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Escola Brasileira de Psicanálise

Os circuitos do desejo
na vida e na análise
Copyright© dos Autores, 2000

Conselho editorial
Romildo do Rêgo Barros (Presidente), Marcus André
Vieira, Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
Sara Perola Fux, Stella Jimenez

Organização
Elisa Monteiro e Vera Avellar Ribeiro

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(Coordenadora da Comissão de Publicação da EBP)

Comissão de publicação
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Rodrigues Maschietto, Elza Marques Lisboa, Hei oisa Caldas,
Inês Autran Barbosa, Rosa Guedes Lopes, Vera Lopes Besset
Capa, projeto gráfico e preparação
Contra Capa
Agradecimentos
AG Comunição Visual

Os circuitos do desejo na vida e na análise - Escola Brasileira


de Psicanálise (orgs.)- Contra Capa Livraria, 2000.
208 p.; 14x21 cm
ISBN: 85-86011-31-2
Inclui bibliografia.
1. Psicanálise 2. Freud, Sigmund 3. Lacan, Jacques I. Títulc II.
Série
CDD 150.195

2000
Todos os direitos desta edição reservados à
Contra Capa Livraria Ltda.
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Sumário
Abertura - Romildo do Rêgo Barros 7

Apresentação - Marcus André Vieira 9

1. Circuitos do desejo ou o grafo radiografado


Narcisismo: ambígua unidade 13
Fátima Sarmento [relatora]

O imaginário no grafo do desejo 21


Manoel Barros da Motta

Pulsão: o desejo fragmentado pela fala 29


Stella Jimenez [relatora]

Descontinuidade e continuidade na retórica do Witz 41


Jésus Santiago

Fantasia: suporte do desejo 49


Sandra Arruda Grostein [relatora]

A função da fantasia 53
Bernardino Horne

Sintoma: satisfação às avessas 59


Celso Rennó Lima [relator]

2. Leituras do desejo ou itinerários de


O Seminário, livro 5 de Lacan
Sonhos, lapsus, chistes ... o inconsciente e suas formações 73
Ronald Portillo
1 hgica do miglionário 85
Juan Carlos Indart

Andrea Zanzotto ou "a falta" radial 96


Antonio Di Ciaccia

Witz, transmissão e pulsão do laço social 103


Pierre Theves

O que Freud viu em Orvieto? 107


Yves Depelsenaire

A dialética do falo 120


Pierre Naveau

Sobre o sonho da paciente de Joan Riviere:


uma interpretação do inconsciente 126
Hélene Bonnaud

Metáfora e tempos do Édipo 131


Ana Meyer, Adriana M. Rubistein, Graciela Ruiz

Dm escândalo no mundo 145


Sophie Gayard

3. Sobre [ os circuitos d'] a parceria


A teoria do parceiro 153
Jacques-Alain Miller
Abertura
Romildo do Rrg< > Barros
1 Rio de ,lanciro]

O desejo segue circuitos, na vida e na análise.


Será que esses circuitos obedecem a algum traçado, a alg11111a rota,
ou, pelo contrário, são caóticos, o que equivaleria a dizer que, 110 final
das contas, não são circuitos?
Se pode ser útil uma comparação trivial, pensemos t:111 uma garra­
fa jogada ao mar, que parece estar sem destino junto c:om a mensagem
que contém, simplesmente porque não se vêem as c:m-rentes marinhas
que lhe dão direção. Freud achou um ponto de anrnragem para os cir­
cuitos do desejo quando pensou que toda moção desejante, todo esforço
de apreensão de um objeto, é uma tentativa - na busca do que ele cha­
mou de identidade de percepção - de recuperar o gozo, supostamente
obtido no passado, e reencontrar o objeto que foi adequado à satisfação.
O rastro deixado na doutrina por essa busca foi a sexualidade infantil,
cujo correspondente no adulto é a fantasia perversa.
Durante parte do seu ensino, Lacan ocupou-se sobretudo em for­
mular a estrutura do próprio circuito, que é de linguagem. Reconheceu
no objeto freudiano da primeira sat-isfação, e na procura regressiva que
desencadeia, a estrutura de um mito, pois não há como ultrapassar o
abismo que separa a primeira experiência de sua mais imediata repeti­
ção, uma vez que, entre uma e outra, o objeto muda de registro e o
imaginário se interpõe.
Tendo resgatado do texto freudiano o nachtrdglich, o a posteriori,
Lacan substituiu o tempo mítico, o pretérito perfeito, o foi, pelo futuro
anterior, o terá sido, tempo da retroação significante, que esclarece o
sentido do passado em psicanálise.
A superação da explicação mítica se completará quando, tendo-se
definido os circuitos do desejo como movimentos de linguagem, encon­
tra-se de novo o objeto - no ensino de Lacan, na vida e na análise - não
mais como a sólida pedra fundamental de uma construção, ou como
plenitude originária, ou a remota raiz da nostalgia de um sujeito, a cuja
vista todo prazer efetivo empalidece, mas como o limite lógico da cadeia
dos significantes, do qual cada história é um desdobramento.
Do puro originário, portanto, da ilusão arcaica que parece
inseparável da psicanálise, podemos passar para uma teoria da causa, e
com isto temos em mãos nada menos do que uma permanente refundação
da clínica.
Apresentação
Marcus André Vieira
[Rio de Janeiro]

Nas lacunas do discurso e nos orifícios do corpo, Freud encontrou o


desejo. Descobriu-lhe a força até mesmo em seus estados mais quotidi­
anos, sufocado pelo ideal ou oculto pela renúncia. Desvelou-se então
como o desejo habita a dança das vontades que agita os homens. Ele dá
vida ao discurso, introduzindo a cada súplica o horizonte do absoluto e
a cada ordem o imperativo do incondicional.
'Existe um além das vontades, um além das demandas e de seus
mandos', isto é o que a psicanálise demonstra e o que lhe permite for­
malizar um lugar para o desejo a partir da delimitação de seus circuitos.
Ele é indestrutível e silencioso justamente por se dar apenas como um
rastro, sulco deduzido das demandas. Dar-lhe autonomia e voz própria
é uma fantasmagorização que o reduz à mera demanda do além em vez
de situá-lo em seu lugar, no além da demanda.
Desta dissimetria entre desejo e demanda vive o mote: 'não existe
desejo, só demandas', que se declina em: não há nada além daquilo em
que se pode eventualmente deitar mão; nada a esperar e nada de espera
porque tudo está aí, sob os olhos; nada de hierarquia a não ser a
estabelecida pela contabilidade do gozo. Este é o lema contemporâneo
em vias de constituir o sintoma social dominante. Seus arautos foram o
cálculo utilitarista e o ocaso da burguesia, de Marx. Seus signos con­
temporâneos exibem-se na alegria dos advogados (tudo é causa a ga­
nhar), na prepotência dos economistas (toda fome é monetarizável),
mas também na depressão astênica da morte do desejo. Esta apatia an­
gustiada é a mãe da toxicomania generalizada que invade o mais co­
mum dos homens, ruborizado com sua normalidade em extinção. Re­
duzidos ao registro da demanda, todos os objetos, todos de consumo,
têm que ser excepcionais, ao menos enquanto duram, pois nenhuma
média, solidária ao significante e a sua Lei, estabiliza o objeto do desejo.
A psicanálise promove os circuitos em vez dos objetos e, a partir
daí, delimita um parceiro original para o homem, um objeto sem nome
e sem corpo, que faz, porém, gozar ao incorporar-se nos itinerários
significantes de uma fala. Indica-se aqui o lugar atópico da psicanálise,
que lhe dá um vislumbre atípico da condição humana. Indica-se tam­
bém como lhe é difícil constituir uma comunidade a partir de sua novi­
dade, pois esta pode somente transmitir a experiência do trajeto de uma
Os circuitos do desejo na vida e na análise

análise, narrativa das peripécias sujeito-objeto necessariamente escrita


na solidão de uma fala e inscrita no singular de uma vida.
Este livro é produto de uma comunidade que tenta estar à altura
deste desafio. O Campo freudiano, reunindo as Escolas filiadas à Asso­
ciação Mundial de Psicanálise em torno de uma mesma orientação, tem
a possibilidade única de fazer da babel psicanalítica uma grande discus­
são, e da aposta lacaniana no dispositivo do passe uma Escola Una.
Nesta comunidade de experiência, de contornos bem além dos
institucionais, organiza-se o trabalho cm torno de alguns temas. Eles
são os vetores da discussão em direção aos Encontros, que catalisam a
produção e funcionam como escansão conclusiva, permitindo a abertura
para novos temas. A isto se propõe este livro, constituindo o resultado
do trabalho de preparação e realização do X Encontro Brasileiro do
Campo Freudiano, "Os circuitos do desejo na vida e na análise". Sua
figura mestra é o grafo do desejo, formalização do circuito da fala arti­
culada, que tem em O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente
(1957-8), de Jacques Lacan, seu ponto de ressonância máxima.
Na primeira parte, podemos acompanhar o resultado do trabalho
da Escola Brasileira de Psicanálise em torno do tema, acessando O Se­
minário, livro 5 por meio de uma verdadeira radiografia do grafo do
desejo em um preciso itinerário de leitura e pesquisa clínica. Na segun­
da parte, há uma abordagem diversa, trazendo as vozes e os ecos do
Seminário, tal como se apresentam em outras regiões do Campo
Freudiano. O percurso da primeira parte é balizado pelas quatro gran­
des estações do grafo: narcisismo, pulsão, fantasia e sintoma, e consti­
tui-se de textos coletivos e individuais. A segunda parte, apenas de tex­
tos individuais, com sua multiplicidade de abordagens dos conceitos
fundamentais do Seminário e de alguns de seus pontos obscuros, situa,
tal como uma malha ferroviária ou um mapa de metrô, o horizonte do
qual destaca-se o percurso da primeira parte. Finalmente, após termos
percorrido estes itinerários significantes que fixam a relação entre sujei­
to e objeto, o texto de Jacques-Alain Miller vem indicar os rumos con­
temporâneos deste casamento, promovendo a noção de parceria
sinthomática como estrutura fundamental de articulação entre desejo e
gozo. Abre-se assim a possibilidade de retornar ao início do volume
para reescrever seu trajeto com estas novas coordenadas.
Desta forma, tentamos neste volume estar próximos da experiência
analítica. Afinal, perseguir incessantemente o desejo no desfiar do rosá­
rio da demanda para escrevê-lo em uma análise, inscrevendo em uma
vida uma nova forma de gozo - que mais pode uma análise pretender?

10
Circuitos do desejo
ou o grafo radiografado
Narcisismo: ambígua unidade

Fátima Sarmento [relatora, EBP-Baliial


Andrea Schimmenti, Célia Salles, Iordan < ;urgd,
Lêda Guimarães, Marcela Antelo, Marcelo Veras,
Maria Luiza Miranda, Nora Gonçalves, Paulo
Gabrielli, Sonia Vicente, Tânia Abreu.

Este relatório se baseia em O Seminário, livro 5: as formações do in­


consciente (1957-8), de J. Lacan, e pretende demonstrar, em primeiro
lugar, que não se pode co nsiderar o ser narcísico sem o Outro.
A principal proposição a ser sustentada é a de que a ambigüidade do
imaginário é calcada na ambigüidade significante. Esta afirmação de­
corre de uma premissa fundamental deste Seminário: o Outro da fala
preexiste à constituição do sujeito. O prévio aqui é o Outro, um Outro
sustentado pelo simbólico e não pela alíngua. Dito de outro modo, a
idéia central que anima este seminário é a de subordinar a tríade gozo,
libido e imaginário ao simbólico.
Lacan, no entanto, já vislumbrava neste momento uma separação
entre real e simbólico no campo significante, tal como o demonstra seu
comentário de que as formações do inconsciente são unicamente a apre­
ensão de um certo primarismo na linguagem, o que Freud denominara
de "processo psíquico primário". A descoberta do inconsciente foi pre­
parada por esse primarismo, que é tecido como uma linguagem.

Uma unidade exterior


Duas passagens desse seminário norteiam nosso pensamento. Na pri­
meira, Lacan afirma que a imagem tem um "caráter cativante, que vai
além dos mecanismos instintivos" (: 136) que predominam nos animais.
No homem, soma-se a isso um "toque suplementar", que se prende ao
fato de que a imagem do outro "está muito profundamente ligada à
tensão [... ] que é sempre evocada pelo objeto" seja como desejo, seja
como hostilidade, o que leva o objeto a ser situado a uma certa distân­
cia. Lacan relaciona o toque suplementar deste objeto cativante com
Os circuitos do desejo na vida e na análise

"a ambigüidade que está na própria base da formação do eu"; ambigüi­


dade que faz com que "sua unidade fique fora dele mesmo", erigindo-a
em relação a seu semelhante, nele encontrando a unidade de defesa que
é a de seu ser como ser narcísico.
A ambigüidadc da imagem narcísica é demonstrada pelo fenôme­
no do riso uma vez que, no homem, há entre esse fenômeno e a função
do imaginário 11m;1 relação muito estreita. Com efeito, o riso se vale do
duplo, do sósia, porém, de forma mais precisa, aponta o desmasca­
ramento relativo i'l amhigüidade da imagem narcísica. Lembremos o
exemplo daquele que, cm sua presunção pomposa, nos faz rir por ter
levado um tombo. O riso advém da derrisão dessa imagem e eclode
porque, em nossa imaginação, esse personagem imaginário continua
sua marcha, enquanto o que o sustenta de real permanece esborrachado
no chão. A ambigüidade do narcisismo se desmascara pois alguma coisa
é liberada da "coerção da imagem" no preciso momento em que "a
imagem também vai passear sozinha".
A segunda passagem se refere a Confissões, de Santo Agostinho
(:256-7), em que a palidez mortal do recém-nascido, ao ver seu irmão
de leite no seio da mãe, denuncia que o rival não intervém pura e sim­
plesmente na relação triangular, uma vez que imaginariamente ele já se
constitui como um obstáculo radical. Aqui, Lacan situa o caráter funda­
mentalmente ambíguo da relação que liga o sujeito a qualquer imagem
de outro, pois, além da rivalidade, existe a identificação com o outro.
É essa ambigüidade que constitui a báscula; na fantasia, esta báscula
leva o sujeito para o lugar que era do rival, onde, por conseguinte, a
mesma mensagem chegará a ele com um sentido oposto. Entre o objeto
materno primitivo e a imagem do sujeito vêm situar-se todos os outros
que são o suporte do objeto significativo, evocado pelo exemplo do
chicote, e que organizam e estruturam as fantasias subseqüentes.
Para demonstrar essas proposições, Lacan toma o exemplo
freudiano da fantasia em que o sujeito figura como criança espancada
mas na qual não se reconhece, pois, ao situar o rival como a criança
espancada, a imagem lhe chega com um sentido oposto, como amado
pelo Outro, dimensão simbólica que nessa fantasia oscila entre o pai e
a mãe. Dessa fantasia depreende-se o caráter fundamentalmente ambí­
guo da imagem, posto que o rival espancado na fantasia, ao mesmo
tempo em que sustenta a satisfação "meu pai me ama", recobre e mas­
cara a identificação com o outro, que, em sua base pulsional, implica o
masoquismo erógeno, relativo à significação central da fantasia "meu
pai me espanca".

14
Narcisismo: ambígua unidade

A partir dessas duas passagens, podemos propor a seguinte ques­


tão: que implicações podem advir dessa ambigüidade que se encontra
na formação do eu e que se traduz pelo fato de que a sua u nidade
depende de um outro que lhe é exterior? A unidade adquirida através da
imagem do outro lança o sujeito em um circuito em que a alt eridade se
converte em complementaridade. Ao seguirmos os passos desse Semi­
nário, podemos constatar que essa complementaridade niío se equaciona
sem que ambos os lados estejam imersos na linguagem. Conseqüente­
mente, a solução pode ser alcançada pelos processos próprios à lingua­
gem, primordialmente pela metáfora, pois o complemento que falta ao
sujeito emerge por meio do circuito da demanda constituído da mesma
matéria significante. A metáfora traz em seu bojo o paradoxo da alteridade
no simbólico: como, a partir de outra coisa, dizer o mesmo? Cabe ao
sujeito, em relação ao outro que se torna o mesmo, amá-lo, para poder
ser um, ou matá-lo, para eliminar este ladrão que lhe rouba sua própria
imagem.
No entanto há o elemento de estranheza na imagem, o Unheimlich,
que captura o olhar sem que uma complementaridade reforce a consti­
tuição do eu. Aqui o sujeito se encontra com o que escapa à comple­
mentaridade do par perceptum-percipiens, e que o lança em uma outra
dimensão da questão sobre o mesmo e o outro: o desejo. Mesmo assim,
Lacan enfatiza que essa dimensã� também se resolve pelo plano
significante. De que modo o sujeito é afetado como desejo pelo
significante? É por meio da palavra do Outro que o desejo se humaniza,
lançando o sujeito na condição ambígua que o próprio sinal da punção
do materna da fantasia traz à tona.

A ambigüidade imaginária e a simbólica


Fm O Seminário, livro 5, podemos destacar dois modos de ambigüida­
d(' { : 369-70): um situado no plano imaginário e o outro pertencente à
, ,rdcm simbólica. Se a fala do sujeito se funda na fala do Outro, nisso já
',<' introduz um equívoco da ordem do significante. Há neste ponto todo
1 1 1 1 1 esforço de Lacan para sair da antiga separação entre os eixos simbó­
l t rn e imaginário.
No primeiro momento de seu ensino, tal como o evidencia o Es­
, ,,1, ·11ra L, o simbólico surge em oposição ao imaginário. O eixo sim­
l i, ., lico, que vai do sujeito ao Outro, cruza com o eixo imaginário a-a '.
' l �<·ntido nasce no eixo simbólico e a libido se liga ao narcisismo pelo
r 1 , , , imaginário. Entre a e a' há libido, gozo, de tal maneira que o eixo
1 1 1 1.1gi11;1rio é também o eixo pulsional. O gozo em sua condição narcísica

15
Os circuitos do desejo na vida e na análise

se constitui como uma barreira à elaboração simbólica. A imagem não


é o real, mas situa o lugar do gozo, que mais tarde será conceituado
como sendo da ordem do real. A noção de unidade ambígua diz respei­
to ao fato de que a mesma imagem que garante a unidade é mortífera.
Por trás do eu está a morte, o negativo da imagem, tratada em O Semi­
nário, livro 1 1 : os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964)
como anamorfose.
O registro simbólico assume uma importância cada vez maior no
ensino de Lacan. Em O Seminário, livro 5 já existe uma relação entre os
registros simbólico e imaginário em que o primeiro determina o segun­
do, o que corresponde à idéia freudiana de que o Ideal do eu determina
o eu ideal. A dialética mortífera eu-outro passa a ser mediada por um
terceiro termo, o significante, e o real não mais se mantém isolado no
imaginário, sendo tratado por meio de elementos simbólicos.
O caminho se abre para que o UM seja simbólico, para que ele se
constitua a partir das imagens privilegiadas do Outro, que passam a ser
chamadas de insígnias do Ideal. A imagem se significantiza e se liga a
uma frase, a um roteiro significante. O gozo, antes isolado no imaginá­
rio, é capturado na fantasia, que passa a ser o sustentáculo do desejo.
O saber acumulado sobre o eu e sua paixão de unidade serão transferi­
dos para a fantasia, que exercerá, no grafo do desejo, a função de nó,
mais tarde desempenhada pelo sintoma.
Para comprovar que a ambigüidade simbólica é decisiva, Lacan
enfatiza que, enquanto o Outro não fala, nada de intersubjetivo pode se
estabelecer, seja porque é da natureza da fala ser a fala do Outro, seja
porque as satisfações do ser falante devem passar pela intermediação da
fala. O mesmo ocorre com o circuito do desejo.

O transitivismo
No plano imaginário, entre o sujeito e o outro existe, a princípio, uma
fronteira frágil, ambígua, no sentido de ela ser transponível. A relação
narcísica está aberta a um transitivismo permanente, que podemos ilus­
trar com um fragmento de um caso clínico. Trata-se de um menino que
até seus dois anos de idade permaneceu em um estado autista. Uma
determinada contingência desencadeia um estado psicótico. A saída do
estado autista se dá através de uma passagem delicada, pois ela supõe a
experiência dilacerante da invasão do gozo do Outro sem que o sujeito
tenha tido qualquer ancoramento nos registros simbólico e imaginário.
O trabalho psicanalítico, iniciado quando tem aproximadamente cinco
anos, abre a possibilidade de produção dos meios de fixação no simbó-

16
Narcisismo: ambígua unidade

lico e no imaginário, que reduz a invasão do gozo do Out ro, estabili-


1,ando a sua psicose.
Em certo momento deste trabalho, anterior à estrutura\;Í< > do esta­
tuto do eu no registro imaginário, essa criança chega à sess;i o gri t a n do,
cm pleno desespero. Sua mãe relata que, no caminho para < > L'ot 1s11 ltú­
rio, ocorrera um acidente. Um homem de moto se chocara cD111 11 1 1 1
carro, seu corpo projetara-se no ar, caindo pesada111e11tc 1 1 0 ch;i o. Vendo
a cena, a criança se atirou no chão gritando de forma desesperada. Sua
mãe pôde constatar com clareza que o menino havia experimentado a
queda do corpo do homem como se ela houvesse ocorrido em seu pró­
prio corpo. Tal episódio demonstra o início da constituição da imagem
especular no campo imaginário sob a prevalência do transitivismo, no
qual a relação especular entre o eu e o outro ainda não está bem enlaçada
ao registro simbólico, tornando possível a fixação de um traço distinti­
vo na imagem. Nas sessões subseqüentes, um jogo simbólico se interpôs
ao registro imaginário, permitindo ao sujeito ordenar gradativamente o
estatuto do eu e distingui-lo do outro.

Que sou no desejo do Outro ?


Voltemos às ambigüidades simbólica e imaginária. Estes dois modos de
.11nbigüidade, demarcadores da alienação do sujeito, não devem ser con­
fu ndidos. Ao contrário, é a discordância entre eles o que abre uma
p rimeira possibilidade para o sujeito de se distinguir como tal. Isso
,1contece especialmente no plano imaginário, levando o sujeito a rivali-
1;1r com seu semelhante em relação a um objeto terceiro. Mas, para
, d ém de seu semelhante, o que se passa quando o sujeito se sustenta na
p resença do Outro?
O desejo se aliena na demanda, isto é, na fala do Outro que modi­
l 1 ,·a a natureza do seu desejo. É assim que os objetos oral e anal são
1 1 1 t ro duzidos. Num dado momento, o sujeito se depara com um outro
, l<-scjo do qual ele está excluído, o desejo do Outro.
Entre o sujeito e o Outro há uma situação de reciprocidade. Todavia,
1 ,; 1 ra além da demanda de ambas as partes, deve haver a dimensão do que
" ( )utro deseja, latente desde a origem. De início, isto está velado para o
•,1 1 jcito, e só se descortinará pouco a pouco na experiência do Édipo.
Assim, a experiência do espelho é sustentada pelo desejo do Outro. O cir­
' 1 1it o obedece a uma retroação: a constituição do eu no espelho é uma
1 C"sposta à interpretação da pergunta: "Que sou no desejo do Outro? "

Em outras palavras, a causalidade do sujeito não é determinada


l lC'lo Espelho, mas sim pelo significante. Tal mudança de concepção

17
Os circuitos do desejo na vida e na análise

tem implicações clínicas. Se antes a quebra da unidade do eu podia ser


atribuída a uma desordem do imaginário, a uma regressão ao Estádio
do espelho, em O Seminário, livro 5, a regressão passa a ser atribuída a
um retorno aos significantes de antigas demandas. O sujeito somente se
entrega à experiência do espelho para satisfazer o desejo do Outro.
O objeto tem aí o seu papel, desempenhado de forma ilusória e engana­
dora. Esse é todo o valor da atividade jubilatória da criança diante do
seu espelho. A imagem do corpo é conquistada como algo que ao mes­
mo tempo existe e não existe, e a importância dessa experiência está no
fato de ela oferecer ao sujeito uma realidade virtual, irrealizada, capta­
da como tal e a ser conquistada. Toda possibilidade de construção da
realidade para o homem passa necessariamente por aí.
O ser narcísico não pode ser pensado sem um Outro desejante.
O corpo faz UM no espelho porque há a presença do Outro. A jubilação
da criança vem cobrir a falta do Outro. Em "Função e campo da fala e
da linguagem em psicanálise" (1953), Lacan esclarece que o momento
em que o sujeito se faz objeto na parada do espelho é permitido pelo
reconhecimento e amor do Outro, ou seja, da mãe. Esse amor se origina
e situa-se em um "eu" que é o "eu ideal"; a partir daí, este "eu ideal"
elabora-se em um Ideal de um certo "eu". Desejada, a criança ocupa o
lugar de Ideal do Outro. A própria criança é simultaneamente o "eu
ideal" e o "Ideal do eu", dividida em relação ao objeto primordial de
seu desejo, a mãe.
No Esquema R, pode-se ver que a criança, situada na extremida­
de I, liga-se à mãe, situada em M, como desejo de seu desejo. Ora, a
subjetivação é exatamente isto : ser capturado pelo desejo do Outro.
Na neurose, é o pai que sustenta todo o edifício, já que ele intervém
para proibir. É justamente por isso que ele faz passar o objeto do
desejo da mãe à categoria propriamente simbólica. Para chegar a de­
sempenhar essa função, o pai intervém como real e como elemento
eminentemente significante, constituindo o núcleo da identificação
máxima, resultado do complexo de Édipo. É assim que o pai intervém
diretamente na constituição do Ideal do eu. A identificação do sujeito
com o falo, como objeto do desejo da mãe, será efetivamente destruída
pela intervenção do puro princípio simbólico representado pelo Nome­
do-Pai, que ali estava como presença velada. Isso corresponde à clíni­
S ª da metáfora, que supõe um gozo que passa pelo Nome-do-Pai, pelo
Edipo.
Lacan transformou o Esquema R em Esquema I para explicar a
psicose. Neste último, o falo está ausente e o Nome-do-Pai, foracluído.

18
Narcisismo: ambígua unidade

N , 1 l '�H 1 1se, há um buraco que passa do Imaginário ao Simbólico, o que


1 1 ,1 1 , J H 1de ser esclarecido pelo esquema do Estddio do lis/1clho.

/\ a mhigüidade simbólica é constituinte e produz efeitos


1 1 , li-scjo se inclui no sintoma de forma mascarada. A máscara significa
, p w 1 1 desejo se apresenta de forma ambígua, que não permite orientar o
•.i qci t o em relação a esse ou aquele objeto. Há um interesse do sujeito
1 1 .1 rel ação desejante, o que exige uma certa prudência do analista para
1 1 .11 1 i ncorrer nos equívocos apontados por Lacan nos casos de Elizabeth
\ll l 1 1 . R. e Dora.

Lacan desenha um quadrado situando o histérico frente ao desejo


, 1 1 , Outro. É da natureza do desejo como tal necessitar do apoio do
< l 1 1 t ro , pois o Outro é o lugar onde o significante ordena o desejo.
1\ l i nha que vai do desejo à fantasia mostra com clareza que esta sustenta
r- realiza o desejo.

($ ◊ a) �----� d

i (a) '----------' m

< ) fato de o desejo ter de ser interpretado implica ambigüidades. Na


h isteria o sujeito faz uso da fantasia para encontrar seu lugar de objeto,
,10 passo que na neurose obssessiva ele se posiciona na fantasia como
sujeito.
Em algumas situações o desejo pode se apresentar de forma
1 1crturbadora, produzindo efeitos diversos. Na angústia, por exemplo,
l 1 :í uma relação essencial com o desejo do Outro. Na constituição do
sujeito a angústia surge quando este não sabe o que é no desejo do
( )utro.
Recalcati (1997) aponta que, na anorexia/bulimia, há uma ampli­
ficação do valor libidinal da imagem do corpo, e que isto decorre da
d i ficuldade própria à constituição da imagem narcísica corporal. Para
1·sses sujeitos, houve um obstáculo. O olhar do Outro, que deveria acom-
1 1anhar o reconhecimento da criança de sua imagem especular, é um
1 1 lhar não simbólico, ou seja, um olhar que não dá testemunho de um
possível reconhecimento recíproco. O Outro materno introduz, no cora-

19
Os circuitos do desejo na vida e na análise

ção da constituição do eu, uma ruptura da imagem do eu, respondendo


ao olhar não com um sorriso, mas sim com u ma recusa. O Outro não se
oferece como especularização simbólica, posi tiva, capaz de produzir
reconhecimento. Ele antes se apresenta como u ma careta.
Por sua vez, a toxicomania, como mod o d e l iberação da angústia,
é uma solução de ruptura com o impéri o d o d esejo do Outro. Ao rom­
per com o falo imaginário, a tentativa de obten ção de gozo do toxicô­
mano não passa pelo Outro do discurso universal. A posição do toxicô­
mano se revela, portanto, como a de 1 1 1 1 1 ser 11 11 0 e consistente, a droga
passando a ocupar o lugar do Outro, do i mperativo ao qual o sujeito
deve se submeter.
Neste relatório, perseguimos a idéia, contida em O Seminário,
livro 5, de que a ambigüidade simbólica é decisiva e se deve ao fato de
o Outro funcionar para o sujeito como a sede do desejo. O fato de a fala
do sujeito ser a fala do Outro, de o seu desejo ser o desejo do Outro,
permite ambigüidades.
A partir de O Seminário, livro 2 0: mais, ainda (1972-3), Lacan
constrói uma nova teoria do simbólico, um simbólico pensado a partir
do UM. É preciso retirar do conjunto do Outro o S 1 • Se o Outro não
existe, o desejo sustenta-se a partir do furo, do vazio. A fantasia, antes a
sustentação do desejo, passa a ser uma defesa que recobre o horror.
Dito de outro modo, se o Outro não existe, o sintoma deixa de
comportar apenas um efeito de sentido suscetível de ser interpretado para
adquirir valor de gozo. Neste sentido, estas considerações permitem pen­
sar em uma mudança definitiva na problemática ambígua da relação do
sujeito com o Outro. O encontro não é com o Outro, mas sim com o
objeto. O sujeito se dirige ao Outro e se depara com o objeto. Assim, não
se trata de um sujeito que tenta construir uma identificação com os ideais
do Outro, mas sim uma identificação corporal, já que o gozo afeta apenas
um corpo vivo. Há um corpo vivo que fala, o que aponta para a disjunção
entre o gozo e o Outro, uma nova discussão, uma nova conjuntura sobre
a ambigüidade, podendo ser então estabelecida.

Referências bibliográficas
LACAN, Jacques
( 1 9 5 3 ) "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise". Em: Escritos. Rio de
Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1 9 9 8 .
(1957-8) O seminário, livro 5 : a s formações do inconsciente. Rio d e Janeiro : Jorge Zahar
Editor, 1 99 9 .
( 1 9 64) O seminário, livro 1 1 : o s quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1 9 8 5 .
(1972-3) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio d e Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 9 8 5 .

20
O imaginário no grafo do desej o
Manoel Barros da Motta
[Rio de Ja11eiroJ

Os dois promontórios de Lacan


( ) Semindrio, livro 5: as formações do inconsciente trata da objetividade
da estrutura, como observa Jacques-Alain Miller. Nele, Lacan traz, no
tratamento do jogo neológico- do witz, algo de novo no dizer.
Inicialmente, Lacan elaborara o estádio do espelho para escapar
do pântano ou das estrebarias de Áugias em que se perdera a psicanálise.
Era um pequeno promontório. Um pouco exíguo. Mais tarde, contudo,
de encontrou Jakobson e Lévi-Strauss, e a estrutura da linguagem, "bem
mais interessante" (Miller 1998: 13), que lhe forneceram uma verdadei­
ra alavanca de Arquimedes para levantar a psicanálise. Assim o
familionário freudiano surge como o equivalente desta grande inven­
..;ão, como a língua neológica de Lacan com o objeto a, $, D, S O a, S(.A),
q ue reconstrói e dá nova forma ao campo freudiano. Neste seminário,
portanto, trata-se de formalizar as leis primordiais da linguagem parti­
cularmente demonstradas por Fre�d em ''A interpretação dos sonhos"
( 1 900) e "Os chistes e sua relação com o inconsciente" (1905).
O trabalho de Lacan é extraordinariamente complexo, pois se de
1 1 m lado ele segue uma via de invenção e construção conceituai, de
outro há uma via a-conceituai na abordagem do chiste. Em O Semind­
rio, livro 5, Lacan nos mostra a posição do sujeito como uma situação
de fundamental alienação, de "profunda divisão" 1 • Como observa Lacan,
o que faz com que ele não seja um duplo, e que não seja o ego da
< ' xperiência, é a estrutura particular destas formações, que Freud, em
seu estilo e estrutura particulares, abordara no nível das neuroses, dos
, i 1 1 tomas, dos atos falhos e do chiste. A partir de Freud pode-se cingir a
,·strutura do inconsciente nestas formações, a começar pelos modos es­
,cnciais de formação do sentido, uma vez que este é engendrado pela
, ombinação dos significantes. Em outras palavras, Lacan elabora a
l 'a rtir de Freud como estas leis da linguagem estruturam as necessida­
d cs humanas por meio dos mecanismos de substituição e de

1
Observação de J .-A. Miller na conferência de Bilbao "Deliryo", comentada no
curso "Silet", que nos serve de fio condutor para a articulação de O Seminário,
livro 5 com o conceito de narcisismo, de Freud.
Os circuitos do desejo na vida e na análise

condensação. O grafo do desejo elaborad o por Lacan, que percorre


O Seminário, livro 5 e prossegue no segui n te, é uma grande estrutura
que representa não o significante e o significado, mas sim dois estados
do significante.

O circuito do desej o : dimensão da descoberta freudiana


Freud investiga o chiste a partir de sua materialidade significante. É esta
investigação que dá conta do circuito do d esej o e que leva Lacan a uma
perspectiva diversa sobre a dimensão da descoberta freudiana. Se os
antigos consideravam o homem a partir de sua dimensão de finitude, ou
do desejo articulado à finitude, a seu caráter mortal, como algo passagei­
ro que passa, "Freud introduziu uma nova dimensão em nossa conside­
ração do homem, e não direi a de alguma coisa que passa, mas de alguma
coisa que está destinada a passar, o desejo que deveria passar deixa passar
em algum lugar, não apenas traços, mas um circuito insistente".
A posição do sujeito introduzida pelo chiste é algo essencial que o
grafo procura explicar. No circuito do desejo que insiste, a distinção
esquecida pelos psicanalistas da IPA entre o sujeito e o ego é algo funda­
mental. O ego é concebido em sua função sintética, enquanto, para
Freud, além do par eu e outro, revela-se o sujeito dividido e o inconsci­
ente de que ele analisa as formações, presente nos sintomas, sonhos e
atos falhos, nas quais opera uma estrutura única, a que permite dar
conta da criação do sentido.
Esta posição do sujeito é o que permite ir além das aporias do
sujeito transcendental kantiano, cuja formulação é, para Lacan, o mais
radical questionamento de toda espécie de real, chegando a interrogar
"uma correspondência entre o real e uma certa sintaxe do círculo inten­
cional na medida em que ele se fecha em toda frase" (Lacan 1957-8 :50).
É a ação da fala nesta cadeia criadora que sempre é suscetível de engen­
drar novos sentidos pela via da metáfora ou da metonímia. Ou, como
indica Miller, partir de Kant e chegar com Freud a Jakobson.
Que importância tem o estudo do estádio do espelho e do
narcisismo para O Seminário, livro 5? É novamente Jacques-Alain Miller
que nos fornece uma pista para esclarecer o problema : no grafo do
desejo, Lacan fornece uma nova localização do estádio do espelho atra­
vés de uma escrita que redefine sua estrutura.

Narcisismo e imaginário
Como afirmado, Lacan elaborou a estrutura do estádio do espelho para
dar conta das aporias da teoria freudiana do narcisismo. A relação entre o

22
O imaginário no grafo do desejo

1 · 1 1 1· o ego define dois campos heterogêneos: unidade e discórdia, nome­

.idos por Lacan de ambígua unidade, que surge abrupta na imagem do


, l i 1 plo. O locus deste problema se origina na insistência de Frcud em
, 1 1st inguir a libido sexual e a libido egoísta no artigo sobre o narrisismo.
/\ l ese freudiana sobre o caráter fundamental do narcisismo aut o n<'>ti­
' , , da criança se contrapõe à precocidade de suas relac,:fü:s com os obje-
1 , ,s. Em primeiro lugar, há a tese de que a criança, quando vem ao mun­
d", está em uma relação auto-erótica: ela própria é seu ú nico objeto.
Como sabemos, em Freud, o ego é o lugar primário do investi-
1 1 1 1· nto libidinal dos objetos. Freud chega a considerar tal parte do indi­
v í d u o, este ou aquele interesse pelos objetos do mundo, como
1 1sc udópodos de uma ameba, de um animal protoplasmático. O concei-
1 , , de ego é elaborado pela via do gozo, pelo viés do que ele chamou de
n arcisismo, conceito que Freud tomara de Nacke e de Havellock Ellis e
1 " ,steriormente desenvolvera.
O narcisismo designa uma atitude em que o indivíduo toma seu
1 1 r<'>prio corpo como objeto libidinal; ele erotiza seu próprio corpo.
l l narcisismo é assim o lugar da erotização do corpo próprio. A princí-
1 1 i o, Freud atribui a ele o caráter de uma perversão, posteriormente
nl cndendo sua pertinência para o neurótico, uma vez que este a desvi­
. , r i a para o interesse erótico. Em seguida, quando introduz a noção de
1 1arafrenia ele a estuda à psicose, caracterizada pela retração do interes­
� 1 · do mundo exterior e pela mania· de grandeza. Toda a clínica torna-se
. 1 1 ravessada pelo conceito de narcisismo.
Neste sentido, a elaboração do registro do imaginário será a solu­
\ •'º lacaniana - remanejada moebianamente várias vezes - para os
1 1 1 1 passes surgidos entre o narcisismo e a teoria das relações de objeto.
N o estádio do espelho, em que a criança mostra jubilação com a ima­
l',<' 1 1 1 própria - índice do gozo, como lembra Jacques-Alain Miller - a
1 <'sposta não está elaborada: o júbilo revela o auto-erotismo centrado na
1 1 1 1 agem própria. O estádio do espelho é uma ilustração de "Introdução
. 1 1 , n arcisismo" (Miller 199 8 ), uma conclusão coerente surgindo com o

, 1·1•, istro do simbólico e a tese dos dois narcisismos. Eis o que diz Lacan:

Minha tese pode igualmente esclarecer uma contradição, que


parece insolúvel no próprio Freud, a propósito do auto-erotismo.
De um lado, ele nos fala de um objeto primitivo, da primeira
relação criança-mãe. De outro, ele formula a noção de um auto­
erotismo primordial, quer dizer, de uma etapa, por mais anterior
que a suponhamos, onde ainda não há mundo para a criança
( Lacan 1 957-8 :53).

23
Os circuitos do desejo na vida e na análise

A introdução do Outro e da linguagem resolvem a aporia. Dito de


outro modo, dois conceitos de outro se apresentam: há uma relação
com o outro da linguagem e com o ego, a mbos articulados ao sujeito.
É isto o que leva Lacan a redefinir também o conceito de identificação.
A criança vive em um mundo de objetos que são imagens; elas estão
correlacionadas ao ego, cuja estrutura é imaginária, ou seja, é um mun­
do feito de fixação narcísica a imagens.
Para Lacan, o ego inicialmente era como uma forma, uma gestalt,
"cuja pregnância estava ligada à espécie" (ibid. :95) O mundo não con­
tém o outro, e a própria atividade da criança é narcísica. Neste momen­
to de seu ensino, Lacan considera que a estrutura deste mundo é narcísica.
Há uma intrusão narcísica, uma unidade que é introduzida do exterior
e que aliena o ser humano.
Dito de outro modo, o narcisismo aparece estruturado pela articu­
lação de uma imagem e de uma falta, a relação com o semelhante sendo
formulada em termos hegelianos: trata-se de uma dialética da aliena­
ção. Há "o temor narcísico da lesão do corpo próprio" cuja imagem
fundamental se constitui a partir de uma fragmentação, e o sujeito apa­
rece como desejante e inscrito em uma dialética do desejo, instaurando
sua relação com o outro.
No estádio do espelho, a prematuração vital aparece como uma
tese central. Ela se deve ao inacabamento anatômico do sistema pirami­
dal, que é conseqüência da prematuração específica do homem. Esta
incompletude produz uma ruptura vital, pois o bebê, como ser vivo, não
está adaptado ao seio, além de seu meio interno ser também discordante
em relação a ele. Há ruptura com o Inwelt e o Unwelt. De um lado, caos
de sensações, imagem do corpo fragmentado, mutilação, devoração e
fragmentação do corpo; do outro, a imagem especular unificadora.
O que dissemos acima sobre o narcisismo, encontra-se resumido
por Lacan nessa passagem de O Seminário, livro 5: "a imagem tem
como tal um caráter cativante para além dos mecanismos instintivos
que respondem a ela, como o manifesta a parada, quer seja ela sexual
ou combativa. Acrescente-se aí, no homem, uma nota suplementar que
se deve ao fato de que a imagem do outro está para ele profundamente
ligada a esta tensão de que eu falava há pouco, e que é sempre evocada
pelo objeto a que se presta atenção, conduzindo a colocá-lo a uma certa
distância, conotada de desejo ou de hostilidade. Nós o relacionamos a
esta ambigüidade que está no fundamento mesmo da formação do ego e
que faz com que sua unidade esteja fora dele próprio, que é com relação

24
O imaginário no grafo do desejo

a seu semelhante que ele se erige, e que encontra esta uni<bdc de defesa
que é a de seu ser enquanto ser narcísico"2 (ibid. :90)
A introdução do registro simbólico vem resolver a ap or ia, mas
apresenta novos problemas. Na nova formulação, Lacan s11hs1 i 1 1 1 i ( > ego
pelo sujeito. O sujeito, sujeito da fala, sujeito vazio de l i b i do, csl ;Í i n ic i ­
a lmente morto ou mortificado pelo significante. Neste sent i do, observa
Miller, ele não satura todas as propriedades do ego. l/111 ou tro conceito
rntão tentará dar conta da inscrição da libido : o conceito de falo. Em O
Scmindrio 5 , Lacan escreve o narcisismo freudiano em termos fálicos.
i\ssim, o caráter libidinal do ego será transposto para o falo por Lacan.
( ) falo é o que vem completar o sujeito, representar seu fluxo vital.
i\11alogon do ego, o falo será significantizado. É o que ilustra o Semind­
rio 5, ao elaborar as condições simbólicas que envolvem o registro ima­
ginário.

( ) grafo e a anamorfose
l 'odemos então situar a função do imaginário e o estádio do espelho no
,•. rafo.

I (A) $
'· Dupla articulação bastante presente na orientação estruturalista e que encontra
cm Martinet, ou em uma leitura de O capital, por exemplo de Etienne Balibar, das
relações sociais de produção e da relação técnica de trabalho. Embora diversa, a
dupla articulação lacaniana apresenta uma homologia com tal tipo de leitura.

25
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Miller chama a atenção para a estrutura de verdadeira anamorfose


do grafo; o que ela revela é a dupla articulação do imaginário, que
produz uma verdadeira transformação do estádio do espelho.
Com efeito, vemos aí o que Miller chama de dupla articulação
imaginária. A idéia comum é a de que a imagem do outro determina o
ego. Ele nos convida a observar o primeiro vetor :

Signi ficante

Se consideramos o primeiro vetor, apercebemo-nos de que a rela­


ção imaginária do estádio do espelho i(a) f-- m é de fato suportada pela
identificação simbólica do sujeito ao significante, ao significante mes­
tre, ao Ideal do ego como significante mestre. É o vetor i(a) ➔ m que
presentifica a inclusão da relação imaginária no significante.
Daí esta importante conseqüência: a identificação imaginária es­
pecular é estritamente condicionada pelos fatos de linguagem. Como
lembra Miller, o que Lacan disse do estágio do espelho é re-situado
como fato de discurso, ou seja, o que Lacan pode dizer do estádio do
espelho não é invalidado.
Miller nos fornece uma nova escrita algebrizada para marcar esse
ponto:
i(a) O m
$ ◊ l(A)

26
O imaginário no grafo do desejo

I (A) /:,

Tem-se aí, observa Miller, como este circuito figura o grafo em


que i(a) é feito de duas relações, i(a) ◊ m e S ◊ I(A).
Qual a conseqüência dessa dupla articulação? O ego como ima­
gem depende do ponto em que o sujeito se fixou no Outro como ideal
do ego. Trata-se da seguinte formulação de Lacan: "a imagem narcísica
se fixa como Ideal do ego a partir do ponto em que o sujeito se detém
como Ideal do ego" (Lacan 1955-6 : 168). Surge aqui a questão da dife­
rença entre o ego e o eu. Um esclarecimento sobre quem teria confundi­
do ambos nos leva ao trabalho lacaniano de reelaboração, crítica e reti­
ficação de suas aporias. Segundo Miller, Anna Freud e o próprio Lacan,
ao dar o título de seu trabalho "O estádio do espelho como formador da
função do ego", reescrito em 1948. Portanto é Lacan quem inicialmente
apresenta o estádio do espelho COfl1:0 formador da função do eu. A ori­
gem, contudo, foi a confusão de Anna Freud entre sujeito do verbo e
ego.
Tem-se, então, em relação ao primeiro círculo desenhado no pri­
meiro grafo, a articulação que se segue neste outro círculo:

Este se conclui sobre um sujeito barrado sem substância, o que


;1nescenta a segunda articulação imaginária, em que o segundo vetor
reduplica o primeiro passando por i(a) e m. Este círculo se fecha sobre
�. o que dá densidade ao S(t)

27
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Em suma, um dos mais importantes impactos da construção do


grafo para o próprio Lacan é a distinção entre ego e eu. O ego é agora a
metonímia da significação do eu, e não mais o eu. O ego interfere como
objeto metonímico na significação do discurso, no lugar em que se pro­
duz o efeito metafórico. Isto é confirmado por Lacan quando afirma
que o ego está constituído como um sintoma. Permanece, contudo, a
questão a respeito do gozo do ego: a reação terapêutica negativa. Para
Jacques-Alain Miller, o ego é a maior reação terapêutica negativa.
Evidentemente a teoria do ego não é completa. Ela é uma teoria
do ego em sua articulação com o imaginário e com o simbólico. Ainda
Miller, em seu curso "Do sintoma à fantasia", nota a elisão do gozo no
grafo proposto por Lacan "neste Seminário; o que aparece é o processo
de significantização da pulsão sob as modalidades do circuito do desejo.

Referências bibliográficas
LACAN, Jacques
(1955-6) Le Séminaire, Livre III: Les Psychoses. Paris: Seuil, 1 9 92.
(1 957-8) Le Séminaire, Livre V: Les Formations de l 'inconscient. Paris: Seuil, 1 9 9 8 .
( 1 9 66 ) Écrits. Paris: Seuil.

MILLER, Jacques-Alain
( 1 9 9 8 ) Las formaciones dei inconsciente. Barcelona: Escuela dei Campo freudiano de
Barcelona.
(19 82-3 ) "Du symptôme au fantasme et retour". Inédito.

28
Pulsão: o desejo fragmentado pela fala

Stella Jimenez [relatora, EBP-Rio de f,tlll' Í l o !


Ana Lucia Ribeiro, Ana Mart h a W i l , w 1 M a i a ,
Angela Negreiros, Daisy .Justus, Elsa Frl' i t as, Cloria
Maron, Lenita Bentes, Maria Aparecida Bueno,
Mareia Botelho, Paula Borsoi, Sandra Viola, Sara
Fux, Tania Coelho dos Santos.

Breve introdução ao conceito de pulsão


O conceito de pulsão, segundo Freud, faz parte de nossa mitologia.
Essa definição e a de pulsão como "representante psíquico" (Freud
1 9 1 5 : 1 42) demonstram a íntima relação existente entre as pulsões e
os significantes. Para Lacan, o campo da linguagem, gênese do ser
fa lante, fica subsumido no corpo recortado e pulsional, de tal maneira
que campo da linguagem e corpo são formas diferentes de se falar do
Outro. Lacan recupera o termo pulsão (Trieb) , que ficara obscurecido
pelo de instinto, para sublinhar que o primeiro não se confunde com
qualquer interação do homem com a natureza. Trieb está mais perto
de equívoco, de deriva, o que se manifesta na possibilidade de a pulsão
1 razer satisfação ao sujeito de mais de uma maneira. De fato, qualquer
que seja sua vicissitude (recalque, sublimação, inibição, inversão no
,·ontrário ou retorno sobre o próprio eu), a pulsão sempre alcança
�.1tisfação. As pulsões, porém, não são apenas do registro do simbóli­
' o, elas são também da ordem do real. Pulsão é, portanto, encontro
d o simbólico com o real.
Aos termos clássicos relacionados à pulsão : fonte, energia, objeto
,. finalidade, Lacan acrescenta outro : circuito, o que lhe permite uma
1 ,·leitura dos termos freudianos. Para ele, as fontes (zonas erógenas)

',;\o o resultado do recorte feito pelo significante no corpo. Elas não


. q 1arecem no corpo por serem fontes de necessidade, mas sim por
·,nem as feridas produzidas pela demanda do Outro encarnado no
< l 1 1 tro do amor.
A energia deve ser pensada tanto como a pressão que põe em
1 1 1 ovimento a pulsão, como a energia que se desprende da satisfação :
Os circuitos do desejo na vida e na análise

quantum de energia para Freud, gozo para Lacan. Este último chama a
atenção para a descrição freudiana da energia como constante. Ela não
apresenta o apaziguamento temporário que a satisfação lhe permitiria.
A pulsão sempre se satisfaz, mas simultaneamente nunca se satisfaz. Ela
nunca se satisfaz em relação à sua visada última, que seria a de fechar o
corte: "Quem dera que eu pudesse beijar meus próprios lábios" (Freud
1905: 187). As pulsões parciais são sempre auto-eróticas porque tendem
a fechar o corte, a fazer coincidir fonte e objeto.
Quanto ao objeto, Lacan teoriza que o verdadeiro, o único objeto
da pulsão é o objeto a, objeto perdido para o sujeito e para o Outro.
A incondicionalidade dos objetos da pulsão é imaginária já que qual­
quer objeto serve para ser posto no lugar de a. Esses objetos, no caso da
neurose, são ordenados pelo falo, quer dizer, pela castração. Em
Arcachon, J.-A. Miller mostra que o objeto a lacaniano comporta uma
metáfora. Ele substitui o (-<p) .

a
(-<p)

O objeto a não pertence nem ao sujeito, nem ao Outro; ele é


aquilo que o sujeito acha que o Outro deseja para se complementar. Por
isso, é o objeto que o sujeito teme ser, embora o deseje ser para o Outro.
É o objeto que o sujeito, na sua fantasia, simultaneamente é e não é.
A finalidade da pulsão é dupla. Por um lado, fechar o corte que o
significante do desejo do Outro abre no corpo. Por outro, mantê-lo
aberto. É assim que as pulsões parciais reproduzem a dupla face - pulsão
de vida, pulsão de morte - que marca o circuito do sujeito. Pode-se
verificar a equivalência morfológica entre o esquema do circuito da
pulsão e o circuito do sujeito no grafo do desejo.

a aim

Goa!

30
Pulsão: o desejo fragmentado pela fala

I (A) $

O circuito, que assimilamos à borda da pulsão, contorna o objeto a.


I )uas significações aparentemente contraditórias podem ser atribuídas a
esse "contornar". Essa borda contorna o objeto para elidi-lo, para evitar
1 > confronto com ele, para evitar a percepção da falta. Mas contornar o
objeto tem também a significação de lhe dar contornos, presentificá-lo.
/\ borda faz ainda o movimento duplo e aparentemente contraditório de
1 11teriorizar o objeto (ficar com o pedacinho extraído do Outro) e simul­
Lmeamente excluí-lo, o que só pode ser pensado se atribuímos a essa
horda a forma de uma banda de Moebius. A visada da pulsão é, em seu
l 1 1 ndamento, presentificar a referência última do sujeito como objeto ao
1 11csmo tempo que o diferencia dessa presentificação. Isto demonstra
1 11:iis uma vez a equivalência topológica do sujeito com suas pulsões, e a
.. 1 1 :1 referência última como objeto. Em termos mais claros: não é possí­
v e l , rigorosamente, dizer que as pulsões parciais são funções, ativida­
des, do sujeito. O sujeito é em suas pulsões, o sujeito é a boca que se
q 1 w r beijar, é o resto comível visado por essa boca e simultaneamente
1 1 c 1 1 1 é nem um nem outro, mas aquilo que vacila constantemente entre
. 1 1 1 1 l ios.
Na dialética alienação-separação, a pulsão, mesmo sendo aliena­
, .. 1 1 , t ' l ll razão de sua articulação na demanda, é separação no registro do
, r . d . 1:: aquilo que é de inteira responsabilidade do sujeito, aquilo que
, 1 1 nst r:1 sua forma particular de velar e evidenciar a castração, sua forma

31
Os circuitos do desejo na vida e na an,ílisc

individual de sustentar o desejo. Por tudo isto, a fantasia fundamental


contém a gramática da pulsão privilegiada do sujeito.
Neste texto, trabalharemos as situações clínicas cm que essas ca­
racterísticas das pulsões não se verificam, a fim de pensar o destino das
pulsões no final de análise.

Os impasses na clínica psicanalítica hoje


No mal-estar da contemporaneidade defrontamo-nos com impasses clí­
nicos, com uma variedade fenomenológica situada aquém da formação
do sintoma e além do diagnóstico estrutural. São sujeitos cujo sofrimen­
to não dá subsídios ao analista para que este reconheça com clareza a
definição da estrutura daquele, pois sua principal peculiaridade se refe­
re à modalidade de fixação de gozo: patologias intimamente relaciona­
das com a pulsão de morte.
A toxicomania é uma modalidade de gozo auto-erótico não regu­
lado pela medida fálica mas sim, como definiu Lacan, por sua ruptura
com ela. As drogas tendem a promover uma ruptura com o Outro. Essa
modalidade de gozo pulsional fora do falo assemelha-se ao gozo pulsional
da psicose, mas isso não significa obrigatoriamente que os sujeitos adie­
tos a drogas sejam psicóticos. Em alguns casos de psicose, a adição às
drogas é uma suplência.
À diferença da cu ra promovida pelos grupos A.A. ou T.A.
(Alcóolicos e Toxicómanos Anônimos, respectivamente), que procura­
riam a reconexão com o Outro mediante um laço social - identificação
com o significante da adição, com um líder, com os pares - a direção do
tratamento psicanalítico é mais ambiciosa e mais difícil. O sintoma
analítico é produzido a partir da remoção da identificação com os
significantes "toxicómano" e "alcoólatra", já que essa identificação
coagula, fixa o sujeito em uma forma de gozo. Curar os sujeitos dos
significantes pelos quais se designam implica passar do excesso à carên­
cia de substância ou ao insubstancial da estrutura, rompendo com a
uniformização da modalidade de gozo e favorecendo a singularização.
A anorexia, com seu "apetite de morte", "desejo de nada", presentifica
o objeto a como objeto de puro nada e empurra o sujeito ao mais-de-gozar.
A anorexia ilustra todo o alcance da pulsão oral, pois o anoréxico come
nada. Disso deriva um gozo oral, infantil e regressivo, que, caso a pulsão de
morte atinja a vitória, pode ser mortal. Segundo Miller (1995 : 28), a anorexia
representa "o máximo de gozo oral". Ao mesmo tempo, ela presentifica a
pulsão escópica, oferecendo ao olhar do Outro o horror da visão do
corpo esquálido e sem formas da anoréxica, pele e osso, dir-se-ia, nada

32
Pulsão : o desejo fragmentado pela fala

, fi""' ,·11,/1 1 saber sobre os efeitos de seus atos obstinados c111 relação aos
1 , .i l l 'd < 1rn os metabólicos e hormonais que sua caquexia pode p roduzir.
i .1 , . 1 1 1 , i t uou o seu gozo como correlato a uma rejeição da simlmlização,
, , l , ·, L1 < 1 1 l 0 para a associação livre, pois o sujeito está imerso em u111 gozo
, 1 w , , 1 1 1 1 pede de se introduzir na rota do desejo. A anorexia não é so-
• w 1 1 1 ,· .111sência de apetite: é também uma anorexia mental, uma recusa
,, , , 1.-, l i ,.amento significante, uma inapetência e repugnância sexuais, uma
, · I ". ' I <' de deslibidinização que o corpo infantil e assexuado atua .
\ .1 1 1 , , ,c xia geralmente surge quando a menina entra n a adolescência e
,.- . 1 .-1 ronta com a questão crucial do enigma da feminilidade, quando
, 1 1 w 1 J ', <' a necessidade de uma identificação sexual adulta. A nostalgia da
, 1 1 1 .1 1 1, i:1 reaviva as pulsões orais e detona a angústia frente ao desejo do
1 1 , 1 1 ' "· O efeito dessa revivescência é o refúgio do sujeito em um gozo
·. , q , l , · 1 1 i entar, regredido e infantil.
A bulímica usa o alimento como o jogo do Fort-Da mencionado
I " 1 1 h·cud, verdadeiro jogo de paciência, no qual o movimento de "en­
' l w ,. esvazia" é uma espécie de manobra que pretende produzir a falta
1 1 , , ( >utro - no caso a mãe - sempre "cheio de amor para dar". A cons­
t .1 1 1 1 <' relação entre o vazio e o pleno, o empanturrar-se para evacuar, o
1 1 1 .1\I i gar para cuspir ou vomitar são vaivéns pulsionais de perda e reen­
' , 1 1 1 1 ro com o "nada", esse "nada" que o objeto a presentifica. No gozo
, 1.-ssa repetição, o sujeito dramatiza a busca do objeto perdido visando a
·.1 1 1 1holização de uma situação insupÓrtável: a posição de objeto de gozo
, p 1 <· de é para a mãe.
Tanto na anorexia quanto na bulimia, a mãe é um Outro total e
t , , 1 : 1 l izante que situa o sujeito na posição de objeto de gozo. A ignorân­
' 1 . 1 e incompetência da mãe frente ao seu próprio desejo desarticulam as

, lrn1andas que lhe são endereçadas. Isso empurra o sujeito cada vez
1 1 1 . 1 i s em direção a uma posição de gozo absoluto, deixando-o, assim, à
1 1 1 < ' rcê da pulsão de morte.
Para além do transtorno alimentar, porém, o sujeito está tomado
1 w la linguagem. Deduzimos então que na busca de um tratamento ana­
l i t 1rn, mesmo não tendo nada a dizer sobre o seu transtorno, há uma
, l rn 1anda muda, silenciosa, que deve ser acolhida. Essa demanda de
. 1 p 1 d a não é expressa em palavras pelo sujeito e, por isso, não se oferece
.i 1 1 1tcrpretação. Sabemos que o silêncio é uma das vicissitudes da pulsão.
< l sujeito tem consciência de que mantém uma relação anormal com a
, , , mida, sabe que arrisca a sua vida na repetição compulsiva de seu ato
, ,hstinado, sabe que as alterações metabólicas e hormonais afetam sua
,,, 1 ú dc, mas mantém esse saber fora da dimensão discursiva. O que se

33
Os circuitos do desejo na viJ,1 e na an:lli., r

1 1 , 1 � \ . 1 no corpo não passa ao discurso. O sujeito fica petrificado e

desvitalizado pelo gozo que o deslibidiniza. Ele se torna escravo tanto


do (não) comer quanto do seu não dizer, pura mudez pulsional que
caracteriza a pulsão de morte.
Na fixação de seu auto-erotismo, o sujeito encontra uma resposta
que, ao dar consistência a seu ser, o impede de erguer barreiras de
contenção ante a invasão imperativa do gozo. Nestas circunstâncias, a
par da necessidade de uma intervenção multidisciplinar, o analista ofe­
rece e inaugura um espaço inédito que privilegia o poder da palavra,
rompendo o círculo vicioso do "engorda" estabelecido pela relação mãe­
filha. O enquadre analítico oferece um espaço que desloca a clínica do
olhar - olhar um corpo magro ou disforme - para a clínica do ouvir,
ouvir e fundar a estrutura significante do sintoma, pois é somente "cus­
pindo" significantes que se pode promover uma retificação da posição
subjetiva. Eis então que o desejo do analista se impõe no sentido de
favorecer a troca do gozo mudo por significantes que articulem o gozo
com o princípio de prazer.
No fenômeno psicossomático (FPS), há o que pode ser considerado
o fenômeno inverso da sublimação, o seu avesso. É o rebaixamento do
objeto, sua degradação, até o contra-senso de um "objeto sem alteridade"
(Valas 1990:84). Diferentemente da topologia do objeto extraído do
corpo, álter, o objeto aparece incrustado na lesão. Seriam partes do
corpo do Outro dentro do corpo do sujeito. O fenômeno psicossomático
ocupa o lugar da angústia. O surgimento, o agravamento ou a recidiva
da lesão são sempre contemporâneos a uma situação inesperada, uma
reedição de um corte abrupto ou separação traumática, luto não simbo­
lizado que produz no sujeito passivo um gozo específico fora da
significantização. Lacan situa esse gozo específico no registro do auto­
erotismo. Se a fantasia do neurótico, o sintoma e o gozo sexual mascu­
lino estão do lado do gozo fálico, o gozo específico do FPS é localizado
do lado de um gozar Outro, enigmático e consistente, tal como o gozo
na psicose e o gozo da morte da neurose traumática (Soler 1 9 9 5 : 1 18),
porém com uma borda que permite que o gozo seja limitado e não
inunde o sujeito.
Com seu FPS, o sujeito goza como supõe que gozava o Outro
cruel, encarnado pela mãe. Ele parece se submeter ao imperativo de
gozo do Outro, de quem teria tomado "os primeiros banhos de gozo
específico" (Guir 1 994: 142) e de quem teria se tornado refém. É por
essa razão que um FPS pode eclodir ou se agravar quando o analista
inadvertidamente ocupa a posição materna.

