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Sumário

entrevista Barbara Cassin


Uma bárbara entre os gregos
Dicionário dos Intraduzíveis

coluna
Marcia Tiburi
Manuel da Costa Pinto
Alcir Pécora
Welington Andrade
Heitor Ferraz Mello
Gilberto Maringoni

teatro
Um lugar em expansão

retrato do artista Claudio Willer

dossiê Michel Foucault: leituras brasileiras


Apresentação
Foucault entre Nietzsche, Marx e Walter Benjamin
Governamentalidade e terrorismo de Estado
Do livro como experiência à vida como experimentação
Quais os limites de uma psicologia de inspiração foucaultiana?
Foucault, leitor assíduo da tragédia
Foucault no Brasil

ensaio
A taça do mundo é nossa!

perfil Paulo André

oficina literária
Yvisson Gomes dos Santos

colaboraram nesta edição


entrevista Barbara Cassin
Uma bárbara entre os gregos
CLÁUDIO OLIVEIRA

Quando, em 1980, publicou sua tese de doutorado (Se Parmênides ),


uma edição crítica de um tratado obscuro atribuído primeiramente a
Aristóteles, depois a um pseudo-Aristóteles e, finalmente
considerado por ela como um autor anônimo, Barbara Cassin
produziu um grande abalo nas certezas que se tinha até então sobre
a sofística grega. A edição crítica do tratado De Melisso, Xenófanes
e Górgias pôs em questão não apenas tudo aquilo que se pensava
sobre a sofística grega, mas trouxe também à luz a dimensão
interpretativa em jogo na edição de textos antigos. Ou seja, antes de
ser traduzido, um texto antigo é editado a partir das fontes que dele
chegaram até nós. Nesse trabalho de edição dos manuscritos, muitas
decisões são tomadas pelos editores baseadas em critérios
filológicos/filosóficos altamente discutíveis, mas nunca discutidos.
Foi toda essa dimensão que o livro de Barbara Cassin colocava em
questão pela primeira vez de um modo radical.
A obra propunha também, ao mesmo tempo, um questionamento
do próprio estatuto do discurso filosófico em sua relação com a
linguagem ou, para ser mais fiel à autora, em sua relação com a
língua e as línguas em que ele se constitui. Um trabalho que iria
atravessar toda a sua obra e culminar na publicação do Vocabulário
europeu das filosofias , o Dicionário dos Intraduzíveis , um projeto
coordenado por ela que envolveu a participação de inúmeros
especialistas de vários países e que em última instância chama a
atenção para o fato de que as filosofias são produzidas cada uma em
uma língua e que, nessa produção, ela, a filosofia, se envolve com
aspectos da língua que não são universalizáveis, tendo que levar em
conta as contingências de cada uma delas. O trabalho de Barbara
Cassin, nesse sentido aponta, do início ao fim, para a materialidade
do trabalho filosófico, enquanto um trabalho que envolve não só
conceitos, mas palavras, não só ideias, mas línguas.
Mas o livro de estreia da autora teve ainda outra consequência não
menos importante: sua publicação pôs de novo na ordem do dia a
discussão sobre a sofística antiga e fez com que, a partir de uma
nova interpretação desta, fosse o pensamento grego antigo como um
todo que tivesse que ser revisto. Foi nesse sentido que, alguns anos
depois da publicação de Se Parmênides , ela organizou um grande
colóquio sobre a primeira e a segunda sofística em Cerisy, na
França, cujas conferências foram posteriormente publicadas em dois
livros: Positions de la sophistique (Vrin, 1986) e Le plaisir de
parler (Minuit, 1986). Dando sequência a esse projeto de uma nova
compreensão da sofística e da filosofia grega em geral, ela publicou,
em 1989, juntamente com Michel Narcy, uma nova edição
comentada do livro Gama da Metafísica de Aristóteles, que colocou
a relação entre Aristóteles e a sofística em novos termos, além de ter
produzido uma interpretação absolutamente original da própria obra
do estagirita. De lá para cá, muitos livros seus foram publicados,
alguns deles já traduzidos no Brasil, como Ensaios sofísticos
(Siciliano, 1990), Gregos, bárbaros, estrangeiros – A cidade e seus
outros , em colaboração com N. Loraux e C. Peschanski (Editora
34, 1993), Aristóteles e o logos: contos da fenomenologia comum
(Edições Loyola, 1999), O efeito sofístico (Editora 34, 2005) e,
juntamente com Alain Badiou, Heidegger – o nazismo, as mulheres,
a filosofia (Tinta Negra, 2011) e Não há relação sexual: duas lições
sobre “O aturdito” de Lacan (Zahar, 2013).
Um ponto interessante de seu percurso que ela expõe na entrevista
é sua intensa colaboração com Alain Badiou, com quem dirigiu a
coleção L’ordre philosophique e fundou e co-dirigiu a série Points-
bilingues nas Éditions du Seuil. Desde 2007, co-dirige também com
Alain Badiou a coleção Ouvertures e Ouvertures-bilingues na
editora Fayard.
Ela nos fala também de um dos projetos mais importantes de sua
obra recente. Durante oito anos, Barbara Cassin foi responsável, no
CNRS, por um grupo de pesquisa internacional tendo por objetivo a
constituição de um Vocabulário europeu das filosofias, Dicionário
dos Intraduzíveis , publicado na França em 2004 pela Seuil/Le
Robert. O dicionário hoje está sendo traduzido e adaptado em
ucraniano, inglês, espanhol, árabe, romeno, persa e português (cf. o
texto do coordenador do projeto brasileiro de intradução do
Dicionário, o professor Fernando Santoro, da UFRJ). Barbara
Cassin recebeu em 2012 o grande prêmio de filosofia da Académie
française pelo conjunto de sua obra.
Publicado em 1980, o seu primeiro livro, Se Parmênides ,
representa um acontecimento muito importante para o estudo
da filosofia antiga. Considero este livro a primeira tradução
“pós-saussuriana” de um texto grego antigo; pela primeira vez,
nós vemos um editor e tradutor levando em consideração
principalmente a questão do significante, que tinha sido
totalmente negligenciada nos estudos e traduções anteriores, os
quais acreditavam que se poderia alcançar o significado de um
texto sem levar em conta a dimensão do significante. Ao mesmo
tempo, esse livro representa uma confrontação maior com
Heidegger que, embora tenha sido o primeiro filósofo a efetuar
uma leitura mais precisa dos textos filosóficos gregos, jamais
teve uma boa relação com a linguística. Como você encontrou o
caminho que a levou a produzir uma obra tão original?
Foi Pierre Aubenque, quando eu me inscrevi com ele para fazer a
minha tese de terceiro ciclo, e que durava dois ou três anos e não
dez ou vinte, que me propôs trabalhar com o De Melisso, Xenófanes
e Górgias , um curto tratado apócrifo bastante enigmático,
publicado junto com o corpus aristotélico. O tratado coloca para o
seu leitor uma questão, sobretudo clássica, da história da filosofia:
por que pôr em série Melisso, Xenófanes e Górgias, de que ponto de
vista, em que perspectiva podem eles formar os elos de uma cadeia?
Mas o Tratado do não-ser de Górgias, o último elo da cadeia,
obriga, para compreender algo ali, a prestar atenção redobrada às
próprias frases, à língua grega tal como ela se desdobra, em suas
frases e em suas formas, com seus equívocos sintáticos e
semânticos. Desde que o lemos e tentamos lhe dar um sentido, sem
corrigir imediatamente o que não se compreende sob pretexto de
que seria mal transmitido ou falho, nós nos confrontamos com as
homonímias e as anfibolias, com o tempo do discurso – mais
exatamente: com a discursividade. As primeiras palavras de uma
frase, por exemplo, to mêonesti , “o não ser é”, fazem com que o
não-ser exista; mas desde que se lê a frase até o fim: to
mêonestimêon , “o não-ser é não-ser”, então se compreende que o
não ser é idêntico a si mesmo, e que nem por isso ele existe.
Constata-se que o tempo mesmo do discurso permite apreender o
equívoco fundamental do verbo “ser”, existência ou predicação. É,
portanto, a atenção à letra, trabalho propriamente filológico, que nos
força à percepção do equívoco e, através disso, à percepção do
significante. Ora, foram Jean Bollack e Heinz Wismann que me
ensinaram a importância dessa atenção. Para aprender a editar um
texto a partir de sua letra, supor que ele pode inventar em sua língua
mesmo obedecendo as suas regras – dito de outro modo,
considerando-o como escrito, podendo ter desvios significantes –, é
preciso muito rigor e trabalho, e é isso a “Escola de Lille”. Eu não
estou segura de que se trate aí de uma relação com a linguística
saussuriana ou outra, é simplesmente uma relação com a língua. E
foi a partir dessa percepção que eu interpretei a cadeia inteira,
Melisso, Xenófanes e Górgias, em sua relação com o não-dito e
grande ausente que é Parmênides.
A relação com Heidegger era evidentemente diferente para Pierre
Aubenque e para Jean Bollack. Pierre Aubenque considerava
primeiramente Heidegger como um grande filósofo, um grande
historiador da filosofia, um grande intérprete de Aristóteles, e ele
tem razão (“O que é e como se determina a physis em Aristóteles”,
por exemplo, é uma conferência “de uma magistral inteligência
‘filosofal’ – como se diz, ‘historial’”). Por sua vez, Jean Bollack o
considerava primeiramente como um inimigo, não apenas como
nazista, mas enquanto filólogo, pois [ele, Heidegger]
voluntariamente ignorava a sintaxe em proveito de uma parataxe de
etimologias originárias reativadas – nazista já nisso. Do meu lado,
eu me servi de cada ponto de vista como antídoto do outro: a
importância suprema da letra do texto, em modo bollackiano,
permite deslocar a percepção heideggeriana da história da filosofia.
Isso concorda com o próprio objeto: o Tratado do não-ser, de
Górgias, ainda mais nessa versão anônima que naquela de Sexto
Empírico, única transmitida na Bíblia dos Pré-socráticos que é o
Diels-Kranz , produz literalmente uma leitura não-heideggeriana do
Poema de Parmênides e abre a possibilidade de que sejamos “de
outro modo pré-socráticos”.
Você participou de um dos Seminários de Thor, onde você teve
um contato direto com Heidegger. Como você chegou a Le
Thor? Como foi esse contato pessoal com Heidegger e que
importância ele teve para o seu trabalho mais tarde?
Eu tive a chance de ter Michel Deguy como professor de filosofia
no Lycée Pasteur (ele tinha acabado de receber, na época, o grande
prêmio de poesia). No momento dos eventos de 1968, nós
fabricamos um tipo de universidade alternativa em um apartamento
que meus pais colocaram à minha disposição, com Michel Deguy,
mas também o poeta chileno Godofredo Lévy e muitos outros,
dentre os quais Stanislas Breton, Dominique Fourcade, Patrick
Lévy, com quem nós traduzimos Hannah Arendt. Havia também o
próprio Jean Beaufret e, sobretudo, François Fédier. Eu tinha
acabado de defender o meu DEA (Diploma de estudos avançados),
orientada por Ferdinand Alquié sobre Convicção e demonstração –
A correspondência entre Leibniz e Arnauld após o Discurso de
metafísica. Foi por um convite de François Fédier que eu fui ao
seminário de Thor, que tinha Leibniz comotema. Eu encontrei ali, ao
mesmo tempo, Heidegger e [René] Char. Esse duplo encontro
contou imensamente. Os eventos de 1968 e esse seminário fizeram
com que eu não tenha sido mais capaz de me integrar naturalmente
na vida acadêmica; eu tive, por exemplo, que apresentar uma dezena
de vezes a agrégation em filosofia sem jamais ter sucesso. O que há
de comum entre a filosofia e a poesia é o amor à língua, e foi aí, no
amor ao grego, mas também ao francês, que fez me sentir em casa.
Eu fiz uma revista de poesia mural “aparecendo onde quer que ela
pudesse aparecer” com dois amigos, Denys Riout e André Sala, ao
mesmo tempo em que eu começava a trabalhar sobre Se Parmênides
. Nem Char nem Heidegger eram minhas últimas “referências”, mas
eles foram e são ainda aqueles que me permitem avançar colocando
questões e, portanto, ao menos no que diz respeito ao primeiro,
viver. Eu não acho que eu cometi “parricídio” em relação a
Heidegger, pois ele jamais me serviu de pai venerável, como
Parmênides para Platão; enquanto era isso que ele era para os
“heideggerianos”, como François Fédier ou François Vezin. Eu
jamais fiz abstração de seu engajamento político, mas eu jamais fui
tentada a reduzi-lo a isso: é um grande filósofo e, com Nietzsche,
aquele que abre a percepção dos pré-socráticos, mesmo se, ou
justamente porque, é filosoficamente essencial pôr em causa sua
interpretação.
Embora você parta sempre da questão do significante, as
referências a Saussure são raras nos seus textos. Em Se
Parmênides , você faz referência em uma única ocasião a
Benveniste. Em que medida os trabalhos de Saussure foram
essenciais para a construção do seu caminho? E em que medida
a renovação efetuada por Benveniste contribui para a sua
relação com a linguística?
Como eu já disse, não é tanto a linguística quanto a língua, e mesmo
as línguas, que me interessam. Eu amo ler Saussure e Benveniste, e
me sirvo de tudo o que eu posso. Saussure lido por Lacan, ou lido
para Lacan, é uma chave de trabalho sobre a língua e o significante.
O texto de Benveniste sobre “Categorias do pensamento e
categorias da língua” é uma chave para explicar Parmênides e
Górgias, como na discussão que Derrida faz dele – eu acho, aliás,
que ele tem, no fim das contas, a mesma posição, muito
heideggeriana: a língua grega é determinante para a ontologia…
Mas, para mim, é importante, sobretudo, o Vocabulário das
instituições indo-européias , de Benveniste, cuja extrema
inteligência comparatista me serviu de modelo para o Vocabulário
europeu das filosofias, Dicionário dos Intraduzíveis , em que
trabalhamos sobre a discordância das redes semânticas e sintáticas
das diferentes línguas. No momento, é antes Austin, How to do
things with Words , que me ocupa. Eu estou refletindo, com efeito,
sobre a relação entre a performance sofística e o performativo
austiniano: como uma e outro, longe de dizer o que é, em modo
fenomenológico, fazem ser o que é dito e jogam com esses dois
“fetiches”, como os chama Austin ao final do seu texto, que são
verdadeiro/falso, por um lado, e valor/fato, por outro. Chegamos
assim, aliás, na diferença das línguas, como maneiras diferentes de
ver e de fazer existir o mundo.
Já no seu primeiro livro, Se Parmênides , há uma referência,
inesperada para uma helenista, a autores como Heidegger,
Bataille, Freud, Hegel. Qual foi a sua formação filosófica? Você
se considera uma helenista ou uma filósofa contemporânea? E
qual é a importância do diálogo com a filosofia contemporânea
para o estudo da filosofia antiga?
Eu jamais pude trabalhar os textos antigos fazendo abstração da
vida presente. A língua, o amor à língua e às línguas, não faz
abstração dela. Eu me apaixonei pelo grego, pela língua grega, pela
maneira como as palavras tinham aí sentidos diferentes das palavras
francesas e inglesas que as traduziam, pela maneira como a sintaxe
podia jogar com a ordem das palavras, com o tempo e o aspecto dos
verbos, e eu me apaixonei pelos textos que se desdobravam nela e
que a desdobravam – “um autor e sua língua: ela é seu órgão e ele é
o seu”, escreve Schleiermacher: uma língua são autores e obras, e eu
amo Homero, Píndaro, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Demóstenes,
Tucídides, Luciano; eu amo Parmênides, Górgias, Demócrito,
Platão, Aristóteles, Epicuro, Marco Aurélio, Sexto Empírico;
quando eu cito cada um desses nomes, é um mundo que se abre. O
grego é a língua que me espantou, como a gente se espanta com um
primeiro amor.
Ao mesmo tempo, eu me apaixonei pela filosofia, espantando-me,
dessa vez, com o fato de que se tenha o direito de colocar questões
radicais – “Será que Deus existe?” ou “O que é a liberdade?”, “O
que é a verdade?”, “O que é ser si mesmo?”, ou “O que é um
povo?”–, que se ouse colocar essas questões e, sobretudo, que se
possa fazer disso uma profissão. Eu fui subjugada por isso.
Aí você compreende que a relação entre literatura ou poesia e
filosofia, por um lado, passado e presente, por outro, me pareceu
uma coisa natural, evidente. Eu sou helenista e eu sou filósofa,
portanto, eu não cesso de misturar os gêneros e as épocas, e eu me
alegro quando Górgias e Aristóteles, ao mesmo tempo que Freud e
Arendt podem ajudar a pensar o que acontece na África do Sul e
com o povo arco-íris, – a Comissão Verdade e Reconciliação pensa
que “a linguagem, discurso e retórica, constrói a realidade”, isso é
[Desmond] Tutu, mas é [também] Górgias! Ou quando Lacan me
faz melhor situar Aristóteles e compreender Demócrito, ao mesmo
tempo, aliás, que Górgias me permite atingir Lacan – “o
psicanalista, a presença do sofista em nossa época”. Mas, sem
dúvida, isso implica determinada maneira de filosofar, não muito
reconhecida por certo tipo de filosofia analítica, mesmo se
Wittgenstein, o linguisticturn ou Stanley Cavell, por exemplo, são
para mim bons e amigáveis gênios, sem incompatibilidade de
humor. Uma filosofia que se poderia dizer continental, para a qual é
evidente que a história da filosofia faz parte integrante, constitutiva
mesmo, da filosofia, e que presta atenção às palavras ao menos tanto
quanto aos conceitos, às línguas ao menos tanto quanto à
linguagem.
A referência à psicanálise está presente desde Se Parmênides , a
partir de Freud (O chiste e suas relações com o inconsciente ).
Mas há, já nesse primeiro livro, um “tom” lacaniano que iria se
aprofundar nos anos seguintes, ao ponto de o seu último livro,
Jacques le sophiste (a ser publicado no Brasil, também pela
editora Autêntica), tratar exclusivamente da relação entre
Lacan e a sofística. Como a psicanálise apareceu no seu
caminho? E como ela é importante para o seu trabalho? Até
porque não é muito comum ver um helenista trabalhar com
referências psicanalíticas.
Mas é muito comum para um filósofo, e por ser helenista, nem por
isso eu sou menos filósofa! Na verdade, como de hábito, trata-se aí,
ao menos também, de uma causa ocasional, de uma contingência
bem-vinda como um equívoco significante ou um kairós que é
preciso agarrar pelos cabelos para que ele marque com toda a força
retrospectiva do verdadeiro. Quando eu procurei trabalho para dar
prosseguimento aos meus estudos, um amigo me propôs entrar
como pedagoga de adolescentes psicóticos em um hospital. E o que
se passou ali ao mesmo tempo me esgotou (eu tinha a impressão de
envelhecer de segundo em segundo) e literalmente me apaixonou.
Havia ainda, mais uma vez lá, a língua. Todas as crianças tinham
perturbações de linguagem, alguns eram mudos. Eu me lembro de
ter tido vontade de fazê-los compreender que eles tinham uma
língua materna, mais materna que qualquer outra, e que essa língua
por assim dizer “materna” lhes pertencia. Eu quis espantá-los, então
eu comecei a escrever em grego no quadro. E eles ficaram
espantados, pois isso era verdadeiramente “estranho”, de fato. Eu li
o Crátilo de Platão com eles, eles compreenderam que Sócrates
fazia as palavras gregas dizerem o que ele queria, jogando com
etimologias contraditórias, como se a língua lhe pertencesse. Um
deles, então, levantou o dedo dizendo que tinha compreendido: ele
me propôs sua etimologia de concierge [porteiro], con e cierge
[boceta/babaca e vela ]… Eu não fiz análise, nem então nem
jamais, mas a psicanálise estava evidentemente no meu caminho. Eu
tinha muitos amigos analistas e, às vezes, eu dava aulas para eles, eu
lia com eles a Teogonia de Hesíodo ou o Da interpretação e
Refutações sofísticas de Aristóteles, que todos os analistas deveriam
ler, e alguns dentre eles deviam falar disso no divã de Lacan, que
um dia me telefonou.
Eu conto isso em Jacques le sophiste [ Jacques o sofista ],
partindo de novo da maneira como Lacan acha que Aristóteles é
“realmente babaca”. O ponto central para a discursividade lacaniana
como para a discursividade sofística pode se deixar apreender como
certa relação com o equívoco, com a performance, com o
significante, portanto, um discurso à margem do princípio de não-
contradição aristotélico, o qual só funciona com a exigência de
univocidade. Dizer, para Aristóteles, é sempre dizer algo, isto é,
significar uma só coisa e a mesma, para si mesmo e para outrem.
Falar, ser um animal dotado de logos , portanto, um homem, é se
dobrar à decisão do sentido. É justamente isso que Lacan retrabalha
e que o põe do mesmo lado dos sofistas em relação a Aristóteles: do
lado do in-sentido, do ab-sentido [do sentido ausente], etc… O nó
está aí. O inconsciente é estruturado como uma linguagem, sim, mas
o ente é feito como um sentido. Donde a suspeita de Lacan em face
da ontologia, la bêtise du discurso m’être [frase intraduzível de
Lacan: algo como a besteira do discurso me ser/do discurso mestre
].
Você trabalhou recentemente com Alain Badiou, após ter
igualmente publicado livros com ele e dirigido junto com ele
uma coleção. O que une o trabalho de vocês? Como você vê o
trabalho de Badiou no cenário da filosofia contemporânea?
Nós somos amigos, eu admiro sua inteligência e sua generosidade.
Ele está do lado de Platão e da Verdade, eu, do lado da sofística e
disso que ele chama “as duvidosas propriedades da linguagem”. É
interessante, tanto para um como para o outro, esse antagonismo.
Pois ele não é fixado, dito de outro modo: a gente se fala.
Respondemo-nos por escrito nesses livros, nós nos estimamos.
Refletimos juntos sobre o prazer que nós experimentamos em
trabalhar juntos há uns vinte anos. Nós chegamos à seguinte ideia:
nós temos uma “razão pura” radicalmente diferente, isso é certo,
mas nós temos a mesma reticência ou o mesmo desgosto em relação
à “razão prática”, à moral, e, sobretudo, nós partilhamos a mesma
crítica do juízo. Quando nós lemos um manuscrito, mesmo se nós
não estamos, nem um nem o outro, de acordo com o autor, nós
temos a mesma percepção do valor ou do interesse do trabalho, nós
temos o mesmo gosto. E talvez também o mesmo sentido da
situação: por exemplo, mesmo se Arendt não é “a” filósofa
importante para Alain Badiou (mas ela simplesmente também não o
é para mim, mesmo que eu a ame), nós ficamos muito contentes de
ter publicado não apenas Le journal de pensée mas, muito
recentemente, precisamente no momento em que Claude Lanzmann
falava muito mal da “banalidade do mal”, o diálogo Arendt-Fest
intitulado Eichmann était d’une bêtise révoltante [Eichmant era de
uma estupidez revoltante ], no qual compreendemos, politicamente e
linguageiramente, como os clichês, os elementos de linguagem,
constituem a essência da banalidade do mal.
A questão das mulheres e do feminino, de maneira irregular,
retorna em seu trabalho. Recentemente, em particular quando
você trabalha com Badiou, você sublinha o fato de ser uma
mulher filósofa ou uma filósofa mulher. Como você compreende
o lugar das mulheres na filosofia, seja como objeto de estudo,
como questão, seja enquanto autora?
Eu não sei. Eu sei o que me importa, que é complicar o universal.
Pela diversidade das línguas, pela permeabilidade dos gêneros, em
todos os sentidos do termo, gêneros literários assim como gênero-
gender . O efeito sofístico já se conclui com a ideia de que “a
desmistificação da doação ontológica produz uma
descompartimentação dos gêneros do logos ”, este é o efeito por
excelência que Górgias provoca em Parmênides, não menos, aliás,
que em Heidegger. É fácil dizer que o filósofo é homem, e tem a ver
com a Verdade, e que a mulher é sofista, e tem a ver com o gozo da
linguagem. Badiou, como eu, como Lacan, eu creio, nos permitimos
dizê-lo. Mas eu não cesso, ao mesmo tempo, de protestar contra a
ideia de que a posição mulher como a posição do sofista consistiria
finalmente em relançar a filosofia, o homem, suscitando-lhe
obstáculos, incomodando-o. Muitas mulheres filósofas acreditam,
reivindicam essa posição de perturbar ou, melhor, de “inventar
histórias” [referência ao título do livro de Vinciane Despret e
Isabelle Stengers, Les faiseuses d’histoires – Que font les femmes à
la pensée? ]. É uma questão que eu me coloco com a Revista das
mulheres-filósofas da Unesco: como o gênero complica o
universal ? No entanto, a resposta trublion [agitador, perturbador]
me satisfaz cada vez menos, um pouco como se a gente estivesse
sempre concedendo às mulheres o sentimento e a literatura, para
reservar aos homens a razão e a filosofia ou, como quando se
consolava a Grécia vencida (Graecia victai , sempre no feminino)
dizendo-lhe que ela tinha vencido seu feroz vencedor. Eu penso, e, é
claro, isso é muito politicamente correto, que não há “natureza”
mulher, mas também que a identidade-mulher é, antes de tudo,
estratégica. Assim, se Badiou me dissesse (ou me dizia, pois ele me
diz isso?): “Você pensa assim porque você é uma mulher”, eu teria
que lhe responder: “Não! É enquanto filósofa”; e quando ele me
dissesse: “É como filósofa que você pensa assim”, eu responderia:
“Não! É enquanto mulher”.
A sua relação com o Brasil é intensa. A publicação da coletânea
Ensaios sofísticos , que foi publicada entre nós em 1990, contém
já uma grande parte dos artigos que só seriam publicados na
França, em 1995, no livro O efeito sofístico . Mas antes disso,
você já tinha vindo ao Brasil falar sobre Se Parmênides . Depois,
vários pesquisadores brasileiros estudaram com você em Paris.
Como se deu essa aproximação com o Brasil? A que você atribui
o grande interesse que seu trabalho teve entre nós? Como você
vê a filosofia que é feita hoje no Brasil?
É verdade que a minha relação com o Brasil é muito antiga. Eu me
maravilhei imediatamente com certo tipo de liberdade, destreza, de
inventividade no cotidiano, como algo ligado ao novo mundo. Mas
houve passadores, em particular o Colégio de estudos
transdisciplinares na UERJ, dirigido por Eric Alliez, bem no início.
Eu me lembro de uma questão que você, Cláudio, me colocou na
ocasião de um seminário sobre o logos no Tratado da alma de
Aristóteles, que me permitiu compreender o que eu estava tentando
dizer. Você sabe, eu jamais ensinei realmente na França. No início,
um pesquisador do CNRS [Centre national de recherche
scientifique , abreviado em francês] tinha que pedir uma “dispensa”
para ter o direito de ensinar, e meus colegas na universidade
velavam ferozmente pelo seu território. Eu fiz seminários em
lugares marginais, felizes, como o Collège international de
philosophie [em Paris], mas onde não havia nem cursos nem
doutorandos. Era para mim muito importante que estudantes
estrangeiros, brasileiros, argentinos, sul-africanos, viessem trabalhar
comigo. Vivam as bolsas-sanduíche se o Capes/Cofecub! Os
estudantes brasileiros que vieram a Paris são agora professores no
Brasil, como Fernando Santoro que dirige a intradução para o
brasileiro do Dicionário dos intraduzíveis , no qual ele colaborou
quando ele estava na França, ou psicanalistas em Paris como
Elizabete Thamer. Nós tivemos aventuras em comum, ligadas às
permeabilidades entre literatura, poesia, filosofia, arte, por um lado,
entre antigo e contemporâneo, por outro (meu primeiro seminário
no Collège international de philosophie se intitulava: “pré-socráticos
e pós-modernos”!), como condições de um politicamente e
culturalmente vivível. Talvez o Brasil seja o único lugar em que não
se recrute ainda professores de filosofia antiga em conta-gotas! Eu
admiro que exista um país onde a filosofia grega não seja apenas um
assunto de especialistas. É ao Brasil que eu envio meus doutorandos
e pós-doutorandos, porque se tem aí a inteligência de compreender
que a filosofia grega não é apenas filosofia grega, mas filosofia tout
court, e até mesmo beleza a ser compartilhada.
Dicionário dos Intraduzíveis
FERNANDO SANTORO

