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A crítica pós-estruturalista do currículo

Embora, em geral, tenha como re- Há análises que simplesmente não fazem
ferência autoras e autores franceses, o qualquer distinção entre os dois. Embora
pós-estruturalismo, como categoria des- partilhem certos elementos, como, por
critiva, foi, provavelmente, inventado na exemplo, a crítica do sujeito centrado
universidade estadunidense. Trata-se de e autônomo do modernismo e do hu-
uma categoria bastante ambígua e indefi- manismo, o pós-estruturalismo e o
nida, servindo para classificar um número pós-modernismo pertencem a campos
sempre variável de autores e autoras, bem epistemológicos diferentes. Diferente-
como urna série também variável de teo- mente do pós-estruturalismo, o pós-mo-
rias e perspectivas. A lista invariavelmente dernismo define-se relativamente a uma
inclui, é verdade, Foucault e Derrida. A par- mudança de época. Além disso, enquanto
tir daí, entretanto, há pouca unanimidade, o pós-estruturalismo limita-se a teorizar
cada analista fazendo a sua própria lista que sobre a linguagem e o processo de signi-
pode incluir Deleuze, Guattari, Kristeva, ficação, o pós-modernismo abrange um
lacan, entre outros. É igualmente variável campo bem mais extenso de objetos e
a genealogia que lhe é atribuída: algumas preocupações. Talvez a fo r ma mais útil
análises tomam como referência o próprio de caracterizar essas distinções seja
estruturalismo, principalmente Saussure; pensar nos termos aos quais se refe-
outras preferem remeter sua gênese a rem os dois "pós", isto é, modernismo
Nietzche e Heiddeger. Neste último caso, e estruturalismo. Na medida em que o
0 pós-estruturalismo, além de uma reação termo "modernismo", que constitui a
ao estruturalismo, constitui-se numa rejei- referência de "pós-modernismo", remete
ção da dialética - tanto a hegeliana quanto às características de toda uma época, ele
a marxista. é muito mais abrangente que "estruturalis-
O pós-estruturalismo é frequentemen- mo", que se refere de forma muito parti-
te confundido com o pós-modernismo. cular a um gênero de teorização social. O

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b
e

interessante é que embora muitas pessoas privilegiar a noção de estrutura· Na ana,1.rse


