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IHU

ON-LINE
Genocídio
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
dos povos
Indígenas
Nº 478 | Ano XV
30/11/2015

ISSN 1981-8769
(impresso)
ISSN 1981-8793
(online)

Elena Guimarães: Máquina de exterminar indígenas


Oiara Bonilla: “Nós existimos!”, gritam os povos
indígenas. A luta pela terra e pela autodeterminação
Thais Santi: Belo Monte. Atualização do processo de
destruição dos povos indígenas

Noeli Rossatto: Clemir Bruno Lima Rocha:


A reformulação Fernandes: Mauricio Macri, um
da relação entre O divino novo presidente
a vida e a regra que traz para um velho
Franciscana humanização neoliberalismo
Editorial

O genocídio dos povos indígenas.


A luta contra a invisibilidade, a
indiferença e o aniquilamento

E
m pleno século XXI, mais do Egydio Schwade, veterano mili-
que nunca o genocídio dos po- tante da causa indígena, atesta que
vos indígenas está em curso. A nunca houve um interesse efetivo em
revista IHU On-Line desta semana, incluir os povos indígenas na constru-
ecoando as informações, entrevistas ção das leis que regem o país.
e reportagens publicadas cotidiana- Raphaela Lopes, advogada que
mente na página eletrônica do Insti- atua na organização Justiça Global,
tuto Humanitas Unisinos – IHU, que analisa que o Estado brasileiro tem A IHU On-Line é a revista do Instituto
reportam a sistemática dizimação condições de cessar o genocídio. En- Humanitas Unisinos - IHU. Esta publi-
dos povos indígenas, especialmente tretanto, opta por uma política que cação pode ser acessada às segundas-feiras
mais intensa no tempo presente, de- trucida povos originários. no sítio www.ihu.unisinos.br e no endereço
bate o tema com militantes da causa A procuradora federal Thais Santi www.ihuonline.unisinos.br.
indígena, pesquisadores e pesquisa- analisa a questão indígena desde a
perspectiva da construção da usina A versão impressa circula às terças-feiras, a
doras do País e também do exterior. partir das 8 horas, na Unisinos. O conteúdo
Elena Guimarães, do Núcleo de Bi- hidrelétrica de Belo Monte. Para ela,
a obra é a atualização do processo da IHU On-Line é copyleft.
blioteca e Arquivo do Museu do Índio/
Fundação Nacional do Índio – Funai, colonialista de destruição de povos e Diretor de Redação
formas de vida locais. Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br)
analisa a maneira pela qual a racio-
Para o pesquisador e antropólo-
nalidade ocidental se transformou
go argentino Guillermo Wilde, toda Jornalistas
em um dispositivo de extermínio físi-
a questão se resume a um ponto: o João Vitor Santos - MTB 13.051/RS
co e cultural dos indígenas.
desconhecimento sobre as lógicas in- (joaovs@unisinos.br)
Lucia Helena Rangel, do Departa- dígenas. Ele reflete sobre os desafios Leslie Chaves – MTB 12.415/RS
mento de Antropologia da Faculdade de se conhecer e aceitar outras for- (leslies@unisinos.br)
2 de Ciências Sociais e do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Ciências
mas de vida. Márcia Junges - MTB 9.447/RS
O indigenista Sydney Possuelo (mjunges@unisinos.br)
Sociais da PUC-SP, observa que a fal- também segue a mesma linha. Para Patrícia Fachin - MTB 13.062/RS
ta de respeito com povos originários ele, o genocídio de hoje tem origem (prfachin@unisinos.br)
cultivada historicamente no Brasil na não aceitação de outras formas de Ricardo Machado - MTB 15.598/RS
culmina na solidificação de uma classe vida e sua relação com a terra. (ricardom@unisinos.br)
política inábil para tratar do indígena. O inglês Chris Chapman, pesqui-
Oiara Bonilla, professora de Etno- sador da área dos direitos das popu- Revisão
logia indígena no Departamento de lações indígenas da Anistia Interna- Carla Bigliardi
Antropologia do Instituto de Ciências cional, afirma que o Brasil e todos os
Humanas e Filosofia, entende que a Projeto Gráfico
sistemas políticos do mundo sempre
política indigenista brasileira é inábil Ricardo Machado
agiram de forma conflituosa com os
não só por se apoiar no modelo desen- povos originários. Editoração
volvimentista, mas também por tomar Também podem ser lidas as entre- Rafael Tarcísio Forneck
essa como uma única forma política e vistas com Noeli Rossatto, coorde-
econômica para manter um país. nador e professor do Departamento Atualização diária do sítio
O antropólogo e professor da Uni- de Filosofia da Universidade Federal Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia
versidade Federal de Mato Gros- de Santa Maria – UFSM, e com Clemir Fachin, Cristina Guerini, Fernanda Forner,
so Aloir Pacini analisa a atuação Fernandes, pesquisador do Instituto Matheus Freitas e Nahiene Machado.
do Estado Democrático de Direito de Estudos da Religião – ISER.
Noeli Rossatto analisa a obra de a Colaboração
brasileiro e assevera que o poder
obra de Joaquim de Fiori, mais pre- Jonas Jorge da Silva, do Centro de Pesqui-
de Estado sempre esteve na mão
cisamente a relação do franciscanis- sa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de
do interesse privado e sua fúria
mo com o joaquimismo, ou seja, da Curitiba-PR.
desenvolvimentista.
Egon Heck, do secretariado nacio- reformulação da relação entre a vida
nal do Conselho Indigenista Missio- e a regra franciscana. Clemir Fernan-
nário – Cimi, discute a relação entre des discorre sobre a assistência reli-
o índio e o não índio, estabelecida giosa nos presídios brasileiros.
desde o começo como expropriação, Por fim, Diego Pautasso, professor
destituindo diferentes concepções de de relações internacionais da Unisi-
mundo. Tal relação, segundo ele, é nos, reflete sobre a realidade chine- Instituto Humanitas Unisinos - IHU
hoje atualizada no genocídio. sa do fim da política do filho único Av. Unisinos, 950
O coordenador do Conselho Indige- e seus novos desafios para o desen- São Leopoldo / RS
nista Missionário – Cimi-Sul, Roberto volvimento e Bruno Lima Rocha, CEP: 93022-000
Liebgot, também aborda o caráter cientista político, analisa as recentes
Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128
histórico. Observa os processos de eleições presidenciais na Argentina.
e-mail: humanitas@unisinos.br
violação dos direitos dos índios, di- A todas e a todos uma boa leitura e
Diretor: Inácio Neutzling
zimação da cultura indígena e sua uma ótima semana!
Gerente Administrativo: Jacinto
relação com a realidade de hoje no Schneider (jacintos@unisinos.br)
sul do Brasil. Foto da Capa: Laila Menezes, Cimi

SÃO LEOPOLDO, 30 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 478


Sumário
Destaques da Semana
6 Destaques On-Line
8 Linha do Tempo
10 Teologia Pública - Noeli Rossatto: A reformulação da relação entre a vida e a regra franciscana
16 Eventos IHU - Fernanda Frizzo Bragato: Genocídio Guarani Kaiowá: uma guerra de dois mundos
18 Reportagem - As contribuições do Concílio Vaticano II para as novas gerações

Tema de Capa
22 Elena Guimarães: Máquina de exterminar indígenas
33 Lucia Helena Rangel: Inabilidade política e direitos que não se efetivam
38 Oiara Bonilla: “Nós existimos!”, gritam os povos indígenas. A luta pela terra e pela autodeterminação
44 Aloir Pacini: Quando a prioridade é só o desenvolvimentismo
54 Egon Heck: A barbárie secular e a cegueira atual
61 Roberto Liebgot: O pacto de morte contra os índios e contra o Bem-viver
69 Egydio Schwade: A ambígua e ineficiente política indigenista brasileira 3
75 Raphaela Lopes: Quando o Estado nega o índio
78 Thais Santi: Belo Monte. Atualização do processo de destruição dos povos indígenas
83 Guillermo Wilde: Bem-viver indígena, muito além do welfare state
89 Sydney Ferreira Possuelo: A recusa do outro
94 Chris Chapman: O fracasso do governo em escutar, respeitar a identidade e reconhecer a autonomia
indígena

IHU em Revista
100 Agenda de Eventos
101 Entrevista - Clemir Fernandes: A experiência com o divino que traz humanização
104 Entrevista - Bruno Lima Rocha: Mauricio Macri, um novo presidente para um velho neoliberalismo
108 #Crítica Internacional – Curso de RI da Unisinos: A China e o fim da política do filho único: os novos
desafios do desenvolvimento
110 Publicações
115 Retrovisor

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IHU
ON-LINE

Destaques da
Semana
DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Destaques On-Line
Entrevistas publicadas entre os dias 23-11-2015 e 27-11-2015 no sítio do IHU

Assustador retrocesso ambiental. Governo mineiro


aprova nova legislação que favorece Vale
Entrevista com Maria Teresa Viana de Freitas Corujo, pedagoga, educadora am-
biental e membro do Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela.
Publicada em 27-11-2015
Disponível em http://bit.ly/1IedFfW
“Quando aconteceu a tragédia de Mariana, nós pensamos que o governador re-
tiraria o caráter de urgência do PL, porque não faz o menor sentido priorizar um
PL de interesse econômico depois de uma tragédia desse porte. Neste momento
há outras ações a serem tomadas em caráter de urgência, como reavaliar as mais
de 50 barragens que estão em risco. Mas fomos surpreendidos”. A declaração é de
Maria Teresa Viana de Freitas Corujo, que acompanhou o processo de tramitação e
aprovação do PL nº 2.946/2015 na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, na tarde
Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br
6 da última quarta-feira, 25-11-2015. O PL nº 2.946/2015, de autoria do governador
Pimentel, propõe alterar o sistema estadual de meio ambiente, mas de acordo
com Maria Teresa, ele “altera em muito também diversos aspectos da política ambiental de Minas Gerais”.

“O cidadão de Governador Valadares quer resposta para uma


pergunta simples: Eu posso ou não beber a água que está
saindo da minha torneira?”
Entrevista com Ricardo Motta Pinto Coelho, graduado em Ciências Biológicas
pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, mestre em Ecologia pela Uni-
versidade de Brasília e doutor em Limnologia pela Universität Konstanz, Alemanha.
Atualmente é professor associado junto ao Departamento de Biologia Geral da
UFMG.
Publicada em 25-11-2015
Disponível em http://bit.ly/1Hsb2Hy
“O que percebemos não só em relação à mineração, mas quando olhamos para
as barragens em Minas Gerais de modo geral, é que há uma série de lacunas em
termos de gestão e de fiscalização, porque existe uma pulverização de atribuições
entre União, estados e municípios; falta governança no sentido mais absoluto da Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br
palavra”, diz Ricardo Motta Pinto Coelho, que há trinta anos acompanha a situa-
ção das barragens de rejeitos como a da Samarco, que rompeu recentemente. Coelho pontua que é necessário
“aumentar dramaticamente a sustentabilidade desses reservatórios, porque eles não podem ser encarados como
uma bacia em que se jogam rejeitos de minérios”. O biólogo teve acesso ao licenciamento ambiental da Samar-
co e afirma que é visível a “ausência de um protocolo que fosse bem claro no que diz respeito ao colapso do
sistema”.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

SUS: “Brasil nunca investiu para viabilizar plenamente


o acesso à saúde”
Entrevista com Gerson Salvador de Oliveira, graduado em Medicina pela Univer-
sidade de São Paulo – USP, especialista em Infectologia pela mesma universidade,
onde também é médico assistente da Divisão de Clínica Médica do Hospital Univer-
sitário e infectologista do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital
das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. E Pedro Carneiro, graduado em Me-
dicina pela Universidade de São Paulo e mestre em Saúde na Comunidade pela USP.
Publicada em 24-11-2015
Disponível em http://bit.ly/1XkL0gl
“O setor privado conta com quase 60% do que é gasto anualmente em saúde para
dar conta da assistência de cerca de 25% da população, enquanto o pouco mais de
40% de recursos restantes deve dar conta da assistência dos demais 3/4 em situa-
ções ordinárias, além de atender os que têm planos de saúde em tratamentos que Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br
os planos se isentam de cobrir”, dizem Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carnei-
ro à IHU On-Line, na entrevista concedida por e-mail. Segundo os médicos, o estímulo do Estado brasileiro ao
setor privado de saúde ocorre desde meados da década de 1960, via incentivos fiscais. “Parte deste incentivo
se deu com objetivo de utilizar os serviços de uma rede já instalada, mas sua intensificação tem a ver com o
financiamento de campanhas para os legislativos e executivos”, afirmam.

Tragédia de Mariana: “Desdobramentos são atacados


somente à medida que aparecem”
Entrevista com David Zee, graduado em Engenharia Civil pela Universidade Pres-
biteriana Mackenzie, mestre em Oceanografia pela Universidade da Flórida e dou-
tor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
7
Publicada em 23-11-2015
Disponível em http://bit.ly/1llaZTh
As perguntas importantes envolvendo o rompimento da barragem da Samarco,
em Mariana, e para as quais ainda não se tem respostas, são: “Por que a barragem
rompeu? Foi por uma causa natural? Foi um erro de cálculo estrutural da barragem?
Foi por causa de um tremor de terra? Ou foi pela falta de segurança do projeto
da barragem? Temos de saber o que aconteceu para evitar futuros problemas am-
bientais”, afirma David Zee, em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone.
Segundo ele, por enquanto apenas é possível perceber que “a empresa não tinha
Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br
procedimentos de contingência no caso de haver um acidente. Esse é o grande pro-
blema, porque não houve nenhum preparo para atender a situação emergencial”.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Linha do Tempo
A IHU On-Line apresenta seis notícias publicadas no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, entre os dias 23-11-2015 e 27-11-2015, relacionadas a assuntos
que tiveram repercussão ao longo da semana

Juiz acusa Samarco Amazônia tem cada #MeuAmigoSecreto,


de esconder dinheiro vez mais dificuldade nova investida
para evitar bloqueio em regular o clima, feminina contra o
diz Le Monde machismo velado
O juiz da comarca de Maria-
Às vésperas da COP21, a gran- Mais uma campanha em prol
na, Frederico Esteves Duarte
da integridade feminina foi lan-
Gonçalves, acusa a Samarco de de conferência do clima que
çada nos últimos dias nas redes
ocorrerá em Paris a partir da pró-
esconder dinheiro para evitar o sociais, aproveitando o engaja-
xima segunda-feira (30), o jornal
cumprimento de decisão judicial mento esperado na última quar-
francês Le Monde que chegou
que prevê o bloqueio de R$ 300 ta-feira, 25 de novembro – dia de
às bancas na tarde desta quarta
milhões em recursos da empresa luta mundial contra a violência
(25) faz um balanço do desma-
para pagamento de danos pelo contra as mulheres e de novos
tamento na Amazônia. Segundo
protestos no Brasil contra o pro-
8 rompimento da Barragem do
o jornal, a floresta tem cada vez jeto de lei que dificulta o aces-
Fundão, em Bento Rodrigues, no mais dificuldade em executar o so à pílula do dia seguinte em
dia 5. Já a mineradora alega que seu papel de regulador do clima postos públicos. Com a hashtag
o bloqueio é prejudicial à repa- mundial. #MeuAmigoSecreto, as mulheres
ração dos danos. querem agora denunciar o com-
A reportagem foi publicada por
portamento incoerente de pes-
A reportagem é de Leonardo Amazônia, em 26-11-2015.
soas de sua convivência – aquelas
Augusto, publicada por O Estado No título da reportagem de pá- que não se julgam machistas ou
de Minas, em 26-11-2015. gina inteira – ocupada na maior preconceituosas, mas são.
Em decisão tomada nesta parte por um grande infográfico
A reportagem é de Camila Mo-
– o vespertino francês diz que o
quinta-feira, 26-11-2015, sobre raes, publicada por El País, em
recuo da Amazônia representa 25-11-2015.
recurso impetrado para evitar
um motor do aquecimento glo-
o bloqueio, o juiz afirma que a A primeira grande iniciativa
bal. O jornal destaca o fato de
Samarco “sumiu” com o dinheiro do gênero foi a campanha #Meu-
que, nos últimos 40 anos, 763 mil
e vem “adotando estratégia ju- PrimeiroAssédio, que se tornou
km quadrados de floresta foram
viral no fim de outubro, quando
rídica indigna e deliberada de,
destruídos – o equivalente a 184
milhares de pessoas se mobiliza-
como se fosse o botequim da es- milhões de campos de futebol ram nas redes para contar suas
quina, não cumprir o mandamen- ou “duas vezes o território da histórias de abuso na infância e
to judicial”. Alemanha”. na adolescência.
Leia mais em http://bit. Leia mais em http://bit. Leia mais em http://bit.
ly/1PfwWQS ly/1OuRgKK ly/1Rayc7o

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DE CAPA IHU EM REVISTA

ONU critica Brasil, “A violência e o O caso de Dom Negri e


Vale e BHP por terrorismo se alimentam as oposições ao Papa
resposta ‘inaceitável’ a com o desespero da Francisco. Artigo de
pobreza”, diz Papa Massimo Faggioli
desastre de Mariana
Francisco no Quênia
Uma das tantas contribuições
Imagem aérea mostra a lama do “efeito Francisco” é a des-
“A experiência demonstra
jorrada pelo rio Doce invadin- que a violência, os conflitos e o compaginação dos alinhamentos
do o mar em Regência, na costa terrorismo que se alimenta do ideológicos dentro da Igreja e
medo, da desconfiança e do de- das suas divisões. O arcebispo
do Espírito Santo, três semanas
de Ferrara é um daqueles bispos
após barragens romperem em sespero nascem da pobreza e da
para os quais o catolicismo deve
frustração”. As palavras foram
Mariana – MG. ser compreendido, anunciado e
ditas pelo Papa Francisco em seu
aplicado em termos ideológicos.
A reportagem foi publicada por primeiro discurso no Quênia, na
BBC Brasil, em 25-11-2015. presença do presidente Uhuru A opinião é do historiador ita-
liano Massimo Faggioli, professor
A ONU (Organização das Na-
Kenyatta e das autoridades do
de história do cristianismo e di-
9
país, reunidas no jardim da Sta-
ções Unidas) criticou duramente te House de Nairóbi, debaixo de retor do Institute for Catholicism
o governo brasileiro, a Vale e a uma grande tenda montada para and Citizenship, na University of
a ocasião. St. Thomas, nos EUA. O artigo foi
mineradora anglo-australiana
publicado por L’HuffingtonPost,
BHP pelo que considerou uma A reportagem é de Andrea Tor- 26-11-2015. A tradução é de Moi-
resposta “inaceitável” à tragédia nielli e publicada por Vatican sés Sbardelotto.
de Mariana (MG). E em comuni- Insider, em 25-11-2015. “A luta
contra estes inimigos da paz Veja um trecho do texto.
cado divulgado na última quarta-
e da prosperidade – acrescen- Em cada país, há bispos que
feira, 25-11-2015, e que traz tou o Papa Bergoglio – deve ser representam uma clara oposição
falas do relator especial para travada por homens e mulheres ao Papa Francisco. Na Itália, o
assuntos de Direitos Humanos e que, sem medo, acreditam e dão caso de Dom Luigi Negri, arce-
Meio Ambiente, John Knox, e do testemunho dos grandes valores bispo de Ferrara-Comacchio des-
espirituais e políticos que inspi- de dezembro de 2012 (depois de
relator para Direitos Humanos e
raram o nascimento da nação”. sete anos de episcopado em San
Substâncias Tóxicas, Baskut Tun-
Francisco, que pronunciou seu Marino), já era conhecido dos
cak, a ONU criticou a demora de discurso em inglês, recordou que adeptos aos trabalhos e especial-
três semanas para a divulgação o Quênia foi “abençoado” não mente aos cidadãos e diocesanos
de informações sobre os riscos apenas com uma “imensa bele- de Ferrara (entre os quais se en-
za, em suas montanhas, em seus contra este que escreve, embora
gerados pelos bilhões de litros
rios e lagos, em suas florestas, residente nos EUA desde 2008).
de lama vazados no Rio Doce
savanas e semi-desertos, mas Leia mais em http://bit.
pelo rompimento da barragem,
também com a abundância de ly/1lpvnTv
no último dia 5. recursos naturais”.
Outras notícias sobre o tema
Leia mais em http://bit. Leia mais http://bit. em http://bit.ly/1l1OH9M e
ly/1QAc9V1 ly/1RazDTd http://bit.ly/1TfUd2V

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

TEOLOGIA PÚBLICA

A reformulação da relação entre


a vida e a regra franciscana
Noeli Rossatto analisa a obra de Joaquim de Fiori, mais
precisamente a relação do franciscanismo com o joaquimismo
Por Márcia Junges e Leslie Chaves

A s reflexões filosóficas do abade


italiano Joaquim de Fiore, que
viveu na segunda metade do sé-
culo XII, permanecem presentes até hoje.
ginário. No entanto, um pequeno retro-
cesso histórico nos mostrará o contrário.
Não só a narrativa fundadora do Brasil
está ligada aos franciscanos, como indica
Conforme aponta o filósofo Noeli Dutra a primeira missa rezada por um frei, mas
Rossatto em entrevista por e-mail à IHU uma das matrizes formadoras da cultu-
On-Line, o religioso construiu o sistema ra luso-brasileira está ancorada nesta
hermenêutico de maior influência na his- tradição. Os espirituais franciscanos e
tória medieval, dotado de um instigante as ideias joaquimitas estão presentes
núcleo profético e apocalíptico. na consolidação da nascente monarquia
Marcadas por questionar as concep- portuguesa, no imaginário dos descobri-
ções religiosas e éticas vigentes na épo- mentos e até hoje se conservam no sim-
10 ca, as ideias de Fiore reafirmam o modo bolismo das populares Festas do Divino
de vida monástico, em oposição à esco- Espírito Santo”, frisa.
lástica. Tal posicionamento foi um dos Noeli Dutra Rossatto é graduado em
fundamentos das concepções da ordem Filosofia pela Faculdade de Filosofia
franciscana, considerada por seus inte- Nossa Senhora Imaculada Conceição
grantes como a consolidação de uma das – FAFIMC e em Teologia pela Escola do
profecias do abade. “A interpretação Evangelho Diocese de Goiás. Tem espe-
joaquimita da história indicava o fim do cialização em História Geral pela Fun-
segundo estado, protagonizado pelo cle- dação Brasileira de Educação – FUBRAE,
ro e a Igreja de Cristo, na quadragésima mestrado em Filosofia pela Universidade
segunda geração a contar de Jesus ho- Federal de Santa Maria – UFSM e douto-
mem, ou seja, nas gerações que termi- rado em História da Filosofia (Medieval)
nam em 1260. Este mesmo ano marcaria pela Universidade de Barcelona – UB, na
o período de frutificação da nova ordem Espanha. Atualmente é coordenador e
monástica, que seria conduzida pelos professor do Departamento de Filosofia
homens espirituais do terceiro estado. da UFSM, atuando nos cursos de gradu-
Muitos franciscanos vão logo associar os ação e pós-graduação. Entre suas pu-
prognósticos joaquimitas a Francisco de blicações destacam-se La hermenéutica
Assis”, explica o filósofo. medieval: un estudio desde Joaquín de
Fiore (Saarbrucken: Lap Lambert Acade-
Ao longo da entrevista, Rossatto faz
mic Publishing-Eae, 2011), Joaquim de
um resgate das contribuições mais im-
Fiore: Trindade e Nova Era (Porto Alegre:
portantes de Joaquim Fiore e do cará-
EDIPUCRS, 2004) e El círculo trinitario:
ter heterodoxo e reformista de sua obra,
la construcción del conocimiento y la
que, segundo o filósofo, tem uma rele-
historia en Joaquín de Fiore (Barcelona:
vante contribuição na formação histórica
Publicacions Universitat de Barcelona,
e cultural brasileira. “À primeira vista,
2001).
Joaquim de Fiore é um autor desconhe-
cido e bastante distante de nosso ima- Confira a entrevista.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

êxito da Quarta Cruzada5. E é com


o intuito de escrever sua obra pro-
fética, mediante um novo método
de interpretar as escrituras bíbli-
Desde cedo, o já abade da cas, que Joaquim pede e recebe
a autorização sucessiva de três
então poderosa ordem papas. O mesmo Papa Lúcio III,
bastante impressionado com a ori-
monástica medieval vai ginalidade de seu método, conce-
alimentar a fama de profeta de-lhe a autorização para escre-
ver (licentia scribendi) sua obra,
a qual será renovada por outros
dois papas – Urbano III em 1186
IHU On-Line – Quem foi Joaquim depois, em um episódio mais co-
e Clemente III em 1188. Os prin-
de Fiore? nhecido, terá um encontro com
cipais textos por ele escritos são:
o monarca Ricardo Coração de
Noeli Dutra Rossatto – Joaquim O saltério de dez cordas, em que
Leão4, desejoso de saber sobre o
de Fiore (1135-1202) foi um mon- trata a teoria trinitária; A concór-
ge cisterciense1 que viveu na Calá- dia entre o Novo e o Antigo Tes-
crifas. A designação deriva dos oráculos que
bria (San Giovanni in Fiore, Itália) eram produzidos pela Sibila (ou pelas diver- tamento, que traz sua hermenêu-
da segunda metade do século XII. sas Sibilas da antiguidade), profetisas divina- tica por concórdia; A exposição
Desde cedo, o já abade2 da então mente inspiradas que previam o futuro. Nos ao Apocalipse, em que aplica sua
poderosa ordem monástica medie- tempos anteriores à cristianização, os orácu-
hermenêutica à história. No final
los produzidos pelas Sibilas eram cuidadosa-
val vai alimentar a fama de pro- mente guardados (em Roma no Templo de da Idade Média Joaquim figura na
feta. Antes de escrever sua obra, Júpiter Capitolino) e consultados apenas em Divina comédia de Dante Alighieri
será convidado pelo próprio Papa momentos de grave crise. Os oráculos eram como o “calabrese abate Giovac-
de grande importância na vida religiosa da
Lúcio III para interpretar um obs- comunidade e exerciam uma grande influên-
chino, di spirito profetico dotato”
curo texto profético, que talvez cia na opinião pública (no contexto da época). (Paraíso, XII, 140-41). Entre 1519
seja um oráculo sibilino3. Pouco Aproveitando esta popularidade e influência e 1527, sua obra será editada em
dos oráculos, grupos judeus produziram orá- Veneza, juntamente com outros
culos (provavelmente por alteração de ou-
textos proféticos. A historiografia
1 Ordem de Cister: também conhecida
como ordem cisterciense, é uma ordem mo-
tros que circulariam) contendo doutrinas e
ensinamentos judaicos. Nasceram assim as mais recente vai discutir a ortodo-
11
nástica católica reformada. A sua origem re- Sibilinas Judaicas, que rapidamente se tor-
monta à fundação da Abadia de Cister (em naram num poderoso veículo de propaganda
latim, Cistercium; em francês, Cîteaux), na religiosa. Com a expansão do cristianismo, mo tempo na Inglaterra, preferindo usar seu
comuna de Saint-Nicolas-lès-Cîteaux, Bor- as Sibilinas Judaicas foram adoptadas pelos reino como uma fonte de renda para apoiar
gonha, em 1098, por Roberto de Champagne, cristãos e novas foram criadas, transforman- seus exércitos. Era visto por seus súditos
abade de Molesme. A ordem terá um papel do-se num importante veículo de propaganda como um herói piedoso. Ricardo permanece
importante na história religiosa do século da nova fé. Nasceram assim os Oráculos Si- até hoje como um dos poucos reis ingleses
XII, vindo a impor-se em todo o Ocidente por bilinos. Todas elas foram escritas no mesmo mais lembrados por seu epíteto do que por
sua organização e autoridade. Uma de suas estilo, aparentemente entre os séculos I e IV seu número régio, sendo uma grande figura
obras mais importantes foi a colonização da da era cristã (embora algumas sejam prova- icônica na Inglaterra e França. (Nota da IHU
região a leste do Rio Elba, quer corta as atuais velmente anteriores a 180 a.C.), constando On-Line)
República Checa e a Alemanha, onde promo- de longas sequências de versos hexâmetros 5 Cruzadas (séculos XI a XIII): foram
veu simultaneamente o cristianismo, a civi- originalmente escritos em grego homérico. movimentos militares de inspiração cristã
lização ocidental e a valorização das terras. (Nota da IHU On-Line) que partiram da Europa Ocidental em direção
(Nota da IHU On-Line) 4 Ricardo I – Ricardo Coração de Leão à Terra Santa (nome pelo qual os cristãos de-
2 Abade: título ou cargo do superior dos (1157-1199): foi o Rei da Inglaterra de 6 de ju- nominavam a Palestina) e à cidade de Jerusa-
monges de uma abadia autônoma ou dos lho de 1189 até sua morte. Também foi Duque lém com o intuito de conquistá-las, ocupá-las
membros de certas ordens ou congregações da Normandia, Aquitânia e Gasconha, Senhor e mantê-las sob o domínio cristão. Estes mo-
religiosas monásticas. A palavra abade signi- do Chipre, Conde de Anjou, Maine e Nantes e vimentos estenderam-se entre os séculos XI
fica pai e tem sido utilizada como título cleri- Suserano da Bretanha em vários momentos e XIII, época em que a Palestina estava sob
cal, no Cristianismo, com diversas acepções durante o mesmo período. Ele era o terceiro controle dos turcos muçulmanos. No médio
(pároco, cura de almas, prelado de mosteiro filho do rei Henrique II de Inglaterra e da oriente, as cruzadas foram chamadas de “in-
ou congregação religiosa, monge, etc), ainda rainha Leonor da Aquitânia, também sendo vasões francas”, já que os povos locais viam
que se refira, na sua acepção original, à vida conhecido como Ricardo Coração de Leão estes movimentos armados como invasões
monástica e a quem governa uma abadia. Na mesmo antes de sua ascensão devido sua re- e porque a maioria dos cruzados vinha dos
Igreja Ortodoxa e em outras Igrejas orientais, putação de grande guerreiro e líder militar. territórios do antigo Império Carolíngio e se
o título que lhe é comparável é o de hegú- Aos 16 anos, Ricardo comandou seu próprio autodenominavam francos. A Quarta Cruza-
menos ou arquimandrita. Em língua portu- exército, acabando com rebeliões contra seu da (1202-1204) foi começada com a intenção
guesa o feminino é abadessa. (Nota da IHU pai em Poitou. Ele foi o principal comandante de tomar a Terra Santa, então em mãos mu-
On-Line) cristão durante a Terceira Cruzada, liderando çulmanas, através da conquista do Egito. En-
3 Oráculos Sibilinos ou Sibilinas Cris- a campanha depois da saída de Filipe II de tretanto, a cruzada foi desviada de seu intuito
tãs: é o nome dado a um conjunto de orácu- França, conseguindo consideráveis vitórias original e os cruzados, junto aos venezianos,
los, de origem pouco definida mas com um contra Saladino, o líder muçulmano, mesmo tomaram e saquearam Constantinopla, cida-
caráter claramente judaico-cristão, que tive- não tendo conseguido conquistar Jerusalém. de cristã capital do Império Bizantino. Esse
ram larga difusão desde o período anterior à Ricardo falava a língua de oïl, um dialeto evento levou à fundação do Império Latino e
cristianização do Império Romano até finais francês, e occitana, uma língua falada no sul à consolidação do Grande Cisma do Oriente
da Idade Média. Os Oráculos Sibilinos são da França e nas regiões próximas. Ele viveu entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa.
por vezes incluídos entre as Escrituras Apó- no Ducado da Aquitânia e passou pouquíssi- (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

xia ou heterodoxia de seus escri- da escolástica8, que tivera entre franciscanos, e o modo de vida
tos, bem como a sua posteridade seus mestres Pedro Lombardo. E é escolástico, incorporado pelo cle-
espiritual. justamente a doutrina trinitária, ro secular e por algumas das novas
contida no Livro das sentenças de ordens religiosas, como é o caso da
IHU On-Line – Em qual contex- Lombardo, depois transformado dominicana.
to se dá a fundação do movimen- numa espécie de catecismo da es-
to heterodoxo cujos seguidores colástica, o motivo da condenação IHU On-Line – Por que autores
eram chamados joaquimitas? de sua doutrina trinitária por tri- como Norman Cohn apontam Joa-
teísmo. O abade havia acusado o quim de Fiore como o inventor do
Noeli Dutra Rossatto – Apesar de magister de ter incidido na here- sistema profético de maior influ-
Joaquim de Fiore, ainda em vida, sia quaternarista. O que estava em ência na Europa até a aparição do
romper com a ordem cisterciense, jogo aqui não é só a condenação marxismo?
fundando a ordem florense6, por de uma doutrina trinitária, mas a
entender que aquela se havia des- própria rejeição do antigo modo Noeli Dutra Rossatto – Norman
viado da verdadeira vida monásti- de vida monástico, que aos poucos Cohn escreveu seu famoso livro Na
ca, não será daí que provém a mar- dará lugar ao novo modus vivendi senda do milênio. Revolucionários
ca da heterodoxia. Dois episódios da escolástica. milenaristas e anarquistas místicos
parecem ter determinado a asso- da Idade Média (Lisboa: Editorial
O segundo episódio já envolve Presença, 1981) em 1957, período
ciação de sua doutrina com os mo-
os franciscanos. Estamos próximos da Guerra Fria em que se procura
vimentos heterodoxos. O primeiro
ao ano 1260, que é um ano para- explicar o fenômeno do totalita-
é a condenação da teoria trinitá-
digmático para os joaquimitas, rismo europeu. O marxismo será
ria no IV Concílio Lateranense de especialmente para os espirituais
12157, logo depois de sua morte. O apontado como uma das filosofias
franciscanos. Trata-se da conde-
papa já não era mais um monge, da história que está na base do to-
nação de um livro, a Introdução ao
nem um cisterciense como Lúcio talitarismo, sobretudo o soviético.
Evangelho eterno, e de seu autor,
III, mas um jovem conde italiano Uma das teses de Cohn é que os
o jovem estudante da Universidade
(Lotário de Segni), que adotou o movimentos milenaristas e proféti-
de Paris Geraldo de Borgo, por uma
nome de Inocêncio III. Além disso, cos medievais, bem como os poste-
Comissão eclesiástica reunida por
o novo papa era um representante riores, se derivam do pensamento
dois anos em Anagni (de 1255-56).
12 6 Ordem dos Florenses ou Florianos: do
Após analisar o texto de Geraldo e
joaquimita e, por sua vez, desá-
guam no marxismo. Não obstan-
latim Floriacenses, é a designação dada a um a totalidade da obra de Joaquim, a
te, hoje se sabe que Joaquim não
ramo beneditino, tornado independente da comissão pedirá a condenação de
é propriamente um milenarista.
Ordem de Cister, que seguia uma versão mais ambos por heresia. A condenação
mística e mais contemplativa da vida monás- Tampouco seu sistema profético
recai sobre o jovem franciscano
tica. A Ordem dos Florenses (Ordo Floriacen- afiança uma leitura mecanicista,
sis) foi fundada em 1189 pelo abade Joaquim que terá seu texto queimado e fi-
como aquela realizada com base
de Fiore, ou Joaquim de Flora, na abadia de cará pelo resto da vida nas prisões
San Giovanni in Fiore. Os florenses derivam nas modernas teorias da história.
eclesiásticas. O legado joaquimita
o nome do apelido do seu instituidor, que De qualquer modo, Joaquim de
por sua vez era simplesmente conhecido por está outra vez maculado pela mar-
Fiore é de fato o autor que criou
Gioacchino da Fiore, sendo Fiore o nome da ca da heterodoxia. Neste momen-
o sistema hermenêutico de maior
localidade calabresa onde se localiza a abadia to, ainda está em franca disputa o
onde se recolheu. As constituições da Ordem, influência no medievo, e que tal
modo de vida monástico, reassu-
redigidas pelo instituidor e aprovadas em sistema tem um contagiante nú-
1196 pelo papa Celestino III, preservavam os mido especialmente pelos frades
cleo profético e apocalíptico. É ele
principais valores beneditinos na sua versão
cisterciense, mas, para além de um breviá- 8 Escolástica: linha dentro da filosofia me- que consegue em grande medida
rio dispondo uma distribuição diferente dos dieval, de acentos notadamente cristãos, sur- reconstruir as antigas estratégias
ofícios divinos, as regras de vida eram mais gida da necessidade de responder às exigên- de leitura da história (lectio his-
rigorosas do que as observadas em Cîteaux: cias da fé, ensinada pela Igreja, considerada
os florenses andavam descalços usando um então como a guardiã dos valores espirituais toriae) da tradição já em desuso.
hábito branco de tecido em extremo grossei- e morais de toda a Cristandade, por assim Também, em suas mãos, a exegese
ro. Dada a fama do seu fundador e o impacto dizer, responsável pela unidade de toda a alexandrina, que pecava por um
do joaquimismo, a Ordem expandiu-se rapi- Europa, que comungava da mesma fé. Esta
damente, atingindo os 35 conventos (aparen- linha vai do começo do século IX até ao fim
excesso de alegorismo, e a exegese
temente todos em Itália) e 4 mosteiros desti- do século XVI, ou seja, até ao fim da Idade histórico-literal da Escola de Antio-
nados a mulheres, seguindo a mesma regra. Média. Este pensamento cristão deve o seu quia – e inclusive a da Escola mo-
(Nota da IHU On-Line) nome às artes ensinadas na altura pelos es- nástica –, que não avançava a in-
7 IV Concilio de Latrão – ou Lateranen- colásticos nas escolas medievais. Estas artes
se: foi um dos maiores concílios ecumênicos podiam ser divididas em Trivium (gramática, terpretação da história para além
medievais. O IV Concílio de Latrão foi convo- retórica e dialéctica) e Quadrivium (aritméti- do tipo-Cristo, vão ser renovadas,
cado pelo papa Inocêncio III através da Bula ca, geometria, astronomia e música). A esco- permitindo uma nova leitura da
Vineam Domini Sabaoth de 10 de abril de lástica resulta essencialmente do aprofundar
1213, tendo o concílio se reunido em 15 de no- da dialética. Confira a edição 342 da revista
história da humanidade.
vembro de 1215. No encontro, ficou decidido IHU On-Line, de 06-09-2010, intitulada
Além disso, Joaquim propõe o
que os cristãos deveriam confessar seus peca- Escolastica. Uma filosofia em dialogo com
dos e comungar pelo menos uma vez por ano, a modernidade, disponível em http://bit. novo método que possibilita a com-
na época da Páscoa. (Nota da IHU On-Line) ly/11mcjbi. (Nota da IHU On-Line) preensão espiritual por concórdia;

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DE CAPA IHU EM REVISTA

e que promete decifrar o âmago o joaquimismo, como os do profes- por três períodos de 21 gerações,
da própria história, tal como Deus sor da Universidade Protestante de a saber: germinação, frutificação
a escreveu. Deste modo, a herme- Genebra Henry Mottu, os da pro- e consumação. O conjunto de duas
nêutica joaquimita não só substitui fessora de Oxford Marjorie Reeves gerações de trinta anos resulta no
a leitura agostiniana da história, já e os do próprio Norman Cohn, por número 1260.
em crise por volta do primeiro mi- diferentes vias, se enquadram nes-
O primeiro estado já havia se
lênio cristão, senão que é uma for- ta mesma corrente. Ao lado disso,
realizado em sua totalidade nos
te alternativa frente às correntes outros estudos que fazem referên-
tempos de Joaquim; o segundo
teóricas que se voltavam naqueles
estava em seu período de consu-
dias para o estudo da natureza
mação; e o terceiro começaria a
(ratio physica da Escola de Char-
produzir frutos 42 gerações de-
tres), e à própria escolástica que
pois da encarnação de Jesus, ou
fragmenta a narrativa histórica em
função das quaestiones disputa- Joaquim de Fio- seja, por volta do ano 1260. A fi-
gura da Trindade, que é a mesma
tae. Depois do milênio, a propos-
ta joaquimita se apresenta como re é de fato o da história, está composta por
três círculos entrelaçados. As-
a mais convincente alternativa de
leitura da história.
autor que criou sim, entrelaçando dois conjuntos

Desta perspectiva, o déficit de


o sistema her- dos nove subconjuntos de 21 ge-
rações, teremos a totalidade da
racionalidade histórica suprido menêutico de história da humanidade, subdivi-
pelo joaquimismo na Idade Média dida por sete idades do mundo,
poderá ser equiparado com aque- maior influên- conforme propunha Agostinho em
le mais tarde trazido por Hegel e
Marx. Outra explicação decorre do
cia no medievo seu De civitate Dei.

modo de produzir conhecimento fi- IHU On-Line – Em que aspectos


losófico no decorrer do século XX, cia ao joaquimismo foram produ- Joaquim de Fiore vai ao encontro
sobretudo no campo da História zidos por autores declaradamente da observância mais estrita da re-
da Filosofia Medieval. Em conse- marxistas, como é o caso de Henri gra franciscana?
quência do forte domínio da neo- Lefebvre, em Hegel, Marx e Nietzs-
escolástica e de setores católicos che ou o reino das sombras (Lisboa:
Noeli Dutra Rossatto – É preciso 13
conservadores nos estudos me- ter presente que a consolidação do
Editora Ulisseia, 1976), de 1975.
dievais, Joaquim de Fiore é posto franciscanismo dos primeiros tem-
de lado. As poucas vezes em que pos se dá com base no pensamento
figura nos estudos medievais será IHU On-Line – Como podemos joaquimita. Francisco de Assis não
como exemplo de pensamento he- compreender sua concepção de escreveu nenhum tratado filosó-
terodoxo. O mesmo acontece com história da humanidade e suas fico. Não só os franciscanos mais
a historiografia joaquimita do sé- três fases? radicais, como é o caso de espi-
culo XX. A ligação com a hetero- Noeli Dutra Rossatto – De acor- rituais como Hugo de Digne, João
doxia, a rebeldia, o anarquismo, o do com a imagem da Trindade, de Parma, Ângelo Clareno, Uberti-
protestantismo e o marxismo será Joaquim entende que a história no de Casale e Pedro João Olive,
quase natural. Joaquim se torna da humanidade está dividida em mas também os mais moderados,
naturalmente um reformista, um três estados (status). O primeiro como Boaventura de Bagnoregio,
marxista, um revolucionário avant pertence ao Pai, o segundo ao Fi- interpretam a vida de Francisco e
la lettre. Muitos são os exemplos lho e o terceiro ao Espírito Santo. a fundação da ordem como a rea-
disso. Ernesto Buonaiuti, autor de Conforme as propriedades atribu- lização de uma profecia joaquimi-
Gioacchino da Fiore. I tempi, la ídas a cada uma das pessoas da ta. A interpretação joaquimita da
vita, il messagio, é um sacerdote Trindade, o primeiro estado é um história indicava o fim do segundo
católico que foi excomungado por período de obediência servil, o se- estado, protagonizado pelo clero
Pio X em 1925 ao abjurar o fascis- gundo de obediência filial e o ter- e a Igreja de Cristo, na quadragé-
mo. O jesuíta francês Henri de Lu- ceiro de plena liberdade espiritu- sima segunda geração a contar de
bac, eleito cardeal em idade avan- al. A letra do primeiro estado é o Jesus homem, ou seja, nas gera-
çada – e que publicou, entre 1979 Antigo Testamento; a do segundo, ções que terminam em 1260. Este
e 1981, os dois famosos estudos o Novo Testamento; e a do tercei- mesmo ano marcaria o período de
intitulados A posteridade espiritu- ro o Evangelho eterno, que é um frutificação da nova ordem monás-
al de Joaquim de Fiore (Tomo I: De testamento sem letra. O primeiro tica (ordo monachorum), que seria
Joaquim de Fiore a Schelling; Tomo estado foi dos casados (ordo coniu- conduzida pelos homens espirituais
II: De Saint-Simon aos nossos dias) gatorum), o segundo é dos clérigos (viri spiritualis) do terceiro esta-
–, havia sido censurado por Pio (ordo clericorum) e o terceiro será do. Muitos franciscanos vão logo
XII pela publicação de Surnaturel dos monges (ordo monachorum). associar os prognósticos joaquimi-
(1946). Importantes estudos sobre Cada um dos estados está dividido tas a Francisco de Assis. Um dos

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que temos registro é Geraldo de Noeli Dutra Rossatto – Três as- nome do indivíduo que ingressava
Borgo. Ele talvez seja o primeiro a pectos parecem estreitar a relação no mosteiro. O abandono do mun-
vincular a profecia joaquimita dos entre joaquimismo e franciscanis- do, resistindo às suas tentações,
três grandes homens a Francisco de mo nos estudos de Agamben. O pri- implicava o abandono da própria
Assis. meiro é que, em Altíssima pobreza identidade pessoal.
(São Paulo: Boitempo, 2014), ele
Segundo Joaquim, no início do
resgata o modelo de vida monásti- IHU On-Line – A partir dessas
período de frutificação do terceiro
ca, sobretudo o franciscano, como formas de vida, em que medida
estado apareceriam três grandes
contraponto à sociedade atual. se delineia uma perspectiva ética
homens (tres magnus viri), assim
Resgata, com efeito, a possibili- em Agamben?
como haviam surgido Abraão, Isa-
dade de uma forma-de-vida não
ac e Jacó no início do primeiro, e Noeli Dutra Rossatto – A separa-
subjugada à regra, à lei ou ao offi-
Zacarias, João Batista e Jesus no ção entre forma e vida ou ofício e
cium. O segundo aspecto reside no
segundo. Os três grandes homens vida nas esferas política, jurídica
conceito de uso pobre (usus pau-
do terceiro estado haviam sido in- e burocrática, por exemplo, traz
per) dos franciscanos; ele encontra
dicados de forma cifrada por Joa- graves consequências éticas. Entre
aí uma das alternativas para o uso
quim com base na leitura dos tex- outras coisas, institucionaliza-se
adequado dos corpos e do mundo
tos apocalípticos: viria um homem a corrupção, a injustiça, o mal e
no sentido de uma biopolítica posi-
vestido de linho, um anjo com a a indiferença. Se não importa a
tiva. O terceiro aspecto, que adqui-
foice afiada e outro com o selo de moralidade do agente, daí resulta,
re uma abrangência maior, baliza a
Deus vivo. Geraldo não só decifra por exemplo, que a lei feita por
separação entre dois paradigmas:
este enigma, senão que o aplica à indivíduos corruptos sempre será
o vigente na sociedade atual, que
história de seu tempo: o primeiro legítima. O julgamento realizado
separa regra e vida, com origem na
homem era Joaquim de Fiore; o por magistrados indignos sempre
prática sacerdotal; e o advindo da
segundo, São Domingos, fundador será imparcial. O encaminhamen-
tradição monástica, que não sepa-
da ordem dominicana; e o tercei- to dado por burocratas impiedosos
raria estas duas instâncias.
ro, Francisco de Assis, fundador de será isento de culpabilidade. Dife-
sua ordem. A forma-de-vida monástica ser- rente disso é resgatar o paradigma
viria para articular de maneira em que um monge indigno não po-
Logo em seguida, Boaventura
adequada os polos: forma e vita, derá mais ser considerado monge.
14 reafirma os dois últimos membros
regula e vita, officium e vita. Na A ética pública e a ética privada
da profecia joaquimita. E mais,
tradição medieval, os que separam estariam intrinsecamente implica-
trará alguns indícios que provam
regra e vida são os representantes das. De outro modo, reafirmar-se-
o cumprimento da profecia em
do paradigma do ofício sacerdotal, -ia a cisão entre a ação e o agente,
Francisco. Ele assinava e selava
o qual se ampara em Agostinho, de acordo com a tese contemporâ-
suas cartas com a letra tau (τ), até
Inocêncio III e Tomás de Aquino. nea da neutralidade moral.
hoje ostentada no hábito francis-
Para eles, vale a tese de que o ofí-
cano, que é a marca do Deus vivo,
cio exercido por um sacerdote será IHU On-Line – À luz da forma-
segundo o profeta Ezequiel. Outro
sempre válido, seja ele uma pes- de-vida dos franciscanos, em que
indício é que ele recebera em sua
soa boa ou má. Assim, garante-se a sentido se pode compreender a
própria carne os estigmas de Cris-
supremacia do ato operado frente tentativa franciscana de viver
to crucificado. Assim, a cruciforme
ao ato operativo, ou seja: mesmo para além do direito, com a recu-
letra tau, os estigmas e a cruz são
que o operador seja imundo, o ato sa à propriedade que resultou no
três significantes que indicam um
operado (ofício) será sempre lim- decreto pontifício de João XXII?
só significado: o sinal do Deus vi-
po. Esta prática persistirá nas ins-
vente. Deste modo, a relação do Noeli Dutra Rossatto – Para os
tituições atuais.
franciscanismo com o joaquimismo franciscanos do século XIII, espe-
contribui não só para a explicação cialmente os franciscanos, como
da própria figura de Francisco e do IHU On-Line – Em que sentido a
quer com razão Agamben, a recu-
lugar histórico da ordem por ele fuga e a resistência são elemen-
sa à propriedade está vinculada
fundada, senão que também na re- tos importantes nessa construção
estritamente a uma possibilidade
formulação da relação entre a vida de uma nova forma-de-vida por
de viver para além do direito, no
e a regra franciscana. tais ordens?
sentido de que a vida não pode ser
Noeli Dutra Rossatto – A fuga subjugada à lei. Mesmo assim, a
IHU On-Line – Em que medida os do mundo e a resistência estão no vida não produz a regra, gerando
franciscanos e joaquimitas propu- centro das motivações da prática um vazio jurídico. É por isso que,
nham uma nova forma-de-vida, monástica. Marcam a ruptura com desde suas origens, o franciscanis-
na perspectiva das pesquisas o mundo, seus valores e práticas mo terá problemas com relação à
desenvolvidas por Giorgio Agam- vigentes. Era comum nas ordens formulação de uma regra. E os pro-
ben em Altíssima Pobreza, por monásticas – e muitas delas ainda blemas não serão apenas concer-
exemplo? conservam – a mudança do próprio nentes às exigências eclesiásticas,

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DE CAPA IHU EM REVISTA

senão que com relação aos próprios mais interesse em ocupar cargos IHU On-Line – Gostaria de
termos das regras da tradição mo- públicos. Também na medida em acrescentar algum aspecto não
nástica. Francisco será o primeiro que o uso implica na abdicação do questionado?
a hesitar a respeito de propor uma direito de propriedade, escapa-
regra. A novidade que ele introduz, -se assim ao imperialismo jurídico Noeli Dutra Rossatto – Sim. Gos-
como destaca Agamben, é o prin- atual, que virou uma escolástica taria de dizer algo relacionado à
cípio de que a regra franciscana da justificação. Porém, o aspecto nossa cultura. À primeira vista,
é a própria vida de Cristo. Porém, principal diz respeito a que o viver Joaquim de Fiore é um autor des-
isso não basta para acalmar os ner- sem propriedades assinalaria uma conhecido e bastante distante de
vos da instituição eclesiástica. A nova forma de vida política. nosso imaginário. No entanto, um
origem dos conhecidos problemas
com a regra franciscana, aprovada pequeno retrocesso histórico nos
(bulata) e a não aprovada (non bu- mostrará o contrário. Não só a
lata) por bula papal, reside aí. Não narrativa fundadora do Brasil está
obstante, a novidade não é só essa. ligada aos franciscanos, como in-
Há outra que reside na releitura da É preciso ter dica a primeira missa rezada por
fórmula vita vel regula (vida ou
regra). A novidade está na introdu-
presente que a um frei, mas uma das matrizes for-
madoras da cultura luso-brasileira
ção do et (e) em lugar do vel (ou), consolidação está ancorada nesta tradição. Os
indicando a tensão recíproca ou a
unidade disjuntiva dos sintagmas do francisca- espirituais franciscanos e as ideias
joaquimitas estão presentes na
vita e regula. Significa dizer em
suma: a vida dos franciscanos não
nismo dos pri- consolidação da nascente monar-
difere da regra e a regra não difere meiros tempos quia portuguesa, no imaginário dos
da vida. É isso que, em suma, abri-
rá as portas para a possibilidade de se dá com base descobrimentos e até hoje se con-
servam no simbolismo das popula-
viver fora das amarras jurídicas. E
tal prática estaria centrada na vi-
no pensamen- res Festas do Divino Espírito Santo.
vência da virtude básica do francis- to joaquimita Além disso, o jesuíta Antônio Viei-
ra9, que viveu no século XVII entre
canismo: a pobreza. O franciscano
não só abdica a todo direito de Brasil e Portugal, dará continuida- 15
IHU On-Line – No contexto do
propriedade, senão que ao próprio de a essas ideias. E no decorrer do
monacato cristão, quais são os
uso. Faria um uso pobre dos bens século passado, teremos a retoma-
pertencentes, por direito, à Igreja. limites da pesquisa de Agamben?
da desta mesma tradição em auto-
O uso pobre foi aceito tanto pelos Noeli Dutra Rossatto – Da pers- res como Fernando Pessoa, Agos-
franciscanos mais radicais, como pectiva de Joaquim de Fiore, tinho da Silva e Natália Correia.
Hugo de Digne ou Pedro João Oli- permanece uma questão central.
ve, quanto pelos mais moderados, Esta última, unindo joaquimismo
Mesmo admitindo que os francisca-
como Boaventura. Também terá a e feminismo, propõe, entre outras
nos, e o próprio Francisco, consi-
aprovação do Papa Nicolau III. No gam guardar certa coerência com coisas, a instigante utopia da idade
entanto, seu sucessor, João XXII, a proposta joaquimita ao viverem feminina do espírito.■
revogará tal dispositivo jurídico. conforme a vida de Cristo, cabe
Para ele, é impossível separar a 9 Antônio Vieira (1608-1697): padre jesuí-
perguntar a respeito do que seria ta, diplomata e escritor português. Desenvol-
propriedade de seu uso. Com isso, viver em sintonia com a vida do veu expressiva atividade missionária entre
cai por terra a possibilidade de vi- espírito. Para Joaquim, a vida de os indígenas do Brasil procurando combater
ver a virtude mais alta do francis- Cristo e o seu evangelho seriam su-
a sua escravidão pelos senhores de engenho.
canismo: a pobreza. Em 1641 voltou a Portugal onde exerceu fun-
perados com o advento do tercei- ções políticas como conselheiro da Corte e
ro estado espiritual. Além disso, a embaixador de D. João IV principalmente no
IHU On-Line – Em que medida o que se referia as invasões holandesas do Bra-
respeito do uso pobre, mesmo que sil. Retornou ao Brasil em 1652, tendo estado
uso, e não a propriedade das coi- ele fosse vivido rigorosamente pe- no Maranhão, onde fez acusações aos senho-
sas, inspira outra concepção polí- los franciscanos ao longo da histó- res de engenho escravocratas na defesa da li-
tica em nosso tempo? ria, um espiritual franciscano sem- berdade dos índios. Foi expulso do país, jun-
tamente com outros jesuítas. Voltou ao Brasil
Noeli Dutra Rossatto – Na medi- pre teria a questão a respeito de em 1681. Entre suas obras estão: Sermões,
da em que implica no abandono da como a vivência da pobreza gerou composto por 16 volumes que foram escritos
entre 1699 e 1748; História do Futuro (1718);
posse das coisas (e das pessoas), tanta posse, tanta riqueza, tanta
Cartas (1735-1746), em três volumes; Defesa
contrariando a mentalidade e a propriedade. Para um franciscano perante o tribunal do Santo Ofício (1957),
prática vigente em nossa socieda- conventual talvez fosse suficiente composto por dois volumes. Confira a edição
responder que os franciscanos nun- 244 da IHU On-Line, de 19-11-2007, Antô-
de. Se o que importa não é mais
nio Vieira. Imperador da língua portuguesa,
a apropriação, é possível que mui- ca possuíram bens, apenas fizeram disponível em http://bit.ly/ihuon244. (Nota
tos de nossos políticos não tenham um uso pobre dos mesmos. da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

EVENTOS

Genocídio Guarani Kaiowá:


uma guerra de dois mundos
Fernanda Bragato apresenta dados sobre a violação de Direitos Humanos
de indígenas. Para ela, se já não estamos vivendo o genocídio, estamos na
iminência de um

16

FOTO: JOÃO VÍTOR SANTOS

Por João Vitor Santos

No final de sua fala, numa tar- que a cosmovisão dos índios segue se entre eles estivesse um índio, a
de que acabou em muita chuva e outra lógica, diferente da raciona- relação poderia ser de reverência a
vento, a professora e pesquisado- lidade ocidental. Isso faz com que essa manifestação da natureza que
ra do Programa de Pós-graduação brancos não consigam entender, abrandou a mormacenta tarde de
em Direito da Unisinos Fernanda por exemplo, suas relações com a primavera.
Frizzo Bragato resumiu o que está natureza. Na saída da conferên- Fernanda destaca que os índios
por trás das disputas entre índios e cia, realizada na quinta-feira, 19- têm esse laço místico com a terra
brancos: “a grande batalha com os 11, muitos reclamavam da chuva e com a natureza e que por isso é
indígenas é uma visão de mundo”. forte, dos transtornos, sentiam-se tão importante que permaneçam
É assim que a professora explica presos diante do temporal. Talvez, no local onde seus ancestrais habi-

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DE CAPA IHU EM REVISTA

taram. “Mantê-los vivendo confina- não conhecia homem branco. De- 1988, houve um reconhecimen-
dos em áreas restritas de reservas pois disso, passaram a ser aborda- to de direitos e empoderamento
é colocá-los em situação de vulne- dos e tirados dali à força. Confina- de povos indígenas que passaram
rabilidade, não conseguem viver da dos em reservas, acabavam fugindo a reivindicar suas terras origi-
forma tradicional, são incapazes e voltando para sua área. E assim nais”, explica. Entretanto, se por
de produzir os alimentos”, diz. Foi se repetia, iniciando esse processo um lado a Constituição devolve as
essa realidade que a pesquisadora de disputa”, conta. terras a povos originários, por ou-
encontrou em sua primeira incur- O processo de disputa se dá, em tro, dispositivos jurídicos, como o
são a Mato Grosso do Sul, região grande parte, pelo silenciamen- Marco Temporal, e a inabilidade do
de conflagrada disputa entre fa- to do governo brasileiro diante da Governo Federal em tratar a ques-
zendeiros e índios Guarani Kaiowá. causa indígena. A pesquisadora re- tão entravam e arrastam a solução
Nessa conferência do IHU ideias, corda o contexto histórico, em que para o problema. “Enquanto isso,
Fernanda apresentou os primeiros o Brasil queria colonizar áreas de os povos são sitiados em meio às
dados de sua pesquisa. O estudo mata em nome de um projeto de fazendas, ameaçados pelos pro-
quer compreender a relação entre desenvolvimento. Sem entender a prietários, sofrendo violações físi-
a privação dos direitos territoriais cosmovisão indígena, o poder pú-
cas e culturais”, destaca Fernanda.
indígenas e o risco de atrocidades blico tirava os povos da terra e os
contra os afetados. “Conheci um entregava à produção agrícola. “Só Confira reportagem completa em
ancião que relatou que até 1940 que depois, com a Constituição de http://bit.ly/1NgnzOJ

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

REPORTAGEM

As contribuições do Concílio
Vaticano II para as novas gerações
Essa é a questão de fundo da obra de Christoph Theobald que
será lançada pela primeira vez em português no Brasil
Por Leslie Chaves

Resultado de um acurado tra-


balho de pesquisa, análise e sis-
tematização dos documentos
conciliares, o livro A recepção
do Concílio Vaticano II: Volume
I. Acesso à fonte (São Leopol-
do: Unisinos, 2015), de Christoph
Theobald, oferece uma relevante
contribuição ao âmbito dos estu-
dos sobre o Vaticano II, que em
dezembro de 2015 completa 50
anos de sua realização. Essa expe-
riência é resgatada pelo teólogo a
18 partir do exame cuidadoso de dois
momentos distintos: a realização
e os documentos resultantes do
Concílio e, em paralelo, sua re-
cepção. A obra, publicada pela
primeira vez em português, pela
editora Unisinos, tem lançamento
marcado para o dia 9 de dezem-
bro, às 17h, na Sala Ignacio Ella-
curía e Companheiros – Instituto
Humanitas Unisinos, campus São
Leopoldo.
Para especialistas da área, como
o canadense e doutor em Teologia
Gilles Routhier, entre os avanços
trazidos pelas as discussões pro-
postas por Theobald estão a abor-
dagem histórica diferenciada,
que evidencia as particularidades
do Vaticano II, e a reorientação
das investigações sobre o tema.
“Não me parece exagero dizer A recepção do Concílio Vaticano II: Volume I. Acesso à fonte (São Leopoldo: Unisinos, 2015)
que se trata, atualmente, da con-
tribuição mais importante nesse a história do Concílio ou o texto salta Routhier em resenha1 sobre
campo por parte de um teólogo a obra.
conciliar a ser comentado, mas
sistemático. Sua importância nos
estudos sobre o Vaticano II resulta para a questão que interessará 1 Sobre o Concílio Vaticano II. Resenha de
do fato de que Theobald desloca Gilles Routhier publicada na Revista IHU
uma nova geração: O que pode- On-Line, nº 465, de 18-05-2015, disponí-
a questão, voltando agora nossa vel em http://bit.ly/21cpo5b (Nota da IHU
atenção não mais somente para mos esperar de Vaticano II?”, res- On-Line)

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Christoph Theobald nasceu na Loyola, e O cristianismo como esti-


cidade de Colônia, na Alemanha, lo: uma maneira de fazer teologia
em 1946, momento em que o país na pós-modernidade (2007). Sobre
vivia as consequências da Segunda o Vaticano II, sua grande obra é o
Guerra Mundial. Em 1970, The- livro que será lançado no dia 9 de
obald mudou-se para a França, dezembro no campus São Leopol-
onde cursou Teologia no Instituto do, publicado originalmente em
Católico de Paris. Nesse período francês com o título La Réception
conheceu os jesuítas e em 1978 se du Concile Vatican II: Accéder à la
tornou membro da Companhia de source I (Paris: Cerf, 2009), e seu
Jesus. Atualmente Christoph Theo- trabalho mais recente é Le Concile
bald é professor do Centre Sèvres Vatican II. Quel avenir?(Paris: Cerf,
– Facultés Jésuites de Paris, diretor 2015).
da revista Recherches de Science
Religieuse, e colaborador em di- Mais informações sobre o lança-
versas redes de reflexão teológica. mento do livro A recepção do Con-
Dentre seus livros publicados em cílio Vaticano II: Volume I. Acesso
português destacam-se A revela- à fonte (São Leopoldo: Unisinos,
ção (2002), Transmitir um Evan- 2015), de Christoph Theobald, es-
gelho de Liberdade (2007), ambos tão disponíveis no link http://bit.
FOTO: Ricardo Machado publicados no Brasil por Edições ly/1lEuEOs ■

LEIA MAIS...
—— Os ares do Concílio Vaticano II em movimento. Entrevista especial com Christoph Theo-
bald publicada na Revista IHU On-Line, nº 466, de 01-06-2015, disponível em http://bit.
ly/1MMSI8M 19
—— As potencialidades de futuro da Constituição Pastoral Gaudium et spes: por uma fé que
sabe interpretar o que advém – Aspectos epistemológicos e constelações atuais. Artigo de
Christoph Theobald publicado no Cadernos de Teologia Pública, nº 96, ano 2015, disponível
em http://bit.ly/1IaJHnN
—— “Caros jovens, estudem teologia”. Artigo de Christoph Theobald reproduzido nas Notícias
do Dia, de 27-06-2014, no Sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://
bit.ly/1FS3ydm
—— As grandes intuições do futuro do Concílio Vaticano II: a favor de uma “gramática gerativa”
das relações entre Evangelho, sociedade e Igreja. Artigo de Christoph Theobald publicado
no Cadernos de Teologia Pública, nº 77, ano 2013, disponível em http://bit.ly/1IaCNix
—— Lumen Fidei. “Uma fé mais itinerante que doutrinal”. Entrevista com Christoph Theobald
reproduzida nas Notícias do Dia, de 13-07-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, disponível em http://bit.ly/1EEQrXZ
—— Por uma Igreja pluripatriarcal e não somente centrada em Roma. Entrevista especial com
Christoph Theobald publicada na Revista IHU On-Line, nº 408, de 12-11-2012, disponível
em http://bit.ly/1Hi5Eqh
—— A urgência de recuperar o método do Vaticano II. Entrevista com Cristoph Theobald repro-
duzida nas Notícias do Dia, de 27-02-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/1OnQLSS
—— As narrativas de Deus numa sociedade pós-metafísica: O cristianismo como estilo. Artigo de
Christoph Theobald publicado no Cadernos de Teologia Pública, nº 58, ano 2011, disponível
em http://bit.ly/1P2Jawa
—— Perfil – Christoph Theobald publicado na Revista IHU On-Line, nº 315, de 16-11-2009, dis-
ponível em http://bit.ly/1QfC2YN
—— O cristianismo como estilo. Entrevista com Christoph Theobald reproduzida na Revista IHU
On-Line, nº 308, de 14-09-2009, disponível em http://bit.ly/1KCMT0D

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IHU
ON-LINE

Tema de
Capa
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Máquina de exterminar indígenas


Elena Guimarães analisa a maneira pela qual a racionalidade ocidental
se transformou em um dispositivo de extermínio físico e cultural dos
indígenas, o que ocorre até os dias atuais
Por João Vitor Santos e Ricardo Machado

A história do mundo é pródi-


ga em transformar facínoras
na espécie mais vulgar de
heróis descobridores. Passados cinco
séculos do descobrimento das Améri-
ameríndio, que culmina no senso co-
mum de que os indígenas são um en-
trave ao desenvolvimento nacional.
Ao contrário do que se supõe prelimi-
narmente, o que está em jogo não é a
cas e, consequentemente, do Brasil, inclusão dos índios ao processo civiliza-
o testemunho de extermínio da popu- cional ocidental, mas sim nossa própria
lação indígena vem sendo feito gera- incompreensão com relação ao para-
ção a geração até os dias atuais. “Os digma dos povos originários. “Sendo a
povos indígenas em diversos momen- terra a razão de ser do índio, aquela
tos foram considerados como entrave que confere sentidos, reúne valores e
ao modelo de expansão econômica do crenças, a expropriação de terras cons-
país. Do cultivo da cana-de-açúcar no titui grave infração contra direitos hu-
nordeste, do café no oeste paulista, manos, por levar à extinção material e
ao cultivo do cacau no sul da Bahia; simbólica destes povos”, avalia. Vive-
mos ainda cercados de grande ignorân-
22 da extração da borracha na Amazônia
cia em relação à produção de conhe-
à introdução da mão de obra imigrante
no sul do país; da criação expansiva de cimento, aos saberes, usos e costumes
gado no centro-oeste à monocultura da dos povos indígenas”, complementa a
pesquisadora.
soja; da construção de linhas telegrá-
ficas, abertura de estradas à extração Elena Guimarães é mestre em Me-
de madeiras e na história mais recente, mória Social pela Universidade Federal
da extração de minérios à construção do Estado do Rio de Janeiro – Unirio e
de barragens e hidrelétricas”, analisa graduada em Jornalismo pela Universi-
Elena Guimarães, em entrevista por dade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
e-mail à IHU On-Line. Atualmente, trabalha no Núcleo de Bi-
blioteca e Arquivo do Museu do Índio/
Ao analisar a questão indígena, a
Fundação Nacional do Índio – Funai.
pesquisadora detalha mais de 500 anos
de desrespeito, tortura e genocídio Confira a entrevista.

