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Sumário

entrevista Marco Bellocchio

cinema
Sombras privadas em lugares públicos
De Ofélia a Elena
Brasília urgente

retrato do artista
O cinema mental de Rodrigo Garcia Lopes

coluna
Marcia Tiburi
Alcir Pécora
Christian Dunker

dossiê Bicentenário de nascimento de Kierkegaard


O pensador que queria ser indivíduo
Nas origens da filosofia contemporânea
Um pensador subjetivo
Socratismo agostiniano
Religião, finitude e corpo

perfil Alice Ruiz

livros
Os fantasmas de Cadão Volpato
A máquina de pensar em Levrero
A aventura moderna de Apollinaire

ensaio
Ave, crítica
Oficina literária
Vivian de Moraes

colaboraram nesta edição

entrevista Marco Bellocchio


Cidadão Bellocchio
Marília Kodic e Michaella Pivetti

Da terra que deu à luz tantos fragmentos poéticos da cinematografia mundial


emerge um tônico Marco Bellochio. Desde sua estreia com De punhos
cerrados (1965), um dos mais viscerais ataques à ordem de classes na
história do cinema, sua filmografia representa uma feroz crítica à moral
burguesa, à hipocrisia religiosa e às diversas formas de obediência
ideológica incondicional.
Contextualizado sempre em espinhosos aspectos da psique italiana, este
eixo temático se ratifica, para ficar na última década, em filmes como Bom
dia, noite (2003), sobre o assassinato do democrata cristão Aldo Moro pelas
Brigadas Vermelhas, filme que selou sua aclamação internacional, e o
operático Vincere (2009), melodrama histórico sobre a primeira esposa de
Mussolini, considerado pela crítica sua obra-prima.
Pouco presente no circuito comercial brasileiro, o diretor tem agora
dois de seus filmes em cartaz – Irmãs jamais (2010), desde o final de abril, e
A bela que dorme (2012), previsto para 21 de junho. O primeiro, rodado ao
longo dez anos, é fruto de um workshop de cinema promovido todos os
verões em sua casa, tendo no elenco parentes e atores amigos. O segundo,
vencedor do Prêmio da Crítica na Mostra Internacional de Cinema em São
Paulo no ano passado, revisita o caso de Eluana Englaro, jovem que, após 17
anos em estado vegetativo, teve seus aparelhos desligados, num caso que
dividiu a Itália de Berlusconi.
O cineasta de 73 anos falou à CULT, por telefone, sobre eutanásia – “eu
pessoalmente compartilho do princípio de Beppino Englaro”, diz, sobre o pai
da jovem que lutou para o desligamento de seus aparelhos –, a descrença
política, o gosto pela literatura e a relação com os cineastas brasileiros do
Cinema Novo – estes que foram tão influenciados pelo neorrealismo de seu
país.
A bela que dorme assume um tom apartidário, de relações binárias, para
lidar com o tema da eutanásia. Por que optou pela abordagem
dogmática?
O discurso da eutanásia é o de alguém que escolhe livremente pelo direito
legal de encerrar a própria vida. Não sei se você seguiu o caso da morte do
famoso cardeal Franco Maria Martini, que, justamente, pediu para
interromper o tratamento e que o levassem à morte docilmente, pedindo para
ser sedado porque temia morrer sufocado; e o próprio papa, diversas vezes
citado no filme. “Deixem-me ir à Casa do Pai”, dizia Papa Wojtyła. “Basta
com esse tratamento terapêutico, não suporto mais...”.
Isso não é eutanásia. A própria Igreja Católica admite que, em alguns casos,
se pode até encenar o acontecimento terapêutico. Enfim, não é um filme
sobre a eutanásia, ao contrário, é um filme de muitos mistérios, de esperança
e de vida, que fala de gente que desperta, como belas adormecidas, e que não
são Eluana Englaro, pois ela morreu há 17 anos.
No filme, o senhor destaca o desespero como patologia endêmica à
figura do político. Como a obra se relaciona com o atual cenário político
italiano?
O filme pega seu gancho de um drama real, uma batalha política real. Porém,
não me interessava fazer um filme apenas de polêmica política, ou que fosse
um manifesto defendendo uma determinada posição ou bandeira ideológica.
Me interessava contar histórias inventadas, mas baseadas em fatos reais.
Esse é o caráter do filme, cujo pano de fundo e ao mesmo tempo núcleo
central é o drama de Eluana Englaro e seu pai, enquanto ao redor gira uma
série de personagens ficcionais cujos destinos, história, consciência e
sentimentos entram em contato com o episódio real.
Eu não sei o que acontece no Brasil, mas aqui há uma descrença em
relação à política – como diz, por exemplo, um personagem do filme: “A
Itália é cínica e depressiva”. Não há a mínima confiança na política, um
recesso econômico gravíssimo, desemprego, estagnação – até psicológica.
Falo naturalmente da minha visão das coisas, do ponto de vista da minha
história, da minha idade. Os jovens certamente tomarão iniciativas de
maneira diferente. Não sinto, como há 30 ou 40 anos, uma ideia de
engajamento político ou que o cinema pode ser uma arma política de
propaganda de ideias.
Vincere apresenta um episódio de início historicamente incerto, que
eventualmente ganhou atenção midiática, mas que só foi definitivamente
popularizado no cinema – fenômeno recentemente repetido com os
aclamados Argo e A hora mais escura. Todos, porém, sofreram críticas
quanto à veracidade. Quão importante se faz a lealdade do cineasta aos
fatos, nesses casos?
Meu critério pessoal é que, ao enfrentar um tema, preciso me apropriar dele
para devolver ao público uma imagem cinematográfica que não se limite à
denúncia documentarista. Em Vincere, era necessário criar uma série de
diálogos que, naturalmente, não poderiam ser obtidos dos fatos:
inevitavelmente, é necessário intervir. De um ponto de vista histórico, não há
certeza alguma de que Benito [Mussolini] tenha se casado com Ida [Dalser];
enquanto é certo, porque ele reconheceu a paternidade do seu filho.
Em Bom dia, noite os conflitos e crises de consciência de uma terrorista são
uma infidelidade histórica total, mas que eu reconheci. Tudo isso é normal a
não ser que a pessoa faça uma obra histórica absolutamente fiel. São
indagações históricas acompanhadas também de uma série de liberdades
indispensáveis.
Como o senhor emprega elementos de fundo autobiográfico em filmes
como Irmãs jamais, que combina dados ficcionais e documentais?
Em A bela que dorme não há experiências diretas, no sentido de que vivi o
caso Eluana Englaro como espectador, por meio dos jornais e da TV –
embora mesmo como espectador, minha participação e minha paixão
contassem na visão do filme. Encontram-se nele vestígios de outros
personagens presentes em meus filmes anteriores. Por exemplo, o filho da
divina mãe, embora mais frágil, pode lembrar o protagonista de De punhos
cerrados, que era mais frio e cruel, chegando até a matar. Tem também a
personagem dura e violenta vivida por Maya Sansa – que lembra, inclusive
por ser a mesma intérprete, aquela da Brigada Vermelha de Bom dia, noite.
Mas não há, em todo caso, uma linha direta, autobiográfica – mesmo sendo,
sem dúvida, um filme muito pessoal.
Por outro lado, o interesse só pode passar pelas experiências que cada
um viveu, a nível cultural, de preparação, de formação e de toda a beleza que
cada autor teve a oportunidade de ver. Do contrário, sairá uma obra fria,
superficial. O importante é que a profundidade possa se tornar uma
dimensão universal. É a superficialidade que revela uma autorreferência que
não interessa a ninguém. Giacomo Leopardi [poeta italiano] falava sempre
da sua infelicidade, das suas desgraças; no entanto, sabe falar ao mundo.
Como diz o personagem Trigorin em A gaivota, de Tchekhov, eu sou um
escritor, mas sou também um cidadão. Participo, e isso é inevitável.
Acho que cada um, mesmo não sendo militante, deve participar dos
problemas de seu país, e não simplesmente ir às urnas quando é preciso
votar. Mesmo não me pondo o problema de fazer política, defender uma
bandeira ou fazer um protesto, é natural para mim transformar em imagens e
devolver ao público os problemas políticos e sociais.
Faço isso seguindo um percurso interno que procuro tornar o mais livre
possível. Por muitos anos, nos impúnhamos como dever moral, gerando por
vezes conflitos, o fato de ser forçosamente engajados e politicamente
corretos no lugar de se permitir uma maior liberdade. O mundo nos abraça,
entra em nosso corpo, e nós o devolvemos com as imagens que conseguimos
fazer. Essa experiência de influência, de contaminação, de infecção do
mundo ao redor faz parte da vida e não é possível escapar dela, sob o risco
de se trancar num manicômio ou se fechar em seu próprio quarto sem nunca
mais sair.
Aproveitando as referências a Leopardi e Tchekhov, seu filme Henrique
IV (1984) é baseado em uma peça de Luigi Pirandello, e Diabo no corpo
(1986), em um romance de Raymond Radiguet. Bom dia, noite tem como
título um poema de Emily Dickinson. Qual a importância da literatura
na sua obra?
Não somente da literatura, mas da poesia, música e também pintura. A
reelaboração, o fato de imaginar e depois produzir, tem uma série de
referências que são, sim, da literatura. Eu, particularmente, privilegiei a
grande literatura russa, alguns livros italianos e, também, toda a pintura.
Vincere é um exemplo: toda a vanguarda da pintura do início do século
passado, que em poucos anos determinou a revolução da imagem, me
influenciou muito, do futurismo ao cubismo, dadaísmo, surrealismo. Cada
um de nós, por conta do destino ou das relações com a família, foi de algum
modo determinado em suas escolhas.
Como foi a experiência de fazer Diabo no corpo e A condenação (1991)
com a colaboração de um psicanalista lacaniano?
A colaboração com Massimo Fagioli em Diabo no corpo e A condenação
aconteceu por conta de uma sincera dificuldade minha em enfrentar e
compreender a relação e o amor que se passava entre os dois jovens
personagens. Então pedi ajuda a ele, que participou ativamente,
providenciando para mim toda uma série de imagens, se tornando uma
espécie de coautor do filme, mesmo a direção sendo minha. Em A
condenação, trabalhamos junto no roteiro, depois ele se afastou do set e da
montagem. Houve, em seguida, uma última colaboração, no roteiro de O
sonho da borboleta (1994).
Pode falar sobre sua relação com os cineastas do Cinema Novo?
A relação é principalmente de grande amizade, afetiva, concentrada em três
figuras: Paulo Cesar Saraceni, Gustavo Dahl e Glauber Rocha. Dos
primeiros, fui colega no Centro de Arte Experimental, com Glauber me
encontrei várias vezes. Foram anos de intensa amizade e a relação com eles,
sobretudo naqueles anos da escola, foi muito profunda, mesmo que depois
tenhamos feito um cinema distinto, que refletia problemáticas específicas de
cada país. Terminamos por nos perder de vista e, com o tempo, minhas
relações com o Brasil diminuíram.
Acompanha a produção cinematográfica contemporânea brasileira?
Encontrei por acaso um mais jovem, [Walter] Salles, que fez Central do
Brasil. Gostei muito. Mas é algo esporádico. Independente de mim, a relação
hoje entre cinema italiano e brasileiro é bastante escassa. Os filmes não
chegam aqui com frequência, é muito raro. Nós, italianos, conhecemos o
Brasil pela sua história, por meio de eventos não necessariamente
cinematográficos. Por exemplo, o caso [Cesare] Battisti. Pensemos o quanto
os italianos falaram sobre isso e a desilusão de muitos pelo fato de que,
incompreensivelmente, o governo brasileiro não devolveu essa pessoa, mas,
ao contrário, devolveu-lhe a liberdade.
O senhor não concorda, então, com a decisão do governo brasileiro?
Não concordo de forma alguma, não entendi mesmo. Para os italianos ficou
incompreensível julgar como prisioneiro político um homem que, na Itália,
foi condenado à prisão perpétua.
Quais são os seus próximos projetos no cinema?
A Europa vive uma crise muito forte – um grande contraponto com o Brasil,
que cresce quase vertiginosamente. Também o cinema está em crise, o
número de espectadores está diminuindo. Tenho ainda um grande
entusiasmo, gosto e interesse em fazer cinema, com alguns projetos para
serem definidos, dos quais prefiro agora não falar, mas, para nós cineastas,
vale aquela frase que se tornou célebre, do Glauber Rocha: “O cineasta é
aquele que encontra o dinheiro para realizar seu filme”. Um roteiro
belíssimo que não se torna um filme caduca, acaba.
Além disso, é um pouco triste ver os grandes mestres que fazem seus
últimos filmes meio à força, sem inspiração, numa fase claramente
declinante. Isso acontece com alguns porque vivemos disso, temos pensões
realmente modestas e nos encontraríamos em dificuldades financeiras se
parássemos de trabalhar. A vida acaba reservando muitas surpresas, mas, se
eu sentisse não ter mais energia vital e imaginação, seria melhor que parasse.
Particularmente, no pleno da minha maturidade, tenho uma atitude em
relação à vida e ao trabalho muito positiva.

cinema
Sombras privadas em lugares públicos
Sérgio Rizzo

Por alguns minutos, o espectador confronta a tela escura. Ouve-se apenas um


diálogo, cambaleante e desagradável, ao telefone. De um lado da linha, um
homem quer saber o que aconteceu aos ossos de seu irmão, enterrado em
uma cidade distante. Do outro, uma funcionária do cemitério procura
explicar, com frieza e alguma dificuldade de argumentação, quais são os
procedimentos do lugar e por que ocorreu o que seu interlocutor demonstra
não entender, muito menos aceitar. O espectador ouve a conversa como se
invadisse a privacidade de alguém. Não é difícil sentir constrangimento.
A voz, saberemos logo em seguida, é do diretor Cristiano Burlan. Em
Mataram meu irmão, ele empreende uma dolorosa viagem que tem início
com a busca pelo paradeiro dos ossos de Rafael Burlan da Silva e só vai
terminar quando o próprio cineasta confrontar os motivos que o levaram, dez
anos atrás, a decidir fazer esse filme – que, se já configura uma experiência
incômoda para o espectador, imagine para quem o realizou. Vencedor da
mostra competitiva de médias e longas brasileiros na 18ª edição do É Tudo
Verdade – Festival Internacional de Documentários, realizada em abril, o
filme expõe em público o drama familiar resumido no título.
Há quem acredite que os eventos íntimos de Mataram meu irmão talvez
devessem permanecer restritos a pessoas próximas aos envolvidos
diretamente no episódio. Burlan não pensou assim. Muitos cineastas,
espalhados por diversos países, também não. O cenário do cinema
documental se transformou, sobretudo nos últimos 15 anos, em terreno de
experimentação estética no campo da pesquisa autobiográfica. Quando
alguém opta por um argumento de caráter umbilical, está assumindo a
condição de personagem do filme e, muitas vezes, de protagonista da ação.
Ao fazer isso, o realizador volta a câmera, simbolicamente, para si mesmo.
A lente é seu espelho. O que se reflete nela chega ao espectador.
Contribuiu para a multiplicação desses filmes, em primeiro lugar, a
“revolução digital”, que facilitou o acesso à realização. Uma câmera e um
computador podem transformar um escritório doméstico em uma pequena
central de produção. Logo, não é indispensável levantar recursos
significativos para financiar o trabalho, como ocorre com o cinema
convencional. De acordo com essa nova lógica, pode-se tocar um filme de
maneira quase artesanal, com uma equipe reduzida que trabalha nos períodos
permitidos pela agenda profissional de cada um. Equipamentos
miniaturizados, de fácil manuseio e de menor exigência técnica (como as
câmeras digitais, que compensam a falta de luz), possibilitam também um
deslocamento mais amplo do que o da infraestrutura profissional de cinema
ou mesmo de TV.
Por outro lado, consagrou-se nos últimos anos a ideia de que dramas
verídicos, vividos por pessoas comuns, têm um apelo tão forte para o
espectador quanto as situações criadas pelo cinema ficcional (ou, em alguns
casos, até maior). Essa é a convicção dramatúrgica que sustenta o
documentário Elena, com estreia nos cinemas programada para maio. Seu
argumento se confunde com o de Mataram meu irmão: a diretora, Petra
Costa, examina as circunstâncias em que perdeu a irmã mais velha, a atriz
Elena Andrade. Na ocasião, Petra tinha sete anos. Na juventude, ficou
especialmente tocada ao encontrar o diário da irmã. Mais tarde, amadureceu
a ideia de aproveitar o material para a realização de um documentário (leia a
entrevista na página 14).
A suspeita de que os elementos em torno da história de Elena (e de
Petra) dizem respeito a muita gente foram confirmados na mais recente
edição do Festival de Brasília, em setembro de 2012. Vencedor dos prêmios
de melhor direção, montagem e direção de arte segundo o júri oficial, Elena
obteve também o prêmio de melhor filme pelo júri popular. Assim como o
drama de Mataram meu irmão, há algo de universal nas situações íntimas às
quais Petra confere visibilidade pública. Mas, apesar do ponto de partida
semelhante, esses dois documentários de pesquisa autobiográfica têm
abordagens muito distintas. Enquanto Burlan opta por uma estética mais
bruta, Petra adota um tratamento elegante e sofisticado, que combina
elementos do documentário com os da ficção, em nome da poesia que julgou
adequada para se aproximar da memória da irmã.
Uma variação nesse formato é a dos realizadores que, ao empreender
uma jornada de caráter pessoal, acabam se debruçando também sobre temas
e personagens históricos, pois a trajetória dos protagonistas de seus filmes
permite que a ponte entre as esferas pública e privada seja feita
naturalmente. Mais do que isso: a conexão entre uma e outra é o dado que
atribui a esses documentários sua própria razão de ser. Em Marighella
(2012), por exemplo, a diretora Isa Grinspum Ferraz se dedica à memória de
Carlos Marighella (1911-1969), ex-deputado que se tornou personagem
fundamental da resistência armada ao regime civil-militar de 1964. Para a
menina Isa, no entanto, ele era apenas o “tio Carlos”.
Em Diário de uma busca (2010), a diretora Flavia Castro vasculha as
pegadas e as lembranças de seu pai, o jornalista Celso Castro, militante de
esquerda morto em 1984, segundo a versão oficial da polícia, em uma
tentativa de assalto. Um exemplar mais recente dessa linhagem em que
história pessoal se mistura com a história do país é Em busca de Iara, que
disputou também a mostra competitiva de médias e longas brasileiros do 18º.
É Tudo Verdade, no qual obteve menção honrosa do júri. A protagonista é
Iara Iavelberg (1944-1971), outra personagem-chave da resistência armada à
ditadura de 1964, última companheira de Carlos Lamarca (1937-1971).
Dirigido por Flavio Frederico, o filme é “ancorado” pela corroteirista
Mariana Pamplona, sobrinha de Iara, que aparece diante das câmeras (e
chega às lágrimas em momentos especialmente afetivos) enquanto investiga
as circunstâncias em que morreu a tia (segundo a versão inicial dos órgãos
de repressão, cometendo suicídio ao ser descoberta, em um apartamento de
Salvador).

