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Sumário

coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
Marcelo Semer
Wilson Gomes

entrevista Vladimir Safatle

perfil Clara Charf

dossiê O tabu do suicídio


Apresentação
A pena de Maat e a escuta trágica do suicídio
A vida por um fio
O suicídio na adolescência
Destruir para recompor
A solidão dos hiperconectados

colaboraram nesta edição

coluna
A ameaça dos foguetes
bianca santana

“O dilema político que ficou para as nossas comunidades que sobreviveram ao


século 20 é ainda hoje precisar disputar os últimos redutos onde a natureza é
próspera, onde podemos suprir as nossas necessidades alimentares e de moradia,
e onde sobrevivem os modos que cada uma dessas pequenas sociedades têm de
se manter no tempo, dando conta de si mesmas sem criar uma dependência
excessiva do Estado”, sintetizou Ailton Krenak em Ideias para adiar o fim do
mundo. Ele não está falando especificamente sobre Alcântara, no Maranhão.
Mas está também falando sobre Alcântara.
Em 1980, ainda no regime militar, 312 famílias quilombolas foram levadas
de seus territórios para agrovilas afastadas do mar, sem rios, igarapés ou
florestas de manguezais. Perderam seu modo de vida, seu sustento econômico,
seus vínculos comunitários e 53 mil hectares de terra para a construção do
Centro de Lançamento de Alcântara. Em 1991, mais 10 mil hectares foram
desapropriados. E há 38 anos, esse centro funciona sem licenciamento
ambiental, sem estudos de impacto e sem entregar as benesses prometidas.
Desde 2003, a base está subutilizada, depois da explosão de um veículo
lançador de satélites na qual morreram 21 pessoas. Em 2004, o Brasil ainda
assinou um acordo com a Ucrânia para utilizar a base. Foram gastos 500 milhões
de reais e, em 2015, a parceria foi encerrada antes de qualquer efeito positivo. Já
nas famílias desapropriadas, pesquisas antropológicas registraram adoecimento
físico e mental, migração para as periferias de São Luís, desemprego, pobreza,
violência, fome.
Mesmo com tais resultados, está em vias de aprovação no Congresso
Nacional um acordo de salvaguarda entre Brasil e Estados Unidos que permite o
uso da base de lançamento de foguetes em Alcântara. O Ministério da Ciência,
Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) afirma que não haverá
expansão territorial da base, enquanto o Ministério da Defesa afirma que haverá.
“A incerteza em que as comunidades vivem é terrível”, ressaltou Neta Serejo,
agente de saúde da Comunidade Quilombola de Canelatiua, de Alcântara.
“Ampliar a área da base implicará o deslocamento das comunidades. Mas nunca
nos mostraram como isso vai acontecer”, afirmou, por telefone. “A vida toda foi
aqui. Saí por oito anos, para estudar, e voltei para onde viveram meus pais, avós,
bisavós. A possibilidade de perder nosso mar, de onde vem nossa alimentação
principal e o sustento de tantas famílias, é motivo de tristeza e desespero.”
Há mais de 20 anos, quilombolas de Alcântara lutam pela titulação de seus
territórios e já receberam decisões judiciais a seu favor. Além de as ordens não
terem sido cumpridas, as comunidades estão ainda mais vulneráveis diante desse
acordo, sobre o qual não foram sequer consultadas, o que fere os termos da
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada pelo
Brasil. “Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela
noção de que existe (...) uma concepção de verdade, que guiou muitas das
escolhas feitas em diferentes períodos da história”, afirmou Krenak. Como a
opção por destruir modos de vida quilombolas em troca de uma promessa de
lançar foguetes. “Por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar
desse clube, que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção,
criação, existência e liberdade? Será que estamos sempre atualizando aquela
nossa velha disposição para a servidão voluntária?”, perguntou Krenak. Não
sobre Alcântara, mas também sobre Alcântara.

coluna
Discernimento
marcia tiburi

A falta de discernimento é um mal em nossa época. Ela resulta do apego ao que


parece prático e da desvalorização do pensamento reflexivo – considerado, de
modo geral, como perda de tempo. Discernir, ou seja, perceber diferenças, torna-
se cada vez mais difícil em um mundo a cada dia mais bruto e inconsciente de
sua brutalidade.
Perceber diferenças sutis é ainda mais difícil porque a própria percepção foi
invadida e colonizada pelas novas tecnologias em um processo histórico cada
vez mais acelerado e tendo a própria ideia de rapidez como um valor.
A Revolução Industrial implica uma revolução na percepção. A história das
tecnologias é a história da mudança da percepção. As pessoas, que antes eram
obrigadas a esforçar-se em nível físico para perceber algo, são auxiliadas agora
por aparatos técnicos. Há hábitos comportamentais e mentais que derivam dessa
relação com tais aparatos. Lembremos do problemático uso da máquina de
calcular nas escolas. Todos que estudaram matemática na infância sem usar
esses mecanismos devem ter introjetado uma metodologia de pensamento e,
mesmo que não lembrem mais de aritmética, provavelmente ficaram marcados
pela experiência do esforço de encontrar soluções. Aprender a fazer cálculos sem
máquina implica um alto nível de desenvolvimento da capacidade de
discernimento. Do mesmo modo que aprender a escrever à mão.
Podemos chamar de aprendizado orgânico aquele que surge sem o
intercurso de máquinas. Ler, escrever e desenhar são seus exemplos mais
simples. Todo aprendizado voltado a uma experiência do corpo.
O aprendizado orgânico, a relação com o conhecimento em um nível de
experiência vivida, tende a formar naquele que faz a experiência um senso de
valor da própria coisa conhecida. Esse valor tem o sentido de uma estima, já que
a valorização do saber nasce do próprio encontro com o saber. Ele tem o mesmo
sentido de um valor moral que se adquire por experiência direta ou indireta, por
meio de estudos, pesquisas e orientações escolares ou culturais. Nem sempre
esse encontro é possível, e então vemos interrompida a experiência básica que
torna um ser humano um ser cultural.
Ora, vivemos em uma cultura em que nos despreocupamos de pensar
porque alguém – ou algo – pensa por nós. Não precisamos mais escolher, porque
o “algoritmo” escolhe por nós. Nas redes sociais, bots fazem todo um trabalho
relacionado ao ódio. No limite, não precisaríamos sequer odiar alguém (para
falar de um afeto da moda), porque um “robô” odeia por nós.
Neste momento histórico e social, é como se as pessoas abandonassem o
exercício e o uso da própria inteligência em função do avanço da inteligência
artificial. A oferta infinita de próteses de percepção produz efeitos sobre o
pensamento, os sentimentos e as ações. A função das próteses é facilitar aquilo
que seria difícil sem elas. Aquela dificuldade, muitas vezes associada à ideia de
que o conhecimento implica sofrimento, era, no entanto, produtora de novos
tipos de conhecimento.
Hoje vivemos um tipo de alienação sem solução porque não podemos mais
retornar à experiência “orgânica” da aprendizagem, já que estamos entregues a
esse mundo tecnologicamente pronto. É certo que há muita criatividade a partir
das novas tecnologias. Mas essa criatividade é totalmente diferente da que
existia antes, quando era mediada por outros tipos de instrumentos. O
discernimento sobre essas diferenças é o que a tecnologia não nos permite mais.

coluna
Bolsonaro e o método na loucura
marcelo semer

Ele espicaça o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), injuriando


a morte de seu pai, nas malhas da ditadura; sugere um indulto para tirar da
cadeia policiais condenados por homicídio e estimula os que estão na rua a
matarem mais. Ofende a esposa do presidente da França, insulta a memória do
pai da ex-presidente do Chile, faz piadas grosseiras pelas redes sociais e convida
diuturnamente ao confronto quem a ele se opõe. Não faz esforço para esconder
os desejos de vingança, mesmo que isso revele o maltrato escancarado ao
princípio da impessoalidade.
Nenhuma espécie de crítica é suportada. Interfere nas escolhas de seus
subordinados e demite os que hesitam em defender sua ideologia, seu rancor e,
principalmente, seus filhos. A guilhotina já funcionou para um renomado
economista do mercado, um cientista laureado e diversos generais que ele
reintroduzira no cotidiano da administração. Emparedado, sempre sobe o tom e
dobra a aposta. Afinal, jacta-se, “Eu sou o Johnny Bravo, porra”. A esta altura,
parte de seu bloco de apoio procura se desgarrar com a perspectiva de um
naufrágio. Liberais arrependidos, intelectuais que despertaram do sono da razão,
candidatos a xerifes e uma série não desprezível de políticos oportunistas. Nada,
no entanto, o faz atenuar a virulência dos discursos, a contundência de suas
acusações, o destempero indecoroso das reações públicas.
Para muitos, Bolsonaro é uma besta-fera sem controle. Incapaz de conter
instintos agressivos, tende a desmontar, por inabilidade política ou insanidade,
os consensos que se produziram em volta de seu nome.
Penso, todavia, em uma hipótese distinta: esse espírito indomável não é
apenas uma tentativa de simular o perfil “antissistema” com que se mascarou
para crescer na eleição – sim, mascarou, porque poucas pessoas destinaram tanto
tempo de sua vida, de seus hábitos e de sua própria família à política como ele.
Mas o gênio irascível não é só um convite ao fracasso; é também um mecanismo
de segurança pessoal.
Dilma foi apeada do cargo por um golpe parlamentar-jurídico quase sem
reação da militância partidária. E mesmo Lula, liderança inquestionável, foi
preso sem esforço. As reações indignadas à sua situação demandaram muito
mais críticas aos tribunais do que manifestações nas ruas.
Bolsonaro teme a solidão do poder quando os resultados inexpressivos na
economia e os efeitos da atabalhoada administração chegam colocando em risco
seu mandato. Quer ter defensores que impeçam que ele seja destronado. Que não
aceitem serenamente as regras do jogo ou as alterações casuísticas que se
abateram sobre Dilma e Lula. Ele não deposita sua sobrevivência nas mãos de
acordos partidários; mas entre apoiadores fiéis e determinados, fanáticos e
agressivos, inconsequentes e armados.
É para essas pessoas que Bolsonaro discursa e governa. É nelas que
estimula a hostilidade e cultiva o medo. Ele quer o conservador cada vez mais
reacionário; o cético para com a ciência, mergulhado na ignorância. Quer o
religioso imerso no ódio, como se disso dependesse a sobrevivência de seu
credo. Quer apoiadores desconfiados, respirando conspiração, prontos a defendê-
lo nas redes, independentemente da acusação.
Bolsonaro precisa de policiais matadores e johnny bravos armados nas
esquinas, para que os militantes se sintam apavorados demais para sair às ruas
pedindo sua cabeça. Os xingamentos podem ser incômodos e constrangedores,
mas são essenciais para manter sua tropa em guarda e pronta para a ação.
Essa guerra contínua é sua apólice de seguro. É o método que organiza e
disciplina sua loucura.

coluna
O novo heptálogo do petismo de bolha
wilson gomes

I. Não naturalizeis a prisão de Lula, o mais ignominioso pecado contra a


democracia. O crente viverá da fé em Lula Livre e da esperança na restauração
da Verdade. Dizer “Lula está preso”, mesmo que apenas como inevitável
referimento à vida como ela é, e não como expressão de regozijo, deve ser
repelido com toda a força do coração. O justo viverá da certeza de que Lula deve
ser liberto, que Moro e Dallagnol devem ser completamente desmoralizados e
enviados à cadeia, que é imperativo moral, político e cósmico a restauração da
vida e das coisas antes do golpe, a expedição de um “nada consta” novinho em
folha para o PT brandir ante seus detratores, e a constituição de um Tribunal de
Nuremberg para julgar e sentenciar os criminosos de guerra do antipetismo.
II. Não critiqueis o PT, nem pelas estratégias atuais nem por malfeitos
passados, nem agora nem em tempo algum. “Nunca” é o momento certo para
criticar o partido ou Lula, mas para aliviar o coração de alguma alma aflita e de
boa-fé que porventura cruzar vosso caminho, dizei suavidades como “não é este
o momento de criticar a esquerda”.
III. Não digais nunca, em hipótese alguma, que o antipetismo é a principal
força política do país e que Lula só era eleitoralmente invencível na cabeça dos
petistas e dos antipetistas, inclusive dos antipetistas da Lava Jato, que com base
nessa crença tomaram providências para que ele não fosse candidato. Um lulista
de coração reto não pode aceitar jamais o fato, certamente inventado, do
desamor das massas por ele tão amada.
IV. Não mencioneis Haddad nem Flávio Dino, a não ser para acrescentar
que “seriam ótimos vices para Lula”. Lula é o único sol, ao redor do qual
forçosamente orbitam outros corpos celestes, de maior ou menor dimensão e
brilho, mas nunca comparáveis a ele.
V. Não pronuncieis em termos elogiosos ou de louvor o nome de Ciro
Gomes ou Tabata Amaral. Se tiverdes mesmo que proferir tais nomes em
público, acompanhá-los-eis com adjetivações como “traidor(a) da esquerda”,
“direitista disfarçada(o)”, “bolsonarista na moita” ou “do centrão”. Conservai
acesas as candeias da nossa mágoa e do nosso ressentimento como se disso
dependesse a vida.
VI. Não imputeis nunca espécie alguma de responsabilidade ou culpa ao
PT, a Dilma ou a Lula pela vitória de Bolsonaro, pelo antipetismo, pelo
impeachment, pela crise econômica e pela desmoralização da política. As
palavras culpa e PT nunca devem ser usadas juntas. Culpai a mídia, o
vergonhoso conluio entre Moro e o Ministério Público, o silêncio do Supremo
Tribunal Federal (STF), que permitiu que tudo acontecesse; incriminai Cunha,
Temer e o golpe, mas não ponhais sobre os ombros do PT ou de Lula a
responsabilidade sobre a própria desventura.
VII. E, sobretudo, nunca cometais o máximo opróbrio de fantasiar ou
propor um cenário em que o PT e os lulistas se juntem a outras forças
democráticas e progressistas em uma condição de não protagonista. Sobreviver
eleitoralmente, garantir a última linha de defesa da civilização, resistir à
destruição do legado de governos da esquerda e do centro – nada disso é
argumento aceitável se antes Lula não for liberto, o governo de Dilma não for
restaurado, o golpe não for oficializado, os maus não forem punidos.
E, mesmo que os dados, os fatos ou um anjo do céu vos anuncie outro credo
além do que já vos anunciei, seja anátema da comunidade de esquerda,
excomungado da democracia e da justiça e lançado ao inferno do bolsonarismo.

