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Bolsonaro e o método na loucura
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O novo heptálogo do petismo de bolha
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Quem abre a porta é Mazé. Ela pede que a reportagem espere alguns minutos,
oferece água e café, e vai chamar nossa entrevistada. “Vão te fotografar, Clara.
Fica com o casaco. Tem que sair bem na foto.” A senhora de 94 anos aparece na
sala algum tempo depois, movimentando-se com a ajuda de um andador. Está de
batom cor-de-rosa, blazer vermelho por cima da camiseta de algodão e um lenço
branco em volta do pescoço. “Quer dizer que vocês são os fotógrafos da
revolução?”, diz, sorrindo.
É ela quem começa a perguntar, sentando-se no sofá com a ajuda da mulher
“durona” que cuida dela há nove anos. Depois que algumas quedas a fizeram
parar no hospital, sente medo de ficar em pé, perder o equilíbrio e cair. Não tem
muita firmeza nas pernas, explica Mazé. Sai de casa só para consultas médicas e
tomar sol na calçada, numa rua tranquila do bairro do Bom Retiro, em São
Paulo. Clara continua a perguntar: “Vocês trabalham juntos? De quem foi a ideia
de vir aqui? Mas por que precisam de tantas fotos?”.
“Eu fico encabulada porque nunca sei qual é o objetivo real dessas fotos”,
explica. “Fiquei clandestina por muitos anos e teve uma época em que eu não
falava, não ria. E eu ria muito. Mas o pessoal dizia assim: ‘Tenha cuidado, Clara,
se você rir todo mundo vai te reconhecer’. Eu estava completamente amarrada.
Não podia rir e nem chorar.”
Também não podia ter endereço fixo, visitar parentes e muito menos usar a
identidade verdadeira: Clara Charf, militante do Partido Comunista Brasileiro
(PCB) desde os 21 anos, nascida em 1925, filha de um casal de judeus russos
que chegara a Maceió fugindo da perseguição antissemita no Leste Europeu. Nos
quase 20 anos em que viveu na clandestinidade ao lado do companheiro Carlos
Marighella – do governo Dutra à ditadura militar –, Clara foi Vera, Jandira,
Marta, Silvia, Nice e tantas outras que nem se lembra. “Você tem que se
encobrir. Está de nome trocado, tem que andar como se fosse outra pessoa. Não
é brincadeira. Mas a gente está tão convencida de que aquilo é necessário pra
sobreviver, que faz tudo.”
Ela retornaria a esse tema muitas vezes ao longo da tarde. É o período que
parece ter ficado mais vivo em sua memória. Clara fala daqueles dias com
energia de menina. Ri, divaga, suspira, perde-se no pensamento para retomá-lo
mais adiante, em um ponto diferente. Mas quando perguntada sobre o
assassinato de Marighella, que completa 50 anos no dia 4 de novembro, prefere
o silêncio. “Minha filha…” Olha pela janela e desconversa: “Muito difícil
restituir tudo”.
Ser ou não ser: eis a questão.” Quando Hamlet faz a pergunta decisiva, o suicídio
entra em cena na história ocidental de maneira inédita. Em um intervalo de
apenas 40 anos, mais de 200 suicídios são encenados no teatro inglês, em cerca
de uma centena de peças. Mas é Shakespeare quem expressa com brutal
simplicidade o dilema existencial fundamental sobre nossa liberdade de viver e
de morrer. Ele sabe que “a vida é uma história contada por um idiota, cheia de
som e fúria, sem sentido algum”.
Estamos em 1600. Pouco antes, o suicídio era condenado como o mais
deplorável dos crimes. Na Idade Média, o cadáver do suicida era condenado a
suplícios terríveis, ao enforcamento público ou arrastado nas ruas por um cavalo.
À família do suicida, restava a vergonha, a culpa e a pobreza: além do corpo
supliciado, os bens eram confiscados. Na aurora da modernidade, quando o
silêncio eterno dos espaços infinitos apavorava o homem agora descentrado,
Romeu e Julieta escolhem a morte prematura. Os espectadores do teatro
elisabetano frequentam as salas e falam do assunto tabu. O filósofo Michel de
Montaigne aborda a morte voluntária com uma sobriedade que apenas os céticos
ensaiam. Depois de arrolar, à moda dos antigos, argumentos a favor e contra o
suicídio, Montaigne analisa casos concretos. Ele sabe que argumentos não
resolvem o dilema de ser ou não ser. Na melhor tradição cética, desconfia das
soluções universais, embora admita certas circunstâncias favoráveis, como evitar
a dor física extrema ou uma morte cruel. Mas, ao fim e ao cabo, trata-se de uma
decisão que só cabe à pessoa, e que nenhuma lei pode evitar. A modernidade
esclarecida ousou falar do suicídio. E nem por isso aumentou a taxa média de
suicídio. Nem Shakespeare, nem Montaigne se suicidaram.
Quando Goethe publica, em 1774, o romance Os sofrimentos do jovem
Werther, o tema do suicídio era debatido havia algumas décadas. A história de
um amor impossível entre um jovem romântico e uma mulher casada e fiel ao
marido teria inspirado algumas mortes semelhantes. O fenômeno foi chamado de
“Werthermania”. Se é verdade que alguns corpos são encontrados ao lado de
exemplares do romance, é igualmente verdade que Werther “não cria uma moda:
é a expressão de um clima ao qual ele dá uma forma”, como afirma Georges
Minois, autor de História do suicídio: a sociedade ocidental diante da morte
voluntária. Trata-se, mais do que nunca, de um fenômeno social. No século
precedente, circularam verdadeiras apologias ao suicídio, que não tiveram o
mesmo efeito. De toda forma, consolida-se o tabu que religa o suicídio e o
silêncio. Não se deve falar do suicídio, para evitar o efeito indutor.