O Vocabulário europeu das filosofias, publicado sob a direção de


Barbara Cassin em 2004, foi um acontecimento cultural e político
que ultrapassou as fronteiras da filosofia, tendo recebido o prêmio
de melhor obra de não-ficção do ano na França e mobilizado os
gabinetes da União Europeia para as questões de língua. Concebido
como um instrumento de pesquisa original, indispensável à
comunidade científica, e um guia filosófico internacional para
estudantes, professores, pesquisadores interessados em sua própria
língua e nas dos outros, seus cerca de quatrocentos verbetes iniciais
(visto que se trata de uma obra em expansão) comparavam cerca de
quatro mil palavras, expressões, modos etc. em mais de quinze
línguas europeias (do basco ao ucraniano, do português ao sueco).
Todavia, os seus desdobramentos foram para além das nações e
línguas europeias: atualmente o dicionário já foi traduzido e
adaptado em ucraniano, romeno, inglês e árabe e está sendo
realizado em português, russo, espanhol, italiano, persa, além de ter
um estudo preparatório para sua tradução em chinês. Diversas
línguas que eram de partida, de passagem ou mesmo ausentes do
original foram incorporadas ou mesmo transformaram-se em línguas
de chegada, ampliando o conteúdo e o número de verbetes.
O Dicionário dos Intraduzíveis brasileiro não é apenas uma
tradução do Vocabulaire européen des philosophies. O estatuto
linguístico do projeto requer não apenas a transposição dos textos
para outra língua, mas sua reconfiguração, tendo em vista a
mudança da língua de recepção e explicação dos termos e
expressões “intraduzíveis” (chamada de “metalíngua”), em relação a
todas as outras línguas concernidas nos verbetes. O francês deixou
de ser a língua de chegada do Dicionário e passou a ser uma língua
de partida. Seu estatuto, evidentemente, não é o mesmo das outras,
pois foi privilegiada por ter originado o volume inicial. A língua de
chegada do Dicionário dos intraduzíveis é o português dos textos
filosóficos de Portugal e do Brasil, não descartando a possibilidade
de diálogo com as demais comunidades lusófonas e com a tradição
textual das ciências humanas e dos estudos linguísticos e literários.
Realizado para a Editora da UnB, com apoio de grupos de
pesquisa de diversas universidades brasileiras, o projeto já nasceu
com a consciência do ruir das fronteiras nacionais das línguas
filosóficas. A experiência de trabalhar com as diferenças de línguas
e filosofias forçou o encontro com alteridades inauditas no projeto
original, além da ampliação das línguas europeias – já não tão
metropolitanas como percebia-se na composição da primeira equipe:
americanos cuidando do inglês, mexicanos e argentinos do
espanhol, brasileiros do português. Por isso, a primeira mudança foi
a queda do adjetivo “europeu” do título original. Questões
filosóficas foram abertas por esta nova sensibilidade, sobretudo a
crítica do universalismo ocidental e suas formas clássicas.
No caso do dicionário brasileiro, acrescentamos a discussão
filosófica oriunda de vertentes literárias, como as explorações de
tradução em poesia pelo Concretismo dos irmãos Campos,
resultando, por exemplo, no novo verbete “Intradução”, em que vem
à tona a definição, presente nos artigos que prepararam o projeto,
apresentada por Barbara Cassin: “O intraduzível não é o que não é
ou não pode ser traduzido, mas antes o que se não cessa de (não)
traduzir.” Uma definição que não obedece ao princípio de não-
contradição, em acordo com o caráter atópico e equívoco do próprio
intraduzível.
Autores tradicionalmente alocados nas prateleiras de literatura
foram transportados para a de clássicos da filosofia, como Fernando
Pessoa e Antônio Vieira. A cultura mestiça do Brasil obrigou o
dicionário a explorar os equívocos extremamente sintomáticos das
noções de humanidade, animalidade, cultura e natureza na tradução
das cosmovisões e ontologias ameríndias, bem como a confrontar
problemas de tradução e apropriação entre conceitos e termos
filosóficos teológicos entre religiões monoteístas como as de origem
semita e as politeístas como as de origem banto e ioruba.
A versão brasileira do dicionário, além de produzir alguns
verbetes originais, decidiu também incorporar os verbetes originais
das demais adaptações em curso, tais como os novos verbetes:
“Gender” refeito pela equipe norte-americana, “Chôra” escrito por
Anthony Vidler ou o verbete “Sharia”, ampliado pela equipe
marroquina.
O novo Dicionário dos Intraduzíveis operou uma separação física
da obra, que passou a ter dois volumes. O primeiro (sai este ano!)
trata de problemas transversais a diversas línguas ou das
características gerais próprias a cada uma; chama-se “Línguas” e é
composto de verbetes maiores, praticamente pequenos capítulos de
um livro que pode ser lido do início ao fim como uma coletânea de
ensaios. O segundo volume tem propriamente o formato de um
vocabulário, com verbetes em ordem alfabética que funciona como
um instrumento de consulta para “termos intraduzíveis”, chama-se
“Palavras”. Além desses dois tipos de verbetes há, como no original,
verbetes redirecionadores, que constituem elos entre os diversos
verbetes, e as remissões intertextuais que formam uma trama
hipertextual de palavras. Este formato obedece a um dos princípios
que regem a nossa concepção de tradução filosófica, em que os
“intraduzíveis” são importantes nós: o texto é uma trama, e não um
fio, sua transposição requer sempre ultrapassar a literalidade linear e
a considerar de modo reflexivo e criativo as ligações em rede das
línguas e suas expressivas filosofias.
coluna

Atirar a primeira pedra


MARCIA TIBURI

A violência é experimentada, provocada e sofrida no dia a dia das


pessoas das mais diversas formas. Na prática, a violência é algo
banal, ou seja, é comum e partilhada. O que chamamos de
“violência simbólica” está entre nós entrelaçada de um modo
perigoso com a violência física. Isso quer dizer que nos atos físicos
de violência de gênero, raça, idade, classe social, há sempre
violência simbólica. Na base de instituições nas quais o
autoritarismo (Estado, Justiça, Escola, Família, Igreja) define o
rumo dos atos de opressão e submissão de pessoas em geral, a
violência simbólica diz respeito à compreensão da própria violência:
a ideia do que seja violência define a violência possível. Daí que
alguns se sintam autorizados, seja a xingar, seja a fomentar o ódio
na TV ou até mesmo nas redes sociais da internet.
A agressividade verbal é uma forma conhecida de violência
simbólica. Fofoca e difamação também fazem parte desta violência
que se faz com palavras e atos de fala, mas em uma escala que não
parece tão perigosa na maior parte dos casos. Falar é fazer, mas
pensamos pouco nesse fato.
Quando a violência da fala chega à comunicação que, em escala
institucional, atinge o que chamamos de “mídia”, o perigo se
intensifica. Temos ouvido e visto jornalistas com amplo espaço na
televisão falar de modo agressivo e irresponsável em gestos de claro
fomento ao ódio. Rachel Sheherazade não é o único, embora seja o
mais curioso dentre os exemplos, à prática midiática do ódio.
Podemos pensar que ela extrapola os limites éticos, mas aquilo que
ela faz é estabelecer elos com a “voz” de muitas pessoas. Isso quer
dizer que as “asneiras” pronunciadas em público tem nexo direto
com aquelas que são pronunciadas em casa, na esfera da vida
privada. Daí o lugar especial em nossa cultura contemporânea de
plataformas como facebook – onde qualquer um faz-se de
“formador de opinião” – que estremecem os limites do privado e do
público. Ali o que se diria em escala privada é dito em escala
pública com a leviandade de quem pensa não estar sendo visto.
Como se o que é dito não tivesse nada demais em ser dito.
UMA VIOLÊNCIA POUCO IMPRESSIONANTE
É menos impressionante xingar do que caluniar, e menos grave
caluniar do que espancar e menos ainda espancar do que matar. Mas
há uma continuidade entre os atos de fala e as violências físicas,
porque nossos atos são efeito do que pensamos. Nossos atos de fala
provocam efeitos subjetivos e objetivos. Podemos pensar que todos
somos capazes de fofoca, de maledicências e, bem pagos, alguns
seriam capazes até de fazer jornalismo sem ética ou coisas do tipo.
Até que ponto vai a capacidade de praticar violência? Essa é uma
pergunta que devemos nos fazer hoje em dia.
Aquele que fomenta verbalmente a violência trabalha na formação
da violência simbólica. Como fez Sheherazade ao incitar à morte
daquele que, segundo sua epistemologia, chamou de
“marginalzinho”. Aquele que pensa assim, fala assim, também é
capaz de fazer o que diz porque, de certo modo, já “faz” o que diz.
Pelo simples fato da banalização da violência, há quem pense que
também está autorizado a matar. Os diversos casos de violência ao
nível da barbárie vividos no Brasil nos últimos tempos nos
confrontam com uma sociedade que não se preocupa com a própria
violência. Neste campo entram os meios de comunicação
controlando o modo de pensar e, portanto, de agir das pessoas.
Sabemos que a destruição da sociedade se dá na destruição da
subjetividade das pessoas. Cada um deve ser aniquilado como
pessoa, ou seja, precisa ter perdido a si mesmo para poder sentir que
a vida do outro não vale a pena e que deve ser aniquilada de
qualquer modo. Ele se entrega ao ato de atirar a primeira pedra
porque está iludido de que a sua vida pode valer alguma coisa.
Não há futuro para uma sociedade cujo pensamento comum é
este. Não há futuro em uma sociedade cujo pensamento comum
nasce na televisão fascista.
coluna

Leitores endemoniados
MANUEL DA COSTA PINTO

A Flip (Feira literária internacional de Paraty) acaba de divulgar sua


programação para 2014, que acontece entre 30 de julho e 3 de
agosto, com mesas bastante politizadas, envolvendo escritores,
artistas, cineastas e jornalistas cujo traço comum é a postura crítica
em relação ao poder – e que deverão gravitar em torno da
homenagem a Millôr Fernandes.
Entre tantos autores, é possível que passe meio despercebida a
presença de uma autora de mordacidade genuinamente milloriana: a
escritora norte-americana de origem turca Elif Batuman, que nasceu
em Nova York, em 1977, e atualmente mora em Istambul.
Salvo engano, Batuman tem apenas um livro publicado no Brasil,
Os possessos – Aventuras com os livros russos e seus leitores (Leya,
2012), composto por ensaios publicados originalmente nas revistas
The new yorker , Harper’s magazine e n+1 .
“Ensaio”, no caso, é um termo um tanto impreciso para um
conjunto de reportagens autobiográficas sobre as experiências da
autora como estudante de literatura russa na Universidade Stanford,
na Califórnia, quando empreendeu viagens de pesquisa que a
levaram ao Uzbequistão, a São Petersburgo, a Moscou e à
propriedade de Iasnaia Poliana, onde Tolstói viveu seus últimos
anos de vida.
Com seu tom irreverente, atento aos acontecimentos bizarros e às
ninharias, o livro parece à primeira vista um diário ou blog teen ,
uma típica sátira defensiva ao competitivo mundo acadêmico norte-
americano – cuja ultra-especialização levou a própria narradora-
autora a vasculhar os arquivos californianos de Isaac Bábel, à cata
de detalhes insignificantes sobre sua vida, e a conhecer as filhas do
autor de Cavalaria vermelha .
E não deixa de ser uma sátira, como o é também em relação às
oficinas de escrita criativa. Numa das passagens iniciais de Os
possessos , Batuman se encontra na dúvida entre “a cultura puritana
da escrita criativa, corporificada em colônias e oficinas” e o árduo e
“pedante” aprendizado de linguística, filosofia da linguagem e, mais
tarde, teoria literária.
Após a leitura de uma antologia das Best american short stories ,
Batuman compara a regras de clareza e concisão dos autores
americanos – com suas histórias que invariavelmente começam in
media res e suas narrativas que dão grande valor aos nomes próprios
das personagens, como expressão de um desejo de concretude e uma
“ponderação de plausibilidade em relação á precisão” – com os
“Alekseis duplos de Tolstói e as personagens sem nome de
Tchekhov”, com toda aquela barafunda de apelidos que constituem
o mais raso obstáculo aos leitores dos clássicos russos, para deduzir
daí seu pendor pelo tragicômico e para a desordem reinante na alma
eslava.
A aproximação de Batuman às letras russas se dá por esse viés
banal, da curiosidade e do esdrúxulo, em que os estudos literários
soam como mais uma ocupação para os filhos de um sistema
educacional abastado, que prepara os alunos para um “ofício” e em
que a ficção é apenas um artigo um pouco mais elevado na escala da
sociedade de consumo.
Acontece que esse mesmo sistema também oferece, a seus
pupilos, cursos de Derrida, René Girard ou Joseph Frank (autor de
monumental biografia em cinco volumes de Dostoiévski) – e,
quando o aluno é uma escritora com o entusiasmo e a inteligência
de Elif Batuman, o atrevimento de adolescente freak se converte na
vivência “física” desse repertório erudito, na busca de experiências
(congressos, viagens) que levam ao encontro grotesco e sublime da
diferença.
O livro é engraçadíssimo, mas também desconcertante, ou talvez
seja desconcertante por extrair um humor improvável, ora refinado,
ora pândego, do convívio entre jovens entediados com humanistas
melancólicos, escanteados pela cultura da técnica e da
produtividade.
Nisso, a escolha do título, que assume com ironia um erro de
tradução, é decisiva. Pois se Os possessos foi durante muito tempo
uma opção errônea dos tradutores de Os demônios , de Dostoiévski,
os endemoniados colegas de Batuman (como o lunático que saiu
“totalmente verde” de um mergulho no riacho lodacento em que
Tolstói se banhava com Tchekhov, ou o sedutor que incorpora o
niilismo do Stavróguin dostoievskiano) vivem quixotescamente,
intoxicados pela literatura.
Na esteira da teoria do “desejo mimético” de René Girard (para
quem, ao desejarmos, não estamos cobiçando algo, mas imitando o
desejo de outrem, querendo “ser o outro”), Batuman acaba criando
sua própria “teoria do romance”: “A forma romance é ‘sobre’ a luta
do protagonista para transformar sua experiência dada, arbitrária e
fragmentada, em uma narrativa tão significativa quanto a de seus
livros favoritos”. Nada mais russo do que essa fusão entre vida e
literatura.
coluna

Vieira e a música
ALCIR PÉCORA

De todos os meus estudos acadêmicos, nenhum me tomou mais


tempo do que o de estabelecimento e interpretação dos “Índices das
coisas mais notáveis”, uma espécie de glossário que acompanha os
quinze volumes da editio princeps dos Sermões do padre Antônio
Vieira (1608-1697). O assunto é vasto e não teria como abordá-lo
adequadamente no espaço desta coluna, mas vou procurar dar uma
amostra do interesse que podem ter para os estudos vieirianos e para
o léxico intelectual do século 17.
Tomemos o exemplo do verbete “Música”. Ele apresenta apenas
duas abonações, isto é, duas indicações do emprego do termo no
corpo dos sermões. A primeira delas refere o Sermão nas Exéquias
de D. João IV – rei português, protetor de Vieira e músico –, e diz
tão somente: “Qual era a música del Rei Dom João IV”. Trata-se de
um tipo comum de abonação, que apresenta uma simples indicação
de um passo dos Sermões , sem mesmo chegar a compor uma frase
completa.
A segunda abonação remete a uma nova e surpreendente entrada:
“Inferno”. Literalmente, a abonação diz: “Música, e harmonia do
inferno”, a qual se refere ao quarto discurso do célebre conjunto das
Cinco pedras da funda de Davi , que Vieira pregou em italiano na
luxuosa corte romana da Rainha Cristina da Suécia.
Como se vê, também “Harmonia” passa a ser um termo relevante
na associação com Música e, para ele, existem três referências:
(1) “Se os ateus fossem homens, um Ateu em um deserto se
envergonharia de cometer um pecado” (que diz respeito ao terceiro
discurso da mesma série das Cinco pedras ); (2) “Harmonia, e
música do inferno” (que, como disse, remete ao quarto discurso da
mesma série); (3) “Assim como a culpa sem castigo é a maior
dissonância, assim o castigo com a culpa a maior harmonia” (idem).
Ou seja, observando tais abonações percebemos que para se
determinar o campo semântico do termo “Música”, tal como
entendido por Vieira, é ainda preciso incluir o vocábulo
“Dissonância”, que acaba de surgir no horizonte. Dessa forma,
resumindo tudo, estamos obrigados a considerar que “Música” é o
nome de um sistema de significação complexo que admite como
significados importantes nos sermões ao menos três categorias
semânticas: Inferno, Harmonia e Dissonância.
O próximo passo é procurar uma entrada para o termo
Dissonância, a qual (felizmente!) não há. Precisamos então voltar a
examinar cada uma das passagens dos sermões referentes ao verbete
“Harmonia”. E logo na sequência da terceira abonação dele, há uma
frase reveladora, pois Harmonia se define como “Boa doutrina para
aqueles que fazem o compasso na república”. A questão é que, além
da definição, passa a nos interessar também o termo “Compasso”,
aplicado aqui como alegoria política.
No jogo vieiriano da Música articulam-se, portanto, os conceitos
de Inferno, Harmonia, Dissonância e Compasso. Por sorte, para que
a vertigem não seja maior, “Compasso” também não conta com uma
entrada própria nos Índices. Assim, podemos resumir tudo dizendo
que Música se desdobra em quatro vozes distintas, com dois pares
antitéticos: Inferno/Harmonia; Dissonância/Compasso. Seria agora
o caso de interpretar esses pares, mas não é esse o nosso propósito
aqui, e sim insinuar a riqueza de perspectivas analíticas oferecidas
pelos Índices.
Apenas acrescento, para não incorrermos em conclusões
precipitadas, que esse conjunto de quatro termos principais não
exclui a ideia de que a Música seja de Deus, ainda que também diga
respeito ao Inferno. Numa orientação católica como a de Vieira, as
categorias de Harmonia e Compasso são necessariamente efeitos de
uma ação orientada divinamente.
O conhecimento dessa dialética conceitual permite, portanto,
interpretar com maior rigor as alegorias projetadas sobre a ideia de
Música. Por exemplo, no tocante à política, Música pode representar
a ideia de uma doutrina excelente para os responsáveis pela ordem
na república, desde que se considere que a própria natureza da
Música traz consigo duas operações harmônicas compostas
dialeticamente de opostos. Dessa forma, toda harmonização está
condicionada por um contrapasso ou, de outra maneira, toda música
implica numa política do contraponto.
Assim, entender a Harmonia, em termos vieirianos, implica em
incorporar algum grau de dissonância, efeito irresistível da tensão
de opostos, que não impede, antes reclama e se dobra ao encaixe
final providencialmente orientado. Tal é a potência obediencial que
até a música infernal mantém em relação a Deus.
coluna