e
confundam pós-modernismo e pós-estru- teórica estruturalista, a estrutura e' uma
a
e
turalismo, poucas pessoas confundiriam característica não dos elementos indivi-
e modernismo e estruturalismo. duais de um fenômeno ou "objeto", mas
O pós-estruturalismo define-se como das relações entre aqueles elementos. A
F
e uma continuidade e, ao mesmo tempo, estrutura, tal como na arte da construção,
como uma transformação relativamente é precisamente aquilo que mantém, de for-
e ao estruturalismo. Como se sabe, o es- ma subjacente, os elementos individuais no
t truturalismo foi o movimento teórico que, lugar, é aquilo que faz com que o conjunto
t com base no estruturalismo linguístico de se sustente. O estruturalismo parte das
t Ferdinand de Saussure, dominou a cena investigações linguísticas de Saussure que
e intelectual nos anos 50 e 60. Esse movi- enfatizavam as regras de formação estru-
F mento atravessou campos tão diversos tural da linguagem. É fundamental em sua
e quanto a Linguística, a Teoria Literária, a concepção de linguagem a oposição entre
r Antropologia, a Filosofia e a Psicanálise. língua (/angue) e fala (paro/e).A língua é o
e Entre suas figuras mais destacadas en- sistema abstrato de um número bastante
e limitado de regras sintáticas e gramaticais
contravam-se Roman Jakobson, Claude
F Lévi-Strauss e Louis Althusser, bem como, que determina quais combinações e per-
e
em suas respectivas primeiras fases, Roland mutações são válidas em qualquer língua
d
Barthes e o próprio Michel Foucault. Uma particular.A língua é a estrutura.A fala é a
caricatura publicada na revista La quinzaine utilização concreta, pelos falantes de uma
r
t, littéraire, em 1967, intitulada "A refeição língua particular, desse conjunto limitado
dos estruturalistas", reflete bem a visibili- de regras. Saussure estava particularmente
e
dade dessas figuras. Nela, Foucault, Lacan, interessado não no estudo da fala mas no
p
p Lévi-Strauss e Barthes são retratados estudo da língua.
e acocorados, vestidos de tangas, em volta Essa distinção entre língua e fala se
o de uma fogueira, no meio da selva, numa tornaria fundamental nas análises que,
d animada conversa tribal. em campos como a Antropologia e ª
e, Na sua concepção mais geral, o es- Teoria Literária, iriam, mais tarde, se
ri inspirar no estruturalismo lrngur· '5 cr·co
truturalismo se define, obviamente, por
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de Saussure. Assim, por exemplo, essa a perspectiva estruturalista, entretanto,
distinção encontra um paralelo na análise podemos ver que, no fundo, permanece
que Lévi-Strauss faz dos mitos. Para Lévi- uma mesma estrutura. Superficialmente
-Strauss, a característica impressionante há variedade. Estruturalmente eles são
dos mitos é que eles aparecem sob uma a mesma coisa.
imensa variedade, mas obedecem todos O pós-estruturalismo continua e, ao
a um esquema básico. Superficialmente mesmo tempo, transcende o estruturalis-
eles são variados, mas se examinados na mo. O pós-estruturalismo partilha com o
sua profundeza, na sua estrutura, eles se estruturalismo a mesma ênfase na lingua-
reduzem a uma mesma fórmula. gem como um sistema de significação. Na
Encontramos uma operação semelhan- verdade, o pós-estruturalismo até amplia
te nas análises que Roman jakobson faz a centralidade que a linguagem tem no es-
da narrativa literária ou nas análises mais truturalismo, como se pode observar, por
recentes da narrativa fílmica. Num livro exemplo, na preocupação de Foucault com
intitulado Sixguns and society, Will Wright, a noção de"discurso" e na de Derrida com
por exemplo, analisa o gênero western do a noção de "texto". O pós-estruturalismo
cinema de Hollywood.Wright identifica no efetua, entretanto, um certo afrouxamento
western clássico dezesseis funções narra- na rigidez estabelecida pelo estruturalismo.
tivas que vão se desenvolvendo ao longo O processo de significação continua cen-
da história. Como ilustração, eis algumas tral, mas a fixidez do significado que é, de
dessas funções: o herói entra num grupo certa forma, suposta no estruturalismo,
social; o herói é desconhecido na socieda- se transforma, no pós-estruturalismo, em
de; a sociedade não aceita completamente fluidez, indeterminação e incerteza. Por
o herói; os vilões ameaçam a sociedade; o outro lado, o conceito de diferença, central
herói luta contra os vilões; o herói derrota ao estruturalismo, torna-se radicalizado.
os vilões; a sociedade aceita o herói. Quan- No estruturalismo iniciado por Saussure,
do vemos filmes particulares desse gênero, um significante - aquilo que gráfica ou
observamos que mudam os personagens, foneticamente representa um significado -
mudam os cenários, mudam as situações. determinado não tem um valor absoluto:
Se analisamos esses filmes de acordo com ele é o que é apenas na medida em que é
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diferente de outros significantes. O pós-es- Foucault e Derrida.A contribuição funda-
truturalismo estende consideravelmente o mental de Foucault pode ser sintetizada,
alcance do conceito de diferença a ponto talvez, na transformação que ele efetuou
de parecer que não existe nada que não na noção de poder. Em oposição ao mar-
seja diferença. xismo, extremamente influente na época
O pós-estruturalismo também continua em que ele estava escrevendo, Foucault
e, ao mesmo tempo, radicaliza a crítica concebe o poder não como algo que se
do sujeito do humanismo e da filosofia possui, nem como algo fixo, nem tampouco
da consciência feita pelo estruturalismo. como partindo de um centro, mas como
Para o pós-estruturalismo, tal como para uma relação, como móvel e fluido, como
o estruturalismo, esse sujeito não passa de capilar e estando em toda parte.Ainda em
uma invenção cultural, social e histórica, oposição ao marxismo, para Foucault, o sa-
não possuindo nenhuma propriedade ber não é o outro do poder, não é externo
essencial ou originária. O pós-estrutu- ao poder. Em vez disso, poder e saber são
ralismo, entretanto, radicaliza o caráter mutuamente dependentes. Não existe saber
inventado do sujeito. No estruturalismo que não seja a expressão de uma vontade
marxista de Althusser, o sujeito era um de poder. Ao mesmo tempo, não existe
produto da ideologia, mas se podia, de poder que não se utilize do saber, sobre-
alguma forma, vislumbrar a emergência tudo de um saber que se expressa como
de um outro sujeito, uma vez removidos conhecimento das populações e dos in-
os obstáculos, sobretudo a estrutura divíduos submetidos ao poder. É ainda o
capitalista, que estavam na origem desse poder que, para Foucault, está na origem
sujeito espúrio. Em troca, para o pós-es- do processo pelo qual nos tornamos su-
truturalismo - podemos tomar Foucault jeitos de um determinado tipo. O louco,
como exemplo - não existe sujeito a não o prisioneiro, o homossexual não são
ser como o simples e puro resultado de expressões de um estado prévio, original;
um processo de produção cultural e social. eles recebem sua identidade a partir dos
Aquilo que se entende hoje por "pós- aparatos discursivos e institucionais que os
-estruturalismo" deve sua definição, sem definem como tais. O sujeito é o resultado
dúvida, principalmente aos trabalhos de dos dispositivos que o constroem como tal.
120

l.
-
Embora Foucault tenha rejeitado, de diferença de pronúncia entre as palavras
forma explícita, o rótulo de "pós-estrutu- différance e différence.Além disso, a palavra
ralista", as consignas que ele esboçava no différance remete à ideia de "diferir", de
prefácio à edição americana do livro de "adiar". Ao combinar numa só palavra os
Deleuze e Guattari,Anti-Édipo, constituíam significados de "diferença" e "adiamento",
uma espécie de "manifesto mínimo do pós- Derrida aceita a proposição de Saussure
-estruturalismo", ao qual não faltava nem de que a existência de um determinado
mesmo o tom de convocação da segunda significante depende da diferença que ele
pessoa do plural do Manifesto Comunista: estabelece relativamente a outros sig-
"liberai a ação política de toda forma de nificantes. Mas ele vai além: o significado
paranoia unitária e totalizante; desenvolvei não é nunca, definitiva e univocamente,
a ação, o pensamento e os desejos por apreendido pelo significante. O significado
não está nunca definitivamente presente
proliferação, justaposição e disjunção,
no significante. A presença do significado
antes que por subdivisão e hierarquização
no significante é incessantemente adiada,
piramidal; livrai-vos das velhas categorias
diferida. O exemplo mais definitivo desse
do Negativo. Preferi o que é positivo e
processo é dado pelo dicionário. Nós
múltiplo: a diferença à uniformidade, os
temos a ilusão de que a definição de uma
fluxos às unidades, os agendamentos mó- determinada palavra (significante) é cons-
veis aos sistemas. O que é produtivo não tituída por um significado, "o significado
é sedentário mas nômade; não exijais da da palavra", mas, na verdade, ela é sempre
política que ela restabeleça os "direitos" do definida por uma outra palavra (um outro
indivíduo tais como a filosofia os definiu. O significante). Aquele significante que cons-
indivíduo é o produto do poder". titui a definição da palavra e que supomos
Já a contribuição de Derrida pode ser seu "significado" será definido, por sua
ser sintetizada através do conceito de vez, por outro significante, e assim por
différance. Derrida cunhou esse termo diante, num processo sem fim. Ou seja,
precisamente para estender e radicalizar o significado está sempre mais além, mais
o alcance do conceito de diferença que, adiante, mas esse além, evidentemente,
como vimos, é tão central no estrutura- nunca chega. Em outras palavras, nunca
lismo. Não existe, em francês, nenhuma saímos do domínio do significante.

