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O mínimo sobre relacionamentos Mila Marsili 1ª edição — junho de 2023 — CEDET Copyrigh © Mila Marsili

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Editor: Thomaz Perroni

Copidesque e revisão: Deadline Revisões

Preparação de texto: Horá cio Etoperácio

Capa: Laura Barreto

Diagramação: Virgínia Morais

Conselho editorial: Adelice Godoy César Kyn d’Ávila Silvio Grimaldo de Camargo

FICHA CATALOGRÁFICA
Marsili, Mila.
O mínimo sobre relacionamentos / Mila Marsili
Campinas, SP: O Mínimo, 2023.
ISBN 978-65-85033-14-5
1. Vida familiar: guias para relacionamento familiar
2. Ética nas relações sociais
I. Autor II. Título
CDD — 646.78 / 177
ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:
1. Vida familiar: guias para relacionamento familiar – 646.78
2. Ética nas relações sociais – 177

www.ominimoeditora.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma,
seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do
editor.
Sumário
INTRODUÇÃO

O AMOR DESINTERESSADO

SEJA INTERESSANTE

BUSQUE PESSOAS, NÃO PRETENDENTES

AS ESTAÇÕES DO RELACIONAMENTO AMOROSO

O PERDÃO

NOTAS DE RODAPÉ
N ãocomháo nada mais caracteristicamente humano do que a necessidade de se relacionar
próximo.

Alguém poderia contestar essa afirmação dizendo que os seres irracionais também
precisam se relacionar entre si para suprir as suas necessidades mais básicas, que a vida
comunitária está na base do próprio impulso de sobrevivência e que, portanto,
poderíamos ficar seguros de que a nossa ânsia por relacionamentos é antes um traço da
nossa parte animal.

Mas há algo mais profundo no impulso humano na direção do próximo.

O motivo é simples: os seres humanos são capazes de amar. Na verdade, mais do que
capazes, os seres humanos precisam de um semelhante para amar, pois é pela entrega ao
outro que ocorre o desprendimento necessário para a manifestação do amor — como já
dizia o poeta: Que pode uma criatura, senão entre criaturas amar?1

Relacionar-se com alguém é o mesmo que entregar-se a alguém. Esta é a divisa


silenciosa que separa quem ama de quem usa. O sacrifício pelo outro, a vontade de fazer
do outro uma pessoa melhor, o sangrar pelo outro — o que, em casos extremos de amor,
tem um significado bem mais simples do que o de uma metáfora. Tudo isso parece um
discurso muito heroico e “romântico”, mas um exame sincero de nossa experiência direta
com o amor, tanto ao sermos amados quanto ao amarmos, ou quando testemunhamos o
amor de outros, apenas o confirmará.

Não estou defendendo aqui que assumamos um ideal altíssimo só para sustentarmos um
discurso grandiloquente, mas em total desacordo com a vida, porque o que estou
buscando é uma visão justa e real sobre os relacionamentos. É isto que eu quero que você,
leitor, entenda por meio deste livro: relacionar-se é uma arte, e como toda arte, possui
suas técnicas, seus exercícios, seus princípios. Quem a pratica precisa ser paciente e
humilde, como todo aprendiz. Precisa modificar-se lentamente para melhor desempenhá-
la, ordenando o seu interior, para que sua melhor compreensão se reflita em seus atos. É
para esta arte que pretendo dar minha contribuição.

Relacionar-se com o outro não é uma opção, e, mais especialmente, só poucos podem se
abster da relação carnal — falo aqui daqueles que têm uma vida consagrada. Aristóteles
já percebia isso, quando disse há mais de dois mil anos que o homem solitário ou é uma
besta ou um deus.2 Mas mesmo os que optam por uma maior solidão não estão
dispensados totalmente dos relacionamentos, e sim de uma parte deles. Navegam por este
mundo alheios a um relacionamento carnal, mas também vivem para amar o próximo em
outros níveis mais sutis e profundos. Em suma, ninguém pode dizer consigo mesmo que
“este assunto não é comigo”. Os relacionamentos amorosos impactam a todos.

E dizer que impactam a todos é o mesmo que dizer que são um problema para todos.
Não há pessoa que não experimente ruídos em seus relacionamentos, mesmo as mais
equilibradas, mesmo as mais bondosas, mesmo aqueles que poderíamos chamar de santos
— todos eles viveram dificuldades no seu relacionamento com outros seres humanos.
Estamos no mundo para amar ao próximo. Por isso, este é um assunto central para o ser
humano. É preciso, porém, compreender melhor o que significa o amor. Não vou me
demorar em explicações filosóficas e na discussão detalhada de conceitos; não é nosso
propósito aqui. Vou apenas sintetizar o tema, que é da mais alta profundidade, num
conceito prático e imediato que deve ser absorvido como ponto de partida para o nosso
relacionamento saudável com o próximo:

O único amor digno desse nome é o amor


desinteressado.
O AMOR DESINTERESSADO
V amos partir de um exemplo prático: um casamento. Daí poderemos facilmente retirar
analogias para outras formas de relacionamento. Reconheço que pode parecer
estranho tratar das bases elementares do relacionamento falando diretamente do mais
complexo relacionamento humano que existe, mas este é o ponto fundamental que precisa
ser compreendido, a meta que norteará todos os meios práticos para aperfeiçoarmos nossa
capacidade de nos relacionar.

O amor desinteressado é a virtude central para um casamento, pois o amor


desinteressado é aquele interesse voltado completamente às necessidades do outro. É um
amor em que não entra nenhum egoísmo, nenhum interesse pessoal; é uma entrega
gratuita.

Parece que esse amor é um amor sem intensidade, já que estará desinteressado — e é
aqui que muitos fazem maus julgamentos de casamentos sólidos e amorosos por não
verem “paixão” no casal. Isto porque este desinteresse não é quanto ao próximo, e sim

um desinteresse de si mesmo.
Se num casamento, em muitas ocasiões, não abandonamos os nossos interesses em favor
do cônjuge, o relacionamento se torna impossível. Torna-se uma guerra de interesses,
uma permanente tensão política e diplomática, um comércio de trocas e compensações
emocionais cheio de egoísmo. Um permanente estado preliminar a uma guerra.

O amor desinteressado é o oposto disso, e é o antídoto para isso. É um amor sem


expectativas, que não espera que o próximo o retribua como se a cada gesto amoroso, a
cada boa ação sua, contraísse uma dívida que precisasse ser paga em algum momento. A
única esperança que o amor desinteressado se permite ter é a de que o seu influxo gere
efeitos positivos na pessoa amada. E ainda assim essa esperança não pode ser o
fundamento deste mesmo amor, mas a sua consolação. Porque ele deve existir a partir de
uma raiz tão generosa a ponto de não exigir recompensa de natureza alguma. Quem ama
desinteressadamente logo compreende que os frutos do seu amor não são visíveis, apesar
de serem muito reais, porque esse amor produz uma alquimia secreta no coração do outro.

Aqui, para avançar, nós teremos de compreender algo da Teoria das Camadas da
Personalidade, desenvolvida pelo professor Olavo de Carvalho, que lança luz a alguns
movimentos psicológicos presentes nessa dinâmica. Olavo compreendeu que

a personalidade humana é a expressão de vários


graus de autoconsciência
que se manifestam por objetos de interesse dominantes, que, por sua vez, ajustam os
movimentos da personalidade inteira.

Cada objeto de interesse dominante corresponde a uma camada da personalidade, e a


caminhada progressiva da personalidade pelos interesses, anseios e motivações de cada
camada corresponde idealmente a um desenvolvimento humano pleno, numa escala
cronológica.

Estas são as dozes camadas da personalidade e suas correspondências no


desenvolvimento humano:
1ª camada Consciência do corpo

2ª camada Constituição física ou psicofísica recebida hereditariamente

3ª camada Cognição e articulação entre percepção e ação no mundo

4ª camada Afirmação afetiva

5ª camada Afirmação pessoal, da

individualidade

6ª camada Afirmação na vocação e aptidões

7ª camada Afirmação em papéis sociais

8ª camada Maturidade pessoal, avaliação da própria vida

9ª camada Personalidade intelectual

10ª camada Eu transcendental

11ª camada Afirmação do eu na escala histórica

12ª camada O homem perante Deus

Na terceira camada, que é experimentada na primeira infância, a razão começa a


adquirir consciência do mundo exterior. É a época em que as crianças manuseiam muitos
objetos com curiosidade, encaixam peças em espaços correspondentes numa caixa e se
encantam pelos mais insignificantes cacarecos. O processo desta etapa consiste numa
apreensão gradativa do mundo físico, e quem vive na terceira camada passa por um
processo em que sua razão produz cálculos para que encontre estabilidade a partir deste
mesmo mundo exterior.

É demorada a transição entre a terceira e a quarta camada porque é preciso um acúmulo


suficiente de experiências sensíveis e de vivência histórica para que aquela personalidade
alimente as bases de sua vida afetiva. No estágio de amadurecimento representado pela
quarta camada, a razão permanece realizando cálculos, mas ao invés de operar sobre o
mundo exterior físico, volta-se para dentro de si, numa ânsia de percorrer os seus afetos
interiores e sua dimensão emocional.

Começa a exploração de um mundo interior, de um território afetivo que precisa


também ser percorrido para que o indivíduo se sinta estável no mundo.
As pessoas que estão na quarta camada fazem o
tempo todo um cálculo emocional.
Elas ainda não percorreram este mundo o suficiente para que se sintam estáveis. Quem
vive na quarta camada é semelhante a uma criança que contempla o modo de cair dos
seus brinquedos, investigando como as quedas acontecem de diversas maneiras. Mas ao
invés de brinquedos, o indivíduo que vive na quarta camada investiga os efeitos do
influxo do mundo em sua vida afetiva e emocional, de modo a buscar estabilidade e
aceitação. É a pessoa que se preocupa com um olhar de aprovação, com um gesto que
possa parecer rude, com um provável deboche.

Este indivíduo precisa o tempo inteiro processar a afetividade alheia em seu interior
para que se certifique de estar sendo amado e aceito neste mundo. A sensação de quem
está na quarta camada é a de nunca se sentir suficientemente amado, consequência da sua
excessiva necessidade de compreender as dinâmicas afetivas em torno de si. Esta pessoa
convive sempre com uma pergunta difícil, da qual não tem resposta segura: “Será que as
pessoas gostam de mim?”.

Tudo se torna autorreferente. Na relação com um chefe, por exemplo, em ambiente de


trabalho, toda interação não será entendida por seu sentido objetivo, na forma de ordens,
projetos, observações, etc., mas tomada como uma relação afetiva. Logo, qualquer
situação natural de cobrança ou crítica não é entendida em sua objetividade, mas como a
confirmação de um desprezo pessoal do chefe em relação ao empregado, que diria: “O
chefe foi ríspido comigo, será que ele não gosta de mim?”. Enquanto isso, do ponto de
vista objetivo do chefe, não havia nenhuma dimensão pessoal na crítica, apenas uma
avaliação objetiva em busca de resultados.

Este mesmo exemplo pode ser replicado nos mais variados contextos de
relacionamento. Para a pessoa na quarta camada tudo é uma relação afetiva, o que a torna,
portanto, um indivíduo emotivo. Ser emotivo neste caso não significa o abandono do uso
da razão, mas uma etapa do amadurecimento em que a operação da razão está muito
concentrada em sua autoafirmação emocional.

As relações amorosas entre pessoas de quarta camada serão profundamente egoístas,


pois vive-se a intensa necessidade em se sentir querido e amado. Uma pessoa que vive
nesta camada tenderá a se sentir sempre frustrada ao não receber a devida recompensa
pelos seus atos amorosos, numa estranha e mesquinha

contabilidade emocional.
Há a necessidade constante em se sentir amado.

É daí que surgem os problemas de relacionamento, como as chantagens emocionais, já


que as relações podem ficar reduzidas a um mero comércio afetivo do qual o indivíduo
não poderá sair sem lucro. Isso é um grave obstáculo ao exercício do amor
desinteressado, que é em algum nível inacessível para quem está dominado pelas
necessidades de autoafirmação emocional de quarta camada. Trata-se de uma virtude de
um ser humano mais maduro, que pôde elevar-se sobre essa dimensão mais fundamental
da necessidade de receber afeto.

