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ano 01 - maio 2020 - edição 001 - revistacult.com.

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entrevista
Salloma Salomão
“Se a gente não entender a
colonização, nós não entendemos o
racismo e nem a classificação racial,
que gerou a categoria pardo.”

autoaceitação
“Eu acho que o pardo é X. Não é
uma discussão que você tem que
ter hoje em dia.”, afirma estudante
Daniel NiCastro

dossiê

O distanciamento ancestral e racial


A miscigenação no Brasil, o apagamento afrodescente
distanciamento e ae a
afrodescente
pergunta: Quem são os pardos?
EDITORIAL SUMÁRIO
EDITORA Giovanna Matos
DIRETORAS DE ARTE Bárbara Cavalcante, Gabryella
Cabral e Rodrigo Seraphim
DIRETORES DE CONTEÚDO Eduarda Camargo, Giovanna
Matos, Maria Eduarda Alves e Rodrigo Sepharim
DIAGRAMAÇÃO Giovanna Matos
ASSISTENTE DE EDIÇÃO Maria Eduarda Alves O DISTANCIAMENTO ANCESTRAL E
REVISÃO Giovanna Matos, Maria Eduarda Alves, Rodrigo RACIAL
Seraphim e Yasmim Mamede Marques
PROJETO GRÁFICO Rodrigo Seraphim As ideias apresentadas nessa edição
possuem a intenção de promover o debate
em torno da miscigenação e dos dilemas de
CAPA Maggie Stephenson; We are the sun, the moon
auto reconhecimento dos cidadãos misci-
and the stars; 2019.
genados nas grandes mídias, de forma que
COORDENADOR Max Milliano Melo impacte o tema a todos os grupos étnicos
ORIENTADOR Bernardo Queiroz brasileiros - brancos e não brancos. No
mais, busca viabilizar à cidadãos não-bran-
cos - sobretudo os autodeclarados pretos
e pardos - o contexto histórico que estão
COLABORADORES NESSA EDIÇÃO DOSSIÊ
inseridos desde os séculos XIX e XX, a fim
de simplificar o trajeto de declaração racial O DISTANCIAMENTO ANCESTRAL E
e o de inserção nas instâncias sociais. Ana Carolina Barbosa
26 anos; autodeclarada
Daniel Portéro Nicastro
22 anos; autodeclarado pardo;
RACIAL
parda; cursa Engenharia da trabalha como especialista de
Eduarda Camargo. Computação pela Universidade
Anhembi Morumbi
marketing para o Google
05 Apresentação
Maria Alice Oliva de Oliveira
João Barros Mestre em Geografia Humana 07 As bases do Brasil escravista
22 anos; autodeclarado pela Universidade de São
negro; cursa jornalismo Paulo. Licenciada e bacharel em 09 A perpetuação da ideologia racista
na Universidade de Mogi, Geografia pela Universidade
trabalha como estagiário em de São Paulo. Trabalhou com 11 IBGE e as cinco cores brasileiras
Relações Públicas, na Approach recenseadora do IBGE
Comunicação 15 Cotas x Oportunidades sociais: O pardo
Rafael José Marques de Lima na sociedade contemporânea
Mateus Neres Azevedo 19 anos; autodeclarado branco;
22 anos; autodeclarado pardo; cursa História no Centro 19 A importância da autoaceitação etnica
ARTISTA DA CAPA estudante de Relações Públicas Universitário das Faculdades
na Universidade Anhembi Metropolitanas Unidas (FMU)
Nascida na Polônia, criada na Morumbi
Alemanha, Maggie é uma artista Sara Santos Barbosa
e ilustradora autodidata que
Raul Gomes de Almeida Advogada e Pós-graduada em
atualmente reside na Flórida,
EUA. Graduado em Psicologia pela Direito Tributário
Universidade de São Paulo e
A arte de Maggie Stepherson mestrando em Psicologia Social Valdirene Gomes
é fortemente influenciada por pela mesma universidade Formada em Ciências Sociais,
sua educação e suas viagens atuou profissional em temas
europeias, combinando texturas Salomão Jovino Silva como violência doméstica,
ricas e cores vivas.
Doutorado em História pela igualdade de gênero e direitos
Pontifícia Universidade Católica humanos
de São Paulo. Tem experiência
em produção e gestão cultural
e formação acadêmica e conti-
nuada na área de História, com
ênfase em História do Brasil
ISSN 0000000-1 Nº 001 MAIO 2020 ANO 01 Império e República

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DOSSIÊ

O distanciamento
O
que fazer quando não se é pardo, eu não sei o que é o pardo.”

