia um presente para a humanidade, Zara-
tustra trilhará seu caminho durante quatro atos.

Com este breve exemplo, verificamos que é possível adaptar a tragédia de


Zaratustra para a linguagem cênica sem grandes modificações no texto origi-
nal. Através desta moldura poético-teatral, Nietzsche apresentou conceitos
que viriam a mudar a história da filosofia.2 Assim falou Zaratustra foi escrito
a princípio como um “poema ou quinto evangelho” de aproximadamente cem
páginas, o que passou a ser a primeira das quatro partes da obra.
Em Ecce homo, Nietzsche afirma que concebeu o pensamento do eterno re-
torno3 em agosto de 1881 enquanto caminhava pelos bosques perto do lago
de Silvaplana.4 Após dezoito meses, subitamente, como que por inspiração,
Zaratustra veio à luz no seguinte cenário:

O inverno seguinte vivi na calma e graciosa baía de Rapallo, não longe de


Gênova, entalhada entre Chiavari e o promontório de Porto Fino. Minha
saúde não era a melhor; o inverno frio e chuvoso ao extremo; um pequeno

2
Sobre o Zaratustra, Deleuze dirá: “Nietzsche o concebe inteiramente na filosofia, mas inteiramente
também para a cena. (...) Ele sonha com uma música de teatro como máscara para ‘seu’ teatro filosó-
fico, já teatro da crueldade, teatro da vontade de potência e do eterno retorno.” Cf. DELEUZE, Gilles.
“Conclusões sobre a vontade de potência e o eterno retorno”, de 1967, In: A ilha deserta e outros
textos., p. 166.
3
Conceito nietzscheano segundo o qual o homem se veria diante da possibilidade de repetir eternamen-
te tudo o que por ele foi vivenciado: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver
mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada
suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder
novamente, tudo na mesma sequencia e ordem”. Tal hipótese só seria bem quista pelo homem afirmativo,
o ator do teatro do mundo que repetiria a mesma cena eternamente como num primeiro abrir de cortinas.
Posteriormente voltaremos a este tema. Cf.NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, §341, p. 230.
4
NIETZSCHE, F. Ecce Homo: como alguém se torna o que é, p. 82-84.

246 Márcia Beatriz Bello Pacheco


albergue, situado à beira do mar, de modo que à noite a maré alta tornava
o sono impossível, oferecia em quase tudo o oposto do que seria desejável.
Apesar disso, e como que para demonstrar minha tese de que tudo decisivo
acontece apesar de tudo, foi nesse inverno e nesse desfavorecimento das
circunstâncias que meu Zaratustra nasceu. Pela manhã eu subia na direção
sul, no magnífico caminho para Zoagli, até o alto, passando por pinheiros
e avistando vasta porção de mar; à tarde, quando a saúde o permitia, con-
tornava toda a baía de Santa Margherita até Porto Fino. [...] Nesses dois
caminhos ocorreu-me todo o primeiro Zaratustra, sobretudo o próprio Za-
ratustra como tipo: mais corretamente, ele caiu sobre mim...5

Chamamos a atenção para o trecho em que Nietzsche ratifica sua tese de


que os fatos decisivos da vida de um homem acontecem apesar de todo e qual-
quer desfavorecimento das circunstâncias. Mesmo levando apenas dez dias
para escrever cada uma das partes da sua obra máxima, Nietzsche se identifi-
cava com a fênix, o pássaro mítico que renasce das cinzas, como uma metáfora
que caracterizaria o criador e sua obra. Tal ideia de renascimento e morte pode
ser encontrada no capítulo “Do caminho do criador” da primeira parte do li-
vro, no qual Zaratustra fala sobre o criador que deve perecer e faz uma alusão
à fênix: “Arder nas tuas próprias chamas, deverás querer; como pretenderias
renovar-te, se antes não te tornasses cinza!”.6 Ou, ainda, afirmará, nas pri-
meiras palavras de “Do ler e escrever”,7 que aprecia somente o que é escrito
com o próprio sangue. Este ardor visceral, relacionado ao processo criativo
e também às brutais questões do existir, permeará toda a obra de Nietzsche
e, neste artigo, focalizaremos a saída apresentada pelo filósofo à angústia do
homem que não suporta a vida em sua plenitude. É o riso da volta da fênix,
que, após levar suas cinzas ao topo da montanha, pode dar sua gargalhada,
experimentando a sabedoria trágica da existência. Esta, uma afirmação da vida
apesar da dor, apesar das cinzas. É o voo da superação de si, da celebração da
totalidade do existir.
Nietzsche afirma que fazemos parte de uma comédia encenada por um
“deus-dramaturgo”, Dioniso, o “grande, velho, eterno poeta-comediógrafo da

5
Sobre o termo”caiu sobre mim” Maria Cristina Franco Ferraz afirma: “A ideia de revelação, de ins-
piração, é sugerida pelas expressões utilizadas: ‘ocorrer’, ‘ter a ideia’ (o expressivo verbo einfallen,
composto por cair [fallen] e ‘dentro’[herein] e, mais particularmente, ‘assaltar’, ‘cair sobre’ (über-
-fallen, composto a partir de fallen e über, ‘sobre’), nas quais se sugere o aspecto súbito, involuntário,
por assim dizer ‘exterior’ tanto de uma revelação quanto de uma inspiração.” Cf. Nietzsche, o bufão
dos deuses, p. 82.
6
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra I, p. 89-91.
7
Ibid., p. 66-67.

Leituras de Zaratustra 247


nossa existência”8 e, portanto, deveríamos rir do grande espetáculo do drama
de nossas vidas. Ao fazê-lo, estaríamos optando por abandonar a peça da serie-
dade cujos personagens havíamos aceitado interpretar até então: sofredores,
ressentidos, cheios de culpas, e passaríamos a aceitar apenas os papéis em que
fosse possível dançar e rir com a vida. Desta maneira, teríamos conseguido
atingir o ponto mais elevado de nossas tragédias.9
Partindo do capítulo de Assim falou Zaratustra anteriormente mencionado,
encontramos a ponta do novelo que desenrolará nossa questão, qual seja, o
riso como alternativa à dor e sofrimento humanos. Para prosseguirmos neste
“desenrolar”, devemos antes desatar alguns nós e voltar à definição nietzsche-
ana de “tragédia”.
Para Nietzsche, a arte trágica teve sua origem na relação contraditória e,
ao mesmo tempo, complementar, de duas forças inerentes e propulsoras da
existência: apolínea e dionisíaca.
Dioniso, o deus arcaico, que transitava entre a vida e a morte. De acordo
com a explicação mítica do seu nascimento, esta divindade morre e ressuscita,
como um deus que nasce duas vezes, caracterizando a capacidade transforma-
dora do homem (não podemos deixar de pensar na alusão a Zaratustra-fênix).
Apolo, o deus da medida, do limite, da autoconsciência, do domínio de
si. Ressaltamos que ambas as forças “caminham lado a lado, na maioria das
vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre
novas”.10
O grego entrará em contato com seu estado primordial através das festas
de culto a Dioniso, que, a princípio, eram celebradas nas aldeias e vilarejos
como representações do ciclo de morte e ressurgimento das plantações. Poste-
riormente, os cultos passaram para a cidade, na encosta da Acrópole, sendo As
Grandes Dionísias a mais importante das festividades: tratava-se de três dias
de cerimônias compostas por várias atividades que envolviam cantos, danças,
sacrifício de bodes,11 em um clima carnavalesco e orgiástico. Neste cenário, a
partir de 450 a.C., entraram em cena os ditirambos, ou, segundo Nietzsche,

8
Id., Genealogia da Moral, p.14.
9
Na terceira dissertação de Genealogia da moral, Nietzsche critica o final de Parsifal, de Wagner:
“(...) Isto, como disse, teria sido propriamente digno de um grande trágico: o qual, como todo artista,
somente então chega ao cume de sua grandeza, ao ver a si mesmo e à sua arte como abaixo de si – ao
rir de si mesmo”. Cf. Op. cit., p. 89.
10
NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia. p. 24.
11
Tragédia em grego ou “canto do bode”: os que cantavam no sacrifício ritual do bode que expurgava
a cidade de suas impurezas, ou os que cantavam nos festivais para receberem um bode como prêmio.

248 Márcia Beatriz Bello Pacheco


“canções dramatizadas”,12 que eram recitadas pelo corifeu e por um coro com-
posto por sátiros e faunos. Assim, por meio do coro satírico, o homem, então
ator sem passado, não mais racionaliza os seus atos e, em êxtase, num estado
de embriaguez ou “magia dionisíaca”, se funde com a Natureza.

(...) o homem civilizado grego sente-se suspenso em presença do coro sa-


tírico; e o efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o Estado e a
sociedade, sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a um
superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza.
O consolo metafísico – com que, como já indiquei aqui, toda a verdadeira
tragédia nos deixa – de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a
mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia
de alegria, esse consolo aparece com nitidez corpórea como coro satírico,
como coro de seres naturais, que vivem, por assim dizer, indestrutíveis, por
trás de toda civilização, e que, a despeito de toda mudança de gerações e das
vicissitudes da história dos povos, permanecem perenemente os mesmos.13

O “consolo metafísico”, portanto, trouxe ao grego helênico um conforto


para seu sofrimento e, mais precisamente pela tragédia, por meio do estado
dionisíaco, proporcionou o sentimento da alegria trágica. Então, o homem
civilizado, “suspenso em presença do coro satírico” se entrega aos instintos,
ao feitiço e, voltando à sua essência, vivencia a dramaticidade trágica da vida,
qual seja, a finitude do existir.14 Quando então, em estado de êxtase, age
como se fosse um outro ser,15 o grego celebra Dioniso, o deus da transforma-
ção, da metamorfose, da alegria de viver.
De volta a Zaratustra, este propõe que se mate o espírito da gravidade,
o demônio e mortal inimigo, o espírito que puxa para baixo, para o abismo,
que sejam aniquilados os fundadores de morais e religiões que proíbem o
riso salutar, que cerceiam quem quer dançar com a vida. São os inventores
da finalidade do existir, que, com o bastão da seriedade, tolhem a leveza e os
instintos do homem. Aos seguidores destes doutores do peso da moral e das
religiões, Zaratustra oferece o riso, a leveza e o voo sobre si mesmo como armas

12
NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, p.57-58.
13
Ibid., p. 52.
14
Cf. MACHADO, R. Nietzsche e a verdade, p. 17.
15
Verificamos a relação entre alteridade e estado dionisíaco: “O homem, simples mortal, em êxtase
e entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se ‘anér’, isto é, um herói, um varão que
ultrapassou o ‘métron’, a medida de cada um. Tendo ultrapassado o métron, o anér é, ipso facto, um
‘hypocrités’, quer dizer, aquele que responde em êxtase e entusiasmo, isto é, o ATOR, um outro”. Cf:
BRANDÃO, J. Teatro grego: tragédia e comédia, p.11.

Leituras de Zaratustra 249


contra tamanha rigidez. Nega o deus das culpas, o deus cristão, que castiga e faz
do homem um devedor eterno. Ao afirmar que “acreditaria somente num Deus
que soubesse dançar”, Zaratustra coloca em xeque todo o peso da verdade das
morais e religiões, e afirma seu pensamento de expansão vital, de unidade com
a natureza, da vontade de potência. Zaratustra tem uma visão trágica do mundo,
em que a alegria e o riso são expressões do modo dionisíaco de celebrar o viver.
Ao final desse curto capítulo, Nietzsche esboça a ideia do amor fati: o amor
ao fado, ao destino, um querer a vida exatamente como ela é, a afirmação da
vida em sua plenitude, com toda a dor e tristeza inerentes a ela. Rir das cenas
da vida ou afirmar “agora, um deus dança dentro de mim”, será possível ape-
nas por meio do olhar com distanciamento para os piores e mais dolorosos
momentos afirmando a vida apesar de todos os males, infortúnios, e sofrimen-
tos, isto é, somente através do amor incondicional, tudo o que foi, é e será.
Este bailar, esta leveza que somente quem se permite rir de si mesmo
possui, será abordado por Nietzsche a partir do “terceiro olho” ou o “olho do
teatro”, que também pode ser interpretado como um desdobramento do “voo
sobre si mesmo”.
Nietzsche chamou de “terceiro olho” a condição em que o homem se põe
em cena para si mesmo, o que possibilita o rir de si mesmo, apesar de toda a
dor e sofrimento inerentes à tragédia da vida.

Apenas os artistas, especialmente os do teatro, dotaram os homens de


olhos e ouvidos para ver e ouvir, com algum prazer, o que cada um é, o que
cada um experimenta e o que quer; apenas eles nos ensinaram a estimar o
herói escondido em todos os seres cotidianos, e também a arte de olhar a si
mesmo como herói, à distância e como que simplificado e transfigurado – a
arte de se “pôr em cena” para si mesmo. Somente assim podemos lidar com
alguns vis detalhes em nós! Sem tal arte, seríamos tão só primeiro plano e
viveríamos inteiramente sob o encanto da ótica que faz o mais próximo e
mais vulgar parecer imensamente grande, a realidade mesma.16

Tal distanciamento17 permite o “descansar de nós mesmos, olhando-nos de


cima e de longe e, de uma artística distância”,18 isto é, com o “olho de teatro”.

16
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. §78, p.106.
17
Segundo PAVIS: “Este princípio estético vale para qualquer linguagem artística: aplicado ao teatro,
ele abrange as técnicas ‘desilusionantes’ que não mantém a impressão de uma realidade cênica e que
revelam o artifício da construção dramática ou da personagem.”O distanciamento brechtiano estaria
mais próximo ao “terceiro olho do teatro” nietzscheano, uma vez que a atitude do espectador é crítica,
o que.permitiria o rir de si mesmo. Cf. PAVIS, P. Dicionário de teatro, p. 106-107.
18
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. §107, p.132.

250 Márcia Beatriz Bello Pacheco


Uma visão distanciada, que permitiria ao homem assistir ao grande espetáculo
do drama da sua vida e, a partir de então, seria possível dançar levemente, flu-
tuando e zombando de si mesmo, se despojando do peso dos ideais, da moral
e das exigências, que por séculos o ameaçou.
Podemos fazer uma analogia deste olho do teatro em relação a Nietzsche
e seu Zaratustra. Nietzsche, o artista, pode participar deste espetáculo por
meio de seu protagonista e, na condição de autor, é, ao mesmo tempo, um
espectador.19 Através de uma linguagem poética, cenários, personagens, atos
e cenas são regidos magistralmente por esse dramaturgo-filósofo que teve a
capacidade de transpor a saga de Zaratustra de maneira perfeitamente adap-
tável à cena teatral. Talvez por vivenciar tão intensamente a trajetória de sua
criatura, ficasse exaurido a cada parte da obra que finalizava.
Os dez anos de reclusão de Zaratustra na montanha, antes que descesse
das alturas para falar aos homens sobre “a morte de deus”, seria, pelo ângulo
Nietzsche-criador, o momento em que o ator se prepara na coxia para subir
aos palcos. E, ao final do terceiro sinal, Zaratustra entrará em cena para trazer
aos homens uma possibilidade de vivenciar a vida como obra de arte. A cada
noite, o texto será o mesmo, mas o improvável e o desconhecido estarão sem-
pre à espreita.
Gostaríamos de chamar a atenção para a curiosa similaridade entre o re-
presentar uma peça teatral e a intepretação deleuziana de eterno retorno de-
rivado da diferença:

O eterno retorno não faz retornar o mesmo e o semelhante, mas ele próprio
deriva de um mundo da pura diferença. Cada série retorna não só nas ou-
tras que a implicam, mas por ela mesma, porque ela não é implicada pelas
outras sem ser, por sua vez, integrante restituída como aquilo que as impli-
ca. O eterno retorno não tem outro sentido além deste: a insuficiência de
origem assinalável, isto é, a designação da origem como sendo a diferença,
que relaciona o diferente com o diferente para fazê-los retornar enquanto
tais. Neste sentido, o eterno retorno é bem a consequência de uma diferen-
ça originária, pura, sintética, em si (o que Nietzsche chamava de vontade

19
Gerd Bornheim afirma sobre o “teatro didático” de Bertolt Brecht (1929-1933): “Ao invés de expe-
rimentar o diálogo com o público, ou algum tipo de participação com ele, o que Brecht faz é cortar isso
que parece um mal pela raiz: o público deixa de existir. Então, todo o mundo é ator. E todo mundo é
espectador ao mesmo tempo.” Esclarecemos que o distanciamento brechtiano desta fase tem objetivos
diferentes do proposto por Nietzsche, logrado através do “terceiro olho”. Conforme o mesmo autor em
O sentido e a máscara: “Brecht, ao contrário, não ri: assume a impossibilidade de camuflar a consci-
ência história e todas as suas fatalidades.” Cf. BORNHEIM, Teatro: Cena Dividida, p.119 e O sentido
e a máscara, p. 113.

Leituras de Zaratustra 251


de potência). Se a diferença é o em si, a repetição, no eterno retorno, é o
para-si da diferença [...] o sujeito do eterno retorno não é o mesmo, mas o
diferente, nem é o semelhante, mas o dissimilar, nem o Uno, mas o múlti-
plo, nem é a necessidade, mas o acaso. [...] Ou então o mesmo e o seme-
lhante são apenas um efeito do funcionamento dos sistemas submetidos ao
eterno retorno. [...] o mesmo e o semelhante são ficções engendradas pelo
eterno retorno. [...] não é o mesmo nem o semelhante que retornam, mas o
eterno retorno é o único mesmo e a única semelhança do que retorna. Eles
não se deixam também abstrair do eterno retorno para reagir sobre a causa.
O mesmo se diz do que difere e permanece diferente. O eterno retorno é o
mesmo do diferente, o uno do múltiplo, o semelhante do dessemelhante.20

Analogamente, quando se representa uma peça teatral, por mais que se repi-
ta a mesma obra por anos seguidos, uma apresentação jamais será igual à outra:
a plateia será diferente, o jogo da contracenação, distinto, assim como as pau-
sas, as reações do público, enfim, a cada noite sempre haverá um outro brincar.
Passemos à análise do funcionamento do mecanismo de distanciamento
por meio do “terceiro olho do teatro” do homem que quer se desvencilhar do
peso da seriedade dos doutores da gravidade, isto é, pelo ângulo do ator-es-
pectador. Este homem estaria se olhando de fora da ação (espectador), como
um voo de águia, sobre as cenas de dor e sofrimento em que estivesse partici-
pando (ator). Ele se veria por cima das cenas e, ao mesmo tempo, participando
das mesmas sem que, no entanto, se envolvesse com elas. Dessa maneira,
teria condição de libertar-se das amarras do estabelecido pelos dramaturgos
da seriedade.

Quê? Você ainda necessita do teatro? É ainda tão jovem? Seja inteligente,
busque a tragédia e a comédia ali onde são representadas melhor! Onde
tudo é mais interessante e interessado. Sim, não é tão fácil permanecer
apenas espectador então – mas aprenda isso! E em quase todas as situa-
ções que lhe forem difíceis e dolorosas você terá uma pequena porta para
a alegria e um refúgio, mesmo se as suas próprias paixões o acometerem.
Abra o seu olho de teatro, o terceiro grande olho que olha para o mundo
pelos outros dois!21

Podemos chamar esta técnica teatral nietzschiana de “técnica do alegre


saber” – ou gaia ciência, que permitirá ao homem olhar para o drama de sua
vida por uma nova perspectiva, por um cenário construído pelo riso liberta-

20
Cf. DELEUZE, G. Diferença e repetição, p. 182-184.
21
NIETZSCHE, F. Aurora. § 509, p. 254.

252 Márcia Beatriz Bello Pacheco


dor. O homem poderá, então, ter vivenciado a tragédia da vida em seu mais
profundo sentido.
Este SIM à vida é a resposta de Nietzsche ao homem do niilismo. Sobre o
niilismo em seus três estágios, elencamos suas características em linhas ge-
rais: segundo o filósofo, há o niilismo negativo, que nega o mundo imperfeito
aceitando apenas o da perfeição dos valores superiores metafísicos; há o niilis-
mo reativo, no qual os valores transcendentais são substituídos pelos valores
humanos, posto que o mundo suprassensível não mais abarca as questões do
homem; e, por último, o niilismo passivo, do homem ressentido, da vontade
do nada, do nojo da vida, da “destruição ativa”.
Quando Zaratustra se aventura no mundo fragmentado e desértico, ele
está adentrando um mundo em que tudo seca e morre, não havendo espaço
para que o homem possa rir nem dançar.

Em verdade ando por entre os homens como em meio a fragmentos e mem-


bros dispersos. Eis o pior para meus olhos, encontrar o homem reduzido
a escombros e esfacelado como num campo de batalhas ou num mata-
douro. E meu olhar, seja no presente ou no passado, encontra sempre a
mesma coisa: fragmentos, membros dispersos e terríveis acasos – mas não
homens.22

A partir deste quadro, Zaratustra será aquele que irá criar um futuro, que
será uma ponte para o devir deste aleijado, que não vê sentido para a vida.
Zaratustra- Dioniso trará o riso, a dança, a leveza, em resposta ao homem-alei-
jão, disforme, reduzido a restos de um campo de guerra; homem que lutou
contra a própria vida, que fez da existência um nada, que não via mais sentido
em seguir seu caminho. Zaratustra-artista aponta para a possibilidade de um
olhar para vida como obra de arte e aposta no riso, no canto e na dança, como
maneiras de sair das trincheiras de si mesmo.
Se buscarmos as condições em que a primeira parte de Zaratustra foi es-
crita, chegaremos a momentos bastante difíceis pelos quais Nietzsche passava
e que, não obstante, significaram a mola propulsora à criação de sua obra
mais importante: rejeitado por ter seu pedido de casamento recusado por Lou
Salomé e decepcionado com a irmã por ela ter se casado com um antissemita,
terminou a primeira parte de seu livro exatamente no dia da morte de Richard
Wagner, com quem manteve uma das mais fortes e polêmicas relações. Isto
sem falar na falta de leitores para seus livros – talvez em consequência de ha-

22
Id., Assim falou Zaratustra II“Da redenção”, p. 169.

Leituras de Zaratustra 253


ver sido banido do mundo acadêmico –, que eram publicados com seus parcos
recursos.
Como exemplo de que a arte imita a vida, acompanhamos Zaratustra, que,
na primeira cena de sua tragédia, após dez anos de reclusão no topo da mon-
tanha, resolve ir falar aos homens do povo, e constata que estes não estavam
preparados para ouvi-lo. Da mesma maneira, conforme indicado no subtítulo
da obra, Nietzsche escreve “para todos e para ninguém” e, sabendo que o ho-
mem de seu tempo não estava preparado para ler o que escrevia, resolve olhar
para si mesmo por meio do seu “terceiro olho do teatro” e, como criador que
é, passa a ser também um antídoto para suas próprias dores.
Zaratustra, quando faz uma retrospectiva de sua trajetória no último ato,
falará aos homens superiores,23 que haviam subido a montanha para encon-
trar Zaratustra e buscar um novo sentido para suas vidas.
Zaratustra convida seus hóspedes a superarem o medo de afrontar o des-
tino, de ver o abismo com olhos de águia, de livrarem-se das dores por estas
significarem apenas invenções elaboradas a partir da submissão à vontade de
Deus (“sofreis de vós mesmos”) e dos guardiões da seriedade (“guardai-vos
também dos doutos!”). Zaratustra, então, chamará os homens superiores de
criadores e os convidará a aprender a rir deles mesmos:

[...] louvado seja esse espírito de todos os espíritos livres, a ridente tem-
pestade, que sopra pó nos olhos de todos os pessimistas e ressentidos! E é
isto que tendes de pior, ó homens superiores: que nenhum de vós aprendeu
a dançar como convém – a dançar para além de vós mesmos! Que impor-
tância tem, se vos malograstes! Quantas coisas ainda são possíveis! Apren-
dei, portanto, a rir para além de vós mesmos! Levantai vossos corações, ó
exímios dançarinos, bem alto, mais alto! Sem esquecer-vos, tampouco, do
bom riso! Esta coroa do homem ridente, esta coroa de rosas entrelaçadas:
a vós, meus irmãos, atiro esta coroa! Eu santifiquei o riso; ó homens supe-
riores, aprendei – a rir!24

Neste quarto último ato, encontramos vários personagens que, em co-


mum, têm o desencanto de não terem mais um Deus para seguir e, então,
passam a adorar um burro que sempre diz SIM a tudo25 (a onomatopeia “I-A”
emitida pelo animal é o mesmo que SIM em alemão). Este SIM do jumento não

23
Em “A saudação” Zaratustra se depara com vários personagens em sua caverna a quem chamará de
“seus hóspedes”. Cf. Assim falou Zaratustra, p. 325-331.
24
Op. cit. “Do homem superior”, p. 333-346.
25
Op. cit. “O despertar”, p. 361-365.

254 Márcia Beatriz Bello Pacheco


é o mesmo da doutrina de Zaratustra, pois não cria e, portanto, não tem a ca-
racterística de superação, de redenção. No entanto, para os convidados da festa,
pouco importa a quem adoram, pois era preferível adorar um asno a carregar
o vazio do nada adorar, e por já terem aprendido a rir, seguiam às gargalhadas
excedidas de quem recém havia conseguido se livrar do espírito da gravidade.
Em meio à celebração regada a vinho e danças, no que poderíamos chamar
de festa dionisíaca, os homens superiores podem então perceber o riso reden-
tor, e passam a querer a vida eternamente repetida, ao descobrirem o instante
da alegria eternizada.
E dançaram e beberam e louvaram a vida.
Zaratustra-dançarino, Zaratustra-leve, Zaratustra-risonho, como ele mes-
mo se define, como um alquimista que transforma chumbo em ouro, irá trocar
a coroa de espinhos, símbolo cristão da culpa e do ressentimento, pela coroa
de rosas do homem ridente; dirá que o peso que os homens carregam por
aceitarem a moral das religiões e os pecados impostos por ela podem dar lugar
ao riso, à dança, ao salto, à leveza. Zaratustra-dionisíaco, criador, aquele que
transforma, intensifica, estimula, afirma a vida e traz uma saída ao homem
sofredor, vingativo, por meio do riso de si mesmo.
Vimos neste breve artigo o lado leve de Zaratustra, aquele que diz SIM à
vida apesar de todas as suas intempéries, e que não se submete às regras dos
seus avaliadores. Zaratustra, aquele que durante seu longo trajeto enfrentou
o acaso, e que, ao final da caminhada, fez de sua vida uma obra de arte. Zara-
tustra, aquele que ensinou o homem a rir de si mesmo.
Em Para além do bem e do mal, 26, Nietzsche afirma:

[...] eu chegaria mesmo a fazer uma hierarquia dos filósofos conforme a


qualidade do riso – pondo no topo aqueles capazes da risada de ouro. E
supondo também que os deuses filosofam, como algumas deduções já me
fizeram crer, não duvido que eles também saibam rir de maneira nova e
sobre-humana – e às custas de todas as coisas sérias! Os deuses gostam de
gracejos: parece que mesmo em cerimônias religiosas não deixam de rir.”

Pois que sejamos capazes de dar essa risada de ouro, que consigamos rir
dessa maneira nova e sobre-humana, e que, de cima de nossos voos sobre
nossas cenas do teatro da vida, possamos filosofar às custas de todas as coisas
sérias e pesadas que tentem nos impor.

26
NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal §294.“O vício olímpico”, p. 177.

Leituras de Zaratustra 255


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SUAREZ, Rosana. Nietzsche comediante: a filosofia na ótica irreverente de Nietzs-
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256 Márcia Beatriz Bello Pacheco


O eterno retorno e a memória do futuro
na terceira parte do Zaratustra

Miguel Angel de Barrenechea

Introdução

Minha proposta é retomar algumas reflexões que venho tecendo, há algum


tempo, sobre a questão do eterno retorno vinculada ao conceito de memória
do futuro.1 Focalizarei, principalmente, as ponderações nietzschianas sobre
o eterno retorno, principalmente, na terceira parte de Assim falou Zaratustra.
Nessas ponderações, pretendo encontrar subsídios para refletir sobre uma
nova concepção de memória que, mesmo não estando desenvolvida taxativa-
mente ou enunciada de forma explícita na obra nietzschiana, dá lugar a uma
nova interpretação do tempo, assim como a uma nova forma de conceber a
recordação, que permite pensar a lembrança como uma ponte para o futuro.
Nessa singular perspectiva, lembrar o que já foi nos permitiria antever o que
será, nos levaria a criar e produzir novos sentidos.

A questão da memória na obra de Nietzsche

Desde o início de sua obra, Nietzsche se ocupou da problemática da me-


mória, do esquecimento, do valor da história para a vida. Lembremos que,
desde as Considerações intempestivas, do início da década de 1870, ele questio-
nou o exagerado valor outorgado à história, à rememoração reverencial do
passado. Essa tendência era fruto de uma tradição hegeliana que pretendia
detectar no próprio devir da História um sentido essencial de todas as vicissi-
tudes da humanidade. Os questionamentos nietzschianos ao historicismo são
apresentados na Segunda consideração intempestiva, “Da utilidade e desvantagem

1
Este trabalho é uma versão ligeiramente modificada de um artigo que publiquei anteriormente,
intitulado: “Nietzsche: eterno retorno e a memória do futuro”.

Leituras de Zaratustra 257


da história para a vida”.2 Nessa obra, o autor questiona a postura dos aca-
dêmicos de sua época que, sob a referida influência hegeliana, consideravam
a história uma chave compreensiva, um instrumento fundamental para o
entendimento do significado do devir da humanidade. O passado e a memó-
ria adquirem, nessa tendência historicista, o papel de chaves mestras para
a compreensão do homem, para elucidar o significado da cultura em geral.
A recordação do que já foi, o conhecimento dos acontecimentos de épocas
longínquas, a lembrança dos fatos de eras recônditas eram entendidos como
parâmetros para pensar a atualidade. Não se tratava de re-visitar o já acon-
tecido para acolher inspirações, motivações, propostas para o presente, mas
para reeditar esses fatos, para se espelhar de forma imitativa naquilo que
já aconteceu. Nietzsche sustenta que, pelo viés da imitação, nem a história
nem a memória favorecem a criação, a produção de novos sentidos. Ao con-
trário, a dependência da memória e da história torna-se inimiga da expansão
vital, obstaculiza as possibilidades de uma existência criativa e artística. Para
Nietzsche, ao contrário, é justamente o esquecimento, entendido como força
plástica, como uma função salutar, que possibilita revivificar as energias de
uma sociedade ou de um homem.3 Esquecer permite digerir o que já aconte-
ceu, aliviar o peso do passado, amenizar os acontecimentos dolorosos, mini-
mizar as lembranças mais penosas; o esquecimento nos coloca numa atitude
de abertura, sem precauções diante do novo, diante do inesperado. Assim,
a capacidade de esquecer é uma importante função psíquica que favorece a
vida, que revigora o homem, que fortalece a sua saúde, evitando a sobrecarga
de lembranças.4
Nietzsche continuará aprofundando, após esse primeiro enfoque dos anos
1870, a problemática da memória e do esquecimento. Numa fase posterior
de sua obra, em 1887, em Genealogia da moral, ele analisará a aparição da me-

2
Nietzsche reconhece a importância dos estudos históricos, mas destaca que eles têm sentido quando
são úteis para fomentar, para desenvolver a vida: “Certamente precisamos da História, mas não como o
passeante mimado no jardim do saber (...) precisamos dela para a vida e para a ação. (...) Somente na me-
dida em que a história serve á vida queremos servi-la”. NIETZSCHE, Friedrich. II Consideração Intem-
pestiva. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 7.
3
“(...) seria necessário saber exatamente qual é o tamanho da força plástica de um homem, de um
povo, de uma cultura; penso esta força crescendo singularmente a partir de si mesma, transformando
e incorporando o que é estranho e passado, curando feridas, re-estabelecendo o perdido”. Ibid., p. 10.
4
Conforme a interpretação nietzschiana, os homens que carecem dessa força plástica do esquecimen-
to sempre estão expostos a sofre exageradamente, a adoecer pelo excesso de memória: “Há homens
que possuem tão pouco esta força que, em uma única vivência, em uma única dor, frequentemente
mesmo em uma única e sutil injustiça, se esvaem incuravelmente em sangue como que através de um
pequenino corte (...)”. Ibid.

258 Miguel Angel de Barrenechea


mória, surgida por pressões do meio social.5 O homem, ao tornar-se um bi-
cho gregário, deixa de agir de forma espontânea, irresponsável, para se tornar
memorioso, calculista e responsável pelos seus atos. O autor dedica a segunda
dissertação da aludida obra para analisar detalhadamente o nascimento da me-
mória, esclarecendo como esse bicho-homem espontâneo e inconsciente, acostu-
mado a nada prever, a esquecer tudo, teve que ser manipulado, pressionado e,
enfim, torturado para tornar-se um animal-memorioso, capaz de aceitar as normas
e as interdições sociais.6 Em contrapartida, o esquecimento é entendido como
uma atividade salutar, um fechamento temporário das janelas da consciência.
O esquecimento permite um repouso da fadiga da previsão, do cálculo e da
lembrança de prêmios e castigos, agindo como protetor do equilíbrio psíquico,
ou seja, como um órgão saudável que nos protege das lembranças opressivas.7
Nesse enfoque, parece haver uma valorização notória do esquecimento e
uma crítica profunda da memória. O esquecimento seria saudável, leve, e a
memória, opressiva, doentia. Contudo, Nietzsche não vai postular, a partir
dessas ponderações, uma simples condena da memória associada a uma valo-
rização do esquecimento. Ele ressalta, utilizando a expressão bicho-homem, que
o homem é necessariamente um animal que memoriza e que esquece. Não
pode prescindir de nenhuma dessas atividades. Contudo, como se articulam
ambas as funções? Nesse contexto, Nietzsche apresenta uma nova perspectiva
sobre a articulação entre memória e esquecimento.
Para analisarmos essas questões, inicialmente é importante sublinhar que,
na etapa avançada de sua obra, principalmente a partir de Assim falou Zara-
tustra, Nietzsche apresenta uma original perspectiva sobre o tempo, sobre a
memória e o esquecimento e sobre a criação e a arte de viver. Diferente de
uma compreensão do tempo linear, estruturada conforme a sucessão pontual
de passado, presente e futuro, ele desenvolve uma visão singular sobre a tem-

5
Nietzsche considera que a memória surge no esquecido bicho-homem quando sofre pressões sociais
para comportar-se dentro de normas previsíveis, quando ele está obrigado a cumprir exigências impos-
tas pela comunidade, quando não pode esquecer, já que deve responder a uma promessa empenhada:
“Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecer é uma força, uma forma de
saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento
é suspenso em determinados casos – nos casos em que deve prometer (...)”. NIETZSCHE, Friedrich.
Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, II, 1.
6
“Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada
para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento? (...) talvez nada exista de
mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que sua mnemotécnica. ‘Grava-se algo a fogo,
para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória’ (...)”. Ibid., 3.
7
“(...) eis a utilidade do esquecimento ativo (...) espécie de guardião da porta, de zelador da ordem
psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, espe-
rança, orgulho, presente, sem o esquecimento (...)”. Ibid., 1.

Leituras de Zaratustra 259


poralidade quando sustenta marcadamente em “Da visão e do enigma” e “Do
convalescente” sua teoria do eterno retorno. Além disso, julgamos que essa
visão diferenciada do tempo irá propiciar uma nova visão da memória e do
esquecimento, quando o autor desenvolve o conceito de memória do futuro, no
qual memória e esquecimento se articulam sem contradição. Na perspectiva
de uma memória do futuro, o homem atingiria o patamar mais elevado de
uma existência criativa, transformando sua vida numa obra de arte.
Convém destacar algumas questões do Zaratustra acerca da possibilidade
de sustentar a noção de memória do futuro, segundo a qual as lembranças
potencializam o vir-a-ser, nos lançam para o futuro. Tentarei, então, abordar
brevemente essa questão a fim de esclarecer o conceito de memória do futuro,
partindo da tese nietzschiana do eterno retorno.

Passado e futuro, memória e esquecimento na tradição

Na tradição filosófica e religiosa ocidental, o tempo teve um significado


fundamental. Nessa concepção, o homem estaria situado numa teia temporal
na qual tanto o passado quanto o futuro seriam essenciais, determinantes para
a compreensão de sua própria existência e da realidade que o cerca. Correla-
tivamente, o presente seria apenas trânsito daquilo que já foi para o que será,
para o que virá. O sentido da vida humana residiria na tensão, na expectativa
entre o que já foi e aquilo que virá. Haveria uma origem, arché, perfeita e recôn-
dita da qual dimana a história. Tudo teria começado num momento perfeito,
paradigmático, num pretérito longínquo e esquecido. Vemos, tanto no mito
do gênese8 quanto na teoria platônica, a ideia de uma origem ideal e trans-
cendente do homem.9 Nessas concepções, a perda de um passado perfeito,
o abandono de uma origem imaculada, extraordinária, colocará o homem na
empresa de recuperar a perdida perfeição. A vida na Terra seria um tortuoso
percurso para retornar a um âmbito paradisíaco, eterno e imutável. O tempo
da Terra, o tempo vivido terá significado apenas como reparação, correção da fa-

8
Lembremos o relato bíblico, quando Deus cria a Terra, todos os seres do mundo e o homem num
lapso de sete dias. Nessa criação, tudo era perfeito, o único que podia sair ou quebrar com a perfeição,
era o homem, que ao possuir livre arbítrio tinha a possibilidade de desacatar as diretrizes divinas,
semeando imperfeição naquilo que era perfeito, eterno, paradisíaco.
9
Cf. Timeu, onde Platão descreve a origem do mundo; também A república, livro X, quando através
do mito de Er, soldado morto em batalha, mas que volta à Terra para contar como é o outro mundo,
relata as vicissitudes do homem antes de nascer, antes de reencarnar e voltar à Terra. O outro mundo,
mundo das ideias, é um lugar ideal, para além da corrupção, do tempo terrestre, das precariedades do
mundo sensível.

260 Miguel Angel de Barrenechea


lha existente na origem. Assim, o instante presente apenas terá sentido como
tentativa de recuperar um passado perfeito perdido, visando o porvir, quando
poderá ser restabelecida a perdida perfeição da origem. Assim, o arché, a origem,
orientará a caminhada em prol do futuro, em prol de realizar uma finalidade
superior, télos, no amanhã: amanhã será possível reescrever a origem. Vejamos
como se articulam, nessa concepção do tempo, origem e finalidade, arché e
télos. Toda finalidade depende da pretensão de retornar à perfeição da origem.
O futuro está modelado pela tentativa de desfazer um erro na origem, da re-
tificação do passado. Nessa perspectiva, o presente é apenas um percurso que
levará o homem do erro recôndito a um amanhã ideal. O presente não possui
positividade em si mesmo, é tempo-que-passa em prol de um objetivo extraordi-
nário. O presente é puro passar do que já foi ao que virá.
Desde Platão, nessa caminhada da falha à perfeição, a memória adquire um
valor fundamental. O homem necessita forçosamente lembrar do seu passado,
dos seus erros, dos seus pecados, para, no transcurso terrestre, purgar faltas,
lembrar daquilo que estava errado e recordar a pureza das ideias, que lhe per-
mitirá voltar ao mundo essencial. A lembrança é crucial para a vida humana,
já o esquecimento é uma falha, procedente dos sentidos que turbam a alma, que
impedem re-ver as ideias essenciais. O esquecimento, entendido como não-
-memória, condena o homem à repetição, o inibe de enxergar aquilo que ele fez,
que cometeu, condenando-o a um ciclo recorrente. Além disso, o esquecimen-
to, produto da encarnação, da ação dos sentidos, nos mantém afastados da
verdade, das genuínas essências. Enquanto não lembremos do mundo essencial
e escondido, viveremos presos a aparências e enganos, enfim, viveremos no
erro, na dor. A única formar de romper esse ciclo está ligada à possibilidade
de memorizar as ideias, decorrente da atividade propriamente filosófica, da
sabedoria que nos permitirá re-ver o essencial, a verdade, o mundo perfeito,
sem erros, sem dor, sem falhas. Ao enxergarmos a verdade, ao relembramos
perfeitamente as essências – como é o caso de Sócrates, relatado no Fédon,
quando o pensador, prestes a morrer, já tendo chegado à mais elevada prática
da sabedoria, voltará a habitar o mundo ideal,10 superamos as imperfeições da

10
No Fédon são descritas as últimas horas de vida de Sócrates, que após longa prática da filosofia,
conseguiu enxergar perfeitamente o mundo das ideias, conseguiu re-lembrar as essências, e está total-
mente tranquilo pois não voltará a encarnar, rompendo o ciclo que o trazia à terra, ao corpo, as dores;
ele, após sua morte, viverá no mundo ideal, só em contato com as essências, da verdade, afastado dos
sofrimentos terrestres, pois “nesta vida nos aproximaremos da verdade a não ser afastando-nos do
corpo (...) e permanecendo puros de todas as suas imundícies até que o Deus venha nos libertar. (...)
livres da loucura do corpo, conversaremos (...) com homens que usufruirão a mesma liberdade e co-
nheceremos por nós mesmos a essência das coisas (...)”. Platão. Fédon. In: Obras completas. Madrid,
Aguilar, 1966, 66a./67c.

Leituras de Zaratustra 261


terra e do corpo, expiamos, pela lembrança das essências, todos os pecados do
passado. Dessa forma, a nossa alma não encarnará nunca mais, voltará à visão
do mundo original, do mundo essencial. Esse será o corolário do processo de
acesso à sabedoria, de rever o mundo ideal, de lembrança da origem, de recor-
dar a verdade, a perfeição.

Da redenção: o passado e os limites da vontade criadora

Como vimos, na tradição ocidental, o passado e o futuro têm grande im-


portância, enquanto o tempo presente é desvalorizado, protelado em função
daquilo que foi e daquilo que virá. Correlativamente, nessa tradição, a memó-
ria tem um valor extraordinário: é a possibilidade de recordar o essencial. O
esquecimento, ao contrário, é interpretado como uma falha, como um erro,
que inibe a capacidade para recordar o essencial, para recuperar uma instância
perfeita, essencial para a vida humana.
Ao tratar desta questão, Nietzsche apresenta uma outra visão do tempo,
assim como outra concepção da memória e do esquecimento. Em Assim fa-
lou Zaratustra, no capítulo “Da redenção”, Zaratustra vai colocar uma questão
fundamental, um problema essencial da vontade criadora. O homem geral-
mente projeta os seus atos para o futuro, planeja o amanhã; seus objetivos
tornam-se projetos, acontecimentos que podem suceder ou não. Já o passado
é entendido como algo imodificável, como um fato, como uma rocha em que
a vontade do homem não pode penetrar. Assim, o que já foi tornar-se-ia um
muro, um empecilho radical para a vontade criadora. Não poderíamos mexer
no nosso passado, o que já foi inibiria a possibilidade de escolher, de agir,
de criar.11 Só poderíamos aceitar ou nos resignar ao passado. Teríamos que
reconhecer nossa impotência, nossa impossibilidade diante do que já foi, de
sermos protagonistas de nossa própria vida. Contudo, muitas vezes, tentamos
intervir no que já aconteceu, muitas vezes pretendemos alterar o que já foi.12

11
“Vontade – é este o nome do libertador e trazedor de alegria (...). Mas, agora, aprendi também isto:
a própria vontade ainda se acha em cativeiro. O querer liberta: mas como se chama aquilo que mantém
em cadeias também o libertador? ‘Foi assim’: é este o nome do ranger de dentes e da mais solitária
angústia da vontade. Impotente contra todo o que está feito – é ela um mau espectador de todo o pas-
sado”. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998,
“Da redenção”.
12
“O querer liberta; e que inventa a própria vontade, para livrar-se da angústia e zombar da sua prisão?
Doido, ai de nós, torna-se todo o prisioneiro! E pela doidice redime-se, também, a vontade prisioneira.
Que o tempo não retroceda, é o que a enraivece; ‘Aquilo que foi’ – é o nome da pedra que ela não pode
rolar”. Ibid.

262 Miguel Angel de Barrenechea


Assim, desejamos não ter realizado algo, não ter viajado, não ter encontrado
uma pessoa, não ter feito tal ou qual fato. E, correlativamente, haveria coisas
que, sim, gostaríamos de ter realizado: teríamos viajado, ou teríamos escolhi-
do outra profissão, etc. Entre esses “não deveria ter feito” e “deveria ter feito”,
oscila a nostalgia pela impossibilidade de alterar aquilo que já foi, aquilo que
poderíamos ou não ter realizado. O caso extremo dessa tentativa de modificar
o já foi é a crença no milagre. Isso é ilustrado em “Da redenção” por um gru-
po de aleijados que, aproximando-se de Zaratustra, lhe imploram que mude
aquilo que eles são desde o seu nascimento: o corcunda quer tirar a corcunda,
o aleijado quer caminhar retamente, etc. Zaratustra não pretende fazer mi-
lagres, ele afirma que é importante que cada um se defronte corajosamente
com seu passado. Contudo, mesmo diante da solidez granítica do que já foi,
Zaratustra começa a esboçar uma saída totalmente diferente para a vontade
criadora face a imutabilidade do passado.
O já foi é imodificável, o passado é granítico, não podemos mudá-lo. Apa-
rentemente diante disso, nada podemos fazer, temos que nos resignar diante dessa
impossibilidade. Mas a atitude de resignação diante daquilo que já foi seria uma
saída para a vontade? Tal parece uma perspectiva niilista, uma negação dos impul-
sos, das forças criativas da vida. Nesse sentido, a frase “tudo é vão” como aparece
em “Da redenção” representa uma restrição, uma abdicação de qualquer atitude
afirmativa. Negar ou reprimir os desejos, renunciar a querer não seria uma saída,
apenas um bálsamo para o nosso querer quando não pode mudar o “já foi”, quan-
do se encontra impotente diante do passado.13 Qual será, então, a saída? Qual
será a alternativa para a vontade criadora diante da imutabilidade do passado?
Haverá uma possibilidade afirmativa, não reativa diante desse panorama?
Em “Da redenção”, começamos a ver como Nietzsche equaciona essa en-
cruzilhada. A vontade criadora poderia vencer o limite do passado se pudesse
querer para trás. Ela se tornaria afirmativa se pudesse desejar o que foi, celebrar
o passado, querer o que já aconteceu. Contudo, isso parece impraticável, con-
traditório com a dinâmica habitual dos fatos. É importante frisar que sempre
acreditamos que nosso querer nos projeta para o amanhã, para o vindouro.
Como seria então factível querer para trás? Se não podemos alterar factual-
mente o já acontecido, se os acontecimentos não podem ser mudados, como

13
Em “Da redenção”, a impossibilidade de agir naquilo que já foi, a impotência diante do passado po-
deria ser ultrapassada ao afirmar tudo aquilo que foi. Será necessário querer para trás: “Todo o ‘Foi as-
sim’ é um fragmento, um enigma e um horrível acaso – até que a vontade criadora diga a seu propósito:
‘Mas assim eu o quis’ – Até que a vontade criadora diga a seu propósito: ‘Mas assim eu o quis! Assim
hei de quere-lo!’ (...) Alguma coisa mais elevada do que toda a reconciliação deve querer a vontade
que é vontade de poder – mas como chegar lá? Quem lhe ensinaria também o querer para trás?”. Ibid.

Leituras de Zaratustra 263


podemos atuar no passado, além de acatá-lo ou nos resignarmos a ele? Qual
poderá ser a ação da vontade diante do já foi, diante do muro do já acontecido?
Nietzsche vai equacionar essas difíceis questões, na sequência do Zara-
tustra, em “Da visão e do enigma” e “Do convalescente”. Nesses capítulos, é
apresentada a teoria do eterno retorno, que postula uma nova visão do tempo,
da memória e do esquecimento e do agir da vontade criativa no passado.

O eterno retorno do mesmo. Querer para trás. Uma nova


visão do tempo e da vontade. A memória do futuro e uma
existência artística

Qual seria a possibilidade da vontade criadora diante do irredutível do pas-


sado e da imutabilidade do já foi? Na terceira parte de Zaratustra, Nietzsche
desenvolverá uma singular concepção do tempo, formulando inclusive uma
outra perspectiva sobre o sentido da existência, na medida em que postula
uma forma de viver artística. A doutrina do eterno retorno será enunciada,
inicialmente, nas palavras do personagem do anão, que representa o espírito
de peso, de ausência de sentido diante da repetição do mesmo. Trata-se de
uma atitude niilista, reativa, que toma conta do homem quando se defronta
com a irredutibilidade do passado. O anão sobe-se à cabeça do Zaratustra e
afirma que o tempo é um círculo, que tudo se repete, que tudo volta, que tudo
é um ciclo: “‘Tudo o que é reto mente’, murmurou, desdenhoso, o anão. ‘Toda
verdade é torta, o próprio tempo é um círculo’”.14 Nesta formulação, porém,
o eterno retorno de tudo o que existe adota um sentido negativo. Se tudo se
repete, nada podemos fazer, não podemos mexer nem um átimo nos nossos
atos. Somos apenas contempladores passivos de eternas repetições. A vida é
rotineira, enfadonha, previsível, nada pode ser criado; então, sentimos cansa-
ço, decepção. Se tudo está já escrito, se tudo irá se repetir do mesmo modo,
exatamente igual ao que já aconteceu, nossa vontade é impotente. Somos ma-
rionetes que, por meio de gestos mecânicos, reproduzem o que sempre foi, o
que já está marcado, o que não mudará. Nesse panorama irreversível, a vonta-
de criadora nada pode. A liberdade é uma ilusão, a criação é ilusória. Se tudo
volta, se tudo é igual, poderíamos concluir que nada vale, nada tem sentido,
“tudo dá igual”, “tudo dá no mesmo”. Essa visão cíclica e repetitiva do tem-
po, conforme as afirmações do anão, e também segundo uma tradição niilista
que desvaloriza a vida humana, leva ao desespero e à negação da vontade. No

14
NIETZSCHE, Friedrich. Ibid., “Da visão e do enigma”, 2.

264 Miguel Angel de Barrenechea


desenrolar de Assim falou Zaratustra, veremos que Nietzsche vai oferecer outra
ótica, outra perspectiva sobre o eterno retorno, abrirá novas possibilidades
para pensar a memória, para viabilizar uma existência criativa.
Na sequência do capítulo “Da visão e do enigma”, uma nova concepção
do eterno retorno, uma nova visão da existência e do viver artístico começa a
perfilar-se. Neste capítulo, vemos a figura de um pastor que tem uma serpen-
te presa à sua garganta. Essa serpente pode ser interpretada como o símbolo
da atitude niilista diante da repetição de todos os fatos. Essa serpente pode
nos devorar a garganta, pode nos aniquilar, posto que, se tudo volta de forma
mecânica, nada podemos, tudo será vão, a vida não terá sentido. Contudo, o
eterno retorno pode ser interpretado de uma forma totalmente diferente. A
volta de tudo o que foi, a repetição do passado, pode ser considerado uma
provação, a exigência máxima para nossa vontade. Nessa perspectiva, o eterno
retorno deixa de ser exclusivamente uma postura teórica que assinala que
todos os fatos vão se repetir ciclicamente, e que nossa vida também será rei-
terada exatamente igual como já aconteceu. O eterno retorno pode ser vivido
como a suprema exigência para nossa vontade. A repetição de tudo o que foi
pode nos matar, pode, como a serpente do sacerdote, devorar nossa garganta,
destruir-nos. Contudo, no relato de “Da redenção”, escuta-se uma voz que
diz ao sacerdote que tem presa a serpente na sua garganta: “Morde e cospe!”.
Diante dessa imagem, outras perspectivas se abrem.15
Nesse cenário tão sugestivo, Nietzsche começa a mostrar uma alternativa
para a vontade criativa: o eterno retorno de todos os fatos pode adquirir um
sentido de suprema afirmação. O sacerdote morde e decepa a cabeça da ser-
pente, como a voz tinha dito, jogando-a fora. Que significa isto? Que diante
da provação do eterno retorno, podemos ser devorados ou, ao contrário, pode-
mos, com uma ação violenta, cortar a cabeça do cansaço pessimista, do tédio,
do absurdo do niilismo. Trata-se de morder e jogar longe o peso da eterna
repetição. Nesse instante excepcional, a pressão torna-se libertação. Por isso,
o homem que mordeu e cuspiu essa serpente ri com um riso extraordinário:
“Não mais pastor, não mais homem – um ser transformado, translumbrado,
que ria! Nunca até aqui, na Terra, riu alguém, como ele ria! Oh, meus irmãos,
eu ouvia um riso que não era um riso de homem – e, agora, devora uma sede,
um anseio, que nunca se extinguirá. Devora-me um anseio por esse riso: oh,
como posso, ainda, suportar viver! E como, agora, suportaria morrer!”.16

15
“O pastor, porém, mordeu, como o grito lhe aconselhava; mordeu com rija dentada! Cuspiu bem
longe a cabeça da cobra – e levantou-se de um pulo”. Ibid.
16
Ibid.

Leituras de Zaratustra 265


Por que motivo esse homem está rindo dessa forma? Por que o homem que
cospe para longe o fastio de repetir cada ato, que, ao contrário, decide celebrar
toda repetição, todo fato da existência, considerando-o precioso, ele consegue
transmutar a repetição em um instante extraordinário, maravilhoso. Aquele que
afirma todos os fatos da sua existência coloca-se para além de toda rejeição, de
toda negação; ele acolhe, aceita, celebra a repetição de todo já foi, de todo pas-
sado; ele celebra toda a existência sem restrições. Em outras palavras, se tudo
afirmamos, nossa vontade se liberta, nossa vontade adquire a força de ser, não
passiva, mas protagonista de infinitas repetições. Ao aceitarmos e afirmarmos o
que já foi, aqui e agora, nos tornamos agonistas dos nossos atos por toda a eter-
nidade: em cada momento, nossa ação cobra um valor extraordinário.
Não se trata de acatar resignadamente o passado, mas de agir, aqui e agora,
como se modelássemos cada ato para toda a eternidade. Cada momento torna-
-se excepcional, cada instante é um instante decisivo, supremo. Se tudo o que
fazemos se repete eternamente, nossa vontade adquire uma enorme importân-
cia, a cada momento tornamo-nos responsáveis de infinitas repetições. Ao ade-
rirmos a todos os fatos, ao celebrar o amor fati, amor ao fado,17 nessa aceitação
da repetição, do ciclo, decidimos livremente aceitar a necessidade. Amamos o
necessário, realizamos o fatal, somos livres na necessidade. Trata-se de uma
transformação da vontade diante do inelutável. Ao celebrar o inexorável, o já foi,
o passado, nos libertamos, nossa vontade torna-se afirmativa, numa atitude de
adesão voluntária àquilo que é fatal. Não há, nessa atitude, qualquer resquício
de resignação, ao contrário, nossa vontade eleva-se à sua maior realização, à sua
máxima potência na celebração e no acolhimento de tudo o que foi, é e será.

Eterno retorno: a criação, o esquecimento e a memória do futuro

“Da visão e do enigma” ilustra a atitude daquele que, após jogar fora o
cansaço niilista diante da eterna repetição dos fatos, celebra a vida na sua
totalidade. Segue-se, na sequência do Zaratustra, o sugestivo capítulo “Do
convalescente”, que aprofundará a concepção do eterno retorno. Nessa cena,
Zaratustra é retratado depois de ficar durante sete dias descansando, repondo

17
A noção de amor fati, amor ao fado, é fundamental na filosofia nietzschiana e traduz a celebração de
todas as instâncias da existência, das mais belas às mais dolorosas e medonhas. Vejamos sua formula-
ção na autobiografia de Nietzsche: “amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente,
seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo o idealismo
é mendacidade ante o necessário – mas amá-lo...”. NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. São Paulo:
Companhia das Letras, Por que sou tão inteligente, 10.

266 Miguel Angel de Barrenechea


as suas forças, após a façanha de cuspir fora o niilismo, de vencer toda rejeição
diante da repetição do mesmo. Tal foi uma façanha sem par, ele ficou minado
nas suas forças, mas, ao acordar, tudo para ele é afirmação, alegria, beleza.
Para ele, a vida mesma é um ciclo, tudo está no seu exato lugar, tudo merece
ser celebrado, não há nada na existência que precise ser expurgado, ao contrá-
rio, tudo é digno de comemoração. O universo é uma festa. Toda a existência
é algo maravilhoso, extraordinário: “Tudo vai, tudo volta; eternamente gira
a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do
ser. Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do
ser. Tudo separa-se, tudo volta a encontrar-se; eternamente fiel a si mesmo
permanece o anel do ser”.18
Ao celebrar todo os fatos passados, ao afirmar tudo o que já foi, no ciclo do
eterno retorno, cada ato humano é maravilhoso, ritual. Nesse momento, Niet-
zsche esboça uma singular visão do tempo, da memória e da criação. Nessa
concepção, repetir o que já foi pode tornar-se um ato criativo. Lembrar o que
aconteceu pode ter um aspecto inovador, pode nos lançar ao vindouro, ao fu-
turo. Passado e futuro se conjugam na afirmação do instante; a cada momento,
ao celebrarmos o que já foi, forjamos o que será. É importante destacar que,
na concepção do eterno retorno, quebra-se a concepção linear do tempo, tal
como a tinha apresentado o anão anteriormente. Na afirmação do eterno re-
torno, o passado é promessa de futuro e o futuro é a possibilidade de re-fundar,
a cada instante, o passado. As malhas do tempo, tal como são apresentadas na
compreensão linear da tradição, são quebradas: há passado no futuro, e futuro
no passado. Aqui e agora, hoje, nesta mesma ação, neste mesmo instante ree-
ditamos o que foi na eternidade e criamos o que virá-a-ser.
Nessa compreensão do tempo, aparece uma nova possibilidade para a
memória e para fundamentar uma existência criativa, artística. A memória,
na tradição metafísica e religiosa, como apontamos no início, deve reter o
passado, para corrigi-lo, alterá-lo, melhorá-lo. O homem deve forçosamente
lembrar os fatos passados, é imprescindível não esquecer para não repetir as
falhas, os pecados, os erros cometidos em outro mundo. Nesta interpretação
do tempo e da memória, aquele que esquece forçosamente repetirá os erros.
Na concepção do eterno retorno, há uma visão diferenciada do tempo, da
memória e da criação. É possível cogitar a noção de memória do futuro, a
partir da visão nietzschiana. Para esclarecer essa noção, podemos perguntar:
como é factível lembrar o que virá? Como podemos recordar o que iremos re-

18
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. “O convalescente”, 2.

Leituras de Zaratustra 267


alizar? Parece uma formulação contraditória. Aparentemente, só lembrados o
passado, o que já foi; a lembrança parece estranha e até antagônica à previsão
do futuro. Contudo, na concepção do eterno retorno, é possível sustentar que,
no instante, memorizamos o que já foi, projetando-o para o que virá.
É importante analisar esta singular ótica do tempo em sintonia com a
concepção nietzschiana da memória. Essa compreensão em que há criação na
memorização, há novidade no que já foi, pode ser ilustrada por meio da inte-
lecção de um ritual, ou, fundamentalmente, da repetição artística. A vida pode
ser compreendida, conforme a doutrina do eterno retorno, como um ritual ou
como uma repetição criadora, como uma memória do futuro.
Vejamos uma experiência singular para refletir sobre essa possibilidade.
Na arte, é possível pensar em uma memória que fornece a abertura para o
novo, em uma recordação que desvendaria o que virá. O artista, por exemplo,
um bailarino, um ator ou um músico, geralmente deve recordar algo já fixo,
estabelecido. Tentemos refletir como é possível memorizar o futuro, recordar
o que virá nos seus afazeres artísticos.

Memória de futuro e arte

Há lembrança e novidade nos passos de baile no bailarino, no texto deco-


rado no ator, nos acordes no músico. A lembrança daquilo que está fixo pode
ser sempre diferente. Como? Quando o bailarino, o ator, o músico executam
o que já foi, o que está escrito, o que está marcado, de forma criativa, mesmo
que não mudem os movimentos, as falas, os acordes, terão a possibilidade de
criar, de inovar. Movimentos, falas e acordes reaparecerão não de forma me-
cânica, burocrática, mas criativa, intensa. Nesse afirmar o mesmo – cada um
desses artistas repetirá inúmeras vezes oque já está marcado: “o que já foi” –,
nesse lembrar o já determinado, esboça-se a possibilidade de conceber uma
forma de lembrar o futuro. O termo “lembrar” deve ser pensado, aqui, como
uma genuína celebração, tendo em vista a singularidade da concepção de tem-
po nietzschiana, que rompe com a visão tradicional da linearidade do devir.
Pois quem faz o mesmo de forma criativa gera o novo. Memoriza mas inova.
Repete, mas cria. O artista pode entregar-se a uma repetição mecânica, a um
fazer o mesmo, sem intensidade, burocraticamente; nesse sentido, o mesmo
torna-se mesmice (lembremos que isso é próprio do tédio, da repetição e can-
saço niilistas). Mas aquele que memoriza e, nessa memorização, cria, afirma
o já dado como se acontecesse pela primeira vez – vejamos, por exemplo, no

268 Miguel Angel de Barrenechea


teatro, o ator que faz Otelo sempre a exclamar com dor, com despeito, com
ciúmes doentios “Sangue, Iago, Sangue!”, isto é, que repete o mesmo com in-
tensidade–, o texto escrito há muito, surgirá como algo diferente no momento
presente, quebrando então as categorias lineares de presente-passado-futuro.
O bailarino repete movimentos, mas, nessa repetição, exprime sempre novos
sentimentos, novas emoções. Lembra – isto é, celebra, na singular concepção
nietzschiana do eterno retorno – passos conhecidos, gerando o novo. Assim
acontece com o músico também quando reedita, recria os mesmos acordes,
executados há muito tempo, contudo, sempre com intensidades diferentes.
Tais ponderações nos permitem elaborar um conceito de memória do futu-
ro vinculado à criação artística. Ademais, além das atividades artísticas, a vida
em todas suas manifestações pode ser criativa, articulando passado e futuro,
memorizando o que virá. Mesmo sem gerar obras de arte específicas – dança,
teatro, etc. –, cada ato nosso pode, na sua repetição, ganhar intensidades e
sentidos renovados. Em um tal processo de repetição do que já fizemos inú-
meras vezes, quando executamos o mesmo de forma intensa e criativa, o que
já foi torna-se novidade. Nada é rotineiro. Ao afirmar a vida na sua plenitude,
e cada ato da vida, lembramos o que já fizemos e o acolhemos e o afirmamos
como nosso futuro.

Leituras de Zaratustra 269


Parte V

Criação de si e singularidade
Nietzsche, reflexão filosófica e vivência1

Scarlett Marton

“Com a minha melhor isca fisgo hoje para mim os mais raros peixes humanos!”2
– exclama Zaratustra. “Não se quer apenas ser compreendido, quando se escreve,
mas também, por certo, não ser compreendido”, afirma Nietzsche. É no âmbito da
relação entre autor e leitor que autor e personagem situam as questões estilísticas.
Ao escolher um estilo, burilá-lo, aprimorá-lo, Nietzsche/Zaratustra seleciona o seu
leitor. Repele quem lhe é estranho; atrai quem é do seu feitio. “Não é de modo al-
gum uma objeção contra um livro, se quem quer que seja o acha incompreensível”,
declara; “talvez isto mesmo fizesse parte das intenções do escritor, – ele não queria
ser compreendido por ‘quem quer que seja’. Todo espírito, todo gosto mais eleva-
do, escolhe para si os seus ouvintes, quando quer comunicar-se; ao escolhê-los,
impõe limites a ‘os outros’. Aí têm origem todas as leis mais sutis de um estilo:
elas afastam, criam distância, proíbem ‘a entrada’, a compreensão, como se diz,
– enquanto abrem os ouvidos dos que são de ouvidos aparentados aos nossos”.3
Tudo se passa como se o estilo fosse um mot de passe, uma mensagem cifrada, uma
senha. Apresentando-a, Nietzsche/Zaratustra lança sua isca; decifrando-a, o leitor
dele se mostra digno. É assim que se estabelece a cumplicidade entre eles. É nisto
que reside a condição básica para que se comuniquem.
Ora, para comunicar, é preciso partir de um solo comum. Não basta ter as mes-
mas ideias, abraçar as mesmas concepções. Tampouco basta atribuir às palavras
o mesmo sentido ou recorrer aos mesmos procedimentos lógicos. É preciso bem

1
Texto publicado numa versão anterior na Revista Tempo Brasileiro 143 (outubro-dezembro 2000), p.41-54.
2
Assim falava Zaratustra IV, “O sacrifício do mel”. Cf. também Ecce homo, Para além de bem e mal,
§ 1, em que Nietzsche afirma que, a partir de Para além de bem e mal: “todos os meus escritos são anzóis:
quem sabe eu entenda de pesca tanto quanto ninguém?... Se nada mordeu, não foi culpa minha. Faltavam
os peixes...” Utilizo as edições das obras de Nietzsche (Werke. Kritische Studienausgabe. Berlim: Walter
de Gruyter & Co., 1967/ 1978) e de sua correspondência (Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe.
Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1975/ 1984) organizadas por Colli e Montinari. Salvo indicação em
contrário, é de minha responsabilidade a tradução dos textos de Nietzsche aqui citados.
3
A Gaia Ciência § 381.

Leituras de Zaratustra 273


mais; é preciso partilhar experiências, comungar vivências. “Suposto, então, que
desde sempre a necessidade aproximou apenas aqueles que podiam, com sinais
semelhantes, indicar necessidades semelhantes, vivências semelhantes”, observa
Nietzsche, “daí resulta, em geral, que entre todas as forças que até agora dispuseram
do ser humano, a fácil comunicabilidade da necessidade, ou seja, em última instância,
o vivenciar apenas vivências medianas e vulgares, deve ter sido a mais poderosa”.4
É sobretudo para garantir a própria sobrevivência que os indivíduos se relacionam;
é para conservar a própria vida que se comunicam. As experiências que partilham
são, por isso mesmo, as mais básicas e gerais; as vivências que comungam são, pre-
cisamente, as mais comuns. No limite, todo comunicar é tornar-comum.
É certo que Nietzsche combate com vigor o “espírito de rebanho”; é certo
que critica com veemência o “animal gregário”. Como compreender, então,
que queira justamente comunicar-se? “É preciso invocar prodigiosas forças
contrárias”, adverte ele, “para fazer frente a esse natural, demasiado natural
progressus in simile, o aperfeiçoamento do homem rumo ao semelhante, costu-
meiro, mediano, gregário – rumo ao vulgar!”5 Sentindo-se ameaçada, a maioria
se apega a pré-conceitos, crenças e convicções; destemida, a exceção chega a
sucumbir em seu isolamento. Enquanto os indivíduos gregários buscam segu-
rança e se voltam para a autoconservação, os mais raros não se furtam a correr
riscos e apostam na vida. Aliás, não saberiam mesmo proceder de outra ma-
neira. “Que sentimentos dentro de uma alma despertam mais rapidamente,
tomam a palavra, dão ordens”, esclarece o filósofo, “isso decide toda a hierar-
quia de seus valores, determina, por fim, a sua tábua de bens”. E conclui: “As
estimativas de valor de um homem denunciam algo da disposição de sua alma
e aquilo em que ela vê suas condições de vida, sua autêntica necessidade”.6
Não é para todos que Nietzsche acredita dever falar; não é da ordem do gre-
gário o que ele tem a dizer. Tanto é que, ao tratar de sua “arte do estilo”, afirma:
“Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos através de signos, incluído o
ritmo desses signos – eis o sentido de todo estilo”.7 No limite, ele entende estilo
como sintoma. Enquanto manifestação de um estado, de um pathos, o estilo indica
os impulsos que dominam o autor num determinado momento, os afetos que dele
se apoderam e, por conseguinte, as estimativas de valor que nele se expressam.
Daí decorre que não há um estilo, qualquer que seja, bom para todos os autores, e
sequer um único estilo bom para o mesmo autor. “Bom”, afirma o filósofo, “é todo

4
Para além de Bem e Mal § 268.
5
Ibid.
6
Ibid.
7
Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 4.

274 Scarlett Marton


estilo que realmente comunica um estado interno, que não se engana quanto aos
signos, quanto ao ritmo dos signos, quanto aos gestos”.8 Há tantos estilos quanto
os estados. Quem acredita existir um estilo “bom em si” não passa de idealista;9
quem julga haver um estilo universalmente bom, nada mais faz do que revelar os
impulsos que o dominam.
Se bom estilo é o que comunica tensões de impulsos, disposições de afetos, para
comunicá-las, o autor precisa dispor de signos; mas também precisa encontrar lei-
tores que vivenciem estas tensões, estas disposições. É à procura deles que se põe
Nietzsche no curso de sua obra. Não é por acaso, pois, que, em sua autobiografia, an-
tes de discorrer sobre seus escritos, trata da questão do entendimento deles. “Todos
nós sabemos, alguns até por experiência”, assegura, “o que é um animal de orelhas
compridas. Pois bem, ouso afirmar que tenho as orelhas mais curtas que existem.
[...] Eu sou o antiasno par excellence e com isso um monstro da história universal, – eu
sou, em grego e não só em grego, o Anticristo”.10 Ao trazer à cena o animal de orelhas
compridas, o filósofo caracteriza, pelo avesso, o leitor que tanto almeja. Seguindo o
uso linguístico convencional, emprega o termo “asno” para designar estupidez, mas
uma estupidez específica: a falta de esprit. É sobretudo na aceitação impensada do
óbvio que ela se manifesta; e, quando ocorre com frequência, firma-se numa atitude
e acaba por converter-se em convicção. Impõe-se, assim, como consolidação de uma
perspectiva e, ao fundar-se num juízo moral, ganha ainda mais força. Exercendo ação
paralisante, a convicção constrange seu portador a abrir mão da busca, desistir da
pesquisa, abandonar a investigação. “Asno” remete, pois, a convicções, a perspecti-
vas consolidadas e não mais questionadas; “asno” é quem a elas se submete.11
Ora, ao buscar atingir a “verdade” a qualquer preço, os filósofos empenham-
-se em dissipar todas as perspectivas consolidadas. Mas, ao fazê-lo, também eles
se tornam “asnos”, pois colocam-se a serviço de uma convicção e diante dela se
detêm. Por ela subjugados, põem termo à própria investigação; restringem-se em
sua obra a interpretar e fundamentar os limites que se impuseram.12 Tanto é que

8
Ibid.
9
Cf. Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 4: “Bom estilo em si – pura estupidez, mero ‘ide-
alismo’, algo como o ‘belo em si’, como o ‘bom em si’, como a ‘coisa em si’...”
10
Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 2. Em nota à margem de sua tradução, Sanchez Pas-
cual observa que as expressões “antiasno” e “anticristo” se acham relacionadas, uma vez que, na Roma
antiga, os pagãos zombavam de Cristo, representando-o na forma de asno (cf. Ecce Homo. Madri:
Alianza Editorial, 15ª reimpressão, 1995, nota 77).
11
Em Assim falava Zaratustra, é desta maneira que o protagonista se refere ao asno: “Que oculta sabe-
doria é essa, a de ter orelhas compridas e somente dizer sim e nunca dizer não! Não criou ele o mundo à
sua imagem, ou seja, o mais estúpido possível?” (Assim falava Zaratustra IV, “O despertar”, 2ª Subseção)
12
Sigo, aqui, a interpretação de Jörg Salaquarda (cf. “Zaratustra e o asno. Uma investigação sobre o
papel do asno na Quarta Parte do Assim falava Zaratustra de Nietzsche”, in discurso 28 (1997), tra-

Leituras de Zaratustra 275


Nietzsche afirma serem os filósofos “advogados que não querem ser assim cha-
mados e, na maioria, defensores manhosos de seus preconceitos, que batizam de
‘verdades’”.13 Empenhando-se na dissolução crítica de perspectivas que se con-
solidaram e deixaram de ser questionadas, ele põe em prática a sua psicologia do
desmascaramento. E parte desta regra básica: “Uma coisa que convence nem por
isso é verdadeira: ela é meramente convincente. Observação para asno”.14
Nesse contexto, quem é então aquele que tem “as orelhas mais curtas que
existem”? Certamente, não é quem está livre de qualquer espécie de perspectiva
consolidada, pois, neste caso, ainda se acharia submetido a uma delas; mas é
quem se serve das várias formas do estar convicto e se coloca ao mesmo tempo
acima de todas. Psicólogo das profundezas, Nietzsche dedica-se a desmascarar
convicções; “antiasno par excellence”, empenha-se em não se tornar vítima de ne-
nhuma delas. É por isso que são tão singulares as experiências que ele quer par-
tilhar, as vivências que anseia por comunicar. É por isso que precisa encontrar
os que lhe são aparentados, os que são do seu feitio. Na correspondência e nos
livros, não se cansa de tentar compreender as razões da indiferença que o cerca.
Sempre se queixa do silêncio que pesa sobre sua obra, da solidão que se apodera
de sua vida. Raros amigos, escassos leitores.
De sua época Nietzsche só espera não entendimento ou descaso. Acredita ter
nascido póstumo;15 seus escritos antecipam-se àqueles a quem se dirigem. Rei-
vindica-se extemporâneo;16 suas ideias destinam-se a um público por vir. E assim
passa do desalento à esperança. Oscila entre a impossibilidade do presente e a pro-
messa da posteridade. Duvida de “que haja os capazes e dignos de tal pathos”, mas
deseja “que não faltem aqueles com quem é lícito comunicar-se”. “Meu Zaratustra,

duzido do alemão por Maria Clara Cescato. São Paulo: Departamento de Filosofia da Universidade de
São Paulo, p.167-208). Ao tratar das convicções, Salaquarda distancia-se de uma linha interpretativa
que remonta ao trabalho em quatro volumes de Gustav Naumann (Zarathustra Commentar. Leipzig: H.
Haessel Verlag, 1899-1901), o primeiro estudo de fôlego sobre Assim falava Zaratustra. E, ao lidar com
as perspectivas consolidadas, acaba por diagnosticar as que norteiam as interpretações dos autores com
quem dialoga, dentre eles Otto Gramzow (Kurzer Kommentar zum Zarathustra. Charlottenburg: Georg
Bürkners, 1907), Hans Weichelt (Zarathustra-Kommentar. Leipzig: Felix Meiner, 2ª edição, 1922) e Au-
gust Messer (Erläuterung zu Nietzsches Zarathustra. Stuttgart: Strecker und Schröder, 1922).
13
Para além de Bem e Mal § 5.
14
Fragmento póstumo (256) 10 [150] do outono de 1887.
15
Cf. O anticristo, prefácio: “É somente o depois de amanhã que me pertence. Alguns homens nascem
póstumos”. Cf. também Crepúsculo dos ídolos, Sentenças e setas, § 15 e Ecce homo, Por que escrevo
livros tão bons, § 1.
16
Cf. por exemplo na Gaia ciência a passagem intitulada “Nós, os incompreensíveis”, onde se lê: “Já nos
queixamos de ser mal compreendidos, desconhecidos, confundidos, caluniados, mal ouvidos ou não ouvidos?
Esta é justamente a nossa sorte – oh! por muito tempo ainda! digamos, para ser modestos, até 1901; é também
a nossa distinção; não nos estimaríamos o bastante, se desejássemos que fosse de outro modo” (§ 371).