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Mas com a indistinção, na linguagem escrita que é vista como forma de registro,
oral, entre différance e différence, Derrida Derrida resolve utilizar o termo "escrita"
quer chamar a atenção para uma outra coi- para abranger também a linguagem oral,
sa muito importante. Na tradição filosófica precisamente para chamar a atenção para
ocidental, faz-se uma oposição fundamental seu caráter de inscrição. Com essa análise,
entre a linguagem oral e a linguagem escrita. Derrida efetua, por vias diferentes das de
Nessa tradição, a escrita é, de certa forma, Foucault, um ataque importante à noção
desvalorizada relativamente à linguagem de sujeito do humanismo e da filosofia da
oral, por se constituir numa espécie de consciência. Nessas tradições, a voz é a
forma secundária, derivada, relativamente expressão suprema da autonomia e da pre-
a essa última.A linguagem oral é aquela que sença do sujeito. Na medida em que a voz é
está próxima, colada à nossa interioridade. vista como sendo já inscrição e linguagem,
Ela é a expressão imediata de nosso eu, de ela é externa ao sujeito. O sujeito, tal como
nossa subjetividade.A escrita seria apenas concebido no humanismo e na filosofia da
uma forma degradada de registro desse consciência, deixa, pois, de existir.
momento privilegiado em que existe, na Não se pode falar propriamente de
oralidade, uma identidade entre nossa uma teoria pós-estruturalista do currículo,
consciência e a linguagem. Nossa consciência mesmo porque o pós-estruturalismo, tal
é, na linguagem oral, uma presença. Derrida como o pós-modernismo, rejeita qualquer
questiona esse pressuposto da identidade tipo de sistematização. Mas há certamente
entre a consciência e a linguagem oral. Para uma "atitude" pós-estruturalista em muitas
ele, a linguagem oral não é a consciência em das perspectivas atuais sobre currículo.
estado puro: a linguagem oral é já e sempre, Nos Estados Unidos, Cleo Cherryholmes
exatamente tal como a escrita, significante. foi um dos primeiros a desenvolver de
Não existe nenhuma diferença ontológica forma explícita uma perspectiva pós-estru-
essencial entre o sinal com que registra- turalista na área dos estudos sobre currículo.
mos no papel a palavra "maçã" e a forma Thomas Popkewitz vem se dedicando há
com a qual a pronunciamos. Constituem, alguns anos ao desenvolvimento de uma
ambos, formas de registro, de inscrição: análise do currículo fundamentada na
são ambos significantes. Uma vez que é a teorização de Michel Foucault. Em geral,
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11111

entretanto, o que se observa é que muitos de relações de poder. Como campos de


autores e autoras contemporâneos da área significação, o conhecimento e o currículo
de estudos do currículo simplesmente são, pois, caracterizados também por sua
passaram a adotar livremente alguns dos indeterminação e por sua conexão com
elementos da análise pós-estruturalista. relações de poder.
Como se poderia caracterizar essa Em segundo lugar, essa ênfase nos pro-
perspectiva pós-estruturalista mais geral na cessos de significação é ampliada para se
área de estudos do currículo? Em primeiro focalizar especificamente nas noções cor-
lugar, dada a concepção pós-estruturalista rentes de "verdade". Seguindo, nesse caso,
que vê o processo de significação como especificamente, Foucault, uma perspectiva
basicamente indeterminado e instável, a pós-estruturalista sobre currículo descon-
atitude pós-estruturalista enfatiza a in- fia das definições filosóficas de "verdade".
determinação e a incerteza também em São essas noções que estão na base das
questões de conhecimento. O significado concepções de conhecimento que moldam
não é, da perspectiva pós-estruturalista, o currículo contemporâneo. Nessa visão,
pré-existente; ele é cultural e socialmen- a verdade é simplesmente uma questão
te produzido. Como tal, mais do que de verificação empírica; é uma questão de
sua fidelidade a um suposto referente, correspondência com uma suposta "reali-
0 importante é examinar as relações de dade".A perspectiva pós-estruturalista não
poder envolvidas na sua produção. Um apenas questiona essa noção de verdade;
determinado significado é o que é não ela, de forma mais radical, abandona a ênfase
porque ele corresponde a um "objeto" na "verdade" para destacar, em vez disso,
que exista fora do campo da significação, o processo pelo qual algo é considerado
mas porque ele foi socialmente assim de- como verdade. A questão não é, pois, a
finido u ,. de saber se algo é verdadeiro, mas, sim.
· ma analise derridiana do processo
de sign·fi -
1icaçao de saber por que esse algo se tomou ver-
combina-se aqui com uma
análise & . ' '_
,oucau 1t1ana das conexoes entre dadeiro. Nos termos de Foucault, não se
Poder e b trata de uma questão de verdade, mas de
sa er para caracterizar o pro- !:
cinstá
_essa de s·1gn·1ficaça~o como nao- apenas uma questão de veridicção. Não se pode,
Vel rnas também como dependente provavelmente, nem faria sentido, da

123
<

e perspectiva pós-estruturalista, propor tre os diversos gêneros de conhecimento.