34
Pulsão: o desejo fragmentado pela fala

Tanto nas toxicomanias quanto no alcoolismo, nos transtornos


alimentares ou no FPS, a dificuldade é levar o candidato a analisante
à formulação de uma nova queixa, à invenção de uma nova fonte
enigmática de sofrimento ali onde o imediatismo e a preva l ê ncia do
gozo obturam as questões, pois tudo se passa como se a d i 1 1 1 e 1 1s:i o do
desejo estivesse esvaziada. A fixação do gozo em um obje t o d e t ermi­
nado, gozo pleno sem escanções, mostra que há um "gozo supl c111cn­
tar que é", segundo Miller (1 987: 271), "equivaleÍ1tc ;1 puls:io de morte"
e sem mediação da linguagem. Isso evidencia que o sujeito nega o
seu desejo, cede e se acovarda. Ele escolhe manter-se na ignorância,
recusando o deslizamento significante por meio do qual fatalmente
se depararia com o furo central estrutural da falta de objeto e,
consequentemente, com o desejo que não é nada apaziguador. Para
que aconteça uma reviravolta no circuito da pulsão - para o sujeito é
uma subversão - é preciso (parafraseando Lacan) que um gozo ex­
cessivo seja recusado "para que possa advir na escala invertida da lei
do desejo" (Lacan 1 960: 827). Em outras palavras, no amor de trans­
ferência o sujeito pode encontrar o desejo que lhe permite recusar o
gozo.

As pulsões na psicose
No início de seu ensino, Lacan teorizou que na psicose a relação com
o Outro se faz sem a barra da lei paterna, ou seja, sem a inscrição do
falo, sem a inscrição da castração. Na segunda clínica, ele acrescenta
que a lei paterna é o sinthoma, o quarto anel que une R, S e I, e que
faz suplência à foraclusão generalizada que todo ser falante apresenta,
o que é absorvido pelos neuróticos com a entrada no delírio compar­
tilhado da premissa universal do falo. Os psicóticos não acreditam
nesse delírio e pagam o preço dessa descrença, necessitando inventar
um sinthoma pessoal para não permanecerem desligados do ou invadi­
dos pelo Outro. Por outro lado, Lacan acrescenta que esse quarto anel
não opera apenas como metáfora: ele permite uma localização do gozo
cm sua vertente pulsional. No nível pulsional, são as seguintes as con­
seqüências da não inscrição da lei paterna como quarto anel:
1 ) Os objetos da pulsão não metaforizam o (-<p). Em Arcachon
(1997), Miller parte do exemplo de um psicótico que arrancava
seus cílios para demonstrar como o sujeito tenta, com uma extração
real, escrever a castração sobre o objeto olhar para que este perca
consistência;

35
Os circuitos do desejo na vida e na análise

2) A borda que separa borromeanamente o sujeito e seu objeto, e


o objeto e o Outro, não se produz;
3) Os objetos da pulsão, que na neurose são mediadores da rela­
ção do sujeito com o Outro, não são extraídos do sujeito. Assim, esses
objetos não estão cm posição de alteridade. Por isso, é possível dizer
que, na psicose, ;1 pulsão não passa pelo Outro. Quando, nas tentativas
espontâneas de cura do sujeito, o Outro retorna no real, ele o faz tam­
bém através dos objetos que aparecem sob a forma de alucinações, como
objeto voz ou como objeto olhar.
4) Na falta de um objeto perdido, a pulsão se fecha, automutilando-se.
Também em Arcachon, Miller lembra que a boca que atinge o hor­
ror de beijar a si mesma começa a morder-se e a dilacerar-se. Autode­
vora-se.
5) O sujeito vivencia a si próprio como objeto do gozo (objeto da
pulsão) do Outro.
Em relação à direção do tratamento na psicose, é necessário levar
em conta as formas de estabilização que os próprios psicóticos nos
mostram, e que supõem uma localização do gozo.
A metáfora delirante implica não só uma tentativa de dignificar
com um significante o lugar de objeto de gozo do Outro, como também
é uma forma de circunscrevê-lo, como mostra o gozo transexual de
Schreber no momento de sua estabilização. Nesse sentido, o analista
deve agir como um secretário ativo, ajudando o sujeito a encontrar esses
pontos de ancoragem.
Nas oficinas de arte em geral ou de literatura, é possível levar o
sujeito à construção de objetos ou à escrita, já que esse tipo de produção
artística permite uma separação entre o psicótico e seu objeto: toda
obra de arte é uma presentificação do objeto a. Qualquer escrita, mes­
mo não artística, pode produzir uma barra no gozo do Outro.
O analista que dirige a cura de um psicótico deve estar advertido
da radicalidade de sua função no que se refere à transmissão da castra­
ção. Essa exigência no tratamento da psicose é fundamental para que o
psicanalista não encarne o Outro, mas sim consiga torná-lo relativo. Se
o analista encarna o Outro, a análise não é possível porque o sujeito
começa a temê-lo como figura persecutória.

A pulsão no final de análise


Em ''.Análise terminável e interminável" (1 937), encontramos o eixo
que percorre toda a obra freudiana: o sintoma neurótico como resultado

36
Pulsão: o desejo fragmentado pela fala

da luta entre a pulsão (Trieb) e o eu (Ich). Freud investiga q uais mudan­


\·as uma análise pode produzir em um sujeito, tanto no nível da defesa
do eu quanto no nível da pulsão.
Para Freud, há duas causas possíveis para a neurose: o tra 1 1 1 1 1 a 1 ismo
,. a pulsão. Quando a neurose é ocasionada pelo traumatisnw, {- possí­
vel chegar ao final de análise e a cura conseqüentemente ser;í rn a n tida.
Nos casos em que a neurose é causada pela pulsão, não se t cl l l a rrn;sma
segurança uma vez que o destino da cura está articulado ao destino da
pulsão. Quando a causa da neurose é pulsional, a pulsão trabalha conti­
nuamente sobre o psiquismo, em seu interior. O sujeito se defende con­
tra a pulsão e o eu se deforma, isto é, se defende. Freud enfatiza que há
uma força especial da pulsão, ou seja, um "fator quantitativo" que o eu
não consegue dominar, o que o faz deformar-se de todas as maneiras.
Podemos observar que Freud se refere ao eu em termos de domí­
nio, no sentido de que o eu deve dominar a pulsão, domesticá-la. Para
de, é necessário que o eu integre a pulsão em sua síntese. Todavia,
quando fala a respeito de domínio sobre a pulsão, é para indicar que um
domínio total é impossível, pois sempre há um resto que escapa. Neste
mesmo texto, aparece a expressão "fenômenos residuais". Parte da
pulsão, expressa através do sintoma, permanecerá intocada pelo proces­
so analítico. O resto ao qual Freud se refere é um "resto fecundo e não
um resto morto" (AMP 1995: 52) , _resto proveniente da mesma raiz
pulsional de que se originou a neurose. É o "fator quantitativo" da pulsão
relacionado com a "viscosidade da libido." Poder-se-ia dizer que o "fa­
tor quantitativo" expressa o que não é decifrável no sujeito, o que se liga
ao mais íntimo de sua particularidade.
Lacan retrabalha estes termos. Para ele, o trauma é comum a to­
dos, o que relativiza a separação freudiana entre neuroses de causa trau­
mática e de causa pulsional. A pulsão que na neurose se articula na
fantasia é também a principal defesa do sujeito. Para avaliar as mudan­
ças no fator quantitativo, deve-se observar as metamorfoses produzidas
pela análise. Tanto para Lacan como para Freud o fim da análise está
relacionado não só com a modificação das defesas, como também a um
resto de gozo não eliminável - o incurável - com o qual, conforme
Lacan, o sujeito deve saber o que fazer. Em outras palavras, para Lacan,
deve haver um consentimento à pulsão.
Cada passe oferece um ensino singular em relação ao gozo e à
pulsão. As elaborações dos AEs e os relatórios dos cartéis do passe
falam de um momento de decisão: o momento de concluir é um ato que
consente à pulsão. Ali onde Freud duvidara da possibilidade de domes-

37
Os circuitos do desejo na vida e na análise

ticar a pulsão, surge o consentimento à pulsão, o encontro da pulsão


com o desejo e um novo uso de seu sintoma (refaz-se o quarto elo, o elo
do sinthoma). A forç.1 pulsional é posta a serviço do desejo e não, como
antes, a serviço de uma barragem, aparentemente consistente, que im­
pedia o contato com o furo no real que causa o desejo. O que resta
quando essa barragem é atravessada na análise? O que foi posto no
lugar do furo no real: o ser de gozo do sujeito. Dito de outro modo, o
gozo é desvelado, ou seja, modifica-se o modo de relação do sujeito
com o gozo, já que esta não mais pode ser uma relação de ignorância ou
de inocência. Sabe-se sobre a maneira em que esse gozo estava cifrado.
O que à primeira vista surge nos relatos de passe é um alívio, um
desfazer-se de um peso, "os efeitos de alívio que a constatação do im­
possível produz" (Strauss 1996:23 ). Alívio que consegue ser identifica­
do a posteriori por alguns como uma modificação na viscosidade da
libido, na vontade de gozo ligada a um único objeto, que tem relação
com a pulsão de morte. "[A análise] desvencilhou o sujeito das insígnias
do Outro, que determinavam, até então, o caminho onde uma pulsão
fixara seu circuito" (Rennó 1997 : 22). Este peso estava ligado ao Unlust,
ao desprazer, ao masoquismo primário, ao sofrimento do sintoma, à
culpa, enfim, à repetição.
A descoberta de seu grande parceiro, o objeto a, fruto do trabalho
analítico, leva a uma nova relação, quase sempre referida pelos passantes,
com o Outro sexo, o que não existe. Não se trata mais de fazer o Um da
relação sexual (que não existe), da relação narcísica, vertente imaginá­
ria do amor. Trata-se antes de um novo enlace da pulsão com o Outro,
que aparece nos relatos de passantes sob as seguintes formas: uma mu­
dança na vida, na inserção do sujeito no Outro da cultura, que permite
que as pulsões parciais, sempre as mesmas, façam uso (diferentemente
da fixação) das invenções que a cultura oferece (Miller 1998:16). É um
viver no presente e não no futuro.

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40
Descontinuidade e continuidade
na retórica do Witz :
franqueamento da metáfora ou finalidade do Lust

Jésus Sa n t i ago
[Belo l l or i zon t c J

É preciso considerar a importância que o Witz assume na releitura que


Lacan pôde realizar da obra de Freud, tornando-a um campo de referên­
cias, um verdadeiro programa de pesquisa da verdade como causa, aquilo
com que se lida, quotidianamente, na clínica. A publicação de O Semi­
nário, livro 5: as formações do inconsciente torna ainda mais clara uma
etapa crucial da versão lacaniana desse programa : a que se inicia à luz
do fundamento da linguagem e da palavra, e que pode ser designada
como o primeiro classicismo clínico do ensino de Lacan. A formalização
dos complexos circuitos do grafo do sujeito, tomados como o ápice
desse primeiro momento clínico, aconteceu sobretudo em decorrência
da fundamentação das chamadas "técnicas verbais dos chistes" (Freud
1905 : 3 7), cuja base conceituai exigiu-o recurso, inteiramente singular,
das oposições lingüísticas propostas por Roman Jakobson entre código
e mensagem, metáfora e metonímia, enunciado e enunciação.
Contudo é excessivo falar de oposições com relação ao grafo, pois
a aplicação destas à compreensão das formações do inconsciente trouxe
transformações substanciais, fazendo prevalecer, no grafo, menos as re­
lações de oposição do que a ação retroativa de seus elementos entre si.
Sem dúvida alguma o advento do grafo do sujeito significa um passo
decisivo para aquilo que até então havia sido proposto pelo esquema L,
principalmente no tocante às relações de oposição entre o simbólico, o
real e o imaginário. Na verdade, essa temporalidade retroativa, presen­
te no grafo do sujeito, pode ser concebida como a resposta de Lacan ao
proposto pelo esquema saussureano das duas curvas, haja visto que nes­
te predominam as relações de oposição entre os campos do significante
e o do significado (Lacan 1955 -6 : 295). Isso quer dizer, por exemplo,
que no esquema L a cadeia significante e a cadeia das significações,
além de se oporem, agem de forma isolada e autônoma. Ora, no que diz
respeito ao Witz, Lacan foi levado a considerar a ação retroativa de uma
cadeia sobre a outra, uma vez que o significado deixa de estar relegado
Os circuitos do desejo na vida e na análise

ao puro deslizamento metonímico, passando a ser captado e fixado pela


ação retroativa dos chamados pontos de estofo.

Lacan e o prazer no Outro


O privilégio da temporalidade retroativa nesse novo esquema conceituai
não impediu, entretanto, que se destacasse ainda mais a função de corte
do material simbólico, visto que é este o que introduz, tanto no imagi­
nário como no real, a descontinuidade, a oposição, a diferenciação de
seus elementos constitutivos. Portanto, se o simbólico é concebido como
'descontínuo', esses dois últimos aparecem, nesse momento de sua ela­
boração, como 'contínuos', pois padecem das gradações de mais e de
menos de seus elementos e dos fenômenos de retorno ao mesmo lugar.
É sabido que na primeira concepção clínica de Lacan a descontinuidade
é o modo preponderante de emergência do inconsciente, na condição
de fenômeno interpretável da experiência psicanalítica.
Ora, a exuberante e elegante construção do grafo explicita o quanto a
mensagem inconsciente radicaliza a função de 'corte do significante', tor­
nando possível a localização dos fenômenos imaginários e reais. Se a concep­
ção lacaniana do inconsciente não se confunde com qualquer realidade
substancial que se esgota no 'Um' totalizante, é porque além de não ser
primordial ou arcaico, ele também não é a sede dos instintos. É preciso
lembrar que as mais diversas distorções e incorreções promovidas pelo
pós-freudismo não deixaram de trazer inconvenientes para a prática
analítica. Ao contrário da substancialização totalizante, o material in­
consciente circula pelos circuitos do grafo como uma mensagem (y) que
sempre está em contraste com o código (a), ou seja, a mensagem que
emerge das formações do inconsciente sempre se produz nos circuitos
do discurso como deito de surpresa e descontinuidade, que, como tal,
é diferente do código. Aliás, é nessa diferença, nessa distinção em rela­
ção ao código, que reside o valor de corte da mensagem inconsciente do
Witz (Lacan 1957-8: 27-8).
Por outro lado, o Witz torna-se o paradigma da retórica de
franqueamento do inconsciente e não é sem razão que, ao longo de
O Seminário, livro 5, há uma discussão que visa diferenciar esta mo­
dalidade de enunciação do material inconsciente daquela que é ex­
pressa no esquecimento. Neste, é como se a metáfora não pudesse
completar o circuito da enunciação até o ponto em que contrasta com
o código, deixando em suspenso a mensagem inconsciente. O Witz,
ao contrário, leva às últimas conseqüências a intenção de significação

42
Descontinuidade e continuidade na retórica do Witz

do sujeito e revela o lado intérprete do inconsciente . �: n esse sentido


que Lacan destacará o aspecto de Arbeit da técnica vcrha l , t·m detri­
mento de sua finalidade, o Lust. Lacan não despreza a dimen são de
Lust; ele procura convertê-la em algo complexo, que encontra sua
explicação última no acolhimento da mensagem que cirrn l a nos cir­
cuitos do grafo que o Outro é capaz de fazer. Conclui-se, a part ir d a í,
que o Lust provém dessa recepção que equivale à interpretai,:ão d o
inconsciente e que, n o fundo, tem muito pouco a ver com a h i p útese
freudiana da psicogênese do prazer no chiste.
Para Freud, o mecanismo do prazer no chiste supõe a presença
primordial da satisfação libidinal, presença que se constitui em um dos
primeiros vestígios do que mais tarde se formulará por meio do
narcisismo primário. Para o grafo do sujeito não há narcisismo primá­
rio, visto que ele é construído segundo o princípio de que o Outro
sempre precede à satisfação libidinal. A antecedência do Outro da lin­
guagem faz com que o grafo se ancore na insatisfação, e é por isto que
ele é denonimado grafo do desejo e não grafo da pulsão ou do prazer
(Miller 1999:27). O desejo é, por excelência, a permanente insatisfação
da linguagem, uma vez que ele resulta da defasagem produzida na satis­
fação da demanda, pois nesta nunca se obtém o que é pedido. O que o
grafo do desejo busca apreender do funcionamento das formações do
inconsciente é a permanente defasagem entre sua mensagem e o código,
isto é, o Outro de toda expressão vÚbal (idem).
Pode-se afirmar então que a insatisfação é o elemento próprio
às formações do inconsciente, embora de quando em quando, apesar
de tudo, ocorra o fato prodigioso de a satisfação se produzir. Isto se
dá no momento do próprio fracasso do dizer, isto é, quando na pró­
pria mensagem, sempre insuficiente, chega a se entender, do lado do
Outro, aquilo que está mais-além. Por sua vez, isto significa que a
única satisfação está na interpretação, ou seja, quando o Outro reco­
nhece e, portanto, interpreta o fracasso no dizer exemplificado no
lapso, no deslize, no tropeço ou mesmo no limite do dizer. A satisfa­
ção presente na concepção lacaniana do chiste se confunde com o
tema do reconhecimento, distinto do que aparece na discussão sobre a
intersubjetividade estabelecida entre dois sujeitos; ela é uma satisfação
presente no reconhecimento daquilo que se quer dizer mais-além do
que se consegue dizer. Por fim, é em função desse reconhecimento da
intenção de significação mais-além do dizer que se concebe o prazer
da tirada espirituosa como algo que só se completa no Outro (Lacan
1 957- 8 :27-8 ; Miller 1999:25).

43
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Freud e o Lustgewinn
Para Freud, o prazer do chiste não se explica apenas por esse circuto
que se fecha e se completa no Outro. Ele não é algo que se explica por
si mesmo, ou seja, pelo simples reconhecimento conferido pelo incons­
ciente a uma intenção de significação que se depreende da técnica ver­
bal. Isto não significa que ele desconhecesse o aspecto formal do Witz
expresso pela dimensão técnica doArbeit, e pode ser provado pela dis­
cussão que faz, sob este prisma, a respeito da homologia entre a "técni­
ca verbal do chiste" e a "elaboração onírica", reafirmando, no plano do
trabalho significante, uma tópica comum a ambos (Freud 1905: 183 ).
Para Freud, porém, o ganho de prazer (Lustgewinn) que emana do chiste
não se justifica apenas pelo trabalho bem-sucedido da metáfora que faz
uma mensagem ser reconhecida pelo Outro do código.
Assim, se para Lacan a satisfação prazerosa se ampara nas distintas
disposições que oArbeit significante oferece à estrutura da metáfora, para
Freud, essa satisfação encontra suas bases explicativas em uma psicogênese
ou mesmo em um desenvolvimento. Dito de outro modo, se o mecanis­
mo do prazer, para o primeiro, decorre da própria decifração do traba­
lho significante a que o Outro procede - o que, no fundo, se confunde
com a estrutura da metáfora - para o segundo, a técnica do chiste existe
apenas em função de uma finalidade, de uma tendência inerente ao
funcionamento do aparelho psíquico. Se a estrutura se decifra, o aparelho
subsiste superposto a uma finalidade, neste caso, uma finalidade de pra­
zer que nitidamente sobrepuja toda e qualquer intenção de significação.
Uma leitura atenta do texto de Freud torna evidente que essa finali­
dade de prazer se manifesta muito mais no chamado "chiste tendencioso"
do que no "chiste inocente". Na realidade, é preciso lembrar que essas
duas modalidades de chiste se distribuem segundo duas fontes de prazer
distintas: a técnica verbal e a tendência ou propósito (ibid. : 13 9). Assim, o
"chiste inocente" pode ser definido pelo uso da fruição prazerosa das
palavras, sem que o juízo emitido seja perturbado por algum conteúdo,
propósito ou tendência, do que se conclui que sua fonte de prazer é a
própria técnica verbal (ibid.: 141 ). Freud assinala que neste prevalecem:
os jogos de palavras cuja técnica consiste em focalizar a ativida­
de psíquica em relação ao som da palavra ao invés de seu senti­
do - em fazer com que a representação acústica da palavra
tomasse o lugar de sua significação, tal como determinada por
suas relações com as representações das coisas (idem).

44
Descontinuidade e continuidade na retúrica do Witz

Por outro lado, o segredo do prazer do "chiste tendencioso" re monta à


economia do dispêndio psíquico em que se sobressai uma d i 1 n i 11uição
efetiva da despesa da inibição ou ainda em que se favorece ;1 s u p r essão
das barreiras do recalque.
Fica evidente que os tendenciosos fazem rir muito mais que os
inocentes, isto porque os primeiros são mais obscenos, agressivos ou
culpáveis e , portanto, se assentam na satisfa ção da puls ã o
(Triebbefridigung). Duas modalidades deLust se equiparam às duas clas­
ses de chiste propostas por Freud: o Lust que se relaciona com o puro
jogo do significante e o que diz respeito à satisfação pulsional. Talvez
seja esse ponto preciso da diferenciação entre o chiste 'não pulsional'
e o chiste 'pulsional' que tenha inspirado Lacan à formalização do
grafo do sujeito com dois andares diversos: no primeiro, há o funcio­
namento da língua em que se baseia o chiste inocente; no segundo, o
chiste tendencioso, pois, nesse plano superior, introduz-se o circuito
da pulsão. Porém o que de fato permite Freud levar adiante suas hipó­
teses sobre o chiste está longe de adotar o tratamento formal do grafo;
ao contrário, a perspectiva adotada por ele é de alguma maneira
desenvolvimentista, tanto que ele recorre de maneira explícita ao ar­
gumento da psicogênese.
Lacan designa o ponto de partida desse argumento psicogênico,
aliás de forma crítica, de recurso à criança, ou seja, para ele, é insufici­
ente o uso conceituai do "período em·que a criança adquire o vocabulá­
rio da língua materna, proporcionando-lhe um óbvio prazer de
experimentá-lo e, poder, assim, brincar com ele" (ibid. : 14 8). Freud dá
continuidade às suas deduções por meio do que caracteriza como o
"velho jogo de obtenção do prazer" (die A/te Lust) (: 151), verificado no
momento em que a criança reúne as palavras, sem respeitar a condição
de que elas façam sentido, a fim de obter delas um gratificante efeito de
ritmo ou de rima. Ele mesmo se encarrega de mostrar que pouco a
pouco esse prazer submete-se à censura, tornando-se proibido, até res­
tarem permitidas apenas as combinações que preservam o sentido. Qual­
quer que seja o motivo que tenha levado a criança a iniciar esses jogos,
para Freud, ela própria, em seu desenvolvimento posterior, desiste de­
les ao tomar consciência de que são absurdos, divertindo-se algum tem­
po com eles devido à atração exercida pelo que é proibido pela razão.
Mais tarde, pode acontecer ainda - é o caso dos chistes tendenciosos -
que alguém lance mão dos jogos de palavras prazerosos para evadir-se
da pressão da razão crítica, da pressão dos efeitos do recalque. Como se

45
Os circuitos do desejo na vida e na análise

v Í' , nesse último caso, a técnica verbal está a serviço do princípio de


economia do dispêndio psíquico exigido pela ação da inibição, ou mes­
mo pelas barreiras do recalque. À medida que tal técnica consegue des­
vencilhar-se destas barreiras, ela proporciona ao sujeito um "ganho de
prazer" (Lustgewinn) (:140).
Assim, é preciso considerar que, para Freud, o prazer antigo (die
A/te Lust) dos chistes inocentes está em relação de continuidade com a
satisfação pulsional (Triebbefriedigung), própria aos chistes tendenciosos.
A técnica verbal dos chistes tendenciosos não se opõe ao prazer antigo e
fundamental, ao puro prazer lúdico do significante que está nos
primórdios da existência do ser falante. Ao contrário, a satisfação da
pulsão (Triebbefriedigung) que tem lugar na técnica dos chistes tendenciosos
se vale e se apóia nesse prazer antigo (die Alte Lust), prazer que, em
alguns momentos, Freud nomeou de prazer preliminar do objeto. Diz­
se que Freud se ocupa da psicogênese para explicar o ganho de prazer
no chiste porque ele começa pelo bebê, por seus balbucios, que para ele
explicam a produção de uma tirada espirituosa (Miller 1999:23). Como
afirmado, é apenas mais tarde que o sujeito pode superpor as funções
complexas da técnica verbal ao prazer próprio ao balbucio infantil.

Alteridade altiva da pulsão


Jacques-Alain Miller tem �azão quando opõe o texto de Freud à visão
lacaniana da retórica de franqueamento do Witz abordada em O Semi­
nário, livro 5, na qual a hipótese da função descontínua do significante
é reforçada. Como visto, para Freud, o prazer do chiste tem suas raízes
em um estágio do desenvolvimento do sujeito em que o Outro ainda
não está constituído e existe de alguma forma uma conexão direta, uma
continuidade entre o significante e o gozo, sem passagem pelo Outro
que acolhe e interpreta a mensagem inconsciente (ibid.: 26). Ora, para o
primeiro classicismo clínico de Lacan, o prazer que resulta da mensa­
gem inconsciente, que assume valor de chiste, se completa apenas com
o Outro. Neste momento de seu ensino, é inconcebível pensar o chiste
sem a interferência do campo do Outro. Este último é situado como o
elemento de diferenciação entre a técnica do chiste e a técnica do dis­
curso cômico; enquanto a primeira se baseia em uma estrutura ternária,
a segunda se restringe a uma relação puramente dual.
Como postular uma concepção psicanalítica do mecanismo de
prazer no chiste evitando o concurso da satisfação pulsional e fazendo
incidir toda a argumentação sobre a função interpretativa do Outro ?
Em uma passagem de "Situação da psicanálise e formação do psicana-

46
Descontinuidade e continuidade na rct61·1<'ó1 do Witz

li sta em 1 956", publicado um ano antes da realização de ( ) S,•minário,


li11ro 5, curiosamente Lacan aborda a relação entre o Witz e a pulsão.
Ele afirma que as pulsões se fazem presentes nos sonhos sob a for 1 1 1a de
" trocadilhos de almanaque", fazendo exalar, para os mais ingênuos, 1 1 1 1 1
, nto a r de Witz na leitura de Traumdeutung1 , e continua sua elahor a ,,:io
rnncluindo que são elas, as pulsões, que distanciam o chiste do d)m i rn
porque, nesse contexto, surgem em uma "alteridade mais altiva".
Salta aos olhos o fato de que Lacan lança mão tanto da pulsão
, orno do Outro, como se viu antes, para fundamentar sua compreensão
.Kcrca da distinção entre o Witz e o cômico. É bem verdade que ao
utilizar a expressão "trocadilho de almanaque" para dar conta da mani­
f estação da pulsão nos sonhos, ele aceita sua incidência mais imediata,
direta e contínua com o material inconsciente, uma vez que a pulsão aí
se confunde com um jogo de palavras precário e incipiente próprio às
formas escritas nada eloqüentes, como é o caso de um almanaque. Com
relação ao Witz, Lacan parece destacar o laço descontínuo da pulsão
com a mensagem inconsciente, e isto a tal ponto, que ele postula a
pulsão como o equivalente de um Outro instalado no alto do grafo. Não
<; sem fundamento, portanto, o fato de que, em um dos momentos
c ruciais de O Seminário, livro 5, Lacan proceda à duplicação do grafo,
viabilizada por meio da transformação da pulsão em uma alteridade
mais elevada que curto-circuita aquela da linguagem e coincide com a
distribuição dos objetos da pulsão em uma série, tal como a cadeia
significante. Os avatares da correspondência entre a pulsão e a cadeia
significante, captada pelo tratamento lacaniano do Witz, não deixam
de ter conseqüências para o destino da prática clínica psicanalítica,
principalmente no tocante às relações contínuas ou descontínuas do
significante com a pulsão, com o gozo, relações estas que tornaram
possível, entre nós, a hipótese de uma primeira ou segunda clínica de
.J acques Lacan.

1 "As pulsões que se articulam nos sonhos como trocadilhos de almanaque


exalam também esse ar de Witz que, à leitura da Traumdeutung, toca os mais
ingênuos. Pois se tratam das mesmas pulsões cuja presença distancia o chiste do
cômico, por se afirmarem ali numa alteridade mais altiva" (Lacan 1 956 :469).

47
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund
( 1 9 0 5 ) "Os chistes e sua relação com o inconsciente". Em: Obra.s rnmpletas, vol. VIII . Rio
de Janeiro : Imago, 1 977.
LACAN, Jacques
(1955-6) O Seminário, livro 3 : as psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1 9 8 1 .
( 1 95 6 ) "Situação da psicanálise e formação do psicanalista c m 1 956". Em: Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 9 9 8 .
(1957-8) O Seminário, livro 5: a s formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1 99 9 .
MILLER, Jacques-Alain
( 1 9 9 9 ) Perspectivas do Seminário 5 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

48
Fantasia: suporte do desejo

Sandra Arruda Grostein [relatora, FIII' \Jn 1'�11lnl


Elza Mendonça de Macedo, Luiz F n 1 1 ,1 1 1 d 1 1
Carrijo da Cunha, Maria Margareth Fcn;11. dr
Oliveira, Martha Maria Monteiro.

I ntrodução
/\ articulação entre o desejo, seus circuitos na vida e na análise e a
fantasia pode ser precisamente ilustrada por uma passagem de O Semi­
wírio, livro 5: as formações do inconsciente :
É o desejo que é propriamente convocado em toda a economia
do sujeito e que está implicado no que se revela na análise, isto
é, naquilo que se põe a se mover na fala, num jogo de oscilação
entre os significantes terra-a-terra da necessidade, por assim
dizer, e o que resulta, para além da articulação significante, da
presença constante do significante no inconsciente, na medida
em que o significante já esculpi�, formou, estruturou o sujeito.
É nessa zona intermediária que se situa o desejo, o desejo do
homem como aquele que é o desejo do Outro. Ele está para
além da necessidade, para além da articulação da necessidade à
qual o sujeito é levado pela exigência de valorizá-la para o Outro,
para além de qualquer satisfação da necessidade. Ele se apre­
senta em sua forma de condição absoluta e se produz na mar­
gem entre a demanda de satisfação da necessidade e a demanda
de amor. O desej o do homem, para ele, tem sempre de ser
buscado no lugar do Outro como lugar da fala, o que faz com
que o desejo seja um desejo estruturado nesse lugar do Outro.
Essa é toda a problemática do desej o. É o que o faz ficar subme­
tido à dialética e às formações do inconsciente. É o que faz com
que tenhamos de nos haver com ele e possamos influir nele,
conforme ele sej a ou não articulado na fala em análise. Não
haveria análise se não houvesse essa situação fundamental.
Temos aqui, em ($ ◊ a), o correspondente e o suporte do desejo,
o ponto em que ele se fixa em seu objeto, o qual, muito longe
de ser natural, é sempre constituído por uma certa posição do
Os circuitos do desejo na vida e na análise

sujeito em relação ao Outro. É com a ajuda dessa relação fan­


tasística que o homem se encontra e situa seu desejo. Daí a impor­
tância das fantasias. Daí a raridade do termo instinto em Freud
- trata-se sempre de pulsão, Trieb, termo técnico dado a esse
desejo na medida em que a fala o isola, fragmenta-o e o coloca na
relação problemática e desarticulada com seu objetivo à qual
chamamos direção da tendência, cujo objeto, por outro lado,
está submetido à substituição e ao deslocamento, ou a todas as
formas de transformação e equivalência, bem como oferecido ao
amor, que faz dele sujeito da fala" (Lacan 1957-8 :454-5).

Lacan enuncia que o desejo é igual a lei. Em "Subversão do sujeito e


dialética do desejo" ( 1960), essa articulação torna-se mais clara: a lei do
desejo, regulamentada pelo falo, introduz a dimensão dessa articulação.
Se o desejo é regulamentado pelo falo na condição de lei, isto nos faz pensar
que supostamente a fantasia, está situada no mesmo plano do falo. Se
entendemos que a fantasia funciona como depositário, como catálogo do
investimento das significações fálicas de um sujeito, então podemos en­
tendê-la também como o sustentáculo ou o suporte do desejo como tal.
Em um determinado momento do ensino de Lacan, a direção do
tratamento visa a travessia da fantasia porque supõe que o tratamento
está centrado no uso fundamental da fantasia e da formação do sintoma,
considerado aqui como efeito de significação. A travessia da fantasia
pode ser entendida como um desinvestimento realizado pelo sujeito das
significações que sustentavam seu desejo. Uma pergunta se impõe: o
que passa a ser o suporte do desejo no momento dessa travessia?

Construção da fantasia como bússola para o desejo


Por meio da clínica do passe tentaremos abordar a construção da fanta­
sia, apontando para a assunção de um saber sobre a mentira aí sustenta­
da. Trata-se do depoimento "O fantasma mente", publicado em Opção
Lacaniana, n. 11 sob a rubrica "O percurso do passe". Seu autor locali­
za a fantasia como causa de sua conduta diante da presença do Outro, o
que nos parece um recorte privilegiado para demonstrar a construção
da fantasia, sua articulaçãO'com o desejo e sua travessia.

"A marca do amor e o preço da palavra" -


a posição do sujeito frente ao amor.
Estas são as frases com que o autor situa e demonstra o trabalho analí­
tico sobre a fantasia: 1) "Como não sou eu quem você ama, não lhe falo

50
Fantasia: suporte do desej o

mais e o deixo com a sua solidão"; 2) "Esse outro a quem você credita
a preferência e a confiança, o trairá; e eu, que entretanto nada pude lhe
dizer, ser-lhe-ei fiel"; 3) "Com quem ele fala?"; 4) " Quem se faz ouvir
pelo pai tem chances de seduzi-lo"; 5) "Aquilo que não pode ser dito é
'cu o amo'. O risco, desde então, é o de se trair."

A travessia da fantasia e o desejo


Essa posição fantasística, a suposição de não ser amado, que é causa da
sua conduta "amuada", encobre o desejo de falar; sua travessia o faria
sair do "amuo infantil", ou seja, falar, neste caso articulado com a trai­
..;:lo e com o amor. Se no cerne da fantasia "falar" e "trair" são equiva­
l entes: "então, não lhe falo". Da mesma forma, há disjunção entre falar
e ser fiel. A mudança de posição subjetiva, a travessia da fantasia, impli­
ca poder falar, amar e não trair. Deslocar-se dessa posição de amuo,
efetuar este desinvestimento semântico, acarreta a construção de um
saber outro, um novo saber sobre essa verdade até então fantasística.
Nesse sujeito o desejo, após a travessia da fantasia, levou-o a abandonar
seu parceiro, pois "este estava próximo do outro que, na fantasia, detin­
ha o privilégio de falar com o pai". Na análise, a percepção de uma
oposição entre o tipo de fantasia evocada e a ética do bem dizer foi
condição para a assunção do desejo do analista.

Assunção do desejo do analista


Verificamos, neste trajeto, a construção e a desconstrução da fantasia,
ou seja, o ponto em que o desejo do Outro e o objeto a (gozo) podem se
separar, como diz Éric Laurent: "o verdadeiro sentido da construção da
fantasia, que é então a separação das duas vertentes do objeto" (1995: 76).
Se a travessia da fantasia implica um desinvestimento libidinal, e se
a fantasia é suporte do desejo, qual é o destino da libido ? Este
desinvestimento produz um vazio que indica a falta no Outro e a perda
de gozo, dando condições para o advento de um desejo inédito, desejo de
saber, que podemos considerar equivalente ao desejo do analista.
Há uma substituição da fantasia pela ética do bem dizer.

Conclusão
O desejo do analista, esse desejo inédito, se sustenta na ética do bem
dizer. Lacan, em Televisão (1 973), refere-se à ética do bem dizer como
aquela de orientar-se no inconsciente, na estrutura, ou seja, de buscar
um saber que se sustenta fora do sentido.

51
Os cin.:: u i tos dn t ! c ,(· 1 1 1 1 1 ,1 v 1 d., 1· l l ,l a11:l.lise

"A problemática do desejo s 1 1 l111H' l e I I s 1 1 j cit o à dialética e às for­


mações do inconsciente" (Lacan l 957 -8 : 4 <i 4 ) : o e feito operatório do
desejo do analista é o de articular o desejo 1 1 ; 1 Li Li, rn11di c.; ão fundamen­
tal para que haja análise.

Referências bibliográficas
LACAN, Jacques
(1 9S7-8) O Seminário, livro S: as formações do inconsciente. Rio de .Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1 9 9 9 .
( 1 9 6 0 ) "Su bversão d o sujeito e dialética do desejo n o inconsciente freu diano". E m :
Escritos. Rio d e Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1 9 9 8 .
( 1 9 73 ) Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 9 9 3 .

LAURENT, Éric
( 1 9 9 5 ) Versões da clfnica psicanalítica . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

NAVEAU, Pierre
( 1 9 9 3 ) "O fantasma mente", Opção Lacaniana, n. 1 1 , São Paulo.

52
A função da fantasia
Bernard i n o l l o rt H'
1 11,1 1 1 1 ,1 1

!'retendo nessas linhas abrir algumas das inúmeras perspectivas que est e
tema permite. Há um fio central que acompanha a orientação apontad a
por Jacques-Alain Miller em seu curso ' 'A orientação lacaniana do Cam­
po freudiano" (Miller 1998 e 1999; Moura 199 9): Lacan, em O Semi­
nário, livro 5: as formações do inconsciente ( 1957-8), atribui à fantasia
a função de ponto de basta. Ela articula e fixa Simbólico, Real e Imagi­
nário; faz o nó que relaciona o gozo e o significante. Mesmo que nela o
significante predomine, a fantasia é um axioma.

Uma leitura retroativa


/\ leitura retroativa é um dos métodos de "A orientação lacaniana do
Campo freudiano". Em função de minha própria experiência de análi­
se, interesso-me por um ponto da teoria que Miller formula como "o
problema de Lacan" (Miller 1991 : 21) e que trata da relação entre
significante e gozo. Neste curso, Miller ordena as diversas formas
com que Lacan procurou abordar essa relação, postulando seis perío­
dos com diferentes soluções denominados de "Os paradigmas do gozo"
(Garcia 1998).
O primeiro paradigma, chamado de "a imaginarização do gozo",
separa o Simbólico do Imaginário, formando dois eixos antagônicos.
O eixo imaginário concentra o libidinal, o campo do gozo, enquanto a
linha que vai do sujeito ao Outro abre o campo do Simbólico.
No segundo paradigma, "a significantização do gozo", que abran­
ge O Seminário, livro 5, Lacan efetua um grande esforço para
significantizar o gozo. Como resultado, o gozo permanece fora, e o que
entra no sistema, o faz como falo, como significante, estabelecendo-se
finalmente o domínio do significante sobre o imaginário.
A fantasia que, no primeiro paradigma, se localizava no eixo ima­
ginário, constitui, no segundo, uma nova cadeia significante. O objeto a
advém como imagem significante: é o imaginário escrito no aparelho
simbólico. A libido em si é inscrita no significante como demanda e o
gozo equivale ao significado de uma cadeia significante inconsciente em
que o vocabulário será constituído pela pulsão.
Os circui t os do dr,qo n .1 v 1 t l .1 f' 1 1 .1 :111:l lisc

O impossível dessa tentativa leva ( .;11 ;1 1 1 a estudar o resto de real


que perdura e a propor outra solução co111 < , 1 !'f'1Ti n , paradigma, batizado
por Miller de "O gozo impossível". Esse par;1d ig111a aponta o gozo como
real. No primeiro paradigma, o gozo era considerado na vertente imagi­
nária e, no segundo, na vertente simbólica; no terceiro, scr;1 considerado
no real. No sexto, como veremos, ele se define por "n;io há relação", o
corte ocorrendo entre alíngua e linguagem, ambas formas do significante.

O Seminário, livro 5
Lacan define a fantasia como "o imaginário aprisionado em um certo
uso de significante" ( 1957-8 : 4 21 ). Para justificar essa definição, lembra
que "não convém desconhecermos o aspecto de roteiro ou de história,
que constitui uma de suas dimensões essenciais" (idem). Reelabora as
noções de desejo, objeto e sujeito, na intrincada textura de suas rela­
ções, constitutivas da fantasia inconsciente. O trabalho de Lacan sobre
a fantasia se desenvolve em dois sentidos. Por um lado, tenta a
radicalização de seu valor significante. Ela é a resposta primeira ao
Outro em sua falta. O sujeito, ao reconhecer a falta no Outro, se assu­
me como significante. Por outro, muda o valor de gozo do objeto, que é
elevado de puro imaginário à categoria de semblante.
O desejo é o que não se pode dizer. Seu efeito de sentido é a
fantasia. Como significado do Outro, esta pertence ao registro do senti­
do; a fantasia cumpre a função de fixar a cadeia significante por meio
do significado e do gozo. Reúne elementos heterogêneos do simbólico,
do imaginário e do real. Assume assim o valor de ponto de basta inau­
gural da estrutura psíquica. É um momento do ensino de Lacan em que
ele busca absorver o gozo do eixo imaginário no registro simbólico,
articulando o objeto ao sujeito barrado, e instituindo o falo como
significante do gozo.
Outorgar à fantasia a categoria de \, de axioma foi durante vários
anos o pensamento de Lacan. J.-A. Miller o destaca em várias oportuni­
dades e chega a formular que o passe é uma transfinitização do dito
(Miller 1984; 1993).
No que diz respeito ao objeto, Lacan parte da confusão· que se
produz ao não se conseguir delimitar conceitualmente a demanda e a
necessidade. Fundamentalmente, a necessidade se relaciona desde sua
origem com o significante (Lacan 1957-8 : 227). Neste sentido, a intro­
dução do desejo em uma realidade não é pensável a partir de uma expe­
riência. O significante é essencial como intermediário de sua relação
com a realidade { : 23 1).

54
A função da fantasia

O objeto a da fantasia recebe o aporte tanto do obje t o i m aginário,


rnnstituído na linha inferior do grafo, como do elemento p11 lsio11al que
desliza na demanda sob a forma de desejo. Ele só exercerá sua fu11i,-,1 0 se
estiver preso a uma cadeia significante (: 238). Nela, articulam-se I 1 1 1 .1gi
n ário e Simbólico, deslizando o que de Real o simbólico não consegue
i nscrever na demanda. O gozo só pode penetrar no simbólico paga ndo
11m preço. Do lado do falo, este preço é a castração; do lado do desejo,
sua alienação ao desejo do Outro (:234). Lacan caracteriza o ser falan te
rnmo ser de desejo. O simbólico traz consigo a morte.
No grafo se estabelece uma dupla cadeia. Por um lado, uma ca­
deia significante que avança da esquerda para a direita; por outro, uma
cadeia de significações que avança na direção contrária. Nela desliza o
objeto metonímico (: 240), que sustenta o desejo como anseio nostálgico
de um objeto do passado, que é a sua causa, seu suporte, sua tentativa de
satisfação, sua experiência de gozo e sua realização alucinatória. Este
fluxo tem duas satisfações: a realização do desejo e a pura satisfação da
metonímia, sendo o desejo o que resiste à significantização e também o
que define o lugar exterior em que o Outro situa a sua sede. Ali onde o
sujeito tem de ir para encontrar o desejo (: 283 ). Esta relação quadrática
marca a Spaltung do sujeito e delimita topologicamente (:454) os dois
vértices, referência do sujeito ao Outro.
A linha superior é significante e articulada; ela faz aparecer o
Simbólico no Real, sob a forma de demanda, assim como a demanda de
amor e sua insatisfação estrutural. O S(J..) está escrito no início da linha
significante, sua posição sendo homóloga a de s (A). É necessário desta­
car a homologia entre a posição do desejo e do Outro.
Há uma linha intermediária. Trata-se de um espaço de articula­
ções (: 454). Nesse espaço está situada a fantasia que conjuga o sujeito, o
objeto e o desejo. O desejo do homem é o desejo do Outro, ele está para
além da necessidade e se estrutura na fala. O desejo se fixa em seu
objeto não naturalmente, mas sim a partir de uma certa posição do
sujeito em relação ao Outro. Assim o sujeito se articula com o objeto,
de tal modo que este fixa e suporta o desejo.
A relação entre o desejo e o gozo torna evidentes impasses teóricos.
Ora, é precisamente por isso que Lacan se interessa pelo assunto. Ele
constrói um quadrilátero formado por dois triângulos: o da Mãe-Criança­
Pai, e o da Mãe-Falo-Criança. Quando a criança é desejada, em seu lugar
se instala o Ideal do eu (:267). O pai aparece como essencialmente cria­
dor, instaurando do nada o próprio significante (:268). A experiência da
realidade introduz neste campo o outro, o objeto imaginário, ilusório e

55
Os circuitos do desejo na vid,1 e na anál ise

l' l lganador, o que permite a constituição da realidade psíquica sob a forma


Je uma franja: o campo da fantasia (Lacan 1958 :55 9-60).
Como o sonho, a fantasia realiza o desejo. Pode ocorrer um curto­
circuito na satisfação pulsional, que normalmente exige um objeto no
lugar do Outro para sua satisfação. Freud (1912) expressa sua preocupa­
ção pela facilidade com que se pode obter gozo pela via fantasística,
dispensando o objeto a do campo do Outro. No mundo contemporâ­
neo, podem aparecer, em seu lugar, objetos de consumo provenientes
do Outro social (Viganô 1999).
Ao considerar a importância clínica desta linha intermediá­
ria, Lacan indica em O Seminário, livro 5 (1957- 8 : 453) que deve­
mos ler as entrelinhas da demanda para encontrar os significantes
das demandas passadas, conceituando assim a regressão. Lacan ob­
serva as diferenças entre o desejo na histérica e no neurótico obses­
sivo e diferencia os lugares que essas neuroses têm na fantasia. Em
seus pensamentos, o neurótico obsessivo organiza roteiros fantasís­
ticos. Goza do corpus mental, dos pensamentos e, na fantasia, se
põe no lugar do sujeito. A histérica, entretanto, identifica-se com o
objeto e assume o seu lugar, alojando abertamente o gozo na carne de
seu ser vivo. Dessa forma, pode-se compreender que a histérica seja
o sintoma do obsessivo, e que esta neurose seja um dialeto da histe­
ria . O desejo da histérica é desejo de desejo e o desejo do obsessivo,
desejo morto.
A questão quantitativa recebe novas soluções, embora o sócio ca­
pitalista da estrutura significante continue a ser, como para Freud, o
desejo. A idéia de que um significante é um elemento negativo, frente
ao positivo do objeto, é posta pelo avesso: o significante falo presentifica
a ausência, positiva o nada. É o significante do desejo e do gozo, está e
não está articulado à cadeia significante. Em outras palavras, o falo é
um significante e um objeto de identificação radical. O desejo tem sem­
pre uma referência fálica. Como lembra Lacan, ele representa o essen­
cial da descoberta freudiana (:4 85). O significante falo é axial na dialética
das perversões, das neuroses e do desenvolvimento subjetivo, e é velado
porque é um significante último na relação do significante com o signi­
ficado (: 249).
O desejo também subjaz ao sintoma, definido por Lacan como
aquilo que é analisável (:23 5). Por isso o sintoma é charlatão (: 341).
Nele o desejo não se apresenta abertamente: a máscara não só cobre,
como também torna ambígua sua realização no sintoma. O desejo não
é formulado e não deixa de ser formulável.

56
A função da fantasia

Depois, a fantasia
/\ fantasia como ponto de basta situa o gozo de maneira c e ntral em
relação à possibilidade de ser significantizado na experiência psicana­
lítica. Lacan formula a metáfora paterna, propondo o significante falo
como o efeito de significação que advém da operação metafórica d o
Nome-do-Pai (NP) sobre o desejo d a mãe (DM). Estamos n a clínica
cm que prevalece a metáfora, em que há a pressuposição de que é
possível aproximar-se do gozo via metáfora, via significantização, via
Édipo. Para Lacan, já estava claro que o fim da análise passava pela
relação do sujeito com o gozo. Nesse momento, a solução clínica
seguiu a via da fantasia. A travessia desta, ao revelar seu valor de
defesa, permitia o acesso à verdade do gozo do sujeito (Miller 1 986-7:
cap. 28).
A fantasia se manteve por muito tempo como núcleo de sustenta­
ção do desejo. Sua função como defesa fundamental (Miller 1 997; Horne
1 9 99) perdurou por vários anos no ensino de Lacan. Em O Seminário,
livro 20: mais, ainda, que Miller lista como o sexto paradigma, Lacan
mudou de perspectiva (Guimarães e Horne 1 999) : o ponto de basta não
é mais a fantasia, mas sim o sintoma. Com o sintoma como amarração,
a via da repetição das posições de gozo do sujeito é o melhor modo de
orientar-se no real na experiência analítica. Nesse sexto paradigma,
como afirmado acima, o corte entre o gozo e o significante ocorre entre
alíngua e linguagem.
O que caracteriza a relação gozo-significante é a não relação.
O anúncio da idéia de separar Real e Simbólico no próprio campo
significante pode ser encontrada na página 368 de O Seminário, livro 5,
em que Lacan afirma que as formações do inconsciente implicam certo
primarismo na linguagem, chamado por Freud de "processo psíquico
primário". Tal primarismo tem textura de linguagem, é tecido como
uma linguagem. Já o processo psíquico secundário passa pela demanda
tanto do sujeito quanto do Outro.
No sintoma, há como nó central o gozo da posição de objeto com
seu núcleo de masoquismo erógeno primário. Ele sustenta a defesa fun­
damental : o chicote da significação fálica. O ponto de basta, formulado
como sintoma, comporta um conceito de desejo sustentado no vazio
central da estrutura, e não mais na fantasia. Neste vazio, o gozo sinto­
mático faz suplência. Assim, o final de análise formulado via identifica­
ção ao sintoma faz desmoronar a tendência do neurótico a identificar
aquilo que falta ao Outro com o que o Outro quer. Esta identificação
faz com que a demanda do Outro assuma a função de objeto, levando o

57
Os circuitos do dl'sl'jo na vida ,. n,1 análise

neurótico a um atalho entre fantasia t' pu lsão, que deixa fora o circuito
do desejo (Leguil 1993).
Dessa maneira, o neurótico, ao eclipsar o l'Írrni to do desejo como
radicalmente fundado no furo, faz existir um 0111-ro consistente, atando
seu desejo ao desejo do Outro. A fantasia na condi ção de defesa funda­
mental ante o gozo leva o sujeito a supor o gozo como resposta ao
desejo do Outro.
A clínica para além da metáfora paterna faz ruir a formulação de
que a fantasia é o suporte do desejo e a faz aparecer como defesa funda­
mental, que, ao realizar o desejo, eclipsa sua estrutura radical.

Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund
( 1 9 1 2 ) "Contribuições a um debate sobre a masturbação". Em: Obras completas, vol. XII.
Rio de Janeiro: Imago, 1 978 .

GARCIA, Célio
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GUIMARÃES, Leda & HORNE, Bernardino


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LACAN, Jacques
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Editor, 1 9 9 9 .
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Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 9 9 8 .

LEGUIL, François
( 1 9 9 3 ) "A entrada em análise e sua articulação com a salda". Bahia: EBP-BA.

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( 1 9 93 ) "Sobre o transfinito", Opção Lacaniana, n . 6 , São Paulo.
( 1 994) "Logique de la Passe et de l'orientation lacanienne". Paris. Inédito.
( 1 9 9 8 ) O osso de uma andlise. Bahia: Biblioteca Agente - EBP-BA.
( 1 99 9 ) "A orientação lacaniana do Campo freudiano". Paris. Inédito.

MOURA, Maria Luiza Rangel (coord.)


( 1 9 9 8 ) "Silet". Grupo de leitura de ''A orientação lacaniana do Campo freudiano", de
Jacques-Alain Miller. Anotações pessoais.

VIGANO, Cario
( 1 99 9 ) "Seminário em Belo Horizonte". Anotações pessoais.

58
Sintoma: satisfação às avessas
Celso Rennó Lima [relator, EBP-Mi11as l ;c1 aisi
Cristiana Pittella Mattos, Cristina Dru111111011d,
Elisa Alvarenga, Henri Kaufmaner.

I ntrodução
Este título, proposto pela Comissão Científica do X Encontro Brasilei­
ro, abre muitas perspectivas de trabalho. Escolhemos alguns caminhos,
que passarão por uma introdução que tem como referência o capítulo
de O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente de onde foi ex­
traído o título. "As máscaras do sintoma" trabalha a formação do sinto­
ma a partir de seu núcleo, o desejo, passando pela marca que a castra­
ção ali deixa, e que se manifesta na.própria presença do significante
falo, para concluir com a articulação possível entre o desejo e a máscara
do sintoma. É interessante notarmos que, neste momento de seu ensino,
Lacan apresenta a fórmula da fantasia fundamental como sendo a más­
cara do sintoma. Talvez seja importante lembrar que ele ainda pensava
a fantasia como sendo da ordem do imaginário 1 •
No início desse capítulo, destaca-se a afirmação da qual Lacan
fará o fio condutor de sua argumentação: "que toda a experiência analí­
tica está aí para lhes mostrar que se choca com as antinomias internas
de qualquer normatização na condição humana" (Lacan 1957-8 : 3 3 1).
E o que observaremos a respeito dessa antinomia pode ser resumi­
do na ênfase que Freud deu ao desejo no princípio de sua obra : "O que

1 "O grafo inscreve que o desejo é regulado a partir da fantasia, assim formulada
de maneira homóloga ao que acontece com o eu em relação à imagem do corpo,
exceto que ela continua a marcar a inversão dos desconhecimentos em que se
fundamentam, respectivamente, um e outro. Assim se fecha a via imaginária por
onde na análise devo advir, lá ondes'tava [/à oit s'était] o inconsciente". Lacan
(1960: 83 1).
Os circuitos do desejo na vida e na an,\lisc

Freud descobriu essencialmente, o que ele apreendeu nos sintomas, fos­


sem estes quais fossem, quer se tratasse de sintomas patológicos, quer
se tratasse do que ele interpretou no que até então se apresentava como
mais ou menos redutível à vida normal, como o son ho, por exemplo,
foi sempre um desejo" (idem).
Neste ponto, Lacan chama a nossa atenção para a satisfação do
desejo no sonho e de como Freud articulou o que, no sintoma, existe de
semelhante à satisfação. Essa satisfação é semelhante ao Wuncherfüllung
dos sonhos, "só que é uma satisfação cujo caráter problemático é muito
acentuado, uma vez que é também uma satisfação às avessas" (idem).