276 Scarlett Marton


por exemplo, ainda agora procura por eles”, reconhece. “Ah! ainda terá de procurar
por muito tempo! É preciso ser digno de ouvi-lo... E até lá não haverá ninguém
que compreenda a arte que aqui se esbanjou; jamais alguém pôde esbanjar tantos
meios artísticos novos, inauditos, em realidade só para isso criados”.17
À primeira vista, a nova linguagem que Nietzsche inventa em Assim falava Zara-
tustra parece uma mistura de “verdade” e “poesia” – o que contribuiria para reforçar
a posição de que ele não passa de literato ou poeta. Desta perspectiva, o livro po-
deria ser lido como um “romance de aventuras”, uma vez que conta as peripécias
de Zaratustra, ou um “romance psicológico”,18, já que enfatiza sua vida interior, ou,
até mesmo, a exemplo do Werther, de Goethe, e da Educação sentimental, de Flaubert,
como um “romance de formação”. Mas, nele, o autor agencia um conteúdo filosófico
e uma forma literária que se mostram indissociáveis. Recusando-se a opor ciência e
sabedoria, tenta recuperar a unidade original do conceito e da imagem. E, com isso,
retorna ao gênero do poema didático,19 a que recorreram pensadores de Parmênides
a Lucrécio. Ele não se apresenta, pois, como um poeta-filósofo, e sim, como o reno-
vador moderno da língua mais antiga da filosofia.
Mas, em sua correspondência, Nietzsche também deixa entrever que seu Za-
ratustra poderia pertencer a outra rubrica, “quase à das ‘sinfonias’”,20 ou ser “uma
espécie original de pregação moral”, “uma poesia ou um quinto ‘Evangelho’”, “um
livro sagrado”.21 Ao referir-se à obra de maneiras tão distintas, talvez enfatize jus-
tamente o que mais a caracteriza. Ao apresentá-la como sinfonia, pregação moral,
poesia ou livro sagrado, faz ver que ela se oferece de todas essas maneiras sem
identificar-se com nenhuma delas em particular.22
Numa carta a seu editor, o filósofo sugere que seu livro bem poderia ser
“algo para o qual ainda não existe nome”.23 Esta passagem mostra que tem
ciência das múltiplas implicações da forma estilística que adota; bem mais,
ela revela suas dificuldades em encontrar a linguagem que julga adequada

17
Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 4.
18
Cf. PAUTRAT, Versions du Soleil. Paris: Seuil, 1971, em particular, p.336.
19
A propósito do poema didático, cf. carta a Erwin Rohde de 24 de março de 1874.
20
Cf. carta a Peter Gast de 2 de abril de 1883.
21
Cf. respectivamente carta a Peter Gast de 1º de fevereiro de 1883, carta a Ernst Schmeitzner de 13
de fevereiro de 1883, carta a Malwida von Meysenbug de 20 de abril de 1883.
22
É o que afirma Salaquarda: “todas essas caracterizações põem em evidência um aspecto importante
(do livro), mas somente um aspecto. (...) Mas cada um dos aspectos citados também não é correto, na
medida em que a rubrica se altera, quando nela se inclui a obra” (“A concepção básica de Zaratustra”,
in Cadernos Nietzsche 2 (maio de 1997), traduzido do alemão por Scarlett Marton. São Paulo: Depar-
tamento de Filosofia da USP, p.18).
23
Cf. carta a Ernst Schmeitzner de 13 de fevereiro de 1883.

Leituras de Zaratustra 277


para o que tem a dizer. “É um livro incompreensível, porque remete a vivências
contundentes que não partilho com ninguém”, escreve Nietzsche a seu amigo
Overbeck. “Se pudesse dar-lhe uma ideia de meu sentimento de solidão! Nem
entre os vivos nem entre os mortos tenho alguém de quem me sinta aparenta-
do. É indescritível como isto é aterrorizante; e somente o exercício de suportar
esse sentimento e seu progressivo desenvolvimento desde a tenra infância me
permite compreender que eu ainda não tenha sucumbido a ele”.24
Para Nietzsche, é recorrente a necessidade de escolher seus leitores e, para Za-
ratustra, a de eleger seus interlocutores. Perseguindo a ideia segundo a qual “para
aquilo a que não se tem acesso por vivência, não se tem ouvido”,25 ambos aspiram
a quem comungue suas experiências, desejam quem os apreenda e compreenda,
anseiam por uma “alma irmã”. No curso de Assim falava Zaratustra, o autor perseve-
ra em dirigir-se a um leitor refinado; a personagem insiste em voltar-se para quem
tiver ouvidos finos.26 É a maneira que encontram de selecionar seus interlocutores.
Enquanto a plebe se denuncia por suas orelhas compridas,27 ambos evidenciam a
necessidade de ir ao encontro de quem dela se diferencia. “Tens orelhas pequenas”,
dirá Dioniso a Ariadne, “tens os meus ouvidos”.28 Tudo se passa como se autor e
personagem tivessem de reiterar a necessidade de interlocutores específicos. E, se
assim for, é porque acreditam na especificidade do que têm a dizer.
Zaratustra não expõe doutrinas; não impõe preceitos.29 Limita-se – e isso não
é pouco – a partilhar ensinamentos, comungar vivências, tanto é que exorta seus
discípulos a que o reneguem. “Sozinho vou agora, meus discípulos! Também vós,
ide embora, e sozinhos!30 Assim quero eu. Afastai-vos de mim e defendei-vos de Za-
ratustra! E, melhor ainda: envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado.31 O ho-

24
Cf. carta a Franz Overbeck de 05 de agosto de 1886.
25
Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, § 1.
26
Cf. Assim falava Zaratustra I, “Das moscas do mercado”; Assim falava Zaratustra I, “Da virtude que
dá”, 2ª subseção; Assim falava Zaratustra IV, “A canção bêbada”, 4ª subseção.
27
Cf. Assim falava Zaratustra I, “Do novo ídolo”; Assim falava Zaratustra IV, “Colóquio com os reis”,
1ª Sub-seção; Assim falava Zaratustra IV, “Do homem superior”, 1ª e 5ª Subseções.
28
Ditirambos de Dioniso, “O Lamento de Ariadne”.
29
Que se lembre da epígrafe aos quatro primeiros livros da Gaia ciência:
“Moro em minha própria casa,
Nada imitei de ninguém
E ainda ri de todo mestre,
Que não riu de si também.
Sobre minha porta”
30
A propósito da necessidade da solidão, cf. Assim falava Zaratustra I, “Das moscas do mercado”;
Assim falava Zaratustra I, “Do caminho do criador”. Cf. também meu ensaio “Silêncio, solidão”, in
Nietzsche, seus leitores e suas leituras. São Paulo: Barcarolla, 2010, p. 62-82.
31
Cf. Ecce homo, Prólogo, § 4, que comenta esta passagem: “Não será Zaratustra, com tudo isso, um

278 Scarlett Marton


mem do conhecimento não precisa somente amar seus inimigos, precisa também
poder odiar seus amigos.32 Paga-se mal a um mestre, quando se continua sempre a
ser apenas o aluno. E por que não quereis arrancar minha coroa de louros? Vós me
venerais, mas, e se um dia vossa veneração desmoronar? Guardai-vos de que não
vos esmague uma estátua!33 Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa
Zaratustra! Sois meus crentes, mas que importam todos os crentes!34 Ainda não vos
havíeis procurado: então me encontrastes.35 Assim fazem todos os crentes; por isso
importa tão pouco toda crença. Agora vos mando me perderdes e vos encontrardes;
– e somente quando me tiverdes todos renegado36 eu voltarei a vós”.37
Nem o autor nem a personagem procuram constranger seus interlocutores
a seguir um itinerário preciso, obrigatório e programado. Nem um nem outra
buscam, com longos raciocínios e minuciosas demonstrações, convencê-los da
pertinência de suas ideias. Tanto é que, em sua autobiografia, assim se refere
o autor à personagem: “Aqui não fala nenhum ‘profeta’, nenhum daqueles
arrepiantes híbridos de doença e vontade de potência que são chamados fun-
dadores de religiões. [...] Aqui não fala nenhum fanático, aqui não se ‘prega’,
aqui não se exige crença”.38 Acreditando precisar de amplos horizontes para
ter grandes ideias, o autor recusa-se a conferir caráter monolítico ao texto e a
personagem nega-se a pôr-se como senhor autoritário do discurso. Coragem
e despojamento é o que o autor e a personagem estão a exigir de si mesmos.
No decorrer de sua obra, o autor não cessa de buscar quem é do seu feitio.
De igual modo, a personagem ao longo do livro.39 Não é, pois, para um ouvinte

sedutor? Mas o que diz ele mesmo, quando pela primeira vez retorna para sua solidão? Exatamente o
contrário daquilo que algum ‘sábio’, ‘santo’, ‘redentor do mundo’ e outro décadent diria em tal caso...”
32
Cf. Mateus 5, 43-44: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, po-
rém, vos digo: Amai os vossos inimigos”. Nietzsche retoma, aqui, a ideia já presente em Assim falava
Zaratustra I, “Do amigo”.
33
Esta passagem lembra outra que se encontra nos Ensaios de Emerson, cuja edição alemã Nietzsche
possuía em sua biblioteca. Cf. Versuche, traduzido para o alemão por G. Fabricius. Hannover: 1858, p.351.
34
Cf. Assim falava Zaratustra, Prefácio, 9ª sub-seção, onde se lê: “Vede os crentes de toda crença!
Quem eles odeiam mais? Aquele que quebra suas tábuas de valores, o quebrador, o infrator: – mas este
é o criador” (Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho para o volume Nietzsche – Obras Incomple-
tas. São Paulo: Abril Cultural, 2ª edição, 1978 (Coleção “Os Pensadores”)).
35
Cf. Assim falava Zaratustra I, “Do caminho do criador”, onde se lê: “‘Quem procura facilmente se
perde a si mesmo. Todo ficar só é culpa’ – assim fala o rebanho”.
36
Cf. Mateus 10, 33: “Mas aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai”.
37
Assim falava Zaratustra I, “Da virtude que dá”, 3ª subseção. Tradução de Rubens Rodrigues Torres
Filho, id., ibid.).
38
Ecce Homo, Prólogo, § 4.
39
Cf. Assim falava Zaratustra III, “O andarilho”; Assim falava Zaratustra III, “Da bem-aventurança
a contragosto”; Assim falava Zaratustra III, “Da virtude que apequena”, 1ª subseção. Cf. ainda Assim

Leituras de Zaratustra 279


apático, que se curva ao que lhe é dito, que Zaratustra fala; não é para um leitor
conivente, que acata sem restrições o que lhe é imposto, que Nietzsche escreve.
É outra a relação que contam estabelecer com seus interlocutores. Buscam quem
experimenta tensões de impulsos, disposições de afetos, similares às suas, numa
palavra, quem tem vivências análogas às suas. Anseiam por quem siga o próprio
caminho, cúmplice do caminho que eles mesmos seguem.40 “Quero juntar-me
aos que criam, aos que colhem, aos que festejam”; assegura Zaratustra. “Quero
mostrar-lhes o arco-íris e todas as escadas do além-do-homem. Cantarei minha
canção aos solitários ou aos solitários-a-dois;41 e quem ainda tiver ouvidos para
o inaudito, quero oprimir-lhe o coração com a minha felicidade”.42
Em seu livro mais dileto, Nietzsche jamais lança mão da linguagem con-
ceitual. As posições que avança tampouco se baseiam em argumentos ou ra-
zões; assentam-se em vivências. Tanto é que o protagonista diz a um de seus
discípulos: “Por quê? Perguntas por quê? Não sou daqueles a quem se tem o
direito de perguntar por seu porquê. Acaso é de ontem a minha vivência? Há
muito que vivenciei as razões de minhas opiniões”.43 Recusando teorias e dou-
trinas, rejeitando a erudição, ele sempre apela para sua experiência singular. É
com o intuito de reforçar esta atitude que, repetidas vezes, recorre à imagem
do sangue. “De todos os escritos”, diz ele, “amo apenas o que alguém escreve
com seu sangue”.44 E, num fragmento póstumo, o autor afirma: “Todas as ver-
dades são para mim verdades sangrentas”.45 Com isso, ele quer ressaltar que
reflexão filosófica e vivência se acham intimamente relacionadas.
Quem de Nietzsche for aparentado há de levar em conta esse vínculo; pelo
menos é isso o que ele deseja. Tanto é que, em carta de 16 de setembro de 1882,
escreve a Lou Salomé: “Sua ideia de reduzir os sistemas filosóficos a atos pesso-
ais de seus autores é mesmo uma ideia que provém de uma ‘alma-irmã’; eu pró-

falava Zaratustra III, “Dos renegados”, 1ª subseção: “Vivências do meu feitio virão também ao encon-
tro de quem for do meu feitio”.
40
A esse respeito cf. Alexander Nehamas (Nietzsche. Life as literature. Harvard: Harvard University
Press, 1985, em particular a introdução e o primeiro capítulo), que entende buscar Nietzsche quem está
aberto para comprometer-se com um estilo de vida análogo ao seu.
41
Nietzsche faz aqui um jogo de palavras entre Einsiedler (solitário) e Zweisiedler (termo por ele
forjado para referir-se à solidão de duas pessoas que estão juntas). Jogo de palavras similar encontra-se
em Assim falava Zaratustra I, “Do novo ídolo”. Cf. também Assim falava Zaratustra IV, “A saudação”.
42
Assim falava Zaratustra, Prefácio, 9ª subseção.
43
Assim falava Zaratustra II, “Dos poetas”.
44
Assim falava Zaratustra I, “Do ler e escrever”.
45
Fragmento póstumo 4 [271] do verão de 1880. Cf. também o fragmento póstumo 4 [285] do mesmo
período, onde se lê: “Sempre escrevi minhas obras com todo o meu corpo e a minha vida; ignoro o que
sejam problemas ‘puramente espirituais’”.

280 Scarlett Marton


prio ensinei nesse sentido a história da filosofia antiga, na Basileia, e dizia com
prazer a meus ouvintes: ‘tal sistema está refutado e morto – mas a pessoa que se
acha por trás dele é irrefutável, a pessoa não pode ser morta’”. Doze anos de-
pois, Lou Salomé publica uma biografia do filósofo, em que, tomando ao pé da
letra o que ele então lhe dissera, opta por uma abordagem psicológica dos seus
textos. Partindo do pressuposto de que, em Nietzsche, obra e vida coincidem,
procura entender as possíveis contradições, nelas presentes, como manifestação
de conflitos pessoais.46 Propõe, assim, uma interpretação redutora de sua filo-
sofia, aprisionando-a na malha de referenciais teóricos que lhe são estranhos.
Nietzsche não persegue o objetivo de enclausurar o pensamento, encerrá-lo
numa totalidade coesa mas fechada; Zaratustra não tem o propósito de colocar a
investigação a serviço da verdade, asfixiá-la sob o peso do incontestável. Ambos
sabem – bem ao contrário – que a experiência de cada um se dá de acordo com
o seu feitio. “Sou um andarilho e um escalador de montanhas, disse ele (Niet-
zsche/Zaratustra) ao seu coração; não gosto das planícies e não posso ficar sen-
tado tranquilo por muito tempo. E seja lá o que ainda me venha como destino
e vivência – sempre será os de um andarilho e escalador de montanhas: afinal,
só se tem vivências de si mesmo”.47 Em suas vivências singulares, o autor e a
personagem percebem os impulsos que deles se apossam, os afetos que deles se
apoderam; notam as estimativas de valor que com estes impulsos se expressam;
e se dão conta das ideias que com estes afetos se manifestam. É sobretudo nisto
que consiste o estreito vínculo entre reflexão filosófica e vivência.48
Assim falava Zaratustra ocupa um lugar inteiramente à parte no conjunto da
obra de Nietzsche.49 Ilustra o estreito vínculo que existe em seu pensamento en-
tre vivência e reflexão filosófica; mais ainda, exemplifica o que o filósofo entende
por arte. Afinal, diz Nietzsche, “O essencial na arte permanece sua completude

46
Cf. Friedrich Nietzsche in seinen Werken. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1983; em português,
Nietzsche em suas obras. São Paulo: Brasiliense, 1992. Guiada pela ideia de que “o instinto religioso”
sempre governou a “essência” e o “pensamento” do filósofo, a autora acaba por fazer uma leitura bas-
tante peculiar de alguns dos temas centrais presentes em sua reflexão. A morte de Deus transforma-se,
assim, em “desejo de endeusamento de si mesmo”; o além-do-homem converte-se em “representação
de uma pura ilusão divina”; o eterno retorno torna-se parte integrante de uma “mística”.
47
Assim falava Zaratustra III, “O andarilho”.
48
Caminhando em outra direção, alguns comentadores procuraram estabelecer um paralelismo entre o
pensamento nietzschiano e a filosofia existencialista ou até chegaram a tomar Nietzsche por precursor
do existencialismo. É o caso de Jaspers (cf. Nietzsche – Einführung in das Verständnis seines Philo-
sophierens. Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1950, em especial a última parte) e, de certa maneira,
também o de Kaufmann (cf. Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Antichrist. Nova York: The World
Publishing Co., 10ª edição, 1965), em particular a primeira parte.
49
Cf. Ecce homo, Prólogo, § 4: “Dentre meus escritos, meu Zaratustra ocupa um lugar à parte” e Ecce
Homo, Assim falava Zaratustra, § 6: “Esta obra ocupa um lugar inteiramente à parte”.

Leituras de Zaratustra 281


existencial, que faz nascer a perfeição e a plenitude. A arte é essencialmente dizer-
-sim, abençoar, divinizar a existência”.50
Para se converter em obra de arte, ao escrito é preciso, pois, acrescentar ainda um
elemento, ao pensamento, acrescer uma atitude. Zaratustra tem de aceitar a vida no
que ela tem de mais alegre e exuberante, mas também de mais terrível e doloroso.
Nas palavras de Nietzsche, ele tem de “não querer nada de outro modo, nem para
diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o neces-
sário, e menos ainda dissimulá-lo – todo idealismo é mendacidade diante do neces-
sário –, mas amá-lo”.51 Nem conformismo, nem resignação, nem submissão passiva:
amor; nem lei, nem causa, nem fim: fatum. Converter o impedimento em meio, o
obstáculo em estímulo, a adversidade em bênção, eis a “fórmula da grandeza no
homem”. Assentir sem restrições a todo acontecer, admitir sem reservas tudo o que
ocorre, anuir a cada instante tal como ele é, é aceitar amorosamente o que advém;
é afirmar, com alegria, o acaso e a necessidade ao mesmo tempo; é dizer-sim à vida.
E assim a personagem cumpre o que o autor determina: “Supremo estado
que um filósofo pode alcançar: estar dionisiacamente diante da existência –
minha fórmula para isso é amor fati”.52 Realiza o que ele mesmo deseja para
si: “Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Desviar o
olhar: que seja minha única negação! Em suma, quero em algum momento por
uma vez ser apenas aquele que diz-sim!”53
Não há, pois, como dissociar vida e obra, biografia e trabalho filosófico.54
“Aos poucos se evidenciou para mim o que toda grande filosofia foi até o mo-
mento: a autoconfissão de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e
inadvertidas”, dirá Nietzsche em Para além de Bem e Mal (§ 6). No limite, todo es-
crito é à sua maneira autobiográfico, todo pensamento traz à luz uma existência.

50
Fragmento póstumo 14 [47] da primavera de 1888.
51
Ecce Homo, Por que sou tão esperto, § 10.
52
Fragmento póstumo16 [32] da primavera/ verão de 1888.
53
A Gaia Ciência § 276.
54
A esse propósito, Derrida desenvolve instigante investigação, que o leva a afirmar: “A biografia de um
‘filósofo’, não a consideramos mais como um corpus de acidentes empíricos, que deixa um nome e uma
assinatura fora de um sistema, que se ofereceria a uma leitura filosófica imanente, a única tida por filoso-
ficamente legítima. [...] Nem as leituras ‘imanentistas’ dos sistemas filosóficos, sejam elas estruturais ou
não, nem as leituras empírico-genéticas externas jamais interrogaram a dynamis dessa borda entre a ‘obra’
e a ‘vida’, o sistema e o ‘sujeito’ do sistema” (Otobiographies. Paris: Galilée, 1984, p. 39-40).

282 Scarlett Marton


Vida perfeita. Morte perfeita

Gilvan Fogel

1.

“Eu vos mostro a morte que aperfeiçoa, que se torna, para o vivo, um agui-
lhão e uma promessa. ... Sua morte morre aquele que se aperfeiçoa ... É pre-
ciso aprender a morrer assim ... Morrer assim é o melhor; o segundo, porém,
é: morrer em combate e prodigalizar uma alma grande ... Eu vos louvo minha
morte, a morte livre, que me vem, porque eu quero”.
O texto citado é uma passagem da parte I de Assim falava Zaratustra. En-
contra-se no discurso intitulado “Vom freien Tode”, Da morte livre, isto é, sobre
a morte livre, a respeito da morte livre, talvez, melhor, a partir da morte livre.
Antes de mais nada, este título não fala, como poderia parecer a algum apres-
sado e em dia com as coisas de hoje, do direito de livre escolha da morte, não
é defesa do suicídio e também não é apologia da boa morte, da morte assistida,
que seria a eutanásia. Antes, o título quer dizer: A respeito da liberdade para a
morte – livre para a morte, livre na morte. Mas o que significa isso?
Tanto no título quanto no corpo do discurso, morte não fala de um final de
linha, no sentido, talvez, de se atingir um ponto de chegada, um objetivo (ou
uma meta) pré- e pro-posto. Assim, este objetivo, que seria a realização da
vida, este fim ou meta (sentido, ideal) estaria fora, para além da própria vida.
Morte, no título e no discurso citados, também não fala de nenhuma transi-
ção, de nenhuma passagem para alguma imaginada, desejada, aspirada ou so-
nhada sobrevida, além vida. Morte, aqui, também não é destruição, ruína. Não
é o fim, o desfecho da vida animal, não é o fechamento do ciclo biológico, não
é o colapso das funções vitais (bio-fisiológicas, neurológicas), não é a “falência
múltipla dos órgãos”, em alguma UTI.
Morte, aqui, fala de perfeição, de cumulação – “Eu vos mostro a morte que
cumula, que aperfeiçoa”, den vollbringenden Tod, isto é, a morte que não é outra
coisa senão a vida que vem a si própria toda cheia, toda cumulada (“voll”) de si

Leituras de Zaratustra 283


própria. E o que significa isso? Como? O que quer que seja e como quer que
seja, o primeiro a se considerar é que tal morte é coisa de, da vida e não fora
dela. Portanto, coisa que deve, que precisa ser experiência na, da vida. Morte,
sendo o cheio, o pleno, parece ser o que vida é, o que vem a ser, o que pode,
melhor, o que vida precisa ser ou vir a ser.
Mas, afinal, o que é, o que significa tudo isso? Como? Para tentar entender,
vamos começar com a última frase citada anteriormente.

2.

Zaratustra diz: “Eu vos louvo a minha morte, a morte livre, que vem a mim
porque eu quero”.
O eu, que é quem diz quero, é Zaratustra. E Zaratustra não é um eu qual-
quer. Ele é o porta-voz de vida, isto é, a fala da própria vida, quando esta
dialoga consigo mesma, ou seja, quando se pensa, pois pensar, filosofar, já
disse Platão, é o diálogo da alma (psyché, vida) consigo mesma. É vida, desde
si, falando de si e para si – expondo-se, auto-expondo-se.
Assim sendo, quando diz “a morte que vem a mim porque eu quero”, é a
morte que a própria vida quer – “eu vos louvo a minha morte”, isto é, a mor-
te que é própria de vida, que vem ao encontro de vida, assim cumulando-a,
aperfeiçoando-a. Assim, esta morte é constitutiva de vida, a perfaz essencial-
mente, levando-a ou trazendo-a assim à perfeição – um “voll-bringender Tod”.
É, portanto, a morte que, em vindo ou sobrevindo à vida, faz da vida ainda
mais vida ou mesmo toda a vida, no sentido que esta se enche toda, vem a ser
toda, se cumula em auto-a-per-feiçoamento. Morte que faz, que torna vida
perfeita – e isso porque livre!? João é João, Pedro é Pedro, maximamente João
e maximamente Pedro à medida que cada qual participe deste jogo da vida, à
medida que cada qual se faça lugar, hora e testemunha (mártir!) deste modo
radical ou essencial de vida, de viver, quer dizer, de ser, de existir. E, lembre-
mos: modo essencial significa o modo, a via pela qual vida realiza ou concretiza
sua essência, isto que ela própria e realmente é, a saber, verdade e história. Es-
peremos, no entanto.
Por outro lado, quando diz “eu quero”, a tendência é ouvir-se neste “quero”
um ato de vontade própria, no sentido de uma decisão ou de uma deliberação
do eu, subentendendo-se sob eu um indivíduo, uma pessoa, e sob indivíduo
ou pessoa entende-se uma consciência autônoma, uma subjetividade em si. O
“quero” seria a expressão da faculdade ou do poder da vontade, uma delibe-

284 Gilvan Fogel


ração livre (livre arbítrio) desta faculdade ou poder – o eu. Nesta direção, o
“quero” tem um ar de autoridade, mais, um ranço de autoritarismo e de vo-
luntarismo, um tom de ato imperativo e mandão, irradiando-se deste “quero”
o lado heroico, heroicista, de peito estufado, bazofeiro. É caricatural, mas o
espírito costuma ser este.
No entanto, é preciso ouvir neste “quero” do “eu quero” outra coisa. Não
sendo a expressão da faculdade autônoma da vontade, o acento no quero (do
latim quaero, quaerere) deve recair em busca, procura, pois “quero”(quaerere)
diz isso: buscar, procurar, pôr-se à busca, à procura. Mas esta busca, por seu
lado, não se faz como uma corrida atrás de um objetivo, de um ideal ou de um
sentido previamente posto por um sujeito, fixado como meta fora da própria
ação, ou seja, da própria busca ou procura. Antes, esta busca se caracteriza
como um movimento que já é movido e promovido pelo próprio buscado, pela
própria coisa procurada ou querida. Trata-se, pois, de uma busca que se faz,
que já se faz a partir disso mesmo que se busca ou se procura. Então, de al-
gum modo, eu já achei antes mesmo de me pôr à busca ou à procura. De algum
modo, eu já me encontro na coisa. Antes de meta estabelecida (ideal) e fixada
à frente (fora), o buscado está como que atrás (dentro!) da própria busca, vi-
gendo como sua força de pro-moção. É desta forma que alguém se põe à busca
ou à procura de seu próprio interesse, de sua própria força. É assim, sob esta
lei, que se cumpre o imperativo “vem a ser o que tu és”. Vida, toda e qualquer
vida, se faz ou se dá sempre desde e como a ação, a atividade de um interesse
(vida é movimento de auto-exposição de inter-esse), desde e como esta força
mobilizadora, realizadora. Um tal interesse ou modo de ser, tal como o tempo,
pois ele é tempo, é o próprio escultor da vida no seu jogo de aparecer e fazer-se
visível, de realizar-se ou auto-expor-se.
Assim, “a morte que eu quero” quer dizer: a morte que busco, que procu-
ro. Sou e estou na busca ou procura da morte, à medida que estou no e sou o
movimento de vir a ser o interesse (o modo de ser, o verbo, o afeto), o poder
ou a força que sou e, então, o que posso, na verdade, o que preciso ser. O só e
mesmo o único que preciso fazer meu, que preciso fazer vir a ser como eu, isto
é, como minha identidade ou próprio (identidade ou próprio é, aqui, o sentido
de eu). É neste movimento ou nesta dinâmica, neste tipo (estrutura) de ação
ou de atividade que morte é sempre, a cada passo, cumulação, no sentido que
é realização de tudo que vida pode, respectivamente, de tudo que precisa ser fei-
to aqui e agora, de tudo que, agora e aqui, precisa tornar-se, vir a ser. Então, por
que morte? Como morte? É, sim, morte como fim. Mas fim como cumulação
ou perfeição. Justo isso, porém, é que é preciso esclarecer.

Leituras de Zaratustra 285


3.

Morte como cumulação, como perfeição. Para se entender isso, é preciso


que se entenda vida como cumprimento, como realização de possível, isto é,
de possibilidade. Possibilidade diz um verbo no e do existir, viver. E possibi-
lidade, por sua vez, se determina como disposição, antes, pré-disposição, que
pode ser dita ainda como aptidão para. Aptidão significa disposição inata, mas
este inato não significa bio-genético, e sim, próprio da situação, da condição
humana. Ou seja: é da essência do homem ser apto para, isto é, ser na e como
possibilidade. Em sendo aptidão (possibilidade), vida, existência, é aberta ou
livre para, ou seja, apta, disposta, pré-disposta a soltar ou liberar uma, esta ou
aquela possibilidade de ser, na qual se está, a qual se é.
Assim sendo, também liberdade não é uma faculdade ou propriedade, uma
capacidade subjacente e preexistente em si, no fundo, no âmago, na essência
do homem, mas só e tão só esta disposição ou aptidão para liberar ou libertar
um possível modo de ser. E esta liberação se cumpre à medida que se age, que
se atua ou se faz. Portanto, somente na e como ação ou atividade. Na ação ou
na atividade que é a vida. Ação ou atividade de exposição, de auto-exposição
da possibilidade, da aptidão ou, ainda, da força que é. Então, liberdade não
é um algo ou uma coisa sub ou pré-existente, mas uma realização e, assim,
uma conquista, que coincide com o próprio movimento de auto-realização, de
auto-exposição de vida, de existência. Portanto, liberação de poder-ser, de pos-
sibilidade de ser, que também pode e precisa ser entendida como realização
de interesse, de perspectiva, isto é, de fazer-se ou tornar-se visível na história
(ação, atividade), como história.
Nesta estruturação, é preciso entender perfeito, perfeição, que é per-fac-
ção, per-fazimento, ou seja, um fazer através, ao longo e até o fim, no sentido
de percorrer ou atravessar todo um percurso, todo um caminho, fazendo. A
cada passo, fazer ao longo de, per-fazer – daí o per-feito, a per-feição.
Costuma-se entender perfeito e perfeição como o pronto e o acabado, como
o todo feito, de modo que não há nenhuma falha, nenhum defeito ou falta. E
entende-se ou subentende-se ainda este pronto e acabado como a consecução
de um fim, no sentido de meta, pré- e pro-posto, de um objetivo prefixado.
Nesta direção, o perfeito seria a correspondência, a correta adaptação a um
conceito, melhor, o preenchimento de um molde ou padrão, que é o fim (meta,
sentido, ideal) prefixado.
Perfeito, perfeição, no sentido de perfacção ou perfazimento, porém, não
se faz como este fim (ou meta) prefixado, antecipado como sentido fora da

286 Gilvan Fogel


própria ação, do próprio fazer. O que abre e instaura perfeito e perfeição como
perfacção ou perfazimento é o fato de se ser (de o homem, de um homem ser)
livre para... a possibilidade própria. E: “Vem a ser o que tu és”, isto é, torna-
-te a possibilidade ou o ser possível que és. Isso é o princípio, o fundamento
da história, à medida que história é o temporalizar-se (aqui entra o problema
do tempo e de sua gênese) deste acontecimento, deste modo de ser arcaico,
fundador. É preciso ter em mente que possibilidade não é um fim previamente
estabelecido, uma meta (sentido, ideal) prefixada, mas, enquanto um modo
de ser ou um verbo no/do viver ou existir, possibilidade se constitui como
uma abertura, como uma arché fundante (portanto, algo que está atrás, às cos-
tas do homem), que sobrevem ao homem, que o toma, dele se apoderando ou
se apropriando, e o usa para ela, a possibilidade, enquanto o exercício trans-
cendente de vida (auto-exposição), se realizar, se cumprir. A possibilidade é o
elemento, o medium de vida, de existência.
Neste quadro, evidencia-se que não basta ser livre de (a chamada liberda-
de negativa), isto é, não basta estar desobstaculizado de algum impedimento
coercitivo, desobrigado ou aliviado de algum jugo ou canga que, assim de fora,
impede vida de se realizar, de se cumprir. É decisivo, porém, ser livre para.
Este para quer dizer: ser aberto, apto, disposto, antes, pré-disposto a realizar,
a cumprir uma possibilidade (um modo de ser, verbo do/no existir), que se
mostra, que igualmente se revela ou se abre. Assim, em outra parte, lê-se no
Zaratustra:

És uma nova força e um novo direito? [...] Dizes-te livre? Quero ouvir teus
pensamentos dominantes e não que escapaste de um jugo. És um tal que
tenhas direito a escapar de um jugo? Há aqueles que, ao jogarem fora [ao se
desfazerem de] sua condição de servo, jogam fora seu último valor. Livre
de quê? Que importa isso a Zaratustra? Clara, limpidamente, deve dizer-me
teu olho: livre para quê?1

4.

Foi perguntado: “És uma nova força e um novo direito?” Força diz poder-ser
ou possibilidade de ser de vida. E isso é, precisa ser ou tornar-se um direito,
isto é, uma prerrogativa e uma razão de ser, uma absoluta necessidade ou um
destino. E é preciso reivindicar com toda força, com toda determinação o que
se é, a saber, a possibilidade (o direito) que se é, que se precisa vir a ser. Este

1
NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra, parte I, “O caminho do Criador”.

Leituras de Zaratustra 287


precisar não é uma imposição estranha, externa, mas é por aquiescência ao
necessário. Então, por amor próprio. Aqui e assim forja-se a liberdade no-
bre, aristocrática, que é a liberdade sob a lei. A força própria, o direito (dever)
próprio é a lei, a lei própria ou o próprio destino. Não destino como fatalidade,
fatalismo, mas destino como história, e esta não no sentido de historiografia,
de coisas do passado, mas como o acontecer e o expor-se ou liberar-se de força, de
possibilidade e de direito, isto é, de prerrogativa, de razão de ser, de fundamento.
Mas foi perguntado: “És uma nova força e um novo direito?” Por que nova,
novo? No repertório das forças, dos verbos ou das possibilidades de vida, as
quais se configuram, precisam se configurar como direitos, não há novidades.
Dito de outro modo: no âmbito dos verbos, que constituem o humano viver
ou existir, não há coisas, isto é, possibilidades, novidadeiras. Na verdade, tais
possibilidades, tais verbos, constituem o mais velho, o mais antigo – o antiquís-
simo. São o arcaico, o fundador e o sempre inaugural, re-novador, re-vigorador.
O novo, a novidade é o modo como aqui e agora tal força, tal possibilidade se
faz, se realiza, se concretiza. O novo é o fato de que tal força, tal possibilidade
e direito, aqui, agora, concretiza-se, realiza-se como minha força, como minha
possibilidade. O novo é o diferente, o outro, a diferenciação, a alteridade na
singularidade do meu, da minha vida ou existência. O novo é que tal força, tal
possibilidade sou eu mesmo. Não o eu como o sujeito ou o autor de tal força ou
possibilidade, mas eu já como a singularíssima, a individualíssima obra da ação
desta força, deste direito e destino. Portanto, porque é eu e meu, por isso, que
é ou vem a ser uma nova força, um novo direito, no qual eue meu falam de uma
possível outra (nova!) realização de força, de direito, enfim, da própria vida. Isso,
esta nova realização, precisa se cumprir, se realizar ou se mostrar, quer dizer,
evidenciar-se ou vir à luz – fazer-se visível. O novo está no eu e no meu, no sentido
de uma outra (nova) e necessária encarnação ou singularização da vida. Assim
vida é outra (nova) sendo insistentemente a mesma (velha!).
Aquele que não é uma tal nova força (destino) e um tal novo direito (des-
tino!) não pode desfazer-se, não pode desobstaculizar-se ou desobrigar-se de
um jugo, de uma peia – leia-se: de um dever ser e de um precisar ser externos,
isto é, impostos desde fora, como coação e coerção. Portanto, nada que venha,
que se faça desde dentro, desde a própria força (possibilidade). Este que assim
é ou está coagido, tão só se libertando de isso, isto é, do jugo, não tem ainda,
não é ainda nenhum para, nenhuma possibilidade ou destino para se lançar.
Perdendo o jugo, a coação externa, perde tudo. Ou seja, faz-se, torna-se inerte
– vira um zero. Nada. Isso, na suposição radical que vida é, precisa, só pode ser
ação, atividade espontânea. É por isso que este, ao jogar fora sua condição de

288 Gilvan Fogel


servo, de servil, joga fora seu último valor, isto é, sua última força, sua última
determinação, ou seja, sua última e única possibilidade de ser, de vir a ser,
ainda que orientado, comandado de fora, por outro que não a transcendência de
si próprio ou da própria força, do próprio direito, cunhador de uma identidade
e de um próprio, de um destino, isto é, forjador de uma liberdade.
Portanto, não livre de quê, mas livre para quê é o que importa, ou seja, o que
pesa, o que põe e impõe, isto é, põe para dentro (próprio); é isso o que decide
na e para a vida criadora, geradora... de vida. É, pois, neste contexto de per-
fazimento, de livre para... a possibilidade própria, que é preciso se ler e ouvir
aquela fala de Zaratustra, que é fala da própria vida: “Eu vos mostro a morte
perfeita, a morte que aperfeiçoa”. É preciso co-ver, uma vez que está co-mos-
trado e co-falado, vida como o cumprir-se de possibilidade, como abertura
(aptidão, pré-disposição) ou liberdade para possibilidade, e isto ainda como
disposição ou apetite de fazer, de realizar, de cumprir, desde escuta e consen-
timento ou assentimento (obediência), esta possibilidade própria, este direito,
esta necessidade e este destino. Isso, este modo de ser, gera caminho como
per-feição, como perfazimento, melhor, como a-per-feiçoamento.
Porque é, porque precisa ser liberdade para, a passagem citada diz ainda:
“Dizes-te livre? Quero ouvir teus pensamentos dominantes e não que esca-
paste de um jugo”. “Pensamentos dominantes”(“herrschenden Gedanken”)
não é coisa pensada, isto é, nada representado clara e distintamente e, neste
sentido, nada consciente. “Pensamentos dominantes”, assim no plural, fala de
uma força, de um direito (isto é, de um modo de ser) que está assumido, in-
corporado, encarnado e, por isso e assim, de tal modo entranhado na vida que
atravessa, percorre e perfaz todo um viver, todo um existir, de modo que vai
tudo pontuando e que tudo que se faz ou vem a se fazer evidencia-se ser a con-
cretização ou a realização deste modo de ser, desta espontaneidade vital. Tal
modo de ser impera, impõe, dirige, conduz – é um “pensamento dominante”.

5.

Liberdade para é movimento de liberação de uma força, de uma possibili-


dade. Liberdade é esta liberação que, a cada passo, vai evidenciando, isto é,
tornando mais nítido um envio, uma história, enfim, um destino. Igualmente
assim, neste movimento, se faz verdade, à medida que se entende sob verdade
alétheia, desencobrimento, desocultamento, isto é, história enquanto e como
liberação de possibilidade para possibilidade.

Leituras de Zaratustra 289


Para liberdade se fazer – pois liberdade faz-se, conquista-se – ou se reali-
zar, para que se dê liberação para é preciso que se crie vínculos, obrigações,
atamentos. Criar vínculo ou atamento, isto é, compromisso, com o destino,
quer dizer, com a força, com a possibilidade, com o inter-esse. Trata-se de criar
vínculos, de ligar-se essencialmente com as coisas constitutivas de um destino,
de um envio. Coisas, aqui, são os passos, as decisões.
No prólogo do Zaratustra, ouve-se: “Amo aquele que não quer ter demasia-
das virtudes. Uma virtude é mais virtude do que duas, porque é mais nó, no
qual se ata o destino”.2 Vida diz: “Amo aquele que” e isso quer dizer: “Quero
(busco) aquele que”. Vida, indo ao encontro de si própria, vindo a ser o que é,
quer, busca uma virtude, isto é, uma força, possibilidade. E uma virtude (força,
possibilidade) é mais virtude, mais força do que duas, pois, parece, uma só
virtude confunde menos. Por outro lado, uma virtude pode, na verdade, precisa
ser tudo, isto é, numa, desde uma e como uma virtude tudo pode se revelar,
se mostrar, ou seja, liberar-se. E isso, porém, só acontece, se se faz, se se cum-
pre, se se realiza. Ou seja, se nos entregamos, nos abandonamos ao fazer-se e
cumprir-se deste destino, deste envio, desta história (verdade, alétheia).
Uma virtude é mais virtude do que duas, pois uma só é mais atenção, mais
concentração, mais intensidade. Assim e por isso mais e melhor se cunha, se
forja o envio, o destino, expondo-se. Tem-se, desse modo, um movimento,
uma dinâmica de vida que não é livrar-se ou escapar de (um jugo, uma peia),
mas um abrir-se para (uma possibilidade), um dispor-se ou predispor-se para
a liberação de uma possibilidade que, então, cria, põe e impõe vínculos, obri-
gações, compromissos, deveres. O nobre, o aristocrata, se impõe deveres, isto
é, se rege desde transcendências. Mais uma vez: liberdade sob a lei, que é a
liberdade nobre, aristocrática. Nobre, aristocrata, aqui, fala de uma têmpe-
ra vital, de constituição essencial ou ontológica do homem, e não evoca ne-
nhuma categoria social, política ou econômica. Criando vínculos, obrigações,
compromissos, a possibilidade (a virtude, a força) se agrava, se intensifica, se
faz mais evidente e, assim, se faz mais força, mais destino. Por isso, em favor
da evidência e da necessidade do destino, uma virtude é mais do que duas. O
destino se evidencia, se faz ainda mais necessário e se faz ainda mais verda-
de à medida que mais e melhor se revela, se desvela, se expõe. O vínculo, o
compromisso é maior, inalienável. Mais, calcado pela ênfase da repetição, aqui,
não é nada quantitativo, mas intensidade, agravamento, evidência de e no envio, de
e no destino.

2
Cf. NIETZSCHE, F., Assim falava Zaratustra, Prólogo, n. 4

290 Gilvan Fogel


Toda esta estruturação de ação, de atividade, se faz ou se cumpre como
liberdade para a morte, ou seja, abertura e liberação para a perfeição, que é
o perfazimento, a perfacção do destino, da virtude, do interesse. Cada passo,
cada ato é cumulação, per-feição.

6.

Cada passo, cada ato é cumulação, perfeição. Na vida, se se faz o que é


preciso ser feito, então, o feito não é só “um pouco” ou “um pouquinho” frente
ao “muito” que pode, poderia, deveria ou precisaria ser feito. Quando assim
acontece, vêm a censura, a reprimenda e a subestimação amargas do pouco e
do menos frente ao muito e ao muito mais. Mas não. Este pouco, irrompido
do necessário, é tudo e todo. Completo. Perfeito. Mas tudo e todo, aqui, agora,
não é para ser medido quantitativamente, com a fita métrica, segundo a ordem
numérica infinita. Nada numérico, pois. O tudo e o todo, aqui, é o perfeito e
o cumulado de cada passo, de cada ato, à medida que cada passo e cada ato é
sempre o possível e, então!, o necessário.
Foi dito anteriormente: “Na vida, se se faz o que precisa ser feito” – o que
precisa ser feito precisa ser o que se pode e o que se pode precisa ser o que se
quer, o que é preciso querer, pois só posso querer, só tenho o direito de querer o
que posso. Mais do que isso – querer o que por constituição e princípio não
posso – já está no domínio da presunção, da arrogância, da hybris. E isso já
constitui o próprio inferno da vontade infinita – da cobiça, da gula, do insaciável.
Quando se quer o que se pode e quando se diz dever ser o único e o só que, por
princípio e constituição ontológica, se pode ser – então, tem-se o perfeito ajus-
te de dever (ser), querer (ser) e poder (ser). Em suma, o perfeito ajuste com
ser. Melhor: ser ser ajustado ou ajustadamente. E aí a perfeição, pois aí e assim
se cumprem a satisfação e a saciedade no limite, no finito, que é a terra, a casa,
a pátria do homem. Terra, casa, pátria são nomes outros para falar essência. A
pátria do homem, a única pátria do homem é sua essência finita, sua finitude.
É este o pensamento, a experiência, isto é, a evidência, que sustenta e
orienta a fala, melhor, que diz a fala: “Eu vos mostro a morte perfeita, a morte
que aperfeiçoa, que se torna, para o vivo, um aguilhão e uma promessa. É pre-
ciso aprender a morrer assim ... Eu vos louvo minha morte, a morte livre, que
me vem, porque eu quero”.
Tal querer é, sim, aguilhão e promessa, e não afã e cobiça, pois é o querer
inútil e necessário, que caminha no perfeito ajuste com o poder (isto é, poder-

Leituras de Zaratustra 291


-ser), a possibilidade e o dever (isto é, dever-ser). Esta morte é livre, isto é,
aberta, liberada para isso, para este modo de ser, que, sempre, a cada passo, se
faz finito e, então, todo e perfeito. É morte uma vez que, a cada passo, é o
cumprir-se ou o cumular-se de todo o possível, do só possível, no passo, no ato.
Assim, cada passo é morte plena, cumulada, isto é, ato, atividade plena, pois
a só e a única possível – necessária. Assim, a morte é a vida que se faz plena
porque possível, a só possível, e, porque possível, necessária. Esta morte (vida) se
torna festa, ou seja, uma alegria, uma consagração e uma bênção. “Todos dão
importância à morte; no entanto, a morte ainda não é uma festa. Os homens
ainda não aprenderam como se consagram as mais belas festas”.3
É preciso aprender a morrer esta morte, a viver esta vida. O aprendizado da
festa que é, que precisa ser a morte, o aprendizado que irrompe com o saber
– o ver, o experimentar, o saborear – da vida, da existência finita, que diz, que
aquiesce: quero. A morte, a vida, é uma festa, isto é, no tempo certo o possível,
que se faz necessário. O só possível, que é o só preciso. E entende-se agora a
abertura do discurso “Da morte livre”, que diz: “Muitos morrem tarde demais
e alguns cedo demais. Ainda soa estranho o ensinamento: morre a tempo, no
tempo certo. Morre a tempo, no tempo certo – assim ensina Zaratustra. Mas,
sem dúvida, quem nunca vive no tempo certo, como deveria morrer no tempo
certo? Que jamais tivesse nascido!”4

7.

Que seja agora a hora de, à luz desta passagem de abertura do discurso “Da
morte livre”, se tentar melhorar a compreensão, até agora tanto difusa quanto
confusa, de vida e de morte, de nascer, viver e morrer. Primeiro, morte não é
algo fora da vida, além vida. Vida não é algo, melhor, não é o espaço de tempo
ou o pedaço entre nascimento e morte. Nascimento não é o ainda não de vida e
morte o já não mais também de vida.
Nascimento, assim como morte, é uma dimensão, uma abertura, ou seja,
uma possibilidade ou uma aptidão de vida. Melhor: uma pré-disposição de
vida. Portanto, algo, coisa do estrito e exclusivo interesse de vida. Como já dis-
semos, não vida no sentido biológico, fisiológico, mas a vida banal e direta que
dizemos ser o humano viver, o ser homem, o ver, que é ser sempre já aberto
e disposto, pré-disposto para, isto é, ser nascido para e, neste sentido, vir à luz.

3
NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra, parte I, “Da morte livre”.
4
Ibid.

292 Gilvan Fogel


Então, nascer, aqui, assim, não é coisa, isto é, acontecimento de maternidade
(hospital, clínica médica) ou de obstetrícia, mas fala de acordar, de despertar,
no sentido de abrir-se e dispor-se ou predispor-se para, ou seja, para um poder-
-ser ou para uma possibilidade. Melhor ainda: despertar, abrir-se, dispor-se e
predispor-se para a possibilidade que é o próprio viver, para esta abertura ou
disposição. Então, viver, nascer, é, de repente, abrir-se para esta tal abertura;
dispor-se para esta tal disposição; ser, de repente, para e na possibilidade de tal
possibilidade. Este é o verdadeiro sentido de nascimento do humano, do au-
têntico viver (existir) humano. É o sentido vital ou existencial, seja de nascer,
seja de viver. E nisso, dentro disso, faz-se, dá-se o morrer.
Se isso, a saber, tal despertar, não acontece, então, diz a citação “Que ja-
mais tivesse nascido!”. Aqui, agora, especificamente nesta passagem, nascer
fala, sim, do parto, do parir ou ser parido. Ou seja, está dizendo o texto, se
não nascer para a vida, se não despertar para uma possibilidade radical do
viver, que é o viver real e autenticamente humano, então, melhor seria que
não tivesse sido parido. Por quê? Pois, por ser homem, uma vez parido, para
cumprir todo o humano na sua essência, na sua determinação essencial, é
preciso despertar para um poder-ser necessário, é preciso tornar-se livre para,
o que define o perfil de uma liberdade por se fazer, por se conquistar. Sim, se
isso não acontece, melhor seria não ter sido parido – “Antes, jamais tivesse
nascido!”.
Viver no tempo certo ou a tempo é ser na e desde a possibilidade própria, a
saber, aquela para a qual se nasceu, se abriu ou se despertou. E este ser na ou
desde a possibilidade própria é ser dirigido, regido por ela, sob a forma de ser
sempre na e desde a decisão que envia e re-envia para a própria possibilidade,
ao encontro e re-encontro de tal possibilidade, e de modo tal que esta insis-
tentemente se repete, se retoma, se re-inaugura.
Mas viver assim é igualmente morrer no tempo certo (“Quem nunca vive
no tempo certo, como deveria morrer no tempo certo?”5), melhor, viver assim
é conditio sine qua non para poder morrer no tempo certo, pois, em tal decisão,
a cada passo, finita e singularmente, se cumpre plenamente o ser para o fim
– aí e assim o ser para o fim, a cada passo, a cada ato, singular e finitamente,
se consuma. Morrer a tempo ou no tempo certo é, a cada passo, abrir mão do
feito, do cumprido, em favor do a fazer ou por fazer. A cada passo, portanto,
finitamente, pois, viver o fim, o acabamento como o todo e o tudo possíveis e,
em abrindo mão do feito, re-abrir, re-instaurar o passo do a fazer ou por fazer.

5
Ibid.

Leituras de Zaratustra 293


Morrer tarde demais ou cedo demais é não ser no tempo, na hora certa
da decisão, que é, ao mesmo tempo, no mesmo ato, tempo de plenitude, de
consumação e de despedida, de abandono, de abrir mão. Antes, cedo demais,
é ou está verde; depois, tarde demais, é ou está podre. Sê a tempo, isto é, vive-
-morre no tempo certo. Isso ensina o saber de, da vida, que é o existir finito,
isto é, no e desde o tempo da decisão. Sim, “Muitos morrem tarde demais e
alguns cedo demais. Ainda soa estranho o ensinamento: morre a tempo, no tem-
po certo. Morre a tempo, no tempo certo – assim ensina Zaratustra. Mas, sem
dúvida, quem nunca vive no tempo certo, como deveria (poderia) morrer no
tempo certo? Que jamais tivesse nascido!”.6

8.

Ao abrir-se e despertar (nascer) para o nascer vital, existencial, acorda-se


ou desperta-se para este ver e, então, acorda-se ou desperta-se para a morte,
para viver a própria morte, pois vive a própria vida, e, então, a cada passo, pode-
-se, precisa-se viver a própria morte. Morte, aqui, diz fim. Melhor: iminência
de fim, iminência de presença de ausência, à medida que é possibilidade de
deixar de ser a possibilidade (necessidade!) que é. Expliquemos.
Este despertar para a possibilidade revela o insólito, o próprio da vida, da
existência humana, de ser um precisar fazer – antes: precisar fazer-se. Quer
dizer: vida, existência é, desde si mesma, ser o fazer de si mesma. Aqui, assim,
o homem é “homo faber”, um autofazedor, um autofabricador de si mesmo.
Nesta e como esta autorrealização, possibilidade vem a ser, isto é, se concre-
tiza ou se realiza como a possibilidade que é. E é nesta configuração, nesta si-
tuação de concretização (realização de vida respectivamente de possibilidade),
que igualmente se revela, pode se revelar a possibilidade da não possibilidade,
isto é, a possibilidade da im-possibilidade, que é a possibilidade de deixar de
ser, de deixar de existir, à medida que pode deixar de ser fazer, pode interrom-
per-se o autofazer-se ou autorrealizar-se – se não se faz. Só é, só há, se se faz. Se
não (se) faz, deixa de ser, pode não ser. Sim, ser é fazer ser. Fazer ser vir a ser.
Há que prestar atenção nisso, realmente ver isso, pois isso (a saber, o mos-
trar-se da possibilidade da im-possibilidade) não é pouca coisa. Não se trata
de um mero jogo lógico-formal, dialético, de palavras. Não. Em questão está
a evidência de uma terrível, de uma abissal realidade, qual seja, a hora ou o
instante da vertical evidência de que vida, existência, só há e só é à medida e só

6
Ibid.

294 Gilvan Fogel


à medida que se faz, que se autofaz; à medida e só à medida que é, que precisa
ser ação, atividade a se fazer, a se cumprir. O “se”, reflexivo, médio, diz que
a ação de fazer se volta sobre o sujeito da ação co-fazendo-o ou perfazendo-o
no próprio ato e por causa do próprio ato de fazer, de auto-fazer-se. Fora disso,
sem isso é nada, é sucumbir no vazio, no oco, no radical não-ser. Fim. Morte.
Aí e assim se revela verticalmente o ser, o poder (precisar)-ser para o fim, para
o sentido do fim. Mais uma vez se mostra que morte, aqui, não é morte bioló-
gica, não é o fim do ciclo biológico, neuro-vegetativo, mas, em sendo sentido,
abertura, é a morte que se morre a cada passo, à medida que, a cada passo,
se vive esta morte, isto é, se é (se está no) e assim se vive o sentido do fim,
do acabamento, quer dizer, o sentido da possibilidade de não ser, da possibi-
lidade de deixar de ser possibilidade (de ser). Enfim, revela-se, evidencia-se
a possibilidade de, pura e simplesmente, não ser. É isso a possibilidade da
impossibilidade.
E que vida, que existência seja, precise ser ação, atividade, diz igualmente
que vida, que existência humana é história. Portanto, mais uma vez, que o
homem é fazer, auto-fazer-se, mostra que o homem, que a vida humana não
é coisa ou algo nenhum, mas história. O homem não tem, não é substância,
no sentido de sub-estrato, de algum núcleo fixo ou pré-fixado, mas história.
Ou, antes, se se quer, evidencia-se aqui que a substância (ousia, essência) do
homem é história. História não como historiografia, ciência histórica, mas
como constitutivo suceder, acontecer, devir ou vir-a-ser, isto é, “Geschichte”,
de “geschehen”. Sendo histórico, o homem é esforço, empenho, tarefa. Estes
são outros modos de se dizer que homem, vida humana, é ação, atividade. O
real, todo real possível é desde e como ação ou atividade.

9.

Retomemos o final do item 7. Falava-se de decisão. Como é isso? O que é


isso?
Quando, enquanto e como história, vive-se a própria morte, isto é, quando
se está, a cada passo, na experiência do sentido do fim (da possibilidade do
fim) – ou seja, quando isso se dá, a vida deixa de ser regida pela temporalida-
de sucessivo-linear, isto é, pela linearidade do antes, agora, depois (passado,
presente, futuro), para ser regida pela temporalidade da decisão.
Vigendo a temporalidade da sucessão, entende-se vida como o espaço ou o
intervalo entre o nascimento, de um lado, numa ponta da linha, e (+) a morte,

Leituras de Zaratustra 295


do outro lado, na outra ponta da linha. Neste espaço-entre vão fluindo, suceden-
do do começo (nascimento) para o fim (morte) os agoras, que vão marcando e
revigorando o viver como o não-mais-agora (passado) e (+) o ainda-não-agora
(futuro). Neste esquema, estranhamente, tanto nascimento quanto morte estão
fora da vida, ou seja, antes ou depois. Vida mesma aconteceria, se desenrolaria
só no espaço, no intervalo entre nascimento e morte. A medida, aqui, é o tem-
po homogêneo, registrado no relógio, no cronômetro, que tudo já coisi-ficou e
cristalizou uniforme ou homogeneamente num agora. O tempo, no entanto, só
é homogêneo, isto é, in-diferente, a-pático (uma cifra, um número), para um ou
para o relógio. Jamais, porém, para um homem, que cumpre o seu viver desde
um real, autêntico interesse vital (abertura, possibilidade).
Na vigência do tempo homogêneo, sucessivo-linear, costuma importar ou
pesar o acúmulo, o mais da capitalização, da engorda, ou seja, importa a evo-
lução ou o progresso acumulativo. Neste esquema, costuma ainda imperar a
meta fixada, pré-fixada, o fim ou o objetivo pré- e pro-posto, ao qual se almeja,
se aspira – mais, se cobiça. O agora, o registro, o fixado, é o índice e a sucessão,
ou a sequência não é outra coisa que a repetição-reprodução mecânica (auto-
mática) dos agoras, que vão sempre marcando a eterna separação e disjunção
entre o passado (o não-mais-agora) e o futuro (o ainda-não-agora). Este tempo
é, pode e precisa ser crono-metrado, registrado, fixado no relógio. Assim, o
tempo tende, melhor, de fato passa a ser o fluir ou suceder (sequenciar-se)
indiferente, apático, objetivo dos agoras fixados no relógio.
No entanto, como já se disse, a vida de um homem não é um relógio e o
tempo só é igual, homogêneo (objetivo, indiferente, apático) para o relógio e
não para a vida interessada, isto é, para a vida que, a cada passo, vive sua mor-
te, pois morre (vive!) sua vida. Mas como isso? A vida é tempo. Tempo é vida.
Cabe entender decisão e, desde decisão, crescimento, intensificação, como e
desde auto-superação.
Temporalidade diz gênese do tempo ou o movimento do tempo se fazendo
tempo e coincidindo com a dinâmica de auto-geração (= história) que é a
vida, a existência humana. Pois bem, no tempo ou na temporalidade da deci-
são, o que passa não é a sucessão, isto é, a sequência do agora fixado, apático,
indiferente, contado ou registrado no relógio, mas o que se passa (acontece,
sucede!) é a repetição, no sentido preciso de re-tomada, da força, da possibili-
dade ou do interesse da própria vida ou que é a própria vida. Como isso?
Na vida, como o cumprimento de um real interesse, de uma autêntica
(própria) possibilidade (portanto, em se vindo a ser o que se é), o que impor-
ta, o que pesa, é a decisão e não a indiferente sucessão (sequência) do apático

296 Gilvan Fogel


registro. E, na decisão, importa a alteração ou diferenciação (de novo, não a
sucessão, a sequência) e, na alteração ou diferenciação, importa a intensificação
ou o agravamento do destino (envio) e não o progresso, o mais e o mais evolu-
ído, isto é, a soma, o mais gordo, o maior acúmulo, enfim, o quantitativo e o
quantificado da e na acumulação.
Mas procuremos entender realmente isso, esta dinâmica ou este jogo.

10.

Decisão diz corte, separação. Na decisão, portanto, acontece cisão, dá-se


separação – despedida. Na vida, numa vida, uma decisão, uma hora H, marca
sempre o deixar ou abandonar uma posição, isto é, algo em que se está, algo
que se é, para se lançar num outro algo, numa outra situação, outra concre-
tização ou configuração desta mesma vida. Isso que se é ou no qual se está
caracteriza uma segurança, um conforto, ao passo que isso, para o qual nos
lançamos, define o incerto, o inseguro. Na decisão, pois, larga-se, abandona-
-se ou despede-se do que se é ou em que se está (o certo, o seguro) para se
lançar, para se projetar no que será, no que se configurará como novo lugar,
determinação ou morada e que sempre é sentido e entrevisto como o domínio
do incerto, do inseguro. Por isso, toda decisão é situação de risco, melhor, hora
de risco, instância de balanço entre certo e incerto, seguro e inseguro. O risco
é justamente este entre, o balanço.
Na decisão, desde a situação ou o algo (a concretização) em que se está e
que se é e mesmo despedindo-se deste algo, abandonando-o, o homem, pro-
vocado pelo próprio poder-ser que é, lança-se ou projeta-se para a situação ou
o algo por vir, por ser ou tornar-se. Neste acontecimento simples, dá-se algo
de insólito, de extraordinário, pois este projetar-se no por vir (que é o porvir,
o futuro, a situação ou o algo que será, a concretização, na qual se instalará),
desde o aqui e o agora, é, no mesmo ato e como o mesmo ato, um voltar, um re-
-tomar a possibilidade fundadora e promovedora in statu nascendi. O ir adiante,
o lançar-se ou projetar-se, é, no mesmo ato, um retroceder, um retorno ou um
passo atrás, e isso sempre desde o aqui e o agora, o qual se é, no qual se está
e do qual a gente se despede, o qual a gente abandona. O modo próprio de ser
deste tempo, desta temporalização, sua essência, pois, é a repetição, no sen-
tido de re-tomada. Repetição ou retomada como retorno à fonte, para sempre
de novo tomar, retomar a origem a força de transformação, de alteração, de
diferenciação. Enfim, repete-se, retoma-se gênese e, assim, vida se evidencia
como gênese – mais: como gênese de gênese. Auto-originar-se.

Leituras de Zaratustra 297


Esta hora, este tempo ou este instante de decisão (o kairós), portanto, é sem-
pre retomada (repetição) da própria possibilidade (interesse) ou abertura. Reto-
mada da possibilidade ao lançar-se, ao projetar-se para uma outra realização ou
concretização, pois a possibilidade se fechou e assim se desfez como possibilida-
de à medida que se concretizou ou se realizou nesta e como esta concretização
ou determinação e porque tal concretização ou determinação. Dissemos que na
decisão e como decisão dá-se, faz-se separação. Agora é preciso dizer que, na
decisão e como decisão, faz-se ou dá-se igualmente junção, reatamento, ou seja,
junção ou reatamento com possibilidade, quer dizer, junção ou reatamento com
destino, com necessidade. Assim, possibilidade se promove e persiste à medida
que se altera (se diferencia, vem a ser outra) e porque se altera, à medida que se
transforma ou se diferencia, e porque se diferencia e se transforma. Retomada
de possibilidade, pois abandona, larga, despede-se de uma concretização ou re-
alização desta possibilidade para se lançar a outra possível concretização desta
mesma possibilidade, deste mesmo poder-ser. Assim, separa-se e junta-se ou
reata-se no mesmo ato, no mesmo acontecimento. Assim se faz história, devir.
Na decisão e como decisão (o kairós), a possibilidade (o próprio) vai (ou vem) ao
encontro de si justo à medida que se separa de si (despede-se!), assim se auto-ul-
tra-passando, se auto-superando. Auto-superação ou auto-ultra-passagem é o
movimento da vida, sua dinâmica, enquanto movimento que, desde si mesmo,
move a si mesmo. O “si mesmo”, o próprio de vida, é a própria irrupção abissal
da possibilidade, o acontecimento possibilidade ou “a realidade da liberdade”.
Vê-se, pois, que nesta estrutura o que conta, o que importa não é a suces-
são e, na sucessão, o progresso (ou o consequente regresso, visto como deca-
dência, degradação, degeneração), entendido como soma, como acúmulo, mas,
sim, importa mesmo é a diferenciação, a alteração (o vir a ser outro), pois a
cada instante, melhor, a cada ato ou ação interessada(o), é sempre o mesmo, a
saber, a possibilidade, que se diferencia, que se altera e, assim, é sempre, a cada
passo, a cada ato, tudo e todo. Perfeito, perfeição. É tudo, entenda-se, não no
sentido acumulativo ou somativo, mas tudo e todo porque concretiza o só que,
aqui, agora e assim, nesta configuração singular ou finita, pode ser. Este tudo e
todo que pode ser é reivindicado como absoluta necessidade, como intransferível
destino. A vida, enquanto cumprimento de destino (possibilidade), cresce e se
intensifica, ganha mais evidência no seu envio ou na sua destinação. Ela fica ou
faz-se mais simples e mais intensa, porém não progride, não engorda, também
não decai, degenera. Ela vai se fazendo mais simples, mais sóbria, mais econô-
mica – mais seca. Alma seca é a melhor e a mais perfeita...7

7
Cf. HERÁCLITO, fragmento 118, Diels.

298 Gilvan Fogel


Na decisão e como decisão se realiza, a cada passo, a cada ato, o eu quero.
O “quero” que se lança na possibilidade-necessidade. Este lançar-se (buscar,
querer) se faz como obediência (isto é, escuta ao destino, à possibilidade pró-
pria) e assentimento. Que não se entenda e não se ouça, porém, no cumpri-
mento deste “eu quero” a obstinação e a teimosia, a recalcitrância, do volun-
tarismo e do heroicismo de um ato consciente e deliberado, mas, ao contrário,
trata-se do espontâneo aflorar de um destino em via de si mesmo – vem a ser
o que tu és. Assim pois, nesta configuração ou estrutura, cumpre-se o “Eu vos
louvo minha morte, a morte livre, que me vem, porque eu quero”.
O “eu” grifado não personifica um sujeito que seria o autor do ato de
querer, mas a instância, a hora da escuta, da obediência, ou seja, do aco-
lhimento e do cumprimento da necessidade, a saber, da possibilidade que
se impõe. “Eu”, “eu quero”, assim, é amor fati. “Amor fati” é liberdade, isto
é, livre para a morte, ou seja, aberto, disposto, pré-disposto ou apto para,
a cada passo, a cada ato, a consumação, o todo e o tudo no ato, no singular,
que é a concretização ou a realização possível. Aí e assim, a per-feição. O
homem todo, íntegro, inteiriçado no ato, no singular, no pobre e no pouco
– no só que pode ser. E isso é preciso, o só preciso ou necessário. Sempre só
no possível, como possível, que é o só necessário. Sem cobiça, sem sanha,
sem grima que, desde o acolhimento do possível, do só possível, foi perdida,
abandonada, desaprendida, esquecida...
Sim, a morte “que é quando um homem vem inteiro pronto de suas pró-
prias profundezas”.8 A profundeza de um homem, de uma vida, é sempre
o abissal da possibilidade que aflora e que, espontaneamente, livremente, se
cumpre. Assim, a profundeza é, mais uma vez, o destino, a possibilidade
que se faz, que irrompe desde nada e é por nada, para nada. Sim, uma pro-
fundeza abissal, que é toda só superfície. Doação, pura doação. O homem, o
destinatário desta doação, precisa, só pode ser gratidão. Sim, acolhimento à
transcendência.
E, recordando a passagem citada na abertura, para viver-morrer perfeita-
mente é preciso uma alma grande, é preciso magnanimidade. Alma grande
para gastar, esbanjar, prodigalizar. Uma alma tão grande que seja sempre
a doadora plácida. Vida é a eterna, plácida doadora. O “grande”, de “alma

8
Cf. Guimarães Rosa, em discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, quando, referindo-se à
morte de seu antecessor, João Neves da Fontoura, escreveu: “Foi há mais de 4 anos a recém. Vésper lu-
zindo, ele cumprira. De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias
profundezas” (ROSA, Guimarães. Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora, , 1968, p. 85).

Leituras de Zaratustra 299


grande”, fala da sobra, do transbordamento, da superabundância – o pró-
prio da vida. E morrer sempre em combate, isto é, vivendo, sendo, existin-
do e, por isso e assim, na decisão, como decisão, sobrando, transbordando,
prodigalizando.

