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Sumário

entrevista Arnaldo Antunes

cinema
A TV Encolheu o cinema

meu filme de formação


Danton – o processo da revolução, de Andrzej Wajda

retrato do artista Adriana Zapparoli

coluna
Marcia Tiburi
Alcir Pécora
Vladimir Safatle

dossiê O mal-estar na civilização do DSM-5


Apresentação
O poder da psiquiatria
O futuro de uma classificação
Uma alma não se fatia como se fatia um corpo
O sequestro da neurose
O DSM e a crise da psiquiatria

perfil Reinaldo Moraes

livros
Uma possível Ana Cristina Cesar
Labirintos da crítica literária
Fragmentos de um livro invisível

oficina literária
Antonio Kapp dos Santos

colaboraram nesta edição


entrevista Arnaldo Antunes
As canções do disco
MARCUS PRETO

Antes que ele mesmo pudesse imaginar, Arnaldo Antunes estava em


estúdio registrando uma leva de canções que havia composto
durante as férias. O plano inicial era lançar um álbum apenas em
2014. Mas o entusiasmo com a produção recente era tão intenso que
resolveu registrá-la nos intervalos da turnê que então corria o Brasil.
Gravou as novas canções às prestações, conforme arrumava um
tempo no cronograma dos shows. E, invertendo o método
tradicional, optou por também mostrá-las ao público aos
pouquinhos. Aproveitou as facilidades da internet para divulgar,
uma por mês, quatro das músicas que integrariam o álbum.
Disco , como foi batizado o trabalho completo (são 15 faixas),
chega, enfim, às lojas. Traz canções inéditas escritas por Arnaldo
Antunes com seus colaboradores de sempre, como Nando Reis e
Marisa Monte, e com parceiros recentes, como Luê, Felipe
Cordeiro, Hyldon, Céu e Caetano Veloso.
Interessante o esquema de ir lançando as faixas avulsas, criando já
com a resposta do público. Mas havia sempre o risco: e se o
interesse do público pelo álbum se esvaziasse durante o processo?
“Inicialmente, eu também tive esse medo”, admite Arnaldo. “Tanto
que ia lançar seis singles, mas pensei nessa esvaziada e diminuí para
quatro. As pessoas podiam dispersar. Espero que não tenham se
dispersado, mas se despertado para o disco.”
Em entrevista recente, perguntei a Luiz Tatit como os
compositores da nova geração da música brasileira estavam
lidando com a poesia concreta. Ele respondeu que, embora
Caetano Veloso tenha sido um dos primeiros a casar
concretismo e canção popular, você é a referência forte para
esses jovens. Porque seu método de lidar com o concretismo na
música resulta em algo realmente pop, que pode ser consumido
por todo mundo. Esse tema ainda está entre os seus interesses?
É um deles. Foi a poesia concreta que me nutriu a querer fazer
poesia. Ou, se eu não puder dizer isso, posso dizer que é uma das
coisas que me incentivaram muito na adolescência. Mas acho que
essa relação com a poesia concreta já está incorporada e
disseminada em várias fontes da música popular brasileira. É um
dado que já se integrou à cultura contemporânea. Não existe mais
aquele trauma que havia nos anos 1950.
Que trauma?
Diziam que aquilo não tinha emoção, que não era lírico, essa
bobagem toda. Tinha muita resistência contra o lado mais
formalista, mais construtivista da poesia concreta. Mas a minha
geração já recebeu isso com muito mais naturalidade, vendo a
potência daquilo sem ter vivido o problema que aquilo causou para
os criadores.
Desse seu novo álbum, pode-se dizer que a canção “Muito muito
pouco” tem essa raiz concretista?
Não sei se dá para chamar uma letra como “Muito muito pouco” de
poesia concreta. O que teria mais a ver com poesia concreta, por
exemplo, é a canção “O quê”, do tempo dos Titãs: essa, sim, tem um
aspecto construtivista, criei inclusive uma versão visual para ela,
circular. É um poema visual muito devedor à poesia concreta.
“Muito muito pouco” é uma letra enumerativa, mas que tem um
lado ácido, também de crítica social e comportamental. É um
comentário sobre desperdício e escassez, sobre miséria e fartura.
Isso em várias áreas. Existe aí uma série de fontes além da coisa
mais formalista.
Você falou em crítica social. Músicas como “Querem mandar” e
“Dizem (Quem me dera)” poderiam ter sido inspiradas pelas
manifestações políticas dos últimos tempos. Foram?
Há nelas uma afinidade com o que a gente viu nas manifestações,
mas as canções foram feitas nas férias, antes de tudo aquilo
acontecer nas ruas. “Dizem” tem ao mesmo tempo uma coisa
esperançosa e desesperançada. Não sei como explicar isso. Mas é
certo que o discurso que ela traz faz mais sentido agora, por conta
do que aconteceu e está acontecendo.
Você começa a canção com o verso “O mundo está bem melhor/
Do que há cem anos atrás, dizem”. O mundo está bem melhor
hoje do que há dez anos?
Não sei dizer. Melhor em que sentido? É claro que morre muito
menos gente, mas temos problemas enormes. A gente nunca
enfrentou uma crise ambiental nessas proporções. E ainda estamos
vendo guerras. Sou esperançoso em relação ao mundo, mas a
música não pode ser. A música joga a interrogação.
“Sentido”, parceria sua com Nando Reis, é antiga?
Sim. Mas não é da época dos Titãs. Eu já tinha saído da banda.
Assim que o Marcelo Fromer morreu, encontrei o Nando e entreguei
essa letra para ele. Tinha escrito pensando na morte do Marcelo.
Sentamos uma noite em um hotel e terminamos. Os Titãs estavam
preparando um disco, o Nando ainda estava na banda, mas eles não
se interessaram. Agora, aproveitei a bipolaridade para resgatar a
música. Como também resgatei “Fogo”, que fiz com o João Donato
há mais de dez anos.
A versão que você fez para “Mamma”, do Gilberto Gil, é dessa
mesma época?
Por aí. Adoro esse disco de Londres do Gil [Gilberto Gil , de 1971,
gravado no exílio do cantor, em que todas as letras foram escritas
em inglês]. Ouvi muito na minha adolescência, ouço até hoje.
Pensei que ninguém tinha feito nenhuma versão dessas coisas para o
português. Tentei essa e saiu. Não cheguei nem a mostrar ao Gil na
época em que a fiz, mas quando o Lenine estava produzindo o
segundo disco da Maria Rita, mandei essa versão, achando que faria
sentido ela cantar isso para a Elis. Uma afirmação de autonomia
diante da presença da Elis. Mas acho que ela não se identificou.
Acabou não gravando.
Seu álbum se chama Disco a arte da capa e da contracapa
remetem aos formatos do LP e ao CD. Isso recola em pauta a
questão: “fazer ou não fazer um álbum?”. Ou: “alguém ainda
compra discos?”. Tatá Aeroplano, um dos nomes importantes
da nova geração paulista, foi direto ao ponto: “Lembra das
bandas que, no começo dos anos 2000, decidiram que só
lançariam música pela internet? Alguma delas sobreviveu?”.
É verdade [rindo ]. As bandas não sobreviveram e os discos delas
não existiram. Para o artista, é uma liberdade enorme não ter que ter
um conjunto de canções pra poder lançar. Poder soltar uma, duas,
três, quatro – seja na internet, seja em um single. Como fizeram
Tom Zé e Roberto Carlos. É uma liberdade a mais. Ao mesmo
tempo, tenho pena de quem só consome faixas avulsas. É uma perda
conceitual e também ritualística. Ir ali, colocar o álbum para tocar –
mesmo que seja em formato mp3 – é muito diferente de ouvir só no
“shuffle”. Acredito que um formato não vai substituir o outro. Eles
convivem. Até o vinil está de volta. Temos mais alternativas hoje, e
isso é legal.
Nando Reis diz que faz músicas só para elas se transformarem
em álbuns, que pensa as canções em conjunto desde o início. E
você? Como começou a criação de Disco , por exemplo?
Comecei a compor coisas muito díspares. Eu tinha um corpo de
canções que queria fazer com o [pianista] Daniel Jobim e o
[violonista] Cesar Mendes, principalmente. Depois, chegou o
[baixista] Dadi. Mas, para essas canções, eu pensava em uma praia
de sonoridade bem cool . Ao mesmo tempo, compus uns rocks
pesados, como “Ah, mas assim vai ser difícil” e “Sentido”. Eles
eram um contraponto àquela primeira leva de canções, quase o
oposto delas. Pensei então fazer um CD com o conceito de lado A e
lado B, como no vinil: um muito cool e outro bem pesado. E chamar
o disco de Bipolar .
Bipolar ? A ideia é boa...
Era a ideia do ano passado. Depois, nas férias, fiz uma viagem para
Ilha Grande, quando encontrei Marisa Monte e compus as músicas
que acabariam se tornando o eixo desse trabalho. São aquelas três
parcerias com Marisa e Dadi e mais algumas que fiz sozinho, como
“Muito muito pouco”, “Ah, mas assim vai ser difícil” e “Oxalá
chegar”. Todas essas têm uma cara mais pop, que não se encaixava
em nenhum lado do bipolar. E agora? Chamar o disco de Tripolar ?
E a ideia dos dois polos ficou pra traz. Terminei fazendo um disco
mais misturado e menos conceitual. Assim, coube minha parceria
com a Céu e o Hyldon – uma delas, a gente já tem umas seis ou sete
músicas juntos. E a que fiz com o Caetano...
Você está se referindo a “Morro, amor”, né? O título dessa sua
letra apresenta essas duas palavras, “morro” e “amor”, uma ao
lado da outra. Isso tem muito a ver com a fase atual do Caetano
Veloso, que anda cantando que está muito triste, que o lugar
mais frio do Rio é o quarto dele...
Tem a ver, sim. Ainda que a música que ele fez para a minha letra
tenha resultado em uma sonoridade muito diferente da que o
Caetano vem usando nos últimos discos. Ele fez uma canção. Essa
parceria foi feita para o filme Romance , do Guel Arraes. Mas a
música não entrou. Chegaram a gravar, mas desistiram. A [cantora]
Mariana de Moraes gravou, mas o disco dela não saiu ainda. Acabei
gravando e é capaz de sair antes da gravação dela. Mas não é um
problema existirem duas gravações da mesma música ao mesmo
tempo.
E mais parcerias se abrem na faixa “Ela é tarja preta”, escrita a
dez mãos com Betão Aguiar, que toca na sua banda, e com os
paraenses Luê, Manoel Cordeiro e Felipe Cordeiro. O Pará
entrou, merecidamente, no radar da música pop brasileira –
como havia acontecido antes com a cena de Recife e a de São
Paulo. Que fatores você acha que fazem uma região, de repente,
se destacar?
Eu não gosto de pensar que o momento agora é da “bola da vez”,
que o que veio antes “já era”. Pernambuco continua nos dando
coisas geniais – o Zé Cafofinho, o China, por exemplo. Aquilo não
para, tem novas gerações muito boas depois de Mundo Livre S/A e
Nação Zumbi. A mídia elege coisas, mas eu sempre relutei com essa
ideia de “a onda agora é isso”. O fato de ter escrito essa música com
eles foi casual. Eu tinha participado do disco da Luê produzido pelo
Betão Aguiar, que toca comigo. E ele trouxe o Felipe aqui em casa.
Fizemos duas músicas, que vão estar no disco do Felipe. Mas gostei
tanto de “Ela é tarja preta” que resolvi também gravar. Mas não tem
esse olhar de “vou gravar uma tecnobrega porque é a onda”. Fica
parecendo um pouco assim...
Claro que não. Eu conheço o seu trabalho. Pergunto de uma
maneira menos agressiva do que isso. Assim: tem horas que o
Brasil, seja pela influência da imprensa ou por algum fator
imponderável, começa a olhar para um lugar que sempre esteve
ali, mas nunca havia sido notado com a devida atenção.
Que bom que aquilo tem visibilidade agora, porque estão
acontecendo coisas interessantes por lá já faz tempo. Mas, ao
mesmo tempo, sempre foi assim: sempre tem uma coisa
hegemônica. Foi assim com a descoberta da lambada, com o axé
music, com a música dos anos 1980. Acho isso chato. A coisa
hegemônica é chata. Não tem a ver com quem está preocupado em
fazer arte. Quem está surfando atrás de uma onda sempre vai chegar
depois, porque quando chega, aquela onda passou e já é outra.
Então, sempre relutei com esse tipo de ideia, pelo menos como
direção do meu trabalho. Eu me interesso mais pelas exceções do
que pela onda do momento.
Entendo. Mas independentemente da onda, a cena paraense foi
finalmente reconhecida. E isso é muito bom.
Tomara que essas coisas tenham o reconhecimento devido. A
programação das rádios hoje em dia está muito distante do que eu
gosto, musicalmente. Esse papel hoje passou para a internet. A
internet é onde eu vou procurar as músicas das novas gerações que
me interessam. Mas não está tudo pronto ali. As pessoas precisam
procurar, cavar. Então, minha torcida é para que as coisas cheguem
ao público. Isso, em parte, está acontecendo. Mas as rádios
deveriam se abrir mais para isso.
cinema

A TV Encolheu o cinema
FRANTHIESCO BALLERINI

Robert Mckee é uma espécie de guru dos roteiristas de Hollywood.


Em seu portfólio, alunos seus já levaram mais de 50 estatuetas do
Oscar e 170 prêmios do Emmy. Entre seus ex-alunos está, por
exemplo, Peter Jackson (O senhor dos anéis ). Em resumo: quando
os produtores de Hollywood estão em apuros, chamam Robert
Mckee – hoje com 71 anos – para ajudar a melhorar os roteiros de
filme.
No entanto, é justamente esse guru do cinema norte-americano
que vem bradando, nos últimos anos, a ideia de que Hollywood está
em crise de criatividade e que a TV dos EUA vive sua era de ouro.
Isso mesmo, o centenário cinema norte-americano – responsável por
clássicos memoráveis como Cidadão Kane (1941) e O poderoso
chefão (1972) – é hoje menos importante do que a “telinha”, voltada
exclusivamente para o lucro e o sucesso de audiência.
Quando e por que Hollywood inverteu a posição com a TV nos
Estados Unidos? A resposta é mais longínqua do que a própria
existência da televisão. E um dos primeiros “culpados” disso se
chama Charles Chaplin.
Chaplin foi uma dos primeiros profissionais ditos “completos” de
Hollywood. Ele era ator, diretor, roteirista na maioria das vezes e,
mais importante, produtor de seus próprios filmes. Isso quer dizer
que ele controlava a ideia (roteiro), a transformação da ideia em
audiovisual (direção), a grana do filme (produtor) e ainda executava
de frente tudo isso (ator). Quando criou seu tipo memorável,
Carlitos, antes mesmo do surgimento do som, fez tanto sucesso com
o personagem que decidiu repeti-lo em novas situações. Estava,
talvez sem querer, solidificando o conceito de franquia no cinema:
um produto (personagem) repetido diversas vezes em novas
embalagens (história, cenários, coadjuvantes distintos). Mas embora
ele tenha feito isso nos anos 1910, as franquias em Hollywood só
foram entrar com força nos anos 1970, especialmente a partir de
Star Wars (1977), de George Lucas.
E o que a franquia tem a ver com a crise criativa de Hollywood?
Tudo. Se um estúdio – ou todo o sistema hollywoodiano – passa por
uma crise, já que Hollywood visa o lucro e seus diretores não
recebem ajuda do governo – como nos países cujo cinema é
subsidiado, como o Brasil –, os produtores de Hollywood tendem a
concentrar seus recursos financeiros nos projetos com menor risco
possível, ou seja, nas franquias. E como Hollywood até agora não se
recuperou totalmente da crise financeira de 2008, são as franquias
que explicam por que temos visto tão poucos roteiros originais no
cinema e muitos Se beber não case 2 , Kung fu panda 2 , Harry
Potter 8 , Madagascar 3 etc. Afinal de contas, se deu certo uma vez,
por que não daria certo novamente? E então a franquia é explorada à
exaustão – a ponto de se dividir um livro em dois para lucrar mais,
como ocorreu com Harry Potter e Crepúsculo .
Robert Mckee já citou, em algumas entrevistas, que acha que
Hollywood está demasiadamente politicamente correto, com medo
de ofender – um receio que a arte não pode ter. No entanto, embora
a TV tenha fama de ser mais comercial, é ela quem tem tentado, nos
EUA, abarcar vários níveis sociais e seus complexos gostos. Ele diz
que os roteiros para TV no país não têm limitação de assuntos,
pode-se falar de política, sexo, religião e corrupção de forma
ousada, pois como a competitividade entre as produtoras de
conteúdo para TV é alta nos EUA, todos querem fisgar o público
alheio. Ganha aquele que seduzir o público logo nos primeiros
episódios, evitando o cancelamento da série e, se seu ritmo
continuar surpreendente, garantindo contratos para mais e mais
temporadas.
TIME DE ROTEIRISTAS
Mas essa não é, de fato, a principal razão do sucesso da TV nos
EUA, afinal de contas, os estúdios de Hollywood também
competem entre si toda semana. O que explica, então, tantos astros
do cinema quererem migrar para a TV – um movimento antes
impensável até os anos 1990 – e, inclusive, diretores e roteiristas
abandonarem a telona e irem para a telinha? Uma das razões pode
ser o ego.
Enquanto o cinema alimenta o glamour profissional – graças ao
sucesso comercial, de crítica e de festivais como o Oscar – nas
séries de TV, o ego do roteirista deve ser deixado em segundo plano.
Não se faz o que quer na TV, aliás, não se faz sozinho. Enquanto os
filmes são escritos quase sempre por um roteirista e alguns
assistentes, as séries de TV nos EUA são escritas a seis, oito e até
dez mãos, todas de pesos iguais. Um time de roteiristas pensando
junto nos detalhes de cada minuto, nas reviravoltas da trama e dos
personagens.
Além disso, o tempo está a favor da TV e contra o cinema. É
preciso tempo para dar profundidade à personalidade dos
personagens principais, só que o cinema tem pouco mais de duas
horas para fazer isso – e quase nunca faz, uma vez que a linguagem
norte-americana privilegia a ação e a aventura, nem sempre a
densidade do personagem. Já a televisão tem tempo de sobra para
ter tudo isso. Além de oferecer o prato preferido do público norte-
americano – cenas de ação –, as séries também viciam o
telespectador, pois, em vez de duas horas, ele acompanha a “vida”
dos personagens por quase 100 horas – dependendo do número de
temporadas de uma série. Resultado: se a série tem um bom time de
roteiristas, eles serão capazes de brincar com o tempo como se fosse
um jogo de xadrez ( Lost ), imaginar o fisicamente inimaginável nas
mãos humanas ( Fringe ), envolver o público no passado conturbado
do protagonista ( Mad Men ), acompanhar amigos e a interação de
suas personalidades ao longo dos anos ( Friends ), ou mesmo não
falar sobre nada especificamente ( Seinfeld ). As chances de sucesso
então são altas, pois é como se o público se sentisse “íntimo” de
quem eles conhecem tão bem porque ficaram “perto” por horas.
O Brasil vive uma situação quase inversa. Enquanto é no cinema
que vemos ousadia de linguagem, como em Cidade de Deus (2002),
Amarelo manga (2002), Jogo de cena (2007) e, recentemente, O
som ao redor (2012), as novelas brasileiras minguam audiências
cada vez menores. As razões podem ser muitas: o medo de chocar e
afugentar o público – o beijo gay que até hoje não saiu na TV Globo
– o sistema de escrita das novelas – calcadas na mão de um único
autor e alguns assistentes de peso menor – ou talvez porque toda a
produção fica nas mãos de poucos (Globo e Record), sufocando a
saudável competitividade das produtoras norte-americanas, ávidas
para emplacar seus produtos no horário nobre televisivo de lá.
Ainda assim, nem mesmo a televisão brasileira pode mais se dar
ao luxo de fazer o público esperar nove meses para descobrir “quem
matou Odete Roitman”. É muito pouco, quase nada, para quem
dedica tantas horas em frente a um produto. É onde as séries norte-
americanas arrasam: matam personagens principais no meio da
temporada, a gravidez esperada vem no segundo episódio, a união
do casal está logo ali e os mistérios são desvendados ao longo de
todos os episódios. Com muitas mãos, dinheiro, sede de ousar e
menos egos, as séries televisivas dos Estados Unidos justificam,
quase sempre, o simples ato de ficar em casa.
meu filme de formação
Danton – o processo da revolução, de
Andrzej Wajda
MANUEL DA COSTA PINTO

Quando pensa nos filmes fundamentais para sua formação


profissional, Manuel da Costa Pinto coloca no topo da lista dois
longas-metragens italianos. São eles, A terra treme (1948) e E la
nave va (1983), de Luchino Visconti e Federico Fellini,
respectivamente.
Porém, é o longa do diretor polonês Andrzej Wajda que faz o
crítico literário falar de forma apaixonada e entusiasmada. Manuel
tinha cerca de 16 anos quando assistiu Danton – o processo da
revolução no cinema pela primeira vez. De lá pra cá, o filme já foi
revisto incontáveis vezes. “É muito diferente a relação com um
filme reconhecido dentro de uma tradição estética que você valoriza
e um filme importante para você pessoalmente”, diz.
Danton remonta o momento do terror da Revolução Francesa,
quando os jacobinos Danton (Gérard Depardieu) e Robespierre
(Wojciech Pszoniak) estão disputando o poder entre si. “O filme
narra esse momento histórico decisivo e apresenta como contraste a
ideia de uma razão de Estado fria e abstrata, que dita os destinos da
história, e uma visão menos idealista e abstrata, que defende o
homem concreto com suas contradições”.
Manuel entende que essa contradição aparece no filme na forma
dos dois protagonistas: um Robespierre frio, distante e racional
contracena com um Danton sensual, voluptuoso e detentor de uma
relação sensorial com o mundo.
“Essa contraposição entre razão de Estado e liberdade individual é
algo que cabe no contexto em que o filme foi feito, quando havia
um conflito entre a razão de Estado do regime pró-soviético da
Polônia e o Sindicato Solidariedade, que reivindicava os direitos
individuais dos trabalhadores. Essa complexidade acrescenta ao
filme uma coisa que me interessa. Um bom filme histórico nunca é
apenas um filme histórico, mas é um filme sobre o presente. Essa
foi uma lição que Danton me deu”.
Para seu deleite, quando cursava Jornalismo na PUC, um
professor chileno, chamado Jorge Rafael, trouxe o filme para a sala
de aula como forma de explicar a ação do acaso no processo
histórico. “Em geral, os marxistas pensam a história como uma
sucessão inevitável. Existem personalidades históricas, mas o que
conta são as engrenagens mais abstratas e mecânicas”.
Ele recorda que, para explicar esse conceito, o professor trouxe
como exemplo uma de suas cenas preferidas: no momento em que
está sendo julgado no tribunal, Danton perde a voz. Puro acaso.
“Toda essa passagem do tribunal é, para mim, o papel mais
importante e brilhante da carreira de Gérard Depardieu. Ele vai se
dando conta de que sua voz está sumindo e que irá sucumbir à razão
do adversário político. Esse acaso determina o rumo da história, ou
seja, ela não é tão previsível como querem os marxistas. A cena é de
uma dramaticidade shakespeariana. Me enriquece cada vez que eu a
vejo. Mês passado mesmo, eu estava revendo esse monólogo. É um
dos momentos mais magistrais de Danton ”.
retrato do artista Adriana Zapparoli
A poesia como um aprendizado de
esmeraldas vivas
CLAUDIO DANIEL

