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entrevista
Salloma Salomão
“Se a gente não entender a
colonização, nós não entendemos o
racismo e nem a classificação racial,
que gerou a categoria pardo.”
autoaceitação
“Eu acho que o pardo é X. Não é
uma discussão que você tem que
ter hoje em dia.”, afirma estudante
Daniel NiCastro
dossiê
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O distanciamento
O
que fazer quando não se é pardo, eu não sei o que é o pardo.”
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A
não enxerga, e a que está consciente, ser formados apenas e tão somente
na Carolina Barbosa é estudante mesma se compara ao citar situações
começando a se enxergar como ela é.” baseados em características físicas. Esse
de engenharia da computação, de discriminação policial que um amigo
Contudo, não é difícil de se ponto é corroborado na interpretação
mora no centro de São Paulo e próximo já sofreu: “Eu lembro que ela
indagar: se existe a definição do IBGE de Rafael Marques sobre as diferenças
se auto considera parda. Ainda assim, comentou alguma coisa do porque meu
de acordo com os critérios pré-estabele- de ancestralidade entre a raça parda e
mesmo o tom de pele mais claro, cabelo tava amarrado, alto, alguma
cidos para as cinco raças, porque tanta as outras na definição do IBGE, quando
mesmo o cabelo tingido em vermelho, coisa assim. Não lembro tudo, tudo,
confusão? A resposta reside no fato de o estudante ressalta que a história das
ou tampouco o perfil esguio seria capaz tudo. Porque faz tempo [ocorreu em
que essa classificação passa diretamen- raças branca, preta, amarela e indígena
de impedir em uma visita ao Villa Mix, 2016], mas eu nunca esqueci esse dia.”
te pelo autorreconhecimento individu- precede a criação e ocupação do Brasil,
casa noturna na Vila Olímpia com
al, que por sua vez puxa muito mais com costumes e crenças mais consoli-
perfil elitista, que Ana fosse alvo direto Expansão imperial discriminatória
impressões, conhecimentos, vivências e dados. Do ponto de vista cronológico,
de discriminação. As questões da miscigenação, do
experiências do ponto de vista étnico. de indicadores sociais como a renda
“Eu tava com um macacão preto racismo e da construção da sociedade
A distinção entre os conceitos de raça familiar per capita de acordo com a
com uma listra branca, eu acho que brasileira remetem todas à chegada
e etnia, embora sutil, abre uma grande raça, ou mesmo de acordo com o índice
eu estava pleníssima, eu estava vestida européia nas terras do país, a partir
margem para variadas interpretações de oportunidades de ascensão social
como o local pede, e a menina pediu o de 1500. A dinâmica entre racismo
em relação do autorreconhecimento para as classes, indicam a pressuposição
isqueiro emprestado pra mim, e depois e colonização é diretamente ligada
racial, como a de Daniel que afirma ser cultural de raízes ligadas a conceitos
que eu emprestei eu peguei de volta, ela à imposição social europeia, como
pardo e ainda assim duvida da existên- como o da branquitude e da negritude
virou pro amigo dela e começou a ques- exemplifica o historiador e africanista
cia da raça parda, por exemplo. que vêm anteriormente à classificação
tionar, tipo: ‘ai, que menina feia!’ [...] autodeclarado preto Salloma Salomão,
A geógrafa Maria Alice Oliva au- técnico racial como a que usa o IBGE,
tava bem nítido que eu não estava me ao citar que “o racismo nasce da
todeclarada como branca, explica que tanto no sentido prático quanto no de
encaixando naquele padrão, por tudo dominação”. Segundo Salloma, a classi-
raça é um conceito majoritariamente autorreconhecimento. A explicação
que ela falou”. ficação dos seres humanos em raças leva
social e de hierarquização, já que separa desse fenômeno reside nas origens da
A estudante completa ressaltan- diretamente a dois conceitos bastante
os seres humanos em grupos de acordo construção social brasileira: o racismo
do como a discriminação a marcou próximos entre si, que são o racismo e
com características físicas, morais e e a hierarquização social.