Sobre o sintoma analítico


A partir desta pequena introdução, podemos afirmar que o sintoma é
uma solução para evitar a castração, e que essa solução é uma outra
forma de dizer que o sujeito "goza com o desejo como desejo" (idem).
Podemos sustentar esta afirmação dizendo que o sujeito nasce como
efeito de um menos, um menos de gozo que advém da extração que o
significante opera no campo do Outro. Esta operação instala o que po­
deríamos denominar de um certo mal-estar, um certo incômodo que
gerará um movimento de busca incessante, ali mesmo onde algo se
perdeu, com a intenção de restituir o status quo anterior, de estabelecer
uma normatização. É a partir deste 'menos', portanto, que se instala o
que Lacan denominou de automaton - a repetição da impossibilidade
na cadeia significante. Essa repetição, ou seja, isso que "não cessa de se
escrever", é uma necessidade que vem indicar a impossibilidade apon­
tada pelo próprio recalque originário ( Urverdrangung) . Contudo todo
este movimento só se sustenta porque há pontos de encontro que ace­
nam para a possibilidade de uma certa satisfação.
Assim, entre o que "não cessa de não se escrever" (o impossível) e
o que "não cessa de se escrever" (o necessário) há um sujeito que, como
nos diz Freud, tem que se haver com um dispêndio de energia adicional
para lutar contra o desprazer ( Un lust) ou sofrimento (Leiden) que esta
situação pode criar. Sendo isso o que todo ser falante tem como funda­
mento de sua estrutura, existe, ainda conforme Freud, uma precondição
para a formação de sintomas em todos nós. O sintoma, portanto, pode
ser definido como "o resultado de um conflito, e que surge em virtude
de um novo método de satisfazer a libido (libidobefriedigung) . As duas
forças que entraram em luta [que poderíamos aqui representar pelos
dois movimentos: "não cessa de não se escrever" e "não cessa de se
escrever"] encontram-se novamente no sintoma e se reconciliam, por

60
Sintoma: satisfação às avessas

,1 •,•, 1 1 1 1 dizer, através do acordo representado pelo sintoma formado" (Freud


l ' J 1 7 : 4 19-20). Em outras palavras, é possível dizer que este "acordo" é
1 1 1 1 1 a negociação feita de tal forma que o sujeito diria assim: " p ago um
1 1 1 <·i.;o para não saber que existe algo que 'não cessa de não se csn('vcr ' , e
1",I<' preço é uma satisfação substitutiva que, ao mesmo tempo e111 q11e pro-
1 , ,ca um certo desprazer (Unlust), é onde posso obter minha sal is Lt i.; ;io".

O sintoma é, pois, uma tentativa de criar uma harmonia ;ili o n de


1 1 1 1 1 menos se instalou, provocando uma desarmoni a.
É neste ponto que veremos uma discordância íu 11da111e11 tal entre
, ,, conceitos de sintoma para a medicina e para a psicanálise. Se por um
Lido o saber médico se refere à noção de harmonia como um objetivo a
•,n alcançado quando estamos diante de um sintoma - este, portanto,
., parece como o que perturba e destrói a harmonia - o sentido do sinto-
1 1 1 a mudará se nossa referência não for mais a de uma harmonia que ele
vem perturbar, mas sim a de que ele é harmônico a uma falta, a um
1 1 1cnos que, na psicanálise, costumamos chamar de castração. J.-A. Miller
( 1 993) nos lembra que sin, o radical da palavra sintoma, quer dizer
\Í11tese, reunião, conjunto, mas também o que vem junto, o que coinci­
d e . Assim, o sintoma é o que faz coincidir duas coisas, como já nos
d i zia Freud: a castração, que podemos dizer que é "o ser do sintoma"
( i dem), e o que Lacan vem denominar de "envelope formal do sinto­
ma", seu invólucro significante. Este termo, utilizado por Lacan no
1 cxto "De nossos antecedentes" (1966), é retomado a partir da psiquia-
1 ria clássica de Gatian de Clérambault, e da "necessidade que levou
l ,acan à psicanálise" (Miller 1993) por ocasião de seu famoso caso Aimée:
" Pois a fidelidade ao envelope formal do sintoma, que é o verdadeiro
l raço clínico do qual tomamos o gosto, nos leva a este limite onde ele
retorna em efeitos de criação" (Lacan 1966: 70).
Partindo desta frase de Lacan, Miller faz um extenso comentário
cm "Reflexões sobre o envelope formal do sintoma " e nos chama a
atenção para os dois eixos do sintoma: 1) se há um núcleo que podemos
denominar de castração, de sofrimento, de "mais de gozo" em conseqüên­
cia do "menos de gozo" da operação significante, há no sintoma 2) uma
mensagem endereçada ao Outro e que espera uma decifração.
Em outras palavras, a formação do sintoma parte de um 'menos'
que se instala como conseqüência da extração do objeto a pela operação
significante. Essa situação faz surgir uma intenção de significação que
produz uma resposta. Por ser da ordem do impossível, esta resposta
relança a busca de significação, que, por sua vez, é a "transformação da
queixa que emerge do fundo do desprazer em mensagem [... ] fazendo

61
Os circuitos do desejo na vida e na análise

existir o sujeito de uma maneira nova no campo do Outro, e sob forma


constituída" (Miller 1993). No entanto, quando se formata uma queixa
ou, como nos diz Michel Silvestre (199 1:23), quando fazemos coincidir
uma queixa e um sofrimento, percebemos que ela se desnatura, pois há
o que se pode dizer e o que não se pode dizer pela própria impossibili­
dade de o significante dizer tudo. Esta dificuldade é o que faz com que
a lógica própria ao Outro, ao estabelecer esta relação entre queixa e
sofrimento, congele e fixe a queixa em uma certa cena, fazendo existir
essa "máscara do sintoma". Em outras palavras, trata-se aqui de um
certo percurso pulsional expressando uma certa correlação entre o su­
jeito e "um dos objetos que havia anteriormente abandonado", pois "a
libido, induzida a tomar o caminho da regressão pela fixação que dei­
xou atrás de si nesses pontos do seu desenvolvimento" (Freud 19 17),
determina os pontos em que coincidem2 queixa e sofrimento, gozo e
mensagem, castração e envelope formal.
Quando alguém procura um analista, espera-se que ele faça um
relato de sua infelicidade. Nesse relato, podemos então perceber que há
uma harmonia, um arranjo que faz existir uma satisfação no mesmo
ponto em que o sujeito se queixa de dor. Este é o paradoxo que Lacan
define em Televisão quando nos diz que a demanda "daquele que sofre"
quer dizer que "o sujeito é feliz". E continua: "É mesmo sua definição já
que ele não pode nada dever senão ao momento oportuno (bonne heur),
à sorte (/ortune), dito de outra forma, e todo o momento oportuno é bom
para o que o mantém, ou seja, para que ele se repita" (Lacan 1973 :40).
Tudo o que desenvolvemos até aqui pode nos levar a afirmar que
"o sintoma analítico, dado que formatado no campo do Outro, consti­
tuído como o que se instaura da cadeia significante, tem estrutura de
ficção" (Miller 1993). Isto é muito bem demonstrado pelo sintoma his­
térico, uma vez que, na histeria, encontramos o sintoma como "ser de
verdade" do sujeito, pois ele é deslocado desde baixo e posto em evi­
dência. Em outras palavras, ela faz o objeto a como real vir para o lugar
da verdade.
Convém acrescentarmos aqui que a formação de um sintoma fun­
damental para o tratamento analítico acontece exatamente quando, ao
instalar-se como ser de verdade, o sintoma promove a construção de
uma suposição de saber no campo do Outro. Ora, se partimos da pre­
missa estrutural de que não há relação entre o sujeito e o Outro, o

2 "O sintoma é o retorno, por via de substituição significante, disto que está no

final da Trieb, da pulsão corno sendo seu fim". Lacan (1 959-60).

62
Sintoma: satisfação às avessas

� 1 1jeito está desde sempre afastado de sua verdade. Portan t o o laço entre
o sujeito e o Outro torna-se possível pelo sintoma. E se faz, com a
criação de um "ser de saber" ali onde a verdade lhe está vetada.
Estrutura de ficção, queixa, sofrimento, não importa como a ele
1 10s referimos, a verdade é que o sintoma diz que algo não vai bem e o
"clamor da humanidade" sempre será a favor do apaziguamento do mal­
l'star que isso provoca. No entanto, mesmo clamando pelo apazigua­
mento, pela harmonia, o sintoma continuará sendo o que existe de mais
particular em cada um e, por outro lado, o que existe de mais real.
O sintoma é o que vai, paradoxalmente, impedir que o sujeito seja
.1bsorvido pelo discurso de seu tempo. Há aqui uma questão de ordem
prática. É fundamental que, ao escutarmos o relato da infelicidade de
alguém, tenhamos em conta que esta infelicidade é o que ele tem de
mais particular: "Eu sou assim", nos dizem de várias maneiras os candi­
datos à análise. Talvez por isso é que, ao diferenciarmos o lugar do
;malista do lugar do terapeuta, dizemos que nosso compromisso não é
com o movimento humanitário, que espera, com seu clamor, uniformi­
zar o que há de mais particular. Nosso compromisso é com a particula­
ridade de cada um. Pôr-se a serviço deste compromisso supõe um dese­
jo que podemos qualificar de inumano. Talvez por isso Lacan, em "Nota
Italiana"\ tenha nos dito que o analista é o rebotalho da humanidade
porque quer saber disso que todos qµerem esquecer. Em outras pala­
vras, Lacan afirma que o mal-estar na civilização consiste em gozar da
renúncia ao gozo; ao estabelecer uma solução de compromisso entre as
duas forças opostas em conflito, o sujeito renuncia a um gozo possível
por acreditar que o Outro quer retirar-lhe o que ele tem de mais precioso:
seu pequeno nada.
O sintoma, portanto, é o mais particular de cada um, é gozo e
mensagem a ser decifrada, submetida ao que costumamos chamar de
horror da castração. É exatamente no ponto em que o "menos", a cas­
tração, se inscreve, que encontramos a particularidade do sujeito: o
traço unário (Einzeger Zug). O traço unário expressa o mais particular
de cada um, denominado por Lacan de "estilo" e passível de ser trans­
mitido. O estilo é o objeto a marcado pelo traço unário, pela incidência
do "dizer verdadeiro" que deixou uma "ranhura" indelével. É essa

3
"Precisaria que o clamor se acrescentasse com uma pretensa humanidade, para
o qual o saber não está acabado, pois ela não o deseja. Não há analista, senão
quando esse desejo lhe vem, ou seja, já por isso ele é o rebotalho da dita
humanidade". Lacan (1 973 : 6).

63
Os circuitos do desejo na vida e na an.íl isc

ranhura do dizer verdadeiro que o sintoma tenta preencher, a partir da


cena em que os significantes, ordenados a partir desse mesmo traço (Zug),
instituem como sendo o quadro da fantasia fundamental, a "máscara do
sintoma", esse "pouco de realidade" que propicia um laço entre o sujeito
e o Outro. O final de análise passa por este traço unário, por essa marca
que possibilitará a identificação ao sintoma como final possível.

A satisfação do sintoma
Como Lacan nos lembra, foi em relação ao sonho que Freud falou de
satisfação do desejo e que há no sintoma algo que se assemelha a essa
satisfação.
Freud partiu do sintoma histérico analisado como um sonho. Tra­
ta-se de uma formação de compromisso, do retorno do recalcado sob a
forma de uma deformação em que se expressam tanto o recalcado como
a defesa. A linguagem do sintoma é a do processo primário, a lingua­
gem do inconsciente, que tem como suporte representações substitutivas
para dizer o que não pode ser dito, para realizar um desejo recalcado,
para produzir uma satisfação sexual. É a "máscara do sintoma" porque
o desejo "se apresenta sob uma forma ambígua, que justamente não nos
permite orientar o sujeito em relação a esse ou aquele objeto da situa­
ção" (Lacan 1957-8 : 3 3 7).
O sintoma substitui desejos infantis recalcados, trazendo a marca
tanto da defesa como do desejo. Tomado como equivalente ao texto do
sonho, o sintoma fala e realiza um desejo de maneira deformada por
meio do mecanismo de substituição de uma representação por outra. É
uma metáfora e, além disso, parte de uma verdade que não deixará de
falar enquanto não for escutada. Essa verdade é a verdade de um desejo,
isto é, o sintoma vai "no sentido do reconhecimento do desejo"
(ibid. : 3 3 8), sendo portanto efeito de verdade.
Lacan, entretanto, nos lembra a errância do desejo, sua excentrici­
dade em relação à satisfação. Ele introduz na relação do desejo com a
satisfação a dialética da demanda já que a demanda sempre pede mais
do que a satisfação. Apesar de almejar a satisfação da necessidade e por
estar articulada em termos simbólicos, a demanda está além das satisfa­
ções para as quais apela; neste sentido, é demanda de amor que visa o
ser do Outro e almeja "que o Outro dê o que está além de qualquer
satisfação possível, seu próprio ser, que é justamente o que é visado no
amor" (: 418). É entre o apelo da satisfação e a demanda de amor que o
desejo se situa e por isso, sempre ultrapassa qualquer resposta no nível
da satisfação.

64
Sintoma: satisfação às avessas

Quanto ao sintoma e sua relação com a satisfação, Freud diz que


,· lt- é uma satisfação substitutiva estranha porque não produz prazer e
1 , 1 1 1 1 a a forma de uma satisfação compulsiva e não subjetivada que, po-
1 , · 1 1 1 , resiste e não quer ser abandonada (Freud 1926: 1 16).
Nesta passagem Freud fala sobre os dois princípios do fu 11cio11a-
1 1 1 c 11to mental, o do prazer e o da realidade, concluindo que o que é
1 , razer para um sistema gera desprazer para o outro. Por isso o sujei to
•.1 1 porta o desprazer do sintoma para não lidar com um desprazer ain­
, 1 ., mais penoso: "o tipo de satisfação que o sintoma consegue tem em
·. 1 muitos aspectos estranhos ao sintoma. Podemos desprezar o fato de
, p i e o sintoma se constitui em algo irreconhecível para o indivíduo,
' 1 1 1e, pelo contrário, sente a suposta satisfação como sofrimento e se
q n eixa deste. Essa transformação é uma função do conflito psíquico
•, oh pressão, do qual o sintoma veio a se formar" (Freud 19 17: 427).
1\ l ém disso, os sintomas não se parecem com nada do que costuma-
1 1 1 os obter satisfação.
Ainda nessa conferência, ele propõe um modelo para a formação
d o sintoma neurótico a partir da libido insatisfeita. Como desenvolvido
., cima, a libido, repelida pela realidade a partir de uma privação
1 1 1 suportável, leva o sujeito a uma regressão através do caminho da
L1 11tasia, buscando outras saídas para a satisfação. Se essas regressões
despertam a objeção por parte do eu, a neurose advém desse conflito.
/\ libido retira-se do eu, chega às fixações preexistentes e obtém satis­
lação. Assim o sintoma emerge como um derivado divorciado da rea­
l i zação de desejo libidinal inconsciente, com dois significados contra­
d itórios, o que Freud chama de uma satisfação restrita, que mal se
reconhece como tal.
Posteriormente, Lacan diferenciará sintoma e fantasia. No texto
de Freud, contudo, já há indicações de que o sintoma, na condição de
demanda dirigida ao Outro, dá início ao trabalho analítico e conduz às
fixações, à fantasia.
Em "Inibição, sintoma e angústia" (1926), Freud considera o com­
plexo de castração como o referente central do sintoma, para dizer que
este último constitui uma tentativa de fuga diante de um perigo pulsional.
Ele é criado para tirar o eu de um perigo: o perigo da castração.
Em "Além do princípio do prazer" (1920), Freud retorna à ques­
tão da repetição do sintoma para esclarecer que a pulsão reprimida
nunca deixa de aspirar à satisfação: todas as formulações substitutivas
são insuficientes para cancelar sua tensão e a diferenciação entre o pra­
zer da satisfação obtida e a satisfação pretendida gera um fator "pulsional".

65
Os circuitos do dcsqo 1 1 :1 v i ,b e na análise

Na verdade o sintoma, que se ria u ma satisfação, não satisfaz4 de


modo algum. Se o sintoma inicialmente é uma defesa do sujeito contra
o gozo, ele torna-se o representante do gozo que ameaça o sujeito. Há,
portanto, um fracasso estrutural em se metaforizar o gozo, sendo o
sintoma a suplência desse fracasso. É importante lembrar que o sintoma
está fora de sentido, e é esse fora de sentido de uma verdade recalcada o
que causa a sua repetição. É uma mensagem que acaba em um sem
sentido, que anuncia um desejo inconsciente e desemboca em uma cau­
sa que está fora do significante e que o sintoma repete. Quanto mais o
sujeito insiste na metáfora de seu sintoma, mais este fora de sentido
insiste. O sentido do sintoma não é produzido pela metáfora; ele pode
ser apenas deduzido de toda a cadeia significante do sujeito. Na verda­
de, o sintoma tenta desarticular, por meio de uma metáfora, a fuga do
significante.

Satisfação às avessas
Cabe então perguntar se o sintoma é uma maneira de se satisfazer às
avessas. O que seria a satisfação "direita", não às avessas? Se o sintoma,
como propôs Miller em suas conferências em São Paulo, em abril de
1997, substitui-se à ausência da relação sexual, a satisfação "direta" é a
satisfação da relação sexual, que no entanto não existe. O sintoma como
satisfação às avessas é, portanto, necessário: se a não relação sexual é um
atributo do ser falante, não há ser falante sem sintoma, sem satisfação às
avessas. O sintoma é algo necessário, ele não cessa de se escrever no lugar
da relação sexual que não existe. É algo que facilita a vida dos neuróti­
cos. O sintoma, como o sonho, satisfaz o desejo, como propõe Lacan
em O Seminário, livro 5. O desejo que se manifesta no sintoma sob a
máscara da fantasia é um desejo perverso. É isto o que Miller formula ao
dizer que o sintoma facilita a vida, quase definindo-e como a fantasia:

[$ f- s(A) ➔ a ]

4 " [. . . ]
o uso da função da pulsão não tem para nós outro valor senão o de pôr em
questão o que é da satisfação. [ ... ] É claro que aqueles com quem temos que tratar,
os pacientes, não se satisfazem, como se diz, com o que são. E, no entanto,
sabemos que tudo o eles são, tudo o que eles vivem, mesmo os seus sintomas,
depende da satisfação. Eles satisfazem algo que vai, sem dúvida, ao encontro
daquilo com o que eles poderiam satisfazer-se, ou talvez melhor, eles dão satisfa­
ção a alguma coisa. Eles não se contentam com seu estado, mas, estando neste
estado tão pouco contentador, eles se contentam assim mesmo. Toda questão é
justamente saber o que é esse se que está aí contentado" Lacan. (1964: 158).

66
Sintoma: satisfação às avessas

Dito de outro modo, com a fórmula acima Miller indica uma


definição ampliada do sintoma, uma definição que inclui a fantasia.
Em "A direção do tratamento e os princípios de seu poder", Lacan
diz que a sobredeterminação dos sintomas é estritamente concebível na
estrutura da linguagem. Nos sintomas neuróticos, isto "quer dizer que,
1 1 0s efeitos que respondem num sujeito a uma determinada demanda,
vêm interferir os de uma posição em relação ao outro (aqui, o outro,
seu semelhante) que ele sustenta enquanto sujeito" (1961 :643). Esta afir­
mação, " [ ... ] que ele sustenta enquanto sujeito", significa que a lingua­
gem lhe permite considerar-se como o maquinista ou o diretor de cena
da captura imaginária da qual, de outro modo, ele seria apenas a mario­
nete viva.
Mais adiante, neste mesmo texto, Lacan diz que "é, pois, a posi­
ção do neurótico em relação ao desejo, à fantasia, que vem marcar com
sua presença a resposta do sujeito à demanda, a significação de sua
necessidade" (ibid.:644), que provém do Outro - s(A), como escreve­
mos no grafo do desejo - uma vez que dele depende que a demanda seja
atendida. "Mas a fantasia só chega a isso por se encontrar na via de
retorno de um circuito mais amplo, aquele que, levando a demanda aos
limites do ser, faz com que o sujeito se interrogue sobre a falta em que
ele aparece a si mesmo como desejo".

(S ➔ a) --- d

j,
s(A)

O sintoma, satisfação às avessas - como o sonho é para Freud a


realização de desejo - é para o sujeito uma forma de sustentar o seu
desejo com a máscara da fantasia.
Patrick Monribot sustenta que, em seu percurso "entre a travessia
da fantasia e a identificação final com o sintoma, decorreu o tempo
necessário ao levantamento do desmentido", ou recusa da castração.
Esta passagem nos reenvia ao início do capítulo XVIII de O Seminário,
livro 5, no qual Lacan nos lembra o clássico ''Análise terminável e inter­
minável", de Freud. Para quê? Para nos dizer dos limites do tratamento

67
Os circuitos do desejo na vida e na análise

analítico, tais como propostos por Freud: Penisneid para as mulheres,


repúdio da feminilidade para os homens. A mulher, como vimos com
os pós-freudianos, mascara o Penisneid com o gozo fálico (ver os exem­
plos de H. Deutsch e Karen Horney5 ) ou com a mascarada, na qual se
mostra castrada, quando na verdade crê ter o falo (ver o texto de Joan
Riviere). Do lado do homem, há a recusa ou desmentido da castração e
os traços de perversão. "O levantamento do desmentido é uma etapa
absolutamente crucial para que se possa elaborar uma conclusão sinto­
mática demonstrável. A travessia da fantasia é sua etapa preliminar in­
dispensável", diz Monribot.

Sintoma e fantasia
Vimos que Freud ligou intimamente o sintoma como satisfação à fanta­
sia. Em ''A direção do tratamento", Lacan retoma essa relação. O sinto­
ma, diz ele, é efeito de significação. Dois tipos de efeito interferem nessa
significação. De um lado, os efeitos que respondem num sujeito a uma
demanda fe ita pelo Outro, ou seja, o sintoma. Por outro, os efeitos que se
produzem não no sujeito, mas sim os efeitos do sujeito misturados ao
sintoma. É nesse nível que há incidência da fantasia no sintoma.
A tese de Lacan é de que o sujeito se sustenta no nível de seu
desejo pela fantasia em seu uso fundamental, e de que a fantasia contém
a causa do sintoma, escondendo-a. Por isso o sujeito se queixa daquilo
que, na sua fantasia, o faz gozar.
A fantasia é uma realização, e não apenas uma formação do in­
consciente, como nos lembra François Leguil. O sujeito se realiza nela
em sua própria divisão. A fantasia deixa o sujeito profundamente insa­
tisfeito. É neste sentido que podemos dizer que ela é uma solução neu­
rótica para o desejo.
Estar cada vez mais insatisfeito com a sua fantasia é o que faz com
que o gozo interessado nessa fantasia possa interrogar o sujeito no sinto­
ma. No grafo, isso é indicado de maneira topológica : o sintoma aparece
logo após a fantasia.
No seu sintoma, o sujeito se satisfaz com uma falta, uma falta-a­
ser, e queixa-se de uma falta de gozar. A satisfação que a ilusão do
sintoma oferece decepciona o sujeito bem mais do que o gozo que ele
espera obter de sua fantasia.

1 Nos textos "The signifiance of masochism in the mental life of women" e "On
the genesis of the castration-complex in women", comentados por Lacan em
O Seminário, livro 5, no capitulo ''As insígnias do ideal".

68
Sintoma: satisfação às avessas

A relação do sintoma com a fantasia se modifica ao l ongo do


tratamento. No início, o sujeito se satisfaz com a pura queixa, satisfaz­
se com um gozo com a condição de dele se privar, recalcando-o. I .cguil
diz que a psicanálise faz com que esse sintoma, que não era mais do que
uma ilusão, torne-se real e que a fantasia, de início real, se reduza a
uma ilusão (Leguil 1993).
Se Lacan inicialmente toma o sintoma no registro da interpreta­
ção, ao final de sua obra ele o considera em seu valor de real. Como
afirma Eric Laurent (1996), há, por um lado, o estatuto do sintoma
como fornecedor de benefícios secundários vindos da recuperação do
gozo revelado no sintoma por meio da fantasia; por outro, a relação do
sintoma com a pulsão, a ênfase incidindo sobre a identificação do sujei­
to com seu sintoma. Aqui há mais um benefício primário, o saber fazer
do sintoma ao qual o sujeito se reduz.

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70
Leituras do desejo
ou itinerários de
O Seminário, livro 5, de Lacan
Sonhos, lapsos, chistes . . .
o inconsciente e suas formações
Ronald Porti llo
[Caracts l

Partirei de uma ilusão bastante comum ao gênero humano: a ilusão que


consiste em pensar que somos nós que falamos, que utilizamos a lingua­
gem como se fosse o sujeito, cada sujeito, que dominasse sua língua.
Dessa ilusão surgiu uma outra que lhe é correlata e sobre a qual repousa
o que se pode chamar de a teoria da comunicação: a suposição de que é
o emissor quem envia a mensagem.
Com Freud, a psicanálise veio mostrar o contrário. Não é o sujei­
to que fala uma língua, sua língua; ao contrário, é ele quem é falado
pela língua. Da mesma forma, é o receptor quem envia a mensagem
àquele que em seguida a emitirá. A descoberta do inconsciente por
Sigmund Freud não é nada mais que a constatação de que o sujeito é
falado e que o Outro é o verdadeiro emissor de toda mensagem.
Quando um psicanalista convida um sujeito para associar seus
pensamentos livremente na experiência analítica, o sujeito começa a
desvelar que é ele mesmo quem é falado pela língua. Ele começa a
descobrir que há palavras, termos, que o determinaram desde sempre.
Por meio de um sujeito fala uma outra coisa, um conjunto de elementos
de uma língua que não somente comanda seus pensamentos, como tam­
bém sua forma de agir, de estabelecer relações, de amar, em suma: seu
modo de ser. A essa Outra coisa que tem tantas incidências sobre nós
Freud nomeou "inconsciente".
No que diz respeito à comunicação, foi Jacques Lacan quem der­
rubou a concepção clássica dessa teoria dizendo que é o emissor que
reenvia sua própria mensagem de forma invertida, ou seja, que é o Ou­
tro, o receptor, quem determinará o sentido daquilo que queremos di­
zer. É ele quem fundamentalmente decide o sentido da nossa mensa­
gem, a significação do que se diz. Falar a um outro não implica saber o
que se está dizendo: é o Outro que pode sancionar, validar, homologar
os ditos de um sujeito. Lacan denomina esse receptor da mensagem, o
interlocutor, de Outro: o Outro.
Podemos conjugar esses dois aspectos que sublinhamos e dizer
com Lacan que o ser humano é falado pelo Outro. Daí a invenção, a
Os circuitos do desejo na vida e na análise

criação feita por Lacan da expressão parlêtre: o ser falado pelo Outro.
O parlêtre sempre diz algo diferente do que ele quer dizer e por vezes
demanda ser entendido além do que diz. A função do psicanalista é
exatamente entender o parlêtre além do que ele diz.
A descoberta inicial de Freud, descoberta magnífica e de grande
repercussão no mundo contemporâneo, foi a de considerar fenômenos
situados além do que queremos dizer ou fazer. Ele incorporou à refle­
xão científica um registro composto de elementos que ultrapassam o
mundo consciente do sujeito. São elementos marcados pela incapacidade,
pelo deslocamento, pelo pouco sentido.
Freud empregou todos os seus esforços para alcançar uma signifi­
cação para esses fenômenos atingidos pela negação do sentido. Ele pen­
sava que todos os fenômenos de natureza inconsciente estavam relacio­
nados com a linguagem e que eles podiam ser apreendidos nos momen­
tos de esvaecimento do discurso, marcados pela queda, pela falha, pela
falta, pelo esquecimento, pelo deslocamento do sentido. A esses modos
de expressão do inconsciente identificados por Freud como o sonho, o
esquecimento, o chiste, o ato falho e o sintoma Lacan denominou de
formações do inconsciente.
Em outras palavras, às formações do inconsciente, caracterizadas
pela falta de sentido, Freud atribuiu uma significação. Ele estabeleceu o
lado afirmativo, positivo, no traço, no caráter negativo do sentido, ou
seja, para Freud, o sentido deve ser buscado além do dito formal, do
dito consciente. O sentido inconsciente reside nessas formações que
aparentemente não têm sentido.
Uma maneira particular, original, de abordar a linguagem teve
início com a descoberta de Freud. Dizer mais do que se sabe, não saber
o que se diz, dizer outra coisa do que se diz não são, para Freud, defei­
tos da língua. São propriedades inevitáveis, incontornáveis, do ato de
falar, ato que ele equipara ao funcionamento do inconsciente.
Uma tese fundamental de Lacan deriva dessa formulação: o
significante, termo que designa a palavra falada ou escrita, e o significa­
do (isto é, a significação do que se diz) não são equivalentes, não se
correspondem. É um engodo acreditar que o significante é utilizado
para dizer o que eu quero dizer. Sempre há um desacordo entre falar e
querer dizer, entre o que eu digo e o que eu quero dizer.
A tese de Lacan, contrariamente ao que afirmava Ferdinand de
Saussure, pai da linguística estrutural, é a de que o significado é um
resultado, um efeito do significante, ou seja, as palavras que eu utilizo
não servem para dizer o que eu quero significar. Ao contrário, o que eu

74
Sonhos, lapsos, chistes . . . o inconsciente e su;is lorma,·ôcs

quero exprimir é determinado pelos significantes de m eu discurso.


A significação do que eu quero dizer é produzida pelos jogos de permu­
tação de significantes. O sentido do meu discurso, sancionado cm últi­
ma instância pelo Outro, surgirá de duas formas de funcionamento d o
significante. Seguindo Quintiliano, Lacan nomeou-as d e metáfora l' d!'
metonímia 1 • Enquanto a metáfora gera sentido, a metonímia produz
uma redução, urna subtração de sentido.
É preciso saber que tanto na adição metafórica quanto na subtra­
ção metonímica do sentido sempre há um mal-entendido. Este é um
fato próprio à estrutura da linguagem, decisivo para a problemática da
comunicação. O inconsciente freudiano, por apresentar a estrutura de
uma linguagem, é um tecido de mal-entendidos, que foram inscritos no
sujeito e que determinaram, de urna maneira singular, o que podemos
chamar de o seu destino. A existência de mal-entendidos decorre do
intervalo estrutural presente na relação do significante com o significado;
sempre há urna inadequação entre os dois.
Esse desacordo pode ser expresso em termos quantitativos de duas
formas, logicamente relacionadas: ora há urna superabundância de
significantes relacionados a significados deficitários, ora não há
significantes suficientes para aquilo que se quer significar. Lacan optou
pela última: sempre falta ao menos um significante para representar o
significado, o que se quer significa,;. E o significado por excelência,
aquilo que deve ser significado, é o sujeito. Isso significa que há urna
impossibilidade de dizer tudo sobre o sujeito, que sempre falta um
significante para representá-lo. Daí o mal-entendido. Todo mal-entendi­
do é um mal-entendido sobre o sujeito, dado que não se pode dizer tudo
sobre ele. Há urna falta fundamental na linguagem para explicar o sujei­
to, e a partir de Freud podemos dizer que há uma falta fundamental na
linguagem para explicar o sujeito do inconsciente.
Por meio da metáfora, dado que ela substitui um significante por
outro, a língua tenta acrescentar um mais de significado, um mais de
significação sobre o sujeito. Por sua vez, a metonímia torna a parte pelo
todo, isto é, um significante é situado ao lado de outro, meio pelo qual
subtrai-se significação. Tanto em um caso como em outro, seja por ex­
cesso, seja por falta, a metáfora e a metonímia são mecanismos pelos
quais a língua tenta encontrar uma representação significante do sujeito.
O resultado será sempre decepcionante.

1 A esse respeito Lacan acompanhou os trabalhos de Roman jakobson.

75
Os circuitos do desejo na vida e na análise

As formações freudianas do inconsciente são apresentadas por Lacan


como tendo uma estrutura de linguagem. E se Freud fala de condensação
e deslocamento como mecanismos que estão na base da constituição
das expressões do inconsciente, Lacan os traduzirá respectivamente como
metáfora e metonímia. Podemos dizer com Lacan, portanto, que as for­
mações do inconsciente estão situadas na franja do desacordo existente
entre o significante e o significado. Essas formações surgem como uma
expressão do inconsciente para veicular uma representação significante
do sujeito.
É surpreendente que Freud procure a representação do sujeito, do
sujeito do inconsciente, em uma série de fenômenos que têm um traço
comum : a ausência de sentido. Na primeira parte da sua obra, Freud
centra sua teoria do inconsciente nesses fenômenos sem sentido, que
constituem as formações do inconsciente. Ele faz surgir uma dimensão
obscura do sentido, determinado pelo significante, por meio do que
Lacan denomina de cadeia significante. Porém não é apenas o não senti­
do que é determinado dessa maneira: também o sentido certamente o é.
Uma parte de não sentido sempre acompanha, como uma sombra, o
surgimento do sujeito.
Que tratamento Freud propôs para as formações do inconsciente?
Foi Lacan quem nos deu a chave da resposta: tratar as formações do
inconsciente como um palimpsesto.
A célebre definição lacaniana do inconsciente como um capítulo
censurado ou apagado da vida do sujeito remete à qualificação do in­
consciente como um lugar, o lugar de algo a que falta sentido, ou antes,
o lugar em que a continuidade do sentido é interrompida. Para Lacan, o
inconsciente designa uma descontinuidade, fundamentalmente uma
descontinuidade do sentido. A esse respeito a experiência analítica,
estabelecida essencialmente sobre a interpretação do ana!ista, de certa
maneira consiste em estabelecer a continuidade do sentido interrompi­
do. Isso explica por que Lacan definiu a estrutura do sujeito exatamente
como a do inconsciente, ou seja, como uma descontinuidade. A partir
dessa formulação, é preciso diferenciar o sujeito do enunciado - ou
seja, o sujeito que fala, que diz 'eu' no seu discurso - e o sujeito da
descontinuidade do sentido, o sujeito do inconsciente propriamente dito,
ou seja, o sujeito da enunciação.
O que provém do inconsciente tem a ver com a existência de uma
instância do dizer, a enunciação, que não implica qualquer 'eu' do enun­
ciado. Trata-se de um dizer que só se sustenta a partir da ausência do
sentido, o que denota uma falta de significante.

76
Sonhos, lapsos, chistes . . . o inconsciente e suas formações

O não sentido revela que há algo que limitou, que fez obstácu­
lo ao surgimento do sentido, algo que perturbou o próprio ser do
sujeito e que não pode ser totalmente reduzido aos significantes que
são os significantes do Outro, na condição de lugar ou tesou ro dos
significantes.
Há no inconsciente uma falta que se deve à sua estrutura. As for­
mações do inconsciente mostram essa falta, suas manifestações, ao mes­
mo tempo que tentam representar o sujeito. Em outras palavras, as forma­
ções do inconsciente mostram a falha da estrutura da linguagem.
Os significantes são sempre deficitários para representar o sujeito. Não
é preciso crer que essa falta se deva ao apagamento de um significante
qualquer que traria a verdade do sujeito. Produzir, em termos
significantes, o que foi recalcado no inconsciente não é suficiente para
justificar uma formação do inconsciente. Quando se alcança um sentido
para as formações do inconsciente, não importa qual ela seja, isso não
libera o que está por detrás de qualquer expressão do inconsciente: o
desejo. O próprio Freud nos apresenta várias de suas formações do
inconsciente, nas quais nos dá uma aproximação do sentido faltante,
que, segundo ele, só pode produzir um sonho por ter ligação direta com
um desejo recalcado. A metáfora e a metonímia, como já foi dito, pos­
suem uma relação muito estreita com a descontinuidade do sentido. Em
"A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" (1957),
Lacan reúne a adição do sentido da metáfora ao sintoma, assim como a
subtração do sentido da metonímia ao desejo. Quer seja por adição,
quer seja por subtração, o que a metáfora e a metonímia mostram é a
descontinuidade da cadeia significante e de seu efeito de sentido. Como
indicado acima, Lacan denominou a descontinuidade de uma cadeia
significante de sujeito. Ante essa descontinuidade como falta de um
significante, a linguagem procederá à produção de formações do in­
consciente como, por exemplo, o sintoma.
Todas as formações do inconsciente são construídas como metáfo­
ras, ou seja, composições semânticas sob as quais desliza o desejo ex­
presso sob a forma metonímica. É por essa razão que Lacan afirma:
"Não haveria metáfora se não houvesse metonímia", ou seja, não have­
ria formações do inconsciente se não houvesse a metonímia do desejo.
Pode-se ler essa frase a partir do deslocamento metonímico do desejo
recalcado que procura uma resolução, uma satisfação por meio das for­
mações metafóricas do inconsciente. A própria existência do inconsci­
ente encontra sua constituição a partir da condição deslizante
inextingüível do desejo inconsciente.

77
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Associando o desejo inconsciente à metonímia, Lacan o liga a


uma impossibilidade: o desejo é definido pela impossibilidade de rece­
ber um sentido da articulação significante. O desejo resiste a toda signi­
ficação.2
Segundo Freud, as formações do inconsciente implicam uma rea­
lização do desejo, mas isso não quer dizer que o desejo seja inteira e
definitivamente capturado por uma formação inconsciente qualquer.
Talvez ele seja articulado a essa formação do inconsciente em questão,
porém a condição essencial do desejo é a de não ser articulável a nenhu­
ma função significante. É por isso que ele sempre desliza: o desejo é
sempre desejo de outra coisa.
Freud definiu as produções do inconsciente como realizações do
desejo, ou seja, um movimento que tende à reprodução das percepções
que são transformadas em signos de satisfação, para dizê-lo nos termos
do Entwurf freudiano. A realização do desejo só seria encontrada de
maneira alucinatória ou nas formações do inconsciente, incluídos aí os
fenômenos neuróticos. Sabemos que Freud estabeleceu uma estreita re­
lação entre desejo e necessidade, em particular o traço da lembrança
deixado pela primeira experiência de satisfação, que é experimentada -
como sabemos, talvez - de forma alucinatória (Freud 1895).
Lacan, por sua vez, situa o desejo no centro dos desenvolvimentos
freudianos. Há uma dialética do desejo que é totalmente comparável
com o intervalo que há entre o significante e o significado, entre o que
eu digo e o que eu quero dizer. Para Lacan, o desejo é precisamente o
desacordo que existe entre a necessidade e a demanda que veicula essa
necessidade, ou ainda entre o que ele chama de intenção e demanda.
A satisfação, o que se obtém do que se demandou, é sempre deslocada
em relação àquilo que se queria. A esse respeito, pode-se dizer que o
desejo se liga a uma insatisfação, tanto do ponto de vist;:; da demanda
quanto do sistema significante.
Sempre há, portanto, um desacordo em qualquer expressão verbal
não só entre emissor e receptor, entre a mensagem enviada e a recebida,
entre o que se quer dizer e o que se diz, como também entre o que se
demanda e o que se obtém. É uma dimensão marcada pela insatisfação.
Por vezes, porém, surge, apesar de tudo, uma situação de satisfação do
desejo. É o caso das formações do inconsciente, o sintoma neurótico aí
incluído.

2 Lacan o sublinha em "Subversão do sujeito e dialética do desejo" (1 960): "que


o desejo seja articulado, é precisamente por aí que ele não é articulável".

78
Sonhos, lapsos, chistes... o inconsciente e suas formações

Quando a mensagem, sempre insuficiente, chega ao seu destinatá­


rio e o outro pode entender seu para além; quando o outro pode acolher
o lapso, o chiste etc. e os entende para além, o milagre da satisfação do
desejo pode se produzir, como nos ensina Jacques-Alain Miller cm seu
curso ''A orientação lacaniana do Campo freudiano" (1 999).
As formações do inconsciente têm valor de realização do desejo
inconsciente. Tal é o valor atribuído por Lacan ao sintoma como metá­
fora. Os sintomas, tal como as outras formações do inconsciente, têm
por função parar, coagular o deslizamento incessante do desejo realiza­
do sob a forma metonímica da linguagem. Daí a expressão de Lacan
"metáfora natural" a propósito das formações do inconsciente: ela seria
a transição ideal do desejo consentindo ao Outro (Lacan 1 9 57-8). Da
mesma forma para o chiste: Lacan afirma que por causa de uma forçação
o chiste supera a sombra feliz, o reflexo da antiga satisfação da infância.
É claro que para Lacan, e também para Freud, as produções do incons­
ciente implicam uma realização, uma modalidade de satisfação do de­
sejo. Freud considerava que, por meio das irrupções do inconsciente, o
desejo, infantil e habitualmente recalcado, conseguia sua realização.
Esse é o eixo principal utilizado por Freud para explicar as formações
do inconsciente.
Na perspectiva lacaniana, há duas maneiras de estabelecer uma
ligação entre o desejo e os mecanisD)os da linguagem. A metáfora
concerne à fixação do desejo no Outro, ilustrado pelo sintoma e as
demais formações do inconsciente. A metonímia define o desejo como
não fixado, ou seja, como desejo de outra coisa, em permanente
deslizamento. É a versão do desejo como enigma, como x de uma equa­
ção a resolver. Se as formações do inconsciente são consideradas como
respostas, como fixações do desejo, o enigma do desejo veiculado pela
metonímia da cadeia significante constitui a própria essência do desejo.
Esse enigma do desejo tenta encontrar um lugar na experiência analítica.
A interpretação analítica nasceu da natureza do desejo como enigma,
natureza essa que é totalmente solidária à definição do inconsciente.
O inconsciente freudiano é definido pelo fato de ser suscetível à inter­
pretação.
Freud começou pela demonstração de que o sonho é interpretável.
Esse é justamente o título de um de seus trabalhos canônicos sobre o
inconsciente: ''A interpretação dos sonhos" (1900). Este trabalho, "Psico­
patologia da vida cotidiana" (1 901) e "Os chistes e sua relação com o
inconsciente" (19 05) constituem o corpus essencial da demonstração
freudiana da descoberta do inconsciente. Na sua prática psicanalítica,

79
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Freud interpretava o sintoma em termos de desejo recalcado, tendo


estendido sua demonstração às formações do inconsciente.
Podemos nos perguntar qual é a condição para que estas forma­
ções sejam suscetíveis de serem interpretadas. A resposta proposta por
Jacques-Alain Miller em seu curso ''A fuga do sentido" é : que se possa
desvendar nessas formações do inconsciente uma intenção de significação.
É a partir disso que se pode interpretar uma formação do inconsciente,
ou seja, a partir da concepção de que estas formações querem dizer algo.
Como vimos, essa intenção de significação está articulada a uma
impotência funcional no dizer, um impossível de dizer. O querer dizer
das formações do inconsciente é confrontado com um indizível. O re­
sultado é patente: na expressão do inconsciente há sempre um dizer ao
lado (dire à côtê) . Para Lacan, a interpretação analítica é um dizer ao
lado. O inconsciente chega a dizer, mas de uma maneira velada, sempre
de forma disfarçada.
Em seus trabalhos magistrais sobre o inconsciente, Freud partiu
de exemplos tomados fora da experiência clínica, demonstrando que
eles são interpretáveis. É justamente a partir dessa constatação freudiana,
sublinhada por Lacan-\ que J.-A. Miller formulou sua tese sobre o in­
consciente intérprete.
Em outras palavras, para Lacan as formações do inconsciente já são
uma interpretação do inconsciente, uma interpretação certamente cifrada.
Freud catalogava esse tipo de funcionamento do inconsciente como modos
particulares de trabalho. Seus traços essenciais podem ser apreciados
em toda série de fenômenos do inconsciente. Eles são relacionados por
Freud às condensações e formações de compromisso em que se apresenta
a mesma situação: um pensamento inconsciente, diz Freud, consegue se
exprimir por caminhos inéditos, por meio das mais estranhas associa­
ções, chegando a modificar outros pensamentos. Freud sustenta que o
absurdo mais acentuado ou o erro presente em um sonho produzem-se
da mesma maneira que os absurdos ou erros correntes de nossa vida
cotidiana, como é o caso dos lapsos, dos esquecimentos de nomes pró­
prios, de palavras estrangeiras ou de frases, da mesma forma que os
tropeços no dizer, as ações sintomáticas fortuitas ou os atos falhos.

3
Uma frase de O Seminário, livro 1 1 : os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (1964) apóia essa formulação deduzida da elaboração freudiana:
"A interpretação [ ... ] não faz senão recobrir o fato de que o inconsciente [ . . . )
através das suas formações, sonhos, lapsos, chiste ou sintoma j á procedeu à
interpretação".

80
Sonhos, lapsos, chistes . . . o inconsciente e suas formações

O mesmo acontece com os sintomas neuróticos: eles retomam o


mecanismo presente nos sonhos e nos atos falhos do cotidiano. O caráter
comum a todos os casos consiste em que os fenômenos inconscientes
são a expressão de um material psíquico que foi recalcado, mas que 11:1 0
foi totalmente destituído de sua capacidade de expressão. As forn1açües
do inconsciente são o resultado de um processo de recalque incompleto.
Muito precocemente, Freud observou a analogia existente entre
sonho e sintoma. Os dois respondem à idéia de uma realização de dese­
jos inconscientes, isto é, recalcados, o que é explicado em "A interpre­
tação dos sonhos". Logo após esse texto, "A psicopatologia da vida coti­
diana" (190 1) faz a ligação entre sonho, sintoma, lapso, esquecimento e
atos falhos. A estrutura desses fenômenos remete ao mesmo processo: o
desejo recalcado deve ser satisfeito por meio de seu intermediário. Em
"Os chistes e sua relação com o inconsciente", Freud realiza um estudo
bastante meticuloso do trabalho, isto é, do Arbeit do chiste, do qual ele
chega a demonstrar sua homologia com o Traumarbeit, o trabalho do
sonho. O trabalho do sonho também é homólogo ao trabalho das de­
mais formações do inconsciente. Freud demonstra, então, que tanto no
chiste quanto no sonho o que está em jogo é a técnica do significante.
No livro sobre os chistes, há um elemento dentre os elementos do
sonho que deve ser distinguido: o processo de condensação, de metáfo­
ra; como Lacan mostrou, é ele que tem o.parentesco mais próximo com
aquele utilizado pela técnica do chiste, sendo que este toma um atalho
e inventa formulações substitutivas com o mesmo caráter. A condensação
pode trazer produtos mistos de pessoas e objetos presentes nas imagens
do sonho, e que são reconduzidos às palavras que a análise pode decom­
por. Em outros casos, a condensação procede pela via de similitude
entre pessoas ou objetos, a não ser quando um traço acrescentado ou
modificado provenha de outra fonte, diferente daquela do significante.
Tanto o sonho quanto o chiste trabalham por meio da condensação
produzindo misturas e similitudes imperfeitas. Daí a conexão direta
feita por Freud entre o trabalho de um e de outro. A relação do Witz
com o inconsciente na elaboração freudiana passa pelo sonho.
De maneira geral, o trabalho do sonho é o conjunto dos processos
de modificação que participaram da passagem de pensamentos oníricos
latentes a sonho manifesto. Para Freud, a realização dessa passagem
contém a presença de um desejo nos pensamentos oníricos latentes:
trata-se do desejo inconsciente que produzirá o sonho e nele se satisfará.
O trabalho do sonho produzirá não somente uma compressão, uma
condensação dos pensamentos latentes, como também um deslocamento

81
Os circuitos do desejo na vida e na análise

da importância e da localização na passagem dos pensamentos oníricos


para o conteúdo manifesto do sonho. O desejo inconsciente que age no
processo do trabalho do sonho está presente da mesma forma no traba­
lho do chiste. O próprio caráter do chiste e o efeito que ele produz
estão ligados às mesmas formas de expressão, entre as quais a condensação
(a metáfora) e o deslocamento (a metonímia).
Freud estabelece o mesmo modo de trabalho para as outras forma­
ções do inconsciente; é o mesmo trabalho psíquico que produz ora o
ato falho, ora o sonho e os sintomas, sejam eles histéricos ou obsessi­
vos. Quando comparamos essas formações, podemos chegar à conclu­
são de que a fronteira entre o sujeito normal, afetado de sonhos, lapsos
ou chistes, e o sujeito neurótico sofrendo de sintomas é muito difusa.
A posição freudiana a esse respeito é muito clara : a manifestação das
formações psíquicas na vida cotidiana constitui uma espécie de transfe­
rência do valor dos sintomas para funcionamentos psíquicos de menos
importância, enquanto aquilo que possui mais valor psíquico não é to­
cado, não sofre qualquer perturbação. Ao contrário, a irrupção das ope­
rações inconscientes na vida social de um sujeito, em sua vida sexual ou
em seu trabalho, produz casos graves de neuroses. Esses tipos de pertur­
bação permite mostrar com mais clareza a particularidade das exte­
riorizações do inconsciente.
No final de "A psicopatologia da vida cotidiana", Freud divide os
fenômenos inconscientes em dois tipos: aqueles que produzem pertur­
bações no nível das operações psíquicas de pouca importância, como o
sonho, o lapso, o esquecimento e o ato falho, e aqueles que perturbam
as funções psíquicas mais elevadas, ou seja, os sintomas neuróticos.
A propósito dos sintomas, Freud acrescenta, na apresentação de seu
célebre caso Dora4, um componente particular: a fantasia (fantaisie) in­
consciente, o que chamamos, com Lacan, de fantasia (fantasme). Segundo
Freud, o sintoma não seria somente um fato de linguagem, de mensa­
gem criptada; a significação de um sintoma também quer dizer a figura­
ção ou a realização de uma situação sexual ou a realização de uma fanta­
sia (fantasme) de conteúdo sexual, a que Lacan chama de gozo. Ante a
essa realização fantasística (fantasmatique) há um outro componente do
sintoma, que agirá como um tipo de formação reativa, um sintoma
produzido pela criação de uma solução de compromisso entre a realização
da fantasia (fantasme) inconsciente e uma força que a ela se contrapõe.

4
Esta apresentação foi incluída num artigo contemporâneo aos grandes textos
sobre a descoberta do inconsciente, nomeado "Sonhos e histeria".

82
Sonhos, lapsos, chistes ... o inconsciente e suas fonnaçi,c.,

Dessa maneira, encontramos uma outra diferença do s i n t oma em


relação às demais formações do inconsciente, que não co11st i l 1 1 ! ' l l l 1 1 111a
solução de compromisso entre forças opostas. O lapso, o csq 1 1 ('( i n l!'n
to, o chiste, o ato falho não se produzem como o efeito de uma co n f rou
tação. Ao contrário, eles são o resultado de uma operação psíqui ca pm
meio da qual o desejo recalcado aproveita determinadas situaçül's 011
condições para emergir do inconsciente. Certamente são situações ou
condições relacionadas à dimensão da linguagem. Nas formações do
inconsciente, porém, nem tudo é linguagem ou questão de significação.
A dimensão da linguagem não é suficiente para produzir uma formação
do inconsciente. Já vimos a realização do desejo ou a figuração de uma
fantasia (fantasme).
De todo modo, há nesse tipo de fenômeno uma dupla composi­
ção: a parte ligada ao significante, à significação que dele deriva, é o
componente simbólico da formação do inconsciente; e a parte ligada a
uma satisfação, ao prazer e ao que pode ser situado além, é o compo­
nente real das formações do inconsciente. Há formações que mostram
preferencialmente sua face simbólica, como é o caso dos sonhos, do
lapso, do esquecimento e do ato falho. Outras, porém, podem apresen­
tar de imediato uma ligação evidente com uma satisfação pulsional,
como certos chistes e sintomas que ilustram o lado real do inconsciente.
Lacan chamou a atenção para o fato de que Freud leu as formações
do inconsciente da mesma maneira como se pode decifrar uma mensa­
gem cifrada. A expressão mensagem cifrada contém dois aspectos: o de
mensagem e o de cifra. Ao passo que a forma mensagem decorre do
campo da comunicação, a forma cifra, como nos lembra J.-A. Miller
em seu curso "O que faz insígnia" (1 987), concerne à manipulação, ao
uso que é feito da mensagem. Assim, a mensagem veiculada por meio
de significantes é emitida a serviço da cifra. O que é cifrado pela men­
sagem inconsciente é o gozo. As formações do inconsciente, por meio
da metáfora ou da metonímia, distinguem um efeito de sentido, en­
quanto, por meio do ciframento, recobrem um efeito de gozo.
Apreciamos particularmente essa dupla composição no sintoma.
É por essa razão que podemos considerar o inconsciente e todas as suas
formações como um sintoma, como o formulado por Freud no final de
''A psicopatologia da vida cotidiana". Dado que é o inconsciente que
determina o sujeito, essa consideração, por sua vez, permitiu a Lacan
definir o sintoma como um modo de gozar do inconsciente.

[Tradução : Sara Perola Fux]

83
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund
( 1 8 9 5 ) "De l'esquisse d'un psychologie scientifique". Em: Naissance de la psychanalyse.
Paris: PUF, 1 9 7 9 .
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( 1 9 0 1 ) "La psychopathologie de la vie quotidienne". Paris: PUF, 1 9 8 0 .
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LACAN, Jacques
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Paris : Seuil, 1 9 6 6 .
(1 957-8) L e Séminaire, Livre 5 : Les Formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1 9 9 8 .
( 1 9 6 0) "Subversion d u sujet et dialectique d u désir dans l 'inconscient freudien " . E m :
Écrits. Op. cit.
( 1 9 6 4 ) Le Séminaire, Livre XI: Les Quatre concepts (ondamentaux de la psychanalyse. Paris :
Seuil, 1 9 8 6 .

MILLER, Jacques-Alain
( 1 9 8 7) " Ce qui fait !'insigne". Inédito.
(1995-6) "La fuite du sens". Inédito.
( 1 9 9 9 ) ''A orientação lacaniana do Campo freudiano". Paris. Inédito.

84
Lógica do miglionário
Juan C a r l o s I n dart
l lluc1 1 < >s Ai res]

Prólogo
Estas linhas se propõem a fazer com que o leitor se interesse por um
texto de André Gide, considerando o ponto de vista da psicanálise de
orientação lacaniana.
Não posso avaliar a influência da literatura de Gide em diversos
aspectos do ensino de Lacan. Em 1958, este consagrou a Gide um escri­
to excepcional (Lacan 1966:7 19-743), no qual traz à luz as condições de
sua posição subjetiva, sua fantasia e seu mais além da fantasia (Miller
1990), contra a possível redução de sua obra a uma psicobiografia. Tal­
vez a presteza e profundidade da intervenção de Lacan constituam um
dado para sopesar seu interesse pelo sujeito Gide e sua escrita.
Prometeu mal acorrentado é mencionado duas vezes por Lacan
em O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente ( 1 957-8 : 43, 51-
53). Ele é levado a isso pela reconsideração que faz da análise do chiste
"familionário", que Freud apresentará em razão de suas possíveis rela­
ções com o inconsciente. Já dispondo das noções de metáfora e
metonímia, também redefinidas em razão de sua relação com o incons­
ciente, Lacan as aplica ao texto freudiano. O chiste "familionário" tor­
na-se paradigmático para articular a substituição significante como fun­
damento do efeito metafórico. Se nos lançamos de cara em uma semân­
tica do chiste, perdemo-nos em múltiplos sentidos e diferentes interpre­
tações, sem que haja acordo entre os estudiosos. O que pode ser objetivado
pelo escrito, e isto é indiscutível, é que esse tipo de chiste depende de
uma substituição puramente significante. E se estamos na paróquia e ele
chega até nós, verificamos, por experiência compartilhada, que ele é
uma paulada na cabeça. Quando escutamos uma criação verbal inaudita
como essa, não inexistente em nosso tesouro de significantes, e por isso
difícil de esquecer, as demais "funções mentais"entram em colapso, e
ingressamos em um campo de sem sentido-sentido de onde nos chega
um grande e verdadeiro deleite que impele ao riso, mas que não se
confunde com ele, e que, quando passa, pode deixar-nos em uma nos­
talgia não de algo mais, mas sim de que o mesmo permanecesse mais
Os circuitos do desejo na vida e na análise

tempo. Enquanto isso, muitos significantes se reacomodam diante do


golpe, combinando-se com grande velocidade, e com os efeitos
metonímicos de gozo e de sentido que causam a tudo o que, em cada
um, deixa-se levar pela inteligência do chiste. Por fim, como se sabe,
não se deve fazer disso um significado explicativo total. Mas se ele é
feito, sua ocorrência nos mostra algo decisivo: o chiste desapareceu,
com seu deleite e suas verdades.
Há ainda algo mais, que interessa sobremaneira a Lacan no caso
"familionário": surge algo novo da substituição significante. Uma criação
difícil de ser definida, pois é válido explorá-la tanto no simbólico, no
imaginário e no real, como no que Lacan assinala como a criação de
uma maneira de ser. Como substantivo, "familionário" cria uma figura
nova do homem rico que não existia, um milionário já irrisório, em
alemão, um Millionarr, tal como proposto pelo próprio Heine, de quem
Freud extraiu o chiste, ou, em francês, umfat-mi/lionaire, proposto por
Lacan, ou ainda, em castelhano, um fatuo-mi/lonario, apenas uma tra­
dução, mas que talvez possa ser proposta conceitualmente como nosso
"novo rico". É que, para Lacan, essa criação do "familionário" soa como
outras que lhe são próximas em um momento histórico, na atualidade
de algo que não se sabe o que é, mas que passa, como se todas elas fossem,
por meio de reiterada substituição significante, advertências e localiza­
ções de algo real sobre o qual seria desejável saber. É nesse contexto que
ele nos remete a Gide e à sua criação do termo milionário 1 , nome,
digamos, franco-italiano, de um personagem usado em duas de suas
obras, fundamentalmente em Prometeu mal acorrentado ; lê-lo nos faz
saber mais sobre o que essa substituição significante cifra.
Alinhavarei no que se segue algumas pontuações do texto de Gide
que podem colaborar nessa tarefa.
Em Prometeu mal acorrentado, Zeus, o banqueiro, o milionário, nos
é apresentado várias vezes, em uma gradação lógico-literária primorosa.
1) No começo do texto, o narrador, observador casual de uma
cena de rua que o surpreende, conta-nos, em um estilo "objetivo­
jornalístico", que um homem magro aborda outro muito corpulento,
para dar-lhe o lenço que aquele deixara cair. Um gesto bondoso, espon­
tâneo, sem qualquer outra intenção velada. O senhor corpulento agra­
dece sem palavras e parece partir, porém retorna e pergunta algo que o

1 No estabelecimento desse quinto seminário, J.-A. Miller intitula a terceira


lição : "O Miglionário". É mais um motivo de interesse para se decifrar essa
referência de Lacan.