cinema
De Ofélia a Elena
Sérgio Rizzo
Formada em artes cênicas pela Universidade de São Paulo, Petra Costa
estudou antropologia na Columbia University, de Nova York, onde começou
a “trabalhar um pouco com o cinema, por causa da antropologia visual”.
Depois, fez mestrado na London School of Economics, “uma mistura de
antropologia com psicologia, algo que tem muito a ver com Elena, porque a
minha dissertação final foi sobre trauma”. Quando voltou ao Brasil, passou a
trabalhar exclusivamente com cinema. Hoje, aos 29 anos, dedica-se ao
lançamento de Elena e a um longa-metragem com dois atores da companhia
Théâtre du Soleil. O filme é codirigido pela dinamarquesa Lea Glob, fruto de
um programa que escolheu dez cineastas não-europeus para fazerem
trabalhos em colaboração com dez cineastas europeus.
Quando e por que você julgou que poderia tratar desse material de
caráter íntimo em uma obra pública?
A primeira vez em que pensei em fazer um filme já pensei que queria fazer
algo para o público. Aos 17 anos, encontrei o diário da minha irmã pela
primeira vez e me identifiquei profundamente com o que estava escrito ali.
Criei uma cena em que misturava trechos do diário dela com trechos do meu.
E percebi que tinha um material potente, artisticamente falando. Era um
material que eu queria investigar mais, não só pessoalmente, mas
artisticamente. Na mesma época, eu assisti a uma montagem de Hamlet e vi
na Ofélia um arquétipo que estava presente tanto nela (Elena) como em
mim. Esse arquétipo fala da transição da adolescência para a vida adulta.
Senti que tinha um dever de fazer um filme sobre isso. Eu via muitas garotas
passando por situações parecidas, por crises existenciais, nessa transição.
Senti um dever, mesmo, de transformar isso em uma obra que falasse com
outras pessoas. Desde o começo, o intuito era esse. Vi algo de universal
nesse tema íntimo e tive a vontade de transformá-lo em um trabalho
artístico.
Em algum momento você pensou em aproveitar o material (os diários,
as experiências) para escrever um longa de ficção?
Sim, sim, sim. Acho que tem esse potencial. Pensei em fazer um longa de
ficção, mas, como eu tinha um material de arquivo tão rico, um material de
pesquisa, verídico, achei que valia a pena visitá-lo. Mas acho que esse longa
de ficção ainda pode ser feito.
Por você?
Acho que não. Pelos próximos 10 anos, eu gostaria de tratar de outros temas.
Mas por outra pessoa, sim. Se alguém se interessasse, eu estaria aberta a
conversar.
Durante quantos anos você esteve envolvida com Elena?
Naquele momento de descoberta do diário, aos 17, foi plantada a semente.
Tive a ideia e imaginei que um dia faria um filme sobre isso. E aí, depois de
quase dez anos, tive um sonho muito forte com a Elena. Eu já estava
trabalhando com cinema, e acordei com a sensação de que tinha chegado o
momento de cumprir o desejo de fazer um filme.
Sua família não se opôs à ideia de tornar público esse drama privado?
Não, não. Foi fácil, na verdade. A minha mãe, desde o começo, me apoiou
muito. Ela me ajudou na pesquisa, foi comigo para Nova York, me deu horas
e horas de entrevistas. O meu pai teve um pouco mais de dificuldade para
falar do assunto, mas logo se abriu. Para ser bem sincera, tive apoio de
todos. Algumas pessoas falavam que não valia a pena ficar tanto tempo
focada nesse assunto, mas ninguém me censurou de nenhuma forma.
Quais as referências cinematográficas que você usou?
Houve alguns filmes que me inspiraram. Elena é todo narrado, e uma
inspiração para isso foram alguns filmes franceses, como os do Chris Marker
e os da Agnès Varda, que usam muita narração, e que têm a liberdade de
construir uma história a partir da narração. E também tem um filme pessoal
que a [atriz francesa] Sandrine Bonnaire fez sobre a própria irmã [Elle
s’appelle Sabine]. Eu o vi bem na época em que comecei a fazer o filme, e
ele me inspirou a fazer um filme assim pessoal. Mas eu acho também que
Elena tem algumas particularidades que eu nunca havia visto e que eu quis
levar à frente justamente porque achava que era uma exploração nova, você
construir a partir de fatos reais um filme que tem uma estrutura em parte
ficcional. Uma narrativa de filme de ficção, mas que é totalmente baseada
em fatos reais, e que usa material de arquivo. Foram quase dois anos de
edição. Eu ia filmando e editando, filmando e editando. E construí todo o
roteiro na ilha de montagem.
Para esse trabalho, você teve alguma colaboração especial?
Claro. No roteiro, foi essencial o trabalho da corroteirista Carolina Ziskind.
Ela me ajudou muito a estruturar a narrativa do filme, a me ajudar a
encontrar pontos de virada, a escolher quais histórias contar e quais histórias
deixar de lado. Foi fundamental. Na montagem, Idê Lacreta [que assina nos
créditos a primeira montagem] e Marília Moraes.
Nos créditos, há um agradecimento ao cineasta Walter Salles.
Sim, Walter assistiu ao primeiro corte, que era o filme quase pronto. Foi
essencial o retorno que ele deu na fase de lapidação. Eu tinha trabalhado
como assistente de direção de um filme que ele produziu [Transeunte, de
Erick Rocha, 2010] e com isso ele tinha visto o meu curta [Olhos de ressaca,
2009], e gostado.
Você ficou surpresa com a reação calorosa do público no Festival de
Brasília?
Foi uma surpresa maravilhosa a recepção em Brasília, naquele teatro imenso
[os filmes da mostra competitiva foram exibidos no Teatro Nacional]. Até
então, a gente sabia que o filme tocava algumas pessoas, mas não que tocaria
tanta gente, e não daquela forma. Foi muito bonito o que aconteceu. Por
exemplo: uma mulher que fazia a faxina dos banheiros do teatro foi falar
com a minha mãe que estava fazendo um mutirão para votar no filme porque
tinha sido o preferido dela e dos que trabalhavam lá. Ela foi emocionada
falar com a minha mãe, chorando. Pediu uma cópia do filme. Minha mãe
recebeu milhares de abraços nesse dia. Foi algo bem marcante para ela,
porque há muito tempo ela queria compartilhar um pouco a experiência dela,
mas nunca tinha feito isso, e sentiu naquele dia uma forma de redenção.

cinema
Brasília urgente
Sérgio Rizzo

Na geração de músicos nascida sob o impacto do período desenvolvimentista


de Juscelino Kubitschek, dois nomes brilharam intensamente, se foram de
maneira precoce e deixaram um legado – mais do que musical,
comportamental – inspirador para gerações de admiradores, entre as quais a
dos que ainda eram crianças quando eles morreram: Agenor Miranda Araújo
Neto, o Cazuza (1958-1990), e Renato Manfredini Júnior, o Renato Russo
(1960-1996).
Ao primeiro, o cinema brasileiro já rendeu seu tributo com uma espécie
de “biografia oficial”, o longa-metragem Cazuza – O tempo não para
(2004), dirigido por Sandra Werneck e Walter Carvalho com base no livro
escrito pela mãe do cantor e compositor, Lúcia Araújo. Estrelado pelo então
desconhecido Daniel de Oliveira, o filme atraiu mais de 3 milhões de
espectadores em sua estreia nos cinemas e ampliou muito esse público na
TV e em DVD.
Agora, é a vez de Renato – e em dose dupla. No início de maio, estreia
Somos tão jovens, dirigido por Antonio Carlos da Fontoura (A rainha diaba,
Espelho de carne, Gatão de meia idade). No fim do mês, entrará em cartaz
Faroeste caboclo, dirigido por René Sampaio (que estreia no longa-
metragem). A proximidade entre as datas de lançamento deve ajudar aos
dois filmes, criando na mídia uma “onda” que os apresentará a um público
mais abrangente do que apenas os fãs.
Ao fazer a crônica do período de formação do cantor e compositor,
Somos tão jovens recria também o cenário pop de Brasília nos anos 1970 e
1980. Nascido no Rio de Janeiro, Renato se mudou com a família para a Asa
Sul da capital federal em 1973. Ali, participou da criação da banda Aborto
Elétrico (1978-1982), ao lado dos irmãos Felipe e Flávio Lemos (que mais
tarde formariam, com Dinho Ouro-Preto e Loro Jones, o Capital Inicial), e
de André Pretorius.
Com a dissolução do primeiro grupo, Renato alimentou por algum
tempo a ideia de fazer carreira solo, abandonada para a criação da Legião
Urbana ao lado de Marcelo Bonfá, Eduardo Paraná e Paulo Guimarães. Os
dois últimos saíram logo no início da trajetória. Mais tarde, a formação
clássica ganhou a presença de Dado Villa-Lobos. No filme, Thiago
Mendonça (das séries de TV Duas caras e Dalva e Herivelto) interpreta
Renato.
Enquanto Somos tão jovens respeita o formato tradicional das
cinebiografias, Faroeste caboclo buscou inspiração na canção do título, uma
das mais populares de Renato. Composta em 1979, foi gravada pelo Legião
Urbana no álbum Que país é este 1978/1987, de 1987, e tem pouco mais de
nove minutos de duração, com 168 versos. Seu protagonista é João de Santo
Cristo, um nordestino que vai parar acidentalmente em Brasília, onde
trabalha como marceneiro e depois vira traficante de drogas, vivendo uma
história de amor com uma “menina linda”, Maria Lúcia.
Uma canção que narra uma história, como se fosse um conto em forma
de poesia, pode parecer quase pronta para uma adaptação, mas o percurso do
filme demonstra o contrário. A primeira versão do roteiro foi assinada por
Paulo Lins (autor do livro Cidade de Deus, roteirizado por Bráulio
Mantovani para o filme de Fernando Meirelles). A versão final é de Marcos
Bernstein (diretor de O outro lado da rua e Meu pé de laranja lima, e
roteirista de Somos tão jovens) e Victor Atherino, com a colaboração de
Michel Melamed. Mantovani, Cristiano Bortoni e José Eduardo Belmonte
(diretor de Se nada mais der certo e Billi Pig) participaram como
consultores.
Tantas intervenções ajudam a explicar por que Faroeste caboclo não
tem a fluência que, no cinema, o título sugere – uma abordagem nacional (e
portanto original) de um gênero consagrado pela indústria norte-americana
em torno da conquista do Velho Oeste, na segunda metade do século 19. A
ação ocorre na passagem dos anos 1970 para os 1980 (o presidente é o
general João Figueiredo) e a história traz personagens bem inseridos naquela
paisagem sociopolítica, a começar pelo próprio Santo Cristo (Fabrício
Boliveira), pela angelical e firme Maria Lúcia (Isis Valverde), e pelo
traficante Pablo (o uruguaio César Troncoso, de O banheiro do papa,
Infância clandestina e Hoje).
Maria Lúcia, apresentada de maneira sumária na canção, ganha
obrigatoriamente mais contornos no filme: é filha única de um senador
(Marcos Paulo), estudante de arquitetura e de antropologia, e parece pouco à
vontade entre os jovens de classe média alta que a rodeiam. Sua história de
amor com Santo Cristo, no entanto, oscila junto com o filme, e um dos
motivos para isso é a formação de um frágil triângulo – também presente na
canção – com outro traficante, Jeremias (Felipe Abib).
Caracterizado como um “filho de milico” de alta patente, Jeremias é um
playboy que atua no tráfico de drogas como forma de fazer dinheiro e, não
menos importante, ter a elite jovem de Brasília nas mãos. Um policial civil
(Antonio Calloni) o auxilia no serviço sujo, com a ajuda de outros policiais.
Os confrontos entre as quadrilhas fornecem a ação de que Faroeste caboclo
precisa para justificar o título, mas fica ao final a impressão de que os temas
– sociais, políticos, românticos – vão se esgarçando com o tempo, no mesmo
ritmo em que parece se aproximar o anunciado desfecho trágico de Santo
Cristo, tão certo quanto a expectativa de ouvir a íntegra da canção-título
durante os créditos finais.

retrato do artista
O cinema mental de Rodrigo Garcia Lopes
Claudio Daniel

Rodrigo Garcia Lopes é um dos mais expressivos poetas brasileiros que


iniciaram sua jornada na década de 1990, ao lado de Claudia Roquette-Pinto,
Carlito Azevedo, Ricardo Aleixo e Josely Vianna Baptista, para citar poucos
nomes. Seu livro de estreia, Solarium, publicado em 1994, é um registro de
dez anos de trabalho poético do autor e apresenta poemas “dos mais variados
estilos, com técnicas e texturas que seduzem e declaram a liberdade de
evocar diferentes performances em seu discurso”, como escreve Maurício
Arruda Mendonça na “orelha” do livro. Encontramos neste volume desde
poemas que exploram o espaço em branco da página, a geometria e a
variação tipográfica, com ecos da Poesia Concreta, até o haicai, gênero que
praticou com o pseudônimo de Nenpuku Sato, na época em que atuou como
jornalista na Folha de Londrina (“formigas dragam / uma abelha / ainda
viva”; “pombos se aquecem / num resto / de sol”). Os poemas mais
característicos dessa fase de Rodrigo Garcia Lopes, no entanto, são as
composições mais discursivas, com versos longos, próximos à prosa,
imagens quase fotográficas da natureza e um intenso lirismo, escritos numa
linguagem direta e coloquial, como “O processo”: “Música devorando
plantas, nossas palavras. / Quer dizer, um ruído em você, a água irisando /
entre pedras imóveis. / Como aqui: / vendo nuvens soprarem / chuvas para o
sul, onde o deserto / parece tão perto / e continua a rolar suas areias / como
num movimento decisivo / de um jogo de Go”. Visibilia, publicado em 1997,
traz poemas mais concisos em que as rimas, aliterações e outros recursos
sonoros são usados para construir os jogos do pensamento, numa unidade
entre fundo e forma. Uma peça significativa desse volume é o poema
“Fugaz”: “o outro é aquele que ficou à margem / no espanto de um pronome,
/ no corpo de uma brisa suave; / o outro é como uma fome / pluma à deriva,
à distância, ou quase. // estranho em sua própria viagem, / garrafa com uma
mensagem, / olhar durando numa flor, / sem nome, secreta, selvagem”.

Poemas polifônicos
É possível reconhecer afinidades entre a poética de Rodrigo Garcia Lopes e
a de Paulo Leminski, que também conciliou a fala coloquial e o humor com
as rimas e outros jogos de linguagem, mas são autores com projetos
literários diferentes. Rodrigo Garcia Lopes tem vocação para escrever
poemas longos, polifônicos, que incorporam cenas do cotidiano misturadas a
referências literárias, cinematográficas e mitológicas de diferentes idiomas e
culturas, fazendo do próprio tecido poético a imagem do mundo caótico em
que vivemos. Esse projeto alcançou o seu nível de maior radicalidade
inventiva com Polivox, publicado em 2001. Como o próprio título indica,
este é um livro plural, onde encontramos desde um sutil e delicado lirismo,
que recorda a canção popular, até o impacto visual de certas imagens e a
violência tonal de farpas vocais. O poeta fratura a lógica narrativa e
sequencial do discurso, operando o corte imprevisto e a montagem de frases,
como se o volume fosse um cinema em versos. A metáfora está presente, até
com fúria barroca (“Céus de cristal líquido. / Limalhas de ferro formam uma
rosa imantada”), mas o que predomina é a reflexão crítica, via linguagem,
sobre a época ruidosa em que vivemos, época de violência e banalidade em
que o mercado, hostil ao artista e à obra de arte, se sobrepõe a qualquer
esforço de reconstrução da ética e do humanismo, impondo a hegemonia do
lugar-comum.
Em vez de entoar um coral melancólico, porém, Rodrigo registra
imagens da aldeia enlouquecida, com sátira e ironia, usando inclusive, de
maneira paródica, recursos do videoclipe e o vocabulário digital. Assim, por
exemplo, na peça de abertura do livro, que recorda um jogo alucinado (“On
line. Psiu: ‘Épico é poema / contendo história’. / E se um Plano de Saúde /
Pudesse expressar / sua / Individualidade?”). Em contraste com o Leviatã
midiático, que intenta o exílio do refinamento pela imposição de caricaturas
alienantes, Rodrigo compõe sua sinfonia com símbolos vivos de múltiplos
territórios e culturas. Ao longo de Polivox, vamos encontrar referências a
mitologias, poéticas e religiões, como o budismo e o xamanismo,
concepções mais orgânicas do que pode ser o humano e o estar no mundo,
superando fronteiras espaciais e temporais e também balizas de repertório.
Na seção do livro chamada “Thoth”, o autor dissolve as noções de prosa e
poesia, razão e onirismo, para compor uma elegia egípcia ao deus dos
escribas e da linguagem (“Sou Thoth, deus dos dizeres, senhor dos sentidos /
o que assimila o semblante / de todos os deuses”). Em outra peça de boa
fatura, nesta mesma seção, o autor diz: “A deusa lua entra no salão de
espelhos, em transe: / para onde olha, linguagem (vibrátil), estranhos /
estilhaços de um corpo que mutua / mente se reflete: até o infinito. / E feitos
da mesma imagem / (que se rebate) / até o infinito”.
O movimento alucinado de imagens também comparece em Nômada,
livro mais recente de Rodrigo Garcia Lopes, publicado em 2004, onde
encontramos insólitas composições como esta: “Levamos mapas que
modificam e se estendem a cada passo sobre a língua do arvoredo ou
universo plano de pétala pensada por um animal, céu virando o rosto, a
curvatura de sua mente, esse mais longo dos dias” (“Fragmentos em
movimento”). Maria Esther Maciel, a propósito desse trabalho, escreve:
“Nômada se aproxima tanto da música quanto do cinema. Seus trânsitos se
evidenciam por blocos rítmicos sem ponto de origem, sempre no meio da
linha ou da página e por imagens em movimento. Travellings, closes,
avanços, recuos, velocidades e lentidões marcam sua temporalidade, seu
devir. (...) Aliás, todo o livro se estrutura como uma totalidade aberta, uma
montagem rítmica e visual”. Rodrigo Garcia Lopes, que também é músico e
compositor, lançou ainda dois CDs, Polivox e Canções do Estúdio Realidade
e já se apresentou no programa Poesia pra tocar no rádio, do Centro
Cultural São Paulo, participou do I Seminário de Ação Poética e publicou
uma plaquete pela coleção Poesia Viva, editada pela Curadoria de Literatura
e Poesia do Centro Cultural São Paulo.

