dossiê Aníbal Quijano, o mundo a partir da América Latina
Apresentação A tenacidade da inquietude O tempo na obra de Aníbal Quijano O feminismo decolonial A colonialidade e Porto Rico
estante cult
colaboraram nesta edição
coluna
Fome coletiva por nossa história escondida
BIANCA SANTANA
Memórias da plantação, de Grada Kilomba, foi o livro mais vendido na livraria
oficial da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, em 2019. Não é pouca coisa celebrar, pelo segundo ano consecutivo, uma mulher negra como autora mais vendida na festa literária mais importante do país. E, além da autoria, é importante atentar para o conteúdo da publicação. Editado pela primeira vez na Alemanha, em 2008, o livro, escrito em inglês, é fruto da tese de doutorado em filosofia de Grada, defendida na Freie Universität Berlin. Nele, são apresentadas análises de episódios de racismo cotidiano, partindo da ideia de bell hooks de que a história pode “ser interrompida, apropriada e transformada através da prática artística e literária”. Ao apresentar relatos de discriminação racial sofridos por Grada e mais duas mulheres negras que entrevistou, a autora propõe uma atualização do trauma do passado escravocrata. Assim, o racismo cotidiano teria cronologia atemporal: o presente estaria constantemente assombrado pelo passado invasivo da escravidão. Na perspectiva de Grada, cada vez que uma vizinha ou um vizinho do prédio onde vivo faz questão de perguntar em que apartamento eu trabalho como empregada doméstica – já que não lhes parece possível que uma mulher negra seja moradora do mesmo prédio de apartamentos que eles –, atualiza-se o projeto colonial de que determinados lugares não são para determinadas pessoas. Até pouco tempo atrás, era uníssona no Brasil a ideia de uma democracia racial. Um processo de negação, como Grada demonstra também na instalação The Dictionary, em exibição na Pinacoteca de São Paulo até 30 de setembro. Depois da negação, viriam culpa, vergonha e reconhecimento, para então ser possível a necessária reparação do que foi a escravização de pessoas negras. Enquanto algumas pessoas, entre elas o presidente da República, seguem no processo de negação do que foi o regime escravocrata no Brasil e do racismo estruturante que vivemos, há muitas outras pessoas brancas em processo de culpa, vergonha ou reconhecimento da nossa tragédia. Não vejo a hora de falarmos seriamente sobre reparação. Grada conta que inúmeras vezes é acusada de excesso de subjetividade, como se não produzisse teoria séria o bastante para os parâmetros da academia. Sobre isso, argumenta que qualquer forma de saber que não se enquadra na ordem eurocêntrica de conhecimento tem sido rejeitada, sob o argumento de não constituir ciência. Uma das facetas do epistemicídio de que trata Sueli Carneiro em sua tese de doutorado: “(...) o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva; pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui- lhes a razão, a condição para alcançar o conhecimento ‘legítimo’ ou ‘legitimado’”. Acessar educação de qualidade, firmar uma autoestima da própria capacidade intelectual, valorizar conhecimentos variados de pessoas negras seriam, portanto, passos importantes para barrar tal epistemicídio. Para Grada – e concordo totalmente –, a escrita de mulheres negras é uma estratégia potente de descolonização. Pela escrita em si: “(...) enquanto escrevo, e me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade na minha própria história. Nesse sentido, eu me torno a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou”. Mas também pela possibilidade de valorização e reconhecimento desta escrita, colocando as mulheres negras como sujeitos cognoscentes, produtoras de conhecimento legítimo e legitimado. Escrever possibilitou que Grada se opusesse ao projeto colonial: multiartista internacionalmente reconhecida, apesar de filha de trabalhadora doméstica. Memórias da plantação ser o livro mais vendido da Flip coloca um tijolo importante na árdua construção de mulheres negras como produtoras de conhecimento. Coletivo de vozes Inspirada por Grada Kilomba, bell hooks, Sueli Carneiro e uma série de outras intelectuais negras que têm traçado um mesmo percurso coletivo de ampliação e disseminação de nossas vozes, organizei a antologia Vozes insurgentes de mulheres negras: do século XVII à primeira década do século XXI, publicada pela Mazza Edições e pela Fundação Rosa Luxemburgo e disponível de forma gratuita e aberta na internet. A obra inclui 24 textos de mulheres negras brasileiras: carta, trecho de romance, artigos de jornal, diários, letras de música, ensaios, artigos acadêmicos, conto, crônica, discurso, poema, entrevista. A intenção foi reunir, em um único volume, vozes de mulheres que romperam com o silenciamento que lhes foi imposto, primeiro pela condição de escravizadas, depois pelo colonialismo, pelo racismo, pelo sexismo, pelas discriminações e pela desigualdade de classes. Acredito que publicar, ler e estudar a produção intelectual dessas mulheres crie novas epistemologias, valorizando o conhecimento produzido por elas e também as valorizando, individual e coletivamente, como sujeitos de conhecimento. Uma oportunidade de adensar raízes para nos fortalecer diante do trauma da escravidão, mas também para avançar da negação e da culpa rumo ao reconhecimento e à esperada reparação. Esperança Garcia. Maria Firmina dos Reis. Antonieta de Barros. Eunice Cunha. Maria de Lurdes Vale Nascimento. Laudelina de Campos Mello. Carolina Maria de Jesus. Neusa Maria Pereira. Leci Brandão. Dona Ivone Lara. Lélia Gonzalez. Mãe Stella de Oxóssi. Jovelina Pérola Negra. Beatriz Nascimento. Benedita da Silva. Luiza Bairros. Elisa Lucinda. Nilma Bentes. Sueli Carneiro. Cida Bento. Jurema Werneck. Matilde Ribeiro. Cidinha da Silva. Conceição Evaristo. Mulheres que utilizaram, e utilizam, a escrita como possibilidade de serem autoras e autoridades de suas próprias vidas, mas também do pensamento social brasileiro. Oposições absolutas do que o projeto colonial predeterminou. Mais que reconhecimento da importância desses escritos, vivemos um momento de fome coletiva por essas histórias. Que a fome crie cada vez mais oportunidades de publicação e coloque cada vez mais pessoas negras nas listas de autoras e autores mais vendidos. Quantas mulheres negras você já leu? coluna
A questão ética MARCIA TIBURI
Infelizmente ética enquanto tema tem se tornado um assunto ultrapassado, da
mesma forma que sua prática. No entanto, seja como teoria ou como prática, trata-se de uma questão cuja urgência se coloca mais uma vez e a cada dia e que, algumas vezes, como na atual história do Brasil, precisa ser recolocada como questão institucional e política. No contexto dos retrocessos e atrasos vividos em nosso país, é preciso neste momento dar um passo atrás e recuperar uma reflexão que vem se perdendo ou que, pior ainda, vem sendo propositalmente apagada. A urgência da ética não deve ser vista como um sinal do fracasso da cultura humana, como se a ideia de humanidade fosse uma abstração ultrapassada. Antes, a urgência sinaliza para o necessário movimento da vida humana no tempo histórico e geopolítico no planeta que habitamos. Alguns teóricos permanecem separando a ética da política desde Maquiavel, cuja teoria enuncia que “os fins justificam os meios”. É a formulação teórica da objetificação do mundo, do poder acima de tudo e todos. A gravidade da sentença por trás da qual há séculos de reflexão fez com que a análise da política tratasse a ética como uma questão secundária, como se já não fizesse parte dela. A ética ficou perdida como uma teoria ligada ao individualismo, ao pragmatismo e ao liberalismo. A ética de Espinosa tentava estabelecer a conexão entre determinismo e liberdade, ou seja, a potencialidade humana para a ação no contexto em que o que somos e podemos ser já estava programada em muitos sentidos. Já filósofos críticos sempre se voltaram para ela em períodos mais tardios, como podemos ver em Adorno e Foucault, teóricos que, naquele momento de suas teorias, recuperaram o âmago da experiência da vida consciente em nosso planeta. Theodor Adorno chamou a ética de “triste ciência” porque já não teria seu objeto original para analisar, a vida justa. Foucault voltou aos filósofos da Antiguidade clássica, tentando recuperar questões relacionadas à formação do sujeito. Não é por acaso que esses filósofos tenham retornado ao momento no passado em que a ética foi primeiro colocada como teoria. Não se trata apenas da densidade daquelas propostas teóricas que até hoje nos provocam a pensar, mas sobretudo de um gesto. O gesto de começar de novo. O trabalho do pensamento é um trabalho de início, o trabalho de reiniciar para que o processo possa ser feito corretamente. É o trabalho de voltar atrás, de começar de novo. O que Hegel colocou como pergunta pelo início da filosofia pode ser lido dessa maneira. É preciso partir do começo. E o começo é a simplicidade do pensar, que, em um primeiro momento, ainda não pensa, apenas contempla. Em termos amplos, a ética, assim como os temas filosóficos de modo geral, precisa ser sempre recolocada porque não podemos jamais pressupor uma espécie de alfabetização conceitual por parte de todos os seres humanos. Nesse sentido, uma coisa é estudar as teorias éticas e fazer evoluir a discussão em uma esfera acadêmica e de análise histórica em contextos nos quais especialistas falam entre si. Outra coisa é a complexa difusão das teorias que, de modo geral, não é garantia de nenhuma evolução no mundo da vida cotidiana. E outra coisa ainda é a urgência de recolocar a questão da relação entre teoria especializada e prática cotidiana. Afinal, é na vida cotidiana que a ética como teoria é posta à prova. A questão ética é, nesse sentido, uma questão política complexa, tanto que muitos hoje preferem não se envolver com ela. No analfabetismo conceitual comum ao mundo da vida, costumamos reduzir a ética à moral e deixar de lado seu problema fundamental, que diz respeito ao sujeito da ação, em um mundo no qual a robotização humana parece uma meta universal. coluna
O ciclo de agressão ideológica da nova política
WILSON GOMES
Em 3 de junho de 2017, 20 delegados do PT atacaram Miriam Leitão em um voo
para São Paulo. Começaram puxando o coro de “terrorista, terrorista!”, depois passaram às ofensas, aos esbarrões na cadeira em que ela estava sentada, aos gestos de humilhação. Em julho de 2019, Carlos Schroeder, coordenador artístico da 13ª Feira do Livro de Jaraguá do Sul (SC), lamentava em entrevista ter tido que cancelar o convite feito ao casal Miriam Leitão e Sérgio Abranches, uma vez que se sentiu intimidado pela enxurrada de mensagens de repúdio recebidas, muitas delas com ameaças. Em café da manhã com a imprensa estrangeira em 19 de julho, foi a vez de o presidente da República dizer que a jornalista não só integrou a luta armada como se dirigia ao Araguaia para se juntar à guerrilha quando foi merecidamente presa pelo regime militar, aos 19 anos, e que ela mente ao dizer que foi submetida a abusos ou a tortura. A agressão, com motivação ideológica, de alvos considerados adversários ou inimigos já é de casa neste Brasil em que todo mundo virou torcedor partidário, na hipótese benigna, ou combatente engajado na guerrilha política, na hipótese mais extrema. Naturalmente, é fácil para a opinião pública condenar a razia ideologicamente motivada contra os adversários, mas só a do outro lado. De modo que hoje a agressão ideológica faz par constante com a indignação seletiva: as pessoas estão prontas para a condenação veemente quando a agressão parte de uma facção, assim como para a indulgência (ou até para a defesa do agressor) quando é o seu lado que está implicado. Isso, contudo, é só metade da história. Na verdade, há um sistema de retroalimentação de conflito político que precisa tanto dos eventos de agressão como da seletividade da indignação que os acompanha. Funciona assim: a jornalista foi insultada por petistas, há dois anos, por bolsonaristas, no início de julho, e pelo próprio Bolsonaro, em seguida. O ato será universalmente reprovado? Todos firmarão uma posição pela tolerância, pelo respeito às diferenças e pela vontade de dialogar, certo? Não. Primeiro vêm os aloprados do esculacho ou o presidente tosco e sem noção, depois vem a multidão de coniventes em redes sociais, com aplausos ou afirmações de que “não aconteceu nada demais” ou “fomos maldosamente interpretados”. O que, por sua vez, será a deixa para