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"Quando o mundo estiver


unido na busca do
conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e poder,
então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um
novo nível."
Sumário
mercado
Os passos de caranguejo do Prêmio Jabuti

dossiê A “personalidade autoritária” hoje


Apresentação
Rastreando o autoritarismo
As contradições da personalidade autoritária
Neoliberalismo, nacional-populismo e a personalidade autoritária
Da “personalidade autoritária” ao “novo radicalismo de direita”

ensaio
O Maquiavel de Mussolini

colaboraram nesta edição


mercado

Os passos de caranguejo do Prêmio Jabuti


HAROLDO SEREZA

Entra ano, sai ano, o Prêmio Jabuti, promovido pela Câmara Brasileira do
Livro (CBL), parece não se encontrar. A polêmica mais recente envolveu o
agora ex-curador Pedro Almeida, que perdeu o cargo após postar nas redes
sociais uma nota mal-informada sobre o número de mortes decorrentes do
coranavírus. Mais que um incômodo com o curador da estação, a saída
reforçou a crise permanente de um prêmio cujo sentido nos últimos anos
não tem feito jus ao capital social acumulado por mais de seis décadas. Tal
instabilidade contrasta com o longo período em que a premiação esteve sob
o comando de um mesmo responsável, de 1991 a 2014. De 2014 para cá, já
foram três curadores, e necessariamente haverá uma quarta pessoa, uma vez
que, até o momento em que escrevo este texto, ainda não há um titular no
posto.
Entre as polêmicas do Jabuti no século 21, talvez a mais significativa
tenha ocorrido dez anos atrás, quando o Grupo Record promoveu uma
verdadeira campanha contra o prêmio, questionando a vitória de Chico
Buarque na categoria Livro do Ano de Ficção, com Leite derramado,
romance publicado pela Companhia das Letras. Um colunista famoso por
diatribes, na época na Veja, liderou o linchamento valendo-se de um
detalhe: na categoria Romance, Chico Buarque foi o segundo colocado, e na
categoria Livro do Ano, ele venceu o romance premiado Se eu fechar os
olhos agora (Record), de Edney Silvestre. O ataque a Chico vinha
acompanhado de um discurso antipetista. Os títulos de dois posts do
blogueiro são suficientes para indicar como o prêmio foi maldosamente lido
numa chave anabolicamente politizada: “O Prêmio Jabuti e os asquerosos 1:
o jornalismo na fase ‘Alemanha Oriental’ no dia em que o Prêmio Jabuti se
transforma num espetáculo de vigarice política” e “O Prêmio Jabuti e os
asquerosos 2: os detalhes de uma fraude. Ou: ‘Dil-má/ Dil-má’”.
A acusação de fraude (eleitoral, por extensão) valia-se, para se sustentar,
de uma desinformação: as regras do Jabuti permitiam, havia alguns anos já,
que um dos três finalistas de qualquer categoria recebesse a distinção de
Livro do Ano – criada em 1991 e que, a partir de 1993, passou a ser
concedida para duas obras, uma de ficção e outra de não ficção. E casos
assim já haviam acontecido em 2000, 2001, 2004 e 2008. Isso ocorre
porque o júri das duas fases não é o mesmo, e além disso, é socialmente
distinto: quando analisa as categorias específicas, o júri é formado por
especialistas; quando vota para Livro do Ano, além de participarem da
eleição todos os jurados do Jabuti (o que, obviamente, amplia muito o
aspecto da recepção), também são convidados a votar editores e livreiros
ligados à CBL.
O Jabuti, desde então, tentou responder ao “carimbo ideológico” que fez
dele um “prêmio esquerdista” – acusação sem pé na realidade. Começou na
época uma série de tentativas de acomodação: em 2011, o número de
categorias subiu de 21 para 29, e, o que é mais significativo, para a seleção
do Livro do Ano não havia mais a participação de três livros por categoria,
apenas os primeiros lugares passaram a concorrer.
Para a edição de 2014, depois de alguns anos de tensão, a CBL escolheu
Marisa Lajolo para a curadoria do prêmio. Lajolo, professora da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade
Mackenzie, com longa trajetória no estudo da literatura infanto-juvenil,
pesquisadora da obra de Monteiro Lobato, surgiu como uma possibilidade
de consenso e de reconstrução do Jabuti. Marisa promoveu mudanças
suaves na premiação, que viveu alguns anos de relativa calmaria.
Depois de três anos, em 2017, Lajolo deixou a curadoria, oficialmente a
pedido dela, e foi substituída por Luiz Armando Bagolin, pesquisador do
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) e
ex-diretor da Biblioteca Municipal Mário de Andrade. Em 2017, no
discurso de entrega do prêmio, Bagolin criticou as bibliotecas, afirmando
que “a maioria delas são infelizmente apenas depósitos de livros guardados
sob a suspeição antipática de bibliotecários e arquivistas mal-humorados”.
O Conselho Regional de Biblioteconomia emitiu nota criticando “o olhar
deturpado do orador, que ainda se prende a uma imagem caricata do
bibliotecário”. No mesmo discurso, o curador afirmou que “o prêmio deste
ano conseguiu renovar e diversificar o corpo de jurados e o resultado vê-se
na lista de finalistas de praticamente todas as categorias concorrentes, com a
presença de muitas editoras diferentes representadas, além da participação
de autores jovens e autores consagrados lado a lado”. A fala ignorava o fato
de que 7 dos 10 finalistas da categoria Romance, a mais disputada, eram do
grupo Companhia das Letras (e dois dos três premiados). Ao todo, em 2017
esse grupo ganhou 11 Jabutis, o que demonstrava que a composição dos
jurados e algumas regras do Jabuti jogavam contra a bibliodiversidade.
Bagolin, na edição de 2018, iniciou uma mudança radical: o Jabuti de
Livro do Ano passou a ser concedido a apenas uma obra,
independentemente de ser de ficção ou não ficção; as categorias deixaram
de premiar os três primeiros colocados e passaram a eleger apenas uma
obra; foram criadas duas novas categorias: Formação de Novos Leitores e
Impressão, reforçando o caráter profissional do prêmio; e o prêmio foi
dividido em quatro eixos, cada um com subcategorias – Literatura
(Romance, Poesia, Conto, Crônica, Infantil e Juvenil, Tradução, HQ);
Ensaios (Biografia, Humanidades, Ciências, Artes, Economia Criativa);
Livro (Capa, Projeto Gráfico, Ilustração, Impressão); Inovação (Formação
de Novos Leitores, Livro Brasileiro Publicado no Exterior). Algumas dessas
mudanças não foram bem recebidas, e foi durante o debate nas redes sociais
que o curador publicou uma resposta considerada homofóbica a um
colunista do site PublishNews.
Em 2020, um novo debate colocou o Jabuti numa posição defensiva,
ainda antes do afastamento de Pedro Almeida. Um grupo de quase cem
editores pediu à CBL que, em função da Covid-19, o prêmio reduzisse o
valor das inscrições para um piso de R$ 228 (o oferecido para as editoras
que realizassem mais de 100 inscrições), além de prorrogar o prazo de
inscrição por 30 dias. A CBL aceitou a prorrogação, mas manteve
inalterada a tabela de preços que favorece editoras maiores, argumentando
que não era mais possível adotar a mudança neste ano.
O Jabuti chega a 2020 mergulhado numa crise longa e múltipla. Da
estabilidade na curadoria de José Luiz Goldfarb até 2014 (que, não
obstante, foi acusado de injúria racial durante a Flip 2018), passamos para
um período de permanente turbulência que expressa não apenas a crise do
mercado editorial, o que seria previsível, mas principalmente a profunda
divisão da intelectualidade brasileira. O encadeamento dos fatos nos últimos
anos sugere uma relação estreita entre a crise política do país e a do Jabuti.
Afinal, editoras e entidades do livro, longe de serem atores neutros, são
atores simbolicamente influentes, com amplo tráfego nas mais diferentes
forças políticas. Além disso, as pressões econômicas decorrentes das crises
do mercado editorial tornam o prêmio refém das práticas dominantes
adotadas pelos grandes grupos, o que faz com que os menores arquem,
proporcionalmente, de maneira injusta, com mais recursos no custo total do
prêmio.
Nos últimos dez anos, múltiplas forças conseguiram mobilizar pautas
para contestar o prêmio: a fragilidade institucional, uma política pouco
afeita à diversidade editorial, além de posicionamentos racistas,
homofóbicos e anticientíficos de seus curadores. Essas forças, no entanto,
não são hegemônicas nem fortes o suficiente para impor ao prêmio um novo
formato que incorpore essas questões prementes para a juventude
intelectualizada. Por sua vez, as forças que conduzem o Jabuti e a CBL
parecem pouco dispostas a compor uma frente com esses setores, e por isso
adotam uma política de recusar a priori as propostas feitas diretamente
pelos grupos que contestam o prêmio.
Qual o futuro do Jabuti? Parece claro que, no momento, não há uma
saída. O certo é que ela passa, necessariamente, pela busca de um
compromisso com esses setores mais progressistas, que defendem posições
hoje enraizadas na intelectualidade brasileira: a defesa das diversidades
culturais, raciais, de gênero, de classe e editoriais. Diversidades que
guardam relação umas com as outras, mas não se confundem. E, enquanto
essa abertura não estiver presente, não parece possível haver um projeto
minimamente consensual e democrático capaz de fazer o Jabuti parar de
andar de lado ou para trás, como um caranguejo tentando se esconder no
mangue em dia de mar bravio.
dossiê A “personalidade autoritária” hoje