No entanto, passar pela quarta camada faz parte do processo natural de amadurecimento
humano. Não é possível saltar esta etapa, e todos nós precisamos superá-la de maneira
saudável. Em geral, filhos que tiveram pais ou responsáveis amorosos na primeira
infância, e experimentaram em si mesmos os efeitos de um amor verdadeiramente
desinteressado, tendem a não desenvolver hábitos viciosos relacionados à quarta camada.

PARA COMEÇAR: DOIS EXERCÍCIOS PRÁTICOS


Como pudemos perceber, a prática do amor desinteressado é a meta do relacionamento
amoroso. É o alvo que devemos perseguir para sermos melhores companheiros de quem
pretendemos amar e para sermos pessoas capazes de transmitir maior valor em nossos
relacionamentos. Apesar das grandes dificuldades que parecem ligadas a esta prática, não
será impossível a realização do amor desinteressado, mesmo para um adulto que ainda
esteja na etapa da quarta camada. Mas para desenvolver capacidades superiores, é preciso
dedicação à sua prática consciente, de acordo com nossas forças. Não é preciso começar
tudo de maneira perfeita. Nenhuma habilidade se adquire do dia para noite em sua forma
ideal, mas é a prática constante, o cuidado em agir sempre de acordo com a meta, mesmo
nos detalhes, que constrói dia a dia o seu domínio.

Agora que já expusemos a meta do relacionamento amoroso, quero propor ao leitor,


para início de conversa, dois exercícios para iniciarmos a nossa jornada em busca do
amor desinteressado. Se você, de maneira comprometida, se dedicar a eles, por mais
estranhos que pareçam, garanto-lhe que perceberá em pouco tempo uma mudança
positiva.

O primeiro deles é a prática do sorriso forçado. Simples assim. Não convém expressar
sempre os nossos sentimentos, sem qualquer controle. Um grande exercício de controle
emocional e entrega ao próximo é o sorriso forçado. Primeiro, porque ele não é agradável,
mas pode guardar uma intenção de produzir um bem ao outro, de criar um ambiente de
bem-estar para que o próximo entenda que estamos a seu serviço.

Muitas vezes despejamos inutilmente no próximo nossos estados emocionais


passageiros e diante de algum dissabor ou incômodo lhe transmitimos nossos maus
afetos, criando uma atmosfera azeda e desagradável. Ser uma fonte de alívio ao próximo,
de maior leveza, mesmo conscientemente forçada, é ser uma fonte também de alegria.
Isso repercute mesmo na dimensão bioquímica e osmótica das relações humanas.

Não precisamos absorver as energias do ambiente,


mas entregar outras que levantem o ânimo do próximo.
É a alquimia da contaminação pelo bem. Inteligência emocional é a capacidade de não
se deixar contaminar pelos sentimentos alheios e nem deixar o próximo se contaminar dos
seus maus sentimentos. É agir conscientemente na direção de transmitir força emocional
num ambiente conturbado. Contaminar os outros com sentimentos positivos.

Pode parecer uma besteira; afinal, o que é um sorriso forçado? Mas esta prática é uma
forma de caridade, e a caridade é a única virtude que permanece mesmo após a morte. Da
fé não vamos mais precisar (tudo se revelará) e nem da esperança (tudo terá acontecido),
mas a caridade, o amor, permanecerá. Ora, nós, que somos fracos, que motivo teríamos
para desprezar ainda que uma partícula de caridade possível? Persista nesta prática com o
tempo. Os efeitos vão acontecer e as pessoas em torno de você serão modificadas. Sorria
sem vontade, até que o sorriso se torne natural. É muito simples sorrir. Requer pouca
energia. O sorriso é a partícula mínima da nossa caridade com os outros. Não despreze o
poder de um sorriso; poucas pessoas conseguem lidar com difíceis problemas de
relacionamento, mas qualquer um pode sorrir. O sorriso quebra algo no outro e seu poder
é magnífico; é um ato simples de efeitos maravilhosos. Sorria sem pensar, sorria para
todos e principalmente para quem quer se doar.

O segundo exercício também me foi transmitido pelo professor Olavo de Carvalho, que
o ensinava para seus alunos em seus cursos de filosofia. Imagine que a vida dos outros é
um romance. Pense no outro como um personagem principal de uma história, a história
dele, que é uma história cheia de personagens importantes, eventos decisivos, sonhos,
amores, aspirações, assim como a sua.

Pensar em cada vida como uma vida com sua própria narrativa e profundidade destrói
em nós o desprezo que poderíamos sentir pelos outros. Em geral, vemos, no nosso
egoísmo, a vida alheia como um mero esquema. “Fulano é médico, formou-se não sei
onde, hoje é diretor de um hospital e ganha tubos de dinheiro para viajar todo ano”. Eis o
olhar sumário e cruel que facilmente usamos para com os outros.

Quando pensamos as outras vidas como as verdadeiras histórias que são, isso nos retira
de uma visão de mundo centrada em nós mesmos. Assim, não enxergamos mais as
pessoas como meras funções em nossa história, como figurantes em nossa vida, mas
como homens e mulheres cheios da nossa mesma vida.

Não existe vida desinteressante. Existem vidas que não nos interessam.

Com esse exercício, a sua vida deixa de ser o centro do universo e você se permitirá até
mesmo admirar alguém que jamais teria o seu interesse; a considerar outra pessoa
realmente notável, não por inveja, mas por vislumbrar a grande força dramática de uma
vida em ação. Assim, quando você menos esperar, o amor desinteressado começará a fluir
e a fincar raízes no seu coração. Você verá que

o ser humano tem um profundo valor, e não há


maior honra do que servir a um ser amado,
um ser dessa incrível espécie coroada de glória. Está aqui o início do seu amor
desinteressado, um amor que não quer nada em troca, mas sempre estará “na concha
vazia do amor à procura medrosa, / paciente, de mais e mais amor”.
SEJA INTERESSANTE
M uitos devem pensar que neste capítulo falarei de macetes para tornar alguém
interessante. Mas não é isso. Ninguém pode ficar interessante do dia para a noite.
Não há uma fórmula pronta para isso, nem técnicas para tornar alguém automaticamente
interessante, e eu creio que quem promete isso mente. Porque não basta parecer
interessante, é preciso sê-lo. E a diferença entre o ser e parecer é bem grande, de tal modo
que exige um esforço mais profundo e sincero do que as dicas mágicas podem fornecer.

Antes de tudo, quando o assunto é o papel do interesse no âmbito de um relacionamento


amoroso, é preciso reconhecer que o primeiro impacto da aparência é um fator
importante. Prova-o a simples experiência. Quando chegamos num ambiente novo, logo
achamos pessoas interessantes, sem nem mesmo conhecê-las. Ora, fica claro que há um
aspecto que por si só gera atração, que é a aparência. Não raro alguns experimentam por
isso o fenômeno do “amor à primeira vista”. Esta atração é muito impropriamente
chamada de amor, porque este tipo de afeto, por ser instantâneo e fundado inteiramente
afetos que tratam apenas da aparência, de sutilezas de postura pessoal, da forma como
alguém se movimenta, do modo como conversa, etc.

Mas a intenção aqui não é fazer pouco caso dessas características pessoais exteriores.

Jamais podemos subestimar o aspecto da aparência.


Precisamos nos manter pessoas apresentáveis, bonitas, bem cuidadas, vaidosas dentro
de uma medida sã. Estas preocupações não devem ser eliminadas, portanto cuide-se. Esse
é um cuidado que, em especial, se aplica aos solteiros ainda em busca de um
relacionamento e que dependem mais das primeiras impressões geradas em possíveis
parceiros.

em impressões imediatas, diz respeito a um conhecimento que não atinge o interior da


pessoa, o seu ser. São É muito raro que o interesse surja, como costuma aparecer em
situações novelescas, com base inteiramente no “interior” de uma pessoa. Precisamos ser
realistas e admitir que só nos interessamos pelo interior de quem nos atraiu primeiro
exteriormente, que é natural que uma aparência ou presença com traços desagradáveis ou
repugnantes nunca nos incline a um contato mais profundo. Mesmo entre parceiros de
anos, onde o convívio cotidiano naturalmente admite licença para um certo descuido na
aparência, manter-se agradável e atraente o quanto possível é importante para a
manutenção do convívio.

Manter-se como uma presença fisicamente agradável e bem cuidada tem imenso
impacto na busca por relacionamentos. Num primeiro momento, o outro não sabe o que
há dentro de você. O chamariz da atenção inicial, que pode se desenvolver num
relacionamento duradouro com consequências mais profundas, é a aparência agradável.
Isso é um fato inegável, até mesmo óbvio, mas não custa repeti-lo.
No entanto, o meu interesse neste livro, ao tratar do relacionamento humano, é ir além,
é dar condições para que você possa construir um relacionamento duradouro, que se
sustente numa interação mais profunda. Não há arquétipo mais antigo e conhecido do que
o da pessoa em que se combinam a extrema beleza e a total superficialidade.

A beleza importa, mas não basta.


Sem dúvida a beleza é um valor, mas a verdade é um valor maior. Ela é um distintivo
para te promover nas primeiras impressões, para te colocar como um potencial objeto de
interesse imediato, mas jamais substituirá o domínio humano, o seu domínio interior.

Você precisa se comprometer não em parecer, mas em ser uma pessoa interessante. E
para ser interessante, neste sentido mais profundo, o que importa não é o que atinge os
olhos alheios, mas o que sai da boca e atinge os corações. Porque o que “sai da boca
procede do coração”,3 e assim o critério da verdade nas relações humanas é sempre uma
conversa de coração a coração.

Pense agora atentamente nas pessoas que você mais admira. Tente se lembrar do que há
nelas de tão absorvente a ponto de terem um lugar especial dentro do seu coração. Será
que todo esse magnetismo procede apenas das suas aparências? Ou procede dos seus
valores, das suas boas palavras, da sua sabedoria, do seu caráter, das suas ações nobres,
da sua generosidade e otimismo perante toda a adversidade? Perceba como os fatores que
produzem maior admiração pertencem ao domínio da linguagem, ao domínio da
expressão. As pessoas mais interessantes são aquelas capazes de se comunicar com maior
profundidade e riqueza. Não se trata apenas de comunicar-se bem ou de maneira erudita
(porque muitos podem simplesmente confundir isso com retórica ou
pseudointelectualismo), mas transmitir boas palavras, transmitir sensatez.

E o que essas pessoas fizeram para saber falar bem e sensatamente? Alimentaram seu
interior com um repertório intelectual e pessoal que as tornaram capazes de retirar de sua
experiência de vida visões claras e ideias inteligentes. Isso é resultado de estudo, de uma
dedicação sincera por uma melhor formação do espírito. Não sem motivo, a expressão
“presença de espírito” guarda um pouco desse sentido antigo, desse misterioso algo a
mais que existe nas pessoas interessantes. É para esta pessoa que os outros concedem sua
atenção, porque ela tem algo valioso a dizer. Quem diz algo de valor também tem valor. É
uma pessoa interessante.

Você precisa dedicar parte do seu tempo na busca por isso. É necessário empregar seus
esforços para se tornar uma pessoa interiormente interessante. Podemos guardar na
memória aquele ditado que diz: “para ser interessante você precisa ser interessado”. Isto
é, precisa ser o oposto de uma pessoa superficial, a quem nada interessa, que sempre está
indisposta a acrescentar algo novo à sua bagagem, sempre às voltas com os próprios
interesses, com os seus pequenos prazeres, acariciando até com gosto a própria ignorância
e soberba, geralmente abandonada às ondas sucessivas das modas e incapaz de dizer algo
além do que se fala no show business, ou do que é imposto pela cultura pop, ou pela
opinião medíocre mais rasa dos jornais.
Para atrair as pessoas, você precisa se deixar atrair primeiro pelas coisas, pois só por
essa absorção das coisas em torno de si você será capaz de preencher a sua bagagem com
histórias, ideias, conhecimento e pontos de vista instigantes. Agindo assim, você ampliará
o seu repertório de consciência psicológica, sendo capaz de navegar por mais temas,
desenvolvendo sua sensibilidade para ver com interesse mais situações e refinando seu
apuro estético ao compreender, pela amostragem cada vez maior dessa bagagem
imaginária, a diferença grande que existe entre o que é disforme e o que é claro, belo e
significativo.