entrevista Vladimir Safatle


A força da ação
DANIEL DE MESQUITA BENEVIDES E TARSO DE MELO

O apartamento de Vladimir Safatle, na região central da capital paulistana, com


um belo piano na sala e as estantes forradas de filosofia e literatura em diversos
idiomas, pode dar a ideia de uma torre de marfim, onde viveria um esteta
comedido, pouco afeito à ação. No entanto, esse (também) esteta atua em vários
fronts, com uma disposição notável. Professor titular do Departamento de
Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), escreve colunas para a imprensa,
publica livros regularmente, faz parte da Comissão Arns de Direitos Humanos,
ajuda a coordenar o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP
e, sabe-se lá em que momento, toca e compõe ao piano – recentemente lançou o
excelente disco Músicas de superfície, com a cantora Fabiana Lian.
Seu discurso, não à toa, assemelha-se aos contrastes densos e agudos da
música contemporânea, da qual é adepto. A linha de raciocínio é complexa,
porém clara; seu olhar reto aponta para a quebra das ilusões, a difícil melodia
subliminar da realidade. Em seu último livro, Dar corpo ao impossível, retoma a
dialética de Hegel pelo olhar de Adorno e aponta para as possibilidades de uma
superação revolucionária.
A edição, agora, dos textos do guerrilheiro Carlos Marighella, “a figura
mais emblemática da esquerda brasileira”, parece uma continuação lógica desse
movimento. Mesmo escritos há mais de 50 anos, são muito atuais, como explica
o filósofo, especialmente tendo em vista que parte da esquerda se perdeu em
conchavos e outra numa espécie de melancolia, o que permitiu que o espaço
fosse ocupado por esse “misto de capitão e palhaço”. Escritos, de Carlos
Marighella, é um lançamento da coleção Explosante, da editora Ubu, sob
coordenação de Safatle.
Fale um pouco da coleção Explosante e do conceito que a norteia, inspirado
em Breton.
Explosante, de fato, vem desse trecho do Breton, “a beleza será convulsiva ou
não será”, ou seja, mistura os opostos. Também é o nome de uma música do
Pierre Boulez, das mais impressionantes do repertório contemporâneo, na qual
ele recupera uma ideia do prelúdio do Debussy, da organicidade da flauta como
elemento construtivo, só que dentro de um processo de turbilhão. Então é a
emergência mesmo, de outra forma. São textos de filosofia, política, estética,
clínica, que visavam, cada um à sua maneira, falar sobre essa emergência e tirar
um pouco essa coisa melancólica de análise que a esquerda brasileira tem. Acho
que essa era a principal ideia. Além desse do Marighella, tem um livro do Alain
Badiou, Petrogrado, Xangai, com uma descrição realmente interessante da
Revolução Cultural chinesa. E um livro com os escritos psiquiátricos do Frantz
Fanon. São trabalhos muito ligados à crítica da estrutura hospitalar. Ele
trabalhou com François Tosquelles no Hospital de Saint-Alban, que é uma
espécie de laboratório de um outro tipo de clínica extremamente explosiva. Esses
são os primeiros, virão outros.
Num momento em que a palavra comunista parece ter perdido grande parte
de sua emergência, apropriada pela direita como um xingamento genérico,
voltar a ler Marighella é dar um novo significado a essa palavra?
O comunismo expressa, na verdade, o desejo de constituição de uma sociedade
livre da submissão ao trabalho, livre da propriedade como um modo fundamental
de existência e de determinação das coisas e dos sujeitos, livre de um
esvaziamento da força do poder popular. Durante 200 anos, todos os piores
fantasmas das estruturas tradicionais de poder sempre se consolidaram numa luta
contra o comunismo. É claro, você pode dizer que a gente tem agora uma
experiência histórica ruim de Estados que se constituíram como comunistas. Os
processos têm uma dinâmica de fracasso e reconstrução que lhes são próprios.
Por outro lado, a esquerda se autocritica desde o primeiro dia em que a
Revolução Russa começou. Ou seja, tem uma dinâmica contínua, tanto que os
primeiros a serem trucidados eram os aliados. Agora, você já viu um liberal se
autocriticar? Eu queria que alguém mostrasse um sujeito que fale “Putz, é
verdade, eu acreditei nessa Thatcher, mas olha o que deu, o resultado
econômico, o desemprego”.
O próprio Marighella fez uma autocrítica importante.
Um dos textos mais impressionantes nesse livro é aquele em que ele justifica por
que rompe com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). O texto é de 1966, mas a
análise que ele faz é terrivelmente contemporânea. Ele diz: a gente tinha um
partido como o PCB, enorme, que não fez outra coisa além da articulação e
conciliação com setores progressistas da burguesia. Tirou fora de seu horizonte
qualquer possibilidade efetiva de transformação radical e, depois de 1964, não
conseguiu admitir que sua avaliação estava errada. É dramático ler isso hoje,
porque esse é o único modelo que a esquerda brasileira conhece. Por isso
Marighella é a figura mais consequente da esquerda brasileira. Ele tentou um
caminho institucional, fez a política conciliatória do PCB, era um soldado fiel do
Partido Comunista. Até o momento em que, como consequência, vê como única
opção a luta armada, que se coloca claramente num horizonte de resistência. Ele
sai do PCB e fala: não faz mais sentido montar partido com estrutura,
organização, burocracia partidária, nada disso. Tanto que na Aliança Libertadora
Nacional (ALN) ninguém precisava pedir autorização para fazer um ato
revolucionário. Quando sequestraram o embaixador norte-americano, Marighella
ficou sabendo pelo rádio. Cada grupo decidia, fazia suas ações e todo mundo se
implicava. Isso era algo que nem foi mais tentado.
A posição majoritária da esquerda ainda repreende o radicalismo dele?
Eu acho que é um traço forte. Quando se fala sobre a luta armada no Brasil, é
muito interessante porque se fala dos equívocos. Eu sempre achei isso da ordem
de masoquismo que beira a identificação com o agressor. Como assim, um erro?
Até para o pensamento liberal, o tiranicídio é um direito. Isso não foi Lênin que
escreveu, nem Trótski; foi John Locke. Fato é que, independentemente da luta
armada, lembrar do Marighella hoje coloca uma questão absolutamente
importante: as experiências de democracia parlamentar liberal no Brasil vão
sempre dar errado. Em outros países esses processos, pelos acúmulos históricos
e tal, permitem fazer algumas coisas que aqui não dá para fazer. Isso a esquerda
se recusa a pensar. E num momento como o atual não há como não pensar.
Você acha que a luta armada seria uma possibilidade hoje?
Olha, é fato que o Estado brasileiro sempre foi marcado por uma política de
violência contra sua própria população, explícita e funcionalmente. Então há de
se esperar que esses setores reajam da maneira como eles podem reagir. Faço
parte da Comissão Arns de Direitos Humanos, e a gente recebe relatórios
aterradores sobre as práticas policiais. Por exemplo, o caso emblemático do
Morro do Fallet, em que 17 pessoas foram mortas a facadas pela polícia depois
de serem torturadas por três horas em uma casa no meio de um bairro na
periferia do Rio de Janeiro, com todo mundo gritando e a população toda
ouvindo. Numa situação como essa, o Estado já está fora da legalidade.
O que acha da polêmica em torno do fato de um ator negro interpretar o
Marighella no filme do Wagner Moura?
Acho que faz muito sentido colocar a força da revolta em um personagem negro,
que está inserido em um dos setores mais massacrados pelo Estado brasileiro. Há
comportamentos de racismo que muitos na sociedade brasileira nem imaginavam
que existiam de forma tão arraigada. Então acho que fazer uma escolha como
essa é obrigar a quebrar esse sistema de autoilusão.
E essa dicotomia entre a luta de classes e as questões identitárias? Entre a
fala partidária e o lugar de fala?
Eu acho que essa dificuldade é pensada e produzida, é um dos eixos
fundamentais de sustentação do poder. Fazer com que até mesmo as nossas
revoltas sejam conjugadas na gramática daqueles que oprimem, uma gramática
da posse, da propriedade, de “isso é meu e ninguém fala sobre o que é meu”.
Quando as lutas identitárias são vistas assim, perdem o que podem produzir.
Porque elas são as verdadeiras lutas universalistas. São lutas que dizem: a
universalidade ainda não está realizada.
Isso faz pensar na violência simbólica que você menciona no seu artigo em
O que resta da ditadura. Violência que continua até hoje no apagamento da
universidade, dos saberes do povo, da visibilidade LGBT, da cultura negra e
tudo o mais.
Essa invisibilidade fundou o Brasil, é um modo de governo no país. É claro que
nunca saiu de cena, mas agora ela se explicita de maneira brutal. A questão
fundamental é quem comanda a visibilidade. A questão LGBT é um pouco essa.
No discurso do conservador, o problema não é que você existe, é que você é
visível. Você me toca, me afeta, seu corpo me afeta. Então, se você me afeta, me
obriga a me transformar, e é exatamente o que eu não quero.
Em Dar corpo ao impossível, você afirma que o esforço de reconstrução da
dialética talvez só pudesse surgir num país como o Brasil. Por quê?
A história da dialética no Brasil é longa e está um pouco ligada a essa
consciência da conciliação de opostos, muito própria da nossa sociedade: o
desenvolvimento em atraso, ordem e desordem, arcaico e moderno, escravatura e
liberalismo... Só que era sempre uma espécie de dialética bem laudatória, muito
mal pensada. O primeiro momento em que ela foi de fato bem pensada no Brasil
foi quando assumiu uma força negativa, no sentido de mostrar sua capacidade de
desintegração desses acordos extorquidos entre contrários. Eu quis continuar um
pouco essa discussão. Ainda mais num momento como o atual, porque faz muito
sentido retomar a dialética exatamente para conseguir livrar o país dessa ilusão
de força de contradição sem conflito. Na Alemanha do século 19, quando a
dialética é recuperada, coloca em cena uma energia negativa que vai até a ideia
de revolução. E no Brasil isso não aconteceu. Eu me pergunto se talvez o
momento atual não fosse de realmente permitir que esse movimento ocorresse
até o fim. Porque a gente vive uma revolução – de sinal trocado, uma
contrarrevolução preventiva. A única saída é fazer o mesmo movimento em
direção oposta.
Como definiria o governo atual?
É um modelo de neoliberalismo autoritário, que tem traços fascistas no sentido
clássico do termo. A gente vive um momento de recrudescência de tendências
fascistas em uma série de governos, e o nosso é exemplar. É exemplar na
estrutura de culto da violência, na sua estrutura de nacionalismo paranoico, na
sua transferência da soberania popular em direção à figura que paira acima. Não
é um governo de gestão, é um governo de saque.
E os bolsonaristas?
É a população que fez uma escolha protofascista clara e vai com ela até o fim.
Qualquer dado que você coloque, qualquer informação, não vai fazer a menor
diferença. Eles têm uma visão muito clara de um tipo de forma de vida, de
experiência, que deve ser realizado custe o que custar. Por isso eu falo que é uma
lógica revolucionária. O Bolsonaro conseguiu estabelecer um sistema de
identificação profundo. Suas fraquezas são elementos de identificação, não são
coisas que quebram esse processo de adesão. É uma das ideias interessantes que
o Adorno desenvolve a partir do Freud: são identificações narcísicas. “Ele é
alguém como nós.” Significa que é alguém que tem as mesmas fraquezas, as
mesmas incapacidades, as mesmas reações impotentes. Isso tudo é loucura, mas
tem método. Porque a inabilidade é um elemento fundamental do apoio. Ele
mostra: “Olha, tá vendo? Alguém como você pode ser o governo”.
Nesse sentido, levantar a ameaça da esquerda e da volta do Lula é um
discurso conveniente?
A ameaça que ele levanta é real. Todo esse circo anticomunista não é bem um
circo. Só que a luta que eles estão fazendo não é no presente, é uma luta
preventiva no futuro. Eles estão lutando contra os comunistas por vir. Porque
percebem que essa é uma possibilidade do processo, a partir do momento em que
a democracia liberal entra em colapso no mundo. Quando esse eixo entra em
colapso, as alternativas que pareciam ter sido deixadas para trás na história
voltam à cena. Eles estão já brigando contra essa possibilidade de volta.
Sentiram isso desde 2013.
Como se sente ao ver a filosofia e as demais ciências humanas serem tão
atacadas?
Isso demonstra, entre outras coisas, quão absurda era a ideia de que a gente era
irrelevante. Se fôssemos irrelevantes, por que tanta briga conosco? Outra coisa:
se você tem um país que se formou a partir de ideias, esse país é o Brasil. Sua
bandeira é uma ideia positivista de desenvolvimento que anima setores militares.
Isso é uma filosofia. O modernismo foi um projeto de Estado. Começa na
construção do Ministério da Educação Nacional no Rio de Janeiro e vai até
Brasília. Ou seja, o Brasil é uma ideia estética e filosófica. Um dos sujeitos mais
influentes desse desgoverno é um cara que se vê numa batalha da filosofia
brasileira dos últimos 60, 70 anos. Durante muito tempo, na universidade
brasileira, o que se tinha era um pensamento desfibrado, mistura de tomismo
com delírio daqui e dali, mas já há algumas gerações produzindo um pensamento
forte, crítico, qualificado. E é contra isso que esse pessoal se coloca. Então é
também uma briga filosófica o que está em curso. Seria interessante a gente
perceber como isso é o nosso país. O Brasil é essas duas coisas: esse desejo
delirante, em todos os sentidos, de querer tomar para si a força de certas ideias
para se construir, e, é claro, essa incrível intermitência das forças da revolta.
Veja os últimos anos, o país não saiu da rua. De 2013 para cá, só mobilizações
por todos os lados. Isso é o Brasil que eles tentam apagar custe o que custar. Só
que eles já tentaram várias vezes e não conseguiram. Vão tentar mais uma vez e
não vão conseguir.

perfil Clara Charf


Vida clandestina
amanda massuela

Quem abre a porta é Mazé. Ela pede que a reportagem espere alguns minutos,
oferece água e café, e vai chamar nossa entrevistada. “Vão te fotografar, Clara.
Fica com o casaco. Tem que sair bem na foto.” A senhora de 94 anos aparece na
sala algum tempo depois, movimentando-se com a ajuda de um andador. Está de
batom cor-de-rosa, blazer vermelho por cima da camiseta de algodão e um lenço
branco em volta do pescoço. “Quer dizer que vocês são os fotógrafos da
revolução?”, diz, sorrindo.
É ela quem começa a perguntar, sentando-se no sofá com a ajuda da mulher
“durona” que cuida dela há nove anos. Depois que algumas quedas a fizeram
parar no hospital, sente medo de ficar em pé, perder o equilíbrio e cair. Não tem
muita firmeza nas pernas, explica Mazé. Sai de casa só para consultas médicas e
tomar sol na calçada, numa rua tranquila do bairro do Bom Retiro, em São
Paulo. Clara continua a perguntar: “Vocês trabalham juntos? De quem foi a ideia
de vir aqui? Mas por que precisam de tantas fotos?”.
“Eu fico encabulada porque nunca sei qual é o objetivo real dessas fotos”,
explica. “Fiquei clandestina por muitos anos e teve uma época em que eu não
falava, não ria. E eu ria muito. Mas o pessoal dizia assim: ‘Tenha cuidado, Clara,
se você rir todo mundo vai te reconhecer’. Eu estava completamente amarrada.
Não podia rir e nem chorar.”
Também não podia ter endereço fixo, visitar parentes e muito menos usar a
identidade verdadeira: Clara Charf, militante do Partido Comunista Brasileiro
(PCB) desde os 21 anos, nascida em 1925, filha de um casal de judeus russos
que chegara a Maceió fugindo da perseguição antissemita no Leste Europeu. Nos
quase 20 anos em que viveu na clandestinidade ao lado do companheiro Carlos
Marighella – do governo Dutra à ditadura militar –, Clara foi Vera, Jandira,
Marta, Silvia, Nice e tantas outras que nem se lembra. “Você tem que se
encobrir. Está de nome trocado, tem que andar como se fosse outra pessoa. Não
é brincadeira. Mas a gente está tão convencida de que aquilo é necessário pra
sobreviver, que faz tudo.”
Ela retornaria a esse tema muitas vezes ao longo da tarde. É o período que
parece ter ficado mais vivo em sua memória. Clara fala daqueles dias com
energia de menina. Ri, divaga, suspira, perde-se no pensamento para retomá-lo
mais adiante, em um ponto diferente. Mas quando perguntada sobre o
assassinato de Marighella, que completa 50 anos no dia 4 de novembro, prefere
o silêncio. “Minha filha…” Olha pela janela e desconversa: “Muito difícil
restituir tudo”.