um terceiro tipo de ação, que tentará faturar para a própria causa em cima da onda de indignação coletiva/absolvição seletiva. Trata-se dos aproveitadores de clima de indignação, pessoas que militam no fluxo da indignação coletiva para conseguir afirmar a superioridade da própria causa ou, mais comumente ainda, desferir outro ataque moral contra a causa adversária, mesmo à custa de alimentar o ódio, o ressentimento e o desejo de retaliação. O que faz com que ciclo autodestrutivo de imbecilidade e ofensas funcione em moto-contínuo. Nos anos em que acompanho as conversas políticas em ambientes sociais digitais, consegui identificar os quatro tipos mais comuns de aproveitadores de clima de indignação, que se especializaram em parasitá-lo para promover ainda mais atrito político. Os episódios com Miriam Leitão nos oferecem um excelente caso para ilustrar a tipologia. O primeiro tipo, e dos mais comuns, é o indicador de omissões. O seu modus operandi consiste em indicar uma lacuna de indignação de determinado grupo com o intuito de polemizar e rebaixar a posição daquele grupo, que, não por acaso, é o seu adversário. “Cadê as feministas todas pra defender a Miriam Leitão do ataque que sofreu dos militantes petistas no voo?” É necessário ter havido falta de indignação do grupo X com relação ao evento Y? Não. O objetivo não é constatar, mas dar um exemplo de como o grupo X não tem superioridade moral nas suas causas porque pratica “indignação seletiva”. Assim, qualquer clima de indignação social é útil para “desmascarar” o grupo que se detesta. Em geral, o sommelier de indignação nem sequer presta solidariedade à vítima, o foco está no ataque ao inimigo moral. O segundo tipo é o transferidor de culpa. “Quem fomentou este clima de radicalização em que vivemos foi a Globo. A Miriam Leitão é uma infeliz vítima da própria empregadora.” Não se trata de negar que a pessoa é vítima de alguma coisa, mas de dizer que os seus algozes imediatos não foram os reais culpados do ataque. A culpa é transferida para uma estrutura, uma instituição, circunstâncias, alguma coisa mais importante e muito além dos atacantes eventuais. E como a vítima tem a ver com essa estrutura realmente maligna, nem que seja por vínculo profissional, no fundo tem parte da culpa pelo que lhe acontece. Os agressores, não, uma vez que, embora tenham vitimado alguém singularmente, são na verdade as grandes vítimas históricas da Estrutura do Mal. Quem mandou trabalhar na Globo? O terceiro tipo é o sommelier de indignação coletiva, com meia solidariedade à vítima e meia defesa da agressão. “Não que eu ache justo o que Miriam Leitão diz ter sofrido, mas ela se posicionou contra os escrachos sofridos por Guido Mantega, por exemplo?”. Como a vítima não ofereceu empatia em caso semelhante, não há razão para que a violência sofrida por ela seja objeto da nossa indignação. Se ela, a vítima, pratica indignação seletiva, por que eu devo lhe oferecer indignação integral? Não. O que vou fazer é esfregar em sua cara as suas próprias falhas morais, agora que ela também foi vítima. Com isso, reforço os valores do meu grupo e continuo atacando meus inimigos, usando a vítima como exemplificação. A ideia de que se possa indignar contra algo injusto, com base em princípios, é desconhecida desta perspectiva. Deve-se oferecer empatia apenas a quem foi legal quando eu precisei. Ou seja, aos nossos. O quarto tipo é o que exibe, jactante, a sua recusa à empatia com a vítima. “Minha solidariedade aos milhões de trabalhadores brasileiros que são agredidos verbalmente todos os dias pela golpista Miriam Leitão.” Dizem que a hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude. Pois aqui não há mais hipocrisia, as coisas estão explícitas, quem vocês pensam que é vítima, não é vítima coisa alguma, é algoz. O que precisa ser desqualificado aqui não é o grupo X que não compareceu ao ato coletivo de indignação, como no primeiro tipo, mas a própria presumida vítima, que não vale nada. E assim vamos nós, a agressão atrai a seletividade na indignação, atrás da qual vêm os aproveitadores e parasitas de seletividade para gerar mais treta, mais atrito, mais polarização e, por conseguinte, mais motivação para novos atos de vigilantismo político. Nada pode resultar de construtivo nisso tudo. Mas é essa eletricidade no ar, gerada por um estado permanente de beligerância, o que alimenta multidões de novos interessados e de novos participantes da política nos dias que correm. A treta e a agressão são o combustível da nova política. especial Paulo Leminski Por que amamos Paulo Leminski? TARSO DE MELO
Sucesso: a mais espantosa de todas as palavras que nos remetem ao universo da
poesia de Paulo Leminski. O poeta curitibano, nascido em 1944 e morto em 1989, que completaria 75 anos neste 24 de agosto, fez e faz muito sucesso. E a aproximação entre poesia e sucesso no caso dele pode ser expressa em números grandiosos: Toda poesia, reunião de seus livros de poesia lançada em 2013, já bateu 170 mil exemplares, apenas na edição de papel (custa 62,90 reais neste país em que um programa social que distribui 89 reais por família causa tanta alegria – e ódio). Há também edição digital vendida pela própria editora e, claro, outras formas de circulação, digamos, “não registradas”, que podem levar esse número a casas ainda mais admiráveis. Muito antes disso, em 1983, quando Leminski, “pequeno poeta de província” até então, que circulava praticamente em autoedição em Curitiba, reuniu pela primeira vez seus poemas numa edição comercial em Caprichos & relaxos, também foi um estrondo para os padrões da poesia: várias edições em poucos anos, somando dezenas de milhares de livros. De lá pra cá, o cachorro louco sempre fez chover no piquenique de quem diz que poesia é para poucos. Leminski, sem dúvida, é para muitos. A poesia de Leminski fez e faz a cabeça dos públicos mais diversos, não apenas do leitor habitual de poesia treinado nas artimanhas do verso e para além dele. E nada aí se deu por acaso, porque fazer a poesia chegar ao público mais amplo possível era uma das “duas obsessões” de Leminski: “a fixação doentia na ideia de inovação e a (não menos doentia) angústia quanto à comunicação” (como disse no ensaio “Teses, tesões”). É curioso que, na sequência e também em outros textos, Leminski diga que não poderia haver conciliação entre inovação (formal, de vanguarda) e comunicação (efetiva) na poesia, porque foi justamente o que fez desde seus primeiros poemas. Leminski pensou e, à sua maneira, teorizou muito sobre essa questão (de seus Ensaios e anseios crípticos, destaco “O boom da poesia fácil” e “Tudo, de novo”), mas principalmente buscou em seus versos essa conciliação. Vem daí, por exemplo, o mergulho cada vez mais fundo no universo da canção. Leminski afirmou que a grande poesia de sua época está nos discos, não nos livros, e passou a vida fazendo parcerias musicais, algumas de bastante sucesso (com Caetano Veloso e Guilherme Arantes, entre tantos outros), e não escondia a vocação de seus poemas para saltarem dos livros para os palcos e discos. Basta lembrar a pequena nota de abertura de Caprichos & relaxos (“Aqui, poemas para lerem, em silêncio,/ o olho, o coração e a inteligência./ Poemas para dizer, em voz alta./ Poemas, letras, lyrics, para cantar./ Quais, quais, é com você, parceiro.”) ou a nota ao poema “para que leda me leia”, já em Distraídos venceremos (“Este poema já foi musicado duas vezes. Uma por Moraes Moreira, outra por Itamar Assumpção. Que tal você?”). Leminski não apenas sabia que a aproximação com a poesia dos discos levaria seus versos mais longe, mas queria que cada um de seus leitores, na verdade, fosse seu parceiro nessa travessia da página ao canto. Não se pode dizer, contudo, que o sucesso das canções catapultou Leminski para fora dos muros altos da poesia do livro. Pelo contrário, a impressão que tenho é de que ele é um caso raro de sucesso como poeta de livro e que o interesse do público por suas investidas para além do livro (discos, vídeos, grafitti, guardanapos) e mesmo para além dos próprios livros de poesia (prosas, biografias, traduções, ensaios, resenhas, cartas) é um fruto da paixão que seus poemas despertam. O “leitor” de Leminski, a meu ver, faz o caminho contrário ao do “ouvinte” de Vinicius de Moraes: neste caso, quem admira as canções procura os livros, mas, no caso de Leminski, é a paixão pelo poema na página que joga luz sobre tudo o mais que ele fez. No campo da poesia, Leminski é nosso “último fenômeno editorial”, como afirma Paulo Ferraz num artigo que rastreia as formas como Leminski, dentro e fora de seus poemas, lidou com a indústria cultural (“O caminho dos meios”, no livro Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970, org. Viviana Bosi e Renan Nuernberger). E é por isso que, agora que o poeta faria 75 anos, precisamos começar pela constatação de seu sucesso para responder a uma pergunta que me faço há mais de duas décadas, desde quando caiu em minhas mãos pela primeira vez um livro do Polaco: por que amamos Paulo Leminski? O próprio Leminski dá alguns caminhos para pensar sobre as paixões que sua poesia desperta. Em 1986, na palestra “Poesia: paixão da linguagem” (publicada em Os sentidos da paixão, org. Adauto Novaes), ele afirma: “As línguas amam seus poetas porque, nos poetas, se realizam os seus possíveis. Um Fernando Pessoa, um Maiakóvski, um Pound, um cummings, um Cabral, um Khliebnikov, um Augusto de Campos são poetas que conduzem sua língua aos extremos limites de expressão dela, quase assim na fronteira, no abismo do incomunicável”. Antes disso, em 1985, no documentário Ervilha da fantasia, de Werner Schumann, Leminski havia formulado essa ideia de modo significativamente diferente: “Todos os povos amam seus poetas. Eu não sei se todos os povos amam seus cientistas, mas todos os povos amam seus poetas. No Brasil, poetas como Vinicius de Moraes, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Milton Nascimento e seus parceiros são pessoas amadas. Os poetas são amados por milhões. Por que os povos amam seus poetas? É porque os povos precisam disso. Os poetas dizem uma coisa que as pessoas precisam que seja dita. O poeta não é um ser de luxo, ele não é uma excrescência ornamental, ele é uma necessidade orgânica de uma sociedade. A sociedade precisa daquilo, daquela loucura para respirar. É através da loucura dos poetas, através da ruptura que eles representam, que a sociedade respira.” Comparando essas duas passagens, sempre me chamou atenção que, na de 1985, Leminski diz que “os povos amam seus poetas” e, como exemplo, cita poetas dos discos, ao passo que, na de 1986, ele diz que “as línguas amam seus poetas” e, aí, cita poetas dos livros. Aqui, nos livros, os poetas levam a língua ao extremo – ecoando o tema da inovação. Ali, nos discos, os poetas dizem o que o povo precisa que seja dito – tocando o tema da comunicação. Leminski, ao mergulhar em suas duas obsessões, tenta atingir a síntese entre esses dois amores – da língua e do povo – pelos poetas. Sua missão (seu sacerdócio, podemos dizer) como poeta parece se orientar o tempo todo por esse desejo de ser amado, de ser lido e adorado por muitos leitores. Se, por um lado, “poesia é um ato de amor entre o poeta e a linguagem”, por outro, é no leitor (no receptor, como Leminski diria) que esse ato de amor se completa. Isso ajuda a entender por que Leminski investiu a vida numa espécie de obra total, em que os poemas são o eixo principal de um feixe de relações com as palavras em muitas línguas, que envolve canções, ensaios (anseios), resenhas, traduções, biografias, prosa, palestras e múltiplas intervenções públicas. Nas várias faces dessa obra total encontramos um poeta dedicado à busca incansável pelo sentido, mas não menos incansável na busca pela forma de comunicação desse sentido a seu público. Quando Leminski diz “tudo/ que/ li/ me/ irrita/ quando/ ouço/ rita/ lee”, está também insinuando que não pretende escrever poemas que fechem as portas de seus livros para o público gigantesco da “rainha do rock”. Isso não significa, entretanto, que Leminski tenha simplesmente colocado sua poesia a serviço do “pop”. É bem mais complexo que isso. Escrever poemas com a antena ligada na poesia que alcançava um público mais amplo (a poesia da música, da MPB ao rock e ao pop) fez com que Leminski encontrasse e afiasse sua forma de falar com o leitor. A poesia de Leminski está longe de ser superficial, mas o poeta sempre soube, como poucos, explorar a superfície do