OS TRÊS PILARES QUE FAZEM ALGUÉM SER INTERESSANTE


Considero que são três as características fundamentais para alguém ser interessante.
Diferentemente das dicas mágicas que não vão fazer ninguém interessante, mas na melhor
das hipóteses irão produzir uma aparência vazia de alguém com essa característica, estas
qualidades de que falarei só podem ser conquistadas por um esforço continuado e longo,
porque tais características compõem a natureza de quem busca ser, ou seja, de quem faz
um esforço autêntico por ser alguém presente, real, e não uma sombra do somatório de
apetites e interesses que flutuam superficialmente na sociedade.

O primeiro pilar na construção da capacidade de ser interessante é

a atenção.
Você precisa estar atento, ter uma presença total no mundo. Não é raro entrarmos nos
nossos meios sociais totalmente dispersos, totalmente inconscientes do lugar onde
estamos, desatentos a tudo. Você precisará dirigir sua atenção às pessoas e às coisas para
retirar algo delas. A sua dedicação vai precisar da atenção como o seu maior pré-
requisito, pois sem atenção nada que se apresenta a nós pode ser absorvido.

É o esforço de abandonar o “modo automático” de viver. É estar efetivamente presente


em todos os seus atos, com um nível de consciência ativo para absorver as coisas do
mundo e retirar delas conteúdos que possam preencher o seu interior.

O segundo pilar é

a generosidade.
Faça o mesmo exercício do início do capítulo: pense agora nas pessoas que te pareceram
interessantes ao longo da vida, que capturaram sua atenção. Não é surpreendente
constatar que a imensa maioria delas — ou mesmo todas elas — não eram pessoas
interesseiras e egoístas? Você não percebeu nelas nenhuma intenção de roubar algo seu,
de tomar para si uma recompensa, como se estivessem num negócio.

Vamos constatar que as pessoas que foram (e são) interessantes para nós eram
justamente as pessoas capazes de se interessar por nós. É um dado provado pela
experiência cotidiana que as pessoas que mais se interessam pelo outro são aquelas que
mais atraem sobre si também o interesse dos outros.

O exato contraponto a este tipo interessante é alguém que em qualquer conversa ou


interação só é capaz de fazer referências incessantes a si mesmo; quesó tem interesse em
falar das suas coisas, das suas impressões, da sua história. Honestamente falando, este
tipo de pessoa é um saco. Esta postura não prende a atenção de ninguém. O conviva
autorreferente é o proverbial “mala sem alça”, aquele que, com muita sorte, se convive
com pessoas caridosas, recebe uma atenção complacente dos ouvintes, que olham com
fingida discrição para o relógio, a ver se a ladainha acaba logo ou se aparece algum
pretexto razoável para fugirem da conversa horrível. Para o “mala sem alça” , o outro é só
mais um figurante na sua história — e na sua história não existe ninguém importante,
exceto ele mesmo. Ele enxerga o outro como um mero ouvinte, e não uma companhia.

Toda pessoa muito autorreferente perderá a atenção dos demais. Portanto, a


generosidade é um remédio eficaz contra o perigo de nos centrarmos em nós mesmos. É
pela generosidade que podemos ter um interesse genuíno no que os outros têm a dizer, no
que sentem, no que são. As pessoas generosas estão dispostas a servir e a dar sem pedir
nada em troca. Isso é encantador. Ser generoso é ser extremamente interessante.

O terceiro pilar é

a consistência.
O encanto associado aos dois pilares anteriores perde muito do seu poder atrativo, se as
suas ações forem praticadas apenas de modo pontual. A verdadeira força atrativa conjunta
desses pilares só se realiza quando estes atos são praticados consistentemente. Quando
você é capaz de aplicar sua atenção sincera de modo consistente e de ter uma postura
caridosa de maneira continuada e frequente, o potencial de se tornar alguém interessante
aumenta muito.

Não deixemos que estes pilares sejam apenas o pano de fundo de uma “noite brilhante”
em que nos saímos maravilhosamente bem em alguma situação social. Podemos ser muito
interessantes por um dia, mas esses bons desempenhos episódicos não significam que
passamos a ser interessantes. Por isso essas práticas exigem consistência e frequência,
uma verdadeira mudança de perspectiva perante a vida e o próximo. Essa nova maneira
de interação, à medida que ganha um caráter cada vez mais positivo e natural, começa a
efetivamente alterar nosso interior, e então, depois de um tempo, passamos a ser
interessantes, e não apenas parecer.

Ser interessante dá trabalho. Nenhuma dica, nenhum filme, nenhum arquétipo


psicológico, nenhum consultor e nem mesmo este livro vai te fazer interessante. Isso
porque ser interessante exige um compromisso de querer sê-lo, um compromisso que
precisa tocar em cordas íntimas do nosso interior e mudar nossa postura de maneira
consistente.
A DIFERENÇA ENTRE SER INTERESSANTE E SER MANIPULADOR
Devemos cuidar para não confundir quem tem genuíno interesse no próximo, e por isso
lhe empresta atenção e age de forma generosa consistentemente, com quem
aparentemente dá atenção, mas não se entrega generosamente ao próximo — muitos
acabam se enganando com impostores, dada a imensa carência por atenção que nosso
mundo disperso criou. Quem aparentemente dá atenção guarda um interesse oculto, um
egoísmo secreto que deseja satisfazer por meio de uma sedução inicial, tão parecida com
a genuína atenção.

Os requisitos para gerar interesse estão ao alcance de todos, e alguns podem sem dúvida
usar dessas habilidades para criar uma aparência de atenção e generosidade e assim
capturar suas vítimas, isto é, usar uma versão enganosa desses pilares para iniciar
relacionamentos que terminam num jogo de manipulação. Por outro lado, é bem simples
perceber o que distingue uma pessoa verdadeiramente interessante de um manipulador: o
caráter.

Todos podem dar atenção, e neste ponto pode ser difícil diferenciar quem dá atenção
genuína e pura de quem a dá com interesses manipuladores. Mas o segundo pilar toca
diretamente na dimensão do caráter: a generosidade. O mau caráter dificilmente saberá
fingir virtude, porque o seu interesse pessoal, o seu egoísmo extremo, sempre andará em
choque com a verdadeira generosidade. Quem tiver olhos, veja. Se observarmos quem
tenta ser interessante pelo ponto de vista de sua generosidade, descobriremos, talvez sem
muita dificuldade, quem não passa de um mero manipulador.

Se alguém não está deixando claro para onde quer te levar numa relação, isso indica
fortemente que existe um interesse pessoal oculto em sua aparente generosidade. O diabo
sempre deixa o rabo à mostra. Jamais deveremos usar nossa influência sobre as pessoas
de forma negativa e manipuladora. É um fator inclusive de destruição dos
relacionamentos.

A pessoa interessante é capaz de desafiar o outro a chegar num lugar aonde ele nunca
chegou, a ter ideias que ele nunca imaginou ter, a abrir a consciência do próximo para
lugares e coisas jamais vistas. Porque ela quer o bem do outro, e não o seu próprio bem.
Há um desejo de fazer o outro maior, de levá-lo para coisas mais nobres e significativas.

Quem é verdadeiramente interessante deseja abrir


perspectivas para te livrar de uma visão medíocre e
massificante da vida. É traço marcante da pessoa
verdadeiramente interessante se distinguir da
mediocridade.
Esse tipo de pessoa se destaca e é autêntica à sua maneira, de forma positiva, elevando
todos à sua volta.
Fica claro por esses contrastes a grande diferença entre uma pessoa que causa uma
influência positiva nos outros e quem pretende apenas ser um manipulador. Há
treinamento de coaches e especialistas voltados exclusivamente a pequenos truques que
façam dobrar a vontade dos outros, de modo a agirem conforme os nossos interesses. É
esse tipo de “técnica de relacionamento” o paraíso dos manipuladores. Por este tipo de
caminho não se constroem relacionamentos duradouros, porque todo o fundamento das
interações é o interesse, muitas vezes mesquinho, de fazer prevalecer a vontade de
alguém.

Nossa intenção ao tratar do tema é exatamente oposta. É sermos interessantes e


autênticos usando os três pilares para a construção de uma personalidade madura,
tornando-nos capazes de nos relacionarmos profundamente com outra pessoa, de maneira
duradoura e fecunda, até atingirmos o ideal do amor desinteressado. De nada adianta o
segredo de trazer a pessoa amada em três dias. No entanto, é realmente útil saber como
fazer com que a pessoa amada permaneça por muito tempo, um tempo tão longo que pode
durar até a eternidade.

CONSTRUA SUA BAGAGEM INTERIOR


Como já pudemos deduzir das características associadas aos três pilares e também da
distinção entre o manipulador e quem tem um bom caráter,

uma pessoa interessante é definida por um traço


fundamental: é alguém capaz de ampliar a consciência
psicológica dos outros
— isto é, alguém que estimula, por meio de um desafio, a expansão de tudo que existe
dentro do repertório do indivíduo com quem se relaciona.

O contato com alguém interessante de verdade sempre inclui um misto de sentimentos


positivos e desafiadores, que abrem nossas perspectivas humanas. É alguém com quem
trocamos um olhar e a partir daí as coisas não permanecem como são. Na presença de
alguém assim você se sente, ao mesmo tempo, mais forte e mais fraco, empolgado e
temeroso, sem saber muito bem o que está acontecendo, descobrindo a cada interação o
tipo de pessoa que pretende ser. É, por assim dizer, tocar o intocável, possuir por uma
contaminação expansiva algo da força e consistência de uma personalidade singular, que
te aparece na forma do contato com o desconhecido e que te abre mundos novos.

A pessoa interessante nos desafia a romper a casca da nossa “normalidade”


indiferenciada e banal, para nos lançarmos em direção a ela num movimento que exige ao
mesmo tempo uma transformação positiva do nosso interior. Ser, de algum modo,
desafiador aos esquemas mentais do outro é um traço de quem é interessante.

Neste ponto, precisamos ter cuidado para não nos apressarmos em produzir todas essas
disposições, na ânsia de sermos logo “interessantes”. Como tenho sempre ressaltado,
trata-se de um processo de transformação interior gradual. Posso imaginar que para
muitas pessoas solteiras seja difícil conter a ansiedade de ter a atenção de alguém, em ser
interessante logo. A carência pode gerar essa espécie de desespero que nos lança num
vale-tudo emocional. “Se estou só, a atenção de qualquer pessoa vale, é melhor do que
ficar só, afinal só me importa ser amado por alguém”.

Não se iluda. Não é isso que importa. Não é qualquer pessoa que servirá para você.
Existe uma forma de construir um repertório, uma bagagem de conhecimento à sua
maneira, um modo de você se tornar uma pessoa autêntica. Muitas pessoas são incapazes
de responder a uma simples pergunta: “De que você gosta?”. Como poderemos aplicar
nossa atenção sobre objetos para enriquecer nosso repertório, se nem mesmo
conseguimos responder a esta pergunta elementar? As pessoas que se veem embaraçadas
em torno desta questão vão perceber que só não sabem respondê-la porque nunca se
dedicaram a pensar sobre o assunto — um assunto aparentemente tão simples, mas que
muitas vezes nos escapa na velocidade dos acontecimentos da vida, na nossa falta de
atenção, na falta de recolhimento interior e de reflexão sobre o que se passa conosco,
sobre o que vivemos e sobre aquilo que apreciamos. Para quem viveu a vida num modo
semiautomático, a pergunta “De que eu gosto?” pode ser um mistério ou uma constatação
amarga: “Talvez eu só goste de coisas superficiais e toscas, que realmente jamais me
fariam ser interessante, ou talvez eu não saiba do que gosto porque nada a que devotei
minha atenção é digno de ser apreciado, são apenas superfluidades”.