Adriana Zapparoli é uma autora que se destaca no cenário da nova


poesia brasileira por sua capacidade imaginativa, que incorpora
referências mitológicas de diferentes culturas do Ocidente e do
Oriente, uma variedade de plantas, insetos e feras reais ou
inventadas, nomes científicos, extraídos do vocabulário biológico, e
formas inusitadas de representação do amor erótico e das relações
interpessoais. Sua mitologia pessoal é desenvolvida em formas
poéticas híbridas, com destaque para o poema em prosa, gênero
literário criado no século 19 pelo francês Charles Baudelaire que
dilui as balizas tradicionais entre verso e narrativa ficcional. A
palavra híbrido , como se sabe, deriva do grego hybris , que
significa orgulho, excesso, desmedida, violação das leis naturais (no
caso de seres resultantes do cruzamento de indivíduos de espécies
diferentes). A escrita híbrida, assim como acontece na biologia, é
uma forma de transgressão, de superação de limites, normas,
probabilidades, sem temor ao sacrilégio, ao monstruoso ou ao
sublime. Em A flor-da-Abissínia , primeiro título impresso da
autora, publicado em 2008, na forma de plaquete (publicação de
poucas páginas, de produção artesanal ou gráfica, geralmente com
elaborado projeto de arte), somos surpreendidos pelo diálogo
vocabular entre os textos escritos originalmente em português e as
traduções para o espanhol realizadas por Jair Cortés e Berenice
Huerta, bem como pelo diálogo visual dos poemas com o projeto de
arte e a ilustração de Francisco dos Santos, que valorizam a plaquete
como um objeto estético. Compõem o volume seis poemas breves,
escritos ao longo de sete dias, na forma de um diário íntimo, em que
as sensações eróticas são descritas em delicadas sinestesias e
inusitadas associações de termos: “uma flor no inferno / levemente
molhado. / a sua parte mais fina, em límpida essência turmalina...”,
ou ainda com o brutalismo do “falo eletrocutado” e da “sesha em
corrente lunar” (Sesha é o nome do deus-serpente indiano que serve
de leito a Vishnu, o criador e sustentador dos mundos). Referências
indianas aparecem ainda nos poemas mêntula e yoni , sendo essa
última palavra o termo sânscrito que designa a vulva. Cocatriz ,
plaquete publicada no mesmo ano que A flor-da-Abissínia , é um
monólogo lírico que explora a dimensão musical das palavras,
utilizando recursos como a aplicação de cores, fontes, itálicos e
negritos para registrar sutilezas sonoras e mudanças de timbre,
como em uma partitura musical. A estrutura melódica e visual do
poema define uma sintaxe própria, em que as linhas funcionam
como frases de um bizarro recitativo cantado em concerto: “... unha
do polvo-gestante / de colmo de fruta, açafrão-de-outono e coleção
de zamu de / um mundo impiedoso, a pleura vista por dentro / e pelo
entorno, escarra-ouro; não... ainda que se sin- / ta náusea logo na
curva entre pérola e safira”. A estranheza semântica da poesia de
Adriana Zapparoli e sua voluntária dissonância, que pode chocar
leitores habituados à lírica tradicional de uma Cecília Meireles,
encontram poucos paralelos na literatura brasileira; podemos pensar
em Sousândrade, Kilkerry, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, seus
antepassados espirituais.
FÁBULAS LÍRICAS
Violeta de Sofia , a terceira plaquete de Adriana Zapparoli,
publicada em 2009, é uma narrativa poética dividida em oito partes,
em que a autora fabula o desencontro amoroso de dois personagens,
Sofia e Angel-blue: contrariando o horizonte de expectativas do
leitor, não há aqui os elementos tradicionais que compõem uma
trama ficcional, como a delimitação de tempo e espaço e as
peripécias; toda a “ação” do poema se resume a descrições
metafóricas de um universo de sensações corporais e oníricas: “...
em peito de roda- / moinho, cata-vento enguia, spathula , / em
declínio, em pé espadrille , omoplata / de fruta, de cana-de-açúcar”.
A linguagem densa e hermética da autora, presente em quase todas
as suas plaquetes (às quais devemos também acrescentar Tílias e
tulipas , de 2010, e Lontra corola libido , de 2012) logo tornou-se
um aparente beco sem saída: como prosseguir a escrita criativa sem
cair na repetição de suas primeiras conquistas? A resposta a esse
difícil desafio foi Flor de lírio, sua plaquete mais recente, publicada
em 2012, em que a poeta adota um novo vocabulário, incorporando
a gíria e o palavrão em formas poéticas mais concisas, próximas ao
minimalismo, sem evitar metáforas como “corvo apodrecido”,
“peras adolescentes”, “luciferino em vômito”, “peixes-pênis” e
“nocaute relâmpago”. As metáforas relacionadas com a anatomia
estão mais presentes nessa coleção de poemas, em que nos
deparamos com “fístula / cílio e pecíolo / púbis...”, “entre falanges
pontiagudas, a tíbia e a patela”, “vagina suas luzes / de couro” e “o
canto da costela, / de uma epiderme que nunca sossega”. As cinco
plaquetes de poemas de Adriana Zapparoli podem ser entendidas
como cadernos de íntimas obsessões, em que a autora, seguindo o
conselho de Vicente Huidobro, intentou criar o seu território poético
com fauna e flora próprias.
O fruto mais maduro de sua literatura, no entanto, é o livro O leão
de Nemeia , publicado em 2011 na coleção Caixa Preta, da Lumme
Editor. Neste livro, vamos encontrar poemas em prosa admiráveis,
em que a poeta, baseada na lógica da metamorfose, cria uma série
de bestas fantasiosas, que recordam os delírios da teratologia de
Lautréamont, como o “escorpião de olhos tangerina”, o “leopardo
rubi”, a andarilha de “olhos lagartos”, uma quimera com “cabeça de
leão / em corpo de cabra / e cauda ofídica”. O erotismo, já manifesto
em seus primeiros títulos, ganha aqui contornos ainda mais
expressivos: “d’Ele sentia o movimento sinuoso do corpo. continha.
aquela uma lontrafagia poética de peixe-anfíbio, reptílica ave em
ética lírica. seus sistemas de galerias, suas entradas de zonas
rochosas, suas entranhas, umas subaquáticas e outras ao nível do
solo”. A riqueza imaginativa e semântica da poesia de Adriana
Zapparoli situa a autora entre as vozes mais inventivas que surgiram
na poesia brasileira nos últimos anos.
e olhamos para baixo. habitamos além das copas-casas...
ESCREVO PARA O AMOR: - alimentando-nos de folhas em mel
de cereja, alguma larva e tantas mariposas e abelhas. ouça: - é à
noite enquanto eu te escrevo... e se olhamos para o alto, de onde
estampam gotas, é centeio, entre nossos cabelos, volatilizando meio
ao sereno e acalmando a sede em bebedouro-planta-perene. nossa
casa, em nossas bocas de onde seus vasos trazem seiva. que entra
sob os galhos, de nossa cama, de onde flutuamos entre a floema, a
clorofila e o xilema... e onde, muitas vezes, cavalgamos por entre
lianas nossos neurônios e cerebelo... continuamos em silêncio e
olhamos as outras, outros seres, que habitam os seus troncos, seus
arroubos, ossos-trancos de onde precipitam... são pessoas de raízes e
íris empedernidas entre o tronco e a raiz... ceifamos o céu e ouvimos
flores... e
venha meu amor, porque na morte, todo silêncio é pouco... sem uma
orelha.

não se atrase amor... não se atrase.


... dos ratos que circulam no sótão, juntos aos abortos de risadas
míopes, as flores murchas dos cadáveres, das comunicações
eletrônicas que se cortam ao mesmo tempo que os colares de pérolas
e as cordas dos andaimes... nãose atrase amor...
não se atrase.

enquanto você observa o marulho: -


cetáceos sobrevoam aquáticos, entre outros, um peixe-tigre-golias, o
aço de um tubarão-cobra, um peixe-ogro, em raios ósseos. são seres
voláteis, feito primatas, sem sistema límbico. quelônios de
carapaças fúcsias transpassam as rubras gotas vertidas por cnidários
- mais simples - pólipos e medusas...
e enquanto pensa naqueles olhos
um tapete de alga... (sargassum)
-- na solidão, em um quadrilátero, à beira-mar.
coluna

Manifesto Makumbacyber
MARCIA TIBURI

Manifesto Makumbacyber é um manifesto ao infinito. Obra de arte


e obra da vida, ele foi criado por Xarlô, o artista incomum que
habita o espaço da rara e sincera criação artística em nossa cultura.
Ruidocrático, autiditivo-poderoso, seu objetivo é acordar tudo e
todos com um grito amoroso e curativo de alegria.
Beto Brant fez um filme de 12 minutos na intenção de registrá-lo.
O filme leva o nome do Manifesto Makumbacyber cujo caráter
mágico é inegável. Quem o ouve é tocado por uma sorte de alegria
sagrada. Mágico, não mítico, o Manifesto pode ser lido, mas é dito e
cantado por Xarlô e seus companheiros. É uma oração em que o
arcaico e o moderno encontram-se finalmente como curativo de
feridas históricas e culturais, que têm sangrado nosso corpo e alma.
O filme dirigido por Brant não é sobre o Makumbacyber. Ele é,
desde seu mesmo nome, parte do Manifesto. E, como tal, é político.
Mas político enquanto sagrado. Sagrado em nome do melhor afeto
que leva à melhor política. O hino de louvor à alegria sagrada
celebrada contra a avareza política que devora nossa sociedade. O
filme é como o Manifesto estende e amplifica seu barulho sagrado,
servindo-lhe de autofalante.
Do mesmo modo que o filme é parte do Manifesto
Makumbacyber, gostaria que este texto, à maneira da filosofia
selvagem que tanto prezo, fosse também sua extensão, sua
continuação e voz auxiliar. O Manifesto Mackumbacyber diz-se
remédio afetivo – e espiritual-intelectual – desde que estamos
doentes de contato, doentes em nossas relações com o mundo, com
a sociedade, com o outro. A doença de cada um consigo mesmo.
A doença do contato nos deforma em robôs frios, tornando-nos
secos e duros, obrigando-nos a inconscientes gestos repetitivos, que
nos levam a viver crentes no mais do mesmo. Mortos-vivos,
devorados por demandas estúpidas no cotidiano abrutalhado do
trabalho, a produzir e a aceitar o sofrimento como um dever. A
devoção ao capitalismo é o sintoma coletivo da doença do contato
cuja cura passa a ser anunciada.
As categorias que regem o Manifesto Makumbacyber são a Força-
Curativa, a Força-Motriz, a Regeneração, a Vida na Terra, a Auto-
Cura, o Bem e a Paz. A Força-Motriz do Manifesto dispara-se
contra a falta de ética, a falta de respeito, a falta de solidariedade.
Por isso, o Manifesto é a Vida, que se pronuncia como um canto
sagrado, um canto terrível de amor ao que é. Contra toda maldade,
inclusas as fantasmagorias capitalistas, que nos impedem de
discernir.
Contra o horror infeliz do capitalismo, somente o sentido do
processo da vida como comum, como entre nós, poderá levar a uma
expansão real de nossas consciências enquanto verdade do corpo-
espírito. E nos livrar, assim, da covardia à qual somos convidados
diariamente pelo sistema econômico capitalista, que nos humilha e,
nos envenenando, nos torna dominados doentes infelizes.
A religião do capitalismo pseudorracional e amedrontado
confirmou-se como um grande medo e a grande destruição da
religiosidade como verdade brutal, sensível e primitiva do universo
do qual somos parte. O profundo sentido da religião é simples
contra-alienação. É essa a verdade teológica da política desde
Spinoza. O poder que vem da multidão e que nos faz marchar, falar
e amar. O poder xamânico da lucidez de lugar contra toda alienação.
O poder negativo que administra o êxtase da alegria de viver,
colocando em seu lugar a miséria da mercadoria servida aos mortos
que passeiam desesperados entre shopping centers e farmácias, é o
que precisa ser combatido. O estupefaciente da mercadoria é a
falsidade contra a verdade da vida. O otário, vítima do
envenenamento capitalista, tem no capital a sua religião e na
religião o seu capital. Contra isso, o Manifesto Makumbacyber
acorda os laços incríveis do espírito da linguagem que nos une.
Xarlô, xamã, autêntico tecnoxamã, ousa rezar por nós na
contramão da violência que as religiões afrobrasileiras vêm
sofrendo. Xarlô reza com toda a sua lucidez, e nós rezaremos com
ele em nome da prática democrática que é o Makumbacyber. Nossa
macumba, nosso chip de poder, a heresia que nos salva de todo o
mal.
coluna

Vanitas
ALCIR PÉCORA

(Para Vincent e Vivien)

Provavelmente Jim nunca sequer desconfiou da existência de


Antonio, assim como Antonio jamais poderia ter ouvido falar de Jim
e do seu bando de patetas, composto pelos irmãos Ron (in
memoriam ) e Scott e ainda pelo desmiolado Dave que, salvo
engano, por essa altura, ainda não tinha ateado fogo a si mesmo.
Mas curiosamente – num desses acasos que caem como laranja
madura na beira da estrada, Zé – Jim estava lá, berrando coisas
incríveis para mim no mesmo momento em que eu bebia as mais
terríveis palavras de Antonio.
Por essa época, eu vivia com cabeça, coração e estômago
pendentes do fio daquelas palavras, em busca de uma tese que
pudesse unificar os muitos argumentos e atividades, aparentemente
irreconciliáveis, que Antonio articulava como pregador, diplomata
sem pasta, missionário nas brenhas amazônicas, político
antimaquiavélico, escritor soberbo, profeta de ocasião etc. etc.
Então eu estava lá – exposto aos dois apelos vibrantes, quando,
num momento preciso — in a one precise moment, both — Jim e
Antonio — uttered the same words — berraram as mesmíssimas
palavras: the first howled that he wanted to be my dog — o primeiro
uivou que queria porque queria ser meu cachorro —, at any price;
the second protested again and again to the Superior of the Jesuits
— o segundo protestou muitas vezes diante do Superior da
Província —, when he was in imminent danger of being expelled
from the order on account of several political intrigues —, quando
corria perigo iminente de ser expulso da ordem, pela muita intriga
em que andava envolvido —, that he preferred to be a dog in the
shade of the door of the Company than to occupy whatever position
of the highest honor was being offered to him —, que ele preferia
mil vezes ser um vira-lata à sombra do frontão da Companhia de
Jesus do que ocupar a mais alta posição das muitas que lhe
ofereciam.
Both Jim and Antonio, at a certain moment of their lives — tanto
Jim como Antonio, nesse momento decisivo da vida —, judged a
dog to be the best figure for their identity — viram num vira-lata a
melhor figura para identificá-los —, and it so happened that they
would repeat just that to me — e então aconteceu essa coisa doida
de repetirem esse bordão para mim —, at the same time, for years
— juntos, ao mesmo tempo, toda a vida.
I swear that, since the beginning, when I first heard them saying
they wanted to be dogs — juro que, desde o começo dessa história,
quando pela primeira vez eu os ouvi gritando daquele jeito que eles
queriam ser meus vira-latas, pois acho que nunca disseram “cães”,
nem “cadelas” —, I collected them and treated them both with
affection —, eu os recolhi da rua e trouxe para minha casa, sem
barganhar preço ou carinho.
Through the openings of the ears or the portals of the eyes —
através dos vãos dos ouvidos ou dos arcos dos olhos —, both have
always coexisted well in my understanding —, ambos coexistiram
em mim —, even though they have rarely, if ever, felt any need of
communicating with each other — mesmo que raramente, se não
jamais, sentissem necessidade de se comunicar entre si.
Each — cada um deles — barks loudly — late pra valer — in his
own yard — no seu próprio quintal. As an open-minded father —,
como um pai de cabeça aberta —, I guarantee to each his privacy —
eu faço o que me cabe e garanto a cada um o direito de privacidade
—, but as owner of my own head, I do not allow them to be
separated from me, not even for a single day — mas como dono de
minha própria cabeça, não lhes permito, nem mesmo por um dia,
que se separem de mim.
Their barks will be possibly the last thing I will hear — Os latidos
serão possivelmente o último som que vou ouvir — when the
unhealthy — quando a insalubre — and transitory — e transitória
— room — sala, cela — in which I keep them close to me — na
qual os mantenho bem juntinhos junto de mim — will be ruined
forever.
coluna

Da arte de nosso desejo de política


VLADIMIR SAFATLE

Em sua última coluna, Christian Dunker lembrou de um possível


descompasso entre a produção artística atual e as demandas de
transformação política que parecem, cada vez mais, ocupar espaços
públicos. Eu diria que este problema está vinculado não a uma
questão de produção, mas de circulação. A sensibilidade política em
mutação atualmente foi, como sempre, adiantada por experiências
estéticas que marcaram os nossos últimos vinte anos.
Não é o caso de procurar estabelecer uma linha reta na qual
temáticas e palavras de ordem políticas apareçam como material
para a expressão estética. Se fosse o caso, não teríamos nada muito
diferente de uma relação tipicamente propagandística entre arte e
política. Na verdade, há uma sensibilidade, uma dinâmica afetiva
que, à sua maneira, foi inicialmente impulsionada pela experiência
estética. É neste ponto que devemos procurar alguma forma de
proximidade.
Este é um ponto importante, pois não se trata de dizer aqui que
manifestantes foram diretamente influenciados por proposições
estéticas. Mas há de se fazer uma genealogia da sensibilidade
política nascente. Uma genealogia que trabalha com relações
indiretas, que tenta compreender como se constitui campos no
interior do quais uma verdadeira forma renovada de pensar
paulatinamente se afirma.
Certamente, a análise da produção artística atual não admite uma
aceitação simples. Como a arte transformou-se, há muito, em espaço
privilegiado de rentabilização financeira e em dinâmica social de
produção de glamour para setores hiperfetichizados da cultura
(como publicidade, moda, design, entre tantos outros), uma leitura
da força transformadora da experiência estética contemporânea pede
um primeiro momento de partilha. É na produção, no mais das
vezes, mais estranha aos fluxos hegemônicos de circulação, com
seus museus, revistas e prêmios, que encontraremos o que
procuramos.
TEMPO ARRUINADO
No entanto, notemos algumas articulações importantes. Se é fato
que um eixo maior das manifestações que começaram em 2011 é a
procura de construir novos sujeitos políticos, fora de estruturas
institucionais tradicionais, como partidos, sindicatos e outras
representações, então deveríamos nos perguntar de onde veio a ideia
de que há apresentação do que não se deixa completamente
representar. Devemos nos perguntar também de onde vem a
percepção de que caminhamos para um situação social de ruína e
descrença, onde as afirmações do poder são feitas para não serem
levadas à sério, onde a política não passa por um processo de
argumentação, mas de mobilização contínua de afetos, como o
medo, a insegurança e a constituição forçada de vínculos
comunitários. De onde vem a consciência de que habitamos um
tempo arruinado, sem acontecimento, a não ser sob a forma da
recusa e da negação?
Tal consciência não é apenas o resultado da análise da realidade
social e política, embora também dependa dela. Há algo que vem da
frequentação demorada com experiências estéticas importantes. São
elas que, de uma maneira indireta, dão uma certa garantia de que
criar é possível quando recusamos tudo o que nos parecia natural.
Em um filme de David Cronemberg, intitulado Cosmópolis , o
protagonista, um yuppie que vive isolado em sua limusine
atravessando uma Nova York cheia de manifestações e
engarrafamentos, afirma: “O capital perdeu sua força narrativa”.
Esta consciência do esgotamento da força narrativa do capital,
condição primeira para a construção de novas subjetividades
políticas, nos foi ensinada pelas artes. Resta fazer o inventário deste
processo. Mas isto nos exige um cuidado interpretativo com a
produção atual que muitas vezes nos falta.
dossiê O mal-estar na civilização do DSM-5