Ricardo II, poeta e dramaturgo


WELINGTON ANDRADE

“...saiam da noite de Ricardo, fria,


para o de Bolingbroke excelso dia.”
(Ricardo, ato III, cena II)

A tragédia do rei Ricardo II , de William Shakespeare, é um


pungente drama histórico cujo argumento – retirado da Crônica da
Inglaterra, Escócia e Irlanda , de Holinshed – remete aos primeiros
séculos da história da Grã-Bretanha, quando a existência de reis,
príncipes e nobres saltava rapidamente da concretude da vida social
para se acomodar de modo sinuoso nas franjas narrativas do mito e
da lenda. Filho do Príncipe Negro, Ricardo II sucumbiu diante da
revolta liderada por seu primo, Henrique de Bolingbroke, o duque
de Hereford, que voltou do exílio que lhe havia sido imposto alguns
anos antes pelo próprio monarca com a dissimulada intenção de
usurpar a coroa. É do confronto de caráter e de temperamento que
ocorre entre tais figuras que Shakespeare extrai a força e o vigor da
peça, certamente uma das obras menos conhecidas do bardo inglês.
O leitor brasileiro tem atualmente à disposição a tradução da obra
feita por Carlos Alberto Nunes na década de 1950, que integra o
terceiro volume do Teatro completo de William Shakespeare ,
editado pela Agir em 2008. Infelizmente, a edição das peças
completas traduzidas por Bárbara Heliodora para a Nova Aguilar
somente fez vir a público até agora os dois primeiros volumes da
coleção – o das Tragédias e comédias sombrias e o das Comédias e
romances , publicados respectivamente em 2006 e 2009 –, o que
dificulta o acesso do público leitor de língua portuguesa ao conjunto
dos dez belíssimos dramas que Shakespeare dedicou à história da
Inglaterra traduzidos por uma notória especialista. (Fica aqui
registrado o fato de a área da dramaturgia ser tão mal tratada pelo
mercado editorial brasileiro. Parece impensável que especialistas ou
interessados na leitura de obras dramatúrgicas não possam encontrar
nas livrarias do país boa parte das peças escritas por Ibsen ou por
Oduvaldo Vianna Filho, por exemplo).
Basicamente, há três linhas de força que fazem de Ricardo II uma
obra-prima que merece ser conhecida pelo público leitor. A primeira
delas está centrada no penetrante retrato que Shakespeare faz do
mundo da política, palco das mais variadas manifestações do
exercício do poder. “ Ricardo II é a tragédia do destronamento. Mas
não só do destronamento de Ricardo: o destronamento do rei, da
ideia do poder monárquico” afirma Jan Kott em Shakespeare, nosso
contemporâneo . Desse modo, o leitor/espectador é convidado a
presenciar uma série de artifícios e de estratégias armados
diligentemente pelo hábil Henrique de Bolingbroke para desarticular
a estrutura de poder que sustentava o reinado de seu primo Ricardo.
Impactante à época em que foi escrita (1595-1596) pela maneira
como retratava a deposição de um monarca, a peça não foi
publicada integralmente durante o reinado de Elizabeth, tendo sido
omitida pelos editores a cena da abdicação. Seria demais para os
súditos da rainha se acostumarem com a ideia de que um ocupante
do trono inglês pudesse ser tão “naturalmente” deposto.
A segunda linha de força da peça reside na acurada investigação
que Shakespeare faz a respeito da teatralidade inerente ao exercício
da política, conduzindo a obra, assim, ao fascinante mundo da
metalinguagem que marca de modo tão expressivo o estilo do autor.
Os grandes reis shakespearianos são, a rigor, verdadeiros atores
tentando desempenhar, ora com as tintas da tragédia, ora com as da
comédia, os papéis que lhes couberam no grande teatro da vida. O
centro do interesse de Ricardo II “está no tipo de performance
dramática que se requer quando se é líder na sociedade ou, mais
especificamente, rei. Todas as relações sociais são de certo modo
teatrais”, aponta o crítico canadense Northrop Frye em Sobre
Shakespeare .
A terceira e última linha de força da peça está assentada sobre o
caráter eminentemente lírico das falas de Ricardo, vazadas em
admirável estilo de poesia metafísica. Ricardo é mau rei, mas
excelente poeta, cujos inspirados lamentos e solilóquios serviram de
ensaio para o Hamlet , segundo a feliz observação de Harold Bloom.
O apego ao lirismo metafísico implica a recusa deste rei-filósofo em
se comunicar na língua degradada da política, cujo discurso
competente dissimula a hipocrisia de seus verdadeiros fins. Pensar
na eloquência e na teatralidade do mundo político que Shakespeare
descortinou há quatro séculos ainda soa contemporâneo. Sobretudo
em ano eleitoral.
coluna

O mundo fluido dos hungareses


HEITOR FERRAZ MELLO

Em 2012, a escritora Suzana Montoro ganhou o prêmio São Paulo


de Literatura, na categoria romance de estreia, com Os hungareses .
Publicado inicialmente pela editora Ofício das Palavras, o livro
trazia consigo algumas fotos antigas: uma menina loira segurando
rosas, três garotas descalças diante de uma casa, um grupo familiar
em uma paisagem rural, uma moça grávida pintada de palhaço e um
cartão postal. Era uma espécie de fonte documental que ia
entremeando os capítulos da narrativa ficcional. A obra foi reeditada
recentemente pela editora Rocco e as tais fotografias
desapareceram.
Não é o caso de tentar descobrir o que de fato aconteceu, por que
esse material foi retirado da edição? Economia? Projeto gráfico
diferente, como de fato acontece? Ou decisão da autora? Não temos
como saber, no entanto, não deixa de sugerir algumas questões
sobre o próprio romance de Suzana.
Nas últimas páginas de seu livro, ela mesma nos conta que, para
compor sua narrativa, fez uma série de entrevistas com moradores e
descendentes de húngaros que viveram em um sítio no interior
(interior que ela não chega a nos especificar, mas certamente de São
Paulo) e que viajou à Hungria. “Apesar de baseado em fatos reais, é
tudo ficção. Aos relatos, juntei a imaginação, deixei os personagens
se intrometerem, e o livro ficou pronto”, escreve.
Montoro conta a história de um grupo de húngaros que veio para o
Brasil não se sabe exatamente quando – já que a autora parece
apagar vários elementos importantes da notação realista, como data
e nome de lugares, preferindo sempre deixar apenas uma sugestão
dada por algum contexto externo –, mas provavelmente em meados
do século passado.
Sua história é narrada em primeira pessoa, por uma descendente
desses imigrantes que chegou a viver no “sítio dos hungareses”,
local em que formaram uma espécie de comunidade fechada, onde
mantiveram costumes e hábitos de sua aldeia de origem. E, ao
mesmo tempo, ela inclui trechos que seriam narrados por Rozália,
mãe da narradora (cabe aqui um comentário no sentido de indicar
que este é um dos pontos mais frágeis dessa bonita história, já que
se não fosse por uma mudança de tipologia pouco se distinguiria
entre o tom e o ponto de vista da filha e o da mãe, deixando de
explorar as possibilidades dessas duas vozes, como já havia notado
a crítica Noemi Jaffe, em artigo publicado na Folha de S. Paulo ).
O leitor tem a impressão de entrar num mundo fluido e sem
contornos claros, desde a aldeia húngara até o sítio brasileiro, em
que os personagens são quase todos fugidios, de traços
indeterminados, pendulando entre uma notação realista e outro tipo
de notação mais próprio do mundo fabular e um tanto mágico.
Alguns personagens são de fato fascinantes, como a tia Rósza, que
um dia, ainda na aldeia natal, “saiu de casa disposta a palmilhar esse
vasto mundo de deus em busca do pai, um pacato carpinteiro” que
largou a família “para construir estradas de ferro”.
Esse mundo que vira lenda, como ela mesma diz, também
reaparece na figura do meio-irmão de Rozália, Lajos, que sempre
que contrariado passa a latir ou a ganir como um cachorro. Esses
personagens esquisitos – como Gedeon, um homem grandalhão e
infantil, sempre em uma bicicleta, o próprio pai da protagonista,
József, um alfaiate e desenhista com pitadas líricas – parecem
sempre flutuar, como se suas existências não encontrassem guarida
ou solo, mesmo que refaçam a aldeia de origem num sítio do
interior de São Paulo. Essa talvez seja a beleza do livro, esse mundo
que não se fixa, mas é ao mesmo tempo a sua fragilidade, pois, no
registro realista, ele fica sem especificação que o justifique.
Por outro lado, o romance ganharia força se a autora optasse por
essa transformação do dado realista em lenda, apostasse todas as
suas fichas nessa possibilidade, explorando-a nessa dobradiça do
romance, entre a aldeia húngara e a sua cópia transposta para o solo
brasileiro, onde tudo é igual e é diferente. Talvez a dúvida sobre a
inclusão ou não das fotos na nova edição seja fruto dessa mesma
indecisão quanto ao gênero.
coluna

A palavra e a ordem
GILBERTO MARINGONI

A partir de junho de 2013, uma palavra de ordem – ou hashtag ,


como se diz em português virtual – tomou conta do país:
#NãoVaiTerCopa. Ela expressa a justa indignação com gastos
faraônicos e faz um chamado à rebelião.
A realização do campeonato mundial de futebol no Brasil
implicou a aceitação de inúmeras imposições da Fifa que criam
estados de exceção focados, intervenções urbanas, remoções de
populações pobres, gastos de necessidade e prioridade duvidosa e
privatizações de bens públicos.
Mas, apesar de tudo, tem Copa.
Diante desse fato, evidencia-se um problema de comunicação por
parte dos ativistas. Ou, talvez, seja algo mais profundo: um
problema político, e dos sérios.
“Não vai ter Copa” é quase uma progressão lógica de “Tarifa
zero”, ou “Não vai ter aumento”, frases repetidas – entre outras – a
plenos pulmões nas ruas, há alguns meses.
“Não vai ter Copa” é mais que uma palavra de ordem: é uma
ordem em si. Tem ares de decreto. É um apelo fechado e
terminativo, sem margens para mediações ou dúvidas. Não vai ter e
ponto. Não vai, porra!
Fala assim quem tem força. Não parece ser o caso.
Em outras situações da História, ativistas e militantes buscaram
agregar gente e organizar movimentos com conclamações
terminativas. Foi o caso dos republicanos espanhóis, durante a
guerra civil (1936-39). Diante do avanço dos nacionalistas de
extrema direita, liderados pelo general Francisco Franco, a esquerda
alardeava bravamente “ ¡No pasarán! ”.
Lamentavelmente, as possibilidades republicanas estavam aquém
das do fascismo, que granjeou apoio entre a Igreja Católica, o
empresariado rural e urbano e as forças armadas. A Luftwaffe, a
recém criada força aérea da Alemanha nazista, e tropas italianas
enviadas por Benito Mussolini, também deram sua mão na
empreitada.
Resultado: os conservadores não apenas passaram, como
dizimaram a democracia, prenderam, mataram e expulsaram do país
milhares de lutadores. De quebra, impuseram uma ditadura de
quatro décadas.
Da América Latina vem outro exemplo. A partir da vitória da
Revolução Cubana, em 1959, a esquerda continental vislumbrou a
possibilidade de realizar o assalto aos céus – expressão usada por
Marx como sinônimo de tomada do poder – através da luta armada.
Diante de brutais contraofensivas de direita em vários países,
dirigentes de pequenos agrupamentos revolucionários buscaram
infundir ânimo em seus comandados. “¡No retrocederemos ni un
milímetro en nuestras convicciones!” foi uma espécie de mantra
repetido em diversas situações.
Inútil. Os ventos sopravam contra e o retrocesso foi avassalador.
Os problemas não estavam com a semântica, mas com a idéia de
que a vontade, mais do que a fé, move montanhas. Ou de que uma
pichação espalhada pelos muros de Paris, em maio de 1968, poderia
se realizar com um passe de mágica. Era o “ Soyez
réalistes, demandez l’impossible ”. Como locução espirituosa, tem
sua graça. Como emulação política, é um desastre.
As grandes ebulições maciças da História moderna foram
sintetizadas em expressões simples, concretas e abertas. Não tinham
ares de ultimato, de dá ou desce.
“Liberté, égalité, fraternité ” era algo muito palpável na França
de fins do século 18, quando o Estado absolutista não permitia
mediações de nenhum tipo e a mobilidade social era um devaneio.
“Paz, pão e terra” para uma população empobrecida e sem
perspectivas da Rússia de 1917; império a queimar gente e riquezas
inutilmente na I Guerra Mundial, funcionava como facho de
esperança a guiar um futuro generoso. “Diretas já”, no Brasil
castigado pela crise dos anos 1980, era o substrato de anos de
insatisfação com uma ditadura decadente.
Os exemplos são inúmeros, em variados tempos e lugares.
Movimentos vitoriosos, dirigidos com boa percepção do mundo ao
redor, geraram conclamações quase poéticas, que eletrizaram
multidões.
A publicidade captou o recado e esmera-se em produzir peças
sedutoras e não impositivas, que dão ao consumidor a noção de
fazer suas escolhas livremente e direcionamentos prévios entre
produtos e serviços no mercado.
Em havendo Copa, a população pregará os olhos nas TVs e na
internet para torcer entusiasticamente. A turma do “Não vai ter
Copa” acabará por falar sozinha.
Protestos contra o mundial não devem ser feitos, então?
Ao contrário! O descontentamento popular tem razão de ser.
A conclamação poderia ser mais criativa, como “Vamos torcer
pelo Brasil em campo e nas ruas”, ou “Copa pra quem?”, expressões
que se espalham pelo país. Mais flexíveis, tendem a seduzir e a
sensibilizar mais gente.
Não é mesmo, porra?
teatro
Um lugar em expansão
GABRIELA SOUTELLO

O impacto inicial se dá pela estrutura: uma casa velha, desgastada


nas paredes rachadas e no azulejo antigo do piso invadido pela
grama. “Você prefere café ou chá?” – Miguel Rocha, diretor da
Companhia de Teatro Heliópolis, recepciona à luz que atravessa o
vidro da também arcaica cozinha do local. O cheiro de erva cidreira
colhida na hora, o bolo saído do forno, a mesa de plástico forrada
com toalha rendada e posicionada no espaço aberto dos fundos, o
concreto coberto por folhas secas, as lânguidas árvores, o
manjericão e as paredes grafitadas pelos moradores de Heliópolis.
“A cada espetáculo, a gente faz o ritual de varrer as folhas para
que o público não escorregue”, conta Davi Guimarães, um dos
atores do grupo. A casa pertenceu a Maria José de Carvalho, atriz,
poeta e professora de teatro, que morou ali até morrer (1995),
quando então foi doada ao Estado de São Paulo com a
recomendação de que se tornasse um espaço cultural. Após alguns
anos de abandono, o desejo se cumpriu: o número 1533 da rua Silva
Bueno, no Ipiranga é, desde 2010, sede da Companhia de Teatro
Heliópolis, um ambiente amplo, cujas janelas de vitrais escuros e
coloridos estão empoeiradas, enquanto as portas cor de creme têm
as bordas corroídas pelo tempo.
Questionado sobre a razão de a sede estar fora do próprio
complexo de Heliópolis, Miguel reitera a expansão da periferia para
a cidade como algo que não se deve conter: “É preciso romper
fronteiras. Quem mora em Heliópolis não precisa se restringir a
viver a vida inteira lá. A gente faz parte dessa cidade, que é São
Paulo, que pertence a todos. Aqui também é o meu lugar”. Além
disso, segundo Miguel e Davi, Heliópolis vem se verticalizando em
ritmo crescente, diferente da época da formação do grupo. “Eu
procurei outros lugares, fui para o Bom Retiro e para a Consolação,
atrás de teatro vocacional, porque dentro de Heliópolis não era
possível encontrar o que eu queria”, explica Davi. “Queremos
transformar a casa Mariajosé em um ponto de referência de cultura
para o bairro; é um dos respiros que falta na comunidade.”
“Quando cheguei a Heliópolis, uns dezessete anos atrás, vi um
corpo no chão”, conta Miguel. “As pessoas se reuniam em volta
pela curiosidade e se estabelecia um clima pesado. Hoje em dia,
reparei que assassinatos expostos assim ocorrem em número menor.
O que acontece hoje em São Paulo é o que aconteceu com Amarildo
no Rio de Janeiro: as pessoas somem e ‘ninguém sabe’ o que houve.
Na verdade, quem vive na comunidade sabe que a opressão pode
não estar visível, mas está lá, subliminar”. Miguel relata essa, entre
outras histórias decorrentes da comunidade, por serem elas as
principais inspirações para as montagens do grupo – a próxima será
sobre o medo. “Às vezes, em Heliópolis, temos a sensação de que
há algo estranho acontecendo: um clima ruim muito presente e
pulsante. A gente percebe nos andares rápidos, nos olhares para trás,
no tempo das pessoas. Há uma vibração de energia quando o carro
da polícia passa e deixa um rastro sonoro”, explica, e ri de seu olhar
natural de diretor.
A companhia estreou nos anos 2000 com a peça A queda para o
alto, baseada na história real de uma menina homossexual que sofria
maus tratos da família e tinha problemas de relacionamento com a
mãe. Devido a alguns delitos, Sandra Mara Herzer foi levada para a
Febem, e lá desenvolveu seu talento para a escrita. Inconformada
diante de inúmeras dificuldades, ela enfrentou os coordenadores do
espaço e fugiu. Nesse intermédio, conheceu o senador Eduardo
Suplicy, que convenceu uma editora a publicar suas poesias. Algum
tempo antes de o livro ser lançado, Sandra suicidou-se no Viaduto
do Chá.
“É uma história muito forte, mas linda, e enfrentamos uma luta
para encená-la”, comenta Miguel: “Eu falei com a coordenação do
projeto de formação de adolescentes de quinze a vinte anos, que
existe em Heliópolis, e assim reunimos um grupo de cerca de trinta
pessoas. Mas, até engrenar, o processo foi muito difícil”. Com o
patrocínio da Eletropaulo, a peça estreou à época em que Marta
Suplicy se tornava prefeita de São Paulo, e o espetáculo contou não
só com a presença da própria, mas também do senador e de pelo
menos quinhentas pessoas. Eduardo Suplicy aproveitou a montagem
da peça para morar por três dias em Heliópolis. Levado pelo
senador, José Celso Martinez Corrêa assistiu à segunda apresentação
em uma nova quadra de esportes construída no bairro. “Durante a
apresentação, as crianças invadiram a quadra e subiram nos
andaimes e nas escadas do cenário. Os atores ficaram desesperados,
mas Zé Celso aplaudiu, gritando: ‘Isso é que é teatro! Interação!’
Em seguida, fomos convidados a nos apresentar no Teatro Oficina”,
lembra Miguel.
“Vanusa, a atriz principal, era uma menina que também tinha
passado pela Febem e acho que foi por essa vivência, pelo universo
de violência muito próximo do jovem de Heliópolis, que a peça
funcionou”, opina Miguel. O grande número de atores, a maioria
muito jovem, no entanto, desgastava o grupo. “Uma vez, uma
menina queimou o cabelo da outra dentro do ônibus. Ao mesmo
tempo em que a convivência era gostosa, também tínhamos muitos
desafios com o universo da juventude.” Depois da peça inicial, o
grupo passou a ter “um núcleo duro de poucos integrantes”.
A primeira montagem permaneceu dois anos em cartaz, sendo
apresentada em várias unidades do Sesc, no interior paulista e em
sete capitais. Hoje, a Companhia conta com apenas cinco
integrantes, todos de Heliópolis, embora atores de fora também
possam ser convidados a participar. “A maioria dos grupos está
sempre em transformação”, afirma Miguel. “Eu já sofri muito com
isso, hoje não sofro mais. Envolve uma questão de sobrevivência e
de estabilidade”. Davi, que entrou no teatro com 16 anos e já esteve
em cartaz com elencos maiores quando atuava no grupo Teatro do
Incêndio, diz ter um gosto especial por “peças com bastante gente”.
“Hoje”, comenta ele, “concordo ser mais fácil trabalhar com um
núcleo condensado”. Na última peça do grupo, Um lugar ao sol que
esteve em cartaz até o final de abril, contava com apenas três atores.
Após montagens, pausas, oficinas e projetos realizados em um
intervalo de sete anos, Miguel afirma que em 2009 houve uma
revitalização do grupo. “Nós implementamos um projeto ligado ao
cotidiano do nosso espaço, chamado Arte e Cidadania em
Heliópolis. O intuito era desenvolver uma pesquisa em cima desse
universo, realizar oficinas, colher depoimentos e explorar o tema
que nos interessava discutir”, explica o diretor. “Feito isso,
adaptamos para o nosso mundo um romance de Ralf Rickli, O dia
em que Túlio descobriu a África” , sobre um menino morador de
Heliópolis que sofre uma abordagem policial violenta e, a partir
disso, tem o sonho de ir à África descobrir as histórias de seus
antepassados. “A gente queria transformar aquilo em um coro. Por
tratar de várias formas de preconceito, assim que a peça começava,
cada um dos atores apresentava um depoimento narrando um
episódio pessoal que relacionava os preconceitos com a
comunidade”. A partir daí, a dramaturgia da Companhia de Teatro
Heliópolis adotou um viés mais centralizado: “Em 2011, fizemos o
segundo módulo do projeto Nordeste, Heliópolis, Brasil”, para o
qual foi feita uma pesquisa em cima da história do bairro, com
apresentações interativas que levavam os espectadores a transitar
entre os cômodos da sede do grupo.
O mais recente trabalho da Companhia foi criado em 2013 e é
também o último a fazer parte do que Davi nomeou “trilogia” de
peças: Um lugar ao sol é uma montagem que também integra o
projeto Arte e Cidadania em Heliópolis, conferindo ao espetáculo o
que essencialmente vem sendo buscado pelo grupo: o caráter
legítimo do que ocorre de fato com quem reside nas proximidades
da Estrada das Lágrimas. A peça narra a história de quatro
personagens – uma mulher idosa que vive sozinha com muitos
cachorros, um pedreiro alcoólatra, um menino prestes a entrar na
universidade e Leonarda, a menina assassinada há cerca de quinze
anos na comunidade e que é homenageada com uma caminhada da
paz todo ano no local. “Esse último é um acontecimento que foi
transformado em personagem na tradução. É um de nossos motes:
como é vista essa paz, que tantos reivindicam, por quem sofreu uma
grande perda?”, questiona Davi. A exploração dramática dessas
personagens é na verdade um espectro do contexto de Heliópolis:
“Colocamos em cena uma parte que explica o todo – não só como
cidade, mas também como país e como os seres humanos
conflitantes que somos. É um espetáculo muito frágil do ponto de
vista estrutural porque, se um dos três atores do elenco falta, não
existe apresentação. Mas, ao mesmo tempo, é extremamente forte
pela sensibilidade com que as histórias são transmitidas.”
Miguel serve mais café da garrafa térmica e Davi vai à cozinha
esquentar o chá que esfriou. “Para mim, enquanto diretor, interessa
o teatro que tem vida pulsando”, diz. O que desencanta o diretor é a
realidade de um público cada vez mais desinteressado em
recepcionar o embate proporcionado pelo teatro. “O público
espontâneo é muito difícil. Sou instigado a articular mecanismos
para expandi-lo, mas a formação do público de teatro é uma questão
complicada na cidade como um todo.”
Tanto Miguel quanto Davi veem no teatro vocacional oferecido
pela prefeitura uma possibilidade importante para quem tem
vontade de experimentar a arte, seja no teatro, seja na música ou na
dança. Mas falta um investimento do poder público desde cedo,
ainda nas escolas. “É preciso um repertório vasto, que provoque e
instigue os jovens”, adverte Miguel. “Às vezes eu passo em frente à
quadra de esportes de Heliópolis e ela está repleta de meninos
jogando futebol às sete da manhã. Uma apresentação de teatro não
tem nem metade desse público. O que acontece é que o teatro,
diferente do futebol, não faz parte da nossa cultura.”
“É uma realidade muito dura a de que muitas pessoas vão ao
teatro para permanecer na superfície, apenas para ver um ator
famoso”, afirma Davi. Para Miguel, “o verdadeiro público de teatro
é aquele do boca a boca”. “A relação com o espaço em São Paulo
está cada vez menor, e assim se estabelece outra relação com esse
público: mais aproximada e intimista. A maioria dos teatros
experimentais está em pequenos espaços, em que cabem de vinte a
cinquenta pessoas. Não adianta ter um teatro enorme se eu vou ter
quarenta pessoas me assistindo”, diz.
Além da temática do medo, Miguel expõe que o grupo está
envolvido com outro novo projeto: uma pesquisa sobre educação.
“Analisaremos três escolas de Heliópolis absolutamente diferentes,
para analisar as relações de educação com a cidade e a maneira
como o programa escolar, o espaço físico e os próprios alunos
ajudam a constituir o cidadão.”
Davi e Miguel me acompanham até o local de espetáculos, no
fundo da casa, um espaço em disposição de arena com o cenário
intacto de Um lugar ao sol , não fosse pelas velas apagadas e por
alguns figurinos deixados sobre a arquibancada. A única queixa
refere-se às telhas de zinco: “Quando chove, não há espetáculo. O
barulho dá a sensação de estarmos dentro de um liquidificador”,
reclama Miguel. A Companhia segue com a peça em
reapresentações singulares, como na Virada Cultural de maio, no
centro de São Paulo, e em festivais no interior. “Nós pegamos nosso
cenário e colocamos todo mundo dentro de uma van, alimentados
com pão com mortadela, bolo e café”, sorri o diretor. “Temos que
pensar em meios criativos de desenvolver nosso trabalho sem que a
estrutura seja um empecilho – porque o mundo em que a gente vive
hoje é o do dinheiro. E ele é cruel.”
retrato do artista Claudio Willer
Claudio Willer: a jornada em busca do
encantatório
CLAUDIO DANIEL

