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Sumário

Edição Especial
A psicanálise, um estranho no ninho
Freud e a neurologia
A filosofia de Freud e o Freud da filosofia
Crer em Deus depois de Freud?
Lost in fake news
A pulsão de Freud a Benjamin
Perspectivismo e psicanálise
Meu corpo e eu

colaboraram nesta edição


Edição Especial

A psicanálise, um estranho no ninho


LUÍS CARLOS MENEZES

Freud não é Dalí. Quando o movimento surrealista, sob a batuta de André Breton (1896-1966), declarava
com ardor sua afinidade com as ideias desenvolvidas por Sigmund Freud, em particular em relação aos
sonhos, o jovem médico protestava. Foi com indiferença que ele recebeu o emissário, Salvador Dalí
(1904--1989), enviado a Viena para encontrá-lo. Freud não se propunha a criar um movimento
intelectual com a intenção de incomodar, provocar, contestar e inovar parâmetros estabelecidos da
ciência, da moral e da religião na cultura ocidental.
Freud foi um estudante de Medicina e um jovem médico com ambições grandes, alguém que
desejava se tornar famoso fazendo descobertas importantes, mas certamente situadas dentro dos marcos
estritos da pesquisa científica clássica. Foi assim que, com 20 anos, fez suas primeiras pesquisas
dissecando as glândulas sexuais das enguias, em Trieste, sendo então admitido no laboratório de Ernst
von Brücke (1819-1892), considerado o pai da Fisiologia na Áustria. Trabalhou durante alguns anos ali.
Fez estudos anatômicos sobre o sistema nervoso da lampreia, tendo chegado perto da descoberta do que
Heinrich Wilhelm von Waldeyer (1836-1921), alguns anos depois (1891), chamaria de neurônio. Brücke
era o representante em Viena de um grupo de cientistas que, em torno de Hermann Helmholtz (1821-
1894) e de Emil du Bois-Reymond (1818--1896), afirmava a convicção de que não só é possível, mas
necessário chegar ao conhecimento de fenômenos de qualquer natureza, portanto biológicos e também
psicológicos, estabelecendo os seus fundamentos com base na Física e na Química.
Foi a contragosto que o rapaz teve de deixar a carreira incipiente e promissora na pesquisa científica.
Freud não tinha condições financeiras para viver, queria se casar e constituir família. Tornou-se amigo
de um conhecido neurologista, 14 anos mais velho que ele, Josef Breuer (1842-1925). Este encontrou no
jovem um excelente interlocutor para suas ideias, passando a dar precioso apoio material e humano a ele.
Uma vez formado em Medicina, aos 26 anos, Freud passou a trabalhar também como neurologista,
recebendo pacientes de Breuer. Eles discutiam com frequência seus casos clínicos e suas teorias. Foi
assim que, quando Breuer passou a atender, em 1882, uma mocinha, Bertha Pappenheim, tornada célebre
na psicanálise sob o pseudônimo de Anna O., não deixou de reportar o caso ao seu jovem protegido.
Breuer a visitava diariamente. Em sua presença, ela entrava em transe, um estado auto-hipnótico, pondo-
se a dizer coisas as mais variadas, sobre as quais, num segundo tempo, ela já tendo recobrado seu estado
normal de consciência, conversavam. Chegavam, dessa maneira, a acontecimentos carregados de
emoção e que, uma vez falados, resultavam no progressivo desaparecimento dos sintomas e em uma
nítida melhora do estado da paciente.
Breuer estava muito envolvido com esse tratamento sem imaginar que ele próprio poderia se tornar
objeto das fantasias da paciente. A descoberta da transferência só seria feita por Freud por volta de 1895.
O fato é que ela acabou se declarando grávida do médico. Assustado com a situação criada, que
ameaçava tanto a sua reputação profissional como o seu casamento, Breuer interrompeu de imediato e de
forma definitiva o atendimento da jovem e viajou com sua mulher para Veneza. Ele guardava cuidadosas
anotações desse estranho tratamento, mas só iria retomá-las uma década depois, por insistência de Freud,
que percebeu nelas a descoberta de um método revolucionário para o tratamento da histeria.
Eles o chamaram de método catártico, em uma publicação conjunta de 1893. Sustentaram a tese de
que a causa do sintoma era o represamento de ideias e de afetos ligados a um acontecimento penoso
ocorrido em um momento em que o paciente não tivera condições para pensar, por não estar em plena
posse de seus meios, por encontrar-se em um estado alterado de consciência, do qual o estado
crepuscular, hipnoide, de Bertha Pappenheim era o protótipo. Quer pelo uso da hipnose, quer pela
insistência do médico, era possível chegar à lembrança do acontecido, detalhe por detalhe, fazendo
ressurgir toda a carga de afeto implicada. A lembrança patógena tornava-se, dessa maneira, acessível ao
fluxo normal da atividade de pensamento do qual estava cortada, isto é, passava a ser pensada como
qualquer outro acontecimento da vida, o que resultava no desaparecimento do sintoma, como, por
exemplo, a paralisia de um membro.
O estágio de Freud no serviço de Jean-Martin Charcot (1825-1893), no Hospital da Salpêtrière em
Paris, alguns anos antes (1885/86) teve uma influência decisiva nessa evolução. O grande neurologista,
do alto de seu prestígio, ousara dedicar-se ao estudo das neuroses, das doenças nervosas, das histerias
que, por não poderem ser relacionadas a qualquer lesão ou alteração observável do cérebro, não
mereciam no estado de espírito da época o interesse da ciência médica. Eram falsas doenças, doenças
imaginárias, que não deviam ser levadas a sério.
Charcot reproduzia, por indução hipnótica, sintomas (a paralisia de um braço, por exemplo) ou crises
histéricas “completas”, semelhantes às crises epilépticas, e as fazia desaparecer da mesma maneira: por
vezes as ordens hipnóticas não eram senão ideias das quais a paciente nada sabia, palavras com as quais
ele criava e fazia desaparecer sintomas. Impôs-se de forma definitiva para Freud a certeza de que
pensamentos separados da consciência podiam existir e produzir tanto efeitos patogênicos como
curativos. Estava entusiasmado e impressionado.
Em uma carta à sua noiva, Freud escreveu de Paris: “Nenhum ser humano jamais me afetou dessa
maneira”, referindo-se ao neurologista francês. De volta a Viena, aos 30 anos, passou a dedicar-se, em
sua atividade clínica, às doenças nervosas, às neuroses, fazendo palestras na Sociedade Médica sobre o
pensamento e a prática de Charcot, cujas Conferências traduziu para o alemão. Deixou de lado a
eletroterapia, os banhos terapêuticos em estações de água e coisas assim, únicos recursos então
disponíveis para o tratamento de tais pacientes. Passou a tentar um caminho terapêutico, usando em
particular a hipnose para chegar aos elementos causais, na linha da terapia catártica. Na França, em
Nancy, um grupo de médicos em torno de Hippolyte Bernheim (1840-1919) estava usando a sugestão
sob hipnose para tratar esses pacientes, os sintomas sendo eliminados por ordem hipnótica, o que era
diferente do caminho que Freud tomava. Mas ele foi a Nancy ver de perto o que estavam fazendo e teve
longas conversas com Bernheim.
Freud escreveu ainda alguns artigos como neurologista, mas o interesse do jovem médico se
deslocara definitivamente para o tratamento das neuroses. Exceção feita a um livro, publicado em 1891,
sobre as afasias, isto é, enfermidades em que uma lesão cerebral causa perda da capacidade de
compreensão da linguagem escrita ou falada, ou da capacidade de expressão oral ou escrita. Contra as
concepções “localizacionistas” dos centros da linguagem, argumenta em favor de uma concepção
dinâmica e funcional do processamento das representações e da linguagem na área cortical, entrando em
um debate de atualidade na época.
Em outra publicação, de 1890, Freud dá conta do andamento de sua prática clínica, mostrando-se
decepcionado com o recurso à hipnose. Trata-se de um artigo que também diz respeito à linguagem, mas
em outra perspectiva. O tratamento por meio da fala, tanto dos males da alma como do corpo, remonta à
origem dos povos, ocorrendo hoje pelas curas milagrosas nos santuários, e os próprios benefícios
propiciados pela Medicina vieram, em grande parte, mais dos efeitos da fala prestigiosa do médico do
que da justeza de seu saber, em geral inoperante. Só mais recentemente, com o desenvolvimento das
ciências, a Medicina encontrou um fundamento mais efetivo baseado no saber científico. Freud
interessava-se por esse poder curativo milenar da fala e apostava que, apesar de o tratamento pela fala
sob hipnose ter-se mostrado insuficiente, essa força poderia ainda vir a ser explorada de forma metódica
para a cura das neuroses.
Aproximando-se dos 40 anos, Freud está na iminência de inventar este método. É nesse momento que
se situa o seu interesse pelo antigo caso clínico de Breuer. Os estudos sobre a histeria, publicados em
1895 em co-autoria com Breuer, retomam o antigo caso de Anna O., além de vários casos dos últimos
anos, tirados da clínica de Freud. Pode-se acompanhar essas mudanças no modo de fazer, correlatas de
forma a compreender que se vão transformando ao longo desses relatos, nos quais a terapia catártica de
Breuer vai dando lugar à Psicanálise. A última parte, escrita por Freud, é uma exposição meticulosa do
desenrolar de um processo analítico, incluindo os fenômenos por ele chamados de transferências, ou
seja, dos envolvimentos com o médico, assim como o modo a pô-los a serviço do tratamento. As
transferências são descritas como uma intercorrência – é verdade que frequente e inevitável – no
tratamento. Não tardarão a se tornar o seu eixo.
A mudança mais significativa é a ideia de Freud de que as representações psíquicas patogênicas,
inacessíveis normalmente à consciência, são assim mantidas por um esforço ativo, contínuo, ignorado
pelo paciente. Esse esforço automático, compulsivo, é a defesa diante de um conflito intrapsíquico. A
modalidade exemplar de defesa é o recalque.
A nova concepção é congruente com a constatação nos tratamentos do que Freud chamou de
resistência. À medida que o paciente é convidado a falar “o que lhe ocorre”, ao se aproximar de certas
zonas, a fala vai escasseando, não ocorrem pensamentos, o paciente vai ficando evasivo, por estar
tocando em algo que tem alguma conexão com o recalcado. Freud convenceu-se de que é preciso ter
muita paciência ao esbarrar na resistência, pois a necessidade de manter silenciado o que está recalcado é
a mesma que suscita angústia e evitamento na sessão, sob forma de resistência. Ele entendeu que se
forçasse o paciente, ou se insistisse em lhe fazer interpretações, estas funcionariam como sugestão ou
como as ordens do tratamento hipnótico. É preciso que o paciente tenha o tempo e as condições
psíquicas para achar com suas palavras, com suas imagens, em uma rede significativa de falas, algo que
faça pleno sentido para ele, em relação ao hipotético recalcado ou inconsciente.
Impacientar-se, atropelá-lo, só reforçaria sua defesa, pois ele ficaria mais preocupado em atender à
necessidade do médico e em agradá-lo. Até diria coisas na direção buscada pelo médico, melhoraria por
amor transferencial a ele, como ocorre sempre na vida, mas continuaria privado desse pedaço essencial
do seu ser que, alguns anos depois, no livro sobre os sonhos, Freud chamou de desejo inconsciente. Será
paulatinamente, seguindo vias associativas em uma fala não dirigida e em uma escuta também não
dirigida, que a resistência poderá ser aos poucos vencida, dando margem para que a fala diga coisas que
soam tão verdadeiras quanto estranhas, ao mesmo tempo em que dizem respeito a episódios ou fantasias
muitas vezes minúsculos e que parecem sempre ter estado por ali, no entanto, sem nunca terem sido ditas
ou pensadas.
O método psicanalítico tinha sido inventado e estava estreitamente sustentado por uma rede coerente
de hipóteses e conceitos a que Freud chamou de metapsicologia, herdeira das especulações neurológicas
sobre o funcionamento do cérebro. No livro sobre os sonhos, de 1900 (A interpretação dos sonhos),
Freud, retomando hipóteses elaboradas em 1895, descreveu um dispositivo chamado por ele de aparelho
psíquico, que comporta uma diferenciação espacial de lugares, uma tópica (consciente, pré-consciente e
inconsciente), atravessada por tensões e movimentos decorrentes da conflitualidade intrapsíquica; uma
dinâmica e uma quantidade de energia que adquire a qualidade de afetos ou da libido (“energia” das
pulsões sexuais), quantidade que se desloca, se transforma, se condensa, caracterizando a dimensão
econômica do funcionamento desse aparelho.
Tais hipóteses evocadas de forma tão ampla devem, sem dúvida, dar a impressão de uma
compreensão árida e muito redutora, mecânica, da alma humana transformada em uma máquina de
sonhar, de sofrer, de rir, de amar. Testemunha da presença em Freud do imperativo de construir uma
Psicologia com base em um dispositivo nocional que atendesse aos pressupostos da Física, na linha do
que foi dito antes sobre a influência de Brücke e Helmholtz.
Para além disso, porém, a metapsicologia é indispensável em função da natureza do que a psicanálise
se propõe a elucidar, ou seja, uma gama de fatos psíquicos não acessíveis de maneira direta à auto-
observação, à introspecção consciente. O imediatamente acessível, o mundo das motivações conscientes
com as quais estamos familiarizados, não permite o entendimento nem a resolução do sofrimento
neurótico, apenas racionalizações defensivas, também não fornece meios para abordar a experiência do
sonho e a interrogação sobre sua natureza, sobre como se produz, de que se trata, a não ser fabricar
alguma compreensão sumária, com explicações redutoras de pouco alcance e que também não são
adequadas para o entendimento do próprio processo analítico, do que ali ocorre, do que nele se
transforma. A metapsicologia corresponde a hipóteses, conceitos e modelos auxiliares, com os quais a
psicanálise procura dar alguma inteligibilidade à experiência clínica, na extrema diversidade de suas
configurações.
Naturalmente toda essa rede nocional é especulativa, fictícia, hipotética e opera colada na
experiência, ou seja, no “objeto” que está sendo pensado. Movimenta-se continuamente com a
linguagem e a inteligência imaginativa de quem nela toma pé. A força de convicção que poderá produzir
não é em sua natureza diferente da força de convicção de um momento “de verdade” vivido pelo
analisando em sua análise. A metapsicologia não opera tanto como recurso explicativo, mas, sobretudo,
como suporte para a inventividade teórico-clínica do analista. Ou seja, só se tornaria redutora,
mecanicista, se fosse considerada dissociada da experiência, sob um modo realista.
A psicanálise, sendo um tratamento pela linguagem, a linguagem com a qual é dita, precisa
reencontrar o seu fôlego a cada vez, no modo particular de dizer, tanto mais que seu “objeto” é subjetivo
por natureza e remete ao que está no âmago da vivência subjetiva de si e do outro. Toda objetivação que
se cristalize perde o essencial daquilo que se está pretendendo dizer. Isso vale tanto para as teorizações
em psicanálise como para as falas no interior do processo analítico.
Deixamos Freud no momento em que chegava aos fundamentos metodológicos e teóricos da
psicanálise. É conhecida sua teoria da sedução sexual das crianças pelos adultos como um acontecimento
traumático, patogênico e que estaria na origem das neuroses. Não é o momento de nos determos nas
sutilezas dessa teoria, nem nas intuições que se revelaram justas posteriormente – ainda que a ideia de
um acontecimento causal nunca deixe de nutrir a imaginação clínica e teórica dos analistas e dos
analisandos. O fato é que teve vida curta, ao menos nessa forma inicial.
Freud mergulhou no que chamou posteriormente de auto-análise, para a qual a via régia parece de
fato terem sido os seus sonhos e o desencadeante, a morte de seu pai, em 1897. Passa a dedicar grande
interesse aos seus sonhos, anotando-os, assim como a toda sorte de fatos e ideias, por mais corriqueiros e
sem significado. Uma coisa leva à outra, e por via associativa criam-se sequências de sentido que se
entrecruzam em um ponto que insiste e de onde, em dado momento, chega ao equivalente de uma
interpretação, de uma ideia inesperada referente ao desejo operante no sonho; não há ponto final, ponto
de chegada nesse trabalho interpretativo, que poderá prosseguir com novas linhas associativas.
Nesses exercícios surgem muitos fatos corriqueiros acontecidos na véspera ou nos últimos dias, mas
também ressurgem fragmentos de memória de outros tempos, por vezes da mais longínqua infância, e
que, provavelmente, jamais lhe tivessem ocorrido de outra forma. Nesse processo analítico, a
correspondência com um colega mais ou menos da sua idade, um médico otorrino de Berlim, Wilhelm
Fliess (1858-1928), se intensifica tanto em quantidade de cartas, como na clara necessidade e
dependência que ele passa a demonstrar em relação a seu interlocutor. Costuma-se considerar que, em
meio à intensa mobilização psíquica que o tomara, Freud encontra nesse interlocutor o depositário e o
destinatário privilegiado dos estados transferenciais que tal mobilização implica.
Pode-se entrever, por muitas indicações, o imbricamento entre a análise de Freud e a análise de seus
analisandos neste período. Freud foi auxiliado em sua própria análise pelo que encontrava na análise de
seus pacientes e, com certeza, as condições em que se encontrava propiciavam uma abertura ao que não
podia ser previsto por nenhuma reflexão ou introspecção, e o tornavam especialmente permeável e capaz
de ser receptivo aos efeitos ou emergências do inconsciente, nas análises destes.
Em 1887, Freud abandonou a teoria da sedução como causa, enquanto explorava toda a eficácia das
fantasias, o seu caráter sexual, descobrindo-as exuberantes já na infância, mesmo na mais tenra infância.
Até então ele partilhava da opinião comum que a sexualidade só passava a existir a partir da puberdade.
O centro da descoberta foi o complexo de Édipo, testemunha da vida amorosa e de desejos assassinos na
criança.
No livro A interpretação dos sonhos, de 1900, Freud expõe, sempre com a meticulosidade do
cientista, grande parte desse trabalho, sui generis pela fina articulação que o atravessa de ponta a ponta,
entre a ousada e precisa inventividade do intelecto e os mais comezinhos episódios da vida, em geral a
sua própria, permeada por desejos mesquinhos e pueris. Encontramos ali uma inédita produção de
fragmentos, em cortes verticais, de torções e tensões, daquilo que se agita sob o lençol bordado da vida
de uma alma. A explícita intimidade que encontramos nessa obra entre o trabalho do intelecto e o
trabalho psíquico caracteriza, desde então, todo trabalho psicanalítico.
Uma fala ou um escrito de um paciente ou de um colega, ou de quem quer que seja, que discorra com
impecável clareza sobre um assunto de forma que tudo se encaixe, tudo se encontre explicado com
admirável justeza e engenhosidade, poderá ser apreciado pelo didatismo e pela inteligência do autor,
pelo pedaço de saber que tão bem transmite, mas não despertará nada, além disso, no analista. Este é
sensível às fissuras, aos restos clandestinos, a alguma hesitação inesperada, às falhas... a um ato falho,
por exemplo. Se, em meio a uma conferência interessante, o conferencista fizer um lapso, este poderá
causar risos divertidos quebrando, seja por um momento, a atenção e a seriedade com que o público
seguia a exposição. O que Freud e a psicanálise chamam de inconsciente estará nessas paragens.
Mas, se radicalizarmos essa perspectiva, poderíamos perguntar se é no erro, na falha, que se encontra
o que realmente importa, o essencial para o sujeito que fala e para os que o ouvem. A verdade de
verdade para ele. Se isso não for apenas uma piada, se for para valer, estaríamos minando o templo da
Razão, estaríamos dizendo que a verdade não está onde parece estar, mas onde parece não estar? Teria o
bem-comportado médico de Viena, ao querer achar um tratamento para os neuróticos, encontrado coisas
que afetam, que interpelam até a nossa tradição filosófica, bem como as bases da ciência que tanto nos
tem beneficiado? Com certeza, mas deixemos isso de lado para perguntar a mesma coisa de modo
diferente.
O mais importante para cada um de nós não está naquilo que falamos sobre nossas intenções, sobre
quem somos, sobre o que queremos, mas em algo marginal ao que dizemos? A resposta aqui é direta e
categórica, pois é essa convicção que fundamenta o fazer clínico do psicanalista e a experiência da
análise. Somente que ninguém tem condições de dizer esse “mais importante”, “esta verdade” senão o
próprio sujeito que fala, e esse ninguém inclui, antes de mais nada, o próprio analista. O analista não
dispõe a priori da verdade do analisando, pois nesse caso estaria no lugar do hipnotizador que age por
sugestão, desconsiderando o tempo psíquico da resistência, um tempo necessário: só será analista
enquanto for capaz de suspender qualquer saber, com isso propiciando que no processo de análise,
fragmentos significativos, emudecidos, do desejo e de dores ignoradas do analisando tomem vida e fala.
Freud não é Dalí, nem Breton. O sonho não é para ele o paradigma de uma vida mais intensa, mais
exuberante. Ao contrário. Ele o desmonta impiedosamente trazendo-o para os fatos mais corriqueiros e
modestos da vida e do corpo, só que, de fato, ali encontra, em meio a pequenas coisas, a possibilidade de
resgatar o que há de mais significativo e importante e que se mostra ser único para cada um. A vida
poderá tornar-se sim mais intensa, mas com a discrição do que tem de ver com o íntimo, por natureza
pouco afeito às miragens alheias.
Em descompasso com todo o saber constituído, a psicanálise, criada por um cientista convicto, não
pode ser considerada ciência no sentido convencional, com certeza não é uma filosofia, nem uma
religião, nem uma arte. Mas foi engendrada no âmago da cultura ocidental, em uma densa encruzilhada
da ciência, da filosofia, das artes e das religiões e de todas elas se nutriu para surgir e delas se nutre,
sobre elas diz coisas que nunca foram ditas antes. Mas sempre em descompasso. Estranho no ninho que,
no momento em que deixa de sê-lo, tal é a natureza de sua prática e daquilo que visa, deixa de ser
psicanálise. Pois o que busca é sempre o que é, em cada um, estranho/familiar.
Texto originalmente publicado na edição 101, abril/2006
Freud e a neurologia
FÁTIMA CAROPRESO