Esta é a hora decisiva em que despertamos para a nossa própria presença no mundo,
para o confronto com quem somos. Se você não conseguia se dedicar até agora a algum
assunto por mais de dois minutos, é a hora de se dar a chance de refletir sobre qual
caminho quer escolher. Você não tem personalidade porque nunca se interessou por nada.
Comece a se interessar por diversos assuntos, abra-se para as possibilidades e os
caminhos vão se apresentar para sua consciência. Logo você será livre para escolher e
reconhecer o que você quer e aprecia.

As pessoas muito intransigentes são as mais desinteressantes por se fecharem para as


coisas. Elas dizem, por exemplo, “eu detesto petistas!”, “eu odeio sertanejo!” e ficam
nisso, sem retirar nenhum proveito possível do contato que travaram com estas
realidades. Não é preciso amar sertanejo ou admirar o petismo como forma de expansão
da consciência, mas sem dúvida são fenômenos que existem e influenciam milhões de
pessoas.

Abrir-se para as coisas é reconhecer que existem


motivos pelos quais elas existem, e investigar esses
motivos expande nossa bagagem interior.
A pessoa interessante reconhece os fenômenos que estão diante de si e se interroga
sobre eles sem intransigência. Agindo assim, ela é capaz de discernir (porque primeiro
quis entender) aquilo que é justo do que é injusto e diferenciar o bem do mal; em suma,
essa pessoa pode exercer seu juízo sobre as coisas e sabe de maneira autêntica o que
gosta e o que não gosta.

Cada pessoa tem uma inclinação particular, tem suas afinidades pessoais. Para descobri-
las é preciso que você esteja aberto às coisas, empregando sua atenção de fato ao que se
apresenta, a fim de que você compreenda o que te atrai de verdade, o que te interessa
realmente. É pelo reconhecimento dessas afinidades pessoais que os laços serão
naturalmente construídos. Isso permitirá que as conexões entre as pessoas façam sentido e
tenham a capacidade de se desdobrar em relacionamentos de longo prazo. Buscar a
atenção de alguém por mera carência, se interessando por qualquer coisa que o outro se
interesse, é um relacionamento sem conexão autêntica que vai gerar decepções.

Manter laços com quem não temos conexões interiores, pela falta do discernimento de
nossas inclinações e gostos, produz relacionamentos de dependência. Mas um
relacionamento duradouro e saudável implica numa troca de influência positiva, num
reforço mútuo de percepções, num ambiente em que ambos se sintam à vontade e possam
produzir um intercâmbio pessoal frutífero. Não existe alma gêmea, e sim muitas almas
gêmeas. Elas são essas pessoas que podem se conectar com você por uma comunhão de
gostos, valores e percepções.

TENHA INTERESSE PELO QUE É HUMANO


Já nos aprofundamos em alguns mecanismos que precisamos estimular em nossas almas e
que serão úteis na construção de uma personalidade autêntica. São princípios que vão
reger nosso interior, sobre os quais devemos frequentemente refletir para alcançar a meta
de sermos pessoas interiormente lúcidas e atraentes. Agora, vamos extrair desses
conceitos uma atitude prática e direta comum a todas as pessoas interessantes.

Você precisa ter abertura para questões humanas. Esta é a fonte dos assuntos
intercambiáveis entre os seres humanos, para além de qualquer especialidade. Existem
pessoas extremamente instruídas em algum conhecimento particular que não conseguem
se valer dele para gerar interesse humano genuíno. Se, por exemplo, os concurseiros com
amplo conhecimento das leis, engenheiros, advogados trabalhistas, marqueteiros,
programadores, etc. só tiverem bagagem em sua própria área, se só souberem falar sobre
conhecimentos muito particulares, limitarão imensamente o universo de pessoas que se
interessarão por eles, e serão desagradáveis para quem não tem nenhum contato com suas
ciências.

Amplos conhecimentos em questões técnicas atingem apenas um restrito público, que


geralmente se interessa por essas questões devido a algum propósito, e não pelo assunto
em si. Nas interações humanas, esse especialista será interessante para pouquíssimas
pessoas, e mesmo

um relacionamento não pode se fundar apenas num


interesse especializado comum, porque um só interesse não
sustenta um laço duradouro.
Mas os assuntos humanos são interessantes para todos, permitem uma plena
comunicação. Vou listar alguns exemplos: temas como psicologia e filosofia, que têm
alcance existencial concernente a todos os seres humanos; política, que envolve questões
comuns a toda sociedade — é da política que surgem os temas com os quais todos
conseguem se conectar, porque a vida de todos está em algum grau condicionada pelas
decisões políticas —; história, que é a narrativa que conecta num sentido todas as
civilizações, os modos de vida, suas guerras e dramas (não é uma coincidência que na
época de escola o professor de história seja sempre o mais interessante dos professores);
cinema, literatura e artes em geral.

As artes (o cinema, a literatura, a pintura e todas as suas manifestações) são capazes de


apresentar vários tipos humanos, pois nos fazem travar contato com histórias que jamais
imaginaríamos, se não fossem representadas artisticamente. É pelas artes que tomamos
conhecimento de personagens extremamente ricos, que lançam luzes sobre as maiores
profundidades da natureza humana. Todos esses assuntos são de interesse geral e sempre
vão produzir interações intercambiáveis.

Ocupe o seu tempo com estes assuntos, dedique sua atenção a estes temas que terão
grande proveito para a expansão do seu repertório interior. O aprofundamento nessas
questões permitirá uma interação muito mais rica com os outros. O mesmo pode se dizer
do tema religião. Aqui não importa o credo, ou mesmo a falta de credo. A religião é uma
dimensão universalmente presente na sociedade humana. Um ateu não precisa crer, mas
para ser interessante precisa se interessar pela religião, que não é apenas submissão a
Deus e a ritos, mas um sistema de conduta humana, um repositório de filosofia e visões
singulares sobre o ser humano. Sem falar em todo o conjunto de conhecimentos
espirituais, de perspectivas metafísicas, dos milagres, histórias e prodígios. Ninguém
pode dizer que a religião não é algo interessante.

Dedique tempo à literatura, fazendo o esforço de ler bons livros e, se não tiver
inclinação à leitura, volte-se para o cinema. Não é preciso que você seja um cinéfilo cult.
Procure listas dos melhores filmes já produzidos, a lista dos vencedores do Oscar. Se sua
inclinação for visual, dedique-se à apreciação da fotografia, da escultura, da pintura.
Perceba as nuances das imagens, alimente seu mundo interior com a sutileza estética das
formas que sempre transmitem mensagens significativas para o ser humano.

É muito agradável se deliciar com a beleza física de uma pessoa, com seu cheiro, seu
corte de cabelo, seu bom gosto para o vestir. Mas isso, como diziam sabiamente nossas
avós, “não enche barriga”. Isso não dará concretude para sua relação. Não despreze a
beleza, mas se interesse sobretudo pela construção de um mundo interior rico e cheio de
verdade.

Comprometa-se a formar um repertório dentro de si, de modo que ele possa se expressar
no mundo pela interação com seus amigos, com seu namorado, com seu cônjuge. É
possível a partir de agora construir novos vínculos por meio de assuntos mais profundos,
fundamentados em afinidades conscientes e em temas humanos de interesse universal.

Existe uma personalidade autêntica dentro de você.


Ela só precisa ser encontrada e construída.

O PROBLEMA DA LINGUAGEM
Vamos investigar agora algumas formas negativas de interação humana. Como dissemos
acima, um recurso central para o bom desempenho das comunicações intercambiáveis é a
construção de uma bagagem de conhecimentos humanos de validade universal. Mas há
um pressuposto básico, que é o instrumento por trás de todas as interações possíveis: a
linguagem, que é expressão pessoal e o fundamento da comunicação.

Problemas de linguagem podem ser a causa da


maior parte das dificuldades em um relacionamento, e
isto se aplica tanto a solteiros em busca de um outro
alguém quanto a casados ou pessoas num
relacionamento duradouro e íntimo.
Precisamos entender que a linguagem em si já encerra uma problemática ontológica.
Isso porque a linguagem humana é uma ferramenta especial de expressão, que nos
diferencia de outros animais. Comporta nuances e sutilezas que são dominadas, se
falamos de alguém bem-educado, por uma intencionalidade consciente. Pela linguagem
produz-se a transformação de uma experiência direta e particular na expressão
esquemática e comunicativa do que foi vivido ou experimentado.

Usamos a comunicação para transmitir experiências vividas, algo que há dentro de nós.
É a expressão da nossa vida interior, e por ela nos inclinamos para o outro, criamos
conexões com o nosso próximo. Basta entender isso para notar a importância da
linguagem para os relacionamentos humanos. Ora, o problema da comunicação é que a
maioria das pessoas não dispõe amplamente das ferramentas linguísticas e dos símbolos
culturais necessários para um efetivo domínio da linguagem.

Não somos grandes gênios literários, grandes roteiristas. Em geral, as pessoas não têm a
capacidade de transmitir, de forma clara e rica, os seus pensamentos, o que pode
prejudicar a criação de laços de comunicação significativos com os outros. E isso é
natural. Sempre há uma perda na passagem da expressão linguística. Até os maiores
escritores precisam se confrontar com esse não sei quê de indizível na realidade, e recuam
às margens da fronteira desse mundo intraduzível para a experiência comum.

Sempre haverá, portanto, um ruído entre o que vivemos e experimentamos e o que


podemos comunicar plenamente para o nosso próximo. Disso decorre que em muitas
situações pretendemos dizer uma coisa, mas efetivamente dizemos outra. É preciso
encarar esse problema, que em alguma medida é insolúvel.

Evidentemente é preciso enfrentar os ruídos da comunicação com o máximo empenho.


Muito desse ruído pode ser reduzido e nossa linguagem pode evoluir imensamente nas
relações interpessoais. A meta da nossa linguagem, se nos dedicamos a nos tornar pessoas
interessantes, é se aproximar de uma autenticidade que torne a nossa voz a mais real
possível para o outro, de modo que sejamos capazes de expressar o máximo do que
gostaríamos de passar.

Essa é a importância da linguagem, e deveríamos nos surpreender ao concluir o quão


subestimado é esse problema e o quanto o grosso das pessoas não se preocupa em
melhorar sua capacidade linguística em nenhum momento. Preferem falar a partir de
jargões, gírias, ideias pré-concebidas e modelos mentais ou símbolos difusos que se
impregnam nas mentes desatentas por um contágio silencioso.

Sem questionar, sem refletir na maior ou menor eficiência da própria linguagem,


reproduzem os modos de falar do círculo social imediato, dos desenhos animados da
infância, dos livros que leram, dos professores ou colegas que tiveram; os modos de
pensar dos filmes, da TV, dos entertainers, de personalidades das redes sociais; imitam
mesmo os trejeitos e os tiques daquelas influências que dominam o universo que
“consomem”.

Repare que o problema não é ter sofrido influências — elas são naturais e fazem parte
da nossa interação normal com o mundo —, mas se deixar impregnar por forças de modo
totalmente inconsciente, sendo levado pela onda, sem a preocupação de ampliar e
qualificar este mesmo repertório de influências de modo consciente, a fim de incorporar
traços mais ricos para a própria linguagem.

No passado, quando não havia a facilidade das séries audiovisuais, sempre foi comum a
todas as pessoas educadas o hábito da leitura, em especial de poesia. Mas para que ler
poesia? Note bem que uma poesia expressa muitas vezes realidades invisíveis, formas de
sentimentos, sensações, detalhes de como algo se comporta, insinuações que uma cena
pode evocar, etc. Não são mistérios restritos apenas ao poeta que as escreveu e as revelou
ao mundo, mas realidades corriqueiras experimentadas por todos. Contudo, poucos são
capazes de expressá-las pela linguagem, por isso precisamos dos poetas. A linguagem
capaz de expressar tais sutilezas precisa alcançar um nível muito alto de
comunicabilidade.

A leitura atenta desses grandes momentos de expressão


da linguagem tem um imenso poder enriquecedor
para quando tivermos de nos valer das nossas próprias palavras para expressar, com
clareza, alguma realidade mais sutil ou invisível que está no nível das nossas emoções.