Apresentação
 
 
No atual estado político brasileiro e mundial, a expressão “personalidade
autoritária” vem tornando-se mais e mais conhecida. Onde ela surgiu?
Quais foram seus formuladores originais e em que contexto surgiu? O que
significa? Qual é sua relevância hoje, depois de 70 anos em que foi usada
pela primeira vez? Este dossiê pretende contribuir para um entendimento
mais aprofundado e claro dessas questões.
Para isso foram convidados especialistas na obra de Theodor W. Adorno
(1903-69), principal formulador da pesquisa coletiva que deu o nome a essa
expressão. Seus textos, complementares entre si, iluminam aspectos
importantes a respeito da criação da pesquisa, de seu significado e de suas
implicações.
Rodrigo Duarte, professor titular do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de diversos livros e
artigos sobre Adorno, aborda em seu texto a gênese da investigação
empírica sobre a dimensão psíquica do preconceito e do autoritarismo em
trabalhos anteriores do Instituto de Pesquisa Social. Além disso, esmiúça as
características psicodinâmicas encontradas pela pesquisa da “personalidade
autoritária” nos sujeitos com potencial autoritário mais definido.
Virginia Helena Ferreira da Costa, doutora em Filosofia pela
Universidade de São Paulo (USP), tradutora (juntamente com Francisco
López Toledo Corrêa e Carlos Henrique Pissardo) e organizadora da edição
brasileira de Estudos sobre a personalidade autoritária (Editora Unesp,
2019), mostra, em seu artigo, as relações dessa obra com o pano de fundo
psicanalítico e sociológico do trabalho, indicando sua pretensão de delinear,
na “personalidade autoritária”, um tipo antropológico profundamente
enraizado na forma de socialização da sociedade capitalista.
José Antonio Zamora, professor do Instituto de Filosofia do Conselho
Superior de Investigações Científicas (CSIC), em Madri, examina a virada
autoritária na política mundial, rastreando as modificações sistêmicas do
capitalismo nas últimas décadas e defendendo a atualidade da questão
original da obra de Adorno: “quais disposições psíquicas dos indivíduos
socializados sob o capitalismo os tornam vulneráveis às forças e aos
movimentos antidemocráticos?”.
Douglas Garcia Alves Júnior, professor do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), aborda, por sua vez, a relação
da pesquisa original de Adorno com o texto de uma conferência dada na
Áustria, em 1967 – e publicada somente em 2019 – sobre as possibilidades
de retomada de tendências autoritárias no interior do contexto político
“normalizado” da democracia alemã da época.
Se refletir sobre o passado é importante para tentar não o repetir, trata-se,
no presente momento, de reconhecer no que já passou aquilo que
permanece como “fantasma de um fantasma” (Adorno) – como tendência
regressiva à irracionalidade e à desumanidade. Tal é o intento dos autores
deste dossiê.
Rastreando o autoritarismo
RODRIGO DUARTE

O crescimento e a difusão de posições políticas neofascistas e até mesmo a


eleição de políticos de extrema-direita – como nos Estados Unidos, Reino
Unido, Hungria, Brasil – conclamam as consciências democráticas do
mundo todo a não apenas se contrapor politicamente ao fenômeno, mas
também compreendê-lo e sobre ele refletir em profundidade. Esse tipo de
reflexão sempre teve na Teoria Crítica da Sociedade um esteio importante, a
partir da publicação, em 1944, de uma primeira versão da Dialética do
esclarecimento, de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, para a
compreensão em profundidade – e em detalhes – do autoritarismo. Naquele
mesmo ano de 1944, uma obra não menos relevante começou a ser gestada,
quando Adorno, ainda na condição de eLivros nos Estados Unidos, foi
chamado a coordenar um grupo de pesquisadores da Universidade de
Berkeley com o propósito de realizar uma investigação inédita. O objetivo
era identificar, em indivíduos considerados “normais”, elementos psíquicos
que predisporiam sua adesão a posições políticas fascistas, não obstante o
caráter “liberal” da democracia estadunidense. Essa pesquisa deu origem ao
livro A personalidade autoritária, de autoria coletiva, publicado em 1950 e
que tem sido considerado, desde então, um clássico da psicologia social.
Uma obra que, de modo peculiar no momento presente, é revestida de
enorme atualidade.
Embora os resultados da pesquisa tenham apontado para uma situação
mais ampla que o preconceito em relação a judeus, o fato gerador da
investigação foi um financiamento fornecido pelo Jewish Labor Committee
estadunidense, que incluiu vários projetos sobre o assunto e influenciou
também na inclusão do capítulo “Elementos do antissemitismo” na
Dialética do esclarecimento. Além disso, havia também o “Projeto sobre o
antissemitismo”, iniciado por Adorno e Horkheimer em 1941. Tratava-se de
um trabalho essencialmente teórico, embora retomasse a pesquisa empírica
iniciada ainda na Alemanha e intitulada Estudos sobre autoridade e família.
Ambas as investigações – considerando-se também o referido capítulo da
Dialética do esclarecimento – serviram de ponto de partida para a
contribuição de Adorno em A personalidade autoritária, como fica patente
na declaração dos próprios autores da pesquisa de que o “antissemitismo foi
o ponto de partida para a investigação sobre o caráter autoritário”.
Em A personalidade autoritária, destaca-se um ponto de vista ético-
político — não escamoteado em prol de uma suposta “neutralidade”
científica — no qual os autores contemplam a possibilidade de explicitar os
pressupostos psicológicos para o desenvolvimento de uma racionalidade
mais substantiva, superior à instrumental que ainda hoje predomina de
forma quase absoluta. Vale observar que um importante pressuposto teórico
da pesquisa é de que o fascismo, embora seja um fenômeno de massas, tem
sua gênese numa predisposição psicológica dos indivíduos, na medida em
que “um caráter maduro aproximar-se-ia mais de um sistema de
pensamento racional do que um imaturo. […] Nisso baseia-se a convicção
de que à busca pelos determinantes psicológicos da ideologia subjaz a
esperança de que as pessoas possam se tornar mais racionais”. Levando em
consideração a irracionalidade congenial às ideologias totalitárias, a
esperança dos autores poderia ser igualmente determinante na consolidação
de uma democracia mais plena.
Entre os pressupostos da pesquisa empírica – que incluía preenchimento
de questionários, fornecimento de dados, respostas discursivas a questões
projetivas, entrevista ideológica, entrevista clínica e Teste de Apercepção
Temática – estava a ideia de que as pessoas que demonstram
susceptibilidade extrema para a propaganda fascista têm muito em comum,
enquanto as que a rejeitam enfaticamente diferem muito entre si. Além
disso, os autores do estudo externam a convicção de que “o antissemitismo,
mais do que em propriedades reais dos judeus, repousa em fatores
subjetivos da situação geral do antissemita”.
Vale ressaltar que o papel determinante ou não da propaganda
antidemocrática no posicionamento político das pessoas depende
fortemente da atuação de poderosas comunidades de interesse econômico.
Não por acaso, a escala F (de fascismo) de medição de tendências
autoritárias, obtida com base em um dos quatro tipos de questionário
aplicados, foi estabelecida por Adorno diretamente vinculada à influência
da indústria cultural sobre os indivíduos. A consideração desse fato pode
explicar, aliás, por que “nesses casos o indivíduo parece não apenas ignorar
seus interesses, mas até mesmo agir contra eles; parece identificar-se com
um grupo maior, como se indagações menos racionais dos próprios
interesses determinassem seu ponto de vista”.
O impacto determinante da indústria cultural no psiquismo dos
indivíduos tem a ver com o fato de que o fascismo – diferentemente de
outros regimes ditatoriais –, necessita de uma base de massa para ter
sucesso como movimento político, o que significa que ele deve assegurar
uma cooperação ativa, e não apenas uma submissão medrosa de amplos
setores da população envolvida. Esse impacto ocorre porque a ideologia
fascista veiculada pelos meios de massa corresponde à estrutura de caráter
dos indivíduos integrantes dos mencionados setores, uma vez que “antigas
expectativas, nostalgias, medos e inquietações tornam as pessoas receptivas
a certas convicções e resistentes a outras”.
As características psicológicas que, de acordo com os autores, permitem
aferir o grau de antissemitismo latente nos sujeitos da pesquisa foram: a)
“convencionalismo”, ou seja, a fixação em valores aceitos de forma
convencional e acrítica; b) “submissibilidade autoritária”, a qual designa a
submissão completa e acrítica a um líder; c) “agressão autoritária”, que é a
tendência do autoritário a punir pessoas consideradas outsiders; d) “anti-
intracepção”, que significa uma reação extremada contra tudo o que é
subjetivo ou imaginativo; e) “superstição e estereotipia”, que indica a
crença na determinação mística do próprio destino; f) “pensamento de
poder”, que designa a identificação completa com formas de poder; g)
“destrutividade e cinismo”, que corresponde à hostilidade generalizada e
gratuita; h) “projetividade”, a qual aponta para a projeção de pulsões sobre
o exterior; i) “sexualidade”, que consiste na exacerbação no trato com
processos sexuais.
Todas essas características, normalmente combinadas entre si em
proporções diversas, constituem a alta pontuação de um indivíduo na escala
F e, via de regra, estão relacionadas à integração defeituosa das leis morais
em sua estrutura de caráter. Numa linguagem psicanalítica, dir-se-ia que a
consciência ou supereu são imperfeitamente integrados no eu, entendido
aqui como a unidade das funções de autocontrole e da autoexpressão do
indivíduo. Pode-se supor, segundo os autores da pesquisa, que a
internalização fracassada do supereu relaciona-se com uma fraqueza do eu,
com sua incapacidade de executar a integração necessária do supereu com o
eu.
Praticamente todas as características mencionadas relacionam-se
igualmente com a “fraqueza do eu”: com a anti-intracepção, porque o anti-
intraceptivo extremo não ousa refletir sobre fenômenos humanos, na
medida em que se encontra inseguro sobre sua própria identidade. A
superstição e a estereotipia também se ligam a “hábitos de pensamento
proximamente aparentados com o preconceito, na medida em que não
podem impedir também a atividade espiritual no âmbito extraceptivo”.
Também à característica “pensamento de poder”, a qual se manifesta
como demonstrações aparentemente gratuitas de força, “subjaz a hipótese
de que a exibição exagerada de robusteza não apenas pode refletir a
fraqueza do eu, mas também o peso da exigência posta a ele, isto é, dominar
a intensidade de certas necessidades pulsionais, que são reprovadas pela
sociedade.
No caso da variante “destrutividade e cinismo”, a fraqueza do eu se
expressa na aceitação da agressividade extrema sem nenhuma forma de
censura moral, o que remete, mais uma vez, à integração defeituosa do
super-eu no eu. A variante “sexualidade” subjaz a quase todos os
comportamentos associados à alta pontuação na escala F, uma vez que os
distúrbios na economia psíquica dos indivíduos associam-se, como
sugerido, a descaminhos das pulsões.
Tais descaminhos associam-se, por sua vez, à característica da
“projetividade”, cujo mecanismo exprime-se em conexão com a agressão
autoritária. O autoritário tende a projetar seus impulsos reprimidos em
outras pessoas, a fim de prontamente acusá-los: “Projeção é, portanto, um
meio de manter pulsões do isso alheias ao eu e pode ser considerada um
sinal de incapacidade do eu em preencher suas funções”.
Para concluir, pode-se dizer que a atualidade das contribuições de A
personalidade autoritária fica patente até mesmo se cotejamos a
caracterização feita do “pontuador alto” na escala F com a dos neofascistas
brasileiros, inclusive com seu “chefe supremo”: são convencionais,
submissos ao líder, agressivos, “extrospectivos”, supersticiosos,
identificados com o poder autoritário, destrutivos e “projetivos” – podendo-
se reconhecer em todas essas características um subjacente descaminho das
pulsões sexuais.
As contradições da personalidade autoritária
VIRGINIA HELENA FERREIRA DA COSTA