IHU On-Line – Dentro de um reitos Humanos e a Convenção das 1º, genocídio é “Quem, com a in-
contexto histórico, como com- Nações Unidas sobre o Genocídio, tenção de destruir, no todo ou em
preender o genocídio indígena no de 1948, quando fica definido este parte, grupo nacional, étnico, ra-
Brasil? tipo de crime como “a prática de cial ou religioso, como tal: a) matar
Elena Guimarães – No Brasil o atos cometidos com a intenção de membros do grupo; b) causar lesão
crime de genocídio só é previsto destruir, no todo ou em parte, um grave à integridade física ou men-
em lei a partir de 1956. A origem grupo nacional, étnico, racial ou tal de membros do grupo; c) sub-
do conceito se deu após a Segunda religioso”. meter intencionalmente o grupo
Guerra Mundial, a partir dos deba- a condições de existência capazes
tes jurídicos, morais e filosóficos Definição de Genocídio de ocasionar-lhe a destruição física
sobre violações dos direitos hu- total ou parcial; d) adotar medidas
manos, diretamente influenciados Como definido pela Lei nº 2.889 destinadas a impedir os nascimen-
pela Declaração Universal dos Di- de 1º de outubro de 1956, artigo tos no seio do grupo; e) efetuar a

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relatório narrando, em tom de per-


plexidade, os mais diversos crimes,
de maus-tratos a assassinatos de
aldeias inteiras. As investigações
Os povos indígenas em diversos abrangiam o período entre os anos

momentos foram considerados 1940 e 1967.


Crimes diversos já eram denuncia-
como entrave ao modelo de dos e documentados por funcioná-
expansão econômica do país rios do SPI5 através de memorandos
e relatórios. Entre os documentos
produzidos, podemos encontrar
transferência forçada de crianças ras através de roupas e alimentos relatório de 1963, sobre violên-
do grupo para outro grupo”. contaminados. cias cometidas contra índios Cin-
Ora, e o que estamos testemu- ta Larga,6 Pacaa Novos,7 Assurini,8
nhando no presente momento, nos
Relatório Figueiredo
as Secas, até que em 1945 passa a chamar-se
conflitos pelas terras indígenas e DNOCS. Dispõe a sua legislação básica tem
O Relatório Figueiredo é um dos
perseguições a estas populações? por finalidade executar políticas do Governo
poucos documentos produzidos no Federal, no que se refere a beneficiamento
E estes não são de hoje, são fru-
âmbito do Estado que evidenciam de áreas e obras de proteção contra as secas
to de um processo histórico, cujas a dimensão dos crimes contra os e inundações, irrigação, radicação da popula-
estratégias variaram conforme o índios. Ele foi resultado de uma ção em comunidades de irrigantes e subsidia-
contexto político, mas sempre es- riamente, outros assuntos que lhe seja come-
Comissão de Inquérito instaura- tidos pelo Governo Federal, nos campos do
tiveram em vigor explícita ou im- da em 1967, pelo então Ministro saneamento básico, assistência às populações
plicitamente. Em 1967, quando do Interior, General Albuquerque atingidas por calamidades públicas e coope-
o procurador Jader Figueiredo,1 Lima3, com o objetivo de sanear o ração com os Municípios, possuindo grande
atuação no semiárido do Nordeste e norte de
responsável pelo famoso Relatório Serviço, alvo de inúmeras denún- Minas Gerais. (Nota da IHU On-Line)
Figueiredo,2 escandaliza a opinião cias de irregularidades adminis- 5 Serviço de Proteção ao Índio (SPI):
pública ao declarar que índios eram trativas. Foram ouvidas diversas parte constituinte do Ministério da Agricul-
vítimas de massacres e genocídio, testemunhas, onde foram apuradas
tura, Indústria e Comércio (MAIC), foi um
órgão público criado durante o governo do
23
ele nada mais fez que expor, tra- denúncias que ocorreram entre os Presidente Nilo Peçanha, em 1910, com o
zer à luz do dia, o que vinha sendo anos 1940 e 1967. O Presidente da objetivo de prestar assistência à população
indígena do Brasil. O Serviço foi organizado
prática corrente há décadas contra Comissão, Jader Figueiredo, Pro-
pelo Marechal Rondon, seu primeiro diretor.
os povos indígenas – exploração da curado do DNOCS4, produz extenso O SPI foi extinto e substituído pela Funai, em
mão de obra, maus-tratos, castigos 1967. (Nota da IHU On-Line)
3 Afonso Augusto de Albuquerque 6 Cintas Largas: povo indígena, assim cha-
com práticas de torturas, chegando
Lima (1909 –1981): foi um engenheiro, mi- mado pelos primeiros invasores dos seus ter-
a massacres de populações intei- litar e político brasileiro. Membro da arma ritórios, por ostentarem uma espécie de cin-
de engenharia, participou da Revolução turão, feito de entrecasca de uma árvore – o
1 Jader Dias de Figueiredo: foi um po- de 1930, reprimiu a Intentona Comunista tauari. Este nome foi posteriormente adotado
lítico brasileiro do estado de Minas Gerais. em 1935 no Recife e participou da Segunda pela Fundação Nacional do Índio. Embora
Atuou como deputado estadual em Minas Guerra Mundial no 9° Batalhão de Engenha- a denominação cinta-larga seja usada para
Gerais durante a 4ª legislatura (1959-1963) ria de Combate, primeira unidade brasileira designar um conjunto de grupos indígenas
na suplência. (Nota da IHU On-Line) a trocar tiros com os alemães. [1] Liderou a caçadores, habitantes das terras que se es-
2 Relatório Figueiredo: relatório de mais construção das estradas Macapá-Clevelândia tendem do leste de Rondônia ao noroeste do
de 7 mil páginas produzido em 1967 pelo pro- e Joinville-Curitiba. Era a um só tempo radi- Mato Grosso, trata-se, na verdade, de grupos
curador Jader de Figueiredo Correia a pedi- cal nas questões políticas e nacionalista nas distintos que se autodenominam Kabã, Kakin
do do ministro do interior brasileiro Afonso questões econômicas. Participou da criação e Mã e que têm língua e cultura semelhante.
Augusto de Albuquerque Lima. Ele descreve da Sudene, dirigiu o Departamento Nacional Antes do contato com a Fundação Nacional
violências praticadas por latifundiários brasi- de Obras contra as Secas, chefiou a Divisão do Índio, esses grupos ocupavam territórios
leiros e funcionários do Serviço de Proteção de Assuntos Econômicos da Escola Superior exclusivos. Os kabã não têm subdivisões; os
ao Índio contra índios brasileiros ao longo de Guerra e foi interventor na Rede Ferroviá- kakin têm algumas subdivisões e os mam ou
das décadas de 1940, 1950 e 1960. O sitio do ria Federal, de onde renunciou denunciando mã têm várias subdivisões (Dal Poz, 1991).
Instituto Humanitas Unisinos – IHU a corrupção impune. Erigiu-se como um dos (Nota IHU On-Line)
dispõe de amplo material publicado sobre o ícones da linha dura no ínicio do Regime Mi- 7 Pacaás Novos: povo indígena insolados
tema. Entre eles a entrevista “Relatório Fi- litar, sugerindo o aprofundamento da ditadu- do Subgrupo Oromawin. São cerca de cerca
gueiredo: mais de sete mil páginas sobre a ra. (Nota da IHU On-Line) de 150 indivíduos, que vivem Serra dos Pa-
violência contra indígenas no Brasil”, com 4 Departamento Nacional de Obras caás Novos, Rondônia, na nascente do Rio
José Ribamar Bessa Freire, publicada nas Contras as Secas (DNOCS): é uma autar- Formoso. Estão incluídos na Terra Indígena
Notícias do Dia de 10-09-2015, disponível em quia federal, vinculada ao Ministério da In- Uru-Eu-Wau-Wau. (Nota da IHU On-Line)
http://bit.ly/1UHkZ9D. E, ainda, a entrevista tegração Nacional e com a sede da adminis- 8 Assurinis do Xingu: também conhecido
“Relatório Figueiredo. ‘Exame de consciência tração central em Fortaleza. Se constitui na como Asurini, Asurinikin, Awaeté ou Surini,
de como o Brasil tratou e trata os povos indí- mais antiga instituição federal com atuação são um povo indígena brasileiro. Localizado
genas’”, com Spensy Pimentel, publicada nas no Nordeste. Criado sob o nome de Inspe- próximo ao Igarapé Ipixuna, no Pará, no ano
Notícias do Dia de 17-05-2013, disponível em toria de Obras Contra as Secas (IOCS) em 21 de 1994 sua população estimada era de 76
http://bit.ly/1jtcuxA. Confira mais em http:// de outubro de 1909, em 1919 recebeu ainda o pessoas. Em 2002, tal grupo contava com 106
bit.ly/1Pnfkmj. (Nota da IHU On-Line) nome de Inspetoria Federal de Obras Contra indivíduos. Falam a língua Assurini do Xingu,

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Kayapó9 e Paracananan10 pelas fren- Canela,13 Cinta Larga, Kaingang,14 Gavião.18 Os massacres eram pro-
tes extrativistas. Segundo consta Tapaiuna,15 Xetá,16 Nanbikwara17 e movidos, sobretudo, por seringuei-
no relatório, o exercício das fun- ros, castanheiros e garimpeiros. É
ções de assistência e proteção aos descrito que eram feitas incursões
nas e Rio Branco, Acre. Se chamavam Popin-
índios vinha sendo impedido por garé, poping, ou Kangipê Kang. No território “dos brancos”, que “de metralha-
“pressão organizada de poderosos do Estado de Rondônia vivem na reserva Ter- dora em punho, matam indiscri-
interesses políticos e econômicos ra Indígena Roosevelt, no município de Can- minadamente adultos e crianças,
deias de Jamari uma população deles é cerca
das áreas onde são mais agudos e de 100. (Nota da IHU On-Line)
mutilando seus corpos” (O Globo
sérios os conflitos entre índios e a 13 Krahô-Kanela (Canela): ocupam a Ter- de 08/01/64). E que as terras dos
sociedade nacional, especialmente ra Indígena Mata Alagada, no município de Pacaas-Novos encontravam-se ocu-
na região amazônica e em certas Lagoa da Confusão, entre os rios Formoso e padas por invasores ligados a polí-
Javaés, à 300 Km de Palmas, capital do Es-
partes do sul de Mato Grosso”. tado do Tocantins. Migraram para o sul do ticos mato-grossenses.
Tocantins e habitaram em Região próximo ao
Massacres município de Lagoa da Confusão, Tocantins,
de onde no final dos anos 70 foram expul-
Amostra histórica
sos pela cervejaria Brahma. Após um longo
Outros massacres seriam regis- processo judicial, apenas no ano de 2006 Isso é apenas uma amostra, des-
trados em relatórios do SPI e da conseguiram retornar as suas terras. Hoje tacando um curto período históri-
aproximadamente 100 índios Krahô-Kanela
Funai. Em um dossiê produzido co. Para termos uma ideia, o grupo
moram na Aldeia Lankrahé a 55 Km de Lagoa
pelo Departamento de Estudos e da Confusão. (Nota da IHU On-Line) de trabalho instaurado pela Comis-
Pesquisas, denominado “Crimes 14 Kaingang: etnia indígena que se desen- são Nacional da Verdade19 apurou
contra índios – informações do volveu à sombra dos pinheirais. Há pelo me-
nos dois séculos, sua extensão territorial com-
SPI”, foram recolhidos dados so- preende a zona entre o Rio Tietê (São Paulo) um povo indígena brasileiro. Estão localiza-
bre massacre de índios do período e o Rio Ijuí (norte do Rio Grande do Sul). No dos no oeste do Mato Grosso e em Rondônia.
de 1961 a 1969. Neste documento século XIX, seus domínios se estendiam para Em 1999, somavam 1 145 indivíduos. Seus
são relatados os ataques aos índios oeste, até San Pedro, na província argentina costumes são a caça e a coleta e quase nunca
de Misiones. (Nota da IHU On-Line) tiveram contato com os não índios até 1965,
Gorotire,11 Pacaás Novos, Ipurinã,12 15 Tapaiúnas: também conhecidos como quando não índios começaram a invadir suas
Beiço de Pau, Suyá Novos ou Suyá Ociden- terras para o garimpo e para a extração ilegal
da família Tupi-Guarani, tronco Tupi. (Nota tais e autodenominados Kajkwakratxi são um de madeira. Seus subgrupos são os Nambi-
da IHU On-Line) grupo indígena que habita o estado brasileiro kwara do Campo (Mato Grosso e Rondônia),
9 Caiapós: também grafado kayapó ou caia- do Mato Grosso, mais precisamente o Parque Nambikwara do Norte (Mato Grosso e Ron-
24 pó, é uma das denominações de um grupo
indígena habitante da Amazônia brasileira.
Indígena do Xingu. Em 2010, o grupo era
composto de 160 indivíduos (Ropkrãse Suiá e
dônia), Nambikwara do Sararé (Mato Gros-
so) e Nambikwara do Sul (Mato Grosso). Sua
O termo Kayapó é um exônimo que data do Teptanti Suiá). Falam um idioma pertencen- língua pertence à família Nambikwara. (Nota
início do século XIX, tendo sido criado por te à família linguística Jê. Viviam originaria- da IHU On-Line)
grupos indígenas vizinhos desta etnia. Sig- mente na região do rio Arinos, perto do muni- 18 Índios Gaviões: vivem nos campos do
nifica ‘homens semelhantes aos macacos’ e cípio de Diamantino, no Mato Grosso. Havia sudoeste maranhense e na região de flores-
está, provavelmente, ligado a certos rituais do em seu território tradicional uma significati- ta tropical do vale do Médio Rio Tocantins.
grupo, nos quais os homens dançam usando va diversidade de recursos naturais – serin- Os Pucobié ou Pykopjê, também conhecidos
máscaras de macaco. O endônimo dos cha- gueiras, minérios e madeiras – o que motivou como “Pykopcatejê”, “Pukobiê” e “Gavião do
mados kayapó é mebengokre, que significa, a usurpação de suas terras por seringueiros, Maranhão” é um povo indígena brasileiro
literalmente, ‘homens do buraco’ ou ‘homens garimpeiros e madeireiros, entre outros in- que se localiza no sudoeste do estado do Ma-
do poço d’água’. Os caiapós se dividem nos vasores não indígenas. Na década de 1970, ranhão. Em 2005, sua população perfazia um
subgrupos kayapó-aucre, kayapó-cararaô, o grupo foi vítima de envenenamento com a total de 473 indivíduos. Os atuais Gaviões re-
caiapó-cocraimoro, caiapó-cubem-cram- carne de uma anta, oferecida por invasores. sidentes na zona tocantina paraense são ori-
-quem, caiapó-gorotire, caiapó-mecranoti, Os 41 sobreviventes foram transferidos para ginários das terras do Estado do Maranhão. A
caiapó-metuctire, caiapó-pau-d’arco, caiapó- o Parque Indígena do Xingu. Nos anos 1980, chegada do último grupo local Gavião ao Pará
-quicretum e caiapó-xicrim. No passado, após a morte de um importante líder e pajé, se reporta ao ano de 1969, quando um grupo
eram também chamados de coroados, e os de uma parte do grupo foi morar com os Meben- “pacificado” no ano anterior pelo sertanista
Mato Grosso, coroás. carla novaes. (Nota da gôkrê (Kayapó), na Terra Indígena Capoto- Antônio Cotrim, nos campos de Imperatriz,
IHU On-Line) -Jarina, o que provocou o enfraquecimento foi levado para a Terra Indígena Mãe Maria,
10 Paracanãs: são um grupo indígena Tupi- da sua língua e cultura. Em 2010, os 160 no município de São João do Araguaia – hoje
-guarani que habitam entre os rios brasileiros Tapaiúnas estavam distribuídos em aldeias fazendo parte do município de Bom Jesus
do Tocantins e do Xingu, no estado do Pará, na Terra Indígena Wawi e na Terra Indígena do Tocantins -, local em que se mantém até
dentro da Terras Indígenas Apyterewa e Pa- Capoto-Jarina. (Nota da IHU On-Line) o presente. Alguns índios remanescentes de
rakanã. São divididos em Paracanãs Ociden- 16 Xetá: é um grupo indígena, até recente- um grupo que habitava na Reserva Gavião da
tais (contatados em 1971) e Orientais (con- mente considerado extinto, que tem suas Montanha, localizada no município de Tucu-
tatados entre 1976 e 1984). São falantes do origens no estado brasileiro do Paraná. No ruí, nos meados da década de setenta, ainda
Akwáwa. (Nota da IHU On-Line) passado, eram também chamados botocudos permaneciam neste local, sendo deslocados
11 Caiapós-gorotires: são um dos subgru- por conta do adorno labial utilizado pelos ho- para a Terra Indígena Mãe Maria recente-
pos dos caiapós, que habita o Sul do estado mens após o ritual de iniciação. Os oito rema- mente, contudo ainda revindicando indeniza-
brasileiro do Pará, mais precisamente a Área nescentes do massacre ocorrido nas décadas ção por ter suas terras tradicionais alagadas
Indígena Kayapó. (Nota da IHU On-Line) de 1950/60 na região da Serra dos Dourados pela Hidroelétrica de Tucuruí. (Nota da IHU
12 Ipurina (Apurinã, Aporinã, Ipurinan, Distrito de Umuarama (Paraná) deram ori- On-Line)
Ipurinã, Ipuriná, Hypuriná, Popengare, Tiu- gem a aproximadamente 25 famílias, todos 19 Comissão Nacional da Verdade
purina, Jupurina, Kangiti Ipuriná, Hypu- ligados por parentesco, dispersos pelos esta- (CNV): é o nome da comissão que investigou
riná): tribo de nativos americanos famílias dos do Paraná, Santa Catarina e São Paulo. as graves violações de direitos humanos co-
Aruak, se instalaram na bacia do rio Purus no (Nota da IHU On-Line) metidas entre 18 de setembro de 1946 e 05 de
Brasil. População los a FUNAI -é 2.416 (1987) 17 Nambikwara: também chamados Anun- outubro de 1988, por agentes públicos, pes-
para reservar 23, onde muitos vão para os su- su, Anunzê, Nanbikuara, Nambikuara, Nam- soas a seu serviço, com apoio ou no interesse
búrbios das cidades Boca do Acre no Amazo- biquara, Nhambikuara ou Nhambiquara, são do Estado brasileiro, ocorridas no Brasil e

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que somente no período investi- Golbery Couto Silva20 chamava de sentação do relatório do Comitê
gado pela Comissão, mais de oito “amplos espaços vazios”. A inte- da Verdade, Memória e Justiça do
mil indígenas foram atingidos pela gração nacional visava à defesa Amazonas. No período em que foi
violência, através de remoções for- estratégica e à promoção do de- construída a BR-174 (Manaus–Boa
çadas, torturas, maus tratos e ten- senvolvimento econômico, ainda Vista), desapareceram nove aldeias
tativa de extermínio, e pelo que que à custa de inúmeros povos in- na margem esquerda do Médio Rio
se infere, este número deve ser dígenas que ocupavam o território. Alalaú, e testemunhos indicam que
muito maior. Dado à extensão do houve bombardeio com gás letal,
Para que efetuassem a abertura
problema, é reivindicado que este praticamente exterminando toda
relatório da Comissão Nacional da uma aldeia. Entre os anos de 1972
Verdade seja apenas o passo inicial e 1975, houve uma redução da po-
no caminho da justiça de transição pulação de 3 mil para 374 pessoas.
dos povos indígenas, e que seja ins-
talada uma Comissão Nacional da Sendo a terra a Pressão
Verdade Indígena. razão de ser do Em entrevista publicada pela
IHU On-Line – Como se deu a índio, aquela Folha de São Paulo, em 20 de abril
de 1968, o ex-diretor do SPI, José
relação do governo federal com
os povos indígenas durante o re-
que confere sen- Maria da Gama Malcher, declara
gime militar? E em que medida os tidos, reúne va- como ocorria a pressão de grupos
econômicos e políticos, sobre os
índios foram vítimas da ditadura
militar?
lores e crenças, ministérios e destes sobre o SPI.
Segundo ele, os diretores não ti-
Elena Guimarães – No contexto a expropriação nham escolha, ou aceitavam as
da ditadura militar, os crimes es- de terras consti- imposições, assumindo a respon-
sabilidade pelos desmandos, ou
tavam relacionados à ocupação do
território, dentro dos princípios da tui grave infra- ficavam impossibilitados de traba-
lharem e acabavam perdendo seus
Doutrina de Segurança Nacional.
Havia uma política de ocupação
ção contra di- postos. Desta forma, ele demons-
de terras no interior, onde estas reitos humanos tra o fato de o inquérito admi- 25
eram arrendadas, vendidas e ocu- nistrativo responsabilizar apenas
padas, em conluio com empresas os diretores e servidores do SPI,
e políticos locais, com objetivo de de estradas, povos indígenas eram ainda que, em última instância,
explorar economicamente, o que removidos de suas terras, e quan- a raiz dos problemas fossem esses
do havia resistência, muitos eram grupos de pressão. Outro fator que
também no exterior. A comissão foi instalada exterminados. Este é o caso dos ele atribui aos problemas estrutu-
oficialmente em 16 de maio de 2012. A CNV rais do órgão é a insuficiência de
concentrou seus esforços no exame e escla- Waimiri-Atroari,21 conforme apre-
recimento das graves violações de direitos
dotação orçamentária, que teria
humanos praticados durante a ditadura mi- 20 Golbery do Couto e Silva (1911-1987): transformado o SPI “de entidade
litar (1964-1985). A Comissão ouviu vítimas militar e geopolítico brasileiro. Destacou-se assistencial em assistido”, pois
e testemunhas, bem como convocou agentes como teórico do movimento político-militar grande parte da renda provenien-
da repressão para prestar depoimentos. Pro- de 1964. (Nota da IHU On-Line)
moveu mais de 100 eventos na forma de audi- 21 Uaimiris-Atroari: ou Waimiri-Atroari te dos arrendamentos e comercia-
ências públicas e sessões de apresentação dos são um grupo indígena que habita a parte lização dos recursos naturais era
relatórios preliminares de pesquisa. Realizou sudeste do estado brasileiro de Roraima e utilizada para atender as deman-
diligências em unidades militares, acompa- nordeste do Amazonas, especificamente a
nhada de ex-presos politicos e familiares de área Waimiri-Atroari. Eles se chamam as
das do serviço.
mortos e desaparecidos. Constituiu um nú- pessoas Kinja. Eles fazem parte dos povos
Em 1967, no governo do Gene-
cleo pericial para elucidar as circunstâncias caribenhos, cujo território de ocupação ime-
das graves violações de direitos humanos, o morial está localizado no sul do estado atual ral Castello Branco,22 é criado o
qual elaborou laudos periciais, relatórios de de Roraima e Amazonas. Durante o século
diligências técnicas e produziu croquis rela- 19, eles eram conhecidos como o Crichanás, 22 Humberto de Alencar Castello Bran-
tivos a unidades militares. Colaborou com as quando segmentos expansionistas de circun- co (1900-1967): militar e político brasileiro,
instâncias do poder público para a apuração dante povo brasileiro fez o primeiro contato presidente da república designado após o
de violação de direitos humanos, além de ter com eles. O sítio do Instituto Humanitas Golpe Militar de 1964. Nomeado chefe do Es-
enviado aos órgãos públicos competentes da- Unisinos – IHU vem publicando uma série tado-Maior do Exército por João Goulart em
dos que pudessem auxiliar na identificação de reportagem sobre Waimiri-Atroari, entre 1963, Castello Branco foi um dos líderes do
de restos mortais de desaparecidos. Também elas a entrevista “Waimiri-atroari: vítimas da Golpe de Estado de 31 de Março de 1964, que
identificou os locais, estruturas, instituições Ditadura Militar. Mais um caso para a Co- depôs Goulart. Eleito presidente pelo Con-
e circunstâncias relacionadas à prática de missão da Verdade”, com Egydio Schwade, gresso, assumiu a presidência em 15 de abril
violações de direitos humanos, além de ter disponível http://bit.ly/1YCTX1O, e o artigo de 1964, e ficou no posto até 15 de março de
identificado ramificações na sociedade e nos de Egon Heck, “Waimiri Atroari – a guerra 1967. Durante seu mandato, Castello Branco
aparelhos estatais. velada e revelada”, publicado nas Notícias desmantelou a esquerda do Congresso e abo-
Em 10 de dezembro de 2014, a CNV entregou do Dia de 12-05-2012, disponível em http:// liu todos os partidos. Foi sucedido pelo seu
seu relatório final à Presidente Dilma bit.ly/1Ni6wHJ. Confira mais em http://bit. ministro de Guerra, Marechal Costa e Silva.
Roussef.(Nota da IHU On-Line) ly/1YCUelb. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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Ministério do Interior, sendo ocu- Minúcias do horror da Comissão de Inquérito. Ele fala
pado pelo General Afonso Augusto do episódio da extinção da tribo lo-
de Albuquerque Lima,23 militar da No Relatório Figueiredo, entre as calizada em Itabuna, na Bahia, sem
“linha dura”, ultranacionalista, passagens que falam de massacres mencionar o nome, apenas desta-
que defendia o fortalecimento do e genocídio, Jader Figueiredo24 cando que “a serem verdadeiras as
capital nacional. Ele foi o respon- menciona a chacina do Maranhão, acusações, é gravíssimo”.
sável pela instauração da Comissão “onde fazendeiros liquidaram toda
de Inquérito para investigar as ir- uma nação, sem que o SPI opuses- Cena de guerra
regularidades do SPI, tendo como se qualquer reação”; a eliminação
“da tribo localizada em Itabuna, O mais chocante foi o caso dos
base as resoluções publicadas pela
na Bahia”, dizendo que “jamais Cinta Larga, ocorrido na década de
Comissão Parlamentar de Inquérito
foram apuradas as denúncias de 1960, que ficou conhecido como
de 1963.
que foi inoculado o vírus da varío- Massacre do Paralelo 11. A descri-
la nos infelizes indígenas para que ção pormenorizada foi reproduzida
IHU On-Line – Quais os casos de se pudessem distribuir suas terras em muitos jornais, a partir da con-
violência contidos no Relatório entre figurões do Governo”; e dos fissão de Ataíde Pereira dos Santos,
Figueiredo mais lhe chamaram Cinta-Larga, em Mato Grosso, em um dos bandidos do grupo chefiado
atenção? Por quê? que “teriam sido exterminados por por Chico Luis, a mando da firma
dinamite atirada de avião e estric- seringalista Arruda Junqueira &
Elena Guimarães – É difícil di-
nina adicionada ao açúcar”. CIA. Este massacre teve grande
zer quais casos mais chamaram a
Em um dos depoimentos dados repercussão devido ao requinte de
atenção. Os crimes contra a pes- crueldade da cena, reproduzida na
soa do índio, descrição de torturas à Comissão de Inquérito instau-
rada em 1967, o funcionário do narrativa de funcionários do SPI, na
e massacres são evidentemente imprensa e até mesmo em fotogra-
chocantes, mas o que mais impres- antigo Serviço de Proteção aos
Índios, Hélio Bucker, narra o caso fia atribuída ao episódio, publicada
siona é ver um capítulo da história pela revista Times.
dos Pataxó, na Bahia. Ele diz que
em que se evidenciam abusos, cri-
não houve somente esbulho de Os assassinos entraram em uma
mes, desrespeitos de toda ordem
terras, mas “um verdadeiro geno- aldeia dos índios Cinta-Larga me-
e ter confirmado que é apenas
26 um capítulo, que estes massacres
cídio através da contaminação da
tribo Pataxó do vírus da varíola”.
tralhando todos que eram encon-
trados pela frente. Após a chacina,
já aconteciam antes e continuam Bucker também fala da tentativa ao encontrarem ainda vivos uma
ocorrendo até os dias de hoje, de dizimação dos índios Tapaiuna índia com seu filho de seis anos,
conforme pode ser verificado nos (Beiço de Pau), no norte de Mato mataram a criança com um tiro na
relatórios anuais do Conselho Indi- Grosso, através de açúcar envene- cabeça e penduraram a mãe em
genista Missionário – Cimi. A títu- nado com arsênico. uma árvore, pelos pés, de pernas
lo de exemplo, somente em 2014 abertas. Em seguida partiram-na a
No relatório final da Comissão de
foram assassinados 138 indígenas, Inquérito, Jader de Figueiredo Cor- golpe de facão, do púbis à cabeça.
além dos altos índices de suicídios reia denuncia as ações de extermí- Este crime foi noticiado à época,
e mortalidade infantil. O estado nio que já eram de conhecimento mas ainda assim os bandidos conti-
que figura com maiores ocorrên- público, que já vinham sendo am- nuaram impunes.
cias é Mato Grosso do Sul. plamente divulgadas na imprensa,
sem que nada fosse feito pelo po- Casos
23 Afonso Augusto de Albuquerque
Lima (1909-1981): foi um engenheiro, mi-
der público. Ele traz à lembrança
litar e político brasileiro. Membro da arma estes crimes e massacres, respon- Abusos de índias se dão, por
de engenharia, participou da Revolução sabilizando o SPI pelo descaso e exemplo, no envio de meninas para
de 1930, reprimiu a Intentona Comunista omissão frente a estes episódios, servirem em fazendas, sem qual-
em 1935 no Recife e participou da Segunda
Guerra Mundial no 9° Batalhão de Engenha- citando chacinas como a do Ma- quer remuneração. Entre diversos
ria de Combate, primeira unidade brasileira ranhão, “onde fazendeiros liqui- casos, podemos destacar o da índia
a trocar tiros com os alemães. [1] Liderou a daram toda uma nação” sem que Brasilina. Ela vivia em Santos/SP,
construção das estradas Macapá-Clevelândia
houvesse qualquer ação do estado há pelo menos seis anos, na casa
e Joinville-Curitiba. Era a um só tempo radi-
cal nas questões políticas e nacionalista nas brasileiro e do SPI no caso. Em seu da filha de um Desembargador. Prá-
questões econômicas. Participou da criação texto, não especifica datas quando tica corriqueira, como diz o funcio-
da Sudene, dirigiu o Departamento Nacional nário José Batista Ferreira Filho em
fala de fatos ocorridos em tempos
de Obras contra as Secas, chefiou a Divisão
de Assuntos Econômicos da Escola Superior anteriores ao período de instalação seu depoimento à Comissão, estas
de Guerra e foi interventor na Rede Ferroviá- índias eram mandadas para casas
ria Federal, de onde renunciou denunciando 24 Jader Dias de Figueiredo: foi um po- “de gente de projeção”, com “a
a corrupção impune. Erigiu-se como um dos lítico brasileiro do estado de Minas Gerais.
cobertura a alguns servidores de
ícones da linha dura no início do Regime Mi- Atuou como deputado estadual em Minas
litar, sugerindo o aprofundamento da ditadu- Gerais durante a 4ª legislatura (1959-1963) Mato Grosso”. Segundo ele, “as
ra. (Nota da IHU On-Line) na suplência. (Nota da IHU On-Line) moças eram tiradas do posto sem

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o consentimento dos pais, muitas IHU On-Line – Que descober- CPI do Índio – 1968
delas saiam da escolinha do posto tas e inferências foram possíveis
para as conduções que as vinham fazer a partir do manuseio do Após a criação da Funai, em de-
buscar, sem os seus pais estarem Relatório Figueiredo? O que o zembro de 1967, ainda haveria a
presentes”. Relatório pode dizer acerca da instauração das CPIs do Índio, em
Outro caso marcante é o da me- realidade de hoje, em especial 1968 (interrompida com o AI-5), e
nina bororo Rosa, que aos 11 anos sobre os conflitos? da Terra, em 1977. Os casos de vio-
de idade foi dada pelo então che- lações de direitos humanos também
Elena Guimarães – Este é ape- foram enviados ao Tribunal Russell
fe do posto Couto Magalhães, o Sr.
nas um pequeno exemplo, perto II,27 realizado entre 1974-76, e ao
Flávio de Abreu, ao senhor Seabra,
de toda a história de resistência Tribunal Russell IV, em 1980, quan-
como pagamento pela construção
de um fogão de barro na Fazenda diante da espoliação, exploração, do foram julgados os casos Waimiri
Santa Terezinha, de sua proprieda- embates, massacres e diásporas. Atroari, Yanomami, Nambikwara
de. Rosa foi escolhida entre outras E nos perguntamos quais foram os e Kaingang de Manguerinha28, e o
meninas que frequentavam a esco- desdobramentos após a publica- Brasil condenado. Mas o que vemos
la de D. Violeta Tocantins. Os ho- ção das conclusões e encaminha- após todas as denúncias e escânda-
mens visitaram a escola e, na sala mentos da Comissão de Inquérito, los? Não há uma política que vise
de aula, Flávio pediu às meninas em Diário Oficial, em setembro ao bem-estar dos índios, mas sim
que ficassem de pé para que Sea- de 1968? De um lado houve uma a uma intensificação de ações re-
bra escolhesse qual levaria. pressoras, com remoções forçadas
mobilização internacional a par-
e a criação de presídios indígenas.
Incitação de violência entre pa- tir das denúncias de genocídio de
Todas as iniciativas têm claro ob-
rentes, irmãos, filhos e pais tam- índios. A comoção provocada pela
jetivo de impulsionar a plena ocu-
bém era prática comum. Há casos publicação do relatório de Jader pação do território, através de
em que índios eram obrigados a fez com que cientistas e pesqui- investimentos em grandes obras
espancarem suas mães. Casos de sadores estrangeiros viessem ao públicas, assim como a expansão
castigos com elementos de tortu- Brasil em 1969, a fim de investi- da exploração legalizada de ma-
ra também eram corriqueiramen- gar a situação dos povos indígenas deira e recursos naturais.
te vivenciados. Em um dos depoi- brasileiros. Shelton Davis26 desta-
Qual é a raiz das disputas de ter-
mentos, é citado o caso do menino ca os artigos “Denúncia de Guer-
ras atuais? São disputas históricas,
27
Umutina de nome Lalico. Ele foi ra de Germes contra os índios no
preso, pendurado pelos polegares em que são reivindicadas terras
Brasil”, de Patrick Braun, médico indígenas que em determinado
como castigo por ter furtado um do Departamento Francês dos Ter-
saco de poaia25. momento foram expropriadas, ar-
ritórios de Ultramar, publicado na rendadas e ocupadas ilegalmen-
Dentre todas as atrocidades, a Medical Tribune e Medical News; e te por políticos e ruralistas. Nos
mais impactante é a utilização do “Fogo e Espada a Arsênico e Balas, autos do Processo do Relatório
instrumento de castigo e tortura, a Civilização Mandou Seis Milhões Figueiredo é possível encontrar
conhecido como “tronco”. Ele é de índios para a Extinção”, do jor- algumas referências, como consta
mencionado em diversos depoi- nalista britânico Norman Lewis. em um relatório do IPM, da Divi-
mentos. Ele era um instrumento Estes artigos, além de inúmeras são de Segurança e Informações,
formado por duas estacas enter- reportagens e pronunciamentos de sobre a venda ilegal de terras per-
radas em ângulo agudo, no mesmo tencentes às colônias indígenas do
sociedades antropológicas e cien-
buraco, com o vértice para baixo. Estado de Mato Grosso. O autor
tíficas, comprometeram em certa
A tortura consistia em colocar o
medida a imagem do Brasil no ex-
tornozelo do índio entre as duas 27 Tribunal Russell: também conheci-
estacas, e paulatinamente fechar terior. Em consequência, a dele- do como o Tribunal Penal Internacional ou
gação do Comitê Internacional da Russell-Sartre Tribunal, era um organismo
o ângulo aproximando as duas pon- privado organizado pelo filósofo britânico e
tas superiores das estacas com au- Cruz Vermelha vem ao Brasil, em ganhador do Prêmio Nobel Bertrand Russell
xílio de uma corda. O funcionário 1969, para “apurar possíveis vio- e hospedado pelo filósofo e escritor francês
lências contra presos políticos e Jean-Paul Sartre. Junto com Ken Coates,
Samuel Brasil acrescenta em seu Ralph Schoenman, Julio Cortázar e vários
depoimento que é um processo índios indefesos”. outros, o tribunal investigadas e avaliadas a
muito doloroso, podendo provocar política externa americana e intervenção mi-
26 Shelton H. Davis (1942 – 2010): antro- litar no Vietnã, após a derrota de 1954 forças
a fratura dos ossos, resultando em
pólogo americano e ativista pelos direitos dos francesas em Dien Bien Phu e do estabele-
muitos índios aleijados. povos indígenas. Seu trabalho acadêmico e cimento de Norte e Vietnã do Sul. (Nota da
organizacional com as comunidades indíge- IHU On-Line)
25 Poaia: é o nome comum à várias plantas, nas latino-americanos contribuíram para o 28 O sítio do Instituto Humanitas Uni-
de muitas espécies, árvores ou arbustos, da movimento antropologia interesse público sinos – IHU publicou que trata dos casos.
família das Rubiáceas, nativas do Brasil. A final do século 20. Criou na Universidade Confira “Da aldeia à ONU – e agora Brasil?”,
poaia, como a ipecacuanha, tem propriedades de Harvard primeiro curso de graduação so- artigo de Egon Heck, publicada nas Notícias
eméticas (medicamento usado para provocar bre nativos americanos nos Estados Unidos. do Dia de 28-04-2015, disponível em http://
vômito). (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) bit.ly/1MPJLO8.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

confirma a venda, pelo Estado, de D’Escócia Sejópolise dos Sena- “Entraves”


terras situadas em zona de fron- dores Filinto Müller32 e Ney Bra-
teira, sem atender aos trâmites ga.33 O funcionário do SPI, Hélio Os povos indígenas em diver-
legais. A Assembleia Legislativa Bucker, fala ainda do esbulho de sos momentos foram considera-
do Estado votou leis, concedendo terras dos índios Kaiowá, na re- dos como entrave ao modelo de
venda de terras em áreas reserva- gião de Dourados. Ele afirma que expansão econômica do país. Do
das legalmente a índios e à Colô- o Estado Novo, através do Depar- cultivo da cana-de-açúcar no nor-
nia Agrícola de Dourados. Entre os tamento de Terras e Colonização, deste, do café no oeste paulis-
beneficiados, estava grupos de po- criou naquela região uma zona de ta, ao cultivo do cacau no sul da
líticos e familiares de deputados, colonização desapropriando todas Bahia; da extração da borracha
inclusive parentes do então Presi- as terras indígenas. E com o que na Amazônia à introdução da mão
dente da Assembleia Legislativa, nos deparamos hoje? de obra imigrante no sul do país;
posteriormente feito deputado, o da criação expansiva de gado no
Sr. Rachid Mamed. IHU On-Line – Como avalia a centro oeste à monocultura da
Outro caso é o das terras dos ín- política indigenista brasileira an- soja; da construção de linhas te-
dios Bororo, conhecidas como Co- tes, durante e depois da ditadura legráficas, abertura de estradas à
lônia Tereza Cristina. Estas terras militar? extração de madeiras e na história
foram demarcadas por Marechal Elena Guimarães – A formação mais recente, da extração de mi-
Rondon29 e a reserva foi aprova- do estado moderno absolutista, no nérios à construção de barragens
da em 1897. Mas os governadores século XV e o seu desdobramento e hidrelétricas. Isso sem falar na
Fernando Correa da Costa30 e João em estado nacional burguês, entre especulação de terras, em que
Ponce de Arruda,31 contrariando os séculos XVIII e XIX tiveram como territórios originalmente ocupa-
dispositivos legais, assinaram tí- eixo fundador o projeto de domínio dos por indígenas eram considera-
tulos definitivos a particulares, territorial e econômico, em que a dos terras devolutas, terras livres,
expropriando terras indígenas. ideia de nação e território é in- podendo ser ocupadas e vendidas.
Entre os beneficiários havia Mi- trinsecamente ligada ao reconhe- Na tentativa de minimizar o im-
nistros do Tribunal de Contas do cimento de um único povo e uma pacto do crescimento econômico
Estado, Deputados, membros da única língua. A história que ainda na dizimação dos índios e de dar
fim às situações de conflito, so-
28 família do Secretário de Justiça
do Estado, entre outros. São ci-
se aprende em muitos lugares é
bretudo nas fronteiras agrícolas,
aquela construída pela ótica do do-
tados como envolvidos nas nego- minador, em que há um apagamen- entre indígenas e não indígenas, é
ciatas o grupo econômico de João to das diferenças. O Estado-Nação que foram criados aparelhos esta-
brasileiro foi edificado nestas ba- tais para execução de políticas de
29 Cândido Rondon (1865-1958): Cândido ses, no projeto de integração e eli- assimilação e integração dos povos
Mariano da Silva Rondon, conhecido como
minação da diversidade cultural e indígenas.
Marechal Cândido Rondon, foi um militar
brasileiro. Desbravador do interior do país, linguística. E o que se sabe da(s)
criou em 1910 o Serviço de Proteção ao Índio história(s) indígena(s), dos diversos Modelo de Tutela
(SPI). Teve seu primeiro encontro com os ín-
dios (alguns hostis, outros escravos de fazen-
povos e línguas? No Brasil, segundo
deiros) quando construía as linhas telegráfi- o censo de 2010, há 896 mil indi- De sua criação à extinção, o
cas que ligaram Goiás a Mato Grosso. Obteve víduos, 305 povos e 274 línguas. Serviço de Proteção aos Índios
a demarcação de terras de vários povos, entre foi o órgão de estado responsá-
Há ainda 69 referências de índios
eles os Bororo, Terena e Ofayé. Em 1939 foi
nomeado presidente do Conselho Nacional isolados. vel pela execução da política in-
de Proteção ao Índio. Recebeu do Congresso digenista brasileira. Sua função
Nacional, em 1955, através de lei especial, o 32 Filinto Strubing Müller (1900-1973): era a de assistência no modelo
posto de marechal do Exército. (Nota da IHU foi um militar e político brasileiro. Participou
On-Line) dos levantes tenentistas entre 1922 e 1924. de tutela dos índios. O objetivo
30 Fernando Corrêa da Costa (1903- Durante a ditadura Vargas, destacou-se por instituído pelo SPI era fixar os
1987): foi um médico e político brasileiro, sua atuação como chefe da polícia política e indígenas em postos, onde pu-
tendo ocupado o cargo de senador e de go- por diversas vezes foi acusado de promover
vernador de Mato Grosso por dois mandatos. prisões arbitrárias e a tortura de prisioneiros.
dessem ser “civilizados” atra-
(Nota da IHU On-Line) Ganhou repercussão internacional o caso da vés de educação laica e preparo
31 João Ponce de Arruda (1904-1979): prisão da judia alemã Olga Benário, militan- para o trabalho com a terra. O
Graduado em Engenharia civil, assume a pre- te comunista e companheira de Luís Carlos
feitura de Cuiabá em 1932, no lugar de Júlio Prestes, à época grávida quando deportada
regime tutelar foi proposto em
Strübing Müller, seu cunhado. Eleito Depu- para a Alemanha, onde seria executada em 1912, sendo sancionado em for-
tado Estadual em 1934, assinou Constituição Bernburg, em 1942. (Nota da IHU On-Line) ma de lei em 1928. Do início de
Estadual, deixando registrada sua restrição 33 Ney Aminthas de Barros Braga (1917-
suas atividades, em 1910, à sua
quanto ao seu preâmbulo. Com a decretação 2000): foi um militar e político brasileiro.
do Estado Novo ocorrida em 10 de novembro Foi prefeito de Curitiba, deputado federal, extinção, em 1967, o SPI passou
de 1937, a Assembléia Estadual foi fechada. senador e governador do estado do Paraná. por diversas estruturas organiza-
Como Júlio Müller foi nomeado interven- Foi também, durante a durante a ditadura cionais, inserindo-se em contex-
tor estadual, Ponce de Arruda foi nomeado militar, ministro da Agricultura, ministro da
Secretário Geral do Estado. (Nota da IHU Educação e Presidente da Itaipu Binacional. tos políticos diversos, vinculado
On-Line) (Nota da IHU On-Line) a diferentes ministérios.

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Década de 1930 do em 1973. Ele vem estabelecer à exploração econômica da região


as diretrizes da nova ordem políti- amazônica. A política indigenis-
Na década de 1930, com a as- ca, cujo objetivo é integrar o índio ta adota paradigmas alinhados ao
censão de Vargas, o SPI passa por “progressiva e harmoniosamente regime, cujo objetivo maior é a
um dos períodos de desestabiliza- à comunhão nacional”. O Estatu- ocupação da Amazônia, ratificado
ção. Mas com o projeto de Vargas to do Índio vem ratificar práticas pelo Plano de Integração Nacio-
de colonização do interior do país, de exploração e violência, com nal, editado em 1970. Sob a égide
da denominada Marcha para o Oes- estabelecimento da “renda indí- da integração nacional, são im-
te, o SPI obtém novos recursos e gena”, legalizando a exploração plementados diversos projetos de
é reintegrado em um projeto mais de madeiras e outras riquezas em construção de rodovias, entre elas
amplo do Estado. Do Ministério da terras indígenas e, segundo trecho a Transamazônica.
Agricultura, Indústria e Comércio, o do relatório final da Comissão Na-
SPI passa para o Ministério do Traba- cional da Verdade, introduzindo a Constituição de 1988
lho (1930-1934) e em seguida para possibilidade de “remoção forçada
o Ministério da Guerra (1934-1939), de populações indígenas por impo- A Constituição Federal de 1988
como órgão vinculado à Inspetoria sição da segurança nacional, para viria a conferir novo marco jurídico
de Fronteiras. Dentro da perspec- a realização de obras públicas que para os povos indígenas, somando-
tiva de ação política de Vargas, o interessem ao desenvolvimento na- -se à Convenção nº 169 da Orga-
serviço teria como um dos eixos de cional, e inclui a mineração”. nização Internacional do Trabalho
ação, primeiramente o trabalho no Sucede-se série de iniciativas de sobre Povos Indígenas e Tribais, de
campo e, em seguida, a proteção forma a construir uma imagem de 1989. A demarcação de suas terras
militar das fronteiras do país. eficiência da política indigenista compete exclusivamente à União,
implementada pelo Estado brasi- e aos índios são reconhecidas sua
Década de 1950 leiro. Em 1970, o Ministro do In- organização social, seus costumes,
terior, Costa Cavalcanti,36 declara línguas, crenças e tradições·. Mas,
No final dos anos 1950, no perío- em entrevista coletiva à imprensa na contramão da história da con-
do pós-guerra, a política indigenis- nos EUA, publicada pelo Correio da quista dos direitos indígenas, depu-
ta brasileira passava por mais um Manhã, em 1970, que “a situação tados e ruralistas alinham-se com o
período de mudanças. Rondon e do índio está em perfeita harmo- intuito de acabarem com direitos
seus colaboradores alinhados com nia com os princípios da democra- constitucionalmente garantidos. 29
os ideais humanitários e positivistas cia social e étnica”, e acrescenta:
já estavam em idade avançada e já “Não pretendo combater lendas, Retrocessos
não tinham tanta influência sobre tais como a dos bombardeiros de
os assuntos indígenas. E o grupo de napalm a aldeia indígena na Ama- Projetos de emenda constitucio-
antropólogos e etnólogos ingressos zônia”, deixando claro que o obje- nal, projetos de lei e portarias são
entre os anos 1940/1950 também tivo é assimilar e integrar o índio à criadas com objetivo de não só pa-
deixam os cargos neste período. Se- sociedade nacional. ralisar as demarcações de terras,
gundo o antropólogo Shelton Davis,34 como de retirar terras já reconhe-
autor do livro Vítimas do Milagre35, A partir daquele momento, acen- cidas e delimitadas, deixando a
naquele momento um novo grupo de tuando-se após a instauração do cargo do Congresso Nacional o pa-
oficiais do Exército e funcionários AI-537, a pauta do dia da impren- pel de demarcar terras indígenas.
públicos assumia posições de poder sa e opinião pública passa a ser Em pleno ano de 2014, enquanto
no SPI. Diferentes autores identifi- direcionada para os temas ligados a Comissão Nacional da Verdade
cam este momento como o de início encaminhava à Presidência o re-
36 José Costa Cavalcanti (1918-1991):
de um período de corrupção, abusos latório que apresentava um histó-
foi um militar e político brasileiro, primeiro
e desrespeito ao indígena. diretor-geral da Usina Hidrelétrica de Itaipu, rico dos massacres e espoliações
cargo que exerceu por onze anos, durante a vividos pelos povos indígenas no
Décadas de 1960 e 1970 – ditadura militar. (Nota da IHU On-Line)
37 AI-5 (Ato Institucional Número Cinco):
período da ditadura, a 2ª Turma do
Estatuto do Índio decretado pelo general Arthur da Costa e Sil- Supremo Tribunal Federal publica
va, que ocupava a cadeira de presidente, em acórdão que resulta na anulação de
13 de dezembro de 1968, foi um instrumento processos de demarcação de terras
O Estatuto do Índio começa a ser
de poder que deu ao regime militar poderes
gestado em 1969, sendo promulga- políticos absolutos. A primeira consequência indígenas. A 2ª turma do STF apli-
do AI-5 foi o fechamento por quase um ano cou o chamado “marco temporal
34 Shelton H. Davis (1942-2010): antro- do Congresso Nacional. O ato representou o de 1988”, em que se consideram
pólogo americano ativista pelos direitos dos ápice da radicalização do regime de exceção
povos indígenas. Seu trabalho acadêmico e e inaugurou o período em que as liberdades
terras indígenas tradicionalmente
organizacional com as comunidades indíge- individuais foram mais restringidas e des- ocupadas apenas aquelas onde os
nas latino-americanos contribuiu para o mo- respeitadas, constituindo-se em movimento índios se encontravam em 1988, ig-
vimento antropologia interesse público final final de “legalização” da arbitrariedade que
norando, desta forma, os esbulhos
do século XX. (Nota da IHU On-Line) pavimentou uma escalada de torturas e as-
35 Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978. (Nota sassinatos contra opositores reais e imaginá- criminosos e as remoções forçadas
da IHU On-Line) rios ao regime. (Nota da IHU On-Line) no período anterior à CF/88.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Ofensivas das investigações da Comissão de do aos povos indígenas por agentes


Inquérito ganhou tal repercussão do estado no período da ditadura
As ofensivas partem do próprio que ficou conhecido como o escân- militar.
Estado. Em março de 2012 a Co- dalo do século. Mas tal escândalo
missão de Constituição e Justiça e foi abafado com o AI-5 e se pas- Violência
de Cidadania aprovou a Proposta sariam 45 anos sem que o assunto
de Emenda Constitucional 215, que fosse estudado. Esta passagem da Mas a violência segue muito
transfere ao Poder Legislativo a história era abordada até então pe- maior e extensa do que o divul-
responsabilidade pela demarcação los pesquisadores como um inqué- gado pela imprensa atual. Para
das terras indígenas, e em julho do rito que resultou na extinção do que se tenha uma ideia, no dia
mesmo ano o Poder Executivo, por SPI. A ênfase na abordagem da im- seguinte ao assassinato de Semião
meio da Advocacia Geral da União, prensa nacional da época era sobre no Vilhalva39, em Mato Grosso do
publica a Portaria 303/12, em que a corrupção e as irregularidades Sul, a cobertura da imprensa foi
aplicam-se as condicionantes esta- administrativas. O estarrecimen- praticamente nula. Segundo dados
belecidas pelo STF do julgamento to em relação aos crimes contra a do Relatório Violência contra os
do caso das terras Raposa Serra pessoa do índio se deram na me- Povos Indígenas no Brasil, publica-
do Sol,38 estendendo sua aplica- dida em que ganharam também as dos pelo Conselho Indigenista Mis-
ção a todas as terras indígenas. manchetes dos jornais no exterior. sionário – Cimi, edições de 2012,
Desta forma, a portaria determina 2013 e 2014, a violência contra os
Já no contexto da Comissão Na-
que os procedimentos de demar- povos indígenas vem aumentando,
cional da Verdade, em abril de
cação de terras já “finalizados” enquanto a delimitação, demarca-
2013, quando o Relatório Figueire-
sejam “revistos e adequados” aos ção e regularização de terras vêm
do é “descoberto”, o jornal Esta-
seus termos. Além destas, tramita diminuindo, se tornando pratica-
do de Minas publicou uma série de
o Projeto de Lei 1.610/1996, que mente nulo em 2014 e com risco de
reportagens assinadas por Felipe
regulamenta mineração em terras retrocesso. Neste período o Estado
Canedo, evidenciando os crimes
indígenas, em que a despeito da aumentou a repressão e criminali-
cometidos contra os povos indíge-
premissa de consulta prévia aos zação de lideranças, enquanto ru-
nas no período do regime militar. O
povos indígenas, conforme estabe- ralistas empreendem cada vez mais
Relatório Figueiredo é eleito como
lecido pela OIT, a decisão final fica ações de incitação ao preconceito,
o conjunto documental que traria
30 a cargo de órgãos como o Senado provas das violências promovidas
ao ódio e à violência física contra
Federal. os povos indígenas. Podemos citar
diretamente pelo Estado, através
como exemplos o assassinato de
de seus agentes, ou indiretamen-
Oziel Terena,40 em maio de 2013,
IHU On-Line – Qual foi o papel te, quando por civis, por interesses
em uma operação de reintegração
da imprensa, à época, na discus- políticos e econômicos, com a co-
de posse pela Polícia Federal, e
são sobre violência a partir do Re- nivência e/ou omissão do Estado.
Josiel Gabriel Terena, atingido em
latório Figueiredo? Como avalia a
Tido como desaparecido, acre- tentativa de morte por fazendeiros
cobertura jornalística de hoje so-
ditava-se que esta documentação e jagunços, ambos em Mato Grosso
bre os fatos envolvendo violência
havia se perdido em um incêndio do Sul.
contra povos indígenas?
criminoso que aconteceu nos ar-
A violência se espalha por diver-
Elena Guimarães – A dimensão quivos do Ministério da Agricultura
sos estados, de Norte a Sul. Pode-
de violência exposta pelo resultado em 1967. O Relatório Figueiredo
mos citar o caso dos Tupinambá,
foi identificado por Marcelo Zelic,
38 Raposa Serra do Sol: área de terra
no sul da Bahia, que vêm sofrendo
nos arquivos do Museu do Índio,
indígena (TI) situada no nordeste do estado violências constantes desde que se
em meio aos autos do Processo da
brasileiro de Roraima, nos municípios de iniciou o processo de identificação
Normandia, Pacaraima e Uiramutã, entre os Comissão de Inquérito de 1967.
de terras, em 2004. São diversos
rios Tacutu, Maú, Surumu, Miang e a fron- Esta documentação veio transferi-
teira com a Venezuela. É destinada à posse e constantes os assassinatos em
da da Funai/Brasília para o Museu
permanente dos grupos indígenas ingaricós,
macuxis, patamonas, taurepangues e uapi- do Índio em 2008, quando recebeu 39 O sítio do Instituto Humanitas Unisinos
xanas. Raposa Serra do Sol foi demarcada uma descrição sumária. Esta “des- – IHU vem publicando uma série de repor-
pelo Ministério da Justiça através da Porta- coberta”, no contexto da Comis- tagens sobre o assassinato. Entre elas, “Mais
ria Nº 820/98, posteriormente modificada um capítulo sangrento da saga Guarani-Kaio-
pela Portaria 534/2005. A demarcação foi são Nacional da Verdade, ficou em wá”, disponível em http://bit.ly/1MIdA30.
homologada por decreto de 15 de abril de evidência, e o Relatório Figueiredo Confira mais em http://bit.ly/1OuMP2z.
2005, da Presidência da Republica. Em 20 chegou a ser citado pela BBC, em (Nota da IHU On-Line)
de março de 2009, uma decisão final do STF 40 O sítio do Instituto Humanitas Unisinos
confirmou a homologação contínua da Terra
maio de 2014, como “uma das oito – IHU vem publicando uma série de reporta-
Indígena Raposa Serra do Sol, determinando descobertas mais importantes da gens sobre o assassinato. Entre elas, “Terena
a retirada dos não indígenas da região. Nas Comissão Nacional da Verdade”, é morto em reintegração de posse na Ter-
Notícias do Dia do site do Instituto Humani- por ser identificado como um dos ra Indígena Buriti no Mato Grosso do Sul”,
tas Unisinos – IHU é possível ler entrevistas disponível em http://bit.ly/1ll9qEU. Confira
e ampla informação sobre o tema. (Nota da raros documentos disponíveis que mais em http://bit.ly/1Ta6g1W. (Nota da
IHU On-Line) denunciam o tratamento dispensa- IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

emboscadas e aldeias invadidas terial e simbólica destes povos. mos testemunhando problemas de
por pistoleiros. Os Tenharim, no Enquanto não houver reconheci- usurpação e luta pela terra, com
início de 2014, foram aprisionados mento efetivo e garantia destes a violência contra os índios au-
na cidade de Humaitá, no Amazo- territórios, não podemos conside- mentando a cada dia, enquanto o
nas, quando um grupo de pessoas rar que se completou a transição estado brasileiro não efetivar o re-
passou mais de um mês impedidas para uma democracia plena. conhecimento destas terras, con-
em seus direitos de ir e vir. No Rio forme previsto pela Constituição
É preciso apurar em maior pro-
Grande do Sul, uma parte de po- Federal de 1988.
fundidade os inúmeros casos de
pulação expulsou os Kaingang que
espoliação e violação de direitos Estas memórias adquirem mais
estavam acampados nas margens
humanos dos povos indígenas que importância ainda, na medida em
de uma rodovia estadual, no muni-
não chegaram a ser devidamente que podem servir de instrumen-
cípio de Erval Grande, com o apoio
estudados pela Comissão Nacional tos para a reparação de injustiças
da Polícia Militar. O quanto destes
da Verdade, tanto em virtude do históricas. Se hoje não temos mais
episódios é abordado e debatido
tempo estipulado para as inves- o “tronco” como instrumento de
pela grande imprensa? Além dis-
tigações, quanto para a redação tortura, tal qual o denunciado no
so, qual é o espaço dado para que
do relatório. Além disso, entre as Relatório Figueiredo, há na práti-
o indígena exponha sua voz e seu
recomendações, urge como dever ca cotidiana a violência da margi-
ponto de vista da história?
do Estado adotar “medidas de não nalização do índio, sobretudo em
repetição”, de forma a coibir que regiões onde há intensas disputas
IHU On-Line – De que forma o sejam cometidas novas violações. de terras. Esta marginalização não
resgate da memória do povo indí- é somente material, mas, sobre-
gena pode contribuir para a cons- Memória e Reparação tudo, simbólica. A violência, além
tituição de políticas públicas que de física, se dá também no apa-
garantam a inclusão sem destituir Ao falarmos das relações entre gamento das memórias, no apaga-
a cultura dos povos nativos? memória e reparação, penso na re- mento das diferenças, no silêncio,
Elena Guimarães – Se procurar- flexão da professora Maria Cecília na ausência da voz. Para que haja
mos nos debruçar sobre a história Coimbra,41 do grupo Tortura Nun- reparação, há que se fazer ouvir
destes povos, em particular no que ca Mais/RJ. “Falar de reparação estes que sempre foram apartados
é, principalmente, apontar para o da história oficial. Estes que são
diz respeito ao vivido no período
da ditadura civil-militar brasileira, combate que se trava hoje em tor- sinônimos de luta e resistência ao 31
entre os anos 1964-1985, a falta de no de determinadas memórias, em modelo de desenvolvimento políti-
informação é ainda maior. Vivemos especial nos países que passaram co, econômico e social imposto por
hoje a reboque de uma história si- por recentes ditaduras” (Coimbra, grupos dominantes que se perpetu-
lenciada, de onde só temos acesso 2008). Enquanto não houver re- am no poder.
a parte dos acontecimentos. É uma conhecimento público, por parte
história dos “vencedores”. Aí nos do estado, e medidas efetivas de IHU On-Line – Como é contada a
deparamos com o caminho a ser reparação, a partir de afirmações história do índio no Brasil?
trilhado de forma a reconstruirmos públicas da memória dos povos
atingidos, reviveremos práticas do Elena Guimarães – Os povos indí-
as histórias de resistência, de luta.
passado no presente. Continuare- genas – como outros grupos conside-
Ainda que a Constituição de 1988 rados minoritários, remanescentes
tenha representado um avanço em 41 Cecília Coimbra: é psicóloga, histo- dos quilombos, povos ribeirinhos e
relação à conquista de direitos dos riadora, fundadora do Grupo Tortura Nun- caboclos – são a face da população
povos indígenas, e que seja con- ca Mais, no Rio de Janeiro, e professora na brasileira que é deliberadamente
Universidade Federal Fluminense – UFF,
siderada um marco de anistia aos vinculada ao programa de Pós-Graduação ocultada. Esta ocultação se dá na
povos indígenas, as violações de Estudos da Subjetividade. Formada em His- medida em que são obliterados da
direitos humanos contra indígenas tória, em 1966, pela Universidade Federal do história, das narrativas e da memó-
Rio de Janeiro – UFRJ, também é graduada
perduraram até sua promulgação e em Psicologia pela Universidade Gama Filho.
ria. Os grupos indígenas sempre fo-
se reproduzem ainda hoje. Mesmo É mestre em Psicologia da Educação pela ram vistos, em diferentes momen-
que superado o modelo integra- Fundação Getulio Vargas-FGV-Rio, doutora tos de nossa história, como aqueles
cionista, os indígenas continuam em Psicologia Escolar e do Desenvolvimen- que deveriam ser eliminados, ou,
to Humano na Universidade de São Paulo-
padecendo com o não reconheci- -USP, onde também realizou pós-doutorado na melhor das hipóteses, integra-
mento de seus territórios, expul- em Ciência Política. Foi militante do Partido dos, “civilizados”… mas, em última
são de suas terras e assassinato de Comunista Brasileiro – PCB. Cecília Coim- instância, deixarem de ser o que
bra concedeu diversas entrevistas à IHU
lideranças. Sendo a terra a razão On-Line, entre elas “A história do Brasil é
são – indígenas. Até a denominação
de ser do índio, aquela que confere a história da tortura”, publicada na edição genérica destes povos – índios – já
sentidos, reúne valores e crenças, 473, de 17-03-2014, disponível em http://bit. recebeu diversos tratamentos, tais
ly/1hQty08, e “A proteção do privado que de-
a expropriação de terras constitui como silvícolas, aborígenes, selva-
sumaniza o outro”, publicada nas Notícias do
grave infração contra direitos hu- Dia, de 30-07-2015, disponível em http://bit. gens… em geral em sentido depre-
manos, por levar à extinção ma- ly/1TfZ0Br. (Nota da IHU On-Line) ciativo, desconsiderando a riqueza

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

da diversidade dos diferentes po- mentos materiais que não dizem povos indígenas, temos ainda hoje
vos e diversas línguas. respeito às memórias, vivências e a continuidade de um pensamento
produção de saberes. Arrisco dizer que considera os povos indígenas
E o que a sociedade brasileira
que há uma violência simbólica na
sabe sobre os índios que aqui habi- e populações tradicionais como
medida em que se ignora e não se
tam? O ensino da história de Brasil obstáculos a certo modelo de de-
valoriza a diversidade de línguas,
se dá em alguns dos nove anos de senvolvimento, herdeiro direto
usos, costumes, tradições, saberes
educação formal, mas quais são os dos Programas de Aceleração do
e conhecimentos.
diálogos e questionamentos que
Crescimento.
suscitam acerca da pluralidade Um importante movimento que
cultural de nosso país? Em 2008 foi vai de encontro a isso é o crescen- Hoje vivemos uma dicotomia, se
promulgada a Lei 11.645/08, que te número de indígenas que saem por um lado vemos o Estado buscan-
institui o ensino de História e Cul- de suas aldeias para estudar nas do trazer à luz do dia as violações
tura Africana, Afro-brasileira e o universidades, ocupando cadeiras
de direitos humanos contra povos
ensino de História e Cultura Indí- nos cursos de graduação, mestra-
gena nas escolas de Ensino Funda- do e doutorado. Uma particulari- indígenas no período da ditadura
mental e Médio. Nesse momento, dade destes pesquisadores é que militar, por outro temos um Estado
nos deparamos com um desafio. eles trazem consigo uma noção ainda associado aos interesses dos
Constata-se que sequer na forma- de comunidade que nos falta nes- grandes proprietários rurais, gru-
ção de nível superior, nos currícu- tes tempos de individualismo. Eles pos econômicos de investimento,
los dos cursos de História, é dada chegam às universidades em bus- mineradoras e empreiteiras. São
a devida importância a estas histó- ca de conhecimentos e formação
estes mesmos grupos que financiam
rias. Além da necessidade de disse- que visam a contribuir de alguma
minação do conhecimento acerca forma com suas comunidades e as campanhas eleitorais, elegendo
da(s) história(s) e cultura(s) dos seus povos. Mas o encontro com o expressiva bancada em defesa de
povos indígenas na rede de ensino conhecimento produzido pela so- seus próprios interesses.
médio e fundamental. ciedade envolvente não se dá no
E agora deputados de frente ru-
sentido de assimilação do índio. É
uma apropriação de saberes pelos ralista ingressam com pedido de
IHU On-Line – Por que o dito ho-
indígenas, em que estes são tidos instauração de uma CPI da Funai,
mem branco não consegue com-
32 preender o humanismo indígena como ferramentas e, trabalhando de forma a colocar em xeque os
e em que medida a violência ma- em sentido de mão dupla, havendo laudos antropológicos de demar-
terializa essa incompreensão? maior valorização dos saberes tra- cação de terras indígenas. Se a
dicionais. Mas é importante termos aprovação da PEC 21542 já tem por
Elena Guimarães – Vivemos ain- sempre em vista que não é um só
da cercados de grande ignorância objetivo que a demarcação das
povo, uma só língua. E que o com-
em relação à produção de conhe- bate a esta visão genérica e a esta terras indígenas esteja a cargo do
cimento, aos saberes, usos e costu- violência simbólica se dá com os Congresso, a CPI da Funai só refor-
mes dos povos indígenas. O que se povos indígenas ocupando espaços ça e confirma o intuito secular de
propaga e difunde, via de regra, é e afirmando sua voz. deputados ruralistas continuarem
uma visão genérica do índio, como
legislando em prol de si mesmos. ■
se o “ser índio” estivesse vinculado
IHU On-Line – Deseja acrescen-
a certa autenticidade mítica, como 42 PEC 215: Proposta de Emenda à Cons-
tar algo?
se houvesse um conjunto de signos tituição 215, de 2000. Pretende delegar ao
que autorizassem tal indivíduo a Elena Guimarães – A despeito da Legislativo a aprovação de demarcações de
terras indígenas, quilombolas e áreas de pre-
ser reconhecido como índio ou não. mudança de paradigma a partir das servação ambiental. A proposta foi aprovada
Nesta visão genérica, índio não mobilizações indígenas, propicia- por comissões internas da Câmara e segue
pode usar relógio, celular, com- dos pela Constituição Federal de os trâmites em plenário. Confira a íntegra da
proposta em http://bit.ly/1kpiLvM. Nas No-
putador, internet. Este é o sumo 1988 e a ratificação pelo Brasil da
tícias do Dia do sítio do IHU há uma série de
da ignorância, que entende como Convenção 169 da OIT, que garan- materiais sobre o tema. Confira em ihu.unisi-
“identidade” um conjunto de ele- te o direito à consulta prévia aos nos.br (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS...
—— Relatório Figueiredo: crimes continuam 50 anos depois. Entrevista com Elena Guimarães,
publicada nas Notícias do Dia, de 01-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, disponível em http://bit.ly/1Hs7Hbl.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Inabilidade política e direitos


que não se efetivam
Para Lucia Rangel, o Brasil cultivou historicamente falta de respeito
com os povos nativos. O resultado é uma classe política inábil com o
tema e direitos não estabelecidos de fato
Por João Vitor Santos

