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Os circuitos do desejo
na vida e na análise
Copyright© dos Autores, 2000
Conselho editorial
Romildo do Rêgo Barros (Presidente), Marcus André
Vieira, Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
Sara Perola Fux, Stella Jimenez
Organização
Elisa Monteiro e Vera Avellar Ribeiro
Assessoria de publicação
Angelina Harari
(Coordenadora da Comissão de Publicação da EBP)
Comissão de publicação
Ana Lucia Lutterbach-Holck, Clara Huber Peed, Cleide
Rodrigues Maschietto, Elza Marques Lisboa, Hei oisa Caldas,
Inês Autran Barbosa, Rosa Guedes Lopes, Vera Lopes Besset
Capa, projeto gráfico e preparação
Contra Capa
Agradecimentos
AG Comunição Visual
2000
Todos os direitos desta edição reservados à
Contra Capa Livraria Ltda.
< ccapa@easynet.com.br >
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22040-040 - Rio de Janeiro - RJ
Te! (55 21) 236-1999 / Fax (55 21) 256-0526
Sumário
Abertura - Romildo do Rêgo Barros 7
A função da fantasia 53
Bernardino Horne
10
Circuitos do desejo
ou o grafo radiografado
Narcisismo: ambígua unidade
14
Narcisismo: ambígua unidade
15
Os circuitos do desejo na vida e na análise
O transitivismo
No plano imaginário, entre o sujeito e o outro existe, a princípio, uma
fronteira frágil, ambígua, no sentido de ela ser transponível. A relação
narcísica está aberta a um transitivismo permanente, que podemos ilus
trar com um fragmento de um caso clínico. Trata-se de um menino que
até seus dois anos de idade permaneceu em um estado autista. Uma
determinada contingência desencadeia um estado psicótico. A saída do
estado autista se dá através de uma passagem delicada, pois ela supõe a
experiência dilacerante da invasão do gozo do Outro sem que o sujeito
tenha tido qualquer ancoramento nos registros simbólico e imaginário.
O trabalho psicanalítico, iniciado quando tem aproximadamente cinco
anos, abre a possibilidade de produção dos meios de fixação no simbó-
16
Narcisismo: ambígua unidade
17
Os circuitos do desejo na vida e na análise
18
Narcisismo: ambígua unidade
($ ◊ a) �----� d
i (a) '----------' m
19
Os circuitos do desejo na vida e na análise
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20
O imaginário no grafo do desej o
Manoel Barros da Motta
[Rio de Ja11eiroJ
1
Observação de J .-A. Miller na conferência de Bilbao "Deliryo", comentada no
curso "Silet", que nos serve de fio condutor para a articulação de O Seminário,
livro 5 com o conceito de narcisismo, de Freud.
Os circuitos do desejo na vida e na análise
Narcisismo e imaginário
Como afirmado, Lacan elaborou a estrutura do estádio do espelho para
dar conta das aporias da teoria freudiana do narcisismo. A relação entre o
22
O imaginário no grafo do desejo
, 1·1•, istro do simbólico e a tese dos dois narcisismos. Eis o que diz Lacan:
23
Os circuitos do desejo na vida e na análise
24
O imaginário no grafo do desejo
a seu semelhante que ele se erige, e que encontra esta uni<bdc de defesa
que é a de seu ser enquanto ser narcísico"2 (ibid. :90)
A introdução do registro simbólico vem resolver a ap or ia, mas
apresenta novos problemas. Na nova formulação, Lacan s11hs1 i 1 1 1 i ( > ego
pelo sujeito. O sujeito, sujeito da fala, sujeito vazio de l i b i do, csl ;Í i n ic i
a lmente morto ou mortificado pelo significante. Neste sent i do, observa
Miller, ele não satura todas as propriedades do ego. l/111 ou tro conceito
rntão tentará dar conta da inscrição da libido : o conceito de falo. Em O
Scmindrio 5 , Lacan escreve o narcisismo freudiano em termos fálicos.
i\ssim, o caráter libidinal do ego será transposto para o falo por Lacan.
( ) falo é o que vem completar o sujeito, representar seu fluxo vital.
i\11alogon do ego, o falo será significantizado. É o que ilustra o Semind
rio 5, ao elaborar as condições simbólicas que envolvem o registro ima
ginário.
( ) grafo e a anamorfose
l 'odemos então situar a função do imaginário e o estádio do espelho no
,•. rafo.
I (A) $
'· Dupla articulação bastante presente na orientação estruturalista e que encontra
cm Martinet, ou em uma leitura de O capital, por exemplo de Etienne Balibar, das
relações sociais de produção e da relação técnica de trabalho. Embora diversa, a
dupla articulação lacaniana apresenta uma homologia com tal tipo de leitura.
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Os circuitos do desejo na vida e na análise
Signi ficante
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O imaginário no grafo do desejo
I (A) /:,
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Os circuitos do desejo na vida e na análise
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28
Pulsão: o desejo fragmentado pela fala
quantum de energia para Freud, gozo para Lacan. Este último chama a
atenção para a descrição freudiana da energia como constante. Ela não
apresenta o apaziguamento temporário que a satisfação lhe permitiria.
A pulsão sempre se satisfaz, mas simultaneamente nunca se satisfaz. Ela
nunca se satisfaz em relação à sua visada última, que seria a de fechar o
corte: "Quem dera que eu pudesse beijar meus próprios lábios" (Freud
1905: 187). As pulsões parciais são sempre auto-eróticas porque tendem
a fechar o corte, a fazer coincidir fonte e objeto.
Quanto ao objeto, Lacan teoriza que o verdadeiro, o único objeto
da pulsão é o objeto a, objeto perdido para o sujeito e para o Outro.
A incondicionalidade dos objetos da pulsão é imaginária já que qual
quer objeto serve para ser posto no lugar de a. Esses objetos, no caso da
neurose, são ordenados pelo falo, quer dizer, pela castração. Em
Arcachon, J.-A. Miller mostra que o objeto a lacaniano comporta uma
metáfora. Ele substitui o (-<p) .
a
(-<p)
a aim
Goa!
30
Pulsão: o desejo fragmentado pela fala
I (A) $
31
Os circuitos do desejo na vida e na an,ílisc
32
Pulsão : o desejo fragmentado pela fala
, fi""' ,·11,/1 1 saber sobre os efeitos de seus atos obstinados c111 relação aos
1 , .i l l 'd < 1rn os metabólicos e hormonais que sua caquexia pode p roduzir.
i .1 , . 1 1 1 , i t uou o seu gozo como correlato a uma rejeição da simlmlização,
, , l , ·, L1 < 1 1 l 0 para a associação livre, pois o sujeito está imerso em u111 gozo
, 1 w , , 1 1 1 1 pede de se introduzir na rota do desejo. A anorexia não é so-
• w 1 1 1 ,· .111sência de apetite: é também uma anorexia mental, uma recusa
,, , , 1.-, l i ,.amento significante, uma inapetência e repugnância sexuais, uma
, · I ". ' I <' de deslibidinização que o corpo infantil e assexuado atua .
\ .1 1 1 , , ,c xia geralmente surge quando a menina entra n a adolescência e
,.- . 1 .-1 ronta com a questão crucial do enigma da feminilidade, quando
, 1 1 w 1 J ', <' a necessidade de uma identificação sexual adulta. A nostalgia da
, 1 1 1 .1 1 1, i:1 reaviva as pulsões orais e detona a angústia frente ao desejo do
1 1 , 1 1 ' "· O efeito dessa revivescência é o refúgio do sujeito em um gozo
·. , q , l , · 1 1 i entar, regredido e infantil.
A bulímica usa o alimento como o jogo do Fort-Da mencionado
I " 1 1 h·cud, verdadeiro jogo de paciência, no qual o movimento de "en
' l w ,. esvazia" é uma espécie de manobra que pretende produzir a falta
1 1 , , ( >utro - no caso a mãe - sempre "cheio de amor para dar". A cons
t .1 1 1 1 <' relação entre o vazio e o pleno, o empanturrar-se para evacuar, o
1 1 1 .1\I i gar para cuspir ou vomitar são vaivéns pulsionais de perda e reen
' , 1 1 1 1 ro com o "nada", esse "nada" que o objeto a presentifica. No gozo
, 1.-ssa repetição, o sujeito dramatiza a busca do objeto perdido visando a
·.1 1 1 1holização de uma situação insupÓrtável: a posição de objeto de gozo
, p 1 <· de é para a mãe.
Tanto na anorexia quanto na bulimia, a mãe é um Outro total e
t , , 1 : 1 l izante que situa o sujeito na posição de objeto de gozo. A ignorân
' 1 . 1 e incompetência da mãe frente ao seu próprio desejo desarticulam as
, lrn1andas que lhe são endereçadas. Isso empurra o sujeito cada vez
1 1 1 . 1 i s em direção a uma posição de gozo absoluto, deixando-o, assim, à
1 1 1 < ' rcê da pulsão de morte.
Para além do transtorno alimentar, porém, o sujeito está tomado
1 w la linguagem. Deduzimos então que na busca de um tratamento ana
l i t 1rn, mesmo não tendo nada a dizer sobre o seu transtorno, há uma
, l rn 1anda muda, silenciosa, que deve ser acolhida. Essa demanda de
. 1 p 1 d a não é expressa em palavras pelo sujeito e, por isso, não se oferece
.i 1 1 1tcrpretação. Sabemos que o silêncio é uma das vicissitudes da pulsão.
< l sujeito tem consciência de que mantém uma relação anormal com a
, , , mida, sabe que arrisca a sua vida na repetição compulsiva de seu ato
, ,hstinado, sabe que as alterações metabólicas e hormonais afetam sua
,,, 1 ú dc, mas mantém esse saber fora da dimensão discursiva. O que se
33
Os circuitos do desejo na viJ,1 e na an:lli., r
34
Pulsão: o desejo fragmentado pela fala
As pulsões na psicose
No início de seu ensino, Lacan teorizou que na psicose a relação com
o Outro se faz sem a barra da lei paterna, ou seja, sem a inscrição do
falo, sem a inscrição da castração. Na segunda clínica, ele acrescenta
que a lei paterna é o sinthoma, o quarto anel que une R, S e I, e que
faz suplência à foraclusão generalizada que todo ser falante apresenta,
o que é absorvido pelos neuróticos com a entrada no delírio compar
tilhado da premissa universal do falo. Os psicóticos não acreditam
nesse delírio e pagam o preço dessa descrença, necessitando inventar
um sinthoma pessoal para não permanecerem desligados do ou invadi
dos pelo Outro. Por outro lado, Lacan acrescenta que esse quarto anel
não opera apenas como metáfora: ele permite uma localização do gozo
cm sua vertente pulsional. No nível pulsional, são as seguintes as con
seqüências da não inscrição da lei paterna como quarto anel:
1 ) Os objetos da pulsão não metaforizam o (-<p). Em Arcachon
(1997), Miller parte do exemplo de um psicótico que arrancava
seus cílios para demonstrar como o sujeito tenta, com uma extração
real, escrever a castração sobre o objeto olhar para que este perca
consistência;
35
Os circuitos do desejo na vida e na análise
36
Pulsão: o desejo fragmentado pela fala
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Os circuitos do desejo na vida e na análise
Referências bibliográficas
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Pulsão : o desejo fragmentado pela fala
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40
Descontinuidade e continuidade
na retórica do Witz :
franqueamento da metáfora ou finalidade do Lust
Jésus Sa n t i ago
[Belo l l or i zon t c J
42
Descontinuidade e continuidade na retórica do Witz
43
Os circuitos do desejo na vida e na análise
Freud e o Lustgewinn
Para Freud, o prazer do chiste não se explica apenas por esse circuto
que se fecha e se completa no Outro. Ele não é algo que se explica por
si mesmo, ou seja, pelo simples reconhecimento conferido pelo incons
ciente a uma intenção de significação que se depreende da técnica ver
bal. Isto não significa que ele desconhecesse o aspecto formal do Witz
expresso pela dimensão técnica doArbeit, e pode ser provado pela dis
cussão que faz, sob este prisma, a respeito da homologia entre a "técni
ca verbal do chiste" e a "elaboração onírica", reafirmando, no plano do
trabalho significante, uma tópica comum a ambos (Freud 1905: 183 ).
Para Freud, porém, o ganho de prazer (Lustgewinn) que emana do chiste
não se justifica apenas pelo trabalho bem-sucedido da metáfora que faz
uma mensagem ser reconhecida pelo Outro do código.
Assim, se para Lacan a satisfação prazerosa se ampara nas distintas
disposições que oArbeit significante oferece à estrutura da metáfora, para
Freud, essa satisfação encontra suas bases explicativas em uma psicogênese
ou mesmo em um desenvolvimento. Dito de outro modo, se o mecanis
mo do prazer, para o primeiro, decorre da própria decifração do traba
lho significante a que o Outro procede - o que, no fundo, se confunde
com a estrutura da metáfora - para o segundo, a técnica do chiste existe
apenas em função de uma finalidade, de uma tendência inerente ao
funcionamento do aparelho psíquico. Se a estrutura se decifra, o aparelho
subsiste superposto a uma finalidade, neste caso, uma finalidade de pra
zer que nitidamente sobrepuja toda e qualquer intenção de significação.
Uma leitura atenta do texto de Freud torna evidente que essa finali
dade de prazer se manifesta muito mais no chamado "chiste tendencioso"
do que no "chiste inocente". Na realidade, é preciso lembrar que essas
duas modalidades de chiste se distribuem segundo duas fontes de prazer
distintas: a técnica verbal e a tendência ou propósito (ibid. : 13 9). Assim, o
"chiste inocente" pode ser definido pelo uso da fruição prazerosa das
palavras, sem que o juízo emitido seja perturbado por algum conteúdo,
propósito ou tendência, do que se conclui que sua fonte de prazer é a
própria técnica verbal (ibid.: 141 ). Freud assinala que neste prevalecem:
os jogos de palavras cuja técnica consiste em focalizar a ativida
de psíquica em relação ao som da palavra ao invés de seu senti
do - em fazer com que a representação acústica da palavra
tomasse o lugar de sua significação, tal como determinada por
suas relações com as representações das coisas (idem).
44
Descontinuidade e continuidade na retúrica do Witz
45
Os circuitos do desejo na vida e na análise
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Descontinuidade e continuidade na rct61·1<'ó1 do Witz
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Os circuitos do desejo na vida e na análise
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Fantasia: suporte do desejo
I ntrodução
/\ articulação entre o desejo, seus circuitos na vida e na análise e a
fantasia pode ser precisamente ilustrada por uma passagem de O Semi
wírio, livro 5: as formações do inconsciente :
É o desejo que é propriamente convocado em toda a economia
do sujeito e que está implicado no que se revela na análise, isto
é, naquilo que se põe a se mover na fala, num jogo de oscilação
entre os significantes terra-a-terra da necessidade, por assim
dizer, e o que resulta, para além da articulação significante, da
presença constante do significante no inconsciente, na medida
em que o significante já esculpi�, formou, estruturou o sujeito.