Nos Estudos sobre a personalidade autoritária, um aspecto que sobressai


nas descrições dos sujeitos classificados como mais autoritários é a postura
anticientificista. Tal característica decorre de sua anti-intracepção, que
corresponde a uma oposição a tudo o que seja subjetivo, introspectivo,
intelectual demais. Os conhecimentos produzidos por pesquisas científicas
seriam substituídos por opiniões baseadas em superstições, estereotipias,
cinismos, projeções de medos, desejos e fantasias – todos os ingredientes
que compõem as racionalizações e fake news tão atuais.
No entanto, é também característica da personalidade autoritária ser
“down-to-Earth”, isto é, ter o pé no chão, ser prático, realista. Tudo o que
não parte da realidade vivida de forma socialmente hegemônica é
descartado como ilusório, imaginativo, impossível. Essa descrição decorre,
por sua vez, de outro atributo do mais autoritário: o convencionalismo, ou
seja, a rígida aderência a valores que produzem a manutenção do status quo.
Essas são algumas das muitas contradições presentes na personalidade
autoritária e que exibem os diferentes níveis de distanciamento e
proximidade do mais autoritário em relação à realidade externa, à
experiência, ao empírico. Antagonismos que evidenciam também a
complexidade da teoria formulada por Theodor W. Adorno no que se refere
à compreensão dos sujeitos estudados, da realidade e das contradições que
persistem em seu “método” (sempre entre aspas) dialético.
Tais desenvolvimentos adornianos sobre a personalidade autoritária se
situam em uma pesquisa que procurou provar como o fascismo não era um
episódio isolado à Alemanha de Hitler. Presente de forma latente em países
democráticos – como em amostras da população estadunidense nos anos
1940 –, o fascismo podia passar para uma defesa aberta de ações violentas
contra minorias em momentos específicos de crise social.
Escrito quase que simultaneamente à Dialética do esclarecimento, A
personalidade autoritária aborda, sob o formato de uma pesquisa empírica
com base freudiana, a tão famosa dialética entre o mito e o esclarecimento
de um sujeito que vive em um ambiente tecnológico avançado, mas que,
ainda assim, mostra-se avesso aos avanços da ciência. O tipo antropológico
autoritário é aquele que, apesar de racional, identifica-se com estereótipos e
racionalizações de ódio recebidos “prontos” da indústria cultural,
compartilhando ideologias socialmente produzidas sem que haja nenhum
julgamento acerca da veracidade dessas informações. Suas
(pseudo-)opiniões, no entanto, não passariam de uma coleção de conteúdos
– denominada no livro de “padrão ideológico pessoal” – fornecidos pela
cultura, conteúdos que muitas vezes apresentam contradições entre si e que
se modificam conforme as necessidades pulsionais e o contexto social. Vê-
se, então, como Adorno enfatiza as contradições expressas pelos
entrevistados – socialmente determinados a reproduzir ideologias
preconceituosas e, ao mesmo tempo, parcialmente esclarecidos quanto às
próprias experiências muitas vezes opostas a tais ideologias.
Essas contradições psíquicas seriam um reflexo das próprias situações
contraditórias da realidade social capitalista. A base de argumentação do
livro procura expor como o autoritarismo mantém relações profundas com o
modo capitalista de organização socioeconômica. Ou seja, Adorno e os
membros do grupo de pesquisa social de Berkeley (Else Frenkel-Brunswik,
Daniel Levinson e Nevitt Sanford) não situam a origem do preconceito em
fatores psíquicos. Assim, se “Freud tinha razão onde ele não tinha razão” é
porque sua descrição do ser humano é lida por Adorno como fruto do
contexto em que o sujeito está inserido, como a fotografia de uma situação
social registrada pela psique individual.
Da mesma forma como as ideologias tendem a naturalizar as
contradições da sociedade capitalista, evitando refletir sobre elas e
modificá-las, o mesmo tende a ocorrer com a personalidade autoritária. O
“padrão ideológico pessoal” de cada entrevistado permanece contraditório:
não produz sínteses nem reflexões, satisfazendo pulsionalmente as
necessidades psíquicas conflitantes. Visto isso, o trabalho propriamente
crítico a ser produzido por um estudo sobre preconceito centrado em bases
psicanalíticas não seria apaziguar ou resolver contradições psíquicas (como
querem os revisionistas freudianos, aos quais Adorno se opõe), mas sim
denunciar essas irracionalidades como reações a antagonismos presentes na
sociedade que forma esses mesmos indivíduos.
A fim de se ajustar a uma visão ideológica socialmente hegemônica que
encobre as contradições sociais e naturaliza problemas do capitalismo, o
autoritário deve ser “realista”, adequando-se ao status quo, sem cogitar
transformá-lo. Contudo, para que tal adequação seja possível, é necessário
falsear parte da realidade. Para tanto, as desigualdades e injustiças
produzidas pelo capitalismo devem ser encobertas por conteúdos distantes
da empiria, gerando fake news, negacionismo científico, superstições,
estereotipias, projeções, personalizações, crenças.
A ênfase na contradição presente na descrição do mais autoritário expõe,
portanto, a marca adorniana nos Estudos sobre a personalidade autoritária,
distanciando-se das teorias psicológicas de Erich Fromm, que dominavam o
cenário do Instituto de Pesquisa Social nos anos 1930. Ao mesmo tempo
que deve muito a pesquisas feitas anteriormente por seus colegas
frankfurtianos, como os Estudos sobre autoridade e família (de Max
Horkheimer), A personalidade autoritária também se contrapõe a elas ao
não centrar seu diagnóstico na concepção de caráter – entendido como uma
disposição psíquica mais ou menos estável desde a infância – e ao trabalhar
com os conceitos mais plásticos da metapsicologia freudiana, como
inconsciente, sexualidade, pulsões. Adorno produz uma leitura de Freud que
mostra uma personalidade em conflito constante com as exigências que lhe
são internas e externas, ressaltando como os antagonismos, as
irracionalidades e as discrepâncias não podem ser aplainados, naturalizados,
mas sim assumidos como próprios da experiência humana.
É assim que Adorno expõe o mais autoritário – segundo uma
antropologia que evidencia a relação entre indivíduo e sociedade pensada
pelo autor. Procurando as rachaduras de uma noção de caráter
pretensamente unificado, Adorno parte dos fragmentos inconscientes que,
ao tentarem se integrar à personalidade, expõem as contradições próprias de
indivíduos submetidos a um processo de socialização incompreensível e, ao
mesmo tempo, nocivo. Uma socialização que promove a adaptação e a
reprodução de uma sociedade excludente, desigual e encobridora. Os
fragmentos contraditórios da psique espelham, então, a fragmentação da
sociedade que, caso se revelasse de maneira límpida a seus súditos,
promoveria revoltas e lutas por emancipação, e não a reprodução cega.
Concentrando sua atenção nas dissonâncias conflituosas no interior da
psique, Adorno procura significar a expressão do sofrimento que as
contradições capitalistas causam – condição de uma vida danificada por
uma totalidade que falseia parte da realidade para se manter vigente. O
fracasso de uma identidade pretensamente integrada reflete o fracasso de
uma sociedade cuja unidade social, proferida hegemonicamente, é apenas
fictícia.
Se o preconceito não é um fenômeno gerado pela personalidade, mas
tem sua origem na sociedade, então podemos vislumbrar desde já por que a
psicanálise freudiana é empregada na obra para fornecer explicações
antropológicas, e não precisamente psicológicas. Sem perder de vista o
empírico, corporal e singular, a psicologia se converte em antropologia
quando sua explicação diz mais sobre uma forma de socialização
hegemônica em um momento histórico do que sobre configurações
psicológicas individuais. A antropologia seria, então, um modo de expor o
mais autoritário como um retrato do modo de socialização de indivíduos em
dado contexto, segundo respostas psíquicas reiteradas e sedimentadas diante
de situações historicamente reificadas. Por isso, tal antropologia não pode
ser tomada como uma essência imutável da natureza humana, mas deve ser
compreendida em sua gênese histórica para que possa ser criticada e
ultrapassada. A antropologia do autoritário, por ser profundamente
contraditória, reflete uma situação social em que os valores democráticos
são apenas uma fachada formal, não sendo nunca levados a cabo na
realidade – algo próprio de uma pseudodemocracia que carrega em si
elementos autoritários de uma sociedade extremamente desigual.
E, por fim, o enfoque dado por Adorno nos aspectos contraditórios do
tipo antropológico autoritário impede leituras “positivistas” da obra,
aproximando a “exilada” pesquisa empírica sobre a personalidade
autoritária dos principais pressupostos teóricos adornianos.
Diferenciando-se do antissemitismo religioso vivenciado em épocas
anteriores, o preconceito analisado no livro seria uma forma de a totalidade
capitalista administrar o descontentamento dos indivíduos submetidos a um
sistema socioeconômico excludente, injusto e explorador. Essa adequação
incompleta ao social deve ser continuamente reforçada para que a
resistência humana, como real atividade do indivíduo, não reapareça. Por
isso, a indústria cultural a serviço do capitalismo, bem como os líderes
sociais que nela despontam, administram o mal-estar individual que irrompe
sob a forma de pulsão de morte e agressividade, desviando-o para os alvos
considerados “corretos” – em geral, grupos de minorias.
Compreende-se, então, que o que aparece como autoritário na
personalidade estudada abarcaria as parcelas do indivíduo que
simplesmente repercutem as determinações sociais por adequação e
repetição, nas quais não há lugar para reflexão e real individuação. Em
suma, aquilo que foi objetificado ou reificado na psique humana pelo
capitalismo. Daí a constatação de que, como a cultura é hegemonicamente
autoritária, todos os indivíduos que lhe são submetidos seriam autoritários,
diferenciando-se apenas o grau maior ou menor de autoritarismo. Nesse
sentido, segundo Adorno, os sujeitos da sociedade esclarecida não se
comportam mais como indivíduos, mas como pseudoindivíduos, para quem
está reservada somente uma pseudoatividade, ou seja, a possibilidade de
apenas reagir às imposições capitalistas, em vez de modificá-las. O que se
estuda no livro seria, com isso, a parcela estereotipada dos indivíduos, ou os
mecanismos de cooptação das propagandas autoritárias e o que eles
suscitam nos indivíduos.
Logo, o método empírico de pesquisa quantitativa, que maneja dados
subjetivos de forma objetificada, seria adequado para analisar a parcela dos
pseudoindivíduos que se encontra reificada pelo sistema capitalista. Estando
submetidas cegamente ao universal, as qualidades únicas de cada ser
humano se perdem em simples reproduções estereotipadas, mesmo quando
os sujeitos estariam supostamente opinando conforme seus próprios pontos
de vista. Assim, não é porque a pesquisa empírica geralmente é produzida
de forma positivista que a Teoria Crítica descarta toda e qualquer relação
entre teoria e empiria. O que necessita ser feito é um uso teórico adequado
dos dados coletados. É por isso que, para Adorno, as investigações
empíricas não podem ser desenvolvidas só por pesquisadores tradicionais,
mas devem ser empreendidas por teóricos críticos.
Neoliberalismo, nacional-populismo e a personalidade
autoritária
JOSÉ A. ZAMORA