300 Gilvan Fogel


O que pode o eu.
A criação de si e a redenção dos acasos

Gustavo B. N. Costa

Assim falou Zaratustra narra de forma poético-dramática a história do apren-


dizado de Zaratustra como afirmador trágico do eterno retorno. Sua tragici-
dade está em que, de herói apolíneo, da plenitude e abundância de sua soli-
dão, ele deve seguir sua trajetória de declínio e ocaso, permeada por dúvidas,
angústia, terror e náusea, mas que acaba por permitir o seu amadurecimento
pelo enfrentamento do niilismo com a afirmação da feição dionisíaca da vida e
do “pensamento trágico por excelência”: 1 o pensamento do eterno retorno.
Tendo como intento a denúncia do niilismo em suas feições – de desvalo-
rização: da vida em nome de valores transcendentes, destes valores transcen-
dentes em nome da verdade e de todo sentido e valor em nome de nada –, e
principalmente a possibilidade de sua superação, Zaratustra sai da plenitude
de sua solidão e, por amor aos homens, desce da montanha para dirigir sua
palavra à multidão na praça. Anunciando esta morte de Deus e a ausência de
sentido daí advinda, aponta, sem sucesso, para a necessidade de fidelidade à
terra e para o advento do além-do-homem [Übermensch] como o futuro do ho-
mem. Após deixar a multidão, dirige-se aos seus discípulos e, já na forma dos
discursos, afirma àqueles a vida como vontade de poder [Wille zur Macht], per-
cebendo, porém, o peso do passado e de todo “assim foi” como o grande limite
à superação do niilismo. Por fim, retornando à solidão – vivida não mais como
plenitude, mas como esvaziamento do amor que tinha a oferecer –, Zaratustra
compreende que só pela afirmação da feição trágica da vida, da aceitação de
todo o peso que a visão do passado provoca, pode ele superá-lo. Não é ao povo
ou aos discípulos que deve dirigir-se a sua palavra, mas, antes, a si próprio.
Deve ele próprio tornar-se um niilista e viver o niilismo para, enfrentando-o,
tornar-se o primeiro a superá-lo pela afirmação do eterno retorno – esse, o tema

1
Cf. MACHADO, R. Zaratustra, tragédia nietzscheana. p.30.

Leituras de Zaratustra 301


fundamental do livro. Zaratustra, nesse sentido, não é um personagem aca-
bado, imutável, mas representa alguém que, educado pela solidão e por meio
de uma “progressão ‘dramática’ na compreensão do próprio Eu”,2 cria-se a si
próprio, torna-se o que se é:

Por que tal sou eu, no mais fundo do meu ser e desde o início: alguém que
tira, que tira a si, para cima, para o alto [ziehend, heranziehend, hinaufziehend,
aufziehend], um tirador [Zieher], criador [Züchter] e tratador [Zuchtmeister],
que não em vão, um dia, determinou a si mesmo: “Torna-te quem és!”. 3,4,5

Neste texto procuraremos, a partir da análise de dois dos discursos de


Assim falou Zaratustra – “Dos Desprezadores do corpo” e “Da Redenção” – cote-
jados com trechos de outros discursos e passagens de outros textos nietzschia-
nos, chegar a uma compreensão da seguinte questão, na realidade, uma dupla
questão: qual é o estatuto e quais as implicações da tarefa de criar a si de Zara-
tustra, simbolizada na máxima de tornar-se o que se é, no que diz respeito ao eu?
A nosso ver, as transformações por que passa Zaratustra, e que o fazem
tornar-se o que ele é, embora frutos do acaso, pressupõem a criação de um eu
fictício a conferir unidade de sentido à multiplicidade de acasos que o constitui.
Procuraremos defender que, embora tal criação já não mais pressuponha um
Eu autônomo, sujeito absoluto da criação de si, a ideia de um eu permanece,
não só como resultado de um processo, mas como um artifício a conferir a tal
criação a sua autenticidade, expressa na forma de uma unidade de sentido. Nossa

2
DELEUZE, Gilles. “Conclusões sobre vontade de potência e eterno retorno” (1967) in A Ilha deserta.
Trad. Luiz B. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 163.
3
Não sem razão esse discurso situa-se na quarta e última parte do livro, escrita apenas em 1885, dois
anos após as duas primeiras e um após a terceira, e publicada apenas em 1891. A compreensão de ter-se
tornado o que se é pressupõe um “olhar para trás” a transmutar acasos em necessidade. Porém, é uma
tarefa, como Zaratustra mesmo afirma, que deve ter sido, um dia, determinada. Um pouco antes, em
“O convalescente”, Zaratustra escuta de seus animais: “Pois bem sabem os teus animais, ó Zaratustra,
quem és e quem deves tornar-te: és o mestre do eterno retorno – este, agora, é o teu destino” (p.262). E
um pouco depois, no discurso “A Sanguessuga”, ao apresentar-se ao homem consciencioso em quem
descuidadamente ele pisara, afirma: “eu sou quem devo ser” (p.294).
4
As citações com referências entre parênteses, em que não consta o nome do autor, são de Nietzsche.
Optou-se por fazer referência não ao ano de publicação da edição utilizada de uma obra, mas à sua
abreviatura conforme legenda que consta na referência bibliográfica. Após a sigla consta o título ou
o número do capítulo em algarismos romanos (quando existem), seguido do número do aforismo ou
seção em algarismos arábicos e da página em que se encontra. No que diz respeito à tradução dos frag-
mentos póstumos contidos nos volumes da edição crítica das obras completas de Nietzsche (COLLI,
G; MONTINARI, M. Nietzsche: Sämtliche Werke – Kritische Studienausgabe) tomou-se como auxílio
as traduções de Flávio Kohte para a seleção intitulada Fragmentos finais (Brasília: UNB, 2002) e de
Marcos S. P. Fernandes e Francisco J. D. de Moraes para a seleção de fragmentos intitulada Vontade de
poder (Rio de Janeiro: Contraponto, 2008).
5
Z, “O Sacrifício do mel”. p. 283.

302 Gustavo B. N. Costa


leitura passará, primeiramente, por um esclarecimento acerca do estatuto e
das implicações advindas com a compreensão do Eu como uma ficção. Depois,
pelo significado de tal compreensão na redenção ou transmutação de acasos
em destino, expressa na fórmula: “assim foi, assim eu o quis”, pressuposta na
tarefa de tornar-se o que se é.
Em um dos primeiros discursos do livro, quando ainda fala para seus dis-
cípulos, Zaratustra revela a debilidade de instintos que está por detrás dos
“Desprezadores do corpo”. Se desprezam o corpo, tal desprezo é fruto de seu
próprio anseio de perecer: “Mesmo em vossa estultice e desprezo, ó despreza-
dores do corpo, estais servindo ao vosso ser próprio [das Selbst]. Eu vos digo:
é justamente vosso ser próprio que quer morrer e que volta as costas à vida”.6
Ao fazer isso, porém, Zaratustra aponta para a prevalência da grande razão,
o corpo, ante a pequena razão, o “espírito”. Consumada na ideia de um Eu, a
razão, a pequena razão é, para ele, apenas um instrumento, um brinquedo a
serviço do “soberano poderoso” que é o corpo – este, uma configuração de im-
pulsos aos quais não temos acesso e que têm como pathos a vontade de poder.7

O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido


[Vielheit mit Einem Sinne], uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.
Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à
qual chamas “espírito”, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande
razão.
“Eu”, dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior, no que não queres
acreditar – é o teu corpo e sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu.
[...]
E sempre o ser próprio [das Selbst] escuta e procura: compara, subjuga,
conquista, destrói. Domina e é, também, o dominador do eu.
Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um sobera-
no poderoso, um sábio desconhecido – e chama-se o ser próprio. Mora no
teu corpo, é o teu corpo.8

Na passagem citada parece ficar clara, primeiramente, a ideia de que o Eu


é uma criação, ou seja, uma ficção, um artifício da grande razão que é o corpo,
aqui compreendido como o “ser-próprio”, o “si-mesmo”, ou simplesmente
o si [das Selbst]. O assim chamado Eu, nesse sentido, é apenas uma “síntese

6
Z, “Dos Desprezadores do corpo”. p. 59-61.
7
KSA, XIII:14[79], 1888.
8
Z, “Dos Desprezadores do corpo”. p. 60.

Leituras de Zaratustra 303


conceitual”, e “não faz um com a administração unitária de nosso ser”.9 Aqui, o
intelecto figura como um “instrumento cego de um outro impulso, rival daquele
que nos tormenta com sua impetuosidade”, dirá ele, e “querer combater a vee-
mência de um impulso não está em nosso poder”, “nem a escolha do método,
e tampouco o sucesso ou fracasso desse método”.10 Eu, em suma, é apenas um
“hábito gramatical”.11
A princípio poderíamos pressupor que, da impossibilidade de a “pequena ra-
zão” sobrepujar-se à “grande razão”, ou seja, de o “espírito” “insubordinar-se”
ante o corpo, já não nos restaria muito da condução de nosso si, a não ser a mera
aceitação do acaso e a entrega à multiplicidade de nossos impulsos. Poder-se-ia
até mesmo objetar a necessidade de se falar ainda de um eu, dada a ficção em
que se constitui. Procuraremos aqui apontar para uma compreensão distinta.
De fato, em “Dos Desprezadores do corpo”, Zaratustra vê o Eu como um arti-
fício, uma criação do “si”: o si “não diz eu, mas faz o eu”.12 Porém, esse si, o corpo,
a grande razão, é vista por Zaratustra como uma “multiplicidade com um único
sentido” [Vielheit mit Einem Sinne].13 Ora, tal sentido não se encontra já dado – o
que é “dado” é a multiplicidade, o acaso – mas é o resultado de uma compreensão
em conjunto, na forma de uma unidade, da sucessiva e instável configuração de im-
pulsos que subjaz ao si, sendo este mesmo já uma ficção.14 Como poderia, então,
ser atribuído à multiplicidade que é o corpo um “único sentido”? Ou, perguntan-
do de modo mais direto: quem, afinal, confere unidade de sentido à multiplicidade que é
a grande razão, o corpo?
A pergunta, por certo, não tem sentido do ponto de vista daquilo que se
efetiva no devir, ou seja, o processo de luta e configuração de impulsos que
atuam na forma da interpretação, como “um meio para se tornar senhor de
algo”.15 Aqui age, afinal de contas, apenas o devir a se reinventar, “negar a
si mesmo, superar a si mesmo: nenhum sujeito, mas sim um criador fazer e
estabelecer, ‘causas e efeitos’ nenhuns”.16 Nietzsche, aliás, alerta-nos para a

9
KSA, XII:1[87], 1885-6.
10
M/A §109, 79-81.
11
GB/BM§17, 21-22.
12
Z, “Dos Desprezadores do corpo”, 59-61.
13
Ibid.
14
Conforme este fragmento do verão-outono de 1882 (3[1]) citado em nota por W. Müller-Lauter, o
filósofo dirá: “‘Eu e mim são sempre duas pessoas diferentes’”. “Também meu mim’ é ‘fingido e inven-
tado’”. (Apud MÜLLER-LAUTER, W. A Doutrina da vontade de poder em Nietzsche p. 79, nota 58).
15
KSA, XII:2[148], 1885-6.
16
KSA, XII:7[54], 1886-7.

304 Gustavo B. N. Costa


improcedência da pergunta: “Quem interpreta?”, tendo o interpretar mesmo
existência – “mas não como um ‘ser’: como um processo, um devir; como uma
forma da vontade de poder, como um afeto”.17 Se se busca uma resposta, no
entanto, novas metáforas são criadas e, em última instância, “a vontade de
poder interpreta”18 – em outras palavras, a necessidade de um autor remeteria
já a uma ficção,19 aí se incluindo a própria “vontade de poder”.
Ora, tal improcedência, no entanto, nada diz acerca do valor da ficção que
daí se constitui: “Entre as condições para a vida poderia estar o erro”20 – diz
Nietzsche em A gaia ciência. Por isso mesmo, “a falsidade de um juízo não
chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele. [...] A questão é em que
medida ele promove ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a
espécie”.21 Como ficção, portanto, é possível perguntar-se pelo quem, a conferir
sentido à multiplicidade que é a grande razão. É certo que não poderíamos mais
remeter a um Eu, como entidade essencial, autônoma, imutável, com plena
“consciência de si”. Parece patente o caráter fictício em que consiste tal in-
tento de “domínio de si” por um Eu. Ao por às claras o autoengano presente
neste “tomar consciência de si da razão”,22 a crítica nietzscheana aponta para
a ilusão na base de sua constituição. Porém, a nosso ver, seria temerário inferir
daí a impossibilidade de um domínio, ainda que fictício, dos instintos, a con-
ferir a estes uma unidade de sentido, por mais transitória que seja. Embora a
pergunta pelo “quem” não possa mais ser remetida a um Eu essencial, abre-se a
possibilidade de que talvez a resposta possa ser buscada a partir de uma nova
concepção da ideia de eu,23 embora fictícia, fruto de uma criação. A seguinte
passagem de Aurora diz-nos um pouco mais a esse respeito:

A linguagem e os preconceitos em que se baseia a linguagem nos criam di-


versos obstáculos no exame de processos e impulsos interiores: por exem-
plo, no fato de realmente só haver palavras para graus superlativos desses
processos e impulsos – [...] os graus mais suaves e medianos, e mesmo os
graus mais baixos, continuamente presentes, nos escapam, e, no entanto,

17
KSA, XII:2[151], 1885-6.
18
KSA, XII:2[148], 1885-6.
19
GB/BM§34, 39.
20
FW/GC §121, 145.
21
GB/BM§4,11.
22
FW/GC§354, 248.
23
Como salienta Gilles Deleuze, a “morte de Deus” tira do Eu a sua única garantia de identidade, sua
base substancial unitária: “Deus morto, o Eu se dissolve ou se volatiza, mas de certa maneira, abre-se
a todos os outros Eu, papéis e personagens cuja série deve ser percorrida como outros tantos aconteci-
mentos fortuitos” Cf. DELEUZE, G. Op. cit., p. 156.

Leituras de Zaratustra 305


são justamente eles que tecem a trama de nosso caráter e de nosso destino [grifo nos-
so]. Aquilo que parecemos ser, conforme os estados para os quais temos
consciência e palavras – e, portanto, elogio e censura – nenhum de nós o é;
por essas manifestações grosseiras, as únicas que nos são conhecidas, nós
nos conhecemos mal...

Porém:

[...] nossa opinião sobre nós mesmos, que encontramos por trilhas erradas, o
assim chamado “Eu”, colabora desde então na feitura de nosso caráter e desti-
no. – [grifo nosso].24

A aparente dubiedade deste aforismo não deve impedir que tenhamos dele
uma boa compreensão. De fato, são precisamente os “graus mais baixos” de
nossos “processos e impulsos interiores” que tecem “a trama de nosso caráter
e destino”. Porém, só temos acessos aos “graus superlativos” de tais impulsos,
que nos chegam na forma de opiniões, e costumamos atribuir a um Eu – o
que só atesta o nosso mal-conhecer acerca de nós mesmos. No entanto, tais
opiniões são “as únicas que nos são conhecidas”, que desde então colaboram
“na feitura de nosso caráter e destino”. Embora constituído a partir de um
“hábito gramatical”, fruto de uma ilusão, e ainda por cima incapaz de atingir
pelo conhecimento os processos mesmos que o constituem, é com o eu – com
as opiniões erradas que temos acerca de nós mesmos – que podemos criar a
nós próprios, nosso “caráter e destino”. É só como ilusão que se constitui o
eu; mas isso não abole a necessidade dessa ilusão25 para a vida, ao contrário:
“O erro acerca da vida é necessário à vida”.26
Mas de que maneira atua esse eu fictício na tarefa de conferir sentido à
multiplicidade que é o corpo? Ainda que seja possível e até necessária a cria-
ção fictícia de um eu a conferir unidade de sentido à multiplicidade que se é,
ficaria ainda patente a pouca ou nenhuma autonomia e poder que tem o assim
chamado Eu para dominar a grande razão que é o corpo, ou seja, para assumir
as rédeas de si, ou do si, relegando este ao acaso. Nesse sentido, poderíamos

24
“O assim chamado ‘Eu’”. M/A§115, 87-88.
25
Müller-Lauter aponta, referindo-se a Nietzsche, “para a necessidade de ignorância, ou até de
autoengano, tanto para a manutenção como para o aumento de poder daquela organização que é o
homem. [...] Devemos conquistar uma apreciação elevada ‘também para o não-saber, o ver grossei-
ramente, o simplificar, o perspectivo’. Vale especialmente para o nosso espírito que ‘interpretar-se
falsamente poderia ser útil e importante para a sua atividade’” Cf. MÜLLER-LAUTER, W. A Doutrina
da vontade de poder em Nietzsche. p.129.
26
MA/HH §33, 39-40.

306 Gustavo B. N. Costa


perguntar: o que pode o eu? Para esclarecermos esta questão, precisamos vol-
tar aos discursos de Zaratustra.
Em “O canto do túmulo” – o terceiro dos ditirambos dionisíacos da segun-
da parte do livro – Zaratustra faz a sua grande descoberta rumo à sabedoria
trágica. Descoberta essa que não diz respeito mais à humanidade ou aos dis-
cípulos, mas à experiência de si próprio – é o momento em que começa a viver o
processo de sua própria redenção. Tal descoberta diz respeito a que o passado
consiste no grande desafio, o grande limite, para uma verdadeira redenção.
Zaratustra enuncia aqui, pela primeira vez, a vontade como o aquilo que pos-
sibilita a redenção do passado. Pouco depois, em “Do superar a si mesmo”, ex-
põe de modo ainda mais explícito essa vontade como vontade de poder. Primei-
ramente, em sua expressão niilista de vontade de moral e vontade de verdade
dos mais sábios, “de que todo o existente possa ser pensado”27 – sendo essa
forma de “vontade de viver” o grande perigo para si próprios. Depois, de modo
mais positivo, associando a vontade de poder à própria vida e à ideia de au-
tossuperação, “princípio pelo qual a vida se projeta para além de si mesma”. 28
“Da Redenção”, no entanto, é o momento em que a relação e o “confronto”
entre ambos – a vontade de poder e o tempo passado – é aprofundado. Aqui,
Zaratustra investiga o sentido da vingança contra o tempo para, a partir daí,
apontar para a condição de sua superação, ou seja, da redenção capaz de abolir
o espírito de vingança do homem. A inexorabilidade do tempo passado, do
que “assim foi”, mostra-se como o grande desafio à afirmação da vontade, o
grande limite à potência e à possibilidade de libertação do niilismo: “Não pode
a vontade querer para trás; não pode partir o tempo e o desejo do tempo – é
esta a mais solitária angústia da vontade.29 Tal aprofundamento, envolvendo
as noções de vingança e redenção, fará Zaratustra compreender o tempo de
um modo novo, prenunciando o pensamento do eterno retorno como exigên-
cia para a autossuperação por meio de uma vontade afirmativa.
O discurso inicia-se com Zaratustra sendo abordado por aleijados e men-
digos que o queriam como mestre, desde que lhes retirasse um pouco de so-
frimento por seus aleijões. Têm como resposta que piores são os aleijados
às avessas, “homens aos quais falta tudo, salvo que têm demais de alguma
coisa”.30 Zaratustra, ao que parece, refere-se aos chamados “grandes homens”,

27
Z, “Do Superar a si mesmo”, p.143.
28
Cf. MACHADO, R. Op. cit., p.101.
29
Z, “Da Redenção”, p.172-3.
30
Ibid., p. 170.

Leituras de Zaratustra 307


aos especialistas, que só uma faceta de si desenvolvem. Estes não são homens
propriamente, mas “membros avulsos e horrendos acasos”.31
Privilegiando inicialmente o futuro como fonte de sentido para o presente,
Zaratustra compreende o passado como aquilo que para ele mais há de in-
suportável, o seu grande peso. O acaso, o “foi assim”, mantém o querer que
liberta – a vontade – ainda em cativeiro. O que caracteriza para Zaratustra a
angústia da vontade é a impotência ante o que está feito. Tal é o motivo da
vingança da vontade, ou, ainda, o que a caracteriza: a “aversão da vontade pelo
tempo e seu ‘foi assim’”.32 Na impossibilidade de revolver e mudar o passa-
do, o “assim foi”, o homem-fragmento lança contra o tempo o seu espírito de
vingança: onde há sofrimento deve haver um castigo.33 A vingança consiste
precisamente naquela “aversão da vontade pelo tempo e seu ‘foi assim’”.34 A
vontade prisioneira aqui só se redime pela loucura que prega a redenção pelo
castigo: “‘foi assim’: eternos devem ser também todos os castigos!”. Deve o
querer tornar-se não-querer, redimindo-se a vontade de si mesma.
Zaratustra, porém, ensina outra redenção:35 “A vontade é criadora”, diz ele.
Tal qual o homem-fragmento, também “todo o ‘foi assim’ é um fragmento, um
enigma e um horrendo acaso – até que a vontade criadora diga a seu propósito:
[...] ‘Mas assim eu o quis! Assim hei de querê-lo’!”.36 Deve para isso a vontade
desatrelar-se de sua própria loucura e tornar-se a sua própria redentora. Não de
si, mas por si. Desaprendendo o espírito de vingança e reconciliando-se com o
tempo. Mas “quem lhe ensinaria também o querer para trás?”.37 Aqui, porém, Za-
ratustra detém-se. Não só não está diante das pessoas certas – na realidade é algo
que terá que aprender e querer por si só –, como ainda não detém, ou melhor, não
vive o pensamento do eterno retorno em sua inteireza, o que irá acontecer mais

31
Ibid.
32
Ibid., p.172.
33
Castigo: palavra mendaz que, atribuída à vingança, confere a esta uma “consciência limpa”: “tudo
perece, tudo, portanto, deve perecer” (Z, “Da Redenção”, p.173). E como não se pode “querer para
trás” (Id., p.173), o próprio querer e a vida tornam-se um castigo. Tal relação entre culpa e castigo, aqui
efetivada na tentativa de vingança contra o tempo, prenuncia o que, como sabemos, Nietzsche virá a
desenvolver futuramente na segunda dissertação de Genealogia da moral, sob os temas do ressenti-
mento e da má-consciência (GM, Segunda dissertação).
34
Z, “Da Redenção”, p. 172.
35
R. Machado explicita os três tipos de redenção aqui expostos: a vingativa, que procura a redenção
pela afirmação da eternidade; a insuficiente, pela projeção da redenção do passado no futuro – essa, a
que Zaratustra propaga no início de sua trajetória –, e a redenção afirmativa, que pressupõe uma nova
visão de tempo que supere a oposição entre passado e futuro Cf. MACHADO, R. Op. cit., p.104-5.
36
Z, “Da Redenção”. p. 172-3.
37
Ibid., p.174.

308 Gustavo B. N. Costa


adiante, na terceira parte do livro, em “Da visão e do enigma” e, principalmente,
em “O convalescente”. No entanto, já parece ficar clara a relação entre a reden-
ção do passado e a afirmação do eterno retorno; esta, a condição para Zaratustra
tornar-se o que ele é. Como afirma em seu discurso, aspira ele a “compor em unidade
o que é fragmento e enigma e horrendo acaso”,38 transmutando a necessidade em sua
necessidade39 – ou, dizendo de outra forma, transmutando acasos em destino.40 O
que significa para ele: “Redimir os passados e transformar todo “foi assim” em
um “assim eu quis!”– “somente a isto eu chamaria redenção!”.41
A nosso ver, duas conclusões podem ser daí retiradas. E aqui podemos che-
gar, assim pensamos, a uma compreensão mais aprofundada acerca de nossa
dupla questão: o que pode o “assim chamado” eu na tarefa de criar a si, de
tornar-se o que se é, e qual o estatuto dessa criação.
A primeira delas, que essa redenção pressupõe um eu a querer tudo o que
foi, convertendo em unidade o que é fragmento e acaso – muito embora, como
pudemos depreender de “Dos desprezadores do corpo”, um eu fictício, domi-
nado pela grande razão que é o corpo. Se por um lado, como vimos, Zaratustra
confere ao eu um estatuto fictício, como uma ilusão criada pela grande razão
que é o corpo, por outro lado, esse mesmo eu parece ter papel fundamental na
afirmação de si como um destino, ou seja, no conferir ao si a sua unidade fictícia
de sentido, por mais efêmera que venha a ser tal unidade. Mais que um “hábito
gramatical”, o eu que surge com essa afirmação – e que é expressão de uma
vontade de poder ascendente42 – é a própria unidade de sentido pela qual se torna
o que se é; pela qual se “tira a si, para cima, para o alto”.43
Tal unidade, para Nietzsche, dá-se por meio de uma coordenação de im-
pulsos que configura aquilo que Nietzsche compreende como cultivo de si [Sel-
bstzucht] e que implica uma ideia de assenhoramento. Este, no entanto, não
se dá apenas no plano do mando – estamos aqui distantes do Eu autônomo e
imutável, senhor de si e do si. O discurso “Dos desprezadores do corpo”, como
vimos, poderia sugerir até o contrário, a impossibilidade de um domínio de
si. O assenhoramento requer, e talvez até em maior relevo, obediência. Todo

38
P. 171, grifo nosso.
39
Z, “Das Velhas e novas tábuas”§30, p. 256-7.
40
“Do Grande anseio”. p. 264.
41
Ibid., p.172, grifo nosso.
42
“Imprimir no devir o caráter de ser – essa é a mais elevada vontade de poder. Que tudo retorna é a
mais extrema aproximação de um mundo do devir ao mundo do ser: cume da consideração” (Cf. KSA,
XII: 7[54], 1886-87.
43
Z, “O Sacrifício do mel”. p.283.

Leituras de Zaratustra 309


vivente, diz Zaratustra, é um obediente; e aquele que não sabe obedecer a si
mesmo obedece a outrem; e, ainda, “mandar é mais difícil que obedecer”.44
Tal é o modo como ele compreende o “ser do vivente”. Porém, quando manda,
inclusive em si mesmo, o vivente põe a si mesmo em risco. E não só “porque
carrega o peso de todos os que obedecem”, mas porque deve tornar-se “juiz,
víndice e vítima da sua própria lei”.45 Para além da ilusão do Eu autônomo, o
grande risco a que Zaratustra se refere, assim pensamos, é o da “abnegação
do maior”,46 ou seja, de abandonar a si mesmo ao acaso, ao niilismo. Daí que,
para ele: “Quem não sabe mandar deve obedecer. E há quem pode mandar em
si mesmo, mas ainda lhe falta muito para que, também, obedeça a si mesmo!47
Há decadência onde há fraqueza e desagregação; há ascensão onde há força
e coordenação sob um impulso de comando.48 Daí a importância que no pen-
samento nietzscheano têm as noções de autodisciplina [Selbstdisziplin] e autodo-
mínio [Selbst-Beherrschung], enquanto coordenação de impulsos que culminam
com a criação do eu, unidade fictícia de sentido para essa coordenação. É certo
que isso pressupõe, em contraposição ao mero laisser aller, a coerção ou mesmo
tirania dos instintos. Porém, foi graças a essa “‘tirania de leis arbitrárias’”, dirá
Nietzsche, que se desenvolveu “tudo o que há e houve de liberdade, finura,
dança, arrojo e segurança magistral sobre a Terra [...] tanto nas artes como
nos costumes. [...] O essencial [...] ao que parece, é, repito, que se obedeça por
muito tempo e numa direção”.49 “Diretriz suprema: nem diante de si mesmo
se deve ‘deixar-se ir’”.50 É preciso, então, dominar “o caos que se é”.51 Tornar-se
o que se é, nesse sentido, implica a afirmação da responsabilidade sobre si,
na forma do mando e da obediência, do assenhoramento sobre suas próprias
virtudes. Daí ser possível dizer do eu, ao mesmo tempo, mas não sob o mesmo
aspecto, como eu e como si. Valeria aqui o que Nietzsche diz sobre a “alma”:

Seja dito entre nós que não é necessário, absolutamente, livrar-se com isso
da “alma” mesma, renunciando assim a uma das mais antigas e venerá-
veis hipóteses: como sói acontecer à inabilidade dos naturalistas [...]. Está
aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da alma: e

44
Z, “Do Superar a si mesmo”, p.145.
45
Ibid.
46
Ibid.
47
Z, “Das Velhas e novas tábuas”§4, p. 236-7.
48
XIII:14[219], 1888.
49
GB/BM§188,76-78.
50
GD/CI-IX §47, 96-97.
51
KSA, XIII:14[61], 1888.

310 Gustavo B. N. Costa


conceitos como “alma mortal”, “alma como pluralidade do sujeito” e “alma
como estrutura social dos impulsos e afetos” querem ter, de agora em dian-
te, direitos de cidadania na ciência.52

Deve-se ressaltar, no entanto: “uma mera disciplina de sentimentos e pen-


samentos não é quase nada [...]: deve-se primeiro convencer o corpo. [...] o
lugar certo é o corpo, os gestos, a dieta, a fisiologia, o resto é consequência
disso”.53 O que nos últimos escritos de Nietzsche irá tomar a forma de uma
grande dietética,54 envolvendo alimentação, clima, amizades, etc., e cujo instru-
mento principal de seletividade e defesa seria o gosto.
Mas o que pode então o eu? E se esse “pode” remete a alguma ideia de
liberdade, poderíamos perguntar: o que somos livres para fazer?

O que somos livres para fazer – Pode-se lidar com os próprios impulsos como
um jardineiro, [...] de maneira tão fecunda e proveitosa como uma bela fruta
numa latada. Pode-se fazer isso com o bom ou o mau gosto de um jardineiro
[...]; pode-se também deixar a natureza agir e apenas providenciar aqui e ali
um pouco de ornamentação e limpeza, pode-se, enfim, sem qualquer saber e
reflexão, deixar as plantas crescerem [...] e lutarem entre si até o fim – pode-se
mesmo ter alegria com esta selva, e querer justamente essa alegria, ainda que
traga também aflição. Tudo isso temos liberdade para fazer; mas quantos sabem
que temos essa liberdade? Em sua maioria, as pessoas não creem em si mesmas
como em fatos inteiramente consumados? Grandes filósofos não imprimiram sua
chancela a este preconceito, com a doutrina da imutabilidade do caráter?55

A alusão à figura do jardineiro parece-nos sugestiva pela ênfase na pre-


ponderância dos impulsos ante o que pode o eu. Mas também, como forma de
mostrar que tal preponderância não significa uma entrega ao acaso, nem tam-
pouco a crença em si como “fato inteiramente consumado”, mas tem como
propósito criar para si novas rédeas, por meio da atenção aos próprios impul-
sos. É necessário, portanto, dar leis a si próprio: “Nós [...] queremos nos tornar
aqueles que somos – os novos, únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmos,
que criam a si mesmos [sich-selber-Schaffenden]!”. “E para isso temos de nos
tornar os melhores aprendizes e descobridores de tudo o que é normativo e
necessário no mundo”.56

52
GB/BM§12, 18-19.
53
GD/CI-IX §47, 96-97.
54
EH-II§8,46-48.
55
M/A §560, 279.
56
FW/GC §335, 222-225.

Leituras de Zaratustra 311


Reconhecido o primado da grande razão, do corpo, assim como a ilusão ine-
rente a qualquer tentativa de “autodomínio” por parte de um eu autônomo,
trata-se de fazer das pulsões a “matéria-prima” para uma re-interpretação e re-
-significação com a qual se chega à primazia da criação de si. O que implica, por
meio da experimentação de si, “fazer com que tudo o que viveu – tentativas, falsos
começos, equívocos, ilusões, paixões, seu amor e sua esperança – reduza-se
inteiramente a seu objetivo”.57 Em outras palavras, fazer-se intérprete de suas vi-
vências.58 Tal parece ser a compreensão nietzscheana da ideia de liberdade: “Meu
conceito de liberdade. – Pois o que é liberdade? Ter a vontade da responsabilidade
por si próprio”.59
A segunda conclusão a que podemos chegar a partir dos discursos citados,
diz respeito à redenção de todo o “assim foi” em “assim eu o quis”, o que
implica que o passado deva ser afirmado, transmutando-se acasos em destino.
“Quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!”60 – essa é a fórmula niet-
zscheana do amor fati. Mas isso difere radicalmente da mera aceitação passiva
dos “onicontentes” – tal qual a do burro, no jantar de Zaratustra com seus
convidados:61 “I-A”. 62 Não é à toa que, ao final do terceiro discurso, ele afirma:

Em verdade, também não gosto daqueles para os quais todas as coisas são
boas e este é o melhor dos mundos. A esses chamo onicontentes.
Onicontentamento que quer saborear tudo: não é o melhor dos gostos!
Respeito as línguas e os estômagos rebeldes e exigentes, que aprenderam a
dizer “eu” e “sim” e “não” (grifo nosso).

Mas mastigar é digerir qualquer coisa – isso é próprio de porcos! Dizer


sempre I-A – aprendeu isto somente o burro e quem tem o seu espírito.63

A alusão à digestão é aqui importante no sentido de mostrar não só o cará-


ter seletivo dessa transmutação – com o que entraríamos no tema da relação en-
tre memória e esquecimento –, mas, principalmente, pelo que nos interessa no
momento, o seu caráter ativo. Não se trata de uma mera aceitação do passado.

57
MA/HH §292, 195-6.
58
FW/GC §319, 213-214.
59
GD/CI-IX §38, 88.
60
FW/GC§276.
61
Z, “A Ceia”.
62
“I-A” : a onomatopeia refere-se ao zurrar do burro e tem homofonia com o “sim” alemão: “ja”. Cf.
Id., 2005, p.333, 362, 364-369.
63
Z, “Do Espírito de gravidade” §2, p.232.

312 Gustavo B. N. Costa


Ao contrário, a redenção do passado, expressa no amor fati, exige uma afirma-
ção ativa: “afirmado”, aqui, significa querido – ou, como diz Zaratustra, cozido:
“Eu sou Zaratustra, o ímpio. Cozinho na minha panela todo e qualquer acaso;
e somente quando está bem cozido, dou-lhes as boas vindas como alimento”.64
Mas qual é, então, o estatuto dessa transmutação? A afirmação acima im-
plica, como vimos, uma ideia de eu como objeto, criação fictícia de uma deter-
minada configuração de impulsos – si – e, ao mesmo tempo, como sujeito,
criador de sentido para essa mesma configuração – eu . O elemento artificial
que aí opera é precisamente o da construção de um sentido, pressupondo,
como também o vimos, um papel ativo daquele que quer, ou seja, daquela
configuração atual de impulsos que cria para si um eu e que chama a si própria
de eu, a conferir sentido ao acaso.
Afirmar acasos, dizíamos, é querer a si como destino – reconhecendo como
necessários os acasos, transmutando-os. Ora, se é inevitável dispor também de
nossas fraquezas, se é preciso “reconhecê-las como leis acima de nós” – dirá
Nietzsche –, é então necessária a “força artística” para torná-las “o pano de
fundo em que ressaltam” as nossas próprias virtudes;65 em outras palavras,
para fazer com que tenham sentido e valor até os desacertos e infortúnios
da vida.66 Ora, tal é o trabalho do artista, ao converter acasos em intenção,
afirmando essa intenção como obra de arte: “Os artistas [...] sabem muito
bem que justamente quando nada mais realizaram de ‘arbitrário’, e sim tudo
necessário, atinge o apogeu sua sensação de liberdade [...] só então necessida-
de e ‘livre-arbítrio’ se tornam unidos neles”.67 Afirmar acasos, transmutá-los
em destino, é criar a si como obra de arte, tornando-se, com essa obra, aquilo
que se é. E tal qual o artista, o eu tem aqui o papel de conferir a essa criação
a sua feição artística. Não é ele apenas o resultado, o final de um processo,
mas uma unidade fictícia de sentido cuja função não é a de identificar, mas de
autenticar,68 de conferir à criação de si a sua autenticidade. Nesse sentido, se há
ainda exemplos a copiar, esses devem ser buscados nos artistas, transfigura-
dores de acasos em necessidade – e de infortúnios em beleza sublime.69 Para
além dos artistas, porém, artista e obra de arte, arte e vida, são aqui uma só:

64
Z, “Da Virtude amesquinhadora” §3, p.207.
65
M/A §218, 161.
66
MA/HH §108, 85.
67
GB/BM§213, 108.
68
DELEUZE, 2007, p. 164.
69
GD/CI-IX §8, 67-68.

Leituras de Zaratustra 313


O que devemos aprender com os artistas. – De que meios dispomos para tornar
as coisas belas, atraentes, desejáveis para nós, quando elas não o são? – e
eu acho que em si elas nunca o são! [...] Tudo isso devemos aprender com
os artistas, e no restante ser mais sábio do que eles. Pois neles esta sutil ca-
pacidade termina, normalmente, onde termina a arte e começa a vida; nós,
no entanto, queremos ser os poetas-autores de nossas vidas, principiando
pelas coisas mínimas e cotidianas. 70

Concluindo com uma possível resposta à nossa questão inicial, por meio
da afirmação de todo o passado e de todo acaso em destino, o eu confere à
multiplicidade de impulsos que somos a sua unidade de sentido – ou de estilo,
para usar uma expressão de seus escritos primevos.71 Trabalho artístico que
culmina com a criação de si, expressa na máxima de tornar-se o que se é.
E é ao ensinar isso que Zaratustra torna-se o que ele é:

[...] – como poeta e decifrador de enigmas, vindo para redimir os homens


do acaso, ensinei-lhes a criar o futuro e a redimir, de maneira criadora –
tudo o que foi.
Redimir o passado, no homem, e recriar todo o “foi assim” até que a vonta-
de diga: “Mas assim eu o quis! Assim hei de querê-lo!”.72

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. Conclusões sobre vontade de potência e eterno retorno. In:


______ A ilha deserta. Trad. de Luiz B. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2007.
MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. de
Oswaldo Giacóia Jr. 2. ed. São Paulo: Anna Blume, 1997.
NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe (KSA). Orgs. G.
Colli e M. Montinari. Berlim; Munique; Nova York: Walter de Gruyter/DTV, 1999.
______. Além do bem e do mal (GB/BM). Trad. de Paulo César de Souza. 2. ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004b.

70
FW/GC §299, 202.
71
UB/CoEx-II §4,35.
72
Z, “Das Velhas e novas tábuas”§3, p. 236-237.

314 Gustavo B. N. Costa


______. Assim falou Zaratustra (Z/Z). Trad. de Mário da Silva. 14. ed. São Paulo:
Civilização Brasileira, 2005.
______. Aurora (M/A). Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004c.
______. Crepúsculo dos ídolos (GD/CI). Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
______. Ecce homo (EH/EH). Trad. de Paulo César de Souza. 2. ed. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2004d.
______. A gaia ciência (FW/GC). Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2004a.
______. Humano demasiado humano (MA /HH). Trad. de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
______. Humano demasiado humano II – Miscelânea de opiniões e sentenças (MA-MS/HH-
-OS) / O andarilho e sua sombra (MA-WS/HH-AS). Trad. de Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
______. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história
para a vida (UB-II/CoEx-II). Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2003.

Coletâneas de fragmentos atribuídos a Nietzsche

NIETZSCHE, Friedrich W. Fragmentos finais - 1885-1889. Trad. e sel. De Flávio R.


Kohte. Brasília: UNB, 2002.
______. Vontade de poder. Trad. de Marcos S. P. Fernandes e Francisco J. D. de Moraes.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

Leituras de Zaratustra 315


Zaratustra em busca de terras natais

Ricardo de Oliveira Toledo

Aos 40 anos de idade, Zaratustra desce da montanha em que passara 10


anos.1 A partir desse instante, empreende uma peregrinação. Sua viagem não
se limita a uma geografia, ela é, também, temporal. Sua mensagem relata vi-
vências no passado e no futuro, embora seja dirigida a contemporâneos, aos
homens atuais, ainda que sua repercussão não se restrinja a estes.2 Em alguns
momentos da narrativa, é o próprio tempo que parece vir ao encontro de Za-
ratustra. Por isso, escuta os ventos secretos que chegam do futuro, trazendo
sua fausta mensagem.3
Na segunda parte do livro, Zaratustra realiza importantes deslocamentos
entre lugares e eras. Ela começa narrando que após sua primeira estadia entre
outros homens, ocorrida depois de seu isolamento de dez anos, o personagem
retorna à montanha, onde um novo período de tempo decorrerá. Como sugere
Zaratustra, ali ele percebeu mudanças em si que o levaram a descer novamen-

1
Como aponta o prólogo, aos 30 anos Zaratustra deixa o lago da sua pátria e sobe a montanha, viven-
do nela por 10 anos. Por um lado, o texto pode sugerir que Nietzsche compreendia os 40 anos como
a idade da maturidade masculina. Por outro, é importante notar que a idade de Nietzsche, ao iniciar a
escrita do livro, era de praticamente 40 anos. Os dez anos a que se refere, de algum modo, fazem men-
ção ao período que esteve em Basileia, ministrando aulas na universidade da cidade suíça. É razoável
dizer que o filósofo encontrou um análogo na figura mítica do próprio Zoroastro, o qual iniciou sua
missão também aos 30anos de idade, tendo deixado a montanha em que viveu isolado para passar 10
anos pregando (Cf. DALGADO e PIEL, 1982). J. P. Stern considera que a escolha de Nietzsche por
Zoroastro (Zaratustra) é porque este velho profeta persa é o fundador da mais antiga religião dualista
conhecida. É ele quem originalmente apresenta a batalha entre o bem e o mal como aquilo que move
o centro de todas as coisas. Por esse motivo, seria oportuno que em Nietzsche fosse o proclamador do
fim do reinado do bem e do mal (STERN, 1978, p. 55), o que é confirmado pela leitura do parágrafo
terceiro de “Porque sou um destino” de Ecce homo (Cf. EH, “Porque sou um destino”, § 3, p. 110-111).
Para maiores esclarecimentos, recomenda-se a leitura de NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Lettres à
Peter Gast: Tome Premier. Introduction et notes d’André Schaeffner. Monaco: Editions du Rocherid.,
1957, p. 195-204.
2
Z, “Do país da cultura”, p. 163.
3
Ibid., “Da virtude dadivosa”, p. 107.

Leituras de Zaratustra 317


te aos seus amigos e seus inimigos.4 Ele sabia que, embora suas experiências
durante sua solidão o tornassem suficiente para si, uma espécie de amor o im-
pelia a deixar a sua interioridade para um novo contato com outros homens.
Descia com a certeza de que já não era como antes, que sua linguagem seria
diferente da anterior, que já não mais correria com as “sandálias gastas”.5
Agora, a viagem de Zaratustra teria um novo propósito: destruir para li-
bertar, pôr abaixo para preparar o lugar para a criação e procurar as terras
paternais e maternais,6 as terras natais do além-homem,7 deste que superará
o homem, sendo criador de valores afirmadores da vida, que ama a terra e
aquilo que ela lhe oferece, que depõe o que é baixo e mesquinho nas maneiras
de agir, pensar e interpretar de seu antecessor. Zaratustra estava possuído por
um desejo de destruição, de jogar por terra tudo o que se mostra imutável e
imperecível. Carrega consigo o martelo com o qual realizará tal empreitada.
Os homens são vistos como pedras nas quais uma obra deve ser feita, nas
quais dormita as imagens que possuem Zaratustra. Está assim anunciado o
que deve perpassar o caminho do criador: “Sim, criadores, é necessário que
haja na vossa vida muitas mortes amargas. Sereis assim os defensores e justi-
ficadores de tudo o que é efêmero. Para que o criador seja o filho que renasce
é preciso que queira ser a mãe com as dores de mãe”.8 Noutra passagem, ain-
da na primeira parte do livro, verifica-se que a finalidade da criação a que se
propõe Zaratustra não é melhorar o homem e aquilo que de demasiadamente
humano fora construído pela espécie humana. Acima de tudo, o criador deve

4
A mudança aqui referida pode estar relacionada a reorientações no próprio pensamento de Nietzsche
durante a lacuna temporal entre a primeira e a segunda partes da obra em questão. De acordo com Scar-
lett Marton, o espaço de tempo entre a escrita das referidas partes é de seis meses. Em suas palavras:
“Em fevereiro de 1883, (Nietzsche) criou em dez dias a primeira parte de Assim falou Zaratustra – um
livro para todos e para ninguém; em julho do mesmo ano, escreveu a segunda parte também em dez
dias; e apenas dez dias foram suficientes para redigir, em janeiro de 1884 a terceira; um ano depois,
elaborou a quarta e última” (MARTON, 2005, p. 17).
5
Z, “O menino do espelho”, p. 116.
6
Embora a tradução mais indicada para a expressão Vater- und Mutterländern seja “terras paternais e
maternais” (ou “terras de pais e de mães”), no decorrer do texto opta-se pelo uso de “terras natais”, pois
o que se tem em vista aqui é mais o que se nasce em tais terras do que seus progenitores. Além do mais,
a tradução da referida expressão não é uma unanimidade, fazendo surgir alguns problemas relativos ao
sentido da expressão no interior da sentença “Von allen Bergen schaueich aus nach Vater- und Mutter-
ländern”. Enquanto Eduardo Fonseca também fala de “terras natais” (Cf. NIETZSCHE, F. W.. Assim
falava Zaratustra. São Paulo: Editora Hemus, s.d., p. 93), Maurice de Gandillac traduz a expressão por
“patries et terres maternelles” (Cf. NIETZSCHE, F. W.. Ainsi parlait Zarathoustra. Paris: Gallimard,
1971, p. 155) e Walter Kaufmann por “fatherlands and motherlands” (Cf. NIETZSCHE, F. W.. “Thus
spoke Zarathustra”. In. The portable Nietzsche. New York: The Penguin Books, 1976, p. 223).
7
Prefere-se aqui a tradução de Übermensch por “além-homem”. No entanto, respeita-se nas citações a
tradução escolhida pelos intérpretes.
8
Z, “Nas ilhas Bem-Aventuradas”, p. 119-120.

318 Ricardo de Oliveira Toledo


estar disposto a dar lugar ao novo, àquilo que não se tornará mais um ídolo,
uma provável verdade engessada, mesmo que para isso tenha que se dispor
para a morte, permitindo que herdeiros substituam aquele que cria.9
No país da cultura, Zaratustra descreve uma interessante incursão espi-
ritual: “voei demasiado longe pelo futuro, e horrorizei-me. Quando olhei em
torno de mim reparei que o tempo era o meu único contemporâneo”.10,11 Não
fica claro se esse voo se refere a certas previsões advindas da imaginação de
Zaratustra, se a uma habilidade profética, se a uma presença física no porvir
ou se Nietzsche considerava que seu personagem carregava em si o futuro.
Certo é que ele se via como um constante solitário, pois, mesmo estando entre
multidões, estava à frente de toda gente. Era póstumo e, independentemente
disso, capaz de lançar seu olhar para o passado, buscar e compreender suas
fontes, estar nos berços das origens da cultura humana.
Para Zaratustra, estar entre os contemporâneos era uma abnegação,12 pois
fora impelido por certo altruísmo a deixar sua solidão, o que lhe era mais
agradável, para anunciar sua mensagem entre homens que o deixavam ater-
rorizado:

Tornei então para trás, cada vez mais apressado: assim cheguei até vós, ho-
mens atuais; assim cheguei ao país da cultura. Pela primeira vez vos olhei com
olhos favoráveis e com bons desejos. E que me sucedeu? Apesar do medo que
me invadiu... pus-me a rir! Nunca meus olhos viram algo que fosse tão bizarro.

9
Na primeira parte de Assim falava Zaratustra, a ideia da morte livre sugere que se aproveita mais
de uma vida bem vivida, buscando uma constante superação de si, do que se entregar a uma vida sem
ação. Entra em cena algo semelhante à doutrina de Sileno, que aparece em O nascimento da tragédia:
“O melhor de tudo é parta ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso,
porém, o melhor para ti é logo morrer” (GT/III, p. 36). No entanto, isso deve ser encarado com res-
salvas. Somente aquele que, segundo Nietzsche, não vive a tempo deveria não ter nascido. Para este,
a morte seria uma solução e a única coisa com alguma importância para alguém supérfluo. Logo, a
morte livre seria uma forma de “retirada oportuna”. Esta não deve ocorrer diante da degeneração de
si mesmo, mas num instante de plenitude, quando se é mais amado (Cf. Z, “Da morte livre”, p. 103).
10
Z, “Do país da cultura”, p. 163.
11
Ibid., p. 163. O título em alemão é Vom Lande der Bildung, possuindo várias versões em Português.
Mário Ferreira dos Santos (Cf. Ibid.) e Mário da Silva (Cf. Id., 2005a) o traduzem como “Do país da
cultura”. Eduardo Nunes Fonseca utiliza “O país da civilização” (Cf. Id., s.d.). Na tradução francesa
de Maurice de Gandillac consta “Du pays de la culture” (Cf. Id., 1971). Vale dizer que o termo Bil-
dung também pode ser traduzido como formação, constituição e educação. Este último caso ocorre na
tradução para a língua inglesa de Walter Kaufmann: “On the land of education” (Cf. Id., 1976). Inde-
pendente de qual for a escolha do tradutor, parece que Nietzsche está falando de um povo que é o que
é porque foi formado a partir de elementos que lhe eram externos. Uma formação como essa aponta
para algo como a mera erudição. Por sua vez, esta não caminha, em geral, de mãos dadas com a criação.
12
Cf. Z, “Do menino do espelho”, p. 113.

Leituras de Zaratustra 319


Eu ria, ria, ao passo que me tremiam os pés e também o coração.13

Zaratustra se autodenominava um pássaro espantado.14 Aquilo que mais o


deixava atônito era o fato de que o povo com o qual se deparou se considerava
o criador de toda sua realidade. Entretanto, tudo o que sabia era se vestir das
produções de seus antecessores, acreditando que estas lhe ofereciam apenas
as cores com as quais coloria suas roupas e seus véus.15 Sem que percebessem,
os homens do presente eram uma confusão de tudo o que se produziu ao lon-
go das eras da humanidade. Cada povo que existiu falava por meio deles. Com
efeito, os homens atuais assumiam as cargas do passado exclusivamente para
negá-las. Rejeitavam principalmente a fé, pois só aceitavam viver a realidade
da vigília, destituída dos “sonhos de verdade” de seus antecessores.
Negando os antigos, os homens do país da cultura pensavam estar aptos
para afirmar sua autenticidade. Porém, quando se despiam de seus véus e
vestimentas, mostravam toda sua inautenticidade, sendo isto um primeiro
aspecto dos integrantes dessa sociedade. Sua nudez revelava uma verdadeira
inconsistência, o que indica que havia uma estagnação cultural coletiva, um
estado no qual nada de novo se apresentava, mas que todos se gabavam por
mostrar algo aparentemente original. Deles zomba Zaratustra: “Aqueles que
vos tirasse os véus, os retoques, as cores e as atitudes, não deixaria mais do
que um espantalho”.16 Revela-se, portanto, um segundo aspecto: o país da
cultura é estéril.
Diante de tal cenário, Zaratustra tece um elogio aos predecessores da con-
temporaneidade, demonstrando algo recorrente na filosofia de Nietzsche: o
reconhecimento da importância dos diversos estágios culturais construídos
pela humanidade. Para ele, existiram muitos criadores ao longo dos tempos,
homens que, não se contentando com o antigo, trabalharam para erguer novos
valores e até novas crenças. Noutros termos, permitiram-se sonhar “sonhos
proféticos”.17 Por seu turno, os homens atuais pensavam que o mais sensato
seria rejeitar qualquer tipo de fé. Não sabiam que isso era um sintoma da
sua ausência de vontade criadora, uma manifestação de sua degeneração, de
seu nada querer. Ora, a ausência de qualquer querer era bem mais repulsi-
va a Nietzsche do que o querer nada: “Não-querer-mais, não-estimar-mais e

13
Ibid.
14
Cf. ibid., p. 164.
15
Cf. ibid.
16
Ibid., “Do país da Cultura”, p. 164.
17
A expressão Wahr-Träume pode ser traduzida por “sonhos de verdade”, como visto anteriormente.

320 Ricardo de Oliveira Toledo


não-criar-mais, ah! Que esses grandes desfalecimentos permaneçam sempre
longe de mim!”.18
Através do contato entre Zaratustra e o país da cultura, Nietzsche descre-
ve um tipo de homem que já perdeu o prazer na própria existência, apenas
assumindo o que sobra das criações de seus antecessores, como se nada mais
quisesse em relação ao seu futuro. Isso decorria da descoberta de que aquilo
em que são depositadas as mais profundas crenças dos homens não provém de
uma vontade supramundana, sendo, aliás, meramente humano. É em Huma-
no, demasiadamente humano que algo similar a este argumento vem à baila pela
primeira vez, todavia, sem que Nietzsche tivesse previsto as consequências
indesejáveis do que havia descoberto. Na referida obra, ainda que o filósofo
falasse com admiração daqueles que se dispunham a uma busca pela excelên-
cia criativa, talvez não tenha respondido à questão sobre qual seria o sentido
de se continuar a criar, uma vez que nada perduraria, nada seria grande ou
profundo o suficiente para dar algum sentido ou finalidade à existência. Aqui,
arrisca-se a dizer que um dos frutos de um entendimento como o que se acaba
de mencionar é a inconformidade com o simples viver por viver.19 Zaratustra
havia encontrado homens que, por terem experimentado uma desilusão, não
queriam mais criar. Sonhar não lhes era mais importante. Por conseguinte,
mais sensato lhes era permanecer em vigília, contemplando o que resta da re-
alidade: uma existência desinteressante, desprovida de segredos e de alguma
coisa pela qual seja justificável lutar.20
Jean Lefranc (2005) argumenta que Nietzsche pretende criticar a civili-
zação de seu tempo falando por Zaratustra do erro que conduziu a história
europeia ao tipo de niilismo em que se encontrava, culminando naquilo que
o comentador chama de fim (do niilismo) na cultura histórica. É importante
perceber que essa “história de um erro” está descrita em Crepúsculo dos ído-
los (1896), e conta com cinco pontos. Nela está descrito como o erro passa
pela compreensão do que seria o mundo verdadeiro. É este, no primeiro pon-
to, acessível apenas ao sábio, ao devoto, ao virtuoso. Estes não dizem, são a
verdade. Platão é a melhor tipologia desse ponto. O segundo diz respeito a

18
Z, “Nas ilhas Bem-Aventuradas”, p. 120.
19
Cf. Z, “Das antigas e das novas tábuas”, XIII, p. 268.
20
Se já não há mais uma vontade (metafísica) que impele todas as coisas a um infindo desejo de sa-
ciedade, conduzindo o homem ao sofrimento, encontra-se espaço para uma vontade que é afirmativa
(positiva) em seu constante desejar, em sua insaciabilidade. Como escreve Deleuze, “a filosofia da
vontade, segundo Nietzsche, deve substituir a antiga (vontade) metafísica: ela a destrói e a ultrapassa
[...]. Tal como a concebe, a filosofia da vontade tem dois princípios que formam a alegre mensagem:
querer é igual a criar e vontade é igual a ter alegria” (DELEUZE, 1976, p. 6).

Leituras de Zaratustra 321


um mundo que está prometido ao sábio, ao devoto e ao virtuoso, mas não é
acessível por enquanto. É ao cristianismo que Nietzsche faz alusão aqui. O
terceiro é o da coisa em-si, inacessível aos sentidos, pois não é fenomênico. O
único consolo existente é poder pelo menos pensar tal mundo. É da filosofia
de Kant que se fala – da repercussão da Ideia königsberguiana. O quarto, bem
mais cético, realça o nascimento do desinteresse pela instância do verdadeiro,
daquilo que é em-si, do que está para além da empiria. A este momento Niet-
zsche chama de manhã cinzenta, primeiro bocejo da Razão e canto do galo
positivista – referência ao cientificismo. O quinto e último deve ser reescrito
na íntegra, pois toca bem de perto o que se trata na presente discussão:

O verdadeiro mundo foi abolido por nós: que mundo restaria? O mundo
aparente talvez? Mas não! Com o verdadeiro mundo também abolimos o
mundo aparente. (Meio-dia; instante da mais curta sombra; fim do mais
longo erro; topo da humanidade; incipit Zaratustra.)21

A citação deixa margem para se afirmar que, embora andar entre os ho-
mens da civilização causasse espanto a Zaratustra, ele teria que se esforçar,
pois estava na hora exata para que sua mensagem fosse anunciada. Pode-se
ponderar que a humanidade estava tomada pelo sentimento do vazio do hu-
mano, da não justificação de tudo o que fizera ao longo da sua história, como
se a imaginasse como mero fruto de casualidades – o que poderia lhe parecer
ruim. Em certa medida, faltava ao homem, além da iluminação do “eterno
retorno”,22 encontrar uma nova alegria numa existência alforriada do mundo
verdadeiro, de outro mundo, do não prazer na vida e na terra. Em contraparti-
da, não se desejava mais retornar e percorrer novamente os caminhos do erro.
Consequentemente, era o tempo oportuno para Zaratustra prosseguir, para
anunciar o advento do além-homem.
Deve-se observar com exatidão o que ocorria na Europa e como Nietzsche
vê seu papel nesse contexto. J. P. Stern tenta explicitar qual seria de fato a
mensagem de Zaratustra. Antes de qualquer outra coisa, deve-se mencionar
que o comentarista enxerga o além-homem apregoado em Assim falava Zara-
tustra como uma coletividade, e não como um indivíduo. Em seguida, refere-se
ao além-homem como aquele que não está fechado para o mundo, mas abre-se
para ele, quer receber não só o que de melhor tem para oferecer, também quer
suas vicissitudes. Nas palavras de Stern, “nele [no além-homem], os vícios

21
GD, “Como o verdadeiro mundo finalmente se tornou uma fábula”, p. 18.
22
Ainda de maneira pouco desenvolvida, a iluminação a que se refere aqui aparece pela primeira vez
no aforismo 341 de A gaia ciência.

322 Ricardo de Oliveira Toledo


fundamentais do desejo, do desejo de poder e do egoísmo são transformados
em valores positivos; e ele está apaixonado pela terra, pelo seu próprio destino
e pela sua vida, pronto a sacrificar essa vida plena (...).23 A vontade de potên-
cia24 transforma a rejeição ao mundo em ensejo criador. A intenção é recebida
como ocasião para a criação de novos valores, sem que estes tenham seu movi-
mento detido em seu processo de vir-a-ser. Logo, a mensagem por excelência
do além-homem é “afirmar a terra e ‘estar apaixonado por ela’ como fonte de
todas as coisas vivas”.25 Por tudo isso, o além-homem não quer se redimir da
terra e nem do que ela tem para lhe oferecer.
Em concordância com a exposição do último parágrafo, pondera-se que a
Europa ainda não era o palco para o aparecimento do além-homem. São elen-
cados a partir do pensamento de Nietzsche três grandes instantes do niilismo
europeu. O primeiro é chamado de “período das claridades”, no qual o que é
antigo e o que é novo apresentam-se como antíteses fundamentais. São opostos
da seguinte maneira: o que é antigo representa a vida decadente, enquanto o
novo é recebido como manifestação da vida ascendente. Não obstante, o ho-
mem se sente fraco demais para lançar mão de sua força e criar algo novo. “O
período das três grandes paixões” é o segundo, sendo elas o desprezo, a piedade
e a destruição. Enfim, lista-se o “período da catástrofe”, no qual os homens são
passados por um crivo, o qual impede que tanto os fracos quanto os fortes to-
mem decisões.26 O que constituiria este crivo não fica bem claro, mas é possível
cogitar que o pensamento dos últimos três séculos europeus estaria contido
nele. Um século seria aquele de Descartes, sob o domínio da razão como teste-
munho da soberania da vontade. O outro seria o de Rousseau, com o reinado do
sentimento, impondo este a soberania dos sentidos, sendo, consequentemente,
falaz. O terceiro era o de Schopenhauer, do animalismo, debaixo do comando dos
apetites. Este, embora mais verídico, era mais sombrio e, portanto, pessimista.
Não mais era a perda de qualquer tipo de crença ou da confiança em novos va-
lores. Era uma forma de rejeição à vida e a tudo o que ele tem para oferecer.27

23
STERN, 1978, p. 65.
24
A tradução portuguesa do livro de Stern utiliza a expressão “vontade de poder” (Cf. Ibid.).
25
STERN, 1978, p. 65.
26
Cf. HEINRICH, Mann. O pensamento vivo de Nietzsche. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins
Fontes, 1977, p. 98.
27
Frederick Coppleston, citando um trecho de Assim falava Zaratustra em relação ao pessimismo, faz
o comentário a seguir. “Os homens ‘não têm de fugir à vida, como os pessimistas, mas, como alegres
convivas de um banquete, que desejam as suas taças novamente cheias, dirão sim à vida: Uma vez
mais!’. Desta maneira, Nietzsche desenvolveu-se fora de Schopenhauer e se, por um lado, temos o pes-
simismo de Schopenhauer combinado com um ideal predominantemente negativo de comportamento,
temos, por outro, o otimismo de Nietzsche combinado com um ideal predominantemente positivo e

Leituras de Zaratustra 323


Zaratustra não se detém e continua sua viagem. Seu olhar parte do alto dos
picos. Coloca-se em busca de terras natais. Apesar de insistir em caminhar
errante, não as encontra.28 Estar à procura de terras natais é querer estar entre
aqueles que estejam dispostos a persistir criando. As antigas terras natais são
passadas, bem como seus filhos. Outras deveriam ser descobertas, nas quais
provavelmente viria à luz o além-homem e de onde este alcançaria o restante
da terra.
O texto de Assim falava Zaratustra mostra um profeta que sabia bem sobre
o que apregoava, mas esperava encontrar o lugar propício para o cumprimento
de sua mensagem. Como a leitura do livro indica, o centro da sua pregação é
o além-homem. Em várias ocasiões, é possível compreender as circunstâncias
adversas para o seu surgimento. Em oposição, perceber o tempo e o espaço
específicos para seu aparecimento é bem menos simples – ou bem mais com-
plexo. A confusão do que seria o além-homem contribui para a dificuldade há
pouco levantada. Enquanto alguns esperariam por uma nova espécie de ho-
mens, biologicamente modificada, outros, talvez, esperassem por um melho-
ramento do homem, sobretudo, no âmbito da moral (e da cultura). Contudo,
o além-homem não é algo parecido com o que se acaba de ler, uma vez que
não é uma nova espécie natural mais evoluída, ou seja, enquanto produto da
natureza. Semelhantemente, não é apenas o melhoramento a partir da cultura
humana já existente. Se ambas as hipóteses não condizem com o que Nietzs-
che vislumbrava em sua filosofia, é oportuno dizer que o além-homem estava
bem mais próximo de ser um produto do homem. Assim como uma mãe está
disposta a abrir mão de si em prol de seu filho, assim o homem deve se entre-
gar para parir seu herdeiro.29
A terra em sua íntegra deveria ser o lugar de origem do além-homem. Este
é aquele que estará disposto a amá-la acima de outras coisas. Ao contrário, a
maioria dos tipos de homens com os quais Zaratustra se depara possui o olhar
voltado para o além dela, seja porque ela não lhes basta ou porque tais ho-
mens arquitetam um meio de fuga de suas supostas ameaças. Provavelmente,

ativo de comportamento” (COPPLESTON, 1979, p. 211).


28
Cf. Z, “Do país da cultura”, p. 65.
29
Segundo Willis Santiago Guerra, “o super-homem [utiliza-se aqui a terminologia do comentarista]
será, se o for, um produto do próprio homem, que, voltando-se para si, superar-se-á, por um retorno
à natureza, ao natural, que nele habita enquanto sua origem” (GUERRA, 2003, p. 156). Este retorno
ao natural tem como finalidade destituir-se do que é meramente humano, pois isso limita a vida do
homem, simplificando-a demasiadamente. Num relance bem próximo dos discursos ecológicos atuais,
Willis insinua que a forma como o homem se põe individual e coletivamente contra a terra contribui
para abreviar sua estadia (sua experiência de vida) no mundo e pode ser um empecilho para o apare-
cimento do além-homem.

324 Ricardo de Oliveira Toledo


em função disso distingue o olhar lunar do amor solar. A lua tem um brilho
que não ilumina a terra, mas só a si. Elabora-se um paralelo com o conheci-
mento engendrado a partir de um desvio, de uma não-relação ou, ao menos,
de um relacionamento pouco intenso com a terra. Como escreve Nietzsche
aos que apreciam somente a visão da lua: “Vós não amais a terra como cria-
dores, como geradores satisfeitos de criar”.30 Já o brilho do sol não permite
que se olhe diretamente para o astro, pois o mais importante é que o olhar se
dirija para o que se ilumina, a saber, a própria terra. Livre da escuridão, esta se
mostra em toda sua diversidade, no esplendor de seu potencial criador. Como
afirma Nietzsche: “Todo amor solar é inocência e desejo do criador”.31 Noutro
trecho, lê-se: “E a vossa alma está longe do que é grande, que o além-homem
vos espancaria com a sua bondade! E vós sábios e ilustrados, fugireis ante a
ardência solar da sabedoria em que, prazerosamente, banha o além-homem a
sua nudez”.32
As terras natais são o lugar do meio-dia mais ardente, nas quais o sol brilha
em todo seu fulgor. Aliás, estão numa zona de clima úmido, de vida selvagem e
virgem. Lá, cada componente deve estar ávido pelo novo, para deixar acontecer
uma primeira experiência de vida. É onde esta se manifesta numa superabun-
dância de vontade sem equivalência, potencializando-se cada vez mais. Tudo é
assombroso: o menor se torna o mais forte – os gatos montanheses se transfor-
mam em tigres, e os sapos venenosos, em crocodilos.33
É conveniente destacar que o elogio ao sol e às zonas de clima úmido
(ou tropicais, como se pode sugerir) não ocorre pela primeira vez em Assim
falava Zaratustra. É possível que Nietzsche estivesse retomando reflexões de
Humano, demasiado humano. É pelo viés da cultura que o tema é abordado nesse
livro. Para tanto, é proposta a concepção de que a cultura poderia ser ilustrada
como contendo zonas climáticas, sem que essas coexistissem geograficamen-
te, mas se sucedessem no tempo. Haveria uma cultura que se assemelharia
ao clima tropical, cheia de violentos “contrastes, brusca alternância de dia e
noite, calor e magnificência de cores, a veneração do que é repentino, mis-
terioso, terrível, a rapidez dos temporais” (...).34 Numa zona cultural como
essa, as forças e sentimentos se alternariam, destruindo-se e alimentando uns
aos outros, como numa luta entre tigres e serpentes, sendo tudo um celeiro

30
Z, “Do imaculado conhecimento”, p. 167.
31
Ibid., p. 168.
32
Ibid., “Da prudência humana”, p. 197.
33
Ibid., p. 196.
34
MA, # 236, p. 150.

Leituras de Zaratustra 325


criativo. Diante disso, Nietzsche se pergunta: “Mas não podemos estar feli-
zes com essa mudança, mesmo admitindo que os artistas foram seriamente
prejudicados pelo desaparecimento da cultura tropical, e a nós, não-artistas,
nos consideram um pouco sóbrios demais?”.35 Porém, a cultura tropical teria
sido substituída pela cultura da zona temperada, mais espiritual e sem muitos
sobressaltos. Considerando o aforismo 237, é possível insinuar que do lado da
cultura tropical estariam, por exemplo, os gregos e os renascentistas italianos
e, do lado da cultura temperada, a arte pós-reformista alemã. Se há um ideal
de progresso artístico-cultural, isso ocorre entre os indivíduos dessa última,
que ainda parecem buscar uma arte mais espiritual, ou melhor, absolutamente
ideal, um ponto da criação no qual nada mais precisa ser criado. Todavia, em
Assim falava Zaratustra, Nietzsche não se limita ao fenômeno cultural. Sua pre-
ocupação se estende à existência em todas as suas manifestações.
Não se deve supor que a pátria de Zaratustra36 seja o modelo de terra natal
buscado por ele. Isso fica claro em “O regresso”, inscrito na terceira parte
do livro. Regressar significa retornar à solidão, ir para um lugar no qual o
solitário não é mais rejeitado pela multidão, para a terra onde encontra des-
canso. Exclama Zaratustra: “Ó solidão! Pátria minha! Vivi muito selvagem em
selvagens países estranhos para não regressar a ti sem lágrimas (...). Como a
tua voz me fala celestial e afetuosamente!”.37 Longe da sua pátria, Zaratustra
caminha em meio a muitas pessoas entre as quais a maioria fala, mas ninguém
escuta e nada se conclui. É pesaroso para o profeta do além-homem achar aco-
lhida para sua sabedoria. O mesmo ocorre com o espírito livre,38 o qual é mui-
tas vezes rechaçado das terras em que vive, pois seu pensamento incomoda.39
Para Zaratustra, é somente no alto, em sua pátria, que poderá respirar de novo
o ar puro, distante dos odores desagradáveis dos seres humanos. Estes são
perigosos, e o que é perigoso deve sempre ficar atrás dele. O retorno à solidão
explica porque às vezes a peregrinação não é uma contínua andança adiante.
É necessário voltar aonde a sabedoria é banhada pela luz solar, e só depois

35
Ibid.
36
A expressão utilizada por Nietzsche para se referir à pátria de Zaratustra é meine Heimat (“minha
pátria”).
37
Z, “O regresso à pátria”, p. 243.
38
Mais uma vez Nietzsche retoma Humano, demasiado humano: “É chamado de espírito livre aquele
que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição
e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é uma exceção, os espíritos
cativos são a regra” (HA, # 225, p. 143). E o filósofo já adianta que é sobretudo no Estado que o espírito
livre se transforma num sem-lugar, sendo-lhe imposto o exílio.
39
Cf. Z, “Do seguir adiante”, p. 235.

326 Ricardo de Oliveira Toledo


reiniciar a caminhada junto daqueles que retiram seu saber da obscuridade.
A alegria de Zaratustra não está completa no retorno. Sua vontade quer
seguir em frente, mas retornar é preciso. As terras natais estão no futuro, não
no passado, e ainda não acharam guarida no presente:

O presente e o passado sobre a terra... ai meus amigos, eis para mim o mais
insuportável; e eu não viveria se não fosse um visionário daquilo que há de
vir. Um vidente, um voluntário, um criador e uma ponte para o futuro – e
também, ai, até certo ponto, um aleijado no meio dessa ponte: tudo isto
é Zaratustra. E vós sempre vos interrogastes: “Para nós, quem é Zaratus-
tra? Como lhe podemos chamar?” [...] Eu ando entre homens como entre
fragmentos do futuro: desse futuro que meus olhares aprofundam [...]. A
vontade não pode querer para trás.40

No entanto, é preciso pôr diante das distinções temporais de Nietzsche,


passado, presente e futuro, a concepção de eternidade implícita na doutri-
na do “eterno retorno”. Roberto Machado discute esta concepção dentro das
perspectivas cosmológica e ética, sendo que aquela se subordina a esta. Sobre
o sentido cosmológico, o intérprete diz: “exprime a suspeita em relação à eter-
nidade como exterior, como separada, como um além ou aquém do tempo,
assumindo uma postura que procura ultrapassar as oposições metafísicas de
valores, afirmando a dignidade do tempo (...)”.41 No sentido ético, afirma que,
“para Nietzsche, querer a eternização do instante vivido, pela afirmação do
seu eterno retorno, é querer a vida, a cada instante, em toda sua intensidade,
em toda sua plenitude (...).42 Machado continua dizendo que: “Não quero
dizer que Nietzsche não tenha tido o desejo de provar argumentativamente o
eterno retorno cosmológico. (...) A afirmação é mais hipotética do que cate-
górica e o ponto de vista cosmológico está sempre subordinado ao ponto de
vista ético.43
O texto de Machado conjugado à leitura de Assim falava Zaratustra provoca
a seguinte reflexão: por um lado, mesmo que as distinções temporais sejam
analisadas somente no sentido do eterno retorno cosmológico, não é irrele-
vante falar de passado, presente e futuro, sobretudo quando se considera que
o tempo subsiste perante o que lhe é externo, ou seja, a eternidade. Por outro,
se as distinções são observadas no sentido do eterno retorno ético, tal irrele-

40
Ibid., “Da redenção”, p. 190.
41
MACHADO, 2001, p. 135.
42
Ibid.
43
Ibid., p. 136.

Leituras de Zaratustra 327


vância há pouco mencionada perde qualquer razão de ser. Todavia, qualquer
impasse fica resolvido ao se pensar que o eterno retorno não apenas repete
como também agrega, restando lugar para uma dimensão cronológica. Assim,
o futuro pode se apresentar como a instância do que ainda não foi, que se
anuncia e que se torna desejável. Seria o tempo em que coisas novas viriam a
surgir, como se cada instante fosse capaz de engendrar algo novo, superando
seu predecessor. Dessa maneira, não se falaria aqui de um querer para trás,
mas daquilo que afirma a vida, que a plenifica. Logo, não se deveria almejar o
que é antigo exatamente como foi construído no passado, por exemplo, as an-
tigas terras natais, e sim aquilo que tal construção teria deixado de afirmativo,
novamente exemplificando, o anseio por terras natais.
As terras natais que Zaratustra procura são terras do futuro, porque o
próprio querer não pode retornar. Como já foi dito anteriormente, as antigas
terras natais não podem mais ser desejadas e, tampouco, alcançadas. Por esse
motivo, Zaratustra olha do cume dos montes e não encontra tais pátrias. Ora,
estas ainda não estão presentes no espaço e no tempo de Nietzsche. Para
qualquer parte que se olhasse na Europa, era possível ver surgir ideologias que
tinham propostas contrárias a tudo o que este filósofo esperava para o além-
-homem. Os homens de seu tempo persistiam em lutar para que sua espécie
perdurasse, dando origem a uma cultura de preservação. Seu objetivo era viver
sem perigos, ou, mais do que isso, evitar o perigo. Para tanto, eram hábeis
em criar sistemas políticos que mantivessem a paz coletiva, como a democra-
cia, o socialismo44 e uma ciência que era somente a transfiguração da velha
metafísica. A busca pela verdade ainda é o principal alvo da ciência que, ao
pensar encontrá-la, o homem acaba por fixar uma nova espécie de metafísica.
Mário Sérgio Ribeiro, a respeito desse assunto, escreve que: “Nossa ciência,
perpassada pelo otimismo essencial do ideário positivista, estaria ainda ani-

44
Não há como não ver no texto a seguir um paralelo com a democracia, que em outros momentos
da filosofia de Nietzsche é posta em xeque. Eis o texto de Assim falava Zaratustra: “Aqui está a pior
das hipocrisias que tenho encontrado entre os homens: até os que mandam fingem as virtudes dos que
obedecem. ‘Eu sirvo, tu serves, nós servimos’, assim salmodeia a hipocrisia dos governantes. [...] Toda
bondade que vejo é pura fraqueza, toda justiça e piedade, fraqueza pura. São corretos, leais e benévolos
uns com os outros, como são corretos, leais e benévolos entre si os grãos de areia”. Faz parte de “Da
virtude amesquinhadora” (p. 223), e embora este texto aponte para uma interpretação genealógica da
história do amesquinhamento da virtude e da decadência do homem, é no contexto cultural de Nietzsche
que isso alcança seu ápice. Os grandes inimigos nietzschianos no Estado moderno eram seus sistemas
políticos, criados para o nivelamento dos indivíduos e para o fim da hierarquização social. A democracia
e o socialismo estavam baseados numa verdade quase tão metafísica quanto aquelas que embasaram os
Estados absolutistas, com uma ressalva: escondiam-se atrás de um pensamento científico. Contudo, nada
mais eram do que superstições, crendices num passado natural no qual o homem era um bom selvagem,
tendo sido corrompido pela vida em sociedade, sua cultura e civilidade (Cf. MA, # 473 & GB/V, § 203).