86
Lógica do miglionário

outro responde. Então, o senhor corpulento lhe dá um envelope e algo


para escrever, e o mais fracote escreve algo no dito envelope. O corpu­
lento guarda o envelope, e o narrador precisa nos esclarecer que o que
se segue não sairia no periódico : como despedida, o corpulento dá em
troca uma tremenda bofetada no fracote, desaparecendo logo em segui­
da. O leitor, por ser bom, quer saber primeiro o que aconteceu com a
vítima. Ela sangra bastante, e pessoas se aproximam para aten dê-la. Ele,
porém, diz que pode se virar, fica só e vai embora.
Portanto, um enigma, puro, aparentado com a invenção da novela
policial, que se dirige à curiosidade lógica do leitor, sem concessões
descritivas ou acréscimo de novos dados. Exceto que se saberá, porque
Gide se diverte, que o corpulento é Zeus, o banqueiro.
Além de divertir-se, Gide tem a idéia de articular a esse enigma
cotidiano passado nas ruas de Paris no século XIX o herói grego Prome­
teu. Uma idéia extraordinária. O fragmento que restou-nos da tragédia
que Ésquilo dedicara a essa lenda já começara a ser relido durante o
entusiasmo romântico europeu, ao menos pela seguinte razão : não se
trata do inelutável destino tramado pelos deuses, que se impõe aos ho­
mens sem que estes o saibam; trata-se de Prometeu, o mestre dos ho­
mens, o que lhes ensinara um saber que é a cultura, uma engenhosidade
de labor, "em discordância com Zeus" e seu séquito. Como primeiro
castigo infligido por Zeus, Prometeu � acorrentado, pois aquele não
desejava a sobrevivência dos homens; e logo um outro : que um abutre e/
ou águia se alimentasse de seu fígado, que se regenerava continuamente.
Não é à toa que ele merece esse segundo castigo. Ele o mereceu porque
se negara a dar a Zeus, o deus, um saber graças ao qual este poderia
prevenir-se de sua derrocada e de sua morte. O destino de Prometeu
permanece indeciso, e deve ser imaginado, sua figura continuando fixa­
da na cavilação preocupada e permanente de um problema de consciên­
cia: o sentido de trair ou não aos homens ou aos deuses. Pois bem, Gide
priva-o de seus escrúpulos, que são suas correntes, e o faz aparecer num
pequeno restaurante parisiense para introduzi-lo em um novo modo de
pensar o problema causado por Zeus, pois agora, em nossa modernidade,
Zeus é o banqueiro, o milionário. Durante a obra, Gide fará com que
Prometeu traga três soluções de crescente eficácia para a questão.
2) A segunda apresentação do enigma e do milionário é feita pelo
garçom que atende no restaurante, e ele a faz para esse Prometeu fatiga­
do, recém-chegado, que pergunta para onde vai tanta gente que passa
pela rua. O dito garçom é amigo de Zeus, o banqueiro. Conhece-o, é de
certo modo seu mensageiro e seu servidor, e Gide nos pode dizer o que

87
Os circuitos do desejo na vida e na análise

se decifra desse personagem, desse Hermes, tão essencial no trato com


os deuses. Ele não se detém em nenhuma moral que pudesse designá-lo,
às vezes como delator, às vezes como confidente beneficioso, às vezes
somente como alguém que gosta dos mexericos até a irresponsabilidade.
Um garçom o representa muito bem nessa época, e se também é como
um deus, embora menor que Zeus, ele o é porque representa a potência
irredutível de relacionar o que se sabe, em especial o mais íntimo, o
ainda não dito, o mais singular de cada um. Nada o detém desde que a
informação se transmita. Se não é muito simpático, tampouco para Gide,
é porque, em seu afinco para que todas as informações se relacionem,
pão se fará responsável pe)a� :c.onseqüências, mesmo sabendo que "a
informação relaciona o qué não tem relação". Seu poder depende de
algo que se desprende com toda lógica da mesma informação que ele
nos fornece. Com efeito, o corpulento é o milionário Zeus, o único
que, por ser deus, diferentemente dos homens, pode e se dedica apenas
à realização de "atos gratuitos". É um pouco custoso para Gide fazer
com que imaginemos o extremo do que seria um ato gratuito, livre, sem
intenção alguma, sem qualquer motivação. Mas o garçom nos conta
que o milionário fez recentemente "dois" deles de uma só vez, detalhe
importante. Ele o fez porque é Zeus, já que nenhum ser humano poderia
fazer um ato absolutamente gratuito. Enviou um envelope com qui­
nhentos francos, quantia considerável, para uma pessoa que ele não
escolheu, pois o nome no envelope fôra escrito por um homenzinho
fraco que recolhera o lenço que ele deixara cair. E ao homenzinho que
escolheu-se a si mesmo, pois apanhou o lenço por sua própria escolha,
deu-lhe o outro dom que tinha na algibeira: uma tremenda bofetada.
Nenhuma intenção ou motivo, nenhum sentido. Como o assinala Lacan,
o milionário já é a máquina aleatória e insensata, embora observemos
que em Gide isto tem outro matiz. Se nosso garçom não é muito simpá­
tico, é porque, em nome da informação, em nome dos direitos absolu­
tos do jornalismo atual, por assim dizer, e ciente de que se fosse deseja­
do fundamentar qual a relação entre esses dois fatos um se perderia,
sabe que sempre é possível estabelecer entre duas surpresas insensatas
"uma relação reversível, e especular" : que se alguém recebeu um ganho
extra, é porque outro recebeu uma bofetada; e que se alguém recebeu
uma bofetada, é porque outro obteve um ganho extra.
Assim, com esta segunda apresentação do deus moderno, o Zeus
banqueiro, o milionário, Gide invoca o velho Prometeu, mestre racio­
nal dos homens, para que se implique nesse duplo enigma. Em primei­
ro lugar, o enigma pelo qual o S 1 na álgebra de Lacan, o significante

88
Lógica do miglionário

sozinho, sem Outro para dar-lhe sentido, na vertente em que se inscreve


como enigma, e na que sustenta todo o intercâmbio de bens, de mulhe­
res e de palavras, sem incluir-se nele, o da dívida simbólica impossível
de saldar, "é hoje o dinheiro-milionário", e nada mais que o dinheiro,
como significante puro sem sentido que parasita o pensamento. O enig­
ma pelo qual o S 1 na álgebra de Lacan, o significante sozinho, sem
Outro que lhe dê sentido, em sua vertente de arma letal, de significante
da morte, é "hoje o milionário-forte que impõe maquinalmente ao dé­
bil-pauperizado danos corporais até morrer", como significante puro
sem sentido que golpeia e lesiona o corpo.

Primeira solução de Prometeu


O garçom trabalha em um restaurante cuja singularidade está de acordo
com seu único empenho : as mesas são para três pessoas (pois com duas
as coisas sempre são mais pesadas); ele as distribui, as apresenta, serve­
lhes a comida, e favorece que os três desconhecidos conversem contan­
do algo singular de suas vidas. Prometeu, um pouco milenarmente es­
quecido de si mesmo, não se apresenta com facilidade. Reconhece ter
sido, claro, "fabricante de fósforos", e se agora não faz nada, para o
garçom é satisfatório dizer que é "homem de letras", pois Gide segue
divertindo-se. Sentado à mesa com outros dois que tampouco se conhe­
cem, escuta como um deles, chamado- Damocles, narra o fato que per­
turbou para sempre sua vida voluntariamente rotineira: recebeu em seu
nome um envelope com quinhentos francos, e não pára de perguntar-se
quem fez isso e por quê. Sua narração quase é interrompida porque o
outro, chamado Cocles, teria lhe dado uma bofetada se não tivesse sido
detido pelo garçom. Escutamos, então, a história de Cocles, do homem
bom, que quis afirmar-se como tal ao apanhar o lenço caído de um
transeunte, do estranho pedido deste enquanto escrevia um nome em
um envelope, de sua bondosa submissão em fazê-lo com o primeiro
nome que lhe veio, não sabe por quê, à cabeça, o de um desconhecido,
e da tremenda bofetada recebida. Tampouco Cocles sabe o que fazer
com o golpe de maldade sem sentido que caiu sobre ele. Ele nem mes­
mo procura o corpulento para revidar o golpe, pois sabe que ele é mais
forte. Todavia a significação que se impõe ao serem relacionados os
dois fatos inexplicáveis é a de uma animosidade, um ressentimento ines­
gotável para com Damocles: "Seu ganho, Senhor, deve-se à minha des­
graça; não sei qual é a relação entre eles, mas há uma". O leitor pode
acompanhar ao longo de toda a obra a reiteração dessa significação, que
vai do golpe de inveja à luta de classes, já prevista e saboreada pelo

89
Os circuitos do desejo na vida e na análise

garçom como a conseqüência inevitável para os homens do ato gratuito


do milionário. A tensão entre Damocles e Cocles se dissipa um pouco
ao ser solicitado ao terceiro, Prometeu, que conte a sua história. Após
algumas hesitações, como quem se faz rogar, pois não existiria relação
alguma entre a sua e a dos outros dois, ele declara que tem uma águia,
e então a chama. A águia entra voando no pequeno restaurante. Ao
passar, a ponta de sua asa deixa Cocles caolho. Pousa sobre Prometeu e,
muito faminta, sacia sua fome uma vez mais com o fígado dele. O
ocorrido dá o que falar aos tantos que se aproximam para ver o espetá-
culo: "Isso é uma águia... esse pobre pássaro depenado ... Vamos, no
máximo uma consciência... Além disso, não acredite que isso o distin-
ga, todos temos uma... Além disso, em Paris isso não se faz... Se o
Senhor gosta de alimentá-la com seu fígado, está bem, mas seja discre­
to, isso não se mostra... Além do mais, é preciso que o Sr. se desemba­
race dela antes de entrar em um restaurante, faça algo, venda-a, sufo­
que-a... ". Gide resume, desta forma, o que permanece da lenda heróica
na opinião moderna. Durante o tumulto, Damocles aproveita para pe­
dir a conta, incluindo um olho de vidro para Cocles, a fim de perfazer
quinhentos francos, deixa algo de gorjeta, e parte.
Esta cena parece introduzir uma primeira solução de Prometeu,
em ato, ainda que a continuação certamente mostre seus furos para cada
personagem. Pensamos que é uma primeira solução em razão do seguin­
te: o S 1 na álgebra de Lacan, o significante sozinho e sem sentido, é
dinheiro sem valor de troca e enigma para Damocles; dano físico e
moral e enigma para Cocles. Mas em ato, Prometeu mostra que o S 1
"não deixa de ter uma relação de gozo com um objeto", o objeto a na
álgebra de Lacan, enraizado no próprio corpo. E o saber de Gide o
prova não só por fazer aparecer o famoso fígado, como também por
fazer cair um olho de Cocles.
O resto do próprio corpo como fundamento de gozo do intercâm­
bio é o que, por um instante, faz Damocles acreditar que poderia realizar
um ato intencionado, este também em dois tempos, a fim de libertar-se
da dívida simbólica contraída: reintroduzir no circuito os quinhentos
francos, com o sentido da boa ação reparatória, substituindo o objeto
perdido por uma prótese, como sempre é o caso. Tudo parece solucio­
nado, mas o incomensurável da relação entre S 1 e o objeto a, tão
enfatizada por Lacan, está bem representada pela regeneração incessan­
te tanto do fígado como da fome da águia, e por isso, é Prometeu quem,
na cena, outra vez porta as perguntas do cotidiano humano: o que fazer
com a águia? Vendê-la, sufocá-la, alimentá-la?

90
Lógica do miglionário

Segunda solução de Prometeu


Prometeu é acorrentado também em Paris, porque o garçom, sempre
disposto a que a informação circule, denuncia-o como fabricante ilegal
de fósforos. É claro que o visita no cárcere para dar e receber mais
informações. Assim, conta a Prometeu que a solução de Damocles du­
rou pouco. Ante o sem sentido, aferra-se a uma única significação, nar­
cisista: a de sentir-se responsável e preocupado pelas desgraças de Cocles.
Isso o absorve integralmente, ele não só chora ao pensar, como pensa
nisso o tempo todo. Cocles, por sua vez, ante o sem sentido também se
aferra a uma única significação, narcisista: a de ser reconhecido como
vítima do ganho de Damocles. Como vítima, preocupa-se com os de­
mais, de maneira especular: junta fundos destinados a fundar uma insti­
tuição para caolhos, da qual será diretor. Quanto ao milionário, nada o
atormenta, e o garçom anuncia que poderá apresentá-lo a Prometeu
quando este sair da prisão. Por último, pergunta-lhe como está sua águia,
na qual aquele confessa não haver pensado, e vai embora. Certamente,
Prometeu pensa agora em sua águia, e ele pensa algo novo: "Que ela
cresça e eu diminua." Nenhuma busca de outro significante que lhe dê
sentido. Não existe. Mas há o objeto pulsional de onde causar ao me­
nos o fortalecimento e a beleza da águia. E amar isso. A águia cres­
ce, bela, e tira Prometeu da prisão. A primeira coisa que Prometeu faz
é dar uma conferência para anunciar sua solução a todos os interessa­
dos, demonstrando-a generalizável. O leitor poderá desfrutar cada deta­
lhe dessa conferência, feita por alguém demasiadamente apaixonado
pela mensagem séria que quer transmitir, para um público sempre incli­
nado a entediar-se. A solução se transmite com rigor lógico, ou seja,
admitindo uma petição de princípios da qual se sai por uma "afirmação
de temperamento": é preciso ter uma águia, cada um tem a sua, não se
deve amar os homens, deve-se amar o que os devora, é preciso consa­
grar-se a fazer da própria águia algo belo. Como Damocles e Cocles
estão presentes, Prometeu dirige a eles sua solução: consagrem-se à sua
dívida, um ao dinheiro, o outro à bofetada. Cocles deve aprofundar sua
cicatriz e sua órbita vazia, Dâmocles tem que guardar esses quinhentos
francos, devê-los desavergonhadamente, dever mais ainda, dever com
alegria. Seja lá como for, todos e cada um têm sua águia que os devora.
Então, para que deixá-la um abutre feio, se é possível fazê-la bela, se é
possível fazer disso o próprio traço de uma personalidade, e ainda à
custa da própria diminuição. Gide, portanto, vai longe na identificação
com o S 1 a partir da localização de seu parceiro-objeto, e assim a um
aspecto da identificação com o sintoma proposta por Lacan como solução

91
Os circuitos do desej o na vida e na análise

psicanalítica. Vai longe, mas não sem haver passado pela verificação,
diante de testemunhas, de que sua águia não responde às perguntas: de
onde vens, quem te enviou, porque me escolheste? Aparentemente esta
nova solução permite a Prometeu mudar seu antigo humanismo, feito
de piedade pelos homens e de consciência do bem. Já não se trata disso,
mas sim de passar do amor aos homens ao amor à águia. Cada qual tem
a sua porque em todos há essa enferma esperança de algo melhor, essa
insistente crença no progresso, ainda que marcada em cada qual por um
significante sem sentido que parasita o corpo, de um modo diferente e
singular em cada caso.
3) Logo após a conferência, o garçom informa a Prometeu que a
nova solução afetou muito Cocles e Damocles. Cocles, a bondosa e
caritativa vítima, anda pelas ruas oferecendo a outra face, à espera de
que uma nova bofetada resulte em ganho extra para outro; com isso,
sabemos que no fundo ainda lhe falta compreender, pois nada o livra da
relação reversível com a qual vela o insensato. Esse detalhe, esta
coalescência do S 1 recebido, a bofetada, com um objeto velado por essa
relação especular tão piedosa quanto carregada de agressividade já nos
indica o limite da nova solução. Quanto a Damocles, o efeito é ainda
pior. Durante a conferência, uma friagem lhe atinge, pela qual pega
uma misteriosa enfermidade que adivinhamos mortal, a da angústia cons­
tante de consagrar-se à pergunta sobre quem lhe deu esse dinheiro, e
por quê, e por que disso que lhe sobreveio decorreu um mal a um
terceiro. Esse detalhe, essa coalescência do S I recebido, os quinhentos
francos, com um objeto velado pela relação especular, carregada de
remorso e de uma culpa inextinguível, por não haver juiz a quem dirigi­
la, também nos anuncia o fracasso da solução. Nesse momento, o gar­
çom leva Prometeu a uma interview com o mesmíssimo milionário,
que ao ser personificado permite a Gide explorar algo além de seu
aspecto de máquina aleatória e sem sentido, e, portanto, de máquina
sem intenções. Permite-lhe precisar qual seria seu gozo, e nisso segura­
mente há algo relativo à posição subjetiva de Gide. O milionário de fato
nos diz que é mais rico do que se imagina. Tem "tudo, tudo" é dele. Por
isso seus atos são gratuitos, já que apenas um desinteresse absoluto
corresponde a uma fortuna infinita. Reconhece, porém, uma paixão,
uma paixão pelo jogo, e não por nenhum ganho eventual, pois ele já tem
tudo. O jogo consiste em tomar uma iniciativa, gratuita, introduzi-la de
um modo oculto entre os homens, e deixá-la em seguida para ver ao que
ela leva. "Eu experimento", Gide o faz dizer. E, então, o milionário nos
relata sua mais recente experiência. Segundo seu autor: "Fui para rua,

92
Lógica do miglionário

buscando um meio de fazer alguém sofrer com a doação que faria a


algum outro; fazê-lo gozar com o mal que faria ao primeiro. Uma bofeta­
da e uma cédula de quinhentos francos me bastaram. A um a bo fetada,
ao outro o dinheiro. Não é claro ? O que não é tão claro é a maneira de
ofertá-los".
Gide nos revela, dessa maneira, o segredo do enigma, e nos diz de
que se trata na figura do milionário e o que há por trás do irrisório
"familionário": a fantasia do Outro supremo em maldade, e a consis­
tência do puro ato perverso sádico.
A solução de Prometeu também o arruina, pois sua dedicação à
águia não deixa de ter coalescência com um objeto ainda velado por um
amor aos homens. Por duas vezes e por piedade pede ao milionário que
ele ao menos se faça presente diante do agonizante Damocles, que ao
menos este morra sabendo quem lhe enviara o dinheiro. "Não recebo
conselhos de ninguém" e "Não quero perder meu prestígio" são suas
respostas.
Damocles, após uma agonia e uma angústia pouco suportáveis
para os que o assistem ("Eis a sorte de quem enriqueceu com o sofri­
mento do outro", diz o lado bom de Cocles), morre, segundo Gide, de
modo "admirável". O leitor apreciará a excelente ironia com que ele
nos narra o notável sentimento final, capaz de arrancar lágrimas dos
mais ímpios, lágrimas consideradas "e9ificantes".

A terceira solução de Prometeu


Do encontro de Prometeu com o milionário ficou um resto. Em segui­
da à recusa de seu pedido de piedade, Prometeu o "ataca" com uma
pergunta crucial : "Poderia ao menos mostrar-me sua águia?" "Mas
eu não tenho águia", responde Zeus, e continua rindo: "as águias sou
eu quem as dá." Prometeu cai em grande estupor, mas é a partir daí
que, a meu ver, começa a elaboração de sua última solução. Quer
dizer, a partir de uma ruptura lógica desse Outro suposto total.
Assim, anuncia que já não está convencido de sua proposta anterior,
e que falará no enterro de Damocles. Ele de fato o faz, e embora fosse
suposto um clima fúnebre, ele o faz de um só golpe, sem interrupções,
contando uma desopilante história que faz com que todos riam: a histó­
ria de T ítiro. Já não se trata de um esforço de demonstração lógica, mas
de algo que se transmite nas entrelinhas, para bons entendedores, e de
modo bastante chistoso.
A história é narrada segundo uma suave paródia de estilo evangé­
lico, e nela nos é relatado por T ítiro o laborioso progresso humano. Isto

93
Os circuitos do desejo na vida e na análise

é feito de modo muito cômico, como quem não quer nada, dizendo-nos
que cada ganho, cada progresso devido ao trabalho, engendra sempre
um novo problema, e algo que não funciona. Com mais trabalho pode­
se resolver o problema causado pelo sucesso do trabalho anterior, cau­
sando todavia, por sua vez, um novo problema. A história é longa, e
alguém se dá conta de que o assunto não se conclui. "Não há progres­
so", sentencia Lacan nos EUA, e aprofunda: "O que se ganha por um
lado se perde por outro, e como se esquece o que se perdeu, acredita-se
que há progresso". Entre os progressos de Títiro está o de adquirir uma
biblioteca. Esta é acompanhada de uma bibliotecária, chamada Ângela.
Temos, então, o aparecimento de uma mulher em todas essas histórias
de homens. Ângela pode acompanhar e participar de todo esse trabalho
sublimatório, mas tenta fazer com que Títiro largue um pouco de tudo,
se afaste um pouco desse trabalho progressista interminável, e viaje com
ela, para passear, em Paris. Sentados em um barzinho num boulevard,
bebem e assistem à expectativa pela chegada de Melibeo e da música de
sua flauta, o que desperta em Ângela curiosidade e emoção. Diz-se que
quem apenas o divisa, já o considera encantador. Melibeo chega diante
de Títiro, para tocar flauta, detém-se bruscamente, vê Ângela "e cada
um se dá conta de que ele estava nu". O leitor se divertirá com a cena.
É claro que Ângela vai embora com Melibeo, e Títiro fica só. Essa é a
história que faz rir os presentes ao funeral de Damocles, inclusive o
próprio Prometeu, que reconhece a chatice de sua solução anterior.
Agora, nos diz que encontrou o segredo do riso. Encontrou a saída, uma
saída do milionário. E com sua história localizou onde estava esse se­
gredo, e o localizou no S I ' não mais como enigma irresolúvel por outro
significante, nem como consagração de sua relação com o objeto a, mas
sim como Falo em sua confrontação com o Outro sexo, com o feminino
como tal, de onde se revela sua castração e a inexistência da relação
sexual. Isso era tudo. Assim, enquanto duram os risos, por assim dizer,
Prometeu convida-os a comer, e comem a águia bem preparada, como
quem come seu ser. De sua beleza anterior Prometeu conserva as plu­
mas, e o narrador-Gide esclarece que escreveu a obra com uma delas.
No caso de o leitor, ou leitora, equivocar-se a respeito de alguma última
idealização referida a Ângela, Gide, à maneira de epílogo, nos remete a
Pasifae, a que não amava os homens, pois queria a relação sexual, e que
erra ao buscar um touro-deus, que se mostra apenas touro. Gide a faz
dizer: "Se Zeus se houvesse se metido no assunto, teria dado à luz um
Deus obscuro (Dioscuro); graças a esse animal, trouxe ao mundo um
bezerro". Com a palavra "bezerro" (veau) termina Prometeu mal

94
Lógica do miglionário

acorrentado, a história do Miglionário, ou seja, a palavra sobre a qual


se constrói outro chiste de Heine estudado por Freud, paradigma, se­
gundo Lacan, da combinação significante e de seu efeito metonímico.
Mesmo que o bezerro de Pasifae se faça "Miglionário, bezerro de ouro",
sempre será impotente para inscrever a relação sexual.

[Tradução : Rosa Guedes Lopes]

Referências bibliográficas
LACAN, Jacques
(1957-8) Le Séminaire, Livre 5: Les Formations de l'inconscíent. Paris : Seuil, 1 9 9 8 .
( 1 95 8 ) "Juventud d e Gide o l a letra y e l deseo". E m : Escritos II . Cidade do México: Siglo
XXI, 1 9 8 7.

MILLER, Jacques-Alain
( 1 9 9 0 ) "Acerca dei Gide de Lacan", Ma/entendido, n. 7. Barcelona.

95
Andrea Zanzotto ou "a falta" radial
Antonio Di Ciaccia
[Roma]

A "falta" radial é a definição que Zanzotto dá à experiência poética que


"considera o sujeito situado no ponto central de uma defasagem que
envolve (e revolve) o arranjo do mundo" (Agosti 1993:30). Ponto dra­
mático porém extraordinariamente fecundo.
Por que Zanzotto ? Trabalhando este ano O Seminário, livro 5, de
Lacan, várias vezes me perguntei qual autor italiano teria podido ilus­
trar o quanto Lacan avança nos sete primeiros capítulos de seu seminá­
rio. Como se sabe, Lacan se refere a diversos autores, inclusive autores
de diferentes tendências literárias, com um objetivo preciso : o de se
aperceber da estrutura lingüística do inconsciente freudiano. As forma­
ções do inconsciente situam-se no mesmo ponto em que o Witz, o chiste.
Como se pode notar, Lacan não faz referência, ao menos nesses primei­
ros capítulos de O Seminário, livro 5, a nenhum autor italiano.
Devo a alguns colegas, a quem agradeço, a indicação de diversos
autores, dentre os quais acabei me interessando particularmente pela
obra de Andrea Zanzotto. Talvez porque o seu nome evocasse para mim
o único texto em prosa - ao menos, de meu conhecimento - em que
fala de Lacan. Talvez porque reencontrasse em Zanzotto uma dupla
problemática que me chamara a atenção ao ler os sete primeiros capítu­
los de O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente.
De fato, há nesses capítulos uma primeira problemática que gira
em torno da demonstração do inconsciente freudiano estruturado como
linguagem. Lacan faz tal demonstração a partir de Freud. Ele a retoma
de Freud, a esclarece, a ilustra e a põe em uso outra vez ao mostrar, na
cadeia significante, a articulação entre metáfora e metonímia : "[ . . . ] a
própria possibilidade do jogo metafórico se funda na existência de algu­
ma coisa a ser substituída. É a cadeia significante como princípio de
combinações e lugar da metonímia o que está em sua base" (Lacan:
1957-8: 64).
A segunda problemática, mais lacaniana, diz respeito à questão do
sujeito e de seu Outro. Reportando-se ao grafo, Lacan define a posição
do eu. O eu não é o sujeito. Ao passo que Lacan indica o lugar do eu no
grafo, lugar correlato ao lugar do objeto metonímico, ele situa o sujeito
Andrea Zanzotto ou "a falta" radical

do inconsciente em todo o grafo. "O sujeito - diz - é todo o sistema, e


talvez algo que se conclui neste sistema" (ibid. : 122).
Com relação ao Outro, também aqui Lacan o multiplica, preci­
sando que uma coisa é o outro na condição de semelhante, outra coisa
é o Outro como instância que autentica, por exemplo, o chiste, outra
ainda o Outro como real, para então fazer a seguinte afirmação: "Ei-nos
portanto em condição de dizer que, longe de o sujeito diante de nós ter
que ser um vivente real, esse Outro é, essencialmente, um lugar simbó­
lico" (ibid. : 116). E Lacan, na página seguinte, qualifica esse outro como
"supra-individual", como tendo "um caráter singularmente imortal" e
sobretudo, como J.-A. Miller (1999) enfatizou em seu seminário sobre
as formações do inconsciente, como tendo um caráter que "pode ser
chamado de abstrato" (Lacan 1957-8: 117).
Assim essas duas problemáticas correspondem a duas preocupa­
ções de Lacan. A primeira se refere à demonstração da estrutura de
linguagem do inconsciente freudiano, e a segunda à posição do sujeito,
do sujeito do inconsciente, e do Outro.
Ora, o que encontramos no percurso poético de Andrea Zanzotto?
Reencontramos o que Michel David, em seu A psicandlise na cultura
italiana (1966), afirma ser uma determinada correspondência entre a
obra de Zanzotto e o ensinamento de Lacan: era como se no poeta
Zanzotto tivesse desenvolvido um lacanismo inconsciente. De sua parte,
o crítico Stefano Agosti constata na obra de Zanzotto o que chama de
"sintomáticas, extraordinárias coincidências e quem sabe antecipações"
(1993: 12) relacionadas ao ensino de Lacan.
Mais particularmente, todavia, reencontramos uma certa corres­
pondência com duas outras problemáticas, uma que diz respeito à evo­
lução do percurso poético de Zanzotto e outra que concerne à própria
subjetividade e à questão do Outro, ainda que a segunda permaneça sem
solução em Zanzotto, permaneça como a sua angustiante problemática
subjetiva.
Stefano Agosti situa a irremediável fenda do solo sobre a qual se
baseia a estratificação literária de Zanzotto, levando o poeta a essa de­
sintegração da realidade e do eu, a respeito de dois fatos que, a meu ver,
se resumem ao segundo. O primeiro fato é a noção de arbitrariedade do
signo lingüístico postulada por Saussure e o segundo, o conceito do
significante introduzido por Lacan na prática psicanalítica (ibid. : 11).
No primeiro tempo do percurso poético de Zanzotto, sua pesqui­
sa era orientada para a tentativa de encontrar significados autênticos a
serem reencontrados no interior dos signos. Em um certo momento,

97
Os circuitos do desejo na vida e na análise

porém, precisamente com a coletânea La Beltà, "a relação significante­


significado se rompe. O significante não é mais associado a um signifi­
cado, ou a múltiplos significados possíveis, mas se institui, ele próprio,
como depositário e produtor de sentido" (Agosti 1993 : 18).
Em outras palavras, há em Zanzotto um percurso poético que
realiza um progressivo afastamento do sentido, uma poesia orientada
não mais para a relação significante-significado, mas sim uma poesia
relacionada diretamente com o significante, uma poesia que é cada vez
mais claramente orientada para uma utilização da língua em que predo­
mina o uso do deslizamento metonímico.
E depois considerações astrisiderações formulação de astros,
assideração, através sidera et coelos
assiderações, assimilações -. 1
É este uso cada vez mais generalizado da metonímia que revolve o lei­
tor. Ele o revolve, porém, não só porque lhe parece faltar qualquer
alusão sobre o fundamento habitual da poesia, como também porque
surge em primeiro plano o que torna poesia a poesia: a relação absolu­
tamente essencial que a poesia tem com o significante. Lacan o lembra
a propósito da poesia de Mallarmé: uma poesia se define unicamente
"em suas relações com o significante" (Lacan 1957-8 : 55).
O que predomina em Zanzotto, contudo, é o fato de que este
deslizamento metonímico não produz jogo, mote divertido, brincadeira
alegre ou chiste, uma vez que em primeiro plano aparece o efeito de
desagregação da língua. Desagregando-se, a língua desagrega de manei­
ra correlata a realidade. E, mais particularmente, desagrega o ponto
focal da existência que é o próprio eu. O eu do poeta.
- Eu - em tremores contínuos - eu - disperso
e presente : nunca chega
a tua hora
nunca o céu anuncia o teu verdadeiro nascer2
A poesia não celebra o significado das coisas. A poesia celebra o
significante como criador da realidade. Mas em Zanzotto trata-se de
uma realidade incômoda. De uma realidade que estilhaça o quotidiano

1 "E poi astrazioni astrificazioni formulazione d'astri/ assideramento, attraverso


sidera et coelos/ assideramenti assimilazioni - "(Zanzotto 1993 : 15 3 ).
2
"- Io - in tremiti continui - io - disperso/ e presente: mai giunge/ !'ora tua/ mai
suona il cielo dei tuo vero nascere" (Zanzotto 1993 : 1 05).

98
Andrea Zanzotto ou "a falta" radial

e seus objetos vitais; uma realidade em que se transluz incessantemente


um real insuportável de sustentar, como se a realidade desvelasse sua
verdadeira face de pulsão de morte, como se o significante criador de
sentido desvelasse sem mediação a última face do sentido: que o encon­
tro com a linguagem é para o parlêtre o verdadeiro trauma, o único
evento digno de receber o nome de trauma freudiano.
Idioma, nada mais, é isso que me atravessa
em perseguições e gemidos h j eh eh eh
idioma
é aquele gesto engessado
que acumula
noites tesouradas lançadas para o nada3
Paralelamente à centralização do significante, há na obra de Zanzotto,
portanto, um radical descentramento do ponto focal do eu: o eu não é
mais central. Há antes "um afastamento do eu do campo da experiên­
cia. Por trás do eu, sem mais, haverá a linguagem não mais em sua
dimensão (saussureana) de sistema sobreposto ao mundo, mas sim em
sua obscura e, no limite, ameaçadora densidade material do significante!
É o significante, e não o eu, que dita as instâncias e as modalidades de
articulação com o vivido [... ] . No limite, poder-se-ia dizer que o
significante, estando desligado de um �entido preexistente, apenas ela­
bora um vazio de sentido, que é um vazio em que a realidade se resolve:
uma hiância (béance)".
A língua adquire para o poeta um duplo valor: de um lado, a
língua como código, como lugar do remorso, do saber e da história,
lugar da ética, grade que articula a realidade; de outro, a língua como o
próprio lugar da falta-a-ser do sujeito, lugar de uma presença estrutural­
mente perdida, de uma falta que é uma falta radical e incurável, uma
falta que se expande de maneira radial sobre todo o campo vivido.
me pus no meio desse movimento - falta radial
ai! o primeiro calafrio de subir, de entender,
partem em ordem, desafiam : eis tudo4

3
"Idioma, non altro, e eià ehe mi attraversa/ in perseeuzioni e ameliti h j eh eh
eh/ idioma e que] gesto ingessato/ ehe aeeumula/ sere sforbieiate via verso il
niente" (Zanzotto 1993 :303).
4
"Mi sono messo di mezzo a questo movimento - maneamento radiale/ ahi il
primo brivido dei salire, dei eapire,/ partono in ordine, sfidano: eeeo tutto"
(Zanzotto 1993 : 152).

99
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Em Zanzotto, a desagregação da língua é concomitante à desagre­


gação da realidade e do eu. Não se trata de um expediente literário, de
um fingimento retórico, mas sim de uma posição subjetiva que o poeta
caracteriza com o termo de terror. "O terror de cada dia", como escre­
ve. Aqui sua escrita "se inscreve em uma dupla instância: fuga do terror,
e receptáculo onde elaborar um 'princípio d e resistência' (Agosti
1993 : 1 7), que é o título de uma das suas poesias : "Retórica sobre a
dispersão, o princípio 'resistência' " (Zanzotto l 993 : 1 7 1).
A sua poesia é uma constatação da desagregação do eu sob o golpe
do significante. O poeta, todavia, não encontra um modo de se
recompactar, de fazer frente ao aniquilamento, de pôr fim ao terror.
O poeta não dispõe, por exemplo, do artifício que é um ego joyceano.
Por isso, sua poesia se faz chamamento, carta, ainda que talvez
jamais enviada. Por isso, constantemente reencontramos no homem­
poeta um desejo veemente dirigido ao homem-psicanalista. "Lembro de
um número de La Psychanalyse descoberto em cima de uma mesa e
folheado com ansiedade". E depois, como diz, o esperadíssimoEscritos
"que me provocou verdadeiros traumas" (Zanzotto 1994: 17 1-2).
O recurso a Lacan de fato é um "Vocativo", título de uma coletâ­
nea contemporânea ao primeiro ensino de Lacan, mas também "um
título sem dúvida muito próximo de algo lacaniano" (ibid. : 1 7 1).
O homem-poeta se volta para o homem-psicanalista, e o faz de
maneira ambivalente. Em "Nas paragens de Lacan", escreve: " Há mui­
to eu o sabia sobre uma certa área, sobre uma força imediata de malig­
nidade em ato, de desrealização em ato [ ... ] para poder aceitar com
tranqüilidade os extraordinários achados de Lacan sobre o vazio, seus
rasantes sobre o que para mim eram precipícios de círculos infernais".
Ainda assim, apesar da desconfiança para com "aquele que anda entre
os monstros com relativa segurança", talvez "porque ele mesmo seja um
monstro, uma neoformação", ainda assim o homem-psicanalista adqui­
re para o homem-poeta um valor muito particular uma vez que "no
discurso lacaniano, além de sua vocação para destruir ao longo de seu
proceder", nele se redescobre "uma incrível vontade de conexão e so­
brevivência, um brotar de fragmentos de verdades precisas como fle­
chas que acertam o alvo" (: 1 72).
"Se em Freud havia a autocompreensão da neurose, em Lacan
havia a autocompreensão da psicose: se o primeiro, mais do que curar,
justificara ou verbalizara 'a' (sua) neurose, o segundo verdadeiramente
glorificara 'a' (sua) psicose, praticamente instalando uma falta no lugar
do eu" (: 174).

100
Andrea Zanzotto ou "a falta" radial

Este passo "nas paragens de Lacan" me convida a concluir com


um rápido paralelo entre Zanzotto e Joyce.
O eu sobre o qual Zanzotto fala é, para ele, um sonho. O seu eu se
despedaçou e lhe sobra apenas uma falta, um buraco, lá onde, para
Joyce, ao contrário, é o eu que passa a constituir o anel que reúne os
membros esparsos do corpo da língua.
Que traumático seja o encontro do ser humano com o significante
é o que nos lembra J. -A. Miller em seu seminário sobre Joyce : "Joyce
nos mostra que a incidência da língua sobre o parlêtre traumatiza. Ele
nos mostra de modo puro a essência do trauma, o trauma da língua"
(Miller 1998: 44). Como para Joyce, é possível dizer que Zanzotto mos­
tra a face traumática da incidência da língua no corpo do parlêtre.
Diferentemente de Joyce, Zanzotto não consegue se distanciar desse
trauma, não consegue aproveitá-l o como Joyce o faz, não o
"sintraumatiza", para usar o termo de Lacan. Ele não consegue fazer
dele um sinthoma vivível. Joyce esmaga a língua, Zanzotto é esmagado
por ela. Para ambos a incidência da língua é um trauma, pessoal mesmo
se geral . Porém um sai vencedor, e o outro, vencido. É certo que a
incidência da língua é a essência do trauma para todo homem. Todo
homem é esmagado por sua relação com a língua, ainda que em geral o
homem "normal" não o saiba ou não queira sabê-lo. Só o analisante, se
tiver sorte, poderá desvelar o mistério de seu esmagamento. Ora, em
Joyce e Zanzotto o mistério não tem véus. Os dois, contudo, apresen­
tam soluções diferentes: Joyce usa seu eu; em Zanzotto, ele falha.
Por isso Joyce, que usa seu eu como sinthoma, seu ponto de força e
de suficiência, não está à procura de qualquer Outro ou qualquer verda­
de. Ao contrário, Zanzotto, desnudo em sua falta, deixa transparecer
uma necessidade absoluta da verdade (verdade histórica e ética), uma
necessidade absoluta de um Outro em que possa agarrar-se em um
"vocativo" permanente, ainda que constantemente encalhado. A sua falta
não pode sustentar-se sem o Outro, e muito menos sobre a falta do Outro.
Assistimos, assim, a uma constante tentativa do poeta de inventar­
se contra a referência à língua que enlouquece, vários modos de restabe­
lecer um Outro (da ética e da história, se não da literatura) que ele
necessita. Constantemente, vemos o poeta lutando para tentar reunir o
conjunto disperso : quer se trate de poesia que seja sobretudo escrita,
quer se trate de poesia que use uma língua não-língua como o dialeto e
tente a aventura de um além do idioma - lembro o seu "Outra, outra
linguagem, fora do idioma?" - para aproar uma tentativa de nó por
meio de sua poesia.

101
Os circuitos do desejo na vida e na análise

O que enfim me interessa nos idiomas?


Mas sim, ao contrário, qualquer
Pequena poesia, que não queira saber deles
Mas assim mesmo vive e morre neles - isso me interessa
E a folha de papel [ . . . ] 5

Gostaria de terminar com as palavras com as quais Zanzotto, homem


martirizado pelo encontro com a língua, conclui seu texto sobre Lacan:
" Creio que seja conveniente, contudo, ter esperança na sua [de Lacan]
não-esperança".
[Tradução : Marta P. Calmon]

Referências bibliográficas
AGOSTI, Stefano
( 1 9 9 3 ) "lntroduzione alia poesia de Andrea Zanzotto ". Em: Andrea Zanzotto, Poesie
( 1 93 8 - 1 9 8 6) . Milano: Mondadori, 1 9 9 3 .

DAVID, Michel
( 1 9 66) La psicoanalisi nella cultura italiana. Torino : Einaudi.

LACAN, Jacques
(1957-8) Le Séminaire, Livre V: Les Formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1 9 9 8 .

MILLER, Jacqucs-Alain
( 1 9 9 8 ) "Lacan com Joyce. Seminario di Barcelona li", La Psicoanalisi, n. 23. Roma.
( 1 9 9 9 ) Perspectivas do Seminário 5 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

ZANZOTTO
( 1 9 9 3 ) Poesie ( 1 93 8 - 1 9 8 6 ) . Milano : Mondadori.
( 1 9 94) "Nei paraggi di Lacan" . Em: Aure e disincanti nel novecento letterario. Milano:
Mondadori, 1 9 9 4 .

5
Ma che m'interessa ormai degli idiomi ?/ Ma si, invece, di qualche/ piccola
poesia, che non vorrebbe saperne/ ma pur vive e muore in essi - di cio m'interessa/
e dei foglio di carta [ . . . ]" (Zanzotto1993 : 3 03).

1 02
Witz, transmissão e pulsão do laço social
Pierre Thêves
[Paris]

"Pode-se gozar sozinho do cômico", escreve Freud em sua obra sobre os


chistes. "Em contrapartida, prossegue ele, se é obrigado a transmitir o
chiste a um outro" 1 • Como Freud define mais precisamente esta neces­
sidade de transmitir o Witz ? Leiamos o que se segue: " O processo psí­
quico da formação de um chiste não parece estar concluído com aEinfall
(idéia incidental) d a palavra, algo subsiste, que, por meio da transmis­
são da idéia, pretende levar à sua conclusão o processo desconhecido da
formação do chiste" (Freud 1905 : 262-263)
Freud examinará na seqüência desse capítulo V o que fundamenta
esta "pulsão de transmissão", como ele a escreve. É assim, de fato, que
ele chama essa necessidade de comunicar a palavra. Ele utiliza duas
expressões: Drang zur Mitteilung e Trieb zur Mitteilung, respectivamente
impulso de transmissão e pulsão de transmissão. Observemos, então,
que a transmissão diz respeito à pulsão. É uma exigência inteiramente
pulsional que impele o piadista (le faiseur de mot) a dirigir ao Outro
seu produto, que ele de início elabora solitariamente em seu Witzarbeit.
O impulso para transmitir, ou melhor, a pulsão de transmissão incita à
partilha (mitteilen) com o Outro. Ele conduz à separação de seu produ­
to, tornando-se Witz na partilha, sob os bons cuidados do Outro daí em
diante, o que Lacan, em seu O Seminário, livro 5: as formações do
inconsciente, articula como "sanção" do Outro.
Pode-se chegar a dizer que a pulsão se faz transmissão? Certamen­
te, pois é isto o que põe em ação o dispositivo do passe, moldado, como
se sabe, na formação inconsciente do pensamento. Quando J.-A. Miller
aborda, em seu curso ''A fuga do sentido"2, a antinomia do Um e do

1
Freud, S., "O chiste e sua relação com o inconsciente", traduzido por Denis
Messier, p. 262-263 . Tradução modificada.
2
Miller, J.-A, " A fuga do sentido" (1995-6), curso de Orientação lacaniana. Ver
as observações sobre o estatuto equívoco da linguagem como estrutura e como
aparelho. Deste modo, J.-A. Miller (1999) pode dizer em Barcelona que o grafo
é o Witz de Lacan.
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Outro, seu profundo divórcio, ele não deixa de reler longamente diante
de seu auditório o Witz de Freud. Por quê ? Para mostrar que o Witz é a
única formação que suspende essa antinomia. Ele, efetivamente, permi­
te estabelecer um vínculo de inclusão entre o Um e o Outro, entre o
gozo e o discurso, ele permite instaurar um· "não Um sem o Outro",
cujo alcance renovado decorre do que é conveniente chamar de o últi­
mo ensino de Lacan.
Diremos, de nossa parte, que é por realizar a pulsão de transmis­
são que o Witz, por excelência, torna-se laço social. Consideremos de
maneira decidida o pensamento tal e qual. Ele se faz ato a partir da
pulsão do laço que o produz. A própria sanção do Outro tem a ver com
essa pulsão.
Isso pode ser lido retroativamente, em filigrana, sob a insígnia do
grafo do desejo, como J.-A. Miller o utilizou em O Seminário, livro 5.
Nessa vertente, lê-se um enunciado que está na página 123 desse Semi­
nário. Lacan retoma os desenvolvimentos de Freud sobre os preparati­
vos do Witz, visando a surpresa do Outro : "O que o piadista produz
com essa separação é o Outro". Está claro, então, que o semblante
espiritual pressupõe um Outro não ainda ali, porém um outro como se
fosse novo, uma espécie de "Graal vazio" (Lacan 1957-8 : 124).
O Outro situado como produto se distingue do Outro como lugar.
Endereço e sanção se tornam os próprios produtos do semblante do
inédito. Como elaboração, o Witzarbeit provoca a emergência do Outro
como função simbólica como tal. Isso conduz ao Outro do último Lacan,
"fato de gozo", segundo a expressão de J.-A. Miller, e, por conseguinte,
leva a considerar este como incluindo a, motor, então, de um laço, por
mais sutil que seja, entre o Outro e o Um.
Isso está de acordo com a maneira como Freud define, nos enun­
ciados citados acima, "a pulsão de transmissão". Ela é constituída de
um resto. "Alguma coisa subsiste", escreve ele, que impele à enunciação,
contornando seu "escândalo", entendido etimologicamente como obs­
táculo (Lacan 1957-8 : 28). "Etwas bleibt ubrig", escreve, então, Freud.
Há um resto. Um resíduo no final da fabricação da palavra, até ali
operando solitária e tacitamente, insiste e pede para "surgir", e se enunciar
para, então, rematar o todo. A transmissão se faz objeto pulsional por
direito e condição absoluta (no sentido de "isolado") de toda essa longa
elaboração. O que é residual assinala o todo. E como havíamos adianta­
do, sem dúvida n�nhuma a transmissão produz o Outro feito de gozo.
Será possível "atualizar" no mesmo sentido a questão de Lacan:
"Qual é este Outro? Por que este Outro? Que necessidade do Outro ?"

1 04
Witz, transmissão e pulsão do laço social

(ibid. :97) O termo necessidade expressa, aqui, esta condição de mais­


de-gozar do Outro.
Em termos freudianos, pode-se dizer que a exigência pu lsional
(Triebbedurfnis) cumpre a satisfação da pulsão (Triebbefriedigung), pre­
sidindo a produção do Outro e marcando-a. O termo Triebanspruch,
demanda pulsional, será reservado para a escrita (s x D), sabendo que
"no desejo de qualquer demanda, há apenas a solicitação do objeto a"
(Lacan 1972-3 : 1 14).
Há outras indicações, em Freud, desse status de gozo do Outro?
Como termina o quinto capítulo "Os motivos dos chistes, os chistes
como processo social"? Freud conclui seus desenvolvimentos do se­
guinte modo : o piadista "daí em diante parece só poder encontrar des­
canso após ter conseguido obter o alívio (de todo esse trabalho) por
intermédio da terceira pessoa inserida no processo". (Freud 1 905 : 286)
Estejamos atentos a esta "inserção" da dritte Person no pensamen­
to. A sanção é introduzida no final, que ao mesmo tempo é o ponto de
partida de alguma coisa nova, a palavra que faz rir. Ele sem dúvida
insere o Outro produzido. A pulsão faz surgir o Outro como Lustgewinn,
mais-de-gozar.
Mas é verdade que Freud falou bastante sobre a terceira pessoa
inserida? Qual é o termo alemão por ele empregado? Eingeschobene
dritte Person. Isto é precisamente uma variante da formação preposicional
da raiz verbal schieben (correr, deslizar), presente no bem conhecido
verschieben (deslocar), transformado por Lacan em sua metonímia
significante e pulsional. O Outro não é tanto verschoben, mas antes
eingeschoben, isto é, ele desliza para dentro, introduz, portanto, ele é
incluído, para não dizer "intruso", como objeto. No exato momento de
receber a palavra, o Outro só pode tomar parte no processo por intrusão
provocada. É o mais-de-gozar que comparece ao ponto de encontro :
"É a pulsão que faz rir" (1995 -6), como diz J.-A. Miller.
Observemos essa diferença entre verschieben e einschieben, que
corresponde à distinção que deve ser feita entre a e mais-de-gozar.
A língua alemã freudiana já o faz. Metonímia do desejo próprio ao
Drang pulsional, de um lado, e metabolismo do gozo próprio à corrente
(Schub) pulsional, de outro.
"Ter necessidade do Outro" por meio do qual partilhar o Einfall,
separando-se dele, torna a enfatizar esta inclusão do objeto a no Outro,
sob o modo intrusivo do mais-de-gozar: Einschiebung.
Ter necessidade da Escola da transmissão como pulsão do laço
social provém desta intrusão do Trieb, que deve ser preservado e não

105
Os circuitos do desejo na vida e na análise

deixar de comandar nossa comunidade. É o que se chama "a política do


Witz", como J. -A. Miller propôs em Buenos Aires em julho de 1 996.
A partir disso a Escola Una será muito boa.
[Tradução: Inês Autran Dourado Barbosa]

Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund
( 1 905 ) "Le mot d'esprit et sa relation à l'inconscient". Paris: PUF. 1 9 79 .

LACAN, Jacques
(1957-8) Le Séminaire, Livre V: Les Formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1 9 9 8 .
(1972-3) L e Séminaire, Livre 2 0 : Encare. Paris: S euil, 1 975.

MILLER, J.-A
(1995-6) "La fuite du sens". Inédito.
( 1 999) Perspectivas do Seminário 5 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

106
O que Freud viu em Orvieto ?
Yves Depelsenaire
[Bruxelas]

Em agosto de 1897, de partida para a Itália, Freud escreve a Fliess as


seguintes palavras: "Desta vez, espero conhecer um pouco mais a arte
italiana. Começo a apreender seu ponto de vista: você não busca de
forma alguma o que apresenta um interesse cultural, histórico, mas sim
a beleza absoluta [ ... ]" (Freud 1898: 190, Carta 68).
Durante essa viagem realizada com o propósito de aperfeiçoar seu
conhecimento sobre a arte italiana, Freud segue as pistas do que, nessa
época, supõe como o saber de Fliess. Terá sido sob a recomendação
expressa de Fliess que Freud descobre, em Orvieto, os afrescos da cape­
la de San Brizio, que tornaram Luca Signorelli uma celebridade? Não o
sabemos. Mas, certamente, é no contexto geral dessa viagem feita para
Fliess que se deve situar essa visita e suas conseqüências, assunto de
uma outra carta escrita por Freud em 22 de setembro de 1 898. Ao
retornar de outra viagem, desta vez à costa dinamarquesa, Freud narra o
quanto ele se lembrou desses afrescos; embora não conseguisse lembrar
o nome de seu autor (idem, Carta 96).
Freud já falara a Fliess sobre o esquecimento semelhante de um
nome próprio, mas não lhe comunicara suas causas inconscientes (ibid.,
Carta 94) . Desta vez, ele faz disso o tema de um artigo: "O mecanismo
psíquico do esquecimento", publicado em 1 899, e retoma sua decifra­
ção no primeiro capítulo de Psicopatologia da vida quotidiana. Lembre­
mos suas circunstâncias.

O esquecimento do nome Signorelli


Freud viaja de Ragusa, atual Dubrovnick, para Cataro, hoje Kotor, confor­
me seu nome montenegrino. Tem como companheiro de viagem um
advogado berlinense - berlinense como Fliess - e, como por acaso, a
conversa passa a ter como assunto arte italiana. Freud pergunta a seu
companheiro se ele já visitara Orvieto, e se havia visto os famosos
afrescos de...
Os circuitos do desejo na vida e na análise

No lugar do nome buscado, dois outros nomes vêm à lembrança


de Freud, os de Botticelli e de Boltraffio, que ele sem hesitação rejeita
como incorretos. Então, como se explica esse esquecimento, e como se
explicam os nomes que surgem na mente de Freud para recobri-lo?
O assunto precedente da conversa entre os dois viajantes é a chave do
mistério: o esquecimento do nome do mestre de Orvieto, na conversa
sobre a arte italiana, é o resultado da perturbação causada por tal assun­
to, ou seja, os costumes dos turcos habitantes da Bósnia e da Herzegovina.
Freud contara o que um colega, exercendo a medicina junto aos turcos,
lhe relatara como prova da confiança destes na pessoa do médico e de
sua resignação frente ao destino. Quando se anunciava que um de seus
parentes era portador de uma doença incurável, eles respondiam: "Se­
nhor, o que se pode dizer sobre isso?" (Herr, was ist da zu sagen ?).
Na cadeia associativa Signorelli-Botticelli-Boltraffio, Freud pôde
intercalar uma série de termos: Herzegovina-Bósnia-Herr. Mas, por que
esses termos puderam perturbar a seqüência do diálogo com o advoga­
do berlinense? Freud não terminara seu relato sobre os costumes dos
turcos da Bósnia e da Herzegovina. Ele suprimira um segundo relato
que desmentia de maneira cabal essa aceitação do destino. De fato, o
colega de Freud percebera a dimensão do desespero deles quando afeta­
dos por uma diminuição da potência sexual : "O senhor sabe muito bem
que quando isso não funciona mais, a vida não tem mais nenhum va­
lor", desabafara um de seus pacientes.
Por que Freud fôra tomado por um pudor súbito com relação a
esse outro relato? Muito tato por pouca coisa. Porém, naquele momen­
to, Freud ainda estava sob o impacto doloroso da notícia recebida pou­
cas semanas antes, quando passava uma temporada em Trafoi, no norte
da Itália. Um paciente a quem ele se dedicara com muito empenho se
suicidara em razão de uma disfunção sexual da qual não se curava, da
qual Freud não o curava. A afinidade entre Trafoi e Boltraffio obriga
Freud a reconhecer a influência dessa reminiscência, apesar de sua dis­
tração intencional.
Freud conclui a sua análise da seguinte maneira: "Não é mais
possível ver no esquecimento do nome Signorelli um acontecimento
acidental. É por razões de ordem psíquica que interrompi minha con­
versa (sobre os costumes dos turcos, etc.), e é também por razões de
igual natureza que impedi de entrarem na minha consciência as idéias
que a ela se ligavam, e que teriam conduzido meu relato até a notícia
recebida em Trafoi. Portanto, eu queria esquecer alguma coisa: eu
recalquei alguma coisa. É verdade que eu queria esquecer outra coisa

108
O que Freud viu em Orvieto ?

diferente do nome do mestre de Orvieto. Porém, entre essa ' outra coisa'
e o nome estabeleceu-se um laço associativo, de maneira que meu ato
de vontade falhou quanto ao seu alvo e eu, a des/Jeito de mim mesmo,
esqueci o nome quando, intencionalmente, queria esquecer 'outra coi­
sa' [... ] - os nomes substitutos, por sua vez, não me parecem tão
injustificáveis como antes da explicação; eles me advertiram (em segui­
da a uma espécie de compromisso) tanto do que eu havia esquecido
quanto do que eu queria lembrar, e mostraram que minha intenção de
esquecer alguma coisa não foi totalmente bem sucedida, nem totalmen­
te fracassada". (Freud 1898 : 8)
A desmontagem desse esquecimento foi reunida por Freud em um
esquema do qual a edição francesa da "Psicopatologia da vida quotidia­
na" nos priva. Quem sabe, talvez tenha sido isso o que inspirou a Guy
Rosolato a idéia extravagante de nos propor um outro, supostamente
mais esclarecedor? (Rosolato 1969). Na verdade, esse esquema de Freud
é uma parte essencial da decifração que ele opera. Vejamos:

ttic.elli

sma i
Herr, was ist da...
1 Trafui

7
morte e sexualidade

� pensamentos recalcados /1

Sobre essa decifração, absolutamente impecável, na qual não há que


deslocar uma vírgula - basta seguir as flechas que ordenam o esquema -
Lacan se debruçou repetidas vezes. A colocação em série desses comen­
tários sucessivos é a vertente pela qual iremos, agora, deixar-nos guiar.
Para esse percurso, há quatro escansões essenciais: O Seminário, livro 1 :
os escritos técnicos de Freud e a "Introdução ao comentário de Jean
Hyppolite sobre a Verneinung"; ''A psicanálise e seu ensino" e O Semi­
nário, livro 5: as formações do inconsciente; O Seminário, livro 1 1 : os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise e O Seminário, livro 1 2 :
problemas cruciais para a psicanálise.

1 09
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Recalque ?
Em O Seminário, livro 1 : os escritos técnicos de Freud, Lacan, no início
do esquema citado acima, interroga-se sobre o status do que Freud des­
taca como pensamentos recalcados: " O recalcado não é tão recalcado
assim, pois se ele não falou disso a seu companheiro de viagem, ele nos
fala imediatamente em seu texto" (Lacan 1 953-4:58). Freud sabe muito
bem o que se absteve de falar ao seu interlocutor: "Era isso que o inte­
ressava, o que ele estava prestes a dizer e, por não tê-lo dito, restaram­
lhe detritos, pedaços, as quedas dessa fala na seqüência de sua conexão
com esse interlocutor". E ele prossegue: "É porque a palavra não é dita,
aquela que pode revelar o segredo mais profundo do ser de Freud, que
ele apenas consegue se conectar com o outro através das quedas dessa
fala. O fenômeno do esquecimento é aqui manifestado literalmente pela
degradação da fala em sua relação com o outro." E, no entanto, "o que
assistimos aqui é a emergência - mas uma emergência censurada - de
uma fala verdadeira. Só Deus sabe quão longe ela pode ecoar! Do que se
trata aí senão do absoluto, ou seja, da morte? [... ] Só Deus sabe o quan­
to o problema da morte é vivido pelo médico como um problema de
mestria. Ora, o médico, neste caso Freud, perdeu, tal como o outro - é
sempre assim que sentimos a perda de um doente de quem tratamos por
muito tempo".
Portanto, à proporção que essa confissão do ser, que essa fala ver­
dadeira não chega a seu termo, a fala se transpõe inteiramente para a
vertente em que ela se liga com o outro. Freud se liga com o outro
através de uma pergunta: "Você já visitou Orvieto?", você viu os afrescos
de... E, a partir daí, ele se encadeia ao próprio discurso por essa pergun­
ta sobre a palavra que falta. Ele se encadeia à própria questão da lacuna
da fala para manter-se na fala.
Se ele busca uma tal ligação com o outro, é na exata medida em
que o que impelia à fala não a alcançou e produziu-se a resistência, no
sentido em que Lacan a situou precisamente em O Seminário, livro 1, ou
seja, não em uma intencionalidade do sujeito, mas na significação como
tal: quando a fala se quebra e faz báscula em direção à pura presença
daquele que ouve, a do analista no dispositivo do tratamento, é exata­
mente no ponto "em que o sujeito chega ao limite do que o momento
permite a seu discurso efetuar da fala" (Lacan 1 966 : 3 73 ). A resistência
se produz no momento em que a fala de revelação não é dita e faz
báscula em direção à presença da testemunha que é o analista. E, ade­
mais, é certamente esse movimento, situável no campo da transferên­
cia, que podemos isolar quando esse esquecimento ocorre a Freud: além

1 10
O que Freud viu em Orvieto?

de seu interlocutor, em quem observamos, de saída, o traço pelo qual


ele não podia deixar de evocar Fliess, é esse último que Freud toma
imediatamente por testemunha ao lhe escrever.
Se, nesse momento, a presença do analista acaba necessariamente
por ser evocada, geralmente com alguma angústia, um leve retoque na
formulação proposta por Lacan naquela época traduziria seu profundo
alcance. Atualmente, propomos que a resistência se produz no momen­
to em que a fala desemboca na revelação de sua causa muda.
Freud visita a capela de Orvieto porque Fliess lhe sugeriu que ali
havia um saber. Porém foi só um ano mais tarde que se produziu, sob a
forma do esquecimento, a revelação do que Freud vira em Orvieto:
o próprio Fliess, nada mais. Obviamente, não era a figura de Fliess, o
curandeiro, o futucador de nariz, como diz Lacan em algum lugar, mas
Fliess como objeto da transferência, e mais adiante veremos sob que
forma, ainda inominável para Freud, razão pela qual esse objeto não é
nomeado em momento algum dessa história.
Antecipo aqui o prosseguimento e até mesmo a conclusão desse
trabalho. Mas, nesses desenvolvimentos de Lacan sobre a resistência,
será que não poderíamos ver também neles, retroativamente, alguma
coisa antecipando uma revelação que, dez anos depois, será trazida por
O Seminário, livro 1 0 : sobre ''A angústia"? O sinal dessa causa muda
não é mais recalcado do que o são os temas da morte e da sexualidade
nas associações de Freud. Tal como são esses temas que os afrescos
pintados por Signorelli "não fazem senão historiar sob uma das formas
mais manifestas" (ibid. : 3 79), assim também veremos como neles se
desenha o traço transferencial e qual o objeto aí reencontrado por Freud.