C omo compreender a relação do


Brasil com os povos indígenas?
Por que há uma falta de acei-
tação dos direitos de povos originários
e movimentos para destruir suas for-
da de ar novo, capaz de compreender a
necessidade de preservar os modos de
vida indígena. “A esquerda é ainda in-
capaz de compreender a alteridade, a
diversidade. E só vai compreender isso
mas de vida? Para a antropóloga Lucia na hora em que mudar a visão que tem
Helena Rangel, a resposta tem raízes do Estado, do que é desenvolvimento
históricas, pois o índio sempre foi vis- econômico”, aponta. Para Lucia, essa
to como mão de obra barata ou aquele ideologia acaba subvertendo aquela
que tem de sair da terra e dar espaço que sempre foi a lógica plural da es-
ao desenvolvimento. “O índio é aquele querda, “de uma maneira que atende
que tem que ceder, sempre. Seja para só aos interesses da burguesia”. E so-
virar mão de obra ou entregar suas ter-
ras. Isso implicou numa relação de sub-
bre o Congresso Nacional, resume: “a 33
última legislatura e essa atual são as
missão”, pontua. Assim, entende que piores, é anti-indígena, algo que nunca
“essa relação por dominação acabou pude imaginar no século XXI”.
construindo uma falta de respeito da
sociedade brasileira em relação aos po- Lucia Helena Rangel é doutora em
vos nativos”. O problema é que, apesar Antropologia pela Pontifícia Universi-
de se tentar corrigir essa distorção his- dade Católica de São Paulo – PUC-SP
tórica – a Constituição de 1988 é um com a tese “Os Jamamadi e as arma-
instrumento disso –, a sociedade pa- dilhas do tempo histórico”. Elae é pro-
rece não querer aceitar, não entende fessora do Departamento de Antropolo-
a cultura do outro e apenas atualiza o gia da Faculdade de Ciências Sociais e
pensamento colonial hegemônico. do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Ciências Sociais da PUC-SP. Também
Na entrevista, concedida por telefo-
é assessora do Conselho Indigenista
ne à IHU On-Line, a professora se re-
Missionário – Cimi (Regional Amazônia
vela decepcionada com os governos de
Ocidental) e do Cimi Nacional.
esquerda no Brasil e pelo mundo. Como
muitos, acreditava que seria uma lufa- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Numa perspectiva a relação com os indígenas foi sem- no século XVIII, vamos ter a Guerra
história, como entender a relação pre de interesse, visando à mão de
dos Tapuias1 na região norte.
do Brasil com os seus índios? obra deles. No fundo, Portugal que-
Lucia Helena Rangel – A implan- ria encontrar ouro, mas não encon- 1 Guerra dos Tapuias: aconteceu nos ser-
trou facilmente. Então, no caso da tões da Capitania do Rio Grande do Norte.
tação das colônias portuguesas no O conflito foi uma tentativa de expulsar os
Brasil não foi igual em todo país. colônia do Grão Pará, apostou na índios da região para o desenvolvimento da
Cada uma das colônias teve alguns mão de obra e essa foi sua princi- pecuária. Durante as décadas de 1670 e 1680,
os tapuias enfrentavam vários conflitos com
processos, como por exemplo, a pal característica. Só que esse uso os vaqueiros. Os indígenas ficaram numa si-
colônia do norte, no Grão Pará. Ali, não foi tão tranquilo e pacífico e, tuação de imobilidade com o avanço da pe-

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Quando chega o século XIX, e a cífica. Isso vai marcar nossa histó- racismo muito forte, que implica
abolição da escravidão é um fato ria e marca a relação dos indígenas naquilo que Foucault4 fala que é o
premente, o congresso imperial com a sociedade colonial, nacional, racismo. Existe uma categoria, ou
passa a debater o assunto. Para em cada uma das regiões. E marca mais de uma categoria, escolhida
uns, o melhor era abolir a escra- outra coisa: o índio é aquele que para ser exterminada.
vidão tão-somente. Isso porque tem que ceder, sempre. Seja para
pensavam, em especial os repre- virar mão de obra ou entregar suas IHU On-Line – A senhora pesqui-
sentantes da região norte, que ha- terras. Isso implicou numa relação sa a questão indígena há cerca de
via muita mão de obra disponível. de submissão do índio, de denomi- 40 anos. Olharmos para esse perí-
Já os deputados do nordeste e do nação na qual o índio só tem que odo, essas últimas décadas, o que
sudeste viam o problema de forma submeter porque ele é o errado, é evoluiu e o que segue estagnado?
diferente porque a agricultura e pagão, não é cristão, não é branco, A mineração, por exemplo, ainda
a mineração estavam sendo feitas fala língua estranha, tem liberda- é a principal ameaça aos povos
ainda com o braço escravo vindo da de... E essa relação por dominação originários?
África. Por isso, defendiam que era acabou construindo uma falta de
preciso ter uma mão de obra para respeito da sociedade brasileira Lucia Helena Rangel – Temos
colocar no lugar dos negros, caso em relação aos povos nativos. avanços que são fruto de conquista
se abolisse a escravidão. dos indígenas, que se mobilizaram
e passaram a ter espaço para luta
Diante disso, nessas regiões, a IHU On-Line – Relação essa que
pelos seus direitos. Se retroceder-
escravidão para os indígenas foi vem se atualizando nos dias de
mos aos anos 70, em plena Ditadura
sempre uma possibilidade premen- hoje?
Militar, veremos um dos momentos
te. Portugal decretava guerra justa
Lucia Helena Rangel – Exatamen- terríveis para os indígenas, porque
contra os índios, sobretudo no perí-
te. Se a gente reconstrói a História, o Brasil está abrindo estrada, cons-
odo da mineração em Minas Gerais,
veremos que essa tônica não mudou. truindo hidroelétricas, chegam as
pois era um território mais cobiça-
A conquista da demarcação de ter- máquinas que não respeitam e pas-
do. Isso porque só vão encontrar
ras no Brasil republicado é, até uma sam por cima, mas ao mesmo tem-
ouro no século XVIII e aí é preciso
determinada época, muito parcial. po veremos um momento de to-
interditar tudo, grandes áreas de
Isso se dá durante todo o tempo de mada de consciência. E isso tanto
terra. Então, temos uma relação
existência do SPI2. Sim, demarca, por parte das lideranças indígenas
34 com os indígenas que varia entre
mas somente um pedacinho. Por como daqueles que trabalhavam
esses dois interesses: ou se quer a
quê? Porque assim vão deixar de ser com os índios, os antropólogos, por
mão de obra potencial que os povos
índios. A política era essa, integrar o exemplo, que passam a ver os pro-
representavam ou se tem uma rela-
índio à comunhão nacional. blemas sociais envolvidos na vida
ção de expropriação de terra, por-
que vai fazer um empreendimento, desses povos, e não somente a cul-
Essa integração não significa es-
seja agrícola pastoril ou mesmo de tura e sistema de parentesco.
tabelecer uma relação integrati-
mineração, dentro das terras indí- va, mas significa deixar de ser in- Teremos, ainda, a Igreja toman-
genas. O fluxo de escravos vindos dígena, querer a terra. Depois da do consciência de que fazia um tra-
da África é importante para Portu- Constituição de 1988 é que tivemos balho missionário alienado, porque
gal porque mascara a questão local, uma abertura maior para o reco-
que é a expropriação, a expulsão do nhecimento dos direitos dos índios, se atribui o descobrimento do Brasil, em 22
povo ou mesmo a escravização. de abril de 1500. (Nota da IHU On-Line)
ainda que continue uma relutân- 4 Michel Foucault (1926-1984): filóso-
cia muito grande. Dizem coisas do fo francês. Suas obras, desde a História da
A tônica do conflito tipo: “mas como?! É muita terra Loucura até a História da sexualidade (a
para pouco índio”. Ou seja, repre- qual não pôde completar devido a sua morte)
Essa oscilação entre ver no índio situam-se dentro de uma filosofia do conhe-
sentando por um lado um discurso cimento. Foucault trata principalmente do
a força de trabalho ou como aque- falso e por outro um desconheci- tema do poder, rompendo com as concep-
le que tem que sair da terra para mento do que são estas sociedades ções clássicas do termo. Em várias edições,
dar lugar aos empreendimentos é a indígenas que aqui viviam desde a IHU On-Line dedicou matéria de capa a
Foucault: edição 119, de 18-10-2004, dispo-
tônica, sempre foi. E nenhuma das antes de Cabral3. E ainda há um nível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203,
duas relações se dava de forma pa- de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/
2 Serviço de Proteção ao Índio (SPI): ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, in-
cuária e construíram uma barreira contra a parte constituinte do Ministério da Agricul- titulada ‘História da loucura’ e o discurso
colonização, o chamado “muro do demônio”. tura, Indústria e Comércio (MAIC), foi um racional em debate, disponível em http://
Os dois povos entraram num conflito vio- órgão público criado durante o governo do bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo
lento, levando à “Guerra dos Bárbaros”, ou Presidente Nilo Peçanha, em 1910, com o biopolítico da vida humana, de 13-09-2010,
“Levante Geral dos Tapuias”. Os portugueses objetivo de prestar assistência à população disponível em http://bit.ly/ihuon343, e edi-
acreditavam estar lutando contra o próprio indígena do Brasil. O Serviço foi organizado ção 344, Biopolitica, estado de exceção e vida
demônio nos sertões brasileiros. Os Tapuias pelo Marechal Rondon, seu primeiro diretor. nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/
eram os não tupis, povo indígena agressivo, O SPI foi extinto e substituído pela Funai, em ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos
que passou a destruir fazendas, matar seus 1967. (Nota da IHU On-Line) Cadernos IHU em Formação, disponível
moradores, invadir igrejas e destruir imagens 3 Pedro Álvares Cabral (1520-1526): fidal- em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault.
sacras. (Nota da IHU On-Line) go e navegador português a quem geralmente (Nota da IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

tinha espírito de apaziguar dando seria o momento de acolhimento fica escondido e nunca foi encarado
escola para o índio, ensinando uma dos direitos e expansão de nossa de fato. Até os que reivindicam re-
religião para que tudo ficasse bem. cidadania, dos direitos de todos, forma agrária tiveram, nesses últi-
Ou seja, entende também que chegamos a um período em que mos anos, menos voz do que tinham
aquilo que ela fazia era a morte menos se demarcou terra indígena. antes. Isso é ruim, decepcionante.
dessas culturas e assim temos uma Fomos atravessados por um governo E estou falando como alguém que
mobilização que ainda vai envolver que fez questão de ganhar eleição e sempre votou na esquerda, sempre
jornalistas, juristas, entre outros. para ganhar a eleição no Brasil você acreditei nessa esquerda. Mas, a
Pela primeira vez, temos juristas tem que concordar e fazer aliança gente vai estudando, a cabeça vai
pensando na questão do ponto de com setores da direita. E são exa- mudando e vamos entendo melhor a
vista dos indígenas e não do ponto tamente aqueles setores que negam nossa história, nossa sociedade.
os diretos dos mais pobres, os di-
de vista da lei brasileira. Isso é um
reitos à diferença, da expansão da IHU On-Line – E sobre o Con-
ganho grande, a construção de uma
cidadania. São aquelas elites que gresso Nacional, como avalia a
visão jurídica a partir das necessi-
foram criadas no espírito escravo- compreensão e adesão da ques-
dades indígenas. Aí se esboça algo
crata. Para mim, especificamente, tão indígena pelo Legislativo?
que tem frutos positivos, a demar-
e acho que para os movimentos in-
cação de terras. Lucia Helena Rangel – A última
dígenas, foi uma decepção.
legislatura e essa atual são as pio-
Conquistas res, é anti-indígena, algo que nun-
constitucionais IHU On-Line – Por que a es-
querda, de modo geral e não só ca pude imaginar no século XXI,
no Brasil, também na América em 2015. Temos uma maioria no
Essa demarcação começa a acon- Congresso Nacional atuando e que-
tecer timidamente até a constituin- Latina, não é capaz de entender
a causa indígena e suas relações, rendo legislar contra os indígenas.
te de 88, que escancara que tem Mas o que é isso?! Depois de toda a
de demarcar. Mas veja: não demar- com a terra, por exemplo?
história, tudo que já vivemos, che-
cou. Entretanto, é preciso que se Lucia Helena Rangel – A esquer- garmos a esse ponto? Bem, então
diga que demarcou quase metade da é incapaz disso porque tem uma significa que não andamos nada.
daquilo que era reivindicação dos visão, talvez por heranças teóricas, Estamos, ainda, vivendo no período
povos. Na Constituição temos ou- explicativas, políticas, que acre- colonial, quando a discussão ainda
tro ganho, um ganho de cidadania ditam que o Estado é a instituição era se índio pode ou não ter terra.
para todos nós, que é o reconhe- que vai promover a grande igualda- Basta ver a constituição do I Impé- 35
cimento à educação diferenciada de. Essa falácia da esquerda é com- rio, quando discutiam se os índios
e bilíngue para os índios. Significa plicada, pois gerou ditaduras cruéis tinham ou não direito de ter terras.
que, pela primeira vez, o Brasil re- – veja o caso da União Soviética – Como podemos voltar dois séculos?
conhece que não é uma nação mo- ou ditaduras que nem sabem mais E essa é a pior legislatura!
nolinguística e sim plurilinguística, para onde vão ir – como é o caso
com muitas diversidades. Um dia de Cuba. E essa falácia se torna ain- Outro dia, vi um economista fa-
chegaremos lá, reconhecendo que da mais complicada para povos que lando que o senso demográfico mos-
o Brasil não é só uma nação, mas não querem um Estado dessa forma. trou que quase 85% da população
um Estado plurinacional. Esses povos são tomados como igno- brasileira está vivendo em cidades.
rantes, atrasados, como se fossem Então, é uma população urbana,
Mediocrização obra do passado, como se tivessem mas o voto em parlamentares ru-
ficado para trás na história. ralistas foi muito grande. Como é
O Estado brasileiro mal conse- possível? Você é da cidade e vota no
A esquerda é ainda incapaz de ruralista? São contradições e para-
guiu se formar e já foi se medio-
compreender a alteridade, a diver- doxos que ocorrem na nossa vida.
crizando com tanta ditadura, vai
sidade. E só vai compreender isso
e volta aparece a ditadura, vai e
na hora em que mudar a visão que
volta os políticos se arvoram como IHU On-Line – De que forma
tem do Estado, do que é desenvol-
donos da verdade – como se não le- podemos compreender essa ina-
vimento econômico. Essas ques-
gislassem para as pessoas, como se bilidade do Congresso em enten-
tões estão muito bem formuladas
legislassem para seus valores, suas der o índio na materialização da
para a esquerda, mas de uma ma-
Igrejas. E isso representa ameaça neira que atende só aos interesses PEC 2155? Quais são as questões
às conquistas da Constituição. da burguesia. É isso que a esquerda 5 PEC 215: Proposta de Emenda à Cons-
não percebeu ainda. Fica mais do tituição 215, de 2000. Pretende delegar ao
IHU On-Line – Como avalia a po- lado da burguesia quando prega o Legislativo a aprovação de demarcações de
lítica indigenista desses 13 anos desenvolvimento. terras indígenas, quilombolas e áreas de pre-
de um governo dito de esquerda? servação ambiental. A proposta foi aprovada
Observe os programas sociais. Não por comissões internas da Câmara e segue
Lucia Helena Rangel – Para nossa digo que não são bons, mas nenhum os trâmites em plenário. Confira a íntegra da
proposta em http://bit.ly/1kpiLvM . Nas No-
tristeza, quando chegamos num go- deles tocou num ponto fundamental tícias do Dia do sítio do IHU há uma série de
verno de esquerda – ou mais popu- para a sociedade brasileira: a refor- materiais sobre o tema. Confira em ihu.unisi-
lar , nem sei que nome tem –, que ma agrária. Esse ponto passa longe, nos.br (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

de fundo da relação ruralistas e nai8 ainda tem somente um instru- e o que pode nos revelar acerca
indígenas? mento legal, além da Constituição de outros conflitos?
de 1988, que é o Estatuto do Índio
Lucia Helena Rangel – Os ruralistas Lucia Helena Rangel – A Histó-
não se conformaram com os direitos de 1971. É, inclusive, do tempo da ria de Mato Grosso do Sul é o íco-
que os índios passaram a ter, ou que ditadura. Aquilo que a Constituição ne desse processo que falamos até
foram reconhecidos na Constituição. já garantiu nem está previsto nesse agora. E é o ícone, sobretudo, de
Raposa Serra do Sol6, que ficou 40 Estatuto. A Funai e os indígenas não esforço de negar a Constituição, o
anos até chegar no Supremo tribunal conseguem fazer ser votado o novo exemplo mais triste que temos no
Federal – STF, forçou os ministros a Estatuto, simplesmente sumiu do Brasil. Temos ali uma situação de
estudarem a questão pela primeira Congresso Nacional. O que temos é genocídio, sim. A população indí-
vez, que foi quando eles se deram projeto de lei, de emendas consti- gena de Mato Grosso do Sul é uma
conta de que essa era uma questão tucionais, tentando alterar o Direito população numerosa e sempre foi.
social. E tão importante que acaba- Constitucional. E o que foi feito com essa gente?
ram dando ganho de causa. Embora Foram exprimidos em parcelas de
Isso é muito grave, um mau
ainda houvesse alguns ministros, que terra demarcada, foram enfiando
exemplo para todo o mundo. E, de-
são também prepostos dos ruralis- todo mundo ali dentro. É pior do
pois, essa elite reclama do ladrão
tas, dos latifundiários, que criaram que os campos de concentração
que rouba casa, que as pessoas têm
as tais condicionantes. Agora, mes- porque não tem autoridade lá den-
mo assim não conseguiram barrar o de se trancar. Mas olhe o exemplo
tro, não tem ninguém que manda.
processo. Não tem como tirar esse que é dado, nem a Constituição
eles respeitam! Isso sem falar na Assim, temos uma tensão entre
direito do índio, pois é um direito
corrupção, que é roubo igual ao do os ocupantes de uma terra minús-
histórico e real. Mas eles ficam ten-
ladrãozinho. Esses são os exemplos cula para tanta gente como algo in-
tando, tentando...
dados. Esse é o país onde a gente controlável. Nem os indígenas con-
A última tentativa foi essa: tirar vive e que nossos legisladores es- seguem controlar, pois não podem
do Executivo a prerrogativa da de- tão reforçando, o país da ladroa- viver todos no mesmo espaço. O di-
marcação e passar para o Legisla- reito de acesso à terra é um direito
gem, da grilagem de terra, o país
tivo sob o argumento de que todo que eles têm por nascimento, por
dos benefícios só para a elite, dos
mundo tem que opinar. Mas que casamento, cada comunidade tem
privilégios, etc.
36 história é essa?! O que está por trás
disso: não demarcar. Assim, se con-
uma base territorial que é formada
em função da relação entre famí-
seguirem aprovar a PEC 215, acabou IHU On-Line – Como entender o lias. Agora, imagine pegar uma co-
e nunca mais vai ter demarcação, genocídio de Mato Grosso do Sul9 munidade inteira e colocar na terra
porque todo o processo de demarca- desde uma perspectiva histórica, de outra comunidade. Ela não tem
ção vai ficar engavetado. Até hoje, direito sobre a terra, e isso acaba
genas como “relativamente capazes”, sendo
por exemplo, o Congresso Nacional em um despautério, descalabro de
tutelados por um órgão estatal. Atualmente,
não votou o Estatuto do Índio7. A Fu- cabe à Fundação Nacional do Índio a tutela relações sociais tensas e violentas.
estatal. Em seu primeiro artigo, a lei estabe- E, claro, há falta de terra, e os po-
6 Raposa Serra do Sol: área de terra in- lece que seu objetivo é “integrar os índios à vos não podem plantar porque não
dígena (TI) situada no nordeste do estado sociedade brasileira, assimilando-os de for-
brasileiro de Roraima, nos municípios de ma harmoniosa e progressiva”. (Nota da IHU têm espaço.
Normandia, Pacaraima e Uiramutã, entre os On-Line)
rios Tacutu, Maú, Surumu, Miang e a fron- 8 Fundação Nacional do Índio- Funai: é E se não planta, o que faz um ho-
teira com a Venezuela. É destinada à posse o órgão indigenista oficial do Estado brasilei- mem? Ele é o provedor da família.
permanente dos grupos indígenas ingaricós, ro, criado pela Lei nº 5.371, de 5 de dezembro Daí o mandam trabalhar, e ele aca-
macuxis, patamonas, taurepangues e uapi- de 1967, vinculado ao Ministério da Justiça.
ba indo parar na usina de cana para
xanas. Raposa Serra do Sol foi demarcada Sua missão é coordenar e executar as políti-
pelo Ministério da Justiça através da Porta- cas indigenistas do Governo Federal, prote- ganhar uma miséria, para ser ex-
ria Nº 820/98, posteriormente modificada gendo e promovendo os direitos dos povos plorado e então voltar bêbado para
pela Portaria 534/2005. A demarcação foi indígenas. São também atribuições da Funai casa. Não querer ver essas coisas,
homologada por decreto de 15 de abril de identificar, delimitar, demarcar, regularizar
2005, da Presidência da Republica. Em 20 e registrar as terras ocupadas pelos povos não querer consertar isso é de uma
de março de 2009, uma decisão final do STF indígenas, promovendo políticas voltadas ao maldade que nunca vi na vida. É
confirmou a homologação contínua da Terra desenvolvimento sustentável das populações maldade de alma, porque se jul-
Indígena Raposa Serra do Sol, determinando indígenas, reduzindo possíveis impactos am-
gam no direito de escorraçar, de
a retirada dos não indígenas da região. Nas bientais promovidos por agentes externos. A
Notícias do Dia do site do Instituto Huma- Funai também tem por atribuição, prover o ver o outro morrer. O que tem por
nitas Unisinos – IHU é possível ler diversas acesso diferenciado aos direitos sociais e de trás disso? Especular, ampliar as
entrevistas especiais sobre o tema. (Nota da cidadania dos povos indígenas, como o di- culturas, pregam que querem pro-
IHU On-Line) reito à seguridade social e educação escolar
7 Estatuto do Índio: é o nome pelo qual indígena. (Nota da IHU On-Line)
duzir cana, que o futuro é o etanol.
ficou conhecida a lei brasileira de número 9 Genocídio refere-se ao que vem sofrendo O mesmo com a soja; primeiro foi
6.001, que dispõe sobre as relações do estado os guarani kaiowá, em Mato Grosso do Sul. O o gado, depois a soja e a cana. São
e da sociedade com os povos indígenas. Essa sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
sempre produções que não dinami-
lei entrou em vigor em 1973. O Estatuto do tem amplo material publicado e vem acom-
Índio segue o mesmo conceito do Código Civil panhando a questão. Confira em http://bit. zam o mercado interno, são produ-
Brasileiro de 1916 e considera os povos indí- ly/1SVs6WJ. (Nota da IHU On-Line) ções para o mercado internacional.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

E se comportam a partir de preços gena. Em lugares onde os índios têm do medo é negar a si mesmo, sua
especulativos. terra, há minérios, muita madeira, família, seus ancestrais. Se formos
e os índios têm esse patrimônio vio- colocar numa perspectiva psíquica
Especulação agrícola lentado. O Congresso Nacional co- ou psicossocial, veremos que esta-
meçou a discutir a reforma do Códi- mos diante de situações que mere-
Esse mal a agricultura brasileira go Florestal, o qual nem tinha sido ceriam carinho e cuidado para que
sempre sofreu, o preço especulati- aprovado quando, naquele ano, o as pessoas possam recompor a sua
vo. Tanto da terra, quanto dos pro- desmatamento em Mato Grosso e subjetivação, sua individualidade e
dutos. Ganha-se muito dinheiro e no Pará foi um horror. também suas coletividades.
se aplica muito dinheiro, num jogo Assim, existe a violência contra a
financeiro que é para vender a ideia pessoa, o patrimônio, uma série de Desafio social
de que está todo mundo ganhan- violações de direitos no atendimen-
do. Daí, imagine, vem aquele índio to de saúde, escolar, entre outros. O nosso desafio enquanto socie-
“sujo, maltrapilho”, querendo a Há indícios, também, de que a si- dade é construir uma ética para a
terra para ele. Esse é nosso drama, tuação é muito preocupante com o diversidade, pluralidade. No fun-
nossa tragédia que está muito bem número de suicídios entre jovens. do, é uma questão ética. Não tem
vivenciada em Mato Grosso do Sul. São jovens indígenas que se matam como resolver isso, a não ser pela
porque entendem que é melhor se ética. Não é falar que não se pode
Temos outros lugares complica- ganhar dinheiro, não pode isso ou
díssimos. O sul da Bahia tem um matar. Eles têm concepções mais
bonitas do que as nossas sobre a aquilo, mas sim construir uma éti-
cenário parecido, talvez não da ca com relações baseadas no res-
mesma dimensão, pois a produ- vida depois da morte e consideram
melhor ir para aquela vida ao invés peito, na fruição do afeto. Se re-
ção é menor. No sul do Brasil te- conhecermos que todos têm direito
mos uma coisa horrorosa, os índios de ficar aqui padecendo e sofrendo.
e não apenas alguns, vamos encon-
foram parar na beira da estrada e trar um caminho.
todo mundo faz vista grossa, como Geração do medo
se a situação fosse consolidada. Entretanto, se continuarmos
Ninguém liga para isso, tem placa Tem uma equação complicada pensando que o que é produtivo
nas estradas do Rio Grande do Sul que é assim: todo esse cenário de tem uma definição, o que é desen-
que dizem: “cuidado, indígenas na negação do indígena por meios volvimento tem uma definição, o
pista”. Mas o que é isso?! É racismo violentos provoca um medo muito que é bom para a sociedade tem 37
isso, entranhado de 500 anos, cul- grande. No convívio comunitário há uma definição, o que é política
tivado em 500 anos. uma série de medos contra os quais pública tem uma definição, só va-
essas comunidades têm de lutar mos agravar esses problemas. Isso
faz muito tempo. Avaliar o quanto não faz bem para nossa sociedade,
IHU On-Line – Quais os princi-
esse medo representa traumas é para nossos filhos, netos. A nossa
pais tipos de violência que o índio
uma coisa que ainda está por ser cidadania fica esvaziada e passa a
sofre hoje?
feita. Alguns começaram, mas ain- ter só um lado; o outro lado está
Lucia Helena Rangel – Está ex- da se tem muito que fazer. Ainda vazio e nesse vazio há violência,
posto a todos os tipos de violência. há outro fator que, para se livrar autoritarismo, degradação. É isso
Tem uma que aumentou muito: a do medo se passa a ter vergonha de que queremos para nós e nosso fu-
violência contra o patrimônio indí- ser indígena. Então, o jeito de fugir turo? Eu não quero!■

LEIA MAIS...
—— Violência contra os indígenas é um problema ético. Entrevista com Lucia Helena Rangel,
publicada nas Notícias do Dia, de 26-06-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, disponível em http://bit.ly/1SVmBYe
—— “Uma hora ele é índio demais e atrapalha, outra hora ele é índio de menos, e não tem di-
reitos’’. Entrevista com Lucia Helena Rangel, publicada nas Notícias do Dia, de 24-08-2012,
no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1SVn3p7
—— Elo e sentido na maternidade indígena. Entrevista com Lucia Helena Rangel, publicada na
Revista IHU On-Line, nº 359, de 02-05-2011, disponível em http://bit.ly/1NLaxF3
—— O desenvolvimento e os direitos das comunidades indígenas. Entrevista com Lucia Helena
Rangel publicada nas Notícias do Dia, de 04-08-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, disponível em http://bit.ly/1ldIgjl

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

“Nós existimos!”, gritam os povos


indígenas. A luta pela terra e pela
autodeterminação
Para Oiara Bonilla, o que faz o Estado brasileiro inábil para entender o
índio é não querer compreender um modo de vida alternativo à corrida
desenvolvimentista, posta como única alternativa para se manter vivo – e
produtivo – no mundo de hoje
Por João Vitor Santos

I magine um mundo em que tudo é igual, to-


dos produzem e os que não conseguem isso
recebem o afago da mão do Estado para que
realmente todos possam consumir e ir e vir livre-
mente. Agora, imagine o que está realmente por
Aceleração do Crescimento - PAC passou a ser
uma bandeira do governo e que em nome desse
desenvolvimento decidiu-se que “tudo pode”,
recorda. A professora entende que mais perver-
so do que a esquerda ter apostado num modelo
trás dessa ideia plástica de Estado Democrático de “desenvolvimentista e ultracapitalista baseado na
Direito. Se o exercício é complicado, talvez seja colonização mercantil” é ainda tomar esta como
mais fácil olhar para a realidade indígena do Bra- a única forma de vida possível. “Isso sempre foi
sil, para se aproximar da realidade. Professora do colocado para a população, ou melhor, para os
38 departamento de Antropologia da Universidade Fe- eleitores potenciais, pois é nisso que fomos trans-
deral Fluminense, Oiara Bonilla classifica esse ci- formados, como sendo a nossa ‘única opção’ polí-
nismo estatal como “abominação política”. “O que tica e econômica, a via do desenvolvimento e do
está em jogo desde a invasão e da colonização é a crescimento econômico, e que tem esse preço”.
apropriação de terra por interesses privados. Hoje, Assim, matam-se culturas “menores”, sacrificadas
não é diferente; aos interesses privados acrescen- pela salvação da nação. “Os povos indígenas são
tam-se os interesses econômicos do próprio Estado invisibilizados há 500 anos porque a diversidade
Brasileiro (geralmente estreitamente associados a cultural e linguística que eles representam coloca
interesses privados, é claro)”, dispara. “No Brasil, em xeque a ideia mesmo de Estado nacional. A
a recrudescência da violência contra os povos in- solução foi fingir que não existiam simplesmente
dígenas à qual assistimos hoje está estreitamente negando sua especificidade, eliminando-os cultu-
ligada aos retrocessos e aos ataques que os direi- ralmente ou fisicamente”.
tos indígenas vêm sofrendo no próprio legislativo
Oiara Bonilla é professora de Etnologia indígena
e no judiciário”, completa. E a professora ainda
no Departamento de Antropologia do Instituto de
lamenta: “Tudo fica por isso mesmo, favorecendo
Ciências Humanas e Filosofia – ICHF da Universida-
o sentimento de impunidade e abrindo espaço para
de Federal Fluminense – UFF e pesquisadora asso-
mais e mais violências e retrocessos. Isso é uma
ciada ao Centre d’enseignement et de recherche
abominação política num país que se diz democrá-
en ethnologie américaniste (EREA – CNRS, Univer-
tico e livre. Uma vergonha mesmo”.
sité de Paris Ouest-Nanterre La Défense). Entre
Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On- 1996 e 1999, trabalhou entre os Karaja e Javaé da
Line, Oiara lembra que esse modelo neodesenvol- aldeia Porto Txuiri, Tocantins. Desde 2000, pes-
vimentista adotado pela presidente Dilma Rous- quisa junto aos Paumari da região do médio Purus,
seff é política antiga, renovada com a ascensão Amazonas, concentrando-se nos temas da cosmo-
do PT ao Palácio do Planalto. “A progressiva pa- logia, das transformações e das relações dos Pau-
ralisia política indigenista no governo Dilma vem mari com o patronato amazônico. Em 2013, em
lá de trás, já nos anos 1990, quando os direitos consultoria para o Ministério do Desenvolvimento
conquistados pelos índios na democratização do Social, investigou os efeitos do Programa Bolsa Fa-
país começam a ser vistos pelo Estado como obs- mília entre os Guarani Kaiowá da Terra Indígena
táculos para o desenvolvimento. E isso foi pio- Takuaraty/Yvykuarusu, Mato Grosso do Sul.
rando exponencialmente quando o Programa de
Confira a entrevista.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

IHU On-Line – O que está em dígenas ou a abertura recente de reforçar ainda mais essa dinâmica
jogo nas disputas por terras entre CPI contra o Cimi3 e a Funai4. Tudo genocida, colocando no banco dos
o dito homem branco e o índio no isso me parece participar na re- réus (e exclusivamente a pedido
Brasil? Como entender o genocí- crudescência da violência contra dos inimigos da causa indígena) os
dio indígena no Brasil de hoje? os índios. defensores dos direitos indígenas e
os responsáveis do estado pela ga-
Oiara Bonilla – É difícil responder Essa violência jamais cessou. Ela
rantia desses direitos. Isso é uma
sem entrar na complexidade histó- só tem piorado sem que isso se
abominação política num país que
rica. Sucintamente, o que está em torne um problema político nacio-
se diz democrático e livre. Uma
jogo desde a invasão e da coloni- nal, nem acarrete nenhum deba-
vergonha mesmo.
zação é a apropriação de terra por te, nem tenha consequências para
interesses privados. Hoje, não é seus autores. O ataque a aldeias
diferente, aos interesses privados e retomadas de terras indígenas IHU On-Line – Como avalia a po-
acrescentam-se os interesses eco- por pistoleiros armados a mando lítica indigenista ao longo dos 13
nômicos do próprio Estado Brasi- de fazendeiros em Mato Grosso do anos de governo petista? Em que
Sul, a organização de um leilão de medida o projeto desenvolvimen-
leiro (geralmente estreitamente
gado nesse mesmo estado, no final tista do governo de Dilma Rous-
associados a interesses privados,
de 2013, para arrecadar dinheiro e seff suplanta uma política indi-
é claro). O genocídio indígena na
contratar “empresas de seguran- genista de preservação dos povos
América é um processo que come-
ça” que fazem papel de milícia, originários?
ça lá em 1492 e não para. No Bra-
sil, a recrudescência da violência as ameaças de mortes, os assassi- Oiara Bonilla – A progressiva
contra os povos indígenas (e outras natos de lideranças, e por aí vai. paralisia política indigenista no
chamadas “minorias”) à qual as- Tudo fica por isso mesmo, favore- governo Dilma vem lá de trás, já
sistimos hoje, está estreitamente cendo o sentimento de impunidade nos anos 1990, quando os direitos
ligada aos retrocessos e aos ata- e abrindo espaço para mais e mais conquistados pelos índios na demo-
ques que os direitos indígenas vêm violências e retrocessos. A abertu- cratização do país começam a ser
sofrendo no próprio legislativo e ra recente da CPI contra o Cimi5 e vistos pelo Estado como obstácu-
no judiciário, assim como ao clima agora contra a Funai e o Incra6 vão los para o desenvolvimento. E isso
de retrocesso geral que estamos foi piorando exponencialmente
3 CPI do Cimi: Comissão Parlamentar de
quando o Programa de Aceleração
vivendo. Inquéria da Assembléia Legilsativa do Mato
Grosso do Sul instalada pela bancada rura- do Crescimento - PAC passou a ser
39
Exemplos desse clima é um de- lista para investigar a atuação do Conselho uma bandeira do governo e que em
putado federal se sentir autoriza- Missionário Indigenista – Cimi. Confira re-
nome desse desenvolvimento deci-
do a ameaçar outro publicamente portagem sobre essa CPI publicadas no sítio
do Instititio Humanitas Unisinos – IHU, dis- diu-se que “tudo pode”, tratando
no plenário da Câmara, ou a vo- ponível em http://bit.ly/1MRtnKJ. (Nota da o que estiver pela frente: povos,
ciferar um discurso abertamente IHU On-Line) floresta, movimentos sociais etc.
racista em uma sessão parlamen- 4 CPI da Funai e do Incra: Comissão
Parlamentar de Inquérito – CPI da Câmara como meros obstáculos a serem
tar e sequer se preocupar com dos Deputados que se propõe investigar as contornados pela máquina desen-
quebra de decoro ou algum tipo ações da Fundação Nacional do Índio – Fu- volvimentista. É uma opção de go-
de sanção1. E são inúmeros os ata- nai e do Instituto de Colonização e Reforma
verno, não há o que negar.
Agraria – Incra. Presidente pelo deputado
ques aos direitos indígenas, desde Alceu Moreira (PMDB-RS), a comissão foi
a possibilidade de haver uma PEC O caso de Belo Monte7 é emble-
instalada em 28-10-2015, numa iniciativa
2152 que coloca em risco um direi- Frente Parlamentar da Agropecuária. O sitio mático porque escancara essa op-
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU vem
to fundamental já adquirido, até
publicando reportagens sobre essa CPI. Con- publicando reportagens sobre essa CPI. Con-
a criminalização de lideranças in- fira em http://bit.ly/1NPgtwD. (Nota da IHU fira em http://bit.ly/1NPgtwD. (Nota da IHU
On-Line) On-Line)
1 A entrevistada refere-se ao fato ocorrido 5 CPI do Cimi: Comissão Parlamentar de 7 Belo Monte: projeto de construção de usi-
e relato através da reportagem “Deputado Inquérito da Assembleia Legislativa de Mato na hidrelétrica previsto para ser implementa-
gaúcho diz que quilombolas, índios e homos- Grosso do Sul instalada pela bancada rura- do em um trecho de 100 quilômetros no Rio
sexuais são ‘tudo o que não presta’ e incita a lista para investigar a atuação do Conselho Xingu, no estado brasileiro do Pará. Planeja-
violência”, reproduzida nas Notícias do Dia, Missionário Indigenista – Cimi. Confira re- da para ter potência instalada de 11.233 MW,
de 13-02-2014, no sítio do Instituto Humani- portagem sobre essa CPI publicada no sítio é um empreendimento energético polêmico
tas Unisinos – IHU, disponível em http://bit. do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dis- não apenas pelos impactos socioambientais
ly/1PS6wVf. (Nota da IHU On-Line) ponível em http://bit.ly/1MRtnKJ. (Nota da que serão causados pela sua construção. A
2 PEC 215: Proposta de Emenda à Cons- IHU On-Line) mais recente controvérsia sobre essa usina
tituição 215, de 2000. Pretende delegar ao 6 CPI da Funai e do Incra: Comissão envolve o valor do investimento do projeto
Legislativo a aprovação de demarcações de Parlamentar de Inquérito – CPI da Câmara e, consequentemente, o seu custo de geração.
terras indígenas, quilombolas e áreas de pre- dos Deputados que se propõe investigar as Saiba mais na edição 39 dos Cadernos IHU
servação ambiental. A proposta foi aprovada ações da Fundação Nacional do Índio – Fu- em Formação, Usinas hidrelétricas no
por comissões internas da Câmara e segue os nai e do Instituto de Colonização e Reforma Brasil: matrizes de crises socioambientais,
trâmite em plenário. Confira a íntegra da pro- Agraria – Incra. Presidente pelo deputado em http://bit.ly/ihuem39; e nas entrevistas
posta em http://bit.ly/1kpiLvM. Nas Notícias Alceu Moreira (PMDB-RS), a comissão foi publicadas no sítio do IHU: Belo Monte: a
do Dia do sítio do IHU há uma série de mate- instalada em 28-10-2015, numa iniciativa barreira jurídica, com Felício Pontes Júnior,
riais sobre o tema. Confira em ihu.unisinos.br Frente Parlamentar da Agropecuária. O sítio dia 26-04-2012, em http://bit.ly/ihu260412;
(Nota da IHU On-Line) do Instituto Humanitas Unisinos – IHU vem Belo Monte. “O capital fala alto, é o maior

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

ção desde o início (e demonstra sua violaram-se as convenções e acor- França com sua diversidade linguís-
relação com um modelo que vem dos internacionais ratificados pelo tica sendo sistematicamente e his-
lá da época da ditadura militar), Brasil e que garantem a consulta toricamente anulada e uniformiza-
assim como a votação do Novo Có- prévia, livre e informada dos po- da pelo Estado, a Espanha com suas
digo Florestal que demonstrou com vos tradicionais que habitam ter- questões regionais, etc.). Minorias
todas as letras que o Estado não ritórios a ser explorados pelo Es- e diversidade são consideradas
recuaria frente a absolutamente tado, etc. “pedras no sapato” por qualquer
nada para se embrenhar na via do Estado. Aqui a solução foi, por um
desenvolvimentismo predador. É Renovação na Funai lado, fingir que não existiam (en-
isso: a esquerda optou por um mo- quanto povos, distintos, diversos,
delo desenvolvimentista e ultraca- Houve um só ponto importante, autodeterminados) simplesmente
pitalista baseado na colonização sim, que foi a reforma da Funai9 e negando sua especificidade, elimi-
mercantil do território e na explo- a renovação completa de seus qua- nando-os culturalmente, ou fisica-
ração de seus recursos naturais (e dros, com contratação de profissio- mente. Lembremos que o SPI10 era
o Brasil não é o único caso, é só ob- nais novos e uma reestruturação o Serviço de Proteção aos Índios
servar o que está acontecendo nos interna importante. Isso era indis- para sua transformação em “tra-
países vizinhos ditos também de pensável. Mas a falta de recursos balhadores nacionais”. Ou seja,
“esquerda”). Isso sempre foi colo- e o descaso evidente dos quais a localizá-los, protegê-los e garantir
cado para a população, ou melhor, instituição sofre me parecem fazer sua transformação em camponeses
para os eleitores potenciais, pois que hoje, lá na ponta, nas aldeias, ou proletários.
é nisso que fomos transformados, pouca coisa mudou. Além do que, a
como sendo a nossa “única opção” A única visibilidade concedida é
saúde e a educação indígena tam-
política e econômica, a via do de- a do emblema nacional (de rendi-
bém estão em péssimo estado.
senvolvimento e do crescimento mento fraco, se comparado a em-
econômico, e que tem esse preço: blemas nacionais de Estados como
IHU On-Line – De que forma po- o México, ou países andinos, por
“não há alternativa”, dizem. Hoje, demos compreender a inabilidade
o péssimo desempenho econômico exemplo) a partir de uma imagem
política brasileira para compreen- reconstruída do índio romântico,
do país e as crises ambientais nos der a questão indígena?
colocam na frente dos fatos: crise “genérico”, aquele que é mobiliza-
Oiara Bonilla – O Estado brasi- do nas escolas no Dia do Índio, ape-
40 econômica, retrocessos legais ab-
surdos (as mulheres estão nas ruas leiro não está, nem nunca este- nas como uma espécie de “fundo
e apontam para alguns deles há ve interessado em compreender de nacionalidade” que pode servir
semanas), catástrofes ambientais a questão indígena – as questões, para justificar algum tipo de espe-
monstruosas e mais do que anun- aliás, porque são várias. Os povos cificidade propriamente brasileira.
ciadas (lembrando aqui do assas- indígenas são invisibilizados há 500 Só. Então, não há compreensão.
sinato do Rio Doce pela Vale e a anos porque a diversidade cultural Nem vontade de compreensão.
Samarco, e de Belo Monte, Jirau, e linguística que eles representam Basta olhar os manuais escolares e
Santo Antonio e as demais por vir). colocam em xeque a ideia mesmo o tipo de conhecimento que trans-
de Estado nacional. Todo Estado mitem sobre os povos indígenas
Pararam as demarcações, con- se depara problematicamente com e sobre suas línguas e costumes,
gelaram-se as homologações de sua diversidade interna (vejam a consolidando ainda aquela ideia
terra (ver o caso da Terra Indíge- de “elemento indígena” de uma
na Munduruku Sawré Muybu que pela fronteira Munduruku”, publicada nas suposta democracia racial fundada
está parado apenas porque sua Notícias do Dia de 15-12-2014, disponível
na fusão de um “elemento euro-
em http://bit.ly/1RgsdOm. Confira mais
finalização implica questionar os peu”, com um “elemento africa-
em http://bit.ly/1Rgsf8T. (Nota da IHU
projetos de barragens no Tapajós)8 On-Line) no” e um “elemento indígena”. Ou
9 Fundação Nacional do Índio – Funai:
aquele discurso presidencial sobre
Deus do mundo”, com Ignez Wenzel, dia 28- é o órgão indigenista oficial do Estado brasi-
01-2012, em http://bit.ly/ihu280112; Belo leiro, criado pela Lei nº 5.371, de 5 de dezem- a “mandioca”11 que ficou triste-
Monte e as muitas questões em debate, com bro de 1967, vinculado ao Ministério da Jus-
Ubiratan Cazetta, dia 23-01-2012, em http:// tiça. Sua missão é coordenar e executar as po- 10 Serviço de Proteção ao Índio (SPI):
bit.ly/ihu230112; “Belo Monte é o símbolo do líticas indigenistas do Governo Federal, pro- parte constituinte do Ministério da Agricul-
fim das instituições ambientais no Brasil”, tegendo e promovendo os direitos dos povos tura, Indústria e Comércio (MAIC), foi um
com Biviany Rojas Garzon, dia 13-12-2011; indígenas. São também atribuições da Funai órgão público criado durante o governo do
em http://bit.ly/ihu131211; Não é hora de jo- identificar, delimitar, demarcar, regularizar Presidente Nilo Peçanha, em 1910, com o
gar a toalha e pendurar as chuteiras na luta e registrar as terras ocupadas pelos povos objetivo de prestar assistência à população
contra Belo Monte, com Dom Erwin Krau- indígenas, promovendo políticas voltadas ao indígena do Brasil. O Serviço foi organizado
tler, dia 03-08-2011, disponível em http:// desenvolvimento sustentável das populações pelo Marechal Rondon, seu primeiro diretor.
bit.ly/ihu030811. (Nota da IHU On-Line) indígenas, reduzindo possíveis impactos am- O SPI foi extinto e substituído pela Funai, em
8 O sítio do Instituto Humanitas Unisinos – bientais promovidos por agentes externos. A 1967. (Nota da IHU On-Line)
IHU vem publicando amplo material sobre Funai também tem por atribuição, prover o 11 Em junho de 2015, durante discurso de im-
o tema. Destaque para “A luta dos Mundu- acesso diferenciado aos direitos sociais e de proviso na Abertura dos Jogos Mundiais dos
ruku contra a invisibilidade”, publicado nas cidadania dos povos indígenas, como o di- Povos Indígenas, realizado no Brasil, a pre-
Notícias do Dia de 14-11-2014, disponível reito à seguridade social e educação escolar sidente Dilma Rousseff fez uma saudação à
em http://bit.ly/1PVO7XN; e “A batalha indígena. (Nota da IHU On-Line) mandioca. “Nenhuma civilização cresceu sem

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DE CAPA IHU EM REVISTA

mente famoso. Participa da mesma e legalização das terras indígenas IHU On-Line – Como avalia a si-
lógica. se façam de forma independente tuação dos povos indígenas ama-
dos interesses políticos (e políti- zônicos? Em que medida o avanço
O que os povos indígenas rei-
cos partidários) que vigoram no le- de pesquisas e exploração comer-
vindicam hoje com cada vez mais
gislativo. Não é difícil imaginar o cial da floresta tem também ame-
força é, antes de mais nada, a afir-
que acontecerá caso a PEC 215 for açado os índios?
mação de sua existência, pois ela
aprovada e as demarcações passa-
é pura e simplesmente negada há Oiara Bonilla – A situação dos
rem a depender do aval do legisla-
cinco séculos. “Nós existimos!” povos indígenas amazônicos é tão
tivo. Isso significará a aniquilação
eles gritam, ocupando o Congresso, precária quanto a das outras re-
pura e simples das demarcações
retomando terras, manifestando, giões porque estão sendo alvo da
de terra e do reconhecimento de mesma política. Há uma diferença
fazendo filmes, escrevendo livros…
terras indígenas no país, além de em relação à dimensão das terras
E gritar “nós existimos” é afirmar
colocar em risco também a criação que estão legalmente reconhecidas
que isso não é possível sem a terra
de novas Unidades de Conservação. e tendem a ser maiores no norte
e sem a garantia de sua autodeter-
minação enquanto povos diversos O texto da PEC foi sendo modi- (por razões óbvias de se tratar de
dentro do chamado Estado. ficado e ampliado (para pior) no regiões onde a apropriação fundiá-
decorrer de suas andanças pelos ria pelos interesses privados é mais
IHU On-Line – Por que a demar- corredores de Brasília. Agora, ele recente). Em compensação, vivem
cação de terras indígenas no Bra- inclui o “conceito” de marco tem- em regiões de mais difícil acesso e
sil é lenta e quais os riscos de se poral (isso vem lá das condicionan- onde as questões de saúde ou de
transferir a atribuição do Executi- tes de Raposa Serra do Sol13) que invasão de terras é de mais difícil
vo para o Legislativo, como prevê para completar o quadro só permi- resolução. Quando há uma epide-
a PEC 215? tiria o reconhecimento de terras mia no Javari ou no Médio Purus,
indígenas que estivessem efetiva- a logística para responder a uma
Oiara Bonilla – A PEC 215 é um mente ocupadas em 5 de outubro situação de crise é mais complexa
projeto de demolição do artigo 231 de 1988 (data da promulgação da e, portanto, mais demorada.
da Constituição Federal promul- Constituição). Isso é simplesmente
gada em 198812 e que reconhece Se no restante do país o desafio
uma aberração histórica, além de principal (não exclusivo) é o reco-
e garante aos povos indígenas sua
organização social, línguas, tradi-
mais uma violência contra os po-
vos indígenas, considerando que
nhecimento de terras indígenas que 41
ções e direitos originários sobre hoje estão nas mãos de latifundiá-
inúmeras populações foram exter- rios ou grandes empresas, na Ama-
as terras que tradicionalmente
minadas, deslocadas, expropriadas zônia os povos amazônicos estão
ocupam. A palavra “originários” é
de suas terras ao longo do tempo. sofrendo sobretudo as investidas
essencial porque se trata de uma
Isso é incontestável. Há diversos do próprio Estado, com as obras do
garantia que historicamente ante-
outros retrocessos graves embuti- PAC, as estradas, as hidrelétricas,
cede a própria legislação, já que os
dos na PEC, como a impossibilidade principalmente. Por outro lado, o
índios existiam aqui antes mesmo
para os índios de solicitar amplia- processo de apropriação fundiária
do Estado brasileiro existir. O arti-
ção de suas terras, a possibilidade por interesses privados continua
go reconhece a dívida histórica do
para o Estado de abrir estradas em na região e vem acelerando, se-
país em relação aos povos originá-
terras indígenas, a possibilidade do guindo sempre aqueles mesmos
rios. O fato de essa garantia ser de
arrendamento dessas terras, entre passos: desmatamento (madeira),
responsabilidade do Poder Execu-
outros. grilagem, apropriação ilegal e vio-
tivo é uma forma de garantir que
lenta das terras (assassinato de
os processos de reconhecimento 13 Raposa Serra do Sol: área de terra in-
dígena (TI) situada no nordeste do estado
camponeses, índios e seringueiros
ter acesso a uma forma básica de alimentação brasileiro de Roraima, nos municípios de que nelas habitam), desmatamen-
e aqui nós temos uma, como também os ín- Normandia, Pacaraima e Uiramutã, entre os to (venda da madeira e queimada
dios e os indígenas americanos tem a deles. rios Tacutu, Maú, Surumu, Miang e a fron- para formação de pastagens), cria-
Temos a mandioca e aqui nos estamos, certa- teira com a Venezuela. É destinada à posse
mente, nós temos uma série de produtos que permanente dos grupos indígenas ingaricós, ção de gado, e quando a pastagem
foram essenciais para o desenvolvimento de macuxis, patamonas, taurepangues e uapi- não rende mais, plantação de soja,
toda a civilização humana ao longo dos sécu- xanas. Raposa Serra do Sol foi demarcada milho, ou outras commodities com-
los. Então, aqui, hoje, eu tô saudando a man- pelo Ministério da Justiça através da Portaria
dioca, uma das maiores conquistas do Brasil”, Nº 820/98, posteriormente modificada pela
patíveis (ou geneticamente adap-
disse a presidente, conforme reportagem do Portaria 534/2005. A demarcação foi homo- tados) com o clima e o solo.
jornal Folha de São Paulo em 23-06-2015. A logada por decreto de 15 de abril de 2005, da
fala de Dilma foi vista como um deboche aos Presidência da Republica. Em 20 de março de
povos e gerou uma enxurrada de críticas à 2009, uma decisão final do STF confirmou a
Situação hoje
presidente, repercutindo inclusive em vídeos homologação contínua da Terra Indígena Ra-
e animações debochando da situação. (Nota posa Serra do Sol, determinando a retirada No sul do Amazonas (região da
da IHU On-Line) dos não indígenas da região. Nas Notícias do tríplice fronteira entre Rondô-
12 A íntegra da Constituição Federal de 1988 Dia do site do Instituto Humanitas Unisinos
está disponível em http://bit.ly/1Ie6PHl. – IHU é possível ler entrevistas e informações nia, Acre e Amazonas) a frente do
(Nota da IHU On-Line) sobre o tema. (Nota da IHU On-Line) desmatamento está atingindo as

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

terras indígenas, no município de revela que continuamos vivendo nós. Porque se pararmos para refletir
Boca do Acre (AM) assim como no numa sociedade colonial. E que a um pouquinho, do jeito que a coisa
sul do município de Lábrea (AM). opção do Estado continua sendo a vai, todos nós estaremos sujeitos a
Nessas regiões vêm sendo registra- de invisibilizar os povos indígenas essas condições precárias de vida, em
das ações de grileiros através de e de preferência aniquilá-los, tra- pouco tempo: sem terra para plantar,
verdadeiras milícias armadas que tando-os sempre como obstáculo sem casa para viver, dependendo da
assassinam lideranças camponesas ao “desenvolvimento”, noção que “generosidade” do Estado para ali-
e seringueiros. As queimadas na é aqui entendida em sua acepção mentar nossos filhos, num meio am-
Amazônia este ano atingiram uma mais rala e etnocêntrica. E aqui biente degradado, envenenado por
dimensão descomunal. A fumaça significando capitalismo de merca- agrotóxicos e resíduos industriais,
cobriu o estado do Amazonas todo do, acesso ao consumo e uniformi- isto é, deteriorado ao extremo.
durante mais de um mês. zação cultural. Estamos há léguas
e léguas de qualquer ideal do que IHU On-Line – Qual o caminho a
Outras intervenções na foi chamado em tempos remotos percorrer para conciliar interes-
de “socialismo”.
floresta ses de povos indígenas e produ-
Uma especificidade da luta Gua- tores rurais? Como fazer da expe-
A questão das pesquisas e da co- rani e Kaiowá em Mato Grosso do riência indígena inspiração para
mercialização da floresta e de seus Sul me parece residir no fato de outro modelo de produção?
produtos é ainda um outro tema. Co- que esses povos estão enfrentando Oiara Bonilla – Não sei se cabe
nheço mal esse tema por isso não me o que os outros povos ainda vão en- aqui a palavra conciliar. Pelo sim-
sinto muito à vontade em responder frentar no futuro. Lá está o futuro ples fato de que os povos indígenas
longamente. O que é certo é que a que espera os povos indígenas do estão sendo sistematicamente ata-
floresta se tornou mais um alvo dos restante do país se as coisas conti- cados pelos interesses ruralistas,
grandes interesses comerciais, prin- nuarem como estão, infelizmente. principalmente, configurando en-
cipalmente farmacêuticos e cosmé- Os Guarani foram expropriados de tão muito mais uma guerra do que
ticos. Isso se traduziu recentemente suas terras, confinados em reser- um simples conflito de interesses.
pelo famoso PL 7.735/201414 para vas, e sistematicamente extermi- Os interesses financeiros do agro-
flexibilizar e favorecer o acesso do nados. Agora, no lugar, o Estado negócio não são conciliáveis com o
grande capital (pesquisas financia- lhes concede uma série de políticas respeito à diversidade, com o reco-
42 das por grandes empresas privadas públicas. Expropriaram suas terras nhecimento do direito à terra, nem
entram totalmente nessa categoria) e em contrapartida concedem-lhes com o respeito ao meio ambiente.
aos recursos genéticos e conheci- cestas básicas, Bolsa Família, salá- Basta ver no que Mato Grosso do
mentos tradicionais sobre biodiversi- rio maternidade, escolas e saúde Sul e Mato Grosso foram transfor-
dade. É isso, o Legislativo a serviço (de qualidade muito irregular). E
mados em poucas décadas. Deser-
dos grandes empresários e dos inte- isso é uma realidade que está se
tos de monocultura.
resses privados… O próximo, se não instalando no país todo. Seu efei-
me engano, vai ser o novo código da to perverso estrutural é esvaziar O desafio aqui  é pensar em ou-
mineração… as terras indígenas, drenando seus tro modelo de sociedade e se per-
habitantes para as cidades e tor- guntar de verdade: em que mundo
nando assim essas mesmas políticas queremos viver? E que mundo que-
IHU On-Line – O que o genocí- públicas cada vez mais essenciais e remos deixar aos nossos filhos? E
dio de Mato Grosso do Sul revela indispensáveis, e assim vai… É um isso não é uma pergunta retórica e
sobre a relação de índios e bran- processo que parece inexorável e muito menos utópica. Ela foi colo-
cos no Brasil? Quais as diferenças sem volta. cada muitas vezes ao longo da his-
e semelhanças nas lutas Guarani tória do Ocidente. Trata-se de uma
Kaiowá15 e dos povos amazônicos?
Resistência pergunta política da maior impor-
Oiara Bonilla – O genocídio in- tância. E está mais do que na hora
dígena em Mato Grosso do Sul Apesar de tudo isso, os povos in- de ela estar no centro do questio-
dígenas de Mato Grosso do Sul con- namento político atual.
14 A íntegra do Projeto de Lei está disponível tinuam vivos e de pé. E continuam
em http://bit.ly/1NSxWEv. (Nota da IHU
On-Line)
lutando. Falando suas línguas e rei- Experiência indígena
15 Guarani Kaiowá: povo indígena do Pa- vindicando suas terras, vivendo em
raguai, do estado brasileiro de Mato Grosso conformidade com seu modo de vida, Não creio que os povos indíge-
do Sul e do nordeste Argentina. No Brasil, um certo modo de “estar no mun- nas tenham a receita milagrosa
eles habitam Nhande Ru Marangatu, uma
área de floresta tropical. São um dos três do” que configura a forma guarani para salvar a nossa sociedade, nem
subgrupos guaranis (os outros são Ñandeva de existir e que é central para eles. cabe a eles esse papel (só faltava
e Mbya). Estima-se que mais de 30.000 gua- Nesse sentido são visionários e prota- essa!). Quando se diz que “bas-
ranis vivem no Brasil. No Paraguai eles são
gonistas, sem dúvida alguma, de uma ta olhar” para os modelos indíge-
cerca de 40.000. O Guaraní língua é uma das
línguas oficiais do Paraguai, ao lado de língua luta absolutamente essencial para nas de produção, trata-se de uma
espanhola. (Nota da IHU On-Line) todos os povos indígenas e para todos forma de afirmar: “vejam, outro

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DE CAPA IHU EM REVISTA

mundo é possível!”. Na verdade, cendentes’, como os das cotas Família em povos indígenas? Elas
outros mundos são possíveis e po- raciais ou dos grandes discursos dão conta da necessidade e da
dem conviver. A experiência zapa- sobre tolerância, que não passam especificidade da forma de vida
tista exposta em encontro no Insti- de discursos, pois abrir espaço não indígena ou fragilizam e condicio-
tuto de Filosofia e Ciências Sociais é tolerar. Abrir espaço é abrir es- nam os povos?
da Universidade Federal do Rio de paço e respeitá-lo seriamente).
Trata-se de uma questão política Oiara Bonilla – De forma geral,
Janeiro – IFCS (Resistências Indíge-
da maior importância e a questão parece-me que as políticas assis-
nas: as lutas zapatistas e Guarani
de que mundo queremos deixar tencialistas são uma forma reno-
Kaiowá, no Rio de Janeiro)16 apon-
a nossos filhos é crucial e cen- vada de tentar “integrar” os povos
tou exatamente para isso. Os povos
tral hoje. Isso também se traduz indígenas à população nacional.
indígenas são povos que sabem vi-
ver e se constituem “sem Estado” aqui, mais localmente, em parar A longo prazo, o efeito é o esva-
(na forma como nós entendemos e pensar que Brasil queremos para ziamento das terras indígenas e a
isso) ou mesmo “contra o Estado” o futuro. Não é possível inventar inserção (em muitos casos força-
(no sentido dado à expressão pelo outra coisa? Será mesmo? Os povos da) na sociedade de consumo. Não
antropólogo Pierre Clastres17). indígenas são vítima de um exter- creio que, no longo prazo, os im-
mínio físico e cultural implacável pactos de políticas como o Bolsa
Isso não significa que tenhamos Família sejam bons para os povos
há 500 anos e estão aí, resistin-
que copiá-los ou que esse é o ca- indígenas, porque essa política é a
do: a massacres, a catástrofes
minho da salvação, mas que os negação mesmo da centralidade da
ecológicas, a invasões de terra, a
modelos indígenas mostram que a relação que estes povos têm com
expropriações, a epidemias, à ca-
variação é possível, que ao con- a terra.
tequização, à missionarização, à
trário do que os economistas e
escravidão, e continuam falando Por outro lado, é preciso hoje
dirigentes mundiais nos dizem há
suas línguas, fazendo seus rituais, olhar para os contextos locais. E
décadas, não é verdade que a hu-
tratando seus doentes, educando aí evidentemente há questões de
manidade não tem escolha (que
seus filhos, transmitindo seus co- sobrevivência pura e simples. É o
ela só pode seguir o caminho do
nhecimentos e preservando suas caso de Mato Grosso do Sul, onde
desenvolvimento e do crescimento
terras e seu entorno. Recusam-se a supressão do Bolsa Família seria
econômico, que não há outra via
a deixar de ser quem são e lidam uma catástrofe humanitária, jus-
possível). Mas para isso precisamos
resgatar muito seriamente a ideia
incessantemente com a intrusão tamente porque os Guarani Kaio- 43
do Estado e dos ‘brancos’ em seus wá foram expropriados e porque
de política e do que é a política e
assuntos internos. Realmente que- as poucas terras que conseguiram
do que é fazer política. Porque se
remos que isso continue assim? reaver foram anteriormente devas-
trata de uma questão política mes-
Esse é o tipo de país que deseja- tadas pela monocultura de soja,
mo, no sentido primeiro e forte da
mos ser? cana ou milho e hoje são estéreis
palavra.
Talvez, o papel do Estado pode- ou praticamente irrecuperáveis,
IHU On-Line – Como assegurar ria começar a ser pensado de outra porque os rios estão contaminados,
que os índios possam viver ple- forma, esforçar-se em conhecer etc. Ou casos como em regiões do
namente sua forma de vida? Qual (sua diversidade) e assim conhecer- norte do país, onde a introdução do
o papel do Estado e da sociedade -se a si próprio (enquanto Estado dinheiro através do benefício social
civil nesse processo? no qual vivem e sobrevivem povos quebrou relações de dependência
diversos). E nós também (a socie- com patrões e sistemas de escravi-
Oiara Bonilla – Não acho que dade civil) poderíamos parar de dão pela dívida. Então, é uma per-
se tenha que integrar ninguém, a olhar fixamente para o além-mar e gunta complexa que implica o co-
própria palavra integrar implica seus grandes modelos (todos peri- nhecimento de cada caso. No caso
uma violência. O desafio é conce- clitantes, diga-se de passagem) e da maioria das políticas públicas é
ber um Estado onde todos caibam, nos perguntar: quem somos nós? De assim, uma vez implementada, sua
com suas especificidades, onde onde viemos e para onde vamos? eliminação súbita pode ter efeitos
haja espaço para a diversidade Que país queremos? Sem dúvida piores do que os efeitos negativos
(para além dos espaços ‘condes- estou sendo ingênua, mas me pa- que ela já tem. Seria necessário
rece que conhecer e compreender pensar então em como e por que
16 Confira página do encontro no Facebook,
juntamente com algumas percepções. Acesse são dois termos em desuso atual- caminho poderíamos escapar ago-
em http://on.fb.me/1Nc83ii. (Nota da IHU mente e que poderíamos resgatar ra a ela. E isso provavelmente não
On-Line) para atingir em algum momento o seja dissociável da questão políti-
17 Pierre Clastres (1934-1977): antropólo-
go e etnógrafo francês da segunda metade do
sentido da palavra respeitar e da ca que evoquei acima e que deve-
século XX. É conhecido sobretudo por seus expressão viver junto. ríamos nos colocar com urgência:
trabalhos de antropologia política, suas con- Quem somos nós? De onde viemos
vicções anarquistas e anti-autoritárias e por
sua pesquisa sobre os índios Guayaki do Pa- IHU On-Line – Qual o impacto e para onde vamos? Que país que-
raguai. (Nota da IHU On-Line) de políticas públicas como o Bolsa remos? ■

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Quando a prioridade é só o
desenvolvimentismo
Aloir Pacini constata que, diante da política desenvolvimentista,
quem dá as cartas é o agronegócio e as mineradoras
Por João Vitor Santos

U ma das questões de fundo


que contribui para a promo-
ção do genocídio é o fato de
que a sociedade ocidental não se co-
a ideia europeia, nos primeiros conta-
tos com os povos originários, era colo-
nizar as terras e retirar esses povos de
uma situação primitiva. Ao longo dos
necta com a lógica indígena e não acei- anos, a lógica é a mesma: integrar o
ta a forma de vida desses povos por não índio ao Estado. Mas por quê? “As so-
corresponder a um modelo de consumo ciedades primitivas estão privadas do
e produção. Entretanto, a omissão Estado. Na verdade, eles não necessi-
do Estado diante desse cenário é ou- tam dele assim como nós, do mesmo
tro fator decisivo. Muitos indigenistas modo que eles não estão policiados”,
e pesquisadores nutriam esperança destaca Aloir.
de reverter esse quadro com gover-
44 nos de esquerda, ditos mais sensíveis
Para o antropólogo, a sociedade
ocidental tem mesmo que aprender
para questões sociais. Mas, depois de
a olhar de outra forma para os povos
13 anos de PT no Brasil, o antropólogo
originários. E isso passa, inclusive, pela
Aloir Pacini se apoia em dados do Con-
revisão das ciências como História, An-
selho Indigenista Missionário – Cimi e
tropologia, Filosofia, Teologia e, claro,
dispara: “Não são os governos mais de
ideia de Estado. “A sociedade primitiva
esquerda ou de direita que determinam
é por essência igualitária, os homens
a questão da demarcação de terras ou
são senhores de sua atividade, senho-
a violência contra os indígenas. O agro-
res da circulação dos produtos das ati-
negócio, a pecuária e as mineradoras
vidades e não agem para si próprios,
é que determinam quais os territórios
pois os indígenas produzem para o ou-
indígenas que serão explorados dentro
tro em forma de trocas numa economia
desta lógica”.
de reciprocidade”, analisa.
Na entrevista, concedida por e-mail à
Aloir Pacini é graduado em Filoso-
IHU On-Line, o antropólogo ainda lem-
fia pela Universidade Federal de Minas
bra que essa não é apenas uma realida-
Gerais – UFMG e em Teologia pela Fa-
de brasileira. “Mesmo os governos que
culdade Jesuíta de Filosofia e Teolo-
são majoritariamente compostos por
gia – FAJE. Padre jesuíta, é mestre em
indígenas como na Bolívia, Panamá e
Antropologia Social pela Universidade
outros, a dinâmica do Estado acaba im-
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e dou-
pondo sua lógica e forçando os indíge-
tor na mesma área pela Universidade
nas a se incorporarem a este processo
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
capitalista porque não há como manter
Atualmente é professor da Universida-
a estrutura do Estado sem acúmulo de
de Federal de Mato Grosso – UFMT.
capital e de privilégios para poucos”,
analisa. O mais irônico é perceber que Confira a entrevista.