Poesia como vertigem, experiência visionária no limite entre vida e


linguagem. A escritura não como reflexo do cotidiano imediato, mas
como construção de uma realidade com sua própria morfologia do
desejo. A poesia surrealista é um território onde a lógica habitual,
no campo do discurso e da ação, cede lugar à multiplicidade de
outras formas possíveis de composição de cor, som, ideia, forma e
movimento, símiles ao sonho, aos estados alterados da consciência
ou às práticas ancestrais de busca do êxtase. A jornada criativa de
Claudio Willer, iniciada há cinquenta anos com a publicação de
Anotações para um apocalipse (1964), é embebida pela tradição dos
“poetas malditos” – Blake, Rimbaud, Artaud, Lautréamont –, dos
autores beats norte-americanos – especialmente Allen Ginsberg e
Jack Kerouac –, mas não se resume à mera intertextualidade. Já em
seu livro de estreia, publicado quando tinha apenas vinte e quatro
anos de idade, o autor revela originalidade simbólica e semântica,
apresentando um conjunto de poemas em prosa que mesclam
referências a viagens, encontros com amigos e vivências a um
imaginário pessoal que recombina e transforma cenários e situações
em imagens como estas: “O rio e seus afluentes de tóxicos, seus
igarapés de cocaína, sua tumultuosa visão de serpentes. (...) Assim
foi que se dissociaram as partes do meu corpo: as vísceras
emaranhadas na copa de um coqueiro, as mãos despenhadas em
crateras, os pés calcados em um formigueiro em planície árida, a
cabeça congelada e fixa em uma encosta, os olhos vidrados para
sempre fitando o poente, os genitais perdidos na correnteza de
algum rio que nunca chegará ao oceano”. Podemos recordar aqui o
conceito de Paul Reverdy a respeito da imagem poética – “não pode
nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades
mais ou menos afastadas. Quanto mais as relações das duas
realidades forem distantes e justas, tanto mais a imagem será forte,
mais força emotiva e realidade poética ela terá”. Este princípio, um
dos “mantras” do surrealismo (antecipado por Lautréamont na
conhecida sentença: “o encontro fortuito de uma máquina de costura
com um guarda-chuva sobre uma mesa cirúrgica”), é aplicado por
Claudio Willer a uma paisagem tropical, brasileira, em que o
movimento das águas é associado a entorpecentes e animais míticos,
como a serpente (em outros poemas do livro, todos eles compostos
via escrita automática, o autor menciona pântanos, gaviões,
mangues, musgo, lagos, folhagens e outros flashes de uma floresta
imaginária).
A mitologia, aliás, é uma das obsessões do poeta, que no
fragmentado citado faz alusão ao desmembramento de Osíris
(episódio que pode ser comparado ao assassinato de Orfeu pelas
Mênades, que fragmentaram seu corpo, entre outros paralelos
mitológicos, incluindo o curioso episódio chinês de Pan Ku). O
interesse por xamanismo, ecologia, tradições iniciáticas,
gnosticismo e religiões comparadas é algo que distingue a poesia de
Claudio Willer e de seus companheiros de geração, como Roberto
Piva e Rodrigo de Haro, dos poetas da geração anterior, mais atentos
à tradição formalista e construtivista das vanguardas históricas. É
conhecida a frase de Roberto Piva: “não acredito em poeta
experimental que não leve uma vida experimental”. A visão utópica
dessa geração, porosa a outras formas de conhecimento e de
sensibilidade, contrasta com o momento histórico da década de
1960, marcado pelo regime militar, repressão e censura. É possível
fazermos outro paralelo aqui, desta vez com a geração beat ,
contemporânea da primeira Guerra Fria, do racismo e do
macarthismo (não por acaso, Claudio Willer e Roberto Piva serão os
divulgadores da poesia beat no Brasil, via tradução, artigos e
diálogo intertextual).
Dias circulares , publicado em 1976 pela editora de Massao Ohno
(que também editou Anotações para um apocalipse ), é um livro
que reúne poemas em prosa e em outras formas variadas, com as
linhas dispostas de maneira geométrica na página, numa
representação visual do ritmo das palavras e linhas, com o espaço
em branco indicando as pausas. O título do volume remete,
possivelmente, à ideia de tempo circular, cíclico, dos povos pré-
colombianos (ideia compartilhada pelos gregos, chineses e hindus,
em contraposição ao conceito retilíneo da história formulado pelo
cristianismo e mantido na cultura ocidental); as imagens da natureza
permanecem, associadas a conceitos alquímicos ou cabalísticos (“
Chesed / geburah / Binah / A Grande Obra”), mas há um elemento
novo aqui: a cidade.
A CIDADE TRANSFIGURADA
O modo como Claudio Willer observa (e transforma) a paisagem
urbana, porém, nada tem a ver com o realismo de um Cesário Verde:
remete, antes, ao olhar alucinado de um Lautréamont, como na peça
intitulada Cenas da vida urbana : “A mulher das tatuagens balinesas
estende a mão negra na minha direção (...). A mulher das mãos
verdes mastigando pedaços de vidro, a mulher dona das harpas, a
mulher das antenas de radar, dispõe-se em círculos. Uma aurora
boreal afugenta os pigmeus”. Em outras passagens da composição, o
poeta irá misturar estalactites com helicópteros, “rodovias fálicas”
com secreções, bicicletas com “palavras côncavas” e “paraquedas
sonolentos”. Tudo é linguagem, parece nos dizer Claudio Willer, ao
dissolver o sentido rotineiro das palavras em bizarras composições
plásticas. Tudo é encantamento: pois é disso que se trata, nesta
poesia – o reencantamento da palavra, da vida e do mundo. Jardins
da provocação (1981) é um divisor de águas na obra poética de
Claudio Willer, que apresenta poemas de sintaxe mais discursiva,
com o ritmo prosódico da linguagem falada. É o livro com mais
referências autobiográficas (“Casa de Heloísa”, por exemplo) e traz
um manifesto em que o poeta invoca o poder mágico da palavra,
com o enfoque da semiologia e da teoria literária. Dos poemas
elencados no volume, um dos mais impactantes é a “Homenagem a
Dashiell Hammett”: “uma geração pulou no abismo/ mas você foi
adiante/ ou saltou mais fundo/ levantou a tampa da vida/ para ver o
que havia por baixo/ para ver que não havia nada embaixo”.
Estranhas experiências e outros poemas , publicado em 2004,
reúne os títulos anteriores, acrescidos de textos inéditos – poemas
em prosa, composições com linhas espacejadas, peças híbridas –
que têm como leitmotiv o tema da viagem (“a Terra respira/
formigas transitam por suas nervuras/ arabescos de pássaros/
pontuam o pausado discurso das nuvens”). Há diálogos com a
tradição literária (“Ruínas romanas”), com o hermetismo, poemas
sobre o amor (“É PRECISO QUE SEJAMOS MODERNOS COMO
O AMOR”), a cidade, a memória, a loucura (“sua loucura galáxia de
disponibilidade/ sua loucura cuja história é o avesso da história que
estou contando”), todos eles concebidos de acordo com uma
peculiar poética em que “TUDO ESTÁ GRAVADO NO AR/ e não
o fazemos por vontade própria/ mas por atavismo”.
Claudio Willer (São Paulo, 1940) é poeta, ensaísta e tradutor,
ligado à criação literária mais rebelde, ao surrealismo e geração
beat . Publicações recentes: Manifestos: 1964–2010 (Azougue,
2013), Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia
(Civilização Brasileira, 2010); Geração Beat (L&PM Pocket,
2009); Estranhas experiências (Lamparina, 2004). Prepara-se
para lançar Rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico
(L&PM). Traduziu Lautréamont, Ginsberg, Kerouac e Artaud.
Publicado em antologias e periódicos no Brasil e em outros
países. Doutor em Letras na USP, onde fez pós-doutorado.
Também deu cursos, palestras e coordenou oficinas em uma
diversidade de instituições culturais. Mais em
http://claudiowiller.wordpress.com/about
Anotações para um apocalipse 1
A Fera voltará com seu rosto de tranças de prata, nua sobre o
mundo. A Fera voltará, metálica na convulsão das tempestades,
musgosa como a noite dos vasos sanguíneos, fria como o pânico das
areias menstruadas e a cegueira fixa contra um relógio antigo. Um
sonho assírio, eis nossa dimensão. Um crânio amargo, velejando
com a inconstância do sarcasmo em meio a emboscadas de insetos,
um crânio azul e sulcado, à janela nos momentos de espera, um
crânio negro e fixo, separado das mãos que o amparam por tubos e
esmagando os brônquios da memória – assim se solidificarão as
vertigens jogadas sobre a lama divina. O incesto é uma tempestade
de luas gelatinosas e a mais bela aspiração dos membros
dissociados. Em cada órbita uma avalanche de sinos férteis e de
arcanjos terrificados pela sombra. O incesto é o sonho de uma
matriz convulsiva e o mais profundo anseio das cigarras. Vaginas de
cimento armado e urnas sangrentas, impassíveis contra um céu de
veludo, guardiãs de oceanos impossíveis. Milhões de lâminas
servem de ponte para os desejos obscuros – a mais afilada trará a
nossa Verdade.

(1964)
(Poema publicado em Anotações para um apocalipse, que
comemora 50 anos em 2014)
A verdadeira história do século 20
contemplação: estrela no fundo do mar
você: véu de gaze azulada roçando, suave apelo
furacão: róseo
perfeição: parábola de perfumes
lâmina: a mente alucinada
gruta: você e os arcanos da natureza
matemática do sonho: esta nuvem
gelo: explosão de relâmpagos
essa solidez, essa presença: capim ao vento
rápidos, passando à frente: lavanda
e também sombra de árvore
montanha: inteiramente nossa
intimidade sorridente: no calor da tarde
Íris: o nome da flor, o seio ao sol
– quanta coisa você fez que eu visse
o acaso nos transportava e poderíamos ir a qualquer lugar
o mundo tinha janelas abertas
e tudo era primeira vez
gnose do redemoinho, foi o que soubemos
dossiê Michel Foucault: leituras brasileiras
Apresentação

Entre meados da década de 1960 até 1976, Foucault visitou várias


vezes o Brasil. De Norte a Sul e Sudeste, passando pelo Nordeste,
muitas de suas conferências proferidas em nosso país, assim como
suas entrevistas, são hoje parte importante de sua obra. Aqui ele
deixou amigos, companheiros de rota, mas, principalmente, um
legado que não tem preço. Se é possível dizer, conforme enfatiza um
amigo, que no começo dos anos 1980 os estudiosos de sua obra
entre nós cabiam dentro de um Fusca, hoje, passados trinta anos de
sua morte e cinquenta anos de sua primeira visita, seu pensamento,
sua filosofia, se tornou uma interlocução permanente e necessária,
não apenas na filosofia, mas também nas ciências humanas e
sociais, nas letras e comunicação, no campo das ciências
biomédicas. Seus estudos sobre a loucura, a prisão e a sexualidade
se desdobraram em tantos outros, seus instrumentos de análise são
utilizados para tentar compreender as questões que são nossas, que
dizem respeito a nossa história e nossa (des)inserção no mundo
globalizado. Conhecido na década de 1960 como mais um
“estruturalista” devido ao impacto de As palavras e as coisas,
desqualificado politicamente pela crítica de Sartre, em especial a
partir do período de preparação do Vigiar e punir, tornou-se o
“filósofo do poder” e, ao mesmo tempo, militante de muitas causas,
aparecendo ao lado do próprio Sartre em inúmeras manifestações
políticas; Foucault é, agora, o fundamental “pensador da
biopolítica”. Por outro lado, a publicação dos quatro volumes dos
Dits et écrits, em 1994 e dos cursos do Collège de France, assim
como de inúmeros inéditos, a obra de Foucault cresceu
extraordinariamente em tamanho, tornando-se hoje um desafio a
mais para o leitor interessado em seu pensamento.
Os textos aqui reunidos sob o título geral de “Leituras brasileiras”
apresentam o trabalho de quatro professores que abordam, a partir
da perspectiva de seus próprios interesses, aspectos específicos do
pensamento de Foucault. Ernani Chaves, sempre interessado em
mostrar o diálogo de Foucault com outros filósofos, estabelece uma
ligação entre a historiografia foucaultiana e as questões que, neste
campo, o entrelaçam a Nietzsche, Marx e Benjamin. Neste caso, a
perspectiva historiográfica de Foucault é tomada a partir das
reverberações do princípio benjaminiano de uma “história a
contrapelo”. Em seguida, um texto de filosofia política de
Guilherme Castelo Branco que, tomando como referência principal
a questão do “terrorismo de Estado” que Foucault assinala como
uma das marcas de nossa época no curso “Em defesa da sociedade”,
nos apresenta a tese principal de Foucault a propósito das relações
de compadrio (e não antagônicas) entre o que ele chama de
“governamentalidade” e o “golpe de Estado”, que instaura um
“Estado de exceção”. Em outras palavras, a pergunta crucial é a
seguinte: qual gestão gere a exceção? Entretanto, na contra mão do
diagnóstico de Giorgio Agamben, Castelo Branco retoma a
importância das lutas e da resistência para que não nos deixemos
contaminar pela ideia de que o Estado de exceção possa durar
séculos. Peter Pál Pelbart, por sua vez, parte da relação entre
experiência e experimentação, partindo de outra associação pouco
explorada pelos intérpretes de Foucault entre livros e vida.
Procurando delimitar com clareza sua posição, Pelbart parte da
diferença entre Foucault e a concepção fenomenológica de
“vivência”, pois para o autor da História da loucura, não se trata do
“vivido”, mas sim do “invivido”, ponto de partida de toda ideia de
experimentação. Experimentação não porque já se viveu, mas
exatamente pelo seu contrário, pelo que ainda não se viveu. Do
mesmo modo, a experiência nunca é meramente pessoal, mas
sempre impessoal, ou seja, sempre deslocada da ideia de um sujeito
fundador ou da esperança de que existe, em algum ponto, algo que é
o “autêntico” e o “verdadeiro”. Finalmente, Eduardo Leal Cunha
volta-se, criticamente, para o efeito-Foucault no interior da
psicologia brasileira hoje. Crítico do “dispositivo psi”, Foucault se
tornou, rapidamente e certamente às suas expensas, quase uma
espécie de fundador de uma nova psicologia, que poderia redimir a
psicologia de todos os seus erros e equívocos anterior. Leal Cunha
traz à tona um debate candente a propósito das estratégias que, do
interior da psicologia e supondo uma visada crítica, acabam por
tentar domar a corrosão foucaultiana. Se, por um lado, não se trata
de invalidar a apropriação foucaultiana feita pela psicologia no
Brasil, por outro lado trata-se de alertar e, mais do que isso,
constatar a transformação “normativa” sofrida pelo seu pensamento
no momento atual.
Quatro leituras, quatro direções, às quais se somam muitas outras.
Todas elas, entretanto, homenageiam Foucault, neste momento em
que lembramos sua morte há trinta anos, naquilo que certamente o
agradaria, como sendo a melhor das homenagens: pensar é resistir!
Foucault entre Nietzsche, Marx e Walter
Benjamin
ERNANI CHAVES