Os séculos 19 e 20 fizeram o suicídio se esconder no silêncio, sob o
inquestionado dever de viver. Paradoxalmente, as ciências humanas e sociais
reergueram o tabu do silêncio em torno do suicídio. Segundo Minois, “a
psiquiatria e a sociologia põem em destaque a responsabilidade das fragilidades
morais e mentais do indivíduo, bem como as deficiências e injustiças da
estrutura social”. O suicídio seria uma doença mental ou social, ou uma
convergência de ambas, nunca uma decisão livre e soberana. Mas que dizer da
morte voluntária do psicanalista Bruno Bettelheim ou do filósofo Gilles Deleuze,
que parecem decorrer não do desespero, mas da “coragem de levar às últimas
consequências seus princípios de vida”, como escreveu Odile Odoul a respeito
de Bettelheim ou do temor de que, com a continuação da doença, “ele perdesse
em escala definitiva o livre arbítrio de escolher”, como escreveu Carlos Heitor
Cony acerca de Deleuze. Bettelheim escolheu a morte aos 86, Deleuze a
antecipou aos 70. Fenômenos bastante distintos dos suicídios à moda de Werther
ou dos suicídios adolescentes contemporâneos. O suicídio não é um, são vários,
e heterogêneos.
No século 20, Albert Camus escreveu a frase célebre, incontornável: “só
existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Concluir que a vida
vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”.
Camus, que sabia que a vida era absurda, também não se matou. Transformou
em regra de vida sua revolta, sua liberdade e sua paixão: “eu recuso o suicídio”.
No século 21, o consórcio entre ciência, tecnologia e capitalismo sem fronteiras
promete saídas menos dolorosas, como a Sarco, uma cápsula de eutanásia,
impressa em 3D, que administraria nitrogênio líquido em um dispositivo com
design futurista. Seu criador, Philip Nitschke, promete para 2030 o acesso
universal a seu dispositivo. Enquanto isso, oferece palestras sobre “Por que o
suicídio deveria ser um direito humano?”, conforme Camila Appel mostrou em
seu blog Morte sem Tabu. Na Suíça, onde o suicídio assistido é legalizado,
empresas como a Dignitas e a Life Circle atraem interessados de vários países.
Os debates sobre o suicídio assistido e a eutanásia avançam em muitos países,
como a Espanha, a Holanda, a França e alguns estados dos EUA. Esses
exemplos mostram como a morte voluntária ganha contornos inéditos. Na outra
ponta, o suicídio de adolescentes e jovens desafia nossa capacidade de pensar.
Não obstante, é o mesmo consórcio que possibilita mortes precipitadas como
aquelas planejadas e/ou transmitidas pela rede de computadores. O avanço
esclarecido numa ponta traz seu avesso macabro na outra.
***
***
A primeira incursão de Freud no tema do suicídio propõe uma hipótese que
se tornaria célebre: o suicídio é o retorno, sobre a própria pessoa, de suas pulsões
agressivas e de sua violência inconsciente. Um forte argumento em favor dessa
perspectiva vem, paradoxalmente, da guerra. Na guerra, a taxa de suicídio
costuma diminuir, pois o sentimento de coesão e de pertencimento ao grupo
tende a aumentar, ao mesmo tempo que a violência pode ser exercida
legitimamente de dentro para fora, contra um inimigo externo. Se o argumento
estiver correto, as taxas de homicídio e de suicídio de uma sociedade deveriam
ser inversamente proporcionais. O suicídio tenderia a aumentar em sociedades
mais organizadas. Embora sedutora, essa tese é apenas parcialmente confirmada
por estudos estatísticos. Mas o que é essencial para a psicanálise é a escuta
singular de cada sujeito. Como as diversas práticas e experiências testemunham
sobejamente, são incríveis os efeitos da oferta de escuta para o sujeito que está
confrontado com o dilema de ser ou não ser. Dar voz ao sujeito que sofre, para
que ele possa dar um nome ao seu sofrimento.
Há indícios fortes de que estamos diante de uma configuração nova do laço
social, e que isso tem efeitos devastadores nos modos como os sujeitos,
principalmente os adolescentes, inscrevem-se no mundo da palavra. As redes
sociais, as fake news, as selfies enlaçam os sujeitos de uma forma cujos efeitos
ainda não sabemos medir. Ao mesmo tempo, o futuro distópico que se anuncia
parece não fornecer horizontes nem perspectivas. Mas, também, parece que o
tabu em torno da representação do suicídio vacilou. A série televisiva 13
Reasons Why fez um sucesso estrondoso. Não obstante, ao contrário de Werther,
tudo indica que o efeito entre os jovens foi benéfico.
Um caso que repercutiu bastante alguns anos atrás foi o suicídio,
transmitido ao vivo pela internet, do adolescente Vinícius Marques, conhecido
por Yoñlu. Mario Corso, psicanalista do jovem, deu corajosa entrevista a Eliane
Brum, em que afirma: “nossas crianças crescem numa bolha de proteção que
rompe na adolescência. Abruptamente, descobrem a dureza do mundo, a
violência, a exigência desmedida – nesse caso, às vezes dos pais. Sentem-se
traídos pelo mundo de conto de fadas que receberam. Será que não exageramos,
que não haveria um modo de desde mais cedo mostrar o mundo como o mundo
realmente é? Existe uma depressão típica do começo da adolescência que diz
respeito ao dar-se conta do peso do mal-estar da civilização. Utopias já não
colam, vivemos na época das distopias, crenças religiosas tampouco, o jovem
sente que está em um mundo absurdo. E precisamos pensar que ele não
desenvolveu os anticorpos que nós já temos... Isso chega de modo à vista. Será
que não poderia ser em suaves prestações? Brinco, mas creio que exageramos na
dose do mundo Disney. Em resumo: não os preparamos para o infortúnio, não
discursamos sobre as derrotas, as perdas, e elas são a única certeza nesta vida.
Ensinamos a ganhar, a dizer que serão vencedores. Ensinamos o fácil e
esquecemos o essencial: saber suportar as rudezas de um momento civilizatório
complicado”.
O que a psicanálise tem a dizer sobre o suicídio e os suicidas? O que os
psicanalistas têm a dizer? Neste dossiê, seis psicanalistas aceitaram o convite de
escrever sobre suas experiências e perspectivas. O que atravessa todos os artigos
é que, antes de tudo, os psicanalistas têm muito o que escutar, e aqueles que
flertam com o suicídio têm muito a dizer.