SÃO LEOPOLDO, 30 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 478


DE CAPA IHU EM REVISTA

IHU On-Line – Quantos e quem tificaram como indígenas, um cres- Crescimento em zonas
são os indígenas no Brasil? cimento absoluto, no período en- urbanas
tre censos, de 440 mil indivíduos,
Aloir Pacini – O Instituto Brasilei-
ou um aumento anual de 10,8%, a Também as áreas urbanas de
ro de Geografia e Estatística – IBGE,
maior taxa de crescimento dentre todas as regiões tiveram significa-
em 2010, trouxe dados a respeito
todas as categorias de cor ou raça. tivos incrementos absolutos, fenô-
da diversidade étnica no Brasil: a
Para se ter uma ideia do cresci- meno também observado nas áreas
população indígena no Brasil era de
mento populacional indígena, o to- rurais, porém, em menor escala.
896 mil pessoas, divididas em 305
tal do país apresentou, no mesmo Em 1991, o Brasil possuía 223 mil
etnias e falantes de 274 línguas di-
período, um ritmo de crescimento indígenas nas zonas rurais (76,1%
ferentes. Só em Mato Grosso somos
de 1,6% ao ano. do total). Em 2000, 383 mil resi-
44 etnias indígenas. A quantidade
de índios que vivem no Brasil não Sustar o processo de desapare- diam em zonas urbanas (52,0% do
é grande se comparada com países cimento das etnias e fazer crescer total). Essa aparente urbanização
vizinhos como Paraguai, Bolívia, em número populacional as exis- se deve a uma maior autodeclara-
Peru, etc. Todavia, vale ressaltar tentes se deve em grande parte às ção dos indígenas nas regiões Su-
que houve grande massacre na his- medidas afirmativas implantadas deste e Nordeste, que têm menor
tória do Brasil. pelos últimos governos, temos que número de terras indígenas ho-
reconhecer. Não se faz ideia de mologadas e onde ocorreram, nas
Segundo o censo, em 1991, o últimas décadas, importantes mo-
quantas etnias já foram extintas no
percentual de indígenas em rela- vimentos de resistência. Por outro
Brasil, mas sabemos que cerca de
ção à população total brasileira era lado, nas regiões em que há maior
metade das espécies de animais e
de 0,2%, ou seja, 294 mil pessoas número de terras indígenas, como
árvores da Amazônia corre risco de
no país. Em 2000, 734 mil pessoas Norte e Centro-Oeste, a maioria
extinção hoje pelo modo de explo-
(0,4% dos brasileiros) se autoiden- dos indígenas está na área rural.
ração indiscriminada.

45

Paralelamente, a maioria dos que em 1991 e 57,8% em 2000). Em tornando-se a terceira mais impor-
se declararam indígenas nasceram 2000, o Sudeste passou a despon- tante região do país e superando
no Norte e no Nordeste do país tar com significativa participação o Centro-Oeste. A migração inter-
(as duas regiões somavam 63,9% entre a população de “naturais”, -regional de indígenas era bastante

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

reduzida tanto em 1991 como em Escolarização das reflexões de Pierre Clastres1,


2000. A situação era diferencia- que aponta os Guaranis como so-
da apenas no Sudeste, onde, em Segundo o censo 2000, a taxa de ciedades contra o Estado. Não se
1991, 27,7% dos indígenas residen- escolarização para as pessoas de 5 trata de sociedades sem Estado,
tes eram naturais de outras regiões a 24 anos de idade em geral era de sem lei e sem religião como alguns
brasileiras, principalmente do Nor- 68,3%, já para os indígenas atingia gostariam que fosse. Trata-se sim
deste, e, em 2000, essa proporção 56,2% – em 1991, apenas 29,6% dos de uma postura ética contra o Esta-
era de 25,5% – uma realidade bem autodeclarados indígenas de 5 a 24 do Republicano, pois possuem for-
próxima à da população em geral. anos estavam na escola. A grande mas políticas de gerir seu território
Vale destacar que, em 2000, o Cen- contribuição para o aumento da tradicional de forma diferente das
tro-Oeste aumentou sua proporção taxa entre os indígenas veio dos que estamos assistindo na Repúbli-
de migrantes, passando de 3,8% em residentes na área rural, com ex- ca dos Estados Unidos do Brasil.
1991 para 12,4%, dos quais mais da ceção da região Sudeste, onde o Clastres contextualiza a ques-
metade provinha do Nordeste. incremento maior foi na área urba- tão que ele chama de “violência
na. O Nordeste registrava em 2000 legítima” na relação de poder da
Queda da fecundidade a maior taxa de escolarização en- sociedade ocidental. Ele revela as-
tre indígenas: 67,8% (em 1991, era sim o nosso estranhamento diante
A fecundidade das mulheres indí- 31,6%). das ditas sociedades “sem” Esta-
genas também mostrou um marca- do: “Ora, não se pode desconhe-
do declínio. A queda foi de quase IHU On-Line – Que lógica está cer esse ensinamento decisivo da
30% entre 1991 e 2000, quando por trás da ideologia das Repú- Etnologia: o mundo selvagem das
ficou em pouco menos de quatro blicas que, apoiada somente no tribos, o universo das sociedades
filhos. Grande parte desse declí- ideário moderno da civilização primitivas ou ainda – e é o mesmo
nio se deve às mulheres residentes ocidental, busca a integração do [o que vem dar ao mesmo] – das
em áreas urbanas, pois nas áreas índio ao Estado através do traba- sociedades sem Estado, oferece
rurais a taxa situava-se, em 2000, lho produtivo? estranhamento à nossa reflexão”
próxima de seis filhos por mulher. (p. 107). Clastres explica que, para
Em relação ao rural específico, Aloir Pacini – Faz algum tempo
os ameríndios, os chefes detêm o
destacam-se valores acima de sete que estou pensando no embate das
poder das palavras.
sociedades indígenas diante dos Es-
46 filhos por mulher nas regiões Sul
e Centro-Oeste, resultado que se tados Nacionais, e mais dramático
compara à natalidade estimada ainda se torna quando essas etnias Palavra e poder
para o país como um todo no iní- são minúsculas e não podem nem
pretender atuar politicamente Uma particularidade são as “tri-
cio do século XX, mas que é com-
dentro das dinâmicas destes Esta- bos primitivas” americanas nas
patível com o que dizem pesquisas
dos. Para compreender este des- quais os chefes desses índios são os
sobre o comportamento de alguns
compasso, relevante é se apropriar homens de poder, os mesmos que
povos indígenas:
possuem o monopólio da palavra.
Com isso, Clastres conclui que não
se pode pensar um sem o outro,
“o poder sem a palavra” (Clastres,
p. 107), visto que possuem um elo
que ele vai chamar de “claramente
meta-histórico”. Clastres vai dizer:
“O fato é que, se nas sociedades
de Estado a palavra é o direito do
poder, nas sociedades sem Estado
ela é, ao contrário, o dever do po-
der” (p. 107). Com isso, nas socie-
dades indígenas, detém o direito
da palavra somente o chefe que
põe em prática sua palavra, pois
todos o conhecem de perto, visto
que as palavras “exigem do homem
destinado a ser chefe que ele pro-
ve o seu domínio sobre as palavras”
(Clastres, p. 107). Nessa obrigação

1 CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o


Estado. Francisco Alves Editora. 1978 (Por-
to: Afrontamento, 1975. p. 127-211). (Nota do
entrevistado)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

imposta à função de chefe de ser os Tupi-Guarani3 dos quais os Mbya Resistência


um homem da palavra, transpare- “são uma das últimas tribos pro-
ce a filosofia política da sociedade põem à Etnologia americanista o Assim, mantiveram-se vivos os
primitiva (Clastres, p. 151). enigma de uma singularidade que, índios Guaranis que hoje sobre-
desde antes da Conquista, os leva- viveram nas florestas do leste do
Sendo assim, vazio é o discurso
va à inquietude de procurar sem Paraguai, sul da Bolívia, oeste do
do chefe por não apresentar um
discurso de poder: “o chefe está descanso o além prometido por Brasil. Admiráveis em não renun-
separado da palavra porque está seus mitos, ywy mara ey, a Terra ciar a si próprios, os Mbya, quatro
separado do poder. Na sociedade sem Mal.” (Clastres, p. 111). Não séculos depois, ainda persistem em
primitiva, na sociedade sem Es- só acreditavam, mas se devotavam habitar sua velha terra segundo o
tado, não é do lado do chefe que insistentemente na inquietação de exemplo dos seus antepassados.
se encontra o poder” (Clastres, p. procurar sem tréguas o além dos Os Mbya “conseguiram conservar a
108). Um chefe que abusa do po- mitos. Disso temos como resultado sua identidade tribal contra todas
der, “o chefe que quer bancar o as grandes migrações religiosas que as circunstâncias e provocações do
chefe, é abandonado” (Clastres, p. foram escritas pelos cronistas que seu passado” (Clastres, p. 112).
108). A sociedade primitiva, neste passaram pela América do Sul, pois Apesar das tentativas, os jesuítas
caso, recusa um poder separado, os Guaranis, sob o comando dos xa- não conseguiram “convencê-los
“porque ela própria, e não o chefe, mãs, através de jejuns e danças, de renunciarem a sua idolatria e
é o lugar real de poder” (Clastres, tentavam ascender às “ricas mora- a reunir-se aos outros índios nas
p. 108). das dos deuses, situadas no levan- missões” (Clastres, p. 112). “É raro
te” (Clastres, p. 111). com efeito ver uma cultura indíge-
Cultura ameríndia na persistir em existir” segundo as
“Os xamãs tupis-guaranis exer-
suas próprias normas, conseguindo
ciam, pois, sobre as tribos uma
A Ameríndia não deixa de des- conservar-se bastante longe das in-
influência considerável, sobretu-
concertar aqueles que tentam de- fluências ocidentais. “Do contato
do os maiores dentre eles, os ka-
cifrá-la. Vê-la conferir por vezes entre o mundo branco e o mundo
rai, cuja palavra, queixavam-se os
a sua verdade permanente e im- índio resulta na maior parte das ve-
missionários, continha em si todo
prevista obriga-nos a reconsiderar zes um sincretismo empobrecedor
o poder do demônio” (Clastres, p.
a quieta imagem que dela temos, onde, sob um cristianismo sempre
e que, talvez por artifício, ela não
111). Mesmo considerados os maio-
res entre os Guaranis ou por causa
superficial, o pensamento indígena 47
desmente. A tradição no continen- procura somente adiar a sua mor-
disso, de acordo com os missioná-
te sul-americano esconde uma ge- te” (Clastres, p. 112).
rios, eles ocultavam em si todo o
ografia de terras altas e baixas que poder dos deuses e demônios. Po- Esta resistência dos Guaranis
não corresponde a culturas altas e rém, nos textos escritos não davam diante da religião do branco se fir-
baixas: por um lado, as altas cultu- nenhuma indicação dos conteúdos ma na convicção dos índios de que
ras andinas alcançaram o prestígio dos discursos dos karai pela sim- seu destino é regulado na promes-
dos seus requintes. Por outro lado, sa dos antigos deuses que “vivendo
ples razão de que os jesuítas não
as culturas ditas da floresta tropi- sobre a terra má, ywy mba’e me-
desejavam escrever o conteúdo su-
cal seriam parte de um tenebroso gua, no respeito às normas, eles
gerido pelos diabos aos seus servos
reino de tribos errantes através receberão daqueles lá do alto os
índios. “Surpresos e amargos, os
de savanas e selvas. Há que se re- sinais favoráveis à abertura do ca-
jesuítas zelosos descobriram, sem
velar aqui o etnocentrismo dessa minho” (Clastres, p. 112) que, para
compreendê-las, na dificuldade da
ordem que faz com que se oponha além do terror do mar, os conduzirá
sua predicação, a finitude do seu
do modo familiar do ocidente a ci- à terra prometida. Se os Mbya são
mundo e a derrizão [o vazio] de sua
vilização, de um lado, a barbárie, uma etnia que se conserva como
linguagem: eles constatavam com
do outro. Contra este preconceito, uma unidade social visando à pre-
estupor que as superstições dia-
Clastres mostra que todos os povos servação de suas diferenças, isso
bólicas dos índios podiam [...] ser
que habitam o planeta possuem se deva essencialmente ao substra-
chamado de religião” (Clastres, p.
sabedoria. to profundamente religioso que dá
111).
O mundo índio se revela capaz de sentido à vida de partilha nativa.
surpreender o ocidente com uma cerem cotidianamente pela forma Mbyá, sua
Entre os Mbya existem duas sedi-
autodenominação ritual é Jeguakava Tenon-
linguagem cada vez mais peculiar, mentações da sua literatura oral:
de Porangue’ í (os primeiros escolhidos para
como no caso dos Mbya-Guarani2, levar o adorno sagrado de plumas ou os pri- uma profana que compreende o
meiros adornados). (Nota da IHU On-Line)
2 Mbiás ou embiás (conhecidos pelo etnô- 3 Guaranis: etnia indígena das Américas,
conjunto da mitologia e nomeada-
nimo mbyá ou mbya na bibliografia acadêmi- tendo, como territórios tradicionais, uma mente o grande mito dos gêmeos,
ca): são um subgrupo do povo guarani que ampla região da América do Sul que abrange a outra, sagrada, secreta para os
habita a região meridional da América do Sul, os territórios nacionais da Bolívia, Paraguai, brancos, que se compõe das pre-
em um amplo território em que se sobrepõem Argentina, Uruguai a porção centro-meri-
os Estados nacionais paraguaio, brasileiro, dional do território brasileiro. (Nota da IHU ces, dos cantos religiosos, de todas
argentino e uruguaio. Apesar de se reconhe- On-Line) as improvisações, enfim, que seu

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

fervor inflamado desperta. Quando nado a qualquer sociedade (Clas- so de “descoberta” do novo mundo
sentem que seu Deus deseja fazer- tres, p. 132). tivesse acontecido um pouco mais
-se ouvir, arranca sentimentos for- tarde teríamos um Estado nas or-
tes e chama profetas (karais) e não Organização econômica ganizações das tribos brasileiras.
mais xamãs (pa’is) que impõe sua Contudo, na sociedade primitiva,
forma de linguagem notável pela Dizer que essas sociedades es- a chefia e a linguagem estão in-
sua riqueza poética. Inscreve-se tariam condenadas à economia de trinsecamente ligadas, a palavra é
assim uma preocupação dos índios subsistência por causa de sua in- o único poder reservado ao chefe:
em definir uma esfera do sagrado ferioridade tecnológica não é um mais do que isso para o chefe falar
que a linguagem anuncia, e seja, argumento fundamentado. O equi- é um dever. E a partilha não permi-
ela própria, a negação de uma lin- pamento técnico de uma sociedade te o acúmulo e o capitalismo.
guagem profana. não é comparável diretamente ao
de uma sociedade diferente e não IHU On-Line – Por que o dito ho-
A busca da terra sem serve para nada contrapor a espin- mem branco não consegue com-
males garda ao arco (Clastres, p. 133). preender a cosmovisão indígena
Dois axiomas guiam a civilização na sua relação com o ambiente?
Não se trata aqui de fazer uma ocidental: o primeiro estipula que a
verdadeira sociedade se desenvol- Aloir Pacini – Não sei bem se
genealogia da infelicidade. As coi- não consegue compreender ou não
sas são más, os homens são os ha- ve à sombra protetora do Estado;
o segundo anuncia um imperativo se quer aceitar estas cosmovisões
bitantes de uma terra imperfeita, diferentes que buscam a partilha
de uma terra má, mas os Guaranis categórico que é preciso trabalhar.
Apesar dos índios não darem muito e não o acúmulo, pois esta forma
não foram feitos para a selvageria indígena de viver não serve para
e sua literatura auxiliava a pensar tempo ao trabalho, isso não signifi-
ca que eles morreriam de fome. A enriquecer os poucos que estão no
que não foram feitos para a infe- poder. Diametralmente oposta é a
licidade, mas tinham a certeza de sociedade primitiva é por essência
igualitária, os homens são senho- forma indígena de pensar o poder
alcançar um dia a ywy mara ey, a de quem produz para distribuir e
chamada terra sem males. “E os res de sua atividade, senhores da
circulação dos produtos das ativi- não para acumular. Pela falta de
seus sábios, sempre meditando so- compreensão da vida dos índios
bre os meios de atingi-la, refletiam dades e não agem para si próprios,
48 sobre o problema da origem” (Clas- pois os indígenas produzem para
brasileiros, muitos já não querem
mais viver tradicionalmente nas
tres, 119). “Desgraça [infelicidade] o outro em forma de trocas numa
suas aldeias e são atraídos para as
da existência humana, imperfeição economia de reciprocidade.
cidades. Já vimos que hoje mais da
do mundo, unidade ao mesmo tem- Os Tupi-Guarani pareciam, na metade dos índios brasileiros mo-
po que fenda inscrita no âmago das época em que a Europa chegou ram nos centros urbanos e levam
coisas que compõem o mundo: eis nestas terras, afastar-se sensivel- uma vida urbanizada, usam inter-
o que recusam os índios guaranis, mente do modelo primitivo habitu- net, falam português, mas nem por
e eis o que os levou em todos os al em dois pontos: a taxa de den- isso perderam sua identidade indí-
tempos [desde sempre] a procurar sidade demográfica das suas tribos gena, pois continuam em busca do
um outro espaço, para lá conhecer e a dimensão dos grupos locais bem viver.
a felicidade” (Clastres, 120). em comparação com as unidades
Existem casos de muitas aldeias
Os índios Guarani “peregrina- sócio-políticas da floresta tropical
em cidades como Campo Grande,
vam” à procura de sua terra pro- (Clastres, p. 206). Clastres fala que
Porto Alegre e São Paulo. Muitos
metida, eles sabiam situada lá o texto não deixou de proclamar a
índios do Nordeste se “vestem”
longe do lado do sol nascente impossibilidade interna de poder
de índio para vender uma imagem
“obstáculo à eternidade, o mar de político separado numa sociedade
que os turistas gostam. O mesmo
mãos dadas com o sol” (Clastres, primitiva e a impossibilidade de
acontece quando vestem a roupa
uma origem de um Estado a partir
p. 121). As sociedades primitivas de marca porque indica um sta-
do interior de uma sociedade. Os
sem Estado dissimulam a verdade tus na nossa sociedade. Contudo,
Tupi-Guarani, como um caso de so-
deste juízo de fato: um juízo de va- nas cidades, vivem seus dramas:
ciedade primitiva, permitiriam co-
lor impede a possibilidade de uma muitos são encarados como quem
meçar a surgir algo que poderia se
antropologia política como ciência abandonou sua cultura ou deixou
chamar de Estado. Desenvolvia-se
rigorosa. Clastres fala que as socie- de ser índio. Por outro lado, por
nessas sociedades um processo de
dades primitivas estão privadas do vezes, nas aldeias são tidos como
constituição de uma chefia política
Estado. Na verdade, eles não ne- vencedores porque conseguiram
que não seria negligenciado.
cessitam dele assim como nós, do viver na sociedade do branco.
mesmo modo que eles não estão Este processo de transformação Observamos que nas Terras In-
policiados. Mesmo que o estado de Tupi-Guarani encontrou uma inter- dígenas demarcadas a vida dos
civilização sem Estado designa este rupção brutal com a chegada dos índios é bem mais diversificada
último como fim necessário desti- Europeus. Significa que se o proces- segundo suas culturas, enquanto

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DE CAPA IHU EM REVISTA

nas cidades existe a pressão da tradicionais indígenas, penso que nos Chiquitanos apresenta coisas
homogeneização. a Antropologia, através de seu mé- concretas, como auxiliar a criar a
todo etnográfico é capaz de levar escola e colaborar até na constru-
O preconceito “branco” a sério o que os indígenas fazem e ção dos prédios para que tenham
dizem. Neste caso podemos ver a espaço para estas ações educati-
Localizando melhor na fronteira sua agência, ou seja, o seu modo vas, ou mesmo auxiliar para que
oeste, os preconceitos em relação de pensar e agir levando em con- tenham água potável, além de ju-
ao indígena são fortes na cidade de sideração o bem viver para todos, ridicamente com laudos antropo-
Cuiabá, Cáceres, Porto Esperidião, não somente para eles. lógicos para garantir seus direitos
Vila Bela da Santíssima Trindade diante do sistema judiciário que
e outras cidades que desejam ex- tem muitos juízes fazendeiros.
purgar sua herança indígena. Isso
Por exemplo, no dia 21-11-2015
faz com que eles ocultem suas re-
foram a Brasília nove lideranças
ferências culturais e permaneçam
somente no exótico. A crítica mais Só poderemos Chiquitanas protestar contra a PEC
2156 e atuar no sentido de conse-
surpreendente está relacionada às
adaptações que os índios fazem
viver bem se guir a demarcação de suas terras
para viverem na cidade e lutarem aprendermos tradicionais. Mas quem os repre-
senta no Congresso e na Câmara
por seus direitos.
a viver com os de Deputados? São os que tomaram
Conforme relata Silvia Caiuby deles as terras que foram eleitos e
Novaes, em sua obra Jogo de Es- que são dife- ocupam os cargos políticos.
pelho4, quando comenta sobre a
reunião de líderes indígenas em
rentes de nós
IHU On-Line – Como compre-
Brasília, onde os índios do Nordeste ender as mudanças da relação
usavam cocar e adereços típicos, o O que é dramático é que esta entre a Igreja e os povos indíge-
fato é que na aldeia eles não usam forma de considerar que a terra é nas? Em que medida a Filosofia e
tais adereços. É como se eles fabri- mãe de todos, as águas são vivas a Teologia podem contribuir com
cassem uma identidade para viver e precisam ser preservadas no di- uma aceitação da forma de vida
na cidade e reivindicar seus direi- álogo com seus hichis (espíritos),
tos enquanto indígenas. Contudo, tornam os indígenas frágeis no sen-
indígena? 49
na visão deles, podem ser igual ao tido de eles pensarem que todos, Aloir Pacini – Os jesuítas nas
branco porque possuem as mesmas também os brancos, têm direito de Américas foram sensíveis aos ape-
condições humanas, mas querem sobreviver neste planeta. Mas não los dos indígenas desde os primei-
fazer valer os seus direitos com vemos o mesmo acontecer a partir ros tempos da evangelização e cria-
seus próprios costumes enquanto dos ditos “brancos” – não todos – ram missões o mais independente
indígenas. que se empoderam e eliminam os que puderam das dinâmicas da co-
índios para tomar as suas terras e lonização dos impérios português e
IHU On-Line- Em que medida as espanhol. Inspirados na opção de
outros recursos o fazem sem dor na
ciências ocidentalizadas, em es- Jesus Cristo pelos pobres, a Igreja
consciência. Os limites ficam evi-
pecial a História e a Antropologia, Católica foi capaz de compreender,
dentes quando os indígenas procu-
permitem uma compreensão da depois do Vaticano II7, que não é
ram formas de tornar o “branco”,
complexidade da forma de vida ou outras etnias, partes da sua 6 PEC 215: Proposta de Emenda à Cons-
indígena? Quais os avanços que sociedade e nós procuramos explo- tituição 215, de 2000. Pretende delegar ao
propicia e quais seus limites? rar suas forças de trabalho – e, por Legislativo a aprovação de demarcações de
terras indígenas, quilombolas e áreas de pre-
Aloir Pacini – Penso que a Histó- isso, são preguiçosos – ou tomar os servação ambiental. A proposta foi aprovada
ria sofre de um problema intrínseco seus bens. por comissões internas da Câmara e segue
os trâmites em plenário. Confira a íntegra da
que é sempre colocar os indígenas Como antropólogo e etnólogo, proposta em http://bit.ly/1kpiLvM. Nas No-
dentro da história do ocidente e, procuro compreender as socieda- tícias do Dia do sítio do IHU há uma série de
portanto, os observa como margi- des indígenas na sua realidade e materiais sobre o tema. Confira em ihu.unisi-
nalizados. Quando há boa intenção nos.br. (Nota da IHU On-Line)
atuar segundo as suas necessida- 7 Concílio Vaticano II: convocado no dia
do historiador, pode-se até vê-los
des. Atuar no local para conseguir 11-11-1962 pelo Papa João XXIII. Ocorre-
como vítimas desta história colo- ram quatro sessões, uma em cada ano. Seu
algum efeito no geral parece ser a
nizadora. Pegando como exemplo encerramento deu-se a 08-12-1965, pelo
solução. Não há como se esparra- Papa Paulo VI. A revisão proposta por este
a experiência da minha pesquisa
mar para todo o canto como beija- Concílio estava centrada na visão da Igreja
com os Chiquitanos5, os coletivos como uma congregação de fé, substituindo a
-flor e não ter resultado em canto
concepção hierárquica do Concílio anterior,
4 São Paulo: EdUSP, 1993. (Nota da IHU nenhum. Por isso a atuação focada que declarara a infalibilidade papal. As trans-
On-Line) formações que introduziu foram no sentido
5 Chiquitanos (ou chiquitos): grupo indíge- Mato Grosso (Terra Indígena Lago Grande) e da democratização dos ritos, como a missa
na que habita o oeste do estado brasileiro de o leste da Bolívia. (Nota da IHU On-Line) rezada em vernáculo, aproximando a Igreja

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

preciso converter os indígenas para Nova Barbecho, o Acorizinho, com mais as lutas indígenas. Isso está
que eles sejam salvos. Ao contrá- a distribuição das terras em lotes claro também para os fazendeiros
rio, seu modo de vida muitas vezes particulares pelo Instituto nacional e políticos que desejam tomar as
condiz mais com o que Jesus Cris- de Colonização e Reforma Agrária terras para a produção capitalista
to espera dos seres humanos, do – Incra, somente uma família con- com o argumento de que os indí-
que o modo do ocidente que se crê seguiu permanecer no local. Os de- genas não produzem nada para o
cristianizado, mas que apresenta mais acabaram vendendo seus lo- país.
sérios problemas de fraternidade tes e se mudando para a periferia
Por isso jogam duro para que
porque pautados no egoísmo, de- da cidade de Porto Esperidião. Este
sejam eles os que vão decidir se
fende e promove a riqueza de uns processo de desterritorialização
vale a pena ter ou não uma terra
em detrimento das grandes maio- dos Chiquitanos foi dramático para
dezenas de aldeias nos últimos 50 indígena para as etnias que tradi-
rias humanas. Não estranha que as cionalmente vivem no território
Repúblicas surjam no ocidente re- anos na fronteira brasileira.
nacional. Ao exigir que a demarca-
forçando este modo de ver e acu- ção das Terras Indígenas passe pelo
mular capital para as elites. Congresso Nacional e a Câmara de
Deputados – o objeto da PEC 215
IHU On-Line – Como entender –, fica inviabilizada a demarcação
os riscos da destituição da cul-
tura indígena e suas complexas
Penso que talvez das terras indígenas e os conflitos
que os indígenas sofrem com as
consequências para os povos, to- agora, por que invasões das suas terras tradicio-
mando como exemplo o caso dos nais irão se acirrar cada vez mais
Chiquitanos? todos corremos até que os indígenas sejam extin-
Aloir Pacini – Eu pude ver como o risco do dilú- tos. Evidente é que quem tem mais
armas e poder, mais uma vez será
se precisa pouco para viver bem
entre os Chiquitanos. Em Santa
vio será possí- o vencedor neste conflito. Assim,
quem invadiu, pode legitimar o
Ana, na Bolívia, ou na aldeia Vila vel a mudança seu roubo e enriquecer tomando as
Nova Barbecho (fronteira do Brasil
com a Bolívia) que estava encurra- no modo de ver terras indígenas. Aparece aos nos-
sos olhos que tudo no Brasil funcio-
50 lada na beira da estrada, pude ver
a produção de na com corrupção.
como se consegue viver com pouco,
mas partilhando o que se tem. Se alimentos feita Direitos e proteção ao
for do modo de produção capitalis-
ta, ao estilo capitalista ocidental, pelos indíge- indígena
todos já estariam mortos. Mas por-
que o imperativo é distribuir, quan-
nas pautada na O Brasil parece não mais querer
do um tem algo para comer todos partilha sem o assegurar os direitos indígenas.
Penso que o Brasil não viveu um
comem, assim eles conseguem so-
breviver. Na aldeia ao lado da Vila
desperdício contexto tão anti-indígena nem
no tempo das Missões Jesuíticas,
dos fiéis dos diferentes países. Este Concílio quando se atacavam as aldeias
encontrou resistência dos setores conser- IHU On-Line – De que forma o para levar os indígenas como es-
vadores da Igreja, defensores da hierarquia
Estado pode/deve fornecer ga- cravos. A PEC 215 que tramita no
e do dogma estrito, e seus frutos foram, aos
poucos, esvaziados, retornando a Igreja à es- rantias para que os índios sigam Congresso Nacional é prova disso.
trutura rígida preconizada pelo Concílio Vati- sendo índios, preservando suas Naquele tempo da Colônia, os je-
cano I. O Instituto Humanitas Unisinos suítas souberam ser ousados e criar
– IHU produziu a edição 297, Karl Rahner e
culturas e locais de origem, sem
a ruptura do Vaticano II, de 15-6-2009, dis- a necessidade da integração oci- as Missões que eram ilhas de bem
ponível em http://bit.ly/o2e8cX, bem como dentalizada ao Estado? Como estar dos indígenas no contexto
a edição 401, de 03-09-2012, intitulada Con- observa a realidade brasileira e de escravidão mais geral, por isso
cílio Vaticano II. 50 anos depois, disponível
a política indigenista empregada os indígenas procuravam estas
em http://bit.ly/REokjn, e a edição 425, de
01-07-2013, intitulada O Concílio Vaticano II pelo Governo Dilma? Missões para viverem. Contudo, o
como evento dialógico. Um olhar a partir de Império não suportou estas expe-
Mikhail Bakhtin e seu Círculo, disponível em Aloir Pacini – Está claro que, para
riências diferentes, fora do capi-
http://bit.ly/1cUUZfC. Em 2015, o Instituto permanecer como indígenas, a pos-
Humanitas Unisinos – IHU promoveu o talismo, e abortou drasticamente
se coletiva da terra é fundamental.
colóquio O Concílio Vaticano II: 50 anos de- estes projetos de bem viver.
pois. A Igreja no contexto das transformações O modo como os indígenas mane-
tecnocientíficas e socioculturais da contem- jam os recursos naturais é muito A Companhia de Jesus sofreu as
poraneidade. As repercussões do evento po- diferente do nosso e eles precisam consequências de sua opção pelos
dem ser conferidas na IHU On-Line, edição
ter autonomia nessa gestão. Toda indígenas e teve o mesmo fim das
466, de 01-06-2015, disponível em http://bit.
ly/1IfYpJ2 e também em Notícias do Dia no vez que interferimos nesse proces- Missões, sendo suprimida no Brasil,
sitio IHU. (Nota da IHU On-Line) so sem discernimento complicamos em 1759, e na América Espanhola,

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DE CAPA IHU EM REVISTA

em 1967. O que fazer para colocar nismos que tivemos acabavam ge- e os seus ambientes de vida. Para
novamente esta Mínima Compa- rando uma elite privilegiada. Renate Brigitte Viertler10, na medi-
nhia de Jesus ao serviço dos pobres da em que as populações humanas
Interessante é que pertencemos
e marginalizados da sociedade atu- são dotadas de cultura, é neces-
a uma espécie única e todos os se-
al, especialmente os indígenas, é sário inserir o conceito de cultura
o que me pergunto todos os dias. res humanos possuem uma carac-
no estudo ecológico do ser humano
Não encontro respostas fáceis, mas terística comum, a de orientar o
(cf. 1988: p. 9). É inegável que as
faço um esforço para não ser co- seu comportamento por referência
mudanças culturais sofridas pela
nivente com a avalanche do capi- a um conjunto de padrões designa-
humanidade alteraram de modo ir-
talismo que nos sufoca de forma reversível as condições qualitativas
dramática. Somos uma gota d’água e quantitativas de sobrevivência
para apagar a fogueira, mas feliz humana em nosso planeta (p. 11).
por ser gota d’água e não com-
bustível que faz o fogo queimar as Para mim pare- As culturas humanas do século
XX, em especial as indígenas, fo-
iniciativas que brotam do Espírito
Santo. ce difícil que a ram obrigadas a se adaptar às no-
vas condições de sobrevivência. O
idolatria do di- processo de adaptação das cultu-
IHU On-Line – Qual sua análi-
se acerca da política indigenista nheiro dê lugar ras humanas do século XX aos seus
respectivos ambientes não signifi-
empregada por governos ditos de
esquerda na América Latina? Em
à fraternidade ca que a convivência e a sobrevi-
que medida compreendem o índio vência sejam “melhores” ou mais
e em que medida sucumbem ao “vantajosas” para os indivíduos,
do como cultura. Contudo, apren- sejam indígenas ou da sociedade
projeto neodesenvolvimentista?
demos com a antropologia que envolvente. Pelo contrário, adap-
Aloir Pacini – Os dados do Con- nossas diferenças são culturais. E tar-se significou, em muitos casos,
selho Indigenista Missionário – Cimi podemos dizer que os indígenas sobreviver por meio de numerosas
mostram que, no Brasil, não são os possuem uma relação cultural mais concessões, por vezes com altos
governos mais de esquerda ou de íntima com a natureza, porque, custos físicos e morais (p. 20). Em
direita que determinam a questão para eles, todos os seres, mesmo as
da demarcação de terras ou a vio- montanhas, os vegetais e animais
oposição aos “povos da natureza”
teríamos então os “povos da cultu-
51
lência contra os indígenas que pos- possuem “espírito”, possuem agên- ra”, que desenvolveram controles
sui relativa constância nos últimos cia humana. Esta perspectiva indí- mais eficientes quanto à regulari-
anos. Nas América, o agronegócio, gena está bem explicada nos textos dade e à quantidade dos recursos
a pecuária e as mineradoras é que produzidos por Eduardo Viveiros de materiais necessários à sobrevivên-
determinam quais os territórios in- Castro9 e seus discípulos. cia de grandes contingentes demo-
dígenas que serão explorados den- gráficos (p. 29).
tro desta lógica. A violência contra Ecologia cultural
os Povos Indígenas no Brasil em Por isso, podemos dizer que a
20148 possui cifras alarmantes: 138 perspectiva dos indígenas é outra
Todavia, quero falar da ecologia
assassinatos; 31 tentativas de as- em relação à natureza. Os indíge-
cultural, que é o estudo da rede
sassinato; 785 mortes na infância; nas possuem um esforço enorme
de relações que existe entre as co-
21 mortes por desassistência à saú- para manter suas culturas que se-
munidades ou sociedades humanas
de; 135 suicídios; 84 invasões das riam mais adaptadas ao convívio
terras indígenas; 118 omissões na 9 Eduardo Viveiros de Castro (1951): com a natureza porque a conce-
regularidade das terras. antropólogo brasileiro, professor do Museu bem como parte de seu corpo e de
Nacional do Rio de Janeiro, na Universidade sua sociedade, não como fonte de
Mesmo os governos que são ma- Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Concedeu
riquezas externa a eles, mas uma
joritariamente compostos por indí- a entrevista O conceito vira grife, e o pensa-
genas como na Bolívia, Panamá e dor vira proprietário de grife à edição 161 conservação deles mesmos.
da IHU On-Line, de 24-10-2005, disponí-
outros, a dinâmica do Estado acaba vel em http://bit.ly/ihuon161.” Entre outras
impondo sua lógica e forçando os publicações, escreveu Arawete: O Povo do IHU On-Line – Quais os desafios
indígenas a se incorporarem a este Ipixuna (São Paulo: CEDI, 1992), A incons- para fazer com que a sociedade
tância da alma selvagem (e outros ensaios
processo capitalista porque não há de antropologia). (São Paulo: Cosac & Naify,
valorize e respeite a cultura in-
como manter a estrutura do Esta- 2002) e Métaphysiques cannibales. Lignes dígena? Qual o papel do Poder
do sem acúmulo de capital e de d’anthropologie post-structurale (Paris: Público e da mídia na constitui-
Presses Universitaires de France, 2009). Ele
privilégios para poucos. Mesmo as ção da imagem do índio para a
também é autor do prefácio do livro A Queda
iniciativas de socialismos ou comu- Do Céu – Palavras de um xamã yanomami, sociedade?
de Davi Kopenawa e Bruce Albert (São Pau-
8 Fonte: Relatório de Violência Contra os Po- lo: Companhia das Letras, 2015). Confira um 10 VIERTLER, Renate Brigitte. Ecologia cul-
vos Indígenas – dados de 2014, Cimi. (Nota trecho da obra em http://bit.ly/1Q0Fg5u. tural – uma antropologia da mudança. Ed.
do entrevistado) (Nota da IHU On-Line) Ática. 1988. (Nota do entrevistado)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Aloir Pacini – O trabalho é mais suem estratégia diferente de resi- João Bosco Burnier12 e do Irmão
árduo do que parece. A dinâmica liência e trabalho duro para encon- Vicente Cañas13 e analisasse como
da colonização possui em muitos trar um canto onde possam viver suas experiências contribuem
âmbitos este momento duro de crí- no Brasil. As alianças conseguidas para um entendimento do ideário
ticas e o apelo à descolonização. na fragilidade das instituições do indígena.
No contexto da Igreja, temos as Estado favoráveis aos indígenas e
Aloir Pacini – Existe um proces-
críticas do Vaticano II que anima- ONGs conseguem segurar um pou-
so crescente de compreensão da
ram os missionários indigenistas no co da onda anti-indígena que polui
complexidade da atuação da Igre-
Mato Grosso. Na academia também a nossa Nação.
ja entre os indígenas que pode
existem formas de crítica à colo-
ser analisada a partir destes três
nização e a própria antropologia IHU On-Line – De que forma é personagens mencionados. O aus-
cuida de si para tentar não ser um possível aliar as necessidades tríaco que veio para a Missão In-
instrumento do Estado para incor- ocidentais de produção e desen- dígena no Mato Grosso em 194614
porar os indígenas. Contudo, não volvimento com a preservação da – Johann Dornstauder – trazia o
conseguimos emplacar de forma cultura e do espaço do índio? ideário de civilização e salvação
consistente um processo duradou-
Aloir Pacini – Este embate entre dos indígenas e seringueiros que
ro de reconhecimento dos direitos
indígenas e invasores europeus pa- estavam invadindo o norte de
indígenas.
recia não ter fim, mas agora que Mato Grosso na segunda metade
A possibilidade de conceder ple- o planeta Terra está dando sinais do século passado. Teve a inicia-
namente uma cidadania que dê de esgotamento é urgente que se tiva de viver itinerando entre os
conta da diversidade étnica e cul- preserve o clima e o meio ambien- indígenas, o que ele chamava de
tural ainda não foi gestada dentro te para que todos os seres huma- Missão Volante. Conseguiu atuar
dos Estados Nacionais. O Poder Pú- nos sobrevivam. Penso que talvez decisivamente para a sobrevivên-
blico, em geral, acaba sucumbindo agora, por que todos corremos o cia de algumas etnias, mas não
aos interesses da maioria da popu- risco do dilúvio – os Chiquitano di- conseguiu sustar os processos de
lação ou das minorias mais organi- zem que o dilúvio pode chegar pela expansão colonial e desenvolvi-
zadas e endinheiradas, neste caso, água, vento ou fogo –, será possível mentista sobre os territórios tra-
não são estes os indígenas. A mídia a mudança no modo de ver a pro- dicionais indígenas.
pode se arvorar o lugar de cons- dução de alimentos feita pelos in-
52 ciência crítica da sociedade, mas dígenas pautada na partilha sem o
Os outros dois jesuítas também
também não consegue ser isenta do não conseguiram sustar este pro-
desperdício, numa forma mais ade-
processo de financiamento dos seus cesso da Marcha para o Oeste15 e
quada de viver no planeta Terra.
trabalhos. Alguns poucos conse- Ter equilíbrio, aprendendo uns com 12 João Bosco Penido Burnier (1917-
guem se afastar do exótico e atuar os outros neste processo de seme- 1976): sacerdote jesuíta que, de 1959 a 1965,
de forma coerente na valorização adura e de colheita do que neces- respondeu pelos cargos de mestre de noviços
verdadeira do diferente indígena e diretor espiritual dos juniores. Os anos de
sitamos, parece ser a solução não
sua vida madura foram dedicados à Missão
com suas consequências óbvias, e só para os índios, mas para todos de Diamantino/MT, servindo junto aos ín-
de passar até por ridículo, pois não nós. Principalmente porque estaria dios beiços-de-pau e bacairis, quando par-
seriam plenamente compreendidos pautado por um estilo de vida equi- ticipou da coordenação regional do CIMI
(Conselho Indigenista Missionário). Faleceu
pelos telespectadores. librado nas relações com a nature- tragicamente, baleado, enquanto com Dom
za e com o mundo circundante, Pedro Casaldáliga defendia duas mulheres
IHU On-Line – Como avalia o pautado pelo trabalho e não pela torturadas. (Nota da IHU On-Line)
acumulação de riqueza ou busca de 13 Vicente Cañas Costa (1939-1987):
genocídio indígena brasileiro, também conhecido como Kiwxi, foi um mis-
em especial os conflitos de Mato segurança e status. sionário jesuíta espanhol naturalizado brasi-
Grosso do Sul? leiro, que, em 1974, estabeleceu os primeiros
contatos com os indígenas Enawenê-nawê,
IHU On-Line – Gostaria que o
Aloir Pacini – Chamo a atenção no estado de Mato Grosso, e passou a residir
senhor recuperasse um pouco entre eles em 1977, trabalhando pela preser-
para o que é dramático: os proble-
das memórias dos jesuítas que vação de seu território, com demarcação da
mas dos Guarani em Mato Grosso Terra Indígena Enawenê-Nawê e por ações
atuaram em Mato Grosso, como
do Sul saltam à vista por causa da de saúde. Foi assassinado dez anos depois,
Johann Dornstauder11, do Padre a mando de fazendeiros da região. (Nota da
decisão dos indígenas de se entre-
IHU On-Line)
garem à morte diante dos pistolei- 11 Johann Dornstauder (1904-1994): pa- 14 PACINI, Aloir. Um artífice da paz entre
ros e das forças que se organizam dre jesuíta austríaco que, imbuído do espírito seringueiros e índios. São Leopoldo: Ed. Uni-
para eliminá-los com o máximo de inaciano, dedicou a vida das tribos indígenas sinos, 2015. (Nota do entrevistado)
do Brasil. A relação era tão excepcional que 15 Marcha para o Oeste: foi criada pelo
aparência de legitimidade. Pensam os índios o reverenciavam como amigo e ben- governo de Getúlio Vargas para incentivar o
eles que estes atos de suplício des- feitor inesquecível. Através de sua atuação progresso e a ocupação do Centro-Oeste, que
pertem a consciência da população também é possível apreender a história da organizou um plano para que as pessoas mi-
mudança de um conceito na atuação junto grassem para o centro do Brasil, onde havia
brasileira. Para mim parece difícil
aos índios: da Missão de ajuda ao desenvol- muitas terras desocupadas. Esse movimento
que a idolatria do dinheiro dê lugar vimento para o trabalho de desenvolvimento. ficou conhecido como Marcha para o Oeste.
à fraternidade. Os Chiquitano pos- (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

nem nós todos juntos conseguirí- Jesuítas desta envergadura si- rio Juruena em 7 de setembro de
amos. Contudo, estes dois márti- nalizam que a experiência de vida 2014. Novas forças missionárias
res tornaram evidente, com o seu partilhada com os indígenas con- estão sendo direcionadas para ou-
sangue derramado nesta luta indí- verte o coração e a ação dos mis- tras partes da Amazônia, contudo
gena, de que a invasão das Terras sionários, uma transformação que os trabalhos são ainda iniciais e
Indígenas era algo perverso. Estes é possível para quem participa des- não sabemos os resultados des-
sinais não deixavam dúvida de que sa experiência de vida comum na tas iniciativas. A Conferencia de
os que se usavam de tal violência simplicidade e na distribuição dos Provinciales Jesuitas en América
contra os missionários estavam bens. Isso para que todos possam Latina – CPAL tem colocado como
usando de maior violência ainda bem viver. prioridade o trabalho com os in-
contra os índios – curiosamente dígenas e com a Amazônia, por
contra a própria humanidade e IHU On-Line – Deseja acrescen- isso se torna necessário juntar as
a vida na terra, pois, se trata da tar algo? poucas forças que temos para esta
mesma lógica utilizada nos mo- atuação.
mentos em que se cala aquele Aloir Pacini – Os jesuítas que
trabalham mais intensamente com Há muito que fazer e fica um
que critica e expõe a perversão
apelo a quem deseja fazer algo de
dos acúmulos de bens com a defe- os indígenas no Brasil possuem
bom para termos tolerância com
sa dos privilégios de uns sobre as uma história de compromisso in-
o diferente e tornar nosso mundo
coletividades –, pois os preconcei- tenso em Mato Grosso, mas vem
habitável sem precisar extermi-
tos, de certa forma, legitimavam diminuindo aos poucos por causa
nar as etnias indígenas: ou me-
a violência contra estes que eram da falta de pessoal. Passamos de
lhor, só poderemos viver bem se
tidos como “selvagens”. cerca de 50 jesuítas atuando com
aprendermos a viver com os que
os indígenas para agora chegarmos
Em 15-07-2016, estaremos refle- são diferentes de nós. Choca-nos
a três: eu, o Padre Claudio Lehnen
tindo sobre os 40 anos do martírio neste tempo que o Estado Islâmico
e o Padre Felício Fritsch, debili-
de João Bosco Burnier na Romaria tenha mais poder de atração en-
tado na saúde. O Padre Balduino
dos Mártires em Ribeirão Casca- tre os jovens convocando-os para
Loebens17 já partiu, afogou-se no
lheira, e, em 06-04-2017, os 30 a violência e a morte, do que para
anos do martírio do Irmão Vicente apenas parte de seu território original. Seu uma causa nobre como a sobre-
Cañas na sua sepultura na margem vivência dos povos indígenas no
53
primeiro contato com não indígenas ocorreu
do rio Papagaio, no lugar chamado em 1974 e desde o início do século XXI têm Brasil. A lógica “civilizada” tem
seu território e seus costumes ameaçados
Caixão de Pedra onde foi morto e pela poluição, pelo avanço da agropecuária
construído e servido a uma gene-
sepultado. Este irmão jesuíta foi e pela instalação de uma rede de centrais hi- ralizada “cultura de morte”. Os
capaz de se inserir de tal forma drelétricas nos rios da região. Todos os anos, recentes acontecimentos parecem
entre os Enawene Nawe16 que era realizam o ritual yaokwa, reconhecido em confirmar, lamentavelmente, essa
2010 como patrimônio cultural nacional e em
confundido como um deles. 2011 como patrimônio imaterial da humani- tese. ■
dade que requer proteção urgente, recebendo
16 Enawenê-Nawê (ou Enáuenês-nauês): apoio do IPHAN e da Unesco. (Nota da IHU município. Conforme o Corpo de Bombeiros,
também conhecidos como Salumã, são um On-Line) que fez as buscas pelo padre, os índios viram
grupo indígena brasileiro cuja língua é da 17 Balduíno Loebens: padre jesuíta que foi o padre saindo sozinho e logo depois avista-
família Aruak. Os cerca de 560 indivíduos vi- encontrado morto aos 73 anos d eidade. Atu- ram o barco vazio. O sítio do Instituto Hu-
vem em uma única aldeia às margens do rio ava em Juína, a 737 km de Cuiabá, foi encon- manitas Unisinos – IHU publicou repor-
Iquê, afluente do Juruena, no estado de Mato trado no Rio Juruena. Ele estava desapareci- tagem sobre o caso nas Notícias do Dia de 10-
Grosso, mais precisamente na Terra Indígena do há cerca de um dia depois de fazer visita a 09-2014, acesse em http://bit.ly/1NidVGS.
Enawenê-Nawê, de 742 mil hectares e que é uma aldeia indígena, da etnia Rikbaktsa, no (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS...
—— Chiquitanos e a busca pelo território. Entrevista especial com Aloir Pacini, publicada nas
Notícias do Dia, de 22-03-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/1Yuy6JK;
—— “Ninguém deixa de ser índio porque usa celular ou anda na cidade”. Entrevista especial
com Aloir Pacini, publicada na revista IHU On-Line, nº 257, de 05-05-2008, disponível em
http://bit.ly/1T4v2jW;
—— Morte e violência. Um debate sobre a discriminação contra os índios. Entrevista com Aloir
Pacini, publicada nas Notícias do Dia, de 22-01-2009, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, disponível em http://bit.ly/1OgQin8.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

A barbárie secular e a cegueira atual


Egon Heck recorda que a relação com os índios já se estabeleceu como
expropriação, destituindo diferentes concepções de mundo. Hoje, se
atualiza na recusa de direitos e na prática de genocídio
Por João Vitor Santos

E gon Heck não nasceu índio. Depois de


se aproximar de povos originários, pas-
sou a compartilhar dos mesmos senti-
mentos, da vontade de viver em uma socieda-
de que respeita as diferenças, aprende com a
gena pode ser uma alternativa para um mun-
do obstinadamente baseado no consumo e na
posse. “Faço minhas reflexões não a partir de
pesquisas acadêmicas, mas a partir de mais
de quatro décadas de vivência solidária e de
espiritualidade e sonha com justiça social. As- compromisso com os povos indígenas e seus
sim, dentro do Conselho Indigenista Missioná- direitos. Como membro do Conselho Indige-
rio – Cimi, passou a ter a causa indígena como nista Missionário, tendo trabalhado em Mato
sua bandeira pessoal e ao longo de anos vem Grosso do Sul, acompanhei covardes agressões
encarando batalhas para assegurar direitos aos perpetradas contra os povos indígenas na re-
índios. Para ele, a relação entre branco e índio gião. A mais recente, a abertura de uma Co-
já nasceu conflituosa. “Não houve um processo missão Parlamentar de Inquérito – CPI contra
de interpelação harmoniosa e enriquecedora. o Cimi”, antecipa.
Houve a completa dominação física e cultural
Numa perspectiva de que tudo está interli-
dos europeus que para cá vieram, sendo majo-
gado, Egon revela a significância de seu lugar
54 ritariamente brancos e praticantes de crimes
em suas terras de origem”, recorda.
– geográfico e temporal – de fala: “inicio as
respostas às questões, em Palmas, no Tocan-
Egon destaca que essa relação de domina- tins. Esse referencial geográfico e conjuntu-
ção se atualiza na perversidade de um sistema ral, onde se realizam os Jogos Mundiais Indí-
capitalista que não permite reconhecimento genas1, me possibilita, de forma privilegiada,
de culturas diferentes da ocidental, aque- refletir sobre algumas questões. Também es-
la que é sua base. “O sistema capitalista se tou escrevendo num momento de agressões
estrutura sobre pilares do individualismo, da extremas aos direitos dos povos indígenas,
competição, da propriedade privada e da ter- com a aprovação da PEC 215, na Comissão Es-
ra como mercadoria, que são totalmente con- pecial, na fatídica noite de 27 de outubro”.
flitantes com os projetos de vida e sociedades
Egon Heck faz parte do secretariado nacio-
indígenas”, completa. Na entrevista a seguir,
nal do Conselho Indigenista Missionário – Cimi.
concedida por e-mail à IHU On-Line, Egon
tenta demonstrar que o modo de vida indí- Confira a entrevista.

1
IHU On-Line – O que está por homem branco? Por que o homem
trás da luta entre os índios e o branco não consegue entender com culturas diferentes, com Deus e com a
a cultura e a forma de vida in- natureza. O Instituto Humanitas Unisinos
1 Jogos Mundiais dos Povos Indígenas dígena, em conceitos como, por – IHU tem diversas publicações que tratam
(2015): encontro que ocorreu de 23 de outubro exemplo, o “Bem-Viver”2? do conceito. Entre elas a revista IHU On-
a 1º de novembro de 2015 em Palmas, Tocan- Line “Sumak Kawsay, Suma Qamana,
tins, com a presença de mais de dois mil atletas Teko Pora. O Bem-Viver”, número 340,
indígenas de 30 países. Além dos indígenas das 2 Bem-Viver: é um antigo paradigma que de 23-08-2010, disponível em http://bit.
Américas, também participaram os povos da nos mostra a sabedoria ancestral dos povos ly/1MRpPYX; “Em busca da terra sem males:
Nova Zelândia, Congo, Mongólia, Rússia e Fili- indígenas, como também, sua identidade. os territórios indígenas”, IHU On-Line
pinas. Do Brasil, cerca de 24 etnias competiram. O Bem-Viver ou Viver Bem contém uma número 257, de 05-05-2008, disponível em
Boa parte do evento é composta por esportes mensagem universal e esperançosa diante http://bit.ly/1LzIKWh; “O grande desafio dos
indígenas, que se dividem em jogos tradicionais de um mundo que vai perdendo seus valores indígenas nos países andinos: seus direitos
demonstrativos ou jogos nativos de integração. morais mais profundos e importantes. O sobre os recursos naturais”, artigo de Xavier
Outra parcela do evento é composta por espor- Bem-Viver nos é apresentado como uma Albó, publicado em Cadernos IHU ideias,
tes ocidentais competitivos, que também tem a alternativa ao viver melhor da cultura número 225, ano XXIIX, 2015, disponível em
característica de unificação das etnias e povos ocidental. O Bem-Viver tem relação com a http://bit.ly/1XqWaeb. Veja mais em http://
indígenas. (Nota da IHU On-Line) harmonia para com todos os nossos irmãos, bit.ly/1POHhDn. (Nota da IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Egon Heck – Trata-se de proces- quero escrever mais com o coração a condições de existência capazes
sos civilizatórios e de valores dis- do que com a racionalização dos de ocasionar-lhe a destruição física
tintos. Não estamos aqui falando conflitos, das violências, da guerra total ou parcial; d) adotar medidas
do índio, do negro e do branco, su- silenciosa e mortífera, movida pelo destinadas a impedir os nascimen-
postamente elementos igualitaria- sistema econômico e político rei- tos no seio do grupo; e) efetuar a
mente formadores da nossa nação. nante na região. transferência forçada de crianças
Estamos falando de uma guerra de do grupo para outro grupo”.
Eu vi. Eu convivi. Eu senti. Por
conquista em que a voz das armas
mais que procurasse sublimar e Considerando, portanto, o caso
e das epidemias perpetrou um ho-
escamotear a cruel realidade, isso específico dos povos de Mato Gros-
locausto de mais de cinco milhões
seria impossível, por uma razão so do Sul, que no período de 2003
em território que veio a constituir
muito simples: o grito e o clamor a 2014 foram 390 assassinatos de
o Brasil. Não houve um processo
dos Kaiowá Guarani não são vozes indígenas, fica sim caracterizado o
de interpelação harmoniosa e en-
que soam em vão. Ou seja, outras crime de genocídio. Acrescente-se
riquecedora. Houve a completa
gentes estão acompanhando essa a essa situação os 707 casos de sui-
dominação física e cultural dos eu-
realidade. Observam o quanto são cídios, só em Mato Grosso do Sul,
ropeus que para cá vieram, sendo
perversos os interesses econômicos entre os anos de 2000 e 2014.
majoritariamente brancos e prati-
e políticos naquela região. Estes
cantes de crimes em suas terras de Porém, o que nos interessa não é
negam condições mínimas de so-
origem. uma fria estatística, mais sim iden-
brevivência, destilam preconceito
tificar as causas de toda essa vio-
Quanto à compreensão das cul- e ódio contra essas comunidades.
lência e do genocídio. Para tanto,
turas e modos de vida dos povos
Não restam dúvidas de que se estaremos utilizando informações
indígenas, pelos não indígenas
trata de um processo histórico que do Fórum Unitário dos Movimen-
(brancos), existe uma dificuldade
engendrou nos tecidos sociais es- tos Sociais e Sindicais de Campo
estrutural, histórica e atual, pe-
sas feridas profundas. Agora o que Grande, composto por quase uma
las lógicas, pensamentos e valores
não se pode entender é por que se centena de entidades regionais e
distintos. Por exemplo, o sistema
continua a negar o direito ao me- nacionais, pedindo o boicote aos
capitalista se estrutura sobre pi-
nos ao fundamental para a sobre- produtos do agronegócio de Mato
lares do individualismo, da com-
vivência, com dignidade, a esses Grosso do Sul.
petição, da propriedade privada
povos, ou seja, o reconhecimento
e da terra como mercadoria, que
de suas terras, de seus territórios.
55
são totalmente conflitantes com os Causas do genocídio
É tão pouco o que os povos indíge-
projetos de vida e sociedades indí-
nas em Mato Grosso do Sul pedem. Dentre as principais causas dessa
genas. Estes se estruturam funda-
De 0,08% dos 36 milhões de hecta- calamitosa situação de violência e
mentalmente sobre a prevalência
res do Estado, ocupados hoje pelos genocídio a que estão submetidas
do coletivo, da harmonia com a na-
indígenas, para 2%. Com certeza as populações indígenas deste es-
tureza, da partilha, da permanente
isso não significaria, como muitos tado, destacamos:
espiritualidade.
defendem, a ruína do agronegó-
A partir dessas premissas não cio no estado. Ao contrário. Traria 1. O processo histórico de colo-
fica difícil entender por que os não enormes benefícios humanitários, nização e ocupação de Mato Gros-
índios têm enorme dificuldade de como a recuperação ambiental e so do Sul e o modelo econômico
entender propostas de vida como o florestal, num mecanismo benéfico implantado à base de violência e
“Bem-Viver” dos povos indígenas. a toda a população e o país. confinamento dos povos nativos.
Trata-se não apenas de uma postu- Razão pela qual o Estado brasileiro
ra individual, mas de processos ci- tornou-se o principal responsável
IHU On-Line – Podemos descre-
vilizatórios que continuam a gerar por essa situação de violência e
ver o que está ocorrendo com as
e sustentar cosmovisões e formas genocídio;
populações indígenas como geno-
de vida distintas, dominadoras e cídio? Por quê? 2. A atuação institucional e orga-
excludentes. nizada dos ruralistas que, por meio
Egon Heck – Sem dúvida. O crime
das suas instituições de classe, tem
de genocídio é definido no Artigo 1º
IHU On-Line – Como o senhor estimulado o enfrentamento aos
da Lei 2.889 (Define e pune o cri-
descreveria o atual conflito indí- povos indígenas;
me de genocídio), de 1º de outubro
gena vivido em Mato Grosso do
de 1956: “Quem, com a intenção 3. A impunidade e a prepotên-
Sul? Como compreender o confli-
de destruir, no todo ou em par- cia, na certeza de que não sofrerão
to por terras nesta região?
te, grupo nacional, étnico, racial qualquer punição pelas violências e
Egon Heck – Seria redundante ou religioso, como tal: a) matar assassinatos de indígenas, torturas,
dizer que se trata de um proces- membros do grupo; b) causar lesão destruição e queima de casas/bar-
so complexo, de muitas interfaces grave à integridade física ou men- racos, espancamentos, e inúmeros
com os atores sociais e políticos tal de membros do grupo; c) sub- expedientes vis e torpes, contra
que interagem nessa região. Mas meter intencionalmente o grupo a vida de comunidades indígenas,