É nessa zona intermediária que se situa o desejo, o desejo do
homem como aquele que é o desejo do Outro. Ele está para
além da necessidade, para além da articulação da necessidade à
qual o sujeito é levado pela exigência de valorizá-la para o Outro,
para além de qualquer satisfação da necessidade. Ele se apre
senta em sua forma de condição absoluta e se produz na mar
gem entre a demanda de satisfação da necessidade e a demanda
de amor. O desej o do homem, para ele, tem sempre de ser
buscado no lugar do Outro como lugar da fala, o que faz com
que o desejo seja um desejo estruturado nesse lugar do Outro.
Essa é toda a problemática do desej o. É o que o faz ficar subme
tido à dialética e às formações do inconsciente. É o que faz com
que tenhamos de nos haver com ele e possamos influir nele,
conforme ele sej a ou não articulado na fala em análise. Não
haveria análise se não houvesse essa situação fundamental.
Temos aqui, em ($ ◊ a), o correspondente e o suporte do desejo,
o ponto em que ele se fixa em seu objeto, o qual, muito longe
de ser natural, é sempre constituído por uma certa posição do
Os circuitos do desejo na vida e na análise
50
Fantasia: suporte do desej o
mais e o deixo com a sua solidão"; 2) "Esse outro a quem você credita
a preferência e a confiança, o trairá; e eu, que entretanto nada pude lhe
dizer, ser-lhe-ei fiel"; 3) "Com quem ele fala?"; 4) " Quem se faz ouvir
pelo pai tem chances de seduzi-lo"; 5) "Aquilo que não pode ser dito é
'cu o amo'. O risco, desde então, é o de se trair."
Conclusão
O desejo do analista, esse desejo inédito, se sustenta na ética do bem
dizer. Lacan, em Televisão (1 973), refere-se à ética do bem dizer como
aquela de orientar-se no inconsciente, na estrutura, ou seja, de buscar
um saber que se sustenta fora do sentido.
51
Os cin.:: u i tos dn t ! c ,(· 1 1 1 1 1 ,1 v 1 d., 1· l l ,l a11:l.lise
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52
A função da fantasia
Bernard i n o l l o rt H'
1 11,1 1 1 1 ,1 1
!'retendo nessas linhas abrir algumas das inúmeras perspectivas que est e
tema permite. Há um fio central que acompanha a orientação apontad a
por Jacques-Alain Miller em seu curso ' 'A orientação lacaniana do Cam
po freudiano" (Miller 1998 e 1999; Moura 199 9): Lacan, em O Semi
nário, livro 5: as formações do inconsciente ( 1957-8), atribui à fantasia
a função de ponto de basta. Ela articula e fixa Simbólico, Real e Imagi
nário; faz o nó que relaciona o gozo e o significante. Mesmo que nela o
significante predomine, a fantasia é um axioma.
O Seminário, livro 5
Lacan define a fantasia como "o imaginário aprisionado em um certo
uso de significante" ( 1957-8 : 4 21 ). Para justificar essa definição, lembra
que "não convém desconhecermos o aspecto de roteiro ou de história,
que constitui uma de suas dimensões essenciais" (idem). Reelabora as
noções de desejo, objeto e sujeito, na intrincada textura de suas rela
ções, constitutivas da fantasia inconsciente. O trabalho de Lacan sobre
a fantasia se desenvolve em dois sentidos. Por um lado, tenta a
radicalização de seu valor significante. Ela é a resposta primeira ao
Outro em sua falta. O sujeito, ao reconhecer a falta no Outro, se assu
me como significante. Por outro, muda o valor de gozo do objeto, que é
elevado de puro imaginário à categoria de semblante.
O desejo é o que não se pode dizer. Seu efeito de sentido é a
fantasia. Como significado do Outro, esta pertence ao registro do senti
do; a fantasia cumpre a função de fixar a cadeia significante por meio
do significado e do gozo. Reúne elementos heterogêneos do simbólico,
do imaginário e do real. Assume assim o valor de ponto de basta inau
gural da estrutura psíquica. É um momento do ensino de Lacan em que
ele busca absorver o gozo do eixo imaginário no registro simbólico,
articulando o objeto ao sujeito barrado, e instituindo o falo como
significante do gozo.
Outorgar à fantasia a categoria de \, de axioma foi durante vários
anos o pensamento de Lacan. J.-A. Miller o destaca em várias oportuni
dades e chega a formular que o passe é uma transfinitização do dito
(Miller 1984; 1993).
No que diz respeito ao objeto, Lacan parte da confusão· que se
produz ao não se conseguir delimitar conceitualmente a demanda e a
necessidade. Fundamentalmente, a necessidade se relaciona desde sua
origem com o significante (Lacan 1957-8 : 227). Neste sentido, a intro
dução do desejo em uma realidade não é pensável a partir de uma expe
riência. O significante é essencial como intermediário de sua relação
com a realidade { : 23 1).
54
A função da fantasia
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Os circuitos do desejo na vid,1 e na anál ise
56
A função da fantasia
Depois, a fantasia
/\ fantasia como ponto de basta situa o gozo de maneira c e ntral em
relação à possibilidade de ser significantizado na experiência psicana
lítica. Lacan formula a metáfora paterna, propondo o significante falo
como o efeito de significação que advém da operação metafórica d o
Nome-do-Pai (NP) sobre o desejo d a mãe (DM). Estamos n a clínica
cm que prevalece a metáfora, em que há a pressuposição de que é
possível aproximar-se do gozo via metáfora, via significantização, via
Édipo. Para Lacan, já estava claro que o fim da análise passava pela
relação do sujeito com o gozo. Nesse momento, a solução clínica
seguiu a via da fantasia. A travessia desta, ao revelar seu valor de
defesa, permitia o acesso à verdade do gozo do sujeito (Miller 1 986-7:
cap. 28).
A fantasia se manteve por muito tempo como núcleo de sustenta
ção do desejo. Sua função como defesa fundamental (Miller 1 997; Horne
1 9 99) perdurou por vários anos no ensino de Lacan. Em O Seminário,
livro 20: mais, ainda, que Miller lista como o sexto paradigma, Lacan
mudou de perspectiva (Guimarães e Horne 1 999) : o ponto de basta não
é mais a fantasia, mas sim o sintoma. Com o sintoma como amarração,
a via da repetição das posições de gozo do sujeito é o melhor modo de
orientar-se no real na experiência analítica. Nesse sexto paradigma,
como afirmado acima, o corte entre o gozo e o significante ocorre entre
alíngua e linguagem.
O que caracteriza a relação gozo-significante é a não relação.
O anúncio da idéia de separar Real e Simbólico no próprio campo
significante pode ser encontrada na página 368 de O Seminário, livro 5,
em que Lacan afirma que as formações do inconsciente implicam certo
primarismo na linguagem, chamado por Freud de "processo psíquico
primário". Tal primarismo tem textura de linguagem, é tecido como
uma linguagem. Já o processo psíquico secundário passa pela demanda
tanto do sujeito quanto do Outro.
No sintoma, há como nó central o gozo da posição de objeto com
seu núcleo de masoquismo erógeno primário. Ele sustenta a defesa fun
damental : o chicote da significação fálica. O ponto de basta, formulado
como sintoma, comporta um conceito de desejo sustentado no vazio
central da estrutura, e não mais na fantasia. Neste vazio, o gozo sinto
mático faz suplência. Assim, o final de análise formulado via identifica
ção ao sintoma faz desmoronar a tendência do neurótico a identificar
aquilo que falta ao Outro com o que o Outro quer. Esta identificação
faz com que a demanda do Outro assuma a função de objeto, levando o
57
Os circuitos do dl'sl'jo na vida ,. n,1 análise
neurótico a um atalho entre fantasia t' pu lsão, que deixa fora o circuito
do desejo (Leguil 1993).
Dessa maneira, o neurótico, ao eclipsar o l'Írrni to do desejo como
radicalmente fundado no furo, faz existir um 0111-ro consistente, atando
seu desejo ao desejo do Outro. A fantasia na condi ção de defesa funda
mental ante o gozo leva o sujeito a supor o gozo como resposta ao
desejo do Outro.
A clínica para além da metáfora paterna faz ruir a formulação de
que a fantasia é o suporte do desejo e a faz aparecer como defesa funda
mental, que, ao realizar o desejo, eclipsa sua estrutura radical.
Referências bibliográficas
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Rio de Janeiro: Imago, 1 978 .
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58
Sintoma: satisfação às avessas
Celso Rennó Lima [relator, EBP-Mi11as l ;c1 aisi
Cristiana Pittella Mattos, Cristina Dru111111011d,
Elisa Alvarenga, Henri Kaufmaner.
I ntrodução
Este título, proposto pela Comissão Científica do X Encontro Brasilei
ro, abre muitas perspectivas de trabalho. Escolhemos alguns caminhos,
que passarão por uma introdução que tem como referência o capítulo
de O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente de onde foi ex
traído o título. "As máscaras do sintoma" trabalha a formação do sinto
ma a partir de seu núcleo, o desejo, passando pela marca que a castra
ção ali deixa, e que se manifesta na.própria presença do significante
falo, para concluir com a articulação possível entre o desejo e a máscara
do sintoma. É interessante notarmos que, neste momento de seu ensino,
Lacan apresenta a fórmula da fantasia fundamental como sendo a más
cara do sintoma. Talvez seja importante lembrar que ele ainda pensava
a fantasia como sendo da ordem do imaginário 1 •
No início desse capítulo, destaca-se a afirmação da qual Lacan
fará o fio condutor de sua argumentação: "que toda a experiência analí
tica está aí para lhes mostrar que se choca com as antinomias internas
de qualquer normatização na condição humana" (Lacan 1957-8 : 3 3 1).
E o que observaremos a respeito dessa antinomia pode ser resumi
do na ênfase que Freud deu ao desejo no princípio de sua obra : "O que
1 "O grafo inscreve que o desejo é regulado a partir da fantasia, assim formulada
de maneira homóloga ao que acontece com o eu em relação à imagem do corpo,
exceto que ela continua a marcar a inversão dos desconhecimentos em que se
fundamentam, respectivamente, um e outro. Assim se fecha a via imaginária por
onde na análise devo advir, lá ondes'tava [/à oit s'était] o inconsciente". Lacan
(1960: 83 1).
Os circuitos do desejo na vida e na an,\lisc
60
Sintoma: satisfação às avessas
61
Os circuitos do desejo na vida e na análise
2 "O sintoma é o retorno, por via de substituição significante, disto que está no
62
Sintoma: satisfação às avessas
� 1 1jeito está desde sempre afastado de sua verdade. Portan t o o laço entre
o sujeito e o Outro torna-se possível pelo sintoma. E se faz, com a
criação de um "ser de saber" ali onde a verdade lhe está vetada.
Estrutura de ficção, queixa, sofrimento, não importa como a ele
1 10s referimos, a verdade é que o sintoma diz que algo não vai bem e o
"clamor da humanidade" sempre será a favor do apaziguamento do mal
l'star que isso provoca. No entanto, mesmo clamando pelo apazigua
mento, pela harmonia, o sintoma continuará sendo o que existe de mais
particular em cada um e, por outro lado, o que existe de mais real.
O sintoma é o que vai, paradoxalmente, impedir que o sujeito seja
.1bsorvido pelo discurso de seu tempo. Há aqui uma questão de ordem
prática. É fundamental que, ao escutarmos o relato da infelicidade de
alguém, tenhamos em conta que esta infelicidade é o que ele tem de
mais particular: "Eu sou assim", nos dizem de várias maneiras os candi
datos à análise. Talvez por isso é que, ao diferenciarmos o lugar do
;malista do lugar do terapeuta, dizemos que nosso compromisso não é
com o movimento humanitário, que espera, com seu clamor, uniformi
zar o que há de mais particular. Nosso compromisso é com a particula
ridade de cada um. Pôr-se a serviço deste compromisso supõe um dese
jo que podemos qualificar de inumano. Talvez por isso Lacan, em "Nota
Italiana"\ tenha nos dito que o analista é o rebotalho da humanidade
porque quer saber disso que todos qµerem esquecer. Em outras pala
vras, Lacan afirma que o mal-estar na civilização consiste em gozar da
renúncia ao gozo; ao estabelecer uma solução de compromisso entre as
duas forças opostas em conflito, o sujeito renuncia a um gozo possível
por acreditar que o Outro quer retirar-lhe o que ele tem de mais precioso:
seu pequeno nada.
O sintoma, portanto, é o mais particular de cada um, é gozo e
mensagem a ser decifrada, submetida ao que costumamos chamar de
horror da castração. É exatamente no ponto em que o "menos", a cas
tração, se inscreve, que encontramos a particularidade do sujeito: o
traço unário (Einzeger Zug). O traço unário expressa o mais particular
de cada um, denominado por Lacan de "estilo" e passível de ser trans
mitido. O estilo é o objeto a marcado pelo traço unário, pela incidência
do "dizer verdadeiro" que deixou uma "ranhura" indelével. É essa
3
"Precisaria que o clamor se acrescentasse com uma pretensa humanidade, para
o qual o saber não está acabado, pois ela não o deseja. Não há analista, senão
quando esse desejo lhe vem, ou seja, já por isso ele é o rebotalho da dita
humanidade". Lacan (1 973 : 6).
63
Os circuitos do desejo na vida e na an.íl isc
A satisfação do sintoma
Como Lacan nos lembra, foi em relação ao sonho que Freud falou de
satisfação do desejo e que há no sintoma algo que se assemelha a essa
satisfação.
Freud partiu do sintoma histérico analisado como um sonho. Tra
ta-se de uma formação de compromisso, do retorno do recalcado sob a
forma de uma deformação em que se expressam tanto o recalcado como
a defesa. A linguagem do sintoma é a do processo primário, a lingua
gem do inconsciente, que tem como suporte representações substitutivas
para dizer o que não pode ser dito, para realizar um desejo recalcado,
para produzir uma satisfação sexual. É a "máscara do sintoma" porque
o desejo "se apresenta sob uma forma ambígua, que justamente não nos
permite orientar o sujeito em relação a esse ou aquele objeto da situa
ção" (Lacan 1957-8 : 3 3 7).
O sintoma substitui desejos infantis recalcados, trazendo a marca
tanto da defesa como do desejo. Tomado como equivalente ao texto do
sonho, o sintoma fala e realiza um desejo de maneira deformada por
meio do mecanismo de substituição de uma representação por outra. É
uma metáfora e, além disso, parte de uma verdade que não deixará de
falar enquanto não for escutada. Essa verdade é a verdade de um desejo,
isto é, o sintoma vai "no sentido do reconhecimento do desejo"
(ibid. : 3 3 8), sendo portanto efeito de verdade.