poema – sua primeira e mais imediata camada – como um convite, um chamariz, uma isca para que o leitor caia em seu abismo. A forma concentrada, as rimas muitas vezes fáceis, o humor ligeiro, a leveza no traço – tudo isso leva o leitor para a arena de Leminski e, daí, ele não sai ileso. O poema de Leminski, efetivamente, comunica – e essa comunicação, a meu ver, começa no cuidado com que a primeira camada do poema é feita para atrair o ouvido, o olho e a inteligência do leitor, que depois vão deparar com muitas outras camadas. No poema “Sacro lavoro”, de O ex-estranho, o poeta sintetiza suas duas obsessões – inovação e comunicação – ao afirmar que suas mãos “transformam palavras/ num misto entre o óbvio e o nunca visto”. O “óbvio” é o que permite a comunicação, a informação redundante, mas com ele vem sempre o “nunca visto”, a inovação formal e mesmo de conteúdo que o poema esconde/revela sob a camada “facilitadora”. Por mais óbvio que pareça, há sempre o nunca visto ali. Já em 1983, Leyla Perrone-Moisés notava com precisão: “Samurai e malandro, Leminski ganha a aposta do poema, ora por um golpe de lâmina, ora por um jogo de cintura. Tão rápido que nos pega de surpresa; quando menos se espera, o poema já está ali. E então o golpe ou a ginga que o produziu parece tão simples que é quase um desaforo”. E o próprio Leminski, praticante de artes marciais, gostava de se referir à sua poética em termos assim: “com a exatidão e a precisão de um golpe de karatê”, o poema seria sempre uma espécie de reação espontânea à provocação externa, que carregaria em si anos e anos de preparo, de treino, de silenciosa vigília. Sem dúvida, essa busca por um poema que inove e comunique foi a grande paixão de Leminski. A tentação que atravessa tudo o que ele fez. Talvez por isso, em sua geração, nenhum outro poeta pensou tanto sobre poesia (em geral) e sobre sua própria poesia. Mas Leminski nunca foi o acadêmico, o tratadista, o cientista da poesia. Foi, na verdade, o “pensador selvagem” da poesia, absolutamente consumido pela tarefa de “escrever melhor, mais fundo, mais exato, mais inesquecível”. Tudo o que Leminski escreveu e traduziu (e traduzir, para ele, sempre foi escrever um livro próprio a partir do livro de algum autor com quem se identificava) conflui para as profundezas de sua própria criação poética e, justamente por isso, há tanto trânsito entre seus diversos livros: os poemas ecoam nos ensaios, nas biografias, nas traduções, e vice-versa. Em todos os seus gestos, Leminski estava perseguindo o poeta que queria ser. Isso explica também, em parte, que tenha influenciado tanto a recepção de sua obra, que comumente repete suas próprias palavras para defini-lo, girando em torno de imagens que ele usou para falar de si mesmo e de sua poesia, muitas vezes nos próprios poemas. Alice Ruiz, na introdução ao Ex-estranho, anota: “não há o que dizer sobre esta poesia que ela mesma já não diga”. E essa é mesmo a sensação que temos ao frequentar sua fortuna crítica: com raras exceções, escrever sobre Leminski tem sido reafirmar a imagem que ele difundiu ao lado (e dentro) de seus poemas. As confluências entre capricho e relaxo (estampada na capa de seu principal livro), província e pop, latim e vanguarda, samurai e malandro, desbunde e erudição, entre outras, a que tanto se recorre para explicar a poesia de Leminski, foram forjadas pelo próprio poeta nas longas e frias madrugadas de Curitiba e dão o tom do que se diz sobre sua obra. (Se isso pode facilitar, de alguma maneira, o passeio pelos livros de Leminski, há sempre o risco de que não se veja para além do que o próprio poeta quis destacar – mas isso é um assunto que não cabe aqui.) Volto à questão: por que amamos Paulo Leminski? Por que tantos leitores se apaixonam pela poesia por trás do vasto bigode que enfeitava seu rosto e agora ilustra dezenas e dezenas de milhares de capas de seu livro mais vendido? Ele diria que é pela forma como nos leva para passear – sem medo, com alegria – à beira do “abismo do incomunicável”. Ou porque respiramos mais e melhor através de sua loucura. Pode ser. Mas amamos Leminski porque ele parece o amigo que tem sempre a palavra certa para dizer quando estamos cheios de tudo, tirando-nos do apuro pela porta mais improvável, desarmando nossas certezas e limites. Hoje, 30 anos depois de sua morte, pensando no que Leminski seria aos 75 anos, acho que era isso que ele queria: que sua paixão pela poesia vivesse em cada poema e se metamorfoseasse numa paixão do leitor pela poesia – a dele, claro, mas também toda a poesia que ele amou como poucos. dossiê Aníbal Quijano, o mundo a partir da América Latina Apresentação CARLA RODRIGUES E DANILO ASSIS CLÍMACO
Coincidindo com a queda do regime soviético e com o quinto centenário da
chegada de povos ibéricos ao que viria a ser a América, o já então renomado intelectual peruano Aníbal Quijano elaborava uma compreensão ousada da história da modernidade e do capitalismo. Nela, a América Latina aparecia como a primeira identidade moderna, um imenso território sócio-histórico de grande heterogeneidade, que se transformou, nas primeiras décadas após 1942, em um continente diante do qual os povos do Atlântico norte-oriental passariam, lentamente, a construir uma identidade comum. A América não só irrigou o agora Velho Mundo com o ouro e a prata que impulsionaram de forma inédita o intercâmbio comercial e humano entre seus territórios, como também permitiu que este mundo – como bem mostra Rita Segato neste dossiê – pudesse abrir-se à modernidade, entendida como a possibilidade de construção de um futuro pelas mãos humanas. É assim que Europa e América surgem em relação. Uma relação de enorme violência, cujo significante maior é raça, a criação colonial para legitimar formas de violência de caráter genocida, já não mais admitidas na Europa em formação, que pudessem ser praticadas além-mar. “Índios” e “negros”, estes provenientes da África e associados à escravidão e aqueles aborígenes e submetidos à servidão ou à tributação, tiveram seus corpos e territórios usurpados e seu trabalho explorado à exaustão na produção de artigos para um mercado internacional que alcançaria toda a face da Terra. A sorte da Europa, como havia dito Aimé Césaire, foi ser um cruzamento de caminhos. Primeiro entre Ásia e África – como Jack Goody, entre outros, demostrou – e, a partir do século 16, também entre os ditos Novo e Velho Mundos. Os povos, as formas de ser e conhecer, os produtos materiais e culturais e as riquezas que circularam pelos territórios acima do Mediterrâneo foram dando forma a um continente cujo estatuto como tal não se desprende imediatamente de sua geografia. Mas, ao contrário de sua história, a narrativa sobre si construída pela Europa é endógena, fruto de um desenvolvimento autônomo iniciado com a Grécia clássica e culminado, não sem os percalços de toda epopeia, na modernidade capitalista. Um irrealismo de tamanha dimensão se transformou, no entanto, em um sentido comum não somente para os povos situados na já consolidada Europa, mas também para os de outras regiões do mundo, que, no novo imaginário, não podiam ser mais do que camponeses iletrados ou povos caçadores-coletores, carentes de historicidade própria e, consequentemente, impossibilitados de verem reconhecidas suas contribuições ao que vinha se constituindo como modernidade. Em conjunto, temos que a dita globalização se inicia com a América, gerando um padrão de poder que foi se consolidando como capitalista, moderno, eurocêntrico e, principalmente, colonial, uma vez que sua condição de possibilidade passava pela extrema exploração dos povos racializados como não brancos, assim como pela plena desumanização que desse lugar à emergência dos europeus/brancos como os únicos povos com história. O fato de que o padrão de poder continuasse o mesmo ainda após a independência dos países colonizados foi o que exigiu de Quijano a invenção do neologismo colonialidade, em torno do qual esse dossiê se escreve a fim de discutir a atualidade do tema e também seu movimento de intensificação, que ocorre em períodos de crise e no início de um novo ciclo de exploração – como o que estamos vivendo. A influência dessa contribuição deixou-se sentir rapidamente no debate latino-americano e além, alcançando o reconhecimento de nomes fundamentais do pensamento contemporâneo, como Enrique Dussel, Arturo Escobar, Michael Hardt, Toni Negri, Rita Segato, Ángel G. Quintero-Rivera, Immanuel Wallerstein e Catherine Walsh. É também relevante recordar que Quijano foi, ainda nos anos 1950, um dos responsáveis pelo resgate da obra de José Carlos Mariátegui, ultrajada pela terceira internacional stalinista imediatamente após sua morte em 1936. A reivindicação mariateguiana de um socialismo indoamericano, que unificasse as lutas operárias com a vitalidade da força comunal andina, foi para Quijano um antídoto ante o socialismo realmente existente e a democracia liberal. Em embates políticos de dimensões muito diversas – da defesa das lutas pela recuperação de terras nos Andes na década de 1960 à articulação internacional contra o capitalismo; da defesa da forma comunitária de gestão política em um bairro marginal de Lima à planificação de uma aliança de esquerdas para a candidatura à presidência do líder camponês Hugo Blanco –, Quijano defendeu sempre o estabelecimento de formas horizontais de luta, que convocaram uma participação massiva, em diálogo, e ativa das pessoas e comunidades submetidas pelo padrão de poder. Não totalmente por acaso, estava na Alemanha Oriental reunido com grupos socialistas dissidentes quando o muro do Berlim ruiu. O texto que abre este dossiê, de Danilo Assis Clímaco, organizador da maior antologia de Quijano – Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder (2014) – brinda-nos com uma trajetória biográfica, política e acadêmica do autor, que começa com o efervescente ambiente político dos Andes peruanos dos anos 1940 e chega até seus últimos escritos sobre a emergência dos heterogêneos movimentos anticapitalistas nas últimas décadas. Rita Segato, a intelectual de maior projeção no campo da esquerda latino- americana contemporânea, recentemente encarregada de abrir a Feira do Livro de Buenos Aires –honra em geral mais ao alcance de prêmios Nobel do que de cientistas sociais – traz instigantes reflexões sobre a questão do tempo na obra de Quijano. Por meio de três conceitos principais do autor (“reoriginalização”, “horizontes abertos” e “regresso do futuro”), ela propõe que se pense a retomada das lutas contemporâneas dos povos indígenas como vetores históricos interrompidos pela conquista e pela colonização. Segato conclui o artigo com reflexões sobre como a obra de Quijano lhe permitiu historicizar o gênero. Apesar de sua prévia consciência sobre o caráter histórico do gênero e de seu trabalho feminista ter atravessado a América várias vezes e em vários sentidos – dos Andes argentinos ao Xangô de Recife, dos feminicídios de Ciudad Juárez às mulheres indígenas brasileiras –, foi somente em seu encontro com a crítica de Quijano à colonialidade do poder que ela pôde ter uma compreensão de como o lento tempo do gênero se movia em articulação com a colonial-modernidade. O diálogo entre o feminismo e a crítica à colonialidade do poder pode parecer surpreendente em um primeiro momento, dado que Quijano se refere relativamente pouco às questões de gênero, como também observa Susana de Castro em seu artigo. No entanto, é também verdade que, na última década, Quijano mostrou-se entusiasmado tanto com o movimento político feminista como com seus alcances teóricos. Contudo, seus escritos sobre gênero, embora não estivessem mal encaminhados, eram ainda insatisfatórios – para ele mesmo e, em especial, para as feministas. Em todo caso, a fertilidade da obra de Quijano não passou despercebida a um grande número de pesquisadoras que trouxe a questão da colonialidade para o centro das discussões feministas na América Latina. Por isso, além das reflexões de Segato, trazemos também um artigo de Susana de Castro, no qual a professora dialoga com a obra de María Lugones para refletir acerca da proposta de unificação de duas análises teóricas – a teoria feminista interseccional e a teoria da colonialidade do poder – a fim de enfrentar o que Lugones chamou de sistema colonial moderno de gênero. Em seu texto, Susana valoriza a conclusão de Lugones como instrumento para pensar a situação contemporânea de opressão: a necessidade de uma mudança de paradigma que