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Diana S.

Rabinovich

O desejo do psicanalista
Liberdade e determinação em psicanálise

editora
Copyright© Manancial

TITULO ÜPJGINAL
E! deseo deipsicoana/i,r,1
Libcrrad y determinación en psico;111á!isis

Direitos de edição em língua portuguesa adquiridos pela


EDITORA CAMPO MATÊMICO
Proibida a reprodução total ou parcial

Editoração Eletrônica
F:A - Editoração Elcuô111ói

Tradução
Paloma Vida!

Revisão
Sandra Regúw Fclgue1i:1s

Editores Responsáveis
joséNazar
Luiz Roberto K/;1czko

Rl 16d
Rabinovich, Diana S.
O desejo do psicnnalista: liberdatle e determinação
em psicanálise/ Diana S. Rabinovích. - Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2000.

176 p.; 21 cm

ISBN 85-85717-42-4

l. Psicanálise. 2. Psicanalistas. l. Título

CDD-150.195

edito r a

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA


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ÍNDICE

Prólogo .................................................................................. 7

1. O desejo do psicanalista e a ironia socrática ............................. 11

2. A questão do saber do psicanalista:


a douta ignorância ......................................................................... 33

3. Formas lógicas das operações de alienação e separação .......... 55

4. O objeto perdido, o desejo do Outro e o


desejo do psicanalista: falta, perda, causa .................................. 81
5. Alienação e separação em "Posição do inconsciente"
e no Seminário XI. A liberdade: do terror hegeliano
à contingência .................................................................. 97

6. Desejo do psicanalista e operação de separação ..................... 125

Anexo. Lógicas da Escola em psicanálise .............................. 147


PRÓLOGO

O objetivo deste livro é situar o conceito "desejo do psica­


nalista" no âmbito que acreditamos ser central para o próprio
exercício da psicanálise: o âmbito do debate sobre a determina:­
ção e a liberdade. A meu ver, s� psicanálise não abre para cada
sujeito falante a possibilidade desse "pouco de liberdade", como
Lacan a denomina, seu exercício se torna uma mera fraude.
Estabelecer as coordenadas desse debate implica levar em
conta o caráter central, subversivo inclusive, no ensino de Lacan,
do desejo como desejo do Outro. Não é à-toa que o primeiro
capítulo se desenvolve em torno da figura de Sócrates - sempre
presente, de maneira explícita ou apenas sugerida, quando Lacan
se refere ao desejo do analista-, esse Sócrates que, segundo Lacan,
enfoca sempre,ª�-º Freud,� de�o como objeto,1..is�é,
co.;?o desejo de um desejo.
Em relação ao desejo como objeto, evidencia-se o problema
da causa do desejo e�ua contingência. Esta última articulação é
indispensável, pois são os modos lógicos na sua relação com a
causa que introduzem a perspectiva que resulta em situar o dese­
jo do psicanalista como um instrumento central na direção da
cura, no que diz respeito à eleição possível que se abre para o
analisando.
Portanto, essa leitura implica uma crítica de toda compreen­
são do desejo do Outro como puro destino prefixado, interpre-

7
O lJ E S E J O Ü () P S I C A N A 1. 1 � ! A.

tação de Lacan que acarreta uma distorção do significado do dese­


jo do psicanalista, que vai certamente muito além de uma mera
substituição do conceito de contracransferência.
Vale lembrar a importância desse "luto" do analista com o
qual culmina o Seminário A m111.slên�1ci.i. Esse será outro eixo
que percorrerá o que desenvolvemos neste texto, o qual exige um
exame detalhado das operações de alienação e separação tal como
são elaboradas, num contraponto peculiar, nos Seminários "A an­
gústia", Osquarro cona·irosfimdzmentaisdapsÍcanálise, "A lógi­
ca do fantasma" e "O ato psicanalítico".
É este o contexto no qual o desejo do psicanalista se desen­
volve em sua originalidade, para se engajar entre a angústia, o luto,
o desejo do Outro, o objeto a como causa desse desejo e as opera­
ções que Lacan sintetiza numa série fundamental a meu ver pouco
enfatizada: a série constituída numa ordem lógica pela falta, pela
perda e pela causa. É nesse contexto que o ato psicanalítico adqui­
re toda a sua importância.
Há também uma discussão sobre a articulação entre liberda­
de e causação, temas em geral deixados de lado na leitura da obra
de Lacan, levando em consideração o que se apresenta no escrito
"A ciência e a verdade". Para isso é indispensável examinar a dife­
rença entre a necessidade a púori e a posteriori, cujo enraizamento
freudiano é indubitável, para delimitar qual é a margem de liber­
dade que a psicanálise viabiliza.
Por essa razão, o livro culmina com dois capítulos dedicados
a uma leitura detalhada dos capítulos pertinentes do Seminário XI
e do artigo "Posição do inconsciente" dos Escdtos, no que se refe­
re à relação entre a liberdade, a contingência e as operações de
alienação e, principalmente, de separação.
Falar do final da análise sem levar em consideração seus "fins"
é talvez um dos maiores obstáculos que as discussões atuais acerca
do tema costumam eludir. O que se ganha numa análise, se não a

8
P R Ó L O G O

pensamos em termos de cura-tipo, é precisamente essa margem


de liberdade.
Excluímos propositalmente toda discussão sobre o passe, pois
consideramos que ela freqüentemente obscurece o fato de que o
desejo do psicanalista se situa de modo central numa conceituação
da psicanálise que implica, enquanto tal, um desafio a todo
determinismo radical, que costuma não levar em conta que aqui­
lo que foi acidente, trauma, acaso se torna, em cada sujeito, uma
necessidade a posteúon', que esboça para ele o caminho no qual
ele pode se questionar "se quer o que deseja". Acredito que este
debate sobre a margem de liberdade que a prática psicanalítica
torna possível tem um alcance geral maior que a questão do passe,
na medida em que atinge qualquer análise, para além da dos pró­
prios psicanalistas.
Acrescentamos, como anexo, a conferência sobre as "Lógicas
da Escola", pronunciada em abril de 1 99 1 na Sociedade Analítica
de Buenos Aires, no momento do meu afastamento do Campo
Freudiano. Ela começou a circular, numa transcrição incorreta,
devido ao interesse que adquiriu à luz dos acontecimentos recen­
tes na Associação Mundial de Psicanálise, acontecimentos cuja
possibilidade já era clara para mim, nessa época. O que nela se
desenvolve oferece uma referência geral para o que se expõe no
resto do livro.
CAPÍTU LO 1
O DESEJO DO PSICANALI STA E A IRONIA SOCRÁTICA

O desejo do psicanalista é um conceito associado à . elabora­


ção por Lacan de uma ética própria da psicanálise. Portanto, o
desejo do psicanalista, a ética da psicanálise e a responsabilidade
do psicanalista devem ser pensadas em uníssono.
No Seminário XII, "Os problemas cruciais da psicanálise", a
posição do analista é caracterizada eticamente: "Espera-se do psi­
canalista uma conversão ética radical" 1 • Essa conversão ética é
definida, com precisão, como a introdução do sujeito na ordem
do desejo. A ordem do desejo funda a ação do sujeito humano
num novo fator no campo da ética: o desejo tal como Freud o
descobre.
Na �esma lição, aparece o termo "escola", que remete, de
maneira explícita, às escolas de filosofia helenística da Antigüida­
de. Esse termo introduz uma questão complexa: em que está fun­
dado seu uso para definir algo que supostamente deve chegar a ser
uma nova forma de laço social entre os psicanalistas2 ?

1
J. Lacan, Seminário XII, "Os problemas cruciais d;i. psicanálise", inédito, lição de 5/
5/65.
2
Tema q ue examinamos em D. Rabinovich, "Lógicas de la Escuela en psicoanálisis",
conferência pronunciada na Sociedade Psicanalítica de Buenos Aires, SABA, em
abril de 1 9 9 1 , que está no anexo deste livro.

11
O l) E S [ J O l) O P S I C A N A 1. 1 S T J\

Na Antigüidade, uma escola - fosse ela a Peripatética ou


aristotélica, a Academia platônica, a Stoa, o pórtico estóico, ou o
Jardim epicurista - implicava a formação de um estilo de vida.
Formulação problemática, pois Lacan espera que essa "formação
de um estilo de vida" seja assumida por aqueles que se interessam
especificamente no seu ensino, a partir de uma posição do psica­
nalista fundada na sua responsabilidade ética, que o ensino de Lacan
lhe permitirá assumir:
[ ... ] corno um p rincíp io da sua ação, que lhes permita dar
conta dessa mesma ação. Por outro lado, não só quero ter
aqui gente que esteja interessada na sua ação, mas que esteja
interessada, basicamente, no que implica a mudança essen­
cial da motivação ética e subjetiva que a psicanálise intro­
duz no nosw rnundoJ.

Não podemos ignorar o caráter problemático dessa proposta


que exige que estabeleçamos o limite sutil entre "estilo de vida" e
''estilo de trabalho como analista", na medida em que esta última
é uma afirmação que pode ser interpretada no sentido do tão cri­
ticado final de análise por identificação, ou, inclusive, no sentido
de uma nova forma de cosmovisão psicanalítica.
Essa afirmação contém uma verdade fundamental: afirma o
caráter revolucionário, subversivo da formulação freudiana do
desejo e do sujeito e sua incidência na ética. Mas, do mesmo modo,
implica um risco: o de ser entendida como a proposta de uma
nova way ofHfr, ainda que esta já não seja american.
Antes de examinar essa questão é necessária uma revisão rigoro­
sa do próprio conceito de desejo do psicanalista. Lacan se depara
com ele em relação à figura de Sócrates, que reaparecerá até o final
de sua obra cada vez que ele se referir ao desejo do psicanalista.

3
J. Lacan, Seminário XII, op. cic., lição de 27/ 1 /65.
12
O lJ E S E J O D O S S I CA N A L I S T A E A I R O N I A S O C R Á T I C A

O que motiva essa reaparição constante de Sócrates? O Sócrates _


d�_§.:1�quete, e_!ll particular, retorna incessantemente, volta sem:-_.
pre ao mesmo luga�:·;� l�gar onde se fala d�desejo d�-p�i�;�;ff��
'fa é, màis precisamente, do desejo dopsic�11al_ista na sua articula-.
· ç�o cóm o amor de transferência. Sócrates, em certo sentido, guia
Laêanria-desc�'b e�tadó dese}ô dó psicanalista como tal.
Um artigo de Pierre Hadot, "A figura de Sócrates"\ aproxi­
ma-se do que Lacan desenvolve a esse respeito, sendo o desenvol­
vimento de ambos muito p róximo ao de Kierkegaard e, em me­
nor grau, ao de Nietzsche.
No primeiro capítulo do Seminário XI, Lacan afirma, refe­
rindo-se à transmissão da psicanálise, da qual o desejo do psicana­
lista é inseparável:
Quanto ao desejo de Freud, situei-o num nível mais eleva­
do. Eu disse que o campo freudiano da prática da psicanáli­
se continuava sendo dependente de certo desejo original
que desempenha sempre um papel ambíguo, ainda que pre­
dominante, na transmissão da psicanálise. O problema des­
te desejo não é psicológico, como também não o é o proble­
ma, não resolvido, do desejo de Sócrates. Existe toda uma
temática que afeta o estatuto do sujeito, quando Sócrates
postula não saber nada além daquilo que concerne ao dese­
jo. O desejo nunca é coloc.-1do por Sócrates em posição de
subjetividade o;ig
.. .
inal, mas em posição de. .-•-·;�]i. c_o.. Põisb'ro�:--
--·--··--- -·-- -·· . . . -- - . .. . .. 5
em Freud também se trara do desejo como objeto . [os itá-
·-··--·------· · - - ······ --·------
l����ã;-�ossos] . -

Trata-se, assi �d o des�? '.:_�� do ,Q��c<:,, �::j_?.��º


°: ­
Outro
._ ..
que é ·
o oijeto
�--�----� ,.. ·-... . ...
do
........
desejo .
.....,...
_,....,__, .. �•i-·----·,· _, -·--··· ... .. ___.__ ..,. .. . :.J

4
P. Hadoc, "La figure de Socrate", em Exercises Spúituels ec Phj}osophie Antique,
Paris, Écudes Agustiniennes, 1 987.
5
J. Lacan, El Semínario, Libro 1 1, L os cuacro concepros fundamencales dei
psicoanálisis, Buenos Aires, Paidós, 1 986, p. 2 1 .

13
1; V i. � t. ! O D I) l' S I C ,,. N I\ L 1 :i T A

Inicialmente, o desenvolvimento centra-se, no que diz respei­


to a Sócrates, no amor. No entanto , no Seminário XI, surge a
palavra "desejo" para traduzir o que, usualmenre, foi traduzido
corno amor, cà erotiká, o erótico. A palavra castelhana "erótico'',
assim com o a francesa érotique, conserva a pista da presença do
Eros, traçando uma borda particular entre o desejo, o amor e a
pulsão.
A in trodução do desejo em posição de objeto, esse objeto
q ue é o desejo do Outro - ser desejado pelo Outro é o próprio
objeto do desejo -, e a remissão ao desejo de Sócrates mostram
que Freud e Sócrates têm em comum algo fundamental: conside­
rar que o desejável é ser desejado e que, portanto, o desejo não se
esgota nas categorias do ser ou do ter, mas que implica uma rela­
ção diferente do sujeito com a falta ou com o buraco no Outro,
com aquilo que faz do Outro um desejante.
No Seminário VIII, esboçam-se as coordenadas que o analis­
ta deve alcançar para ocupar o lugar que lhe é próprio, que é seu.
Esse lugar próprio do analista faz a essência, o fundamento mes­
mo de seu trabalho como analista. Esse lugar se define de um
modo que se manterá constante:
[ ... ] talvez possamos definir, e em termos de longitude e
larirude, as coordenadas que o analista deve ser capaz de
alcançar para simplesmente ocupar o lugar que é seu, que se
define como o que deve oferecer vazio para o desejo do pací­
6
enre para que se realize como desejo do Outro •

O psicanalisra deve oferecer um vazio, deixar livre o lugar do


próprio desejo, que não deve estar ocupado por esse objeto que é
o desejo de seu Outro particular. Deve-se oferecer vazio para que
o desejo do pacienre - o desejo como objeto, o desejo do Outro -

1, J . Lacan, Le Séminaire, Livre VIH, Le mrnsferr, Paris, Seuil, 1 99 1 , p. 1 28.

14
se realize enquanto desejo do Outro através desse instrumento
para sua realização que é o analista enquanto tal. O desejo do ana­
lista definido como um vazio, como um lugar onde algo poder,í.
se instalar, morar, torna evidente que o que se deve instalar ali, na
prática da psicanálise, é o desejo do paciente como desejo do seu
Outro, o da historicidade própria do paciente, o das circunstân­
cias próprias de sua vida. Não se trata de colocar em jogo o desejo
de um Outro "generalizado" ou generalizável, razão que invalida
por si só o desejo entendido como desejo de reconhecimento do
Outro.
A referência ao Outro, como ocorre freqüentemente, é acom­
panhada do adjetivo "inesquecível", tomado do Projeto... 7 freu­
diano. Para que o desejo apareça nesse Outro, o vazio estrutural
T t
desse Omro histórico, o analista cem queesvãzíar - 6 ügâr di seu
próprio desejo como sujeito do inconsciente. Esta é, assim, a ccm­
dição para que se desdobre esse Outro primordial e inesquecível
para o pacíeõ."re�q-ue ês·t;LLturou ·c�mo tal seu desejo, na medida
em que õ- óbfrt?-de - sêu desejo.é esse desejo do Outro.
No- final do Sen�i�iri� VÜ( pouco ames de síruar a respon­
sabilidade do analista em deixar aberta, na sua subjetividade, essa
hiância do desejo - que é um vazio, um entre-dois, pois não se trata
de que o analista opere como um S barrado, mas de que dei.'l(e aber­
_ta �- �iância do desejo do O urro, o entre-dois sig�ificaines do dese:
jo, entre S 1 e S 2 -, voltará à pergunta inicial: de que será que o
analista precisa para ocupar esse lugar numa perspectiva lógica?
É preciso situar-se em termos de nesciência, em outras__pala-
vras, ci�-d�ca 1gnorâií:cia, deú� �- f�ii:�-d e c·iêndâ-, dé �-�1-;�usên� ­
cia de ciência; de saber, principalmente de sab�r no-sentido de ''ª-'�

â-.= ;-��; -·a p·õssu·i�:�: -- · - - - -- -- - - - - _.


úênda, que o analista córno tal, em exercício - não como sujeito,
a
n� :;�; pró pri vid eve

' S. Freud, Pmyeao de ww psicologí.1 p:11:1 neurólogos, Ob1:1s complems, Buenos


Aires, Amorrorru, vol. 1 .

15
O O E S E J O l) C) P S I C A N A L I S T A

Não devemos menosprezar a importância desse vazio, cuja


meta é permitir o surgimento do objeto a. Não se trata de modo •
algum de que o analista, a partir desse espaço vazio do desejo do
Outro, permita ao analisando o acesso a um ideal ou a um amor,
mas, pelo contrário, de ressaltar como o amor é somente uma via
que:: permite delimitar, cercar o campo onde o objeto a aparecerá.
Qualquer objeto pode ocupar esse campo vazio do entre-dois do
desejo do Outro, já que, a priori, nenhum objeto é mais valioso
do que outro. O objeto que se situa ali é um objeto qualquer,
ainda que tenha, desde já, as características do objeto parcial freu­
diano.
Aqui, nós, analistas, somos levados a vacilar, nesse limite onde
se apresenta a questão do valor de qualquer objeto que entra no
campo do desejo. Não há objeto que tenha um preço maior que
outro - este é o luto no qual se centra o desej o do analista8 •
Entramos na ordem do que Freud mesmo definia como a
contingência do objeto pulsional que logo se torna, por ação da
fixação, necessário. Saber que qualquer objeto pode ocupar esse
lugar implica uma definição da posição do analista, que reaparece­
rá na "Proposição de outubro ... "9 , pois Lacan diz: " [... ] culmina
numa peculiar definição, na medida em que o desejo do psicana­
lista é formalizado como luto", quer dizer, em termos da opera­
ção de privação'º. O luto do psicanalista se funda no fato de que
nesse campo, o campo do desejo do Outro, todos os objetos são
incomensuráveis, carecem de medida comum. Fica claro que não
se alude ao falo, que é, precisamente, a medida comum, o

8
J. Lacan. Le Séminaire, Livre VIII, op. cit., p. 460.
9 J. Lacan. "Proposición dei 9 de occubre de 1967 sobre d psicoanalista de la Escuda",
en Momencos cruciales de la expcrie11á1 .1n.1lídca. Buenos Aires, Manantial, 1 987.
10 Lacan, em seus EKriro,ç, assim como nos seus seminários, relacionou de maneira
inovadora essa forma da falta de objeto que denominou "privação" ccim o !mo. Essa
relação se funda na definição da privação como buraco, falta no real, que é precisa­
mente o que produz o luto: um buraco no real.

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() O f. S F. J O IJ O P S I C A N A I. I S T A f .-\ l l{ O N I A S O C R Â T I C A

comensurável. Esses objetos, que carecem de medida comum, va­


lem para cada sujeito em particular - isso motiva a conclusão cen­
tral e seu retorno obrigatório a Sócrates -, indicam a inexistência
de um Bem supremo universalizante, comum a todos os sujeitos.
Qual é o luto em jogo na aceitação da ausência de medida
comum entre os objetos do desejo? O luto, articulado ao concei­
to de privação, é correlativo a um buraco no real; é, portanto,
buraco, falta, falha no real. Assim, o analista deve fazer o luto, ou
já o fez, por esse Bem supremo, único, que poderia ser comparti­
do. Não existe, no nível do objeto, nenhuma fusão possível entre
o psicanalista e seu paciente. O objeto é causa de desejo, definição
que terá de levar ao exame da causalidade, central para definir o
desejo do psicanalista. Implica, no caso do psicanalista, um saber
acerca do que carece de medida comum, acerca do valor do in­
comensurável na causação do desejo. Esse saber, assim formulado,
é absolutamente geral, porque não diz nada sobre cada caso em
particular.
No Seminário XII, descreve-se o "jogo da psicanálise" no qual
se desdobram as "três posições subjetivas do ser". A definição des­
sas três posições do ser se funda na ausência de ser próprio do ser
falante. As posições subjetivas são o sucedâneo dessa ausência de
ser, elas são as seguintes: o ser do sexo, o ser do sab er e o ser do
sujeito.
Qual é a relação do psicanalista com essas três posições subje­
tivas do ser? O psicanalista, na sua função, articula-se com a posi­
ção do ser do saber, caracterizada como a posição pura do sujeito.
Essa posição funda-se em Descartes:
[ . . . ] na medida em que .o analista se ahrma, como sendo
aquele que pensa que não sabe nada. No momento em que
assume estruturalmente essa formação de estrutura que é o
li
sujeito suposto saber, sua posição é cética .

1 1 J. Lacan, Seminário XII, op. cit., lição de 1 9/05/65.

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O D E S E J O D O l' S f C A N A I. I S T A

A presença do termo "afirma" deve ser destacada, pois está


estreitamente relacionada com a teoria da interpretação que deriva
do conceito de desejo do psicanalista. Ela se refere a uma forma
.
lógica, a da proposição afirmativa, chamada tradicionalmente
"apofâmica".
Retornam, como se pode ver, as escolas da Antigüidade. Apa­
rece o ceticismo, que implica certa rejeição válida do saber na po­
sição do analista. O analista deve rej eitar o saber, assim como
Descartes rejeita cerco saber relacionado ao saber tradicional apren­
dido com os jesuÍlas. Era para isso que apontava outrora uma das
dimensões da posição de ''morto" do analista, a do abandono dos
preconceitos, dos falsos saberes ou do saber da ciência inútil do eu
[mo11 no exercício mais específico e íntimo de sua prática.
Lacan caracteriza essa posição de rejeição do saber como um
ceticismo pirrônico. Pirro foi o fundador da escola cética que,
assim como todas as outras escolas - estóicos, epicuristas, acadê­
micos, aristotélicos -, considerava-se herdeira direta de Sócrates.
Todas elas rivalizavam para ocupar o lugar dos autênticos descen­
dentes de Sócrates; do mesmo modo que Lacan, os psicanalistas
da psicologia do eu, Melanie Klein, Winnicott, etc, todos susten­
tam que são descendentes diretos e legítimos de Freud. A situa­
ção, sem dúvida, se assemelha.
A única afirmação que o cético faz é a de que não sabe, afir­
mação socrática por excelência. Portanto, existe uma relação mui­
to direta entre a posição do analista e a posição socrática no que
diz respeito à afirmação do não-saber.
Em psicanálise, se o psicanalista afirma ames que o discurso
do sujeito lhe ofereça os elementos que lhe permitam afirmar algo,
na maioria dos casos seu funcionamento correrá o risco de ser
dogmático, de se fundar em dogmas pré-concebidos acerca do
que deve ser um sujeito e acerca de qual é seu Bem.
A posição cética rígida não aceita uma afirmação de verdade
ou falsidade e, inclusive, chega a negar a possibilidade mesma de

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O l) [ S F. J O 0 0 l' S I C.: A N A L I S T A F. ,\ I R O N I A S O C K A T I C A

uma ciência. Ela culmina na isostenia, a igualdade da asseveração:


o juízo não se inclina nem para um lado, nem para o outro. Cabe
pensar, se nos permitimos explicitar a extrapolação subjacente à
afirmação de Lacan, que se trata de uma primeira versão da regra
de atenção flutuante, segundo a qual rodas as falas do analisando
exigem uma escuta fundada na isosten ia. A regra da atenção flu­
tuante implica uma escuta que não destaca nada cm particular até
que o surgimento de algo da ordem do inconsciente no desdobra­
mento do discurso do analisando o permita.
A dúvida pirrônica não é uma dúvida acerca de se o mundo
externo existe ou não. Pelo contrário, o cético não duvida das
aparências, não duvida da presença real da mesa, não duvida dos
objetos do mundo externo. Duvida da ciência que explica esses
objetos para além do fenômeno, duvida da possibilidade de emi­
tir juízos acerca do mundo; não duvida da existência do mundo,
não é um idealista.
Essa posição é próxima da de Sócrates, pois os céticos fun­
dam uma ética na negação de toda ciência, entendida como ciên­
cia natural, possível. Por isso alguns comentadores os consideram
representantes de um ceticismo moral ou prático, no sentido da
razão prática de Kant.
No Seminário X:V, "O ato psicanalítico", onde são introduzi­
dos pela primeira vez os termos "analisando" e "passe", encontra-se
uma fórmula - fórmula que comentei em outra ocasião 1 2 -: "O
psicanalista finge esquecer que seu ato é causa do processo da aná­
lise"13. Esse "finge esquecer" requer muita atenção, pois não é sim­
ples de entender. Voltaremos a esse sintagma para apreciar toda a
sua complexidade, depois de realizar um breve percurso em torno
de Sócrates e, par.ticularmente, da assim chamada ironia socrática.

12
D. S. Rabinovich, Los rosrros de la cransfrrcncia, Buenos Aires, Manancial, 1 993.
13 J. Lacan, Seminário XV. "O ato psicanalítico", inédito, lição de 29/ 1 1 /67.

19
it 1) F S 1: J () O O P S I C A N A. 1, ! S ·r A

bsc "finge esquecer" deve ser compreendido em função da ironia


que implica.
Gregory Vlastos examina, em seu livro sobre Sócrates, as sig­
nificações da palavra "ironia". Lembra, assim como Kíerkegaard,
Hegel e praticamente todos os autores, Quimiliano: "A ironia é
essa figura da fala, ou tropo, na qual se deve entender o contrário
do que se diz". Essa fórmula sobreviveu à passagem do tempo, j á
que chegou intacta ao primeiro grande dicionário inglês, o do
doutor Johnson, de 1 775, onde é definida da seguinte forma: "É
um modo de falar no qual o significado é contrário às palavras" 14 .
Ess_a definição é usada ainda hoje.
Mas, na Grécia, o que significavam eironéia, eiron ou
eironeuma1? I ntenção de enganar. Tinham também um amplo
campo semântico que abarcava desde a idéia de deboche, de goza­
ção, até a caracterização de Teofrasto em seus Caracreres, onde o
irônico é descrito como aquele que hoje seria caracterizado como
um hipócrita.
A definição de Cícero, que introduz o termo ironia em latim,
de onde deriva o nosso, caracteriza a ironia, em primeiro lugar,
como urbana, no sentido de civilizada: "Urbana é a dissimulação
da ironia". Note:-se a palavra "dissimulação", que remete ao fingi­
mento. Vale a pena lembrar que Sócrates foi acusado de ser um
simulador. Isso permitirá a Lacan, num determinado momento,
dar uma virada na sua maneira de entender Sócrates, concebendo­
º como o modelo da histeria; Sócrates, acusado de simulador, é
associado às histéricas.
Continua assim a definição de Cícero:
Urbana é a dissimulação quando o que se diz é muito dife­
rence do que se emende. Nessa ironia e nessa dissimulação,

1'1 ( ;_ V la.mls, Sócr,1te.r, lronist and Mornl Philosopher, Londres, C;1mbridge Univer­
si1y l'rcs�. 1 99 1 , pp. 2 l -44.

20
0 O E S E J O L) O I' S I C A N /\ L 1 $ T A E A 1 1\ O N I A '> O 1 1( A 1 1 C A

Sócrates, a meu ver, superou todos os outros em encan Lo e


, 15
em humanidade

Vlastos comenta, com humor, que, quando se investiga a his­


tória das significações de "ironia", observa-se que, a partir de
Sócrates, a palavra melhora de status e perde praticamente o senti­
do de engano - que cai - e ganha um novo sentido; torna-se u ma
espécie de fingir infantil, brincalhão, uma seriedade gozadora, agu­
da, caracterizada ao mesmo tempo por seu caráter lúdico e por sua
profunda seriedade. Assim, a ironia carrega em si a seriedade sob
um disfarce lúdico.
O conceiro de ironia, com uma referência contínua a Sócrates1 6
é o título completo da tese de mestrado de Kierkegaard. O texto
questiona os conceitos de Hegel, mas esse debate não nos interessa
muito aqui. O que de fato interessa é como Sócrates é descrito,
que imagem é oferecida dele. A referência primordial e quase cons­
tante da maioria dos autores - Nietzsche, Kierkegaard, Hegel, etc
- é o Banquete de Platão. Assim, quando Lacan realiza sua inter­
pretação desse texto, apóia-se numa ampla tradição de comentári­
os filosóficos de primeira linha a esse respeito.
Dois traços ficaram associados a ele, a esse ser maravilhoso e
inesquecível que era Sócrates para qualquer um que o tivesse co­
nhecido - que provocou, como todo aquele que desperta fortes
transferências, grandes amores e grandes ódios. U m é sua feiúra,
ilustrada pela imagem do sileno que Alcibíades introduz no seu
discurso; o outro é seu posicionamento permanente como igno­
rante, como aquele que não sabe, como aquele que não pára de
perguntar, ponto de interseção evidente com o perguntar histéri-

15 Ibid. .
16
S . Kierkegaard, The concepr ofirony, wich concinualreference co Socraces, Volume
II , Kicrkcgaard's Writings, eds. H. e E. Hong, Princcron Universicy Prcss, 1 989.

21
ü D f: 5 [ 1 0 U O P $ 1 C: 11. N A L l 5 T A

co. Além disso, é um personagem caracterizado - caracterização


que Lacan retoma - como atopos, atópico, sem lugar; palavra que
Alcibíades utiliza em seu elogio de Sócrates no Banquete.
O que ocorre com esse Sócrates ambíguo, inquietante, que
desorienta pela sua feiúra, que cria uma espécie de vício de sua
pessoa naqueles que convivem com ele? Kierkegaard o compara
com um cobold dinamarquês, espécie de gnomo ou pequeno elfo,
cujo chapéu lhe permite se tornar invisível, que todos vêem, mas
que ninguém pode pegar, porque desaparece no momento mais
inesperado, assim como no sileno a feiúra esconde os tesouros,
tornando-os invisíveis.
Entramos na cena da simulação. A feiúra de Sócrates, seu
aspecto de sileno, com os ecos da animalidade que este último
tem na mitologia grega, encobre e dissimula um tesouro impossí­
vel de ver. Nietzsche, inclusive, cuja relação com Sócrates era ex­
tremamente ambivalente, em O problema de Sócrates escreve:
"Tudo em Sócrates é dissimulado, sinuoso, subterrâneo" 1 7
Sócrates, todos concordam, vive mascarado, mascarado com sua
feiúra de sileno.
A ironia socrática é o automascaramento permanente que ele
faz de certos traços de sua pessoa, do tesouro que oculta com sua
feiúra, por um lado, e com sua ignorância, por outro. Por isso,
Sócrates é uma máscara perfeita para que outros falem através dele.
B asta observar quantos o usaram, incluindo, por exemplo, o pró­
prio Nietzsche, que muitas vezes recorre a esse procedimento
socrático 18•

17
F. Nietzsche, "El problema de Sócrates", em Crc;p1íscufo de los ídolos, Madrid,
Alianza, 1975, p. 39.
18
Em grego, máscara se diz prosopon e, originariamenre, ela correspondia à chamada
imago, que era a máscara mortuária, a máscara funeníria de um sujeito. Destaco
simplesmente a palavra imago, que será para Lacan a primeira forma da causalidade
psíquica no seu artigo a esse respeito, muito anterior :t sua formulação do objeto a
como causa do desejo. Cf. J . Lacan, "Algunos comenrarios sobre la causalidad psí­
quica" em Escritos 1, op. cit ..

22
O U E S E. J O LJ O P S I C A N A L I S T A ( A i J;:. O N I A $ () ( 1./. Á T 1 C A

A ironia de Sócrates está d estinada a perturbar seu


interlocutor, ou então a angustiá-lo. Kierkegaard, que escreveu
muitas de suas obras com pseudônimos, compara esses pseudôni­
mos com a máscara socrática:
A p rodução estética é uma fraude, n a qual as ob ras
pseudônimas adquirem seu sentido profundo. Uma fraude,
que coisa feia. Respondo, então, que não devemos nos dei­
xar enganar pela palavra. Pode-se enganar um homem vi­
sando o que é verdadeiro e, p ara lembrar o melhor exemplo,
o velho Sócrates, enganá - lo para levá-lo em direção ao ver-
• 19
dade1ro

O engano do princípio da análise, o engano do amor de trans­


ferência, portanto, tem esse sentido: enganar um suj eito para levá­
lo em direção ao verdadeiro, ainda que o verdadeiro não seja o
mesmo para Sócrates e Kierkegaard que para Freud e Lacan. Não
há nenhuma beleza ideal, nenhuma idéia ideal universal no que
diz respeito ao verdadeiro para a psicanálise.
Kierkegaard sustenta também: "É inclusive a única maneira
de operar quando alguém é vítima de uma ilusão" 20 . Comentário
muito perspicaz: é preciso jogar o jogo da ilusão, o jogo, pode-se
dizer, das ficções do desejo. Kierkegaard acrescenta:
O interessante é que o interlocutor [Sócrates o leva a isso]
perceba o caráter absurdo do que diz, expondo-o até o final,
de forma tal que o absurdo torne-se evidente. Mas, ao mes­
mo tempo [Kierkegaard retorna às máscaras] , dá-se espaço
p ara todos os p ersonagens que existem num sujeito, sem
que o sujeito se reconheça neles .

19 S. Kierkegaard, Tlie concept ofirony. .. , op. cit., p. 1 83.


20 S. Kierkegaard, Poil]C de vuc explica.rifsur mon oeuvre, § 5 , Paris, Bagozes et
Paudes, 1 940, p. 35.

23
O LJ E S t J O ll ü P S I C A N 1\ L I S T ,\

Conclui com uma auto-reflexão extremamente interessante:


Minha melancolia fez com que durante anos não p udesse
dizer a mim mesmo você. Entre a melancolia e eu existia
todo um mundo de fantasias. Esgotei-o em parte com meus
pseudonimos
, . 21

Kierkegaard é um Sltjeito que, ali onde outro faria uma


mitomania, cria uma ob ra, pois poderia ter esgotado os pseudôni­
mos através de urna miromania. Não é esse muitas vezes o destino
da histeria, perder-se em variantes mitômanas desse mundo sem
chegar a esgotá-lo, sem dar um procedimento simb ólico à falta
que o funda, como o próprio Kierkegaard dirá depois em outro
texto?
Kierkegaard insiste em que existe algo em comum entre
Sócrates e ele: o método socrático, assim como o método
kierkegaardiano, privilegia a comunicação indireta, não a direta.
Não há nada mais enganoso, de sua perspectiva, do que pensar
que pode haver uma palavra que diga tudo, porque toda palavra
que diga "tudo" acerca da experiência existencial de alguém é, ne­
cessariamente, uma palavra banal.
Essa afirmação de Kierkegaard deve incitar à reflexão, pois a
b analidade, sob a forma da ironia, pode permitir uma comunica­
ção indireta e a palavra "banal" não pode ser indiferente a nós,
psicanalistas, dado que a consigna da associação livre é " diga bana­
lidades" , "diga tudo o que vier à cab eça, incluindo as besteiras",
não se censure na associação, pois dizendo banalidades, sem que­
rer, dirá o que tem que dizer. A formulação de Kierkegaard apro­
xima-se desse ponto no qual se tema cercar, na análise, o momen­
to em que a palavra vazia se torna plena. Momento fugaz no qual
a palavra banal, vazia, consegue evidenciar algo de outra ordem,
formulado, na maior parte das vezes, indiretamente.

21
Citado por J. Wahl, Kierkega.1rd, Buenos Aires, Losange, 1 952, p. 37.

24
O LJ F. 5 F. J ü O ü i> S I C A N A L I S T A E" A 1 K O N 1 A 5 0 C K Á T I C A

Na ironia, especialmente na ironia socrática, associada à igno­


rância, a atitude de quem a assume - à diferença da ironia român­
tica, que Hegel critica, crítica com a qual Kierkegaard concorda ­
é a de se apresentar corno sendo menos que seu interlocutor, infe­
rior. O irônico se despreza, desvaloriza a si próprio e finge - ob­
serve-se o retorno do fingir, do "fingir esquecer" ao qual aludimos
- dar razão ao interlocutor, adotar o ponto de vista do outro.
· Portanto, trata-se em Sócrates de urna autodepreciação ou desva­
lorização fingida. Finge-se de cidadão comum, carentP �P impor­
tância.
Urna frase de Nietzsche, em O viajante e sua sombra, é mui­
to clara a respeito disso: "A mediocridade é a máscara mais feliz
que um espírito superior pode carregar" 22 • O problema é que os
analistas acreditam nisso e freqüentemente acreditam que, ao se­
rem medíocres, são superiores . .. Ironia da psicanálise, da qual os
psicanalistas são vítima, principalmente quando lêem Lacan, lêem
Freud. É fácil acreditar, com esses emblemas significantes, que
essa máscara de superioridade permite superar a mediocridade. Se
o espírito superior mascara-se com a mediocridade, por uma curiosa
inversão, no meio analítico a mediocridade assume a máscara do
espírito. superior.
Sócrates, certamente, recusa-se o tempo todo se apresentar
como alguém que tem algo para ensinar. Em O banquete, isso é
muito claro. Aristóteles mesmo comenta que Sócrates assumia
sempre o papel do interrogador, nunca o de quem responde, pois
dizia não saber nada. Apeldr, citado por Hadot, caracteriza a ope­
ração de Sócrates da seguinte forma: Sócrates desdobra-se, através
da ironia, nesse não saber, não ser belo, etc, para dividir o outro
em dois. Na nossa 6tica, está claramente colocado na posição de
objeto. Sócrates conhece porque se adianta no caminho a percor-

n F. Niet7.schc, Le voyageur ec so11 ombre, Paris, Denoel, 1 97 5 , § 175, p. 1 04.

25
O LJ E S E I O LJ O P S I C A N A L I S TA

rer, como também o analista que assume o desejo do psicanalista


sabe o destino do percurso, mesmo quando não conhece o cami­
nho de cada sujeito particular. Sócrates realizará todo o caminho
dialético com seu interlocutor, que não sabe aonde Sócrates o leva.
Poderíamos dizer que o analista também não sabe, à diferença de
Sócrates, aonde irá seu paciente através da banalidade da associa­
ção livre.
A ironia socrática exige o acordo, o assentimento do partenaire,
pois o faz admitir, pouco a pouco, todas as conseqüências de sua
posição. Isso é exatamente o que Lacan diz no "Discurso de Roma"
e em L 'Étourdú, em 1 972, "você disse isso, diz o analista"; o
analisando deve se responsabilizar por sua palavra, deve dar conta
das conseqüências de sua própria palavra: "foi você quem disse;
não eu"23 .
O interlocutor, ao chegar a esse ponto, começa a p erceber
que não sabe por que age, qual é a causa de sua ação, o que o leva
a atuar, que valores o guiam. Aqueles que ele acreditava serem seus
valores não os eram e, portanto, encontra-se dividido entre o que
era antes, o que acreditava ames do percurso que faz com Sócrates,
e o momento posterior n o qual percebe o que Sócrates lhe revela
acerca das conseqüências de suas afirmações. É importante ressal­
tar esse ter que voltar a fazer o caminho j untos e a atitude de
Sócrates, que finge aprender - outra vez finge alguma coisa - de
seu interlocutor, mas, na realidade, não aprende nada24 . Hadot
usa uma expressão muito apropriada quando se refere à "ironia
amorosa" de Sócrates, expressão que, sem dúvida, remete nova­
mente a Kierkegaard.
O que é, para Kierkegaard, a ironia amorosa de Sócrates? Fin­
gir estar apaixonado. Kierkegaard descreve a ironia amorosa de

B J. Lacan, "El Atolondradicho", em Esc,1nsión n u l , Buenos Aires, Paidós, 1 984, p.


65 .
24 P. Hadoc, op. cic., p. 97.

26
O LJ E S E I O 0 0 l' S l ( A N A L l S T A E ,\ l l� O N I A S O C l< À T I C A

Sócrates na sua relação com os jovens, tomando como modelo


exemplar a relação de Sócrates com Alcibíades. Diz:
Certamente era um galã [esta é uma palavra de difícil tradu­
ção, em inglês usam amods·t, cuja tradução seria galã, aman­
te, etc, p ois obviamente não querem usar a palavra "aman­
te", !ovei-] de primeira ordem, tinha um extraordinário
entusiasmo pelo conhecimento - em suma, tinha todos os
dons sedutores da mente -, mas comunicar, preencher, en­
riquecer era algo que não podia fazer. [Lembremos o co­
mentário de Lacan sobre o intercâmbio de Sócrates com
Agatão em torno do passo de saber como algo que preenche,
etc] . Nesse sentido, poderíamos ter a ousadia de chamá-lo
de sedutor, já que incitava os jovens, despertando neles de­
sejos que não satisfazia, deixando que se inflamassem na ex­
citante aleg ria do contato, mas não lhes dando jamais algo
sólido como alimento. Enganava a todos, tal como enganou
a Alcibíades, que diz, como já se disse antes, que, em vez de
25
ser o amante, Sócrates era o amado

Kierkegaard enfatiza essa passagem do amado à posição de


amante, que define para Lacan, no Seminário VIII, a metáfora do
amor:
Isso não quer dizer que atraia para si a juventude, mas que
quando os jovens dependiam dele e queriam apoiar-se e des­
cansar nele, esquecendo todo o resto, quando queriam
reassegurar-se no seu amor, abandonar-se a ele e ser somen­
te amados por ele, nesse momento, Sócrates desaparece, o
encanto se quebra. Sentiam, então, a profunda dor do amor
infeliz, sentiam-se enganados, pois não era Sócrates quem
os amava, mas eles que amavam Sócrates e, no entanto, não

· '5 S. Kierkegaard, Tl1e conccpr ol".irony... , op. cic., pp. 1 88-89.