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

tem sido fatores dessa extrema alidade. Nunca desistiram de seus de sustentação do governo, passa-
violência contra esses povos; territórios. Diante das armas e das ram a exigir medidas cada vez mais
doenças invasoras, tiveram que, restritivas dos direitos indígenas,
4. Subjacente e sustentadora
muitas vezes, fugir do enfrenta- como é o que ocorre nesse momen-
dessas práticas está a ideologia do
mento direto para a resistência to, com a aprovação da PEC 2154;
bandeirantismo, de desbravadores
paciente dos desvios, do buscar os a vigência, na prática, da Portaria
que fazem o “progresso” com seu 303 da AGU5; o “marco temporal”6
fundos das matas, como espaços
trabalho, como arautos de uma ci- sendo usado no Supremo tribunal
possíveis de sobrevivência, tempo-
vilização superior; Federal – STF na tomada de deci-
rária. Nunca é demais lembrar a re-
5. Com o processo de mecaniza- sistência cultural, a religiosidade e sões com relação às terras indíge-
ção da agricultura, substituindo aos espiritualidade, a língua, não ape- nas. Enfim, uma gama de iniciati-
poucos a pecuária, a partir do final nas como comunicação, mas como vas do Estado brasileiro, contrárias
da década de 1960 e intensificada arma de afirmação e resistência. aos direitos constitucionais dos po-
nas décadas seguintes, foi se im- vos indígenas.
plantando o catastrófico processo IHU On-Line – Como avalia a po- As poucas regularizações e de-
de desmatamento e consequente lítica indigenista do Brasil hoje? sintrusões de terras que se deram
expulsão e confinamento de deze- Quais foram os avanços e retro- – Raposa/Serra do Sol, em Rorai-
nas de comunidades/aldeias Gua- cessos nesses 12 anos do PT no ma, Marãiwatsédé, em Mato Gros-
rani Kaiowá. Nesse processo, con- governo? so, Pataxó Hã-Hã-Hãe, na Bahia, e
forme identificou Antônio Brand3, Awá-Guajá, no Maranhão – ocorre-
Egon Heck – Só posso caracte-
mais de uma centena de tekoha ram em função das lutas dos povos
rizar a atual política indigenista
foram simplesmente varridos do destas terras e de seus aliados.
como pífia, submissa e omissa. Con-
mapa, e as terras, acumuladas nas Estes conseguiram, junto ao Poder
fesso ter participado da construção
mãos de um número cada vez me- Judiciário, decisões que obrigaram
da proposta de política indigenista
nor de supostos proprietários. o Governo Federal a realizar tais
do governo Lula, assumida pelo PT
ações.
na década de 1980. Nela se proje-
Resistência tava uma nova relação do Estado
Nacional com os povos indígenas, Funai
Não gostaria de concluir essa
56 questão sem uma breve referência
baseada nas autonomias indígenas
em seus territórios. A autodetermi- Com relação à Funai7, em que
à resistência Guarani Kaiowá. Lu- pese as contradições em que se
nação é defendida pelo Cimi desde
taram brava e heroicamente com 1975. Para não ficar em retórica 4 PEC 215: Proposta de Emenda à Cons-
suas estratégias, forças, sabedo- ou utopia, foram sugeridos alguns tituição 215, de 2000. Pretende delegar ao
ria e principalmente sua espiritu- passos concretos como a criação Legislativo a aprovação de demarcações de
terras indígenas, quilombolas e áreas de pre-
de um Conselho Nacional de Políti-
3 Antônio Jacó Brand (1949–2012): foi servação ambiental. A proposta foi aprovada
um historiador, professor, antropólogo e in- ca Indigenista – CNPI e a realização por comissões internas da Câmara e segue os
digenista. Formou-se em História na Unisi- de uma Conferência Nacional para trâmite em plenário. Confira a íntegra da pro-
nos, em 1977, concluiu o Mestrado em 1993 que, conjuntamente com povos in- posta em http://bit.ly/1kpiLvM. Nas Notícias
e o Doutorado em 1998, na PUC de Porto do Dia do sítio do IHU há uma série de mate-
Alegre – RS. Dedicou 45 anos de sua vida dígenas, sociedade nacional e go- riais sobre o tema. Confira em ihu.unisinos.br
a causa indígena. Participou da criação do verno, fosse definida uma política (Nota da IHU On-Line)
Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em indigenista do governo Lula. 5 Portaria 303 da Advocacia Geral da
Mato Grosso do Sul e também foi Secretário União – AGU: retira do judiciário os pro-
Nacional do conselho. Em 1996, passou a Depois de quase 13 anos de go- cessos demarcatórios e dar poder ao governo
fazer parte do grupo de docentes da Univer- verno do Partido dos Trabalhado- para tomar as decisões e resolver os conflitos.
sidade Católica do Bosco (UCDB), em Cam- Saiba mais sobre a portaria através da en-
po Grande – MS, onde também iniciou seu res, quase nada avançou. Ao con- trevista “Portaria 303 da AGU: “Claramente
trabalho no Núcleo de Estudos e Pesquisas trário. Os conflitos e a violências anti-indígena, antipopulação tradicional e
das Populações Indígenas (NEPPI). Idealizou aumentaram. Os assassinatos de antiambiental”, com Raul do Valle, publicada
vários projetos que ainda hoje ajudam acadê- nas Noticias do Dia de 31-07-2012, no sítio
micos indígenas a ingressar e a permanecer
lideranças e a criminalização de do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dis-
na universidade. Seu trabalho de doutorado indígenas e comunidades em luta ponível em http://bit.ly/1XfuUoa (Nota da
intitulado “O impacto da perda da terra so- por seus direitos, especialmente IHU On-Line)
bre a tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis a terra, têm sido crescentes. Com 6 Marco Temporal: condicionante para de-
caminhos da Palavra” foi determinante para marcação de terras indígenas, instituída pelo
a garantia e retomada de diversas terras tra- isso os povos indígenas se sentem Supremo Tribunal Federal, que determina
dicionais em Mato Grosso do Sul. Confira as traídos em sua esperança e dis- que somente os povos que estavam nas terras
seguintes entrevistas concedidas por Brand à posição de garantir seus direitos, reivindicadas como indígenas e que ocupa-
IHU On-Line: O dilema das fronteiras na vam fisicamente estas terras no dia 5 de outu-
trajetória guarani, disponível em http://
conquistados na Constituição de bro de 1988, data da promulgação da Consti-
bit.ly/cXLEwY; Povos Guaranis Kaiowá: 1988. Como nos tempos do gover- tuição Federal, tem direito aquela reclamar a
Sempre em luta, disponível em http://bit.ly/ no de Fernando Henrique Cardoso, posse. (Nota da IHU On-Line)
kJtooU; A dura luta dos Guarani no Mato 7 Fundação Nacional do Índio- Funai: é
a questão indígena tem sido usada
Grosso do Sul pela demarcação da terra, o órgão indigenista oficial do Estado brasilei-
disponível em http://bit.ly/jcSGRJ. (Nota da como moeda de troca, e os inimi- ro, criado pela Lei nº 5.371, de 5 de dezembro
IHU On-Line) gos dos povos indígenas, na base de 1967, vinculado ao Ministério da Justiça.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

encontra envolta, continua sem genas. O movimento indígena e in- volvessem direitos indígenas. As-
as condições estruturais, de recur- digenista, em sua maioria, defende sim foi com Raposa Serra do Sol10
sos e de pessoal, para realizar sua a necessidade de um órgão de efe- e também com a terra indígena Ca-
missão de defesa dos direitos dos tivo poder de definir e colocar em ramuru-Catarina Paraguaçu, no Sul
povos indígenas, de seus projetos prática uma política indigenista em da Bahia, cuja ação levou mais de
de vida, de recursos naturais, e do diálogo aberto, descolonizado, não 30 anos para, finalmente, ser jul-
patrimônio material e imaterial assistencialista ou paternalista, gada favorável aos Pataxó Hã-Hã-
dos mais de 300 povos indígenas mas com a força necessária para -Hãe11. Em ambas as áreas houve
existentes no país. Reconheço que colocar as relações desses povos e forte pressão por parte dos povos
pessoas bem intencionadas têm seus direitos em outro patamar. indígenas, sem dúvida fundamental
conseguido romper alguns dos limi- para que as ações fossem julgadas.
tes dessas contradições e tomado IHU On-Line – Qual o papel e No caso de Raposa Serra do Sol,
atitudes e posições favoráveis aos como tem sido a atuação dos ficou um gosto amargo de uma vi-
povos nativos. Tanto isso é verdade Poderes Legislativo e Judiciário tória e 19 condicionantes que pesa-
que, apesar das amarras institucio- acerca das causas indígenas? ram e pesam sobre os processos de
nais e de interesses políticos e eco- reconhecimento de outras terras
nômicos, como do agronegócio, ela Egon Heck – Com relação ao Po- indígenas, principalmente no sul e
também vem sendo alvo de ataques der Legislativo, podemos afirmar centro-oeste do país, em especial
dos mesmos setores e submetida a que deixou muito a desejar. Atuou as terras indígenas Terena e Guara-
uma CPI, na Câmara dos Deputa- muito mais e eficazmente contra os ni Kaiowá, em Mato Grosso do Sul.
dos8, como o Cimi, na Assembleia índios do que a favor dos direitos
deles. Podemos afirmar que de- Na atual conjuntura, o que mais
Legislativa de Mato Grosso do Sul9.
pois da Constituinte, quando teve tem preocupado são as decisões da
A Funai, em seu quase meio sé- o mérito de reconhecer os direitos 2ª Turma do STF, que deu decisões
culo de existência, viveu situações indígenas para esses povos, o Con- contra os Guarani Kaiowá, de Gui-
das mais inusitadas, desde apêndi- gresso tem sido gradativamente raroká e Arroio Korá, e os Kanela,
ce dos órgãos de repressão no pe- “desconstituinte”. da terra indígena Porquinhos, no
ríodo da ditadura militar, ocupada Maranhão.
literalmente por um quartel sem Prova disso é o Estatuto dos Povos
farda, ou como órgão liberador de Indígenas que descansa nas gavetas 10 Raposa Serra do Sol: área de terra in-

licenças para obras em terras indí- do Congresso desde 1992. Inconfor- dígena (TI) situada no nordeste do estado
brasileiro de Roraima, nos municípios de
57
mados, os setores conservadores e Normandia, Pacaraima e Uiramutã, entre os
Sua missão é coordenar e executar as políti- reacionários nunca se conforma- rios Tacutu, Maú, Surumu, Miang e a fron-
cas indigenistas do Governo Federal, prote- ram ou minimamente aceitaram teira com a Venezuela. É destinada à posse
gendo e promovendo os direitos dos povos permanente dos grupos indígenas ingaricós,
a conquista dos direitos indígenas
indígenas. São também atribuições da Funai macuxis, patamonas, taurepangues e uapi-
identificar, delimitar, demarcar, regularizar na Constituição. Já em 1993 esses xanas. Raposa Serra do Sol foi demarcada
e registrar as terras ocupadas pelos povos setores iniciaram um forte movi- pelo Ministério da Justiça através da Porta-
indígenas, promovendo políticas voltadas ao mento de “revisão constitucional”, ria Nº 820/98, posteriormente modificada
desenvolvimento sustentável das populações pela Portaria 534/2005. A demarcação foi
indígenas, reduzindo possíveis impactos am-
cujos alvos principais foram os di- homologada por decreto de 15 de abril de
bientais promovidos por agentes externos. A reitos sociais, especialmente os 2005, da Presidência da Republica. Em 20
Funai também tem por atribuição, prover o indígenas. Os mesmos argumentos de março de 2009, uma decisão final do STF
acesso diferenciado aos direitos sociais e de confirmou a homologação contínua da Terra
e propostas anti-indígenas no Con-
cidadania dos povos indígenas, como o di- Indígena Raposa Serra do Sol, determinando
reito à seguridade social e educação escolar gresso de hoje já constavam na a retirada dos não indígenas da região. Nas
indígena. (Nota da IHU On-Line) proposta de mudanças constitucio- Notícias do Dia do site do Instituto Huma-
8 CPI da Funai e do Incra: Comissão nais daquela época. O alvo princi- nitas Unisinos – IHU é possível ler diversas
Parlamentar de Inquérito – CPI da Câmara entrevistas especiais sobre o tema. (Nota da
dos Deputados que se propõe investigar as
pal era impedir a demarcação das IHU On-Line)
ações da Fundação Nacional do Índio – Fu- terras indígenas, e abrir as terras 11 Pataxós hã hã hães: grupo indígena bra-
nai e do Instituto de Colonização e Reforma já demarcadas, à voracidade de sileiro que habita as áreas indígenas Fazen-
Agraria – Incra. Presidente pelo deputado da Bahiana e Terra indígena Caramuru-Pa-
setores madeireiros, mineradoras,
Alceu Moreira (PMDB-RS), a comissão foi raguaçu, no sudeste do estado da Bahia, no
instalada em 28-10-2015, numa iniciativa militares (projetos geopolíticos), Brasil. Resultam da união dos antigos pata-
Frente Parlamentar da Agropecuária. O sitio ao latifúndio e ao agronegócio. xós hã hã hães com os baenãs, os camacãs, os
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU vem Naquela ocasião a tese da revi- mongoiós, os sapuiás-quiriris e parte dos ge-
publicando reportagens sobre essa CPI. Con- réns e dos tupiniquins. A sua população atual,
fira em http://bit.ly/1NPgtwD. (Nota da IHU são foi rejeitada. E agora? O que segundo dados do Instituto Socioambiental,
On-Line) acontecerá? é de cerca de 2 200 pessoas. Vivem em duas
9 CPI do Cimi: Comissão Parlamentar de reservas no sul da Bahia. A mais populosa é
Inquérito da Assembleia Legislativa de Mato reserva indígena Caramuru-Paraguaçu, que
Grosso do Sul instalada pela bancada rura- Poder Judiciário possui 54 099 hectares e que abrange áreas
lista para investigar a atuação do Conselho dos municípios de Itaju do Colônia, Camacã
Indigenista Missionário – Cimi. Confira re- Com relação ao Poder Judiciá- e Pau Brasil. A outra reserva é a Reserva Fa-
portagem sobre essa CPI publicada no sítio zenda Baiana, com 304 hectares, localizada
rio, a situação é mais melindrosa.
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dis- no município de Camamu, no baixo-sul da
ponível em http://bit.ly/1MRtnKJ. (Nota da Sabe-se que sempre houve muita Bahia, onde vivem cerca de 72 pessoas. (Nota
IHU On-Line) demora em julgar ações que en- da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Marco temporal No Brasil, por ocasião da Consti- Uma das questões que para mim
tuinte de 1988, foram dados pas- foi determinante é que conheci a
A questão do “marco temporal”, sos importantes, principalmente questão indígena no início da di-
utilizada em algumas ações no Po- com relação aos direitos originá- tadura militar. Isso fez com que
der Judiciário, tem causado muita rios dos povos indígenas sobre seus minha decisão de caminhar com os
preocupação aos povos indígenas, territórios, a superação da tutela, povos indígenas também fosse uma
pois é uma interpretação ainda o reconhecimento de suas organi- decisão de transformação social,
sem decisão final do STF. Tem havi- zações sociais, o direito à educa- mudança de paradigmas, de valo-
do decisões restritivas com relação ção e à saúde diferenciadas e de res e de vida.
aos direitos dos povos indígenas, qualidade. É lamentável que ao
porém acredita-se que aos poucos invés de fazer disso a base de uma
IHU On-Line – O senhor já des-
haja mudança nessa tendência. É nova política indigenista do Estado
tacou que os Guarani Kaiowá so-
possível que, na medida em que brasileiro, se tenha caminhado no
frem violência decorrente da fal-
os ministros do Supremo tenham sentido inverso, chegando a vol-
ta da terra. Mas que violência é
maior diálogo e conhecimento da tar à tona famigerados projetos
essa?
realidade indígena, as decisões po- de integração como o da “eman-
derão ser favoráveis à vida e aos cipação”. Não podemos deixar de Egon Heck – O grito desse povo
direitos dos povos nativos em nosso reconhecer que nas últimas quatro ecoou forte, contra o projeto de
país. décadas houve também avanços e morte, a resistência, a luta, a
conquistas importantes dos povos guerra, a paciência. São admirá-
e movimentos indígenas no Brasil. veis em sua sabedoria, pois se as-
IHU On-Line – Como fazer com Grande parte das terras indíge- sim não fosse não mais viveriam.
que a sociedade brasileira en- nas, especialmente na Amazônia, Confesso que não mais gostaria de
tenda a importância e o legado foi demarcada. Infelizmente mui- falar de violência e morte dos Gua-
do povo indígena? O que a sua tas continuam invadidas ou sem rani Kaiowá, dos Terena e demais
narrativa pessoal diz sobre essa apoio para construir seus projetos povos de Mato Grosso do Sul. Me
importância? de autonomia e subsistência nesses dói muito. Uma sociedade que se
Egon Heck – A grave crise por territórios. diz cristã não pode conviver com
que passa o país e a humanidade Consolidaram-se organizações tamanha injustiça e perversidade.
58 hoje pode levar a caminhos diver- indígenas locais, regionais e na- Ou seremos capazes de interrom-
sos com relação aos povos originá- cional. Apesar de todas as dificul- per esse ciclo de morte ou seremos
rios indígenas. Um movimento é o dades inerentes à diversidade de acusados pela história como cúm-
da busca de referenciais, de valo- compreensões da sociedade brasi- plices do genocídio.
res e sociedade diversos daqueles leira, eles lutam bravamente por
assumidos pelo sistema capitalis- Certa vez me pediram para dis-
seus direitos, constroem alianças,
ta. E aí se deparam com projetos correr sobre as violências que so-
buscam consolidar a união e arti-
de sociedades contemporâneas e frem esses povos. Poder-se-ia en-
culação entre os povos. Participam
do futuro, como são os povos in- cher páginas falando da violência
das lutas sociais e ambientais, pois
dígenas nativos que são mais de física, da violência cultural, da vio-
são bandeiras comuns com as quais
três mil, com uma população em comungam e interagem. lência psicológica e outras tantas.
torno de 40 milhões de pessoas. Quem sabe seja mais sábio esten-
Com eles estabelecem um diálo- der a mão a algum deles e dizer:
Narrativa pessoal
go e constroem pontes para en- “Sou seu amigo, conte comigo!”.
frentar a atual crise. Na América Sou um dos milhares de cidadãos
Latina temos fortes movimentos deste país e do mundo que, por As relações com a terra
indígenas que já conseguiram caminhos e motivações diversas,
garantir em suas constituições se põem a caminho solidariamente Quanto à compreensão e rela-
o “Bem-Viver”, “a plurinaciona- com esses povos. Nada de extraor- ção dos povos indígenas, de uma
lidade dos países”, “os direitos dinário. A gente que vem de uma maneira geral, com a mãe terra,
da Mãe Terra”, dentre muitos cultura marcadamente europeia, já existem muitos trabalhos aces-
outros. Experiências como a da com uma forte carga de preconcei- síveis. Só gostaria de ressaltar que
“autonomia”, dos sandinistas na tos e racismo, precisa ter a oportu- na CPI do Cimi, em curso, os fa-
Nicarágua no início dos anos 80, nidade de descolonizar a mente, os zendeiros que vêm depor sempre
a das autonomias regionais, dos conhecimentos e os sentimentos. A têm como primeira arma acusató-
Zapatistas, no México, na década gente só consegue entender o dife- ria a apresentação de seu título de
de 90, e a vitória de Evo Morales, rente, e no meu caso os povos indí- propriedade. Normalmente de mil
na Bolívia, são todas experiências genas, despindo-se de uma história novecentos e alguma coisa. Diante
que apontam para novas possibili- mal dita e mal contada, que tenta dos papéis que são o ícone sagrado
dades, e salientam os difíceis ca- justificar o processo de colonização da sociedade capitalista, os índios
minhos que teremos pela frente. e dominação. têm respondido: o nosso papel é a

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DE CAPA IHU EM REVISTA

terra que Deus nos deixou. Ele as- IHU On-Line – Por que a esquer- Egon Heck – Crachá e polícia
sinou o papel de vocês? da parece não ser capaz de com- não dá! Em primeiro lugar, revela
preender a questão indígena? um processo nada indígena e alta-
IHU On-Line – De que forma o mente concentrador de se realizar
Egon Heck – Porque talvez este-
modelo econômico neodesen- um grande evento, tendo como
ja deixando de existir. Ou melhor,
volvimentista representa risco à mote o esporte e o encontro e ce-
endireita quando chega ao poder.
preservação da vida e da cultura lebração da diversidade dos povos
Essa é apenas uma maneira hila-
de povos indígenas? Como pensar originários do mundo. O que, ali-
riante de algo muito grave e de-
em alternativas para mudar essa ás, ficou evidenciado e reconhe-
safiante para a humanidade hoje. cido pela própria organização do
concepção de governo e socieda- É ser capaz de pensar positiva-
de de que o índio precisa fazer evento: infraestrutura precária e
mente a construção de olhares e inacabada, promessas não cumpri-
parte do desenvolvimento? sentires plurais na convivência e das, desencontro de expectativas.
Egon Heck – “Vítimas do mila- na concepção e estrutura dos es- Os governos municipal, estadual
gre” é o título de um importante tados nacionais. Nas Américas, na e federal investiram em retornos
livro de Shelton Davis12, onde o Ameríndia, tivemos mais de cinco econômicos e políticos. O prefeito
autor apresenta inúmeros exem- séculos de extermínio e homoge- de Palmas16 não cansava em justi-
plos de como o avanço do grande neização. Genocídio e etnocídio. ficar os investimentos com gordos
capital sobre a Amazônia fez mi- Será que seremos capazes de mu- retornos para a população local – a
lhares de vítimas entre as popu- dar os cursos e discursos dessa capital do Tocantins como a cidade
lações indígenas daquela região. história? mundial para os povos indígenas,
Era o tempo do “milagre brasi- A esquerda, o marxismo, as ex- para o turismo, para os projetos de
leiro”. Os presidentes de então investimento, em hotéis e outros
periências concretas de socialismo,
não eram Lula nem Dilma, mas projetos de infraestrutura.
todos tiveram imensas dificuldades
os generais Garrastazu Médici13
de tratar a questão étnica, de suas No vácuo dos jogos, outros inte-
e Ernesto Geisel14. De lá para cá
minorias e sua pluralidade cultural. resses em jogo. A Comissão Espe-
já tivemos “Avança Brasil”, “Pro-
Não será num estalar de dedos que cial da Câmara aproveitou o clima
grama de Aceleração do Cresci-
isso vai mudar. Sempre prevaleceu de festa e distração para aprovar,
mento” e outros tantos programas
a análise classista. A Teologia da Li- com o rolo compressor dos rura-
das elites brasileiras, procurando
bertação15 também teve dificulda- listas, a PEC 215, e ainda conse-
59
fazer o seu “desenvolvimento” ou
des em compreender a resistência guiram aprovar a criação da CPI
“neodesenvolvimento”.
cultural dos povos. Porém, vemos da Funai e do Incra. Já o Governo
Essa forma agressivamente des- que essa é uma das questões que Federal também não perdeu tem-
truidora de fazer desenvolvimento precisam estar presentes em qual- po e aproveitou o momento para
não é apenas um risco à preserva- quer processo de transformação e enviar ao Congresso Nacional seu
ção da vida e da cultura dos povos construção de novos modelos de projeto de privatização da saúde
indígenas. É uma grave e perma- sociedade. indígena através do Instituto Na-
nente armadilha às vidas de todos cional de Saúde Indígena – INSI. O
nós, do Planeta Terra, nossa casa IHU On-Line – O que os inúmeros ministro dos Esportes prometeu 10
comum. episódios relacionados aos jogos milhões de Reais para construções
indígenas deste ano (problemas esportivas em Palmas. Aproveitou o
12 Davis, Shelton H. Vítimas do milagre; o
de infraestrutura, protestos, apa- ensejo para cair nas boas graças do
desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1978. (Nota da IHU rato policial, etc.) revelam sobre povo Xerente, prometendo a cons-
On-Line)
a relação entre governo, homem trução de quadra poliesportiva na
13 Emílio Garrastazu Médici (1905- aldeia do Funil.
1985): ditador militar e político brasileiro. branco e índios?
Exerceu as funções de adido militar em Wa- Os povos indígenas, especialmen-
shington e de chefe do Serviço Nacional de 15 Teologia da Libertação: escola teológi-
Informações. Assumiu a presidência da Re- ca desenvolvida depois do Concílio Vaticano
te os jovens, que eram mais de 80%
pública (1969) em consequência de enfermi- II. Surge na América Latina, a partir da opção dos participantes, vibraram com
dade do presidente Costa e Silva. Ocupou o pelos pobres, e se espalha por todo o mundo. os esportes, os encontros, a festa.
cargo até 1974. (Nota da IHU On-Line) O teólogo peruano Gustavo Gutiérrez é um
Para eles esses momentos são im-
14 Ernesto Geisel (1908-1996): ditador dos primeiros que propõe esta teologia. A te-
militar e político brasileiro. Foi adido militar ologia da libertação tem um impacto decisivo portantes para os intercâmbios e
no Uruguai, comandante da XI Região Mili- em muitos países do mundo. Sobre o tema
tar em Brasília, chefe do gabinete militar da confira a edição 214 da IHU On-Line, de 02- 16 Carlos Enrique Franco Amastha
presidência da República no governo Castelo 04-2007, intitulada Teologia da libertação, (1960): é um político e empresário colombia-
Branco, ministro do Superior Tribunal Mili- disponível para download em http://bit.ly/ no radicado no Brasil, sendo o atual prefeito
tar e presidente da Petrobras (1969-1973). bsMG96.Leia, também, a edição 404 da re- do município brasileiro de Palmas, Tocantins,
Eleito presidente da República por um Colé- vita IHU On-Line, de 05-10-2012, intitulada pelo Partido Progressista. Chegou ao Brasil
gio Eleitoral (1973), indicado pelos militares, Congresso Continental de Teologia. Concí- aos 22 anos de idade, fixando-se primeira-
tomou posse em 15 de março de 1974, como lio Vaticano II e Teologia da Libertação em mente em Curitiba, no Paraná. É empreen-
penúltimo ditador militar depois do golpe de debate, disponível em http://bit.ly/SSYVTO. dedor no ramo da educação a distância e de
1964. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) shopping centers. (Nota da IHU On-Line)

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o lazer. Já para outros, os debates cessos de mudança e que nenhuma se ressaltar que não é um processo
na Oca da Sabedoria deixaram a sociedade, cultura ou civilização é fácil e nem tranquilo. Em primeiro
desejar, pois tinham poucos parti- superior ou inferior a outra. A par- lugar, porque as nossas universida-
cipantes. Os rituais, as celebrações tir desses princípios, poderíamos des formam profissionais para se
sempre são bonitas e agradáveis, e levantar uma série de questões “darem bem na vida”, e não para
acontecem em todos os momentos como a do índio se integrar na so- estar a serviço nas comunidades.
de luta do movimento indígena. ciedade moderna e vice-versa. Ou Em segundo lugar, as universidades
seja, haveria um patamar de reco- não fornecem conhecimentos ade-
Até o Canadá! nhecimento mútuo de conhecimen- quados para as realidades de povos
tos e sabedorias que poderiam se que têm outros tipos de necessida-
Os próximos Jogos Mundiais In- enriquecer e complementar? des, valores, conhecimentos, que
dígenas ocorrerão no Canadá, em Se entendemos a sociedade os indígenas terão que buscar em
2017. Porém, para dar continuida- moderna apenas pelo aspecto de outras realidades (talvez em uni-
de ao processo, foi criado um Con- progresso tecnológico/científico e versidades indígenas). Em terceiro
selho que terá sede no Brasil. Tudo consumismo individualista e com- lugar, as necessidades criadas (re-
“mui democrático”, diriam nossos petitivo, então nos resta pergun- cursos, contratação) normalmente
hermanos de Abya Yala espanhola. tar aos indígenas: É isso que vocês não são contempladas pela buro-
querem? É esse tipo de integração cracia estatal.
IHU On-Line – Quais os riscos que almejam? Certamente tería-
para a cultura nativa e as possi- mos surpresas. IHU On-Line – Deseja acrescen-
bilidades de uma integração do tar algo?
A questão da qualificação profis-
índio na sociedade?
sional para depois retornar à sua co- Egon Heck – Estamos num perío-
Egon Heck – Partimos do princípio munidade para prestar serviços em do de graves ameaças aos direitos
elementar de que todas as culturas diversas áreas é uma realidade em desses povos. Eles precisam de nós
são dinâmicas em constantes pro- inúmeras aldeias. Porém, há que e nós deles.■

60 LEIA MAIS...
—— Egon Heck: há 40 anos na universidade dos índios. Entrevista com Egon Heck, publicada na
Revista IHU On-Line 348, de 25-10-2010, disponível em http://bit.ly/1HzIrAa.
—— “A lógica do sistema capitalista não deixa espaço para a sobrevivência dos povos indíge-
nas’’. Entrevista com Egon Heck, publicada nas Notícias do Dia, de 09-06-2012, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1XqTlK4;
—— Guarani-kaiowá: um grito de desespero. Entrevista com Egon Heck, publicada nas Notícias
do Dia, 15-10-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://
bit.ly/1YuiLZJ;
—— “Não conseguiram destruir nossa raiz”. Entrevista com Egon Heck, publicada nas Notícias
do Dia, 07-02-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://
bit.ly/1XqTIV8;
—— “As reservas são confinamentos de índios”. Entrevista com Egon Heck, publicada nas No-
tícias do Dia, 30-10-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/1MRowcx.
—— Povo Krahô e os Jogos Mundiais Indígenas: “Estamos fora”. Artigo de Egon Heck, publicado
nas Notícias do Dia, de 17-09-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponí-
vel em http://bit.ly/1lhUzLq;
—— Protestos e Silêncios nos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas. Artigo de Egon Heck, publi-
cado nas Notícias do Dia, de 27-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/1kTx4ZL;
—— CPI do Genocídio Indígena. Artigo de Egon Heck, publicado nas Notícias do Dia, de 28-09-
2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1XqTa1e.

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O pacto de morte contra os


índios e contra o Bem-viver
Roberto Liebgot observa os processos históricos de violação dos
direitos dos índios e da dizimação da cultura indígena
Por João Vitor Santos e Ricardo Machado

A s lentes pelas quais os indígenas


observam o mundo são incapazes
de ver nas riquezas da natureza
– o rio, a vegetação, os minérios – ativos
financeiros. A terra não é apenas o espaço
das vidas humanas. “Aqueles que gover-
naram ou governam o país há quase duas
décadas ignoram os direitos dos povos
indígenas e quilombolas. Na prática, são
levados a pensar o Brasil a partir de con-
onde a atmosfera enche os pulmões e os ceitos e concepções que reconhecem as
pés tocam o solo, a terra é o elo entre o diferenças dentro de uma lógica mercan-
presente, o passado e aquilo que acredi- til”, critica. “O bem-viver indígena não
tam que será o futuro. “As terras indíge- pode ser conquistado sem que haja uma
nas, base de sustentação física e cultural radical mudança nas concepções e políti-
de comunidades e povos, são atrativas em cas destes tempos em que vivemos. E não
função de suas potencialidades para gera- se trata de construir o bem-viver para os
ção de energia hidráulica, exploração de indígenas, e sim de permitir que as con-
minérios, expansão da agricultura – soja, cepções indígenas permeiem e reconfigu-
milho, cana-de-açúcar – e da pecuária – rem as prioridades que temos assumido e 61
criação de boi”, problematiza Roberto as formas como temos lidado com o ser
Liebgot, em entrevista por e-mail à IHU humano, com a terra, lugar comum sem o
On-Line. qual não temos futuro, nem esperança”,
A esquerda, não somente no Brasil mas completa.
em todo o continente, repete a cartilha Roberto Liebgot é coordenador estatu-
que vai dos conquistadores aos regimes tário do Conselho Indigenista Missionário
autoritários e não vê nada diante do olhos – Cimi-Sul.
que não seja dar continuidade a um pro-
jeto de financeirização de tudo, inclusive Confira a entrevista.

IHU On-Line – No contexto his- Faço referência a este documen- centrais manifestadas pela Igreja/
tórico, como avalia a política in- to do século XVI para demonstrar Estado – almas convertidas, liber-
digenista brasileira? que a “questão dos índios” já se dade e propriedade – colidem com
Roberto Liebgot – Uma das pri- colocava nos primeiros momentos as expectativas coloniais que ao
meiras manifestações oficiais a da invasão europeia. Lá, naquele longo dos séculos teve como ca-
respeito dos “habitantes das novas período, interesses coloniais sobre racterísticas principais a escravi-
terras” foi feita pela Igreja Cató- os corpos indígenas (a serem sub- zação, a exploração, a conquista,
lica. Portugal necessitava de um metidos à escravidão) confronta- o domínio e o extermínio. Esses
posicionamento da Igreja sobre a vam-se com interesses sobre suas processos ligam-se ao domínio so-
possibilidade de submeter (ou não) almas (a serem convertidas à fé bre os povos originários e sobre
à escravidão os seres “descober- cristã). A resposta do Papa confirma suas terras. As disputas territoriais
tos”. O Papa Paulo III, no ano de o anseio da Igreja para torná-los vêm se processando ao longo des-
1537, emitiu uma bula intitulada a “cristãos” e, ao mesmo tempo, afir- tes mais de cinco séculos, através
“Sublimus Dei”, na qual reconhece ma a necessidade de assegurar-lhes de diferentes meios e estratégias,
que os “índios” seriam pessoas ca- a liberdade e a posse de sua pro- com efeitos devastadores sobre as
pazes de receber a fé católica. priedade. As três preocupações comunidades e povos indígenas.

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Século XX reito originário sobre as terras que concessão de benefícios e isenções


tradicionalmente ocupam, caben- ao grande capital. Como se isso não
Já em um contexto mais recen- do ao Estado demarcá-las. bastasse, concedeu às “empresas
te, vemos que a política indigenista brasileiras”, especialmente às em-
Contudo, vale ressaltar que ape-
constituída no início do século XX preiteiras da construção civil (sen-
sar dos avanços constitucionais, os
sustentou-se na identificação dos do a maioria delas estruturadas na
governos das últimas décadas que
“grupos indígenas” para promover ditadura militar), montantes ex-
administraram e administram o
sua remoção e confinamento em traordinários de recursos públicos,
Estado negligenciam e negociam
reservas que seriam criadas pelo através do BNDES e da Petrobras. O
os direitos indígenas. Há em curso
Estado. Esta política de remoção projeto da esquerda se volatizava
uma política enraizada em concei-
estendeu-se nas décadas seguintes, cada vez mais na medida em que
tos e concepções genocidas.
alicerçada em um duplo objetivo: o governo passava a investir nas
integrar os índios à comunhão nacio- chamadas “empresas brasileiras”,
nal e entregar suas terras aos pro- IHU On-Line – Como a esquerda exportando-as para os países mais
jetos de expansão econômica – para compreende a questão indígena pobres da América do Sul (Bolívia,
a construção de rodovias, ferrovias, no Brasil? Venezuela, Cuba) e da África. Hoje
hidrelétricas, para a instalação de Roberto Liebgot – Em outra en- os governos “de esquerda” encon-
mineradoras, madeireiras e a pro- trevista em que disse que a esquer- tram-se “de joelhos” diante do sis-
moção da agricultura e pecuária. A da no poder era volátil2 – eu me re- tema financeiro e de uma estrutu-
remoção dos povos indígenas de suas feria ao poder de governança e não ra e sistema político alicerçado na
terras tradicionais foi considerada ao poder de decidir sobre como go- corrupção.
fundamental para a implementação vernar – pensei na trajetória de uma
do projeto de integração nacional, esquerda que vinha sendo construí- Cegueira
pois se constatava que os “ditos ín- da a partir dos anseios e necessida-
dios” – como referiu o Papa Paulo III des de uma população empobrecida A tal “esquerda” não conseguiu
em 1537 – não estavam extintos e e sedenta por um país mais justo e enxergar as diferenças étnicas e
sua permanência nas terras seria um democrático. Mas o governo petista culturais no Brasil. E aqueles que
obstáculo para a sua exploração. – por meio do presidente Lula – ao governaram ou governam o país
subir na rampa do Palácio do Planal- há quase duas décadas ignoram os
62 Remoções to tornou voláteis essas aspirações, direitos dos povos indígenas e qui-
distanciou-se das bases que susten- lombolas. Na prática, são levados a
As remoções consistiram em atos tavam o “projeto democrático e pensar o Brasil a partir de concei-
violentos e geraram um vergonho- popular” e aderiu aos programas e tos e concepções que reconhecem
so quadro de atrocidades – algumas plataformas políticas originalmente as diferenças dentro de uma lógica
delas estão registradas, por exem- forjadas nos partidos de extrema mercantil, sem, contudo, conside-
plo, no Relatório Figueiredo.1 A po- direita. Além disso, o governo se rar seus direitos políticos e terri-
lítica assimilacionista, claramente tornou instável, incerto, inconstan- toriais quando estes se confrontam
estabelecida no Estatuto do Índio te e volúvel. Assumia um discurso com o modelo desenvolvimentista.
(Lei 6.001/1973) felizmente foi público de vínculo ao passado de
superada na Constituição Federal lutas e militância, mas, na prática, IHU On-Line – Em que medida
de 1988, especialmente através as políticas, com exceção daquelas os Poderes Legislativo e Judiciá-
da presença expressiva dos índios meramente assistencialistas e elei- rio entendem a questão indígena?
durante os trabalhos da Assembleia toreiras, foram direcionadas para o Como tal entendimento fica evi-
Nacional Constituinte. A atual Cons- mercado financeiro e ao desenvolvi- denciado nas decisões tomadas?
tituição redefine as relações do Es- mentismo predatório – assim como
tado com os povos indígenas: de ocorreu no período da colonização Roberto Liebgot – Em minha
tutelados, estes passam à condição portuguesa. opinião o Poder Legislativo de nos-
de sujeitos de direitos individuais e so país é um mercado livre, e os
governantes devem submeter-se à
coletivos. A Constituição reconhe- Políticas Públicas
ce também o pluralismo étnico e tabela de preços imposta por este
cultural e assegura aos índios o di- mercado. Cada projeto de lei é
As políticas públicas, ao longo de
negociado de acordo com seu va-
décadas, foram quase que invaria-
1 Relatório Figueiredo: relatório de mais lor mercadológico. Nada passa sem
velmente fundamentadas na explo-
de 7 mil páginas produzido em 1967 pelo pro- que se obtenham dividendos finan-
curador Jader de Figueiredo Correia a pedi- ração dos recursos da natureza e na
do do ministro do interior brasileiro Afonso
ceiros. Não se exerce um mandato
Augusto de Albuquerque Lima. Ele descreve 2 A entrevista referida é “O desenvolvimen- em torno de ideias e plataformas
violências praticadas por latifundiários brasi- tismo não combina com princípios éticos e políticas, ao contrário, o eleito a
leiros e funcionários do Serviço de Proteção humanitários”, concedida por Roberto Lie- qualquer das Câmaras Legislati-
ao Índio contra índios brasileiros ao longo bgott e publicada na IHU On-Line, nº 413,
das décadas de 1940, 1950 e 1960. (Nota da de 01-04-2013, disponível em http://bit. vas – estadual, municipal, federal
IHU On-Line) ly/1Ok24Nz. (Nota da IHU On-Line) – e ao Senado age de acordo com

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os dividendos a serem obtidos. As e 2323 da CF/1988 para tentar in- lidar a ideia de que o Poder Legis-
minorias, que exercem mandato de viabilizar a aplicação destes dispo- lativo deve orientar e determinar
forma digna, acabam desprezadas sitivos constitucionais. É o que se a condução da política indigenista
e suas propostas rejeitadas. tenta, por exemplo, com a aplica- no país – especialmente através da
ção do chamado marco temporal. bancada ruralista. Por isso, pre-
Os povos indígenas, assim como
tendem impor que a demarcação
a maioria da população brasileira,
IHU On-Line – Como compre- de terras saia do âmbito do Poder
são vítimas deste sistema político Executivo e vá para o Legislativo.
ender o que está por trás da PEC
no qual prevalecem os interesses Com isso, todas as demarcações de
215, que quer conceder ao Legis-
econômicos e as pressões de seto- terras indígenas e também quilom-
lativo a prerrogativa de demarcar
res que supostamente comandam a bolas passariam pelo crivo e aval
terras indígenas?
economia nacional, em detrimento dos parlamentares que, se autori-
dos direitos individuais e coletivos. Roberto Liebgot – É inegável que zarem uma demarcação, esta será
Tudo, neste sistema, se converte se concedeu aos ruralistas um ex- feita através da aprovação de uma
em negócio e mercadoria. As ter- cessivo poder político. Em função lei específica. E para cada demarca-
ras indígenas, base de sustentação disso, eles definem os rumos da po- ção terá de se fazer uma nova lei.
física e cultural de comunidades e lítica indigenista do governo fede- Ou seja, os direitos indígenas fica-
povos, são atrativas em função de ral e pretendem impor suas regras rão submetidos aos interesses polí-
suas potencialidades para geração para as futuras demarcações de
ticos de ocasião. Além disso, terras
de energia hidráulica, exploração terras indígenas e quilombolas. A
demarcadas ao longo das décadas
de minérios, expansão da agricul- PEC 215/2000, e mais de uma cen-
poderão ser revisadas para atender
tura – soja, milho, cana-de-açúcar tena de outros projetos de lei no
a nova determinação constitucional
– e da pecuária – criação de boi. Congresso Nacional, visam impor
(caso a PEC seja aprovada). E ainda,
As terras agricultáveis são visadas limites ao que a Constituição Fe-
na proposta aprovada na Comissão
exatamente porque são entendidas deral determinou. A ação política
Especial, que segue para o Plená-
dos ruralistas motiva, fomenta e
como recurso para a expansão da rio da Câmara dos Deputados, há a
legitima as mais variadas práticas
produção de grãos e de carne. inclusão de dispositivos que viabi-
de violência contra os povos indí-
lizarão o arrendamento das terras
genas. Nos últimos dez anos foram
Aniquilação assassinados no Brasil 754 indíge-
indígenas – que são bens da União
nas, sendo que 390 em Mato Grosso
– e com isso possibilitar que tercei- 63
Neste contexto, os direitos in- ros obtenham lucros sobre bens que
do Sul.
dígenas vêm sendo confrontados, não são seus. Incluiu-se ainda outro
pois eles constituem como entra- dispositivo que rompe com a auto-
Pacto de morte nomia e protagonismo dos povos,
ves, no entendimento dos setores
dominantes, e os próprios índios qual seja a retomada da categori-
A não demarcação das terras é o
são para eles um “problema”, na zação entre os povos, que propõe
que gera grande parte dos confli-
medida em que atrapalham os pla- uma espécie de leitura e análise dos
tos e das violências, em especial
nos de expansão produtiva e de um diferentes “estágios de desenvolvi-
nos estados do Nordeste, Sudeste
suposto desenvolvimento econômi- mento” e de inserção dos “índios”
e Sul. De acordo com o Cimi, há
co. Dobrando-se a uma concepção à sociedade nacional, desrespei-
1.044 terras indígenas no Brasil,
desenvolvimentista, o governo fe- tando o artigo 231 da Carta Magna,
sendo que destas apenas 361 estão
deral tomou a decisão de paralisar que reconhece aos povos indígenas
registradas. Outras 154 estão “a
as demarcações das terras reivindi- suas organizações sociais, seus cos-
identificar” e 399 foram classifica-
cadas pelos povos. tumes, línguas, crenças e tradições.
das como “sem providências”. Para
Retomam de forma desrespeitosa,
Projetos de lei e emendas à a instituição, a morosidade das
ações demarcatórias se deve a um conservadora e fundamentalista a
Constituição Federal são elabora- lógica da tutela, da integração e da
“pacto” do governo federal com os
dos para aniquilar com qualquer assimilação cultural.
setores da economia que preten-
possibilidade de que demarcações
dem usufruir das terras indígenas,
de terras sejam normatizadas pela Contradições
em especial os ruralistas.
Lei Maior do país. Só para se ter
uma ideia da articulação e da força Sobre a PEC 215/2000, há que se A PEC 215/2000 incorpora o que
que se volta contra os povos indí- dizer que faz parte da estratégia vem sendo denominado, no âmbito
genas no âmbito Legislativo, trami- de inviabilizar os direitos constitu- do Poder Judiciário, de marco tem-
tam, hoje, no Congresso Nacional cionais dos povos indígenas, funda- poral da Constituição de 1988. Isso
mais de 100 proposições que visam mentalmente à terra. A proposta de significa dizer que, se os povos ou
alterar artigos concernentes aos Emenda à Constituição quer conso- comunidades indígenas não estives-
direitos indígenas. No Poder Judici- sem na posse da terra em 1988 ou
3 A íntegra da Constituição Federal de 1988
ário, decisões isoladas tentam dar está disponível em http://bit.ly/1Ie6PHl. não estivessem postulando a terra
nova interpretação aos artigos 231 (Nota da IHU On-Line) judicialmente ou em disputa físi-

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ca – o chamado renitente esbulho teriais, culturais, imemoriais, his- demais também podem, e isso nos
– perderam o direito à demarcação tóricos e com a terra. Os povos implica a todos, como cidadãos.
da área reivindicada. Sobre esta in- vinculam-se à ancestralidade, ao
A compreensão da realidade in-
terpretação elenco três elementos pertencimento étnico, à religiosi-
dígena passa, portanto, por uma
jurídicos que, no meu entender, dade, aos simbolismos e aos mitos
desconstrução de estereótipos e de
são os que causam as principais – concepções sustentadas origina-
preconceitos que vêm sendo susten-
controvérsias nos julgamentos de riamente. E, ao não entenderem
tados e fortalecidos historicamente
tribunais referentes às demarca- estas diferenças, cometem erros
e que, nestes tempos de produti-
ções de terras e que tomam como que podem, na prática, colocar em
vismo e de supremacia do discurso
base o marco temporal: há, nos risco bens maiores: a VIDA e a exis-
desenvolvimentista, se fortalecem,
julgados dos tribunais, insuficiente tência de um POVO. a exemplo da absurda ideia de que
entendimento conceitual e não há
os índios não trabalham só porque
convergência no entendimento da IHU On-Line – Quais são os desa- não aderem inteiramente aos nos-
aplicação do marco temporal nos fios para fazer com que a socieda- sos modelos de trabalho, ou a ideia
processos que envolvem a demar- de civil compreenda a realidade de que eles seriam obstáculos ao
cação de terras tradicionalmente de violações aos povos indígenas desenvolvimento porque não explo-
ocupadas por indígenas; há diver- sem cair em falsos e vulgares ram a terra ao seu limite.
gências entre os magistrados no problemas como, por exemplo, a
tocante aos conceitos de direito ideia de que “índio quer terra e
indígena à terra – posse, ancestra- IHU On-Line – Em que medida
não quer trabalhar”? a política neodesenvolvimentista
lidade, usufruto e bens da União –
e posse e propriedade oriundos do Roberto Liebgot – Os desafios representa um risco à ideia do
direito civil; há desconhecimento são de tornar mais visíveis e mais bem-viver indígena? Como rever-
quanto à aplicabilidade do direito próximos das pessoas, os proble- ter a perspectiva de que o indíge-
em relação às diferenças étnicas, mas vividos pelos povos indígenas. na é contra o desenvolvimento?
culturais e ao fato de os povos in- De um modo geral, imagina-se que Roberto Liebgot – A lógica de-
dígenas terem sido considerados o que afeta a vida indígena não nos senvolvimentista se confronta com
sujeitos de direitos individuais e diz respeito. Isso decorre, em par- a ideia do bem-viver indígena. A
coletivos – plenamente capazes, te, da representação estática de primeira apregoa que tudo deve se
64 portanto (Art. 232 CF/1988). índios que se reproduz em muitos
meios de comunicação, em mui-
converter em recurso – ambiental,
Entendo, assim, que o renitente territorial, humano – e a segunda
tos materiais didáticos, em peças prioriza a vida. A lógica desenvolvi-
esbulho, ao ser descolado da história
publicitárias, em filmes, e que os mentista baseia-se na concorrência
de resistência dos povos e comuni-
coloca a distância, num espaço de e incentiva as pessoas a gerir suas
dades indígenas, constitui-se numa
exotismo. Também decorre de um vidas como se estivessem gerindo
grave contradição, pois impõe aos
entendimento de que os índios se- uma empresa, a lógica do bem-vi-
indígenas uma responsabilidade que
riam responsáveis pela situação ver indígena fundamenta-se numa
não lhes competia antes da Consti-
de pobreza por eles vivida, que se visão de compartilhamento de es-
tuição de 1988, qual seja, a de in-
sustenta na ideia equivocada de paços e de solidariedade entre as
gressarem em juízo, uma vez que
que eles seriam improdutivos e por pessoas. A lógica desenvolvimentis-
eles eram tutelados pelo Estado.
isso viveriam tempos de escassez. ta faz com que vejamos em um rio
Atualmente, com o fim da tutela ex-
Se essa premissa fosse correta, ne- um potencial de exploração hídri-
pressamente estabelecido em nossa
nhum trabalhador veria sua família ca, enquanto a lógica do bem-viver
lei maior, o Poder Judiciário não pro-
passar fome, e haveria fartura para indígena foca as possibilidades de
cede a um chamamento dos povos,
todos. Mas a realidade não é assim, interação com o rio e com tudo o
quando da discussão de processos
não em um modelo de sociedade que nele habita (incluindo os seres
que lhes dizem respeito. Por isso, é
sustentada na apropriação privada, que não podemos ver).
necessário reafirmar que quando o
na acumulação e na competição.
tema foi abordado no caso de Rapo- O bem-viver indígena não pode
sa Serra do Sol (o renitente esbulho) A situação vivida pelos povos in- ser conquistado sem que haja uma
o entendimento dos ministros serviu dígenas nos diz respeito não apenas radical mudança nas concepções e
para assegurar a posse indígena so- porque estes vivem cotidianamen- políticas destes tempos em que vi-
bre terras onde havia fazendas des- te situações desumanas (e isso nos vemos. E não se trata de construir
de o início do século passado. implica enquanto humanidade), o bem-viver para os indígenas, e
mas também porque o não cum- sim de permitir que as concepções
Incompreensão primento das garantias constitu- indígenas permeiem e reconfigu-
cionais que lhes são concernentes rem as prioridades que temos assu-
Os juízes não entendem as con- gera, para todos nós, insegurança mido e as formas como temos lida-
cepções e o modo de ser de cada jurídica. Se um preceito consti- do com o ser humano, com a terra,
povo, nem as formas como eles tucional pode ser ignorado, des- lugar comum sem o qual não temos
se relacionam com ‘os bens” ma- cumprido ou contrariado, todos os futuro, nem esperança.

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IHU On-Line – Como compreen- como estabelece a Convenção 169 sessoria aos índios) na defesa das
der a barreira que torna o chama- da Organização Internacional do demarcações. O segundo afirma
do “povo branco” inábil para en- Trabalho – OIT e a Declaração Uni- que se trata de muita terra para
tender a forma de vida indígena? versal dos Direitos dos Povos Indí- os “índios”, porque estes “não tra-
genas, da Organização das Nações balham” e/ou porque arrendam as
Roberto Liebgot – A questão de
Unidas – ONU. Uma política pública terras que possuem. O terceiro ar-
fundo, aqui, é que os povos indíge-
efetiva deve se estabelecer escu- gumento reitera que não se pode,
nas não são e nunca foram conside-
tando as comunidades indígenas, a pretexto de demarcar terras para
rados prioritários ao se traçar qual-
entendendo suas demandas espe- índios, cometer injustiças com
quer ação do poder público. Há um
cíficas, permitindo a ampla parti- os agricultores que alimentam a
critério quantitativo que costuma
cipação no processo, possibilitando população.
permear as escolhas políticas –
que a tomada de decisão sobre os
quantas são as pessoas assistidas,
quantos são os eleitores – e, com
rumos dessas políticas esteja nas Racismo
mãos dos povos indígenas. Existe Institucionalizado
base nesse critério, as comunida- uma legislação bastante avançada,
des indígenas muitas vezes são pre- por exemplo, no que diz respeito à
judicadas. A definição de responsa- Em um primeiro olhar, esses
educação escolar indígena, mas na argumentos podem parecer bas-
bilidades no que tange à atenção execução dessa política pública, as
diferenciada aos povos indígenas tante convincentes, porque estão
comunidades ainda são reféns das naturalizados especialmente nos
também é utilizada, em alguns regras, dos formalismos, da falta
casos, para justificar a inoperân- discursos midiáticos e cotidianos,
de conhecimento das secretarias, mas eles têm sido utilizados como
cia ou a omissão de alguns órgãos da imposição de modelos que,
públicos. Neste caso, em especial, escudo para desviar a atenção de
muitas vezes, confrontam saberes questões bem mais complexas (a
estamos falando de um direito re- tradicionais e competem com es-
lativo ao transporte escolar, mas a exploração ao meio ambiente, fa-
paços educativos próprios dessas vorecimento aos setores do agro-
desassistência se traduz também comunidades. Isso porque, efetiva-
num precário atendimento em saú- negócio e o racismo institucionali-
mente, o controle sobre as escolas zado). Antes de tudo, é necessário
de, na falta de saneamento básico e seus processos não está nas mãos
nas aldeias e, particularmente, esclarecer que povos indígenas
dos povos indígenas. E o controle têm seus direitos originários (so-
na inaceitável condição, imposta não está em suas mãos porque se
a algumas comunidades, de vida crê que exista uma cultura escolar
bre as terras que ocupam) ampa- 65
rados pela Constituição Federal
em acampamentos provisórios, à (ocidental) que não pode ser alte- de 1988 – Art. 231. Tais direitos já
beira de rodovias, resultante da rada, e à qual os índios deveriam estavam resguardados, antes da
morosidade nos procedimentos de aderir. promulgação desta lei, através de
demarcação das terras tradicionais
outras normas que a precederam e
destas pessoas.
IHU On-Line – Como avalia a si- que previam que terras indígenas
tuação dos índios no Rio Grande fossem reservadas aos “índios”.
IHU On-Line – Como discutir do Sul? No que se assemelha e se Basta lembrar que as primeiras de-
políticas públicas para os indíge- diferencia da realidade em outros marcações de terras – na forma de
nas, de forma que não os exclua estados do Brasil? reservas indígenas – ocorreram há
e também não os imponha uma mais de um século. Antes ainda, há
cultura ocidentalizada? Roberto Liebgot – No Rio Gran-
de do Sul as demarcações de terras registros de que os povos indígenas
Roberto Liebgot – Talvez o pri- estão paralisadas desde 2013. No tenham obtido a garantia de suas
meiro passo seja questionar a pró- ano de 2014 houve uma intensifica- terras por serviços prestados ao go-
pria forma como se concebem e se ção de ações e campanhas contra verno, por exemplo, na Guerra do
estabelecem as políticas públicas os direitos indígenas e quilombolas Paraguai,4 em 1864. Portanto, não
destinadas aos povos indígenas. neste estado. Estas campanhas fo- é nenhuma novidade a necessidade
A base de sustentação de muitas ram desencadeadas no âmbito dos de se demarcar terras indígenas.
destas políticas é assistencial, ou poderes públicos, da mídia e de se-
seja, elas se estruturam para as- tores ligados ao agronegócio. Nos Sofismas
sistir, para compensar a falta de discursos disseminados nos meios
algo muito mais imprescindível que de comunicação, especialmen- Em relação ao primeiro argu-
é o acesso à terra e a garantia de te por autoridades, os problemas mento elencado anteriormente,
seu usufruto exclusivo pelos índios. causados pelas demarcações são
4 Guerra do Paraguai: estendeu-se de de-
Uma política pública que tenha em explicados basicamente a partir zembro de 1864 a março de 1870 e foi o maior
vista a autonomia dos povos indí- de três argumentos: o primeiro e mais sangrento conflito armado interna-
genas deveria ser iniciada com a afirma haver interesses de grupos cional ocorrido no continente americano. O
conflito teve início quando o governo de Dom
garantia de participação destes estrangeiros nas terras indígenas e
Pedro II interferiu na política interna do Uru-
em todas as etapas do processo – isso explicaria o empenho de ONGs guai. A reação militar paraguaia disparou a
do planejamento à avaliação – tal e entidades indigenistas (de as- Guerra. (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

de que nos movimentos em defesa Arrendamento em décadas anteriores, que agora


das demarcações de terras indíge- estão sendo pleiteadas para de-
nas haveria algum tipo de complô Essa perspectiva se desdobra em marcação. Tanto do lado dos povos
de interesses estrangeiros contra outra, de que os índios não preci- indígenas e quilombolas, quanto do
a nação, basta lembrarmos que as sam da terra, por isso a arrendam. lado dos agricultores (que hoje re-
terras indígenas são bens da União, Mesmo que eventualmente se re- sidem sobre as terras), há muitos
que devem ser protegidas e res- gistrem casos isolados de arrenda- homens e mulheres que vivencia-
guardadas ao uso exclusivo dos po- mento em terras indígenas, vale ram aquele período e que relatam
vos indígenas. Este dispositivo le- lembrar que esta é uma prática os acontecimentos, indicando que
gal é suficiente para mostrar que, ilegal, passível de penalização, e nas terras pleiteadas para demar-
se há interesses estrangeiros sobre que a fiscalização sobre as terras cação existem indícios materiais da
terras brasileiras, certamente as indígenas é de responsabilidade presença indígena e de quilombos,
áreas indígenas seriam as menos do poder público. A Constituição como cemitérios, destroços de an-
suscetíveis, porque qualquer inves- Federal instituiu, para as comuni- tigas moradias, restos de artefatos
timento sobre elas, que não possua dades indígenas, o direito à posse utilizados para caça, entre outros.
a autorização do Congresso Nacio- permanente e o usufruto exclusivo
nal, é considerado ilegal. sobre as terras que tradicional- Inegável
mente ocupam (Art. 231, § 2º). O tradicionalidade
O segundo argumento contrário
usufruto nas terras indígenas tem
às demarcações, e aquele que se
caráter coletivo e não individual e, Pois bem, se a tradicionalidade
sustenta na ideia de que “é muita
portanto, o direito é das comunida- da ocupação indígena e de quilom-
terra para poucos índios”, filia-se a des indígenas e não de cada pessoa
um entendimento de que as terras bos não pode ser negada, valem os
individualmente, não podendo ser preceitos constitucionais de que
são recursos necessários ao desen- utilizadas por terceiros.
volvimento nacional, regional, local estas terras – no caso das indígenas
e que, por isso, devem ser produ- – são bens da União, que são inalie-
Agricultores náveis e indisponíveis e que os di-
tivas (dentro de uma lógica desen-
volvimentista e unilateral). Nessa reitos indígenas sobre elas são im-
O terceiro argumento contrá- prescritíveis (Art. 231, § 4º). Não é
direção, indaga-se sobre o porquê
rio às demarcações também pode possível, portanto, imaginar que o
de os índios quererem “tanta terra”
66 acionando-se uma lógica racista a
ser desnaturalizado: trata-se da erro cometido pelo Estado – ao dis-
ideia corrente de que, a pretexto ponibilizar para colonização e titu-
partir da qual se avaliam as formas de demarcar terras para índios,
de viver e de trabalhar de todos os lar terras que não lhe pertenciam
não se poderia cometer injustiças – não seja corrigido agora para evi-
povos e culturas a partir dos cri- com os agricultores que produzem
térios ocidentais e de uma racio- tar que ocorra uma injustiça contra
o alimento da população. Para en- os agricultores. É necessário exigir
nalidade neoliberal, tomada como tender essa questão, é necessário
universal. Por essa ótica racista, só que o Estado responda por seus er-
retomar alguns aspectos históricos
trabalha quem efetivamente faz a ros sem que se penalizem os agri-
que nos levam à situação atual, em
terra “produzir”, quem atua sobre cultores, estes que, com seu suor,
que índios e agricultores disputam
ela aproveitando seus potenciais; produzem alimentos. Eles têm di-
as mesmas terras.
em oposição, aqueles que desenvol- reito a uma justa indenização e a
vem uma relação mais respeitosa Nas primeiras décadas do sécu- uma alternativa viável, que deve
com o ecossistema e uma atitude lo XX, sob argumentos positivistas ser apresentada pelo Estado, para
preservacionista são vistos como su- e desenvolvimentistas, os gover- continuar a viver da agricultura,
jeitos que não trabalham, não têm nos empenharam-se em promover em terras legalmente tituladas e
ambição, não sabem dar valor (eco- a ocupação territorial e a coloni- compatíveis com seus modos de
nômico) à terra. zação de espaços considerados produção.
“devolutos”. Neste período, a li-
A alegação de que se trata de teratura sobre o tema registra a IHU On-Line – De que forma po-
muita terra para os índios pode ser ocorrência de inúmeras práticas demos entender o flagelo indíge-
contestada com o seguinte dado: de “limpeza étnica”, a partir das na no Brasil, a partir dos conflitos
o total de terras pleiteadas pelos quais aldeias inteiras foram exter- em Mato Grosso do Sul?
povos indígenas no Rio Grande do minadas. Centenas de outras co-
Sul não passa de 0,5% da área do munidades foram expulsas de suas Roberto Liebgot – A situação dos
estado. De forma recorrente, lide- terras tradicionais e despejadas povos indígenas em Mato Grosso do
ranças Kaingang têm indagado, em em outras localidades. Tais remo- Sul é emblemática, e têm sido re-
momentos de reflexão: se um es- ções forçadas ao longo da história correntes, sistemáticas e cada vez
tado não consegue se desenvolver originam os conflitos contemporâ- mais intensas as práticas de violên-
com 99,5% de seu território, que neos, posto que são estas as terras, cia. Nos últimos 12 anos, 390 indí-
diferença farão esses 0,5% que cor- loteadas e vendidas pelo governo genas foram assassinados no esta-
respondem às terras indígenas? do estado do Rio Grande do Sul do. Outros 707 cometeram suicídio

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DE CAPA IHU EM REVISTA

de 2000 a 2014. Esses números, por demarcação dessas terras. Quan- pistoleiros contra uma comunidade
si só, já indicam a gravidade desta do, ao contrário, o poder público Tupinambá, no estado da Bahia.
situação. Frente a este quadro ex- garante a desintrusão de terras re- No Rio Grande do Sul registrou-se
tremo, registra-se também a ino- conhecidamente indígenas, os pro- a absurda situação de intolerância
perância do governo, que deveria blemas tendem a cessar, especial- na qual a população do município
realizar as demarcações das terras mente os vinculados à disputa de de Erval Grande expulsou os indí-
para, assim, assegurar aos povos terras e violências, como nos casos genas que estavam acampados nas
indígenas condições dignas de vida das terras indígenas Raposa/Serra margens de uma rodovia estadual.
naquele estado. O que ocorre em do Sol5 (RR), Marãiwatsédé6 (MT) Na ocasião, com apoio da Polícia
Mato Grosso do Sul é genocídio. e Caramuru Catarina-Paraguaçu7 Militar e sem ordem judicial, cen-
Este não é apenas o entendimento (BA). tenas de moradores do município
do Cimi, como também do Ministé- se deslocaram para o acampamen-
rio Público Federal (MPF), da Asso- Violência to dos Kaingang e os obrigaram a
ciação Brasileira de Antropologia embarcar num micro-ônibus, que
(ABA) e de órgãos como a Anistia Os alarmantes números da vio- os transportou para a cidade de
Internacional, por exemplo. lência em Mato Grosso do Sul são, Passo Fundo, a mais de 130 km de
em certo sentido, a face mais visí- distância. Seus pertences foram
É bom lembrar que as denúncias
vel de conflitos que se desenrolam jogados sobre a carroceria de um
de assassinatos, suicídios, perse-
em diversas partes do país. O Re- caminhão e despejados diante da
guições, ataques e muitas outras
latório da Violência contra os Po- sede da Funai, em Passo Fundo.
formas de violência têm sido sis-
tematicamente apresentadas em vos Indígenas, publicado pelo Cimi As violências praticadas contra
relatórios do Cimi, e são também e relativo ao ano de 20148, mostra os povos indígenas em nosso país
reiteradas em pronunciamentos do que ocorreram ataques a comuni- são avassaladoras. A dor, o sofri-
Ministério Público Federal. As vio- dades especialmente nas regiões mento, as ameaças, as invasões,
lências se intensificaram, mas tam- Sul, Nordeste e Centro-Oeste. Al- as torturas, as agressões cotidianas
bém se tornaram mais visíveis nas gumas comunidades foram ataca- expressam, em síntese, o tipo de
últimas décadas. Em Mato Grosso das a tiros, colocando-se em risco política indigenista praticada pelo
do Sul, os casos de violência se a vida de crianças, jovens, idosos. governo, pois, ao fechar os olhos
acentuaram quando algumas co- Exemplos disso foram os ataques de para acontecimentos tão graves, o
munidades procederam a uma re-
5 Raposa Serra do Sol: área de terra in-
governo os avaliza. 67
tomada de terras tradicionais das dígena (TI) situada no nordeste do estado
quais foram expulsas no decorrer brasileiro de Roraima, nos municípios de IHU On-Line – O que a cultu-
do século XX, e sobre as quais se es- Normandia, Pacaraima e Uiramutã, entre os
ra branca, ocidentalizada, pode
rios Tacutu, Maú, Surumu, Miang e a fron-
tabeleceram, de modo especial, os aprender sobre a relação com a
teira com a Venezuela. É destinada à posse
empreendimentos agropecuários. permanente dos grupos indígenas ingaricós, terra e o meio ambiente a par-
macuxis, patamonas, taurepangues e uapi- tir da espiritualidade de povos
Genocídio em Mato xanas. Raposa Serra do Sol foi demarcada
pelo Ministério da Justiça através da Porta- indígenas?
Grosso do Sul ria Nº 820/98, posteriormente modificada
Roberto Liebgot – Os povos indí-
pela Portaria 534/2005. A demarcação foi
homologada por decreto de 15 de abril de genas têm muito a nos ensinar. Mas
As retomadas de terra em Mato
2005, da Presidência da Republica. Em 20 precisamos, antes de tudo, conhe-
Grosso do Sul colocam em evidên- de março de 2009, uma decisão final do STF cê-los e respeitar o modo de ser de
cia o direito dos índios à terra, confirmou a homologação contínua da Terra
Indígena Raposa Serra do Sol, determinando cada povo – suas culturas, costu-
direito este que vem sendo negli-
a retirada dos não indígenas da região. Nas mes, crenças e tradições. Ao lon-
genciado pelo governo e contes- Notícias do Dia do sítio do Instituto Huma- go de mais de 25 anos de atuação
tado com veemência por setores nitas Unisinos – IHU é possível ler diversas
missionária junto a muitas comuni-
do agronegócio. A demarcação das entrevistas especiais sobre o tema. (Nota da
IHU On-Line) dades e povos pude perceber que
terras indígenas é apresentada, por
6 Marãiwatsédé: terra indígena localizada todos possuem vínculos profundos
setores anti-indígenas, como pro- nos municípios de Alto Boa Vista, São Félix com o sagrado, com a palavra e
cedimento que gera insegurança do Araguaia e Bom Jesus do Araguaia, no Es-
com a terra. Estes três aspectos
jurídica. Contudo, ela é a expres- tado do Mato Grosso, Brasil. (Nota da IHU
On-Line) da vida indígena se distanciam dos
são concreta do reconhecimento 7 Terra indígena Caramuru-Paragua- modelos de sociedades estrutura-
constitucional dos povos indígenas çu: é uma terra indígena de usufruto do
das no capitalismo, individualismo,
como coletividades com organiza- povo pataxó hã-hã-hãe, localizada no sul da
Bahia, no Brasil. Possui 54.105 hectares e foi primitivismo e na exploração.
ções sociais e culturais próprias,
delimitada em 1937 pelo Serviço de Proteção
com línguas, crenças, tradições ao Índio. Em 2005, habitavam a terra apro- Um primeiro aspecto que faço
a serem respeitadas, cuja vida se ximadamente 2.147 índios, dos quais 1.139 referência é o fato de não haver
concretiza sobre um território tra- eram homens e 1.008 eram mulheres. (Nota distinção absoluta, ou uma linha
da IHU On-Line)
dicional que o Estado tem o dever divisória que separa aspectos da
8 A íntegra do Relatório está disponível
de demarcar e proteger. A insegu- em http://bit.ly/1T9TO22. (Nota da IHU vida natural e sobrenatural. Assim,
rança se gera exatamente pela não On-Line) as ações cotidianas são marcadas

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

por certa ritualidade, as expli- do modo de viver. Faço referência daram profundamente a cultura
cações para os acontecimentos a estudiosos como Nimuendajú9 Guarani e que nos ensinam que os
têm uma base material e também Guarani são “o povo da palavra”
imaterial, as razões para algumas (1987) e Melià10 (2004), que estu- e a prática de escutar e de falar
práticas e condutas são de ordem configura sua organização social,
9 Curt Nimuendajú (1883-1945): nasci-
profana e também sagrada. Trata- do Curt Unckel, foi um etnólogo de origem política, religiosa.
-se, portanto, de uma racionali- alemã que percorreu o Brasil em meio aos
A palavra tem grande relevância
dade que nos escapa e que não se índios por mais de 40 anos. Quando jovem,
foi aprendiz na fábrica de lentes Zeiss na Ale- na vida dos povos indígenas, pois
pauta nas divisões binárias a que manha. (Nota da IHU On-Line) são constitutivas da própria exis-
estamos habituados (na composi- 10 Bartomeu Meliá: jesuíta espanhol Bar-
tência das pessoas. Nas relações
ção de um pensamento ocidental, tolomeu Melià, pesquisador do Centro de
Estudos Paraguaios Antonio Guasch e do Ins- estabelecidas, a palavra é um com-
de base cartesiana). Cada pessoa
tituto de Estudos Humanísticos e Filosóficos. ponente central (não apenas como
precisa aprender a conviver e a es- Sempre se dedicou ao estudo da língua guara- meio de comunicação, mas como
tabelecer um equilíbrio entre duas ni e à cultura paraguaia. Doutor em ciências
possibilidade de criação de algo).
naturezas – a humana e a divina. religiosas pela Universidade de Estrasburgo,
acompanhou e conviveu com os indígenas Ela se converte em conselhos e en-
Aprender a conviver e a conhecer
Guarani, Kaingang e Enawené-nawé, no Pa- sinamentos (dos pais para os filhos,
os outros seres que habitam os li- raguai e no Brasil. É membro da Comissão
dos anciãos para os jovens, e assim
mites do território é uma das estra- Nacional de Bilinguismo, da Academia Pa-
raguaia da Língua Espanhola e da Academia por diante).
tégias dos povos. Por exemplo, em
Paraguaia de História. Entre suas publica-
uma comunidade guarani é indis- ções, citamos El don, la venganza y otras for- Um terceiro aspecto que conside-
pensável a existência de uma casa mas de economia (Assunção: Cepag, 2004). ro fundamental e que pode servir
de reza, a Opy. Nela, estreitam-se Confira a entrevista As missões jesuíticas nos como referência para a sociedade
sete povos das missões, concedida por Melià
os vínculos com o Sagrado, reali- envolvente é o vínculo dos povos
à edição 196 da revista IHU On-Line, de 18-
zam-se os rituais mais importan- 09-2006, disponível em http://migre.me/ indígenas com a terra. Tratam-na
tes, estabelecem-se as condições vMqU. Na noite de 26-10-2010 Meliá profe- com respeito, como mãe, fonte de
para se ter saúde, realizam-se os re a conferência A cosmologia indígena e a vida, lugar onde se restabelecem
religião cristã: encontros e desencontros de
processos de nomeação e de cura. universos simbólicos, dentro da programa- elos entre as pessoas e seus an-
ção do XII Simpósio Internacional IHU – A cestrais, onde se cultiva a porção
Palavra Experiência Missioneira: território, cultura divina que vive em cada pessoa e
e identidade. Confira a programação com-
68 pleta do evento em http://migre.me/vMs5.
onde se organiza o bem-viver. Por
Um segundo aspecto que me Confira, na edição 331, uma entrevista com isso, precisa ser amada e protegi-
parece comum entre os povos diz Meliá, intitulada “A história de um guarani da, assim como todos os seres que
respeito à palavra, um importan- é a história de suas palavras”, disponível em
nela vivem e dela dependem, como
http://migre.me/MqPH. Confira, ainda, o
te elemento de constituição da Perfil de Melià, publicado em http://migre. os animais, as plantas, as matas, as
pessoa e de elaboração contínua me/2pf5p. (Nota da IHU On-Line) águas...■

LEIA MAIS...
—— “O desenvolvimentismo não combina com princípios éticos e humanitários”. Entrevista com
Roberto Liebgott, publicada na revista IHU On-Line, nº 413, de 01-04-2013, disponível em
http://bit.ly/1Ok24Nz;
—— O contínuo caminhar guarani. Entrevista com Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bo-
nin, publicada na revista IHU On-Line, nº 331, de 31-05-2010, disponível em http://bit.
ly/1YxsLl4;
—— A luta dos povos indígenas continua. Entrevista com Roberto Liebgott, publicada nas No-
tícias do Dia, de 02-05-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/1ll4Vdr.
—— Povos indígenas não são tratados como protagonistas. Entrevista especial com Roberto Lie-
bgott, publicada nas Notícias do Dia, de 19-04-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, disponível em http://bit.ly/1jnfH1w;
—— Morro do Osso: uma luta dos povos indígenas do RS. Entrevista com Roberto Liebgott, pu-
blicada nas Notícias do Dia, de 05-06-2009, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/1jnfKuu;
—— “Os arrozeiros representam o enclave da violência”. Entrevista com Roberto Liebgott, pu-
blicada nas Notícias do Dia, de 03-04-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível http://bit.ly/1jnfPOD.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

A ambígua e ineficiente política


indigenista brasileira
Para Egydio Schwade, nunca houve um interesse efetivo em incluir
os povos indígenas na construção das leis que regem o país
Por João Vitor Santos e Leslie Chaves

N o Brasil se perpetuam as vio-


lências às diversas etnias in-
dígenas que são as habitantes
originárias do país. As agressões histó-
ricas iniciadas com os processos de co-
nos do capital. “A política indigenista
brasileira sempre foi ambígua. Sempre
esteve vinculada ao ministério que pro-
pulsiona o (des)envolvimento. Enquan-
to por um lado tenta se respaldar em
lonização e exploração deste território um mínimo de leis favoráveis aos povos
foram tão intensas e continuam tão indígenas, por outro a sua prática sem-
constantes que implicaram na drástica pre foi anti-indígena”, constata.
redução e no quase desaparecimento
Schwade ainda salienta que os in-
de alguns destes povos. De acordo com
dígenas não são vistos como parte do
Egydio Schwade, passam-se os anos,
país, mas sim como uma ameaça ao
mudam os dominadores, mas o desejo
modelo desenvolvimentista de gestão
de expropriar e lucrar com a terra per-
da nação. “Hoje a briga maior do índio
manece o mesmo. Porém se acentuam
os embates, uma vez que os indígenas
já consciente e organizado e de seus 69
aliados é conseguir efetivar a prática
passaram a reivindicar seus direitos. “É
das leis contidas na Carta Magna de
o desespero da velha política dos do-
1988. Judiciário, Legislativo e Executi-
natários, dos fazendeiros portugueses,
vo estão aí em constante conflito com a
vendo estes povos que, segundo eles, já
lei, ao invés de garantirem sua execu-
não deveriam mais existir, crescerem,
ção como é seu dever. No fundo o índio
exigirem seus territórios e sua autono- é um ‘perigo’ para o modelo político
mia, é isto que move o recrudescimento injusto que se instalou sobre o territó-
atual da política genocida”, ressalta em rio brasileiro.”
entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Egydio Schwade é graduado em Fi-
Ao fazer uma retrospectiva das polí-
losofia e Teologia pela Universidade do
ticas públicas direcionadas aos indíge-
Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Foi um
nas ao longo dos anos no Brasil, Schwa-
dos fundadores do Conselho Indigenista
de aponta que não houve avanços no
Missionário – Cimi e primeiro secretário
sentido de garantir os direitos e a segu-
executivo da entidade, em 1972. Atual-
rança destes povos e que os principais
mente é colaborador do Cimi e vive em
entraves para a efetivação das leis que
Presidente Figueiredo, AM.
já existem e para a elaboração de ou-
tras medidas são os interesses dos do- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como analisa a peus que a invadiram de 1500 para na construção das leis que regem
questão indígena hoje no Brasil? cá e acham que têm o direito de o país.
O que nos levou a esse estado de prosseguir impunes ainda hoje.
Neste processo inclui-se desde a O que leva ao recrudescimento
genocídio de povos indígenas?
agressão às suas pessoas e territó- atual deste “estado de genocídio
Egydio Schwade – A agressão rios até a legislação e a sua ausên- de povos indígenas” é o desespe-
contra os povos indígenas, ou seja, cia no governo desta terra. Nunca ro dos insaciáveis latifundiários e
contra os donos desta terra, é uma houve por parte dos invasores inte- mineradores com a constatação de
herança recebida dos povos euro- resse em incluir os povos indígenas que os índios estão crescendo em