nos permita compreender “a magnitude do gênero na desintegração das relações comunitárias e igualitárias, do pensamento e da autoridade no processo coletivo de tomada de decisões e na economia”. Por fim, o dossiê apresenta o artigo “A colonialidade e Porto Rico” de Ángel G. Quintero-Rivera, o maior nome dos estudos sobre a musicalidade e a dança no Caribe. Neste ano ele acrescentou aos muitos de seus reconhecimentos um segundo prêmio Casa de las Américas pelo livro ¡Saoco salsero! O el swing del sonero mayor, um estudo sociológico sobre Ismael Rivera, o maior salsero de Porto Rico. Quintero-Rivera observa que, provindo dos Andes, onde a resistência à colonialidade tem como base a sólida relação da comunidade com seu território, era difícil para Quijano entender a forma como os povos africanos haviam encontrado forças para resistir à extrema violência da escravidão. Entender a dimensão da música e do ritmo, de um saber cuja memória fica resguardada pelo corpo, foi o que permitiu a Quijano compreender também a base específica e necessária tanto da resistência negra como de suas capacidades de construir vidas sociais alternativas ao poder. Esse também foi um acontecimento crucial para que Quijano iniciasse suas reflexões sobre a corporalidade e sua relação com o processo de invenção da “raça” como instrumento político instaurador da colonialidade. Por tudo isso, o dossiê “Aníbal Quijano, o mundo a partir da América Latina” pretende contribuir com reflexões que, além de recuperar a importância desse pensador na e para a América Latina, também tomam como ponto de partida que o conceito de colonialidade pode estar diretamente ligado a renovadas concepções de lutas políticas. Estas trazem sabedorias das experiências de um passado de opressão, o qual se reatualiza em um contexto tanto de eliminação de camadas inteiras de população atingidas por pobreza, desemprego e violência, como de precarização das condições de vida. Isso somado parece apontar para mais um longo ciclo de destruição a ser evitado. A tenacidade da inquietude DANILO ASSIS CLÍMACO
Aníbal Quijano é um Miles Davis no pensamento de esquerda latino-americano:
irrequieto, plural e persistente, participou com fôlego de maratonista por mais de cinquenta anos nos principais debates latino-americanos e mundiais, contribuindo com reflexões sempre pertinentes, frequentemente extraordinárias, para a compreensão do mundo em sua heterogeneidade. Nas últimas décadas, seu trabalho foi especialmente reconhecido pela teorização da “colonialidade”, neologismo necessário para evidenciar que o padrão de poder mundial, além de capitalista, moderno e eurocentrado, é marcado de forma indelével pela lógica colonial, que classificou a população mundial mediante “raças” – processo iniciado com a colonização da América, o espaço/tempo que deu origem a nosso período histórico. Quijano nasceu em 1930 em Yanama, nos Andes centrais peruanos, onde viveu sua infância e adolescência entre os povos quéchuas, cujas terras vinham sendo usurpadas desde que, em finais do século 19, os capitais ingleses e estadunidenses haviam enriquecido os latifundiários. Com a Crise de 1929, esses capitais se retraem e as lutas camponesas vão lentamente se ampliando e tecendo redes em nível nacional até chegar nos anos 1950-60 e deixar todo o país em crise. No quintal de sua casa, Quijano assistia a reuniões em que seu pai, diretor da escola bilíngue local (quéchua-castelhano), escutava e assessorava os camponeses. A efervescência política contagiava toda a vida provinciana, infundindo em seus habitantes a segurança de que, por obra deles, e não devido aos brancos das cidades, um novo Peru estava em construção. Daí nasceu, com certeza, a confiança de Quijano na capacidade popular latino-americana de enfrentar o poder e reinventar a vida social em toda sua amplidão. Em 1947, Quijano se mudou para Lima, onde estudou Letras, História e Direito na Universidad Nacional Mayor de San Marcos, sendo também um dos maiores líderes estudantis contra a ditadura de Manuel Odría (1948-56), o que o levou por períodos prolongados à prisão. Apaixonado por poesia e pela narrativa, aprendeu português, francês, alemão e inglês para ler os clássicos dessas línguas no original. Custou-lhe renunciar aos estudos literários para ser cientista social, mas, se escolheu a sociologia como “sua” disciplina, foi por acreditar que ela permite o estudo de todo o social, incluindo a arte. Esteve sempre muito preocupado com as tendências sociológicas de viés empirista, que se limitam a compreender os fragmentos da vida social, assim como com as tendências que apresentam uma totalidade coerente, onde o todo e suas partes se encaixam. Para Quijano, toda existência social é resultado do encontro de diferentes vetores históricos, os quais se articulam de forma irregular mediante conflitos que, mesmo sendo infindáveis, passam a ter uma forma reconhecível, com alguns grupos superando outros na capacidade de determinar os rumos da vida conjunta: é o estabelecimento de um padrão de poder que outorga um caráter de totalidade a determinado espaço social, sem homogeneizar as diferenças histórico-sociais que o compõem. Tal compreensão sociológica permite um pensamento atento tanto às tendências gerais da sociedade e do poder como com as especificidades de cada fenômeno humano. Em 1964, Quijano concluiu seu doutorado com um trabalho precioso, muito original, sobre a cholificación [No Peru, cholo(a) é a forma coloquial de denominar aqueles(as) andinos(as) que participam, também, do mundo urbanizado. O termo muitas vezes é pejorativo], ou seja, sobre o caráter indefinidamente transicional da sociedade peruana, na qual o andino e o ocidental se imbricam sem pretender uma síntese. Apesar de raras vezes ter relacionado suas pesquisas com a experiência pessoal, fica evidente que esta marcou seus escritos da época – relativos às relações urbano-rurais, às lutas camponesas e à marginalidade urbana. Alguns desses seus primeiros textos foram escritos já no Chile, quando se integrou à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), e foram de grande importância não somente para a guinada marxista na teoria da dependência, mas também para que se compreendesse que a dependência vai além do político-econômico, abarcando todas as dimensões da vida social. Com o firme propósito de contribuir com as forças que queriam ultrapassar pela esquerda o regime militar nacionalista de Juan Velasco Alvarado, Quijano retornou ao Peru em 1971. De 1972 a 1983, dirigiu a revista Sociedad y Política, publicando análises de longo alcance sobre a realidade peruana e mundial, acreditando na possibilidade de uma iminente revolução socialista global. Com intelectuais e sindicalistas, fundou o Movimento Revolucionário Socialista (MRS), que contribuiu para o período intenso de lutas no país e cujas principais conquistas foram a greve geral de 1979 e o fim de treze anos de governos militares. Durante esse período, e principalmente a partir da participação do MRS na luta da Comunidade Autogestionada de Villa El Salvador – fundada por povos andinos na cidade de Lima – teorizou sobre a “socialização do poder”: a necessidade de que as práticas democráticas sejam constitutivas das lutas sociais. A força comunitária andina, cuja vitalidade extraordinária havia sido constatada décadas antes por intelectuais como José Carlos Mariátegui, passou a ocupar cada vez mais espaço em suas reflexões. No entanto, o longo período de lutas sociais no Peru, cujo início ele testemunhara na infância, foi interrompido pela rearticulação neoliberal e pela insuficiente compreensão das esquerdas sobre a mudança histórica. A ditadura de Morales Bermúdez (1975-1980) – que havia derrubado a de Alvarado pela direita e se aliado ao Plano Condor – terminou quando se iniciou o “intercâmbio terrorista” entre o Sendero Luminoso e o Exército, que por sua vez resultaria na ditadura de Alberto Fujimori, prolongada até o ano 2000. Trinta anos de repressão, assassinatos e exílios de líderes políticos e intelectuais tiveram como resultado o achatamento dos horizontes intelectuais e políticos para os peruanos. O país dos dois pensadores políticos de maior influência na América Latina durante a primeira metade do século 20, Mariátegui e Víctor Raúl Haya de la Torre, aderiu ao neoliberalismo mais empobrecedor. Já no início dos anos 1980, Quijano compreendeu que o período de lutas se encerrava e recolheu-se, mas sem intenção de rendimento: “Foi um período de isolamento terrível, muitos de nós sentimos por mais de uma vez sermos uma minoria de um”. Aceitou que o marxismo clássico tinha suposto uma camisa de força, mas não renegou Marx e menos ainda aceitou a inevitabilidade do capitalismo. Argumentou que a hegemonia do liberalismo na América Latina não demoraria a ser contestada, pois não havia a possibilidade de que os povos a aceitassem de forma prolongada. Procura literatura sobre novas formas de organização social e parece sentir-se especialmente convocado a repensar a América Latina dentro da história mundial. Recorre a Mariátegui, a José María Arguedas, a Gabriel García Márquez e a análises históricas heterogêneas, propondo uma compreensão universal da modernidade: este período histórico revolucionário para a humanidade, no qual nossa espécie se percebe pela primeira vez como construtora de seu próprio futuro, foi certamente centralizado e impulsado pela Europa, mas esteve longe de ser uma produção exclusivamente sua. A modernidade, propõe Quijano, é uma conjunção de saberes e formas de se relacionar com o mundo, produzidas por muitas e heterogêneas vias históricas e sociais, embora sistematizada e dirigida pelo interesse de elites localizadas na Europa. É assim que ele teoriza o eurocentrismo, não como um mero etnocentrismo que atribuiria uma superioridade da Europa sobre os povos de outros continentes, mas sim como um processo contínuo de usurpação, pelas elites europeias e seus descendentes, das riquezas imateriais e materiais produzidas mundo afora. A sorte da Europa, como tinha dito Aimée Césaire, foi ser um cruzamento de caminhos. A partir destas reflexões, Quijano propôs a categoria de “colonialidade do poder” para designar o elemento central sobre o qual se baseava o novo período histórico iniciado com a América: a classificação da população mundial pela ideia de raça. A inédita codificação da diferença entre colonizadores e colonizados mediante uma categoria pretensamente biológica foi o que permitiu a exploração máxima dos “indígenas” (serventes ou tributários) e dos “negros” (escravizados), gerando uma riqueza sem precedentes que permitiria aos países localizados na parte nordeste do Atlântico expandirem suas práticas colonizadoras a todo o globo terrestre, criando-se as condições para que as relações capitalistas determinassem (sem homogeneizar) as práticas econômicas e sociais mundiais. A ideia de colonialidade é, nesse sentido, oposta ao conceito de pós- colonial, sendo seu objetivo justamente evidenciar que o colonial persistiu para além das colônias e impregnou todo padrão de poder daí em diante. O termo raça só veio a ser impugnado quando deu lugar a um genocídio na Europa. Não faltaram, no entanto, substitutivos: cultura, etnia, civilização são comumente usados para negar a interdependência das experiências sociais, de modo que a Europa seja apresentada, ainda nos dias de hoje, como uma criação endógena, iniciada com a Grécia Antiga. Dessa forma, o resto da humanidade vê ao mesmo tempo como deslegitimadas sua história, sua contribuição no mundo contemporâneo e a dignidade de suas opções autônomas de futuro. Só assim podemos compreender, por exemplo, por que a escravidão continua se expandindo ou por que é possível destruir parcelas gigantescas de territórios indígenas sem que haja uma solidariedade internacional ampla o suficiente para impedi-lo. Nos últimos anos, Quijano havia deixado de se considerar uma minoria de um. Não negava que as lutas contemporâneas eram ainda incipientes e incertas, mas reconhecia com empolgação que o futuro voltara: percebia uma imaginação política muito saudável, consciente da necessidade de construir, no dia a dia, um mundo inteiramente novo e aberto. Acreditava, em especial, na riqueza do encontro entre as lutas pelo território por parte dos povos indígenas e a compreensão cada vez mais generalizada de que a vida em nosso planeta está sendo ameaçada pelas elites humanas. Quijano faleceu em 31 de maio de 2018, aos 87 anos. Após a crise de 2008 evidenciar os limites do neoliberalismo, sua obra vem sido lida com um interesse ainda maior. Foi velado e enterrado ao som de música andina por dezenas e dezenas de amigos e amigas na Casona de San Marcos, o prédio histórico da universidade em que estudou, ensinou e lutou. O tempo na obra de Aníbal Quijano RITA SEGATO