Lacan, entretanto, nos lembra a errância do desejo, sua excentrici
dade em relação à satisfação. Ele introduz na relação do desejo com a
satisfação a dialética da demanda já que a demanda sempre pede mais
do que a satisfação. Apesar de almejar a satisfação da necessidade e por
estar articulada em termos simbólicos, a demanda está além das satisfa
ções para as quais apela; neste sentido, é demanda de amor que visa o
ser do Outro e almeja "que o Outro dê o que está além de qualquer
satisfação possível, seu próprio ser, que é justamente o que é visado no
amor" (: 418). É entre o apelo da satisfação e a demanda de amor que o
desejo se situa e por isso, sempre ultrapassa qualquer resposta no nível
da satisfação.
64
Sintoma: satisfação às avessas
65
Os circuitos do dcsqo 1 1 :1 v i ,b e na análise
Satisfação às avessas
Cabe então perguntar se o sintoma é uma maneira de se satisfazer às
avessas. O que seria a satisfação "direita", não às avessas? Se o sintoma,
como propôs Miller em suas conferências em São Paulo, em abril de
1997, substitui-se à ausência da relação sexual, a satisfação "direta" é a
satisfação da relação sexual, que no entanto não existe. O sintoma como
satisfação às avessas é, portanto, necessário: se a não relação sexual é um
atributo do ser falante, não há ser falante sem sintoma, sem satisfação às
avessas. O sintoma é algo necessário, ele não cessa de se escrever no lugar
da relação sexual que não existe. É algo que facilita a vida dos neuróti
cos. O sintoma, como o sonho, satisfaz o desejo, como propõe Lacan
em O Seminário, livro 5. O desejo que se manifesta no sintoma sob a
máscara da fantasia é um desejo perverso. É isto o que Miller formula ao
dizer que o sintoma facilita a vida, quase definindo-e como a fantasia:
[$ f- s(A) ➔ a ]
4 " [. . . ]
o uso da função da pulsão não tem para nós outro valor senão o de pôr em
questão o que é da satisfação. [ ... ] É claro que aqueles com quem temos que tratar,
os pacientes, não se satisfazem, como se diz, com o que são. E, no entanto,
sabemos que tudo o eles são, tudo o que eles vivem, mesmo os seus sintomas,
depende da satisfação. Eles satisfazem algo que vai, sem dúvida, ao encontro
daquilo com o que eles poderiam satisfazer-se, ou talvez melhor, eles dão satisfa
ção a alguma coisa. Eles não se contentam com seu estado, mas, estando neste
estado tão pouco contentador, eles se contentam assim mesmo. Toda questão é
justamente saber o que é esse se que está aí contentado" Lacan. (1964: 158).
66
Sintoma: satisfação às avessas
(S ➔ a) --- d
j,
s(A)
67
Os circuitos do desejo na vida e na análise
Sintoma e fantasia
Vimos que Freud ligou intimamente o sintoma como satisfação à fanta
sia. Em ''A direção do tratamento", Lacan retoma essa relação. O sinto
ma, diz ele, é efeito de significação. Dois tipos de efeito interferem nessa
significação. De um lado, os efeitos que respondem num sujeito a uma
demanda fe ita pelo Outro, ou seja, o sintoma. Por outro, os efeitos que se
produzem não no sujeito, mas sim os efeitos do sujeito misturados ao
sintoma. É nesse nível que há incidência da fantasia no sintoma.
A tese de Lacan é de que o sujeito se sustenta no nível de seu
desejo pela fantasia em seu uso fundamental, e de que a fantasia contém
a causa do sintoma, escondendo-a. Por isso o sujeito se queixa daquilo
que, na sua fantasia, o faz gozar.
A fantasia é uma realização, e não apenas uma formação do in
consciente, como nos lembra François Leguil. O sujeito se realiza nela
em sua própria divisão. A fantasia deixa o sujeito profundamente insa
tisfeito. É neste sentido que podemos dizer que ela é uma solução neu
rótica para o desejo.
Estar cada vez mais insatisfeito com a sua fantasia é o que faz com
que o gozo interessado nessa fantasia possa interrogar o sujeito no sinto
ma. No grafo, isso é indicado de maneira topológica : o sintoma aparece
logo após a fantasia.
No seu sintoma, o sujeito se satisfaz com uma falta, uma falta-a
ser, e queixa-se de uma falta de gozar. A satisfação que a ilusão do
sintoma oferece decepciona o sujeito bem mais do que o gozo que ele
espera obter de sua fantasia.
1 Nos textos "The signifiance of masochism in the mental life of women" e "On
the genesis of the castration-complex in women", comentados por Lacan em
O Seminário, livro 5, no capitulo ''As insígnias do ideal".
68
Sintoma: satisfação às avessas
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FREUD, Sigmund
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( 1 9 9 1 ) Amanhã, a psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor.
70
Leituras do desejo
ou itinerários de
O Seminário, livro 5, de Lacan
Sonhos, lapsos, chistes . . .
o inconsciente e suas formações
Ronald Porti llo
[Caracts l
criação feita por Lacan da expressão parlêtre: o ser falado pelo Outro.
O parlêtre sempre diz algo diferente do que ele quer dizer e por vezes
demanda ser entendido além do que diz. A função do psicanalista é
exatamente entender o parlêtre além do que ele diz.
A descoberta inicial de Freud, descoberta magnífica e de grande
repercussão no mundo contemporâneo, foi a de considerar fenômenos
situados além do que queremos dizer ou fazer. Ele incorporou à refle
xão científica um registro composto de elementos que ultrapassam o
mundo consciente do sujeito. São elementos marcados pela incapacidade,
pelo deslocamento, pelo pouco sentido.
Freud empregou todos os seus esforços para alcançar uma signifi
cação para esses fenômenos atingidos pela negação do sentido. Ele pen
sava que todos os fenômenos de natureza inconsciente estavam relacio
nados com a linguagem e que eles podiam ser apreendidos nos momen
tos de esvaecimento do discurso, marcados pela queda, pela falha, pela
falta, pelo esquecimento, pelo deslocamento do sentido. A esses modos
de expressão do inconsciente identificados por Freud como o sonho, o
esquecimento, o chiste, o ato falho e o sintoma Lacan denominou de
formações do inconsciente.
Em outras palavras, às formações do inconsciente, caracterizadas
pela falta de sentido, Freud atribuiu uma significação. Ele estabeleceu o
lado afirmativo, positivo, no traço, no caráter negativo do sentido, ou
seja, para Freud, o sentido deve ser buscado além do dito formal, do
dito consciente. O sentido inconsciente reside nessas formações que
aparentemente não têm sentido.
Uma maneira particular, original, de abordar a linguagem teve
início com a descoberta de Freud. Dizer mais do que se sabe, não saber
o que se diz, dizer outra coisa do que se diz não são, para Freud, defei
tos da língua. São propriedades inevitáveis, incontornáveis, do ato de
falar, ato que ele equipara ao funcionamento do inconsciente.
Uma tese fundamental de Lacan deriva dessa formulação: o
significante, termo que designa a palavra falada ou escrita, e o significa
do (isto é, a significação do que se diz) não são equivalentes, não se
correspondem. É um engodo acreditar que o significante é utilizado
para dizer o que eu quero dizer. Sempre há um desacordo entre falar e
querer dizer, entre o que eu digo e o que eu quero dizer.
A tese de Lacan, contrariamente ao que afirmava Ferdinand de
Saussure, pai da linguística estrutural, é a de que o significado é um
resultado, um efeito do significante, ou seja, as palavras que eu utilizo
não servem para dizer o que eu quero significar. Ao contrário, o que eu
74
Sonhos, lapsos, chistes . . . o inconsciente e su;is lorma,·ôcs
75
Os circuitos do desejo na vida e na análise
76
Sonhos, lapsos, chistes . . . o inconsciente e suas formações
O não sentido revela que há algo que limitou, que fez obstácu
lo ao surgimento do sentido, algo que perturbou o próprio ser do
sujeito e que não pode ser totalmente reduzido aos significantes que
são os significantes do Outro, na condição de lugar ou tesou ro dos
significantes.
Há no inconsciente uma falta que se deve à sua estrutura. As for
mações do inconsciente mostram essa falta, suas manifestações, ao mes
mo tempo que tentam representar o sujeito. Em outras palavras, as forma
ções do inconsciente mostram a falha da estrutura da linguagem.
Os significantes são sempre deficitários para representar o sujeito. Não
é preciso crer que essa falta se deva ao apagamento de um significante
qualquer que traria a verdade do sujeito. Produzir, em termos
significantes, o que foi recalcado no inconsciente não é suficiente para
justificar uma formação do inconsciente. Quando se alcança um sentido
para as formações do inconsciente, não importa qual ela seja, isso não
libera o que está por detrás de qualquer expressão do inconsciente: o
desejo. O próprio Freud nos apresenta várias de suas formações do
inconsciente, nas quais nos dá uma aproximação do sentido faltante,
que, segundo ele, só pode produzir um sonho por ter ligação direta com
um desejo recalcado. A metáfora e a metonímia, como já foi dito, pos
suem uma relação muito estreita com a descontinuidade do sentido. Em
"A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" (1957),
Lacan reúne a adição do sentido da metáfora ao sintoma, assim como a
subtração do sentido da metonímia ao desejo. Quer seja por adição,
quer seja por subtração, o que a metáfora e a metonímia mostram é a
descontinuidade da cadeia significante e de seu efeito de sentido. Como
indicado acima, Lacan denominou a descontinuidade de uma cadeia
significante de sujeito. Ante essa descontinuidade como falta de um
significante, a linguagem procederá à produção de formações do in
consciente como, por exemplo, o sintoma.
Todas as formações do inconsciente são construídas como metáfo
ras, ou seja, composições semânticas sob as quais desliza o desejo ex
presso sob a forma metonímica. É por essa razão que Lacan afirma:
"Não haveria metáfora se não houvesse metonímia", ou seja, não have
ria formações do inconsciente se não houvesse a metonímia do desejo.
Pode-se ler essa frase a partir do deslocamento metonímico do desejo
recalcado que procura uma resolução, uma satisfação por meio das for
mações metafóricas do inconsciente. A própria existência do inconsci
ente encontra sua constituição a partir da condição deslizante
inextingüível do desejo inconsciente.
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Os circuitos do desejo na vida e na análise
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Sonhos, lapsos, chistes... o inconsciente e suas formações
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Os circuitos do desejo na vida e na análise
3
Uma frase de O Seminário, livro 1 1 : os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (1964) apóia essa formulação deduzida da elaboração freudiana:
"A interpretação [ ... ] não faz senão recobrir o fato de que o inconsciente [ . . . )
através das suas formações, sonhos, lapsos, chiste ou sintoma j á procedeu à
interpretação".
80
Sonhos, lapsos, chistes . . . o inconsciente e suas formações
81
Os circuitos do desejo na vida e na análise
4
Esta apresentação foi incluída num artigo contemporâneo aos grandes textos
sobre a descoberta do inconsciente, nomeado "Sonhos e histeria".
82
Sonhos, lapsos, chistes ... o inconsciente e suas fonnaçi,c.,
83
Os circuitos do desejo na vida e na análise
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( 1 9 9 9 ) ''A orientação lacaniana do Campo freudiano". Paris. Inédito.
84
Lógica do miglionário
Juan C a r l o s I n dart
l lluc1 1 < >s Ai res]
Prólogo
Estas linhas se propõem a fazer com que o leitor se interesse por um
texto de André Gide, considerando o ponto de vista da psicanálise de
orientação lacaniana.
Não posso avaliar a influência da literatura de Gide em diversos
aspectos do ensino de Lacan. Em 1958, este consagrou a Gide um escri
to excepcional (Lacan 1966:7 19-743), no qual traz à luz as condições de
sua posição subjetiva, sua fantasia e seu mais além da fantasia (Miller
1990), contra a possível redução de sua obra a uma psicobiografia. Tal
vez a presteza e profundidade da intervenção de Lacan constituam um
dado para sopesar seu interesse pelo sujeito Gide e sua escrita.
Prometeu mal acorrentado é mencionado duas vezes por Lacan
em O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente ( 1 957-8 : 43, 51-
53). Ele é levado a isso pela reconsideração que faz da análise do chiste
"familionário", que Freud apresentará em razão de suas possíveis rela
ções com o inconsciente. Já dispondo das noções de metáfora e
metonímia, também redefinidas em razão de sua relação com o incons
ciente, Lacan as aplica ao texto freudiano. O chiste "familionário" tor
na-se paradigmático para articular a substituição significante como fun
damento do efeito metafórico. Se nos lançamos de cara em uma semân
tica do chiste, perdemo-nos em múltiplos sentidos e diferentes interpre
tações, sem que haja acordo entre os estudiosos. O que pode ser objetivado
pelo escrito, e isto é indiscutível, é que esse tipo de chiste depende de
uma substituição puramente significante. E se estamos na paróquia e ele
chega até nós, verificamos, por experiência compartilhada, que ele é
uma paulada na cabeça. Quando escutamos uma criação verbal inaudita
como essa, não inexistente em nosso tesouro de significantes, e por isso
difícil de esquecer, as demais "funções mentais"entram em colapso, e
ingressamos em um campo de sem sentido-sentido de onde nos chega
um grande e verdadeiro deleite que impele ao riso, mas que não se
confunde com ele, e que, quando passa, pode deixar-nos em uma nos
talgia não de algo mais, mas sim de que o mesmo permanecesse mais
Os circuitos do desejo na vida e na análise
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Lógica do miglionário
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Lógica do miglionário
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Lógica do miglionário
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Os circuitos do desej o na vida e na análise
psicanalítica. Vai longe, mas não sem haver passado pela verificação,
diante de testemunhas, de que sua águia não responde às perguntas: de
onde vens, quem te enviou, porque me escolheste? Aparentemente esta
nova solução permite a Prometeu mudar seu antigo humanismo, feito
de piedade pelos homens e de consciência do bem. Já não se trata disso,
mas sim de passar do amor aos homens ao amor à águia. Cada qual tem
a sua porque em todos há essa enferma esperança de algo melhor, essa
insistente crença no progresso, ainda que marcada em cada qual por um
significante sem sentido que parasita o corpo, de um modo diferente e
singular em cada caso.