Apresentação

A publicação da nova edição do Manual diagnóstico e estatístico


de transtornos mentais (DSM), pela Associação Psiquiátrica Norte-
americana (APA), em maio deste ano, desencadeou uma série de
artigos e livros questionando o “caráter normativo de suas
classificações, fundadas num movimento vertiginoso de
psiquiatrização da vida cotidiana e numa psicopatologização do
mal-estar subjetivo”, como bem definem, neste dossiê, o filósofo
Gilson Iannini e o psiquiatra Antonio Teixeira.
Assim como um dicionário psiquiátrico, o DSM classifica os mais
diversos distúrbios mentais e oferece parâmetros para o diagnóstico
de cada um deles, e, a cada atualização, apresenta novas categorias
de doenças e altera diretrizes consolidadas por suas edições
anteriores. A quinta versão do manual – que cataloga 450 categorias
diagnósticas – dividiu ainda mais a comunidade de psiquiatras,
psicólogos e psicanalistas.
Mesmo sendo um assunto que poderia ficar restrito ao meio psi, o
debate sobre o DSM-5 tem envolvido profissionais e intelectuais de
diversas áreas do conhecimento. Como escreve o filósofo Vladimir
Safatle, organizador deste dossiê, “tudo isso poderia interessar
apenas a uma comunidade limitada, composta por todos aqueles
profissionais designados para tratar de problemas de saúde mental
(psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, entre outros). Mas talvez seja
o caso de colocar algumas questões. Pois, e se categorias como
‘saúde’, ‘doença’, ‘normal’ e ‘patológico’, principalmente quando
aplicadas ao sofrimento psíquico, não forem meros conceitos de um
discurso científico, mas definições carregadas de forte potência
política?”
Os cinco artigos publicados aqui – escritos por filósofos,
psicanalistas e psiquiatras – procuram, desta forma, refletir sobre os
“efeitos colaterais” desta quinta edição do manual. Como ainda
lembra Safatle, “há de se perguntar o que está por trás dessa
tendência de psiquiatrização da vida cotidiana presente na própria
base dos DSMs”. É essa pergunta que move os colaboradores deste
dossiê.
O poder da psiquiatria
VLADIMIR SAFATLE

Quando confrontados a categorias como “saúde”, “doença”,


“normal” e “patológico”, a maioria dos psiquiatras atuais tenderá a
aceitar que tais definições são, basicamente, objetos de um
“discurso científico”. Isso significa, grosso modo , que a pretensa
objetividade de suas distinções deve estar assegurada por um
discurso que privilegia fenômenos mensuráveis, quantificáveis e
claramente diferenciáveis através de um conjunto finito e
operacional de caraterísticas de base. Esta seria a melhor maneira de
impedir que tais metaconceitos fossem tragados por uma
interminável discussão ideológica, com suas querelas sem fim de
escolas a respeito da natureza do que orienta nossa atividade na
clínica do sofrimento psíquico.
Foi com essa crença em vista que a psiquiatria dos últimos
quarenta anos desenvolveu um dos mais impressionantes esforços
de classificação de doenças e homogeneização de diagnósticos que
se tem notícia. Desde o advento do DSM-3, a psiquiatria teria,
enfim, encontrado o caminho em direção a sua segurança
ontológica, deixando para trás décadas de imprecisão. Uma
imprecisão que seria fruto do uso de vocabulários extremamente
valorativos, em vez de meramente descritivos, assim como da
fascinação por etiologias fantasistas. Pois, ao invés de se preocupar
com a definição de causas dificilmente observáveis (como, por
exemplo, afirmar que certa fobia de animal é resultado de conflitos
inconscientes com a figura paterna), melhor seria privilegiar um
pensamento categorial que organiza distinções a partir de uma certa
lógica de conjuntos no qual o esforço clínico fundamental consiste
em definir sintomas e condições que, se colocados em relação,
podem individualizar um comportamento patológico. Desta forma,
nasceria o milagre de um saber, para além de disputas teóricas,
observável, imune aos juízos subjetivos do médico-observador e,
acima de tudo, eficaz.
Esta história da marcha irresistível da psiquiatria em direção à
ciência é normalmente contada em tons edificantes. A partir do
início dos anos 1970, vários psiquiatras começaram a fazer testes,
demonstrando a incrível variação de diagnósticos entre os
profissionais. Por outro lado, a própria psiquiatria era bombardeada
de todos os lados por aqueles irresponsáveis que tentavam
demonstrar que categorias clínicas eram mitos ou, no mais das
vezes, mecanismos de exclusão e controle social. Neste ambiente
hostil, psiquiatras como Robert Spitzer e John Feighner teriam sido
capazes de tirar a psiquiatria da defensiva por meio de uma
profunda reforma metodológica que, em um curto espaço de tempo,
modificou radicalmente o que entendíamos até então por “clínica”.
Pois tal reforma metodológica teria sido acompanhada pelo
desenvolvimento exponencial do saber neurológico, assim como do
desenvolvimento de medicamentos capazes de combater com
eficácia aquilo que, erroneamente, entendíamos fluidamente por
“impasses existenciais” capazes de afetar nossa performance no
trabalho, nossos papéis sociais e nossa autonomia do desejo. A
clínica aparecerá, então, cada vez mais submetida a uma
farmacologia em vias irresistíveis de aprimoramento. Neste sentido,
não haveria razão alguma para se inquietar do fato de que por volta
de 70% dos experts que trabalharam para o DSM-5 terem, em sua
carreira recente, vínculos financeiros com a indústria farmacêutica.
A comunidade entre indústria farmacêutica e comunidade
psiquiátrica seria exclusivamente fundada nas promessas abertas
pelo progresso da ciência.
Também não haveria razão alguma para se perguntar se não
haveria uma articulação perversa entre o fechamento dos asilos, a
redução dos gastos públicos em saúde mental e um triplo processo
de reforço da posição da psiquiatria. Processo triplo marcado pela
medicalização, pela institucionalização crescente das discussões
através da hegemonia da American Psychiatry Association (APA) e
pela tecnicização crescente dos diagnósticos.
DOENÇA E POLÍTICA
Tudo isso poderia interessar apenas à uma comunidade limitada,
composta por todos aqueles profissionais designados para tratar de
problemas de saúde mental (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas,
entre outros). Mas talvez seja o caso de colocar algumas questões.
Pois, e se categorias como “saúde”, “doença”, “normal” e
“patológico”, principalmente quando aplicadas ao sofrimento
psíquico, não forem meros conceitos de um discurso científico, mas
definições carregadas de forte potência política? Por um lado, uma
sociedade organiza seus modos de intervenção nas populações, nos
corpos e nos afetos por meio da definição do campo das doenças e
das patologias. No interior desses modos de intervenção, não é
apenas a experiência subjetiva do sofrimento do paciente que
orienta a clínica, mas também padrões esperados de conduta social
de forte conotação moral (ou mesmo estética e política). Por
exemplo, quando o DSM-4 descrevia o transtorno de personalidade
narcísica, ele não temia descrever tal transtorno, apelando, entre
outras coisas, para quadros morais do tipo: “Eles esperam ser
adulados e ficam desconcertados ou furiosos quando isto não
ocorre. Eles podem, por exemplo, pensar que não precisam esperar
na fila, que suas prioridades são tão importantes que os outros lhes
deveriam mostrar deferência e ficam irritados quando os outros
deixam de auxiliar em ‘seu trabalho muito importante’”. O mínimo
que se pode dizer é que tal quadro nada diz sobre o sofrimento
psíquico, mas diz muito a respeito dos padrões disciplinares e
morais que nossa sociedade tenta elevar à condição de normalidade
médica.
Exemplo ainda mais caricato são os oito critérios fornecidos para
definir o transtorno de personalidade histriônica: 1) desconforto em
situações nas quais não se é o centro das atenções; 2)
comportamento inadequado, sexualmente provocante ou sedutor; 3)
superficialidade na expressão das emoções; 4) constante utilização
da aparência física para chamar a atenção sobre si próprio; 5)
discurso excessivamente impressionista; 6) teatralidade e expressão
emocional exagerada; 7) ser facilmente sugestionável; 8) considerar
os relacionamentos mais íntimos do que realmente são. Em um
manual que se vangloriava pela clareza de seus “critérios
específicos”, impressiona exatamente a falta de especificidade de
um quadro clínico tão amplo que poderia englobar praticamente
qualquer pessoa com o mínimo de senso de autocrítica. Há de se
perguntar se estamos diante de uma falha ou da exposição
sintomática de uma lógica que perpassa, em maior ou menor grau,
todo o poder psiquiátrico atual com sua tendência muda, como
vemos no texto de Gilson Ianinni e Antonio Teixeira, de
“psiquiatrização da vida cotidiana”.
Se nos perguntarmos sobre a natureza de tal lógica, valeria a pena
lembrar como a experiência da doença, ou seja, a experiência de se
compreender como doente, não é apenas o resultado da descrição de
variações em marcadores biológicos específicos. Nem é a doença a
mera definição de situações de sofrimento. Há várias experiências
de sofrimento que não vivenciamos como doença, mas como
conflitos relativamente naturais em processos globais de
transformação e de desenvolvimento. Na verdade, há uma dimensão
na qual estar doente, no que diz respeito à saúde mental, aparece
como o sofrimento advindo da limitação na capacidade de ação e da
fixidez em certos comportamentos. O que não poderia ser diferente
se aceitarmos que estar doente é, a princípio, assumir uma
identidade com forte força performativa. Ao compreender-se como
“neurótico”, “depressivo” ou portador de “transtorno de
personalidade borderline”, o sujeito nomeia a si através de um ato
de fala capaz de produzir performativamente efeitos novos, de
ampliar impossibilidades e restrições. Uma patologia mental não
descreve uma espécie natural ( natural kind ), como talvez seja o
caso de uma doença orgânica, como câncer ou mal de Parkinson.
Como nos lembra Ian Hacking, ela cria performativamente uma
nova situação na qual os sujeitos se veem inseridos.
Neste sentido, há de se perguntar o que está por trás dessa
tendência de psiquiatrização da vida cotidiana levada a cabo pelo
DSM-5. Tendência que realiza uma progressão presente na própria
base dos DSMs. A partir de agora, o número de patologias mentais
se eleva a 450 categorias diagnósticas. Elas eram 265 no DSM-3,
lançado em 1980, e 182 no DSM-2, de 1968.
De fato, com modificações, como as que diminuem o luto
patológico de dois meses para 15 dias ou que cria categorias
bisonhas como o transtorno disruptivo de desregulação de humor, o
vício comportamental ( behavioral addiction ) ou o transtorno
generalizado de ansiedade, dificilmente alguém que passa por
conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará em um
consultório psiquiátrico sem um diagnóstico e uma receita médica.
Por trás desta estratégia clínica, com sua negação de perspectivas
etiológicas, há a tentativa equivocada de transformar toda
experiência de sofrimento em uma patologia a ser tratada. Mas uma
vida na qual todo sofrimento é sintoma a ser extirpado é uma vida
dependente de maneira compulsiva da voz segura do especialista,
restrita a um padrão de normalidade que não é outra coisa que a
internalização desesperada de uma normatividade disciplinar
decidida em laboratório. Ou seja, uma vida cada vez mais
enfraquecida e incapaz de lidar com conflitos, contradições e
reconfigurações necessárias. Há de se perguntar se tal
enfraquecimento não será, ao final, o resultado social dessas
modificações no campo da saúde mental patrocinadas pelo DSM.
Há de se perguntar também a quem tal situação interessa.
O futuro de uma classificação
GILSON IANNINI E ANTONIO TEIXEIRA

Num futuro não muito distante...


A ciência progride a passos largos. Quem, há vinte anos, poderia
prever a abrangência do DSM-11, lançado ontem? É preciso lembrar
que, desde a conturbada recepção do DSM-5, há quase vinte anos, a
arbitrariedade de suas classificações e a ausência de fundamentação
científica foi percebida tanto pela comunidade neurocientífica
quanto pela comunidade dos trabalhadores em saúde mental.
Portanto, não é exagero dizer que o dia 13 de dezembro de 2031
entrará para a história. As inovações do volume lançado na noite de
ontem prometem um grande avanço científico no tratamento dos
transtornos mentais.
Entre as novas síndromes descritas, destacam-se a padronização
do tempo de luto normal para até três dias (decorrido esse prazo, o
luto deve ser tratado como depressão patológica excessivamente
intensa), além da tão sonhada descrição objetiva de 27 síndromes
que acometem bebês e recém-nascidos e as tão esperadas síndromes
ligadas ao trabalho, à religião, às artes e à política. Além da
descrição de mais 374 novas síndromes, somadas aos 1.417
transtornos descritos na última versão, o DSM-11 traz ainda um
aplicativo capaz de diagnosticar quaisquer transtornos em pouco
mais de três segundos, interligado a um sistema de delivery de
medicamentos. Entre as novidades mais esperadas, destacam-se a
“síndrome do choro sem causa aparente detectável”, o “transtorno
anoréxico infantil” e a “síndrome da insônia precoce”. A “síndrome
do choro sem causa aparente detectável” é conhecida de pais e
educadores. Antes da última versão do DSM, era erroneamente
considerada como condição normal do lactente. Agora, a
recomendação é que sejam tratados com psicofármacos bebês que, a
partir do terceiro mês de vida, ainda apresentem choro sem causa
aparente, diariamente ou, pelo menos, três vezes por semana. Já o
“transtorno anoréxico infantil” acomete bebês com mais de seis
meses que se recusam a serem alimentados com alimentos sólidos
ou pastosos, o que acarretaria grave prejuízo ao desenvolvimento
nutricional infantil. Também foi incluída a “síndrome da insônia
precoce”, que é uma grave doença, provavelmente genética, que
acomete uma parcela significativa dos bebês entre 9 e 18 meses de
idade e que se caracteriza pela dificuldade em dormir um sono
ininterrupto por, no mínimo, nove horas seguidas. Ainda na
infância, foi descrito o “transtorno egossintônico da personalidade
narcísica”, que acomete crianças que se identificam ou fantasiam ser
princesas ou super-heróis. No capítulo sobre adolescência, foram
introduzidas a “síndrome do diário de memórias”, caracterizada por
uma compulsão em escrever experiências imaginárias em linguagem
cifrada nos diários íntimos e desenhar coraçõezinhos inúteis, que
acomete principalmente as meninas, e a “síndrome de formação de
bandas sem futuro promissor pelo menos provável”, que descreve
patologias ligadas à necessidade compulsiva de se formar bandas
com o gênero musical em voga. Grande avanço foi observado
também com a descrição da “síndrome da indefinição profissional”,
que acomete tantos adolescentes em idade de definição profissional.
No capítulo sobre os transtornos relativos ao trabalho, foi
introduzido o “transtorno do déficit de produção”, o “distúrbio
monomaníaco cafeíno-induzido”, conhecido também como
“síndrome do cafezinho”, que acomete principalmente funcionários
públicos, e o “atraso matinal monomaníaco”, que se caracteriza por
chegar atrasado ao trabalho, pelo menos uma vez por mês, por até
15 minutos. No capítulo sobre religião, foi introduzido o “transtorno
de crença em entidades não-verificáveis experimentalmente”, com
diferentes graus de fanatismo. Esse diagnóstico, corretamente
realizado, é capaz de detectar propensão a atos de terrorismo já a
partir da pré-adolescência. A “síndrome do invencionismo crônico”
agrupa sintomas ligados à necessidade que pessoas antes
consideradas como “artistas” têm de inventar “novas maneiras”
disso ou daquilo. Ficou provado que gênios, antes tidos como
“artistas”, sofreram de graves transtornos psiquiátricos, facilmente
solucionáveis com tratamento adequado. São sintomas dessa
doença: empregar palavras fora de seu contexto descritivo ou
comunicacional, desenhar pessoas com quatro braços ou tartarugas
cor-de-rosa, empregar notas musicais desnecessariamente
dissonantes, utilizar objetos comuns de maneira inusitada, apropriar-
se do espaço de maneira não-convencional.
No campo da política, foi ampliada a “esquerdopatia crônica”,
grave sintoma que acomete parte da população, que apresenta
sintomas como: produção de teorias conspiratórias acerca dos
interesses do capital, inconformismo com a ordem vigente, postura
crítica diante da mídia, leitura regular ou irregular de livros de
filosofia e outras ciências humanas, além de outros graves
acometimentos. Quanto às síndromes econômicas, foi descrita a
“síndrome da incapacidade de produzir riqueza”. Entre os sintomas
dessa condição psicopatológica estão: pobreza crônica,
endividamento, boemia, leitura recorrente de livros de poesia. Está
frequentemente associada a episódios de esquerdopatia aguda.
Na categoria patologias da vida conjugal, o grave acometimento
que antes respondia pelo nome de amor, foi incluído como
“transtorno monoerótico imaginário”. O tratamento requer
internação compulsória por um período de seis semanas e separação
total da pessoa “amada”. Outra coisa que chama a atenção
positivamente é a exclusão de todas as condições ligadas ao que
antes se denominava “vida subjetiva”, desde a implementação da
obrigatoriedade da vacina antipulsional. O que demonstra o sucesso
do programa de erradicação da sexualidade humana para fins não-
reprodutivos.
A VERDADE TEM ESTRUTURA DE FICÇÃO
O caráter hiperbólico do texto acima pretende apenas exibir aquilo
que a versão atual do DSM-5 não consegue mais ocultar: o caráter
normativo de suas classificações, fundadas num movimento
vertiginoso de psiquiatrização da vida cotidiana e numa
psicopatologização do mal-estar subjetivo. Pois, por mais que essa
paródia nos mostre o aspecto risível desse esforço de catalogação, é
preciso aceitar que, do ponto de vista puramente formal, não há
nada de propriamente exorbitante numa prática classificatória, seja
ela qual for. Podemos constituir classes ou grupos, bastando, para
tanto, atribuir um predicado comum a determinado número de
indivíduos. O problema é que as classes normalmente se compõem
em torno de uma representação atributiva que um discurso destaca,
como é o caso da presença de mamas na formação da classe dos
mamíferos, ou de incisivos superiores pronunciados, no caso dos
roedores. Mas quando se trata de classificar sujeitos, mesmo que se
busque imprimir uma marca de pertencimento sobre o corpo, como
no caso da circuncisão para os judeus, as classes assim constituídas
não se encontram fundadas sobre nenhuma propriedade
representável. Uma classe de sujeitos depende, estritamente falando,
do efeito de uma nomeação , de sorte que quando dizemos que
alguém é judeu, brasileiro, proletário, burguês etc., a classificação
assim produzida resulta somente do proferimento do nome. Diante,
portanto, da ausência de uma propriedade representável
consistentemente definida para classificar os seres falantes, os
idealizadores do DSM se veem livres para criar novas classes
diagnósticas, a seu bel prazer, ou, o que é pior, em conformidade
com os lançamentos da indústria farmacêutica ou com as exigências
dos gestores de saúde.
Tudo pode ser classificado do ponto de vista de uma prática
discursiva, inclusive condutas, posições políticas e mesmo o amor.
Que seja. Nada impede, todavia, que tomemos, então, para nós, essa
mesma liberdade classificatória e avancemos ficcionalmente até o
nível virtual de um último DSM em que o catálogo se capilariza.
Este último DSM deveria, portanto, descrever um transtorno que
acomete, preferencialmente, gestores obcecados com a rentabilidade
dos planos de saúde, frequentemente vinculados a laboratórios
farmacêuticos, assim como docentes universitários financiados por
laboratórios, até pouco tempo restritos às universidades norte-
americanas, porém com tendência a se propagarem para outros
territórios. Chamemo-la de “transtorno de compulsão classificatória
avaliativa maniforme” (TCCAM), ou doença de Simão Bacamarte,
em homenagem ao alienista descrito por Machado de Assis, no final
do século 19, que em nosso tempo se manifesta como uma
necessidade incontrolável de classificar e avaliar todo
comportamento observável, assim como preencher
compulsivamente espaços de “sim”, “não” e “mais ou menos” em
planilhas de avaliação. Alguns desvios caracteriais evidentes dessa
síndrome incluem: a incapacidade sistemática de questionar a sua
própria função e a necessidade obsessiva de eliminar todo e
qualquer sofrimento subjetivo. Observa-se ainda, como sinal
patognomônico desse quadro, uma importante alteração do juízo de
realidade, manifesta no sentimento delirante de estar no direito de
classificar e avaliar os demais sem permitir que seja avaliado ou
classificado o próprio exercício de avaliação. A classe dos
classificadores, assim constituída, não tolera que ela própria seja
classificada. Em seu delírio, os pacientes acometidos pela TCCAM,
ou pela doença de Bacamarte, chegam a se arrogar o direito de
definir o que é científico ou não, sem, contudo, expor critérios que
possam definir a cientificidade de sua prática classificatório-
avaliativa.
Essa última versão paródica do DSM tem o interesse de nos
apresentar, em seu limite, o caráter autofágico de uma prática
desenfreada de avaliação classificatória. É bem verdade que, até o
atual momento, os classificadores do DSM não fazem parte do
conjunto dos objetos classificados, tal como os catálogos do
paradoxo de Russell, que não contêm a si mesmo. Mas quando
criamos, com a Casa Verde virtual do DSM-11, a classe dos
classificadores compulsivos que não classificam a eles próprios, o
paradoxo é inevitável: essa classe contém ou não contém os
classificadores? Ela os contém porque não os contém, não os
contém porque os contém e daí por diante... Teríamos, então,
chegado a esse feliz momento de ironia suprema, em que o
classificador enlouquece e decide, tal como o alienista de Machado
de Assis, internar-se e deixar-nos finalmente em paz?
Mas as coisas não são tão simples assim. Sabemos que o DSM – a
despeito de sua absoluta indigência epistemológica – não será tão
cedo classificado como um caso patológico de compulsão
classificatória, pois existe uma estrutura exterior sobre a qual ele se
sustenta. O DSM permanece coeso, a despeito de todas as
modificações que possa sofrer, em razão da tríplice aliança de
catálogo, pílulas e discursos que o mantêm. Em primeiro lugar, o
catálogo, enquanto operador da gestão, confere ao DSM sua forma
de listagem provisória, que pode ser mudada conforme se
modificam os arranjos institucionais do poder ao qual ele presta
serviços. Em segundo lugar, cada classe catalogada será o máximo
possível vinculada à pílula terapêutica, que é a promessa de bem-
estar mental em sua forma-mercadoria, sustentada pelas estratégias
de marketing dos laboratórios. Associações tais como TDH-Ritalina
ou Distimia crônica-Venlafaxina são emblemáticas nesse sentido.
Em terceiro lugar, o discurso da tecnociência, submetido à lógica do
capital, organiza a crença mercantil que associa demanda e produto
– no caso, doença mental e arsenal terapêutico – numa relação de
evidência supostamente controlável. Sua função é dar à associação
do catálogo com a pílula a roupagem do discurso da ciência.
Mas em que pese o caráter manifestamente ideológico que aqui se
faz do discurso científico, é inútil protestar contra o DSM. Podemos,
aliás, dizer que é do protesto que o DSM se nutre e extrai sua
permanência. Sendo o protesto uma variável do discurso da
demanda, na forma trivial da queixa, nada mais fácil ao DSM do
que prover meios para responder às reclamações contra seus
supostos excessos, mediante renovações periódicas de suas
listagens. Se Lacan tem razão ao dizer que ao protestar contra uma
situação, entramos no discurso que a condiciona, é porque, assim
fazendo, indicamos as correções que tornam essa situação mais
suportável. A prova disso é a supressão, em 1980, do diagnóstico de
histeria no DSM-3, em resposta ao protesto das feministas contra o
caráter sexista dessa denominação, assim como a eliminação, a
partir de 1987, da categorização patológica da homossexualidade
egodistônica para satisfazer ao lobby dos homossexuais americanos.
Estamos, aliás, às voltas com um protesto recente, de grande
esplendor midiático, anunciado tanto no Le Monde quanto no NYT ,
relativo à decisão anunciada por Thomas Insel, diretor do
prestigioso Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA (NIHM),
de não mais se guiar pelo DSM. O DSM não mais nos serve, diz ele,
em razão da falta de cientificidade de sua classificação. Se ao menos
essa atitude fosse o prenúncio de um novo esforço de se pensar o
mental fora dos enquadres disciplinares usuais... Que nada! Há mais
alarde do que propriamente novidade nessa informação. O caráter
ateorético do DSM é, há mais de trinta anos, conhecido de todos, e
Thomas Insel, diretor da NIMH, não seria certamente o último a
saber disso. Do ponto de vista prático, o DSM será ainda mantido,
não apesar, mas graças aos ataques que vem recebendo. Ele
encontrará meios de renovar, com outros adornos, sua roupagem
pseudocientífica e comporá novas listas que agradem mais aos
poderes que o subvencionam.
Até mesmo porque o projeto atualmente lançado pelo Instituto
Nacional de Saúde Mental, coordenado por Thomas Insel, que deu
origem ao Research Domain Criteria (RDoC), não produz grande
diferença do ponto de vista do que se tem conhecimento na área da
psiquiatria. Sua proposta de biologizar a realidade mental, de tratar
o psiquismo nos termos de uma neurobiologia, nada mais é do que o
velho naturalismo do antes-de-ontem de volta à cena como novidade
reluzente do depois-de-amanhã, num palco arrimado pela crença de
que a racionalidade tecnocientífica detém a derradeira palavra sobre
a natureza e sobre o homem. A razão é mais ideológica do que
epistêmica: eles bem sabem que quem hoje se vale do discurso da
ciência passa a gozar de uma autoridade inquestionável, posto que
não existe nenhuma instância extra-científica que nos autorize a
questionar o seu veredicto.
Desse ponto de vista, se o mental será o neurobiológico, ou o
físico-químico, ou o genético ou mesmo, quem sabe, o molecular,
isso importa pouco. O que importa é que o nome, assim escolhido,
pareça não ser apenas uma nomeação, pois esse é o atual erro do
DSM: mostrar o mecanismo por detrás da mágica, revelar a
impostura da qual ele é feito. O que interessa é organizar a
convicção de que se pode estabelecer uma classificação da realidade
mental que não seja uma pura nomeação, a partir de uma
propriedade representável cientificamente, conforme a ideia que o
senso comum faz da ciência neste ou naquele momento.
Não deixa, contudo, de ser interessante notar a ausência de um
verdadeiro programa clínico no campo das neurociências. Isso não é
casual, pois basta dar a palavra ao sujeito para se ver cair por terra
esse ideal de representação científica da doença mental num código
sem ambiguidades. O exemplo maior disso continua sendo o de
Freud, que cedo percebeu a categoria irredutível do sujeito em sua
experiência clínica. Mesmo partindo das concepções naturalistas da
ciência de seu tempo, Freud se viu levado, malgrado ele próprio, a
reintroduzir a subjetividade no campo metapsicológico pelo simples
e fundamental gesto de escutar o que tem a dizer seu paciente.
Freud, ali, encontrou um sujeito irredutível às classes que o
englobam, ali onde o neurocientista visa calar o sujeito numa classe
universal que o apreende sem resto.
O que caracteriza uma clínica que possa realmente sustentar esse
nome é o esforço de pensar o sujeito em sua singularidade
irredutível. Uma classificação diagnóstica deve ser suficientemente
precisa e bem fundamentada para permitir uma estratégia de
condução do tratamento, mas suficientemente aberta para pensar a
maneira que cada sujeito encontra de ser inagrupável, i.e., de
permanecer dessemelhante dos demais membros de sua própria
classe. Toda verdadeira clínica nunca é mera técnica, mas é também
uma aposta ética e política. É por esse conjunto de razões que, no
atual momento, precisamos não de mais classes diagnósticas, mas
de menos.
Uma alma não se fatia como se fatia um
corpo
ARIANE BAZAN