Há exatos quarenta e um anos, na Primeira Conferência de A


verdade e as formas jurídicas proferidas, como sabemos, na PUC do
Rio de Janeiro, pouco cauteloso, de certo modo, à peculiaridade da
situação política brasileira e do papel desempenhado naqueles anos
pelo marxismo como forma de resistência à ditatura, Foucault foi
absolutamente implacável: ele critica com bastante virulência o
“marxismo acadêmico”, “universitário”, que resolvia a questão das
relações entre condições econômicas e práticas de subjetivação por
meio dessa espécie de fórmula explicativa conhecida como “teoria
do reflexo ou da expressão”. Mesmo que, precavido, ele tenha
restringido sua declaração à França e à Europa, ela foi suficiente
para suscitar não apenas um debate, mas também uma desconfiança
de que nos encontrávamos diante de um anti-marxista resoluto. Na
discussão que se seguiu à última conferência, dominada pelo debate
com Hélio Pellegrino, respondendo a uma intervenção que
associava suas análises a uma espécie de crítica da ideologia,
Foucault volta a se posicionar enfaticamente contra essa ideia
referindo-se, novamente, a uma “interpretação tradicional”, a
“interpretação dos marxistas”. E assim, o próprio Foucault marcava,
com certa clareza e precisão, sua distância e afastamento do
marxismo. O que significava, tal como podemos hoje claramente
perceber, um afastamento de algumas teses de Althusser, seu ex-
professor e amigo pessoal, que ele abraçara na sua juventude e que
estavam presentes na História da loucura . Mas também um
posicionamento que refletia o debate tipicamente francês, ainda
decorrente do maio de 1968, a propósito das posições políticas no
campo da esquerda radical. Para dar um exemplo desta situação
peculiar, basta, mais uma vez, lembrarmos da famosa cena de A
chinesa , de Godard, na qual Les mots et les choses é alvo,
“literalmente”, do dardo disparado pelo estudante maoísta.
Esse afastamento significava, por outro lado, uma aproximação
com Nietzsche. Mas não mais o Nietzsche dos textos da década de
1960, enredado nas questões relativas à linguagem, a um modelo de
interpretação, e a uma possível “experiência trágica da loucura”,
mas ao “Nietzsche, filósofo do poder”, como ele dirá na entrevista
“Sobre a prisão”, em 1975 e de quem emprestará não apenas o
nome, mas também as diretrizes fundamentais do método
“genealógico”. Assim, ao final da Primeira Conferência de A
verdade e as formas jurídicas , Foucault parecia montar uma
oposição entre o marxismo e Nietzsche. É importante ressaltar que
Foucault não se refere, aqui neste texto, a Marx, mas sim ao
“marxismo”, uma designação ao mesmo tempo muito geral e muito
vaga, mas também muito específica, se pensarmos no contexto da
época, que inclui tanto o althusserianismo, como as correntes de
esquerda nascidas à sombra do Maio de 1968. De todo modo, nossa
tradução no Brasil foi simples e rápida: Foucault, nietzschiano,
contra Marx!
A recepção do Vigiar e punir entre nós também não levou em
consideração as referências ao Capital ali presentes. Poucas e
esparsas, elas pareciam, de fato, não ter nenhuma importância, tão
fascinados ficamos com a análise da constituição histórica do poder
disciplinar. A questão do poder, sim, nos interessou exaustivamente,
pois nos parecia uma chave interpretativa muito mais interessante,
muito mais pertinente, para compreendermos o modo singular dos
processos de dominação na sociedade capitalista. Raramente
atentamos para a posição estratégica que a referência a Marx
possuía no livro. Raramente percebemos que havia sempre uma
diferença no discurso foucaultiano entre a menção a Marx e a
menção ao marxismo.
A publicação da Microfísica do poder , em 1979, aprofundava
nossa desconfiança que, aos poucos, transformou-se em certeza:
Nietzsche contra Marx, eis a questão! De fato, em inúmeras
entrevistas e passagens de aulas no Collège de France publicadas
nesta coletânea, vemos Foucault voltar-se, com frequência, contra o
marxismo e algumas vezes, contra o próprio Marx. Dessas inúmeras
referências, gostaria de destacar duas, pois elas me parecem
instrutivas da questão que estou colocando aqui.
A primeira se encontra ainda na mesma entrevista, a qual me
referi a pouco, “Sobre a prisão”, de 1975 portanto. Após ter feito a
afirmação, hoje bastante conhecida e famosa, de que citava Marx
sem aspas e por isso Marx não era identificado em seus textos,
justamente porque os que se intitulavam marxistas não liam Marx,
escreve Foucault: “É impossível fazer história atualmente sem
utilizar uma sequência infindável de conceitos ligados direta ou
indiretamente ao pensamento de Marx e sem se colocar em um
horizonte descrito e definido por Marx. Em última análise, poder-se-
ia perguntar que diferença poderia haver entre ser historiador e ser
marxista”. A discussão, diz Foucault mais adiante, não é com/contra
Marx, mas com os que se dizem marxistas e cuja regra do jogo não
é a obra, o pensamento de Marx, mas a “comunistologia”.
A segunda se encontra logo no texto de abertura da Microfísica do
poder , a entrevista intitulada “Verdade e Poder”, realizada em 1977.
No início da entrevista, Foucault procura explicar porque seus
“objetos” de estudo eram desqualificados tanto do ponto de vista
epistemológico (eram objetos “sem nobreza”), quanto político (eram
“sem importância”). E ele aponta três razões: 1) a posição dos
intelectuais marxistas, ligados ao Partido comunista francês (PCF),
no interior das instituições universitárias; estes, diz Foucault,
queriam legitimar o marxismo, adaptando-o às regras tradicionais
do ensino e da pesquisa na universidade francesa; nesta perspectiva,
“a medicina, a psiquiatria, não eram muito nobres nem muito sérias,
não estavam à altura das grandes formas do racionalismo clássico”;
2) havia um estalinismo pós-estalinista, que excluía do discurso
marxista a emergência do novo, a possibilidade de se colocar novas
questões, de tal modo que os marxistas continuavam, no que diz
respeito à discussão sobre a ciência, presos ao discurso positivista
do século 19: “para certos médicos próximos do PCF, a política
psiquiátrica, a psiquiatria como política, não eram coisas honrosas”;
3) haveria a possibilidade igualmente de que o PCF procurasse
silenciar a discussão sobre as formas de disciplina da vida social,
tendo em vista a realidade do Gulag, ou seja, sobre determinadas
coisas é melhor não falar, é melhor ficar em silêncio.
Vemos o quanto essas duas referências constituem posições
diferentes no discurso de Foucault: de um lado, Marx é
incontornável (o que não quer dizer, evidentemente, que ele não
pudesse ser “ultrapassado”, como o afirmava Sartre); mas, de outro,
o marxismo é uma teoria e uma prática que se tornou incapaz de
pensar. A radicalidade de Marx estaria assim perdida na sua
posteridade.
Mas poderíamos dizer que esse diagnóstico de Foucault
desemboca numa espécie de “niilismo passivo”, ou seja, de uma
imobilidade resignada diante do nosso tempo? Evidentemente que
não. E aqui então, eu gostaria de colocar uma hipótese, uma
hipótese baseada, em especial, em textos, entrevistas e
evidentemente nos cursos no Collège de France, publicados a partir
de 1980. A hipótese é a seguinte: há, na posteridade do marxismo,
um momento do qual Foucault se aproxima, um momento que lhe
permite reatar com a função crítica do marxismo. Este momento é o
da primeira Teoria Crítica, a da chamada Escola de Frankfurt.
Sabemos o quanto essas designações gerais – Teoria Crítica, Escola
de Frankfurt – podem nos enganar e nos iludir, como se tivéssemos
diante de um pensamento único, comum, a reunir autores muito
diferentes. Marcuse, por exemplo, defensor de uma espécie de
freudo-marxismo, que insiste em reiterar a relação entre capitalismo
e repressão da sexualidade, está fora da lista de Foucault.
Novamente aqui, recorro a duas referências para sustentar minha
posição.
A primeira, uma entrevista de 1983, na qual após lamentar a
ausência da Escola de Frankfurt em sua formação, Foucault dirá
que, se tivesse tido a oportunidade de conhecer a Escola de
Frankfurt, teria seu trabalho poupado, não teria dito tantas tolices e
teria evitado tantos outros desvios, uma vez que aquela Escola já
teria aberto vias muito mais promissoras para os mesmos problemas
dos quais ele tratava. A segunda referência é um pouco anterior, de
1978 e está na “Introdução” à edição inglesa de O normal e o
patológico , de George Canguilhem. Para situar seu próprio trabalho
e a inspiração de Canguilhem, Foucault irá associar dois modelos, o
da Teoria Crítica alemã e o da História das Ciências tal como
praticada na França no século 20, como as maneiras mais
interessantes de dar continuidade à famosa questão acerca do
significado da Aufklärung : “Na história das ciências na França,
como na teoria crítica alemã, o que se trata, no fundo, de examinar,
é bem uma razão, cuja autonomia das estruturas traz consigo a
história dos dogmatismos e despotismos – uma razão, por
consequência, que só tem efeito de livramento com a condição de
que consiga se liberar de si mesma”.
Essa aproximação com os frankfurtianos não significa, entretanto,
uma adesão completa, como se Foucault tivesse se transformado,
pura e simplesmente, na versão francesa da Teoria Crítica. Ao
contrário, em uma entrevista também concedida em 1978 ao italiano
Duccio Trombadori, mas publicada apenas em 1980, ele explicitará
suas diferenças em relação aos frankfurtianos. Foucault critica a
presença de uma certa concepção de sujeito ainda tradicional nos
frankfurtianos, concepção que ainda mantém laços muito estreitos
com o humanismo marxista; critica a presença forte da psicanálise e
a relação entre Marx e Freud e, finalmente, considera que os
frankfurtianos têm uma relação decepcionante com a história, que
de fato eles não fizeram pesquisa histórica, limitando-se a repetir o
trabalho de alguns historiadores. Como vemos, podemos falar de
relações de troca e simpatia entre Foucault e os frankfurtianos, mas
também de relações tensas, que repetem, por sua vez, o próprio
modo pelo qual Foucault estabeleceu suas relações com Marx e com
o marxismo.
Entretanto, entre os frankfurtianos, apenas um mereceu de
Foucault uma referência nos livros publicados: Walter Benjamin,
em conhecida e famosa nota de pé de página em O uso dos prazeres
, o segundo volume da História da sexualidade , na qual Foucault
considera os estudos de Benjamin sobre Baudelaire como um
exemplo de estudos a propósito de uma “estética da existência”.
Gostaria, então, de finalizar minha exposição com uma terceira
hipótese: de fato, dentre os frankfurtianos, Benjamin se aproxima do
menos frankfurtiano de todos, daquele que só pode ser enquadrado
nesta Escola com muitas ressalvas, justamente Walter Benjamin. Em
meu recente livro, empreendi uma espécie de genealogia das
relações possíveis entre Foucault e Benjamin, tomando como eixo
norteador não a referência explícita a Benjamin em O uso dos
prazeres , mas na ressonância implícita que podemos encontrar em
A coragem da verdade , quando nos deparamos com o nome de
Baudelaire listado dentre aqueles artistas que a partir do século 19,
podem ser associados à insolência, à blasfêmia, à confrontação com
o poder por meio de uma ética e uma pedagogia que reúnem corpo e
natureza, tal como encontramos no cinismo antigo. Nesta
genealogia, gostaria de destacar, mais uma vez, dois textos.
O primeiro é uma entrevista de Foucault, no final de 1977, em
Berlim, dada em um contexto de muita efervescência política, logo
depois do chamado Outono alemão, uma série de ações promovidas
pelos integrantes da Rote Armee Fraktion (RFA) ou ainda do grupo
Baader-Meinhof, para libertar Andreas Baader e outros líderes da
prisão. Por outro lado, a luta de Foucault (ao lado de Deleuze,
Guatari e Sartre, por exemplo) para impedir a extradição para a
Alemanha, de Klaus Croissant, o advogado da RFA, que havia se
refugiado na França. Desta entrevista destaco, de início, a pergunta,
a primeira pergunta, que lhe foi feita: “Você escreveu a História da
Loucura, da Clínica. Benjamin disse um dia, que nossa
compreensão da história era a dos vencedores. Você escreve a
história dos perdedores?”. A esta pergunta, Foucault responde:
“Sim, eu gostaria muito de escrever a história dos vencidos (
l’histoire des vaincus ). É um belo sonho que muitos partilham: dar
enfim a palavra àqueles que, até o momento, não puderam tomá-la,
àqueles que foram constrangidos ao silêncio pela história, por todos
os sistemas de dominação e exploração”.
Em 1977, para os estudantes alemães engajados e/ou
simpatizantes das ações radicais dos grupos chamados “terroristas”,
as histórias de Foucault eram imediatamente associadas à exortação
de Walter Benjamin por uma escrita diferente da história e por uma
posição ética, política e também epistemológica em relação ao papel
e ao lugar da História. Estou inteiramente de acordo com a ideia de
que Foucault apreciou o marxismo anti-dogmático de Benjamin e
que ele poderia ter percebido, caso tivesse tido a possibilidade de
aprofundar-se mais ainda no pensamento de Benjamin, a “afinidade
eletiva” que havia entre eles.
Segunda referência: em uma entrevista de 1978, bem antes,
portanto, do último curso de Foucault no Collège de France, em
uma entrevista significativamente intitulada “Metodologia para o
conhecimento do mundo: como se desembaraçar do marxismo”,
Foucault afirma que “os partidos políticos tendem a ignorar estes
movimentos sociais [os novos movimentos sociais, como os anti-
psiquiatria, movimentos nas prisões, movimentos feministas,
movimentos gays] e mesmo a enfraquecer sua força. Deste ponto de
vista, sua importância é muito clara para mim. Todos eles se
manifestam entre os intelectuais, os estudantes, os prisioneiros, no
que se chama o lumpemproletariado”. Exaltação do “lupem”, a
categoria criada por Marx e Engels para criticar essa parcela do
proletariado incapaz de assumir seu papel histórico de classe,
parcela impulsiva, romântica, em última palavra, “boêmia”.
Ora, “A boêmia” é justamente o título da primeira parte do estudo
inacabado de Walter Benjamin intitulado Charles Baudelaire, um
lírico no auge do capitalismo . Aqui, Walter Benjamin afasta-se
decididamente de Marx e Engels e faz o elogio da boêmia. Tomando
como referência o famoso poema de As flores do mal de Baudelaire,
intitulado “O vinho dos trapeiros”, ele vai se referir positivamente
aos boêmios, encharcados de vinho e ópio nas tavernas, bradando
contra a monarquia de Luis Felipe e organizando as barricadas nas
ruas de Paris. Imbuídos do espírito da revolta, eles formam uma
corja de malditos, nas quais se inclui o poeta, mesmo que ele seja,
como Baudelaire, um burguês desiludido com sua própria classe.
O lumpemproletariado, que traz em seu próprio nome a marca de
sua desqualificação, “proletariado em farrapos”, se transforma, tanto
em Benjamin como em Foucault, no protagonista da história.
Assim, podemos reescrevê-la não mais como a história dos
vencedores, mas como o quis Foucault, uma “história dos homens
infames”, dos infames sem glória, condenados à exclusão e ao
silêncio.
Se, tanto para Benjamin como para Foucault, é impossível pensar,
sem Marx, a tarefa do historiador, é preciso também para ambos que
nos “desembaraçemos do marxismo” e de algumas teses de Marx,
para renovar o marxismo e reencontrar a radicalidade do próprio
Marx.
Governamentalidade e terrorismo de Estado
GUILHERME CASTELO BRANCO

O domínio da filosofia política é o que tem sido verdadeiramente


desafiado a responder a questões difíceis levantadas pela violência
política, pelas guerras, pelos campos de concentração, pelos campos
de extermínio e pelos assassinatos indiretos causados pela gestão
burocrática da economia e da vida das pessoas. As duas guerras
mundiais, as continuadas guerras imperialistas, as perseguições
políticas em todo o mundo, inclusive na América Latina e no Brasil,
as práticas de eliminação de grupos sociais, o descaso no suporte e
auxílio a doentes, pobres e necessitados, são alguns exemplos em
uma lista extensa de desmandos e excessos de poder.
No mundo contemporâneo, razão científica e tecnológica podem
conviver com a irracionalidade política, o que não deixa de ser um
fato paradoxal, uma vez que a ciência e a tecnologia trouxeram
também benefícios e contribuições positivas para a vida de muitas
pessoas. Por este motivo, Michel Foucault procurou analisar as
diversas técnicas de poder que foram sucessivamente praticadas no
mundo ocidental nos últimos séculos. As técnicas de poder que
Foucault analisou resultaram no que o filósofo denominou de
“governamentalidade”: um conjunto de técnicas de gestão da
população e dos agentes econômicos que resultam em contextos de
poder propriamente contemporâneos, não podendo ser confundida
com a soberania que preocupa-se, sobretudo, com o controle e
manutenção do poder do soberano sobre o povo ou cidadãos.
O poder na modernidade é realizado por várias instituições e
muitos conhecimentos e saberes. Foucault tem a percepção de que a
explicação do poder somente pelo papel do Estado e de seus
departamentos não pode dar conta de todos os campos reais e
efetivos nos quais o poder acontece. O poder tem tal alcance e está
tão disseminado nos múltiplos lugares da vida social que, em certos
casos, pode levar a possíveis abusos e a possíveis patologias do
poder que estão conectadas ou sintonizadas com segmentos
importantes do mundo social e político, tão extensos, de dimensão
capilar e disseminados no mundo social que não se restringem nem
poderiam estar limitados ao campo circunscrito da esfera estatal. A
prática efetiva do poder, desde o começo do século 20, não se limita
ao âmbito do Estado; antes disto, está articulado a uma série de
parceiros e instituições que compartilham, em uma gigantesca rede,
de todo um domínio de poder e de intervenção social que vai das
grandes instituições até os pequenos acontecimentos e relações
interpessoais.
Quando o que está em questão são os excessos de poder, não trata-
se de uma influência ideológica nem mesmo de um fato histórico
particular e localizado, como o nazismo e stalinismo; temos diante
de nós, isto sim, uma tecnologia de poder nascida em meados do
século 18, e que tem por alvo a regulação da população, que
Foucault denomina de biopolítica da espécie humana. Este novo
poder funcionaria diferentemente do poder de soberania, que
consiste em fazer viver e deixar morrer. Michel Foucault no curso
“Em defesa da sociedade”, demonstra sua indignação com o fato de
que o Estado moderno tenha passado a eliminar sua própria
população, o que contraria seus objetivos e sua razão de ser, pois
como um poder que tem por objetivo fazer viver pode deixar
morrer? A prática do poder, assim, leva a objetivos que contrariam
seus desígnios iniciais.
Para Foucault, o fascismo e o stalinismo utilizaram e alargaram
mecanismos já existentes na maioria das outras sociedades. Estes
sistemas políticos utilizaram as ideias e os procedimentos de nossa
racionalidade política. A racionalidade política, acompanhada dos
conhecimentos técnicos e científicos, tem realizado as mais diversas
modalidades de crimes e assassinatos em massa, em distintas
escalas, em práticas que vão da guerra ao descaso com os não
cobertos pela seguridade social, de maneira a que tal articulação se
passe nos mais diversos campos de intervenção social, tais como os
campos jurídicos, médicos, militares, pouco importa, desde que
funcione algum modo de controle, de exclusão, de eliminação.
Vale a pena ressaltar que duas ideias importante apresentadas no
curso “Segurança, território, população”, a saber, a
governamentalidade e o golpe de Estado não são antagônicos. Na
governamentalidade, o mundo democrático, construído a partir da
decisão popular e amparado nas leis seria, segundo Foucault, um
mundo da gestão dos interesses da população, considerada enquanto
categoria abstrata e sem carne e sangue. Tudo seria normal se não
entrasse em jogo a ideia de golpe de Estado, ou seja, a ideia de que a
governamentalidade traz em si mesma um aspecto absolutamente
inusitado, em certas condições excepcionais, pelas quais as regras
do jogo político passam a ser ameaçados e são anuladas. É neste
ponto limítrofe que se inicia o golpe de Estado, entendido enquanto
iniciativa e ação feitos pelo próprio Estado. Neste caso, temos de
deixar claro que a noção de golpe de Estado, em Foucault, é
sinônimo de Estado de sítio ou Estado de exceção, situação que se
desencadeia por dispositivos constitucionais e que é realizado pelo
próprio Estado, em caso de ameaça (real ou fictícia) externa ou
interna. A noção tradicional de golpe de Estado, por sua vez, seria o
objeto da análise do filósofo. Através dele torna-se perfeitamente
cabível que façamos a associação entre golpe de Estado e terrorismo
de Estado.
Segundo o filósofo francês, que se apóia em um teórico pouco
conhecido do século 17, Naudé, o golpe de Estado é uma suspensão
das leis e da legalidade que excede o direito comum. O Estado
abandona o exercício racional e gestor da vida socioeconômica, de
caráter administrativo, para ter um desempenho completamente
diferente, pois a razão de Estado pode converter-se em golpe de
Estado, e passa a ser violento. Violento é levado a sacrificar, a
despedaçar, a fazer o mal, passando a ser injusto e assassino. Tal
violência, ademais, é e deve ser teatral, não somente para impactar,
mas também para mostrar que sua intervenção deverá ser durável ou
irreversível. Finalmente, o Estado, neste processo, leva muito longe
o desejo de reparação no golpe de Estado, justificando, em muitos
casos, o teatro político, a exibição de poderio policial ou militar.
Nesta condição, não existe antinomia, no que concerne ao Estado,
entre razão e violência. É possível afirmar, inclusive, que a violência
de Estado, nada mais é do que a manifestação impactante de sua
própria razão. O golpe de Estado é inerente ao Estado, e a partir dele
surge a expressão terrorismo de Estado, que é a manifestação da
violência do Estado face à sua população e ao sistema legal.
Em conseqüência, a oposição entre governamentalidade (gestão) e
golpe de Estado (violência) é meramente retórica, e traz a grande
lição de que a política, na modernidade, aceita violências como
sendo a forma mais pura da razão e da razão de Estado. Na raiz e no
cerne da racionalidade política está a violência, a tendência ao
genocídio e ao extermínio, fato irrefutável do presente histórico. O
Estado e o crime de Estado, o terrorismo de Estado, são
manifestações da própria razão de ser do Estado. Eles coabitam na
paradoxal interface entre legalidade e violência. Todavia, há que se
manter a fé nas lutas de resistência e pelos direitos das populações,
pois os crimes perpetrados pelos Estados não podem ser nem
duráveis nem constantes. O Estado de exceção, o Estado de sítio é
uma possibilidade política e jurídica ocasional, que ocorre às vezes
em um determinado país, em certas condições, em um período de
tempo. Nunca houve, na história, um Estado de exceção, um
terrorismo de Estado que durasse séculos, devido às constantes lutas
agonísticas das populações e da sociedade organizada contrárias a
um exercício de poder unívoco. Neste sentido, a hipótese de Giorgio
Agambem sobre a constância do Estado de exceção na modernidade
é muito questionável e não se sustenta, pois desmerece o poder das
fortes lutas de resistência e por direitos políticos realizados por
grupos humanos, em muitas partes do planeta.
Certamente, o ápice do terrorismo de Estado não está na
eliminação dos indesejáveis, de parcelas da população que foram ou
podem passar a ser indesejáveis e elimináveis. Um exemplo
marcante: em entrevista ao jornalista Ceverino Reato, o general
Jorge Videla revelou que em decretos privados, os chefes militares
na ditadura Argentina, entre 1976 e 1981, foram liberados para
utilizar a sigla D.F. para que alguém fosse eliminado. Tal sigla, na
gíria militar argentina, disposicíon final , dizia respeito aos
uniformes ou botas que não servem mais. Neste período a sigla foi
aplicada, sobretudo, àqueles que foram assassinados por motivos
políticos. O próprio Videla afirmou ter escrito a sigla várias vezes
em vários documentos e calculou que foram eliminadas perto de
nove mil pessoas apenas com tal procedimento.
O maior poder de eliminação, do qual quase ninguém fala e
Foucault insiste neste ponto, está no paradoxal caráter suicida do
Estado: o poder atômico passa a ser uma espécie de paradoxo difícil
de contornar, ou mesmo absolutamente incontornável, é o fato de
que, no poder de fabricar e de utilizar a bomba atômica, pôs-se em
cena um poder que é o de eliminar a vida, e de se auto-suprimir
como poder de manter a vida. Por outro lado, se pensarmos no
estoque de bombas de hidrogênio e do potencial de destruição
absoluta de toda e qualquer forma de vida da vida no planeta, temos
que reconhecer que o limiar do Estado, seu ponto máximo, é seu
poder de destruição total, de caráter totalmente suicida. Foucault
lembra que o caráter suicida do Estado chega a seu ápice paradoxal
na fabricação de vírus incontroláveis e universalmente destruidores.
As decisões burocráticas, por outro lado, podem levar as pessoas a
condições de extrema fragilidade e impotência, e a viverem um
estado de constante temor. Fazer com que certas pessoas ou grupos
sociais passem a não ter mais direito a certos benefícios – ou, o que
é mais terrível, a não ter mais direito a um determinado atendimento
médico quando eventualmente necessitar –, eis uma situação que
pode acontecer. Tal processo intimidador pode levar muitas pessoas
a um estado de submissão em nome de uma possível segurança (que
por sinal nunca se mostra categórica), dependentes que são dos
sistemas de seguridade social. O modo de vida das pessoas passa a
ser cerceado e vigiado, pessoas cada vez mais dependentes e
assujeitadas são postas e dispostas pelas sutis tecnologias de poder
existentes na era do controle e da governamentalidade. As pessoas
passam a ser responsabilizadas pelos efeitos médicos e legais da
vida que levaram ou ainda levam – se contrárias ao padrão desejável
– e podem ser excluídas caso não se adaptem às regras do jogo
burocrático e político.
Por outro lado, a imigração e expatriação podem tornar-se um
modo terrível de elisão, de desaparição. A percepção de Foucault é
sutil, porque não acarreta somente na morte de forma direta, mas
também no que poderia ser assassinato indireto, ao fato de expor
pessoas à morte política, econômica, cultural. A multidão dos
ameaçados pela fome nos países periféricos, os que abandonam suas
casas e países às vezes sem poder levar nada, os grandes
contingentes populacionais que vão em busca de uma vida melhor
(ainda que seja uma vida humilhada), são milhões. A rota de acesso
para a entrada nos países “ricos” é difícil, milhares de pessoas
morrem à míngua em meios de transportes inapropriados, ou são
eliminados por contrabandistas de carga humana. Por outro lado, em
terras estrangeiras, muitas vezes sem qualquer amparo legal, uma
multidão de pessoas, em busca tão somente de uma vida melhor,
vivem excluídas do convívio social e dos direitos formais.
Convertem-se em trabalhadores com pouco custo trabalhista. Os
exilados são a mão deobra barata do capitalismo, descartáveis e
hostilizados. A grande massa da exclusão, constituída pelos
estrangeiros, pelos estranhos, pelos apátridas, a muito custo chegam
a uma conquista social semelhante às suas aspirações.
Para concluir: se o Estado tem na sua raiz a violência, a
resistência ao poder deve visar à eliminação do próprio Estado, os
excessos de poder e o terrorismo de Estado. A resistência ao poder,
todavia, não é só política: tem por objetivo a preservação da vida.
Do livro como experiência à vida como
experimentação
PETER PAL PÉLBART