ancestral e racial possível encaixar em nenhum


lado?
Diziam ao pequeno Rafael Marques
As dificuldades acerca do tema
do pardo e da miscigenação no Brasil
atingem diretamente as certezas - ou
que ele era branco, mesmo que o incertezas - sobre ancestralidade,
próprio se auto considera pardo. Ao cultura, costumes, crenças e mesmo
adulto Rafael estudante de história, a autoconfiança pessoal. Ainda que
dizem-lhe o contrário mesmo que seu haja a separação criterial do IBGE em
tom de pele o leve a crer que ele seja cinco raças (branca [europeus e seus
mesmo branco, ele não é, seu tom seria descendentes], preta [africanos e seus
escuro demais para ser branco. Alheias descendentes], amarela [asiáticos e
às muitas incertezas que as heranças seus descendentes], indígena [nativo-a-
diretas da miscigenação de pai negro mericanos e seus descendentes] e parda
e mãe branca trazem ao estudante, ele [descendentes de duas ou mais raças]),
enfatiza apenas uma certeza: “Ou você uma problemática grave que resulta di-
é negro ou você é branco”. Ainda que retamente desta indefinição prática diz
ele não consiga se ver inteiramente respeito à autoaceitação étnico - racial
encaixado com nenhuma das opções, dos indivíduos.
mesmo se auto declarando como Neste caso, o nicho socioeconô-
branco. mico ganha grande influência, mesmo
Já o designer e analista Daniel diante das convicções mais profundas
Nicastro é ainda mais explícito ao acerca das origens dos indivíduos
tecer suas considerações. Filho de pai no Brasil, como exemplifica Mateus,
05
com origens negras, mãe com origens estudante de relações públicas e auto-
Apresentação brancas e com características bastante declarado pardo, ao recordar de uma
07 contrastantes entre tom de pele, traços colega de classe da faculdade: “Do outro
físicos, espessura e lisura dos cabelos lado, também é muito das pessoas que
As bases do Brasil escravista e barba, Daniel é direto: identifica-se são negras que não se enxergam, e eu
09 como pardo puramente por não ser só tenho exemplo disso na minha sala. Ela
negro ou só branco. Mesmo que não é uma garota negra, ela usa tanta base,
A perpetuação da ideologia racista
saiba o que é o pardo ou acredite na tanto pó no rosto, que ela acaba ficando
11 existência de uma raça parda de fato, mais clara com tanta maquiagem que
IBGE e as cinco cores brasileiras afirma: “Eu me classifico como pardo ela usa, e acho que ela não se enxerga
porque não me considero branco, mas como negra.”
Maggie Stephenson, 2020

15 também não me considero preto, por Mateus atribui ao rap, como


Cotas x Oportunidades sociais: O pardo na exclusão no caso. [...] Eu não sei, eu gênero musical e também como
sociedade contemporânea acho que você poderia deixar como movimento cultural a mudança de
19 mestiço quem tem etnias diversas, mas opinião. Ele admite já ter seguido linha
o pardo em si não tem, sei lá, o que é o de raciocínio semelhante e enfatiza
A importância da autoaceitação etnica

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DOSSIÊ

que em sua opinião, a grande transição psicológicas pseudo cientificamente


reside em uma única palavra: cons-
cientização. Vale dizer que Mateus é
consideradas inatas aos indivíduos. Já
etnia, segundo Maria, engloba “diferen-
As bases do Brasil escravista
morador do Capão Redondo, bairro ças que envolvem características físicas
OS PRIMÓRDIOS DE UMA SOCIEDADE ESTRUTURALIZADA
da periferia Sudoeste de São Paulo no- e características mais culturais” como
COM BASE NO ABUSO RACIAL E NA DOMINAÇÃO IDEOLÓGICA
tadamente conhecido por ser berço do costumes, crenças ou mesmo língua.
EUROPEIA
grupo Racionais MC’s. Por exemplo, guaranis e tupinambás
“Eu escuto rap, muito dos são dois grupos sociais nativos do
Racionais MC’s, e o Mano Brown vive Brasil, são diferentes entre si no sentido
falando: ‘você é o que você se identifica étnico (costumes, cultura), mas fazem
ser’. [...] As pessoas se identificarem parte igual da raça indígena no país.
como são [branca, preta, parda] é Nesse sentido, logo é possível
muito questão de consciência. Eu acho captar um importante detalhe: sentido RODRIGO SERAPHIM
que existem dois lados, a pessoa que étnico e sobretudo a cultura não podem

A
não enxerga, e a que está consciente, ser formados apenas e tão somente
na Carolina Barbosa é estudante mesma se compara ao citar situações
começando a se enxergar como ela é.” baseados em características físicas. Esse
de engenharia da computação, de discriminação policial que um amigo
Contudo, não é difícil de se ponto é corroborado na interpretação
mora no centro de São Paulo e próximo já sofreu: “Eu lembro que ela
indagar: se existe a definição do IBGE de Rafael Marques sobre as diferenças
se auto considera parda. Ainda assim, comentou alguma coisa do porque meu
de acordo com os critérios pré-estabele- de ancestralidade entre a raça parda e
mesmo o tom de pele mais claro, cabelo tava amarrado, alto, alguma
cidos para as cinco raças, porque tanta as outras na definição do IBGE, quando
mesmo o cabelo tingido em vermelho, coisa assim. Não lembro tudo, tudo,
confusão? A resposta reside no fato de o estudante ressalta que a história das
ou tampouco o perfil esguio seria capaz tudo. Porque faz tempo [ocorreu em
que essa classificação passa diretamen- raças branca, preta, amarela e indígena
de impedir em uma visita ao Villa Mix, 2016], mas eu nunca esqueci esse dia.”
te pelo autorreconhecimento individu- precede a criação e ocupação do Brasil,
casa noturna na Vila Olímpia com
al, que por sua vez puxa muito mais com costumes e crenças mais consoli-
perfil elitista, que Ana fosse alvo direto Expansão imperial discriminatória
impressões, conhecimentos, vivências e dados. Do ponto de vista cronológico,
de discriminação. As questões da miscigenação, do
experiências do ponto de vista étnico. de indicadores sociais como a renda
“Eu tava com um macacão preto racismo e da construção da sociedade
A distinção entre os conceitos de raça familiar per capita de acordo com a
com uma listra branca, eu acho que brasileira remetem todas à chegada
e etnia, embora sutil, abre uma grande raça, ou mesmo de acordo com o índice
eu estava pleníssima, eu estava vestida européia nas terras do país, a partir
margem para variadas interpretações de oportunidades de ascensão social
como o local pede, e a menina pediu o de 1500. A dinâmica entre racismo
em relação do autorreconhecimento para as classes, indicam a pressuposição
isqueiro emprestado pra mim, e depois e colonização é diretamente ligada
racial, como a de Daniel que afirma ser cultural de raízes ligadas a conceitos
que eu emprestei eu peguei de volta, ela à imposição social europeia, como
pardo e ainda assim duvida da existên- como o da branquitude e da negritude
virou pro amigo dela e começou a ques- exemplifica o historiador e africanista
cia da raça parda, por exemplo. que vêm anteriormente à classificação
tionar, tipo: ‘ai, que menina feia!’ [...] autodeclarado preto Salloma Salomão,
A geógrafa Maria Alice Oliva au- técnico racial como a que usa o IBGE,
tava bem nítido que eu não estava me ao citar que “o racismo nasce da
todeclarada como branca, explica que tanto no sentido prático quanto no de
encaixando naquele padrão, por tudo dominação”. Segundo Salloma, a classi-
raça é um conceito majoritariamente autorreconhecimento. A explicação
que ela falou”. ficação dos seres humanos em raças leva
social e de hierarquização, já que separa desse fenômeno reside nas origens da
A estudante completa ressaltan- diretamente a dois conceitos bastante
os seres humanos em grupos de acordo construção social brasileira: o racismo
do como a discriminação a marcou próximos entre si, que são o racismo e
com características físicas, morais e e a hierarquização social.
mesmo não sendo retinta, como ela a colonização: “Se a gente não entender