27
ü U E S E J O D O P S l ( A N J\ I I S T A

podiam separar-se dele [ . . . ] [o importante] é que dirigiu o


olhar de seus discípulos para seu próprio interior e, portan­
to, os mais dotados viam-se obrigados a agradecer o que lhe
deviam; [ . . . ] [nesse sentido, a relação de Sócrates] com os
jovens era certamente estimulante, mas não era uma relação
pessoal. O que interferia era sua ironia. [ . . . ] . Portanto, no
sentido intelectual, podemos dizer que Sócrates, na sua re­
lação com os jovens, olhava-os com desejo. [Coloca-se em
jogo a função do desejo de Sócrates] [ . . . ] . Mas assim como
seu desejo não apontava para a possessão dos jovens, tam­
bém não o fazia sua ação. Não buscava, não seduzia de um
modo muito manifesto e sim caladamente. Parecia indife­
rente aos jovens e suas perguntas não diziam respeito às
relações com eles. Discutia alguns temas que eram impor­
tantes para os jovens, mas permanecia completamente- obje­
tivo e, no entanto, por trás dessa indiferença em relação a
eles, sentiam que existia algo além do que se via e sentiam
como se suas almas rivessem sido atravessadas por um p u­
nhal. Parecia ter escutado secretamente as conversas mais
íntimas de suas almas, como se na verdade os tivesse obriga­
do a falar em voz alta na sua presença. Tornava-se seu confi­
dente, sem que eles soubessem como isso acontecera, e, en-.
quanto eles se encontravam totalmente mudados através
26
disso, ele continuava sendo invariavelmente o mesmo .

Sócrates enquanto fundador da moral ou da ética - ética é o


termo que Kierkegaard prefere - faz com que eles se sintam p riva­
dos de saber e de beleza, desencadeando assim o desejo. A função
de Sócrates é suscitar o desejo.
A essa descrição surpreendente que Kierkegaard faz de Sócrates
devemos acrescentar que, a seu ver, Sócrates era capaz de despertar

26
Ibid ..

28
O D E S f l O t) O 1• S l ( A N A L I S T A 1: A l l� O N I A S O C � Á T I C A

entusiasmo - afeto que Lacan considera positivo e que vincula ao


final da análise - e oferece uma definição do entusiasmo, digna de
atenção, que não coincide com a de Lacan: " [o entusiasmo] é um
zelo que consome a serVI·ço da possibilidade [do possível, não do
impossível] "27 .
Um irônico é sempre, a seu ver, um entusiasta, só que seu
entusiasmo nunca consegue nada, porque nunca vai além da cate­
goria do possível. Nesse sentido, Sócrates amava os jovens - na
medida em que havia neles possibilidade, sendo ela o eixo do que
a ironia socrática transmite-, Sócrates na sua vida e nos seus afaze­
res, no seu incomensurável respeito pela cidade grega, na sua falta
de medida comum com qualquer outro cidadão. Em última ins­
tância, é essa incomensurabilidade que, para Kierkegaard, é con­
denada à morte no personagem de Sócrates.
O que acabamos de expor oferece uma idéia dessa simula­
ção, misturada com uma indiferença, que consegue que o outro
descubra sua falta e, ao descobrir o que falta, encaminhe-se na
direção do seu próprio desejo.
A figura de Sócrates tendeu a ser identificada durante mui­
to tempo, por pensadores diferentes, como uma espécie de Eros
m endicante. Essa figura se funda na estrutura particular dá. ironia
socrática, que o tempo inteiro ronda o nada - assim é definida por
Kierkegaard. A ironia socrática caracteriza-se por seu trabalho so­
bre o nada; trabalho que não deve ser entendido como denúncia
da vaidade do mundo, porque, para Kierkegaard, esse jogo em
torno de um nada implica que quem experimenta o nada, o vazio,
experimenta uma sensação de privação. Por isso, introduz no
Ocidente o conceito de desejo como tal, de um desejo que divide
o sujeito entre o nada do qual se protege, por um lado, e aquilo
que quer conseguir, por outro.

27
Ibid., p. 1 92.

29
O D E S L J O Ll ü P S I C A N A L I S T A

Voltando ao "fingir esquecer" e à dissimulação socrática, qual


é o fingimento do analista? O que deve fingir esquecer? Quando
se escuta essa dupla, essa expressão, esse sintagma, "finge esque­
cer" , pensa-se, quase imediatamente, num esquecer aquilo que se
sabe, mas não se trata disso. Não se trata de esquecer no sentido de
esquecer o saber de uma ciência, por exemplo. Pelo contrário, esse
"finge esquecer" faz parte da posição cética que implica uma rejei­
ção do saber. Lembremos da fórmula de Lacan citada anterior­
mente: o analista pensa que não sabe nada, o que não é o mesmo
que "fingir esquecer" , porque para Lacan o analista "finge esque­
cer" um saber específico: que ele é a causa do processo de análise .
Não se trata de fingir qualquer coisa, de fingir qualquer igno­
rância, mas de fingir um esquecimento, um esquecimento de qvê?
Cabe inclusive se perguntar de onde se assume esse esquecimento.
A formulação de Lacan é irônica, pois o analista tem que "fingir
esquecer" o que não pode esquecer se quer ocupar dignamente o
lugar de psicanalista. "Fingir esquecer" é um sintagma introduzi­
do deliberadamente no lugar de outro, no lugar de um sintagma
clássico em psicanálise: o esquecimento como efeito do recalque.
"Fingir esquecer" é o contrário do esquecimento do recalque no
seu sentido freudiano. Esse "fingir esquecer" implica que o esque­
cimento fingido é um esquecimento estruturalmente muito dife­
rente do esquecimento do recalque, que é um esquecimento que
se consegue quando o sujeito passou por uma análise. Portanto, se
o analista esquece no sentido do recalque, não no sentido do "finge
esquecer", nesse pomo, a neurose de transferência é a neurose do
psicanalista, no ponto em que o psicanalista não "finge esquecer" o
que aconteceu na sua própria análise com aquele que causou o pro­
cesso, isto é, o destino que foi o de seu analista, na sua própria
análise, mas nesse lugar instala um recalque no sentido freudiano.
Esse "fingir esquecer" qual foi o final da sua própria análise
para poder simular, dissimular, aceitar o engano do saber suposto
e do sujeito suposto implica que deve fingir esquecer o que ocor­
reu, quando sabe que de fato ocorreu. Na medida em que canse-

30
O LJ E S F. J O 0 0 l' S l ( A N A L J ':i l' A [ A I R O N I A S O C R A T I C A

gue isso, pode defin ir, delimitar e deixar livre o espaço do desejo
do analista, esvaziado de seu próprio desejo e de sua causação em
relação ao desejo do Outro. Isso implica, conseqüentemente, uma
posição complexa para o psicanalista.
Para compreendê-la, pode-se recorrer inclusive a algumas fór­
mulas implícitas no Seminário VIII. Se o analisando se pergunta
"quem sou eu?", a única resposta do Outro é um "deixe ser", cujos
diversos matizes do francês laissez être convém manter, pois tam­
bém inclui a conotação de abandono, de deixar, de abandonar.
Isco é uma antecipação, porque a verdadeira pergunta não é quem
sou eu, a verdadeira pergunta é " o que você quer?". Esse você esva­
ziado do desejo do próprio sujeito como analista, do analista como
sujeito em si mesmo, é, em suma, a pergunta do Che vuoi.?, do
grafo. O "deixe ser" é "fingir esquecer" a não-verdade e a não­
essência do ser de cada sujeito e, em última instância, sua redução
a esse nada que causa o desejo do Outro28 •
O psicanalista "finge esquecer" que seu ato é causa. Seu ato é
oferecer-se como Sócrates. Isto é, o analista sabe que lhe cabe ser
objeto em posição de causa de desejo no processo da análise, o que
culminará no desvelamemo do vazio dessa causa, que é o vazio de
um valor universal, comensurável desse objeto que, no entanto, é
o fundamento do que Lacan, no Seminário XIV, chamará de fal­
so selfdo sujeito, que é a única coisa que ele tem. O sujeito como
tal, na medida em que como analista realizou certo processo, sabe
que o valor de verdade do objeto como causa é um valor que não
se cotiza nem no mercado de dons, nem no mercado fálico.
Quando é definido como um nada, um buraco - termo que
também será aplicado, ainda que de outro modo, ao (<I>) -, apon­
ta-se para esse buraco, que é a causa de desejo, essa falta como tal
no Outro, que o sujeito supostamente pode obturar a partir da
posição de objeto causa - por isso só a criança é realmente objeto
a alguma vez; o recém-nascido é a única encarnação do objeto a.

28
J. Lacan, Le Sémjnaire, Livl'c VIII, op. cit. .

31
O L) [ S E. 1 0 D {) f-> S I C ,\ N A I. I S T ,\

O luto reside não em ser um nada, mas no faro de que seu


valor de verdade e, posteriormente, também seu valor de gozo são
nulos. Na realidade, é uma contingência dependente do desejo do
Outro do analisando e demonstra ter o valor de uma verdade não­
transmissível por ser única, ponto em que o um a um da trans­
missão analítica articula-se de modo particular com o único, com
a unidade do indivíduo e da existência em Kierkegaard; assim como
com o um a um de Sócrates convencendo, criticado por Hegel.
Para Hegel, isso representa uma forma inferior de consciência,
ainda que seja a primeira forma da autoconsciência. Para Lacan,
pel? contrário, esse é o valor fundamental da análise, esse de um
em um, e de um em um a partir de zero. O zero é um valor de
verdade a ser produzido, que como valor de verdade é verdade1.ro,
não é a verdade "toda", mas simplesmente o verdadeiro e o verda­
deiro implica, é co-extensivo, em lógica, à idéia de valor de verda­
de, introduzida pelos estóicos, é co-extensivo à contingência da
verdade em j ogo. O verdadeiro e o falso, para os estóicos,
correspondem ao campo do contingente, enquanto que o campo
da verdade toda é o único necessário. A verdade toda, para os es­
tóicos, só pode ser verdade do sistema global do cosmos e, quan­
do se leu alguma coisa de Lacan, não se pode esquecer sua ênfase
na "a-cosmicidade" do sujeito humano.
Para concluir, o problema do desejo do analista é inseparável,
primeiro, do lugar de causa e, segundo, do valor de verdade como
contingente. O processo de análise permite descobrir uma contin­
gência desse sujeito: o que ele foi especificamente para o desejo do
Outro. Essa contingência implica que essa verdade, terminada a
análise, seja uma verdade que, por ser contingente, possa cair; seja
u�a verdade com a qual se pode brincar. Surge o humor que é
associado à contingência do verdadeiro, da perda da necessariedade,
da Anankê do sujeito. Final irônico como resposta a essa pergunta
inicial, tão freqüente na análise: quem sou eu?

32
CAPÍTU LO 2
A Q U ESTÃO DO SABER DO PS ICANALISTA: A DOUTA
IGNORÂNCIA

A doura ignorância articula-se, por um lado , com o desejo do


psicanalista e , por outro, com o sab er do psicanalista. Para
compreendê-la, convém recorrer à última parte do texto "Varian­
tes do tratamento-padrão", intitulada "O que o psicanalista deve
sab er: ignorar o que sabe" 1 •
Chama a atenção, num texto tão inicial, a presença da preo­
cupação de Lacan pelo problema do saber do analista, por definir
a relação de um psicanalista com o saber:
A questão referida agora ao saber do analista roma sua força
do fato de não implicar a resposta de que o analista sabe o
que faz, já que foi o fato patente de que o desconhece, na
teoria e na técnica, que nos levou a deslocá-la naquela dire-
2
ção .

Introduzida assim a problemática, acrescenta:


[...] o analista distingue-se por fazer uso de uma função que
é comum a todos os homens, um uso [refere-se à função da
palavra] que não está ao alcance de todo o mundo, quando
3
ele porta a palavra

' J. Lacan, "Variantes de la cura ripo" em Escriros, l , Buenos Aires, Sigla XXI, 1 983,
pp. 336-48.
2
lbid., p. 337.
3 Ibid ..

33
() D E S EJ O D O l' S I C A N A L l S T r\

Quer dizer, leva, faz circular, tem todo o peso, poderíamos


dizer, da palavra como tal. Inclusive seu silêncio está carregado
com o peso da palavra. Já nesse texto a intervenção do analista é
considerada um ato que implica uma suposição de sujeito.
Tendo se referido à relação da palavra com a verdade, intro­
duz a "função do ser"\ Lacan opõe palavra verdadeira e discurso
verdadeiro e esclarece, com precisão, o que ele entende por cada
um desses termos:
[...] suas verdades distinguem-se pelo faro de que a primeira
[a palavra verdadeira] constitui o reconhecimento, pelos
sujeitos, de seus seres [... {

A primeira, a palavra verdadeira, constitui o sujeito como tal:


" [. ..) na medida em que esses seres estão inter-ess-ados, [no senti­
do de envolvidos] na palavra".
Escreve Ínter-essés, separado em francês, onde o essésreme­
te à essência, os sujeitos estão tomados numa inter-essencialidade.
O discurso verdadeiro define-se assim:
[ . . . ] a segunda, pelo contrário, está constituída pelo conhe­
cimento do real, na medida em que é a mira do sujeito
quando quer conhecer os objetos.

A verdade situa-se aqui do lado do discurso da ciência. Eie


apresenta, através de uma distinção muito clara, a diferença entre a
verdade do discurso científico e a verdade subjetiva.
Quase no final do artigo, refere-se à formação do analista e
às disciplinas que ela exige e introduz o termo que nos interessa
aqui, o temo "ignorância":

1 "A palavra manifesta ser mais verdadeiramente uma palavra quanto menos sua
verdade estiver fundada no que se chama a adequação à coisa: a verdadeira palavra
opõe-se assim, paradoxalmente, ao discurso verdadeiro [...]" . Ibid., p. 338.
5 lbid., p. 344.

34
A Q U E S "f Ã, 0 IJ O S A U E. I� l) (I P S I C /\ N A l. l S T A

[. . . ] o analista, de fato, não poderia se aprofundar nela [na


sua formação como analista] a n ão ser que reconhecesse no
seu saber o sintoma de sua ignorância, e isso no sentido
propriamente analítico de que o sintoma é o retorno do
recalcado no compromisso, e que o recalcado, aqui como
em qualquer outro lugar, é censura da verdade . De fato, a
ignorância não deve ser compreendida aqui como uma au­
sência de saber, mas, assim como o amor e o ódio, como
uma paixão do ser, pois ela pode ser, como eles, uma via na
6
qual o ser se forma .

Observe-se a insistência na palavra " ser", eixo da definição das


três paixões fundamentais: amor, ódio e ignorância. A ignorância
situa-se do lado do recalque, o não-saber e o saber, como sinto­
mas da ignorância do sujeito. Pode-se dizer que a ignorância, as­
sim compreendida, como sintoma, como saber sintomático, é o
oposto do "finge esquecer" do Seminário XV, "O ato analítico".
Esse "finge esquecer" que se instala no lugardo recalque e da cen­
sura. O saber, quando articulado como efeito sintomático da ig­
norância do sujeito, na medida em que ela é uma ignorância fun­
dada no recalque, não é o mesmo que "fingir esquecer" . Cabe
ainda assim fazer algumas ressalvas a esse respeito.
Discutem-se, nessa parte, as teorias da análise didática, Lacan
está pensando naquele que inicia sua análise didática. Quando sur­
ge a formulação do "finge esquecer", a referência é àquele que se
assume como analista e que, em todo caso, acabou sua análise.
Portanto, trata-se de dois momentos diametralmente opostos. O
saber-sintoma, que é a ignorância, deve se transformar, no final,
num "fingir esquecer", uma certa i�norância que se perdeu na aná­
lise. Há um contraponto claro entre ambas as formulações. A pri-

6
Ibid., pp. 344-5.

35
O P l S E J O U O P S I C A N I\ L I S T .�

meira está do lado do começo da análise para o analisando, a se­


gunda do lado de como alguém pode, no final de sua análise,
como psicanalista, empreender a análise de outro sujeito; uma s e
situa n a entrada, a outra na saída.
A ignorância não é caracterizada como ausência de saber, mas
como uma paixão do ser, uma via na qual o ser se forma, que
articula dois elementos muito diferentes. Um está vinculado ao
contexto histórico desse artigo, no qual está muito presente o des­
conhecimento euóico e, conseqüentemente, a ignorância aparece
como uma paixão própria do eu, vinculada à sua estrutura, tal
como é descrita a p artir do estádio do espelho. Um segundo ele­
mento é dado pela palavra "paixão". A paixão do ser implica que a
ignorância seja algo que ocupa ativamente o sujeito e no qual o
suj eito é passivo e não ativo. Assim é que Lacan caracteriza sem­
pre, de maneira tradicional, a paixão como um padecer, ser obj eto
p assivo de algo. O ser, na verdade, ainda é dependente da teoria
·do reconhecimento do desejo ou do desejo de reconhecimento.
Essa forma de passar pelas paixões, p elo amor, pelo ódio e p ela
ignorância sofrerá uma virada em "A significação do falo"7, na
medida em que aparece ali a paixão tomada no sentido da paixão
de Cristo, no sentido do padecer, da tortura, do tormento que o
significante impõe ao ser, para sempre perdido, do sujeito falante.
Essas três paixões - amor, ódio e ignorância - no suj eito falante
são, portanto, paixões do significante.
Qual é o resultado da revelação da ignorância?:
O fruto positivo da revelação da ignorância é o não-saber,
que não é uma negação do saber e sim sua forma mais elabo-
8
rada .

7 J . Lacan, "La significación dei falo", em Escriros, 2, op. cic.. Pode-se consultar
também D. S. Rabinovich, Lecwra de "L1 signihrnción dei fiild', Buenos Aires,
Manancial, 1 99 5 .
8 J. Lacan, "Variantes d e l a cura tipo", op. cir., p. 345.

36
A Q U l:. S T Ã O 0 0 S A � E. � l) (.J 1' 5 1 C A N A l 1 � 1 A

Quando o sujeito percebe sua ignorância, quando esta l he é


revelada - a expressão ''revelação da ignorância" também desapa­
recerá, na medida em que o termo "revelação" está muito próxi­
mo de certa linguagem religiosa, da verdade revelada, assim como
certas formulações de Heidegger, usadas por Lacan de um modo
particular e próprio -, o fruto positivo da revelação da ignorância
é o não-:saber. A ignorância permite - quando nos damos conta
dela, quando percebemos que ignoramos algo - a emergência da
definição de um não-saber. Sendo assim, a ignorância não é idên­
tica ao não-saber, porque quando a ignorância é revelada, só então
se torna não-saber e cessa de ser uma paixão.
Por que é sua forma mais elaborada? Se um analista em for­
mação não é formado nesse não-saber que não é uma negação do
saber, o resultado será um "robô de analista", não um analista
propriamente dito9 . Se o analista acredita que sua tarefa é transmi­
tir um saber, está profundamente enganado acerca do que seja a
psicanálise, j á que esse saber não é o saber que está em jogo em
análise, o saber a respeito do qual aquele que está na posição de
analista se coloca numa posição de não-saber, não de ignorância;
esse saber é aquilo que o paciente mesmo transmitirá sobre seu
próprio inconsciente através da associação livre.
Lacan encerra o capítulo com a seguinte frase:
É à sua disciplina interior [refere-se ao analista] que cabe
evitar esses efeitos na formação do analista e, desse modo,
introduzir com certa clareza a questão das suas variantes [as
do tratamento-padrão, tema do artigo, que demonstra a
própria inexistência do tratamento-padrão] . Entáo, talvez
possa ser ouvida a extrema reserva com que Freud introduz
as próprias formas, desde então padronizadas, nesses ter-
10
mos

'' lbid . .
111
J. Lacan, "Variantes de la cura tipo", op. cir., p. 348.

37
O D E S E J O D O P S I C A N A L I S T A

· Ele retoma uma citação de Freud de "Conselhos ao médico


no tratamento psicanalítico", cuja tradução, ele deixa claro, é sua:
Dir-lhes-ei expressamente, no entanto, que esta técnica foi
escolhida tão somente por ser a única apropriada para mi­
nha personalidade. Não me atreverei ou não ousarei ques­
tionar que uma personalidade médica constituída de um
modo totalmente diverso possa se ver levada a preferir dis­
posições muito diferentes a respeito dos doentes e do pro­
11
blema a ser resolvido •

Lacan conclui em seguida:


Pois, assim, essa reserva deixará de ser considerada um mero
signo de sua profunda modéstia [a de Freud] , mas será reco­
nhecida como afirmação dessa verdade de que a análise só
pode encontrar sua medida nas vias de uma douta ignorân-
• 12
eia

Convém que nós, psicanalistas, tenhamos em mente ambos


os parágrafos.
Essa douta ignorância, a ignorância na qual se revela o não­
saber, pois não é outra a douta ignorância, é um conceito de Nicolau
de Cusa, autor do fim da Idade Média e principalmente da Idade
Moderna, que viveu entre 1 4 1 O e 1 464 e escreveu, entre muitos
outros, um livro chamado A douta ignorância.1 3 , autor que susci­
tou o interesse de historiadores do pensamento e da ciência do

1 1 I bi d..
12 Ibi d..
1·1 N . de Cusa, La doera i nornncia, Biblioteca de lniciación hlosófica, Buenos Aires,
g
Aguilar, 1 957.

38
A Q U E. S T Ã O l) O S A U E. R U O l' S l ( A N A L I S f A

porte de Koyré1 4, Gandillac1 5 e, mais recentemente, Blumenberg16,


na Alemanha. Cabe indagar, então, o que é a douta ignorância
para Nicolau de Cusa. Seguiremos os autores citados acima n o
que se refere à obra d e Nicolau de Cusa.
Os escritos de Nicolau de Cusa tiveram grande influência sobre
Giordano Bruno, sob re Kepler, sobre Copérnico, ou seja, sobre
os fundadores da revolução científica da modernidade. N icolau
de Cusa tentou fugir, de maneira inovadora, dos impasses da Ida­
de Média, com os próprios instrumentos daquela época, abrindo
desse modo um caminho novo, ao tirar do índice de atitudes proi­
bidas a curiosidade. Foi Nicolau de Cusa quem deu à curiosidade
um novo estatuto, não o de um pecado de soberba, mas de um
atributo positivo a ser desenvolvido e cultivado.
Nicolau de Cusa, diferentemente inclusive daqueles serores
da disputa escolástica medieval com os quais é agrupado - o mis­
ticismo e o nominalismo, em oposição ao realismo -, insistirá e
conseguirá romper com o traço central do conhecimento na Idade
Média e, em certo nível, na Antigüidade. Ele rompe com a idéia
de finirude do conhecimento. Ruptura que hoje parece óbvia. A
própria idéia de progresso científico não existia ainda, já que o
mundo aristotélico era uma eternidade finita singular, regulada
por esse motor imóvel que era seu Deus.
O mundo cristão tinha um fim escatológico da história: o
fim do mundo cuja culminação seria a chegada do reino dos céus.
A função essencial de todo conhecimento era ser um conhecimen­
to destinado a permitir, inclusive a apressar esse fato. Diante dessa
meta, o conhecimento do mundo não era nada além de vaidade.

M A. Koyré, Dei mundo ceJTado ai universo 1nn1úm, Madrid, Siglo XXI, 1 979, cap. 1 ,
PP· 9-30.
1
� M. de Gandillac, "Préface", em Oeuvres Choisies de Nicolas de Cues, Paris, Aubier,

1942.
11' H. Blumenberg, The Legitirrwcy ofr:he Modem Age, Massachusens, MIT Press,
l 985, pp. 35 5-60 e 483-547.

39
U D E S E J O U O l' S I C A N A L I S T A

Nicolau de Cusa legitimou - chama a atenção o termo que usa


em latim - o "desejo de saber" e formulou o princípio da douta
ignorância.
A formulação que está na base da douta ignorância, a impre­
cisão ontológica, implica que nunca se alcançará o conhecimento
pre_ciso da natureza de um objeto. Para Nicolau de Cusa, o espíri­
to, na sua ânsia de conhecer, é insaciável e o correlato dessa
insaciabilidade do desejo de saber é o inesgotável da natureza dos
objetos, não só pelo caráter mutável e inovador como se apresen­
tam, mas pelo caráter de intensidade aumentada que cada detalhe
do saber objetivo pode ter, na medida em que em todo objeto
oculta-se essa precisão inalcançável, essa que é sua natureza pró­
pria. Nicolau de Cusa não considera essa imprecisão desalentadora;
pelo contrário, considera-a um incentivo para que o sujeito conti­
nue tentando se aproximar o máximo possível, dentro da impre­
cisão, desse saber. Introduz, desse modo, a idéia do que podemos
denominar um " conhecimento probabilístico", ainda que nunca
se aceda a um saber cabal, a cem por cento do saber. Portanto, esse
desejo de saber impulsiona o sujeito a uma familiaridade cada vez
maior com o inalcançável e o inalcançável introduz a idéia de
infinitude.
Nicolau de Cusa era um matemático consagrado. Não se tra­
ta, como ocorria anteriormente, do desejo de reconhecer os limi­
tes · de nossa natureza ou de não obedecer a um mandamento.
Nicolau de Cusa insiste na contínua transcendência da verdade a
respeito da capacidade humana de compreensão. Ele afirma, con­
seqüentemente, que cada item do conhecimento adquirido se tor­
na uma instância de douta ignorância, que implica um grau supe­
rável de exatidão. Isso era uma novidade no momento em que foi
formulado: não tudo se sabia, ainda que sempre se pudesse alcan­
çar um saber um pouco mais preciso. A douta ignorância implica
um saber inseparável da idéia de que esse saber é superável. Essa

40
A Q U E S T Ã O l} () S A � E R U O f> S I C /\ N ,\ l 1 ', 1 1\

impossibilidade de uma realização completa implica u 1 1 1 : 1 1 •. r; 1 1 1 1 lc


valorização d a curiosidade que, até então, como já sc assiml( l l l , n:1
pecado.
Nicolau de Cusa sabia que "douta ignorância" era um tcn 1H 1
paradoxal. Define um saber marcado como um saber acerca do
saber, que proíbe rodo caráter definitivo, sendo, portanto, inesgo­
tável. Permite se aproximar, pouco a pouco, da meta principal: a
sabedoria, que nunca é plenamente alcançável. Mas como define a
sabedoria? Cito Nicolau de Cusa:
Como o saber do que o saber ainda não sabe. Já que tudo o
que sabemos pode ser melhor e mais completamente sabi­
do, nada é sabido como poderia ser sabido. A existência de
Deus é certamente a razão pela qual há saber de todos os
objetos, mas a realidade de Deus, que não pode ser esgotada
no que diz respeito a seu saber, é também a razão pela qual
a realidade das coisas não pode ser sabida como poderia ser
. 17
sabida

Aparece o limite no qual para além, no Outro divino - fonte


freqüente de reflexões de Lacan sobre o Outro -, não se pode
continuar sabendo. O Outro sempre tem em si um ponto de
ocultamento. Por isso, esse Deus é um Deus oculto, um Deus
distante. Seu distanciamento é uma das razões da crise implícita
na I dade Média que Nicolau de Cusa tenta resolver. À medida
que esse Deus se torna cada vez mais transcendente e distante do
homem, é menos conhecido e são cada vez mais questionados os
outros dois itens que conformam o triângulo metafísico da Idade
Média: Deus, o Homem e o Universo, Mundo e Cosmos. O
homem e o cosmos ficam cada vez mais sozinhos e separados de
Deus.

17
N. de Cusa, De coniecturis I 3, citado em H. Blumenberg, The Legirimacy ofthe
Modem Age, op. cic., p. 357.

41
O U \: S f. J O D O l' S J C A N A L I S f A

A I greja tinha que reconsiderar de algum modo o fato de que,


passados mil anos da morte de Cristo, o reino dos céus ainda não
tivesse se feito presente; era necessário, então, contemporizar com
a historicidade. A posição escatológica extrema foi a dos gnósticos,
que, nos primeiros tempos depois da morte de Cristo, propu­
nham interromper o ciclo da procriação - retorno tardio dessa
idéia, ao qual Lacan se refere no Seminário A ética da psicanálise,
foi Sade, com s ua idéia da interrupção dos ciclos naturais, entre
eles a procriação - para escapar desse mundo e para acelerar a che­
gada do reino dos céus. A sociedade civil, evidentemente, resistiu
e um setor do clero decidiu se aliar a ela; esta é uma das raízes
principais dos primórdios da Igreja Cristã.
Era necessário tentar conciliar a historicidade, a temporalida­
de da revelação bíblica, unida ao que o novo testamento lhe acres­
centa, temporalidade linear que apontava para um acontecimento
final, que alguns representavam como apocalíptico, outros não,
m as que de qualquer maneira implicava o fim da história, com o
tempo cíclico, por exemplo. Esse fim da h istória sofria já uma
longa postergação e, no entanto, acreditava-se nele, esperava-se por
ele. Era necessário , então, dissolver de algum modo esse dilema e
integrar uma nova dinâmica a essa espécie de estagnação do dile­
ma história/eternidade na Idade Média. Nicolau de Cusa é um
dos que corta o nó górdio e abre uma saída.
Como ele faz isso? Introduzindo na história a infinitude, arti­
culando história e infinitude, porque, se há um saber que pode
sempre ser acumulado, se está diante de um saber infinito ou in­
definido, cujo horizonte histórico é totalmente diferente do da
revelação e do fim do mundo. De fato, Nicolau de Cusa rompe
com a finitude do saber humano, com a finitude do cosmos, do
mundo. Ele abre o cosmos, afirma que a terra não é o centro,
também não diz o contrário, mas cogita a possibilidade de que ela
seja uma estrela entre muitas outras, rompendo com a estrutura
medieval mediante um jogo mental, uma espécie de experiência

42
A Q U E 5 T Ã () D O 5 A lj t I< l) 1 � I' !i I C A N A L l 5 T A

mental. Nunca fez uma observação astronômica, mas chegou a


sustentar que a órbita dos planetas não tinha por que ser circular,
mas podia muito bem ser elíptica. Por isso muitos o considera­
ram o antecessor de Kepler, coisa que na verdade não era. Realiza­
va um jogo mental, destinado a abalar uma estrutura de pensa­
mento arraigada durante séculos.
O parágrafo antes citado é de um texto muito interessante, A
caça da sabedoria, cuja leitura suscita a imagem de alguém que está
seguindo constantemente a pista de algo. Tudo no mundo lhe dá
pistas para continuar avançando no saber. Qual é o eixo da p reo­
cupação de Nicolau de Cusa, de sua reflexão constante? A infinitude
interna do mundo e de cada um de seus objetos. Posição próxima
da heresia para o saber habitual. Mais do que isso: o homem, o
sujeito humano, imita a auto-reflexão divina; assim como Deus
se reconhece em suas obras, o homem se reconhece em seu saber;
quanto mais o espírito se reconhece no mundo, maior é sua ferti­
lização, pois sua meta é a razão na sua infinitude 1 8 • G raças a ela
aproxima-se cada vez mais do mundo, que por sua vez sempre
escapa.
Para a escolástica, o progresso da teoria através do cosmos era
provisional, porque era preciw chegar à causa do mundo, através
de um número sempre finito de passos. O teorizar estava, então,
justificado por chegar ao ponto em que descansava, se detinha.
Nicolau de Cusa rompe com essa tradição, porque, para ele, o
saber não é algo preparatório para um outro fim além do próprio
· saber. O saber é seu próprio fim, mesmo que não consiga a preci­
são absoluta, mesmo que não seja um saber absoluto.
A Idade Média é uma referência freqüente de Lacan. Ele se
refere, por exemplo, às provas medievais da existência de Deus.
Por quê? Porque esse Outro divino, Deus, é uma obsessão da

18 Cf. H. Blumcnberg, Thc Legitún,1cy ofthc Modem Age, op. cic., parte IV, cap. 2.

43
ü O E S ( J O l) O l' S I C A N A I. I S T A

Idade Média. As referências à relação com Deus servem para Lacan


como um parâmetro para pensar e testar a relação com o Outro.
Lacan finaliza seu texto afirmando, repito a citação: " [ ... ] a
análise só pode encontrar sua medida nas vias [os itálicos são n os­
sos] de uma douta ignorância". A douta ignorância é um primeiro
esboço do método nas ciências, da idéia de um saber metódico,
sistemático, que tolera um não-saber no seu interior, que se afir­
ma na idéia de que continuará progredindo com cada novo passo
que der, na idéia da existência de passos infinitos de saber. A pala­
vra-chave pela qual Nicolau de Cusa pertence já ao início da I dade
Moderna é a palavra "método", pois não havia um método pró­
prio da escolástica: havia comentários de textos, sínteses, etc, mas
método, tal como Nicolau de Cusa propunha, não existia. O
método estava desenhado para que a douta ignorância se superasse
coqstantemente a si mesma.
Isso situa o sujeito humano em outro lugar. A consciência
humana não fica restrita à finitude, mas aberra para a infinitude,
fugindo de certa servidão, de certo uso intencionado da igno rân­
cia, próprio da teologia escolástica. Aparece, pelo contrário, como
um modo de conhecer a si mesmo. A perfeição do saber, a idéia
de que o saber é sempre perfectível, leva-o a escrever o tratado
Sobre a conjetura, que acabamos de citar. Em "Variantes do trata­
mento-padrão" , Lacan considera a psicanálise como incluída nas
ciências conjeturais, sendo a conjetura o que permite ir avançando
sempre no conhecimento.
O que acontece com esse saber que o sujeito humano busca e
que é sempre perfectível de um modo ou de outro? Para Nicolau
de Cusa, esse saber usa o mais clássico dos instrumentos: contar,
medir e pesar são os instrumentos do saber humano sobre a na­
tureza, cuja eficácia, ao ser revelada, revela também a inexatidão
desses instrumentos - contar, medir e pesar- através dos parâmetros
produzidos pela razão humana.

44
A Q U E S T Ã O LJ O S ,\ B E R IJ C. l' .S I C A N A L l 5 T A

Ponto central, que constitui também uma novidade, Nicolau


de Cusa recrimina Platão pelo erro de ter transformado a geome­
tria em algo similar ao vi?ível e de esquecer que não se trata de
. uma intuição de idéias externas ao mundo, mas de idéias produto
do espírito humano. A expressão latina é macematicalía fàbrícac,
isto é, matemática fabricada pelo homem. Essa idéia da matemá­
tica fabricada pelo homem é revolucionária no seu contexto; a
matemática não é o eco de nenhuma idéia distante, nem a revela­
ção de um saber; é um saber produzido. Nicolau de Cusa afirma a
construção humana do saber matemático e que essas estruturas de
puro pensamento que constituem a matemática não são dadas
por Deus e sim inventadas pelo homem. É platônico porque sus­
tenta que a realidade é matemática, mas é um platonismo trans­
formado, que sustenta que o sujeito humano cria a matematização
do mundo em vez de ler nela um sinal da mão de Deus.
Referindo-se aos três métodos - contar, medir e pesar - e à
insuficiência de nossos parâmetros, postula que a aritmética e a
geometria deixam sempre um resto não-realizado em toda aplica­
ção a objetos reais. Não é possível reduzir uma à outra: a constru­
ção ideal por parte do homem desses instrumentos matemáticos e
sua aplicação real sobre o objeto sempre deixam um resto. Seus
exemplos relacionam-se com a teoria dos números irracionais, desse
resto irredutível constituído pelos números que carecem de medida
comum. Essa idéia do resto que se produz entre um saber que avan­
ça e sua aplicação ao real coincide exatamente com o conceito de
objeto a lacaniano. O resto opera para além de todo saber matemá­
tico, o resto move o saber, mesmo sendo um produto do saber.
Lacan denominou saber, numa primeira época, a concatenação
significante, que se resume no materna S 1 - S 2 , sendo o objeto a
seu produto, um resto que cai e lhe escapa. N esse ponto, Nicolau
de Cusa é quase um precursor de Lacan, pois insiste na função
desse r�to, que é aquilo que o caçador de saber persegue incansa­
velmente e nunca consegue alcançar.

45
O lJ E S E I O LJ O P S I C A N A L I S T A

Lacan usa a mesma metáfora da caça no Seminário X, quan­


do assinala que o objeto a, como objeto-meta, objeto eterno e
inalcançável da caça, é um objeto que, como resto da divisão sub­
jetiva, está atrás causando a busca, mas não é sua meta. Ele usa
freqüentemente, referindo-se a isso, a metáfora da caça, não só por
sua conotação de caça amorosa, mas também, por exemplo, na sua
reflexão sobre a pista e o rastro no Seminário "A identificação".
Nicolau de Cusa se pergunta como alguém, feito à imagem e
semelhança desse Deus infinito, maravilhoso, pode não trazer em
si essa infinitude. Ele chega a afirmar diante de Deus, Outro i na­
cessível da mística, um Deus ao qual chama não-Outro, que é o
Deus com o qual nós, por sermos feiras à sua imagem, nos iden­
tificamos. A partir da identificação com ess e Deus não-Outro,
abre-s e a possibilidade, já que somos feitos à sua imagem - a insis­
tência na imagem chama a atenção -, de aceder a um conhecimento
infinito, ainda que ele nunca atinja a qualidade do saber de Deus.
Essa conceitualização do homem enfatiza o ser feito à ima­
gem e semelhança de Deus, o que permite ter, potencialmente, as
mesmas capacidades que Deus. Há uma reivindicação do lugar do
homem e, em última instância, um esboço do que s erá a posição
do humanismo renascentista, em cujas bases situa-se a figura de
Nicolau de Cusa.
A douta ignorância implica um desacordo com santo Anselmo,
conhecido por sua prova ontológica da existência de Deus, que
Lacan cita freqüentemente. Ela consiste em demonstrar a existên­
cia de Deus a partir do conceito mesmo de Deus, de sua perfeição.
As provas da existência de Deus eram a tarefa principal da lógica
medieval, que, não por acaso, Lacan recomenda tanto, porque é
um'a lógica que diz respeito à existência do Outro.
Lacan fará essa lógica sofrer uma " pequena" virada, pois pro­
curará demonstrar a existência lógica do Outro sexo, que não era
exatamente o objetivo da escolástica medieval, para a qual, afinal
de contas, o Outro sexo não era nada além de uma costela de

46
A Q U E S T J\ O 0 0 S A B E R 0 0 l' S I C A N /\ L I S T A

alguém e, em geral, algo que levara à perdição o único sexo exis­


tente.
Qual é o problema de todas as chamadas provas ontológicas
ou provas negativas de Deus, incluindo a de santo Anselmo, nas
quais se avança na demonstração em função de um saber negativo
sobre Deus? Por que devem ser negativas? Porque o conceito do
ser supremo, Deus, implica teoricamente, para a escolástica, que
sua definição deva partir somente de predicados positivos. A pro­
va ontológica é uma prova fundada em predicados negativos. A
idéia de um Deus transcendente, especialmente no nominalismo
e na mística, é a de um Deus para sempre inalcançável, que se
afasta cada vez mais dos homens; um D eus cada vez mais
schreberiano, poderíamos dizer, que não sabe nada sobre os ho­
mens e a quem os homens não interessam nem um pouco, nem
sequer é certo que sua salvação lhe interesse. A transcendência sempre
crescente, cada vez maior, desse Deus que se torna cada vez mais
oculto e mais difícil de apreender opõe-se à sua definição por
predicativos positivos, porque não posso conhecê-lo, não posso
vê-lo, está cada vez mais oculto e posso dizer cada vez menos so­
bre ele.
Santo Anselmo refere-se a dois conceitos diferentes de Deus,
no livro em cujo primeiro capítulo da prova ontológica, o
Prologon, não diz nada a esse respeito. Um conceito racional, de­
finido pela intensificação daquilo que pode ser pensado, até o ponto
em que aquilo que se pensou já não é superável. Um segundo
conceito, que entra em contradição com o primeiro, é transcen­
dente e requer que se vá além dos limites do pensável. Toda trans­
cendência, no entanto, reduz a um conceito a possibilidade de ser
definid.o, torna-o nebuloso. Santo Anselmo tenta solucionar essa
aporia, ainda que não consiga.
Essa posição não é a de Nicolau de Cusa, que pensa, ao
contrário de santo Anselmo, que Deus pode ser concebido e pen­
sado a partir de suas características positivas e, em parte, a partir

47
(J lJ F. S E ) O l) (J l' S ! C /\ N A I I S T A

das características desse ser que lhe é tão semelhante, que é o ho­
mem, ponto no qual surge algo não pensável, até então, no con­
texto medieval 1 9 •
Por que lacan se interessa tanto pelas provas da existência de
oe·us? Por um lado, como j á assinalamos, porque se relacionam
com as provas da existência do Outro e, por outro, porque reme­
tem à diferença entre a existência real e a existência lógica. lacan se
interessará por demonstrar a existência lógica do Outro, não sua
existência real, no sentido do discurso verdadeiro, se nos ativermos
à diferença que ele introduz em "Variantes do tratamento-padrão".
Interessa-lhe demonstrar a existência lógica do Outro em termos
da palavra verdadeira, quer dizer, da verdade articulada com o su­
jeito. Lacan insiste na diferença entre a existência lógica e a exis­
tência de fato até o final de seu ensino, que culmina com a escrita
da palavra "existe" separadamente, ex-siste, aquilo que está fora de
algo e o sustenta.
Lacan se pergunta: como se prova a existência do Outro? E,
particularmente, dada a temática desse seminário, como se prova
a existência do Outro sexo? Lacan define a temática da lógica do
fantasma como uma tentativa de responder à pergunta sobre a
subjetivação do sexo: como se articula o sexo com a subjetivida­
de? O problema da existência do Outro sexuado não é idêntico ao
da ·existência do Outro do significante. A tentativa de Lacan é
modular a existência lógica, fundada no significante, com a exis­
tência do outro do sexo.
O seminário "A lógica do fantasma" é um seminário liminar
no tocante a essa temática; inicia-se nele uma virada que modifica
profundamente a teoria da sexualidade até então vigente. Lacan,
ironicamente, dá a entender que a verdadeira pergunta é se é pos-

' 9 Esses desenvolvimemos oferecem alguns elementos para pensar como é tratado por
Lacan o problema do saber em relação à existência do Oucro em "A lógica do
fantasma", J. Lacan, Seminário XIV, inédito.