OS RUÍDOS NOS RELACIONAMENTOS AMOROSOS


Aqui está o drama da linguagem: não bastasse a dificuldade inerente à palavra em ser fiel
ao que queremos dizer, temos também de contar com a boa vontade do outro em nos
ouvir com interesse e dirigindo atenção ao que dizemos. Os ruídos acumulados da
interação humana permanecerão por toda nossa vida e é fácil perceber o quanto isso pode
degenerar para um completo caos nos relacionamentos.
Imaginemos agora essa realidade dentro dos relacionamentos amorosos. Por todas essas
razões de linguagem, afinidade e conexão inerentes ao convívio humano devemos nos
contentar, sim, em algum grau, com um nível de atrito e ruído nas interações prolongadas,
mas também deve-se ter um cuidado especial com a linguagem em uma relação
duradoura.

Num relacionamento amoroso há ao longo do tempo um acúmulo de pequenos ruídos e


atritos. Vamos reunindo todas essas pequenas cicatrizes em nossa sensibilidade, e quando
surge um novo atrito misturamos a ele outros ruídos passados que nada têm a ver com o
problema presente, trazendo uma carga emocional desmesurada a uma questão
objetivamente pequena.

É difícil saber diferenciar, nos momentos de tensão, esse aglutinado de sensibilidades do


tema específico em discussão. O acúmulo emocional dos ruídos na interação se parece
com águas contidas por uma barragem, e esta barragem rompe nas horas de crise numa
torrente emotiva, com problemas desconexos, produzindo um caos comunicacional que
impede qualquer perspectiva de resolução.

Os namorados e noivos tendem a ter mais boa vontade na compreensão do outro, porque

estão desarmados do arsenal de pequenos ruídos,


cujo acúmulo é produto do convívio prolongado no
tempo.
São mais dispostos a relevar e dar a proporção mais justa a estes atritos da linguagem,
pela esperança e entusiasmo que todo início produz no coração dos amantes.

Tente ter esta boa vontade “dos inícios”. Essa disposição mais leve e compreensiva que
toda relação experimenta nos seus primeiros lances. Essa disposição sincera em não
esperar muito em troca dos afetos, em se satisfazer com o pouco que é tudo, isto é, a
própria presença do ser amado. O apego entusiasmado à alegria que surge do próprio
convívio, tão marcante no início do relacionamento, revela na sua pureza algum ensaio
daquele amor desinteressado, que com o tempo passa de instinto natural para meta
consciente.

Tente permanecer unido de algum modo a esses instintos que estão na gênese do amor.
Compreenda que cada assunto é um assunto. Agarre-se aos temas da maneira mais
objetiva e com sincera intenção por clareza e autenticidade na linguagem. Não se
manifeste sempre de modo defensivo, lançando ao rosto do parceiro alguma coisa
desagradável que nada tem a ver com o tema, como se os dissabores, desentendimentos e
atritos dependessem da justiça irreal de uma balança onde os problemas díspares
deveriam ser pesados a todo momento e tivessem de chegar a um equilíbrio, de modo que
nenhum lado tenha “razão”.

Não se deve acumular o peso da história dos ruídos de comunicação de um


relacionamento. Não se deve catalogar rigorosamente estas rusgas díspares para fazer
delas uma contabilidade fria. O acúmulo de ruídos das interações vai acontecer
naturalmente com o tempo da relação. Tentar equacioná-los todos, um por um, é
impossível, e mais impossível — diria enlouquecedor — seria equacioná-los todos de
uma vez, permitindo que o espaço emocional entre dois indivíduos carregue um fardo
pesado demais de bagagem emocional. Disso só surgirá mais atrito a cada nova tentativa
de comunicação.

A comunicação num relacionamento é um tema complexo e difícil de pacificar


plenamente. No entanto, o exercício da presença total, a atenção, a clareza, a autocrítica, a
consciência ativa e presente farão toda a diferença. Sem esses esforços vivemos
simplesmente de forma reativa, de nossos sentimentos, de uma massa sensitiva interior
disforme sobre a qual não temos controle. Sem esforço para sermos participantes ativos e
conscientes da relação, sofremos uma forma de indigestão emocional que nos levará a
engulhos e, por fim, ao vômito. Do mal-estar e decepção não retiraremos conhecimento
algum, apenas sofrimento.

Somos dotados da capacidade da comunicação para dominá-la. É difícil ter a habilidade


para lidar com a dinâmica emocional que envolve o bom uso da linguagem, mas a boa
notícia é que somos feitos para sermos capazes disso. Em muitos, o sintoma da falência
em dominar essa capacidade é a resolução de todos os conflitos pelo sexo. É na cama que
o mal-estar fica pacificado e parece que tudo se resolveu. E temos aqui uma nova ilusão,
porque se fora do domínio mais imediato do sexo e das sensações, isto é, no domínio da
linguagem, do diálogo e do pensamento, dois adultos não se podem resolver, o sexo não
passará de um sedativo, por melhor que seja a “química” do casal.

O que não se resolve na esfera do espírito, jamais será resolvido somente na carne.
Ninguém resolve nada na cama. O prazer nestes casos não passa de um “cala-boca”.
Depois do orgasmo a vida segue e os mesmos problemas se repetirão, caso não haja um
esforço do casal para um diálogo coração a coração.

Precisamos saber nos comunicar para aprender a conectar nossos corações. Precisamos,
antes de tudo, de disposição para ter interesse no outro e de fato aprender o que o outro
quer nos dizer. Temos então de ter boa-vontade, paciência, ter ouvidos para o outro, tirar
de si esse filtro afetivo exacerbado que nos impede de nos colocar no lugar do outro. É
tempo de parar com a mania de elaborar uma resposta arrojada simultaneamente a cada
frase do outro. Simplesmente pare e escute, sem a preocupação de elaborar resposta
alguma. Dê-se a chance de escutar o outro, deponha as armas e busque a paz, a clareza e a
verdade.

Não é necessário repetir mantras clichês como “é preciso ser um eterno namorado”. Mas
é de grande importância conservar a todo custo aquele espírito do início, mesmo quando o
tempo e o convívio produzem um acúmulo de atritos. Deixe viva dentro de você essa boa-
vontade dos inícios. Não carregue o peso desnecessário de pequenos atritos.
BUSQUE PESSOAS, NÃO PRETENDENTES
F alamos no capítulo anterior da importância em conservamos “a boa-vontade dos
inícios”, e em como esta disposição benevolente, paciente e caridosa, comum a todo
princípio de relação amorosa, é um prelúdio da busca instintiva de nos doarmos a quem
amamos, um exercício ainda embrionário do que pode crescer e se manifestar plenamente
na prática de um amor desinteressado — meta final do relacionamento humano.

Portanto, estamos em boa hora para tratar do tema namoro. Falar de namoros não
impede aos casados de tirar algum proveito. Um casado pode perceber, ao estudar este
capítulo, várias etapas pelas quais passou com o seu cônjuge e identificar logo as
carências, as suas próprias faltas e omissões na história do seu relacionamento. Pode,
assim, remediá-las de algum modo na relação com o seu parceiro ao conhecer melhor a
dinâmica amorosa de origem do namoro.

Para os solteiros, que são os principais interessados no tema, é preciso antes de tudo um
alerta. Você possivelmente se interessou a ler sobre isso porque está à procura de um
namoro. Mas digo: esta é uma postura errada. Você não deveria estar à procura de um
namoro, porque esta busca significa estar à procura de um status para si mesmo.

Quem busca um status para si não está interessado


em uma pessoa por ela mesma, mas sim está à procura
de uma funcionalidade que outro pode oferecer (ser um
namorado ou namorada).
As pessoas hoje estão à procura de duas coisas: ou sexo ou casamento. Tanto o
pervertido hedonista, que só pensa em prazer e não quer senão usar o corpo das pessoas,
quanto a solteirona em busca de casamento, que está vidrada no seu “sonho”, em
desespero para casar e obter o status de casada, recaem numa postura distorcida que
inelutavelmente os fará lidar com as pessoas de maneira utilitarista.

Assim como um pervertido só vê nos outros a perspectiva da sua utilidade para o


próprio prazer, o obcecado com o status social que um relacionamento sério produz estará
inclinado a ver o próximo na perspectiva de um “bom partido”, isto é, do ponto de vista
da sua utilidade. Trata-se de um olhar tirano dirigido ao próximo. É ver os outros pelo
recorte do interesse pessoal, e não de uma perspectiva ampla e humana.

Não quero dizer aqui que almejar o status de um relacionamento seja por si mesmo
imoral. É algo de fato desejável. Porém, esta não pode ser a força motriz do nosso
interesse, de modo que o desejo pelo outro baseado em sua função suprima todas as suas
dimensões humanas. Existem no mundo milhões de namorados e milhões de casados,
mas estes seres humanos não estão reduzidos a serem namorados ou casados. Quem não
olha para o sujeito integral lança sobre o indivíduo um olhar tirânico, enxergando-o mera
peça num projeto.
É uma perspectiva muito limitada por parte da esposa ver o cônjuge apenas como
marido. Afinal, ele é um homem com uma história, com aspirações, com uma função
profissional, com suas próprias vocações — que incluem, sem dúvida, a de ser um
marido, um pai, etc. Essas vocações podem não ter nenhuma utilidade para a esposa, ou
podem mesmo não ser compreendidas imediatamente por quem está no seu convívio. Se
esta esposa não estiver interessada em tudo o que seu marido é, a conexão entre eles
estará gravemente comprometida.

As pessoas perderam o interesse genuíno na pessoa humana. Estão em busca de um


namorado, de um noivo, de um casamento feliz, ou nos casos mais baixos, de alguém
para curtir a vida — um eufemismo para alguém com quem se pode fazer sexo
inconsequentemente.

Fica, portanto, clara a importância, nos inícios dos relacionamentos, de uma sincera
abertura para o outro como um ser humano integral. É daí que surgirão as mais saudáveis
interações. É a boa-vontade dos inícios.

Esta boa vontade parte de uma contemplação amorosa do outro. Esta ideia não é minha
criação original. Aprendi-a com o professor Olavo de Carvalho, que a descreveu em texto
homônimo. A contemplação amorosa requer uma docilidade frente à realidade do mundo,
isto é, docilidade à verdade, à realidade como ela é. Sua aplicação às interações humanas
resulta em

querer contemplar na outra pessoa todas as suas


potencialidades, toda plenitude do que ela é: suas
limitações, qualidades, possibilidades positivas, etc.
Quem pratica esta contemplação amorosa dirigida ao próximo passa a gostar de ver o que
o outro é.

Postura muito diferente daquele que pretende projetar sobre o outro aquilo que deseja.
Hoje vemos listas de “qualidades do namorado perfeito”, “características do marido
perfeito”, relatórios de valores inegociáveis que o outro precisa ter para ser apto a nos
interessar para um relacionamento. Por melhores que sejam as intenções, são sintomas da
ausência da contemplação amorosa, isto é, de um olhar compreensivo e humano sobre o
próximo.

Quem lança um olhar, por assim dizer, interesseiro ao próximo vai se contentar, na
melhor das hipóteses, com aquilo que o outro já possui e é objeto de seu desejo, mas
jamais perceberá no outro potencial alheio às suas capacidades futuras e todos os bens
que podem desabrochar daquela alma. Conhecer alguém com base nesses critérios é
produzir um grande autoengano. As pessoas não nascem prontas. A pessoa que você
conhece hoje não é uma forma cristalizada e imutável. Nenhum de nós é completamente
inteiro, vivemos num processo de manifestação de potências. Apegar-se apenas ao que o
outro já tem e nos agrada é tomá-lo como um ser congelado no tempo e espaço, incapaz
de manifestar novas formas.

AS PESSOAS SÃO MUTÁVEIS


É necessário, portanto, amar tudo que há em outra pessoa, com interesse especial e
autêntico, em conhecer os traços que mais nos desagradam. Agir assim evita, de início, as
falsas expectativas, que não passam de projeções de uma mente entusiasmada quanto a
qualidades inexistentes numa pessoa com quem começamos a nos relacionar. Eis a
verdade dura: seres humanos não podem ser julgados com justiça por um checklist de
qualidades no primeiro encontro.

Os casados compreenderão com mais facilidade esta realidade. Os cônjuges notam com
clareza, dada a experiência continuada da relação no tempo, que o seu parceiro sofre
imensas mutações. É claro que há uma essência, um fundamento existencial que
permanece. Mas não seria exagero dizer que quem se casa conviverá com várias
“pessoas” ao longo do tempo, se tomarmos impropriamente por pessoa o modo de alguém
existir, pensar e agir num dado momento da sua história. Os casados sabem: as pessoas
são capazes de mudar demais ao longo de uma história.