Metáfora?
"Podemos nos contentar em falar, aqui, de recalque? ". Vamos encontrar
essa pergunta de "Introdução ao comentário de Jean Hyppolite" três
anos mais tarde em ''A psicanálise e seu ensino", texto em que Lacan faz
do esquecimento do nome Signorelli um paradigma do sintoma em sua
relação com o significante. Mais precisamente, a reencontramos no ar­
gumento dessa comunicação em que ele escreve que "dizer que o sinto­
ma é simbólico não é dizer tudo" (Lacan 1966:43 7). De fato, no pró­
prio texto de O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente essa
reserva desaparece. Duas lições inteiras desse seminário são dedicadas a
demonstrar, através do esquecimento de Signorelli, que qualquer sinto­
ma pode ser inteiramente desmontado segundo os mecanismos
significantes da metáfora e da metonímia.

111
Os circuitos do desejo na vida e na análise

O problema é saber se um esquecimento, ou seja, não uma cria­


ção significante, mas sim algo que falta, pode ser analisado a partir
dessas duas operações. À primeira vista, há nisso uma aposta, entretan­
to o esquecimento do nome Signorelli não é um esquecimento absolu­
to. Não é, propriamente falando, um furo na cadeia significante, já que
no lugar do nome esquecido, outros nomes surgem (Botticelli, Boltraffio).
Surgem a partir das "ruínas metonímicas do objeto do qual se trata, por
trás dos diversos elementos particulares em jogo, ou seja, o Herr. "
(Lacan 1957-8: 42) E Lacan prossegue: "É à medida que o Herr absoluto
passa alhures, se apaga, recua, é repelido, é unterdrückt - caído para
baixo de [. . . ] - propriamente falando que, como ersatz, reencontramos
os restos, as ruínas do objeto metonímico, ou seja, esse 'bo' que vem se
compor com a outra ruína do nome que, neste momento, está recalcada,
isto é, 'elli', para não reaparecer no outro nome substituto que é dado".
Quanto à substituição heterônima de Herr por Signor, será ela
uma metáfora? A esse respeito, sigamos Lacan atentamente: "Se o Signor
não é evocável, se é ele quem faz com que Freud não possa reencontrar
o nome Signorelli, é por estar aí concernido. Concernido de um modo
evidentemente indireto. Porque para Freud, o Herr que efetivamente foi
pronunciado em um momento particularmente significativo da função
que ele pôde tomar como Herr absoluto, como representante dessa morte
que está, nesta ocasião, unterdrückt, pode simplesmente se traduzir por
Signor. É aqui que encontramos o nível substitutivo, pois a substituição
é a articulação, o meio significante em que se instaura o ato da metáfo­
ra. Porém, isso não quer dizer que a substituição seja a metáfora [ ... ].
A substituição é uma possibilidade de articulação do significante, e a
metáfora se exerce com sua função de criação de significado, nesse
lugar onde a substituição pode se produzir" (ibid).
A substituição heterônima e não concluída de Herr por Signor não
é, portanto, por si mesma, uma metáfora. No entanto, pelo simples fato
dessa substituição, ocorre uma indução, um efeito metafórico. À medi­
da que o Herr se esgueira para baixo, para essa parte inferior do esque­
ma de Freud onde, nos diz Lacan, ele se põe a girar entre código e
mensagem, um efeito metafórico pode nascer da constituição desse cir­
cuito inconsciente, semelhante à memória de uma máquina. Esse efeito
metafórico é exatamente a evocação dos afrescos de Orvieto. Esse efeito
metafórico ao qual essa substituição conduz é precisamente o que torna
possível a evocação dos afrescos de Orvieto, uma vez que, além do
Herr, o que importa é o sentido que esse termo tomou na conversa
precedente, e que faz com que Herr tenha se tornado para Freud o

1 12
O que Freud viu em Orvieto?

símbolo daquilo diante do que sua mestria de médico fracassa, o símbo­


lo do mestre absoluto, do mal incurável, do paciente que se suicida e,
"em uma palavra, da morte e da impotência que o ameaça pessoalmen­
te. " É o que se reencontra nos afrescos de Orvieto : "evocação das coisas
derradeiras representando a mais bela das elaborações que existe, dessa
realidade impossível de encarar que é a morte. [ . . . ] . É precisamente
quando nos contamos mil ficções, tomando ficção no sentido o mais
verídico, sobre o tema das coisas derradeiras, que metaforizamos, que
amainamos, que fazemos entrar na linguagem essa confrontação com a
morte" (ibid).
Mas esse efeito metafórico - este é o ponto essencial - só é sensí­
vel na própria falha de uma metáfora não realizada. "É por não lhe
advir nenhuma metáfora na via da elaboração dessas coisas, como sen­
do as coisas derradeiras, que Freud se recusa a qualquer escatologia, a
não ser sob a forma de uma admiração pelo afresco pintado em Orvieto,
e que, no lugar onde ele procura seu autor - pois, afinal é do autor que
se trata, de nomear o autor - nada se produz porque nenhuma metáfora
tem êxito . Nesse momento, nenhum equivalente é dado a Signorelli,
porque Signorelli tomou um encargo, foi chamado a uma outra forma
significante muito diferente daquela de seu simples nome" (ibid. :58).
De fato, naquele momento, Freud nô-lo indica em seu artigo de 1898,
quando ele não encontra o nome do atJtor, ele visualiza como nunca o
afresco de Orvieto, muito especialmente o auto-retrato de Signorelli, na
parte de baixo, à esquerda do afresco do Anti-Cristo.
Ocorre que essa intensificação da imagem cessará com o achado
do nome Signorelli, e ainda mais, com o seu primeiro nome, Luca.
Desse modo o significante apaga literalmente a percepção. Quando a
luz - lux - se faz no significante, ela pode se apagar na percepção.
Porém se a luz pode se fazer no nível de Signorelli, como ela poderia se
dar no nível do Signor, no nível em que é o "was ist da zu sagen" que se
impõe como única fala possível ? Portanto, no final dessa análise feita
em seu O Seminário, livro 5, Lacan nos diz que o efeito metafórico de
substituição do Herr por Signor deve ser lido neste ponto-ersatz, no
qual o imaginário vem em socorro do sujeito em razão do fracasso, da
impossibilidade estrutural de uma metáfora quando se trata de dizer o
que constitui o próprio limite da fala.

O objeto da castração
Se Lacan conseguiu explicar esse esquecimento pelos mecanismos
significantes que estruturam as formações do inconsciente, nem por

1 13
Os circuitos do desejo na vida e na análise

isso a questão está fechada quanto ao que pode fazer furo no significante.
Ele vai retomá-la em O Seminário, livro 1 2 . Desde o O Seminário,
livro 1 1, porém Lacan deixa entrever uma renovação de sua análise:
"Para retomar um exemplo nunca bastante explorado, aquele que foi o
primeiro sobre o qual Freud apoiou sua demonstração, o esquecimento,
o tropeço da memória relativo à palavra Signorelli, após sua visita às
pinturas de Orvieto: será possível não ver surgir do próprio texto, e se
impor, não a metáfora, mas a realidade do desaparecimento, da supres­
são, da Unterdrückung, da passagem para baixo? A palavra Signor, Herr,
passa para baixo - o senhor absoluto, eu disse uma vez, a morte, para
dizer tudo, desaparece ali. E, do mesmo modo, será que não vemos, lá
detrás, perfilar-se tudo o que Freud necessita para encontrar nos mitos
da morte do pai a regulação de seu desejo? Afinal, ele encontra Nietzsche
para enunciar, em seu mito, que Deus está morto. E talvez esteja funda­
mentado nas mesmas razões. Pois o mito de que Deus está morto - do
qual estou, de minha parte, bem menos convencido, como mito enten­
dam bem, do que a maioria dos intelectuais contemporâneos, o que não
é de modo algum uma declaração de teísmo nem de fé na ressurreição -
este mito talvez seja apenas o abrigo que se achou contra a ameaça de
castração".
"Se vocês souberem ler, vocês os verão nos afrescos apocalípticos
da catedral de Orvieto. Se não, leiam a conver�a de Freud no trem -
trata-se apenas do fim da potência sexual, da qual seu interlocutor mé­
dico lhe fala sobre o caráter dramático para aqueles que são cotidiana­
mente seus pacientes." (Lacan 1964: 29)
"A morte, o senhor absoluto, eu disse uma vez": esse inciso reúne
todo o debate de Lacan consigo mesmo, tal como este se desdobra em
suas análises sucessivas do esquecimento do nome Signorelli. No come­
ço, é evidente o fato de que a morte é identificada, simultaneamente,
como a própria condição da simbolização e como o real frente ao qual
toda enunciação se quebra. É a morte que, para o Lacan desta época, dá
a verdade mais radical da alienação significante; mas é também a morte
que serve como o próprio nome do real, por ser o único objeto que
escapa à captura significante. Essa página de O Seminário, livro 1 1 traz
uma retificação desse ponto de vista. Nela, Lacan nos faz entender que,
finalmente, em suas análises precedentes do esquecimento do nome
Signorelli, talvez ele tivesse privilegiado o tema da morte em detrimen­
to do que constitui o essencial no episódio, ou seja, uma vacilação do
sujeito em seu encontro com o objeto da castração. Portanto, através da
crítica a Freud, presente nesta página, Lacan faz uma outra crítica, a si

1 14
O que Freud viu em Orvieto ?

mesmo, que reordena a análise desse esquecimento sob a perspectiva de


"Inibição, sintoma e angústia", na qual a angústia de morte é situada
fundamentalmente como "analogon da angústia de castração".

A função volante do nome próprio


Lacan nos falará mais detalhadamente desse encontro com o objeto da
castração no seminário do ano seguinte: Problemas cruciais para a psi­
canálise, na aula de 6 de janeiro de 1965. De um modo divertido, ela
começa pelo... achado de um nome esquecido: o de Theodor Reik!
Ora, é precisamente sobre a função do nome próprio que ele se interro­
ga. Destaquemos, nesta aula, duas observações essenciais aos nossos
propósitos.
Inicialmente, indo ao encontro das teses desenvolvidas pelos lin­
güistas, por Gardiner em particular, para quem os nomes próprios não
têm outra significação senão a da pessoa que nomeiam, Lacan sustenta
que um nome próprio tem não somente uma significação, mas compor­
ta muito mais: advertências. Em nenhum caso se pode designar como
traço distintivo do nome próprio seu caráter arbitrário e convencional,
já que esta é a propriedade de qualquer significante. Mas, além disso,
diz Lacan, "se um nome próprio não tivesse nenhuma significação (além
da denotativa), no momento em que eu apresentasse alguém a uma ou­
tra pessoa, não aconteceria nada. Se eu mesmo me apresento "Jacques
Lacan", digo alguma coisa que comporta algum efeito significativo para
vocês. Eu me apresento em um certo contexto. Se estou em uma socie­
dade, não sou um desconhecido. Se me apresento "Jacques Lacan", isto
elimina a possibilidade de que eu seja Rockfeller ou o Conde de Paris.
Pode ser que vocês já tenham ouvido meu nome em algum lugar. Isso o
enriquece" (Lacan 1965).
Devemos observar que, em relação à função de advertência do
nome próprio, encontramos mais do que a suspeita na passagem do
texto "Psicopatologia da vida quotidiana", citada acima: "Os nomes
substitutos me advertem", escrevia Freud.
Segunda observação: o nome próprio, Lacan o concede sem difi­
culdade aos lingüistas, é sem dúvida mais especialmente indicativo,
denotativo, demonstrativo do que um outro, mas, além disso, ele tam­
bém tem, em relação aos outros, esta propriedade notável de, embora
sendo o nome mais próprio a um ser particular, remetendo portanto
mais do que um outro a seu referente, ser, no entanto, suscetível de se
deslocar, de viajar de um modo que só pertence a ele. Essa propriedade
de deslocamento contrasta com sua fixidez indicativa inicial. Tome-

1 15
Os circuitos do desejo na vida e na análise

mos, por exemplo, os nomes dados aos animais pelos entomologistas. E


é neste ponto que Lacan se põe a sonhar com a tarântula que ele gostaria
de ver levar seu nome ! Chamar-se Jacques Lacan exclui passar por
Rockfeller, pois isso adverte o ouvinte de toda uma série de traços dis­
tintivos, mas, ao mesmo tempo, esse nome pode ser dado a uma tarântula,
tanto quanto Citroen a um j ipe.
Cabe aqui observar que o mesmo ocorre com as obras de arte, e,
especialmente, com os quadros: não dizemos "um Renoir", "um Picasso",
"um Botticelli", "um Boltraffio"? É j ustamente nisso que Freud é mara­
vilhosamente avisado por realçar, no caso, essa função de advertência
dos nomes substitutos, pois se Freud pensou nos afrescos doJuízo Final,
não é a mesma coisa do que sonhar com o Nascimento de Vênus.
Astucioso, o inconsciente parece nos advertir desse último, mas é para
melhor abrigar, nesse deslocamento, o que cega os olhos.
Lacan assinala que essa dupla propriedade do nome próprio é da
alçada da função universal de classificação que um Lévi-Strauss pôde
lhe atribuir. Mas é uma redução diferente de manter esta última, certa­
mente fundamental para as estruturas de parentesco, para o essencial do
nome próprio. A isso faz objeção a existência do "nomeador", que ob­
se rvamos em todas as culturas. Lacan, a partir daí, ironiza sobre isto;
ainda não ocorreu a nenhum lógico, nem mesmo a Bertrand Russell, a
i déia de batizar de ''Antônio" um ponto sobre a mesa, ou de "Honorina"
uma caneta. E por quê ? 1 Porque esse ponto ou essa caneta são essencial­
mente substitu íveis por qualquer ponto ou qualquer caneta. Ora, o que
caracteriza de modo fundamental o nome próprio, não é que ele seja
único, particular, mas sim que ele designe um ser insubstituível; e é isso
o que justifica a função singular do "nomeador", testemunha de que o
nome próprio não é somente uma peça das leis de troca. O nome pró­
prio sugere o nível da falta, do furo. "Não é como indivíduo que eu me
chamo Jacqu es Lacan, mas como algo que pode faltar, através do que
esse nome terá, que recobrir uma outra falta". O nome próprio é uma
"função volante": ele é feito "para preencher os furos", "para dar uma
falsa aparência de sutura".

A esquize do olho e do olhar


Pois bem, é este caráter de falsa aparência de sutura, esta função volante
do nome próprio que Lacan retoma outra vez no caso do esquecimento

1
N.T. " [ ... ] ou la craie 'Honorine'"; o substantivo craie (giz), em francês, é femi­
nino. Daí sua substituição por "caneta", sem prejuízo do conteúdo da frase .

1 16
O que Freud viu em Orvieto ?

de Signorelli. Botticelli, Boltraffio, esses nomes voam no ponto em que


é um distúrbio de identificação o que ocorre a Freud, no qual lhe acon­
tece, na verdade, algo semelhante ao que cada um pôde experimentar
um dia, perambulando de rua em rua, pois às ruas nós também damos
nomes próprios. E por quê ?, interrogava Lacan no mesmo seminário:
por que damos nomes próprios às ruas ? . "Você vai de rua em rua até
que, um dia, sem saber por quê, você ultrapassa não sei que linha,
invisível para você mesmo e se depara com um lugar onde você nunca
esteve e, no entanto, você o reconhece como sendo o lugar do qual você
se lembra de já ter estado. Ele estava ali, na sua memória, como uma
ilha à parte. Alguma coisa não referida que, ali, para você, se agrupa.
Esse lugar que não tem nome, mas que se distingue pela estranheza [ . . . ]
que Freud nomeia tão bem pela palavra Unheimliche, através da qual
tocamos a identidade do direito e do avesso [ . . . ], esse lugar nós o cha­
mamos a outra cena, aquela que está nesse lugar como um cenário. Mas
não quer dizer que o que está do outro lado do cenário seja a verdade .
Se você está no palco, é você quem está na realidade do cenário" (Lacan
1 964-5, aula de 16 de dezembro de 1964).
Se damos nomes próprios às ruas, é para nos preservarmos dessa
passagem para essa espécie de entre-duas, do lado do revestimento asférico
da realidade. Mas quando Freud se esquece do nome Signorelli, ele
efetivamente cai no cenário; ele cai ne?se quadro que está em sua me­
mória como esse lugar, essa "ilha à parte" no coração da cartografia das
nossas cidades. Então, ele não sabe mais de onde ele se vê, menos ainda
de onde ele se olha e, em seu próprio dizer, ao ser só vem uma falta.
Diante da emergência do olhar que o espreitava no afresco, olhar do
auto-retrato de Signorelli - do qual convém revelar, neste momento,
que a primeira sílaba de seu nome é também a do nome de Freud -,
diante da emergência desse olhar, Freud desfalece como sujeito. II sign or
e li: o Senhor está ali, tradução literal desse nome no qual Freud se
queima. O Senhor está ali e duplamente, pois parece que Signorelli
também se fez representar, na capela, no meio da multidão de danados,
carregando nos braços uma mulher nua que se debate - reunião no
inferno das pulsões parciais, da morte e da sexualidade. O Senhor
está ali, Freud, porém não mais encontra outro significante para se re­
presentar, e chama por outros nomes em socorro. Mas, então, com
Signorelli, o que se escamoteia e cai mais profundamente ainda é o
"signans e o signatum de sua identidade" : SIGmund.
Se, em 1958, Lacan destacava a emergência do imaginário ali onde
a fala se furta, onde alguma coisa não encontra sua via na direção do ser,

1 17
Os circuitos do desejo na vida e na análise

em 1965, ele nos faz descobrir como o real faz furo no imaginário, na
falsa consistência à qual o uso feito do nome próprio dá corpo. Que o
sintoma fosse simbólico certamente não era dizer tudo, uma vez que é
um uso imaginário do simbólico, especialmente chamado para preser­
var o real em jogo no sintoma, o real cuja irrupção necessita do sintoma
e que, aqui, é a irrupção do objeto olhar.
O que Freud viu em Orvieto, se não o real que surge na esquize do
olho e do olhar, quando lhe falta o apoio do ponto I de onde se ordena
a cena do mundo, "o verdadeiro lugar de sua identificação no ponto de
escotomia, no ponto cego do olho"? (Lacan 1965, aula de 6/01/65). Em
suma, o que Freud viu em Orvieto foi a representação de sua própria
destituição subjetiva, sua desaparição como mestre, como médico, como
clínico dos signos, mas também e ao mesmo tempo seu advento possí­
vel como psicanalista. E, nesse sentido, não seria necessário considerar
este capítulo primeiro de Psicopatologia da vida quotidiana no mesmo
nível que o sonho inaugural da Traumdeutung, o da injeção feita em
Irma, do qual Lacan há muito tempo nos ensinou o verdadeiro alcance:
o de encontro com o real diante do qual Freud não recua ? Ali onde
Freud esperava a "beleza absoluta" que Wilhelm Fliess lhe prometera,
surge o objeto de horror, causa de um desejo ao qual, seu nome está
ligado, a despeito do que ele pôde construir como álibi, contra a emer­
gência dessa causa, no novo mito do Pai em que ele acreditou que a
psicanálise deveria parar.
[Tradução de: Vera Avellar Ribeiro]

118
O que Freud viu em Orvieto?

Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund
(1887-02) "Lettres à Wilhem Fliess, notes et plans." Em: Naissance de la psychanalise. Paris:
PUF, 1 9 8 5 .
( 1 9 05 ) Psychopathologie de la vie quotidienne. Paris, Payot, 1 9 8 2 .

LACAN, Jacques
(1953-4) Le Séminaire, Livre I: Les Écrits techniques de Freud. Paris: Seuil, 1 975
( 1 95 6 ) "Introduction au commentaire de Jean Hyppolite". Em: Écrits. Paris: Seuil, 1966.
( 1 957) "La psychanalyse et son enseignement". Em: Écrits. Op. cit.
(1957-8) Le Séminaire, Livre V: Les Formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1 9 9 8 .
( 1 9 64) L e Séminaire, Livre XI: Les Quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris:
Seuil, 1 9 8 6 .
(1965-6) "Le Séminaire, Livre XII: Problemes cruciaux pour l a psychanalyse". Inédito.

ROSOLATO , Guy
( 1 9 6 9 ) "Le sens des oublis". Em: Essais sur /e symbolique. Paris: Gallimard.

1 19
A dialética do falo
Pierre Naveau
[Paris]

Talvez eu os surpreenda, mas gosto muito desta pequena frase de Lacan:


" O falo é aqui esclarecido por sua função" (Lacan 1958: 690). De fato, a
questão se impõe: o que é o falo?
Nesta página, Lacan diz inicialmente o que ele não é. "Na doutri­
na freudiana, o falo não é uma fantasia". E ele afirma: "Tampouco é,
como tal, um objeto". Então precisa: "E é menos ainda o órgão, pênis
ou clitóris, que ele simboliza". Só em seguida diz o que ele é: "O falo
é um significante". A função de que se trata é, portanto, a função de
significante.
Lacan precisa que o falo não é o órgão, pênis ou clitóris. Conside­
rado como instrumento de gozo, o órgão está recalcado. A coisa a ser
significada, o que Lacan chama de "o significável", "é marcada pela
latência". É assim que ele se exprime na página 692 deEscritos. Dito de
outra maneira, o demônio do Pudor lança um véu sobre o que não se
pode dizer como tal. A operação de que se trata é a do recal que.
A simbolização do real implica que a crueza de certos termos seja bani­
da de um modo de dizer as coisas.
"O falo é aqui esclarecido por sua função": quando enuncio esta
frase, não experimento qualquer incômodo. Uma tal enunciação não
ultraja meu pudor, nem o de vocês, aliás.
O significante negativiza o órgão. Uma tal negatividade castra,
poder-se-ia dizer. Fala-se então uma língua castigada, poder-se-ia acres­
centar.
Ora, Lacan introduz a função de significante do falo tendo como
pano de fundo o que ele próprio chama de "a querela do falo" (ibid.: 689).
Falava-se uma língua tão assombrada pela crueza no auge desta
querela transcorrida, eu lhes recordo, de 1920 a 1935?
Em sua carta a Ernest Jones de 25 de outubro de 1931, Freud lhe
confessa o seguinte: "Por acaso eu o citei durante estas últimas semanas,
sendo no entanto obrigado a atacá-lo. De fato, aproveitei que estava
melhor neste verão para escrever dois pequenos estudos que você lerá
brevemente na Zeitschift. Em um deles, sobre a sexualidade feminina,
não pude deixar de mencionar sua opinião divergente de minhas con­
clusões".
A dialética do falo

Freud alude à contribuição de Jones para o debate sobre a fase


fálica publicada em 1927 no !nternational]ournal com o título "O de­
senvolvimento precoce da sexualidade feminina".
Em carta de 10 de janeiro de 193 2 Jones responde a Freud : "Foi
uma surpresa ver que lhe bastavam duas frases para rejeitar meu traba­
lho e a experiência que tenho dos problemas relativos à sexualidade
feminina". Jones se defende: "Creio que deve haver aí um mal-entendido
concernente às fases clitoridiana e fálica em sua apreensão do que
escrevi".
Ele assinala os dois pontos sobre os quais está de acordo com
Freud: "Fiquei satisfeito, todavia, de ver que o senhor insiste sobre a
ligação precoce com a mãe, que se prolonga nas mulheres com uma
forte fixação ao pai, e sobre a agressividade precoce para com a mãe".
A esse respeito, precisamente, Jones opõe Londres e Viena: "Em
Londres, de fato, insistimos há algum tempo sobre estes dois pontos", e
então evoca uma divergência: "Mas não pensamos (subentendido nós, em
Londres) que este estágio seja todo ele uma questão apenas entre a meni­
na e a mãe. A fantasia relativa ao pai (e sobretudo a fantasia do pênis do
pai no ventre da mãe) também desempenha um papel importante".
Jones alude aqui à hipótese formulada por Melanie Klein segundo
a qual, na fantasia da criança, o ventre da mãe contém o pênis do pai.
A este respeito, pode-se entender a qJ.! erela do falo de outro modo .
O pai, a mãe, o menino e a menina disputam o falo que estaria no
interior desta caixa fechada que é o mother's womb, o útero materno.
Quem o tem? Essa é a questão. Assim como se diz a família Umbelífera 1 ,
trata-se da família Falo.
Nessa mesma carta, Jones recorda a Freud uma lembrança desa­
gradável, com o tom do rei Clovis quando diz ao soldado a quem quer
castigar por sua impudência: "Lembra-te do vaso de Soissons". 2
"Eu me lembro - escreve Jones - de uma observação que o senhor
me fez, há muitos anos, sobre o longo artigo de Jung intitulado Die

1 N. do T. Em botânica, a família Fenouillard é a família das umbelíferas : os


funchos, tais como a erva-doce, a erva-cidreira e outros. Aparentemente o autor
faz uma analogia entre aquilo que designa a família (o nome Fenouillard), como
aquilo que há de comum a seus membros, e o Falo.
2
N. do T. Em 48 6, Clovis !, rei dos francos, venceu Syagrius, o romano, vitória
que está na origem do célebre chiste sobre o vaso de Soissons. Após a vitória,
Clovis exige a um soldado que ele lhe entregue mais um dos despojos da batalha:
um vaso pertencente a uma igreja, do qual o soldado se apossara a fim de
devolvê-lo ao bispo de Reims. O soldado, em represália, quebra o vaso, !em-

121
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Bedeutung des Vaters (''A significação do pai no destino do indivíduo",


1909): 'Jung esquecia a mãe, agora esquece o pai' ".
O paralelo que Jones faz entre Jung e Freud só pôde magoar este
último. É incrível que Jones termine sua carta como se não tomasse
partido nessa querela: "Pessoalmente, não me sinto tentado a tomar
partido nesta querela, mas seu ensaio [sobre a sexualidade feminina]
tem o efeito de redobrar minha curiosidade para saber toda a verdade
sobre os diversos problemas em questão".
Portanto, Jones está decidido a esclarecer completamente esse te­
nebroso incidente.
Eis os termos com que então evoca a dita "querela do falo": "Te­
nho impressão que resta a ser feito um trabalho útil para formular os
problemas de maneira mais explícita, e me empenharei em fazê-lo. Por
exemplo, aqui aflora, parece-me, a ponta de uma espécie de hipocrisia,
não se sabe bem se é possível reduzir as diferenças de compreensão a
uma controvérsia doutrinal bem definida sobre alguns pontos cruciais,
ou se são simplesmente diferenças de ênfase".
A conversação prossegue, pois Freud replica em sua carta de 23
de janeiro de 193 2: "Suas duas críticas me parecem injustas. Isso não
me parece desconsiderar de maneira generalizada o pai. Refiro-me a
um determinado período do desenvolvimento precoce (da sexualidade
feminina) em que o pai não desempenha ainda nenhum papel ou de­
sempenha um papel mínimo. Parece-me que entre vocês (subentendi­
do, em Londres), negligencia-se demasiado essa ordem cronológica
(inicialmente a mãe, depois o pai) e que se considera em excesso so­
bre o mesmo plano o que se decompõe (em vários tempos), provavel­
mente sob a influência das interpretações kleinianas, das quais, segun­
do minhas últimas experiências, nego a boa fundamentação". Portanto
Freud aqui afirma com clareza que não está de acordo com Melanie
Klein.
E ele acrescenta: "Farejo outro mal-entendido entre nós. Será que
o senhor designa como fase fálica na menininha uma coisa diferente da
que designamos, que o senhor faz uma diferença entre fálico e clito­
ridiano, o que, para nós, significa a mesma coisa? Parece-me que esta é
a questão".

brando ao rei a questão da igualdade de partilha dos despojos entre os guerrei­


ros. No ano seguinte, em uma ocasião em que inspecionava as tropas, o rei, ao
se deparar com o soldado, racha-lhe o crânio, dizendo: "Lembra-te do vaso de
Soissons" (Cf. Petit Larousse Encyclopedique, 1998).

1 22
A dialética do falo

Em outros termos, Freud revela que Jones e ele não se entendem


sobre o sentido a ser dado à fase fálica na menininha. Aqui também,
Freud faz alusão a um caminho, aquele que conduz a menininha do
tropeço no obstáculo do clitóris à brecha que abre a descoberta da vagina.
J ones agradece a Freud pela precisão de sua observação em sua
carta de 12 de fevereiro de 193 2: "O senhor pôs o dedo exatamente no
mal-entendido a que fazia alusão".
Ele reconhece que até então fazia a mesma hipótese de Freud, ou
seja, que por fase fálica entendia o mesmo que Freud. Jones constata,
porém, que não se tratava disso, pois, para retomar os termos de Freud,
introduz, de sua parte, uma diferença entre fálico e clitoridiano: "Vejo hoje
que erroneamente considerei como adquirida uma distinção que certamen­
te gostaria de estabelecer, a saber, a que faço entre a 'fase clitoridiana' (com
seus elãs masculinos em direção à mãe) e a 'fase fálica' ulterior, quando a
menininha foi arrastada em direção aos problemas de sua relação com os
seres masculinos e regressou, de maneira defensiva, à posição clitóris =
falo. A segunda fase é menos importante do que a primeira. Todas as
meninas têm uma fase de primazia clitoridiana? Eu o ignoro. Parece-me
provável, mas há também a atitude oral que a acompanha".
Assim, Freud e Jones debateram por meio de uma troca de cartas
sobre o tema da sexualidade feminina. Freud tinha então 76 anos e
Jones, 53.
A frase de Lacan: "O falo é aqui esclarecido por sua função" tem
seu prolongamento na página 14 de I;Étourdit, quando enuncia que a
função fálica x é o que faz suplência à relação sexual (que não existe).
Ele então o indica: "esta articulação da função como proposição é
aquela de Frege".
O título do texto de Escritos "Die Bedeutung des Phallus" vem à
luz de outra forma. O termo Bedeutung se opõe a Sinn, como indica o
título de um artigo de Frege publicado em 1892: "Über Sino und
Bedeutung". É o que Lacan chama, na p. 36 deI;Étourdit, de "a antinomia
entre o sentido e a significação".
A dialética do falo é portanto legível no nível da oposição existente,
remeto aqui ao texto de I;Étourdit, entre o sentido que se ergue e a
significação que cai.
A referência a Frege mostra que a introdução da função fálicax por
Lacan se distancia da ressonância semântica que há entre o uso, emprega­
do por Freud e Jones, desses termos anatômicos: pênis, clitóris, vagina.
Em sua correspondência, Freud e Jones testemunham que é preci­
so chamar um gato de gato e que, ao redor da mesa de debate, é exigido
que cada um pague com moeda corrente.

1 23
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Dou um exemplo da maneira como Jones se expressa em seu arti­


go de 1927: "Parece-me que as tendências derivadas do estágio oral
bifurcam bem cedo para o clitóris ou para a felação, isto é, que elas se
dirigem respectivamente na direção da manipulação digital do clitóris
ou na direção das fantasias de felação, bem entendido, segundo uma
proporção que varia de acordo com o caso".
A manipulação do clitóris com os dedos, as fantasias de felação
talvez pudessem ofender nosso pudor, mas não; estão aí as "idéias con­
cretas" para retomar o termo que Lacan utiliza em seu texto de Escritos
"Sobre a teoria do simbolismo de Ernest Jones". A esse respeito remeto
à página 703.
A escrita matemática da função fálica x implica, em si própria, o
que proponho considerar como o recalque do real do gozo, pois se há o
caminhar da fala, como o mostra a discussão apaixonada entre Freud e
Jones, há também os caminhos do gozo. Percebe-se o seu rastro em
"A significação do falo".
De fato, a dialética do falo se encontra na encruzilhada dos cami­
nhos. Ela pode ser apreendida no ponto de encontro entre a dialética da
demanda e a dialética do desejo.
A este respeito, Lacan diz que o ponto de partida é a dialética da
demanda (ibid. : 690). É preciso ler a página 691 de Escritos à luz da
página 406 de O Seminário, livro 5. A demanda pode ser abordada sob
dois aspectos: ou é considerada por visar a satisfação de uma necessida­
de, ou é considerada por estar articulada em termos simbólicos, estru­
turada em termos significantes, enfim, por visar obter o ser do Outro,
sua presença.
Abre-se assim entre o apelo à satisfação e a demanda de amor,
entre o que Jacques-Alain Miller, em seu Curso, chamou, de maneira
iluminada, de a demanda de ter e a demanda de ser, um espaço, um
intervalo, uma falha. Lacan indica que o desejo situa-se em uma dupla
posição, ao mesmo tempo além e aquém, além da demanda de ter e
aquém da demanda de ser. Que a demanda possa ser abordada em dois
planos distintos corresponde, conforme a página 406 de O Seminário,
livro 5, à diferença entre o plano do significado e o plano do significante.
A demanda pode ser avaliada simultaneamente do ponto de vista do
significante e do ponto de vista do significado.
Em outras palavras, esta longa frase de Lacan, que fala sobre a
demanda e está na página 691 de Escritos: "É através disso que a de­
manda anula (aufhebt) a particularidade de tudo aquilo que pode ser
concedido, transmutando-a em prova de amor, e as próprias satisfações

1 24
A dialética do falo

que ela obtém para a necessidade degradam-se (sich erniedrigt) em nada


menos do que no esmagamento da demanda de amor", pode ser enten­
dida no sentido em que ela evoca a passagem do plano do significado
para o plano do significante e, conseqüentemente, em que ela opõe, por
um lado, a elevação da necessidade ao nível do amor e, por outro, o
rebaixamento do amor pela satisfação da necessidade para o nível da
significação d e gozo. A demanda rasga o ter e o ser entre o sentido do
amor e a significação do gozo.
Assim, a dialética do falo está na encruzilhada da antinomia entre
Sinn e Bedeutung e a antinomia entreAufhebung e Erniedrigung. O Sinn
supõe a Aufhebung. A Bedeutung implica a Erniedrigung. O problema
posto pela condição do desejo é portanto o problema do valor. O desti­
no do falo é também o do valor, o da valorização ou desvalorização.
Escrever que o "falo é aqui esclarecido por sua função" implica
que a função do véu seja questionada no nível da retórica e da estilística.
Um véu pudico é lançado sobre a coisa : "Ele é menos ainda o órgão,
pênis ou clitóris, que ele simboliza", escreve Lacan.
É por isso que, como mostra a fábula de Longus, Dafne e Cloé, o
sujeito deve conformar-se com um Outro, para que se esclareça a via
em direção à posição a ser tomada em relação não à fase fálica, mas sim
à função fálica.
Este deslizamento do véu é decisjvo; da fase à função.Just a word.

[Tradução: Ana Lúcia Luttcrbach-Holck]

Referências bibliográficas
LACAN, Jacques
(1 957-8) Le Séminaire, Livre V: Les Formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1 9 9 8 .
( 1 95 8 ) "La signification du phallus". Em: Écrits. Paris : S euil, 1 9 6 6 .
( 1 9 6 6 ) Écrits. Paris : Seuil.
( 1 9 72) ''l.:Étourdit". Em: Scilicet 4. Paris: Seuil, 1 9 73 .

1 25
Sobre o sonho da paciente de Joan
Riviere: uma interpretação do
inconsciente
Hélene Bonnaud
[Paris]

Eis o sonho da paciente: "ela se encontrava sozinha em casa, aterroriza­


da; um negro entrava e a encontrava sozinha lavando roupa, as mangas
arregaçadas e os braços nus. Ela lhe resistia, mas com a intenção secreta
de seduzi-lo sexualmente; ele começava a admirá-la e a acariciar-lhe os
braços e os seios".
Trata-se do sonho de um caso célebre de Joan Riviere sobre o qual
fala em seu artigo ''A feminilidade como mascarada" (Riviere 1994),
comentado por Lacan em seu O Seminário, livro 5: as formações do
inconsciente (Lacan 1957-8 : 25 1), no capítulo XIV "O desejo e o gozo".

O caso, seu sintoma, a interpretação do analista


Lembremos as principais linhas do caso, tal como descrito no artigo de
Joan Riviere. Essa mulher era uma norte-americana profissionalmente
engajada em uma carreira militante, que a obrigara a falar e a escrever.
Ela sofria de angústia, às vezes intensa, que se manifestava após cada
conferência dada em público. Na noite que sucedia a sua conferência,
ela era tomada por um estado de excitação e de apreensão, temendo ter
cometido alguma gafe ou imperícia, e experimentando uma necessida­
de obsedante de ser tranqüilizada.
É esta necessidade de apaziguamento junto aos homens que a ad­
miram que é considerada fundamental por Joan Riviere. Segundo ela, a
paciente procura evitar a angústia que se liga ao medo de represálias por
parte do pai em seguida a suas proezas intelectuais. Entretanto esse
sucesso surge ligado ao pai, ele mesmo escritor e tendo escolhido uma
carreira política. Joan Riviere nota a evidência dessa identificação com
o pai, mas indica que a adolescência da paciente fôra marcada por uma
revolta contra ele, feita de rivalidade e desprezo para com ele. Para Joan
Riviere, é essa rivalidade em relação ao pai e às figuras paternas sobre
Sobre o sonho da paciente de Joan Riviere: uma interpretação do inconsciente

as quais ela reivindicava superioridade que está na base de sua neurose.


Como o indica Lacan, "a análise mostra que o sentido de sua relação
com as pessoas de ambos os sexos aparece de maneira cada vez mais
evidentemente dominado pela preocupação de evitar o castigo e a repre­
sália por parte dos homens que são aqui visados" (ibid. : 255).

E a de Lacan . . . como "mentira do inconsciente"


Trata-se assim para ela, segundo Lacan, de um coquetismo que lhe
serve não tanto "para tranqüilizar mas para ludibriar aqueles que pu­
dessem ofender-se com o que se apresentava nela como agressão, como
necessidade e gozo de supremacia como tal, e que estava estruturado
em uma história de rivalidade, inicialmente com a mãe e depois com
o pai" (ibid. : 255). Como podemos reencontrar essa noção de embuste
na relação do sujeito com o Outro, e como encontrar no próprio so­
nho o indício do que engana na verdade que é possível decifrar no
sonho?
Retomemos o sonho, pois é de seu conteúdo manifesto que queremos
partir para mostrar em que o sonho libera um sentido que Joan Riviere
interpreta de imediato, relacionando-o com as fantasias do sujeito. Tra­
ta-se nesse sonho de apagar as conseqüências de seus atos "disfarçando­
se" de mulher castrada (Ela "lava a sua falta", interpreta Joan Riviere).
A máscara da mulher castrada é aquela da mulher lavando roupa, as
mangas arregaçadas e os braços nus; essa mulher castrada encarna a
mulher desejável. A mascarada consiste em esconder que ela tem o falo
e portanto em enganar o Outro. O sonho do homem negro que é sedu­
zido por sua posição de mulher servil de fato mostra que o que o sujeito
espera de um homem é ser amada pelo que ela não tem. É nisso que
está a mentira no sonho. Lacan diz que "o desejo de reconhecimento
sustenta uma mentira que pode se apresentar como mentira do inconscien­
te" (ibid. : 256). Ele a refere ao desejo de enganar o analista, pois o in­
consciente não é separável da transferência, como Freud nos demonstrou.
Nossa questão também é a de saber se o sonho do caso de Joan Riviere
não é a mentira do inconsciente na transferência, sobre o qual ela pôde
construir o conceito de mascarada como sintoma da feminilidade.
No texto de Joan Riviere, o sonho vem confirmar a fantasia do
sujeito: em caso de ataque por um homem, é preciso se oferecer a ele
sexualmente para poder em seguida entregá-lo à justiça... o que a analis­
ta interpreta como estando na base do medo de ter desagradado ao pai
fazendo uso de seu falo e, por isso, das represálias. Assim, o sujeito que
teme o pai quer se disfarçar de mulher castrada, para seduzi-lo e eliminá-lo.

1 27
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Vestindo a máscara da inocência, a mulher fálica engana seu mundo, e


não se arrisca a ser presa, já que sob a máscara, o que há?

Penisneid e mascarada
Sabemos que Freud enfatizou o penisneid da mulher, essa reivindicação
de não ter recebido da mãe o falo, reivindicação que pode subsistir
durante toda a vida de uma mulher. Ora, na mascarada, trata-se justa­
mente do inverso do penisneid. O sujeito esconde o que tem para fazer
crer que não o tem. O ter torna-se estorvo na fantasia, já que parece
necessário ao sujeito fazer semblante de ser dele desprovido. Assim o
gozo do sujeito é manter segredo sobre o que tem, para fazer valer o que é.
É o que Lacan observa como sendo "seu procedimento sacrificial, fazer
tudo para os outros, adotando as formas mais elevadas da dedicação
feminina, como se dissesse : 'Mas vejam, eu não tenho esse falo, sou
mulher, e apenas mulher" (ibid. : 255). E isso, o sujeito o dirige essencial­
mente aos homens que a admiraram sob sua fachada de mulher fálica.
Portanto podemos observar dois tempos:
1) Sou o que mostro que sou (um falo);
2) Sou o que eu não mostro que sou (mascarada).
Esses dois tempos podem ser conjugados com o verbo ter:
1) Tenho o que mostro que tenho (o falo);
2) Tenho o que não mostro que tenho (mascarada).
Ter e ser são intercambiáveis. Nos dois casos, o falo está aí. No primei­
ro, ele é exibido e dele o sujeito goza. No segundo, o da mascarada, o
sujeito o esconde para se fazer ser o que não é. Ele mascara seu ter e,
por isso, no semblante ele é.
Mostrar e esconder são portanto duas maneiras de fazer existir o
que se tem. A mascarada é o sintoma que faz existir o ter mascarando-o.
É um sintoma que trata a verdade pela mentira. Se a função do
significante falo é utilizada para apreender de que se trata no caso de
Joan Riviere, pode-se dizer que a mascarada é uma maneira de transfor­
mar o não ter em um bem que os homens gostarão de ter, um bem
desejável. No sonho, é a imagem da mulher lavando roupa (sou o que
não mostro que sou, e portanto sou desejável por não tê-lo).
No segundo tempo do sonho, o homem a admira e lhe acaricia os
braços e os seios. Ele é seduzido por sua máscara de não ter, que dela
faz uma mulher desejável. A mulher desejável para um homem é uma
mulher que não tem. Este é o ideal da feminilidade, embora Joan Riviere

1 28
Sobre o sonho da paciente de Joan Riviere: uma interpretação do inconsciente

se defenda dizendo que ela não pretende que exista uma diferença entre
a verdadeira feminilidade e a mascarada (Riviere 1994: 203). Ela pensa
que a feminilidade é um meio de evitar a angústia. Ora, como a masca­
rada poderia evitar a angústia se não porque, fazendo semblante de ser
privado, o sujeito permanece seguro de que isso não falta. A castração
que o sujeito não pode admitir para si, sua própria castração, ele não a
aceitou do Outro, e antes de reivindicar o falo que não teve, encena,
fantasia que não o tem para, em seu íntimo, assegurar-se de que pode
disso gozar, apresentando-se ora no ter, ora no ser. Sem dúvida, a tese
de Joan Riviere tem o privilégio de pôr em evidência a função de sem­
blante do falo. Nesse sentido, aparentemente sua fantasia não desmente
o sonho que revela que ser desejável não é ser admirada por aquilo que
se tem, mas ser coagida ao ato sexual... para defender seu ter. Que o
sujeito seja capturado neste cenário mostra efetivamente que sua posi­
ção no mundo não impede a questão de seu desejo inconsciente. Assim,
o sonho vela a verdade induzindo a analista a uma série de interpreta­
ções que fixam a questão do gozo na fantasia de ser punida pelo pai. Ora,
por que o pai seria aquele que interditaria a sua filha um tal sucesso?

O pai e a questão da angústia do sujeito


A que pai Joan Riviere faz referência? Por que um pai puniria a criança
que realiza seu próprio ideal? A filha s_eria punida por ter sido tão bem
sucedida quanto o pai. A questão do erro está, parece-me, mal formulada,
pois o que o sujeito teme não é ser punido por seu brilhantismo, mas
sobretudo perdê-lo. É notável que a angústia surja após as conferências,
não antes. Ela não tem cagaço... expressão clássica do medo de uma
exibição em público. Ela tem uma crise de angústia após cada uma de
suas conferências, pois, então, o Outro poderia descobrir seu erro, sua
imperícia, sua falta. E o que ela não deseja de forma alguma é não ser
mais amada pelo pai que sustenta seu desejo. Sua necessidade de reconhe­
cimento junto aos homens vem indicar que ela quer ser amada, tenha
sucesso ou não. Em seu seminário Perspectivas do Seminário 5 de Lacan
( 1999), Jacques-Alain Miller situa o terceiro tempo do Édipo feminino
na distinção feita por Lacan entre e a maternidade e a verdadeira femi­
nilidade, que se caracteriza pelo fato de que a mulher sabe "onde deve
ir buscar o falo, do lado do pai". J.-A. Miller nos mostra que há "dois
status do falo para a mulher", introduzindo uma dialética que ainda não
foi explorada. Aquele que lhe falta não é aquele que pode ter".
No caso de Joan Riviere, o falo que ela pode ter (o do pai) justa­
mente não é aquele que lhe falta. Este último, ela não o aceitou, ela não

1 29
Os circuitos do desejo na vida e na análise

fez ato de sua falta. A mascarada é o sintoma desse falo que lhe falta e
do qual ela só faz semblante de faltar. Ora, se ela se angustia, é certa­
mente porque a angústia, como diz Lacan em seu "O Seminário, livro 1 0",
"é aquilo que não engana". A angústia não é evitada pela mascarada.
Nesse caso, a angústia está justamente ligada à castração e ao fato de
que a falta não falta. É isso o que cria a angústia, e pode-se apostar
tranqüilamente que a mascarada como semblante não permitiu ao sujei­
to evitar a angústia. A seqüência do relato da análise o mostra, já que as
mudanças operadas no tratamento a fazem decair da posição fálica e lhe
fazem atravessar momentos em que ela não tem mais como recurso a
crença de que o Outro sempre está no horizonte de seu bem querer.
[Tradução : Elisa Monteiro]

Referências bibliográficas
LACAN, Jacques
(1957-8) Le Séminaire, Livre V.· Les Formations de l'inconscient. Paris : Seuil, 1 9 9 8 .

MILLER, Jacques-Alain
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RIVIl',RE, J.
( 1 9 94) "La féminité en tant que mascarade". Em: M.-C. Hamon (org.), Féminité Mascarade.
Paris: Scuil.

130
,,
Metáfora e tempos do Edipo
Ana Meyer, Adriana M. Rubistein, Graciela Ruiz
[Buenos Aires]

Apresentação
Partiremos de uma afirmação de Jacques Lacan: "Falar a propósito das
formações do inconsciente é falar de questões de estrutura" (Lacan 1957-
8: 166). O inconsciente, tal como ele o estabelece, "é um conceito forjado
no rastro daquilo que opera para constituir o sujeito" (Lacan 1964:809).
Lembremos que é o significante o que opera para constituir o sujeito,
sem o qual não haveria um sujeito no real. Este sujeito é o que o
significante representa, e apenas poderá representá-lo para outro
significante. O registro do significante, que se institui pelo fato de que
um significante representa um sujeito para outro significante, é justa­
mente a estrutura dos sonhos, lapsos, chistes e de todas as formações do
inconsciente. Sabemos também que isso explica a divisão do sujeito.
Assim como a constituição do sujeito está ligada às leis do significante,
a elas estão ligados os processos inconscientes.
A substituição e a combinação, as leis do significante, determi­
nam os efeitos de sentido conforme as figuras da metáfora e da
metonímia. Estes conceitos são recursos necessários tanto para a
formalização das formações do inconsciente como para explicar a cons­
tituição do sujeito.
O que Lacan chama de metáfora do sujeito ou metáfora radical se
diferencia, por exemplo, da metáfora surrealista. Esta última se abre a
possibilidades de significação ilimitadas. Lacan, ao contrário, exemplifica
a metáfora do sujeito por meio do acesso de raiva da criança que foi
" O homem dos ratos", recordando a cena em que interpela seu pai,
vociferando: "'Seu' lâmpada, 'seu' toalha, 'seu' prato ... e assim por
diante." O que dessa forma se destaca é a dimensão de injúria em que se
origina a metáfora radical, pois dela provém a capacidade de conceder
atributos (Lacan 1961:869). Esta já é uma maneira de articulá-la a al­
gum objeto, como real, correlata à possibilidade da metáfora do sujeito,
que o institui com atributos injuriosos (mesmo que não seja assim, pois
ninguém poderia nomeá-lo realmente), característica a levar em conta
na reflexão sobre o caso que apresentaremos.
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Em O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente Lacan


anuncia a estrutura da metáfora como aquela que possibilita articular
com clareza o complexo de Édipo e sua mola, a castração. A metáfora
paterna opera sobre a simbolização primordial entre a criança e a mãe:
o pai como significante vem ocupar o lugar do significante materno,
como significante de seu desejo impossível de decifrar.
Lacan dá esse seminário durante os anos 1957 e 1958, época em
que escreve "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose". Nesse escrito, encontramos a conhecida versão da metáfora
paterna, utilizada neste caso particular para precisar a Verwerfung ou
foraclusão, a recusa do significante paterno, operação enigmática em
qualquer urna de suas duas vertentes. No que diz respeito à foraclusão,
no ponto em que o Nome-do-Pai é chamado, responde, no Outro, um
puro e simples furo. A carência do efeito metafórico provoca o furo de
uma inconsistência, a inexistência da significação fálica.
No seminário anteriormente citado, a metáfora se desenvolve em
três passos, que escandem em três tempos as operações essenciais do
chamado complexo de Édipo, ampliando seus efeitos. Lembremos que
cada tempo deve ser pensado como uma operação metafórica, pois cada
um deles é um avanço em relação ao sentido de um vazio do qual a
perplexidade que deixa já diz muito.
Seguiremos cada um deles, tentando acompanhar o raciocínio de
Lacan, uma vez que insistir em uma possível prova de que aí houvesse
uma seqüência também já é muito.
Primeiro tempo : chamado por Lacan de "fálico primitivo", trata­
se da identificação ao falo, o objeto do desejo da mãe, como resultado
de um primeiro efeito metafórico. A significação resultante se desenvol­
ve plenamente em um plano defensivo do real, como enlaçamento de
um imaginário excessivamente enganoso no que diz respeito à sua po­
tência lógica. O falo é um objeto absoluto, que impele, sem que se saiba
bem por quê, à comprovação da sua existência universal.
Traços de homogeneidade caracterizam esse tempo; o modelo
materno é maior porém homogêneo. Reina a aparência em oposição à
potência, já presente porém amortecida, do simbólico e do real, e sua
lógica, tão precária quanto sedutora. Há distribuição eqüitativa, ou seja,
quanto maior, mais falo. A criança se oferece como meio de satisfação
para a mãe. O pai, na realidade, aparece corno semelhante, corno ou­
tro, podendo produzir-se entre ambos uma agressividade especular sob
a forma de uma rivalidade quase fraterna com o pai.

132
Metáfora e tempos do Édipo

Segundo tempo: "Nesse nível produz-se algo que faz com que o
recebido como resposta seja pura e simplesmente a lei do pai "concebi­
da imaginariamente pelo sujeito como uma privação para a mãe" (Lacan
1957-8: aula de 22 de janeiro de1958). É nesse momento que se localiza
a função do pai em sua realidade como metáfora (valor simbólico en­
carnado por ele graças ao tempo anterior), como significante que vem
outra vez no lugar de outro significante. Ele vem no lugar do significante
materno já significado como fálico. Porém o que é a mãe, se há uma
mulher subjacente a ela? Por isso, não se deve entender esse tempo como
uma substituição tranqüila de significantes pacíficos, pois é a mãe que
retoma sua questão de mulher, dirigindo-a plenamente a algum homem
que não é sua cria, originando os maiores alcances desse segundo efeito
metafórico. Devemos pensar qual é o gozo, ou seu desejo, que irrompe
pondo em questão a domesticação do real obtida pela metáfora prévia.
Essa perspectiva nos oferece a oportunidade de poder captar -
conforme o real, o imaginário e o simbólico - as dimensões do pai: algo
da ordem do real deve abalar o acordo imaginário fundamental inicial,
e algo do simbólico, pouco automático e muito responsável, deve pro­
porcionar significantes que domestiquem novamente esse real que, de
fora, retorna conforme um desejo que, pelo menos por um período, não
pensa em voltar a limitar-se à maternidade, abrindo caminho para signi­
ficações novas.
Não ser o falo da mãe é o efeito da segunda metáfora, e por isso a
conseqüência é a castração fálica materna. Ponto nodal que não é sim­
ples de franquear e que pode manter o sujeito em uma certa identifica­
ção com o falo. ''Algo que desvincula o sujeito de sua identificação liga-o
ao mesmo tempo ao primeiro aparecimento da lei sob a forma da de­
pendência da mãe e de um objeto, que já não é simplesmente um
objeto de desejo, mas um objeto que o Outro tem ou não tem " (idem).
Essa frase anuncia a passagem ao terceiro tempo que possibilitará alcan­
çar uma posição em relação ao falo que, digamos, "condena" cada sexo
a se confrontar com o Outro sexo. Dizemos "condena" e não "entusias­
ma" porque a moral psicológica de nossos tempos tornou libertos os
delitos deste segundo tempo, desde que se prove a "boa conduta" con­
sistente com a promessa de prosseguir com os bons velhos tempos em
que só se teria que ser o falo da mãe.
Terceiro tempo: o pai foi investido dos atributos fálicos, na ordem
do ter, e não do ser. (Isso ocorre se ele for capaz de introduzir, pelo
menos in extremis, sua capacidade de matar sobrevivendo, com os

133
Os circuitos do desejo na vida e na análise

signos de que assim, além do mais, ele passa bem. Não é a relação
sexual, impossível, mas, afinal, isso produz efeitos, pois é um fato milenar
que nem toda mulher fica indiferente a essa posição). "É por intervir
no terceiro tempo como aquele que tem o falo, e não que o é, que se
pode produzir a báscula que reinstaura a instância do falo como obje­
to desejado da mãe, e não mais apenas como objeto do qual o pai pode
privá-la " (ibid. : 200, grifo nosso). Ao ser o suposto depositário do falo,
o pai o estabelece no lugar de onde pode ser desejado pela mãe resgata­
da como mulher. O menino e a menina, assim como a mãe, encontram­
se inscritos na dialética do ter/não ter. A mãe, ao verificar que não tem
o falo, pode então desejá-lo a partir de quem o possui, outra vez como
mulher, tal como sua filha, o que lhes tornará incômodas as relações
nada fáceis. O menino já não é o falo e, menos aquinhoado do falo na
ordem do ter, poderá por sua vez procurá-lo onde supõe encontrar algo
que o faça crescer, é claro, no simbólico-real (ele confundirá isso com o
imaginário). Essa dialética do ter convoca inevitavelmente ao jogo das
identificações, antigamente conhecidas como Ideal do eu. Dizemos as­
sim porque, com Lacan, nos afastamos desse tempo do Édipo. Ou estamos
além. Não podemos, contudo, estar além de seu núcleo irredutível, que
não é mítico, a castração. Apercebemo-nos de que, a partir do capitalis­
mo e sua ciência, já não há transmissão do terceiro tempo do Édipo e
que é preciso inventar outra coisa. Isso é oportuno porque o inconscien­
te não é tradicional, mas sim constituído pelas invenções de linguagem
(não há outras) reais.
No entanto, reconhecemos que o que operou para constituir o
sujeito deixa rastros: só há vestígio do objeto metonímico; não há mais
de sentido e transmutação subjetiva que não seja metafórica. O pai foi
uma metáfora. O Nome-do-Pai engendra como metáfora o significado
essencial do sujeito, o falo.
Resta para nós comprovar nas formações do inconsciente (quando
demonstradas como tais) os rastros da operação da metáfora paterna: a
substituição, o recalque, a exclusão do real e sua domesticação, a pro­
dução de um novo sentido, o efeito de castração.
Recordemos que Lacan começa definindo o inconsciente como "a
parte do discurso concreto em seu aspecto transindividual, que falta à
disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso
consciente" (Lacan 1953 :248).
"O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por
um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a
verdade pode ser resgatada; freqüentemente já está escrita em outro

134
Metáfora e tempos do Édipo

lugar" (Ibid. : 249). Assinalamos, portanto, o aspecto de tropeço, falha,


fissura, presença subjetiva por meio da qual se apresenta algum achado,
conforme os caminhos que as cadeias associativas traçam. A princípio,
saber sobre o destino que nos é traçado pelo inconsciente.
Abordaremos aqui o caso de um esquecimento que nos pareceu
exemplar, uma vez que foi por meio dessa formação que se pôde re­
construir uma cena infantil essencial na constituição do sujeito e em sua
localização nos três tempos do Édipo.