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mercadoria para os donos de terras - a
Não é uma história de
escravidão negra durou entre 1530,
o ano da chegada da primeira embar-
A perpetuação da ideologia
romance, é uma história de
violência
cação vinda da África no país e 1888,
quando foi legalmente abolida. racista
Patriarcado e a cultura de abuso sexual A INVIABILIDADE DA ECONÔMICA DA ESCRAVIDÃO, A ABOLIÇÃO,
a colonização, nós não entendemos o Porém haveria ainda mais um E A PROPAGAÇÃO SOCIAL E CULTURAL DO EUROCENTRISMO
racismo e nem a classificação racial, fator. Por serem em grande maioria
que gerou a categoria pardo”. homens, os portugueses trazem consigo
Salloma detalha as razões e uma visão de sociedade patriarcal. O
crenças iniciais europeias para a adoção resultado disso recaiu em violência
dos critérios raciais: “Os europeus e depreciação às escravas negras, às RODRIGO SERAPHIM
descobriram que havia pessoas diferen- mulheres indígenas e é o primeiro

O
tes deles e precisavam arrumar uma embrião da miscigenação no Brasil, cenário de hierarquização 100 anos não teriam mais negros no
explicação pra isso. Em um primeiro como disserta Salloma: “O começo da racial da sociedade brasileira Brasil”.
momento, a explicação era Deus. mestiçagem de brancos europeus com as encontraria respaldo científico,
Deus criou pessoas parecidas com a mulheres indígenas e com as mulheres político e cultural a partir das ideologias O embranquecimento como cultura
gente, mas diferentes, porque elas não negras, não é uma história de romance, deterministas dos séculos XVIII e XIX Para tal objetivo, o governo
acreditam em Deus, elas não têm orga- é uma história de violência. Homens, - todas baseadas no naturalismo, no brasileiro passa a investir fortemente
nização social, elas não têm economia. em sua maioria, chegavam aventurei- eurocentrismo e na eugenia. na imigração de cidadãos europeus
Elas são parecidas, mas são diferentes. ros em busca do ouro. [...] Achavam O resultado prático torna-se a para a substituição da mão de obra
[...] Como essas pessoas reagiram [à natural o sexo com violência. Então essa adoção da teoria do e embranque- escrava, além de incentivar à misci-
imposição da cultura europeia], os primeira mestiçagem, do século XV e cimento que, como explica Salloma genação e, conforme cita Salloma, a
europeus começaram a dizer que elas XVI, ou até mesmo no século XIX foi Salomão, defendia a “ideia de que o “também produzir uma ideologia de
eram: Violentas, preguiçosas e princi- oriunda de violência sexual.” o cenário Brasil, para ser um país respeitado in- branqueamento” que “deveria entrar
palmente feias.” é corroborado pela socióloga Valdirene ternacionalmente, não poderia ser um no pensamento da sociedade.”
A partir daí, a construção social Gomes, ao citar que a miscigenação no país de negros e indígenas”. Justamente “Nós somos herdeiros dessa visão
brasileira desenvolve com uma elite, Brasil “nasce antes a questão da cor de essa prerrogativa, que baseava-se no de mundo, dessa ideologia criada pelas
majoritariamente de brancos vindos pele”, oriunda desde o início da colônia racismo científico “levou parte da inte- elites, de que existe uma raça ideal, a
de Portugal, os nativos indígenas em e que tem como recorrente “os estupros lectualidade brasileira a procurar alter- branca, e que os mestiços, os negros e
parte catequizados e os escravos, em das mulheres negras e indígenas que nativas para se atingir esse objetivo” - de os indígenas são raças párias, que não
sua maioria africanos trazidos como vão ter filhos mais claros.” transformar toda a população brasileira deveriam existir ou não deveriam estar
em branca, teoricamente desenvolvida. na sociedade brasileira” O historiador
Valdirene Gomes, neste sentido, cita o completa citando as eleições presi-
médico e cientista carioca João Batista denciais de 2018 e o atual governo do
de Lacerda que, no congresso das raças Brasil: “A prova disso é que alguém
em 1911 apresentou um documento que defende abertamente essas ideias
“falando que o prognóstico era que em racistas hoje é o presidente da república.

