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A taça do mundo é nossa!
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Yvisson Gomes dos Santos
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ALCIR PÉCORA
A palavra e a ordem
GILBERTO MARINGONI
(1964)
(Poema publicado em Anotações para um apocalipse, que
comemora 50 anos em 2014)
A verdadeira história do século 20
contemplação: estrela no fundo do mar
você: véu de gaze azulada roçando, suave apelo
furacão: róseo
perfeição: parábola de perfumes
lâmina: a mente alucinada
gruta: você e os arcanos da natureza
matemática do sonho: esta nuvem
gelo: explosão de relâmpagos
essa solidez, essa presença: capim ao vento
rápidos, passando à frente: lavanda
e também sombra de árvore
montanha: inteiramente nossa
intimidade sorridente: no calor da tarde
Íris: o nome da flor, o seio ao sol
– quanta coisa você fez que eu visse
o acaso nos transportava e poderíamos ir a qualquer lugar
o mundo tinha janelas abertas
e tudo era primeira vez
gnose do redemoinho, foi o que soubemos
dossiê Michel Foucault: leituras brasileiras
Apresentação
Em uma entrevista de 1980, Foucault diz que seus livros são para
ele experiências no sentido pleno da palavra, já que deles ele
próprio saiu transformado. Uma experiência, portanto, poderia ser
definida a partir desse crivo: trata-se de uma transformação do
sujeito. Um livro concebido como uma experiência é algo que
transforma aquele que o escreve e aquilo que ele pensa, antes
mesmo de transformar aquilo de que trata. Foucault confessa que os
autores que mais o marcaram não foram os grandes construtores de
sistema, mas sim aqueles que lhe permitiram escapar precisamente
dessa formação universitária, isto é, aqueles para quem a escrita era
uma experiência de autotransformação, tais como Nietzsche,
Bataille, Blanchot. Ora, o que esses autores deram a Foucault de tão
essencial, mesmo sendo marginais no que se costuma entender por
história da filosofia? Precisamente uma concepção de experiência
como uma metamorfose, uma transformação na relação com as
coisas, com os outros, consigo mesmo, com a verdade. Foi o que
ocorreu no estudo dos grandes objetos pesquisados por Foucault,
como a loucura, a delinquência, a sexualidade – todos os livros
escritos a respeito resultaram em uma transformação profunda na
relação que o autor, o leitor, enfim, o próprio tempo de Foucault se
viu impelido a ter com esses domínios.
Em que, contudo, a noção de experiência evocada por Foucault
difere daquela formulada pela fenomenologia? Se a experiência do
fenomenólogo consiste em pousar um olhar reflexivo sobre um
objeto qualquer do vivido, sobre o cotidiano em sua forma
transitória, para dele extrair as significações, a experiência à qual
Foucault se refere, ao contrário, trata não de atingir um objeto do
vivido, mas um ponto da vida que seja o mais próximo do invivível.
Não a vida vivida, mas o invivível da vida. Não a experiência
possível, mas a experiência impossível. Não a experiência trivial,
mas aquela em que a vida atinge o máximo de intensidade,
abolindo-se. Não a experiência cotidiana, mas a experiência-limite.
A fenomenologia trata de apreender a significação da experiência
cotidiana para reencontrar, através dela, o sujeito fundador dessa
experiência e de suas significações, na sua função transcendental. A
experiência tal como Foucault a entende, em contrapartida, na
linhagem dos autores mencionados, não remete a um sujeito
fundador, mas desbanca o sujeito e sua fundação, lançando-o à
própria dissolução. Em suma, a experiência-limite é um
empreendimento de dessubjetivação. Eis o que terá sido decisivo
para Foucault na leitura de Nietzsche, Bataille e Blanchot: a
experiência que vai ao seu limite, a experimentação que em seu
curso prescinde do sujeito ou o abole. É o que permite a Foucault
dizer que seus livros, por mais eruditos que tenham sido, foram
sempre concebidos como experiências diretas, visando arrancá-lo de
si mesmo, impedi-lo de continuar a ser si mesmo.
Claro que nos deparamos aqui com uma concepção particular de
experiência, já que ela, no geral, é remetida precisamente a um
sujeito que a vive, passiva ou ativamente. Mas a pergunta de
Foucault vai a contrapelo dessa suposição: “Não haveria
experiências ao longo das quais o sujeito não fosse dado, nas suas
relações constitutivas, naquilo que ele tem de idêntico a si mesmo?