Caso: catonis
Juan é um cineasta que se apresenta com um sintoma: inibição da
criatividade. Trata-se de alguém que tem de ser criativo, mas que não
pode criar.
Sua queixa, desde o início da análise, foi contínua: paralisado na
vida, posicionado em não poder fazer, não chegar a nada. Nele tudo é
impotência, tanto nos planos econômico e de trabalho, como no afetivo.
Não pode fazer, não pode falar e sente-se inferior ante a atividade
profissional desempenhada por sua esposa.
O fragmento que apresentamos a seguir relaciona-se com um
momento de sua análise em que afirma que quer mudar e descobrir o
que se passa com ele.
Ao perguntar-se sobre sua falta -de iniciativa, lembrou de um rela­
to de sua mãe durante um jantar familiar. Nesse jantar, ela conta que seu
filho, até os cinco anos, fôra muito criativo e inventar nomes era o que
ele mais gostava de fazer. Nesse momento, a esposa de Juan pergunta
por que ele deixara de sê-lo, ao que sua mãe responde: "por causa da
chegada dos irmãozinhos".
Ele pensa então que isto bloqueou sua criatividade, acrescentando
que não põe nada em prática, não leva nada adiante.
A analista lhe diz que talvez seja por temor de fazer um papel ridículo.
Apesar da significação materna, suas associações o conduziram a
uma cena que ele pôde descrever da seguinte maneira: "Quando penso
no que se passou, o cenário é a casa do meu avô paterno, a imagem se
repete como se ali fosse se desenvolver uma cena que tem a ver com
tudo isso... A casa de Las Heras está muito viva: três janelas com varan­
das, um grande living, uma entrada meio escura, um corredor compri­
do, uma sala de jantar gigantesca. Nesse lugar sombrio, meu tio me
disse : Nunca mais diga isso. Eu havia inventado um nome para ele, era
um nome fictício de que não consigo lembrar, e isso o deixou fora de si.
Ele me disse isso em um tom que senti como uma imprensada (apretada)"

135
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Juan continua seu relato: "[ . .. ] como se essa imprensada pudesse


ser ali, onde os outros não viam. Eu monto a cena assim. Recordo a
cena, situo meu tio, porém não recordo o nome que eu lhe dei. Nunca
pude recordá-lo, mas sei que foi uma imprensada".
A analista lhe pede que associe com "imprensada" : "Sinto medo,
uma espécie de ameaça de morte [ ... ] violência, violação [ . . . ] A prensa
de minha situação econômica que me pega por falta de grana [... ]
imprensar um fulano em um seqüestro para conseguir grana [... ] palavra
que usávamos na milícia, situação de ameaça, de morte [ . .. ] a prensa em
uma garota, alguém prensa uma garota".
Juan continua pensando: "Deve ter havido outra situação além da
historinha da minha velha, porque isso foi uma imprensada, uma amea­
ça de morte, algo que me deixou paralisado, atônito ... "
Após permanecer calado por instantes, diz: "Catonis, sim Catonis1 ,
esse foi o nome que pus em meu tio". E continua o relato : "Devo ter
visto coisas na família do meu velho, tão moralista, rígida, sei lá, coisas
impossíveis, obscenas. Devo ter me horroriado com o que vi em minha
própria família. Sempre fui muito espião [ ... ] Essa história de calar a
boca de alguém deve ter uma razão. Sinto que não falo de medo, as
palavras não saem, tenho medo de que o outro se aborreça com o que
eu diga e reaja mal."
Sua analista diz: Catonis. Ele ri.
Posso ver esse meu tio, que era falso, escondia coisas, quando
se descobriu que ele chifrava minha tia com a amiga dela que
morava em frente; justo ele que era tão sério e moralista. Será
que por acaso descobri algo? [... ] Também há uma relação de
semelhança, esse irmão do meu velho era casado com a irmã da
minha velha. Eram do mesmo sangue, eu podia tranqüilamente
ser filho dele. Eu e meus primos temos a mesma origem. Fisi­
camente me pareço mais com esse meu tio do que com meu
velho, o rosto, os gestos. Sempre me disseram que rio como
ele.
No momento em que isso aconteceu eu falava bem, não media
as palavras; creio que as palavras me davam um certo poder
com meus tios. Claro que quando cresci isso mudou. É como
se eu tivesse parado de falar.
Os adultos da família me punham na berlinda - parece que
fazia muita graça - eu ali no meio dizendo coisas, esses nomes
1 N. do T. Termo próximo ao espanhol Catón, que significa Catão, censor,

inflexível, homem de costumes e princípios austeros.

136
Metáfora e tempos do Édipo

que eu inventava. O meu tio era o único que ficava furioso com
isso, e mais ainda se eu o fazia em público.
Daí a força que têm as palavras, como se o que eu dissesse me
pudesse jogar totalmente a favor ou contra, fossem demais ou
de menos. Por isso não falo, porque não quero me comprome­
ter. Cada palavra que sai da minha boca está totalmente proces­
sada. Filtro tanto que não produzo nada.

Comentário
Tentaremos articular as considerações teóricas com o caso que acaba­
mos de narrar.
Em primeiro lugar, será possível dizer que esse esquecimento é
uma formação do inconsciente? Para tal, podemos situar nele os ele­
mentos de estrutura necessários? Encontramos o esquecimento pontual
de um termo: Catonis, e trataremos de demonstrar que é possível cons­
truir a metáfora e considerá-lo uma formação do inconsciente. Veremos
que é possível seguir as redes metonímicas ao longo das associações do
sujeito, assim como produzir a recuperação do termo ao final das mes­
mas.
Passemos então ao caso. Trata-se de um sujeito, dedicado à arte,
que apresenta uma inibição em sua criatividade da qual se queixa, pois
permanece na posição de impotência: !'}ão pode fazer, não pode realizar,
está paralisado, sente-se inferior. Apresenta-se uma significação que
poderíamos situar como (-q>), que nomearemos de falta de criatividade.
Em determinado momento o sujeito dá valor sintomático a essa inibição;
pergunta-se como chegou a ela, e isto abre uma série de associações.
Nelas o significante criativo liga-se inicialmente ao discurso ma­
terno, marcando um antes dos cinco anos em que era criativo e gostava
de inventar nomes, e um depois em que deixa de sê-lo. Podemos situar
assim um (q>) e um (-q>).
O significante criativo funciona como o resto metonímico chave
que conduz ao esquecimento e que se liga a diversas cadeias : a da arte
de um lado, mas também a que o posiciona como o falo materno, pri­
meiro tempo do Édipo. No j ogo reiterado de inventar nomes, o sujeito
encontrava a complacência materna. Era criativo para ela. Podemos
imaginá-lo no centro da cena fazendo rir, fazendo o espetáculo para sua
mãe e sua família, e gozando disso. O termo criativo, nessa seqüência,
não vale então como ideal, mas desvela sua posição fantasística como
falo imaginário da mãe, proporcionando uma resposta tão plena quanto
enganosa ao enigma do desejo do Outro.

137
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Pode-se montar uma primeira forma da metáfora, correspondente


ao primeiro tempo do Édipo, e que situa a posição subjetiva na qual o
menino se encontra antes do episódio com o tio e antes de que o termo
seja afetado pelo esquecimento.
Nela, Catonis, um dos nomes que ele inventa, pode ser localizado
como NP, operando nesse momento como algo avalizado pela mãe, a
modalidade de ser criativo (<p). O menino responde e significa o x do
DM, digamos assim, com todo seu ser.
Podemos escrever isso desta forma:

=
Catonis DM
DM x ser <p
s = o criativo

Essa significação o liga à fantasia materna, ou seja, à modalidade


com a qual a mãe o investiu falicamente.
Sua pergunta sobre quando deixou de ser criativo conduz a outra
série de associações que o levam à imagem da casa e do avô paterno,
que se repete com especial nitidez e detalhes. Esta toma o valor da
imagem hipernítida dos afrescos de Orvieto que Freud recorda, apesar
de não poder lembrar o nome de Signorelli, o que Lacan considera
como a domesticação de algo inominável. O sujeito se refere a ela como
uma "imagem que se repete como se ali fosse se desenrolar uma cena
que tem a ver com tudo isso". A partir daí, lembra da cena em que o tio
lhe proíbe de voltar a dizer "este nome". Um nome, nos diz, do qual
jamais se lembrou. Em troca, recorda que essa intervenção do tio fôra
uma coação muito intensa, que ele logo significa como "imprensada".
Que valor ele dá a esta cena? O que aconteceu ali com ele ? Pode­
se pensar que a intervenção do tio, sua prensa, abalou a significação que
o sustentava como f alo materno, o que demonstra a potência puramente
imaginária que é a criança na posição de ser o falo e a facilidade com
que se cai dessa posição. Desse ponto de vista, o tio opera ali como o
agente real da castração, além do tom mais ou menos feroz com que o
paciente o situa, introduzindo uma função simbólica que o sacode de
sua posição anterior. Nesta operação, essa fala imperativa do tio, ope­
rando como N. P. , dá lugar a uma nova metáfora e à produção de uma
nova significação que instalará o sujeito em (-<p), "a falta de criatividade",
metáfora da castração.

138
Metáfora e tempos do Édipo

Em relação ao esquecimento, podemos dizer, por enquanto, que


Catonis cai como efeito da comoção muito brusca que sacode a fragili­
dade com que se situava como "sendo o falo". Os nomes que ele in­
ventava e que o sustentavam nessa posição fálica, ligados a um gozo verbal
e escópico, cessam de atuar frente aos outros a partir da intervenção do tio.
Em seu lugar, aparecem a inibição da criatividade e um esquecimento.
Retomaremos mais adiante essa questão, sem deixar de assinalar até que
ponto, em suas recordações, ele ainda busca como desmentir a autoridade
da fala do tio, recusando seu sentido benéfico, meio pelo qual o efeito da
castração se refugia no sintoma, ao passo que com este ainda se mantém em
suasfantasias mais íntimas, como o "criativo para a mamãe".
Podemos explorar distintos termos com os quais se pode montar a
metáfora do segundo tempo, conforme a perspectiva que acentuamos: a
da metáfora da castração, com a produção do (-<p) ou a que nos aproxi­
ma de x.
Caminharemos passo a passo. Em uma primeira leitura, podemos
situar o termo Catonis embaixo da barra, recalcado, por que alude à
significação fálica prévia, nomeando o desejo materno. Operando como
Nome-do-Pai no segundo tempo do Édipo, podemos situar o significante
da interdição do tio, da maneira pela qual ele o significa retroativamen­
te como "imprensada", produzindo-se como resultado desta operação
uma nova significação: há castração imaginária.
Podemos então escrever:

"imprensada" (interdição do tio) DM


Catonis X = - cp
s = falta de criatividade
(não poder ser o que acredita ser)

A figura do tio é acompanhada de uma série de significações que o


situam como prepotente, inconsistente, falso. Difamações que podiam
ser pensadas como uma primeira via identificatória, indicativa de um
certo avanço em direção ao terceiro tempo: fantasias de rivalidade (ca­
racterísticas do segundo tempo) que nesse caso não aparecem em rela­
ção ao pai, mas remetem ao tio. Porém a modalidade vingativa não
mostra um princípio de assunção do ter, uma confrontação entre os que
têm. Ela está mais próxima de correr para refugiar-se junto a mamãe
para lhe dizer não só que papai é mau, como também para partilhar que
é um fantoche.

139
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Também é possível ver aqui a dimensão de injúria em que Lacan


situa a origem da metáfora. Ele pusera no tio um nome que o ridicula­
rizara, porém isso não com a raiva de uma disputa, mas sim buscando o
real com as palavras. A intervenção do tio pôs em evidência que as
palavras não são meros jogos de palavras, e que ele não as usava de um
modo apenas imaginário, mas também irresponsável, um jogo fantasístico
de "Sua majestade, o bebê". Porém é fato que, desde então, o sujeito
permaneceu mudo a esse respeito.
Poderíamos dizer que o tio produz um corte e que este faz sinto­
ma, porém exploremos um pouco mais o esquecimento e os termos da
metáfora do segundo tempo, levando em conta a perspectiva que nos
conduz a x.
Recordamos anteriormente que, na fórmula da metáfora, Lacan
considera que três termos são significantes e que o quarto é uma signi­
ficação sob a qual há um x, um real em jogo, um elemento que não é
significante. As formações do inconsciente são soluções para o efeito
traumático da articulação direta do significante com o real, e por isso
rastreá-las tem o valor único e preciso de nos conduzir ao x. Não há
outro caminho propriamente analítico. Desde o princípio, Lacan insis­
tiu em buscar na metáfora o termo que, como Herr no caso Signorelli,
funcionaria no limite do dizer, que provoca angústia, e que precisa ser
substituído, domesticado pelo trabalho do inconsciente e pela metáfora
paterna.
Por que Catonis cai ? Por que diante da intervenção do tio produz­
se essa formação do inconsciente como esquecimento do nome? Por
que não se produz apenas uma decisão de não voltar a dizê-lo, o sujeito
conservando-o com todo o seu valor de arma secreta e, fundamental­
mente, de chiste? Catonis é simplesmente esquecido, ou é um termo
equivalente a Signorelli, que cai em razão de sua ligação com outro que
o arrasta ? E se isso é verdade, qual seria no caso este termo ? Ou, de
outro modo, Catonis é um termo recalcado equivalente aoHerr do caso
Signorelli ?
Retomemos a cena e a cadeia associativa para ver se encontramos
o termo mais próximo de x.
Entre as associações que surgem a partir do termo "imprensada",
há algumas que podem ser localizadas como significações imaginárias
pacificadoras, que parecem ir de encontro a x: "aperto econômico",
"dar uma prensa na garota", "prensadas na milícia", coisas de homem.
Porém algumas delas conduzem à ameaça de algo indizível, como a
morte, há algo que o deixou paralisado e... "atônito". Insistamos que, ao

140
Metáfora e tempos do Édipo

chegar a esse termo, o sujeito se detém e lembra do nome esquecido:


Catonis.
A intervenção do tio parece ter produzido um forte impacto que
fez vacilar e perturbar a fantasia em que o sujeito se sustentava. Essa
vacilação não fez surgir diretamente um (-cp), como um descomple­
tamento de sua fantasia. Sua fantasia foi humilhada por alguém: a-teu­
tio você não o diz mais, hoje dir-se-ia que ficou atônito. Algo o remeteu
a um real, ao olhar que subjaz ao seu espetáculo, caído o cenário.
A dita intervenção, a "imprensada", pode ser lida em uma dupla
vertente. Por um lado, uma dimensão de lei, interditara, que opera como
metáfora da castração, produzindo (-cp), um (-cp) todavia que se articula no
sintoma ("inibições de criador"). Por outro, a intervenção do tio apresen­
ta uma vertente real, que goza, que produz angústia, que, enfim, remete
aos "assuntos incômodos" freudianos, a sexualidade e a morte.
Certamente não é fácil localizar nesse caso o termo equivalente ao
Herr freudiano. Por que ele esquece Catonis?
Lacan nos diz que o esquecimento como formação do incons­
ciente se produz em um ponto de vacilação de onde, ante a presença
de x, apela-se a uma metáfora da qual não se dispõe, que não chega a ser
subjetivada para seu emprego. Vazio que, todavia, produz a armadura da
substituição já produzida no inconsciente, mas da que não se dispõe para
seu proveito semântico. Há aí, sem dúvida, uma sutileza do inconsciente.
Aparentemente Lacan não retoma esse t_ema, porém sua indicação é im­
portante para que nós não consideremos resolvido o enigma da relação
entre o esquecimento e o inconsciente.
Nesse caso, podemos pensar que o menino, instalado em um tem­
po 1 , e em seu jogo gozoso de ser o falo sem descrédito, não dispunha
de uma metáfora de si mesmo como sujeito que lhe servisse de desejo­
lei. Estava alienado em uma fantasia que comprometia bastante os po­
deres da palavra, em uma idade já avançada, cinco anos.
Nesse sentido, Catonis não é um termo articulado ao recalque
primário, equivalente a Herr, mas um termo atraído, arrastado em dire­
ção a outro que aludia a x.
É notável que atônito, termo posterior que alude a x, mostre uma
proximidade fonológica tão forte com o termo que arrasta para o esque­
cimento, Catonis, e que baste dizê-lo para que o sujeito recorde o termo
esquecido há muitos anos. Algo presente em atoni, como significante
indizível, arrasta consigo Catonis.
Se compararmos com o caso freudiano podemos pensar Catonis
como termo esquecido, equivalente a Signorelli; atoni (como máxima

141
Os circuitos do desejo na vida e na análise

homofonia simples) equivalente ao Signor, como uma primeira substi­


tuição de um termo recalcado situado no limite do real. DeAtoni se vai
a atônito tal como de Signor vamos ao Senhor absoluto à italiana. Atô­
nito já é uma explicação, culta, para o enigma que produz a interven­
ção.
É possível então reformular os termos desta metáfora do segundo
tempo de um modo hipotético, mais próximo ao caso paradigmático,
para dar conta do x e do lugar em que se produz:

[Catonis] a(o) tio n (ão)


atôni (to) ("imprensada")
a(teu) tio n(ão) X=a
("imprensada") s = não te vês de onde te olham

Esta escrita em relação ao caso é uma hipótese, no entanto é uma hi­


pótese razoável, ou seja, o que de mais sério transmite a psicanálise. É séria
porque só a construímos no lugar em que uma série lógica nos deixa
diante de um vazio. É o caminho freudiano resgatado por Lacan e nos
permite ir adiante na análise do esquecimento. Não há um passo direto
de (<p) a (-<p) tão eficaz quanto encobridor da presença do objeto no
intervalo. Nessa cena há um perfume a ser exorcizado com os meios
significantes. A "imprensada" esconde um significante que se aproxima
do limite do dizer. Atônito permite construir porque: a) é o significante
que reintroduz efetivamente o esquecido há anos; b) tem uma articula­
ção significante pura e sem sentido com Catonis . Dispor de atônito
como significante metafórico abre uma possibilidade para o ganho de
saber inconsciente. Da pergunta atual sobre a criatividade produz-se
uma longa cadeia de restos metonímicos até a suspensão do recalque.
A lembrança não se produz pela via associativa que vai em direção ao
significado do tio como prepotente, mas sim pela via que remete à
imprensada, atônito, Catonis. É importante enfatizar que a semelhança
fônica que nos interessa não é qualquer uma, não é um jogo de palavras,
o puro gozo da homofonia, mas sim a que justamente põe em jogo a
relação do significante sem sentido com o real.
O que podemos dizer nesse caso do terceiro tempo do Édipo ?
Se esse tempo é produzido, devemos encontrar indícios de uma
identificação com o tio operando do lugar de Ideal do eu, como um
emblema do ter. Essa operação não nos parece concluída no caso, ainda
que algumas associações pareçam indicar a identificação com certos

142
Metáfora e tempos do Édipo

traços do tio: sua semelhança física (riso, gestos), ser do mesmo sangue,
ter a mesma origem por ser irmão do pai. Porém não aparecem atribu­
tos do Ideal que permitem ao sujeito se sustentar nesses emblemas, o
que poderia localizar uma saída pela identificação. No fundo essas as­
sociações constituem uma pergunta do sujeito: o que sou para o Outro
se o Outro não é minha mamãe ?
Desta operação do segundo tempo permanece uma transação, e
nela o sujeito fixa sua posição neurótica: renuncia ao gozo do primeiro
tempo, mas o conserva articulado a seu sintoma, deixando fixada sua
possibilidade criativa em "dar show", e relacionada ao gozo da fantasia
fálica materna (divertir a mamãe); como o sintoma se articula como
inibição, ele não pode falar, não pode criar. Faz sintoma em análise e há
um longo percurso para que a criação possa abrir-se para ele em um
sentido real.
O tratamento deverá abordar isso. Se os sintomas são entraves
ocorridos no segundo tempo do Édipo, na direção do tratamento a
subjetivação da castração deverá passar por essa "criatividade fálica" a
que continua preso arrastando com seu sintoma.
Para concluir, retrocedamos enfatizando algumas questões.
Por um lado, é possível dizer que o caso prova o valor das forma­
ções do inconsciente na direção do tratamento. É interessante consta­
tar como um pequeno esquecimento nos dá a razão precisa de uma
série de sintomas de que o sujeito sé queixa, e nos leva a situar a
posição em que se encontra fixado, na passagem do primeiro ao se­
gundo tempo do Édipo. São dados estruturais para a direção do trata­
mento.
Ao mesmo tempo, esse esquecimento nos dá a pista para ir bus­
carmos ali o x, orientando nossa intervenção na direção contrária ao
trabalho do inconsciente, desatando as significações fixas. Nesse senti­
do, embora seja importante considerar as formações do inconsciente
como o que conduz a um efeito de castração (-cp) , trata-se de localizar
um elemento distinto, oculto na fantasia, que permita orientar as inter­
venções na direção do real.
Pareceu-nos importante retomar o valor posicional dos termos na
metáfora, ver como no mesmo lugar em que a fantasia vacila e que algo
de real aparece, a metáfora, trabalho do inconsciente, o recobre com
uma significação. É nesse ponto que devemos seguir a cadeia associativa
buscando os restos que nos conduzem ao termo recalcado, os que nos
aproximam do x, sem dar por estabelecido que o termo esquecido coin­
cida necessariamente com o recalcado.

143
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Encerraremos com uma citação de Lacan que nos parece


esclarecedora. Em O Semindrio, livro 5: as formações do inconsciente,
logo após precisar a função da metáfora e localizar Herr como o termo
recalcado em sua análise de Signorelli, ele diz: "por mais grego que
possa parecer, isto é rico em conseqüências. Se vocês lembrarem disso
quando for preciso lembrar, isso lhes permitirá esclarecer o que se pas­
sa na análise de uma dada formação do inconsciente e explicá-la de
modo satisfatório. Ao contrário é preciso precaver-se, pois se vocês
elidirem isso, não o levarem em conta, serão conduzidos a entificações
ou a identificações totalmente grosseiras, sumárias, que, se não causa­
rem erros pelo menos podem levar a sustentar os erros de identificações
verbais que desempenham um papel importantíssimo na construção de
uma certa psicologia - a da indolência, precisamente" (Lacan 1957-8 :
aula de 20 de novembro de 1957).
[Tradução: Heloisa Caldas]

Referências bibliográficas
LACAN, Jacques
( 1 9 5 6 ) "Función y campo de la palabra y dei lcnguajc en psicoanálisis", Em: Escritos [.
Cidade do México: Siglo XXI, 1 9 84 .
(1 957-8) E / Semindrio, libra 5: Las (ormaciones dei inconsciente. Buenos Aires: Paidos,
1 999.
( 1 9 6 1 ) "La mctafora dei sujeto". Em: Escritos II. Cidade d o México: Siglo XXI, 1 9 8 4 .
( 1 964) "Posición dei inconsciente". E m : Escritos II . Op. cit.

144
Um escândalo no mundo
Sophie Gayard
[Paris]

O senhor B. fala sobre a importância que atribui às cartas escritas em


um determinado momento de sua história. São cartas que endereçou a
antigos professores de seu colégio, pouco após o fim de seus estudos
secundários, cartas de cujo conteúdo não fala, mas que há alguns anos
retornam para ele sob a forma da "má reputação" que lhes imputa e da
qual ele é agora o objeto no mundo, isto que as injúrias e os comentários
alucinados que o visam e acompanham sua vida quotidiana testemu­
nham de forma invasiva. Nisso ele situa uma conseqüência daquele ato,
que adquire valor de erro: "Eu jamais deveria ter escrito essas cartas".
Foi tal fragmento clínico que me fez falar-lhes sobre esse paciente
que acompanho há uns dez anos.
Por que essa escolha? Mesmo que a clínica das psicoses, e mais
particularmente a da esquizofrenia, à primeira vista não figure como
um tema central de O Seminário, livro 5, foi a sua leitura o que me
conduziu a interrogar uma outra vez esse caso clínico.
Se, com o esquema L, Lacan formula em "De uma questão preli­
minar a todo tratamento possível da psicose" que "a condição do sujei­
to, S, (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro"
(1958 : 549), a construção do grafo em O Seminário, livro 5 desenvolve
diversamente o eixo S ➔ A, articulando-o desta vez às leis da linguagem
e não mais somente às leis da palavra. Disto decorre a renovação da
interrogação sobre o status do Outro nas diferentes estruturas clínicas.
Em O Seminário, livro 3 , Lacan consagrara seus esforços na formulação
do mecanismo que opera na psicose, a saber, a foraclusão. Com O Semi­
nário, livro 5, o que está foracluído para o sujeito psicótico é particula­
rizado: um significante, o significante do Nome-do-Pai, um significante
que está "no interior do Outro, um significante essencial" (Lacan 1957-
8: 147).

Mas com que Outro o Senhor B tem de se virar ?


Para ele, uma constatação se impõe, cujo enunciado repetido tantas
vezes é quase uma queixa : "Ninguém fala comigo" (On ne me parle
pas). Para ele, no entanto, a rede de trocas verbais em que está inevita-
Os circuitos do desejo na vida e na análise

velmente preso em sua vida quotidiana não contradiz essa afirmação.


Esse "ninguém fala comigo" é correlato a um "falam de mim". Há
muitos anos as alucinações quase incessantes que o visam indicam cla­
ramente que falam dele no mundo: vizinhos, familiares, desconhecidos
com os quais cruza na rua, estações de rádio ou de televisão, as equipes
de tratamento psiquiátrico que dele cuidam, citam e por vezes injuriam
seu nome, confrontando-o com a única mensagem que lhe parece provir
de um Outro bem pouco consistente que ele tenta apreender com esse
"ninguém" (on). Ele sabe "que dele se faz um escândalo no mundo". Ele
não pode dizer nada sobre esse escândalo. Em contrapartida, ele agora
torna as cartas responsáveis por isso, cartas que ele teria escrito a anti­
gos professores de escola, pouco tempo após os exames finais. Há vinte
anos aproximadamente. Naquela época, tanto como hoje, e já havia
alguns meses, ele não estava bem, por vezes não dormia, outras tantas
não comia, passando algumas horas por dia no chuveiro. Malgrado esse
quadro inquietante, sua primeira hospitalização só ocorreu cerca de um
ano depois.
Pois bem, para ele as coisas hoje se articulam do seguinte modo:
ele remeteu as cartas; em troca, dele fizeram um escândalo no mundo.
Minha hipótese é a de que essas cartas são uma tentativa de cons­
tituir um Outro que possa ter a função para ele de um parceiro distinto
do real da língua. Que para ele o significante seja próprio ao real, ele o
atesta em cada frase. Um exemplo o ilustra particularmente: em um
dado momento, assinalando-me sua dificuldade de não ceder aos aces­
sos de bulimia, ele explica sentir a fome como um soco antes da hora
das refeições. Ele prossegue dizendo: ''A fome aperta" [la dalle se creuse],
e acrescenta: "É porque lá onde morava havia embaixo da minha casa as
edições Dalloz". Mas se o editor dos códigos da lei estava embaixo de
sua casa, o significante que "autoriza o texto da lei" (: 146) para ele falta
no lugar do Outro.
E para o Senhor B., a própria constituição desse Outro é proble­
mática. Assim, essas cartas podem ser situadas em um duplo registro,
em um duplo movimento. De um lado, elas assinalam a foraclusão; de
outro, revelam a tentativa do sujeito de evitá-la, tomando alguma coisa
a seu encargo.
O que essas cartas atestam sobre a primeira dimensão, a foraclusão
do Nome-do-Pai, e seus efeitos sobre o sujeito? Endereçadas a professo­
res, elas não deixam de comportar uma colocação em cena do pai, que
se articula à história familiar desse paciente. Com efeito, seu pai, judeu
originário da África do Norte, morto quando ele tinha oito anos, era

146
Um escândalo no mundo

encarregado de inspecionar as escolas judias no Maghreb e no Oriente


Médio. Portanto a escola e os professores são significantes particular­
mente importantes para esse sujeito. Além disso, as cartas foram escri­
tas alguns meses após um episódio que situarei como o momento de
eclosão de sua psicose, ainda que nesse caso me pareça difícil isolar o
momento de "desencadeamento". O próprio Senhor B. data sua doen­
ça, aliás de forma bastante judiciosa, de um "desde sempre". As primei­
ras dificuldades percebidas se apresentaram sob a forma de uma ligeira
queda no rendimento escolar no primeiro ano do segundo grau, quando
antes ele era um excelente aluno. Entretanto é um episódio um pouco
mais tardio que tomarei como o momento de báscula. Nas férias de
inverno, durante a última série, foi organizada por seu colégio uma
viagem a Israel, da qual ele participou. Retornando, foi tomado por
uma forte crise de angústia no avião, pondo-se a gritar. O incidente foi
rapidamente resolvido. É portanto um grito o que dele foi arrancado
pelo encontro com a conjunção da escola e a religião presentificada por
essa viagem.
Por outro lado, em uma segunda vertente, a construção, certamen­
te mínima, feita por esse paciente: "Eu enviei cartas; em troca, fazem de
mim um escândalo no mundo", parece-me provir de uma tentativa de
ele instituir um grande Outro do qual enfim poderia receber a mensa­
gem. Apesar de a operação fracassar e não evitar em nada o retorno
alucinatório, uma certa fixação do Outro no Outro foi no entanto pro­
duzida. Uma significação pode encontrar aí um ponto de parada, como
ligação de causalidade mínima, permitindo ao Senhor B dar conta dos
fenômenos estranhos que experimenta.
Lembremos o início da construção do grafo em O Seminário, livro 5.
"Há uma progressão simultânea nas duas linhas", indica Lacan, e: "a
instituição do Outro coexiste assim com a finalização da mensagem.
Um e outro se determinam ao mesmo tempo, um como mensagem, o
outro como Outro" (ibid. : 90). De fato, o Senhor B. nos dá uma indica­
ção bastante precisa do que não pode se instaurar para ele. Ele diz:
"Minha mãe nunca me falou na forma interrogativa".
Três enunciados bem marcados podem ser distinguidos:
- "Ninguém fala comigo";
- "Falam de mim";
- "Minha mãe nunca me falou na forma interrogativa".
Só-depois, um quarto enunciado constitui a série: "Durante um
período de minha infância, eu não falava".

147
< ls cir"1itos do desejo na vida e na análise

Isto não é um Witz, mesmo se a história freudiana do caldeirão


J H ,de ser aqui evocada como paradigma da colocação em série de enun­
ciados que, tomados em conjunto, se excluem. Para o Senhor B. , não se
t rata de "permitir um modo de pensamento inconsciente" (Freud
1905 : 361). Não há possibilidade de chiste para esse sujeito, pois não há
além do significante que aponte para o sem sentido.
Se quisermos situar esses diferentes enunciados no grafo, verifica­
mos que sempre surge o curto-circuito e a impossibilidade de fazer
funcionar o grafo com seus dois andares.
1) Do Outro lhe vem a mensagem alucinatória em curto-circuito:
"Falam de mim". A este respeito podemos nos reportar ao esquema
proposto por Lacan para Schreber (Lacan 1957-8: 153).
2) Em contrapartida, "ninguém fala comigo" assinala a dificulda­
de de que uma mensagem se constitua como s(A) para ele. O Outro
como parceiro falta, e reina o silêncio.
3) "Minha mãe nunca me falou na forma interrogativa"; a coloca­
ção do segundo andar do grafo, que em O Seminário, livro 5 Lacan
inicialmente apresenta como "o além da mãe" (:200), permanece em
suspenso.
4) Como e a quem falar quando o Outro oscila entre inconsistên­
cia e comando? Esse paciente testemunha uma escolha em um momento
de sua existência: "Durante um período de minha vida, eu não falava."
Um outro episódio de sua história detém aqui minha atenção: a bofeta­
da dada em uma desconhecida na rua, o que motivará uma de suas
hospitalizações. O tema da bofetada é desde então recorrente, e ele com
freqüência fala sobre a vontade que tem de dar uma outra em alguém e
eventualmente do arrependimento de não tê-lo feito.
Essa passagem ao ato, isolada, antiga, o levara ao hospital. Foi a
resposta que ele obteve a partir desse modo particular de se endereçar a
alguém que uma bofetada pode ser! Entretanto eu não situaria a bofeta­
da como um equivalente das cartas.
Se as cartas enviadas pelo paciente parecem-me uma tentativa de
dar consistência a um Outro e de nele se arrimar, a bofetada não deve
sobretudo ser situada como um outro tempo de sua modalidade de rela­
ção com o Outro, o da tentativa, certamente selvagem, de dele separar-se,
quando este torna-se demasiado presente, até mesmo excessivamente
matraqueador? Há nesse sujeito, portanto, uma oscilação quanto ao
status e à estatura que o Outro assume para ele, no que diz respeito

148
Um escândalo no mundo

ao permanente exercício que ele efetua para tentar limitar a invasão de


gozo da qual seu próprio corpo é objeto.
Se a instituição do Outro permanece problemática para o Senhor
B., a do corpo não o é menos. Ele explica, por exemplo, como é coagi­
do a comprar sapatos bastante apertados, que por isso machucam seus
pés, para poder sentir onde eles terminam. Em certas épocas, ele per­
manecia horas a fio sob o chuveiro "porque tinha a pele muito seca"
etc. Numerosos fenômenos poderiam ilustrar esse registro de perturba­
ções apresentadas por ele. Um pouco menos pregnantes hoje, tais fenô­
menos estão longe de desaparecer. Para esse sujeito, que há dez anos
vem me falar toda semana, os benefícios terapêuticos parecem bem
pouco importantes.
Para que, então, eu pude lhe servir? Essa questão, que ele deixou
de se fazer, ganhou um dia a seguinte resposta: ''A senhora pode substi­
tuir meu sofrimento". Continuo sem saber muito bem o que isto quer
dizer, o que é este sofrimento, a não ser que ele é um dos nomes possí­
veis do gozo que o invade. Essa frase, todavia, indica uma operação em
andamento, e uma operação de substituição. Talvez seja esta a operação
que permite a esse sujeito fazer a experiência de uma certa prática de
fala que se distingue dos impasses contra os quais ele em geral se choca,
entre alucinação e silêncio.
O escândalo, termo religioso presente nas escrituras, indica o que
é a ocasião de errar, de cair no erro ou no pecado. É um obstáculo, uma
dificuldade que faz tropeçar. 1
De certo modo, o Senhor B. tem razão: há um escândalo no mun­
do ! É Lacan, contudo, que no Witz traz à luz a verdadeira natureza do
escândalo: o escândalo é "o escândalo da enunciação".
[Tradução: Vera Lopes Besset]

Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund
( 1 905) Psychopathologie de la vie quotidienne. Paris, Payot, 1 9 8 2.

LACAN, Jacques
(1957-8) Le Séminaire, Livre V: Les Formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1 9 9 8 .

1
Segundo as definições do Littré.

149
Sobre [os circuitos d'] a parceria
A teoria do parceiro1
Jacques-Alain Miller
[Paris]

Introdução
A questão do real foi a questão do século XX uma vez que o discurso da
ciência, de modo particular, assenhorou-se da linguagem própria à retó­
rica, e também confrontou a linguagem não com o verdadeiro, mas sim
com o real. Concernindo ao nome próprio e avaliando até que ponto
este nomearia o que verdadeiramente é, ou seja, o que é real, a famosa
teoria das descrições definidas de Bertrand Russell (1905), rebento da
empreitada de Gottlob Frege, é o anúncio dessa questão desde o come­
ço do século.
A reflexão filosófica que provém dessa tradição tem como cerne a
teoria da referência. Até que ponto a linguagem pode ou não tocar o
real? Como a linguagem e o real se enlaçam, dado que a linguagem é
potência de semblante e tem o poder �e fazer ex-sistir ficções? Daí a
idéia de que do ponto de vista do real a linguagem esteja doente, doente
da retórica da qual ela está empapuçada, e que seria necessário curá-la
por meio de uma terapêutica apropriada, para que ela verdadeiramente
se torne conforme o real.
A grande ambição de Wittgenstein e de seus herdeiros é realizar
uma terapêutica da linguagem, chegando a considerar a própria filoso­
fia como uma doença que testemunha a infecção veiculada pela lingua-
-· gem como potência das ficções. Não se trata de resolver as questões
) filosóficas, mas sim de mostrar que elas não se apresentam se nos cura­
/ mos da linguagem, se a submetemos ao real.
� Foi isso o que levou Lacan a passar do Nome-do-Pai ao Pai-do-
Nome. Isso não é vã retórica. A nomeação -dar nomes às coisas, o viés
por meio do qual Frege e Russell realizaram o questionamento da lin-
1
Esse texto retoma uma ampla parte do seminário proferido, em colaboração
com Éric Laurent, no quadro da Seção Clínica de Paris VIII, e intitulado
O Outro que não existe e seus comitês de ética (1996-97), dias 12, 19 e 26 de
março, 23 de abril, 21 e 28 de maio, 4 e 11 de junho de 1997. Texto estabelecido
por Catherine Bonningue.
Os circuitos do desejo na vida e na análise

guagem comum -não é a comunicação, não é a conversa fiada. A no­


meação é a questão de saber como a conversa fiada pode se ligar a
alguma coisa de real.
Em nosso vocabulário, é a função do pai que permite dar nome às
coisas, ou seja, passar do simbólico ao real. Pode-se dispensar o Nome­
do-Pai - Lacan o disse certa vez e Éric Laurent o fez passar ao uso
corrente - sob a condição de servir-se dele. Poder dispensá-lo significa
dizer que o Nome-do-Pai, derivado do conceito de Édipo, não é da')
ordem do real. De fato, o Nome-do-Pai é um semblante relativo que
tenta se fazer passar como sendo da ordem do real. Dito de outro modo,
o Nome-do-Pai não é da ordem do que não cessa de se escrever. Eis por
que Lacan elevou o sintoma, e não o Nome-do-Pai, como o que, na
dimensão própria à psicanálise, não cessa de se escrever, ou seja, como
o equivalente de um saber no real. Quando há o Nome-do-Pai, ele o é
como uma espécie de sintoma, nada mais.
O sintoma é uma lei? Se ele o é, ele é uma lei. particular a um
sujeito, e podemos perguntar em que condições é concebível que haja
sintoma para um sujeito. Se ele é da ordem do real, trata-se de um real
bem particular, já que seria real para Um, e portanto não para o Outro.
Como se sabe, é próprio ao real que só se o aborde um a um, e dessa
constatação decorrem inúmeras conseqüências. Dito de outro modo,
isso põe em questão o que é o real para a espécie humana.
\ ··· Considerar que há sintoma para cada um dos que falam signific;;l
\ dizer que, ncz_nível da espécie humana, há um saber que não se inscreve /
no real, No nível da espécie que fala, não há inscrição no real de um
7aber que diga respeito à sexualidade, ou seja, não há nesse nível o que
chamamos de "instinto", que leva, de forma invariável e típica para
uma espécie, rumo ao parceiro.
O desejo não pode absolutamente servir-se disso uma vez que o
desejo é uma questão. Isso causa perplexidade. A pulsão tampouco pode
servir-se do instinto, já que ela nada assegura no nível do sexual em
relação a esse Outro. Dito de outro modo, naquilo que o estimula a
uma competição, a uma referência com a ciência, a existência do sintoma,-,
exige a modificação do.nosso conceito de saber no real� Se há sinto-
. -�a, �rirão não há sãber nó real sobre a se�ualidade. Se há sintoma como
o que não cessa de se escrever para um sujeito, então há, de maneira
correlata, um saber que não cessa de não se escrever, um saber especial. _-""i
Não é o saber no real, dado que ele não cessa de se escrever. Se há
sintoma, é porque deve haver, para a espécie humana, um saber que não
cessa de não se escrever. Esta é a demonstração que Lacan tenta fazer

154
A teoria do parceiro

brotar da experiência psicanalítica. Se há sintoma, então não há relação


-sexual, há não-relação sexual, há uma ausência de saber no real que
diga respeito à sexualidade.
É muito difícil demonstrar uma ausência de saber no real. O que,
na experiência analítica, nos situa diante desta ausência?
O que a experiência nos ensina em cada caso que se submete à
experiência analítica -Lacan nos fez perceber o seu valor e foi necessá­
rio que o formulasse para que isso se tornasse evidente - é a função
determinante, em cada caso, de um encontro, um aleatório, um certo
acaso, um certo "não estava escrito".
Isto se expõe, se evidencia com bastante clareza, no relato que um
sujeito pode fazer da gênese de sua homossexualidade, ou o mau encon­
tro, instância que de alguma forma irrompe e à qual o sujeito atribui de
bom grado tanto sua orientação sexual quanto o encontro com certas
palavras que decidirão para ele os investimentos fundamentais que
condicionarão em seguida o modo pelo qual ele se remeterá à sexuali­
dade. Além disso, sabe-se que em todos os casos o gozo sexual se apre­
senta sob a forma do traumatismo, ou seja, como não preparado por um
saber, desarmônico ao que já estava lá.
Dito de outro modo, a constância específica que pode ser balizada
na experiência analítica é exatamente a contingência, ou seja, é a pró­
pria variabilidade o que localizamos como uma constante. Variabilida­
de quer dizer que não há um saber pré-inscrito no real. Tal contingência
decide o modo de gozo do sujeito, e é nisso que ela torna evidente a
ausência de saber no real no que diz respeito ao gozo e à sexualidade:
um certo "não está escrito". Isso se encontra, e a partir daí o que funci­
ona como real de referência não é mais o "não cessa de se escrever",
mas sim o "não cessa de não se escrever", ou seja, a relação sexual
como impossível.
Lacan procurou investigar, de uma forma que eu ousaria dizer
torturante, a possibilidade de demonstrá-lo. O real de que se trata aqui
é absolutamente diferente do real da ciência. Como demonstrar uma
ausência de saber? Ele de bom grado permaneceu reservado quanto ao
termo demonstração. Eis por que pôde dizer: "A experiência analítica
atesta um real, testemunha um real", como se, em nosso campo, a con­
tingência regular, encontrada em todos os casos, atestasse o impossível.
De alguma forma, trata-se de uma demonstração do impossível pela
contingência.
É possível escrevê-lo no triângulo abaixo. O impossível, o "não
cessa de não se escrever" é o nome da não-relação sexual (NRS); o

155
Os circuitos do desejo na vida e na análise

necessário para cada um é o que "não cessa de se escrever" do sintoma.


E se constatamos o particular do sintoma, ele a cada vez nos remete à
NRS. O contingente do "cessa de não se escrever" o prova de algum
modo, aparecendo sob duas formas essenciais: o encontro com o gozo e
com o Outro, que podemos abreviar com o termo amor.

impossível necessário
não cessa não cessa de se escrever
de não se escrever l:
NRS

contingente
cessa de não se escrever
encontro com o gozo
amor

Neste contexto, o amor quer dizer que a relação com o Outro não
é estabelecida por qualquer instinto. Ela não é direta, e sim mediada
pelo sintoma. Eis por que Lacan pôde definir o amor como o encontro,
no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo o que nele e em cada um
marca o rastro de seu exílio da relação sexual.
É evidente que o parceiro fundamental do sujeito jamais é o Ou­
tro. Não é o Outro nem como pessoa, nem como lugar da verdade. Ao
·contrário, o parceiro do sujeito, o que psicanálise sempre percebeu, é
algo dele próprio: �yaimagçm -a teoria do narcisismo retomada por
Lacan em "O Estádio do espelho" - �eu objeto a , seu mai;;-de.:gQ_zar �
fundamentalmente�-
Eis esboçada a teoria do parceiro.

Um complemento à teoria do sujeito


Há muito tempo, quando era filósofo, extraí do ensino de Lacan o que
chamei de a teoria do sujeito. Reunindo certo número de considerações
sob a rubrica "teoria do sujeito", respondi a um convite do próprio
Lacan, que por diversas vezes referira o sujeito do inconsciente freudiano

156
A teoria do parceiro

ao cogito cartesiano alterado, modificado, reescrito por ele. A teoria do


sujeito foi estabelecida para permitir a comunicação entre o ensino de
Lacan e as filosofias, em particular, a filosofia cartesiana, os filósofos
pós-cartesianos, sobretudo a filosofia crítica de Kant, de Fichte e a
fenomenologia de Husserl.
Esta tentativa, obviamente datada, não provoca de minha parte
qualquer repúdio, mas sim um complemento. A teoria do parceiro é o
complemento à teoria do sujeito.

O parceiro-Deus, bifacial
Aliás, o próprio cogito cartesiano "Penso, logo sou" possui um parceiro.
Isto não é absolutamente um solipsismo. Há um parceiro no jogo da
verdade.
Que parceiro é esse? Em primeiro lugar, muito simplesmente,
seus próprios pensamentos, ou seja, o seu primeiro parceiro é seu pró­
prio "eu penso". Mas dizê-lo, todavia, já é dizer demasiado porque ele
não pode isolar o seu "eu penso" de seus pensamentos, a não ser que ele
cesse de se confundir com seus pensamentos, cessando pura e simples­
mente de pensar os pensamentos que tem.
E quando ele cessa de se confundir com os pensamentos que tem?
Quando ele se interroga a respeito de seus pensamentos. É evidente que
quando ele o faz, ele se distingue del�s . Ele se interroga - que idéia! -
a ponto de saber se eles são verdadeiros, e até mesmo de saber como
saber se eles são verdadeiros ou não. Isso basta para pôr minhocas em
sua cabeça, em seus pensamentos. A questão da verdade introduz as
minhocas - questão da verdade que, em Descartes, não se distingue da
questão da referência, já que se trata de saber se o pensamento, em
nossos termos, toca ou não o real.
Logo, logo a questão da verdade faz surgir a instância da mentira
sob as versões de um Outro que engana. Eis o parceiro que então surge
para Descartes: um outro imaginário, fictício, um Outro que engana,
que lhe põe essas minhocas na cabeça. É com esse Outro que ele joga
sua partida. Meditações, de Descartes, é o nome da partida jogada com
o Outro que engana, um Outro cujos pensamentos de Descartes seriam
apenas produções ilusórias, que ele emite para desviá-lo.
De saída, a partida jogada com o Outro enganador parece perdida,
necessariamente perdida, já que o sujeito concede onipotência ao Outro
- "você pode tudo" -portanto a potência de enganá-lo em todos os seus
pensamentos, mesmo os que lhe parecem os mais seguros. Uma partida
desigual, radicalmente desigual. O Outro enganador logo o despoja,

157
Os circuitos do desejo na vida e na análise

recolhe todas as fichas, que são os pensamentos postos em jogo pelo


sujeito cartesiano: quanto eles valem? E o Outro que ele imagina limpa
a mesa. Todos os pensamentos podem ser enganadores, não valerem
nada. Nenhum deles traz em si a marca da verdade. Nada lhe resta.
"Tudo perdido, pela honra", acrescentou um rei da França.
O que torna o conto cartesiano encantador é o fato de o sujeito
encontrar o móbil de seu triunfo em sua ruína. Nessa renúncia radical,
nessa máxima pobreza, despojado de tudo pelo Outro, que tudo pode,
exatamente aí ele encontra o seu ser. Ele o encontra em um puro "eu
penso", seccionado de qualquer complemento de objeto, um "eu pen­
so" absoluto, no sentido literal, etimológico, ou seja, um "eu penso"
seccionado, cortado.
O real e o pensamento coincidem quase por milagre. Uma vez usando
este pequeno resto que lhe fica como resíduo do Outro-que-tudo-pode,
a partida está ganha. Um novo império está ganho, pois paulatinamente o
sujeito do cogito recupera seu verdadeiro parceiro, isto é, o Outro que
não engana, esvaziando portanto a ficção do Outro que engana.
É completamente diferente continuar a partida com o Outro que
não engana. Sem dúvida onipotente, porém veraz, pois a onipotência -
este é o axioma de Descartes - se amesquinharia pela mentira. A men­
tira sempre testemunharia um ser diminuído. Onipotente, portanto
confiável. Um parceiro confiável, ainda que onipotente, é impotente,
ele te deixa em paz. Descartes conquista emMeditações um Outro que
o deixa na santa paz de Deus.
A vantagem do Deus de Descartes - continuamos vivendo às cus­
tas dos juros ganhos por ele - é que não precisamos nos inquietar com
ele. Ele não te trairá, nem te pregará peças. Não forjará tocaias, tampouco
surpresas. Não exigirá sacrifícios. O maravilhoso é que esse Outro oni­
potente se mantém bem tranqüilo. Ele representa tudo aquilo que esta­
beleceu de uma vez por todas. Podemos ocupar-nos de coisas sérias,
pois ele é confiável e não nos incomodará.
Para Descartes, essa coisa séria consiste em tornar-se senhor e
possuidor da natureza. O Outro lá de cima não mete o bedelho nas
coisas daqui debaixo. Aliás, ele não tem nada a dizer sobre isso. Onipo­
tente! Onipotente, a ponto de não poder mentir. Tal é o giro extraordi­
nário de Descartes: o Outro é tão potente, ele pode tanto, que não pode
mentir, pois isso o diminuiria, não é digno dele, não está de acordo com
a sua definição lógica. É o silêncio divino! Esse silêncio, é divino! Aliás,
é o que nos permite, fora disso, ficar bestando por aí, pois estamos à
espera de que ele faça vista grossa.

158
A teoria do parceiro

Devemos a Descartes o Deus dos filósofos. Foi ele que o pôs no


mundo, ajudado pela teologia, que muito fez para calar a boca de Deus.
Isso, porém, só se realizou plenamente com Descartes. O Deus para a
ciência. O Deus deduzido, logicamente deduzido.
Este Deus, o parceiro-Deus, nada tem a ver com o Deus do texto,
o Deus escrutado pelo significante bíblico. O Deus do texto bíblico é
um Deus atormentado, mentiroso e atormentador, caprichoso e furi­
bundo, irritado, que prega peças incríveis à humanidade, como a inven­
ção de delegar seu filho para saber o que se fará dele e como ele próprio
aguentará o tranco. Pascal e Kierkegaard se relacionavam com o Deus
de Abraão, Isaac e Jacob, e isso era completamente diferente. Ter um
parceiro como esse para jogar a partida não traz de forma alguma quie­
tude, mas sobretudo temor e tremor.
Há um diferença entre esses dois Deuses-parceiros: esse último
deseja, o Deus da ciência não.
O primeiro capítulo da teoria do parceiro concerne ao parceiro­
Deus, bifacial.

O parceiro-psicanalista desejo
O segundo capítulo poderia ser a psicanálise, dado que o sujeito nela
busca e -espera-se - nela encontra um novo parceiro, o psicanalista.
Com quem se parece o parceiro-psicanalista, o parceiro-Deus ciência
ou o parceiro-Deus desejo? Com os dois. De um lado, há o analista­
ciência. Procura-se o analista medalhão, bastante confiável, nada capri­
choso, inalterável, ou ao menos que não se mexa muito. Lacan chegava
a imajar essa parceria comparando o analista com o morto na partida de
bridge, o que convidaria, o analista a sustentar uma posição cadaverizada,
reduzindo sua presença a uma função do jogo e tendendo a confundir-se
com o sujeito suposto saber.
Na outra face, porém, há o analista-desejo. Mesmo se o seu silên­
cio é divino, sua função comporta que ele fale ao menos de vez em
quando, o que chamamos de interpretação. Isso conduz o sujeito a in­
terpretar os ditos do analista. Desde o momento que o analista fala e se
o interpreta, seu desejo entra no jogo. Não nos recusamos de fazer do
desejo do analista uma função da partida jogada na análise.
Assim, se nos fizermos a questão de saber se o analista lembra o
parceiro-Deus ciência ou o parceiro-Deus desejo, somos forçados a con­
cluir que ele lembra os dois.
O que nos obriga a compará-lo com o parceiro divino? Sem dúvi­
da é mais razoável compará-lo com o parceiro na vida, o parceiro vital.

159
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Observa-se com freqüência que se recorre ao parceiro-analista quando


algo não vai bem com o seu parceiro na vida. Em uma análise, isso se
revela às vezes desde o início, outras em seu percurso.
Queixamo-nos de nosso parceiro vital ao parceiro-analista de vá­
rias maneiras. Fenomenologicamente, isso ocupa parte considerável do
tempo das sessões. Com freqüência, vamos ao encontro do parceiro­
analista para perguntar o que devemos fazer com o parceiro vital, por
exemplo, como foi possível ter sonhado em se juntar com semelhante
praga. Ou ainda, para suportá-lo, para decifrá-lo, quando, por exem­
plo, não conseguimos entender o que ele diz, os sinais que emite, as
mensagens ambíguas, equívocas, até mesmo maldosas, como se ele
falasse por enigmas, e também por que nos ferimos com o que ele nos
diz. Em suma, tratamos a questão do desejo do parceiro junto ao par­
ceiro-analista.
De maneira geral, uma mulher não consegue digerir o que diz seu
homem, tampouco o que diz sua mãe. Isso vai longe, e toda regra tem
sua exceção. Do lado do homem, freqüentemente o problema consiste
em não conseguir escolher um parceiro, não estar certo de qual seria o
melhor, caso tenha vários, ou se ele é bom, caso tenha um. Quando não
o temos, e quando pensamos no fato de não tê-lo, nos perguntamos por
quê. O que impede de tê-lo? Em todos os casos, recorrer à análise
implica introduzir um parceiro suplementar na partida jogada pelo su­
jeito com um parceiro eventualmente imaginário.

A clínica, é o parceiro
Já podemos dizer que o que chamamos de clínica é o parceiro. Na
análise, o parceiro é o real como impossível de suportar. Às vezes, o
verdadeiro parceiro são os pensamentos, como para Descartes, no co­
meço. É possível que o sujeito não consiga suportar os pensamentos que
lhe ocorrem e sejam estes que o persigam. Como conseguir não pensá­
los, como conseguir pensar em outra coisa? Em seguida, lá está ele
recapturado por seus pensamentos. Ele se esforça em anular seu próprio
"eu penso", por exemplo, intoxicá-lo ou anestesiá-lo. É na trama com
seus pensamentos que se joga a partida. É nela também que, em deter­
minada forma clínica, pode ocorrer a idéia de suicídio, entendido aqui
como uma forma radical de se divorciar de seus pensamentos.
Às vezes o parceiro essencial é o corpo, exatamente aquele que se
tem na cabeça, o que encontramos tanto na histeria de conversão -
menos freqüente hoje em dia, menos popular - como na clínica
psicossomática.

160
A teoria do parceiro

Por fim, recorrer à análise é sempre substituir um casal pelo ou­


tro, ou minimamente sobrepor um ao outro. Aliás, o cônjuge, quando
ele existe, nem sempre lida muito bem com isso; ele se opõe, tolera e,
eventualmente, procura um analista. Como pude dizer certa vez, o côn­
juge nem sempre é o sujeito com o qual estamos casados, tampouco
aquele com quem dividimos a cama, o concubino.
À ocorrência de o parceiro cônjuge ser o pai chamou-se histeria
feminina, e disso fez-se uma categoria clínica à parte. É claro que o
parceiro cônjuge pode ser a mãe. O que nomeamos como o obsessivo?
O sujeito cujo parceiro é o pensamento. No caso do Homem dos Ratos,
fala-se sobre a dama de seus pensamentos. Trata-se antes, contudo, de
seus pensamentos sobre a dama. Ele goza precisamente com seu pensa­
mento. E o parnóico? O paranóico é aquele cujo parceiro é o que dizem
os outros e que o visa de maneira maldosa.
O parceiro tem várias caras. Em uma palavra, o parceiro é
multifacetado. Muita variedade, muita diversidade, mas não deixem de
procurar o parceiro. Não se deixem hipnotizar com a posição do sujeito
sem se perguntarem: com quem ele joga a partida?
Na psicanálise, o parceiro é uma instância com .a qual o sujeito
está ligado de forma essencial, uma instância que lhe causa problemas e
que eventualmente é enigmática.

As versões lacanianas do parceiro ·subjetivo


Como circunscrever o parceiro tomado nesse sentido? Em primeiro
lugar, o sujeito não consegue suportá-lo, ou seja, ele não consegue mantê­
to homeostático. Nos primórdios da psicanálise, foi como se conside­
rou o traumatismo.
Em segundo lugar, o sujeito goza repietidamente disso, como na
análise. De modo geral, isso torna-se· evidente, o q�e signÍfica dizer que
o parceiro tem status de sintoma. Sem dúvida o parceiro sintoma é a
fórmula mais geral para recobrir o parceiro multifacetado.
Façamos um pequeno retorno a Lacan, que procurou de fato saber
quem é o parceiro fundamental do sujeito. A primeira resposta foi dada
a partir de 1953: "um outro sujeito". Trata-se de uma concepção dialética
da psicanálise, a introdução de Hegel na psicanálise, tida como bizarra
e apresentada por Lacan como um retorno a Freud. Nessa noção, há
sintoma quando o Outro sujeito que é o seu parceiro fundamental não
reconhece o seu desejo. Daí, o retorno ao analista como o sujeito capaz
de reconhecer os desejos que no devido tempo não foram reconhecidos
como deveriam ter sido pelo parceiro-sujeito.

161
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Pois bem, esse retorno a Freud era uma simples roupagem? Um


simples travestismo? Não se pode dizê-lo, primeiro porque Lacan foi
aos textos de Freud, fez renascer a leitura de seus textos, na verdade um
primeiro nascimento, pois eles até então nunca tinham sido trabalhados
desta forma.
Contudo, havia uma necessidade profunda de que a introdução de
Hegel na psicanálise se traduzisse como um retorno a Freud. Por quê?
A dialética implica que o Outro sujeito, simetricamente, se institua na
relação intersubjetiva. Se o paciente era reconhecido como o sujeito que
deveria se realizar na operação analítica, seu interlocutor, o parceiro,
deveria, ele também, ser um sujeito realizando-se na mesma operação.
Disso decorre a necessidade lógica de valorizar o sujeito Freud, que
fundou a psicanálise na própria operação analítica. Neste sentido, era
necessário que tal introdução de Hegel se apresentasse como um retor­
no ao sujeito Freud, que inventara a psicanálise pela mediação dialética
de seus pacientes. Por extensão, isso valeria para o próprio Lacan,
reinventar da psicanálise no rastro de Freud.
Nessa primeira visão, a partida era concebida como sendo sempre
jogada com um outro sujeito, até mesmo outros, conforme o momento
da sua história, este ou estes outros não o reconhecendo como sujeito e
o analista substituindo o Outro sujeito histórico reticente.
Ora, Lacan partiu daí, mas não parou, a problemática do parceiro
permanecendo como eixo de toda a sua pesquisa. Ela implica -é o que
falta à teoria do sujeito - que o sujeito como tal é incompleto, e que
necessita de um parceiro, a questão sendo a de saber até que ponto ele
o necessita. De fato, o primeiro parceiro inventado por Lacan, na via de
Freud e de "Introdução ao narcisismo", foi o parceiro-imagem ou, mais
precisamente, o parceiro narcísico. "O estádio do espelho" narra que o
parceiro essencial do sujeito é a sua imagem, e isso em razão de uma
incompletude orgânica de nascimento, chamada de prematuração.
Foi daí que Lacan inventou o parceiro fascinante, porque não es­
pecular, o parceiro abstrato e essencial, cujo lugar encontramos na me­
ditação filosófica: o parceiro simbólico.
A série dos parceiros
Prossigo declinando as versões lacanianas do parceiro subjetivo.
O primeiro dos parceiros é o parceiro-imagem e o segundo, o
parceiro-símbolo. Uma série assim se esboça, cujos termos podem ser
enumerados. Não é inútil interrogar-se antes dessa enumeração sobre o
fim da série. E qual ele é? Situemo-lo imediatamente. O fim da série
dos parceiros é o parceiro-sintoma.