A palavra psychologia aparece pela primeira vez no século 16. Esse


século de barbárie religiosa, quando os corpos, frequentemente
abertos, cobriam a cena pública, conhece grandes progressos na
anatomia. Pela primeira vez na história da humanidade, Vésale
propõe, com seus desenhos de anatomia, uma imagem dos sistemas
humanos internos, em particular do sistema muscular e os nervos
que o inervam. As imagens são fenomenais: essa fábrica do corpo se
revela como uma maquinaria logicamente agenciada cujo
movimento, por exemplo, seria compreendido mecanicamente. Pela
primeira vez, em vinte séculos , a medicina aristotélica, com sua
prerrogativa de alma – o anima – que dá vida, isto é, o movimento
do corpo, desestabiliza-se. Em 1540, o reformista religioso alemão
Melanchthon comenta o Da alma, de Aristóteles. Ele enriquece o
texto aristotélico com um longo tratado de anatomia. Mas a simples
adição não é suficiente, as imagens anatômicas do corpo desfocaram
fundamentalmente as definições aristotélicas: já que o corpo é capaz
de retomar uma série de funções reservadas, até então, à alma, é
preciso que esta seja redefinida. Enquanto para Aristóteles todo ser
vivo, seja vegetal, animal ou humano, possui, em níveis diferentes,
uma alma que organiza o corpo, Melanchthon opõe uma
antropologia dualista que divide o homem em um corpo estendido
no espaço e uma alma pensante. O homo duplex de Melanchton, a
anthropologia, é dividido em duas partes: a anatomia , ciência do
corpo, e a psychologia, ciência da alma.
O uso do termo psychologia por Melanchthon é a primeira
utilização intencional do termo e funda um novo campo de
conhecimento. Seguindo seu rastro, o reformista holandês Snellius
(1594) determina, então, as propriedades essenciais que distinguem
corpo e alma: “As coisas físicas, mais próximas dos corpos naturais
que se movem naturalmente, possuem uma extensão e por causa
disso ocupam um lugar” e “A faculdade da alma racional é o
pensamento ou a vontade. O pensamento é a capacidade da alma de
discorrer e de pensar a respeito das coisas que são e que não são”. A
alma se vê então redefinida por novidades exclusivas , em especial o
pensamento (a imaginação) e a vontade. O estudo da psicologia tem
como objetivo descrever essas faculdades, assim como a anatomia
divide o corpo em suas partes. Por isso, o modelo dessa psychologia
é emprestado dela: a ciência procede através de recortes, partindo do
mais simples e recompondo-se, em seguida, do mais simples ao
mais complexo.
Notemos, então, que são os progressos do conhecimento do corpo
que tornaram indispensável a atribuição de um nome próprio – este
da psicologia – ao campo da alma. Desde as origens da história,
foram os filósofos que pensaram a humanidade e a sua condição, no
entanto, aqui está o berço da psicologia, essa disciplina que, por
conta de conteúdos, nasce pela ciência do corpo e que, por suas
formas, deu-se à luz mediante recortes – da dissecção à
desintricação . Esse paradoxo se repete no século 19, no momento
em que a psicologia, e aí compreendida a neurofisiologia, conhece
importantes progressos. Bell e Magendie descobrem, de maneira
independente, a distinção entre os nervos sensoriais e os motores em
nível da medula espinhal; du Bois-Reymond mapeia a natureza
elétrica da contração muscular; Broca e Wernicke identificam as
áreas do cérebro que intervêm nos diferentes aspectos da linguagem
e Fritsch, Hitzig e Ferrier localizam as áreas sensoriais e motoras do
cérebro. Esses campos da fisiologia profissionalizam-se, e é a partir
deles que Wundt redige, em 1874, o primeiro manual de psicologia
e estabelece, em 1879, o primeiro laboratório de psicologia
experimental. Com os progressos da neurofisiologia, a psicologia se
afirma como disciplina científica autônoma.
CIÊNCIA DA ALMA
Desde o efervescente século 19, Freud e a psicanálise abalaram essa
epistemologia “resolutiva-recompositiva”, propondo uma ciência da
alma cujos principais organizadores se libertam tanto da psicologia
quanto da filosofia. Mas o advento dos psicotrópicos junto aos
impressionantes avanços em imagem cerebral dos últimos vinte
anos deu um novo fôlego ao paradigma médico e parcial de outrora.
Enquanto que o pensamento já tinha visto cair seu estatuto
exclusivo de alma do século 19, a imagiologia cerebral – esse
desnudamento do cérebro – é totalizante: nada do que se quis
atribuir ao íntimo da alma, nem a paixão, o amor, a amizade, as
aspirações ou mesmo a fé, a moral, o desejo ou o prazer orgástico,
nada escapa à visualização. Por isso, não nos surpreendemos ao
deduzir que o psíquico não seria outra coisa senão uma forma de
fenomenologia ou expressão direta dos processos cerebrais e que,
portanto, trata-se de lidar com a alma segundo os mesmos
princípios que aqueles em vigor para o tratamento do corpo, isto é,
os princípios médicos. Entre eles, fixemos (1) o recorte do
problema, em paralelo à especialização clínica para as diferentes
composições, e (2) o diagnóstico e, em paralelo, o screening e a
prevenção, direcionados sobre esses componentes recortados.
O instrumento que, por excelência, concretiza essa aproximação é
o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, o DSM,
manual que retoma, como o catálogo de uma flora, os diferentes
transtornos mentais, propondo um recorte daquilo que foi vivido
pelo sujeito com base somente em suas manifestações
fenomenológicas.
Ora, suponho que o que foi sucesso para a medicina pode levar
estruturalmente a saúde mental à falência. Peguemos, por exemplo,
a situação familiar problemática: os pais brigam (violentamente), ou
há problemas de depressão ou de vício. Essas diferentes situações
podem induzir grandes angústias nas crianças, bem como um
investimento maciço de energia física nos mecanismos de defesa,
para que a atenção não seja continuamente pega por essa ameaça de
drama. Associados, essas angústias e seus mecanismos de defesa
podem, portanto, levar a problemas – de sono, alimentação, de
comportamento na escola etc. –, quer dizer, uma série de sintomas
que poderiam se qualificar como transtornos ou fobias. No quadro
parcialmente descrito, a tendência médica atual, prescrita pelo
DSM, é, então, a de recortar e isolar esses transtornos do resto do
vivido. Ora, tratar o transtorno ou a fobia sem levar em
consideração seu contexto etiológico faz com que se perca o sentido
de sintoma. Não resta, senão, ao profissional uma aproximação
essencialista: privado de uma reflexão sobre o sentido, ele se reduz
a explicar o problema por uma predisposição (de personalidade, de
genética, neural...) da criança. Isso fixa o problema para a criança,
identificando-a a ele sem, no entanto, propor pistas reais, para além
da medicação, de como se encarregar dele. Além disso, essa
aproximação essencialista leva, por sua vez, à aspiração de
determinar o perfil distintivo de crianças com o “mesmo” problema.
Baseadas em questionários, às vezes mesmo em amostragens
biológicas, as diferenças estatísticas são levantadas e os “transtornos
de personalidade” emergem no DSM.
Esse catálogo, que floresce de transtornos, tem efeitos próprios
que se mostram alarmantes. De fato, não se atribui impunemente um
nome a um estado mental – a fortiori uma qualificação a um sujeito
– como se colasse uma etiqueta numa lata de conserva: ali onde a
lata, feita de átomos de ferro, ficará perfeitamente inerte à sua
etiqueta, o sujeito humano, feito de linguagem, é tocado naquilo
mesmo que o constitui. O impulso de novos significantes, tais como
depressão, “transtorno de déficit de atenção”, com ou sem
hiperatividade (TDAH), “transtorno do espectro autista” etc.,
contaminam os espíritos: os sujeitos, comprometidos por seus
desamparos e desordens, ou àquelas de seus próximos, buscam se
agarrar a esses males e se encontram (temporariamente) aliviados de
poder colocar um rótulo. A proposta de um novo diagnóstico cria ,
assim, a epidemia: desde que a descrição esteja em voga,
suficientemente vaga ou geral (por exemplo, borderline ou burn-out
), os sujeitos atribuem-na a si ou a seus próximos (seus filhos). Isso
aumenta consideravelmente a probabilidade de um diagnóstico
oficial, visto que os sujeitos irão ver seu médico de maneira pré-
estabelecida, responderão aos questionários diagnósticos de maneira
enviesada, e mesmo o médico, o pai ou o instrutor terão um olhar e
uma audição pré-orientada para detectar certos transtornos da moda.
Na mesma lógica, as campanhas de screening e de prevenção no
setor da saúde mental têm efeito inverso ao esperado: enquanto
estes provaram a sua importância para a medicina somática, o
rastreamento ativo de transtornos mentais induz a uma identificação
maciça com os problemas do público e provoca ondas de epidemias
psicopatológicas.
FABRICAÇÃO DE PROBLEMAS
Vemos, portanto, como esse “simples erro de lógica” – recortamos
os problemas da alma como aprendemos a fazer com os problemas
do corpo – leva a uma engenharia de fabricação de problemas: o
isolamento do transtorno conduz à caracterização (frequentemente
“científica”) de um perfil de personalidade, que leva à injeção de
novos significantes ao público, que, por sua vez, provoca uma
lufada de ar através da qual as epidemias psicopatológicas abundam.
Isso só pode conduzir à falência do setor. Enfim, é o próprio modo
de tratamento, quer dizer, o recorte, que leva, no final dessa cadeia,
à psicopatologização. Paradoxalmente, quanto mais meios forem
investidos no tratamento e na pesquisa de perfis e transtornos de
personalidade, mais haverá um problema público de saúde mental.
Isso é tão mais verdade, aliás, se considerarmos que, com mais
frequência, o elemento constitutivo da oferta clínica desta
abordagem médica é o medicamento psicotrópico. É preciso ousar e
colocar a questão: quais são os danos, no que diz respeito à saúde,
de um medicamento psicotrópico usado em larga escala e em
crianças cada vez mais jovens?
Peguemos um dos exemplos mais contundentes: a utilização de
metilfenidato, molécula prescrita em caso de TDAH, um dos
diangósticos-guia do DSM. Essa molécula aumenta a
disponibilidade do neurotransmissor de dopamina no sistema
nervoso central: ela é o que se chama de psicoestimulante – quer
dizer, um dopante – cujo princípio de ação é comparável àquele da
cocaína. O eixo dopaminérgico no cérebro é um dos mais
importantes do organismo vertebrado: ele conecta as necessidades
internas do corpo à motivação de fazer, descobrir e explorar um
vasto mundo. Ora, é neste nível que nós nos permitimos intervir em
grande escala, e em idades cada vez mais jovens, com uma
medicação psicotrópica incisiva. Em vez de uma falência do setor
da saúde mental, não deveríamos, nós, antes de tudo, esperarmos
uma catástrofe nos próximos anos?
Portanto, qual é a alternativa diante desta constatação aflitiva?
Pois, com efeito, é fácil dizer que os sujeitos são atraídos pelos
significantes para nomearem seu mal-estar, mal-estar este que não é,
por isso, menos real. Senão, pelo recorte médico, como responder a
isso? Paradoxalmente, proponho que a salvação possa vir, de novo,
através da “fonte de todos os males”. Com efeito, um terceiro
momento chegou para a psicologia, graças a essas décadas de
imagens do cérebro . Pela potência explicativa das neurociências, a
psicologia deverá, nesse momento de verdade, responder à questão:
se as funções e as instâncias psicológicas podem ser colocadas em
correspondência com as estruturas precisas e determinadas do
cérebro, em que a psicologia é diferente da neurofisiologia – que
quer dizer psicologia para além do cérebro? Sugiro que não sejam
tanto os módulos ou os componentes que distingam o psicológico
do biológico, mas sim aquela escala organizacional pela qual ela os
considera, isto é, o nível do sujeito em vez daquele da função . Esse
reajuste daquilo que faz a especificidade da psicologia não parece
revolucionário, mas o é: trata-se de dar ao sujeito e à sua história
uma legitimidade própria ao que causa seu estado . Trata-se de
pensar a questão “mas o que acontece comigo?” para além das
respostas clássicas “é o meu corpo, meu cérebro” ou ainda “é a
sociedade atual, o contexto”. Trata-se da ideia de que, independente
do biológico e do sociológico, através da minha história
(intergeracional), o sujeito que eu sou estabeleceu, ativamente, as
dinâmicas que me ajudaram a viver e que causaram também
sofrimento. Trata-se de, uma vez confrontado com a desordem,
fazer apelo antes a sua história que a uma identificação diagnóstica,
antes a uma dinâmica que a uma essência.
Traduzido por Carolina Donadio.
O sequestro da neurose
CHRISTIAN DUNKER