O casamento mesmo é um espaço de interação orientado para esse processo. É no


casamento que os cônjuges, ajudando-se mutuamente, modificam-se, tomam novas
formas, são marcados pelas experiências, dificuldades, eventos. Mesmo namorados em
relacionamentos mais longos experimentam os primeiros sinais de transformação. Numa
relação de dois, três anos de duração, aquele casal apaixonado da primeira semana já não
é mais o mesmo que se prepara para o noivado. É um dado da vida.

Não se entenda a abertura amorosa para o caráter mutável do outro como um salvo-
conduto de que se possa relacionar com qualquer um. Afinal, todos vão ser outra pessoa
no futuro. Não se trata disso. Você precisa encontrar alguém com pontos importantes de
conexão para evitar gastos de energia em excesso. No entanto,

mesmo a “pessoa certa” vai se modificar, vai se


modular com o tempo, com a experiência e com os
múltiplos movimentos gerados pela interação amorosa.
Considere isso um ponto de partida natural.

Vá para o seu primeiro encontro de cabeça aberta. Transforme o que é estrangeiro em


familiar, sem um confronto rígido com a natureza do próximo. Tenha interesse real no
próximo, tenha um desejo de conhecer a autenticidade do outro, sem agarrar-se nas
próprias expectativas do que seja “um namorado perfeito” e sem transformar a interação
frutífera com outro ser humano em encontro que precisa de uma espécie de “eficiência”.
Tire da cabeça o pensamento de que não se pode “perder tempo com um encontro” se não
for para arranjar um namorado bom.

Não há tempo perdido quando estamos nos abrindo para a perspectiva do outro. Na pior
das hipóteses, você terá conhecido mais uma alma humana, com parte da sua história,
seus sonhos, desejos, inclinações, o que já resulta num enriquecimento da sua bagagem
interior. Dispa-se das próprias vontades ao se aproximar do outro. Abra-se para um novo
ser humano com uma disposição sincera e, de bom ânimo, lance um olhar contemplativo.

Interesse-se mais na sua própria capacidade em contemplar amorosamente o outro. Será


muito mais fácil perdoar defeitos e, principalmente, conhecer o outro. Agindo assim, você
obterá um conhecimento mais seguro para saber se é possível cultivar uma conexão mais
profunda.

Tenha boa-vontade com as outras pessoas. Não pense no próximo como um provável
pretendente. Apenas pense como o José, o João, a Maria. As conexões para laços mais
profundos se dão entre pessoas, e não entre você e esse abstrato e cruel retrato de um
“pretendente”. Mesmo diferenças iniciais de opinião, como em temas políticos ou
ideológicos, não são marcas definitivas de separação no contato dos inícios. Não é preciso
se fechar completamente ao outro quando surgir algum ruído. Nem todas as opiniões
alegadas são sustentadas a sério ou com profundidade, e nem todas as divergências são
obstáculos graves para outras possíveis convergências, estas sim, muito mais decisivas
para a conexão entre duas pessoas.

Retirem da mente a ansiedade, o desespero em estar logo comprometidos, e —


principalmente para as mulheres — o desespero em querer arranjar um casamento, em
não ficar para titia. Pense que acelerar por imprudência este processo pode te lançar num
casamento infeliz, e estar nessa condição pode ser uma fonte tão grande de múltiplos
problemas para sua vida que seguir um ritmo sensato nunca será motivo de
arrependimento.

Casar-se apressadamente com alguém que meramente cumpra, por algum desvio do
acaso, parte dos requisitos da sua lista do “homem perfeito” não é garantia de um
casamento saudável e feliz.

Quem pensa em se casar deve ter em mente que esta é


uma daquelas decisões supremas da vida. A pressa não
compensa o risco de se meter numa enrascada.
Por outro lado, o ritmo próprio e sensato dentro de um relacionamento implicará numa
postura muito mais genuína e bondosa. É um processo que, embora possa ter o seu tempo
variável, compensa pela riqueza que é ter a oportunidade de se inclinar a outro coração,
de buscá-lo como quem busca pacientemente os gestos de uma verdadeira comunhão.
Para alcançar isto, não é preciso que o primeiro encontro termine com um beijo. É preciso
ter leveza. Não é preciso se sabotar, insistindo numa interação em que há traços
claramente repugnantes para você. Mas também não se trata de fechar-se rigidamente sem
um esforço de ter uma postura leve com um outro, então desconhecido. Quando o outro
percebe que estamos abertos, ele também se inclina a se abrir para nós, e isso nos dá mais
liberdade de ser quem somos.
Há um exemplo considerável deste interesse genuíno a que faço apologia nos casais de
40 ou 50 anos atrás. Não quero dizer que na época dos nossos pais não havia interesses
egoístas e fúteis ou pessoas que estavam em busca da bagunça na esteira da liberação
sexual. Mas, em geral, havia um interesse mais sincero no outro, em conhecer pessoas por
elas mesmas e não com base em alguma expectativa de papel social.

Havia uma conexão maior entre os corações, de modo que as pessoas se inclinavam
umas às outras pelo que elas eram e não por projeções lançadas sobre o próximo. Parece-
me que os relacionamentos naquele período eram mais leves. Faça uma experiência e
pergunte aos seus pais como se conheceram. A impressão que a história deles deve gerar
é a de que aqueles encontros humanos eram mais puros – e não falo aqui de pureza moral,
de correção completa dos atos segundo critérios religiosos, etc. Falo de autenticidade e
leveza nas interações.

O NAMORO É FEITO PARA ACABAR


Não havia no passado tanto drama sobre o tema “namoro”. O namoro é um período que
deveria ser de discernimento. São dois parceiros juntando elementos para uma decisão
com validade por toda uma vida. O fim é firmar um compromisso em ser fiel ao outro e
leal a este projeto em comum. Hoje o namoro é supervalorizado, é quase um fim em si
mesmo. Ao invés de ser tido como um período de transição com data para acabar, passa a
ser visto com muito mais apego, como uma espécie de casamento sem os compromissos
graves de um casamento, o que dá um caráter muito sentimentaloide a essa experiência,
que não passa de um compromisso com pretensões duradouras sem a profundidade de
uma promessa permanente.

Neste processo de sacralização do namoro as pessoas seguem juntas por anos, alguns
casais até completam uma década juntos, mas jamais há menção ao compromisso
definitivo do casamento. Se muito, há um pragmático test-drive quando surge a decisão
do casal viver junto. E depois de longo tempo investido e de muita energia emocional
empregada, o término passa a ser a mais aterrorizante das perspectivas.

As coisas não deveriam funcionar assim. Todo término é justo, porque todo namoro
precisa de uma data de validade para acabar. Todo namoro é um período que serve ao
discernimento entre duas partes. O fim natural de um relacionamento duradouro é a
entrega total de ambos a um projeto comum firmado por um juramento sagrado. É para
isso que existe a instituição do casamento. Ninguém teria qualquer problema em romper
um namoro se o valor atribuído ao namoro não fosse tão exagerado.

Portanto, não se prolongue desnecessariamente num namoro que não vai levar a parte
alguma, não leve um término tão a sério. Não implore para o outro se casar com você.
Ambos precisam ter este mesmo desejo. Que benefício pode haver em persuadir alguém
que não quer o casamento a se casar para a vida toda com você? Se o seu interesse for o
casamento e o do outro não for, a conclusão é muito simples, embora difícil de aceitar:
hora do adeus. Cada um siga o seu caminho.

O namoro não é o comprometimento final,


ele foi feito para que tenhamos chance de voltar atrás — ou de seguir em frente,
rompendo o namoro para que surja o casamento.

Tenha a intenção de enxergar o outro e em ser bom. Não busque no outro apenas o
cumprimento de um papel. É na fonte do amor autêntico que podem surgir os laços mais
profundos e duradouros que estarão coerentes com as promessas de um casamento.
Partimos da contemplação amorosa do próximo e do bom ânimo ao outro para
chegarmos, passo a passo, ao amor desinteressado que alguém só é capaz de dirigir a um
cônjuge — e o cônjuge é o parceiro que defenderemos e de quem seremos companheiros
permanentes. Os frutos do amor conjugal formam uma família.
AS ESTAÇÕES DO RELACIONAMENTO AMOROSO
P ara deixar bem explicadas as fases pelas quais um relacionamento amoroso costuma
passar, vou lançar mão do recurso da simbólica. Usarei a imagem das estações como
analogias dos períodos por que passam os casais, apontarei para algumas conclusões e
resumirei os movimentos naturais num relacionamento.

As estações do ano são fenômenos que causam mudanças cíclicas no mundo. Primavera,
verão, outono e inverno: existe uma correlação simbólica entre estas estações e os
elementos ar, fogo, terra e água, respectivamente. A primavera tem uma correlação com o
ar, porque ele é leve, úmido e quente. O verão tem uma correlação com o fogo, que é
quente e seco. O outono é mais frio, mas ainda existe uma secura que faz com que as
folhas caiam; é correlacionado com a terra, com a seca e com o frio. O inverno é frio e
úmido, e está relacionado à água, que também detém essas características.

Vamos ver o que se pode retirar da correlação entre estes elementos e as estações com
os relacionamentos. Afinal,

os relacionamentos humanos também podem


corresponder a padrões cíclicos.
Embora haja muitas diferenças entre os relacionamentos tomados por si mesmos,
podemos perceber que há semelhanças formais entre todos eles, que são até mesmo
evidentes para o senso comum. Vejamos em que consiste isso.

A PRIMAVERA
O que diríamos ser a primavera dos relacionamentos? A primavera está relacionada ao ar.
É quente e úmida. A quentura traz expansão. A água fervendo se expande e evapora,
ascende para o exterior. Tudo que é quente cresce. E o que é úmido? É aquilo que nos
envolve. A água dentro de um recipiente contorna e preenche toda a sua forma. Adapta-
se, tem fluidez, um dinamismo que implica numa expansão envolvente. É o traço da
umidade.

O que é, afinal, a primavera dos relacionamentos? É esse momento em que você acabou
de conhecer a pessoa, criando os primeiros vínculos, se deixando envolver por ela e a
envolvendo, por sua vez. Há uma expansão natural, porque você quer fazer parte do
outro.

O tempo todo o casal quer se falar, quer estar junto.


Esta necessidade calorosa de identificação e envolvimento é característica dos inícios e
também da primavera. Tudo é agradável, tudo é fluido e bom. Todos os inícios são
sempre gostosos.

O VERÃO
Mas depois da primavera chega o verão. A umidade e frescor da primavera são
modificados pela quentura do verão, que seca. No verão do relacionamento existe ainda
uma expansão, ainda há um impulso na direção do outro, mas começa a secura. As arestas
começam a se tornar mais agudas, os primeiros atritos surgem. Características
desagradáveis no outro começam a ser percebidas. Depois da primeira estação alegre e
entusiasmada em que tudo no outro era agradável, um aprofundamento da relação revela
os traços menos envolventes que foram ignorados ou mesmo ocultados.

É o momento do namoro em que um traço


combativo emerge. Percebe-se que nem tudo é fantasia
e poesia.
Já passou a fase em que tudo era leve.

Ainda há um fogo interior que une o casal, mas inicia-se a fase de atritos. O
relacionamento se torna menos leve e mais difícil, e nem tudo é gostoso. O casal começa
a compreender que são duas pessoas diferentes, com projetos diferentes, com naturezas
distintas. Esta é a hora das conversas importantes sobre valores fundamentais. É a hora do
acordo conflituoso entre as partes numa altura da relação onde há uma abertura plena do
eu.

Se abrir por inteiro e, por assim dizer, “revelar tudo” de nós é uma passagem importante
em todo relacionamento. Alguém pode pensar que não gostaria de passar pelo verão dos
relacionamentos, porque odeia atritos, mas não se pode saltar etapas nestas estações do
relacionamento amoroso. O que devemos é encará-las como degraus necessários numa
subida a uma união mais madura e completa com o próximo.