A melhor coisa do mundo


Clara Charf e Carlos Marighella ficaram juntos de 1947 a 1969, ano em que o
político, escritor e guerrilheiro comunista foi morto em uma emboscada
comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Eles se conheceram na sede
do Comitê Nacional do Partido Comunista, no Rio de Janeiro, na porta do
elevador. O então deputado federal quis saber quem era aquela “branquinha
arrumadinha” que andava por ali. Clara trabalhava como aeromoça da Aerovias
Brasil e ajudava no leva e traz de correspondências do partido.
“Eu não sabia quem ele era, mas sabia que era um cara legal. Todo mundo
gostava muito dele porque era solidário, atencioso. Ele sabia que eu era filha de
judeus, que eu gostava muito de música, de ler, de cantar; sabia de uma porção
de coisas que o pessoal comentava”, relembra. Não demorou para que
engatassem um namoro, o que fez o pai de Clara, Gdal, viajar do Recife até o
Rio para levá-la de volta para casa. Ele não admitia que a filha se relacionasse
com um “preto, vermelho e gói”. “A única coisa que eu sabia era que não podia
namorar cristão, tinha que ter cuidado para não me apaixonar. Mas nunca me
apaixonei erradamente.”
Clara voltou, receosa de que o pai pudesse fazer algo para prejudicar o
Partido Comunista. Já no Recife, Gdal queimou roupas e documentos da filha
para evitar uma fuga, mas ela fugiu mesmo assim, com um vestido da melhor
amiga no corpo. Em 1948, foi morar com Marighella no Méier. No ano seguinte,
após a cassação dos mandatos de todos os parlamentares do PCB, no governo do
general Eurico Gaspar Dutra, o casal se mudou para uma rua operária no
Ipiranga, em São Paulo, para ocupar cargos no partido. Ela, coordenadora do
Movimento Feminino Paulista do PCB; ele, primeiro-secretário do Comitê
Regional Piratininga.
“Viver com ele era a melhor coisa do mundo. Marighella gostava de contar
piada, tinha um comportamento simples, falava sobre qualquer coisa. Era como
se não fosse aquele homem perseguido de que todo mundo falava mal. Todo
mundo não, a polícia”, corrige-se. “Lobinho e Chapeuzinho” era como eles se
chamavam no cotidiano, a sós. Ela o ajudava a melhorar o inglês antes de uma
viagem à China, em 1953, para conhecer a Revolução Comunista. Ele lia em voz
alta trechos de notícias, poesia e teoria política enquanto Clara passava roupa.
Ele também cuidava da louça, da roupa e de outras tarefas domésticas que
envolvessem água. O trabalho doméstico era dividido.
“Ele achava que todo mundo era igual e tinha os mesmos direitos. Foi um
estudante brilhante, era muito inteligente. Todo mundo gostava demais dele. As
mulheres, especialmente. O pessoal me dizia, ‘Você não tem ciúmes do
Marighella?’. Eu tinha!”, confessa. De acordo com a biografia Marighella: o
guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras), de Mário
Magalhães, ele viveu histórias com outras mulheres durante os 22 anos de união
com Clara, mas os casos nunca separaram o casal.
Em 1957, com Juscelino Kubitschek, puderam sair da ilegalidade.
Alugaram um apartamento no Catete com a identidade verdadeira – pela
primeira e última vez. Viveram ali até 1964, quando irrompeu o golpe militar.
“Eu não sabia o que podia acontecer. Aí ele foi preso… eu sofri muito com a
vida dele. Não gostei nunca de nenhum outro homem. Sabe o que é não gostar
nunca mais?” Em maio de 1964, Marighella foi baleado três vezes em um
cinema no Rio e, em seguida, preso por agentes do Departamento de Ordem
Política e Social (Dops). Ganhou a liberdade apenas no ano seguinte e, com o
progressivo endurecimento do regime, tornou-se o maior inimigo dos militares.
Clara permaneceu ali. Vivendo escondida, mudando-se às pressas, deixando
recados codificados para o marido ao perceber perigo e inventando novas
identidades para si. Durante a luta armada, organizava a logística das ações da
Ação Libertadora Nacional (ALN). Jamais pensou em abandonar o partido, o
companheiro ou a luta. Mas se achava uma “garota” perto de Marighella. “Ele
era um cara perigoso para a ditadura porque queria fazer a revolução no Brasil.
Eu não era essa pessoa tão perigosa.”
Mas ela mesma já havia sido presa, em 1954, numa manhã de maio, em
Campinas, quando desembarcou na cidade, enviada por Diógenes Arruda
Câmara, fundador do PCB, para iniciar uma escola de formação política com
cursos de três meses para 90 alunos. Foi tomada pela polícia como uma agente
soviética internacional porque carregava uma mala cheia de livros de autores
marxistas e uma faixa de seda com ideogramas asiáticos. Marighella estava na
China. “Sabe que eu pensei que ia ser muito mais duro? Foi duro, mas não tanto
quanto eu imaginava...”, diz. Clara foi solta em julho daquele ano.

O meu tempo é outro


No apartamento em que vive hoje na região central de São Paulo, há muitos
livros, algumas plantas e pôsteres de Marighella nas paredes. No topo de uma
estante, duas fotos chamam a atenção: uma com Nelson Mandela, em 1991, e
outra com Lula no hospital das Forças Armadas, em 2010, quando se acidentou
em Brasília e o ex-presidente exigiu que ela fosse atendida ali. Não tem nenhum
retrato com Marighella. “Se ela tem alguma foto com ele, eu nunca vi”, comenta
Mazé. O retrato mais recente, junto com os irmãos Abraão e Sara, parece
improvisado: foi impresso em papel comum e grampeado em uma telinha branca
de pintura.
“A maioria das fotos o pessoal pegava e guardava para a polícia não ver
nunca”, diz Clara. Não ficaram muitos registros daquela época. “O pessoal olha
as fotos e diz: ‘Mas a ditadura era isso? Então era ótimo’. Entendeu? Porque
quem não viveu época nenhuma de ditadura não entende o que aconteceu no
país. Como foi, por que você tem tanto medo ou tanto ódio. É difícil, muito
difícil. Mesmo depois que passou aquela época violenta, e que voltou a
democracia, era muito difícil as pessoas acreditarem”, lamenta.
Após o assassinato de Marighella, Clara continuou na clandestinidade até
1970. Naquele ano, foi viver em Cuba, onde permaneceu sob identidade falsa
trabalhando como tradutora até 1979, quando retornou ao Brasil após a Lei da
Anistia. Filiou-se ao então recém-fundado Partido dos Trabalhadores (PT), no
qual integrou a Secretaria de Mulheres e a Secretaria de Relações Internacionais.
“Quando a gente volta da clandestinidade, ainda carrega restos disso, de que a
polícia pode tentar localizar a gente. Aí você meio que se encolhe. Tem
cuidado”, diz. “Nunca fui absolutamente livre. Quando você volta já livre, como
é que vai viver? Demora pra se acostumar.”
Ainda assim ela continuou participando ativamente da vida política do país.
Em 1982, candidatou-se ao cargo de deputada estadual pelo PT, mas não se
elegeu. Fez parte do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e, em
2003, aos 78 anos, fundou a Associação Mulheres Pela Paz, organização não
governamental que promove ações pela igualdade de gênero, cidadania e direitos
humanos. Durante todo esse tempo, não deixou de atuar na preservação da
memória de Marighella e de falar sobre os horrores da ditadura.
“Quando veio a democracia, a gente começou a fazer debate, palestra. Eu
tinha muita vontade que as pessoas que estavam vivas falassem. E às vezes eu
provocava para conversar. Mas percebi que elas não tinham prazer nenhum
nisso. Também tinha gente que se orgulhava em contar as barbaridades que
aconteceram, e que apesar de tudo sobreviveu.” Ela lembra que nem Marighella
gostava de falar sobre as prisões e sessões de tortura: “Se alguém perguntasse,
ele falava. Pra mim ele contou milhões de coisas, mas porque eu perguntei
muito. E, quando chegou o momento em que achei que era muito desagradável,
que era doloroso pra ele, deixei de perguntar”.
E quanto a ela? “Eu sinto… uma certa angústia. Não sei explicar. Eu fico
preocupada, me dá aquela agonia.” Mudamos um pouco de assunto, então. Clara
Charf parece em paz com as limitações do corpo e da idade. Há muitos anos está
afastada das atividades políticas, o que não impede que sinta “muita simpatia
pelo pessoal que luta”: “Todos, homens e mulheres. É uma coisa que parece
estar dentro de mim”, diz, animada.
Ela continua: “Eu gostava muito de lidar com gente. Gosto muito. Mas uma
coisa é lidar com gente, outra coisa é fazer política… Sempre me interessei
muito pelo lado humano das pessoas”. Na juventude, foi iniciada na política por
Jacob Wolfenson, um amigo da família preso nos anos 1940 por ser comunista.
Clara quis saber o que aquela palavra, comunista, significava, ele deu a definição
e ela gostou do que ouviu. Passou a se dizer comunista também. Fez muito dali
em diante.
“Mas hoje não é tudo o que me propuserem que vou fazer. Isso não
acontece. Não dá mais. O meu tempo é outro. É curto”, afirma. “Menina, eu
tenho mais de 90 anos! E com a cabeça ainda cheia de minhoca”, ri. Ela fica em
silêncio, pensa melhor e diz, antes de se despedir da reportagem: “Eu topo fazer
muita coisa ainda. Se alguém aparecer na minha frente e me disser, ‘Vamos
fazer isso aqui’, e se eu achar que aquilo vale... eu topo”.

