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Sumário

especial Foucault
Um filósofo que pratica histórias
A palavra insensata
Um resistente nos Estados Unidos
O direito na política moderna
Entre o elogio e a crítica
Fala dos confins
A época da norma
Guerras psi
Meu Foucault
O dia em que Foucault se fez
bê-á-bá de foucault

colaboraram nesta edição


especial Foucault
Um filósofo que pratica histórias
SALMA TANNUS MUCHAIL

Foucault pensa filosoficamente praticando investigações históricas. Uma caracterização inicial e ampla
de seus trabalhos permite evidenciar algumas escolhas: primeiro, o campo dessas histórias é sempre o
nosso espaço ocidental; segundo, o tempo que percorrem é quase sempre aquele que vai do final do
renascimento (por volta do século 16) até a nossa modernidade (séculos 19 e 20), atravessando, com
especial destaque, a chamada idade clássica (séculos 17 e 18); terceiro, o trajeto reconstruído nesse
espaço e nesse tempo tem como principal perspectiva realçar as transformações demarcando dois
limiares, a saber, as passagens do final do renascimento para a idade clássica e desta para a nossa
modernidade.
Histórias circunscritas dentro de uma dada localização, no curso de determinados períodos e segundo
certo ponto de vista, eis a moldura que cerca este quadro geral dos escritos de Foucault. Tentemos
tracejar os temas contemplados no interior do quadro.
Por um lado, a um olhar mais imediato, desdobra-se uma diversidade de assuntos: a loucura e o
louco, a medicina clínica e o doente, os saberes das chamadas ciências humanas, a prisão e o
delinquente, a sexualidade e o sujeito ético – eis os “objetos” vários das histórias que Foucault escreve.
Por outro lado, um recuo do olhar permite uma percepção de conjunto por meio da qual se revelam
certos eixos comuns atravessando a diversidade temática: a questão da constituição histórica de saberes
em discursos qualificados como verdadeiros e a correlata desqualificação de outros (é o eixo da
“verdade”); a vinculação entre a dimensão discursiva e a esfera extradiscursiva ou das práticas sociais
com a consequente conexão entre a ordem da verdade e a dos regimes de poder (é eixo do “poder”); a
constituição do homem historicamente objetivado e subjetivado no plano do conhecimento em
contraponto à constituição de si mesmo no plano da ética (é o eixo do “sujeito”), eis os “elos” que
articulam aquela variedade de temáticas.
Neste traçado de caracterização muito geral das investigações, é interessante indicar o propósito que
as envolve. Sem dúvida, são estudos rigorosamente elaborados com informações minuciosas sobre os
assuntos escolhidos, em sua variedade e em seus eixos, sem jamais deslocá-los de seus contextos, de
suas épocas e de seus lugares. Contudo, não visam a um conhecimento erudito de sociedades passadas.
O percurso daquele trajeto histórico pretende antes trazer à luz as disposições epistemológicas, políticas
e éticas de nossa sociedade, fazer ver o nosso presente histórico, e fazê-lo ver com clareza tanto maior
quanto melhor se puder alcançar a compreensão de nossa sociedade pela sua diferença com o que a
precede.
É claro que um quadro geral como este que buscamos esboçar só se deixa desenhar sob uma visão
retrospectiva que abarca, como que a partir de seu “ponto de chegada”, todo o caminho já percorrido
pela produção filosófico-histórica de Foucault. Quando a tomamos, porém, sob uma visão mais
estritamente cronológica, constatamos que aqueles três eixos de articulação, embora sempre presentes,
não são sempre igualmente simultâneos; descortina-se uma sucessiva predominância de cada um deles
ao longo da produção de Foucault quando considerada desde seu “ponto de partida”. lsso permite
configurar “fases”ou “etapas” na trajetória de seus escritos.
Assim, no decorrer desse percurso, os estudiosos de Foucault, como também ele próprio, reconhecem
uma repartição possível em três momentos. No primeiro, as publicações principais da década de 60,
História da loucura na idade clássica (1961), O nascimento da clínica – uma arqueologia do olhar
médico (1963), As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas (1966), A arqueologia
do saber (1969). No segundo, os dois grandes livros da década de 70, Vigiar e punir – Nascimento da
prisão (1975) e A vontade de saber – volume 1 de História da sexualidade (1976). O terceiro momento
compreende os volumes 2 e 3 de História da sexualidade, intitulados O uso dos prazeres e O cuidado de
si (1984).
Embora esquemática e “relativizável”, essa distribuição encontra fundamento na predominância
sucessiva de um ou outro daqueles três eixos articuladores: nas primeiras obras, o predomínio das
preocupações com saberes considerados verdadeiros; nas obras do segundo momento, a acentuação dos
vínculos entre verdade e poder; nas últimas, a dimensão ética na abordagem das relações consigo e com
os outros. Essas etapas receberam denominações: arqueologia, genealogia e genealogia da ética. A esse
conjunto, devem ser acrescentadas ainda duas situações ocorridas após a morte de Foucault (1984): a
publicação, em 1994, dos Dits et écrits (são quatro volumosos livros que reúnem textos dispersos,
conferências, artigos, aulas etc., que Foucault realizara em diversos países) e, bem mais recentemente
ainda, a gradativa edição dos cursos que Foucault ministrou no Collège de France entre os anos 70 e 84
(foram ministrados 13 cursos), cuja publicação iniciou-se em 1997 (foram publicados ate o presente
quatro cursos).
Para concluir, consideremos, resumidamente, alguns traços do pensamento foucaultiano remetendo-o,
como o faz ele próprio, a Kant e principalmente a Nietzsche (sem falar em Heidegger, que ele
frequentemente também menciona). Em Kant, a retomada de um tipo de filosofia compreendida como
atitude que problematiza nosso presente, que interroga a constituição de nosso modo histórico de ser. Em
Nietzsche, a crítica ao olhar supra-histórico e a inclusão do olhar perspectivo.
A partir daí poderíamos dizer que o pensamento de Foucault apresenta duas fortes marcas. Primeiro,
a da atualidade: esta é a marca de que falávamos no início e significa que, ao fazer filosofia investigando
a história, o trabalho foucaultiano busca não apenas o conhecimento erudito das sociedades passadas,
mas, antes, a melhor compreensão de nós mesmos pela confrontação com o que já não somos. Segundo,
a da mobilidade: esta é a marca que complementa a primeira e significa que os escritos histórico-
filosóficos de Foucault não só propiciam a compreensão de nossa sociedade historicamente situada na
perspectiva da sua diferença com o que a precede, como também sugerem possibilidades de
transformação no que ela pode vir a ser.
Texto originalmente publicado na Cult 81
A palavra insensata
ELIANE ROBERT MORAES

Pouco antes de sua morte, em 1984, Michel Foucault publicou um texto notável, no qual interroga as
qualidades de certos espaços que nos cercam. Para além dos locais empíricos, bem como das utopias –
que são posicionamento fora da realidade –, ele destaca o que chama de “heterotopias”: lugares que,
mesmo sendo localizáveis, se configuram como um lugar à parte, constituindo uma espécie de
contestação ao mesmo tempo mítica e real do espaço em que vivemos. Cada heterotopia teria uma
função no tecido social, que variaria entre polos extremos: ora abrigando o desvio – como acontece com
as prisões ou com os bordéis –, ora projetando os ideais de uma sociedade, como é o caso das bibliotecas
ou dos museus.
A imagem mais bem acabada da heterotopia, porém, seria dada pelo barco. Como observa Foucault,
o barco é um espaço flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, fechado em si e, ao mesmo
tempo, lançado ao infinito do mar. Daí ele funcionar, desde o século 16 até os dias de hoje, não apenas
como um importante instrumento do progresso econômico das sociedades, mas também como “a sua
maior reserva de imaginação”. Nas civilizações sem barcos, conclui o autor, “os sonhos se esgotam, a
espionagem substitui a aventura e a polícia, os corsários”.1
Sonhos, aventuras, personagens fantasiosos – é digno de nota que o autor de As palavras e as coisas
tenha descrito o mais expressivo desses “outros espaços” por meio de elementos tão próprios à literatura.
Aliás, o texto de Foucault sugere várias afinidades entre a escrita ficcional e as heterotopias: o que dizer,
por exemplo, da função de “reserva da imaginação” atribuída aos barcos, que os aproxima
definitivamente da escrita literária?
Com efeito, essa aproximação está longe de ser pontual, visto que ela retorna em diversas passagens
da obra foucaltiana. A começar por sua insistente afirmação da espacialidade da linguagem,
desenvolvida na contracorrente das teorias que advogam sua relação primitiva com o tempo. Foucault
disse e repetiu inúmeras vezes que a dimensão temporal descreve apenas uma função da sintaxe, mas não
o seu ser: “o que permite a um signo ser signo não é o tempo, mas o espaço”. Ou, em resumo: “a
linguagem é espaço”.2
Para justificar afirmativas tão categóricas, o autor lança mão de uma série de aspectos estruturais da
linguagem, no empenho de confirmá-la como um sistema de signos que obedece a exigências
sincrônicas, simultâneas, arquitetônicas e, por conseguinte, espaciais. Esse seria, se quisermos, o núcleo
mais duro de seu pensamento sobre o tema, configurando concepções que por vezes chegam a resvalar
em certo dogmatismo. Vale lembrar, contudo, que tal vertente de inspiração francamente estruturalista
não esgota a formidável rede de relações entre espaço e literatura que ele explora com particular vigor.
Prova disso se encontra em vários textos seus, em especial os dedicados à moderna ficção européia,
quase todos escritos nos anos 60. Num artigo consagrado a Maurice Blanchot, por exemplo, o autor toma
um ponto de partida já fortemente marcado pela noção de espacialidade para definir a literatura como “a
linguagem se colocando o mais distante possível dela mesma”.3 Trata-se, portanto, de uma definição
tópica, que supõe um deslocamento essencial no modo de ser da linguagem, em paralelo a um novo tipo
de experiência discursiva que surge a partir do século 19.
Experiência fundamentalmente negativa, completa Foucault, já que ela atenta sem cessar ao efeito de
desrealização que repousa no horizonte de todo enunciado. Alheia a esse efeito, a fala cotidiana toma
palavras e coisas como equivalentes, na crença de que a simples evocação do nome pode restituir a
presença do ser. Se essa crença também está na base de toda estética da representação, é precisamente a
ela que a literatura moderna vai dar as costas, ao postular a irrealidade como sua própria razão de ser.
Daí sua inquietude, sua instabilidade, mas também seu poder e sua liberdade. Daí, principalmente, a sua
insensatez.
Foucault vai eleger a obra de Blanchot como expressão exemplar desse discurso insensato, atentando
para a prática da ausência que se trama em seus escritos. Com efeito, para o autor de A parte do fogo, a
linguagem sempre impõe um recuo inevitável diante da existência: “Eu me nomeio, e é como se eu
pronunciasse meu canto fúnebre: eu me separo de mim mesmo, não sou mais a minha presença nem
minha realidade, mas uma presença objetiva, impessoal, a do meu nome, que me ultrapassa, e cuja
imobilidade petrificada faz para mim exatamente o efeito de uma lápide, pesando sobre o vazio”.4
A gravidade dessas palavras traduz o princípio trágico que, segundo Foucault, está na origem do
discurso literário da modernidade: trata-se de convocar o ausente na condição de ausente, de tornar real
sua presença fora dele mesmo e do mundo – enfim, de presentificá-lo em sua pura realidade de
linguagem. Por isso mesmo, essa experiência negativa que é a literatura toma-se inseparável da fundação
de um lugar impessoal, inumano, irreal – voltado para “o puro exterior onde as palavras se desenrolam
infinitamente”, como quer Foucault – e que coincide com o que Blanchot chamou de “espaço literário”.
Ora, com tais considerações em mente, não seria pertinente uma aproximação entre o espaço fundado
pela literatura e a heterotopia, cada qual configurando um lugar à parte no interior de um sistema?
Afinal, como entender uma aventura sensível de escritores como Roussel, Klossowski, Bataille ou
Blanchot senão como formas possíveis de habitar esse “outro lugar” – ou esse outro modo de discurso
que o autor de História da loucura define como “experiência radical da linguagem”?
Uma tal experiência implica necessariamente deslocamentos, transposições de bordas, passagens aos
limiares. Ou, a exemplo do que Foucault propôs sobre Beckett, essas escritas estão sempre procurando
ultrapassar os limites de sua própria regularidade. Por certo, não é difícil reconhecer tais atributos nas
obras dos autores acima citados, aos quais poderíamos acrescentar ainda os nomes de Sade, Nietzsche,
Nerval, Hölderlin ou Artaud, que estão entre os mais visitados nas análises foucaultianas. Não é difícil
reconhecer tampouco as profundas afinidades que as experiências literárias levadas a cabo por esses
artistas têm com outro tema fundamental para Foucault: a loucura.
Ao levar a linguagem ao extremo, expondo os confins da razão, esses escritores deixam a descoberto
a ausência de sentido que toma possível todo sentido, selando uma aliança definitiva entre a palavra e a
loucura. Dessa forma, em vez de subordinar a fala do louco à linguagem racional, como propõe a
psiquiatria, a ficção moderna lhe dá uma voz, conferindo à sua experiência insensata uma profundidade e
um poder que até então lhe haviam sido terminantemente recusados.
Mais que revelar o louco, porém, essa voz mostra que o discurso literário autentico exige o risco da
proximidade com a loucura. Como afirma Foucault ao analisar um livro de Bataille, cabe à ficção,
enquanto expressão de uma experiência de linguagem, “dizer o que não pode ser dito”.5 Para tanto, ela
se impõe a difícil tarefa de reinstaurar o diálogo entre a razão e a desrazão, na tentativa de encontrar
entre ambas uma linguagem comum que possa expressar, no limiar do possível, a experiência trágica do
homem moderno.
Para além de uma expressão estética, portanto, a literatura aparece para Foucault como o terreno
privilegiado em que se efetua uma experiência extrema de pensamento. Abertura para a loucura, por
certo, que supõe a ousadia de flutuar sobre o sentido, de acolher significados provisórios, de reinventar
palavras – em suma, de habitar um espaço sem se fixar num lugar. Os escritores que se abandonaram a
essa aventura não estavam, decididamente, em terra firme.
Impossível não recordar aqui a heterotopia do barco, espaço flutuante lançado ao infinito do mar, que
também propõe uma imagem perfeita para esse lugar outro, onde a imaginação literária se deixa flutuar.
E talvez seja difícil não associá-la igualmente àquela “nau dos insensatos” que Foucault evoca diversas
vezes em História da loucura: um barco carregado de loucos, navegando à deriva e excedendo os
horizontes da compreensão.
Texto originalmente publicado na Cult 81
Um resistente nos Estados Unidos
JOÃO CAMILLO PENNA