328 Ricardo de Oliveira Toledo


mada por uma vontade de verdade que, esquecendo-se de pôr em dúvida o ‘va-
lor’ da verdade, acaba por torná-la a última tributária de todo platonismo”.45
Com efeito, quando grandes sistemas baseados na verdade foram construídos,
tinham como única finalidade, ainda que inconsciente, afirmar um tipo de
moral. Nesse sentido, os sábios, os sacerdotes, filósofos e a ciência abriram
veredas via verdade que sempre chegaram ao pathos da moralidade. Isso sig-
nifica dizer que, provavelmente, se no homem não prevalecesse um instinto
de preservação, a verdade nem fizesse parte de seus sonhos. Ora, se para al-
guns um modelo de cultura fundada no ideal de verdade proporciona potên-
cia, servindo de alimento para sua moral, seu escudo social, em outros age
para torná-los apequenados, inconscientes de sua força – um tipo de mordaça
psicológica e social.46 Dessa forma, as construções realizadas pelos europeus
eram pequenas, exigindo que tudo o que fosse grande se abaixasse para que
conseguisse habitar seu interior.47 Para esses homens, é melhor o mesquinho
sobre um solo firme do que correr riscos para gerar algo realmente grandioso,
que enobrecesse o homem e sua vida. O horizonte contemplado mostrava o
enfraquecimento, a degeneração, um homem que se enjoa do tipo de vida
que escolheu para si. Nietzsche entende que sem perigo não há como haver
superação. Demanda-se a tensão para que algo nobre possa nascer. Existem
até alguns que aparentavam querer, mas seu querer é moderado, e não an-
dam muito sem olhar atrás para que conseguissem ver o solo seguro. O além-
-homem não poderia existir aí, pois não é da sua natureza consentir com a
ausência de coragem.
Ao retornar para a sua pátria, Zaratustra sabia que estava diante da aurora,
e se perguntava por que esta tinha chegado tão cedo para ele. Os primeiros
raios de sol anunciavam que o meio-dia viria. Mas, antes que chegasse, muito
havia para se fazer. Era necessário seguir anunciando: “Para todos eles, porém,
chega agora a luz, a espada da justiça, o Grande Meio-dia: Manifestar-se-ão
aqui muitas coisas!”.48
Nietzsche espera o além-homem como aquele tipo que saiba aproveitar
a felicidade que a terra lhe proporciona, não mais criando subterfúgios para
viver apenas relances de felicidade. O Grande Meio-dia trará consigo as imagens
da vida em toda sua variedade, abrindo os olhos de quem o contempla para
além das redomas instituídas a partir da dupla bem e mal. O que era visto

45
RIBEIRO, 1999, p. 32.
46
Cf. GB/I, § 6.
47
Cf. Z, “Da virtude amesquinhadora”, p. 223.
48
Z, “Dos três males”, p. 253.

Leituras de Zaratustra 329


como desprezível por ser considerado pertencente à esfera do mal, e que fora
negligenciado ao longo de séculos, poderá ser banhado pela luz solar, res-
plandecendo como algo grande.49 O corpo não será mais desprezado por ser
manancial de vontade ou por se sujeitar à dor e ao sofrimento, mas entrará
em comunhão com a terra. Nietzsche dá indícios de como é este momento,
quando Zaratustra diz: “Ó ventura! Ó ventura! Queres cantar, minha alma?
Estás deitada na erva. Esta, porém, é a hora secreta e solene em que nenhum
pastor sopra flauta. Acautela-te! O calor do meio-dia repousa nos prados. Não
cantes! Silêncio! O mundo consumou-se”.50 Assim, Zaratustra sente um rasgo
de felicidade que transpassa a atmosfera, como o raio de sol que passeia pelo
céu ao meio-dia. Seu desejo é se entregar a este, ao poço de eternidade – o
alegre abismo da eternidade.
Conclui-se, portanto, que Zaratustra pretendia não só anunciar o apareci-
mento do além-homem, como também procurava aquela que seria sua terra
natal – e o lugar da continuada concepção/criação; as terras paternais e ma-
ternais. Nietzsche compreendia que Zaratustra as encontraria não num lugar
específico no espaço, e sim, no tempo, ou seja, no futuro – em que toda terra
seria o lugar do além-homem. Zaratustra adianta esse instante como sendo
o Grande Meio-dia, no qual o sentido de todo desejo do grande produto do
homem, o além-homem, se voltará para a terra e para seu ímpeto criador/
destruidor. De acordo com a interpretação aqui proposta, Nietzsche não via
sua época como aquela que daria lugar ao além-homem, mas era o instante
propício para que Zaratustra apregoasse sua mensagem. Como se pôde ver no
decorrer do presente texto, a parte escolhida para se iniciar o discurso, embo-
ra pudesse ter sido outra, foi o encontro de Zaratustra com o homem atual/
da cultura. Justifica-se a escolha pelo fato de que é importante verificar se o
filósofo dá ou não precedência à cultura em relação aos elementos derivados
desta, como poderia ser o caso da própria moral. Todavia, a narrativa de Zara-
tustra está para além da cultura, pois abarca a existência e, acima disso, a vida
em todas as suas manifestações.

49
Como relembra Nietzsche, falando de seu Zaratustra: “O problema psicológico no tipo do Zaratustra
consiste em como aquele que em grau inaudito diz Não, faz Não a tudo a que até então se disse Sim,
pode, no entanto, ser o oposto de um espírito de negação; como o espírito portador do mais pesado
destino, de uma fatalidade de tarefa, pode, no entanto, ser o mais além e mais leve – Zaratustra é um
dançarino –: como aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade, que pensou o ‘mais
abismal pensamento’, não encontra nisso, entretanto, objeção alguma ao existir, sequer ao seu eterno
retorno – antes uma razão a mais para ser ele mesmo o eterno Sim a todas as coisas (...)” (EH, “Assim
falou Zaratustra”, VI, p. 90).
50
Z, “Ao meio-dia”, p. 346.

330 Ricardo de Oliveira Toledo


Referências bibliográficas

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RIBEIRO, Mário Sérgio. Vida e liberdade: a pisicofisiologia de Nietzsche. Londrina:
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STERN, J. P. As ideias de Nietzsche. Trad. de Octávio Mendes Cajado. São Paulo:
Editora Cultrix, 1978.

Leituras de Zaratustra 331


O camelo, o leão e a criança
na trajetória de Zaratustra

Tiago Barros

Em seu primeiro discurso, Zaratustra menciona três transmutações do es-


pírito1 (Verwandlungen des Geistes): como o espírito se torna camelo; o camelo
se torna leão; e o leão, criança. É significativa a presença destas três imagens
precisamente no primeiro dos discursos do protagonista, imediatamente após
o prólogo que narra seu aprendizado inicial e a tentativa frustrada de compar-
tilhá-lo com o povo. Depois de passar dez anos sozinho em uma caverna no
topo de uma montanha, Zaratustra retornou ao convívio dos demais homens
para lhes dar como presente, após a morte de Deus, o anúncio do além-do-
-homem (Übermensch).2 Apesar de ter se surpreendido ao perceber que ainda
nem todos estavam cientes da morte de Deus,3 Zaratustra foi à principal praça
da cidade anunciar a possibilidade de superação do tipo humano engendrado
e subjugado pela crença em um deus uno e absoluto. Porém, seus primeiros
ouvintes não compreenderam a descrição do além-do-homem como novo sen-
tido da Terra a ponto de não reconhecerem sua importância e confundirem-no
com seu extremo oposto, o último homem.4 Por isso, Zaratustra concluiu que
não poderia ser devidamente compreendido por aquelas pessoas, que não era

1
Para as citações de Assim falou Zaratustra, utilizamos a tradução de Mário da Silva, mas, com relação
ao termo Verwandlungen des Geistes, optamos pela tradução “transmutações do espírito”, proposta por
Rubens Torres nas obras incompletas de Nietzsche da coleção “Os pensadores”.
2
Em seu primeiro diálogo com o povo, Zaratustra afirma: “Eu vos ensino o super-homem. O homem
é algo que deve ser superado. Que fizeste para superá-lo? [...] Outrora, o delito contra Deus era o maior
dos delitos; mas Deus morreu e, assim, morreram também os delinquentes dessa espécie. O mais terrí-
vel, agora, é delinquir contra a terra e atribuir mais valor às entranhas do imperscrutável do que ao sen-
tido da terra!”(Prólogo, §3, p.36). Nas citações, reproduzimos a tradução de Übermensch como «super-
-homem», feita por Mário da Silva, mas, ao longo de nosso texto, privilegiaremos «além-do-homem».
3
Surpresa perceptível no seguinte trecho: “Quando ficou só, Zaratustra falou assim ao seu próprio
coração: ‘Será possível? Esse velho santo, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto!’”
(Prólogo, §2, p.35).
4
Cf. Prólogo, §5, p.42: “’Dá-nos esses últimos homens, ó Zaratustra!’, gritavam. – ‘Transforma-nos
nesses últimos homens! E nós te damos de presente o super-homem!’”.

Leituras de Zaratustra 333


“a boca adequada para aqueles ouvidos”.5 Diante do fracasso de sua tentativa
inicial de comunicação e da hostilidade dos cidadãos para com ele, Zaratustra
se distanciou da praça e se deu conta de que nem todos estavam preparados
para aprender o que ele tinha a ensinar naquele momento.
O prólogo antecipa aquela que será a trajetória do protagonista descrita
ao longo do livro: evidenciar a morte de Deus e a necessidade de contribuir
para engendrar o além-do-homem, alertando sobre os possíveis riscos de se
recair em condutas niilistas características do último homem. Porém, como
foi malsucedido em sua primeira tentativa de dialogar sobre essas questões
com todo o povo, Zaratustra decidiu passar a falar para um número restrito de
companheiros.6 Tendo em vista que o primeiro de seus discursos vem imedia-
tamente após esta decisão, somos levados a crer que a partir deste momento
de seu percurso ele anseia e procura por uma audiência selecionada e apta a
compreendê-lo. E como o discurso versa sobre a necessidade de se passar por
três transmutações do espírito, esta parece ser uma recomendação aos que
desejam segui-lo na condição de discípulos, uma espécie de pré-requisito para
o aprendizado de sua doutrina. Ou, como assinala Laurence Lampert, talvez
Zaratustra tenha se dado conta da inexistência de pessoas preparadas para sua
sabedoria (Weisheit) e seus discursos, a partir de então, tenham a intenção de
criar o público adequado para acolher seu inovador ensino.7 Independente das
possíveis motivações de sua pregação, é perceptível que seus discursos têm a
clara intenção de angariar discípulos, seja pelo desejo de procurá-los ou pela
necessidade de criá-los.
Contudo, desde o início Zaratustra também deixa claro que não tem in-
teresse em formar e conduzir rebanhos de seguidores, mas que seu objetivo
é o exato oposto: desgarrar a maior quantidade possível de integrantes do
rebanho.8 Tornar-se um discípulo de Zaratustra, portanto, não implica acatar
suas prescrições como dogmas ou mimetizar suas atitudes de modo passivo
e irrefletivo. A tarefa que ele assume enquanto mestre é a de contribuir para

5
Cf. Prólogo, §7, p.44: “Estou ainda longe deles e o sentido do que eu falo não diz nada aos seus
sentidos. Ainda sou, para os homens, um ponto intermediário entre um doido e um cadáver.”
6
Cf. Prólogo, §9, p.47: “Uma luz raiou em mim: não à multidão fale Zaratustra, mas a companheiros!
Não deve Zaratustra tornar-se pastor e cão de um rebanho!”
7
LAMPERT, Nietzsche’s teaching, p.32.
8
Cf. Prólogo, §9, p.47: “Atrair muitos para fora do rebanho – foi para isso que vim. Deverá irar-se
comigo a multidão e o rebanho: ‘ladrão’, quer chamar-se Zaratustra para os pastores. Pastores, digo eu,
mas eles se dizem os bons e os justos. Pastores, digo eu, mas eles se dizem os crentes da verdadeira fé.
Olhai-os, os bons e os justos! A quem odeiam mais que todos? Àquele que parte suas tábuas de valores,
o destruidor, o criminoso – mas esse é o criador.”

334 Tiago Barros


despertar a necessidade de se passar por um processo de emancipação que, em
última análise, é individual. Frequentemente, ele ressalta que não busca cren-
tes dependentes, mas companheiros autônomos dos quais espera que queiram
segui-lo motivados prioritariamente pelo desejo de seguir a si próprios.9 Este
nos parece ser um dos temas centrais das três transmutações do espírito que,
não à toa, constituem o primeiro ensino ministrado por ele. As imagens do
espírito enquanto camelo, leão e criança podem ser entendidas como referen-
tes ao processo de libertação de um estado inicial de heteronomia subservien-
te em prol de uma experimentação criativa autônoma. Héber-Suffrin chega a
comparar as três transmutações do espírito com três das principais etapas da
vida humana: a educação que se recebe passivamente na infância, a crise da
adolescência e a iniciativa do adulto.10,11 Porém, como ressalta Eugen Fink, as
imagens do camelo, do leão e da criança não se referem apenas a um processo
individual de emancipação, mas à postura de toda a humanidade com relação
à existência de um deus uno e absoluto. Segundo Fink, esse primeiro discurso
“indica o tema fundamental [do prólogo e da primeira parte do livro]: a mo-
dificação do ser humano pela morte de Deus, isto é, a transformação da sua
alienação na liberdade criadora que se sabe autônoma.”12
O espírito, enquanto camelo, é caracterizado por Zaratustra como um es-
pírito de suportação (tragsamen Geiste) respeitoso, que se ajoelha para ser car-
regado pelas mais pesadas e difíceis cargas requeridas por sua própria força
que, humildemente, se alegra com essa prova de sacrifício e penitência. As
características que lhe são atribuídas podem ser aproximadas de preceitos ti-
picamente cristãos, como o exercício da humildade no combate ao orgulho,
a contenção de afetos como valor, a busca ascética pela verdade e pelo co-

9
Cf. Prólogo, §9, p.47: “De companheiros, eu preciso, e vivos – não de companheiros mortos e cadáve-
res, que levo comigo aonde quero. Preciso, sim, de companheiros vivos, que me sigam porque querem
seguir-se a si mesmos”. Cf. também III, “Do espírito de gravidade”, §2, p.233: “’Este, agora, – é o meu
caminho; – onde está o vosso?’; assim respondia eu aos que me perguntavam ‘o caminho’. Porque o
caminho – não existe!”. Cf., por último, I, “Da virtude dadivosa”, §3, p.105: “Retribui-se mal um mestre
quando se permanece sempre e somente discípulo. [...] Tomai cuidado com que não vos esmague uma
estátua! [...] Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra! Sois os meus crentes; mas
que importam todos os crentes! Ainda não vos havéis procurado a vós mesmos: então, me achastes. Assim
fazem todos os crentes; por isso, valem tão pouco todas as crenças. Agora, eu vos mando perder-vos e
achar-vos a vós mesmos; e somente depois que todos me tiverdes renegado, eu voltarei a vós.”
10
Para Héber-Suffrin, “Zaratustra começa com uma alegoria, que ilustra as três etapas da transmuta-
ção. Ele nos ensina como, partindo-se da obediência passiva do camelo, que sempre aceita as cargas
que lhe são impostas, se deve derrubar todo o fardo dos valores, com a selvagem brutalidade do leão,
e depois passar à criação de valores novos, com a originalidade inocente da criança.” (HÉBER-SU-
FFRIN, O “Zaratustra” de Nietzsche, p.120-121).
11
HÉBER-SUFFRIN, O “Zaratustra” de Nietzsche, p.121.
12
FINK, A filosofia de Nietzsche, p.76.

Leituras de Zaratustra 335


nhecimento, assim como a vivência deliberada da dor e do sofrimento como
vias privilegiadas de acesso a uma pretensa verdade unívoca e universal. O pri-
meiro gesto do camelo é justamente o de, resignadamente, ficar de joelhos para
se submeter às dificuldades que lhe são impostas por outrem. Carregado desses
pesadíssimos fardos, ele marcha para o seu próprio deserto, para a solidão e isola-
mento em que vivencia sua segunda transmutação do espírito: de camelo em leão.
O leão se insurge contra a atitude submissa do camelo e contra a carga de
deveres que o oprimem. Na luta pela conquista de sua liberdade, ele confronta
um dragão chamado Tu deves (Du-sollst), que, na qualidade de seu derradei-
ro senhor e deus, se apresenta como representante de valores milenares e
inquestionáveis. Visando libertar-se desse pesado jugo e expandir suas pos-
sibilidades criativas, a vontade do leão afirma “Eu quero” (Ich will) e diz um
sagrado “Não” a todo dever. Graças a essa confrontação, ele se torna senhor
de seu próprio deserto e conquista a liberdade para criar novos valores. É
importante atentar para o fato de que o dragão contra o qual o leão se insurge
é o único dos seres mencionados no discurso que não possui existência con-
creta, detalhe que é significativo por ele representar justamente uma criação
contingente, mas que não costuma ser reconhecida como tal. No caso, parece
tratar-se de uma caricatura da crença na existência de juízos de valor morais
intrínsecos à vida e universais. O dragão pode ser interpretado como uma ale-
goria daqueles que pautam suas condutas por uma vontade de verdade (Wille
zur Wahrheit) que leva a crer que haja valores absolutos que devam ser des-
cobertos e obedecidos e não experienciados e criados pelos próprios viventes
através da vontade de potência (Wille zur Macht).
Parece-nos que o dragão combatido pelo leão está estreitamente relaciona-
do ao camelo, particularmente à sua carga. Tendo em vista que somente en-
quanto leão o espírito se volta contra os deveres impostos por seu derradeiro
senhor e deus, ao passo que, enquanto camelo, ele ainda permanece subme-
tido aos fardos de sua carga, não seria excessivo supor haver uma identidade
entre o dragão Tu deves e o peso que oprime e subjuga o camelo,13 perspectiva

13
Importante destacar que o camelo é constantemente associado ao peso que carrega, sobretudo, tendo
em vista o fato de o principal inimigo de Zaratustra ser justamente um pesado espírito de gravidade. No
discurso “Do espírito de gravidade”, estes dois personagens chegam a ser identificados e boa parte da
descrição do camelo é transcrita com o intuito de caracterizar este “inimigo ferrenho, mortal e nato” de
Zaratustra: “Nós carregamos fielmente conosco, nas duras costas e por ásperos montes, aquilo que rece-
bemos em dote! E, se suamos, nos dizem: ‘Sim, a vida é um pesado fardo!’ Mas somente o homem é um
pesado fardo para si mesmo! E isso procede de que carrega às costas demasiadas coisas estranhas. Tal
como o camelo, ajoelha-se logo e deixa que o carreguem bem. Especialmente o homem forte, com espí-
rito de suportação, ao qual inere o respeito: de demasiadas palavras e valores estranhos e pesados carrega
ele mesmo suas costas – e, então, a vida parece-lhe um deserto!” (“Do espírito de gravidade”, §2, p.231).

336 Tiago Barros


reforçada pela contraposição estabelecida no interior do próprio discurso en-
tre as posturas do camelo e do leão com relação ao dragão: o espírito precisa se
transmutar em leão justamente para dar conta daquilo que o animal de carga,
suportador e respeitador não consegue. Para o subserviente camelo que ama
o Tu deves como o que há de mais sagrado, o direito de criar novos valores é
encarado como uma conquista terrível, típico ato de rapina e tarefa de animal
rapinante que não se coaduna com sua índole pacífica e resignada. Somente
quando se tornar leão o espírito conseguirá relativizar os valores aos quais se
submetia e perceberá o quanto eles têm de quimera e arbítrio. A vontade do
leão se rebela contra a postura do camelo e contra os valores tradicionais ma-
nifestos sob a forma de um opressor dragão, mas ele ainda não os transvalora,
ainda não cria novos valores em substituição aos que recusa. Sua tarefa é a
de lutar contra o dragão para conquistar o direito de criar novos valores, mas
a criação propriamente dita caberá somente à terceira das transmutações do
espírito, de leão em criança: “Inocência, é a criança, e esquecimento; um novo
começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um
sagrado dizer ‘sim’”.14
A criança é aquela que, por ignorar o “mundo do rebanho”, gera o seu
próprio mundo ao afirmar, de modo autônomo, um sagrado “Sim” criador.
Diferente do camelo que pautava suas condutas por parâmetros externos e
pela memória dos valores milenares a que se submetia, a criança é “uma roda
que gira por si mesma” dotada de acentuada capacidade de esquecimento. Ela
também difere do leão, cuja postura se restringia a uma reação contra o dever
e que apenas dizia “Não” ao outro, permanecendo, portanto, ainda preso por
continuamente definir-se somente pela recusa e negativa às escolhas alheias
que nunca são esquecidas por ele. A criança é um novo começo autorreferente
e um movimento inicial que prescinde do passado e independe de agentes
exteriores para se efetivar.
Chama atenção o fato de Nietzsche dedicar bem menos espaço à carac-
terização da última transmutação do espírito e não fazer qualquer alusão ao
conteúdo propriamente dito de suas criações: o que é esquecido pela criança?
Com o que ela joga? Aonde conduz seu movimento inicial? Ao que ela diz
sim? Consideramos que as respostas a essas questões não são apresentadas
de modo direto intencionalmente. Uma descrição assertiva e exaustiva de tais
elementos iria até mesmo de encontro ao que é proposto pela imagem inocen-
te e lúdica do espírito enquanto criança. Ao passo que o camelo estava preso

14
I, “Das três metamorfoses”, p.53.

Leituras de Zaratustra 337


aos deveres do passado e o leão confrontou a tradição para conquistar sua
liberdade presente, a criança está voltada para o futuro. Suas criações ainda
não estão estabelecidas, trata-se de projetos que, por serem inaugurais e sin-
gulares, estão mais próximos do murmúrio e balbúcio de um recém-nascido
ainda envolto em indefinição do que de definições bem delimitadas e prees-
tabelecidas. Referir-se a seus inocentes valores de modo taxativo cristalizaria
sua vitalidade imagética em uma rigidez estéril que limitaria, ou até mesmo
inviabilizaria, a especificidade de sua tarefa criativa. Cabe recordar que, para
Zaratustra, “o que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta”15 O que
ele ama no homem é precisamente seu caráter provisório e mutável de perma-
nente transição. Em última análise, as características que definem a criança
estão mais próximas de um critério balizador para a criação de valores do que
de valores propriamente ditos. O próprio caráter de jogo que lhe é atribuído
deixa claro que sua função não é a de criar novas verdades rígidas em subs-
tituição às que foram destruídas pelo leão, mas valores experimentais que se
reconheçam como criações perspectivas.
A escolha das três transmutações do espírito como primeiro ensino de
Zaratustra para doutrinar discípulos, assim como a recorrência das imagens
do camelo, leão e criança ao longo da obra, evidenciam a grande importância
deste primeiro discurso. Pressupondo-se que em algum momento Zaratustra
tenha aprendido aquilo que ensina e tendo em vista que o que se sabe a res-
peito de sua trajetória anterior a este discurso encontra-se no prólogo que o
antecede, aventamos a hipótese de que o começo do livro narra justamente o
processo de transmutação do espírito do próprio Zaratustra. Esta interpreta-
ção encontra respaldo na atenta observação do comentário feito pelo primeiro
personagem que Zaratustra encontrou após seu isolamento de dez anos: “Mu-
dado está Zaratustra, tornou-se criança, Zaratustra, despertou, Zaratustra;
que pretendes, agora, entre os que dormem?”.16 Este comentário do santo
eremita da floresta nos leva a crer que, entre a subida e a descida da monta-
nha, Zaratustra passou por uma mudança que o transformou justamente no
resultado final das transmutações do espírito, ou seja, nesse ínterim ele teria
se tornado criança. Mudança que chega a ser comparada a um despertar que o
distingue dos demais homens que ainda dormem. Para melhor compreender
como ocorreu o processo de despertar de Zaratustra que culminou nesta sua
transmutação em criança, é importante observar o início de sua jornada des-
crito no prólogo da obra.

15
Prólogo, §4, p.38.
16
Prólogo, §2, p.34.

338 Tiago Barros


Parece-nos que as primeiras linhas do livro narram o início do processo de
“tornar-se o que se é” de Zaratustra.17 Assim como o camelo de seu primeiro
discurso, ele abandonou as facilidades oferecidas pela vida gregária em sua
terra natal e marchou, carregado das cinzas de seu passado e dos valores que
até então lhe foram impostos,18 para a solidão da caverna no topo da monta-
nha onde vivenciou sua transmutação do espírito em leão: “Sofredor, superei a
mim mesmo, levei a minha cinza para o monte e inventei para mim uma cha-
ma mais clara. E eis que, então, o fantasma desapareceu!”.19 Após dez anos de
isolamento, Zaratustra percebeu que o dragão de deveres a que passivamente
se submetia não passava de uma fantasmagoria opressiva a que corajosamente
disse um sagrado “Não”. Tendo então se dado conta da morte de Deus, final-
mente conseguiu conquistar sua liberdade e tornar-se senhor em seu próprio
deserto. Ao superar a si mesmo e ao niilismo decorrente da morte de Deus, seu
coração mudou, inventou para si uma chama mais clara e tornou-se criança.
Movido por sua recém-adquirida virtude dadivosa (schenkenden Tugend), passou
a amar os homens e a desejar dar e distribuir a selvagem sabedoria (wilden Wei-
sheit) que desenvolveu ao longo deste seu processo de transmutação.
Apesar de considerarmos que inicialmente Zaratustra passou por essas
três transmutações, não nos parece que ao fim do prólogo ele tenha estabiliza-
do na última delas e permanecido estático no restante do livro. Ao contrário,
nossa hipótese é a de que suas três primeiras transmutações, que já estariam
presentes no prólogo (de espírito em camelo, de camelo em leão e de leão em
criança), teriam sido acontecimentos necessários para viabilizar o início de
sua jornada, mas que, em sua trajetória, ele ainda terá que passar por diversas
outras mudanças e transmutações. Inclusive, cada uma das três transmuta-
ções iniciais permanecem recorrentes ao longo de todo o livro, muitas vezes
referidas ao próprio Zaratustra, que, em certos momentos, deve desenvolver
ou abandonar determinadas características ora do camelo, ora do leão e ora da
criança. Como exemplo, podemos citar os seguintes trechos: “A vida é dura de
suportar; mas, por favor, não vos façais de tão delicados! Não passamos, todos

17
Cf. Prólogo, §1, p.33: “Aos trinta anos de idade, deixou Zaratustra sua terra natal e o lago de sua
terra natal e foi para a montanha. Gozou ali, durante dez anos, de seu próprio espírito e da solidão, sem
deles se cansar. No fim, contudo, seu coração mudou [...]”.
18
Neste sentido, o trecho “E mais de um que foi para o deserto e sofreu sede com as feras, queria
apenas não se sentar em torno da cisterna na companhia dos sujos cameleiros” (“Da canalha”, II, p.126)
pode ser interpretado como uma referência à própria vida de Zaratustra por aparentemente tratar do que
teria motivado sua ida para o isolamento, descrita no prólogo. Neste contexto, os “cameleiros” podem
ser compreendidos como os contemporâneos de Zaratustra que contribuíam para a manutenção dos
antigos valores que produziam os “camelos”, tão repudiados e combatidos por ele.
19
I, “Dos trasmundanos”, p.57.

Leituras de Zaratustra 339


juntos, de umas lindas bestas de carga”,20 “Para ordenar, falta-me a voz do
leão.”21, “Ainda precisas tornar-te criança e não sentires vergonha”.22
É importante assinalar que o espírito enquanto camelo passa por dois
momentos principais: inicialmente ele se submete aos mais pesados fardos
e, posteriormente, marcha sozinho para o deserto em que se transmuta em
leão. Consideramos que a escolha do místico persa como protagonista do livro
oferece importantes indicações desta primeira transmutação do espírito do
personagem. Uma das possíveis traduções do nome Zaratustra é justamente
«camelo de ouro» (Zarat – amarelo, dourado e Ushtra – camelo). Em Ecce homo,
Nietzsche apresenta alguns dos motivos que o levaram à escolha desse profeta
do século VII a.C. para protagonizar seu livro:

Deveria me ter sido perguntado o que precisamente em minha boca, na


boca do primeiro imoralista, significa o nome Zaratustra: pois o que cons-
titui a imensa singularidade deste persa na história é precisamente o con-
trário disso. Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a
verdadeira roda motriz na engrenagem das coisas – a transposição da moral
para o metafísico, como força, causa, fim em si, é obra sua. [...] Zaratustra
criou este mais fatal dos erros, a moral: em consequência, deve ser também
o primeiro a reconhecê-lo. [...] Compreenderam-me?... A autossuperação da
moral pela veracidade, a autossuperação do moralista em seu contrário –
em mim – isto significa em minha boca o nome Zaratustra.23

Com isso, fica claro que o objetivo de sua referência foi o de “reverter”,
“transvalorar” os efeitos do moralismo metafísico e dualista que teria sido
inaugurado pelo místico persa.24 Nessa medida, consideramos que o mitológi-
co profeta persa parodiado criticamente por Nietzsche representa a transmu-
tação do espírito em camelo por ter sido o primeiro a atribuir à vida uma in-
terpretação moral e dualista que, posteriormente, foi retomada e desenvolvida

20
I, “Do ler e do escrever”, p.67.
21
II, “A hora mais silenciosa”, p. 179.
22
Ibid., p.180.
23
Ecce homo, “Por que sou um destino”, §2, p.111.
24
Outras versões das primeiras linhas do Prólogo do livro também indicam a estreita relação do per-
sonagem de Nietzsche com esta tradição oriental. Por exemplo, no último aforismo do livro IV de A
Gaia Ciência está escrito que “Quando Zaratustra fez trinta anos de idade, abandonou sua terra e o lago
de Urmi e foi para as montanhas.” (Gaia Ciência, §342, 231) e, em um fragmento póstumo intitulado
“Meio-dia e eternidade – apontamentos para uma nova vida”, da época em que Nietzsche redigia a
primeira parte do livro, lê-se: “ Zaratustra, nascido às margens do lago Urmi, deixou sua terra natal aos
trinta anos, foi para a província de Aria e, nos dez anos de sua solidão na montanha, escreveu o Zend-
-Avesta.” (Fragmento Póstumo 11[195] da primavera-outono de 1881).

340 Tiago Barros


pela filosofia socrático-platônica e pela cultura judaico-cristã; tradições que
são apontadas por Nietzsche como principais responsáveis pelo intenso niilis-
mo identificado, sobretudo, na modernidade europeia. Já o segundo momen-
to do espírito como camelo, sua ida para o deserto e transmutação em leão,
em nossa concepção, encontra-se representado no começo do livro, quando o
personagem Zaratustra abandona o lago de sua terra natal e se dirige para o
isolamento em uma caverna no alto de uma montanha. Ao descer a montanha,
ele já teria inventado para si uma chama mais clara e se tornado criança, como
prontamente percebeu seu primeiro interlocutor. Transfigurado pela conquis-
ta de uma nova inocência que tornou seu olhar puro, sua boca sem laivo de
náusea e o fez caminhar como um dançarino,25 Zaratustra vai ao encontro dos
demais homens para presenteá-los com uma selvagem sabedoria que anuncia
a possibilidade de transvaloração dos valores humanos vigentes.

Referências bibliográficas

FINK, Eugen. A filosofia de Nietzsche. Trad. de Joaquim Lourenço Duarte Peixoto.


Lisboa: Presença, 1983.
HÉBER-SUFFRIN, Pierre. O “Zaratustra” de Nietzsche. Trad. de Lucy Magalhães. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
LAMPERT, Laurence. Nietzsche’s teaching – an interpretation of Thus Spoke Zarathustra.
New Haven e London: Yale University Press, 1986.
NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kristische Studienausgabe. COLLI, Giorgio;
MONTINARI, Mazzino (org.). Berlim/Nova York: Walter de Gruyter, 1988. Edição
crítica, 15v.
______. Obras incompletas. Trad. e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São
Paulo: Abril Cultural, 1974.
______. Assim falou Zaratustra – um livro para todos e para ninguém. Trad. de
Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
______. Ecce Homo – como alguém se torna o que é. Trad. de Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001b.
______. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001a.

25
O oposto, portanto, de sua subida, quando marchava carregado por cinzas com a finalidade de se
afastar dos homens. Enquanto sua subida à caverna no topo da montanha foi “pesada”, sua descida é
marcada pela leveza, expressa através da graciosidade da dança e da pureza de seu olhar.

Leituras de Zaratustra 341


A propósito do nojo de Zaratustra:
a nobreza e o pathos da distância

Danilo Bilate

Luz sou eu: ah, fosse eu noite!


Mas esta é a minha solidão:
estar cingido de luz
Zaratustra, II, Canto noturno

A palavra “Ekel”, traduzível por nojo ou náusea – e relacionada com o


desprezo (Verachtung) –, é encontrada em vários momentos de Assim falou Za-
ratustra. Longe de ser apenas uma palavra marginalizável, ela é utilizada para
nomear um afeto1 que Zaratustra privilegia ora por se ver como um homem
“sem nojo”, ora por reconhecer sua familiaridade com outros homens na
medida em que possuem todos o mesmo afeto. Ademais, a mesma palavra
pode ser considerada chave para a compreensão do enigma do capítulo “Da
visão e do enigma”, e também para a análise do “problema psicológico” do
personagem – problema que é indicado por Nietzsche em Ecce homo do se-
guinte modo:

O problema psicológico no tipo do Zaratustra consiste em como aquele


que em grau inaudito diz Não, faz Não a tudo a que até então se disse Sim,
pode no entanto ser o oposto de um espírito de negação; como o espírito
portador do mais pesado destino, de uma fatalidade de tarefa, pode no
entanto ser o mais além e mais leve – Zaratustra é um dançarino –: como
aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade, que pensou o
“mais abismal pensamento”, não encontra nisso entretanto objeção alguma
ao existir, sequer ao seu eterno retorno – antes uma razão a mais para ser ele
mesmo o eterno Sim a todas as coisas.2

1
Sobre a classificação do nojo como um afeto, ver o fragmento póstumo 26[95] do verão-outono de
1884: “O ‘bom ser humano’ – sem os poderosos afetos [Affekte] do ódio, da indignação, do nojo [des
Ekels], sem hostilidade – é uma degeneração ou um autoengodo”.
2
Ecce Homo, Assim falou Zaratustra, §6.

Leituras de Zaratustra 343


De fato, como veremos, Zaratustra vivencia o nojo como reação afetiva
à maior objeção ao pensamento abismal do eterno retorno. O nojo é o afeto
nodal do processo ético de afirmação da existência: superá-lo seria a vitória
sobre o niilismo e a assunção do amor fati.3 Contudo, o que é curioso, Zara-
tustra demonstra a incompleta superação do nojo, afeto que retorna na quarta
parte do livro e que serve mesmo para sustentá-la e justificar sua publicação
posterior. Como afeto enfraquecedor ou decadente, ele não pode ser elimina-
do definitivamente, mas mesmo isso não é objeção ao desejo de eternidade e
do eterno retorno das coisas.4
A primeira referência ao nojo ocorre no prólogo, §2. O velho reconhece
Zaratustra pela pureza de seu olhar e por não encontrar em sua boca qualquer
nojo. Aqui caracterizado deste modo, Zaratustra faz o anúncio do além-do-
-homem exatamente no momento em que ele entende que os homens experi-
mentam a hora do grande desprezo (Verachtung), hora em que o ideal humano
de felicidade se converte em nojo (Ekel).5 Confirma essa primeira asserção
de Zaratustra o fato de que, no capítulo “Do pálido criminoso”, da parte I, o
criminoso experimenta o grande desprezo pelo homem na vontade de superar
o seu próprio eu: “O meu eu é algo que deve ser superado, o meu eu é, para
mim, o grande desprezo [die grosse Verachtung] pelo homem”. Entretanto, no
mesmo capítulo, Zaratustra mesmo confessa pela primeira vez sentir nojo:

Outrora, eram mal a dúvida e a vontade de afirmar o ser próprio [selbst].


Nesse tempo, o enfermo tornava-se herege ou feiticeira: como herege ou
feiticeira sofria e queria fazer sofrer.
Mas a isso fazeis ouvidos moucos: dizeis que prejudica os bons dentre vós.
Mas que me importam os bons dentre vós?
Muitas coisas, nos bons dentre vós, causam-me nojo

Com essa crítica sutil à inquisição, pela recusa à afirmação egoica contra
a qual ela lutava, Nietzsche ironiza a concepção de bondade do catolicismo e

3
Isto é, o amor ao fatum, amor ao destino, amor ao necessário, ou, como diz a célebre passagem:
“Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: – assim me tornarei
um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! [...] E, tudo soma-
do e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!” (A gaia ciência, §276).
4
Sobre isso, ver “A experiência trágica na quarta parte de Assim falou Zaratustra”, de André Martins,
texto que faz parte deste mesmo livro. A conferir especialmente com o excelente capítulo “A parte qua-
tro do Zaratustra e a vivência do amor fati”. O autor mostra de forma original a importância do quarto
livro como maturação do eterno retorno como amor fati e, por consequência, a recusa nietzscheana de
fazer do Zaratustra um romance de formação.
5
Prólogo, §3.

344 Danilo Bilate


afirma pela boca de Zaratustra que dessa concepção muita coisa é digna de
repulsa. Contudo, ainda não explicita o quê, para fazê-lo apenas no capítulo
“Da canalha”, dedicado especialmente ao nojo e ao desprezo. Lá, Zaratustra
diz que se engasgou e quase se sufocou com as perguntas: “Como? Também a
canalha é necessária à vida? Serão necessários poços envenenados e fogos mal-
cheirosos e sonhos emporcalhados e pão da vida bichado?” ao que ele conclui:
“Não o meu ódio, mas o meu nojo roeu-me, faminto, a vida!”. Ora, se esse
afeto é considerado aqui como algo que lhe roeu a vida, ao invés, portanto,
de favorecer a sua intensificação, Zaratustra indica, em seguida, todavia, a
possibilidade de que o nojo mesmo lhe tenha dado “asas e forças divinatórias
de fontes”. Ao perguntar “como me libertei do nojo?”, Zaratustra responde
que “para a mais excelsa altura tive de voar, antes de achar de novo a nascente
do prazer!”. O nojo pode, pois, explicar o movimento da procura pelo que há
de mais excelente. Em todo caso, a estratégia encontrada para evitar o afeto
enfraquecedor da vida é a de evitá-lo pela separação daquilo que o causa: “Há
uma vida a qual a canalha não bebe conosco” e, para encontrar essa vida, é pre-
ciso se manter longe da canalha, donde se explica a metáfora da altura: “por
demais elevada e íngreme é a nossa morada, aqui, para todos os impuros e sua
sede”. Assim, o futuro desejado por Zaratustra é um futuro em que a huma-
nidade esteja apartada da canalha, mas no presente não é possível manter-se
longe dela senão pela solidão: “Na árvore do futuro, construamos o nosso
ninho; para nós, solitários, águias deverão trazer alimento em seus bicos!”.
Zaratustra prossegue:

Como fortes ventos, queremos viver acima deles, vizinhos das águias, vizi-
nhos da neve, vizinhos do sol: assim vivem os ventos fortes.
E, tal como um vento, quero, algum dia, soprar no meio deles e, com o meu
espírito, tirar o respiro ao seu espírito: assim quer o meu futuro.
Em verdade, um forte vento é Zaratustra para todas as baixuras; e este con-
selho ele dá aos seus inimigos e a tudo o que cospe e escarra: “Guardai-vos
de cuspir contra o vento!”’.6

Se o capítulo “Da canalha” parece ter sido construído todo ele pela afetação
repulsiva, Nietzsche dá mostras de repudiar essa própria repulsa. O lamento
do canto do túmulo não é outra coisa. Nele, Zaratustra diz: “noutro tempo,
jurei abandonar todo nojo” e, então, pergunta, com ares de nostalgia: “Para
onde fugiu, então, o mais nobre dos meus juramentos?”.7 Há como que uma

6
Parte II, Da canalha.
7
Parte II, O canto do túmulo.

Leituras de Zaratustra 345


certa tristeza ou decepção por parte de Zaratustra por não ter conseguido
cumprir com o mais nobre de seus juramentos. Da mesma maneira, ele tam-
bém diminui a importância daqueles que ainda têm desprezo nos olhos e nojo
escondido na boca, como é o caso do regresso da floresta do conhecimento.8
Recorrente na trajetória de Zaratustra, o afeto do nojo aparece mais uma vez
e, agora, num dos trechos mais obscuros do livro, propositadamente e adequa-
damente nomeado de “Da visão e do enigma”:

Terei visto, algum dia, tamanho nojo e lívido horror num rosto? Talvez ele
estivesse dormindo e a cobra lhe coleasse pela garganta adentro – e ali se
agarrasse com firme mordida.
Minha mão puxou a cobra e tornou a puxá-la – em vão! Não arrancou a
cobra da garganta. Então, de dentro de mim, alguma coisa gritou: “Morde!
Morde!”.
“Decepa-lhe a cabeça! Morde!” – assim gritou alguma coisa de dentro de
mim, assim o meu horror, o meu ódio, o meu nojo, a minha compaixão,
todo o meu bem e o meu mal gritaram de dentro de mim, num único grito.9

Para desvendarmos o enigma, prossigamos com o nosso percurso e leia-


mos a próxima ocorrência da palavra Ekel no livro. Em “Do passar além”, no
caminho para a caverna Zaratustra encontra seu “macaco”, seu imitador, o
louco. Dele, Zaratustra escuta a ojeriza à grande cidade. Diante da exposição
do desprezo do louco pela cidade, Zaratustra exclama: “Cala-te de uma vez!
[...] há muito que tuas palavras e tuas ações me causam nojo! [...] Eu desprezo
o teu desprezo; e, se me acautelaste – por que não te acautelaste a ti mesmo?”.
Zaratustra despreza o nojo do louco porque o afeto do imitador nasce da vin-
gança, e não do amor:

Somente do amor deve alçar voo o meu desprezo e o meu pássaro acautela-
dor; não de um pântano! [...] O que te faz grunhir, em primeiro lugar? Foi
que ninguém te lisonjeasse bastante; – por isso foste sentar-te junto dessa
imundície: para teres motivo de grunhir muito – para teres motivo de mui-
ta vingança! Porque é vingança, ó louco vaidoso, todo o teu espumar, bem
o adivinhei!

Em seguida, contudo, Zaratustra também reconhece ter nojo da grande


cidade, mas seu nojo é diferente, justamente porque nasce do amor, e não da
vingança. Por isso, Zaratustra deixa um último ensinamento ao louco: “Este

8
Parte II, “Dos seres sublimes”.
9
Parte III, Da visão e do enigma, §2.

346 Danilo Bilate


ensinamento, porém, ó louco, eu te dou, como despedida: daquilo que não se
pode mais amar, deve-se – passar além!.10 Antes deste capítulo, em “Da virtude
amesquinhadora”, na parte III, Zaratustra diz que apenas o nojo o impede de
esmagar os “piolhos”, ou seja, os mestres da resignação. A aceitação da vir-
tude pequena dos que desejam a pequena felicidade no bem-estar, simulada
também pelos que mandam – a “hipocrisia dos dominantes” –, é a resignação
da qual Zaratustra sente asco. Ao contrário, uma grande virtude, como o pra-
zer consigo ou contentamento (Selbst-Lust), a “virtude dadivosa”, afasta “para
longe de si tudo o que é desprezível” e “tudo o que é covarde”, pois

[...] odioso e motivo de nojo é, para ele [para o prazer consigo], aquele que
não quer defender-se, o que engole venenosos escarros e maus olhares, o
homem por demais paciente, que tudo suporta, que se dá por satisfeito
com qualquer coisa: porque esses são modos de servo.
Que alguém seja servil ante os deuses e os divinos pontapés ou diante dos
homens e das estúpidas opiniões humanas: toda a sorte de servilismo, des-
preza esse bem-aventurado egoísmo.11

A resignação e o servilismo são umas dessas coisas do íntimo do ho-


mem que são um pesado fardo e algo nojento de que fala o §2 do capítulo
“Do espírito de gravidade”.12 Mas esse asco não deve ser generalizado para
todo o real: “Há muita lama no mundo – até aí, é verdade. Mas nem por isso
o mundo é um monstro que chafurda na lama!”. Após asseverá-lo, Zara-
tustra, mais uma vez,13 acena para a possibilidade de que o nojo crie “asas
e forças pressagas de puras fontes!”.14 De fato, se antes já era vislumbrada
a possibilidade de que tal afeto predispusesse Zaratustra para a procura do
mais excelso, que estava por trás da metáfora da altura, agora Zaratustra
confirma que o nojo é condição para o alcance do mais excelente, agora por
trás da metáfora do “mar alto”:

Ó meus irmãos, quando mandei que partísseis os bons e os justos e as tá-


buas dos bons e dos justos – somente então embarquei o homem no rumo

10
Parte III, Do passar além.
11
Parte III, Dos três males, §2.
12
Parte III, §2.
13
A passagem é muito semelhante à presente em “Da canalha”, já citada. No entanto, se lá havia uma
pergunta – “Schuf mein Ekel selber mir Flügel und quellenahnende Kräfte?” – aqui há uma exclamação
e, portanto, uma afirmação peremptória: “der Ekel selber schafft Flügel und quellenahnende Kräfte!”. A
tradução utilizada varia de “forças divinatórias”, no primeiro caso, para “forças pressagas”, no segundo.
14
Parte III, De velhas e novas tábuas, §14.

Leituras de Zaratustra 347


do seu mar alto.
E somente agora sobrevém-lhe o grande medo, o grande olhar em derredor
de si, a grande enfermidade, o grande nojo, o grande enjoo de mar.15

Com a aproximação do pensamento abismal, isto é, o pensamento do eter-


no retorno, Zaratustra exclama: “Nojo! Nojo! Nojo!”16 e explica, em seguida,
o motivo de sua reação repulsiva:

O grande fastio [Überdruss] que sinto do homem – isto penetrara em mi-


nha goela e me sufocava [...] Ah, eternamente retorna o homem! Eterna-
mente retorna o pequeno homem! [...] Demasiado pequeno, o maior! – era
este o fastio que eu sentia do homem. E eterno retorno também do menor!
– era este o fastio que eu sentia de toda a existência!
Ah, nojo! Nojo! Nojo!17

Portanto, na parte III, Zaratustra ainda se afeta pelo asco, e essa afetação
enfraquecedora da vida é vivenciada justamente no momento em que ele vis-
lumbra o eterno retorno. Isso porque a hipótese do retorno eterno de todas as
coisas, se verdadeira, conclui o retorno do pequeno homem. Ora, é o próprio
Nietzsche quem desvenda o enigma da cobra na garganta do pastor. Zaratus-
tra é o pastor que tem a cobra presa à garganta e arranca-lhe a cabeça. E é o
grande fastio pelo homem ou o grande nojo do homem18 que é representado
pela imagem da cobra. Ao contrário do homem servil, “que não quer defender-
-se” e “engole venenosos escarros”19 – a metáfora do veneno pode ser aproxi-
mada da imagética do enigma – Zaratustra elimina, pelo menos em sua visão,
o nojo com uma “mordida”. Mas o nojo continua recorrente.
Na parte IV do livro, a relação de Zaratustra com o asco é conturbada: ele, por
vezes, reconhece estar enojado e, outras vezes, se nomeia como o “sem nojo”.
Inicialmente, o afeto surge como característica dos homens superiores ou dos

15
Ibid., §28.
16
Parte III, O convalescente, §1.
17
Ibid., §2.
18
A palavra Ekel deve ser relacionada, como feito de modo evidente e constantemente por Nietzsche, a
Verachtung (desprezo, desdém), principalmente, mas também a Verdruss (desgosto, aborrecimento) ou
Uberdruss (fastio, tédio) e outras semelhantes. Embora todos esses termos não sejam sinônimos exatos
na língua alemã, Nietzsche os usa de modo bastante aproximado. Assim, o desprezo e o desgosto não
são indiferentes, mas re-ativos, re-pulsivos, enojados. O fastio é pelo excesso de algo que, excessivo,
se torna repulsivo. E assim por diante.
19
Trechos já citados da parte III, Dos três males, §2.

348 Danilo Bilate


“homens do grande anseio, da grande náusea, do grande tédio”.20 O nojo pela
mixórdia plebeia (Pöbel-Mischmasch) e seus “bons costumes” de um dos reis que
visitam Zaratustra;21 nojo que é a única verdade que Zaratustra enxerga na boca do
feiticeiro;22 e, por último, nojo que experimenta o mendigo voluntário.23 Ao mendi-
go, Zaratustra se contrapõe, nomeando-se de o “homem sem nojo” (der Mensch ohne
Ekel) e de o “vencedor do grande nojo” (der Überwinder des grossen Ekels).
Reunido com esses e com os outros homens superiores – e com a sua
sombra e o burro – em sua morada, Zaratustra identifica o efeito positivo do
nojo vivenciado por eles: “que sentísseis desprezo, ó homens superiores, é o
que me dá esperança. Por que os grandes desprezadores são os grandes vene-
radores”. Afinal, é com a veneração do mais excelso que se sente o nojo pelo
menor. No entanto, Zaratustra mesmo, que antes se intitulara como o homem
sem nojo, insere-se no grupo dos que vivenciam o grande desprezo: “O que
é de natureza feminina, o que provém da condição servil e, especialmente, a
mixórdia plebeia: isso, agora, quer tornar-se o senhor de todo o destino hu-
mano. – Oh, nojo! Nojo! Nojo!”,24 o que é confirmado explicitamente no ca-
pítulo seguinte: “de todos vós, que, como eu, sofreis do grande nojo, [grossen
Ekel]”25 e anteriormente, ao declarar que lhe “enojam todos os meios-termos
do espírito”.26 A despeito disso, Zaratustra se rejubila por conseguir fazer com
que os homens superiores deixassem de se afetar pelo asco: “O nojo retira-se
desses homens superiores; ótimo! É esta a minha vitória”.27 De todo modo,
com o jogo de falta-presença ou falta-retorno do nojo, Zaratustra pode agora
desejar o eterno retorno de todas as coisas sem que tal afeto surja como obje-
ção ao desejo de eternidade, como ocorre na parte III. Por isso, em “O canto
ébrio”, Zaratustra deseja o retorno do sofrimento e não lamenta, enojado, o
retorno da pequenez.
Se as referências ao nojo em Assim falou Zaratustra foram todas elas anali-
sadas e se já foi possível, até agora, compreender em certa medida a relação
do personagem com esse afeto, será produtivo que saiamos do referido livro
para outros textos nietzschianos. Esse movimento metodológico provavel-

20
Como é dito depois, na parte IV, em “A saudação”.
21
Parte IV, “Colóquio com os reis”, §1.
22
Parte IV, “O feiticeiro”, §2.
23
Parte IV, “O mendigo voluntário”.
24
Parte IV, Do homem superior, §3.
25
Parte IV, O canto da melancolia, §2.
26
Parte IV, A sanguessuga.
27
Parte IV, O despertar, §1.

Leituras de Zaratustra 349


mente enriquecerá nossa pesquisa para a elucidação do nojo pelo homem no
Zaratustra e, para isso, levará em conta os conceitos de nobreza e do pathos da
distância.
O conceito de nobreza é objeto especial de análise por parte de Nietzsche
especialmente no período de 1882 a 1888. Ao contrário do que fazia a respei-
to antes de 1882, Nietzsche passa a criar a sua própria definição de nobreza
e do tipo nobre, definição original que acena para uma tipologia psicológi-
ca, donde a palavra “nobre” é pervertida de seu significado político original,
atravessando uma transposição metafórica extremamente criativa. Como en-
tender o que é a distinção? No §55 de A gaia ciência, intitulado “O derradeiro
sentido de nobreza” Nietzsche lança a pergunta: “O que torna ‘nobre’?”. E,
ao tentar respondê-la, escreve: “talvez a consistência no egoísmo seja maior
precisamente nas pessoas nobres”, egoísmo não entendido exatamente como
aos olhos da moral cristã, como vício contrário à compaixão. A propósito,
horrorizar o egoísmo é horrorizar o real, posto que “atos não egoístas são
impossíveis”.28 Egoísmo, portanto, entendido simplesmente como “satisfação
consigo mesmo”.29 Satisfazer-se consigo, isto é, amar a si mesmo. O egoísmo,
“essência de uma alma nobre”,30 é o amor do eu pelo eu. Amor egoico, amor
narcísico, autorreverência fruto da certeza e confiança de si mesmo: “Alguma
certeza fundamental que a alma nobre tem a respeito de si, algo que não se
pode buscar, nem achar, e talvez tampouco perder. A alma nobre tem reverência
por si mesma”. 31Confiante em si, certo de si, o eu nobre é corajoso e desa-
vergonhado. A marca da nobreza “sempre será não temer a si próprio, nada
esperar de vergonhoso de si próprio, não hesitar em voar para onde somos
impelidos”.32 Por esse motivo e pelo fato de “o ser humano feliz [ser] aquele
que ama a si mesmo”33, talvez o nobre seja aquele que conquista a grande feli-
cidade. Ora, o amor egoico do eu fora vislumbrado por Zaratustra em “O pálido
criminoso”, como vimos. Ao contrário do criminoso, que diz ser a vontade de
superar o seu eu o seu nojo pelos homens, Zaratustra parece elogiar o egoísmo
que é recusado pelo catolicismo na inquisição.34 Esse elogio é explícito quando

28
Fragmento Póstumo 26 [224] do verão-outono de 1844.
29
Gaia Ciência, §55.
30
Além do bem e do mal, §265.
31
Ibid., §287.
32
Gaia Ciência, §294.
33
Fragmento Póstumo 25[101] da primavera de 1884)
34
Repito a passagem: “Outrora, eram mal a dúvida e a vontade de afirmar o ser próprio [selbst]. Nesse
tempo, o enfermo tornava-se herege ou feiticeira: como herege ou feiticeira sofria e queria fazer sofrer”
(Assim falou Zaratustra, parte I, “Do pálido criminoso”).

350 Danilo Bilate


ele fala sobre o prazer consigo (Selbst-Lust) em “Dos três males”.
A autorreverência amorosa do nobre tem como consequência o orgulho
de si, mas não a vaidade. Como detalhado no §261 de Além do bem e do mal, a
vaidade é consequência da necessidade de se reconhecer e se firmar pelo amor
recebido do outro. No entanto, o amor egoico nobre se encerra na autossufi-
ciência, na independência do outro para consolidação de sua força. Portanto,
embora não vaidoso, o nobre é orgulhoso, orgulho que Nietzsche também
não caracteriza à maneira da moral cristã. No fragmento póstumo 25(350) da
primavera de 1884, ele diz:

Fala-se de um modo tão idiota sobre o orgulho [Stolze] – e o cristianismo fez


até com que ele fosse percebido como pecaminoso! A questão é: quem exige
de si o grandioso e consegue fazê-lo, este precisa sentir-se muito distante
daqueles que não fazem isso – tal distância é interpretada por esses outros
como ‘alta opinião sobre si mesmo’: mas aquele apenas a conhece como
trabalho contínuo, guerra, vitória de dia e de noite: disso tudo os outros não
sabem nada!

É porque exige de si o grandioso e o conquista, que o nobre, orgulhoso,35


reconhecedor de sua força, se distingue então daqueles que não lhe são pró-
ximos na nobreza: “o ser-nobre, o querer-ser-para-si, o-poder-ser-distinto, o
estar-só e o ter-que-viver-por-si são parte da noção de ‘grandeza’”.36 A distin-
ção é consequência natural do reconhecimento da grandiosidade de si e da
fraqueza do outro. Mas o eu distinto não é necessariamente um eu isolado em
si mesmo. O nobre busca semelhantes de força37 e só se isola completamente
apenas no caso de não os encontrar. A solidão nobre é marcante por sua inten-
sa frequência, mas é apenas circunstancial: “boa companhia, nossa companhia!

35
No fragmento póstumo 25[203] da primavera de 1884, Nietzsche escreve: “Mal-entendido da glória
pensada como motivo dos fazedores criativos!! Vanité é instinto de rebanho; orgulho, [Stolz] assunto
do boi da frente”. Nessas duas passagens (também o 25[350] da primavera de 1884 citado acima)
contemporâneas, Nietzsche parece, uma vez mais, subverter o significante, nesse caso, “orgulho”. No
25[203], que poderia contradizer nossos argumentos, “orgulho” significa o sentimento ressentido do
“boi” que se julga à frente do resto do “rebanho”. Já no 25[350], “orgulho” parece significar algo com-
pletamente diferente, como vimos.
36
Além do bem e do mal, §212.
37
Falo em busca por semelhantes “de força” para que não se confunda com a busca do não nobre pela
semelhança caracterológica, mote do “instinto de rebanho”. De fato, para o nobre, a identificação com
o outro é parcial e seu foco é o amor egoico, mas, justamente esse amor narcísico faz com que o outro
seja sempre um estranho, um não eu. Nesse sentido, a amizade é um paradoxo e a tensão entre solidão
e amizade é uma tensão constante. Como afirma o fragmento 7[103] da primavera-verão de 1883: “O
prazer no seu-igual como um autodesdobramento só é possível quando se tem prazer em si próprio.
Quanto mais é esse o caso, todavia, tanto mais o estranho nos vai contra o gosto: o ódio e o nojo ao
estranho são do mesmo tamanho que o prazer consigo”.

Leituras de Zaratustra 351


Ou solidão, se tiver de ser!.38 Afinal, embora Zaratustra se considere um vento
solitário, é vento que quer soprar no meio dos homens, como vimos na análise
de “Da canalha”.
Em todo caso, como, no vasto universo do outro, a fraqueza da “plebe” – ou-
tra palavra de cunho metafórico apesar da sua origem política – é sempre muito
comum, a distinção é traço sui generis da nobreza. Reconhecendo na maioria
– como faz de certo modo inconscientemente o senso comum com o uso pe-
jorativo das palavras “ordinário”, “vulgar”, etc. – na massa, no gado, na quase
totalidade dos outros, a fraqueza vital, o cansaço, a prostração, a incapacidade
criativa, numa palavra, a “escravidão”, o nobre se enoja: “O sentimento de supe-
rioridade incondicional, o nojo diante da prostração e da escravidão”39 – é o ser-
vilismo que Zaratustra caracterizou em “Dos três males”, como vimos. Enojado,
portanto, o nobre se afasta por uma necessidade de higiene. A “barreira contra
‘os outros’” erigida por “todo espírito e gosto mais nobre”,40 é uma barreira pro-
tetora e asséptica.41 Dada a raridade de homens nobres, a consequência dessa
barreira geralmente acaba sendo a solidão.
A solidão, essa precaução salutar por ser higiênica, é “uma virtude, en-
quanto sublime pendor e ímpeto para o asseio”.42 O eu nobre, senhor de si
como os deuses gregos,43 se preserva higienicamente do outro que lhe é infe-
rior. É nesse sentido que devemos compreender a famosa expressão pathos da
distância [pathos der Distanz], “a vontade de ser si próprio, de destacar-se”.44
A distância é esperteza e astúcia que faz com que o eu forte se preserve forte:
“Eu vivi solitário, tendo me enrolado com cuidado e carinho no manto da
solidão: isso faz parte da minha esperteza. Agora é necessária inclusive muita
astúcia para preservar a si mesmo, para se preservar no alto”.45
A distância é uma recomendação médica, de reeducação fisiológica em
busca da saúde. Por isso, no Ecce homo, Nietzsche diz: “Tomei a mim mesmo
em mãos, curei a mim mesmo [...] Um homem que vingou [...] é um princípio
seletivo, muito deixa de lado. Está sempre em sua companhia”.46 A “doença”

38
Genealogia da moral, III, §14)
39
Fragmento Póstumo 25[435] da primavera de 1884)
40
Gaia Ciência, §381)
41
Ver Além do bem e do mal, §271)
42
Além do bem e do mal, §284)
43
Ver Genealogia da moral, II, §23)
44
Crepúsculo dos ídolos, Incursões de um extemporâneo, §37)
45
Fragmento Póstumo 25[9] da primavera de 1884)
46
Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”, §2. Ver também o §8)

352 Danilo Bilate


de que se busca afastamento é a décadence, a fraqueza irmã do niilismo e de
toda depreciação da vida:

Os doentios são o grande perigo do homem [...] são os mais fracos, os que
mais corroem a vida entre os homens, os que mais perigosamente envene-
nam e questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós [...] [são
eles que tem aquele olhar que] é um suspiro! ‘Quisera ser alguma outra
pessoa’, assim suspira esse olhar: ‘mas não há esperança. Eu sou o que sou:
como me livraria de mim mesmo? E no entanto – estou farto de mim!’... Nes-
se solo de autodesprezo, verdadeiro terreno pantanoso, cresce toda erva
ruim, toda planta venenosa [...] aqui pululam os vermes da vingança e do
rancor [...] oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar,
como anseiam ser carrascos!47

Os mais fracos são aqueles que, ao contrário dos nobres, não amam su-
ficientemente a si mesmos e, por isso, não são senhores de si. Fartos de si,
cansados de si, se auto desprezam48 e desse autodesprezo fazem nascer a vin-
gança, o rancor e o ressentimento. Os carrascos vingativos, rancorosos e res-
sentidos são homens que, por não amarem e confiarem em si mesmos, preci-
sam se medir pelo outro e se fazer valer pela violência ao outro:

Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de


início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não eu” – e este
Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este
necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio
do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo
oposto e exterior, para pode agir em absoluto – sua ação é no fundo reação.
O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce esponta-
neamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda
maior júbilo e gratidão [...] o homem nobre vive com confiança e franqueza
diante de si mesmo [...] Não conseguir levar a sério seus inimigos, suas
desventuras, seus malfeitos inclusive – eis o indício de naturezas fortes e
plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora,
propiciadora do esquecimento.49

A violência ressentida e vingativa imposta ao outro é sintoma da incapaci-


dade do eu doente em se reverenciar e dominar. Como vimos, é esse o sentido
do capítulo “Do passar além” do Zaratustra. A necessidade da distância ou do

47
Genealogia da moral, III, §14.
48
Ver Fragmento Póstumo 25[353] da Primavera de 1884.
49
Genealogia da moral, I, §10.

Leituras de Zaratustra 353


“passar além” do que causa nojo é algo muito diferente do nojo que nasce da
vingança do louco. De fato, incapazes de experimentar o orgulho nobre, os
fracos são seres vaidosos porque dependem da opinião do outro para se legi-
timarem. Ao contrário da indiferença nobre que é inocente e só casualmente
violenta – e violenta por excesso de força afirmativa –, a violência dos fracos
é estúpida e mesquinha. Para que essa doença não contamine a força nobre é
que se faz urgente a distância que mantenha em quarentena os ressentidos:

A vontade dos enfermos de representar uma forma qualquer de superioridade,


seu instinto para vias esquivas que conduzam a uma tirania sobre os sãos [...]
Fora com esse “mundo ao avesso”! Fora com esse debilitamento do sentimen-
to! Que os doentes não tornem os sadios doentes [...] mas isto requer, acima
de tudo, que os sadios permaneçam apartados dos doentes, guardados inclusive
da vista dos doentes, para que não se confundam com os doentes [...] o supe-
rior não deve rebaixar-se a instrumento do inferior, o pathos da distância deve
manter também as tarefas eternamente afastadas! [...] Ar puro, portanto! Ar
puro! E afastamento de todos os hospícios e hospitais da cultura! E portanto
boa companhia, nossa companhia! Ou solidão, se tiver de ser! Mas afastamento
dos maus odores da degradação interna e da oculta carcoma da doença!...50

Por esse motivo é que, no campo da política, Nietzsche tece raivosos co-
mentários contra o princípio de igualdade da democracia e do socialismo pré-
-marxista. Por isso o elogio a figuras como a de Napoleão ou regimes político-
-culturais como o hindu definido pelo Código de Manu, contrastados com a
crítica feroz à Revolução Francesa e a Rousseau51. Nietzsche percebe a neces-
sidade de se pensar em um sistema político que reconheça a desigualdade
fundamental entre os homens e, por conseguinte, a importância do estabeleci-
mento da hierarquia, sustentada pelo pathos da distância: “Hoje ninguém mais
tem coragem para direitos especiais, para direitos do senhor, para um pathos da
distância... Nossa política está doente dessa falta de coragem!”52.
Não apenas a política, mas toda a cultura moderna é alvo constante das
críticas nietzscheanas. A ideia mesma de que os homens são iguais e merecem
direitos e exigências iguais é parte da lógica de “degeneração e diminuição
do homem, até tornar-se o perfeito animal de rebanho [...] essa animalização
do homem em bicho-anão”. Ao se reconhecer esse percurso decadente, expe-
rimentamos um novo tipo de nojo, o nojo pelos homens: “Quem já refletiu

50
Ibid.
51
Ver Crepúsculo dos ídolos, “Incursões de um extemporâneo”, §48.
52
O anticristo, §43.

354 Danilo Bilate


nessa possibilidade até o fim, conhece um nojo a mais que os outros homens
– e também, talvez, uma nova tarefa!”.53 Mas esse nojo acompanha o reconhe-
cimento de uma tarefa. De que tarefa se trata aqui? Voltaremos a esse ponto
adiante. Antes, vamos tentar entender com clareza o que é esse nojo pelos
homens, “pois nós sofremos do homem, não há dúvida”:54

E, para que não reste dúvida quanto ao que desprezo, a quem desprezo: é
o homem de hoje, o homem do qual sou fatalmente contemporâneo. O ho-
mem de hoje – eu sufoco com a sua respiração impura... Em relação ao passa-
do, eu sou, como todo homem do conhecimento, de uma grande tolerância,
isto é, magnânimo autocontrole: com sombria cautela eu atravesso o mundo-
-hospício de milênios inteiros, chame-se de “cristianismo”, “fé cristã”, “Igre-
ja cristã” – evito responsabilizar a humanidade por suas doenças mentais.
Mas meu sentimento se altera, rompe-se, tão logo entro na época moderna,
na nossa época. Nossa época sabe... O que antes era apenas doente agora é
indecente – é indecente ser cristão hoje em dia. E aqui começa o meu nojo.55

O desprezo de Nietzsche é pelo tipo de homem resultante da tradição mi-


lenar metafísico-cristã. É pela moral que prega a compaixão, a igualação e
nivelação dos homens, o rebaixamento das forças criativas mais exuberantes,
o horror à Terra e ao corpo, que prega a mentira da existência de ultra-mundos
e o ódio ao vir-a-ser. Os valores do nobre são o oposto dos valores cristãos:
“Valores cristãos – valores nobres: somente nós, espíritos tornados livres, resta-
belecemos esse contraste de valores, o maior que existe!”.56
Esse sofrimento e esse desprezo, nojo ou asco, é pelo tipo de homem fra-
co, a canaille, a plebe, o vulgar, o comum, o rebanho: “O nojo do homem, da
‘gentalha’”.57 E – o que é enigmático – tal nojo é um perigo, o maior: “O nojo
do homem é meu maior perigo”.58 Tal sentimento é perigoso, por um lado,
porque é “mais negro que a mais negra melancolia”,59 porque entristece, en-
fraquece e desanima mesmo a força exuberante do nobre – daí a necessidade
.alutar da distância; por outro lado, porque, assim como a compaixão, o gran-
de nojo ao homem abre as portas para o niilismo:

53
Além do bem e do mal, §203.
54
Genealogia da moral, I, §11.
55
O anticristo, §38.
56
Ibid., §37.
57
Ecce Homo, Por que sou tão sábio, §8.
58
Ibid., §6.
59
O anticristo, §38.

Leituras de Zaratustra 355


O que é de temer, o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não é
o grande temor, mas o grande nojo ao homem; e também a grande compaixão
pelo homem. Supondo que esses dois um dia se casassem, inevitavelmente
algo de monstruoso viria ao mundo, a “última vontade” do homem, sua
vontade do nada, o niilismo.60

Torna-se necessário, portanto, superar esse grande nojo para que se sus-
tente o amor a um ideal de homem, a um tipo de homem por vir e para que
se evite, assim, a resignação passiva e inerte com a plebe, com a morosidade
escrava, com a vulgaridade do presente. A tarefa a que o §203 de Além do
bem e do mal se referia só pode ser compreendida, portanto, como a tarefa de
guiar o futuro da humanidade, de criar novos valores e de fazer surgir o além-
-do-homem [Übermensch]. Por esse motivo, Zaratustra, “o mais solitário dos
solitários”,61 disse:

Em verdade , um rio imundo, é o homem. E é realmente preciso ser um


mar, para absorver, sem sujar-se, um rio imundo.
Vede, eu vos ensino o super-homem [além-do-homem, Übermensch]: é ele o
mar onde pode submergir o vosso grande desprezo.62

Todavia, apesar de o nojo precisar ser superado, a constatação do estágio


da cultura do presente e o conhecimento das nuances da plebe é condição
mesma para o surgimento do além-do-homem: “Superai, meus irmãos, esses
senhores de hoje – esses pequenos homens: eles são o maior perigo do super-
-homem!”.63
É preciso viver o grande nojo para depois enfrentá-lo. O nobre pode viver
esse sentimento decadente porque ama o elevado, o superior e a exuberância
da força, e, mesmo se distanciando da plebe, necessariamente a reconhece
– sem o que a própria tomada de distância não se daria. Com esse reconhe-
cimento, duas vias se abrem: pode-se cair no niilismo, na resignação cansada
e inerte, ou pode-se lutar pela superação do grande nojo, por meio da busca
pelo além-do-homem. Essa superação, no entanto, não parece ser fácil de dar-
-se definitivamente. Se Zaratustra modifica constantemente sua relação com
o grande nojo, o próprio Nietzsche deu mostras da recorrência desse senti-
mento em escritos posteriores ao do “vencedor da grande náusea”. No “Canto

60
Genealogia da moral, III, §14.
61
Assim falou Zaratustra, “O canto do túmulo”.
62
Assim falou Zaratustra, I, O prólogo de Zaratustra, §3.
63
Assim falou Zaratustra, IV, Do homem superior, §3.