dossiê O tabu do suicídio


Apresentação
Gilson Iannini

Ser ou não ser: eis a questão.” Quando Hamlet faz a pergunta decisiva, o suicídio
entra em cena na história ocidental de maneira inédita. Em um intervalo de
apenas 40 anos, mais de 200 suicídios são encenados no teatro inglês, em cerca
de uma centena de peças. Mas é Shakespeare quem expressa com brutal
simplicidade o dilema existencial fundamental sobre nossa liberdade de viver e
de morrer. Ele sabe que “a vida é uma história contada por um idiota, cheia de
som e fúria, sem sentido algum”.
Estamos em 1600. Pouco antes, o suicídio era condenado como o mais
deplorável dos crimes. Na Idade Média, o cadáver do suicida era condenado a
suplícios terríveis, ao enforcamento público ou arrastado nas ruas por um cavalo.
À família do suicida, restava a vergonha, a culpa e a pobreza: além do corpo
supliciado, os bens eram confiscados. Na aurora da modernidade, quando o
silêncio eterno dos espaços infinitos apavorava o homem agora descentrado,
Romeu e Julieta escolhem a morte prematura. Os espectadores do teatro
elisabetano frequentam as salas e falam do assunto tabu. O filósofo Michel de
Montaigne aborda a morte voluntária com uma sobriedade que apenas os céticos
ensaiam. Depois de arrolar, à moda dos antigos, argumentos a favor e contra o
suicídio, Montaigne analisa casos concretos. Ele sabe que argumentos não
resolvem o dilema de ser ou não ser. Na melhor tradição cética, desconfia das
soluções universais, embora admita certas circunstâncias favoráveis, como evitar
a dor física extrema ou uma morte cruel. Mas, ao fim e ao cabo, trata-se de uma
decisão que só cabe à pessoa, e que nenhuma lei pode evitar. A modernidade
esclarecida ousou falar do suicídio. E nem por isso aumentou a taxa média de
suicídio. Nem Shakespeare, nem Montaigne se suicidaram.
Quando Goethe publica, em 1774, o romance Os sofrimentos do jovem
Werther, o tema do suicídio era debatido havia algumas décadas. A história de
um amor impossível entre um jovem romântico e uma mulher casada e fiel ao
marido teria inspirado algumas mortes semelhantes. O fenômeno foi chamado de
“Werthermania”. Se é verdade que alguns corpos são encontrados ao lado de
exemplares do romance, é igualmente verdade que Werther “não cria uma moda:
é a expressão de um clima ao qual ele dá uma forma”, como afirma Georges
Minois, autor de História do suicídio: a sociedade ocidental diante da morte
voluntária. Trata-se, mais do que nunca, de um fenômeno social. No século
precedente, circularam verdadeiras apologias ao suicídio, que não tiveram o
mesmo efeito. De toda forma, consolida-se o tabu que religa o suicídio e o
silêncio. Não se deve falar do suicídio, para evitar o efeito indutor.
Os séculos 19 e 20 fizeram o suicídio se esconder no silêncio, sob o
inquestionado dever de viver. Paradoxalmente, as ciências humanas e sociais
reergueram o tabu do silêncio em torno do suicídio. Segundo Minois, “a
psiquiatria e a sociologia põem em destaque a responsabilidade das fragilidades
morais e mentais do indivíduo, bem como as deficiências e injustiças da
estrutura social”. O suicídio seria uma doença mental ou social, ou uma
convergência de ambas, nunca uma decisão livre e soberana. Mas que dizer da
morte voluntária do psicanalista Bruno Bettelheim ou do filósofo Gilles Deleuze,
que parecem decorrer não do desespero, mas da “coragem de levar às últimas
consequências seus princípios de vida”, como escreveu Odile Odoul a respeito
de Bettelheim ou do temor de que, com a continuação da doença, “ele perdesse
em escala definitiva o livre arbítrio de escolher”, como escreveu Carlos Heitor
Cony acerca de Deleuze. Bettelheim escolheu a morte aos 86, Deleuze a
antecipou aos 70. Fenômenos bastante distintos dos suicídios à moda de Werther
ou dos suicídios adolescentes contemporâneos. O suicídio não é um, são vários,
e heterogêneos.
No século 20, Albert Camus escreveu a frase célebre, incontornável: “só
existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Concluir que a vida
vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”.
Camus, que sabia que a vida era absurda, também não se matou. Transformou
em regra de vida sua revolta, sua liberdade e sua paixão: “eu recuso o suicídio”.
No século 21, o consórcio entre ciência, tecnologia e capitalismo sem fronteiras
promete saídas menos dolorosas, como a Sarco, uma cápsula de eutanásia,
impressa em 3D, que administraria nitrogênio líquido em um dispositivo com
design futurista. Seu criador, Philip Nitschke, promete para 2030 o acesso
universal a seu dispositivo. Enquanto isso, oferece palestras sobre “Por que o
suicídio deveria ser um direito humano?”, conforme Camila Appel mostrou em
seu blog Morte sem Tabu. Na Suíça, onde o suicídio assistido é legalizado,
empresas como a Dignitas e a Life Circle atraem interessados de vários países.
Os debates sobre o suicídio assistido e a eutanásia avançam em muitos países,
como a Espanha, a Holanda, a França e alguns estados dos EUA. Esses
exemplos mostram como a morte voluntária ganha contornos inéditos. Na outra
ponta, o suicídio de adolescentes e jovens desafia nossa capacidade de pensar.
Não obstante, é o mesmo consórcio que possibilita mortes precipitadas como
aquelas planejadas e/ou transmitidas pela rede de computadores. O avanço
esclarecido numa ponta traz seu avesso macabro na outra.
***
***
A primeira incursão de Freud no tema do suicídio propõe uma hipótese que
se tornaria célebre: o suicídio é o retorno, sobre a própria pessoa, de suas pulsões
agressivas e de sua violência inconsciente. Um forte argumento em favor dessa
perspectiva vem, paradoxalmente, da guerra. Na guerra, a taxa de suicídio
costuma diminuir, pois o sentimento de coesão e de pertencimento ao grupo
tende a aumentar, ao mesmo tempo que a violência pode ser exercida
legitimamente de dentro para fora, contra um inimigo externo. Se o argumento
estiver correto, as taxas de homicídio e de suicídio de uma sociedade deveriam
ser inversamente proporcionais. O suicídio tenderia a aumentar em sociedades
mais organizadas. Embora sedutora, essa tese é apenas parcialmente confirmada
por estudos estatísticos. Mas o que é essencial para a psicanálise é a escuta
singular de cada sujeito. Como as diversas práticas e experiências testemunham
sobejamente, são incríveis os efeitos da oferta de escuta para o sujeito que está
confrontado com o dilema de ser ou não ser. Dar voz ao sujeito que sofre, para
que ele possa dar um nome ao seu sofrimento.
Há indícios fortes de que estamos diante de uma configuração nova do laço
social, e que isso tem efeitos devastadores nos modos como os sujeitos,
principalmente os adolescentes, inscrevem-se no mundo da palavra. As redes
sociais, as fake news, as selfies enlaçam os sujeitos de uma forma cujos efeitos
ainda não sabemos medir. Ao mesmo tempo, o futuro distópico que se anuncia
parece não fornecer horizontes nem perspectivas. Mas, também, parece que o
tabu em torno da representação do suicídio vacilou. A série televisiva 13
Reasons Why fez um sucesso estrondoso. Não obstante, ao contrário de Werther,
tudo indica que o efeito entre os jovens foi benéfico.
Um caso que repercutiu bastante alguns anos atrás foi o suicídio,
transmitido ao vivo pela internet, do adolescente Vinícius Marques, conhecido
por Yoñlu. Mario Corso, psicanalista do jovem, deu corajosa entrevista a Eliane
Brum, em que afirma: “nossas crianças crescem numa bolha de proteção que
rompe na adolescência. Abruptamente, descobrem a dureza do mundo, a
violência, a exigência desmedida – nesse caso, às vezes dos pais. Sentem-se
traídos pelo mundo de conto de fadas que receberam. Será que não exageramos,
que não haveria um modo de desde mais cedo mostrar o mundo como o mundo
realmente é? Existe uma depressão típica do começo da adolescência que diz
respeito ao dar-se conta do peso do mal-estar da civilização. Utopias já não
colam, vivemos na época das distopias, crenças religiosas tampouco, o jovem
sente que está em um mundo absurdo. E precisamos pensar que ele não
desenvolveu os anticorpos que nós já temos... Isso chega de modo à vista. Será
que não poderia ser em suaves prestações? Brinco, mas creio que exageramos na
dose do mundo Disney. Em resumo: não os preparamos para o infortúnio, não
discursamos sobre as derrotas, as perdas, e elas são a única certeza nesta vida.
Ensinamos a ganhar, a dizer que serão vencedores. Ensinamos o fácil e
esquecemos o essencial: saber suportar as rudezas de um momento civilizatório
complicado”.
O que a psicanálise tem a dizer sobre o suicídio e os suicidas? O que os
psicanalistas têm a dizer? Neste dossiê, seis psicanalistas aceitaram o convite de
escrever sobre suas experiências e perspectivas. O que atravessa todos os artigos
é que, antes de tudo, os psicanalistas têm muito o que escutar, e aqueles que
flertam com o suicídio têm muito a dizer.
Christian Dunker, em “A pena de Maat e a escuta trágica do suicídio”,
recorre à lenda egípcia em que a deusa Maat decidia o destino de alguém
fazendo uma balança pender para um lado ou para outro apenas com o peso –
leve e decisivo – de uma pena. Em “A vida por um fio”, Henri Kaufmanner, por
sua vez, aponta para a necessidade de resgatar o fio da vida através do fio da
palavra. Ambos os textos apontam para metáforas extremamente delicadas: a
leveza da pena, a espessura do fio. O que nos liga à vida ou à morte é algo
extremamente tênue, que exige, antes de tudo, delicadeza. Carolina Nassau
Ribeiro e Andréa Guerra abordam, com dados precisos e delicadeza necessária,
o importante tema do suicídio na adolescência. Apontam o paradoxo do suicídio,
de que os jovens se matam para continuar a existir. Ana Cecília Carvalho, autora
de um importante estudo sobre os limites da sublimação, também ressalta o
paradoxo do suicídio, examinando o fracasso da escrita no tratamento da dor de
viver em escritores como Sylvia Plath e David Foster Wallace. Marcelo Veras,
coordenador de um pioneiro e eficiente serviço de urgência subjetiva na
Universidade Federal da Bahia (Ufba), faz uma pergunta decisiva: “Quem
matamos quando matamos a nós mesmos?”.
Se é verdade, como afirmam Malraux e Artaud, cada um a seu modo, que o
suicida pretende paradoxalmente continuar a viver, a prática psicanalítica nos
convida a oferecer, por meio da escuta, uma maneira menos desastrosa de
continuar a viver, fazendo a balança pender, com o insustentável peso de uma
pluma, para o tênue fio que nos liga à vida.