A presença de Michel Foucault nos Estados Unidos é significativa. Ela é sensível das formas mais
diversas: em órgãos específicos de difusão da pesquisa acadêmica na crítica literária, em revistas como
Social Text (primeiro número: inverno de 1979, gerida principalmente por Fredric Jameson, de
abordagem marxista), Representations (primeiro número: fevereiro de 1983, órgão do Novo
Historicismo) ou Cultural Critique (primeiro número: 1985), mas também na antropologia (Paul
Rabinow, por exemplo), na história da ciência e da tecnologia (Donna Haraway) ou ainda em campos da
política, como o movimento carcerário ou antipsiquiátrico, para mencionar só algumas áreas. É preciso,
no entanto, cautela ao falar de Foucault nos Estados Unidos. Cinco razões principais para isso.
Primeira, a profunda inadequação da noção de “influência”, cuja fraqueza epistemológica é tema
interno à própria obra de Foucault, que via a leitura causal dos fenômenos de semelhança e repetição
como um suporte mágico inadequado. Assim, não se pode falar de “influência” da História da loucura
sobre o movimento antipsiquiátrico nos Estados Unidos e na lnglaterra, já que um é em larga medida
contemporâneo do outro – embora seja verdade que há muito de Foucault em A manufatura da loucura,
de Thomas Szasz (1970). Além disso, a relação entre Foucault e seus leitores americanos não é sempre
amistosa, sendo frequentemente marcada por uma ambiguidade crítica rigorosa, que precisa arrancar a
Foucault um campo aberto por sua reflexão (caso de algumas apropriações como a dos Estudos de
gênero ou a dos Estudos subalternos).
Segunda, não é evidente que as apropriações de Foucault nos Estados Unidos sejam homogêneas ao
sentido original de seus projetos na França, embora a hipótese da existência de dois Foucaults, um
Foucault americano e outro francês, como escreveu Vincent Descombes, seja algo excessiva. É inegável,
portanto, que a inserção de Foucault no que se convencionou chamar “ontologias do múltiplo” (com
Deleuze, Derrida, Lyotard...), i.e., a tradução filosófica francesa da política de maio de 1968, tem pouco
a ver com o debate multiculturalista e a discussão sobre políticas identitárias americanas, momento mais
fecundo da recepção foucaultiana nos Estados Unidos, nos anos oitenta. Embora não seja menos verdade
que a crítica da subordinação do pensamento ao sujeito e ao Um, e uma idêntica afirmação da
multiplicidade, lida em termos culturais ou identitários nos Estado Unidos, perpasse tanto uma quanto a
outra.
Terceira, a articulação do debate foucaultiano nos Estados Unidos se dá no contexto da grande
importação do pensamento francês nesse país, em que Foucault está longe de ser um caso isolado, sendo
lido em conjunto com Derrida, Deleuze, Bourdieu, os historiadores das mentalidades, ou, um pouco
antes, com Althusser, Lacan e Barthes, pensadores bastante heterogêneos entre si.
Quarta, a academia americana dialoga com aspectos distintos da obra foucaultiana, ela própria
marcada por cortes profundos. É o caso das discussões no campo da filosofia e das ciências sociais sobre
as ciências humanas ou da “virada interpretativa” (linguística ou culturalista), marcada por uma crítica
hermenêutica ao positivismo científico. É algo como o conceito de epistéme que será retomado, podendo
ser “culturalizado” ou não, para querer dizer algo como uma “rede de significações tecida” pelo ser
humano, conforme a definição de cultura formulada por Clifford Geertz (citando Max Weber), enquanto
as apropriações mais recentes (Estudos pós-coloniais, Estudos de gênero, Queer Theory) se fixarão,
como veremos, na História da sexualidade ou em Vigiar e punir.
Acresce-se a isso, finalmente, que o “último” Foucault será marcado por suas frequentes visitas aos
Estados Unidos, como professor convidado e conferencista. A partir delas ele se interessará por um novo
tipo de luta social, por modo de resistência e por novas formas comunitárias, que lhe vieram em
particular da experiência da cultura gay em San Francisco. Além disso, o fato inédito de que a
apresentação sistemática de algumas de suas últimas colocações não só aparecerá antes nos Estados
Unidos do que na França, como será incluída no interior de uma poderosa reflexão e tradução americana
de sua obra, o livro de Paul Rabinow e Hubert Dreyfus (ambos professores na Universidade da
Califórnia, em Berkeley), Michel Foucault, uma trajetória filosófica (de 1982 e 1983).
O caminho a tomar deve ser, portanto, outro: há um gesto foucaultiano claramente reconhecível em
suas apropriações americanas. Esse gesto tem dois lados: o seu construtivismo radical e um estilo de
ativismo que chamarei, precariamente, de nietzschiano. A marca foucaultiana aparecera de forma nítida
no mercado editorial americano sob o traço reconhecível em títulos contendo as palavras mágicas: a
invenção de, a construção de, o nascimento de...
Mas como entender o construtivismo de Foucault? Ele é claramente definido na Arqueologia do
saber: substituir uma interrogação sobre o conteúdo secreto da loucura pelo mapeamento da constituição
da doença mental por meio do conjunto de enunciados que a nomeiam, recortam, explicam, julgam e,
finalmente falam pela loucura (“articulando, em seu nome, discursos que deviam passar por seus”).
Substituir a discussão sobre as coisas (sobre a referência) pela discussão sobre a formação de objetos no
interior do discurso, o conjunto de regras que permite que a criminalidade, por exemplo, possa ter-se
tornado objeto de parecer médico, ou que a loucura possa tornar-se objeto de parecer psiquiátrico.
É precisamente a noção foucautiana de “discurso” que interessará, por exemplo, a Edward Said, em
O Orientalismo (1978), livro que funda sozinho o campo inteiro dos Estudos coloniais e pós-coloniais na
Academia norte-americana. “Orientalismo”, explica Said, nas páginas iniciais de seu livro, é a “enorme e
sistemática disciplina por meio da qual a cultura europeia conseguiu administrar e até produzir-
politicamente, sociologicamente, militarmente, ideologicamente, cientificamente e imaginariamente, o
Oriente, durante o período pós-iluminista”. Reconhecemos os termos das análises clássicas do Foucault
de Vigiar e punir: a disciplina, em seu duplo sentido de saber/poder, que constitui, fabrica, ou produz o
objeto Oriente, para dominá-lo ou controlá-lo. Eis o gesto foucaultiano, na verdade uma tradução do
tema transcendental (kantiano): estudar a constituição do Oriente enquanto objeto discursivo, que não
pode ser confundido com a cultura própria dos países do Oriente Médio, consiste em examinar as
condições de seu aparecimento como construção ocidental enquanto objeto a ser dominado e outro
simétrico inverso do Ocidente.
Mas é sobretudo enquanto produtor de subjetividades que o disciplinamento do binômio saber/poder
contribuirá ao debate identitário americano. São os temas propostos em Vigiar e punir e A vontade de
saber, respectivamente, do “exame” (criminológico ou psiquiátrico) e da “confissão”, por um lado, que
vão colocar o problema da enunciação em primeiro plano. Foucault explica que a criação mais fecunda
do sistema penitenciário não é a “detenção privativa da liberdade”, mas a criação do personagem do
delinquente que suplementa a prisão e duplica o delito. Em A vontade de saber, por outro lado, delineia-
se a polêmica proposição sobre a construção da sexualidade como categoria científica-política-social,
produzindo-a (a matriz é sempre a da fabricação industrial) a partir das proibições e regulamentações de
comportamentos que eram suspeitos de reprimi-la. A “tecnologia” ou o “dispositivo” sexual consiste no
conjunto de técnicas concebidas com o intuito de maximizar a vida no bojo de um novo poder no século
19, o biopoder, constituindo quatro objetos e suas respectivas ciências: a sexualidade infantil (a
pedagogia), a sexualidade feminina (como especialização da medicina), o controle da procriação (a
demografia) e a perversão (como campo da psiquiatria).
Embora a palavra “identidade” não apareça nestes textos de Foucault, é a tradução dos personagens
por identidades que se mostrará extremamente profícua para o debate americano. A
objetivação/subjetivação da mulher como ser sexuado, por exemplo, e sua identidade constituída pelo
saber/poder, forma aprisionada e limitada, determinada por aparelhos complexos de controle. Ao mesmo
tempo é a forma possível com a qual pode contar qualquer movimento identitário de mulheres que
pretenda se libertar dessa forma aprisionada. Double-bind terrível e inescapável com o qual os Estudos
de gênero deverão se confrontar (Teresa de Lauretis, por exemplo), que oporá um construtivismo radical
(a identidade genérica é fabricada enquanto “personagem” do biopoder e é incapaz de dizer qualquer
coisa de interessante sobre a mulher) a uma necessidade de recorrer, nem que seja estrategicamente, a
uma quase-essência feminina como espaço comunitário político afirmativo e liberalizante da mulher,
abrindo a possibilidade de constituição de um sujeito-mulher. Aqui, se juntam possivelmente as
preocupações em torno do problema das “técnicas de si”, da transformação de si mesmo em sujeito, do
último Foulcault.
Um problema análogo coloca-se para os Estudos gays e lésbicos, que se reagruparão em seguida
como Queer Theory. Enquanto antes do século 19, no direito canônico e civil, a sodomia era vista
simplesmente como um ato proibido, a partir do século 19 – Foucault nos oferece a data de 1870 –, o
homossexual torna-se um personagem, compreendido com um passado, uma história, uma infância, um
caráter, uma forma de vida, uma morfologia, uma anatomia e uma fisiologia. A definição dessas
“sexualidades periféricas” no contexto da “implantação perversa” e da especificação dos indivíduos é a
mesma da constituição de sexualidades ditas normais. Daí, o grande interesse dos Estudos de gênero (ou
da Queer Theory) também pelas formas da masculinidade ou pela heterossexualidade vista como
comportamento compulsório.
Dizer que a sexualidade é um efeito discursivo artificial (não-natural), um instrumento político-social
e não uma positividade, uma realidade psicológica ou física não implica de maneira nenhuma dizer que
ela seja pura e simplesmente discursiva, mas sim propor polemicamente um salutar antídoto a qualquer
tentativa de fundamentar uma “teoria da sexualidade”. Novo double-bind identitário, mas cuja solução
corajosa e arriscada poderia ser formulada da seguinte maneira: já que a sexualidade é pura fabricação
do biopoder, por que não reinventar um modo corporal e de prazer que não seja o sexual, uma forma de
experimentação coletiva e pessoal, que propusesse uma maneira nova e até agora desconhecida de
relação com o corpo? David Halperin caminharia nesse sentido. É o tipo de ativismo nietzschiano de que
falei no início.
Texto originalmente publicado na Cult 81
O direito na política moderna
SERGIO ADORNO