Em uma entrevista de 1980, Foucault diz que seus livros são para
ele experiências no sentido pleno da palavra, já que deles ele
próprio saiu transformado. Uma experiência, portanto, poderia ser
definida a partir desse crivo: trata-se de uma transformação do
sujeito. Um livro concebido como uma experiência é algo que
transforma aquele que o escreve e aquilo que ele pensa, antes
mesmo de transformar aquilo de que trata. Foucault confessa que os
autores que mais o marcaram não foram os grandes construtores de
sistema, mas sim aqueles que lhe permitiram escapar precisamente
dessa formação universitária, isto é, aqueles para quem a escrita era
uma experiência de autotransformação, tais como Nietzsche,
Bataille, Blanchot. Ora, o que esses autores deram a Foucault de tão
essencial, mesmo sendo marginais no que se costuma entender por
história da filosofia? Precisamente uma concepção de experiência
como uma metamorfose, uma transformação na relação com as
coisas, com os outros, consigo mesmo, com a verdade. Foi o que
ocorreu no estudo dos grandes objetos pesquisados por Foucault,
como a loucura, a delinquência, a sexualidade – todos os livros
escritos a respeito resultaram em uma transformação profunda na
relação que o autor, o leitor, enfim, o próprio tempo de Foucault se
viu impelido a ter com esses domínios.
Em que, contudo, a noção de experiência evocada por Foucault
difere daquela formulada pela fenomenologia? Se a experiência do
fenomenólogo consiste em pousar um olhar reflexivo sobre um
objeto qualquer do vivido, sobre o cotidiano em sua forma
transitória, para dele extrair as significações, a experiência à qual
Foucault se refere, ao contrário, trata não de atingir um objeto do
vivido, mas um ponto da vida que seja o mais próximo do invivível.
Não a vida vivida, mas o invivível da vida. Não a experiência
possível, mas a experiência impossível. Não a experiência trivial,
mas aquela em que a vida atinge o máximo de intensidade,
abolindo-se. Não a experiência cotidiana, mas a experiência-limite.
A fenomenologia trata de apreender a significação da experiência
cotidiana para reencontrar, através dela, o sujeito fundador dessa
experiência e de suas significações, na sua função transcendental. A
experiência tal como Foucault a entende, em contrapartida, na
linhagem dos autores mencionados, não remete a um sujeito
fundador, mas desbanca o sujeito e sua fundação, lançando-o à
própria dissolução. Em suma, a experiência-limite é um
empreendimento de dessubjetivação. Eis o que terá sido decisivo
para Foucault na leitura de Nietzsche, Bataille e Blanchot: a
experiência que vai ao seu limite, a experimentação que em seu
curso prescinde do sujeito ou o abole. É o que permite a Foucault
dizer que seus livros, por mais eruditos que tenham sido, foram
sempre concebidos como experiências diretas, visando arrancá-lo de
si mesmo, impedi-lo de continuar a ser si mesmo.
Claro que nos deparamos aqui com uma concepção particular de
experiência, já que ela, no geral, é remetida precisamente a um
sujeito que a vive, passiva ou ativamente. Mas a pergunta de
Foucault vai a contrapelo dessa suposição: “Não haveria
experiências ao longo das quais o sujeito não fosse dado, nas suas
relações constitutivas, naquilo que ele tem de idêntico a si mesmo?
Não haveria experiências nas quais o sujeito possa se dissociar,
quebrar a relação consigo mesmo, perder sua identidade?” Através
de termos como dissociação, dissolução, diluição e perda da
identidade, Foucault contesta o estatuto mesmo do sujeito, seja o
sujeito psicológico, seja o sujeito do conhecimento, seja o sujeito
transcendental.
A EXPERIÊNCIA (IM)PESSOAL
Em um sentido muito prosaico, Foucault diz em outro momento
desta mesma entrevista, que cada livro seu nasceu de uma
“experiência pessoal”, uma “experiência direta”. No caso da
loucura, eis sua observação: “Eu tenho uma relação pessoal,
complexa com a loucura e com a instituição psiquiátrica.” Uma
passada de olhos em qualquer biografia sua ou mesmo nas notas
biográficas publicadas em Dits et écrits e insuspeitas de qualquer
ambição sensacionalista, a observação se esclarece imediatamente:
trata-se das crises pelas quais passou o filósofo na École Normale:
acessos de raiva, tentativas de suicídio, até mesmo uma visita a um
psiquiatra, levado por seu pai. Em um outro plano, seu interesse
pelo tema foi incessante, como o atesta seu trajeto acadêmico:
formação paralela em psicologia, estágio no hospital psiquiátrico,
tradução do texto “Rêve et existence” e a frequentação pessoal de
Binswanger por ocasião desta tradução, para não falar de todos os
postos de trabalho em que foi incumbido da cátedra de psicologia ou
psicopatologia, ou mesmo seu interesse pela psicanálise, sua relação
ambivalente com Lacan etc. Contudo, se sua experiência pessoal,
nesse sentido trivial, foi decisiva, isso nem remotamente significa
que ele tenha transposto experiências pessoais para o plano da
escrita em uma forma autobiográfica: em nenhum texto publicado
por ele há qualquer referência autobiográfica desta ordem.
Já temos aqui um pequeno paradoxo: como um livro nasce de
uma experiência pessoal, mas resulta precisamente na abolição
desse mesmo autor que as viveu, conforme o postulado indicado
acima, segundo o qual há experiências e experiências de
pensamento ou de escrita, que justamente colocam em xeque o autor
em sua identidade, até mesmo em sua coerência? Todo o desafio
está em conciliar o fato de que um livro parte de uma experiência
pessoal, mas não constitui o relato dessa experiência, já que o livro
é em si mesmo uma experiência em um sentido mais radical, a saber,
uma transformação de si , e não a reprodução da experiência vivida
“tal como ela ocorreu” e que estaria na origem dessa escrita, nem
sua transposição direta.
O essencial, portanto, não se encontra na série das constatações
verdadeiras ou historicamente verificáveis encontráveis em um
livro, mas antes na experiência que tal livro permite fazer. Ora, esta
experiência, como qualquer experiência, não é nem verdadeira nem
falsa. “Uma experiência é sempre uma ficção; é algo que nós
mesmos fabricamos, que não existe antes e que não existirá depois.”
Daí um dos sentidos possíveis à boutade de jamais ter escrito outra
coisa que não ficções. Não se trata de mentiras, de fabulações, de
inverdades, mas da fabricação de uma “experiência” que, no
entanto, está nas antípodas de qualquer remissão a um “vivido”,
“autêntico”, “verdadeiro” ou “real”. Um livro é isto. É precisamente
uma produção, uma criação, uma singularidade, um acontecimento,
com seus efeitos de realidade, como no caso de História da loucura
.
EXPERIMENTAÇÃO
Em alguns textos laterais, Foucault permite-se dizer não
propriamente “o que ele pensa”, mas “o que seria possível pensar”.
Por exemplo, ao responder a uma pergunta na entrevista intitulada
“Poderes e estratégias” sobre a função da teoria como caixa de
ferramentas, como instrumento inclusive de luta mais do que como
sistema, e ao contar que respondeu às questões feitas por escrito
também por escrito, mas como que em um jorro primeiro, sem
revisá-los, não por confiar na virtude da espontaneidade, mas para
nelas deixar aparecer o caráter problemático, voluntariamente
incerto, ele acrescenta: “O que eu disse aqui não é ‘o que eu penso’,
mas com frequência é aquilo que eu me pergunto se não poderia ser
pensado.” Talvez tenhamos aí algo extensível a vários textos dos
Dits et écrits . Serão eles expressão do que Foucault pensa, ou uma
experimentação daquilo que poderia ser pensado, naquele limite
entre o pensável e o impensável? Não, portanto, expressão de um
eu, nem sequer a formulação de uma perspectiva consolidada, mas
uma experimentação do que pode o pensamento, para parafrasear
um autor conhecido.
Ao comentar a influência de Bataille e de Blanchot e, através
deles, de Nietzsche, ele explica o que eles representaram para ele.
“A experiência da guerra nos tinha demonstrado a necessidade e a
urgência de uma sociedade radicalmente diferente daquela em que
vivíamos. Essa sociedade que tinha permitido o nazismo, que se
curvara diante dele, e que havia passado em bloco para o lado de De
Gaulle. Diante de tudo isso, uma grande parte da juventude francesa
tinha tido uma reação de repugnância total. Desejávamos um mundo
e uma sociedade não somente diferentes [...] desejávamos ser
completamente outros em um mundo completamente outro. Tanto o
hegelianismo que nos era proposto na universidade com seu modelo
de inteligibilidade contínua da história [...] quanto [...] a
fenomenologia e o existencialismo, que mantinham o primado do
sujeito e seu valor fundamental [...] não tinham condições de nos
satisfazer. Ao passo que, em contrapartida, o tema nietzschiano da
descontinuidade, do além do homem que seria totalmente diferente
em relação ao homem, depois em Bataille, o tema das experiências-
limite pelas quais o sujeito sai de si mesmo, se decompõe como
sujeito, nos limites de sua própria impossibilidade, tinha um valor
essencial. Foi para mim uma espécie de saída entre o hegelianismo e
a identidade filosófica do sujeito.”
Vale aqui ressaltar o deslocamento ocorrido desde os anos 1960.
De uma ontologia da linguagem passou-se para uma ontologia
crítica do presente, onde a dissolução do sujeito era menos tributária
da aventura literária (ali onde a linguagem aparece, o homem
desaparece, como ele dizia na época) do que remetida a um jogo de
forças, no qual se reinventa a relação entre sujeito e experiência.
Como diz a sequência: “Numa filosofia como a de Sartre, o sujeito
dá sentido ao mundo. Este ponto não era colocado em questão. O
sujeito atribui as significações. A questão era: pode-se dizer que o
sujeito seja a única forma de existência possível?” Como se, nesse
momento, Foucault se perguntasse, fazendo eco a uma questão que
estava posta desde o início de sua trajetória, mas de outro modo, se
não seria possível dissociar a noção de experiência da noção de
sujeito.
Uma das respostas vem muito mais tarde, no derradeiro curso
dado por Foucault antes de sua morte, publicado sob o título de A
coragem da verdade .
CUIDAR DA ALMA OU CUIDAR DA VIDA
Ao final desse curso, Foucault toma o exemplo do cinismo para
mostrar como, para tornar-se a verdadeira vida, segundo os
preceitos que os cínicos professam, em uma espécie de jocosa
transvaloração de todos os valores, a vida deve ser uma vida
radicalmente outra, em ruptura total com todos os códigos, leis,
instituições, hábitos, inclusive dos próprios filósofos. A vida de
verdade é uma vida outra, e deve também, na sua manifestação
pública, agressiva, escandalosa até, transformar o mundo, chamar
por um mundo outro. Não é, pois, a questão do outro mundo,
segundo o modelo socrático, mas do mundo outro – não da outra
vida, mas da vida outra.
Se a filosofia é uma forma de experiência, supondo-se que as
formas históricas de experiência produzem diferentes modalidades
de subjetivação, de relação a si ou de modificação de si, cabe a ela
“produzir”, por assim dizer, a subjetivação que lhe corresponde.
Pode-se perguntar, pois, retomando esse fio que puxamos desde o
início, se em Foucault uma transformação de si não equivale, por
vezes, a um abandono de si. Ou, em outros termos, se certas
modalidades de subjetivação por ele detectadas ou evocadas através
da noção de experiência não implicariam diferentes graus de
dessubjetivação – e em que medida essa lógica não poderia ser
estendida a um domínio coletivo. Ao jornalista que lhe pergunta
quem é ela, a ativista do Movimento Passe Livre responde: “Anota
aí: eu sou Ninguém”, com a malícia de Odisseus, mostrando como
certa dessubjetivação é uma condição para a política hoje –
Agamben o dizia na esteira de Foucault: os poderes não sabem o
que fazer com a “singularidade qualquer”, com aqueles que mal têm
um nome ou um rosto: quem são eles, quem eles representam? E
como enfrentamos o risco de que qualquer um possa virar um
insurgente?
Quais os limites de uma psicologia de
inspiração foucaultiana?
EDUARDO LEAL CUNHA

É suficiente uma rápida pesquisa nos portais de revistas científicas,


nas prateleiras das livrarias ou nas páginas de programas de pós-
graduação para termos uma boa ideia da ressonância do pensamento
de Michel Foucault no campo psi no Brasil. Talvez até mesmo uma
simples caminhada nos corredores dos cursos de psicologia seja
suficiente para isso.
No ano em que rememoramos a sua morte, passados trinta anos,
parece-me importante, no entanto, evitarmos a simples e irrefletida
comemoração de tamanha e tão interessada recepção da obra do
filósofo francês em terras tupiniquins. Mais importante seria,
acredito, refletirmos sobre os modos de apropriação do seu
pensamento nos domínios da psicologia e da psicanálise.
Digo isso porque que a euforia em torno das suas ideias, e mesmo
certa idolatria que o eleva à condição de grande autor de referência
para a psicologia que se produz atualmente em nosso país, me
parecem pouco coerentes tanto em relação à sua posição de crítica
frente às práticas psicológicas e psicologizantes, quanto face ao que
poderíamos descrever como seu projeto filosófico, de indagação
radical dos saberes sobre o homem, seus processos de constituição
histórica e sua relação com o poder ou, ainda, sobretudo no que diz
respeito ao modo como desenha ao longo de sua obra, em seu estilo
de fala e escrita, uma postura crítica fundada em especial na recusa
aos fundamentos normativos e na interrogação permanente das
formas possíveis de vida e dos limites impostos a essas modos de
existir.
Dessa forma, é a partir da crítica a certo modo de presença da obra
de Foucault na psicologia e psicanálise brasileiras – descontando-se
evidentemente as diferenças marcantes entre esses dois campos –
que gostaria de pensar no impacto de Foucault sobre esses saberes e
a potência que o seu pensamento pode trazer para a “práxispsi”.
Porque se por um lado parece-me delicada a apropriação da
problematização foucaultiana do sujeito por teorias e práticas
preocupadas em estabelecer uma definição própria do sujeito e,
mais do que isso, circunscrevê-la a um campo disciplinar, por outro
lado a postura crítica que orientou o filósofo ao longo de sua obra se
configura exercício fundamental para todo aquele dedicado à
reflexão sobre a experiência subjetiva, seus modos de produção e
suas condições de possibilidade.
Voltando ao meu ponto de partida, trata-se de considerar com
cuidado o recurso à filiação foucaultiana, enunciada por psicólogos
e psicanalistas na busca pela legitimação de suas práticas e na
delimitação do que seria uma psicologia e uma psicanálise
pretensamente imunes às armadilhas da norma e das disciplinas as
quais desdobrariam os modos de subjetivação em processos de
sujeição.
Tal filiação só pode ser fruto de uma leitura equivocada da obra de
Foucault, leitura esta que procuraria em seu texto fundamentos
capazes de separar de modo claro e definitivo, o bom e o mau poder
ou, simplesmente, a boa psicologia da má psicologia, a psicanálise
que levaria ao cuidado de si, daquela submetida à vontade de saber.
Leitura, portanto, que converte o adjetivo foucaultiano em selo de
qualidade e insígnia identitária daqueles que pretendem ter
encontrado uma psicologia livre das amarras do indivíduo e do
poder, uma psicologia, enfim, acima de qualquer suspeita.
Nota-se aí uma perigosa aproximação com a denúncia feita por
Habermas de que o pensamento de Foucault seria marcado por um
criptonormativismo, ou seja, pelo fato de que haveria nela um
fundamento normativo não explicitado, um valor ou verdade
fundamental que orientaria a crítica e definiria então o alvo da
crítica foucaultiana, isto é, as formas de poder a serem combatidas,
estabelecendo ainda, por outro lado, valores e ideais a serem
defendidos, ou seja, indicando as forças de resistência às quais
devemos nos aliar e precisamos reforçar.
Contra tal perspectiva, ao comentar a dita polêmica Habermas-
Foucault em um texto no qual procura explorar os modos de
funcionamento e a potência da crítica Foucaultiana, Richard
Bernstein apoia-se no comentário de 1984 sobre a resposta de Kant
a pergunta “o que é o iluminismo” para propor que a crítica
foucaultiana se constitui precisamente em postura de crítica radical,
de permanente interrogação, uma retórica da ruptura, orientada não
por um fundamento que sustentaria consequente a verdade ou a
norma, mas por um horizonte ético-político, instável e sempre em
deslocamento.
É com base nisso que chamo a atenção para os riscos de uma
psicologia que se propõe foucaultiana, ou seja, para o perigo de se
apoiar em Foucault e sua interrogação sobre os modos como o
sujeito se produz para definir uma verdade sobre o sujeito
psicológico.
Pois é imprescindível admitir que Foucault certamente alimentou,
ao menos durante a maior parte do tempo, a descrença em relação à
possibilidade de uma prática psicológica que pudesse escapar às
injunções do poder. É o que aparece no debate que acompanha a
série de conferências realizadas no Rio de Janeiro, A verdade e as
formas jurídicas . Ali, vamos da pergunta se será “possível
considerar uma cura digamos, psicoterápica, moral, que não passe
por qualquer tipo de relação de poder” até uma distinção importante,
a propósito especificamente da psicanálise, entre sua afirmação
como “ciência que questiona o poder” e o reconhecimento de
esforços, dentro da psicanálise, “no sentido da destruição das
relações de poder” em seu interior. Nesse sentido, cabe registrar a
recusa do filósofo em reconhecer teorias, como a psicanálise ou
marxismo, que seriam “por essência, revolucionárias e
contestadoras.”
Ou seja, parece difícil a Foucault aceitar a ideia de que um corpo
teórico ou disciplinar, de qualquer ordem, possa se afirmar como
imune às armadilhas do poder ou da normalização. O que talvez
possamos articular ao momento seguinte do mesmo debate, no qual
Foucault rejeita a elevação da sua arqueologia ao estatuto de
disciplina científica: “É verdade que o que tento fazer é cada vez
menos inspirado pela ideia de fundar uma disciplina mais ou menos
científica. O que procuro fazer não é algo que esteja ligado à arte,
mas sim uma espécie de atividade. Uma espécie de atividade, mas
não uma disciplina. Atividade essencialmente histórico-política”.
Isso não quer dizer, absolutamente, que os psicólogos não devem
ler Foucault ou que a sua obra não deveria ter ressonância em
nossas práticas. Trata-se exatamente do contrário: a leitura da sua
obra é cada vez mais fundamental aos psicólogos, mas precisamente
na medida em que se reconheça sua exterioridade e seu
estranhamento em relação ao campo psi .
É este, me parece, o ponto central e consideração preliminar a
toda e qualquer forma de inscrição da obra de Foucault nos campos
da psicologia e da psicanálise, diante dos quais, não custa nada
lembrar, a sua postura sempre foi a de um diálogo eminentemente
crítico.
Com esse argumento espero destacar o fato de que a contribuição
de Foucault à reflexão sobre o psíquico, ou sobre a subjetividade,
como se diria em linguagem mais contemporânea, não deve ser
localizada na construção de um corpo teórico específico ou nem
mesmo na incorporação do vocabulário foucaultiano aos discursos
sobre o psíquico, mas na própria exterioridade a partir da qual o
próprio Foucault se colocou em relação à psicologia e que lhe
permitiu estabelecer a crítica desta.
Ou seja, não caberia aos ocupantes do campo psi nem colocar-se
em defesa contra Foucault, defendendo-se como em um julgamento
moral, nem tampouco, ao contrário, incorporar sistematicamente
suas noções ao campo de suas práticas, como se desde o início
Foucault estivesse a construir uma psicologia ou como se o sujeito
de que trata Foucault ao longo de sua obra e que de certo modo se
configura em seu principal problema filosófico fosse
necessariamente um sujeito psicológico.
Além disso, não podemos ignorar em que medida a produção de
uma psicologia de matriz foucaultiana implicaria o risco da
conversão de Foucault em Autor, em um sentido muito específico
que implicaria sua transformação em certificado de garantia para
determinados saberes e práticas, ou seja, em instância de autoridade
a legitimar pretensões de poder.
Nesse sentido, impossível não pensar no quanto seria paradoxal o
texto foucaultiano sustentar uma moralização das práticas e
discursos na psicologia posto que em seu trabalho filosófico não se
trata de alcançar nem a neutralidade axiológica pretendida pela
ciência, nem tampouco a construção de um discurso que acaba por
se remeter, de modo implícito ou explícito, voluntário ou
involuntário, à contraposição entre bem e mal, ainda que com
pretensões contestadoras e revolucionárias.
Não podemos, como diria talvez o velho Sigmund Freud, fazer de
Foucault uma Weltaunschauung, uma visão de mundo e matriz para
o ordenamento moral e hierarquização dos saberes psicológicos. A
contribuição de Foucault à psicologia encontra a sua potência
precisamente na indicação da incidência ético-política do saber
psicológico. Indicação que só se faz possível a partir de uma postura
de permanente interrogação dos saberes psi , dos seus modos de
produção, de seus efeitos sobre as formas de subjetivação e de seus
vínculos com instâncias de poder e de dominação. Trata-se,
portanto, de uma postura e não de um conteúdo ou da proclamação
de um instrumental teórico ou mesmo metodológico.
Será preciso, portanto, manter viva a inquietação ou insatisfação
que marcou o pensamento de Foucault, fazendo deslocar-se mais
uma vez o horizonte ético-político que determina nossos alvos e
tomando ainda como objeto da crítica nele inspirada mesmo aquelas
práticas que se dizem inspiradas em sua obra.
Em resumo, o argumento que trago nesse momento de
rememoração é que o modo como Foucault põe em jogo a questão
ética em seu trabalho filosófico, e em seu estilo, não comporta
qualquer oposição simplista entre uma boa e uma má psicologia ou
entre uma boa e uma má psicanálise, nem tampouco nos abre espaço
para usá-lo como legitimador ou autenticador de qualquer prática
psi.
Não será aí que encontraremos a potência do seu pensamento nem
seu impacto maior sobre nosso fazer, nossa práxis. Nesse sentido,
seria de todo paradoxal que o texto foucaultiano pudesse sustentar
uma moralização das práticas e discursos na psicologia indicando
um claro caminho a seguir e demarcando, de modo igualmente
definitivo, os percursos a serem evitados.
Trata-se enfim, com o argumento desenvolvido, certamente não de
por um ponto final à aventura foucaultiana dos psicólogos, mas de
ter ao mesmo tempo como horizonte e como foco de
problematização as condições de tal aventura, seus pontos de
partida.
Trata-se, talvez, de retomar a provocação porta em jogo por
Giorgio Agamben em um comentário no qual tece laços entre dois
textos de bastante ressonância no Brasil – “A vida dos homens
infames” e “O que é um autor” – e tê-la em mente, como ponto de
articulação entre a obra de Michel Foucault e nossas práticas:
Uma subjetividade produz-se onde o ser vivo, ao encontrar a
linguagem e pondo-se nela em jogo sem reservas, exibe em um
gesto a própria irredutibilidade a ela. Todo o resto é psicologia e em
nenhum lugar na psicologia encontramos algo parecido como um
sujeito ético, com uma forma de vida.
Talvez se encontre aí a negação de toda e qualquer psicologia dita
foucaultiana e, ao mesmo tempo, toda a potência que uma
interrogação da psicologia pelas inquietações foucaultianas em
torno do sujeito e da verdade, do saber e do poder, podem produzir.
Foucault, leitor assíduo da tragédia
MÁRCIO ALVES DA FONSECA