A pena de Maat e a escuta trágica do suicídio


Christian Ingo Lenz Dunker

O suicídio é a patologia social por excelência. Por isso ele é covariante com
processos sociais de individualização, com sentimentos sociais como a solidão e
o tédio, bem como com sofrimentos derivados da lógica do reconhecimento,
como a depressão, o apego e o desamparo. Não é um acaso que ele tenha sido
objeto de estudo dos três fundadores da sociologia.
Em seu ensaio de 1846 baseado nos relatos do oficial de polícia Jacques
Peuchet, Marx faz um estudo sobre as vidas “no deserto” e em estado de luta de
“todos contra todos”, nas quais “em temporadas de encarecimento dos meios de
vida e de invernos rigorosos, esse sintoma [o suicídio] é sempre mais evidente e
assume um caráter epidêmico”. Portanto, quando Lacan afirma que foi Marx, e
não Hipócrates ou Bichat, quem inventou o sintoma, essa afirmação pode se
endereçar ao suicídio. A miséria, o patriarcado, a família, assim como os amores
traídos e as falsas amizades são elementos da série causal do suicídio. Uma
jovem que passa a noite antes do casamento com seu noivo, e é escorraçada
pelos pais no dia seguinte, mata-se de vergonha. Outra linda jovem afastada do
convívio social pelo marido mata-se como revolta por sentir-se propriedade
privada. Uma mulher grávida tira a própria vida quando não consegue realizar o
aborto, assim como um homem desempregado tomado pelo desespero. A análise
de Marx mostra como a comunidade é uma proteção natural contra o suicídio,
sendo o isolamento ou a perda desse laço um fator de indução do suicídio. Tal
fato seria corroborado pela ascensão súbita do suicídio nos países do Leste
Europeu após a queda do muro de Berlim em 1987 e por situações nas quais a
dissolução da unidade simbólica à qual se pertence – família ou comunidade,
nação, língua ou comunidade de destino – parece induzir o ato suicida.
Em 1897, mesmo ano da aparição da psicanálise, Durkheim examinará o
suicídio ligando-o tanto ao excesso ou à falta de integração social (relação com
os outros) como com a regulação social (relação com a lei). O suicídio egoísta e
o altruísta são casos do primeiro tipo. O suicídio anômico ou o fatalista são
exemplos do segundo. A diagnóstica do autor de Regras do método sociológico
permite opor suicídios narcísicos ou paranoides – em que vigora a alienação ao
reconhecimento do Outro e o excesso de sentido – a suicídios dissociativos ou
esquizoides – em que prevalece a falta de sentido. Pessoas se matam pelo
excesso e pela falta de sentido. Por isso taxas de suicídio oscilam, tanto em
ondas covariantes com crises como em longos platôs de estabilidade social. A
tese é consistente com o fato de que, nos últimos 40 anos, taxas de suicídio
cresceram sem trégua ou oscilação, período no qual o neoliberalismo
desenvolveu um modelo econômico baseado em crises permanentes.
Max Weber, o terceiro grande fundador da sociologia, também teceu
comentários sobre o suicídio. Em seu parecer negativo ao artigo de Otto Gross,
discípulo de Freud interessado na emancipação sexual, ele adverte que a
convivência conflituosa entre a ética heroica, convocada em momentos agudos
da existência, e a ética média, necessária para responder às demandas cotidianas,
pode interferir na determinação social do suicídio. Para Weber, Gross estava
traduzindo, com rapidez demasiada, descobertas da ética da ciência psicanalítica,
atinentes a como as coisas são, para políticas dos costumes, próprias da ética da
convicção ou de como as coisas deveriam ser. Em carta a sua esposa, Weber
sugere que o isolamento de uma comunidade, como a do Monte Verità, da qual
Gross e sua esposa Frieda participaram, onde vigorava disciplina ascética
combinada com liberdade sexual, poderia elevar o risco de suicídio.
Independentemente da pertinência de tais observações, elas enfocam o suicídio
de uma quarta perspectiva: nem falta ou excesso de sentido, nem perda de
unidade simbólica, mas como fracasso na reformulação do pacto social e
decepção com a realização de ideais.
Como se vê pelos estudos clássicos, vários são os caminhos e tantas são as
formas pelas quais alguém coloca fim na própria vida, de maneira sempre tão
única. Mesmo assim o assunto costuma ser abordado com números. Mais de 800
mil pessoas morrem por suicídio anualmente. Mais do que todas as vítimas de
conflitos armados somadas no mundo. Crescimento de 40% nos últimos 50 anos.
Segunda causa de morte entre pessoas de 15 a 29 anos. Um suicídio a cada 40
segundos. Crescimento de 29,5% entre 1980 e 2006 no Brasil, com destaque
para a população de mais de 70 anos e para os jovens entre 15 e 24 anos.
Aumento de 9,3% na região Sul do país. Expansão constante entre indígenas da
etnia Guarani, no Mato Grosso, em decorrência da privação de laços e marcos de
ancestralidades. O suicídio afeta mais jovens mulheres de baixa renda, em
ambiente rural. Homens preferem armas de fogo; mulheres, envenenamento por
pesticida. Os dados assim, erraticamente compostos, apenas confirmam as
observações dos clássicos.
Os dois principais órgãos de saúde no mundo elegeram o suicídio como
uma de suas prioridades. Porém, falar em epidemia mundial de suicídio é
impreciso. Epidemia implica aumento de casos segundo uma regra de contágio
ou etiologia comum. Aumento da prevalência ou da incidência nem sempre
significa epidemia. Contudo, o próprio uso da palavra nos informa sobre a
percepção social de que estamos “pegando” a impulsão ao suicídio uns dos
outros. Ou seja, de que ele, menos do que uma doença, é um fato social. A
proximidade com eventos de suicídio, seja na família, na escola ou no trabalho,
pode aliciar a ideação suicida. Também o suicídio próximo pode ser o modelo
que precipita o gesto impulsivo, determinando, por exemplo, um suicídio sem
sinais precedentes. O desafio representado pelo suicídio expõe nossa
incapacidade atual de pensar causalidades complexas e singulares.
Essa dificuldade manifesta-se na forma como lidamos discursivamente, na
imprensa e no espaço público, com o suicídio. Depois de anos tratado como
tema proibido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere que se evitem
expressões como “epidemia de suicídio” ou “suicídio bem-sucedido”, assim
como “teses que explicam o comportamento suicida como uma resposta a
mudanças culturais ou degradação social”. Na mesma direção, recomenda-se
evitar fotografias e descrições detalhadas, especialmente do método utilizado. A
ênfase deve ser posta no luto e no sofrimento decorrente para a família ou para a
comunidade. Contudo, a recomendação que mais chama atenção é de que não se
deve insistir no discurso da culpa ou nas interpretações religiosas do suicídio.
Tais recomendações denunciam algumas hipóteses latentes: contagioso e
imprevisível, conexo a conflitos sociais e responsivo à intensificação de
emoções coletivas.
Poderíamos reunir essas condições em um paradigma clássico para
tramitação social da angústia: a tragédia. Diante de um suicídio, este é
provavelmente o primeiro adjetivo convocado: ato trágico, acontecimento ético e
estético que nos silencia. Lembremos que o modelo grego da tragédia requeria a
encenação pública de narrativas, geralmente de origem mítica. Nessas
encenações, segundo Aristóteles, seria realizada uma catharsis dos afetos
retidos, de tal maneira que o público, ao experimentar em si a piedade e o temor,
vividos particularmente pelo protagonista, poderia purificar a cidade (pólis)
desse elemento impuro. Daí que toda tragédia fosse composta de um ato de
ultrapassamento (húbris), ato pelo qual o herói vai além de sua medida (metron)
ou do limite de seu destino (ate). A condição exemplar para a boa realização da
função social da tragédia reside no fato de que ela é uma reprodução (mimese)
capaz de representar conflitos, como a lei formulada pelos homens (nómos) e a
lei ancestral figurada pelos deuses (dikê). Talvez tenha sido por isso que Freud
deslocou o termo catharsis para designar o método que antecedeu o surgimento
da psicanálise, mas que manteve no horizonte seus fins, o método catártico.
Talvez as recomendações da OMS sobre o suicídio traduzam procedimentos para
evitar o contágio catártico. Questão que convoca a pergunta: por que viver?
Pergunta que demanda meditação e reflexão. Pergunta que está historicamente
ligada à emergência da adolescência, desde o movimento romântico Trovão e
Tempestade (Sturm und Drang), até a juventude transviada, no cinema
americano, e a revolução cultural de 1968. A liberdade como tarefa nos leva ao
dilema dos milleniuns, oprimidos pelo imperativo ético de felicidade e
adequação.
O caráter transformativo e terapêutico da tragédia consiste na eficácia de
sua estrutura de ficção, capaz de criar alguma distância imaginária e certa
exterioridade simbólica com relação à presença do Real do qual o suicídio é uma
das figuras. Disso se depreende por que a divulgação dos atos suicidas deveria
ser desinvestida, ao máximo, de seus recursos estetizantes. Nenhuma sensação
induzida, aceleradora ou intensificadora. Nenhum enquadre heroico ou culposo,
nenhum efeito retórico de persuasão, nenhuma mensagem, nem de
excepcionalidade, nem de fracasso deve ser incentivada. Mas, agindo assim,
tentando deflacionar qualquer estetização da violência e da transgressão
potencialmente contida no ato, não estaríamos agindo de maneira semelhante
àquela que nos faz viver a morte como um processo silencioso, invisível e
acolhido com vergonha, dentro dos hospitais? Fato que sabidamente torna mais
lento e mais difícil nosso luto como processo psíquico e social.
A assepsia estética do suicídio, recomendada pela OMS, contrasta com o
valor que as cartas de suicidas revelam, seja no sentido da perpetuação de uma
mensagem ética, seja na busca de uma compensação estética para o ato. Se a
tragédia é a forma que encontramos para abordar essa experiência radical de
indeterminação e liberdade, compreende-se por que o discurso espontâneo sobre
a matéria nos convoca a pensar, imediatamente, em culpa e causalidade. Surgem
assim perfis e grupos de risco compostos por traços como: depressão, presença
de ideação suicida, tentativas anteriores, comportamentos de risco (como
consumo de álcool e drogas), automutilação, situação de iminência de morte ou
sofrimento extremo. Como se, ao modo de uma verdadeira doença, pudéssemos
nos proteger, com a detecção de traços, intervindo no processo para impedir a
progressão das estatísticas e proteger nossos adolescentes e, em última instância,
nós mesmos. Psicoterapia, antidepressivos, intervenções em grupos, grupos de
ajuda e campanhas de esclarecimento incluem-se na ideia de que é preciso fazer
alguma coisa para que o suicídio se apresente de forma menos incompreensiva.
Lacan dizia que não há nada mais disparatado do que a realidade humana. E
de fato a realidade do suicídio pode ser bem mais disparatada quando a olhamos
de perto. Contra essa aspiração de produzir medidas locais para causas
sistêmicas, uma meta-análise recente examinou o valor preditivo dos últimos 40
anos de pesquisas sobre o suicídio nos Estados Unidos, trazendo um dado
simples e desconcertante: nenhum dos fatores de risco para suicídio é realmente
suficiente para antecipar o ato real. Das medidas práticas tomadas para evitá-lo,
as mais efetivas são as mais ridiculamente genéricas, tais como: evitar armas de
fogo e medicações perigosas em casa ou treinar porteiros de lugares preferidos
pelos suicidas (como a Golden Gate em São Francisco). Isso ocorre porque o
raciocínio estatístico populacional nos leva a pensar as coisas de trás para a
frente, ou seja, depois do ato consumado revemos o percurso e encontramos uma
depressão aqui, um pedido de ajuda lá, uma situação de risco ignorada e assim
por diante. É muito fácil, principalmente se pensarmos de modo retrospectivo,
deixar de atribuir a alguém algum dos mais de 300 tipos de diagnósticos
disponíveis no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Estima-
se que apenas 5% a 10% da população satisfaria os critérios de normalidade em
um rastreamento desse tipo. O raciocínio populacional traz outros
inconvenientes. Ele estimula o medo e a incerteza do lado dos que cuidam.
Oferece a perspectiva do contágio (#suicídio metoo), para os que estão
considerando o assunto ou tomando coragem, efeito semelhante ao que se teme
em jogos como Baleia Azul, séries como 13 Reasons Why ou nos recentes clubes
de suicídio que se espalham pela internet com casos particularmente chocantes
no Japão (onde é possível combinar serviços de suicídio coletivo, para baixar
custos e evitar encargos aos familiares). Novamente contra os perigos do
contágio, mobilizamos estratégias de trivialização e indiferença calculada, de
maneira a valorizar os sinais e indícios, que podem ser reconhecidos em pessoas
próximas, mas não incentivar a formação de um agrupamento de identificações.
Ou seja, se por um lado precisamos de estratégias específicas para escutar e
acolher a singularidade ou a perda de singularidade que tantas vezes concorre
para o suicídio, a autodesvalorização e o sentimento de irrelevância ou
indiferença são fortes indutores de suicídio, sejam eles causados por patologias
mais ou menos persistentes, sejam eles circunstâncias de vida.
Maat, a deusa egípcia da justiça e da verdade, era esposa de Toth, o deus da
escrita e da sabedoria. Na sua cabeça pendia uma pena de avestruz. Quando, no
julgamento de Osíris, para definir o destino de alguém pesava-se o corpo contra
o coração (alma) e ocorria um empate na balança, Maat tirava sua pena e a
depositava no prato da vida eterna. Todos nós, ou pelo menos os normais,
pensamos, ao menos uma vez na vida, seriamente, em suicídio. Podemos chamar
de “pena de Maat” os fatores decisivos que fazem a balança pender para o lado
de cá. Ora, o principal fator protetivo no caso do suicídio é fácil de apontar e
difícil de praticar: a escuta singular daquela pessoa. A escuta do sofrimento é o
tratamento espontâneo, natural e social de que dispomos para enfrentar o
suicídio. O sofrimento mal tratado evolui para sintomas, e quando os sintomas
não bastam para nos separar da angústia somos tentados a passar ao ato. Quando
isso acontece, a balança de Toth é invertida e somos tomados pela certeza, pelo
impulso, pela convicção de que fugir da dor é realmente melhor do que procurar
outros caminhos. Isso não significa que fugir da dor seja covardia moral ou
afronta à vida coletiva, vivida como valor, assim defendida por tantas formas de
religiosidade ou de comunitarismo. Aqui outro dado disparatado: pessoas com
fortes crenças religiosas são mais vulneráveis ao suicídio do que ateus convictos.
Protestantes mais que católicos. Talvez isso aconteça porque o suicídio, assim
como a depressão, está menos ligado à falta de crença, otimismo ou confiança
em um futuro melhor do que à certeza necessária para o ato. A capacidade de
manter-se em incerteza parece ser um fator decisivo na pena de Toth. Essa
capacidade expande-se quando estamos com o outro, quando falamos e quando
nos sentimos escutados. Ser escutado é o oposto de ser doutrinado, convencido
ou coagido a pensar de um jeito ou de outro. Por isso o isolamento é um perigo,
mas a experiência de compartilhamento, uma proteção. Por isso também a
solidão é um risco, assim como a solitude, a capacidade de ficar consigo nos
piores momentos, é uma potência protetiva.
Se o suicídio é uma experiência social e singular em estrutura trágica,
podemos dizer que ela demanda uma escuta trágica que esteja a sua altura. Não
negar, não relativizar, não fazer de conta que se trata de outra coisa é muito
importante nesse processo. Não foi por outro motivo que Lacan dizia que a ética
da psicanálise é uma ética trágica. Há suicídios, mas não todos, que são atos de
desejo decidido – por exemplo, certas eutanásias. Mas há suicídios impulsivos,
que deixam atrás de si um sabor de desperdício. Ambos podem e devem ser
escutados.

A vida por um fio


Henri Kaufmanner

Viver nunca foi muito fácil, e, em nossos tempos, certamente não é muito
diferente. Se os impasses diante da existência não são exclusividade de nossos
dias, há, contudo, particularidades que nos exigem um esforço de leitura para
assim nos aproximarmos da inegável especificidade que a contemporaneidade
impõe sobre nossa vida. A psicanálise nos convoca a estarmos sempre à altura da
subjetividade de nosso tempo. É preciso reconhecer que os discursos mudam e,
por consequência, os sintomas também.
Hoje em dia, nossa prática se dá num mundo de excessos, onde
transbordam a adição e a compulsão. Acompanhamos a banalização e a
privatização da violência e um declínio da verdade, escancarado pelo avanço das
fake news. Num primeiro momento, pode parecer estranho afirmar que essas são
algumas das múltiplas facetas de uma nova presença da morte em nosso tempo.
Porém, a morte se dissemina na multiplicação dos restos que permeiam nossa
vida. No mundo do consumo compulsivo, onde a obsolescência dos objetos é
quase instantânea, aquilo que já não serve para nada desvela sua contraface
destrutiva. Não por acaso multiplicam-se os acumuladores – que, em vida,
transformam seus lares em verdadeiras sepulturas de restos e de morte, numa
versão contemporânea dos faraós e suas pirâmides. O que isso tudo teria a ver
com o aumento preocupante do número de suicídios, especialmente entre os
adolescentes e jovens?
A psicanálise nos permite operar com as relações absolutamente singulares
de cada humano com seu corpo. Sim, seu corpo. Afinal, não somos um corpo,
nós o temos. Nós o experimentamos em absoluta alteridade. Como seres falantes
que somos, não temos nenhuma relação natural com o mundo ou com a vida. A
natureza segue seus instintos, e, por efeito da incidência da linguagem, deles
estamos para sempre afastados. Na natureza, não há enganos, como um leão
vegetariano ou um tubarão decidido a não mais se alimentar de outros peixes.
Somente as técnicas de adestramento ou as ficções humanas nos permitem
testemunhar uma ruptura entre o animal e sua relação natural com o habitat.
Aqueles que podemos chamar de humanos, contudo, atravessados que somos
pela dimensão simbólica e pela subversão que esta produz em nossa relação com
o mundo, só existimos em nossas invenções “desnaturalizadas”. Assim, para nós,
a alimentação, para seguirmos no exemplo, longe da simples necessidade,
transita da sofisticação da culinária a sintomas como anorexia e bulimia.
Podemos tomá-la como um emblema, entre tantos outros, da afirmação freudiana
de que, no humano, o corpo é escravo de dois senhores. Afinal, temos fome de
quê?
Por aquilo que nos condiciona, somos antiecológicos por estrutura. Essa
relação de alteridade e estranheza que temos com o corpo instala-nos a vida em
meio ao mal-estar. Desde que chegamos ao mundo, somos divididos entre a
busca de satisfação para o corpo marcado pelas palavras, um gozo que buscamos
inexoravelmente, e os ideais construídos a partir de nossa existência também em
meio às palavras, aquilo que pode dar algum sentido à nossa vida. Nesse esforço
de superar esse mal-estar, já apontava Freud, somos capazes de mudar tudo em
nosso entorno, podemos construir e podemos também destruir. Diante dessa
divisão, enxergamos o mundo através das fantasias que criamos, e assim
construímos um modo de viver que busca vencer essa disjunção a que estamos
condenados pela sexualidade e que é revelada pela experiência de cada um de
nós.

A vida humana
Se voltarmos nosso olhar para um pequeno humano, uma criança ainda
bebê, sobre um cobertor ou um carpete, veremos que esse pequeno ser, que ainda
nem anda, é absolutamente capturado quando – mais além da previsibilidade do
solo acarpetado, assentado a partir do desejo daqueles que o trouxeram ao
mundo – descobre uma pequena etiqueta, ou um simples fio de linha, que escapa
da regularidade do ambiente em que essa criança se experimenta acomodada.
Esse curto fio de linha é o estranho que desvela, em sua exterioridade à
regularidade em que se encerra, a própria exterioridade do bebê. Ali ele
vislumbra um mundo novo e desconhecido.
Somos tensionados por uma pulsão epistêmica, um desejo de saber que logo
nos impulsiona, e nosso bebezinho nos revela isso, enquanto brinca e explora
esse pequeno fio de linha, presença estranha da alteridade. Esse encontro
instrumentalizado pelo olhar provoca-lhe, assim, a tão imprescindível
curiosidade. Mais além de tudo que ele pode representar para o Outro, há algo
que escapa. Tal encontro, podemos tomar como protótipo do que é uma vida
atravessada pela linguagem, o que é de fato a experiência subjetiva, algo singular
ao humano. Entre esse corpo inapreensível e sua própria experiência de ser, que
pela sua disjunção nomeamos mais especificamente como uma falta a ser, o
humano inventa um mundo. É nesse espaço onde reina sua precariedade que ele
se inaugura, vive sua diferença, constrói sua singularidade e seu gosto pela vida.
Ali ele inventa seu tratamento único para o mal-estar que sua condição humana
instala. Assim, a vida para o humano é acima de tudo uma invenção, um fio
tecido a partir da linguagem e seus efeitos sobre o corpo, uma produção de
sentido absolutamente singular a cada ser falante. O humano em nós, por mais
que padeça das vicissitudes dos hormônios e neurotransmissores, não se encerra
no sonho religioso de alguns, de nos reduzirmos a uma existência biológica.