a uma verdadeira revolução no currículo Finalmente, uma perspectiva pós-estrutura-
e com base nessa concepção pós-estrutura- lista não deixaria, evidentemente, de ques-
e lista de "verdade". Mas podemos imaginar tionar a concepção de sujeito - autônomo,
p quais seriam as implicações da adoção dessa racional, centrado, un itário - na qual se
e: atitude pós-estruturalista sobre a verdade baseia todo o empreendimento pedagógico
e o verdadeiro no cotidiano do currículo. e curricular, denunciando-a como resultado
q Poderíamos continuar esse exercício. de uma construção histórica muito parti-
t: Basta, entretanto, mencionar, de passagem, cular. Paralelamente, seria a própria noção
tl
mais algumas das implicações da adoção de emancipação e libertação, que resulta
te
de uma perspectiva pós-estruturalista da adoção dessa concepção de sujeito, que
d sobre currículo. Inspirada em Derrida, seria colocada em questão. No limite, para
p por exemplo, uma perspectiva pós-estru- a perspectiva pós-estruturalista, é o próprio
e projeto de uma perspectiva crítica sobre
turalista sobre currículo questionaria os
n currículo que é colocado em questão.
"significados transcendentais", ligados à
e
religião, à pátria, à política, à ciência, que
q
povoam o currículo. Uma perspectiva pós- Leituras
p
d -estruturalista buscaria perguntar: onde, SILVA,Tomaz T. (org.). O sujeito da educação. Estudos
d quando, por quem foram eles inventados? foucaultianos . Rio:Vozes, 1994.
Ainda seguindo Derrida, uma perspectiva
VEIGA-NETO, Alfredo J. (org.). Crítica pós-estrutu-
r: pós-estruturalista tentaria desconstruir ra/isto e educação. Porto Alegre: Sulina, 1995.
te os inúmeros binarismos de que é feito o
e: conhecimento que constitui o currículo:
p mascu Iino/feminino; heterossexual/ho-
p mossexual; branco/negro; científico/não
C< científico. Ao ver todo o conhecimento
o como escrita, como inscrição, ainda sob
a inspiração de Derrida, uma perspectiva
Ct pós-estruturalista colocaria em dúvida as
rí atuais e rígidas separações curriculares en-
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-
Uma teoria pós-colonialista do currículo

A teoria pós-colonialista tem como de ocupação e dominação direta (Índia,


objetivo analisar o complexo das relações países africanos e asiáticos), passando por
de poder entre as diferentes nações que projetos de "colonização" por grupos de
compõem a herança econômica, política e "colonos" (Austrália), para incluir as re-
cultural da conquista colonial europeia tal lações atuais de dominação entre nações,
como se configura no presente momento baseadas na exploração econômica e no
- chamado, é claro, de "pós-colonial". Ela imperialismo cultural.
parte da ideia de que o mundo contem- A teoria pós-colonial mostra-se particu-
porâneo, no momento mesmo em que larmente forte na teoria e na análise literá-
supostamente se torna globalizado, só rias. Nesses campos, a análise pós-colonial
pode ser adequadamente compreendido busca examinar tanto as obras literárias
se considerarmos todas as consequências escritas do ponto de vista dominante quanto
da chamada "aventura colonial europeia". aquelas escritas por pessoas pertencentes às
Pode-se situar o fim do império colonial nações dominadas. Na análise das primeiras,
europeu, definido em termos de ocupação o objetivo consiste em examiná-las como
territorial, nos anos que vão do final da narrativas que constroem o Outro colonial
Segunda Guerra Mundial até os anos 60.A enquanto objeto de conhecimento e como
análise pós-colonial não se limita, entretan- sujeito subalterno. As narrativas imperiais
to, a analisar as relações de poder entre as são vistas como parte do projeto de submis-
metrópoles e os países mais recentemente são dos povos colonizados. Por outro lado,
libertados, mas recua no tempo para consi- as obras literárias escritas por pessoas
derar toda a história da expansão imperial pertencentes aos grupos colonizados são
europeia desde o século XV. Ela é também analisadas como narrativas de resistência
bastante abrangente em sua definição do ao olhar e ao poder imperiais. As narrativas
que constituem "relações coloniais" de subordinadas são vistas em contraposição
Poder, compreendendo desde relações às formas literárias dominantes que buscam
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fixar o Outro colonizado como objeto da remontam a teoria pós-colonial a autores
curiosidade, do saber e do poder metro- como Frantz Fanon,Aimé Césaire e Albert
politanos. Numa concepção mais restrita, a Memmi, que escreveram no contexto das
teoria pós-colonial deveria estar focalizada lutas de libertação colonial dos anos 50 e
precisamente nas manifestações literárias 60. Os livros de Fanon, nascido na então
e artísticas dos próprios povos subjugados, colônia francesa da Martinica, Pele negra,
vistas como expressão de sua experiência máscaras brancas, publicado em 1952, e
da opressão colonial e pós-colonial. Nesse Os danados da terra, publicado em 1961,
sentido, a teoria pós-colonial é um importante são considerados como precursores
elemento no questionamento e na crítica dos particularmente importantes da atual
currículos centrados no chamado "cânon teoria pós-colon ial. Influentes autores
ocidental" das "grandes" obras literárias e pós-coloniais contemporâneos, como
artísticas. A teoria pós-colonial, juntamente Homi Bhabha, por exemplo, recorrem,
com o feminismo e as teorizações críticas ba- de forma renovada, às análises da situação
seadas em outros movimentos sociais, como colonial daqueles anos feita por Fanon. No
o movimento negro, reivindica a inclusão das Brasil, a obra inicial de Paulo Freire, que
formas culturais que refletem a experiência pode ser considerada como uma espécie
de grupos cujas identidades culturais e sociais de teorização pós-colonial no campo
são marginalizadas pela identidade europeia educacional, fundamenta-se, em parte, nos
dominante. Há, nesse questionamento do livros de Fanon e Memmi. É, entretanto,
cânone ocidental efetuado pelo pós-colo- o livro Orientalismo, escrito por Edward
nialismo, um deslocamento da estética para Said, que é, em geral, considerado como
a política. Para a teoria pós-colonial, não se constituindo o marco dos estudos pós-
pode separar a análise estética de uma análise coloniais contemporâneos. Nesse livro,
das relações de poder. A estética corpori- Said, tomando como base, sobretudo, a
fica, sempre, alguma forma de poder. Não teorização foucaultiana, argumenta que 0
há poética que não seja, ao mesmo tempo, Oriente é uma invenção do Ocidente. A
também uma política. literatura orientalista não é, na perspecti-
Como ocorre com o pós-modernismo, va desenvolvida por Said, uma descrição
há versões contraditórias sobre as origens "objetiva" de uma região que se poderia
da teoria pós-colonial. Algumas análises chamar de "Oriente", mas uma narrativa