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IBGE e as cinco cores


É a elite branca que herdou a cultural porém do ventre de uma mulher que
colonial, que será dona das terras, das também possuía a pele clara, mas que
pessoas, do prestígio, do poder, do era escrava, porque havia nascido de
mando e das instituições”.
A aplicação deste modo de
outra mulher que tinha pele escura e
que era escravizada, você escraviza- brasileiras
pensamento intelectual e dentre as do(a) seria.” explica o historiador. FORMAÇÃO DO BRASIL, SURGIMENTO DE INDICADORES
massas foi altamente sucedida, como Toda a situação de perpetuação RACIAIS E IBGE
cita Valdirene Gomes, ao lembrar que o da supremacia branca face a submissão
Brasil nunca assumiu responsabilidade negra e indígena social no período traz
pelo peso e pelo legado dos quase 400 a seguinte constatação de Valdirene:
anos de escravidão: “Você começa a ter “Por isso também todo um histórico de
políticas de eugenia e de querer que o desigualdade das condições precárias
Brasil seja branco quando o Brasil se e desumanas que as pessoas negras EDUARDA CAMARGO
torna independente de Portugal. Juntou que elas são submetidas, então você

O
uma despreocupação que se tinha em tinha uma tendência a não querer se
Brasil foi construído com grande classificação racial é formada buscando
termos de pensar em políticas repara- identificar com isso. Pessoas que não têm
diversidade racial. Desde o traduzir a que nível estava a mestiçagem
tórias para pessoas negras com uma consciência a não querer se identificar
início da exploração de terras, de pele do século XIX, as categoriza-
questão de que o processo de ‘o Brasil com o que é oprimido, assim como as
as cores e culturas se transformam ções sofreram diversas mudanças. A
que a gente quer’, e esse não era um pessoas emergentes que querem ter as
unindo-se às origens de fora do país. O partir das descrições de raça da época,
Brasil negro.” mesmas coisas que os outros têm sem
processo de miscigenação e imigração os estereótipos foram criados. Diante
pensar na própria vida”.
aos longos dos séculos XIX e XX mudou do ponto de vista europeu, os padrões
Divisão social: brancos x não-brancos O cenário deixou como única
radicalmente as divisões de classe e antigos e atuais de aparência, religião e
Como aponta Maria Alice, os opção às camadas não brancas, por con-
raça. Misturou o tom avermelhado conduta foram moldados como explica
cidadãos miscigenados, com diversas sequência, agarrar-se em toda e qualquer
dos índios à pele alva dos europeus. Salloma Salomão: “Essas pessoas aqui
origens étnicas e manifestações físicas representação branca socialmente ou o
Incorporou os retintos africanos a cada descobertas não iam reagir. Quando
da mestiçagem são hoje socialmente mais próximo possível. Transformou
nova terra encontrada. Atualmente, essas pessoas começaram a reagir, os
denominados como pardos. Contudo, em mais vantajoso se declarar ou
a nação é dividida racialmente entre europeus começaram a achar que elas
a categoria que nos dias atuais possui mesmo enxergar como branco ao
brancos, amarelos, indígenas, pretos não eram tão humanas assim. Se fossem,
e discute suas influências e sua ances- invés de pardo, como pardo ao invés
e pardos. Distinguidas pelo IBGE, as iriam aceitar de bom grado a divindade
tralidade já foi outrora dividida pelo de preto e este cenário possibilita
cores/raças estão diretamente ligadas que os europeus levaram. A fé que eles
ventre. De acordo com Salloma, nos exemplos como o que Mateus cita, ao
a conceitos culturais de hierarquiza- levaram, que era o Cristianismo. E a
séculos passados a herança familiar era observar sua colega de classe tentando
ção social. Tal processo transforma exploração”.
o fator primordial naquilo que poderia desgarrar-se da feição e do tom de pele
a ancestralidade cultural e étnica em A categoria ‘parda’ foi introduzida
definir o futuro de um mestiço após seu negro. Ou mesmo o exemplo que Ana
tão importante quanto a tonalidade em 1872, no primeiro censo oficial do
nascimento. descrevia após se sentir constrangida
da pele de cada pessoa no processo de governo brasileiro - último do regime
“Quem determinava o seu lugar em uma casa noturna simplesmente por
autorreconhecimento. imperialista que acabaria em 1889. Essa
dentro da estrutura dividida entre não seguir o padrão físico do local. A
O Brasil herdou os estudos popu- categorização significou em grande
escravizados e escravizadores era o herança da escravidão foi perpetuada
lacionais de raça como patrimônio do parte os traços nebulosos que estão na
ventre. Se você nascesse de pele clara, pela ideologia do embranquecimento.
Império. Entre constantes alterações, a identificação e reconhecimento de cada