A vida dos planetas


A certa altura de seu ensino, ao falar da constituição do Eu em Freud, Jacques
Lacan interroga seus ouvintes sobre o silêncio dos planetas. Por que os planetas
não falam?
Numa primeira visada, a questão não deixa de provocar certa perplexidade.
Lacan não recua diante da afirmação simplificadora que pode ser evocada: a de
que eles não têm boca. Ele aponta então para os graves quadros de melancolia,
conhecidos classicamente pela psiquiatria como Síndrome de Cotard. Nela, os
indivíduos se identificam maciçamente a suas imagens, sem furos – afinal, uma
boca não deixa de ser um furo na imagem. Totais, como a visão circular de um
planeta, subsumidos na dominância imaginária, são tomados de forma marcante
pelo silêncio. Apresentam ainda, com frequência, uma inabalável inapetência,
bem como o desaparecimento do reconhecimento do corpo. A Síndrome de
Cotard constitui-se em uma experiência de morte em vida, a diluição da vida na
eternidade – realidade algumas vezes expressada pelos próprios pacientes, que,
no pouco que falam, denunciam sua própria morte como um fato já ocorrido. O
Eu, enquanto experiência totalizante, é na verdade mortífero. A vida,
diferentemente disso, se faz ao atravessar os furos da imagem, os buracos desse
corpo imaginado, jamais totalizado, e que rompem com qualquer regularidade
acarpetada da existência. A vida é o fio que se rebela mais além da regularidade
do carpete.
Os corpos celestes já foram bem mais eloquentes nos primórdios da
humanidade do que o são hoje em dia. Os astros e seus fenômenos encarnaram
divindades na mitologia grega, romana ou indígena, entre outras. O raio, o
trovão, o eclipse, o meteoro, os planetas, todos diziam alguma coisa quando se
faziam presentes. Sua existência carregava um sentido, eles falavam. O avanço
da ciência nos aliviou de toda essa falação. Já não nos assustamos tanto com as
chuvas, sabemos como fazer um bom uso das estações do ano, e exceto por
algumas exceções mais místicas não nos assustamos tanto com a virada do
último milênio, nem nos surpreendemos com os movimentos que detectamos no
espaço. O avanço da ciência silenciou os planetas. A ciência corre no encalço da
totalidade imaginária do saber, e, em nosso século, com a predominância da
razão biológica, vem avançando com seu silêncio sobre nossos corpos e
consequentemente sobre nossa vida.
Quando Galileu começou a escrever a Ciência, ele nos mostrou que era
possível transcrever em letras e números a materialidade do mundo em que
estamos inseridos. A ciência acontece, desde então, nesse circuito, mantendo-se
dessa maneira no nível de uma lógica universalizante, e esta não tem nenhuma
relação mais próxima com a subjetividade dos seres falantes. Como
consequência, produz-se um esvaziamento do sentido, na medida em que as
letras trazem em si uma identidade própria e autônoma. Tomemos como
referência a genética. Seus inegáveis avanços vêm frequentemente
acompanhados do sonho de reduzir nossa complexidade à dança das letras que
identificam os genes. Em seu intento de um saber universalizante, completo e
sem furos, muitos na ciência acreditaram poder reduzir a experiência à escrita
científica. A epigenética, ou mesmo a física quântica, entretanto, já expuseram a
incerteza dessas ideias, e a experiência humana insiste em não se deixar domar
por uma única verdade científica. Os “terraplanistas”, por mais que nos
surpreendam, estão aí para corroborar essa afirmação.

A morte em vida
Lacan insistentemente esforçou-se em mostrar o intratável da condição humana.
Em seu ensino, em mais um de seus exercícios, utilizou o dilema de uma escolha
forçada entre a bolsa ou a vida. Diante de nossa existência, não temos nada além
de uma escolha. Se escolhermos a bolsa, teremos a vida arrancada, se
escolhermos a vida, teremos que experimentá-la destituídos do objeto. Nossa
falta a ser, nossa divisão, coloca-nos diante de uma existência sempre marcada
por uma perda, um furo irremediável. Nesse sentido, todos atos humanos são
atos falhos. Nossos atos resultam sempre em desencontro, e é nesse desencontro
que vamos tecendo o fio de nossas vidas.
Viver seria, então, buscar um derradeiro e único encontro, não somente
impossível por nossa estrutura, mas também postergado por nosso gosto pela
vida. Seria tecer um fio, tracionados pelo vazio constituinte do desejo, enquanto
os limites biológicos de nosso corpo suportam. O único ato humano que não
seria falho seria o suicídio. A morte antecipada aparece ao suicida como um
recurso único e final ao intratável. Se, por um lado, a ciência já convive com a
incerteza, assistimos nas últimas décadas a mudanças dramáticas nos modos de
viver. O mundo se vê tomado pelos imperativos do consumo, na devoção aos
objetos gerados pela técnica, resultado do avanço inconteste do capitalismo e de
sua aliança com a ciência. A dominância globalizada das corporações e do novo
liberalismo econômico dissolveu a ideia de cidadania, originária da democracia,
na lógica distributiva de fazer de todos consumidores. Uma incontável
multiplicidade de objetos invade nossa experiência; dos entorpecentes – sejam
eles lícitos ou ilícitos, são objetos privilegiados para entendermos as relações de
consumo – às ofertas de manipulação do corpo – sejam cosméticas ou cirúrgicas.
Vieram a internet, os smartphones, as redes sociais e seus likes, as selfies e, por
que não, as fake news. Junto a cada novo objeto oferecido ao consumo, uma
nova compulsão, e junto a esta o inevitável resto a ser excretado.
Essa avalanche de objetos acaba por obliterar as vias do desejo. A cada
reencontro com seu mal-estar e sua falta, o mundo do consumo tem um objeto a
oferecer. Não há perda que não possa ser colmada ou dor que não possa ser
anestesiada. O ser falante é assim extraído de sua responsabilidade na construção
da vida, sua curiosidade e seu desejo de saber se afogam nas possibilidades do
consumo. Nesse circuito, o que se produz é o silêncio, são restos e dejetos que já
não dizem mais nada. A depressão e a angústia, desse modo, opacificam nosso
tempo. Na disseminação dos objetos, cada um é consumidor/consumido. Cada
um é o que consome, mas é também objeto de seu próprio consumo. A
verdadeira epidemia das selfies permite-nos ilustrar muito claramente todo esse
movimento. Elas são disparadas compulsivamente, mesmo que posteriormente
seu uso se restrinja, muitas vezes, a seu próprio autor. As posições corporais,
assumidas diante das câmeras dos smartphones, são tão semelhantes que é
impossível não reconhecer alguém no exercício da selfie. Cirurgiões plásticos
passaram a relatar casos do que nomeiam como “Snapchat dysmorphia”. Cada
vez mais adolescentes procuram esses profissionais solicitando uma intervenção
cirúrgica que deixe sua face igual à de suas selfies modificadas pelo Photoshop.
No mundo do consumo, é preciso ser funcional, é exigida a performance.
Os indivíduos não recuam para se fazer à altura dos imperativos da cultura.
Quantos não têm morrido na busca da selfie mais espetacular? Quantas crianças
hoje não são introduzidas precocemente no campo das drogas, mesmo que
lícitas, por uma suposta insuficiência de sua atenção? Não é também essa
exigência que faz do Viagra e de seus similares a droga lícita mais vendida em
nosso país? Estamos diante de uma nova forma de servidão. Aquele que não se
inclui se vê diante da única alteridade possível, a do dejeto, do resto que não
significa mais nada. Esse é o impasse de nosso tempo. No imperativo de sermos
todos iguais, suprime-se toda a singularidade, segrega-se aquilo que destoa. A
regularidade compulsiva de nosso tempo não suporta a rebeldia da palavra. Se
vivemos onde inventamos, onde nosso corpo não se reduz à circularidade total
das imagens padronizadas do consumo, é preciso recuperar o fio da invenção de
cada um a partir da sua diferença, a partir daquilo que não se consegue reduzir à
massa informe dos restos, à mortificação em vida.
Lembremos que a adolescência é um tempo particularmente difícil. A
puberdade modifica indelevelmente as imagens e os humores. As crenças e
fantasias de criança são afetadas de forma a romper os antigos laços que
mantinham com seus responsáveis e mesmo com o mundo. A desilusão é
inevitável. Os desejos e empuxos à satisfação se impõem de forma muitas vezes
incoercível. Nessa ampliação da disjunção entre o que experimenta e a
representação que tinha de si mesmo até então, abre-se o espaço para um enorme
desamparo. Os adolescentes e os jovens são, desse modo, ainda mais vulneráveis
às imposições obliteradoras do mercado. São também, como contraponto, os
mais abertos à invenção e à novidade, das quais são, portanto, capazes de fazer
um ótimo uso. Nossa condição de seres falantes foi reduzida ao obsoleto. Dela
não se espera mais que a banalidade de um like. É preciso resgatar o fio da
palavra, abrir espaços para que os corpos e a fala de cada um se façam presentes.
Urge conversar, acolher e criar ambientes e dispositivos que favoreçam a
conversação e a tolerância às diferenças, apostar nas invenções de cada um. No
mundo do consumo, o obsoleto é puro dejeto, o resto é a morte. A vivificação é
como um esforço de reciclagem dos dejetos e que se faz a partir do singular que
escapa em cada um, daquilo que não se inclui. Se recuarmos diante dessa aposta
e persistir apenas a segregação como presenciamos hoje no mundo, para muitos,
cada vez mais, só restará mesmo a derradeira e fatal possibilidade do último
encontro, muitas vezes testemunhada por uma última selfie.

O suicídio na adolescência
Carolina Nassau Ribeiro e Andréa Maris Campos Guerra

O tema do suicídio entre adolescentes tem sido mote de várias pesquisas, debates
e políticas de prevenção, tendo em vista o aumento localizado de sua incidência
no mundo, apesar da subnotificação dos casos. Segundo a Organização Mundial
da Saúde (OMS), em 2018 o suicídio foi a causa de 56% das mortes violentas no
mundo, incluindo violência interpessoal, conflitos armados e suicídio.
Oitocentas mil pessoas tiram a própria vida por ano, sendo que essa é a segunda
maior causa mortis entre jovens de 15 a 29 anos no planeta. A taxa de suicídio
entre adolescentes é um pouco maior em países de alta renda em comparação
com países de renda média e baixa, com algumas exceções, como é o caso do
Brasil. Os dados também indicam que o número de tentativas de suicídio é maior
entre as meninas, enquanto o suicídio propriamente dito é mais alto entre jovens
do sexo masculino.
O Brasil é considerado um país com taxa média de suicídio (6,3 por 100 mil
habitantes). Seus dados notificados giram em torno da triste cifra de 11 mil
pessoas por ano, sendo o suicídio computado como a quarta maior causa mortis
entre jovens de 15 a 29 anos no país. Segundo pesquisa da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp), a taxa aumentou 24% entre adolescentes que vivem nas
grandes cidades brasileiras e cresceu 13% entre jovens do interior do país – o
que vai contra o decréscimo de 17% da taxa de suicídio entre adolescentes no
mundo, no período de 2006 a 2015.

Os 13 porquês do suicídio entre adolescentes


Em 2017, imbuída de perguntas acerca do suicídio entre adolescentes, foi
lançada uma série baseada no livro Thirteen Reasons Why (2007), de Jay Asher,
adaptado por Brian Yorkey (2017) para a Netflix com o título em português de
Os 13 porquês. Apesar de polêmica, a série reproduz em seu roteiro o momento
em que uma jovem com ideações de tirar a própria vida procura ajuda do
conselheiro da escola. É possível escutar seus indícios? Hannah Baker, uma
adolescente de 17 anos do Ensino Médio de uma escola norte-americana, não é
diferente das demais jovens de sua geração. Também não há nada
excessivamente patológico em sua família. Seus pais apenas não conseguem
prestar muita atenção na filha, apesar de ser bem nítido que têm bastante amor
por ela. Isso não é pouco, e manifesta-se com recorrência em nossa época. A
protagonista esboça seu sentimento de invisibilidade em relação aos pais com
uma fala muito contundente dirigida a Clay (seu amor platônico): “Os pais
acham que não percebemos as coisas. Eles não só não me veem, eles não me
veem vendo eles”.
Ao longo da série, ela passa por diversas situações típicas da adolescência,
como desilusões amorosas, brigas entre amigos, sensação de isolamento,
embaraços e desencontros em relação à sexualidade, bullying virtual, sensação
de que não é adequada. Não obstante, ela também vive situações traumáticas,
como assistir petrificada a uma cena de violência sexual contra uma colega e,
posteriormente, ser ela própria violentada pelo mesmo rapaz.
O episódio em que ela decide tirar a própria vida inicia-se com uma
afirmação incisiva: “Darei à vida uma última chance”. Ela decide finalmente
falar sobre o que lhe aconteceu e pedir ajuda ao conselheiro escolar. O
atendimento inicia bem, ela oferece boas dicas: sente-se perdida, vazia, como se
nada mais importasse, diz que precisa que a vida pare. Contudo, o conselheiro
não suporta ouvi-la. Ele resiste em escutar o horror da violência sexual. Não
aposta no testemunho, na narrativa, no valor da palavra. Ele a convida a
formalizar sua queixa perante as autoridades responsáveis, antes de acolhê-la.
Uma segunda e explícita recusa de escuta, depois da familiar, cujos efeitos foram
devastadores para esse sujeito, já à beira de um abismo.
Quando o conselheiro encerra a fala de Hannah na direção de uma
conclusão, em vez de dilatar o tempo de compreender, a situação culmina numa
precipitação da protagonista, que passa ao ato. Ela sai da sala do conselheiro
convencida de que não seria mais possível seguir em frente e, então, tira a
própria vida.

A beleza horrenda do suicídio


A beleza horrenda do suicídio reside no fato de que é pela própria extinção do
corpo que o suicida produz uma marca indelével no mundo simbólico de seus
entes. Ao provocar uma ruptura com os equívocos da palavra, com a falta de
sentido do mundo e com a impossibilidade de se fazer presença no campo do
outro, o suicida produz uma interrupção nos deslizamentos da linguagem e deixa
sua marca como um signo congelado na história de seus afetos. O psicanalista
francês Jacques Lacan, em uma de suas aulas do seminário oral proferido em
1958, diz que, quando abole a si mesmo, o suicida torna-se mais signo do que
nunca: “A razão disso é simples: é precisamente a partir do momento em que o
sujeito morre que ele se torna, para os outros, um signo eterno, e os suicidas
mais que os outros”. É por isso mesmo que o suicídio tem uma beleza horrenda,
o que o torna tão terrivelmente condenado pelos homens. Tem também uma
beleza contagiosa, que dá margem àquelas epidemias de suicídio que são o que
há de mais real na experiência.
Se subjetivamente o impulso ao suicídio na adolescência revela essa
indisposição entre sujeito e outro, resta como questão quais seriam os móbeis, os
motores sociais que o incitam. A morte voluntária e as tentativas de
autoextermínio muitas vezes se tornam um movimento coletivo, arregimentado
por processos identificatórios nos quais os sujeitos se reconhecem a partir deste
traço comum: tornar-se signo para o outro. As identificações são formas
prevalentes de apoio na travessia adolescente. E há, também, causas societárias,
como ausência de redes familiares e sociais de suporte, uso abusivo de
substâncias tóxicas, popularização da internet, com jogos que incitam à violência
e ao desafio, somadas à falta de políticas públicas de prevenção e combate ao
autoextermínio.
O suicídio na adolescência apresenta também uma questão sobre sua
especificidade: haveria algo de particular nessas tentativas bem e malsucedidas
ocorridas nesse período de vida? Sabemos que o/a adolescente está às voltas com
mudanças corporais advindas com a puberdade, com transformações na imagem
de si, com o confronto com saberes que não mais respondem a seus anseios e
dúvidas, com a separação do modelo familiar ao qual se alienou e com o qual se
identificou na infância e com o encontro com novas formas sexuais de obtenção
de prazer. Há, pois, um intenso trabalho de elaboração psíquica e subjetiva, que
exige uma presença do outro familiar e social como alça de passagem nesse
processo. Essa experiência, na atualidade, é marcada pela ausência de rituais de
travessia, pela queda de tradições emancipatórias, pelas novas formas de
parentalidade no interior da família, pela imersão no mundo virtual com uma
multiplicidade de saberes horizontalizados e acessíveis, pela pluralidade de
gêneros e por vulnerabilidades variadas.
Com isso, o/a adolescente acaba por buscar, singularmente, o valor da vida
verdadeira fazendo experimentações de si em condutas de risco, na tentativa de
escrita de sua presença no campo do Outro. Testar os limites do corpo ou
escrever a dor sobre a pele apontam para as dificuldades de simbolização dessa
travessia. Por outro lado, sinalizam o silêncio perpetrador de impossibilidades de
significação, traduzidas pelas ideações e tentativas de autoextermínio. Ou ainda,
em outra via, indicam movimentos de autopunição, mobilizados pela culpa
inconsciente. Muitas vezes a agressividade dirigida ao mundo é contida por
mecanismos inconscientes e retorna sobre o próprio sujeito, a partir da inversão
sobre si das acusações e do ódio contra o outro que desampara, silencia, fica
indiferente e, no extremo, violenta.
Como lidar com toda essa complexidade que envolve as ideações, as
tentativas e o próprio atentado contra a vida, cometido pelos/as adolescentes?