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que efetivamente constrói o objeto do poder estabelecidas no contínuo processo
qual fala. Mais do que um interesse sim- da história de dominação colonial.
plesmente científico ou epistemológico, o Tal como ocorre, de forma mais ge-
que move essa narrativa é a curiosidade e ral, nos Estudos Culturais, o conceito de
a fascinação pelo Outro, visto como es- "representação" ocupa um lugar central
tranho e exótico, e o impulso para fixá-lo na teorização pós-colonial. O conceito
e dominá-lo como objeto de saber e de de "representação" é, aqui, fundamental-
poder. O Outro é, pois, menos um dado mente, pós-estruturalista, isto é, a repre-
objetivo e mais uma criatura imaginária sentação é compreendida como aquelas
do poder. formas de inscrição através das quais o
A análise pós-colonial junta-se, assim, às Outro é representado. Diferentemente
análises pós-moderna e pós-estruturalista, das concepções psicologistas de repre-
para questionar as relações de poder e as sentação, a análise pós-colonial adota uma
formas de conhecimento que colocaram concepção materialista de representação,
o sujeito imperial europeu na sua posição na qual se focaliza o discurso, a linguagem,
atual de privilégio. Diferentemente das ou- o significante, e não a imagem mental, a
tras análises "pós", entretanto, a ênfase da ideia, o sign ificado. A representação é
teorização pós-colonial está nas relações aquilo que se expressa num texto literá-
de poder entre nações. O pós-colonialis- rio, numa pintura, numa fotografia, num
mo concentra-se no questionamento das filme, numa peça publicitária. A teoria
narrativas sobre nacionalidade e sobre pós-colonial considera a representação
"raça" que estão no centro da construção como um processo central na formação e
imaginária que o Ocidente fez - e faz - do produção da identidade cultural e social.
Oriente e de si próprio. A teoria pós-co- É fundamentalmente através da repre-
1 • 1 sentação que construímos a identidade
onia focaliza, sobretudo, as complexas
relações entre, de um lado, a exploração do Outro e, ao mesmo tempo, a nossa
econômica e a ocupação militar e, de própria identidade. Foi através da repre-
outro, a dominação cultural. Em termos sentação que o Ocidente, ao longo da
foucaultianos, questionam-se as comple- trajetória de sua expansão colonial, cons-
xas conexões entre saber, subjetividade e truiu um "outro" como supostamente
127

b
irracional, inferior e como possuído por A dimensão epistemológica e cultural
uma sexualidade selvagem e irrefreada. do processo de dominação colonial não
Vista como uma forma de conhecimento se limitava, entretanto, à produção de
do Outro, a representação está no centro conhecimento sobre o sujeito colonizado
da conexão saber-poder. e seu ambiente. O processo de domina-
É precisamente essa conexão saber- ção, na medida em que ia além da fase de
-poder que é particularmente importante exterminação e subjugação física, precisava
para uma teorização curricular crítica ou afirmar-se culturalmente. Aqui, o que se
pós-crítica. Essa conexão aparece de forma tornava importante era a transmissão, ao
bastante óbvia ao longo de toda a história Outro subjugado, de uma determinada
da dominação colonial europeia. O saber forma de conhecimento. A cosmovisão
e o conhecimento estiveram estreita- "primitiva" dos povos nativos precisava ser
mente ligados aos objetivos de poder das convertida à visão europeia e "civilizada"
potências coloniais europeias desde o seu de mundo, expressa através da religião,
início. Antes de tudo, eram as próprias da ciência, das artes e da linguagem e
populações nativas que se tornavam objeto convenientemente adaptada ao estágio
central de conhecimento. O Outro colonial de "desenvolvimento" das populações
tornava-se, na sua estranheza e no seu exo- submetidas ao poder colonial. O projeto
tismo, um importante ponto de referência colonial teve, desde o início, uma impor-
para a definição e redefinição do próprio
tante dimensão educacional e pedagógica.
sujeito imperial. O projeto epistemológico
Era através dessa dimensão pedagógica
colonial abrangia, também, obviamente, a
e cultural que o conhecimento se ligava,
descrição e análise dos recursos naturais e
mais uma vez, ao complexo das relações
do ambiente das terras ocupadas. O impul-
so que deu origem à ciência moderna está coloniais de poder.
ligado, em grande parte, ao conhecimento A teoria pós-colonial evita formas
, . que conce bam o Precesso de
de analise _
produzido no contexto dos interesses de
dominação cultural como uma vi
·a de mao
exploração econômica do empreendimento L • ao
colonial. O conhecimento do Outro e da única. A crítica pós-colonial eniatiza,
·bridism 0 ,
terra era, pois, central aos objetivos de invés disso conceitos como h1
' ermitem
conquista dos poderes coloniais. tradução, mestiçagem, que P
128
conceber as culturas dos espaços coloniais sujeito imperial europeu? Como, nessas
ou pós-coloniais como o resultado de uma narrativas, são construídas concepções
complexa relação de poder em que tanto sobre "raça", gênero e sexualidade que se
a cultura dominante quanto a dominada combinam para marginalizar identidades
se veem profundamente modificadas. que não se conformam às definições da
Conceitos como esses permitem focalizar identidade considerada "normal"? Uma
tanto processos de dominação cultural análise pós-colonial do currículo deveria
quanto processos de resistência cultural, também buscar analisar as formas con-
bem como sua interação. Obviamente, temporâneas de imperialismo econômico
o resultado final é favorável ao poder, e cultural. Como as formas culturais que
mas nunca tão cristalinamente, nunca tão estão no centro da sociedade de consumo
completamente, nunca tão definitivamente contemporânea expressam novas formas
quanto o desejado. O híbrido carrega as de imperialismo cultural? Qual o papel
marcas do poder, mas também as marcas dessas novas formas de imperialismo
da resistência. cultural na formação de uma identidade
Éna análise do legado colonial que uma cultural hegemônica e uniforme? Como
teoria pós-colonial do currículo deveria se o currículo, considerado como um local
concentrar. Em que medida o currículo de conhecimento e poder, reflete e, ao
contemporâneo, apesar de todas as suas mesmo tempo, questiona, formas culturais
transformações e metamorfoses, é ainda que podem ser vistas como manifestações
moldado pela herança epistemológica de um poder neocolonial ou pós-colonial?
colonial? Em que medida as definições de Uma perspectiva pós-colonial de currí-
nacionalidade e "raça", forjadas no contex- culo deveria estar particularmente atenta
t~ da conquista e expansão colonial, con- às formas aparentemente benignas de
tinuam predominantes nos mecanismos de representação do Outro que estão em
~armação da identidade cultural e da sub- toda parte nos currículos contemporâne-
~tividade embutidos no currículo oficial? os. Nessas formas superficialmente vistas
e que forma as narrativas que constituem como multiculturais, o Outro é "visitado"
o ,
nucleo do currículo contemporâneo de uma perspectiva que se poderia chamar t'
continuam celebrando a soberania do de"perspectiva do turista",a qual estimula
129
uma abordagem superficial e voyeurística Leituras
das culturas alheias. Uma perspectiva BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte:
pós-colonial questionaria as experiências Editora da UFMG, 1999.