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brasileiro ainda hoje. A categorização Ainda com ideais totalitários O surgimento do termo tam- o termo veio como uma forma estatal
racial é uma ramificação da ciência que encobertos, o IBGE nasce na metade e intelectual de promover a igualdade
resultou na terminação ‘pardo’, como década de 1930. Salloma Salomão bém está atrelado à privação apenas em discurso, sem mecanismos
explica Salloma: “A classificação racial, reforça como o órgão também foi usado do direito intelectual de pre- eficientes de equidade.
aparentemente científica, que gerou a com uma estratégia de controle social. tos e pardos Apoiado nas benfeitorias da
categoria pardo. A colonização, a raciali- “O IBGE é um órgão público, é um miscigenação, esse tipo segmentado
zação ou a compreensão da diversidade órgão do governo federal e é um órgão de democracia, segundo Maria Alice,
humana, a partir da categoria raça, que que foi criado durante do governo de é mito: “Considerando que o Brasil
gerou a categoria, ou classificação, das Getúlio Vargas, com a finalidade de encontro das ideias do estudante João, de fato é um país miscigenado, não há
pessoas pardas”. conhecer melhor a sociedade brasileira autodeclarado negro. democracia racial, o Brasil é um país
Entre histórias tortuosas que para governar melhor, governar com “Eu vejo muita gente julgando só racista, mas houve uma miscigenação e
reforçam a segregação velada, a geógrafa autoritarismo”. pelo tom de pele, mas acho que outras essa miscigenação é uma característica
Maria Alice ressalta que cada humano Na vertente racial, o IBGE características devem ser levadas em da população”.
miscigenado era ilustrado de maneira atualmente trabalha com pesquisas de consideração e uma delas é o cabelo. Muito exaltada no período de
que fortalecesse o imaginário discri- autoidentificação para além do tom de Eu acho que o cabelo, como é a raiz do Ditadura Militar, a Democracia Racial
minatório: “Nos livros de geografia e pele, englobando também o fenótipo e cabelo da pessoa, define bem de qual atingiu um nível quase ditatorial, como
história eles apresentavam como se a cultura descendente, indo assim de raça ela é”. explica Salloma: “As pessoas no Brasil
fosse uma equação. Então assim até eram identificadas ou como índios, ou
tinha uns desenhos bem estereotipados: Democracia Racial como negros, ou como brancos, como
o branco + índio = caboclo, branco + Com o objetivo de alcançar uma mestiços. Para classificar toda essa
negro = mulato, que é uma palavra de harmonia ideal entre todas as descen- população dentro do Estado Nação
origem extremamente racista”. dências, bem como destituir a ideia durante uma ditadura, durante um
A geógrafa segue explicando das diferenças raciais “inatas” que governo autoritário, foi parda”.
que com a necessidade de averiguar acabaram bastante evitadas em todo o Como separação e mistura,
as mudanças raciais e implementar mundo após os eventos de genocídio assim como aborda Lilian Schwarcz,
medidas de contingência a população nazista durante a Segunda Guerra o surgimento do termo também está
preta e mestiça, os censos serviram Mundial, surge a democracia de raças. atrelado à privação do direito intelectual
de ferramenta de pesquisa para o O conceito sumariamente resume a de pretos e pardos. Assim sendo negados
mapeamento social das necessidades raça brasileira em uma só a partir da ainda hoje de exercer uma narrativa
do país, no sentido de desenvolvimento miscigenação que teoricamente trans- real e afrodescente, a Democracia
da nação, o que resultaria diretamente formaria os cidadãos brasileiros em Racial atinge um efeito dominó que é
nas limpezas eugênicas: “Aqui a gente homogêneos racialmente e em opor- maximizado no sistema de ensino do
tem uma política de branqueamento, tunidades sociais, descartando assim Brasil, como completa Maria Alice:
que é a de imigração, que começa lá a importância da discussão dos efeitos “Na formação de professores, como vai
no final da escravidão. o negro servia de eventos históricos, por exemplo, a ensinar cultura afro-brasileira e africana
pra trabalhar, mas na hora que acabou escravidão e o processo migratório que se nunca aprendeu sobre isso?”.
a escravidão, aí já começa toda aquela tinham por objetivo extinguir pessoas Desta forma, a ocupação de
ideologia que o negro não serve pro pretas e mestiças. Entre os artifícios cidadãos pretos, pardos ou mesmo
trabalho”. das tentativas de apagamento histórico, indígenas em nichos sociais de elite no
Maggie Stephenson
When you are one with your plants
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DOSSIÊ

país tornou-se meramente ocasional, somasse as duas categorias: mestiços


como explica João, estudante de
jornalismo de Jacareí e autodeclarado
e pretos. Foi uma mudança social,
com maior propaganda e uma maior
Cotas x Oportunidades sociais
pardo, sobre experiências pessoais na propagação, que fez com que as pessoas
Zona Sul de São Paulo: “Quando eu to miscigenadas de pele clara começassem O PARDO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E O DIREITO DAS
num local como a Zona Sul, é como se a se identificar como negras”. COTAS RACIAIS EM UNIVERSIDADES
eu fosse um intruso. As pessoas olham Em uma intenção de quebrar as
com o pensamento ‘Você não é branco, correntes da superioridade e inferiorida-
o que está fazendo aqui?’. Dessa forma, de entre as raças brancas e não brancas,
você acaba virando uma referência”. essas organizações sociais buscam,
ainda hoje, provocar e perpetuar uma
Pressão: Movimentos Negros nova mentalidade de raças. Maria Alice
Nos anos 70, já com os excessos explica: “Muitos pardos e mestiços, GIOVANNA MATOS
da Ditadura Militar findados, pessoas descendentes de africanos da