1. ALIENAÇÃO
A primeira versão do Manual diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais (DSM-1), publicada em 1952, descrevia
alterações mentais nos mais diversos quadros orgânicos –
inflamações cerebrais, alterações metabólicas, estados pré ou pós
natais, efeitos psíquicos, decorrentes do mal funcionamento do
aparelho circulatório e dos tecidos, compunham inúmeros
subgrupos que davam “forma médica” aos problemas mentais. Isso
deve ser associado ao conceito central de reação , presente neste
que foi o embrião e o modelo para a racionalidade diagnóstica
vindoura. Essa é uma estratégia que remonta a origem da
psiquiatria. Os transtornos mentais (mental disorders ) teriam uma
causa, que é orgânica, e suas alterações psíquicas seriam apenas
reações a estas. Primeiro a sífilis (Bayle, 1879), depois a epilepsia
(Charcot, 1887) e, finalmente, as demências (Kraeplin, 1883)
constituíram-se em modelos de doenças orgânicas com causas
definidas, cursos regulares e desenlaces previsíveis, e que serviam
como protótipos para a tese de que a doença mental é de fato uma
doença , condição para fazer da psiquiatria uma ciência médica.
Pinel inaugura a psiquiatria moderna, em 1809, tendo a alienação
como conceito fundador. E alienação implica tanto perda da unidade
na história de si quanto bloqueio das relações dialéticas de
reconhecimento. Se muitas doenças levam a estados de alienação,
por exemplo, a perda provisória da consciência na epilepsia, a
desagregação da unidade das funções psicológicas nas demências,
ou a suspensão da reação ao outro na catatonia sifilítica, ainda
assim, a alienação, ela mesma, parece depender da estrutura da
consciência.
Entre o conceito de alienação e o horizonte da doença fundadora,
a psiquiatria dependia, até a Segunda Guerra Mundial, de uma
espécie de complemento psicológico-filosófico para caracterizar
seus quadros. O início do fim desta crise de nascimento ocorre na
década de 1950, quando se decide pensar os sintomas psíquicos
como uma reação , e a etiologia orgânica como ação . Surgia,
assim, o DSM-1 como primeiro manual orientado para acabar com a
confusão de línguas entre organicistas e psicodinâmicos. Três
grupos clínicos – aliás, os três mais importantes – não se
comportavam muito bem no interior da divisão entre ação (causa) e
reação (efeito): o do “transtornos psiconeuróticos”, o do
“transtornos de personalidade” e o da borgeana classe dos
“transtornos de origem psicogênica ou sem causa tangível ou
mudança estrutural claramente definida”, no qual estavam incluídas
a paranoia, a esquizofrenia e a reação maníaco-depressiva. O título
sintetiza a polêmica: se temos uma origem psicogênica , a causa é
conhecida, ainda que psíquica. Se não há causa tangível ,
poderíamos imaginar uma causa intangível ou a ser descoberta.
Finalmente, a ideia de uma mudança estrutural subentende que
pode haver uma espécie de interação tão difícil de distinguir entre
causas e efeitos que devemos nos ater, antes de tudo, à lógica da
transformação clínica e, a partir disso, inferir a unidade das classes
de transtornos.
Os “transtornos psiconeuróticos”, segundo grupo isolado pelo
DSM-1 sob clara influência da psicanálise, tem como “característica
principal os transtornos de ‘ansiedade’, que podem ser diretamente
sentidos e expressos ou controlados de modo inconsciente e
automático pela utilização de vários mecanismos de defesa
(depressão, conversão, deslocamento etc.). Em contraste com
pacientes com psicose, pacientes com transtornos psiconeuróticos
não exibem flagrantes falsificações da realidade externa (delírios,
alucinações, ilusões) e eles não apresentam franca desorganização
da personalidade. Ou seja, trata-se de um diagnóstico estrutural,
pois designa o princípio formativo do sintoma (deslocamento,
conversão) psicogênico, porque não possui causa orgânica e
diferencial, uma vez que permite se opor ao grupo das psicoses.
Clinicamente, a única divisão estrutural que tem sobrevivido aos
séculos é a que se dá entre psicoses e neuroses.
2. O DSM-3 – FIM DO CASAMENTO ENTRE PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA
Em 1968, o DSM-2 suprimia o papel central da reação, mas
mantinha a oposição acima apresentada entre neurose e psicose.
Contudo, nos anos 1970, uma primeira onda crítica se abateu sobre
o projeto do DSM. Em 1973, veio à luz o experimento de
Rosenham, no qual diversos pesquisadores simularam a existência
de um único sintoma psiquiátrico, dizendo que ouviam vozes, mas
não muito claras (alucinação). Eles se apresentaram a hospitais
psiquiátricos norte-americanos e, após 60 dias, a ampla maioria dos
hospitais não detectou a fraude. Indignados, os psiquiatras
desafiaram Rosenham a enviar falsos pacientes a seus hospitais,
com a certeza de que estes agora seriam apanhados. De 193
pacientes, 41 foram dados por impostores e 42 foram qualificados
como suspeitos, apesar de Rosenham não ter enviado nenhum falso
paciente. A confusão de línguas era tamanha na psiquiatria do final
dos anos 1970 que, quando o DSM-3 resolveu abolir a força da
autoridade e ceder aos critérios da nascente “Medicina Baseada em
Evidências”, isso foi saudado como o início de uma revolução
científica. Depois de História da loucura , de Michel Foucault
(1965), do movimento antipsiquiátrico, de filmes como Estranho no
ninho (1975), e da luta dos civil rights movements norte-americanos
pela despatologização da homossexualidade, a ideia de uma
classificação convencional, normativa e arbitrária, de “transtornos
mentais”, tendo em vista a unificação de linguagens, foi recebida
com esperança. Isso facilitaria o trabalho dos serviços de saúde
mental, das coberturas de empresas de seguro, da pesquisa científica
e da alocação de recursos públicos em saúde mental. Enfim uma
gota de luz em um oceano de trevas. Traçava-se uma linha divisória
clara entre os problemas da vida e a verdadeira doença mental . A
chegada do DSM-3 se fazia acompanhar do processo da
desinstitucionalização de pacientes crônicos, da luta
antimanicomial. Essa reformulação das políticas de saúde mental
apoiou-se também na ascensão dos tratamentos farmacológicos e na
crítica da psicanálise como fonte inspiradora não de uma área
exterior, mas da própria diagnóstica psiquiátrica. A subtração da
psiconeurose no DSM-3 tornou-se o símbolo do fim do falido
casamento psicopatológico entre psicanálise e psiquiatria.
Mas assim como havia uma reação crítica da psiquiatria
interessada em expurgar o conceito de neurose ou psiconeurose,
havia, já nos anos 1950, uma ação psicanalítica que criticava seus
próprios fundamentos clínico-diagnósticos, tanto na psicanálise de
Lacan quanto nas pesquisas de Adorno sobre a personalidade
autoritária e, mais adiante, na psicanálise argentina de esquerda.
Lembremos que a última definição remanescente das
psiconeuroses, no DSM-2, definia esse grupo clínico pela ansiedade
e pelos mecanismos de defesa: a depressão , a conversão e o
deslocamento . Não é difícil perceber aqui os quatro elementos
pelos quais a neurose será substituída até a recente revisão imposta
no ultimíssimo DSM-5: “transtornos de ansiedade”, cujo
desencadeamento depende do objeto (de separação, mutismo
seletivo, fobias específicas, pânico, fobia social), “transtornos
depressivos”, cujo modelo é o luto (depressão maior, depressão
disruptiva, distimia, disforia pré-menstrual), “sintomas somáticos”,
organizados ao modo da conversão (hipocondria, transtorno de
conversão, transtornos factícios) e “transtornos obsessivo-
compulsivos”, nos quais o deslocamento seria a “reação”
fundamental (transtorno do dismorfismo corporal, acumulação,
trocotilomania, transtorno de escoriação). Acrescentando-se a essas
quatro categorias os transtornos de trauma-estresse e dissociação, os
que inibem ou exageram funções (alimentação, sono, excreção,
sexualidade) e as disforias de gênero, reencontramos no DSM-5
todos os elementos classicamente descritos pela psicanálise, com
sua tríade diagnóstica formada por angústia, sintomas e inibições
neuróticas.
3. A NEUROSE FRAGMENTADA
Até aqui, pôde-se ver que, por trás da luminosa nova ciência
psiquiátrica do DSM-5, ainda jaz o cadáver psicanalítico da neurose.
E o sinal maior deste desmembramento forçado é que tanto a
depressão, antes um subtipo da aposentada categoria dos
“transtornos de humor”, quanto a ansiedade são tidas como
situações de alta co-morbidade, sendo declaradamente raro
encontrar pacientes com apenas um desses dois diagnósticos. Na
discussão sobre a epidemia mundial de depressão e ansiedade,
quando pesquisas apontam São Paulo como a capital mundial dos
transtornos mentais (com cifras em torno de 25% da população), é
preciso observar a total indiferença deste instrumento diagnóstico
no que diz respeito à possível relação indutora entre os sintomas.
Primeiro um período de ansiedade, depois de depressão e,
finalmente, a emergência de uma ideia obsessiva, uma fobia ou uma
conversão, seguida de nova onda de ansiedade. Nada mais antigo e
constante nos pacientes de Freud do que percursos que intercalam
períodos de angústia, crises narcísicas e formação de sintomas. A
neurose, e principalmente a neurose histérica, é uma categoria
fundamental para a psicanálise, justamente porque permite explicar,
por meio de uma hipótese única, regras de formação para a
existência da variedade extensa de sintomas diferentes em um
mesmo caso. Um paciente como o “homem dos ratos”, atendido por
Freud em 1907, receberia hoje, facilmente, sete ou oito diagnósticos
sobrepostos, em vez da única e genérica neurose obsessiva.
Mas o problema crucial que se perde de vista com o sequestro da
neurose como categoria diagnóstica é que os diferentes sintomas de
um sujeito exprimem e se articulam em uma narrativa de
sofrimento. Eles se embaralham com a história da vida das pessoas,
com seus amores e decepções, com suas carreiras e mudanças, com
seus estilos e escolhas de vida, com suas perdas e ganhos. A história
da doença confunde-se com a história do doente, sob o qual esta age
e reage, dizia Karl Jaspers (1883-1969). Desde o DSM-2, tentava-se
contornar o critério de Kurt Schneider (1897-1967), pelo qual a
psiquiatria deve se ocupar dos que “sofrem e fazem sofrer”. Mas o
arremedo, que parece ter se tornado definitivo para esse problema, é
o da categoria dos “transtornos de personalidade”. Ela compreende
as formas subclínicas de sofrimento, nas quais é difícil dizer onde
começa o sintoma e onde termina o eu. No DSM-5, tais transtornos
foram agrupados em três clusters , o dos “estranhos” (personalidade
paranoide, esquizoide e esquizo-típica), a dos “dramáticos”
(personalidade antissocial, borderline , histriônica e narcísica) e a
dos “intimidados” (personalidade dependente e obsessivo-
compulsiva). Ainda que tais agregados não tenham sido
“consistentemente validados”, segundo o próprio Manual , sua
função denuncia uma espécie de resgate pago aos psicólogos pela
psiquiatria. Definidas como formas inflexíveis, pervasivas e estáveis
ao longo do tempo, esses transtornos são isolados em um grupo
separado, embora comparável com os grandes sintomas
esquizofrênicos, paranoides, histéricos e obsessivos. A exceção
digna de nota são os grupos borderline e narcísico que, mesmo entre
os psicanalistas, não são claramente definidos nem entre as psicoses,
nem entre as neuroses. A dissociação entre sintomas e suas formas
de vida correlatas é de tal monta que nenhuma palavra é dedicada a
uma ocasional relação entre sintomas do espectro “obsessivo-
compulsivo” e “personalidade obsessivo-compulsiva”. Ora, o
narcisismo é justamente essa função que produz unidades, ainda que
alienadas de si, do outro e do mundo. A definição clássica de
neurose era suficientemente integrativa em psicanálise porque, ao
menos em tese, ela poderia explicar tanto a formação de sintomas
quanto a economia narcísica, ou as transformações e identificações
da personalidade, que lhes é correlata. Ao excluir relações entre
sintomas e funcionamentos psíquicos, o psiquiatra fica, por assim
dizer, desincumbido de fazer apreciações sobre a personalidade do
paciente. Isso tem trazido um efeito dramático, estranho e
intimidador para os clínicos, que relatam, frequentemente, ser
negada a eles, nas contingências reais de sua prática, a possibilidade
de escutar histórias de vidas de seus pacientes, restringindo-se a
anamnese do relato sobre o sintoma.
4. SOFRIMENTO E NARRATIVA
Muitos psiquiatras questionam as renovações feitas pelo DSM-5,
porque elas não se apoiam de fato em novas descobertas científicas,
mas em redefinições nominalistas de sintomas e definições
operacionais de síndromes. Isso valoriza ou sobrevaloriza o
diagnóstico mediante exame retrospectivo dos efeitos de
medicações cujo verdadeiro mecanismo de ação se desconhece. Ou
seja, a unidade perdida com o sequestro da neurose, como hipótese
que unifica história de vida, sintomas e personalidade, é
reencontrada na unidade de um objeto: a medicação. A hipótese da
recaptura da noradrenalina para explicar o mecanismo da ansiedade,
proposta em 1958, foi expandida para a relação entre a dopamina e a
esquizofrenia, nos anos 1960, para a serotonina e a depressão, nos
anos 1970, e, finalmente, ligando a endorfina aos circuitos do prazer
na década de 1980. Observe-se que se trata de uma mesma matriz
hipotética que se reaplica em diversos casos. Em todos eles, o
transtorno é considerado um déficit de substância neuronal. A
medicação entraria, assim, de modo compensatório, fazendo o que o
corpo não consegue fazer por si próprio. Mas tal hipótese deixa de
lado o caso em que certos estados mentais sejam produzidos de
forma totalmente inédita na propriocepção, na experiência corporal
e na economia de significação do sujeito, como parece ocorrer com
o uso continuado do metilfenidado (conhecido popularmente como
Ritalina). Ou seja, há sim um “antes” e um “depois” da medicação
que estabelece uma nova unidade no eu, mas esta é criada pela
medicação e não pressuposta por ela.
O caráter mais ou menos questionável das descobertas em torno
dos neurotransmissores se faz acompanhar de outro fato mais difícil
de entender. Palavras, principalmente metáforas, narrativas ou
experiências de linguagem em contexto intersubjetivo induzem a
receptação e a distribuição de neurotransmissores como dopamina,
serotonina, noradrenalina e endorfina. Palavras mudam o seu
cérebro, e o seu cérebro muda suas palavras, mas não da mesma
maneira.
O real prejuízo que temos com o sequestro da noção de neurose
para o tratamento de nossos pacientes não é que agora eles não
querem mais saber da arqueologia infantil, nem das conexões
sexuais e esquecidas na gênese histórica de seus sintomas, mas que
eles se vejam sancionados por um dispositivo diagnóstico com força
de lei e poder disciplinar na desconexão entre seus próprios
sintomas. Ou seja, uma das características mais antigas e mais
simples da neurose – a saber, o fato de que nela o sujeito não liga
(aliena) os pontos que unem sua vida, seus sintomas e sua
personalidade – tornou-se a forma oficial e padronizada de pensar a
loucura. A neurose opera pela desconexão entre contextos
narrativos, como que a dizer que a vida sexual é uma coisa, a
profissional é outra, a familiar uma terceira coisa, os cuidados com
o corpo são algo a parte, as fases da vida um problema isolado. A
vida pessoal é apenas “outro setor” desta grande loja de
departamentos na qual nos transformamos. Mas todo aquele que se
vê diante de uma experiência maior de sofrimento sabe que não é
assim. O sofrimento tem uma valência política incontornável porque
ele liga os assuntos: a alimentação com a pobreza, a miséria com a
família, a família com o Estado, o Estado com a saúde, a saúde com
a maneira estética de viver o corpo e assim por diante. O sofrimento
pode ter a estrutura de uma novela , como o Romance Familiar, de
uma teoria , como as Teorias Sexuais Infantis (Freud), de um mito,
como o Mito Individual do Neurótico, da poesia chinesa ou
simbolista (Lacan), de uma narrativa (A. Ferro) e até mesmo
encontrar sua expressão universal na tragédia ( Édipo para Freud,
Oresteia para M. Klein, Antígona ou Filotectes para Lacan). As
pesquisas em torno da dissolução da forma romance, empreendidas
por autores como Becket, Joyce e Duras, desafiam o paradigma
discursivo no qual a neurose foi descrita a partir da unidade
narrativa-narrador, da coerência entre contar ( Erzählen ) e
descrever ( Beschreiben ), da progressão articulada de conflitos, da
tensão entre diegese da ação e da verticalização de personagens.
Talvez não seja uma coincidência que os mesmos anos 1950, que
presidiriam a emergência do DSM-1, tenham assistido, mais uma
vez, a onda de declarações sobre a morte do romance. Mas isso só
confirma que o tipo de unidade que encontramos na noção de
neurose nos leva a sistemas simbólicos como a literatura, o mito ou
os discursos sociais, e que ela pode ser redescrita consistentemente
em função destes, tanto em termos semiológicos quanto
diagnósticos. Mas isso exigiria reconhecer o mal-estar que preside a
insuficiência das articulações entre sofrer e ter um sintoma, no
interior do sistema DSM.
5. PATOLOGIAS DO SOCIAL
Tradicionalmente, ao final de cada edição do DSM, há um espaço
reservado para as chamadas síndromes culturais específicas, como o
Amok (na Malásia) ou o Susto (na América Central). Mas o DSM-5
surpreende neste quesito ao trazer uma longa lista de “Outras
condições que podem focar a atenção clínica”: problemas de
relacionamento, rompimentos familiares, negligência ou abuso
parental, violência doméstica ou sexual, negligência ou abuso
conjugal, problemas ocupacionais e profissionais, situações de sem-
domicílio (homeless ), problemas com vizinhos, pobreza extrema,
baixo salário (low income ), discriminação social, problemas
religiosos e espirituais, exposição a desastres, exposição a
terrorismo e “não aderência a tratamento médico”. A lista exprime o
interesse confesso do DSM-5 em patologias sociais, e, ao mesmo
tempo, uma voracidade preocupante. Ela denota os efeitos da
exclusão da noção de sofrimento, acrescidos agora da dispersão
gerada pela recusa incondicional, a pensar: os sintomas no quadro
de uma forma de vida, como unidade entre trabalho, desejo e
linguagem.
Tão morta quanto a psicanálise e o romance, a neurose é uma
forma de constituir um paradigma clínico rigorosamente simétrico à
hermenêutica do sofrimento. Nela, o que se diz sobre o sofrimento
depende de como ele se faz reconhecer e de como ele é ou não
reconhecido pelo outro. A verdade do sofrimento neurótico se dá em
estrutura de ficção, mesmo que o real, que não se consegue nomear,
ao qual este do sofrimento se refere, permaneça opaco e resistente, a
ser inscrito em um discurso, uma prática ou em um dispositivo
qualquer de cura ou diagnóstico. Há, portanto, formas alienadas de
sofrimento, assim como modalidades reificadas de reconhecê-lo.
Mas isso se encontrará tanto nas categorias, elas mesmas, quanto na
forma como as articulamos. A hipótese da neurose suprimida
preserva a estrutura de ficcionalidade do sofrimento contra o
realismo ingênuo da diagnóstica do DSM-5.
Tomando os sintomas como ironicamente destituídos de
organicidade, mas, ainda assim, dotados de força de lei, a
racionalidade diagnóstica do DSM, que espelha a racionalidade
diagnóstica hegemônica de nossa época, permite alienar o sujeito de
e em sua própria forma de vida. Qual seria sua implicação em um
estado de adoecimento contra o qual ele nada pode, pois, afinal, é
seu cérebro que o domina? A segmentação da neurose, como
princípio causal e explicativo, cria um efeito iatrogênico difícil de
tratar: até onde vai a depressão e onde começa outra coisa? Esse
limite entre o moral e o patológico, entre a ação restrita do
transtorno e suas consequências, habilita deserções do sujeito diante
de seu sofrimento. Nunca nos é dado pelo próprio Manual , para
desespero de parentes e cuidadores, até onde vai o transtorno e onde
começa a vida real de responsabilidade do sujeito. Reencontramos
aqui o princípio que conferia, na excluída categoria psicanalítica de
neurose, a unidade entre forma de vida e patologia social, entre
sofrimento e dialética do reconhecimento, entre a expressão do mal-
estar e a forma etiológica de sua produção.
Antes da publicação do DSM-5, inúmeros movimentos sociais
críticos pelo mundo se opuseram aos princípios de seu poder. O
Stop DSM , o Por uma psicopatologia clínica não estatística e, entre
nós, o Manifesto de São João del Rey emergem em associação
contingente com os movimentos sociais de renovação política desde
2011. Muitos psiquiatras chegam a comparar os dois processos,
afinal “o DSM seria o pior tipo de diagnóstico, mas não inventamos
nenhum melhor do que ele” (parafraseando a frase de Churchill
sobre a democracia). O que a psiquiatria, e parte da medicina
conservadora brasileira, em particular, precisa entender é que a
definição crítica de quadros psicopatológicos, a reintrodução
criteriosa de noções como mal-estar e sofrimento, o diálogo
científico com outras matrizes políticas e epistemológicas são
passos necessários para a definição de um programa de atenção e
tratamento a um objeto complexo e transversal como a saúde
mental.
Mesmo que 52% dos pesquisadores envolvidos na reformulação
que engendrou o DSM-5 declarem ligações formais e recebimento
de proventos por parte da indústria farmacêutica, que o principal
órgão de fomento a pesquisa norte-americano se recuse a usar o
novo instrumento pela ausência de marcadores biológicos para as
categorias propostas e que o descobridor do “déficit de atenção com
hiperatividade” (TDHA), Leon Eisenberg, declare que sua
descoberta é uma doença fictícia, não devemos por isso recusar a
psiquiatria e a doença mental como uma invenção arbitrária de um
negócio farmacêutico, que será curada ou esquecida por meio de
readaptação ou integração social. Isso seria novamente desprezar a
regularidade histórica de nossas formas de sofrer, bem como o real
que se encontra no seu interior. Deveríamos explorar a hipótese de
que o TDHA é tão fictício quanto os outros quadros, e, em seguida,
examinar a possibilidade que existem ficções mais úteis que outras.
Se os verdadeiros especialistas em ficções são artistas e literatos,
sem eles, nossas formas de sofrimentos podem ser mais facilmente
classificadas, mas certamente serão menos universais.
O DSM e a crise da psiquiatria
MÁRIO EDUARDO COSTA PEREIRA