RUSH
a chuva
é este pensamento
lento
agulhas de prata
se caçam, se cruzam,
alcançam a vidraça
cortina perolada
presente
dos deuses
música suave
de quem
não diz o que sabe
abençoa a cidade
dos homens
e seus corações secos

GOOGLE EARTH
Essa dor é muito antiga.
Um Colosso de Rodes, visto de cima,
O Museu Britânico, o Taj Mahal,
O Pão de Açúcar, o Atacama, um parque em Lima.
Antes ela sabia de cor o Bhagavad-Gita,
A oração do meio-dia,
A Torá, o Necronomicon,
Os inscritos na tumba de Ikhnáton.
Na areia sofria um Graal.
Sentia o remorso do mar.
Parece com Quéfren, vista assim
de frente, e de lado com ninguém.
Ontem parecia mais antiga. Hoje, nem
mágoa: não se parece com nada.

MENSAGEM DEIXADA EM SECRETÁRIA ELETRÔNICA, 0:23 AM


Oi.
O dia é um plágio.
Esta frase é uma paráfrase perfeita do meu pensamento.
Neste, momento, folha, cai.
A frase é uma fraude.
A noite é uma roleta-russa.
Calada, uma cilada.
Qual o mistério do império otomano?
Você tem um aquário?
Cintila.
Caralho soletra solecismo.
O livro está no armário.
Metáfora filtra codeína.
Hoje estamos pra cima.
Você continua na linha?
A, abcesso, obsessão.
B de Buda, banzai.

coluna
Esteticamente correto
marcia tiburi

A pobreza da experiência cultural contemporânea agrega dois grupos


pseudopolíticos: os “politicamente corretos”, que Nietzsche, no século 19,
chamaria de “sacerdotes da moral”, e seus críticos, sempre autoelogiados
como “politicamente incorretos”, que seriam hoje “sacerdotes do imoral”,
servos daquela moral, só que sob o disfarce da inversão. O “sadismozinho”
diário dos antipolíticos politicamente incorretos esconde o desejo de uma
crueldade socialmente inviável. A maldadezinha do cotidiano faz mal às
suas vítimas, mas é autorizada ao agente, desde que ele saiba manter as
aparências de que tem toda a razão e não é tão mau assim.
A manutenção das aparências como verdadeira força que mantém as
condições da dominação é o que chamaremos pela expressão “esteticamente
correto”. Enceguecidos pela cultura do espetáculo, não vemos justamente o
“evidente”. O velho parecendo novo, o mau parecendo bom, o sujo
parecendo limpo, o feio parecendo belo. A correção estética é a expressão da
racionalidade técnica da dominação. Exemplos abundam, dos modos de
vestir às academias de ginástica.
O esteticamente correto foi bem apresentado, por exemplo, em um
filme chamado O homem ao lado (Gastón Duprat e Mariano Cohn, 2009).
Tal como na vida, o personagem principal do filme é um respeitado designer
internacional que mora na única casa desenhada por Le Corbusier em todas
as Américas. A casa é impecável e dentro dela se desenvolve uma vida
moralmente bem comportada, o que se vê no modo como ele e a esposa
tratam a faxineira com respeito atencioso. Dos móveis aos objetos
domésticos, da roupa que vestem à música que ouvem, tudo está
esteticamente correto. O designer tem uma vida tão correta que chega a ser
professor universitário, o que vem coroar o personagem com a aura do
intelectual que é também, digamos, “epistemologicamente correto”.
Tudo se passa na mais simples normalidade, até que um vizinho bronco
resolve abrir um buraco em uma parede contígua à casa para servir de janela.
O caráter ilegal de seu ato se relaciona intimamente ao caráter
“esteticamente incorreto” da ação. E dele mesmo. Este antagonista tem um
“estilo” visual fora do padrão culto expresso também em seu senso de
humor, em seu jeito de ser e falar. Os regimes de comportamento ético e
estético de cada personagem expressam-se em tensão. O desenvolvimento da
trama nos legará um desfecho estarrecedor, pois que esperamos de quem tem
estilo que tenha uma prática que combine com ele. O filme mostra que
julgamos pelas aparências e quase sempre nos enganamos redondamente,
não porque as aparências enganem, mas porque não olhamos com cuidado.

Escravidão voluntária estética


Dizer que toda ética tem sua estética pode ser traduzido por “toda moral
tem o seu gosto”. O velho padrão do gosto sobrevive hoje, por exemplo, na
ditadura do fashion, em que “fazer tipo” é a lei.
A beleza e o bom gosto definem o padrão do “esteticamente correto”
enquanto medida a partir da qual tudo é relativo no mundo da aparência. E
como a esfera da aparência é decisiva em uma sociedade espetacular, aquela
em que as relações são mediadas por imagens, o poder se exerce ali
silenciosamente definindo quem é bonito e quem não é. A ditadura da beleza
se impõe em nosso mundo sobre quem é constantemente reduzido a seu
corpo, é o caso de mulheres de todas as idades. Por isso, o homem branco e
rico, pode ser barrigudo, careca e velho (para brincar com um estereótipo).
Ninguém ousa taxá-lo de feio, pois sua feiura não está em jogo: ele está na
origem da lei que rege o gosto como padrão onde encaixar os outros. A
preferência por inserir-se no gosto em vez de questioná-lo explica a
voluntária escravidão estética desses tempos. Política de verdade não é
realmente algo que esteja em questão.
coluna
Aforismos rortyanos II
alcir pécora

Continuo e encerro nesta edição da CULT o que pensei originariamente


como um fichamento pouco ortodoxo, mas não impróprio, de Contingency,
Irony, and Solidarity (Cambridge University Press, 1989), do filósofo norte-
americano Richard Rorty (1931-2007), livro (a meu ver) incontornável para
se pensar crítica literária no contemporâneo. Apresento, portanto, um resumo
do Contingency..., dispondo-o praticamente nas próprias palavras do
filósofo, como é costume fazer em exercícios escolares. Alerto, entretanto,
para o termo “praticamente”, pois ele encerra uma pequena armadilha.
Empreguei-o para acentuar o meu desejo de dar a cada frase de Rorty em
português a forma de um aforismo que não me parece descabido existir nela.
Usei como base dessa tentativa a tradução portuguesa de Nuno Ferreira da
Fonseca (Editorial Presença, 1992), que tampouco segui ao pé da letra.

1. Numa perspectiva filosófica tradicional, existe um “eu” que tem “desejos


e crenças” e pode decidir entre eles, ou exprimir-se por meio deles, de
acordo com a sua coerência interna ou com a sua referência a algo exterior a
eles. O pressuposto é que os desejos são melhores quanto mais
correspondem à natureza do “eu”, e que as crenças são tanto melhores
quanto mais correspondem à realidade.

2. Um filósofo tradicional pressupõe que existem relações nas quais o que é


linguagem é uma unidade que se pode opor ao que é não-linguagem.

3. Da dupla pressuposição (oposição linguagem/não-linguagem, e unidade


da linguagem) se segue uma dupla decorrência: supor que há “significados”,
entidades não-linguísticas, que cabe à linguagem “exprimir”, e supor que há
“fatos”, entidades não-linguísticas, que cabe à linguagem “representar”.

4. Uma filosofia alternativa simplesmente desconsidera as vantagens da


linguagem como meio entre o “eu” e a “realidade”, seja ele “transparente”,
como julgam os realistas, seja “opaco”, como pensam os céticos.

5. Conhecer uma linguagem não é diferente de saber orientar-se no mundo;


não há uma estrutura definida partilhada pelos usuários de uma linguagem,
que primeiro a dominam, e depois a aplicam. Regras gramaticais não
explicam o ato de linguagem efetuado.

6. “Mente” e “linguagem” não são nomes de intermediários entre o “eu” e a


“realidade”, mas sinais da conveniência de se utilizar certo vocabulário para
lidar com certos organismos, de fazer convergir seus sinais e ruídos; ou seja,
são táticas úteis de previsão e controle de comportamento.

7. Quando desaparece a ideia de linguagem como meio desaparece também a


ideia de que ela tem uma finalidade: é o fim da história intelectual como
teleologia.

8. O que chamamos familiarmente de “nossa linguagem” é o resultado de


um grande número de contingências, de milhares de pequenas mutações.

9. Revoluções científicas são “redescrições metafóricas” da natureza. Elas


não estão mais perto das “próprias coisas” ou “menos dependentes da
mente” do que as redescrições da história oferecidas pela crítica da cultura.

10. Usos literais em geral se prestam a ser abordados pelas antigas teorias;
usos metafóricos levam a desenvolver uma nova teoria.

11. Platônicos e positivistas têm em comum uma perspectiva reducionista da


metáfora, como se elas devessem ser parafraseáveis ou então fossem inúteis
para o que consideram ser a única finalidade séria da linguagem, a
“representação da realidade”.

12. Românticos são, ao contrário, expansionistas em matéria de metáfora:


consideram-na estranha, mística, afeta à faculdade misteriosa da
“imaginação” que expressaria o centro do “eu”. Para eles, “literal” é o
mesmo que dizer “irrelevante”.
13. A história positivista da cultura vê a linguagem como algo que
gradualmente toma a forma do mundo físico; a história romântica a vê como
algo que gradualmente traz o Espírito à autoconsciência. Nenhuma das duas
distingue os sentidos pelos usos.

14. Para os positivistas, Galileu fez uma descoberta; para um filósofo


revolucionário como Wittgenstein, Galileu é alguém que encontrou uma
ferramenta mais útil para determinados fins do que qualquer outra
anteriormente existente.

15. Cientistas, filósofos e poetas revolucionários não resolvem problemas


anteriores, mas apenas os dissolvem, mudam a maneira de falarmos e,
portanto, mudam o que julgamos ser.

16. Problemas filosóficos são tão históricos como os poéticos.

17. Se se entendesse o sentido da história como história de metáforas


sucessivas, o poeta, na acepção genérica de criador de novas palavras ou
linguagens, seria a “vanguarda da espécie”.

18. A ideia da “natureza intrínseca” é remanescente da ideia do mundo como


criação divina.

19. Abandonar a ideia da linguagem como representação é “desdivinizar” o


mundo; de quebra, obriga o intelectual a despir-se da “função sacerdotal” de
contatar o que transcende o humano.

20. A distinção entre literal e metafórico não é a que existe entre dois tipos
de significado ou entre dois tipos de interpretação, mas sim entre usos
familiares e não familiares de ruídos e sinais.

21. Metáforas não têm significados: lançar uma metáfora num texto é uma
forma de produzir efeito no interlocutor, não uma maneira de transmitir
mensagens.

22. A metáfora não pode ser parafraseada por uma frase familiar, não tem
lugar fixo num jogo de linguagem e não tem valor de verdade. Com o tempo
poderá tornar-se habitual; será, então, uma metáfora morta.

23. A linguagem assemelha-se à ideia de evolução: novas formas de vida a


matar velhas, às cegas, sem qualquer finalidade superior.

24. Não há nenhuma função fixa a ser desempenhada pela linguagem; a


dizer como Davidson, nem mesmo existe a “linguagem”.

25. “Linguagem” e “mente” podem ser consideradas “naturais” apenas por


apresentarem relações de “causa” com o resto do universo, não por
apresentarem relações de adequação da “representação” ou da “expressão”.

26. A história da linguagem e da cultura é semelhante à seleção natural na


teoria da evolução de Darwin: metáforas antigas estão constantemente a
morrer, a tornar-se literais e a servir de plataforma para novas metáforas.

27. As descrições filosóficas são um processo de avaliação de metáforas.

28. Filosofia é como crítica literária.

coluna
Melancolia de Ozymandias
Christian Dunker

O tema da morte e do luto é o mote para o começo do diálogo mensal,


neste espaço, entre o filósofo Vladimir Safatle e o psicanalista Christian
Dunker

Em sua última coluna aqui na Revista CULT, Vladimir Safatle abordou o


tema da morte e do luto como modelo e protótipo dos processos de
simbolização sob os quais se erige a cultura. O tema é vasto e nobre desde
que Montaigne nos ensinou que escrever é aprender a morrer e Hegel insistiu
que o espírito é o osso, e a cultura as suas ruínas. Também para Freud a
sequência histórica dos fracassos esquecidos e invertidos em sucessos
monumentais regula a gênese da cultura como sistema de transmissão
simbólica da experiência. A história dos desejos desejados, para retomar a
expressão de Kojéve.
Recentemente, Slavoj Žižek (Vivendo no fim dos tempos, Boitempo,
2012) retomou o problema reinterpretando nosso fracasso em fazer o luto
como causa do empobrecimento de nossa imaginação política. E ele chega a
detalhar o impasse recorrendo aos cinco tempos do luto, descritos por
Elisabeth Kübler-Ross: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação.
Fazer o luto, como qualquer psicanalista advogará, não é meramente
esquecer ou desligar-se de um ente ou objeto querido. O trabalho de luto
implica reconstruir relações que se revelam apenas após a perda, é descobrir
do que eram feitas tais relações, para em seguida, ativamente, deixar que o
outro nos deixe. Contudo, o grande drama que abre o processo de luto é que
não sabemos de saída o que foi perdido. Momento trágico no qual o
melancólico se fixa. Daí que o luto comece pelo inventário, marcado pela
lembrança compartilhada, daquilo que não sabemos ainda a extensão nem a
essência. Diante do luto nos sentimos solitários como os últimos homens de
Nietszche.
Contra esta concepção “ressurrecional” em teoria da cultura devemos
lembrar que o momento de luto mais difícil e mais controverso de ser
descrito clinicamente é a sua quinta fase: a aceitação. Para Hegel, o
problema remonta ao fato de que o luto é infinito, a conversa da cultura é
interminável, para voltar ao Blanchot piorado.
Esta outra maneira de abordar o problema começa com o poema
“Ozymandias”, escrito por Percy Shelley em 1818, retratando a imensa
estátua de Ramsés II, que termina enterrada nas areias do deserto, esquecida
e fragmentada. E no pedestal estaria escrito: “‘Meu nome é Ozymandias, rei
dos reis: Contemplem as minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos’.
Nada mais resta. Ao redor a decadência daquele destroço colossal sem
limite e vazio. As areias solitárias e planas espalham-se para longe”.
Na década de 1970, o desenhista Alan Moore criou o personagem da
série Watchmen, chamado Trovejante (Ozymandias no original), como
alguém de rara inteligência e domínio corporal, porém que envelhecia muito
lentamente. E assim também o tema reaparece no rock do Sisters of Mercy e
no cinema de Woody Allen. Finalmente, elevado à categoria de melancolia
de Ozymandias, nomeada em vários de seus personagens, trata-se agora de
uma espécie de desespero narcísico do criador quando ele se depara com o
fato de que, por mais perfeita que seja sua obra, ela, e ele consequentemente,
desaparecerão. E é uma “desaparecência” no presente. Uma perda da qual
ele está convicto da extensão e essência. Viver para uma obra, viver para o
trabalho, viver para os filhos, viver para contar, torna-se assim um falso
destino.

Enterro da linguagem
Aqui não se trata apenas da lição de humildade diante do futuro infinito, mas
do enterro da linguagem no presente. É o sonho recorrente de Primo Lévi. A
guerra acabou, ele escapou dos campos de concentração voltando para casa
com a família. Mas ao começar a contar o que viu todos à sua volta
começam a bocejar e, um a um, deixam a mesa, até que ele fica sozinho.
Como as vítimas de estupros na guerra da Bósnia que se suicidam quando
voltam para casa e descobrem que não há ninguém interessado em ouvir o
que se passou com elas. Se o modelo freudiano do trauma equivale ao de
uma hipótese sobre o nascimento da subjetividade e da cultura baseada no
luto, não seria preciso pensar um contra-modelo que nos permitisse entender
a cultura como fracasso presente? Se o traumático freudiano comporta uma
negação do conteúdo, o sujeito pós-traumático perdeu a forma na qual se
reconhecer e sentir que está sofrendo, abençoado pela indiferença, pela
uniformização global das reações neuropsicológicas. Não restaria à cultura
nos ensinar mais uma vez a sofrer?

dossiê Bicentenário de nascimento de


Kierkegaard
O pensador que queria ser indivíduo
Juvenal Savian Filho

No dia 5 de maio de 2013 comemora-se o bicentenário de nascimento de


Soren Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês de grande influência
sobre o pensamento contemporâneo, no entanto pouco estudado no Brasil e
mesmo no restante do mundo. Curiosamente, é um autor bastante
mencionado, segundo um costume curioso: muita gente costuma citá-lo, mas
quase ninguém o leu. Fala-se de Kierkegaard como aquele que queria ser
“indivíduo”, crítico mordaz de Hegel e do cristianismo vivido na Dinamarca
do século 19, pai do existencialismo e por aí afora.
De modo geral, sob esses clichês repousa uma espécie de pressuposto:
Kierkegaard seria um destruidor da razão sistemática, principalmente a do
viés hegeliano. Porém, se Hegel o visse sob esse rótulo, certamente daria
uma piscadela e, com um sorriso autoconfiante, veria em seu antípoda a
exceção que confirma a regra; afinal, como se diz, não há nada mais
hegeliano do que a contraposição a uma tese, em busca de nova síntese. A
parte o clichê, não deixa de ser verdade que Kierkegaard se opôs ao sistema
de Hegel, dizendo que este construiu um palácio racional suntuoso, mas
continuava morando no casebre dos fundos, pois sua filosofia não dava conta
da vida e de tudo aquilo que ajuda alguém a tornar-se realmente indivíduo
sem se perder em abstrações que o separam de si mesmo. Em benefício da
experiência pessoal vai o elogio de Kierkegaard ao pensamento produzido na
carne da existência, com uma ênfase explícita na biografia; não a biografia
burguesa e da autoexposição narcísica, mas aquela em que a narrativa
apresenta o itinerário pelo qual o indivíduo chega a universalizar-se,
alcançando no final o sentido que agia desde o início; um testemunho do que
é e do que pode ser a experiência humana. É justamente dessa perspectiva
que se pode ver como o pensamento kierkegaardiano ainda merece ser
explorado.
Com uma história familiar nada fácil e procedendo da região
entediantemente gelada da Jutlândia (desértica, porém fecunda de desespero,
onde o que há de mais espetacular é ver o voo de um pato selvagem), o
pensador solitário, em vez de destruir o que critica, reconhece a força que
pulsa mesmo sob o que considerava equivocado. Assim, alguém realmente
anti-hegeliano estaria mais longe de Kierkegaard do que se costuma pensar,
tal como um anticristão ou um ateu estão mais longe de Nietzsche do que se
supõe. O sentido do pensamento kierkegaardiano talvez se deixe captar
como uma construção sem pretensão sistemática, sem a ilusão de que se
pode tudo explicar por uma ordem lógica, como quando se cai no ridículo de
perguntar a alguém que ama: “por que você ama?”. Se esse alguém der uma
razão por que ama, sai da dinâmica do amor, a gratuidade que não precisa de
porquês. Isso só se vive na carne, e apenas imperfeitamente é possível
exprimi-lo pelo trabalho conceitual. O sacrifício de sua noiva Regine Olsen,
ao modo do sacrifício de Isaac oferecido por Abraão, permite vislumbrar a
intensidade de uma das faces do que pretendia Kierkegaard ao falar de
filosofia feita em primeira pessoa.