mesmo não sendo retinta, como ela a colonização: “Se a gente não entender
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“
mercadoria para os donos de terras - a
Não é uma história de
escravidão negra durou entre 1530,
o ano da chegada da primeira embar-
A perpetuação da ideologia
romance, é uma história de
violência
cação vinda da África no país e 1888,
quando foi legalmente abolida. racista
Patriarcado e a cultura de abuso sexual A INVIABILIDADE DA ECONÔMICA DA ESCRAVIDÃO, A ABOLIÇÃO,
a colonização, nós não entendemos o Porém haveria ainda mais um E A PROPAGAÇÃO SOCIAL E CULTURAL DO EUROCENTRISMO
racismo e nem a classificação racial, fator. Por serem em grande maioria
que gerou a categoria pardo”. homens, os portugueses trazem consigo
Salloma detalha as razões e uma visão de sociedade patriarcal. O
crenças iniciais europeias para a adoção resultado disso recaiu em violência
dos critérios raciais: “Os europeus e depreciação às escravas negras, às RODRIGO SERAPHIM
descobriram que havia pessoas diferen- mulheres indígenas e é o primeiro
O
tes deles e precisavam arrumar uma embrião da miscigenação no Brasil, cenário de hierarquização 100 anos não teriam mais negros no
explicação pra isso. Em um primeiro como disserta Salloma: “O começo da racial da sociedade brasileira Brasil”.
momento, a explicação era Deus. mestiçagem de brancos europeus com as encontraria respaldo científico,
Deus criou pessoas parecidas com a mulheres indígenas e com as mulheres político e cultural a partir das ideologias O embranquecimento como cultura
gente, mas diferentes, porque elas não negras, não é uma história de romance, deterministas dos séculos XVIII e XIX Para tal objetivo, o governo
acreditam em Deus, elas não têm orga- é uma história de violência. Homens, - todas baseadas no naturalismo, no brasileiro passa a investir fortemente
nização social, elas não têm economia. em sua maioria, chegavam aventurei- eurocentrismo e na eugenia. na imigração de cidadãos europeus
Elas são parecidas, mas são diferentes. ros em busca do ouro. [...] Achavam O resultado prático torna-se a para a substituição da mão de obra
[...] Como essas pessoas reagiram [à natural o sexo com violência. Então essa adoção da teoria do e embranque- escrava, além de incentivar à misci-
imposição da cultura europeia], os primeira mestiçagem, do século XV e cimento que, como explica Salloma genação e, conforme cita Salloma, a
europeus começaram a dizer que elas XVI, ou até mesmo no século XIX foi Salomão, defendia a “ideia de que o “também produzir uma ideologia de
eram: Violentas, preguiçosas e princi- oriunda de violência sexual.” o cenário Brasil, para ser um país respeitado in- branqueamento” que “deveria entrar
palmente feias.” é corroborado pela socióloga Valdirene ternacionalmente, não poderia ser um no pensamento da sociedade.”
A partir daí, a construção social Gomes, ao citar que a miscigenação no país de negros e indígenas”. Justamente “Nós somos herdeiros dessa visão
brasileira desenvolve com uma elite, Brasil “nasce antes a questão da cor de essa prerrogativa, que baseava-se no de mundo, dessa ideologia criada pelas
majoritariamente de brancos vindos pele”, oriunda desde o início da colônia racismo científico “levou parte da inte- elites, de que existe uma raça ideal, a
de Portugal, os nativos indígenas em e que tem como recorrente “os estupros lectualidade brasileira a procurar alter- branca, e que os mestiços, os negros e
parte catequizados e os escravos, em das mulheres negras e indígenas que nativas para se atingir esse objetivo” - de os indígenas são raças párias, que não
sua maioria africanos trazidos como vão ter filhos mais claros.” transformar toda a população brasileira deveriam existir ou não deveriam estar
em branca, teoricamente desenvolvida. na sociedade brasileira” O historiador
Valdirene Gomes, neste sentido, cita o completa citando as eleições presi-
médico e cientista carioca João Batista denciais de 2018 e o atual governo do
de Lacerda que, no congresso das raças Brasil: “A prova disso é que alguém
em 1911 apresentou um documento que defende abertamente essas ideias
“falando que o prognóstico era que em racistas hoje é o presidente da república.