1 62
A teoria do parceiro

imagem
símbolo

sintoma

Jogar sua partida


Um parceiro é simplesmente aquele com quem jogamos a partida. Pode­
mos nos referir à etimologia no que ela comporta de aleatório ou de
contingente, sendo o contingente a própria marca do significante.
A palavra parceiro provém de partner, palavra inglesa, importada pela
língua francesa na segunda metade do século XV III, o século francês no
mundo em que o francês era a língua globalizada.
Por sua vez, o termo inglês patern foi tomado do francês antigo,
curiosamente do termo parçonier, que significava "associado"2 • Podería­
mos traduzir parceiro (partenaire) pelo termo associado. O parceiro é
tanto o sócio com quem dançamos quanto aquele ao lado do qual exerce­
mos uma profissão, ou partilhamos uma disciplina ou um esporte.
É também aquele com quem conversamos ou transamos. Com o parceiro,
somos parte interessada "em uma partida".
A própria palavra partida (partie) mereceria que nela nos detivés­
semos, destacássemos os paradoxos que chegam àqueles do objeto parcial,
como se diz na psicanálise, e a partir do qual Lacan forjou o objeto a.
A palavra partida designa o elemento do todo. Esta é a primeira defini­
ção do dicionário Robert. Na seqüência das definições, das traduções
semânticas propostas pelo dicionário, descobrimos, de forma sempre
ambígua, equívoca, que a palavra partida também designa o próprio
todo, já que ela comporta as partes interessadas nesse todo. É por aí que

2 N. do T. O termo parçonier, que literalmente significa "o que divide", provém


da raiz per, que nesta variante tem a idéia geral de "procurar", "encontrar",
"ocasionar" e "acarretar". De seus três troncos, as idéias de "pôr no mundo", de
"preparar" e de "parte", este último formou no latim, entre outras, as palavras
pars, partis (algo acordado com alguém), partitio (partilha) e participis (que
toma parte em); no francês antigo, parçon, parçonier e partance; no inglês,
partner; e no francês, part, partiel, partenaire, partage e participer. Cf.
Grandsaignes d'Hauterive, R. Dictionnaire des racines des tangues européennes,
Paris: Librairie Larousse, 1948.

1 63
Os circuitos do desejo na vida e na análise

a palavra partida está ligada ao jogo (jeu) . Ela designa não só a conven­
ção inicial dos jogadores, como também a própria duração do jogo, "no
final do qual são designados ganhadores e perdedores", diz o Robert.
Se esboço uma teoria do parceiro, é porque o sujeito lacaniano,
aquele a quem nos remetemos, está essencialmente engajado em uma
partida. Ele tem de maneira essencial, não contingente, mas sim neces­
sária, de estrutura, um parceiro. O sujeito lacaniano é impensável sem
um parceiro.
Afirmá-lo é aperceber-se do que há de essencial para o sujeito no
que chamamos, desde Lacan, a experiência analítica, que não é nada
mais do que uma partida, uma partida jogada com um parceiro. Trata-se
de saber como compreender o que a partida de psicanálise pode ter de
essencial para um sujeito, no sentido em que dizemos "a partida de
cartas". Como justificar o valor que pode tomar a partida de psicanálise
para um sujeito senão postulando que existe fundamentalmente, e in­
clusive fora desse engajamento, quer este ocorra ou não, uma partida
psíquica inconsciente?
O sujeito como tal está sempre engajado, quer o saiba ou não, em
uma partida. A existência da psicanálise o supõe, e a partir desse fato,
tentamos imaginar seus fundamentos, o que, por sua vez, conduz à hipó­
tese de uma partida inconsciente. Se uma partida inconsciente é jogada
para o sujeito, é porque ele é fundamentalmente incompleto.
A incompletude do sujeito foi ilustrada inicialmente por Lacan no
estádio do espelho. Nos termos de nossa discussão, o estádio do espe­
lho é uma partida jogada pelo sujeito com sua imagem. Ao considerar­
mos essa construção de Lacan, tendo como pano de fundo a elaboração
psicanalítica, somos levados a dizer que "O estádio do espelho" é a
versão lacaniana do narcisismo freudiano, do que Freud postulou em
"Introdução ao narcisismo" (1914). O narcisismo freudiano parecia pro­
pício para fundar uma autarcia do sujeito. Ele foi lido assim. Há um
nível ou um momento em que o sujeito não precisa de ninguém, encon­
trando nele próprio o seu objeto. Fez-se do narcisismo freudiano a au­
sência de partida, e daí se suspeitou que seriam ilusórias as partidas que
o sujeito poderia jogar em relação ao narcisismo. O estádio do espelho
inverte essa leitura uma vez que ele introduz a alteridade no cerne da
identidade-a-si, definindo desse modo um status paradoxal da imagem.
A imagem de que se trata no estádio do espelho é ao mesmo tempo a
imagem-de-si e uma imagem outra.
A partida imaginária do narcisismo, a-a', foi descrita por Lacan
como um impasse, tanto na vertente histérica quanto na vertente obses-

1 64
A teoria do parceiro

siva da neurose. Dessa partida o sujeito sempre sai perdedor. Ele só sai
às próprias custas.
Em seguida, como afirmamos acima, Lacan introduziu um outro
parceiro que não a imagem, o parceiro simbólico, a partir da idéia de
que a clínica como patologia se enraíza nos impasses da partida imagi­
nária, impasses que exigem tomar a análise como partida simbólica.
Supõe-se que essa partida simbólica ocasione o passe, isto é, uma saída
exitosa para o sujeito.

A conversão de agalma em palea


Na perspectiva que escolho sobre a elaboração de Lacan a partir dos
termos partida e parceiro, a análise deveria ser uma partida exitosa para
o sujeito, o meio de ganhar a partida que ele perde no imaginário, e que
constitui precisamente sua clínica. Daí o paradoxo da posição do ana­
lista como parceiro que, no sentido que Lacan lhe dá, é suposto jogar a
partida simbólica para perdê-la. Como analista, ele só pode ganhar a
partida sob a condição de perdê-la e de fazer o parceiro-sujeito ganhá­
la. Sem dúvida a posição do analista comporta uma dimensão de abne­
gação. O que Lacan chama de "a formação do analista" se enraíza neste
ponto: aprender a perder a partida que joga com o sujeito, de modo que
o ganho seja do sujeito.
Talvez seja possível evocar, tal como presenciei, um fim de análise
em sua rusticidade, sua ingenuidade, sua brutalidade, como diz Lacan,
que valoriza o que isso comporta de ganho para o sujeito e de um
certo desarvoramento correlato para o analista. Eis que ao fim de uma
longa trajetória analítica o sujeito sonha que algo que só pode ser
designado como porcaria sai de sua perna, de cor negra, a cor própria,
dizem as associações, a um objeto do consultório do analista. Algum
tempo depois, eis que o sujeito enuncia, com temor e tremor, que
"ele é um porco". Desse modo, ele faz recair sobre o analista a más­
cara do lobo que de fato se saciara com esse porco - ele próprio
muito ativo do ponto de vista oral - durante anos. Algum tempo
depois, esse sujeito, até então dócil, respeitoso, admirador do analista,
termina por lhe dar uma flechada de Parthe3 : "Você é um pentelho".

3 N. do T. No original: Fleche du Parthe, expressão erudita de meados do século


XIX que evoca a astúcia guerreira dos Pártias, que simulavam fugir para surpre­
ender o inimigo com flechadas atiradas de costas por sobre os próprios ombros;
por extensão, expressão usada para designar ataque ou ironia dirigida a alguém
no final da conversa ou do encontro.

165
Os circuitos do desejo na vida e na análise

E isto é o fim. É o adeus, o golpe de misericórdia: · "Estou vingado" -


são esses os meios: a porcaria preta, o "sou porco" e o "você é um
pentelho".
Essa série constitui um fim de análise absolutamente sustentável.
E eis o analista, lugar de verdade, reduzido à sua essência de merda.
Como dizer de outro modo isso que para o sujeito desperta a sensação
de um maravilhoso alívio na pesquisa da verdade e que não culmina na
visão da essência divina? A elaboração verídica e os sentimentos que a
acompanham, isso não passa de merda para o sujeito. Trata-se de uma
verdade um pouco curta, mas isso pode, a meu ver, representar
validamente um fim de análise, e não uma interrupção.
Nos três tempos que detalhei, percebemos uma envolvente, uma
brutal - para o próprio sujeito - conversão do agalma em palea .
A formação do analista situa-se exatamente no ponto de assumir a con­
versão do agalma em palea, e mais do que isso, de querê-la, mesmo que
o sujeito seja a esse respeito ainda cego, que para ele isso seja impensável,
inclusive doloroso pensá-lo.

O parceiro-símbolo
Falei sobre como Lacan descreveu as estruturas clínicas como impasses,
não como impasses ilusórios, mas sim imaginários, no sentido de que a
verdade tem estrutura de ficção. Com isso, procurava enfatizar que há
tantos modos de tapeação quanto de mentira, o passe devendo ser buscado,
desde o início de seu ensino, do lado do que não engana. Eis por que ele
acreditou, a princípio, encontrar uma saída do lado do Outro, como
Outro da boa fé, aquele que não engana.
Dessa forma ele distinguiu o outro imagem do Outro símbolo, afir­
mando que este último, por excelência, não engana. Como formula na
página 455 de Escritos: "a solução dos impasses imaginários deve ser bus­
cada do lado do Outro, distinguido por um A maiúsculo, sob cujo nome
designamos um lugar essencial à estrutura do simbólico. [... ] o garante da
Boa-Fé necessariamente evocada pelo pacto da fala". Enfatizo aqui o termo
'necessariamente'. Para o primeiro Lacan, havia algo "que não cessa de se
escrever quando se fala". Esta, a referência ao Outro que não engana.
Isso não significa que, nos próprios termos de Lacan (: 458), nos
confins da análise, na zona que diz respeito ao chamado fim de análise
e que também é a expulsão do sujeito para fora do seu impasse, deve-se
restituir na experiência uma cadeia significante? Se opomos o parceiro­
imagem e o parceiro-símbolo, o fim de análise é a restituição da cadeia
significante.

1 66
A teoria do parceiro

A esse respeito Lacan considerava três dimensões. Uma dimensão


referida ao significado, a da história de uma vida vivida como história,
e isso supõe então a epopéia narrada pelo sujeito, a narrativa contínua
de sua existência; uma dimensão significante, a percepção de sua sujei­
ção às leis da linguagem; e o acesso à intersubjetividade, ao "eu" (je)
intersubjetivo, por meio do qual a verdade entra no real. As três dimen­
sões da cadeia significante última valem antes de mais nada pela ausên­
cia que irrompe, a saber, pela ausência de qualquer referência ao desejo
e ao gozo. É isto o que a idéia de uma partida jogada com o parceiro­
símbolo essencialmente comporta. A partida e sua saída exitosa deixam
de lado tudo o que concerne ao desejo e ao gozo.
A fenomenologia da experiência analítica segue essa direção, pois
nela abrimos mão de qualquer gozo assimilável ao que se obtém, de
maneira mais ou menos satisfatória, com o parceiro sexual. A feno­
menologia da experiência analítica parece pôr em evidência que o par­
ceiro essencial do sujeito é o Outro do sentido. Como se diz, enfim
pode-se falar na experiência analítica, enfim é possível apor palavras
sobre aquilo de que se trata, oportunidade que os acasos da existência
não facilitariam ao sujeito. Dito de outro modo, parece que a análise
funda, com seu método, com os meios empregados, o privilégio do
semântico sobre o sexual.
Nesta perspectiva, a operação analítica pode ser definida como a
substituição de todo parceiro-imagem· pelo parceiro-símbolo. É aí, res­
tituindo essa dimensão, que torna-se possível apreender a primazia, re­
tomada por Lacan em um segundo momento, do falo freudiano como
significante.
Tal como o mostro, percebe-se que isso comporta uma modifica­
ção do conceito de Outro. O Outro por mim evocado era o Outro da
boa fé, o Deus dos filósofos. Considerar o falo como significante signi­
fica degradá-lo, afirmar que nele há desejo, motivo pelo qual Lacan
considerou o falo como o parceiro-símbolo. Ele assim arranca o desejo
do imaginário, atribuindo-o ao parceiro-Outro.
O falo é um significante. A inovação, que fez tremer a prática
psicanalítica em suas bases, quer dizer que o Outro não é apenas o
Outro do pacto da fala, mas também o Outro do desejo.
Por essa razão, o parceiro-símbolo é mais complexo do que se
pode pensar à primeira vista, o que levou Lacan a reler e reescrever a
teoria freudiana da vida amorosa em que o parceiro-símbolo aparece,
de um lado, como parceiro-falo e, de outro, como parceiro-amor, ou
seja, não somente como o parceiro da boa fé em relação às tapeações

167
Os circuitos do desejo na vida e na análise

imaginárias, mas também como um parceiro complexo que se apresen­


ta com uma dialética diversificada segundo os sexos. É disso que trata
''A significação do falo", texto várias vezes comentado por mim.
Acrescentemos a nossa série o parceiro-falo e o parceiro-amor,
apondo-lhes os pequenos significantes cp e /t

imagem
símbolo
falo cp
{
amor 1/-..

\
a

sintoma

O parceiro a
Acrescentemos imediatamente o parceiro apresentado ao sujeito por
Lacan: o parceiro objeto a, parceiro essencial revelado por ele a partir
da estrutura da fantasia. Não é o Outro sujeito, nem a imagem, nem o
falo, mas um objeto extraído do corpo do sujeito. A partir daí Lacan
elaborou o parceiro essencial, que o conduziu ao parceiro-sintoma, que
de maneiras diversas, é o parceiro-gozo do sujeito.
Em "Posição do inconsciente", Lacan institui de modo definitivo
o campo do Outro face ao espaço do sujeito, representado por um con­
junto. Encontramos aí de certa forma essa parceria fundamental entre o
sujeito e o Outro, para mostrar que a sua raiz é o objeto a, e que o
sujeito tem essencialmente como parceiro no Outro o objeto a. No
interior do campo simbólico, no interior da verdade como ficção, ele
tem de se haver, ele se relaciona e se associa, essencialmente na fanta­
sia, com o objeto a. Este é de algum modo a substância não apenas da
imagem do Outro, como também do Outro.

S -- A

ffi
168
A teoria do parceiro

O que é a sexualidade? O que é o Outro sexual, se o parceiro


essencial do sujeito é o objeto a, isto é, algo de seu gozo? Na época em
que Lacan nos apresentava o esquema, ele dizia que "a sexualidade é
representada no inconsciente pela pulsão". Algum tempo se fez necessá­
rio para que ele percebesse que a pulsão não representa a sexualidade.
Ela não a representa como relação com o Outro sexual. Ao contrário,
ela a reduz à relação com objeto a. Que conseqüências podem ser
extraídas dessa frase de Lacan? Ora, se a sexualidade só é representa­
da no inconsciente pela pulsão, isto quer dizer que ela não é represen­
tada. Ela é representada por outra coisa, ela é uma representação não
representativa.
Lacan formulou de modo fulgurante a conseqüência dessa não
representação com o "não há relação sexual", o que significa dizer que
o parceiro essencial do sujeito é o objeto a, alguma coisa de seu gozo,
seu mais-de-gozar. Dito de outro modo, a invenção lacaniana do objetoa
quer dizer que não há relação sexual.
O parceiro do sujeito não é o Outro sexual. A relação sexual não
está escrita. O que isso quer dizer, essa fórmula é verdadeiro ou falsa?
Não se trata de dizer que ela é falsa, mas sim que ela não está no real.
Ela está ausente, o que justifica, dá lugar à contingência, ou seja, de­
monstra a necessidade da contingência no que poderíamos chamar de
"a história sexual do sujeito", a narração de seus encontros. Em uma
palavra, isso explica que só há encontros, o que Lacan descobrira ao
isolar a função do significante.
Como a mais simples etimologia o mostra, o significante porta
consigo o arbitrário. A derivação do sentido das palavras que utilizamos
não está escrita como necessária em nenhum lugar. São sempre de en­
contros, cada palavra é um encontro, a incidência de cada uma delas no
desenvolvimento erótico do sujeito está marcada por essa contingência,
o que representamos sob a forma do traumatismo: sempre um encon­
tro, sempre uma má surpresa. A história vivida como história é aquela
das más surpresas que tivemos. Como Lacan o disse, muito antes de
chegar à não-relação sexual: "[ ... ] é pela marca de arbitrariedade pró­
pria à letra que se explica a extraordinária contingência dos acidentes
que dão ao inconsciente sua verdadeira aparência" (Lacan, ''A psicanálise
e seu ensino").
Uma análise só faz valorizar, destacar essa extraordinária contin­
gência. Chamamos de "o inconsciente" as conseqüências dessa extraor­
dinária contingência, ou seja, é a própria contingência que a instância
do significante como tal imprime no inconsciente.

1 69
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Como dizia, foram precisos dez anos para Lacan explicar a razão
dessa contingência pela não-relação sexual. Se há essa contingência, é
porque de maneira correlata algo não está necessariamente inscrito.
O parceiro, na condição de parceiro sexual, jamais está prescrito, ou
seja, programado. Nesse sentido, o Outro sexual não existe em relação
ao mais-de-gozar, vale dizer, o parceiro verdadeiramente essencial é o
parceiro de gozo, o próprio mais-de-gozar.
Daí a interrogação sobre a escolha de cada um de seu parceiro
sexual. Pois bem, o parceiro sexual sempre seduz pela forma como ele
se acomoda à não-relação sexual, ou seja, só seduzimos por meio de
nosso sintoma.
Eis por que Lacan dizia em O Semindrio, livro 2 0: mais, ainda
(1972-3) que é o "encontro, no parceiro, àos sintomas e dos afetos de
tudo que marca em cada um o rastro de seu exílio da relação sexual" o
que provoca o amor, o que permite vestir o mais-de-gozar com uma
pessoa.
Trata-se de uma nova doutrirna do amor em que este não passa
apenas pelo narcisismo. O amor passa pela existência do inconscien­
te, o que supõe que o sujeito perceba no parceiro o tipo de saber que
nele responde à não-relação sexual, ou seja, supõe a percepção, no
parceiro, do sintoma que ele elaborou em razão da não-relação sexual.
É precisamente sob essa perspectiva que Lacan elaborou, nesse mes­
mo Seminário, que o parceiro do sujeito não é o Outro, mas sim o
que vem substitui-lo sob a forma de causa do desejo. Eis aí a concep­
ção radical do parceiro que faz da sexualidade uma vestimenta do
mais-de-gozar.
Quais as vantagens dessa perspectiva? Por exemplo, ela permite
abordar as toxicomanias. A toxicomania segue as linhas da estrutura,
ela é um anti-amor, pois prescinde do parceiro se)f!lal e se concentra, se
dedica ao parceiro (a)-sexuado do mais-de-gozar. Ela sacrifica o imagi­
nário em nome do real do mais-de-gozar. Além disso, a toxicomania é
atual, ela pertence a uma época que prefere o objeto a em detrim�..cki
Içl_e�l, uma época em que I vale menos que a (1 < a).
Se nos interessamos hoje pela toxicomania, que existe desde sem­
pre, é porque ela traduz maravilhosamente a solidão de cada um com
seu parceiro-mais-de-gozar. A toxicomania pertence ao liberalismo, à
época em que nos lixamos para os ideais, em que não nos ocupamos de
construir o Outro, em que os valores ideais do Outro empalidecem,
desagregam-se frente à globalização de que ninguém está a cargo, en­
fim, uma globalização que prescinde do Ideal.

1 70
A teoria do parceiro

O sintoma é metáfora da não-relação sexual


O que o inconsciente interpreta? Façamo-nos a questão. O inconsciente
interpreta precisamente a não-relação sexual, e ao interpretá-la, cifra a
não-relação sexual, ou seja, a cifração da não-relação sexual é correlata
ao sentido que ela assume para um sujeito. É o sintoma o que inicial­
mente libera a cifração da não-relação sexual, e nisso ele vai mais longe
que o inconsciente, uma vez que é suscetível de se encarnar no que de
melhor conhecemos, a saber, o parceiro sexual.
Fixarei assim essa fórmula ponto de basta, tentativa de problemas­
soluções, que estabelece uma conexão entre dois termos do sintoma: 1:,
na definição desenvolvida por Lacan e utilizada na última parte de seu
ensino, e o símbolo do conjunto vazio, que escrevo abaixo por comodi­
dade, para abreviar o que Lacan designou como a não-relação sexual.

I:
-<1>-
Sem irmos mais longe, tomei o símbolo do conjunto vazio, certa­
mente infringindo o fato de que essa relação não pode se escrever na
definição lacaniana. Lacan jamais a escn;:veu, jamais procurou um materna
da não-relação sexual, para a exemplificar a impossibilidade de escrevê-la.
O mérito de tal fórmula foi o de resumir o que pude desenvolver e
estabelecer acerca da correlação entre os termos sintoma e não-relação
sexual, escrevendo-a sob a forma de uma substituição, de uma metáfora.
O sintoma vem no lugar, é metáfora da não-relação sexual.
A fórmula se completa com a modalidade destinada a cada um
desses dois termos, uma vez que a não-relação sexual não cessa de não
se escrever, de não comparecer ao lugar onde, por motivos certamente
equívocos, nós a esperaríamos, enquanto o sintoma não cessa de se
escrever, ao menos para o sujeito. A fórmula lembra assim que a neces­
sidade do sintoma responde à impossibilidade da relação sexual. A não­
relação sexual é uma qualificação de espécie, da espécie do ser vivo,
que chamamos de espécie humana, e à qual, nessa dimensão, não pode­
mos deixar de fazer referência. Tal fórmula quer dizer que não há ser
proveniente dessa espécie que não tenha sintoma, ou seja, não há ho­
mem, no sentido genérico, sem sintoma.
A fórmula permite ver de forma elementar que o sintoma se ins­
creve no lugar do que se apresenta como falha, falha do parceiro sexual

171
Os circuitos do desejo na vida e na análise

"natural". Na espécie, o sexo como tal não indica o parceiro de ne­


nhum indivíduo proveniente da dita espécie, e não basta, como Lacan o
enfatiza, para tornar parceiros aqueles que têm relações. Isto é o que
permite definir a palavra parceiro como o que se põe como termo da
relação que não há.
Se há relação, quando se estabelece o que parece ser uma relação,
é sempre uma relação sintomática. Na espécie humana, a necessidade,
o "não cessa de se escrever" se escreve sob a forma do sintoma. Não há
relação suscetível de ser estabelecida entre dois indivíduos da espécie
que não passe pela via do sintoma.
Mais que obstáculo, o sintoma aqui é mediação. Em certo mo­
mento conduziu Lacan a identificar o parceiro e o sintoma. Poder-se-ia
pensar que o parceiro é sintoma quando ele não é o bom. Pois bem, essa
construção implica o contrário. Q..narceiro sintom.atifü;.4f!.9 é () 1!1.el.hor,
aquele com o qual estamos o màis perto possível da relação.
Assim, na experiência analítica, quando um sujeito testemunha
que tem um parceiro insuportável, do qual se queixa, o bê-a-bá é de
dizer-lhe que não é por acaso que se juntou a ele, e que tal parceiro lhe
propicia o mais-de-gozar que lhe convém. É no nível do mais-de-gozar,
caso se queira operar, que devemos operar. São casos como este que
chamarei de união sintomática, e que tocam mais de perto a existência
da relação sexual.

O conceito atual de sintoma


Pretendo avançar no conceito do sintoma em suas relações duplas com
a pulsão e com o que chamamos, desde Lacan, de Outro, quase-materna
que não possui apenas uma significação nem apenas um uso. Tento
esclarecer e precisar este nome cifrado a que nos referimos, o objeto a.

Um modo-de-gozar sem o Outro


Gostaria de evocar a toxicomania no fio que começa a ser tecido a
partir da dimensão autística do sintoma. Por que nosso interesse?
A toxicomania é um modo-de-gozar em que aparentemente se prescin­
de do outro, que existiria para que se dispense o Outro, e no quai se
goza a sós. Ponhamos de lado, sem esquecê-lo, que em um certo sentido
o próprio corpo é o Outro. Creio ser possível transmitir algo se sim­
plesmente digo, se repito que é um modo-de-gozar em que se dispensa
o Outro, e que por isso o gozo toxicômano tornou-se emblemático do
autismo contemporâneo do gozo.

172
A teoria do parceiro

Tentei resumi-lo com o pequeno materna I < a. O que is1'1> quer


dizer? O I é válido, está em pleno exercício quando o circuito do modo
de gozo deve passar pelo Outro social e o faz de forma evidente, en­
quanto hoje, como dizia Lacan, nosso modo de gozo, de agora em dian­
te, situa-se apenas no mais-de-gozar. É isto o que constitui sua precarie­
dade, porque ele não é mais solidificado, não está mais garantido pela
coletivização do modo-de-gozar, ou seja, ele está particularizado pelo
mais-de-gozar. De modo breve, ele não está mais engastado, organizado
e solidificado pelo Ideal, sendo sua forma contemporânea funcional­
mente atraída por seu status autístico. Como conseqüência, surge o proble­
ma de fazer entrar aí S(A), de forçar o sintoma em seu status "autístico"
a se reconhecer como significado do Outro. Esta não é uma operação
anti-natureza.
Pensemos no ópio. O gozo do ópio é um sintoma que os ingleses,
os imperialistas ingleses, os vitorianos propuseram intencionalmente
aos chineses na bela época do Império. Certamente havia ali uma dispo­
sição, um pequeno fundo tradicional de gosto pelo ópio, mas este sinto­
ma lhes foi sistematicamente proposto, e eles o adotaram. Esse sinto­
ma convinha às finalidades de dominação e o Partido Comunista chi­
nês, ao tomar o poder em 195 1 -como já acontecia nas zonas que se
tinham liberado do imperialismo - começou a erradicação política
desse sintoma.

A 'fábula política e sua moral


Façamos um excurso e reflitamos a respeito de tal dominação pelo sin­
toma. Não há melhor forma de dominar, do ponto de vista do mestre,
do que inspirar, propagar, promover um sintoma, ainda que isso pregue
peças.
Quando os castelhanos derrotaram os catalãos, só lhes deixaram
uma saída sintomática: trabalhar. Os catalãos começaram a trabalhar
enquanto os castelhanos, os senhores, nada faziam. Após algum tempo
o trabalho tornou-se evidentemente uma segunda natureza para os
catalãos. Hoje, apesar de não estarem dominados do mesmo modo,
continuam a trabalhar.
Pensemos também no que aconteceu aos tchecos, quando, na bata­
lha da Montanha Branca, a Boêmia foi derrotada pelos imperiais.
Os tchecos começaram a trabalhar e continuam ... Os austríacos, durante
muito tempo, pararam. Hoje, tendo perdido o seu império, foram de
algum modo forçados a trabalhar. É óbvio que simplifico uma história
complexa.

173
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Podemos observar o sintoma tornar-se uma segunda natureza, no


sentido em que Freud explica a metapsicologia a propósito da neurose
obsessiva em "Inibição, sintoma e angústia" (1926). Há um momento
em que o sujeito adota o sintoma, integra-o à sua personalidade, e cessa
de se queixar. Isso é formidável. Nem os catalãos, nem os tchecos se
queixam de trabalhar, antes são os outros que se queixam do excesso de
trabalho deles.
Há, contudo, uma moral da fábula política. Nossa tendência es­
pontânea é considerar o sintoma como uma disfunção. Dizemos sinto­
ma quando algo claudica, porém a disfunção sintomática só se localiza
em relação ao Ideal. Quando cessamos de localizá-la em relação ao
Ideal, ela vira funcionamento. A disfunção é um funcionamento, é as­
sim que as coisas funcionam.
É preciso reconhecer o quanto a psicanálise contribuiu para a pre­
cariedade do modo de gozo contemporâneo. Ela realmente fez muito
para que a relação entre o Ideal e o objeto a tendesse para este último.
Quando recebemos um sujeito homossexual, vemos que parte da
chamada técnica analítica consiste em não visar de modo algum o aban­
dono da homossexualidade, salvo quando possível, ou qüando desejado
pelo sujeito. Ela visa essencialmente obter do Ideal que ele cesse de
impedir o sujeito de praticar seu modo de gozo nas condições mais
convenientes. A operação analítica visa aliviar o sujeito de um Ideal que
eventualmente o oprime, e de colocá-lo em condições de manter com
seu mais-de-gozar -o mais-de-gozar de que é capaz, o seu - uma rela­
ção mais confortável. A pressão da psicanálise certamente contribuiu
para esta sensacional e contemporânea inversão dos fatores do modo­
de-gozar.
O mestre também tem sintomas. Na história, foi a preguiça que
permaneceu sob a imagem magnífica do Grande de Espanha, para quem
de fato era degradante fazer o que quer que fosse. Ele estava congelado
em uma preguiça divina, que, aliás, atingiu toda a Europa clássica. De
certa forma, não mais nobre que o Espanhol, simplesmente porque
ele não mexe uma palha. Prosseguindo na psicologia dos povos, na
Inglaterra ocorreu exatamente o contrário, onde para uma aristocracia
trabalhadora entregar-se ao trabalho não era decadente, o que lhe va­
leu resultados sensacionais durante um período de dominação do
mundo.
É mais complicado situar a França. No século XVIII, brincava-se
de trabalhar. Maria Antonieta e os carneirinhos são seus símbolos. Não
a preguiça, mas sim a homenagem prestada ao trabalho das massas tra-

1 74
A teoria do parceiro

balhadoras. Isto mudou. A aristocracia francesa foi impedida de traba­


lhar. Quando o burguês gentil-homem se toma por um gentil-homem e
diz: "Sim, o único dissabor que tenho é que meu pai vendia lençóis", se
lhe responde: "Nada disso, tratava-se de um gentil-homem que brincava
com seus amigos de passar lençóis". A nobreza de toga complicou o
panorama, porém o que fundamentalmente mudou as coisas foi a ideo­
logia do serviço público, a sensacional solução encontrada por Napoleão
para fazer trabalhar inclusive a aristocracia, para assim fabricar uma
nova. Ele conseguiu que a nobreza não somente brigasse entre si -era
este o sintoma essencial da nobreza francesa - como também que traba­
lhasse. Para tanto, inventou grandes concursos, as grandes Escolas, a
meritocracia francesa e a produção de uma elite da suposta nação; uma
aristocracia do mérito que hoje, de algum modo, fraqueja em seu funcio­
namento. O sintoma não funciona mais. O amor ao serviço público
como sintoma cai em desuso. Até mesmo os assuntos de corrupção,
com os quais nos encantamos todos os dias, testemunham o enfraqueci­
mento do antigo sintoma que fora inculcado pelo mestre.
A esse respeito, é válido um comentário sobre os Estados Unidos,
cuja vantagem foi a de não terem tido nobreza... Eles acabaram por ter
uma, essencialmente a nobreza do dinheiro. A princípio, ganha-se di­
nheiro de todos os meios e, em seguida, enobrece-se com a filantropia.
Há os grandes museus americanos, as grandes coleções, todas proce­
dentes de trabalhadores enriquecidos.
• Fiz esse pequeno excurso para ampliar um pouco o conceito de
sintoma. Sem ele, estaríamos de saia justa, tendo somente os sintomas
da psicopatologia da vida cotidiana.

Os sintomas da moda
É preciso distinguir as drogas. O gozo da maconha é um sintoma que
não rompe necessariamente com o social. Ao contrário, ele com fre­
qüência é considerado como um adjuvante à relação social, ou mesmo à
relação sexual. Eis por que o presidente Clinton e outros podem confes­
sar terem tocado tal gozo sem por isso serem desconsiderados. Reen­
contramos aqui o critério lacaniano essencial a respeito do gozo toxicô­
mano, verdadeiramente patológico quando preferido ao pipizinho, ou
seja, quando longe de ser um reforço, ele, ao contrário, é preferido à
relação sexual, a ponto de este gozo ter um tal valor para o sujeito, que
ele o prefere a tudo, tendo ou não que praticar crimes para alcançá-lo.
Lacan foi obrigado a recorrer às ficções kantianas para explicar o
gozo perverso. Kant considerava líquido e certo o seguinte: se disserem

1 75
Os circuitos do desejo na vida e na análise

a você que o cadafalso o aguarda ao término de uma noite de amor com


uma mulher, você renuncia à mulher. Lacan, por sua vez, diz que não se
recua forçosamente, sobretudo se aí estiver em causa um gozo que vai
além do amor à vida. É o critério propriamente lacaniano do gozo toxi­
cômano como patologia.
A tolerância que se tem à maconha provém do fato de que ela de
modo algum se inscreve nessa dinâmica de excesso, em relação a que
pensaríamos evidentemente em opô-la à heroína. Esta, contrariamente,
responde perfeitamente ao critério lacaniano. A fim de não deixar de
particularizar as drogas, é preciso ainda opor a heroína à cocaína.
A heroína está na vertente da separação. Ela conduz ao status de dejeto,
até mesmo quando o dejeto é estilizado ou valorizado como acontece
no mundo da moda, em que, durante anos, se fez uso para a admiração
de modelos drogados, cuja postura e estado físico aludiam à heroína. Já
a cocaína está na vertente da alienação. Assim como a heroína tem um
efeito separador em relação aos significantes do Outro, a cocaína é
utilizada como facilitador da inscrição no redemoinho do Outro con­
temporâneo.
Sirvo-me da alienação e da separação - dois movimentos, isolados
por Lacan e encontrados em "Posição do Inconsciente" e em O Seminá­
rio, livro 1 1 -para ordenar o que me parecem ser as doenças mentais
da moda. Há sintomas da moda, e não estamos ampliando excessiva­
mente nosso conceito de sintoma ao admitirmos e conceitualizarmos o
fato de que há sintomas da moda. A depressão, por exemplo. Critica­
mos o conceito de depressão, consideramos que ele é mal formulado,
que difere de uma estrutura para outra. Comecemos por não desprezar
o significante depressão. É um bom significante, relativamente novo, e
dele nos servimos. Nós que nos cansamos em produzir significantes
novos, em esperá-los, saudamos um significante novo que funciona!
A depressão é um significante formidável. Ele com certeza é clinica­
mente ambíguo. Mas talvez tenhamos algo melhor a fazer do que brincar
de médicos de Moliêre, vindo com toda nossa erudição, por mais
justificada que ela seja, criticar um significante que atualmente diz
algo a todos. Eu só o tomo neste nível e nada tenho contra a investiga­
ção clínica que pode ser feita a esse respeito. Não é anódino, porém,
que hoje em dia isso diga algo a todo mundo, que seja uma boa metá­
fora e, dado o caso, um ponto fixo, um ponto de basta que ordena a
queixa do sujeito.
A própria depressão faz dupla. Ela está claramente na vertente da
separação, e representa uma identificação com o objeto a como dejeto,

176
A teoria do parceiro

como resto. São os fenômenos temporais que mostram bem a•separação


da cadeia significante e que na depressão podem ser acentuados como o
fechamento definitivo do horizonte temporal. A depressão faz dupla
com o estresse, este um sintoma da alienação. É o sintoma que afeta o
sujeito tragado pelo funcionamento da cadeia significante e por sua ace­
leração, daí sua aliança com o sintoma da cocaína.
Anorexia e bulimia são outros dois sintomas na moda. Sem dúvi­
da a anorexia está do lado do sujeito barrado, do lado da separação. É a
estrutura de qualquer desejo; a rejeição da mãe nutridora e, mais ampla­
mente, a rejeição do Outro é o que nela está em primeiro plano. Já a
bulimia, em razão de pôr em primeiro plano a função do objeto, está do
lado da alienação. É preciso levar em conta o que Appolinaire salienta
e Lacan enfatiza: "Aquele que come nunca está só". De fato, a bulimia
afasta bem menos o sujeito das relações sociais do que a anorexia levada
ao extremo.
Portanto, nessa rápida ordenação, eu tenderia a situar a bulimia
do lado da alienação e a anorexia do lado da separação. O que percebe­
mos nos dois casos? É fundamentalmente nesses sintomas que aparece
sua verdade, sua equivalência ao objeto a. Em outras palavras, o status
de objeto a se evidencia tanto na anorexia quanto na bulimia.

A □ a:

, Tomei como referência, por exemplo, a anorexia que está na


moda, a dos manequins como modelo físico. O manequim anoréxico
é a evidência do desejo, a evidência de que nada pode satisfazer e
preencher. Há uma afinidade entre o manequim e a anorexia : nada
de saciedade, pois a saciedade é o gozo. Nesse sentido, a anorexia é
a evidência do desejo e, por isso mesmo, conduz a uma falicização
do corpo que está fundamentalmente ligada à magreza. Em "A dire­
ção do tratamento", Lacan o evoca ao abordar o sonho da Bela
Açougueira, que se conclui pela análise do sujeito identificado à fa­
tia de salmão: "ser o falo, nem que seja um falo meio magrelo". Há
uma afinidade entre a feminidade falicizada e magreza, assim como
há entre a primeira e a pobreza. Não o considero como clínica defi­
nitiva e ne varietur. Tento apenas animar um pouco a paisagem. Não
nos detivemos apenas no sintoma obsessivo bem situado, enquadra­
do, que afeta o Homem dos ratos, tampouco apenas no sintoma histé­
rico. Hoje fazemos uso do termo sintoma de um modo mais amplo e
diversificado.

177
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Uma economia sintoma!


Desenvolverei um pouco mais o conceito de sintoma. Lerei algumas
frases escritas para a segunda reunião regional da Escola do Campo
Freudiano de Caracas e as desenvolverei em seguida.

No sintoma, há o que muda e o que não muda. O que não


muda faz do sintoma um rebento da pulsão. De fato, não há
pulsões novas. Em contrapartida, há novos sintomas, os que se
r e novam. É o enve l o p e formal do núcleo, Kern, de gozo
(o objeto a). [... ]
O Outro cujo sintoma é mensagem inclui o campo da cultura.
É isto o que faz a historicidade do sintoma. O sintoma depende
de quem escuta e de quem fala.
Vej am o Shabbath magistralmente decriptado por Karl Grinburg.
Vejam a epidemia contemporânea das personalidades múltiplas
nos Estados Unidos, estudada por Yan Hacking e mencionada
por Éric Laurent.
Há sintomas da moda e há sintomas que saem de moda.
Há países exportadores de sintomas. Hoje em dia, são os Esta­
dos Unidos. O sintoma soviético desapareceu. Há países que
exportam meios de satisfazer os sintomas dos outros, por exem­
plo, a Colômbia.
Em suma, há toda uma economia sintoma! ainda não conceituada.
Isto diz respeito à clínica, pois esta é não somente da Coisa,
mas também do Outro.

Nesses brevíssimos comentários, eu opus uma parte constante do sinto­


ma e uma parte variável. A primeira é o apego pulsional do sintoma; a
segunda, sua inscrição no campo do Outro. No que concerne ao sinto­
ma, considero que devemos nos orientar sobre esta disjunção e ao mes­
mo tempo trabalhá-la. Qual é essa disjunção? É a disjunção entre as
pulsões, de um lado, e o Outro sexual, de outro.
Ao postular a existência da pulsão genital, Freud negava tal
disjunção, ou seja, ele afirmava u ma pulsão que comporta nela p rópria
a relação com o Outro sexual, que se satisfaz na relação sexual com o
Outro, portanto uma comunicação entre o registro das pulsões e o re­
gistro do Outro sexual. Para Freud, aliás, isso às vezes expressava uma
continuidade. A princípio, nos apaixonamos pelo seio da mãe e em
seguida é a mãe quem se ama. Em outras palavras, há aí uma espécie de
continuidade pulsional, o que permite a Freud, em certos parágrafos,
apressar-se para nos mostrar o desenvolvimento sexual.

178
A teoria do parceiro

Lacan intervém neste ponto ao formular: "Não há pulsão genital".


A pulsão genital é uma ficção freudiana - como são as pulsões em geral
- que não funciona, não corresponde. Pois bem, aqui se impõe o ponto
de vista segundo o qual há disjunção entre pulsão e Outro. Essa disjunção
evidencia tanto o que há de auto-erótico na pulsão como o status auto­
erótico da mesma, razão pela qual as pulsões afetam o corpo próprio e
se satisfazem no corpo próprio. Em outras palavras, a satisfação da
pulsão é a satisfação do corpo próprio, o nosso próprio materialismo.
O lugar desse gozo é o corpo do Um.
Esse fato torna sempre problemático o status do gozo do Outro e
do gozo do corpo do Outro. Falar do gozo do corpo do Outro aparente­
mente é uma metáfora em relação ao que é do real, a saber, o gozo do
corpo do Um. Sempre é possível acrescentar: o corpo do Um é de fato
marcado pelo Outro, ele é significantizado etc. Do ponto de vista do
gozo, o lugar próprio do gozo é todavia o corpo do Outro. Quando se é
verdadeiramente gozado pelo corpo do Outro, há para isso um nome
clínico preciso.
Esse ponto de vista tem um embasamento muito sólido. Por exem­
plo, isso é o que fundamenta Lacan ao lembrar que o sexo não basta
para constituir parceiros. Se tomamos o gozo fálico como gozo do ór­
gão, podemos até dizer que trata-se de um gozo que não é verdadeira­
mente do corpo do Um, que está fora do corpo, que é suplementar etc.
Isso não impede que seu lugar não· seja o corpo do Outro. Há uma
dimensão do gozo fálico que está amarrada ao corpo do Um. Mesmo
quando Lacan fala do gozo feminino, que não é aquele do órgão em que
a alteridade está presente, ocorre-lhe formular que no gozo, mesmo o
gozo sexual, a mulher é parceira de sua solidão, e que o homem não
chega a alcançá-la.
Surge nas fórmulas o cada-um-por-si pulsional e a horrível solidão
do gozo, que é particularmente evidenciada na dimensão autística do
sintoma. Há algo do gozo que se afasta do campo do Outro. Aliás, é
este o fundamento de todo cinismo.

O sintoma aparelha o mais-de-gozar


O que acontece do lado do campo do Outro? É nele que se organiza,
disjunta, a relação com o Outro sexual, organização que depende da
cultura, de certas invenções da civilização. Aqui a monogamia, assenta­
da no adultério, lá a poligamia, assentada na força d'alma etc. As diver­
sas invenções da civilização conhecem sucessos ou decadências, mas
sempre constituem cenários da relação sexual disponíveis, tal como

179
Os circuitos do desejo na vida e na análise

semblantes, que não substituem o real que falha, o da relação sexual no


sentido de Lacan, mas que simulam essa relação. Elas não substituem o
real, mas simulam o real, o que de alguma forma qualifica nossa espécie.
A disjunção entre as pulsões e o Outro é a não-relação sexual
como tal. Isso afirma que a pulsão é programada, enquanto a relação
sexual não o é. De outro modo, essa disjunção é coerente com o fato de
essa espécie falar, isto é, a linguagem se estabelece nessa própria hiância.
Isso explica por que a língua que falamos é instável, está sempre em
evolução e é tecida de mal-entendidos; ela nunca se adere ao fato sexual,
jamais se adere ao fato da não-relação sexual. Certamente esta é a dife­
rença com as bactérias que se comunicam de maneira impecável, mas
que mantêm a sua comunicação no nível do sinal, da informação.
Ora, é por isso que o homem neuronal nos fascina, o homem­
bactéria, o homem considerado como uma colônia de bactérias em que
as diferentes partes enviam umas às outras sinais, informações. Isso
funciona muito bem, entende-se. Assim, o essencial no homem neuronal
é que ele seja considerado sozinho, sozinho como bactéria múltipla.
Será que o homem pulsional é autístico? Até onde podemos levar
a perspectiva que adoto para o autismo do sintoma e o auto-erotismo da
pulsão? É neste ponto que devemos constatar como isso se engancha no
Outro. Mesmo que não haja pulsão genital, devemos supor um gozo
que não é auto-erótico uma vez que nele incide o que acontece no cam­
po do Outro. Não podemos nos contentar com a disjunção total porque
o que acontece no campo do Outro incide sobre nossas convicções de
gozo pulsional. Dito de outro modo, não podemos contentar-nos com
um esquema de pura disjunção entre os dois campos; é necessária uma
interseção.

0 0 CID
Essa é a interseção descrita por Lacan ao situar o objeto a nessa
área. Quando falamos do desejo, da pulsão, nós o fazemos enganchando­
os ao objeto perdido, ou seja, não podemos usar os conceitos sem, de
uma forma ou de outra, fazer deslizar o objeto perdido. O objeto perdi­
do deve ser buscado no Outro. Eis a dupla face do objeto a, seu caráter

180
A teoria do parceiro

janusiano 4 • 9 obLeto a é ao mesmo tempo o que a pulsão neces�ita em


sua condj_ç�<> ª11_1:o�erótiça_ �_ também o___qy..e..se..dey_e___b_usça,rnQ,,QU,!fº·
---- Se consideramos a criança pequena começando a falar, de fato são
as palavras do Outro que ela capta e distorce à sua maneira; em seguida,
lhe será dito que tal coisa não se diz, que tal coisa não se faz, advindo
então a regularidade. Para explicar o desenvolvimento neuronal, as
neurociências são obrigadas a estabelecer uma função para o olhar do
Outro, pois não é a mesma coisa receber a linguagem de uma máquina
ou de um ser humano que olha. É preciso que haja um certo "fazer-se
ver" do sujeito para que isso funcione.
O que isso quer dizer? Que há uma parte do gozo do Um, o gozo
autístico, que está agarrado no Outro e é capturado pela língua e pela
cultura, tornando-se em razão disso manipulável. Por exemplo, pela
publicidade, que de fato é uma arte de fazer desejar. Hoje em dia pro­
põe-se o consumo como saída do impasse, ou mesmo um certo número
de engrenagens para fazer gozar, modos-de-gozar que podem ser franca­
mente bizarros, mas nem por isso menos sociais.

Do lado do Outro, há como mandíbulas que captam uma parte do


gozo autístico; é a significação da castração. A verdade da castração é
que precisamos passar pelo Outro para gozar e deixar de gozar com o
Outro.
É aqui que o Outro lhes indica os modos de formar um par. Por
exemplo, o casamento monogâmico; amanhã, quem sabe, ele indicará
que talvez seja possível estender o conceito de casamento até o casa­
mento homossexual, o que apenas o revelará em seu semblante, como
uma montagem de semblantes. Podemos dizer que isso será bizarro,

4
N. do T. Janus, um dos antigos deuses de Roma, guardião dos portos, cujas
entrada e saída vigiava, razão pela qual era representado com dois rostos.

181
Os circuitos do desejo na vida e na análise

porém não há nada mais bizarro do qu e a norma. O e spírito das Luzes


foi pr e cisam ent e o de ap erc eber-s e do s emblante da norma, e d e qu e
bizarra era a norma da sua própria cultura.
O qu e é o objeto a ? É a parte do gozo, o mais-d e-gozar qu e e stá
enganchado nos artifícios sociais, portanto na língua. São artifícios por
ve z e s muito r e sist entes, mas que também pode m conhecer o de sgast e.
Quando o semblante social não basta, quando os sintomas como modos
de gozar ofer ecidos pela cultura não bastam, então, em seus interstícios,
há lugar para os sintomas individuais. Este s, porém, não têm uma es­
sência dif er ente da e ssência dos sintomas sociais. Em ambos os casos,
os sintomas são aparelhos para e nvolver e situar o mais-de-gozar, isto é,
o sintoma é o qu e aparelha o mais-de -gozar.

Uma pulsão sempre ativa


Gostaria agora d e esclar e cer o que m e par ece não ter sido visto até hoj e
na fórmula da pulsão proposta por Lacan a partir do "faz e r-se ". Ele
d ecifrou a pulsão e m se u O Seminário, livro 1 1 e m termos de "faze r-se
ver" para a pulsão escópica, "fazer-se ouvir", "fazer-se sugar ou comer"
e tc. A qu e r espond e e ssa fórmula por ve z e s r e p e tida, mas não e xplicada
e que, aliás, não foi bastante dese nvolvida por Lacan?
Tal como de scritas por Fr eud, as pulsõ es r espond e m a uma lógica
ou a uma gramática: atividad e/passividade, ver/ser visto, e spancar/se r
e spancado. Fr e ud situa, ord e na, classifica as pulsõ e s conform e uma ló­
gica de tipo a-a', simétrico, e m e spe lho. Ele as e struturou a partir de
uma r elação de inv ersão escópica. Em outras palavras, foi uma gramáti­
ca e m e sp elho que o le vou a p ensar qu e sadismo e masoquismo, assim
como voy eurismo e exibicionismo, eram simétricos e inversos.
Lacan procurou corrigi-lo para mostrar qu e o campo pulsional
r esponde a uma lógica inteirame nte difer e nte da lógica��fuo. Em
vez da inversão em espelho, ele postulou o movime nto circular da 2ulsão.
D es e nhado por Lacan em O Seminário, Üvr� 1 1; 'o'movimento cir��la�
da pulsão responde à noção de que o corpo próprio está no início e no
!im "io çh:_cµito p:ulsioº:11. As zonas eróge��s d�-corpo próprio c�nst:itÚ­
e m a font e da pulsão, s e ndo o corpo próprio o lugar onde se consuma a
satisfação, lugar do gozo fundam ental, auto- erótico da pulsão.
O qu e , porém, muda com o "faze r-se " introduzido por Lacan, e
com o circuito propriam e nt e circular?_ A pulsão é apresentada como
sendo S e IIJ.P.��.w�. e, contra,rj_ªip ei;it e a Fr eud, sua forma passiva é ilu­
��is aí o v erdadeiro valor d� "faze r-se". Faz���se-- e spãnê;; q� e r
dizer que a ve rdadeira atividade é a minha, e que eu instrume ntalizo o

182
A teoria do parceiro

espancar do outro. Tal é a posição do masoquismo fundamental. Dito


de outro modo, Lacan enfatiza que a fase passiva da pulsão é sempre a
contifll! ªçã(? _de s_ua fase ativa: "Recebo golpes porque eu quero", ou
como formula Clausewitz, "a passividade é a continuação da atividade
por outros meios".
Na dissimetria da pulsão operada por Lacan, o decisivo é o fato de
que o Outro em questão 1_1�J-�eu dt1p_lo,_ mas sim o Outro como tal.
Parece-me que isso é o que há de inacreditável no que Lacan diz a esse
respeito: o sujeito alcança a dimensão do Outro no movimento circular
da pulsão.
Não sei se vocês captam a grandiosidade da coisa, pois trata-se
verdadeiramente de estabelecer, fundar o laço, a interseção entre o cam­
po pulsional e o campo do Outro. Portanto, a contribuição essencial de
O Seminário, livro 1 1 é mostrar que não é no nível do espelho que se
alcança o Outro, mas sim no próprio nível da pulsão, ainda que não
haja pulsão genital.
Lacan fala da pulsão escópica na terceira parte do capítulo XV
desse Seminário, para estendê-la às outras pulsões. Assim considerada,
a pulsão é um movimento de apelo a algo que está no Outro, o que
Lacan ch_.t !!:}OU de o_�j�to a. Deu-lhe tal nome por ter reduzido a libicfo' à
função de objeto perdido. A pulsão busca algo nQ__Outro e o reconduz
ao campo do sujeito ou, ao menos, ao campo que, no final desse p�rcur­
ro,tÕ.rna--::se do sujeito. A pulsão buséa o objeto no Outro porque este
objeto dele foi separado.
Lacari o demonstra a partir do seio que não pertence ao Outro
materno como tal. É o seio do desmame que pertencia ao corpo próprio
do bebê que será retomado como seu bem. Para Lacan, o seio ou as
fezes não constituem o objeto a. São apenas seus representantes. Não se
deve acreditar que, quando se põe as mãos na merda, se está de fato
pondo as mãos na própria matéria do objeto a. Absolutamente. A merda
também é um semblante. Isso significa dizer que a satisfação de que se
------·· -
trata está no fechamento da pulsão.
Qual é o exem.pfo de pulsã·o- 6ral dado por Freud e enfatizado por
Lacan? Não é a boca que baba, mas a boca que beija a si própria.
É sobretudo a contração muscular da boca, uma auto-sucção. Contudo,
para realizar o beijar-se, é preciso que a boca passe por um objeto cuja
natureza seja indiferente. Eis por que há na pulsão oral tanto o fumar
quanto o comer. A pulsão oral não é o comestível, mas sim o objeto que
permite à boca gozar de si mesma, ou seja, para esse auto-goz.2., é prt:ctso
um hetero-obj�o. Dito de outro modo, o objeto oral é apenas o meio de

183
Os circuitos do desejo na vida e na análise

se obter o efeito de auto-sucção, o paradoxo fundamental da pulsão. Se


o reconstituo exatamente, é por natureza um circuito auto-erótico que
só se fecha através do objeto e do Outro. Vale dizer, dependendo da
face, auto-erotismo ou heteroerotismo.
Nesse sentido, o que é o objeto propriamente dito? O objeto pro­
priamente dito, o objeto a, é um oco, um vazio, somente o necessário
para que o anel se feche. Eis por que Lacan recorreu à topologia para
apreender o valor estruturante do objeto. O objeto a não é uma substân­
cia, mas sim um vazioJopol_ógico, podendo ser rep-resentado, encarna­
ctc>,põr substâncias e por objetos. Quando materializado, porém, ele
semblante em relação ao que é o objeto a propriamente
não passa de ---
dito.
Em outras palavras, o objeto real não é a merda. E quando Lacan
diz que "o analista é semblante de objeto", pois bem, nesse sentido a
merda também é semblante de objeto a. O analista representa o objeto
a e, a esse título, é um semblante tal como toda representação material
do objeto a. O bebê quer o seio, dão-lhe a chupeta. Dá no mesmo. Mais
tarde, ele preferirá a chupeta. No nível da pulsão ao menos, no nível de
que se trata, o nível da satisfação auto-erótica da pulsão, . º seio e a
chupeta. são da mesma ordem.
Portanto, para tornar mais clara a compreensão, distingo o real do
objeto a, que é o vazio topológico, do semblante do objeto a, os equiva­
lentes, as materializações dessa função topológica que se apresentam.
Aliás, pode-se dizer que todas as pulsões são mitos e que somente o
gozo neuronal é real. Neste sentido, a heroína ou a sublimação são
apenas meios do gozo neuronal. Quando se leva a sério o real, todos são
semblantes em relação ao real. Todavia, mesmo no nível neuronal, isso
faz diferença conforme seja dito por uma máquina ou, como se expres­
sam os americanos, por um ser humano atento.
Resumo. Nessa perspectiva, é a própria pulsão que leva ao campo
do Outro, porque é lá que ele encontra os semblantes necessários à
manutenção de seu auto-erotismo. O campo do Outro se estende ao
campo da cultura, como espaço onde se inventam os semblantes, os
modos-de-gozar, enfim, os modos de satisfazer a pulsão através dos sem­
blantes. Como indiquei, esses modos são móveis, e isto introduz um
certo relativismo. No nível de um sujeito, eles são marcados por uma
certa inércia. Eis por que admitimos inscrever o sintoma de um sujeito
no registro do real. Social ou "individual", o sintoma é um recurso para
saber o que fazer com o outro sexo, já que não há fórmula programada
da relação entre os sexos.

1 84
A teoria do parceiro

A pulsão, fundamento da relação com o outro


Enfatizei que o sintoma é constituído de duas partes: seu núcleo de
gozo, que dizemos pulsional e que mergulha suas raízes no corpo pró­
prio, e seu envelope formal, por meio do qual ele depende do campo do
Outro, que abarca a dimensão dita de civilização. Logo corrigi este
esboço uma vez que a pulsão só conclui seu arco de gozo passando pelo
Outro, já que é no Outro que reside o que aproximamos com a expres­
são de objeto perdido. É preciso que a pulsão gire em torno desse objeto
para fechar seu percurso, a castração sendo a encenação dessa necessi­
dade em que o objeto perdido aparece como o objeto que pode ser
capturado.
Pensemos, por exemplo, na corrida de bigas do circo romano e na
baliza que era necessário atingir para poder retornar. O que materializa
essa baliza tem pouca importância. Indiferença do objeto da pulsão!
Para que esse percurso da pulsão, de certa forma auto-erótico, se reali­
ze, é preciso a intervenção de um objeto que está no campo do Outro.
Dito de outra forma, não há o Um dis0ntodo Outro.
Esse esquema implica uma interseção. Conhecemos, de forma
evidente, essa interseção no nível do significante em que o Um é o
sujeito, e em que aprendemos a repetir, com Lacan, que o significante
é aquele do Outro, reconhecido como o lugar dos códigos ou o tesou­
ro dos significantes. É a interseção significante, a nós enfaticamente
apresentada no famoso grafo de Lacan, o que ficou gravado em nossas
mentes.
Aliás,' o Outro em questão não é apenas o do significante, mas
também o do significado. Dado que este esquema indica que o Outro
decide quanto à verdade da mensagem, por sua pontuação, ele também
decide quanto ao significado. Eis por que tal interseção no nível do
significante apresentou-se inicialmente no ensino de Lacan como comu­
nicação.
A função clínica aqui evidenciada é a que Lacan chamou de "o
desejo", como vetor que parte do Outro. A fórmula do desejo é uma
encarnação clínica da interseção entre o Um e o Outro. A segunda inter­
seção, a libidinal, no nível do gozo, escapa mais ainda.
Anunciamos a interseção significante a partir do esquema lacaniano
da comunicação, porém a interseção no nível do gozo é mais secreta
ainda. O próprio Lacan opôs desejo e gozo, afirmando: "o desejo é d9
Q.1:!.!!_'2,.ma�o go_zc:i é_��-ÇgJ�•(, como se de fato o gozo permanecesse
do lado -do Üm-·e se baseasse na evidência de que o lugar do gozo é o
corpo próprio.