superficialmente multiculturais estimuladas BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo:


nas chamadas "datas comemorativas": o Companhia das Letras, 1995.
dia do Índio, da Mulher, do Negro. Uma FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio: Civi-
perspectiva pós-colonial exige um currícu- lização Brasileira, 1979.
lo multicultural que não separe questões FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Rio:
de conhecimento, cultura e estética de Fator, 1983.
questões de poder, política e interpreta- SAID, Edward. Orientalismo. O oriente como invenção
ção. Ela reivindica, fundamentalmente, um do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
currículo descolonizado. 1990.

VIDIGAL, Luís. "Entre o exótico e o colonizado:


imagens do outro em manuais escolares e livros
para crianças no Portugal imperial ( 1890-1945)".
ln António Nóvoa et alii (orgs.). Para uma história
da educação colonial. Porto e Lisboa: Sociedade
Portuguesa de Ciência da Educação e Educa,
1996: p.379-420 .

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130
Os Estudos Culturais e o currículo

o campo de teorização e investigação teórica do livro de E. P. Thompson, The


conhecido como Estudos Culturais tem sua making ofthe English workingclass, publicado
origem na fundação, em 1964, do Centro em 1963.
de Estudos Culturais Contemporâneos, na Seria a concepção de cultura desenvol-
Universidade de Birmingham, Inglaterra. vida por RaymondWilliams em Cu/ture and
O impulso inicial do Centro partia de um society e em livros posteriores que daria ao
questionamento da compreensão de cultu- Centro as bases de sua teorização e de sua
ra dominante na crítica literária britânica. metodologia. Para Williams, em contraste
Nessa tradição, exemplificada pela obra com a tradição literária britânica, a cultura
de F. R. Leavis, a cultura era identificada, deveria ser entendida como o modo de
exclusiva e estreitamente, com as chamadas vida global de uma sociedade, como a ex-
"grandes obras" da literatura e das artes periência vivida de qualquer agrupamento
em geral. Nessa visão burguesa e elitista, humano. Nessa visão, não há nenhuma
a cultura era intrinsecamente privilégio de diferença qualitativa entre, de um lado, as
um grupo restrito de pessoas: havia uma "grandes obras" da literatura e, de outro,
incompatibilidade fundamental entre cultura as variadas formas pelas quais qualquer
e democracia.
grupo humano resolve suas necessidades
A reação do Centro a essa concepção de sobrevivência. Inicialmente restrita às
de cultura baseava-se, sobretudo, em duas manifestações culturais "autênticas" de
obras que viriam a se tornar centrais no grupos sociais subordinados, como a clas-
campo dos Estudos Culturais: Cu/ture and se operária inglesa analisada no livro de
Society de R
' aymondWilliams,publicada em Richard Hoggart, The uses of literacy, essa
195
S,e Uses ofliteracy, de Richard Hoggart, definição inclusiva de cultura iria posterior-
Pu blicad
rn . ª em 1957. Este último seria o pri- mente ser ampliada para abranger também
e1ro dir
liv etor do Centro.Além desses dois aquilo que na literatura anglo-saxônica é
ros, seria importante também a influência conhecido como "cultura popular", isto
131
é, as manifestações da cultura de massa: iriam adquirir nos estudos realizados sob
livros populares, tabloides, rádio, televisão, a égide do Centro. Nos anos 80, esse
a mídia em geral. predomínio do marxismo nos Estudos
Tematicamente, os esforços iniciais Culturais tais como delineados pelo
do Centro concentraram-se no estudo Centro de Birmingham iria ceder lugar
de formas culturais urbanas, sobretudo ao pós-estruturalismo de autores como
das chamadas "subculturas". Dois dos Foucault e Derrida.
livros mais importantes saídos dessa fase Metodologicamente, o Centro irá se
inicial do Centro são Resistance through dividir entre duas tendências que ainda
rituais: youth subcultures in post-war Britain, se encontram sob tensão nos Estudos
uma coleção de ensaios e pesquisas, de Culturais contemporâneos: de um lado, as
vários autores, sobre as culturas juvenis pesquisas de terreno, sobretudo etnográfi-
britânicas, e Subculture: the meaning ofsty/e, cas e, de outro, as interpretações textuais.
o relato de uma pesquisa sobre grupos Essas duas tendências refletem, de certa
culturais juvenis realizada por Dick Heb- forma, as origens disciplinares dos Estudos
dige. Como resultado de sua preocupação Culturais: a Sociologia, de um lado, e os
com questões de ideologia, as pesquisas e Estudos Literários, de outro. Vários dos es-
as teorizações iniciais do Centro também tudos iniciais do grupo utilizam a etnografia
se preocupavam com o papel da mídia, como metodologia preferida, mas outros
sobretudo da televisão, na formação do preferem a interpretação de "textos",
consenso e do conformismo político. entendidos aqui de forma ampla. A etno-
Em termos teóricos, o Centro gradu- grafia é utilizada sobretudo nos estudos das
al mente adotará quadros de referência chamadas "subculturas urbanas", enquanto
claramente marxistas. Depois de um a interpretação textual é reservada para a
início relativamente pouco marxista, a análise dos programas de televisão e dos