Contra a tese que apresenta a última eclosão do populismo autoritário como


um sinal do fim do neoliberalismo e, portanto, como fenômeno de
resistência a ele, penso que a virada autoritária responde mais a uma
estratégia de reorganização neoliberal que procura reforçar suas estruturas e
lógicas fundamentais. Após a primeira fase de um neoliberalismo de erosão
destrutivo e desregulador – cujos objetivos são conhecidos como Consenso
de Washington: privatização, desregulamentação, liberalização, cortes nos
gastos públicos e desburocratização –, assistimos, como salientaram Jamie
Peck e Adam Tickell, a uma segunda fase de expansão ou deep
neoliberalism, com características diferentes, ou seja, com uma recuperação
da ação regulatória do Estado para promover a globalização e favorecer a
concorrência.
Do ponto de vista corporativo, essa segunda fase assume a forma de
estratégias de deslocalização, transferência de empregos para países com
custos trabalhistas menores, terceirização da força de trabalho, produção
otimizada e no tempo exato (lean-and-just-in-time-production), entre
outras. Do ponto de vista financeiro, isso resulta em desregulamentação
quase total dos mercados de capitais, em reorientação da reprodução para
um keynesianismo privatizado (privatização dos benefícios de
aposentadoria, endividamento das famílias para sustentar o consumo e a
educação, criação de bolhas imobiliárias ou de aluguel), em reformas do
mercado de trabalho para cortar salários e direitos dos trabalhadores que
favorecem a precariedade e a superexploração.
O fracasso dessas estratégias para assegurar e estabilizar a acumulação
capitalista ficou evidente na grande crise de 2007/2008. Entretanto, embora
essa crise parecesse anunciar o fim da fase neoliberal, como davam a
entender as declarações de certos governantes e os protestos e as
mobilizações em escala global, o que temos de fato assistido é a uma
reorganização do bloco dominante, que deu lugar a uma terceira fase do
neoliberalismo.
Essa terceira fase é caracterizada por remodelação dos Estados
competitivos em direção a Estados autoritários coercivos e por uma
transformação da sociedade civil na qual triunfam os posicionamentos
nacional-populistas, racistas e fascistas que aumentam as manifestações de
violência contra minorias étnicas, imigrantes e pessoas do coletivo
LGBTQI. A isso se soma uma crise da representação política, que leva a
uma enorme fragmentação e a frequentes situações de bloqueio institucional
ou de equilíbrio instável, sem que haja nenhuma decantação para um lado
ou outro do espectro político.
Nesse contexto, o populismo autoritário representa uma tentativa de
capturar o descontentamento das classes subalternas por meio de uma
divisão no interior do campo liberal-conservador, que procura menos
decantar a hegemonia nesse campo do que desequilibrar o equilíbrio
político geral à direita. Isso permite não só neutralizar os protestos e o
descontentamento que foram aumentando na segunda fase do período
neoliberal, mas também capitalizar sua energia e usá-la para reforçar o giro
disciplinar da terceira fase. Para isso, a frustração se transforma em
ressentimento, que se projeta para grupos identificados pelo discurso
político como responsáveis pelos problemas e dificuldades da crise.
As estratégias de mídia focam em supostas ameaças contra a nação,
contra a prosperidade duramente conquistada, contra o povo etc., enquanto
são reforçadas as estratégias de dessolidarização e estigmatização dos mais
vulneráveis. Os dirigentes políticos populistas cultivam uma imagem de
dureza para com os supostos inimigos do povo e de paternalismo para com
os subordinados, o que permite reforçar a identificação com estes: como se
os problemas dos subordinados fossem enfim ouvidos e encontrassem uma
voz!
Dado que o capitalismo em crise já não está em condições de assegurar,
como no fordismo, um “consenso passivo” (Antonio Gramsci) mediante
negociações e concessões, o objetivo é criar as condições para um governo
coercivo, ou seja, ampliar consideravelmente as margens de discrição e até
arbitrariedade dos executivos, personalizar o máximo possível o poder para
facilitar a identificação com ele, aumentar o grau de repressão dos aparelhos
judiciais e policiais, entre outras medidas. Tudo isso para aumentar a
pressão sobre as populações, para que elas apoiem as políticas de cortes, o
aumento da desigualdade, as políticas de descarte social e a precariedade do
trabalho e da vida. Para que essa pressão seja bem-sucedida, a estratégia
autoritária patrocina uma retirada de tabus mascarada de pseudorrebeldia
contra o politicamente correto. Assim, o espaço público é progressivamente
tingido de machismo, sexismo, racismo e intolerância, defendidos como
ousadia e coragem política contra o estabelecido. Por fim, os membros do
povo podem expressar-se com “liberdade”, sem a censura imposta por uma
elite progressista que, supostamente, teria sequestrado a verdadeira vontade
popular. Dessa forma, princípios democráticos como liberdade de expressão
e soberania popular são mobilizados para legitimar o racismo ou o
machismo, combinando democracia formal e conteúdo autoritário.
Nesse contexto, falar de populismo de extrema-direita ou do crescimento
da ultradireita na Europa e no mundo dirige o olhar e a análise para as
margens. “Ultra” ou “extremo” serve para qualificar grupos ou correntes
sociais que, por definição, são marginais ou estão nos extremos do espectro
ideológico. Os termos escondem, em certa medida, uma estratégia de
imunização do centro contra essas margens. O que neles se manifesta não
viria do interior da própria sociedade. É algo que se lhe opõe.
A esse respeito, é significativo o trabalho que uma equipe da
Universidade de Leipzig, na Alemanha, realiza desde 2002: um estudo
longitudinal das atitudes autoritárias e de extrema-direita na Alemanha
(Mitte-Studien, Estudos sobre o Centro). O olhar dessa pesquisa não se
dirige, desse modo, para as margens da sociedade ou para grupos que
descreveríamos como de extrema-direita, mas sim para o “centro” da
sociedade. E é por isso que deve ser colocada a questão de saber como se
desenvolve a destruição dentro da normalidade (e não apenas contra ela).
Dois conceitos cunhados por essas investigações são especialmente
relevantes: “preenchimento narcisista” (narzisstische Plombe) e
“autoritarismo secundário”. Eles ajudam a explicar o papel desempenhado
pelo “milagre econômico alemão” em relação à “incapacidade para o luto”
(Alexander Mitscherlich) – incapacidade que marcou o bloqueio emocional