48
A Q U E S T Ã O 1) 0 S A B E. !< D O t> S I C A N A I. I S T A

sível ou não acreditar no Outro sexo. A crença de Deus cm santo


Anselmo é um ato de fé tomado de santo Agostinho e, segundo
Lacan, acreditar na mulher é também um ato de fé. Antecipa,
assim, a identificação que realizará, no Seminário XX, entre Deus e
J/... mulher, ao situar Deus do lado das mulheres. É preciso enfatizar
na expressão "ato de fé", para não permanecer aderidos ao imaginá­
rio, a palavra "ato" e não a palavra "fe", já que imediatamente depois
surge no seminário um desenvolvimento do ato na forma negada.
Aparece assim a primeira forma do "não existe relação sexu­
al", o " não existe ato sexual", que atravessa toda "A lógica do fan­
tasma". A partir da descoberta freudiana do complexo de castra­
ção, a existência do Outro sexo deve ser fundada logicamente.
No mito de Adão e Eva, se Eva não é nada além do que a
costela de Adão, versão do lado fálico, se ela é só isso, interpretan­
do o mito literalmente, não há ato sexual, já que o sujeito se rela­
ciona com uma parte de si mesmo, com sua costela, e, sendo as­
sim , seu aro é auto-erótico.
Assim, da mesma forma que se buscaram as provas teológicas
da existência de Deus, devem-se buscar as provas lógicas da exis­
tência do Outro sexo, que culminaram com as fórmulas d a
scxuação. A importância d a prova de santo Anselmo reside em
lJUe ela mostra como acreditar no ato sexual; afirmar que há ato
sexual implica pensá-lo, não no nível da biologia e suas leis, mas
cm relação ao que ocorre com o ato sexual no nível do sujeito.
Sujeito esse, insisto, definido tão claramente no Discurso de Roma
como aquele que está submetido à lei da aliança e não à mera
copulação. O pomo central é como o sexo é vivido por um sujei­
to, como se experimenta o sêxual na subjetividade. A subjetivação
,la sexualidade, portanto, implica descobrir que não há, na pers-
1,cctiva clássica da castração em psicanálise, forma de fundamentar
logicamente o Outro sexo como universal.
Lacan, no entanto, não descarta ainda a possibilidade dessa
fundamentação lógica, continua a buscá-la, acredita que é possí-

49
O D E S í: J O D O P S I C A N A L I S T A

vel. Quando a pensar impossível, poderá articular as fórmulas da


sexuação, mas não se decide ainda a afirmar a impossibilidade da
relação com o Outro sexo. Portanto, em "A lógica do fantasma",
temos uma primazia da lógica fálica em seu contraponto com o
objeto a e sua lógica própria, que é a lógica do fantasma.
Desse ângulo, a lógica do fantasma é na realidade o que se
propõe, no nível do Seminário XIV, como paliativo para a
inexistência do sexo feminino, é a mulher em posição de objeto a.
Todo sujeito, incluindo o homem, pode sê-lo, mas é especial­
mente possível para a mulher, como se lê em "A angústia", se
situar nesse lugar da causa do desejo, que é só um paliativo, um
suplemento da inexistência do Outro sexo.
Voltemos ao ato, ao ato de fé, que implica acreditar em A
mulher. Quem realiza esse ato de fé todos os dias? O obsessivo. O
obsessivo que busca A mulher realiza esse ato de fé, acredita que A
mulher universal existe e que tem o azar de não encontrá-la. Se em
"ato de fé" deve se enfatizar a p alavra "ato" e não tanto a p alavra
"fé", isso se deve ao fato de que a fé não se acompanha, não precisa
da prova lógica. A fé como tal está sempre relacionada ao ato. É o
ato que lhe dá sua certeza, na medida em que há uma certeza do
sujeito, para além de toda prova. Lacan proporá, não uma lógica
da certeza, não uma lógica da fé, mas uma lógica do ato, na medi­
da em que da lógica do ato dependem a certeza e a fé, o que tem
importância tanto para o ato analítico como para o ato do sujeito.
As tão conhecidas fórmulas do S eminário III - "você é minha
mulher", "você é meu esposo", onde Lacan parece esboçar certa
reciprocidade simbólica entre os sexos, ordenada em função do
significante - não são retomadas no Seminário XIV, porque a
experiência clínica demonstrou que a promessa pacificadora do
simbólico não se cumpre: a experiência clínica, pelo contrário,
permite constatar a discórdia estrutural entre os sexos.
Lacan não afirma que essa discórdia tem um fundamento
natural, não se solidariza com nenhum dos desvios da1winianos a

50
A q U E. S T Ã O l) () 5 A 8 f l� t) () l' S I C J\ N ,\ l l � T A

esse respeito. Essa discórdia se funda na perda de naturalidade 9ue


o significante opera sobre o sujeito. Perda que lhe exige constru i r
algo, que não seja d a ordem da biologia, para dar conta dessa dis­
córdia que persiste para além de qualquer pacificação simbólica
possível, de qualquer palavra pacificadora. Cabe esclarecer outra
vez, como fiz muitas vezes, que a tese de Lacan não é biologista,
m as também não é culturalista. Não define a diferença sexual em
termos de funções ou papéis sociais que se distribuem entre os
sujeitos: sua mira é a originalidade do sexo na medida em que é
subjetivado, pois a única forma de sexo que tem que arcar com
um sujeito é a dos seres falantes, a dos seres humanos, o que faz
com que sua sexualidade se torne a sede de múltiplos sintomas e
múltiplos mal-estares.
Em que se funda essa sexualidade para a psicanálise? Tai como
Freud a viu e a encontrou na clínica, como sexualidade perverso­
poliforma, ela não se funda nem num culturalismo, nem num
bioligismo. Sem tomar, por exemplo, o caminho dos que esco­
lheram posturas francamente biologistas em psicanálise, nem o
daqueles que, como Karen Horney, escolheram posturas socioló­
gicas ou culturalistas, a resposta de Lacan é articular a sexualidade
com o ato. Com o ato entendido como algo que só pode ser
realizado por um sujeito falante, não como uma mera ação motora.
Não se trata nem de reflexos, nem de condutismo. O ato é algo
exclusivamente humano, que exige a presença do significante, da
linguagem.
Se aplicarmos o raciocínio que acabamos de realizar em rela­
ção ao ato à afirmação negativa de Lacan "não existe ato sexual", o
que se obtém? Cabem aqui alguns esclarecimentos sobre o ato.
Quando Lacan define o ato pela primeira vez, com extrema clare­
za, nesse seminário, para só depois desenvolver o ato psicanalítico,
notamos que a definição de ato precede a definição do ato psica­
nalítico. Sua formulação deve ser pensada seriamente, para além
do que se transformou, infelizmente, num refrão pertinaz que

51
O l) E S E J O U O J' $ 1 C A N A 1. 1 S T A

traduz uma espécie de psitacismo, que sustenta que a característica


do ato humano é a de ser um aro sem Outro, quer dizer, sem
garantia, refrão que desconhece completamente, na sua própria
estereotipia, essa douta ignorância que Lacan recomenda aos psi­
canalistas.
, Se pensarmos o ato nessa perspectiva, esse ato sem Outro,
próprio do ser falante, implica a inexistência do Outro sexo. Para
que haja ato sexual, o Outro sexo deveria existir; se é inexistente,
conseqüentemente, "não existe ato sexual". No sujeito humano
há ato, mas não ato sexual, porque o ato sexual implicaria a exis­
tência - lógica, não biológica nem real - do Outro sexo. Dado
que essa afirmação é válida para qualquer ato sexual, seja ele hetero,
homo ou o que for, a complementaridade genital - homo ou
hecero - implicaria de algum modo que se faça existir o Outro
sexo, com o qual fica anulado o caráter de ato. Estamos ante um
ve/muito particular. Se tenho ato, não tenho Outro sexo. Se acre­
dito que existe Outro sexo, não tenho ato. Na verdade, quase
todos nós, seres humanos, nos enganamos, acreditamos que exis­
te, nos reproduzimos em honra da igreja ou também do proleta­
riado, isto é, em função de algum evangelho.
O ponto lógico importante é o seguinte: se há um Outro
complementar sexual e se o ato humano foi definido como um
ato sem Outro, na realidade, o sintagma "ato sexual" é absoluta­
me!lte incorreto na perspectiva psicanalítica, porque há uma disjun­
ção, há um velem jogo: se tenho Outro sexo não renho ato e se
tenho ato não tenho o Outro sexo. A condição do ato, sem Ou­
tro, que é próprio do ato do ser falante, implica a inexistência da
relação sexual como complementaridade entre os sexos.
Essa definição de ato permitirá a formulação do ato psicana­
lítico. Em "A terceira"20 , esse ato é definido como essa função tão

20
J . Lacan, "La te.reera", em lncervenciones y cexcos II, Buenos Aires, Manancial,
1 988.

52
A Q U E S T Á O l) O S A � E. R U O 1 1 S I C: A N /\ 1 1 �. l A

particular, essa relação de dois, que é a psicanálise, esse laço social


de dois que exclui a relação sexual. É impossível pensar o ato 11�i­
canalítico se antes não está clara a exclusão do ato sexual. N a ver­
dade, é dado assim um fundamento teórico à regra de abstinência
freudiana, numa perspectiva totalmente inesperada, mostrando
uma razão de estrutura que vai muito além do critério moralista
acerca de se é possível ou não ter relações com um paciente. Não
se trata disso. É preciso pensar quais são as razões lógicas dessa
exclusão do ato sexual, dessa abstinência, que é correlativa ao pró­
prio nascimento do dispositivo analítico, associado, como se sabe,
à dessexualização própria d"A" ciência ocidencal21 • As razões de
estrutura dessa exclusão, não seu aspecto moral, são o que impor­
ta precisar. Uma vez estabelecidas, pode-se defi n ir o ato psicanalí­
tico e definir também, de um modo novo, a produção do desejo
do psicanalista.

21
J. Lacan, E! Semin an'o, Libra 1 1, Los cuarro concepros fund,1mc11r.-dc,\' dl 'I
psicoanálisis, op. cir. .

53
CAPÍTULO 3
FORMAS LÓG I CAS DAS OPERAÇÕES DE ALIENAÇÃO E
SEPARAÇÃO

Ato, angústia e objeto a

A formulação "não existe ato sexual" culmina, no que concerne


ao termo "ato", nos desenvolvimentos das primeiras cinco aulas
do Seminário )CV, "O ato analítico" 1 , particularmente a quinta
lição2, na qual é levada a cabo uma nova formulação do final de
análise, introduz-se, pela primeira vez, o termo "passe" e se especi­
fica a função do objeto a na direção da cura. Essas lições devem ser
articuladas com as formulações do Seminário X, "A angústia" 3, e
com as do Seminário XIV, "A lógica do fantasma"4 , com um
percurso dos Seminários X e XIV e dos escritos correspondentes.
Em certo sentido, o que se segue é um comentário dessa lição.
Essa digressão tem um fundamento claro. O lugar do analista
é definido como o lugar da causa do desejo. O conceito de ato
psicanalítico - e a maneira como o ato psicanalítico esclarece o ato
em geral - exige interrogar a relação entre o obj eto, a causa e o
lugar do psicanalista. É indispensável, conseqüentemente, uma
digressão a respeito da relação com a causa, para além das implica­
ções filosóficas do termo "causa" - que exigirão um desenvolvi-

1 J. Lacan, Séminaíre XV, "L'acte psychanalycique", inédito, lições de 1 5, 22 e 29/1 1/


67, 8/ 1 2/67 e 1 0/ 1/68.
2
J. Lacan, Séminaire X, "L'angoisse", inédito.
3
]. Lacan, Séminaire XIV, "La logique du fanrasme", inédito.
4 J. Lacan, Séminaire XV, op. cit., lição de 1 0/1/68.

55
O lJ E 5 E J O O O I' 5 1 C A N A l 1 5 T A

menta à parte -, e cab e indicar alguns pontos fundamentais do


percurso de Lacan a esse respeito. O que é o ato, o que significa a
função do analista situado no lugar da causa do desejo, o que é o
do desejo do analista são todas questões que implicam o estudo
da relação entre o analista e a causa, colocando expressamente en­
tre parênteses, por enquanto, o gozo.
Nassa meta é articular a relação entre o 1ugar do analista e o
lugar da causa com o objeto a como causa de desejo e valor de
verdade. A análise se limitará, portamo, à relação verdade, causa,
lugar do analista e posição do analisando.
Fórmulas da divjsão subjetiva
no Semjnário X, '.J.1. angústia " 5
A s A s
a

Esquema do Grupo de Klein, Seminário XV,


"O atopsicanalídco " 6

v ,,.,. _··
,_..
Íf:0 Objeto ,7
{ [)
: '',
ou não penso Escolha alienante
Ou não penso
Isso Primeira escolha forçada ou não sou
----- /
'-.. ./
'-.. ./
'-.. ./
'-.. ./
'-../
/,
./
./ ' ...____


./
./ ...____
' '-
.a // - <p ou não sou

- cp {) inconsciente

5 J. Lacan, Semináire X, ''L'angoisse", op. cic., lições de 1 6/1/63 3 de 6 e 1 3/3/63.'' J .


6 Lacan, Seminário XV, op. cit., lição de 1 0/ 1 /68.

56
F O l� M A S L Ú G I C A S lJ A S {) l' E J� A Ç Õ E S D E
� l I E N A Ç Â O E S [ I' A R A Ç Á O

Em "A angústia", encontram-se duas fórmulas da divísão sub­


jetiva. Ambas são necessárias para elucidar o final da análise que se
formula na quinta lição do Seminário XV, assim como o esque­
ma que nela se encontra. Todas as suas formulações são fáceis de
repetir devído a seu caráter gráfico, como por exemplo:
A verdade é a perda que se produz ao passar da falta [no
grupo de Klein] , em cima, à esquerda, do "não penso", para
a opção do " não sou", embaixo, à direita, mas ela, a perda, é
. 7
causa de outra c01sa .

A lição abunda em formulações desse ripo, que jogam tam­


bém, num segundo plano, com a inversão do lugar do objeto a­
primeiro ou segundo - do lado da fórmula do fantasma, no lugar
do Outro em "A angústia".
Muitas são as referências ao ato anteriores ao Semínário XV,
ínclusive sob a forma da palavra " ação", não diferenciada ainda de
"ato " . Um dos eixos centrais do Seminárío VII, "A ética . . . "8, por
exemplo , é o ato, ainda que o termo em si não esteja presente.
No Seminário X, define-se o ato como um "arrancar da an­
gústia sua cerceza"9 • Essa definição não se aplica ao ato psicanalíti­
co, ainda não delimitado, mas ao ato em sua relação com o dese­
jo, ainda qll:e algumas indicações já pareçam apontar para ele. Se se
define a angústia como a única tradução subjetiva do objeto a e o
ato como um "arrancar da angústia sua certeza", o ato, conseqüen­
temente, está estreitamente ligado ao objeto, através da angústia.
Na única lição de que dispomos, a primeira, do seminário
que teria sido o verdadeiro Seminário XI, o seminário sobre "os
nomes do pai " , lê-se - no resumo do seminário que habitualmen­
te era realizado na aula inaugural de cada seminário - uma referên­
cia à angústia:

7
Ibid..
8
J. Lacan, E/ Seminaâo, Libra 7, Li àica deipsicoa11ilisis, Buenos Aires, Paidós,
1 988.
9 J. Lacan, Seminário X, op. cic., lição de 1 9/ 1 2/62.

57
O D E S E J O D O P S I C A N A L I S T A

À angústia, à angústía que não engana, substitui-se para o


sujeito o que deve operar por meio desse objeto a. Por meio
desse objeto a, pode-se operar mais de uma coisa. Deixo isso
para depois, a função do ato está suspensa ao que deve ope­
10•
rar por meio desse objeto a

No Seminário X, as duas últimas aulas evidenciam a relação


entre o ato - único correlato polar possível da angústia, que só
pode ser situado na matriz dos afetos, introduzida na primeira
aula, no lugar de inibição, na casa esquerda superior do quadro -,
a angústia e o objeto. Nessa mesma casa, situa-se também o dese­
jo, sempre encoberto pela inibição. Lacan, tomando como ponto
de partida a pulsão escópica, estrutura uma série a partir do desejo
como inibição - desejo de não ver-, cujos equivalentes ele inscre­
ve no nível escópico abaixo dos elementos iniciais do quadro. É
próprio do desejo o aparecer escondido, mascarado atrás da inib i­
_ção. Ele esboça, assim, uma série na qual, entre inibição e ato, a
ponte é o desejo. O desejo deve ser situado no entre-dois pela
inibição e pelo ato.
Inibição, desejo e ato
Inibição Impedimento Embaraço
Desejo
Ato
Desejo de não ver Impotência Conceito de angústia
Emoção Sintoma Passagem ao ato
Desconhecimento
Desejo de não saber Onipotência Suicídio
Turbação Acting-our Angústia
Ideal Luto Causa a

'º J . Lacan, "Les noms du p ere", inédito, lição de 10/1 1/63.

58
F O R M A S L Ó G I C A S ü A S O l' ( � A ( Ú E S O t:
A L I E. N 1\ Ç Â. O 1:. S E P A R I\ Ç Ã O

Essa formulação do ato afirma que seu correlato indissociável


é a angústia, sendo ela, conseqüentemente, inseparável também
do desejo. Todo ato é um para-além da inibição estrutural do
desejo:
Num ato, manifesta-se o desejo mesmo que teria sido feito
para inibi-lo [para inibir esse ato] . O ato é uma manifesta­
ção significante na qual se inscreve o que poderia chamar o
11
estado do desejo

Ou seja, basicamente, a desinibição ou não do desejo. Essa


desinibição é associada ao fato de que a angústia é a única tradução
subjetiva do a, causa de desejo. A certeza em jogo no ato é deter­
minada, então, pelo obj eto a, causa do desejo.
Está implícita nas duas fórmulas da divisão subjetiva do Se­
minário X a importância da perda na constituição do objeto em
sua relação com o desejo, quer dizer, do objeto como causa do
desejo. Na análise de Hamlet, assim como nas últimas aulas, fica
claro que se tornar objeto causa do desejo só pode acontecer com
o sujeito quando o Outro, com maiúscula, o perdeu. O sujeito só
se constjtui como objeto causa quando foi perdido. Portanto, só
na perda o objeto se relaciona com a função de causa em relação
ao desejo. A identificação especular, i'(a), exclui a falta, exclui a
castração, mascara a perda constitutiva do desejo. A partir da iden­
tificação especular não é possível aceder à posição do sujeito como
causa de desejo, nem há modo de responder ao enigma do desejo
do Outro. A definição do luto - só é possível realizar o luto por
aquele cuja causa fomos, cujo desejo causamos - situa seu meca­
nismo num nível diferente do da imagem narcisista. Essa defini-

1 l J. Lacan, Seminario X, op. cic., lição de 3/7/63.

59
O O l S E I O 0 0 � S I C A N A L I S T ,\

ção, cuja relação com a privação foi assinalada no capítulo 1 , im­


plica separar e ao mesmo tempo articular, de maneira inovadora,
ato e luto l2 •
Ao examinarmos a formulação "não existe ato sexual", preci­
samos ter em mente os desenvolvimentos sob re o ato que acaba-­
mos de mencionar, especialmente o fato de que, no que diz res­
peito à assunção subjetiva do sexo, a dimensão da castração não
po1e ser eliminada.
A respeito disso, lê-se no Seminário XIV:
Esse desejo [o desejo do sujeito como desejo do Outro], na
medida em que se l imita à sua causação pelo objeto a, é
exatamente o mesmo ponto que exige que, no nível da se­
xualidade, o desejo se represente pela marca de uma falta
que ordena tudo, que origina tudo no que diz respeito à
relação sexual, tal como ela se dá no ser falante, quer dizer,
que tudo gire em torno do signo da castração, em torno do
falo, na medida em que representa a possibilidade de uma
13
falta de objeto

O falo representa a possibilidade de uma falta de objeto, não


a própria falta de objeto. Essa citação, de extrema importância,
indica a constância dessa teorização em torno da causa e da falta e
o caminho para articular o falo com o objeto a.

O novo vel alienante de "A ló gica do fantasma"

A formulação do "não existe ato sexual " culmina na


formalização do axioma fantasmático e ocupa o último terço do
Seminário XIV. Sua compreensão cabal requer que recorramos às

12
Ver capítulo 1 e também as análises pertinences em D. S. Rabinovich, La anguscia
y ef deseo dei Orro, Buenos Aires, Manancial, 1 994.
13 J. Lacan, Seminário XIV, op. cit., lição de 25/1 /67.

60
F O R M A S L Ó G I C A S D A S O l' t: � A Ç Õ l: S ü F.
A L I E. N A Ç Ã O E S E l-' ,\ R /1. Ç À O

duas p rimeiras partes, especialmente a parte do meio, onde é


reformulado o vel alienante introduzido no Seminário XI.
Cabe indicar as diferenças com o que foi formulado no Se­
minário XI. Aplica-se ao vel alienante entre ser ou sentido - vel
que como tal implica necessariamente uma perda - a negação pró­
pria da lei de dualidade lógica de de Morgan, negação que é a
chave de tudo o que é desenvolvido posteriormente.
Passa-se da alienação entre ser e s entido e da operação de sepa­
ração para essa variante, inventada por Lacan, do cogÍto ergo sum
de Descartes, derivada da aplicação da negação de de Morgan. O
cogüotransforma-se n uma disjunção, cuja forma é "ou 'não pen­
so' ou 'não sou"', que resolve alguns dos impasses das operações
de alienação e de separação.
"'
Essa dupla fórmula negada, "ou 'não penso' ou 'não sou ,
permite reformular, com um único esquema fundado no que na
matemática se chama de grupo de Klein, a partir de três operações
- alienação, verdade e transferência -, o funcionamento dessa
disjunção, que se funda num "não" excludente, o dos dois "ou",
nem um pouco inclusivas, já que não funcionam como o "e" de
uma conjunção possível, mas como uma disjunção num sentido
mais forte.
Em "A lógica do fantasma", a operação de reunião se produz
entre conjuntos - não se trata de círculos de Euler -, designados, a
título meramente expositivo, como A, B, C e D.
Os dois conjuntos com os quais se grafica a n egação própria
da lei de dualidade na lógica estão grifados no gráfico a s eguir.
Essa negação lógica interessa porque - Lacan é explícito a esse res­
peito - a lei de dualidade não é uma dupla negação no sentido
habitual. Uma dupla negação produz um resultado positivo, isto
é, as duas negações se anulam entre si. Trata-se de outro tipo de
negação, que permite conservar - e este é seu objetivo - a
fõrmaÍÍzação de uma perda. Toda a operação de separação, cabe
lembrar, está centrada na perda, na pergunta dirigida ao Outro:

61
O O E S E J O 0 0 1' 5 1 C A N A L l 5 T A

pode me perder? Posso faltar ao Outro? O "não", a negação, indi­


ca sempre para Lacan, por isso o examina atentamente, a operação
de uma perda.

A definição mais simples da lei da dualidade de de Morgan é


a seguinte: em qualquer classe ou conjunto - primeiro Lacan tra­
balha com classes e depois com conjuntos - a operação de reunião
ou soma pode também se expressar em termos de interseção e
negação ou, inversamente, a operação de interseção pode se ex­
pressar através de uma reunião e uma negação 1 4 •
Uma soma, pela operação da lei de dualidade, pode-se ex­
pressar como uma interseção mais uma negação ou, inversamen­
te, uma interseção pode-se expressar como uma reunião e uma
negação.
Sua formulação seria assim:

- (A + B) = - A X - B
- (A X B) = - A + - B

14 Para uma explicação clara e sucinta desses desenvolvimc:ncos, pode-se consultar S.


Langer, /JJ[roducción a la lógica simbólica., Buenos Aires, Siglo XXI, 1 969.

62
F O !< M A S L Ó G I C A S D A S O P E. R A Ç Õ E 5 l) E
A L J [ N A ( Ã O E S E P A � A Ç Â O

Na primeira fórmula, aparece entre parênteses a reunião de


dois conjuntos quaisquer (A + B), acompanhada de um sinal (-),
fora do parêntese, que é a negação aplicada à soma de A + B;
algebricamente, o resultado dessa operação é um - A e um - B,
que se multiplicam, no sentido de uma interseção de conjuntos.
Inversamente, aplicando essa mesma negação à interseção, quer
dizer, a (A x B) , obtém-se a reunião que une - A + - B.
Em síntese, a interseção de A x B, negada, equivale à soma de
- A + - B e, por sua vez, a reunião negada de A + B equivale à
multiplicação ou interseção de - A e - B, negado cada um deles.
A lei de dualidade permite, assim, transformar uma opera­
ção em ouera - a reunião em interseção e a interseção em reunião
- usando a negação. Não há, no Seminário XI, uma transforma­
ção assim mediada por uma negação, isto é, uma perda - exceto o
uso que Lacan faz da "perda que volta" na passagem entre ambas
as operações, pensada topológica e não logicamente - que relacio­
ne a operação de alienação e a operação de separação.
Lacan aplicará essa operação ao cogito ergo sum. Para fazer
isso, escreve a reunião de dois conjuntos, o do cogito e o do sum,
situando o e1go no lugar da interseção, lugar onde no Seminário
XI o objeto a estava situado.
O cogito é equiparado a um conjunto, o conjunto A; o con-
, junto B é o sum; o ergo situa-se na interseção. O cogito cartesiano
pode ser considerado, conseqüentemente, como a interseção entre
A e B, quer dizer, entre cogito e sum. Nessa interseção, que é a
área em que se superpõem, coloca o ergo, que funciona como
conjunção. A essa união, aplica-se uma negação, um "não"
excludente, que afirma que na união de ambos, o cogito e o sum,
ambos não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo: - (A+B).
Sendo assim, não se pode afirmar o pensar e o ser ao mesmo tem­
po; pensar e ser excluem-se mutuamente. Introduz-se, assim, no
seio do cogito cartesiano, uma disjunção excludente, no seu senti­
do mais forte, que não se dá por acaso.

63
O D F. 5 1:. J O D O !' S l C A N A L I S T A

Não há união do pensamento com o ser, por isso Lacan qua­


lifica o momento em que Descartes concluí o seu raciocínio no
"penso logo sou" como uma passagem ao ato. Essa qualificação -
presente já no Seminário IX - chama a atenção e só se esclarecerá
no Seminário )0/, quando se diferenciar a passagem ao ato de
Descartes do ato psicanalítico. Em suma, a passagem ao ato na
fundação do sujeito, tal como Descartes a propõe, não é equiparável
ao ato psicanalítico.
A lei de dualidade oferece a base lógica para formalizar uma
per_da inevitável, cuja função ess encial era levada em conta tam­
bém ao examinar as referências ao Seminário X.
Aplicada ao cogito, a lei de dualidade permite transformar a
relação entre pensar e ser no âmbito da teoria psicanalítica 1 5. Não
podem ser verdadeiros s{multaneamenre o pensar e o ser, se é
introduzida a negação própria da lei de dualidade n o cogiro. A
transformação dá como resultado um "não sou" e um "não pen­
so". O "não sou" situa-se do lado do sum e o "não penso" do lado
do cogito. O destino dessa transformação, de agora em diante,
afasta-se de Descartes, pois passa a funcionar estritamente no cam­
po da psicanálise e não é um comentário "filosófi c o".
A interseção, o ergo entre pensar e ser, s eguindo a lei de de
Morgan, implica uma disjunção excludente. Se um conjunto, o
do pensar, é verdadeiro, o outro, o do ser, é falso; a interseção
entre ambos implica, assim, a própria negação. Aplica-se à interse­
ção o mesmo que se aplica ao resto do conjunto, na medida em
que faz parte de cada um desses conjuntos.
Costuma-se negligenciar, no entanto, que o "não" introdu­
zido dessa forma não afeta o ser ou o pensar em si, mas afeta o eu
[je].. Então, a formulação afirmativa torna-se, respectivamente, um
"pensar sem eu [je] e um ser sem eu (/e]". Portanto, ambas as

11 Esse argumento merece ser cotejado com a última parte de "I nstância da letra ...",
que também se refere ao ser na sua relação com o cogiro. Ver E/ concepro de objero
cn psico,wilisú, Buenos Aires, Manantial, 1 988.

64
f O 1� M A 5 L () C, 1 C A $ l) A S O I' f. I{ /\ C," ( ) I �. ll 1
A l. l f N A Ç À O E 5 E l' /\ l� A t,: Ã ( J

negações têm em comum, estão unidas pelo que Lacan d 1 a 1 1 1;1 de


pas-je, não-eu. A função em jogo não é o moi especul:tr, 1 1 1 ; 1 .\ ; 1
função do shifter, o pronome, que Lacan em algum mo11 1 e 1 1 1 0
pensou remeter a o sujeito d o inconsciente, para depois desca rt:1 r
essa hipótese.
O ponto essencial desse não-eu [;e] é que esse je é a função
que fica barrada, afetada basicamente pela negação. Portanto, se
há um "pensar sem eu" e um "ser sem eu", onde situar cada um
deles? Na interseção dos dois conjuntos, onde se nega o eu [;e] .
No nível do "não penso" e do "não sou" , delimitam-se as duas
meias-luas, marcadas na figura da p. 62. Ambas, se separamos os
dois conjuntos, são não-eu [je] .
Em seguida, a opção da alienação se define como "ou ' não
penso' ou ' não sou"' . Formulada desse modo, se fica claro que há
um "pensar sem eu" e um "ser sem eu", pode-se introduzir o con­
junto vazio, que é igualado ao sujeito, na medida em que está
implícito em rodo conjunto. Cito Lacan:
O cogito de Descartes tem um sentido, substitui pura e sim­
plesmente essa relaçáo do pensamento com o ser, pela ins-
1G
tauração do ser do eu

O questionamento será um questionamento do ser do "ego",


não do sum nem do cogito; o ego é a mira de ataque. O pensar e
o ser interessam na medida em que articulam e instauram o "ser
do eu", o ser do )e ou do ego no cop'co.
Ambos os conjuntos, pensamento e ser, implicam esse con­
junto vazio implícito·em todo conjunto. A negação recai, conse­
qüentemente, sobre esse conjunto implícito e vazio que Lacan
identifica com o sujeito comoje, esse je que toma de Descartes, je
esvaziado de todos os preconceitos, no qual culmina o cogito.

16 J . Lacan, Seminário XIV, op. cit., lição de 1 1 / 1 /67.

65
O U l: S E. J O D O P S I C A N A L I S TA

A chave dessa operação é que o "não" que recai sobre o jedo


ser ?U do pensar se aplica ao sujeito da enunciação e não ao sujeito
do enunciado. Tudo o que tem a ver com a negação, no n ível do
enunciado, inscreve-se na categoria do desconhecimento do eu.
Essa negação não é pensável com a categoria de m01; com a cate­
goria do especular, e implica que não há nem um "ser do eu", nem
um "pensamento do eu" . Formulação freqüente nos Escrhos, em
que se afirma a inexistência do sujeito do inconsciente, a ausência
no inconsciente de um eu VeJ
que afirma 1 7 .
A aplicação da lei de dualidade ao cogho permite esboçar uma
pergunta, cuja resposta é lógica, que se formula da seguinte for­
ma: " ( . . . ] existe ser do eu fora do discurso?" 18 • Só existe "eu" como
efeito de um discurso. Na estrutura neurótica_, produz-se uma
fo raclusão do je inconsciente, efeito da própria forma de consti­
tuição do discurso; o neurótico foraclui - no nível inconsciente -
a primeira pessoa do singular, coisa que não acontece na psicose.
A aplicação da negação da lei de dualidade ao cogito, como
dissemos, produz uma nova forma da opção alienante: "ou 'não
sou' ou 'não penso"'. O que quer dizer o "não sou"? Quer dizer
que eu Ve] não sou. Do lado do "não penso", quer dizer que não
há um eu [je] que se possa acrescentar ao pensar:
É nesse lugar, do "não penso", que se deve interrogar acerca
da penl1 resultante dessa escolha los itálicos são nossos].

Se há um ve/ excludente, primeiro será interrogado do lado


"não penso", opção qualificada como alienação, da qual sai uma
seta da disjunção "ou 'não sou' ou 'não penso'" . O "não penso" é
direção obrigatória, primeira, para o sujeito, vetor que Lacan iden­
tifica com a alienação. A alienação é, na opção alienante "ou 'não
penso' ou 'não sou"', a escolha forçada do "não penso": O "não

17
J. Lacan, Écrits, Paris, Seuil, 1%6.
18 J. Lacan, Seminário XIV, op. cit., lição de l l / l /67.

66
1· O R ,'vi A S 1. Ú (; 1 C A $ 1) A S () I' E R A Ç Ô f. S 1) r:
,\ L l E N A Ç t\ 0 E. S E P .'\ R A Ç À O

sou", em si mesmo, como essêncía do eu [je] , resume-se na perda


da alienação, na perda da opção do "não sou"? A resposta é negati­
va, porque a lei de dualidade de de Morgan, não sendo uma nega­
ção do conjunto "ser", mas sim do ego, do próprio je situado na
interseção, permite o aparecimento:
[ . . . ] em relação ao "não penso" primeiro, obrigatório, de
algo cuja essência é "não-eu" que se situa no lugar do ergo,
na medida em que se situa na interseção do "penso" e do
"sou" original. O ergo da necessidade se sustenta numa au­
sência do ser-eu .

Em francês, a frase é: "n 'être 'pas-je "� É significativa essa vira­


da na linguagem cuidada que Lacan costuma ter; enfatiza a expres­
são "não ser eu", na qual se perde, ao passar para o castelhano, a
negação desdobrada ne e pas e a homofonia entre n 'êtree naítre.
"É essencial articular esse 'não-eu' por ele ser na sua essência o que
F reud aporta n o segundo passo do seu pensamento J> ) 9
Esse "não-eu" corresponde, assim, ao isso freudiano e não deve
ser confundido com um eu ruim, dado que se articula com o
lugar da interseção, onde passa a situar o objeto a, assim como no
Seminário XI. Agora o objeto a aparece da seguinte forma: 1 )
caracteriza-se por sua necessidade lógica e não por ser o correlato
de uma necessidade biológica; em francês, os dois termos- necessité
o primeiro; besoin, o segundo - não podem ser confundidos como
em castelhano e 2) é absolutamente excludente a respeito de qual­
quer eu [je] ; o objeto a não admite nenhum eu.
Será possível definir o "não-eu" como a? Do lado da opção
alienante do "não penso", a resposta é afirmativa. O "não-eu" éo
objeto a. Para Lacan, esse "não-eu" é em essência, estruturalmen­
te, o que a psicanálise confundiu sempre com o "não-eu", non-

19 Ibid ..

67
() D E S E J O U O l' S l ( 1\ N A L l $ l A

moi em francês, compreendido em termos da o posição dentro­


fora, interior-exterior. A confusão da distinção dentro-fora com
esse primeiro "não-eu" passa pela confusão da instância euóica,
mo1: com o je gramatical, com o je como .,,Jiifter. No entanto,
quando o eu como tal, na interseção dopas-je, se positiva no isso
e no nível do isso, o que ocorre com o objeto a?
D o lado da escolha do " não penso", que afirma o isso, existe
um "ser sem eu". O isso assim positivado oferece, três anos depois
do Seminário XI, uma versão muito sofisticada do sujeito acéfalo
da pulsão. Esse sujeito, que nos capítulos do Seminário XI dedica­
dos à pulsão é definido como um suj eito acéfalo, sem je, no S e­
minário XIV ordena-se em termos do isso. Entretanto, não é o
isso concebido b iologicamente, mas o isso conceb ido como a
operação da própria constituição pulsional.
Essa equiparação permitirá comparar em seguida a alienação
com o recalque primário, que Freud articula com a pulsão. Nesse
ponto, Lacan acentua o uso intercambiável, no que diz respeito à
constituição pulsional, do recalque primário e da alienação tal como
o primeiro aparece na Metapsicologia. Não é por acaso que logo
depois no seminário inicia uma reflexão sobre o representante da
representação.
Esse "não-eu", em torno do qual gira a pulsão, é um ser sem
eu [je] , disjunto do pensar. Se o positivamos continuam sendo
válidas tanto sua disjunção com o pensar como a ausência do eu
(/e] . Não existe ou "não penso" ou "não sou"; o não interno ao
parêntese recai sobre o eu, mas o não, a negação que separa pensar
e ser, continua tendo validade. Do lado do "não penso" se positiva
um " pensar sem eu" , próprio do i nconsciente, dos pensamentos
inconscientes sem eu. Entre amb os, há uma disjunção que se tra­
duz na disjunção, de forma invertida, entre ser e pensar.
· A lei de dualidade, aplicada à reunião do pensar e do ser, per­
mite obter uma interseção negada, através da qual se obtém o pas­
je. O pas-je é o "não-eu". O que nenhum dos dois conjuntos

68
F O R M A $ L Ó C I CA l 1) A S O ,, F R A Ç Ô E S l) E
A l l l: N A Ç Ã O E S F P A !-:. A Ç Ã O

reunidos tem é eu [je] . Essa ausência do eu [je] corresponde ao


menos (-), que está dentro do parêntese, isto é, existem um "pen­
sar sem eu" e um "ser sem eu". Além disso, a transformação gera
um "ou", marca de uma disjunção na interseção, que torna in­
compatíveis o pensar e o ser. Não é possível reunir, de maneira
nenhuma, o pensar com o ser, seja sob sua forma positiva ou ne­
gativa.
Em suma: o que se torna positivo na interseção do lado do
pensar é um "ser sem eu". O pas-je é um "ser sem eu" . Do lado
inconsciente, do "não sou", pelo contrário, torna-se positivo na
interseção um "pensar sem eu". Essas positivações correspondem
respectivamente ao isso e ao inconsciente.
Do lado do isso, na interseção, situa-se o objeto a. Do lado
do pensar, nessa mesma interseção marcada como "não-eu", situa­
se o (-<p), o falo significação da castração como operação simbóli­
ca. Portanto, essa operação aponta para a desarticulação do cogito
como fundamento da ciência e seu sujeito. Ela busca mostrar como,
a partir de uma forma particular de negação do cogito, obtém-se:
em primeiro lugar, a negação do ego, ego e1go sum, e depois a
negação da conjunção necessária entre pensar e ser, o ergo. Ambas
são negadas e, por último, obtêm-se duas positividades, o isso e o
inconsciente, o objeto a e o (-<p) associado ao inconsciente, o ob­
jeto a, ao isso.
O segredo dessa operação reside em como fundamentar
logicamente que o objeto positivado no nível do isso - esse obje­
to que é um nada, porque essa interseção recobre um nada -, esse
objeto que se articula com a perda constitutiva da pulsão, se tor­
ne, mediante a fàlra que a pulsão introduz na necessidade biológi­
ca e com a passagem da necessidade à pulsão, em termos freudianos,
causa. Até agora não se explicou como esse objeto chega a ser cau­
sa. Falta ainda dar conta de como o objeto, produto da operação
de alienação, queda e resto da operação de alienação na estrutura­
ção pulsional, torna-se causa.