Tratarei aqui de três conceitos de Aníbal Quijano com relação ao tempo:
“reoriginalização”, “horizonte aberto como destino” e “regresso do futuro” – este último, um conceito original e sofisticado com o qual ele introduz outra forma de temporalidade. Em seguida, abordarei como a perspectiva da colonialidade do poder me permitiu mostrar a incidência do tempo nas relações de gênero, isto é, entender a historicidade de uma estrutura tão estável quanto o gênero – apesar de eu ter sempre afirmado que o gênero é histórico, e não biológico, não tinha sido verdadeiramente capaz de visualizar a inflexão histórica nessa estrutura até me encontrar com a perspectiva da colonialidade. Primeiro tema: a reoriginalização ou o giro epistêmico. É central, na perspectiva da colonialidade do poder, essa ideia da reoriginalização do mundo e, com ela, da subjetividade a partir do evento da conquista e da colonização. O giro decolonial ocorre quando se revela diante de nós a impossibilidade de narrar o processo da conquista e da colonização sem usar um vocabulário posterior ao acontecimento, já que, quando o narramos, nós nos encontramos já em um mundo reoriginalizado, um mundo novo, que pode falar apenas com categorias que não existiam antes. Por exemplo, dizemos que a Espanha descobriu a América, mas esse enunciado é insustentável, pois “Espanha” não existia antes de “América”. Se formos conferir a cronologia, veremos com espanto que o reino de Castela chega à ponta sul da península, termina sua conquista e começa a unificação do que virá a ser a nação espanhola precisamente em 1492. Quer dizer que o processo da anexação territorial chega à costa sul do território peninsular e continua do outro lado do mar, sem solução de continuidade. Trata-se então de um mesmo processo: conquista e colonização nas duas costas são parte de um processo contínuo, ininterrupto. Em uma maravilhosa entrevista publicada na Revista Illa, em 1991, Quijano afirma que Espanha, América, o índio, o negro, o branco, a modernidade e o capital nasceram no mesmo dia. Eis aí a reoriginalização do mundo, o momento em que aparece uma nova grade léxica, categorial, com a qual vemos e classificamos as entidades do planeta e narramos os fatos do passado. Esse é também o momento em que uma grande quantidade de povos do nosso continente e da África – alguns deles de alta tecnologia e com formas de organização de Estado, e outros com cosmologias complexas, mas cujas escolhas históricas os levaram a rejeitar a acumulação de excedente, a emergência de uma classe gestora e a tecnologia, isto é, uma variedade de povos imensa – em muito pouco tempo se transformou, na nova grade categorial, em “os índios” e “os negros”. Na América, transformaram-se indistintamente em “índios” os astecas, os incas e os povos das terras baixas de organização comunitária. Na África, povos como o grande império iorubá e os pigmeus, tão diferentes entre si, passaram a ser classificados indistintamente, em pouquíssimo tempo, como “negros”. O termo reoriginalização denomina, portanto, o estabelecimento de uma grade categorial com a qual classificamos a realidade de uma nova forma, instalando um mundo que vai surgir muito rapidamente e que, ao se estabelecer, inaugura um tempo novo. O outro aspecto dessa virada é a inversão que, no diálogo com Immanuel Wallerstein, é introduzida na ideia de sistema-mundo – inversão que leva, a partir do giro decolonial, a sempre preceder o termo modernidade com o termo colonial, fixando a expressão colonial-modernidade para lembrar de forma inequívoca que a precondição indispensável e o pontapé inicial da modernidade foram o processo de conquista e colonização. Há duas razões para isso. Em primeiro lugar, sem conquista do que na nova grade terminológica viria a ser “América”, não haveria os minerais ouro e prata, que permitiriam a acumulação primitiva da fase inicial do capital: sem as minas de prata de Potosí (Bolívia) não haveria capitalismo. Além disso, até o evento colonial, todas as invenções técnicas e os descobrimentos científicos ocorridos no Velho Continente eram autorizados com base no passado, a âncora da legitimidade residia na história sagrada. A Igreja tinha a chave do futuro a partir de seu patrimônio de um sagrado fundacional. Quando a América emerge na grade epistêmica, aparece pela primeira vez o valor do descobrimento, o valor do novo. Aí, a âncora do valor se instala no futuro e na novidade. A legitimidade e a autorização de todo invento e invenção virão então do futuro, de sua promessa futurista. Isso transfere o critério de valor do passado para o futuro. E não existe ideia de modernidade nem de modernização sem que se instale o valor do futuro e do novo. Essa é a viragem essencial da reoriginalização, que funda um novo tempo. O segundo conceito é o de horizonte, ou talvez horizontes. O horizonte aberto como destino. Lembro que, em 2008, durante uma ocupação da reitoria da universidade em que eu estudava, escrevi a Quijano: “Estamos ocupando a reitoria”. E ele respondeu: “Ah, o vento da história está passando por aí...”. Ele concebia que a agitação no planeta passava por diferentes lugares em diferentes momentos: havia momentos de quietude e outros em que soprava o furacão da história, movendo as peças, chacoalhando o chão, agitando aqui e ali. Ele escrevera sobre utopia em diferentes ensaios, mas, em tempos recentes, a imagem passara a ser a de horizonte. A utopia, infelizmente, está fechada de antemão. A noção de um “dever ser” e uma definição desse dever ser tornam-se inevitavelmente autoritários. Por isso, nos escritos recentes, Aníbal Quijano falava mais de um horizonte de destino, aberto. A ideia de horizonte é a da vida e da história em movimento, sem sequestro por uma ideia de futuro previsto, de futuro imperativo. Um movimento sem captura pelo fim. É o vento da história que atravessa a cena de maneira sempre incerta. A incerteza é a própria utopia. A confiança de que a história resiste a qualquer captura. Descrevo essa experiência como “fé histórica”, movimento aleatório que não pode ser aprisionado. Essa é a noção de horizonte em Aníbal Quijano, que vai lentamente substituindo ou modificando a noção habitual de utopia como um dever ser do futuro. Sabemos apenas do presente, e podemos no presente – o futuro é aberto. A terceira ideia, seminal, é a do “regresso do futuro” – e sei o quanto custou a Quijano chegar a essa proposição. Vou citar um trecho de um texto meu sobre ele: “Sua sugestiva noção de um regresso do futuro, de um horizonte que volta a se abrir ao caminho da história dos povos depois da dupla derrota à destra e sinistra do projeto de Estado liberal capitalista e do despotismo burocrático (comunista), derrota que não é outra que a da hegemonia do eurocentrismo que controla ambos projetos”. No momento em que acaba o mundo bipolar, Aníbal sente-se liberado dessas lealdades que, à esquerda e à direita, nos aprisionaram e nos impediram de pensar livremente. Os povos de estrutura comunitária e coletiva – os povos indígenas, o mundo camponês-indígena, para denominá-lo de uma forma mais ampla – tinham sofrido essa dupla derrota, a partir tanto do Estado liberal-capitalista como do despotismo burocrático do socialismo real. Derrota ante a hegemonia do eurocentrismo que controlava ambos projetos. No período pós-Guerra Fria, uma variedade de povos que se acreditavam extintos, estimulados pela aparente benevolência da era multicultural, mostra-se existente. A emergência contemporânea do sujeito histórico índio ou, mais exatamente, o retorno do camponês ao índio, assim como a desconstrução da mestiçagem, são um sinal de que o padrão da colonialidade está começando a se desmontar. Há uma reidentificação em curso de camponeses a indígenas, de mestiços a índios e negros, e uma retomada das linhagens da não brancura por parte das pessoas. As reemergências indígenas dos huarpes, quilmes, diaguitas e tupinambá, que se esconderam durante as Repúblicas e não na fase colonial, revelam a imensa inteligência estratégica desses povos, que foram capazes de sobreviver a quinhentos anos de massacre. Sem dúvida, souberam o que fazer em cada conjuntura histórica para não desaparecer. Foi com as Repúblicas que entraram em aparente extinção. No Brasil, foram os tupinambás; na Argentina, os huarpes foram considerados extintos há duzentos anos e um dia eles saíram de sua clandestinidade: “Não somos camponeses, não somos pastores, somos os huarpes”. Essa é a importância da categoria do regresso do futuro. Fica claro, então, que a continuidade das soluções comunitárias para a vida que tinha sido suprimida, obstruída, abre caminho no presente – depois da crise dos paradigmas de esquerda e direita. Possibilita-se assim uma combinação entre formas de vida arcaicas que se revitalizam e projetos históricos do presente que nelas se enraízam. Essa é a ideia do regresso do futuro, um futuro que tinha sido impedido, represado. Não há restauração nem nostalgia, mas liberação dos projetos históricos de povos diversos, freados pelo patrão da colonialidade. Abre-se essa possibilidade de regresso do futuro, do futuro que não pôde ser, mas que agora poderá – é nosso passado que vem a caminho... Não é nostalgia de uma Idade de Ouro, nem de uma perda, muito menos engessamento dos costumes. Não se trata do bom selvagem de uma origem impoluta, nem é culturalismo – uma das formas do fundamentalismo –, trata-se de um trajeto histórico recuperado e reatado a partir do presente. É a recuperação de uma cena histórica interceptada em seu devir e reinstalada agora como o projeto histórico de povos interceptados pela conquista, pela colonização e pela colonialidade que se instalaram. Para concluir, o cruzamento com a perspectiva da colonialidade mostra a incidência da história numa estrutura de tão longa duração e tão estável como é a ordem patriarcal. Meu esforço em articular minha análise prévia sobre a violência de gênero com a perspectiva da colonialidade deve-se a uma interpelação do próprio Quijano, que se mostrava insatisfeito ao mesmo tempo com o único texto que tinha escrito a respeito, e também com a contribuição feita por Maria Lugones, que negava a existência de um patriarcado pré-colonial. Quijano me pediu, então, que eu cruzasse os estudos de gênero com a perspectiva da colonialidade, e assim escrevi “Género y colonialidad: en busca de claves de lectura y de un vocabulario crítico decolonial”. Ali analiso minhas experiências de mais de dez anos acompanhando as oficinas da Fundação Nacional do Índio (Funai) em diversos estados, inicialmente sobre o tema do fomento às tarefas produtivas das mulheres indígenas e, a partir de 2006, divulgando entre elas a Lei Maria da Penha. Vi, durante esse período, como o aumento da violência contra as mulheres indígenas acompanhou o avanço da frente estatal, empresarial, mediática, cristã. O Estado benfeitor avançava na sua oferta de direitos e recursos: educação, documentação das pessoas, saúde, acesso às leis etc., mas junto com essa colonização beneficente, o tecido comunitário ia se destruindo e as evidências de violência doméstica extrema iam aumentando. Como o genocídio, o feminicídio também é moderno. Com a erosão da ordem comunal, dava-se a transformação da vida doméstica comunitária em família nuclear, íntima e privada. Esse espaço, antes povoado por múltiplas presenças e, portanto, bem vigiado pelo olhar coletivo, encapsulava-se mais e mais. Diante da evidência da violência intrafamiliar, os caciques respondiam dubitativos sobre sua capacidade de atuar “na casa dos outros”, sob o argumento da autonomia: “é a casa deles!”. A família se encapsulava sob nossos olhos. O mundo comunitário é um mundo dual, coeso pela lei de reciprocidade, e explicitamente hierárquico, no qual as tarefas masculinas têm maior prestígio. Mas, nesse mundo, o espaço das mulheres tem uma ontologia plena e é dotado de capacidade política própria. O espaço doméstico – cena das tarefas, dos rituais, dos jogos e das deliberações entre as mulheres, que acabarão incidindo na vida coletiva – tem uma autonomia, uma blindagem, e uma política própria. Nessa ordem dual, há dois espaços: o das tarefas dos homens e o das tarefas das mulheres. Na transição para a colonial- modernidade, a dualidade se transforma em binarismo e no mundo do um e seus outros. O sujeito universal, ícone do “normal” e normativo, e suas anomalias. A mulher passa a ser o outro do homem, da mesma forma que o negro e o índio serão vistos como o outro do branco, as sexualidades LGBTTTIQ+ como o outro da sexualidade heteronormativa – e toda diferença será vista em relação ao “normal”, porque estamos no mundo do um e de suas anomalias. Dessa forma, graças à perspectiva da colonialidade do poder, é possível entender a inflexão colonial na organização social, na vida comunitária, na organização por gênero. O trânsito para a colonial-modernidade é um processo pelo qual o espaço das tarefas masculinas passa a ser uma esfera englobante que sequestra tudo o que é dotado de capacidade política. O Estado e a esfera pública são então a última etapa da história dos homens, enquanto o espaço das mulheres ou o espaço doméstico é expropriado de toda capacidade política e se transforma na margem, no resto, um resíduo da política. Hoje, as marchas das mulheres nas ruas são a explosão dessa capacidade política alternativa, represada, quase extinta pela transição colonial-moderna. Uma reação à sua obstrução pela intervenção colonial. O feminismo decolonial SUSANA DE CASTRO