São bastante conhecidas as objeções de Foucault ao tratamento que a teoria política moderna atribuiu às
relações entre direito e poder. Foucault recusa-se a aceitar a hegemonia que o modelo jurídico-político,
herdeiro das tradições “jusnaturalitas” e contratualistas, centrado na ideia de soberania e no primado da
lei, conquistou no interior do pensamento político, quer clássico, quer contemporâneo. À ficção jurídica
do contrato, cuja substância se encarna na figura do príncipe pacificador, Foucault opôs uma mecânica
de poder que opera sob a forma de infradireito (Foucault [1975] 1977a; [1976] 1977b; 1994, v. 2-4;
[1976] 1999). Em Vigiar e punir (1977), Foucault reconhece que o século 19 elegeu a delinquência
como uma das engrenagens do poder e identificou a prisão como seu observatório político. Esse
momento corresponde à emergência de uma nova mecânica de poder, que não diz mais respeito
exclusivamente à lei e à repressão, mas que dispõe de uma riqueza estratégica porque investe sobre o
corpo humano, não para supliciá-lo, contudo para adestrá-lo; não para expulsá-lo do convívio social,
senão para explorar-lhe o máximo de suas potencialidades, tornando-o politicamente produtivo e
economicamente dócil. Disso resulta que a disciplina não é uma estratégia de sujeição política
exclusivamente repressiva, todavia positiva: o poder é produtor da individualidade, o indivíduo é uma
produção do poder. Trata-se de uma forma de poder que se opõe ao modelo da soberania.
Essas conhecidas formulações de Foucault não conduzem, entretanto, a uma teoria geral do direito
sob a égide do poder disciplinar. François Ewald (1993) sustenta que o direito, em Foucault, é antes de
tudo um princípio de racionalidade que cabe percorrer em sua plenitude. Enquanto tal, impõe-se
reconstruir sua história (afinal, o direito tem uma história?), o que significa, primeiramente, suspender a
ideia mesma de direito, isto é, de um conjunto de regras universais e abstratas que circunscrevem o poder
e o Estado.
No mais rigoroso nominalismo, Foucault decreta: o direito não existe; o que existe são práticas
jurídicas referidas a um princípio de racionalidade – o do juízo, em lugar da coerção. É esse princípio
que ordena as práticas legislativas, as doutrinas, a jurisprudência, a aplicação e distribuição da justiça.
Trata-se de um princípio atravessado pela história. Na história ocidental moderna, o juízo revestiu-se
de legalidade. O direito enuncia-se sob a forma da lei inscrita nos códigos. Sob essa perspectiva, uma
crítica arqueológica e genealógica do direito requer liberá-lo desse revestimento. É justamente o que faz
Foucault em Vigiar e punir, em especial nas páginas consagradas ao exame da reforma iluminista da
legislação penal verificada na França no período pós-revolucionário.
Em estudo recente, Fonseca (2002) aprofunda o lugar do direito no pensamento de Foucault. O
direito define-se por seus usos. Fonseca reconhece ao menos três. O primeiro faz justamente referência
ao direito como lei, imerso na arquitetura jurídico-política da soberania. O segundo compreende a
extraordinária démarche em tomo do poder disciplinar, magistralmente descrita na terceira parte de
Vigiar e punir, seguida de seus ensaios, cursos e do primeiro volume de História da sexualidade. Por
fim, o terceiro uso introduz uma inovação: o apelo a um novo direito que percorre as entrelinhas de sua
reflexão sobre a crise contemporânea das disciplinas (Foucault, 1994, v. 3), a emergência de novos
ilegalismos ([1975], 1977), em especial em seus cursos no College de France de 1975-76, “Em defesa da
sociedade” (1999), e de 1978-79, “O nascimento da biopolítica” (1989), em parte dedicado à análise do
liberalismo e do neoliberalismo alemão e americano.
Esse terceiro uso é anunciado nos seguintes termos: “E creio que nos encontramos aqui numa espécie
de ponto de estrangulamento: não é recorrendo à soberania contra a disciplina que poderemos limitar os
próprios efeitos do poder disciplinar. De fato, soberania e disciplina, legislação, direito da soberania e
mecânicas disciplinares são duas peças absolutamente constitutivas dos mecanismos gerais de poder em
nossa sociedade. Não é na direção do antigo direito de soberania que se deveria ir; seria antes na direção
de um direito novo, que seria antidisciplinar, mas que estaria ao mesmo tempo liberto do princípio da
soberania” (1999, p. 47).
Um direito finalmente liberto do princípio da legalidade? Estamos diante da emergência de um novo
princípio de juízo? O curso “Em defesa da sociedade” é devotado ao estudo das relações entre guerra e
poder. Ao contrário do que sustenta certa tradição do pensamento ocidental, a emergência do mundo
moderno não é por excelência o reino da paz sobre a guerra, nem a política é, como sonhava Clausewitz,
a guerra pacificada sob outros meios. Examinando detidamente textos de historiadores contemporâneos
dos processos revolucionários na Inglaterra e na França, Foucault reconhece que “a ordem civil é
fundamentalmente uma ordem de batalha”. A política é a continuação da guerra por outros meios. De
que guerra se trata? A guerra das raças.
Na tradição clássica que adentra a Idade Média, o discurso histórico tinha por função justificar e
fortalecer o poder. Seus fundamentos repousavam sobre três eixos: antiguidade dos reinos e consequente
ancianidade do direito; glorificação dos reis e príncipes e de seus antecedentes; memorização dos feitos
históricos. A glória é feita de lei.
A nova história, inaugurada com a emergência do mundo moderno, produz acentuada ruptura: em
lugar do discurso histórico das virtudes da soberania, emerge o discurso das raças por meio das guerras
entre nações, o que fez diluir a tradicional identidade entre povo e monarca. Daí em diante, a soberania
terá precípua função: não mais o que une, porém o que subjuga. A história de uns não é mais a história
de todos. A lei vai aparecer como dupla face: “Triunfo de uns, submissão de outros”.
Assim, “o papel da história será o de mostrar que as leis enganam, que os reis se mascaram, que o
poder ilude e que os historiadores mentem” (1999, p. 84). A nova história será, nessa medida, uma anti-
história tendo em vista que desenterra o que parecia escondido nas saliências da memória: os reis, os
poderosos, as leis nasceram justamente do acaso e da injustiça das batalhas. Trata-se, portanto, de uma
história que reivindica direitos ignorados, a decifração de uma verdade selada pela dissimetria das raças
e de seu contínuo enfrentamento bélico.
O desfecho desse processo, em fins do século 18 e meados do 19, encorajado pelos saberes médicos e
biológicos, converterá a guerra das raças em racismo, de que se nutrirão todos os profetismos
revolucionários que se seguem. Esse é justamente o momento do nascimento da biopolítica, a partir do
que a questão da vida é problematizada no campo do pensamento político. Seus fundamentos repousam
em dois eixos: nos séculos 17 e 18, emergem e se consolidam as técnicas de poder disciplinar em torno
do corpo individualizado; na segunda metade do século 18, uma nova tecnologia ganha materialidade.
Ela não exclui as técnicas disciplinares, antes as recobre. Dirige-se à multiplicidade dos homens, não
enquanto portadores de corpos individualizados, todavia como massa global, afetada por processos
coletivos como o nascimento, a morte, a produção, a doença. Suas técnicas residem na mediação
estatística de fenômenos demográficos. Seu alvo é a população como problema político e de
gerenciamento estatal. Seu escopo não é o nascimento em si, porém a natalidade; não a morte, contudo a
morbidade e a mortalidade.
Uma inovação dessa ordem inverte o clássico direito de soberania, o de mandar matar ou deixar
viver, que se expressava na grande ritualização pública da morte. Com a invenção da biopolítica, um
novo direito emerge: o de fazer viver e – em seu limite extremo – deixar morrer. Sob essa perspectiva, o
direito é uma possibilidade, um mecanismo de regulamentação. Seu paradoxo é que, na era
contemporânea, tenha-se tornado excessivo, numa espécie de superpoder ou supradireito. A estatização
cada vez maior do direito à vida introduz uma possibilidade perturbadora: não só a da incessante
fabricação da vida e dos viventes como também a fabricação de algo monstruoso, a possibilidade de sua
eliminação sem controle por meio da disseminação de vírus, das armas químicas, da guerra sem
interditos morais contra “as outras raças”.
O excesso de biopoder força a passagem do racismo para o racismo de Estado. Introduz uma nova
economia de poder na qual a morte dos outros é o fortalecimento da própria pessoa na medida em que se
é membro de uma população ou de uma raça. “Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento de um
Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação das raças para exercer seu
poder soberano” (1999, p. 309). Nesse cenário, no qual repúblicas parlamentares se inclinam muito
rapidamente a Estados totalitários, se assiste paradoxalmente ao retorno do velho direito soberano de
matar para se deixar viver.
Texto originalmente publicado na Cult 81
Entre o elogio e a crítica
ERNANI CHAVES

A publicação do primeiro volume da História da sexualidade, intitulado “A vontade de saber”, em 1976,