A certeza da dúvida
Porém, aceitar a impossibilidade de tudo incluir em um sistema explicativo
não significa necessariamente ceder à ilusão de duvidar sempre e de tudo. É
verdade que, paradoxalmente, Kierkegaard assume a ironia socrática como
capacidade de negação universal e ilimitada, porque, engajando
profundamente o indivíduo na existência, ela evita que ele seja sugado por
um sistema de ideias e mostra que razões e justificações nascem sempre
depois de uma decisão existencial, nunca a fundamentando, mas resultando
dela. Como bem dizia Jacques Derrida – em paráfrase do mestre
dinamarquês –, o instante da decisão é uma loucura. Todavia, o indivíduo
não hipócrita, quer dizer, que não se esconde atrás de razões, mas admite a
precariedade intelectual da vida, pode ainda assim perscrutar suas decisões,
falando em porquês, assumindo suas escolhas e procurando sobretudo o
sentido delas. Sob esse ângulo, a filosofia, por mais apaixonada que seja pela
dúvida (a forma mais indicada de manter a lucidez), merece não deixar de
ver que uma dúvida repetida indefinidamente torna-se fanatismo, volta-se
contra si mesma, destrói-se e acaba por produzir certezas (no mínimo, a
certeza da dúvida). Algo, se assim se pode dizer, como um absoluto da
dúvida, mesmo que metodológico, não significaria viver autenticamente a
experiência de duvidar (maneira existencial), mas a transforma em doutrina
(em busca apenas de uma ordem de razões), deixando a vida escapar por
entre os dedos. É nesse espírito que Kierkegaard parece pôr em paralelo a
dúvida e a fé, única possibilidade de compreender o engajamento na
existência produzido pela ironia. Daí que, com atenção e sensibilidade fora
do comum, e contrariando o irracionalismo apressado que se lhe costuma
associar, Kierkegaard tenha tratado de temas filosóficos extremamente
exigentes. Três grupos gerais poderiam ser identificados em sua obra: algo
como uma “psicologia filosófica”, na qual investiga e correlaciona as
tonalidades afetivas (angústia, desespero); uma reflexão sobre o tempo (com
os conhecidos estágios da existência – o estético, típico da sensibilidade; o
ético, que relaciona o ser humano ao dever; o religioso, centrado no vínculo
indissociável entre o homem e seu destino divino –, os quais não podem ser
vistos de maneira cronológica ou lógica, mas do ponto de vista da existência
encarnada); e uma investigação sobre a linguagem, centrada na
comunicação, no silêncio e na subjetividade daquele que fala.
Os artigos que compõem este dossiê especial da CULT querem
contribuir para uma leitura mais próxima dos textos de Kierkegaard. Gabriel
Ferreira Alves propõe uma releitura histórica de grande significação; Álvaro
Valls (o pesquisador da obra kierkegaardiana mais atuante no Brasil e, de
certo modo, um desbravador) explora com uma pitada de humor a etiqueta
cristã atribuída a Kierkegaard; Jonas Roos analisa e correlaciona as
concepções de religião, finitude e corpo; por fim, Humberto Quaglio
investiga o socratismo agostiniano de Kierkegaard. Com esses eixos
oferecemos ao leitor um rico material de reflexão.

Nas origens da filosofia contemporânea


Gabriel Ferreira da Silva

“Durante minha visita a Freiburg, sabendo que eu nunca havia lido


Kierkegaard, Husserl começou não a pedir, mas a ordenar – com enigmática
insistência – que eu tomasse contato com as obras do pensador dinamarquês.
Como podia ser que um homem cuja vida havia sido a celebração da razão
devesse conduzir-me ao hino de Kierkegaard ao absurdo? Husserl
certamente parece ter tido contato com Kierkegaard apenas durante os
últimos anos de sua vida. Não há evidência em seus trabalhos de
familiaridade com nenhum dos escritos do autor de Ou isto ou aquilo. Mas
parece ser claro que as ideias de Kierkegaard impressionaram-no
profundamente.”
Que Kierkegaard tenha sido uma influência fundamental no
pensamento do filósofo russo Leon Shestov (1866-1939), que nos relata o
episódio acima, não é novidade alguma. Mas que tenha sido o filósofo
alemão Edmund Husserl (1859-1938) que, por assim dizer, os apresentara é,
no mínimo, curioso. Embora Shestov pinte com cores demasiadamente
fortes a diferença entre os pensamentos de Kierkegaard e de Husserl, é
verdade que dificilmente os dois filósofos apareçam num mesmo contexto.
Mas, se a caracterização de Kierkegaard por Shestov como um opositor da
racionalidade e um apologeta do absurdo é exagerada, é fato que esses
clichês conheceram vida longa no que diz respeito ao modo como o filósofo
dinamarquês foi lido e compreendido. Exatamente por isso é que surpreende,
de certa maneira, ver Husserl recomendando efusivamente a leitura de
Kierkegaard.

Kierkegaard irracionalista?
A avaliação da contribuição de Kierkegaard para os problemas filosóficos
próprios aos séculos 19 e 20 é quase que exclusivamente mediada pela visão
que se tem dele como essencialmente irracionalista e crítico severo de
qualquer filosofia rigorosa, donde os efeitos e consequências de sua obra só
podem se fazer sentir num escopo muito restrito. A ele restou, portanto, ser o
“pai do existencialismo”, o “contemplador inocente do paradoxo”, o
“defensor inconsequente da fé de Abraão” e alguém cujo pensamento só
ganha vida e força pelo pitoresco presente em sua biografia. À filosofia dita
séria, Kierkegaard nada teria a dizer, já que, como afirma mesmo Sartre, sua
filosofia é uma antifilosofia, e sua crítica é como um grito do indivíduo
existente contra a opressão acachapante da Razão. No entanto, será que essa
recepção faz jus inteiramente a alguém que estudou filosofia na universidade
por dez anos, sendo conhecedor de grego e latim, descrevendo-se a si
próprio como extremamente influenciado pelos filósofos antigos, mas
citando, ao mesmo tempo, Kant, Spinoza, Leibniz, Lessing, Fichte, Hegel e
Schelling? Não se trata de fazermos aqui uma acusação de injustiça
histórica, mas não podemos nos furtar à constatação de que, se por um lado
os ecos do pensamento de Kierkegaard na teologia são amplamente
conhecidos e reconhecidos, no que diz respeito à filosofia, grande parte
dessa história ainda está por ser escrita. Isso se deve, em larga medida, ao
fato de que aquele estranhamento que nos surge ao pensarmos, por exemplo,
em um Husserl leitor de Kierkegaard provém de certa caricatura de seu
pensamento e da forma com que julgamos compreender sua relação com a
filosofia. Assim, pode ser elucidativo remontar a alguns aspectos tão
fundamentais quanto esquecidos.
Em 1841, após defender a tese sobre O conceito de ironia
constantemente referido a Sócrates, que lhe conferiu o título de magister,
Kierkegaard faz sua primeira viagem a Berlim, onde frequenta as aulas de
Schelling. Contudo, relembrando esse evento alguns anos mais tarde,
Kierkegaard faz a seguinte avaliação de sua estada berlinense em seus
diários: “Na primeira vez que fui a Berlim, Trendelenburg era o único que eu
não me animei a ouvir – para ser exato, ele foi descrito como sendo um
kantiano. E eu praticamente ignorei o jovem sueco que viajava comigo e que
pretendia estudar apenas com Trendelenburg. Oh, tola opinião à qual eu
estive preso naquela época” (Papirer VIII1 A 18, 1847).

Kierkegaard e Trendelenburg
Mas quem foi Trendelenburg? Filósofo, filólogo e tradutor alemão, Friedrich
Adolf Trendelenburg (1802-1872) foi um dos principais articuladores da
oposição à lógica de Hegel. Seu opúsculo A questão lógica no sistema de
Hegel, de 1843, deu não só as contribuições fundamentais para a discussão
sobre o papel e a função da lógica no período após a morte de Hegel, como
deu o nome pelo qual esse movimento ficou conhecido. Entre aqueles que
assistiram a suas aulas e os indiretamente influenciados por ele estão nomes
centrais que fazem com que, a partir de Trendelenburg, seja possível
identificar uma miríade de problemas e relações absolutamente
determinantes para se compreender toda a filosofia de fins do século 19 e,
consequentemente, do 20. Movido pela intensa retomada de Aristóteles
empreendida por Trendelenburg, Franz Brentano (1838-1917), um de seus
mais notáveis discípulos, foi peça-chave para a fenomenologia de Husserl,
que, por sua vez e não por acaso, confere à sua obra magna o mesmo título
do principal livro de Trendelenburg: Investigações lógicas. Por sua vez,
Hermann Cohen (1842-1918), nome basilar do neokantismo e aluno de
Trendelenburg, publicou em 1871 um longo ensaio sobre a controvérsia
entre Trendelenburg e Kuno Fischer. Tal controvérsia acerca da interpretação
da Estética Transcendental de Kant era conhecida por Gottlob Frege (1848-
1925), que, pela leitura da coletânea de ensaios de Trendelenburg em três
volumes, intitulada Contribuições históricas à Filosofia, tomou contato com
o ensaio deste sobre Leibniz. É nesse texto que Frege encontra o termo
cunhado por Trendelenburg para descrever a characteristica universalis de
Leibniz e que assume como nome de seu próprio sistema: Begriffsschrift
(conceitografia). Como se pode ver, mesmo as correntes analítica e
hermenêutico-fenomenológica da filosofia moderna e contemporânea, ditas
tão diversas, encontram em Trendelenburg um ponto de convergência, não
meramente histórico, mas com profunda coesão temática.
Todas essas relações são, em maior ou menor grau, conhecidas por
aqueles que se dedicam às origens da filosofia contemporânea. Todavia, a
presença de Kierkegaard no desenvolvimento de problemas daquele
momento é praticamente ignorada. Na mesma entrada já citada de seus
Papirer, Kierkegaard afirma: “Não há filósofo moderno do qual eu tenha
aproveitado tanto quanto de Trendelenburg. [...] Minha relação com ele é
muito especial. Parte do que me interessou por um longo tempo é a doutrina
das categorias. E agora Trendelenburg escreveu dois tratados sobre a
doutrina das categorias que eu estou lendo com o maior interesse”. E não
ficou nisso: além da referida obra sobre a doutrina das categorias, havia na
lista dos livros constantes da biblioteca de Kierkegaard sete outras obras do
filósofo alemão lidas com afinco pelo dinamarquês.
Se um Husserl leitor de Kierkegaard já pode causar espanto, o que dizer
então de um Kierkegaard interessado pelos problemas das categorias? Ou
então, como entender, com base numa leitura que não abandona os
pressupostos banais sempre repisados, a discussão sobre os conceitos de
movimento e de negação na Lógica, presentes em um livro cujo título parece
absolutamente avesso a tais assuntos como O conceito de angústia, no qual
Kierkegaard, ao tratar de tais temas, planejara enviar o leitor àquilo que
havia de melhor sobre o assunto, a saber, o opúsculo de 1843 de
Trendelenburg (cf. Pap. V B 49:6, 1844)? Para aqueles que leem
Kierkegaard apenas a partir de certa matriz irracionalista, talvez cause ainda
mais surpresa saber que ele trabalhara o projeto do Pós-escrito conclusivo
não-científico às Migalhas filosóficas (1846) – aquela que seria sua obra
considerada por ele mesmo como ponto de viragem – sob o título provisório
de Problemas lógicos. Entre os problemas fundamentais que norteariam o
novo livro, Kierkegaard listara em seus rascunhos: “O que é uma categoria?
O que significa dizer que ‘ser’ é uma categoria?”, “Como uma nova
qualidade aparece através de um incremento quantitativo?”, e,
evidentemente, “O que é existência?” (cf. Pap. VI B 13).
Embora não seja possível desenvolver aqui o percurso desses
problemas na obra de mais de 600 páginas, tampouco os ecos na totalidade
de sua produção, o que indicamos já nos parece ser suficiente para apontar
que Kierkegaard não estava à margem do universo de questões que
condicionou o panorama filosófico de sua época. De fato, falecido em 1855,
Kierkegaard não chegou a ver o Anti-Trendelenburg de Kuno Fischer (1870),
nem a Psicologia do ponto de vista empírico, de F. Brentano (1874), a
Conceitografia de Frege (1879) ou as Investigações lógicas de E. Husserl
(1900-1901), todas, cada uma a seu modo, influenciadas por Trendelenburg.
Da obra principal deste, não conheceu senão a primeira edição das
Investigações lógicas, publicada em 1840. Contudo, caso tivesse a
oportunidade de folhear a terceira edição, de 1870, talvez desse um sorriso
irônico ao ler o prefácio do autor explicitando o significado do título
programático, oposto àquele intento hegeliano de erigir uma “Ciência da
Lógica”; ao invés disso, tratava-se apenas de despretensiosas
“Investigações”. Ora, não é exatamente isso que Kierkegaard tinha em mente
ao intitular seu “panfleto” de 1844 de Migalhas filosóficas? E a sequência do
mesmo projeto, o Pós-Escrito, como declaradamente “não-científico”?
Assim, se é verdade que Kierkegaard é grande por explicitar com
lirismo invejável aquelas prementes questões pelo sentido existencial último
ou, ainda, tenha reafirmado a radicalidade do cristianismo, cumprindo a
missão que se autoimpusera de mostrar que, ao contrário do que se podia
pretender, aderir a ele era tarefa das mais difíceis, não é menos verdade que
Kierkegaard foi um filósofo rigoroso cuja contribuição no âmbito da
filosofia dos séculos 19 e 20 ainda está para ser aferida e a quem as palavras
do autor pseudonímico de seus Prefácios poderiam ser usadas a título de
epígrafe: “desde a juventude eu amei a filosofia”.

Um pensador subjetivo
Álvaro L. M. Valls

Thomas Mann, em seu romance Dr. Fausto, descreve a personagem


principal, um compositor genial, sentado à frente da lareira e lendo o ensaio
de Kierkegaard (tirado de Ou isto ou aquilo) sobre a ópera Don Giovanni, de
Mozart, quando lhe aparece de repente o demônio (gelado e com camisa de
malandro), que o interroga: “Então, lendo o livro do cristão?”.
Costumo dizer que, com esse depoimento do Pai da Mentira, fica
definitivamente provado que Kierkegaard era cristão, embora no último
número de seu jornal panfletário O instante, deixado inédito ao adoecer para
morrer, ele tenha escrito: “Digo e tenho que dizer que não sou cristão”.
Vamos concordar que isso não prova que em verdade Kierkegaard não
fosse cristão, mas ao menos nossos leitores brasileiros (ainda poucos, é
certo) poderiam meditar sobre que motivos teria ele para negar ser algo que
na Dinamarca do século 19 todo o mundo era. Como Kierkegaard se
preocupava mais com o “tornar-se cristão” do que com o “ser cristão”,
digamos que nessas negações talvez houvesse alguma tática ou alguma
estratégia, ou algum “método na loucura”.
Ao lado de Platão e Aristóteles, de Paulo, de Agostinho e Lutero, de
Hegel e Schelling, de Hamman e Goethe, uma das leituras prediletas do
pensador dinamarquês foi sem dúvida a obra de Gotthold Ephraim Lessing
(1729-81), pensador alemão do século 18, que ele cita em prosa e verso, com
grande prazer e admiração, desde seus primeiros escritos. Poderíamos dizer
sem muito medo de errar que, dentre os modernos, Lessing ocupava aos
olhos de Kierkegaard uma posição muito semelhante à de Sócrates outrora:
no mínimo podemos dizer que ambos são modelos para a figura do pensador
subjetivo, que existe de forma consciente, que pratica uma interioridade
pessoal, não solipsista.
Na sua obra central, de 1846, intitulada provocadoramente Pós-escrito
conclusivo não-científico às Migalhas filosóficas (cujo primeiro volume,
traduzido por mim, sairá em breve pela Editora Vozes), Kierkegaard dedica
de maneira quase gritante dezenas de páginas a Lessing, numa posição de
destaque, bem no início da segunda parte, que é a principal. Como um bom
irônico, porém, Kierkegaard dá a essa primeira seção da segunda parte um
título despretensioso, chamando-a simplesmente: “Algo sobre Lessing”
(dividida em dois capítulos, com títulos igualmente modestos: “Expressão de
gratidão a Lessing” e “Teses possíveis e reais de Lessing”).
Ao tentar expressar sua gratidão a esse grande pensador, com o qual
parece que o autor do Pós-escrito se identifica tanto, muitos elogios têm a
forma de críticas ou xingamentos: “Ele era mesmo um egoísta, esse
Lessing!”; “Era uma maldade de Lessing...”; “Era uma vergonha que
Lessing embaraçasse aqueles que estavam infinitamente desejosos de jurar
in verba magistri...”. Por fim: “Não, Lessing não era um homem sério!”.
Mas essas objeções se revelam como cheias de humor ou ironia, se
comparadas com outras expressões, do tipo: “Pois é, raramente se encontra
um autor que seja tão boa companhia quanto Lessing”.