Q
despontam os movimentos raciais. A pele clara, começaram a se identificar
uando se fala de cotas, é percep- em consideração que tal medida
fim de fomentar a busca pelos direitos como negros. De certa maneira elas
tível se tratar de uma questão não garantiu a verdadeira liberdade
igualitários de raça, ativistas partem tiveram acesso a essa contra ideologia
que divide muitas opiniões; nas escravagista.
do princípio de incentivar o autorre- racial. Esses movimentos são contra
redes sociais, em ambientes acadêmi- A disparidade de heranças
conhecimento, que afirmaria assim a ideologias raciais, tem por objetivo
cos, existem aqueles que dizem tratar sociais herdadas pelos grupos após a
negligência em volta da categorização criar consciência racial antirracista,
de uma política adequada, enquanto abolição é questionada por Salloma
de raça feita durante toda a construção criar uma mentalidade nova e quem
outros se posicionam contra por Salomão: “A hegemonia branca, os
do país e especialmente no período sabe no futuro buscar uma igualdade
acreditar que todos são capazes e que brancos ou descentes de europeus,
militar. Assim, a partir de pressões entre pessoas de diferentes origens”.
não deveria haver diferenças. quando terminou a colonização e veio
sociais, pretos e pardos são unidos em Entre ações e políticas afirmativas,
Tal questão pairava sobre a cabeça a independência, eles herdaram os bens
uma única racialidade. O período e iminente desde o fim da escravatura
de Daniel Nicastro, estudante que se e todo o sistema de poder que existia
a luta são destrinchados por Salloma com a busca por educação e inserção
considera pardo por não se enxergar na época de Colônia. Os indígenas, os
Salomão: “Foram os movimentos no mercado de trabalho, por exemplo,
nem branco, nem preto: “cota racial negros, os mestiços nascidos de mães
negros, percebendo a dificuldade dos as mobilizações populares negras então
sempre foi um assunto que transitou escravizadas herdaram o que?”
mestiços de se identificarem como des- surgiram como um ponto de fuga para
nesses anos políticos para mim, porque Portanto, faz-se necessário
cendentes de africanos, que propuseram aqueles que estavam à margem das rei-
eu achava errado você ter cota por ser entender que muitos, sejam de origem
ao IBGE, na década de 1970, que se vindicações comuns de classe.
preto, porque você poderia ser um indígena ou afrodescendente, não
preto rico.” obtiveram recursos iguais as demais
No entanto, há de considerar etnias para seu desenvolvimento e
que o Brasil foi descoberto em 1.500 e que ainda hoje as diferenças se fazem
desde então passaram 388 anos até que presentes e determinam as oportuni-
houvesse a abolição dos escravos. Não dades daqueles que sentem na pele a
se pode admitir que houve justiça no marca dessa história.
que tange a um desenvolvimento iguali- Salomão segue apontando as
tário dos brasileiros, tampouco levando desigualdades do período pós-colonial:

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DOSSIÊ

“os brancos herdaram: as terras, o mais de acesso de uma população histo- Cotas podem garantir que a A importância das cotas
sistema burocrático da Colônia, as ricamente prejudicada.” grande parcela da sociedade A questão das cotas é, sobretudo,
riquezas, porque eles não foram des- uma questão de empoderamento, por
tituídos das suas riquezas, e passaram Bancas avaliadoras
menos favorecida tenha o assim dizer. A socióloga Valdirene
do período colonial para a indepen- Com o direito conquistado e a poder de decidir mudar a Gomes reflete: “O fato dessas pessoas
dência sem perder nada. Os negros, os oportunidade de mudar o rumo da própria realidade se formarem, a questão da representa-
indígenas, além de não receber nada, história, passam nas Universidades tividade, de mudar os lugares de poder
eles receberam um pouco mais de com o auxílio do sistema de cotas, mas deveria ser o critério utilizado para é um reflexo disso. É uma complexação
pressão, porque antes os donos efetivos ainda encontram um outro obstáculo validação. Todavia, segundo entendi- das cotas; não é o objetivo dela em si,
do patrimônio, do grande patrimônio, pelo caminho: as bancas de avaliação. mento do STF, em caso de dúvidas, a mas sim sua consequência.”
eles não ficavam no Brasil, eles ficavam É nessa etapa em que os candidatos às comissão de avaliação racial não pode Seguindo a reflexão, o psicólogo
lá na metrópole.” vagas passam pelo processo em que se valer apenas do parecer fenotípico”, Raul Gomes que se autodeclara negro
Como dito pelo estudante de avaliadores validam a autodeclaração completa a advogada. garante que é sim uma questão de
jornalismo João Barros de 22 anos, “as ou não. Isso se dá por conta de que autoestima. “É muito bom firmar que
cotas na verdade têm um sentido maior, As cotas raciais, num primeiro as características físicas por si só são condições históricas e externas,
é um sentido de reparação. A gente viu momento são distribuídas pelo sistema não garantem que historicamente o que fazem a pessoa questionar a sua
que o estado identificou que os negros de autodeclaração e são destinadas à indivíduo tenha tido algum privilégio capacidade e a sua segurança, por
estão atrás dos brancos porque as opor- pretos e pardos. A discussão acerca de durante a sua formação. “De acordo conta de ser um ambiente majoritaria-
tunidades estão só para os brancos por quem de fato é pardo, torna a dividir com o STF, em caso de dúvidas acerca mente e historicamente ocupado por
uma desigualdade social.” a validação do sistema sobre o que é do enquadramento racial, o fenótipo pessoas brancas. Quando as pessoas
A implementação do atual fraude e o que é fidedigno. isoladamente não seria critério sufi- que não são brancas, no caso do Brasil,
sistema de cotas aconteceu no Brasil Salloma destrincha a função e ciente para avaliação dos candidatos, adentram espaços majoritariamente e
em 2012. Maria Alice, já inserida na os protocolos de atuação das bancas: havendo a necessidade de uma análise historicamente ocupados por pessoas
carreira docente na época, relembra “Quando há alguém que não é negro, do histórico familiar e cultural para fins brancas, isso vai gerar uma intimidação
a resistência quanto a nova medida: não tem origem africana, nem na de classificação”, concluiu Sara. a princípio, a pessoa ela pode não sentir
“Das próprias universidades que lutam aparência e nem no traço, essas pessoas Quando questionada sobre o como alguém que merece estar naquele
em adotar”. A geógrafa ainda aponta a são denunciadas e as fraudes são reais, sistema de cotas por autodeclaração, lugar, não sentir capaz.”
incoerência em meio aos discursos. “A elas não são invenções, são reais. a estudante Ana Carolina acredita Olhar para uma sociedade tão
gente tem os dois sistemas de cotas, o Quando isso ocorre, a comissão é que que essa seja a melhor maneira de se diversa étnica e culturalmente e com-
que é muito interessante. Em um, as vai avaliar, mas não é julgar, quem julga adentrar nesse sistema, desde que a preender que existem muitas visões que
pessoas acham que tudo bem, que é é o sistema judiciário”. declaração seja consistente. “A pessoa não são contempladas e consideradas,
justo e lindo. ‘Mas e a cota para negros A advogada Sara Santos completa precisa ser coerente com o que está por haver pouco estímulo a textos pro-
e indígenas? Ah não, essa não!’”. explicando o modo de operação no falando, realmente se enxergar assim. duzidos e aclamados por escritores não
Diante as contraposições, Maria trata âmbito das instâncias judiciais: “Depois Se ela afirma que é ‘parda pra certos brancos, traz à tona outro ponto impor-
o sistema como um ato de acessibilida- de denúncias de supostas fraudes rea- momentos e branca pra outros’, isso tante das cotas nos centros acadêmicos.
de: “Apesar de algumas pessoas não lizadas na distribuição das vagas, o não é válido. Ou ela é parda, ou ela é Sobre da falta de representativida-
gostarem, a lei de cotas aconteceu e Ministério Público Federal (MPF) re- branca. Parte do princípio da verdade: de no sistema educacional, o psicólogo
a gente tem aí, inclusive na USP, nas comendou a diversas universidades do ‘se digo que sou parda então eu sou levanta questões acerca da baixa au-
universidades federais, um pouquinho país que o fenótipo, e não a ascendência, parda, acabou’. É isso, vida que segue.” toestima intelectual. “Quando ela vê