provocou um frisson entre os psicanalistas. Nesse livro, ao contrário dos anteriores, Foucault dirigia à
psicanálise uma severa crítica, ao inscrevê-la na história da confissão cristã e na engrenagem dos
mecanismos do biopoder. Não que nos livros anteriores a psicanálise aparecesse isenta de críticas. Ao
contrário. Entretanto, essas críticas eram sempre matizadas, nuançadas também por diversos elogios. O
ponto alto desses elogios tinha sido, sem dúvida, o último capítulo de As palavras e as coisas (1966),
quando Foucault considerava a psicanálise como uma contraciência que questionava, radicalmente, o
projeto de um saber “científico” sobre o homem, que havia sido pacientemente gestado desde o final do
século 18.
Da polêmica a propósito da História da sexualidade, o leitor brasileiro passa a tomar conhecimento
com a publicação de “Sobre a História da sexualidade”, discussão de Foucault com os lacanianos da
revista Ornicar?, publicada na edição de julho de 1977 da revista e incluída na coletânea Microfísica do
poder, publicada no Brasil em 1979. Não se tratava, é bom que se diga, de quaisquer “lacanianos”, mas
daqueles que, em torno de Jacques-Alain Miller, assumiam o lugar de defensores da “ortodoxia”
lacaniana e os mais dignos representantes do mestre. Entretanto, o público brasileiro que compareceu ao
famoso ciclo de conferências intitulado “A verdade e as formas jurídicas”, proferidas em maio de 1973
na PUC do Rio de Janeiro e publicadas em 1974 nos Cadernos PUC, teve a oportunidade de assistir a
uma confrontação direta de Foucault com a psicanálise. Naquela ocasião, ao final do ciclo, Foucault e,
principalmente, o psicanalista Hélio Pelegrino discutiram a propósito da questão do Édipo e Foucault
criticava a psicanálise tomando partido, explicitamente, tanto dos helenistas franceses da escola de Jean-
Pierre Vernant, quanto de Deleuze e Guatarri, que haviam publicado há pouco o Anti-Édipo. Sua
perspectiva, dizia Foucault, não levava em consideração nem a questão do “mito”, muito menos a da
“interpretação”. Tratava-se, simplesmente, de analisar um texto, o da tragédia de Sófocles, no que dizia
respeito às práticas jurídicas e sua relação com a verdade. Às vezes, é indisfarçável a impaciência de
Foucault: “Repito que não sou psicanalista mas surpreendo-me quando ouço dizer que a psicanálise é a
destruição das relações de poder”, diz ele a Hélio Pelegrino. Apresentando-se como “historiador”,
Foucault afirma encarar a psicanálise como um “fenômeno cultural” de “real importância no mundo
ocidental”, mas de modo algum a considera uma confrontação com as relações de poder (como queria
Pelegrino, pensando certamente no contexto da ditadura brasileira), mas, ao contrário, se dirigia para os
processos de normalização. Há um “esforço”, acrescenta um benevolente Foucault, no sentido de
destruir as relações de poder no interior da psicanálise, mas isso não seria suficiente para pensá-la como
uma “ciência que questiona o poder”.
ENTRE O ELOGIO E A CRÍTICA
Por ocasião de um colóquio realizado na USP, em abril de 1985, em homenagem a Foucault que havia
morrido em junho de 1984, Renato Mezan, já um eminente psicanalista e professor universitário
(acabara de publicar seu volumoso Freud, pensador da cultura) proferiu a conferência intitulada
“Foucault e a psicanálise”. Mezan procurava mostrar em que sentido as ideias de Foucault eram
importantes, mas, ao mesmo tempo, apontava os equívocos de suas análises, focando agora a História da
sexualidade. No livro Foucault e a psicanálise, analisei, em especial, duas obras de Foucault, História
da loucura e o já mencionado primeiro volume da História da sexualidade, partindo do princípio de que,
em ambos, apesar da distância temporal entre eles, Foucault deixava clara sua posição em relação à
psicanálise. Uma posição que chamei de “ambígua”, uma vez que oscilava entre o elogio e a crítica.
A publicação, em 2000, do livro de Joel Birman, Entre cuidado e saber de si: sobre Foucault e a
psicanálise, coroa, por sua vez, uma segunda etapa da recepção, caracterizada, desta feita, pela
publicação dos quatro volumes dos Dits et écrits (1994) no Brasil, Ditos e escritos (Forense
Universitária, 2002). É importante, entretanto, afirmar que Joel Birman é, dentre os psicanalistas
brasileiros, aquele que mais escreveu sobre Foucault, aquele que mais levou e leva em consideração,
para seus estudos no campo da psicanálise, o pensamento de Foucault. Servindo-se agora do material
publicado nos Dits et écrits, Birman analisa um a um os livros de Foucault. Nesse ponto sua análise não
tem nenhuma novidade, embora Birman faça tabula rasa das publicações que lhe antecederam, mas, ao
mesmo tempo, ele amplia as análises precedentes na medida em que já toca num tema que será a tônica
da discussão nos anos subsequentes, qual seja, a da implicação da psicanálise com a biopolítica, a partir
dos estudos de Foucault sobre o “cuidado de si” em oposição ao “saber de si”. O livro de Birman retoma
uma questão que parecia estar esquecida ou mesmo colocada em segundo plano. Sua conclusão,
entretanto, é bastante prudente, ao colocar a psicanálise num “entre” o saber de si e o cuidado de si,
mantendo assim, no geral, a mesma oscilação na avaliação crítica de Foucault em relação à psicanálise.
Mas, por outro lado, Birman trazia à tona, explicitamente, um embate fundamental para a
compreensão da posição de Foucault em relação à psicanálise: a figura de Lacan. É contra ou a favor de
Lacan, em grande parte, que a posição de Foucault em relação à psicanálise se organiza. Eu diria mais:
Lacan é muito mais estratégico para Foucault, do que a tradição freudo-marxista. Lacan é um adversário
muito mais difícil a ser batido, até porque, em vários momentos, ambos se banharam nas mesmas águas
e partilharam dos impasses e tensões que cercaram a filosofia francesa do pós-guerra. Merleau-Ponty,
Lévi-Strauss e Heidegger, por exemplo, eram leituras exemplares para ambos. São muitos os elogios de
Foucault a Lacan e, não esqueçamos que o caráter de contraciência da psicanálise em As palavras e as
coisas deve-se, em grande parte, a aliança de Foucault com Lacan.
FORA DO CAMPO HISTÓRICO
Como bem lembra Joel Birman, a concepção do inconsciente como linguagem encontrou em Foucault
reconhecimento e acolhida. Lacan foi, portanto, em diversos momentos, um aliado. Mas também foi o
inimigo a ser batido: para justificar isso, basta lembrar a crítica de Foucault, em “A vontade de saber”, às
imbricações entre lei e desejo como expressão da concepção jurídica de poder. Do meu ponto de vista,
também aqui Foucault se afasta do Anti-Édipo, livro ainda visceralmente ligado à questão do desejo; o
livro festejado alguns anos antes, torna-se agora uma espécie de reverso da psicanálise, sem, entretanto,
alterar radicalmente a ordem das coisas. Trata-se sempre e ainda de... desejo. Na “Introdução” a “O uso
dos Prazeres”, o segundo volume da História da sexualidade, Foucault dirá que não se interessa nem
pelo desejo, nem pelo sujeito do desejo. Seu interesse é histórico e essas preocupações, sob a égide do
desejo, estão fora do campo histórico.
A publicação, a partir do final dos anos 1990, dos cursos de Foucault no Collège de France muda
radicalmente o panorama da recepção. O curso “Hermenêutica do Sujeito” de 1981-1982, publicado no
Brasil em 2004, passa a ser lido e comentado exaustivamente. O Foucault “filósofo do poder” torna-se o
“filósofo do cuidado de si”. Ao mesmo tempo, as análises do filósofo italiano Giorgio Agamben a
propósito do biopoder e da biopolítica vão colocar na ordem do dia as questões abertas por Foucault nas
páginas finais de “A vontade de saber”. Assim, no panorama atual, a questão das relações entre Foucault
e a psicanálise passam a ser diretamente associadas, por um lado, à questão do cuidado de si e, por outro,
à da biopolítica. Psicanálise e cuidado de si, psicanálise e biopolítica passam a se constituir no problema
a ser estudado e enfrentado. Até onde sei, em que pese o considerável número de artigos e de teses a
respeito, há apenas um livro publicado sobre o assunto: de Marcus Teshainer (2006), Psicanálise e
biopolítica: contribuição para ética e a política em Michel Foucault. Entretanto, muitos psicanalistas e
pesquisadores em psicanálise têm-se pronunciado a respeito da questão com bastante veemência e, neste
diapasão, a psicanálise, em especial na sua versão lacaniana, aparece diretamente vinculada ao “cuidado
de si”. Lacan é invocado, muitas vezes e de forma paradoxal, como uma espécie de Foucault avant la
lettre, que já criticava, há bastante tempo, a relação entre psicanálise e poder. De todo modo, trata-se de
um tema e de uma questão em aberto, com muitos outros ângulos e perspectivas à espera do paciente
trabalho de investigação.
Texto originalmente publicado na Cult 134
Fala dos confins
PETER PÁL PELBART

Seria preciso invocar o nome de Maurice Blanchot para lembrar a voz quase inaudível que marcou, de
maneira inconfundível, toda uma geração de pensadores, entre os quais se incluem Foucault, Deleuze e
Derrida. Blanchot, a cantora Josefina da filosofia francesa do pós-guerra... Na novela Josefina, a cantora
ou o povo dos camundongos, de Kafka, o povo de camundongos tem grande admiração por Josefina e até
sente que precisa de sua voz para reunir-se, mas não compreende o que nela é tão especial e nem sequer
se é especial – o seu canto mais parece um chiado, ou mesmo um silêncio. Pode ser que sua glória resida,
afinal, neste gracioso e indecifrável mistério: talvez ela jamais tivesse cantado, mas à sua maneira, com o
seu “nada de rendimento”, livrava o povo das “cadeias da existência cotidiana”, como afirmaram
Deleuze e Guattari.
Blanchot chamou a atenção para essa situação paradoxal em Kafka: nunca sabemos se estamos
presos dentro da existência cotidiana (e “nos voltamos desesperadamente para fora dela”) ou se dela
estamos excluídos (por isso “em vão nela buscamos sólidos apoios”). Fronteira invisível e sempre
deslocada, entre a vida e a morte, entre sair e entrar, entre ansiar pela comunidade ou dela apartar-se na
solidão. Kafka o descreveu na forma de um exílio: “Agora já sou cidadão nesse outro mundo que tem
com o mundo habitual a mesma relação que o deserto com as terras cultivadas”. Mas Blanchot adverte
para o sentido desse desterro, que não cabe considerar como uma fuga: esse outro mundo em que Kafka
mora não é um além-mundo, sequer é outro mundo, mas o outro de todo e qualquer mundo. Para o artista
ou o poeta, conclui ele, talvez nem existam dois mundos, como queria Kafka, mas mundo algum, nem
sequer um único mundo, e apenas o fora no seu escoamento eterno.
A ANTIMATÉRIA DO MUNDO
Foucault não ficou indiferente a essa exterioridade. O autor de História da loucura confessa, na primeira
entrevista concedida após sua publicação, em 1961, que seu livro responde a duas influências principais.
Por um lado, seu interesse pela presença da loucura na literatura – Blanchot, Bataille, Roussel –, por
outro, a ideia de estrutura tal como Dumézil a trabalhou. Mais do que os romances escritos por Blanchot
(Thomas l’Obscur, Aminadab, L’arrêt de mort, Le très-haut etc.), talvez seja preciso evocar a leitura
sedutora que ele propôs de autores que tiveram com a loucura uma proximidade extrema, tais como
Hölderlin, Sade, Lautréamont, Nietzsche, Artaud, em suma, toda essa linhagem que comparece no fim
da História da loucura. Com efeito, nesses ensaios, Blanchot ressalta uma dimensão à qual Foucault,
mas igualmente muitos de seus contemporâneos, não ficarão indiferentes: a vizinhança necessária entre
palavra e silêncio, escritura e morte, obra e erosão, literatura e desmoronamento, experiência de
desamparo e colapso do autor. Como diz Blanchot em Le livre à venir: “O que é primeiro não é a
plenitude do ser, é a fenda e a fissura, a erosão e o esgarçamento, a intermitência e a privação mordente:
o ser não é o ser, é a falta de ser, a falta vivente que torna a vida desfalecente, inapreensível e
inexprimível”. Blanchot redescobre na literatura um espaço rarefeito que põe em xeque a soberania do
sujeito. O que fala no escritor é que “ele não é mais ele mesmo, ele já não é ninguém”: não o universal,
mas o anônimo, o neutro, o fora. A obra como essa experiência que arruína toda experiência, que se
coloca aquém da obra, “o aquém onde, do ser, nada é feito, onde nada se realiza, a profundidade da
inoperância do ser”. Experiência insólita, que desapossa o sujeito de si e do mundo, do ser e da presença,
da consciência e da verdade, da unidade e da totalidade – experiência dos limites, experiência-limite,
dirá Bataille.
Todo esse leque temático já está presente no prefácio original à História da loucura, posteriormente
abandonado. Ali Foucault faz referência a uma linguagem originária, “muito frustra”, em que razão e
não-razão se falam ainda, por meio dessas “palavras imperfeitas, sem sintaxe fixa, um pouco
balbuciantes”. Por meio delas, diz ele, os limites de uma cultura são questionados para aquém de sua
dialética triunfante. Aquém da história, a ausência de história, um murmúrio de fundo, o vazio, o vão, o
nada, resíduo, rugas. Aquém da obra, a ausência de obra, aquém do sentido, o não-sentido. Aquém da
razão, a desrazão. Experiência trágica encoberta pelo surgimento da loucura enquanto fato social, objeto
de exclusão, de internamento e de intervenção. Como fazer para que a desrazão, na sua alteridade
irredutível, na sua “estrutura trágica”, interrogue o nascimento da própria racionalidade psiquiátrica que
a reduziu ao silêncio ao convertê-la em loucura?
Em todo caso, lembremos os dois termos do título original da edição de 1961, Folie et déraison,
histoire de la folie à l’âge classique. Para além dos mal-entendidos líricos que o binômio Loucura e
Desrazão, ulteriormente suprimido, suscitou, ele continua a nos intrigar. No seu ensaio sobre esse livro,
Blanchot se pergunta se no espaço que se abre entre loucura e desrazão a literatura e a arte poderiam
acolher essas experiências-limite e, assim, “preparar, para além da cultura, uma relação com aquilo que a
cultura rejeita: fala dos confins, fora da escrita”. Ao que Foucault responde, nesse diálogo que eu
reconstruo a meu modo, com o exemplo Blanchot. Nele prima o esquecimento não-dialético, a
proliferação em direção a uma exterioridade nua, a linguagem como murmúrio incessante destituindo a
fonte subjetiva de enunciação bem como a verdade do enunciado, a emergência de um anônimo, livre de
qualquer centro ou pátria, capaz de ecoar a morte de Deus e do homem. “Ali onde ‘isso fala’, o homem
não existe mais.” Contra a dialética humanista, que por meio da alienação e da reconciliação promete o
homem ao homem, Blanchot teria exprimido o esboço de outra “escolha original” que emerge em nossa
cultura. De toda forma, se a linguagem não é, para Foucault, “nem a verdade nem o tempo, nem a
eternidade nem o homem, mas a forma sempre desfeita do fora”, entende-se por que ele pôde
acrescentar, fazendo eco a Kafka e a Blanchot, que a escritura não é parte do mundo, mas sua
“antimatéria”.
A PARTE DO FOGO
Já podemos avançar uma hipótese mais geral. Se nesse primeiro momento de seu trajeto Foucault
acredita na literatura é porque acredita na sua exterioridade. E se lhe interessa a linguagem da loucura é
porque nela está em jogo essa mesma exterioridade. Desse ponto de vista, a escritura e a loucura
estariam no mesmo plano, tendo em vista seu caráter não-circulatório, a inutilidade de sua função, o
caráter de autorreferência que lhes é próprio. Mas, também, seu poder transgressivo – “a fala
absolutamente anárquica, a fala sem instituição, a fala profundamente marginal que cruza e mina todos
os outros discursos”. A literatura e a loucura pertenceriam ao que Blanchot chamou de A parte do fogo,
aquilo que uma cultura reduz à destruição e às cinzas, aquilo com o que ela não pode conviver, aquilo de
que ela faz um incêndio eterno.
Porém, no momento mesmo em que explicita esse lugar da literatura, Foucault também já se pergunta
se a época em que o ato de escrever bastava para exprimir uma contestação em relação à sociedade
moderna não estaria ficando para trás. Ao reaver o espaço de circulação social e de consumo, talvez a
escritura, recuperada pelo sistema, tenha sido vencida pela burguesia e pela sociedade capitalista,
deixando de ficar “de fora”, não mais conservando sua exterioridade. E indaga: para passar para o outro
lado, para incendiar-se e consumir-se, para entrar num espaço irredutível ao nosso e num lugar que não
fizesse parte da sociedade, será que agora não seria preciso fazer outra coisa que não literatura? E
novamente evoca Blanchot: se hoje descobrimos que devemos sair da literatura, abandonando-a a seu
“magro destino histórico” fixado pela sociedade burguesa, foi Blanchot quem nos indicou o caminho.
Aquele que mais esteve impregnado de literatura, mas sob um modo de exterioridade, é aquele que nos
obriga a abandoná-la no momento em que ela se torna essa interioridade confortável em que nos
comunicamos e nos reconhecemos.
Perguntamo-nos se Foucault não teria, por meio do caso “literatura” e “loucura”, esboçado um
diagnóstico mais geral, referente ao estatuto da própria exterioridade em nossa cultura. Toni Negri e
Michael Hardt tentaram mostrar, recentemente, que o capitalismo mundial integrado assumiu a forma do
Império, ao abolir toda exterioridade, devorando suas fronteiras mais longínquas, englobando a
totalidade do planeta, mas também seus enclaves até há pouco invioláveis, acrescentaria Jameson, como
a Natureza e o próprio Inconsciente. Talvez esse diagnóstico tão cruel quanto precoce de Foucault, e sua
realização imperial planetária, lancem luz sobre nossa claustrofobia contemporânea. É o mundo sem
fora, é o capitalismo sem exterior, é o pensamento sem exterioridade – diante do qual o fascínio pela
loucura como bolsão de exterioridade, predominante há algumas décadas, soa hoje completamente
ultrapassado.
MUDANÇA DE PERSPECTIVA
O que terá feito Foucault mudar tão radicalmente de perspectiva? Certamente o trabalho sobre as prisões,
a nova problematização do poder e, consequentemente, o entendimento retrospectivo de que a “loucura
não é menos um efeito de poder que a não-loucura”, de que ela é, “segundo uma espiral indefinida, uma
resposta tática à tática que a investe”, e que talvez não caiba supervalorizar o papel do manicômio e de
suas muralhas, já que ele deve ser entendido desde fora, isto é, como uma das peças de uma estratégia
positiva “mais ampla e exterior” que, por sua vez, está na origem de uma tecnologia da psique.
Depois dessa nova perspectiva aberta pelo período genealógico, em que “sempre se está no interior”,
o que terá restado da exterioridade? Não podemos seguir os meandros desse destino ao longo de seu
trajeto teórico, e ficaremos num único exemplo inteiramente esclarecedor, o da experiência-limite já na
última fase de sua obra. Em 1980, ao evocar essa experiência pela qual o sujeito se arrebata a si mesmo,
levado ao seu próprio aniquilamento ou dissolução, tema caro aos anos 1960, Foucault já não a associa à
experimentação da exterioridade de uma cultura, como anteriormente – a sua parte do fogo –, mas a uma
experiência pessoal e teórica, pela qual seria possível pensar diferentemente. Se a literatura ou a loucura
já não constituem uma exterioridade absoluta (pois tudo é interior), a experiência-limite é preservada e
valorizada enquanto uma operação sobre si mesmo. Não experiência vivida, explica ele, mas o invivível
para o qual é preciso fabricar-se. Não mais a transgressão de uma fronteira ou um interdito (mesmo se os
nomes de Bataille, Blanchot e Nietzsche retornam), mas demolição e refabricação de um si. O fora ganha
uma surpreendente imanência subjetiva.
Texto originalmente publicado na Cult 134
A época da norma
MÁRCIO ALVES DA FONSECA