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uma despreocupação que se tinha em tinha uma tendência a não querer se
Brasil foi construído com grande classificação racial é formada buscando
termos de pensar em políticas repara- identificar com isso. Pessoas que não têm
diversidade racial. Desde o traduzir a que nível estava a mestiçagem
tórias para pessoas negras com uma consciência a não querer se identificar
início da exploração de terras, de pele do século XIX, as categoriza-
questão de que o processo de ‘o Brasil com o que é oprimido, assim como as
as cores e culturas se transformam ções sofreram diversas mudanças. A
que a gente quer’, e esse não era um pessoas emergentes que querem ter as
unindo-se às origens de fora do país. O partir das descrições de raça da época,
Brasil negro.” mesmas coisas que os outros têm sem
processo de miscigenação e imigração os estereótipos foram criados. Diante
pensar na própria vida”.
aos longos dos séculos XIX e XX mudou do ponto de vista europeu, os padrões
Divisão social: brancos x não-brancos O cenário deixou como única
radicalmente as divisões de classe e antigos e atuais de aparência, religião e
Como aponta Maria Alice, os opção às camadas não brancas, por con-
raça. Misturou o tom avermelhado conduta foram moldados como explica
cidadãos miscigenados, com diversas sequência, agarrar-se em toda e qualquer
dos índios à pele alva dos europeus. Salloma Salomão: “Essas pessoas aqui
origens étnicas e manifestações físicas representação branca socialmente ou o
Incorporou os retintos africanos a cada descobertas não iam reagir. Quando
da mestiçagem são hoje socialmente mais próximo possível. Transformou
nova terra encontrada. Atualmente, essas pessoas começaram a reagir, os
denominados como pardos. Contudo, em mais vantajoso se declarar ou
a nação é dividida racialmente entre europeus começaram a achar que elas
a categoria que nos dias atuais possui mesmo enxergar como branco ao
brancos, amarelos, indígenas, pretos não eram tão humanas assim. Se fossem,
e discute suas influências e sua ances- invés de pardo, como pardo ao invés
e pardos. Distinguidas pelo IBGE, as iriam aceitar de bom grado a divindade
tralidade já foi outrora dividida pelo de preto e este cenário possibilita
cores/raças estão diretamente ligadas que os europeus levaram. A fé que eles
ventre. De acordo com Salloma, nos exemplos como o que Mateus cita, ao
a conceitos culturais de hierarquiza- levaram, que era o Cristianismo. E a
séculos passados a herança familiar era observar sua colega de classe tentando
ção social. Tal processo transforma exploração”.
o fator primordial naquilo que poderia desgarrar-se da feição e do tom de pele
a ancestralidade cultural e étnica em A categoria ‘parda’ foi introduzida
definir o futuro de um mestiço após seu negro. Ou mesmo o exemplo que Ana
tão importante quanto a tonalidade em 1872, no primeiro censo oficial do
nascimento. descrevia após se sentir constrangida
da pele de cada pessoa no processo de governo brasileiro - último do regime
“Quem determinava o seu lugar em uma casa noturna simplesmente por
autorreconhecimento. imperialista que acabaria em 1889. Essa
dentro da estrutura dividida entre não seguir o padrão físico do local. A
O Brasil herdou os estudos popu- categorização significou em grande
escravizados e escravizadores era o herança da escravidão foi perpetuada
lacionais de raça como patrimônio do parte os traços nebulosos que estão na
ventre. Se você nascesse de pele clara, pela ideologia do embranquecimento.