A recepção do pensamento de Michel Foucault, trinta anos após a


morte do filósofo, continua bem viva. Ela não se encontra
consolidada e está longe de ser concluída, pois do mesmo modo que
seu pensamento se apresentava como um “pensamento em
construção”, também seus veículos – livros, cursos, entrevistas,
conferências, emissões radiofônicas, manuscritos – não constituem,
até hoje, um edifício acabado. De forma análoga ao pensamento que
se pretendia inquieto e em constante movimento relativamente a si
próprio, pode-se falar também em uma “obra” que não cessa de se
estabelecer e, por isso mesmo, modificar-se. A “biblioteca
Foucault” ainda não se encontra inteiramente catalogada,
preservando, de certo modo, a intenção de seu “autor” em constituir
um pensamento destinado ao deslocamento.
Desde os dois últimos volumes da História da sexualidade ,
publicados no mesmo ano da morte precoce de Foucault, são pelo
menos três vagas sucessivas de trabalhos que fazem agitar a
superfície aparentemente tranquila – porque é aparentemente
dominada por seus leitores – das publicações conhecidas até aquele
momento. A primeira delas foi o conjunto de Dits et écrits .
Publicados em 1994, os quatro volumes deram a conhecer uma
massa de trabalhos até então inéditos, composta por artigos,
conferências, prefácios, entrevistas, debates realizados por Foucault
durante toda a sua vida. A edição francesa destas centenas de ditos e
escritos foi feliz em não classificá-los em temáticas específicas.
Sem reparti-los segundo uma ordem atribuída posteriormente à sua
própria produção, são apresentados segundo o critério estritamente
cronológico, permitindo a seus leitores um vasculhar não orientado
preliminarmente e apto a acolher diferentes usos. É uma pena que a
edição brasileira destes trabalhos não tenha preservado este mesmo
critério.
A segunda vaga ainda faz-nos sentir as ondulações de sua chegada
lenta e progressiva. Ela se inicia em 1997, com Em defesa da
sociedade . Este foi o primeiro dos treze cursos que Foucault
proferiu no Collège de France a ser publicado. Compreendidos no
período de 1970 a 1984, os cursos apresentam a formulação dos
problemas e das abordagens que comporão a analítica do poder e a
analítica da ética que, anteriormente à divulgação destas aulas, eram
conhecidos a partir dos recortes precisos e bem localizados dados
pelos livros que se estendem de Vigiar e punir (1975) a O cuidado
de si (1984). A singularidade dos cursos, além de sua constituição a
partir da oralidade das aulas consiste, sobretudo, na apresentação
das hipóteses de uma pesquisa que se encontrava em plena
elaboração. A divulgação completa dos cursos do Collège de France
será em breve concluída. De todo conjunto, os últimos a serem
publicados são Subjectivité et vérité (curso de 1980-1981, publicado
em maio de 2014) e Théories et institutions pénales (curso de 1972,
a ser publicado em 2015).
A terceira vaga, ainda apenas anunciada, por certo não será menos
potente. Pouco se sabe a seu respeito, à exceção das informações
contidas no Dossier Foucault inédit , do número especial de
fevereiro de 2014 da revista Le magazine littéraire . Os artigos que
compõem este dossiê trazem somente algumas suposições acerca
das possibilidades de investigação que poderão ser abertas pela
imensa quantidade de arquivos inéditos de Foucault, recentemente
adquiridos pela BnF ( Bibliothèque nationale de France ). Trata-se
de mais de trinta e sete mil páginas manuscritas de textos
inacabados, cartas, notas de cursos e notas de leitura, incluindo-se o
conjunto de páginas que formam o projeto abandonado de “ La
chair et le corps ” e o manuscrito, praticamente concluído, do
quarto volume da História da sexualidade , “ Les aveux de la chair
”.
Desse modo, o movimento de composição e de recepção do
pensamento de Foucault continua ativo. Errante, como ele próprio
se pretendia. A partir deste movimento incessante, o conhecimento
que seus leitores logram constituir a seu respeito é marcadamente
provisório. Não são poucas as regiões deste pensamento que cada
uma das vagas acima referidas permitiu – e por certo ainda permitirá
– virem à tona.
Um exemplo desta afirmação refere-se ao nosso conhecimento
acerca do contato do pensamento de Foucault com a Antiguidade e,
de modo especial, com a tragédia. Enquanto esse conhecimento
permaneceu circunscrito aos livros, a incursão do filósofo no
pensamento antigo, realizada em O uso dos prazeres e O cuidado de
si , sugeria-se quase destoante de seus demais trabalhos. Não foi
incomum a surpresa de muitos dos leitores destes dois livros com a
ambiência que os revestia. A análise dos mecanismos de poder e dos
saberes objetivantes que, em conjunto, haviam permitido a Foucault
caracterizar a forma de constituição da subjetividade moderna
segundo o padrão da normalização dará lugar, nesses últimos
volumes da História da sexualidade , ao estudo de formas de
constituição moral do sujeito antigo, apoiadas no exercício da
liberdade e na adesão a um estilo a ser dado à própria existência. O
estranhamento quanto à suposta mudança de ambiência já será
consideravelmente superado com Dits et écrits , cujo quarto volume
é inteiramente atravessado pelas incursões de Foucault na cultura e
na filosofia antigas. Mas será principalmente por meio dos cursos do
Collège de France que o suposto estranhamento cederá lugar à
consciência de uma frequentação assídua e de uma proximidade
quase permanente de Foucault com a Antiguidade. Para além da
própria filosofia clássica e helenística, que serão o solo principal dos
três últimos cursos ( A hermenêutica do sujeito , O governo de si e
dos outros , A coragem da verdade ), particularmente o uso que
Foucault faz da tragédia grega balizará, em seus momentos inicial e
final, a longa trajetória de seu ensino no Collège de France.
A publicação recente da edição brasileira do primeiro curso do
Collège de France, ministrado entre dezembro de 1970 e março de
1971 ( Aulas sobre a vontade de saber ), permite-nos situar mais
precisamente este balizamento dos cursos pelo uso da tragédia.
Acerca do curso de 1971, que inicia a trajetória de Foucault na
renomada instituição, Daniel Defert esclarece, na “Situação do
curso”, uma especificidade importante de sua edição. Além das doze
aulas pronunciadas no Collège, a edição do curso reúne: a) uma
conferência sobre Nietzsche (“Aula sobre Nietzsche”), proferida em
Montreal em abril de 1971, cujo conteúdo se aproxima do conteúdo
da primeira das cinco conferências realizadas na PUC do Rio de
Janeiro em 1973 ( A verdade e as formas jurídicas ); b) uma
conferência (“O saber de Édipo”), proferida em Buffalo e
posteriormente em Cornell, respectivamente em março e em outubro
de 1972, e que pode ser considerada um desenvolvimento da última
aula do curso (aula de 17 de março), cujo conteúdo se aproximará
do conteúdo da segunda conferência de A verdade e as formas
jurídicas .
Nos arquivos de Foucault disponíveis encontram-se, ao todo, sete
versões deste mesmo conteúdo presente na aula de 17 de março do
curso de 1971 e na conferência “O saber de Édipo” (apresentada,
com modificações mais ou menos relevantes, em Buffalo, em
Cornell e no Rio). São versões do mesmo uso que Foucault faz da
tragédia de Édipo no período que corresponde aos primeiros anos de
ensino no Collège de France, uso que dará o contorno essencial à
problematização por ele empreendida naquele momento.
Nas pesquisas das quais haviam resultado os primeiros livros –
História da loucura na Idade clássica , O nascimento da clínica e
As palavras e as coisas – estavam em questão as condições de
emergência histórica e as transformações de práticas discursivas,
caracterizadas pela demarcação de diferentes campos de objetos de
saber e que tomavam corpo em diversas instituições, em esquemas
de comportamento também diversos e em formas de transmissão e
de difusão variadas presentes numa determinada época. Para
Foucault, os princípios de exclusão e de escolha que determinaram a
emergência e as transformações das práticas discursivas por ele
estudadas não remetiam a um sujeito de conhecimento
(transcendental ou histórico) que as fundaria em um nível
originário, mas antes a uma “vontade de saber anônima e
polimorfa”. Se os estudos empíricos sobre a constituição da loucura
como doença mental pela psicopatologia, sobre a medicina clínica e
sobre as ciências humanas o haviam permitido isolar algumas destas
práticas discursivas e de suas transformações, caberia então fornecer
uma justificação teórica a esta vontade de saber instalada no berço
da cultura ocidental e da qual ainda seríamos herdeiros. Segundo
Foucault, a história da filosofia oferece dois grandes modelos
teóricos desta vontade de saber. Um deles estaria associado ao
pensamento de Aristóteles e o outro associado a Nietzsche. A
discussão destes dois marcos teóricos será o objeto da maior parte
das aulas do curso Aulas sobre a vontade de saber . De um lado, o
“desejo de saber”, compreendido na Metafísica de Aristóteles como
universal e como natural, fundar-se-ia sobre um pertencimento
primeiro entre conhecimento, prazer e verdade. Este pertencimento,
já manifesto na sensação, assegurará a passagem contínua desta
forma primeira de conhecimento (sensação) para a forma terminal
de conhecimento, consistente na contemplação teórica. De outro
lado, está o modelo de Nietzsche, no qual o conhecimento é uma
invenção que resulta de um jogo de instintos, impulsos, desejos e
vontade de apropriação. Se ele se apresenta como conhecimento da
verdade é porque a produz pelo jogo de uma falsificação primeira
que estabelece a própria distinção entre o verdadeiro e o falso. Para
Foucault, o modelo nietzscheano de um “conhecimento interessado”
está o mais distante possível dos postulados da metafísica clássica.
Ora, as leituras que Foucault faz da tragédia de Édipo inserem-se
neste ponto. O filósofo encontrará em Édipo um dos recursos mais
profícuos para colocar em questão, segundo a perspectiva do
chamado modelo nietzscheano, a vontade de saber que domina a
nossa cultura. Expressão privilegiada da constituição da verdade
judiciária no sistema grego clássico, Édipo revelaria um modo de
afirmação da verdade que seria determinante na história do saber
ocidental. A justiça que tem lugar na tragédia, a partir da forma
jurídica do inquérito, estará ligada a “um saber em que a verdade era
posta como visível, constatável, mensurável, obedecendo a leis
semelhantes às que regem a ordem do mundo, e cuja descoberta
detém consigo um valor purificador”. Segundo Foucault, a história
de Édipo é um símbolo de uma forma dada pela Grécia clássica à
verdade, em suas relações com o poder e com a pureza-impureza,
segundo a qual saber e poder encontram-se separados e não se
pertencem. O uso feito por Foucault da tragédia de Édipo lhe
permitirá denunciar esse mito. Em Édipo Rei estaria em jogo, antes
de tudo, uma luta entre formas de poder-saber. Este será o ponto de
partida, e também um dos eixos estruturantes, da genealogia do
poder realizada pelo filósofo
O uso da tragédia balizará também o momento final da trajetória
de Foucault no Collège de France, momento em que realiza uma
analítica da ética a partir do estudo das formas de constituição do
sujeito moral na Antiguidade. Nesse contexto, não será Sófocles,
mas será sobretudo Eurípedes o objeto de uma leitura minuciosa. É
no âmbito da problematização histórica do preceito filosófico-moral
do “cuidado de si” nas culturas clássica e helenística que terá lugar,
nos dois últimos cursos do Collège, o estudo da parrêsia antiga
(dizer-verdadeiro ou coragem da verdade). Em O governo de si e
dos outros o foco principal será a parrêsia política, que
compreenderá, de um lado, a palavra verdadeira proferida pelo
cidadão perante a assembleia (parrêsia democrática) e, de outro, a
palavra verdadeira proferida pelo filósofo perante o governante a
fim de incitá-lo a bem governar a si mesmo e a cidade (parrêsia
autocrática). A principal referência para o estudo da parrêsia
democrática será a leitura da tragédia Íon de Eurípides, na qual,
segundo Foucault, encontraríamos consignado o momento da
fundação mítica da parrêsia democrática em Atenas. Apoiando-se
em uma longa e detalhada análise da tragédia, Foucault discutirá
então o que entende ser a circularidade essencial existente entre a
democracia antiga, o dizer-verdadeiro e o jogo político na cidade
grega. Em seguida, outras tragédias de Eurípedes, em especial
Orestes , serão retomadas para indicar as ambiguidades da
implicação entre a democracia antiga e a palavra verdadeira
proferida em seu seio.
A publicação dos cursos do Collège de France permite-nos, assim,
compreender mais precisamente os usos da tragédia para a
genealogia do poder e para a genealogia da ética empreendidas por
Foucault. Ao fazê-lo, permite-nos redimensionar o significado do
contato do pensamento de Foucault com a Antiguidade para
construção de uma ontologia do presente. Desse modo, o constante
movimento de constituição e de recepção de seus trabalhos continua
a favorecer os deslocamentos de um pensamento que se pretende
incompleto e em contínua elaboração.
Foucault no Brasil
CAIO LIUDVIK

“Provavelmente terá sido apenas no Brasil e na Tunísia que eu


encontrei, entre os estudantes, tanta seriedade e tanta paixão,
paixões tão sérias e, o que me encanta mais do que tudo, a avidez
absoluta de saber”, disse Michel Foucault sobre um dos aspectos de
sua rica e tumultuada experiência de viajante, professor e intelectual
engajado em plena ditadura militar brasileira, cuja truculência não
conseguia interditar a “contraconduta” (conceito cunhado mais tarde
pelo filósofo) que, naquela época, era o próprio amor ao saber em
plena idade das trevas para o país, de ignorância, repressão e
extermínio como políticas de Estado.
Michel Foucault esteve no Brasil por cinco vezes – 1965, 1973,
1974, 1975 e 1976 –, ao menos “oficialmente”: há quem diga que
fez outras visitas, “incógnito”. As visitas a São Paulo foram em
1965 e 1975.
Seu primeiro desembarque entre nós foi em outubro de 1965, com
destino à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo (FFCL-USP). A USP não lhe deveria ser inteiramente
desconhecida, visto que, desde a criação (1934), fora alimentada por
“missões francesas” de professores, entre os quais Claude Lévi-
Strauss, Roger Bastide e Fernand Braudel. A Faculdade de Filosofia
ainda ficava em um prédio da rua Maria Antônia, antes de ser
transferida para a atual Cidade Universitária. “A vinda dele”,
explica Victor Knoll, professor de Filosofia da USP, “foi promovida
por Gérard Lebrun, que fora aluno de Foucault e depois passou a
manter uma relação bastante próxima com ele. Lebrun já estava
entre nós – no Departamento de Filosofia da USP - desde 1960,
graças ao programa que o governo francês mantinha com o
Departamento de Filosofia desde a fundação da Faculdade de
Filosofia em 1934.
Na “Cronologia” que precede Dits et écrits – reunião, em quatro
volumes, de entrevistas, cursos e outras manifestações de Foucault,
diferentes de livros –, Daniel Defert (companheiro de Foucault por
muitos anos e organizador da coletânea) esclarece que, “convidado à
faculdade de filosofia de São Paulo pelo filósofo Gérard Lebrun (...)
ele [Foucault] se junta aos filósofos Giannotti, Ruy Fausto, ao
crítico Roberto Schwartz, à poetisa Lupe Cotrim Garaude e à
psicanalista Betty Milan: ele lhes dá as primícias de alguns capítulos
de As palavras e as coisas . A turnê de conferências prevista é
interrompida pelos golpes de força que, de uma semana para outra,
fortalecem a posse dos marechais e que, em breve, irão caçar seus
amigos de suas funções ou exilá-los”. Cerca de um ano e meio antes
da vinda do filósofo, ocorrera o golpe militar de 1964. E outubro de
1965 é o momento da decretação, por Castello Branco, do Ato
Institucional número 2, que dissolve os partidos políticos e
estabelece eleições indiretas para a sucessão presidencial.
Michel Foucault, que aporta no Brasil dos militares para discutir o
que apelida seu “livro sobre os signos”, é então visto por vários
intelectuais como um “sublime modernista” que espera da literatura
a ruptura com a ordem do presente – o que poderia aproximá-lo dos
debates em circulação na FFCL em meados dos anos 1960. O
célebre Seminário Marx reunira, entre 1958 e os primeiros anos da
década de 1960, um grupo significativo de professores e estudantes
uspianos.
Uma das poucas referências de que dispomos a respeito das
conferências na FFCL-USP em 1965 é o livro de Paulo Eduardo
Arantes, Um departamento francês de ultramar . O próprio título do
livro, vale frisar, remete a Foucault, como se observa em entrevista
concedida à Folha de São Paulo :
“Folha – Segundo consta, Um departamento francês de ultramar é
uma citação de Michel Foucault acerca dos seus colegas brasileiros
da rua Maria Antônia – mas não havia aí uma óbvia ironia?
Arantes – Trata-se de fato de uma tirada atribuída a Foucault
quando passou por aqui em 65 e fomos apresentados à Ideologia
Francesa em pessoa, para surpresa nossa, filha natural do dia a dia
das certezas de empréstimo de que sempre vivêramos. Todo mundo
costumava citar com legítima satisfação uma observação de
Goldschmidt, segundo a qual já éramos de fato um departamento de
Filosofia tão bom quanto qualquer outro similar francês de
província; ainda estávamos esperando a promoção para Paris
quando Foucault completou a deixa, por certo elogiando, mas com
leve intenção escarninha, pois Departamento de Ultramar também
poderia ser alguma ilha do Caribe, e nós sabíamos muito bem (mas
ele não) que por lá andava a existencialista Chiquita Bacana”.
O hoje professor de filosofia da USP, então aluno da FFLC,
Renato Janine Ribeiro não crê que houvesse intenção pejorativa na
expressão de Foucault: “Não faria parte da delicadeza, da maneira
como ele foi recebido”; tratar-se-ia antes de um reconhecimento do
nível intelectual de seus interlocutores: por exemplo, “ele se
impressionou muito com o Antonio Candido”, diz Janine.
Para Vladimir Safatle (USP), Foucault “queria dizer que era um
departamento que seguia a tradição da historiografia universitária
francesa, e seguia de uma maneira bastante correta, mas que
também não tinha grande voo próprio, era muito dependente dessa
cartografia de pensamento marcada pela missão universitária
francesa, que tinha muitas monografias, dissertações sobre autores
da história da filosofia e coisas dessa natureza. Como ele era um
filósofo muito a parte em relação ao modo como se fazia filosofia
nas universidade francesas da época – porque você percebe que ele
é alguém que tem pouquíssimos textos de historiador da filosofia,
não tem nenhuma monografia sobre um autor ou nada parecido –,
como ele tava totalmente à parte, uma colocação dessa natureza era
muito mais crítica” do que propriamente elogiosa, completa o
professor Safatle.
Colega de Janine no departamento de Filosofia da USP, o
professor José Arthur Giannotti resume sua impressão sobre
Foucault nos seguintes termos: “Era encantador, com um enorme
senso do espetáculo. Ele e [Gérard] Lebrun formavam uma dupla
espetacular, ambos jogaram com suas vidas além da prudência”.
Foucault voltará à França ainda em outubro de 1965. Somente
regressará ao Brasil, já então inegavelmente famoso, oito anos após
a primeira visita. Oferece em 1973 um ciclo de palestras no Rio de
Janeiro, por iniciativa de Affonso Romano de Sant’Anna, diretor do
Departamento de Letras e Artes da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-RJ), publicadas no livro A Verdade e as
Formas Jurídicas. Em 1974 , o convite parte do Instituto de
Medicina Social da atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro
– UERJ e, em outubro de 1975, Foucault retorna à Universidade de
São Paulo.
Pouco antes desta nova visita, a mais marcante, Foucault estivera
em Madri, com Yves Montand, Régis Debray, Costa-Gravas,
Jean Lacouture, o padre Ladouze e Claude Mauriac, para protestar
contra a condenação à morte, por um tribunal de exceção, de onze
militantes anti-franquistas. Seriam as últimas execuções praticadas
pelo governo fascista do General Franco, que morre em novembro
daquele ano. Mas aqui o ciclo autoritário estava longe do fim, como
atestado pelo episódio emblemático do assassinato do jornalista
Vladimir Herzog nos porões da ditadura, naquele mês de outubro
em que Foucault dava seu curso na USP. À revista brasileira Versus
, em entrevista naquele mesmo ano, ele diz:
“O que tentei explicar em minha aula na USP foi que, desde o fim
do nazismo e do stalinismo, o problema do funcionamento do poder
no interior das sociedades capitalistas e socialistas está colocado. E
quando menciono funcionamento do poder não me refiro apenas ao
problema do aparelho do Estado, da classe dirigente, das castas
hegemônicas... Mas a toda essa série de poderes cada vez mais
tênues, microscópicos, que são exercidos sobre os indivíduos em
seus comportamentos cotidianos e até em seus próprios corpos.
Vivemos imersos em uma teia política de poder – e é esse poder que
está em questão. Acho que desde o fim do nazismo e do stalinismo,
todo mundo se coloca esse problema. É o grande problema
contemporâneo. (...) Certamente o problema dos poderes, e do
funcionamento dos poderes no interior da sociedade, é o problema
da nossa geração”.
No dia 27, após o funeral de “Vlado”, como o jornalista era
conhecido, irrompe uma greve na universidade; Foucault suspende
seu curso de imediato. Segundo Heliana Conde, professora do
departamento de psicologia social da UERJ (Universidade Estadual
do Rio de Janeiro), Foucault “lê um texto sobre o assassinato do
jornalista, logo transformado em panfleto pelos estudantes”. E será
um dos oito mil participantes das exéquias de Herzog, na histórica
cerimônia conduzida pelo então arcebispo de São Paulo, Dom Paulo
Evaristo Arns, em 31 de outubro. O filósofo diria mais tarde a esse
respeito: “(...) a comunidade judaica não ousou fazer exéquias
solenes. E foi o arcebispo de São Paulo que promoveu, na catedral
metropolitana, uma cerimônia, aliás ecumênica, em memória do
jornalista: o evento atraiu milhares de pessoas à igreja, à praça etc.
O cardeal, de vestes vermelhas, presidia a cerimônia: caminhou
diante dos fiéis e os saudou exclamando ‘ Shalom , shalom ’. A
praça estava cercada por policiais armados e na igreja havia
diversos policiais à paisana. A polícia recuou: não podia fazer nada
contra isso”.
À época, Foucault convocou a imprensa internacional para
distribuir uma declaração na qual dizia que não ensinava em países
onde jornalistas eram torturados e mortos nas prisões. Porém acedeu
em proferir uma palestra, a convite dos estudantes vinculados ao
Centro acadêmico de ciências humanas (CACH) da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). O filósofo discorreu sobre a
questão da sexualidade e da repressão sexual e polemizou com
Engels, para irritação dos marxistas.
Como aponta a professora de História na Unicamp Margareth
Rago, “a imprensa tentou explorar um conflito latente entre
Foucault e os intelectuais marxistas nesse momento, em São Paulo.
Em uma entrevista ao Jornal da Tarde , porém, o filósofo, em uma
atitude de grande respeito à intelectualidade brasileira, foi taxativo:
‘Eu não critico quem não tem direito à defesa’, disse, referindo-se
aos intelectuais marxistas que não teriam condições de responder às
suas críticas em virtude da repressão política instaurada no país”.
Parece inegável que houve certo desencontro entre o que Foucault
tinha a contar e o que sua plateia esperava ouvir. Uma distância que
talvez fique mais flagrante se comparada com o entusiasmo
imediato por Foucault da parte dos estudantes e intelectuais no Rio
de Janeiro, cidade onde ele também esteve naquele período, que lhe
agradou sobremaneira pela beleza, informalidade e calor humano, e
onde foi acompanhado de perto por nomes como Roberto Machado,
professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e um
dos principais divulgadores de Foucault no país.
A respeito desta desigualdade de recepções, Vladimir Safatle
observa que o conflito é sensível em especial junto ao público
uspiano, mas que “se você pegar a PUC de São Paulo, ela tem uma
influência foucaultiana muito forte. Mas isso [a relativa lentidão de
recepção às idéias do pensador] diz respeito não só ao Foucault, mas
diz respeito a recepção do pensamento francês contemporâneo no
Brasil principalmente nos anos 70 e 80. O pensamento
contemporâneo francês (Deleuze, Foucault, Derrida) foi recebido
principalmente em departamentos não só de filosofia. Alguns dos
grandes primeiros leitores de Foucault são ligados à psicologia,
Jurandir Freire Costa, por exemplo. Então isso acontece com todos
eles, é um pouco engraçado porque isso repete um pouco o modelo
que aconteceu nos EUA, em que eles entraram via estudos literários,
principalmente. No Brasil, os departamentos de filosofia
demoraram, salvo raras exceções, demoraram pra assimilar é bem
provável que uma das grandes responsabilidades por esse processo
tenha sido de fato o Departamento de filosofia da USP. Por quê?
Porque a gente fazia filosofia de uma maneira muito diferente do
que eles estavam fazendo naquele momento, mesmo a pauta das
questões eram outras, eram totalmente diferentes. Qual era a pauta
de Foucault naquele momento? Eram estruturas institucionais e a
sexualidade. Nós do Departamento de filosofia da USP, a gente
estava trabalhando outro tipo de problema, primeiro a história
tradicional da filosofia e segundo a tradição marxista mas, diga-se
de passagem, uma tradição marxista muito diferente da tradição
marxista que era hegemônica na França, porque era uma tradição
marxista hegeliana, que não existia mais na França, então a questão
era muito simples, nós tínhamos um conjuntos de questões e
problemas que animavam o Departamento de filosofia da USP que
fazia com que então fosse menos aberto a esse tipo de interlocução
com esses autores. De fato demorou. Tem curso sobre Derrida que
aconteceu há três anos atrás no departamento. Pela primeira vez.
Então tem todas essas caracterizações. Durante um bom tempo, de
fato, eles foram vistos como pensadores pós-modernos, ou seja, que
era uma maneira muito equivocada de você colocar em uma espécie
de vala comum sem analisá-los em sua densidade filosófica”.
Quanto à passagem de Foucault pela Unicamp, Margareth Rago
nos oferece o relato de seu colega de universidade, o professor de
Filosofia Luiz Orlandi, que realizou a tradução simultânea. Ele
lembra o ambiente animado, das pessoas sentadas no chão de
cimento em volta de Foucault que sentava, por sua vez, sobre uma
mesinha na quadra de futebol de salão do CACH. “Foucault dizia
muitas coisas sem que seu rosto perdesse o ar de exuberante alegria
e o humor de sua cortante inteligência. Não me era fácil
acompanhar sua fluência discursiva, de modo que eu me sentia livre
para incluir algumas improvisações, mas sempre no sentido buscado
pelas suas frases. Em um certo momento, por exemplo, quando ele
fez a crítica das sínteses totalizadoras, pude dizer a ele que minha
tradução buscou especificar a crítica das sínteses reacionárias. Ele
concordou, sorrindo e dizendo: ‘é isso mesmo, somos contra as
sínteses reacionárias, mas sem que entrássemos em mais detalhes’.
Em um certo momento, uma das alunas, Sílvia do Patteo, me
substitui na árdua tarefa de traduzir a variação discursiva desse
inesquecível pensador. Esse encontro foi uma delícia”.
ensaio

A taça do mundo é nossa!