Os últimos escritos de Michel Foucault, notadamente os volumes finais de sua História da sexualidade,
bem como os cursos ministrados no Collège de France entre os anos 1981-1984, revelam sua incursão
na cultura e no pensamento antigos. Nesses escritos, o filósofo, que no mesmo período viria a definir a
sua filosofia como uma “ontologia do presente”, volta-se para o problema da constituição do sujeito
moral na antiguidade clássica. O estudo da moral sexual na antiguidade, assim como a pesquisa sobre a
formação e os desdobramentos da “cultura de si” no pensamento greco-romano, sugerem que a direção
para a qual o olhar do pensador se lança em seus últimos trabalhos é o passado.
Porém, uma consideração atenta do conjunto de seus escritos, capaz de colocar em evidência os
principais deslocamentos que tais escritos realizaram relativamente à história das ciências e à filosofia
política e moral de sua época, permite afirmar que a filosofia de Foucault – mesmo aquela presente em
seus trabalhos finais – se configura como busca insistente de compreensão do nosso presente histórico. A
esse respeito, as observações de caráter metodológico realizadas no início da aula de 5 de janeiro do
curso de 1983 no Collège de France (Le gouvernement de soi et des autres) são esclarecedoras. Com o
fim de distinguir seu trabalho dos métodos que entende ser próprios a uma história das mentalidades ou a
uma história das representações, Foucault dirá que seu projeto geral foi realizar uma “história do
pensamento”. Compreendida em um sentido amplo, essa história do pensamento se configuraria como
uma história dos “lugares de experiência” que teriam sido importantes para a nossa cultura e que, de
algum modo, constituíram o presente tal como o conhecemos.
Assim, a experiência da loucura, a experiência da doença, a experiência da criminalidade ou da
sexualidade foram alguns desses lugares de experiência cuja história procurou fazer. Em cada um deles
se articulavam três âmbitos aos quais cabia interrogar: o âmbito das formas de um saber historicamente
constituído, o âmbito das matrizes normativas de comportamentos dos indivíduos e, por fim, o âmbito
dos modos de existência virtuais para sujeitos possíveis. Aparecem aí os três eixos – o saber, o poder, a
subjetivação – privilegiados diferentemente por Foucault em seus principais trabalhos. Nas primeiras
obras enfatiza-se o estudo do eixo da formação dos saberes. Na medida em que ali se desejava
efetivamente estudar a experiência como matriz para a formação de saberes, cabia notar, não o
desenvolvimento ou o progresso dos conhecimentos, mas as “práticas discursivas” que podiam constituir
matrizes para conhecimentos possíveis.
Em seguida, nos cursos do Collège de France entre os anos 1971-1980 e em obras como Vigiar e
punir e A vontade de saber, tratava-se de analisar as matrizes normativas de comportamento. Cabia,
então, analisar o poder não como categoria, instância ou propriedade, tampouco analisar as instituições
de poder ou ainda as formas gerais de dominação, mas sim as técnicas e procedimentos pelos quais se
conduziu historicamente a conduta dos indivíduos. Por fim, nos escritos e cursos da década de 1980, a
ênfase recai sobre o eixo da subjetivação. Ali, no lugar de referir-se a uma teoria do sujeito ou a uma
história da subjetividade, cabia analisar diferentes formas pelas quais o indivíduo foi levado
historicamente a constituir-se como sujeito.
MECANISMOS DE NORMALIZAÇÃO
Em Foucault, o estudo dos lugares de experiência nos quais se articulam esses âmbitos (o saber, o poder,
a subjetivação) tem como destino final uma interrogação sobre o presente. E no interior desse quadro
geral, suas análises sobre o poder, orientadas por esta inquietação maior acerca do presente histórico,
bem permitiriam caracterizá-lo (o presente) como a época da norma.
O conjunto das análises de Foucault acerca do poder ancora-se na percepção da insuficiência dos
estudos sobre o poder apoiados em um modelo jurídico, que privilegiam o problema da legitimidade, ou
daqueles apoiados em um modelo institucional, cuja referência principal seria o papel do Estado e de
suas instituições. A ampliação dos recursos para a inteligibilidade acerca do poder conduz Foucault a
privilegiar uma interrogação sobre as formas pelas quais se organizam e atuam as diversas modalidades
de seu exercício, em outros termos, privilegiar a descrição dos mecanismos de poder que permitem
explicitar o funcionamento de formas históricas pelas quais se governou as condutas dos indivíduos em
uma época determinada. Relativamente à época moderna, tais mecanismos serão descritos pelo filósofo
como mecanismos de normalização.
Foucault estuda, em primeiro lugar, os mecanismos de normalização que têm como ponto de fixação
imediato os corpos dos indivíduos localizados no interior de espaços institucionais precisos, como o asilo
psiquiátrico, o hospital, a fábrica, a prisão. Denomina tais mecanismos de “disciplinas” e, ao fazer sua
genealogia, acompanha seu desenvolvimento e generalização no correr dos séculos 17, 18 e 19. Para o
filósofo, a normalização disciplinar demarca espaços a serem ocupados, controla o tempo em que os
indivíduos realizam suas atividades, estabelece sequências e ordenações dessas atividades em função de
objetivos precisos, conduzindo ao adestramento e ao controle permanentes. Como resultado dessa
sequência de procedimentos, torna-se possível uma separação objetiva entre a atitude, o comportamento,
o indivíduo “normais” e a atitude, o comportamento, o indivíduo “anormais”. A referência para essa
distinção entre o normal e o anormal é um “modelo ótimo” (a norma), construído em função dos
resultados pretendidos pela própria estratégia disciplinar.
Tais estudos permitem a Foucault referir-se ao homem da época moderna como o produto de
processos de objetivação e de sujeição. O indivíduo moderno pode ser compreendido como um “objeto
dócil e útil”, concluirá ao final da obra Vigiar e punir. Porém, em um segundo momento de sua analítica
do poder, a caracterização da forma de constituição normalizada do indivíduo moderno se
complementará pelo estudo dos mecanismos de normalização que terão, agora, como ponto de fixação
privilegiado a vida biológica, naquilo que ela comporta de regularidades e variáveis, perceptíveis no
corpo coletivo das populações.
A formulação da noção de “biopolítica” possibilitará a Foucault justapor à análise da disciplina dos
corpos o estudo dos mecanismos de regulação da vida, entendidos como uma segunda forma de
acomodação dos mecanismos de poder à realidade histórica que constitui o presente. A normalização
operada pelos dispositivos de seguranças da biopolítica consistirá no ajuste entre diferentes distribuições
de normalidade, relativas a cada um dos aspectos que compõem a vida dos grupos humanos, de tal modo
a fazer valer as distribuições “mais favoráveis” em relação àquelas que seriam “mais desfavoráveis”.
Aqui, a norma surge como um jogo no interior de normalidades diferenciais inerentes aos fenômenos
da vida biológica e, nesse sentido, será o critério para as diferentes racionalidades políticas e os diversos
procedimentos técnicos pelos quais se dará o seu governo. Foucault denomina “artes de governar” ou
“governamentalidades” o conjunto das racionalidades políticas e dos procedimentos técnicos pelos quais
se dá o governo da vida. Na maior parte das aulas dos cursos segurança, território, população e
nascimento da biopolítica, o filósofo irá reconstituir alguns momentos daquilo que entende ser a história
das artes de governar que o ocidente conheceu. Analisará em detalhe três formas históricas dessas
governamentalidades políticas: a razão de Estado (séculos 16 e 17), o liberalismo (séculos 18 e 19) e os
neoliberalismos alemão e norte-americano (século 20). Na perspectiva desse estudo sobre os
mecanismos de regulação, o indivíduo moderno, membro do corpo biopolítico das populações, é
igualmente normalizado, uma vez que é constituído a partir da arte de governar – regida pela
normalização biopolítica – no interior da qual se dá a condução de suas condutas. É nesse sentido que o
estudo do tema do poder realizado por Foucault permite a caracterização do presente histórico como
sendo a época da norma.
DA LEI À NORMA
Desde logo, fica claro que a norma aqui não se confunde com a lei ou com a norma em um sentido
exclusivamente jurídico. Nas análises de Foucault acerca do poder, a norma, que define o modo de
constituição do sujeito moderno, deve ser compreendida em um sentido bem mais amplo. Ela se
configura como um princípio de exclusão ou de integração relativamente às práticas dos indivíduos,
como observa Pierre Macherey (em Rencontre internationale. Michel Foucault philosophe), e se revela
na implicação de duas formas simultâneas: a forma de “norma de saber”, na medida em que enuncia
critérios de verdade cujo valor pode ser restritivo ou constitutivo e a forma de “norma de poder”, na
medida em que fixa para o sujeito as condições de sua ação segundo regras externas ou leis internas.
A norma em Foucault define-se por seu caráter produtivo e, nesse sentido, não se confunde com um
princípio de separação entre o lícito e o ilícito nem com um dispositivo de mera repressão ou restrição.
Cabem, na abrangência de seu significado, as normas de comportamento, as normas sociais, as normas
de conduta, as normas que regulam os saberes, as normas que prescrevem ações e que, relativamente à
época moderna, funcionam segundo as formas da disciplina dos corpos e da regulação da vida biológica
das populações. Nesse sentido, no campo de interrogação constituído pela analítica do poder em
Foucault, trata-se também de buscar compreender as formas de implicação entre a norma (disciplinar e
biopolítica) e as estruturas formais do direito. De tal forma que o filósofo poderá afirmar, no capítulo
final de A vontade de saber, que na época moderna a “lei funciona cada vez mais como norma”.
Daí fazer sentido a tentativa de superação – ou ampliação – dos modelos exclusivamente jurídico e
institucional para o estudo do poder. Se ao realizar tal estudo, os escritos de Foucault permitem a
caracterização do presente como a época da norma, eles nos convidam a um duplo questionamento.
Como afirma François Ewald, em seu texto Foucault, a norma e o direito, o primeiro questionamento
possui um caráter ontológico e concerne à modernidade. Ele consiste em perguntar o que é a
modernidade de que fazemos parte, uma vez que ela é de tipo normativo? O que aprendemos acerca da
modernidade, ao abordá-la pelo lado das práticas de poder e de saber que se ordenam em torno da
norma?
O segundo questionamento concerne ao próprio estatuto e ao funcionamento do direito nas
sociedades modernas. Que lugar há para o direito na época da norma? Qual poderá ser a sua forma e
quais são os seus perigos? A tentativa de responder a essas questões corresponde, então, ao projeto geral
visado pela filosofia de Michel Foucault, ou seja, o esforço por compreender o presente a partir dos
lugares de experiência que, pela articulação entre os campos do saber, do poder e da subjetivação,
esclarecem acerca daquilo que somos, mas, ao mesmo tempo, nos desafiam a perguntar por aquilo que
podemos fazer e nos tornar.
Texto originalmente publicado na Cult 134
Guerras psi
JOEL BIRMAN