Christian Dunker, em “A pena de Maat e a escuta trágica do suicídio”,
recorre à lenda egípcia em que a deusa Maat decidia o destino de alguém
fazendo uma balança pender para um lado ou para outro apenas com o peso –
leve e decisivo – de uma pena. Em “A vida por um fio”, Henri Kaufmanner, por
sua vez, aponta para a necessidade de resgatar o fio da vida através do fio da
palavra. Ambos os textos apontam para metáforas extremamente delicadas: a
leveza da pena, a espessura do fio. O que nos liga à vida ou à morte é algo
extremamente tênue, que exige, antes de tudo, delicadeza. Carolina Nassau
Ribeiro e Andréa Guerra abordam, com dados precisos e delicadeza necessária,
o importante tema do suicídio na adolescência. Apontam o paradoxo do suicídio,
de que os jovens se matam para continuar a existir. Ana Cecília Carvalho, autora
de um importante estudo sobre os limites da sublimação, também ressalta o
paradoxo do suicídio, examinando o fracasso da escrita no tratamento da dor de
viver em escritores como Sylvia Plath e David Foster Wallace. Marcelo Veras,
coordenador de um pioneiro e eficiente serviço de urgência subjetiva na
Universidade Federal da Bahia (Ufba), faz uma pergunta decisiva: “Quem
matamos quando matamos a nós mesmos?”.
Se é verdade, como afirmam Malraux e Artaud, cada um a seu modo, que o
suicida pretende paradoxalmente continuar a viver, a prática psicanalítica nos
convida a oferecer, por meio da escuta, uma maneira menos desastrosa de
continuar a viver, fazendo a balança pender, com o insustentável peso de uma
pluma, para o tênue fio que nos liga à vida.
O suicídio é a patologia social por excelência. Por isso ele é covariante com
processos sociais de individualização, com sentimentos sociais como a solidão e
o tédio, bem como com sofrimentos derivados da lógica do reconhecimento,
como a depressão, o apego e o desamparo. Não é um acaso que ele tenha sido
objeto de estudo dos três fundadores da sociologia.
Em seu ensaio de 1846 baseado nos relatos do oficial de polícia Jacques
Peuchet, Marx faz um estudo sobre as vidas “no deserto” e em estado de luta de
“todos contra todos”, nas quais “em temporadas de encarecimento dos meios de
vida e de invernos rigorosos, esse sintoma [o suicídio] é sempre mais evidente e
assume um caráter epidêmico”. Portanto, quando Lacan afirma que foi Marx, e
não Hipócrates ou Bichat, quem inventou o sintoma, essa afirmação pode se
endereçar ao suicídio. A miséria, o patriarcado, a família, assim como os amores
traídos e as falsas amizades são elementos da série causal do suicídio. Uma
jovem que passa a noite antes do casamento com seu noivo, e é escorraçada
pelos pais no dia seguinte, mata-se de vergonha. Outra linda jovem afastada do
convívio social pelo marido mata-se como revolta por sentir-se propriedade
privada. Uma mulher grávida tira a própria vida quando não consegue realizar o
aborto, assim como um homem desempregado tomado pelo desespero. A análise
de Marx mostra como a comunidade é uma proteção natural contra o suicídio,
sendo o isolamento ou a perda desse laço um fator de indução do suicídio. Tal
fato seria corroborado pela ascensão súbita do suicídio nos países do Leste
Europeu após a queda do muro de Berlim em 1987 e por situações nas quais a
dissolução da unidade simbólica à qual se pertence – família ou comunidade,
nação, língua ou comunidade de destino – parece induzir o ato suicida.
Em 1897, mesmo ano da aparição da psicanálise, Durkheim examinará o
suicídio ligando-o tanto ao excesso ou à falta de integração social (relação com
os outros) como com a regulação social (relação com a lei). O suicídio egoísta e
o altruísta são casos do primeiro tipo. O suicídio anômico ou o fatalista são
exemplos do segundo. A diagnóstica do autor de Regras do método sociológico
permite opor suicídios narcísicos ou paranoides – em que vigora a alienação ao
reconhecimento do Outro e o excesso de sentido – a suicídios dissociativos ou
esquizoides – em que prevalece a falta de sentido. Pessoas se matam pelo
excesso e pela falta de sentido. Por isso taxas de suicídio oscilam, tanto em
ondas covariantes com crises como em longos platôs de estabilidade social. A
tese é consistente com o fato de que, nos últimos 40 anos, taxas de suicídio
cresceram sem trégua ou oscilação, período no qual o neoliberalismo
desenvolveu um modelo econômico baseado em crises permanentes.
Max Weber, o terceiro grande fundador da sociologia, também teceu
comentários sobre o suicídio. Em seu parecer negativo ao artigo de Otto Gross,
discípulo de Freud interessado na emancipação sexual, ele adverte que a
convivência conflituosa entre a ética heroica, convocada em momentos agudos
da existência, e a ética média, necessária para responder às demandas cotidianas,
pode interferir na determinação social do suicídio. Para Weber, Gross estava
traduzindo, com rapidez demasiada, descobertas da ética da ciência psicanalítica,
atinentes a como as coisas são, para políticas dos costumes, próprias da ética da
convicção ou de como as coisas deveriam ser. Em carta a sua esposa, Weber
sugere que o isolamento de uma comunidade, como a do Monte Verità, da qual
Gross e sua esposa Frieda participaram, onde vigorava disciplina ascética
combinada com liberdade sexual, poderia elevar o risco de suicídio.
Independentemente da pertinência de tais observações, elas enfocam o suicídio
de uma quarta perspectiva: nem falta ou excesso de sentido, nem perda de
unidade simbólica, mas como fracasso na reformulação do pacto social e
decepção com a realização de ideais.
Como se vê pelos estudos clássicos, vários são os caminhos e tantas são as
formas pelas quais alguém coloca fim na própria vida, de maneira sempre tão
única. Mesmo assim o assunto costuma ser abordado com números. Mais de 800
mil pessoas morrem por suicídio anualmente. Mais do que todas as vítimas de
conflitos armados somadas no mundo. Crescimento de 40% nos últimos 50 anos.
Segunda causa de morte entre pessoas de 15 a 29 anos. Um suicídio a cada 40
segundos. Crescimento de 29,5% entre 1980 e 2006 no Brasil, com destaque
para a população de mais de 70 anos e para os jovens entre 15 e 24 anos.
Aumento de 9,3% na região Sul do país. Expansão constante entre indígenas da
etnia Guarani, no Mato Grosso, em decorrência da privação de laços e marcos de
ancestralidades. O suicídio afeta mais jovens mulheres de baixa renda, em
ambiente rural. Homens preferem armas de fogo; mulheres, envenenamento por
pesticida. Os dados assim, erraticamente compostos, apenas confirmam as
observações dos clássicos.