Império. Entre constantes alterações, a identificação e reconhecimento de cada
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brasileiro ainda hoje. A categorização Ainda com ideais totalitários O surgimento do termo tam- o termo veio como uma forma estatal
racial é uma ramificação da ciência que encobertos, o IBGE nasce na metade e intelectual de promover a igualdade
resultou na terminação ‘pardo’, como década de 1930. Salloma Salomão bém está atrelado à privação apenas em discurso, sem mecanismos
explica Salloma: “A classificação racial, reforça como o órgão também foi usado do direito intelectual de pre- eficientes de equidade.
aparentemente científica, que gerou a com uma estratégia de controle social. tos e pardos Apoiado nas benfeitorias da
categoria pardo. A colonização, a raciali- “O IBGE é um órgão público, é um miscigenação, esse tipo segmentado
zação ou a compreensão da diversidade órgão do governo federal e é um órgão de democracia, segundo Maria Alice,
humana, a partir da categoria raça, que que foi criado durante do governo de é mito: “Considerando que o Brasil
gerou a categoria, ou classificação, das Getúlio Vargas, com a finalidade de encontro das ideias do estudante João, de fato é um país miscigenado, não há
pessoas pardas”. conhecer melhor a sociedade brasileira autodeclarado negro. democracia racial, o Brasil é um país
Entre histórias tortuosas que para governar melhor, governar com “Eu vejo muita gente julgando só racista, mas houve uma miscigenação e
reforçam a segregação velada, a geógrafa autoritarismo”. pelo tom de pele, mas acho que outras essa miscigenação é uma característica
Maria Alice ressalta que cada humano Na vertente racial, o IBGE características devem ser levadas em da população”.
miscigenado era ilustrado de maneira atualmente trabalha com pesquisas de consideração e uma delas é o cabelo. Muito exaltada no período de
que fortalecesse o imaginário discri- autoidentificação para além do tom de Eu acho que o cabelo, como é a raiz do Ditadura Militar, a Democracia Racial
minatório: “Nos livros de geografia e pele, englobando também o fenótipo e cabelo da pessoa, define bem de qual atingiu um nível quase ditatorial, como
história eles apresentavam como se a cultura descendente, indo assim de raça ela é”. explica Salloma: “As pessoas no Brasil
fosse uma equação. Então assim até eram identificadas ou como índios, ou
tinha uns desenhos bem estereotipados: Democracia Racial como negros, ou como brancos, como
o branco + índio = caboclo, branco + Com o objetivo de alcançar uma mestiços. Para classificar toda essa
negro = mulato, que é uma palavra de harmonia ideal entre todas as descen- população dentro do Estado Nação
origem extremamente racista”. dências, bem como destituir a ideia durante uma ditadura, durante um
A geógrafa segue explicando das diferenças raciais “inatas” que governo autoritário, foi parda”.
que com a necessidade de averiguar acabaram bastante evitadas em todo o Como separação e mistura,
as mudanças raciais e implementar mundo após os eventos de genocídio assim como aborda Lilian Schwarcz,
medidas de contingência a população nazista durante a Segunda Guerra o surgimento do termo também está
preta e mestiça, os censos serviram Mundial, surge a democracia de raças. atrelado à privação do direito intelectual
de ferramenta de pesquisa para o O conceito sumariamente resume a de pretos e pardos. Assim sendo negados
mapeamento social das necessidades raça brasileira em uma só a partir da ainda hoje de exercer uma narrativa
do país, no sentido de desenvolvimento miscigenação que teoricamente trans- real e afrodescente, a Democracia
da nação, o que resultaria diretamente formaria os cidadãos brasileiros em Racial atinge um efeito dominó que é
nas limpezas eugênicas: “Aqui a gente homogêneos racialmente e em opor- maximizado no sistema de ensino do
tem uma política de branqueamento, tunidades sociais, descartando assim Brasil, como completa Maria Alice:
que é a de imigração, que começa lá a importância da discussão dos efeitos “Na formação de professores, como vai
no final da escravidão. o negro servia de eventos históricos, por exemplo, a ensinar cultura afro-brasileira e africana
pra trabalhar, mas na hora que acabou escravidão e o processo migratório que se nunca aprendeu sobre isso?”.