Todas essas fases precisam ser vividas. Não queira saltá-las. Não há fase boa ou ruim,
mas apenas estágios que fazem parte do ciclo natural da interação amorosa entre seres
humanos. Toda relação precisa lidar e absorver as lições de cada etapa. Todo casal que
sinceramente quer se unir precisa desejar viver estas etapas da maneira mais ativa e
frutífera.

O OUTONO
Passado o verão, chega o outono, que representa a prova de fogo para os relacionamentos.
O outono é a presença da terra. O calor do verão começa a esfriar e entrega ao outono sua
secura. É o período do frio e da secura. Isto significa para os relacionamentos um
momento crítico. As arestas tornam-se mais afiadas como nunca, a rigidez dos choques
no relacionamento ganha um caráter mais violento e definitivo. São choques não mais
compensados pelo calor ainda vivo no relacionamento em sua fase de verão, que costuma
mascarar o alcance moral de algumas diferenças entre o casal. Aqui os conflitos se
manifestam friamente.

O frio tem a propriedade de contrair as coisas, diferentemente do calor, que as expande.


No outono, após o casal ter delimitado as suas fronteiras — o que é agradável para um e
para outro, pois isso diz respeito às diferenças essenciais nos modos de existir —, é
chegado o momento de recolher todas as informações quanto ao que cada um é, com a
aceitação de todos os vetores de conflito e convergência, e cair num estado de repouso.

Daqui em diante pouca coisa será novidade e aquele entusiasmo dos inícios, chamado
por alguns de “paixão”, vai esmorecer. Até então, o relacionamento tinha um gosto de
poesia e aventura.

A entrada nesta estação suprime esse clima de romance


e começa uma nova fase mais calculista, mais racional na
interação do casal.

É um período de análise cuidadosa do relacionamento, o momento das reflexões mais


sérias a respeito da conexão construída entre os dois, das principais afinidades e rupturas,
de modo a chegar a conclusões frias e racionais quanto ao futuro da relação.

Esta é a hora propícia para decisões importantes. É o momento onde teremos mais
bagagem para decidir se vale ou não a pena prosseguir no relacionamento. Será o outono
do relacionamento a hora da queda das folhas e o fim do namoro ou a hora de seguir com
a promessa até o inverno? É a hora de corrigir definitivamente as pendências para seguir
em frente ou manter tudo como está e romper.

O INVERNO
Quem aceita a promessa chega até o inverno. A água é úmida e fria. A secura começa a
desaparecer com a umidade, mas a frieza permanece. Aquela união da primavera retorna
e um parceiro envolve o outro sob uma nova clave. A unidade do casal é muito
fortalecida, a homogeneidade entre as partes, que se tornam mais maleáveis e dóceis,
alcança o auge. Não é mais o envolvimento caloroso e, por assim dizer, livre dos tempos
da primavera.

O inverno dos relacionamentos é uma união estável e decidida. Tranquila e tolerante.

É o casal entrando na maturidade do relacionamento.

Sólido, conciso, unido, em comunhão para todo o sempre.


O PERDÃO
a hora de dizer as palavras finais deste mínimo sobre relacionamentos.
C hegou
Refletimos sobre a entrega amorosa total pelo amor desinteressado, exercitamos as
virtudes para sermos de fato interessantes e aprendemos a encontrar conexões autênticas
com os outros. Também refletimos sobre os laços amorosos que surgem do interesse
genuíno em outra pessoa, por meio da contemplação amorosa, e passamos por todas as
estações do relacionamento. Fica, agora, uma lição final, a mais importante para sustentar
uma interação duradoura.

Tudo que falamos até agora sobre relacionamento amoroso terá seu fechxo neste
derradeiro tema: o perdão. Imediatamente, o tema pode sugerir a muitos o assunto
“adultério”. É preciso dizer, antes de mais nada, que é impossível dissociar o adultério do
perdão. Mas algo deve ser analisado mais a fundo nesse problema: por que a primeira
coisa que surge quando se fala em perdão num relacionamento é o adultério?

POR QUE SOMOS OBCECADOS COM O ADULTÉRIO?


O adultério significa a infidelidade do outro em relação a nós. Será, no entanto, que é só
isso que pode ser contado como o ato mais imperdoável entre todos? Pensemos em toda a
grande variedade de desatenções, humilhações, difamações, ofensas e omissões que
causamos ao outro ao longo de anos de relacionamento. A conclusão inelutável é que
somos todos falhos e miseráveis. Ofendemos o outro e faltamos com nossa palavra dada
todos os dias. Por que, então, só nos ocorre o assunto “adultério” quando pensamos no
tema do perdão? Seria esse realmente o pior dos crimes num relacionamento? Alguns
chegam a dizer: “Eu perdoo tudo, menos traição”. Não seria esta convicção de adultério
como um “pecado imperdoável” o fruto de outras forças que se movem na imaginação
moral do nosso tempo?

Não estaríamos muito envolvidos em nosso próprio


ego e ultrassensíveis com tudo aquilo que nos mancha
socialmente?
O compromisso grave de um casamento é feito perante Deus. Quem trai não está apenas
traindo o outro, mas sobretudo traindo a Deus. Mas em nosso tempo somos nós que nos
acreditamos merecedores exclusivos desta fidelidade que é empenhada em juramento, em
primeiro lugar, a Deus.

“Já cometi muitos erros, mas jamais sequer olhei para ninguém. Por isso, não perdoo
uma traição”. Quem pode dizê-lo agradeça a Deus por ter esta virtude, mas não se
acredite perfeito por isso. Você pode ser perfeito neste ponto, mas uma pessoa
terrivelmente falha em muitos outros, não só com o seu cônjuge, mas com o seu próximo.
Se Deus, mesmo sendo perfeito e merecedor de todo o respeito, perdoa muitos pecados,
teríamos nós, tão falhos, direito de exigir uma justiça impecável quando somos
ofendidos? É sempre a soberba que está por trás do sentimento de que uma ofensa é
imperdoável.

Casamo-nos com pessoas de carne e osso. Pessoas cheias de falhas, feridas pelo pecado
original, tal como nós. Não lidamos com deuses e santos, e sim com pessoas caídas em
busca de misericórdia. Criar na mente um conceito irreal de que ninguém pode deixar
entrever suas misérias é, no fim das contas, uma crueldade contra o outro. Não somos nós
que temos o direito definitivo de condenar alguém por um pecado imperdoável. O único
pecado que sabemos ter essa condição é aquele que ofende o Espírito Santo. Quão loucos
devemos estar para crer que alguma ofensa contra nós não pode ser perdoada? Se isso
ainda não foi suficiente para convencer que o adultério não é o mais grave dos crimes,
vamos refletir sobre um exemplo. Existe uma história judaica que narra o encontro de um
difamador compulsivo e arrependido com o seu rabino. “O que devo fazer para consertar
tudo que fiz?”, diz o difamador. O rabino responde: “Suba até o alto de uma torre e
rasgue um travesseiro de plumas. Depois, volte aqui”. O pecador fez o que lhe foi pedido.
Rasgou o travesseiro do alto da torre, e as plumas flutuaram por toda parte com o vento.
O penitente voltou ao rabino, que lhe disse: “Agora, volte para a cidade e recupere cada
pluma que se espalhou”.

Eis no que consiste a difamação. O que parecia um pequeno ato — falar mal de alguém
para outro — vai se espalhando de boca em boca, de cochicho em cochicho, até alcançar
proporções gigantescas para a reputação do difamado. A difamação é um ato que pouca
gente deixa de praticar e tem algum grau de prejuízo irreparável. Rastrear cada
consequência do pecado da difamação é uma tarefa impossível. É uma injustiça que não
se pode reparar completamente, mesmo para quem está arrependido. Já o adultério é um
crime contra uma só pessoa e repará-lo é tarefa muito mais simples. Pergunto: por que
todos dizem que num relacionamento o adultério é o único crime imperdoável, se falar
mal do cônjuge para os outros, isto é, difamá-lo, é tido por algo banal? Costumamos
meditar pouco sobre os maus atos que praticamos. O adultério não é evidentemente algo
normal ou leve. Ninguém se casa com a expectativa de ser traído. Afinal, o casamento
implica num juramento de fidelidade. Mas será que já pedimos perdão por outras
maldades, que podem ser tão ruins ou piores que o adultério em alguns contextos? Será
mesmo que temos sensibilidade moral para perceber, como no exemplo acima, que falar
mal do cônjuge para os outros é um ato de infidelidade grave? No caso particular do
adultério há um imenso foco cultural no assunto. Romances, novelas e filmes pintam
incessantemente o adultério. O tema é tão martelado em nossas mentes que se tornou uma
espécie de obsessão: é como se no relacionamento amoroso não houvesse mais crimes,

é como se todo o resto fosse apenas um pequeno


deslize, porque o único mal que existe se chama
adultério.
Ora, lembremos da história do difamador arrependido. Ele não pode reparar o mal que
praticou. Mas como um adúltero penitente poderia reparar o seu mal? Se ele se
arrependeu, pode pedir perdão para quem traiu, cortar definitivamente a relação com o
amante, ser uma pessoa muito melhor, nunca mais recair na traição, etc. Qual é o dano
irreparável desta situação? A perda da confiança? Podemos dizer que sim, mas trata-se de
um dano abstrato, algo que está no mundo interior. Não é um dano concreto, efetivo, que
implica num prejuízo constante, como no caso da difamação.

A confiança não passa de um fetiche. Prova disso é que não importa quanta confiança se
deposite em alguém, ela sempre poderá ser traidora. É inútil agarrar-se ao sentimento de
ter confiança por si mesmo, como se fosse a mais importante das forças para unir duas
pessoas no amor. A confiança é fundada em dados reais, na experiência da solidez dos
atos do outro. Mas isso não traz garantia nenhuma de que o outro jamais irá te ferir.
Lembre-se: estamos tratando com humanos, e não com deuses.

“Ter confiança” é algo muito caro a todos nós porque temos um imenso apego à
segurança. Não admitimos de forma alguma viver num mundo de insegurança onde
qualquer coisa pode acontecer a qualquer instante. No entanto, é preciso reconhecer que
toda a sensação de confiança do mundo não nos garante nada de concreto na realidade. É
esta percepção que nos permite receber as ofensas de maneira proporcionada, sem
exagerá-las por terem ofendido os nossos fetiches, mas pesando-as pelo peso efetivo delas
mesmas.

Jamais aposte no seu desejo de segurança. Aposte em sua força, porque é ela que te
moverá concretamente nas horas difíceis caso algo desequilibre o seu mundo, caso você
se confronte com alguma torpeza ou seja vítima de alguma injustiça. É a sua força de
lidar com um problema que te fará superá-lo. A sensação de segurança não terá utilidade
alguma.

HÁ UMA HIERARQUIA NO MAL


Não dê um passo a mais neste assunto querendo minimizar a gravidade do adultério.
Precisamos separar o que são fetiches e obsessões de uma época e o peso efetivo das
ofensas. O adultério é sempre ruim. Está sempre condenado nos códigos sagrados onde
quer que exista uma civilização humana saudável. Mas não perdoar fere um mandamento
maior.

Por que se fechar à possibilidade de perdoar, se essa


atitude é maior do que todo pecado?
Há uma hierarquia dos pecados e dos males humanos. As pessoas passaram a dar uma
importância desmedida à luxúria, como se fosse a fonte dos piores pecados num
relacionamento, quando, na verdade, o pior entre todos é o da soberba. Sentir-se tão
acima do ofensor a ponto de exercer o direito de não perdoá-lo é típico da soberba. É
preciso admitir: ser soberbo é um mal muito maior do que ser um adúltero.

Quero propor uma meditação sobre a gravidade do mal que causamos ao outro. Pense
em todas as ofensas que você já fez a alguém, em todas as pequenas omissões ao longo
dos anos de relacionamento, em todas as pequenas manipulações, em todas as pequenas
mentiras e meias verdades interesseiras, nas ofensas escondidas e chantagens, no
fingimento de quem diz estar cansado só para não ajudar quem pede, no fato de ter criado
dificuldades enganosas quando não era do seu próprio interesse se doar, nas vezes que
não levou alegria, que não esteve ao lado do outro quando ele mais precisava.