69
O O E 5 E J O U (l P S I C A N A l l S T A

Tendo o sujeito atravessado o desfiladeiro do significante,


tendo a pulsão se instalado - tenhamos em mente a posição no
grafo da fórmula ($ ◊ D) -, instala-se nele uma falta, que numa
primeira época é denominada falta de naturalidade, perda de na­
turalidade. Essa inscrição do sujeito - graficada nas fórmulas de
"A angústia" - no campo do Outro do significante e da palavra
produz uma p erda que deixa um resto, esse objeto que cai como
seu resto.
Lacan desenvolve as duas possibilidades de inscrição e conse­
qüente divisão do suj eito no campo do Outro. Nesse texto, o
objeto cai primeiro, como ocorre na segunda forma da divisão
subjetiva introduzida em "A angústia". Primeiro é o obj eto a que
cai, não o suj eito barrado:·segundo os diferentes contextos, usará
uma fórmula ou outra. Importa, no entanto, que o objeto cai
primeiro e que o objeto dessa queda é o primeiro ser do suj eito,
afirma Lacan, na primeira aula do S eminário XIV2º .
A primeira queda do sujeito sob a forma de obj eto é conco­
mitante à sua inscrição no Outro do significante. Sua inscrição no
Outro do significante é correlativa à articulação da pulsão, ($ ◊
D). Portanto, a partir dessa queda, esse resto que é o objeto passa
necessariamente a ser causa? Essa é a pergunta central.
A vulgata lacaniana costuma definir o final de análise como a
queda do analista do lugar de causa do desejo. Essa definição exige
entender primeiro como o objeto chega ao lugar de causa, para
entender qual é o papel que sua queda desempenha. A queda é
originária e não secundária para o objeto; a queda é estrutural para
o objeto, por isso é resto, dejeto, detritus, termo que em francês
encerra um eco de êcre, s er. O objeto, em primeiro lugar, é perda,
é queda e só depois se torna causa, em termos lógicos, não crono­
lógicos. A questão é: como o objeto se torna causa de desejo?

20
J. Lacan, Seminário XIV, op. cir., lição de 1 6/1 1 /66.

70
F O R M A S L Ó G I C A S D A S O l' E R /\ Ç Ó l' S IJ f
A L I E N A Ç A O E S E P A • A � Ã U

Falta, p erda e causa no final de análise

No Seminá�·io XV, na lição 5, do dia 1 1 / 1 /68, Lacan retoma


o aforismo freudiano Wo Es warsoll lc/1 wcrden, "onde isso esta­
va devo eu advir". Ele afirma que o Jch só pode traduzir o sujeito
e nos remete à "A lógica do fantasma", à disjunção que introduziu
com a lei da dualidade e à perda forçada que ela implica, assim
como a suas análises a esse respeito no Seminário XI. Seu objetivo
é demonstrar a relação entre essa disjunção e o ato, em particular o
ato analítico, e, conseqüentemente, articula o "náo penso" e o "não
sou" com o psicanalista.
A partir da disjunção "ou ' não sou' ou 'não penso"', tenta dar
conta do fantasma em sua relação com o inconsciente. Ele afirma:
Para ser-estar [traduzo ser-estar] ali como inconsciente, é
necessário que eu ainda não o tenha pensado [no sentido do
pensar consciente] como pensamento. No que diz respeito
ao inconsciente, ali onde eu o penso é para não estar na
minha casa ou no meu lugar. [Esse chez moí francês tão
difícil de traduzir] .

Um exemplo disso é quando alguém bate na porta de uma


casa e lhe respondem: "O senhor não está em casa" . Em francês a
frase é clara: "Monsieur 11 'estpas là" , não há dúvida de que não
significa "o senhor não é" , resposta absurda em castelhano, mas
que "o senhor não está". Esse não estar-ser no inconsciente:
"Acurrala-me na posição do ser que não pensa" 21 , ou seja, na
positivização do isso, no nível da escolha obrigada da alienação.
Cabe ressaltar a ambigüidade da significação do verbo être em
francês, que é tanto ser como estar, com a qual Lacan j ogará nos

11 J. Lacan, Seminário XV, op. cir., lição de 10/1/68. Todas as citações que se seguem
são da mesma lição.

71
O D E S E J O D O P S I C A N A L I S TA

seus exemplos. Ambigüidade que se dissipa na nossa língua sob a


clara diferenciação entre e ser e estar.
Ele acrescenta: "Não penso para ser", o que nos é comum a
todos; para sermos devemos interromper o pensar, mas que espé­
cie de ser é esse? Lacan se refere ao verdadeiro e ao falso selfde
Winnicott, para assinalar que esse falso sef_f, que é um falso ser, é o
único que existe, o único selfé o falso se/fque todos nós somos e
nunca estamos tão solidamente nesse falso selfcomo quando pen­
samos. Explicitamente, retorna àquilo sobre o que insistiu em "A
lógica do fantasma", separando esse falso selfdo eu cheio de si do
narcisismo, do moí imaginário, com o qual está articulado, mas
ao qual não é idêntico, pois o falso selflhe cede seu lugar, é susten­
tação indireta do narcisismo.
O ato implica sempre um primeiro tempo lógico, archê, que
é um initium. Essa arcl1êé como o O num aparelho? Essa pergunta
não deixa de ser um bom ponto de partida, porque, se é um O,
está marcado. Esse zero é equivalente ao conjunto vazio, que mes­
mo não contendo nada é, ainda assim, um conjunto. Do fato de
que algo esteja marcado depreende-se perfeitamente o "ou 'não
penso' ou 'não sou"', sob a forma: "Ou 'não sou' essa marca ou
'não sou' nada além dessa marca" , quer dizer, "não penso". Al­
guém tem a etiqueta ou bem é a etiqueta [essa formulação não
deve ser confundida com a lógica fálica] . "No nível da marca, vê­
se o resultado necessário". Necessário no sentido lógico da aliena­
ção. Não se pode escolher entre a marca e o ser. Por isso, se a
marca se situa de algum lado, é no extremo superior, à esquerda
do grupo de Klein, ou seja, se situa no "não penso"; é ali que a
marca se instaura, o que é coerente com a idéia de que a marca
significante é equivalente à opção da alienação, à opção forçada do
"não penso".
Resta saber que relação existe entre essa lógica e o final de
análise, na medida em que se supõe que o produto de uma análise
terminada é um analista. Essa relação implica certa realização da

72
r- O R M A S L Ú G r C A S D A S O 1' f: R. A Ç O f S ü f:
A L I E N A Ç Ã O l � F. P A l{ A Ç Â O

chamada operação verdade. Apresentar assim o fim implica um


. percurso, percurso que pode ser dividido em duas etapas:
1) Uma p rimeira que parte da opção inicial da alienação,
pela qual o sujeito se instala no falso self- termo que será
associado ao objeto a. Através da operação verdade, pode-se
realizar algo de um pensamento que implica o "não sou", o
não ser do eu, que se p roduz mediante um cruzamento e
uma inversão, que será detalhada em seguida. Esse cruza­
mento e essa inversão implicam uma redefinição da interse­
ção, denominada "não-eu" em "A lógica do fantasma", que
se torna equivalente à primeira parte do aforismo freudiano.

A lei da dualidade é aplicada ao aforismo freudiano: o "ali


onde isso estava" coloca-se onde estão os "não-eu", pois é preciso
levar em conta que existem dois. Em cada um deles se situa esse
"ali onde isso estava" : "Toda a confusão surge de não diferenciar
que há duas form as do 'ali onde isso estava'. A primeira é a do
sujeito instalado em seu falso self, no nível em que se encontra
essa falta que é o objeto a".
2) Uma segunda, na qual esse sujeito ali instalado deve se
aproximar de algum pensar. Trajetória marcada pelo vetor
que une as ·duas opções da alienação, a do "não penso" e a
do "não sou" . Essa falta que subsiste no n ível do suj eito
natural - no sentido do sujeito da vivência espontânea, do
sujeito do conhecimento - define-se como a essência do
homem, o desejo: "No final da psicanálise, essa falta se tra­
duz encarnada na cascraçáo".

Há um segundo vetor diagonal, que vai da alienação aos dois


termos que compõem o agalma: a e (-<p), situados na extremida­
de i nferior esquerda do quadro (Esquema do grupo de Klein, p .
56). Há, assim, uma inversão da relação - isso é o que s e deve se
ressaltar especialmente - que se faz da esquerda para a direita, por-

73
ü l) E S E: J O 0 0 P S I C A N A L I S "T A

que se passa do "não penso" ao "não sou" e, em outro sentido, de


cima para baixo, porque se passa do andar superior, onde da op­
ção alienante se depreende a opção do "não penso", a opção do
isso, para o inferior, onde se encontra a opção própria do incons­
ciente.
Da primeira vez, formula-o da seguinte forma:
A inversão dessa relação de esquerda para direita corresponde
à maneira como se passa do "não penso" do sujeito alienado
para o "ali onde isso era-estava" como tal. O inconsciente
fica a descoberto e, ao mesmo tempo, o "ali onde isso esta­
va" do desejo, que é inseparável do " não sou" do pensamen­
to . inconsciente. Essa correspondência, ao ser invertida, é
propriamente o que sw.porca, o que sustenta a identificação
do objeto a como causa do desejo e do (-<p) como lugar
onde se inscreve a hiância própria da inexistência do ato
sexual.

Em outras palavras, o "não existe ato sexual". ·Portanto, há


dois "onde isso estava", que correspondem à distância que separa
o isso do inconsciente. O isso está inscrito primeiro no nível do
sujeito, vinculando-se ao sujeito como falta; é, por assim dizer, a
subjetivação acéfala da pulsão.
O outro "ali onde isso estava" ocupa um lugar oposto no
canto inferior direito, vinculado ao lugar do inconsciente e ao "não
sou". Aqui o objeto passa " [ . . . ] a ser objeto da perda, o objeto
.
perdido inicial de toda a gênese analítica, sobre o qual Freud insis­
te durante toda a época em que nasce a teoria do inconsciente. Ali
está esse objeto perdido, causa do desejo, que, como veremos, é o
princípio do ato", mas para isso deve realizar o trajeto que vai do
"não penso" ao "não sou". Esse trajeto do isso ao inconsciente não
havia sido formulado no Seminário XI, no qual a relação entre o
objeto pulsional e o objeto como causa no desejo permanecia
ambígua.

74
F O R M A S L Ó G I C A S D A. S 0 1' 1:. R A (,: Ú E S D í:
A L I E. N A Ç Ã O J: S l: l' i\ R A Ç À O

A citação continua:
A verdade [refere-se à operação verdade que precisa do apoio
da operação transferência] é que a l1kz [falta de sujeito] é
22
seu nome no nível do inconsciente . [Isso permitirá a mo-
dificação do grafo no Seminário XVI, cujo firndamcnto é
esse.] Ele acrescenta: A verdade é que a fàlta de cima, à es­
querda [a falta do sujeito] , é a perda [a falta torna-se perda]
no nível inferior, à direita. Mas ela, a perda, é causa de ouc_ra
coisa. Eu a denominarei causa de si, mas elas não devem ser
confundidas. [os i cálicos são nossos] .

Evidentemente, gera confusão, pois sustentara até então que


a causa de si não existe.
No lugar do "não-eu", da ausência de eu, situam-se dois
"onde isso estava", que remetem ao sujeito que deve advir na psi­
canálisé. Ambas as operações são claras: há uma inversão da es­
querda para a direita e uma mudança de nível, de cima para baixo,
que é exatamente a diagonal que vai da escolha forçada da aliena­
ção à escolha do inconsciente. Mediante essa inversão se superpõem,
coincidem dois '-' onde isso estava" diferentes. Supera-se desse modo
"a distância entre o isso freudiano e o inconsciente freudiano".
O primeiro "ali onde isso estava" corresponde ao isso e ins­
creve o sujeico como falca, como ausência; o que implica que no
O utro, no Outro do significante, no Outro da palavra, no Outro
do sujeito, no Outro sexo inclusive, não há nada que possa dizer
ao sujeito "tu és isso", nenhum significante que possa fazê-lo.
H averá um resto que o indicará; esse resto, que não pode ser dito,
é o objeto a. Não há, no nível significante, nada que permita ao
sujeito se assumir como um eu [je] , desejante. O eu [je] está
foracluído. Essa é a falta estrutural do sujeito, a acefalia pulsional,

22
J. Lacan, Seminário XVI, "De um outro a um Outro". Pode-se consultar a esse
respeito a análise dessa mudança em D . S. Rabinovich, Una dínica de la pulúón:
las impulsiones, Buenos Aires, Manancial, 1989, cap. I e II.

75
() l) ( $ 1::: J O D () I' S I C A N A l 1 5 T A

presente já na imisção de sujeitos do Seminário II23 que, no sonho


de Irma, encobre e indica a impossibilidade de localizar o sujeito.
O segundo "onde isso estava" está exatamente no canto opos­
to, na diagonal, vinculado ao lugar do inconsciente; é o "não sou"
que se positiva nesse "pensar sem eu" que é o pensar inconsciente,
na medida em que a existência desse pensar do inconsciente exige
o objeto da perda. A experiência inconsciente se constitui pela
perda de objeto. Ancoragem absolutamente freudiana de Lacan, a
experiência de satisfação, a constituição conseqüente do incons­
ciente implica a perda do objeto. Nesse ponto, Lacan é absoluta­
mente freudiano:
o objeto perdido inicial de roda a gênese analítica, sobre o
qual Freud insiste durante coda a época em que nasce a
teoria do inconsciente. Ali está esse objeco perdido, causa
do desejo, que é, como veremos, o pÍ·incípio do aw.

O que deve advir nessa operação? A verdade em jogo, porque


é a análise o que possibilita essa passagem de um ao outro. A ver­
dade reside em que a falta situada em cima, à esquerda, essa fãlta
come-se uma perda. Esse é o ponto importante. Perda que se situa
embaixo, à direita, perda que se cranslà1ma em causa. Só se pode
falar de causa quando há perda. Não se pode, de modo algum,
falar de causa ali onde algo não se perdeu, formulação válida estri­
tamente no âmbito da teoria da causa em psicanálise, sem entrar
na discussão de suas i mplicações no nível de uma teoria geral da
causalidade. Perda e depois causa que, por sua vez, é condição
de existência para que se produza um ato, que é seu próprio
princípio.
Essa perda, que é causa de outra coisa, é denominada por Lacan
causa de si. Espinosa é a referência óbvia, se levamos e m conside-

23
J. Lacan, E! Scminario, Libra 2, E!yo e11 la reada y en /;J pnfcrica deipsicoanálúis,
Buenos Aires, Paidós, 1 984.

76
F O R M A S L Ó G I C A S lJ 1\ S O l' L R ,\ ( 0 1· S U I
A l l E N /\ Ç À ü E. $ t: I' r\ R ,\ c;. A l t

ração sua definição de Deus e do amor intelectual a Deus cm rela­


ção à causa sui, a causa de si. Essa causa espinosiana nada tem a ver
com a causa do desejo e, em todo caso, se teve alguma van t agem
foi a de dissipar a idéia de que o cogito podia ter a pretensfo de
. que o SUJetto se causava a s1 mesmo no pensar.
A chave é o jogo com o equívoco. Em francês, assim como
em castelhano, causa de si [em português: causa de si] , cause de
soi, inclui o soi, o si mesmo, que é o self, já que o "si mesmo" é a
tradução francesa ou castelhana do se/fanglo-sax:ão. Lacan toma a
expressão literalmente, causa de si, s01; é causa de si mesmo. Está
aludindo, assim, ao equívoco que funda a ilusão do sujeito, que,
do self, acredita que é causa de si mesmo. Ele faz um jogo com a
causa de si tradicional, mas não está afirmando que o sujeito se
cause a si mesmo e sim, pelo contrário, que há uma causa do si
mesmo. Esse é outro sentido em jogo. O sujeito como falta fun­
da a perda que se torna causa, causa o selfe não o selfa causa.
Crítica severa a Winnicott e a todos aqueles que sustentam uma
teoria da identidade através da teoria do self.
Retomemos a citação:
Se causa de si quer dizer algo é que o soj, o si mesmo ou o
que se supõe que isso seja, em outros termos, o su;e1ro su­
posto do se/fanglo-saxão, esse sujeito depende da causa que,
sem que ele saiba, o divide e o sustenta, que é o objeto a. O
sujeito não é causa de si, é conseqüência de uma perda.
Seria necessário que se colocasse na conseqüência da perda,
essa perda que constitui o objeto a, para saber o que lhe
falta.

Descreve o movimento inverso. Insisto: o sujeito depende des­


sa causa, mas o sujeito não é causa de si, mas conseqüência da perda.
Continua dizendo: "Perda que é causa de outra coisa...". Essa
outra coisa é esse sujeito que aparece nos diferentes níveis em que

77
O lJ f. 5 E J O 1) 0 P S I C A N A L I S l /\

pode aparecer o sujeito que se articula, inclusive, como uma con­


seqüência da perda. A subjetividade está no nível das conseqüên­
cias, nunca das causas.
Conclui a frase:
[ . . . ] cem que voltar a essa conseqüência da perda, que é o
objeto a, para saber o que falta na primeira operação de
alienação.
Ele está percorrendo o circuito ao contrário, refazendo o ca­
minho às avessas; ali onde isso estava, primeiro o sujeito é falta,
mas a falta se torna verdadeiramente falta só quando o sujeito se
faz'perda, quando se faz objeto, ou seja, quando fica identificado
com esse resto que cai:
Pois bem, isso é o que [o sujeito] não pode pensar, senão se
fazendo ser, [porque o objeto é o único falso ser que remos]
e o faz pensando falsamente no nível do falso ser, "não pen­
so, logo não sou" .

Acontece que é impossível pensar o sujeito do inconsciente a


partir desse falso ato que é o cogito, que no Seminário XI j á havia
sido qualificado de passagem ao ato: o cogiw é o erro sobre o ser.
O sujeito do ato analítico, pelo contrário, não é o do cogito;
tudo o que pode apreender, saber, na experiência analítica, só o faz
através da experiência da operação transferência. Lacan diz:
Completei essa operação transferência quando a remeti ao
sujeito suposto saber. O termo [no sentido do final da psi­
canálise] consiste na queda do sujeito suposto saber e sua
redução ao advento desse objeto a, como causa da divisão do
sujeito que ocupa o lugar que o sujeito suposto saber ocupa­
va. Aquele que joga fantasmaticamente a partida com o ana­
lisando, com relação ao sujeito suposto saber, o psicanalista,
cabe a ele suportar, no final da análise, não ser nada além
desse resto da coisa sabida.

78
f O f< M A S L Ô C. 1 C A .S U A !i O P 1. R A (." < t 1 \ Il 1
A 1. 1 E N A Ç A O E 5 L'. 1' A I{ A <,: À 1 ;

No capítulo II, enfatizamos que todo saber i m plica um res­


to; a douta ignorância de Nicolau de Cusa implica isso. l •��se JTSlo
da coisa sabida denomina-se objeto a.
Se a análise chega a seu fi m
caberia pensar que aquele que se torna psicanalista poderia
estar curado da verdade que se tornou para ele, na sua pró­
pria análise, o sujeito suposto saber e, como tal, tendo che­
gado à operação verdade no seu final, ser ele mesmo essa
verdade. Esse saber que fica do final de uma análise, seja da
ordem do transfinito de Cantor ou do desejo do psicanalis­
ta, onde estava esse saber antes de ser sabido? Só aqui calvez
se possa voltar a um retorno do pensamento do ser na medi­
da em que nos dermos conta de que o ser, uma vez que
existe em psicanálise, só pode sair do ato psicanalítico como
um ser sem essência, como são sem essência todos os objetos a.

O sujeito de todo ato, assim como o sujeito suposto saber,


no final da análise é um sujeito que não está no ato, porque no ato
só está como objeto.
Na revisão do grafo no seminário segui n te, s itua a
Ve11eugnung, a renegação, no nível do fantasma e o desconheci­
mento, no nível do moÍ. Essa Verleugnung, vinculada com o fan­
tasma no Seminário XVI, implicará um novo deslocamento, muito
sutil, do conceito de ato.
O analisando nada sabe acerca do desser, do nada do objeto
a que afeta o psicanalista, no ponto do sujeito suposto saber. Não
sabe nada porque ele mesmo se tornou a verdade desse saber. Uma
verdade é assim alcançada, não sem sabê-lo - é o pas sans que
aplicara ao objeto no Seminário X -; uma verdade que se alq.nça
não sem sabê-lo é, para Lacan, incurável, porque se éessa verdade.
Só nesse sentido estrito, o final de análise é correlativo ao incurá­
vel, o que não impede que essa "incurável cicatriz" seja alcançada
por um processo paliativo, que modifica, libera inclusive, o exces-

79
so do padecer subjetivo. O incurável é esse resto da cura que sepa­
ra a psicanálise de qualquer terap ia baseada nesse modelo médico
da restituição adÍntegrum de uma "normalidade" , cuja fragilida­
de em nosso âmbito já foi demonstrada faz tempo por George
Canguilhe�24 .

i• G. Canguilhem, Lo norm,1!ylo parológico, Buenos Aires, Siglo XXI, 1 968.


CAPÍTULO 4
O O BJ ETO PERD I DO, O DESEJO DO O UTRO E O DESEJO
DO PSICANALI STA: FALTA, PERDA, CAU SA

Imp erativo e causa


A fórmula do ve/ali�nante à_qual se chega em "A lógica do
fa n tâ.sma';--:_- «ou· '�i-� - �so ' __ ou ' não s__o u "' - . i mplica o
�menta da diferença isso-inconsciente. A referê�cia ao isso
,..
:: esse·nsou ãceíalo,·sem· su}�i;� ::_ é ��a referência à pulsão. Entre
as duas opções da escolha do "ou ' não penso' ou ' não sou'" deli­
mita-se a oposição - assim como a junção - entre pulsão e desejo
no final da anális�.
A última pane do capítulo anterior culminou com a relação
que Lacan estabelece entre o "onde isso estava devo eu advir" freu­
diano e essa opção alienante e com a distinção de dois "onde isso
estava". Q.m situado no isso1 o ser sem eu, e º-.<?.11tro n2 Í.l}.i;.�L
cie!lte?..o pen_&'}r §�ffi eu._Ambos coincidem, se superpõem, permi-
tindo uma no:v:aleinu:a.do célebre aforismo freudiano.
Q;··;,A ciência e a v� no Seminário XIII aparece uma
u e ra r se, é cJ aro, do im.e,era­
._g>�) �_r�� -�,n,:r inJff üY���_. T �-
tivo treu<Jiª-UO,
----- -��-�--�,,,, --� '
"onde isso estava devo eu advir", não
...,,......,..,��-:, - • .-,.._..._,.. ,.•.. . ,,.,._____ -...�--,-.,·,·----.,.._,.-�..-- . ··---�--- ..... •
do imnerati- J
·. . . ···•·· ,,...... _,{' ,..,=,,.,. ._,,_,,._.,_.__ '
vo categóri<::q kanti<.lnQ. _
�- - -·o primeiro 1'onde isso estava", correlato do "não penso " ,
i�g��-1:_lTlª positivaç�9 : um "ser sem eu " , que pontua a
inexistência, a falta de sujeito na primeira opção forçada da aliena­
ção, que se orienta, no grupo de Klein, para o " não penso". �i . . _

o tempo u� (9 �ernp9 ci�A�t�rmin�ção pulsional, no q. ual a


-----------·..·····-·--
· . . . .. . .

81
O D E S E J O 0 0 P S t ( A N A L I S TA

pulsão se estrutura pela demanda ª?.P�ssar pelo desfiladeiro do


significa�t�.
O sujeito está presente primeiro como ausência, como um (-
1 ) que remete à operação de privação e à topologia do toro, em
que as voltas da demanda ao redor do buraco interior, ao fechar-se
sobre si mesmas, definem uma volta a mais - que percorre o bu­
raco central do toro - produzindo o (+ 1 ) , o um a mais, que tam­
bém é um a menos. Essa volta a mais não pode ser contada por ser
ela mesma o suj eita enquanto efeito da articulação da demanda.
Essa primeira aparição do sujeito como um (-1 ) é caracterizada
como o "ali onde isso estava" primordial, próprio do sujeita como
falta: "A falta da qual falamos, em primeira instância, é-- uma falta ---- -
de sujeito ind��ida pelo sig�it1�.i�1t( 1 • .
· O segundo "ali onde isso estava" - que se opõe ao primeiro
no vértice inferior direito, produto do trânsito de cima para baixo
e da esquerda para a direita, qualificado como o trajeto da transfe­
rência- está vinculado ao lugar do inconsciente, à escolha do "11ã.o..
Só��', que se.posiü"-ª·.1}1l..º1 PS:.rm1.1-2§.m..� A falta de sujeita pró,::
i
pria do sso·��rna-se, no inconscient�, objeto da perd_a_,__
Em suma, o perc�rso·é p-�-i�eiro f�lca � -d�pois perda.__&lt,1 .
e P.���:c_l; ��g_ são _? !_I1�S�o. Retomo a citação j á apresentada:
o objeto perdido inicial de toda gênese analítica, sobre o
qual Freud insiste durante toda a época em que nasce a
teoria do inconsciente. Ali está esse objeto perdido, causa
2
do desejo, que, como veremos, é o princípio do aro .

Pode parecer curioso que o objeta a, situado do lado do isso


- pois do lado do inconsciente situa-se o (-::-:cp) -, r<:_P�.é:.S.�1:1 ��! !19
texto do seminário, a perda de objeto enq�anto fundante do - in-
.. - .. .. .. . .. ······-· ·····- ···•· . . -· . . . . ·�· .." •········ ··"-· ·

1
J. Lacan, Seminário X:V, op. cir., iiç;ío de 1 0/ l /68.
2
Ibid. .
O O B J f. T O I' t R lJ I D O, O D í: S l: J O 1) O (} lJ T R O
E O lJ E S l l O U O t' S I C: A N 1\ t Í S I ,\

conscien. �e. Essa é a questão que deve ser pensada, a não ser que se
repitam, sem serem compreendidas, as fórmulas do seminário:
A verdade é que a fàlta [do sujeico] de cima, à esquerda é a
perda no nível inferior, à direita. Mas ela, a perda, é c;ws:i
3
de outra coisa • [os itálicos são nossos] .

!'1- falta,_ ª.Pe.rda e a causa, conseqü_e ntemente, não são idênti­


cas; estão-�m jogo,_ assim, crês1operações diferentes: falta, perda e
•"·� . . . .. . . \. . . ,./ .

causa.
�""""'��
•· A . f�lt::i de sujeito é correlativa à estruturação da pulsão. A
perda que se produz - perda que corresponde à segunda fórmula
dà°d'i�i;ã� s�bjetiva do Seminário X, "A angústia" - é causa de
outra .cais�. O que produz por sua vez a perda? A .e�i-�tê0:cia de
. ,, ... - .
i:tmâ-c·��:sa que divide o sujeit:o.
· - - Q_o �j_i9 a, �ausa d? d�s�jg ,_ ap.irece e � ��r c:�_ir� Jy_g_�r_11essa
série de operações: falta, perda, causa: "OJ]: çi�js�9 es�ªva" é, pri­
í
�e i-im.ent:e, u�a f�1ta, uiu;·;usênci; de sujeito. Es�a falta exige
que o sujeito se torne perda, para que se estabeleça a causação d?
desejo_: fa:aminando em detalhe o processo, vê-se que a falta pri­
.m�f1:a .<l.� -�t1jeito é experimeq,tada _corno perda no n ível da expe­
riência de satisfação freudiana em sua relação com o inconsciente.
. . .

Se a perda é o fundamento do inconsciente freudiano em sua pri-


_rneira época, � falta só se torna realmente falta quando o sujeito se
faz perda. Aqtü _s,�jr1,iç_ia avirªdª _lél.canian�, que j á não egue sim-
· · -- · ··· . . · ·s· -- - ·
.plesmente o t�ajt'.to freuqian9.

Perda e cessão do obj eto: o desej o de sep aração

A partir da definição do desejo como desejo do Outro, pode­


se concluir que Lacan hão está falando da perda de objeto como é
apresentada tradicionalmente em psicanálise, como perda de um

3 Ibid..

83
O lJ f. S E J ü LJ O l) S I C A N A L I S T ,\

outro enquanto objeto do desejo. Ainda que sej a complexo de


entender, para Lacan a causa do desejo se constitui pela queda do
próprio sujeito como obj eto a, não do Outro como objeto.
Em "A angústia" descreve o que ele caracteriza de " cessão"
do objeto; cessão que é o próprio momento da angústia primor­
dial, quando o p róprio suj eito cai de sua posição de obj eto, situa­
da na própria hiância do desejo do Outro.
A resp eito dessa cessão postula inclusive um desej o de des­
mame, ou seja, o desej o de se tornar perda para se tornar causa.
Sendo o desejo do Outro o desejado, segundo Lacan, o desejado
não são o p eito, as fezes, o olhar ou a voz, mas o que o suj eito é a
respeito dessa falta no Outro. Por isso, afirma que o primeiro
"ser" do sujeito, esse "ser" que é um falso ser, é o objeto a. Para o
sujeito, a perda é necessária para que ele mesmo se produza como
causa do desejo do Outro; enquanto causa é idêntico à sua própria
queda como perda, resto, dejeto.
O fundamento do conceito de final de análise é essa articu­
lação muito precisa entre falta, perda e causa, onde deve ficar claro
o que se perde. É o próprio sujeito no seu "pseudo-ser" de a que se
perde para se tornar causa. Não se trata, portanto, da perda do
Outro enquanto· objeto do seu desejo, pois o Outro em seu cará­
ter de meta do desejo é o Outro desejante, é a própria falha que o
atravessa e nada além disso.
O analista, colocado no lugar da causa de desejo, está ali
para captar o próprio suj eito como objeto. Não capta um objeto
de desejo do sujeito, um objeto meta do desejo, mas o suj eito
como desejante do desejo do Outro, a partir da posição de causa
desse desejo do Outro.
Ele poderá talvez se perguntar, então, "se quer o que dese­
j a"4, nessa margem de liberdade que se esboça a respeito do desejo
do Outro, quando , do lado do analista, tiver se repetido essa que-

4
]. Lacan, "Observaciones ... ", em Escritos, 2, op. cit., p. 662.
84
O O � l E l O I' E. R O J LJ O, O D E S E J (J D o () u l 1� O
E O U E S l; J O U O l' S l ( A N A t. f S I A

da, essa perda, que o constituiu como causa, como a causa que ele
foi para o desejo do Outro. Não é o analista como Outro que cai;
cai o analista enquanto situado no lugar do sujeito como o que ele
foi como causa para o Outro desejante de sua própria história.
Tendo feito essa ressalva de vital importância, convém conti-
nuar examinando detalhadamente o Seminário XV:
O sujeito não é causa de si [soi, cf. capítulo anterior] , é
conseqüência de uma perda . Seria necessário que se colocas­
se na conseqüência da perda, essa perd·a que constitui o ob­
. 5
;eco a, para saber o que lhe falta .

O que falta a quem? Ao Outro, não a ele. Se se deseja o dese­


jo do Outro, o que lhe falta é o desejo do Outro. Não é possível
dizer o que falta ao próprio sujeito, pois ao próprio sujeito não
falta nada. � _q_ue falta ao sujeito é essa relação com o desejo do
()urro, pois deseja o Outro enquanto desejante. Por isso, interro­
ga-se a respeito de se pode faltar ao O urro no nível do desejo.
Em termos do Seminário XI, pode-se dizer que a criança
joga com a fantasia de sua morte com a finalidade de comprovar,
de pôr à prova se o Outro pode suportar seu desaparecimento.
No que diz respeito à direção da cura, acrescenta:
Aquele que famasmatícamente joga a partida com o anali­
sando, com relação ao sujeito suposto saber, o psicanalista,
cabe a ele [o psicanalista] suportar, no final de análise, não
ser nada além desse resto da coisa sabida que se chama obje-
6
to a .

O que é "a coisa sabida"? A coisa sabida é o que o sujeito


conseguiu de significante na sua análise. M as há um resto que o

5 ]. Lacan, Seminário XV, op. cit., lição de 1 0/ 1 /68.


6
Ibid..

85
O D E S E I O D O P S I C A N A L I S TA

..---·------------·
significante não reabsorve; esse resto cai no nível da causa e disso
.

pod�!�_ da�conta p!)Ster!gnnente, n� momentomesmo.� �


------
qÜ�i acontece, mas freqüentemente di;:pois de algum tempo.
··-"'Na lição seg�inte, i�crod{,z o desser, �s�ê nada qu�- ;feta o
objeto a e o ferece uma especificidade a mais, que coincide com a
"Proposição do 9 de outubro de 1 967 sobre o psicanalista da Es­
col?-''7. A associação livre, como consigna, "diga o que vier à cabe­
ça" , implica j á certa destituição de suj eito para o analisando, do
suj eito entendido como sujeito cartesiano, sujeito que domina,
sujeito euóico inclusive.
Essa experiência, do lado do analisando, culmina no (-q>), na
experiência de castração. A subj etivação, o ponto de subjetivação
máxima da psicanálise continua sendo - para Lacan assim como
para Freud - inseparável do (-cp) da castração, ou seja, do perce­
ber que se carece do órgão do que Lacan chama o gozo único,
unário do significante, que romaria harmônica a união dos sexos.
O resto dessa unificação impossível, dessa harmonia impossível, é
o objeto a.
Cabe sublinhar que da falta inicial, falta de sujeito, o desej o
d e u m sujeito progride n a experiência em direção à subjetivação
da castração fálica, o que implica, ao contrário da definição de
final de análise de Freud, levar em conta a perda que estava ali de
saída. A perda que estava ali de saída é a perda do sujeito como
objeto causa.
A perda do objeto que está na origem do inconsciente deve
se realizar em outro lugar; não se realiza no sujeito, mas no analis­
ta. A chave da resposta está no Seminário X. Ali Lacan dá à enten­
der, claramente, que o luto do desmame - para tomar como exem­
plo o obj eto oral - é um luto para a mãe. É no Outro que, ao cair
o objeto, aparece a falta; a perda é para o Outro e, por isso, o a não

7
J. Lacan, "Prop osição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola", em Momentos
cruciales de la expcâencia analícíca, Buenos Aires, Manancial, 1 987.

66
O O R l E T O P t R D I D O. O ü l 5 r. J o D o O U l lt O
E O O 1: S E j O L) O I' S t e : A N ,\ 1 1 S 1 ,\

pode cair do lado do sujeito: cai afetando o Outro. A queda do


sujeito suposto saber não é nada além de um descomplctamento
do Outro enquanto sujeito suposto saber pela queda do objeto a
ao qual fica reduzido o suposto saber, isto é, exatamente a passa­
gem que vai do Outro sem b arrar ao Outro barrado.
Isso coincide com algumas formulações de Lacan quando ca­
racteriza, por exemplo, em "A significação do falo ", ou em "A
direção da cura... ", ou em "Subversão do suj eito ... ", o ponto de
aparição do inconsciente como o momento em que o Outro do
primeiro andar do grafo - suposto onipotente, ao qual se supõe o
saber dos pensamentos do sujeito - é percebido como não saben­
do o que a criança pensa, momento em que a criança pode come­
çar a esconder s eus pensamentos, ao perceber que o Outro não
sabe tudo o que ela pensa, que carece de um saber clarividente
sobre seu pensar.
A fórmula " ele não sabia" ilustra esse momento, referindo-se
ao momento freudiano do sonho do pai morto. Esse traço de
onisciência do Outro, tão insistentemente descrito nos seminári­
os IV, V e VI, se tornará em seguida sujeito suposto saber, efeito
de estrutura, para além de suas vicissitudes cronológicas.
O sujeito suposto sab er se articula com o saber que a criança
durante muito tempo supõe ao Outro acerca do que acontece na
sua mente, em sua "interioridade". Supõe que o Outro lê seus
pensamentos e n em por isso é psicótica. A onipotência não é da
criança, é do Outro no real. Lacan fala de um "fingir" em relação
ao ato, apontando para o fato de que o psicanalista, mesmo sa­
bendo que não é esse Outro sem barrar, suj eito suposto saber,
assume esse lugar e deixa que o analisando suponha um saber. Esse
é o ponto aberto na análise, dizendo claramente, para todas as
fraudes e imposturas. Quem assume esse l ugar tem um poder,
como assinala, não em vão, o título de um de seus artigos "A
direção da cura e os princípios de seu poder". Lacan, assim como
Freud, nunca desconheceu o poder de quem ocupa o lugar do
psicanalista.

87
O lJ E S E I O 0 0 P S I C A M A I. I S 'f A

Portanto, nesse caminho complexo que Lacan percorre, dis­


tancia-se progressiva e claramente das formulações clássicas em
psicanálise, inclusive de algumas formulações freudianas. O pon­
to de distanciamento e separação é o conceito de desejo do Outro
com maiúscula, que permite colocar o analista, na transferência,
no lugar de objeto de um modo absolutamente novo, diferente
do modo como Melanie Klein o coloca no lugar de objeto.
Klein situou o analista no lugar de objeto - Lacan o reconhe­
ce- num artigo muito polêmico em sua época. Era, no entanto, o
lugar de um objeto imaginarizado, que continuava sendo do Ou­
tro, ou estando em seu interior, ou sendo � próprio Outro. Se,
como dissemos, o objeto é o desejo do O utro, o problema do
pertencimento do objeto, a pergunta acerca de se o objeto é do
Outro ou do sujeito é uma pergunta mal formulada. Não se trata
de perguntar se o objeto a é do Outro ou do sujeito, porque, na
verdade, o objeto desempenha o papel de causa do desejo do Outro
- l1,1gar que o próprio sujeito ocupa -, pois seu objeto é o desejo
do Outro. Pode-se formular essa posição paradoxal asseverando
que o sujeito se torna objeto causa do desejo para alcançar seu
objeto de desejo que é o desejo do Outro.
O objeto a não pertence, conseqüentemente, a ninguém; está
na j unção lógica do desejo do Outro e do sujeito. Lacan sustenta,
na "Conferência em Genebra sobre o sintoma", texto dos anos
70, que as feridas deixadas pela marca do não-desejo do Outro -
que é também uma forma de desejo - são inapagáveis. Um sujei­
to poderá fazer muitas coisas com essa marca, poderá inclusive
inventar um desejo, mas a marca que fica ali é inesquecível; é uma
cicatriz que nenhuma estética pode apagar, concedendo-se ao ter­
mo "estética" toda a ambigüidade de que está dotado em nossa
língua [o espanhol], que vai da reflexão filosófica acerca da beleza
à cirurgia plástica.
Nessa perspectiva, existe uma continuidade que chama a
atenção no ensino de Lacan, mesmo se às vezes, aparentemente,

88
O O ti J E T ü fl f 1� l) 1 O (), O O 1: S E I O 1) 0 Ü U T R O
E O ü f. S E J O l) O l' $ ! C 1\ N .-°' L i � T /I.

ele se contradiga. Se observarmos detalhadamente suas articula­


ções, percebemos que, na maioria das vezes, mais do que uma
oposição taxativa, há modificações lógicas sutis de detalhes que se
. conjugam com contextos clínicos mutáveis. Por isso - ainda que
por comodidade se costume dividir a obra de Lacan em diferentes
momentos - é preciso que fique claro que existe um fio não­
visível, para além das fórmulas de corre que Lacan marca muito
abruptamente, constituído por continuidades do estilo como as
que assinalamos nos seminários VIII, X e XV. Suas conceitualizações
seguem um desdobramento vinculado a cerca problemática clíni­
ca suscitada pelos percalços na condução efetiva das curas.
Por exemplo, essas formulações demonstram suas dificulda­
des para situar o objeto para-além da primeira fórmula do fantas­
ma, para-além do imaginário ou do real como i mpossível, para
especificar em que consiste exatamente o papel que desempenha
na análise: ser a causa que sustenta a cura, lugar onde o analista se
situa, na medida em que tem que cair nele o sujeito ao se fazer
perda, quer dizer, causa.
Portamo, o analista não é de saída a causa, a não ser que se
considere ocupando_ o lugar do a, sendo, conseqüentemente, o
"referente latente" 8 da psicanálise desde o início. Sua meta é che-
. gar a sê-la, tornar-se causa. Isso é explicitado quando relaciona -
na sexta aula, do dia 1 7/ 1 /68 - o objeto a com aquilo que se
advém no lugar onde se rejeita o saber. Já nos referimos à incom­
patibilidade entre o a e o sab er. O a surge no lugar do saber sobre
a morte. Essa é uma importante retroação no que diz respeito às
formulações prévias sobre a função da morte em sua obra.
Qual é a conclusão de Lacan? O capítulo anterior terminou
nesse ponto:
O psicanalista, na medida em que já percorreu o caminho
que permite esse ato [refere-se à sua própria análise] , ele

8
J. Lacan, "Proposición dei 9 de ocmbre de 1 967 . . ", op. cic..

89
<> lJ t � E J O Ll O P S I C .A. N A l I S T A

próprio é essa verdade [a verdade que está por trás do sujeito


suposto saber] . Uma verdade adquirida, não sem sabê-lo,
[ negação, pas sans, com a qual caracteriza o objeto na sua
relação com a angústia; a angústia não é sem objeto ] é algo
incurável.