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

número, em seus valores culturais 1950 eram menos de 100 mil no Vivi o fervilhar das discussões
e na exigência dos seus direitos. Brasil. Já em 1978, como secretá- sobre as mudanças necessárias a
rio executivo do Cimi, orientei uma se fazerem na Igreja num e nou-
Quando a sociedade brasileira, a
nova pesquisa, onde já passavam tro extremo. Vi índios Rikbaktsa
partir dos anos 1960, e aqui cito,
de 220 mil. Hoje beiram um mi- chegando à tarde nus ao internato
em especial, a Igreja Católica, co-
lhão, segundo o IBGE. É o desespe- de Utiariti, apenas com seu arco
meçou a organizar entidades com
ro da velha política dos donatários, e flecha na mão e no dia seguinte
postura nova, incentivada pelo dos fazendeiros portugueses, ven- cedo os vi ajoelhados de roupa na
Concílio Vaticano II1 (não mais ca- do estes povos que segundo eles, igreja. Vinham à Utiariti, não para
tequese, mas encarnação na sua já não deveriam mais existir, cres- voltarem à aldeia e defender o seu
realidade, para conhecer e evi- cerem, exigirem seus territórios e território, viverem sua cultura,
denciar os valores da sua cultura, sua autonomia, é isto que move o mas para aprender a ler e escrever
“busquem os missionários colher recrudescimento atual da política e irem esconder sua identidade de
as sementes do Verbo ocultas nos genocida. índios em Cuiabá. E a Missão os em-
povos”, orientam os documentos purrava e incentivava a isto. Tanto
do Vaticano II), passou a evidenciar era assim que no segundo internato
IHU On-Line – Como compreen-
como anúncio da boa nova os seus em que trabalhei, em Diamantino,
der a cosmovisão indígena na sua
direitos à terra, à cultura e à au- que ficava próximo de Cuiabá, eles
relação com a terra e elementos
todeterminação. Esta nova postura eram integrados na perspectiva de
da natureza? Por que o chamado
trouxe novo ânimo aos povos indí- páreas da sociedade, junto com
homem branco não consegue en-
genas, que começaram a crescer e meninos pobres, não indígenas,
tender essa perspectiva? E como
a se organizar. Segundo pesquisa o senhor, através de sua experi- dos garimpos e da roça. Não existia
feita por Darcy Ribeiro2, nos anos ência de vida, conseguiu se apro- nenhuma organização indígena em
ximar dessa concepção? todo o território nacional.
1 Concílio Vaticano II: convocado no dia
11-11-1962 pelo Papa João XXIII. Ocorreram Em 1966 voltei à Unisinos ansio-
Egydio Schwade – A cosmovisão
quatro sessões, uma em cada ano. Seu encer-
ramento deu-se a 8-12-1965, pelo Papa Paulo dos povos originários só se com- so para discutir e propor mudanças
VI. A revisão proposta por este Concílio es- preende pela convivência com nesta situação, com os companhei-
tava centrada na visão da Igreja como uma eles e questionando os nossos er- ros que também haviam passa-
congregação de fé, substituindo a concepção
ros e preconceitos durante esta do por esta experiência e propor
70 hierárquica do Concílio anterior, que decla-
rara a infalibilidade papal. As transformações convivência. mudanças imediatas. Já em mar-
que introduziu foram no sentido da demo- ço daquele ano escrevemos uma
cratização dos ritos, como a missa rezada em De 1963 a 1965, como estudante
carta conjunta, os que havíamos
vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis dos participei de uma sofrida experiên-
diferentes países. Este Concílio encontrou re- passado pela MIA, aos dirigentes
cia indigenista em dois internatos
sistência dos setores conservadores da Igreja, da Missão propondo interromper
defensores da hierarquia e do dogma estrito, na Missão Anchieta – MIA dos jesu-
as atividades e planejar uma nova
e seus frutos foram, aos poucos, esvaziados, ítas no Noroeste de Mato Grosso.
forma de desenvolver os trabalhos.
retornando a Igreja à estrutura rígida preco- Depois tive a oportunidade de vi-
nizada pelo Concílio Vaticano I. O Instituto Mas a nossa proposta foi rejeitada.
venciar o processo de mudança da
Humanitas Unisinos – IHU produziu a edi- Diante deste fechamento da insti-
ção 297, Karl Rahner e a ruptura do Vati- Igreja Católica e de outras igrejas
tuição concluímos que uma mudan-
cano II, de 15-6-2009, disponível em http:// cristãs como a Igreja Evangélica de
bit.ly/o2e8cX, bem como a edição 401, de ça só seria possível apelando para
Confissão Luterana do Brasil, desde
03-09-2012, intitulada Concílio Vaticano II. a juventude e na forma ecumênica
50 anos depois, disponível em http://bit.ly/ o seu início, ou seja, desde o Con-
como recomendava o Vaticano II.
REokjn, e a edição 425, de 01-07-2013, in- cílio nos anos 60. No caso da Igre-
titulada O Concílio Vaticano II como even- ja Católica, sem dúvida nenhuma Junto com Thomaz Lisboa, um
to dialógico. Um olhar a partir de Mikhail
foi no encalço das linhas de ação colega que havia atuado na missão
Bakhtin e seu Círculo, disponível em http://
bit.ly/1cUUZfC. Em 2015, o Instituto Huma- apontadas pelo Concílio Vaticano comigo, organizei uma “fotonove-
nitas Unisinos – IHU promoveu o colóquio O II. Acompanhei parte do Concílio no la” com slides sobre a vida dos ín-
Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja Curso de Filosofia na Unisinos, em dios de Mato Grosso e todo fim de
no contexto das transformações tecnocientí-
ficas e socioculturais da contemporaneidade. São Leopoldo, e a outra parte em semana íamos a uma comunidade
As repercussões do evento podem ser con- internatos da Missão Anchieta em católica ou evangélica do Vale do
feridas na IHU On-Line, edição 466, de 01- Diamantino, nas margens do Rio Rio dos Sinos, motivando a juventu-
06-2015, disponível em http://bit.ly/1IfYpJ2
Papagaio, afluente do rio Juruena de para a missão. Finalmente, em
e também em Notícias do Dia no sitio IHU.
(Nota da IHU On-Line) no Noroeste de Mato Grosso. fevereiro de 1969 criei a Operação
2 Darcy Ribeiro (1922-1977): etnólogo, Anchieta – Opan, hoje Operação
antropólogo, professor, educador, ensaísta, setores de pesquisas sociais do Centro de Pes-
romancista e político mineiro. Completou o quisas Educacionais e da Campanha Nacio-
Amazônia Nativa, que começou a
curso superior na Escola de Sociologia e Polí- nal de Erradicação do Analfabetismo, além selecionar, treinar e enviar jovens
tica de São Paulo, no ano de 1946. Trabalhou de ocupar, no biênio 1959/1961, o cargo de para as comunidades indígenas. E a
como etnólogo no Serviço de Proteção ao presidente da Associação Brasileira de Antro- partir de 1970, rapazes e moças da
Índio, e, em 1953, fundou o Museu do Índio. pologia. Foi eleito em 8 de outubro de 1992
Foi professor de etnologia e linguística tupi para a Cadeira n. 11 da Academia Brasileira Opan, católicos e evangélicos, co-
na Faculdade Nacional de Filosofia e dirigiu de Letras. (Nota da IHU On-Line). meçaram a se esparramar pelas co-

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DE CAPA IHU EM REVISTA

munidades indígenas da Amazônia. vinha pela frente e instalando o pacitados para se encarnar na re-
Logo se juntaram e integraram os sistema antifraterno que vigorava alidade vivida então pelos povos
Voluntários para o Desenvolvimen- na Europa, não apenas entre cris- indígenas brasileiros, convivendo e
to da Áustria e os Técnicos Voluntá- tãos e muçulmanos, mas, inclusive, assumindo a sua causa na perspec-
rios Cristãos da Itália. entre os próprios cristãos. tiva de serem aceitos como mem-
bros daqueles povos. Em janeiro
Esta juventude obteve imediato Em meados dos anos 1960 o Papa
de 1970 partiu o primeiro grupo
apoio e participação de missio- João XXIII convocou o Concílio Vati-
de pessoas da Opan para aldeias
nários religiosos que já atuavam cano II, onde os padres conciliares
do Noroeste de Mato Grosso e para
nas bases, igualmente ansiosos deram novas orientações para o re-
Rondônia, nos confins do rio Gua-
por mudança. Acompanhei quatro lacionamento com os povos, tanto
poré e Mamoré.
anos, como coordenador técnico, no seu relacionamento intercris-
a Opan. Em 1972 ajudei a criar Em 1973, quando foi criado o
o Conselho Indigenista Missioná- Cimi, organizei o primeiro pro-
rio – Cimi, do qual fui o primeiro grama de ação deste órgão, o En-
secretário executivo, até 1980. contros de Pastoral Indigenista,
Nestes dois períodos acompanhei do qual participavam missionários
a evolução dos trabalhos da Igreja Nunca houve e lideranças indígenas visando
junto aos índios em todo o país. E
pude sentir o drama dos povos indí-
por parte dos transformar e reformular as li-
nhas de ação missionárias. Eram
genas esmagados e sem esperança invasores inte- encontros supracircunscrições
de perspectivas melhores por toda eclesiásticas, para inserção dos
parte. resse em incluir missionários na postura da Igre-
os povos indíge- ja pós-conciliar frente aos índios
e para eles mesmos superarem
IHU On-Line – Como se deu a re-
lação da Igreja com os povos ame- nas na constru- o isolamento existente onde as
Prelazias e Dioceses da Amazônia
ríndios a partir do século XVI? De
que forma essa relação foi revisa-
ção das leis que eram verdadeiras “ilhas cultu-
da nas últimas décadas? regem o país rais”. O segundo eixo do progra-
ma do Cimi foi o de possibilitar
Egydio Schwade – Foi no fim das assembleias indígenas. Encontros 71
frustradas Cruzadas3 que iniciaram tãos, como sobre a sua Atividade dos próprios índios entre si.
as grandes navegações, principal- Missionária junto a outros povos.
Convém notar que este programa
mente dos espanhóis e portugue- Foram estas orientações que leva-
foi durante os primeiros 15 anos
ses. Os cristãos europeus invadi- ram a novos rumos da Pastoral Indi-
levado conjuntamente pela Opan
ram os territórios de centenas de genista no Brasil. Não doutrinação,
e pelo Cimi. A palavra de ordem
povos pacíficos mundo afora, como mas encarnação em sua realidade
era “encarnação” em todas as mis-
o faziam antes os cruzados contra e “colher as sementes de Deus ali
sões católicas e também da Igreja
os mouros. E, como lá, a Igreja es- ocultas”. E o anúncio da Boa Nova
Evangélica de Confissão Luterana
tava presente nos navios e na cabe- é o anúncio a estes povos do seu di-
no Brasil – IECLB. Posteriormente,
ça dos seus mandantes. Do mesmo reito à vida, ao seu território, à sua
burilada por intelectuais, foi apre-
modo, estes, ao invés de “colher as cultura e à sua autodeterminação.
sentada como “inculturação”.
sementes de Deus ocultas” nesses
povos (que viviam num sistema fra- IHU On-Line – Qual o papel do
terno das pessoas entre si e destas IHU On-Line – Numa perspectiva
Concílio Vaticano II na mudança
com a terra, princípios pregados histórica, como avalia a política
de perspectiva das ações da Igreja
por Cristo), foram destruindo o que indigenista brasileira? E trazendo
diante dos povos indígenas? Como
para atualidade, quais os avan-
era e como vem sendo trabalhada
3 Cruzadas (séculos XI a XIII): foram mo- ços, limites e retrocessos dessa
vimentos militares de inspiração cristã que a inculturação da fé entre os po-
política?
partiram da Europa Ocidental em direção à vos originários?
Terra Santa (nome pelo qual os cristãos de- Egydio Schwade – A política in-
nominavam a Palestina) e à cidade de Jeru- Egydio Schwade – Antes do Con-
digenista brasileira sempre foi
salém com o intuito de conquistá-las, ocupá- cílio já existia uma experiência de
-las e mantê-las sob o domínio cristão. Estes ambígua. Sempre esteve vincula-
convivência sem doutrinação, a das
movimentos estenderam-se entre os séculos da ao ministério que propulsiona
XI e XIII, época em que a Palestina estava sob Irmãzinhas de Jesus, junto ao povo
o (des)envolvimento. Enquanto
controle dos turcos muçulmanos. No médio Tapirapé na Prelazia de São Félix
oriente, as cruzadas foram chamadas de “in- por um lado tenta se respaldar
do Araguaia.
vasões francas”, já que os povos locais viam em um mínimo de leis favoráveis
estes movimentos armados como invasões A Opan e o Cimi foram criados aos povos indígenas, por outro a
e por que a maioria dos cruzados vinha dos
dentro dos princípios apontados sua prática sempre foi anti-indí-
territórios do antigo Império Carolíngio e se
autodenominavam francos. (Nota da IHU pelo Concílio Vaticano II. Os seus gena. Até o Estatuto do índio pu-
On-Line) membros foram incentivados e ca- blicado pela ditadura militar em

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

1973 teve seus aspectos positivos. do Sul em maio de 1967. No mês griladas pelos governos de Brizola5
Mas quando fui secretário execu- seguinte instalou-se a CPI na Câ- e Meneghetti6, para fins de uma
tivo do Cimi a nossa briga maior mara Federal que teve como rela- ruidosa Reforma Agrária realizada
com o governo militar foi o seu tor o Deputado Jader Figueiredo nas terras indígenas e não sobre a
desrespeito ao que ele mesmo e que deu fim ao SPI e motivou a praga do latifúndio que domina ate
havia posto na lei. Semelhante- criação da Fundação Nacional do hoje o Estado.
mente hoje a briga maior do índio Índio – Funai.
já consciente e organizado e de Mas para entender a questão in-
O que constatei ao longo de to- dígena frente ao governo brasileiro
seus aliados é conseguir efetivar dos esses anos de acompanhamen-
a prática das leis contidas na Car- e inclusive ao documento final da
to da política indigenista brasileira
ta Magna4 de 1988. Judiciário, Le- Comissão Nacional da Verdade –
oficial é que em realidade não hou-
gislativo e Executivo estão aí em CNV7, criada pelo governo Dilma,
ve avanço algum. Ela acaba sempre
constante conflito com a lei, ao patinando sobre os interesses dos 5 Leonel de Moura Brizola (1922-2004):
invés de garantirem sua execução poderosos, que nunca tiveram in- político brasileiro, nascido em Carazinho,
como é seu dever. No fundo o ín- teresse algum de ver os segmentos no Rio Grande do Sul. Foi prefeito de Porto
dio é um “perigo” para o modelo oprimidos da sociedade melhora- Alegre, governador do Rio Grande do Sul,
político injusto que se instalou deputado federal pelo extinto estado da Gua-
rem de vida. nabara e duas vezes governador do Rio de Ja-
sobre o território brasileiro. neiro. Sua influência política no Brasil durou
aproximadamente 50 anos, inclusive enquan-
Bem, uma das coisas que para IHU On-Line – Como o senhor vi- to exilado pelo Golpe de 1964, contra o qual
nós estudantes jesuítas do final venciou o período da Ditadura e foi um dos líderes da resistência. Por várias
da década de 60 ficou evidente, quais as marcas do regime perma- vezes foi candidato a presidente do Brasil,
sem sucesso, e fundou um partido político, o
foi a de que a questão indígena necem no trato aos povos indíge-
PDT. Sobre Brizola, confira a primeira edição
não poderia se restringir à Mis- nas? E em que medida o relatório dos Cadernos IHU em formação intitulado
são Anchieta de Diamantino, mas da Comissão Nacional da Verdade Populismo e trabalho. Getúlio Vargas e Le-
deveríamos ter sempre diante de recupera a memória de índios sa- onel Brizola, disponível em http://bit.ly/
ihuem01. Leia também a IHU On-Line inti-
nós uma “visão nacional e até in- crificados nesse período? tulada Leonel de Moura Brizola 1922-2004,
ternacional” da questão indíge- disponível em http://bit.ly/ihuon107. (Nota
Egydio Schwade – No período
na, o que, desde então, deixáva- militar fui reprimido e proibido,
da IHU On-Line)
6 Ildo Meneghetti (1895-1980): engenhei-
mos claro em nossos documentos
72 e ações. E, como consequência,
pelos militares que comandavam a ro e político brasileiro. Foi prefeito de Porto
Alegre por duas vezes e governador do estado
Funai, de entrar nas áreas indíge-
isto nos levou a nos imiscuir na nas do país. Mas foi este o período
do Rio Grande do Sul também por duas vezes.
política indigenista oficial. Assim, (Nota da IHU On-Line)
de minha vida em que visitei mais 7 Comissão Nacional da Verdade (CNV):
em abril de 1967, o colega estu- áreas e povos indígenas por todo é o nome da comissão que investigou as gra-
dante paulista Thomaz de Aquino o país, animando-os em sua luta ves violações de direitos humanos cometidas
Lisboa e eu resolvemos fazer uma entre 18 de setembro de 1946 e 05 de outu-
pelos seus direitos. A ausência do bro de 1988, por agentes públicos, pessoas
semana santa diferente. Ao invés Estado, do Governo junto aos po- a seu serviço, com apoio ou no interesse do
de participar das cerimônias li- bres e oprimidos facilitava o meu Estado brasileiro, ocorridas no Brasil e tam-
túrgicas na igreja, fomos visitar acesso. bém no exterior. A comissão foi instalada
oficialmente em 16 de maio de 2012. A CNV
comunidades indígenas do Rio concentrou seus esforços no exame e escla-
Grande do Sul, entregues metade Andei, neste período, do Alto
recimento das graves violações de direitos
à política do Estado e outra me- Envira no Acre (onde encontrei Ma- humanos praticados durante a ditadura mi-
tade ao Serviço de Proteção aos diha com seu território invadido litar (1964-1985). A Comissão ouviu vítimas
por latifundiários sulistas, apoiados e testemunhas, bem como convocou agentes
índios – SPI. Disto resultou uma da repressão para prestar depoimentos. Pro-
série de nove artigos que publi- pelos generais e uma aldeia literal- moveu mais de 100 eventos na forma de audi-
camos no Correio do Povo de Por- mente em curral de gado) até a ências públicas e sessões de apresentação dos
to Alegre sob o título: “Drama de Serra do Ororubá em Pernambuco, relatórios preliminares de pesquisa. Realizou
que galguei para me encontrar com diligências em unidades militares, acompa-
1080 famílias Indígenas do Rio nhada de ex-presos políticos e familiares de
Grande do Sul”. A denúncia pro- os Xukuru, exprimidos no meio das mortos e desaparecidos. Constituiu um nú-
vocou uma CPI na Assembleia Le- montanhas, última nesga de terri- cleo pericial para elucidar as circunstâncias

gislativa do Estado do Rio Grande tório que lhes restara e disputavam. das graves violações de direitos humanos, o
qual elaborou laudos periciais, relatórios de
Andei do território Raposa Serra do diligências técnicas e produziu croquis rela-
4 Carta de 88 – Carta Magna: é a Cons- Sol, em Roraima (onde, com o auxí- tivos a unidades militares. Colaborou com as
tituição da República Federativa do Brasil de lio dos colegas missionários da Pre- instâncias do poder público para a apuração
19881, promulgada em 5 de outubro de 1988. lazia de Roraima, convocamos a as- de violação de direitos humanos, além de ter
É a lei fundamental e suprema do Brasil, ser- enviado aos órgãos públicos competentes da-
vindo de parâmetro a todas as demais norma- sembleia dos líderes indígenas que dos que pudessem auxiliar na identificação
tivas. Pode ser considerada a sétima ou a oi- desencadeou uma luta que 32 anos de restos mortais de desaparecidos. Também
tava constituição do Brasil (dependendo de se depois foi vitoriosa com a homolo- identificou os locais, estruturas, instituições e
considerar ou não a Emenda Constitucional circunstâncias relacionadas à prática de vio-
gação da área contínua Raposa Ser-
nº 1 como um texto constitucional) e a sexta lações de direitos humanos, além de ter iden-
ou sétima constituição Brasileira em um sé- ra do Sol), até as áreas de Ventarra tificado ramificações na sociedade e nos apa-
culo de república. (Nota da IHU On-Line) e Inhacorá no Rio Grande do Sul, relhos estatais. Em 10 de dezembro de 2014, a

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DE CAPA IHU EM REVISTA

é exemplar o caso que vivenciei ocupa o cargo de coordenador do e documentado sobre os crimes co-
e vivencio aqui no município onde Programa Waimiri-Atroari10, repri- metidos pela Ditadura contra aque-
moro: o caso Waimiri-Atroari. En- mindo qualquer tentativa de con- le povo.
tre 1967 e 1977, os militares cons- tato com os índios que pudessem
Como se pode constatar por este
truíram a rodovia BR-174 passando levar os mesmos a revelar sua his-
e outros fatos que se referem à
pelo território desses índios como tória recente. Até a representante
questão indígena, que a ambiguida-
se fosse um “vazio demográfico”. da Comissão Nacional da Verdade
de continua e domina não apenas a
No seguimento, a quase total des- se submeteu aos ditames deste
política indigenista oficial em todo
truição do povo Waimiri-Atroari
o país, mas ate a CNV, órgão que
(de 3.000 em 1968 passou a 332 em
foi criado para abrir caminho para
1983). Processo de extermínio que
o conhecimento também dos cri-
teve a cobertura da Funai, a insta-
mes cometidos contra estes povos
lação em seu território de grileiros,
mineradores e hidrelétricas. Pude sentir o indígenas. Se o seu relatório con-
tém relatos dos crimes contra os
Um funcionário da Funai, Sebas- drama dos po- povos indígenas, não acrescenta,
tião Amâncio da Costa, nomeado como o faz com os demais crimes
para dirigir a Frente de Atração vos indígenas da Ditadura, medidas atualizadas
Waimiri-Atroari, em janeiro de
1975, declarou publicamente que
esmagados e para reparar esses fatos dolorosos.

usaria a violência contra os índios, sem esperan- IHU On-Line – Como avalia a polí-
com armas de fogo, incluindo di-
namite e metralhadoras, conforme ça de perspec- tica indigenista desses 13 anos de
governo petista? Por que o gover-
determinava um documento oficial
do Comando Militar da Amazônia.
tivas melhores no Dilma Rousseff parece não en-
tender a causa indígena e sucum-
Pela pressão pública da época, foi por toda parte be ao neodesenvolvimentismo?
levado pela Funai ao ostracismo,
de onde voltou, ainda na ditadura Egydio Schwade – Muito ruim.
militar, para assumir cargo de con- Incompreensível! Desastrosa! Uma
funcionário, não permitindo sequer
fiança na Funai em Roraima. A Nova traição aos princípios que desde a
República o premiou com o cargo
a presença de um membro do Co-
mitê pela Memória, Verdade e Jus-
fundação orientam o Partido dos 73
de Superintendente da Delegacia Trabalhadores. Felizmente as ba-
tiça do Amazonas, única entidade
do Amazonas, segundo cargo mais ses do partido e vários deputados
que forneceu um Relatório11 amplo
importante do órgão. e deputadas do mesmo já se deram
sume a presidência em seu lugar. Sob seu go- conta dessa continuidade que o go-
Semelhantemente ao caso de verno é promulgada a Constituição de 1988, verno Dilma vem dando à política
Costa, José Porfírio de Carvalho, que institui um Estado Democrático de Direi- indigenista colonial e começaram a
outro funcionário subserviente que to e uma república presidencialista. (Nota da
pressionar por mudanças.
durante quase 10 anos ocupou car- IHU On-Line)
10 Programa Waimiri Atroari: criado em
gos de confiança na ditadura, como 1988, com assessoria da Fundação Nacional IHU On-Line – Por que a esquer-
o de coordenador da Coordenação do Índio – Funai, pela Centrais Elétricas do
Norte do Brasil S.A. – Eletronorte, em con- da no Brasil e na América Latina
da Amazônia – Coama8, no Amazo-
trapartida à construção da hidrelétrica de não entende o índio? Como tem
nas, que fornecia as armas aos fun- Balbina (concluída em 1987) é um conjunto acompanhado os conflitos em ou-
cionários da Funai, que atuaram de ações indigenistas e de assistência aos ín-
tros países, como o Equador?
na área Waimiri-Atroari no período dios nas áreas de saúde, educação, apoio a
produção e defesa ambiental do território in-
mais cruel da ditadura. Do segundo Egydio Schwade – A esquerda no
dígena da etnia Waimiri Atroari. Os Waimiri
ano da Nova República9 até hoje, Atroari são uma etnia do tronco linguístico Brasil está em conflito com os seus
Karib, cujo território imemorial de ocupação princípios ou não os entendem.
CNV entregou seu relatório final à Presidente se localiza nas atuais Regiões Sul do Estado Todos eles, por exemplo, se auto-
Dilma Rousseff. (Nota da IHU On-Line) de Roraima e Norte do Amazonas. Eram mais
8 Coordenação da Amazônia – Coama: Ór- conhecidos como Crichanás, quando segmen- afirmam como socialistas. E não há
gão pertencente à Funai. (Nota da IHU On-Line) tos expansionistas da sociedade envolvente nenhum segmento da sociedade la-
9 Nova República ou Sexta República brasileira travaram seus primeiros contatos tino-americana que vivencia e leva
Brasileira: é o nome do período da Histó- com eles, sobretudo a partir do Século XIX.
ria do Brasil que se seguiu ao fim da ditadura Os contatos iniciais ocorreram nas atuais ci-
a sério o socialismo como os povos
militar. É caracterizado pela ampla democra- dades de Moura e Airão, de forma quase sem- indígenas. Em 1978, Egon Dioní-
tização política do Brasil e sua estabilização pre belicosa, com o apoio inclusive de forças sio Heck, então coordenador do
econômica. Usualmente, considera-se o seu militares coloniais. Aldeias inteiras foram di-
Cimi-Sul, e eu empreendemos uma
início em 1985, quando, concorrendo com o zimadas por expedições militares ou por ma-
candidato situacionista Paulo Maluf, o oposi- tadores profissionais, porque sua população viagem pelo Paraguai, Norte da Ar-
cionista Tancredo Neves ganha uma eleição era tida como empecilho à livre exploração
indireta no Colégio Eleitoral, sucedendo o das riquezas naturais existentes nas terras mória e à Justiça do Amazonas: A ditadura
último presidente militar, João Figueiredo. que ocupavam. (Nota da IHU On-Line) militar e o genocídio do provo Waimiri-
Tancredo não chega a tomar posse, vindo a 11 Sobre o assunto ver livro organizado pelo Atroari (Campinas: Editora Curt Nimuenda-
falecer. Seu vice-presidente, José Sarney, as- Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Me- jú, 2014). (Nota do entrevistado)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

gentina e Bolívia, então dominados cídio nos revela acerca de outros quista da terra Kaiowá-Guarani,
por ditaduras. Visávamos contatos conflitos pelo Brasil? libertando os latifundiários de sua
com organizações indígenas e da ganância e destruição das terras de
Egydio Schwade – O caso dos ín-
Igreja Católica. Imaginávamos que dios Kaiowá-Guarani de Mato Gros- Mato Grosso do Sul.
se a Igreja e os índios mudassem so do Sul nos revela o extremo da
o seu discurso em áreas e países política colonialista ainda vigente IHU On-Line – Qual deve ser o
de maioria indígena (não “campe- em nosso país. Em 1980 coordenei papel do poder público (Executi-
sinos”, mas “índios”), em poucas a reunião de Tuxauas que acertou o vo, Legislativo e Judiciário) dian-
décadas o socialismo se tornaria encontro dos índios e diversos po- te dos povos indígenas? Como
realidade em benefício da América vos com o Papa João Paulo II, onde analisa os debates e propostas da
Latina, principalmente de seus po- foi acertado que o Guarani Tupã-y, PEC 215?
vos e para saúde de sua terra. Marçal de Souza13, que revelava
então a situação mais angustiante Egydio Schwade – Acho que o pa-
Veja o caso da Bolívia, que sem- dos povos indígenas do Brasil, fa- pel do Governo, Executivo, Legisla-
pre viveu a instabilidade política, lasse em nome de todos. Guardo a tivo e Judiciário, no que tange aos
com as ditaduras se sucedendo e o íntegra deste discurso: “sou repre- índios, é, antes de qualquer coisa,
povo e o país sendo espoliados. Em sentante da grande tribo Guarani, cumprir a lei. E o deveria fazer
mãos de um mandante indígena, a quando nos primórdios nós éramos com especial zelo e carinho com
estabilidade econômica vem des- uma grande nação, hoje vive à os índios, já que se trata de uma
margem da chamada civilização... minoria massacrada ao longo dos
pontando e a estabilidade política
Somos uma nação subjugada pelos séculos e que já sofreu demasiado.
já é um fato inconteste. Esperamos
potentes, uma nação espoliada, No caso da PEC 21514 é profunda-
que também a mãe-terra boliviana
uma nação que está morrendo aos mente vergonhoso que os índios e
e latino-americana possa em breve
poucos...” – denunciava ao Papa. seus aliados tenham que sofrer re-
sentir um novo momento, voltando
presálias por todo o país por moti-
a receber o carinho indígena. E o que vemos 35 anos depois é
vo da defesa da lei. Como pode ser
que nada mudou sobre esta situ-
respeitada uma Câmara de Deputa-
ação que ele pintou do seu povo.
IHU On-Line – Como compreen- dos que despreza constantemente
Acho que os fazendeiros de Mato
der (o que está por trás) os con- a lei, principalmente no tange as
74 flitos Guarani Kaiowá12 em Mato
Grosso do Sul estão esperando que
os povos indígenas e seus aliados pessoas mais pobres e necessitadas
Grosso do Sul? O que esse geno- no país inteiro se unam e come- de respeito?■
cem uma vigília permanente junto
12 Guarani Kaiowá: povo indígena do Pa- 14 PEC 215: Proposta de Emenda à Cons-
raguai, do estado brasileiro de Mato Grosso a este povo e iniciem uma recon- tituição 215, de 2000. Pretende delegar ao
do Sul e do nordeste Argentina. No Brasil, Legislativo a aprovação de demarcações de
eles habitam Nhande Ru Marangatu, uma 13 Marçal de Souza, ou Marçal Tupã-i, terras indígenas, quilombolas e áreas de pre-
área de tropical floresta tropical. São um dos ou ainda Tupã-Y: Líder da etnia guarani- servação ambiental. A proposta foi aprovada
três guaranis subgrupos (os outros são Ñan- -nhandevá que habita o oeste do Brasil, nas por comissões internas da Câmara e segue
deva e Mbya). Estima-se que mais de 30.000 fronteiras com Argentina, Bolívia e Paraguai. os trâmites em plenário. Confira a íntegra da
guaranis vivem no Brasil. No Paraguai eles Foi assassinado em 25 de novembro de 1983. proposta em http://bit.ly/1kpiLvM. Nas No-
são cerca de 40.000. O Guaraní língua é uma Recentemente foi condecorado com a honra tícias do Dia do sítio do IHU há uma série de
das línguas oficiais do Paraguai, ao lado de de Herói Nacional do Brasil pelo governo fe- materiais sobre o tema. Confira em ihu.unisi-
língua espanhola. (Nota da IHU On-Line) deral. (Nota IHU On-Line) nos.br (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS...
—— O legado de Pe. Iasi e a crítica à política indigenista brasileira. Entrevista especial com
Egydio Schwade publicada nas Notícias do Dia, de 31-03-2015, no sítio do Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1Eww5Ge;
—— “Na ditadura militar conseguimos evitar a obra de Belo Monte. Hoje, não!” Entrevista
especial com Egydio Schwade publicada na revista IHU On-Line, nº 437, de 17-03-2014,
disponível em http://bit.ly/1Iea2GS;
—— “A atual política indigenista brasileira permanece nos moldes deixados pela ditadura mi-
litar”. Entrevista especial com Egydio Schwade publicada nas Notícias do Dia, de 02-03-
2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1dI9gx6;
—— Waimiri-atroari: vítimas da Ditadura Militar. Mais um caso para a Comissão da Verdade.
Entrevista especial com Egydio Schwade publicada nas Notícias do Dia, de 20-04-2012, no
sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1HrZZho.

SÃO LEOPOLDO, 30 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 478


DE CAPA IHU EM REVISTA

Quando o Estado nega o índio


Raphaela Lopes entende que o Estado brasileiro tem condições de
cessar o genocídio. Entretanto, opta pela política desenvolvimentista
que devasta a cultura dos povos originais e alimenta esse crime
Por João Vitor Santos

A advogada Raphaela Lopes, ativis-


ta da causa de Direitos Humanos
da Organização Não Governa-
mental – ONG Justiça Global, é enfática:
“o Estado Brasileiro, quando não é cúm-
mortes de indígenas e os conflitos fundiá-
rios nos quais eles estão envolvidos e, na
réplica, esse reconhecimento foi feito”,
pontua. “É uma lástima ver que, quando
se trata de defensores de direitos huma-
plice, é omisso nas violações aos direitos nos ameaçados ou mortos, o argumento
dos povos indígenas”. Para ela, a legisla- do Estado Brasileiro é sempre o mesmo:
ção nacional acerca da proteção aos po- a existência do Programa Nacional de De-
vos originários é suficiente para assegurar fensores de Direitos Humanos, que não é
esse direito. “O país tem, sim, plenas efetivo na proteção de defensores de di-
condições de resolver seus conflitos in- reitos humanos. Em vez de aprimorar o
dígenas, mas precisa optar por isso, de programa e acatar as críticas incessante-
fato, elegendo a questão indígena como mente apontadas pela sociedade civil, o
uma prioridade”. Entretanto, percebe Estado continua batendo na tecla da efe-
que o Estado age como se não houvesse tividade”, analisa.
proteção constitucional a esses direitos.
O resultado são conflitos entre projetos Raphaela Lopes é formada em Direi- 75
agrícolas e de infraestrutura que, além to pela Universidade Federal da Bahia
de remover os índios das terras originais, – UFBA, com mestrado em Direito pela
seguem empurrando esses povos para oci- Universidade Federal do Rio de Janeiro
dentalização. O índio, com pouca voz, vê – UFRJ. Atua como advogada na organi-
seus direitos violados e a vida ameaçada. zação Justiça Global, na área de Direitos
“Esse quadro nos leva a concluir que há Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e
uma opção política do Estado pela mine- Ambientais. A ONG trabalha com a prote-
ração, pelos megaprojetos e pelo agro- ção e promoção dos direitos humanos e
negócio, em detrimento da garantia dos o fortalecimento da sociedade civil e da
direitos dos povos indígenas”, conclui. democracia no Brasil. Nascida em Manaus,
no Amazonas, Raphaela cresceu em Sal-
Na entrevista, concedida por e-mail à
vador, na Bahia, e vive desde 2012 no Rio
IHU On-Line, Raphaela também analisa
de Janeiro. Sempre envolvida nas causas
a postura do Estado durante audiência
indígenas, resume: “lutar ao lado dos in-
da Comissão Interamericana de Direitos
dígenas significa a disputa pela possibili-
Humanos, que tratou do drama brasilei-
dade de ser diferente, de ter hábitos, de
ro através de relatos dos próprios índios
ter uma vida diferente”.
Guarani Kaiowá. “O Estado inicialmente
negou que houvesse uma relação entre as Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compreen- não há vida para essas comunida- til, como expressão de um modo de
der a violação de direitos de povos des sem a garantia dos territórios vida. De outro, Estado e empresas
indígenas? O que está em jogo? tradicionais, que é onde a cultura imbuídas na realização de um pro-
Raphaela Lopes – Muito mais do pode ser vivenciada. Há também jeto de desenvolvimento, que não
que a luta por ver garantida a pro- uma disputa por um modelo eco- traz benefícios para todos, viola
priedade coletiva de seus territó- nômico: de um lado os indígenas direitos e espolia comunidades. Os
rios, o que está em jogo é o direito reivindicam a utilização da terra indígenas representam modos de
à vida dessas comunidades, pois em uma perspectiva não mercan- vida possíveis fora do capitalismo.

SÃO LEOPOLDO, 30 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 478


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

IHU On-Line – Como avalia a concluir que há uma opção política indígenas e mortes de lideranças
ação do Estado Brasileiro diante do Estado pela mineração, pelos está ligada a disputas por terra.
desse cenário de violação de di- megaprojetos e pelo agronegócio, A indefinição por parte do Execu-
reitos dos povos indígenas? em detrimento da garantia dos di- tivo sobre a titulação de determi-
reitos dos povos indígenas. nado território fomenta a tensão
Raphaela Lopes – O Estado Bra-
entre indígenas e não indígenas,
sileiro, quando não é cúmplice, é
IHU On-Line – A Constituição de ocasionando mortes e violações
omisso nas violações aos direitos
1988 assegura uma série de di- à integridade física e psicológica
dos povos indígenas. O Executivo
reitos aos povos nativos. Em que de membros de comunidades indí-
tem sido negligente na demarcação
medida as diretrizes contidas ali genas. Nesse sentido, portanto, a
de terras indígenas e tem fortaleci-
do posições políticas contrárias aos se materializam na realidade da PEC 215/00 representa um grande
direitos indígenas. No Judiciário, vida de povos indígenas? Há pon- retrocesso na garantia dos direitos
há um desequilíbrio na apuração tos que precisam ser revistos, ou indígenas. Isto porque, ao transfe-
de crimes supostamente cometi- o maior desafio é implementar o rir para o Legislativo a competên-
dos por indígenas e os cometidos que está na Constituição? cia de demarcar terras indígenas, a
contra indígenas, principalmente proposta de emenda constitucional
Raphaela Lopes – Acho que são as traz para o âmbito do político uma
lideranças: a persecução penal se
duas coisas. Há uma distância mui- decisão que deve ser técnica, am-
dá de modo muito mais célere no
to grande entre o tratamento con- parada em estudos antropológicos,
primeiro caso, em relação ao se-
ferido, na teoria, pela Constituição históricos, fundiários, cartográficos
gundo. Além disso, interpretações
da República aos povos indígenas e e ambientais realizados pela Funai.
recentes do Supremo Tribunal Fe-
como isso se dá na realidade. O nú-
deral – STF têm restringido os direi- Além disso, com um Congresso
mero de indígenas mortos nos últi-
tos territoriais dos povos indígenas. Nacional conservador como o nos-
mos anos é emblemático dessa con-
No Legislativo, a PEC 215/001, tradição entre norma e realidade: so, em que a bancada ruralista
bem como o Projeto de Lei apenas entre os Guarani-Kaiowá, fo- conta com tantos membros e em
1.610/962, que permite a explora- ram 16 lideranças mortas nos últimos uma posição tão fortalecida politi-
ção mineral em terras indígenas, dez anos de luta pela terra. Então, camente, o risco de terras indíge-
são afrontas diretas aos direitos in- isso diz respeito a garantias que são nas não serem mais demarcadas no
dígenas. Além disso, o Programa de previstas, mas não implementadas. país é real. Não podemos permitir
76 Proteção a Defensores e Defensoras
Por outro lado, acho que norma-
que isso aconteça.
de Direitos Humanos encontra-se
tivamente e conceitualmente pre-
sucateado e tem muitos problemas, IHU On-Line – O Estado brasi-
cisamos avançar ainda em direção
o que torna a situação de lideranças leiro tem condições (políticas e
a uma autonomia maior aos indíge-
e comunidades indígenas ainda mais de aparato legal) de resolver os
nas. Por exemplo, pelo reconheci-
vulnerável. Esse quadro nos leva a conflitos em terras indígenas so-
mento de mecanismos internos de
zinho, sem ação de organismos
1 PEC 215: Proposta de Emenda à Cons- distribuição de Justiça, mediante
internacionais?
tituição 215, de 2000. Pretende delegar ao alguns critérios, na regulamen-
Legislativo a aprovação de demarcações de tação do mecanismo de consulta Raphaela Lopes – O envolvimen-
terras indígenas, quilombolas e áreas de pre-
servação ambiental. A proposta foi aprovada
prévia, livre e informada, que pos- to de organismos internacionais
por comissões internas da Câmara e segue sa ser capaz de impedir a imple- é muito mais uma forma de fazer
os trâmites em plenário. Confira a íntegra da mentação de projetos econômicos pressão sobre os compromissos em
proposta em http://bit.ly/1kpiLvM. Nas No- e também no direito à integridade relação aos direitos humanos que
tícias do Dia do sítio do IHU há uma série de
materiais sobre o tema. Confira em ihu.unisi- cultural indígena. O Estado precisa o país celebrou, do que um envol-
nos.br. (Nota da IHU On-Line) ser mais indígena. vimento para resolver a questão.
2 Projeto de Lei 1.610 de 1996: permite É uma espécie de consciência. O
a mineração em terras indígenas. A proposta
IHU On-Line – A PEC 215 é mo- país tem, sim, plenas condições de
estava esquecida há quase duas décadas na
Câmara dos Deputados, mas uma decisão de tivo de discussão por conceder resolver seus conflitos indígenas,
parlamentares ligados à bancada ruralista, ao Legislativo a prerrogativa de mas precisa optar por isso, de fato,
em 2015, trouxe a iniciativa à tona. Para levar elegendo a questão indígena como
o projeto adiante, eles reinstalaram esta se- demarcação de terras. Em que
mana a Comissão Especial de Mineração para medida essa proposta representa uma prioridade.
dar o parecer ao PL. O presidente eleito da um risco às terras indígenas? Qual
comissão é o deputado Indio da Costa (PSB/
a importância dos processos de- IHU On-Line – Como avalia a
RJ) e o relator, Édio Lopes (PMDB/RR), que
elaborou um texto substitutivo na legislatura marcatórios para dirimir os con- atuação de organismos interna-
passada, mas que não chegou a ser votado. O flitos e porque devem ser condu- cionais acerca dos conflitos entre
texto em discussão é do senador Romero Jucá zidos pelo Executivo? índios e brancos no Brasil?
(PMDB-RR) e está na Câmara dos Deputados
para análise desde 1996. O projeto já passou Raphaela Lopes – O território é Raphaela Lopes – As instâncias
pelas comissões de Minas e Energia e de Meio
fundamental para a reprodução do internacionais costumam ser bas-
Ambiente. Mas após receber pareceres con-
trários, a proposta ficou estacionada durante modo de vida indígena. Hoje, gran- tante receptivas a denúncias en-
todo esse tempo. (Nota da IHU On-Line) de parte dos conflitos envolvendo volvendo populações indígenas e

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DE CAPA IHU EM REVISTA

parecem considerar a temática ção ao direito à água como conse- trução de represas no rio Tapajós,
prioritária, sendo, portanto, um quência da implementação de pro- no Pará. Esse cenário de violações
importante instrumento de pressão jetos extrativos. A Justiça Global ao direito à água afeta especial-
sobre o Estado brasileiro. esteve nessa audiência represen- mente os indígenas, na medida em
tando também o Comitê Nacional que eles são uma das populações
IHU On-Line – Qual sua avalia- em Defesa dos Territórios frente à que mais sofre com os impactos de
ção da audiência da Comissão Mineração, que nos ajudou a cons- tais projetos, já que seus territó-
Interamericana de Direitos Hu- truir a parte relativa ao Brasil. rios se localizam em áreas visadas
manos – Cidh, da Organização dos Nessa audiência, pautamos o pe- pela mineração e pelos projetos
Estados Americanos – OEA3, que rigo de retrocesso com a aprova- hidrelétricos; daí por que os par-
tratou dos conflitos brasileiros? ção do novo Código da Mineração4 lamentares que querem garantir
e a atribuição à empresa conces- privilégios para a mineração, por
Raphaela Lopes – A audiência exemplo, ataquem direitos territo-
sionada do direito de usar a água
foi avaliada de modo muito posi- riais indígenas.
necessária para sua operação, sem
tivo. O Estado inicialmente negou
qualquer menção aos impactos
que houvesse uma relação entre
causados à água e à necessidade IHU On-Line – Quais os maiores
as mortes de indígenas e os confli-
de protegê-la para garantir o con- desafios e dificuldades nessa luta
tos fundiários nos quais eles estão
sumo humano. Trouxemos o caso para assegurar direito a povos
envolvidos e, na réplica, esse re-
da empresa Anglo American, que indígenas?
conhecimento foi feito. Isso já foi
explora uma mina de minério de
um pequeno avanço, que se deveu Raphaela Lopes – Assegurar os
ferro e possui uma fábrica de pro-
a uma postura provocadora dos Co- direitos dos povos indígenas tem a
cessamento do material e também
missionados e da força dos nossos um mineroduto, em Conceição do ver com o passado e o futuro. Eles
argumentos e relatos. Entretanto, Mato Dentro, Minas Gerais, que compõem a nação brasileira e pre-
é uma lástima ver que, quando provocou o tapamento de fontes cisam ser reconhecidos como uma
se trata de defensores de direitos de água e a sanilização da terra coletividade que nos influenciou e
humanos ameaçados ou mortos, o em alguns trechos, contaminando- continua nos influenciando. Por ou-
argumento do Estado Brasileiro é -a. Denunciamos a poluição de rios tro lado, eles também representam
sempre o mesmo: a existência do e nascentes em Minas Gerais e na um modo de vida diferente, uma
Programa Nacional de Defensores outra possibilidade de sociabilida-
de Direitos Humanos, que não é
Bahia, bem como a operação da
Vale no Pará e no Maranhão, que de mesmo e de encarar o mundo, 77
efetivo na proteção de defensores tem afetado a oferta de água na então é importante garantir sua
de direitos humanos. Em vez de região de Parauapebas, no Pará, existência.
aprimorar o programa e acatar as e tem aterrado igarapés no Mara- Para mim, então, lutar ao lado
críticas incessantemente aponta- nhão, nas obras de ampliação da dos indígenas significa a disputa
das pela sociedade civil, o Estado Estrada de Ferro Carajás. pela possibilidade de ser diferen-
continua batendo na tecla da efe-
Também pautamos a falta de te, de ter hábitos, de ter uma vida
tividade do programa.
consulta livre, prévia e informada diferente. Eu sou parte de uma his-
ao povo Munduruku5, para a cons- tória, da qual eles também fazem
IHU On-Line – OEA também re- parte, então é uma luta pela minha
cebeu denúncias de violações 4 Código de Mineração: é uma lei federal história também e pela minha pos-
sistemáticas do direito à água por brasileira, editada pelo Decreto-lei nº 227, sibilidade de ter um modo de vida
projetos de mineração e hidrelé- de 28 de fevereiro de 1967, que disciplina a
administração dos recursos minerais pela outro. É uma luta que realmente
tricas nas Américas. Gostaria que União, a indústria de produção mineral e me toca muito, porque para mim
detalhasse essa denúncia. Em que a distribuição, o comércio e o consumo de tem a ver com liberdade e com
medida se relaciona com a ques- produtos minerais no Brasil. O sítio do Ins-
ancestralidade e que acho que se
tituto Humanitas Unisinos – IHU vem
tão indígena? mistura à minha própria história de
publicando uma série de materiais acerca das
Raphaela Lopes – A audiência discussões sobre o novo Código. Entre eles, a vida de uma amazonense da Bahia,
entrevista “Quem é quem? Novo Código de que vive hoje no sudeste.
sobre Direitos Humanos e Água foi Mineração em debate”, com Clarissa Reis Oli-
regional, ou seja, foi solicitada por veira, publicada nas Notícias do Dia de 01-11-
entidades da sociedade civil das 2013, disponível em http://bit.ly/1HmvVUi. IHU On-Line – Deseja acrescen-
Confira mais publicações em http://bit.
Américas, em virtude de existirem tar algo?
ly/1SjQamd. (Nota da IHU On-Line)
certos padrões na região de afeta- 5 Mundurucu: também chamados Mundu-
Raphaela Lopes – Demarcação
ruku, Weidyenye, Paiquize, Pari, Maytapu e
3 O sítio do Instituto Humanitas Unisinos – Caras-Pretas, e autodenominados Wuyjuyu já!■
IHU publicou reportagens sobre o encontro ou Wuy jugu, são um grupo indígena brasi-
realizada em 2015. Entre elas “Brasil é co- leiro que habita as áreas indígenas Cayabi, Reserva Indígena Apiaká-Kayabi, no oeste do
brado na OEA por violência contra índios”, Munduruku, Munduruku II, Praia do Índio, estado de Mato Grosso. Tem uma população
publicada em Notícias do Dia de 21-10-2015, Praia do Mangue e Sai-Cinza, no sudoeste do de mais de 11 mil e 500 indivíduos, distribuí-
disponível em http://bit.ly/1P8Qer3. Confira estado do Pará. As terras indígenas perten- dos em cerca de trinta aldeias. Falam a língua
mais reportagens em http://bit.ly/1PO8Lca. centes a grupo é Coatá-Laranjal e São José mundurucu, a qual pertence à família linguís-
(Nota da IHU On-Line) do Cipó, no leste do estado do Amazonas e a tica. (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Belo Monte. Atualização do processo


de destruição dos povos indígenas
A procuradora Thais Santi olha para a construção de Belo Monte como
atualização do processo colonialista de destruição de povos e formas de
vida locais praticado sob a proteção de um dito Estado constitucional
Por João Vitor Santos

“A
cessar essas comunidades América e quer tornar o índio cativo.
é ter a possibilidade de “A opção do Estado foi implementar
descobrir uma nova di- Belo Monte sem executar as obrigações
mensão de existência, em que o tempo condicionantes e conter os protestos
tem outro ritmo, o rio tem outro sig- dos indígenas, com promessas e dis-
nificado, a natureza integra a vida.” É tribuição de presentes, que geraram
assim que a procuradora federal Thais ainda mais conflito e impactos”, reve-
Santi descreve o que chama de “expe- la. E vai além: “vultosas quantias des-
riência” de trabalhar em Altamira, no tinadas ao programa emergencial de
Pará. É nessa região que ocorre a cons- etnodesenvolvimento foram desviadas
trução da hidrelétrica de Belo Monte, para uma política de distribuição de
78 empreendimento do Governo Federal mercadorias”. O resultado vem sendo
que está acabando com as formas de a degradação completa desse povo. “O
vida indígenas e da comunidade local. consumo de bens supérfluos, a criação
É nesse contexto que Thais se insurge de novas necessidades, o abandono
contra a omissão do Poder Público que, das atividades e práticas tradicionais
mesmo legalmente alertado dos riscos
vieram acompanhados de alcoolismo,
do empreendimento, ignora e promo-
novas doenças, aumento da mortalida-
ve o que a procuradora define como
de infantil, desnutrição, diarreia, con-
etnocídio – algo mais perverso que ge-
flitos e deslegitimação de lideranças,
nocídio, pois vai matando os povos aos
divisões de aldeias, etc.”, completa
poucos. “O genocídio assassina os po-
Thais.
vos em seu corpo, enquanto o etnocí-
dio os mata em seu espírito”, dispara. Thais Santi é procuradora do Minis-
“O que mais assusta em Belo Monte é tério Público Federal em Altamira, no
justamente a naturalização”, diz, ao Pará, desde 2012. Nasceu em São Ber-
associar Altamira ao conceito de “ba- nardo do Campo, São Paulo, e cresceu
nalidade do mal”, da filósofa e sociólo- em Curitiba, no Paraná. Possui gradu-
ga alemã Hannah Arendt. ação em Direito pela Universidade Fe-
deral do Paraná – UFPR, especialização
Na entrevista, concedida por e-mail
em Ciência Política pela UFPR e mes-
à IHU On-Line, Thais caracteriza Belo
trado em Teoria e Filosofia do Direito
Monte como “fruto de uma escolha po-
pela Universidade Federal de Santa
lítica de governo, por um modelo de
Catarina – UFSC. Já atuou como pro-
desenvolvimento que utiliza os rios da
fessora de Ética, Filosofia Jurídica, In-
Amazônia como matriz energética”. E
trodução ao Estudo do Direito, Direito
para levar a cabo essa opção, são ig-
Eleitoral e Direito Constitucional.
norados laudos e condicionantes legais,
ao estilo do europeu que “descobre” a Confira a entrevista.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

IHU On-Line – Como sua expe- rio Xingu, de desviar o rio por ca- tado de implementar Belo Monte se
riência em Altamira lhe ajudou a nais artificiais para gerar energia fez com a consciência de que essa
compreender a questão indígena? na Amazônia, deixando secar uma seria uma empreitada dificultosa,
Qual a contribuição desse lugar e área de 100 km, da chamada Volta pois além dos desafios de ordem
das pessoas para seu conhecimen- Grande do Xingu3. O impacto dessa ambiental e de engenharia, foram
to acerca da questão indígena? O interferência humana na natureza mais de 30 anos de debates e um
que está em jogo nestas disputas? ainda não foi mensurado. Have- diagnóstico desfavorável dos Estu-
Thais Santi – Para além de conhe- rá extinção de peixes que sequer dos de Impacto Ambiental.
cimento e compreensão, Altamira foram conhecidos. Há risco de de-
sertificação de vasta extensão ter- Por isso, é certo que Belo Monte
é uma experiência. Populações tra- é fruto de uma escolha política de
dicionais vivem nas margens do rio ritorial. E toda uma região de áreas
protegidas passa a conviver com o governo, por um modelo de desen-
Xingu1, numa distância que é muito
aumento da pressão pelos recursos volvimento que utiliza os rios da
mais do que os quilômetros e dias
naturais e do desmatamento. Amazônia como matriz energética.
de barco que as separam do centro
Mas a viabilidade da hidrelétrica
urbano. Acessar essas comunidades
apenas foi atestada após o com-
é ter a possibilidade de descobrir IHU On-Line – Como compreen-
der as questões de fundo do con- promisso de que a implementação
uma nova dimensão de existência,
em que o tempo tem outro ritmo, flito entre população local, povos desse projeto não representaria a
o rio tem outro significado, a natu- indígenas e a construção de Belo eliminação do modo de vida dos
reza integra a vida. E o rio Xingu Monte? grupos indígenas impactados. Com
guarda uma riqueza única, forma- isso, um plano de mitigação de im-
Thais Santi – Existe aqui, sim, pacto garantiria o núcleo essencial
da por uma diversidade de povos
uma disputa. Uma tensão entre do art. 231 da Constituição, que
indígenas, caboclos, camponeses,
um modelo de desenvolvimento de reconhece aos índios a sua orga-
ribeirinhos, que se adaptaram à
uma cultura hegemônica e modos nização social, costumes, línguas,
sua sazonalidade e se tornaram
de vida de grupos minoritários. crenças e tradições, e os direitos
portadores de um conhecimento
Nove etnias, com índios de conta- originários sobre as terras que tra-
valioso de uma biodiversidade que
to recente, habitam as 11 Terras
se perde a cada dia e que é ain- dicionalmente ocupam, bem como
Indígenas da região, além de co-
da desconhecida da ciência oficial. o direito de protagonizar a sua his-
Não tenho dúvida de que temos
munidades desaldeadas, em uma
tória, participando das decisões 79
muito a aprender aqui. extensão de mais de cinco milhões
que os afetem.
de hectares. Aqui, a decisão do Es-
Entendo que, mundialmente, Al-
tamira é uma das representações é um empreendimento energético polêmico IHU On-Line – A senhora relacio-
não apenas pelos impactos socioambientais na o cenário de Altamira a Han-
mais significativas de um conflito
que serão causados pela sua construção. A
que marca a nossa época. Entre mais recente controvérsia sobre essa usina nah Arendt4. Que nexos são pos-
um imaginário antropocêntrico, envolve o valor do investimento do projeto síveis estabelecer entre a história
em que o homem se assenhora da e, consequentemente, o seu custo de gera- da implantação de Belo Monte e
ção. Saiba mais na edição 39 dos Cadernos
natureza, numa concepção de de- IHU em formação, Usinas hidrelétricas no Hannah Arendt?
senvolvimento e de progresso, para Brasil: matrizes de crises socioambientais,
ampliação de acesso ao consumo, em http://bit.ly/ihuem39; e nas entrevistas 4 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa
publicadas no sítio do IHU: Belo Monte: a e socióloga alemã, de origem judaica. Foi
que já se mostrou insustentável barreira jurídica, com Felício Pontes Júnior, influenciada por Husserl, Heidegger e Karl
pelos limites do próprio planeta. E dia 26-04-2012, em http://bit.ly/ihu260412; Jaspers. Em consequência das perseguições
um outro imaginário em que a na- Belo Monte. “O capital fala alto, é o maior nazistas, em 1941, partiu para os Estados
tureza é mais do que instrumental Deus do mundo”, com Ignez Wenzel, dia 28- Unidos, onde escreveu grande parte das suas
01-2012, em http://bit.ly/ihu280112; Belo obras. Lecionou nas principais universidades
do homem. O rio Xingu é sagrado Monte e as muitas questões em debate, com deste país. Sua filosofia assenta numa críti-
para esses povos. E a água é vida, e Ubiratan Cazetta, dia 23-01-2012, em http:// ca à sociedade de massas e à sua tendência
certamente o bem mais valioso de bit.ly/ihu230112; “Belo Monte é o símbolo do para atomizar os indivíduos. Preconiza um
fim das instituições ambientais no Brasil”, regresso a uma concepção política separada
um futuro próximo. com Biviany Rojas Garzon, dia 13-12-2011; da esfera econômica, tendo como modelo de
em http://bit.ly/ihu131211; Não é hora de jo- inspiração a antiga cidade grega. A edição
O que dizer, então, de Belo Mon-
gar a toalha e pendurar as chuteiras na luta mais recente da IHU On-Line que abordou
te2? A ousadia de mudar o curso do contra Belo Monte, com Dom Erwin Krau- o trabalho da filósofa foi a 438, A Banalidade
tler, dia 03-08-2011, disponível em http:// do Mal, de 24-03-2014, disponível em http://
1 Rio Xingu: é um rio do Brasil com aproxi- bit.ly/ihu030811. Na seção Notícias do Dia, o bit.ly/ihuon438. Sobre Arendt, confira ainda
madamente 1.979 km de extensão, que come- sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU as edições 168 da IHU On-Line, de 12-12-
ça em Mato Grosso e é afluente pela margem seguem acompanhando as questões relativas 2005, sob o título Hannah Arendt, Simone
direita do rio Amazonas no estado do Pará. a Belo Monte. Confira em ihu.unisinos.br. Weil e Edith Stein. Três mulheres que mar-
(Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) caram o século XX, disponível em http://bit.
2 Belo Monte: projeto de construção de usi- 3 Volta grande do Xingu: trecho sinuoso ly/ihuon168, e a edição 206, de 27-11-2006,
na hidrelétrica previsto para ser implementa- e cheio de cachoeiras do Rio Xingu onde, no intitulada O mundo moderno é o mundo sem
do em um trecho de 100 quilômetros no Rio final do trecho, será construída a Hidrelétrica política. Hannah Arendt 1906-1975, disponí-
Xingu, no estado brasileiro do Pará. Planeja- de Belo Monte. A Volta inicia no município de vel em http://bit.ly/ihuon206. (Nota da IHU
da para ter potência instalada de 11.233 MW, Altamira, no Pará. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Thais Santi – Hannah Arendt fala cial e cultural dos povos indígenas índio oferecendo “bugigangas”?
da ‘banalidade do mal’ e de um do médio Xingu, que remonta à fase Como foi e como deveria ser o
mundo em que tudo é possível. de abertura da rodovia transama- papel da União, especialmente
Arendt, quando relata o totalita- zônica. E que esses grupos vinham o Executivo, nesse episódio? O
rismo, descreve que Hitler5 afir- desde então criando e experimen- que está por trás da falha de
mava ter descoberto uma força da tando estratégias de autoadapta- planos como o Emergencial de
natureza, num processo de sobre- ção. Diante da magnitude dos im- Belo Monte?
posição de uma raça, com elimi- pactos previstos para instalação da
Thais Santi – A opção do Estado
nação das eventuais barreiras. O hidrelétrica, o diagnóstico do EIA/
foi implementar Belo Monte sem
que a política nazista faria, seria RIMA7 foi de que Belo Monte tor-
executar as obrigações condicio-
simplesmente catalisar, acelerar naria a velocidade desse processo
nantes e conter os protestos dos
esse processo. E, com isso, o geno- incompatível com a capacidade de
indígenas, com promessas e distri-
cídio se transformaria num evento reação dos indígenas e poderia ge-
buição de presentes, que geraram
natural. rar a sua completa desagregação,
ainda mais conflito e impactos. A
com risco de supressão irreversível
O que mais assusta em Belo Mon- viabilidade da hidrelétrica foi con-
dos modos de vida e da transmissão
te é justamente a naturalização. dicionada, em 2010, a ações emer-
dos conhecimentos tradicionais,
Não de um genocídio ou de uma genciais de etnodesenvolvimen-
caso não fossem fortalecidos para
violência de sangue, mas de um to (programas de fortalecimento
reagir com autonomia e com seus
etnocídio praticado sob a égide de cultural, econômico e social) e a
territórios protegidos.
um Estado constitucional, em que um robusto Plano de Proteção dos
Há um grande equívoco em afir- Territórios Indígenas, de modo a di-
o direito não põe limite ao ‘tudo
mar que Belo Monte é uma simples minuir o cenário desfavorável diag-
é possível’. Pierre Clastres6 explica
escolha política do Governo Fede- nosticado e preparar a região para
que o genocídio remete à ideia de
ral. A decisão é tomada, a despeito o início das obras. Passados cinco
raça, já o etnocídio, à destruição
dos alertas sobre a complexidade anos, nenhuma ação de proteção
de uma cultura. O genocídio as-
e o custo socioambiental (e finan- territorial foi realizada (mesmo
sassina os povos em seu corpo, en-
ceiro, inclusive) da empreitada. E com decisão liminar da Justiça Fe-
quanto o etnocídio os mata em seu
há um equívoco maior ainda, em deral). A Terra Indígena Cachoeira
espírito. Isso é Belo Monte! Os Es-
confundir a escolha política por Seca, por exemplo, foi a mais des-
80 tudos de Impacto Ambiental foram implementar Belo Monte, com a matada de toda a Amazônia brasi-
precisos em demonstrar que havia escolha totalitária (desautorizada leira e se tornou área de conflito
um processo de desagregação so- pelo direito) de fazê-lo tomando os interétnico.
5 Adolf Hitler (1889-1945): ditador aus-
povos indígenas como obstáculos
a serem superados pelo caminho Vultosas quantias destinadas ao
tríaco. O termo Führer foi o título adotado
por Hitler para designar o chefe máximo do mais curto e barato, com políticas programa emergencial de etno-
Reich e do Partido Nazista. O nome significa de silenciamento, pacificação e de- desenvolvimento (que tinha por
o chefe máximo de todas as organizações mi-
pendência, à margem das normas objetivo manter os indígenas em
litares e políticas alemãs, e quer dizer “con-
dutor”, “guia” ou “líder”. Suas teses racistas do licenciamento. suas terras e fortalecê-los em to-
e antissemitas, bem como seus objetivos para dos os aspectos) foram desviadas
a Alemanha, ficaram patentes no seu livro de para uma política de distribuição
1924, Mein Kampf (Minha Luta). No perío- IHU On-Line – Em que medi- de mercadorias (que ficou conhe-
do da ditadura de Hitler, os judeus e outros da Belo Monte reproduz o mo- cida como Plano Emergencial), que
grupos minoritários considerados “indeseja-
delo do europeu que chegou à
dos”, como ciganos e negros, foram persegui- atraiu todos os grupos em peso
dos e exterminados no que se convencionou América e tentou “civilizar” o
para o núcleo urbano para disputar
chamar de Holocausto. Cometeu o suicídio
no seu Quartel-General (o Führerbunker) 7 Estudo de Impacto Ambiental/Relató-
nos balcões da Norte Energia toda
em Berlim, com o Exército Soviético a pou- rio de Impacto Ambiental – EIA/RIMA: sorte de promessas. Com isso, an-
cos quarteirões de distância. A edição 145 da o EIA é um dos procedimentos de Avaliação tes mesmo das intervenções físicas
IHU On-Line, de 13-06-2005, comentou na de Impacto Ambiental – AIA previstos na lei
no rio Xingu, Belo Monte chegou,
editoria Filme da Semana, o filme dirigido 6938/81, que deve ser realizado às expensas
por Oliver Hirschbiegel, A Queda – as últi- da instituição promotora das atividades sob pelas mãos do empreendedor, à
mas horas de Hitler, disponível em http:// avaliação, de acordo com as técnicas clás- mais remota aldeia, abrindo aos
bit.ly/ihuon145. A edição 265, intitulada Na- sicas de AIA e sob orientação da autoridade indígenas de modo abrupto as por-
zismo: a legitimação da irracionalidade e da ambiental pertinente, que integra o Sistema
barbárie, de 21-07-2008, trata dos 75 anos Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA. O tas do mercado de consumo, sob o
de ascensão de Hitler ao poder, disponível RIMA é um relatório que visa comunicar ao controle da empresa Norte Ener-
em http://bit.ly/ihuon265. (Nota da IHU público e às pessoas não especializadas, todos gia. Essa política, com a quanti-
On-Line) os resultados relevantes do EIA, a fim de que
6 Pierre Clastres (1934-1977): antropólogo o objeto de avaliação seja discutido em audi-
dade de recursos despendidos, foi
e etnógrafo francês da segunda metade do ência pública. Pode ser convocada pela auto- holocáustica na organização social,
século XX. É conhecido sobretudo por seus ridade ambiental, por solicitação de entidade cultural e econômica desses gru-
trabalhos de antropologia política, suas con- civil, por solicitação do Ministério Público e pos e aumentou exponencialmente
vicções anarquistas e antiautoritárias e por a pedido de 50 ou mais cidadãos. Os EIA/
sua pesquisa sobre os índios Guayaki do Pa- RIMA são, portanto, um instrumento parti- a potencialidade etnocida da UHE
raguai. (Nota da IHU On-Line) cipativo de decisão. (Nota da IHU On-Line) Belo Monte e a velocidade do pro-