3) Logo após a conferência, o garçom informa a Prometeu que a
nova solução afetou muito Cocles e Damocles. Cocles, a bondosa e
caritativa vítima, anda pelas ruas oferecendo a outra face, à espera de
que uma nova bofetada resulte em ganho extra para outro; com isso,
sabemos que no fundo ainda lhe falta compreender, pois nada o livra da
relação reversível com a qual vela o insensato. Esse detalhe, esta
coalescência do S 1 recebido, a bofetada, com um objeto velado por essa
relação especular tão piedosa quanto carregada de agressividade já nos
indica o limite da nova solução. Quanto a Damocles, o efeito é ainda
pior. Durante a conferência, uma friagem lhe atinge, pela qual pega
uma misteriosa enfermidade que adivinhamos mortal, a da angústia cons
tante de consagrar-se à pergunta sobre quem lhe deu esse dinheiro, e
por quê, e por que disso que lhe sobreveio decorreu um mal a um
terceiro. Esse detalhe, essa coalescência do S I recebido, os quinhentos
francos, com um objeto velado pela relação especular, carregada de
remorso e de uma culpa inextinguível, por não haver juiz a quem dirigi
la, também nos anuncia o fracasso da solução. Nesse momento, o gar
çom leva Prometeu a uma interview com o mesmíssimo milionário,
que ao ser personificado permite a Gide explorar algo além de seu
aspecto de máquina aleatória e sem sentido, e, portanto, de máquina
sem intenções. Permite-lhe precisar qual seria seu gozo, e nisso segura
mente há algo relativo à posição subjetiva de Gide. O milionário de fato
nos diz que é mais rico do que se imagina. Tem "tudo, tudo" é dele. Por
isso seus atos são gratuitos, já que apenas um desinteresse absoluto
corresponde a uma fortuna infinita. Reconhece, porém, uma paixão,
uma paixão pelo jogo, e não por nenhum ganho eventual, pois ele já tem
tudo. O jogo consiste em tomar uma iniciativa, gratuita, introduzi-la de
um modo oculto entre os homens, e deixá-la em seguida para ver ao que
ela leva. "Eu experimento", Gide o faz dizer. E, então, o milionário nos
relata sua mais recente experiência. Segundo seu autor: "Fui para rua,
92
Lógica do miglionário
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Os circuitos do desejo na vida e na análise
é feito de modo muito cômico, como quem não quer nada, dizendo-nos
que cada ganho, cada progresso devido ao trabalho, engendra sempre
um novo problema, e algo que não funciona. Com mais trabalho pode
se resolver o problema causado pelo sucesso do trabalho anterior, cau
sando todavia, por sua vez, um novo problema. A história é longa, e
alguém se dá conta de que o assunto não se conclui. "Não há progres
so", sentencia Lacan nos EUA, e aprofunda: "O que se ganha por um
lado se perde por outro, e como se esquece o que se perdeu, acredita-se
que há progresso". Entre os progressos de Títiro está o de adquirir uma
biblioteca. Esta é acompanhada de uma bibliotecária, chamada Ângela.
Temos, então, o aparecimento de uma mulher em todas essas histórias
de homens. Ângela pode acompanhar e participar de todo esse trabalho
sublimatório, mas tenta fazer com que Títiro largue um pouco de tudo,
se afaste um pouco desse trabalho progressista interminável, e viaje com
ela, para passear, em Paris. Sentados em um barzinho num boulevard,
bebem e assistem à expectativa pela chegada de Melibeo e da música de
sua flauta, o que desperta em Ângela curiosidade e emoção. Diz-se que
quem apenas o divisa, já o considera encantador. Melibeo chega diante
de Títiro, para tocar flauta, detém-se bruscamente, vê Ângela "e cada
um se dá conta de que ele estava nu". O leitor se divertirá com a cena.
É claro que Ângela vai embora com Melibeo, e Títiro fica só. Essa é a
história que faz rir os presentes ao funeral de Damocles, inclusive o
próprio Prometeu, que reconhece a chatice de sua solução anterior.
Agora, nos diz que encontrou o segredo do riso. Encontrou a saída, uma
saída do milionário. E com sua história localizou onde estava esse se
gredo, e o localizou no S I ' não mais como enigma irresolúvel por outro
significante, nem como consagração de sua relação com o objeto a, mas
sim como Falo em sua confrontação com o Outro sexo, com o feminino
como tal, de onde se revela sua castração e a inexistência da relação
sexual. Isso era tudo. Assim, enquanto duram os risos, por assim dizer,
Prometeu convida-os a comer, e comem a águia bem preparada, como
quem come seu ser. De sua beleza anterior Prometeu conserva as plu
mas, e o narrador-Gide esclarece que escreveu a obra com uma delas.
No caso de o leitor, ou leitora, equivocar-se a respeito de alguma última
idealização referida a Ângela, Gide, à maneira de epílogo, nos remete a
Pasifae, a que não amava os homens, pois queria a relação sexual, e que
erra ao buscar um touro-deus, que se mostra apenas touro. Gide a faz
dizer: "Se Zeus se houvesse se metido no assunto, teria dado à luz um
Deus obscuro (Dioscuro); graças a esse animal, trouxe ao mundo um
bezerro". Com a palavra "bezerro" (veau) termina Prometeu mal
94
Lógica do miglionário
Referências bibliográficas
LACAN, Jacques
(1957-8) Le Séminaire, Livre 5: Les Formations de l'inconscíent. Paris : Seuil, 1 9 9 8 .
( 1 95 8 ) "Juventud d e Gide o l a letra y e l deseo". E m : Escritos II . Cidade do México: Siglo
XXI, 1 9 8 7.
MILLER, Jacques-Alain
( 1 9 9 0 ) "Acerca dei Gide de Lacan", Ma/entendido, n. 7. Barcelona.
95
Andrea Zanzotto ou "a falta" radial
Antonio Di Ciaccia
[Roma]
97
Os circuitos do desejo na vida e na análise
98
Andrea Zanzotto ou "a falta" radial
3
"Idioma, non altro, e eià ehe mi attraversa/ in perseeuzioni e ameliti h j eh eh
eh/ idioma e que] gesto ingessato/ ehe aeeumula/ sere sforbieiate via verso il
niente" (Zanzotto 1993 :303).
4
"Mi sono messo di mezzo a questo movimento - maneamento radiale/ ahi il
primo brivido dei salire, dei eapire,/ partono in ordine, sfidano: eeeo tutto"
(Zanzotto 1993 : 152).
99
Os circuitos do desejo na vida e na análise
100
Andrea Zanzotto ou "a falta" radial
101
Os circuitos do desejo na vida e na análise
Referências bibliográficas
AGOSTI, Stefano
( 1 9 9 3 ) "lntroduzione alia poesia de Andrea Zanzotto ". Em: Andrea Zanzotto, Poesie
( 1 93 8 - 1 9 8 6) . Milano: Mondadori, 1 9 9 3 .
DAVID, Michel
( 1 9 66) La psicoanalisi nella cultura italiana. Torino : Einaudi.
LACAN, Jacques
(1957-8) Le Séminaire, Livre V: Les Formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1 9 9 8 .
MILLER, Jacqucs-Alain
( 1 9 9 8 ) "Lacan com Joyce. Seminario di Barcelona li", La Psicoanalisi, n. 23. Roma.
( 1 9 9 9 ) Perspectivas do Seminário 5 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
ZANZOTTO
( 1 9 9 3 ) Poesie ( 1 93 8 - 1 9 8 6 ) . Milano : Mondadori.
( 1 9 94) "Nei paraggi di Lacan" . Em: Aure e disincanti nel novecento letterario. Milano:
Mondadori, 1 9 9 4 .
5
Ma che m'interessa ormai degli idiomi ?/ Ma si, invece, di qualche/ piccola
poesia, che non vorrebbe saperne/ ma pur vive e muore in essi - di cio m'interessa/
e dei foglio di carta [ . . . ]" (Zanzotto1993 : 3 03).
1 02
Witz, transmissão e pulsão do laço social
Pierre Thêves
[Paris]
1
Freud, S., "O chiste e sua relação com o inconsciente", traduzido por Denis
Messier, p. 262-263 . Tradução modificada.
2
Miller, J.-A, " A fuga do sentido" (1995-6), curso de Orientação lacaniana. Ver
as observações sobre o estatuto equívoco da linguagem como estrutura e como
aparelho. Deste modo, J.-A. Miller (1999) pode dizer em Barcelona que o grafo
é o Witz de Lacan.
Os circuitos do desejo na vida e na análise
Outro, seu profundo divórcio, ele não deixa de reler longamente diante
de seu auditório o Witz de Freud. Por quê ? Para mostrar que o Witz é a
única formação que suspende essa antinomia. Ele, efetivamente, permi
te estabelecer um vínculo de inclusão entre o Um e o Outro, entre o
gozo e o discurso, ele permite instaurar um· "não Um sem o Outro",
cujo alcance renovado decorre do que é conveniente chamar de o últi
mo ensino de Lacan.
Diremos, de nossa parte, que é por realizar a pulsão de transmis
são que o Witz, por excelência, torna-se laço social. Consideremos de
maneira decidida o pensamento tal e qual. Ele se faz ato a partir da
pulsão do laço que o produz. A própria sanção do Outro tem a ver com
essa pulsão.
Isso pode ser lido retroativamente, em filigrana, sob a insígnia do
grafo do desejo, como J.-A. Miller o utilizou em O Seminário, livro 5.
Nessa vertente, lê-se um enunciado que está na página 123 desse Semi
nário. Lacan retoma os desenvolvimentos de Freud sobre os preparati
vos do Witz, visando a surpresa do Outro : "O que o piadista produz
com essa separação é o Outro". Está claro, então, que o semblante
espiritual pressupõe um Outro não ainda ali, porém um outro como se
fosse novo, uma espécie de "Graal vazio" (Lacan 1957-8 : 124).
O Outro situado como produto se distingue do Outro como lugar.
Endereço e sanção se tornam os próprios produtos do semblante do
inédito. Como elaboração, o Witzarbeit provoca a emergência do Outro
como função simbólica como tal. Isso conduz ao Outro do último Lacan,
"fato de gozo", segundo a expressão de J.-A. Miller, e, por conseguinte,
leva a considerar este como incluindo a, motor, então, de um laço, por
mais sutil que seja, entre o Outro e o Um.
Isso está de acordo com a maneira como Freud define, nos enun
ciados citados acima, "a pulsão de transmissão". Ela é constituída de
um resto. "Alguma coisa subsiste", escreve ele, que impele à enunciação,
contornando seu "escândalo", entendido etimologicamente como obs
táculo (Lacan 1957-8 : 28). "Etwas bleibt ubrig", escreve, então, Freud.
Há um resto. Um resíduo no final da fabricação da palavra, até ali
operando solitária e tacitamente, insiste e pede para "surgir", e se enunciar
para, então, rematar o todo. A transmissão se faz objeto pulsional por
direito e condição absoluta (no sentido de "isolado") de toda essa longa
elaboração. O que é residual assinala o todo. E como havíamos adianta
do, sem dúvida n�nhuma a transmissão produz o Outro feito de gozo.
Será possível "atualizar" no mesmo sentido a questão de Lacan:
"Qual é este Outro? Por que este Outro? Que necessidade do Outro ?"
1 04
Witz, transmissão e pulsão do laço social
105
Os circuitos do desejo na vida e na análise
Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund
( 1 905 ) "Le mot d'esprit et sa relation à l'inconscient". Paris: PUF. 1 9 79 .
LACAN, Jacques
(1957-8) Le Séminaire, Livre V: Les Formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1 9 9 8 .
(1972-3) L e Séminaire, Livre 2 0 : Encare. Paris: S euil, 1 975.
MILLER, J.-A
(1995-6) "La fuite du sens". Inédito.
( 1 999) Perspectivas do Seminário 5 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
106
O que Freud viu em Orvieto ?
Yves Depelsenaire
[Bruxelas]
108
O que Freud viu em Orvieto ?
diferente do nome do mestre de Orvieto. Porém, entre essa ' outra coisa'
e o nome estabeleceu-se um laço associativo, de maneira que meu ato
de vontade falhou quanto ao seu alvo e eu, a des/Jeito de mim mesmo,
esqueci o nome quando, intencionalmente, queria esquecer 'outra coi
sa' [... ] - os nomes substitutos, por sua vez, não me parecem tão
injustificáveis como antes da explicação; eles me advertiram (em segui
da a uma espécie de compromisso) tanto do que eu havia esquecido
quanto do que eu queria lembrar, e mostraram que minha intenção de
esquecer alguma coisa não foi totalmente bem sucedida, nem totalmen
te fracassada". (Freud 1898 : 8)
A desmontagem desse esquecimento foi reunida por Freud em um
esquema do qual a edição francesa da "Psicopatologia da vida quotidia
na" nos priva. Quem sabe, talvez tenha sido isso o que inspirou a Guy
Rosolato a idéia extravagante de nos propor um outro, supostamente
mais esclarecedor? (Rosolato 1969). Na verdade, esse esquema de Freud
é uma parte essencial da decifração que ele opera. Vejamos:
ttic.elli
sma i
Herr, was ist da...
1 Trafui
7
morte e sexualidade
� pensamentos recalcados /1
1 09
Os circuitos do desejo na vida e na análise
Recalque ?
Em O Seminário, livro 1 : os escritos técnicos de Freud, Lacan, no início
do esquema citado acima, interroga-se sobre o status do que Freud des
taca como pensamentos recalcados: " O recalcado não é tão recalcado
assim, pois se ele não falou disso a seu companheiro de viagem, ele nos
fala imediatamente em seu texto" (Lacan 1 953-4:58). Freud sabe muito
bem o que se absteve de falar ao seu interlocutor: "Era isso que o inte
ressava, o que ele estava prestes a dizer e, por não tê-lo dito, restaram
lhe detritos, pedaços, as quedas dessa fala na seqüência de sua conexão
com esse interlocutor". E ele prossegue: "É porque a palavra não é dita,
aquela que pode revelar o segredo mais profundo do ser de Freud, que
ele apenas consegue se conectar com o outro através das quedas dessa
fala. O fenômeno do esquecimento é aqui manifestado literalmente pela
degradação da fala em sua relação com o outro." E, no entanto, "o que
assistimos aqui é a emergência - mas uma emergência censurada - de
uma fala verdadeira. Só Deus sabe quão longe ela pode ecoar! Do que se
trata aí senão do absoluto, ou seja, da morte? [... ] Só Deus sabe o quan
to o problema da morte é vivido pelo médico como um problema de
mestria. Ora, o médico, neste caso Freud, perdeu, tal como o outro - é
sempre assim que sentimos a perda de um doente de quem tratamos por
muito tempo".
Portanto, à proporção que essa confissão do ser, que essa fala ver
dadeira não chega a seu termo, a fala se transpõe inteiramente para a
vertente em que ela se liga com o outro. Freud se liga com o outro
através de uma pergunta: "Você já visitou Orvieto?", você viu os afrescos
de... E, a partir daí, ele se encadeia ao próprio discurso por essa pergun
ta sobre a palavra que falta. Ele se encadeia à própria questão da lacuna
da fala para manter-se na fala.