Jacobi e Lessing
O autor do Pós-escrito pergunta se é seriedade que Lessing “não só se
esquive das obtusas tentativas dos fanáticos [...], mas que tampouco a
eloquência entusiástica do nobre Jacobi tenha poder sobre ele...”, e indaga:
“É esse o jeito de um homem sério sair dessa vida, deixando que sua palavra
derradeira seja tão enigmática quanto todas as outras, de modo que o nobre
Jacobi nem ouse garantir pela salvação da alma de Lessing – pela qual
Jacobi é sério o bastante para se interessar, quase tanto quanto pela sua
própria?”. Ou seja, mesmo que não se deva dar importância à multidão dos
pretensos seguidores, será que a amizade não exigiria de um intelectual
franqueza e sinceridade completa frente a um outro que com zelo se
preocupasse “pela salvação de sua alma”?
Sabemos que Friedrich Heinrich Jacobi (1743-1819) possuía um caráter
nobre, era homem fino, religioso bem intencionado, embora bastante
proselitista. Ora, esse nobre pensador temia que Lessing se tivesse deixado
levar pelo sistema de ideias de Espinosa (1632-1677), ou seja, uma forma de
panteísmo, quiçá de ateísmo (claro que sempre é possível perguntar como
pode um “pan-teísta” ser ao mesmo tempo um “a-teísta”).
Conforme Giovanni Reale e Dario Antiseri, na obra História da
Filosofia, “com linguagem de sabor existencialista ante litteram, Jacobi
indicou o ato com o qual nos libertamos do intelecto e alcançamos a fé com
a expressão italiana salto mortale”. Justamente aí surge a nossa questão: se
Jacobi era um cristão pietista, e usava uma linguagem existencialista já antes
do chamado “pai do existencialismo” (isto é, nosso autor dinamarquês), por
que motivo Kierkegaard, que ao que tudo indica deveria admirá-lo e segui-
lo, coloca-se ao lado de Lessing, simpatiza tanto com esse pensador
iluminista, suspeito de duvidar das Escrituras (pois nesse sentido publicou os
manuscritos anônimos de Reimarus) e que havia travado amarga polêmica
com o pastor Goetze, de Hamburgo, representante da igreja ortodoxa e bem
tradicional? Aliás, no segundo volume do Pós-escrito, o autor demonstra
tanta simpatia por Feuerbach que há quem imagine que ele só poderia estar
se enganando de adversários, confundindo-se na relação amigo/inimigo.
A cumplicidade com Lessing não é confusão mental. Também
Kierkegaard rejeita esse salto mortale, que não combina com sua ideia da fé
cristã. Nosso autor cultivava as três atitudes próprias de uma autêntica
subjetividade: a ironia, o humor e a fé. A 15a. tese da Dissertação sobre o
conceito de ironia constantemente referido a Sócrates já enunciara: “Como
toda filosofia começa pela dúvida, assim também inicia pela ironia toda vida
que se chamará digna do homem”. Claro, a ironia é só o início, e o humor
contém determinações mais concretas, mas para Kierkegaard a fé pode ser
dita o máximo de subjetividade (e o máximo de objetividade, por paradoxal
que pareça). Porém, para Kierkegaard, a fé exige interioridade, mais do que
exterioridade, e nesse ponto Lessing parece estar bem à frente de Jacobi.
A edição espanhola dos escritos de Lessing contém o relato redigido
por Jacobi tendo como objeto suas conversações com Lessing. É delicioso de
ler. O nobre Jacobi parece não perceber a postura irônica do interlocutor, a
quem tenta converter à sua visão de fé, que exigiria primeiro a libertação do
espinozismo, que ele suspeita entranhado em Lessing. O diálogo chega ao
seguinte ponto:
“Lessing: Não é de todo mau seu salto mortal e compreendo que um
homem inteligente possa baixar a cabeça desse modo para sair à frente.
Leva-me contigo, se é possível.
Jacobi: Naturalmente, se queres conhecer o ritmo que me move.
Lessing: Para isso precisaria também saltar, mas já não posso pedir esse
salto a minhas velhas pernas e à minha pesada cabeça.”
A réplica (socrática) de Lessing é famosa: não poderia exigir de suas
velhas pernas e de sua cabeça pesada o esforço de saltar para chegar àquela
posição que Jacobi considera o pressuposto do salto mortale da fé.

Kierkegaard e Lessing
A simpatia de Kierkegaard vai toda para Lessing. Por quê? Porque ele
admira esse renomado alemão não tanto pela erudição, ou por ser a alma de
uma biblioteca, ou por sua maestria em construir o verso dramático, ou por
suas réplicas nas comédias e tragédias (como em Emilia Galotti), ou pela
demarcação entre a pintura e a poesia (no Laocoonte), ou por suas fábulas.
Lessing merece o maior respeito não por ser um sábio, mas por saber se
comportar do modo justo em termos religiosos: ele se teria encerrado no
isolamento da subjetividade, consciente de que sua definição religiosa era
um assunto que interessava só a ele próprio e a Deus. O mesmo valeria para
cada um, e seria preciso reconhecer a dimensão do silêncio. Lessing não se
preocupava com os resultados exteriores. Esforçava-se para ser como devia
ser, sem tentar fazer comparações. Mais ainda (o que agrada imensamente a
Kierkegaard): “Aceitou ele o cristianismo, rejeitou-o, defendeu-o, atacou-o,
de modo que eu também possa admitir a mesma opinião, pela confiança
nele?”. Não! Lessing não se presta ao papel de exemplo a ser copiado, ou de
argumento de autoridade. Recusa ser autoridade, e aí é um verdadeiro
iluminista, homem do esclarecimento: a própria autoridade se baseia na
razão, e a razão não coagula num sistema, mantém-se como um esforço
constante.
Das teses que o autor atribui a Lessing, a mais famosa é a quarta, que
opõe ao sistema da verdade total a humildade do esforço contínuo, ainda que
este sempre possa enganar-se. Aqui, Kierkegaard poderia até citar Lessing
literalmente. Isto, porém, no caso de um escritor irônico não fornece uma
segurança completa. Podemos confiar cegamente em Lessing? Devemos
fazê-lo? Para compreender bem a posição de Kierkegaard, seria importante
estudar as primeiras teses, que ele crê poder atribuir também ao pensador
alemão, e que só poderemos enunciar: 1) “O pensador subjetivo existente
presta atenção à dialética da comunicação”; 2) “O pensador subjetivo
existente, em sua relação existencial com a verdade, é tão negativo quanto
positivo, tem tanto de cômico quanto essencialmente tem de pathos, e está
continuamente em processo de vir-a-ser, isto é, está esforçando-se”.
Estas duas teses teriam de ser demonstradas como realizadas nos dois
autores. Eles não cultivam o discurso direto, preso a uma verdade objetiva e
talvez alienada; são pensadores em movimento, não se apegam a dogmas
definitivos. Quando defendem algo, a forma da comunicação pode muito
bem dar a impressão de que estão atacando e vice-versa. Assim se entende
também uma crítica que o autor do Pós-escrito fará mais adiante à crítica da
religião de Feuerbach: quem ataca a partir de fora, facilita o trabalho dos que
se dispõem a defender de qualquer jeito e a qualquer preço. E com isso não
dissolve as ilusões!
Parece mesmo problemático dizer, assim sem mais nem menos, que
Kierkegaard era “o cristão”!

Socratismo agostiniano
Humberto Araujo Quaglio de Souza
Classificar Soren Kierkegaard como pensador moderno é algo discutível.
Comumente se afirma que ele estava à frente de seus contemporâneos
modernos e que muito se diferia deles, tanto pelas polêmicas que travou com
a filosofia e a religião quanto por suas reflexões sobre a interioridade e a
existência. Porém, se uma definição meramente cronológica de filosofia
moderna pode incluir o pensamento do século 19, então Kierkegaard inclui-
se nessa categoria.
A ideia de contemporaneidade, contudo, não tem um sentido
simplesmente cronológico no pensamento kierkegaardiano. Em seu livro
Migalhas filosóficas, publicado em 1844 sob o pseudônimo Johannes
Climacus, Kierkegaard propõe uma compreensão de contemporaneidade
como o estado do sujeito que passa do não-ser ao ser, conhecendo a verdade
e tornando-se contemporâneo dela. Neste sentido, o referencial da
contemporaneidade não é mais a relação do sujeito com o tempo, mas com a
verdade, independentemente da época em que o indivíduo viveu.
Esse é um ponto de partida possível para se pensar comparativamente
as relações entre Kierkegaard e seus contemporâneos, e entre o filósofo de
Copenhague e pensadores da Antiguidade. O dinamarquês considerava a
religião de sua época, o cristianismo luterano oficial da igreja da Dinamarca,
como profundamente diferente do cristianismo pregado pelos apóstolos nos
primeiros séculos da era cristã. De maneira análoga, Kierkegaard percebia
que a pretensão dos pensadores oitocentistas, de elaboração de sistemas
filosóficos capazes de abarcar e compreender toda a realidade, era um ideal
bem distinto da postura de Sócrates, cuja grandeza, nas palavras de J. G.
Hamann citadas por Kierkegaard em O conceito de angústia, residia
justamente em sua capacidade de distinguir entre aquilo que ele compreendia
e o que não compreendia.
O cristianismo propõe uma compreensão do homem como ser falível e
estabelece como requisito para a salvação do indivíduo o reconhecimento de
sua condição de pecador. O pensamento socrático, por sua vez, estabelece o
reconhecimento da própria ignorância como requisito para o sujeito
caminhar em direção à sabedoria. Ambas as atitudes, consideradas de uma
maneira bem ampla, são admissões da necessidade de percepção das
limitações do homem. Kierkegaard ganhou notoriedade por refletir sobre
diferenças fundamentais entre o pensamento filosófico grego e a religião
cristã.
É igualmente notório, porém, que Kierkegaard ousou pensar sobre os
limites da razão e sobre a incapacidade humana de compreender
racionalmente a realidade em sua totalidade, sendo sua ideia de paradoxo
absoluto a melhor expressão dessa limitação da racionalidade. Sob essa
perspectiva, o contraste entre a atitude kierkegaardiana de reconhecimento
dos limites do racional e as pretensões sistemáticas da filosofia moderna
revela um importante aspecto da identidade entre Kierkegaard e Sócrates ou
os Pais da Igreja.

O paradoxo absoluto
É natural que se diga de Kierkegaard que ele foi uma espécie de “Sócrates de
Copenhague”. As semelhanças mais óbvias e superficiais entre eles situam-
se no âmbito das polêmicas que ambos travaram com seus contemporâneos,
respectivamente os sofistas e os hegelianos. Para além disso, a postura
socrática de admissão da própria ignorância, tornada célebre na “Apologia
de Sócrates” escrita por Platão, pode ser comparada, em alguns aspectos, à
elaboração do conceito kierkegaardiano de paradoxo absoluto, apresentado
nas Migalhas filosóficas. Essa ideia envolve a constatação de que a razão é
um instrumento necessário, mas não suficiente, para o conhecimento da
verdade. Esta envolve a percepção de que a eternidade atravessa a História e
age nela, apesar da diferença infinita que há entre tempo e eternidade, em
uma argumentação que se afasta da forma como as ideias hegelianas
relacionam o Absoluto e a História.
Kierkegaard chega ao seu paradoxo absoluto por meio de uma
comparação entre os pensamentos socrático e cristão, percebendo que ambos
são diferentes em alguns pontos basilares. No argumento desenvolvido por
Kierkegaard, o pensamento socrático tem como corolário a impossibilidade
de um homem ensinar a verdade a outro e, portanto, a impossibilidade de um
homem ser o mestre de outro. Se Sócrates afirma que a verdade já existe de
forma latente em cada ser humano, e se o papel do mestre é tão somente o de
auxiliar o sujeito a trazer a verdade à tona, não há uma verdadeira relação de
ensino e aprendizagem. Se, porém, ao contrário do que afirma Sócrates, a
verdade não se encontra no interior do sujeito, e se este sujeito não é capaz
de buscá-la por seus próprios meios, ela deve ser a ele trazida por um mestre.
Esse mestre, para dar a outrem a verdade, não pode ser apenas um homem,
pois se o fosse ele não poderia possuir a verdade por seus próprios meios.
Esse mestre deve ele próprio ser a verdade, que estabelece com seu aprendiz
uma relação entre um homem e um deus. Contudo, paradoxalmente, esse
mestre deve também ser um homem, pois se ele se revelasse ao discípulo na
forma de um deus, a verdade seria uma imposição ao homem, e não poderia
ser aprendida em liberdade.
Vê-se, pois, que o conceito de verdade, em Kierkegaard, vai além da
ideia de simples respeito ao princípio da não contradição ou das verdades
apreensíveis pelo intelecto tais como compreendidas pela tradição filosófica
grega, para abranger todos os aspectos da existência do indivíduo. Essa
compreensão, porém, pressupõe que a razão, por ser limitada, deve também
se fazer acompanhar da fé para que o indivíduo possua a verdade. Se
considerada somente sob a ótica da razão, e sob o ponto de vista puramente
socrático, essa compreensão de verdade, elemento fundamental do
pensamento cristão, é um paradoxo absoluto. Contudo, se por um lado a
distinção nítida entre as perspectivas de Sócrates e a do cristianismo fica
evidenciada na construção do argumento que leva ao paradoxo
kierkegaardiano, por outro lado esse paradoxo é a própria admissão da
limitação do conhecimento puramente intelectual, uma admissão da
impossibilidade de apreensão racional completa do real, que, vista tão
somente nos limites da razão, ecoa o “não sei” socrático.
Séculos depois de Sócrates, outro pensador antigo, já no limiar do
medievo, também pronunciou seu “não sei”. Aurélio Agostinho, no livro XI
de suas Confissões, dá esta simples resposta à pergunta: o que fazia Deus
antes da criação do mundo? Na conhecida argumentação deste Pai da Igreja,
o tempo e a eternidade são absolutamente distintos. Deus não poderia estar
no tempo ao ter criado o mundo, pois o próprio tempo é uma criatura, e se
distingue da eternidade que, por sua vez, é um dos aspectos da divindade. Se
os homens, porém, presos à sua existência temporal, não podem com o
simples intelecto pensar sob a perspectiva de Deus, não há como
compreender racionalmente a distinção entre o eterno e o temporal. Aqui o
pensamento de Kierkegaard é ainda mais afinado com um pensador antigo.
Além da admissão dos limites da intelecção racional para compreensão do
eterno, ele desenvolve argumentos que reforçam a distinção agostiniana
entre tempo e eternidade em um texto intitulado “Interlúdio”, em Migalhas
filosóficas. Esse texto estabelece a impossibilidade de relacionar a ideia de
necessidade e, consequentemente, de absoluto, com as ideias de devir e,
consequentemente, de História e de tempo. Reforçando a distinção
agostiniana entre tempo e eternidade, Kierkegaard se distancia de seus
contemporâneos modernos para os quais as noções de Absoluto e História
são racionalmente compreensíveis em suas relações.
Assim, a rejeição da possibilidade de compreensão racional da
realidade em seu todo é um dos traços que distinguem Kierkegaard de seus
contemporâneos modernos e que o aproximam de pensadores emblemáticos
da Antiguidade, como Sócrates ou Agostinho. Utilizando-se o conceito
kierkegaardiano de contemporaneidade de uma forma analógica, pode-se
dizer que, na adoção de perspectivas semelhantes sobre a possibilidade do
conhecimento, sobre seus limites e sobre a busca da verdade, o filósofo de
Copenhague era contemporâneo de alguns antigos, mais do que de muitos
modernos. Mas não só isso. Se Kierkegaard, em alguns aspectos, estava à
frente de seus contemporâneos modernos, e se ele tem seu nome associado a
correntes filosóficas comumente associadas à pós-modernidade, como o
existencialismo, ele demonstra que estar adiante do próprio tempo pode
muitas vezes demandar um olhar ao passado e uma apreciação de ideias que
são por muitos, ou até mesmo pela maioria, julgadas obscuras ou superadas.

Religião, finitude e corpo


Jonas Roos

A religião é muitas vezes criticada por alguns filósofos porque negaria


elementos como a temporalidade, a finitude e o corpo. Nesse sentido, são
claras as consequências negativas que a religião traz para a vida como um
todo. Autores como Nietzsche, Feuerbach, Marx e outros nos fornecem ricas
ferramentas conceituais para tais análises. Há que se perguntar, contudo, se e
em que medida a religião ou – no caso mais específico com o qual se ocupou
Kierkegaard – o cristianismo concebe a realidade necessariamente desse
modo. Kierkegaard tem uma leitura bastante peculiar dessas questões. Ele
percebe que a existência humana está ligada a toda finitude, ao histórico, ao
corpo, e que tornar-se um indivíduo é um processo que abarca
afirmativamente todos esses âmbitos. E ele não chega a essa conclusão
apesar de sua tradição cristã, mas, justamente, a partir dela.
Por meio de seu pseudônimo Johannes de Silentio, em Temor e tremor,
Kierkegaard cunha uma concepção bem própria da fé, não a entendendo
como negação da realidade temporal ou da finitude, mas como uma
articulação de sentido para essa realidade. O pano de fundo para o
desenvolvimento dessa concepção é o difícil texto bíblico do capítulo do
livro do Gênesis, onde Abraão recebe de Deus a ordem de sacrificar o
próprio filho. A interpretação de Kierkegaard para esse texto é bastante
original, assim como a noção de fé que extrai de sua análise. Ponto-chave
para a interpretação é que Abraão, quando avista o monte do sacrifício
depois de três dias de viagem pede a seus servos que esperem, e, então,
afirma: “eu e o rapaz iremos até lá e, havendo adorado, voltaremos para
junto de vós”. Esse plural, “voltaremos”, é decisivo na narrativa, pois indica
que Abraão tinha esperança de voltar com Isaac. Trata-se aqui da esperança
que se articula não na certeza objetiva, mas na certeza de uma aposta
existencial.