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DE CAPA IHU EM REVISTA

cesso em curso identificado pelo O que encontramos é violência e as aldeias se transformam à ima-
EIA/RIMA. grupos esfacelados, como que víti- gem de favelas urbanas.
mas de uma guerra.
O consumo de bens supérfluos, a As obrigações que condiciona-
criação de novas necessidades, o ram a obra e a responsabilidade do
abandono das atividades e práticas Plano Emergencial e empreendedor – poluidor pagador
tradicionais vieram acompanhados suas armas – pelas externalidades negativas
de alcoolismo, presença constante de seu projeto são revistas unilate-
dos indígenas em Altamira (incluin- É difícil dizer o que está por trás ralmente e os balcões da empresa
do velhos e crianças que nunca do Plano Emergencial, se o seu se tornam espaço de conflito. E a
haviam estado na cidade), novas resultado foi o controle total dos Norte Energia mais uma vez assu-
doenças, como diabetes, obesi- indígenas pelo empreendedor. A me uma postura de liberalidade
dade, tuberculose, aumento da presidente da Fundação Nacional diante das obrigações que executa,
mortalidade infantil, desnutrição, do Índio – Funai8 afirmou que as en- como pequenos favores excepcio-
diarreia, conflitos e deslegitimação tidades envolvidas neste processo nalmente conferidos. Como afirma
de lideranças, divisões de aldeias, não estavam preparadas para Belo o antropólogo Eduardo Viveiros de
etc. E conflitos que inicialmente se Monte. Quanto a isso, eu diria, Castro9, transformar os índios em
faziam contra a obra e pelo cum- lembrando a forma como Hannah pobres, essa é a verdadeira defini-
primento de suas condicionantes se Arendt conclui a sua análise sobre ção do etnocídio.
individualizaram em disputas nos a ‘banalidade do mal’: política não
balcões da Norte Energia, que até é um jardim de infância... Infanti- IHU On-Line – Por que o homem
hoje se verificam e, desde então, lizar Belo Monte é aceitar o ‘tudo branco, nas suas formas de vida
os espaços legítimos de participa- é possível’. e cultura ocidentalizada, não
ção dos indígenas nesse processo
Evidente que há muito mais do consegue compreender a rela-
são corrompidos e a concessioná-
que erros no Plano Emergencial e ção do índio com a terra, o meio
ria reescreve cotidianamente suas
o processo de Belo Monte revela ambiente?
obrigações.
isso. Primeiro, porque se trata de Thais Santi – A filosofia latino-
Reiteração de políticas uma política de silenciamento que -americana de Enrique Dussel10 é
iniciou de modo discreto nos escri-
colonizadoras bastante interessante para com-
tórios da Eletronorte e que assume preendermos esse processo de ne- 81
uma dimensão extraordinária com gação da diferença. Segundo esse
Isso é Belo Monte. Um amplo
o desvio dos recursos destinados
desrespeito às normas do licen-
ciamento, que garantem o direito ao etnodesenvolvimento. E isso 9 Eduardo Viveiros de Castro (1951):
apenas se faz porque o programa antropólogo brasileiro, professor do Museu
desses indígenas de efetivamente Nacional do Rio de Janeiro, na Universidade
escolher e controlar a forma de não foi implementado. E, não bas- Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Concedeu
aproximação com a sociedade en- tasse isso, se de erro se tratasse, a entrevista O conceito vira grife, e o pensa-
volvente e com as transformações ele deveria ter sido corrigido com dor vira proprietário de grife à edição 161
da IHU On-Line, de 24-10-2005, disponí-
previstas. E, não bastasse isso, são o início das ações do Plano Básico
vel em http://bit.ly/ihuon161.” Entre outras
nove etnias, com modos próprios Ambiental, para que o processo de publicações, escreveu Arawete: O Povo do
de organização e com concepções licenciamento tomasse o rumo da Ipixuna (São Paulo: CEDI, 1992), A incons-
legalidade. Mas o Estado se omite tância da alma selvagem (e outros ensaios
cosmológicas distintas. Com ações de antropologia). (São Paulo: Cosac & Naify,
homogeneizantes, em substituição novamente, a Funai não foi es- 2002) e Métaphysiques cannibales. Lignes
ao plano de mitigação previsto, truturada (mesmo com decisão da d’anthropologie post-structurale (Paris:
Justiça Federal) e a concessionária Presses Universitaires de France, 2009). Ele
Belo Monte fulmina o art. 231 da também é autor do prefácio do livro A Queda
Constituição e, sob a égide de um Norte Energia, após obter a Licen- Do Céu – Palavras de um xamã yanomami,
Estado de Direito, esse Programa ça de Instalação, assume uma nova de Davi Kopenawa e Bruce Albert (São Pau-
de Desenvolvimento do Governo roupagem e passa a corromper e a lo: Companhia das Letras, 2015). Confira um
trecho da obra em http://bit.ly/1Q0Fg5u.
Federal na bacia do rio Xingu se reescrever suas obrigações. Com (Nota da IHU On-Line)
transforma numa reiteração das cotas de combustível, com a subs- 10 Enrique Dussel (1934): filósofo argenti-
políticas colonizadoras de elimi- tituição das moradias tradicionais no radicado (exilado) desde 1975 no México.
É um dos maiores expoentes da Filosofia da
nação da diferença que os grupos por casas de madeira com brasilit,
Libertação e do pensamento latino-america-
indígenas representam. Uma ação o Plano Emergencial se perpetua e no em geral. Autor de uma grande quantida-
violenta de incorporação à cultura de de obras, seu pensamento discorre sobre
dominante, que se naturaliza pelo 8 A entrevista refere-se a Maria Augusta As- temas como: filosofia, política, ética e teo-
sirati, que presidiu a Funai até 2014. O atual logia. Tem se colocado como crítico da pós-
discurso de um positivismo evolu- presidente é João Pedro Gonçalves da Costa. -modernidade chamando por um novo mo-
cionista, que defende um processo Confira a reportagem em que a ex-presidente mento denominado transmodernidade. Tem
inevitável de incorporação de cul- declara que “Direitos de índios podem ser mantido diálogos com filósofos como Apel,
aniquilados”, publicada nas Noticias do Dia Gianni Vattimo, Jürgen Habermas, Richard
turas arcaicas a uma civilização su-
de 01-0-2013, do sitio do Instituto Humani- Rorty, Lévinas. É um crítico do pensamento
perior. E Belo Monte apenas acele- tas Unisinos – IHU, disponível em http://bit. eurocêntrico contemporâneo. (Nota da IHU
ra... Mas nada há de natural aqui. ly/1lMbEhc. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

filósofo, quando o europeu chega do de desenvolvimento. Dentro de do, individualizar condutas de im-
ao continente americano não en- um Estado plural, um projeto que probidade e crimes dentro destes
contra um ‘outro’, que mereça ser se faça com a destruição de modos processos.
respeitado na sua exterioridade. de vida de grupos para os quais o
Mas encontra um ‘não-eu’, que rio tem um significado peculiar, há Ameaça à Constituição
apenas pode ser transformado no de ter outro nome, mas não de-
‘eu’, e trazido para o universo da senvolvimento. O próprio Supremo O Brasil vive um momento extre-
totalidade. O respeito à diferença Tribunal Federal já reconheceu que mamente delicado, com riscos à
depende do reconhecimento do onde se encontram grupos indíge- Constituição Federal, com a possi-
‘outro’ enquanto ser. Com isso, o nas, o desenvolvimento que se fi- bilidade de retrocessos no que diz
assimilacionismo tem na sua base zer contra ou sem os índios ofende respeito aos direitos fundamentais.
a eliminação da diferença, e pos- a Constituição, que assegura um A história vai mostrar para que Belo
sibilidade única de desenvolvi- desenvolvimento ‘ecologicamente Monte foi construída. Temos aqui
mento na totalidade, e jamais na equilibrado’, ‘humanizado’ e ‘cul- os Estudos de Impacto Ambiental
exterioridade. turalmente diversificado’. realizados pelas três maiores em-
preiteiras do país. Somado a isso,
A dificuldade de reconhecer a Belo Monte abre a região para ex-
relação do índio com a natureza, IHU On-Line – A Constituição de
1988 assegura direitos a povos ploração de recursos naturais da
de respeitar seu modo de vida é a Amazônia em escala industrial,
mesma que nos leva a olhar o ín- indígenas. Em que medida essa
o que potencializa ao infinito os
dio como pobre, que necessita ter legislação ainda é um frio apa-
seus impactos ambientais. E nesse
acesso a bens materiais que ele- rato legal, distante da realidade
contexto, as terras indígenas re-
vem seu padrão de existência. E dos povos indígenas no Brasil, em
presentam um grande entrave. Há
é a mesma dificuldade que temos especial no Xingu? Como garantir
muito mais do que retrocesso nos
de olhar o mundo sob outra pers- tais direitos constitucionais e ten-
direitos dos povos indígenas em
pectiva e de reconhecer que o que tar avançar em outros?
risco pelos processos em curso no
se perde com Belo Monte é muito Thais Santi – Neste processo da Congresso Nacional.
mais do que a reprodução de um UHE Belo Monte não há dúvida de
modo de vida e a transmissão de que os direitos indígenas foram IHU On-Line – O governo federal
82 um conhecimento tradicional. Nós
é que perdemos com isso. É evi-
tratados como obstáculos a serem e os Poderes Legislativo e Judici-
superados. E o caminho mais fácil ário entendem a complexidade da
dente, o mundo se empobrece a é transformá-los. Com isso, o custo questão indígena que envolve os
cada vez que a visão única se im- socioambiental do empreendimen- povos do Xingu e Belo Monte?
põe. E a quem isso interessa? to é transferido aos atingidos. E as
obrigações que condicionaram a Thais Santi – Seria pouco dizer
IHU On-Line – É possível pen- obra, bem como as normas do li- que o governo federal e o poder Le-
sar em um desenvolvimento que cenciamento, uma vez que não são gislativo não compreendem os di-
inclua o modo de vida indígena exigíveis (já que Belo Monte nunca reitos dos povos indígenas. Há hoje
claramente a representação majo-
de relação com o outro e com a pôde parar), se transformam em
ritária de grupos ligados a setores
terra? meras peças retóricas, cuja função
contrários aos povos indígenas. É
é dar sustentação às decisões polí-
Thais Santi – Há alguns anos se preciso interpretar a Constituição
ticas do Governo Federal.
falava em desenvolvimento susten- como um pacto contramajoritário,
tável. Hoje, acredito que não se É necessário insistir na ilegalida- que tem justamente o objetivo
fala em desenvolvimento que não de dos processos de licenciamento de evitar que maiorias eventuais
seja sustentável. Um projeto que em que as decisões dos órgãos in- suprimam direitos fundamentais
acarreta a destruição da Amazônia, tervenientes se fazem contrarian- assegurados às minorias. Esse é o
com o aumento do desmatamento do os pareceres de seus técnicos. grande valor da Constituição. E, se
sem barreiras não pode ser chama- É necessário responsabilizar o Esta- há um caminho, é protegê-la.■

LEIA MAIS...
—— Belo Monte: a anatomia de um etnocídio. Reportagem de Eliane Brum, publicada pelo jor-
nal El País e reproduzida pelas Notícias do Dia, de 02-12-2014, no sítio do Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1MTt9mx;
—— Belo Monte: uma monstruosidade apocalíptica. Entrevista com D. Erwin Kräutler, publicada
nas Notícias do Dia, de 02-08-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponí-
vel em http://bit.ly/1MTtt4D.

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Bem-viver indígena, muito


além do welfare state
Para o pesquisador e antropólogo argentino Guillermo Wilde, o desconhecimento
sobre as lógicas indígenas é o maior desafio a ser superado
Por João Vitor Santos e Ricardo Machado | Tradução André Langer

A quilo que o Norte global cha-


ma de “welfare state”, surgi-
do em meados do século XX e
que emergiu como um avanço nas ga-
rantias de dignidade de vida básica às
de um conhecimento mais profundo e
enriquecedor de suas formas de vida,
seus desejos e suas concepções do
cosmos, e de uma consciência históri-
ca (humanística) das arbitrariedades
populações, não somente se mostrou sistemáticas de que foram objeto”,
insuficiente para resolver os problemas pondera. “A população em geral deve
que se propunha, como é menos sofis- abandonar um estado de ignorância
ticado que a perspectiva do Bem-viver. e desinformação para acompanhar o
“A ideia do bem-viver indígena, assim movimento indígena em sua demanda
como a entendo, inclui de qualquer por reconhecimento, exigindo que os
maneira um número maior de elemen- governos locais se ajustem às normas
tos que o “welfare state” e as políti- internacionais”, complementa.
cas públicas que se desprendem dele
Guillermo Wilde é licenciado e dou-
83
e fundamentalmente uma relação dife-
rente com o ambiente, uma definição torado em Antropologia Social pela
de bem-estar que inclui a relação com Universidade de Buenos Aires. Atua na
o ambiente e ao mesmo tempo conce- Universidade Nacional de San Martín,
be o ambiente como agente, e não sim- Instituto de Altos Estudos Sociais e no
plesmente como um objeto ou variável Conselho Nacional de Pesquisas Cien-
quantificável em um censo, cadastro tíficas e Técnicas – Conicet da Argen-
ou estudo de impacto”, analisa Guiller- tina. É professor visitante do Museu
mo Wilde, em entrevista por e-mail à Nacional de Etnologia de Osaka, Ja-
IHU On-Line. pão. Em 2010, participou do XII Sim-
pósio Internacional IHU – A Experiên-
Ao fazer um detalhado resgate histó-
cia Missioneira: território, cultura e
rico sobre as relações entre os indíge-
identidade, ministrando a conferência
nas e os migrantes europeus, ao longo
intitulada Religião e poder nas missões,
de séculos, o professor avalia que a ig-
no dia 28-10-2010. Recentemente, seu
norância histórica e paradigmática com
livro Religión y Poder en las Misiones
relação às questões indígenas resultam
de Guaraníes ganhou o prêmio Iberoa-
nas catastróficas políticas voltadas a
mericano de la Latin American Studies
esta população. “Ainda existe um alto
Association (LASA 2010).
grau de preconceito contra estas popu-
lações que deve ser superado através Confira a entrevista.

IHU On-Line – Desde uma pers- em poucas palavras. Deve-se ter que se começa a falar dos “índios”,
pectiva histórica até os dias de em conta muitos séculos de histó- dos habitantes das “Índias”, como
hoje, como compreender a rela- ria, além de diferenças regionais uma entidade homogênea, ao me-
ção entre povos indígenas e não muito marcadas. O ponto de parti- nos do ponto de vista jurídico. A
indígenas na América Latina? da deve ser o momento de contato conquista funda neste sentido um
iniciado com a invasão europeia, divisor de águas. A partir de então,
Guillermo Wilde – A questão é
pois é somente a partir de então a relação entre indígenas e não in-
muito complexa para ser resumida

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dígenas está marcada por uma di- emergiram zonas de intermediação intervenção do Estado colonial pri-
versidade de atitudes que incluem nas quais alguns atores e discursos meiro, e republicano depois, ace-
tanto assombro e fascinação como tiveram uma margem maior de au- lerou processos que transformaram
desprezo diante da diferença. tonomia. A mistura cultural e bio- radicalmente as sociedades indíge-
lógica foi um dos efeitos imediatos nas. As administrações coloniais de
Incompreensões da intermediação que resultou na diferentes origens (espanhola, por-
formação de categorias que esca- tuguesa, inglesa, holandesa, fran-
A partir de incompreensões bási- pavam do esquema social estabele- cesa, etc.) estabeleceram meca-
cas desenvolveram-se quase ime- cido, como a de “mestiço”. nismos e estratégias diferenciados
diatamente tanto tentativas para de aproximação das populações
compreender essa diferença como IHU On-Line – Quais são as par- indígenas que influenciaram direta
para destruí-la, especialmente do ticularidades das culturas dos po- ou indiretamente na fisionomia das
lado dos invasores. Depois do pri- vos indígenas na América Latina? instituições locais.
meiro impacto da conquista, o Es- No que se diferenciam, por exem- Na América espanhola, desde os
tado monárquico buscará formatar plo, dos índios norte-americanos? inícios, manifestou-se a intenção
essas relações em um marco jurí-
Guillermo Wilde – Os povos in- de impor uma “república de ín-
dico e normativo que, paradoxal-
dígenas da América Latina sempre dios” baseada em parâmetros civis
mente, buscou tanto proteger a
foram muito diversos em todos os e urbanos europeus, forçando os
população indígena como dominá-
pontos de vista (cultural, linguísti- indígenas a se integrarem e aban-
-la, basicamente incorporando-a às
co, econômico e político). A antro- donarem seus antigos costumes re-
hierarquias de poder estabelecidas
ligiosos e sociais e suas formas de
e ao sistema econômico dominan- pologia e a arqueologia america-
organização do espaço e do tempo.
te, sob o guarda-chuva ideológico nistas traçaram, ao longo do século
Esta política, embora tenha sido
de uma “monarquia católica” de XX, uma série de tipologias para
aplicada de maneira unificada,
aspirações universais. Ou seja, no simplificar esta diversidade e po-
teve efeitos muitos diferentes nas
plano prático as relações em ques- de-se dizer que chegaram a alguns
diferentes regiões. O êxito ou o
tão estiveram marcadas pela situ- consensos sobre algumas caracte-
fracasso dessas estratégias estatais
ação de dominação colonial, com rísticas que diferenciam os povos
tudo o que ela implicou. dependeu também em boa medida
das Terras Baixas Sul-Americanas
das características das sociedades
84 Uma consequência imediata foi
dos povos da região andina, meso-
indígenas, mais ou menos propen-
a transformação dos indígenas em americana ou das planícies norte-
sas a tratar com os invasores. Em
objetos de conversão e de explora- -americanas. Foram encontradas
todo o caso, o que se descobre são
ção econômica. Do lado indígena, também numerosas similitudes de
muitas situações de ambivalên-
houve atitudes muito diversas con- tipo cultural e tecnológico entre
cia ou de ambiguidade por parte
forme a região, e os conquistadores povos muito distantes geografica-
da população indígena, que oscila
puderam ser concebidos de manei- mente entre si, as quais, em al-
entre a aceitação das tecnologias
ras muito diferentes, desde “pa- guns debates, não completamente
coloniais (como as armas e os ca-
rentes” bem-vindos às redes locais consensuados, foram atribuídas a
valos) e a negação dos valores
até seres não humanos de caracte- fatores ecológicos determinantes
cristãos, especialmente nas zonas
rísticas sui generis que deviam ser ou simplesmente à possibilidade
fronteiriças dos Impérios Ibéricos e
combatidos, porque punham em de desenvolvimentos tecnológicos
dos Estados nacionais.
risco as tradições dos antepassados simultâneos.
ou a autoridade dos chefes. Todas
Diferenciações IHU On-Line – Como o senhor
as cosmologias nativas tiveram, em
avalia a relação que se estabe-
geral, um lugar reservado para os
Dentre os aspectos diferencia- leceu entre o povo indígena e os
outros recém-chegados.
dores mais importantes foram res- imigrantes na América Latina? O
saltados frequentemente a organi- que muda, sociológica e antro-
Relações pologicamente, em ambos os po-
zação política: enquanto algumas
vos depois desse contato e dessa
A compreensão das relações en- sociedades exibiram um grau maior
relação?
tre indígenas e não indígenas im- de centralização e hierarquização
plica necessariamente partir dos (por exemplo, os incas nos Andes Guillermo Wilde – A relação que
mal-entendidos e das negociações ou os mexicas na Mesoamérica), historicamente a população mi-
implicadas na interação, que, no baseadas em um sistema de trocas grante e indígena estabeleceu é
melhor dos casos, comportaram e produção agrícola desenvolvi- um tema complexo que exige di-
cálculos de oportunidades e van- do, outros se mostraram mais ho- ferenciar diferentes tipos e fases
tagens no marco de um regime rizontais. No entanto, a partir da de migração. A primeira coloniza-
colonial que obviamente impunha conquista e colonização fica difícil ção europeia da época colonial é
grandes limitações para os sujei- continuar falando em termos de diferente daquela que influenciou
tos colonizados. Em consequência, tipologias sociopolíticas nítidas. A massivamente em períodos poste-

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DE CAPA IHU EM REVISTA

riores, promovida pelos Estados persistem pelo acesso à terra entre diferentes por si na configuração
nacionais. Enquanto as primeiras indígenas e colonos pobres são uma de suas estruturas estatais e suas
interações parecem mais ambíguas evidência neste sentido. políticas indigenistas. Nestes últi-
e ambivalentes, inclusive mais mos, a questão indígena deve ser
propensas à interação e à mescla, IHU On-Line – Como compre- avaliada negativamente, mesmo
posteriormente se veriam gradual- ender os conflitos entre brancos considerando que muitos destes
mente marcadas pelo discurso do e índios hoje, mantendo sempre governos buscaram melhorar as
racismo, que atinge sua culminân- atual as disputas pela terra e o condições dos setores mais despro-
cia, enquanto teoria “científica”, choque de culturas? tegidos da sociedade. As políticas
no século XX. econômicas dos governos da região
Guillermo Wilde – Novamente, favoreceram um modelo desen-
Uma análise mais profunda exige devemos analisar cada situação volvimentista que vai geralmente
ter em conta a política dos Estados particular, mas como assinalei an- contra a preservação ecológica,
emergentes na região com relação tes, não se pode equiparar um co- fomentando a megamineração e a
a estes setores diferenciados da lono ou um pequeno produtor, que agroindústria, o que foi altamente
população, desde a segunda me- se encontram em uma situação de prejudicial para os povos indíge-
tade do século XIX. Nessa época, pobreza e que enfrentam muitas nas. Neste sentido, a posição dos
esta política esteve claramente vezes as mesmas dificuldades de governos foi muitas vezes ambígua.
orientada para acelerar o processo sobrevivência que os indígenas, e o
de assimilação ou desaparecimento grande proprietário e a corporação Outra questão crítica é o tema
dos indígenas “dentro” dos territó- anônima dedicados à agroindús- do acesso a títulos de terra, prin-
rios nacionais, especialmente nas tria. Se vamos às grandes cidades, cipal demanda das organizações
chamadas fronteiras da civilização, encontraremos também um núme- indígenas, que não receberam um
seja por meio de campanhas de ro crescente de população indígena tratamento eficaz até o momento
extermínio, ao estilo da “conquis- marginalizada em bairros nos quais em um país como a Argentina. Nes-
ta do deserto” na Patagônia ou da não se diferenciam completamen- te ponto, creio válido questionar-
colonização do Chaco na fronteira te da outra população não indígena -se justamente a presença indígena
entre a Argentina, Paraguai e Bo- também empobrecida. Apesar dis- como uma espécie de contraponto
lívia, seja pela política de criação so, no marco legislativo presente, constante em relação às políticas
de reduções, reservas e missões tanto em nível local como global, nacionais, e neste sentido o valor
evangélicas. os indígenas com dificuldades con- de “sintoma social” ou contradição 85
seguiram defender seu direito à constante em relação aos discursos
Migrantes Europeus especificidade cultural, o que em nacionais.
alguns casos pode implicar alguma
Simultaneamente, os Estados vantagem frente a outros setores IHU On-Line – Quais são as si-
nacionais fomentavam a vinda de desfavorecidos da sociedade con- milaridades e diferenças entre
migrantes europeus com o objeti- temporânea. Ao mesmo tempo, a o welfare state e o bem-viver
vo de promover a “civilização” e particularidade de cada perspecti- indígena?
o “desenvolvimento”, assim como va indígena dificulta o acesso aos
Guillermo Wilde – A ideia do
o “branqueamento” da popula- benefícios “colaterais”, por assim
bem-viver indígena foi codificada
ção. Este será o setor da popula- dizer, das políticas nacionais em
no Convênio ILO 1691 das Nações
ção majoritariamente favorecido geral.
Unidas e em geral todos os Estados
nos processos “modernizadores” e nacionais aderiram a este convê-
“integradores” do século XX, pois a IHU On-Line – Como avalia a nio, embora sua proteção esteja
maior parte de seus componentes relação entre os governos latino- longe de ser regulamentada ou
foi incorporada aos sistemas educa- -americanos que se autointitu- aplicada em nível local em cada
cionais nacionais, à vida cívica dos lam de esquerda com os povos país ou região. Seja como for, uma
países receptores e aos sistemas de indígenas? certa consciência da importância
bem-estar, apesar de que também das tradições indígenas na preser-
Guillermo Wilde – Neste ponto
foram objeto de discriminação por vação do ambiente encontra-se
devemos introduzir matizes. Os
parte das elites governantes.
governos “ditos de esquerda” não
1 Convênio ILO 169: instrumento jurídico
Entretanto, a população indígena são a mesma coisa, e insisto em internacional vinculante que está aberto para
continuou marginalizada. As suces- que as diferenças históricas nacio- ratificação e que aborda especificamente os
sivas ondas migratórias implicaram nais devem ser levadas em conta, direitos dos povos indígenas e tribais. Foi ra-
tificada por 20 países. Aderindo a Convenção
diferenciações internas neste setor assim como fatores demográficos e sobre Povos Indígenas e Tribais, o país tem
da população, e é fácil constatar sociais particulares. Certamente, um ano para alinhar a legislação, políticas e
que os últimos migrantes se manti- casos como o Equador, Bolívia ou programas antes de ser ratificado acumula-
veram tão empobrecidos quanto os dos juridicamente vinculativo. Os países que
Peru, são muito diferentes dos paí-
ratificaram a Convenção estão sujeitas à su-
indígenas, especialmente nas áreas ses do Mercosul, fundamentalmen- pervisão em termos de implementação. (Nota
rurais. As disputas que de fato hoje te Brasil, Argentina e Paraguai, já da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

cada vez mais difundida na socie- cristianismo e sua integração ao ção no Papa Francisco, trabalha-
dade e nos foros internacionais. sistema econômico espanhol, como -se a ideia de inculturação da fé.
tributários da coroa. Para além das No que essa concepção se difere
A ideia do bem-viver indígena, as-
disparidades entre as diferentes da empregada nas reduções jesu-
sim como a entendo, inclui de qual-
missões, em geral se ajustaram a ítas? Em que medida a ideia de in-
quer maneira um número maior de
um marco jurídico que garantiu culturação da fé cristã possibilita
elementos que o “welfare state” e
em muitos casos a sobrevivência a preservação da cultura nativa?
as políticas públicas que se despren-
física das populações em questão,
dem dele e fundamentalmente uma Guillermo Wilde – É notável
mesmo quando o processo de for-
relação diferente com o ambiente, como nos discursos do Papa Fran-
mação de reduções foi dramático
uma definição de bem-estar que in- em termos políticos, sociais e de- cisco3 aparece a necessidade de
clui a relação com o ambiente e ao mográficos, com muita perda de respeitar a diversidade cultural,
mesmo tempo concebe o ambiente vidas. Neste sentido, como suge- religiosa e ambiental. Esta posição
como agente, e não simplesmente riram alguns autores, as reduções está claramente inspirada em uma
como um objeto ou variável quan- ironicamente buscaram curar as tradição desenvolvida já há mais de
tificável em um censo, cadastro ou feridas provocadas pelos abusos da meio século na teologia missionária
estudo de impacto. primeira colonização, recompondo católica que cunhou a expressão
um território que serviu como nova “inculturação da fé”. Embora os
IHU On-Line – O que podemos referência às populações indígenas primeiros esboços desta noção apa-
aprender da experiência das mis- desestruturadas. reçam inclusive no final do século
sões jesuítas na relação com os XIX, ela só foi formulada sistemati-
Usualmente, as reduções impli-
povos indígenas? No que estava camente depois do Concílio Vatica-
caram a redefinição completa das
baseada a relação nas reduções? no II.4 Sua conexão conceitual mais
referências identitárias indígenas
Quais suas influências e transfor-
no marco de povos que se adapta- 3 Papa Francisco (1936): Argentino filho
mações que trouxeram aos povos
vam ao padrão urbano hispânico, a de imigrantes italianos, Jorge Mario Bergo-
nativos?
instituições municipais como os ca- glio é o atual chefe de estado do Vaticano e
Papa da Igreja Católica, sucedendo o Papa
Guillermo Wilde – As missões ou bildos e a uma série de comandos
Bento XVI. É o primeiro papa nascido no con-
reduções jesuíticas fizeram parte militares e eclesiásticos que foram tinente americano, o primeiro não europeu
de um programa mais amplo da adaptados pelos próprios indígenas no papado em mais de 1200 anos e o primei-
86 coroa espanhola, destinado em dentro do marco colonial. Estes ro jesuíta a assumir o cargo. A edição 465 da
revista IHU On-Line analisou so dois anos de
princípio a reorganizar a popula- elementos, embora tenham sido pontificado de Francisco. Confira em http://
ção indígena de toda a América impostos, também foram apro- bit.ly/1Xw2tgu (Nota da IHU On-Line)
espanhola com o duplo objetivo de priados de maneira gradual pelos 4 Concílio Vaticano II: convocado no dia
indígenas, que em muitos casos os 11-11-1962 pelo Papa João XXIII. Ocorreram
protegê-la dos abusos de diferen- quatro sessões, uma em cada ano. Seu encer-
tes setores da sociedade colonial, preservam até hoje. Diversas for- ramento deu-se a 8-12-1965, pelo Papa Paulo
como os encomenderos2 e os colo- mas ou elementos fragmentários VI. A revisão proposta por este Concílio es-
da antiga vida litúrgica e cerimo- tava centrada na visão da Igreja como uma
nos escravizadores de indígenas,
congregação de fé, substituindo a concepção
e de assegurar sua conversão ao nial missional, formas da língua ou hierárquica do Concílio anterior, que decla-
instituições e cargos municipais e rara a infalibilidade papal. As transformações
2 Encomienda: originalmente aplicada na eclesiásticos existem até hoje na que introduziu foram no sentido da demo-
região das Antilhas em 1503, com posterior região de Moxos e Chiquitos, onde cratização dos ritos, como a missa rezada
projeção em outras porções da América es- em vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis
panhola, constando nos registros legislativos foram instaladas missões jesuíticas dos diferentes países. Este Concílio encon-
coloniais até o século XVIII, foi uma institui- similares àquelas que existiram no trou resistência dos setores conservadores
ção jurídica imposta pela coroa com vistas a Paraguai. Isto nos indica claramen- da Igreja, defensores da hierarquia e do dog-
regular o recolhimento de tributos e circuns- ma estrito, e seus frutos foram, aos poucos,
te que os indígenas não foram su-
crever a exploração do trabalho indígena. Es- esvaziados, retornando a Igreja à estrutura
tabelecida a partir de um arranjo contratual, jeitos passivos deste processo, mas rígida preconizada pelo Concílio Vaticano I.
caracteriza-se pela submissão de um número protagonistas muito ativos. Este O Instituto Humanitas Unisinos – IHU
variável de indígenas “pagadores de impos- processo foi frequentemente deno- produziu a edição 297, Karl Rahner e a rup-
tos” a um encomendero, – inicialmente os tura do Vaticano II, de 15-6-2009, disponível
mais notáveis soldados espanhóis nas guer-
minado de “etnogênese” ou “ter- em http://bit.ly/o2e8cX, bem como a edi-
ras de conquista – responsável por viabilizar ritorialização” e tratei disso em ção 401, de 03-09-2012, intitulada Concílio
sua incorporação aos moldes culturais, eco- meu livro Religión y Poder en las Vaticano II. 50 anos depois, disponível em
nômicos e sociais europeus. No âmbito da http://bit.ly/REokjn, e a edição 425, de 01-
Misiones de Guaraníes (Buenos Ai-
circunscrição territorial, a encomienda não é 07-2013, intitulada O Concílio Vaticano II
uma concessão de terras, mas uma concessão res: Colección Paradigma Indicial, como evento dialógico. Um olhar a partir de
de recolhimento de tributos. Diferentemente 2009), que reconstrói a participa- Mikhail Bakhtin e seu Círculo,disponível em
do que ocorre com a escravidão, não é per- ção guarani nas transformações http://bit.ly/1cUUZfC. Em 2015, o Instituto
pétua nem transmitida hereditariamente, já Humanitas Unisinos – IHU promoveu o
que os nativos, ao menos juridicamente, fo-
regionais ao longo de 200 anos de colóquio O Concílio Vaticano II: 50 anos de-
ram tomados não por propriedade, mas por história. pois. A Igreja no contexto das transformações
homens livres, embora seja possível uma tecnocientíficas e socioculturais da contem-
aproximação entre ambas, dado que são ex- poraneidade. As repercussões do evento po-
pressões da forma de trabalho compulsório. IHU On-Line – Hoje, enquanto dem ser conferidas na IHU On-Line, edição
(Nota da IHU On-Line) desafio missiológico, com inspira- 466, de 01-06-2015, disponível em http://bit.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

direta é a noção de “acomodação”, Las Casas7), que manifestou certa sacramentos, a doutrina) deixando
concebida pelos missionários jesuí- abertura às expressões locais de re- pouco lugar para a expressão de
tas nas missões da Ásia. Esta última ligiosidade e à concepção de que a formas indígenas de religiosidade
propunha que os missionários, para ideia de Deus já existia entre os in- autônomas. Deve-se dizer, no en-
se aproximarem dos não cristãos dígenas e de fato era nomeado por tanto, que existem algumas mani-
objeto de conversão, deviam estu- eles em suas línguas antes da che- festações da ritualidade cristã das
dar seus costumes e adaptar-se a gada dos espanhóis. Ou seja, Deus reduções que estiveram marcadas
eles na medida do possível. Assim, se manifestava em uma diversidade pela presença daquilo que pode-
por exemplo, um jesuíta como Mat- ríamos chamar de perspectivas ou
teo Ricci5 na China ou Roberto de leituras indígenas do cristianismo.
Nobili6 na Índia aprenderam res- Este é um tema que ainda deve ser
pectivamente os costumes das eli- estudado e no qual me concentro
tes letradas imperiais e os hábitos atualmente, a partir do estudo
bramânicos para posteriormente As missões fo- das expressões visuais e sonoras
transmitir a fé cristã. missionais.
ram um projeto
Inculturação da fé religioso, mas IHU On-Line – Em que medida,
hoje, a cultura da financeirização
Eles entendiam que esse modo também econô- impõe-se como forma de poder
de agir não implicava ir contra a fé
cristã, mas simplesmente aceitar o mico e político sobre os povos indígenas numa
atualização do que foi a religião
que constituía um costume nativo nas missões de guaranis?
inócuo, sem riscos para a fé; pelo de “rostos índios”, como ilustra o
contrário, seria útil na aproximação título de um conhecido livro que Guillermo Wilde – Uma primeira
aos “infiéis”. A ideia de inculturação apareceu há duas décadas (El Ros- questão a ser esclarecida é que a
da fé supõe, de modo semelhante, tro Indio de Dios – Cidade do Mé- economia nunca esteve completa-
que já não são os missionários, mas xico: Universidad Iberoamericana, mente separada da religião e da
os próprios sujeitos da conversão, 1994). política: as missões foram um pro-
os nativos, que devem assumir um jeto religioso, mas também econô-
Reduções Jesuíticas mico e político. Em todo o caso,
papel ativo no processo de conver-
são, adotando a fé cristã em seus as reduções iniciaram um processo 87
próprios termos, colorindo-a com Pois bem, as reduções jesuíti- de integração ou assimilação da
suas próprias tradições e crenças. cas implicaram um certo grau de população indígena que mais tar-
Na América, pode-se dizer que há adaptação ou acomodação, mas é de foi aprofundado pelos Estados
um certo precedente disto na tra- controverso dizer que implicaram republicanos e estendido para os
dição lascasiana (por Bartolomeu uma “inculturação da fé”, na me- grupos indígenas que conseguiram
dida em que pouquíssimos elemen- manter-se à margem deste proces-
tos locais das sociedades indígenas so. Após a expulsão dos jesuítas das
ly/1IfYpJ2 e também em Notícias do Dia no realmente foram preservados nes- reduções houve uma gradual mes-
sitio IHU. (Nota da IHU On-Line)
te processo. Em sentido estrito, cla e assimilação da população in-
5 Matteo Ricci [Mateus Ricci] (1552-
as reduções criadas depois do Ter- dígena a outros setores sociais que
1610): Missionário que viveu já em sua época
os princípios básicos do Vaticano II, espe- ceiro Concílio de Lima8 (1582-83), habitavam a campanha, campone-
cialmente a inculturação e o diálogo inter-re- que estabeleceu uma metodologia ses, afrodescendentes, espanhóis
ligioso. Depois de estudar direito em Roma, e portugueses, e notavelmente os
entrou na Companhia de Jesus, em 1571. Du- evangelizadora bastante rígida,
rante sua formação, interessou-se também implicaram a aceitação de elemen- indígenas praticamente desapa-
por várias matérias científicas, como mate- tos indígenas no marco mais geral receram dos censos populacionais
mática, cosmologia e astronomia. Em 1577,
do cânone cristão (a litúrgica, os em meados do século XIX. Isto não
pediu para ser enviado às missões no Leste da quer dizer que desaparecessem,
Ásia e, em 24 de março de 1578, embarcava
em Lisboa, chegando a Goa, capital das Índias 7 Frei Bartolomé de las Casas (1474- mas que simplesmente deixaram
Portuguesas, em 13 de setembro do mesmo 1566): frade dominicano, cronista, teólogo, de ser contemplados pelos censos
ano. Alguns meses depois, foi destinado para bispo de Chiapas, no México. Foi grande como tais. Passam a ser “cidadãos”
Macao, a fim de preparar sua entrada na Chi- defensor dos índios, considerado o primeiro
na. Confira a entrevista realizada pela IHU sacerdote ordenado na América. Sobre ele,
e frequentemente participam dos
On-Line com Nicolas Standaert, intitulada confira a obra de Gustavo Gutiérrez, O pen- Exércitos e das guerras que atin-
O “caminho chinês”. A contribuição da China samento de Bartolomeu de Las Casas (São gem toda a região.
para o mundo, disponível em http://bit.ly/ Paulo: Paulus, 1992), e a entrevista Bartolo-
ihu281008. Confira a edição especial da IHU meu de Las Casas, primeiro teólogo e filósofo
On-Line intitulada Matteo Ricci no Império da libertação, concedida pelo filósofo italiano Economia-mundo
do Meio. Sob o signo da amizade, publicada Giuseppe Tosi à IHU On-Line 342, de 06-09-
em 18-10-2010, disponível em http://bit.ly/ 2010, disponível em http://bit.ly/9EU0G0. Especialmente desde o século
ihuon347. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)
6 Roberto de Nobili (1577-1656): missioná- 8 Terceiro Concílio de Lima: formação de
XIX intensifica-se na região o cres-
rio jesuíta, um dos pioneiros da Companhia regras evangelizadoras para a Província Ecle- cimento daquilo que Immanuel
de Jesus. (Nota da IHU On-Line) siástica de Peru. (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Wallerstein,9 entre outros, chamou Como dirimir conflitos e garantir Reconhecer os direitos
de “economia-mundo”, isto é, a a autonomia cultural das popula-
expansão do sistema capitalista ções originárias? Segundo, devemos reconhecer
global, processo que se acelerou direitos postergados deste setor da
Guillermo Wilde – Primeiro,
particularmente nos últimos 30 população, facilitando seu acesso à
devemos reconhecer o papel dos
anos, e que, atualmente, exibe sua propriedade da terra, tema central
indígenas como protagonistas na
faceta mais letal na provocação de demanda dos povos indígenas
história da América Latina, não
de guerras atrozes. Isto já existia hoje em dia, e constantemente
apenas antes da conquista, mas
antes inclusive da Segunda Guerra postergado pelas agendas estadu-
durante todos os processos políti-
Mundial, mas hoje esta expansão ais e nacionais. Garantir a autono-
cos e econômicos que atravessam
vai acompanhada de um desenvol- mia dos povos indígenas não é fácil
a etapa independente. Isto sig-
vimento tecnológico inédito, al- na medida em que as políticas vol-
nifica ter claro que sua presença
cançando os rincões mais remotos tadas para eles, independentemen-
antecede a formação dos Estados
do mundo. te de onde tenham vindo, foram
nacionais e é constante desde an-
geralmente paternalistas. Ainda
tes da conquista até hoje, como
Mineração existe um alto grau de preconceito
mostra muito bem a arqueologia e
contra estas populações que deve
a etnologia. Apenas recentemente
Na América Latina as diversas ser superado através de um co-
a pesquisa etno-histórica está visi-
formas de economia extrativis- nhecimento mais profundo e enri-
bilizando este papel protagônico,
ta de grande escala vêm sendo a quecedor de suas formas de vida,
revelando as numerosas mortes
maneira mais aberta de exercício seus desejos e suas concepções
provocadas por massacres e guer-
da violência contra as populações do cosmos, e de uma consciência
ras (entre as mais ressonantes da
indígenas, com a conivência dos histórica (humanística) das arbitra-
nossa região cabe mencionar a cha- riedades sistemáticas de que foram
Estados nacionais. Um exemplo mada Guerra da Tríplice Aliança ou
próximo é a Mata Atlântica, terri- objeto. A população em geral deve
do Paraguai,10 ocorrida entre 1876 abandonar um estado de ignorân-
tório dos guaranis, que no período e 1870, e a Guerra do Chaco (1934-
de um século ficou reduzida a me- cia e desinformação para acom-
35)11. Estes fatos se tornam cada panhar o movimento indígena em
nos de 1% de sua superfície. Esta vez mais conhecidos, mas ainda há
destruição do ambiente expressa sua demanda por reconhecimento,
muito a ser feito para divulgá-los
88 a culminância do desenvolvimen- entre o público não acadêmico.
exigindo que os governos locais se
ajustem às normas internacionais.
to do naturalismo ocidental que
viu na natureza um objeto a ser 10 Guerra do Paraguai: Se estendeu de
explorado para o desenvolvimento dezembro de 1864 a março de 1870 e foi o IHU On-Line – Deseja acrescen-
maior e mais sangrento conflito armado in- tar algo?
das nações. Esta resultou em uma ternacional ocorrido no continente america-
concepção sumamente limitada da no. O conflito teve início quando o governo de Guillermo Wilde – Fundamental-
terra e dos recursos naturais como Dom Pedro II interferiu na política interna do
Uruguai. A reação militar paraguaia disparou
mente, ressalto, que é fundamen-
objetos mensuráveis ou quantificá- a Guerra. (Nota da IHU On-Line) tal ter presente as generalizações
veis, despojados de todo significa- 11 Guerra do Chaco: foi um conflito arma- que fiz. Embora apontem para a
do simbólico ou cosmológico. do entre a Bolívia e o Paraguai que se esten- um marco interpretativo amplo,
deu de 1932 a 1935. Originou-se pela disputa
territorial da região do Chaco Boreal, tendo provocativo, deve se considerar a
IHU On-Line – Como trabalhar como uma das causas a descoberta de petró- simplificação da riqueza da parti-
leo no sopé dos Andes. Foi a maior guerra na cularidade, de fundamental im-
a ideia de reconciliação com po-
América do Sul do século XX. Deixou um sal-
vos indígenas na América Latina? do de 60 mil bolivianos e 30 mil paraguaios
portância em relação aos povos
mortos, tendo resultado na derrota dos bo- indígenas, que apresentam uma
9 Immanuel Maurice Wallerstein livianos com a perda e anexação de parte variedade de opções de acordo
(1930): sociólogo estadunidense, mais conhe- de seu território pelos paraguaios. Em 12 de com cada grupo ou inclusive co-
cido pela sua contribuição fundadora para a junho de 1935, sob pressão dos Estados Uni-
teoria do sistema-mundo. (Nota da IHU dos, foi aprovada a cessação das hostilidades. munidade em diferentes contextos
On-Line) (Nota da IHU On-Line) regionais e nacionais.■

LEIA MAIS...
—— Interpretações históricas e atuais da experiência jesuítica. Entrevista com Guillermo Wil-
de, publicada na revista IHU On-Line nº 348, de 25-10-2010, disponível em http://bit.
ly/1NymP9q.
—— Os guarani e o território latino americano: uma relação histórica. Entrevista com Guillermo
Wilde, publicada na revista IHU On-Line nº 331, de 31-05-2010, disponível em http://bit.
ly/1Ov4Cqz.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

A recusa do outro
Sydney Possuelo entende que a questão de fundo no histórico
genocídio de índios brasileiros é uma só: a não aceitação de
culturas e formas de vida que se distinguem das que conhecemos
Por João Vitor Santos

T  entar entender a relação entre


índios e não índios requer um
exercício intenso de alteridade.
O indigenista Sydney Possuelo entende
que primeiro é preciso reconhecer que
e vivem em função dos cofres públicos, e
ter uma cultura de respeito ao outro, às
leis”. Para ele, o resultado não seria uma
recusa da forma de vida contemporânea
do não índio, como se voltasse no tempo.
a sociedade ocidental historicamente “Poderíamos ser mais conscientes e soli-
não aceita aquilo que difere da sua for- dários não só entre nós, mas também com
ma de vida. “Você só respeita aquilo que aquele que é diferente de nós.”
entende, compreende e aceita. Quando
não aceita, não respeita”, destaca. “Em Sydney Ferreira Possuelo iniciou sua
alguns casos, na nossa sociedade, respei- formação em São Paulo, aos 17 anos, tra-
tamos o diferente ou o outro porque po- balhando com os sertanistas brasileiros
demos ser procurados pela polícia ou ser Cláudio e Orlando Villas Boas. Foi nome-
processados. Não é pelo entendimento ado presidente da Funai em 1991, onde
que nasce da compreensão, de saber li- trabalhou até 2006. Voltou sua gestão 89
dar com o diferente”, completa. Assim, a para a demarcação de terras, sobretudo
figura dos índios passa a ser tomada como dos Yanomâmi, e estabeleceu forte diá-
estranha, que entrava a lógica que conhe- logo entre o governo e organizações não
cemos. Reverter essa perspectiva é buscar governamentais. Por mais de 40 anos,
essa alteridade, e, recuperando Orlando dedicou-se à causa dos povos indígenas
Villas Boas, Possuelo pontua: “índio e não isolados na Amazônia. Possuelo ainda con-
índio são humanidades diferentes”. tinua os seus esforços na defesa de tribos
isoladas através da ONG Instituto Indige-
Na entrevista, concedia por telefone à nista Interamericano. Ele é também pro-
IHU On-Line, o indigenista ainda faz uma tagonista do livro The Unconquered: In
aproximação com a política de Estado, em Search of the Amazon’s Last Uncontacted
especial do Brasil, sobre os povos originá-
Tribes (publicado em português em 2013,
rios. Destaca, por exemplo, que é sempre
pela editora Objetiva, com o título Além
uma política “de branco” para índios, e
da Conquista), do jornalista Scott Walla-
não exercícios de escuta e compreensão
ce, colaborador da National Geographic.
das necessidades das comunidades, já
O livro é um relato da expedição de 76
que muitas precisam apenas permanecer
dias, realizada em 2002, sob a liderança
isoladas. Sobre a possibilidade de recon-
do sertanista brasileiro, com a finalidade
ciliação com etnias originárias, enfatiza:
de mapear os locais por onde a tribo isola-
“é possível, mas para haver essa harmonia
da dos “flecheiros” transitava, nas terras
nós teríamos de ter, dentro da organização
demarcadas do Vale do Javari.
do Estado do Brasil, homens com escopo
totalmente diferente desses que habitam Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compreen- Sydney Ferreira Possuelo – O tendem absolutamente nada com
der as disputas entre índios e não que está por trás de tudo é o bol- relação ao índio ou qualquer outro
índios? Por que há tanta resistên- so, a mais valia, é a economia e grupo que ameace ou seja obstá-
cia às diferenças culturais dos po- dinheiro no bolso. As pessoas, o Es- culo para a concretização de seus
vos nativos? tado, os grupos, os bancos não en- desejos de expansão e de ganhar

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e vender mais. Não vejo como di- realidade, esse conflito entre índio Quando eu era jovem, tinha ten-
ficuldade de entender as culturas e não índio, é espalhada no Brasil dências de esquerda, embora nunca
de povos originais. Na verdade, inteiro. O índio vive lá na sua ter- fosse filiado a nada. Lembro, por
não entendem porque não querem. ra, não ameaça em nada, não vem exemplo, que a informação que tí-
No fundo, o que está em jogo é a aqui nos ameaçar. Nós é que toma- nhamos da União Soviética, naquele
ganância exacerbada de todos nós, mos deles a possibilidade de sobre- período, era de que os problemas
do mundo branco e sua mais valia, viver no seu meio ambiente. das minorias étnicas que existiam
lutando contra grupos que não têm dentro daquele país já tinham sido
Dentro da Funai3, há processos
dinheiro, não têm escrita, etc. resolvidos; de que as esquerdas,
que levam até 15 ou 20 anos para
As forças são de uma disparidade com a profundidade de seus pen-
sair alguma decisão sobre a ter-
incrível, é Golias e Davi1. Só que o samentos e posição conciliadora,
ra. Há terras demarcadas em Mato
nosso Davi não tem nem bodoque. tinham conseguido resolver todos
Grosso do Sul, e em outros lugares
Se ampliar e demarcar terras in- os problemas. Mais tarde, porém,
do Brasil, em que os índios foram
dígenas não fosse visto como uma fomos vendo que nada disso era
postos para fora por fazendeiros.
ameaça à expansão do agronegó- verdade. Também tive a oportuni-
Acabam vivendo miseravelmente no
cio, ninguém estaria se importan- dade de conversar com grandes lí-
entorno, enquanto os invasores es-
do. O conflito se dá na medida em deres nacionais de esquerda, como
tão lá, usando a terra. E não há uma
que restringe a ação desenfreada Arraes4, Brizola5, e senti que eles ti-
força nacional e política que veja
dessa loucura de plantar em qual- isso com bons olhos e trabalhe para nham uma dificuldade muito grande
quer lugar para exportar tudo. E o que o índio restabeleça a sua terra. em falar sobre etnia. Não falavam
índio, como a parte mais fraca, fica É falta de bom senso, de equidade, sobre etnias, sobre o negro ou o ín-
pendurado na corda. de Justiça. Os índios são postos para dio, falavam sobre o camponês e o
fora e morrem fora de suas terras. operário, que são os que votam. As-
IHU On-Line – Então, a maior sim, conversar com esses líderes foi
ameaça ao índio hoje é a expan- uma verdadeira lástima, pois pensei
IHU On-Line – Como avalia a po- que teria a possibilidade de ampliar
são agrícola? lítica indigenista brasileira, espe- o conhecimento, mas não foi nada
Sydney Ferreira Possuelo – A cificamente nesses últimos anos disso. Então, com raríssimas exce-
agricultura é uma das ameaças. de um governo dito de esquerda? ções, as esquerdas têm dificuldades
90 Mas tem ainda a visão política que Sydney Ferreira Possuelo – De porque são analfabetas em termos
está por trás disso, os interesses modo geral, o que se vê ao longo da de povos indígenas.
partidários, a construção de estra- história recente, não só no Brasil,
das, em que o Estado quer inter- mas em todos os países da América 4 Miguel Arraes de Alencar (1916-2005):
ligar A com B, e, claro, o agrone- político cearense com atuação marcante em
Latina e pelo mundo afora, é que Pernambuco, nasceu em 1917. Foi deputado
gócio e as grandes propriedades de os Estados não gostam dos povos in- estadual pelo Partido Social Democrático
terras. Há vários interesses que de dígenas. Em qualquer lugar que se (PSD). Elegeu-se prefeito de Recife em 1959,
alguma forma incidem diretamente vá, é possível perceber que os Esta-
pelo Partido Social Trabalhista (PST) e go-
vernador em 1962, apoiado pelo Partido Co-
na vida dos povos indígenas. dos sempre maltrataram os índios. munista Brasileiro (PCB). Deposto e cassado
Quando os interesses divergentes Depois, tentaram consertar alguma pelos militares em 1964, exilou-se. Retornou
ao Brasil em 1979. Em 1980, elegeu-se de-
são dentro da mesma etnia (oci- coisa por pressões que vieram de putado federal pelo Partido do Movimento
dental), se vai à Justiça, são feitos várias partes, mas se mantém essa Democrático Brasileiro (PMDB) e, em 1984,
estudos e muito mais. Quando é de ideia de que os índios são um atraso governador do estado. Em 1990, filia-se ao
Partido Socialista Brasileiro (PSB), elegendo-
uma maioria, de um país, contra para o desenvolvimento, um obstá-
-se novamente deputado federal e, em 1994,
povos indígenas, simplesmente se culo para agricultura e por aí afora. novamente governador, cargo que ocupou até
deixa de reconhecer o direito des- 1998. (Nota do IHU On-Line)
ses povos. Os índios sofrem mui- 3 Fundação Nacional do Índio – Funai: 5 Leonel de Moura Brizola (1922-2004):
é o órgão indigenista oficial do Estado brasi- político brasileiro, nascido em Carazinho, no
to mais, porque seus direitos não leiro, criado pela Lei nº 5.371, de 5 de dezem- Rio Grande do Sul. Foi prefeito de Porto Ale-
são reconhecidos e são deixados bro de 1967, vinculado ao Ministério da Jus- gre, governador do Rio Grande do Sul, deputa-
de lado. Veja o exemplo de Mato tiça. Sua missão é coordenar e executar as po- do federal pelo extinto estado da Guanabara e
líticas indigenistas do Governo Federal, pro- duas vezes governador do Rio de Janeiro. Sua
Grosso do Sul, com os problemas
tegendo e promovendo os direitos dos povos influência política no Brasil durou aproximada-
eternos que existem ali2; mas essa indígenas. São também atribuições da Funai mente 50 anos, inclusive enquanto exilado pelo
identificar, delimitar, demarcar, regularizar Golpe de 1964, contra o qual foi um dos líderes
1 Refere-se à célebre a passagem contida no e registrar as terras ocupadas pelos povos da resistência. Por várias vezes foi candidato
Antigo Testamento em que Davi derrota o gi- indígenas, promovendo políticas voltadas ao a presidente do Brasil, sem sucesso, e fundou
gante Golias, utilizando-se de uma funda, ou desenvolvimento sustentável das populações um partido político, o PDT. Sobre Brizola, con-
bodoque. (Nota da IHU On-Line) indígenas, reduzindo possíveis impactos am- fira a primeira edição dos Cadernos IHU em
2 Refere-se ao genocídio que vem sofrendo bientais promovidos por agentes externos. A formação intitulado Populismo e trabalho.
os Guarani Kaiowá, em Mato Grosso do Sul. Funai também tem por atribuição, prover o Getúlio Vargas e Leonel Brizola, disponível em
O sítio do Instituto Humanitas Unisinos acesso diferenciado aos direitos sociais e de http://bit.ly/ihuem01. Leia também a IHU On-
– IHU tem amplo material publicado e vem cidadania dos povos indígenas, como o di- -Line intitulada Leonel de Moura Brizola 1922-
acompanhando a questão. Confira em http:// reito à seguridade social e educação escolar 2004, disponível em http://bit.ly/ihuon107.
bit.ly/1SVs6WJ. (Nota da IHU On-Line) indígena. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 30 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 478


DE CAPA IHU EM REVISTA

Aqui no Brasil, realmente, os go- momentos de acerto. A Funai foi olhar de Justiça para com os povos
vernos não gostam dos povos indí- muito importante no momento das indígenas. Eles entendem mais que
genas. Mas, essencialmente, a der- demarcações do Governo Collor8, é preciso desmatar, plantar, que
rocada veio com o PT. A situação dos das quais eu participei. Mas as precisamos de emprego, de hidre-
povos indígenas agravou-se muito coisas são perenes, não há conti- létrica, que podemos abrir e des-
mais, porque, ao mesmo tempo em nuidade. E esse foi um momento fazer estradas, e por aí vai. Está
que o governo se mostrava reniten- excepcional, isso não é o normal mais dentro da nossa visão de mun-
te conforme os governos anteriores, e nem eu, que estava ali dentro, do, do dito “homem civilizado”, do
ainda uniu força muito grande com sei dizer ao certo o que houve para que da visão dos povos indígenas,
o agronegócio. Assim, acelerou-se que o número de áreas de demar- que não acumulam bens, que nada
o desmatamento, o que ajudou a cação (muitas ainda com processos interessa a não ser a vida cotidiana
criar os problemas ambientais que iniciados em 1910) dobrasse. e o bem-estar de todos.
estamos vivendo, em nome, basica-
Índios produzem homens melho-
mente, dessa monocultura de soja.
IHU On-Line – Gostaria que o res do que nós porque não viven-
É nisso que o Brasil está empenha-
senhor recuperasse mais as de- ciam uma série de problemas em
do, e essa visão econômica e polí-
marcações desse período, como decorrência do acúmulo financei-
tica é extremamente nefasta aos
a Yanomâmi9. E de que forma ro. O que não quer dizer que não
povos indígenas.
essa experiência pode ajudar a se haja problemas nas sociedades in-
pensar num caminho para frear os dígenas, há outros. Onde há huma-
IHU On-Line – Como analisa o conflitos, o genocídio que se vive, nos, há problemas. Mas, não tendo
trabalho da Funai desde a sua por exemplo, em Mato Grosso do dinheiro no centro de tudo, já ali-
concepção até os dias de hoje? Sul? via a situação.
Quais os desafios de hoje se com-
pararmos ao período dos irmãos Sydney Ferreira Possuelo – São
coisas diferentes, começando pelo IHU On-Line – Como imagina
Villas Boas6?
tempo de cada um. O tempo da que se possa fazer aproximação
Sydney Ferreira Possuelo – Os entre a cosmovisão da sociedade
demarcação Yanomami é agora,
desafios e o conflito são os mes- ocidental e das sociedades indí-
atual. Os processos de Mato Grosso
mos: a questão fundiária, a saúde, genas com o objetivo de respeitar
do Sul são de decênios. Essa dife-
a escolaridade, a falta de espaço os povos originários?
dentro da sociedade. Com relação
rença temporal já é significativa 91
porque as cabeças mudam, as le- Sydney Ferreira Possuelo – Você
à Funai, é preciso que se diga que
gislações mudam, a política muda só respeita aquilo que entende,
ela não é um órgão indígena, e sim
e geram essas consequências. De compreende e aceita. Quando não
um órgão de branco para, teori-
modo geral, também raramente aceita, não respeita. Em alguns ca-
camente, defender os índios. Ela
encontramos magistrados com um sos, na nossa sociedade, respeita-
fez coisas interessantes em algum
mos o diferente ou o outro porque
momento, mas, depois, à medida tura, Indústria e Comércio (MAIC), foi um podemos ser procurados pela polícia
que a cabeça da Funai e do próprio órgão público criado durante o governo do
ou ser processados. Não é pelo en-
governo foram mudando, a situa- Presidente Nilo Peçanha, em 1910, com o
objetivo de prestar assistência à população tendimento que nasce da compreen-
ção foi piorando. E, claro, sempre
indígena do Brasil. O Serviço foi organizado são, de saber lidar com o diferente.
piora para os índios. pelo Marechal Rondon, seu primeiro diretor.
É como dizia Orlando10, índio e não
O SPI foi extinto e substituído pela Funai, em
O processo de desmonte da Funai 1967. (Nota da IHU On-Line) índio são humanidades diferentes.
começou há alguns anos. Há mais 8 Governo Collor: também denominado
de 20 anos venho falando que o Es- como Era Collor, foi um período da história 10 Orlando Villas Boas (1914-2002): ser-
política brasileira iniciado pela posse do pre- tanista brasileiro, mais velho dos irmãos
tado Brasileiro tem um projeto de
sidente Fernando Collor de Mello, em 15 de Villas Boas – Cláudio, Leonardo e Álvaro.
longo prazo para destruir a Funai. março de 1990, e encerrado por seu afasta- Com Cláudio e Leonardo, Orlando fez o reco-
Não quer extingui-la, porque isso mento do governo, em 2 de outubro de 1992. nhecimento de numerosos acidentes geográ-
traria problemas, então ela vai Seu afastamento foi consequência da instau- ficos do Brasil central. Em suas andanças, os
ração de seu processo de impeachment no dia irmãos abriram mais de 1.500 quilômetros de
sendo vagarosamente desmontada. anterior. Fernando Collor foi o primeiro pre- picadas na mata virgem, onde surgiram vilas
O que é hoje a Funai? Absoluta- sidente eleito pelo povo desde 1960, quando e cidades. Foi indicado duas vezes para o Prê-
mente nada, não tem dinheiro para Jânio Quadros venceu a última eleição direta mio Nobel da Paz, com Cláudio, em 1971 e,
para presidente antes do início do Regime em 1976, pelo resgate das tribos xinguanas.
nada. Ela teve papel importante,
Militar. (Nota da IHU On-Line) Os irmãos lideraram a Expedição Roncador-
assim como o antigo SPI7 teve seus 9 Yanomâmis: são índios que habitam o -Xingu, iniciada em 1943 e que depois de 24
Brasil e a Venezuela. A tribo Yanomâmi é a anos deixou em seu rastro mais de 40 novas
6 Irmãos Villas Boas: Orlando (1914- sétima maior tribo indígena brasileira com 15 cidades, 19 campos de pouso e o Parque Na-
2002), Cláudio (1916-1998) e Leonardo Villas mil pessoas distribuídas em 255 aldeias rela- cional do Xingu, criado por lei em 1961, com
Boas (1918-1961) foram importantes serta- cionadas entre si em maior ou menor grau. a ajuda do antropólogo Darcy Ribeiro. Na ex-
nistas brasileiros. Nascidos na cidade de San- Ao noroeste de Roraima estão situadas 197 pedição, Orlando, Cláudio, Leonardo e Álvaro
ta Cruz do Rio Pardo, interior de São Paulo. aldeias que somam quase dez mil pessoas e a mapearam os seus encontros com catorze tri-
(Nota da IHU On-Line) norte do Amazonas estão situadas 58 aldeias bos indígenas, conseguindo permissão para
7 Serviço de Proteção ao Índio (SPI): que somam mais de 6 mil pessoas entre Bo- instalar as bases da Fundação Brasil Central.
parte constituinte do Ministério da Agricul- lívia e Amazonas. (Nota da IHU On-Line) Cuidadosos, eles souberam agir contra ideias