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DOSSIÊ

que todos os autores de referências Universidades.” Mateus vê na prática as


são homens europeus, certamente ela
vai ter a sua autoconfiança abalada”.
consequências positivas desse sistema e
cita como exemplo que “a pessoa que
A importância da
Raul ainda considera que a escassez
de familiares em posições de prestígio
compromete um pleno desenvolvimen-
não enxergava [a sua negritude] está
consciente e começando a se enxergar
como ela é.”
autoaceitação etnica
to cognitivo: “A pessoa que não tem A AUTOACEITAÇÃO ALÉM DOS LIVROS E O CONSUMO DE
um histórico de pai e mãe que ocupou NOVOS SIGNOS
aqueles lugares, ela apenas tem toda
uma história que colocam a capacidade
dela em cheque”.
Diante de tal discussão, o direito
às cotas pode abrir o leque de possibi-
lidades, garantir que a grande parcela MARIA EDUARDA ALVES
da sociedade menos favorecida tenha

A
o poder de decidir mudar a própria fim de obter respostas dos seus coloca para a mistura de negro com
realidade, de sonhar em ir tão longe alunos, a professora Maria Alice branco, mas não necessariamente essa
quanto nenhuma geração da família possui o hábito de questionar população passa a se ver como negra.
pôde chegar antes. nas aulas da Geografia que ministra: Isso é muito importante”.
O cenário é ilustrado por Ana “Que cor que você é? Qual a sua cor/ Portanto, torna-se fundamental o
Carolina: “O crescimento da população raça?”. A professora explica: “pergunto entendimento das origens e a urgência
parda, partindo de um ponto socio- para cada um e sempre vi em todas as em se desprender daquela “referência
econômico ao se pensar em uma turmas, todas as escolas, em todas as do sujeito branco europeu”, como
Universidade privada, quase se não aulas em que repito isso, que muitas descreve o psicólogo Raul Gomes.
vê negros lá. Porque jamais que há pessoas têm dificuldade em se auto Entender quais as próprias raízes, em
um tempo atrás um negro periférico declarar”. que grupo étnico-racial cada indivíduo
ia falar: ‘eu tenho a possibilidade de Além da autoidentificação, existe se encaixa são alguns dos questiona-
fazer medicina em uma Universidade uma necessidade cada vez maior mentos que muitas pessoas seguem sem
renomada, como a USP’. Nem que de debate sobre a autoaceitação. respostas.
seja por cotas, isso vai garantir que ele Autoaceitação, ao pé da letra, significa De cabelo cacheado, nariz arre-
tenha essa possibilidade, que ele tenha aceitar a si mesmo, aceitar característi- dondado, boca carnuda e de pele clara,
esse mesmo direito que um riquinho cas e sentimentos próprios, respeitar e o estudante Rafael se declara branco
branco tem.” gostar de si mesmo. Contudo, o conceito e ao ser questionado sobre as etnias,
O estudante Mateus Neres engloba ainda mais, é um processo responde de forma clara e objetiva
reitera: “Então as cotas nasceram para necessário para a própria evolução de “a cor parda não existe”. Apesar de
fazer essa reparação histórica. Nas uni- bem-estar dos indivíduos. Maria Alice afirmar que possui traços de negritude,
versidades que tinham 95% de brancos, explica: “Essa autodeclaração é impor- Rafael não se identifica com eles em
Maggie Stephenson
criou-se uma política para aumentar Cattails tante. A palavra ‘pardo’, que ninguém virtude de sua pele clara. As influências
esse percentual de pessoas negras nas 2019 sabe direito o que é, normalmente se para esse tipo de posicionamento estão