Os dois principais órgãos de saúde no mundo elegeram o suicídio como
uma de suas prioridades. Porém, falar em epidemia mundial de suicídio é
impreciso. Epidemia implica aumento de casos segundo uma regra de contágio
ou etiologia comum. Aumento da prevalência ou da incidência nem sempre
significa epidemia. Contudo, o próprio uso da palavra nos informa sobre a
percepção social de que estamos “pegando” a impulsão ao suicídio uns dos
outros. Ou seja, de que ele, menos do que uma doença, é um fato social. A
proximidade com eventos de suicídio, seja na família, na escola ou no trabalho,
pode aliciar a ideação suicida. Também o suicídio próximo pode ser o modelo
que precipita o gesto impulsivo, determinando, por exemplo, um suicídio sem
sinais precedentes. O desafio representado pelo suicídio expõe nossa
incapacidade atual de pensar causalidades complexas e singulares.
Essa dificuldade manifesta-se na forma como lidamos discursivamente, na
imprensa e no espaço público, com o suicídio. Depois de anos tratado como
tema proibido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere que se evitem
expressões como “epidemia de suicídio” ou “suicídio bem-sucedido”, assim
como “teses que explicam o comportamento suicida como uma resposta a
mudanças culturais ou degradação social”. Na mesma direção, recomenda-se
evitar fotografias e descrições detalhadas, especialmente do método utilizado. A
ênfase deve ser posta no luto e no sofrimento decorrente para a família ou para a
comunidade. Contudo, a recomendação que mais chama atenção é de que não se
deve insistir no discurso da culpa ou nas interpretações religiosas do suicídio.
Tais recomendações denunciam algumas hipóteses latentes: contagioso e
imprevisível, conexo a conflitos sociais e responsivo à intensificação de
emoções coletivas.
Poderíamos reunir essas condições em um paradigma clássico para
tramitação social da angústia: a tragédia. Diante de um suicídio, este é
provavelmente o primeiro adjetivo convocado: ato trágico, acontecimento ético e
estético que nos silencia. Lembremos que o modelo grego da tragédia requeria a
encenação pública de narrativas, geralmente de origem mítica. Nessas
encenações, segundo Aristóteles, seria realizada uma catharsis dos afetos
retidos, de tal maneira que o público, ao experimentar em si a piedade e o temor,
vividos particularmente pelo protagonista, poderia purificar a cidade (pólis)
desse elemento impuro. Daí que toda tragédia fosse composta de um ato de
ultrapassamento (húbris), ato pelo qual o herói vai além de sua medida (metron)
ou do limite de seu destino (ate). A condição exemplar para a boa realização da
função social da tragédia reside no fato de que ela é uma reprodução (mimese)
capaz de representar conflitos, como a lei formulada pelos homens (nómos) e a
lei ancestral figurada pelos deuses (dikê). Talvez tenha sido por isso que Freud
deslocou o termo catharsis para designar o método que antecedeu o surgimento
da psicanálise, mas que manteve no horizonte seus fins, o método catártico.
Talvez as recomendações da OMS sobre o suicídio traduzam procedimentos para
evitar o contágio catártico. Questão que convoca a pergunta: por que viver?
Pergunta que demanda meditação e reflexão. Pergunta que está historicamente
ligada à emergência da adolescência, desde o movimento romântico Trovão e
Tempestade (Sturm und Drang), até a juventude transviada, no cinema
americano, e a revolução cultural de 1968. A liberdade como tarefa nos leva ao
dilema dos milleniuns, oprimidos pelo imperativo ético de felicidade e
adequação.
O caráter transformativo e terapêutico da tragédia consiste na eficácia de
sua estrutura de ficção, capaz de criar alguma distância imaginária e certa
exterioridade simbólica com relação à presença do Real do qual o suicídio é uma
das figuras. Disso se depreende por que a divulgação dos atos suicidas deveria
ser desinvestida, ao máximo, de seus recursos estetizantes. Nenhuma sensação
induzida, aceleradora ou intensificadora. Nenhum enquadre heroico ou culposo,
nenhum efeito retórico de persuasão, nenhuma mensagem, nem de
excepcionalidade, nem de fracasso deve ser incentivada. Mas, agindo assim,
tentando deflacionar qualquer estetização da violência e da transgressão
potencialmente contida no ato, não estaríamos agindo de maneira semelhante
àquela que nos faz viver a morte como um processo silencioso, invisível e
acolhido com vergonha, dentro dos hospitais? Fato que sabidamente torna mais
lento e mais difícil nosso luto como processo psíquico e social.
A assepsia estética do suicídio, recomendada pela OMS, contrasta com o
valor que as cartas de suicidas revelam, seja no sentido da perpetuação de uma
mensagem ética, seja na busca de uma compensação estética para o ato. Se a
tragédia é a forma que encontramos para abordar essa experiência radical de
indeterminação e liberdade, compreende-se por que o discurso espontâneo sobre
a matéria nos convoca a pensar, imediatamente, em culpa e causalidade. Surgem
assim perfis e grupos de risco compostos por traços como: depressão, presença
de ideação suicida, tentativas anteriores, comportamentos de risco (como
consumo de álcool e drogas), automutilação, situação de iminência de morte ou
sofrimento extremo. Como se, ao modo de uma verdadeira doença, pudéssemos
nos proteger, com a detecção de traços, intervindo no processo para impedir a
progressão das estatísticas e proteger nossos adolescentes e, em última instância,
nós mesmos. Psicoterapia, antidepressivos, intervenções em grupos, grupos de
ajuda e campanhas de esclarecimento incluem-se na ideia de que é preciso fazer
alguma coisa para que o suicídio se apresente de forma menos incompreensiva.
Lacan dizia que não há nada mais disparatado do que a realidade humana. E
de fato a realidade do suicídio pode ser bem mais disparatada quando a olhamos
de perto. Contra essa aspiração de produzir medidas locais para causas
sistêmicas, uma meta-análise recente examinou o valor preditivo dos últimos 40
anos de pesquisas sobre o suicídio nos Estados Unidos, trazendo um dado
simples e desconcertante: nenhum dos fatores de risco para suicídio é realmente
suficiente para antecipar o ato real. Das medidas práticas tomadas para evitá-lo,
as mais efetivas são as mais ridiculamente genéricas, tais como: evitar armas de
fogo e medicações perigosas em casa ou treinar porteiros de lugares preferidos
pelos suicidas (como a Golden Gate em São Francisco). Isso ocorre porque o
raciocínio estatístico populacional nos leva a pensar as coisas de trás para a
frente, ou seja, depois do ato consumado revemos o percurso e encontramos uma
depressão aqui, um pedido de ajuda lá, uma situação de risco ignorada e assim
por diante. É muito fácil, principalmente se pensarmos de modo retrospectivo,
deixar de atribuir a alguém algum dos mais de 300 tipos de diagnósticos
disponíveis no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Estima-
se que apenas 5% a 10% da população satisfaria os critérios de normalidade em
um rastreamento desse tipo. O raciocínio populacional traz outros
inconvenientes. Ele estimula o medo e a incerteza do lado dos que cuidam.