Defendida como tese de doutorado em 1961 e publicada como livro no mesmo ano pela editora francesa
Plon, a obra de Foucault já tem a duração de cinquenta anos. Se foi intitulada inicialmente como
Loucura e desrazão – História da loucura na idade clássica, em contrapartida, na edição de 1972, pela
Gallimard, o livro foi publicado com o título História da loucura na idade clássica, que permanece até
hoje.
A formulação desse livro foi a contrapartida do impasse em que se encontrava a psiquiatria nos anos
1950, na medida em que o estatuto de destruição dos enfermos mentais pela longa internação asilar
estava em pauta.
Com efeito, a condição asilar dos internados evocava a recente experiência dos campos de
concentração nazistas, tanto na tradição europeia quanto na norte-americana. Daí por que foi no mesmo
contexto histórico em que Foucault publicou sua obra inaugural que o psiquiatra Szasz publicou O mito
da doença mental (1961) e o antropólogo Goffman publicou Asilos (1959), ambos nos Estados Unidos.
Logo em seguida iniciou-se o movimento antipsiquiátrico, nas suas diferentes modalidades
discursivas e políticas, que colocou em questão o estatuto do internamento dos loucos e a concepção da
loucura como enfermidade mental.
Não obstante esse a priori histórico e social, o livro de Foucault tem uma especificidade teórica que o
distingue dos demais, pois inaugurou um novo estilo de pensar no campo da filosofia, no qual criticava a
tradição universitária instituída pela conjugação da filosofia de Nietzsche com o discurso teórico da
história, situada esta na escala da longa duração.
Foi por esse viés que Foucault construiu inicialmente a arqueologia do saber e posteriormente a
genealogia do poder, para concluir seu percurso teórico pela realização de uma estilística da existência.
Nesse contexto, passou a formular que o que fizera desde o início de seu percurso teórico foram
problematizações nas quais as diferentes problemáticas que escolheu como objeto de pesquisa – a razão,
a vida e a morte, o discurso, a punição, a sexualidade e o sujeito – tinham um alcance estratégico para a
leitura dos pontos cruciais que constituíram a tradição ocidental, iniciada no Renascimento e
desdobrando-se na modernidade.
Portanto, a História da loucura na idade clássica foi o pontapé inicial conduzido por Foucault na
longa epopeia filosófica de suas problematizações, centrando-se na oposição “razão e desrazão”.
O livro transformou-se num clássico, não necessariamente para a psiquiatria, a psicologia e a
psicanálise, cuja recepção foi marcada pela ambiguidade e pela crítica, mas pelas ciências humanas, as
ciências sociais e a filosofia – que reconheceram positivamente seu potencial crítico, de maneira que
pôde contribuir para a renovação desses discursos teóricos.
PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS
Por que houve resistência dos saberes do campo psi a essa obra?
Antes de mais nada, porque ela rompeu com suas certezas, na medida em que Foucault sustentava
que a loucura era uma construção eminentemente histórica e cultural, rompendo assim com uma leitura
naturalista dela.
Além disso, indicava como as diferentes leituras sobre a loucura se inscreviam em pressupostos
filosófico, moral, religioso e científico que regulariam as práticas sociais sobre ela, e que era isso que
deveria ser colocado em evidência numa arqueologia da loucura.
Dito de outra maneira, o que Foucault ressaltou foi como a experiência da loucura foi objeto de
silêncio e de exclusão social como seu correlato; necessário seria realizar a arqueologia desse silêncio.
Para isso, portanto, seria preciso percorrer os diferentes momentos constitutivos desse silenciamento
para indicar como a loucura foi transformada numa experiência sem sujeito, sem verdade e marcada pela
ausência da obra.
Assim, o que estaria em pauta nesse projeto seria assinalar que a loucura foi transformada pela
psiquiatria em doença mental somente no século 19, como também criticar o gesto libertário dos loucos
por Pinel. Este e aquele supunham efetivamente uma transformação social e política fundamental, mas
que não foram necessariamente na direção de constituir uma sociedade democrática, como suporiam
posteriormente Gauchet e Swain em A Prática do Espírito Humano – A instituição asilar e a revolução
democrática (1980).
Foi por causa disso que Henri Ey, referência maior da psiquiatria francesa de então, denominou de
psiquiatricida a intenção teórica de Foucault, num colóquio de 1969 intitulado “Concepção ideológica da
história da loucura” (Évolution Psychiatrique, tomo 36, fascículo 2, 1971).
Da mesma forma, Ellenberger, em A descoberta do inconsciente (1972), não podia aceitar que a
loucura não se inscrevesse no registro da natureza, não obstante suas diferentes leituras sociais e
culturais.
ENTRE BOSCH E ERASMO
No entanto, para Foucault algo se transformou na recepção social da experiência da loucura de maneira
fundamental, entre as telas inquietantes de Bosch e o discurso teórico de Erasmo em Elogio à loucura.
Se no primeiro registro a loucura era figurada de maneira ameaçadora, no segundo ela já estaria
domesticada. O que estaria em pauta, portanto, seria a descontinuidade entre o tempo da livre circulação
da loucura no espaço social – e onde esta era enunciada como fonte de verdade – e o tempo posterior no
qual a loucura não teria mais qualquer referência ao sujeito e à verdade, caracterizando-se como ausência
de obra.
Foi no intervalo entre esses dois marcos que a razão teria sido constituída. Enunciou-se assim a
grande ousadia teórica de Foucault, que articulou intimamente a constituição da filosofia moderna e a
configuração do registro da desrazão, na medida em que aquela, com o cogito de Descartes, forjou a
razão e seu correlato, qual seja, o discurso da ciência.
Assim, o que Foucault procurou demonstrar, em sua arqueologia do silêncio da loucura, foi que
existia uma relação estrutural entre a emergência histérica do cogito cartesiano nas Meditações (1641) e
a construção dos hospitais gerais, para onde o soberano enviava todos aqueles inscritos no registro da
desrazão: loucos, vagabundos, blasfemadores, heréticos, traidores etc.
Com efeito, foi com o estabelecimento do campo da razão que o da desrazão foi instituído, já que
Descartes, nas Meditações, excluía a loucura do registro do pensamento. Portanto, para a loucura não
seria possível enunciar o “penso, logo existo”, pois não existiria naquela nem sujeito nem, tampouco,
verdade.
O desdobramento disso foi a exclusão da loucura do espaço social que perdurou durante séculos em
nossa tradição, até bem recentemente.
Nessa perspectiva, Foucault formulou a existência de duas tradições face à loucura, quais sejam: a
crítica e a trágica. Se pela primeira aquela seria objeto de desconfiança, pois não existiria nela nem
sujeito, nem verdade, na segunda a loucura seria marcada pela criatividade e pela possibilidade de
produção de obra.
Foi então a tradição crítica que se instituiu no século 17 e que se desdobrou na constituição da
psiquiatria no final do século 18. Em contrapartida, a tradição trágica manteve-se sempre marginal nos
registros da literatura (Hölderlin e Nerval), da dramaturgia (Strindberg e Artaud), da pintura (Van Gogh
e Goya) e da filosofia (Nietzsche), em que sujeito e verdade puderam efetivamente se conjugar.
TERCEIRA MARGEM DA LOUCURA
É claro que Foucault pretendeu enunciar a tradição trágica numa terceira margem, para parafrasear
Guimarães Rosa, fazendo então a elegia dos marginalizados pela história do Ocidente. Por isso mesmo, a
literatura e a tradição artística foram os verdadeiros herdeiros da tradição trágica na modernidade.
Da mesma forma, foi por causa disso que Foucault empreendeu posteriormente uma genealogia da
punição, em Vigiar e punir (1974), e uma genealogia da sexualidade baseada no dispositivo da
confissão, em A vontade do saber (1976).
Além disso, Foucault inscreveu a constituição da psicanálise no registro da tradição crítica, na
medida em que Freud teria tido a genialidade de perceber que o dispositivo asilar estaria centrado na
figura do alienista.
Assim, descartando-se das figuras do enfermeiro e do guarda, Freud inventou o espaço psicanalítico
centrado na transferência, de forma que as alienações e as desalienações do sujeito se realizariam desde
então em referência ao personagem taumatúrgico do analista, em continuidade com o dispositivo
psiquiátrico do tratamento moral.
Como indicou devidamente Elisabeth Roudinesco, em “Leituras da História da loucura (1961-
1986)”, no colóquio comemorativo dos trinta anos da publicação do livro (Penser la Folie, Galilée,
1991), a obra de Foucault pegou a psiquiatria de calças curtas, pois não realizava até então obras de
história da psiquiatria, e sim apenas hagiografias dos psiquiatras libertadores da loucura.
A obra magistral de Foucault teve assim o efeito de constituir uma historiografia psiquiátrica baseada
em arquivos consistentes. A mesma formulação seria válida para a história da psicanálise, que teve na
obra de Roudinesco sua grande realização.
DEBATE COM DERRIDA
Contudo, o grande debate sobre a obra de Foucault realizou-se no campo da filosofia, tendo em Derrida
o maior crítico. Assim, numa conferência realizada em 1963, no Collège de Philosophie, intitulada
“Cogito e História da loucura”, Derrida não aceitou o pecado metafísico de Foucault de inscrever a
filosofia de Descartes em sua arqueologia da desrazão.
Ele sustentou assim que, com a figura do gênio maligno, o cogito cartesiano estaria presente na
experiência da loucura, de forma que o “penso, logo existo” poderia ser dito em qualquer circunstância.
Além disso, formulou que a dita obra de Foucault apenas pôde ser escrita com a invenção da psicanálise,
na medida em que essa deslocou a figura da loucura em nossa tradição, com a formulação do conceito do
inconsciente.
Foucault interpelou Derrida em 1972, em “Resposta a Derrida”, afirmando entre outras coisas que,
quando formulou a História da loucura na idade clássica, estava rompendo com a tradição filosófica de
que Derrida era o porta-voz em sua crítica, na medida em que retirara do discurso filosófico qualquer
superioridade teórica sobre os demais discursos e que procurara colocar em evidência, com o conceito de
“episteme”, a existência de um inconsciente do saber.
Derrida retomou a crítica a Foucault, em 1991, em “Fazer justiça a Freud”, indicando as múltiplas
ambiguidades de Foucault face à psicanálise.
Pode-se afirmar então que a obra de Foucault sobre a loucura foi não apenas um livro-acontecimento,
mas continua viva, pelas inúmeras polêmicas que provocou e ainda provoca.
Além disso, mesmo que o estatuto da internação da doença mental tenha sido colocado em questão
com as curtas internações, a minoridade do louco e sua relação com a verdade estão ainda em pauta,
quando as camisas de força bioquímicas passaram a regular a experiência da loucura na atualidade e
onde o discurso da loucura é francamente interditado.
Sob essa perspectiva, Foucault, numa passagem célebre de seu livro, sublinha que seria preciso fazer
justiça a Freud, pois na narrativa de suas histórias clínicas e em particular no caso Schreber inscreveu a
loucura no campo do discurso.
Assim, apesar de suas críticas, Foucault também escutou a formulação de Freud de que o delírio,
como discurso, seria uma “tentativa de cura” e que, nessa medida, a psicanálise se inscreveria na tradição
trágica sobre a loucura.
Não seria essa “tentativa de cura” que estaria hoje interditada com as camisas de força bioquímicas?
Texto originalmente publicado na Cult 159
Meu Foucault
ANTONIO NEGRI