Despojar-se para reaver-se


A fé, nesse entendimento, envolve um duplo movimento: o despojar-se de
tudo – no caso de Abraão, abrir mão do próprio filho ao subir a montanha
para sacrificá-lo – e, ao mesmo tempo, manter a esperança de reaver o que
foi renunciado. O primeiro movimento, o despojar-se, é caracterizado por
Johannes de Silentio como resignação infinita. Trata-se da entrega da
finitude e da temporalidade. O ponto central da concepção kierkegaardiana
de fé não está no despojar-se, na resignação, mas, tomando o caso de
Abraão, na crença de que obteria Isaac de volta depois de tê-lo abandonado.
Abraão se coloca em uma relação absoluta com o Absoluto e, neste sentido,
abandona Isaac, abandona o seu dever moral de pai, para cumprir a ordem
divina, pois sobe a montanha para o sacrifício. No entanto, esse abandono da
finitude, da realidade concreta e temporal, não é fé. Existe ainda um retorno
paradoxal à temporalidade e à finitude. A noção de fé é cunhada na
conjunção desses dois movimentos: “Com efeito, o movimento da fé deve
constantemente efetuar-se em virtude do absurdo, mas – e aqui a questão é
essencial – de maneira a não perder o mundo finito, antes, pelo contrário, a
permitir ganhá-lo constantemente” (Temor e tremor, in: Coleção Os
Pensadores, Abril Cultural, 1979, p. 130). Kierkegaard aplica ao conceito de
fé uma percepção psicológica que está presente também em outros textos
seus: aquele que aprendeu a abrir mão da realidade e, posteriormente, a ela
retornou, tem muito mais deleite com a realidade do que aquele que nunca
aprendeu a abandoná-la. Em um de seus Discursos edificantes, afirma que,
porque aquele que possui o mundo inteiro como se não o possuísse tem o
mundo todo, de outra forma é possuído pelo mundo.
Essa concepção da fé que assume radicalmente seu lugar na finitude é
como que personificado naquele que em Temor e tremor é chamado de
cavaleiro da fé. Sua descrição é esclarecedora: “Regozija-se por tudo e por
tudo se interessa. De cada vez que intervém em alguma coisa, fá-lo com a
perseverança característica do homem terrestre cujo espírito se ocupa de
minúcias e seus cuidados. Ele está realmente naquilo que faz. [...]. Depois do
almoço vai até a floresta. Entretém-se com o que vê: o bulício da multidão,
os novos autocarros [...] Pela tarde volta a casa. O passo não trai maior
fadiga do que o de um carteiro. [...] Já em casa, apoia-se ao peitoril da janela
aberta, olha a praça para onde dá a sala e segue tudo que se passa. Vê
escapulir-se um rato para dentro da sarjeta da rua, observa as crianças que
brincam; tudo o interessa. [...] À noite fuma cachimbo [...] conhece a
felicidade do infinito; experimentou a dor da total renúncia àquilo que mais
ama no mundo – e, no entanto, saboreia o finito com tão pleno prazer como
se nada tivesse conhecido de melhor, [...]. Resignou-se infinitamente a tudo
para tudo recuperar pelo absurdo” (Temor e tremor, pp. 130-132).
Segundo essa concepção, fé não é mera negação da realidade, mas uma
ressignificação dela. Vale dizer que muitas críticas à religião entendem por
fé aquilo que aqui é chamado de resignação – que é apenas o primeiro
momento da dialética. Nietzsche, por exemplo, em O anticristo, num
contexto onde fala da relação entre fé e instintos, afirma: “No mundo cristão
das ideias nada houve que apenas tocasse a realidade: e no ódio instintivo a
toda realidade reconhecemos o único elemento impulsor na raiz do cristão”
(O anticristo, Companhia das Letras, 2007, §39, p. 46). Porém, segundo um
entendimento da fé como o de Kierkegaard, essa crítica parece
improcedente.

Polaridade e desespero
Se, conforme o pensador dinamarquês, a temporalidade e a finitude não são
relegadas pela religião a um segundo plano, o mesmo se pode dizer do
corpo. Em linhas gerais, Kierkegaard compreende o ser humano como uma
relação de elementos polares: infinito e finito, temporal e eterno,
possibilidade e necessidade, corpóreo e anímico. O problema é que na
existência nós relacionamos mal essas polaridades, ora aferrando-nos a um
dos lados, ora a outro. Esse fixar-se a qualquer um dos lados em detrimento
do outro é o que Kierkegaard entende como desespero. O contrário de
tornar-se si mesmo é justamente estar em desespero. Por diferentes razões,
pode-se fugir de tornar-se si mesmo tanto em direção à infinitude e
possibilidade, quanto em direção aos aspectos finitos e determinados. Ou
seja, toda negação do corpóreo em nome do puramente anímico pode ser
caracterizada como desespero, assim como o aferrar-se no corpóreo negando
o anímico constituiria o tipo oposto de desespero.
Mas não é verdade que as religiões e muitas vertentes do cristianismo
costumam negar justamente o corpo? O termo “carne”, por exemplo, não é
muitas vezes compreendido por um viés negativo na tradição cristã?
Kierkegaard entendia a si mesmo como alguém que exumava as noções do
cristianismo, limpando suas arestas, tornando-as mais claras. Em As obras
do amor, o autor esclarece que o termo “carne”, no cristianismo, diz respeito
fundamentalmente ao egoístico, uma atitude humana que pode manifestar-se
sob diferentes formas, seja no próprio corpo, no intelecto ou nos
sentimentos.
Negar o corpo, o amor apaixonado ou o sensual em nome da religião é
justamente uma atitude contrária ao modo como Kierkegaard entende a
experiência religiosa. Negar tais aspectos é desespero, e desespero é uma
doença do espírito. Mas estar em desespero é justamente o oposto de ser
livre. O ser humano só é livre quando efetiva corretamente a síntese que o
constitui. Toda forma de desespero é fuga de realizar o que há de mais caro
na vida: tornar-se si mesmo. Tudo aqui gira em torno de entrar num processo
de conjugar elementos que estão separados. Essa reunião de elementos,
contudo, não significa uma fusão que elimina distinções, e só acontece em
um duplo movimento, similar àquele analisado em Temor e tremor: “Mas
tornar-se si mesmo é tornar-se concreto. Mas tornar-se concreto não é nem
tornar-se finito nem tornar-se infinito, pois, afinal, o que deve tornar-se
concreto é uma síntese. Por conseguinte, o desenvolvimento deve consistir
em infinitamente afastar-se de si mesmo na infinitização do si mesmo e
infinitamente retornar a si mesmo na finitização” (A doença até a morte ou
Tratado do desespero, versão em inglês: The Sickness unto Death, Princeton
University Press, 1980, p. 30).
O paradigma fundamental para essa valorização da finitude e do corpo
é o entendimento de que a verdade não é um conceito, mas uma pessoa, a
encarnação do amor. A verdade e o amor devem fazer-se corpo. A cura para
o desespero ou, se quisermos, o contrário do desespero, será justamente a fé,
mas a fé entendida a partir do exposto em Temor e tremor e como elemento
de significação da finitude, do temporal e do corpóreo, assim como da
infinitude, do eterno e do anímico. É apenas nesse sentido que a fé pode ser
entendida como cura para o desespero. E é apenas na correta relação que o
ser humano não se escraviza em um dos polos. Tornar-se espírito, então, é
justamente realizar a síntese, é encontrar completude, tornar-se concreto, não
aferrar-se ao corpóreo e ao finito, mas também não fugir deles. Esse é o
desafio da existência, e realizá-lo é tornar-se livre, tornar-se si mesmo.

perfil Alice Ruiz


A sabedoria decantada de Alice
Helder Ferreira

“Vocês foram pontuais, mas eu me atrasei”, disse Alice Ruiz, num tom que
beirava o grave, ao abrir o portão de sua casa, localizada em uma rua
fechada do bairro de Pinheiros, na cidade de São Paulo. Eram 14h30, mesmo
horário em que a entrevista havia sido previamente marcada, mas não era a
este tipo de atraso que a poeta fazia menção. “É que eu acabei de chegar, não
pude me arrumar, pentear o cabelo, me maquiar pra foto”, desculpou-se, bem
humorada. Ela, então, pediu uns minutos para se ‘ajeitar’, enquanto a água
para o café fervia no fogão. Voltou pouco tempo depois, com os cabelos
mais alinhados e uma fina camada de batom.
Alice mora numa casa térrea, ampla e bem iluminada. Um pequeno
jardim na frente e outro nos fundos, onde uma edícula também serve de
biblioteca e escritório. A sala, conjugada com a cozinha, revela duas de suas
paixões: o haicai – forma poética comum na cultura nipônica, que preza pela
objetividade e concisão em poemas formados por 17 sílabas –, representado
em ideogramas japoneses pintados, com tinta vermelha, em uma tela fixada
na parede; e a música, em uma grande prateleira, repleta de CDs, que toma
boa parte da outra parede. Há ainda um piano. “Mas eu não toco, não sei. É
da minha filha Estrela, que é musicista – ficou aqui porque não coube no
apartamento dela, em Curitiba. Quem toca são os amigos, em reuniões e
saraus aqui em casa”.
Aos 67 anos, Alice exibe uma profícua carreira: publicou mais de 20
livros, entre poesias, haicais e prosa; escreveu letras de música para nomes
como Arnaldo Antunes, Zélia Duncan, Ná Ozzetti e Alzira Espíndola – com
quem lançou o disco Paralelas, em 2005; traduziu haicais do japonês para o
português; e escreveu ensaios sobre a condição feminina. Devido à
amplitude e diversidade de seu trabalho, ela está entre os autores convidados
a representar a literatura contemporânea brasileira na Feira de Livros de
Frankfurt, a mais importante do mercado editorial mundial, que será
realizada entre 9 e 13 de outubro deste ano. “Ela é uma escritora com
reconhecida importância no cenário da literatura brasileira, com uma poesia
que desenvolveu uma linguagem de extrema concisão, apropriando-se do
haicai e conferindo a esse gênero japonês (que ajudou a difundir no Brasil,
ao lado de Paulo Leminski) um sentido irônico, crítico, não raro mordaz”,
escreveu, por e-mail, Manuel da Costa Pinto, crítico literário e um dos
curadores da seleção de autores convidados. Ele cita o livro de haicais
Desorientais (Iluminuras), publicado em 1996, como o que melhor sintetiza
a obra da autora. Entre seus últimos lançamentos, merece destaque Dois em
um (Iluminuras), vencedor do Prêmio Jabuti de Poesia de 2009, que reúne as
obras Vice-versos (1988), Pelos pelos (1984), Navalhanaliga (1980),
Rimagens (1985) e Paixão xama paixão (1983).
Será a segunda vez da poeta no evento. Na primeira, em 1994, ela
visitara Frankfurt a convite do governo alemão – foi sua primeira viagem
internacional. “Da última vez que fui, a programação era mais voltada para
conhecer a Alemanha em si. Desta vez, como o convite partiu do governo
brasileiro, eu espero ter mais tempo para conhecer escritores, tradutores,
enfim, me envolver mais com o meio literário de lá”, conta ela, que se diz
metade alemã, nacionalidade do pai, e metade espanhola, por parte de sua
mãe, que nasceu em um navio vindo da Espanha para o Brasil. “Sou uma
cigana visigoda gueixa”, brinca.

Alma gêmea
O “gueixa” é por conta de sua afinidade com a cultura oriental, que
transpareceu desde muito cedo. “Eu acho que fui apropriada pelo Oriente”,
declara. É que, ainda pré-adolescente, a poeta curitibana desenvolveu um
hábito: passar o tempo, quando angustiada por algum motivo, em um terreno
baldio, entrecortado por um córrego, que ficava perto de sua casa. “De
alguma forma, eu me encontrava na natureza, naquele lugar com mato, água,
terra, pedras. Eu me recentrava, me energizava”. Enquanto perdia-se em
pensamentos, sentada na terra, ela também fazia pequenas anotações sobre o
que via e sentia naquele local. Foi assim que surgiram os primeiros haicais –
ainda que, naquela época, ela desconhecesse a arte milenar japonesa de
versar sobre a natureza.
Seria preciso que uma pessoa entrasse em sua vida para que ela se
descobrisse haijin (ou haicaísta): Paulo Leminski – poeta, romancista,
tradutor e, segundo a própria, sua alma gêmea. “Sabe quando a gente se
apaixona e quer contar tudo pra pessoa? Então, eu acabei mostrando essas
anotações pra ele, e ele disse: mas isso é haicai. E eu não sabia o que era
haicai, não conhecia”, relembra. “Ele me emprestou vários livros sobre o
tema e, por causa disso, eu entrei em contato com o zen. Foi uma
identificação total! Um monte de coisas que eu considerava esquisitices em
mim tinham tudo a ver com aquilo”.
Ainda adolescente, Alice também começou a escrever poemas e a se
arriscar a traduzir as letras de músicas do inglês. “Foi bem na época do rock,
então, o que eu não sabia traduzir, inventava dentro da métrica, da emoção
melódica. Sem saber, estava treinando a letrista”. Ela afirma que o “grande
acontecimento” em sua trajetória como letrista foi ter conhecido o músico e
compositor Itamar Assumpção. “Para mim, ele era a maior novidade na
música desde a Tropicália. Ele costurou alguns poemas meus e fez nossa
primeira música: ‘Navalha na Liga’”.
Foi Assumpção que a apresentou para Alzira Espíndola, nos anos 1980,
com quem ela idealizou e apresenta, desde 2003, o show Paralelas, misto de
composições das duas intercaladas por poesias declamadas por Alice, que
acabou resultando em um disco homônimo lançado pelo selo da cantora
Zélia Duncan, que bancou o projeto, o Duncan Discos. “O Itamar foi o cara
que impulsionou tanto a minha carreira quanto a da Alice. Existia um elo ali;
foi uma circunstância dos astros e dos fatos. Por coincidência, estávamos
fazendo uma participação no show da Rogéria Holtz, em Curitiba, quando o
Itamar morreu em 2003. Aguentamos o tranco juntas, nos focando no projeto
do disco”, conta Alzira.
Por sua vez, José Miguel Wisnik, outro parceiro musical da poeta, conta
que seu primeiro encontro com Alice teve traços surrealistas. “Em 1987, fui
fazer uma palestra em Curitiba e a Alice estava na plateia com o Leminski.
Acontece que tinha uma goteira em cima dela, então ela resolveu o impasse
abrindo um guarda-chuva no meio da palestra”, contou em meio a risos.
Utilizando o episódio como pretexto, ele abordou Alice e Leminski. No dia
seguinte, foi convidado para visitar a residência do casal. Nasceu, então,
uma amizade. “A Alice tem uma sabedoria muito decantada, que é o modo
como ela pratica o haicai. É uma poesia que diz muito não dizendo. É aí que
estão presentes o sentimento, a percepção e a inteligência, isto é, corpo,
coração e mente. Acho que isso define a Alice: ela trabalha com esses três
sentimentos unidos”.

Relação legal
Assim como na poesia, Alice teve de ser autodidata em sua educação a partir
do início do 2º grau, quando, aos 15 anos, teve que abandonar o colégio para
trabalhar e ajudar a sustentar a mãe de idade avançada. “Foi muito barra para
mim parar de estudar, porque eu amo aprender. Depois, me dei conta de que
eu podia aprender por conta própria e eu superei esta dor. Eu lia muito na
época, ia muito à biblioteca. Com 18 anos, eu descobri Jean-Paul Sartre e
Simone Beauvoir, e esse meu universo acabou ficando muito rico. Comecei
a me orgulhar desta situação que, no começo, me entristecia”, relata ela, que
acredita que o rompimento abrupto com o ambiente escolar acabou
acelerando seu amadurecimento. “Quando eu conheci o Paulo, já era
independente o tempo inteiro. Eu cheguei nessa relação como uma pessoa
inteira e não como alguém dependente. E eu acho que isso foi importante
para mim como indivíduo e para nossa relação”.
E, por prezar tanto sua individualidade e independência, ela sempre
teve ojeriza à instituição matrimonial, motivo pelo qual nunca “oficializou”
seu casamento com Leminski. “Eu acho tão engraçada essa história de luta
pelo casamento gay, por exemplo. Acho que deveriam fazer o contrário:
deveriam lutar para acabar com o casamento geral. Devia ser assim: viveu
tantos anos juntos, construíram patrimônio juntos, é óbvio que têm direitos.
Esta instituição serve para aprisionar uma pessoa na outra, prestar contas à
sociedade. Relação ‘legal’ não é legal!”, esbraveja.
Independência e individualidade são dois valores que Alice sempre
priorizou na educação dos filhos Miguel – que faleceu aos 10 anos, vítima de
linfoma –, Áurea, 42, e Estrela, 32. “Eu sempre ensinei que homens e
mulheres precisavam aprender a ganhar e fritar o ovo, isto é, esta era uma
metáfora que eu usava para mostrar que não se pode ser dependente de
alguém, seja no dinheiro ou nas tarefas domésticas”, conta. Ela também
tinha uma tradição: sair de casa quando a prole completasse 21 anos. Fez isto
com Áurea, mudando-se com Estrela para Curitiba; 10 anos depois, fez o
mesmo com Estrela, voltando para São Paulo. “Mas não era uma coisa,
assim, repentina... Elas haviam sido preparadas para isto”, explica.
Para Estrela, o grande diferencial de ser filha de dois poetas foi o peso
que a autobusca criativa teve em sua formação. “Se precisasse escolher entre
ler um livro e arrumar o quarto, o primeiro era sempre prioritário”. Ela
acredita que o olhar da mãe foi importante para aconselhá-la em sua escolha
de carreira: a música. “Eu faltava no cursinho pré-vestibular para ficar
estudando música e, claro, não fui aprovada no vestibular, já não me lembro
para qual curso. A Alice me disse: ‘presta atenção no motivo que te levava a
faltar no cursinho e corre atrás’”, contou. “A verdade é que se a Alice não
fosse minha mãe, nós com certeza seríamos grandes amigas. Ela era tão
amiga, tão liberal, que minha adolescência foi bem aquela música do Ultrage
a Rigor: ‘como é que eu vou crescer sem ter com quem me revoltar?’”,
brinca ela que, aos 12 anos, foi acompanhada pela mãe no show da banda
punk Ramones.