É preciso criar em si mesmo a consciência de que você também é falho e mau. É preciso
compreender também que o outro não é um semideus. Daí surgirá a possibilidade de olhar
para o mal que há no outro sem o escrutínio cruel. Este é um mecanismo de defesa porque
morremos de medo de sermos feridos.

O perdão é a base da convivência humana. Por que nos fechamos à possibilidade de


perdoar justamente aquela pessoa a quem mais amamos e a quem mais nos entregamos?
Não seria essa pessoa a mais merecedora de tamanho gesto? Saibamos que a promessa
tácita de todo casamento pode ser descrita em algumas palavras que talvez endureçam o
nosso coração, se nos deixarmos dominar pelo interesse próprio: “Eu prometo te perdoar
para sempre. Eu serei o teu advogado eterno, jamais o seu juiz. Eu estarei do seu lado
mesmo frente aos seus piores pecados”.

As pessoas preferem viver relacionamentos à base do medo, ansiosas por achar um


deslize do outro para beber da chaga de quem ama o sentimento de superioridade. A
maior parte dos casamentos hoje é sustentado pelo medo. Não há base numa fidelidade
interior, aquela que sabe perdoar a quem amamos, um perdão que carrega o anseio de não
desejar a condenação do seu amado.

Porque o desejo dos amantes é permanecerem unidos para sempre. E para serem
capazes de estar juntos neste lugar além do tempo, precisarão passar juntos pelo
julgamento daquele que disse: “perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos
a quem nos tem ofendido”. O amante que conhece as misérias do amado não deseja a sua
condenação, mas quer o seu perdão, e por desejá-lo começa a perdoá-lo ele mesmo. O
amor não quer a justiça, ele concede misericórdia.

Algumas pessoas têm muito medo das consequências sociais, em seres reconhecidos
como “cornos” o resto da vida. Mas consideremos quantas traições ocorrem entre os seres
humanos todos os dias. Quantas dessas pessoas são reconhecidas por uma vida inteira
somente por serem traídas? Em segundo lugar, por que deveríamos nós mesmos ser tão
indiscretos para, ao invés de manter tamanha dor na intimidade de um casal ferido,
publicar aos quatro ventos as misérias de quem nos trai para nos vingarmos, como se
ferir-se a si mesmo fosse acaso uma vingança? Tudo isso envolve muitos problemas de
ego. Numa ocasião de traição sempre é possível parar para refletir retroativamente nas
causas que geraram o problema.

Nunca uma traição se produz do dia para a noite.


O marido ótimo que nunca deu motivos para desconfiança não trai sem uma história que
o levou à queda. Todos sabem que a traição não funciona assim. A causa não é
necessariamente culpa de quem foi traído, mas sempre existe e pode ser descrita.
Quem conseguir ser muito franco consigo mesmo será capaz de compreender sua
contribuição para a maldade do outro. Muitas vezes é bem possível saber onde está o
problema e como resolvê-lo. No entanto, a culpa da traição sempre é de quem trai. O ato
da traição é sempre uma decisão livre. O traidor jamais pode usar essas supostas causas
que o “levaram” a trair para justificar o seu ato injusto. Quem trai e recebe a graça do
perdão, inclusive, precisa provar muitas coisas para o parceiro dali em diante. É algo que
causa muitas cicatrizes.

A postura verdadeira de quem se arrepende é um ato de contrição. Quem está


arrependido de fato pede perdão a quem ofendeu como um mendigo pede esmola na rua.
Se quem trai está realmente arrependido, ele quer, mesmo nesta hora triste, o bem do
cônjuge. Por isso terá essa postura humilde para facilitar ao máximo o difícil movimento
do perdão em seu parceiro.

O ato de contrição vem junto de todo o peso das falhas de quem trai. É um ato que
precisa ter todo o peso da liberdade, essa mesma liberdade que levou alguém à traição. O
ato de contrição é um pedido de misericórdia. No fim das contas, é a admissão
mortificada de que sua vida está nas mãos de quem você ofendeu. A atitude perante o
traído deve ser de total humildade e mortificação. Em contrapartida, não é bom para
quem rompeu a fidelidade e se arrependeu cair num processo de autoacusação flagelante.

A penitência do traidor que fez o mal é agora fazer o bem. Nada pode ser mais difícil —
e de algum modo edificante — do que se humilhar e reconhecer um erro em toda a sua
profundidade. As vítimas da traição são Deus e o parceiro, e a ambos devemos dirigir um
pedido honesto de perdão. Mas

se alguém cai num ciclo de autodestruição por


remorso, a ele faltará a força moral de cometer um ato
digno, que é tentar reparar um grande dano.
Se você é um traidor não se acuse a ponto de se destruir. Você precisará estar inteiro
para se levantar e provar pacientemente, por um longo tempo, o valor do seu
arrependimento verdadeiro.

UMA MEDITAÇÃO SOBRE O PERDÃO


Sempre que nos sentimos magoados e feridos por quem amamos, parece-nos que a dor
dessas ofensas é maior. Mesmo sabendo das nossas falhas e do quanto elas não nos dão o
direito de nos sentirmos intocáveis, a pessoa que mais amamos é a última de quem
esperamos uma ferida. É uma dinâmica natural da nossa cabeça. A experiência desta dor
está registrada pelo salmista: “Até o meu melhor amigo, em quem eu confiava, e que
partilhava do meu pão, também me traiu!”.4

Muitos chegam a compreender que o outro é humano e capaz de nos ofender. Mas é
certo que ninguém se casa esperando ser traído e ofendido, por mais que seja uma
possibilidade sempre real. Não é preciso dizer que quem se casa e sequer imagina essa
possibilidade se frustrará intensamente. Concebemos um mundo ideal e lidar com a vida
como ela é não é fácil.

Por isso você deve sempre praticar um exercício de realidade, pensando consigo
mesmo: “Eu posso ser ferido nesta vida, mas preciso apostar na minha força, no meu
amor aos outros, e em como esse amor é capaz de fazer com que eu siga amando, abrindo
mão até mesmo de uma vingança justa, jamais permitindo que uma ofensa destrua o que
há de bom em mim, nem apague a minha esperança entusiasmada no que há de melhor
em quem eu amo”.

Há um mecanismo interior que se manifesta em três estágios quando somos ofendidos.


Em primeiro lugar, fica um gosto amargo. Mesmo quando dispostos ao perdão, esta
amargura estará presente, e este gesto nobre não terá como recompensa um alívio
imediato. Surge em nós um desejo de que o ofensor também sofra as consequências da
dor que nos atingiu.

Mas logo aparece, em segundo lugar, a convicção de que há um valor maior do que a
dor. No fundo sabemos que não somos dotados da justiça e nem da capacidade de julgar.
Quem perdoa entrega a justiça para quem tem poder e capacidade de julgar. Disso decorre
um alívio, que é o alívio de não ter de ser um juiz.

Por fim, surge a possibilidade do perdão. Toda pessoa realmente boa, que está tentando
seguir no caminho da perfeição, que está tentando ser melhor, e em especial que procura a
tudo isso por ser cristão, nas situações onde a cólera e a vingança tentam esmagar o seu
coração, vai encontrar um apelo no seu íntimo pelo perdão. Nós desejamos perdoar,
principalmente as pessoas amadas. No fundo sabemos ser esta a postura mais nobre. O
perdão é o que gostaríamos de alcançar.

Esta pessoa que sente em si o desejo de perdoar é capaz de perceber que o seu amado
ofensor também sofre por tê-la ofendido.

A pessoa deseja perdoar porque anseia diminuir o


sofrimento do ser amado arrependido.
É um erro pensar que o ódio seja o oposto do amor. O ofendido não mais amaria quem o
ofendeu se a traição não gerasse dor. Porque está na indiferença a ausência do amor. Se
dói e gera ódio, é porque estamos indignados com quem amamos. Por mais fundo que
uma ofensa de quem amamos nos atinja, por mais que nos mova a grandes ódios, não nos
enganemos dizendo tão rápido que o amor acabou.

Outro erro de quem pretende perdoar é tentar esquecer a ofensa, como se nada tivesse
acontecido. É certo que afetivamente a alma de quem foi ferido gostaria que tal
acontecimento não tivesse existido. Como gostaríamos de que quem amamos não nos
tivesse ofendido! Saímos a buscar cura para a ferida sem olhá-la de frente. Procurando
dispersões, agarramo-nos às tarefas do cotidiano e no trabalho para esquecer,
transformando a ofensa em um tabu. Quantas pessoas enganadas creem ser isto perdoar!
Há algo de abstrato e afetivo na alma. Mas há nela também algo muito diferente em sua
dimensão racional. Exceto se houver um problema de ordem bioquímica, a nossa alma
racional não vai esquecer nunca uma ofensa, simplesmente porque a “coisa” aconteceu.
Forçar a alma a apagar o que ela não pode só gera mais frustração. O acontecimento
existe e sempre ficará marcado na memória.

Amamos a verdade mesmo contra nossa vontade. Ela se impõe à nossa consciência. O
que aconteceu, aconteceu. De nada adianta opor à verdade a criação das fantasias mais
convenientes. Mas é natural a nós agir nesse mundo de acordo com nossa bagagem, com
nossa verdade, com tudo que nos aconteceu. Quem nega o que se passou, cedo ou tarde,
se verá invadido novamente por aquela mesma raiva quando a lembrança da ofensa
surpreender sua memória. E não é incomum que nessas horas lance ao rosto do parceiro
novamente os seus antigos crimes, de um modo inútil e que só recrudescerá a ferida.

Para permanecer são é melhor aceitar um fato: conviver com as más memórias para
sempre. Porque o movimento interior do verdadeiro perdão implica numa escolha. Você
quer se livrar da sua dor e de todas as consequências ruins da ofensa ou quer livrar desta
dor a você e também a quem te ofendeu e está arrependido do mal? Você quer que a
justiça prevaleça a todo custo, e o outro sofra ao máximo, ou deseja que o seu ofensor
seja recompensado pelo que fez — ao invés de sofrer pelo que fez? Daí surge outra
pergunta: quem me ofende pode ser recompensado? Ora, quem pratica uma ofensa e se
arrepende verdadeiramente, recebendo o perdão, sempre se torna melhor do que era antes.
Porque antes havia um ofensor que agiu livremente para magoar quem ama. Agora existe
um ser humano arrependido que passou pela humilhação de se reconhecer errado e seguir
uma nova conduta.

Quem entrega o perdão, além de desejar que o sofrimento saia do seu coração por este
ato, também almeja que o seu ofensor receba, por ter sido perdoado, plenamente o dom
que pode ser retirado da humilhação do próprio arrependimento, da consciência da sua
própria miséria. Isto é, ser uma pessoa nova.

Se você deseja a eternidade de quem ama, e


pretende caminhar junto dessa pessoa numa união
permanente, não pode desejar que o ser amado sofra
permanentemente pelos seus erros.
Especialmente quem está unido pelo laço do matrimônio precisa, como que por dever,
entregar o perdão ao cônjuge por esse motivo espiritual. Não pode um casal caminhar
junto para a eternidade quando uma das partes permanece odiando algo no outro.
Portanto, é preciso destruir nosso desejo por justiça e entregá-lo a quem é de direito, que
é o próprio Deus.

Assim um homem e uma mulher podem caminhar juntos com passo seguro, mesmo
entre tantos choques e tantas dores, mesmo com os desentendimentos, mesmo sob o peso
de suportarem as misérias humanas que andam sempre à espreita, sussurradas pelo vento
por maus conselheiros invisíveis. É preciso amar o próximo como amamos a nós mesmos.
Se perdoarmos assim como desejamos ser sempre perdoados, não precisaremos ter medo
do acaso ou da má sorte. É um ato totalmente livre e independente das circunstâncias. É
finalmente sentir a união definitiva, a boa vontade, a paciência, a alegria, o gosto, a
entrega desinteressada de tudo: amar.
NOTAS DE RODAPÉ
1 Carlos Drummond de Andrade, “Amar”, in Claro enigma. Poesia completa e prosa (Nova Aguillar, 1973), p. 247.

2 Política, Livro I, 1253a 27–29.

3 Mt 15, 18.

4 Sl 41, 9.

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