356 Danilo Bilate


ébrio”, Zaratustra concebe o eterno retorno sem qualquer objeção, por desejar
a volta de tudo, inclusive da pequenez e do sofrimento. Mas o nojo reinci-
dente mesmo na quarta parte de Assim falou Zaratustra não é uma contradição
ao amor fati? De fato, Zaratustra conquista a maturidade do pensamento do
eterno retorno ao desejar o retorno de tudo, inclusive o retorno da “mixórdia
plebeia”. Entretanto, a reação afetiva de asco ainda existe, apesar desse desejo.
Na condição de afeto, o nojo reincidente é contraditório com o afeto do amor.
Sobre esse problema, Nietzsche escreveu: “‘O mundo é perfeito’ – assim fala o
instinto dos mais espirituais, o instinto que diz Sim: ‘a imperfeição, tudo o
que se acha abaixo de nós, a distância, o pathos da distância, o próprio chandala
é parte dessa perfeição’”.64 E, num fragmento póstumo, Nietzsche escreve:
“Para me manter tenho os meus protetores instintos de desprezo, nojo, in-
diferença etc. – eles me levam à solidão: mas na solidão, onde sinto tudo como
necessariamente correlacionado, cada ente me é divino”.65 Assim, Nietzsche sente
tudo lhe parecer divino e digno de amor, inclusive a imperfeição e a pequenez,
porque as compreende como parte da perfeição que é a totalidade do real, em
que tudo está correlacionado. O amor fati, portanto, se faz possível mesmo
para quem se sente enojado pelo mundo. Como diz Zaratustra, como vimos:
“Há muita lama no mundo – até aí, é verdade. Mas nem por isso o mundo é
um monstro que chafurda na lama!”.66

Referências Bibliográficas

MARTINS, André. A experiência trágica na quarta parte de Assim falou Zaratustra. Ar-
tigo que faz parte deste mesmo livro.
NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kristische Studienausgabe in 15 Bänden, Hrg.
von Giorgio Colli und Mazzino Montinari, Munchen, Berlin und New York: Deuts-
cher Taschenbuch Verlag und Walter de Gruyter, 1980.
_____. Fragmentos do espólio: primavera de 1884 a outono de 1885. Seleção e trad.
de Flávio R. Kothe. Brasília, Ed. UnB, 2008.
______. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. de Mário
da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006a.

64
O anticristo, §57.
65
Fragmento Póstumo 26[117] do verão-outono de 1884.
66
“Do espírito de gravidade”, parte III, §2.

Leituras de Zaratustra 357


______. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
______. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
______. Crepúsculo dos ídolos: ou como se filosofa com o martelo. Trad. de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006b.
______. O anticristo: maldição ao cristianismo. Trad. de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
______. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. de Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Parte VI

Conhecimento e linguagem
Das metamorfoses da interpretação

Maria Cristina Franco Ferraz

Quem ensina Filosofia hoje, oferece ao outro


alimentos, não porque estes lhe aprazem, mas para mudar seu gosto
Ludwig Wittgenstein, 1931

A aproximação do texto de Assim falou Zaratustra solicita reflexões prévias


acerca do próprio gesto de leitura. De maneira coerente e oportuna, pode-se
buscar apoio na visão nietzschiana acerca da arte da interpretação, vinculada a
uma ampla rede de temas e questões que sua filosofia desdobra. Entretanto, a
passagem da teorização ao ato mesmo do intérprete permanece, ainda assim,
arriscada, mais se assemelhando a um lance de trapezista sem escada de aces-
so ou rede de anteparo. Daí toda a graça de seu desafio.
De modo sintético, a arte da leitura e da interpretação, destacada por Niet-
zsche ao final do prólogo à Genealogia da moral, para ser entendida e absorvida,
requer a ultrapassagem da velha partilha corpo/espírito que, mesmo em tem-
pos de redução notável desse segundo termo, cabe ser mais claramente expli-
citada. Ler implica o espírito, mas tal espírito nada mais é do que um estô-
mago.1 E um estômago, por assim dizer, desumanizado, apto a funcionar de
modo especialmente singular, tal como o de um ruminante. Trata-se de passar
e repassar o lido pelos meandros de vários estômagos, o que vale dizer, pela
prova da profundidade do corpo, ela mesma entendida como pele e interface
porosas por onde transitam todo o vivido e as forças do mundo.
Introduz-se, de imediato, um elemento altamente complicador. Pois se ler
é um embate entre corpos – o corpo do texto e os eventuais estômagos de um
ruminante leitor –, como avaliar as leituras produzidas nessa tensão? Com
efeito, toda leitura fará o texto entrar em novos e por vezes inesperados movi-
mentos. Mas haverá leituras que, em constante tensão com a radical alteridade

1
A esse respeito, cf. Nove variações sobre temas nietzschianos (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002),
capítulos 1 e 4, bem como o capítulo 6 de Homo deletabilis (Rio de Janeiro: Garamond/Faperj, 2010).

Leituras de Zaratustra 361


que é o corpo textual, mantendo uma aproximação e, ao mesmo tempo, uma
distância salutar com relação a seu objeto, saberão dele extrair forças que
também lá se encontram.
Como se vê, no lugar de surrados critérios, tais como o “acerto” ou “equí-
voco” de certas leituras, emergem outros modos e termos para se avaliar, tan-
to pautados na estimação do interesse das interpretações oferecidas (critério
mais pragmático) quanto na avaliação da potência de certas leituras para pene-
trar e relançar forças e sentidos efetivamente presentes no texto (critério tanto
mais rico quanto mais sutil).
Tais reflexões sugerem a superação de falsas questões relativas à leitura e à
interpretação. De saída, descarta o mito da leitura última, final e definitiva, o
que nem sempre facilita a vida de professores e comentadores que, com ímpe-
tos dogmatizantes (que a própria docência, em suas repetições, parece a todo
instante sugerir), venham a cair na cilada da cristalização de um “verdadeiro”
Nietzsche ou de um Zaratustra definitivo. Pela mesma razão, alegra aqueles
que ouvem nessa esquiva à dogmatização o mais franco e claro riso de ouro
dos deuses, esse riso cristalino que, percorrendo o pensamento do filósofo,
contamina, com sua leveza criadora, o próprio intérprete.
A abertura a leituras virtualmente infinitas tampouco funciona, entretan-
to, como porta de entrada franqueada a qualquer interpretação. Ela não impli-
ca que todas as interpretações sejam equivalentes ou tenham o mesmo valor:
destituído o lugar de uma verdade última e final, restam jogos e véus da apa-
rência que a delicadeza e a agudeza do intérprete irão necessariamente realçar
ou colocar à sombra, reativando a vitalidade do próprio texto.
Em suma: nem uma única leitura possível, nem qualquer uma delas. Talvez
aí se insinue um dos sentidos da afirmação nietzschiana de que Zaratustra é
um livro “para todos e para ninguém”. Para todos, certamente, pois nunca
se poderá prever ou controlar as mãos em que irá cair, dando-se, no risco do
aberto, a todas as apropriações passadas, presentes e por vir. Para ninguém,
por várias razões. De saída, por se dirigir ao ruminante, e não às incomensurá-
veis e vorazes orelhas dos homens modernos, que, em sua pressa transpirante,
em seu movimento frenético, nada conseguem filtrar em seus labirintos cada
vez mais obstruídos pela estridência obscena do regime da informação. Para
ninguém talvez igualmente por interpelarem corpos e forças sem nome ou
identidade, que nos percorrem, constituem e atravessam, forças a que o gesto
mesmo da leitura passa a dar voz.
Tendo avançado até aqui, algo anteriormente sugerido permanece ainda
não de todo esclarecido: se afirmamos que haverá leituras mais capazes de se

362 Maria Cristina Franco Ferraz


aproximar efetivamente do texto, restaria apontar a partir de que perspectivas
se faria tal aferição. Ater-se a essa questão equivaleria, entretanto, a um recuo
imobilizante, detendo ou inviabilizando o movimento da leitura, colocando-o,
desde o início, em uma posição defensiva e reativa. Talvez um caminho mais
fértil possa ser experimentado ao longo da própria leitura do texto: eis meu
intento neste breve ensaio.
A estratégia adotada corresponderia a ler o texto entrevendo e salientando,
simultaneamente, certos recursos utilizados por Nietzsche para orientar – e
desorientar – seu leitor. Dito de outro modo: tecendo sentidos a partir da
leitura, podemos, no mesmo movimento, procurar apanhar e ressaltar certas
táticas textuais postas em prática, todas elas como que orquestrando os per-
cursos de uma leitura atenta. Com isso, não se chegaria a uma interpretação
“melhor” ou “definitiva”. O ganho se dá de outro modo, salientando, além dos
resultados dessa digestão ruminada, certos horizontes de leitura que o texto
parece convocar ou que tende a esquivar.
Proponho então, nesse duplo interesse, a retomada2 de uma breve leitura
interpretativa do primeiro discurso de Assim falou Zaratustra I, “Das três meta-
morfoses”, discurso colocado na abertura do livro logo após o prólogo.3 Essa
posição especial oferece algumas vantagens, funcionando, também pelo cará-
ter enxuto e breve desse texto, como porta de entrada para o leitor, e, nesse
sentido, envolvendo certa pedagogia implícita de leitura. Discursos implicam
pedagogias, relativas à sua legibilidade, neste caso ainda mais complexificada
em função do rico e inevitável diálogo com uma vasta tradição discursiva, das
Sagradas Escrituras a diversos escritos de orientação moralizante.
O estilo parabólico, o regime alegórico adotado, em geral, tanto nesse quan-
to nos demais discursos de Zaratustra, solicitando um olhar interpretativo de
certo modo dirigido, apresenta-se no primeiro discurso de modo lapidar. O pró-
prio título e tema do texto já orientam a leitura, ativando de saída um movimen-
to em direção à tentativa de decifração das “três metamorfoses” enunciadas.
Três transmutações do espírito são desde logo enumeradas: tornar-se camelo,
transformado, em seguida, em leão para, finalmente, devir criança.
Evidentemente, essas três figuras se encontram, de modo inevitável, satu-
radas de sentidos previamente inscritos na cultura e na língua, mas, atentan-
do-se para sua exploração nesse discurso, poderá se observar que essas per-

2
Remeto, aqui, ao segundo capítulo de Nove variações sobre temas nietzschianos, livro já mencio-
nado.
3
Todas as citações e referências ao texto estarão remetidas à obra completa, em minha tradução: Also
sprach Zarathustra, in Sämtliche Werke, op. cit., volume 1, p. 29-31.

Leituras de Zaratustra 363


sonagens em metamorfose adquirem sentidos bem precisos, não necessária
ou totalmente superponíveis aos que, em outros agenciamentos, podem vir a
evocar. Além disso, serão sutilmente postos em variação.
No mesmo momento em que apela para um amplo repertório e para a
memória cultural do eventual leitor, o recurso à simbolização – que, em ge-
ral, promete chaves interpretativas finais asseguradoras e, no mais das vezes,
aplanadoras –, uma vez posto em funcionamento, irá escapando de fixações
empedradas, convidando o leitor à aventura de penetrar em terceiras margens
de sentidos. Eis um primeiro nível da pedagogia atuante no texto, tanto mais
surpreendente quanto mais remetida à promessa de transparência que sim-
bolizações sugerem, como pastores, guias seguros aptos a desvelarem ensina-
mentos e elucidações finais.
Entretanto, na medida em que essa tríade de figuras (camelo, leão, crian-
ça) por si só evoca sentidos prévios, o risco maior desse tipo de discurso será
sempre o de suscitar interpretações apressadas, que acabem por prescindir, no
final das contas, do próprio corpo-a-corpo com o texto. Vejamos, agora, para
que sentidos essas metamorfoses nietzschianas apontam, detendo-nos com
uma lentidão mais ruminante no próprio texto, ressaltando no mesmo passo
os riscos e estratégias inerentes a esse tipo de discurso.
O que caracteriza o tornar-se camelo do espírito é sintetizado no segundo
parágrafo: é sua força que deseja o que é pesado, o que é mais pesado. Não se
trata, aqui, de um mero elogio do desejo de carregar o que é pesado, no senti-
do, bastante cristão, do sacrifício, do martírio ou da penitência. Se o camelo,
animal de carga, busca “o mais pesado”, é exatamente para avaliar suas forças,
para experimentar sua potência, o que na perspectiva nietzschiana só pode se
dar no próprio efetuar-se das forças.
Conforme Nietzsche salienta, não haveria um “ser forte” previamente
dado, anterior à sua manifestação. A força nunca se separa de sua efetuação:
é o que se encontra claramente expresso tanto no parágrafo 13 da primeira
dissertação da Genealogia quanto na bem conhecida interpretação operada por
Deleuze.4 Pelo que o texto claramente indica, essa primeira metamorfose que
é o camelo não busca fardos para se purificar ou para cumprir penitência.

4
Cf., a esse respeito, o parágrafo 13 da primeira dissertação da Genealogia da moral, no qual Niet-
zsche mostra de que maneira a condição de possibilidade dos valores morais reside, inicialmente, no
gesto nada inocente de se separar a força de sua manifestação. Cf., igualmente, a leitura desse texto re-
alizada por Deleuze, in Nietzsche et la philosophie (Paris: PUF, 1962), p. 140-142, e meu ensaio “A Ge-
nealogia e suas vozes: o cordeiro e a ave de rapina”. In PASCHOAL, Antonio Edmilson; FREZZATTI
Jr, Wilson Antonio (org.). 120 Anos de Para a genealogia da moral, (Ijuí: UNIJUÍ, 2008), p. 147-157.

364 Maria Cristina Franco Ferraz


Procura as mais pesadas cargas para pôr à prova sua força e, assim, exercê-la e
afirmá-la. Trata-se, nesse sentido, de uma prova de força que se confunde com
uma prova para a força.
Entretanto, o gesto do camelo – ajoelhar-se para que coloquem cargas em
seu lombo – apresenta uma cilada para o leitor, na medida em que se aproxima
perigosamente da genuflexão cristã, da mera submissão a valores consagrados
pela tradição. A compreensão da diferença entre a submissão cristã e o sentido
não cristão dessa prova da força, identificada a uma primeira metamorfose,
força o leitor a abandonar sentidos já consagrados, força-o a retirar da religião
cristã, em última instância, o monopólio do ajoelhar-se. Primeiro aprendi-
zado, já uma primeira possível transmutação: o leitor atento é convidado a
afastar-se de seus pressupostos, daqueles mais sedimentados em sua cultura,
em direção a um horizonte no qual gestos e sentidos são arrastados para um
movimento de variação.
Essa suspeita é logo a seguir confirmada pela pergunta que o camelo dirige
aos “heróis”, explorando, como em toda essa passagem, a dupla nuance da
palavra alemã schwer (pesado/difícil): que pesados fardos poderiam ser colo-
cados em suas costas para que ele possa “alegrar-se com sua força”? Lido ru-
minantemente, o texto não deixa dúvidas: o camelo que quer carregar o mais
pesado/difícil dos fardos não se assemelha a uma figura da submissão, ele
não se ajoelha para reverenciar velhos ídolos e valores. Emerge, antes, como
expressão e manifestação da força à procura das mais duras provas para seu
alegre exercício e para sua potencialização.
A partir daí, desfiam-se no texto uma série de perguntas que sugerem as
mais pesadas cargas, propostas heroicamente cruéis, como, por exemplo, as
de “rebaixar-se, humilhar-se para ferir o próprio orgulho”, a de “deixar luzir
sua loucura para escarnecer de sua sabedoria”, ou ainda as de “amar aque-
les que nos desprezam” e de “segurar a mão do fantasma quando ele quer
nos amedrontar”. Em linhas gerais, a crueldade heroica de cada uma dessas
cargas, sugeridas de forma interrogativa, elimina, em definitivo, a contami-
nação de qualquer tom de resignação, de humildade, subserviência ou auto-
flagelação. Remetem, antes, a certo heroísmo trágico, bem caracterizado por
Nietzsche, por exemplo, no final do aforismo 24 da seção “Incursões de um
extemporâneo”, do livro Crepúsculo dos ídolos:

A audácia e a liberdade do sentimento perante um poderoso inimigo, diante


de uma adversidade sublime, face a um problema que suscita horror – esse
estado vitorioso é que o artista trágico escolhe, que ele glorifica. Perante a
tragédia, o elemento guerreiro de nossa alma celebra suas saturnais; quem

Leituras de Zaratustra 365


está habituado ao sofrimento, quem busca o sofrimento, o homem heroico,
que exalta com a tragédia a sua existência – somente ele está credenciado
para receber do artista trágico a taça da mais doce crueldade.

O sofrimento é retirado de suas inflexões passivas, reativas, adentrando


o reino da festa, das saturnais da força em plena efetuação. É neste pathos
surpreendente que o camelo se dirige para a paisagem que lhe é própria: o
deserto. Como salienta o texto, não se trata de qualquer deserto, mas do “seu
deserto”, ligeira variação que, por si só, curto-circuita a leitura apressada e
repetidora, convidando o leitor a se ater ao novo símbolo que emerge no texto.
Nessa passagem, o deserto vincula-se de modo explícito à escassez, à aridez e,
sobretudo, à solidão e ao isolamento.
Essas características são sugeridas por algumas das cargas mencionadas
sob a forma de perguntas. A título de exemplo, eis mais algumas: “por amor
à verdade, sofrer fome na alma”; “estar doente e mandar embora os consola-
dores”; “fazer amizade com surdos, que nunca ouvem o que queres”. Sem nos
determos na interpretação isolada de cada um dos pesados fardos evocados
– que de resto ecoam em diversas outras passagens de Nietzsche –, podemos
afirmar que o que os caracteriza é, por um lado, o abandono das necessidades
humanas mais usuais e, por outro, e em diferentes sentidos, a privação: de
alimentos aptos a matar uma espécie singular de fome e de efetivos compa-
nheiros de travessia. É tal deserto que deve ser conquistado pelo camelo, em
sua mais resistente solidão. É por isso que se trata de “seu deserto”, do “mais
solitário deserto”.
Nessa paisagem procurada e criada por um espírito que manifesta e poten-
cializa sua força, sua resistência aos mais áridos desertos, efetua-se uma se-
gunda metamorfose. O camelo transmuta-se em leão, movido, desde sua pri-
meira emergência no texto, por uma premente necessidade: “liberdade quer
ele conquistar para si e ser senhor em seu próprio deserto”. O tornar-se leão
é uma metamorfose do camelo, uma segunda mutação, que supõe e implica
a primeira (o tornar-se camelo). Esses animais não se opõem de um modo
simplista, como pode parecer à primeira vista, por se tratar por um lado de
um animal de carga que “renuncia e é respeitoso” e, por outro, de um animal
feroz, de rapina, que se aferra ao querer “ser senhor”.
O que aqui está em jogo é que o camelo não é “algo em si”, não detém,
como em geral o fazem os símbolos, uma estabilidade e univocidade de senti-
do. Diante da necessidade de uma segunda transmutação (também solicitada
ao leitor) é que emergirão seus limites. Nesse ponto, o leitor ruminante per-
cebe o sutil jogo do texto: o convite a não estabilizar ou empedrar sentidos, a

366 Maria Cristina Franco Ferraz


não deter o que não cessa de se metamorfosear. Assim, o texto o move a não
rebater os limites agora salientados sobre a primeira transmutação do espírito
assinalada – tornar-se camelo. Nesse jogo, não emerge do texto “um” camelo,
como um símbolo fixo e oco, mas duas variações no processo de transmutação – e
de leitura.
Essa esquiva ao congelamento simplificador do sentido é ainda reforçada
por outro elemento do texto: apesar de se enfatizarem no camelo e no leão
características e movimentos diferentes, entre esses dois animais habitantes
do deserto há total cumplicidade. Isso é ressaltado pelo próprio espaço alcan-
çado pelo leão: identicamente, “seu próprio deserto”. Se na passagem dedi-
cada ao camelo se destaca, com diversas modulações, o refrão do “peso”, da
“dificuldade”, a que se associam “força” e “alegria”, esse segundo momento
de transformação é escandido pelo verbo alemão que exprime vontade: “wil-
len”. Expressivamente, uma vontade leonina também se manifestará no modo
como o sentido passa a se organizar no texto.
Para conquistar sua liberdade, o leão quer enfrentar seu “derradeiro se-
nhor”, seu último deus, personificado na figura de um “grande dragão”. O
texto se reveste de certa transparência, totalmente pertinente ao gesto cer-
teiro, efetivamente leonino da vontade. O embate é claro e a leitura, menos
problemática para aquele que dispõe de certas chaves filosóficas. Confrontam-
-se dois breves enunciados, que exprimem de modo sucinto as personagens
conceituais5 em questão: ao “Tu-deves” (Du-sollst) que nomeia o dragão,
contrapõe-se um leonino “eu quero” (Ich will). As personagens ganham aqui
nomes e firme estabilidade.
A decifração do dragão remete à violência implicada no verbo auxiliar “sol-
len”, na língua e na cultura alemãs fortemente vinculado à ideia de um dever
a que se tem de submeter. Essas duas flexões e modos verbais contrapostos
(Du sollst e Ich will) funcionam como uma segura e reiterada chave interpreta-
tiva: a do combate encetado pela afirmação da vontade contra toda imposição
dos valores previamente criados. Na língua alemã, na voz de comando que se
expressa pelo “du sollst” ressoa uma rica multiplicidade de conotações encra-
vadas no corpo: tanto os mandamentos divinos quanto a lógica implacável da
lei e do dever. É tal dragão que atravessa o caminho do leão, impedindo-o de
tornar-se senhor em seu próprio deserto.

5
Sirvo-me aqui da noção de “personagem conceitual”, proposta e desenvolvida por G. Deleuze e F.
Guattari em O que é a filosofia? (São Paulo: Editora 34, 1992), conceito operatório bastante pertinente
em se tratando de Nietzsche, cujo pensamento muitas vezes se formula e modula polifonicamente, por
meio de vozes de personagens audíveis nos textos.

Leituras de Zaratustra 367


Entre o leão e o dragão há ainda outra diferença relevante, já bastante
enfatizada em leituras atentas: à diferença do leão, o dragão é um animal ima-
ginário, fabuloso, assim como inventados foram todos os “tu deves” jamais
havidos. Todos os deveres e leis retiram sua autoridade e sua respeitabilidade
da pomposa aura de sacralidade conferida pelo peso da tradição, ocultando
justamente os “eu-quero” que os geraram. Eis como é descrito o fabuloso
animal: “cintilante de ouro, um animal de escamas, e em cada escama brilha,
dourado, ‘Tu deves!’”.
Esse símbolo se proclama de modo óbvio e estridente. É composto de
modo a diferir do aspecto mais nuançado, complexo e deslizante das figuras
em transmutação. O próprio texto se encarrega de decifrar suas reluzentes (e
inequívocas) escamas: “Valores milenares brilham nessas escamas, e assim
fala o mais poderoso de todos os dragões: ‘todo valor das coisas – todo ele bri-
lha em mim’”. Observe-se que o dragão merece essa roupagem emblemática,
essa configuração esquemática. Seu aspecto monstruoso e assustador já emer-
ge, portanto, atenuado, posto que decifrado. Assim é que o esquematismo
dessa personagem já é promessa e prenúncio de sua derrocada final.
Como o dragão é evidente, para o combater o leão termina por revestir-
-se de uma transparência equivalente. Mas, em seu favor, resta ainda algo a
enfatizar: não é o leão que busca tal enfrentamento. É o dragão que intercepta
o desejo do leão: tornar-se senhor de seu próprio deserto. O leão tem de lutar
contra o dragão apenas porque este se interpõe em seu caminho. Eis como fala
ainda, de modo inequívoco, esse animal fabuloso: “Todo valor já foi criado, e
todo valor criado, é isso que sou. Em verdade, não deve [es soll] haver mais
nenhum ‘Eu quero’!”. Tendo porém de travar tal combate, o leão inevitavel-
mente se contamina com ele, até mesmo como personagem a que se cola a
fixação de um nome.
O último e mais poderoso imperativo e mandamento do dragão se ex-
pressa como uma interdição. O que ele explicitamente proíbe é a criação de
(novos) valores, arvorando-se como toda valoração passível de ter sido criada.
O dragão não pode prescindir nem da crença na legitimidade definitiva e uni-
versal dos valores que resplandecem em suas escamas nem, por conseguinte,
da interdição de novas produções de valores. Enquanto sua palavra de ordem,
que implica negação e ameaça, dirige-se peremptória ao outro (Du sollst!), a
voz do leão parte da afirmação de si (Ich will) como imperiosa vontade de liber-
tar-se do jugo e da sedutora cintilação dos valores já forjados, preparando-se
para a invenção de novos valores. Daí porque o ich will do leão é identificado,
no texto, a um “sagrado Não, mesmo perante o dever”.

368 Maria Cristina Franco Ferraz


Há portanto uma distância incomensurável entre a negatividade inerente
ao personagem imaginário do dragão – negatividade fundamental, originária
(na medida em que, embora sabendo que os valores foram criados, suprime
tal fato e nega a vontade criadora que nele também atuou) – e o “não” do
vigoroso animal, necessário para destruir o dragão de todos os “tu deves” e
afirmar-se como vontade criadora. Como o texto esclarece, só a força do leão
pode libertar o espírito respeitoso, o camelo de carga, de tudo o que ele um
dia amara e tomara por sagrado: o próprio dever, mesmo que desviado para
caminhos estranhamente heroicos.
Lembremos ainda uma vez: quando o tornar-se camelo foi evocado no iní-
cio do texto, o que estava em jogo não era seu aspecto respeitoso, mas o
processo de afirmação e potencialização da força, condição de possibilidade
da conquista de um deserto próprio no qual poderá se transformar em leão
e enfrentar o dragão. O leitor é então levado a variar a perspectiva acerca do
camelo, sem projetar tal sombra para trás no texto, o que o força a abandonar
qualquer fechamento ou congelamento do sentido, mesmo se tratando de um
discurso de orientação simbólica.
Para ultrapassar o sagrado amor pelo dever, até então preservado no heroi-
co animal de carga, será preciso que o “não” propriamente leonino, prelúdio
de um sagrado “sim”, também se revista de certa sacralidade. É de fato neces-
sário exercer o vigor do leão para enfrentar o dragão, que o espírito de carga,
ocupado sobretudo em testar e aumentar sua força, ainda não encontrara em
seu deserto. Como o texto exprime o aspecto titânico da vontade – mesmo de
uma vontade libertária e audaciosa –, permanece, nesse ponto, mais próximo
do estabelecimento de cristalizações de sentido.
Por isso mesmo, será necessária uma terceira metamorfose, que arrastará
o texto, por fim, para paragens mais leves e em direção a um movimento de
pura deriva. Pois, tendo de erguer um combate, também discursivo, contra um
terrível inimigo, o leão simbólico não pode realizar a tarefa a que seu desejo
o impele: a criação de novos valores e de outras forças discursivas. Para isso,
seria então necessário passar por uma terceira transmutação do espírito, que,
abandonando a rude pele do leão, por não mais precisar lutar contra todos os
“tu deves” nele também inscritos, se tornará, por fim, criança.
Ainda uma vez, e de modo mais direto, o texto explicita claramente o sen-
tido e função desse novo personagem conceitual, condensados em uma só
frase: “Inocência é a criança e esquecimento, um começar de novo, um jogo,
uma roda que gira por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-
-sim.” Acentua-se, na curtíssima passagem dedicada ao tornar-se criança, a

Leituras de Zaratustra 369


palavra “sim”. O trecho já contém de modo explícito sua própria decifração,
uma decifração em aberto, mais sugestiva, que tende a escapar de qualquer
fechamento simbolizante.
Cabe de início enfatizar que aqui não se refere, evidentemente, à qualquer
infância empírica: não se começa criança; tornar-se criança supõe pelo menos
duas metamorfoses anteriores e não corresponde a uma transformação fácil
ou evidente. Não se trata, portanto, de um banal “retorno à infância”. O que
da criança se ressalta é a inocência, uma inocência transvalorada na própria
utilização do termo alemão Unschuld (“não-culpa”), em que o peso da nega-
tividade se transmuta no sentido do que se mantém alheio, aquém ou além
de toda culpabilização. O devir criança remete a uma leveza que não pode ser
capturada por qualquer “tu deves”, à serenidade alegre de quem já conquis-
tou liberdade e não precisa mais lutar. Remete ainda à capacidade ativa do
esquecimento, associada à boa digestão, ao novo começo, e considerada por
Nietzsche como condição de possibilidade de toda felicidade, saúde e presen-
te.6 Tornar-se criança é ser capaz de brincar, de jogar, em um movimento
autônomo, autorregulado, que prescinde de leis e de supostas finalidades im-
pingidas de fora.
Nesse sentido, a criança deste texto remete a uma outra, vinculada ao ar-
tista, que aparece no texto publicado postumamente A filosofia na época trágica
dos gregos. Trata-se do parágrafo 7, na passagem em que Nietzsche, interpre-
tando Heráclito, se refere à concepção do mundo como um eterno e inocente
jogo do fogo, do Aion, consigo mesmo:

Um tornar-se e perecer, um construir e destruir, sem qualquer imputa-


ção moral, com uma inocência eternamente intacta, possui, nesse mundo,
somente o jogo do artista e da criança. E então, assim como a criança e o
artista brincam, o fogo eternamente vivo brinca, constrói e destrói, inocen-
temente – e tal jogo o Aion joga consigo mesmo.7

Para Nietzsche, não se “retorna” à infância. A infância confunde-se com


o eterno retornar, em toda a sua inocência e afirmação. Como também no
trecho citado, a criança é associada à inocência do devir, que não necessita de
motores externos – deuses ou leis –, que não se move por falta, insuficiência
ou penúria, mas por efeito da plena positividade de um desejo criador, que
se manifesta em um incessante jogo de construção e destruição. O construir

6
Cf., a esse respeito, o parágrafo inicial da segunda dissertação da Genealogia.
7
Cf. Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen, in Nietzsche, op. cit., vol. 1, p. 830, minha
tradução.

370 Maria Cristina Franco Ferraz


inocenta-se de qualquer finalidade e o destruir, de interpretações negativas,
pessimistas, culpabilizadoras. Como o texto explicita, o jogo da criação corres-
ponde a um sagrado “dizer-sim” (Ja-sagen) e à conquista do “mundo próprio”
(seine Welt) por aquele que perdera o mundo a ele apresentado e nele se per-
dera (o Weltverlorene).
Realizadas essas associações já amplamente conhecidas, resta salientar o
golpe de mestre desse desfecho. Sua verdadeira pedagogia não parece residir
sobretudo no que podemos “decodificar”, com maior ou menor pertinência,
ou “explicar”. Como pura afirmação criadora de mundos, a criança é significa-
tivamente a personagem menos complexa do texto, levando nossa ruminação
apenas a reproduzi-la, acentuando suas principais características, claramente
explicitadas no próprio discurso, ou remetendo-a a outros textos do filósofo.
Nela nada parece se esconder ou convocar os ardis da leitura, senão este últi-
mo: a ênfase em seu imediatismo e em sua simplicidade.
Assim é que a própria inocência da criança invade o texto e seu regime de
sentido. O devir criança faz-se texto. Ele é perfeitamente expresso e configura-
do por sua esquiva à astúcia da interpretação, que supõe o exercício constante
de certa suspeita, aqui tornada não apenas desnecessária, mas de certo modo
inadequada. É como se Nietzsche, ao falar desse modo tão transparente da
criança, já nos oferecesse uma aproximação de sua inocência.
Para isso, também é necessário apartá-la de início da possibilidade de ba-
nalização, dos clichês e lugares-comuns que tão frequentemente vêm à tona
quando a infância é referida. Mas, por fim, o efeito dessa terceira metamor-
fose, atravessadas as variações de tom nos três diferentes passos do texto,
dirige-se ao leitor, que é levado a transmutar-se, também ele, na total inocên-
cia dessa criança. A brevidade alusiva dessa metamorfose final é sem dúvida
a melhor estratégia para a livrar de olhares inconvenientes, solicitando uma
sutil transformação do leitor ruminante. É ainda o melhor indício de que,
para se entender de fato essa personagem, deve-se ultrapassar a mera leitura,
passar por duas transmutações para, então, experimentá-la na própria vida.
Conforme já enfatizado, enquanto o camelo passa por variações e o leão
termina por se solidificar em sua batalha, tais transmutações dão passagem à
criança, personagem translúcida, radicalmente afastada do empedramento em
símbolos fixos ou monumentos estáticos. Todos os três diferem do dragão,
ele sim fechado em suas escamas de sentidos previamente dados. Zaratustra,
desde o primeiro livro, apresenta assim sua pedagogia, oferecendo uma ex-
periência de extravio para fora e além de significações congeladas e seguras,
convocando tanto a suspeita com relação a todo tipo de fábula moralizante

Leituras de Zaratustra 371


quanto a abertura às vertigens do sentido. Mais do que a mera decifração, o
texto parece conclamar uma nova e revigorada relação com os sentidos, e isso
justamente em um tipo de discurso nada inocente, geralmente mobilizado por
um impulso dogmatizante.
Findo este movimento de leitura, cabe ainda uma vez enfatizar seu endere-
çamento: não se esquivando ao jogo de decifração que o próprio texto propõe
e solicita, salientar o delicado (e pedagógico) trabalho de Nietzsche logo no
início de Assim falou Zaratustra, uma obra de fato para todos e para ninguém.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962.


______; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992.
FERRAZ, Maria Cristina Franco. “A Genealogia e suas vozes: o cordeiro e a ave
de rapina”. In: PASCHOAL, Antonio Edmilson; FREZZATTI JR., Wilson Antonio
(org.). 120 Anos de Para a genealogia da moral. Ijuí: Unijuí, 2008, p. 147-157.
______. Homo deletabilis – corpo, percepção, esquecimento: do século XIX ao XXI.
Rio de Janeiro: Garamond/Faperj, 2010.
______. Nove variações sobre temas nietzschianos. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2002.
NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke (KSA, 15 vol.). Berlim/Nova York:DTV/
de Gruyter, 1988.

372 Maria Cristina Franco Ferraz


Do imaculado conhecimento:
“olhos ébrios de lua”

Rosa Dias

Comecemos pelo título “Do imaculado conhecimento” (Von der unbefleckten


Erkenntniss):1 certamente, sua elucidação abrirá algumas veredas para inves-
tigarmos o texto.
Seguindo a interpretação de Gilvan Fogel em seu livro Conhecer é criar, o
título “Do imaculado conhecimento” sugere a ideia de um conhecimento sem
mácula, sem mancha, sem nódoa, sem sujeira, sem contaminação, sem po-
luição. Pode ainda significar um conhecimento límpido, claro, transparente,
cristalino, um conhecimento puro, isto é, sem mistura de qualquer outra coi-
sa que não o próprio e exclusivo conhecimento. Além disso, esse imaculado
pode também significar um conhecimento casto, virtuoso, honesto, inocente,
cândido, virginal. O termo escolhido por Nietzsche aponta certamente para
todas essas direções; daí ser possível desdobrá-lo e pensá-lo, seguindo Andrés
Sánchez Pascual, na linha paródica da imaculada conceição.
Esse grande tradutor para o espanhol de Assim falou Zaratustra, em uma
nota de pé de página, diz que o termo alemão Von der unbefleckten Erkenntniss é,
por sua semelhança fonética, uma paródia de Von der unbefleckten Empfängniss
(Da imaculada conceição) e, portanto, uma alusão perversa ao dogma da vir-
gindade da Virgem Maria. Essas observações de Sanchez Pascual fazem sentido
porque, como veremos mais adiante, Zaratustra, ao fazer a crítica ao imacula-
do conhecimento, tem por referência o pensamento ascético de Schopenhauer,
principalmente a sua compreensão do “sujeito puro de conhecimento”.
Assim, claro e persuasivo, como todo título deve ser, segundo palavras
introdutórias de Nietzsche a Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino,
essa estrutura evidenciada pelo tradutor espanhol constitui-se numa espécie
de chave para a leitura que faremos do texto “Do imaculado conhecimento”.

1
Em seus rascunhos, Nietzsche tinha outro título para “Do imaculado conhecimento”: “Aos
contemplativos”.

Leituras de Zaratustra 373


O objeto desse capítulo, da segunda parte de Assim falou Zaratustra, não é
novo. Trata de um tema recorrente nesse livro – o sentido da Terra, a plenitude
da Terra contra a busca de uma espiritualidade falsa e exangue. Mais do que
isso, ele é uma enciclopédia de todos os temas zaratustrianos e aparece como
o representante do ideal de objetividade desenvolvido pela filosofia e ciência
modernas. É também uma crítica à mentira dos contemplativos e uma denún-
cia para desmascarar a impostura desses pensadores.
Para apresentar tudo isso, Nietzsche começa dando-nos uma alegoria –
uma interessante história de lua e de gato no telhado... A palavra alemã para
alegoria é gleichniss, que talvez seja mais bem traduzida por “símile”, como
faz Haroldo de Campos no final de sua bela tradução do segundo Fausto de
Goethe:

Chorus Mysticus
O perecível
É apenas símile
O imperfectível
Perfaz-se enfim.
O não dizível
Culmina aqui.
O Eterno-Feminino
Acena, céu-acima.2

Mas por que o texto começa com um símile, uma imagem sensível ou
uma alegoria? É Nietzsche mesmo quem responde a essa questão em Além
do bem e do mal, no aforismo 128: “Quanto mais abstrata for a verdade que
queres ensinar, tanto mais ainda precisas seduzir para ela os sentidos.” Então,
utilizando-se de uma alegoria, Nietzsche quer trazer para as noções abstratas,
para determinados conceitos que se cristalizaram de modo a impedir que se
tenha acesso a eles, imagens que os tornem “palpáveis, tácteis e visíveis”.
Conclamando os sentidos do leitor, antes de imprecar contra os contem-
plativos, Nietzsche faz uma comparação: a gravidez falsa da lua e a lascívia dos
homens do “puro conhecimento”. Todo o texto é uma alegoria da vontade de
conhecer, identificada com a lua cheia.
Ela, que aparecia na linha do horizonte, vermelha e pesada, como uma fê-
mea que quer dar à luz um sol, no “céu-acima”, revela-se branca, fria e estéril.

2
CAMPOS, Haroldo, Deus e Diabo no Fausto de Goethe, p.61.

374 Rosa Dias


Sem dúvida, brincando com o gênero da lua, que, em alemão, é masculino,3
Zaratustra se refere ao astro lunar ou ao globo lunar como um homem que
está aparentemente grávido. Só aparentemente, pois esse “tímido noctâmbu-
lo” é também, para ele, pouco homem: “Sem dúvida, diz Zaratustra, pouco
homem, também, é esse tímido noctâmbulo! Em verdade, anda pelos telhados
com a consciência pesada. O monge que habita a lua é também pouco homem,
pouco viril”.
Assim, a alegoria trata, ao mesmo tempo, da esterilidade e da ausência
de verdadeira masculinidade dos conhecedores puros – tema já explorado na
Segunda extemporânea e retomado aqui para tornar mais claro o ideal do sábio.
Nesse livro, os alemães, ciosos de seu saber histórico, foram apresentados
por Nietzsche como eunucos que, como os últimos da raça, não deixam her-
deiros nem descendentes:

ou deveria ser necessária uma raça de eunucos para guardar o grande ha-
rém da história universal? Eis aí a quem a pura objetividade cairia muito
bem. Quase parece que seja preciso vigiar a história para que só saiam dela
histórias e não acontecimentos.4

Dessa maneira, os homens modernos, os eunucos, são, para o filósofo,


o contrário dos homens gregos. Estes não permaneceram por muito tempo
herdeiros e imitadores de todo o Oriente – tornaram-se os mais felizes dos ho-
mens, capazes de aumentar e fazer frutificar a herança recebida. Desse modo,
tornaram-se modelos e pioneiros de todos os povos cultivados depois deles.
Além de estéril, essa lua-gato é também lua-gatuna que avança sobre os
telhados sem deixar marcas de sua presença, sem fazer soar as suas esporas.
Toca os telhados como se não tivesse um corpo. Assim, a lua, que parecia
mulher, identificada depois como homem, mostra-se também pouco homem,
cheia de vergonha e má consciência; e, ainda, como se não bastassem todos os
disfarces, vira monge.
No alvo disco argênteo, há um rosto estampado: “É lascivo e ciumento, o
monge na lua, cobiçoso da Terra e de todas as alegrias dos amantes.”
Assim, ao olhar de Zaratustra, aquela sombra que aparece na lua brasileira, e
que é de São Jorge, vira monge, padre lascivo. Mas deixemos a alegoria. Vejamos
como ela é aplicada ao desmascaramento dos lunáticos conhecedores puros.

3
Der Mond, a lua é, em alemão, substantivo do gênero masculino.
4
NIETZSCHE, F., Segunda Consideração Intempestiva, Da utilidade e desvantagem de história para
a vida, p.43.

Leituras de Zaratustra 375


Essa imagem eu vos dou, melindrosos hipócritas, vós, os que buscais “o
puro conhecimento”! Chamo-vos, eu – lascivos.
Vós também amais a Terra e o que é terrestre, bem vos adivinhei! Mas há
vergonha, em vosso amor, consciência pesada – assemelhais à lua!
Ao desprezo do que é terreno, levaram vosso espírito, mas não as vossas
vísceras: estas, porém, são, em vós, o que há de mais forte!

Os conhecedores puros são os falsos contemplativos, os lascivos hipócri-


tas, amantes da beleza do corpo. Falta-lhes, sobretudo, a inocência do desejo;
o objeto de seu amor traz o apetite carnal e terrestre. Inclinam-se aos prazeres
do sexo, à voluptuosidade, mas cobrem o desejo com vergonha e má consci-
ência. Galhofeiros, impertinentes, atrevidos, devassos, licenciosos, afetados
e efeminados rondam curiosos e ávidos pelos telhados, espiam pelas janelas
entreabertas os jogos dos amantes sem se deixar ver, mas carregam consigo o
sentimento de culpa por terem furtado de todas as coisas o desejo.
Sem dúvida, o que está em questão nessa crítica de Zaratustra ao conhe-
cimento puro é a compreensão metafísica do mundo que opõe Terra e Céu,
aquém e além, corpo e alma, matéria e espírito, sensação e razão, erro e ver-
dade, objeto e sujeito, mundo e homem, natureza e cultura. É, em suma, a
atitude instauradora da separação, da oposição que cria a doutrina dos dois
mundos – o verdadeiro e o aparente, o suprassensível (inteligível–Céu) e o
sensível (Terra) que constitui cada um desses termos em planos separados e
autônomos.
No texto que estamos analisando, a metafísica aparece formulada na opo-
sição espírito e víscera. Se observarmos atentamente, verificaremos que Za-
ratustra faz uma inversão, divide o real em dois planos: o suprassensível e o
sensível. Porém, enquanto os conhecedores puros falam do espírito, evocam a
razão, a consciência, a inteligência e mesmo o intelecto, ele privilegia o corpo
e as vísceras. No momento em que as vísceras se apresentam à consciência,
esta se enche de culpa e de vergonha por querer esconder a todo o custo o seu
apetite carnal.
“E, agora, o vosso espírito envergonha-se de obedecer às vísceras e foge da
sua própria vergonha por caminhos escusos e mendazes.”
Essa denúncia, podemos pensá-la como visando primeiramente à dou-
trina platônica do Eros, segundo a qual o filósofo transcende do amor dos
belos corpos para a visão da beleza mesma – ou da ideia platônica pura.
Mas creio que, mais fundamentalmente, Zaratustra esteja se referindo a
Schopenhauer.

376 Rosa Dias


Com isso, chegamos ao ponto crucial de nossa análise, que começa com
este trecho: “Ser feliz no contemplar, com a vontade amortecida, sem a garra e
a cobiça do egoísmo – frio e cinzento no corpo inteiro, mas com ébrios olhos
de lua ! [...] E isto se chama para mim imaculado conhecimento de todas as
coisas; não querer nada das coisas: a não ser poder ficar diante delas como
‘espelho de cem olhos’”.

É Schopenhauer quem tem “os ébrios olhos de Lua” (trunkenen Mondeau-


gen) e o corpo inteiro frio e cinzento, lívido, desgastado pela vontade morta,
própria daquele que tirou a inocência do desejo. E temos aqui, de novo, o sim-
bolismo da lua, iluminando a teoria de luz fria. Foi ele que se vangloriou de
não precisar mais das garras das egoísticas cobiças. Foi ele que desenvolveu a
tese de que a contemplação pura, desinteressada, é uma forma de vontade: de
vontade negada. Foi ele que lutou sempre contra a atração sexual e exagerou
quando criou um liame entre o amor e a sobrevivência da espécie. Foi ele que
rebaixou o instinto sexual, dando a este demasiada importância.
A sexualidade sempre foi um grande problema na vida de Schopenhauer.
Nenhum filósofo falou tanto da sexualidade quanto ele; só Freud, talvez. Em
tudo, o filósofo da Metafísica do amor vê a presença do instinto sexual. Esse
desejo, para ele, forma a essência mesma do homem. É a causa da guerra e
o objetivo da paz, é o fundamento de toda a ação séria ou, então, o objeto de
todo gracejo e mofa. E mais: Schopenhauer também não deixa de mostrar as
infelicidades que decorrem da importância que se dá a esse instinto. Ele pode
conduzir, muitas vezes e até mesmo, ao suicídio.
Porém, Zaratustra está aí atento a esse rubro juiz, que se envergonha de
obedecer às vísceras. Diz ele: “Mas agora vosso castrado olhar de esguelha
quer chamar-se ‘contemplatividade’! E aquilo que se deixa acariciar com olhos
covardes deveria batizar-se ‘belo’. Ó perversores de nobres nomes” .
Mais uma vez, essas palavras parecem referir-se diretamente a Schope-
nhauer, que encontra, na contemplação estética, a possibilidade para trans-
cender o modo comum de se perceber o mundo, para se libertar do desejo
e da vontade, apaziguar temporariamente a dor. Por meio da arte, “somos
alforriados do desgraçado ímpeto volitivo, festejamos o Sabbath dos trabalhos
forçados do querer, a roda de Íxion cessa de girar”.5
Para o filósofo de O mundo como vontade e como representação, a percepção
estética é a visão imediata e direta, a representação intuitiva pura na qual não

5
SCHOPENHAUER, A., O mundo como vontade e como representação,§38.

Leituras de Zaratustra 377


intervêm nem o entendimento nem a razão, sempre conceituais. O sujeito se
perde no objeto da percepção. Torna-se um claro espelho do objeto, ou, como
diz Zaratustra: “Quero deitar-me diante das coisas com um espelho de cem
olhos.”
Assim, ele deixa de se preocupar consigo mesmo como um objeto espaço-
-temporal, deixa de ver os objetos em relação com a vontade individual e se
torna repentinamente “sujeito puro de conhecimento”, isto é, destituído de
vontade. A subjetividade da consciência comum desaparece, a percepção se
torna objetiva. A consciência, que está inteiramente no objeto da percepção,
não se preocupa mais nem com a disjunção entre a vontade e o mundo, nem
com o fato de a vontade estar sem objetos.
O sujeito puro de conhecimento, o gênio, arranca o objeto de sua contem-
plação da “corrente fugidia dos fenômenos”,6 contempla-o independente-
mente do princípio de razão e mergulha no intemporal. O mundo agora é visto
por ele do ângulo da eternidade. Sua percepção estética não olha o presente
– tempo da paixão, da dor e do tédio –, coisa relativa ao passado quanto ao
arrependimento ou ao futuro quanto ao desejo; evoca, sim, o tempo da arte,
da contemplação pura, do interlúdio de sabedoria e paz.
Ora, ao deixar de se preocupar com o aqui e o agora, com a localização dos
objetos no mundo espaço-temporal, o que percebe, então, o gênio? O objeto
de sua contemplação estética são as ideias de Platão. No entanto, ao usar a
terminologia platônica das ideias, Schopenhauer não pretende introduzir a
noção de que o artista apreende ou faz o conteúdo da obra de arte a partir de
um domínio de objetos ontologicamente distintos da esfera dos indivíduos
comuns. Perceber ou representar um objeto como ideia é trazer à luz sua for-
ma significante, sua forma essencial, e desprezar tudo aquilo que é estranho
e acidental. Para Schopenhauer, a beleza é luz da ideia que irradia do objeto
particular, é luminosidade que obscurece os traços individuais e as qualidades
desse objeto, e aponta para a possibilidade total de libertação da servidão da
realidade prática, particular e concreta.
Traçado assim o ideal do conhecimento desinteressado de Schopenhauer,
Zaratustra toma a palavra não só para mais uma vez se dizer contra aqueles
que professam um conhecimento puro, como também para mostrar o que é o
conhecimento para ele.

Ó sentimentais hipócritas, lascivos! Falta-vos a inocência do desejo, e por


isso agora caluniais o desejar!

6
Ibid., §36.

378 Rosa Dias


Em verdade, não é como os que criam, os que geram, os que têm prazer no
vir-a-ser que amais a terra!
Onde há inocência? Onde há vontade de gerar. E quem quer criar para além
de si, este tem para mim a mais pura das vontades.
Onde há beleza? Onde tenho de querer com toda a vontade; onde quero
amar e sucumbir [...]
Amar e sucumbir: isso rima desde eternidades. Vontade de amor: isto é,
estar disposto também para a morte. Assim falo eu aos covardes que sois!.

Nesse texto, Zaratustra aparece como intérprete da vida, e vida, para ele,
é vontade de potência. Ela não é um princípio metafísico, como a vontade de
existir ou de viver de Schopenhauer, não se manifesta, ela é simplesmente
outra maneira de se dizer a vida, de definir a vida. Foi a própria vida quem
revelou a Zaratustra o que ela é: vontade de potência. Foi ela quem lhe con-
fiou outro segredo: “Eu sou, disse ela, aquilo que sempre deve superar a si
mesmo”. Todavia, para que o homem possa corresponder a esse desejo íntimo
da vida, é necessário que tenha se libertado daquele ressentimento que lhe foi
inoculado pela tradição metafísica: o desprezo pela vida, pelo corpo, pela terra,
pelo devir e por tudo o que foi caluniado em nome do verdadeiro mundo. Fica
claro para Zaratustra que ele precisa trazer o homem de volta à vida, de supe-
rar o niilismo e de estabelecer uma aliança entre ela e o homem.
Sob esse aspecto, a ideia mais importante do texto é a definição da vida
como vontade de potência no sentido de autossuperação. No trecho citado,
essa ideia está na afirmação de Zaratustra “criar para além de si”. Em Das
tarântulas, ele diz: “A vida deve sempre superar a si mesma.” Criação e trans-
formação perpétua caracterizam bem a vida. Ela é conquista, superação das
resistências, capacidade de novas relações e, nesse sentido, é dom, criação e
amor. Toda criação é comunhão. O pensador, o criador e o amoroso são uma
mesma pessoa.
Assim, sintetizando as observações apresentadas, podemos ver que a von-
tade de potência aparece como uma nova exigência: a criação. E esse aspecto
não existe na filosofia de Schopenhauer, que reduzia a arte a uma pura con-
templação. Querer é criar. E a vontade de potência como força criadora leva
também implícita a ideia de autossuperação, isto é, a superação sempre de um
estado já alcançado. A vida criativa possui uma tendência – ela está sempre
criando e não se detém jamais em sua tarefa. Seu objetivo é crescer e crescer
sem deter-se em uma posição dada, uma operação que é imanente, já que
realiza tudo em vista de si mesma, e não de algo externo. Autossuperação é

Leituras de Zaratustra 379


também outro nome para o ato de dar forma a uma matéria. Assim, por detrás
da concepção de potência, está sempre a ideia de força criadora. E isso porque
a vontade de potência é, sobretudo, vontade criadora.
O discurso “Do imaculado conhecimento” põe-nos ainda diante de outra
articulação: a composição de vida com a noção de beleza. O texto diz: “Onde
há beleza? Onde tenho de querer com toda vontade; onde quero amar e su-
cumbir”. A beleza está aqui associada ao signo supremo do querer: o querer
com toda a vontade. Trata-se do amor à necessidade, do amor fati, expressão
que Nietzsche designa como assentimento, o sim à realidade. O sim à vida é
inocente. Em A gaia ciência, no aforismo 276, o filósofo evidencia a relação de
querer com toda a vontade e a beleza. “Quero, diz ele, cada vez mais aprender
a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: assim me tornarei daque-
les que fazem belas as coisas. Amor fati (amor ao destino): seja este, doravante,
o meu amor!”
Assim, para Zaratustra, o verdadeiro querer quer com toda a vontade. Com
essa expressão, ele se opõe a todo idealismo, caracterizado como fuga diante
da realidade e vontade de negar a terra, por não poder suportar os aspectos
dolorosos e trágicos da existência. Porque pensar a realidade em sua totali-
dade é a capacidade de afrontá-la até no que ela tem de terrível – o amor fati
se identifica ao dionisíaco e se torna, para Nietzsche, o traço fundamental da
grandeza humana. Diz ele em Ecce homo:
“Minha fórmula para grandeza no homem é amor fati: nada querer dife-
rente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a eternidade. Não apenas
suportar o necessário, menos ainda, ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade
ante o necessário – mas amá-lo”.7 E aqui chegamos a um aspecto fundamen-
tal da vontade de potência como vontade de amor, que pode embelezar tudo
aquilo que toca.
Assim se posicionando contra Schopenhauer e contra todos aqueles que
professam o conhecimento puro, tratando-os de hipócritas por não assumi-
rem o desejo, Zaratustra fala em inocência do desejo. Isso não significa que ele
apregoe a satisfação dos apetites, nem mesmo que faça um apanágio daque-
les que sentem apenas com as vísceras. Trata-se, antes, daqueles que sabem
querer, que conhecem a potência de criar, que criam para além de si. Não se
trata do amor despudorado do corpo e da corporeidade, mas do amor genuíno
à vida e à Terra. Do verdadeiro amor, que preenche e impregna corpo e alma
e que pede total dedicação e sacrifício. Só nesse amor há inocência, há beleza

7
NIETZSCHE, F., Ecce homo, “Por que sou tão esperto”,§ 10.

380 Rosa Dias


e fecundidade. É preciso amar para gerar, e gerar significa lançar a própria
vida para além dela mesma, fazer-se instrumento da vida, e, não, fazer dela o
instrumento da própria mesquinhez. Esse é o conhecimento autêntico, inte-
ressado, que se mostrará como apropriação e criação.
Depois de todas essas considerações que revelam o âmago da problemática
de Zaratustra, há um pequeno intervalo, uma sobrevivência. Zaratustra passa
a evocar a sua própria juventude, a revelar um engano do passado. Também
ele foi um contemplativo, também ele se serviu da máscara do contemplativo.

Pusestes diante de vós a máscara de um deus, vós, os puros, na máscara de


um deus escondeu-se o vosso verme mais abominável.
Em verdade, conseguis enganar os outros, vós, os contemplativos! Também
Zaratustra, outrora, deixou-se engodar pelas vossas divinas peles; não adi-
vinhava o novelo de cobras que era seu enchimento.
Imaginava, outrora, ver brincar a alma de um deus em vossos jogos, ó bus-
cadores de conhecimento puro! Não imaginava outrora, nenhuma arte me-
lhor do que as vossas artes.

As pequenas revelações autobiográficas são comuns no texto de Assim fa-


lou Zaratustra; por meio delas, podemos compor a figura da personagem. Esse
trecho autobiográfico, contudo, faz uma pausa para que Zaratustra possa re-
tomar o tema da lua. Ele é mesmo um ponto de partida para o final, que é
grandioso. Diz: “Mas cheguei perto de vós: e então, clareou o dia para mim – e
agora clareia para vós –, e acabou-se o namoro da lua!”.
No trecho final de “Do imaculado conhecimento”, Zaratustra retorna aos
aspectos que configuram o conhecimento desinteressado (puro) e fecha esse
discurso com estas palavras: “Inocência e desejo de criar é todo o amor solar”.
Uma imagem grandiosa e sensual começa a surgir no céu de Zaratustra. O sol
nascente empalidece a lua e ela é pega em flagrante, pega de surpresa, e fica
pálida e confusa diante do glorioso avançar do sol, que, diferente dela, que é
fria, arde e ilumina, esquenta, bebe o mar em sua profundidade. E assim: “O
desejo do mar ergue-se com mil seios. Beijado e sugado quer ser ele pela sede
do sol; ar, quer tornar-se, e altura e vereda de luz e, ele mesmo, luz”.
Então, em meio às ondas, o mar se abre aos prazeres do sol. A cópula do
mar com o amor solar se inicia, de tal modo que aí podemos ouvir, nesse tre-
cho, a voz límpida e sensual de Caetano Veloso, em “Sem Cais”: “Quero tanto,
quero tanto, quero tanto você / Mar aberto, mar adentro, mar intenso, mar
imenso sem cais”.

Leituras de Zaratustra 381


Zaratustra afirma, assim, seu caráter solar. Ele, como “estrela de ouro” ou
estrela de luz, é criador: puro dom, dádiva e fartura. Ama como o sol ama. Pe-
netra nas camadas do mundo, e a rua estala com seus pés e suas esporas. Anda
nos quatro cantos da vida e sacode para fora de si os sonhos vazios. Alimen-
tado pelas energias do calor, carrega debaixo da pele a inocência do desejo.

Referências bibliográficas

CAMPOS, Haroldo. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Editora Perspec-
tiva, 1981.
FOGEL, Gilvan. Conhecer é criar. São Paulo: Editora Discurso Editorial e Editora
Unijuí,2003.
MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997.
NIETZSCHE, F., Assim falou Zaratustra. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977.
______. Also sprach Zarathustra, Zämtliche Werke. Edição Crítica organizada por
G.Colli e M. Montinari. Berlim/ Nova York, Walter de Gruyter,1988. Vol.4.
______. Asi Hablo Zaratustra. Trad. de Andrés Sánchez Pascual, Madrid: Alianza
Editorial, 1994.
______. Ecce Homo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2001.
______. Segunda consideração intempestiva. Da utilidade e desvantagem da história para
a vida. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará,2003.
______. Obras incompletas. São Paulo Abril Cultural, Coleção Os Pensadores.
______. A Gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
______. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Trad. de Jair Bar-
boza. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

382 Rosa Dias


Da redenção
Assim falou Zaratustra II:1 para uma interpretação

Oswaldo Giacoia Junior

“Para Rosa Dias e Julio Bressane,


com a mais profunda gratidão e amizade.”

No presente artigo, meu objetivo é tomar como ponto de partida uma pas-
sagem célebre do segundo livro de Assim falou Zaratustra, intitulada “Da reden-
ção”, para, lastreado nela, empreender uma aproximação entre a filosofia de
Nietzsche e o pensamento zen-budista, tocando os seguintes aspectos cardi-
nais da reflexão nietzscheana: principio pela questão da verdadeira subjetivi-
dade, pela superação da ilusão consistente em identificar o si-próprio (Selbst,
Self) com a unidade da consciência de si; sob essa ótica, abordo interessantes
pontos de comunicação entre o pensamento do amor fati e a doutrina budista
do karma, visando descerrar um horizonte para uma tematização particular da
questão da liberdade da vontade como problema filosófico.
No caminho dessa reflexão, proponho uma retomada do conceito de vontade
de poder – nuclear na filosofia madura de Nietzsche, ao qual vinculo uma inter-
pretação da psicologia do ressentimento, chamando a atenção para a produtivida-
de teórica e existencial da relação entre tempo, vontade e finitude, em cuja conste-
lação pode-se problematizar a raiz metafísica da impotência, bem como a essência
da vingança, ressentimento e formações aparentadas. Saúde e doença, enfermi-
dade e convalescença, força e fraqueza, reação e espontaneidade são temas que
adquirem uma compreensão alargada a partir da ligação supramencionada.
Redenção (Erlösung) é liberação da impotência rancorosa experimentada
pela vontade na vivência do passar do tempo, especialmente como impossi-

1
NIETZSCHE, F. Also Sprach Zarathustra II. Von der Erlösung. In: Sämtliche Werke. Kritische Stu-
dienausgane (abreviado como KSA.). Ed. Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin, New York,
München: de Gruyter, DTV. 1980, vol. 4, p. 177 – 182. Não havendo indicação em contrário, as tradu-
ções são de minha autoria.

Leituras de Zaratustra 383


bilidade de deter seu curso, de querer-para-trás. Maturidade, em termos de
Nietzsche ou iluminação, em termos zen-budistas, corresponderia a um esta-
do de espírito que nasce de uma nova relação com o tempo, com o sofrimento
e com a morte, no qual estão superadas as oposições estanques que o modo
objetivante de pensar instaura entre liberdade e necessidade, identidade e al-
teridade, duração e eternidade, morte e ressurreição. Estado de espírito do
qual está sobretudo ausente o delírio egoico de onipotência da vontade, no
confronto com a vivência profunda da inocência do vir-a-ser.
Como se percebe, a interpretação inicial do capítulo “Da redenção” – pre-
parando e introduzindo a aproximação reflexiva entre Nietzsche e o zen-
-budismo – é organizada textualmente de modo a distribuir, com clareza, os
pontos de apoio que a exegese encontra no texto original de Nietzsche. Essa
divisão, obviamente, é de minha integral responsabilidade.

Prólogo do corcunda e porta-voz dos estropiados2

Um dia em que Zaratustra atravessava a grande ponte, rodearam-no os


estropiados e os mendigos, e um corcunda falou-lhe assim:
“Olha, Zaratustra! Também o povo aprende de ti, e adquire fé em tua dou-
trina: mas para que creiam inteiramente em ti, para tanto precisas ainda de
uma coisa – primeiro tens ainda que convencer-nos a nós, os corcundas!
Tens aqui, então, uma formosa coleção e, verdadeiramente, uma oportuni-
dade que se pode agarrar por mais de um cabelo! Podes curar cegos, e fazer
andar paralíticos; e àquele que carrega demasiado sobre as costas, bem po-
derias também aliviá-lo um pouco: isso, penso eu, seria a maneira correta
de fazer os corcundas crerem em Zaratustra!”.

Zaratustra responde ao corcunda

Zaratustra, porém, assim replicou àquele que falara: ‘Se a um corcunda


se lhe retira a bossa, toma-se-lhe o espírito – assim ensina o povo. E se
ao cego dão-se-lhe olhos, verá demasiadas coisas más sobre a terra: de
tal modo que ele amaldiçoará aquele que o curou. Aquele, porém, que faz
andar o paralítico, faz a este o maior dos danos: pois apenas possa correr,
seus vícios o arrastam consigo – assim ensina o povo sobre corcundas. E
por que não deveria Zaratustra também aprender com o povo, se o povo
aprende com Zaratustra?

2
Cf. Mateus 15, 30: “Uma grande multidão dirigiu-se a ele, levando-lhe os aleijados, os cegos, os
mancos, os mudos e muitos outros, e os colocaram aos seus pés; e ele os curou”.

384 Oswaldo Giacoia Junior


Desde que estou entre os homens, para mim o que há de menos é ver: ‘a
esse falta um olho, àquele, uma orelha, ao terceiro, a perna, e há outros que
perderam a língua, ou o nariz, ou a cabeça’
Vejo e tenho visto coisas piores, e algumas há tão horríveis que não gostaria
de falar de todas, e de outras nem sequer desejaria calar: a saber, homens
aos quais lhes falta tudo, exceto uma coisa que têm em demasia – homens
que não são mais do que um grande olho, ou um grande focinho, ou um
grande estômago, ou alguma outra coisa grande – estropiados pelo avesso,
eu os denomino.
E quando eu regressava de minha solidão, e pela primeira vez atravessei
essa ponte, nessa ocasião não confiei em meus olhos, olhava, e olhava ou-
tra vez, e disse finalmente: ‘Isso é uma orelha! Uma só orelha, tão gran-
de como um homem!’ Olhei melhor, e, efetivamente, debaixo da orelha
movia-se então algo que era pequeno, mísero e débil até o ponto de causar
pena. E, verdadeiramente, a monstruosa orelha assentava-se sobre uma pe-
quena vareta delgada – e a vareta era um homem! Quem olhasse com uma
lente, podia reconhecer ainda um pequeno rostinho invejoso; e também
que na vareta se balançava uma almazinha inchada. E o povo me dizia que
a grande orelha era não apenas um homem, mas um grande homem, um
gênio. Mas jamais acreditei no povo quando este falou de grandes homens
– e mantive minha crença de que era um estropiado pelo avesso, que tinha
muito pouco de tudo, e demasiado de uma só coisa’.

Zaratustra fala aos seus discípulos

Quando Zaratustra tinha dito isso ao corcunda e para aqueles dos quais
este era advogado e porta-voz, voltou-se profundamente aborrecido para
seus discípulos e disse:
‘Em verdade, meus amigos, eu caminho entre os homens como entre frag-
mentos e membros de homens!
Para meus olhos, o que há de mais terrível é encontrar o homem destroça-
do e espalhado como sobre um campo de batalha e de matança.
E que meus olhos fujam do agora para outrora – eles encontram sempre o
mesmo: fragmentos e membros e espantosos acasos – mas não homens!
O agora e o outrora sobre a terra – ai!, meus amigos, são, para mim, o que
há de mais insuportável; e eu não saberia viver, se não fosse ainda um vi-
dente daquilo que tem de vir.
Um vidente, alguém que quer, um criador, ele mesmo um futuro e uma
ponte para o futuro – e, aí, inclusive, como que um estropiado junto a essa
ponte: tudo isso é Zaratustra.

Leituras de Zaratustra 385


E também vós vos tereis perguntado com frequência: ‘quem é, para nós,
Zaratustra? Como devemos chamá-lo?’. E, assim como eu, tende-vos dado
perguntas como respostas.
É ele alguém que promete, ou alguém que cumpre? Um conquistador?
Ou um herdeiro? Um outono? Ou um arado? Um médico? Ou um
convalescente?
É ele um poeta? Ou um homem veraz? Um libertador? Ou um domador?
Um bom? Ou um malvado3?
Caminho entre os homens como entre fragmentos do futuro: daquele fu-
turo que eu contemplo.
E todo meu poetar [dichten] e cismar [trachten] é que eu reúna e mantenha
junto o que é fragmento e enigma e espantoso acaso.4
E como suportaria eu ser homem, se o homem não fosse também um poe-
ta, um solucionador de enigmas, e um redentor do acaso?
Redimir o que passou e recriar todo ‘foi’ num ‘assim eu o quis!’ – só isso
seria para mim redenção.
Vontade – assim se chama o libertador e o portador da alegria: assim eu vos
ensinei, meus amigos? E agora aprendei também isso: a própria vontade
ainda é um prisioneiro.
O querer liberta: mas como se chama o que ainda mantém em cadeias
também o libertador?
‘Foi’: assim se chama o ranger de dentes e a mais solitária tribulação da
vontade. Impotente contra aquilo que está feito, a vontade é, com relação a
tudo o que passou, um espectador malvado.
A vontade não pode querer para trás: que ela não possa quebrar o tempo
e a voracidade (Begierde) do tempo, essa é a mais solitária tribulação da
vontade.
O querer liberta: do que cogita o próprio querer para ser libertado de sua
tribulação e zombar de seu carrasco?
Ah, um néscio se torna todo prisioneiro? Nesciamente redime-se também
a vontade cativa.

3
Cf. Mateus 16, 13-15: “Chegando Jesus à região de Cesareia de Filipe, perguntou aos seus discípu-
los: ‘Quem os outros dizem que o Filho do Homem é?’. Eles responderam: ‘Alguns dizem que é João
Batista; outros, Elias; e, ainda outros, Jeremias ou um dos profetas’. ‘E vocês’, perguntou ele: ‘Quem
vocês dizem que eu sou?’”.
4
Cf. Gênesis 6, 5: “O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda
a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal”. A tradução luterana
desse versículo tornou-se proverbial na Alemanha. Nietzsche a retoma quase ipsis verbis na expressão
“all mein Dichten und Trachten”.