Se ele busca uma tal ligação com o outro, é na exata medida em
que o que impelia à fala não a alcançou e produziu-se a resistência, no
sentido em que Lacan a situou precisamente em O Seminário, livro 1, ou
seja, não em uma intencionalidade do sujeito, mas na significação como
tal: quando a fala se quebra e faz báscula em direção à pura presença
daquele que ouve, a do analista no dispositivo do tratamento, é exata
mente no ponto "em que o sujeito chega ao limite do que o momento
permite a seu discurso efetuar da fala" (Lacan 1 966 : 3 73 ). A resistência
se produz no momento em que a fala de revelação não é dita e faz
báscula em direção à presença da testemunha que é o analista. E, ade
mais, é certamente esse movimento, situável no campo da transferên
cia, que podemos isolar quando esse esquecimento ocorre a Freud: além
1 10
O que Freud viu em Orvieto?
Metáfora?
"Podemos nos contentar em falar, aqui, de recalque? ". Vamos encontrar
essa pergunta de "Introdução ao comentário de Jean Hyppolite" três
anos mais tarde em ''A psicanálise e seu ensino", texto em que Lacan faz
do esquecimento do nome Signorelli um paradigma do sintoma em sua
relação com o significante. Mais precisamente, a reencontramos no ar
gumento dessa comunicação em que ele escreve que "dizer que o sinto
ma é simbólico não é dizer tudo" (Lacan 1966:43 7). De fato, no pró
prio texto de O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente essa
reserva desaparece. Duas lições inteiras desse seminário são dedicadas a
demonstrar, através do esquecimento de Signorelli, que qualquer sinto
ma pode ser inteiramente desmontado segundo os mecanismos
significantes da metáfora e da metonímia.
111
Os circuitos do desejo na vida e na análise
1 12
O que Freud viu em Orvieto?
O objeto da castração
Se Lacan conseguiu explicar esse esquecimento pelos mecanismos
significantes que estruturam as formações do inconsciente, nem por
1 13
Os circuitos do desejo na vida e na análise
isso a questão está fechada quanto ao que pode fazer furo no significante.
Ele vai retomá-la em O Seminário, livro 1 2 . Desde o O Seminário,
livro 1 1, porém Lacan deixa entrever uma renovação de sua análise:
"Para retomar um exemplo nunca bastante explorado, aquele que foi o
primeiro sobre o qual Freud apoiou sua demonstração, o esquecimento,
o tropeço da memória relativo à palavra Signorelli, após sua visita às
pinturas de Orvieto: será possível não ver surgir do próprio texto, e se
impor, não a metáfora, mas a realidade do desaparecimento, da supres
são, da Unterdrückung, da passagem para baixo? A palavra Signor, Herr,
passa para baixo - o senhor absoluto, eu disse uma vez, a morte, para
dizer tudo, desaparece ali. E, do mesmo modo, será que não vemos, lá
detrás, perfilar-se tudo o que Freud necessita para encontrar nos mitos
da morte do pai a regulação de seu desejo? Afinal, ele encontra Nietzsche
para enunciar, em seu mito, que Deus está morto. E talvez esteja funda
mentado nas mesmas razões. Pois o mito de que Deus está morto - do
qual estou, de minha parte, bem menos convencido, como mito enten
dam bem, do que a maioria dos intelectuais contemporâneos, o que não
é de modo algum uma declaração de teísmo nem de fé na ressurreição -
este mito talvez seja apenas o abrigo que se achou contra a ameaça de
castração".
"Se vocês souberem ler, vocês os verão nos afrescos apocalípticos
da catedral de Orvieto. Se não, leiam a conver�a de Freud no trem -
trata-se apenas do fim da potência sexual, da qual seu interlocutor mé
dico lhe fala sobre o caráter dramático para aqueles que são cotidiana
mente seus pacientes." (Lacan 1964: 29)
"A morte, o senhor absoluto, eu disse uma vez": esse inciso reúne
todo o debate de Lacan consigo mesmo, tal como este se desdobra em
suas análises sucessivas do esquecimento do nome Signorelli. No come
ço, é evidente o fato de que a morte é identificada, simultaneamente,
como a própria condição da simbolização e como o real frente ao qual
toda enunciação se quebra. É a morte que, para o Lacan desta época, dá
a verdade mais radical da alienação significante; mas é também a morte
que serve como o próprio nome do real, por ser o único objeto que
escapa à captura significante. Essa página de O Seminário, livro 1 1 traz
uma retificação desse ponto de vista. Nela, Lacan nos faz entender que,
finalmente, em suas análises precedentes do esquecimento do nome
Signorelli, talvez ele tivesse privilegiado o tema da morte em detrimen
to do que constitui o essencial no episódio, ou seja, uma vacilação do
sujeito em seu encontro com o objeto da castração. Portanto, através da
crítica a Freud, presente nesta página, Lacan faz uma outra crítica, a si
1 14
O que Freud viu em Orvieto ?
1 15
Os circuitos do desejo na vida e na análise
1
N.T. " [ ... ] ou la craie 'Honorine'"; o substantivo craie (giz), em francês, é femi
nino. Daí sua substituição por "caneta", sem prejuízo do conteúdo da frase .
1 16
O que Freud viu em Orvieto ?
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Os circuitos do desejo na vida e na análise
em 1965, ele nos faz descobrir como o real faz furo no imaginário, na
falsa consistência à qual o uso feito do nome próprio dá corpo. Que o
sintoma fosse simbólico certamente não era dizer tudo, uma vez que é
um uso imaginário do simbólico, especialmente chamado para preser
var o real em jogo no sintoma, o real cuja irrupção necessita do sintoma
e que, aqui, é a irrupção do objeto olhar.
O que Freud viu em Orvieto, se não o real que surge na esquize do
olho e do olhar, quando lhe falta o apoio do ponto I de onde se ordena
a cena do mundo, "o verdadeiro lugar de sua identificação no ponto de
escotomia, no ponto cego do olho"? (Lacan 1965, aula de 6/01/65). Em
suma, o que Freud viu em Orvieto foi a representação de sua própria
destituição subjetiva, sua desaparição como mestre, como médico, como
clínico dos signos, mas também e ao mesmo tempo seu advento possí
vel como psicanalista. E, nesse sentido, não seria necessário considerar
este capítulo primeiro de Psicopatologia da vida quotidiana no mesmo
nível que o sonho inaugural da Traumdeutung, o da injeção feita em
Irma, do qual Lacan há muito tempo nos ensinou o verdadeiro alcance:
o de encontro com o real diante do qual Freud não recua ? Ali onde
Freud esperava a "beleza absoluta" que Wilhelm Fliess lhe prometera,
surge o objeto de horror, causa de um desejo ao qual, seu nome está
ligado, a despeito do que ele pôde construir como álibi, contra a emer
gência dessa causa, no novo mito do Pai em que ele acreditou que a
psicanálise deveria parar.
[Tradução de: Vera Avellar Ribeiro]
118
O que Freud viu em Orvieto?
Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund
(1887-02) "Lettres à Wilhem Fliess, notes et plans." Em: Naissance de la psychanalise. Paris:
PUF, 1 9 8 5 .
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LACAN, Jacques
(1953-4) Le Séminaire, Livre I: Les Écrits techniques de Freud. Paris: Seuil, 1 975
( 1 95 6 ) "Introduction au commentaire de Jean Hyppolite". Em: Écrits. Paris: Seuil, 1966.
( 1 957) "La psychanalyse et son enseignement". Em: Écrits. Op. cit.
(1957-8) Le Séminaire, Livre V: Les Formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1 9 9 8 .
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(1965-6) "Le Séminaire, Livre XII: Problemes cruciaux pour l a psychanalyse". Inédito.
ROSOLATO , Guy
( 1 9 6 9 ) "Le sens des oublis". Em: Essais sur /e symbolique. Paris: Gallimard.
1 19
A dialética do falo
Pierre Naveau
[Paris]
121
Os circuitos do desejo na vida e na análise
1 22
A dialética do falo
1 23
Os circuitos do desejo na vida e na análise
1 24
A dialética do falo
Referências bibliográficas
LACAN, Jacques
(1 957-8) Le Séminaire, Livre V: Les Formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1 9 9 8 .
( 1 95 8 ) "La signification du phallus". Em: Écrits. Paris : S euil, 1 9 6 6 .
( 1 9 6 6 ) Écrits. Paris : Seuil.
( 1 9 72) ''l.:Étourdit". Em: Scilicet 4. Paris: Seuil, 1 9 73 .
1 25
Sobre o sonho da paciente de Joan
Riviere: uma interpretação do
inconsciente
Hélene Bonnaud
[Paris]
1 27
Os circuitos do desejo na vida e na análise
Penisneid e mascarada
Sabemos que Freud enfatizou o penisneid da mulher, essa reivindicação
de não ter recebido da mãe o falo, reivindicação que pode subsistir
durante toda a vida de uma mulher. Ora, na mascarada, trata-se justa
mente do inverso do penisneid. O sujeito esconde o que tem para fazer
crer que não o tem. O ter torna-se estorvo na fantasia, já que parece
necessário ao sujeito fazer semblante de ser dele desprovido. Assim o
gozo do sujeito é manter segredo sobre o que tem, para fazer valer o que é.
É o que Lacan observa como sendo "seu procedimento sacrificial, fazer
tudo para os outros, adotando as formas mais elevadas da dedicação
feminina, como se dissesse : 'Mas vejam, eu não tenho esse falo, sou
mulher, e apenas mulher" (ibid. : 255). E isso, o sujeito o dirige essencial
mente aos homens que a admiraram sob sua fachada de mulher fálica.
Portanto podemos observar dois tempos:
1) Sou o que mostro que sou (um falo);
2) Sou o que eu não mostro que sou (mascarada).
Esses dois tempos podem ser conjugados com o verbo ter:
1) Tenho o que mostro que tenho (o falo);
2) Tenho o que não mostro que tenho (mascarada).
Ter e ser são intercambiáveis. Nos dois casos, o falo está aí. No primei
ro, ele é exibido e dele o sujeito goza. No segundo, o da mascarada, o
sujeito o esconde para se fazer ser o que não é. Ele mascara seu ter e,
por isso, no semblante ele é.
Mostrar e esconder são portanto duas maneiras de fazer existir o
que se tem. A mascarada é o sintoma que faz existir o ter mascarando-o.
É um sintoma que trata a verdade pela mentira. Se a função do
significante falo é utilizada para apreender de que se trata no caso de
Joan Riviere, pode-se dizer que a mascarada é uma maneira de transfor
mar o não ter em um bem que os homens gostarão de ter, um bem
desejável. No sonho, é a imagem da mulher lavando roupa (sou o que
não mostro que sou, e portanto sou desejável por não tê-lo).
No segundo tempo do sonho, o homem a admira e lhe acaricia os
braços e os seios. Ele é seduzido por sua máscara de não ter, que dela
faz uma mulher desejável. A mulher desejável para um homem é uma
mulher que não tem. Este é o ideal da feminilidade, embora Joan Riviere
1 28
Sobre o sonho da paciente de Joan Riviere: uma interpretação do inconsciente
se defenda dizendo que ela não pretende que exista uma diferença entre
a verdadeira feminilidade e a mascarada (Riviere 1994: 203). Ela pensa
que a feminilidade é um meio de evitar a angústia. Ora, como a masca
rada poderia evitar a angústia se não porque, fazendo semblante de ser
privado, o sujeito permanece seguro de que isso não falta. A castração
que o sujeito não pode admitir para si, sua própria castração, ele não a
aceitou do Outro, e antes de reivindicar o falo que não teve, encena,
fantasia que não o tem para, em seu íntimo, assegurar-se de que pode
disso gozar, apresentando-se ora no ter, ora no ser. Sem dúvida, a tese
de Joan Riviere tem o privilégio de pôr em evidência a função de sem
blante do falo. Nesse sentido, aparentemente sua fantasia não desmente
o sonho que revela que ser desejável não é ser admirada por aquilo que
se tem, mas ser coagida ao ato sexual... para defender seu ter. Que o
sujeito seja capturado neste cenário mostra efetivamente que sua posi
ção no mundo não impede a questão de seu desejo inconsciente. Assim,
o sonho vela a verdade induzindo a analista a uma série de interpreta
ções que fixam a questão do gozo na fantasia de ser punida pelo pai. Ora,
por que o pai seria aquele que interditaria a sua filha um tal sucesso?
1 29
Os circuitos do desejo na vida e na análise
fez ato de sua falta. A mascarada é o sintoma desse falo que lhe falta e
do qual ela só faz semblante de faltar. Ora, se ela se angustia, é certa
mente porque a angústia, como diz Lacan em seu "O Seminário, livro 1 0",
"é aquilo que não engana". A angústia não é evitada pela mascarada.
Nesse caso, a angústia está justamente ligada à castração e ao fato de
que a falta não falta. É isso o que cria a angústia, e pode-se apostar
tranqüilamente que a mascarada como semblante não permitiu ao sujei
to evitar a angústia. A seqüência do relato da análise o mostra, já que as
mudanças operadas no tratamento a fazem decair da posição fálica e lhe
fazem atravessar momentos em que ela não tem mais como recurso a
crença de que o Outro sempre está no horizonte de seu bem querer.
[Tradução : Elisa Monteiro]
Referências bibliográficas
LACAN, Jacques
(1957-8) Le Séminaire, Livre V.· Les Formations de l'inconscient. Paris : Seuil, 1 9 9 8 .
MILLER, Jacques-Alain
(1 999) Perspectivas do Seminário S de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
RIVIl',RE, J.
( 1 9 94) "La féminité en tant que mascarade". Em: M.-C. Hamon (org.), Féminité Mascarade.
Paris: Scuil.
130
,,
Metáfora e tempos do Edipo
Ana Meyer, Adriana M. Rubistein, Graciela Ruiz
[Buenos Aires]
Apresentação
Partiremos de uma afirmação de Jacques Lacan: "Falar a propósito das
formações do inconsciente é falar de questões de estrutura" (Lacan 1957-
8: 166). O inconsciente, tal como ele o estabelece, "é um conceito forjado
no rastro daquilo que opera para constituir o sujeito" (Lacan 1964:809).
Lembremos que é o significante o que opera para constituir o sujeito,
sem o qual não haveria um sujeito no real. Este sujeito é o que o
significante representa, e apenas poderá representá-lo para outro
significante. O registro do significante, que se institui pelo fato de que
um significante representa um sujeito para outro significante, é justa
mente a estrutura dos sonhos, lapsos, chistes e de todas as formações do
inconsciente. Sabemos também que isso explica a divisão do sujeito.