Intervenções possíveis
Na série, o conselheiro da escola, em vez de dar palavra, resguardar e amparar
Hannah, desfiando os efeitos de suas experiências, dá-lhe um ultimato. Ele
convoca o protocolo que rege os homens, em vez de enlaçá-la pela ligação com a
vida. Ela teria que denunciar o autor da violência sexual e arcar com os efeitos
da acusação ou seguir em frente silenciada. Ao assistir ao episódio, é muito
nítido o recuo do adulto diante do impasse de sustentar junto com Hannah uma
possível delação, mas sobretudo, antes disso, de escutar o horror do que ela
experimentara. Ser escutada era a única coisa de que ela precisava naquele
momento. Entretanto, ele transforma a situação num protocolo a ser cumprido.
Ora, esse artifício da burocracia da lei não dá um lugar ao sujeito. Teria sido
importante que, primeiramente, ela se localizasse, para depois ter condições de
decidir com o que e como daria conta de arcar, em termos de denunciar o colega
legalmente e ainda saber com que tipo de apoio poderia fazê-lo.
Os dados indicam que cerca de 50% a 60% das pessoas que tiram a própria
vida nunca se consultaram com um profissional de saúde mental. Não obstante,
80% dessas pessoas foram a um médico um mês antes do suicídio. Dois terços
dessas pessoas comunicaram aos seus parentes e amigos próximos a intenção de
autodestruição, o que indica que existem, sim, indícios que podem ser escutados
e observados, apesar da resistência e do tabu em admiti-los. Vale destacar que os
índices estão crescendo nas áreas em que a posse de armas está atrelada a
dificuldades econômicas. Em muitos casos, o suicídio é um ato impulsivo e pode
ser evitado se os meios para efetivá-lo não estiverem à mão – metade dos
suicídios nos EUA são cometidos por armas de fogo – e também se houver
profissionais preparados para lidar com a situação perante a tendência de o ato
acontecer. Uma política armamentista, como a defendida pelo atual governo
brasileiro, confirma empiricamente o aumento do risco de o impulso suicida
tornar-se ato bem-sucedido.
Nos últimos anos, a OMS criou vários manuais para a prevenção do
autoextermínio, que compõem um programa de prevenção endereçado a médicos
e demais profissionais da saúde, professores e conselheiros. Em pesquisa recente
de 2019, publicada no The British Journal of Psychiatry, Stephen Briggs e sua
equipe verificaram que o tratamento psicanalítico e as psicoterapias dinâmicas
são os meios mais eficazes na redução das tentativas de suicídio. Contudo, a
pesquisa não consegue identificar quais elementos especificamente tornam essas
psicoterapias mais efetivas.
Resultado de outra investigação da Organização Pan-americana da Saúde
(Opas) indica que fatores protetivos, como forte relação parental e apoio para
enfrentamento das questões da transição adolescente, constituem elementos
centrais de prevenção. Destaca-se, portanto, a posição do outro diante da palavra
do sujeito adolescente. A importância de uma escuta que dilate o tempo de
compreender entre o instante de ver o impasse e o momento de concluir sua
saída são indispensáveis para que o sujeito adolescente não se precipite em um
ato como o suicídio. Talvez esse cuidado com a palavra do adolescente por meio
da escuta elucide por que os tratamentos psicanalíticos e psicodinâmicos
possibilitam um melhor resultado em relação à possibilidade de se tirar a própria
vida. Trata-se, portanto, de construir um amparo mais pela palavra do que pelo
protocolo.
Como lembra Malraux, “quem se mata corre atrás de uma imagem que
forjou de si próprio: as pessoas matam-se sempre para existir”.

Destruir para recompor


Ana Cecília Carvalho

No dia 13 de maio de 2019, o ator americano Isaac Kappy, de 42 anos, se matou,


saltando de uma ponte sobre uma rodovia no estado do Arizona, nos Estados
Unidos. Dias antes, ele havia publicado uma carta que chamou atenção pela
maneira rebaixada com que descreveu a si mesmo. Dizendo ter feito uma
“introspecção”, ele afirma ser um “traidor”, um homem “mau”, “arrogante” e
“mesquinho” que só fez mal às pessoas. Confessa estar arrependido por seus
erros e pede perdão àqueles que prejudicou ou traiu.
Nota-se a semelhança entre os termos dessa carta seguida de suicídio e a
admissão de culpa do réu diante do tribunal, depois que uma investigação aponta
ser ele o culpado de um crime para o qual a sentença é a pena de morte. Nesse
sentido, um suicídio como o de Kappy visaria restituir aos outros o que a pessoa
acredita ter lesado neles e, também, ao cumprimento da sentença
autoestabelecida para pagar pelos próprios crimes, restabelecendo a dignidade,
tal como no ritual japonês do harakiri. O psicanalista veria nisso uma
comprovação da ideia de Freud: o suicídio é um assassinato do objeto mau que o
indivíduo acredita ter-se tornado. Ou seja, pelo suicídio, o que se busca é uma
restauração. Resguardadas as singularidades que compõem o universo de
suicidas e das diferentes motivações para o autoextermínio, um elemento comum
se destaca, ainda que a título de hipótese: o suicídio revelaria o seu lado
paradoxal, por ser autoconservador.
Se esse aspecto paradoxal do suicídio é evidente na morte de Kappy, ele se
revela de modo insuspeito no caso de escritores que se mataram em pleno
período de produtividade literária, tais como Sylvia Plath, que se suicidou em
1963, aos 30 anos, e David Foster Wallace, morto em 2008, aos 46 anos. Pois,
ao que tudo indica, nenhum dos dois descreveria seus dramas pessoais com os
termos usados por Kappy para justificar o próprio suicídio. Enquanto Foster
Wallace já era um autor consagrado quando morreu, no caso de Plath, chama a
atenção que tenha se matado justamente quando encontrou a sua almejada “voz
literária”, depois de ter destacado mais de uma vez a função terapêutica da
escrita. Portanto, haveria algo na escrita criativa que a tornaria disfuncional?
Se a ideia do caráter autoconservador do suicídio faz sentido, convém
examinar o envolvimento do sofrimento emocional com a sublimação, conceito
psicanalítico usado para descrever o processo criativo. Nesse ponto se destacam
duas das noções mais conhecidas sobre a sublimação. Uma delas segue as
formulações iniciais de Freud que a relacionam aos impulsos sexuais (que visam
ao prazer) e a apresentam como uma via diferente dos sintomas, na medida em
que o prazer nela obtido surge das mudanças feitas no material reprimido que,
disfarçado em arte, obtém aprovação no mundo externo. Nessa linha, uma outra
concepção, inspirada em Jacques Lacan, pensa que, se a sublimação é um
destino diferente dos sintomas da neurose e da psicose, naquilo que os
caracteriza como expressões cifradas e fechadas em si mesmas, é por causa do
laço social que ela promove.
Se essas ideias sobre a sublimação, aqui retomadas brevemente, aludem à
relação entre o sofrimento emocional e o processo criativo, elas apenas nos
mostram o que em geral se pensa sobre a criatividade, que é o seu lado
funcional. Quanto ao seu lado disfuncional, pressentido no suicídio do escritor
criativo, elas não nos ajudam muito. Assim, é preciso destacar uma terceira ideia
sobre a sublimação, apresentada por Freud em uma formulação mais tardia, no
livro O eu e o isso: a sublimação resulta em uma liberação de impulsos
destrutivos no superego, o que faz com que o eu fique exposto “ao perigo de
maus tratos e morte”. Inicialmente descrita como um “destino menos defensivo”
das pulsões, a sublimação seria um recurso limitado e potencialmente perigoso,
não devido aos sacrifícios impostos à sexualidade, como Freud chegou a pensar,
mas pela natureza destrutiva dos elementos que a compõem.
Essa destrutividade potencial no processo criativo nos permite considerar,
no suicídio de Plath e de Foster Wallace, a predominância dos elementos que,
mobilizados pela escrita, são os mesmos que os levaram a repetir o sofrimento
psíquico. Plath, por exemplo, dizia suspeitar que a “inundação” não poderia ser
contida pelo “polegar da palavra no buraco do dique”, mas procurou fazer com
que o fluxo das palavras jorrasse com a mesma intensidade da hemorragia
psíquica. No final da vida, ela dizia estar escrevendo “com sangue”, ou seja, o
mais próximo possível da fonte de sofrimento, onde a palavra não é buscada para
curar: “O jato de sangue é poesia,/ Não há nada que o detenha”, lemos no poema
“Bondade”, escrito dez dias antes de seu suicídio. Nota-se a semelhança entre
essas enunciações e as de Ana Cristina Cesar em “Contagem regressiva”, escrito
nas últimas semanas de sua vida, no qual se lê: “Os poemas são para nós uma
ferida”. Anne Sexton diria, ainda, que “o suicídio é, afinal, o oposto do poema”.
Não sem razão, Virginia Woolf procurava alternar a escrita de livros muito
carregados de experiência pessoal, que abalavam seu estado emocional, com a
escrita do que chamava de “livros de férias” ou “livros que descansam de outros
livros”.
Em um depoimento, Foster Wallace falou sobre a necessidade de utilizar a
experiência emocional, o que exigia trabalho redobrado para transformá-la em
texto. Quando escrevia artigos ou ensaios, sentia que perdia contato com algo
importante, logo sendo necessário voltar à escrita de ficção. Lamentava que um
dos efeitos dos antidepressivos que tomou por vinte anos fosse a supressão dos
afetos. A medicação “emudecia” as suas emoções, e ele precisava delas para
escrever ficção. Se isso soa diferente dos “livros de férias” de Virginia Woolf,
chama a atenção o fato de que, uma vez imerso na escrita ficcional, já não era
possível para Wallace encontrar uma medida para a intensidade do material
mobilizado pela própria escrita. Em seus textos de ficção, o negativismo
mimetiza e mesmo denuncia a impostura da linguagem, com as vozes das
personagens se confundindo muitas vezes com a do narrador em uma
perspectiva ao mesmo tempo irônica e sombria.
Para descrever o caráter potencialmente disfuncional do processo criativo
que se vislumbra nos suicídios de Plath e Foster Wallace, formulei a expressão
toxidez da escrita. Isto porque, cada um ao seu modo, ambos enfrentavam o
caráter insuficiente da linguagem para conter a ameaça de transbordamento dos
elementos destrutivos que a escrita ao mesmo tempo veicula e transforma. O véu
tecido por essa escrita é esgarçado, “véu de buracos”, “manto de impossíveis”,
como Plath escreveu em um poema de outubro de 1962. As palavras se tornaram
“ecos” no vazio, é o que se pode ler em “Palavras”, um dos seus últimos poemas.
“A pessoa deprimida estava com uma dor terrível e incessante, e a
impossibilidade de repartir ou articular essa dor era em si um componente da dor
e fato de contribuição para o seu horror essencial” – dirá o narrador no conto “A
pessoa deprimida”, de Wallace, escrito 10 anos antes de sua morte. Nesse texto
de 35 páginas, 12 delas são ocupadas por longas notas de rodapé que, voltando
ao ponto em que se iniciam, não apontam para novas direções nem esclarecem
qualquer coisa. Em uma narrativa circular e repetitiva, essas notas evidenciam
justamente o aspecto de que o narrador tanto se queixa: a impossibilidade de
mudança pela palavra. No conto “Octeto”, de 1999, a narrativa descreve o
processo da construção textual do próprio conto e denuncia o caráter
manipulativo, falso e insuficiente das palavras e dos meios simbólicos para
transmitir tanto uma intenção de modo genuíno como para estabelecer uma
conexão real com o mundo externo. Wallace mostra, assim, estar atento ao
fracasso da função defensiva das palavras, embora elas se apresentem como o
único meio para tecer o caminho para fora do sofrimento emocional.
Se algo nessa escrita confirma a ideia do “triunfo da literatura e da derrota
do autor”, conforme o crítico Peter Davison, é porque, talvez, o que é bem-
sucedido do ponto de vista estético nem sempre é bem-sucedido do ponto de
vista emocional, como outros formularam. Se há triunfo na criação literária, há
também o risco de uma contenção mortífera diante da precariedade da rede
simbólica com o qual o escritor procura suturar o abismo entre a experiência
afetiva e a simbolização. No processo sublimatório de que resulta a escrita
literária, não existe garantia para um distanciamento compensador. “O texto é
uma saída, mas não é o abrigo”, enfatiza a ensaísta Suzanne Juhasz.
Projetos literários como os de Plath e Wallace são cercados de riscos, não
apenas porque os expunham aos limites da linguagem, mas também devido à
natureza do afeto que, se não mobiliza a escrita criativa, é reativado por ela. Este
afeto é a dor psíquica, que na escrita surge de centro ferido que sangra
psiquicamente sem cessar. Quando a sublimação aproxima-se demais desse
centro, ele “se torna silencioso. Cala-se”, lembra-nos o psicanalista André
Green. Esse fundo de silêncio, nunca inteiramente apreensível pela rede
simbólica à qual o escritor se agarra para dele se distanciar, é, ao mesmo tempo,
fonte das palavras e apresentação de sua insuficiência. O último poema de Sylvia
Plath intitula-se “Limite”, no qual ela parece apontar para o ponto limite do
processo criativo: “Chegamos até aqui, acabou-se.”
Nessa poética do suicídio, como costumo descrevê-la, Sylvia Plath e David
Foster Wallace fizeram uso da escrita para proteger-se de algo que, em algum
nível, é precipitado pela própria linguagem. De um lado, a possibilidade de
conexão prometida pelas palavras; de outro lado, a experiência sempre
insuficiente da escrita, trabalho do qual Foster Wallace terminará por revelar a
impostura: “Você é, infelizmente, um escritor de ficção. (...) De qualquer forma,
[isto] não vai fazer você parecer sábio, nem seguro, nem dotado, nem qualquer
das coisas que os leitores geralmente querem fingir que acreditam que o artista
literário que escreveu o que estão lendo é, quando sentam para tentar escapar do
insolúvel fluxo de si mesmos e entrar em um mundo de significado
preestabelecido.” Na época da sua morte, ele estava escrevendo o romance The
Pale King [O deus pálido], que deixou inacabado. Convidado para a
comemoração dos 10 anos de publicação de seu romance Infinite Jest [Graça
infinita], Wallace recusou. Disse estar mergulhado em um longo projeto e que
seria difícil voltar a ele, caso o interrompesse. Plath também escrevia
prolificamente antes de se matar, o que indica na escrita uma função
restauradora mas precária. Quando a dor psíquica tornou-se excessiva pela
impossibilidade de domínio dos elementos desintegradores que são parte da
toxidez da escrita, ambos buscaram um tipo extremo de contenção. As palavras
de Antonin Artaud ecoam tragicamente, aqui: “Se me mato, não é para me
destruir, mas para me reconstituir.”