e psíquico da experiência da derrota sofrida na Segunda Guerra Mundial.
A identificação com o “Grande Eu” do Führer, da Nação, da Raça
escolhida, exigiu após a derrota um novo Eu Ideal, um Führer secundário,
que permitisse recuperar o sentimento de autoestima. Esse papel teria sido
assumido pelo consumo e pelo bem-estar econômico. Existe uma ligação
entre a reconstrução da Alemanha no pós-guerra e a rejeição da ferida
narcisista. De acordo com Adorno, o que substituiu o narcisismo coletivo,
prejudicado pela derrota do regime nacional-socialista, foi “o boom
econômico, a consciência de que somos capazes”.
Traduzindo essas reflexões para a situação atual, o que encontraríamos
neste momento é uma nova ferida narcisista: a ameaça da perda do bem-
estar que se havia tornado o objeto ideal de força e poder. O que cambaleia
são os fundamentos da “religião da vida cotidiana” (Detlev Claussen), que
representava tão significativamente o ethos das classes médias. Quando as
expectativas de assegurar a riqueza se revelam ilusórias, quando os suportes
ideológicos da mentalidade meritocrática perdem apoio na realidade porque
o novo contrato social neoliberal já não pode assegurar a reprodução do
status ou frustra a possibilidade de alcançá-lo, as classes médias vivem a
nova situação como uma ofensa. Há que se procurar um culpado, por
conseguinte pela destruição do dinheiro que se ganhou “com o próprio
esforço” e “com trabalho árduo”. Estamos assistindo a uma autoafirmação
vitimizada, apoiada pelos partidos e grupos de comunicação social que
fizeram da classe média sua clientela.
Aqui, a investigação da personalidade autoritária pela Teoria Crítica
assume um novo interesse. A recepção aos estudos sobre A personalidade
autoritária, que tem se mantido com altos e baixos durante sete décadas, é
verdadeiramente uma raridade nas ciências sociais. A questão que abordam
não perdeu sua relevância: quais disposições psíquicas dos indivíduos
socializados sob o capitalismo os tornam vulneráveis às forças e aos
movimentos antidemocráticos?
A publicação, em 2019, de “Observações sobre A personalidade
autoritária”, escrito por Adorno em 1947 e que havia permanecido inédito,
permite-nos entrar no contexto teórico que norteou a participação do
Instituto de Pesquisa Social nesses estudos. O objetivo era mostrar a
emergência de um novo tipo humano, o indivíduo potencialmente fascista,
numa dupla direção: mostrar sua estrutura de caráter individual e, ao mesmo
tempo, demonstrar que essa estrutura respondia fundamentalmente à forma
de socialização capitalista na fase monopolista ou pós-liberal desse sistema.
Convencionalismo, submissão autoritária, agressão autoritária, anti-
intracepção, superstição e estereótipo, exaltação do poder, destrutividade e
cinismo, projetividade e sexualidade seriam mecanismos necessários para
um Eu enfraquecido por processos sociais que afetam de forma decisiva
seus conflitos intrapsíquicos.
A psicanálise permitiu traçar no interior dos indivíduos e na dinâmica de
seus conflitos psíquico-libidinais os conflitos sociais a que foram sujeitos.
Sua capacidade ou incapacidade para lhes fazer face foi determinada por
processos sociais e relações de dominação. Ao mesmo tempo, essa
capacidade ou incapacidade tornava os indivíduos vulneráveis a ofertas
políticas que reforçavam a dominação social. Isso permitiu estabelecer uma
ligação entre o conflito psíquico-libidinal, as disposições autoritárias em
indivíduos socializados no capitalismo monopolista e certos fenômenos
sociais como o nacionalismo autoritário ou o antissemitismo.
O conflito entre a necessária ocupação libidinal do próprio Eu para
resistir na luta cada vez mais feroz pela sobrevivência e a experiência de
impotência diante de mudanças estruturais incompreensíveis e pouco
influenciáveis é “resolvido” no caráter autoritário graças à ambivalência
entre submissão e rebelião, coagulada na psique daqueles que se agarram à
ordem existente. Essa personalidade autoritária permite-lhes encontrar uma
saída para o conflito interior, ao identificarem-se com a dominação
encarnada em uma figura pessoal e projetarem as agressões contra grupos
identificados como mais fracos.
Dessa forma, a partir da análise freudiana, é possível explicar por que o
caráter autoritário tem que direcionar a agressão contra grupos considerados
estranhos ou alheios. A fraqueza destes impede que a agressão seja dirigida
contra as autoridades do próprio grupo. O conflito intrapsíquico é projetado
sobre a relação entre o próprio grupo e os grupos declarados estranhos, o
que permite a descarga da agressividade e a identificação com a autoridade.
O resultado é uma paradoxal “rebelião conformista”: uma espécie de
combinação entre o prazer de obedecer e a agressão contra os indefesos. O
racismo, o chauvinismo nacionalista e o populismo autoritário agem como
uma espécie de “cura torta”, ou “pseudocura” (Schiefheilung), que
descarrega o sintoma individual por meio da participação no “sintoma
coletivo”. Essa cura errada só pode funcionar se as imagens e os mitos
nacionalistas ou autoritários permitirem uma integração ao coletivo, isto é,
se adquirirem o caráter de movimento de massas, cumprindo assim as
fantasias de onipotência e fusão.
Dessa forma, o “narcisismo coletivo” atua como um poderoso meio de
integração: o coletivo ou seu representante (como o senhor da guerra, o
líder) dispensa o teste da realidade e irradia uma promessa mágica de
salvação. Poderíamos dizer que atua como uma espécie de psicanálise
invertida: as fantasias que buscam reprimir e silenciar o conflito
intrapsíquico são reforçadas e mobilizadas politicamente, em vez de
conscientizarem do conflito e buscarem uma maneira racional de lidar com
ele. Como a descarga da tensão intrapsíquica é sempre precária e necessita
de contínuo reforço social, torna-se quase inevitável a tendência ao
fanatismo, à eliminação da dúvida, da crítica e da autorreflexão.
Eu diria que é “surpreendente” como essas reflexões são atuais em um
momento de profunda crise de reprodução do sistema capitalista, se eu não
partilhasse das palavras de Walter Benjamin nas Teses sobre o conceito de
história: “O assombro com o fato de que as coisas que vivemos no século
20 ‘ainda’ sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera
nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de
história da qual emana semelhante assombro é insustentável”.
Da “personalidade autoritária” ao “novo radicalismo
de direita”
DOUGLAS GARCIA ALVES JÚNIOR