Assim como a constituição do sujeito está ligada às leis do significante,
a elas estão ligados os processos inconscientes.
A substituição e a combinação, as leis do significante, determi
nam os efeitos de sentido conforme as figuras da metáfora e da
metonímia. Estes conceitos são recursos necessários tanto para a
formalização das formações do inconsciente como para explicar a cons
tituição do sujeito.
O que Lacan chama de metáfora do sujeito ou metáfora radical se
diferencia, por exemplo, da metáfora surrealista. Esta última se abre a
possibilidades de significação ilimitadas. Lacan, ao contrário, exemplifica
a metáfora do sujeito por meio do acesso de raiva da criança que foi
" O homem dos ratos", recordando a cena em que interpela seu pai,
vociferando: "'Seu' lâmpada, 'seu' toalha, 'seu' prato ... e assim por
diante." O que dessa forma se destaca é a dimensão de injúria em que se
origina a metáfora radical, pois dela provém a capacidade de conceder
atributos (Lacan 1961:869). Esta já é uma maneira de articulá-la a al
gum objeto, como real, correlata à possibilidade da metáfora do sujeito,
que o institui com atributos injuriosos (mesmo que não seja assim, pois
ninguém poderia nomeá-lo realmente), característica a levar em conta
na reflexão sobre o caso que apresentaremos.
Os circuitos do desejo na vida e na análise
132
Metáfora e tempos do Édipo
Segundo tempo: "Nesse nível produz-se algo que faz com que o
recebido como resposta seja pura e simplesmente a lei do pai "concebi
da imaginariamente pelo sujeito como uma privação para a mãe" (Lacan
1957-8: aula de 22 de janeiro de1958). É nesse momento que se localiza
a função do pai em sua realidade como metáfora (valor simbólico en
carnado por ele graças ao tempo anterior), como significante que vem
outra vez no lugar de outro significante. Ele vem no lugar do significante
materno já significado como fálico. Porém o que é a mãe, se há uma
mulher subjacente a ela? Por isso, não se deve entender esse tempo como
uma substituição tranqüila de significantes pacíficos, pois é a mãe que
retoma sua questão de mulher, dirigindo-a plenamente a algum homem
que não é sua cria, originando os maiores alcances desse segundo efeito
metafórico. Devemos pensar qual é o gozo, ou seu desejo, que irrompe
pondo em questão a domesticação do real obtida pela metáfora prévia.
Essa perspectiva nos oferece a oportunidade de poder captar -
conforme o real, o imaginário e o simbólico - as dimensões do pai: algo
da ordem do real deve abalar o acordo imaginário fundamental inicial,
e algo do simbólico, pouco automático e muito responsável, deve pro
porcionar significantes que domestiquem novamente esse real que, de
fora, retorna conforme um desejo que, pelo menos por um período, não
pensa em voltar a limitar-se à maternidade, abrindo caminho para signi
ficações novas.
Não ser o falo da mãe é o efeito da segunda metáfora, e por isso a
conseqüência é a castração fálica materna. Ponto nodal que não é sim
ples de franquear e que pode manter o sujeito em uma certa identifica
ção com o falo. ''Algo que desvincula o sujeito de sua identificação liga-o
ao mesmo tempo ao primeiro aparecimento da lei sob a forma da de
pendência da mãe e de um objeto, que já não é simplesmente um
objeto de desejo, mas um objeto que o Outro tem ou não tem " (idem).
Essa frase anuncia a passagem ao terceiro tempo que possibilitará alcan
çar uma posição em relação ao falo que, digamos, "condena" cada sexo
a se confrontar com o Outro sexo. Dizemos "condena" e não "entusias
ma" porque a moral psicológica de nossos tempos tornou libertos os
delitos deste segundo tempo, desde que se prove a "boa conduta" con
sistente com a promessa de prosseguir com os bons velhos tempos em
que só se teria que ser o falo da mãe.
Terceiro tempo: o pai foi investido dos atributos fálicos, na ordem
do ter, e não do ser. (Isso ocorre se ele for capaz de introduzir, pelo
menos in extremis, sua capacidade de matar sobrevivendo, com os
133
Os circuitos do desejo na vida e na análise
signos de que assim, além do mais, ele passa bem. Não é a relação
sexual, impossível, mas, afinal, isso produz efeitos, pois é um fato milenar
que nem toda mulher fica indiferente a essa posição). "É por intervir
no terceiro tempo como aquele que tem o falo, e não que o é, que se
pode produzir a báscula que reinstaura a instância do falo como obje
to desejado da mãe, e não mais apenas como objeto do qual o pai pode
privá-la " (ibid. : 200, grifo nosso). Ao ser o suposto depositário do falo,
o pai o estabelece no lugar de onde pode ser desejado pela mãe resgata
da como mulher. O menino e a menina, assim como a mãe, encontram
se inscritos na dialética do ter/não ter. A mãe, ao verificar que não tem
o falo, pode então desejá-lo a partir de quem o possui, outra vez como
mulher, tal como sua filha, o que lhes tornará incômodas as relações
nada fáceis. O menino já não é o falo e, menos aquinhoado do falo na
ordem do ter, poderá por sua vez procurá-lo onde supõe encontrar algo
que o faça crescer, é claro, no simbólico-real (ele confundirá isso com o
imaginário). Essa dialética do ter convoca inevitavelmente ao jogo das
identificações, antigamente conhecidas como Ideal do eu. Dizemos as
sim porque, com Lacan, nos afastamos desse tempo do Édipo. Ou estamos
além. Não podemos, contudo, estar além de seu núcleo irredutível, que
não é mítico, a castração. Apercebemo-nos de que, a partir do capitalis
mo e sua ciência, já não há transmissão do terceiro tempo do Édipo e
que é preciso inventar outra coisa. Isso é oportuno porque o inconscien
te não é tradicional, mas sim constituído pelas invenções de linguagem
(não há outras) reais.
No entanto, reconhecemos que o que operou para constituir o
sujeito deixa rastros: só há vestígio do objeto metonímico; não há mais
de sentido e transmutação subjetiva que não seja metafórica. O pai foi
uma metáfora. O Nome-do-Pai engendra como metáfora o significado
essencial do sujeito, o falo.
Resta para nós comprovar nas formações do inconsciente (quando
demonstradas como tais) os rastros da operação da metáfora paterna: a
substituição, o recalque, a exclusão do real e sua domesticação, a pro
dução de um novo sentido, o efeito de castração.
Recordemos que Lacan começa definindo o inconsciente como "a
parte do discurso concreto em seu aspecto transindividual, que falta à
disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso
consciente" (Lacan 1953 :248).
"O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por
um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a
verdade pode ser resgatada; freqüentemente já está escrita em outro
134
Metáfora e tempos do Édipo
Caso: catonis
Juan é um cineasta que se apresenta com um sintoma: inibição da
criatividade. Trata-se de alguém que tem de ser criativo, mas que não
pode criar.
Sua queixa, desde o início da análise, foi contínua: paralisado na
vida, posicionado em não poder fazer, não chegar a nada. Nele tudo é
impotência, tanto nos planos econômico e de trabalho, como no afetivo.
Não pode fazer, não pode falar e sente-se inferior ante a atividade
profissional desempenhada por sua esposa.
O fragmento que apresentamos a seguir relaciona-se com um
momento de sua análise em que afirma que quer mudar e descobrir o
que se passa com ele.
Ao perguntar-se sobre sua falta -de iniciativa, lembrou de um rela
to de sua mãe durante um jantar familiar. Nesse jantar, ela conta que seu
filho, até os cinco anos, fôra muito criativo e inventar nomes era o que
ele mais gostava de fazer. Nesse momento, a esposa de Juan pergunta
por que ele deixara de sê-lo, ao que sua mãe responde: "por causa da
chegada dos irmãozinhos".
Ele pensa então que isto bloqueou sua criatividade, acrescentando
que não põe nada em prática, não leva nada adiante.
A analista lhe diz que talvez seja por temor de fazer um papel ridículo.
Apesar da significação materna, suas associações o conduziram a
uma cena que ele pôde descrever da seguinte maneira: "Quando penso
no que se passou, o cenário é a casa do meu avô paterno, a imagem se
repete como se ali fosse se desenvolver uma cena que tem a ver com
tudo isso... A casa de Las Heras está muito viva: três janelas com varan
das, um grande living, uma entrada meio escura, um corredor compri
do, uma sala de jantar gigantesca. Nesse lugar sombrio, meu tio me
disse : Nunca mais diga isso. Eu havia inventado um nome para ele, era
um nome fictício de que não consigo lembrar, e isso o deixou fora de si.
Ele me disse isso em um tom que senti como uma imprensada (apretada)"
135
Os circuitos do desejo na vida e na análise
136
Metáfora e tempos do Édipo
que eu inventava. O meu tio era o único que ficava furioso com
isso, e mais ainda se eu o fazia em público.
Daí a força que têm as palavras, como se o que eu dissesse me
pudesse jogar totalmente a favor ou contra, fossem demais ou
de menos. Por isso não falo, porque não quero me comprome
ter. Cada palavra que sai da minha boca está totalmente proces
sada. Filtro tanto que não produzo nada.
Comentário
Tentaremos articular as considerações teóricas com o caso que acaba
mos de narrar.
Em primeiro lugar, será possível dizer que esse esquecimento é
uma formação do inconsciente? Para tal, podemos situar nele os ele
mentos de estrutura necessários? Encontramos o esquecimento pontual
de um termo: Catonis, e trataremos de demonstrar que é possível cons
truir a metáfora e considerá-lo uma formação do inconsciente. Veremos
que é possível seguir as redes metonímicas ao longo das associações do
sujeito, assim como produzir a recuperação do termo ao final das mes
mas.
Passemos então ao caso. Trata-se de um sujeito, dedicado à arte,
que apresenta uma inibição em sua criatividade da qual se queixa, pois
permanece na posição de impotência: !'}ão pode fazer, não pode realizar,
está paralisado, sente-se inferior. Apresenta-se uma significação que
poderíamos situar como (-q>), que nomearemos de falta de criatividade.
Em determinado momento o sujeito dá valor sintomático a essa inibição;
pergunta-se como chegou a ela, e isto abre uma série de associações.
Nelas o significante criativo liga-se inicialmente ao discurso ma
terno, marcando um antes dos cinco anos em que era criativo e gostava
de inventar nomes, e um depois em que deixa de sê-lo. Podemos situar
assim um (q>) e um (-q>).
O significante criativo funciona como o resto metonímico chave
que conduz ao esquecimento e que se liga a diversas cadeias : a da arte
de um lado, mas também a que o posiciona como o falo materno, pri
meiro tempo do Édipo. No j ogo reiterado de inventar nomes, o sujeito
encontrava a complacência materna. Era criativo para ela. Podemos
imaginá-lo no centro da cena fazendo rir, fazendo o espetáculo para sua
mãe e sua família, e gozando disso. O termo criativo, nessa seqüência,
não vale então como ideal, mas desvela sua posição fantasística como
falo imaginário da mãe, proporcionando uma resposta tão plena quanto
enganosa ao enigma do desejo do Outro.
137
Os circuitos do desejo na vida e na análise
=
Catonis DM
DM x ser <p
s = o criativo
138
Metáfora e tempos do Édipo
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Os circuitos do desejo na vida e na análise
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Metáfora e tempos do Édipo
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Os circuitos do desejo na vida e na análise
142
Metáfora e tempos do Édipo
traços do tio: sua semelhança física (riso, gestos), ser do mesmo sangue,
ter a mesma origem por ser irmão do pai. Porém não aparecem atribu
tos do Ideal que permitem ao sujeito se sustentar nesses emblemas, o
que poderia localizar uma saída pela identificação. No fundo essas as
sociações constituem uma pergunta do sujeito: o que sou para o Outro
se o Outro não é minha mamãe ?
Desta operação do segundo tempo permanece uma transação, e
nela o sujeito fixa sua posição neurótica: renuncia ao gozo do primeiro
tempo, mas o conserva articulado a seu sintoma, deixando fixada sua
possibilidade criativa em "dar show", e relacionada ao gozo da fantasia
fálica materna (divertir a mamãe); como o sintoma se articula como
inibição, ele não pode falar, não pode criar. Faz sintoma em análise e há
um longo percurso para que a criação possa abrir-se para ele em um
sentido real.
O tratamento deverá abordar isso. Se os sintomas são entraves
ocorridos no segundo tempo do Édipo, na direção do tratamento a
subjetivação da castração deverá passar por essa "criatividade fálica" a
que continua preso arrastando com seu sintoma.
Para concluir, retrocedamos enfatizando algumas questões.
Por um lado, é possível dizer que o caso prova o valor das forma
ções do inconsciente na direção do tratamento. É interessante consta
tar como um pequeno esquecimento nos dá a razão precisa de uma
série de sintomas de que o sujeito sé queixa, e nos leva a situar a
posição em que se encontra fixado, na passagem do primeiro ao se
gundo tempo do Édipo. São dados estruturais para a direção do trata
mento.
Ao mesmo tempo, esse esquecimento nos dá a pista para ir bus
carmos ali o x, orientando nossa intervenção na direção contrária ao
trabalho do inconsciente, desatando as significações fixas. Nesse senti
do, embora seja importante considerar as formações do inconsciente
como o que conduz a um efeito de castração (-cp) , trata-se de localizar
um elemento distinto, oculto na fantasia, que permita orientar as inter
venções na direção do real.
Pareceu-nos importante retomar o valor posicional dos termos na
metáfora, ver como no mesmo lugar em que a fantasia vacila e que algo
de real aparece, a metáfora, trabalho do inconsciente, o recobre com
uma significação. É nesse ponto que devemos seguir a cadeia associativa
buscando os restos que nos conduzem ao termo recalcado, os que nos
aproximam do x, sem dar por estabelecido que o termo esquecido coin
cida necessariamente com o recalcado.
143
Os circuitos do desejo na vida e na análise
Referências bibliográficas
LACAN, Jacques
( 1 9 5 6 ) "Función y campo de la palabra y dei lcnguajc en psicoanálisis", Em: Escritos [.
Cidade do México: Siglo XXI, 1 9 84 .
(1 957-8) E / Semindrio, libra 5: Las (ormaciones dei inconsciente. Buenos Aires: Paidos,
1 999.
( 1 9 6 1 ) "La mctafora dei sujeto". Em: Escritos II. Cidade d o México: Siglo XXI, 1 9 8 4 .
( 1 964) "Posición dei inconsciente". E m : Escritos II . Op. cit.
144
Um escândalo no mundo
Sophie Gayard
[Paris]
146
Um escândalo no mundo
147
< ls cir"1itos do desejo na vida e na análise
148
Um escândalo no mundo
Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund
( 1 905) Psychopathologie de la vie quotidienne. Paris, Payot, 1 9 8 2.