Em sua Apresentação autobiográfica, publicada em 1925, Freud relata que, nos primeiros anos em que
cursava Medicina na Universidade de Viena, deparou com alguns desenganos, como a dolorosa
insinuação, por parte de seus colegas, de que deveria se sentir inferior e estrangeiro por ser judeu, e a
constatação de que a peculiaridade e limitação de seus dotes lhe impediriam de obter êxito em muitas das
disciplinas pelas quais se interessava. Diz ele ter encontrado amizade, sossego e satisfação plena no
laboratório de fisiologia do professor Ernst Wilhelm von Brücke, no qual trabalhou até um ano após se
formar, em 1881, realizando pesquisas sobre a histologia do sistema nervoso. Segundo seu próprio
relato, sua opção por abandonar a carreira teórica deveu-se não a uma inclinação pessoal, mas à sua
precária situação financeira. Seguindo o conselho do próprio professor Brücke, ele ingressou, em 1882,
no Hospital Geral de Viena como assistente clínico, onde, paralelamente ao trabalho como clínico,
continuou realizando pesquisas no Instituto de Anatomia Cerebral, no qual trabalhava o professor de
Psiquiatria Theodor Meynert (1833-1892).
FREUD NEUROPATOLOGISTA
A partir de certo momento, quando trabalhava no Hospital Geral de Viena, também por razões
econômicas, Freud começou a estudar as enfermidades nervosas. Segundo ele, havia muito poucos
especialistas em neuropatologia na época, e quem quisesse se aprofundar no assunto era obrigado a ser
professor de si mesmo. Nos anos que se seguiram, ele publicou vários estudos sobre enfermidades
orgânicas do sistema nervoso e obteve considerável sucesso e reconhecimento na área. Em 1885, ganhou
uma bolsa de estudos e foi para Paris realizar um estágio no Hospital da Salpêtrière, com Jean-Martin
Charcot, professor de neuropatologia que trabalhava, entre outras coisas, na delimitação do quadro
clínico da histeria. Essa viagem foi decisiva para o surgimento da psicanálise, uma vez que, a partir dela,
o foco da atenção de Freud foi deslocado para a histeria e para as demais neuroses, de cujas
investigações resultaram a elaboração da teoria e da técnica psicanalítica.
Após seu regresso a Viena, em 1886, Freud acabou se afastando definitivamente da vida acadêmica.
Segundo ele, os médicos vienenses não acolheram bem as novidades que ele trouxera de Paris acerca da
histeria e Meynert fechou-lhe as portas do Instituto de Anatomia Cerebral. A partir de então, passou a
trabalhar em sua clínica particular, dedicando-se ao tratamento das neuroses. Nos anos que se seguiram,
publicou diversos trabalhos sobre a histeria, nos quais as hipóteses fundamentais que viriam a compor a
teoria psicanalítica começaram a tomar forma. No entanto, ao menos nesses primeiros anos após ter
abandonado as pesquisas neurológicas de laboratório, Freud não deixou completamente de lado a
neurologia. Em 1891, ele publicou Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico, texto no qual
empreende uma ampla revisão crítica das principais hipóteses então predominantes sobre a anatomia, a
fisiologia e a fisiopatologia da linguagem. A partir da recusa da maneira como a relação entre a anatomia
e a fisiologia da linguagem era concebida pelas teorias chamadas de “localizacionistas” e de uma nova
maneira de conceber essa relação, ele formulou a hipótese de um “aparelho de linguagem”, precursora da
ideia de “aparelho psíquico”, que aparecerá alguns anos mais tarde e constituirá o cerne de sua teoria
metapsicológica.
A partir da relação entre a localização de lesões cerebrais em pacientes afásicos e a perda de certas
capacidades linguísticas, as teorias localizacionistas estabeleciam uma localização precisa das diferentes
funções da linguagem no cérebro, de forma que tanto o funcionamento normal como o patológico eram
concebidos como determinados diretamente pela anatomia cerebral. Freud mostra o equívoco dessa
relação simples entre anatomia e fisiologia e argumenta que é necessário levar em consideração a
positividade dos sintomas afásicos, ou seja, atentar para a maneira como se dá a desintegração da
linguagem e para o funcionamento que permanece ocorrendo a despeito da lesão. Ele mostra que esses
dados clínicos eram mais fecundos para explicar a neurofisiologia da linguagem do que a mera
associação entre perda de funções e localização de lesões. Com isso, Freud sustenta uma autonomia
relativa dos fatores funcionais em relação aos anatômicos, a qual pode ser considerada a premissa que
lhe permitirá continuar desenvolvendo suas especulações neurológicas, mesmo estando distante dos
laboratórios de anatomia e fisiologia durante o restante de sua carreira.
PROVISORIEDADES PSICOLÓGICAS E SUBSTRATOS ORGÂNICOS
Paralelamente à elaboração de suas hipóteses sobre a clínica e a técnica psicanalítica, Freud desenvolve,
ao longo de toda a sua obra, uma teoria que ele chama de “metapsicológica”, a qual pode ser considerada
uma neuropsicologia especulativa que fundamenta suas teses clínicas. Embora alguns autores
considerem que, a partir da publicação de A interpretação dos sonhos, ele tenha abandonado
definitivamente suas especulações neurológicas e se voltado exclusivamente para a psicologia, um
exame atento de seus textos torna difícil sustentar essa posição. Em contraste com a teoria elaborada, por
exemplo, no manuscrito Projeto de uma psicologia, redigido em 1895, a partir do sétimo capítulo de A
interpretação dos sonhos, Freud de fato passa a formular suas teses metapsicológicas usando um
vocabulário predominantemente psicológico.
Contudo, em inúmeras ocasiões, ao longo de sua obra, ele faz questão de enfatizar que o aparelho
psíquico está ancorado no sistema nervoso e inclusive, repetidamente, manifesta sua crença de que um
dia ele pudesse vir a ser descrito em termos explicitamente neurológicos. No texto O interesse pela
psicanálise, de 1913, por exemplo, Freud explica que a abordagem dos processos inconscientes, a partir
das categorias da psicologia da consciência, é adotada devido à dificuldade encontrada, no momento, de
tratar tais processos em uma perspectiva fisiológica: “(...) desde o lado do seu nexo com o consciente,
com o qual tem tantas coisas em comum, é fácil descrever o inconsciente e persegui-lo em seus
desenvolvimentos. Contudo, hoje, parece não haver possibilidade de se aproximar dele pelo lado do
processo físico. Portanto, tem que continuar sendo objeto da psicologia”.
Em Introdução ao narcisismo, de 1914, ele diz: “(...) deve-se recordar que todas as nossas
provisoriedades psicológicas deverão, um dia, se assentar no terreno dos substratos orgânicos”. Na
segunda parte do texto Esboço de psicanálise (1938), após reconhecer os limites da terapia psicanalítica
no tratamento das neuroses, ele afirma: “Aqueles que seguiram nossas considerações só por interesse
terapêutico talvez nos deem as costas com menosprezo após essa confissão. Mas a terapia nos ocupa aqui
unicamente na medida em que ela trabalha com meios psicológicos; no momento não temos outros.
Talvez o futuro nos ensine a influir de forma direta, por meio de substâncias químicas específicas, sobre
os volumes de energia e suas distribuições dentro do aparelho psíquico”.
Essas passagens deixam claro que, se Freud passou, a partir de certo momento, a formular suas
hipóteses metapsicológicas em termos predominantemente psicológicos, isso parece não ter resultado de
uma recusa da ideia de que os processos psíquicos consistem em processos neurais, sustentada
explicitamente em alguns escritos seus anteriores a 1900. Essa mudança de perspectiva teria decorrido da
dificuldade, devida à limitação do conhecimento neurológico na época, de formular uma teoria
explicitamente neurológica. O psicanalista, portanto, nunca teria deixado de ser um neurologista, e a
psicanálise nunca teria sido por ele pensada como uma área de conhecimento inteiramente autônoma em
relação à neurofisiologia e à neuroanatomia.
O desenvolvimento explosivo das neurociências desde as últimas décadas do século 20 abriu
caminho para a descoberta e a renovação do interesse pela obra neurológica e psicanalítica de Freud fora
da psicanálise e originou um esforço de integração e de inclusão da psicanálise no fluxo principal das
ciências contemporâneas da mente. Esses movimentos de integração entre psicanálise e neurociências,
em seus melhores momentos, não visam à simples comprovação (ou refutação) neurocientífica do
conhecimento psicanalítico, mas parecem acreditar que essa interlocução pode ser frutífera para ambas
as disciplinas, mostrando os possíveis erros e acertos da psicanálise, assim como extraindo dela
contribuições para a orientação e a interpretação dos dados da neuropsicologia.
Texto originalmente publicado na edição 147, junho/2010
A filosofia de Freud e o Freud da filosofia
RICHARD THEISEN SIMANKE