386 Oswaldo Giacoia Junior


Que o tempo não escoa para trás, essa é sua raiva secreta: ‘aquilo que foi’ –
assim se chama a pedra, que ela não pode rolar.
E assim ela rola pedras por raiva e indisposição, e vinga-se em tudo que,
como ela, não sente raiva e indisposição.
Assim, a vontade, o libertador, tornou-se alguém que causa dor: e em tudo
o que pode sofrer, ele tira vingança, de que ele não pode querer para trás.
Isso, sim, só isso é a própria vingança: a aversão da vontade contra o tempo
e o seu ‘foi’.
Verdadeiramente, uma grande estupidez habita em nossa vontade; e que a
estupidez tenha aprendido a ter espírito, tornou-se maldição para todo o
humano!
O espírito da vingança: meus amigos, isso foi até agora, entre os homens,
aquilo sobre o que melhor se refletiu; e onde havia sofrimento, aí devia
sempre haver castigo.
‘Castigo’, assim se chama a si mesma, com efeito, a vingança: com uma
palavra mentirosa, ela finge hipocritamente para si uma boa consciência.
E porque naquele que quer, há nele próprio também sofrimento, uma vez
que ele não pode querer para trás – assim o próprio querer e toda vida
deviam ser castigo!
E então rolaram nuvens e nuvens sobre o espírito: até que finalmente a
demência pregasse: ‘tudo passa, por isso tudo é digno de perecer!’5
‘E isso é a própria justiça, aquela lei do tempo, que ele tem de devorar seus
próprios filhos’: assim pregou a demência.6

5
Cf. as palavras de Mefistófeles nos versos 1.338-1.340 do Fausto, de Goethe: “Eu sou o espírito que
nega! E com razão, pois tudo o que nasce, é digno de perecer”.
‘’Cronos’’ (em língua grega ‘’Κρόνος’’), divindade correspondente, na mitologia grega, ao Saturno
dos romanos, é um dos seis titãs, filho de Urano, que teve seis filhos com Reia: Zeus, Deméter, Hades,
Héstia, Poseidon e Hera. Cronos representa a passagem de divindades antigas arcaicas para os deuses
olímpicos, liderados por Zeus. De acordo com a narrativa mítica, a esposa de Urano era Gaia (a Terra);
cada vez que Gaia tinha um filho, Urano o devolvia ao ventre de Gaia, que, desgostosa com isso, conce-
beu um estratagema com seu filho Cronos: ela transformou o próprio seio em uma pedra com formato
de lâmina e a deu para Cronos, instrumento com o qual Cronos castrou Urano, seu pai, enquanto este
se encontrava em sono profundo. O sangue de Urano derramou-se sobre a vagina de Gaia, dando
origem aos Gigantes, às Eríneas e às Melíades. Os testículos de Urano, lançados por Cronos no mar,
originaram uma espuma de esperma, que gerou Afrodite, a deusa do amor. Após esses acontecimentos,
foi rico e pródigo o reinado de Cronos sobre os deuses, conhecido como ‘’Idade Dourada’’. Porém, de
acordo com uma profecia, Cronos deveria ser vencido por um de seus próprios filhos, razão pela qual,
temendo uma revolta, ele passou a devorar os filhos que gerava. A profecia, no entanto, acabou por se
cumprir: Zeus, auxiliado por sua mãe, Reia, venceu e destronou Cronos, na guerra conhecida como
titanomaquia, depois da qual Zeus libertou seus irmãos e desterrou os titãs para o Tártaro.
6
“Na origem, acha-se Caos, sorvedouro sombrio, vácuo aéreo onde nada é distinto. É preciso que Caos
se abra como uma goela (káos está associado etimologicamente a kásma: boqueirão, kaínó, kaskó,
kásmómai: abrir-se, ter a boca aberta, escancarar-se) para que a Luz (aithér) e o Dia, sucedendo-se à

Leituras de Zaratustra 387


‘As coisas são ordenadas eticamente segundo direito e castigo: Oh! Onde
está a redenção do rio das coisas e da ‘Existência’–Castigo?’ Assim pregou
a demência.
‘Pode haver redenção, quando existe um direito eterno? Ah! Irremovível é
a pedra ‘foi’: eternos têm de ser também todos os castigos!’ Assim pregou
a demência.
‘Nenhuma ação pode ser aniquilada: como poderia ela ser anulada por meio
do castigo? O que há de eterno na ‘Existência’–Castigo é isso: que a exis-
tência também tenha eternamente de ser de novo ação e culpa!
A não ser que a vontade finalmente se redimisse a si própria e o querer se
convertesse em não querer’: mas vós conheceis, meus irmãos, essa canção

Noite, aí se introduzam, iluminando o espaço entre Gaia (a terra) e Ourános (o céu) doravante desu-
nidos. A emergência do mundo prossegue com o aparecimento de Póuros (o mar), que surge, por seu
turno, de Gaia. Todos esses nascimentos sucessivos, sublinha Hesíodo, operam-se sem a intervenção
de Eros (amor): não por união, mas por segregação. Eros é o princípio que aproxima os opostos –
como o macho e a fêmea – e que os une. Enquanto não intervém, a gênese processa-se por separação
dos elementos previamente unidos e confundidos (Gaia gera Ouranos e Póuros). Nesta ... versão do
mito, reconhece-se a estrutura de pensamento que serve de modelo a toda física jônia. Cornford dá
esquematicamente a seguinte análise: 1. no começo, há um estado de indistinção onde nada aparece;
2. desta unidade primordial emergem, por segregação, pares de opostos, quente e frio, seco e úmido,
que vão diferenciar no espaço quatro províncias: o céu de fogo, o ar frio, a terra seca, o mar úmido; 3.
os opostos unem-se e interferem, cada um triunfando por sua vez sobre os outros, segundo um ciclo
indefinidamente renovado, nos fenômenos meteóricos, na sucessão das estações, no nascimento e na
morte de tudo o que vive, plantas, animais e homens. [Nota 12: O ano compreende quatro estações, do
mesmo modo que o cosmo compreende quatro regiões. O verão corresponde ao quente, o inverno ao
frio, a primavera ao seco, o outono ao úmido. No curso do ciclo anual, cada ‘força’ predomina durante
um momento, devendo em seguida pagar, segundo a ordem do tempo, o preço de sua ‘injusta agres-
são –Anaximandro, fr. 1–, cedendo, por sua vez, lugar ao princípio oposto. Através desse movimento
alternado de expansão e de recuo, o ano volta periodicamente ao seu ponto de partida. – Também o
corpo do homem compreende os quatro humores ... que dominam alternadamente segundo as esta-
ções.]. As noções fundamentais em que se apoia esta construção dos jônios: segregação a partir da
unidade primordial, luta e união incessante dos opostos, mudança cíclica e eterna, revelam o fundo do
pensamento mítico onde se enraíza sua cosmologia. Os filósofos não precisam inventar um sistema de
explicação do mundo: acham-no pronto. [Nota 13: A luta dos opostos, figurada em Heráclito por Póle-
mos, em Empédocles por Neikos, exprime-se em Anaximandro pela injustiça – ádikia – que cometem
reciprocamente uns aos outros. A atração e a união dos opostos, representadas em Hesíodo por Eros,
em Empédocles por Philia, traduzem-se em Anaximandro pela interação dos quatro princípios, depois
que eles se separam. É esta interação que dá nascimento às primeiras criaturas vivas, quando o ardor do
sol aquece o lodo úmido da terra. Para G. Thomson ... esta forma de pensamento que se poderia chamar
uma lógica da oposição e da complementaridade, deve ser posta em relação com a estrutura social mais
arcaica: a complementaridade na tribo dos dois clãs opostos, exógamos com inter-casamentos. A tribo,
escreve G. Thomson, é a unidade dos opostos. Quanto à concepção cíclica, Cornford mostra igual-
mente a sua persistência nos milésios. Como o ano, o cosmo torna ao seu ponto de partida: a unidade
primordial. O Ilimitado – apeíron – é não só origem, mas fim do mundo ordenado e diferenciado. É
princípio – arké – fonte infinita, inesgotável, eterna, de onde tudo provém, onde tudo torna. O Ilimitado
é ‘ciclo’ no espaço e no tempo.” (VERNANT, J-P. Mito e Pensamento entre os Gregos. Trad. Haiga-
nuch Sarian. São Paulo: Difusão Europeia do Livro. Ed. Universidade de São Paulo, 1973, p. 297s.).

388 Oswaldo Giacoia Junior


de fábula da demência!7
Eu vos apartei de todas essas canções de fábula quando vos ensinei: ‘a
vontade é um criador’.
Todo ‘foi’ é um fragmento, um enigma, um espantoso acaso – até que a
vontade criadora acrescente: ‘mas assim eu o quis!.’
- Até que a vontade criadora acrescente: ‘Mas assim eu o quero! Assim hei
de querê-lo!’
Mas alguma vez já falou ela assim? E quando isso aconteceu? A vontade já
se desatrelou de sua própria demência?
A vontade já se converteu para si mesma em redentor e portador de alegria?
Ela já desaprendeu o espírito da vingança e todo ranger de dentes?
E quem a ensinou a reconciliação com o tempo, e algo ainda mais elevado
do que toda conciliação?
A vontade, que é vontade de poder, tem de querer algo mais elevado do que
toda conciliação todavia, como lhe ocorre isso? Quem ensina a ela inclusive
ainda o querer para trás?”.

7
“O que foi, não é mais; tanto quanto aquilo que nunca foi. Mas tudo o que é, nesse mesmo instante
já terá sido. Por isso, o mais insignificante presente permanece, em termos de realidade (Wirklichkeit),
em face do mais significativo passado, como algo que é, em comparação com o nada – pelo que aquele
uma coisa re relaciona a outra como algo que é em relação com o nada. Para nosso assombro, existimos
de súbito, depois de inumeráveis milênios nos quais não existimos, para, depois de um curto tempo,
ter novamente de voltar a não ser por igual tempo -. pois por meio dela, abre-se o espaço para uma
ordem de coisas totalmente diferente daquela da natureza. Por causa disso Kant é tão grandioso. A cada
ocorrência de nossa vida pertence apenas por um instante o é; daí para diante, ela pertence para sempre
ao foi. A cada noite nos tornamos mais pobres de um dia.” (SCHOPENHAUER, A. Parerga und Para-
lipomena II. Cap. XI,§ 143. Adendo à Doutrina da Nadidade da Existência).
Numa “concisão lapidar, diz uma vez Anaximandro: ‘De onde as coisas têm seu nascimento, ali tam-
bém devem ir ao fundo, segundo a necessidade; pois têm de pagar penitência e ser julgadas por suas
injustiças, conforme a ordem do tempo’. Enunciado enigmático de um verdadeiro pessimista, inscrição
oracular sobre a pedra limiar da filosofia grega, como te interpretamos? O único moralista seriamente
intencionado de nosso século, nos Parerga (II, capítulo 12, suplemento à doutrina do sofrimento do
mundo, apêndice e conexos), depõe sobre nosso coração uma consideração similar. ‘O verdadeiro
critério para julgamento de cada homem é ser ele propriamente um ser que absolutamente não deveria
existir, mas se penitencia de sua existência pelo sofrimento multiforme e pela morte: o que se pode
esperar de um tal ser? Não somos todos pecadores condenados à morte? Penitenciamo-nos de nosso
nascimento, em primeiro lugar, pelo viver e, em segundo, pelo morrer’. Quem lê essa doutrina na fisio-
nomia de nossa sorte humana universal e já reconhece a má índole fundamental de cada vida humana
no simples fato de nenhuma delas suportar ser considerada atentamente e mais de perto – embora nosso
tempo habituado à epidemia biográfica pareça pensar de outro modo, e mais favoravelmente, sobre a
dignidade do homem – quem, como Schopenhauer, ouviu, ‘nas alturas dos ares hindus’, a palavra sa-
grada do valor moral da existência, dificilmente poderá ser impedido de fazer uma metáfora altamente
antropomórfica e de tirar aquela doutrina melancólica de sua restrição à vida humana para aplicá-la,
por transferência, ao caráter universal de toda existência”. (NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época
Trágica dos Gregos. In: Os Pré-Socráticos. Seleção de textos de José Cavalcante de Souza. Coleção
Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 23).

Leituras de Zaratustra 389


O Recolhimento de Zaratustra

- Porém, nesse ponto de seu discurso, aconteceu que Zaratustra subita-


mente se deteve, e assemelhava-se de todo com alguém que estivesse ater-
rorizado até o extremo. Com olhos apavorados, ele olhou seus discípulos;
seus olhos os perfuravam como com flechas seus pensamentos e os basti-
dores desses pensamentos. Mas, pouco tempo depois, voltou já a rir nova-
mente, e disse apaziguadamente:
‘É difícil viver com os homens, porque calar-se é muito difícil. Em particu-
lar para um tagarela’.

Epílogo do Corcunda

Assim falou Zaratustra. Mas o corcunda tinha ouvido a conversação, e ti-


nha coberto seu rosto ao fazê-lo; quando, porém, ele ouviu rir Zatustra,
elevou os olhos com curiosidade e disse lentamente:
‘Mas por que Zaratustra nos fala de maneira distinta do que a seus
discípulos?’.
Zaratustra respondeu: ‘O que há nisso para se admirar? Com corcundas,
pode-se já falar de modo corcunda!’8
‘Bom’, disse o corcunda; e com discípulos pode-se já tagarelar em lingua-
gem de escola.9
Mas por que Zaratustra fala a seus discípulos de maneira diferente do que
a si mesmo?”

Verdadeiro si-próprio, liberdade e não liberdade da vontade

Tanto para o budismo quanto para Nietzsche, a subjetividade pensada


como ego, unidade simples da consciência objetificadora, é falseamento e ilu-
são. O autêntico self (Selbst) não é o mesmo que ego cogito, não é também eu
sensível, ainda menos um dado natural ou ponto de partida, mas uma con-
quista no interior de um vir-a-ser, sobretudo empreendido a partir da concreta
existência corporal.

8
“Mit Bucklichten darf man schon bucklicht reden”. Jogo de palavras: Com corcundas (Bucklichten),
já se pode falar corcundamente, a modo de corcunda.
9
“Mit Schülern darf  man schon aus der Schule schwätzen”. Novo jogo de palavras: Com discípulos/
escolares  (Schülern), já se pode falar a modo da escola (Schule), ou escolasticamente.

390 Oswaldo Giacoia Junior


Todos os bons karmas que cometi desde a infância foram causados por
meus desejos, os quais não têm início (skr. klesa): a ânsia (skr. raga): a ira
(skr. krodha) e a estupidez (skr. moha). Esses karmas dão-se no corpo, na
boca e na vontade.10

Além disso, em ambos os casos, a pseudounidade do ego é dissolvida na


fusão com o todo da natureza, ou do cosmos. Essa fusão da singularidade no
todo, entretanto, não anula ou elimina a singularidade do indivíduo, antes
a encerra numa vivência ainda mais radical. Em seu todo, o budismo conce-
be o problema da existência (Dasein) como “nascimento-morte” inteiramente
como problema do indivíduo singular; a este, porém, ele não o considera um
sujeito autárquico, independente.
Inevitavelmente, o ponto de partida para desprender-se da ilusão do falso
eu, e para se colocar a caminho do despertamento do self é dado pelo próprio
eu. É impossível partir de outro âmbito que não de si próprio, mas para se
afastar e se despojar de si, diluir-se no todo infinito para se reencontrar nele
como singularidade expressiva. Para o budismo, todo ente é estar-em-relação,
estar-em-dependência (skr. pratitya-samutpada). A palavra em sânscrito é co-
mumente traduzida por causalidade ou doutrina causal, o que deve, porém,
ser entendido no mais vasto sentido da palavra… Tudo o que é, consiste ape-
nas na relação com tudo o mais, só na dependência de tudo o mais”,11 daí o
natural deslocamento semântico do ser-em-relação-com para uma noção sui
generis de causalidade impessoal própria da doutrina budista do karma.

Dito à maneira budista: a decisão livre do sattva (vivente) é aquela pré-


-decidida e pré-condicionada pelo karma, que nós, como um dos sattva,
entretanto, consideramos como nossa decisão. Evidentemente, aquilo que
fizemos, aquilo que foi feito em nós, é nosso feito, e, por isso, somos res-
ponsáveis, apesar de não podermos ser responsáveis por isso. Esse sen-
timento pesadamente opressivo, esse insight no peso do ser-homem se
chama aceitação sensível-corporal portanto, a autoiluminação do karma,
sobretudo do karma já cometido e passado (purva karma). O irrevogável
caráter de passado do purva karma.12

10
Mahavaipulya-buddhavatamsaka-sutra apud Ôkochi, R. Nietzsches Amor Fati im Lichte von Karma
des Buddhismus. In: Nietzsche-Studien Band-I, 1972, p. 63. As palavras entre colchetes vêm do origi-
nal em sânscrito.
11
ÔKOCHI, R. Nietzsches Amor Fati im Lichte von Karma des Buddhismus. In: Nietzsche-Studien
Band-I, 1972, p. 70.
12
Ibid., p. 74.

Leituras de Zaratustra 391


Ora, se assim é, então não apenas toda atividade passada, mas também
futura – sobretudo se consideramos a cosmovisão de completa dependência
do indivíduo em relação ao todo, a universal entre-pertença de todas as coisas,
tudo parece poder ser decidido pela vontade, e, no entanto, essa aparência tem o
caráter ilusório de um efeito de superfície, produzido na consciência.

An old Buddha said:


For the time being, I stand astride the highest mountain peaks.
For the time being, I move on the deepest depths of the ocean floor.
For the time being, I’m three heads and eight arms.
For the time being, I’m eight or sixteen feet.
For the time being, I’m a staff or whisk.
For the time being, I’m a pillar or lantern.
For the time being, I’m Mr. Chang or Mr. Li.
For the time being, I’m the great earth and heavens above.

Um velho Buda disse:


Num certo tempo, eu estou montado a cavalo sobre os mais altos picos das
montanhas.
Num certo tempo, eu sigo adiante para as mais profunda profundidade do
fundo do oceano.
Num certo tempo, eu sou três cabeças e oito braços.
Num certo tempo, eu sou oito ou dezesseis pés.
Num certo tempo, eu sou um cajado ou um vassourinha.
Num certo tempo, eu sou um pilar ou uma lanterna.
Num certo tempo, eu sou o sr. Ching ou o sr. Li.
Num certo tempo, eu sou a grande terra e o céu acima dela.13

O Eu individual emerge e submerge no todo, num ciclo infinito de nasci-


mento-morte, de tempo-ser, apenas como uma singularidade entre todos os
seres viventes (skr. sattva), transitando e transformando-se na repetição de
ciclos de nascimento e morte, sem princípio nem fim como a roda de um carro
eternamente girando, num percurso pelos seis mundos ou formas de existên-
cia: purgatorium (skr. naraka); os espíritos eternamente famintos (skr. preta);
animal (skr. tiranc); os titânicos demônios guerreiros (skr. asura); o homem
(skr. manusya); os deuses ou seres celestes (skr. deva).

Apud Joan Stambaugh. Impermanence is Budda-Nature. Dogen’s Understanding of Temporality.


13

Honolulu: University of Hawaii Press, 1990. p. 24

392 Oswaldo Giacoia Junior


Nesses ciclos de repetição em que estão inseridas todas as esferas dos
entes, o ser humano vive uma condição cósmica paradoxal de infinita finitu-
de, ligada a uma temporalidade circular. Finita, a existência humana tem por
modo de ser a temporalidade, inexoravelmente limitada em seus dois polos
pelo nascimento e pela morte. Tudo se passa como se a redenção consistisse
em transcender esses ciclos de nascimento-morte, em eterna repetição, trans-
portar-se para além da cadeia do karma-samsara, transitar para o outro lado,
para o nirvana o vazio, o nada.
“O lugar, porém, onde esse ‘transcender’ acontece é justamente o lugar
onde a verdadeira essência da finitude e da vida como ciclo de ‘nascimento-
-morte’, como o percurso circular infinito da existência finita, pode ser co-
nhecido e reconhecido como autoiluminado.”14 De acordo com essa fonte, a
palavra samsara denota, no budismo chinês, ‘a roda de um carro eternamente
girando’, ou ‘o fluir que eternamente se transforma’, unidade de ‘nascimento-
-morte que sempre se repete’, sendo a concepção de vida do budismo chinês
e japonês o perene repetir-se de nascimento–morte, em que os dois termos
antitéticos devem ser pensados numa unidade.
Como todos os demais viventes, o homem tem sua existência encerrada
no corpo, mergulhada no oceano, sem margem nem porto, do sofrimento e da
dor eterna, nos ciclos infindáveis de nascimento-morte. A doutrina do samsara
ensina, então, o desespero de todo ser vivente – ela é um insight nas profunde-
zas mais abissais da existência, capaz de despertar o desejo de transcender, no
nirvana, a férrea cadeia da causalidade do karma-samsara.
Entretanto, o homem só veio a ser no mundo por meio da relação entre
dois sexos diferentes – ele foi gerado no seio das relações, não com vontade
“livre”, como autárquica e independente unidade monádica de um Eu. Como
um sattva (um ser vivente) em sua existência corpórea, os homens existem,
com o cortejo de suas ações e suas consequências, em estreita dependência
de tudo e de todos os outros entes, a saber, no mundo-samsara – “esse é o
pensamento-Karma no budismo”.15
Ora, se assim é, então não apenas nossa inteira atividade passada, mas
também futura – sobretudo se consideramos a cosmovisão de completa de-
pendência do indivíduo em relação ao todo, essa universal co-pertença de to-
das as coisas, tudo aquilo que parece poder ser decidido pela vontade, tem caráter

14
ÔKOCHI, R. Nietzsches Amor Fati im Lichte von Karma des Buddhismus. In: Nietzsche-Studien
Band-I, 1972, p. 74.
15
Apud ibid., p. 71.

Leituras de Zaratustra 393


ilusório, é efeito de superfície da consciência. Na realidade, tudo já fora pre-
determinado pelo Karma cometido e passado, de modo que o pensamento
budista do Karma poderia parecer uma mero e total fatalismo. No entanto,
isso só é verdade para quem considera o pensamento do Karma (na medida
em que este relativiza, senão anula, a liberdade da vontade) apenas teorica-
mente, como uma doutrina, como uma especulação a respeito do universo e da
existência humana no universo.
O mesmo não ocorre, porém, para aquele que vivencia esse pensamento
num registro sensível-corporal ou seja, como vivência própria de a autoilumi-
nação. Este não o experimenta a partir da raiva impotente, e muito menos da
amarga resignação. Trata-se, antes, para ele – e por mais paradoxal que isso se
afigure , de um acolhimento voluntário do destino, portanto, de uma vivência de
Si como destino, portanto, da liberação do acesso para um Si-Próprio ineludível.
Ora, vejamos como isso se processa em Nietzsche, o filósofo da vontade
de poder: “Minha plena realização do fatalismo. 1. Por meio do eterno retorno
e da pré-existência. 2. Por meio da eliminação do conceito ‘vontade’”.16 Pois,
este ato preciso, realizado em mim e por mim – ao qual pertence incontor-
navelmente minha singularidade – é a expressão do todo em mim e por mim.
“Atestar o imenso caráter aleatório de todas as combinações: segue-se daí que
toda ação de um homem tem uma influência ilimitada e grande sobre tudo o
que vem. A mesma veneração que ele, olhando para trás consagra ao destino
inteiro, ele tem que consagrar a si próprio. Ego fatum.”17
A experiência do Eu como fado é também a vivência da superação da an-
títese entre acaso e necessidade, é a co-incidência entre afirmação do todo (o
destino) e a bendição de si. Eis um dos aspectos mais fortemente vivenciais da
filosofia de Nietzsche, seu experimentum crucis:

Uma tal filosofia experimental, como eu a vivo, antecipa até mesmo, a modo
de experimento, as possibilidades do niilismo fundamental: sem que com isso
fosse dito que ela permaneça em um não, numa negação, numa vontade de
não. Pelo contrário, ela quer, antes, transitar para o inverso disso tudo – para
um dionisíaco dizer-sim ao mundo, como ele é, sem subtração, exceção, escolha
– ela quer o ciclo eterno –, as mesmas coisas, a mesma lógica e não lógica dos
elos. Estado supremo que um filósofo pode alcançar; postar-se dionisiacamen-

16
NIETZSCHE, F. Fragmento Póstumo da primavera – outono de 1884, nr. 25[214]. In: Sämtliche
Werke. Kritische Studienausgabe. Ed. G. Colli und M. Montinari. Berlin, New York, Munchen: de
Gruyter, DTV. 1980, vol. 11, p. 70.
17
Id., Fragmento Póstumo da primavera – outono de 1884, nr. 25[159], p. 55.

394 Oswaldo Giacoia Junior


te em face da existência –: minha fórmula para isso é amor fati...18

A possibilidade do niilismo mais fundamental – a afirmação da fatalidade


de tudo o que foi, é e será, inclusive de mim mesmo como ego fatum – transfor-
ma-se no contrário da negação, do rancor brotado da amargura e impotência.
Em vez de ser o exodus de um trânsfuga, uma razão para negar e depreciar a
vida, essa experiência constitui um transitus, a travessia para uma incondicio-
nal afirmação. Afirmar a necessidade é a formulação cabal de um paradoxo:
de um ponto de vista exclusivamente lógico, necessário é aquilo que não pode
ser, nem ser pensado de outro modo.
Querer o necessário, e não meramente resignar-se, mas querer novamente
tudo, da cappo, com a mesma lógica e não lógica dos elos, sem acréscimo nem
subtração é, como experiência intensiva e vivência singular, um trânsito para
o inverso da negação, uma inflexão da própria necessidade – ao mesmo tempo,
ego fatum e amor fati. Vontade, nesse sentido, é o inverso do ilusório livre arbí-
trio de indiferença, ancorado no delírio de onipotência do ego solipsista. Essa
conjunção entre ego fatum e amor fati pode ser lida como a versão existencial do
ensinamento do eterno retorno do mesmo, como (auto)supressão da vontade,
realizada no gesto mesmo de sua afirmação suprema.

Oh tu, minha vontade! Tu, inflexão de toda constringência,


Tu, minha Necessidade! Guarda-me de todas as pequenas vitórias!
Tu, destinamento de minha alma, que eu chamo de destino!
Tu-em- mim!
Oh vontade, inflexão de toda constringência, tu minha necessidade!
Poupa-me para a única grande vitória!19

Wende der Not é a única grande vitória, porque é a própria necessidade que
se in-flexiona, reflexiona, e, assim, acolhe-se e aprova-se em sua totalidade.
Talvez não seja por acaso que Nietzsche tenha escolhido exprimir essa vivên-
cia decisiva no contexto alegórico de um fatalismo fatalismo “russo”, aproxi-
mado por ele paradoxalmente com o Budismo:

Estar doente é em si uma forma de ressentimento. – Contra isso o doente


tem apenas um grande remédio – eu o chamo de fatalismo russo, aquele
fatalismo sem revolta, com o qual o soldado russo, para quem a campanha
torna-se muito dura, finalmente deita-se na neve. Não mais reagir absolu-

18
Id., Fragmento Póstumo da primavera – verão de 1888, nr. 16[32], vol. 12, p. 492.
19
Id., Also Sprach Zarathustra. III. Von den alten und neuen Tafeln, vol. 4, p. 246s.

Leituras de Zaratustra 395


tamente… ‘Não pela inimizade termina a inimizade, pela amizade termina
a inimizade’; isto se acha no coração dos ensinamentos de Buda – assim não
fala a moral, assim fala a fisiologia.20

O jogo entre necessidade e liberdade, despertar do verdadeiro si-próprio


e ilusão onírica da pseudossubjetividade tem como contrapartida ética a opo-
sição entre inocência e culpa ou responsabilidade. Em sentido moral, o auto-
despertamento implicaria na co-incidência entre a absoluta autodeterminação
libertária, com a mais irrestrita responsabilidade por si, por seus pensamen-
tos, sentimentos e ações, por um lado, e a mais completa (auto)supressão de
toda perspectiva da culpa e da responsabilidade.
Se a liberdade só pode ser compreendida como Wende der Not, como infle-
xão reversiva da própria necessidade, como amor fati, então estamos em face
de um pauperismo do riquíssimo, para nos valermos de uma expressão de
Nietzsche. Todavia, o que é o livre? De acordo com a saga de nossa mais antiga
linguagem, o livre é frî, o ileso, o poupado, aquilo que não foi tomado num
uso. ‘Libertar’ significa originária e propriamente: poupar, ao proteger, deixar
algo repousar em sua própria essência. Proteger, porém, é: conservar a essên-
cia no abrigo, no qual ela só permanece se é admitida a repousar no retorno
para a própria essência. Proteger é: auxiliar continuamente nesse repousar,
acalentá-lo. Só essa é primeiramente a essência do poupar que se apropria de
si mesma, que não se esgota de modo algum na negatividade do não-tocar e
do mero não-utilizar.
Num extrato mais profundo, liberado por uma leitura budista de Nietzs-
che, o que é essencial nesse insight não se impõe como tese cosmológica ou fi-
losofema, mas a “segurança instintiva na prática” – outro nome para vivência e
experiência existencial. Nesse sentido, somente Eu, em cada aqui e agora, sou
unicamente responsável por tudo aquilo que aqui e agora penso, sinto e faço.
A finitude infinita constitui, assim, um dos principais elos para um contra-
ponto frutífero entre Nietzsche e o budismo. Vimos, até aqui, que a extrema
impotência da vontade consiste, para Nietzsche, em sua aversão com relação
ao (passar do) tempo, com a transitividade do tempo – na experiência de não
poder querer para trás. A ela podemos relacionar a prisão budista na repetição
infinita do Karma-samsara. Em ambos os casos, análogo sentimento de opres-
são, condenação, punição, a existência inteira do homem e do mundo vivida,
interpretada sob a ótica ressentida do castigo, da punição.

20
Id., Ecce Homo. Por que sou tão sábio, 6. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p. 30s.

396 Oswaldo Giacoia Junior


Essa magna terapia de vida coloca o ressentimento sob uma nova pers-
pectiva – pois a raiz de todo sentimento de vingança, culpa e ressentimento
está plantada contra a experiência inexorável do passar do tempo, contra a
dimensão do “foi”, perante a qual a vontade nada mais pode. Também para
Nietzsche, o tempo pode ser considerado como a “matéria”, o “recheio” da
existência finita. Nessa condição radica o ressentimento, que, em sua essên-
cia, é vingança contra a impotência da vontade em relação ao tempo, atestada
pela inexorabilidade do passado. Em que consiste, pois, a natureza e a verdade
interna do ressentimento? Ressentimento é vingança. Ora, se assim é, qual
seria, então a função desse vingar-se por impotência?

Todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais
precisamente, um agente; ainda mais especificamente, um agente culpado
suscetível de sofrimento – em suma, algo vivo, no qual possa sob algum
pretexto descarregar seus afetos, em ato ou in effigie [simbolicamente]:
pois a descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de
entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de
qualquer espécie. Unicamente nisto, segundo minha suposição, há de se
encontrar a verdadeira causação fisiológica do ressentimento, da vingança e
quejandos, ou seja, em um desejo de entorpecimento da dor por meio do afeto.21

Com a psicologia de Nietzsche, aprendemos que o ressentimento é, ao


mesmo tempo, hostilidade e entorpecente, estimulante e narcótico. Mais
precisamente: o ressentimento é anestesia, mais ou menos duradoura para
sofrimentos crônicos, que assediam a consciência, ou permanecem latentes
em estado de infraconsciência. Ora, o sofrimento mais abissal é justamente a
má-vontade, a indisposição que é aversão contra o inexorável fluxo do tempo.
Por outro lado, o caminho da autoiluminação, da conversão de samsara
em nirvana, e novamente de nirvana em samsara, parece residir numa relação
visceral com o tempo, na qual se pode, enfim, renunciar à onipotência infantil
da vontade. Trata-se de um processo cuja precondição – ao menos na interpre-
tação que Nietzsche faz do budismo – é uma terapia prévia do ressentimento,
como inefável potência do perdão, do esquecimento.
Se tudo já tinha sido predeterminado pelo Karma cometido e passado, o
pensamento budista do Karma pode parecer uma variante do fatalismo total.
No entanto, isso só é verdade para quem considera o pensamento do Karma
(na medida em que este relativiza, se não anula, a liberdade da vontade) ape-

21
Id., Genealogia da Moral. III, 15. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
1998, p. 116.

Leituras de Zaratustra 397


nas teoricamente, como uma doutrina, como uma especulação a respeito do
universo e da existência humana no universo.
O mesmo não ocorre, porém, para aquele que vivencia esse pensamento
num registro sensível-corporal – ou seja, como vivência própria de a autoilu-
minação. Este não o experimenta a partir da raiva impotente, e muito menos
da amarga resignação. Trata-se, antes, para ele – e por mais paradoxal que isso
se afigure –, de um acolhimento voluntário do destino, portanto, de uma vivência
de Si como destino, da liberação do acesso para um Si-próprio iniludível.
O pensamento nietzschiano do eterno retorno, por sua vez, na variante
do amor fati, mantém uma desconcertante afinidade com esse entendimento
budista da existência: Leiamos um dos textos mais eloquentes nesse sentido:

O maior dos pesos – E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse


furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como
você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por in-
contáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor, e cada prazer e
cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno
em sua vida, terá de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e
ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e tam-
bém esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre
virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!’ – Você não se pros-
traria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou
você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: ‘Você é
um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”.22

Ao voluntário acolhimento da iluminação budista corresponderia, pois, em


Nietzsche, a doutrina sensível-corporalmente vivida da inocência do vir-a-ser.

Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou assado, por se
achar nessas circunstâncias, nesse ambiente. A fatalidade do seu ser não pode
ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será… Cada um é necessário,
é um pedaço de destino, pertence ao todo, está no todo – não há nada que possa
julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isto significaria julgar, medir,
comparar, condenar o todo… Mas não existe nada fora do todo!
O fato de que ninguém é mais feito responsável de que o modo do ser não
pode ser remontado a uma causa prima, de que o mundo não é uma unidade
nem como sensorium nem como ‘espírito’, apenas isto é a grande libertação –

22
Id., A Gaia Ciência. Aforismo 341. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2001, p. 230.

398 Oswaldo Giacoia Junior


somente com isso é novamente estabelecida a inocência do vir-a-ser.23

Sob a ótica do eterno retorno, a toda existência humana individual é um


fragmento singular do todo, inexoravelmente submetida a uma temporalidade
circular, em eterna repetição, juntamente com tudo o que é inefavelmente
grande e pequeno – o que foi e será sucedendo-se novamente, numa mesma
sequência e ordem.
Nesse mesmo sentido, também para o pensamento budista, não há ne-
nhum Karma cometido que não advenha do Karma passado – seja ele tão ínfi-
mo quanto um grãozinho de pó sobre o pelo de um coelho ou de uma ovelha.
Nos dois casos, temos, pois, tanto a negação da autarquia e independência do
ego quanto uma relação fundamental com o tempo: com o passar do tempo,
com o passado, com a transitividade. De um lado, com o elemento místico do
purva carma, de outro, com a não menos enigmática dimensão do “foi”.
Nessa relação, e sobre ela, repousam duas possibilidades diametralmente
opostas, dois sentidos de existência. Num deles, pode ocorrer uma experiên-
cia de anulação de si por meio do passado:

Apesar de que o feito e a atividade do homem singular no passado, despro-


vido de início, tem de relacionar-se com ele mesmo, e apenas ele tem de ser
responsável por isso, sua atividade, e as consequências dela estão em relação
com todas as outras –, pois tudo, mesmo a existência humana, é ser-em-
-relação. O fato de que o homem, como um dos sattva, é existência ligada ao
Karma, não pode separar-se daquele outro fato, segundo o qual o homem é
também e somente como um ser-na-dependência de tudo e de todos.24

Nietzsche, por seu turno, expressa essa mesma vivência num capítulo de
Assim falou Zaratustra significativamente intitulado “Da redenção”:

Assim se chama o ranger de dentes e a mais solitária tribulação da vontade.


Impotente contra o que está feito – a vontade é um mau espectador para
todo passado. A vontade não pode querer para trás: que não possa quebran-
tar o tempo nem a voracidade do tempo – essa é a mais solitária tribulação
da vontade… “O que foi, foi” – assim se chama a pedra que [a vontade] não
pode remover. E assim ela remove pedras por raiva e por aversão, e vinga-se

23
Id., Crepúsculo dos Ídolos. Os quarto grandes erros (8). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras,  2006, p. 46s.
24
ÔKOCHI, R. Nietzsches Amor Fati im Lichte von Karma des Buddhismus. In: Nietzsche-Studien
Band-I, 1972, p. 70.

Leituras de Zaratustra 399


naquilo que não sente, do mesmo modo que ela, raiva e aversão.25

Assim, vingança é repugnância e aversão da vontade contra o tempo. Nis-


so consiste também o essencial da impotência vontade – na impossibilidade de
confrontar-se não só com uma dimensão do tempo, com um período ao lado
dos outros, mas de suportar aquilo o que o tempo essencialmente confere, dis-
pensa e lega – o passar e o que passou; e, ao legá-lo, ele também já o congela
na dimensão de um “já era” inamovível. O tempo só doa e concede o que ele
tem, e ele tem o que ele é – a saber, o decurso, o transcurso, a travessia.

A vingança é, para Nietzsche, a repugnância da vontade contra o tempo.


Isso agora diz: A vingança é a repugnância da vontade contra o decorrer
e seu decorrido, contra o tempo e o seu “era”. A repugnância da vingança
dirige-se contra o tempo à medida que deixa estar o decorrido ainda apenas
enquanto passado, que se congela na rigidez desse algo definitivo […]. A
repugnância da vingança permanece acorrentada a esse “era”; assim como
em todo ódio também se oculta a mais abissal dependência daquilo de que
o ódio constantemente no fundo deseja tornar-se independente, o que, po-
rém, nunca pode, e cada vez menos pode, enquanto odeia.26

A vontade, sem consciência da própria impotência, vinga-se naquilo contra


o que se quebra sua força, contra o que sobre ela prevalece – o inamovível
e definitivo, a que se acorrenta mais fortemente, a cada ato de vingança. A
repugnância da vontade contra o fluir do tempo é a outra face da adversidade
contra o imutável. Dessa repugnância nasce todo desejo de Além-do-Mundo,
toda necessidade de consolo metafísico.
A finitude infinita constitui, assim, um dos principais elos para um contra-
ponto frutífero entre Nietzsche e o Budismo. Vimos, até aqui, que a extrema
impotência da vontade consiste, para Nietzsche, em sua aversão com relação
ao (passar do) tempo, com a transitividade do tempo – na experiência de não
poder querer para trás. A ela podemos relacionar a prisão budista na repetição
infinita do Karma-samsara. Em ambos os casos, análogo sentimento de opres-
são, condenação, punição, a existência inteira do homem e do mundo vivida,
interpretada sob a ótica ressentida do castigo, da punição.
Como vingança, o ressentimento é um sentir de novo – portanto, um sen-
timento reativo, retorno inevitável de uma indisposição crônica, reação contra

25
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. II: Da Redenção. In: KSA. op. cit., p. 177s.
26
HEIDEGGER, M. Que Significa Pensar? Trad.Paulo R. Schneider. In: Schneider, P. R. O Outro
Pensar. Ijuí: Editora Unijuí, 2005, p.182s.

400 Oswaldo Giacoia Junior


uma dor, sem cessar reposta pela irreversibilidade do tempo. Ressentimento é
o grilhão que mantém o ressentido cada vez mais aferrado a seu sofrimento. O
ressentimento é uma modalidade culpada, biliosa, envenenadora de ascetismo.
Ele adoece, destrói. É assim que o único vivido se repete como o retorno do
mesmo, atando o ressentido à roda de Ixion do Karma-samsara. O ressentimento
– eterno retorno da vingança e seus aparentados – é, definitivamente, a impossi-
bilidade de acesso ao verdadeiro self, seja pela via budista da auto-iluminação, seja pela
vivência sensível-corpórea da aceitação voluntária do destino, sob a forma do amor fati.
Esclarecer-se sobre o ressentimento é superar a aversão contra o tempo, con-
tra o passar do tempo. É fazer uso de uma terapia budista como vitória sobre a
incapacidade de esquecer e assimilar vivências negativas. Simulacro de medica-
ção, a vingança só aprofunda a doença, envenena a ferida que finge curar. Saúde
significa, em Nietzsche, uma autoterapia capaz de livrar alguém do venenoso sen-
timento do ressentido, pelo restabelecimento da força plástica de esquecimento.
Do lado do budismo, o caminho da autoiluminação, da conversão de sam-
sara em nirvana, e novamente de nirvana em samsara, parece residir numa re-
lação visceral com o tempo, na qual se pode, enfim, renunciar à ilusão infantil
de onipotência da vontade. Trata-se de um processo cuja precondição – pelo
menos na interpretação que Nietzsche faz do budismo – é uma terapia prévia
do ressentimento: no budismo, a introjeção da crueldade – que o núcleo origi-
nário e essencial de toda existência ascética – conduz a uma experiência supre-
ma e paradoxal de vida, aquela que exige renúncia a toda forma de hostilidade,
que encontra no pacifismo absoluto sua atmosfera vital, que leva, portanto, a
renunciar até mesmo à autodefesa, a toda modalidade de disputa, dissenso,
contenda, rancor. Desprovido de qualquer reatividade, o budismo converte-se
em afirmação absoluta, que inocenta o todo no ciclo eterno de samsara-nirvana.
Trata-se aqui de uma inaudita correspondência com inflexão da vontade na
filosofia de Nietzsche, experiência na qual a vontade chega ao seu ponto cul-
minante de realização precisamente ao autossuprimir-se, afirmando a fatalidade
inexorável de todas as coisas. Assim, a necessidade se transforma numa Wende
der Not – numa experiência e vivência corporal da concretude da existência, no
aqui e no agora, para além de qualquer doutrina, de qualquer asserção teórica
como enunciado tético. Ao contrário, estamos inteiramente imersos na pobre-
za (Armut) mais espiritual, como bem viu Heidegger; pobreza que é também
libertação. A vontade máxima não é mais realização própria da vontade, a von-
tade de poder tornou-se impotente como vontade, a liberdade é autoafirmação
da necessidade cósmica. Samsara e nirvana são uma só e a mesma coisa.

Leituras de Zaratustra 401


Com efeito, esse autodespertamento não pode acontecer por meio de força
humana. Assim como a escuridão só é conhecida como escura por meio da luz,
assim também o fundamento e a origem do homem só podem ser iluminados
por meio daquilo que vai além do humano, que está abaixo dele. A compreen-
são de que a vida no samsara é pura e simplesmente sofrimento só é possibili-
tada por algo que se encontra além do samsara. Esse algo desprovido de nome,
inominável, chama-se no budismo dharma, tathagata ou “a outra força”.27

De acordo com essa tese, entre o Eu e o Todo existe uma relação de depen-
dência: não se pode aprovar uma vivência singular – portanto, aquela que aqui
e agora se processa em mim – sem com isso pressupor o todo. Sendo assim, o
que se aprova (acolhe, bendiz, afirma) não é propriamente minha decisão, mas
uma autoaprovação do todo, a partir de mim, em mim, ou seja, a máxima re-
conciliação possível entre a parte e o todo, entre a singularidade e o universal.

O que é que, no pensamento de Nietzsche, vem ao encontro do japonês im-


pregnado pelo budismo? Não as asserções e considerações diretas de Niet-
zsche sobre o budismo. Por certo, porém, a última fase de seu pensamento
experimental, na qual ele alargou, por assim dizer, com violência, o horizonte
do pensamento ocidental de até então, e parece possibilitar a “superação do
niilismo por meio do próprio niilismo”. – Esse pensamento parece-me entrar
em acordo com o pensamento budista. Pois a superação do idealismo – “todo
idealismo é mendacidade perante o necessário”, diz Nietzsche – é, com efei-
to, a única e singular tarefa e a meta de um esforço do budismo ao longo de
2.500 anos. Seja sunyata (vazio), seja natureza, seja niratman (não-egoidade),
seja a força estranha à qual se confia o crente no jodo-shinshu, tudo isso visa,
em última instância, a definitiva superação do idealismo, que é a fonte fun-
damental do aprisionamento no Eu, do infortúnio.28

Aquilo que podemos vislumbrar, a partir da contribuição de uma interpre-


tação budista do ensinamento do amor fati – ou seja, da culminância da filoso-
fia de Nietzsche –, é a experiência da liberdade como criação. A coincidência
de acaso e necessidade presente na noção de liberdade como inflexão da ne-
cessidade (Wende der Not) é comparável à unicidade e singularidade absoluta
de toda criação artística e de todo lance num jogo sem trapaça.

ÔKOCHI, R. Wie man wird, was man ist. Gedanken au Nietzsche aus östlicher Sicht. Darmstadt :
27

WBG, 1995. p. 111.


28
Id., Nietzsches Amor Fati im Lichte von Karma des Buddhismus. In: Nietzsche-Studien Band-I,
1972, p. 42.

402 Oswaldo Giacoia Junior


Zaratustra, o homem teórico e o feminino1

Sabina Vanderlei

Sim, a vida é uma mulher!


(Nietzsche, A gaia ciência, § 339)

É preciso fazer da morte uma festa e,


ao mesmo tempo, ser um pouco malvado com a vida:
uma mulher que quer nos abandonar, a nós!
(Nietzsche, Fragmento póstumo 4[5],
novembro de 1882-fevereiro de 1883)

O objetivo deste artigo é estudar as críticas ao homem teórico dentro do


projeto de transvaloração de todos os valores exposto em Assim falou Zaratus-
tra. Consideraremos a hipótese de que o feminino se apresenta nesse livro
como um importante recurso dentro desse projeto, estando ele contextualiza-
do dentre os temas centrais da derradeira filosofia de Nietzsche.2
A princípio, destacaremos o que ele considera como homem teórico, prin-
cipalmente na última fase da sua obra. Em seguida, mostraremos alguns en-
contros de Zaratustra com estes homens teóricos. Por fim, apresentaremos o
feminino, e é nesse ponto que faremos uma breve distinção, dentro do pen-
samento nietzschiano, do feminino-mulher e do feminino-força, contextuali-
zando este último no projeto de transvaloração de todos os valores exposto
em Assim falou Zaratustra.

1
Comunicação apresentada no VI Simpósio Internacional Assim Falou Nietzsche: Nietzsche e as Ci-
ências, em novembro de 2009.
2
De acordo com a tese de Oswaldo Giacoia Jr. exposta em seu artigo “Nietzsche e o Feminino”. In:
Natureza Humana, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 09-32, 2002.

Leituras de Zaratustra 403


1. Dos homens teóricos à necessidade de transvaloração

O nascimento da tragédia é considerado pelo próprio Nietzsche como o pri-


meiro passo dado em seu projeto de transvaloração,3 tendo escrito, nesta oca-
sião, sobre o problema de Sócrates e sobre o dionisismo. No entanto, é em
Assim falou Zaratustra que tal projeto teria se consumado, por se tratar de um
livro que abre a última fase de sua produção intelectual, segundo a periodiza-
ção dos principais comentadores,4 e no qual estão condensadas as principais
ideias desenvolvidas na sua derradeira filosofia, tais como a morte de Deus,
além-homem, niilismo, vontade de poder, amor fati e eterno retorno.
Ao lançar um olhar para os antigos gregos, Nietzsche comentou acerca da
anarquia e do desregramento dos instintos da antiga Atenas e, paralelo a isso,
também apontou a atitude décadent de Sócrates, que, como defesa, estabeleceu
a mais bizarra equação que existe na filosofia: razão = virtude = felicidade.5
Ao analisar “o problema de Sócrates”,6 escreve que este filósofo se considera-
va indispensável à velha Atenas, uma vez que esta se via totalmente à mercê da
tirania dos instintos e, diante disso, constatou que deveria ser inventado um
contratirano à altura:7 a racionalidade foi concebida como a salvadora.8 Po-
rém, se a racionalidade é tão tirana quanto os instintos, quem se apega a ela,
não o faz por opção, mas sim por obrigação, como um último recurso de quem
está numa situação de perigo, de emergência, de patologia.9 Assim foi inau-
gurado um novo filosofar, no qual os continuadores do pensamento socrático
seriam aqueles que se esquivam de desejos obscuros e aderem à luz diurna
da razão. Estes são, aos olhos de Nietzsche, os homens teóricos, décadents par

3
Crepúsculo dos ídolos, “O que devo aos antigos”, § 5.
4
Scarlett Marton, por exemplo, distingue três períodos na produção intelectual de Nietzsche. O pri-
meiro, entre 1870 e 1876, abrange: O drama musical grego, Sócrates e a tragédia, A visão dionisíaca
do mundo, O nascimento da tragédia, Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, Cinco
prefácios para cinco livros não escritos, A filosofia na época trágica dos gregos e as Considerações
extemporâneas. O segundo período, de 1876 a 1882, inclui os dois volumes de Humano, demasiado
humano, Miscelâneas de opiniões e sentenças, O andarilho e sua sombra, Aurora, A gaia ciência (até
a quarta parte). O terceiro e último período, de 1882 a 1888, engloba Assim falou Zaratustra, a quinta
parte de A gaia ciência, Ensaio de autocrítica e outros prefácios, Para além de bem e mal, Genealogia
da moral, O caso Wagner, Nietzsche contra Wagner, Crepúsculo dos ídolos, O anticristo, Ecce homo,
Ditirambos de Dionisos, além de frgmentos póstumos. (MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças
cósmicas aos valores humanos. p. 25).
5
Crepúsculo dos ídolos, “O problema de Sócrates”, § 4.
6
Ibid., §1 a 12.
7
Ibid., § 9.
8
Ibid., § 10.
9
Ibid.

404 Sabina Vanderlei


exellence, e ele os adverte, com certa dose de ironia: “é preciso ser prudente,
claro, límpido a qualquer preço: toda concessão aos instintos, ao inconsciente,
leva para baixo”.10
Em Além do bem e do mal, Nietzsche discorre sobre o “homem de ciência”
como uma espécie sem nobreza, sem autoridade, sem autossuficiência.11 Ele é
descrito como um ser laborioso, que possui “paciência e compreensão de seu
posto e lugar”, que tem uniformidade e moderação nas habilidades, e instinto
para perceber seus iguais e o que eles necessitam. Possui doenças e defeitos de
uma espécie não-nobre, é pleno de inveja, mesquinhez e mediocridade peculia-
res à sua espécie.
Eruditos, doutos, homens de ciência, homens teóricos, são termos que
designam uma espécie de seres que têm como virtude maior a busca da ver-
dade a todo custo. São tipos desvitalizados, doentes, que se deixam seduzir
por palavras e certezas, são “idólatras de conceitos”,12 possuem o instinto
de conhecimento hipertrofiado, não aceitam o testemunho dos sentidos e do
corpo, e, com isso, a realidade não se revela a eles.13
A transvaloração nietzschiana é uma radical crítica à tradição metafísica
quando se propõe a analisar as ideias de “verdade” e “valor”. Nos escritos que
sucedem Assim falou Zaratustra, tais noções são submetidas a uma nova arti-
culação, ganhando ainda mais consistência,14 como podemos observar neste
trecho de Além do bem e do mal:

Necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores
deverá ser colocado em questão – para isso é necessário um conhecimento das
condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram
e se modificaram [...]. Tomava-se o valor desses valores como dado, como efe-
tivo, como além de qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou
hesitação em atribuir ao “bom” um valor mais elevado que ao do “mau”, mais
elevado no sentido da promoção, da utilidade, da influência fecunda para o ho-
mem (não esquecendo o futuro do homem). E se o contrário fosse verdade?15

O conhecer metafísico seria um apego ao passado, tal como lemos neste


fragmento póstumo: “conhecer é um remeter: conforme sua essência, um re-

10
Ibid.
11
Além do bem e do mal, § 206.
12
Crepúsculo dos ídolos, “A razão na filosofia”, § 1.
13
Ibid., § 3.
14
MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos, p. 25.
15
Além do bem e do mal, “prólogo”, § 6.

Leituras de Zaratustra 405


gressus in infinitum”,16 o que sugere um conhecimento não aberto ao processo
criador, uma vez que o homem teórico quer, além de manter olhos no passado,
fixar conceitos e fazer com que o verdadeiro seja duradouro. Este mundo de
verdades idealizadas e eternas é o opositor de Nietzsche, ao qual ele declara
guerra,17 e cujas armas principais são suas palavras proferidas com golpes de
martelo. O projeto de transvaloração de todos os valores visa pôr em xeque os
valores da tradição socrático-platônica, nos convidando a questionar nossas
certezas e a suspeitar de nossas crenças:

[...] o valor do mundo está na nossa interpretação [...]; O mundo que nos
importa em certa medida é falso, ou seja, não é um estado de coisas, mas o
resultado da invenção e do arredondamento de uma escassa soma de ob-
servações; ele se encontra “no fluxo” como algo que se transforma, como
uma falsidade que está sempre se deslocando, que nunca se aproxima da
verdade: pois não existe “verdade” alguma.18

A filosofia nietzschiana nos provoca dúvida e suspeita – “e se o contrário


fosse verdade”–, pois não há verdade alguma, a própria ideia de verdade é
posta em dúvida, bem como as nossas certezas, e o único mundo existente é
este, no qual experimentamos a realidade do corpo, das sensações, das pul-
sões e das mudanças ininterruptas. O prazer das certezas dá lugar à dúvida,
ao incerto e, em vez da causalidade, o “constante criativo”.19 Transvalorar é
abrir um espaço em que se torna operatório o conceito de valor,20 e isso faz do
pensamento nietzschiano uma crítica radical ao próprio projeto epistemoló-
gico predominante na tradição filosófica.21 No prólogo de Crepúsculo dos ídolos,
lemos que esta transvaloração se trata de uma guerra aos homens teóricos, es-
tes “idólatras de conceitos”, que sempre “manejaram, por milênios, conceitos-
-múmias”.22 É contra esta postura que Zaratustra professa a sua doutrina: “O

16
“Fragmento póstumo 2[132], de outono de 1885 – outono de 1886”. In: Sabedoria para depois de
amanhã. Seleção dos fragmentos póstumos por Heinz Friedrich; Tradução Karina Janini. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
17
Crepúsculo dos ídolos, “prólogo”.
18
Fragmento póstumo 2[108] de outono de 1885 – outono de 1886, op. cit.
19
A Vontade de Poder, § 1059 (1884). Utilizamos a edição em português traduzida por Marcos
Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes, com apresentação de Gilvan Fogel, Ed.
Contraponto. Optamos por cotejar com a tradução para a língua inglesa em função das datas dos
fragmentos, que estão colocadas entre parêntesis. The Will to power. Tradução de Walter Kaufmann &
R. J. Hollingdale. Org. Walter Kaufmann. New York: Vintage Books, 1967.
20
MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. p. 25.
21
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade, p. 7
22
Crepúsculo dos ídolos, “A razão na filosofia”, § 1.

406 Sabina Vanderlei


meu Eu ensinou-me um novo orgulho que eu ensino aos homens: não mais
enfiar a cabeça na areia das coisas celestes, mas, sim, trazê-la erguida e livre,
uma cabeça terrena, que cria o sentido da terra!”.23
Nietzsche elege Zaratustra como o herói trágico para protagonizar essa
batalha contra esses homens teóricos, cabendo a ele as tarefas de anunciar a
morte de Deus, o advento do além-homem e ser o mestre do eterno retorno. É
ele quem parte as tábuas dos velhos valores e das velhas verdades e, por este
motivo, é um criador.24 Zaratustra é autor de um novo filosofar, cuja ótica
valorativa não mais recai na busca por verdades e conceitos, pois o valor maior
é a vida entendida aqui como multiplicidade de forças e vontade de poder.25

2. Zaratustra e os homens teóricos

Nietzsche escreve em Ecce homo: “Zaratustra tem mais valentia no corpo


do que os pensadores todos reunidos”.26 Ora, se o homem teórico é aquele
que seguiu a luz diurna da razão para não sucumbir à escuridão dos instintos,
Zaratustra, ao contrário, tem valentia no corpo, e esta é a sua “virtude persa”.
Ele é um afirmador e está sempre em processo de autossuperação.
Ao deslocar a ótica valorativa do mundo metafísico para a vida, Nietzsche
consolidaria a sua ideia de transvaloração em Assim falou Zaratustra; este teria
sido o seu mais longo exercício, o de “deslocar perspectivas: razão primeira por-
que talvez somente para [ele] seja possível uma ‘transvaloração de todos os
valores’”.27 O percurso do personagem-título, seus diálogos com diferentes
personalidades, suas reflexões e todo este enredo condensam as principais
ideias da sua derradeira filosofia. Destacaremos aqui, brevemente, alguns en-
contros do profeta com os homens teóricos que surgem em diferentes roupa-
gens, e também quando se depara com feminino.
Zaratustra encontra com os “famosos sábios”, moradores das cidades, ser-
vidores do povo, adoradores das verdades do além-mundo e tementes a Deus.
O profeta tenta estimulá-los a deixar de lado seu ímpeto de venerar verdades
e os convida para uma viagem ao deserto sem os seus conceitos-ídolos, pois
é somente sem qualquer tipo de idolatria que o espírito se liberta do gozo da

23
Assim falou Zaratustra, “Dos visionários do além-mundo”.
24
Ibid., “prólogo”, § 9.
25
A Vontade de Poder, § 641 (1883 – 1888), op. cit.
26
Assim falou Zaratustra, “Por que sou um destino”, §3.
27
Ecce homo, “Por que sou tão sábio”, §1.

Leituras de Zaratustra 407


servidão e pode, assim, encontrar a vontade afirmadora do homem. Porém, a
vontade de veneração e o desejo de verdade são mais fortes, e Zaratustra per-
cebe que eles ainda não são capazes de segui-lo.28
Mais adiante surge um “ser sublime”, de rosto obscuro, solene em sua feiura,
regressando da floresta do conhecimento e todo enfeitado de feias verdades. Ele
é um penitente do espírito, e a sua felicidade cheira a desprezo pela terra e pelo
corpo. Solucionou enigmas, dedicou sua vida a discutir teorias sobre gostos e
sabores, mas não aprendeu o riso e a beleza.29 Semelhantes a este “ser sublime”
são os “imaculados buscadores do puro conhecimento”. Eles são estéreis, melin-
drosos, hipócritas, também desprezam tudo o que há de terreno, envergonham-se
de obedecer às suas próprias vísceras e buscam a felicidade na pura contemplação.
Zaratustra encontra também com “o homem da sanguessuga”, que deu seu
próprio sangue pelo conhecimento e optou por ser cego para tudo o mais que
não deseja saber. Ele se apresenta ao profeta como o “homem consciencioso
do espírito”, como aquele que está sempre preocupado com minúcias e enten-
de, como ninguém, do “cérebro de uma sanguessuga, para que essa escorre-
gadia verdade não escapula mais”.30 Ele transforma o próprio conhecimento
numa sanguessuga, julga tudo objetivamente e usa sempre a sua poderosa len-
te de aumento para não deixar passar um milímetro desta preciosa verdade.
O homem consciencioso do espírito fala para Zaratustra que, pelo medo,
tudo se explica, e foi dele que nasceu a ciência, considerada a mais alta virtu-
de. Deste diálogo podemos inferir que esta seria a ciência metafísica, que se
subtrai do mundo sensível, nega o corpo, as paixões, os instintos, e, por isso,
este “homem consciencioso do espírito” coloca o medo como a gênese desta
ciência. Ao ouvir isto, o profeta, neste mesmo discurso, ameaça virar esta ver-
dade de cabeça para baixo, dizendo que o medo lhe é uma exceção, e acrescen-
ta: “a coragem pela aventura, pelo incerto e pelo que ainda não foi ousado, tem
asas de águia, prudência de serpente e tem o nome ‘Zaratustra’”.31 É como
o profeta se apresenta, como ele se identifica, ele é a coragem, a incerteza, a
ousadia, o que nos remete à selvagem sabedoria, ao dionisíaco. Se o filosofar
socrático é o contratirano da predominância dos instintos na antiga Atenas,
aqui, Zaratustra não se apresenta como um contrapeso, mas sim como a leve-
za necessária para suavizar o peso da ciência socrático-platônica.

28
Assim falou Zaratustra, “Dos famosos sábios”.
29
Ibid., “Dos seres sublimes”.
30
Ibid., “A sanguessuga”.
31
Ibid., “Da ciência”.

408 Sabina Vanderlei


O que levaria Zaratustra a opor a sua coragem à virtude da ciência do ho-
mem teórico?
No seu discurso “Do ler e escrever”, o profeta diz: “corajosos, despreocu-
pados, escarninhos e violentos – assim nos quer a Sabedoria [die Weisheit]: ela
é mulher e ama somente quem é guerreiro”.32 Ora, se o medo teria dado luz
à ciência do homem teórico, a verdade invertida de Zaratustra, porém, teria
nascido da coragem, e o seu alimento é o amor da Sabedoria-mulher. Assim,
teríamos aqui uma oposição: de um lado, medo, ciência e homem teórico,;
do outro, coragem, sabedoria e feminino. É esse componente feminino que
iremos analisar agora, ele é um importante ingrediente no projeto de transva-
loração de todos os valores.

3. O feminino e a transvaloração de todos os valores

Nos escritos nietzschianos, aparecem dois tipos de femininos, e, por este


motivo, faremos uma breve distinção entre um e outro.
Em alguns momentos da sua obra, Nietzsche se refere ao feminino como
gênero, contextualizando-o na sua época, a Europa do final do século XIX, en-
quanto ocorria o movimento da emancipação feminina e da luta pela igualdade
de direitos. Criticava o platonismo embutido nos ideais feministas, e tinha
uma espécie de receio de que a idealização do ser feminino afastasse tanto
o homem quanto a própria mulher do feminino-natureza.33 As mulheres do
seu tempo estavam comprometidas com o ato de esclarecer,34 já os homens
queriam “através da cultura tornar forte o sexo fraco”.35
A outra vertente do feminino abordada por Nietzsche, é o natural, aquele
que se expressa no corpo, na beleza e na sensualidade, por isso mesmo que
sempre teve o hábito de se enfeitar.36 Nietzsche usa essa ligação do eterno-fe-
minino com a aparência e com a superfície da pele para expressar o dionisíaco,
diferentemente dos homem que sempre buscam verdades atrás de verdades. O
eterno-feminino é força, é natureza selvagem, instinto, nos remete aos ciclos
da vida, aos antigos ritos da sexualidade sagrada e, por isso mesmo, exerce um

32
Ibid., “Do ler e escrever”.
33
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Nietzsche e o Feminino”. In: Natureza Humana, p. 17.
34
Além do bem e do mal, § 232.
35
Ibid., § 239. Não é desse feminino que trataremos nesse escrito. O debate sobre o feminino na filoso-
fia de Nietzsche também é polêmico e remetemos o leitor à bibliografia no final deste artigo.
36
Ibid., §232.

Leituras de Zaratustra 409


irresistível poder de atração em nós, fertilizando todo e qualquer ato artístico
e criador.
Zaratustra mostra um relacionamento peculiar com este feminino, que lhe
aparece com diferentes roupagens e com os quais tem intensos e importantes
diálogos. Além da Sabedoria-mulher já mencionada, ele também dialoga com
a Vida, que, apesar de ser um substantivo neutro em alemão [das Leben], re-
cebe um tratamento nitidamente feminino por parte do profeta. Há, ainda, os
diálogos com a “Hora mais silenciosa” [Die stillste Stunde], com a “Eternidade”
[die Ewigkeit] e com a sua própria “Alma” [die Seele]. Por que é tão importante o
contato com o feminino nesta trajetória de transvaloração de todos os valores?
Em “O canto da dança”, Zaratustra canta para jovens moças inspirado na
Vida [das Leben], mas, neste primeiro encontro, ela lhe aparece insondável e
furtiva, pois, aqui, Zaratustra ainda não havia superado o espírito de gravidade
do niilismo, e nem havia passado pela experiência do eterno retorno. Neste
momento, a Vida se mostra para ele como uma mulher selvagem, mutável e,
por isso mesmo, pouco virtuosa.37 Mais adiante, no discurso “Do superar-se a
si mesmo”, Zaratustra ausculta os segredos da Vida para o aprendizado sobre
a vontade de poder.38 Mais tarde, após sua experiência com o eterno retorno,
o profeta reencontra a Vida e, desta vez, olham-se nos olhos, dão-se as mãos e
dançam juntos.39 Essa intimidade com a Vida sugere a superação dos valores
metafísicos, bem como uma maior intimidade de Zaratustra com um aspecto
da existência até então desprezado pela tradição: a realidade do corpo, dos
afetos, do mundo das forças e do acaso.
Com a Hora mais silenciosa [Die stillste Stunde], a “sua temível Senhora”,
Zaratustra vivencia o momento da escuridão e da solidão dos fortes.40 Neste
ponto da sua trajetória, abandona seus amigos e discípulos e se recolhe para
“sazonar”, pois “seus frutos estão maduros, mas ele ainda não está maduro
para seus frutos”. Esta é a hora da afirmação da vontade de poder, que só
pode acontecer na própria solidão, tão temida por todos. Há um diálogo com
“algo” que não possui voz, diálogo este que ecoa o processo de autossupe-
ração de Zaratustra: “zombaram de mim quando achei o meu próprio cami-
nho e comecei a percorrê-lo”. E então ouve a resposta: “Que importância têm
suas zombarias! És alguém que desaprendeu a obedecer, cumpre-te, agora, dar

37
Ibid., “O canto da dança”.
38
Ibid., “Do superar-se a si mesmo”.
39
Ibid., “Um outro canto da dança”.
40
Ibid., “A hora mais silenciosa”.

410 Sabina Vanderlei


ordens!”.41 Neste momento, porém, ele ainda não teria tido a experiência do
eterno-retorno, que ocorre mais adiante.
Zaratustra tem intensos diálogos com a sua Alma [die Seele]. Em “O canto
noturno”, ela lhe aparece escura porém borbulhante como uma fonte e can-
tante como alguém que ama. É uma alma dadivosa, tão plena de si mesma que
dá e sente inveja da sua própria doação. Tem anseio de amor, mas não de um
qualquer, é um amor em sua mais elevada concepção: o amor fati. É um senti-
mento fundamental para os que partem as velhas tábuas e afirmam a existên-
cia. Com este amor, Zaratustra desce à profundidade da sua Alma para, então,
subir ao mais elevado pico montanhoso da afirmação da vontade de poder.42
Somente após enfrentar a escuridão da Alma, ele pôde se encontrar com
a Eternidade [die Ewigkeit] à luz do meio-dia, a ela declarar seu grande amor,
e com ela celebrar o casamento místico: “como nunca deveria eu almejar a
eternidade e o nupcial anel dos anéis – o anel do retorno? Nunca encontrei
uma mulher da qual desejaria ter filhos, a não ser esta mulher que amo: pois
eu te amo, ó eternidade!”.43 Este casamento consumaria o projeto de trans-
valoração de todos os valores, quando Zaratustra se afirma como o mestre do
eterno retorno e então faz rolar nos precipícios velhas tábuas partidas, que são
as tábuas dos velhos valores metafísicos. “E onde atuam mãos criadoras, há
muita morte e destruição”.44
Pensar sobre personagens como a Vida, a Sabedoria, a Hora mais silencio-
sa, a Alma e a Eternidade, considerando-os expressões do feminino na traje-
tória de Zaratustra é considerar que estes elementos exercem no personagem-
-título um poder de sedução para a criação de novos valores. Por meio deste
feminino Zaratustra afirma a vontade de poder e o amor fati para, então, passar
pela experiência do eterno retorno.
Nietzsche menciona ainda um outro feminino na abertura do prólogo de
Além do bem e do mal, livro publicado logo após Assim falou Zaratustra. É levan-
tada uma suposição da “verdade como uma mulher”. Quais seriam as con-
sequências se os homens teóricos aceitassem esta provocação? Ele responde
com ironia: “não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na
medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres?”.45 Os fi-

41
Ibid.
42
Ibid., “O canto noturno”.
43
Ibid., “Os sete selos”.
44
“Fragmento póstumo 10[20], Junho – julho de 1883”, op. cit.
45
Além do bem e do mal, “prólogo”.

Leituras de Zaratustra 411


lósofos, “sempre ridiculamente sérios e graves, jamais entenderam de mulhe-
res, jamais perceberam as nuances do ‘eterno feminino’”;46 por isso, Nietzsche
considera que seria desastroso também para a filosofia moderna, na medida
em que ela é predominantemente dogmática, pois a Verdade-mulher é leveza
e graça, simboliza o que há de menos acessível ao mesmo tempo em que está
sempre à mostra.
Confrontando este trecho com o prólogo de A gaia ciência, em que é criti-
cada a “vontade de verdade a todo custo”, a Verdade novamente é relacionada
a uma mulher, “que tem razões para não deixar ver suas próprias razões”,47
e Nietzsche, então, acrescenta que talvez seu nome seja Baubo, uma persona-
gem da mitologia grega. O mito conta que Deméter ficou inconsolável depois
que Hades raptou brutalmente sua jovem filha Coré. Deméter se revoltou
contra Zeus e Hades e decidiu abdicar das suas funções de deusa. Baubo apa-
receu para animá-la, levantou as suas próprias saias e mostrou suas genitálias,
provocando uma sonora gargalhada na deusa-mãe.48
Muito se comenta acerca do mistério do feminino. Mas o que mais pode-
ria existir debaixo das saias de Baubo senão suas genitálias? Ao se referir à
verdade-mulher, Nietzsche fala de um feminino que tanto se esconde quanto
se revela, mas que ao mesmo tempo não se coloca inacessível e que não se re-
fugia em além-mundos. Não há nada que todos já não conheçam debaixo das
saias de uma mulher, não há nenhum mistério a ser desvendado, pois “o es-
pírito é mais superficial do que se acredita”.49 Em contrapartida, o instinto de
conhecimento do homem teórico não tem pudores ante a verdade metafísica,
mergulha fundo, desnudando toda e qualquer veste que recobre a superfície
da natureza. Diante disso, Nietzsche lança uma de suas “máximas e flechas”:
“a verdade? Oh, o senhor não conhece a verdade! Ela não é um atentado a
todos os nossos pudeurs [pudores]?”50
O instinto de conhecimento seria artificial, teria sido inventado num dado
momento histórico; por outro lado, o natural é a superfície, o único mundo
existente, no qual há o embate incessante das forças. Debaixo das saias de
Baubo não há mistério, mas há natureza, aquela que cria e que renova, mas
que se cobre apenas com finos véus, que as mulheres costumam usar como
adereços. “A Verdade-mulher é a potência artística do disfarce, da transforma-

46
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Nietzsche e o Feminino”. In: Natureza Humana, p. 11.
47
A gaia ciência, “prólogo”, § 4.
48
BRANDÃO, Junito. Mitologia grega volume I, p. 291
49
“Fragmento póstumo 26[68], verão - outono de 1884”, op. cit.
50
Crepúsculo dos ídolos, “Máximas e flechas”, §16.

412 Sabina Vanderlei


ção, da dissimulação”,51 o que torna o feminino um dos recursos usados no
projeto de transvaloração de todos os valores para evocar a ideia de aparência,
de superfície e de corporeidade. Zaratustra nos diz que conhecimento é tudo
aquilo que é profundo e que deve subir à sua altura, tal como o mar quer
elevar a sua profundidade ao sol, exibindo o seu desejo com mil seios para
o astro.52 Seria necessário, então, Zaratustra desejar todos estes aspectos do
feminino para que a sua tarefa de transvaloração pudesse ser completada, não
por meio do intelecto, mas pelo amor, pois Zaratustra é como o sol, que lá do
alto ama todos os mares profundos.53
Enquanto o “homem consciencioso do espírito” idealiza uma verdade no
cérebro da sanguessuga, debaixo das saias de Baubo, porém, estão suas geni-
tálias, e levantar suas vestes é o mesmo que olhar para a vida, entendendo-a
enquanto embate de forças e, a partir desta, criar novos valores. Talvez seja
esse o motivo de Zaratustra ter encontros tão significativos com o feminino,
que teria sido uma das fontes de inspiração da sua selvagem sabedoria.
Ao homem teórico, Zaratustra deixa sua irônica mensagem partindo da
perspectiva de quem vê tudo de cabeça para baixo. O que há de mais impor-
tante, qual é o mais alto valor? Em vez de procurar a resposta no cérebro de
uma sanguessuga, quem sabe, procurá-la num outro lugar mais convidativo:
debaixo das saias de Baubo!

Referências Bibliográficas

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FERRAZ, Maria Cristina Franco. Nietzsche, o bufão dos deuses. Rio de Janeiro: Relu-
me-Dumará, 1994.
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche e o Feminino. In: Natureza Humana. São
Paulo, v. 4, n. 1, p. 9-32, 2002.
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Brasiliense, 1990.
NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civi-
lização brasileira, 2000.

51
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Nietzsche e o Feminino”. In: Natureza Humana, p. 13.
52
Assim falou Zaratustra, “Do imaculado conhecimento”.
53
Ibid.

Leituras de Zaratustra 413


______. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
______. Além do bem e do mal: prelúdio à uma filosofia do futuro. Trad. de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
______. A vontade de poder. Trad. de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco
José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
______. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. de Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
______. Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com o martelo. Trad. de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
______. Sabedoria para depois de amanhã. Seleção dos fragmentos póstumos por
Heinz Friedrich; Tradução Karina Janini. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. The Will to Power. Trad. de Walter Kaufmann & R. J. Hollingdale. New York:
Vintage Books, 1967.

414 Sabina Vanderlei


Parte VII

Obras de Nietzsche e a tradição


O Assim falou Zaratustra
como obra capital de Nietzsche

José Nicolao Julião

Entre os meus escritos ocupa o meu Zaratustra um lugar


à parte. Com ele tenho presenteado a humanidade com a
maior dádiva que até agora lhe foi feita. Este livro, com
uma voz que se eleva por cima dos milênios, não é apenas
o maior livro que existe, o genuíno livro da atmosfera
das alturas – a realidade integral do homem encontra-se
abaixo dele a uma distância imensa –, é também o mais
profundo, nascido da mais íntima riqueza da verdade, o
poço inesgotável a que nenhum alcatruz desce sem vir à
superfície cheio de ouro e de bondade...
(Ecce homo, prólogo, 4.)

Este ensaio não pretende comentar a epígrafe supracitada para saber se


Nietzsche tem ou não razão em relação às suas próprias considerações soberbas
acerca da sua obra Assim falou Zaratustra (AFZ); não nos interessa saber se se
trata da megalomania sintomática de uma crise mental anunciada, ou da autor-
revelação de uma genialidade mal compreendida em um momento de aguçada
intuição. O nosso interesse é o de situar a obra AFZ no conjunto da produção in-
telectual do filósofo e conferir-lhe o lugar de destaque como obra capital (Haup-
twerk). Portanto, isso não só devido aos temas centrais da filosofia de Nietzsche
nessa obra apresentados, seu conteúdo, mas também, devido ao estilo poético
empregado na forma como o filósofo nela expressa aquilo que é o mais profun-
do em seu pensamento. Contudo, para o proposto, revisamos certa discussão
sobre o estatuto da divisão da obra nietzschiana, e, nessa querela, defendemos
a posição tradicional de uma classificação em três partes. e que em relação a
esta disposição, o Zaratustra representa o ponto alto (Höhepunkt) da produção
intelectual de Nietzsche tanto na forma quanto no conteúdo.