A análise do autoritarismo não é um tema episódico ou superficial na obra


de Theodor W. Adorno. Como um fio vermelho, ela acompanhou as
diversas fases de seu pensamento, bem como os variados âmbitos de sua
produção, da dissertação filosófica à crítica musical, passando pelos
trabalhos mais especificamente voltados para a compreensão psicossocial
do antissemitismo, da mentalidade etnocêntrica e do potencial subjetivo de
adesão a plataformas políticas antidemocráticas. Caso maior dessa faceta de
sua atuação são os estudos da obra A personalidade autoritária, elaborados
nos anos 1940 e publicados em 1950. Esse trabalho seminal será uma das
referências principais de Adorno no final da década de 1960, quando esteve
às voltas com um crescente movimento autoritário de direita, na Alemanha.
Tentarei, aqui, traçar algumas das linhas fundamentais desse arco de
pensamento.
Antes de tudo, é preciso lembrar que a A personalidade autoritária foi
concebido e desenvolvido nos Estados Unidos, durante o exílio de Adorno,
que se seguiu à implantação do regime nazista na Alemanha. Adorno fez
uma boa síntese rememorativa desse percurso em seu artigo “Experiências
científicas nos Estados Unidos”. Por ora, é essencial indicar que esse
período estadunidense, rico em pesquisas empíricas nas áreas de estudos de
audição musical e de configuração da subjetividade política, foi também o
momento da redação conjunta, com Max Horkheimer, de uma das
principais obras filosóficas de Adorno e da tradição da Teoria Crítica:
Dialética do esclarecimento (1944).
Essa dupla face – teórico-filosófica e científico-empírica – do trabalho
de Adorno nos Estados Unidos responde fortemente por características
centrais de A personalidade autoritária. Gostaria de mencionar três: a) a
ideia de uma gênese social das configurações subjetivas individuais, em
suas propensões, modos de satisfação de seus conflitos psíquicos e maneiras
de lidar com figuras da alteridade inscritas no espaço social, tais como os
estrangeiros, entre outras; b) a apropriação da psicanálise como teoria
psicodinâmica que permite pensar o imbricamento entre modos de
comportamento individual racionalmente ajustados ao regime social de
reprodução da economia e, ao mesmo tempo, irracionais em seu
descompasso radical quanto às aspirações subjetivas à sociabilidade, à
autonomia e à felicidade; c) a orientação de uma teoria da sociedade, por
meio da qual a investigação empírica dos processos de formação subjetiva
dos indivíduos é pensada como atualização dos modos pelos quais as
tendências sociais dominantes são vividas como uma configuração
atomizada e sem sentido da experiência, como reificação.
Essa complexidade do pano de fundo teórico mais amplo dessa obra, que
já estava presente na Dialética do esclarecimento, recomenda cautela a
respeito de alguns tipos de interpretação apressada, contra as quais Adorno
não cessou de protestar. Assim, a gênese social das figuras da subjetividade
previne contra as interpretações que reduzem o autoritarismo a um
fenômeno estritamente da psicologia individual. De forma análoga, a
apropriação da psicanálise permite recusar a compreensão superficial do
autoritarismo como um fenômeno de mera falta de ajustamento do
indivíduo às demandas da racionalidade social. Por fim, o recurso à teoria
social evita a compreensão redutora que vê o autoritarismo como fenômeno
desvinculado da história, como se fosse um tipo de subjetividade observado
invariavelmente na história.
A melhor exposição, no interior da obra de Adorno, sobre a dialética
entre teoria social e investigação empírica psicossocial é “Introdução à
controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã”, um texto do final
dos anos 1960. A respeito do modo como as tendências sociais e políticas
mais abrangentes são vividas subjetivamente pelos indivíduos, cabe lembrar
a advertência que ele fez nesse texto: “o fenômeno singular [isto é, a
psicologia do indivíduo] encerra em si toda a sociedade, a micrologia [a
investigação empírica de tendências psicológicas individuais] e a mediação
[a teoria social] constituem contrapontos mútuos através da totalidade”.
Todo esse percurso ao redor das condições de inteligibilidade de A
personalidade autoritária encontrará sua justificação se permitir uma via de
acesso à compreensão do peso e do limite da dimensão psíquica, subjetiva,
individual, na constituição do fenômeno social, cultural e político do
autoritarismo. A esse respeito, uma afirmação de Adorno é exemplar e pode
fornecer uma chave de leitura ao sentido da obra: “O caráter potencialmente
fascista deve ser considerado como um produto da interação entre o clima
cultural do preconceito e as respostas ‘psicológicas’ a esse clima. O
primeiro consiste não apenas em fatores externos brutos, como condições
econômicas e sociais, mas em opiniões, ideias, atitudes e comportamentos
que parecem ser do indivíduo, mas que não se originaram nem de seu
pensamento autônomo nem de seu desenvolvimento psicológico
autossuficiente, sendo devidos ao seu pertencimento à nossa cultura. Esses
padrões objetivos são tão disseminados em sua influência que explicar por
que um indivíduo resiste a eles é tão difícil quanto explicar por que eles são
aceitos”. Em outros termos: se há algo como uma “personalidade
autoritária” ou um “caráter potencialmente fascista”, é porque, nas palavras
de Adorno, “estamos vivendo em tempos potencialmente fascistas”.
Foi essa questão que voltou com força quando, em abril de 1967,
Adorno fez uma conferência em Viena sobre o radicalismo de direita então
em ascensão na Alemanha. (O texto foi publicado pela editora alemã
Suhrkamp apenas em 2019, com o título “Aspectos do novo radicalismo de
direita”.) O contexto mais imediato da conferência fora dado pela ascensão
eleitoral recente do Partido Nacional-Democrático da Alemanha, o NPD,
partido de extrema-direita criado em 1964. O sinal de alerta fora dado em
1966, quando o NPD alcançou 7,9% em Hessen e 7,4% na Baviera –
integrando as assembleias daqueles estados. Temos, assim, portanto, 17
anos após a publicação de A personalidade autoritária, uma reflexão de
Adorno sobre uma nova configuração histórica. Nessa obra, ele se
empenhou particularmente em medir o que havia de propriamente novo na
cultura, na situação política e econômica e nas relações entre sujeito
psicológico e autoritarismo político-social.
É preciso lembrar, antes de tudo, as diferenças entre esse texto e sua
situação histórica com relação a A personalidade autoritária. Em primeiro
lugar, não se tratava de expor os resultados de uma pesquisa empírica de
larga escala, como fora o caso daquela. Além disso, Adorno não vivia mais
nos Estados Unidos, onde testemunhara a relação ambígua dos sujeitos com
o poder social, mediada pela grande força da indústria cultural. Ele estava
agora em uma Alemanha do pós-guerra, dividida entre a parte ocidental, a
República Federal da Alemanha, integrada à Comunidade Econômica
Europeia, e a parte oriental, a República Democrática Alemã, impactada
pela influência esmagadora da União Soviética e sob um regime de