Em sua última edição do ano de 1978, a revista Aut Aut – a primeira na península a ter se interessado por
Michel Foucault – publicou um artigo que eu, na realidade, havia escrito um ano antes, cujo título era
“Sobre o método da crítica da política”.
Era um texto em que eu avaliava a influência que os trabalhos de Foucault tinham tido até então – a
última leitura foucaultiana até aquela data tinha sido a de Vigiar e punir, traduzida na Itália em 1976 –
sobre o pensamento da esquerda revolucionária italiana na qual eu militava naqueles anos.
Nessa época eu tinha começado a me debruçar sobre Marx, e em particular sobre os Grundrisse:
entre 1977 e 1978, de fato, a convite de Althusser, eu tinha dado um curso sobre “Marx para além de
Marx”, na Escola Normal Superior [em Paris]. Se recordo esses elementos, é porque é importante
chamar atenção para a coincidência entre minha leitura de Foucault e um período de meu trabalho em
que procuro retomar e resumir uma longa experiência de “revisão” da leitura dos textos marxistas.
Essa revisão não é de maneira alguma uma recusa de Marx, como é frequentemente o caso no final
dos anos 1970. Pelo contrário, ela se coloca sob o signo de uma adesão plena aos conceitos fundamentais
da economia política, dentro de uma militância revolucionária.
ALIANÇA COM A DIREITA
Por que, então, eu me interessei por Foucault? Porque, naqueles mesmos anos, o Partido Comunista
Italiano (PCI) e os sindicatos, com os quais os “movimentos” de contestação social e política viviam um
conflito intenso, estavam no processo de programar uma aliança com as forças da direita no terreno
social e parlamentar – aquilo a que se deu o nome de “compromisso histórico”.
O PCI insistia na hipótese de que os proletários poderiam, daquele momento em diante, conquistar o
poder soberano e que as forças da esquerda não poderiam desprezar essa série de compromissos difíceis,
mas necessários. Em suma: a política era autônoma e indiferente aos valores: apenas a força contava.
Para o PCI, como eu gostaria de mostrar aqui, o culto da soberania e a “razão de Estado” andavam de
mãos dadas. Como se poderia fazer para desmistificar essa ideia tão bizarra, para os comunistas, de que
o poder e a soberania correspondiam a lugares autônomos, que representavam instrumentos indiferentes
– em suma, que compunham um verdadeiro plano transcendental? E que a luta não poderia emergir
senão a partir desse transcendental?
Nós, ao contrário, pensávamos que a materialidade do poder e da construção política era
extremamente bem determinada, marcada pelas políticas neoliberais, e que essa condição era tudo menos
indiferente.
Para resistir, era preciso, portanto, recusar: era preciso denunciar essa suposta indiferença do poder e
afirmar um ponto de vista crítico e materialmente determinado. Era preciso negar a indiferença, porque
cada um de nós representava uma diferença – determinada, real, politicamente definida e incapaz de
disfarçar-se de outra coisa senão ela mesma.
Com Foucault, podíamos dizer: “O ser humano não se caracteriza por certa relação com a verdade,
mas ele a possui, como que pertencente a ele por direito próprio, ao mesmo tempo oferecida e oculta,
uma verdade”.
Isso não era o bastante para transformar a recusa de um desastre político anunciado – o desastre das
políticas da esquerda italiana – na construção de um novo horizonte de lutas. Era preciso reorganizar
nossa análise e repensar nossa própria organização. Era necessário dar àquele momento de consciência
uma potência de expansão e dotá-lo de um fundamento teórico inédito. E Foucault podia nos fornecer
uma ajuda preciosa.
Desde o começo nos pareceu que Foucault se situava no interior de uma tradição “ontológica” do
pensamento francês que não havia cedido às seduções de uma filosofia da vida e da ação.
Meu artigo ressaltava, de um lado, a força da relação que se percebia entre ontologia e antropologia e,
de outro, o fato de que a construção do objeto histórico sempre era extremamente realista – porque o
objeto histórico nunca era subtraído de qualquer coisa que se teria dado fora do imediatismo da
experiência.
HORIZONTE DE LUTAS
Ao libertar-se do “esquematismo da Razão” kantiana ou da intencionalidade de Husserl, Foucault
construía no interior de um horizonte concreto que era feito de lutas e estratégias.
Acontece que, para mim, na época, “o horizonte da estratégia, do conjunto das estratégias,
corresponde ao entrecruzamento entre a vontade de conhecer e os dados concretos, entre a ruptura e o
limite da ruptura. Toda estratégia é uma luta, toda síntese é um limite. Aqui há mais dialética do que na
Dialética, há mais astúcia do que na Razão e há mais concretude do que na Ideia. O Poder é finalmente
levado à rede dos atos que o constituem”.
E ainda:
“A realidade se apresenta, a todo instante, como cindida; a heteronomia dos fins pode ser afirmada, e
aquilo que temos sob nossos olhos deve abandonar qualquer característica de unidimensionalidade.
Porque o que muda é um ponto de vista sobre as coisas que modifica a pesquisa e confere a ela um
frescor novo [...]. As lutas são aquilo que reveste necessidades e pontos de vista, projeções e vontade,
desejos e expectativas. A síntese não é delegada a nada nem a ninguém. A ciência se liberta daquilo que
a comandava e se oferece à ação, à contingência concreta e à determinação prática”.
O que se passa, então, em torno dessa decisão? Alguma coisa que é ao mesmo tempo elementar e de
uma dificuldade enorme. É preciso reconquistar a totalidade para negá-la, mas fazê-lo porque o poder
não consegue compreender nele próprio a vida, o ponto de vista das singularidades, o dispositivo que o
desejo organiza.
No final dos anos 1950, eu tinha trabalhado muito sobre o historicismo alemão e foi Dilthey quem
chamou minha atenção em especial. Havia ali “épocas” nas quais o saber se organizava de maneira
unitária, mas que sempre terminavam por ser rompidas, épocas na descontinuidade.
[...]
LEITURA MODIFICADA
Foi onde o bloqueio aparentava ser mais forte, nas análises de Vigiar e punir, que tudo acabou por se
abrir. Os termos utilizados por Foucault para nomear a nova economia do poder – uma economia que
caracterizávamos precisamente como “pan-óptico”, que se confundia a partir de então com a exploração
da vida e com a exploração da força física dos indivíduos, com a gestão de seus corpos e o controle de
suas necessidades, em suma: com a normalização daquilo que os homens são e fazem – iriam
rapidamente se desdobrar.
Nossa leitura, assim, se veria totalmente modificada e relançada: era preciso pensar ao mesmo tempo
nos biopoderes e na biopolítica. E, em lugar de pensar as duas noções como equivalentes e indistintas,
considerá-las como diferentes. Foi por meio dessa imposição da diferença biopoderes/biopolítica que eu,
na realidade, “ingeri” Foucault em minhas próprias análises.
O problema era o seguinte. Enquanto se mantinha a indistinção entre o biopoder e a biopolítica, a
resistência à captação da vida e a sua gestão normativa não parecia ser possível: porque mais nenhuma
exterioridade era garantida e porque nenhum contrapoder poderia ser, na melhor das hipóteses, senão a
reprodução simétrica e inversa daquilo de que, justamente, procurávamos nos libertar.
É a partir disso que as leituras “liberais” de Foucault se sentiram “autorizadas” – ou seja, que elas
desenvolveram a gestão normativa de um ser vivo organizado em populações, uma classificação dos
indivíduos no interior de macrossistemas dessubjetivantes e homogêneos, um verdadeiro cálculo atuarial
da vida.
[...]
Tudo isso é suficiente? Podemos falar de verdade sem falar também, imediatamente, de práxis, de
resistência? Em 1977, minha resposta foi a seguinte: “[...] isso não basta. E isso tampouco bastava para
Foucault, ao que parece. Em seu ‘Prefácio’ ao livro de B. Jackson, ele propõe, concretamente, uma
leitura do mundo como espaço de circulação do comando, da exclusão e da violência e propõe uma
imagem muito crítica do capital como prisão”.
“E, ao mesmo tempo, ele se surpreende e entusiasma com a realidade formidável da revolta, com a
independência, a comunicação e a autovalorização que nascem no interior das próprias prisões. A ideia e
a realidade do poder, da lei, da ordem, que atravessam as prisões e interligam as experiências mais
terríveis nos relatos que os detentos fazem delas, começam aqui a vacilar; os acontecimentos, em seu
caráter serial e regular, abrem-se para novas condições de possibilidade.”
“Não existe nisso nada de dialético: a dialética, em seu falso rigor, aprisiona a imaginação da
possibilidade. A lógica analítica da separação, precisamente porque se concluiu, abre para uma estratégia
da separação. A separação e a derrubada só se tornam reais na estratégia. O mundo da autovalorização
passa a opor-se ao mundo da valorização do capital. A possibilidade se transforma aqui em potência.
Essa ideia spinosiana da possibilidade entendida como potência força demais o pensamento de Foucault?
Talvez. [...]”
“Essa ‘mobilidade’ metodológica que tanto nos seduz, que é tão adaptada à qualidade do trabalho
intelectual que o capital determina hoje, e que é interna às modalidades e às finalidades revolucionárias
atuais, apresenta um problema: pode ela basear-se em si mesma, ou ela precisa necessariamente se
encarnar na determinação concreta do processo histórico, da força contra o poder, do proletário contra o
capital?”
“Existe aqui a abertura de um contexto problemático ao qual apenas o movimento real das coisas
pode trazer uma resposta. E o movimento real deve agradecer a Foucault por ter ao menos formulado
esse conjunto de questões.”
SOBERANIA
No final de 1983, cheguei à França após um longo período de encarceramento na Itália. E foi mais ou
menos no momento da morte de Foucault que retomei o contato com Gilles Deleuze, com o qual
conversei muito longamente sobre ele. Era preciso conseguir passar por cima das resistências que alguns
dos amigos e colaboradores de Deleuze tinham com relação a Foucault.
Quanto a nós, que procurávamos entender o quadro do conjunto dessa formidável superação da
tradição filosófica francesa que se dava no próprio interior de suas linhas, teríamos que aguardar a
publicação, anos mais tarde, dos cursos de Foucault no Collège de France.
Apesar de tudo, já tínhamos compreendido na época que, se o século 20 tinha se tornado deleuziano,
o século 21 sem dúvida seria foucaultiano. Algumas pessoas, contudo, fizeram muitos esforços para
tentar barrar o caminho à conversão definitiva das análises foucaultianas – a produção da subjetividade –
mais além dos biopoderes, por meio da biopolítica.
Eu me recordo, no início dos anos 1990, em um seminário que eu estava fazendo no Collège
International de Philosophie, de um embate muito duro entre François Ewald e Pierre Macherey.
A polêmica girava em torno do individualismo, das diferentes determinações da liberdade e do senso
de estética em Foucault, mas ambos não enxergavam que, na realidade, é a singularidade que Foucault
opunha ao individualismo; que era preciso procurar na ética uma liberdade que não era apenas a
liberdade do espírito, mas a dos corpos; e que sua ontologia era produtiva.
Eles não compreendiam realmente que a soberania em cujo interior os biopoderes (sejam liberais ou
socialistas) têm suas raízes não é a única trama sobre a qual a ontologia pode ser construída ou medida.
Porque, em Foucault, a soberania era, pelo contrário, incluída, ou seja, analisada e desconstruída no
interior da biopolítica com base na relação entre as diferentes produções da subjetividade.
SUJEITOS LIVRES
Eis então o que Foucault escreveu:
“Quando definimos o exercício do poder como um modo de ação sobre a ação dos outros, quando o
caracterizamos pelo ‘governo’ dos homens uns pelos outros – no sentido mais extenso dessa palavra –,
incluímos nele um elemento importante: o da liberdade. O poder não se exerce senão sobre ‘sujeitos
livres’, e, na medida em que são ‘livres’ – entendamos por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm
diante de si um campo de possibilidade ou diversas condutas –, diversas reações e diversos modos de
comportamento podem ocorrer”.
“Onde as determinações são saturadas, não há relação de poder: a escravidão não é uma relação de
poder quando o homem está acorrentado (trata-se então de uma relação física de coação), mas
justamente quando ele pode se deslocar e, no limite, escapar. Não há, portanto, um enfrentamento entre o
poder e a liberdade, tendo entre eles uma relação de exclusão [...]. A relação de poder e a insubmissão da
liberdade não podem, portanto, ser separadas. O problema central do poder não é o da ‘servidão
voluntária’ (como poderíamos desejar ser escravos?): no cerne da relação de poder, ‘provocando-a’ sem
parar, está a renitência do querer e a intransitividade da liberdade.”
Esse texto é de 1980. A partir daí, tudo que Foucault iria desenvolver se situaria dentro dessa
perspectiva. Tratar-se-á de fato, creio, de aprofundar sem parar o caráter materialista da análise das
determinações históricas, do conteúdo da episteme na passagem da “arqueologia” para a “genealogia”,
mas também de aprofundar essa ideia da potência da “produção de subjetividade” – desde a resistência
até as rebeliões, ou à expressão e à crítica da democracia política.
Texto originalmente publicado na Cult 159
Este texto é parte de artigo publicado no Cahiers de L’Herne (Foucault).
Copyright Éditions de L´Herne, 2011
O dia em que Foucault se fez
VLADIMIR SAFATLE