Oferece a perspectiva do contágio (#suicídio metoo), para os que estão
considerando o assunto ou tomando coragem, efeito semelhante ao que se teme
em jogos como Baleia Azul, séries como 13 Reasons Why ou nos recentes clubes
de suicídio que se espalham pela internet com casos particularmente chocantes
no Japão (onde é possível combinar serviços de suicídio coletivo, para baixar
custos e evitar encargos aos familiares). Novamente contra os perigos do
contágio, mobilizamos estratégias de trivialização e indiferença calculada, de
maneira a valorizar os sinais e indícios, que podem ser reconhecidos em pessoas
próximas, mas não incentivar a formação de um agrupamento de identificações.
Ou seja, se por um lado precisamos de estratégias específicas para escutar e
acolher a singularidade ou a perda de singularidade que tantas vezes concorre
para o suicídio, a autodesvalorização e o sentimento de irrelevância ou
indiferença são fortes indutores de suicídio, sejam eles causados por patologias
mais ou menos persistentes, sejam eles circunstâncias de vida.
Maat, a deusa egípcia da justiça e da verdade, era esposa de Toth, o deus da
escrita e da sabedoria. Na sua cabeça pendia uma pena de avestruz. Quando, no
julgamento de Osíris, para definir o destino de alguém pesava-se o corpo contra
o coração (alma) e ocorria um empate na balança, Maat tirava sua pena e a
depositava no prato da vida eterna. Todos nós, ou pelo menos os normais,
pensamos, ao menos uma vez na vida, seriamente, em suicídio. Podemos chamar
de “pena de Maat” os fatores decisivos que fazem a balança pender para o lado
de cá. Ora, o principal fator protetivo no caso do suicídio é fácil de apontar e
difícil de praticar: a escuta singular daquela pessoa. A escuta do sofrimento é o
tratamento espontâneo, natural e social de que dispomos para enfrentar o
suicídio. O sofrimento mal tratado evolui para sintomas, e quando os sintomas
não bastam para nos separar da angústia somos tentados a passar ao ato. Quando
isso acontece, a balança de Toth é invertida e somos tomados pela certeza, pelo
impulso, pela convicção de que fugir da dor é realmente melhor do que procurar
outros caminhos. Isso não significa que fugir da dor seja covardia moral ou
afronta à vida coletiva, vivida como valor, assim defendida por tantas formas de
religiosidade ou de comunitarismo. Aqui outro dado disparatado: pessoas com
fortes crenças religiosas são mais vulneráveis ao suicídio do que ateus convictos.
Protestantes mais que católicos. Talvez isso aconteça porque o suicídio, assim
como a depressão, está menos ligado à falta de crença, otimismo ou confiança
em um futuro melhor do que à certeza necessária para o ato. A capacidade de
manter-se em incerteza parece ser um fator decisivo na pena de Toth. Essa
capacidade expande-se quando estamos com o outro, quando falamos e quando
nos sentimos escutados. Ser escutado é o oposto de ser doutrinado, convencido
ou coagido a pensar de um jeito ou de outro. Por isso o isolamento é um perigo,
mas a experiência de compartilhamento, uma proteção. Por isso também a
solidão é um risco, assim como a solitude, a capacidade de ficar consigo nos
piores momentos, é uma potência protetiva.
Se o suicídio é uma experiência social e singular em estrutura trágica,
podemos dizer que ela demanda uma escuta trágica que esteja a sua altura. Não
negar, não relativizar, não fazer de conta que se trata de outra coisa é muito
importante nesse processo. Não foi por outro motivo que Lacan dizia que a ética
da psicanálise é uma ética trágica. Há suicídios, mas não todos, que são atos de
desejo decidido – por exemplo, certas eutanásias. Mas há suicídios impulsivos,
que deixam atrás de si um sabor de desperdício. Ambos podem e devem ser
escutados.
Viver nunca foi muito fácil, e, em nossos tempos, certamente não é muito
diferente. Se os impasses diante da existência não são exclusividade de nossos
dias, há, contudo, particularidades que nos exigem um esforço de leitura para
assim nos aproximarmos da inegável especificidade que a contemporaneidade
impõe sobre nossa vida. A psicanálise nos convoca a estarmos sempre à altura da
subjetividade de nosso tempo. É preciso reconhecer que os discursos mudam e,
por consequência, os sintomas também.
Hoje em dia, nossa prática se dá num mundo de excessos, onde
transbordam a adição e a compulsão. Acompanhamos a banalização e a
privatização da violência e um declínio da verdade, escancarado pelo avanço das
fake news. Num primeiro momento, pode parecer estranho afirmar que essas são
algumas das múltiplas facetas de uma nova presença da morte em nosso tempo.
Porém, a morte se dissemina na multiplicação dos restos que permeiam nossa
vida. No mundo do consumo compulsivo, onde a obsolescência dos objetos é
quase instantânea, aquilo que já não serve para nada desvela sua contraface
destrutiva. Não por acaso multiplicam-se os acumuladores – que, em vida,
transformam seus lares em verdadeiras sepulturas de restos e de morte, numa
versão contemporânea dos faraós e suas pirâmides. O que isso tudo teria a ver
com o aumento preocupante do número de suicídios, especialmente entre os
adolescentes e jovens?
A psicanálise nos permite operar com as relações absolutamente singulares
de cada humano com seu corpo. Sim, seu corpo. Afinal, não somos um corpo,
nós o temos. Nós o experimentamos em absoluta alteridade. Como seres falantes
que somos, não temos nenhuma relação natural com o mundo ou com a vida. A
natureza segue seus instintos, e, por efeito da incidência da linguagem, deles
estamos para sempre afastados. Na natureza, não há enganos, como um leão
vegetariano ou um tubarão decidido a não mais se alimentar de outros peixes.
Somente as técnicas de adestramento ou as ficções humanas nos permitem
testemunhar uma ruptura entre o animal e sua relação natural com o habitat.