Leituras de Zaratustra 417


A divisão Standard

Os intérpretes de Nietzsche, geralmente, dividem o conjunto da sua obra


em três fases. Já Peter Gast, fiel seguidor do filósofo, talvez o primeiro co-
mentador do AFZ, no prefácio da segunda edição, em 1892 – primeira edição
com todos os quatro livros reunidos –, dividiu a obra do seu mestre em três
períodos: “O primeiro (até 1876) é marcado pelo Nascimento da tragédia e as
Considerações extemporâneas; o segundo (até 1882) se estende de Humano, dema-
siadamente humano até A gaia ciência; o terceiro, enfim, é aquele do pensamento
zaratustriano”.
Lou Andréas Salomé, também discípula de Nietzsche, em seu livro bio-
gráfico Friedrich Nietzsche in seinen Werken (1924), na terceira parte dedicada ao
sistema nietzschiano, contribuiu para que a divisão em três fases ficasse assim
amplamente difundida. Entretanto, foi o próprio Nietzsche quem indicou tal
acomodação do conjunto da sua obra, destacando entre os seus livros o AFZ, e
isto pode ser constatado em sua correspondência com Overbeck e com a pró-
pria Lou Salomé no ano de 1882,1 mas, sobretudo, em uma carta de junho de
1888, enviada ao professor Karl Knortz, na qual é dito:

Do meu Zaratustra, opino que é, talvez, a obra mais profunda existente


em língua alemã, e também a mais perfeita quanto ao idioma. Mas para
perceber isto é preciso passar gerações que experimentem intimamente o
que serviu de base ao nascimento de tal obra. Quase aconselharia começar
pelas minhas últimas obras, que são as que maior espaço abarcam e as
mais importantes são (Para além de bem e mal e A genealogia da moral). Para
mim, as mais simpáticas são as obras médias – Aurora e A gaia ciência –, que
reputo como as mais pessoais. As Considerações extemporâneas, escritos de
juventude, num certo sentido, têm a maior importância para a percepção
do meu desenvolvimento.23

Não só a divisão da obra em três partes tornou-se largamente aceita, implíci-


ta ou explicitamente, pelos intérpretes, mas também a escolha dos escritos que

1
Para Lou Andréas Salomé foram enviadas duas cartas em 1882, 27.\28. 6. 1882, KGB 6\213 e 3.7.
1882, KGB 6\217. No mesmo ano foi enviada uma carta a Overbeck com conteúdo semelhante em
relação à periodização de seu pensamento, 9.9.1882, KGB 6\225.
2
KGB, 9/340.
3
Quem sugeriu a Nietzsche essa sistemática de leitura de começar pelas obras de juventude, foi Georg
Brandes, que, depois de ter recebido exemplares dos primeiros livros, confessa numa carta de 7 de
março de 1888 o seu equívoco de ter começado sua leitura pelo AFZ. Cf. Curt Paul Janz - Friederich
Nietzsche, 3 B., Carl Hanser Verlag, 1979. Vol. 3, p. 266 ss.

418 José Nicolao Julião


delimitam os períodos: o primeiro, inaugurado com a elaboração do Nascimento
da tragédia (NT), de 1871, e os seus estudos anteriores em Leipzig; o segundo
inicia-se com a elaboração e a publicação de Humano, demasiado humano (HDH),
em 1876-78; o terceiro e derradeiro período, nomeado, tardiamente, de transva-
loração (Umwertung), foi inaugurado, em forma poética, com o aparecimento do
AFZ, em 1883. Não obstante, também foi o próprio Nietzsche que, em cartas –
já citadas – e em escritos autorizados, estabeleceu esta delimitação de sua obra.
Esses períodos foram considerados por alguns intérpretes como corres-
pondentes às fases de desenvolvimento do pensamento nietzschiano. Por isso,
Karl Löwith, em seu livro Nietzsches Philosophie der Ewigen Wiederkehr des Glei-
chen (1935), no segundo capítulo intitulado “A periodização dos escritos de
Nietzsche”, aponta duas transformações radicais no pensamento do filósofo, a
saber: a primeira, de jovem reverente em espírito livre; a segunda, de espírito
livre em mestre do eterno retorno. Essas transformações aludem à tradicional
divisão em três fases. A primeira, compreendendo o NT e as Considerações ex-
temporâneas (CE), é marcada pela renovação da cultura alemã; a segunda, que
compreende HDH, Aurora (AU) e os quatro primeiros livros de A gaia ciência
(GC), mostra a busca do seu caminho na condição de espírito livre (Freigeister);
a terceira, que abrange o AFZ e as obras subsequentes até Ecce Homo (EH),
apresenta a doutrina do eterno retorno.
Karl Jaspers, em sua obra Nietzsche, Einführung in das Verständnis seines Philo-
sophierens (1936), no primeiro livro, “A vida de Nietzsche”, na parte dedicada
ao desenvolvimento da obra nietzschiana, mantém a mesma divisão em três
fases. Entretanto, apesar de incluir o Zaratustra na última fase, chama a aten-
ção para o caráter peculiar do escrito, que não se classifica em nenhum dos
estilos experimentados por Nietzsche.
Eugen Fink, em continuidade com Löwith e Jaspers, mantém a mesma po-
sição em relação à divisão do desenvolvimento do pensamento nietzschiano.
Em seu livro Nietzsches Philosophie (1960), no capítulo III, dedicado ao AFZ,
com o título de “A anunciação” (Die Verkündigung), faz a seguinte observação:

O Zaratustra inaugura a terceira e definitiva fase da filosofia de Nietzsche.


Com esta obra, o seu pensamento atinge o meio-dia; a força deste gênio
atinge o zênite. Depois do ponto de partida romântico dos seus primeiros
textos, após a reação científico-desmistificadora, Nietzsche encontra agora
a sua verdadeira natureza.

Estabelecer a divisão periódica da obra de Nietzsche, tal como generica-


mente se convencionou, não foi tão problemático, uma vez que se seguiu o

Leituras de Zaratustra 419


impulso da orientação dada por ele próprio. Porém, o mesmo consenso não
ocorreu depois, sobretudo, da publicação da edição crítica organizada por
Giorgio Colli e Mazzino Montinari, quando se tratou de eleger qual dos escri-
tos de Nietzsche melhor expressaria a sua filosofia, ou seja, qual ganharia o
status de Hauptwerk. Isso porque, apesar de Nietzsche, frequentemente, consi-
derar AFZ como o seu mais importante escrito, tal como apresentado na epí-
grafe, “Entre os meus escritos, meu Zaratustra sustenta-se por si. Com ele, fiz
à humanidade a maior dádiva que até agora lhe foi feita”.4 Nietzsche, também,
muitas das vezes, laureia outras prometidas obras como sendo o ponto alto da
sua reflexão filosófica. Essas considerações permitiram que vários intérpretes
se apropriassem dessas promessas e cometessem até mesmo absurdos com
a obra do filósofo. Alfred Bäumler (1931),5, difusor nazista do filósofo, por
exemplo, tomou A vontade de poder (VP) como o livro que continha a “filosofia
essencial de Nietzsche”, e fez dele uma bíblia para o Terceiro Reich. E Heide-
gger (1961), por sua vez, foi quem mais contribuiu para que a suposta obra
póstuma, a promessa de obra monumental, se tornasse uma legenda. Em seus
primeiros estudos sobre Nietzsche, nos anos de 1936-1937,6, teceu grandes
considerações sobre os fragmentos e, logo nas primeiras páginas, considerou
que o essencial da filosofia nietzschiana não havia sido publicado, permane-
cendo o mais autêntico, então, em silêncio. O Zaratustra, portanto, diante da
monumental obra póstuma, desempenharia um papel coadjuvante, de Vorhal-
le.7 No entanto, desde antes da publicação da edição em 3 volumes de Karl
Schelechta, de 1956, que contribui bastante para desmistificação da suposta
obra póstuma, já se consolidara a convicção de que a VP não passava de uma
quantidade desorganizada de fragmentos, manipulados pela irmã do filósofo,
logo, um material suspeito para ser considerado como Hauptwerk. Finalmente,
com o trabalho exemplar da edição crítica de Colli e Montinari, sabemos, de-
finitivamente, que tal obra nunca existiu, que ela não passava de um projeto
pretendido por nosso filósofo desde 1884, e abandonado em agosto de 1888,
movido pela ambição de uma obra ainda “maior”, nomeada, Transvaloração de
todos os valores (Umwerthung aller Werthe). Por isso, com o fim da Hauptwerk,

4
EH, Prefácio, 4.
5
Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Verl. Reclam, 1931.
6
Nietzsche, 2 B. – Pfullingen: Ghunter Neske Verlag, 1961. B. I, p.17.
7
No mesmo estudo, Heidegger chama a atenção para uma carta de Nietzsche a Peter Gast de 7.4.1884,
na qual é dito que o AFZ serviria como um vestíbulo (Vorhalle) à VP, uma espécie de porta de entrada
para o edifício principal. Nietzsche já havia enviado, em 8.3.1884, ao próprio Peter Gast, uma carta
com conteúdo idêntico, e também para Meysenburg, em duas outras cartas, no final de março e no
início de maio do mesmo ano.

420 José Nicolao Julião


assim denominada por Heidegger, parece, desde então, que os intérpretes de
Nietzsche se divergem quanto à indicação de um escrito que seja o mais em-
blemático, isto é, que melhor expresse o seu derradeiro pensamento, e, conse-
quentemente, apresentam alternativas para a divisão da obra e para a escolha
dos escritos que delimitam as fases.8

As alternativas de divisão

As alternativas para a divisão do opus nietzschiano consistem: 1) em con-


siderar substancialmente unitário todo o pensamento médio e da maturidade,
de HDH até os últimos escritos, 2) ou apontar uma posterior distinção entre o
Zaratustra e as obras mais tardias.
Ilustrando o primeiro exemplo, podemos citar Alexandre Nehamas, que, na
segunda seção da primeira parte de seu livro Nietzsche: Life as Literature(1985),
propõe uma divisão da obra nietzschiana em duas fases, antes e depois da des-
coberta do perspectivismo. Nehamas situa o surgimento do perspectivismo
nietzschiano aproximadamente em HDH, livro que marca uma ruptura radical
com a primeira fase, na qual Nietzsche se apoia nas interpretações científicas –
sobretudo biológicas, físicas e psicológicas – contra as interpretações metafísi-
cas, religiosas e estéticas do mundo. Como salienta Nehamas, Nietzsche, nos
textos de juventude, ainda fortemente influenciado por Kant, Schopenhauer e
Wagner, propõe a edificação de uma metafísica de artista em oposição a uma
metafísica racional, e também admite a existência de uma “verdadeira nature-
za do mundo”, à qual o pensamento metafísico racional não poderia ter aces-
so, mas que o pensamento trágico, por meio do coro dionisíaco, de inspiração
musical, poderia alcançar. No entanto, por mais que o pensamento trágico
revele que a natureza do mundo não tem uma estrutura ordenada, que ela é
caótica e desordenada, Nietzsche, aí, ainda, admite uma espécie de suporte
estético para o mundo que ele questionará anos depois no prefácio tardio ao

8
Não que não houvesse alternativas para a divisão da obra de Nietzsche antes da edição crítica; o
exemplo mais clássico é a proposta de Charles Andler, que, em seu livro Nietzsche, sa vie et sa pensée,
de 1958, no tomo II, p.12-16, chama a atenção para o hábito de se dividir a obra de Nietzsche em três
partes, tal como se convencionou: primeira fase, pessimismo romântico (1868-1876); segunda fase,
positivismo cético (1876-1881) e a terceira fase, período de reconstrução (1882-1888). E propõe uma
divisão em duas partes, que correspondem às duas grandes intuições de Nietzsche: a primeira, com
a descoberta da filosofia de Schopenhauer, que lhe impulsionou a elaboração do seu pensamento até
1881; a segunda, com a visão do eterno retorno, em AFZ e nas obras posteriores. Todavia, Andler não
dispunha ainda do instrumental que autores mais recentes dispõem, e que possibilita a ciência do texto
em Nietzsche. Refiro-me, sobretudo, à publicação da edição crítica.

Leituras de Zaratustra 421


NT, em 1886. A primeira fase do pensamento de Nietzsche, de modo geral,
seria guiada, então, por essa ideia, posição que, segundo Nehamas, o perspec-
tivismo nega radicalmente. O perspectivismo nega que exista uma “verdadeira
natureza do mundo”, e que esta tenha um suporte, mas antes revela que o que
existe é tão somente interpretação. Essa ideia ganha destaque, sobretudo, nos
textos da época de Para além de bem e mal (PBM), obra sobre a qual Nehamas
tece as maiores considerações. Todavia, o perspectivismo pode ser reportado,
em forma de esboço, à época de HDH, que, como mostra Nehamas, Nietzsche
considera em primeiro plano o rigor científico, a reflexão crítica e a seriedade
no conhecimento. Quanto à metafísica, à religião e à arte, são condenadas
como ilusões que se tem de superar; nesse livro, é enfatizado o caráter huma-
no, demasiado humano, de tudo o que até então havia sido considerado como
sagrado, eterno e de origem sobre-humana; esse livro é, em seu conjunto, um
repúdio a toda forma de idealismo e a toda pretensão de verdade fundante. A
verdade é apresentada como uma ficção moral, que tem sua origem no inte-
resse, mais tarde no hábito, e, finalmente, no esquecimento promovido pelo
progresso.9 É nesse livro10 que a humana necessidade de consolo é denuncia-
da como ilusão metafísica, religiosa e artística. Segundo Nehamas, Nietzsche,
no opúsculo de 1873, Sobre a verdade e a mentira em um sentido extramoral (VM),
já havia esboçado a tarefa de desmistificação da verdade, mas que a partir de
HDH ganha destaque, alcançando o seu amadurecimento na formulação deci-
siva da vontade de poder, exaltada como vontade perspectiva na época de PBM.
O que nos chama imediatamente a atenção, no livro de Nehamas, é a habi-
lidade com a qual ele trata os temas nietzschianos. Com perspicácia, ele cons-
trói um edifício arquitetônico original do pensamento de Nietzsche. Todavia,
opinamos que a divisão proposta por ele é um pouco forçada, para valorizar
justamente aquilo que mais lhe chama a atenção em Nietzsche: o perspecti-
vismo e o esteticismo. Mas, se nos ativermos ao que Nietzsche, propriamente,
de sua obra, em seus escritos, falou, sem levar em conta a correspondência,
podemos encontrar recursos suficientes para mantermos a divisão da obra em
três partes, ou pelo menos uma distinção entre as obras do período médio e as
de amadurecimento. Nietzsche, no prefácio da GM, diz o seguinte sobre HDH:

Como tenho dito, foi a primeira vez que eu trouxe à luz aquelas hipóteses
genealógicas, às quais estes tratados são dedicados, com torpeza, que eu
seria o último a querer ocultar-me, ainda sem liberdade, sem dispor de uma

9
Cf. HDH, II, § 39.
10
Cf. HDH, I, §§ 108, 238.

422 José Nicolao Julião


linguagem própria [eigne Sprache] para dizer estas coisas próprias e com
múltiplas recaídas e flutuações.11

Ao nosso olhar, quando Nietzsche fala de uma “linguagem própria”, ele


está se referindo aos conceitos-chave de sua filosofia, sobretudo, à vontade
de poder e ao eterno retorno que foram elaborados justamente no espaço que
separa HDH da GM. Portanto, julgamos que não é procedente estabelecer uma
unidade entre as duas últimas fases, pois o próprio Nietzsche considera ter
obtido ganhos em sua filosofia entre o período que separa as duas obras su-
pracitadas. Porém, concordamos com Nehamas, em suas considerações con-
cernentes à ruptura com a primeira parte.
Ilustrando o segundo exemplo de alternativa para a divisão da obra nietzs-
chiana, podemos citar Mazzino Montinari e Werner Stegmaier. Montinari, em seu
livro Che Cosa Ha Veramente Detto Nietzsche, de 1975, sem discutir explicitamente
questões de periodização, propõe uma subdivisão da fase de amadurecimento do
pensamento nietzschiano, entre uma “filosofia de Zaratustra” e um pensamento
do último Nietzsche, caracterizado pelo projeto de uma transvaloração (Umwer-
thung). Ele considera que, com o fim do projeto de elaboração da VP, em agos-
to de 1888, Nietzsche tinha uma ambição ainda maior, o projeto de uma outra
obra em quatro livros intitulada Transvaloração de todos os valores (Umwerthung aller
Werthe).12 Portanto, os textos editados no último ano de vida lúcida do filósofo,
sobre os quais Montinari tem muito apreço, são compreendidos dentro do projeto
da Transvaloração de todos os valores. O anticristo (AC) funcionaria como primeiro
livro dessa pretendida obra, tendo o Crepúsculo dos ídolos (Cr.I) como uma espécie
de obra gêmea,13 a qual teria, por sua vez, inicialmente, EH como apêndice. Já EH
foi concluído juntamente com Nietzsche contra Wagner (NW) e Ditirambos dionisíacos
(DD). Por isso, por mais que se tente identificar, posteriormente, apenas o AC
com o projeto da Transvaloração de todos os valores, para Montinari, as obras que
lhe são próximas trazem semelhantes características reflexivas e acabam por se
identificar também ao projeto. Para Montinari, então, o que caracterizaria essas

11
GM, prefácio, 4.
12
Essas informações podem ser constatadas, sobretudo, nas intenções de Nietzsche declaradas na cor-
respondência de setembro a outubro de 1888, como por ex: a Paul Deussen, em 14-09; a Georg Bran-
des, em 13-09, essas citadas por Montinari. Mas também a Carl Fuchs, em 06-09; a Meta von Salis, em
07-09; ao editor Naumann, em 07-09; a Heinrich Köselitz (Peter Gast), em 12-09; à irmã, em 14-09;
a Overbeck, em 18-10; etc.
13
Montinari chama a atenção, em “Nietzsche Lesen: Die Götzen-Dämmerung”, in Nietzsche-Studien,
13, 1984, para o fato de que Cr.I constitui um projeto paralelo ao projeto da Transvaloração de todos
os valores, seria então produto do material de VP. Mas Nietzsche, sobretudo nas cartas mencionadas
na nota anterior, se refere a Cr.I. como pertencente ao projeto da Transvaloração.

Leituras de Zaratustra 423


últimas obras seria, em última instância, o abandono paulatino, por parte de Niet-
zsche, de uma sistemática da vontade de poder que implicaria uma metafísica da
vontade, ao modo schopenhauriano, em prol do pensamento do eterno retorno,
que impede toda e qualquer tentativa de sistematização.
Apesar de todo recurso filológico de Montinari, julgamos que a sua inter-
pretação, no que concerne a uma alteração na divisão do conjunto da obra de
Nietzsche, é também um pouco forçada. Pois, como foi visto anteriormente,
segundo o intérprete italiano, o que demarcaria uma quarta fase do pensa-
mento de Nietzsche seria o abandono da elaboração de uma sistemática da
vontade de poder, tal como pretendia o projeto da obra VP, pela substituição
do projeto de escrever a Transvaloração de todos os valores, que teria, então, o
eterno retorno como centro das atenções. Essa divisão, ao nosso olhar, torna-
-se desnecessária, supérflua e até mesmo improcedente, pois nada do que fora
dito no projeto da transvaloração é novo em relação às obras escritas a partir de
AFZ, que, segundo a nossa hipótese interpretativa, já trazem em si a temática do
projeto; e, mais ainda, os temas do eterno retorno e da vontade de poder devem
ser pensados numa simbiose. Portanto, as últimas obras de Nietzsche seriam
um reforço do que já fora anunciado anteriormente e, se Montinari tem razão,
ao destacar o tema do eterno retorno como centro das atenções dessas últimas
obras, então, elas realmente estão em consonância com o Zaratustra. Pois, como
o próprio Nietzsche afirma em EH sobre o AFZ: “A concepção básica da obra, a
ideia do eterno retorno”.14,15 Logo, a nossa hipótese: todas as obras a partir do
Zaratustra devem ser pensadas em conjunto, formando uma unidade.
Como um segundo exemplo dos que subdividem a última fase da obra de
Nietzsche, temos Stegmaier, que, em seu interessante livro, Nietzsches “Gene-
alogie der Moral”, de 1994, no segundo capítulo A., propõe uma subdivisão da
terceira fase em uma quarta. A argumentação está fundamentada numa passa-
gem de EH, na parte dedicada à PBM, na qual é dito:

Depois de concluída a parte da minha tarefa que diz sim, veio em seguida
a metade da mesma que diz não e que atua pela negação: a transvaloração
mesma dos valores até agora vigentes, a grande guerra, – a evocação de um
dia de decisão.

14
EH, III, “AFZ”, 1.
15
As referências ao AFZ, nas últimas obras de Nietzsche, não se restringem apenas às aparições em Eh,
mas se encontram, também, em outras; p.ex.: em o AC, na introdução e nos parágrafos 53 e 54; em Dd,
alguns dos ditirambos pertencem ao AFZ (“Só doido! Só poeta!”, “Entre as filhas do deserto”); Cr.I,
“Como o ‘verdadeiro mundo’ acabou por se tornar uma fábula” e como o próprio Montinari chama a
atenção, as últimas linhas de Cr.I se referem ao eterno retorno, “concepção básica” do AFZ.

424 José Nicolao Julião


Com base nessa passagem, Stegmaier estabelece uma distinção entre o
AFZ e as outras obras subsequentes. AFZ seria, entretanto, a tarefa afirmati-
va e resgataria, por meio da sua poética, o sentido estético da primeira fase
em reação ao cientificismo da segunda fase. Depois do poetar filosófico do
Zaratustra, o seu sim, Nietzsche retornaria à forma científica do aforismo, ca-
racterística da segunda fase de sua obra. Os escritos subsequentes ao AFZ
seriam um “contra-movimento” (Gegenbewegung) a ele e desembocariam na
Hauptwerk, VP, e, depois, na Transvaloração de todos os valores. Stegmaier ad-
verte, primeiro, que esses livros se constituíram em pares: PBM-GM, O caso
Wagner-Cr.I e EH-AC; e, segundo, que, neles, Nietzsche remete sua crítica à
metafísica, à moral, à religião; faz também uma autocrítica;16 e, ainda, acres-
centa que esses livros representam o último desenvolvimento da radicalização
das temáticas do pensamento de Nietzsche. Desse ponto de vista, EH e AC,
como últimas obras, trazem o tema do dionisíaco como o extremo do pensa-
mento nietzschiano. Stegmaier, de forma semelhante a Montinari, por quem
talvez tenha sido fortemente influenciado, alerta que a radicalização do último
pensamento de Nietzsche se caracteriza por um afastamento do conceito de
vontade de poder. Desta forma, o conceito de Dionísio representa a superação
da vontade de nada, na qual a vontade de poder pode desembocar.
As críticas que fazemos a Stegmaier17 vão na mesma direção das já reme-
tidas a Montinari, pois, como já dissemos, as interpretações são muito seme-
lhantes, com poucas variações nas argumentações. Montinari enfatiza mais
o pensamento do eterno retorno, e Stegmaier, o tipo dionisíaco; entretanto,
podemos estabelecer uma identidade entre os dois conceitos. O próprio Niet-
zsche afirma ser o último discípulo do filósofo Dioniso e mestre do eterno
retorno.18 Sabemos que a temática do dionisíaco em Nietzsche surge em seus
primeiros escritos, e o eterno retorno é do final da segunda fase, aparecen-
do, posteriormente, como “a concepção central do Assim falou Zaratustra”. O
primeiro tema, ao nosso olhar, ganha fôlego a partir do segundo, ou seja, o
pensamento do eterno retorno passa a ser o que possibilita a manifestação do
tipo dionisíaco; isto é, após a “morte de Deus”, o eterno retorno é o pensa-
mento que redime o sentimento do nada instaurado por essa falta – o niilismo

16
Stegmaier insere também, nessa suposta quarta fase, os prefácios tardios (1886) de Nietzsche para
algumas de suas obras das duas primeiras fases.
17
É bom lembrar que Stegmaier, em sua obra, Interpretationen Hauptwerke der Philosophie - Von Kant
bis Nietzsche, Reclam, Stuttgart, 1997, considera o AFZ como a Hauptwerk de Nietzsche. Segundo ele,
devido a impossibilidade de Nietzsche de elaborar a sua verdadeira Hauptwerk, ele acabou por nomear
o AFZ como tal. Cf. p. 402-443.
18
Cf. Cr.I., “O que devo aos antigos”, 5.

Leituras de Zaratustra 425


propriamente dito – e propicia como alternativa o tipo afirmativo e elevado
dionisíaco. Essa trama conceitual é experimentada por Zaratustra ao longo do
livro. Em Zaratustra, portanto, Nietzsche revitaliza a temática trágica do dioni-
síaco do NT com o tema do eterno retorno, só que agora não mais por meio de
uma metafísica de artista, tal como a obra de juventude parecia sugerir, mas
através de uma “linguagem própria”,19 que deve ser compreendida a partir da
elaboração dos conceitos-chave de sua filosofia. É nessa direção que também
devemos compreender a ideia desenvolvida por Nietzsche em EH sobre o AFZ,
como “a parte da tarefa que diz sim”; ou seja, o “sim” que expressa a obra não
tem apenas o sentido de um pensamento afirmativo que diz sim diante das
adversidades da vida, mas também tem o sentido de indicar a parte positiva de
elaboração da sua própria filosofia.

AFZ como Hauptwerk

Portanto, segundo nossa hipótese interpretativa, Nietzsche, a partir do


AFZ teve poucos avanços em relação à elaboração de novos conceitos que ex-
plicitem de forma mais definida a sua filosofia, e jamais experimentou de for-
ma tão extraordinária o estilo poético no filosofar – mesmo em DD, coletânea
de poemas que é composta em grande parte com passagens do Zaratustra. O
filósofo, nas obras após Zaratustra – sem levar em conta as passagens excessi-
vas de EH –, muitas vezes a exalta como ponto alto (Höhepunkt) de seu pensa-
mento e também do pensamento da humanidade. Essas obras servem sempre
como esclarecimento (Erläuterung)20 ao AFZ e culminam enaltecendo-o e, por
isso, devem ser lidas em conjunto. Os exemplos mais ilustrativos dessa afir-
mação podem ser constatados nos correlatos parágrafos 24 e 25 do segundo
ensaio de GM e no notório capítulo do tardio Cr. Í, no qual se resumem as eta-
pas da tradição filosófica ocidental até o AFZ 21 Nos parágrafos da GM é dito:

19
Cf. GM, prefácio, 4.
20
Stegmaier em seu livro, Nietzsches ‘Genealogie der Moral’, questiona a ideia que as obras após
AFZ sejam consideradas esclarecimentos de esclarecimentos (vide p. 26). Entretanto, Salaquarda
chama a atenção para duas cartas de Nietzsche: uma para Overbeck, de 7-4-1884 e outra para Resa
von Schirnhofer, do início de maio de 1884, nas quais Nietzsche se refere a Aurora e também a A
Gaia Ciência como um esclarecimento antecipado (vorweggenommene Erläuterung) ao Zaratustra.
Cf. SALAQUARDA, J. – “Fröhliche Wissenschaft zwischen Freigeisterei und neuer ‘Lehre’” – in
Nietzsche-Studien, 1997, p. 169.
21
Cf., também, os parágrafos 53, e 54 do AC, a referência ao AFZ no final de Nietzsche contra Wagner
e o grande número de citações em EH.

426 José Nicolao Julião


§ 24
Concluo com três pontos de interrogação, bem se vê. “Aqui é propriamente
edificado ou demolido um ideal?”, assim me perguntam talvez... Mas não
perguntastes alguma vez o bastante a vós próprios quão caro se fez pagar
sobre a terra a edificação de todo ideal? Quanto de efetividade teve sempre
de ser caluniada e equivocada para isso, quanto de mentira santificada,
quanto de consciência transtornada, quanto de “Deus” sacrificado a cada
vez? Para que possa ser edificado um santuário, é preciso derrubar um
santuário: essa é a lei – que me mostrem o caso em que ela não foi cum-
prida! [...] Nós, homens modernos, somos os herdeiros da vivisseção de
consciência e autossevícia de milênios: nisso temos o nosso mais longo
exercício, nossa aptidão artística talvez, em todo demasiado tempo suas
propensões naturais com “maus olhos”, de tal modo que, nele, elas se ir-
manaram finalmente com a “má consciência”. Um ensaio inverso seria em
si possível – mas quem é forte bastante para isso? –, ou seja, irmanar as
propensões desnaturadas, todas aquelas aspirações ao além, contrário aos
sentidos, contrário ao instinto, contrário à natureza, contrário ao animal,
em suma, todos os ideais até agora, que são todos eles ideais hostis à vida,
caluniadores do mundo, com má consciência. A quem se dirigir hoje com
tais esperanças e pretensões? [...] Precisamente, os homens bons tería-
mos, com isso, contra nós, e, além disso, como é justo, os comodistas, os
reconciliados, os vaidosos, os delirantes, os cansados... O que ofende mais
profundamente, o que separa mais radicalmente, do que deixar notar algo
do rigor e elevação com que se trata a si mesmo? E inversamente – que
complacente, que amoroso se mostra o mundo todo para conosco! [...]
Seria necessária, para aquele alvo, outra espécie de espíritos, do que, pre-
cisamente neste século, são verossímeis: espíritos fortalecidos por guerras
e vitórias, aos quais a conquista, a aventura, o perigo, até mesmo a dor, se
tornaram necessidade; para isso seria necessário o hábito do ar cortante das
alturas, de andanças de inverno, de gelo e montanhas em todos os sentidos;
para isso seria necessária uma espécie de sublime maldade mesmo, uma
última malícia do conhecimento, muito segura de si, que faz parte da gran-
de saúde! [...] Isso, precisamente hoje, é sequer possível? [...] Mas algum
dia, em um tempo mais forte do que este presente podre, que duvida de si
mesmo, ele tem de vir a nós, o homem redentor do grande amor e do gran-
de desprezo, o espírito criador, cuja força propulsora o leva sempre outra
vez para longe de todo aparte e de todo além, cuja solidão é mal entendida
pelo povo, como se fosse uma fuga da efetividade –: enquanto é apenas seu
mergulhar, enterra-se, aprofunda-se na efetividade, para, um dia, quando
ele outra vez vier à luz, trazer de lá a redenção dessa atividade: redimi-la
da maldição que o ideal até agora depôs sobre ela. Esse homem do futuro,

Leituras de Zaratustra 427


que nos redimirá, tanto do ideal de até agora quanto daquilo que teve de
crescer dele, do grande nojo, da vontade de nada, do niilismo, esse bater de
sino do meio-dia e da grande decisão, que torna a vontade outra vez livre,
que devolve à terra seu alvo e ao homem sua esperança, esse anticristo e
antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada – ele tem de vir um dia [...].
§25
Mas o que estou dizendo? Basta! Basta! Neste ponto somente uma coisa me convém,
calar: pois senão invadiria um terreno que está reservado para um mais jovem, de
mais “futuro” e mais forte que eu, – o que somente a Zaratustra é permitido, Zara-
tustra o ímpio. 22

Nesses parágrafos, Zaratustra aparece como o redentor do animal enfermo


que é o homem. Ele é o futuro, ou melhor, o profeta do super-homem que
redimirá a humanidade do estado enfermo, niilista, no qual ela se encontra e
ensinará a redenção da vontade como a sua superação. Nietzsche demonstra
neles, então, o papel que Zaratustra desempenha como redentor do processo
evolutivo de decadência em que a humanidade se lançou e como o ensina-
mento da redenção, através da natureza do tempo, pode superar o niilismo e
afirmar uma celebração dionisíaca da vida.
O segundo escrito:

Como “o Verdadeiro Mundo” Tornou-se uma Fábula


(História de um erro)
1. O verdadeiro mundo, alcançável ao sábio, ao devoto, ao virtuoso – eles
vivem nele, são eles. (Forma mais antiga da ideia, relativamente esperta,
singela, convincente transcrição da proposição “eu, Platão, sou a verdade”).
2. O verdadeiro mundo, inalcançável por ora, mas Prometido ao sábio, ao
devoto, ao virtuoso (“ao pecador que faz penitência”). (Progresso da ideia:
ela se torna mais refinada, mais cativante, mais impalpável – ela vira mu-
lher, ela se torna cristã...).
3. O verdadeiro mundo, inalcançável, indemonstrável, imprometível, mas
já ao ser pensado, um consolo, uma obrigação, um imperativo. (O velho sol
ao fundo, mas através de neblina e skepsis: a ideia tornada sublime, desbo-
tada, nórdica, Königsberguiana)
4. O verdadeiro mundo – inalcançável? Em todo caso inalcançado. E como
inalcançável também desconhecido. Consequentemente, também não conso-
lador, redentor, obrigatório: a que poderia algo desconhecido nos obrigar? [...]
(Cinzenta manhã. Primeiro bocejo da razão. Canta o galo do positivismus.).

22
Utilizo-me aqui da tradução de Rubens Torres Filho, in Os Pensadores, p. 311-12.

428 José Nicolao Julião


5. O “verdadeiro mundo” – uma ideia que não é útil para mais nada, que
não é nem mais obrigatória – uma ideia que se tornou inútil, supérflua,
consequentemente uma ideia refutada: expulsemo-la! (Dia claro; café da
manhã: retorno do bon sens e da serenidade; rubor de vergonha em Platão;
alarido dos demônios em todos os espíritos livres.)
6. O verdadeiro mundo, nós o expulsamos: que mundo resta? O aparente,
talvez?... Mas não! Com o verdadeiro mundo expulsamos também o apa-
rente! (Meio-dia; instante da mais curta sombra; fim do mais longo erro;
ponto alto da humanidade; INCIPIT ZARATUSTRA.).23

Nessa passagem, Nietzsche se refere à sua própria filosofia duas vezes:


primeiramente, “a filosofia da manhã”, no ponto 5, como a fase em que nos
liberamos do “verdadeiro mundo”, corresponderia ao segundo momento de
seu desenvolvimento filosófico, período no qual ele desmistifica toda preten-
são de ideal da metafísica, da religião, da moral e da arte. Depois, “a filosofia
do meio-dia”, a hora sem sombra, no ponto 6, como a fase que nos liberamos
da dicotomia verdade–aparência, seria o terceiro momento de sua filosofia, e
teria Zaratustra como a mais forte expressão. Por isso tudo, o AFZ poder ser
considerado como a luz que ilumina as obras seguintes, e podemos considerar
o seu ensinamento como constituindo o pensamento do último Nietzsche.
Portanto, o AFZ além de apresentar o pensamento último de Nietzsche,
dando assim unidade a todas as obras subsequentes, também é a maior
prova de probidade intelectual do filósofo no que concerne à acribologia,
pois, nele, a formulação filosófica dos conceitos que visam à verdade – ofí-
cio do filósofo – é precedida de uma criação artística de metáforas, na qual
a busca abstrata da verdade é secundária e a estética ocupa o primeiro pla-
no. Por isso, a honestidade intelectual de Nietzsche nessa obra está posta
à prova, pois expressa nela, por meio da ficção, o seu saber. E tal como
já afirmava desde as obras de juventude, como no ensaio sobre a VM, ou
nas obras médias em seu conjunto, a verdade é produto do nosso aparato
categorial, criador de ficções, e nossa linguagem está a serviço da ilusão;
então, AFZ está em conformidade com essas exigências. Por isso, a grande
distinção que se pode estabelecer entre o saber trágico, expresso no Zara-
tustra, e o saber racional, da grande tradição filosófica, é que o primeiro
sabe-se como criador de ilusão e, o outro, por não se reconhecer como um
produto desta, lhe elege como o inimigo que deve combater. AFZ é, por-
tanto, a maior expressão em Nietzsche da sabedoria trágica criadora que

23
Ibid., p.332.

Leituras de Zaratustra 429


transforma o agir e, por isso, na passagem das “Ilhas bem aventuradas”, na
segunda parte da obra, afirma:

E a isso que haveis dado o nome de mundo, isso deve ser criado primeiro
por vós: é isto o que a vossa razão, vossa imagem, vossa vontade, vosso
amor devem tornar-se! E, na verdade, para vossa bem-aventurança, homens
do conhecimento! [...] Criar – essa é a grande redenção do sofrimento, é o
que torna a vida mais leve. Mas para que o criador exista são necessários o
sofrimento e muitas transformações. (AFZ, II,2).

430 José Nicolao Julião


Zaratustra e a gaia ciência

Adriany Mendonça
Alexandre Mendonça

A partir de 1886, Nietzsche dá inicio a um processo de reavaliação do con-


junto de sua obra, de reinterpretação do sentido de seus textos e, deste modo,
de reinvenção da imagem do autor que deles surge. Este processo, que se
inicia com a série de prefácios escritos para a reedição de alguns de seus livros
(mais exatamente O nascimento da tragédia, os dois volumes de Humano, dema-
siado humano, Aurora e A gaia ciência), deságua na escritura de Ecce homo. Neste
texto, preparado em formato autobiográfico ao final de 1888, Nietzsche, a pre-
texto de contar para si mesmo a sua própria vida, se dedica a comentar a maior
parte de suas publicações. Em meio a tais comentários, Assim falou Zaratustra
é aquele que inegavelmente ganha maior destaque.
Já o prólogo de Ecce homo observa que, dentre as obras que trazem a marca
“Nietzsche”, o “Zaratustra ocupa um lugar à parte”. O livro é apresentado
como o “maior presente já dado à humanidade”. Não só se trataria do “livro
mais elevado que existe”, do “autêntico livro do ar das alturas”, mas também
do “mais profundo”.1 Ao longo de todo o texto autobiográfico, proliferam
citações de Assim falou Zaratustra que teriam o papel de melhor esclarecer ou
evidenciar os traços que Nietzsche procura tomar como característicos da
idiossincrasia de suas abordagens. Concluindo este movimento, a última se-
ção do último capítulo de Ecce homo, sugestivamente intitulado “Por que sou
um destino” – em que Nietzsche procura fazer uma recapitulação sintética dos
principais elementos que ao longo do livro seriam associados à singularidade
de sua obra –, é taxativa: “Fui Compreendido? – Não disse palavra que não
houvesse dito já há cinco anos pela boca do Zaratustra”.2 Seja tomado como

1
Cf. Ecce homo, “Prólogo”, § 2.
2
Ibid., “Por que sou um destino”, § 8.

Leituras de Zaratustra 431


ápice, como melhor expressão de seu pensamento, seja tomado como síntese
de toda a obra, Assim falou Zaratustra é revestido com uma importância aparen-
temente incomparável à dos demais escritos.
Contudo, algumas observações de Ecce homo, sem deixar de reservar ao
Zaratustra um lugar à parte, permitem também que melhor se delineiem as
relações que se estabelecem entre este escrito ímpar e os demais. O capítulo
dedicado a Além do bem e do mal – livro cuja redação teria sido iniciada após a
publicação da última parte de Assim falou Zaratustra – previne: “A tarefa para os
anos seguintes estava traçada de maneira rigorosa. Depois de resolvida a parte
de minha tarefa que diz Sim, era a vez da sua metade que diz Não, que faz o
Não”.3 Tal comentário não só sugere a existência de duas facetas do projeto
levado a cabo pelos escritos de Nietzsche – uma afirmativa e outra negativa –,
como sugere também que a parte afirmativa de sua tarefa teria sido resolvida
com a finalização de Assim falou Zaratustra.
Não são poucos os trechos da autobiografia em que Nietzsche chama a
atenção para o vínculo indissociável entre criação e destruição, afirmação e
negação como um elemento característico de sua natureza dionisíaca. Bom
exemplo é a segunda seção do já referido último capítulo de Ecce homo. Nela,
após citar como fórmula para se compreender o sentido de seu destino uma
passagem do capítulo “Da auto superação”, segundo a qual “quem um criador
quiser ser no bem e no mal, deverá primeiro ser um destruidor, e despedaçar
valores”, Nietzsche arremata: “Eu sou, no mínimo, o homem mais terrível que
até agora existiu; o que não impede que eu venha a ser o mais benéfico. Eu
conheço o prazer de destruir em um grau conforme à minha força para destruir
– em ambos obedeço à minha natureza dionisíaca, que não sabe separar o di-
zer Sim do fazer Não”.4 Antes mesmo desta passagem, na seção 6 do capítulo
dedicado a Assim falou Zaratustra, Nietzsche já afirmava:

O problema psicológico no tipo do Zaratustra consiste em como aquele que


em grau inaudito diz Não, faz Não a tudo o que até então se disse Sim, pode
no entanto ser o oposto de um espírito de negação; [...] como aquele que
tem a mais dura e terrível percepção da realidade, que pensou “o mais abis-
mal pensamento”, não encontra nisso entretanto objeção alguma ao existir,
sequer ao seu eterno retorno – antes uma razão a mais para ser ele mesmo
o eterno Sim a todas as coisas, “o imenso Sim e Amém” [...]. “A todos levo
a benção do meu Sim” [...]. Mas esta é a ideia do Dioniso mais uma vez.5

3
Ibid., “Além do bem e do mal”, § 8.
4
Ibid., “Por que sou um destino”, § 2.
5
Ibid., “Assim falou Zaratustra”, § 6.

432 Adriany Mendonça e Alexandre Mendonça


Contudo, embora o estreito vínculo que então se estabelece entre afirma-
ção e negação seja apresentado como a marca dionisíaca por excelência que
unificaria o conjunto de sua obra, isto não impede que Nietzsche identifique
alguns de seus escritos prioritariamente ao cumprimento da parte de sua ta-
refa que diz Sim, e outros, à que diz Não. Eis como ele se refere a Aurora no
capítulo de Ecce homo em que o avalia mais detidamente: “Este livro que diz
Sim derrama sua luz, seu amor, sua ternura sobre coisas apenas ruins, e lhes
devolve ‘a alma’, a boa consciência, o elevado direito e privilégio à existência.
A moral não é mais atacada, apenas não é mais considerada”.6 Esta ideia é
retomada no capítulo seguinte e elevada a um grau ainda superior, ao se in-
terpretar o papel desempenhado por A gaia ciência: “Aurora é um livro que diz
Sim, profundo, porém claro e benévolo. O mesmo, e no maior grau, vale para
a gaya scienza”.7 Por esta perspectiva, a composição de Assim falou Zaratustra
seria o ápice, a melhor expressão de um movimento de pensamento iniciado
com Aurora e intensificado por A gaia ciência, pela qual a vertente criativa/afir-
mativa da obra nietzschiana teria sido não apenas mais bem evidenciada, mas
também, resolvida. Nesse sentido, Aurora e, sobretudo, A gaia ciência seriam
caracterizados como textos que teriam preparado as bases para a aparição do
Zaratustra. Por outro lado, a série de escritos inaugurada por Além do bem e do
mal, cuja preparação sucede a finalização do Zaratustra, parece ser apresentada
como se tivesse o sentido de levar a cabo o projeto de conclusão da parte ne-
gativa da tarefa nietzschiana, sintonizando-se mais diretamente com a guerra
ao idealismo, que, segundo Ecce homo, teria sido declarada com a publicação
de Humano, demasiado humano, já em 1878. Talvez Humano, demasiado humano
seja o texto que instaura um tipo de abordagem crítica, negativa, destrutiva,
que só retorna ao primeiro plano para receber seu acabamento final a partir
de Além do bem e do mal. Talvez isso se deva mesmo aos desdobramentos do
exercício de pensamento desenvolvido neste intervalo de tempo, em que a
parte afirmativa da tarefa nietzschiana teria sido resolvida. De todo modo, o
que os comentários retrospectivos de Nietzsche parecem sugerir é que Assim
falou Zaratustra funciona mais como finalizador de um movimento iniciado
em Aurora – intensamente explorado em A gaia ciência –, do que como marco
inaugural de uma nova fase de seu pensamento.
A primeira seção do capítulo do texto autobiográfico dedicado a Assim falou
Zaratustra chama a atenção para elementos que podem ser esclarecedores a
esse respeito. Nietzsche a inicia situando o pensamento do eterno retorno –

6
Ibid., “Aurora”, § 2.
7
Ibid., “A gaia ciência”.

Leituras de Zaratustra 433


que é caracterizado como “a mais elevada forma de afirmação que se pode em
absoluto alcançar” – em relação ao Zaratustra: ele seria a concepção fundamental
dessa obra. Toda a composição do livro, em suas quatro partes, teria se desen-
volvido em torno dele, ou para chegar a ele e à possibilidade de se explorarem
seus desdobramentos. A inspiração lhe teria vindo repentinamente, em agosto
de 1881, num de seus passeios pelos bosques perto do lago de Silvaplana. A
redação da primeira parte do Zaratustra, contudo, só teria sido iniciada em fe-
vereiro de 1883. Nesse meio tempo, Nietzsche escreve e publica A gaia ciência.
Referindo-se às seções 341 e 342 de A gaia ciência, que finalizavam o livro em
sua primeira edição, ele comenta: “Ao período intermediário, pertence a gaya
scienza, que contém mil indícios da proximidade de algo incomparável; afinal,
ela dá inclusive o começo do Zaratustra, na penúltima parte do quarto livro dá o
pensamento básico do Zaratustra”. Estas referências parecem indicar que o que
vincula intimamente esses dois livros não é algo meramente da ordem de um
traço de continuidade biográfica, proporcionado pela linearidade cronológica,
mas sim, de uma intensa sintonia conceitual entre importantes elementos que
os constituem mutuamente. Antes de vir a público através de Assim falou Zaratus-
tra, o pensamento do eterno retorno surge pela primeira vez na penúltima seção
de A gaia ciência. Na seção seguinte, curiosa e sugestivamente intitulada “Incipit
tragoedia”, entra em cena o personagem Zaratustra, primeiramente como prota-
gonista de uma narrativa tão enigmática quanto reticente, nada conclusiva, para
um texto que cumpre o papel de finalizar o livro em questão. É apenas com a pu-
blicação seguinte que o enigma parcialmente se desfaz: Assim falou Zaratustra reto-
ma, em sua primeira página, quase sem alterações, a última página da publicação
anterior, e desenvolve a narrativa conduzindo o personagem Zaratustra ao longo
de um percurso dramático, cujo clímax coincide justamente com o momento em
que o protagonista se vê diante do pensamento do eterno retorno.
Por tudo isso, poderíamos afirmar que A gaia ciência antecipa não somente
o prólogo de Assim falou Zaratustra. Talvez a questão pudesse ser melhor co-
locada se entendêssemos que Assim falou Zaratustra, a começar pelo prólogo,
leva adiante, a um patamar superior, ou às últimas consequências, as principais
conquistas do exercício de pensamento iniciado com Aurora e radicalizado em A
gaia ciência. Seguindo essa perspectiva, uma longa preparação, que se acelera e
se precipita pouco a pouco, intensificando a eficácia dos meios exercitados, teria
precedido a enigmática primeira aparição do personagem Zaratustra, o início da
tragédia nietzschiana. A partir de uma perspectiva desenvolvida por Deleuze e
Guatari em O que é a filosofia (1992), se poderia dizer que Aurora, talvez de um
modo ainda modesto, e, principalmente, A gaia ciência cuidam de construir o
plano de imanência sobre o qual se move o personagem conceitual Zaratustra.

434 Adriany Mendonça e Alexandre Mendonça


De que maneira Nietzsche constrói tal plano? O procedimento colocado
em jogo pelos escritos caracterizados prioritariamente como afirmativos pare-
cem consistir menos em atacar direto os “ideais”, os elementos de transcen-
dência – como anunciado em Humano, demasiado humano e retomado a partir de
Além do bem e do mal; trata-se muito mais de desconsiderar qualquer suposição
de transcendência, de ignorá-las, e de, a partir daí, afirmar o valor positivo
de tudo o que até então teria sido desqualificado, negativizado, caluniado em
nome da transcendência agora ausente. Isto se efetiva de maneira bastante
variada, generalizada e heterogênea. Vale destacar aqui alguns elementos que
se relacionam mais diretamente às condições que possibilitam a emergên-
cia do personagem Zaratustra: a concepção da vida no âmbito exclusivo das
aparências, a afirmação da necessidade e da universalidade das aparências; a
valorização da arte, a ampliação do conceito de arte, a valorização da arte para
além das obras de arte, a concepção da vida como arte e do conhecimento
como arte, a incitação a uma ação estética sobre a existência; a exaltação de
um pathos afirmativo, alegre, festivo, do qual o riso seria a mais alta expressão;
e, finalmente, a criação de uma imagem para o movimento da vida em sintonia
com esse pathos afirmativo, capaz de potencializar o instante, a fugacidade, o
acaso, a falta de sentido. Todos esses elementos se condensariam na composi-
ção de A gaia ciência e convergiriam para as suas páginas finais.
Em meio a tais elementos, aquele que certamente salta aos olhos mesmo
diante de uma primeira e apressada leitura é a aliança que o texto nietzschia-
no passa a estabelecer diretamente com a experimentação da forma artística.
Se, com Assim falou Zaratustra, Nietzsche assume uma distância radical do es-
tilo dissertativo, monográfico e argumentativo que costuma marcar o texto
dito filosófico ou científico, se ele investe na elaboração de uma rica prosa
poético-dramática, em que os artifícios próprios ao uso artístico da palavra
são intensamente explorados por vezes com virtuosismo, tudo isso supõe um
longo processo. A partir de Humano, demasiado humano, a adoção da escrita afo-
rismática já permite que Nietzsche construa um texto fragmentário, em que se
exercita a invenção de diferentes vozes, pelas quais perspectivas de abordagem
contundentes são apresentadas de um modo tão forte quanto sintético. Por
sua vez, A gaia ciência, num grau mais elevado do que Aurora, acrescenta à po-
lifonia do texto em aforismos a intensa exploração artística de estilos e artifí-
cios. Trata-se, sem dúvida, do texto mais heterogêneo de Nietzsche quanto ao
aspecto formal, como sugere Paulo César Souza no posfácio que acompanha
a edição (2001) de sua tradução para esse livro. Nele, encontramos séries de
poemas, textos dramáticos, diálogos, frases de efeito, textos argumentativos,
alegorias, parábolas, prosa poética, além do intenso uso da sátira, da paródia

Leituras de Zaratustra 435


e do chiste. A gaia ciência funciona como um verdadeiro laboratório, uma ver-
dadeira oficina de criação de textos que ousam ultrapassar a fronteira entre
filosofia e arte, entre discurso verídico e ficção. Como resultado deste proces-
so, surge a última página deste livro-oficina: justo aquela que viria a se tornar
a primeira página do Zaratustra.
O estreito vínculo que a escrita de Nietzsche estabelece com a arte, esta
aliança com o texto poético, ficcional, já se anuncia com o próprio título es-
tampado na capa do livro: A gaia ciência. O título alemão, “Die frölich Wis-
senchaft”, não é uma referência direta e óbvia à ciência contemporânea de
Nietzsche, de traços positivistas, mas sim, à tradução que o autor encontrou
para a expressão provençal “la gaya scienza” – expressão que ele não só adota
como subtítulo para a edição original desta obra em alemão, como parece
preferir ao lado da alternativa “gai saber”, em relação à expressão “Die Fröli-
ch Wissenchaft”.8 Trata-se de uma referência à cultura dos trovadores pro-
vençais, a um modelo de poesia que não por acaso se situava à margem da
imagem oficial que se tem da cultura medieval, referência que Nietzsche só
explicita posteriormente, como é o caso da seção 260 de Além do bem e do mal,
em que se refere aos “cavaleiros-poetas provençais” como “magníficos, inven-
tivos homens do gai saber”.
É de importância estratégica a apropriação que o autor faz desta referência.
A chamada poesia provençal é conhecida pelo seu formato musical, ostensiva-
mente artificial na exploração dos recursos poéticos – mas, apesar disso, leve
e fluente –, pela temática frequentemente provocativa e iconoclasta, e pelo
uso primoroso de uma linguagem que estabelece um campo de aproxima-
ção direta com o popular. A expressão “gaya scienza” diz respeito, portanto,
à sabedoria colocada em jogo para a elaboração e apresentação musical das
sofisticadas composições poéticas dos trovadores provençais. Batizar seu li-
vro com tal expressão é uma das estratégias de Nietzsche para instaurar um
regime de pensamento que não só toma a arte como base, que não só parte
da afirmação do artifício, da ostensiva exploração do artifício, mas que ainda
reivindica para si leveza, fluência, musicalidade, petulância e humor.9 Tanto o

8
Por vezes, a expressão “frölich Wissenchaft” é utilizada até mesmo de um modo irônico, como é o
caso da seção 293 de Além do bem e do mal. Neste texto, contra o culto do sofrimento e da compaixão
que ele supõe estar no bojo da decadente cultura europeia, Nietzsche receita o potente “amuleto do
gai saber”, acrescentando entre travessões – “frölich Wissenchaft, para que os alemães possam me
entender. Com isso, ele sugere uma significativa distância entre a “gaya scienza” e sua cultura natal.
9
A este respeito, vale checar o que afirma a seção 107 do livro em questão: “necessitamos de toda arte
exuberante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade de
pairarmos acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós”.

436 Adriany Mendonça e Alexandre Mendonça


prefácio escrito em 1886 para a segunda edição deste livro quanto o capítulo
a ele dedicado em Ecce homo tomam as “Canções do príncipe Vogelfrei” – um
conjunto de 14 poemas acrescentados como apêndice a esta segunda edição,
juntamente com um quinto capítulo – como sinais da sintonia estabelecida
com a poesia provençal. Mas os 63 poemas que compõem o “prelúdio em
rimas alemãs” talvez já cumprissem este papel. Além disso, se considerarmos
que Nietzsche se apropria da expressão “gaya scienza” ampliando seu sentido,
podemos entender que este título remete ao sentido geral que a aliança com
a arte assume neste momento, apesar dos diferentes modos pelos quais ela se
dá em diversas passagens do texto: o de evidenciar o caráter aparente, ilusório,
ficcional de suas formulações – formulações que já não pretendem valer como
verdades absolutas e reivindicam para si o estatuto de meras hipóteses. De
um modo ou de outro, trata-se de situar seu pensamento para além do lugar
comum demarcado por pretensas certezas e verdades, ou por mais ou menos
velados dogmas; trata-se frequentemente de lançar mão de artifícios poéticos
ou da referência a eles para colocar em jogo procedimentos que relativizam ou
até suspendem o sentido daquilo mesmo que eles afirmam.
A esse respeito, merece destaque a seção 84 de A gaia ciência, na qual Niet-
zsche discute as origens da poesia. Ao final do texto, ele procura chamar a
atenção para o poder persuasivo que irradia de artifícios como a rima e a mé-
trica, e que, em determinados momentos históricos, teria acabado por conferir
efeito de verdade aos enunciados poéticos. Neste texto, referindo-se mais es-
pecificamente ao regime da palavra sagrada na Grécia arcaica, no qual o poeta
funcionava como mestre da verdade por ser tido como porta-voz dos deuses,
Nietzsche trata a poesia como uma mentira persuasiva, que teria obtido efeito
de verdade por encantar seus interlocutores com a musicalidade que dela ema-
na. A partir daí, ele zomba, com evidente ironia, do fato de os filósofos mais
sérios recorrerem a citações de poetas para fortalecerem seus pensamentos e,
curiosamente, conclui o texto justamente com um verso atribuído a Homero
que não faria senão confirmar esta associação da poesia à mentira:

Não é divertido que mesmo os filósofos mais sérios, normalmente tão rigo-
rosos em matéria de certezas, recorram a citações de poetas para dar força e
credibilidade a seus pensamentos? – e, no entanto, uma verdade corre mais
perigo quando um poeta a aprova do que quando a contradiz! Pois, como
diz Homero: “Os poetas mentem demais”. 10

10
Ibid., § 84.

Leituras de Zaratustra 437


É evidente aqui a autoironia embutida na aparente contradição de finalizar
o argumento aderindo justamente ao gesto do qual ele parecia zombar quando
o associava aos filósofos “mais sérios” e ávidos por “certezas”, ironia que se
torna ainda mais intensa quando se leva em conta que, ao longo de todo o
livro, está presente não só um certo elogio à poesia como também a constante
utilização de elementos poéticos que se afinam fortemente com o abandono
do pathos da seriedade e da dogmática pretensão de se alcançar certezas defini-
tivas. O que vale para esta seção vale para todo o livro, que traz já como título
a referência à arte dos poetas provençais.
Não é à toa que estas ideias que explicitam a vinculação da poesia mais
especificamente, e da arte em geral, com o que seria uma certa modalidade da
mentira – modalidade que se afirma como mentira – são retomadas justamen-
te no capítulo “Dos poetas”, em Assim falou Zaratustra, através de enunciados
que colocam em jogo um procedimento análogo ao referido acima, reforçando
assim a íntima relação entre estes dois escritos:

“Mas o que foi que, um dia, te disse Zaratustra? Que os poetas mentem
demais? Mas também Zaratustra é um poeta.
Acreditas, agora, que, nisso, ele falou a verdade? Por que acreditas?”
O discípulo respondeu: “Eu creio em Zaratustra”. Mas Zaratustra meneou
a cabeça e sorriu.
“A mim, a fé não me beatifica” – disse – “mormente a fé em mim. Mas
admitamos que alguém tenha dito, com toda a seriedade, que os poetas
mentem demais: ele tem razão – nós mentimos demais”.11

Na contramão de todo dogmatismo e da pretensão de veicular certezas, de


suscitar fé e de arrebanhar discípulos fiéis, o texto estabelece um jogo poético,
em forma de círculo vicioso, no qual paradoxos remetem a paradoxos ad infini-
tum. Se o leitor, se deixando levar pelo jogo armado por Nietzsche, crê na pa-
lavra de Zaratustra, tomando como uma verdade absoluta, como uma certeza
digna de ser levada a sério, a ideia de que os poetas mentem demais, ele é por
isso mesmo incitado a dela desconfiar, ou até a aderir a uma perspectiva a ela
oposta ao perceber que ela mesma também teria sido veiculada por um poeta
(Homero, Zaratustra, Nietzsche, pouco importa) e, portanto, por um possível
mentiroso. Se o poeta é um mentiroso, não estaria ele mentindo ao se afirmar
como mentiroso? E, se ele estiver mentindo, poderíamos concluir que ele é
o oposto do que diz ser? Poderíamos concluir que ele é um “homem veraz”?

11
Cf. Assim falou Zaratustra, “Dos poetas”.

438 Adriany Mendonça e Alexandre Mendonça


Neste caso, seríamos levados a novamente aceitar a tese de que os poetas
mentem, posto que ela teria sido veiculada por um possível “homem veraz”
que, no entanto, talvez minta ao se dizer mentiroso. Ou, em vez disso, seria
a afirmação da mentira a única verdade que se poderia esperar de um poeta
mentiroso por excelência? Configura-se assim um círculo vicioso que não nos
permite alcançar qualquer certeza, que afasta qualquer espécie de respostas
definitivas e mantém tais questões no campo do indecidível, do enigmático.
Tudo isso contribui para que se esclareça o sentido que a expressão “gaya
scienza” assume na obra de Nietzsche. Tanto quando a toma como título de
seu livro como quando, em escritos posteriores, a utiliza para batizar sua pró-
pria filosofia, ele amplia o sentido original do termo. A gaia ciência diz respeito
a um regime de pensamento que reconhece e afirma os seus limites, que toma
o campo das aparências como campo próprio para o exercício do pensamento,
que assume seu caráter necessariamente aparente, ilusório e, por assim di-
zer, ficcional, artístico. Aliás, trata-se, antes de reconhecer e afirmar o mundo
aparente como o único existente, de conceber a própria vida por um modelo
estético e de, assim, situar o pensamento a partir do próprio jogo artístico que
constitui a existência. A seção 54 do livro em questão é emblemática a este
respeito:

O que é agora para mim a aparência? Verdadeiramente, não é o oposto de


alguma essência – que posso eu enunciar de qualquer essência, que não os
predicados de sua aparência? Verdadeiramente não é uma máscara mortuá-
ria que se pudesse aplicar a um desconhecido X e depois retirar! Aparência
é, para mim, aquilo mesmo que atua e vive, que na zombaria de si mesmo
chega ao ponto de me fazer sentir que tudo aqui é aparência, fogo-fátuo,
dança de espíritos e nada mais – que, entre todos esses sonhadores, tam-
bém eu, o “homem do conhecimento”, danço a minha dança, que o homem
do conhecimento é um recurso para prolongar a dança terrestre e, assim,
está entre os mestres de cerimônia da existência, e que a sublime coerência
e ligação de todos os conhecimentos é e será, talvez, o meio supremo de
manter a universalidade do sonho e a mútua compreensibilidade de todos
esses sonhadores, e, precisamente com isso, a duração do sonho.12

Este texto cumpre o papel de apresentar o caráter meramente aparente


do mundo como algo necessário e universal e de, assim, inaugurar uma com-
preensão da vida no âmbito exclusivo das aparências. Por trás das aparências
não haveria nada a ser conhecido definitivamente, nenhum fundamento, ne-

12
Cf. A gaia ciência, § 54.

Leituras de Zaratustra 439


nhum X a ser decifrado. A partir daí, a própria ideia de essência, se pensada,
só poderia ser pensada secundariamente, como mais uma aparência, como
um efeito que se atinge pela nomeação dos atributos da aparência. Se a vida
se constitui num jogo artístico de aparências, o próprio conhecimento, como
parte da vida, se revela como parte deste jogo, como meio de prolongá-lo e
de preservar a universalidade do sonho no qual inevitavelmente vivemos. A
única certeza admitida é a de que, inevitavelmente, se vive e se precisa viver
sob o domínio exclusivo da ilusão – o que, por sua vez, leva a se colocar em
jogo a possibilidade de também essa certeza não passar de mais uma ilusão
necessária à vida. Novamente se evidencia aqui que o que há de paradoxal e
irônico nesta perspectiva assumida por Nietzsche: é que ela não pode ser afir-
mada sem assumir-se também como necessariamente ilusória e, ainda, como
ilusoriamente necessária.
A afirmação da necessidade e da universalidade da aparência se articula
diretamente ao modo pelo qual Nietzsche passa a compreender e a valorizar a
arte. Longe de concebê-la como imitação degradada do real, à moda platônica,
ou como atividade metafísica do homem, pela qual se acessaria um plano su-
perior da existência, à moda romântica, ele agora toma a arte como um mode-
lo pelo qual se pode compreender a vida e o conhecimento. Assim, ele amplia
o sentido da palavra arte de modo a compreender a própria existência como
fenômeno estético. Se tudo é aparência, se a própria vida se constitui num
jogo artístico, a especificidade das obras de arte estaria na maneira pela qual
elas ostentam o artifício, pela qual elas apontam o caráter eminentemente
artificial de sua constituição, pela qual elas evidenciam sua natureza artificial
de mera aparência. A seção 107 de A gaia ciência cumpre o papel de esclarecer
o sentido do elogio à arte que atravessa as páginas da obra. Nela, Nietzsche
retoma a ideia de que a ilusão e o erro são elementos integrantes da vida em
todas as suas instâncias, de que são condições de existência da percepção e do
conhecimento; mais uma vez, agora de forma explícita, emerge a ideia de que
a própria existência pode ser compreendida como um fenômeno estético. A
arte é então apresentada como uma “espécie de culto ao não verdadeiro” que,
ao evidenciar os artifícios que a constituem, nos sensibilizaria para perceber o
que há de artificial e artístico na própria vida e, mais do que isso, para ver com
bons olhos o caráter meramente aparente de tudo o que nos cerca: estimularia
nossa boa vontade com relação à aparência. Por meio da arte, seríamos levados
a compreender o caráter positivo e necessário das ilusões inerentes à existên-
cia, o caráter positivo e necessário das ilusões que constituem o que chama-
mos de conhecimento. Seríamos levados a olhar com boa consciência para o
mundo de meras aparências em que vivemos, e ainda a estabelecer um outro

440 Adriany Mendonça e Alexandre Mendonça


tipo de relação com o mundo, não mais pautada pela crença moral no valor
superior da verdade, mas sim na afirmação do erro, da ilusão e da aparência
como elementos próprios e imprescindíveis ao funcionamento da vida. Daí
ele afirmar explicitamente nesta seção que, pela arte, nos são dados os meios
e a boa consciência para que possamos fazer de nós mesmos um fenômeno
estético, afirmação que soa como incitação a ultrapassarmos os limites que se-
parariam a vida da arte, não apenas no sentido de nos compreendermos e nos
aceitarmos como personagens que tomam parte na encenação deste espetácu-
lo que poderíamos identificar com vida, mas ainda no sentido de investirmos
numa ação estética sobre a existência, ou seja, num modo de agir que já não
se apoia no apego à verdade, ou a qualquer valor de ordem moral, mas sim, na
consciência de que lidamos com um mundo de puras aparências eternamente
cambiantes, e de que nossas ações e pensamentos valem como intervenções
artísticas que nos possibilitam tomar parte neste jogo pelo qual as aparências
são permanentemente remodeladas.
Esta compreensão da arte como algo que se coloca para além da obra de
arte e a ideia de uma ação estética sobre a existência – elementos que já se
insinuavam na seção 174 da Miscelânea de opiniões e sentenças e na seção 218 de
Aurora – são retomadas insistentemente no quarto capítulo de A gaia ciência.
A seção 290 chama a atenção para a necessidade de que o homem atinja a
satisfação consigo mesmo, situando a arte como um instrumento para se con-
seguir tal efeito. Mais adiante, na seção 290, Nietzsche propõe que se aprenda
com os artistas a utilizar toda a série de invenções e artifícios para tornar as
coisas belas, atraentes e desejáveis, mesmo quando elas não o são, concluindo
o texto com a incitação para que nos tornemos poetas autores de nossas vi-
das, principiando pelas coisas mínimas e cotidianas. Se, como sugere a seção
299, as coisas jamais são belas, atraentes e desejáveis em si mesmas, se, como
afirma logo em seguida a seção 301, o que quer que tenha valor no mundo
não o tem em si mesmo, mas apenas graças às invenções e às criações empre-
endidas por homens de propensão artística, a arte pode ser valorizada como
uma atividade criativa pela qual podemos investir na produção de um senti-
do afirmativo para as singularidades que compõem a nossa vida. Seria uma
atividade pela qual podemos vir a criar a nós mesmos, a afirmar até mesmo
nossas idiossincrasias, conferindo-lhes a imagem da necessidade e da beleza,
convertendo em virtude aquilo que, sob uma perspectiva moral, talvez fosse
interpretado como fraqueza, e permitindo, assim, que deixemos de lado as va-
lorações universais a partir das quais tradicionalmente avaliamos nossas ações
e nosso suposto caráter. Na seção 335, esta articulação entre a valorização da
arte como atividade que possibilita a reinterpretação da vida e a ultrapassa-

Leituras de Zaratustra 441


gem das valorações morais é sugerida de um modo mais direto. Neste texto,
Nietzsche ataca diretamente a suposição de leis e valores universais a partir
dos quais seriam julgadas nossas condutas, e nos convida a criar ideais pró-
prios, a instituir nossas próprias tábuas de valores para, assim, nos tornarmos
aqueles que somos, criando-nos a nós mesmos: “É tempo de se enojar com
toda a tagarelice moral de uns sobre os outros [...]. Nós, porém queremos nos
tornar aqueles que somos – os novos, únicos, incomparáveis, que dão leis a si
mesmos, que criam a si mesmos”.13
A singularidade da aliança que a gaia ciência nietzschiana estabelece com a
arte talvez se constitua no principal elemento pelo qual se instaura um plano
para o estabelecimento de um pensamento radicalmente alternativo ao lugar
comum habitado por aqueles que Nietzsche, já na primeira seção do livro
em questão, identifica caricaturalmente como os “doutores da finalidade da
existência”.14 Este tipo, identificado diretamente ao moralista e, portanto, ao
antípoda do homem de gaia ciência, é apresentado como o típico professor de
ética, que sobe ao palco da existência e, para que tudo o que acontece neces-
sariamente e sempre de um modo espontâneo possa aparecer como racional e
como lei suprema, inventa uma segunda vida, uma outra realidade, um plano
de transcendência e, por meio de seus truques velados, rebaixa o mundo de
aparências em que vivemos a um plano secundário, desqualificando-o como
aparente, falso e enganoso. Nietzsche diagnostica, por trás deste procedimen-
to e modo de valorar, a debilidade da espécie humana, que, incapaz de supor-
tar o caráter necessariamente fortuito do que existe, precisa acreditar em um
sentido para a existência. Apesar de revestidos com a pompa da racionalidade,
os ensinamentos professados pelos doutores da finalidade da existência não
passariam de precárias tentativas de se fixarem leis e sentidos para o movi-
mento da vida que atenderiam não a qualquer razão superior, mas à necessi-
dade de se produzirem consolos para o homem amargurado com a vida. Em
última instância, os doutores da finalidade da existência teriam a rancorosa in-
tenção de inviabilizar a possibilidade de rirmos da existência, de nós mesmos,
ou dele.15 Já Nietzsche, desde a primeira seção de A gaia ciência, aposta no riso
e se recusa a tomar a sério aquilo que, para ele, não passaria de criações sem-
pre renovadas de atores farsantes, obstinados em representar papéis heroicos.
Na seção 327, intitulada justamente “Levar a sério”, seu posicionamento
desmistificador aponta a negatividade presente no pathos da seriedade que

13
Ibid., § 335.
14
Ibid., § 1.
15
Ibid., § 1.

442 Adriany Mendonça e Alexandre Mendonça


estaria por trás dos ensinamentos professados pelos doutores da finalidade da
existência, e aposta no pathos afirmativo, no valor do riso e da alegria próprios
de toda gaia ciência:

O intelecto é, na grande maioria das pessoas, uma máquina pesada, escura


e rangente, difícil de pôr em movimento; chamam de “levar a coisa a sério”,
quando trabalham e querem pensar bem com essa máquina – oh, como lhes
deve ser incômodo o pensar bem! A graciosa besta humana perde o bom
humor, ao que parece, toda vez que pensa bem; ela fica “séria”! E “onde
há riso e alegria, o pensamento nada vale”: assim diz o preconceito dessa
besta séria contra toda “gaia ciência”. – Muito bem! Mostremos que é um
preconceito! 16

Todos esses elementos que até então procuramos destacar como os prin-
cipais eixos desenvolvidos ao longo do texto de A gaia ciência – valorização
das aparências, exploração dos procedimentos artísticos, incitação à adoção
de uma relação estética com a existência e apologia do riso e da alegria –,
além de se articularem entre si, de se implicarem uns em relação aos outros,
como procuramos mostrar, convergem para a criação desse lugar – o plano de
imanência – a partir do qual vem a público pela primeira vez o pensamento do
eterno retorno:

E se um dia, ou uma noite um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua


mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já
viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada have-
rá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e
tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de suceder
novamente, tudo, na mesma sequência e ordem – e assim também essa
aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A
perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com
ela, partícula de poeira!”17

A ideia da infinidade e circularidade do tempo, na qual todos os aconte-


cimentos da vida se repetiriam rigorosamente na mesmíssima sequência por
toda a eternidade, é formulada explicitamente como uma hipótese que Nietzs-
che constrói e apresenta a partir de um estilo poético-dramático que antecipa
o estilo do Zaratustra, valendo-se mesmo de um curioso personagem – um
demônio – para a anunciar ao leitor. Essa hipótese não se apoia em qualquer

16
Ibid., § 327.
17
Ibid., § 341.

Leituras de Zaratustra 443


argumentação racional, não reivindica para si o valor da verdade e, em vez
disso, se mostra claramente como ficção. Através dela, surge uma imagem pra
o movimento da vida alternativa àquelas que, por meio dos doutores da fina-
lidade da existência, seriam veiculadas pela filosofia, pela religião ou pela ci-
ência. O jogo de aparências constitutivo da vida é encerrado no interior de um
movimento circular, que não admite ponto de origem ou ponto de chegada.
Tanto a ideia de um além-mundo – seja ele filosófico, à moda platônica, ou re-
ligioso, à moda cristã – quanto a ideia de progresso, de correção da existência,
de um futuro melhor são inviabilizadas pela própria suposição de que a vida
percorre eternamente a mesma sequência de acontecimentos. Em vez de fixar
um sentido para a existência, ou alimentar esperanças acerca de um futuro re-
dentor, o pensamento do eterno retorno não oferece outra coisa senão a eterna
repetição dessa mesma vida com sua falta de sentido, suas imperfeições, suas
dores e seus prazeres.
Uma vez concluída a fala do demônio, o narrador passa então a interrogar
o leitor a respeito da reação que tal pensamento, assim anunciado, poderia
provocar em relação ao demônio que trouxesse essa boa nova, apontando para
duas possíveis reações extremas e diametralmente opostas: ou o amaldiçoa-
ríamos ou o abençoaríamos por nos tentar persuadir a respeito de tal hipóte-
se. Estas duas atitudes corresponderiam a duas perspectivas, a dois regimes
afetivos, a dois modos de relacionar vida e pensamento, também extremos e
diametralmente opostos: de um lado, o típico homem amargurado, que neces-
sita dos consolos produzidos pelos doutores da finalidade da existência, sem
os quais, para ele, a vida é um fardo, para quem a hipótese do eterno retorno
pesaria como o mais pesado dos pesos sobre cada um de seus atos futuros
ou passados; de outro, o típico homem de gaia ciência, que, com sua imensa
alegria, prescinde de consolo e lança mão da arte, do poder transfigurador da
arte para converter a vida em objeto de plena, absoluta e sorridente afirmação.
Ao explorar essa segunda possibilidade, a voz que surge do texto parece nos
desafiar a abandonar o pathos da seriedade pelo qual ordinariamente tendemos
a conduzir nossas avaliações e a assumir uma postura artística diante da exis-
tência, postura que teria no riso sua expressão máxima. Para além de seu cará-
ter crítico, o riso estaria diretamente vinculado à nossa capacidade de digerir o
que quer que nos acontecesse, escapando do sofrimento pela porta da alegria.
Finaliza-se, assim, o movimento de pensamento que possibilita e exige
que Zaratustra entre em cena, inicialmente, como protagonista de uma nar-
rativa poético-dramática que se encerra em poucas, reticentes e enigmáticas
linhas. A partir deste pequeno texto que encerra a primeira edição de A gaia

444 Adriany Mendonça e Alexandre Mendonça


ciência, valendo-se daquilo que conquistou com as experimentações estilísticas
e conceituais exercitadas na composição desse livro, Nietzsche inicia, então, a
construção minuciosa e primorosa do percurso trágico de Zaratustra, percur-
so movido por conflitos dramáticos que culminam quando Zaratustra tem de
enfrentar as implicações de seu pensamento abismal e que se solucionam com
os alegres e dionisíacos cantos de exaltação do eterno e circular movimento da
vida. Se, por meio deste personagem, Nietzsche se torna o mestre do eterno
retorno, não parece demais supor que isso se dá por ele ter se tornado tam-
bém, e acima de tudo, um mestre da gaya scienza.