“Transtorno de pânico”, “déficit de atenção”, “transtorno bipolar”,


“TOC”, “transtorno de estresse pós-traumático”, “espectro autista”:
parece estranho que termos como esses, de conotação
profundamente técnica, façam parte de maneira tão intensa do
vocabulário de nossa língua cotidiana. Contudo, somos obrigados a
constatar que, cada vez mais, é fundamentalmente através da
linguagem especializada da psiquiatria que não apenas nomeamos
nossos padecimentos emocionais, mas, sobretudo, os concebemos.
Decididamente, não entramos mais “na fossa”, não atravessamos
“crises existenciais”, nem sofremos subjetivamente “da opressão
ideológica capitalista”. Cada vez mais, nossas vivências psíquicas,
das mais banais às mais turbulentas, portam espontaneamente as
marcas do discurso médico-psiquiátrico, independentemente da
propriedade de seu uso técnico.
Mais do que isso: com frequência crescente, e em todas as
camadas sociais, os próprios pacientes já chegam aos serviços
médicos referindo-se a seus sofrimentos através do jargão técnico e,
não raro, corretamente autodiagnosticados.
Uma das fontes principais dessa disseminação cultural dos
significantes e categorias da nosografia psiquiátrica contemporânea
é o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM),
da Associação Psiquiátrica Norte-Americana (APA). Dada a sua
maciça influência, que ultrapassa amplamente as fronteiras de seu
país de origem, atingindo de fato toda a psiquiatria mundial, esse
manual recebeu de importantes autores especializados, e da mídia
em geral, a significativa alcunha de “bíblia da psiquiatria”.
Surgido nos anos 1950, como um esforço de padronização dos
diagnósticos psiquiátricos para fins, ao mesmo tempo, de clínica e
de estatística, o DSM começa a ter uma importância realmente
decisiva a partir de sua terceira edição, publicada em 1980. Tratava-
se, naquele momento, de enfrentar o problema crônico da “confusão
babélica de línguas” (mais uma referência bíblica), que tanto
desmoralizava o campo da psiquiatria. Estudos realizados,
sobretudo na década de 70, demonstravam que os psiquiatras não
eram capazes de estabelecer entre si um acordo mínimo sequer para
identificação diferencial dos quadros clínicos mais paradigmáticos
da disciplina, como os de esquizofrenia e de psicose maníaco-
depressiva. Dessa forma, era a própria credibilidade científica da
especialidade – sempre em busca de reconhecimento de sua
legitimidade médica – que se encontrava em perigo.
A solução encontrada apoiava-se em experiências prévias de
padronização e formalização de critérios para o diagnóstico
psiquiátrico que vinham sendo desenvolvidas nos Estados Unidos
desde os anos 1960. O objetivo principal era o de alcançar um nível
significativo de confiabilidade diagnóstica, ou seja, o
estabelecimento de um acordo terminológico explícito e minucioso,
de maneira que o uso de uma determinada etiqueta diagnóstica
correspondesse a um estado de coisas específico no campo clínico,
em particular no que se refere aos sintomas apresentados pelo
paciente. Em outras palavras, o manual deveria estabelecer um
conjunto de regras e convenções terminológicas de modo a obter o
máximo de acordo entre psiquiatras e pesquisadores em relação aos
referentes clínicos de um determinado diagnóstico.
Destaca-se, assim, o caráter convencional e pragmático dos
diagnósticos propostos pelo manual. Estes buscam organizar os
fatos clínicos de maneira pertinente para a resolução de certos
problemas práticos: a comunicação entre os especialistas; a
delimitação de comportamentos tidos como mórbidos, para os quais
uma intervenção psiquiátrica seria ética e socialmente pertinente; a
correlativa identificação de grupos de sintomas suscetíveis de
modificação pelo uso de medicamentos específicos; a realização de
estudos populacionais confiáveis no campo dos transtornos mentais
e até mesmo a delimitação das categorias mórbidas tratadas pela
psiquiatria, tendo em vista o eventual reembolso de seguros-saúde.
Dessa forma, diferentemente do restante da medicina, o
diagnóstico psiquiátrico permanece, com o DSM,
fundamentalmente clínico, não dispondo de métodos de
objetivações laboratoriais, genéticas ou por imagens, de suas
categorias nosográficas.
É por essa mesma razão que, surpreendentemente, o termo
“doença mental” desaparece dessas classificações psiquiátricas. O
manual assume explicitamente que não se conhece as determinações
últimas dos transtornos mentais. Recorre ao termo, mais neutro e
prático, mental disorder – transtorno mental –, o qual não delibera
sobre a natureza do fenômeno recortado pelo diagnóstico, mas que o
delimita de uma maneira pertinente para a prática psiquiátrica. Tal
como ocorre, por exemplo, na cirurgia plástica, especialidade em
que se pode estabelecer diagnósticos e realizar intervenções médicas
sem que, para isso, seja necessária uma delimitação propriamente
patológica dos fenômenos clínicos em questão, a psiquiatria pode
intervir em situações relativas ao sofrimento psíquico humano,
mesmo não dispondo de um modelo biológico definitivo para os
fenômenos psicopatológicos. A explicitação das bases biológicas
positivas dos transtornos mentais ficaria para um futuro, sempre
prometido para breve, embora permanentemente adiado.
Tal estratégia permitiu grandes progressos à psiquiatria, sem que
esta ficasse paralisada diante da gigantesca tarefa de determinar
biologicamente a natureza dos transtornos mentais. Tendo, mais
modestamente, alcançado uma maior confiabilidade para seus
diagnósticos, tal êxito teve repercussões importantes e positivas em
todas as áreas de pesquisa que se referem aos modelos de ciências
naturais e da epidemiologia. Os diagnósticos – pragmaticamente
organizados em torno da resolução de problemas específicos –
permitiam uma maior eficácia terapêutica para os transtornos por
eles delimitados.
EFEITO COLATERAL
Contudo, grandes questões se impunham desde o início: se um
diagnóstico pragmaticamente estruturado pressupõe a renúncia
quanto a se deliberar sobre a natureza do fenômeno diagnosticado,
qual então sua validade científica? Seriam suas categorias meras
construções arbitrárias, servindo a fins, em última instância,
politico-ideológicos? Teria a antipsiquiatria, no final das contas, tido
razão ao denunciar “o mito da doença mental” como uma má e
perigosa metáfora? Se a psiquiatria não trata “doenças”, mas de
construções linguísticas de uma realidade clínica, qual então a
legitimidade de sua reivindicação de pertencimento ao campo
médico? Além disso, um sistema de diagnósticos baseado
fundamentalmente em sinais e sintomas não estaria em franco
retardo frente às demais especialidades médicas, nas quais o
diagnóstico é estabelecido em firmes bases biológicas
demonstráveis por exames laboratoriais, cito-histológicos e/ou por
imagens?
Assim, se o DSM permitiu um grande avanço no reconhecimento
da psiquiatria como especialidade médica de pleno direito, seu
procedimento comportava dialeticamente o gérmen de sua
contradição.
Correlativamente, o uso maciço do DSM, como referente central
para a prática psiquiátrica contemporânea, acabou por produzir um
grave efeito colateral não-imanente ao manual, mas aparentemente
incontornável: o empobrecimento radical da clínica psiquiátrica em
favor de uma prática centrada no estabelecimento do diagnóstico
formalizado pelo DSM (ou por algum outro sistema que obedece a
princípios semelhantes, como a Classificação Internacional de
Doenças, da OMS). Do diagnóstico, decorre um procedimento
técnico, em geral de tipo medicamentoso, com marcado
esvaziamento da importância atribuída à relação psiquiatra-paciente,
à escuta da palavra singular do sujeito e à dimensão de experiência
humana fundamental do sofrimento, da angústia, da loucura e da
exclusão, reduzidos, assim, a questões técnicas e a efeitos
periféricos de determinações biológicas absolutas.
Finalmente, mas de importância maior, tem-se a influência
crescente dos interesses comerciais e financeiros da indústria
farmacêutica, inclusive na determinação dos próprios diagnósticos.
Estes, sendo delimitados de maneira exclusivamente “científico-
positiva”, terminam por recortar os complexos fenômenos
psicopatológicos de tal forma que o tratamento específico para
grande parte dos transtornos mentais seria justamente aquele
proposto pela psicofarmacologia. Dito em outros termos, o recorte
pragmático e objetivante dos fenômenos psicopatológicos, proposto
pelo DSM, focalizando apenas os aspectos imediatamente visíveis
do padecimento mental e deixando em segundo plano toda sua
incidência subjetiva, corresponde com grande adequação aos
interesses comerciais da indústria farmacêutica.
A esse respeito, muito se tem escrito e debatido. O eminente
pesquisador norte-americano John Sadler, por exemplo, publicou,
recentemente, um capítulo no livro Making DSM-5: Concepts and
Controversies, organizado por Joel Paris e James Phillips (New
York, Springer, 2013). Seu texto buscava examinar criticamente as
influências do que chamou de “Complexo médico-industrial de
saúde mental” (CMISM) na elaboração do DSM e no
estabelecimento de políticas públicas e de pesquisa no campo da
saúde mental. Para se ter uma ideia da gravidade de sua análise,
Sadler – um intelectual tradicionalmente apreciado pelo caráter
ponderado de suas proposições – aproxima o poder do CMISM
daquilo que, em 1961, o ex-presidente americano Dwight D.
Eisenhower chamava de “Complexo industrial militar”. E, já
naquela época, alertava para o fato de que “a influência total [desse
complexo] – econômica, política e mesmo espiritual – é sentida em
cada cidade, em cada governo estadual, em cada escritório do
governo federal”. “Nós reconhecemos a necessidade imperativa
para seu desenvolvimento. Mas nós não podemos fracassar na
compreensão de suas graves implicações”.
Dados tantos pontos de tensão e de instabilidade internos ao
DSM, não é de se surpreender que uma profunda crise teórica,
científica e política tenha se instalado no centro do campo
psiquiátrico justamente no momento de aparição de sua última
edição, há poucos meses atrás. Alguns dias antes do lançamento do
DSM-5, em maio passado, o próprio presidente do National Institute
of Mental Health (NIMH) dos EUA, Thomas Insel, desautorizou
publicamente os fundamentos desse manual, em seu texto
“Transforming Diagnosis”, publicado no blog do NIMH.
Denunciando a insuficiência do projeto de se buscar o
estabelecimento de uma linguagem uniformizada para a descrição
das psicopatologias, tal como a proposta do DSM, Insel sublinha o
fato de que “os sintomas sozinhos raramente indicam a melhor
escolha de tratamento”. E emenda de maneira categórica: “Pacientes
com transtornos mentais merecem algo melhor que isso”.
Como solução para esse impasse, decorrente da ênfase exclusiva
na confiabilidade diagnóstica estabelecida em bases clínicas, Insel
considera indispensável a busca ainda mais acentuada de
“marcadores biológicos” dos transtornos mentais e a caracterização
científica de “ performances cognitivas”. Doravante, sustenta Insel,
o diagnóstico psiquiátrico deveria se pautar não mais na clínica, mas
em evidências objetiváveis, como já ocorre no restante da medicina.
Assim, ao concluir o texto, Insel anuncia que, doravante o NIMH –
principal órgão de financiamento de pesquisas científicas em saúde
mental dos Estados Unidos –, reorientará suas investigações em
torno de critérios próprios (o RDoC: Research Domain Criteria ),
sem levar em consideração os diagnósticos propostos pelo DSM-5.
FORÇAS OPOSTAS
Aparentemente, a crise interna à psiquiatria parece explicitamente
instalada, opondo as duas maiores forças mundiais nesse campo: a
American Psychiatry Association (APA) e o National Institute of
Mental Health (NIMH). Este último, o principal órgão financiador
de pesquisas em transtornos mentais do mundo, denuncia sem
rodeios a inconsistência do projeto, desenvolvido há décadas pela
APA, de fundação do diagnóstico psiquiátrico em bases unicamente
clínicas, mesmo que, teoricamente, confiáveis no que tange a
delimitação precisa das etiquetas diagnósticas.
Que panorama que se abre, então, para a psiquiatria diante desse
impasse que opõe os ideais de confiabilidade aos de validade dos
sistemas diagnósticos e que, sobretudo, define validade unicamente
em termos biológicos? Estaremos diante de uma escalada da
radicalização das posições biológicas em psicopatologia? Nesse
caso, o que poderá distinguir essa nova psiquiatria de uma
neurologia especializada nos comportamentos e nos processos
cognitivos? Quais os efeitos, então, de tais posições quanto ao
futuro da clínica psiquiátrica? Como nos servir dos novos avanços
biológicos no campo da saúde mental sem reduzir a psiquiatria a
uma biologia clínica dos fenômenos psicopatológicos?
A solução aventada por Insel aponta para a delimitação dos
fenômenos psicopatológicos em termos exclusivamente positivos e
biológicos. Mas seria possível definir um transtorno enquanto
mental, ao mesmo tempo em que se faz a economia da referência ao
campo e ao mundo humanos enquanto tais? Relança-se, assim, um
antigo, mas decisivo debate sobre os limites entre normal e
patológico no campo psiquiátrico e sobre a própria definição de
transtorno mental.
Como se sabe, Georges Canguilhem ocupa, de certa forma, o
papel de pioneiro na análise dos conceitos de saúde e de doença.
Seu principal objetivo era o de criticar a concepção científica de
“doença” dominante, quantitativa e objetivista, a qual ele
denominava de “dogma positivista”. Canguilhem defendia a
relatividade individual da saúde e considerava como impertinente
uma definição objetiva e absoluta do normal. Desde seu ponto de
vista, a diferença é a essência da individualidade.
Decorre daí uma concepção do normal sempre relativa ao meio
em que vive o organismo e à natureza social e cultural do meio
humano. Dessa forma, em sua perspectiva, o problema patológico
do humano não pode se limitar à biologia.
Como, então, a medicina chegou a conceber a doença em termos
solipsistas e absolutos? Canguilhem inicia sua obra mais importante,
O normal e o patológico [ Le normal e le pathologique , PUF]
(1943 e 1965) justamente pelo esforço de reconstituir a história
daquilo que chamou de “teoria ontológica da doença”: “Para agir, é
preciso ao menos localizar”. Essa posição é “reasseguradora”,
afirma. Ela permite localizar um ser inimigo; fornece “uma
representação ontológica do mal”. É à necessidade prática,
terapêutica, que se necessita atribuir a origem de toda teoria
ontológica da doença. Na via oposta, através da descrição
fundamentalmente pragmática dos transtornos mentais, o DSM
opera uma desontologização das categorias nosográficas
psiquiátricas.
O imediato pós-guerra introduz novos problemas teóricos e éticos
a esse debate que vão contribuir para uma modificação completa de
nossas concepções de normal e de patológico. Em 1946, a recém-
criada Organização Mundial da Saúde propõe uma definição
positiva de “saúde” que marcará época. Este seria um estado de
completo bem-estar biológico, psicológico e social.
Tal concepção parece identificar saúde e felicidade, ou como dirá
Boorse: “a receita do ser humano ideal”. Uma definição tão
abrangente terminaria necessariamente por colocar a questão dos
limites da autoridade médica, pois, ao levá-la a sério, seria
necessário buscar soluções “médico-terapêuticas” para todos os
grandes problemas da humanidade. Tornava-se claro que uma
excessiva relatividade cultural e social das categorias de saúde e
doença comporta, paradoxalmente, o risco de um uso político e
ideológico, com consequente medicalização da sociedade e dos
comportamentos desviantes.
Doravante, um vasto debate, dominado pelo empirismo lógico e
pela filosofia analítica dos países anglo-saxões, oporia normativistas
e naturalistas. A questão de fundo era a de se definir que tipo de
jogo de linguagem seria o mais apropriado para se tratar da noção
de “doença”, uma linguagem “biológica” ou “prática”? Deveríamos
construir teorias da ação médica (e, nesse caso, saúde e doença
seriam conceitos práticos) ou estabelecer um fundamento
claramente explicativo e naturalista a partir de modelos
patofisiológicos?
Christopher Boorse, renomado filósofo da medicina, opõe-se ao
relativismo. No célebre artigo “Health as a Theoretical Concept”
(em Philosophy of Science , 1977), ele defende a existência de
conceitos teóricos e objetivos de saúde e de doença que podem ser
definidos a partir da noção de “função biológica” (baseado no
design natural de funcionamento da espécie previsto pela evolução)
e pela normalidade estatística. Nesse caso, a patologia
corresponderia a desvios em relação ao design biológico da espécie
face a determinada função vital.
Em uma posição híbrida e de grande influência na construção do
DSM-5, Jerome Wakefield (1992) propõe – em “Disorder as
Harmful Dysfunction: A Conceptual Critique of DSM–III–R’s
definition of mental disorder” – uma definição, ao mesmo tempo
naturalista e normativa, dos fenômenos patológicos a partir de seu
conceito de “ harmful dysfunction analysis ”: análise do
disfuncionamento prejudicial. Segundo Wakefield, “o
disfuncionamento” não é condição suficiente para se distinguir
normal e patológico. Para isso, é necessário que uma alteração
biológica coloque em cheque o padrão adaptativo decorrente da
evolução natural da espécie humana (dimensão biológica),
resultando em um funcionamento tido como prejudicial ou
indesejável. Dessa forma, são exigíveis tanto o elemento de prejuízo
evolutivo-biológico quanto a dimensão nitidamente valorativa
implicada na ideia de “prejuízo”.
Nesse caso, seria necessário interrogar se a própria teoria da
evolução não prevê que as variações sejam a norma de todo
processo vital e que é justamente essa ocorrência ubíqua do desvio
aquilo que permitiria a evolução, em termos adaptativos. Além
disso, o que justificaria a evocação da evolução como referência
para a definição de doença, se a própria prática médica se
fundamenta em dimensões éticas que, justamente, desconsideram e
por vezes se opõem frontalmente a qualquer forma de eugenia e de
distinção entre “fracos” e “fortes”, entre “aptos” e “desadaptados”?
CORAÇÕES E MENTES
O cerne da questão, no que toca o campo especificamente
psiquiátrico, poderia ser descrito nos seguintes termos: é possível e
pertinente descrevermos os fenômenos psicopatológicos em termos
exclusivamente biológicos, excluindo de sua definição qualquer
referência ao mundo social e ao homem? Ou, ao contrário, não seria
este justamente o momento fecundo de se repensar radicalmente a
psiquiatria enquanto prática médica – e não apenas como ciência
biológico-cognitiva aplicada – cujo fundamento ético e clínico seria
o sujeito?
O eminente psiquiatra suíço Ludwig Binswanger, inicialmente
discípulo de Bleuler e de Freud, aderindo, em seguida, a uma
fenomenologia fortemente influenciada pela leitura de Heidegger,
sustentava a ideia de que toda psicopatologia, enquanto ciência e
prática dos transtornos mentais, iniciava-se pela pergunta “o que é o
homem”? Com isso, ele não visava negar a importância dos
conhecimentos oriundos das ciências naturais para o estudo das
perturbações psíquicas, mas recusava a hipótese de que o plano
biológico definiria por si próprio uma categoria psicopatológica.
Um comportamento, um sentimento, uma tendência impulsiva, uma
determinada configuração genética ou mesmo certas modalidades de
funcionamento de circuitos cerebrais só podem ser consideradas
mórbidas em referência a uma determinada visão de mundo, de
homem e de uma existência humana plenamente realizada. Quanto
mais cegamente mantivermos um acordo tácito quanto a natureza e
os objetivos da vida humana, mais forte será a ilusão de que as
definições estritamente biológicas de transtorno mental repousam
sobre um fundo ideologicamente neutro e, portanto, desnecessário
para a sua validação.
Para a manutenção dessa ilusão, é indispensável que não se
problematize muito radicalmente a “order ” que os psiquiatras são
incitados a restaurar face à “ mental disorder ”. É interessante
observar que apesar de se servirem decisivamente da noção de “
mental disorder ” (transtorno mental), definida de maneira
pragmática, nenhuma edição do DSM preocupou-se em delinear a
order face à qual determinado comportamento ou estado mental
constituiria uma “ disorder” . Contudo, não é difícil restituir, a partir
das pistas fornecidas pelo próprio manual, order referencial sobre a
qual o sistema diagnóstico proposto pelo DSM se fundamenta: o
indivíduo autônomo, racional e responsável por seus atos, tal como
concebido pelas sociedades industriais capitalistas ocidentais
contemporâneas: participante da competição e do consumo
capitalista, tendo como valores fundamentais a realização individual
e familiar e o desfrute de bens e de experiências prazerosas. Dito em
outras palavras, uma classificação diagnóstica jamais é
politicamente neutra, pois sempre veicula – necessária e
implicitamente – uma visão de homem e de sociedade. Trata-se,
portanto, de um instrumento eventualmente útil do ponto de vista
prático, mas que só pode ser manipulado em condições que
possibilitem a permanente crítica de seus a priori ideológicos, sob
pena de provocar efeitos nocivos ainda mais graves que a simples
submissão ingênua a objetivos econômicos de potências industriais:
a servidão voluntária a certas visões ideológicas do homem, da
sociedade e do mundo.
O famoso documentário Corações e mentes ( Hearts and minds ,
1974, de Peter Davis, vencedor do Oscar de melhor documentário
de 1975) apresenta, já em suas primeiras cenas, o discurso do
presidente norte-americano Lyndon B. Johnson, no qual é enunciada
a expressão que dá titulo ao filme. Conclamando a população a
apoiar a manutenção das tropas yankees no Vietnã, Johnson
esclarece: “Nossa visão de progresso não está limitada ao nosso
país. Nós a estendemos a todo o mundo”. E sustenta que os Estados
Unidos deveriam continuar a lutar no Vietnã, pois a verdadeira
vitória não está na ocupação dos territórios, mas na conquista dos
corações e mentes das pessoas que neles vivem. A verdadeira
dominação é aquela que se dá na alma do dominado, que passa a
subscrever espontaneamente as categorias mentais propostas pelo
dominador.
Se, no perigoso plano do psiquismo humano – palco de todos os
sonhos, incoerências e rebeldias –, a batalha ideológica é a da
conquista de uma forma ahistorica, despolitizada e dessexualizada
pelas quais as pessoas autodefiniriam seus sofrimentos, quem
poderia negar que tal objetivo já esteja sendo amplamente atingido?
A crise interna da psiquiatria, opondo confiabilidade diagnóstica e
validade biológica, não implica, de forma alguma, na renúncia ao
estudo das dimensões biológicas implicadas nos fenômenos
psicopatológicos, mas na necessidade de se reconhecer o estatuto
próprio da psicopatologia, enquanto ciência autônoma dedicada ao
estudo do sofrimento e dos transtornos psíquicos enquanto
fenômenos humanos irredutíveis a seus componentes naturais.
Tome-se, por exemplo, o que se vem observando em uma situação
clínica na qual ninguém ousaria negar a participação central de
fatores biológicos: a síndrome de Down. Apesar do incontestável
papel etiológico da trissomia do cromossoma 21 no aparecimento
das manifestações clínicas dessa síndrome, observa-se uma
extraordinária melhora da qualidade de vida, da integração social,
da expectativa de vida e dos ganhos cognitivos desses sujeitos nos
últimos trinta anos, sem que nenhum novo tratamento biológico
tenha sido, de fato, produzido nesse período para esse tipo de
quadro. Transformou-se nosso olhar sobre esses sujeitos, nossa
maneira de conceber suas possíveis formas de integração social,
suas modalidades afetivas e cognitivas próprias, nossa capacidade
de vislumbrá-los como sujeitos organizados em coordenadas
biológicas muitos singulares, mas participando de pleno direito ao
campo simbólico humano. Isso os transformou, e vem
transformando a sociedade. Mesmo que em um futuro, distante ou
próximo, possamos impedir os efeitos da presença da trissomia no
cromossomo 21, em nada se modifica o fato de que um quadro
psicopatológico não pode ser concebido enquanto tal se abstraímos
a dimensão do sujeito e do mundo que lhe é correlativo.
perfil Reinaldo Moraes
A anamnese de Reinaldo Moraes
HEITOR FERRAZ MELLO