Há cinquenta anos, Foucault publicava Loucura e desrazão – História da loucura na idade clássica.
Embora não fosse seu primeiro livro (Doença mental e personalidade é de 1954), ele era o início efetivo
de sua experiência intelectual. Pois, por meio dele, Foucault aparecia no cenário filosófico
contemporâneo como portador de uma nova questão de método que estaria, a partir de então, sempre
associada a seu nome.
A questão de método dizia respeito a seu modo peculiar de “fazer filosofia”.
Contrariamente ao padrão tradicional do comentário de textos e das grandes dissertações sobre
autores, Foucault apresentava um trabalho sobre a lenta transformação da experiência da loucura em
doença mental, ou seja, em objeto de um discurso que aspira à cientificidade (a psicologia e a
psiquiatria) e que visa fundar modos estabelecidos de intervenção.
Nesse sentido, o trabalho poderia ser visto, na verdade, como pertencente a um setor da
epistemologia que, na França, era conhecido como “epistemologia histórica”. Uma tradição que não
compreende a tarefa da epistemologia como fundação de uma teoria do conhecimento baseada na análise
das faculdades cognitivas e da estrutura possível da experiência.
Antes, nomes como Canguilhem, Bachelard, Cavaillès e Koyré são lembrados por vincularem
radicalmente reflexão epistemológica e reconstrução de uma história das ciências.
Tratava-se de esclarecer a gênese dos padrões de racionalidade presentes nas ciências por meio de
uma profunda articulação entre história das ciências e algo que poderíamos chamar, na falta de um nome
mais preciso, de história das ideias ou, se quisermos utilizar um termo mais próximo de Foucault, de
história dos sistemas de pensamento.
No entanto, o trabalho de Foucault não era apenas um trabalho de epistemologia da psicologia e da
psiquiatria. Sua peculiaridade vinha de sua perspectiva profundamente crítica. Tratava-se de perguntar
que tipo de experiência se perdera graças à transformação da loucura em doença mental. O que, para nós,
não era mais possível ver e pensar por causa do advento de uma forma de racionalidade.
Nesse sentido, História da loucura era uma peculiar “contra-história da ciência” que visava expor
uma análise dos processos de implementação de critérios discursivos de verdade, de construção de
limites e de táticas de exclusão que deveriam ser criticados tendo em vista o desvelamento da maneira
com que padrões históricos de racionalidade fundamentam e constroem a legitimidade de suas
operações.
No interior dessa contra-história da ciência onde era questão do advento da psiquiatria e da
psicologia, Foucault lembrava que a discussão sobre decisões clínicas a respeito da distinção entre
normal e patológico é, na verdade, um setor de decisões mais fundamentais da razão a respeito do modo
de definição daquilo que aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.).
Elas se inserem em configurações mais amplas de racionalização que ultrapassam o domínio restrito
da clínica.
A distinção entre normal e patológico, entre saúde e doença é o ponto mais claro no qual a razão se
coloca como fundamento de processos de administração da vida, como prática de determinação do
equilíbrio adequado dos corpos em suas relações a si mesmos e ao meio ambiente que os envolve.
No caso da distinção entre saúde e doença mental, vemos ainda como a razão decide, amparando
práticas médicas e disciplinares, os limites da partilha entre liberdade e alienação, entre vontade
autônoma e vontade heterônoma.
Assim, a reflexão sobre as ciências (em especial as ciências humanas) aparece como maneira para
compreender como a razão moderna impõe normatividades que determinam nosso campo de
experiências possíveis. Uma articulação inovadora entre crítica da razão e reflexão epistemológica era
inaugurada por Foucault.
Com História da loucura, a filosofia podia agora encontrar uma nova definição: “discurso crítico em
relação àqueles discursos que moldam nossas vidas e aspiram à validade categórica”.
Texto originalmente publicado na Cult 159
Bê-á-bá de Foucault

ARQUEOLOGIA
Termo que o filósofo francês usou durante os anos 1960 para descrever sua abordagem da escrita da
história. Ela diz respeito ao exame dos traços discursivos deixados pelo passado de modo que escrevesse
uma “história do presente”.
ARQUIVO
Utilizado na Arqueologia do Saber, o termo designa a coleção de todos os traços materiais de uma dada
cultura ou de um dado período histórico. Ao examinar esses traços, pode-se deduzir o “a priori
histórico” ou o “epistema” desse período.
AUTOR/ARTISTA
Foucault considera restritivas ambas as categorias, pois são modos de organizar os textos que devem ser
contestados. Por exemplo, a entidade psicológica do autor e o uso do autor como meio de organizar
textos são duas coisas diferentes.
BIOPODER
Para o filósofo, trata-se de uma tecnologia que surgiu no final do século 18 para administrar as
populações. Incorporando elementos do “poder disciplinador”, o biopoder diz respeito ao controle de
nascimentos, mortes, reprodução e enfermidades de uma dada população.
CORPO
Foucault é particularmente preocupado com as relações entre corpo e poder político. Descreve vários
modos de treinar o corpo para torná-lo socialmente produtivo.
CULTURA
Segundo A hermenêutica do sujeito, a cultura descreve uma “organização hierárquica de valores,
acessível a todos, mas que, ao mesmo tempo, é a oportunidade para se manifestar um mecanismo de
seleção e exclusão”.
DESCONTINUIDADE
Princípio que, assim como os de ruptura e diferença, mina as noções filosóficas da essência imutável da
história, como “homem” e “natureza humana”. A descontinuidade desafia as noções de causa, efeito,
progresso, destino e influência na história.
DISPOSITIVO
O termo costuma ser usado para designar as estruturas do conhecimento e os vários mecanismos
institucionais, físicos e administrativos que propiciam e mantêm o exercício do poder dentro do corpo
social.
EPISTEMA
Apresentado em A ordem das coisas, refere-se às estruturas “inconscientes” que sublinham a produção
do conhecimento científico em certo espaço e tempo. É um “campo epistemológico” que forma as
condições de possibilidade para o conhecimento.
HETEROTOPIA
Em oposição a utopia – espaço do virtual, do não real –, heterotopia significa um espaço apartado das
instituições social e institucional cotidianas, como manicômios, prisões e cemitérios.
NORMAL E PATOLÓGICO
A sociedade é baseada em noções médicas de norma, e não em noções legais de conformidade aos
códigos e à lei – por isso, diz, os criminosos precisam ser “curados”. Há tensão insolúvel entre um
sistema baseado na lei e outro em normas médicas.
LIBERDADE
Em contraposição ao conceito existencialista de liberdade abstrata e de um sujeito “livre”, Foucault
defende que a liberdade é uma prática, e não um objetivo a ser alcançado. O conhecimento, diz, começa
com regras e restrições, e não com a liberdade.
PAN-ÓPTICO
Conceito do filósofo Jeremy Bentham do fim do século 18, agrupava celas em torno de uma torre de
observação central e foi usado como modelo para instituições como prisões. Para Foucault, é a metáfora
do poder e da vigilância na sociedade.
RAZÃO
Focault critica a ideia de que razão seja o mesmo que verdade e de que ofereceria a solução para os
problemas sociais, pois, para ele, todos os sistemas de controle são racionais. Por outro lado, adverte
sobre o perigo de considerar a razão como inimiga.
VERDADE
Para Foucault, a verdade é algo que “acontece” e é produzido por várias técnicas, e não algo que existe
previamente, aguardando para ser descoberto. Ele não quer “contar a verdade”, mas estimular as pessoas
a terem elas mesmas uma experiência particular.
SEXUALIDADE
Para o filósofo, o final do século 17 marcou o início de um regime repressivo de censura em relação à
sexualidade. Já o século 19 viu grande proliferação de conhecimento e o desenvolvimento de múltiplos
mecanismos de controle da sexualidade.
Fonte: www.michel-foucault.com
colaboraram nesta edição
Antonio Negri é filósofo, professor, político e escritor italiano
Eliane Robert de Moraes é professora de Literatura brasileira da Universidade de São Paulo
Ernani Chaves é professor de Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e autor do livro
Foucault e a psicanálise (Forense-Universitária, 1988)
João Camillo Penna é professor de Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Joel BirmAn é professor de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Salma Tannus Muchail é professora de Filosofia da PUC-SP

Sergio Adorno é professor e diretor da FFLCH-USP e coordenador do Núcleo de Estudos de Violência


(NEV) da USP
Marcio Alves da Fonseca é professor de Filosofia da PUC-SP, autor dos livros Michel Foucault e o
Direito (Saraiva, 2011), Michel Foucault e a constituição do sujeito (Educ, 2011) e tradutor da obra A
hermenêutica do sujeito, de Foucault
Peter Pál Pelbart é professor de Filosofia da PUC-SP, escritor e ensaísta
Vladimir Safatle é professor de Filosofia da Universidade de São Paulo

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