Incurável é essa cicatriz à qual já se referiu, que não pode ser


reparada de modo algum.
Ao longo de sua tarefa, o psicanalista deve ser capaz de realizar
uma intervenção significante, mas essa intervenção não é suscetí­
vel de nenhuma generalização que se possa denominar um saber.
É difícil fazer uma advertência mais clara acerca de por que não há
uma técnica psicanalítica:
O que a interpretação do psicanalista evoca é esse algo que
do universal só pode ser evocado mediante essa espécie de
particular, que seria uma chave universal. Enquanto tal, o
psicanalista se oferece como um particular qualquer.

Ele faz referência à fó rmula do sujeito suposto saber e à fun-


ção nela do significante qualquer. Nesse ponto:
O psicanalista, por sua vez, não se conhece e é também o
ponto em que existe na medida em que certamente é só
mais um sujeito e j usto no seu ato, e no final, onde é espe­
rado [não onde está desde o início] , o objeto a [o l ugar do
objeto a é o que o espera] , na medida em que não é o seu
[seu próprio objeto a] , mas aquele objeco a que dele [do
psicanalista] como Outro o psicanalisando precisa para afastá-
10
lo de si

9
Vale lembrar que o pas sa11s, não sem, é tomado, por Lacan, de Heidegger.
10
J. Lacan, Seminário Y.V, op. cir., lição de 17/ 1 /68.

90
O O B J E T () P E R D I l) O, O IJ f, 5 E I O IJ O () lJ T R <l
E O l) E S E J O 1) O I' S I C A N A l. f 5 T A

O psicanalista é esperado no lugar do objeto a do paciente, na


sua relação com o desejo do Outro histórico desse paciente, que
ele requer, precisa. É o instrumento - o uso da palavra "instru­
mento" é intencional - mediante o qual o psicanalisando tem que
rejeitar esse objeto no final da análise, tornando possível a queda
do sujeito suposto saber.
Surge, então, uma nova fórmula em alemão de "onde isso
estava devo eu advir" , que lhe permite um jogo de palavras
conceituai. Modifica o Sol/ es wai� solJ Ich werden do seguinte
modo: substitui o S maiúsculo, inicial da palavra "suj eito",
homófono em francês do Es freudiano em alemão, homofonia
inexistente em castelhano [e em português]. Poderíamos fazer um
jogo em castelhano com o " ese' [em português: esse] estava, no
. lugar do " eso" [em português: isso] . Substitui o verbo, colocando
um verbo imperativo mais forte que sol/, m uss, e substituindo o
Ich por a, Em suma, lê-se: Sol! S wa1� m uss a werden, "ali onde S
[esse (S) sujeito] estava, deve advir o a". Esse é o ÍmperatÍvo pró­
prÍo dopskanahsta: onde estava o sujeito suposto saber deve advir
o objeto a.
Pode-se observar uma diferença entre essa formulação e a an­
terior porque, na medida em que o analista deve deixar advir o
objeto a para que o analisando possa rejeitá-lo, deve estar primeiro
nesse lugar, como sujeito suposto ao saber por estrutura.
Essa formulação nos obriga a retornar ao Seminário XIII e a
"A ciência e a verdade", onde se encontra uma contradição aparen­
te a respeito do conceito de causa em psicanálise no Seminário X.
Neste último, a causa é o objeto a definido como "tripa causal",
essa parte do nosso corpo que fica presa à maquinaria formal do
significante' 1 • Em "A ciência e a verdade", a causa em psicanálise é
definida como a causa material, identificada com o significante

11
J. Lacan, Seminário X, op. cir,, l ição de 8/5/63.

91
0 O E S E J O O () P S I C A N A L I S TA

amando separadamente do significado. É a fórmula do signo de


Saussure, modificado em "Instância da letra. . . ", S maiúsculo so­
bre s: S/s; o que opera é o significante criando o significado. A
causa material do sujeito é, conseqüentemente, o significante as­
sim definido, atuando na determinação do significado, indepen­
dentemente de qualquer significação possível 1 2 •
No Seminário XIII, na primeira aula - cuja versão escrita é o
artigo "A ciência e a verdade" -, Lacan formula a falta estrutural
do sujeito, essa primeira falta à qual nos referimos antes: "O sím­
bolo é idêntico à causa, quer dizer, à falta de sujeito" 1 3 . Está inter­
pretando a extremidade esquerda superior do grupo de Klein, a
estruturação do isso, como uma operação do significante que p ro­
duz a falta de sujeito; esse .� o pomo ao qual, depois de alguns
rodeios, é preciso retornar: "Essa causa é o que o sol! lch enco­
bre ... ", ou seja, o que será transformado no Seminário XV em
muss a, que é o "eu devo" da fórmula freudiana. Nos Escritos,
esse sollJch:
É o eu devo, da fórmula freudiana, que, por inverter seu
sentido, faz brotar o paradoxo de um imperativo que me
14
pressiona a assumir minha própria causalidade .

O sujeito não é causa de si, mas assume sua determinação. É


um imperativo que, diferentemente do de Kant, não é um impe­
rativo de liberdade de acordo com uma lei universal, mas um
imperativo em função do qual o sujeito deve assumir sua própria
causação. Esse é um desenvolvimento estritamente freudiano, vin­
culado ao estudo da etiologia, da causa das neuroses, à clara preo­
cupação etiológica causal de Freud. Lacan a retoma ao afirmar
que, ali onde lch deve advir, o que deve advir, nesse imperativo, é
o q ue me causa.

12 J. Lacan, "La ciencia y la verdad", op. cit., pp. 853-4.


i; J. Lacan, Seminário XIII, op. cic., lição de 1 /12/65.
14
J. Lacan, "La cicncia y la verdad", op. cit., p. 843.

92
O O 13 J E. T () P E R IJ I l) O, O O E 5 1- l O 11 e 1 ( > 1 , 1 I' 1 1
E O L) f. S é J U 0 0 l' S I C A N ,\ l l .', I A

Cabe retomar novamente essa citação: " [ . .. / 1 1 1 1 1 i 1 1 q w1.1 1 1v1 1


que me pressiona a assumir minha p rópria causalid:l(k" . l >n•1 · .• ,1 ·
compreender "sua própria causalidade" não em termos dl' l j \ 1 1 ' 1 1
sujeito se cause a si mesmo, mas como aquilo que o dctcrl l l i 1 1 rn 1 .
isto é, um assumir sua própria determinação. Assumida css;t d l·
terminação, poderá aparecer uma margem de liberdade, certa li lw­
ração, termo que Lacan manterá nesse contexto, cena liberaç:io
dessa causa que o sujeito foi para o desejo do Outro, que é assoei-­
ada, na sua realização, a essa pressa que descreveu pela primeira vc::,.
em relação ao tempo lógico, na qual o tema do próprio sofisma é
o de como três prisioneiros podem recuperar sua liberdade, quan­
do o diretor da prisão lhes oferece essa possibilidade, se conse­
guem deduzir num jogo de três qual é o disco - o significante -
que os marca.
No Seminário XIII, encontra-se uma das formulações mais
daras acerca da relação entre a psicanálise e a verdade. O tema da
verdade não pode ser esquivado, já que não por acaso, no grupo
de Klein há um vetor denominado "operação verdade" . Lacan,
tanto no Seminário XIII, como em "A ciência e a verdade", carac­
teriza quatro formas da causa que define como quatro formas da
verdade como causa. Na aula 1 1 do Seminário XIII, do dia 23/3/
66, existe uma formulação que parece contradizer o que sustenta­
ra no Seminário VIII, em relação ao destino do ser falante. Nesse
seminário, quando elabora suas teses sobre o mito em torno de
Sygne de Coúfànwne, afirma que a psicanálise não tem nada de
mântica, que não adivinha o destino do sujeito. Entre o Seminá­
rio VIII e o XIII, a palavra "destino" experimenta modificações
importantes:
A psicanálise é a interpretação das raízes significantes da­
quilo que constitui a verdade do destino do homem. Colo­
ca-se, assim, no mesmo terreno que a religião, mas é absolu­
tamente incompatível com as respostas dadas no campo da
religião, pois aporta uma interpretação diferente. A psica­
nálise, em relação à religião, está numa posição essencial-

93
() D E 5 E J ü 1) ü 1► S I C A N A L I S l /\

mente desmistificante. A essência da interpretação psicana­


lítica não pode, de maneira nenhuma, se misturar com a
15
interpretação religiosa do campo da verdade •

A interpretação religiosa remete específicamente, para Lacan,


à causa final. Assim como a causa material, o significante atuando
independentemente do significado é próprio da psicanálise.
Essa frase deve ser articulada com outra já citada do Seminá­
rio XIII, um imperativo que se torna paradoxal ao ser assumido
como a própria causalidade, relacionada à verdade em jogo que
tece o destino de um sujeito. Diante dessa verdade, a decisão últi­
ma é do analisando, que pode dizer que sim ou que não. Existe
um.a modificação a respeito das formulações do Seminário VII,
onde o desejo como desejo do Outro assume uma forma de de­
terminação quase absoluta. Ali Lacan dá ao desejo do Outro o
caráter de um destino impossível de abalar. A ültima citação, pelo
contrário, mantém o caráter de verdade liberradora da psicanálise
na medida em que permite ao sujeito decidir se aceita ou não essa
causação pelo desejo do Outro. Isso implica um além dos ideais,
porque o que o sujeito é como causa do desejo do Outro não
pode de nenhum modo ser confundido com o que o sujeito é do
ponto de vista dos ideais do Outro, isto é, de uma forma de sua
demanda.
Portanto, a interpretação, tal como acabou de ser definida -
"A psicanálise é a interpretação das raízes significantes daquilo que
constitui a verdade do destino do homem" -, compromete mais
do que nunca aqueles que assumem o lugar de analista, porque os
coloca num lugar inédito, o de se prestar a uma operação graças à
qual alguém possa recobrar uma margem, mesmo que seja míni-

1 5 J . Lacan, Seminário XIII, o . cic., lição de 23/3/66.


p

94
O O B I E. T O P { R ü I U O. O IJ l S l I O IJ O Ü U T � ü
{ O U E S E J O l) O P 5 1 C A N A I. Í S '1 A

ma, de liberdade. É uma liberdade não-generalizável, não-subme­


tida a nenhum im p erativo ou lei universal, que não é válida para
" todos" os h omens e " todas " as mulh eres, mas somente para um
sujeito em particular. Assim, carecemos de um p adrão de compa­
ração para decidir, no que diz respeito a essa margem de liberdade,
o que é correto ou incorreto. É ali onde Lacan, em A ética. da.
. psicanálise, afirma que o psicanalista guia o paciente até o umbral
da ação ética, que depois caberá ao analisando levar a cabo. Nessa
ação, caberá a ele decidir se assume essa causação de uma forma ou
de outra. O ponto, no encanto, no qual enquanto psicanalistas
podemos errar com mais facilidade é considerar que a causa do
desejo é um objeto concreto, "realista", vinculado ao O utro, pior
ainda, idêntico à nossa "pessoa"* que esquecemos ser máscara, para
fazer dela a encarnação desse Outro.

• O termo castelhano para "pessoa" é persona, permitindo o jogo com o termo latino
persona, que significa máscara e está na origem tanto de "pessoa", em português,
como do termo em castelhano. (NT)

95
CAPÍTULO 5
ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO EM "POSIÇÃO DO
INCONSCIENTE" E NO SEMINÁRIO X I . A LIB ERDADE: DO
TERROR HEGELIANO À CONTINGÊNCIA

Lacan retoma a cE_�!:_�Ç,a entre palavra e linguagem que se


encontra em "Função e campo da palavra e da linguagem em psi­
canálise" e se pergunta, em "Posição do inconsciente", sobre a di­
ferença entre ambas. Esta reside no faro de �e, no efeito de. lin-
guagem, o significan��- -�p�;-�- �onÍ� -�;-�;;_gi=;Iç�i-ª1;-;-�d-;-�f�
e!óprio, . .P.?!i�i��z, efeito de ling_t1�gem. Ele introduz no suj eito,
"o-�� da causi,-q�e ;�-�;;;J;�� int�alo entre dois significantes
que f� �cfeia,·1u�or excelê1:�-��i�°.E.l��-�����-
Lacan reabre a questão-ctâ"ausa efeito da linguagem e a carac-
teriza corno o que: "Perpetua a razão que subordÍna o sujeÍto ao
efeito do_sjg_nÍÍican te'2 [os itálicos são nossos] . Ü_<:f�!_l:9- v�� lei!!:
�i:_ar -(�f��!Yq':-!:� �-<:J��E�E.9c�.P3:�f�.§�..�º-�nar causa c'?�-º objeto.
Ele prossegue: "Só como instância do inconscie� [do lado
do inconsciente freudiano] a causa é captada".
- - Ó �hf�tÕ-c;Ü;_·-;;-�ig; ·ne��ssariarnente o estabelecimento do
çir_c1,1-l_�jnconsciente das Vorstellungen em torno da Coisa par'!
gue dela caia o objeto como perdido. Em torno desse circuito
inconsciente, mas não pulsional, se instala a causa enquanto tal.
· · · --�:���!.°,.':!�;;� e5,;ar!����s,f����1�l=aJ.n�.há
o....b_.j_e_
ro_ca_u_s_�_d_a...,E_.1:1...- ão.. Há, d�f�E2.1 .,8Ri�l9.S¼5'-��i<?;, A P.}::�;-2,§ .
.J�-

1 J. Lacan, "Posición dei inconsciente", em Escátos, 2, op. cit., p. 8 1 4.


2
Ibid..

97
O D E S E I O D O t• S I C A N A L I S l A

causada por efeito do significante, como indica o D maiúsculo de


sua fórmula. Em nenhuma formulação a relação com a pulsão ou
com o isso é definida em termos de causa. /\, causa do desejo é
indissociável da estrutura mesma do inconsciente.
· :
·
-••- •· ·-· -'··�·'·�.._,_.�,.":�•.,.._·A;,;,,.,. �;,_.7:;>,.':.:_··.;. ·.,.�.. � �::_._ �_.,. ,..: · .1,·· , · · , ·. . ·
. . � : - _ ,... . ,,.._.. �·ec o . - ·· .' . •.-, ·· • ••A•

A aparição do conceito de mais de gozar implica a recupera-


ção do objeto do lado do isso, quer dizer, do lado da pulsão. O
o �ew__se JlPJ'CSC11ta,., eh lado do_ ipço n.sci en�e e ,do desejo , çomÕ-
' :���� e, �? lado .d o i �s º.S 1�,p11l�;<:\�8�º ��i 5- ?L� f;�!}�9Af g_?!R.:
Portanto, do lado do isso, o a vem acompanhado de um mais ou
de um menos (+ ou -), que não são equiparáveis ao ( +<p) ou do (­
cp) imaginários, mas que devem ser compreendidos no sentido da
perda ou do ganho de gozo, da contabilidade, do cálculo e de uma
economia do gozo. ��-�� -9-!.f�r�nç� per.lTlanecer� até o 111omento
:�. q1:,� .�'.1:��n inshiJ�. �- �r�íç:uJa.raifJJg[l.;z ç:,orn o _gozº 11-0 incons­
_
s1em�. .
No que diz respeito ao problema da causa, Lacan, em "A
ciência e a verdade", assim como no Seminário XIII, sustenta que
a cá.usa recobre o soll lcl1, o "eu devo" da fórmula freudiana, que
"[ . . . ] por inverter seu sentido, faz brotar o paradoxo de um impe­
rativo que me pressiona a assumir minha própria causalidade"3 .
Essa citação - na sua incidência retroativa - é a chave de uma
análise renovada da alienação e da separação na sua primeira ver­
são.
A alienação e a separação, no Seminário XI e no artigo "Posi­
ção do inconsciente", são definidas como operações de causação
do sujeito. Examinaremos esse "assumir a própria causalidade" em
relação a essas operações de causação do sujeito. O sujeito é causa­
do em dois tempos que se recobrem: o tempo do sujeito e o tem­
po do objeto. l.Jma constante na obra de Lacan é•.,que o suj_eito é
·. . .. , . •·. . . .
·-·.•· · ·•-· , - · =·· ,,. ' •.. , ·:• ., '. .. . ... _, . . . ..,. ,.-.. .,.., .•..•.,. • ,. ,,;· ·-·;,.-
causado,
. .....
. ....
.
nunca é causa de si .
· ·. · •··· .-· •:··,· :,.-
.
, . -· . . , ,
.
..

3
J. Lacan, "La ciencia y la verdad", op. cit., p. 843.

98
A 1. 1 F. N A Ç À O F. S E I' 1\ 1� A t; Ã O

Não cabe nesse contexto nenhum biologismo. Uma pontua­


ção clínica parece oportuna a esse respeito: o real da biologia de
um sujeito humano ao nascer, seja em termos de doença, dons ou
qualquer outra coisa, valerá, significará, em função de seu lugar de
causa, não em função da mera biologia. Ponto delicado que emer­
ge no caso das crianças que nascem com defeitos, a não ser que se
assuma uma ideologia "espartana" . O problema não é simples,
pois é difícil delimitar, para aqueles que estão envolvidos nessas
situações em que os analistas são convocados e costumam relutar,
que lugar essa criança teria no desejo do Outro; inclusive se reria
algu m ou simplesmente um não-lugar. Esse problema exige refle­
xão - que se pense na Conferência de Genebra -, porque o que
pode parecer racional e eugênico pode não estar dentro desse dese­
jo, tão pouco animal, que é nosso desejo enquanto seres falantes.
A margem de liberdade que a psicanálise abre ao esboçar para
o analisando a possibilidade de assumir o i mperativo de sua pró­
pria causalidade se encontra no cerne da leitura que realizaremos
do texto "Posição do inconscienre" 4 e de alguns capítulos do Se­
minário :XI 5 . A ação "libertadora" da psicanálise é o eixo indispen­
sável para compreender a profunda aposta que o desejo do psica­
nalista implica no que se refere à prática da psicanálise .
��>· A psicanálise encontra-se diante da questão de como conciliar
-� determinismo com uma margem de liberd�d�.-Eia fa; pâite de
�aneira indissociável da grande respo1;sabiÍid�d� que cabe a quem
decide assumir o papel de psicanalista. Caso contrário, é difícil
escapar da acusação, muitas vezes justa, de impostura. Se � h_á._
margem de liberdadepo?�!yel, não há psicanálise possível_.
· · - Cosruma-�e ressaltar a relação qU:�
e;1st�-��·��e--� p�oblema
da margem de liberdade e os desenvolvimentos l.acanianos sobre

4 J. Lacan, "Posición dei inconscicnce", op. cit., em particular as pp. 8 14- 24.
5 J. Lacan, E
. '/.Semina.110, Líbro 11, Los c11,1rro concepros fünd1me11mles deipsico.wálisis,
Buenos Aires, Paídós, 1 986, em particular os cap írulos XVI e XX.

99
O U E. S E. J O U () P S I C A N 1\ L I S T A

os modos lógicos. Relação que se funda no fato de que as teorias


deterministas são, basicamente, teorias que se apóiam no necessá­
rio de uma necessidade lógica que não pode ser subvertida. Pdo
contrário, tudo o que diz respeito à possibilidade de Il:l�di_fi':=�çãç_,
à pósslbiiid�de de ;;ptar o� d� �scofher, P?i:- parte d� sujeito, sff1:1��­
s� do lado do -�ontiµ�e��e de um� deterrr:i��S,�5?- Os modos lógi­
cos têm, assim, extrema importância nos desenvolvimentos vin­
culados tanto ao efeito da análise como ao desejo do analista.
Eles esclarecem o porquê da importância do luto do analista,
·
tal como é apresentado no Seminário VIII : esse luto implica a
contingência estrutural do objeto para cada sujeito, como Freud
já indicou mediante sua concepção de fixação.

A operação de alienação ·

O primeiro passo é pensar as duas operações de causação do


sujeito: a alienação e a separação. Analisaremos primeiro a opera­
ção de alienação, tal como se apresenta no texto "Posição do in­
consciente" e no Seminário XI, capítulo XVI, intitulado "O sujei­
to e o Outro: a alienação"6 .
Um ponto de partida adequado é a diferença, já mencionada,
que o texto retoma entre o efeito de linguagem e o efeito de pala­
vra. O efeito de linguagem é definido como a causa introduzida
no sujeito, que o atravessa, o divide:
Não se fala, então, com o sujeito. "lss_o " [ Ça] fala dele e é aí
que ele se apreende, ainda mais quanto antes que, pelo sim­
ple�--fa��-d� q�e- ;;i;�o" se dirija a ele, ele desapareces�e como
sujeito sob o significante no qual se transforma, não era <ib�
. . ..
.. . . -

solutamente nada. Mas esse nada se sustenta graças a seu- -

1
' Um esclarecimento sobre a tradução: em geral, na edição cascdhana dos Escritos,
traduz-se manque - falta - por carencia [ em português: carência] . Li ceralmcme a
tradução é concta, mas a relação falta-perda, se o cermo "falta" não é conservado,
n:io pode ser rastreada, de cal modo que, auromacicamentc, a corrigiremos e quan­
do, cm francês, aparecer m.111que, ler-se-á "falca".

100
A L I E N A Ç Ã O E S t l' A R A Ç À O

�dvento, agora produzido pelo apelo, feito no Outro, ao


segundo significante. Efeito de linguagem por nascer dessa
cisão original, o sujeito traduz uma sincronia significante
nessa
..
pulsação
. . .
temporal
.
primordial
.
que é o fàding, consti-
__,.,___,______ 7
tuinte de sua identificação.
� Esse é o primeiro movimento
. . . -··. ' . . ... .. .. . . .' .

Reconhecem-se, nessa citação, formulações clássicas de Lacan.


Em particular, a p9��çª9 primeira do suj eito c_omo esse "�!e'' g,9J��C! ­
o isso, ça, freudiano, fala, dado que,
f
�orno dissemos, a falta primeira
éÊal�a d� s�j�it�, �a:zã.o pela.qi:iã nio .se fala com o sujeit�, lTl� cftf.e.,.
O Isso é o_ q�e fala dek e, num s�gu-ndo momento, se i���oduz o
9µ_t�2,- Nesse tempo primeiro, a �egra é o i�pessoal, que sela o sujei-
to com um 5 1 que o transforma em "nada", pura petrificação, incapaz
de aceder à palavra; na medida em que ela requer a articulação de pelo
menos dois significantes, é preciso que esse "nada" - - se sustente
-- num
apelo ao segundo significante no Outro.
A cisão original do sujeito O divide entrse S 2; por isso 0
sujeito, na medida em que um significante o representa ante ou­
tro significante, é efeito de linguagem, considerado este último
�o�o ca�sa ��teriaC ��-;�Jª;
;�ig�Ülcant� ;itua�do i�d�penclen­
temente do significado. A sincronia significante que esse movi­
mento primeiro implica c�l�ina n9 2efi g ''constituim�_de_�ua .
1:6
�?��-�_if}cação" , que se articula numa teg1porali�ade na qual rege a
pulsação, que oscila entre petrificação e fà.ding
--··-�--- ··- �
"""-'�· . . - · ·· -·- · - · ·· .....,. . . . . .... . .. . .. _,_ _ _ . .. . . . , . ,

Grafo I

7
]. Lacan , "Posición dei inconsciente", op. cit. , pp. 8 1 4-5.

101
0 LJ E S E I O ü O l' S l ( A N A L I .S T A

O primeiro grafo que ele introduz - reproduzido aqu1 como


Grafo I - no Seminário XI mostra a concatenação significante
entre S 1 e S}, aquilo que no escrito é caracterizado como "apelo,
feito no Outro, ao segundo significante". S 1 , o primeiro signifi­
cante, designa o sujeito, mas não lhe dá sentido nenhum, design�
.�e.� t�t: O segundo significante lhe outorga sentido e, ao f�zer
·1sso, apaga o ser, produzindo a afânise, ou o fàdJJ1g do �-ujeito,
identificada com o recalque primário freudiano.
O S 2, por isso, é deno�i.r:iadoy�presentante da representação,
Vo!_ste!�u11:gsreprá'sentanz. Esse esque�a, ��pl�mente conhecido,
interessa porque esclarece e ilustra o parágrafo dos Escritos. Cabe
assinalar, no entanto, alguns de seus pontos mais complexos, que
costumam se superpor.
· O primeiro deles, em "Posição do inconsciente", refere-se a
H egel. Lacan especifica o critério com o qual recorre aos enuncia­
dos hegelianos, especialmente aos de A lenomenologÍa do espÍri­
to, enunciados que sempre podem querer dizer "Outra-coisa", cujo
" nexo de síntese famasmática", isto é, a totalização do sab er, ele
rompe, conservando ainda assim sua denúncia das armadilhas das
identificações. Poucas vezes Lacan é tão explícito no que diz res­
peito ao uso peculiar que faz de certas formulações hegelianas. Em
seguida, acrescenta:
Essa é a nossa própria Aufhebung [a de LacanJ que transfor­
ma a de Hegel, sua própria armadilha, numa oportunidade
de assinalar, em lugar dos saltos de um progresso i deal, [que
seriam os saltos do espírito] os avatares de uma falr/.

Em suma, em Lacan o progresso ideal, a armadilha hegeliana,


torna-se a investigação das formas de uma falta, que chegarão a
uma síntese totalizadora. ��i_e�-�';:�°. ��?--����,s�r-�llp�ra.?.�:..

8 J. L-tcan, El Semin.1río, Libro 1 1, o p . cic., p. 206.


� J. Lacan, "Posición dei inconsciente", op. cir., p. 8 1 6 .

102
,\ L I é N A Ç Ã O E S f. 1' A 1..:. A ( .À. ( >

[ ... ] uma entrada [a do inconsciente, equiparado com nma


caverna] à qual nunca se chega a não ser no momenro e1H
que está se fechando (por isso nunca será ponto mdstirn) e
porque o único meio de ela se entreabrir é chamar do lado
de dentro [ . . . ] . Percebemos que é o fechamento do incons­
ciente que dá a chave de seu espaço e, concretamente, da
impropriedade que há em fazer dele um dentro. Demonstra
também o núcleo de um tempo reversivo, muito necessário
de introduzir em toda eficácia do discurso; bastante sensível
já na retroação, na qual insistimos há muito tempo, do efei­
to de sentido na frase, q1::_e -��ige s ua última p alavra para se
fechar. O nachcrifgfjch [ . . . ], o apres-coup [efeito a posteúon]
segundo o qual o trauma está implicado no sintoma mostra
10
uma estrutura temporal de uma ? rdem mais elevada"

Lacan diferencia, com extrema clareza, a retroação do apres­


coup e do nachtriiglich freudiano. Ele reserva a retroação exclusi­
vamente para a cadeia lingüística, para a cadeia do enunciado. Pelo
contrário, quando se refere ao aprés-coup, o efeito a posteriori
refere-se à forma como o trauma está implicado no sintoma, es­
trutura temporal que ele considera de uma ordem mais elevada.
Isso se deve a que as necessidades de fãcro são necessidades a
posteriorj, caso contrário, são analíticas, a priori, e as conhecemos
antes que ocorram. A necessid�de própria da psicanálise não é a do
a prion; mas a do a posteriori Não se trata de uma mera articula­
ção lingüística, mas de uma articulaçáo lógica, mediadora entre o
a priori e o a posteriori, entre aquilo que posso enunciar como
necessário, independentemente da produção concreta do fato, e,
no outro caso, aquilo que posso enunciar como necessário de for­
ma retroativa, remontando do efeito à causa. Nesse sentido, o

10 J. Lacan, "Posición dei inconsciente", op. cít. , pp. 8 1 6-8.

103
O lJ F. S f. J O l) O t' S l ( A N A I. I S T A

trabalho psicanalítico, como Lacan o propõe, é efetivamente um


remontar do efeito à causa. Não é outra coi sa a incorporação do
trauma - ou seja, a contingência, o acidente - nessa estrutura
sobredeterminada por múltiplos arquivos que se entrecruzam quan­
do o trauma é incorporado no sintoma. Também não se pode
deixar de levar em consideração que efeito e causa são precisamen­
te, para Lacan, "avatarcs da falta".
Ele volta a introduzir, em seguida, o debate já citado sobre a
causa:
[...] espectro impossível de conjurar pelo pensamento, críti­
co ou não. Pois a causa não é [ . . . ] uma armadilha das formas
do discurso - j á teria sido dissipada. [O que se segue é o que
me interessa ressaltar) . Ela [a causa] pe'rpetua a razão que
11
subordina o sujeito ao efeito de significante

A causa é representante de uma razão, não é a razão. Razão e


causa não se identificam, se separam. A causa como tal é indicadora
de uma ordem de racionalidade - não se trata da razão no sentido
da média ou da extrema razão -, da racionalidade de um discurso ,
d e uma ciência.
Por isso, depois de referir-se a Hume, esclarece que só a
partir da instância do inconsciente freudiano a causa adquire seu
verdadeiro estatuto: "A retroação do significante em sua eficácia,
que é preciso distinguir totalmente da causa fi n al" 1 2 •
Observação fundamental, primeiro porque, desde o início,
Lacan rejeita a causalidade teleológica, a causa final; rejeição que
questiona o ob jeto como objeto do desejo, como meta do desejo,
não como sua causa, porque en quanto causa representa a raciona­
lidade que o faz existir.

l i Ibid., p. 8 1 8.
12
Ibid ..

1 04
A L I E N A Ç À O [ S l 1' A R ,\ l., A e >

A partir disso, conclui que a simples demonstraç1o de q 1 1(' t'l;i


é a única e verdadeira causa primeira seria útil. Qual é a verdadC'i1;1
causa primeira? A ação retroativa e a posteriorido sistema sign i ( i
cante. Por isso fizemos alusão ao conceito de sobredeterminação
freudiana, que deve ser repensado a partir dessa perspectiva. Se há
fechamento e entrada, no que diz respeito ao campo do sujeito e a
do Outro em sua união lógica, eles não se separam, mas oferecem
"seu modo de conjunção" a dois domínios:
O sujeito, o sujeito cartesiano, é o pressuposto do incons­
ciente [.. . ]. O Outro é a dimensão exigida pelo fato de que
a palavra se afirma como verdade.

Conclui:
. . ,
O mconsc1ente e entre am bos, seu corte em ato .
13

O inconsciente é o produto da união desses dois campos que


são o campo do sujeito e o campo do Outro, mas sempre ficará
situado do lado do Outro, na medida. em que o inconsciente é o
discurso do Oµtro. A anális e da causação do sujeito implica defi­
nir o inconsciente como o corte em ato entre eles:
A primeira, a alienação, é coisa do sujeito. Num campo de
objetos, não é concebível nenhuma relação que engendre a
alienação se não for a do significante. [ ... ]. Conceder essa
14
prioridade ao significante sobre o sujeito [ ... ] .
Lacan insiste na importância da função de borda, relacionada
com a pulsão, e no vínculo do suj eito com o Outro. O acento
fundamental recai em como o sujeito nasce por ação da lingua­
gem. A operação de alienação se caracteriza como uma forma de
articular o campo do sujeito e o campo do Outro. Esse ponto
remete ao algoritmo saussureano modificado, S/s, o S maiúsculo

13
Ibid..
14
Ibid. .

1 05
O D E S E J O 0 0 P S I C A N A L I S T A

sobre o s minúsculo de "Instância da letra ... ". A p rioridade signifi­


cante é demonstrada pelas três obras de Freud sobre o significante,
o sonho, o chiste e a psicopatologia da vida cotidiana, que ilumi­
nam a divisão do sujeito consigo mesmo.
, , É a estrutw-a, sonho, lapso e chiste, de todas as formações
do inconsciente e é também aquela que explica a divisão
. originária do sujeito. O significante, produzindo-se no lu-
"· 15
· gar do Outro, ainda não delimitado , faz surgir ali o sujei-
to do ser que não tem ainda a palavra, mas ao preço de lixá-
1G
lo . [os itálicos são nossos] .

Há uma alusão ao S 1 , um significante isolado que não admite


possibilidade de palavra, anterior a que o suj eito fale; deve-se a
isso a alusão ao jnfàns. Uma nova correção da tradução se impõe.
Em castelhano, aparece "coagulado" (em português: coagulá-lo] e
a palavra em francês é "fixá-lo", palavra que em psicanálise não
pode ser substituída por nenhum sinônimo, pois implica uma
referência à fixação em seu sentido freudiano mais estrito. A fixa­
ção freudiana o imobiliza nessa posição e nesse lugar. Acrescenta:
Não é, então, o fato de que essa operação tenha como ponto
17
de partida o Outro que a caracteriza como alienação . Que
o Outro seja para o sujeito o lugar de sua causa significante
[note-se essa formulação em que outra vez aparece a causa
como causa-significante] só faz motivar aqui a razão pela
qual nenhum sujeito pode ser causa de si, o que se impõe
não só porque não é Deus, mas poi·que esse mesmo Deus
não poderia sê-lo se o pensarmos como sujeito - santo Agos-

15
A versão castelhana optou por " r;bic.1do" [em português: situado]. mas acredito que
a verdadeira tradução é "delimitado", porque o significante é o que é delimitado
dentro desse campo e não apenas situado.
"' lbid., p. 8 1 9.
,., Na presente leitura, substituiu-se a tradução utilizada no texto, " enajenación" [em
pormguês: alheamento]. por "alienación" [em português: alienação].

1 06
A. L I E N A. C,: 1\ () E S E l' 1\ R A Ç Ã U

tinho viu isso perfeitamente ao negar o atributo de causa de


si ao Deus pessoal
18

A referência a santo Agostinho está ausente no Seminário XI,


mas é exatamente a mesma que volta a aparecer quando Lacan fala
da causa em "A ciência e a verdade" .
No velalienante, se o sujeito escolhe o ser, perde o sentido e
se escolhe o sentido, se produz sua afânise e perde o ser; na interse­
ção, mordendo sobre os dois campos, entre o campo do sujeito, o
do ser, e o campo do Outro, o do sentido, está o sem-s entido,
onde se situará o inconsciente. É uma escolha que implica necessa­
riamente uma perda, cujos exemplos são "a bolsa ou a vida" ou "a
liberdade ou a morte", aos quais em geral costuma-se conceder
somente o caráter de exemp los, ainda que sejam muito mais do
que isso. Lê-se no Seminário:
A bolsa ou a vida! Se escolho a bolsa, perco ambas. Se esco­
lha a vida, tenho a vida sem a bolsa, uma vida cerceada. [... ]
É legítimo que tenha encontrado em Hegel a justificação
dessa apelação ao vel alienante. Em Hegel, de que se trata?
[...] trata-se de gerar a primeira alienação, através da qual o
homem empreende o caminho em direção à escravidão. A
liberdade ou a vida! Se escolhe a liberdade, perde ambas
imediatamente - se escolhe a vida, tem a vida amputada da
19
liberdade .
Essa escolha, apresentada ainda sob a perspectiva d'e A
fenomenologia do espÍrÍto, indica que não s e pode omitir a per­
gunta de por que Lacan a introduz. No pensamento de Hegel,
existe certa margem de liberdade, apesar de seu ideal do final abso­
luto da história. A Lacan interessa outra coisa:

18
Ibid., pp. 8 1 8-9.
19 J. Lacan, El Semimrio, Libra 1 1, op. cir., p. 220.

1 07
0 L) [ $ F, J 0 () () S $ 1 ( A N A t l S T A

Deve existir nisso algo de muito peculiar. Denominaremos


esse algo tão peculiar de fáto1, leml [ . . . ]. Aqui, por entrar em
jogo a morte, produz-se um efeito de estrutura um tanto
diferente - em ambos os casos, tenho as duas. Como se
sabe, a liberdade é como a famosa liberdade de trabalho
pela qual, ao que parece, a Revolução Francesa lutou - pode
ser também a liberdade de morrer de fome e foi a isso que
conduziu durante todo o século XIX. Por isso, foi preciso
revisar depois alguns princípios. Se vocês escolhem a liber­
dade, muito bem, é a liberdade de morrer. Coisa curiosa,
nas condições em que lhes dizem a liberdade ou a morte, a
única prova de liberdade que se pode dar, tal como lhes é
indicado, é j ustamente escolher a morte, pois assim se de­
monstra que se tem a liberdade de escolher. Esse é também
um momento hegeliano, é o que se chama o Terror. Essa
repartição, muito diferente, está destinada a tornar evidente
para eles aquilo que nesse campo é o essencial do velalienante:
°
o fàror fecal .

Lacan retoma várias vezes esse ponto. N o capítulo XVII, de-


pois de falar da afânise e do representante da representação:
Por mais metafísico que possa parecer, já que é preciso ad­
mitir que nossa técnica emprega a expressão liberar algo,
como se a coisa fosse óbvia, vale notar, de passagem, que
está em jogo aí esse termo que merece perfeitamente a qua­
lificação de espectro - a liberdade. [Lembremos que usou
também a palavra "espectro" para a causa.] [ . . . ] o sujeito
tem que se liberar .do efeito afanísico do significante binário
[do S ] e, olhando bem de perco, acontece que é disso que se
2 21
trata, efetivamente, na função da liberdade

2
" Ibid., p. 22 1 .
li
Jbid., p. 227.

1 08
A L l F. N ,\ Ç Ã O E 5 E. i► J\ l� /\ l, _.ll. t J

Existe um "liberar-se" que é fácil entender erroncan1rn1 e . N :11 ,


se trata de se liberar com a finalidade de se identificar plena n w1 1 1 e
com o S 1 do ser, mas sim de algo muito diferente, de se liberar d1 1
sentido. O final de análise é associado ao sem-sentido, na medida
em que o significante afanísico é correlativo à produção de senti­
do. Não só cai a significação, mas também o sentido. Uma vez
definida a função da liberdade como associada ao sem-sentido, ou
seja, à saída da afânise induzida pelo S 2 , qualquer que seja, que
deixa o sujeito preso ao sentido, continua:
Não em vão, ao tentar justificar em nossa experiência esse
vel da alienação, encontramos como seus dois suportes mais
evidentes essas duas escolhas que [ ... ] estruturam a posição
do escravo e a posição do senhor. A do escravo, a quem é
dada a escolha entre a liberdade ou a vida, resolve-se num
22
não há hberdade sem vida

Nessa primeira opção, não está em jogo o fator letal associa­


do à escolha entre a liberdade ou a morte. Utiliza a negação "não
sem " para caracterizar o vel do escravo e sua resposta; a vida per­
manece desvinculada da liberdade. Cabe explicar agora a opção do
senhor:
Se examinamos o assunto com um olhar de longo alcance,
veremos que a alienação do senhor se estrutura exatamente
da mesma maneira, pois se Hegel indica que o estatuto do
senhor é instaurado pela luta de puro prestígio, isso se deve
a que o senhor também constitui sua alienação fundamen­
]
tal fazendo passar sua escolha pela morr/ .

• 22 Ibid. .
23 Ibid., pp. 227-8.

1 09
() l) ( S E J O 1) O P 5 1 \. A N A L 1 $ T A.

A opção liberdade ou morre.'deixa o senhor tão alienado quan-


to ó escravo, conseqüentemente:
Sem dúvida poderíamos dizer que o senhor, assim como o
escravo, não está a salvo da morte, que finalmente chegará
para ele, e que ali está o limite de sua liberdade. Mas isso é
dizer pouco, pois essa morte não é a morte que constitui a
escolha alienante do senhor, a morte da luta de puro prestí­
gio. A revelação da essência do senhor se manifesta no mo-
mento do terror [ ...]
24

Lacan reitera, a respeito dísso, a remissão ao momento do


terror em A fenomenologia do espfriw. Seu exemplo supremo é
Sygne de Coílfomaine, tragédia que analisou no Seminárío VIII:
[Ela] não quer renunciar a nada que pertença a seu registro,
o do senhor, e os valores pelos quais se sacrifica só trazem,
além de seu sacrifício, a necessidade de renunciar ao mais
íntimo do seu próprio ser. [ ...] ilustra a alienação radical,
[no sentido do ve! alienante] da liberdade que existe nô pró-
.
pno senh or25.