teorização do Centro se apoiará em in- textos propriamente ditos de certas obras
terpretações contemporâneas de Marx, literárias consideradas "populares".
como a deAlthusser e, mais tarde, também A partir de um modesto anexo de um
a de Gramsci, visíveis na importância que departamento de Língua Inglesa, contan-
os conceitos de ideologia e de hegemonia do sempre com um número reduzido de
132
-
pessoas, o campo dos Estudos Culturais Estudos Culturais?". O que distingue, pois,
ampliou-se para ganhar uma força e uma os Estudos Culturais?
influência enormes na teorização social Em primeiro lugar, os Estudos Culturais
contemporânea. Os Estudos Culturais concentram-se na análise da cultura, com-
diversificaram-se tanto em sua difusão preendida, tal como na conceptualização
por vários países que se pode dizer que original de RaymondWilliams, como forma
sua variante britânica é apenas uma entre global de vida ou como experiência vivida
um número variado de versões nacionais. de um grupo social. Além disso, a cultura
Mesmo no interior das várias versões é vista como um campo relativamente
nacionais, os Estudos Culturais se subdi- autônomo da vida social, como um campo
videm de acordo com um série variada que tem uma dinâmica que é, em certa me-
de perspectivas teóricas e de influências dida, independente de outras esferas que
disciplinares. Enquanto algumas perspec- poderiam ser consideradas determinantes.
tivas continuam marcadamente marxistas, Nessa perspectiva, os Estudos Culturais
outras claramente abandonaram o mar- opõem-se às implicações deterministas
xismo em favor de alguma das versões do da famosa metáfora marxista da divisão
pós-estruturalismo. Há, de forma similar, entre infraestrutura e superestrutura.
uma visível heterogeneidade na perspectiva Essa ênfase na cultura tem levado certas
social adotada: há uma versão centrada nas vertentes dos Estudos Culturais a reduzir,
questões de gênero, outra nas questões de em direção contrária ao marxismo, toda a
raça, ainda outra em questões de sexua- dinâmica social à dinâmica cultural.
lidade, embora existam, evidentemente, De forma talvez mais importante, os
intersecções entre elas. Estudos Culturais concebem a cultura
Podem-se vislumbrar nessa hete- como campo de luta em torno da signi-
rogeneidade, entretanto, alguns traços ficação social. A cultura é um campo de
comuns. Dada essa heterogeneidade, tem produção de significados no qual os dife-
havido, inclusive, vários esforços de de- rentes grupos sociais, situados em posições
finição dos Estudos Culturais, buscando, diferenciais de poder, lutam pela imposi-
essencialmente, responder - frente a um ção de seus significados à sociedade mais
determinado estudo - à questão "i st0 é ampla. A cultura é, nessa concepção, um
133

L
<

campo contestado de significação. O que encontrada nas análises feitas nos Estudos
., está centralmente envolvido nesse jogo é a Culturais pode ser sintetizada na fórmula
' definição da identidade cultural e social dos "x é uma invenção", na qual "x" pode ser
diferentes grupos. A cultura é um campo uma instituição, uma prática, um objeto,
onde se define não apenas a forma que um conceito ... A análise consiste, então,
o mundo deve ter, mas também a forma em mostrar as origens dessa invenção e
como as pessoas e os grupos devem ser. os processos pelos quais ela se tornou
A cultura é um jogo de poder. Os Estudos "naturalizada".
Culturais são particularmente sensíveis às O que distingue os Estudos Culturais
relações de poder que definem o campo de disciplinas acadêmicas tradicionais é
cultural. Numa definição sintética, poder- seu envolvimento explicitamente político.
se-ia dizer que os Estudos Culturais estão As análises feitas nos Estudos Culturais
preocupados com questões que se situam não pretendem nunca ser neutras ou
na conexão entre cultura, significação, imparciais. Na crítica que fazem das rela-
identidade e poder. ções de poder numa situação cultural ou
De alguma forma, a ideia de "cons- social determinada, os Estudos Culturais
trução social" tem funcionado como um tomam claramente o partido dos grupos
conceito unificador dos Estudos Culturais. em desvantagem nessas relações. Os Estu-
Em muitas das análises feitas nos Estudos dos Culturais pretendem que suas análises
Culturais, busca-se, fundamentalmente, funcionem como uma intervenção na vida
caracterizar o objeto sob análise como um política e social.
artefato cultural, isto é, como o resultado Quais são as implicações dos Estudos
de um processo de construção social. A Culturais para a análise do currículo e
análise cultural parte da concepção de para o currículo? Em primeiro lugar, os
que o mundo cultural e social torna- Estudos Culturais permitem-nos conceber
se, na interação social, naturalizado: sua o currículo como um campo de luta em
origem social é esquecida. A tarefa da torno da significação e da identidade. A
análise cultural consiste em desconstruir, partir dos Estudos Culturais, podemos ver
em expor esse processo de naturaliza- o conhecimento e o currículo como campos
ção. Uma proposição frequentemente • ·
cu 1turais, como campos su1e1tos à disputa