Referências Bibliográficas

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Leituras de Zaratustra 445


______. O crepúsculo dos ídolos. Trad. de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia
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______. O caso Wagner/Nietzsche contra Wagner. Trad. de Paulo César Souza. São
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2007.
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1995.

446 Adriany Mendonça e Alexandre Mendonça


A experiência trágica na quarta parte
de Assim falou Zaratustra1

André Martins

1. Introdução

Em sua Tentativa de autocrítica, de 1886, Nietzsche descreve seu livro O nas-


cimento da tragédia, de 1872, como uma obra “acometida de todos os defeitos
da mocidade, sobretudo”, completa, “de sua Sturm und Drang [tempestade e
ímpeto]”2,3 acrescentando: “acho-o [...] sentimental, aqui e ali açucarado”.4
No livro, uma voz dionisíaca, diz Nietzsche, “se escondia [...] sob a pesadez e
a rabugice dialética do alemão, inclusive sob os maus modos do wagneriano”5.
Ao final deste ensaio, Nietzsche se defende da acusação de que se trate de
um livro romântico, mas, ao fazê-lo, enumera características românticas que
o fazem assemelhar-se aos “românticos de 1830, sob a máscara do pessimis-
mo de 1850”.6 Em contraposição às propostas de cunho schopenhaueriano de
seu livro, como a “metafísica do artista” e o “consolo metafísico”, Nietzsche
argumenta que os românticos deveriam antes aprender “a arte do consolo
deste lado de cá”, e mandar “um dia ao diabo toda a ‘consoladora’ metafísica
– e a metafísica em primeiro lugar!”.7 Alguns anos mais tarde, em Ecce homo,
de 1888, Nietzsche escreveu que O nascimento da tragédia “tem um cheiro es-
candalosamente hegeliano”, e está “impregnado em algumas fórmulas pelo
cheiro cadavérico de Schopenhauer”.8

1
Este artigo foi originalmente publicado com o título “Romantismo e tragicidade no Zaratustra de
Nietzsche”, nos Cadernos Nietzsche, n. 25, em 2009.
2
O nascimento da tragédia, Tentativa de autocrítica, § 2.
3
Utilizamos para este livro a tradução brasileira: O nascimento da tragédia. Trad. de J. Guinsburg. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. A tradução dos demais livros é nossa.
4
O nascimento da tragédia, Tentativa de autocrítica, § 3.
5
Ibid.
6
Ibid., § 7.
7
Ibid.
8
Ecce Homo, ‘O Nascimento da tragédia’, §1.

Leituras de Zaratustra 447


No século XX, visivelmente motivados por conferir à filosofia nietzschia-
na um caráter sistemático e doutrinal,9 comentadores de formação fenome-
nológica, como Karl Löwith,10 dividiram a obra de Nietzsche em três fases.
Certamente influenciado por aquelas duas autocríticas feitas pelo próprio
Nietzsche, Eugen Fink11 se refere à primeira fase como o “início romântico”.
Charles Andler12 também se refere à fase que iria de 1869 a 1876 como a do
“pessimismo romântico”. Esta mesma tradição se refere ao Zaratustra como o
livro que marca o início da fase “madura” da obra de Nietzsche, na qual, se-
gundo Löwith, se apresentaria sua “verdadeira filosofia”. Fink considera que,
em Zaratustra, Nietzsche encontra sua “verdadeira natureza”. Enquanto, em
O nascimento da tragédia, a voz dionisíaca se expressava numa linguagem estra-
nha, como vimos, no Zaratustra, escreve Fink, Nietzsche teria encontrado sua
própria linguagem para seus próprios pensamentos.
A primeira questão que pretendemos colocar tem uma dupla face: Seria O
nascimento da tragédia de fato romântico? E Assim falou Zaratustra seria de fato,
por sua vez, não romântico? Em que sentido toma-se o suposto “romantismo”
de O nascimento da tragédia que leva a se considerar o Zaratustra como não ro-
mântico? Trata-se de um sentido propriamente filosófico ou estilístico? Con-
trariamente à tradição dos comentários, nossa hipótese é a de que O nascimento
da tragédia não é filosoficamente romântico, assim como Assim falou Zaratustra
é estilisticamente romântico. Veremos em que sentido, e quais as implicações
filosóficas e interpretativas dessas considerações.

2. O nascimento da tragédia e o Zaratustra

Se, em concordância com o que o próprio Nietzsche enfatiza ao longo de


sua obra,13 consideramos o romantismo alemão como caracterizado filosofi-

9
Cf. Igualmente Heidegger, M. Nietzsche. Pfullinger: Neske, 1961, que aponta cinco termos capitais
da doutrina de Nietzsche (o niilismo, a transvaloração de todos os valores, o super-homem, a vontade
de potência, e o eterno retorno).
10
LÖWITH, K. Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkehr des Gleichen. Stuttgart: Kohlhammer, 1935.
11
FINK, E. Nietzsches Philosophie. Stuttgart : Kohlhammer, 1960.
12
ANDLER, C. Nietzsche, sa vie, sa pensée. Paris: Gallimard, 1958.
13
Nietzsche refere-se ao romantismo como ligado ao niilismo, à hipersensibilidade, à décadence, à
fraqueza vital, a um descontentamento e a uma insatisfação incuráveis, (Cf. entre outros, O nascimento
da tragédia, Tentativa de autocrítica, §7; A gaia ciência, §24 e 370; Crepúsculo dos ídolos, Divagações
de um extemporâneo, §50. In: NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe, 15 volu-
mes. Berlim, Walter de Gruyter, 1988), e, portanto, à dificuldade em suportar a realidade, que encontra
expressão e abrigo no idealismo.

448 André Martins


camente por seu idealismo – nostalgia ou esperança de um mundo melhor
ou mais natural, aceitação deste mundo com resignação, impossibilidade de
realização nos mais diversos sentidos (do amor, da liberdade, de um mundo
melhor) –, podemos concordar com Nietzsche quando este considera que O
nascimento da tragédia é um livro antirromântico, um livro trágico e, ipso facto,
oposto ao romantismo. Já em O nascimento da tragédia, o que está em jogo, em
termos filosóficos, é a afirmação da vida e da existência com todas as suas vi-
cissitudes e contrariedades, incluindo-se aí prazer e dor. O conceito do trágico
expressa o sentimento de afirmação e aprovação da vida, que futuramente
tomará o nome de amor fati e fundamentará o pensamento do eterno retorno.14
O que há de romântico em O nascimento da tragédia, ainda como o pró-
prio Nietzsche observara, é, primeiramente, a presença de noções de herança
schopenhaueriana e, por via deste, kantiana, tais como uma certa oposição
entre aparência e essência, ou os termos “consolo metafísico” e “metafísica
do artista”, que trazem em si uma conotação de fato idealista. Minha hipó-
tese, contudo, é a de que esta conotação idealista se encontra muito mais
na expressão, na linguagem, do que propriamente nas ideias com as quais
Nietzsche tenta se expressar. É nítida a inadequação dos termos em relação
ao que com eles o autor quer dizer. Não raro entendemos a ideia, a partir do
esforço de compreensão do autor, e nos dizemos algo como ‘mas não é o que
o termo leva a entender’.15 De fato, a inapropriação dos termos confunde a
compreensão, e dá margem a interpretações que passam ao largo do sentido
nietzschiano, não somente posterior, mas sim desde já presente no próprio O
nascimento da tragédia.
Há, contudo, um segundo aspecto romântico em O nascimento da tragédia,
e, este sim, também intrinsecamente nietzschiano: a valorização ontológico-
-existencial da arte e a crítica à desmesura da razão. Ora, o idealismo alemão
interpretara, desde Fichte, a proposta kantiana de limitação do conhecimento
em seu sentido oposto: ao invés de desautorizar a metafísica, por esta não se
limitar ao que se dá aos sentidos, o neokantismo alemão considerou que a
crítica kantiana à razão pura autorizava a metafísica a não mais se preocupar
em conhecer o real, permitindo-lhe, destarte, pensar suas verdades, verdades
estas inalcançáveis à razão. Enquanto Kant desautorizava toda e qualquer in-

14
E, num certo sentido, está implicado no próprio perspectivismo, como na teoria nietzschiana das
pulsões e dos instintos, em sua crítica ao niilismo, e em seus conceitos de fisiologia e da grande saúde.
15
Como por exemplo, quando em O nascimento da tragédia, §16 e 17, Nietzsche descreve sob os termos
de alegria metafísica e consolo metafísico o sentimento de júbilo e prazer que sentimos ao nos identifi-
carmos com a vida, afirmando-a e aprovando-a com suas dores e aniquilamentos inerentes ao seu devir.

Leituras de Zaratustra 449


tuição intelectual, o pós-kantismo,16 que suas críticas inspiraram na Alema-
nha, interpretavam-na não somente como um incentivo à intuição intelectual,
mas como tornando esta o único meio legítimo de compreensão da verdade,
dados os limites da razão.17 Interpretando ainda, a partir da crítica kantiana à
faculdade do juízo, que a arte propicia a passagem dos sentidos à Ideia sem a
intervenção da razão, a arte passou a ser vista, no romantismo como em todo
o Idealismo, enquanto um meio privilegiado de alcance das verdades metafí-
sicas inacessíveis à razão.18
O valor dado por Nietzsche à arte indica genealogicamente o solo cultural
no qual seu pensamento surgiu, e a partir do qual Nietzsche viu o mundo e ex-
pressou suas ideias.19 No entanto, mais uma vez podemos distinguir entre um
Zeitgeist20 que determina uma forma de expressão, e um universo de questões,
característico de uma época, por um lado, e as ideias que se expressam neste
solo, que podem tanto estar em sintonia com essa mesma época, como, ao
contrário, opor-se a esta, alcançando, assim, um caráter mais extemporâneo.
Minha interpretação é a de que a valorização da arte em Nietzsche é herdeira
de seu tempo e de sua cultura, porém, a maneira de valorização da arte, o
quê Nietzsche valoriza na arte, se contrapõe à valorização da arte por parte
do idealismo alemão. Ambos, Nietzsche e o idealismo, consideram que a arte
é a via privilegiada, quiçá a única, de expressão da verdade da vida e do real.
Contudo, dada esta origem comum, enquanto o idealismo de uma forma geral
considera que a arte permite alcançar uma verdade para além da realidade, em
Nietzsche, a arte, mais do que revelar, intensifica a percepção da potência do
próprio real; ou, em termos nietzschianos, enquanto a arte, para o idealismo,
é um meio de acesso à verdade, ou à “coisa em si”, e neste sentido um lenitivo
face às vicissitudes e contrariedades da vida, para Nietzsche, é um meio de
estranhamento das ilusões e dos lenitivos habituais do quotidiano e, assim,
de apreensão da intensidade da vida, e, neste sentido, um meio de aprovação

16
Notadamente Fichte, Schelling, Schopenhauer e Hegel.
17
Cf. CHENET, X. ‘Kant et l’Idéalisme Allemand’. In : Morichère, B. . (org.) Philosophes et philoso-
phies, t. 2. Paris : Nathan, 1992.
18
Cf. HEINE, H. Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha. São Paulo: Iluminu-
ras, 1991.
19
Observemos que, analogamente, o mesmo ocorre com Spinoza em relação ao racionalismo e mesmo
à ordem geométrica: são heranças de seu solo cultural e de sua época. Assim como a arte em Nietzsche,
constituem intrinsecamente sua forma de expressão e, portanto, participam do sentido de suas filoso-
fias. Porém, participam como expressão, não modificando fundamentalmente propriamente seu sentido
filosófico. Mas esta perspectiva demanda um desenvolvimento argumentativo e demonstrativo que não
caberia no escopo deste texto.
20
Que poderíamos, guardadas as diferenças, aproximar da ideia de “solo epistêmico” de Foucault.

450 André Martins


e afirmação da beleza trágica da existência. Em Nietzsche, a arte reforça o
sentimento trágico, a aprovação da vida em sua imanência, a transformação do
niilismo em ação. As noções de “consolo metafísico” e de “metafísica do artis-
ta”, enfim, não lhe são apropriadas justamente por obscurecerem a concepção
trágica da arte, já inteiramente presente em O nascimento da tragédia, e por se
aproximarem da concepção idealista e romântica da arte, de fuga da realidade
e acesso a uma verdade oculta, concepção que seria oposta à trágica.
Assim, enquanto o primeiro aspecto – os termos utilizados – diz respeito
mais à inadequação da linguagem em relação às ideias, o segundo – o elogia
à arte – aparece intrinsecamente nas próprias ideias de Nietzsche, como seu
ponto de partida cultural e epocal, mas de uma forma inteiramente coerente
com suas ideias, e mais, permitindo esclarecer em que sentido aqueles termos
herdados a reboque do enaltecimento romântico da arte não eram apropriados
para o seu enaltecimento da arte. Mais precisamente, o elogio da arte em Niet-
zsche, embora seja nitidamente uma herança de sua cultura alemã romântica
– ele certamente foi influenciado não somente por Schopenhauer, como tam-
bém por Goethe, Schiller, Hölderlin e Heine, por exemplo –, em nada herda
deste mesmo romantismo o caráter idealista que nestes o elogio da arte traz.
Porém, junto com a herança do elogio da arte, num primeiro tempo – em O
nascimento da tragédia – Nietzsche utilizava os termos que estes textos inspira-
dores românticos lhe traziam para, só depois, ver o quanto eles eram inapro-
priados para as ideias que, embora suscitadas por sua leitura dos românticos,
nada tinham de românticas. Em outros termos, o romantismo de fato intrín-
seco, de fato herdado não como um corpo estranho – como os conceitos de
consolo metafísico, etc. –, mas como parte constitutiva do escopo da filosofia
de Nietzsche, não vem por isso carregado do idealismo que caracteriza filoso-
ficamente as ideias românticas – diz respeito somente à valorização da arte e
da forma de expressão artística, não ao conteúdo filosófico propriamente dito.
O romantismo de O nascimento da tragédia não está no “consolo metafísi-
co” ou na “metafísica do artista”, que são apenas termos que não expressam
as ideias do próprio texto de O nascimento da tragédia. Nestes termos está a
herança de um romantismo que não é o de Nietzsche. Antes, o “romantis-
mo” de Nietzsche está na valorização da arte como instrumento, não mais
de manifestação de um mundo verdadeiro, mas de expressão de um amor à
vida imanente – e, por conseguinte, está também na valorização da expressão
artística das ideias.
Se em O nascimento da tragédia não existe um romantismo nas ideias de
Nietzsche, mas somente em alguns termos de sua expressão, justifica-se con-

Leituras de Zaratustra 451


siderar a dita primeira fase de sua obra como romântica? Podemos pensar
que sim, não pelo motivo alegado pelos comentadores, portanto, pois que os
conceitos do trágico e do amor fati já estão presentes em O nascimento da tra-
gédia e são incompatíveis com o idealismo romântico, mas por sua expressão.
Se assim for, porém, para considerarmos esta fase como romântica, teríamos
ainda que admitir que uma expressão romântica não estaria igualmente pre-
sente na fase inaugurada por Assim falou Zaratustra. Além disso, para que con-
sideremos esta última fase como a de sua “verdadeira filosofia”, teremos que
admitir também que a filosofia propriamente de Nietzsche somente aparece
a partir do Zaratustra. Em suma, para podermos concordar com a definição e
nomeação dadas pelos comentadores ao primeiro e ao último período da obra
de Nietzsche, teríamos que admitir que somente o primeiro período tem uma
expressão romântica, e que somente no último período está presente a “ver-
dadeira” filosofia de Nietzsche.
Ora, minha hipótese é a de que a filosofia da aprovação trágica da vida, que
em sua última fase aparece nos termos do amor fati, do eterno retorno e da
superação do niilismo, já estão presentes em O nascimento da tragédia. E, quan-
to ao romantismo, que o solo cultural romântico da Alemanha de Nietzsche
está igualmente presente em Assim falou Zaratustra – como não poderia deixar
de ser, aliás. Mais precisamente, que este solo está presente não somente na
expressão poética de seu romance filosófico, mas na forma literária específica
deste romance, enquanto romance de formação, característica marcante do ro-
mantismo alemão.21
O Bildungsroman, romance de formação, de iniciação ou de aprendizado,
surgido no final do século XVIII, expressa um caminho de aprendizado do
herói por meio de experiências individuais, que se estendem por vários anos, e
que o levam a um ideal de amadurecimento e de elevação. Herda da Revolução
Francesa o ideal de liberdade, transposta para a liberdade individual, como
emancipação não mais pela razão, mas pelo sentimento. Dirige-se ao leitor, na
intenção de iniciá-lo em um aprendizado análogo ao do herói. No movimento
Sturm und Drang, o romance de formação tem como características a evolução
psicológica de um indivíduo que se libera gradualmente das normas sociais,
podendo assim, e somente assim, expandir suas predisposições pessoais.22

21
Cf. MACHADO, R. Zaratustra tragédia Nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.28-31.
22
Cf. BORCHERDT, H. ’Bildungsroman’. In: Reallexikon der deutschen Literaturgeschichte, 2. Ber-
lim: Walter de Gruyter, 1958 2; Jacobs, J. Wilhelm Meister und seine Brüder. Untersuchungen zum
deutschen Bildungsroman. München: W. Fink, 1972; Selbmann, R. Der deutsche Bildungsroman.
Stuttgart: J. B. Metzler, 1984.

452 André Martins


Os anos de aprendizado de Vilhelm Meister, de Goethe, de 1796, é considerado
o modelo maior do gênero. Hyperion, de Hölderlin, de 1797-1799, e Heinrich
Von Ofterdingen, de Novalis, de 1802, também podem ser citados. São muito
numerosos os romances de formação no final do século XVIII – presentes até
mesmo na Ópera, como, por exemplo, com A flauta mágica, de Emanuel Schi-
kaneder, libreto da célebre obra de Mozart, de 1791 – como também ao longo
de todo o século XIX, chegando com vigor até a primeira metade do século XX
(com Thomas Mann e Hermann Hesse, por exemplo).
Ora, as características fundamentais do romance de formação estão to-
das presentes em Assim falou Zaratustra:23 seu herói, Zaratustra, passa por
experiências pessoais em sua relação com o ambiente social, que o levam a
uma evolução psicológica que o libera das normas e exigências da sociedade,
realizando, assim, suas predisposições pessoais, ou tornando-se o que é. Em
acréscimo, não somente o diálogo com a Bíblia é explícito, como em outros ro-
mances de formação, mas também o estilo metafórico e alegórico é análogo ao
das Escrituras – permitindo-nos, inclusive, levantar a hipótese de que a opção
pela alegoria não se deva a uma predileção de estilo, aliás não mais retomado
por Nietzsche, mas ao objetivo de parodiar o texto bíblico e sua narração da
saga de Jesus.
Assim como em O nascimento da tragédia, também em Assim falou Zaratustra
a expressão romântica não está a serviço de ideias românticas, diferentemente
de seus contemporâneos – talvez Nietzsche tenha sido neste ponto influencia-
do pela leitura de Keller e Stifter, autores cujos romances de formação são crí-
ticos ao próprio gênero.24 A saga de aprendizado dos heróis da Bildungsroman
no romantismo se dá, em consonância com a filosofia romântica, no sentido
ora de uma suposta elevação espiritual a partir de uma decepção com a vida
e a existência, ora de uma resignação às normas sociais, como ruins porém
necessárias ou inevitáveis. Decepção, nostalgia, resignação. Oposição dialética
entre amor e dever, emoção e razão; impossibilidade de retorno à inocência
originária, perdida pelas conquistas da civilização. Oposição entre natureza e
cultura, indivíduo e sociedade. Busca de uma síntese possível, dada esta dico-

23
Cf. MACHADO, R. op. cit., p.30 e 137; Janz, C. P. Friedrich Nietzsche Biographie. München:
Hansen, 1978.
24
De fato, dentre os romances de formação, há dois que são repetidamente elogiados por Nietzsche
desde o início dos anos 1880: Henrique o verde, de Gottfried Keller, de 1855, e Nachsommer, de Adal-
bert Stifter, de 1857. Ambos, contudo, são bem particulares, pois, no primeiro, considerado “realista”
(e não romântico), o herói é uma espécie de anti-herói, cuja formação fracassa; e, no segundo, a própria
ideia de formação é posta em questão, ao apresentar o desejo de um destino heroico e fora do comum
como fonte de sofrimento e de frustração. Os elogios que faz a estes autores talvez indiquem uma
crítica de Nietzsche a esse gênero de romance.

Leituras de Zaratustra 453


tomia. Contrariamente a isso, a saga de Zaratustra vai no sentido do aprendi-
zado da afirmação e aprovação da realidade, da existência e da vida, sem que
o fato de estas incluírem inevitavelmente a dor ser um motivo de decepção ou
de desvalorização.
Embora se possa considerar que Nietzsche encontrara em Assim falou Zara-
tustra um estilo apropriado para suas próprias ideias, não é a forma de expres-
são que caracteriza este livro como filosoficamente nietzschiano, mas sim,
tanto quanto seus outros livros, suas ideias. Muito pelo contrário, a expressão
romanesca iniciática, que mais lhe agradara, é tão romântica quanto a expres-
são de estilo metafísico de O nascimento da tragédia, que ele posteriormente
rejeitara. É precisamente na concepção filosófica, ou conceitual,25 que tanto O
nascimento da tragédia, em sua expressão “douta”, quanto Assim falou Zaratustra
– em sua expressão poética – são não românticos; e, ambos, expressam uma
filosofia propriamente nietzschiana.
Enunciado já em O nascimento da tragédia, o conceito do trágico26,27 é reto-
mado até seu último livro, Ecce homo, remete ao amor fati também expresso
pelo eterno retorno, e fundamenta sua crítica ao niilismo e a transvaloração
de todos os valores a partir da vida como critério dos critérios.28 Se esta con-
cepção transvaloradora encontrou sua intuição máxima no Zaratustra, ela fora
fomentada desde seus primeiros escritos, como o próprio Nietzsche observa
em O crepúsculo dos ídolos29,30; e fora desenvolvida não no próprio Zaratustra,
mas em seus livros posteriores, como o próprio Nietzsche também relata em
cartas. Após dizer que seu Zaratustra expressa “o pensamento que divide em

25
Se consideramos os conceitos não necessariamente no sentido nietzschiano da crítica a Sócrates, como
forma de denegação dos instintos, de fachada para o moralismo, de exigência de explicação ainda que
por causas imaginárias (Crepúsculo dos ídolos, “O problema de Sócrates”); mas sim, no de termos utili-
zados por um autor com um sentido nuançado próprio à sua filosofia – como, por exemplo, quando, em
O nascimento da tragédia, §16, Nietzsche utiliza o termo “conceito do trágico [Begriff des Tragischen]”.
26
O nascimento da tragédia, §16.
27
Retomado em Ecce Homo, “O nascimento da tragédia”, §3. Sua ideia ou intuição atravessa, a nosso
ver, toda a obra de Nietzsche, expressa de maneiras diversas.
28
Uma vez que “o valor da vida não pode ser avaliado. Não por um vivo, pois ele é parte, e mesmo objeto,
do litígio, e não juiz; tampouco por um morto, por uma outra razão” (Crepúsculo dos ídolos, “O problema
de Sócrates”, §2). Ou ainda: “Uma condenação da vida feita por um vivo é, no fim das contas, apenas um
sintoma de um certo tipo de vida: a questão de saber se esta condenação é justificada ou não sequer se co-
loca. Seria preciso se situar fora da vida, e, aliás, conhecê-la tão bem como ninguém, como muitos, como
todos que viveram, para ter apenas o direito de abordar o problema do valor da vida. Quando falamos de
valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: é ela que nos força a criar valores, é a vida que ‘valora’
através de nós a cada vez que criamos valores” (Crepúsculo dos ídolos, “A moral como antinatureza”, §5).
29
Crepúsculo dos ídolos, O que devo aos antigos, §5.
30
“O nascimento da tragédia foi minha primeira transvaloração de todos os valores”.

454 André Martins


dois a história da humanidade”, acrescentando, na mesma carta a Overbeck
do dia 10 de março de 1884, que, a partir deste livro, “tudo mudará e se re-
verterá e todos os valores tradicionais serão desvalorados”, Nietzsche diz que
“este Zaratustra é apenas um prefácio, uma antecâmara”. Nesta mesma carta,
Nietzsche, que já havia terminado a redação da terceira parte de Assim falou
Zaratustra, que se encontrava com o editor em fase final de impressão, não pa-
rece considerar a forma do Zaratustra como ideal, mas como possível naquele
momento de forte intuição e ainda pouca clareza reflexiva: “Foi preciso dar-me
coragem, pois de todas as partes me vinha o desencorajamento; a coragem
de suportar este pensamento! Pois estou ainda longe de poder enunciá-lo e
representá-lo.” A forma romanesca aparece, assim, como expressão possível
naquele momento de uma intuição nova e intensa, mas que o próprio Nietzs-
che via como sendo apenas um preâmbulo, devendo se tornar mais clara em
seus livros posteriores – cujo estilo voltara a ser, como sempre, poético, afo-
rístico, ensaístico, mas não mais alegórico ou iniciático. Em carta a Malwida
Von Meysenbug de junho de 1884, Nietzsche confirma esta ideia: “Agora que
construí esta antecâmara de minha filosofia, preciso retomar isso em mãos e
não esmorecer até que se erija diante de mim o edifício principal”.
A forma romanesca, alegórica e didática, aparece, assim, como expressão
possível de uma intuição importante e difícil para o próprio Nietzsche naquele
momento de vida, expressão que, portanto, não somente visaria o aprendiza-
do do leitor, mas o seu próprio. Um exemplo disso é o elogio de Zaratustra à
solidão, que de diversas formas atravessa as quatro partes do livro, ao mesmo
tempo que, em suas cartas,31 Nietzsche relata uma intensa e sofrida solidão
pessoal. Mesmo a afirmação da vida aparece nas cartas como um sentimen-
to, ora presente, ora não, e não como uma conquista, um ponto de elevação
espiritual ou de amadurecimento alcançado. Em carta a Hans von Bullow, de
Rapallo, datada de dezembro de 1882, Nietzsche escreve: “a nova maneira
de pensar e de sentir que há seis anos tenho expressado em meus escritos,
conservou-me em vida e quase me trouxe à saúde”. A Franz Overbeck, em
carta do dia 25 do mesmo mês e ano, referindo-se ao seu desentendimento
com a mãe e a irmã, Nietzsche afirma: “se eu não descobrir a arte alquimista
de transformar essa lama em ouro, estou perdido”. Em carta a Overbeck do
dia 24 de março de 1883, Nietzsche, de Gênova, desabafa: “Não entendo mais
por que eu deveria viver, que sejam seis meses a mais; tudo é entediante, do-
lorosamente desagradável”. No dia 19 de abril do mesmo ano, escreve para o

31
Cf. GANDILLAC, M.; DELEUZE, G. Dates et événements de la vie de Nietzsche de l’Automne
1882 à la fin 1884. In : Nietzsche, F. Ainsi parlait Zarathoustra. Paris: Gallimard, 1985, p.395-402.

Leituras de Zaratustra 455


mesmo amigo: “O tempo está esplêndido, minha saúde e minha coragem con-
tinuam em alta [...]. Há frequentes períodos de angústia para mim que supero
com dificuldade”. Hóspede de uma família suíça em Roma, escreve a Gast no
dia 20 de maio do mesmo ano: “Estou extremamente tocado e passo muito
tempo em companhia agradável; assim que me vejo sozinho me sinto abalado
como nunca em minha vida”. De Gênova, escreve a Overbeck no dia 11 de
novembro: “não tenho ninguém com quem possa refletir sobre o futuro do
homem – de fato, estou interiormente inteiramente doente e ferido pela lon-
ga privação de uma companhia que seja feita para mim. [...] Com frequência
minha solidão me pesa”. Em Sils-Maria, relata ainda a Overbeck em carta do
dia 25 de julho de 1884: “as noites em que estou só, sentado em meu pequeno
e estreito quarto, são duras de mastigar”. Em Ecce homo, de 1888, Nietzsche
relembra, no capítulo sobre o Zaratustra, que os anos de sua redação e aqueles
que se seguiram “foram anos de um estado de sofrimento sem igual”.32
Ao contrário de desautorizá-lo, este diálogo do livro com seu próprio au-
tor, este escrever para si próprio, reforça o sentimento trágico de Assim falou
Zaratustra. Pois, e este é o ponto principal do sentimento filosófico que se quer
transmitir no Zaratustra, a afirmação trágica da vida só faz sentido caso inclua
não apenas o prazer, mas também a dor. Daí o romance de formação ser, ao con-
trário de um meio privilegiado para a transmissão de um pensamento trágico,
um meio inapropriado para isso, ou, no mínimo, um meio que não favorece esta
transmissão. Afinal, relatar o amadurecimento do herói que de anunciador do
Übermensch se torna o mestre do eterno retorno, ainda parece contraditório com
o próprio eterno retorno, ou, para ser mais claro, ainda parece irreal, idealizado,
contrário à aceitação e à afirmação não só das limitações e dificuldades afetivas
dos Homens Superiores, como também e sobretudo de suas próprias. Em ou-
tras palavras, a própria ideia de um mestre, ou de um acabamento do herói, ou
talvez mesmo a própria ideia de um herói, como aliás a do gênio, tão cara ao ro-
mantismo e ao idealismo alemão, já pouco sentido fazem quando o que importa
é a compreensão da vida,33 sua afirmação e sua aprovação.
É precisamente neste sentido que nos parece ser a quarta parte de Assim
falou Zaratustra a mais importante de todas, por ser aquela que esclarece o mal-
-entendido que um romance de formação poderia gerar, e que parece estar de fato
presente até a parte três. Pois é somente na quarta parte que efetivamente a aprova-
ção da vida – o amor fati e o eterno retorno – é, de fato, vivenciada, e não na terceira.

32
Ecce Homo, ‘Assim falava Zaratustra’, §5.
33
Cf. por exemplo Crepúsculo dos ídolos, A moral, uma antinatureza, §6.

456 André Martins


3. A parte quatro do Zaratustra e a vivência do amor fati

Como se sabe a partir dos fragmentos póstumos, as três primeiras partes


de Assim falou Zaratustra foram redigidas respectivamente34 de janeiro a feve-
reiro de 1883, em julho de 1883, e de outubro de 1883 a janeiro de 1884. Elas
foram publicadas separadamente, à medida que eram concluídas, pelo editor
Schmeitzner. Ao final de 1885, Nietzsche considerava que Assim falou Zaratus-
tra estava terminado com a terceira parte, e começou a pensar em um novo
livro com o mesmo personagem, que deveria se chamar Meio-dia e eternidade
e, a princípio, teria igualmente três partes. A primeira parte deste novo livro
foi escrita em Nice e Eze, de janeiro a março de 1885, portanto, um ano após
o término das três primeiras partes. Não contando mais com um editor, Niet-
zsche a publicou com seus próprios recursos como uma quarta parte de Assim
falou Zaratustra, em uma reduzida tiragem de quarenta exemplares. Em 1886,
de volta a seu antigo editor de Leipzig, E. W. Fritzsch, Nietzsche publicou
Assim falou Zaratustra apenas com as três primeiras partes, pela primeira vez
juntas em um mesmo volume. Somente em 1890, já sem o aval de Nietzsche,
a quarta parte foi republicada separadamente como tal; e, somente em 1892,
as quatro partes foram publicadas juntas como um único volume, por Peter
Gast. No entanto, em Ecce homo,35 Nietzsche se refere à quarta parte como “a
parte final”, referindo-se, assim, ao livro como composto por quatro partes.
O próprio Nietzsche, portanto, pelo menos em um primeiro momento,
concebera o Zaratustra como terminando na terceira parte, que relata, de modo
próximo a todo romance de formação, o amadurecimento de Zaratustra. É, ali-
ás, como ponto culminante da formação de Zaratustra que, no final da terceira
parte, como lembra Machado, é apresentado “o pensamento do eterno retorno
como o ápice de um saber trágico”:36 “há, assim, na trajetória de Zaratustra,
uma progressão da doença à convalescença e, finalmente, à saúde”.37 Porém, o
fato de o Zaratustra alcançar ali o ápice do eterno retorno – a “concepção fun-
damental da obra”, nas palavras do próprio Nietzsche: “esta fórmula suprema
de afirmação, a mais alta que se possa conceber”38 – não quer dizer que tenha

34
Cf. GANDILLAC, M.; Deleuze, G. Les manuscrits. In: Nietzsche, F. Ainsi parlait Zarathoustra.
Paris : Gallimard, 1985, p. 403-406.
35
Ecce Homo, Assim falou Zaratustra, §1.
36
MACHADO op. cit., p.153. LAMPERT, L. Nietzsche’s teaching: an interpretation of ‚Thus spoke
Zarathustra. New Haven: Yale Univ. Press, 1986, também enfatiza, sobretudo, as três primeiras partes
do Zaratustra.
37
MACHADO 13, p. 145.
38
Ecce Homo, Assim falou Zaratustra, §1.

Leituras de Zaratustra 457


se dado por satisfeito ao término desta parte culminante. Afinal, concebera
uma continuação do relato, seja em uma nova parte, seja em um novo livro.
Uma continuação foi pensada pelo próprio Nietzsche como necessária.
Considerar a parte quatro, embora não apresente nenhum tema funda-
mental, como uma parte fundamental para a compreensão e transmissão da
mensagem do Zaratustra – e, num certo sentido, mesmo a principal e mais
importante do livro, por apresentar uma vivência que reelabora e esclarece a
parte três e, sem a qual, esta permaneceria entregue à contradição de propor
uma aceitação trágica demasiado “acabada”, “per-feita” – parece confirmar-se
por uma análise conjunta do final da parte três (o capítulo “O outro canto da
dança”, mas também “Os sete selos”); do que se segue a este ao longo de toda
a parte quatro; e do final desta parte (“O canto da embriaguez”, mas também
“O sinal”), em comparação com o da anterior. Minha hipótese portanto, como
veremos, é a de que o eterno retorno, embora apareça com clareza na parte
três, somente se torna de fato compreensível como amor fati na parte quatro.
Em “O canto de dança” (das Tanzlied), da parte dois, Zaratustra ama a vida
à luz do dia, mas a põe em questão quando a noite lhe indaga se ele ainda
vive, por quê, para quê, com qual finalidade: não será uma loucura insistir em
viver?39 Zaratustra coloca a vida em questão por ser ela, a seu ver neste mo-
mento, má e pérfida, embora seja sedutora e ele a ame. Além disso, Zaratustra
pede aos amigos que lhe perdoem a tristeza; sofre por não conseguir manter
incólume seu amor apolíneo40 quando chega a noite. Na verdade, a jovialida-
de da vida se esvai quando Zaratustra dela se aproxima com sua sabedoria.
Machado pontua que a tristeza de Zaratustra deve-se aí ao “descordo entre
vida e sabedoria”.41 Ao longo de seu périplo de anúncio do Übermensch, de
sofrimento com a mesquinhez do próximo, de amaldiçoamento de todo tipo
de niilismo e de niilistas, embora Zaratustra tivesse ele próprio amor à vida,
e luminosa sabedoria sobre esta, ainda se abalava com o niilismo circundante
e com seus próprios afetos ruins que brotavam de sua relação com o mundo e
com a realidade, ao ponto de entristecer-se e pôr em dúvida seu próprio amor
à vida. Embora não partilhasse com o adivinho (ou profeta, der Wahrsager) do
sentimento de que “tudo é igual, nada vale a pena”, aproximava-se de seu pe-
sar sempre que se defrontava com o fato de que os outros não amavam a vida
como ele. Ressentia-se com o ressentimento alheio. Padecia de afetos tristes

39
Assim falou Zaratustra, II, O canto de dança)
40
No sentido de um amor à vida apenas luminoso, isto é, no que a vida é fonte de prazer e não de
desprazer.
41
MACHADO, 1997, p.95.

458 André Martins


pelas ilusões dos outros e por seu próprio sofrimento, e desculpava-se por
essa sua “imperfeição” a seus discípulos. Desejava ser forte o bastante para
nunca afetar-se mal.
É apenas na terceira parte que Zaratustra entende o sentimento do eterno
retorno, necessário para um efetivo amor à vida: para o amor fati. Assim, em
“O outro canto de dança”, Zaratustra não se culpa mais por sofrer quando a
vida não o aquece – “O que não sofreria eu de boa vontade por ti?”, diz à vida.
Sua sabedoria não impede mais a dança jovial; agora ele próprio dança: “sigo-
-te a dançar”, diz à vida.
Ainda assim, implora à vida que o leve consigo. Pede para a vida que se
mantenha ao seu lado, mas ela sobe e lhe escapa; ele salta atrás dela mas cai. A
reação de Zaratustra é de forçar a vida a dançar ao som de seu chicote, ao que
ela responde que ambos não prestam nem para o bem nem para mal. A vida
diz então a Zaratustra que há um velho e pesado bordão que bate com as doze
badaladas da meia-noite, e que ela sabe que toda noite naquele momento ele
pensa que irá deixá-la em breve, ao que Zaratustra lhe responde que ele, por
sua vez, para o espanto da vida, conhece o segredo dela, que parece ser o do
eterno retorno. Ambos se olham emocionados. O ditirambo termina com as
doze badaladas da meia-noite, que da quinta à décima segunda dizem:

O mundo é profundo, profundo, mais do que o dia imagina. Profunda, de-


certo, é a sua dor, mas mais profundo o seu prazer. A dor diz: “Passa!”. Mas
todo prazer quer a eternidade! – quer a profunda eternidade! [Weh spricht:
Vergeh! Doch alle Lust will Ewigkeit! – will tiefe, tiefe Ewigkeit!].42

No capítulo seguinte, “Os sete selos (ou a canção do sim e do amém)”,


último da parte três, todos os sete selos terminam com os versos “Oh, como
não hei de arder com o desejo da eternidade, o desejo do anel dos anéis, o
anel nupcial do Retorno [Wiederkunft]! Ainda não encontrei a mulher de
quem quisesse ter filhos, a não ser esta mulher a qual amo, porque te amo, ó
Eternidade!”.43 No quarto selo, Zaratustra diz que sua mão misturou o prazer
com a dor [Lust zu Leid], o pior mal com o bem supremo, e que ele próprio é
um grão do solvente que permite que todas as coisas se misturem, do solvente
que integra o bem e o mal [das Gutes mit Bösem].
Enquanto em “O canto de dança”, da segunda parte, Zaratustra vê a vida
dançar mas não tem leveza para dançar, em “O outro canto de dança” a relação

42
Assim falou Zaratustra, IV, O outro canto de dança.
43
Ibid., Os sete selos.

Leituras de Zaratustra 459


de sua sabedoria com a vida muda. Contudo, há ainda em Zaratustra a vonta-
de ou a necessidade de forçar a vida a dançar, segundo seu desejo. Zaratustra
já entende que o mundo é mais profundo do que o dia imagina, mais do que a
sabedoria apolínea e luminosa pode imaginar. Teremos sempre afetos tristes.
O que pode mudar é a maneira como lidamos com eles, é a maneira como eles
nos afetam, o que pensamos e o que sentimos a partir deles; é a compreensão
e o amor à vida que nos permitem aceitá-los, afirmá-los, englobá-los. É neste
sentido que o romance de formação, enquanto tal, não favorece a expressão
do amor fati. Parece contraditório com a ideia de uma compreensão trágica e,
assim, com a própria ideia do eterno retorno, que, ao final da parte três, Zara-
tustra perfaça seu aprendizado, caso entendamos que não há término ou per-
feição na vida. Que o processo de compreensão de nossos afetos é contínuo,
precisamente por se dar a partir da relação que temos com o mundo a cada
instante, o tempo todo; que talvez sequer faça sentido pensar propriamente
uma formação ou aprendizado, mas, antes, algo como uma melhoria de nossa
compreensão, de nosso modo de nos afetarmos, feita de inesgotáveis recon-
quistas. É neste sentido que, segundo esta interpretação, podemos considerar
a parte quatro como fundamental para dissipar a ilusão de um acabamento,
de um amadurecimento final, de um ponto de chegada, de todo modo, aliás,
contraditório com o sentimento do amor fati.
Na parte quatro, tendo se passado anos de sua saga, Zaratustra, tendo
permanecido em sua caverna com a águia e a serpente, diz agora a eles estar
transbordando de mel, mas, na verdade, está taciturno e solitário e, por isso,
ouve um chamado de angústia:44 “a minha felicidade é pesada, e em nada se-
melhante à onda líquida; pesa sobre mim e obsede-me, aderente como uma
resina derretida”, “é o mel que me corre nas veias que me torna o sangue
mais espesso e minha alma mais taciturna”. A si mesmo, confessa que falara
astuciosamente com seus animais: “Se falei de mel, e da oferenda do mel, era
um artifício oratório [...]. Era para fazer uma isca [...]. É para apanhar o ho-
mem que lanço a minha linha dourada” Zaratustra diz, assim, que não quer
mais descer até os homens, mas sim, que eles subam até sua caverna45 para
aprender com sua felicidade; mas acaba por sair à procura do grande grito de
angústia [Notschrei] pelo qual sentiu compaixão, influenciado pelo niilismo
do adivinho.46 O grito de angústia, diz o adivinho a Zaratustra, “é a ti que se
dirige”. Se Zaratustra deixou-se influenciar pelo adivinho, foi porque sentia

44
Ibid., A oferta de mel.
45
Ibid.
46
Ibid., O grito de angústia.

460 André Martins


uma “solidão mortal” no silêncio de seu isolamento. Zaratustra sai, então, à
procura do homem superior e de seu grito de angústia. Durante suas buscas
diurnas, encontra: o adivinho niilista; os reis nobres – esnobes e corrompidos
– e seu acompanhante, o burro que diz sim a tudo mecanicamente; a sangues-
suga – espírito do escrúpulo intelectual, que arranca sua própria carne; o auto-
penitente sedutor; o último Papa – compassivo e irritado; o mais hediondo dos
homens – assassino de Deus; o mendigo voluntário e entediado; e, por fim, a
sua própria sombra – humilde, inquieta e infeliz. Ao longo do encontro com
esses homens, Zaratustra sonha novamente com ilhas afortunadas, e volta a
desejar e a anunciar o Übermensch. Homem por homem, Zaratustra amaldi-
çoa novamente a todos, pragueja contra eles, enoja-se, volta a se ressentir com
eles e por eles, mas, ao mesmo tempo, se sensibiliza com a angústia deles, se
angustia por isso, e envia-os um a um à intimidade de sua própria morada.
É fundamental para o texto que tudo isso volte, que volte o que representa
cada um desses homens demasiadamente humanos. Afinal, a vida não é sem-
pre um meio-dia sem sombras. Zaratustra involuiu, regrediu, desaprendeu?
Enlouqueceu, teve uma recaída, novamente adoeceu? Não. Ao contrário. Con-
sidero que se Zaratustra lhes dá abrigo dentro de seu lar mais íntimo, se tem
compaixão por eles, é porque se identifica com eles. O grito de angústia deles
era ouvido dentro de si mesmo. Somente agora foi possível a Zaratustra ouvir
suas próprias angústias até então ocultas e, enfim, aceitá-las, acolhê-las, rir
com elas, como veremos.
Durante o dia, Zaratustra ouvia a angústia, mas não via de onde ela vinha;
é somente à noite que pôde ver que ela vinha de dentro de si. Pois foi somente
após longa busca diurna47 que Zaratustra, não tendo encontrado o “homem
superior”, resolveu retornar à sua caverna. Ao chegar a seu lar, já ao entarde-
cer, viu, para sua surpresa, que vinha de lá o grande grito de angústia, de todos
os homens singulares [Wunderlichen] que ele mesmo tinha convidado, como
uma armadilha para si mesmo: “Foi então vosso grito de angústia que ouvi! E
sei agora onde se encontra aquele que procurei inutilmente todo o dia, o ho-
mem superior. Ei-lo portanto na minha caverna, o homem superior! Mas por
que hei de admirar-me? Não fui eu próprio que o atraí aqui com meu ofereci-
mento de mel e os malignos chamarizes de minha felicidade?”48 Sua felicidade
era ainda uma autoexigência de perfeição, como o próprio Zaratustra admitira
no primeiro capítulo da quarta parte, confessando a si mesmo que ela era
apenas uma isca para buscar companhia e livrar-se de sua angustiada solidão.

47
Ibid., A saudação.
48
Ibid.

Leituras de Zaratustra 461


O sutil paradoxo que somente a quarta parte do Zaratustra permite sentir e
compreender é a ideia de que a afirmação do eterno retorno não é garantia de
uma felicidade idealizada e perfeita. Não é garantia de que, a partir de então,
somente teremos afetos positivos. Não adianta, como o mendigo voluntário,
desejar “levar a vida que me agrada, ou não viver de modo algum”.49 O iso-
lamento de Zaratustra, ao final de sua saga progressiva na parte três, parecia
ser ainda sintoma de uma dificuldade em viver no mundo. Viver no mundo
implica ter afetos passivos, por vezes afetos tristes. Viver isolado do mundo
e das pessoas parece ser ainda uma fuga, uma tentativa de se evitar os afetos
tristes. Mas eles nos chegam mesmo assim, pois são consequência intrínseca e
portanto inevitável da existência, da relação com o ambiente, seja ele qual for.
Juntos a outros nos afetamos; isolados, também. Daí ter sido o adivinho quem
fez Zaratustra acordar para seus próprios gritos de angústia: se juntos ou iso-
lados, entendendo o eterno retorno ou não, teremos momentos de tristeza,
então, tudo é igual, tudo se equivale, nada vale a pena? Zaratustra entende,
enfim, que seu mel não vale nada, a menos que sirva para transfigurar seus
afetos.50 Ver uma beleza trágica mesmo no que há de mais doloroso no mundo
e em nós mesmos: é vida! Isso nos faz fortes, não para nos isolarmos, mas para
não precisarmos nos isolar. Não para, no mundo, não sofrermos; não para,
no mundo, sofrermos; mas para, no mundo, sentirmo-nos fortes, potentes,
criativos, transformadores. Na luta, com alegria, em ação. Se entendemos que
a dor é contrariedade (Weh), afirmar a realidade – isto é, não nos sentirmos
contrariados por ela – nos deixa mais fortes para a ação.
É neste sentido que o ápice da parte três deve ser comparado ao ápice da
parte quatro. Se, naquele, bem e mal já estão misturados, parece, contudo, que
as contrariedades ainda não são vistas como parte da alegria, mas antes, como
toleradas. Em “O outro canto de dança”, a dor diz a Zaratustra: “Passa!” O que
pode ser dito da seguinte forma: Zaratustra diz a si mesmo nos momentos de
dor: a dor quer me destruir; quer que eu passe e pereça. Mas [Doch] o prazer
quer a eternidade. Quero que a dor passe e pereça, para deixar lugar ao prazer,
que quer a eternidade. Há uma oposição entre dor e prazer.
Já na quarta parte, após ouvir de sua sombra: “ai daquele que oculta [birgt]
desertos!”;51 após mais uma vez ter acreditado que os homens convalesciam52
porque tinham mudado – de forma a não mais contrariar o desejo de Zaratustra

49
Ibid., O mendigo voluntário.
50
Cf. KSA XII, 9[8]; Crepúsculo dos ídolos, “A moral, uma antinatureza”, § 1 e 3.
51
Assim falou Zaratustra, IV, Entre as filhas do deserto.
52
Ibid., O despertar, 2.

462 André Martins


de encontrar uma companhia que fosse, não como ela é, mas como o próprio
Zaratustra queria que fosse ; após ter visto, enfim, que eles não mudaram, que
eles continuavam os mesmos, embora agora rissem de si mesmos, Zaratustra,
à noite, saindo de sua caverna com todos,53 após todos terem dançado,54 todos
os homens “de coração consolado e corajoso, surpresos por se sentirem tão
felizes na terra”,55 “pensou consigo: ‘Oh! Como me agradam agora esses ho-
mens superiores!’”. O mais hediondo dos homens falou então, conseguindo
amar a vida: “Estou pela primeira vez disposto a aceitar essa longa vida. [...]
Vale a pena ter vivido nesta terra. [...] Era isso então a vida?, direi à morte.
Pois bem, de novo!”. Estava “pleno da doçura de viver e tinha esquecido qual-
quer melancolia”. Cada um dos homens, rindo, chorando, se sentia transfor-
mado. Sentindo-se ébrio, Zaratustra chamou seus novos amigos e alertou-os
“aproxima-se a meia-noite!”.56 Até aqui,57 diz a eles, “dançastes, mas uma per-
na ainda não é uma asa”.58 É hora agora, “embriagados de luar”, de libertar “as
sepulturas”, acordar “os cadáveres”, aceitar seus próprios fantasmas. O sino,
das doze badaladas da meia-noite, “agora deseja morrer, morrer de felicidade
[...] da inebriante felicidade de morrer à meia-noite, da felicidade que canta:
O mundo é profundo, mais do que o dia pode imaginar.” 59
São doze os cantos ébrios, e Zaratustra retoma, a partir do sexto, os mes-
mos termos de “O outro canto da dança”. “Profunda é a sua dor”, diz o sétimo
canto. Mas “se a dor é profunda, mais profundo ainda é o prazer”, diz o oitavo
canto. O nono aproxima-se ainda mais de “O outro canto de dança”:

A dor diz: “Passa! Vai-te, dor!”. Mas tudo o que sofre quer viver para ama-
durecer, para conhecer o prazer e o desejo – o desejo das coisas longínquas,
mais altas, mais claras. “Quero herdeiros, diz tudo o que sofre, quero fi-
lhos, não é a mim que quero”. Mas o prazer não quer ter filhos nem herdei-
ros – o prazer deseja-se a si mesmo, quer a eternidade, o Retorno.

Zaratustra retoma neste canto a oposição entre a dor e o prazer presente em


“O outro canto de dança”. E é somente no décimo, após perguntar-se se é ele
próprio apenas um profeta ou um sonhador, que consegue afirmar que “a meia-

53
Ibid., O canto da embriaguez, 1.
54
Ibid., A festa do burro.
55
Ibid., O canto da embriaguez, 1.
56
Ibid., O canto da embriaguez, 2.
57
E até “O outro canto da dança”.
58
Assim falou Zaratustra, IV, O canto da embriaguez, 5.
59
Ibid., O canto da embriaguez, 6.

Leituras de Zaratustra 463


-noite é também meio-dia. A dor é também prazer”, “a noite é também sol”.
Entoa então um novo canto, impossível de ser entoado ao final da terceira parte,
que modifica fundamental e significativamente o outro canto de dança:

Alguma vez dissestes sim a um prazer? Ó meus amigos, então dissestes


ao mesmo tempo sim a todas as dores. Todas as coisas estão encadeadas,
misturadas, amorosamente enlaçadas.
Alguma vez desejastes que uma mesma coisa se repetisse? Alguma vez dis-
sestes: “Agrada-me felicidade, piscar de olhos, instante!”. Então desejastes
a volta [zurück] de todas as coisas!
Todas voltando novamente, todas eternas, todas encadeadas, misturadas,
amorosamente enlaçadas; oh! foi assim que amastes o mundo!
Vós próprios eternos, vós amai-lo eternamente e sempre; e mesmo à dor
[zum Weh] dizeis: “Passa, mas volta [komm zurück]!”. Pois todo prazer quer
a eternidade! [Denn alle Lust will – Ewigkeit!].60

Notemos que, se antes, ao final da parte três, é a dor [Weh] que diz “Pas-
sa!” a Zaratustra, mesmo que entendamos que Zaratustra também deseja que
ela passe, já no final da parte quatro é Zaratustra e os homens que à dor [zum
Weh] dizem “Passa!”. Se, em “O outro canto da dança”, há uma oposição en-
tre dor e prazer, indicada pela adversativa “Mas” (Doch): a dor diz “passa”,
mas todo prazer quer a eternidade, e, por isso, insiste-se em viver – apesar
da dor; já em “O canto da embriaguez”, não se diz apenas à dor que passe,
mas também que volte; e que volte porque todo prazer quer a eternidade. Para
se ter novos momentos prazerosos, para que eles voltem sempre e mais, e
mais intensamente, agora se entende, não adianta odiar a dor, querer que ela
passe, sentimo-la querendo nos destruir. É preciso entender – e sentir – que
prazer e dor estão amorosamente enlaçados. Somente desejando a vida como
um todo, com prazer e dor, é que o prazer, real e não ideal, pode ser sentido
e vivido como eterno. Não se trata mais de sensações agradáveis, mas, agora
sim, de um amor fati, de um amor ao fatuum, à efetividade como um todo. Que
a contrariedade volte, não por um suposto masoquismo, por um amor à dor
em si, mas porque ela é parte integrante, e mesmo desafiadora e estimulante,
do prazer de viver.
É somente neste décimo canto, no qual a ebriedade dionisíaca supera e
engloba a alegria e a leveza da dança, que Zaratustra expressa, em toda sua
profundidade e clareza, intensidade e sentimento, o amor fati, base de sua

60
Ibid., O canto da embriaguez, 10.

464 André Martins


filosofia trágica. Integrando o eterno retorno ao amor fati da forma mais in-
tricada, a dor quer passar mas também retornar, porque – se prazer e dor estão
misturados, se não é possível e, portanto, não se deseja corrigir a existência
–, para que o prazer retorne, é preciso que a dor retorne também. No décimo
primeiro canto, Zaratustra confirma que todo prazer “quer o mel e o fel”, quer
também as “lágrimas fúnebres” e “o esplendor do sol poente” – pois também
o entardecer é esplendoroso.
O que poderia ser uma objeção ao argumento – o fato de, no décimo se-
gundo canto da embriaguez, Zaratustra voltar a entoar exatamente o mesmo
canto de “O outro canto de dança” –, nos parece, ao contrário, confirmá-lo.
Pois, no momento da décima segunda badalada, quando se faz exatamente
meia-noite, é preciso lembrar, mais uma vez, que nada é uma conquista que
nos tire do devir. Se aprendizado há, é afetivo e não teórico e, como tal, serve
para nossos afetos na vida real, e não para um fechamento triunfal. O último
capítulo do livro corrobora esta lembrança. “Que eu padeça ou me compadeça
– que importa!”,61 diz Zaratustra, “ardente e vigoroso como o sol matinal”,
após encontrar o leão que diz não, mas que desta vez é um leão doce e risonho
– doce e risonho pois que seu não é, desta vez, posterior ao sim. Não mais um
não aos outros, mas um sim a si próprio e a suas próprias dificuldades.
Se o eterno retorno é o ponto culminante do trágico, este já está presen-
te na filosofia de Nietzsche desde O nascimento da tragédia. Se este seu livro
inaugural apresentava características do romantismo, Assim falou Zaratustra
também apresenta uma expressão romântica. Mas, se em seu primeiro livro
a influência romântica não comprometeu de todo suas ideias, no Zaratustra é
somente com a parte quatro que sua intuição filosófica escapa de fato ao viés
romântico de sua forma. Pois, se o conceito do trágico já estava presente na
parte três do Zaratustra, se o eterno retorno, seu ponto culminante, foi enun-
ciado no final desta parte, ele ainda o fora, todavia, dentro do modelo inici-
ático característico do Bildungsroman que tanto marcou o romantismo. Não é
à toa que, naquele momento, a leveza e a alegria da dança cantavam o prazer
ainda apesar da dor, o meio-dia apesar da meia-noite, a luz apesar da sombra,
e Zaratustra, ainda demasiado apolíneo, cultuava seu mel, sem ainda nele
poder incluir o fel. É somente na vivência e aceitação da perda de tudo aquilo
que parecia uma conquista definitiva e representava o auge da formação de
Zaratustra que se quebrou o romântico suposto progresso do herói. Somente
aceitando e afirmando sua própria noite, não se importando mais se também

61 Ibid., O sinal.

Leituras de Zaratustra 465


padece e compadece, é que Zaratustra pôde, enfim, amar os homens e, de fato,
a vida e a si mesmo, e só então cantar, com a embriaguez dionisíaca sob a luz
do luar, que ilumina em meio à escuridão da noite, o prazer e a dor, e desejar
não somente aquele, mas também esta, pois que estão amorosamente enla-
çados. É, enfim, somente com a quebra do ideal romântico de se perfazer um
percurso de formação que o amor fati pôde efetivamente ser vivenciado. O fim
do livro é, assim, não mais um final de percurso, mas apenas um sinal. Afi-
nal, a história de Zaratustra continuaria, talvez sem fim, como de fato ficou.
Pois Nietzsche, deixando de lado o estilo do romance ou da alegoria, preferiu
dedicar-se a escrever seus outros tantos livros que a este se seguiram.

466 André Martins


Sobre os autores

Adriany Ferreira de Mendonça é professora adjunta de Filosofia do IFCS-


-UFRJ, integrante do grupo de pesquisa SpiN e membro da comissão editorial da
Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche.

Alexandre Ferreira de Mendonça é professor adjunto da Faculdade de Educa-


ção da UFRJ e membro do grupo de pesquisa SpiN.

Alexandre Marques Cabral é professor do Colégio Federal Pedro II, do


Instituto Metodista Bennett e do Ifen (Instituto de Psicologia Fenomenológico-
-existencial do Rio de Janeiro). Publicou os livros A mãe das verdades: originalidade
e originariedade do conceito de verdade em Heidegger; Heidegger e a destruição da ética;
Jonas Rezende: o poeta da fé e Ontologia da violência: o enigma da crueldade.

André Martins é professor associado da UFRJ, leciona no Departamento de


Filosofia do IFCS e no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de
Medicina. É autor do livro Pulsão de morte? Por uma clínica psicanalítica da potência
(Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009) e organizador de O mais potente dos afetos:
Spinoza e Nietzsche (São Paulo: Martins Fontes, 2009) e As ilusões do eu: Spinoza
e Nietzsche (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009). É coordenador do
grupo de pesquisa SpiN.

Camila de Oliveira Silva é graduanda em Filosofia na Uerj com bolsa


CNPq de iniciação científica.

Danilo Bilate cursa Doutorado em Filosofia no PPGF-UFRJ e na Univer-


sité Paris I Panthéon-Sorbonne, com bolsa da Capes. É membro do grupo
de pesquisa SpiN e editor associado da Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche.
Autor do livro A tirania do sentido: uma introdução a Nietzsche (Rio de Janeiro:
Mauad X, 2011) e coorganizador do livro Spinoza & Nietzsche: filósofos contra a
tradição (Rio de Janeiro: Mauad X e Capes, 2011).

Eduardo Guerreiro Brito Losso é professor adjunto de Teoria da Literatura


na UFRRJ. Organizou o livro Diferencia minoritaria en Latinoamérica/Diferença mino-
ritária na América Latina (Georg Olms).

Leituras de Zaratustra 467


Gilvan Fogel é professor titular da UFRJ. Publicou Conhecer é criar: um ensaio
a partir de F. Nietzsche; O homem doente do homem e a transfiguração da dor; Da
Solidão Perfeita – Escritos de filosofia, e Que é Filosofia? Filosofia como exercício de
finitude.

Gustavo B. N. Costa, atualmente, cursa Doutorado em Filosofia no


PPGFIL-Uerj.

Iracema Maria de Macedo Gonçalves da Silva é professora do IFF, cam-


pus Cabo Frio. É autora de Nietzsche, Wagner e a época trágica dos gregos (Anna-
blume) e de artigos sobre a filosofia de Nietzsche.

José Nicolao Julião é professor Associado II da UFRRJ. É autor de Três inter-


pretações de Nietzsche: Heidegger, Deleuze e Habermas (Rio de Janeiro: Editora Gama
Filho, 2010) e de artigos sobre Nietzsche.

Joseane de Mendonça Vasques possui Mestrado em Filosofia pelo PPGFIL-


-Uerj.

Kelly Stenzel Pereira de Souza é estudante de Graduação da Faculdade


de Filosofia da Uerj com bolsa Pibic/Uerj de iniciação científica.

Luciano Arcella é professor de Antropologia da Universidade de Áquila,


Itália. Publicou os livros Nietzsche oltre l´Occidente (Roma: Settimo Sigillo); Ol-
tre la Storia Nietzsche (Milão: Mimesis); L’innocenza di Zarathustra. Considerazioni
sul I Libro di Così parlò Zarathustra di F. Nietzsche (Milão: Mimesis); La inocen-
cia de Zarathustra. Consideraciones alrededor del I Libro de Así hablaba Zarathus-
tra de F. Nietzsche (Santiago de Cali: Universidad del Valle); e Lou e Nietzsche:
un’amicizia stellare (Bari: Giuseppe Laterza).

Marcelo de Carvalho cursa Doutorado em Filosofia no PPGFIL-Uerj.

Marcelo Lion Villela Souto possui Doutorado em Filosofia pelo PPGFIL-


-Uerj.

Márcia Beatriz Bello Pacheco tem Graduação em Artes Cênicas, Espe-


cialização em Educação Estética e Mestrado em Memória Social pela UniRio.

Marco Antonio dos Santos Casanova é professor adjunto da Uerj. Pu-


blicou os livros O instante extraordinário: vida, história e valor na obra de Friedrich

468 Sobre os autores


Nietzsche; Compreender Heidegger; Nada a caminho: impessoalidade, niilismo e técnica
na obra de Martin Heidegger. Traduziu a Segunda consideração intempestiva: da uti-
lidade e desvantagem da história para a vida, de Nietzsche, e os livros Nietzsche I
e Nietzsche II, de Heidegger. Coorganizou o livro Assim falou Nietzsche III: para
uma filosofia do futuro.

Maria Cristina Amorim Vieira possui Doutorado em Filosofia pela UFRJ. É


autora do livro O desafio da grande saúde em Nietzsche.

Maria Cristina dos Santos de Souza é professora adjunta da UFMA.


Traduziu o livro A visão dionisíaca do mundo de Friedrich Nietzsche.

Maria Cristina Franco Ferraz é professora titular de Teoria da Comuni-


cação da UFF. Autora de Nietzsche, o bufão dos deuses (Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1994; Ediouro/Sinergia: 2009; Paris: L’Harmattan, 1998); Platão: as
artimanhas do fingimento (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999; Ediouro/Si-
nergia, 2009; Lisboa: Nova Vega, 2010); Nove variações sobre temas nietzschianos
(Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002); e Homo deletabilis – corpo, percepção e
esquecimento: do século XIX ao XXI (Rio de Janeiro: Garamond/Faperj, 2010). É
bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Marlon Tomazella cursa Doutorado em Filosofia no PPGFIL-Uerj.

Miguel Angel de Barrenechea é professor associado da UniRio e autor


dos livros Nietzsche e o corpo (Rio de Janeiro: 7 Letras), Nietzsche e a liberdade
(Rio de Janeiro: 7 Letras). Coorganizou Assim falou Nietzsche; Assim Falou Niet-
zsche II. Memória, Tragédia e Cultura (Rio de Janeiro: Relume Dumará); Assim
Falou Nietzsche III. Para uma filosofia do Futuro (Rio de Janeiro: 7 Letras); A
fidelidade à terra. Assim falou Nietzsche IV; e Nietzsche e os gregos. Arte, memória e
educação (Rio de Janeiro: DP&A).

Mónica B. Cragnolini é professora da Universidade de Buenos Aires. Pu-


blicou Razón imaginativa, identidad y ética en la obra de Paul Ricoeur (1993); Nietzs-
che: camino y demora (1998); Moradas nietzscheanas. Del sí mismo, del otro y del entre
(2006); Derrida, un pensador del resto (2007). Organizou Extrañas comunidades.
La impronta nietzscheana en el debate contemporáneo (2009); Por amor a Derrida
(2008), Modos de lo extraño. Subjetividad y alteridad en el pensamiento postnietzsche-
ano (2005). Juntamente com G. Kaminsky, organizou Nietzsche actual e inactual,
v. 1 y 2 (1996), e, com R. Maliandi, La razón y el minotauro (1998).

Leituras de Zaratustra 469


Oswaldo Giacoia Junior é professor livre-docente do Departamento de
Filosofia-IFCH da Universidade Estadual de Campinas. É autor de Nietzsche &
Para além de bem e mal (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor); Sonhos e pesadelos da
razão esclarecida: Nietzsche e a modernidade (Passo Fundo: Editora da Universidade
de Passo Fundo); Nietzsche como psicólogo (São Leopoldo: Editora da Unisinos);
Nietzsche – para a genealogia da moral (São Paulo: Editora Scipione); Folha explica:
Nietzsche (São Paulo: Publifolha); e Os labirintos da alma. Nietzsche e a autossupres-
são da moral (Campinas: Edunicamp). É bolsista de Produtividade em Pesquisa
do CNPq.

Rebeca Furtado de Melo é mestranda em Filosofia no PPGFIL-Uerj, com


intercâmbio com a Universidad de Buenos Aires, e bolsista da Faperj.

Ricardo de Oliveira Toledo cursa Doutorado em Filosofia no PPGFIL-


-Uerj.

Roberto Cabral de Melo Machado é professor titular do Instituto de Fi-


losofia e Ciências Sociais da UFRJ e publicou, entre outros livros, Nietzsche e a
verdade (Rio de Janeiro: Rocco); Zaratustra, tragédia nietzschiana (Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor); O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche (Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar Editor); e Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia
(Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor).

Rosa Dias é professora adjunta de Filosofia da Uerj. Publicou Amizade Estelar:


Schopenhauer, Wagner e Nietzsche (Rio de Janeiro: Imago), Nietzsche e a música
(São Paulo: Discurso Editorial/Unijui) e Nietzsche educador (São Paulo: Sci-
pione). Coorganizou Assim falou Nietzsche III – Para uma filosofia do futuro (Rio
de Janeiro: 7 Letras). É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Re-
cebeu, em 2002, o prêmio “Candango de melhor roteiro” pelo filme Dias de
Nietzsche em Turin, de Julio Bressane.

Sabina Vanderlei Ribeiro possui Mestrado em Filosofia pela Uerj, Pós-gradu-


ação lato sensu em Psicologia Junguiana e Graduação em Psicologia (Bacharelado e
Licenciatura) pelo IBMR-Laureate.

Scarlett Zerbetto Marton é professora titular de Filosofia Contempo-


rânea da USP. Fundou e coordena o GEN: Grupo de Estudos Nietzsche; é a
editora-responsável dos Cadernos Nietzsche e da “Coleção Sendas e Veredas”.
Com três colegas europeus, dirige o GIRN – Groupe International de Recher-
ches sur Nietzsche. Sobre Nietzsche, publicou: Nietzsche, das forças cósmicas aos

470 Sobre os autores


valores humanos (Belo Horizonte: Editora da UFMG); Extravagâncias. Ensaios
sobre a filosofia de Nietzsche (São Paulo: Barcarolla); Nietzsche, seus leitores e suas
leituras (São Paulo: Barcarolla); Nietzsche, filósofo da suspeita (Rio de Janeiro:
Casa da Palavra); Nietzsche. A transvaloração dos valores (São Paulo: Moderna);
e Nietzsche: uma filosofia a marteladas (São Paulo: Brasiliense). Organizou os
livros Nietzsche, um “francês” entre franceses; Nietzsche pensador mediterrâneo. A
recepção italiana; Nietzsche abaixo do Equador; Nietzsche na Alemanha (São Paulo:
Discurso Editorial); Nietzsche hoje? Colóquio de Cerisy (São Paulo: Brasiliense).
É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Tereza Cristina Barreto Calomeni é professora do Departamento de Fi-


losofia do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF. Possui Pós-dou-
torado e Doutorado em Filosofia pela PUC-Rio. É líder do Grupo de Pesquisa
Filosofia da Cultura (CNPq) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Estética e
Filosofia da Arte (CNPq). Organizou o livro Michel Foucault: entre o murmúrio e
a palavra (2004) e publicou diversos artigos sobre Nietzsche e sobre Foucault.

Tiago Mota da Silva Barros é doutor em Filosofia pela Uerj, professor do


Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), membro do grupo de pesquisa SpiN
e integrante da Comissão Editorial da Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche.
Coorganizou o livro Spinoza & Nietzsche: filósofos contra a tradição (Rio de Janei-
ro: Mauad X e Capes, 2011).

Vania Dutra de Azeredo é professora da PUC-Campinas. Publicou Niet-


zsche e a aurora de uma nova ética (São Paulo: Humanitas/Fapesp) e organizou a
coletânea Falando de Nietzsche (São Paulo: Discurso Editorial).

Sobre os tradutores

Marco Antônio Gambôa é professor substituto de Filosofia da Uerj e mes-


trando em Filosofia na mesma instituição, como bolsista Faperj Nota 10.

Rebeca Furtado de Melo é mestranda em Filosofia no PPGFIL-Uerj, com


intercâmbio com a Universidad de Buenos Aires, e bolsista da Faperj.

Leituras de Zaratustra 471

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