Mesmo quando o senhor escolhe a morte. A tragédía de Sygne


de Coó.fontaine se passa durante a Restauração e o que nela ocorre
é inseparável dos acontecimentos da Revolução Francesa. Sygne
de Coílfontaine é descendente dos senhores decapitados pela Re­
volução e o momento do terror, em Hegel, está vinculado especi­
ficamente à época do terror da Revolução Francesa.
Sendo assim, nada melhor do que ler isso em Hegel. Na edi­
ção francesa de A fenomenologú do espkiw26 , Hegel assínala pri-

24 Ibid..
21 Ibid..
2
" W. Hegel, La phenomen ologie de l'Esprit, ed. E J. Hyppolyte, Pacis, Aubier, vol.
2, pp. 130-7.

1 10
1\ L I E N A Ç Ã O [ S E P ,\ R A Ç J\ {)

meiro, numa descrição que deu lugar a diversas interpretações,


que a Revolução Francesa não se produz por uma l uta de puro
prestígio, mas por uma doença da sociedade do Antigo Regime,
provocada pela propaganda dos pensadores ilustrados. Não ha­
vendo a luta, o sistema caiu pelas próprias condições dessa propa­
ganda, na ausência da luta por puro prestígio. Para Hegel, a socie­
dade fica doente, não é assassinada, ou seja, não por causa da luta
entre os diferentes grupos sociais. Surge a partir dessa queda por
doença o que denomina a lib erdade absoluta - que não faz jus ao
que o nome sugere, pois não é uma liberdade conseguida por um
ato mediado pela luta. É um ato imediato, assim o qualifica Hegel,
e o sujeito humano cai num vazio, pois não tem nenhum mundo
diante dele. É a pura liberdade: caíram todas as instituições ante­
riores e ainda não há outras em seu lugar: é o momento de máxi­
ma particularidade do sujeito, onde o sujeito se volta para seu
selbst, para s eu si mesmo, segundo Hegel, e o Estado só existe
pelas idéias dos particulares, tal como eles o representam. Por ou­
tro lado, os suj eitos particulares se vêem reduzidos à sua própria
realidade interna, s em nenhum apoio externo. Onde reside o pro­
blema para Hegel? Na falta de luta e de esforço. A liberdade ab so­
luta é puro vazio, morte. Produz o que ele considera uma ilusão
nefasta: cada sujeito particular acredita representar a humanidade
em geral. Diante desse impasse, a única saída é o terror, o que
caracteriza surpreendentemente da seguinte forma:
A liberdade absoluta de cada uma das consciências indivi­
duais permite a cada sujeito querer ser um ditador e impor
sua vontade particular como idéia abstrata de liberdade e
7
realizá-la para suprimir outras liberdades particulare/

Só há uma forma de conseguir isso, o terror, colocando


assim em jogo a morte, o corpo. Desse modo, gera-se a iuta de

27
Ibid..

111
O 0 E S E J O D O !' S I C A N /\ 1. I S T I\

facções que foi própria da Revolução Francesa. O ponto que inte­


ressa em Hegel é que, a partir do terror, o cidadão prévio à Revo­
lução deve enfrentar o risco de perder sua vida terrena, quando
quer se satisfazer nela, porque a liberdade absoluta é absolutamen­
te insatisfatória. A passagem pelo terror e pela morte dão, para
Hegel, o tiro de misericórdia no cristianismo, na medida em que
situam o sujeito ante a possibilidade de realizar sua felicidade nes­
ta terra, sem levar em consideração a separação do corpo e da alma.
No capítulo "Da interpretação à transferência", reaparecem o
desejo do senhor e do escravo. Se o escravo se encontra numa
rel4ção original a respeito da assunção da morte, é muito difícil
dar-lhe uma relação apreensível com o desejo. Por isso, o desejo
do senhor, desde o início, se apresenta como o mais extraviado.
Sócrates, pelo contrário:
[ . . . ] quando deseja obter sua própria resposta, dirige-se a
quem não cem nenhum direito de fazer valer o seu desejo,
ao escravo [ . . . ] . A voz da razão fala baáo, diz Freud [ . . . ] ,
28
mas diz sempre o mesmo

Alusão à afirmação de Freud sobre o desejo inconsciente e sua


insistência indestrutível.
Devido a certa afinidade, deveríamos prestar atenção n o es­
cravo quando se trata de delimitar o que concerne ao desejo
29
do psicanalista .

Esse ponto é capital no que diz respeito ao tema em discus­


são, em sua relação com o que se afirma sobre a alienação. Não há
possibilidade nenhuma, no nível da psicanálise, de que se deduza
urria constituição social, em seu sentido habitual, do sujeito. Por

'" ]. Lacan, E/ Seminario, Lib,v 11, op. cit., p. 263.


2
'' Ibid ..

1 12
1\ l I E N A {.: ,\ O E S 1: P t\ I\ /\ 1,: t\ ( J

isso separa claramente a alienação que propõe no campo da psici­


nálise de outras formas de alienação habituais nos anos ()0.
O sem-sentido corresponde ao campo do Outro, produ'I.-Sc
no campo do Outro e articula-se com o eclipse do sujeito. Propõe
uma forma paradoxal de liberdade: a liberdade do sem-sentido,
que determina sua formulação da interpretação - para além do
problema da significação - para se centrar no sem-sentido como
cúmulo do sentido no simbólico, enquanto efeito central da ope­
ração interpretativa.
A falta na qual insiste desde os capítulos anteriores, a primeira
falta, a falta do suj eito, falta que se situa no nível do "não penso",
relacionado com a constituição pulsional, essa falta de sujeito é
produto da ação do significante. Ação do significante que libera o
sujeito do sentido para confrontá-lo com o sem-sentido.

Separação e contin gência

Essas duas operações descrevem uma dupla determinação


da divisão subjetiva. Uma primeira determinação dada pelo par
significante S 1-S 2 • Uma segunda determinação dada pela opera­
ção dessa perda que se torna causa, que é o objeto a, que no Semi­
nário XI está vinculado à operação de separação descrita como a
interseção, o produto lógico de ambos os conjuntos.
No que diz respeito à operação de separação, lê-se em "Po-
sição do inconsciente":
No segundo momento [segundo momento de causação do
sujeito] , roda vez que o desejo faz seu leito do corre signifi­
cante no qual se efetua a metonímia [referência óbvia a seus
desenvolvimentos de "Instância da letra ... "] , a diacronia
chamada história, que se inscreveu no fàding, recoma à es­
pécie de fixidez que Freud atribui ao voto inconsciente. [Cf.
Tra.umdeutung, o caráter eterno como tal do desejo incons­
ciente.]. Esse suborno secundário não fecha somente o efei-

1 13
O U l: S � J O U O t> $ 1 ( A N A I. I S T A

to do primeiro [o primeiro é o efeito da alienação] , proje­


tando a topologia do sujeito no instante do fantasma, recu­
sando ao sujeito do desejo que ele se saiba efeito de pala-
30
vra

Essa observação retoma a torção, a reversão própria das ope­


rações topológicas. No entanto, é vital a associação entre o efeito
da primeira operação, a alienação, que a separação não só fecha,
mas também "projeta [ . .. ] a topologia do sujeito no instante do
fantasma". O tempo da separação e o instante do fantasma, na sua
topologia mesma, estão associados. É preciso entender isso em
termos de tempo lógico, ou seja, em sua articulação com o "ins­
tante de ver" a cena fantasmática, instante como tal, prÍnceps, do
fantasma. Essa topologia se sela, se fecha, culmina nesse instante,
inscrevendo-se, assim, na diferença entre efeito de palavra e efeito
de linguagem.
Recusar ao sujeito do desejo que ele se saiba efeito de palavra
é recusar-lhe o saber acerca de sua determinação pelo desejo do
Outro. Na separação, uma torção topológica particular estabelece
a fórmula do fantasma, descrita com a topologia do cross-cap no
Seminário IX, "A identificação"; topologia que fixa esse instante
de conjunção entre S e a minúsculo, que oculta o desejo do Outro
e o objeto que o sujeito foi para esse desejo.
No Seminário XI, introduz, na parte 4 do capítulo dedicado
à alienação, a operação de separação em termos semelhantes:
Essa operação leva a cabo a circularidade da relação do sujei-
to com o Ourro, mas nela se mostra uma torção essencia13 1

A torção remete tanto à topologia como aos deslocamentos


no grupo de Klein dos Seminários XIV e XV.

10 J. Lacan, "Posición <lei inconsciente", o . cit., . 8 1 5 .


p p
·' J. Lacan, E! Scmin,1110, Libra JJ, o p . cit., p. 22 1 .
1

1 14
A. L I E N t'\ Ç Ã O E S � I' A K A (, Â i }

A etimologia do termo latino separarr::, transformada cm se


parere, engendrar-se a si mesmo, permite j ogar, em francês, com o
equívoco com se parer, enfeitar-se e também defender-se, term o
francês m uito s util e m seus sign ificados e, vale a pena lembrar,
termo usado para introduzir o agalma no Seminário "A transfe-
A • n
renc1a
[ . . . ] tanto vestir-se como defender-se, munir-se do necessá­
rio para pôr-se em guarda, lançarei mão , amparado pelos
latinistas, do se parae, do engendrar-se de que se trata nes­
te caso. Como, nesse nível, o sujeito se arranjará? Essa é a
origem da palavra que designa em latim o parir, engendrer
em francês. É um termo jurídico, como são todas as palavras
indo-européias que designam o trazer ao mundo. A palavra
parto tem sua origem numa palavra q ue, na sua raiz, signi­
fica somente arranjar um filho para o marido, operação j urí-
d.1ca e, por assim . 132 .
. d.1zer, soc1a

No texto dos E,critos, a formulação é mais complexa. Há


" "
um emparelhamento comum , no termo separcre, co1n a fiun-
ção do pars, da parte; com o objeto parcial como parte não­
integrável a um todo, parte fragmento em si mesmo, que nada
tem a ver com o todo.
[ . . . ] por sua partição [entenda-se por sua divisão] , o sujeito
procede a seu parto, [a seu engendramento como objeto
causa] . [ . . . ] . Para ser pars, sacrificaria sem dúvida grande
parte de seus interesses, e não para se integrar na totalidade,
que de qualquer forma não constitui de modo algum os
interesses dos outros [ . . . ] , [mas) para se enfeitar com o sig­
3
nificante sob o qual sucumb/

·1 2
Ibid., pp. 221 -2.
33 J. Lacan, "Posição do inconsciente", op. cit., p. 822.

115
O D E S f. J O l) O 11 S I C A N A L l $ T A

Na parte precedente, já se desenvolveu o concernente ao sig­


nificante S 2 , significante afanísíco que ao fazer cadeia com o S 1
produz sua afânise, a do significante do ser do sujeito. Toda entra­
da no sentido implica uma perda do ser. Lacan relaciona o concei­
to de liberdade com o conceito de sem-sentido como liberação do
sujeito do significante afanísico. Lacan volta a esse ponto, insiste
nele:
[ . . . ] para se enfeítar com o signíficame sob o qual sucumbe
[o S ], o sujeito ataca a cadeia, que reduzimos à conta exata
2
de um binarismo [ . . . ) [Onde a ataca? Entre S e S , no in-
1 2
tervalo, que é de onde sempre se situa o objeto a, entre S e
1
S , mesmo antes de usar a terminologia S -S . ] . O impor-
2 1 2
rance é o intervalo que se repete, a estrutura mais radical da
cadeia significante [é o intervalo, é o buraco, o furo, delimi­
tado pelos dois significantes] , l uga r freqüen tado pela
metonímia, veículo, ao menos como o ensinamos, do dese­
jo. [ . . . ) o sujeito experímenta nesse intervalo outra coisa para
motivá-lo além dos efeítos de sentido [vale lembrar que a
liberdade se associa ao sem-sentido) com o qual um discur­
so o sol icita; é como encontra, efetivamente, o desej o do
Outro, antes mesmo que possa sequer nomeá-lo desejo e
34
muito menos imaginar seu objeto

Nesse intervalo, essa outra coisa que pode motivá-lo, para


além dos sentidos, é aquilo que o jogo da criança com sua própria
falta - se pode faltar ao Outro - encena. Essa outra coisa é uma
nova elaboração mais complexa e sofisticada do que Lacan deno­
minou o desejo da Mãe ao introduzir a Metáfora Paterna. Essa
outra coisa é desej o de um desejo Outro. Nesse texto, trata-se
menos de enfatizar a pergunta pelo ir e vir da mãe, que permite a

'� Ibíd., pp. 822-3.

1 16
A I. I E N A Ç .-\ 0 E S E l' A R A Ç A O

instauração no lugar terceiro do Nome do Pai, do que enfatizar o


efeito de falta de sujeito. Por essa razão, o texto continua assim:
O que colocará ali é sua própria falta sob a forma da falta
qúe produziria no Outro por seu próprio desaparecimento.
Desaparecimento que, por assim dizer, ele tem nas mãos,
da parte de si mesmo que lhe cabe por sua alienação primá-
. 35
na

Em função do que desenvolvemos, a primeira coisa que de­


vemos destacar é que do lado da escolha forçada da alienação do
"não penso" situa-se a falta do sujeito. Essa falta é produto da
alienação e está vinculada ao significante afanísico, o significante
que obtura o que o significante pode dar de "ser" ao sujeito, o S 1 ,
que permanece oculto, unterdrück, por ação do S 2 • Essa falta, essa
perda do S 1 recupera-se com a falta do suj eito como objeto para o
Outro.
É interessante ressaltar como Lacan define a interseção. Em
"Posição do inconsciente", define-a como:
[a operação] onde se fecha a causação do sujeito, para pôr à
prova nela a estrutura da borda em sua função de limite,
mas também na torção que motiva a invasão do inconscíen-
.%
te

Essa torção é o trajeto, examinado nos capítulos 3 e 4, de


cima para baixo e da esquerda para a direita, no grupo de Klein; a
passagem de um "onde isso estava" ao outro "onde isso estava". A
falta primeira do sujeito produzida pela alienação remete, na sepa­
ração, à perda do sujeito como objeto causa do desejo do Outro.
Lacan diz isso com todas as letras em "Posição do inconsciente" :

3
; Ibíd, p. 823.
3(, Ibid., p. 82 1 .

117
O l) f S [ J O D O f• s 1 c �, N .-\ L I S T A

Reconheceremos nela o que Freud chama de Ichspa!tung


ou cisão do sujeito e compreenderemos por que, no texto
em que Breud a introduz, ele a funda numa cisão não do
sujeito, mas do objeto (fálico, concretamente) . A forma ló­
gica que vem modificar dialeticamente essa segunda opera­
ção [ . . . ] é a in terseção [ . . . ] . Essa fu nção aqui se modifica
através de uma parte cornada da falta à falta, pela qual o
sujeito torna a encontrar no desejo do Outro sua equivalên­
7
cia ao que ele é como sujeito do inconsciem/

Analisemos em detalhe a última frase da citação. Lacan apre­


senta nela a equivalência entre o $ e o obj eto a. Na operação de
separação, o sujeito dividido do significante é equivalente ao ob je­
to a no que diz respeito ao desejo do Outro, de modo tal que
retornamos a urna afirmação inicial: ambos os componentes da
fórmula do fantasma são o sujeito. O obj eto não é outro além do
suj eito, 3 e a são o sujeito, ainda que a se apresente sob a máscara
enganosa da causa final como objeto do desejo. Escreve, à conti­
nuação: "Por essa via o sujeito se realiza na perda [ ... ] na qual
surgiu como inconsciente, pela falta que produz no Outro [ ...] "38
Formulação presente tamb ém no Seminário XV, primeiro
falta e, depois, perda. Faz alusão a isso no Seminário XI, quando
afirma que o sujeito joga com o efeito de sua p erda no Outro:
pode m e perder, pode suportar que eu já não esteja, pode suportar
minha morte? Coloca em jogo, então, sua perda para situar seu
1 ugar de causa.
Temos a falta de suj eito e, em seguida, a perda vinculada a
uma falta no Outro, Outro que é descomplerado. Sustentava isso
também no Seminário X, ao escrever a queda do sujeito como
objeto causa do desejo do Outro. Continua:

·11
Ibid., pp. 821-2.
'" lbid., p. 822.

118
A L I E. N A Ç Â O E ,,; [ I' J\ 1� A ( t\ O

[ .. . ] segundo o traçado que Freud descobre como a puls:io


mais radical e que denomina pulsão de morte. Um nt:111 ;1 é
chamado aqui a responder a outro nem a.

Um esclarecimento a respeito da tradução. Lacan faz um jogo


em francês com a homofonia entre ní a, não a, e não há, n y a,
jogo que retoma posteriormente em L 'Erow-dú. Então, não so­
mente o objeto a não está, não é nem a, nem a, mas também não­
a e não há, de ambos os lados. Essa homofonia presente no texto,
ressaltada pelos itálicos do mesmo, é incompreensível se não se
remete ao fato de que de ambos os lados está o fator letal, a pulsão
de morte, que me condena à perda, qualquer que seja minha esco­
lha. O parágrafo termina assim:
O ato de Empédocles, ao lhe responder [refere-se ao suicí­
dio] , manifesta que se rrata aqui de um querer. O velvolta a
39
aparecer como velle [querer]. Esse é o fim da operação .

Torna-se indispensável, neste ponto, uma nova observação


no que diz respeito à tradução. Quando em castelhano se diz " un
querei' [em português: um querer] , em francês se diz vouloir,
verbo que implica a conotação de vontade. Sendo assim, vouloír,
em francês, termo que só temos em castelhano sob a forma de
" vo!untad' [em português: vontade] ou " voluntano" [em portu­
guês: voluntário] , é um equivalente do desejar e do querer em
castelhano. É também uma ordem, como também pode ser o "yo
quíero" em castelhano [em português: eu quero]. Em francês, há
múltiplos sentidos e nuances diferentes desse vouloir.
O ve/- Lacan está fazendo um jogo com as letras - aparece
como velle, que remete, em francês como em latim, a esse ponto

39
Ibid..

1 19
O lJ [ S E J O IJ 0 P S I C A. N A L l S T A

ambíguo entre vontade e desejo. No Seminário Xl, Lacan diz num


determinado momento: "O que pode significar não querer dese­
;ar.�,,40 .
.

A expressão no texto em francês é nepas vouloir dés11·er. Não


existe uma forma exata de traduzir esse vouloir, a não ser como
quçrer, o que implica perder sua relação com "vontade". O Che
vuoi? do grafo mostra o mesmo termo em italiano. A separação
pode se manifestar, conseqüentemente, como um velle que, em
sentido estrito, poderia ser traduzido, tanto em francês como em
castelhano, por "desejo".
A conseqüência da separação é a passagem da alienação entre
ser e sentido para a estrutura do desejo como desejo do Outro.
Por isso Lacan utiliza o verbo vinculado à vontade, pois está a
meio caminho entre o desejar do Outro e o mandato do Outro, a
vontade do Outro tal como foi conservada na fórmula cristã "seja
feita a tua Vontade". Razão pela qual Lacan remete ao estoicismo
e chama nossa atenção para a possibilidade de cair na posição estóica,
que define muito bem ao se referir à relação entre o desejo do
Outro, o desejo do analista e o desejo do paciente em seu encon­
tro:
Essa afinidade que encontramos entre a ética da análise e a
ética estóica [... ] não é muito singular? No fundo a ética
estóica não é nada além do reconhecimento da regência ab­
soluta do desejo do Outro, desse Seja fêita a tua vontade!
. • . 41
que o cnsnamsmo recoma

A esse respeite, é conveniente percorrer o conceito de vonta­


de em sua diferença com o desejo. Interessa a Lacan o fato de que,
tanto no estoicismo como no cristianismo, essa regência absoluta

'º J.Lacan, El seminario, Libra 1 !, op. cir. , p. 242 (Le Sémiizairc, Livre XI, Les
qu,1rres conceprs fó11damcmaux de la. psyd1a11alyse, Paris, Seuil, 1 973, pp. 2 1 2-3).
" lbid., p. 262.

1 20
A L I E N A Ç Â O f. S I· I' /\ 1.: /\ <, 1\ 1 1

do desejo do Outro é correlativa a um dcrcrmi11is1110 al isol1 1 1 1 1 , ;1


uma necessidade lógica absoluta, a um desti no q ue 1 1; 1 0 pn1 l t- M'I'
de modo algum subvertido ou modificado. Deve-se a is�t I a ;u l
venência de que a ética da análise não pode ser confund ida ( c 1 1 1 1 ;1
ética estóica e seus derivados cristãos.
Qual é a saída? Santo Agostinho é o primeiro a enfatizar :1
predestinação, isto é, a fixação do destino segundo a graça. Sua
posição permite pensar uma pergunta central: como escapar do
desejo como vontade ou determinação absoluta?
Lacan dá uma resposta, cujo primeiro esboço se encontra num
filósofo medieval, considerado wn dos antecessores da lógica modal
moderna, Duns Escoto, que viveu entre 1 360 e início de 1 400.
Escoro era agostiniano e opunha-se a santo Tomás ao privilegiar a
vontade sobre o entendimento. O problema que o aflige é o de
como fazer coexistir a liberdade com a predeterminação e a provi­
dência divinas. O caráter providencial de Deus, tomado pelo cris­
tianismo do estoicismo, como dissemos, não pertence à tradição
judaico-cristã. Como conciliar o absolutamente determinado com
o fato de que, de acordo com o texto bíblico, o homem é livre e,
portanto, é responsável pelo pecado, porque se não fosse livre não
poderia sér responsável.
Em oposição à heresia maniqueísta ou gnóstica à qual aderiu
antes de sua conversão, santo Agostinho devia evitar a qualquer
preço afirmar que Deus era a causa do mal. O que fazer? Ele afir­
ma que a causa do mal reside no homem, que é culpado, pois
Deus é pura bondade. O pecado original é nosso e é, essencial­
mente, sexual, sendo ele o primeiro a articular desse modo a rela­
ção entre a culpa e o pecado, que não foi sempre assim, ao contrá­
rio do que se costuma acreditar. Na patrística anterior há muitas
A • • ' ab so.I u-
po lem1cas a esse respeito42 . permanece de pe,' com carater

42
E. Pagels, Adam, Eve and :t he Serpenc, New York, Vimag e Books, 1 989, cap. V e
VI.

121
O D E S E J O 0 0 P S I C A N A L I S T A

to, esse Seja feita a tua vontade.' como única saída para o sujeito.
O problema de santo Agostinho, que Duns Escoto resolve a seu
modo, é como conciliar Deus, criador ex-mlúlo, com a determi­
nação e com a temporalidade. Será que ele cria o tempo todo?
Criou tudo em seis dias?
A sol ução inovadora reside em que, na síntese aristotélico­
cristã da Idade Média, a necessidade no mundo estava vinculada à
cadeia causal. Escoto separou-se da tradição aristotélica que sus­
tenta uma legalidade chamada "necessidade condicional", necessi­
dade que dura certo tempo e não eternamente, que acontece na
vida dos sujeitos mortais, quer dizer, que não são imortais. Quase
toda a Idade Média aceitou essa necessidade condicional que Escoro
rejeita com a finalidade de acentuar a onipotência de Deus, pois
considera que, se um efeito qualquer deve ser contingente, a ativi­
dade da causa primeira, da qual esse efeito depende, deve ser ela
também contingeme43 .
Disso se deduz que a criação divina é contingente, poderia ter
sido outra. Assim, ele é o inventor dos mundos possíveis, atribu­
ídos primeiro a Leibniz. Para Duns Escoto, o mundo poderia ter
sido outro, segundo a decisão de Deus.
Ele introduz então a idéia de uma concatenação e de uma
multiplicidade de causas acidentais, contingentes, que confluem
para produzir um efeito necessário, no sentido de que é deduzido
das causas, mas que é contingente em sua essência. Desse ponto de
vista, a contingência assim formulada aproxima-se da sobredeter­
minação freudiana. Precisa-se de mais de uma causa para chegar a
essa solução, de várias cadeias causais que se cruzam, tal como
assinala Freud a respeito da associação livre.

41 C[ C. Normore, "Fucure comin cnrs" cm The C11nbdd e Hisrory olLacerMedie­


g g
v:,IPl11losopby, org. Kretzmann, Kenny & Pinborg, Cambridge, Cambridge U niver­
siry Prcss, 1 990, p. 368.

1 22
A L I E N A Ç Ã ü E S [ I' ,\ l\ A i_: ),, Cl

Para Lacan, o caminho de determinação pelo signiflcmtc, que


implica falta, perda e causa, é absolutamente contingen te. Qu;1l S 1
corresponderá ao sujeito? Lacan, no artigo "Observação !>obre o
relatório de D. Lagache . . . "41, compara-o com uma loteria cm que
se tira um número, um significante, do campo do Outro. Nin­
guém o tira, ele sai.
Portanto, este é o ponto que permite operar em psicanálise,
que nossa determinação seja contingente. Contingência que nos
permite assumir nossa causação, porque, se nossa causação fosse
absolutamente necessária, não haveria psicanálise, não seria possí­
vel se livrar psícanaliticamente do Seja feita wa vontade/referente
ao desejo do Outro.
A importância dos modos lógicos, dos últimos desenvolvi­
mentos, quando Lacan define o amor como um tornar necessária
a contingência do encontro, é outra maneira de formulá-lo. Toda
análise começa com uma necessidade suposta que cai como con­
tingência, que é e se mostra não-necessária. Apesar disso, pode-se
ir ou não ao encontro marcado. Inclusive no momento do terror
absoluto, que seria o momento em que o sujeito é livre sob o S 1 ,
porque está livre do sentido. A outra face dessa liberdade do senti­
do é a contingência da determinação, ainda que possa parecer pa­
radoxal. Uma determinação necessária como a determinação ge­
nética não pode ser evitada; com exceção da maniptJação dos genes,
que está prestes a acontecer, mas que ainda é intocável.
Sobre aquilo que é produto do significante é possível operar
mediante o significante: com o significante sem o sentido, em
primeiro lugar, e é possível operar, em segundo lugar, mediante
certo manuseio da temporalidade. A temporalidade articula-se,
nessa perspectiva, com a necessidade de fàcco, não com o a prion;

44 J. Lacan, "Observação sobre o informe de D. Lagache: 'Psican:.íli., e e cscrurur,1 da


"'
personalidade , em Escriros, 2, op. cit., pp. 636 e scg..

1 23
O D E S E I O D O l' S I C A N A L I S 'í A

mas com o a posteriori, porque toda significação, todo sentido,


inclusive toda produção, aparição ou queda do objeto a exige pelo
menos dois significantes, S 1 -S 2 •
Disp õe-se dessa maneira do marco com o qual se situa a pro­
b lemática do desejo do analista. Para além do fato de que o desejo
do analista impli que separar o ideal do objeto a, atuando como
u� operador que tende a distanciá-los e não a juntá-los, sua fun­
ção é, e por isso está condenado a ser derrocado - seria a tradução
mais adequada de déchéance, no sentido de caído, derrocado -,
porque o analista sabe que esse lugar que ocupa, como objeto
causa que deve advir, é produto de uma contingência e toda con­
tingência acab a, cessa. O necessário continua, é o que "não cessa
de se escrever", em termos da lógica modal posterior de Lacan.
A contingência deixa uma porca ab erta para o sujeito, mas
desdramatiza a queda do analista, que aceita ocupar o lugar da
contingência de estrutura, não de uma necessidade estrutural. Por
isso, convém lembrar aos analistas que não devem se sentir neces­
sários, pois no final da análise será revelada sua contingência: ces­
sarão de se escrever.

1 24
CAPÍTU LO 6
DESEJO DO PS ICANALI STA E OPERAÇÃO DE SEPA RAÇÃO

O objetivo do presente capítulo é articular a operação de se­


paração com o desejo do psicanalista e sua definição. Para isso,
retomaremos algumas observações sobre a separação:
O que colocará ali é sua própria falta sob a forma da falta
que produziria no Outro por seu próprio desaparecimento.
Desaparecimento que, por assim dizer, ele tem nas mãos,
da parte de si mesmo que lhe cabe po,r sua alienação primá-
• 1
na .

À margem do que desenvolvemos anteriormente, é preciso


lembrar que do lado da escolha forçada da alienação do "não pen­
so" está a falta do suj eito. Essa falta, produto da alienação, está
vinculada ao significante afanísico, o significante que obtura o que
o significante pode dar de "ser" ao sujeito, o S 1, que fica oculto,
unterdrück, por ação do S 2 . Essa falta que o S 1 instaura é recupe­
rada com a falta do sujeito como objeto para o Outro.
Portanto, existem duas faltas: 1) a falta produzida pela per­
da de ser intrínseca à alienação como operação, denominada fator
letal e 2) essa falta primeira oferece ao sujeito a possibilidade de
j ogar com a ausência de seu ser para experimentar a reação do
Outro diante de sua falta, sua ausência como objeto causa do de-

' J. Lacan, "Posición dei inconscience", em Escríros, 2, op. cit., p. 823.


125
O D E S E J O l) 0 I' S I C A N A L I S T A

sejo do Outro. Assim, o sujeito joga com a sua falta de ser em


outro nível. Surge então o jogo em torno da pergunra: será que
conseguirão suportar minha morte, meu desaparecimento? Expe­
riência observada comumente na criança - e não só na criança.
Basta lembrar a esse respeito as fantasias dos assim chamados adul­
tos sobre como o Outro sofrerá sua ausência, sob a forma da fan­
tasia de sua própria morte.
Portanto, S I e a estão associados, ambos podem ocupar o
lugar de Vorstel/w1gsrep1'á'sentanz, de representantes da represen­
tação, como se observa no Seminário XIII, onde a Vorstellungsre­
prá:Sentanzse torna as duas formas em que, pela ação do efeito de
linguagem e do efeito de palavra, se alude ao ser perdido do sujei­
to. Lacan fala indistintamente de um ou de outro enquanto Vors­
teflungsrepriisenranz, segundo o momento de sua obra, enfatizando
ora o S 1 , ora o a como representantes da representação, uma vez
que ambos podem ocupar o mesmo lugar. Sobre essas duas faltas,
que se articulam entre si, afirma:
O que preenche assim, com a volta de sua alienação primá­
ria [quer dizer, da perda do ser do significante, o S 1 ] , não é
a falha que encontra no Outro. É, antes, a da perda consti­
tuinte de uma de suas partes e pela qual se encontra consti­
tuído de duas panes [é o S] , entre ser e sentido [S 1 e sf.
A torção é essa torção já descrita, que se observa com clareza
no grupo de Klein, nessa passagem da esquerda para a direita e de
cima para baixo, do "não penso" para o "não sou", na qual surge o
objeto causa de desejo, quando a falta se torna perda, essa perda
que por sua vez se torna causa, causa de desejo. É possível pensar
topologicamente a torção. Manteremos, no entanto, a referência
ao grupo de Klein para dar continuidade à explicação e apresentar
algumas articulações a respeito do desejo do analista.

2
Ibid..

1 26
O f: S E I O lJ O I' S J C A N A L I S T A E O t' F 1� ,\ \- Â (l 11 { � 1 I' A. 1-: A I," /\ ( l

O ponto em que produz essa torção é aquele que na separa­


ção representa o regresso da alienação, assim como no Scmin,hio
)0/. A falta de sujeito provoca uma perda que retorna como c1 m:a
do desejo. Lacan deixou depois de chamar essa operação de "sepa­
ração", o que não muda muito as coisas; a operação continua sen­
do a mesma. Falta que induz a uma perda, perda que dá origem à
causa: "É que [o sujeito] opera com sua própria perda que o leva
novamente a seu ponto de partida"3 .
[. .. ] o "pudesse me perder" é seu recurso contra a opacidade
do que encontra no lugar do Outro como desejo, mas é para
remeter o sujeito à opacidade do ser que lhe retornou de seu
advento de sujeito, tal como primeiramente se produziu
4
pela intimação do Outro •

O ser do S 1 retorna sob uma forma nova de opacidade, pro­


duto do simbólico, que é o objeto a, que cai entre os dois
significantes, é a perda que se produz entre dois significantes. Ma.�
o interesse da formulação reside em que esse operar com sua perda
- não diz operar com sua falta, mas sim operar com sua perda - é
exatamente a operação própria e característica da análise no Semi­
nário XV. O com indica a função instrumental da perda. A perda
é um instrumento, algo com o qual se faz algo. Isso terá impor­
tância em formulações posteriores de Lacan sobre o lugar do ana­
lista em sua articulação com o objeto: é preciso deixar que façam
com ele.
Caráter instrumental do objeto, enfatizado em "Kant com
Sade"5, na perversão. No entanto, existe uma diferença essencial
em relação à posição perversa: sua função é ser instrumento causa
do desejo e n ão de gozo. Se a função analítica é desviada de sua

3
Ibid ..
" Ibid..
5 J. Lacan, "Kant con Sacie", op. cit., p. 752.

1 27
ü LJ E S l:. J O IJ O IJ S I C A N .·\ l. l S f A

relação com o desejo em direção ao gozo, é possível dizer que se


instalou uma " perversão" na transferência, no sentido de um uso
perverso da posição do analista, do qual ele pode ser absolutamen­
te inconsciente, sem dúvida, e que mais de uma vez é favorecido
por certos pacientes.
Operar em termos de gozo é operar em termos de recupera­
ção; operar em termos de desejo é operar em termos de perda. Por
essa razão, não há gozo para o analista no exercício de sua função,
não há gozo do "ser psicanalista". Lacan é taxativo a esse respeito
em Televjsão, por exemplo, quando afirma, com severidade sar­
dônica, que o lugar do analista, enquanto ele desempenha a fun­
ção que lhe é própria, é um lugar drenado e esvaziado de gozo. Se
há recuperação de gozo, ela se situa do lado do analisando, não do
lado do analista.
O sintagma "operar com a perda" equivale, em Lacan, a afir­
mar um "operar com a causa", com a causa do desejo do Outro.
O objetivo dessa afirmação - à qual se deve a escolha do exemplo,
tão claro e importante, da criança que joga com o fantasma de sua
própria morte, para obter uma resposta ao "será que o Outro gos­
ta de mim" - é mostrar a estrutura dessa prova pelo desejo que é
fundamental para o posicionamento do psicanalista. Observação
que será retomada na análise do último capítulo do Seminário XI,
para medir sua importância no que diz respeito à posição analítica
e ao final de análise.
Lacan escreve mais adiante:

A espera do advento desse ser [quer dizer, esse ser que é e


náo é, esse resto de subjetivaçáo] em sua relaçáo com o que
designamos como o desejo do analista, no que ele tem de
inadvertido, pelo menos até hoje, por sua própria posição, é
(;
a mola verdadeira e última do que constitui a transferência

'' ]. Lacan, "Posición dei i nconsciente", op. cít., p. 823.

1 28
D E 5 F. J O lJ O t' S I C A N A L I S T A F. O I' I· I{ ,\ l,," :\ t• ll 1 � 1 1• A I{ ,\ l," A C )

Podemos considerar como conclusão do examinado a1<- :tq\li


em "Posição do inconsciente": "Por isso a transferência <- uma re­
lação essencialmente ligada ao tempo e sua manipulaçlo" 1 .
Pode-se afirmar que em psicanálise não há forma de opera r
da causa ao efeito, pois em psicanálise as categorias em jogo não
são a priori, mas sim a posterion".
A categoria do a posrerioriimplica - em sua formulação clás­
sica, pelo menos na Idade Média e em alguns textos da Antigüida­
de - remontar do efeito à causa. Em psicanálise não se opera da
causa ao efeito, mas do efeito à causa. Muitos erros na direção da
cura consistem em partir da causa e não do efeito, em funcionar a
partir de um a priori, o a pâori do objeto, por exemplo. Sempre
ficamos maravilhados quando alguém consegue saber em duas
sessões qual é o objeto a de um analisando. Cabe pensar, nesses
casos, que provavelmente está em jogo um a priori ou o objeto
postiço do neurótico que Lacan descreve em "A angústia". Mas
esse objeto não é o objeto causa como tal. Chegar a essa causa
implica remontar do efeito à causa e passar alternadamente, mui­
tas vezes, pela falta e pela perda, não num movimento único, mas
num movimento muitas vezes repetido, até que se produz a per­
da, novamente, no final da análise.
Esse aspecto da operação de separação é fundamental, pois
não é à-toa que, no seminário "O ato psicanalítico", Lacan coloca
em primeiro lugar como escolha forçada o "não penso", a falta e
não a perda.
É preciso pensar que o sentido talvez mais importante da pro­
posta das entrevistas preliminares seja a busca do aparecimento do
efeito de falta, não do de perda, que na maioria das vezes requer
um longo trabalho.

7
Ibid. .

129
O 1) [ 5 1:. J O D O l' .S I C A N A l l S T A

Assiste-se hoje, com freqüência, a uma nova forma de apre­


sentação da demanda de análise. A demanda arremeda a posição
de sujeitos saídos de um final de análise lacaniano, mas carregados
de um padws sem duvida pré-analítico. Nada tem sentido, eles
nos dizem. Do que liberá-los então? A vida carece de sentido, não
existem ideais, seu comportamento é pragmático, "cínico" inclu­
sive. Arremedam, de maneiras diferentes, cena dimensão
caricaturesca do final cínico da análise. Frente a esses sujeitos cabe
se perguntar o que ocorreu com a formulação do final de análise
de Lacan como liberação do sentido e, conseqüentemente, voltar
a pensá-la. Poderia dar-se o caso de que, assim como se banalizou,
por razões que vão além da mera divulgação da psicanálise, o con­
ceito de castração, também tenha se banalizado o sem-sentido, de
forma tal que recebemos sujeitos que pedem análise quando estão
no que supostamente deve ser seu final, o que, sem dúvida, ques­
tiona a conceitualização do final.
É preciso aprofundar, portanto, o que quer dizer esse sem­
sentido da liberação do sentido, para que não seja confundido
com esse outro sem-sentido de que padece aquele para quem nada
tem sentido.
O sem-sentido ao qual Lacan se refere implica a sustentação
do que pode ser caracterizado metaforicamente como o "motor"
do desejo. Nos casos que acabamos de mencionar, o sem-sentido
é acompanhado de uma ausência notável de desejo. Temos uma
primeira resposta para nosso problema. O sem-sentido do final
de análise não pode ser confundido de modo algum com a ausên­
cia de desejo. Esclarecimento importante, pois essa apresentação é
muito comum hoje e se relaciona, a meu ver, com a dificuldade
da ordem simbólica para enfrentar a falta sob qualquer uma de
suas formas; isso exige refletir sobre como operar, não sobre o
sem-sentido, mas sobre o próprio desejo. A psicanálise opera so­
bre o desejo, não sobre o sem-sentido. Seria errado supor que o
problema é dar sentido a um sujeito, pois, quando ele recuperar

1 30
D E S l J O D O t> S I C A N A L I S T A E (l f' F 1� ,'\ ( Í\ O D [ S 1: P A H A Ç .� O

seu desejo, para além do sem-sentido de todo sentido, seu m otor


funcionará. Podemos reformular os casos antes mencionados, ca­
racterizando-os como sujeitos contidos, inibidos.
No capítulo XIX do Seminário XI, "Da interpretação à trans-
ferência", Lacan diz:
O sujeito tem uma relação com seu analista cujo centro é
esse significante privilegiado chamado ideal do eu, na me­
dida em que dali ele se sentirá tão satisfatório como amado.
Mas há outra função que institui uma identificação de uma
índole muito diferen te e que o processo de separação intro­
duz. Trata-se desse objeto privilegiado, descoberta da análi­
se, cuja realidade é puramente topológica, o objeto a. O
sujeito, pela função do objeto a, separa-se, deixa de estar
ligado à vacilação do ser, ao sentido que constitui o essencial
8
da alienação

Na vacilação entre ser e sentido, o objeto aparece separando o


sujeito da cadeia e permitindo-lhe certa estabilidade, cuja contra­
partida é essa fixação da topologia do sujeito n o instante do fan­
tasma que citamos acima, na qual .IS e a se combinam na fórmula
fantasmática que funciona como tela do desejo do Outro.
O complexo capítulo final, "Em ti mais do que cu", impli­
ca uma referência a santo Agostinho. O título do capítulo é uma
variação irônica de uma frase das Confissões e de outra do seu
livro Da Trindade. No livro III das Confissões, capítulo 6, lê-se:
"Existe um Eu em mim, dentro de mim, que é mais eu mesmo
do que eu" 9 .
Ele faz alusão a Deus, ao amor desse Outro, ''que está mais
em mim do que eu". A frase de Lacan é o inverso, "em ti mais do

8 J. Lacan, E} Semitwio, Libra 11, op. cit., p. 265 .


9 Santo Agostinho, Confêsiones, Libro III, cap. 6 .

1 31
O D E S E J O D O P S I C A N A L I S f A

que tu", que se relaciona com a posição particular do objeto a em


sua relação com o psicanalista.
Lacan inicia esse capítulo, por isso faz alusão a santo Agos­
tinho, com o problema da causa o riginal, realizando um contra­
ponto entre ciência, religião e psicanálise, que antecede os desen­
volvimentos de "A ciência e a verdade" . A psicanálise de modo
algum é articulada com a religião e sim com o Outro da ciência:
Na medida em que a ciência elide [termo forte em Lacan] ,
elude, seciona um campo determinado na dialética da alie­
nação do sujeiro, na medida em que se situa no ponto pre­
ciso que lhes defini como o da separação, é capaz de susten-
10
tar também o modo de ser do sábio, do homem de ciência .

A ciência se situa não em relação à alienação, mas em relação


à separação, quer dizer, com a perda e a causa:
Só poderemos conceber o alcance desse corpo da ciência
[constituído com o trabalho de todos os cientistas] , reco­
nhecendo, na relação subjetiva, o equivalente do que deno-
11
minei aqui o objeto a

Ele coloca, no lugar do a., o corpo do saber da ciência, enten­


dido como corpus de saber. A partir da pergunta acerca do que há
na análise que possa se reduzir ou não à ciência, afirma:
[ . . .) a análise implica, com efeito, um mais além da ciência
- de A Ciência no sentido moderno, cujo srarus tentarei
lhes mostrar no ponto de partida cartesiano. Esse aspecto é
o que coma a análise suscetível de receber o pe50 de uma
classificação que a coloque no nível de uma Igreja e, conse­
qüentemente, de uma religião - suas formas e sua história
l2
suscitaram certamente, com freqüência, essa analogia
10 J. Lacan, El SemÍnario, Dbro 11, op. cit., pp. 272- 3 .
li
Ibid., p. 273.
12
lbid ..