LACAN, Jacques
(1957-8) Le Séminaire, Livre V: Les Formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1 9 9 8 .
1
Segundo as definições do Littré.
149
Sobre [os circuitos d'] a parceria
A teoria do parceiro1
Jacques-Alain Miller
[Paris]
Introdução
A questão do real foi a questão do século XX uma vez que o discurso da
ciência, de modo particular, assenhorou-se da linguagem própria à retó
rica, e também confrontou a linguagem não com o verdadeiro, mas sim
com o real. Concernindo ao nome próprio e avaliando até que ponto
este nomearia o que verdadeiramente é, ou seja, o que é real, a famosa
teoria das descrições definidas de Bertrand Russell (1905), rebento da
empreitada de Gottlob Frege, é o anúncio dessa questão desde o come
ço do século.
A reflexão filosófica que provém dessa tradição tem como cerne a
teoria da referência. Até que ponto a linguagem pode ou não tocar o
real? Como a linguagem e o real se enlaçam, dado que a linguagem é
potência de semblante e tem o poder �e fazer ex-sistir ficções? Daí a
idéia de que do ponto de vista do real a linguagem esteja doente, doente
da retórica da qual ela está empapuçada, e que seria necessário curá-la
por meio de uma terapêutica apropriada, para que ela verdadeiramente
se torne conforme o real.
A grande ambição de Wittgenstein e de seus herdeiros é realizar
uma terapêutica da linguagem, chegando a considerar a própria filoso
fia como uma doença que testemunha a infecção veiculada pela lingua-
-· gem como potência das ficções. Não se trata de resolver as questões
) filosóficas, mas sim de mostrar que elas não se apresentam se nos cura
/ mos da linguagem, se a submetemos ao real.
� Foi isso o que levou Lacan a passar do Nome-do-Pai ao Pai-do-
Nome. Isso não é vã retórica. A nomeação -dar nomes às coisas, o viés
por meio do qual Frege e Russell realizaram o questionamento da lin-
1
Esse texto retoma uma ampla parte do seminário proferido, em colaboração
com Éric Laurent, no quadro da Seção Clínica de Paris VIII, e intitulado
O Outro que não existe e seus comitês de ética (1996-97), dias 12, 19 e 26 de
março, 23 de abril, 21 e 28 de maio, 4 e 11 de junho de 1997. Texto estabelecido
por Catherine Bonningue.
Os circuitos do desejo na vida e na análise
154
A teoria do parceiro
155
Os circuitos do desejo na vida e na análise
impossível necessário
não cessa não cessa de se escrever
de não se escrever l:
NRS
contingente
cessa de não se escrever
encontro com o gozo
amor
Neste contexto, o amor quer dizer que a relação com o Outro não
é estabelecida por qualquer instinto. Ela não é direta, e sim mediada
pelo sintoma. Eis por que Lacan pôde definir o amor como o encontro,
no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo o que nele e em cada um
marca o rastro de seu exílio da relação sexual.
É evidente que o parceiro fundamental do sujeito jamais é o Ou
tro. Não é o Outro nem como pessoa, nem como lugar da verdade. Ao
·contrário, o parceiro do sujeito, o que psicanálise sempre percebeu, é
algo dele próprio: �yaimagçm -a teoria do narcisismo retomada por
Lacan em "O Estádio do espelho" - �eu objeto a , seu mai;;-de.:gQ_zar �
fundamentalmente�-
Eis esboçada a teoria do parceiro.
156
A teoria do parceiro
O parceiro-Deus, bifacial
Aliás, o próprio cogito cartesiano "Penso, logo sou" possui um parceiro.
Isto não é absolutamente um solipsismo. Há um parceiro no jogo da
verdade.
Que parceiro é esse? Em primeiro lugar, muito simplesmente,
seus próprios pensamentos, ou seja, o seu primeiro parceiro é seu pró
prio "eu penso". Mas dizê-lo, todavia, já é dizer demasiado porque ele
não pode isolar o seu "eu penso" de seus pensamentos, a não ser que ele
cesse de se confundir com seus pensamentos, cessando pura e simples
mente de pensar os pensamentos que tem.
E quando ele cessa de se confundir com os pensamentos que tem?
Quando ele se interroga a respeito de seus pensamentos. É evidente que
quando ele o faz, ele se distingue del�s . Ele se interroga - que idéia! -
a ponto de saber se eles são verdadeiros, e até mesmo de saber como
saber se eles são verdadeiros ou não. Isso basta para pôr minhocas em
sua cabeça, em seus pensamentos. A questão da verdade introduz as
minhocas - questão da verdade que, em Descartes, não se distingue da
questão da referência, já que se trata de saber se o pensamento, em
nossos termos, toca ou não o real.
Logo, logo a questão da verdade faz surgir a instância da mentira
sob as versões de um Outro que engana. Eis o parceiro que então surge
para Descartes: um outro imaginário, fictício, um Outro que engana,
que lhe põe essas minhocas na cabeça. É com esse Outro que ele joga
sua partida. Meditações, de Descartes, é o nome da partida jogada com
o Outro que engana, um Outro cujos pensamentos de Descartes seriam
apenas produções ilusórias, que ele emite para desviá-lo.
De saída, a partida jogada com o Outro enganador parece perdida,
necessariamente perdida, já que o sujeito concede onipotência ao Outro
- "você pode tudo" -portanto a potência de enganá-lo em todos os seus
pensamentos, mesmo os que lhe parecem os mais seguros. Uma partida
desigual, radicalmente desigual. O Outro enganador logo o despoja,
157
Os circuitos do desejo na vida e na análise
158
A teoria do parceiro
O parceiro-psicanalista desejo
O segundo capítulo poderia ser a psicanálise, dado que o sujeito nela
busca e -espera-se - nela encontra um novo parceiro, o psicanalista.
Com quem se parece o parceiro-psicanalista, o parceiro-Deus ciência
ou o parceiro-Deus desejo? Com os dois. De um lado, há o analista
ciência. Procura-se o analista medalhão, bastante confiável, nada capri
choso, inalterável, ou ao menos que não se mexa muito. Lacan chegava
a imajar essa parceria comparando o analista com o morto na partida de
bridge, o que convidaria, o analista a sustentar uma posição cadaverizada,
reduzindo sua presença a uma função do jogo e tendendo a confundir-se
com o sujeito suposto saber.
Na outra face, porém, há o analista-desejo. Mesmo se o seu silên
cio é divino, sua função comporta que ele fale ao menos de vez em
quando, o que chamamos de interpretação. Isso conduz o sujeito a in
terpretar os ditos do analista. Desde o momento que o analista fala e se
o interpreta, seu desejo entra no jogo. Não nos recusamos de fazer do
desejo do analista uma função da partida jogada na análise.
Assim, se nos fizermos a questão de saber se o analista lembra o
parceiro-Deus ciência ou o parceiro-Deus desejo, somos forçados a con
cluir que ele lembra os dois.
O que nos obriga a compará-lo com o parceiro divino? Sem dúvi
da é mais razoável compará-lo com o parceiro na vida, o parceiro vital.
159
Os circuitos do desejo na vida e na análise
A clínica, é o parceiro
Já podemos dizer que o que chamamos de clínica é o parceiro. Na
análise, o parceiro é o real como impossível de suportar. Às vezes, o
verdadeiro parceiro são os pensamentos, como para Descartes, no co
meço. É possível que o sujeito não consiga suportar os pensamentos que
lhe ocorrem e sejam estes que o persigam. Como conseguir não pensá
los, como conseguir pensar em outra coisa? Em seguida, lá está ele
recapturado por seus pensamentos. Ele se esforça em anular seu próprio
"eu penso", por exemplo, intoxicá-lo ou anestesiá-lo. É na trama com
seus pensamentos que se joga a partida. É nela também que, em deter
minada forma clínica, pode ocorrer a idéia de suicídio, entendido aqui
como uma forma radical de se divorciar de seus pensamentos.
Às vezes o parceiro essencial é o corpo, exatamente aquele que se
tem na cabeça, o que encontramos tanto na histeria de conversão -
menos freqüente hoje em dia, menos popular - como na clínica
psicossomática.
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A teoria do parceiro
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A teoria do parceiro
imagem
símbolo
sintoma
1 63
Os circuitos do desejo na vida e na análise
a palavra partida está ligada ao jogo (jeu) . Ela designa não só a conven
ção inicial dos jogadores, como também a própria duração do jogo, "no
final do qual são designados ganhadores e perdedores", diz o Robert.
Se esboço uma teoria do parceiro, é porque o sujeito lacaniano,
aquele a quem nos remetemos, está essencialmente engajado em uma
partida. Ele tem de maneira essencial, não contingente, mas sim neces
sária, de estrutura, um parceiro. O sujeito lacaniano é impensável sem
um parceiro.
Afirmá-lo é aperceber-se do que há de essencial para o sujeito no
que chamamos, desde Lacan, a experiência analítica, que não é nada
mais do que uma partida, uma partida jogada com um parceiro. Trata-se
de saber como compreender o que a partida de psicanálise pode ter de
essencial para um sujeito, no sentido em que dizemos "a partida de
cartas". Como justificar o valor que pode tomar a partida de psicanálise
para um sujeito senão postulando que existe fundamentalmente, e in
clusive fora desse engajamento, quer este ocorra ou não, uma partida
psíquica inconsciente?
O sujeito como tal está sempre engajado, quer o saiba ou não, em
uma partida. A existência da psicanálise o supõe, e a partir desse fato,
tentamos imaginar seus fundamentos, o que, por sua vez, conduz à hipó
tese de uma partida inconsciente. Se uma partida inconsciente é jogada
para o sujeito, é porque ele é fundamentalmente incompleto.
A incompletude do sujeito foi ilustrada inicialmente por Lacan no
estádio do espelho. Nos termos de nossa discussão, o estádio do espe
lho é uma partida jogada pelo sujeito com sua imagem. Ao considerar
mos essa construção de Lacan, tendo como pano de fundo a elaboração
psicanalítica, somos levados a dizer que "O estádio do espelho" é a
versão lacaniana do narcisismo freudiano, do que Freud postulou em
"Introdução ao narcisismo" (1914). O narcisismo freudiano parecia pro
pício para fundar uma autarcia do sujeito. Ele foi lido assim. Há um
nível ou um momento em que o sujeito não precisa de ninguém, encon
trando nele próprio o seu objeto. Fez-se do narcisismo freudiano a au
sência de partida, e daí se suspeitou que seriam ilusórias as partidas que
o sujeito poderia jogar em relação ao narcisismo. O estádio do espelho
inverte essa leitura uma vez que ele introduz a alteridade no cerne da
identidade-a-si, definindo desse modo um status paradoxal da imagem.
A imagem de que se trata no estádio do espelho é ao mesmo tempo a
imagem-de-si e uma imagem outra.
A partida imaginária do narcisismo, a-a', foi descrita por Lacan
como um impasse, tanto na vertente histérica quanto na vertente obses-
1 64
A teoria do parceiro
siva da neurose. Dessa partida o sujeito sempre sai perdedor. Ele só sai
às próprias custas.
Em seguida, como afirmamos acima, Lacan introduziu um outro
parceiro que não a imagem, o parceiro simbólico, a partir da idéia de
que a clínica como patologia se enraíza nos impasses da partida imagi
nária, impasses que exigem tomar a análise como partida simbólica.
Supõe-se que essa partida simbólica ocasione o passe, isto é, uma saída
exitosa para o sujeito.
165
Os circuitos do desejo na vida e na análise
O parceiro-símbolo
Falei sobre como Lacan descreveu as estruturas clínicas como impasses,
não como impasses ilusórios, mas sim imaginários, no sentido de que a
verdade tem estrutura de ficção. Com isso, procurava enfatizar que há
tantos modos de tapeação quanto de mentira, o passe devendo ser buscado,
desde o início de seu ensino, do lado do que não engana. Eis por que ele
acreditou, a princípio, encontrar uma saída do lado do Outro, como
Outro da boa fé, aquele que não engana.
Dessa forma ele distinguiu o outro imagem do Outro símbolo, afir
mando que este último, por excelência, não engana. Como formula na
página 455 de Escritos: "a solução dos impasses imaginários deve ser bus
cada do lado do Outro, distinguido por um A maiúsculo, sob cujo nome
designamos um lugar essencial à estrutura do simbólico. [... ] o garante da
Boa-Fé necessariamente evocada pelo pacto da fala". Enfatizo aqui o termo
'necessariamente'. Para o primeiro Lacan, havia algo "que não cessa de se
escrever quando se fala". Esta, a referência ao Outro que não engana.
Isso não significa que, nos próprios termos de Lacan (: 458), nos
confins da análise, na zona que diz respeito ao chamado fim de análise
e que também é a expulsão do sujeito para fora do seu impasse, deve-se
restituir na experiência uma cadeia significante? Se opomos o parceiro
imagem e o parceiro-símbolo, o fim de análise é a restituição da cadeia
significante.
1 66
A teoria do parceiro
167
Os circuitos do desejo na vida e na análise
imagem
símbolo
falo cp
{
amor 1/-..
\
a
sintoma
O parceiro a
Acrescentemos imediatamente o parceiro apresentado ao sujeito por
Lacan: o parceiro objeto a, parceiro essencial revelado por ele a partir
da estrutura da fantasia. Não é o Outro sujeito, nem a imagem, nem o
falo, mas um objeto extraído do corpo do sujeito. A partir daí Lacan
elaborou o parceiro essencial, que o conduziu ao parceiro-sintoma, que
de maneiras diversas, é o parceiro-gozo do sujeito.
Em "Posição do inconsciente", Lacan institui de modo definitivo
o campo do Outro face ao espaço do sujeito, representado por um con
junto. Encontramos aí de certa forma essa parceria fundamental entre o
sujeito e o Outro, para mostrar que a sua raiz é o objeto a, e que o
sujeito tem essencialmente como parceiro no Outro o objeto a. No
interior do campo simbólico, no interior da verdade como ficção, ele
tem de se haver, ele se relaciona e se associa, essencialmente na fanta
sia, com o objeto a. Este é de algum modo a substância não apenas da
imagem do Outro, como também do Outro.
S -- A
ffi
168
A teoria do parceiro
1 69
Os circuitos do desejo na vida e na análise
Como dizia, foram precisos dez anos para Lacan explicar a razão
dessa contingência pela não-relação sexual. Se há essa contingência, é
porque de maneira correlata algo não está necessariamente inscrito.
O parceiro, na condição de parceiro sexual, jamais está prescrito, ou
seja, programado. Nesse sentido, o Outro sexual não existe em relação
ao mais-de-gozar, vale dizer, o parceiro verdadeiramente essencial é o
parceiro de gozo, o próprio mais-de-gozar.