134

1
e à interpretação, nos quais os diferentes curso nesse processo de construção.Além
grupos tentam estabelecer sua hegemonia. disso, essa análise provavelmente adotaria
Nessa perspectiva, o currículo é um artefato uma concepção menos estrutural, menos
cultural em pelo menos dois sentidos: 1) a centralizada, menos polarizada de poder.
"instituição" do currículo é uma invenção Finalmente, uma análise cultural não deixa-
social como qualquer outra; 2) o "conteú- ria de destacar as estreitas conexões entre
do" do currículo é uma construção social. a natureza construída do currículo e a
Como toda construção social, o currículo produção de identidades culturais e sociais.
não pode ser compreendido sem uma No segundo sentido, uma perspectiva
análise das relações de poder que fizeram culturalista sobre currículo também pro-
e fazem com que tenhamos esta definição curaria descrever as diversas formas de
determinada de currículo e não outra, que conhecimento corporificadas no currículo
fizeram e fazem com que o currículo inclua como o resultado de um processo de cons-
um tipo determinado de conhecimento e trução social. Essa perspectiva procuraria
não outro. incorporar ao currículo as diversas pesquisas
No primeiro sentido, uma análise da e teorizações feitas no âmbito mais amplo
instituição "currículo" inspirada nos Es- dos Estudos Culturais - pesquisas que
tudos Culturais descreveria o currículo, buscam focalizar as diversas formas de co-
de modo geral, como o resultado de um nhecimento como "epistemologias sociais".
processo de construção social. Não esta- Nessa visão, o conhecimento não é uma
mos muito longe aqui da ideia que era revelação ou um reflexo da natureza ou da
central à "Nova Sociologia da Educação", realidade, mas o resultado de um processo
de que o currículo é um artefato social de criação e interpretação social. Não se
corno qualquer outro. Com os Estudos separa o conhecimento supostamente mais
Cultura·1 ~ ,
s, essa compreensao e entretanto, objetivo das Ciências Naturais e o conhe-
rn Od.fi
I '
d icada e, ao mesmo tempo, radicaliza- cimento supostamente mais interpretativo
a. Sob a infl uenc,a
" · do pos-estruturalismo,
, das Ciências Sociais ou das Artes. Todas as
urna análise do caráter construído do formas de conhecimento são vistas como o
currícul O b
ee aseada nos Estudos Culturais resultado dos aparatos - discursos, práticas,
n,atizar·1
ª o papel da linguagem e do dis- instituições, instrumentos, paradigmas - que
135
.-
fizeram com que fossem construídas como ambos os tipos de conhecimento estão
tais. As implicações dessa perspectiva não envolvidos numa economia do afeto que
devem ficar restritas à análise. É possível busca produzir certo tipo de subjetividade
pensar num currículo que enfatizasse precisa- e identidade social.
mente o caráter construído e interpretativo Assim como ocorre com o pós-moder-
do conhecimento. nismo, o pós-estruturalismo e o pós-colo-
Uma vantagem de uma concepção de nialismo, a influência dos Estudos Culturais
currículo inspirada nos Estudos Culturais na elaboração de políticas de currículo
é que as diversas formas de conhecimento e no currículo do cotidiano das salas de
são, de certa forma, equiparadas. Assim aula é mínima. A concepção de currículo
como não há uma separação estrita entre, implicada na ideia dos Estudos Culturais
de um lado, Ciências Naturais e, de outro, choca-se tanto com a compreensão de
Ciências Sociais e Artes, também não senso comum quanto com as concepçoes
há uma separação rígida entre o conhe- filosóficas sobre conhecimento dominan-
cimento tradicionalmente considerado tes no campo educacional. A epistemo-
como escolar e o conhecimento cotidiano logia dominante é fundamentalmente
das pessoas envolvidas no currículo. Ao realista: o conhecimento é algo dado,
ver todo conhecimento como um objeto natural. O conhecimento é um objeto
cultural, uma concepção de currículo ins- pré-existente: ele já está lá; a tarefa da
pirada nos Estudos Culturais equipararia, pedagogia e do currículo consiste em sim-
de certa forma, o conhecimento pro- plesmente revelá-lo. Num mundo social e
priamente escolar com, por exemplo, o cultural cada vez mais complexo, no qual a
conhecimento explícita ou implicitamente característica mais saliente é a incerteza e a
transmitido através de anúncio publi- instabilidade; num mundo atravessado pelo
citário. Do ponto de vista dos Estudos conflito e pelo confronto; num mundo em
Culturais, ambos expressam significados que as questões da diferença e da identidade
social e culturalmente construídos, ambos se tornam tão centrais, é de se esperar que
buscam influenciar e modificar as pessoas, a ideia central dos Estudos Culturais possa
estão ambos envolvidos em complexas encontrar um espaço importante no campo
relações de poder. Em outras palavras, das perspectivas sobre currículo.
136
Leituras
IROUX, Henry. "Praticando Estudos Culturais
G nas faculdades de e d ucaçao - ... 1,.
n ,omaz Tadeu
da Silva (org.). Alienígenas na sala de aula. Uma
introdução aos estudos culturais em educação. Rio:
Vozes, 1995: p.85-103.

HALL, Stuart. "A centralidade da cultura: notas


sobre as revoluções de nosso tempo". Educação
e realidade, 22(2), 1997: p. l 5-46.
SILVA,TomazT. da. (org.) .Alienígenas na sala de aula.
Uma introdução aos estudos culturais em educação.
Rio:Vozes, 1995.

137

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