Aqueles que podemos chamar de humanos, contudo, atravessados que somos
pela dimensão simbólica e pela subversão que esta produz em nossa relação com
o mundo, só existimos em nossas invenções “desnaturalizadas”. Assim, para nós,
a alimentação, para seguirmos no exemplo, longe da simples necessidade,
transita da sofisticação da culinária a sintomas como anorexia e bulimia.
Podemos tomá-la como um emblema, entre tantos outros, da afirmação freudiana
de que, no humano, o corpo é escravo de dois senhores. Afinal, temos fome de
quê?
Por aquilo que nos condiciona, somos antiecológicos por estrutura. Essa
relação de alteridade e estranheza que temos com o corpo instala-nos a vida em
meio ao mal-estar. Desde que chegamos ao mundo, somos divididos entre a
busca de satisfação para o corpo marcado pelas palavras, um gozo que buscamos
inexoravelmente, e os ideais construídos a partir de nossa existência também em
meio às palavras, aquilo que pode dar algum sentido à nossa vida. Nesse esforço
de superar esse mal-estar, já apontava Freud, somos capazes de mudar tudo em
nosso entorno, podemos construir e podemos também destruir. Diante dessa
divisão, enxergamos o mundo através das fantasias que criamos, e assim
construímos um modo de viver que busca vencer essa disjunção a que estamos
condenados pela sexualidade e que é revelada pela experiência de cada um de
nós.
A vida humana
Se voltarmos nosso olhar para um pequeno humano, uma criança ainda
bebê, sobre um cobertor ou um carpete, veremos que esse pequeno ser, que ainda
nem anda, é absolutamente capturado quando – mais além da previsibilidade do
solo acarpetado, assentado a partir do desejo daqueles que o trouxeram ao
mundo – descobre uma pequena etiqueta, ou um simples fio de linha, que escapa
da regularidade do ambiente em que essa criança se experimenta acomodada.
Esse curto fio de linha é o estranho que desvela, em sua exterioridade à
regularidade em que se encerra, a própria exterioridade do bebê. Ali ele
vislumbra um mundo novo e desconhecido.
Somos tensionados por uma pulsão epistêmica, um desejo de saber que logo
nos impulsiona, e nosso bebezinho nos revela isso, enquanto brinca e explora
esse pequeno fio de linha, presença estranha da alteridade. Esse encontro
instrumentalizado pelo olhar provoca-lhe, assim, a tão imprescindível
curiosidade. Mais além de tudo que ele pode representar para o Outro, há algo
que escapa. Tal encontro, podemos tomar como protótipo do que é uma vida
atravessada pela linguagem, o que é de fato a experiência subjetiva, algo singular
ao humano. Entre esse corpo inapreensível e sua própria experiência de ser, que
pela sua disjunção nomeamos mais especificamente como uma falta a ser, o
humano inventa um mundo. É nesse espaço onde reina sua precariedade que ele
se inaugura, vive sua diferença, constrói sua singularidade e seu gosto pela vida.
Ali ele inventa seu tratamento único para o mal-estar que sua condição humana
instala. Assim, a vida para o humano é acima de tudo uma invenção, um fio
tecido a partir da linguagem e seus efeitos sobre o corpo, uma produção de
sentido absolutamente singular a cada ser falante. O humano em nós, por mais
que padeça das vicissitudes dos hormônios e neurotransmissores, não se encerra
no sonho religioso de alguns, de nos reduzirmos a uma existência biológica.
A morte em vida
Lacan insistentemente esforçou-se em mostrar o intratável da condição humana.
Em seu ensino, em mais um de seus exercícios, utilizou o dilema de uma escolha
forçada entre a bolsa ou a vida. Diante de nossa existência, não temos nada além
de uma escolha. Se escolhermos a bolsa, teremos a vida arrancada, se
escolhermos a vida, teremos que experimentá-la destituídos do objeto. Nossa
falta a ser, nossa divisão, coloca-nos diante de uma existência sempre marcada
por uma perda, um furo irremediável. Nesse sentido, todos atos humanos são
atos falhos. Nossos atos resultam sempre em desencontro, e é nesse desencontro
que vamos tecendo o fio de nossas vidas.
Viver seria, então, buscar um derradeiro e único encontro, não somente
impossível por nossa estrutura, mas também postergado por nosso gosto pela
vida. Seria tecer um fio, tracionados pelo vazio constituinte do desejo, enquanto
os limites biológicos de nosso corpo suportam. O único ato humano que não
seria falho seria o suicídio. A morte antecipada aparece ao suicida como um
recurso único e final ao intratável. Se, por um lado, a ciência já convive com a
incerteza, assistimos nas últimas décadas a mudanças dramáticas nos modos de
viver. O mundo se vê tomado pelos imperativos do consumo, na devoção aos
objetos gerados pela técnica, resultado do avanço inconteste do capitalismo e de
sua aliança com a ciência. A dominância globalizada das corporações e do novo
liberalismo econômico dissolveu a ideia de cidadania, originária da democracia,
na lógica distributiva de fazer de todos consumidores. Uma incontável
multiplicidade de objetos invade nossa experiência; dos entorpecentes – sejam
eles lícitos ou ilícitos, são objetos privilegiados para entendermos as relações de
consumo – às ofertas de manipulação do corpo – sejam cosméticas ou cirúrgicas.
Vieram a internet, os smartphones, as redes sociais e seus likes, as selfies e, por
que não, as fake news. Junto a cada novo objeto oferecido ao consumo, uma
nova compulsão, e junto a esta o inevitável resto a ser excretado.
Essa avalanche de objetos acaba por obliterar as vias do desejo. A cada
reencontro com seu mal-estar e sua falta, o mundo do consumo tem um objeto a
oferecer. Não há perda que não possa ser colmada ou dor que não possa ser
anestesiada. O ser falante é assim extraído de sua responsabilidade na construção
da vida, sua curiosidade e seu desejo de saber se afogam nas possibilidades do
consumo. Nesse circuito, o que se produz é o silêncio, são restos e dejetos que já
não dizem mais nada. A depressão e a angústia, desse modo, opacificam nosso
tempo. Na disseminação dos objetos, cada um é consumidor/consumido. Cada
um é o que consome, mas é também objeto de seu próprio consumo. A
verdadeira epidemia das selfies permite-nos ilustrar muito claramente todo esse
movimento. Elas são disparadas compulsivamente, mesmo que posteriormente
seu uso se restrinja, muitas vezes, a seu próprio autor. As posições corporais,
assumidas diante das câmeras dos smartphones, são tão semelhantes que é
impossível não reconhecer alguém no exercício da selfie. Cirurgiões plásticos
passaram a relatar casos do que nomeiam como “Snapchat dysmorphia”. Cada
vez mais adolescentes procuram esses profissionais solicitando uma intervenção
cirúrgica que deixe sua face igual à de suas selfies modificadas pelo Photoshop.