O feminismo decolonial surge no bojo da discussão trazida pelo feminismo
negro estadunidense a respeito da invisibilidade das demandas das mulheres negras na luta pela igualdade de direitos. Ignoradas como representantes das mulheres, por causa da predominância do feminismo liberal branco, e ignoradas como representantes das pessoas negras, pela predominância do ativismo negro masculino, as feministas negras cunharam o termo interseccionalidade para destacar a especificidade da dupla opressão à qual estão submetidas: a racial e a de gênero. Além disso, as “mulheres de cor” (women of colour), isto é, latinas, asiáticas e indígenas que vivem nos Estados Unidos, sofrem também da intersecção da dupla opressão – racial e de gênero –, mas a opressão racial que sofrem tem um caráter étnico-racial; seus corpos racializados representam o pertencimento a uma cultura periférica, subdesenvolvida, atrasada. Assim como as mulheres negras eram solidárias aos homens negros, pois compartilhavam com eles a experiência do racismo estrutural, as mulheres latinas compartilhavam com os homens latinos a pouca valorização das culturas não europeias. Negras, latinas, indígenas, asiáticas criticam o feminismo branco da segunda onda que se arvorava a falar em nome de todas as mulheres, ignorando os diversos matizes (raça, etnia, orientação sexual) da opressão de gênero. No final da década de 1990, intelectuais latino-americanos que lecionavam nos Estados Unidos criaram o grupo Modernidade/Colonialidade, que reivindicava a tese segundo a qual a modernidade europeia surgiu graças à ação colonial nas Américas. Para esses autores, o conceito marxista de classe não conseguia explicar satisfatoriamente o fenômeno da desigualdade social nos países latino-americanos, porque lhe faltaria a dimensão da experiência colonial. A estratificação social contemporânea dos países latino-americanos reflete uma herança colonial na medida em que segue um padrão racial. Para Aníbal Quijano, um dos intelectuais mais importantes desse grupo, a modernidade europeia forja o conceito de raça para diferenciar os nativos dos europeus. Desde a “invenção” da América, a diferença colonial, entre colonizado e colonizador, determinava a distribuição dos cargos na administração colonial. Essa diferença colonial perdura após a independência desses países na medida em que os chamados “nacionais” reproduzem a mentalidade do colonizador: supervalorizam os hábitos e costumes europeus (colonialidade do ser), supervalorizam o suposto saber acadêmico, científico, europeu, pois “universal”, subestimando o alcance dos saberes locais (colonialidade do saber) e, finalmente, mantêm a economia desses países submetida à mesma lógica colonial de divisão internacional do trabalho, subordinando os países periféricos aos ditames do capitalismo global (colonialidade do poder). O giro decolonial promovido pelo grupo Modernidade/Colonialidade representa certamente um marco fundamental para a teoria e a crítica do pensamento social e filosófico do continente latino-americano, mas havia entre seus formuladores uma cegueira com relação à importância da questão de gênero. Assim como os marxistas, os decolonialistas não levavam em consideração que a permanência da diferença colonial pode estar fundada tanto na ordem econômica capitalista e na geopolítica do conhecimento, como nas relações de gênero. Em outras palavras, não questionam o papel subalterno das mulheres nas relações sociais e políticas, como se isso fosse algo intrínseco ao sexo e não o resultado de uma ação política colonial. Para a filósofa Maria Lugones, a introdução das expressões de gênero marcadas pela oposição entre as tarefas e comportamento dos dois sexos, cabendo à mulher o ambiente doméstico separado do ambiente social e político, foi mais um dos instrumentos de dominação colonial, visto que com a introdução do patriarcado se conseguiu silenciar uma parcela significativa da população que certamente possuía outro entendimento sobre a economia, a agricultura e a política. Causa espanto a Lugones que os homens vitimados pela violência da colonialidade do poder sejam indiferentes ao sofrimento das mulheres de suas comunidades, sobre as quais pesam tanto a opressão e o controle do poder capitalista eurocêntrico e global a seu corpo racializado como a opressão e o controle por causa de seu gênero. Para ela, os homens vítimas do poder capitalista não percebem as transformações profundas que a opressão de gênero trouxe a suas comunidades, o que agrava ainda mais a situação de dependência e subalternidade diante do capitalismo global. A teoria política decolonial de Aníbal Quijano acerca do padrão capitalista de colonialidade do poder teve papel central em denunciar a finalidade política e econômica do racismo no contexto do capitalismo global. A criação do conceito moderno de raça no bojo da expansão mercantil europeia serviu aos interesses “do controle do sexo e seus produtos, do trabalho, da subjetividade/intersubjetividade e do conhecimento”. Nesse sentido, é historicamente incompleta a classe como categoria que explica o sistema exploratório capitalista. Os explorados não são apenas os trabalhadores brancos assalariados, mas antes deles os corpos racializados e escravizados de índios e negros. Lugones reconhece a dívida do feminismo decolonial para com a teoria do padrão colonial do poder de Quijano. Sua explicação da origem da categoria de raça como ferramenta de dominação dos povos não europeus pelo sistema capitalista global é essencial para a crítica decolonial ao feminismo branco eurocêntrico hegemônico. Mas, para a filósofa argentina, sua abordagem das relações de gênero a partir apenas da disputa pelo “controle do sexo e seus produtos” está comprometida com a perspectiva heterossexualista e patriarcal do capitalismo global eurocentrado. Tanto a teoria feminista interseccional como a teoria da colonialidade do poder abordam a questão da dupla violência, racial e de gênero, vivida pelas mulheres de cor, mas suas perspectivas são muito generalistas, faltando-lhes a dimensão da vivência concreta. A proposta de Lugones é unificar as duas análises teóricas em torno do que chamou de sistema colonial moderno de gênero. Para Lugones: “A redução do gênero ao privado, ao controle sobre o sexo e seus recursos e produtos é uma questão ideológica apresentada ideologicamente como biológica, parte da produção cognitiva da modernidade que conceitualizou a raça como ‘generificada’ e o gênero como ‘racializado’, de modo particularmente diferenciado entre os/as europeus/brancos/as e as pessoas colonizadas não brancas/os. A raça não é nem mais mítica nem mais fictícia que o gênero – ambos são ficções poderosas”. Num primeiro momento, Quijano não se deu conta de que, ao definir o âmbito do “controle sexual e dos seus produtos” como a marca da dominação capitalista global, estava assumindo a perspectiva “clara”, “hegemônica”, que reduz a mulher a seu caráter biológico, reprodutivo, ignorando completamente sua participação na vida social e política. A conclusão de Lugones é poderosa demais para ser ignorada. Trata-se da necessidade de homens e mulheres de cor realizarem uma mudança total de paradigma a fim de compreenderem “a magnitude do gênero na desintegração das relações comunitárias e igualitárias, do pensamento e da autoridade no processo coletivo de tomada de decisões e na economia”. A exclusão sistemática das mulheres do âmbito social e político das comunidades foi uma forma estratégica do capitalismo global de exercer seu controle e domínio nas sociedades coloniais, desestruturando suas formas de organização comunitária e política. Desqualificar a capacidade cognitiva da mulher e reduzir seu papel ao de mãe, definir sua personalidade e caráter como sendo essencialmente passivo por oposição ao modo ativo e masculino de ser, facilitou a dominação capitalista na medida em que inferiorizou as mulheres colonizadas, representadas como fêmeas, e não como mulheres, enquanto não seguissem o modelo monogâmico, heterossexual e passivo do patriarcado. Nada disso, entretanto, se fazia presente nas sociedades pré-coloniais. Os gêneros não estabeleciam entre si essa relação hierárquica e excludente na divisão das tarefas e as relações não eram definidas pela escolha sexual. O patriarcado, portanto, é um elemento fundamental do capitalismo eurocêntrico global. Graças a ele, foram introduzidas entre os povos colonizados as categorias biologizadas e binárias de gênero, nas quais não havia espaço para uma expressão de gênero que não estivesse em conformidade com a norma europeia. Todos os comportamentos desviantes eram colocados no lado oculto, marginalizado. Acredito que o feminismo decolonial nos oferece ferramentas hermenêuticas poderosas para resgatarmos de dentro do campo das ciências sociais, da literatura e da filosofia as vozes esquecidas e ocultadas dessas mulheres que negaram o mandamento patriarcal de que se retirassem da vida pública, e que por isso deixaram registros de outras formas de viver e encarar a vida em sociedade. A colonialidade e Porto Rico ÁNGEL G. QUINTERO-RIVERA
Tendo alcançado notoriedade por suas contribuições aos debates sobre
dependência, classes sociais, Estado e política na América Latina, em 1982 o Centro de Investigaciones Sociales da Universidad de Puerto Rico (CIS-UPR) convidou Aníbal Quijano para ser pesquisador visitante. Desde então, a história cultural e social-intelectual deste país, que ele visitou muitas vezes depois, esteve presente em suas vivências, reflexões e horizontes, a ponto de Quijano dizer, aberta e repetidamente, que, de suas identidades, “a de boricua (porto- riquenho) é uma das mais entranhadas” (1999). Gostaria de compartilhar com o leitor as relações de Quijano e Porto Rico no importante desenvolvimento de suas análises sobre a colonialidade e suas sempre renovadas contribuições. Utilizarei amplamente seu ensaio “Fiesta y poder en el Caribe” (1999), no qual se evidencia que muitos processos caribenhos têm referências mais próximas do Brasil do que do mundo andino. O artigo, relativamente pouco conhecido, foi publicado em San Juan, tendo sido reproduzido como prólogo de meu livro Cuerpo y cultura: Las músicas “mulatas” y la subversión del baile (2009). Antes, um detalhe revelador: o primeiro escrito de Quijano nas ciências sociais, de 1962, é um artigo-obituário sobre C. Wright Mills, o que é significativo por muitas razões, e gostaria de mencionar uma delas. Um dos primeiros livros de Wright Mills foi sobre Porto Rico, mais especificamente sobre nosso nomadismo; The Puerto Rican Journey (1950) constitui um primeiro vínculo entre nosso país e Quijano. Seu contexto andino – de velhas civilizações arraigadas territorialmente – não havia imprimido em seu consciente e subconsciente esse rasgo cultural que os caribenhos levam à flor da pele. Nosso mundo popular se conformou por meio de movimentos massivos de população, como foram o tão dramático tráfico de escravos, as revoltas cimarronas (quilombolas) e as migrações entre regiões do Caribe e, depois, para as metrópoles nos séculos 20 e 21. Tendo experimentado e compartilhado a vida diária em Porto Rico ao menos em três