1 32
ü E. S E J O ü O 1-' S ! C A N A L 1 S T A f; O f' t R t\ ( Ã <} O I S f· J' /\ f( A 1.; Ã. O

A análise não é uma religião e se diferencia dela, pois:


Em toda religião, digna de ser considerada como tal, h;í [ ... ]
uma dimensão essencial que preserva algo operacional q11e
se chama um sacramento [ ... ]. N ão se pode evocar essa d i­
mensão operacional sem se dar conta de que, dentro da reli­
gião, e devido a razões muito definidas - separação, impo­
tência da razão, de nossa finitude - está assinalado o que foi
marcado pelo esquecimenco. P orque a análise [ . . . ] está
marcada por um esquecimento semelhante no que diz res­
peito ao fundamento de seu status, chegou a ficar marcado,
na cerimônia [quer dizer, na ritualização do setting analíti­
co] pelo que chamarei a mesma cara vazia. Mas a análise não
é uma religião. Provém do mesmo status que A Ciência.
Insere-se na falta central onde o suj eito se experimenta como
desejo . Tem até um starus de mediação, de aventura, na
hiância aberta no centro da dialética do sujeito e do Outro.
A análise não tem que esquecer nada, pois não implica reco­
nhecimento algum de uma substância sobre a qual preten­
da operar, nem sequer a [substância] da sexualidade. [ . . . ] . A
sexualidade só diz respeito à psicanálise na medida em que
se manifesta em forma de pulsão, no desfiladeiro do signifi­
cante, onde se constitui a dialética do suj eito no duplo tem-
11
po da alienação e da separação · .

Essa distinção é de extrema importância, pois esclarece o cará­


ter não-"sacramemal" da operação analítica. Operação que carece
de parentesco tanto com a magia como com a religião. Por isso,
quando o analista "esquece", no sentido do recalque, em vez de
"fingir esquecer" , sua operação adquire o caráter vazio do ritual,
situação pela qual grande p arte da análise pós-freudiana passou,
devido a seu esquecimento da obra de Freud.

13 Ibid., pp. 273-4. A tradução foi levemente modificada em alguns pomos.

1 33
O l) E S E J O D O li 8 1 C ,\ N A 1. 1 S T A

Para-além de qualquer cientificismo mal compreendido, psi­


canálise e ciência se conjugam de modo peculiar. O sujeitei da
ciê�cia, o cartesiano, é condição da psicanálise. Mas, mesmo as­
sim, a psicanálise vai duplamente além da ciência, primeiro ao
recuperar aquilo que ela exclui em sua fundação, o próprio sujei­
to, e, segundo, ao delimitar esse corp us da ciência como objeto a,
causador do desejo do Outro, que transformará de maneira radi­
cal nosso próprio corpo com sua invenção e infinitas próteses.
A pulsão, eixo da sexualidade em psicanálise, implica por si
só um corpus modificado pelo sim.bólico, até em suas raízes mais
reais. A comunhão religiosa é substituída, como sabemos, pela
comunhão do consumo, dessas próteses incessantemente renova­
das, que permitem confundir o objeto a, causa e real, com o obje­
to especular, que transita pelos caminhos do intercâmbio, apoia­
do no transitivismo e na rivalidade especular que a publicidade
sabe explorar. Fica oculto, assim, através de um ideal sempre
mutável, atrás das telas mais sólidas que o ser falante construiu, o
desejo que o determina. A impessoalidade do "mercado" o conde­
na, tal como um deus ex machina, a uma realidade onde a
virtualidade do fantasma como obturador do desejo do Outro
ass'!me a forma dos "efeitos especiais". Já Freud o havia previsto:
quanto maiores forem a mistificação e o consumo, mais os sujei­
tos irão se amparar nas "pequenas diferenças", não do caráter, mas
do hobby, o esporte, a coleção, para mencionar apenas algumas.
Uma vez destacado o fato de que não pode haver esqueci­
mento dessa falta, passa a se referir à formulação tradicional do
final de análise como liquidação da transferência:
Se a transferência é pôr em ação o inconsciente, isso quer
dizer que a transferência poderia liquidar o inconsciente?
[Lacan está jogando, sofiscicamente por assim dizer, com o
faro de que se a transferência é colocar em ato o inconscien­
te, liquidar a transferência é liquidar o inconsciente.] Será
q ue depois de uma análise não temos mais inconsciente?

1 34
O E ) E J O O O P S I C A N A L l S T .� f O I' E: 1� !\ ( A O 1 ) 1-. S l I' /\ � A (: J\ ( )

Ou será que é o suj eito ao qual se supõe saber [ . . . I que deve


ser liquidado como tal? [ . . . ] Assim, para que o termo liqui­
dação renha sentido, só pode se tratar da liquidação pcnn1-
nentc de�se engano pelo qual a transferência tende a se exer­
1·1.
cer no sentido do fechamento do inconsciente

A relação do amor de transferência, do espelhamento fasci­


nante de ser amável para o Outro, sustenta o amor de transferên­
cia como operando um fechamento do inconsciente, tal como
Freud havia assinalado:
A identificação é seu suporte. Serve de suporte para a pers­
pectiva escolhida pelo sujeito no campo do O utro, de onde
a identificação especular pode ser vista sob um aspecto que
procura satisfação. O ponto do ideal do eu é o ponto a par­
tir do qual o sujeito se verá, segundo dizem, como é visto
pelo outro - isto lhe permitirá se sustentar numa situação
dual satisfatória para ele do ponto de vista do amor15.

O analista opera de maneira i novadora a esse respeito e sua


operação é correlativa a esse objeto paradoxal, ünico, específico,
que é o a. Emerge a frase que alude a santo Agostinho: "Eu te
amo, mas porque inexplicavelmente amo em ti algo mais do que
tu, o objeto a, eu te mutilo" 16 • Essa frase é capital para entender
tudo o que é desenvolvido posteriormente neste capítulo. Para
isso, convém determiná-la em sua raiz, em como entender esse
"eu te mutilo".
A forma mais simples de entendê-lo e provavelmente a mais
acertada é remeter-se ao Seminário X, "A angústia". Já menciona­
mos a inversão particular que Lacan faz das etapas clássicas da libi-

14
Ibid., p. 275 .
15 Ibid., p. 276.
16 Ibid. .

1 35
O U E S E. J O D O 1> S I C A N A I. I S T A

do, ao sustentar que: "A primeira forma do desejo é desejo de


separação" 17 • O termo não é acidental, já estava presente no Semi­
nário X, no momento em que se define a cisão do objeto. A des­
crição que Lacan faz a respeito disso parece simples, mas é brilhan­
te e também revolucionária:
A criança cede o objeto que sente como próprio, mas o im­
portante é que a perda [destaco "perda"] não acontece, ela é
buscada. Essa busca da perda está associada à percepção do
desejo do Outro. A cessão do objeto é correlativa à desco-
18
berta do desejo como desejo do Outro

Na verdade, essa já é uma descrição da operação de separação.


Portanto, cabe se perguntar, dada a relação que existe entre a an­
gústia primordial e a cessão do objeto, no sentido que se adian­
tou, de que maneira a cessão se relaciona com a operação de sepa­
ração do Seminário XI e com a pergunta que lhe é própria: "pode
suportar minha perda?" . Perder-se para o Outro implica que o
luto fica do lado do Outro, o buraco fica do lado do Outro: na
cessão, portanto, produz-se o "eu te mutilo". O seio cai do lado
da criança e a mãe fica com o buraco.
Nesse movimento que Lacan descreve, fica claro que na frase
"eu te amo, mas porque inexplicavelmente amo em ti algo mais
do que tu, o objeto a [que não é nem do sujeito nem do Outro] ,
eu te mutilo". O exemplo do quadro de Zurbarán do martírio de
santa Ágata descreve a mesma coisa no S eminário X. Existe uma
notável constância nessa formulação; nela se repete o uso da pala­
vra "perda", perda que se torna causa. A perda, no entanto, é bus­
cada.
Essa busca da perda está ausente em Freud, não só nas teorias
da relação de objeto. Em Freud, está ausente o que pode ser qua-

17
J . Lacan, Semin,írio X, op. cic., lição de 26/6/63.
\B Ibid . .

1 36
D E S E. I O lJ O P S I C. A N A l 1 $ T A C. O I' t 1� J\ ( ,\ ( 1 1) 1 S I J' ,\ )\ A ( Ã O

lificado como o entusiasmo da perda, que deve ser di krcnci:ido


da devoção à causa perdida à qual se alude no final de ''Suhvers;i_o
do sujeito ... " 19 , ao narcisismo da causa perdida, em que o sujc.:i t o
s e torna múmia d a iniciação budista, por exemplo. Trata-se, pelo
contrário, desse momento em que o sujeito se perde para se tornar
causa. A posição de Lacan a respeito da perda não é uma posição
pessimista.
Também não se pode considerar e.ssa perda em termos de um
luto b em elaborado, porque o luto está no O utro. Por essa razão,
a pergunta se localiza na prova, já explícita no Seminário XI, desse
"pode me perder?". A prova do desejo é s empre uma prova de
quanto o outro me deseja, o quanto sou causa para ele, não a
perda do outro como objeto.
Por isso é coerente que Lacan defina o luto indicando que só
se pode fazer o luto p or aquele cuja causa fomos, não por aquele
que foi nosso ob jeto, mas por aquele cujo objeto causa fomos.
Essa é uma nova virada a respeito da forma convencional de enfocar
a perda em tJsicanálise, cujas conseqüências clínicas são extrema­
mente importantes e mais do que evidentes na psicanálise com
crianças. Implica, no que diz respeito à direção da cura, a predo­
minância da função da "perda buscada" em sua diferença com o
luto.
Esse "amo em ti algo mais do que tu, o objeto a, e por isso eu
te mutilo" oferece uma idéia bastante exata de por q ue Lacan co­
loca a queda e a perda do lado do analista, ao ser este derrocado de
sua posição de sujeito suposto saber. Está asseverando, simples­
mente, que o luto, o buraco, deve ficar no nível desse desejo de
diferença absoluta que é o desejo do analista, do qual nos aproxi­
mamos pouco a pouco.
Quero dizer que a manobra e a operação da transferência
devem ser reguladas de maneira q ue se mantenha a distân-

19
J. Lacan, "Subversíon dei suj cro...", op. cic., pp. 806-7.

1 37
O l) { S E ) O IJ (J 1' 5 1 C A N .'\ L I S I A

eia entre o ponto onde o sujeito se vê a si mesmo amável e


esse outro ponto onde o sujeito se vê causado como falta
pelo objeto a., e onde o objeto ,1 vem tampar a hiância que
constitui a divisão original do sujeito
20

Cabe destacar que aqui a operação se realiza ao contrário. Ela


avança do efeito à causa e da causa mesma ao efeito da primeira
causa, material, que é a perda induzida pelo próprio significante -
a perda de naturalidade em termos das primeiras formulações de
Lacan - que atravessa e divide o sujeito de maneira originária. O
objeto a obtura essa hiância e essa divisão. O que começa sendo,
na separação , uma liberação , separar-se transformando a falta em
perda e a perda em causa, assume uma nova dimensão. Quando se
conjugam, por uma operação topológica particular - a do cross­
cap -, o objeto e o sujeito, quer dizer, a banda de Moebius e o
resto-disco de certo corte sobre o cross-cap, o fantasma, ao produ­
zir um completamento, obtura ao mesmo tempo o desejo do
Outro e o sujeito, ocupando o lugar da sua causa. Por isso, em
"Posição do inconsciente", a separação é definida como projetan­
do a topologia do sujeito no instante do fantasma.
A separação, portanto, é concomitante à cristalização do fan­
tasma, à produção do segundo termo do fantasma. Termos lógi­
cos, pois entre as o perações existe urna relação lógica, não uma
relação cronológica.
A separação implica uma posição ativa do sujeito a respeito
de sua perda. Ao brincar com a perda do que ele é como objeto
causa para o Outro, o surgimento do desejo do Outro fará deste o
lugar onde o fantasma se instalará, reunindo o produto da aliena­
ção, o 3 com o a, produto da separação.

20
J. Lacan, E/ ScmÍmrio, L1h1-o 11, op. de. , p. 278.

1 38
lJ E S E J O l) O P S I C A N A L I S T A L O I' l 1� /\ ( A o ll I S 1. P /\ 1,: A �: A O

Da operação de separa�ão ao desejo do psicanalista

A formulação do desejo do psicanalista, presente no último


capítulo do Seminário XI, exige, para ser compreendida, que par­
tamos da relação que Lacan estabelece ali entre transferência e
pulsão, que se esclarece a partir do apres-coup do Seminário XV:
[ . . . ] se a transferência é aquilo que da pulsão afasta a deman­
d a, o desejo do analista é aquilo que a leva de volta à pulsão.
E, por essa via, isola o objeto a, situa-o à maior distância
possível do I, que o analista é chamado pelo sujeito a encarnar.
O analista deve abandonar essa idealização p ara servir de
suporte ao objeto a separador, na medida em que seu desejo
lhe permite, mediante uma hipnose às avessas, encarnar o
hipnotizado. [ . . . ] . É possível atravessar o plano da identifi­
cação, por meio da separação do sujeito na experiência, por­
que o desejo do analista continua sendo um x, não tende à
identificação a não ser no sentido exatamente contrário. As­
sim, leva-se a experiência do sujeito ao plano em que pode
21
se presentificar, da realidade do inconsciente, a pulsão •

O que ocorre com o sujeito que realizou essa experiência?


Lacan responde no últim o parágrafo da parte 2:
e aparece tudo o que cem a ver com a saída da análise, a
saber, depois da delimitação do sujeito a respeito do a, a
22.
experiência do fantasma fundamental torna-se a da pulsão

Formulação fundamental em Lacan. Quase no final, antes de


dar a formulação do desejo do analista como um desejo puro, diz:
O amor [ . . .] só pode se colocar nesse para-além onde renun­
ciou a seu objeto [trata-se do objeto de amor, não. do objeto

21
J. Lacan, E/ Semínarío, Libm 1 1, op. cit., pp. 281 -2.
22
Ibid., p. 28 1 .

1 39
O D E S E J O D O P S I CA N A L I S TA

causa] ; isso nos permite compreender que para que possa se


constituir ou se instituir uma relação vivível, temperada, de
um sexo com o outro, é preciso a intervenção, é o ensina­
mento da psicanálise, desse medium que é a metáfora pater-
23
na

Essa afirmação confunde se o leitor não se dá conta de que é


essa significação de um amor sem limites que implica uma remis­
são ao Seminário "A transferência" e à definição que dá ali da
metáfora do amor. Lacan não diz "amor" simplesmente, mas a
significação de um amor e menciona antes a metáfora. Portamo,
cabe articular essa significação de um amor sem limites com os
desenvolvimentos de "A transferência" sobre a metáfora do amor,
indispensável para dar conta do que quer dizer "um amor sem
limites". Essa expressão não é tão complexa se nos ativermos aos
significantes de sua teoria com os quais Lacan a delimita. Há uma
série de pistas muito claras e concretas- metáfora paterna, signifi­
cação de amor, etc - para dar conta de como se articulam a signi­
ficação de um amor sem limites, o desejo do analista como dife­
rença absoluta e a função da l ei.
A passagem prévia indispensável é uma leitura da parte 3 do
último capítulo do Seminário XI, onde se desenvolve o problema
da causa, por um lado, e o da significação de amor, por outro.
A continuação, realizaremos uma análise dessa separação do
sujeito na experiência. Na parte 3, lê-se:
Na medida em que Espinosa diz o desejo é a essência do
homem e na medida em que instituí esse desejo na depen­
dência radical da universalidade dos atributos divinos, só
concebível mediante a função do significante [.. . ] obtém a
posição única mediante a qual o filósofo pode confundir-se

2·1 Ibid., pp. 283-4.

140
l) E S E I O L) O \1 5 1 C A N A l I S T A E O 1• L 1-! A. <,: A O IJ I S f· I' A R A �: A O

com um amor transcendente - não deixa de ter sua impor­


tância que seja um j udeu separado de sua trad iç:io tJlle a
24
encarne

Primeira introdução, então, do amor, que cabe cotejar com a


frase final do Seminário: "Só ali pode surgir a significação de um
amor sem limites [ . . . ] " 25 . Essa afirmação não deve ser entendida
no sentido de um amor transcendente, que, segundo Lacan: "Para
nós é uma posição insustentável"26 • Primeira conclusão a ser
esclarecida: a significação de um amor sem limites não deve ser
equiparada à de um amor transcendente.
Acrescenta em seguida:
A experiência nos mostra que Kant é mais verdadeiro e eu
p rovei que sua teoria da consciência [moral] , como escreve,
da razão prática, só se sustenta onde uma especificação da
lei moral que, ao ser examinada em detalhe, não é outra
coisa senão o desejo em estado puro, quer dizer, esse desejo
que culmina no sacrifício, de tudo o que é objeto de amor
em sua ternura humana [ . . . ] - digo mesmo, não é a rejeição
do objeto patológico, mas seu sacrifício e assassinato efetivo.
Por isso escrevi "Kant com Sade". Destaco que não culmina
cm qualquer sacrifício, mas no "sacrifício do objeto de amor
27
em sua ternura h umana,,

O desejo em estado puro implica o sacrifício do objeto de


amor e não, pelo contrário, do objeto em sua relação com o
desejo.

" lbid., p. 28 3 .
25
Ibid., p . 284.
26 lbid., p . 283.
27
Ibid..

1 41
O lJ E S F. l ü ü O f> S 1 C A N A L l $ T A

Lacan destaca que o pathos da lei moral, que ele identifica


com o desej o, é o pathosdo objeto de amor, inseparável da ternu­
ra humana. Conseqüentemente:
Esse é um exemp lo do efeito de desen gano que a psicanálise
exerce sobre todos os esforços, inclusive os mais nobres, da
ética tradicional. Posição-limite esta que nos permite captar
que o homem não pode sequer esboçar sua situação num
pretenso campo de conhecimento reencontrado, sem alcan­
çar antes o limite ao qual está encadeado como desejo. O
amor, que na opinião de alguns quisemos degradar, só pode
28.
se colocar nesse para-além, onde renunciou a seu objeto

A posição própria do psicanalista não é a posição do desenga­


nado. O próprio desejo é um limite e opera como limite da liber­
dade do sujeito, por isso alude a um para-além de um limite,
para-além que exige ser definido.
Só para-além, tendo ultrapassado o limite do desejo do Ou­
tro, pode aparecer um amor, que renunciou ao objeto de amor no
sentido da ternura humana, no sentido habitual dos galanteios
narcisistas ou dos efeitos narcisistas do amor. Todos esses termos
que foram destacados reaparecem na parte final, aparentemente
tão enigmática, mas não tanto numa leitura cuidadosa do texto.
Continuo a leitura:
isso nos permite compreender que para que possa se consti­
tuir ou se instituir uma relação vivível, temperada, de um
sexo com o outro, é preciso a intervenção, é o ensinamento
29
da psicanálise, desse medÍum que é a metáfora paterna

Isso implica, conseqüentemente, a introdução da lei, do


Nome-do-Pai, da metáfora paterna. É preciso diferenciar as duas

28 Ibid..
2
? Ibid., pp. 283-4.

1 42
L) E S F. J O l) O P S I C A N A. L I S l A t O I' F. R A \ i\ l 1 1t 1 ', 1 1' -\ F .,, t. '\ • 1

observações aqui presentes: 1 ) é preciso ir além do limil L' d 1 i dn('


jo e da articulação entre o obj eto do amor e o desejo; 2) 1 1 1 L·s1 1 1 1 1
nesse Seminário, ele considera que a metáfora paterna é o q11c
permite uma relação temperada, devido à sua função pacificador;1
- como sustenta desde cedo no seu ensino. Sua introdução não é
fortuita; ela permite, como sugerira no Seminário "As formações
do inconsciente", uma relação temperada entre os sexos, pacifica­
da, a operação da dimensão pacificadora que a lei e o Nome do
Pai têm em Lacan desde o início, desde "A agressividade em psica­
nálise" ou "A causalidade psíquica". A introdução da metáfora
paterna é sua condição e sua introdução não é fortuita, é a maneira
como Lacan remete à lei, o que permite entender o que vem de­
pois.
O último parágrafo do Seminário diz:
O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de
obter a diferença absoluta, que intervém quando o sujeito ,
confrontado com o significante primordial, acede pela pri­
meira vez à posição de sujeição a ele. Só aí pode surgir a
significação de um amor sem limites, por estar fora dos li­
º
mites da lei, único lugar onde pode vive/ .

Primeira observação: Lacan se refere a uma "significação de


amor", não a um "significante do amor", que surge depois do
enfrentamento com o S 1 primordial, tal como se articula na alie­
nação e na separação, quando o sujeito não está mais sub metido
ao S1 • Lacan o escreverá no discurso analítico como a produção do
S1 no final da análise. Esse amor, que é uma significação, só pode
viver fora dos limites da lei. Que lei? A lei que pacifica a relação
entre os sexos, por isso esse amor se articula com o que se chama­
rá, mais tarde, carta-letra de amuro � fazendo um jogo com a

30 lbid., p. 284.

1 43
O l) E 5 E J ü 1) O I' S l C ,\ N A l I S T /1.

1101110,oma A o amur e, o amor que


c · de " amur" e amour em frances.
se funda na contingência estrutural do encontro com o objeto
causa de desejo; que não está submetido à convivência temperada
dos sexos, que está para além de um ou outro sexo, no nível do
objeto a-sexuado, do objeto como causa e como mais de gozar.
Por que é um desejo que não é puro? Não é puro, pois deve
desejar obter a diferença absoluta do sign ificante, essa que desde
Saussure separa um significante de qualquer outro significante,
deve produzir o espaço, o intervalo da diferença absoluta; deve
desejar obtê-lo.
É possível realizar aqui uma nova observação a respeito do
desejo do psicanalista. Não apenas o desejo do analista tem que
oferecer o entre-dois vazio para que ali apareça o desejo do pacien­
te, mas tem que querer obter essa diferença. Por isso não é puro,
pois o desejo do analista é se situar nesse lugar, nessa pura diferen­
ça entre S 1 e S 2 onde está situado o objeto a, para que o analisando
ace�a ao limite em que pode aparecer um amor não submetido
necessariamente ao regime da lei e da metáfora paterna, mas sub­
metido ao regime do encontro contingente.
Em termos do Seminário XI, esse amor sem limites se articu­
la com a tychê, que é alcançada para além do aucomaton. Coisa
nada fácil. Não é o parágrafo em si que é complicado, mas a tarefa
que implica e o ser dignos dela. Desse modo, não é permitido ao
analista amar o paciente. O que de saída exclui qualquer teoria da
maternagem ou, inclusive, da paternagem, que não se deve con­
fundir com operar, em certo momento, em função da metáfora
paterna, como forma da direção da cura e não enquanto expressão
de um sentimento pessoal.
A remissão a Kant não é um capricho erudito; indica que esse
desejo impuro de pura diferença é uma regra universal para os
psicanalistas. Percebe-se que se está muito longe de uma regra téc­
nica, pois na direção da cura essa regra não é aplicável de qualquer
maneira, mecanicamente. Supor-se de saída nesse lugar é ridículo,

144
l) E S E j () l) 0 I' S t C 1\ N A l l $ T ,\ F. () I' 1 !\ ,\ 1, ,, • 1 1J 1 '. 1 I' , r: •. •. \ •,

é irrisório, uma imitação, uma incompreens;ío d o q 1 1 ( · l ,;H : 1 1 1 .d i r


ma: que se exige do analista ter ido um pouco além d a u i1 1 1 p:1i x:11 ,
para estar à altura de sua função.
Quando no Seminário VII retoma o tema da ca t a rsl'
aristotélica, Lacan destaca que ela, como é sabido, se situa p a ra
além do amor e da compaixão. Nesse Seminário, a referência é
um aviso, uma advertência de que também não lhe é permitida a
posição sádica. Nem o amor, nem o ódio, nem a manipulação
sádica da transferência lhe são permitidos, exceto quando, em al­
gum momento da direção da cura, depois de realizar um cálculo
cuidadoso, decidir realizar uma vacilação da neutralidade num ou
noutro sentido. Vacilação que não se funda na contratransferên­
cia, na mera percepção de seus próprios sentimentos. Em diversas
o casiões, Lacan indica que quando surgem "sentimentos"
contratransferenciais o melhor é calar a boca. O analista não opera
por impulso contracransferencial; opera porque, a partir desse de­
sejo impuro de uma diferença absoluta, pode se esquecer do padws,
mas não só daquele paciente, mas do patfws na direção da cura,
mesmo quando o leva em conta. Às vezes, como diz nos seus
primeiros trabalhos, pode ser simplesmente um indicador da rea­
ção especular a--a 'que lhe é intrínseca.
Sua ancoragem é essa impureza de querer uma diferença ab­
soluta e ter por isso renunciado ao objeto de amor e de ternura
humana. Lacan é claro a respeito disso. Não descarta essa posição,
mas considera que a posição amorosa é o fundamento da posição
educativa; é a pa1déia grega. Essa paídéía pode ser usada, em certos
momentos, mas tendo claro que ela não é a meta da psicanálise. A
meta da psicanálise, para Lacan, é que o sujeito obtenha certa
margem de liberdade em relação ao lugar que ocupou como obje­
to do desejo como desejo do Outro. Para isso, o desejo do analis­
ta deve buscar essa diferença absoluta que permita a separação do
sujeito na experiência.

145
A N EXO
LÓG ICAS DA ESCOLA EM PSICANÁL ISE

Para começar, dois esclarecimentos. Em primeiro lugar, co­


meçarei minha exposição referindo-me a certos fatos históricos,
relacionados com o Campo Freudiano, dos quais participei; em
segundo lugar, o esquema que está no quadro-negro (ver página
seguinte) diz respeito à pergunta de fundo que está em jogo hoje,
à qual me referirei na segunda parte da minha exposição, que se
relaciona com as lógicas em jogo no debate sobre a Escola e que
constitui, para mim, o ponto central implícito nele.
Em quase todos os materiais que recebemos até o momento,
no que diz respeito ao projeto enviado pela Escola Européia, alu­
de-se a uma lógica. Essa lógica em momento nenhum é explicitada
e tentarei explicitá-la a partir da reflexão acerca da lógica da minha
própria posição, que data de oito anos atrás, realizando um con­
traponto entre ambas.
O articulador que me permitirá realizar esse contraponto é
uma lógica do conj unto aberto, tal como Lacan a apresenta a par­
tir das fórmulas da sexuação. É necessária também a relação que
Lacan estabelece entre essas fórmulas - em "O saber do psicanalis­
ta", por um lado, e no Seminário XXI - e os modos lógicos cm
sua relação com o amor. Desenvolvimentos que sistematizou 1 1 0
esquema ao qual me referi antes.

1 47
FÓRMULAS DA SEXUAÇÃO, MODOS LÓGICOS DO AMOR E TRANSFERÊNCIA

CONJUNTO FECHADO ii!!
�! CONJUNTO ABERTO

�:;

li!
SEXUAÇÃO FÁLICA SEXUAÇÃO DO NÃO-TODO

Neforaclusivo Necessário l�f Impossível e

Carta de amor [I Nediscordancial Amor cortês


e;

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L Ó G I C A S L) ,\ E S C O i. A '"- M l ' S I C: t\ N Á I. I S E

P rocederei, então, me referindo à primeira parte, mais


anedótica. Gostaria de esclarecer que quando fui a Caracas, no ano
de 1 983, não me opus de modo algum a que na Venezuela hou­
vesse uma só Escola; mesmo porque não havia possibil idade de
que houvesse outra. Existia um único grupo e esse grupo foi o que
se constituiu como Escola. Gostaria de esclarecer também que, se
tivesse prestado atenção ao que vários colegas argentinos me dizi­
am em Caracas, teria pensado que na Venezuela os sujeitos não
tinham possibilidade de aceder ao lacanismo, já que se supunha
que a ordem simbólica venezuelana não o permitia. Vale lembrar
que a Escola de Caracas, cujos membros são na sua grande maioria
venezuelanos, a cujo cargo deixei a gerência da Escola pouco de­
pois de ir embora, mantendo somente uma presença simbólica no
caso de que se produzissem certos problemas, continua funcio­
nando. Se tivesse tido o critério elitista de que sou acusada não
existiria uma Escola, nem psicanálise lacaniana em Caracas.
Com freqüência - e acredito que seja importante assinalá-lo,
pois se esquecem disso -, ao pretender urna transmissão homogê-
. nea, fácil e simples de Lacan, corre-se o risco de vulgarizá-lo e j á
sabemos n o que deu a vulgata de Freud. Essa posição implica uma
profunda desvalorização do outro. Não penso, em princípio, que
o outro seja idiota. Acredito que terá de fazer um esforço para
aceder a um ensino que não tem quase nada de fácil. Mas acredito
também que quem quiser assumir o desafio pode fazê-lo. Não
estou disposta a aceitar, no entanto , que isso seja feito sem rigor
teórico .
O esquema que está aí (ver página anterior) me permite reto­
mar algo que está presente desde que cheguei, há praticamente
oito anos, na Argentina. Refiro-me a uma discussão que pode ser
nova para muitos, hoje, mas que para mim não é. Refiro-me à
discussão acerca da Escola única na Argentina. Quando cheguei,
em 1 983, Miller já queria que se fizesse a Escola única e eu não
aceitei.

1 49
O IJ l: S E J O U O P S I C A N .J\ L I S I J\

Ao chegar a Buenos Aires, depois de oito anos de ausência,


acredito que podia dizer claramente uma coisa: não me sentia no
direito de assumir nem a fundação, nem a criação, nem nada que
se parecesse com uma Escola, num lugar do qual havia estado
ausente durante oito anos e no qual houvera muito trabalho de
outras pessoas que permaneceram no país e, a meu ver, esse traba­
lho· devia ser respeitado.
Por outro lado, voltar a Buenos Aires foi outra migração. É
preciso revalidar seus títulos e a única forma de fazer isso é me­
diante o trabalho e não mediante as honras que lhe tenham sido
outorgadas. Eu diria que me dediquei a isso durante todo este
tempo.
O que não está claro, ou calvez vocês não saibam, são todas as
vezes que durante este tempo Miller me pediu que fundasse a
Escola única e que não aceitei fazê-lo. Inclusive, numa dessas car­
tas recebidas, afirma-se que o termo "escola" não pode ser usado.
Esse não foi o caso, nem mesmo em 1 988, quando a SABA foi
fundada, quando q uem decidi u não usar esse termo fui eu. Não
porque alguém tivesse me proibido de fazer isso, mas porque mi­
nha lógica é a mesma que a fundação da Escola Freudiana de Paris
por Lacan ensina, uma lógica do apres-coup.
Acredito que uma Escola se funda e se define no apres-coup,
não em avant-coup. Minha impressão era que lançá-la antes de
tempo era lançá-la em avant-coup, quer dizer, antes que um tra­
balho tivesse sido feito.
Faço essa observação, portanto, para dizer que estou cansada
dessa discussão, porque a mantenho há oito anos. Oito anos não é
pouco tempo. Devo dizer que até os últimos documentos talvez
não me fosse possível discriminar a lógica de duas posições dife­
rentes diante desse problema, que é aquilo de que me interessa
falar, depois de fazer mais alguns comentários nesse sentido;
[ ... ] . Esse debate nos coloca diante <le dois projetos diferen­
tes, que em algum momento podem ser incompatíveis e que de

1 50
1. (> e I e A s l) A í: s e o 1. A t: M 1 1 � 1 [' /\ N /\ 1 1 ,, 1

algum modo constituem cerco acordo que foi rompido, q 1 w l é , 1:1


estabelecido em janeiro do ano passado, janeiro de \ t)')O, d q 10 i .�
do colóquio sobre a dissolução, acerca da possibilid ack· d(' q 1 w
existissem pelo menos dois pólos d e Escola n a Argentina.
Gostaria de esclarecer que o um unificante não me é sim p;ÍI i­
co. Lacan também nunca falou maravilhas dele, referindo-se a ele
de maneira bastante pej orativa. O ponto a ser levado em conta
talvez seja o Seminário central, central não porque seja o único,
mas porque marca o momento de início da reflexão em torno do
passe, que é o seminário "O ato psicanalítico", em que Lacan apre­
senta o germe das fórmulas de sexuação ao introduzir a fórmula i/
ya du Psychanalysce, em castelhano, haypsicoanalista [em portu­
guês: há psicanalista] , sem o artigo definido, que permitirá depois
o desenvolvimento de uma lógica do não-todo, que não surge por
acaso em torno da pergunta do que é o psicanalista como univer­
sal. Para Lacan, "o" psicanal ista como universal tem o "o" tão
barrado q uanto a mulher barrada tem o "A" das fórmulas da
sexuação barrado.
O Colóquio sobre a dissolução, que se desenvolveu no ano
passado em Paris (janeiro de 1 990) , foi parcialmente publicado
num número de L /Ínc que se chama "O tumulto"; digo parcial­
mente porque não foram incluídos os discursos de encerramento.
Fiz um desses discursos e assinalei algo que me parecia alarmante
depois de ter escutado os dois dias do colóquio. O que me parecia
alarmante era a idealização da crise. Era um viva a crise, a crise
acorda. Parece-me correto que acorde, em Paris. Agora, acredito
que nossa situação a respeito da crise é um pouco diferente. Nós
vivemos em crise e começando do zero. A prnva disso é a série
sucessiva de planos econômicos nos quais se começa o tempo todo
do zero. Um depois do outro. Isso também tem a ver com a
fragilidade das instituições na Argentina, fragilidade que não tem
nada a ver com a solidez das instituições na Europa. Isso diz res­
peito inclusive às Escolas. Lacan não toma como referência só as

151
O D F. S [ J U lJ O P S l ( A N A L I S T 1\

Escolas da filosofia antiga como fundamento do uso do termo


"Escola", mas também toma de maneira implícita a presença de
certas Escolas muito importantes na França como a Escola Nor­
m�l Superior, a Escola Politécnica, a Escola ·de Altos Estudos
Comerciais, etc, que representam o lugar mais exigente e mais
difícil de formação, muito mais que a Universidade. Quer dizer,
elas são a universidade de elite na França. Elas já têm mais de um
século, o que não é nossa situação. Ao dizer nossa situação, refiro­
me em geral a toda a América Latina, não só à Argentina. Portan­
to, acredito que o termo "Escola" se insere na Europa num con­
texto simbólico muito diferente do nosso, da nossa realidade aqui.
O que quero dizer com isso? Que me parecia que a crise era
idealizada e que viver em crise permanente como ocorre conosco
não permite pensar; j ustamente por isso, chamava-me a atenção a
leviandade do uso da palavra "crise". Diria até que a palavra "crise"
estava sendo banalizada. Acredito que isso podia ser chocante para
alguém que tinha acabado, como eu, como todos vocês, de passar
esse fim de ano negro (fim de 1 989) que todos lembramos e que
é um dos tantos momentos negros que passamos aqui. Então,
realmente, idealizar a crise como crise permanente me parece ab­
surdo '. j:\ssi-m como também me parece absurdo transportar para a
J\.rgentina uma crise que não nos faz falta, que foi o que aconte­
ceu, na minha opinião.
Cada uma de nossas crises é pior que um nó de Lacan; é um
furacão, mais um terremoto, mais um maremoto, mais um mon­
tão de outras coisas e s ua seqüela de epidemias. Elas nos rondam e
determinam a dificuldade que existe, entre nós, de constituir ins­
tituições que tenham um mínimo de estabilidade. Destruí-las
quando mal começaram a caminhar me parece extremamente
imprudente e me parece que só pode vir de um esquema que pode
ser válido em outro lugar, validade que não questiono.
Quando na carta do Conselho da SABA esclarece-se que a
idéia de uma Escola única implica o desaparecimento da SABA

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1. Ú G I C A S L) ;\ l � C () 1, ,\ i' M 1' �; I e· A N A 1 1 S 1

como tal e sua fusão, seu desaparecimen to e sm incl usão den tro
dessa Escola, o Conselho se opõe a isso, precisamente porque pen­
samos que é destruir aquilo que leva muito tempo para ser
construído. Isso é válido não só para a SABA. Na minha opinião,
é válido para o Seminário Lacaniano, para o Simpósio do Campo
Freudiano, etc e para aquelas instituições do interior que têm sua
história e sua trajetória.
Acredito que, se as coisas tivessem sido feitas com menos pre­
cipitação, em algum momento teria havido uma confluênoia, uma
confluência das gerações mais jovens. Mas forçar essa confluência
de cima não me parece adequado.
Portanto, eu teria preferido esperar que certa articulação se
desse no momento apropriado. Nossa temporalidade, apesar de
tudo, e apesar do engano desse objeto da ciência que é o fax, não é
a mesma que a da Europa. Com isso refiro-me à nossa temporali­
dade como s ujeitos. Podemos pensá-la em termos de avanr-coup
ou apres-co up. Temos uma série de formas de pensá-la em Lacan.
Mas não podemos pensá-la a partir da foraclusão do suj�ito e é
precisamente aqui que considero que há algo importante para as­
sinalar, que diz respeito, por um lado, à dimensão do tempo e,
por outro, à dimensão do espaço.
No que diz respeito à dimensão do espaço, diria q ue o con­
ceito de rede do Campo Freudiano começa a se deslocar em dire­
ção ao conceito de um campo com um centro. Não me preocupa
que esse centro esteja na Europa, seria igualmente incômodo que
estivesse na Argentina; simplesmente prefiro ser fiel ao discurso de
Lacan contra o centro quando assinala que, precisamente, a verda­
deira revolução é a de Kepler com a elipse. Isso quer dizer que
tudo que acarrete o conceito de um centro de irradiação aponta
indiscutivelmente para um todo, um todo que Lacan qualifica
como imaginário e como o todo do um unificante. No Seminá­
rio O avesso da psicanálise, Lacan assinala que esse rodo do um
unificante é próprio do discurso do político e o opõe ao discurso
analítico.

1 53
Ü O ( S f. 1 0 tJ O 1' 5 1 C A N A L I S 'l /\

Pois bem, não digo isso porque pense que seja necessário fa­
zer uma denúncia do S 1 ou do discurso do Senhor, mas porque
estou pensando em qual é a lógica alternativa que, a partir desses
fatos que para mim se tornaram evidentes ao chegar a Buenos
Aires, me impulsionou a pensar numa pluralidade de Escola em
vez de numa só, que é ao que quero chegar pouco a pouco, à
lógica que funda ambas as posições e diante da qual, acredito, cabe
a cada sujeito decidir qual é a sua.
Na apresentação inicial da SABA, à qual não tenho pratica­
mente nada a acrescentar ou corrigir, abria-se a possibilidade de
preparar o advento de uma Escola, pensada basicamente como
uma Escola em termos da SABA, o que implicava a garantia. Acre­
dito que fica claro que a garantia não existe, o significante do A
barrado é justamente a falta de garantia, o não há Outro do Outro
com o qual estamos familiarizados no ensino de Lacan. Assumir o
risco da garantia implica assumir necessariamente o risco do erro.
Acontece com as nominações de AME, assim corno com o dispo­
sitivo do passe, ao qual gostaria agora de me referir especificamen­
te. Se há u!11 ponto em que não estou em desacordo, este é, por
exemplo, o\passe na entrada. Acho, sim, que de fato não é muito
interessam�: numa determinada perspectiva, com relação ao con­
ceito forte de passe de Lacan. Chamo de conceito forre o passe
como pr�cedimento para recolher testemunhos de uma clínica do
final de análise. Parece-me que esse é o desafio que Lacan nos
deixou e que não pode ser deixado de lado.
· Por outro lado, muitas pessoas chegaram a reclamar às vezes
da maneira como se entrava na SABA, por não se darem explica­
ções. Lembro de ter respondido uma vez que tínhamos como
referência o caso a caso. Precisamente por isso, o que Miller des­
creve como um passe na entrada é algo que acredito que não só a
SABA e o Conselho da SABA fizeram, ao aceitar seus membros,
quer dizer, avaliar os pontos de sua análise e fazê-lo nesses termos,
mas várias outras instituições e não só a SABA o fizeram. Diria

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L () (; 1 r. A S L) A F. 5 C O !. A 1 1--1 I' '.'. 1 1 .-\ N A I l :, 1

que é quase um lugar comum da situação anal ítica avaliar se al­


guém está em análise, se a análise teve efeitos sobre ele. Fssl' <'.: o
ponto central sobre o qual realmente existe um acordo. ( ) prohlc­
ma é que não vejo novidade, por assim dizer, pois inclusive part e
disso já estava, se olhamos para trás, na IPA. Parece-me de fato
arriscado tudo o que isso pode i mplicar, ou o que o passe pode se
tornar, e é esse o ponto delicado; não digo que necessariamente
seja assim, mas é o risco central, o ponto no qual pode.se reprodu­
zír a estrutura didática numa Escola Lacaniana.
Pois muito rapidamente as pessoas começarão a fazer as con­
tas. Será feito um balanço comparando quem são os analistas dos
analisandos que entraram, dos que terminaram a análise e se cote-
. jará com os que avaliaram esses analisandos e com os analistas
cujos analisandos não passaram. Inclusive alguém na edição espe­
cial de "Um por um" diz que há gente do Campo que se analisa
com gente da I PA - e vamos excluir o valor de alguém como
Michel Silvestre por ter tido um analista da IPA? Acho que é
impensável. Na SABA, há pessoas cujos analistas não são da SABA,
m uitas vezes não são do Campo Freudiano, inclusive há aqueles
que se analisam com analistas da IPA Se as marcas da análise estão
presentes, não as julgamos sobre a base dos "didáticos" com os
quais as pessoas se analisam. Didáticos no sentido convencional
da palavra, não no sentido em que Lacan usa o termo na Ata de
F undação para se referir ao final de análise. Enfatizo isso porque
me preocupa que se tenha dito a algumas pessoas que precisam s e
analisar, não aqui n a Argentina, mas e m outros lugares, e m Paris,
para que sua análise tenha valor. Obviamente, é algo que não s e
diz n a Argentina porque provocaria muita irritação.
Nós, que temos a tradição de termos nos rebelado contra a
I PA sem conhecer Lacan, quando desde a Faculdade de Psicolo­
gia, por culpa de nossos mestres psicanalistas, muitas de nós deci­
dimos também ser analistas, ainda que a IPA nos dissesse que não.
Depois muita gente da medicina aderiu a isso e muita gente que

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0 D E S l:. J O U () t-l S I C A N A L I S 'I A

vinha de o utras formações em ciências humanas também o fez.