No mundo do consumo, é preciso ser funcional, é exigida a performance.
Os indivíduos não recuam para se fazer à altura dos imperativos da cultura.
Quantos não têm morrido na busca da selfie mais espetacular? Quantas crianças
hoje não são introduzidas precocemente no campo das drogas, mesmo que
lícitas, por uma suposta insuficiência de sua atenção? Não é também essa
exigência que faz do Viagra e de seus similares a droga lícita mais vendida em
nosso país? Estamos diante de uma nova forma de servidão. Aquele que não se
inclui se vê diante da única alteridade possível, a do dejeto, do resto que não
significa mais nada. Esse é o impasse de nosso tempo. No imperativo de sermos
todos iguais, suprime-se toda a singularidade, segrega-se aquilo que destoa. A
regularidade compulsiva de nosso tempo não suporta a rebeldia da palavra. Se
vivemos onde inventamos, onde nosso corpo não se reduz à circularidade total
das imagens padronizadas do consumo, é preciso recuperar o fio da invenção de
cada um a partir da sua diferença, a partir daquilo que não se consegue reduzir à
massa informe dos restos, à mortificação em vida.
Lembremos que a adolescência é um tempo particularmente difícil. A
puberdade modifica indelevelmente as imagens e os humores. As crenças e
fantasias de criança são afetadas de forma a romper os antigos laços que
mantinham com seus responsáveis e mesmo com o mundo. A desilusão é
inevitável. Os desejos e empuxos à satisfação se impõem de forma muitas vezes
incoercível. Nessa ampliação da disjunção entre o que experimenta e a
representação que tinha de si mesmo até então, abre-se o espaço para um enorme
desamparo. Os adolescentes e os jovens são, desse modo, ainda mais vulneráveis
às imposições obliteradoras do mercado. São também, como contraponto, os
mais abertos à invenção e à novidade, das quais são, portanto, capazes de fazer
um ótimo uso. Nossa condição de seres falantes foi reduzida ao obsoleto. Dela
não se espera mais que a banalidade de um like. É preciso resgatar o fio da
palavra, abrir espaços para que os corpos e a fala de cada um se façam presentes.
Urge conversar, acolher e criar ambientes e dispositivos que favoreçam a
conversação e a tolerância às diferenças, apostar nas invenções de cada um. No
mundo do consumo, o obsoleto é puro dejeto, o resto é a morte. A vivificação é
como um esforço de reciclagem dos dejetos e que se faz a partir do singular que
escapa em cada um, daquilo que não se inclui. Se recuarmos diante dessa aposta
e persistir apenas a segregação como presenciamos hoje no mundo, para muitos,
cada vez mais, só restará mesmo a derradeira e fatal possibilidade do último
encontro, muitas vezes testemunhada por uma última selfie.
O suicídio na adolescência
Carolina Nassau Ribeiro e Andréa Maris Campos Guerra
O tema do suicídio entre adolescentes tem sido mote de várias pesquisas, debates
e políticas de prevenção, tendo em vista o aumento localizado de sua incidência
no mundo, apesar da subnotificação dos casos. Segundo a Organização Mundial
da Saúde (OMS), em 2018 o suicídio foi a causa de 56% das mortes violentas no
mundo, incluindo violência interpessoal, conflitos armados e suicídio.
Oitocentas mil pessoas tiram a própria vida por ano, sendo que essa é a segunda
maior causa mortis entre jovens de 15 a 29 anos no planeta. A taxa de suicídio
entre adolescentes é um pouco maior em países de alta renda em comparação
com países de renda média e baixa, com algumas exceções, como é o caso do
Brasil. Os dados também indicam que o número de tentativas de suicídio é maior
entre as meninas, enquanto o suicídio propriamente dito é mais alto entre jovens
do sexo masculino.
O Brasil é considerado um país com taxa média de suicídio (6,3 por 100 mil
habitantes). Seus dados notificados giram em torno da triste cifra de 11 mil
pessoas por ano, sendo o suicídio computado como a quarta maior causa mortis
entre jovens de 15 a 29 anos no país. Segundo pesquisa da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp), a taxa aumentou 24% entre adolescentes que vivem nas
grandes cidades brasileiras e cresceu 13% entre jovens do interior do país – o
que vai contra o decréscimo de 17% da taxa de suicídio entre adolescentes no
mundo, no período de 2006 a 2015.
Intervenções possíveis
Na série, o conselheiro da escola, em vez de dar palavra, resguardar e amparar
Hannah, desfiando os efeitos de suas experiências, dá-lhe um ultimato. Ele
convoca o protocolo que rege os homens, em vez de enlaçá-la pela ligação com a
vida. Ela teria que denunciar o autor da violência sexual e arcar com os efeitos
da acusação ou seguir em frente silenciada. Ao assistir ao episódio, é muito
nítido o recuo do adulto diante do impasse de sustentar junto com Hannah uma
possível delação, mas sobretudo, antes disso, de escutar o horror do que ela
experimentara. Ser escutada era a única coisa de que ela precisava naquele
momento. Entretanto, ele transforma a situação num protocolo a ser cumprido.
Ora, esse artifício da burocracia da lei não dá um lugar ao sujeito. Teria sido
importante que, primeiramente, ela se localizasse, para depois ter condições de
decidir com o que e como daria conta de arcar, em termos de denunciar o colega
legalmente e ainda saber com que tipo de apoio poderia fazê-lo.
Os dados indicam que cerca de 50% a 60% das pessoas que tiram a própria
vida nunca se consultaram com um profissional de saúde mental. Não obstante,
80% dessas pessoas foram a um médico um mês antes do suicídio. Dois terços
dessas pessoas comunicaram aos seus parentes e amigos próximos a intenção de
autodestruição, o que indica que existem, sim, indícios que podem ser escutados
e observados, apesar da resistência e do tabu em admiti-los. Vale destacar que os
índices estão crescendo nas áreas em que a posse de armas está atrelada a
dificuldades econômicas. Em muitos casos, o suicídio é um ato impulsivo e pode
ser evitado se os meios para efetivá-lo não estiverem à mão – metade dos
suicídios nos EUA são cometidos por armas de fogo – e também se houver
profissionais preparados para lidar com a situação perante a tendência de o ato
acontecer. Uma política armamentista, como a defendida pelo atual governo
brasileiro, confirma empiricamente o aumento do risco de o impulso suicida
tornar-se ato bem-sucedido.