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DOSSIÊ

intrínsecas na sociedade brasileira, ressalta que é crucial o suporte do


a partir das referências sociais que a Governo na formação escolar: “Eu acho
Está acontecendo uma mudança de símbolos e isso vai
mesma oferece, como explica Salloma que na parte do governo, aplicaria mais ter efeitos para pessoas negras para o reconhecimento
Salomão: a questão de estudo por exemplo, eu não
“É muito mais fácil para uma tive História da África na escola, então delas com a sua negritude
pessoa da pele clara, filha de negros e começa na base, estudar a história real
brancos, brancos e indígenas, se iden- das coisas, entender a real na escola.
tificar com a elite branca do que com Eu acho que quando começa a ver isso ser uma busca por um ideal de beleza, necessidade de uma reivindicação de direitos:
a massa popular negra. Essa pessoa ao desde cedo, começar a mudar essa ideia que não cabe para história dessa “A gente tá reivindicando e exercendo essa
ligar a TV, ao ir ao cinema, ao ir a um desde cedo, entender os costumes e pessoa, desse sujeito, enfim, uma des- reivindicação, tem jornalistas negros, tem uma
espetáculo, ao passar na rua e ver um tradições, como surgiu cada coisa e já valorização da sua condição natural, da série de shampoos, condicionadores, salões de
outdoor ela vai ver pessoas brancas, crescemos com isso formado”. sua condição histórica” beleza só para pessoas negras, enfim, tá aconte-
raramente pessoas negras”. A professora Maria Alice ainda Como descrito por Oswaldo cendo uma mudança de símbolos e isso vai ter
reforça que o entendimento racial é fun- de Barros Santos, no artigo: efeitos para pessoas negras para o reconheci-
A construção de uma identidade étnica damental para que a sociedade possa “Aconselhamento psicológico e psicote- mento delas com a sua negritude”
Mas antes de se identificar dentro lutar contra a discriminação racial: “é rapia: autoafirmação como determinan- Sendo assim casos como os de Rafael,
de um grupo étnico, é preciso enten- preciso passar por essa identificação, te básico do comportamento humano”, Daniel, Ana, Mateus, João e tantos outros es-
dê-lo. As formas para compreender ‘eu sou negro’, ‘eu sou indígena’, para ocorre uma melhoria de comporta- palhados pelo Brasil, independentemente de
o processo são debatidas por Maria depois a gente superar isso, somos todos mento associada à auto afirmação suas origens, passam pelo estudo das ances-
Alice: “Muitas vezes algumas pessoas seres humanos, somos todos brasilei- racial, colocando como hipótese que: tralidades culturais de cada família, de cada
só passam a se enxergar pardas ou ros”. Dessa forma, a miscigenação e os “Autoafirmação é um dos mais signi- indivíduo, de cada caso, para além da simples
pretas depois que o movimento negro cidadãos mestiços do Brasil continuam ficativos determinantes do comporta- definição de ser um meio-termo entre branco
se fortalece”. Portanto, nota-se a im- no centro de um debate com diversas mento humano”. e preto, como é a rotina para diversos seres
portância de movimentos sociais para polaridades, tornando as conversas Raul finaliza refletindo que a miscigenados racialmente no país. O primeiro
a construção de uma identidade étnica, sobre uma política de autoafirmação autoaceitação dos indivíduos não-bran- passo é abrir-se ao debate e ao estudo pois, no
seja ela de negros, pardos ou indígenas. racial e étnica cada vez mais presentes. cos – sejam eles mestiços, indígenas final das contas, é possível sim se encaixar em
Para os questionamentos sobre ou pretos – passa invariavelmente pela qualquer um dos lados.
seu tom de pele, o estudante Mateus Danos Psicológicos desconstrução do referencial social Desta forma, o psicólogo Raul Gomes
O psicólogo Raul Gomes relata


e racial branco: “A gente tem que ter conclui: “Elas estão reivindicando espaços de
sobre os danos psicológicos de uma em vista que a nossa dificuldade de se poder, elas estão reivindicando espaços de
não-aceitação racial: “vai ser uma reconhecer como negro, nós reconhe- formação, espaço de prestígio, elas estão reivin-
Autoafirmação é um busca de aderir a signos reconhecidos cer em qualquer condição que não é dicando todos os espaços que foram negados
socialmente, como sujeito de pessoa
dos mais significativos branca, então é o que a gente fala das
branca, vem de tanto que a gente ingere historicamente, só que esses espaços foram
e consome cultura branca, é daí que sempre ocupados por pessoas brancas, isso
determinantes do pessoas é de desvalorizarem caracterís- vem uma dificuldade”. Reforça ainda a quebra um ciclo né”.
ticas suas, do seu próprio corpo, da sua
comportamento história, dos seus pais e dos seus avós”.
Complementa “os danos psicológicos
humano podem ser uma baixa autoestima, pode

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