Não haveria experiências nas quais o sujeito possa se dissociar,
quebrar a relação consigo mesmo, perder sua identidade?” Através
de termos como dissociação, dissolução, diluição e perda da
identidade, Foucault contesta o estatuto mesmo do sujeito, seja o
sujeito psicológico, seja o sujeito do conhecimento, seja o sujeito
transcendental.
A EXPERIÊNCIA (IM)PESSOAL
Em um sentido muito prosaico, Foucault diz em outro momento
desta mesma entrevista, que cada livro seu nasceu de uma
“experiência pessoal”, uma “experiência direta”. No caso da
loucura, eis sua observação: “Eu tenho uma relação pessoal,
complexa com a loucura e com a instituição psiquiátrica.” Uma
passada de olhos em qualquer biografia sua ou mesmo nas notas
biográficas publicadas em Dits et écrits e insuspeitas de qualquer
ambição sensacionalista, a observação se esclarece imediatamente:
trata-se das crises pelas quais passou o filósofo na École Normale:
acessos de raiva, tentativas de suicídio, até mesmo uma visita a um
psiquiatra, levado por seu pai. Em um outro plano, seu interesse
pelo tema foi incessante, como o atesta seu trajeto acadêmico:
formação paralela em psicologia, estágio no hospital psiquiátrico,
tradução do texto “Rêve et existence” e a frequentação pessoal de
Binswanger por ocasião desta tradução, para não falar de todos os
postos de trabalho em que foi incumbido da cátedra de psicologia ou
psicopatologia, ou mesmo seu interesse pela psicanálise, sua relação
ambivalente com Lacan etc. Contudo, se sua experiência pessoal,
nesse sentido trivial, foi decisiva, isso nem remotamente significa
que ele tenha transposto experiências pessoais para o plano da
escrita em uma forma autobiográfica: em nenhum texto publicado
por ele há qualquer referência autobiográfica desta ordem.
Já temos aqui um pequeno paradoxo: como um livro nasce de
uma experiência pessoal, mas resulta precisamente na abolição
desse mesmo autor que as viveu, conforme o postulado indicado
acima, segundo o qual há experiências e experiências de
pensamento ou de escrita, que justamente colocam em xeque o autor
em sua identidade, até mesmo em sua coerência? Todo o desafio
está em conciliar o fato de que um livro parte de uma experiência
pessoal, mas não constitui o relato dessa experiência, já que o livro
é em si mesmo uma experiência em um sentido mais radical, a saber,
uma transformação de si , e não a reprodução da experiência vivida
“tal como ela ocorreu” e que estaria na origem dessa escrita, nem
sua transposição direta.
O essencial, portanto, não se encontra na série das constatações
verdadeiras ou historicamente verificáveis encontráveis em um
livro, mas antes na experiência que tal livro permite fazer. Ora, esta
experiência, como qualquer experiência, não é nem verdadeira nem
falsa. “Uma experiência é sempre uma ficção; é algo que nós
mesmos fabricamos, que não existe antes e que não existirá depois.”
Daí um dos sentidos possíveis à boutade de jamais ter escrito outra
coisa que não ficções. Não se trata de mentiras, de fabulações, de
inverdades, mas da fabricação de uma “experiência” que, no
entanto, está nas antípodas de qualquer remissão a um “vivido”,
“autêntico”, “verdadeiro” ou “real”. Um livro é isto. É precisamente
uma produção, uma criação, uma singularidade, um acontecimento,
com seus efeitos de realidade, como no caso de História da loucura
.
EXPERIMENTAÇÃO
Em alguns textos laterais, Foucault permite-se dizer não
propriamente “o que ele pensa”, mas “o que seria possível pensar”.
Por exemplo, ao responder a uma pergunta na entrevista intitulada
“Poderes e estratégias” sobre a função da teoria como caixa de
ferramentas, como instrumento inclusive de luta mais do que como
sistema, e ao contar que respondeu às questões feitas por escrito
também por escrito, mas como que em um jorro primeiro, sem
revisá-los, não por confiar na virtude da espontaneidade, mas para
nelas deixar aparecer o caráter problemático, voluntariamente
incerto, ele acrescenta: “O que eu disse aqui não é ‘o que eu penso’,
mas com frequência é aquilo que eu me pergunto se não poderia ser
pensado.” Talvez tenhamos aí algo extensível a vários textos dos
Dits et écrits . Serão eles expressão do que Foucault pensa, ou uma
experimentação daquilo que poderia ser pensado, naquele limite
entre o pensável e o impensável? Não, portanto, expressão de um
eu, nem sequer a formulação de uma perspectiva consolidada, mas
uma experimentação do que pode o pensamento, para parafrasear
um autor conhecido.