CARLOS EDUARDO SOARES GONÇALVES

Eu vi em videotapes e li em livros, sôfrego por apreender o passado,


os acontecimentos daquele início da década de 70. Conquistávamos
o tri, no México, com lindos dribles e golaços e, simultaneamente, a
economia brasileira crescia a passos largos. Sim, pois apesar dos
pesares, o plano econômico dos primeiros anos do governo militar
tinha qualidade, qualidade que se perdeu depois por quase duas
décadas, sendo restaurada apenas, ironia das ironias, no ano do tetra
campeonato, em 1994, com a morte da hiperinflação. Como
anunciava orgulhoso o jingle do fim dos anos 1950, ninguém podia
com o Brasil de Pelé, Gerson e Jairzinho; com o Brasil do
crescimento acelerado da renda, que investia e modernizava suas
instituições econômicas.
Mas a verdade é que coexistiam então dois Brasis. Pois o gigante
achava-se oco de espírito democrático, emudecido. E na economia o
país que se tornava robusto em capital físico, estradas e grandes
obras, seguia incapaz de dar o passo seguinte e mais essencial: a
arrancada do capital humano, que nunca desabrochou. E o Leviatã,
importante inicialmente para propulsar o desenvolvimento
econômico, tornou-se glutão e lento, e ineficiente. Olhou com
desprezo para o homem comum.
A ênfase em grandes projetos e aspirações, típicos daqueles anos,
se deu e se dá sempre à custa do homem comum, das suas
liberdades e possibilidades. Pois quem financia a utopia de uma
transamazônica e congêneres, senão o homem comum com seus
impostos, o mesmo indivíduo com parco acesso à educação de
qualidade, a um sistema de esgoto decente, a um hospital digno, à
segurança básica e, no passado, à própria palavra. O Estado que
aspira a ser grandioso – e fui até 1970 resgatá-lo porque vejo sinais
de uma tentativa de reedição no presente – invariavelmente esquece-
se do homem comum, abandona-o à função de simples figurante,
sacrificável a um “projeto maior”, logo ele quem, como nos alerta
Vargas Llosa, é o verdadeiro e único herói de qualquer sociedade.
Tantos anos depois, lutamos agora é pelo Hexa, o dobro, dessa vez
em solo materno. A Copa chega num momento de crescimento xoxo
e inflação resiliente; e a torcida, esse conjunto de homens comuns
que vaiou nas ruas os estádios subsidiados com dinheiro público um
ano antes da Copa de 2014, parece separar bem melhor a paixão
pelo futebol de um ufanismo escondedor de mazelas. Isso de fato é
o que me alegra: termos chegado à maturidade de nos
questionarmos, aqui na terra do futebol, se faz mesmo sentido
sediarmos um evento como esse. Sinal claro de que progredimos
como nação e de que os anos de democracia vão, ainda que
lentamente, consolidando no homem comum a ideia de que é ele,
efetivamente, quem tem a escolha nas mãos.
Volto alguns anos atrás para resgatar a imagem de Pelé e Lula
abraçados, chorando, comovidos. Um choro genuíno pelo Brasil,
para eles engrandecido pela escolha como sede do maior evento
esportivo do planeta. Pensei naquele instante: e as mazelas? Quis
que chorassem por outras coisas, quis que pensassem no homem
comum. Mas os vi sinceros, sem cálculos, e aceitei, discordando, o
choro. Aceitei a Copa aqui nos tristes trópicos.
O questionamento que me cai no colo com frequência
recentemente é esse: faz sentido sediarmos uma Copa tendo tantos
outros problemas seríssimos para resolver? Respondo-o assim:
perguntem ao homem comum. Por mim, não, não faz. Mas esse sou
eu, o cidadão. O economista é mais austero e liberal, deixa a escolha
final à sociedade; sua função é de fato singela: apresentar-lhe um
balanço do que se ganha e do que se perde, discutir prioridades,
chamar a atenção para o fato de que mais gastos aqui significa
menos gastos ali ou maiores impostos acolá. E a intervenção
intelectual se circunscreve a isso, apenas porque a felicidade do
homem comum, que é o que importa, está para além desse cálculo.
Dito de outro modo, se a sociedade bem avisada estiver disposta a
embarcar nessa, sua escolha é soberana.
Em dito isso, minha impressão é que um número crescente de
pessoas, mas que ainda não constitui uma maioria, vai percebendo a
existência do que se chama, em economia, de restrição
orçamentária. Não é um conceito muito romântico, reconheço, mas
ainda assim sumamente importante. O que significa o governo
subsidiar a construção de um caro estádio de futebol? Significa que
ele retira recursos do homem comum para esse fim. Não há
mágicas, infelizmente, nem multiplicações de pães: os recursos que
o BNDES usa para emprestar barato aos empresários da construção
vêm do bolso do homem comum, via FAT e via impostos. Ou
quando o governo constrói um estádio ele mesmo, pois os antigos
não satisfazem a FIFA, o faz redirecionando montantes que iriam
para algum outro lugar (escolas? hospitais? impostos menores?)
num cenário contrafactual sem Copa do Mundo.
Não, não há como escapar dessa realidade, da necessidade de se
elegerem prioridades, pelo simples fato de os recursos que uma
sociedade tem a sua disposição serem escassos. O dinheiro do
governo é o seu dinheiro, leitor; ele não brota do chão, e tem outros
usos potenciais.
Nas ruas, em 2013, vi muita gente dizendo que não queria estádio
novo e sim outros bens públicos. Pareciam encarnar a lógica de uma
restrição orçamentária com recursos finitos. O homem comum deu
sinais de que as suas prioridades eram outras, mesmo amando o
futebol.
E a tese de que a Copa ajuda a economia? Se ela ajudar, ela ajuda
o homem comum, certo?
Existe outra coisa importante em economia que se chama
alocação de recursos. Se pessoas e capital – os tais recursos
produtivos – são direcionados para a produção de certas coisas,
outras deixam de ser produzidas automaticamente. Se não
estivéssemos reformando e erguendo estádios e acomodações para
atletas, capital e trabalho na economia estariam se ocupando de
produzir outros itens. Em situações onde os recursos produtivos da
economia se encontram ociosos, como numa grande recessão, por
exemplo, o governo mandar brasa em obras públicas significa mais
crescimento e mais empregos. Mas já estamos em pleno emprego, e
temos inflação elevada!
O fato de vermos os estádios sendo construídos, de presenciarmos
a mobilização de capital e de trabalho em prol da realização da
Copa, mas de obviamente não termos como ver o que não está
acontecendo – justamente por que esses recursos estão presos aí
nesses imensos empreendimentos – enviesa nossa percepção sobre
os benefícios econômicos do evento.
E não é verdade que a Copa poderia ser uma bela oportunidade
para o governo realizar importantes investimentos de difícil
concretização num cenário mais normal? O raciocínio é intuitivo:
sob o escrutínio do mundo, cria-se apoio e momentum para gastos
importantes em infraestrutura, por exemplo, investimentos
procrastinados desde sempre por um sistema político moroso e
interesseiro, vencido finalmente pela premência de melhorar o
Brasil para o inglês de fato o ver.
É uma boa tese, não fosse a evidência contrária de que os
investimentos que andam sendo realizados não deixarão grandes
frutos para o homem comum no pós-Copa. São demasiadamente
específicos ao evento e, portanto, pouco beneficiam a economia.
Mandaram-nos abandonar a ilusão de melhoras na mobilidade
urbana e vão é meter-nos em feriados para facilitar a circulação. Vá
até o Rio de Janeiro ver o que ficou de ganho depois dos Jogos Pan-
Americanos. Ou não, não vá só por isso. Eu digo a você: uma pilha
de dívidas. E conjuntos decadentes. E só.
Essa é uma realidade: os investimentos em infraestrutura esportiva
deixam poucos legados para a produtividade da economia no futuro.
Estradas, metrôs, linhas férreas, portos, segurança, etc. ou não
melhoram, ou a melhora é passageira, como na questão da
segurança no Rio de Janeiro por conta da Eco-92. Saíram os
gringos, saiu o exército, a violência voltou.
Sendo assim tão idiossincráticos, esses gastos se assemelham mais
ao consumo do que ao investimento propriamente dito; servem a um
propósito de apenas curto prazo.
E o turismo, se beneficia? Provavelmente, mas menos do que se
pensa usualmente. Você verá os turistas esportivos chegando em
grandes quantidades e pensará nos ganhos que o turismo brasileiro
estará a auferir, mas o que você não verá é que quem planejava uma
viagem de turismo não esportivo ou de negócio para o Brasil
deixará de vir para fugir dos preços altos de hotéis e restaurantes
durante a Copa. Sim, muita gente vem por conta da Copa, mas
muita gente também deixa de vir. E assim outros negócios deixam
de acontecer, são adiados. É o outro lado da história, que ninguém
conta porque ninguém vê. Viés observacional.
Finalmente, comenta-se o efeito holofote, evento-vitrine. Mais
visitantes e mais negócios se darão no pós-Copa, segue o
argumento, pois a Copa servirá para revelar o Brasil para o mundo.
Difícil de acreditar, por dois motivos. O primeiro é que o Brasil,
com seus problemas e potencialidades, já é bem conhecido mundo
afora. Segundo, atenção para o que o holofote pode revelar para o
mundo. Tenho visto no noticiário gente com dedo em riste e
sobrolho franzido afirmando que na Copa as pessoas vão saber o
que é realmente o Brasil. Pode sair pela culatra.
Apesar disso tudo, apesar de a Copa ocorrer esse ano no Brasil,
vou de novo vestir a camisa verde-amarela, preencher o bolão e
torcer pela seleção, esperando poder, ao fim, entoar o coro: “com os
brasileiros, não há quem possa”.
perfil Paulo André
Bem posicionado
GUILHERME GOMES PINTO

“É uma experiência bem positiva, sobretudo pela possibilidade de


conhecer um novo país como a China, seus costumes e tradições. É
a chance de aprender sobre a milenar cultura oriental.”
Quem proferiu a frase acima?
a) um intelectual prestes a lançar um livro no Oriente
b) um sociólogo
c) um diplomata de mudança para Pequim
d) um jogador brasileiro de futebol
Sim, por mais improvável que possa parecer, a resposta correta é a
letra D. A frase acima saiu da boca de Paulo André Cren Benini, no
dia 12 de fevereiro deste ano, ao comentar sua transferência do
Corinthians, um dos clubes mais populares do Brasil, para o
Shanghai Shenhua, na longínqua Pequim.
O zagueiro Paulo André é a prova de que nem todo jogador
brasileiro de futebol é alienado, vazio. Antenado e engajado, ele não
se encaixa no perfil dos boleiros brazucas, adeptos do binômio
futilidade-ostentação e embalados por um estilo musical bem
mequetrefe. Paulo André não aparece em programas de TV de boné
virado para trás, corte de cabelo moicano, falando de suas aventuras
extracampo com alguma subcelebridade ou panicat da vida.
O zagueiro é um sujeito diferenciado. Gosta de ópera e prefere
usar a cabeça para outras coisas além de simplesmente cabecear
uma bola. Foi usando a cabeça que ele, ainda garoto, decidiu deixar
para trás o conforto da casa dos pais para arriscar a vida no difícil
mundo da bola.
“Ao sair de casa aos 14 anos de idade para tentar a sorte no
futebol, eu sabia que era um caminho sem volta”, lembra ele.
Naquele dia, Paulo André começava uma jornada igual à de
milhares de garotos brasileiros: tentar dar certo no competitivo,
complexo, lamacento e injusto mundo do futebol. É um gigantesco
funil. A maioria fica pelo caminho. Não basta ser craque. Não basta
ter talento. O trajeto é cheio de meandros e muitas vezes um simples
detalhe separa o tudo do nada, a glória do fracasso, o cara que vai
ser campeão do mundo e milionário daquele que ficou pelo
caminho. Ele entende bem desse assunto.
“Lembro do meu tempo de amador, dos sonhos, desilusões e
dificuldades que encontrei até chegar ao profissional. O número de
jovens buscando o futebol é alucinante. É evidente que não haverá
dinheiro para estruturar todos os clubes e fazer funcionar a máquina
de produção e revelação de atletas corretamente. No modelo e na
quantidade atual, é lógico que a maioria fracassará e os resultados
serão devastadores para aqueles que depositaram toda a esperança
no esporte. O sonho e a ilusão que o futebol causa continuam
fazendo com que esqueçam a importância da educação e de outras
atividades que poderiam preparar esses meninos em outras áreas
caso o futebol não dê certo”, diz.
Voltemos então à jornada do nosso personagem. Em 1998, ele
desembarcou em São Paulo para lutar por um lugar ao sol nas
categorias de base do Tricolor paulista. Ficou ali até 2001. Tentou a
sorte no Centro Sportivo Alagoano e no Águas de Lindóia. Mas foi
no Guarani, de Campinas, sua cidade natal, onde se profissionalizou
em 2004. Tinha então 20 anos. No ano seguinte, transferiu-se para o
Atlético-PR, de Curitiba, e despontou. Rapidamente tornou-se
titular e em seguida capitão da equipe. Sua busca por conhecimento
logo chamou a atenção.
“Certo dia, o ex-presidente do Atlético-PR, Mario Celso Petraglia,
em uma das viagens do time, me viu estudando inglês na poltrona
do avião. Ao descer, ele perguntou o que eu estava fazendo. Disse
que eu já me virava bem no inglês e que queria aprender outra
língua. Ele se propôs a pagar um curso de italiano para mim, e eu,
sem pestanejar, aceitei na hora”.
Com boas atuações em campo e um passaporte italiano na mão
que facilitava sua inscrição como jogador comunitário na Europa, a
transferência para o Velho Continente era uma realidade. E ela se
concretizou em 2006, quando Paulo André mudou-se para a França,
onde foi jogar pelo Le Mans .
Da troca radical de vida e país restaram algumas dúvidas da opção
escolhida e uma lição aprendida com o jogador Grafite, ex-São
Paulo e Wolfsburg.
No meio da negociação com o Le Mans , cada pessoa envolvida
puxava para um lado. O Atlético-PR queria lucrar com a venda do
jogador, já o empresário queria outro destino, pois a comissão era
maior. No meio de tudo isso Paulo André estava indeciso. Que
caminho tomar? Foi quando Grafite, então jogando no Le Mans ,
opinou, minutos antes de o zagueiro assinar seu contrato: “Lembre-
se que daqui a pouco todos esses caras vão pegar o avião e voltar
para o Brasil. E quem vai ter de aguentar o frio, a saudade, e todas
as outras dificuldades será você. Portanto, só fique se valer a pena
para você”.
Paulo André escutou o conselho de Grafite, consultou seu coração
e decidiu sentar praça em solo francês. Felizmente – ou infelizmente
–, o menor dos problemas foi o frio. Pouco tempo depois, o zagueiro
sofreu uma séria lesão e teve de ficar longo tempo sem jogar. Isso
atrapalhou seus planos de triunfar na Europa. Chegou 2009 e uma
boa oportunidade de retornar ao Brasil, emprestado para o
Corinthians. Ele voltou.
Foi quando sua vida deu uma guinada. Logo no ano seguinte, teve
seus direitos federativos comprados pelo clube paulista. Em 2011,
conquistou o Brasileirão e foi eleito o melhor zagueiro do
campeonato pela revista Placar . Seu contrato foi renovado. No ano
seguinte, a glória suprema. Ao lado de seus companheiros,
conquistou a tão sonhada Libertadores para o Corinthians – triunfo
inédito na história do clube. Como cereja em cima do chantili, o
Timão ainda ganhou o Mundial de clubes superando o poderoso
Chelsea, da Inglaterra, na finalíssima no Japão.
Jogador, vencedor, ídolo, inteligente, bem-sucedido. Apesar de
tudo isso, engana-se quem pensa que a vida de Paulo André é um
caminho de rosas. Longe disso.
“Paulo André é um cara que se coloca melhor fora de campo do
que dentro da área. Fruto do trabalho, do talento, da perseverança,
da educação e da coragem. Mas sofre o preconceito dos jornalistas
que acham que um atleta não sabe pensar, escrever e falar tão bem.
Sofre ainda mais do torcedor que debita falhas em campo às
atividades extracampo. E ainda mais dos atletas, que são tão
conservadores quanto os dirigentes”, analisa o brilhante jornalista
Mauro Beting.
E por conta desses dirigentes conservadores, incompetentes e em
muitos casos inescrupulosos, Paulo André levantou em 2013 uma
bandeira. Ao lado de jogadores lúcidos como Rogério Ceni (São
Paulo), Fernando Prass (Palmeiras) e Alex (Coritiba), entre outros,
decidiu criar o Bom Senso FC, movimento que luta por melhorias
para o futebol brasileiro. O slogan do movimento sintetiza a causa.
“Bom Senso FC, por um futebol melhor para quem joga, para quem
torce, para quem transmite, para quem patrocina, para quem apita”.
O Bom Senso FC começou por conta da discussão sobre o
calendário do futebol brasileiro e tornou-se o primeiro movimento
na história em que manifestações dos jogadores são levadas sem
intermediários para os mandatários da bola.
Com mais de trezentas assinaturas entre jogadores dos principais
clubes, o movimento pontuou temas básicos para serem discutidos
com a CBF – Confederação Brasileira de Futebol: calendário, férias
dos atletas, período adequado de pré-temporada, fair-play financeiro
e participação no conselho técnico das entidades que regem o
futebol. E coroou isso com manifestações pontuais e históricas em
algumas partidas do Brasileirão.
“A falta de visão, de protecionismo, de estímulos para a
manutenção de talentos e de desenvolvimento do estilo brasileiro de
se jogar futebol se revela hoje, duas décadas depois, um grave
problema. Nos esquecemos de investir em planejamento,
estruturação e, principalmente, capacitação de profissionais para
darmos sequência à produção e consolidação da nossa hegemonia
no futebol mundial. Nos preocupamos em vender a nossa Seleção e
esquecemo-nos de reinvestir o lucro nas futuras gerações. É hora de
quebrarmos os paradigmas. Admitir que o modelo está ultrapassado
e que precisamos mudar é o primeiro passo. O problema é que
poucas pessoas estão preocupadas com isso”, analisa Paulo André.
Mas por que nosso futebol carece de gente assim?
“No Brasil, temos poucos Paulo André em todas as áreas.
Inteligência e coragem como as dele afugentam. E, infelizmente,
não preparamos nas escolas e nos lares pessoas para pensar, falar,
discutir, entender, propor, mudar”, finaliza Beting.
O árbitro levanta os braços e trila o apito final.
Que seja apenas o fim do primeiro tempo, não do jogo.
oficina literária

18 023 e 446
YVISSON GOMES DOS SANTOS

Até agora foram 13 434, no chão. As suspensas, 138, são as piores.


Joaquim abriu os olhos, pronto para entrar no vagão do metrô. 13
435 e 139, dois passos e se senta – 140, repassa o dia de olhos
fechados - 141. Reunião, apresentação final pronta, almoço,
relatório do projeto de criação de lesmas asiáticas, responder e-mail
(muitos), jantar com a Vi.
Vi era de Vivian. Bonita, simpática, bem sucedida, tinha o mesmo
nome da 13a menina que ficou na adolescência e que teve pela
primeira vez a virilha apalpada. Sua namorada há nove meses.
Nunca entendeu como começou a namorar, não fez o pedido de fato.
Joaquim nunca fazia pedido, não cruzava.
Estação da Sé. Levanta-se – 142 e anda – 143 e 13 436. Puxa o
fôlego, solta para se aliviar. Caminha cantarolando.
14 513 e 158. Na rua cumprimenta João, jornaleiro, não pede o
jornal que lhe é estendido e mesmo assim o compra – 159. Mais três
quadras caminhando e chega ao escritório, direto para a reunião.
15 870 e 161 ontem o mesmo percurso deu 15 864 e 145. Menos,
bem menos.
Reunião com parceiros do projeto apresentando o que será proposto
na fase 8 - 16 123 e 179. Almoço no restaurante por quilo, 16 540 e
210. Relatório do projeto - 16 540 e 318. Responde e-mails 16 540 e
379. Trabalhou o restante do dia sem se mover.
Saiu do trabalho para jantar. Passou em casa, tomou banho, saiu,
trancou a porta, comprou flores e caminhou até o restaurante. De
frente para a porta parado olhando da janela já à via – 18 003 e 436.
- Sempre bonita. Como fora mesmo que começamos a namorar?
Entrou. Tocou no ombro. Beijou e sentou ao lado. Ela estende a mão
sobre a mesa, ele aceita. 18 023 e 441. Ela fala do dia, da cliente que
deu trabalho, mas que ela adorou atender. Fala da irmã, da vida,
dela. Ela pede o cardápio, escolhe fetuccine ao molho pesto. Ele
aceita 18 023 e 442, para beber vinho e sobremesa, flambado de
frutas vermelhas com damasco - 18 023 e 444. – Sorvete de creme
para acompanhar? Fala o garçom. Ela sorri, e aceita. Ele sorri
também e aceita 18 023 e 445. Ela estende a mão novamente - 18
023 e 446, o olha diretamente nos olhos e de forma séria pergunta: -
Você quer casar comigo?
colaboraram nesta edição

Caio Liudvik é jornalista e doutor em Filosofia pela USP

Carlos Eduardo Soares Gonçalves é professor titular do


Departamento de economia da USP

Claudio Daniel é poeta, professor de literatura portuguesa na UNIP


e editor da revista Zunái

Claudio Oliveira é coordenador do Programa de pós-graduação em


filosofia e professor associado da UFRJ

Eduardo Leal Cunha é doutor em saúde coletiva (IMS/UERJ),


professor associado do Programa de pós-graduação em psicologia
social e do Departamento de psicologia da UFS

Ernani Chaves é professor da Faculdade de filosofia da UFPA e


autor de Michel Foucault e a verdade cínica (Phi, 2013)

Fernando Santoro é professor associado do Departamento de


filosofia da UFF

Guilherme Castelo Branco é professor Associado do


Departamento de filosofia da UFRJ. Coordena, na mesma
instituição, o Laboratório de filosofia contemporânea

Guilherme Gomes Pinto é jornalista e editor executivo do diário


LANCE!

Josely Vianna Baptista é poeta e tradutora. Traduziu, entre outros


autores, Jorge Luis Borges e Lezama Lima

Márcio Alves da Fonseca é professor do Departamento de filosofia


da PUC-SP, autor de Michel Foucault e a constituição do sujeito
(Educ, 2011) e Michel Foucault e o Direito (Saraiva, 2011), entre
outros

Peter Pal Pélbart é professor titular da PUC-SP

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