a escravidão, aí já começa toda aquela tinham por objetivo extinguir pessoas Desta forma, a ocupação de
ideologia que o negro não serve pro pretas e mestiças. Entre os artifícios cidadãos pretos, pardos ou mesmo
trabalho”. das tentativas de apagamento histórico, indígenas em nichos sociais de elite no
Maggie Stephenson
When you are one with your plants
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despontam os movimentos raciais. A pele clara, começaram a se identificar
uando se fala de cotas, é percep- em consideração que tal medida
fim de fomentar a busca pelos direitos como negros. De certa maneira elas
tível se tratar de uma questão não garantiu a verdadeira liberdade
igualitários de raça, ativistas partem tiveram acesso a essa contra ideologia
que divide muitas opiniões; nas escravagista.
do princípio de incentivar o autorre- racial. Esses movimentos são contra
redes sociais, em ambientes acadêmi- A disparidade de heranças
conhecimento, que afirmaria assim a ideologias raciais, tem por objetivo
cos, existem aqueles que dizem tratar sociais herdadas pelos grupos após a
negligência em volta da categorização criar consciência racial antirracista,
de uma política adequada, enquanto abolição é questionada por Salloma
de raça feita durante toda a construção criar uma mentalidade nova e quem
outros se posicionam contra por Salomão: “A hegemonia branca, os
do país e especialmente no período sabe no futuro buscar uma igualdade
acreditar que todos são capazes e que brancos ou descentes de europeus,
militar. Assim, a partir de pressões entre pessoas de diferentes origens”.
não deveria haver diferenças. quando terminou a colonização e veio
sociais, pretos e pardos são unidos em Entre ações e políticas afirmativas,
Tal questão pairava sobre a cabeça a independência, eles herdaram os bens
uma única racialidade. O período e iminente desde o fim da escravatura
de Daniel Nicastro, estudante que se e todo o sistema de poder que existia
a luta são destrinchados por Salloma com a busca por educação e inserção
considera pardo por não se enxergar na época de Colônia. Os indígenas, os
Salomão: “Foram os movimentos no mercado de trabalho, por exemplo,
nem branco, nem preto: “cota racial negros, os mestiços nascidos de mães
negros, percebendo a dificuldade dos as mobilizações populares negras então
sempre foi um assunto que transitou escravizadas herdaram o que?”
mestiços de se identificarem como des- surgiram como um ponto de fuga para
nesses anos políticos para mim, porque Portanto, faz-se necessário
cendentes de africanos, que propuseram aqueles que estavam à margem das rei-
eu achava errado você ter cota por ser entender que muitos, sejam de origem
ao IBGE, na década de 1970, que se vindicações comuns de classe.
preto, porque você poderia ser um indígena ou afrodescendente, não
preto rico.” obtiveram recursos iguais as demais
No entanto, há de considerar etnias para seu desenvolvimento e
que o Brasil foi descoberto em 1.500 e que ainda hoje as diferenças se fazem
desde então passaram 388 anos até que presentes e determinam as oportuni-
houvesse a abolição dos escravos. Não dades daqueles que sentem na pele a
se pode admitir que houve justiça no marca dessa história.
que tange a um desenvolvimento iguali- Salomão segue apontando as
tário dos brasileiros, tampouco levando desigualdades do período pós-colonial:
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“os brancos herdaram: as terras, o mais de acesso de uma população histo- Cotas podem garantir que a A importância das cotas
sistema burocrático da Colônia, as ricamente prejudicada.” grande parcela da sociedade A questão das cotas é, sobretudo,
riquezas, porque eles não foram des- uma questão de empoderamento, por
tituídos das suas riquezas, e passaram Bancas avaliadoras
menos favorecida tenha o assim dizer. A socióloga Valdirene
do período colonial para a indepen- Com o direito conquistado e a poder de decidir mudar a Gomes reflete: “O fato dessas pessoas
dência sem perder nada. Os negros, os oportunidade de mudar o rumo da própria realidade se formarem, a questão da representa-
indígenas, além de não receber nada, história, passam nas Universidades tividade, de mudar os lugares de poder
eles receberam um pouco mais de com o auxílio do sistema de cotas, mas deveria ser o critério utilizado para é um reflexo disso. É uma complexação
pressão, porque antes os donos efetivos ainda encontram um outro obstáculo validação. Todavia, segundo entendi- das cotas; não é o objetivo dela em si,
do patrimônio, do grande patrimônio, pelo caminho: as bancas de avaliação. mento do STF, em caso de dúvidas, a mas sim sua consequência.”