Ao comentar a influência de Bataille e de Blanchot e, através
deles, de Nietzsche, ele explica o que eles representaram para ele.
“A experiência da guerra nos tinha demonstrado a necessidade e a
urgência de uma sociedade radicalmente diferente daquela em que
vivíamos. Essa sociedade que tinha permitido o nazismo, que se
curvara diante dele, e que havia passado em bloco para o lado de De
Gaulle. Diante de tudo isso, uma grande parte da juventude francesa
tinha tido uma reação de repugnância total. Desejávamos um mundo
e uma sociedade não somente diferentes [...] desejávamos ser
completamente outros em um mundo completamente outro. Tanto o
hegelianismo que nos era proposto na universidade com seu modelo
de inteligibilidade contínua da história [...] quanto [...] a
fenomenologia e o existencialismo, que mantinham o primado do
sujeito e seu valor fundamental [...] não tinham condições de nos
satisfazer. Ao passo que, em contrapartida, o tema nietzschiano da
descontinuidade, do além do homem que seria totalmente diferente
em relação ao homem, depois em Bataille, o tema das experiências-
limite pelas quais o sujeito sai de si mesmo, se decompõe como
sujeito, nos limites de sua própria impossibilidade, tinha um valor
essencial. Foi para mim uma espécie de saída entre o hegelianismo e
a identidade filosófica do sujeito.”
Vale aqui ressaltar o deslocamento ocorrido desde os anos 1960.
De uma ontologia da linguagem passou-se para uma ontologia
crítica do presente, onde a dissolução do sujeito era menos tributária
da aventura literária (ali onde a linguagem aparece, o homem
desaparece, como ele dizia na época) do que remetida a um jogo de
forças, no qual se reinventa a relação entre sujeito e experiência.
Como diz a sequência: “Numa filosofia como a de Sartre, o sujeito
dá sentido ao mundo. Este ponto não era colocado em questão. O
sujeito atribui as significações. A questão era: pode-se dizer que o
sujeito seja a única forma de existência possível?” Como se, nesse
momento, Foucault se perguntasse, fazendo eco a uma questão que
estava posta desde o início de sua trajetória, mas de outro modo, se
não seria possível dissociar a noção de experiência da noção de
sujeito.
Uma das respostas vem muito mais tarde, no derradeiro curso
dado por Foucault antes de sua morte, publicado sob o título de A
coragem da verdade .
CUIDAR DA ALMA OU CUIDAR DA VIDA
Ao final desse curso, Foucault toma o exemplo do cinismo para
mostrar como, para tornar-se a verdadeira vida, segundo os
preceitos que os cínicos professam, em uma espécie de jocosa
transvaloração de todos os valores, a vida deve ser uma vida
radicalmente outra, em ruptura total com todos os códigos, leis,
instituições, hábitos, inclusive dos próprios filósofos. A vida de
verdade é uma vida outra, e deve também, na sua manifestação
pública, agressiva, escandalosa até, transformar o mundo, chamar
por um mundo outro. Não é, pois, a questão do outro mundo,
segundo o modelo socrático, mas do mundo outro – não da outra
vida, mas da vida outra.
Se a filosofia é uma forma de experiência, supondo-se que as
formas históricas de experiência produzem diferentes modalidades
de subjetivação, de relação a si ou de modificação de si, cabe a ela
“produzir”, por assim dizer, a subjetivação que lhe corresponde.
Pode-se perguntar, pois, retomando esse fio que puxamos desde o
início, se em Foucault uma transformação de si não equivale, por
vezes, a um abandono de si. Ou, em outros termos, se certas
modalidades de subjetivação por ele detectadas ou evocadas através
da noção de experiência não implicariam diferentes graus de
dessubjetivação – e em que medida essa lógica não poderia ser
estendida a um domínio coletivo. Ao jornalista que lhe pergunta
quem é ela, a ativista do Movimento Passe Livre responde: “Anota
aí: eu sou Ninguém”, com a malícia de Odisseus, mostrando como
certa dessubjetivação é uma condição para a política hoje –
Agamben o dizia na esteira de Foucault: os poderes não sabem o
que fazer com a “singularidade qualquer”, com aqueles que mal têm
um nome ou um rosto: quem são eles, quem eles representam? E
como enfrentamos o risco de que qualquer um possa virar um
insurgente?
Quais os limites de uma psicologia de
inspiração foucaultiana?
EDUARDO LEAL CUNHA
18 023 e 446
YVISSON GOMES DOS SANTOS