“socialismo real”. Falando, portanto, a partir da Alemanha Ocidental,
Adorno não ignorava as enormes tensões culturais, políticas e subjetivas
desse arranjo instável. Ele falava a partir de uma Alemanha que se erguia
economicamente, mas que sofria as ameaças da inflação e do desemprego;
de um país que percebia os benefícios da integração econômica ao bloco
europeu, mas que sentia dolorosamente o isolamento da sua contraparte
oriental; uma Alemanha que experimentara uma derrota militar que arrasara
seu território, lançando vergonha ao sentido do nacionalismo, mas que
tentava se conectar com algum tipo de “identidade” nacional. É desse solo
que nascerão as sementes do “neofascismo” alemão.
Em “Aspectos do novo radicalismo de direita”, Adorno chamou atenção
para essa “base objetiva” do autoritarismo crescente naquele momento. Em
primeiro lugar, ressaltou que o fundamental nesses movimentos não é o
aspecto conjuntural, ligado a um evento ou a um líder específico, mas sua
relação com uma dimensão verdadeiramente estrutural, constituinte de
longa duração de tendências sociais. Esse elemento estrutural, para Adorno,
é a tendência à concentração do capital, que é aprofundada com a
automação dos processos de produção – o que leva a uma situação de
“desemprego tecnológico” cada vez mais perceptível para amplos setores da
população. Não por outro motivo, Adorno afirmou que o potencial
autoritário não se concentra em um grupo social específico, mas atravessa
as classes sociais. Essa situação estrutural gera uma enorme pressão de
adaptação dos indivíduos às demandas de produtividade. Essa pressão é
sentida não apenas em nível racional, consciente, mas registrada também
em nível inconsciente. Como o inconsciente precisa de suportes
personalizados e afetivamente imantados, ele desloca o ressentimento
agressivo contra o sistema econômico como um todo para alguns alvos
imaginários. O curioso é que esses alvos preferenciais são figuras
destituídas de poder econômico, como o intelectual e o artista. Segundo
Adorno, isso ocorre em virtude de, por um lado, essas figuras representarem
imaginariamente uma despreocupada falta de sofrimento com as pressões
sociais, e, por outro, por serem os viabilizadores mais destacados de críticas
ao sistema econômico e político vigente – o que poderia tornar consciente
aos indivíduos o caráter irracional de sua compulsão à adaptação social.
Essa passagem do econômico e social para o pessoal e subjetivo era,
para Adorno, a chave mais importante para entender o que, em “Aspectos”,
ele tornava a chamar de “personalidade autoritária” ou “caráter autoritário”.
Isso é importante, mais uma vez, para marcar a diferença de Adorno em
relação a uma abordagem psicológica do autoritarismo que entenda a psique
como um campo originário e fechado em si. Ao mesmo tempo, o aspecto
psicológico do fenômeno não pode ser descartado, devendo ser posto em
relação à experiência social mais abrangente. A personalidade autoritária,
assim, tem a ver com um bloqueio da experiência subjetiva do outro. Ou
seja, é a constituição de uma figura borrada e ameaçadora do outro (o
estrangeiro, o intelectual etc.) que emerge como o aspecto psicológico
básico do autoritarismo. Isso explica seu caráter projetivo, isto é, o fato de
que o preconceito é facilmente transferível de um grupo para outro: ele não
tem a ver com os membros desses grupos, mas com a estrutura de
personalidade dos indivíduos potencialmente autoritários. Na época de
“Aspectos”, Adorno indicou que esse ressentimento autoritário, além dos já
mencionados intelectuais e artistas, também era dirigido a entidades mais
abrangentes, como a “Europa”, o “americanismo”, ou ainda, o “socialismo”.
O fato de que o preconceito autoritário pode ser dirigido a alvos tão
díspares e converter-se ora em “antiamericanismo”, ora em
“antissocialismo” indicava, para Adorno, o caráter carente em teoria do
“novo radicalismo de direita”. Por isso, é importante investigar a relação
entre a propaganda autoritária, tomada em seus constituintes formais, e os
tipos de dinâmicas subjetivas mais afeitas a fazer um laço psíquico
(largamente inconsciente) com esse tipo de propaganda. Do lado da
propaganda, Adorno ressaltou três aspectos de sua técnica: o efeito
cumulativo de palavras destinadas a provocar algum tipo de aflição social
(Schreckworte), a flexibilidade de conteúdos ideológicos, que passam a
valer somente pela integração a uma plataforma autoritária mais ampla, e,
finalmente, a insinuação, a alusão indireta negativa a determinados grupos
sociais. O que é decisivo, aqui, é que, como disse Adorno, “A propaganda é
virtualmente a substância da coisa mesma, como antes, no tempo dos
nazistas. Quando os meios cada vez mais substituem os fins, quase se pode
dizer que, nesses movimentos radicais de direita, a propaganda se torna a
substância da política”. Uma propaganda que evoca signos de força, união e
autenticidade do grupo que pretende representar. Entretanto, no que se
refere à dinâmica psíquica, Adorno entendia que o público potencialmente
suscetível à adesão a esse tipo de propaganda era formado principalmente
por “aquele tipo psicológico que chamei em A personalidade autoritária de
‘tipo manipulador’ [...]: são pessoas ao mesmo tempo frias, sem relações e
orientadas para a tecnologia, isto é, pessoas que, em certo sentido, são
insanas, como foi o caso de Himmler, em escala prototípica”.
E o Brasil? O que essas análises teriam a dizer sobre o Brasil de hoje –
50 anos depois de “Aspectos do novo radicalismo de direita” e 70 anos
depois de A personalidade autoritária? A lição das coisas, para dizer com
Drummond, recomenda penetrar surdamente no reino das palavras. E o que
há para ouvir? A circulação ininterrupta de discursos de ódio, a gestação de
um senso comum neofascista, que prega a aniquilação do outro de classe, de
raça, de gênero e de religião. A formação da ideia de que não há bem
comum pelo qual lutar, mas apenas inimigos internos a derrubar: os índios,
os pobres, as “feministas” (eis um exemplo de Schreckwort, no sentido do
texto de Adorno), os artistas, os professores, os cientistas, os jornalistas. A
lista de alvos do ressentimento autoritário poderia continuar quase
indefinidamente. Caberia investigar o modo como esse clima cultural pode
se expandir tanto e por que ele ainda tem apelo a certos tipos de
subjetividade. A dificuldade de lidar com os aspectos estruturais e
fundantes de nossa história comum marcada pela violência e pela exclusão
tem a ver com esse momento pelo qual estamos passando. As identificações
subjetivas com estruturas de poder rigidamente hierárquicas, não
participativas e excludentes fazem parte da vivência não apenas da elite
brasileira, mas também das camadas médias. Se, como tem ocorrido há
séculos em nosso país, é bloqueada a experiência social com o outro de
classe, de gênero, de raça e de religião, as marcas subjetivas dessa falta de
relação se fazem sentir como preconceito. A leitura de Adorno, neste
momento, poderia levar a pensar em como sair desse círculo vicioso de ódio
e incompreensão.
ensaio