Zona de atrito
Alice e Leminski ficaram juntos durante 20 anos, separando-se dois anos
antes da morte do poeta, em 1989, provocada por uma cirrose hepática.
Além dos três filhos, o duradouro relacionamento resultou em muitas trocas
de influências e inspirações artísticas. “O fato de nós termos em comum esse
amor pela palavra era mutuamente estimulante. Quando ele morreu, eu
passei um período de dificuldade para criar porque estava muito acostumada
a ter ele para mostrar minhas criações, algo que a gente fazia mesmo quando
estava separado. E aí eu ia criar e me lembrava que ele não estava ali, e isso
me bloqueava”, disse, em parte melancólica. “Mas depois me recuperei
bem”.
Segundo a poeta, as afinidades eram inúmeras, já que o gosto estético
era muito parecido. As divergências ficavam, em grande parte, por conta da
religião: Leminski era católico; já ela não se dava com qualquer tipo de
instituição religiosa. “Eu nunca gostei da instituição religiosa, nenhuma. E
ele não tinha nada contra. Aí era uma zona de atrito. Mas eu acho bom ter
uma zona de atrito entre um casal; como havia respeito, as zonas de atrito só
faziam a gente crescer e ter discussões super legais sobre esses assuntos”,
comenta.
Áurea, filha mais velha do casal, já era adolescente na época em que os
pais se separaram. “A separação deles não se deu de uma forma
convencional. O complicador de tudo foi o alcoolismo do meu pai. Não dava
pra conviver”, contou, por telefone, de sua casa em Curitiba. Segundo ela,
Leminski conseguiu se manter sóbrio por dois anos, após ter descoberto a
cirrose. “Nesse período, ele ficou extremamente produtivo, brilhante. Aí,
voltou a beber. A causa do rompimento foi essa, não foi falta de amor. Eles
mantiveram essa cumplicidade até o final”.
Ela também acompanhou a doença do irmão, que era apenas dois anos
mais velho. “Ele ficou doente muito tempo, eram idas e vindas de hospitais.
Foram anos muito duros para minha mãe, ela tinha que se dedicar muito a
isso também; não sobrava tempo para mais nada”, relata. Por conta dessas e
outras experiências, Áurea define a mãe como uma pessoa extremamente
decidida e forte. “Ela, há muitos anos, já vem no processo de trabalhar a
aceitação, isso a deixa cada dia mais leve. Questão da cultura zen”.
Alice comemora, atualmente, o sucesso de Toda poesia (Companhia das
Letras, 2013) – livro que compila toda a obra poética de Leminski e
desbancou o romance erótico 50 tons de cinza da lista de mais vendidos de
uma grande rede de livrarias, depois de meses de liderança – e continua se
dedicando a garantir a continuidade da obra do ex-marido. “Ainda tem a
obra em prosa, que ficou com a Iluminuras, e as biografias, que serão
reeditadas pela Companhia das Letras”, revela. As filhas também participam
do projeto: Estrela cuida da obra musical do pai, que inclui discos e até uma
obra musicada de Shakespeare; Áurea se dedica a itinerar com a exposição
dedicada ao pai, em cartaz em Curitiba desde outubro do ano passado.
Hoje, Alice gosta de viver sozinha, isto é, na “companhia de sabiás,
bem-te-vis, lagartixas e eventuais sanhaços”. E, claro, recebendo seus
inúmeros amigos. “Algumas pessoas passam a vida inteira sem um amor. Eu
passei 20 anos com o meu; 22 sem ele. Mas, de alguma forma, o Paulo
continua me dando trabalho”, contemporiza. “Continuo fazendo algo por ele:
é uma forma de amor por ele e pela arte”.
E, assim, ela mantém sua “alma gêmea” viva e, também, as palavras de
Leminski: “ali/ bem ali/ dentro da alice/ só alice/ com alice/ se parece”.

livros
Os fantasmas de Cadão Volpato
Heitor Ferraz Mello

Conta o escritor Cadão Volpato que escreveu seu primeiro romance em dois
meses e meio. Todos os dias, quando os filhos já estavam na escola, punha-
se diante do computador para trabalhar e tecer sua história. O ritmo se
estabeleceu assim: tinha de escrever 4 páginas por dia, ou seja, 8 mil
caracteres. Chegou a passar uma semana em Paraty, durante a Flip (Festa
Literária Internacional de Paraty), onde iria mediar uma mesa, mas não
deixou de lado sua tarefa: tomava o café, sentava-se numa área qualquer do
hotel, com o computador aberto, e, espantando vez ou outra algum mosquito
faminto, continuava a travessia de seus dois personagens: um argentino
taxista, conhecido no ponto por Tortoni, e um brasileiro, chamado Rivoli,
que mais parecia um sueco, um homem de um metro e noventa e três, loiro,
de olhos azuis, curvado como o Monsieur Hulot do cineasta francês Jacques
Tati, uma das paixões de Volpato.
A história dessas duas personagens que acabam se encontrando num
dos tantos acasos da vida (mas nem tão acaso assim quando se trata de
ficção) é o eixo de Pessoas que passam pelos sonhos, o primeiro romance de
Volpato – autor de quatro livros de contos, e que na juventude foi letrista e
vocalista da banda Fellini. Mas por que um argentino e um brasileiro? A
resposta parece estar no período abordado pela narrativa: 1969, na primeira
parte do livro, quando os dois se conhecem, e 1979, na segunda parte,
quando Tortoni manda seu filho Francesco e uma colega dele para a casa de
Rivoli, no Brasil, escapando da repressão argentina. Ou seja, o pano de
fundo é a violência das ditaduras militares nos dois países vizinhos na
América do Sul, que, entre outras barbaridades, fizeram dos jovens suas
principais vítimas – muitos foram presos, torturados e mortos nos porões.
Esses dois personagens, homens metidos em suas próprias vidas e sonhos,
passam ao largo desse turbilhão de violência que, de alguma forma, acaba
por atingi-los diretamente.
Mas, conta Volpato, tudo começou com a cena, meio cômica, de um
Renault 66 cor de laranja quebrado numa autoestrada argentina, numa
homenagem ao lirismo surrealista de Tati. Este era o ponto de partida:
Rivoli, um arquiteto distraído, que sem um motivo aparente já havia passado
por La Paz e Cusco – sua figura esguia e alta flutuando acima da população
local, “a cabeça sempre em outro lugar” – e agora seguia, de táxi, para a
Patagônia, para um hotel que ficava “no fim do mundo”, onde, no passado,
Walt Disney havia encontrado o cenário ideal para o Bambi (um irônico e
esvaziado destino das aventuras humanas?). Tortoni é o taxista, filho de
açougueiro, de família pobre, e que teve de arranjar um trabalho depois da
chegada de seu primeiro rebento. O que lhe apareceu foi o táxi, e ele nem
sabia dirigir direito. Acabou escolhendo a porta do centenário e boêmio Café
Tortoni para garantir as suas corridas e ganhou o apelido com o qual é
nomeado no livro.

Cosmonauta russo
Esse encontro inusitado dá a partida para os eventos que serão narrados por
Volpato. Numa ficção, os elementos pessoais e os inventados se misturam,
conta ele em entrevista à CULT no escritório coletivo que divide com
designers e artistas plásticos na rua General Jardim, em São Paulo, onde
trabalha. Quando era estudante de jornalismo na ECA-USP, no final dos
anos 1970, ligado ao movimento estudantil e à trotskista Libelu (Liberdade e
Luta), ele chegou a entrar em contato com um grupo de teatro argentino
cujos integrantes estavam fugindo da repressão de seu país. “O bicho estava
pegando. Ser cabeludo na Argentina, em 1979, era um passaporte para ser
pego pela polícia, sofrer algum tipo de humilhação”, lembra. No Brasil, as
coisas começavam a amenizar. Mas as duas ditaduras perpassam toda a sua
narrativa, e mais do que isso, a vida de seus personagens líricos.
Mas se o começo do trabalho de criação de Volpato foi a descrição da
cena do Renault, não é assim que seu livro, agora impresso, de fato começa.
A primeira frase é: “Na terceira volta ao redor da Terra, o jovem cosmonauta
Valentin Vasilyevich Bondarenko perdeu-se em pensamentos”. Todo o
primeiro capítulo passou a ser uma espécie de pensamento flutuante, onírico,
desse cosmonauta de 24 anos – baseada numa história real. Bondarenko, que
faria parte da tripulação do Vostok 1, ao lado de Iuri Gagarin, morreu
durante os testes numa câmara fechada, à prova de som. Pouco antes de sair
da câmara, ele resolveu tirar os eletrodos que estavam presos ao seu corpo.
Limpou a pele com um algodão umedecido em álcool e o lançou fora, ao
lado de um aquecedor elétrico. Logo tudo virou chamas. E Bondarenko só
teve tempo de dizer que a culpa foi dele, de mais ninguém. Os russos
esconderam essa história até os anos 1980.
Volpato abre seu romance com os devaneios desse cosmonauta. Ora,
por quê? Qual a ligação profunda entre essa cena e os episódios que serão
narrados adiante? “O cara é um cosmonauta, e se distrai? A juventude, a
abstração, os afetos, a volta ao redor de um planeta que ele está vendo de
cima: tudo isso está no livro. O ponto de partida é: será que o que a gente
está vivendo não é um sonho?”, comenta Volpato, sem querer fixar a relação
entre esse episódio e o resto da narrativa. Mas, arriscando uma leitura, pode-
se imaginar que a cena aponta para essa relação entre a realidade e o sonho,
essa flutuação que, de certa maneira, marca toda a sua narrativa e a nossa
vida. Mas, além disso, pode-se especular que Bondarenko está na ponta de
um dos momentos centrais da Guerra Fria, a corrida espacial. Nessa luta, os
homens líricos e distraídos acabaram por se tornar as vítimas.
“Epopeia fantasma”
Essa flutuação, que chega ao ponto de seu personagem central, Rivoli, ir aos
poucos perdendo a corporeidade, tornando-se uma espécie de fantasma,
principalmente a partir da segunda parte do livro, é uma das características
das histórias de Volpato, autor dos livros de contos Ronda noturna (1995),
Dezembro de um verão maravilhoso (1999), Questionário (2005) e Relógio
sem sol (2009). Nestes contos, onde o lirismo de Volpato predomina, há
também uma certa flutuação e os personagens não chegam a se formar
inteiramente, mesmo quando há descrições firmes de suas características
físicas. Para a crítica Vilma Arêas, que fez a apresentação do último título,
“O esforço de registrar motivos sem alarde, destrançando enredos, não é
fácil e impõe ao texto uma espécie de flutuação, uma variação quase
imperceptível de batimento e ritmo, fazendo-o planar na corrente dos
acontecimentos”.
Essa observação casa-se com a de Rodrigo Naves, na orelha que
escreveu para este primeiro romance. Naves, que foi colega de Volpato
quando trabalharam como revisores na revista Veja, nos anos 1980, anota,
com precisão, que os personagens de Volpato “sempre foram ‘pessoas que
passaram pelos sonhos’”. E explica: “A complexidade da vida nos grandes
centros urbanos não conduziu à formação de personalidades plenas, ainda
que esse ideal nunca deixe de se insinuar no horizonte”. Para Naves, essa
nova narrativa, de maior fôlego e envergadura, é uma espécie de “epopeia
fantasma”. Com a precisão que marca também seus ensaios de crítica de
artes plásticas, ele escreve: “Enquanto a vida mantém seu curso, homens e
mulheres comuns desaparecem, ressurgem destroçados, se ocultam ou
trilham caminhos enigmáticos. A revolução, o choque frontal e ruidoso entre
as forças centrais da sociedade, faltou ao encontro marcado. Restaram gestos
e decisões suspensos, cujo sentido o autor tenta resgatar sem impor-lhes um
heroísmo postiço”.

Mundo dos zumbis


Volpato não nega que uma de suas influências para este livro foi a genial
novela de Juan Rulfo, Pedro Páramo. Se Rivoli, a certa altura da narrativa,
perde sua corporeidade, vaga por uma casa de pedra (ele que em vida vivia
numa “casa de vidro”, suprassumo do bom gosto arquitetônico), construída
no interior de São Paulo, na serra (“Para mim” – diz Volpato – “essa cidade
fica na Mantiqueira”, revelando sua referência); se ele não consegue falar
com Elisa, sua mulher, nem tocá-la quando ela está nua numa banheira e o
desejo paira no ar, nem acompanhar o entra e sai de jovens – de seus filhos e
de Francesco, filho de Tortoni, que está escondido lá com uma amiga, uma
bela botticelliana; e se Rivoli é esse fantasma, sem que o leitor saiba o que se
passou com ele, a inspiração para este momento do livro está no
fantasmagórico vilarejo de Comala, de Pedro Páramo.
As figuras que aparecem nessa parte do romance – um homem com um
chapéu de tropeiro apeado num burrico, um idiota da aldeia com pedras na
mão – parecem saídos de um romance regionalista. Neste ponto, lembram os
fantasmas de Rulfo. Mas se na obra do escritor mexicano os fantasmas
parecem reconstruir um passado de violência e mandonismo, sob a tirania de
um cruel Pedro Páramo, aqui o ambiente é outro. Não é uma terra de
ninguém, e os fantasmas parecem sair do próprio presente, refletindo-se em
todos os personagens, como se fantasmas fôssemos nós mesmos, passando
distraidamente ao largo dos acontecimentos.
Para Naves, esse traço fantasmático da narrativa refere-se aos gestos e
decisões suspensos no próprio curso da história. Sem dúvida, uma aguda
leitura, que faz sentido dentro desta narrativa flutuante. Mas o que dizer de
um mundo de zumbis? O fantasma é um morto que aparece, evanescente,
pelos lugares. Se não for forçar a nota, é a condição do homem
contemporâneo que vive abaixo da linha do equador, diante do curso atual e
obscuro da história, onde o passado recente dos países sul-americanos
continua a assombrar. Não podemos esquecer que esses personagens são
sujeitos e objetos da história: e assim é que são vistos em Pessoas que
passam pelos sonhos. Como máxima ironia desta narrativa, podemos
parodiar um título famoso do poeta Paulo Leminski, e registrar: distraídos,
flutuaremos.

livros
A máquina de pensar em Levrero
Paloma Vidal
Não estou certa de quem me indicou o primeiro livro que li de Mario
Levrero, mas lembro que comecei a leitura de La novela luminosa sem saber
muito bem quem era esse autor. Porque não saber quem era esse autor era
possível há alguns anos atrás. Como também era possível que alguém o
indicasse com o entusiasmo de uma descoberta. No meu caso, a indicação
provavelmente veio de uma amiga moisevillense-paulista com quem
compartilho muitas das leituras hispano-americanas. Depois viriam algumas
outras: “você já leu El discurso vacío? Uma amiga boliviana que conheci em
Berlim me emprestou”. Assim, sinuosa, era até pouco tempo a circulação da
obra desse escritor uruguaio, falecido em 2004 em Montevidéu, cidade onde
nasceu em 1940, que a editora Rocco começa a publicar agora entre nós, na
coleção Otra Língua, organizada por Joca Reiners Terrón, com o romance
Deixa comigo (1996).
O início da trajetória editorial de Levrero certamente contribuiu para
esse modo de circulação. Sobre seu primeiro livro de contos, La máquina de
pensar en Gladys, conta Levrero que “foi durante quase vinte e cinco anos
um livro quase inexistente. Publicou-se em dezembro de 1970, poucos dias
depois de La ciudad, romance que merecera uma menção do semanário
Marcha e que, talvez por isso, teve um pouco mais de sorte”. Mas essa sorte
adicional do primeiro romance não foi tão significativa assim: impulsionada
pelo amigo e editor Marcial Souto, a publicação numa coleção de ficção
científica da editora espanhola Plaza & Janés teve uma difusão escassa e
ainda contribuiu para colocar no romance de estreia o rótulo duvidoso de
“literatura fantástica”. Classificação quase sempre problemática, o
“fantástico” parece supor uma distinção clara entre o que é real e irreal, daí a
dificuldade de aplicá-la a uma literatura como a de Levrero, tão vinculada a
experiências fantasmáticas, em que o que está em questão é justamente a
distância entre o que vivemos e o que imaginamos viver.

Escritor-detetive
Mas se essa primeira etiqueta deixava a desejar, é preciso dizer que Levrero
nunca facilitou as coisas para os críticos, ao incursionar em gêneros muito
variados, o que até hoje pode desconcertar aqueles que gostariam de se
confortar com obras de coerência mais evidente. Para dar um exemplo agora
próximo a nós, na coleção Otra Língua será publicado, além de Deixa
comigo, que com ressalvas poderia ser chamado de romance policial, La
novela luminosa, romance-diário, ganhador da prestigiosa bolsa da Fundação
Guggenheim e publicado depois de sua morte, com quase 600 páginas,
sendo umas 450 de “diário da bolsa” e as demais do romance propriamente
dito.
Uma obra, então, que não se deixa apreender com facilidade. Mas não
nos enganemos: não se trata de um autor “hermético” no sentido que talvez
se possam entender alguns experimentalismos de linguagem. Levrero
escreve com frases quase sempre simples e breves, que exercem uma atração
imediata, como este começo de Deixa comigo: “– O romance é bom – disse
o Gordo, e fez uma pausa significativa. – Mas...” E assim somos arrastados
para o universo de Levrero. No caso deste romance, narrado em primeira
pessoa como todos os outros, a história de um escritor tentando exercer seu
ofício num mundo que em muitos sentidos, mas sobretudo o financeiro, não
lhe dão sossego. A cena de abertura é emblemática: o escritor entrega seu
manuscrito ao editor e recebe a resposta que anuncia um discurso culpado
para lá de conhecido: “Escutei, pois, com resignação, sobre as atuais
dificuldades da indústria editorial em nosso país, como se fosse uma grande
novidade, como se o Gordo as tivesse descoberto após profundas meditações
e pesquisas. Como se existisse uma indústria editorial em nosso país. Como
se nosso país fosse um país”. Dadas essas singulares condições, para ganhar
uns vinténs e a esperança de ser publicado, o escritor se envolve numa trama
de caça ao autor de um manuscrito anônimo – esse sim, claro, muito valioso
aos olhos do editor.
Romance policial? Bem, romance policial a la Levrero. Quer dizer,
com o ritmo e a precisão de quem é amante desse gênero, mas também, para
alguém que considera a literatura “a tentativa de comunicar uma experiência
espiritual” – como conta numa autoentrevista imaginária, muito
acertadamente publicada junto com Deixa comigo – a necessidade de ir
bastante além de seus limites positivistas, o que significa colocar seu
escritor-detetive diante – segundo a mesma entrevista – “das dimensões da
realidade que caem fora habitualmente da percepção dos sentidos e dos
estados habituais da consciência”.
Valem um comentário as estratégias criadas por Levrero para definir
sua própria escrita: além da entrevista ficcional, prefácios, prólogos, notas,
epílogos em que ele apresenta os desígnios do livro, o que indica uma
necessidade de se fazer entender, de se comunicar com o seu leitor,
oferecendo a ele alguns elementos para ler a obra; e também uma
necessidade de se entender fazendo aquilo, o que por sua vez implica uma
pergunta pelo sentido da obra: “Não estou certo de qual foi exatamente a
origem, o impulso inicial que me levou a tentar o romance luminoso”, diz no
prefácio de La novela luminosa. Se essas reflexões podem acabar se
tornando a própria obra, como acontece em parte com esse livro, o que
coloca Levrero na tradição de um Laurence Sterne ou de um Macedonio
Fernández, parece sempre haver, para além da ironia autorreflexiva, a
necessidade de uma busca existencial que parte de um estranhamento
consigo próprio, enigma subjetivo que é preciso resolver.