Acredito que somos talvez os últimos a quem se pode dizer algo
desse tipo, já que talvez a Argentina seja um dos países onde o
discurso analítico é mais saudável, com todos os perigos que isso
implica e com todas as deformações que isso também implica,
mas resiste. Resiste inclusive às crises econômicas, o que é muito
dizer; aqui há muitos pacientes potenciais com problemas de di­
nheiro, que é a única coisa que lhes falta para se analisarem.
Isso explica também a proliferação de certas instâncias hospi­
talares que não cumprem as funções tradicionais que deveriam
cumprir. Acredito que isso indica que não é a falta o u a não-inser­
ção do discurso analítico no nível da sociedade que é um proble­
ma para a Argentina. O problema é como dar a esse discurso, no
nível daqueles que o exercem, rigor e seriedade.
Então, voltando a esse tema, gostaria de esclarecer que aceitar
que alguém que se analisa com uma pessoa que não está no Cam­
po ou que está na Internacional, porque inclusive haveria uma
diferença entre aquelas pessoas que seguem uma orientação
lacaniana não estando no Campo e os que se encontram na Inter­
nacional, que fazem parte de outra estrutura, ainda que alguns
deles comecem a se, proclamar lacanianos, é algo próprio do
lacanismo. Acredito que isso implica que a transferência de traba-
lho e a transferência analítica não necessariamente coincidem.
A discussão acerca de se a transferência de trabalho e a analíri­
ca devem ou não coi�ódir tem, com outros nomes, uma longa
história nas instituições psicanalíticas.
Nos primeiros tempos da institucionalização da psicanálise,
ela se desenvolveu como a polêmica acerca de se a análise pessoàl,
depois chamada didática, e a análise de supervisão deviam se reali­
zar ou não com o mesmo analista. Diferentes práticas coincidiram
no início. A Sociedade Vienense, em geral, fazia ambas as funções
coincidirem num mesmo analista. A crescente burocratização da
formação analítica, propiciada especialmente pela Sociedade de

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L Ó G 1 ( A 5 l) ,\ E S C O 1. A E 1\1 I' .'i l C :\ N À 1 1 S l

Berlim, culminou com o triunfo da regulamentação proposta por


Max Eirington, que separou estritamente a análise de sL:pcrvis:ío e
a análise didática.
Vale lembrar que o próprio Lacan foi criticado, tanto por ter
analisandos que eram alunos, como por retomar a prática da So­
ciedade Vienense.
O que está subjacente, sem dúvida, nesse debate é o p roble­
ma do monopólio institucional e/ou individual da transferência.
A posição de Lacan a respeito disso me parece mais nuançada,
pois não se ajusta a uma regulamentação, mas ao caso a caso. Cabe
a cada sujeito decidir qual dessas opções ele prefere, canto no que
se refere à supervisão como ao ensino . Sua própria prática se ade­
quou a esse critério.
Para mim é claro que há pessoas que se analisam comigo que
estão em outros lugares, fora do Campo i nclusive, às quais não
me passa pela cabeça sugerir que venham à SABA, nem que parti­
cipem do Campo Freudiano se sua transferência de trabalho está
em outro lugar e se está trabalhando bem. Considero que não se
pode monopolizar a transferência e esse me parece o ponto cen­
tral. Acredito que o sucesso do Campo Freudiano se deveu até
agora a evitar esse tipo de monopólios. Quer dizer, evitar concen­
trar exclusivamente as transferências, evitar fazer coincidir de for�
ma absoluta a transferência de trabalho e a transferência analítica.
Acho que as transferências de trabalho não são facilmente
homologáveis, nem se homologam por decreto. Levam seu tem­
po. Esse tempo, acredito que não foi respeitado aqui. Atuou-se
precipitadamente por uma urgência que em todo caso não res­
ponde, na minha opinião, aos problemas estruturais da Argenti­
na, onde existem lugares, como a SABA e outras instituições, onde
as pessoas podem se reunir, com todos os defeitos e todos os poréns
que possam ex1st1r.
Então, a partir disso, queria ir ao pomo central do meu inte­
resse, porque, sinceramente, tudo o que acabei de dizer não me
atrai muito. É muito mais interessante para mim pensar qual é a

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O l) E S E J O D O P S I C A N /\ 1. I S T ,\

lógica que pode fundamentar a posição de uma Escola única, que


não está em lugar nenhum em Lacan, que simplesmente fundou a
Escola Freudiana de Paris; mais local do que isso impossível, já
que a Escola da Causa aparece posteriormente: Lacan funda a Causa
Freudiana, que não leva ainda o nome de Escola, coisa que se
evidenciou no Colóquio da Dissolução do ano passado.
Como pensar a lógica de uma escola de psicanálise? Esse pare­
ce ser, hoje, o tema de um debate candente .
A esse respeito, deduzem-se do ensino de Lacan duas lógicas
possíveis. Uma implica necessariamente a existência de uma só
Escola e outra a existência de ao menos duas. Destaco dois pon­
tos: em primeiro lugar, o "ao menos duas" - podem ser mais,
diria inclusive que é preferível que sejam mais, para evitar a
dualidade e, assim, seria melhor, talvez, um ao menos três... ; em
segundo lugar, de agora em diante, escreverei escola com letra
minúscula para este caso e com letra maiúscula para a escola que se
diz "única".
Não vejo por que se deveria temer a coexistência de uma série
de escolas, série com a qual se poderia fazer uma lista, sem dúvida
uma lista como a que Leporello faz. ..
Quando Lacan estabelece as fórmulas da sexuação, defi ne a
sexuação fálica como um conjunto fechado, fundado i:-iuma lógi­
ca da exceção. Define, al�m disso, o não-rodo - que é o mesmo
não-todo que funda o "há 'psicanalista", com o qual se substitui o
universal "o psicanalista", is,to é, a inexistência do universal do
psicanalista, do psicanalista 1jadrão - como um conjunto aberto
fundado numa lógica da dualidade .
. No primeiro caso, temos uma lógica da exceção fálica, na qual
o particular fundante sustenta que existe umxtal que essexdiz não
à função fálica [<t>] . A negação que opera nesse caso é o neforaclusivo,
cuja importância Lacan assinalou desde cedo em sua obra.
Do lado do não-todo opera, pelo contrário, o nediscordancial,
quer dizer, esse ne gue não é nem não nem sim, ou é um não e um

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1. Ó G I C A 5 lJ ,\ E S ( (} L 1\ f ,l\.·I 1 1 S 1 ( ,\ ,\J ,\ 1 1 � t

sim ao mesmo tempo, não-contraditórios, o que m:irca a presen ­


ça do inconsciente. Lacan coloca o S (JÁ) do lado da scxua<;ão fi.:­
minina, do não-todo.
Essa articulação é feita em diferentes seminários: "A lógica do
fantasma", "O ato psicanalítico", o Seminário XIX, com suas duas
partes - "... ou pior" e "O saber do psicanalista" - e, finalmente,
os Seminários XX e XXI. Estes últimos coi ncidem aproximada­
mente com a época em que Lacan escreve a atualmente famosa e
discutida "Carta aos italianos". O esquema que está aí (ver página
1 48) reúne elementos que se encontram dispersos ao longo dos
diferentes Seminários.
Comecemos por "A lógica do fantasma". Em "A lógica do
fancasma", Lacan desenvolve ou desdobra, seguindo um percurso
que já havia feito anteriormente, a lógica atributiva do falo: ser ou
ter o falo fundam respectivamente a posição masculina e feminina
em relação ao falo. Em relação a essa lógica atrib utiva, Lacan dife­
rencia a criação - situada do lado da posição feminina - da ciência,
que denomina as ilusões do conhecimento, do lado do falicismo
masculino. Ele está tentando fundar uma definição de "uma"
mulher que não seja a da histeria. Essa idéia já ronda seu ensino
desde essa época e inclusive podemos dizer que encontra uma saí­
da para o Ímpasse freudiano da castração através dessa lógica.
Retornarei a isso mais adiante.
Criação e ciência ou ilusões do conhecimento ficam situados
do lado da posição feminina e masculina a respeito do falo. Vale
lembrar que a mulher barrada tem uma dupla inscrição, que não é
contraditória, uma inscrição a respeito do falo e outra inscrição
que nada tem a ver com o falo, a do não-rodo.
Mas do lado da sexuação feminina aparecem dois novos ter­
mos, que não são mais criação e ciência: produção - que é o termo
que Lacan usa sempre em relação ao objeto a e que utilizará em
relação à formação de analistas numa análise, dado que o analista
será aquele que está destinado a assumir a posição de semblante de

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O D F. S t. J O 1) 0 P S I C A. N .-\ 1. l S T ,\

objeto no discurso analítico - e invenção, termo que se relaciona


especificamente ao trabalho do saber inconsciente, tal como é de­
senvolvido no Seminário XXl, que é correlativo à definição do
sab er inconsciente como um conjunto aberto, quer dizer, que não
tem limite. É al i que Lacan introduz a idéia de que no nível da
invenção a única coisa que temos são o que ele chama, em francês,
bouts de rée/, isto é, fragmentos, pedaços, tacos de real, que cabe
ao analista recolher.
Assim, temos quatro operações diferentes: criação, sublima­
ção - a sublimação está obviamente no âmbito da criação -, ciên­
cia e conhecimento, produção e invenção.
Poderíamos dizer que a criação, que Lacan j á no Seminário
"A Ética ... " situa do lado do amor cortês, do lado feminino, não
seria levada em consideração quando reestruturasse a sexualidade
em função das fórmulas da sexuação, pois não a inclui do lado
feminino. A criação permanece do lado da sexuação fálica, pois
sempre se realiza sobre o fundo do significante fálico. Esse é um
ponto que Lacan não mudará, que implica, tal como ele assinala
claramente, a relação específica que existe entre a criação e a falta,
em sua articulação com as duas posições subjetivas que diferencia
em. função de ser ou ter o falo, que não têm nada a ver, não creio
que sej a necessário i nsistir nisso, com o sexo biológico.
Examinaremos primeiro a ilusão do conhecimento que fun­
da a ciência. Lacan observa que o gozo fálico é particularmente
satisfatório para o homem,,.porque gera urna ilusão, a ilusão de
que não há resto: o resto aqui é o obj eto a. Se observarem as fór­
mulas, tal como parecem em Encare, verão que o objeto a está do
lado da sexuação feminina. Não está do lado da sexuação mascU­
lina, da existência solitária do significante fálico. O gozo fálico
permite a eliminação do resto, do objeto a, sustentando assim a
ilusão, estritamente masculina, de que há urna complementarida­
de entre o sujeito e o objeto na sexualidade, que é logo transporta­
da para a teoria do conhecimento e que é a ilusão subj acente na

1 60
l ó eIe A s l) A E s <..: o L ,·\ I· i\l I ' ', 1 i :\ 1 \ 1 1 ·, 1

teoria do conhecimento. Portanto, Lacan situa a cii:'. 1Jt'Í:1, ;1 i 1 1 v< ·•,1 1


gação que lhe é própria, no âmbito da relação sujeito-objc1 1 ) do
co nhecimento, cuj o fun damento, insisro, reside no car.í t n
evanescente próprio do gozo fálico, quer dizer, d a detumescência
e do fàding concomitante do sujeito que o orgasmo masculino
implica: o (-<p) como operador da castração. A experiência do
conhecimento aparece fu ndada, assim, nesse puro sujeito, cujo
conhecimento e cuja atualização é o cogito cartesiano, a passagem
de Descartes, na qual Lacan não se cansa de insistir. Esse sujeito
esvaziado de todo conteúdo que, precisamente, a partir desse esva­
ziamento, pode gerar a ilusão da relação complementar sujeito­
objeto. O homem pode ter essa posição, porque tem o falo. Esta­
mos na lógica do ter na qual o falo funciona como instrumento
na relação sexual. Sua detumescência, pela qual o orgasmo recebe
o nome de " pequena morte", aponta para o fâd111gsubjetivo pró­
prio do orgasmo fálico, para a configuração de uma subjetividade
pura que cria uma ilusão de conhecimento.
A posição feminina corresponde à criação e à sublimação e é
aquela que Lacan definiu tradicionalmente. Sempre caracterizou a
mulher como privada no real, quer dizer, não como castrada, mas
como submetida à operação simbólica da castração. Isso se deve,
desde cedo no ensino de Lacan, à ausência do significante do sexo
feminino. Essa é uma posição na qual a mulher, a partir dessa falta
simbólica - que é o falo simbólico [<P] -, cria a partir desse nada
uma máscara que lhe permite ser mulher. É a feminilidade como
mascarada, que n ão é idêntica à histeria .
A histeria, como Lacan dirá no Seminário XX, é "fazer o ho­
mem", que não é o mesmo que essa criação a partir do nada da
falta de falo, que é uma falta no real, que só se torna falta pela
existência de um signi�cante no simbólico que é o significante
fálico, ou seja, pela operação de privação, cujo o bj eto é o [<P] . Só
por essa razão a mulher pode criar algo a partir do nada. Esse algo
que cria é algo no nível do ser, é a equação freudiana corpo-falo.
Faz de um nada um ser, sendo isso próprio de toda criação.

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O O E S E I O IJ (J P S I C A N ,\ L l 'i. T A

Lacan realiza nesse seminário uma observação fundamental,


que costuma dar lugar a confusões, ao assinalar que a criação tem
a ver, em primeira instância, com a posição da mulher e só secun­
dariamente com a posição da mãe, que se centraliza em seguida,
metonímicamente, nessa relação da mulher com a falta fálica. Além
disso, a função da mãe se cruza também com a produção, com a
produção desse objeto a que é a criança. Portanto, aquilo que cons­
titui a ordem da criação e da sublimação tem a ver principalmente
com a posição da mulher que, a partir de sua falta, cria esse algo
que simula o falo e não o é, que se funda na equação corpo-falo.
A mulher, mediante essa equação, passará, posteriormente,
através da equação corpo-falo-criança, à posição da mãe. A Lacan
interessa basicamente a posição como tal da mulher, não da mãe.
A confusão entre mulher e mãe explica o interesse de alguém tão
talentoso como Winnicott pelo tema da criação e da criatividade.
Pode-se dizer que analiticamente só se situou na posição feminina
como materna, mas deixou escapar tanto o não-todo como a
mulher na sua relação corp a mascarada. Por isso o tema da criati­
vidade foi central em sui obra, determinando inclusive seu con­
ceito da própria psicanávisc, cuja finalidade se torna o desenvolvi­
mento da criatividade/ da sublimação. Um conceito da análise e
de seu final depreende-se dessa posição.
A mulher, nessa perspectiva, se diferencia do homem, que
ocupa o lugar de instrumento por ter o falo; a mulher, pelo con­
trário - aqui surge uma fórmula clinicamente brilhante de Lacan,
que está em "A angústia" -, tenta-se tentando. Desse ponto de
vista, então, a mulher é causa sui, quer dizer, causa de si, na medi­
da em que ela se torna, como corpo, esse falo que causa o desejá
do homem, mas que por sua vez se torna aquilo que também
causa seu próprio desejo. No encontro sexual, essa posição a levará
a se experimentar como privada, isto é, o encontro sexual reavivará
a ferida da privação, mas, se realizando como falo, castra de seu
instrumento o pa.rtenúre, quer dizer, aquele que o tem. Se ela o é,

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l Ú G 1 C A S l) A f S r· ( ) 1. ,\ 1 ,\ 1 1' 1 , 1 1 ., 1 1 \ 1 , '. 1

. aquele que o tem não é nada. Esse é o mal-c1 1 t rnd i d 1 1 dt 1.·, .w � ( I.•, : , ! t­
um lado a impostura masculina, do outro a mascar;1d;1 k1 1 1 i 1 1 i 1 1.1
Essa é a possibilidade que se abre às mulheres dur a 1 1 t e l u 1 q •,1 , 1 rn 1
po, até que Lacan estabelece o não-todo: uma forma de ass1 1 1 1 1 i 1 .,
castração, fazendo do seu nada algo, o que a leva a essa posi�:a, > ( k
causa sw: que une de maneira peculiar a mulher ao amor, sem pre
que definamos o amor, como nos Escáros, em função de um dar
o que não se tem.
Freud assinalara a notável dependência do amor que as mu­
lheres têm em comparação com os homens. Para Lacan, essa de­
pendência se funda em que, por estrutura, naquilo que faz as vezes
da relação sexual que não existe, como complementaridade sexu­
al, nesse lugar ausente, a mulher se caracteriza por participar dan­
do o que não tem e sendo o que não é. Nesse ângulo, a posição
feminina é uma posição na qual o sinal do desej o do Outro, quer
dizer, a tentação do O utro, torna-se algo que se confunde muito
rápido com a temática do amor. Não se deve esquecer que a dife­
rença entre essas duas posições reside em que a mulher que se tenta
· tentando não tem que deixar ver seu desejo, enquanto que o ho­
mem tem que dar a ver o seu desejo. Nesse ponto, em que o
homem tem que dar a ver o seu desejo, é que se produzem com
maior freqüência certas inibições da sexualidade masculina.
Daí se deduz que a mulher tem, de saída, uma noção de sua
posição de objeto na sua relação com o desejo como desejo do
Outro. Tendo noção dessa posição de objeto, tem, conseqüente­
mente, enquanto tal, uma posição do agalnu Inclusive, Lacan,
no Seminário A rra11sferê11cia, n ão duvida cm afirmar que
Alcibíades faz a Sócrates uma cena feminina porque, segundo ele,
são ciúmes absolutamente correlativos à posição feminina. A fa­
lha é sempre da ordem do ter e possuir um homem. que seja só seu
é o ponto em que a mulher, do ângulo fálico, de alguma maneira
consegue um pal iativo para a ferida da privação, a inveja do pênis
freudiana.

163
O lJ E 5 f J O l) () t' S l ( A N A L I S l" A

Esse papel do amor na vida feminina e na vida amorosa da


mulher não é comparável à posição do homem. Na relação amo­
rosa, em suma, a mulher não tem falo; seu dom adquire um valor
privilegiado no que diz respeito ao ser, porque ela é o falo. Esse
dom se chama amor, dom que é o dom do que não se tem. No
ent_anto, Lacan faz certas considerações acerca do gozo na mulher,
para além de sua relação com o amor.
Do lado do gozo, cujas características são da ordem da causa
sw; causa de si, na medida em que o que dá sob a forma do que
não tem é também a causa de seu próprio desejo, situa-se, a essa
altura, o gozo feminino sob a insígnia fálica, não sob a insígnia do
não-todo.
Lacan enfatizará que numa psicanálise não se produz nem
sublimação, nem ciência. O que se produz? A resposta de Lacan
em "O ato psicanalítico" é que se produzem psicanalistas. A au­
sência do universal do psicanalista aponta para o outro lado, aponta
para o não-todo que se caracteriza - e esse é o ponto que quero
destacar - por implicar enquanto cal a dualidade. Disse isso de
saída, ao assinalar a oposição entre a lógica da exceção e a lógica da
dualidade. Do lado do não-todo ternos, por um lado, a produ­
ção, como produção do objeta a, a criança é a, é produto. Produ­
to também no sentido da produção, porque náo é uma criação ex­
ni/1110; algo se produz sempre a partir de algo, há transformação
de !]latéria. O a é um nada, mas é um nada produzido pela pró­
pria articulação do discurso inconsciente. Quer dizer, cada vez que
há S1-S2 o saber inconsciente como tal, o objeto a é produzido.
Nessa perspectiva, o objeto a está numa dependência estreita, não
só do significante fálico, de sua falta e de sua lógica atributiva, mas
do que Lacan, j á nos p rimeiros seminários denominava a
metonímia da cadeia que desliza incansavelmente.
Lacan situa do lado do não-todo, da sexuação feminina, o
objeto a, coisa que chama a atenção. Por que não o situa do lado
do falo? O objeto a, afinal de contas, é o único partcnai.re possível

1 64
L Ó G I C ,\ S lJ A E $ (" C.l 1. A. I" ,\\ •· :, 1 t A 'J ,\ 1 1 ;, 1

na medida em que não há outro sexo. Esse objcl< l deprndc, na sua


produção, de um conjunto aberro; o conjunto ahcno do i 1 1rn1 1s-·
ciente, o inconsciente como S 2 , saber, apresentado por Lacn , I H l
Seminário XXI como carente de limite, não-fechado, como con­
junto aberto. A lógica da exceção, pelo contrário, caracteriza-se
pela presença de um limite que fecha o conj unto, limite que é
precisamente a exceção. Se o objeto a está situado do lado do não­
todo, quer dizer que é ali onde o analista encontrará, mais além do
impasseda castração, no que Lacan denominou o passe, a possibi­
lidade de funcionar no discurso analítico como causa do desejo do
analisando.
Lacan caracteriza de um modo particular, no Seminário XXI,
a invenção, assinalando que ela não está associada ao falo, mas a
um universo de discurso aberto, não-fechado, de um gozo que se
relaciona com o gozo da mulher barrada como conjunto aberto,
sendo estruturalmente diferente da criação.
Temos então a ilusão da subjetividade p ura do sujeito do
conhecimento no nível fálico; a criação recria a falta, opera sobre a
base da falta de uma maneira particular do lado da mulher, no
conjunto fálico; no nível desse conjunto aberto que é a alíngua, o
inconsciente, no final da obra de Lacan, quando já introduz os
nós, surge algo que não se conhece, não se cria, não se produz,
porque o que se produz é objeto a, mas se inven ta. Portanto, o
que se inventa do lado do não-todo são sempre pedacinhos de
saber sobre o real, o que Lacan chama em francês de les bouts de
rée/, que terão tanta importância de agora em adiante. O próprio
da invenção é que nunca se inventa um saber todo. Quando se
inventa um saber que é todo, volta-se a fechar o universo discursivo
. no nível do que o sujeito masculino é como ral; também não se
inventa a partir da falta, mas se inventa a partir da falta de fecha­
mento do saber inconsciente como real.
Existe, assim, uma invenção de saber. Essa invenção de saber,
Lacan a caracteriza dizendo que são pedacinhos de saber que se

1 65
O lJ l S. f I O lJ O P S. 1 C A N A L I S T A

desprenderam, por um lado, da própria análise, da análise de al­


guns analisandos e do ensino de Freud e, por outro, de seu pró­
prio ensino. Esse saber que são pedaços de saber, fragmentos de
saber, a esse saber só resta inventar. Corno? Inventar sob a forma
do bem-dizer para o analisando, do um por um que cabe ao ana­
lista enfrentar a cada vez.
Lacan define o amor de transferência, no Seminário XXI,
como um jogo apaixonante, mas não como uma paixão, e sob
essa mesma crítica cai Winnicott, por ter se apaixonado pela psica­
nálise. A idéia de Lacan é que no final da análise há uma passagem
que vai do amor de transferência à queda do sujeito suposto saber,
para lhe dar simplesmente um nome que todos entendemos mais
ou menos, que é a passagem pela qual a carta de amor se torna
carta de a-muro, deixando de ser necessária para se tornar contin­
gente
. Observem que o necessário - encontra-se nas lições de "O
saber do psicanalista" - está situado do lado da particularidade
fálica, da exceção, do existe ao menos um que diz não, que nega a
função fálica, que não aceita a função fál ica: 3x <J);_ O amor de
transferência inicial começa ali, na carta de amor como necessária
que se inscreve no amor de transferência. Mas o final de análise
está do lado da carta de a-muro, que Lacan coloca do lado do uni­
versal do não-todo, junto com a contingência, não-todo sujeito se
inscreve na função fálica: Vx cf>x. Passamos, assim, do necessário
ao contingente, passando da exceção que funda a lógica do todo
ao universal da lógica do não-todo. A passagem do necessário ao
contingente exige que se levem a cabo muitas voltas; todas essas
voltas da demanda que Lacan teorizará, inclusive topologicamente,
no Seminário XII e em L 'Étourdit. Parece-me central ter presente
que a análise avança do modo lógico do necessário ao do contin­
gente, que caracteriza o final da análise, momento em que aparece
a contingência corporal pela qual amamos alguns sujeitos e não
outros.

166
L Ú G I C A. S l) A f S C O l ,\ J ,\1 J' '• 1 l .,, I·) ·\ 1 J ', 1

Quando essa contingência é revelada, esse 1 1 H 1 11H· 1 1 1 0 dt· passe


do necessário ao contingente, esse momento é :1q u i lo q 1 H ' o piisst·
busca conservar, recuperar, assim como seu resultado , t'SSa t ·1 1 1 1
tingência que estava por trás do necessário do amor de tr:1 1 1sít·r11 1 1
eia, que Lacan na Proposição de outubro denominava o refere me
latente. O referente latente é eminentemente contingente por es­
trutura, não por decisão de ninguém, mas porque a estrutura as­
sim o marca.
Entre os seminários XVIII e XXI , Lacan constrói sua lógica
da sexuação. O falo aparece como o um que fecha o universo do
discurso; esta é a função da exceção que Lacan escreve como o
particular, existe um x que nega a função fálica: 3x ci:>x. Essa
lógica da exceção implica que a exceção funda a regra, coisa
que Lacan sustenta desde "A identificação". Na medida em que
a exceção funda a regra como tal, existe a possibilidade de dizer
todo h omem, isto é, o universal positivo, todo homem res­
ponde à lei fálica: Vx <-Dx. Para que a formulação do universal
fál ico seja possível, deve existir ao menos uma exceção no nível
do particular correspondente; essa exceção é o pai mítico de
Torem e tabu, dirá Lacan. Essa é a base da posição masculina c
tem como condição de existência um conj unto fechado. Um
conjunto fechado implica, do ponto de vista matemático, a
introdução de um limite. O limite aqui tem o papel da exis­
tência lógica que se situa no lugar que cava, para usar a metáfo­
ra tradicional de Lacan, a ausência ou a falha em ser. Ali onde
há falha em ser se impõe um limite através daquilo que substi­
tuirá a falta em ser; o que substitui a falta em ser - e é objeto
de um longo trabalho por parte de Lacan - é a existência lógi­
ca, ela substitui a falha em ser, quer dizer, a falha na essência.
Há existência lógica, porque não há essência. O ser sempre está
relacionado com a essência, com uma essência que não existe
porque não temos identidade sexual natural, porque o sexo está
perdido pela ação mesma do sistema significante. Portanto, não

1 67
O D l: S E J O 0 0 P S I C A ,'l t\ l. l S l /\

há essência da masculinidade e da feminilidade, portanto, não so­


mos mulheres ou homens, mas sim existimos logicamente, do
ângulo de uma lógica, como mulheres e homens graças à ação do
significante. Lacan desenvolve essa lógica sobre a base da lógica de
Frege da existência como negação do zero.
Se passamos ao lado feminino, ao lado do particular feminino,
não existe nenhum sujeito que diga não à função fálica, 3x é1�. vc­
m�s se desdobrar uma lógica que opera de maneira muito dife­
rente, uma lógica que ignora a exceção. Lacan a qualificou como
uma lógica da dualidade, da discórdia, porque implica que essa
negação que está do lado do particular é diferente da negação da
exceção, é independente da exceção. Lacan não sustenta que exista
uma oposição, mas sustenta que não há contradição entre os par­
ticulares.
Por quê? Pela presença, no caso do n ão-todo, do ne
discordancial e, do lado fálico, do ne foraclusivo. Do lado do não­
todo há uma negação que afirma, mas que n ão foraclui . O parti­
cular da sexuação feminina apresenta a inexistência do Outro sexo.
Se o Outro sexo existisse, então haveria relação sexual. Por isso
Lacan diz que não há heterossexualidade, porque o Outro sexo, o
héteros, não existe, porque não tem seu significante; mas sua não­
existência, a negação do particular femi nino, não é de modo al­
gum a negação do que ocorre do lado fálico, quer dizer, da exce­
ção fálica. Isso implica uma lógica totalmente diferente, porque
implica como tal uma lógica da dualidade, onde estão aqueles que
dii�m sim, aqueles que dizem não e aqueles que dizem sim e não
ao mesmo tempo. Um sim e um não que enquanto tais fundam
a particularidade de um não-todo, de um conjunto aberto. Não
existe nenhum sujeito que, do lado do particular feminino, se
caracterize pela negação da função fálica.
A histeria se inscreve abertamente do lado da exceção fálica. A
ausência de exceção do lado feminino apresenta o héteros como
ausente; a relação sexual, a p roporção com o Outro sexo não exis-

1 68
l Ú e_; 1 C A 5 l) A 1. :-, ( l l I A 1 ,. 1 I' '. 1 1 ' 11 \ 1 1 1

te. Quando Lacan diz que o Outro sexo l'() l 1 1 1 1 1 . d 1 ··,1 . 1 .1 1 1 •,1 1 1 1 , ,
isso implica que um dospartenaíresse desv:111L·n- 1 Li l'\ 1 °.1 1 · 1 1, 1.1 1, ,
gica, não da existência no sentido ontológico, cri :1 1 1tl1 1 . 1•,•. 1 1 1 1 "
buraco onde a palavra se desdobrará. O termo "palavra" d cvt' :,1·
situar no contexto da relação com o significante do Outro barrado
e com o inconsciente como conjunto aberto.
Nessa perspectiva, então, não há nenhuma forma de estabele­
cer no nível lógico a complementaridade dos sexos. A discórdia
entre os sexos se funda no nível dos dois particulares, no nível da
exceção e da inexistência da exceção, que não é negação da exce­
ção. Sob essa rubrica do que não nega a exceção e é um conjunto
aberto, situam-se tanto o objeto a corno o significante do Outro
barrado, 5(./4..) .
A negação discordancial é exatamente o oposto de um limite
matemático; ela implica a inexistência do limite do lado da sexuação
feminina. Na medida em que o particular correspondente se fun­
da num ne discordancial, o universal correlativo que se escreve
não-todo ou não-toda adquire seu caráter dual .
O que significa esse caráter dual? O funcionamento de um
ne discordancial ou redundante, como às vezes é chamado em
francês, indica a coexistência sem contradição da inscrição fálica
e do não-todo. A negação do particular do lado do não-todo se
relaciona intimamente com o desejo. Pelo contrário, a negação
da função fálica do lado da exceção funda uma negação, um
não que equivale a uma foraclusão. Fica claro que a foraclusão
está sempre situada do lado da lógica fálica. Por essa razão,
Lacan sustenta que não se pode con fundir a psicose - a
foraclusão do N orne do Pai - com a sexuação feminina. Não
se pode situar a psicose do lado da mulher barrada. A psicose,
no caso da paranóia e do pousse à la fémme que lhe é próprio,
faz existir A mulher corno universal, coisa que se observa com
clareza no caso Schreber.

169
O O E S E I O lJ O P $ 1 C I\ N A L l !i l" I\

· A relação da mulher barrada com esse nedíscordancial levará


Lacan a postular a relação íntima que existe entre essa posição da
mulher, a da alíngua, numa só palavra, e a da estrutura do incons­
ciente como s2 '
O universal do lado fálico Vx cI>x, para rodo x vale a função
fálica] é possível graças ao limite foraclusivo que estabelece a exce­
ção, que s e torna necessária em relação à função fálica. Ou seja,
não se pode estabelecer a função fálica sem esse limite, sem a exce­
ção que funda a regra.
Do lado da lógica da exceção, Lacan coloca, no universal cor­
respondente, o modo lógico do possível. O possível se articula
com u ma forma de amor, o amor ao próximo, pró prio do cristia­
nismo. Isso gue o próprio Freud teorizou como a fraternidade, ao
se referir à relação dos irmãos depois do assassinato do pai primi­
tivo. A fraternidade, portanto, está do lado do falo e do lado do
amor ao próximo.
Gostaria, neste ponto, de fazer uma breve digressão acerca
daquilo de que sou acusada ao não querer aceitar uma Escola úni­
ca. ·Sou acusada de ser pouco cristã. É verdade, não amo o próxi­
mo. O desenvolvimento de Lacan implica que há uma lógica do
amor ao próximo que pode ser deduzida da exceção fálica, lógica
que acarreta a passagem do necessário ao possível, que implica a
contradição. Por isso Lacan situa, entre o particular e o universal
do lado fálico, a contradição, ao passo que s itua, pelo contrário,
do lado do particular e do universal do não-todo, o indecidível de
Godel, situando entre ambos a passagem do impossível ao con­
tingente.
O impossível como modo lógico do amor é articulado por
Lacan com o amor cortês e o contingente com a carta de a-muro.
O processo de análise como tal, aquilo em que culmina seu final,
é a contingência, que implica, portanto, uma passagem de lógicas,
que se realiza de maneira diagonal, de acordo com os modos, quer
dizer, se passa do necessário ao contingente.

1 70
L Ó G I C A S D A E S C O i. A í: ,\-t P S l ( ,\ N Á l l '. 1

Contingência que cerca um impossível, que é o impossível do


laço sexual com o objeto subjacente no amor cortês. Mas, numa a11:í
lise, não se pode partir da posição do amor cortês. É preciso partir da
posição necessária da carta de amor ligada à lógica fálica para chegar,
para além dessa lógica, à contingência da carta de a-muro.
Se o psicanalista se situa do lado do não-todo, não lhe cabe a
posição da exceção que funda a regra. Deve ter presente o impos­
sível do laço sexual com o objeto e não cair no possível do amor
ao próximo cristão, que é outro nome da obscenidade grupal.
Sob esse ângulo, penso que uma Escola ú nica não é
logicamente necessária do ponto de vista do não-todo e de uma
clínica do não-todo. A lógica de cada análise em particular implica
uma passagem do conjunto fechado ao conjunto aberto. Essa é a
razão pela qual Lacan dirá insistentemente, ao longo de sua obra,
que ele continua passando. Continua passando, o que quer dizer
isso? Quer dizer que continua lembrando - ou que finge esquecer
em termos do seminário XV - essa passagem do necessário ao
contingente, da carta de amor à carta de a-muro; o que implica
voltar a assumir a posição analítica cada vez que se assume uma
análise, cada vez que se assume o jogo de uma análise.
A carta de a-muro me parece o conceito central, porque, em
sua contingência, contingência corporal , contingência do encon­
tro, é o que o amor rende a encobrir. Em outras palavras, a con­
tingência do não-todo, o caráter não-necessário do amor. Lacan
introduz o a-muro como ligado à raison que résonne da voz, quer
dizer, à razão e ao ressoar do objeto voz, e esclarece que já deu a
fórmula dos muros: eles são os quatro discursos.
Os quatro discursos são a razão dos muros, dos muros da
psiquiatria e também do que permite uma análise, de um discur­
so. O discurso do capitalismo se caracteriza pela foraclusão da cas­
tração e, assim, das coisas do amor.
O muro da castração separa o homem da mulher. O amor é
um artifício destinado a evitar esse muro, a permitir que ele seja

171
O D E S E J O U O P S I C ,\ N A 1. 1 S T A

pulado, e uma forma de pular é a substituição da mulher pelo


mundo, isto é, pelas ilusões do conhecimento, da relação sujeito­
objeto do mundo que estava em "A lógica do fantasma". A ilusão
de conhecer a mulher, no seu sentido bíblico, cria a ilusão do
conhecimento. Porque o mundo vem ocupar o lugar onde o
partenaire sexual, se volatiliza, desvanece. As núpcias do sujeito e
do objeto do conhecimento são, diz Lacan, uma forma de ocultar
o "não existe relação sexual". Para Lacan, esse muro está vinculado
à castração entendida como perda da naturalidade por ação da lin­
guagem, perda de gozo pela ação da linguagem.
O amor como tal é o contrário de um muro. Lacan dá como
exemplo de amor o bem que a mãe quer a seu filho e ali, pela
primeira vez, escreve a-muro. Amor no qual a castração da mãe
está em jogo. Cada vez que se joga seriamente o jogo do amor
entre um homem e uma mulher, o que está em jogo é a castração.
Por isso a psicanálise tem que abrir, no lugar do gozo, da comple­
mentaridade sexual que não existe, um leque de gozos sexuais e, por
isso, a teoria dos gozos passa nesse momento para o plural. Lacan
diz, também em "O saber do psicanalista" , que esses muros estão
construídos com uma lógica, a lógica da verdade, do semblante e
do mais de gozar: o objeto a, razão que ressoa no ser. Batiza assim,
de uma maneira nova, três dos quatro lugares da estrutura dos dis­
cursos. O único que permanece igual é o lugar da verdade.
Uma carta se escreve, não se fala, e a carta de amor, assim
como a carta de a-muro - enquanto formas lógicas modais -, é
aquilo que se escreve nos ditos de uma análise. Essa carta de a­
muro é contingente, porque, entre o homem e o muro, o que
existe é a carta de a-muro, que é o que permite fazer amor com
um número escolhido de pessoas imaginárias. Escolha contingen­
te então, escolha fundada no a, diferentemente, volto a insistir, da
carta de amor, que é necessária. Cada vez que se trata de obturar a
contingência do a-muro, o que se faz é reforçar o muro. A carta de
amor reforça o muro, a carta de a-muro libera da castracão. Entre

1 72
L ó G I e A s l) ,\ F. s e o 1, A F 1\ t I' s 1 ( t\ N A 1 1 s 1

a carta de amor e a carta de a-muro, a posição do analista, diz


Lacan, começa a se desenhar como logicamente possível entre con­
tingência e necessidade.
Acredito que tudo aquilo que reforça o necessário da carta de
amor reforça a castração, enquanto que a contingência do a-muro
produz um efeito de liberação.
Por isso não estou de acordo com o projeto de uma Escola
única, que se funda na lógica da exceção, a partir da lógica do
significante fálico. Prefiro pensar numa escola psicanalítica a par­
tir da lógica da dualidade. Nessa perspectiva lógica do não-todo, é
possível pensar a existência de uma pluralidade de escolas, cada
uma apanhando esses pedacinhos de saber que codos os analistas
podem colher, o que não impede que em algum momento pos­
sam trocar entre si os achados de saber de sua experiência. Uma
Escola única obriga, na minha opinião, a uma cooptação baseada
no amor ao próxim o e no Um unificante do possível, a uma con­
vivência forçada entre aqueles que não se sentem inclinados a isso
por seu desejo. Urna cal convivência só pode levar ao pior, não
exatamente no sentido de Lacan.
O espaço adequado é mais o de uma rede, cuj o fundamento
se encontre numa topologia da vizinhança. Uma rede sem centro
na qual circulem pedaços de saber recolhidos por diferentes núcle­
os de sujeitos, nos quais algo da contingência da carta de amuro
tenha operado para lhes permitir trabalhar juntos. Portanto, é nessa
perspectiva que me parece impensável o estabelecimento de uma
garantia única. Inclino-me pela existência de garantias múltiplas
no nível do passe, uma vez que há muitos problemas, incluindo o
problema da alíngua numa só palavra, quer dizer, como certos
efeitos próprios de cada alíngua podem ou não ser transmitidos
em outra. Nesse nível, a meu ver, funda-se a possibilidade de mais
de uma Escola, quer dizer, várias, ao menos duas, nas quais se
respeitem as contingências que criam afinidade entre alguns e não
entre outros, sem que isso signifique que uns ou outros sejam
melhores ou piores.

1 73
O objetivo deste livro é situar o conceito "desejo
do psicanalista" no âmbito que acreditamos ser
central para o próprio eKercício da psicanálise: o
â m b ito do debate sobre a determ i n ação e a
liberdade. A meu ver, se a psicanálise não abre
para cada sujeito fala nte a p ossibi l i dade desse
"pouco de liberdade", como Lacan a denomina,
seu exercício se torna uma mera fraude.
Estabelecer as coordenadas desse debate implica

levar em conta ca_ráter ce ntra l, s ubversivo ·
inclusive, no ensi no de Lacan, do desej o como
desej o do Outro.

A autora é psicanalista e professora .titular da


Cátedra I de psícànálise, Escola Francesa,
da Faculdade de Psicologia _da Universidade de
Buenos Aires.

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