“Parece até anamnese, aquela história que o paciente conta ao


médico, de como começou a sentir essa dorzinha aqui”.
A dorzinha, no caso, é a literatura. E o relato começa com um
menino de 12 anos, vestindo um uniforme do colégio Caetano de
Campos, paquerando uma garota de 11, do Luís de Camões, toda
bonitinha, e chega neste homem grisalho, de 63 anos, um metro e
noventa, que tranquilamente devora um belíssimo acarajé, numa
mesa de bar, em Pinheiros.
Reinaldo Moraes se ajeita na cadeira, apanha o gravador na mão,
dá uma olhada suspeita, levanta-se e diz: “Bom, vou até ali pegar
uma cachacinha, fazer um xixi, umas flexões abdominais e volto
já”. Sorri e sai temporariamente de cena. A história que ele irá
contar, com muitos detalhes, é longa e não cabe nas 2.800 palavras
deste texto. Ela começa, de fato, com esse encontro entre o garoto
de 12 anos e a menina de 11. Uma espécie de ponto de partida de
uma atividade de escrita que gerou, muitos anos depois, três
romances cultuadíssimos: Tanto faz , de 1981, Abacaxi , que é uma
espécie de continuação do primeiro, de 1985, e Pornopopeia , de
2009, que, sem dúvida, é um dos melhores romances publicados nos
últimos anos no país – e certamente o mais engraçado.
O bar, na rua dos Pinheiros, com típica comida baiana, também
poderia entrar no rol desta mitologia pessoal do escritor paulistano.
A uma quadra dali, fica a sede da Fundap (Fundação do
Desenvolvimento Administrativo), onde Reinaldo trabalhou no
começo dos anos 1970, e que lhe rendeu, por puro acaso, uma bolsa
de dois anos em Paris. E foi lá, morando num “studiô” da rue
Larrey, no 7ème arrondissement , que ele alinhavou, numa Lettera
22 que engripava a toda hora, o cotidiano de Ricardo, personagem e
narrador de Tanto faz . O livro traz a história de um jovem bolsista
brasileiro de 33 anos, vivendo no velho umbigo do mundo, bebendo
muito, dando uns tapinhas, indo ao cinema, encontrando os amigos
e curtindo sua pornográfica educação sentimental.
Com um copinho de cachaça na mão, Reinaldo volta do banheiro.
Senta-se e começa a falar daquela garota de 11 anos. Chamava-se
Rosemary e era filha de um professor de jiu-jitsu com uma
cabeleireira da rua Oscar Freire, onde a família dela morava. Os
dois se conheceram no ônibus, e o moleque Reinaldo começou a
escrever cartas e mais cartas de amor. Esmerava-se na função de
missivista apaixonado. Até que um dia, a mãe, vendo que o boletim
da filha estava cada vez mais vermelho, foi fuçar nas coisas da
menina e descobriu aquela cascataiada lírica. “Ficou
preocupadíssima, achando que ela tinha descolado um cara muito
mais velho, que a estava seduzindo”. E deu uma prensa: que ela
trouxesse esse garoto em casa, pois queria ter certeza de que se
tratava de um menino e não de um marmanjão pedófilo.
Alguns dias depois, lá estava, na porta do salão da cabeleireira, o
futuro escritor, com seu uniforme escolar, acompanhado de um
amigo, que era colega de classe de Rosemary. Então é este pirralho
o epistoleiro lírico? Caiu na gargalhada. “Vendo em retrospectiva,
foi a minha primeira consagração literária”, saca rapidamente
Reinaldo, mas logo lembrando que o resultado, no seu caso, não foi
muito positivo. Por causa da dedicação às cartas, tomou pau em
todas as matérias e foi jubilado do Caetano de Campos.
PISCADELAS MACHADIANAS
Filho único de uma família de classe média – seu pai era contador
de uma empresa madeireira e a mãe tinha sido professora primária
–, Reinaldo conta que não havia muitos livros na estante de sua
casa. Eles moravam atrás do Jóquei Clube, naquele miolinho onde
hoje fica a Tok Stok. Sua iniciação de leitor, como a de muitos
moleques daquela época, foi com os 18 volumes da famosa
enciclopédia Tesouro da Juventude, que, entre outras coisas, trazia
condensações de romances. E Reinaldo foi fisgado por Amor de
perdição, do português Camilo Castelo Branco, sobre o qual fez um
trabalho escolar e massageou o ego com um primeiro elogio dos
professores.
Nascido em janeiro de 1950, pode-se dizer que a década formativa
do escritor foram os agitados anos 1960, ou seja, dos seus 10 aos 20
anos de idade, do garoto imberbe ao jovem barbudo e cabeludo.
Nesta época, muitas leituras esparsas, mas principalmente a
descoberta de Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro,
obras centrais de Machado de Assis. As piscadelas irônicas e cheias
de humor do narrador machadiano desconcertaram o leitor de José
de Alencar e outras “tranqueiras” escolares. Piscadelas que,
atualizadas e injetadas de sacanagem, voltaram com toda
intensidade, neste novo século, pelos olhos do narrador Zeca, de
Pornopopeia.
A segunda descoberta, que foi uma viravolta na sua vida, e
também sedimentou o seu caminho para a literatura, veio em 1967,
com a peça O rei da vela, do modernista Oswald de Andrade, na
montagem, hoje histórica, de José Celso Martinez Corrêa. Reinaldo
assistiu à peça, pirou com a encenação dionisíaca de Zé Celso,
voltou outras tantas vezes para ver novamente e acabou se
encerrando no setor de obras raras da Biblioteca Municipal, onde
leu de fio a pavio toda a obra de Oswald, já que quase não havia
edição disponível nas livrarias dos livros do modernista morto em
1954. Pouco tempo depois, no entanto, sairia uma edição pela
Civilização Brasileira em parceria com o MEC (Ministério da
Educação e Cultura). E foi a edição que reunia Memórias
sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, que ele
levaria anos depois a Paris.
Com tanta agitação estética na cabeça, pensou seriamente em se
tornar cineasta. “Mas como eu era filho único, tinha que ser
advogado, engenheiro, essas coisas. Minha família era de classe
média baixa, meu pai com muito custo conseguiu me sustentar”.
Decidiu-se então por economia, mas na hora H acabou prestando
para Ciências Sociais, curso que largou no terceiro ano, quando, por
pressão paterna, começou a fazer Administração de Empresas, na
Fundação Getúlio Vargas. Com o diploma na mão, seu primeiro
emprego, no entanto, foi como jornalista de economia, na Gazeta
Mercantil. Um ano depois, já de “saco cheio” da vida de redação,
acabou arranjando um trabalho na recém-fundada Fundap, que
prestava consultoria em gestão pública.
Com um horário até flexível, Reinaldo foi levando a vida,
escrevendo uns continhos que publicava em revistas e jornais de
bairro, como o Pamplona’s, que era de uma amiga. Um dia, um dos
chefes entrou no escritório e perguntou quem sabia falar “bom dia,
em francês”. “Eu falo bom dia e boa noite!”, disse, com seu humor
meio exibicionista. O fato era: um colega havia recebido uma bolsa
da Sorbonne para fazer um curso voltado para o Terceiro Mundo,
mas, na última hora, reatou com a ex-mulher e desistiu da viagem.
Pouco tempo depois, Reinaldo desembarcava no aeroporto de Paris
– Charles de Gaulle. Assistiu às primeiras aulas do curso e percebeu
que não ia suportar – ainda mais tendo de acordar cedinho em pleno
inverno europeu – e foi procurar o responsável pelo convênio.
Voltaria ao Brasil no primeiro voo. Mas para os franceses convênio
é convênio. E abriu-se uma “fissura no monólito do sistema”, como
lhe disse, numa conversa no bar La Coupole, seu amigo Giba, o
sociólogo Gilberto Vasconcellos. “Foi o grande rabo da minha
vida”, resume Reinaldo.
Como não poderiam quebrar o convênio, Reinaldo arranjou um
orientador para fazer um trabalho em urbanismo. Nem teria de
assistir aulas, apenas fazer um estágio no Beaubourg (Centre George
Pompidou) e escrever a monografia. Com todo o tempo livre pela
frente, começou um romance psicológico cujos personagens eram os
pacientes de um psicanalista freudiano. Ao ler esses rascunhos,
Giba, o grande amigo e parceiro de noitadas, foi taxativo: “Joga essa
merda no lixo. Escreve sobre você, viado!”, conta ele, imitando a
voz rascante de Giba.
Como o único livro brasileiro que ele havia levado era a edição
dos dois romances inventivos de Oswald de Andrade, resolveu fazer
o seu próprio Serafim Ponte Grande , explorando a ideia de uma
prosa fragmentária, com pílulas de situações, aproveitando-se da sua
própria experiência francesa, mas jogando-a na boca de um
personagem, que logo mais seria chamado, pela crítica, de alienado.
E a monografia? “Bom, numa madrugada, me sentei diante da
máquina de escrever e tirei do cu com palitinho, como dizia a minha
finada avó analfabeta”. E nunca mais teve notícia de seu esforço
acadêmico, pois o professor-orientador viajou para a África e sumiu
da história.
CONTRIBUINTE FRANCÊS
É hora de pedir mais uma cerveja, dar mais talagada na cachacinha,
que vai descendo suave, sem pressa, e descascar mais um punhado
de vida literária. Voltamos ao livro de estreia: chegando ao Brasil,
mais um “rabo”, como ele diz. Depois de ter passado uma cópia do
seu romance aos amigos, que se divertiam muito lendo, pintou o
convite de publicá-lo numa coleção que faria história no mundo
editorial brasileiro naqueles últimos anos de ditadura militar no país:
a Cantadas Literárias, da editora Brasiliense. O primeiro título da
coleção foi Porcos com asas , dos italianos Marco I. Radice e Lidia
Ravera, que fez um enorme sucesso. No vácuo, veio Tanto faz ,
publicado em 1981, que logo teve sua primeira edição esgotada.
A segunda edição demorou um pouco para sair, pois o editor Caio
Graco Prado vinha recebendo telefonemas de colegas de “partidão”.
Aquele era um livro alienado. Um artigo publicado no Jornal do
Brasil , no dia 24 de outubro de 1981, assinado por Sérgio Ryff,
desencava o romance e ainda perguntava: qual seria a “misteriosa
entidade que o alimenta de dólares – naturalmente arrancados do
contribuinte brasileiro” e o deixa flanar por Paris, “consumir doses
impressionantes de drogas e bebidas, partilhar a cama com uma ou
outra brasileirinha emigrada e mergulhar em exaustivas discussões
filosófico-existenciais com seus amigos perdidos, como ele e por
variadas razões, na Europa”?
Reinaldo larga o copo de pinga e, mais de trinta anos depois, se
defende: “quem pagava a bolsa era o contribuinte francês, não o
brasileiro!”. De qualquer forma, o artigo negativo acabou – por via
oposta – criando uma curiosidade no leitor, e o livro sumiu das
prateleiras das livrarias. O mesmo aconteceu com a demorada
segunda edição, que só saiu por insistência do jovem editor Luiz
Schwarcz, então braço direito de Caio Graco.
No “inverno de 1985”, saiu Abacaxi , publicado pela gaúcha
LP&M, e que era uma espécie de continuidade de Tanto faz . O
personagem, que acaba embarcando com uma “ressaca heroínica”
para São Paulo, com uma baldeação em Nova York, é retomado,
mas com outro nome. Agora, ele se chama Quincas e se vê diante
daquele “ outdoor cubista de luzes, caras, copos, garrafas, belas
mulheres, táxis amarelos, charos, pó, crioulões-em-flor, vitrines
sedutoras, mercadorias cintilantes, prédios gigantescos de botar
complexo de pau pequeno em São Paulo, mulheres, ruas retas
numeradas e sem fim, mulheres, ruas, mulheres, ruas...”. Na nova
edição, que reúne os dois primeiros livros num só volume, Reinaldo
deletou o nome Quincas e no lugar pôs Ricardo, já que um romance
é continuação do outro.
O sucesso do primeiro livro abriu algumas portas para Reinaldo.
Principalmente a da amizade. Com Tanto faz , vieram os amigos de
toda hora, como o escritor Mário Prata, que o levou a fazer as
novelas de televisão Helena , O campeão e Bang-bang ; o cronista
Matthew Shirts, leitor privilegiado de seus manuscritos e que lhe
encomendou uma reportagem sobre São Paulo; e, entre outros, o
músico Alberto Marsicano, que, com sua cítara, inspirou Alan, de
Abacaxi , e o incrível Ingo, de Pornopopeia .
A lembrança de Marsicano, neste momento da conversa, não
chega para lançar melancolia na mesa do bar – ele morreu em
agosto, aos 61 anos, duas semanas antes dessa entrevista.
“No Pornopopeia , o personagem é um discípulo do Marsicano.
Ele era um maluco, super-inteligente, recitava e traduzia John
Milton e ganhava dinheiro tocando cítara. Todos os centros de ioga
do país o chamavam para se apresentar. Quando eu morava na rua
Alagoas, meu apartamento ficava no térreo. Ele passava pela rua,
me via pela janela e logo entrava. A ideia daquela suruba de cem
páginas do Pornopopeia veio de um desses encontros com ele. Um
dia, acho que em 1982, ele passou no meu apartamento, ficamos
ouvindo The Doors, que ele adorava. Ele me convidou para
acompanhá-lo na Regina Shakti, que tinha um centro de ioga numa
travessa da Consolação. Quando pusemos o pé na rua, começou
uma ensurdecedora bateção de panelas! Era o panelaço, lembra?
Bom, fomos para lá. Ele me apresentou a mulher e começou a afinar
a cítara. Logo depois, eu fui embora. Mas sempre fiquei pensando: o
que teria acontecido naquele dia? Sempre tem um gancho para a
literatura”, conta Reinaldo. Claro que a suruba do ritual do
“bhagadhagadhoga” ficou por conta do Zeca, ou José Carlos
Ribeiro, o mais que suspeito narrador do romance.
Mas antes de falar de Pornopopeia (convém não atropelar os
fatos), Reinaldo ficou 17 anos sem publicar. O jejum editoral só foi
quebrado em 2003, com a deliciosa reportagem encomendada por
Shirts: Estrangeiros em casa: uma caminhada pela selva de São
Paulo , publicado pela National Geographic do Brasil, com fotos de
Roberto Lenskier. O livro é o relato de uma caminhada de 90
quilômetros – com o ciático pinçando a coluna – de Engenheiro
Marsilac, quase na serra do Mar, até o limite da Zona Norte, no
bairro do Tremembé. Nesta época, Reinaldo já estava casado com a
editora Marta Garcia, com quem tem duas filhas pequenas – de seu
primeiro casamento, com a psicanalista Maria Rita Kehl, ele tem
uma filha.
No mesmo ano, sairia ainda a surpreendente novela juvenil A
órbita dos caracóis , que deixaria Oswald de Andrade morrendo de
inveja, pois nela, Reinaldo, com um humor tinindo, joga com a
velha dualidade brasileira, do país moderno e ao mesmo tempo
atrasado, num enredo que envolve alta tecnologia, satélites em
queda, escargots assassinos e um país meio capenga, com seus
detetives palitando dentes e herois quatrocentões. E, claro, um vilão
nazista chamado Schultz (seria uma homenagem ao sargento
Schultz, do velho seriado Guerra, sombra e água fresca ?).
Pouco depois, ele lançou o incrível volume de contos Umidade .
O projeto inicial contava com 11 contos. No entanto, o editor Luis
Schwarcz, da Companhia das Letras, empacou num deles. O conto
falava de uma interminável suruba – aquela, imaginada no centro de
ioga. Incomodou-se com o personagem, pois não se sabia de onde
vinha, nem para onde ia. Depois de relutar e resmungar um pouco,
Reinaldo topou tirar o conto do volume. Mas a dúvida do editor
acabou virando a do escritor. A resposta sobre o destino daquele
personagem chegou quatro anos depois, nas quase 500 páginas de
aventura, ou desventura, de Pornopopeia , narrado
compulsivamente por Zeca, um cineasta frustrado que leva uma
vida desregrada, de intensos prazeres e acaba escorregando para a
marginalidade, sem se dar conta. Se não houver exagero, Zeca é o
próprio Brasil depois de 64 (ele mesmo nasceu no fatídico 31 de
março de 1964).
Atualmente, ele está tocando três projetos. São três novos
romances. Logo depois de Pornopopeia , começou uma novelinha,
que seria curta, mas até fevereiro deste ano já contava com 800
páginas de Word. No meio do caminho, escreveu um roteiro para
um jovem cineasta, Roberto Marques. E deste roteiro está tirando
um outro livro (do qual ele prefere, por enquanto, não falar do que
se trata), mas que vai se chamar Maior que o mundo . E o livro
encomendado pelo projeto “Amores Expressos”, que o levou até o
México, em 2007, foi parar na gaveta depois de uma negociação
com o produtor Rodrigo Teixeira, responsável pela empreitada.
Como havia recebido um bom adiantamento, resolveu passar a
Teixeira os direitos cinematográficos de Tanto faz . “Eu vou fazer
esse livro, mas não sei quando. Eu tenho 63 anos, e você não pode
mais jogar com horizonte de 20 anos, 30 anos. Então, resolvi a
questão jurídica e dei os direitos para amortizar essa dívida”, diz.
Para dar conta de seus personagens picarescos, o dia perfeito para
ele começa às sete da manhã, depois de deixar uma das filhas na
escola. Toma uma xícara “deste tamanho” de café e revê tudo que
escreveu na noite anterior – o trabalho noturno começa, na verdade,
no final da tarde, lá pelas seis horas e vai até meia-noite, com uma
pausa para o jantar. Falando nisso, já são quase sete horas da noite.
Reinaldo apanha seu guarda-chuva bordô, que ficou ali pendurado
numa cadeira ao lado, e sai caminhando. Vai voltar a pé para uma
travessa da rua Pamplona, onde mora. É o momento de sua uma
hora diária de caminhada, para manter a forma. “Com a idade, os
músculos vão embora, e depois quem vai embora é o esqueleto”,
arremata.
livros

Uma possível Ana Cristina Cesar


PAULO RICARDO ALVES

“Tantos poemas que perdi / Tantos que ouvi, de graça, / pelo


telefone”. Os versos que abrem “Samba canção”, uma das entregas
poéticas daquela que é talvez a obra mais conhecida de Ana C., A
teus pés , são capazes de nos levar a pensar: quantos e que tantos
poemas a poeta carioca não teria perdido, ouvindo-os de graça, ao
telefone, se daqui não tivesse partido há 30 anos, em 29 de outubro
de 1983. A linguagem de Ana C., programadora, mixeuse de afetos
numa pickup de palavras, buscava e encontrava sua força no lapidar
desse registro recolhido: a conversa ao telefone, a confissão, a carta,
a anotação, o rabisco, feito os lunch poems de Frank O’Hara – e
desses fragmentos costurava todo um universo de planos polifônicos
de discurso e de intervenção. Poesia que articula e efetiva um real
possível na linguagem.
Foi em meio à geração do mimeógrafo que Ana C. despontou.
Geração fruto de um novo senso de mobilização que assomava
sobre o país, da figura do poeta guerrilheiro de Terra em transe ,
aquele cuja poética se cruzava com a política, se fazia ato e ação.
Um novo perfil de mobilização se imprimia na produção
independente daqueles jovens autores cuja experiência coletiva nos
finais dos anos 1970 consolidava um legado cultural,
comportamental e social do maio de 68. Ana se distinguia valendo-
se de um repertório intelectual arguto e de um senso estético ímpar
(sua opção “pelo olhar estetizante”). E assim, em meio aos poetas
marginais da “Geração 77”, como batizou Elio Gaspari, ela
atravessou outros níveis de discurso, fez seu percurso para além das
agendas ideológicas, num texto marcado pela declaração do corpo,
legado moderno de Walt Whitman – “recito WW para você. Amor,
isto não é um livro, sou eu que você segura e sou eu que te seguro”
–, em que o poema se faz próprio corpo do poeta, fragmentando
fronteiras comportamentais, políticas, íntimas e confessionais e
fazendo da poesia sintoma de uma época. Políticas do desejo
advindas da guinada de 1968. Fôssemos ecoar Deleuze, de quem
Ana C. era leitora, diríamos que o que interessava a ela – a
instigava? – era a esfera molecular : os microacontecimentos, o
discurso menor.
RETALHOS COTIDIANOS
Silviano Santiago deu um título sintomático a seu ensaio de 1985
sobre a poeta: “Singular e anônimo”. Posto que o estado intrínseco
da linguagem poética é a constante travessia em direção ao outro,
em Ana C., esse “outro”, o leitor, não é um coletivo, e sim um
destinatário que, embora sempre singular, “não é pessoal porque
necessariamente anônimo”. Leitor este que não tem nome próprio,
mas a quem é endereçado, por exemplo, o livro/poema
Correspondência completa : o assinalado “My dear”. Uma carta que
traz crivada em si uma “grande história passional, guardada a sete
chaves”, mas que sangra em cumplicidade e comunhão com o leitor
– conosco –, cuja alteridade está ali para ser atravessada num ato de
(re)conhecimento.
A trilha que seguiu Ana C. na afectuação da poesia moderna é
aquela do corpo que se faz na tecedura do texto, a de Whitman, que
articula a vida e a contemporaneidade ditas “pequenas”,
fragmentárias/fragmentadas, retalhos cotidianos, na tentativa de
traçar a biografia de uma voz . É essa a voz da entrega de A teus pés
, do processo encantatório de Luvas de pelica , sedutora travessia
para uma dimensão alheia na linguagem, e mesmo do
estilhaçamento dos sentidos numa construção ou montagem
cinematográfica (remontando a Eisenstein e, também, Godard). No
plano de Ana C., o corpo, como para Rimbaud, é primário – ao
contrário duma linguagem cerceada, que reifica, o corpo guarda seu
significado em reserva e é, antes de tudo, sentido e experimentado
através das sensações físicas e movimentos abraçados pelo ato
poético.
Numa de suas dobras com a poesia moderna francesa, Ana C.
tomou o “Cisne” de Baudelaire pelas asas e fez a travessia do verso
alexandrino para o poema em prosa na “Carta de Paris”, um de seus
Inéditos & dispersos . Escrita sintonizada “no meu Charles, com
seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno” – estes que
aparecem, num imaginário de exílio, justapostos ao “Baudelaire
querido” de “21 de fevereiro”, Charles anjo-mito urbano,
recuperado no confronto com um momento decisivo na vida
cultural, quando tudo devém espetáculo e desponta então a
performance .
Nesta mesma carta, Ana C. cruzou o ponto limítrofe em que o
poeta se situa entre uma estética da tradição do moderno e o novo, o
esboçar (o recolher, recueillement ) de uma nova poética
presentificada, de força reconstrutiva e rearranjadora de planos: “A
velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está
perdido, e é apenas em delírio que vejo”. Visão em êxtase um
presente tomado por “campos de batalha, museus abandonados,
barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra,
palavras de ordem desgarradas” – sempre pontuado pela palavra –
veículo de esboço daquele campo de estratégia cultural da vida
urbana nas décadas de 1970, 1980 e adiante, já visado como
memória.
CARTOGRAFIA DO DESEJO
Muito mais do que uma reescrita de Baudelaire ou do moderno, Ana
C. realizou um trabalho de trâmite entre níveis diversos de
discursividade, de contaminação de falas, que irrompem em sua
própria voz. Assim como os Journaux Intimes do poeta francês não
se tratam de um diário íntimo “real” ou “verdadeiro”, sua escrita
constituiu-se a partir de fragmentos do cotidiano e da esfera íntima,
dispostos como um universo próprio, um novo terreno de
linguagem, cujo mapeamento é um shuffling , um embaralhar de
história e subjetividade sob o prisma contingente e feminino da
escrita confessional.
O que marca a atividade poética de Ana C., em conversa com o
contemporâneo, é a poesia em seu conceito mais legitimado de
construção do real, como universo autônomo de manipulação,
recriação e (re)descoberta, reeducação de si – exercício de
cartografia do desejo. Seu legado é uma escrita nova e insurgente,
escrita de rupturas e transformações, transmutações até. A
subjetividade, o individual e a libido como cosmos , de modo a
cruzar o outro, efêmero e passional, em abraços de fato, com
direção infinita.
Outro de seus poemas, “Protuberância”, diz: “No ano 2001 terei
(2001-1952=) 49 anos e / serei uma rainha / Rainha de quem, quê,
não importa / E se eu morrer antes disso / Não verei a lua mais de
perto / Talvez me irrite pisar no impisável / E a morte deve ser
muito mais gostosa / Recheada com marchemélou [...] Uma palavra
me delineia / VORAZ / E em breve a sombra se dilui, / Se perde o
anjo”. Trinta anos depois da partida, e doze depois do cálculo
versado, é muito improvável que sua mixagem de versos nos elucide
sobre o pisar no impisável. “Não estou conseguindo explicar minha
ternura, minha ternura, entende?”. Porém, talvez na busca do anjo
que se perde, possamos recitar WW por ela: jovens poetas, sou eu
quem lhes alcança através dos tempos.
livros