eles não ficavam no Brasil, eles ficavam É nessa etapa em que os candidatos às comissão de avaliação racial não pode Seguindo a reflexão, o psicólogo
lá na metrópole.” vagas passam pelo processo em que se valer apenas do parecer fenotípico”, Raul Gomes que se autodeclara negro
Como dito pelo estudante de avaliadores validam a autodeclaração completa a advogada. garante que é sim uma questão de
jornalismo João Barros de 22 anos, “as ou não. Isso se dá por conta de que autoestima. “É muito bom firmar que
cotas na verdade têm um sentido maior, As cotas raciais, num primeiro as características físicas por si só são condições históricas e externas,
é um sentido de reparação. A gente viu momento são distribuídas pelo sistema não garantem que historicamente o que fazem a pessoa questionar a sua
que o estado identificou que os negros de autodeclaração e são destinadas à indivíduo tenha tido algum privilégio capacidade e a sua segurança, por
estão atrás dos brancos porque as opor- pretos e pardos. A discussão acerca de durante a sua formação. “De acordo conta de ser um ambiente majoritaria-
tunidades estão só para os brancos por quem de fato é pardo, torna a dividir com o STF, em caso de dúvidas acerca mente e historicamente ocupado por
uma desigualdade social.” a validação do sistema sobre o que é do enquadramento racial, o fenótipo pessoas brancas. Quando as pessoas
A implementação do atual fraude e o que é fidedigno. isoladamente não seria critério sufi- que não são brancas, no caso do Brasil,
sistema de cotas aconteceu no Brasil Salloma destrincha a função e ciente para avaliação dos candidatos, adentram espaços majoritariamente e
em 2012. Maria Alice, já inserida na os protocolos de atuação das bancas: havendo a necessidade de uma análise historicamente ocupados por pessoas
carreira docente na época, relembra “Quando há alguém que não é negro, do histórico familiar e cultural para fins brancas, isso vai gerar uma intimidação
a resistência quanto a nova medida: não tem origem africana, nem na de classificação”, concluiu Sara. a princípio, a pessoa ela pode não sentir
“Das próprias universidades que lutam aparência e nem no traço, essas pessoas Quando questionada sobre o como alguém que merece estar naquele
em adotar”. A geógrafa ainda aponta a são denunciadas e as fraudes são reais, sistema de cotas por autodeclaração, lugar, não sentir capaz.”
incoerência em meio aos discursos. “A elas não são invenções, são reais. a estudante Ana Carolina acredita Olhar para uma sociedade tão
gente tem os dois sistemas de cotas, o Quando isso ocorre, a comissão é que que essa seja a melhor maneira de se diversa étnica e culturalmente e com-
que é muito interessante. Em um, as vai avaliar, mas não é julgar, quem julga adentrar nesse sistema, desde que a preender que existem muitas visões que
pessoas acham que tudo bem, que é é o sistema judiciário”. declaração seja consistente. “A pessoa não são contempladas e consideradas,
justo e lindo. ‘Mas e a cota para negros A advogada Sara Santos completa precisa ser coerente com o que está por haver pouco estímulo a textos pro-
e indígenas? Ah não, essa não!’”. explicando o modo de operação no falando, realmente se enxergar assim. duzidos e aclamados por escritores não
Diante as contraposições, Maria trata âmbito das instâncias judiciais: “Depois Se ela afirma que é ‘parda pra certos brancos, traz à tona outro ponto impor-
o sistema como um ato de acessibilida- de denúncias de supostas fraudes rea- momentos e branca pra outros’, isso tante das cotas nos centros acadêmicos.