Numa conferência de 1956, comemorativa do centenário de nascimento de Freud e intitulada “Freud no


Século”, Lacan, a certa altura, se pergunta: “Qual é o centro de gravidade da descoberta freudiana, qual é
sua filosofia? Não que Freud tenha feito filosofia, ele sempre recusou que fosse filósofo. Mas colocar-se
uma questão é já sê-lo, mesmo que a gente não saiba que a coloca. Portanto, Freud, o filósofo, o que
ensina ele?”. Essa afirmação, como de costume, reflete mais os interesses do próprio Lacan – mais
disposto a aproximar psicanálise e filosofia, ainda que de forma polêmica – do que discute os de Freud.
No entanto, não deixa de enunciar um aspecto intrigante do pensamento freudiano: Freud é conhecido
por uma atitude que, em certos momentos, torna-se flagrantemente antifilosófica, mas, ao mesmo tempo,
a filosofia faz-se, de uma forma ou de outra, presente em seus textos. Além disso, a psicanálise que ele
criou muito cedo despertou a atenção da crítica filosófica e um interesse que esteve longe de arrefecer
com a passagem do tempo. Para tentar dar sentido a esse aparente paradoxo, procuramos, na sequência,
distinguir três aspectos do problema da relação entre a psicanálise freudiana e a filosofia, e discuti-los
separadamente: a posição pessoal de Freud frente à filosofia; as influências filosóficas sobre a
psicanálise; a significação filosófica dos conceitos freudianos.
A POSIÇÃO DE FREUD FRENTE À FILOSOFIA
Quanto ao primeiro ponto, a preocupação de Freud é, claramente, caracterizar a psicanálise como uma
teoria científica, alinhá-la com as ciências naturais (e não com as ciências do espírito) e, portanto,
distingui-la da filosofia. Lembremos que o momento histórico em que Freud cria a psicanálise – as
últimas décadas do século 19 – coincide com o processo de constituição da psicologia científica. A nova
ciência em formação herda da filosofia uma parte importante dos problemas dos quais vai se ocupar: a
subjetividade, a interioridade, a moralidade, o sentido da ação, a origem do conhecimento e, no caso da
psicanálise, o próprio problema do inconsciente e de suas relações com a consciência, entre outros. Daí
que seja compreensível esse esforço de demarcação empreendido por Freud, que ele, aliás, compartilha
com outros “pais fundadores” da psicologia (W. James e, mais tarde, Piaget seriam bons exemplos).
A estratégia de Freud é, por um lado, afirmar a incapacidade da filosofia de dar conta das questões
centrais que a investigação psicanalítica foi levada a formular. O problema do inconsciente é
emblemático desse argumento: embora Freud, evidentemente, soubesse muito bem que o inconsciente
era um problema filosófico que vinha de longa data (“É certo que a filosofia se ocupou repetidas vezes
do problema do inconsciente (...)”, escreve em O interesse pela psicanálise, 1913), ele, não obstante,
insistiu com frequência na resistência dos filósofos em admitir o inconsciente psíquico, tal como este
fora proposto pela psicanálise. Assim, por exemplo: “O psíquico dos filósofos não era o psíquico da
psicanálise. Em sua grande maioria, eles chamam de psíquico apenas o que é um fenômeno de
consciência” (As resistências contra a psicanálise, 1925). O mesmo vale para a função do prazer na vida
mental, enunciada pelo célebre “princípio do prazer” freudiano: “Estaríamos dispostos a confessar a
precedência de uma teoria filosófica ou psicológica que soubesse indicar-nos os significados das
sensações de prazer e desprazer, tão imperativas para nós. Infelizmente, sobre esse ponto, nada de
utilizável nos é oferecido” (Além do princípio do prazer, 1920).
Num esforço para resguardar ainda mais a psicanálise da tutela filosófica, Freud vai ao ponto de
reverter essa possibilidade, a fim de melhor recusá-la. Não é a filosofia que explica a psicanálise, mas
esta última que pode “explicar” a filosofia: “Ainda de outro modo pode a filosofia receber a incitação da
psicanálise, a saber, convertendo-se, ela mesma, em seu objeto” (O interesse pela psicanálise). Essa
possibilidade justificar-se-ia por uma aproximação entre as instituições da cultura e os fenômenos
clínicos investigados pela psicanálise: a histeria e a criação artística, a religião e a neurose obsessiva e,
naquilo que nos interessa aqui, a filosofia e a paranoia: “As formações delirantes do paranoico mostram
uma indesejável semelhança exterior – e um íntimo parentesco – com os sistemas de nossos filósofos”
(Prólogo a Theodor Reik, 1919).
No entanto, essa atitude negativa é nuançada pelo próprio Freud de diversas maneiras. Uma delas é
reconhecer a proximidade da filosofia com a atitude científica defendida para a psicanálise. A filosofia
seria uma tentativa de compreensão racional da realidade, cujo único pecado seria a pretensão de
construir um saber totalizante e apriorístico (não baseado na observação), justamente aquilo que
permitiria sua aproximação com os sistemas delirantes: “A filosofia não é oposta à ciência: ela mesma se
comporta como uma ciência” (Em torno de uma visão de mundo, 1933). Assim como os poetas, a
filosofia teria tido a intuição do inconsciente, mas sem saber ou, mesmo, sem pretender enunciá-lo sob
uma forma sistemática e objetiva. Essa tarefa caberia a uma ciência especialmente constituída para esse
fim, cuja autoria Freud reivindica: “Fazia muito tempo que o conceito de inconsciente batia na porta da
psicologia para ser admitido. Filosofia e literatura brincaram com ele com muita frequência, mas a
ciência não sabia empregá-lo” (Algumas lições elementares de psicanálise, 1938).
INFLUÊNCIAS DA FILOSOFIA SOBRE A PSICANÁLISE
Outra maneira de relativizar a oposição entre psicanálise e filosofia é reconhecer a influência que as
ideias filosóficas tiveram sobre a criação da psicanálise. Freud mesmo a reconheceu poucas vezes e, ao
que tudo indica, meio de má vontade. Admitiu, por exemplo, a antecipação do conceito de repressão na
abordagem da loucura por Schopenhauer; reconheceu que este último trabalhou, ainda que à maneira
intuitiva dos filósofos, com uma noção próxima ao seu conceito de pulsão de morte; afirmou ter-se
privado da leitura de Nietzsche para não correr o risco de descobrir prematuramente em seus escritos as
ideias a que pretendia chegar pela via laboriosa da investigação científica; e assim por diante. É claro
que a identificação das fontes filosóficas da psicanálise não precisa se restringir ao testemunho
freudiano, já que essas influências passam frequentemente ao largo da apreensão consciente dos autores
(ou, ao menos, da sua disposição de admiti-las). Identificá-las e justificá-las tem sido, justamente, uma
das tarefas históricas da crítica filosófica da psicanálise e, mais recentemente, da filosofia da psicanálise,
como disciplina filosófica que nasceu deste já longo, tenso, porém fecundo, diálogo entre os dois
domínios.
SIGNIFICAÇÃO FILOSÓFICA DOS CONCEITOS FREUDIANOS
Essa filosofia da psicanálise ocupou-se e continua a se ocupar, além disso, das implicações, dos
desdobramentos, do alcance e, numa palavra, da significação filosófica, no seu sentido mais amplo, dos
conceitos forjados originalmente por Freud. Poderíamos elencar aqui inúmeras questões: o potencial
emancipatório e a significação política da clínica, o conceito de natureza pressuposto pelo naturalismo
psicológico peculiar de Freud, as consequências da noção de inconsciente para uma teoria da
intencionalidade, o perfil epistemológico de uma ciência da mente ou de uma ciência do sujeito – a lista
seria enorme e inevitavelmente incompleta. É claro que essa exploração filosófica dos mananciais
psicanalíticos independe da posição pessoal de Freud sobre as relações entre filosofia e psicanálise, mas
talvez já tivesse sido, de alguma forma, antecipada por ele, por exemplo, quando afirmou que “na
medida em que a filosofia se edifica sobre uma psicologia, não poderá deixar de levar em conta (...) as
contribuições da psicanálise” (O interesse pela psicanálise). Talvez se esteja consumando, assim, por um
longo caminho, uma abertura para a filosofia que o próprio Freud precocemente confessava em sua carta
a Fliess de 1°/1/1896: “Observo que, pela via tortuosa da clínica médica, você está alcançando seu ideal
primeiro de compreender os seres humanos enquanto fisiologista, da mesma forma que alimento
secretamente a esperança de chegar, por essa mesma trilha, à minha meta inicial da filosofia. Pois era
isso que eu queria originalmente, quando ainda não me era nada clara a razão de eu estar no mundo”.
Texto originalmente publicado na edição 147, junho/2010
Crer em Deus depois de Freud?
JUVENAL SAVIAN FILHO