Lógica onírica
Em relação a isso, é possível compreender o papel fundamental dos sonhos
em sua obra, fator de alheamento que varia de um texto para outro. Nos mais
antigos, como os contos de La máquina de pensar a Gladys, povoados de
seres despertando ou prestes a adormecer, a lógica onírica guia os relatos, as
fronteiras entre um estado e outro se perdem entre as frases. Em La ciudad,
por exemplo, o protagonista constata que “essa mistura que reinava no sonho
se prolongava, de forma confusa, ao despertar”.
Um outro uso, que se desdobra daquele, é o que aparece em Deixa
comigo e vários outros livros mais recentes: o sonho como uma espécie de
laboratório, porque nele a mente com efeito trabalha em certos problemas e
pode inclusive encontrar soluções para o que conscientemente parece
bloqueado. Os sonhos são lugares de estranheza, em que aparecem cenas,
motivos, palavras que não sabemos direito de onde vêm, que não parecem
nos pertencer; por isso mesmo é preciso prestar atenção neles: para tentar o
encontro consigo mesmo que é tão precioso para Levrero.
Talvez aqui se chegue a um núcleo desta obra tão fascinante: a escrita
como uma busca de si. O que poderia querer dizer isso? Uma espécie de
autoajuda? Não no sentido habitual, que supõe uma fórmula pré-determinada
para se adaptar ao mundo. O escritor é um desadaptado e quer continuar
sendo. Precisamente, ele quer sua liberdade. E que liberdade seria essa? É
isso que ele precisa descobrir. A busca de si não parte de nenhum
pressuposto, ela é completamente aberta, abismal; pressupõe, pelo contrário,
que se esqueça tudo o que se acredita saber sobre si e se comece quase do
zero, do mais básico, como nos exercícios de caligrafia que ocupam boa
parte de El discurso vacío (1996). E aonde se chega com essa busca? A lugar
nenhum, de certo modo, ou melhor, quem sabe, ao sentido da própria busca,
à sua origem, como em Deixa comigo – para poder continuar o caminho.
livros
A aventura moderna de Apollinaire
Heitor Ferraz Mello

Se há um poeta que sintetiza bem o espírito da vanguarda do começo do


século 20, na França, este é Guillaume Apollinaire (1880-1918), autor de
vários poemas importantes, sendo que um deles, “Zone”, consta em qualquer
lista dos cem melhores do século. Mesmo sabendo que essas listas são
totalmente discutíveis – assim como uma ideia enrijecida de cânone –, este
longo poema, que abre a coletânea Alcools, publicada há cem anos, é um
marco da poesia moderna. Não há quem não tenha percorrido este intrincado
tecido temporal, constituído a partir de um ponto de vista que salta do “eu”
ao “tu”, de fora para dentro, da realidade imediata às memórias de infância,
na busca de uma simultaneidade de sentidos e sentimentos.
Quando Alcools foi publicado, em abril de 1913, Apollinaire já era uma
referência na vida boêmia e intelectual parisiense. Vários dos poemas que
depois seriam recolhidos neste volume já haviam sido publicados em jornais
e revistas, ele mesmo já havia lançado Le bestiaire ou Cortège d’Orphée, um
série de 30 poemas, com gravuras de Raoul Dufy, numa tiragem de 120
exemplares (dos quais apenas 50 foram vendidos). Há algum tempo que
frequentava o ateliê de Picasso, de quem foi não apenas um grande amigo,
mas um importante interlocutor como crítico de arte, atividade que exerceu
durante toda sua vida. Entre outras atividades, Apollinaire também escrevia
narrativas eróticas, sob pseudônimo, e foi o responsável pelo resgate da obra
do Marquês de Sade, como também de outros autores libertinos. Nesse meio
tempo, envolveu-se num caso escandaloso: o roubo da Mona Lisa do Museu
do Louvre. Passou uma semana atrás das grades até comprovar sua inocência
(a obra tinha sido roubada por Géry Piéret, que havia trabalhado para o
poeta).
Em seu recém-lançado Perversos, amantes e outros trágicos
(Iluminuras), no qual investiga o sentido do erotismo na obra de diversos
autores, a crítica Eliane Robert de Moraes dedica um ensaio ao poeta francês
que, como ela diz, “era considerado o porta-voz de uma geração de
rebeldes”: “Amigo de Jarry, Picasso, Braque, foi um dos notáveis
inspiradores do esprit nouveau que abalou a cultura cosmopolita da França
na virada do século: sua obra literária e crítica anunciava os princípios de
uma nova estética, que tinha como fundamento a ruptura com os modelos do
passado. Não deixa de ser significativo que a culpa pelo desaparecimento da
Gioconda – obra emblemática da tradição humanista europeia – tenha sido
imputada justamente a uma artista tão identificado com a aventura
modernista”.

Aventura do tradutor
Esta “aventura modernista” – iniciada no começo do novo século –
encontrou sua primeira grande síntese no volume de poemas Alcools¸ que só
agora, cem anos depois, ganha a sua primeira tradução, na íntegra, no Brasil.
Álcoois – Poemas (1898-1913) – assim mesmo, com uma opção pelo acento
na primeira sílaba, uma variação aceita na gramática – foi inteiramente
traduzido pelo professor aposentado da cadeira de Francês da USP, Mário
Laranjeira. Vários desses poemas já haviam sido traduzidos, antes, para o
português, e pelas mãos de grandes poetas – numa folheada rápida em
antologias de traduções, encontramos um time seleto, composto por Carlos
Drummond de Andrade, Mário Faustino, Décio Pignatari, Augusto de
Campos, José Paulo Paes, Ferreira Gullar e tantos outros. Mas ainda faltava
essa outra aventura: a de traduzir inteiramente esta obra tão bela quanto
rigorosa e que marcou a poesia brasileira a partir do modernismo.
Não são muitos os livros de poemas de Apollinaire traduzidos no país.
É o caso de Bestiário ou O cortejo de Orfeu (Iluminuras, 1995), traduzido
pelo poeta Álvaro Faleiros. Ele também assina o volume Caligramas
(Ateliê/UnB, 2008), com uma competente seleção dos “poemas plásticos” de
Apollinaire – mas, vale frisar, não se trata da tradução na íntegra do famoso
livro Caligrammes, que saiu após Alcools, em 1916, formando o pilar de sua
obra poética. A edição de Faleiros reúne apenas os poemas gráficos de
Caligrammes, como de outros livros póstumos de Apollinaire, deixando de
fora os poemas metrificados, ou em verso livre, aqueles que são baseados na
linearidade do verso, como os clássicos “Les fenêtres”, ou “Lundi rue
Christine”, fundamentais para a poesia moderna.
Mas olhando a trajetória de Mário Laranjeira, percebe-se claramente o
que o atraiu para este projeto, além da efeméride: entre tantas obras
traduzidas (clássicos de La Fontaine, Flaubert e André Gide, para citar
apenas três), ele também foi o responsável pela antologia Poetas de França
hoje (1945-1995) (Edusp, 1996), no qual reuniu e traduziu trinta poetas
franceses. Seu interesse pela poesia francesa sempre foi grande, como ele
mesmo contou em entrevista a Álvaro Faleiros, incluída no volume recém-
lançado Mário Laranjeira: Poeta da tradução (Dobra). E seu objetivo, como
disse, era a de “dar ao leitor brasileiro uma ideia do conjunto da poesia que
se faz ou se fez na França”.

A procura dos homólogos


Laranjeira não é partidário das recriações na tradução. Para ele, como
escreveu na introdução de Poetas de França hoje, texto em que desenvolve a
sua concepção de tradução, “o que o tradutor de poesia deve buscar não é,
pois, recriar um texto idêntico – empreitada impossível, como já foi dito –,
mas sim gerar em sua língua-cultura um texto homólogo ao original, isto é,
que tenha marcas textuais homólogas e assim seja capaz de provocar, no
leitor final, uma leitura homóloga, uma leitura em que se possa reconhecer
também as marcas que o primeiro sujeito imprimiu em seu fenotexto, e não
apenas as marcas advindas da operação tradutória ou recriativa”.
No caso de Apollinaire, sua tradução é notável – não somente pelo
esforço de encontrar os “homólogos” em português, como pelo tamanho da
empreitada. São 42 poemas, metrificados ou em versos livres, alguns
subdivididos em partes, e outros longos, que chegam a ocupar mais de dez
páginas. Caso exemplar é “Zona”, o poema mais famoso de Apollinaire.
Claro que o leitor pode se perguntar sobre as opções do tradutor – como
já no primeiro verso: “A la fin tu es las de ce monde ancien”. Laranjeira
crava: “No fim estás lasso deste mundo antigo”. O poeta Mário Faustino,
que também o traduziu, mas preocupado principalmente com o sentido,
escreveu: “Chegando ao fim te cansas desse mundo antigo”. Já Ivo Barroso,
numa tradução conjunta do poema feita para a Folha de S. Paulo, em 2003,
optou por “Te cansaste afinal desta vida anciã”. Infelizmente, eis um dos
defeitos graves desta edição: o leitor não encontrará nenhum texto do
tradutor justificando suas opções, nem mesmo notas de rodapé que possam
situá-lo, principalmente diante de referências culturais, históricas ou
biográficas. Há um texto introdutório, mas de Silvana Viera da Silva
Amorim, professora de Letras Modernas da UNESP.
Além disso, algumas gralhas podem prejudicar a compreensão do todo.
No mesmo poema, há um verso em que se lê: “Les directeurs les ouvriers e
les belles sténo-dactylographes”. A tradução: “Os diretores dos operários e
as belas esteno-datilógrafas”. Em “Canção do mal-amado”, outra gralha, mas
logo no primeiro verso: “Un soir de demi-brume à Londres”. Tradução:
“Numa manhã de meia bruma em Londres”. Trocar a noite pela manhã
muda todo o sentido do poema, um dos mais impressionantes de Apollinaire,
onde o moderno se cruza com a tradição literária, com a fábula e com
histórias variadas que testemunham a dor do homem abandonado pela sua
amada, andando pelas noites de Paris: “Noites de Paris embriagadas/ Do gim
elétrico dos brilhos/ Os bondes luzes esverdeadas/ Ao longo das pautas dos
trilhos/ Cantam máquinas desvairadas”.
Claro que nada disso invalida a aventura de Laranjeira e a importância
desta tradução para a poesia brasileira – se bebemos no passado em
Apollinaire (que o digam os três Andrades: Mário, Oswald e Carlos
Drummond), relê-lo, hoje, na noite trevosa da modernidade, é reconhecer,
naqueles seus poemas, escritos na alvorada, o quanto já havia de bruma e
melancolia no ar. E de sonhos com outros mundos possíveis.

ensaio
Ave, crítica
Welington Andrade

Toda grande obra literária precisa ser validada simultaneamente junto a dois
tipos de destinatário com os quais ela normalmente estabelece uma relação
complexa, imprevista e de equilíbrio delicado: a crítica e o leitor. Ou, mais
especificamente, a crítica especializada e o leitor comum. A tarefa primeira
do crítico parece ser a de conduzir o leitor à melhor compreensão e avaliação
do texto literário, que se transforma, deste modo, em um grande pretexto
para o diálogo entre o especialista e o amador (na acepção genuína de
“aquele que ama”). Já ao leitor comum cabe a missão menos palpável – e,
por isso mesmo, muito mais heróica – de manter a obra perene e viva em sua
memória, de onde ela se precipita e se transforma em experiência pessoal
cambiável com outros leitores e com a vida social, isto é, com o mundo,
enfim. Críticos e leitores, então, são os elementos opostos, mas
complementares, de uma mesma dinâmica de recepção da obra, cujo grande
objetivo reside na associação do prazer ao conhecimento.
Em um país pouquíssimo afeito à tradição literária como o Brasil, a
crítica e o leitor costumam assumir posições opostas, sim, mas de mútua
incompreensão, quando não de ostensiva hostilidade. (No âmbito da
cobertura que a grande imprensa faz da cultura de massa, esse curto circuito
soa mais claro. Leitores costumam mandar cartas às redações de jornais e
revistas, espinafrando os críticos de cinema, por exemplo, pelo fato de eles
atribuírem cotação máxima a filmes de arte “incompreensíveis”. Esses
mesmo críticos, por sua vez, diante de certas obras populares optam por
desqualificar o público antes de tentar compreender o tipo de fenômeno a
que ele está submetido). Deste modo, vemos, de um lado, a crítica se
fechando em copas e militando em terrenos seguros dos quais ela não precisa
sair, tais como a academia e os cadernos segmentados, como se os
especialistas se satisfizessem em falar para pequenos auditórios compostos
por eles mesmos. No extremo oposto, estaria o leitor comum, indulgente
com as fórmulas espetaculares, ávido por toda sorte de simplificações e
reducionismos, desamparado por sua própria autossuficiência e arredio a
qualquer tentativa de intelecção mais árdua.
Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector talvez sejam os
escritores brasileiros que mais sofram na mão de críticos encastelados e de
leitores ingênuos. De um lado, boa parte da fortuna crítica sobre tais autores
parece ter muita dificuldade em tomar como referência o estilo claro e
preciso que o professor Antonio Candido, por exemplo, sempre adotou na
tarefa de aproximar a literatura do leitor. De outro, muitos leitores de
Machado, Guimarães e Clarice se satisfazem com citações e referências
descontextualizadas, recolhidas pela lente do senso comum para serem
desidratadas até a exaustão.

Tramas amorosas
No caso do escritor mineiro João Guimarães Rosa, leitores, pesquisadores e
professores têm agora à disposição uma obra de interlocução crítica das mais
conseqüentes e estimulantes. Trata-se de A Rosa o que é de Rosa: literatura
e filosofia em Guimarães Rosa (editora Difel), do professor, filósofo e crítico
literário paraense Benedito Nunes (1929-2011), cujo trabalho iluminou a
compreensão da modernidade literária no Brasil, sobretudo os projetos de
Guimarães Rosa e de Clarice Lispector. Escritos ao longo de mais de cinco
décadas, boa parte produzida para suplementos literários de jornais como O
Estado de S. Paulo e Minas Gerais, os textos – organizados diligentemente
pelo professor Victor Sales Pinheiro – “abrangem praticamente toda o obra
ficcional de Rosa e compõem um relevante repertório ensaístico que a
interpreta filosoficamente, interpelando a essência poética de sua
linguagem”, conforme defende o organizador na apresentação do volume.
No primeiro ensaio, “O amor na obra de Guimarães Rosa”, Benedito
Nunes vai descortinando aos olhos do leitor, cuidadosa e pacientemente, o
que é essencial captar nas tramas amorosas do escritor, tomando Grande
sertão: veredas como fio condutor. A tematização do amor, na obra de Rosa,
defende o crítico: “repousa principalmente nessa idéia mestra do platonismo,
colocada, porém, numa perspectiva mística heterodoxa, que se harmoniza
com a tradição hermética e alquímica, fonte de toda uma rica simbologia
amorosa, que exprime, em linguagem mítico-poética, situada no extremo
limite do profano com o sagrado, a conversão do amor humano em amor
divino, do erótico ao místico. Tal seria a síntese da visão erótica da vida
entranhada na criação literária de Guimarães Rosa”. Um denso manancial
teórico como esse, rigorosamente explorado ao longo de todo o texto,
convida o leitor a sair de sua posição confortável, convertendo intelecção em
experiência – a mais nobre tarefa da crítica.
A mais impenetrável narrativa de Rosa, o conto-poema “Cara-de-
Bronze” (a sexta estória da coletânea Corpo de baile) ganha de Nunes um
ensaio memorável, “A viagem do Grivo”, que procura cercar alguns signos
que tangem a obra sem a pretensão de atingir seu real significado, posto que
este parece querer escapar a todo momento. Nunes trata do motivo da
viagem, que “impõe uma estrutura polimórfica, com elementos líricos e
dramáticos, em função dos quais variam o tempo interno da estória e a
amplitude da mimese”. Dialogando com a tradição literária representada pela
Demanda do Graal, o Ulisses, de Joyce, a Divina comédia, de Dante, e o
Fausto, de Goethe, e articulando-a às filosofias platônica e indiana, o ensaio
oferece certo remanso ao leitor, algum descanso diante de forma tão
extravagante.
Em “Bichos, plantas e malucos no sertão rosiano”, Benedito Nunes alça
tais elementos à condição de seres exteriores que se internalizam, aderindo
ao mundo interior do leitor onde se instalam com a força expansiva dos
mitos. Sobre bichos e plantas, observa Nunes, “o narrador faz cair seu duplo
olhar de naturalista e de poeta. Não há árvore que seja tão só um ente
botânico nem animal que seja tão só um ente zoológico. Como naturalista
descreve-o e como poeta lhe penetra o modo de ser”. Já em relação aos
parvos, a sagacidade do crítico é notável: “A loucura poderia ser
compreendida in generis como desorganização da língua em sua função
simbólica, subvertendo a posição do homem no mundo, quer em relação a si
mesmo quer em relação aos outros”.
A importância de um livro como esse reside no fato de o crítico dar ao
escritor que o convida ao diálogo aquilo de que ele mais precisa e o que ele
tão intensamente merece: a paixão pela coisa em si e o desejo de partilhá-la
com o público leitor de modo rigoroso, identificando os principais elementos
de um idioma literário de alta voltagem criativa com a ajuda de generosas
doses de erudição e afetividade. Pois todo grande crítico decerto ama a obra
literária; apenas, não como a mãe severa, mas como a bela amante e
companheira – nos ensinaria o próprio médico e diplomata que se tornou um
objeto de culto na literatura brasileira, com todas as implicações positivas e
negativas que tal posição acaba por lhe conferir.

Oficina literária
Vivian de Moraes

tesoura
adoro a literatura que está escrita nos seus olhos
muito mais do que o que você escreve
as palavras deitam-se, acomodadas, no meu colo
você
e sua beleza nova
deixam-me extasiada, sem amarras
estou com você em um palácio
onde apenas se pode murmurar
e nunca gritar, falar alto, esbravejar
deito-me ao seu lado
para beijá-la
e tudo o que tenho é um beijo que se acaba
adoro as letras dos seus lábios
que têm a sapiência dos séculos
apesar dos seus tãos poucos anos de idade
estou velha, sou ridícula,
escrevo sonetos, ainda,
como quem cava atrás de um antigo tesouro
tenho uma tesoura de prata
que corta sua virgindade
e me arrebata de sua breve obesidade
cílios
peitos
são meus eleitos
deito-me aos seus joelhos e a observo
sinto seus dedos sedentos
de um orvalho que já não tenho

colaboraram nesta edição


Álvaro L. M. Valls é professor de filosofia da Unisinos e pesquisador do
CNPq
Claudio Daniel é poeta, editor da revista Zunái e Curador de Literatura e
Poesia no Centro Cultural São Paulo
Gabriel Ferreira da Silva é doutorando na Universidade do Vale do Rio
dos Sinos
Humberto Araujo Quaglio de Souza é doutorando na Universidade
Federal de Juiz de Fora
Jonas Roos é professor do Departamento de Ciências da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora
Juvenal Savian Filho é filósofo e teólogo, doutor pela Universidade de São
Paulo e docente da Universidade Federal de São Paulo
Paloma Vidal é escritora, autora do romance Mar azul (Rocco), e professora
de Teoria Literária da Unifesp
Welington Andrade é doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor
do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero.
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