185
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Centro o foco sobre a interseção do Um e do Outro no nível do


gozo. Em que sentido o gozo é também do Outro?
Segundo Freud, a libido circula, presa no que podemos chamar de
uma comunicação. A libido, essa invenção conceituai de Freud, transvasa.
Ela tem um aparelho freudiano, ela é aparelhada com vasos
comunicantes. Particularmente, a libido freudiana é transfundida de seu
lugar próprio, que seria o narcisismo individual, rumo aos objetos do
mundo que se encontram então investidos: objetos imaginários... Isso
faz parte de nosso vocabulário e retórica mais natural e próxima da
experiência: investimento de tal objeto, desinvestimento, há aí toda uma
rede de comunicação libidinal.
O fenômeno de enamoramento descrito por Freud é prenhe de
conseqüências, isto é, o momento em que se constitui o casal libidinal,
ao menos do lado daquele que se apaixona. O "apaixonar-se" evidencia
o laço estabelecido com o Outro. Ainda que ele esteja presente apenas
de um lado, de algum modo ele constitui o nascimento do casal. Botticelli
pintou o nascimento de V ênus saindo sozinha das ondas. Freud, por sua
vez, pintou o espectador que se enamora no estado amoroso. Ele tradu­
ziu o surgimento do amor de um por outro em termos de empobreci­
mento imediato da libido narcísica. A libido se transfunde rumo ao
objeto, e o sujeito sente-se como um pobre rapaz. Aliás, esta parece ser
a posi� ão do próprio Freud maravilhado por sua Martha.
E de algum modo a fórmula nativa do casal do ponto de vista da
libido, e do ponto de vista do amante, que logo, logo se vê marcado
com um menos -ele se ama menos -e do amado, que, ao contrário, se
vê marcado por um mais.

amante amado
+

Lacan desenvolveu essa fórmula como dialética do desejo. A posi­


ção desejante é fundamentalmente aquela própria à mulher, já que ela é
marcada com o menos, que ela não tem, enquanto, para surpresa geral,
é o homem o desejável. Nessa perspectiva, a mulher como tal é a pobre.
Do mesmo modo, isso relaciona a posição passiva ao masculino, uma
vez que aqui a posição feminina é ativa. Ela busca quem tem, e daí,
como indicamos, a afinidade entre feminidade e pobreza.
Já pude enfatizar a referência de Lacan ao livro de Léon Bloy La
femme pauvre. A posição de ser pobre fundamentalmente é a posição

186
A teoria do parceiro

do escravo, que aliás tem sido atribuída com freqüência no transcurso


da história à mulher.
São os pobres que ao mesmo tempo amam e trabalham, não os
ricos. Os ideais de amor universal são encampados sobretudo pelos
pobres, não pelos ricos. Lacan não só enfatizou a particular dificuldade
de amar do rico, como também, em outros momentos, a dificuldade de
os ricos se analisarem, visto que, para fazê-lo, entra em jogo a famosa
capacidade de amar.
Há um certo número de conseqüências que não desenvolverei
detalhadamente aqui. Por exemplo, o parentesco entre a feminidade e a
anorexia, convidando a situar a bulimia como forma derivada da
anorexia. Em segundo lugar, a profunda afinidade entre a feminidade e
a propriedade. É precisamente o menos que alimenta na mulher a voca­
ção de cofre-forte, conforme a figuração do continente, freqüentemente
assinalada na experiência analítica. Lacan lembra a posição da burguesa
no casal, uma designação familiar, popular, operária, da esposa. É isso
o que dá também à mulher rica um caráter especial de devoração, uma
vez que nada do ter pode estancar sua pobreza fundamental. Nunca há
o bastante, o que revela o impasse do lado do ter.
Poderíamos acrescentar, a título de conseqüência, o problema
masculino com a mulher rica, mais rica que ele, que por vezes leva ao
protesto viril, para retomarmos o termo de Adler, ou ainda à aceitação
de sua posição de desejável, e eventualmente, no homem, ao consenti­
mento de ser fetiche da mulher mais rica.
Outra conseqüência é conforme o axioma de Proudhon: "a pro­
priedade é o roubo". Surge de imediato uma grande figura feminina: a
ladra, a ladra com plenos direitos, pois o menos que marca sua posição
dá direito ao roubo. A clínica parece indicar que a cleptomania é uma
aflição essencialmente feminina. Esta conseqüência certamente concerne
à vontade da mulher de ser amada, isto é, de obter uma conversão de
sua falta fundamental. Com efeito, amar uma mulher consiste em redimir
sua falta, resgatar sua dívida.
Compreendemos a partir disso que, para o homem, amar o outro
no casal sempre implica uma fase agressiva, precisamente porque isso o
empobrece, dado que não se pode amar sem o menos que Freud tanto
valorizou.
Há uma solução narcísica indicada por Freud: amar a si-mesmo
no outro, sendo a solução anaclítica a de fazer funcionar o outro que
tem, desde que ele dê. O sujeito se apresenta então como o amado. Em
determinado momento, Lacan favoreceu a solução narcísica, mais aberta

1 87
Os circuitos do desejo na vida e na análise

do que a solução anaclítica, esta a de ser amado, desembocando não no


trabalho, mas sim no amor.
Talvez possamos corrigir certas indicações de Lacan por outras
posteriores. Se examinamos o amor em sua face de pulsão, o "ser ama­
do" pode se revelar em seu valor de "fazer-se amar". E para fazer-se
amar, é preciso eventualmente se esforçar. Se "ser amado" aparente­
mente é uma posição passiva, "fazer-se amar" revela a atividade subjacente
a essa posição. Nada impede que essa fórmula indique que a posição
desejante é, em sua essência, feminina, e é sob a condição de alcançá-la,
aceitá-la, de assumir algo da feminidade, que o próprio homem é
desejante, aceitando dessa forma algo da castração. O que chamamos de
sabedoria através dos séculos é algo essencialmente masculino, a disci­
plina dos sábios sempre consistiu em dizer: "Escutem, rapazes, não se
deve desejar demais", e mesmo: "Se forem realmente perfeitos, não
desejem absolutamente nada". A Sabedoria está em recusar a posição
desejante, exatamente como feminina. Aliás, são estes os livros que as
mulheres particularmente não apreciam.
Tal ponto de vista freudiano comporta que inicialmente a libido é
narcísica. O ponto de partida de Freud é o gozo do Um, mesmo que isso
resulte em transvasamentos. Para Freud, a libido apenas secundaria­
mente se transvasa rumo ao gozo do Outro.
Lacan sempre criticou essa posição freudiana dizendo que, quan­
do consideramos que o objeto está incluído primordialmente na esfera
narcísica, tem-se uma mônada primitiva do gozo, expressão que figura
em O Seminário, livro 4: a relação de objeto. A mônada é uma unidade
fechada, separada do Outro. Se partimos de uma mônada de gozo, uma
mônada de Eros, somos obrigados a introduzir Tanatos para dar conta
de que podemos amar outra coisa que não nós próprios. Nesta perspec­
tiva, a escolha de objeto está sempre ligada à pulsão de morte. É o tema:
"amar é morrer um pouco". Conhecemos bem as afinidades do amor e
da morte no imaginário. Já relembrei a noção da interseção libidinal
fundamental, posição contrária à noção de mônada primitiva do gozo.

CID
188
A teoria do parceiro

A noção de interseção libidinal exprime que, no nível radical, o


campo do Outro se reduz ao objeto. No lugar da mônada primitiva do
gozo, há sem dúvida uma relação com o Outro, reduzida porém a um
objeto necessário para que a pulsão faça seu circuito. Essa é uma posição
em que o Outro não existe, mas o objeto a consiste. Essa perspectiva foi
anunciada por Lacan em seu "O Seminário, livro 16: de um Outro ao
outro", o Outro sendo considerado aqui como um Outro, porque ali é
variável, enquanto o artigo definido é atribuído ao objeto. Esse parceiro,
o objeto a, sempre é para vocês o (le). Há sempre um deles.
Que parceiro revestirá esse objeto? Aqui é um outro, ou ainda
outro. Isso não merece a mesma singularidade que o objeto. Dito de
outro modo, o que completa nosso Outro que não existe é exatamente
o fato de que o Outro consiste quando está em estado de objeto. O que
consiste propriamente falando é o objeto pulsional, mas em sua condi­
ção de oco, vazio, dobra ou borda.
A pulsão, o _gozo_,_ o _Outro reduzi_çlo à consistência do objeto a
como consistência lógico-topológica, tal é o fundamentÕ da·-;_:-efaç"io-êom- ·,
ôOútro:

O parceiro-sintoma
Já afirmei que o sexo não é exitoso em tornar os seres humanos, os
parlêtres, parceiros. Desenvolverei que apenas o sintoma é bem-sucedi­
do quanto a isso. O verdadeiro fundamento do casal é o sintoma. Se
consideramos o casamento como um contrato legal que liga as vonta­
des, abordarei o casal como, se assim posso dizê-lo, um contrato ilegal
de sintomas.
Em que um e outro estão de acordo, no sentido mesmo da harmo­
nia? A experiência analítica mostra que é o sintoma de um que entra em
consonância com o sintoma do outro. A expressão "parceiro-sintoma"
não era usual até este momento. Convém então fundá-la.
Indo direto ao assunto, lembrarei o que Lacan desenvolveu a res­
peito do que podemos chamar de o parceiro-falo, a redução do parceiro
ao status fálico.

O parceiro-falo
É nessa perspectiva que se insere ''A significação do falo" (1958) e a
releitura dos textos de Freud sobre a vida amorosa.
Lacan distingue e articula três modalidades de casal, três casais, se
excluímos da série o casal da necessidade. Este é composto por aquele

189
Os circuitos do desejo na vida e na análise

que experimenta a necessidade, aquele que está privado, e por aquele


que tem como responder a isso. Eis o grau zero do casal, fundado na
dependência da necessidade. Digo grau zero porque observamos esse
tipo de casal já no reino animal. Eventualmente, tentamos estender este
modelo ao casal humano. Foi a tentativa de Bowlby, por exemplo, com
seu conceito de apego.
Eis então os três casais propriamente humanos. Em primeiro lu­
gar, o casal da demanda, que decalca o primeiro e o transpõe para a
ordem simbólica, dado ser este o comutador lacaniano que permite
passar de um nível para outro, pois a necessidade é articulada na de­
manda. O casal da demanda liga aquele que demanda àquele que res­
ponde, resposta que consiste em dar o que foi demandado. Esse casal já
é significante, pois de fato supõe que haja emissão de um significante
dotado de significado ou que desperte uma significação, e nele o dom
tem valor de resposta. Ao mesmo tempo, se seguimos essa decomposi­
ção conceituai do casal, o que aí se veicula, o que amarra um ao outro
permanece um objeto material.
Um degrau suplementar e passamos para o nível do casal do amor,
em que também há aquele que demanda e aquele que responde, salvo
que este que demanda o faz sem demandar nada além do que a resposta.
Nesse nível esvaece a materialidade do objeto que circulava no casal
precedente, ou seja, não há demanda do objeto e resposta pelo dom do
objeto, mas puramente demanda da resposta como tal, e aqui o dom
nada mais é que o dom da resposta, um dom significante. A esse respei­
to o casal do amor é, de parte a parte, um casal significante.
À luz das articulações anteriores de Lacan, é no nível do casal do
amor que se deveria situar o desejo de reconhecimento, com sua satisfa­
ção exclusivamente significante. O desejo de reconhecimento se consu­
ma, se satisfaz, como o nome indica, por um reconhecimento significante
vindo do Outro, por um dom significante, o dom de nenhum ter mate­
rial.
Desse fato decorre a definição de Lacan do amor como "dar o que
não se tem", o que supõe, paradoxalmente, que a demanda de amor de
um dirige-se ao "não ter" do outro. A demanda "me ame" não se dirige
a nada do que o outro poderia ter. Ela se dirige ao outro em seu
despojamento e requer do outro a assunção deste despojamento.
O terceiro casal, o casal do desejo, só se forma, só se constitui
com a condição de que cada um seja para o outro a causa do desejo.
Uma tensão aqui se introduz, uma oposição, uma dialética entre o casal
do amor e o do desejo, exatamente aquela desenvolvida por Lacan.

190
A teoria do parceiro

Com efeito, as duas modalidades do casal introduzem uma dupla defi­


nição do parceiro, paradoxal e até mesmo inconsistente. Há o parceiro
a quem se dirige a demanda de amor, a quem se endereça o "me ame".
No que se refere a esse status, este é o parceiro desprovido, o que não
tem. A demanda de amor se endereça, no parceiro, àquilo que lhe falta.
Esse status do parceiro distingue-se do que é requerido ao parceiro que
causa o desejo, o detentor dessa causa. Opõem-se assim o duplo status
do parceiro desprovido e do parceiro provido.
Tal paradoxo beneficia o homem. O homem, o macho, é dotado,
se assim posso dizer, de um objeto-eclipse5 • Conforme o momento, ele
é provido ou desprovido, satisfazendo de certa forma a esse paradoxo:
os dois em um. Daí o grande interesse comumente despertado, na rela­
ção de casal, por aquilo que se passa depois, quando ele está desprovi­
do. A questão é saber se ele fica ou vai embora. Sua permanência é uma
prova de amor. Há algo além da satisfação fálica que o retém.
Esta é uma grande questão que alvoroçou os teóricos, por exem­
plo, na ficção de Rousseau, em seu Discurso sobre a desigualdade entre
os homens: saber se o homem permanece com a mulher para torná-la
companheira -o que já forma o nucleus da ordem social a partir da
família - ou se, tendo obtido o que queria, ele se vai. Sou eu que tradu­
zo dessa forma o que diz Rousseau.
A desvantagem da mulher é a de não ter esse maravilhoso órgão­
eclipse. Na articulação proposta por Lacan, é isto o que leva um ho­
mem a desdobrar sua parceira em a mulher parceira do amor e a mu­
lher parceira do desejo.
A proeza de ''A significação do falo" está em cifrar ao mesmo
tempo o parceiro do amor e o parceiro do desejo pelo falo, e em definir
essencialmente o parceiro do casal como o parceiro-falo. Se ele é o
parceiro do amor, é cifrado (-cp) , uma negação incidindo sobre o
significante imaginário do falo. Se é o parceiro do desejo, é cifrado (cp).
Do lado masculino, é possível uma oscilação entre (-cp) e (cp), enquanto
do lado feminino, é ou um ou outro, e isto tende a ser um ou outro.
Amor (-<p)
Desejo (cp)
Macho (-<p) O (<p)
Fêmea (-<p) // (<p)

5
N. do T. No original, "objet à éclipse", uso da expressão à eclipse, que significa
o que aparece e desaparece alternativamente. Cf. Le Robert, Dictionnaire des
expressions et locutions.

191
Os circuitos do desejo na vida e na análise

De um lado, uma oscilação, e de outro, uma intimação fálica


unilateral. Isso se presta em seguida a todas as aplicações particulares,
às variações, aos desvios dessas fórmulas, mas constitui a fórmula fun­
damental da parceria fálica.

O que torna os sujeitos parceiros


Aqui se inscreve a proporção sexual em sua diferença com a relação
sexual. A proporção sexual propriamente dita constitui um laço estabe­
lecido no nível do desejo que supõe, portanto, que o parceiro tenha uma
significação fálica positiva. Nesse laço, a significação do falo é o media­
dor. Há a proporção sexual que se estabelece sob o significante do falo,
fazendo de cada parceiro a causa do desejo do Outro. Eles se tornam,
nesse nível, parceiros por meio da cópula fálica. A relação sexual, dife­
rentemente da proporção sexual, constitui o laço que se estabeleceria
no nível do gozo. É bem isso o que interrogamos, saber o que estabele­
ceria um laço de parceria no nível do gozo.
O que torna parceiros os sujeitos? Em primeiro lugar, eles se tor­
nam parceiro� não fosse pelo fato de se dirigirem ao Outro e
este lhes responer,rêêonhecendo-os ou não, identificando-os. O fun­
damento do casal significante é um "tu és", "tu és isso". Em um dado
momento, Lacan de fato fazia do significante o fundamento ideal do
casal.
Para Freud, os sujeitos se tornam parceiros essencialmente pela
identificação com o mesmo. A identificação é o núcleo do casal
significante, este par podendo se estender até abranger uma coletivida­
de. Para ele, os sujeitos também se tornam parceiros pela libido, o que
Lacan traduziu em um primeiro momento de seu ensino pelo casal
imaginário a-a', com uma libido circulando entre os dois termos. Com
ele, tornou-se comum opor o casal significante simbólico ao casal ima­
ginário, este mais duvidoso, mais instável, porque ligado aos avatares
da libido.
. . . __ Podemos acrescentar que os sujeitos tornam-se parceiros �[9 c!.e­
. � tradução lacaniana da li�ido, e parceiros precisamente pela medi­
ação do falo. O falo é de algum modo uma instância bifacial, entre fala
e libido, já que Lacan faz dele, no auge de sua elaboração a respeito do
termo, o significante do gozo. ·Ligar fala e libido é o que a expressão
'significante do gozo' já faz. --·· ·· · . .
�-, ·--fõciãv1i.as a1féiéiírés formas de parceria, quer sejam elas pela fala,
pela libido, ou ainda pelo desejo, não resolvem a questão de saber se os
sujeitos tornam-se �ce.iros.._e,elo gg_�_o. Somos inclinados a pensar que

192
A teoria do parceiro

�zo eles se tornam so� �-�ios. É o status auto-erótico, até mesmo


autístico do gozo.
Mesmo considerando separadamente os sujeitos de cada sexo, a
mulher vai alhures, sozinha, enquanto o homem é presa do gozo de um
órgão destacado em seu corpo próprio, e que, se o quisermos, lhe faz
companhia. O gozo, à diferença da fala, torna solitário.
Há esta esperança que chamamos de castração, esperança de que
uma parte de gozo autístico esteja perdido e que se o reencontre no
Outro sob a forma de objeto perdido. Em outras palavras, a castração é
a esper31nça de que o gozo torne-se parc�i�o,_p�!91::1e_ _�_!a_ exigiria que se
ênécintrasseoêõm,p]�ri,.�11t_o -de gozo necessário no Outro._- - - -- -- ---·
·- - - ·Paral,ác:aii; o tema do parceiro-falo-traduz a facê "i,ôsitiva da cas­
tração: ela é o sexo tornando os sujeitos parceiros. Sob outro ângulo,
isso faz do Outro apenas um meio de gozo, e não é evidente que isso
desqualifique ou anule o cada-um-por-si do gozo e sua idiotia.
Em O Seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan evoca a masturbação
como o gozo do idiota. Digamos que a idiotia do gozo evidentemente
não é desqualificada pela ficção consoladora da castração. É bem essa a
diferença que se demarca se opomos a construção de Lacan em ''A signi­
ficação do falo" àquela que aparece em "l:Étourdit". Em "A significa­
ção do falo", temos de haver-nos com o parceiro falicizado, na tentativa
de demonstrar em que o falo torna parceiro. Reencontramos tal falo na
construção de 'TÉtourdit", mas ela não incide sobre o parceiro, e sim
no próprio sujeito, inscrito na função fálica. Nesse nível, longe de incidir
sobre o parceiro, de qualificar o parceiro, a função fálica _..9.ualifica _o
r-róprio s�i�_ito, !1]:_Q�!r,_��cl9�0 parceiro da função fáljc:a_. Dessa maneira,
nas entrelinhas, pode-se ler que, por esse viés, não são parceiros, ou
seja, um e o outro não são parceiros pelo viés da-função fáÜca, que,
coritrarfameiiii, quafffica a Í-�lação do próprió sujeito CoÍn- ess;·f�nção.
E desse modo, o parceiro só aparece em seu status minorado, degrada­
do, o de ser meio de gozo.
Na verdade, o parceiro i
meio de gozo é o que aparece na fantasia.
A teoria da fantasíãsi ste"iifa qiie o parceiro essencial é o parceiro
fantasístico, este que é escrito por Lacan em sua fórmula da fantasia no
lugar do objeto a. O status essencial do parceiro no nível do gozo é ser
o objeto a da fantasia.
Certamente quando Lacan forja tal fórmula a partir de "Uma cri­
ança é espancada", de Freud, o pequeno a é um termo imaginário, e
sem dúvida ele distingue o invólucro formal da fantasia, ou seja, a ima­
gem e a frase na fantasia, do núcleo de gozo como sendo propriamente

1 93
Os circuitos do desejo na vida e na análise

o "fazer-se espancar". Nesse contexto, a fantasia se opõe ao sintoma,


primeiro porque a fantasia é gozo agradável enquanto o sintoma é dor.
Nesse ponto Lacan insiste no status de mensagem do sintoma, portanto
seu status de verdade, ao mesmo tempo que prevê, em seu grafo, uma
incidência da fantasia no sintoma.
Sintoma e fantasia, contudo, tão essenciais que devem ser distin­
guidos, reencontram-se, conjugam-se no final do ensino de Lacan. Em
primeiro lugar, porque se tomamos a fantasia em seu status fundamen­
tal, não se trata mais de imaginário ou simbólico, mas sim do real do
gozo. A fantasia se conjuga desse modo ao sintoma porque ela não é
apenas mensageni°, màs também gozo.
O que portanto parece fundamental, tanto na fantasia quanto no
sintoma, é o núcleo de gozo, do qual ambos são como modalidades,
invólucros. O modelo do sintoma de que se trata aqui não é o da histé­
rica, que fascinou Freud por ser decifrável. Trata-se mais propriamente
do sintoma obsessivo tal como Freud destacou seu status em "Inibição,
sintoma e angústia", o sintoma obsessivo que o eu adota, tornando-se
parte da personalidade, e que, longe de se destacar, torna-se fonte de
satisfação agradável, sem discordância.
Aqui estamos no nível em que o sujeito é feliz, tanto n� f�_11tasia
com o no sintoma. É nessa perspectiva que falo do parceiro-sintoma.
Õ parceiro é suscetível, se ele está ligado ao sujeito de modo essencial,
de encarnar, propriamente falando, o seu sintoma.

Fundamento sintomático do casal


Talvez seja preciso dar aqui algum exemplo que mostre que o verdadei­
ro fundamento do casal é sintomático.
Uma mulher abandonada pelo pai - figura sublime! -no nasci­
mento, e até mesmo antes do nascimento, já que falamos do caso do
cara que se escafedeu tão lc;>go deu aquela gozada.
Ela não se torna psicótica em função de uma substituição ocorrida
e que lhe permite arranjar-se com o significante e o significado. Alguém
ocupa o lugar de pai, mas não a ponto de impedir uma divisão precoce:
"Ninguém pagará por mim", decisão que faz dos males um bem por
assumir o desamparo em que foi largada. -"Necessidade de ninguém",
eis como ela se sai. Isso a lança em uma certa errância. Ocorre-me a
imagem da tartaruga que passeia com a casa nas costas. Ela encontra um
homem, se apega a ele, constituem casal e prole.
Qual o homem que ela encontra? Exatamente um que não quer
pagar para uma mulher. Evidentemente isso lhe convém, um homem

194
A teoria do parceiro

que não quer pagar sua cota à mulher. E, entre todos, é com esse que ela
se junta. É um homossexual. Nobody is perfect. Eles se amam, se enten­
dem. Um não pagará pelo outro, eis o lema do casal.
A má sorte faz com que ela entre em análise. Sabe-se -não por
acaso - que a análise é de bom grado causa de divórcio. E na análise
nasce o desejo de que o Outro pague por ela.
Um sonho retorna: uma butique da infância conduz a associação
de que, quando ia comprar alguma coisa embaixo do prédio onde mo­
rava, ela dizia: "Papai vai pagar". Papai era o substituto. E ei-la que se
põe a desejar que o homem, o pai de seus filhos, pague sua parte. Ela
não quer mais ser tartaruga.
O cara, fiel ao contrato sintomático inicial, não quer largá-los.
E ela passa a detestá-lo, sonha em deixá-lo, prepara sua partida. Ele não
se mexe. O cofre está fechado. Eis que logicamente ela lhe apresenta
contas. E um dia ela lhe apresenta uma conta a mais - de gás e eletrici­
dade. Eis que isso se revela insuportável para ele, pega suas tralhas,
vinte anos depois, e pede enraivecido o divórcio, logo após advertir a
companhia de gás francesa de não mais lhe cobrar débitos porque ele
não os pagaria. Esse divórcio é doloroso para ela, que descobre que não
o queria, apesar de cozinhá-lo em banho-maria durante anos. Ao con­
trário, ela desejava um casal verdadeiro, no seu conceito.
Pode-se dizer que a análise ati�giu a base sintomática do casal.
E por que não considerar isso como uma travessia da fantasia, da fanta­
sia "necessidade de ninguém". Constatamos, em todo caso, que essa
fantasia passou para a vida. Tendo atravessado a fantasia, divorciada, ela
se reencontra na situação em que certamente ele não mais pagará para
ela. Nesse momento tão doloroso de ruptura do casal, descobre-se o
que era a base do casal, que cada um casara com seu sintoma.
É preciso levar em conta a dissimetria de cada sexo na relação
com o Outro. Aqui Lacan nos serve de guia. O que o sujeito homem
busca no campo do Outro? g}�-��_sc:��senci�E:1!.�!e"_?,__9,�f Q Q�jÇ!.Q.(1.,
objeto que responde tão bem à estrutura da fantasia. Ele se relaciona
apenas com esse pequeno a. Isso pode assumir a forma grosseira que
evoquei com "aquela gozada".
Não é fundamentalmente diferente do lado mulher. Escrevo aqui S.
Lacan apõe à ponta da flecha um <I>, resto da elaboração de ''A significa­
ção do falo". Ele apõe o <I>, e não o falo imaginário, para indicar que há
objetos que podem tomar esse valor. O falo é certamente o mais queri­
do, mas a criança pode adquirir valor fálico. Eventualmente, podemos
nos relacionar com o Outro sexo para roubar dele essa criança com

1 95
Os circuitos do desejo na vida e na análise

valor fálico. Mas não é fundamentalmente diferente no nível em que


cada um degrada o Outro. Cada um visa o Outro para dele extrair seu
mais-de-gozar. É aí que Lacan acrescenta um elemento do lado mu­
lher: além disso, em seu próprio campo, o sujeito feminino tem rela­
ção com o que ele escreve como S (.$.). Tal é a diferença. O sujeito
mulher se relaciona com a falta do Outro, e disso decorre um desvario
especial.

lado homem $ a

lado mulher $

Isso pode ser traduzido em diversas pantomimas. Para começar, a


de bancar a louca. Esta é sempre uma possibilidade. É, por exemplo, o
sintoma de personalidades múltiplas. Menos sofisticado, o distúrbio da
identidade deve ser igualmente inscrito nesse registro, além de todos os
distúrbios afetando a presença no mundo até os fenômenos do tipo
oniróide, que foram, de longa data, referidos à histeria. Há uma outra
pantomima que escrevemos em série: fazer do homem um deus, ou
deixá-lo louco. O sujeito feminino dirige-se ao Outro para nele encon­
trar a consistência, mas oferece ao sujeito masculino a oportunidade de
aí encontrar a inconsistência, a que inscreve satisfatoriamente o A.
Aliás, é o que o infeliz, de quem evoquei o destino, encontra .
O que o deixa enraivecido e motiva o divórcio é ela não mais jogar o
jogo. É também desse lado que se inscreve a possibilidade, para o sujei­
to feminino, de se fazer o Outro do homem, ou seja, se dedicar a ser o
seu supereu, em suas duas faces: de sanção, e também de empuxo-ao­
trabalho, ou seja, de empuxo-ao-gozo. Freud o assinala quando atribui à
mulher o privilégio que ela daria aos interesses eróticos. O sujeito femi­
nino é apropriado para encarnar o imperativo "Goza", assim como o
"Vai, trabalha e traz o suficiente para o feijão". O imperativo cai como
uma luva: "Goza, mas só comigo", daí a paixão de ser única. O homem
também pode se alojar para a mulher nesse lugar de S(.A). É aí que a
dissimetria é mais probatória.

1 96
A teoria do parceiro

Se seguirmos Lacan, a mulher §.,semer.e objeto a para ull!��:?:1�°.1,


motivo pelo qual ela não é mais que parceiro-sintoma. O núcfeo de
gozo, esse objeto a, o parceiro sendo aqui o invólucro de a, exatamente
como o sintoma o é. O parceiro como pessoa é o invólucro formal do
núcleo de gozo, enquanto, para a mulher, se o homem se aloja em S (.l),
não é somente um sintoma circunscrito, porque esse lugar implica o
ilimitado. É um lugar não cerceado, um lugar em que não há limite.
Q. -�ome!Jl (t:nt_ãoo pªr.c,:e,i1:o:de:vastação. Dito de outro modo, a devas­
tação comporta o ilimitado do sintoma. Em um determinado sentido,
para cada sexo, o parceiro é o parceiro-sintoma, mas para a mulher, em
particular, um homem pode ter a função de parceiro-devastação.
"r- ·•�--· •-- • - • . . .. .. , �...._ s ,.-• , - • • • · • ·-� • -

Parceiro-devastação
Talvez eu possa dar um exemplo, o de uma jovem mulher que se casa
com um homem que ela fisgou. Em algum lugar, Lacan fala do bando
de rapazes se empurrando, se dando bordoadas e das meninas que os
cercam, até que uma descola um deles do bando, e ele então acena para
os amigos : "Até mais, a gente se fala". Ops... Ela o arrasta.
Ela ultrapassou as reticências do rapaz, suas inibições, sua extrema
má vontade. Ele queria permanecer casado com seu pensamento, seus
maus pensamentos. Ela forçou um pouco a barra para agarrá-lo, e não
outro, embora fosse uma mulher a quem não faltassem pretendentes.
Eis o resultado: ele não deixa passar um dia sem cobrá-la pela
constituição desse casal sob a forma de observações depreciativas. Isso é
clássico! Freud o assinalou : � -��l_!l�!l)-º�-spr_� ��.ª}!!l}lb er, _po�'"�-���..?
castração feminina, observações depreciativas que chegam à injúria quo­
t1d1.ana, sob formas particularmente cruéis. O ódio da feminidade se
expõe do rriodo o mais evidente possível.
-· · .. . As pêssoás comentam, os amigos dizem: "Larga dele". Surge a
famosa questão: "o que ela viu nele?", reveladora da dimensão do par­
ceiro-sintoma. A pressão acaba por levá-la a um analista. Em análise,
descobre que, finalmente, ela vai muito bem. Prospera. Goza na cama.
Após a injúria, transam. Ela engravida. Ela trabalha. E toda a dor con­
centra-se no parceiro injurioso que aparece sob a forma, assinalada por
Lacan, de devastação. Isso a devasta. Ela chega à análise devastada pelos
dizeres do parceiro.
O que se descobre em análise? Descobre-se -com a ajuda dessa
perspectiva que se abre, quando partimos do princípio, tão salubre, de
que o sujeito é feliz inclusive na sua dor - que a palavra de injúria é
exatamente o próprio núcleo de seu gozo, que ela tem injúria, gozo da

197
Os circuitos do desejo na vida e na análise

palavra. A injúria, aliás, é a última palavra, esta em que o Sinn engancha


a Bedeutung de forma direta.
Ela descobre que precisa ser estigmatizada para ser. O estigma é a
cicatriz da chaga, o corpo que porta as cicatrizes. Não se pode escrever
o estigma de maneira melhor do que S(t). Aliás, era no estigma que
eventualmente se reconhecia a marca de Deus.
Se foi esse o homem que ela quis arranjar e ficar com ele, é na
exata medida que ele lhe diz injúrias.
Certamente ele a degrada. Por que ela precisa disso? Por que ela só
é mulher sob a condição de ser assim designada.
Chegamos ao termo último, ao terminus, que é o pai. A única
relação sexual que faz sentido é a incestuosa. Ocorre que o pai nutria
um desprezo profundo pela feminidade, um desprezo de origem religiosa.
Foi na relação com seu Deus que nele se desenvolvera uma desconfian­
ça, um ódio pela feminidade, do qual a filha não escapou. O casal
infernal comemorava o sintoma do pai. O sujeito gozava da estigma­
tização paterna por meio de seu parceiro.
V ê-se aqui que o Outro da fala está concernido. Com certeza!
Concernido ao gozo, pois aí é essencial que o parceiro fale. Aqui, po­
rém, não é o Outro da verdade que funciona, nem o Outro da boa fé,
mas sim o Outro da injúria. O sujeito se encontra ajustado com o Outro
pelo que é o sintoma do Outro. Ela satisfaz aí seu próprio sintoma. Se
há relação, ela se estabelece aqui no nível sintomático. E, nesse casal,
cada um toma parte como sintoma.

Um bom uso do sintoma


A abordagem do sintoma que empreendo por meio de alguns exemplos
e de um rápido percurso na obra de Lacan evidentemente se liga à idéia
que podemos ter do fim da análise.
Há vários anos conceituamos o fim da análise a partir da travessia
da fantasia. A fantasia concebida como véu a levantar, rasgar ou atraves­
sar para atingir o real, na época escrito objeto a. Esse encontro teria o
valor de despertar e, certamente, reordenar a posteriori, de forma defi­
nitiva, as ocorrências da vida do sujeito, fazendo aparecer seus tormen­
tos anteriores como mais ou menos ilusórios.
Nessa perspectiva, somos conduzidos a opor a suspensão do sintoma,
de ordem terapêutica, à travessia da fantasia, que abre um mais-além, per­
mitindo um acesso ao real; o que verdadeiramente se qualifica de passe,
com uma mudança de nível. Creio ter revelado a temática em toda sua
intensidade, temática que está em Lacan e indiscutivelmente o inspirou.

198
A teoria do parceiro

O tema do sujeito iludido que tem, a partir de uma experiência


fundamental, um acesso diferente à verdade, ao real etc., num afeto de
despertar é também um tema clássico. O despertar é um termo encon­
trado nas culturas orientais. Descobre-se que se vive na ilusão, sob o
véu de Maya, e que se pode atravessá-lo rumo ao despertar. Na temática
da travessia a fantasia, tem-se todas as harmônicas dessa tradição, pre­
sente igualmente em Pitágoras, Platão e talvez Spinoza. Porém, do pon­
to de vista do sintoma, ou sinthoma, como diz Lacan, não se trata de
ilusão, nem de despertar para o real ou para a verdade do real. Do
ponto de vista do sintoma, o sujeito é feliz. Ele é feliz tanto na dor
quanto no prazer; tanto na ilusão quanto na verdade. A pulsão desco­
nhece essas histórias. Quanto ao sujeito, como diz Lacan, "toda sorte
lhe é boa" (tout heur /ui est bon) para o que o mantém, ou seja, para que
ele se repita.
Dito de outro modo, o que não muda é a pulsão. Não há travessia
da pulsão, não há mais-além da pulsão. Eu já disse antes que não há
travessia da transferência. Certamente, há o estabelecimento de outra
relação subjetiva com a pulsão e com a transferência, por exemplo, uma
relação limpa do Ideal. Se nos fiarmos à oposição entre o I e o a do
gozo, o sujeito no fim da análise se encontrará mais próximo da pulsão.
É o que Lacan chama de saldo cínico da análise -cinismo aqui entendi­
do em seu valor de anti-sublimação.
Essa perspectiva não abre para uma travessia, porém, mais modes­
tamente para o que o próprio Lacan chama, na última parte de seu
ensino, de "saber haver-se aí (savoir y faire) com o seu sintoma". Não é
se curar. Não é deixá-lo para trás. Ao contrário, é estar enroscado e
saber haver-se aí.
O que se desloca entre a temática da travessia da fantasia e a do
saber haver-se aí com o sintoma? Em todo caso, isso indica que nesse
nível isso não muda. Não despertamos. Conseguimos apenas manejar
de outro modo aquilo que não muda.
O saber haver-se aí remete ao que o sujeito é capaz, dado o caso,
na ordem imaginária. Sabemos mais ou menos haver-nos com nossa
imagem. Trabalhamos nossa imagem. Vestimos nosso corpo. Maquiamo­
nos. Arrumamo-nos. Fazemos dietas. Produzimo-nos. Tomamos sol,
antes protegíamo-nos dele. Em suma, cuidamos de nossa imagem.
Pois bem, a questão seria de saber haver-se aí com seu sintoma
tendo o mesmo cuidado dispensado à imagem. A perspectiva é aquela
de um bom uso do sintoma, e isto é muito diferente da travessia da
fantasia.

199
Os circuitos do desejo na vida e na análise

A travessia da fantasia não deixa de ser uma experiência de verda­


de. É a noção de que as escamas, em determinado momento, caem dos
olhos6 , e que a existência se reordena a partir de uma visão a posteriori.
O bom uso do sintoma não é uma experiência de verdade, trata-se
antes da ordem, se ouso dizer, de ter prazer com seu gozo, estar em
sintonia com seu gozo. Muito inquietante, certamente! Esboça-se aqui
algo da ordem do sem-escrúpulo. O escrúpulo, no sentido etimológico,
é uma pedrinha que incomoda. No sapato, por exemplo. A consciência
é da ordem dessa pedrinha, e o bom uso do sintoma a deixa de lado.
Neste sentido, o fim da análise não é deixar de ter sintoma -esta seria
a perspectiva terapêutica -mas sim, ao contrário, amar o sintoma como
se ama a própria imagem, e até mesmo amá-lo em vez de sua imagem.

O saber haver-se aí com seu sintoma


Enfatizei de outro modo o fim de análise. Não o fiz sem hesitação, nem
sem prudência.

Aggiornamento de nosso olhar clínico


É preciso reconhecer que o aqui enunciado tem incidências sobre a
prática analítica, sobretudo em certa área dessa prática. Não estamos
aqui apenas para comentarmos a prática que existe; as ênfases postas, e
até mesmo as inovações que se esboçam, têm conseqüências sobre a
prática analítica. Isso serve para evitar tocar em tal questão, e isso para
não dizer tudo
Após enfatizar o parceiro-sintoma, a relação do sujeito no casal, o
casal que ele forma com outro, sou forçado a constatar isso de que me
falam sobremaneira. Logicamente disso já me falavam antes, razão da
ênfase ter se imposto. Porém tomar conhecimento, promovê-la, tem
como efeito reforçá-la, até o ponto de não se poder desconhecer o lugar
que a relação com o parceiro tem na prática e na clínica, na qual essa
relação não é um complemento, nem enfeite, aparecendo sobretudo
como pivô. Não é exato afirmar que na análise se fala somente de p apai
e de mamãe, da família de nascimento e do ambiente da infância. E fato
que falamos, de modo premente e mesmo proeminente, da relação com
o cônjuge ou com a ausência de cônjuge, o que, para o que nos interessa,
dá no mesmo. Faz parte do aggiornamento de nosso olhar clínico passar
à perspectiva que se impõe em primeiro plano.

6
N. do T. No original : "les écailles [ .. . ] vous tombent des yeux", alusão a São
Paulo recobrindo os olhos, e significando "abrir os olhos", "desenganar".

200
A teoria do parceiro

Há para isso razões de civilização que exploramos às apalpadelas.


É um fato da época em que o Outro não existe. Não existindo o Outro,
recuperamo-nos com o parceiro, que, este, existe; de vários modos pos­
síveis nós o fazemos existir.
A ruína do Ideal e a prevalência do objeto mais-de-gozar tendem,
no modo de gozo contemporâneo, ao fenômeno abordado de modos
distintos por outras perspectivas que não a nossa: a dissolução de comu­
nidades, da família ampliada, das solidariedades profissionais, e até
mesmo, para empregar um gloriosa palavra popular, nos introduz em
um fenômeno cada mais generalizado de desenraizamento.
Ao mesmo tempo, observamos o surgimento de comunidades re­
compostas sobre novas bases que o atual regime do Outro impõe, co­
munidades recompostas por novas famílias, seitas, pertinências
associativas, cuja importância na existência é bem maior do que no
passado; e um tecido que se trama, de forma nova, de múltiplas solida­
riedades que, aliás, os estados tentam explorar, e em relação às quais
devem situar-se. Os estados são progressivamente postos sob suspeita
de nada serem além de uma comunidade como qualquer outra nas mãos
do que chamamos, tanto nos Estados Unidos quanto na França, de a
classe política, na qual finalmente apenas se vê uma comunidade espe- .
cial com interesses particulares.
Nessa recomposição comunitária, exigida pelo desenraizamento
dominante, sem dúvida o casal é a cómunidade fundamental. Ao me­
nos, a forma do casal é subjetivamente essencial.
Essa forma do casal é evidenciada na psicanálise. O analisante
vem fazer par, por meio de um diálogo especial, com o analista. Cons­
tatamos que o discurso psicanalítico passa pela formação de um casal
artificial. A própria expressão casal artificial só valeria verdadeiramente
se tivéssemos a noção de um casal natural, que não fosse artificial.
É exatamente o que está em questão. Freud chamou o liame desse casal
de transferência.
Certamente o casal analítico é dissimétrico. Seus elementos não
são equivalentes, ainda que o fato de serem um casal conduza ao querer
que a contra-transferência, sob certas perspectivas, responda à transfe­
rência. O casal dissimétrico pode ser concebido como libidinal, quan­
do vemos no analista um objeto investido, atraindo para si a libido.
Sabemos que Lacan se recusou a conceber o casal analítico como
libidinal. Recusou-se por preconceito, indo buscar a jÚstificativa em
Freud de que a libido seria uma função essencialmente narcísica, ilus­
trada pelo casal especular a-a'. Ele considerou que tal conteúdo da forma

201
Os circuitos do desejo na vida e na análise

casal não convinha ao casal analítico, opondo-lhe o casal intersubjetivo


fundamentado na comunicação.

a -- a'
( $ O A)

Um casal pivotante na dita função do grande Outro como auditor,


mas também, por uma inversão do emissor, em todos os casos, como
intérprete, senhor da verdade; e o laço entre os dois é a mensagem, o
endereçamento. O Outro é ao mesmo tempo senhor da verdade e se­
nhor de reconhecimento do sujeito. Pois bem, foi a partir daí que Lacan
tentou retornar ao casal libidinal.
O casal intersubjetivo, no qual trata-se de comunicar, de dizer a
verdade do que o sujeito enuncia, é um casal muito intelectual, um
casal apaixonado pela verdade, pela pesquisa da verdade a respeito do
que é o sujeito. Ele se diferencia, com efeito, do que é o casal libidinal.
Uma vez separados os dois registros, a questão para Lacan se tornou:
como explicar o casal libidinal a partir do casal subjetivo? Como expli­
car o amor e o desejo a partir da comunicação? Ele não deu uma respos­
ta apenas porém todas elas precisaram da introdução do que chamarei
de termos Janus.
Inicialmente, ele respondeu à questão: "como explicar o amor e o
desejo a partir do casal intersubjetivo?" em termos significantes. É a
doutrina do falo, na qual a libido é reduzida aos fenômenos de significante
e significado e o parceiro do amor e do desejo é o falo. O falo é um
termo Janus por pertencer, por um lado, ao simbólico e, por outro, ao
registro libidinal.

($ o <I>)
Mais tarde, às vezes simultaneamente, deu outra resposta ajudado
por outro termo Janus, o objeto a, que sem dúvida, não sendo um
significante, está mais próximo do registro libidinal que o falo. Mesmo
não sendo um significante, Lacan o fez funcionar em sua circulação
como um significante, por exemplo, no esquema dos quatro discursos,
a letra a não é um significante, mas gira tanto como os significantes,
como com a falta de significante. O objeto a é, tal como o falo, um
termo Janus.

202
A teoria do parceiro

É o casal fantasístico em que o parceiro do amor e do desejo


aparece reduzido essencialmente ao status de objeto. Para Lacan, é a
fantasia o que de algum modo constitui o casal fundamental do sujeito,
a ponto de, para situar o lugar do analista, ter-lhe sido preciso definir o
lugar balizado com o termo objeto a.
A doutrina lacaniana clássica do fim de análise se concentrou nesse
casal. Foi essencialmente o que Lacan aparelhou sob a forma do passe.
Quando ele conseguiu extrair a função do casal fantasístico, pensou que
poderia colocá-lo no aparelho destinado a captar -a organizar o fim de
análise.
Tal doutrina tornou-se clássica - sejamos exatos - porque eu o
enfatizei. No momento em que Lacan parou de ensinar e em que sua
Escola não somente foi dissolvida, mas voou pelos ares, o passe já havia
sido descartado pelos alunos mais importantes. A prova disso é que
naquele momento nenhum grupo lacaniano, salvo aquele do qual eu
fazia parte, retomou às suas custas a prática do passe, considerando que
o fracasso se consolidara. Aliás, nem tão enganosamente, pois o ensino
de Lacan parecia ter feito o luto do passe, tendo-o, em todo caso, mino­
rado.
É bem verdade que em 198 1-2 fiz todo o necessário para restabe­
lecer o passe como doutrina e funcionamento, pensando que a institui­
ção a ser reconstituída sobre novas bases exigia tal aparelho do passe.
Dou essas especificações porque, hoje em dia, quando quero dar outra
ênfase, vejo retornar a gritaria de alguns: "O passe, o passe!" Tenham
calma. A história é mais complexa. Lacan propôs o aparelho do passe
em 1967. Ensinou até 1980. Deu, à sua trajetória, inflexões que valem
a pena seguir.
Para Lacan, antes da doutrina do passe, o fim de análise estava
situado, antes de mais nada, em um mais-além do imaginário, e portan­
to entre dois termos pertencentes ao registro simbólico, dois termos
que foram a morte e o falo, sucessivamente.
Foi a contragosto que Lacan situou o fim de análise em relação a
esses dois termos do simbólico. Para o primeiro, o fim da análise situa­
va-se em termos de assunção; para o segundo, em termos de
desidentificação. Tanto em um caso como em outro, a localização es­
sencial, o lugar do fim da análise, situava-se no simbólico, mais-além
do imaginário.
De fato, com a doutrina do passe, esboça-se o lugar do final de
análise mais-além do simbólico, em uma atualização do parceiro objeto a.
Certa vez Lacan chamou essa relação, não muito mais que uma vez, de

203
Os circuitos do desejo na vida e na análise

a travessia da fantasia, da qual fiz um tipo deschibboleth, leitmotiv, opon­


do-a à suspensão do sintoma e situando-o na grande oposição existente
entre sintoma e fantasia. Tive tamanho êxito que, quando quero retocar,
mesmo com a mais leve mão, vira insurreição: "Miller tocou na travessia
da fantasia! " Exigem-me a estagnação, sobretudo não querem que eu me
mova. Querem o pai morto. Querem o pai, e sobretudo o pai morto.
Observo, contudo, que a travessia da fantasia enfatiza a função da
verdade, mesmo quando parece falar do real. Em todo caso, ela acentua
um certo mais-além do saber sob forma de verdade e se inscreve em
uma dialética do véu e da verdade, sendo a fantasia considerada como
esse véu que se trata de erguer ou atravessar para atingir uma certa
verdade do real. A travessia da fantasia implica algo como um despertar
para o real. Não é falso, mas podemos questionar o que aí se anuncia
gloriosamente como descontinuidade, a saber como definitiva, em vista
dos resultados.
Os que estão passados estarão acordados? Parecem tão bem insta­
lados com certo conforto, conforto sem escrúpulos. Eis por que apesar
de Lacan tê-lo dito apenas uma vez, creio valer à pena deslocar a ênfase.
Esta palavra travessia atravessa a Ponte de Arcole 7 • Há heroísmo
na travessia. Houve a travessia do Atlântico por Lindberg, a dos 1 O mil,
a longa marcha chinesa. A travessia mobiliza uma figuração de heroísmo.
Não poderíamos, vendo os resultados, simplesmente acrescentar, pôr
ao lado da travessia da fantasia o que Lacan chama, de forma deliciosa,
modesta, de o saber haver-se aí com o sintoma, cuja ênfase é inteira­
mente diferente? Isso não postula em primeiro plano a descontinuidade
entre o antes e o depois.
O saber haver-se aí com o sintoma é uma questão de mais ou
menos. Nele entra o ambíguo, o vago - fuzzy - tal como chamávamos
certas "lógicas ambíguas". Ele não representa necessariamente o oposto
da travessia da fantasia. Poder-se-ia mesmo dizer: após a travessia da
fantasia, o saber haver-se aí com o sintoma, se assim quisermos introdu­
zir transições, sem desaprumarmos a população.

Savoir-faire e saber haver-se aí


Eu enfatizaria aqui também a diferença delicada, proposta mas não de­
senvolvida por Lacan, entre savoir-faire e saber haver-se aí (savoir y
faire). Ele o afirma uma vez em um seminário dos últimos anos.

7 N. do T. Batalha de Arcole, vitória de Bonaparte sobre os austríacos, próximo


de Verona, em 1796.

204
A teoria do parceiro

Aqui, necessitamos construi-la, visto que ele não diz o porquê da


oposição. Eis o que invento a esse respeito.
O savoir-faire é uma técnica. Há savoir-faire quando conhecemos
aquilo de que se trata, quando temos experiência. Aliás, o savoir-faire,
sem ser elevado ao nível teórico, se ensina. Nos Estados Unidos, encon­
tramos na livraria manuais de How to ? Como fazer com . . . ? O savoir­
faire com... tudo. Como dirigir o carro, o casamento, como fazer ginás­
tica, como fazer a cozinha francesa etc. O savoir-faire é uma técnica
para a qual há lugar quando se conhece a coisa de que se trata e pode-se
definir as regras reproduzíveis, por isso mesmo ensináveis.
Já o saber haver-se aí ocorre quando a coisa em questão escapa,
quando conserva sempre algo de imprevisível. Tudo que se pode fazer é
lisonjeá-la, permanecendo atento. No savoir-faire, a coisa é domestica­
da, submissa, enquanto no saber haver-se aí, permanece selvagem, in­
domável. Eis por que há o universal do lado do savoir-faire. Mas quan­
do há o singular, só há saber haver-se aí. No savoir-faire, conhecemos a
coisa. Nada de surpresas! No saber haver-se aí, contudo, admitimos
saber encarar a coisa, mas com precaução. Nós a desconhecemos, e
sempre estamos esperando o pior.
.. Retomo aqui um pequeno trecho de Lacan: no saber haver-se aí,
não tomamos a coisa em termos de conceito. Essa indicação mínima
parece-me congruente com o que desenvolvi: no savoir-faire, domesti­
camos a coisa com um conceito, enquânto no saber haver-se aí, a coisa
permanece exterior a toda captura conceituai possível. Nesse mesmo
sentido, não somente não estamos na teoria, como também não estamos
verdadeiramente no saber. O saber haver-se aí não é um saber, no senti­
do de um saber articulado. É um conhecer, no sentido de saber se virar
com. É uma noção que, em seu sentido ambíguo e aproximado, parece
essencial no último Lacan : saber se virar com.
Aqui estamos no nível do uso, do us - velha palavra francesa que, em
outras palavras, vocês encontram na expressão "les us et coutumes", nos
usos e costumes, que provém diretamente do latimusus e de uti, servir-se de.
Para o último Lacan, o nível do uso é um nível essencial. Nós já o
abordamos, ainda que o tenhamos feito por meio da disjunção do
significante e do significado. Com efeito, o último ensino de Lacan
enfatiza, contrariamente à "Instância da letra", a não vinculação entre
significante e significado, havendo entre eles apenas um depósito, uma
cristalização, decorrente do uso que se faz das palavras. A única coisa
necessária para haver uma língua é que a palavra tenha um uso, diz ele,
cristalizado pela fusão.

2 05
Os circuitos do desejo na vida e na análise

Esse uso e o uso feito por um certo número de pessoas que dela se
utilizem, "não se sabe muito bem por quê", diz Lacan. Eles a utilizam
e, pouco a pouco, a palavra é determinada pelo uso que dela é feito.
O conceito de uso é essencial no último ensino de Lacan exata­
mente por ser distinto do nível do sistema, o nível saussureano do siste­
ma que o inspirara no início. Ao sistema opõe-se o uso, à lei diacrítica
do sistema fixado no corte sincrônico que fazemos, para determiná-lo,
opõem-se os mais ou menos, as conveniências, os sabichões e os desvios
da palavra, do uso da palavra, da prática. Há aqui, com efeito, uma
disjunção essencial entre a teoria e a prática. Essa disjunção já se esboça
por meio do savoir-faire - o savoir-faire já é uma prática codificada
distinta da teoria - e explode no saber haver-se aí. Neste não há teoria,
mas sim uma prática que segue seu caminho sozinha, como o gato de
Kipling.
Enquanto havia o Outro, tesouro do significantes, não tínhamos
necessidade do uso, e podíamos afirmar que nos referíamos ao Outro
para saber o que as palavras queriam dizer. E depois, quando as pala­
vras funcionavam e que evidentemente não eram como no dicionário,
recorria-se ao mestre da verdade, àquele que dizia, pontuava e escolhia
o que aquilo queria dizer.
Mas quando o Outro não existe, quando não elevamos a contin­
gência do dicionário ao status de norma absoluta, quando vocês acredi­
tam mais ou menos no mestre da verdade, sobretudo menos que mais,
quando se é mais do tipo "ele diz isso e eu digo outra coisa", quando o
Outro não existe, então só há o uso. O conceito de uso se impõe preci­
samente a partir do fato de que o Outro não existe. A promoção do uso
acontece onde o saber falta, onde o espírito de sistema é impotente, e
ali onde a verdade, com seu cortejo de mestres mais ou menos faltantes,
não se encontra.
Eis bem por que há uma correlação essencial entre o conceito de
uso e o real, em sua definição radical proposta por Lacan: "Talvez seja
meu próprio sintoma". O real em sua definição radical não tem lei, não
tem sentido, aparece apenas em pedaços, o que significa dizer totalmen­
te rebelde à própria noção de sistema. Eis por que a relação com o real,
até mesmo a boa relação com o real, está marcada, qualificada pelo
termo de uso.
A melhor prova disso -Lacan não parou de falar a esse respeito
em seu último ensino - é que sempre nos enrolamos (s'embrouiller).
Põe-se sempre de lado. O homem se enrola com o real. É por aqui que
nos aproximamos da definição mais probatória. Ele se enrola também

206
A teoria do parceiro

com o simbólico. É porque o homem se enrola com o simbólico que há


algo de real no simbólico. Quando não conseguimos mais dominar o
simbólico, e então tateamos, tentamos fazer algo, é precisamente isso o
que indica que há real no simbólico.
O homem se enrola também com o imaginário, e é isso a marca
de haver real no imaginário, razão pela qual Lacan qualifica a posição
nativa do homem como sendo a de debilidade mental. Isso é coerente
com o conjunto de termos: o uso, o real, o enrolar-se e o status de
debilidade mental, que têm a ver com o que de saída o sujeito tem de
fundamentalmente desarmonioso.
Daí a questão ser a de se desenrolar (débrouiller), conseguir se
livrar, porém aqui no espírito mais empírico que sistemático. É aí que
Lacan se refere ao bem-dizer. O bem-dizer não é a demonstração. O bem­
dizer é o contrário do materna e quer dizer que o sujeito consegue
finalmente se desenrolar do 'real com o significante. Nada além que se
desenrolar, a ponto de Lacan, numa definição estrondosa, ter proposto
que o real se encontra nas enrolações da verdade.
É disso que se trata, de rolo, de desenrolações do tipo Bibi Fricotin,
arrolamentos, imbroglios, ou sitja, do modo com que caímos na rede
(emmêler) que enredamos (mêler). O objeto que faz sentir que o essen­
cial da condição humana é a enrolação foi o nó, o objeto que Lacan pôs
no quadro negro durante anos.
A referência de Lacan era a ciência, isto é, de modo algum o bem­
dizer, mas sim a demonstração, a redução do real pelo significante. Em
seguida, durante o seu último ensino, foi a arte, à diferença da ciência,
a arte de saber haver-se aí, até mesmo savoir-faire, contudo mais-além
das prescrições do simbólico.
Nessa perspectiva, o sintoma é antes de tudo um fato de enrolação.
Há sintoma quando o nó perfeito rateia, quando o nó se enrola, quando
há, como dizia Lacan, lapso do nó. Ao mesmo tempo, porém, esse
sintoma feito de enrolação é também o ponto de basta e, em particular,
o ponto de basta do casal. Assim, também o sintoma é um termo Janus.
O sintoma, em uma de suas faces, é o que não vai bem, e na outra, a que
Lacan, recorrendo à etimologia, denominou de sinthoma, o único lugar
onde, para o homem que se enrola, finalmente isso rola.
[Tradução: Angelina Harari]

207
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.. ..., .., """'" .... ......-,,._

\ 1 léia que orientou a organização Uma declaração que propõe um


•, · l ivro foi a de traçar uma espécie circuito para uma comunidade
111::ipa do nosso Campo freudiano, psicanalítica de trabalho que, dentro da
1 , 11 ·ado a partir das múltiplas vias, orientação lacaniana, rompe as
1, "• roteiros escolhidos por cada um fronteiras geográficas e as barreiras das
1, ,,, autores para percorrer o tema do diferenças lingüísticas.
I 1 ncontro Brasileiro do Campo Esse livro expressa o espírito da
1 1 1·1 1cliano: Os circuitos do desejo na Escola Una em seu próprio roteiro.
,/,1 e na análise. Nosso porto de A primeira parte apresenta os frutos do
1moragem é O Seminário, livro 5: as trabalho sobre o tema do nosso
, ,, 111ações do inconsciente, de Jacques Encontro colhidos nos campos da
I ll,111. Dele partem duas rotas: aquela Escola Brasileira de Psicanálise.
1111·, percorrendo as diversas regiões do A segunda reúne algumas das
1 .1 11 1po freudiano, recolhe ressonâncias de O Seminário, livro 5
, 1 1 1 1 1 ribuições valiosas e recentes sobre em diversas outras regiões do Campo
•� principais temas tratados por Lacan Freudiano. E a terceira traz a
1 w se seminário, e outra que, seguindo contribuição de Jacques-Alain Miller
, 1 r;:1çado do grafo do desejo, sobre a parceria que importa à
I<- ' ·ortina diversos olhares sobre o psicanálise, ou seja, a que existe entre o
11,11· ·isismo, a pulsão, a fantasia e o sujeito e o objeto.
1 nt oma. onvidamos o leitor a participar de
C�uarenta e três anos nos separam nossa parceria, parceria que se dá no
df'�Le Seminário, entretanto os artigos cntr ·laçamento das vielas dos desejos
, 1 1 1 l ivro evidenciam a atualidade de sua qui.: resultaram nesse livro, e que
, 1 rntribuição e ressaltam a preocupação p ·rmitcm que o caminhar de sua
,Ir Lacan em como pensar, no retorno l ibido, ao percorrer essas páginas, trace
1 l 1 rcud, o novo em psicanálise. Se este os circuitos do seu desejo. Quem sabe
, 1 11 1siderou o sonho sua via régia e o você aporte no precioso de algum
1 1 ,111ou como ponto de partida no recanto: uma nova maneira de dizer.
1 . 1 1 1 1 i nho da descoberta do

llll onsciente, aquele, por sua vez,


d,•( idiu começar o seu seminário pelo Elisa Monteiro e Vera Ave/lar Ribeiro
\\11tz, algo novo no dizer, que, ao
•, 111 gir, relança o desejo, por excelência,
.,r,11 pre de outra coisa.
e ) desejo e o entusiasmo de cada um
. ln� autores em suas contribuições para
r.,I · l ivro já anunciavam o movimento
q 1 1 · marcaria a recente declaração da
1 ,l ola Una do Campo Freudiano -
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