A religião é um bom expediente para aquilatar tanto a atualidade das ideias de Freud como a necessidade
de superá-las. Por um lado, é extremamente atual o diagnóstico da religião como ilusão. Basta observar,
no contexto contemporâneo, a imaturidade e o primitivismo de certas práticas religiosas, catárticas e
alienadoras da vida real, subjugadoras da liberdade e supersticiosas.
Desse ponto de vista, é impossível não evocar as linhas clássicas de O futuro de uma ilusão (1927):
“Quando o adolescente percebe que está destinado a ser sempre uma criança, que jamais poderá
prescindir de proteção contra poderes desconhecidos, empresta-lhes os traços da figura paterna, cria os
deuses, dos quais tem medo, que procura agradar, e aos quais, no entanto, confia a sua proteção. Assim,
o motivo do anseio pelo pai é idêntico à necessidade de proteção contra as consequências da impotência
humana; a defesa contra o desamparo infantil empresta seus traços característicos à reação contra o
desamparo que o adulto é forçado a reconhecer, reação que é precisamente a formação da religião”.
A religião, assim, corresponderia a uma ilusão, vivência imatura por resultar de uma fixação infantil,
tentativa de fabular no irreal, buscando uma forma de suportar o real insuportável.
POR UMA REABILITAÇÃO DO ILUSÓRIO
Houve reações contrárias, porém, a essa associação entre crença e ilusão defensiva diante da vida. Lou
Andreas-Salomé (1861-1937), amiga de Freud e Nietzsche, discordou do pai da psicanálise, pois,
rigorosamente falando, nada impediria de ver na crença a expressão de uma confiança básica e inata na
vida.
O diagnóstico freudiano, dessa perspectiva, solicitaria, no mínimo, uma revisão, pois abre falência ao
não explicar atitudes religiosas maduras sem a sombra da defesa diante do real, mas justamente
engajadas nele. Foi nesse sentido que alguns membros da tradição psicanalítica deram-se conta do
racionalismo positivista (e quase maniqueísta) de algumas ideias de Freud. Para eles, há um equívoco em
opor o “ilusório” ao “real”. O campo do “ilusório” seria uma dimensão essencial do psiquismo,
cumprindo funções vitais para seu desenvolvimento e amadurecimento. A era pós-freudiana nem sempre
se vê pressionada a corrigir as “ilusões” dos homens.
Nesse sentido, os trabalhos do terapeuta inglês Donald Winnicott (1896-1971) representaram uma
abertura de horizontes no tocante à concepção da religiosidade. Seu conceito de fenômeno transicional é
o operador dessa abertura, pois sintetiza certas experiências, vividas pelos indivíduos no nível da ilusão,
para reconhecimento do real. A “ilusão” seria tão efetiva como o “real”, sem implicar nada de enganoso,
mas contendo uma aspiração a um ideal.
Para tomar o “ilusório” como dimensão necessária do amadurecimento humano, Winnicott recorre à
dinâmica dos jogos e da criatividade, e o melhor caso é a condição do bebê: de início, ele não se
distingue do mundo, não tem percepção de si como ser individual; tudo que sente e faz é por meio de sua
mãe. Por sua vez, a mãe devotada organiza-se em função do bebê; adapta-se a seu ritmo biológico. O
bebê, então, “cria” a mãe de que necessita; vive uma experiência estética de “fusão” com ela, pois
também não consegue vê-la como pessoa ou objeto, mas como um processo, abrindo, assim, o espaço da
ilusão.
É a mãe, também, que torna possível à criança, aos poucos, a percepção de si como pessoa separada
dos outros; o ambiente exterior revela-se como algo independente da própria experiência da criança, mas
o acesso à realidade exterior não se faz possível caso não se abra um caminho para a criança fantasiar
sobre ela. O que chamamos de objetos e experiências reais assume, assim, um caráter transicional. Em
outras palavras, ao mesmo tempo em que a realidade exterior, aos poucos, vai sendo vista como um “não
eu” (the first not-me possession), a realidade só pode ser assim enquanto é criada pela própria criança. É
uma criação sua e, ao mesmo tempo, vai descolando-se dela e apresentando-se como diferente, exterior.
Tal descolamento resulta da separação da criança em relação à mãe. Nesse processo, ela se apropria
de um recorte do mundo, recriando-o em si. O fenômeno transicional mostra-se, então, como um
intermediário entre a pura subjetividade e a experiência de relação com um outro. O ursinho de pelúcia
com que a criança dorme abraçada representa, por exemplo, esse “terceiro universo” (nem externo, nem
interno, mas ilusório): é carregado de uma simbologia pela qual a criança passa da presença materna a
algo que vem representá-la. O mesmo vale para o paninho, o “cheirinho”. Esses objetos são empregados
como veículos de necessidades subjetivas, ao mesmo tempo em que vão impulsionando a criança a
distinguir, aos poucos, fantasia e ato. A transicionalidade de tais objetos permite a ela reconhecer e
aceitar a realidade – passar do princípio do prazer ao princípio da realidade.
Com o desenvolvimento da pessoa, o objeto transicional não é esquecido, mas relegado ao “limbo”,
quer dizer, não existe mais como um veículo de necessidades subjetivas (porque a criança deixa o
ursinho ou o cheirinho), mas grava na interioridade um fundo experiencial que permite difundir e
espalhar a transicionalidade para todo o espaço intermediário entre a realidade psíquica e o mundo
externo. Nesse ponto, o mundo cultural passa a ser um lugar significativo para o indivíduo, pois é ele que
sucede ao abandono do primeiro objeto transicional.
A transicionalidade, assim, continua na vida adulta, particularmente no que diz respeito à criação
artística e à experiência religiosa, e o mundo da cultura apresenta-se, simultaneamente, como criação
subjetiva do indivíduo e como campo da realidade compartilhada. Em síntese, o ser humano, pelo
ilusório, cria seu sentido peculiar para a realidade.
Quando, porém, se aborda o sentido do sagrado, percebe-se que há, nos fenômenos transicionais, uma
dimensão de “verticalidade”: a dimensão do sagrado surge mediante a experiência de encanto como
transformadora do eu, pondo o indivíduo diante da potência de ser. Em uma palavra, é pela ilusão e por
uma capacidade de aspirar a ideais, criando-os, que o ser humano desenvolve seus propósitos vitais. Aí
aparece a crença religiosa, e o que Freud considerou simples resistência do princípio do prazer diante da
realidade, Winnicott entende como possível fonte de criatividade. O ser humano “joga” com a realidade,
antecipa-a pela ilusão. Isso é necessário para que ele se sustente, pois o ilusório seria um trânsito para a
realidade, não um simples impedimento a experimentá-la.
DO EU HUMANO AO TU DIVINO
É curioso notar como essa postura winnicottiana diante da experiência religiosa coincide diretamente
com o trabalho de alguns teólogos que, ao que tudo indica, nem sequer leram Winnicott.
Hans Urs von Balthasar (1905-1988) é o caso mais eloquente. Baseia-se no pensamento do filósofo
alemão Gustav Siewerth (1903-1963) para assumir o pressuposto de que a criança acorda para a
consciência própria por meio do chamamento do amor materno. Nesse processo, Von Balthasar
distingue: 1) o que faz a mãe sorrir gratuitamente e doar-se totalmente à criança é a resposta que ela
suscita na criança, uma resposta de amor ao amor, pelo chamamento do eu pelo tu; 2) o tu da mãe não é,
objetivamente, o eu da criança, mas esses dois “centros” oscilam na mesma elipse de amor; 3) o amor é o
bem maior e absolutamente suficiente, e além dele a priori não há nada de mais importante, pois é nessa
relação eu-tu que se desvenda a plenitude da realidade; 4) tudo o que depois possa ser experimentado
como realização, presença, saudade, decepção ou deficiência é uma decorrência disso.
Tudo, então, é iluminado por esse relâmpago da origem – eu e tu e mundo. A criança, porém,
justamente porque vive no clarão desse relâmpago que é a presença da mãe, não reflete se vai responder
ao sorriso materno; ela responde imediatamente, pois, assim como o sol faz brotar o verde, o amor
desperta amor. Além disso, vivendo esse processo, ou seja, respondendo e correspondendo ativamente, a
criança segue a direção da mãe, pois nunca concluiria que é ela quem provoca o sorriso da mãe. Dá-se,
aí, nessa total entrega ao tu da mãe, o paraíso da realidade. O espaço e o mundo não existem graças ao eu
da criança, mas graças ao tu da mãe. O eu pode andar sobre esse chão da realidade e atravessar as
distâncias até o tu, devido a um afeto primordial tributado a ela. Em hipótese alguma a criança depende
de uma reflexão para viver o paraíso com a mãe. Ela simplesmente goza da doação materna do paraíso;
não passivamente, mas respondendo e correspondendo. O que marca esse paraíso é a plenitude da
entrega mútua.
Por sua vez, o chamado da mãe não se deve a alguma coisa da criança, mas à criança mesma, ao seu
eu. A criança, assim, dá-se conta: “meu eu é amado; é digno de amor para a minha mãe; minha resposta
não pode ser outra senão a doação deste meu eu”. É por isso que as crianças se jogam em nosso colo sem
medo. A distinção entre esse amor a princípio indivisível da criança e o amor partilhado entre vários
polos só será feita posteriormente, quando o contexto familiar introduzir a figura delimitante do mundo.
Com base nessa análise da experiência infantil, Von Balthasar explica que toda a existência humana
será marcada pelo relâmpago da origem. E é essa experiência que permitirá o desenvolvimento da fé no
coração dos indivíduos. Assim como a criança e seu amor indiviso vivido com a mãe, o ser humano é
acolhido gratuitamente na existência e “entra” no mundo. Surge, inclusive, um sentimento de gratidão no
coração humano quando este passa pela experiência primordial de sentir-se participante na comunidade
dos seres por um chamamento exterior ao próprio eu.
Não se trata de um irenismo ou de uma predisposição a ver a vida, a priori, com uma alegria
psicológica. Trata-se de um sentimento mais profundo, pelo qual nos percebemos em dependência de
uma vasta estrutura de seres, pessoas e coisas. Vemos que não entramos no mundo por nossa própria
força ou mérito, mas recebemos a vida. Em condições normais, reconhecemos esse dom.
Tudo isso, porém, é vivido em um nível arreflexivo, ou seja, em um nível de envolvimento
semelhante ao amor indiviso vivido pela criança e sua mãe. Primeiro, sentimos o mundo, para só depois
refletirmos sobre ele. Somente depois nos damos conta de que um ser nos acolheu; um ser sem o qual
talvez não existisse nada do que existe. Damo-nos conta de que, por trás da Natureza, pode haver um
Espírito eterno, afim ao nosso espírito, com o qual somos capazes de nos relacionar de forma muito
íntima, pois ele é Espírito.
Ser “espírito” significa ser reflexio completa, ou seja, apreensão de si, superando-se completamente
para finalizar no tu reconhecido como outro, para finalizar em um ato de amor. Aqui, o elemento cristão
pode dar uma contribuição teórica importante, porque, segundo sua tradição, a experiência humana
revela que “ser” e “amor” são termos coincidentes. Em termos técnicos, “ser” e “amor” são
coextensivos.
A convergência entre o pensamento de Von Balthasar e a terapêutica winnicottiana mostra, assim,
que, apesar da continuidade de base com a psicanálise freudiana, é possível superar as ideias de Freud no
tocante à concepção do campo do ilusório.
Texto originalmente publicado na edição 147, junho/2010
Lost in fake news
ANTÔNIO TEIXEIRA