Nos últimos anos, a OMS criou vários manuais para a prevenção do
autoextermínio, que compõem um programa de prevenção endereçado a médicos
e demais profissionais da saúde, professores e conselheiros. Em pesquisa recente
de 2019, publicada no The British Journal of Psychiatry, Stephen Briggs e sua
equipe verificaram que o tratamento psicanalítico e as psicoterapias dinâmicas
são os meios mais eficazes na redução das tentativas de suicídio. Contudo, a
pesquisa não consegue identificar quais elementos especificamente tornam essas
psicoterapias mais efetivas.
Resultado de outra investigação da Organização Pan-americana da Saúde
(Opas) indica que fatores protetivos, como forte relação parental e apoio para
enfrentamento das questões da transição adolescente, constituem elementos
centrais de prevenção. Destaca-se, portanto, a posição do outro diante da palavra
do sujeito adolescente. A importância de uma escuta que dilate o tempo de
compreender entre o instante de ver o impasse e o momento de concluir sua
saída são indispensáveis para que o sujeito adolescente não se precipite em um
ato como o suicídio. Talvez esse cuidado com a palavra do adolescente por meio
da escuta elucide por que os tratamentos psicanalíticos e psicodinâmicos
possibilitam um melhor resultado em relação à possibilidade de se tirar a própria
vida. Trata-se, portanto, de construir um amparo mais pela palavra do que pelo
protocolo.
Como lembra Malraux, “quem se mata corre atrás de uma imagem que
forjou de si próprio: as pessoas matam-se sempre para existir”.
Ninguém entra na universidade se não tiver uma perspectiva de futuro. Por que
então, colapsando esse futuro, tantos jovens universitários se matam atualmente?
O número de suicídios entre eles aumentou significativamente, é um fato que
circula nas mídias, tanto no Brasil como no mundo. Coordenando o PsiU, um
serviço que busca atender à urgência subjetiva na Universidade Federal da Bahia
(Ufba), levantei algumas reflexões sobre o que aprendi com esses jovens, muitas
vezes no limite de atravessar a própria imagem no espelho, na busca de uma
leitura desse novo momento social. Com uma média superior a 100 atendimentos
mensais, o PsiU discute em sua reunião semanal algumas características dessa
geração de millennials que a distingue das gerações precedentes.
São mortes prematuras que, no mundo utilitarista, não poderiam deixar de
passar pelo crivo do mestre contábil. Surge assim o índice APVP (Anos
Potenciais de Vidas Perdidas), que estima, a cada 100 mil habitantes, quantos
anos um país perde por conta dessas mortes. Compara-se a idade da morte do
jovem com a expectativa de vida calculada em 69 anos. No Brasil, esse índice
está em ascensão. Em 2015, estima-se que foram perdidos 7030 anos por 100
mil habitantes. Aspirados pelo universo virtual dos games e redes sociais, os
millennials dão sinais de que algo não deu muito certo no projeto de uma aldeia
global hiperconectada. De 2006 a 2015, a taxa de suicídio entre adolescentes no
Brasil subiu 24%. Em um mundo onde o retorno crescente do espírito liberal
leva todo jovem a experimentar-se como empreendedor de si mesmo, a miragem
de relações verdadeiras nas redes oculta dramas íntimos e fracassos que não
encontram tradução no mundo idealizado, e falso, do sucesso virtual.
Um estudo recente conduzido por Johannes Eichstaedt da Universidade da
Pensilvânia investigou o uso do Facebook nos últimos anos e comparou um
grupo identificado como tendo sintomas de depressão e outro supostamente livre
desses sintomas. Com o uso de algoritmos que analisaram as postagens dos dois
grupos distintos, foi possível identificar que o grupo dos depressivos havia
postado muito mais sobre si mesmo do que o grupo que não tinha traços
depressivos. Podemos inferir que o narcisismo não é um antidepressivo eficaz.
Juntos e separados
As metrópoles perderam a escala humana. Sem as avenidas e praças virtuais, há
pouco espaço para o encontro. Principalmente para os jovens, a rede tornou-se a
rua, mas nem tanto assim. As relações construídas virtualmente são muito mais
voláteis, basta um clique para que o interlocutor desapareça para sempre. Surge
mais recentemente um fenômeno apelidado de vácuo, constante nos aplicativos
como Tinder, ParPerfeito ou Grindr: os casais se formam por aplicativos e
começam o diálogo; quando as coisas apontam para um verdadeiro encontro ou
para um relacionamento mais prolongado, um dos dois simplesmente sai da
conversa e deleta o contato, sem desculpas, pedido de separação ou mesmo um
simples “até logo”.
Nas relações virtuais tornou-se possível o sonho de um fim de
relacionamento sem restos. É possível se “deletar” da cena. Faz parte das
crônicas do amor moderno o momento em que se separam as escovas de dente,
os móveis, a definição de quem vai ficar com o gato, mas também o ritual de
bloquear o/a ex no Instagram e no Facebook, deletar as centenas de fotos
postadas juntos e mudar o status para “disponível”, sem suportar a travessia do
luto. Como diz Freud, o luto é um trabalho que leva tempo, é um trabalho feito
com memórias e palavras, e tempo é justamente o que a nova geração não foi
formada para perder. Para o melhor e para o pior, é muito mais fácil se descartar
do outro – e de si mesmo – como um dejeto que não vai retornar pelo ralo.
Como ressalva L. M. Sacasas, diretor do Center for the Study of Ethics and
Technology no Greystone Institute, se antes o estofo narcísico que fazia nosso
mal e nosso bem-estar dependia de pessoas próximas do círculo familiar,
profissional ou estudantil, hoje o narcisismo é refém de likes e aprovações de
estranhos. As relações tornam-se consequentemente muito mais voláteis e
precárias. O resultado é a manutenção de um estado de permanente dependência
de um olhar anônimo e absoluto que termina por aprisionar o sujeito ainda mais
nas tramas das redes virtuais.