Daí a interrogação sobre a escolha de cada um de seu parceiro
sexual. Pois bem, o parceiro sexual sempre seduz pela forma como ele
se acomoda à não-relação sexual, ou seja, só seduzimos por meio de
nosso sintoma.
Eis por que Lacan dizia em O Semindrio, livro 2 0: mais, ainda
(1972-3) que é o "encontro, no parceiro, àos sintomas e dos afetos de
tudo que marca em cada um o rastro de seu exílio da relação sexual" o
que provoca o amor, o que permite vestir o mais-de-gozar com uma
pessoa.
Trata-se de uma nova doutrirna do amor em que este não passa
apenas pelo narcisismo. O amor passa pela existência do inconscien
te, o que supõe que o sujeito perceba no parceiro o tipo de saber que
nele responde à não-relação sexual, ou seja, supõe a percepção, no
parceiro, do sintoma que ele elaborou em razão da não-relação sexual.
É precisamente sob essa perspectiva que Lacan elaborou, nesse mes
mo Seminário, que o parceiro do sujeito não é o Outro, mas sim o
que vem substitui-lo sob a forma de causa do desejo. Eis aí a concep
ção radical do parceiro que faz da sexualidade uma vestimenta do
mais-de-gozar.
Quais as vantagens dessa perspectiva? Por exemplo, ela permite
abordar as toxicomanias. A toxicomania segue as linhas da estrutura,
ela é um anti-amor, pois prescinde do parceiro se)f!lal e se concentra, se
dedica ao parceiro (a)-sexuado do mais-de-gozar. Ela sacrifica o imagi
nário em nome do real do mais-de-gozar. Além disso, a toxicomania é
atual, ela pertence a uma época que prefere o objeto a em detrim�..cki
Içl_e�l, uma época em que I vale menos que a (1 < a).
Se nos interessamos hoje pela toxicomania, que existe desde sem
pre, é porque ela traduz maravilhosamente a solidão de cada um com
seu parceiro-mais-de-gozar. A toxicomania pertence ao liberalismo, à
época em que nos lixamos para os ideais, em que não nos ocupamos de
construir o Outro, em que os valores ideais do Outro empalidecem,
desagregam-se frente à globalização de que ninguém está a cargo, en
fim, uma globalização que prescinde do Ideal.
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I:
-<1>-
Sem irmos mais longe, tomei o símbolo do conjunto vazio, certa
mente infringindo o fato de que essa relação não pode se escrever na
definição lacaniana. Lacan jamais a escn;:veu, jamais procurou um materna
da não-relação sexual, para a exemplificar a impossibilidade de escrevê-la.
O mérito de tal fórmula foi o de resumir o que pude desenvolver e
estabelecer acerca da correlação entre os termos sintoma e não-relação
sexual, escrevendo-a sob a forma de uma substituição, de uma metáfora.
O sintoma vem no lugar, é metáfora da não-relação sexual.
A fórmula se completa com a modalidade destinada a cada um
desses dois termos, uma vez que a não-relação sexual não cessa de não
se escrever, de não comparecer ao lugar onde, por motivos certamente
equívocos, nós a esperaríamos, enquanto o sintoma não cessa de se
escrever, ao menos para o sujeito. A fórmula lembra assim que a neces
sidade do sintoma responde à impossibilidade da relação sexual. A não
relação sexual é uma qualificação de espécie, da espécie do ser vivo,
que chamamos de espécie humana, e à qual, nessa dimensão, não pode
mos deixar de fazer referência. Tal fórmula quer dizer que não há ser
proveniente dessa espécie que não tenha sintoma, ou seja, não há ho
mem, no sentido genérico, sem sintoma.
A fórmula permite ver de forma elementar que o sintoma se ins
creve no lugar do que se apresenta como falha, falha do parceiro sexual
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Os sintomas da moda
É preciso distinguir as drogas. O gozo da maconha é um sintoma que
não rompe necessariamente com o social. Ao contrário, ele com fre
qüência é considerado como um adjuvante à relação social, ou mesmo à
relação sexual. Eis por que o presidente Clinton e outros podem confes
sar terem tocado tal gozo sem por isso serem desconsiderados. Reen
contramos aqui o critério lacaniano essencial a respeito do gozo toxicô
mano, verdadeiramente patológico quando preferido ao pipizinho, ou
seja, quando longe de ser um reforço, ele, ao contrário, é preferido à
relação sexual, a ponto de este gozo ter um tal valor para o sujeito, que
ele o prefere a tudo, tendo ou não que praticar crimes para alcançá-lo.
Lacan foi obrigado a recorrer às ficções kantianas para explicar o
gozo perverso. Kant considerava líquido e certo o seguinte: se disserem
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A □ a:
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0 0 CID
Essa é a interseção descrita por Lacan ao situar o objeto a nessa
área. Quando falamos do desejo, da pulsão, nós o fazemos enganchando
os ao objeto perdido, ou seja, não podemos usar os conceitos sem, de
uma forma ou de outra, fazer deslizar o objeto perdido. O objeto perdi
do deve ser buscado no Outro. Eis a dupla face do objeto a, seu caráter
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N. do T. Janus, um dos antigos deuses de Roma, guardião dos portos, cujas
entrada e saída vigiava, razão pela qual era representado com dois rostos.
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amante amado
+
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CID
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O parceiro-sintoma
Já afirmei que o sexo não é exitoso em tornar os seres humanos, os
parlêtres, parceiros. Desenvolverei que apenas o sintoma é bem-sucedi
do quanto a isso. O verdadeiro fundamento do casal é o sintoma. Se
consideramos o casamento como um contrato legal que liga as vonta
des, abordarei o casal como, se assim posso dizê-lo, um contrato ilegal
de sintomas.
Em que um e outro estão de acordo, no sentido mesmo da harmo
nia? A experiência analítica mostra que é o sintoma de um que entra em
consonância com o sintoma do outro. A expressão "parceiro-sintoma"
não era usual até este momento. Convém então fundá-la.
Indo direto ao assunto, lembrarei o que Lacan desenvolveu a res
peito do que podemos chamar de o parceiro-falo, a redução do parceiro
ao status fálico.
O parceiro-falo
É nessa perspectiva que se insere ''A significação do falo" (1958) e a
releitura dos textos de Freud sobre a vida amorosa.
Lacan distingue e articula três modalidades de casal, três casais, se
excluímos da série o casal da necessidade. Este é composto por aquele
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N. do T. No original, "objet à éclipse", uso da expressão à eclipse, que significa
o que aparece e desaparece alternativamente. Cf. Le Robert, Dictionnaire des
expressions et locutions.
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que não quer pagar sua cota à mulher. E, entre todos, é com esse que ela
se junta. É um homossexual. Nobody is perfect. Eles se amam, se enten
dem. Um não pagará pelo outro, eis o lema do casal.
A má sorte faz com que ela entre em análise. Sabe-se -não por
acaso - que a análise é de bom grado causa de divórcio. E na análise
nasce o desejo de que o Outro pague por ela.
Um sonho retorna: uma butique da infância conduz a associação
de que, quando ia comprar alguma coisa embaixo do prédio onde mo
rava, ela dizia: "Papai vai pagar". Papai era o substituto. E ei-la que se
põe a desejar que o homem, o pai de seus filhos, pague sua parte. Ela
não quer mais ser tartaruga.
O cara, fiel ao contrato sintomático inicial, não quer largá-los.
E ela passa a detestá-lo, sonha em deixá-lo, prepara sua partida. Ele não
se mexe. O cofre está fechado. Eis que logicamente ela lhe apresenta
contas. E um dia ela lhe apresenta uma conta a mais - de gás e eletrici
dade. Eis que isso se revela insuportável para ele, pega suas tralhas,
vinte anos depois, e pede enraivecido o divórcio, logo após advertir a
companhia de gás francesa de não mais lhe cobrar débitos porque ele
não os pagaria. Esse divórcio é doloroso para ela, que descobre que não
o queria, apesar de cozinhá-lo em banho-maria durante anos. Ao con
trário, ela desejava um casal verdadeiro, no seu conceito.
Pode-se dizer que a análise ati�giu a base sintomática do casal.
E por que não considerar isso como uma travessia da fantasia, da fanta
sia "necessidade de ninguém". Constatamos, em todo caso, que essa
fantasia passou para a vida. Tendo atravessado a fantasia, divorciada, ela
se reencontra na situação em que certamente ele não mais pagará para
ela. Nesse momento tão doloroso de ruptura do casal, descobre-se o
que era a base do casal, que cada um casara com seu sintoma.
É preciso levar em conta a dissimetria de cada sexo na relação
com o Outro. Aqui Lacan nos serve de guia. O que o sujeito homem
busca no campo do Outro? g}�-��_sc:��senci�E:1!.�!e"_?,__9,�f Q Q�jÇ!.Q.(1.,
objeto que responde tão bem à estrutura da fantasia. Ele se relaciona
apenas com esse pequeno a. Isso pode assumir a forma grosseira que
evoquei com "aquela gozada".
Não é fundamentalmente diferente do lado mulher. Escrevo aqui S.
Lacan apõe à ponta da flecha um <I>, resto da elaboração de ''A significa
ção do falo". Ele apõe o <I>, e não o falo imaginário, para indicar que há
objetos que podem tomar esse valor. O falo é certamente o mais queri
do, mas a criança pode adquirir valor fálico. Eventualmente, podemos
nos relacionar com o Outro sexo para roubar dele essa criança com
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lado homem $ a
lado mulher $
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Parceiro-devastação
Talvez eu possa dar um exemplo, o de uma jovem mulher que se casa
com um homem que ela fisgou. Em algum lugar, Lacan fala do bando
de rapazes se empurrando, se dando bordoadas e das meninas que os
cercam, até que uma descola um deles do bando, e ele então acena para
os amigos : "Até mais, a gente se fala". Ops... Ela o arrasta.
Ela ultrapassou as reticências do rapaz, suas inibições, sua extrema
má vontade. Ele queria permanecer casado com seu pensamento, seus
maus pensamentos. Ela forçou um pouco a barra para agarrá-lo, e não
outro, embora fosse uma mulher a quem não faltassem pretendentes.
Eis o resultado: ele não deixa passar um dia sem cobrá-la pela
constituição desse casal sob a forma de observações depreciativas. Isso é
clássico! Freud o assinalou : � -��l_!l�!l)-º�-spr_� ��.ª}!!l}lb er, _po�'"�-���..?
castração feminina, observações depreciativas que chegam à injúria quo
t1d1.ana, sob formas particularmente cruéis. O ódio da feminidade se
expõe do rriodo o mais evidente possível.
-· · .. . As pêssoás comentam, os amigos dizem: "Larga dele". Surge a
famosa questão: "o que ela viu nele?", reveladora da dimensão do par
ceiro-sintoma. A pressão acaba por levá-la a um analista. Em análise,
descobre que, finalmente, ela vai muito bem. Prospera. Goza na cama.
Após a injúria, transam. Ela engravida. Ela trabalha. E toda a dor con
centra-se no parceiro injurioso que aparece sob a forma, assinalada por
Lacan, de devastação. Isso a devasta. Ela chega à análise devastada pelos
dizeres do parceiro.
O que se descobre em análise? Descobre-se -com a ajuda dessa
perspectiva que se abre, quando partimos do princípio, tão salubre, de
que o sujeito é feliz inclusive na sua dor - que a palavra de injúria é
exatamente o próprio núcleo de seu gozo, que ela tem injúria, gozo da
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N. do T. No original : "les écailles [ .. . ] vous tombent des yeux", alusão a São
Paulo recobrindo os olhos, e significando "abrir os olhos", "desenganar".
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a -- a'
( $ O A)
($ o <I>)
Mais tarde, às vezes simultaneamente, deu outra resposta ajudado
por outro termo Janus, o objeto a, que sem dúvida, não sendo um
significante, está mais próximo do registro libidinal que o falo. Mesmo
não sendo um significante, Lacan o fez funcionar em sua circulação
como um significante, por exemplo, no esquema dos quatro discursos,
a letra a não é um significante, mas gira tanto como os significantes,
como com a falta de significante. O objeto a é, tal como o falo, um
termo Janus.
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Esse uso e o uso feito por um certo número de pessoas que dela se
utilizem, "não se sabe muito bem por quê", diz Lacan. Eles a utilizam
e, pouco a pouco, a palavra é determinada pelo uso que dela é feito.
O conceito de uso é essencial no último ensino de Lacan exata
mente por ser distinto do nível do sistema, o nível saussureano do siste
ma que o inspirara no início. Ao sistema opõe-se o uso, à lei diacrítica
do sistema fixado no corte sincrônico que fazemos, para determiná-lo,
opõem-se os mais ou menos, as conveniências, os sabichões e os desvios
da palavra, do uso da palavra, da prática. Há aqui, com efeito, uma
disjunção essencial entre a teoria e a prática. Essa disjunção já se esboça
por meio do savoir-faire - o savoir-faire já é uma prática codificada
distinta da teoria - e explode no saber haver-se aí. Neste não há teoria,
mas sim uma prática que segue seu caminho sozinha, como o gato de
Kipling.
Enquanto havia o Outro, tesouro do significantes, não tínhamos
necessidade do uso, e podíamos afirmar que nos referíamos ao Outro
para saber o que as palavras queriam dizer. E depois, quando as pala
vras funcionavam e que evidentemente não eram como no dicionário,
recorria-se ao mestre da verdade, àquele que dizia, pontuava e escolhia
o que aquilo queria dizer.
Mas quando o Outro não existe, quando não elevamos a contin
gência do dicionário ao status de norma absoluta, quando vocês acredi
tam mais ou menos no mestre da verdade, sobretudo menos que mais,
quando se é mais do tipo "ele diz isso e eu digo outra coisa", quando o
Outro não existe, então só há o uso. O conceito de uso se impõe preci
samente a partir do fato de que o Outro não existe. A promoção do uso
acontece onde o saber falta, onde o espírito de sistema é impotente, e
ali onde a verdade, com seu cortejo de mestres mais ou menos faltantes,
não se encontra.
Eis bem por que há uma correlação essencial entre o conceito de
uso e o real, em sua definição radical proposta por Lacan: "Talvez seja
meu próprio sintoma". O real em sua definição radical não tem lei, não
tem sentido, aparece apenas em pedaços, o que significa dizer totalmen
te rebelde à própria noção de sistema. Eis por que a relação com o real,
até mesmo a boa relação com o real, está marcada, qualificada pelo
termo de uso.
A melhor prova disso -Lacan não parou de falar a esse respeito
em seu último ensino - é que sempre nos enrolamos (s'embrouiller).
Põe-se sempre de lado. O homem se enrola com o real. É por aqui que
nos aproximamos da definição mais probatória. Ele se enrola também
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