A história parece nos ensinar que nada se aprende com a história. Há muito ausente nos noticiários
estrangeiros, a imagem do Brasil subitamente se estampou para o mundo que busca decifrar um enigma
doloroso: por qual razão um conjunto tão grande de pessoas escolarizadas se lançou numa deriva
autoritária, se a história incansavelmente lhes mostra que a promessa de regulação violenta da violência
somente prediz o retorno do pior?
No dizer de muitos, a escolha popular por líderes autoritários estaria ligada à manipulação midiática
da opinião através da dispersão das fake news, fenômeno cuja repercussão teria conduzido vários
intelectuais a nomear nossa época como era da pós-verdade. Mas essa pretensa novidade não é assim tão
nova: a mentira política é tão antiga quanto a própria política. Em vez de tomar a pós-verdade como
perda de correspondência factual da narrativa política, devemos ir além da versão aquiniana clássica da
verdade como adequação entre realidade e representação mental. Pois não é exato reduzir a mentira à
falta dessa correspondência. Quem afirma o falso não mente necessariamente, lembra-nos Derrida: ele
pode afirmá-lo por erro ou ilusão, sem necessariamente mentir. Só existe mentira quando há a intenção
de enganar, servindo-se da boa-fé do Outro, mesmo quando se afirma uma verdade factual, como no
caso de uma potência militar que justifica seu direito de ingerência sobre um país, a pretexto de
interromper um estado de calamidade real, mas que disso se serve para adquirir o monopólio de
exploração de suas riquezas locais.
Era desesperador constatar, no Brasil, que mesmo pessoas pertencentes a grupos sociais atacados
pelo candidato de extrema-direita o felicitavam, no lugar de se indignar, vendo nele o político verdadeiro
que não dissimula seus pensamentos. Mas é exatamente no nível dessa sinceridade fingida que reside,
como diz o filósofo Alexandre Koyré, a grande dissimulação dos líderes totalitários. Sua trapaça
suprema consiste no fato de que mesmo se permitindo divulgar informações falsas – por saber que as
palavras contam mais em razão de sua capacidade de mobilização discursiva do que em virtude de sua
correspondência factual –, o líder autoritário ostenta o papel nostálgico do detentor da verdade como
correspondência. Quanto mais mente, mais faz do amor à verdade a palavra de ordem de sua retórica,
pois sua mentira depende da crença numa oposição metafisicamente assegurada entre veracidade e
falsidade.
Isso explica tanto a fascinação kitsch pelos temas religiosos que entulham as telenovelas brasileiras,
como a atração de mau gosto pelo tópos romântico do retorno à terra que não mente, proclamado na
França pelos versos de Thibon, do qual Vichy compôs seu slogan reacionário. Embora não se possa
esperar, da parte de nosso atual estadista, que ele tenha lido um único verso que seja, seu ignorantismo
abissal não altera as consequências. Pouco importa que o elemento suposto não mentir seja a terra, a
família, a pátria ou o bom Deus, o que conta é a possibilidade de se apoiar a mentira sobre a crença na
verdade como correspondência. A mentira somente é possível em razão da crença que toma a verdade
como representação discursiva da realidade.
Por isso frequentemente juramos, mesmo que sejamos ateus, pois jurar sobre a verdade do que
dizemos é uma maneira de convocar o Outro a dar crédito ao laço discursivo entre nossa palavra e a
realidade. O juramento, enquanto garantia de estabilização discursiva de uma representação da realidade,
se distingue dos demais atos verbais, como esclarece Émile Benveniste, na medida em que não refere a
nada exterior à linguagem. Não se jura uma coisa, jura-se sobre o que se diz sobre alguma coisa, pois a
função do juramento, originariamente religiosa, é de manter unido, na linguagem, aquilo que a
linguagem levou à existência, ao sustentar a crença que liga a linguagem a esse algo que por seu meio se
busca indicar. Ele é, como diz Giorgio Agamben, uma fórmula promissória destinada a garantir a
verdade da promessa suposta pelo laço estabelecido entre o engajamento da palavra e o fato ao qual ele
se refere, o qual até hoje se mantém nos protocolos jurídicos de nossa sociedade secularizada.
Mas embora o juramento se coloque como garantia do laço entre a palavra e aquilo de que ela fala,
essa garantia não dispõe, por sua vez, de uma meta-garantia que possa garanti-la. Ninguém diz, em sã
consciência – “eu juro por meu juramento” –, jura-se geralmente por Deus, e se meu juramento é
assegurado por Deus, Deus não pode, por sua vez, jurar por Deus. Não há meta-juramento, não há meta-
deus que possa assegurar a garantia divina. Dali resulta a mentira na constante ameaça de perjúrio, que é
um meio de se apoiar na fé do Outro para melhor trapaceá-lo. Para contê-lo, é preciso marcá-lo com a
maldição, ruptura do laço representativo da palavra maldita, sem ligação verídica com o que se supõe
dizer. Não é casual que o discurso do líder fascista venha, então, se erigir sobre a maldição do discurso
político; na realidade, eles têm uma relação orgânica. Diante da maldição do discurso político manifesta
na falência de seu poder representativo, o líder fascista se engaja na promessa de reabilitar essa
capacidade de representação discursiva por meio de uma estratégia particular. Ele se propõe representar,
se posso dizer assim, a própria falência da representação, projetando-a sobre uma classe socialmente
definida. Para fazê-lo, ele passa a atacar um grupo determinado mediante provocações ofensivas, a fim
de representar a maldição da mentira política como consequência direta de uma classe maldita, seja ela a
dos judeus, na Alemanha dos anos 1930, ou senão a dos assim chamados petralhas em nosso Brasil atual.
Diante dessa relação orgânica entre o totalitarismo e o exercício de maldição, propomos então tomar
a psicanálise como um antídoto ético da verdade que desarticula o juramento ao bem dizer. Para operar
clinicamente, não impomos o juramento de dizer a verdade, como se dá protocolarmente nos
procedimentos jurídicos: a verdade que nos interessa não é a correspondência da palavra com seu
conteúdo. Quando Pedro nos fala de João, ficamos sabendo mais de Pedro do que de João. Convidamos
o paciente somente a falar, assegurando-lhe que a verdade irá se manifestar por si mesma.
Mas a verdade-sujeito que interessa à psicanálise se manifesta justamente nas rupturas de
correspondência entre a palavra e sua representação. É por isso que ao se referir às formações do
inconsciente, Freud nos convida a pensá-las como uma força de inadequação. As formações do
inconsciente são deformações. Se a psicanálise requer, de nossa parte, uma meditação sobre a política, é
na medida em que nos conduz a tomar a verdade do inconsciente não como um conteúdo proposicional
neutro, mas a partir de relações de forças deformantes.
Nietzsche há muito desconfiava da concepção da verdade como demonstração neutra, filosoficamente
condensada no aforisma clássico de Espinosa: não rir-se, não lamentar, não odiar, mas entender. A ideia
de uma suposta faculdade natural do entendimento, isenta do ódio, do riso, da lamúria, seria a mentira
humana por excelência, a doença metafísica forjada para produzir a crença na verdade como
correspondência estável, separada dos jogos patológicos de força e conflito. No que diz respeito à
emergência da psicanálise, sabemos que ela resultou da impossibilidade vivida por Freud em tratar a
verdade do sofrimento mental no nível de uma idealidade objetiva neutra. Estava sempre em questão
uma patologia do saber, relativa à recusa de uma satisfação pulsional contrária à representação discursiva
do sujeito. Se Freud, assim como Nietzsche, transtorna por dizer a verdade, é porque esse dizer-a-
verdade se mostra radicalmente distinto de um procedimento de demonstração factual. Ele se apresenta
na forma da parrésia, termo que evoca, na filosofia antiga, a fala franca que se distingue da lisonja, assim
como do discurso destinado a manter a realidade em seu curso habitual.
A parrésia se esclarece, no dizer de Foucault, por oposição ao enunciado performativo, no qual se
efetua a realidade a partir de uma relação socialmente instituída entre a coisa e a palavra. O presidente
abre a sessão ao dizer “está aberta a sessão”, assim como os noivos realizam o casamento ao dizer
“aceito”, num efeito previsível, socialmente codificado, sem que conte necessariamente o engajamento
daquele que o enuncia: pouco importa que o padre creia em Deus ou no diabo, para que o batizado se
realize, basta que ele diga “eu te batizo”. Já no caso da parrésia, tem-se igualmente a situação
institucionalizada, mas se trata de um dizer-a-verdade que, ao revelar as relações de poder que
estruturam essa situação, desestabiliza-a radicalmente, possibilitando o surgimento de efeitos
imprevisíveis, não codificados institucionalmente. Por isso ela implica a abertura, pela palavra, de um
espaço de risco.
Podemos aproximar a parrésia da interpretação psicanalítica, no sentido em que essa última
comporta, por mais delicada que seja, uma brutalidade estrutural. Se não é possível, como diz Jacques-
Alain Miller, psicanalisar reis e barões, é porque a interpretação deve necessariamente poder ser
insolente. Sua eficácia depende da possibilidade de subverter os códigos sociais que regem o
funcionamento civilizado do sujeito, e por isso dispensa autorização. A parrésia dispensa o protocolo da
permissão, posto que ela determina uma relação verdadeira entre o que o sujeito diz e o que ele diz, sem
garantia de validação externa ao dizer.
Mas se a parrésia dispensa tanto a autoridade como a validação do referente externo sobre o qual se
ancora a demonstração filosófica, donde ela retira, então, sua necessidade? Nossa ideia é que ela não
busca uma verdade externa ao discurso, na medida em que se apoia sobre a suposição de que o próprio
discurso confere a uma verdade sua existência. Interessa menos desvelar algo que já existe do que criar a
existência de algo por meio de um ato do dizer, como fez Freud com as formações do inconsciente. Se da
função transcendental do discurso deriva a possibilidade de existir, no sentido em que existir significa ter
lugar em sua configuração, a parrésia seria o dizer que vem desestabilizar os lugares determinados por
essa prescrição discursiva, fazendo existir o que não tinha lugar.
Mas ninguém suporta parresiar permanentemente. Se a parrésia se manifesta como ruptura quando
algo ganha existência a partir do gesto que nos obriga a adotar uma posição contrária a uma
representação discursiva da realidade, há também um segundo momento em que um novo saber deve se
estabelecer, para permitir que a verdade emergente não se reduza a uma cintilação efêmera. É a ocasião
em que o gesto do pensamento que se rompe na parrésia busca se constituir em uma doutrina. Sua
eficácia depende não mais da paixão disruptiva da parrésia, mas do cálculo racional de produção de um
modo inédito de configuração discursiva. A operação agora consiste na criação de um novo campo para
o texto mediante a abertura de um enclave no contexto, ao modo de uma saída construída em seu
interior. É o momento em que a relação à obra se coloca no horizonte da reflexão psicanalítica.
Conferência proferida na Universidade Paris 8, em dezembro de 2018
A pulsão de Freud a Benjamin
ERNANI CHAVES