ocasiões entre os anos 1970 e 1990, e cinquenta anos após The Puerto Rican Journey, Quijano escreverá no ensaio antes mencionado: “A migração boricua aos Estados Unidos, como a de todos os caribenhos, de algum modo antecedeu a subversão cultural mundial que vai produzindo hoje as migrações a partir do mundo da colonialidade para os centros do poder mundial”. Antes de suas longas estadias, Quijano conheceu Porto Rico no início dos anos 1970, como parte de programas que pretendiam mostrar aos latino- americanos a exemplaridade da modernização porto-riquenha à moda de Weber: centrada no reformismo modernizador de uma depurada burocracia racional (que denominam administração pública); o programa de “industrialização por convite” (em que o capital estrangeiro não era conceitualizado como “extrator” – ou explorador –, mas como aliado, provedor de empregos e conhecimentos manufatureiros); serviços sociais tipo welfare state; eleições livres; e amizade e harmonia com a “democracia” liberal estadunidense. Ele nunca havia me contado isso – até uma nota de pêsames pela morte de meu pai, em 1992. Ali, me confessava ter tido suas primeiras lições no que Arcadio Díaz-Quiñones chamaria de “el arte de bregar” (a arte de lidar). Reavaliou políticas de aprendizado de como relacionar-se com o Império, então muito desacreditadas pela esquerda; admirou, contava-me, meu pai (então na direção do Ministério de Educação) por essas titânicas mas muito sossegadas tentativas de elaborar criativamente políticas educativas próprias, que fortalecessem a democratização e as identidades nas brechas da política colonial, diante nada menos da mais poderosa nação imperial. Começava a perceber, em Porto Rico, como era ser latino-americano (com hífen). Porto Rico tinha conseguido então desenvolver uma universidade moderna de qualidade. Enriquecida nas humanidades com o exílio da derrotada República espanhola de Juan Ramón Jiménez, Américo Castro, Pau Casals… e nas ciências sociais, nos anos 1940 e 1950, por latino-americanos e latino-americanistas como José Medina Echavarría, Jorge Ahumada, Jorge Millas, os venezuelanos Luis Lander e José Agustín Silva Michelena, entre tantos outros. O populismo modernizador de Luis Muñoz Marín – que, junto com José Figueres Ferrer na Costa Rica e Rómulo Betancourt na Venezuela, formavam então o que denominaram “o triângulo democrático” no Caribe – representou uma espécie de último bastião do Novo Trato (New Deal) do presidente Roosevelt. Como tal, atraiu cientistas sociais de um novotratismo de esquerda desde meados dos anos 1940, ávidos por estudar e colaborar com a transformação social modernizadora democrática, sem a qual consideravam inevitável uma “catástrofe revolucionária do derramamento de sangue”. Assim, muitas das primeiras pesquisas de antropólogos e historiadores do “Primeiro Mundo” que seriam mais adiante muito importantes no desenvolvimento das ciências sociais latino-americanas foram levadas a cabo na UPR: Sidney Mintz, Eric Wolf, Gordon Lewis e o andinista John Murra, por exemplo. E, já com importantes contribuições no Brasil, Richard Morse. O paradigma analítico ao redor da economia de plantação começou a ter seu auge no Caribe, com paralelos evidentes ao dependentismo: uma estrutura de produção – a plantação – era colocada no cerne da análise social, e essa estrutura produtiva estava intrinsecamente vinculada à história econômica da expansão colonial europeia, e depois da expansão dos Estados Unidos. Na escravidão racial norte-americana e em suas posteriores sequelas, a engrenagem da produção correspondia à sua inserção no mercado capitalista mundial, o que gerava contínua dependência na economia e subordinação política. Mas essa literatura, produzida no Caribe mais por antropólogos do que por economistas, colocava a cultura no centro de suas indagações. Os estudos sobre a Dependência concentraram seus significados e implicações entre a economia e a política. As pesquisas de Quijano sobre o fenômeno cholo – relativo ao carácter subversivo da reidentificação étnica dos imigrantes indígenas andinos em Lima –, preocupação inclusive prévia aos escritos dependentistas, incorporavam, como os estudos caribenhos da plantação, o olhar a partir – e a importância analítica – da etnicidade e da cultura. E aqui está um segundo vínculo fundamental entre Quijano e Porto Rico. Suas pesquisas sobre o cholo, um tanto ignoradas nos debates econômicos-políticos do dependentismo, encontraram ressonância na mulataria boricua, o que dialeticamente reforçou nos trabalhos de Quijano a consciência de sua pertinência. Pouco se observou sobre o fato de que vários criadores iniciais dos estudos da Dependência começaram suas pesquisas com trabalhos sobre a escravidão. No Brasil, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Lúcio Kowarick... e na América Latina, também Quijano. Mas enquanto para a maioria isso foi o pano de fundo inicial das preocupações histórico-estruturais de uma desigualdade dependente, no trabalho de Quijano as vivências dessas pesquisas de arquivo (fortalecidas pela experiência porto-riquenha) seguiram no cerne de suas teorizações, e a historicidade do constructo “raça” foi a pedra angular de suas interpretações do padrão de poder, das lutas sociais e da possível emancipação do eurocentrismo. Como expressa em seu trabalho mais citado dos últimos anos, publicado no fértil livro editado por Edgardo Lander, A colonialidade do saber: “Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial, mas provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, consequentemente, um elemento de colonialidade no padrão de poder hoje hegemônico.” Agora, qual foi o papel de sua experiência em Porto Rico no dito desenvolvimento conceitual? Somente haviam transcorrido duas semanas do estabelecimento de Quijano em Porto Rico em 1982 quando faleceu o grande timbaleiro Rafael Cortijo, figura fundamental na subversão musical de afrodescendentes em toda América Latina. Lembro de ter levado Aníbal ao enterro. Cito suas palavras: “A formidável experiência pessoal que foi para mim me fundir na multidão de milhares de ‘negro/as’ (entre aspas, para que não se perca a colonialidade do termo) que marchavam e cantavam no enterro de Rafael Cortijo. Pela primeira vez podia sentir diretamente o que tinha sido apenas uma suspeita prolongada durante quase três décadas, desde quando, nos arquivos peruanos, perguntava aos documentos coloniais como faziam os escravos ‘negros’ para continuar vivendo, torturados, humilhados e ofendidos, sem trégua e sem medida. No cortejo funerário do grande músico boricua, comecei a entender que o mais poderoso descobrimento dos ‘negros’ na América era o ritmo contra o sofrimento, a porta para a outra margem.” Conversamos muitas vezes sobre como os afrossaberes do ritmo corporal quebravam a dualidade subjacente ao padrão racista de poder. Como o corpo na dança era sujeito fazedor de cultura, e como a dança sincopada era uma maneira de expressar esteticamente no espaço a multiplicidade de tempos na rítmica sonora. Continuando com seu ensaio clássico de 2000: “Sem essa ‘objetivização’ do ‘corpo’ como ‘natureza’, de sua expulsão do âmbito do ‘espírito’ (...) seria dificilmente explicável (...) a duradoura hegemonia mundial do eurocentrismo. Somente as necessidades do capital como tal não esgotam, não poderiam esgotar, a explicação do caráter e da trajetória dessa perspectiva de conhecimento.” A “objetivação” do “corpo” como “natureza” abre todo um âmbito fundamental de análise da colonialidade nas relações de gênero. A expressividade corporal será entendida apenas como uma chamada da natureza ‘selvagem’ à concupiscência, no lugar de rítmicos afrossaberes comunicativos e da arte da sedução. Pondo em diálogo o dito “clássico” com o escrito porto- riquenho do ano anterior: “Como todos os quilombolas deste mundo, sabia eu (...) que há uma relação entre música e sociedade/cultura. Mas, até então, meu saber não havia deixado de ser intelectual e não tinha me permitido entrar inteiro, corporalmente, no escondido espaço no qual o poder e as pessoas jogam a sua vida a cada dia. Porque o ritmo era exatamente isso: um espaço-tempo de confrontação entre o poder e a corporeidade (...) Desde então, no curso de minhas muitas estâncias boricuas, enquanto me familiarizava com os sons de todos os caribenhos da América, foi se cristalizando em mim a ideia de corporeidade, liberada, por fim, da velha prisão eurocentrista da dualidade corpo-alma, matéria-espírito, razão- emoção. Saindo dessa prisão de longa duração, a corporeidade emergia radiante como sede e modo de ser humano neste mundo e despia sua relação com o poder.” Aníbal continua: “Caribe (...) é o nome de uma geografia do som e da dança, e das formas de vida que ajuda a criar, comum à costa sudeste de Estados Unidos, às Antilhas, à costa colombiana e venezuelana, ao Nordeste brasileiro, a toda a costa do Equador e às costas norte e sul do Peru. Hoje, seu ritmo começou a se expandir pelo mundo, subvertendo os mais guardados labirintos das sociedades repressivas. O ritmo ‘negro’ que nasceu na resistência contra o sofrimento na América é o som da subversão do poder em todo o mundo.” E, retomando suas experiências da Puerto Rican Journey: “Na migração humana deste tempo, são as relações sociais diárias que estão em crise, as que produzem processos de reetnificação, de reidentificação inacabada, quilombola, toda uma subversão cultural. Ser ‘latino-americano’ (lembrem, com hífen) no atual coração maior do eurocentro, é uma subversão idêntica a ser ‘afro-americano’ ou ‘nativo-americano’. Porque as lutas de liberação da sociedade têm agora outro ponto de partida, partem do cenário maior da confrontação: a luta contra a colonialidade do poder, contra a classificação ‘racista/etnicista’ das gentes do mundo, eixo central do padrão de poder mundial do capitalismo colonial/moderno.” Quis contribuir para este dossiê sobre Aníbal Quijano com algumas chaves para adentrarmos na dimensão porto-riquenha das análises e utopias de um dos mais importantes sociólogos de nosso tempo. estante cult Dinâmicas de emergência PETER PÁL PELBART
O primeiro aspecto que chama a atenção neste livro vigoroso é a intersecção
tensa entre a tradição dialética alemã e a filosofia francesa dita “pós- estruturalista”. Vladimir Safatle tem clara consciência da hostilidade de toda uma geração com respeito a Hegel. É bem possível, como ele supõe, que tal hostilidade tenha sido dirigida menos a Hegel do que a uma imagem que se cristalizou a seu respeito na França. Fazem parte dessa imagem aspectos como sua suposta teleologia, um necessitarismo, a totalização, a primazia da identidade, em suma, o que se convencionou chamar de filosofia da representação. Deleuze, para tomar o exemplo escolhido pelo autor, talvez tenha brigado mais com a imagem um tanto caricata de Hegel do que com sua filosofia. Em outras palavras, talvez tenha recusado sobretudo os efeitos dessa imagem – seus espectros. Como dizia sobre o assunto, brincando: “Il faut bien que quelqu’un joue le rôle du vilain!” (Afinal, alguém precisa desempenhar o papel do vilão!). E talvez Deleuze tenha atribuído a esse espectro de Hegel o papel do vilão na construção de seu próprio sistema aberto. Portanto, a decisão de desmontar a interpretação de Deleuze sobre Hegel tem aqui sua pertinência e legitimidade. Daí o empenho em mostrar que a contradição não é mera contrariedade, que a atualização do infinito pelo Espírito não se apoia num fundamento nem culmina na identidade, mas, ao contrário, dissolve o fundado num abismo, cuja superação é inquietude absoluta, puro mover-se-a-si-mesmo; que o ressentimento não está presente em Hegel, já que seu tempo é o da cicatrização das feridas e não fixação no dolo. Enfim, o capítulo sobre Deleuze reitera que o movimento dialético é destruição da identidade posta, ainda que implique a reinscrição da destruição, e que a teleologia da dialética é a própria imanência do movimento que ela desvela. Todo o restante do capítulo, sobre a univocidade, a multiplicidade, a imanência, é sumamente interessante, e percebe-se com clareza um esforço não de acentuar a contraposição entre Deleuze e Hegel, mas de assinalar as convergências. Não me cabe objetar nada a esse empreendimento, não apenas por falta de competência, mas por não ver sentido em aguçar um contraste quando o autor faz o contrário, no limite encontrando um Deleuze embutido em Hegel, ou em germe nele, ou um Hegel embutido em Deleuze, mais do