A solidão dos hiperconectados


Marcelo Veras

Ninguém entra na universidade se não tiver uma perspectiva de futuro. Por que
então, colapsando esse futuro, tantos jovens universitários se matam atualmente?
O número de suicídios entre eles aumentou significativamente, é um fato que
circula nas mídias, tanto no Brasil como no mundo. Coordenando o PsiU, um
serviço que busca atender à urgência subjetiva na Universidade Federal da Bahia
(Ufba), levantei algumas reflexões sobre o que aprendi com esses jovens, muitas
vezes no limite de atravessar a própria imagem no espelho, na busca de uma
leitura desse novo momento social. Com uma média superior a 100 atendimentos
mensais, o PsiU discute em sua reunião semanal algumas características dessa
geração de millennials que a distingue das gerações precedentes.
São mortes prematuras que, no mundo utilitarista, não poderiam deixar de
passar pelo crivo do mestre contábil. Surge assim o índice APVP (Anos
Potenciais de Vidas Perdidas), que estima, a cada 100 mil habitantes, quantos
anos um país perde por conta dessas mortes. Compara-se a idade da morte do
jovem com a expectativa de vida calculada em 69 anos. No Brasil, esse índice
está em ascensão. Em 2015, estima-se que foram perdidos 7030 anos por 100
mil habitantes. Aspirados pelo universo virtual dos games e redes sociais, os
millennials dão sinais de que algo não deu muito certo no projeto de uma aldeia
global hiperconectada. De 2006 a 2015, a taxa de suicídio entre adolescentes no
Brasil subiu 24%. Em um mundo onde o retorno crescente do espírito liberal
leva todo jovem a experimentar-se como empreendedor de si mesmo, a miragem
de relações verdadeiras nas redes oculta dramas íntimos e fracassos que não
encontram tradução no mundo idealizado, e falso, do sucesso virtual.
Um estudo recente conduzido por Johannes Eichstaedt da Universidade da
Pensilvânia investigou o uso do Facebook nos últimos anos e comparou um
grupo identificado como tendo sintomas de depressão e outro supostamente livre
desses sintomas. Com o uso de algoritmos que analisaram as postagens dos dois
grupos distintos, foi possível identificar que o grupo dos depressivos havia
postado muito mais sobre si mesmo do que o grupo que não tinha traços
depressivos. Podemos inferir que o narcisismo não é um antidepressivo eficaz.

Quem matamos quando matamos a nós mesmos?


Em 1915, Freud escreve que, para o próprio sujeito, sua morte é irrepresentável,
o simbólico não pode dizê-la. Ou seja, para o pensamento freudiano podemos
dizer: penso, logo sou imortal. Por mais que afirmemos que todos os homens são
mortais, não existe a inscrição da morte no inconsciente. A morte faz furo no
simbólico, como disse Lacan nos anos 1970. Pensar a questão do suicídio pela
psicanálise exige consequentemente um giro de perspectiva. O suicida não se
mata, ele mata a imagem de si. No trabalho, nas universidades, na comédia
amorosa, nos dramas familiares, no tribunal permanente da opinião pública, é
sempre nossa imagem, ou ego, que marca presença. É ela que sai de cena.
E como isso ocorre? A resposta é que o ego traz consigo, se acompanhamos
a teoria freudiana do narcisismo, a crença de que nosso corpo é a imagem que
temos de nós mesmos diante do espelho. Nós nos reconhecemos nessa imagem,
nos alienamos nessa imagem e passamos a denominá-la “eu”. Quem nunca
pensou no próprio enterro ou no efeito que sua não existência causaria no outro?
Quando desejamos nossa morte, continuamos a pensar nossa ausência como uma
presença para além da morte. Por sermos seres de linguagem, nossa existência
não tem a ver com nosso corpo biológico – que nos precede. Como nossa
existência se aloja nas palavras, vivemos a eterna tensão entre um corpo
biológico perecível (já que esse corpo morre) e nosso ser de fala que, entre
outras façanhas, nos separa do reino animal e tem a capacidade de conjugar
verbos no futuro.
Ser humano é igualmente ter que se haver com o corpo que se tem, e não
apenas com o corpo que se “é”. Nossa condição de fala nos desnaturaliza, já que
a pulsão de morte, tão humana, sobrepõe-se ao instinto animal de sobrevivência.
Justamente por termos um corpo, podemos nos desfazer dele. É na vertigem
entre ser e ter um corpo que surge a angústia heideggeriana que nos determina
como um ser para a morte.
Na Antiguidade, o romano que quisesse encerrar sua vida passava por uma
espécie de comitê de ética que ponderava as razões e podia autorizar o ato.
Apenas os soldados, os condenados e os escravos não podiam fazer essa
demanda, pois o corpo deles pertencia ao Estado. A condenação “à morte” do
suicida, com seus grandes tribunais post-mortem, ocorre precisamente quando o
corpo passa a ser propriedade de Deus. Dito por Santo Agostinho: não te
matarás. Georges Minois, que escreveu a História do suicídio, referência
incontornável sobre o tema, chama a atenção de que foi preciso o teatro inglês
do século 16 para que o suicídio passasse a ser visto como questão subjetiva. Em
seu livro Da faca à pena: o suicídio na literatura inglesa no renascimento,
Bernard Paulin relata que, em apenas 40 anos, cerca de 200 suicídios foram
encenados em mais de 100 peças teatrais na Inglaterra. Sem dúvida, o caso mais
famoso é o de Hamlet, em que a questão do ser ou não ser é posta como uma
interrogação que exige uma resposta sempre única para cada personagem da
comédia humana.

O suicídio sem sujeito


Contudo, seguindo o destino de todo sentimento humano, o suicídio no mundo
atual tornou-se patologia e passou aos cuidados da psiquiatria. Ou seja, no século
21, corpo e mente do suicida pertencem à ciência. Esse pensamento atinge
proporções globais: é a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) que diz
que 90% dos suicídios estão associados a distúrbios mentais e poderiam ser
evitados se as causas fossem tratadas corretamente. Essa estatística tornou-se
argumentum ad nauseam de toda exposição psiquiátrica sobre o suicídio nos
dias de hoje. Eis o ponto inquietante: o suicídio como doença desresponsabiliza
tanto o sujeito como o Outro social, torna-se uma aberração comportamental, um
enquistamento maligno, cujo caminho, na maioria esmagadora dos casos, é a
medicalização. Essa constatação não é nada confortável sobretudo quando
inúmeros trabalhos apontam para o aumento de mortes ligadas à associação entre
pensamentos suicidas e uso de substâncias químicas, antidepressivos
principalmente.
O episódio da gigante da telefonia francesa France Telecom no período de
sua privatização é emblemático do papel do Outro na dita “epidemia de
suicídios”. Entre 2006 e 2011, o plano Next de reorganização da empresa
estimulou práticas severas para reduzir mais de 20 mil postos. Uma parte,
contudo, era composta de servidores estáveis, e uma política de assédio moral
instituída pela empresa deflagrou uma onda de 35 suicídios, colocando seus ex-
dirigentes no banco dos réus em 2019. Uma carta em particular foi decisiva no
julgamento, a do funcionário Michel Deparis, que se matou em 14 de julho de
2009 e deixou como última mensagem: “Eu me suicido por causa da France
Telecom, esta é a única causa”. Ora, fenômenos como esses seriam mais bem
estudados se associados à necropolítica do filósofo africano Achille Mbembe do
que às patologias mentais. Sim, há adoecimento, mas como sofrimento vital.
Afinal, como dizia Millôr, a vida é uma doença mortal transmitida por via
sexual. Não há vida sem sofrimento.

Juntos e separados
As metrópoles perderam a escala humana. Sem as avenidas e praças virtuais, há
pouco espaço para o encontro. Principalmente para os jovens, a rede tornou-se a
rua, mas nem tanto assim. As relações construídas virtualmente são muito mais
voláteis, basta um clique para que o interlocutor desapareça para sempre. Surge
mais recentemente um fenômeno apelidado de vácuo, constante nos aplicativos
como Tinder, ParPerfeito ou Grindr: os casais se formam por aplicativos e
começam o diálogo; quando as coisas apontam para um verdadeiro encontro ou
para um relacionamento mais prolongado, um dos dois simplesmente sai da
conversa e deleta o contato, sem desculpas, pedido de separação ou mesmo um
simples “até logo”.
Nas relações virtuais tornou-se possível o sonho de um fim de
relacionamento sem restos. É possível se “deletar” da cena. Faz parte das
crônicas do amor moderno o momento em que se separam as escovas de dente,
os móveis, a definição de quem vai ficar com o gato, mas também o ritual de
bloquear o/a ex no Instagram e no Facebook, deletar as centenas de fotos
postadas juntos e mudar o status para “disponível”, sem suportar a travessia do
luto. Como diz Freud, o luto é um trabalho que leva tempo, é um trabalho feito
com memórias e palavras, e tempo é justamente o que a nova geração não foi
formada para perder. Para o melhor e para o pior, é muito mais fácil se descartar
do outro – e de si mesmo – como um dejeto que não vai retornar pelo ralo.
Como ressalva L. M. Sacasas, diretor do Center for the Study of Ethics and
Technology no Greystone Institute, se antes o estofo narcísico que fazia nosso
mal e nosso bem-estar dependia de pessoas próximas do círculo familiar,
profissional ou estudantil, hoje o narcisismo é refém de likes e aprovações de
estranhos. As relações tornam-se consequentemente muito mais voláteis e
precárias. O resultado é a manutenção de um estado de permanente dependência
de um olhar anônimo e absoluto que termina por aprisionar o sujeito ainda mais
nas tramas das redes virtuais.

O desejo em pane, a vida como uma playlist


A psicanálise lacaniana nos permite observar outro prisma das relações virtuais:
a valorização do objeto tecnológico em si, quando este deveria ser apenas um
meio para outro fim. Os smartphones tornaram-se um órgão para gozar em si, e
não para conectar. Essa nova prótese forma uma geração de adictos ao deslocar o
componente pulsional sexual para o próprio objeto. A baronesa Susan
Greenfield, neurologista britânica, interroga até que ponto entregar um tablet a
um bebê de poucos meses é melhor do que permitir que ele brinque com
massinha. O mesmo se passa com a pornografia, antes feita para alimentar a
fantasia durante um ato sexual e que agora é o fim em si, criando uma geração
de inibidos sexuais que não sabem mais o que fazer com a “massinha” que é o
corpo do outro.
Todo o conforto que a gratuidade do Gafam (sigla formada por Google,
Amazon, Facebook, Apple e Microsoft) nos proporciona tem um preço.
Contudo, é sempre bom lembrar: quando o almoço é grátis, você é a sobremesa.
Oferecemos nossa transparência nas redes e nos convertemos em um enorme
parque de consumidores virtuais. “Se você gostou disso, vai gostar também
disso”, nos convidam os novos robôs mentores. Acontece que essas playlists não
foram construídas por você, escutando aqui e acolá, fuçando prateleiras de
pequenas lojas reais. Elas foram criadas por seu robô favorito. As prateleiras
virtuais são feitas para que você consuma mais do mesmo, única maneira de
garantir o componente aditivo.

Uma gramática do olhar


Baudrillard, que além de filósofo era fotógrafo, chamava atenção para o fato de
que o excesso de imagens nos tornou incapazes de enxergar o mundo. É preciso
reaprender a enxergar. Assim como ensinamos às crianças o modo como vão se
servir das palavras, no mundo dominado pelo Instagram é preciso ensiná-las uma
gramática do olhar. No fluxo ininterrupto das redes, como enquadrar as imagens,
como conectar-se com uma narrativa que inclua o outro. Quando a imagem não
inclui a alteridade, ela leva ao que Lacan chamou de “regressão tópica ao estádio
do espelho”, o narcisismo como última barreira antes do vazio. Recentemente
uma pesquisa publicada por Reeves e colaboradores na revista Human-Computer
Interaction demonstrou que a média de permanência em uma única tela de
smartphone é de apenas vinte segundos. Tudo se passa rápido demais. Lacan
dividiu a temporalidade subjetiva em três etapas: instante de ver, tempo para
compreender e momento de concluir. Observamos que entre o instante de ver
(uma fake news, por exemplo) e o momento de concluir (compartilhá-la na
rede), houve um curto-circuito do tempo para compreender. É precisamente esse
tempo que é preciso restituir aos jovens, o tempo de compreensão de seu
sofrimento, tempo em que correm as palavras, e que foi encurtado pelas redes
sociais, deixando-os cada vez mais sem amparo entre o instante da angústia e a
conclusão pelo suicídio.

colaboraram nesta edição


Ana Cecília Carvalho é psicanalista, escritora e doutora em Literatura
Comparada pela UFMG. Autora de A poética do suicídio em Sylvia Plath
(Editora da UFMG)
Andréa Máris Campos Guerra é psicanalista, doutora em Teoria Psicanalítica
pela UFRJ e professora do Departamento de Psicologia da UFMG
Carolina Nassau Ribeiro é psicóloga, psicanalista, doutoranda em Psicologia
pela UFMG e membro da Aleph Escola de Psicanálise
Christian ingo lenz Dunker é psicanalista, doutor em Psicologia Experimental
pela USP e professor titular do IP-USP
Gilson Iannini é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de
Psicologia da UFMG. Editor da coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud
(Autêntica)
Henri Kaufmanner é psiquiatra, psicanalista, doutorando em Psicologia pela
UFMG e preceptor da Residência em Psiquiatria do Instituto Raul Soares
Marcelo Veras é psiquiatra, doutor em Psicologia pela UFRJ e psicanalista da
Escola Brasileira de Psicanálise
Marcos Vilas Boas é fotógrafo. Tem trabalhos publicados na Editora Trip, BEI,
Companhia das Letras, Musee Magazine (EUA), entre outros
Pio Figueiroa é fotógrafo e diretor de cena, editor da revista latinoamericana de
fotografia Sueño de la razón
Tarso de Melo é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP
Table of Contents
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