Em seu conhecido livro sobre a questão da tradução de Freud – As palavras de Freud: o vocabulário
freudiano e suas versões (1999) –, Paulo César de Souza considera a tradução francesa de Trieb por
pulsion como uma resposta a uma “‘biologização’ injustificável” que a tradução inglesa do mesmo termo
por instinct provocou. Tal resposta, continua o autor, passou a ser adotada também “nas outras línguas
latinas em que se traduziu (ou retraduziu) a obra de Freud”, para concluir que “é significativo o fato de
‘pulsão’ ter vindo a predominar na psicanálise francesa, sob a égide de Jacques Lacan”. As traduções,
seja a inglesa de James Strachey, sob o comando de Ernest Jones, seja a francesa, coordenada por Jean
Laplanche, estariam, assim, dependentes das perspectivas teóricas e do ambiente cultural de onde
surgiram. Sabemos que o próprio Freud, em uma célebre carta, legitimou a tradução inglesa. O
interessante é que, em geral, se lê essa carta inteiramente descontextualizada: se aceita, sem mais, a
“sinceridade” de Freud, ignorando as circunstâncias, fartamente documentadas na história da psicanálise,
que quase sempre o levavam a “agradar” os britânicos. Deixa-se inteiramente de lado o modo pessoal
com que Freud conduziu a “política” no interior da associação psicanalítica por ele criada. Uma aliança
que, não podemos deixar de reconhecer, o salvou num momento extremamente delicado, pois desde a
anexação da Áustria pela Alemanha em 1938, as leis antijudaicas vigentes na Alemanha passaram a
valer automaticamente na Áustria.
Eu gostaria de colocar em questão esta ideia geral e bastante difundida para mostrar que, antes de
Lacan, em pelo menos um texto publicado na França, a tradução de Trieb por pulsion – ou melhor, do
adjetivo substantivado Triebhaft por pulsionnel – já existia. Trata-se da versão francesa do famoso texto
de Walter Benjamin “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1935). Isso me dará a
oportunidade para colocar a questão das relações entre tradução, ética e política.
Esse texto de Benjamin possui quatro versões, escritas entre 1935 e 1939: três delas em alemão e
mais uma, a versão francesa, traduzida por Pierre Klossowski. Com um detalhe importantíssimo: essa
versão francesa foi a única publicada enquanto Benjamin ainda vivia, no número de 1936 da Revista de
Pesquisa Social, órgão de divulgação das pesquisas realizadas pelo famoso Instituto de Pesquisa Social,
cujo diretor, à época já no exílio americano, era Max Horkheimer. Na ocasião – detalhe importante –
Benjamin vivia em Paris como exilado sem pátria, pois já havia perdido a cidadania alemã por ser judeu
e de “esquerda”.
Deixemos de lado as diversas vicissitudes pelas quais passaram os textos de Walter Benjamin
escritos no exílio, em especial as frequentes polêmicas com Adorno. Deixemos de lado, especialmente,
as polêmicas em torno do texto ao qual nos referimos, e que foi objeto de farta documentação e
infindáveis comentários (refiro-me, por exemplo, aos comentários e à documentação que se encontram
nos volumes 1-3 dos Gesammelte Schriften, de Walter Benjamin. Ou ainda, à correspondência entre
Benjamin e Adorno, publicada em português pela Editora Unesp. Enfim, à edição crítica específica desse
texto, organizada por Detlev Schötker e publicada pela Suhrkamp em 2009).
“INCONSCIENTE ÓTICO”
Em todas as versões de seu ensaio, Benjamin mantém e desenvolve uma ideia que surgiu alguns anos
antes, em 1931, em “Pequena história da fotografia”. Nesse texto, ele propôs o conceito de “inconsciente
ótico” (Optische-Unbewussten) a partir de uma comparação com o “inconsciente pulsional” (Triebhaft-
Unbewussten) da psicanálise. O enjeu da argumentação é o seguinte: interessado em compreender as
profundas mudanças introduzidas na percepção humana pelos avanços da técnica, Benjamin procura
mostrar a diferença, na relação entre homem e natureza, entre a percepção sensível, em especial a visão,
e esta mesma percepção a partir das transformações por ela sofridas, devido a determinados aparatos
técnicos, em especial o fotográfico. A percepção sensível, diz ele, percorre os espaços naturais, guiada
pela consciência. A percepção por meio da técnica, por sua vez, percorre os mesmos espaços
inconscientemente, ou seja, enquanto no primeiro caso o olhar é guiado por quem olha, pelo “sujeito da
consciência”, no segundo, o olhar não é mais o do sujeito, mas o da câmera, a qual, por meio de suas
funções de ampliação e redução, trabalha independentemente do olho e para além ou aquém dele, isto é,
como se fosse “inconsciente”. Daí, por exemplo, a “inquietante estranheza” que pode tomar conta de
nós, quando estamos diante de nossas fotografias antigas, uma vez que ao mesmo tempo nos
reconhecemos e nos desconhecemos nelas. Ou ainda, quando nos surpreendemos com o que vemos
numa fotografia, que “trai” inteiramente nossos objetivos conscientes e pré-determinados.
Benjamin retoma e amplia as relações que o próprio Freud fizera em passagem célebre do sexto
capítulo de A interpretação dos sonhos (1900), entre o funcionamento do inconsciente e o de certos
aparatos técnicos como o telescópio, o microscópio e o aparelho fotográfico. O caráter
“metapsicológico” desse capítulo nos instrui o suficiente para entendermos que tal comparação coloca
em primeiro plano não o caráter mecânico desses aparelhos, mas sim seu caráter dinâmico, isto é, a
relação estabelecida entre eles e seu operador, seja um cientista, um técnico ou um fotógrafo. Benjamin
amplia a posição de Freud em dois aspectos: primeiro, por uma redução paradoxal, mas necessária, uma
vez que se refere apenas à máquina fotográfica, isso porque um de seus objetivos é problematizar a
questão do “rosto” humano, mostrando a passagem da ideia de “retrato” (Porträt) para a de “imagem”
(Bild). Segundo, porque para ele o funcionamento do “olho” da câmera obedece inteiramente ao
aparelho, independentemente do operador, para mostrar o caráter de autonomia que adquirem nossas
invenções técnicas. Isso nos permite compreender em toda sua extensão e radicalidade as palavras com
as quais ele encerra seu argumento: Von diesem Optisch-Unbewussten erfährt er erst durch sie, wie von
dem Triebhaft-Unbewussten durch die Psychoanalyse (“É, antes, por meio da fotografia que ficamos
sabendo do inconsciente ótico, da mesma maneira que, por meio da psicanálise, ficamos sabendo do
inconsciente pulsional”).
Essa ideia é retomada por Benjamin no ensaio sobre a obra de arte, em todas as suas versões. A
questão é a mesma, só que agora a comparação se dá entre o olho humano e a câmera cinematográfica e
não mais com a fotográfica. Benjamin repete praticamente as mesmas palavras de “Pequena história da
fotografia”.
TRIEB FREUDIANO
“A obra de arte...” foi o primeiro texto de Benjamin publicado no Brasil. Mas foi apenas em 1985, na
tradução de Sérgio Paulo Rouanet da primeira versão do ensaio para o volume inicial das Obras
escolhidas, publicadas pela Brasiliense, que ficamos diante da tradução do Triebhaft como “pulsional”.
O leitor apressado é levado a atribuir a escolha do tradutor às mudanças ocorridas na recepção brasileira
da psicanálise, em dois aspectos bem precisos: a ampla divulgação entre nós do Vocabulário da
psicanálise (1970), de Laplanche e Pontalis, que consagrava o termo “pulsão”, assim como a expansão
das escolas lacanianas no Brasil e sua presença cada vez maior nos meios acadêmicos. Neste sentido,
Paulo César de Souza tem razão ao relacionar tradução, perspectivas teóricas e contextos culturais. Mas
não será este o princípio e o problema de toda e qualquer tradução? De minha parte, prefiro atribuir a
posição de Rouanet a um fato bem simples: profundo conhecedor da obra de Benjamin, ele optou pela
tradução pela qual o próprio Benjamin já havia optado.
A tradução de Klossowski para a versão francesa do ensaio sobre a obra de arte é bem clara: C’est
elle qui nous initie à l’inconscient optique comme la psychanalyse à l’inconscient pulsionnel (“É a
câmera que nos inicia ao inconsciente ótico como a psicanálise ao inconsciente pulsional”). Com isso, já
podemos então ver que Pierre Klossowski, com a anuência de Benjamin, traduzia Triebhaft por
pulsionnel. A documentação à qual podemos ter acesso hoje em dia confirma que, embora o trabalho de
tradução tenha sido penoso para ambos, Benjamin deu seu aval à tradução de Klossowski. Trata-se de
uma situação bem diferente da que envolvia Freud e seu tradutor inglês. Digo isso porque é possível
objetar à minha posição o fato de que Benjamin também poderia ter aceitado a tradução de Klossowski
porque sua condição de expatriado não lhe dava muita margem de manobra. Ou ainda porque precisava
do auxílio financeiro como colaborador, que recebia do Instituto de Pesquisa Social e que era
fundamental para sua sobrevivência mínima naquela época.
Em que a posição de Benjamin era diferente? Por que, ao contrário de Freud, estamos mais seguros,
neste caso específico, de sua “sinceridade”? Vou justificar minha posição apresentando dois motivos: 1)
enquanto a recepção francesa da psicanálise na época oscilava entre a recepção literária e no campo das
artes em geral (o surrealismo como o maior exemplo) e a psiquiátrica – estou aceitando aqui a tese de
Elisabeth Roudinesco em seu estudo sobre a história da psicanálise na França –, Benjamin vinha de outra
discussão, daquela que ele partilhava com os membros do Instituto de Pesquisa Social, principalmente
com Adorno e Horkheimer, qual seja, de que a psicanálise era uma arma importante e decisiva no
combate ao positivismo que tentava dominar a própria filosofia, por meio, por exemplo, do Círculo de
Viena, ou ainda no combate às filosofias da existência (Heidegger e Jaspers, por exemplo, na
Alemanha). Essas críticas se encontram bem colocadas na aula inaugural de Adorno na Universidade de
Frankfurt em 1931, intitulada “A atualidade da filosofia”, largamente inspirada, como sabemos, em
Walter Benjamin; 2) Benjamin tomou conhecimento da teoria freudiana muito cedo, desde a época da
universidade, de sua participação no Movimento de Juventude, antes da Primeira Guerra; na época de
seu doutorado na Universidade de Berna, na Suíça, frequentou seminários sobre Freud e a partir de 1928
seu interesse pela psicanálise não só aumentou, como também começou a se cristalizar em alguns
ensaios importantes, seja nas suas reflexões sobre Proust (Além do princípio do prazer, dizia ele, era um
comentário indispensável à Recherche... proustiana) ou ainda naquelas sobre os brinquedos e jogos
infantis. Em outras palavras, Benjamin tinha plenas condições de avaliar o sentido que o Trieb freudiano
poderia ter numa língua, a francesa, que ele conhecia muito bem.
Reunindo esses dois aspectos, poderíamos dizer que, em última instância, a psicanálise colocava em
jogo, de um modo bastante radical, a própria ideia de filosofia e, com isso, os seus alicerces
antropológicos. A concepção freudiana de inconsciente se tornava, desse modo, um caminho fértil para o
entendimento das profundas transformações sofridas pela percepção humana num mundo cada vez mais
dominado pela técnica, contribuindo de maneira decisiva para os processos de “desauratização”, cuja
análise foi uma das tarefas fundamentais da atividade de Benjamin como crítico da cultura nos anos
1930. Vou ainda mais longe: para Benjamin, não se tratava apenas de uma escolha teórica, mas
conectada com um preciso contexto político, o da ascensão do nazismo. Familiarizado com a teoria
freudiana da sexualidade, tal como os Proust-Papiere claramente mostram, Benjamin poderia muito bem
aceitar sem restrições uma das afirmações mais importantes de Michel Foucault em páginas decisivas do
primeiro volume da História da sexualidade (1976), segundo a qual a psicanálise só pôde se constituir
em efetiva resistência ao nazismo justamente por opor-se às teorias da degenerescência. Ora, o
imensurável valor dessa resistência é incompatível com a tradução de Trieb por instinto.
Todos sabem que Benjamin formulou uma complexa teoria da tradução. O que o seu assentimento à
tradução dessa passagem de seu texto destaca explicitamente nessa complexidade é, me parece, a relação
entre tradução, ética e política. Do ponto de vista ético, isso significa não apenas que não se pode
traduzir de qualquer jeito, mas que o famoso “traduzir é trair” supõe, antes de tudo, renunciar a qualquer
pretensão de reproduzir fielmente uma língua em outra, renúncia a uma espécie de identificação
primária, que revelaria, entre outras coisas, uma relação da ordem do ideal, sagrada, com o texto a ser
traduzido. Mas essa posição ética se complementa necessariamente com outra, que é política, ao supor
que uma tradução não pode ser indiferente ou neutra em relação aos contextos, dos quais ela não é
apenas dependente, reprodutora, mas também contra os quais ela pode resistir e se posicionar.
E qual é o “nosso” contexto, o que nos assola e bate diariamente à nossa porta, invade nossas casas e
se instaura no nosso cotidiano? É um contexto cada vez mais neuronal, cognitivo, biologizante,
normativo na medida em que, explícita ou implicitamente, se refere a uma ordem que é da “natureza”,
contexto de esvaziamento de qualquer subjetividade. Um contexto em que uma teoria do psiquismo
passa a ser vista como uma espécie de estágio pré-científico a ser definitivamente superado pelas
conquistas da ciência, a única verdadeira, a que comprova, trata e cura. Nessa perspectiva, Trieb por
“pulsão” não é apenas uma tradução válida e legítima em relação ao contexto teórico, mas continua
cumprindo muito bem sua função de resistência em um contexto político que procura sempre
desqualificar a psicanálise. Não apenas o texto freudiano, a teoria, mas igualmente sua prática, sua
intervenção institucional, sua inserção nas lutas no interior das discussões sobre as políticas públicas
para a saúde ou, ainda, nos fóruns importantes de discussão da violência urbana, sexual, sem contar,
evidentemente, as relativas à saúde mental e ao uso de drogas. O objetivo último desse combate é, sem
dúvida, eliminar o que insiste em resistir, ou seja, a “pulsão”.
Texto originalmente publicado na edição 181, julho/2013
Perspectivismo e psicanálise
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER

A psicopatologia lacaniana articulou sua teoria das estruturas clínicas como uma deriva do método
estrutural, proposto inicialmente por Lévi-Strauss na antropologia, combinando-as com as considerações
de Hegel sobre a filosofia da história. As antes chamadas “doenças mentais” não são nem doenças e nem
mentais porque são estruturas análogas aos mitos individuais, dotadas de dimensões existenciais: real,
simbólico e imaginário. Para definir a neurose, a psicose ou a perversão como estruturas existenciais,
Lacan entendeu que estas eram formas de interpretar a única lei universal não natural, ou seja, a
proibição do incesto. Freud havia proposto, em Totem e tabu (1913), que o desejo humano repetia, no
complexo de Édipo, os mesmos impasses que originaram a passagem do estado de natureza para o de
cultura: assassinato do pai no estado de horda primeira, incorporação canibalista de seu corpo, eleição de
um totem para representá-lo, transposição da proibição de ataque ao totem como tabu, aplicação do tabu
à regra que proíbe o incesto em todas as culturas conhecidas.
Nos anos 1940, Kroeber e Malinowski teceram críticas ao suposto universalismo do complexo de
Édipo, assinalando a existência de culturas nas quais o incesto não é proibido, pelo menos em alguns
aspectos, uma vez que os conceitos de família nessas culturas são muito diferentes dos nossos. Freud
apoiara-se em dados e ilações propostos por Darwin e Smith que se mostravam equivocados à luz da
antropologia da época. Não é que a hipótese freudiana estivesse equivocada em todos os aspectos, mas
ela simplesmente não é universal.
Na década de 1950, quando Lévi-Strauss reabilitou o totemismo conferindo-lhe uma nova
interpretação, ele percebeu que o importante na lei do incesto não era o sistema de parentesco específico
no qual ele era praticado, mas a existência mesma de uma regra universal de parentesco, que regrava os
casamentos em geral, levando em conta como as pessoas eram nomeadas dentro e fora de sua linhagem.
Foi essa reformulação que levou Lacan, nos anos 1960, a falar em função paterna e função materna,
tornando-as relativamente independentes do personagem real que as pratica. Por exemplo, a função
materna pode ser exercida por um homem, e a função paterna pode ser exercida por um transgênero. Em
uma direção semelhante, Lacan interessou-se pelas variantes do mito de Édipo, mais precisamente a
versão levada a cabo por Sófocles em Antígona. Temos aqui outro conjunto de impasses e de relações
com a lei, que dessa vez tematizam mais diretamente a lei da cidade contra a lei da família. Temos aqui
um Édipo protagonizado por uma mulher.
A psicanálise, ao longo de sua história, pensou criticamente oposições que lhe eram constituintes:
sonho e razão, loucura e normalidade, infância e adultescência, primitivos e civilizados, pré-genitais e
genitais. Mas, ao que tudo indica, ainda remanesce a oposição neurose e psicose como ponto no qual a
“desmontagem do centro” não se processou inteiramente. Por desmontagem do centro entendo a
estratégia epistemológica, tão característica da psicanálise, que consiste em criticar a falsa centralidade
do homem, que não é nem o centro do cosmos, nem das espécies e nem centro de si. Mas criticar a
centralidade não é prescindir dela, e isso só pode ser feito por uma mudança mesma do conceito de
perspectiva.
As novas críticas recebidas pela psicanálise a partir dos anos 1970 detiveram-se em sua incorporação
estruturalista. A objeção do falocentrismo (Derrida), o androcentrismo (teoria feminista), o
logocentrismo (nietzschianos), o etnocentrismo (teoria pós-colonial) e finalmente o edipianismo
(Deleuze e Guattari) convergem para essa espécie de primazia conferida à estrutura neurótica. Tudo
funciona como se o Édipo explicasse a neurose e a neurose, a psicose. Como modelo e meta da condição
de sujeito, a neurose adquire frequentemente valor de paradigma normalopático para processos de
simbolização, de articulação de desejo e de laço social com o outro.
Para incorporar e responder essas críticas e renovar a psicopatologia psicanalítica seria preciso reler
Totem e tabu. Ao enfatizar a distinção básica entre cultura e natureza, da qual o tabu do incesto fornece a
gramática, a psicanálise abandonou o campo da natureza. Esse abandono cria uma falsa oposição com a
psiquiatria biológica, como se houvesse uma psicopatologia da mente e outra do cérebro. A psicanálise
jamais advogou essa partilha, mas se viu obrigada a engoli-la como contrapeso da adoção do método
estrutural. A leitura convencional do totemismo traz consigo a tese de que existe apenas uma natureza.
Ela é fixa para todas as culturas, que são assim pensadas como variações de interpretação do mesmo
substrato natural, contendo atribuições arbitrárias de sistemas de valor, de língua, de religião etc.
O ponto problemático em aderir a um relativismo-mono-naturalista é nos vermos obrigados a
defender uma psicopatologia multiculturalista, que não é, em absoluto, uma posição necessária ou
decorrente das teses lacanianas. Não há nenhum motivo para que a psicanálise defenda a unidade do
campo natural, ao modo da res-extensa cartesiana. Ela não precisa aderir à tese de que há um ponto de
vista, um “meta-ponto de vista”, que argumenta que a ontologia é fixa e a epistemologia é variável.
Quando Lacan postula que o real é isto que é negado para que a realidade se apresente como uma,
plausível e idêntica a si mesma, ele recusa a fixação da ontologia. Quando ele pleiteia que a relação entre
os seres humanos envolve uma espécie de não-relação entre o gozo masculino e o gozo feminino, ele
está assumindo um tipo de perspectivismo onde a única constante são as perspectivas (homens,
mulheres), e o gozo ou o real a elas associados são depreendidos dessas perspectivas que, somadas, não
formam nem uma unidade, nem uma identidade, mas uma “não relação”.
Até recentemente essas teses de Lacan careciam de uma sustentação antropológica, correndo grave
risco de se apresentarem apenas como uma conjectura metafísica, ainda que útil para os clínicos. Isso
começou a mudar nos anos 1990, quando o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, discípulo
e continuador de Lévi-Strauss, estabeleceu uma crítica interna do totemismo, que ele veio a chamar de
perspectivismo ameríndio. Trabalhando com populações do Alto Xingu, ele notou a presença de um
sistema de pensamento para o qual o totemismo, e seus subsistemas de sacrifício e aliança, viam-se
suspensos. Em regra, são povos para os quais a diferença entre “nós” e “eles” dá-se de forma não
substancial e definitiva. No encontro com o outro não emerge a reação narcísico egoica de afirmação de
si, mas um jogo de determinação mútua da determinação de si pelas perspectivas criadas no encontro.
Isso implicaria a primazia de um sistema não identitarista de relação com o outro. Por isso seu
canibalismo difere do que foi pressuposto por Freud (e posteriormente empregado pelos modernistas
brasileiros), pois não se trata de acumular predicados ou traços do outro que foi devorado, mas de
dissolver e indeterminar a natureza do próprio eu. Se são as perspectivas que prescrevem os mundos,
todos eles existentes, surge como decorrência do perspectivismo a diversidade de naturezas, ou seja, o
multinaturalismo: “‘Perspectivismo’ foi um rótulo que tomei emprestado ao vocabulário filosófico
moderno para qualificar um aspecto muito característico de várias, senão todas, as cosmologias
ameríndias. Trata-se da noção de que, em primeiro lugar, o mundo é povoado de muitas espécies de
seres (além dos humanos propriamente ditos) dotados de consciência e de cultura e, em segundo lugar,
de que cada uma dessas espécies vê a si mesma e às demais espécies de modo bastante singular: cada
uma se vê como humana, vendo todas as demais como não-humanas, isto é, como espécies de animais
ou de espíritos”, escreve Castro em A inconstância da alma selvagem (2002).
O perspectivismo dos Arawetés afirma que o fundo comum entre seres humanos e animais é a
humanidade, e não a animalidade. No universo totêmico funções dêiticas tal como “ontem” ou “amanhã”
são tão logicamente válidas quanto relações de parentesco como “filho de”, “sobrinho de” etc. e tão
naturais como um pedaço de peixe ou uma canoa. Esse contexto trivial define a “normalidade
administrada” como aptidão reflexiva: os seres humanos veem os humanos como humanos e os animais
como animais. “Animais” é a função lógica do argumento na qual podemos substituir toda forma de vida
que não partilhe essa lei totêmica. Historicamente, são os excluídos: loucos, bárbaros, estrangeiros,
marginais, doentes, selvagens, crianças e assim por diante. É neste ponto que o animismo levanta uma
resposta alternativa. Não existem apenas humanos e animais, há também formas de vida que, como
“espíritos”, “pedaços de corpos”, “zumbis” e “homens feitos às pressas”, podem ser, por exemplo, “não-
todo-humanos” ou “não-mais-animais”. Onde o totemismo reconhece uma oposição do tipo
homem/animal, o animismo percebe um número indeterminado de formas de vida, todas elas
“humanas”, vestidas com as mais diversas “roupas” não humanas. O perspectivismo ameríndio é um
perspectivismo somático, no qual o corpo é entendido como roupa, envoltório ou semblante que deve ser
continuamente produzido ou fabricado. A roupa é concebida como produção de um corpo, está mais para
um equipamento de mergulho que instrumentaliza ações, do que para a máscara de carnaval, que
esconde uma identidade essencial. Encontrar-se com tais formas de vida “desnudas” é um signo seguro
de que as condições não são normais, ou seja, de que a perspectiva não é normal, mas nunca de que o
Outro não é normal.
Podemos pensar, de modo homólogo, que a oposição entre psicose e neurose, a mais forte oposição
estrutural da psicopatologia psicanalítica, é uma oposição semelhante à que estamos detalhando entre
totemismo e animismo. De fato, do ponto de vista do totemismo, que privilegia a metáfora como
princípio de ordem e classe, o animismo representa um déficit e pode ser percebido como uma ausência
de certas determinações. Mas do ponto de vista dos povos animistas, que privilegiam a metonímia, mas
em uma relação subversiva entre ordem e classe, são os povos totemistas que sofrem com excesso de
experiências de determinação e que não conseguem perceber a existência e a importância produtiva das
experiências de indeterminação. Enquanto os totemistas lidam com a diferença, representada pelo
patológico, criando uma multiplicidade de culturas, os animistas-perspectivistas admitem que só há uma
cultura, e são as naturezas individuais que variam.
Portanto, a ultrapassagem do neurótico-centrismo não se faz, necessariamente, pela admissão do
caráter universal da psicose humana, como pretende a chamada teoria da foraclusão generalizada, mas
pode ocorrer pelas vias da recuperação da categoria de loucura, como patologia do reconhecimento e do
sofrimento social. Também a inversão do androcentrismo não precisa corresponder à sua substituição
pelo simples oposto, o feminismo generalizado, derivado da noção de gozo feminino. Não se trata de
uma multiplicação de nomes-do-pai, mas de uma oscilação entre a função de nomeação e a produção de
identidades. O que nos parece essencial admitir é a existência de experiências produtivas de
indeterminação, equivalente conceitual da não proporcionalidade entre gêneros, modalidades de gozo e
estruturas clínicas.
Texto originalmente publicado na edição 208, dezembro/2015
Meu corpo e eu
GRACIELA BRODSKY