que o filósofo da diferença o imaginava. Quantas vezes Deleuze mesmo fez algo semelhante com os autores que estudou? Como ele próprio dizia, enrabar um autor e fazer-lhe filhos monstruosos. Talvez seja algo dessa ordem que Safatle se propôs encenar entre ambos. Mas o momento em que detecto um limite inultrapassável nessas operações está na seguinte frase do autor: “Para a dialética, não há transformações locais, há apenas transformações globais. Isso significa que transformações locais que não se organizam em uma contradição global perdem sua realidade e têm sobrevida momentânea; elas serão frágeis e completamente efêmeras. Transformações locais devem ser agenciadas enquanto modalidades de contradição em relação à estrutura genérica de nossa situação atual. Pois apenas a contradição pode fazer emergir aquilo que, do ponto de vista dos modos de determinação da situação atual, não pode existir, não pode ser contado, não tem determinação possível (...) Por isso, a dialética é um pensamento da produtividade imanente da contradição”. Ora, não nos devolve essa priorização absoluta da contradição e de sua prerrogativa produtiva a uma matriz que o autor tentou reabrir, pluralizar, mostrando outras dinâmicas de emergência? Será que não se reintroduz aquilo que Deleuze deplora em Hegel, a subjugação da Diferença à Contradição? Como ficamos se tudo devesse ser lido a partir da contradição, e referido à Contradição maior? Quando Deleuze lembra que uma sociedade se define menos por suas contradições do que por suas linhas de fuga, quando põe o acento menos no futuro da revolução do que no devir revolucionário das gentes, não estaríamos nas antípodas dessa visão enunciada com tamanha assertividade? Retomemos tudo isso a partir de um ponto anterior presente no livro: “Sabemos como Adorno termina por elevar a não-identidade a conceito central da dialética exatamente no momento histórico em que filósofos como Deleuze e Derrida insistiam que pensar a diferença deveria ser compreendido como a tarefa filosófica central da contemporaneidade. Essa convergência involuntária respondia, na verdade, a um diagnóstico histórico-social comum. Todas essas experiências filosóficas se constroem a partir do pressentimento da crise do Estado do bem-estar social (o verdadeiro horizonte no interior do qual se move, por exemplo, um projeto como O anti-Édipo) e, principalmente, de crença em sua superação necessária. Ou seja, a emergência da diferença como problema filosófico central nos anos 1960 é indissociável da crise iminente de um sistema de organização econômica, o capitalismo de Estado, com seus regimes de reprodução material de formas de vida encarnados na indústria cultural e no conjunto de práticas terapêuticas de adaptação que crescem no interior de certa ‘cultura psicanalítica’. Essa emergência é a mobilização da filosofia como força crítica capaz de empurrar a revolta para a consolidação de uma forma de vida por vir. Ou seja, por mais que muitos queiram recusar tal realidade [de crise de um sistema], os setores mais comprometidos com transformações sociais do pensamento alemão e do pensamento francês acabarão por convergir em suas estratégias de diagnóstico social, mesmo que tais convergências de estratégias produzam modelos de reconstrução da potencialidade crítica do pensamento radicalmente distintas. Mas isso ao menos nos mostra como uma recuperação da dialética como modelo de pensamento crítico precisa ser pensada a partir das críticas feitas pelo pensamento francês contemporâneo. Pois a crítica do pensamento francês à dialética consiste em afirmar que ela destrói a diferença que ela mesma procura produzir ao submetê-la à contradição; ela cala o infinito que ela mesma procura atualizar ao submetê-lo à negatividade. As estratégias da dialética acabariam, assim, por reinstaurar as formas de vida que ela própria julgava ultrapassar, e não poderia ser diferente em um pensamento incapaz de se livrar das amarras do sujeito, da consciência, da história mundial, do Estado, da representação, entre outros. Seus esquemas conceituais nunca poderiam garantir uma verdadeira perspectiva materialista, com suas forças, contingências, fluxos e intensidades.” E conclui: “tais críticas não devem ser simplesmente desqualificadas, mas devem ser respondidas. Há de se reconstruir a dialética a partir delas”. É todo o trabalho admirável a que se propõe o autor. Afinal, a dialética negativa visa preservar a dialética das armadilhas da conciliação, sobretudo quando se apresentam como superação. Daí o sentido da negatividade: não é apenas reativa – para usar esse termo tão presente no vocabulário de Deleuze – ou, como dizem alguns, niilista. Assim como a não- identidade é uma figura subjetiva que na sua leitura não equivale a privação, nem ausência, nem falta de. Com isso, ressalto o procedimento engenhoso presente nesta obra. O negativo em Hegel não é tão reativo nem tão conciliatório quanto é considerado e o negativo em Adorno não é tão niilista quanto poderia parecer, já que ele pode ser lido, e a meu ver é sua aposta final, como espaço de emergência (“A relação negativa à totalidade não é aporia de uma crítica totalizante, que irá necessariamente se realizar como niilismo ou como teologia negativa, mas modo de emergência”). A dialética da emergência que o autor propõe como interpretação mais ousada desfaz a suposta dimensão reativa ou niilista da negatividade bem como a dimensão conciliatória da superação, tangenciando uma via outra que desemboca, por assim dizer, na... diferença que parecia até então elidida. Não é à toa que Deleuze comparece aí como interlocutor privilegiado. O autor percebe a riqueza e a promessa embutidas nessa direção, mesmo usando seu próprio instrumental. Em certo sentido, isso também vale para os demais conceitos. Ainda que encontre apoio em Lacan para repensar o estatuto do sujeito, ao trabalhar a noção de desamparo ou des-identificação, e em Adorno, a não-identidade, ou em outros a noção de despossessão, ou de errância, não estamos tão longe da destituição do sujeito identitário, tal como pensa a geração de franceses, desde Blanchot, Bataille até Foucault ou Deleuze e Derrida, cada qual a seu modo. Se tomo Deleuze, para a heteronomia sem servidão temos a prevalência da noção blanchotiana de dehors como elemento central para repensar a subjetividade, assim como para a não-identidade temos os múltiplos eus, ou sujeitos larvares, ou o sujeito na adjacência dos agenciamentos, para a errância, o nomadismo, os múltiplos devires, para a emergência, o foco na invenção, desde Bergson, ou a noção de Diferença entendida antes como diferenciação, isto é, processualidade, atualização a partir do virtual, mas também a preservação do virtual enquanto virtual. Há correlações, apesar do acento distinto – que consiste num tom mais subtrativo, de um lado, e mais proliferante, de outro. Ainda assim, se cruzam. Cito aqui a afirmação do livro: “A negatividade do movimento dialético é, na verdade, a manifestação da emergência da noção de infinito”. Fácil lembrar a frase de Deleuze em O que é a filosofia: “O problema da filosofia é de adquirir uma consistência, sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha”. Ou ainda: “A utopia não se separa do movimento infinito: ela designa etimologicamente a desterritorialização absoluta”. Não tenho certeza de que seja o mesmo infinito que está colocado aqui, já que um parece referir-se a uma totalidade, o outro a uma velocidade infinita, ao movimento infinito. Mas também aqui talvez se encontrem, no que assim está definido: “explode-se a finitude e pode emergir uma totalidade verdadeira em sua processualidade contínua capaz de instaurar objetos em movimento imanente”. Mas há totalidade e totalidade. Postular a totalidade num momento em que o Estado nacional era um ganho de racionalidade e de direito em relação aos interesses locais é muito diferente de falar em totalidade numa época, como a nossa, de afirmação global da falsa universalidade do Capital. Ainda assim, a totalidade verdadeira, argumenta o livro, contra a falsa totalidade, não se exprime na forma das positividades. Portanto, pensar a totalidade como sistema aberto ao desequilíbrio periódico e infinito, apto à reconfiguração posterior dos elementos singulares, é sair da perspectiva positiva-racional-progressiva. A totalidade é, portanto, processualidade, autotransformação. Mencionados esses elementos todos, não é à toa que Dar corpo ao impossível se recusa a colocar os franceses no saco da ideologia francesa, já que devem ser preservados como aliados e podem ativar aproximações, apropriações, encavalamentos incessantes. Penso que essa escolha é sábia e fecunda, dá testemunho de uma abertura real e desafia o partidarismo filosófico sem ceder minimamente no cultivo de suas fontes próprias. Digo isso porque me chama atenção a total afinidade que experimentei ao longo dos últimos anos com as posições políticas do autor, sem que as diferenças teóricas de fundo me incomodassem minimamente. Não que elas fossem indiferentes, mas parece que, com instrumentos diferentes, chegávamos a apreciações tão convergentes que não raro me perguntei como isso era possível. Claro está que todo o trajeto do autor está marcado por uma preocupação com as condições da ação política, e parte de O circuito dos afetos já tocava nesse ponto, ao focar nos corpos afetivos e políticos e na incorporação como incontornável para pensar o político. Em suma, tal engajamento diz muito da perspectiva do autor sobre o papel do intelectual hoje. Conhecemos a discussão entre Foucault e Deleuze a respeito do intelectual específico em substituição ao intelectual genérico, pretenso porta-voz da consciência humana em geral. Também conhecemos a bela posição de Adorno sobre a função desintegradora do intelectual, que a teoria crítica teria deixado de lado e que cabe resgatar, apostando no aprofundamento das potencialidades revolucionárias do presente, ou nos processos de emergência ou, ainda, no desafio de pensar a sociedade capitalista a partir de sua plasticidade revolucionária imanente. É de admirar o canteiro de obras no qual Safatle trabalha com tamanho afinco e energia nos últimos anos, sem ceder a nenhum pacto ou compromisso, e sem nenhum sinal de fadiga ou resignação. O que nos atordoa não será essa energia e acuidade que se depreende de seus textos num momento em que a atmosfera ao redor anda tão impregnada de desânimo? Mas como não reconhecer e até louvar certa desmesura, quando tantos desafios se colocam à filosofia, e tantos perigos a rondam? colaboraram nesta edição Ángel G. Quintero-Rivera é doutor em Economia e Ciências Políticas pela London School of Economics e professor da Universidad de Puerto Rico Bianca Santana é escritora, jornalista, pesquisadora, doutoranda em Ciência da Informação pela USP, autora de Quando me descobri negra (SESI-SP) Carla Rodrigues é doutora em Filosofia pela PUC e professora da UFRJ Danilo Assis Clímaco é doutor em Estudos Latinoamericanos pela Universidad Nacional Autónoma de México e professor de antropologia na Universidad Nacional Mayor de San Marcos Dico Kremer é fotógrafo publicitário com 40 anos de mercado nacional e internacional Manuela Eichner e Zé Vicente são artistas e trabalham com colagem desde 2005. Tanto em parceria como em suas pesquisas individuais, investigam a expansão da ideia de colagem Orlando Azevedo é fotógrafo documental, especializado em expedições e projetos de longa duração Peter Pál Pelbart é doutor em Filosofia pela USP e professor da PUC-SP Rita Segato é doutora em Antropologia Social pela Queen’s University Belfast, professora emérita da UnB e diretora da Cátedra Aníbal Quijano do Museu Reina Sofía Rosana Paulino é doutora em Artes Visuais pela USP, artista visual, pesquisadora e educadora Susana de Castro é doutora em Filosofia pela Ludwig Maximilian Universität München e professora da UFRJ Tarso de Melo é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP, autor de Alguns rastros (Martelo) e Íntimo desabrigo (Alpharrabio/Dobradura) Vilma Slomp é fotógrafa, com atuação no campo do fotojornalismo e da fotografia autoral Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP) Table of Contents coluna Bianca Santana Marcia Tiburi Wilson Gomes especial Paulo Leminski dossiê Aníbal Quijano, o mundo a partir da América Latina Apresentação A tenacidade da inquietude O tempo na obra de Aníbal Quijano O feminismo decolonial A colonialidade e Porto Rico estante cult colaboraram nesta edição