de: “Apesar de algumas pessoas não lizadas na distribuição das vagas, o não é válido. Ou ela é parda, ou ela é Sobre da falta de representativida-
gostarem, a lei de cotas aconteceu e Ministério Público Federal (MPF) re- branca. Parte do princípio da verdade: de no sistema educacional, o psicólogo
a gente tem aí, inclusive na USP, nas comendou a diversas universidades do ‘se digo que sou parda então eu sou levanta questões acerca da baixa au-
universidades federais, um pouquinho país que o fenótipo, e não a ascendência, parda, acabou’. É isso, vida que segue.” toestima intelectual. “Quando ela vê
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o poder de decidir mudar a própria fim de obter respostas dos seus coloca para a mistura de negro com
realidade, de sonhar em ir tão longe alunos, a professora Maria Alice branco, mas não necessariamente essa
quanto nenhuma geração da família possui o hábito de questionar população passa a se ver como negra.
pôde chegar antes. nas aulas da Geografia que ministra: Isso é muito importante”.
O cenário é ilustrado por Ana “Que cor que você é? Qual a sua cor/ Portanto, torna-se fundamental o
Carolina: “O crescimento da população raça?”. A professora explica: “pergunto entendimento das origens e a urgência
parda, partindo de um ponto socio- para cada um e sempre vi em todas as em se desprender daquela “referência
econômico ao se pensar em uma turmas, todas as escolas, em todas as do sujeito branco europeu”, como
Universidade privada, quase se não aulas em que repito isso, que muitas descreve o psicólogo Raul Gomes.
vê negros lá. Porque jamais que há pessoas têm dificuldade em se auto Entender quais as próprias raízes, em
um tempo atrás um negro periférico declarar”. que grupo étnico-racial cada indivíduo
ia falar: ‘eu tenho a possibilidade de Além da autoidentificação, existe se encaixa são alguns dos questiona-
fazer medicina em uma Universidade uma necessidade cada vez maior mentos que muitas pessoas seguem sem
renomada, como a USP’. Nem que de debate sobre a autoaceitação. respostas.
seja por cotas, isso vai garantir que ele Autoaceitação, ao pé da letra, significa De cabelo cacheado, nariz arre-
tenha essa possibilidade, que ele tenha aceitar a si mesmo, aceitar característi- dondado, boca carnuda e de pele clara,
esse mesmo direito que um riquinho cas e sentimentos próprios, respeitar e o estudante Rafael se declara branco
branco tem.” gostar de si mesmo. Contudo, o conceito e ao ser questionado sobre as etnias,
O estudante Mateus Neres engloba ainda mais, é um processo responde de forma clara e objetiva
reitera: “Então as cotas nasceram para necessário para a própria evolução de “a cor parda não existe”. Apesar de
fazer essa reparação histórica. Nas uni- bem-estar dos indivíduos. Maria Alice afirmar que possui traços de negritude,
versidades que tinham 95% de brancos, explica: “Essa autodeclaração é impor- Rafael não se identifica com eles em
Maggie Stephenson
criou-se uma política para aumentar Cattails tante. A palavra ‘pardo’, que ninguém virtude de sua pele clara. As influências
esse percentual de pessoas negras nas 2019 sabe direito o que é, normalmente se para esse tipo de posicionamento estão
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e racial branco: “A gente tem que ter conclui: “Elas estão reivindicando espaços de
sobre os danos psicológicos de uma em vista que a nossa dificuldade de se poder, elas estão reivindicando espaços de
não-aceitação racial: “vai ser uma reconhecer como negro, nós reconhe- formação, espaço de prestígio, elas estão reivin-
Autoafirmação é um busca de aderir a signos reconhecidos cer em qualquer condição que não é dicando todos os espaços que foram negados
socialmente, como sujeito de pessoa
dos mais significativos branca, então é o que a gente fala das
branca, vem de tanto que a gente ingere historicamente, só que esses espaços foram
e consome cultura branca, é daí que sempre ocupados por pessoas brancas, isso
determinantes do pessoas é de desvalorizarem caracterís- vem uma dificuldade”. Reforça ainda a quebra um ciclo né”.
ticas suas, do seu próprio corpo, da sua
comportamento história, dos seus pais e dos seus avós”.
Complementa “os danos psicológicos
humano podem ser uma baixa autoestima, pode
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