Talvez surpreenda que alguém que pratica a psicanálise fale do corpo quando a prática analítica coloca o
corpo em suspensão. Há nela um noli tangere que o uso do divã leva a seu ponto mais alto. Deixar de
lado o corpo no dispositivo analítico não se deve a nenhum tabu de contato, mas sim a um cálculo para
dar lugar privilegiado à palavra. A suspensão de qualquer tipo de manipulação dos corpos a favor da
palavra pode levar a pensar que para praticar a psicanálise é necessário prescindir por completo do
corpo, podendo, por exemplo, analisar por Skype ou chat. Em algumas ocasiões pode ser necessário
lançar mão desses recursos tecnológicos, mas é sempre bom reservá-los para casos de força maior. Freud
preconizava a suspensão do corpo a ponto de fazer dela uma regra da prática analítica: a regra da
abstinência. Para além de qualquer caricatura, isso torna patente que quem fala não está ali: não sou eu
quem falo, Outro fala por minha boca, sou falado a partir de outro lugar, a partir de outra cena. Em meus
sonhos, equívocos ou atos falhos digo o que não quero dizer, confesso o que não reconheço desejar nem
pensar. Quando se põe de lado o corpo é pelas melhores razões, para que o inconsciente tome a palavra e
se faça presente em meus ditos. Quando o analista responde ao inconsciente do analisando com uma
interpretação, seja ela com palavras ou silêncios, também exclui a pessoa do analista, alguém que, como
um oráculo, é somente o mensageiro de uma mensagem que, no fundo, vem do próprio paciente. O
emissor recebe do receptor sua própria mensagem de forma invertida, dizia Lacan. Assim, na psicanálise
não se trata de ver, e sim de dizer.
Porém, se pensarmos um pouco mais detidamente, percebe-se que para falar é preciso um corpo. Não
se pede ao paciente apenas que fale mas também que venha, que compareça de corpo presente. O próprio
corpo e o do analista costumam fazer parte das preocupações dos analisandos. Um espirro, um bocejo,
um ruído de papéis, uma ausência bastam para colocar em jogo o corpo do analista. A psicanálise é
praticada na presença de dois atores porque não é o mesmo falar sozinho e falar para outro. Portanto,
temos que considerar que a palavra não é tão independente do corpo, que os corpos não estão aí por pura
casualidade, que sua presença não é contingente.
O corpo não tem um lugar circunstancial na análise, mas parece concentrar um interesse especial do
analisando, um motivo de preocupação, queixa, satisfação ou sofrimento, que o leva a falar. Ao
consultório vem o corpo e se fala do corpo, do corpo próprio e do Outro, com o qual, em geral, não se
sabe o que fazer. O corpo não é uma variável interveniente a ser neutralizada para dar lugar à palavra, ele
é o referente dos ditos do analisando.
Em análise se fala do corpo, ou melhor, na psicanálise fala o corpo.
Freud percebeu que as histéricas falavam com seus corpos mesmo sem saber o que diziam, o que o
levou a inventar a psicanálise. Fala também o corpo do obsessivo trabalhando para mortificá-lo. Fala o
corpo do fóbico medindo a distância em relação ao objeto de seus temores. Fala o corpo da anoréxica
que gostaria de diminuí-lo até desaparecer. O esquizofrênico o mutila para calá-lo, o do adolescente o
corta, o tatua. Tem o corpo exibido pela publicidade, o da droga que o estimula ou o adormece. O corpo
do esporte que o exaure ao limite da dor; o corpo que se excita ou não; o corpo que se reproduz ou não; o
corpo que se faz desaparecer, que se tortura, que se queima. E tem o corpo que se reclama: habeas
corpus.
Em geral, o habeas corpus não é requerido pela vítima, são seus familiares que exigem que aquele
que já não dispõe livremente de seu corpo compareça, apareça. O habeas corpus existe porque se sabe
que o corpo pode se perder, que se pode dispor dele para o melhor e para o pior.
Para a psicanálise, a coisa não é tão simples quanto queria o Marquês de Sade na fala de Condorcet
de Filosofia da alcova: “Eugênia, meu anjo querido, teu corpo é teu, somente teu. Neste mundo apenas
tu tens o direito de gozar dele e de deixar que dele goze aquele que te agrada”. Ter um corpo é o
resultado de um mecanismo complexo, não dado de entrada e sempre sob ameaça de perda. Existem
casos extremos como a Síndrome de Cotard, também conhecida como delírio de negação dos órgãos, em
que o corpo estaria oco ou com seus órgãos apodrecidos. Não precisamos ir tão longe para verificar, no
nosso cotidiano, que não dispomos de nosso corpo como queremos. Podemos ir para um lado e ele, por
outro: quando nos perdemos, rimos ou choramos em situações inoportunas, quando ele não responde
sexualmente, quando não nos reconhecemos em fotos ou quando grávidas.
A experiência psicanalítica põe em manifesto que meu corpo e eu, em geral, não nos entendemos:
para meu pesar, ele anda sozinho, me trai quando mais necessito dele. Não me reconheço em sua
imagem, nem me representa bem diante do Outro; não temos a menor ideia do que ele contém, salvo
quando estamos doentes ou passamos por um escâner. Convenhamos: é muito difícil dizer “este sou eu”
quando nos mostram uma radiografia. Sem dúvida, o corpo da Medicina não é o corpo da psicanálise.
O que retemos do próprio corpo é, de forma geral, sua imagem. Lacan considerou o corpo como
forma visual quando descreveu o fenômeno maturacional que conhecemos por “estádio do espelho”.
Com ele, reinterpretou o conceito freudiano de narcisismo: o amor por si mesmo, o amor mortal à
própria imagem – como o destino de Narciso –, fazendo da imagem do próprio corpo a origem do eu,
reduzido à “ideia de mim mesmo como corpo”. É possível evocar em poucas palavras as coordenadas
que estruturam o estádio do espelho: prematuração, fragmentação corporal, alienação a uma imagem de
completude, júbilo. Tudo isso sempre e quando existe um suporte simbólico representado pelo aparato
do espelho.
A chave do estádio do espelho, tal como formulado por Lacan, não está no momento evolutivo em
que a criança descobre sua imagem no espelho. Esse é o pretexto. O que o interessou no experimento é
que há dois lugares: do lado de cá do espelho, o corpo desarticulado; do outro, no espelho, uma imagem
plana, sem corpo, com a qual me identifico: “Sou eu”.
A imagem no espelho emoldura, limita, enquadra. Em relação a ela, o corpo próprio se experimenta
em déficit, desprovido de harmonia, carente de coordenação. Porém, para além da imagem, é um puro
corpo que se satisfaz em seu movimento, que obtém prazer no contato, que se chupa, se toca; um corpo
que se goza, dirá Lacan. Um corpo que goza de si. Se de um lado está o júbilo que gera a boa forma da
imagem do corpo próprio refletida no espelho, do outro está o corpo que se goza. Não são o mesmo. Faz
falta, de fato, um aparato simbólico como o espelho ou a sustentação do Outro para que tanto esse déficit
como esse gozo excessivo ganhem uma moldura e se limitem. A imagem, o júbilo pela imagem, a
alienação a esse eu que creio estar fora de mim na superfície do espelho, fora do meu corpo, faz esquecer
tanto o déficit como o excesso.
Mas isso falha. E retorna. O “menos” se transforma em castração, podendo aparecer como falta na
mulher e insuficiência no homem ou como um fetiche velando e revelando a falta.
Lacan também ressalta que na imagem há uma mancha, momento em que o júbilo se transforma em
horror. Freud tratou disso no texto “O estranho”, leitura necessária para estudar o famoso estádio do
espelho. A literatura e o cinema souberam explorar essa irrupção do estranho no meio familiar, essa
duplicidade entre meu corpo e eu: Dr. Jekyll e Mr. Hide, O incrível Hulk, Alien são figurações
imaginárias da falta da imagem para enquadrar o que chamamos de o real do corpo, e o desaparecimento
do júbilo de ser o que sou para dar lugar a isso que habita em mim para além de mim mesmo.
Meu corpo e eu somos dois porque meu corpo sempre é Outro para mim. Se virar com o corpo, ter
um corpo, é o resultado de um trabalho, de uma construção que começa com o estádio do espelho e
muitas vezes não termina sem uma análise.
A imagem é um tratamento do gozo pelo corpo: dá-lhe unidade, marco, limite. Civiliza o gozo do
corpo através da ilusão de domínio do eu. Daí partem muitas práticas psicoterápicas que reforçam o eu
tentando controlar as pulsões. Mas, ao mesmo tempo, a imagem tem efeitos de gozo sobre o corpo, é este
o paradoxo que quero destacar para concluir. Na dialética do espelho não entra em jogo somente o
aparato simbólico representado tanto pelo espelho como pela presença do Outro que sustenta a criança
na experiência. Nela está também o olhar e seu suporte corporal, o olho. Podemos distinguir tempos
lógicos nesta dialética entre meu corpo e eu: um primeiro momento no qual só temos o exercício gozoso
do corpo e seu autoerotismo, e um segundo em que a imagem surge como marco, acompanhada do gozo
jubiloso pela contemplação da imagem. O que passa desapercebido é que esse júbilo requer o olho, um
órgão glutão que se satisfaz com a imagem. Satisfazer-se, gozar com as imagens, parece ser um traço da
época em que vivemos que tem consequências na clínica psicanalítica.
O olho é voraz, quer ver o invisível, pede sempre mais. A publicidade e a cosmética se valem disso, a
técnica o leva a extremos impensáveis. Nada disso nos influenciaria se não fosse porque se apoiam na
voracidade do olho, nesse querer ver que abarca desde fenômenos mais sociais, como o cinema, até
fenômenos mais intimamente secretos, como o voyeurismo. Lacan adorava repetir uma história narrada
por Alphonse Allais: durante um número de striptease, o público pedia mais. À medida que a mulher ia
tirando a roupa, o público pedia mais. Finalmente a mulher fica nua e, não havendo nada mais para tirar,
o público, que continua a pedir mais, avança sobre ela e lhe tira a pele.
Lacan pensava que eram as imagens que nos devoravam, que elas capturavam o olho voraz e faziam
dele seu servo em troca de uma satisfação que transbordava o olhar e se irradiava pelo corpo. Satisfação
obscura, paradoxal, na qual meu eu se desconhece e na qual meu corpo se regozija. Em última análise, se
tapamos os olhos para não ver é porque o corpo não necessita da luz para gozar.
Texto originalmente publicado na edição 211, abril/2016. Tradução e edição Ondina Machado
colaboraram nesta edição
Antônio Teixeira é psicanalista, doutor em Psicanálise pela Universidade de Paris 8 e professor do
Departamento de Psicologia da UFMG
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, doutor em Psicologia Experimental pela USP e professor
titular do Instituto de Psicologia da mesma universidade
Ernani Chaves é doutor em Filosofia pela USP e professor titular da Faculdade de Filosofia da UFPA
Fátima Caropreso é doutora em Filosofia pela UFSCar e professora associada do Departamento de
Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFJF
Graciela Brodsky é psicanalista, diretora do Instituto Clínico de Buenos Aires e do Mestrado em
Clínica Psicanalítica na Universidade Nacional de San Martín, Buenos Aires
Juvenal Savian Filho é teólogo, doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Filosofia
da Unifesp

Luís Carlos Menezes é psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Richard Theisen Simanke é doutor em Filosofia pela USP e professor titular do Departamento de
Psicologia da UFJF

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