O Maquiavel de Mussolini
ALVARO BIANCHI

No início do século 20, as correntes nacionalistas italianas que depois


confluiriam no fascismo procuraram reivindicar as ideias de Nicolau
Maquiavel como um expoente da cultura nacional e um teórico do Estado-
força. O intelectual que deu forma a essa operação foi Francesco Ercole,
futuro reitor da Universidade de Palermo e ministro da Educação da Itália
fascista. Em seu livro de 1917, Lo Stato nel pensiero di Niccolò Machiavelli
[O Estado no pensamento de Nicolau Maquiavel], Ercole inseria as ideias
do secretário florentino no próprio processo de construção do Estado
italiano, apresentando-o, desse modo, como um precursor do elitismo e do
nacionalismo.
A chave dessa primeira leitura de Ercole estava na redução que
promovia do conceito maquiaveliano de virtù à energia da vontade e à
força, consideradas substâncias vivas do Estado. O futuro professor de
Palermo achava, entretanto, necessário distinguir uma virtù passiva, capaz
de fundar e reordenar o Estado, de uma virtù ativa, a qual dá forma ao povo
e à coletividade, permitindo, desse modo, manter o Estado. De acordo com
Ercole, essa virtù ativa não seria atributo coletivo, e sim individual, “isto é,
de apenas um indivíduo, ou, no máximo de um número restrito de
indivíduos”.
O caráter fortemente elitista e autoritário desse discurso ficaria evidente
nos escritos que Ercole publicou na década de 1920 na revista Politica,
dirigida pelos fascistas Alfredo Rocco e Francesco Coppola, depois
reunidos no livro La politica di Machiavelli, de 1926. Nesses textos,
Maquiavel era mobilizado para combater o liberalismo individualista e
alinhar-se com uma concepção orgânica da política na qual os interesses
individuais e egoístas seriam subordinados a uma vontade moral encarnada
no Estado.
Os artigos de Ercole influenciaram diretamente Benito Mussolini, o qual
desejou escrever uma tese de láurea que deveria ser apresentada durante
uma planejada homenagem na qual receberia o título de doutor honoris
causa da Universidade de Bolonha. Ao encontrar Ercole, então reitor da
Universidade de Palermo, em maio de 1924, il duce o abraçou e contou seu
projeto: “Estou estudando os escritos sobre Maquiavel que você publicou na
Rivista Politica. São muito úteis para a tese que estou preparando”. Muito
embora o chefe de governo tivesse pensado até no título – Vademecum per
l’uomo di governo [Vademecum para o homem de governo] –, a tese não foi
finalizada. Seu prefácio, entretanto, foi publicado pela revista Gerarchia em
abril de 1924, com o título Preludio al Machiavelli.
Mussolini pretendia encontrar em Maquiavel um contemporâneo e um
conselheiro do fascismo. Do florentino, il duce destacava sua forte
percepção negativa a respeito da natureza humana: “homens, segundo
Maquiavel, são tristes, mais afeiçoados às coisas que ao próprio sangue,
prontos a mudar sentimentos e paixões”. Essa natureza egoísta tornaria o
povo incapaz de produzir uma ordem política. Mussolini lia Maquiavel com
os olhos de Gustave Le Bon, para quem a multidão de indivíduos
“inconscientes e brutais” é capaz de destruir civilizações mas não de
construir uma. Esse juízo, para o autor do Preludio, continuaria válido
contemporaneamente.
Desse diagnóstico da natureza humana, Mussolini deduzia uma oposição
entre o povo e o príncipe, os indivíduos e o Estado. Se uma multidão de
indivíduos submetidos às próprias paixões produziria a desordem e o caos,
caberia ao Estado promover a ordem e acabar com a anarquia. Os
indivíduos tenderiam “a desobedecer às leis, a não pagar os impostos, a não
fazer a guerra”. O Estado deveria obrigá-los a agir de modo adequado. O
conceito de política que organizava o Preludio inspirava-se nas ideias de
Francesco Ercole e não ocultava seu caráter autoritário: “política é a arte de
governar os homens, isto é, de orientar, utilizar, educar suas paixões, seus
egoísmos, seus interesses, em vista de questões de ordem geral”, escrevia il
duce. Para Mussolini, a ideia de que o poder do Estado é uma emanação
livre da vontade do povo, pedra angular do liberalismo, não passava de
ficção e ilusão. Sem o Estado, nem sequer existiria esse ente denominado
povo, apenas uma multidão de indivíduos.
O Preludio al Machiavelli era um prefácio à fascistização do regime
político italiano, o que de fato ocorreria poucos meses depois. A abertura do
texto já expunha seu argumento. Mussolini narrava ter conhecido uma
pessoa das legiões negras de Ímola, a qual possuía uma espada com um
dístico atribuído a Maquiavel: “Com palavras não se mantêm os Estados”.
A oposição entre o povo e o Estado encontraria solução apenas no uso da
força e da coerção: “É, portanto, imanente [...] o dissídio entre a força
organizada do Estado e a fragmentação dos indivíduos e dos grupos.
Regimes exclusivamente consensuais nunca existiram, não existem,
provavelmente nunca existirão”.

A CONSOLIDAÇÃO DO FASCISMO

O Preludio mussoliniano reabriu a polêmica sobre o legado de


Maquiavel na Itália. A qualidade da literatura produzida nesse contexto
variou muito. Giuseppe Prezzolini, por exemplo, concluiu seu livro Vita di
Nicolò Machiavelli fiorentino (1927), transformando seu personagem
principal em um contemporâneo, o qual teria procurado “dar bons
conselhos a [Francesco] Crispi, do qual gostava de seu espírito autoritário e
de seus lances arriscados, mas por quem nem sempre foi ouvido. Preparou
para [Antonio] Salandra a declaração de guerra contra a Áustria e
acompanhou [Benito] Mussolini em sua Marcha sobre Roma”. No mesmo
ano, Luigi Russo escreveu duas notas sobre Maquiavel, nas quais, embora
não citasse Mussolini, criticava explicitamente as interpretações dos
fascistas Giovanni Gentile e Francesco Ercole. Em 1931, foi a vez de Russo
publicar seus Prolegomeni a Machiavelli e uma antologia de escritos
maquiavelianos que organizou. O sucesso editorial dos textos de Russo
despertou a ira das autoridades fascistas e o próprio Francesco Ercole, na
época ministro da Educação, proibiu a divulgação daquela antologia nas
escolas italianas.
Nesse ínterim que vai do Preludio de Mussolini aos Prolegomeni de
Russo, o regime fascista havia se consolidado. Em 10 de junho de 1924, o
deputado socialista Giacomo Matteotti foi sequestrado e assassinado por
uma squadra fascista. Seu corpo foi encontrado apenas em 16 de agosto. O
envolvimento de Mussolini no episódio era evidente. Seguiu-se uma grave
crise política, que pôs o governo fascista em sério risco. Em meio à intensa
polêmica que envolveu o chamado delitto Matteotti, Mussolini acabou por
rejeitar o título de honoris causa. Todas as solenidades já haviam sido,
entretanto, preparadas pelas autoridades universitárias e o diploma emitido,
mas ele nunca foi assinado nem entregue ao homenageado.
Apenas a partir de 3 de janeiro de 1925, com seu discurso no
Parlamento, Mussolini retomou o controle da situação e lançou a
contraofensiva, encerrando a crise política que se arrastava desde o
assassinato de Matteotti. Mais tarde, com as chamadas “leis fascistíssimas”
de 1925 e 1926, promoveu uma enorme restrição das liberdades políticas e
civis, consolidando um novo regime fascista e mandando para a cadeia seus
opositores. Com o novo regime, realizava-se a virtù ativa, preconizada por
Ercole, e a multidão de indivíduos era finalmente submetida à força do
chefe de Estado.
A ideia de um Maquiavel fascista é evidentemente anacrônica. A ideia
de estados (stati, no original, com letra minúscula), que abre O príncipe, é
fortemente pré-moderna e muito mais ambígua do que Mussolini dá a
entender. E, se o florentino em vários momentos de sua obra identificou o
estado com o príncipe, ele também o identificou com o povo que governa
na República – em especial com o povo que governava sua amada Florença,
antes de os Medici a subjugarem. Mas o Maquiavel de Mussolini não
poderia ser popular. Para tornar-se partidário do fascismo, antes foi preciso
que ele fosse convertido à força em elitista autoritário.
colaboraram nesta edição
Alvaro Bianchi é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor
livre-docente da mesma instituição. 
Douglas Garcia Alves Júnior é doutor em filosofia pela UFMG e
professor associado do Departamento de Filosofia da UFOP. Autor de
Depois de Auschwitz: a questão do antissemitismo em Theodor W. Adorno
(Annablume), Dialética da vertigem: Adorno e a filosofia moral (Escuta) e
Adorno material: ensaios de Teoria Crítica (Editora UFOP)
Haroldo Sereza é jornalista e crítico literário. É diretor de redação do
Opera Mundi
José A. Zamora é doutor em Filosofia pela Universidade de Münster
(Alemanha) e professor titular do Instituto de Filosofia do Centro de
Ciências Humanas e Sociais de Madri. É autor de Th. W. Adorno: pensar
contra la barbarie (Editorial Trotta)
Rodrigo Duarte é doutor em Filosofia pela Universidade de Kassel
(Alemanha) e professor titular do Departamento de Filosofia da UFMG.
Autor de Adorno/Horkheimer e a dialética do esclarecimento (Zahar) e
Adornos: nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano (UFMG)
Virginia Helena Ferreira da Costa é doutora em Filosofia pela USP

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