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Não são somente seres humanos que Conhecemos e admiramos, por tem uma importância muito gran-
estão em momento ou estágios dife- exemplo, a organização dos ingle- de, mas foi específico dentro de
rentes, mas uma diferença tão pro- ses em diversos aspectos, projeção uma área. A ação política deles se
funda que é impossível se aproximar. de valores e tudo mais, mas eles deu no Brasil central, onde havia
são também terríveis. A colonização condições especiais. As tribos que
Ontem, escutava rádio e o rapaz
inglesa fez o que fez na África, na já estavam ali tinham contato en-
falava da ação do Congresso Nacio-
América do Sul, na Índia. E o curio- tre si há uns 300 anos, constituin-
nal que, dizendo entender essa ques-
so é que no exemplo dos Inuítes, no do uma organização diferente. Os
tão dos índios, está trazendo para si
Canadá, país de origem inglesa, eles Villas Boas tiveram a sensibilidade
a tarefa de demarcar as terras. Esse
superaram isso, e apesar de terem de olhar e perceber isso tudo de
é o tiro final nos povos indígenas.
sido terríveis na colonização, foram uma forma diferente e criaram as-
No Congresso dificilmente você vai
os que deram passos mais rápidos sim o primeiro parque, que não é a
encontrar um sentimento solidá-
com relação aos povos originários. primeira terra indígena, mas sim o
rio para com os povos indígenas. E
Estamos muito atrás no que se re- primeiro parque nacional, chama-
quando encontra, com esse pessoal
fere à organização e ao respeito do Parque Indígena do Xingu14, o
mais ligado à ecologia e defesa am-
que existe entre, por exemplo, os que foi um avanço.
biental, ao invés de tomar posição,
Maori12 e o governo da Nova Zelân-
eles ficam neutros ou desaparecem.
dia. Mas esses dois povos são muito Orlando implementou uma po-
Raramente encontramos aquela fir-
pequenos, diante dos 300 milhões lítica que ele sustentou enquanto
meza na defesa dos povos indígenas.
de indivíduos de povos indígenas e pôde e enquanto o Xingu se mante-
Todos os poderes, de modo geral,
sociedades diferenciadas espalha- ve bastante isolado, pois era preci-
estão voltados para nossa própria
das pelo mundo. so navegar muitos dias até chegar
forma de vida. Então, nem Execu-
tivo, Legislativo ou Judiciário tem ali. Já por volta de 1940, chega
Eu recordo esses exemplos para
habilidade para lidar com a questão. mostrar que estão aí e que acon- o Correio Aéreo Nacional e se vai
Os povos indígenas sofrem na mão teceram. Pergunto: é possível ha- abrindo caminho com a Expedição
do Estado, na mão desses três pode- ver uma harmonia? É possível, mas Brasil Central15. Começa a se con-
res; hoje e ontem, sempre foi assim. para haver essa harmonia nós terí- cluir a conquista daquela região
Mas, voltando: se a demarcação pas- amos de ter, dentro da organização através da construção de estradas.
sar para o Legislativo, vão começar do Estado do Brasil – nos Poderes À medida que foram abrindo estra-
92 a diminuir as terras, a não demarcar Executivo, Legislativo e Judiciário das, surgiram mais possibilidades
mais, e não tem ninguém que os de- –, homens com escopo totalmente de navegação e mesmo novos ae-
fenda lá dentro. diferente desses que habitam e roportos. Assim, a união que era
vivem em função dos cofres públi-
dio, Orlando e Leonardo, os irmãos Villas
IHU On-Line – Existe um cami- cos, e ter uma cultura de respei- Boas, foram os seguidores do ideal de defesa
nho para fazer essas duas huma- to ao outro, às leis. Infelizmente, ao índio. (Nota da IHU On-Line)
nidades, índios e não índios, vive- hoje, não temos nada disso, somos 14 Parque Indígena do Xingu (antigo
algo muito feio ainda, muito primi- Parque Nacional Indígena do Xingu): foi
rem em uma harmonia possível? criado em 1961 pelo então presidente brasi-
tivo. Não são os índios os primiti- leiro Jânio Quadros, tendo sido a primeira
Sydney Ferreira Possuelo – Al- vos, somos nós. terra indígena homologada pelo governo fe-
guns países, depois de muito so- deral. Seus principais idealizadores foram os
frimento de povos indígenas, irmãos Villas Boas, mas quem redigiu o pro-
IHU On-Line – O que o Brasil jeto foi o antropólogo e então funcionário do
conseguiram uma melhora, um en-
aprendeu sobre os índios a partir Serviço de Proteção ao Índio, Darcy Ribeiro.
tendimento melhor. Alguns povos (Nota da IHU On-Line)
das incursões dos irmãos Villas
vivem, dentro da Nova Zelândia, 15 Expedição Roncador-Xingu: também
por exemplo, numa ordem que aqui Boas? Qual a contribuição deles conhecida como Expedição Brasil Central, foi
é inimaginável. Outro exemplo são e de seu grupo para a aproxima- uma parte do processo de interiorização do

os Inuítes11, no Polo Norte, no No- ção dessas duas humanidades tão Brasil, a Marcha para o Oeste, criada em 1943
pelo governo de Getúlio Vargas. Para chefiar
roeste do Canadá, que tiveram de distintas? a expedição foi nomeado o Coronel Flaviano
volta 2 milhões de quilômetros de Mattos Vanique, que recrutou cerca de
Sydney Ferreira Possuelo – O
quarenta sertanejos oriundos da região do
quadrados com uma área muito trabalho de Orlando e Cláudio13 atual Mato Grosso para se incorporarem à ex-
rica em minerais. Mas, infelizmen- pedição. Sabendo disso, os irmãos Villas Boas
te, são casos pontuais. Essa relação 12 Maori (ou Maores): o povo nativo da Nova decidiram participar como sertanejos, mas
Zelândia. Na língua maori, a palavra maori foram barrados por terem um “alto nível de
com os povos originários, na maio-
representa toda uma cultura. Em lendas e ou- conhecimento” para um sertanejo. Eles en-
ria dos lugares, foi e é perversa. tras tradições orais, a palavra distinguia seres tão voltaram tempos depois com barbas por
humanos mortais de divindades e espíritos. fazer, mal vestidos e fingindo-se de analfabe-
militaristas ou contra a ação de especulado- Maori tem cognatos em outras línguas da Po- tos. Logo foram aceitos: o comandante Vani-
res. (Nota da IHU On-Line) linésia, como na língua havaiana (Maoli) e na que preferia os analfabetos, que considerava
11 Inuítes: também chamados de Inuit, língua taitiana (Maohi), e todos têm sentidos mais trabalhadores. Cláudio e Leonardo tra-
são os membros da nação indígena esquimó semelhantes. (Nota da IHU On-Line) balhavam na enxada, Orlando, de auxiliar de
que habitam as regiões árticas do Canadá, 13 Cláudio Villas Boas (1916–1998): junto pedreiro. Entretanto, com o tempo os irmãos
do Alasca e da Groenlândia. (Nota da IHU com seus irmãos Orlando e Leonardo, proje- alcançaram postos de comando na expedição.
On-Line) tou-se na política indigenista brasileira. Cláu- (Nota da IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

mantida por Orlando ao redor da tradicionais. Terras essas que se- isso nas comunidades indígenas,
área do Parque foi sendo perdida. riam demarcadas e com as quais pois eles não berram, não gritam,
Antes disso, não entrava qualquer não se teria mais contato. porque não precisam fazer isso.
um no Parque Xingu. Mesmo os es- Aqui temos o barulho de nosso am-
Esses povos nunca precisaram de
tudiosos tinham de apresentar os biente, nossas fábricas, cidades,
nós, e se os deixássemos tranquilos
seus planos e os índios tinham de carros e muito mais ruídos, o que
eles viveriam bem, em paz. Mas es-
concordar. Não era aberto para que nos faz berrar constantemente, em
tão sofrendo cada vez mais por es-
qualquer um chegasse e fizesse o celulares ou conversando um com
tarem apertados pelo cinturão de
que quisesse, até que houve esse outro. Além disso, eles têm ape-
civilização que vai se aproximando
“progresso” e o mundo chegou com go à família, amor aos filhos; pai,
perigosamente dessas áreas isola-
mais força ao Xingu. mãe, são todos muitos próximos,
das. O Estado deve delimitar o ter-
de forma suave e bonita como um
ritório deles para permitir que eles
Tempo moderno e elemento de família. Como aqui fa-
possam viver dentro de seus valores
lamos que o berço da sociedade é
povos isolados tradicionais. Aliás, a delimitação é
a família, lá o berço também é a
para nós. É para que o branco, em
família, mas com muito mais amor
Uma vez que esses povos indíge- suas andanças, encontre um limite
e laço, de uma forma mais intensa
nas são contatados, não há mais para que paralise ali a euforia de do que a gente possa imaginar.
retorno, e o tempo moderno vai mudar o mundo, construir barragens
chegando com mais força a esses e fazer tantas coisas que destroem Não ter a mais valia – ocidental –
povos. Antigamente, os povos que o meio ambiente de forma irrespon- não significa que eles sejam, como
viviam isolados sofriam com aquela sável. Não é que não se deva fazer seres humanos, melhores. Somos
ideia que se tinha da necessidade nada, promover o desenvolvimento, idênticos, mas a constância de
de se fazer contato, ao espírito mas se deve fazer pensando na res- viver nessas comunidades, nesse
do Projeto Rondon16. Com traba- ponsabilidade com o planeta. E hoje isolamento, de tirar o seu sustento
lho, em 1986 e 1987, conseguimos ainda mais, pois o mundo está sendo de suas próprias forças, faz deles
mudar essa política nacional para globalizado e o sentimento de pátria seres com uma capacidade incrível
que o Estado não mais promovesse passa a ser planetário. Não adianta de sorrir. Falo isso pensando nos
o contato com os povos indígenas, tirar a fábrica que polui daqui e co- povos isolados ou ainda nos primei-
mas sim os respeitassem e os dei- locar lá no Sri Lanka. ros contatos com nossa sociedade,
xassem viver dentro de suas terras pois depois tudo passou a ser con- 93
taminado pela mais valia do ho-
16 Projeto Rondon: é uma iniciativa do go- IHU On-Line – O que podemos
mem branco. Afinal, somos as mes-
verno brasileiro, coordenada pelo Ministério apreender com os povos indíge-
da Defesa, em colaboração com a Secretaria mas matérias vivendo em posições
nas para a nossa forma de vida
de Educação Superior do Ministério da Edu- diferentes. Se não fosse nossa vai-
cação – MEC. De 1967 a 1989, ano em que ocidentalizada?
dade e empáfia, se fôssemos mais
foi extinto, o projeto envolveu mais de 350
mil estudantes de todas as regiões do País. Sydney Ferreira Possuelo – Os simples e respeitosos, poderíamos
O Projeto Rondon tinha como lema “integrar valores deles são básicos e muito não só viver em harmonia, mas
para não entregar”, expressando um ideário específicos dessa ou daquela etnia, também aprender muito com eles,
desenvolvimentista articulado à doutrina de
numa concentração humana muito sobretudo com relação à natureza.
segurança nacional. O projeto promovia ati-
vidades de extensão universitária levando es- pequena, vivendo isoladamente e Com certeza, seríamos povos me-
tudantes voluntários às comunidades caren- em grande distância da nossa so- lhores; o mundo não mudaria tan-
tes e isoladas do interior do país, onde parti- ciedade. São valores tão diame- to assim, não poderíamos voltar às
cipavam de atividades de caráter notadamen-
te assistencial, organizadas pelo governo. tralmente opostos aos nossos que é cavernas, vivendo todos nus – não
Segundo os críticos do projeto, a iniciativa difícil comparar. Mas o que se apre- é assim que as coisas caminham –,
também cumpria funções de cooptação do ende com eles é que essa socieda- mas poderíamos ser mais conscien-
movimento estudantil. Em 2005, o Projeto tes e solidários não apenas entre
de indígena produz homens que
Rondon foi relançado pelo governo federal,
a pedido da União Nacional dos Estudantes possuem uma tranquilidade muito nós, mas também com aquele que
(UNE). (Nota da IHU On-Line) grande, diferente de nós. Você vê é diferente de nós. ■

LEIA MAIS...
—— Índio e “homem branco”: duas humanidades diferentes que se encontraram em determi-
nado tempo e espaço. Entrevista com Sydney Possuelo, publicada na revista IHU On-Line,
número 257, de 05-05-2008, disponível em http://bit.ly/1I8Jwil;
—— Um povo sacrificado em nome do progresso. Entrevista com Sydney Possuelo, publicada nas
Notícias do Dia, de 31-10-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/1HkFMKp.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

O fracasso do governo em escutar,


respeitar a identidade e reconhecer
a autonomia indígena
Chris Chapman destaca que um traço comum de todos os sistemas
políticos do mundo é o conflito com os povos indígenas
Por João Vitor Santos e Leslie Chaves | Tradução Isaque Gomes Correa

A pesar de haver avanços na


busca de soluções para equa-
lizar os embates entre os
indígenas e os interesses do Estado,
como a adoção de legislações, por ins-
de”, explica em entrevista por e-mail à
IHU On-Line.
De acordo com o pesquisador, que
observa os conflitos entre os Estados e
os indígenas no mundo, o denominador
tituições locais e globais, de proteção comum entre os países é o fracasso dos
aos direitos desses povos originários, governos em respeitar a autonomia, a
na prática esses acordos não se esta- cultura e identidade dos povos indíge-
belecem; ficam no papel, enquanto nas, e encontrar formas de coexistên-
violações de diversas ordens continu- cia. “Os indígenas se adaptam cons-
am acontecendo. Essa é a avaliação tantemente às novas realidades e eles
94 do pesquisador Chris Chapman, que vê querem também ver o desenvolvimen-
com pessimismo o progresso da cha- to em suas próprias terras. Porém eles
mada ocupação fundiária global, onde possuem as suas próprias ideias sobre
territórios são ocupados em nome de a forma como este desenvolvimento
interesses econômicos sem considerar deve acontecer; eles têm opiniões so-
os reflexos às populações que habitam bre como usar os recursos naturais em
esses espaços. “Em muitos casos, os suas terras. Eles somente pedem que
afetados são os povos indígenas, sen- os governos lhes escutem e trabalhem
do que a terra é historicamente deles, com eles para encontrar novos cami-
onde os seus indivíduos têm enterradas nhos para o desenvolvimento”, aponta.
muitas gerações de ancestrais, e a ela
Chris Chapman, inglês, pesquisa-
estando as suas práticas culturais e re-
dor e assessor na área dos direitos
ligiosas inextricavelmente vinculadas.
das populações indígenas da Anistia
Sem esta terra, estes povos perdem
Internacional.
a capacidade de sobrevivência como
comunidade, como povo com identida- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como avalia a situ- Povos Indígenas, um passo verda- levando ao que às vezes chama-
ação dos povos indígenas no mun- deiramente histórico. No entanto, mos de ocupação fundiária global:
do? Em quais países a violação de quando olhamos para o que está governos, ou empresas privadas,
Direitos Humanos a povos indíge- ocorrendo na base, é difícil evitar compram terra, frequentemente
nas é mais acentuada? Como com- um sentimento de pessimismo. Na em países com Estado de direito
preender essa violação? medida em que cada vez mais os enfraquecido, e geralmente igno-
países desenvolvem a sua capaci- rando os clamores daqueles que,
Chris Chapman – Vem havendo dade industrial, ocorre uma maior de maneira legítima, são os pro-
uma série de avanços. Alguns pa- ganância para com os recursos na- prietários da terra ou trabalham
íses adotaram novas leis de pro- turais e, na medida também em nela. Em muitos casos, os afetados
teção dos direitos dos povos indí- que a população mundial cresce, são os povos indígenas, sendo que a
genas. Em 2007, a ONU adotou a acaba existindo uma maior ne- terra é historicamente deles, onde
Declaração dos Direitos sobre os cessidade de alimentos. Isso está os seus indivíduos têm enterradas

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DE CAPA IHU EM REVISTA

1988 com a sua nova Constituição1,


que estabeleceu um cronograma
de cinco anos para a demarcação
das terras tradicionais dos povos
As mulheres indígenas enfrentam indígenas. Infelizmente, esta pro-
messa não foi realizada.
desafios particulares, pois viven-
ciam uma exclusão tanto como IHU On-Line – Que imagem orga-
nismos internacionais têm dos po-
indígenas quanto como mulheres vos indígenas brasileiros? E como
analisam a forma que o governo
do Brasil trata a questão indígena?
muitas gerações de ancestrais, e a to sobre os direitos à terra. Pode Chris Chapman – Se pegarmos o
ela estando as suas práticas cultu- ser mais útil vermos os contrastes exemplo das Nações Unidas, a rela-
rais e religiosas inextricavelmente entre a situação nas Américas e a tora especial sobre os Direitos dos
vinculadas. Sem esta terra, estes situação na África ou na Ásia. Nas Povos Indígenas manifestou “preo-
povos perdem a capacidade de Américas, na maioria dos países, cupações profundas” sobre a ven-
sobrevivência como comunidade, há um entendimento de que os da de terras indígenas ancestrais
como povo com identidade. povos indígenas existem, que eles a indivíduos não indígenas, sobre
sofreram graves abusos e foram a violência vivenciada pelos povos
Os povos indígenas enfrentam
muitas outras violações de seus di- expropriados no passado, além de originários que estão defendendo o
reitos, mas o espaço aqui não per- que certos passos precisam ser da- seu direito à terra e sobre o fracas-
mite listar todos. De modo notório, dos a fim de se remediar esta si- so em se buscar um consenso livre,
as mulheres indígenas enfrentam tuação. Infelizmente, em muitos prévio e informado dos povos indí-
desafios particulares, pois elas vi- países, este processo está longe de genas antes de se iniciar importan-
venciam uma exclusão, discrimina- terminar. tes programas de desenvolvimento
ção e violência dentro da sociedade em suas terras, conforme exigido
mais ampla, tanto como indígenas IHU On-Line – Como compreen- no Direito Internacional. O Comitê
quanto como mulheres, e porque der os conflitos entre o dito ho- sobre Eliminação da Discriminação
enfrentam discriminação dentro mem branco e índios no século Racial está preocupado com o fra-
95
de suas próprias comunidades, tal XXI? Como vê e entende os confli- casso no combate à discriminação
como as mulheres enfrentam em tos na América Latina, em espe- profundamente enraizada que os
todas as sociedades. Os seus direi- cial os do Brasil? povos indígenas têm enfrentado,
tos sexuais e reprodutivos podem bem como com o fracasso em de-
Chris Chapman – Igualmente,
ser violados, por exemplo, quando marcar as suas terras. Estas preo-
será mais útil enxergarmos esta
fazem uso dos serviços públicos de cupações alinham-se com as preo-
tensão como sendo entre o Estado
saúde. Se suas comunidades são cupações da Anistia Internacional.
e os povos indígenas. Porque estes
expulsas das terras, elas podem
povos têm o direito à autodetermi-
ter menos opções, confrontando-
nação, o que inclui a autonomia,
-se com a discriminação de gênero
há uma necessidade de se encon- IHU On-Line – No Brasil e na
ao tentar buscar meios alternativos
de subsistência ou emprego. trar modelos de coexistência do América Latina, como no caso
governo central, de um lado, e de do Equador, governos ditos de
instituições autogovernantes, de esquerda se revelaram inábeis
IHU On-Line – Quais as seme- práticas e valores dos povos indí-
lhanças e diferenças entre povos para lidar e compreender a ques-
genas, de outro. Se se consegue tão indígena. Como avalia essa
originários da América do Norte e encontrar este elemento de for-
da América Latina? De que ordem questão?
ma correta, tudo o mais que surgir
e como é a violação de Direitos fica bem mais fácil de se lidar. O Chris Chapman – A Anistia Inter-
Humanos desses povos, quais as Brasil é uma sociedade colonial, nacional não é uma organização
diferenças e particularidades en- como outras nas Américas, então o política. Nós preferimos não fazer
tre as Américas saxã e latina no generalizações sobre os sucessos
Estado se construiu essencialmen-
tratamento de seus índios? ou os fracassos de sistemas políti-
te com base na expropriação da
Chris Chapman – É extremamen- população originária. Isso quer di- cos específicos. Em vez disso, ob-
te difícil generalizar sobre a Amé- zer que não somente os problemas servamos que os povos indígenas,
rica do Norte ou sobre a América atuais precisam ser resolvidos, mas sob todos os sistemas políticos,
Latina. Há algumas diferenças no também que se precisam encon- têm sofrido violações dos direitos
sistema de leis – entre o sistema trar formas de remediar os crimes
1 A íntegra da Constituição Federal de 1988
jurídico comum e o sistema jurí- terríveis do passado. O Brasil deu está disponível em http://bit.ly/1Ie6PHl.
dico civil, o que tem certo impac- um grande passo nessa direção em (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

humanos. Novamente, o denomi- Chris Chapman – O nosso escri- Nelas, instamos os nossos membros
nador comum é o fracasso dos go- tório no Brasil enviou uma carta e apoiadores a escrever ao governo
vernos centrais em respeitar, em aberta3 à presidente Dilma no co- e a protestar contra casos especí-
muitos casos, a autonomia, a cul- meço do mês de novembro, deline- ficos, por exemplo: o assassinato
tura e identidade dos povos indíge- ando o que consideramos como os de líderes comunitários que têm
nas, bem como em buscar formas principais problemas e aquilo que protestado contra os despejos.
de coexistência com eles, em lugar precisa ser feito a respeito deles. Estamos trabalhando com a Orga-
de controlá-los. Em resumo, eles são o seguinte: a nização das Nações Unidas – ONU
demarcação e entrega das terras e a Organização dos Estados Ameri-
IHU On-Line – Como deve ser a dos Guarani Kaiowá; um fim aos canos – OEA para aumentar a pres-
atuação do Estado e dos governos ataques a comunidades e líderes são contra o governo no sentido de
com relação aos povos indígenas? indígenas que estão defendendo os fazê-lo cumprir os compromissos
Na República, qual deve ser o pa- direitos à terra (e, fundamental- assumidos quando assinou os trata-
pel dos Poderes Executivo, Legis- mente, justiça para as vítimas de dos internacionais para a proteção
lativo e Judiciário? E qual o pa- ataques no passado); e o respeito dos direitos humanos.
pel de organismos internacionais, pelo direito dos Guarani Kaiowá de
como a ONU, tanto na proteção viver com dignidade em suas terras IHU On-Line – Como é possível
de indígenas como na sanção a e praticar as suas formas de subsis- aliar necessidades da sociedade
países que violam os direitos des- tência tradicionais. ocidental com a preservação das
ses povos? tradições e dos povos originários?
Como fazer o homem branco, oci-
Chris Chapman – Os diferentes IHU On-Line – De que forma a
dental e pós-moderno compre-
papéis não diferem no tocante aos Anistia Internacional vem atuan- ender a experiência indígena na
povos indígenas mais do que eles relação com o planeta?
diferem em relação a qualquer
outra questão de direitos huma- Chris Chapman – A mentalidade
nos. O Executivo tem, sobretudo, de tentar forçar os povos indíge-
a responsabilidade de garantir que nas a “integrarem-se” à sociedade
as obrigações internacionais para Os povos indíge- do consumo não é exclusividade

96 com os direitos humanos sejam nas, sob todos os dos países ocidentais. Podemos
encontrá-la em todos as partes do
respeitadas. Ele deve desenvolver
políticas e programas, estabele- sistemas políti- mundo. Em muitíssimos países há
este fracasso em aceitar o fato de
cer instituições, que forneçam a
estrutura para que isso aconteça.
cos, têm sofrido que os povos originários querem
O Poder Legislativo precisa assegu- violações dos di- manter vivos suas culturas e mo-
dos de vida. As culturas deles não
rar que as leis por ele desenvolvi-
das estejam em harmonia com – e reitos humanos são peças de um museu para serem
fornecem uma base específica para mantidas em estado de animação
– a realização daquelas obrigações suspensa, mas são coisas vivas, que
internacionais. O Judiciário deve do para combater esse genocídio se desenvolvem. Os indígenas se
permanecer imparcial, defender os indígena brasileiro? E como o go- adaptam constantemente às novas
direitos dos mais marginalizados, verno tem recebido as manifesta- realidades e eles querem também
velar para que o devido processo ções da Anistia? ver o desenvolvimento em suas
seja seguido e garantir que tanto o próprias terras. Porém eles pos-
Chris Chapman – Estamos em suem as suas próprias ideias sobre
direito nacional como o internacio- comunicação constante com o go- a forma como este desenvolvimen-
nal sejam respeitados. verno federal e com o governo de to deve acontecer; eles têm opi-
Mato Grosso do Sul. A carta aberta niões sobre como usar os recursos
IHU On-Line – Como o senhor citada antes é apenas um exemplo. naturais em suas terras. Em muitos
tem visto o genocídio indígena Nós também emitimos uma série casos, os povos indígenas têm vi-
que ocorre no Brasil? E, em espe- de Ações Urgentes, que podem ser vido em suas terras há séculos, se
cífico, como tem acompanhado os encontradas no sítio eletrônico da não há milhares de anos. Eles se
conflitos em Mato Grosso do Sul, Anistia (https://anistia.org.br). adaptaram a condições climáticas
com os Guarani Kaiowá2? cambiantes. E descobriram uma
Paraguai eles são cerca de 40.000. O Guaraní maneira de viver em harmonia com
2 Guarani-Kaiowá: povo indígena do língua é uma das línguas oficiais do Paraguai,
Paraguai, do estado brasileiro de Mato ao lado de língua espanhola. (Nota da IHU o entorno, não exaurindo os recur-
Grosso do Sul e do nordeste Argentina. No On-Line) sos naturais limitados. Eles somen-
Brasil, eles habitam Nhande Ru Marangatu, 3 Intitulada “Presidenta Dilma: Proteja os te pedem que os governos lhes es-
uma área de tropical floresta tropical. São Direitos dos Guarani Kaiowá e Conclua a
cutem e trabalhem com eles para
um dos três guaranis subgrupos (os outros Demarcação de suas Terras Ancestrais”.
são Ñandeva e Mbya). Estima-se que mais Disponível em http://bit.ly/1NSx56E (Nota encontrar novos caminhos para o
de 30.000 guaranis vivem no Brasil. No do entrevistado) desenvolvimento.■

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Revista
DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Agenda de Eventos
Confira os eventos que ocorrem no Instituto Humanitas Unisinos – IHU
entre 30-11-2015 e 14-12-2015

IHU ideias – Brasil 2015: um ano de crise política contínua


e paralisia decisória
Palestrante: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha – UNISINOS
03/12 Horário: 17h30min às 19h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Saiba mais em http://bit.ly/1MRw9zO

O Concílio Vaticano II: uma releitura global de sua obra


Lançamento do livro: THEOBALD, Christoph. A recepção do Concílio Vaticano II:
Volume I. Acesso à fonte. São Leopoldo: Unisinos, 2015, 820 p.
09/12
100 Horário: 17h às 18h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Saiba mais em http://bit.ly/1lEuEOs

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ENTREVISTA

A experiência com o divino


que traz humanização
Para Clemir Fernandes, a assistência religiosa nos presídios, além do contato
com o sagrado, possibilita o acesso à dignidade, dentro e fora do cárcere
Por Ricardo Machado e Leslie Chaves

O sistema penitenciário brasi-


leiro padece cronicamente
de uma série de dificulda-
des, desde as materiais, como a falta
de espaços adequados para manter
ter acesso à assistência religiosa é um
fator que oportuniza muitas possibi-
lidades de dignidade, tanto na prisão
como após sua liberdade. O trabalho
dos religiosos produz uma espécie de
os apenados no cumprimento de suas humanização na medida em que inte-
sentenças, até as referentes ao tipo rage com os presos, causa reflexões
de tratamento que o sistema judiciário acerca de sua condição, ouve suas di-
como um todo oferece a essas pessoas ficuldades, atende a demandas inclu-
e seus familiares. Entretanto, também sive materiais, faz conexões com suas
há ações que buscam mitigar o am- famílias, obviamente do lado externo
biente hostil dos presídios. A inserção da prisão, enfim, os respeita efetiva-
religiosa está entre essas iniciativas. O mente como pessoas”, ressalta.
trabalho da Pastoral Carcerária é um
Esses dados fazem parte do estudo
dos mais tradicionais e pioneiros nesse
campo. Conforme ressalta o professor
Assistência religiosa em prisões do Rio 101
de Janeiro: um estudo a partir da pers-
Clemir Fernandes, em entrevista por
pectiva de servidores públicos, presos
e-mail à IHU On-Line, “as relações en-
e agentes religiosos (e uma proposta
tre Estado brasileiro e Igreja Católica
de recomendação à Seap), desenvolvi-
são tão antigas quanto a própria his-
do pelo Instituto de Estudos da Religião
tória do Brasil”. Segundo o professor
– ISER sob a coordenação do pesquisa-
e pesquisador, a presença do trabalho
dor e divulgado em 2015.
da Igreja Católica nos presídios é capi-
larizada, atuando em grande parte do Clemir Fernandes é graduado em
país. Entretanto, o número de agentes Teologia pelo Seminário Teológico Ba-
religiosos pertencentes a diversos gru- tista do Sul e em Ciências Sociais pela
pos evangélicos é muito superior ao de Universidade Federal Fluminense – UFF.
católicos envolvidos em atividades com É mestre e doutorando em Ciências So-
os presos e ex-presos. ciais pela Universidade do Estado do
Para Fernandes, o trabalho religioso Rio de Janeiro – UERJ. Atuou como as-
nas prisões, independente do credo a sessor da ONG Viva Rio na área de Reli-
que ele for ligado, é fundamental para gião e Direitos; atualmente é pesquisa-
oferecer aos apenados uma via para a dor do Instituto de Estudos da Religião
busca da recuperação de sua cidada- – ISER, especialmente no eixo Religião
nia. “Para uma população já bastante e Espaço Público.
desrespeitada em seus direitos básicos, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se dá a in- processo se dá da seguinte forma: lecidos, agentes religiosos dessas
serção religiosa no sistema prisio- Uma entidade religiosa (igreja, entidades fazem seu pedido de
nal brasileiro? Como ocorreu his- centro espírita, etc.) se credencia credenciamento na SEAP. O sistema
toricamente esse processo? na Secretaria de Administração Pe- de segurança do Estado averigua se
Clemir Fernandes – No contexto nitenciária – SEAP. Tendo sido apro- a pessoa tem condições de ser um
atual do Estado do Rio de Janeiro o vada a partir dos critérios estabe- agente religioso. Sendo aprovado é

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emitida uma carteira de acesso ao são muitos e distintos grupos, Ba- mais afeita ao modelo tradicional
sistema. Mas não de forma univer- tistas, que também têm diferentes católico.
sal. Ele é credenciado para atuar denominações, Igreja Universal do
em até duas unidades prisionais. Reino de Deus, Igreja Metodista, IHU On-Line – Como é o traba-
Antigamente os diretores de presí- Presbiterianos, congregacionais, lho realizado pelos evangélicos
dio tinham autonomia para creden- pentecostais/neopentecostais de dentro das casas de apenados?
ciar quem desejassem. Havia mui- igrejas diversas e variadas, etc. Por que eles se tornaram mais
tas relações de compadrio em que Com seus grupos de pastoral, mais numerosos em relação às outras
suas crenças religiosas determina- tradicionais, e também agentes religiões?
vam quais religiosos teriam mais ligados a modelos da ampla reno-
ou menos acessos aos presos para vação carismática católica, a Igre- Clemir Fernandes – Os católicos
o trabalho da assistência religiosa. ja Católica vem em segundo lugar, realizam encontros de oração e
mas bem atrás dos evangélicos em reflexão, ou missa, quando é pos-
número de agentes. Em seguida, sível ter um padre, o que é mais
IHU On-Line – Do que se tratava difícil de acontecer. Espíritas e
em número ainda bem menor, são
a Pastoral Carcerária da Igreja Ca- Testemunhas de Jeová (que não
os espíritas, no geral, kardecistas e
tólica que se notabilizou a partir se identificam como evangélicos,
depois, bem isoladamente, algum
da segunda metade do século XX? nem são reconhecidos como tais
grupo afro-brasileiro, um judeu,
Qual sua expressão atualmente? entre os próprios evangélicos),
etc. As religiões de natureza mais
Clemir Fernandes – As relações missionária ou proselitista, como atuam de maneira semelhante no
entre Estado brasileiro e Igreja Ca- as cristãs em geral (católica, evan- que tange à rotina de trabalho:
tólica são tão antigas quanto a pró- gélica e kardecista) são, portanto, palestras e estudos mais indivi-
pria história do Brasil. A assistência as mais presentes no sistema. dualizados. Evangélicos em geral
religiosa feita pela Igreja Católica e neopentecostais em particular,
no interior dos presídios conquis- que são a maioria, fazem encon-
IHU On-Line – De que forma as
tou tamanha notoriedade que o tros no mesmo formato do cul-
religiões neopentecostais acaba-
Estado construiu capelas católicas ram ocupando um certo espaço to de suas igrejas, com cânticos,
em várias unidades prisionais pelo deixado pela Igreja Católica? orações, pregações, coral, banda,
país. recolhimento de ofertas, batismo,
Clemir Fernandes – O retrato da ceia (eucaristia), petição por cura,
102 No contexto dos presídios do Rio composição de agentes religiosos libertação, etc. Utilizam lingua-
de Janeiro a Igreja católica tem nos presídios segue tendência re- gem bem acessível ao universo dos
forte capilaridade, estando pre- lativa da média da realidade reli- presos. Em presídios do Rio de Ja-
sente em todo o sistema prisional, giosa da sociedade brasileira con- neiro, além dos agentes religiosos,
embora em número bem menor de forme dados do Instituto Brasileiro que são obviamente externos ao
agentes em comparação aos gru- de Geografia e Estatística – IBGE. presídio, várias unidades possuem
pos evangélicos. O trabalho cató- Dentre os grupos religiosos, os que um pastor ou liderança religiosa in-
lico é reconhecido pelas muitas mais cresceram segundo as três úl- terna, que é um dos próprios pre-
ações em favor dos presos, para timas edições do Censo foram exa- sos reconhecidos pelos detentos e
além da assistência religiosa em si. tamente os evangélicos. Por outro também pela direção do presídio.
Fato que gerou historicamente até lado, os católicos são a denomina- Ele faz acompanhamento religioso
críticas de antigas faculdades de ção que mais teve perda de fiéis. no interior das galerias, de forma
Serviço Social porque queriam se Portanto, o crescimento numérico permanente. Um detento que se
desvincular de qualquer associação de evangélicos chegou também identificou como católico disse que
com assistência religiosa, como a aos presídios, inclusive corrobora- no presídio prefere frequentar os
feita pelos católicos nos espaços do pelos processos de mais demo- cultos evangélicos: “Se tivesse um
prisionais. cracia e mais reconhecimento das padre eu iria [na reunião católica],
diversidades nos espaços públicos. mas como não tem, prefiro a [igre-
IHU On-Line – Atualmente, Ampliando, assim, a presença e ja] evangélica”.
como está composta a assistência ação de outras religiões, com des-
religiosa nos presídios brasileiros? taque para os evangélicos neopen-
IHU On-Line – Como a questão
Que tipos de confissões religiosas tecostais por sua postura militante
do dízimo, proibido por resolução
de propagar sua fé. Por outro lado,
prestam esse serviço? do Ministério da Justiça, ocorre
é possível conceber que a proposta
dentro dos presídios? Como lidar
Clemir Fernandes – No Estado religiosa de igrejas neopentecos-
com essa questão que é um gesto
do Rio de Janeiro, que pode ser tais, voltada mais para interesses
de fé para os evangélicos?
uma amostra possível de Brasil, os individuais coniventes com certa
diversos grupos evangélicos são a realidade cultural predominante Clemir Fernandes – Nas entre-
maioria. De fora são vistos como atualmente, encontrou mais eco vistas que fizemos tocamos nesta
um único grupo, mas têm disputas ou resposta nos presídios do que a questão e as respostas que tivemos
entre si: Assembleia de Deus, que mensagem comunitária ou coletiva apontam para o fato de que nem

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todos os grupos evangélicos fazem espaço do refeitório é, geralmen- blica de um grupo marginalizado
recolhimento de ofertas ou de dí- te, o único local possível para o socialmente?
zimos. E os que fazem insistiram encontro, que nem sempre é ade-
Clemir Fernandes – Para uma po-
em explicar que ela não fica com quado para a natureza do trabalho
pulação já bastante desrespeitada
eles, os agentes religiosos, mas feito.
que permanece no próprio presí- em seus direitos básicos, ter aces-
dio e é administrada pelos presos so à assistência religiosa é um fator
IHU On-Line – Quais são as im- que oportuniza muitas possibilida-
para atendimento de necessidades
plicações na separação/classifica- des de dignidade, tanto na prisão
coletivas ou mesmo para ajudar
ção dos presos entre aqueles que como após sua liberdade. O traba-
quando alguém deixa o presídio.
seguem uma doutrina religiosa e lho dos religiosos produz uma espé-
Como o dízimo, outras práticas são
aqueles que não seguem? Os que cie de humanização na medida em
igualmente vedadas pela legislação
seguem uma confissão religiosa que interage com os presos, causa
aos presos, o que não significa que
têm privilégios? Quais? reflexões acerca de sua condição,
não ocorram rotineiramente no dia
a dia do presídio. Clemir Fernandes – Conforme a ouve suas dificuldades, atende a
lei vigente, os presos devem ser demandas inclusive materiais, faz
IHU On-Line – Quais são os prin- separados por tipo de crime come- conexões com suas famílias, obvia-
cipais desafios no trabalho com tido, conforme as tipificações do mente do lado externo da prisão,
os apenados? Que dificuldades se Código Penal, o que inviabilizaria enfim, os respeita efetivamente
apresentam no contexto do dia a qualquer outra classificação, in- como pessoas. Alguns religiosos
dia? clusive por pertença religiosa. Mas têm estruturas de acolhimento de
na prática isso não ocorre univer- presos quando ganham seus alva-
Clemir Fernandes – Os religiosos rás de soltura, buscam qualificá-los
salmente. Existem presídios que
reclamam dos problemas de falta para o mercado de trabalho, aju-
possuem celas evangélicas para
de rotina, mesmo considerando dam no retorno às suas famílias, e
presos dessa confissão religiosa,
que o presídio é regido por uma muitas vezes até com recursos para
não havendo similar com outras
lógica de segurança permanente. voltarem para seus lares, pois mui-
crenças, ou seja, não existe “cela
Qualquer alteração é motivo para
católica” ou “cela de religiões tos saem da prisão, muitas vezes,
cancelarem o trabalho religioso,
afro-brasileiras”. sem dinheiro algum. Existe no Rio
sem qualquer aviso prévio. Geral-
mente são pessoas que percorrem Estar na cela evangélica pode
de Janeiro, por exemplo, organi- 103
zações religiosas que atuam com
grandes distâncias para acessar o ser visto como um privilégio ou ex-detentos visando sua reinserção
presídio. Outra questão é o horá- não, porque os critérios são basi-
de maneira mais eficaz na vida so-
rio de entrada, que nem sempre camente os mesmos no interior do
cial, desde as famílias até a con-
é cumprido, resultando, às vezes, presídio. Mas para ter “direito”
em espera de até mais de uma quista de emprego ou mesmo algo
a participar dela o preso precisa
hora. Quanto ao horário de térmi- na linha do empreendedorismo.
“dar provas” de que tem um com-
no, segundo dizem, o rigor é to- portamento coerente com o padrão
tal, não sendo possível qualquer tido como certo pelos presos dessa IHU On-Line – Qual a contribui-
tipo de compensação por eventual cela, especialmente do líder, que ção do trabalho das religiões na
atraso de liberação da entrada dos é geralmente um pastor ou pessoa construção de uma relação mais
agentes religiosos. A rispidez e po- reconhecida como pastor. Os crité- tolerante entre egressos do sis-
der de controle dos agentes peni- rios são rígidos, desde limpeza do tema prisional e o restante da
tenciários é um fator constante de espaço, o asseio pessoal, a proibi- sociedade?
reclamação dos religiosos, que são ção de vícios, a obediência às re-
voluntários e reclamam serem tra- Clemir Fernandes – As religiões
gras, ao “testemunho evangélico”, em geral têm uma gramática de
tados como cidadãos. Eles sofrem
envolvendo até punição e expulsão acolhimento e respeito aos egres-
críticas de que estão ali “perdendo
da cela em caso de desrespeito às sos do sistema prisional e realizam
tempo”, que são “bobos de acha-
normas. Nem todo mundo conse- até campanhas e reflexões religio-
rem que os presos são santinhos”,
gue e alguns acham até rigoroso sas para sensibilizar seus fiéis nes-
que suas doações de sabonetes e
demais. No geral, são vistos de se sentido, mas é sabido que são
outros produtos de higiene pesso-
maneira positiva pelos agentes muitos os desafios enfrentados pe-
al os presos trocam por bebidas e
penitenciários e é possível que al- los ex-detentos para conseguirem
até drogas. Também reclamam da
falta de espaço adequado para as cancem privilégios no tratamento respeito e reconhecimento. É pos-
reuniões. Os grupos católicos pos- geral na prisão. sível que os religiosos estejam na
suem uma capela que, no geral, liderança dessas poucas iniciativas
não é compartilhada com outros IHU On-Line – De que maneira que buscam aproximar e reinserir
grupos. Também, quando há tem- a inserção religiosa dentro do sis- ex-presos no cotidiano da vida em
plo evangélico, dificilmente ele é tema prisional oferece um cami- sociedade como cidadãos, sujeitos
utilizado por outras religiões. O nho de diálogo e reinserção pú- de direitos.■

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ENTREVISTA

Mauricio Macri, um novo presidente


para um velho neoliberalismo
Para o professor de Relações Internacionais Bruno Lima Rocha, a
escolha do novo presidente argentino pode representar uma
retomada do crescimento da direita na América Latina
Por Ricardo Machado

M ais do que uma vitória da


oposição, a conquista de
Maurício Macri no segundo
turno das eleições argentinas, há uma
Ao analisar a vitória de Macri sobre
Scioli, Bruno considera que o enfraque-
cimento do adversário político se deve,
também, a ilusão da esquerda latino-
semana, pode representar o começo de americana de apostar no capitalismo
uma guinada à direita latinoamericana. periférico. Entretanto, ele não consi-
“Para a América Latina é uma virada ní- dera que o novo comandante argenti-
tida no rumo do neoliberalismo, o que no possa trazer uma alternativa nova
pode implicar em ‘onda’ ou algo assim à constante crise da Argentina. “Macri
como uma tendência mais à direita e vai aprofundar a presença de capital
um novo canto de sereia para a entrada estrangeiro e renegociar com os fundos
de capital transnacional volátil – sem abutres, endividando novamente o país
104 reservas – e a retomada das privatiza- em uma escala bastante perigosa”,
ções”, avalia Bruno Lima Rocha, em sustenta. “Posso afirmar que o modelo
entrevista por e-mail à IHU On-Line. econômico de Macri, para além do dis-
curso de legitimação, é aumentar a in-
Embora siga a matriz política e eco-
tegração com os países do norte e, com
nômica de Menem, o futuro presidente isso, tentar barganhar maior presença
da Argentina teve o cuidado de ingres- chinesa na economia real e na infraes-
sar politicamente com uma legenda trutura argentina”, complementa.
própria se desprendendo um pouco do
histórico neoliberal argentino. “Ele Bruno Lima Rocha é cientista polí-
[Macri] seria um neoliberalismo de tico, com mestrado e doutorado pela
cara limpa (até quando não se sabe, Universidade Federal do Rio Grande do
mas por agora é o fato) ao contrário Sul – UFRGS, e jornalista graduado pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro
de Scioli, uma espécie de centro-es-
– UFRJ. É professor de Relações Inter-
querda envergonhada e que não con-
nacionais na ESPM-Sul e na Unisinos.
vence a sua própria base”, pondera o
entrevistado. Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que signifi- ticação das bases sociais e tam- mesmo tempo, não tem identidade
ca para a Argentina a vitória da bém o exagero na dependência da ideológica com a retórica nacional-
Mauricio Macri? E para a América venda de commodities, incluindo a -popular evocada pelo peronismo1
Latina? mineração a céu aberto, profunda-
1 Peronismo (Movimento Nacional Justi-
mente danosa ao meio ambiente.
Bruno Lima Rocha – Implica, cialista): o Movimento Nacional Justicialis-
A vitória de Macri também é uma ta é genericamente chamado peronismo. Os
de forma resumida, em um esgo- certa reação da classe média por- ideias são baseados no pensamento de Juan
tamento de modelo por parte do tenha e também da classe média Domingo Perón (1895–1974), presidente as
Argentina de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974.
kirchnerismo, muito em função de baixa da Província de Buenos Aires, O Movimento transformou-se, mais tarde em
corrupção estrutural, certa domes- que hoje vive melhor mas que ao Partido Justicialista, que é a força política

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de linha kirchnerista. Para a Amé- Bruno Lima Rocha – A meta ex- dustriais argentinos – terminam por
rica Latina é uma virada nítida plícita é a revisão da natureza do jamais aprofundar as necessidades
no rumo do neoliberalismo, o que Mercosul4 ou então implodir seu do marco de união estratégica do
pode implicar em “onda” ou algo acordo fundamental. Esta é a razão Mercosul
assim como uma tendência mais à para tentar a expulsão da Venezue-
direita e um novo canto de sereia la no Mercosul, criar uma cunha no IHU On-Line – Qual deve ser a
para a entrada de capital trans- sentido da pergunta abaixo, onde relação da Argentina com os pa-
nacional volátil – sem reservas – e a Aliança do Pacífico5 opera como íses membros do Acordo Estraté-
a retomada das privatizações. O gico Transpacífico de Associação
modelo de crescimento do capi- Econômica?
talismo periférico dos governos
de centro-esquerda pós 1998 está Bruno Lima Rocha – Acredito que
se esgotando pelas suas próprias respondi a pergunta acima em con-
limitações. Para a América junto com esta, mas vale lembrar
que a direita argentina não-pero-
IHU On-Line – O que deve mu-
Latina é uma nista é ainda mais vende pátria do
que a direita brasileira – ao menos
dar na Argentina a partir da elei- virada nítida a direita que hoje não faz parte
ção de Macri? Como o Congresso
argentino deve reagir? no rumo do do pacto lulista.6 Logo, qualquer
atração neste sentido fará parte do
Bruno Lima Rocha – O congresso neoliberalismo discurso de Macri. Seu mentor Me-
argentino – onde Macri não vai ter nem7 tomava o exemplo de Cuba,
maioria – é bastante volátil. Cris- o canto de sereia para a integra- como uma antítese do que ele que-
tina2 perdeu a votação do imposto ção subordinada ao eixo do Oceano ria para a Argentina; agora é a vez
sobre a exportação de soja e seu Pacífico, especificamente tentando da Venezuela operar como bode
governo quase acabou. De la Rúa3 expiatório das mazelas internas da
jogar entre os interesses da China
enfrentou o congresso na demissão Argentina.
– que opera uma interdependência
de um ministro de confiança das com os países latino-americanos –
transnacionais e isto foi o estopim e se inclinando para o projeto de IHU On-Line – Quais são as prin-
para a crise política. Quem derru-
ba governo neoliberal são as ruas,
expansão dos EUA. A Aliança do Pa- cipais diferenças e semelhanças 105
cífico opera como uma má influên- entre o eleito Mauricio Macri e
mas a crise política pode ser uma seu adversário, no segundo tur-
cia de curto prazo para dentro do
constante. Não acredito que Macri no, Daniel Scioli?
Mercosul, quando as urgências do
vai constituir um consenso forjado
governo de turno e o poder de veto
como Menem fez no início dos anos 6 Lulismo: O termo cunhado pelo cientista
de setores específicos – como os in- político André Singer, que também foi porta-
1990 para dilapidar o patrimônio
-voz do ex-presidente Lula, de 2002 a 2007.
nacional argentino. 4 Mercado Comum do Sul (Mercosul): é Nascido durante a campanha de 2002, o lu-
uma organização intergovernamental funda- lismo representou o afastamento em relação
da a partir do Tratado de Assunção de 1991. a componentes importantes do programa de
IHU On-Line – O que deve mu- Estabelece uma integração, inicialmente, esquerda adotado pelo PT e o abandono das
dar na relação da Argentina com econômica configurada atualmente em uma ideias de organização e mobilização. Busca
Brasil e com os países latino- união aduaneira, na qual há livre-comércio um caminho de conciliação com amplos seto-
intrazona e política comercial comum entre res conservadores brasileiros. Sob o signo da
-americanos, especialmente com
seus membros. Situados todos na América contradição, o lulismo se constitui como um
o Mercosul? do Sul, são atualmente cinco membros ple- grande pacto social conservador, que com-
nos. Em sua formação original, o bloco era bina a manutenção da política econômica do
maioritária na Argentina. Os ideais do pe- composto por Argentina, Brasil, Paraguai e governo Fernando Henrique Cardoso (1995-
ronismo se encontram nos diversos escritos Uruguai; mais tarde, a ele aderiu a Venezue- 2002) com fortes políticas distributivistas
de Perón como “La Comunidad Organizada”, la. Encontra-se em fase de expansão, uma vez sob o governo Lula (2002-2010). (Nota IHU
“Conducción Política”, “Modelo Argentino que a Bolívia aguarda a ratificação parlamen- On-Line)
para un Proyecto Nacional”, entre outros, tar de seu protocolo de adesão como membro 7 Carlos Sauúl Menem (1930): político
onde estão expressos a filosofia e doutrina pleno, documento que necessita ainda para argentino. Governou o país entre 1989 e 1999,
política que continuam orientando o pensa- sua vigência das aprovações legislativas na pelo Partido Justicialista (peronista). políti-
mento acadêmico e a vida política da segun- Bolívia, no Brasil e no Paraguai, os demais co argentino. Governou o país entre 1989 e
da maior nação sulamericana.(Nota da IHU parlamentos já o aprovaram. (Nota da IHU 1999, pelo Partido Justicialista (peronista).
On-Line) On-Line) É atualmente senador pela província de La
2 Cristina Kirchner (1953): política e advo- 5 Parceria Transpacífica (Trans Pacific Rioja. Foi muito criticado por um governo
gada argentina. Ex-senadora pela província Partnership – TPP): trata-se de um acordo de corrupção, pelo seu perdão a ex-ditadores
de Buenos Aires, Cristina é a atual presidente comercial reunindo países ultradesenvolvi- e outros criminosos condenados da guerra
da Argentina. Casada com o ex-presidente dos, emergentes e nações de menor desenvol- suja, o fracasso das suas políticas econômicas
Nestor Kirchner, entre 2003 e 2007 foi pri- vimento relativo, situados nas Américas, no que levaram à taxa de desemprego de mais de
meira-dama do país. (Nota da IHU On-Line) Leste Asiático e Oceania composto por EUA, 20 por cento e a uma das piores recessões que
3 Fernando de La Rua Bruno: Presiden- Canadá, México, Peru, Chile, Japão, Brunei, a Argentina já teve, além do pouco empenho
te da Argentina de 1999 a 2001. Advogado Malásia, Vietnã, Cingapura, Austrália e Nova demonstrado nas investigações do ataque
por profissão, sucedeu Carlos Menen e teve Zelândia. A formalização do acordo com estes terrorista a comunidade judaica em 1994,
como sucessor Ramón Puerta. (Nota da IHU 12 países foi firmada no segundo semestre de que resultou na morte de 85 pessoas. (Nota
On-Line) 2012. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

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Bruno Lima Rocha – Se formos e criminosos de lesa humanida- Bruno Lima Rocha – Macri supera
observar bem, Scioli e Macri tem a de da ditadura argentina, vai ser Scioli nos debates justo porque é
mesma trajetória política (no início condenado como pró-repressão, mais autêntico, mais fiel ao seu sis-
de carreira), a formação intelectu- como fora Carlos Saúl Menem e até tema de crenças, por mais nefasto
al e empresarial e até a semelhan- Alfonsín, com sua condução muito que este seja. Scioli compartilha
ça estética e de hábitos incorpora- recalcitrante e pouco convicta. As na maior parte das vezes e teve
dos. Scioli faria um programa meio lições entendo como a necessidade dificuldades de se desmarcar das
semelhante – ao menos no meu de criar “calos ideológicos” nas so- críticas e ao mesmo tempo, definir
ponto de vista – do segundo manda- ciedades latino-americanas e não a diferença entre ele e seu rival e
to de Dilma aqui, mas sem a chefe embarcar na ilusão do crescimento parceiro. Não há necessariamente
de Estado (Cristina), ou seja, com através do capitalismo periférico surpresa com a vitória de Macri,
capacidade de exercer os mandos que aqui impera. mas a diferença anunciada nas pes-
que o Kirchnerismo não o faria com quisas era bem superior ao que a
Cristina. Talvez esta semelhança e IHU On-Line – O resultado aper- urna revelou. Logo, se as pesquisas
a rejeição de Scioli na Província de tado das eleições na Argentina, não induzissem tanto o voto, a de-
Buenos Aires – onde perdeu – possa tal qual foi ano passado no Bra- cisão final poderia ser ainda mais
ser a pista da vitória muito aperta- sil, pode ser interpretado com um apertada, e talvez com a vitória de
da de Macri. sinal amarelo para a esquerda da Scioli.
América do Sul? Como? Por quê?
IHU On-Line – Qual a relevân- IHU On-Line – A vitória de Macri
Bruno Lima Rocha – Trata-se de
cia política do partido de Macri pode ser interpretada como uma
um fim de ciclo, um fim de um ci-
o “Propuesta Republicana” ou nova guinada à direita na América
clo de cegueira e exaustão. Tive-
PRO? O que significa a derrota das Latina? O seu projeto de desen-
mos plenas condições de diminuir
tradicionais forças políticas como volvimento econômico está sus-
a dependência externa no início
o peronismo e a UCR? tentado em quê?
dos anos 2000, mas os governos de
Bruno Lima Rocha – Vejo o PRO centro-esquerda e suas absurdas Bruno Lima Rocha – O pensamen-
e a aliança de forças ao redor de composições de governabilidade to de Macri é uma repetição das
Macri como um setor político do aprofundaram o perfil de plata- políticas menemistas, as mesmas
menemismo sem vergonha de ser forma agro-exportadora de nossas que em parte foram reproduzidas
106 o que é, mas com uma imagem economias, além da mineração a mesmo sob os governos Kirchner,
mais “limpa” do que foi Menem. céu aberto. Ao mesmo tempo, não mas com matizes distintos. Macri
Macri teve o cuidado de entrar no fomos capazes de criar um pool vai aprofundar a presença de capi-
sistema político com uma legenda petrolífero do Sul, com a Petro- tal estrangeiro e renegociar com os
própria e ratificando sua base so- brás, PDVSA e YPF encabeçando. fundos abutres, endividando nova-
cial e ideológica na maioria menos Logo, a unidade não se deu no se- mente o país em uma escala bas-
barulhenta de Buenos Aires. Ele se- tor estratégico e a dependência tante perigosa. Posso afirmar que o
ria um neoliberalismo de cara lim- externa aprofundou. Se há pouca modelo econômico de Macri, para
pa (até quando não se sabe, mas abundância em função do proble- além do discurso de legitimação,
por agora é o fato) ao contrário ma na balança externa, logo todo é aumentar a integração com os
de Scioli, uma espécie de centro- o arranjo de governo fica muito países do norte e, com isso, tentar
-esquerda envergonhada e que não frágil. barganhar maior presença chinesa
convence a sua própria base. na economia real e na infraestru-
O sinal de alerta eu diria, passa
tura argentina.
pelo pensamento das esquerdas
IHU On-Line – Quais são as li- latino-americanas se afastarem
ções à esquerda latino-americana dos pactos de classe e do vale-tudo IHU On-Line – Deseja acrescen-
após o resultado das eleições na pela tal da governabilidade. Do tar algo?
Argentina? contrário, jamais os setores ma- Bruno Lima Rocha – A cultura po-
Bruno Lima Rocha – Muitas, mas joritários da ex-esquerda (insisto lítica argentina é belíssima e com-
as que veremos pela frente serão com este termo) vão ter condições bativa. Lá, ao contrário do Brasil,
ainda maiores. Se Macri seguir o de criar um novo consenso advin- nos parece que a cancha está sem-
conselho editorial de La Nación e do dos setores que progrediram pre aberta e dependendo do ataque
Clarín, ele vai arrumar dois pro- nas condições materiais de vida, aos direitos fundamentais, literal-
blemas. Vai usar do capital político mas sem câmbio ideológico de mente tudo pode acontecer. Se Ma-
como recém eleito para cortar os profundidade. cri for com muita sanha e sede pode
benefícios sociais ao invés de caçar conseguir um alçamento social em
os dólares escondidos pelas famí- IHU On-Line – Como foi a parti- menos de dois anos. Cabe acompa-
lias mais abastadas da Argentina. cipação de Mauricio Macri nos de- nhar com muito interesse, sabendo
Ao mesmo tempo, se puser uma pá bates? Sua vitória pode ser vista que o Brasil é fundamental para a
de cal na punição dos repressores como uma surpresa? Argentina e vice-versa. ■

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#Crítica Internacional - Curso de RI da Unisinos

A China e o fim da política


do filho único: os novos
desafios do desenvolvimento
Por Diego Pautasso

“Assim, a mudança da política demográfica chinesa visa a corrigir distorções e


preparar o país para a nova fase do desenvolvimento, esboçados já para o próxi-
mo plano de desenvolvimento quinquenal de 2016-2020. A primeira distorção é o
descompasso entre o número de homens e mulheres que hoje é de 105 homens
para cada 100 mulheres na China”, destaca Diego Pautasso, professor de Relações
Internacionais da Unisinos
Diego Pautasso é doutor e mestre em ciência política com ênfase em relações
internacionais (UFRGS); e graduado em geografia (UFRGS), atua como professor
de relações internacionais da Unisinos. E-mail: dgpautasso@gmail.com
Eis o artigo.

108 O Partido Comunista da China anunciou em 29 de outu- nascimento de cerca de 400 milhões de chineses e prati-
bro de 2015 o fim da política do filho único, permitindo, camente restringiram o surgimento de grandes bolsões de
por ora, que cada casal tenha até dois filhos. Tal política favelas nas grandes cidades chinesas – o que se constitui
de relaxamento do controle de natalidade já vinha ocor- uma exceção em face dos demais países subdesenvolvidos.
rendo desde 2013 quando o governo passou a permitir que
Ademais, a taxa de crescimento populacional caiu de
casais em que pelo menos um dos pais fosse filho único
2,74% ao ano e a taxa de fertilidade de 5,94 em 1970 para
poderia ter dois filhos. Registre-se que a política do filho
0,59% e 1,66 em 2014, respectivamente. Cabe sublinhar
único não se aplicava às outras 55 minorias chinesas, de
os números: em 1980 a China tinha 190 milhões de cida-
modo que seu contingente no total da população passou
dãos urbanos (ou cerca de 19% de uma população de 984
de 6% no contexto da Revolução para cerca de 10% na
milhões) e em 2015 alcançou 780 milhões (ou 56% de uma
atualidade.
população de mais de 1,4 bilhão), o que significa dizer que
Historicamente, deve-se sublinhar que o objetivo de o país asiático urbanizou 600 milhões de pessoas em três
planejar a dinâmica demográfica chinesa foi bem-sucedi- décadas e meia ou mais de 2 vezes o total da população
do por duas ações estruturais do governo: o registro para urbana dos EUA!
regrar o controle migratório (hukuo) e a política do filho
Assim, a mudança da política demográfica chinesa visa
único. O primeiro foi criado em 1951 logo após a revolu-
a corrigir distorções e preparar o país para a nova fase do
ção, quando o país já possuía cerca de 550 milhões de
desenvolvimento, esboçados já para o próximo plano de
habitantes. O segundo foi instituído em 1979 quando o
desenvolvimento quinquenal de 2016-2020. A primeira
contingente já beirava 1 bilhão de pessoas. Tratava-se,
distorção é o descompasso entre o número de homens e
portanto, de um gigantesco desafio para administrar o
mulheres que hoje é de 105 homens para cada 100 mu-
crescimento e as migrações da população, cujos resulta-
lheres na China. Como a tradição chinesa dá preferência
dos foram bastante satisfatórios – embora não sem con-
aos filhos homens como provedor do cuidado dos idosos,
tradições. O hukuo evitou a migração desordenada e o
o resultado foi, à margem da lei, o abandono de meninas,
ainda maior rebaixamento do valor da força de trabalho.
os abortos seletivos e até os casos de infanticídio femini-
Combinado com a política do filho único e um conjunto de
no. O segundo é o acelerado envelhecimento populacional
ações voltados ao planejamento do espaço urbano, como
que já passou de 11% da população com mais de 65 anos
as limitações à especulação imobiliária e as políticas ha-
e, estima-se, poder chegar a um terço com mais de 60%
bitacionais e de mobilidade urbana, tais ações evitaram o

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Historicamente, deve-se sublinhar que o objetivo de


planejar a dinâmica demográfica chinesa foi bem-
sucedido por duas ações estruturais do governo

em 2050. Aliás, o desequilíbrio populacional decorren- crescimento populacional, em função da melhora das
te do envelhecimento, com a crescente demanda de condições econômicas, do avanço da urbanização e da
recursos públicos para suprir sistemas previdenciários difusão da escolarização. Ou seja, a atual redução do
e de saúde, talvez seja um dos grandes desafios da número de filhos depende menos das restrições e mais
humanidade para o século XXI. Para a China, que está do nível de desenvolvimento e do consequente plane-
em busca da construção de um Estado de Bem Estar, se jamento familiar. À maneira dos países desenvolvidos,
a transição demográfica deverá, em breve, demandar
trata de um desafio de dimensões gigantescas.
políticas natalistas mais ativas. Enfim, são novos desa-
Sendo assim, o afrouxamento das restrições à na- fios convergentes com a nova etapa de desenvolvimento
talidade deverá ser insuficiente para a retomada do que a China está adentrando. ■

Expediente
109
Coordenadora do curso: professora doutora Gabriela Mezzanotti

Editor da coluna: professor doutor Bruno Lima Rocha

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PUBLICAÇÕES

Migrantes por necessidade:


o caso dos senegaleses
no Norte do RS

Cadernos IHU ideias, em sua


232ª edição, publica o artigo
Migrantes por necessidade: o
caso dos senegaleses no Norte
do RS, de Dirceu Benincá e Vâ-
nia Aguiar Pinheiro.

O texto aborda a situação dos


senegaleses que vivem na cida-
de de Erechim, Rio Grande do
Sul, feitos migrantes em função
110 do trabalho. As adversidades
experimentadas no país de ori-
gem, na viagem e no novo meio
social misturam-se à esperança
de uma vida melhor. Após situar
o fenômeno migratório no con-
texto da globalização neolibe-
ral, destacam-se aspectos da
identidade dos senegaleses. Na
sequência, são analisadas algu-
mas das dificuldades enfrenta-
das por eles, sobretudo relacio-
nadas ao trabalho, ao idioma,
à distância da pátria-mãe e à
inserção na sociedade local.

A versão digital está disponível em http://bit.ly/1R8BIyW

Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias podem ser adquiridas diretamente no
Instituto Humanitas Unisinos – IHU ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos.br.
Informações pelo telefone 55 (51) 3590 8247.

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PUBLICAÇÕES

Ética e subjetividade: análise da


estrutura subjetiva da vida ética
segundo Lima Vaz

Cadernos IHU em sua


52ª edição publica Ética e
subjetividade: análise da
estrutura subjetiva da vida
ética segundo Lima Vaz, de
Roseane Welter.

O centro da reflexão va-


ziana é o homem. Pensar a
subjetividade significa com-
preender o sujeito na sua
essência para então com-
preender o mundo no qual
ele está inserido e onde 111
se encontra em constante
relação com o ethos. Para
isso, não basta pensar o in-
divíduo como agente ético,
mas é preciso adotar uma
postura de vida pautada
na Ética, viver eticamente
tanto em nível individual
como em nível social. Ser
uma pessoa ética implica
coerência não só nas ações,
mas sobretudo na vida. A
pesquisa apresenta o itine-
rário de Henrique Cláudio
de Lima Vaz sobre a estru-
tura subjetiva da vida ética seguindo o movimento dialético do operar da Razão prática. O trabalho é
organizado da seguinte forma: o primeiro capítulo destaca a relação de Lima Vaz com a Ética filosófica
e os três capítulos seguintes abordam a Estrutura subjetiva da vida ética, objeto da pesquisa, a partir
do percurso do silogismo prático de Lima Vaz sobre a vida ética: universalidade, particularidade e
singularidade.

A versão digital está disponível em http://bit.ly/1SmDafs

Esta e outras edições dos Cadernos IHU podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas
Unisinos – IHU ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos.br. Informações pelo telefone 55 (51)
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PUBLICAÇÕES

O pacto das catacumbase


a igreja dos pobres hoje!

Cadernos Teologia
Pública, em sua 103ª
edição, traz o artigo
O pacto das catacum-
bas e a Igreja dos po-
bres hoje!, de Emerson
Sbardelotti Tavares, da
Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo
– PUCSP.

O texto apresenta a
importância do “Pac-
112 to das Catacumbas: a
Igreja Servidora e dos
pobres”, que é um do-
cumento redigido e as-
sinado por 40 padres
conciliares – Bispos lati-
no-americanos e brasileiros – do Concílio Ecumênico Vaticano II, no dia 16 de novembro de 1965, pouco
antes da conclusão do Concílio. Foi firmado após a Eucaristia na Catacumba de Santa Domitila, fora dos
muros de Roma. Os autores comprometeram-se a levar uma vida de pobreza, rejeitar todos os símbolos
ou os privilégios do poder e a colocar os pobres no centro do seu ministério pastoral. Comprometeram-se
também com a colegialidade e com a corresponsabilidade da Igreja como Povo de Deus, e com a abertura
ao mundo e a acolhida fraterna, inspirados pela ideia da Igreja dos Pobres de São João XXIII e pelo espírito
profético de Dom Helder Camara. Este pacto influenciou a nascente Teologia da Libertação, pois foi fruto
de uma intensa participação com o olhar e o coração no mundo dos pobres e na colegialidade. Os pobres
se sentiram sujeitos e agentes de sua própria história, constituindo inclusive um novo jeito de ser Igreja a
partir das pequenas comunidades eclesiais de base onde a centralidade da Palavra de Deus germinava fé e
vida, concretizando na prática as propostas da Igreja Povo de Deus e da colegialidade.

A versão digital está disponível em http://bit.ly/1lMBQIr

Esta e outras edições dos Cadernos Teologia Pública podem ser adquiridas diretamente no Instituto
Humanitas Unisinos – IHU ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos.br. Informações pelo telefone
55 (51) 3590 8247.

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PUBLICAÇÕES

Capitalismo biocognitivo
e trabalho: desafios à
saúde e segurança

Cadernos IHU ideias, em sua 233ª edi-


ção, publica o artigo Capitalismo bio-
cognitivo e trabalho: desafios à saúde e
segurança, de Elsa Cristine Bevian.
O capitalismo biocognitivo que esta-
mos vivenciando afeta de forma signi-
ficativa o mundo do trabalho, a saúde
e a segurança dos trabalhadores. Rela-
ções de resistência são urgentes, pois
os trabalhadores vivenciam situações
contraditórias diante da pressão e do as-
sédio moral que sofrem. O adoecimento
físico e mental dos trabalhadores, ví-
timas das constantes reestruturações,
precarização dos processos e relações
113
nos ambientes de trabalho, geram pre-
ocupação, especialmente com o sofri-
mento causado. Este adoecimento é
consequência da competição e concor-
rência mundial exacerbadas – todas as
empresas querem produzir mais, lucrar
mais, em menor tempo e com menor
custo, exercendo pressão sobre os tra-
balhadores e as trabalhadoras para que
produzam em ritmo alucinado, além dos
seus limites físicos e mentais. É a mais-
-valia a qualquer custo, sem se importar
com a dignidade dos trabalhadores. Esta
condição humana de falta de liberdade
afetou a construção da identidade social
dos trabalhadores e, em termos históri-
cos, alcança a potencialização da alie-
nação no estágio atual do capitalismo.
O fenômeno social do adoecimento dos
trabalhadores aponta contradições e
conflitos sociais, e, no caso das ciências
humanas, que estão atentas a como os fatos se apresentam, por que e para que tornam-se questões interessan-
tes para compreensão e explicação de fenômenos que se relacionam com os destinos dos trabalhadores na vida
em coletividade.
A versão digital está disponível em http://bit.ly/21jDgKR
Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas Uni-
sinos – IHU ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos.br. Informações pelo telefone 55 (51) 3590 8247.

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Retrovisor
Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

A experiencia missioneira: territorio, cultura e identidade


348 – Ano X – 25.10.2010
Disponível em http://bit.ly/1N65233
Em outubro de 2010 foi realizado o XII Simpósio Internacional IHU – A experiên-
cia missioneira: território, cultura e identidade, promovido pelo Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, em parceria com o PPG em História, da Unisinos. A edição de
número 348 da revista IHU On-Line debate esta experiência, nos 400 anos da fun-
dação das primeiras reduções da Província da Companhia de Jesus do Paraguai. A
experiência dos Trinta Povos das Missões formou um país que durou muito mais do
que muitas nações modernas (aproximadamente 160 anos, até a expulsão dos je-
suítas, em 1768), e legaram ao território brasileiro sete desses povos. Contribuem
no debate da experiência missioneira, Guillermo Wilde, Adone Agnolin, Bartomeu
Melià, Thais Luiza Colaço, Paula Montero, Giovani José da Silva, Karl-Heinz Arenz,
Alessandro Zir, Ernesto Maeder, Ana Lúcia Goelzer Meira, José Alves de Souza Jr.,
Fernando Torres Londoño e Martinho Lenz.

Sumak Kawsay, Suma Qamana, Teko Pora. O Bem-Viver


Edição 340 – Ano X – 23.08.2010
115
Disponível em http://bit.ly/1MRpPYX
Nos últimos anos, diversos países latino-americanos, como Equador e Bolívia,
incorporaram, nas suas constituições, o conceito do bem-viver, que nas línguas
dos povos originários soa como Sumak Kawsay (quíchua), Suma Qamaña (aimará),
Teko Porã (guarani). Para alguns sociólogos e pesquisadores temos aí uma das
grandes novidades no início do século XXI. A edição de número 340 da revista IHU
On-Line, em parceria com escritório brasileiro da Fundação Ética Mundial no Bra-
sil (veja o sítio em http://migre.me/16Mwe), busca compreender melhor a con-
tribuição específica que trazem os povos originários para a crise civilizacional que
vivemos. Participam desse debate Simón Yampara, Pablo Dávalos, Esperanza Mar-
tínez, Katu Arkonada, Tatiana Roa Avendaño, Davi Kopenawa e Quinto Regazzoni.

Em busca da terra sem males: os territórios indígenas


Edição 257 – Ano VIII – 05.05.2008
Disponível em http://bit.ly/1ShWsmo
Os conflitos e dilemas culturais das populações indígenas brasileiras são decor-
rentes de um problema primário: a terra, ou melhor, a falta dela. O tema de capa
da edição número 257 da revista IHU On-Line se inspirou no drama vivido pelos
habitantes da reserva indígena de Raposa Serra do Sol em Roraima. Contribuem
para as discussões Antonio Brand, Paula Caleffi, Aloir Pacini, Egon Heck, Roberto
Liebgott, Iara Bonin, Maucir Pauletti, Sydney Possuelo, Wellington Gomes Figuei-
redo, Pedro Ignácio Schmitz e Jairo Rogge.

SÃO LEOPOLDO, 30 DE NOVEMBRO DE 2015 | EDIÇÃO 478


Lançamento do Livro

A recepção do Concílio Vaticano II


Volume I - Acesso à fonte
Coleção Theologia Pública 2015
Prof. Dr. Cristoph Theobald

Data: Quarta-feira, 09 de dezembro de 2015


Horário: 17 horas às 18 horas
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Saiba mais: ihu.unisinos.br

O livro estará disponível para compra no local do evento

Publicações
Migrantes por necessidade:
O caso dos senegaleses no Norte do RS
Cadernos IHU ideias, em sua 232ª edição, publica o artigo Migrantes por necessida-
de: o caso dos senegaleses no Norte do RS, de Dirceu Benincá e Vânia Aguiar Pinheiro.
A proposta do texto é abordar a situação dos senegaleses que vivem na cidade de Ere-
chim/RS, feitos migrantes em função do trabalho. Isso tudo insere-se em um fenômeno
migratório no contexto da globalização neoliberal, que traz dificuldades com relação ao
trabalho, ao idioma, à distância da pátria-mãe e à inserção na sociedade local. Mais in-
formações em ihu.unisinos.br/publicacoes.

IHU ideias
Prof. Dr. Bruno Lima Rocha
Data: 03 de dezembro de 2015
Horário: 17h30
Local: Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU
Saiba mais: ihu.unisinos.br/eventos

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