Labirintos da crítica literária


REYNALDO DAMAZIO

Os impasses da crítica literária hoje e o declínio de sua relevância


no debate público de ideias e de questões estéticas, em especial nas
relações da obra com o entorno histórico, ou em seu papel na
formação do imaginário social, são alguns dos temas que inspiraram
três interessantes coletâneas de ensaios lançadas recentemente. Mais
que respostas prontas e teorias mirabolantes para o enquadramento
de produções literárias que parecem escapar a generalizações, os
textos reunidos nos livros trazem questionamentos sobre o alcance e
as limitações da crítica no enfrentamento dos desafios impostos por
obras de ficção.
Acadêmicos e escritores se revezam sob perspectivas diversas na
tentativa de “repensar a tarefa da crítica ante as demandas da arte e
da sociedade contemporânea”, como escreve Susana Scramim no
prefácio do livro O contemporâneo na crítica literária . O primeiro
ensaio, apresentado pelo crítico Raúl Antelo num seminário de
pesquisa na Universidade Federal de Santa Catarina sobre as
práticas críticas de sua obra, revela de saída o desconforto com a
instrumentalização da atividade do crítico profissional, sujeito aos
rituais acadêmicos e aos requisitos de produtividade, eficiência e
rigor metodológico. Não que o rigor seja desnecessário, mas torna-
se acessório diante do prazer da leitura e de sua deriva de
significados e experiências com a linguagem.
Antelo coloca em discussão o conceito de utilidade da crítica e de
sua funcionalidade, que remete a uma tradição do pensamento
positivo do século 19 bastante arraigado no meio acadêmico e que
encontra respaldo em uma linhagem norte-americana de pesquisa
universitária essencialmente quantitativa. O que talvez interesse
averiguar, na perspectiva do autor, não é o valor de uso da crítica e
por extensão da literatura, mas a dimensão subjetiva do desejo e do
estético como potência. Segundo Antelo, “ler é sempre mais além,
justamente porque o gozo, não sendo acessível nem finito, e sendo,
por definição, impossível, nos impede esgotar o todo do objeto”. O
processo de fruição e de interpretação opera no limite de qualquer
redução científica ou mesmo racional, como peça de resistência e de
afrontamento à realidade, às tramas da subjetividade e aos esquemas
ideologicamente marcados pela apropriação de sentidos, apontando,
por sua vez, para a instância da ética.
O livro organizado por Scramim está dividido em quatro seções,
que abordam “crítica e disciplina”, “polêmicas críticas”,
“linguagens crítica” e, por fim, o trabalho crítico de Raúl Antelo. O
espectro de temas é amplo e vai da história da teoria da literatura no
Brasil, a partir de José Veríssimo, ensaísta pioneiro e
contemporâneo de Machado de Assis, passa por polêmicas mais
recentes, como a do crítico Alcir Pécora sobre a inconsistência da
atual ficção brasileira, por literatura latino-americana e por
Baudrillard e os dilemas da crítica de poesia, ensaio assinado pela
organizadora do volume.
No ensaio “Utópica e funcional? Sobre a crítica de poesia em seus
impasses”, Scramim retoma a análise de Iumna Maria Simon e
Vinícius Dantas sobre poesia de Carlito Azevedo, tentando
demarcar um território de exigências da crítica que, por vezes, se
impõe à poesia pela força de uma tradição, ou pela exigência desta,
seja teórica ou literária, como se o poema devesse responder às
premissas do crítico, numa espécie de sabatina metodológica. As
fragilidades do poema, como as da prosa (para retomar a crítica de
Pécora) são também o traço da relação incerta e quiçá dialética com
as incertezas do tempo e da própria fratura entre o dizer do poeta e a
história, ou entre a palavra como rasura de uma experiência e sua
intelecção.
Para Scramin, “a consequência disso é que visitar o passado,
como se ele estivesse disposto em prateleiras de um grande bazar de
novidades antigas, não tem o sentido de interrupção ou de negação
da possibilidade de dizer. O problema do dizer não é um problema
restrito ao poeta moderno, é, ao contrário, um problema da
modernidade, da modernidade pensada enquanto crise – crise da
linguagem, da representação e do tempo”. A tradição, o passado e a
crítica são vetores de tensão no poema, mas não como plano de voo
e sim como vertigem da queda. O palpite da autora, que parte em
seu argumento da crítica de Benjamin a Goethe, é que “escapar ao
silêncio, escapar ao mito que nos funda de que não há mais nada a
ser dito, essa é a tarefa da poesia e do mito hoje”.
RUBRICAS AMBICIOSAS
Numa outra chave, mas ainda mantendo com o anterior certas
afinidades, o livro O futuro pelo retrovisor – inquietudes da
literatura brasileira contemporânea , organizado por Stefania
Chiarelli, Giovanna Dealtry e Paloma Vidal, reúne ensaios pontuais
sobre determinados escritores e obras, agrupados por rubricas
ambiciosas, que incluem alteridade, vida e cena literária, reescritas
do moderno, profanação, citação, encenação e cânone, para resumir.
Escritores de idades e estilos diferentes são analisados de acordo
com certo enquadramento temático e formal, como marcas de sua
intervenção no contexto e no tempo histórico, ou como cicatrizes de
seu diálogo inconcluso com o corpo, a psique, o cotidiano, a
tradição, a realidade e a própria narrativa. Lado a lado estão autores
que já têm reconhecimento da crítica, ganharam prêmios, foram
traduzidos e têm bom desempenho no mercado, como Chico
Buarque, Milton Hatoum, João Gilberto Noll, Sérgio Sant’Anna,
Bernardo Carvalho, Rubens Figueiredo, Luiz Ruffato e jovens
escritores que consolidam suas trajetórias, como Michel Laub,
Ricardo Lísias, Rodrigo Lacerda, Daniel Galera, Carola Saavedra,
entre outros. Há também casos de autores mais refratários a
enquadramentos, seja pela experimentação mais radical, como
Valêncio Xavier, ou por migrar de gêneros, dos quadrinhos para a
ficção, como Lourenço Mutarelli.
A proposta aqui é mapear tendências, definindo os pontos de
contato e de fuga da literatura brasileira contemporânea com a
realidade fragmentada e instável em que vivemos, enfocando a
prosa. Como no livro organizado por Scramim, as análises não
objetivam definir sistemas, aportando a literatura de fora, mas
montar um quebra-cabeça possível a partir dos elementos suscitados
pela escrita, o que vale dizer pela proposta ou risco, de cada escritor.
Na opinião das organizadoras do livro, “parte expressiva da atual
literatura brasileira está caminhando neste momento para uma
releitura das tradições da modernidade, saqueando ou revisitando o
passado”. As referências literárias, o cânone, as provocações
modernistas e até o romance de formação (modelo fundamental da
prosa no século 20, reapropriado pelas vanguardas num viés
metalinguístico) são triturados em procedimentos narrativos
híbridos, cambiantes, irreverentes e, por vezes, corrosivos, como
acontece na obra de Valêncio Xavier.
O caminho proposto pela antologia é o de romper as fronteiras
entre uma reflexão voltada para a valorização simples e
simplificadora do novo, como impossibilidade de apreender essa
literatura caracterizada pela multiplicidade, e as abordagens
comparativas com “os modelos canonizados”, que se furtam a
investigar o que haveria de específico na produção atual. O que há
de saída louvável nessa investida é justamente evitar os mecanismos
pacificadores da crítica, que reduzem toda incerteza e exploração
criativa dos textos a esquemas ideais de registro ou transfiguração
do real pela literatura. Procura-se, de modo salutar, a superação das
polarizações redutoras, que servem para demarcar terrenos na
academia, mas que dizem muito pouco, ou superficialmente, a
respeito do objeto em questão, isto é, a própria literatura. A crítica
aqui é discutida a partir de sua prática, no enfrentando a autores e
obras que se tornam relevantes, na medida do possível, no contexto
da reflexão sobre o país, da circulação de ideias e dos ditames de
mercado.
PASSADO EM RUÍNAS
O terceiro volume de ensaios, Crítica literária contemporânea ,
organizado por Alan Flávio Viola, apresenta uma visão mais
historiográfica em seu conjunto, a começar pelo famoso artigo de
Machado de Assis, “O ideal do crítico”. Críticos, escritores e
jornalistas participam do livro, abordando desde questões amplas,
como história literária, poesia contemporânea, crônica como gênero,
genealogia da literatura brasileira, até o confronto entre teóricos de
peso, como Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima, ou a relação entre
Antonio Candido, Silviano Santiago e o modernismo.
No ensaio do crítico italiano Ettore Finazzi-Agró, o problema da
origem ganha uma dimensão dramática na constituição de uma
linhagem interrompida na literatura brasileira, sempre em busca de
um início fundador inexistente, ou precário, que envereda “num
percurso caótico e emaranhado que se reflete e encontra a sua
possível razão de ser só num discurso novo e outro, oblíquo em
relação a qualquer lógica historicista, suspenso entre a verdade e o
desejo, entre a coisa e a palavra que a diz, entre a memória e o
esquecimento”.
A tradição com que nos defrontamos, e que parece ter um peso
desmedido tanto para escritores como para os críticos, além de
recente e inconclusa, é uma construção de muitas facetas
contraditórias e sobre um passado em ruínas, que, muitas vezes, a
crítica procura resolver arbitrariamente, como se o traçado de
parâmetros mínimos, ancorados numa outra tradição (estrangeira),
fosse suficiente para explicar as idiossincrasias de escritas tão
díspares no tempo e na forma.
Os impasses expressos pela literatura são eles também parte da
trama narrativa ou da estrutura do poema, do modo como autores se
apropriam da linguagem e testam seus limites, não apenas formais.
Resta ao crítico entrever nas fragilidades do texto os sinais de uma
reconstrução, de um deslocamento, de um gesto de rebeldia, que
pode ser criativa, provocadora ou ingênua. Os parâmetros não estão
dados antecipadamente, ou talvez não sejam o porto seguro que a
tradição, sempre ela, parece oferecer aos navegantes perdidos, sem
mapa e bússola. Talvez porque sejam necessários novos parâmetros
e mapas.
Nos três volumes de ensaios sobre crítica, percebe-se o
movimento positivo em reiterar, ou recuperar, a pertinência desse
discurso enviesado, polêmico e questionador por excelência, que
está cada vez mais distante da imprensa, do debate público, e se
encastela, literalmente, nos departamentos de teoria literária das
universidades. O distanciamento do leitor e do produtor de literatura
faz com que os críticos falem para si mesmos, ou quase, num
circuito fechado de provas e contraprovas, disputas acadêmicas de
fato inócuas para os rumos da literatura. Por outro lado, nota-se
igualmente desde a edição dos livros, e nas justificativas dos
organizadores, a preocupação em demonstrar que a ambiguidade e
os riscos são latentes e constitutivos da atividade crítica e de sua
inserção no espaço público.
Assim como poetas e prosadores, o crítico também caminha por
solo movediço, e seu olhar é conduzido, em grande medida, pelos
rastros deixados pelas obras, em geral sem a completude ou o
acabamento de que gostariam os profissionais e acadêmicos, zelosos
de sua missão funcionalista. Parece, no entanto, que a tarefa de
explicar a literatura a um leitor ideal e catalogá-la, num modelo
mais próximo do arquivístico do que o hermenêutico, para lembrar
um palavrão fora de moda, cede lugar ao diálogo problematizador,
uma vez que a própria literatura, nos melhores casos, parte da
autoconsciência do escritor de que seu objeto não está dado, de que
não há balizas para orientá-lo, nem resultados previsíveis a atingir.
Escritores e leitores estão num labirinto sem o fio redentor de
Dédalo.
Toda essa discussão teórica, que precisa ela também justificar-se
como parte do problema e não como solução definitiva, de nada
vale se o crítico não tiver paixão desmedida por seu objeto, se não
encarar a literatura a partir de sua intimidade, como num ato
amoroso mesmo. Assim, talvez o apelo à tolerância de que falava
certeiramente Machado de Assis em seu artigo de outubro de 1865
seja hoje traduzido por generosidade.
livros

Fragmentos de um livro invisível


DIEGO VINHAS

Dentre as sempre numerosas armadilhas que a literatura guarda na


manga, talvez a ideia de “obra” esteja entre as mais previsíveis e,
mesmo assim, inevitáveis, com o que, daí, pode trazer de
institucionalização, engessamento etc. Dois dos mais prolíficos
escritores contemporâneos parecem armar estratégias diferentes
para esta questão: um deles é o português Gonçalo M. Tavares, que
inventa séries (uma tetralogia, cadernos, um bairro de senhores-
livros) onde cataloga seus volumes, mostrando, assim, uma
arquitetura da própria obra, mesmo quando esta não está
necessariamente escrita, talvez como forma de antecipar-se a este
fantasma , de torná-lo fluido, leve. O outro é o argentino César Aira,
que produz obsessivamente (sua lista de publicações soma cerca de
80 títulos) e que, por sua vez, não esconde o desdém por esse
conceito, indo além: não só “obra”, mas outras concepções que lhes
são limítrofes, como “qualidade”, “permanência” e mesmo
“verdade”, são igualmente desconstruídas por ele, cuja publicação,
ainda tímida no Brasil, ganhou recentemente o reforço de um belo
lançamento com os romances Como me tornei freira e A costureira
e o vento reunidos em um único volume, com tradução de Angélica
Freitas, editado pela Rocco, como parte da coleção Otra Língua,
coordenada por Joca Reiners Terron.
Em ambas as narrativas, estão lá os traços característicos do estilo
movediço do autor: o tom farsesco, a sucessão vertiginosa de
imagens e episódios, as digressões, o humor mordaz, o nonsense e o
jogo, que parece ser o elemento que costura o trabalho de Aira, no
qual paira também um certo aspecto de inacabado, em especial no
modo abrupto com que encerra (encerra?) suas histórias. É
interessante, aliás, perceber que ele mesmo se faz personagem. Em
Como me tornei freira , uma criança, cujo sexo é cambiante (ora
menino, ora menina) e que se chama exatamente César Aira, tem
uma má experiência ao provar um sorvete de morango, cujo sabor
horrível esconde a contaminação por um veneno mortífero,
desembocando em uma trama de assassinato, descobertas e
vingança pontuada por figuras como uma anã messiânica que canta
em enfermarias, um amigo infantil (batizado de Arturo Carrera, não
por acaso, nome de um poeta que é próximo a Aira na “vida real” e
que com ele cresceu em Coronel Pringles, cenário dos dois
romances) e um tipo de crueldade que só crianças são capazes. Em
que pese a presença do insólito, é no campo psicológico que essa
história se adensa, com falas que apontam para a própria poética
(vamos chamar assim) do argentino em passagens como “o rosa dos
céus ao entardecer, o rosa gigante, transparente, longínquo, que
representava a minha vida com o gesto absurdo de aparecer. Eu era
gigante, transparente, longínqua, e representava o céu com o gesto
absurdo de viver” e “a realidade (…) se separava de mim na
velocidade do meu desejo de entrar nela”.
Já em A costureira e o vento , porém, esse absurdo ganha relevo, a
começar pela lista de personagens, incluindo, dentre outros,
caminhões de carga, um boneco de neve que sofre com a
precariedade de sua condição, um vestido, o vento ( Ventarrón), um
menino-monstro (feto grotesco que carrega o poder de todos os
ventos dentro de si, impulsionando, assim, suas deformações) e a
própria Patagônia (o “espaço do sem-sentido, absence, ab-sens ”, no
dizer de Raúl Antelo), que aparece tão mítica e eterna quanto o
sertão, de Rosa. O surrealismo do tema e da sequência aventuresca,
aqui, contrasta com a forma realista com que os acontecimentos são
anunciados, através de uma linguagem simples, destituída de
qualquer afetação. Talvez seja um modo do autor fazer pouco caso
de uma outra armadilha, a tal “qualidade literária”, cuja busca é
capaz de sufocar a mão do escritor a ponto de produzir uma
literatura tecnicamente competente, mas estéril, sem risco. Pode ser,
também, só um modo de tornar a história – ao mesmo tempo muito
bonita e repleta de momentos perturbadores – ainda mais
desconcertante. Seja como for, não é difícil concluir que, diante da
proliferação de reviravoltas do enredo, mediadas pelos pensamentos
do próprio autor-narrador que, sentado em um café parisiense,
expõe seus impasses em criar a narrativa ao mesmo tempo em que a
revela, acentuando uma impressão deliberada de improviso, vê-se
que, para Aira, a verossimilhança – e, a reboque, a ideia subjacente,
a verdade – não tem qualquer importância. A literatura que lhe
interessa é a que se faz no deslocamento, fora da racionalização de
um projeto.
PENSAMENTO BRANCO
Em um ensaio muito interessante, chamado “Nouvelles Impressions
du Petit Maroc”, publicado no Brasil, com tradução de Joca Wolff,
pela pequena e valorosa editora Cultura e Barbárie (e que
infelizmente teve pouca repercussão), ele deixa clara sua postura ao
afirmar que “o mundo de verdade se funda numa pretensão de
permanência”, e que ele, no entanto, prefere embaralhar as cartas,
pois sua produção literária tem o fim de “sair de uma lógica de
exclusão dos contrários que qualifica de falso a um só dos membros
do par (…) não para tornar falsos ou verdadeiros aos dois, mas para
incluí-los numa teoria falsa que torne irrelevante a classificação.”
Na entrevista, incluída ao final do ensaio, suas afirmações são, neste
sentido, categóricas, quase epigramáticas: “Gosto do que fica sem
explicação”, já que “tudo se estaciona quando a verdade é dita”. E
mais adiante, ele acrescenta, com beleza sutil e como uma espécie
de mandamento ou de princípio íntimo: “Escrever com um
pensamento branco é agradável e dá a sensação de um momento
forte”.
oficina literária

Candura
ANTONIO KAPP DOS SANTOS

Ela brincava silenciosamente com suas bonecas, imaginando-as


como se estivessem na praia junto de seus companheiros, com quem
eram sinceras e afetivas. Parecia que o universo todo estava de bem,
parecia que ela também estava lá, no que era, para ela, o paraíso.
Ouviu gritarem seu nome através das paredes ocas do que já não
mais funcionava como uma casa de família. Soube que era hora de
ir. Largou-as. Tudo o que imaginara e sentira se desfez, assim como
o tempo que veio para desgastá-la e levar com ele toda a alegria
infantil de se entrar num universo aparentemente perfeito.
Quando chegou ao cômodo onde se encontrava a dona daquela voz
inconfundível que ecoara anteriormente dentro da velha fundação, a
garota já estava devidamente adornada. Ao lado da mulher, havia
um homem alto, magro, com cabelos grisalhos. Ele se aproximou e
disse:
– Vamos? – Ela simplesmente acenou com a cabeça e o
acompanhou até o quarto mais próximo.
Lá dentro, ele a despiu e sentou-se ao seu lado na cama.
Permaneceram imóveis por pelo menos 20 minutos. Somente ele
falava, ela apenas concordava com o que devia ser concordado e
negava o que devia ser negado. Passado esse tempo, ele a beijou e
deu-se assim o início. Deixou uma única lágrima escorrer por sua
maçã do
rosto, sem que ele percebesse.
Terminados aqueles angustiantes momentos para a menina, ele
perguntou:
– Quanto é mesmo? – Ela respondeu tímida, porém imediatamente:
– Mil duzentos e cinquenta. – Ele estava satisfeito, entregou-lhe o
valor estipulado, vestiu-se e foi embora. Ela passou o dinheiro para
as mãos da mulher de voz inconfundível e voltou para os seus
aposentos, onde as bonecas a aguardavam ansiosamente.
colaboraram nesta edição

Antonio Teixeira é psiquiatra, psicanalista e professor da UFMG

Ariane Bazan é professora da Faculdade de Ciências Psicológicas e


da Educação, da Universidade Livre de Bruxelas (ULB)

Claudio Daniel é poeta, editor da revista Zunái e curador de


literatura no Centro Cultural São Paulo

Christian Dunker é psicanalista e professor livre-docente do


Instituto de Psicologia da USP

Diego Vinhas é poeta e autor do livro Primeiro as coisas morrem


(Editora 7 Letras)

Franthiesco Ballerini é jornalista e coordenador geral da Academia


Internacional de Cinema

Gilson Iannini é psicanalista e professor da Universidade Federal


de Ouro Preto
Marcus Preto é jornalista

Mário Eduardo Costa Pereira é psicanalista, psiquiatra e


professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Ciências
Médicas da UNICAMP

Paulo Ricardo Alves é tradutor e mestrando em Letras pela USP,


onde defende a dissertação “Micropolítica do feminino e estética de
confrontamento em Patti Smith e Ana Cristina Cesar”

Reynaldo Damazio é editor, crítico e poeta, autor de Horas


perplexas (Editora 34), entre outros

Vladimir Safatle é professor livre-docente no Departamento de


Filosofia da USP

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