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Tu tem força, menina!

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Duda Riedel

A Deus, pela linda missão,


À Santa Dulce, por nunca soltar minha mão,
A meu doador, uma imensa gratidão,
A mim, uma salva de palmas pela lição.

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Tu tem força, menina!

10 COISAS QUE O CÂNCER ME ENSINOU

1. VALORIZE CADA PLAQUETA, HEMÁCIAS E LEUCÓCITO


QUE VOCÊ TEM
2. AGRADEÇA CADA DIA O QUE LHE É DADO
3. CABELO NÃO SERVE PRA NADA
4. TEM DIAS QUE UM HAMBURGER MELHORA SUA VIDA
5. NÃO ESPERE O AMANHÃ, ELE PODE NÃO CHEGAR
6. É MELHOR VIVER QUE SE MANTER VIVO
7. UMA FASE RUIM É UMA FASE DE PURO APRENDIZADO
8. FORÇA + FÉ + OTIMISMO + BOM HUMOR + ESPERANÇA =
RECEITA DA VIDA
9. RECLAMAR NÃO É A MELHOR OPÇÃO
10. - ISSO TAMBÉM PASSA

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ÍNDICE
INTRODUÇÃO 5
EM TEMPOS DE PAZ DE ESPÍRITO (ou não) 8
O COMEÇO DO FIM 30
PAIXÃO FULMINANTE 52
NÃO É DOENÇA, É BÊNÇÃO 64
REDENÇÃO 92
QUIMIO E SEUS EFEITOS TERAPÊUTICOS 106
A CARECA DO AMOR 120
REMISSÃO 128
A VIDA CONTINUA 138
O TEMIDO TRANSPLANTE 154
MEU FINAL RENASCIMENTO FELIZ 168

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Tu tem força, menina!

INTRODUÇÃO

Existem dias, muitos deles, que nos perguntamos por


que existimos. Uma espécie de “qual a minha finalidade
em um mundo que já tem tanta gente?”. Bem, nada é
tão grande que não tenha espaço pra mais um. Só que,
às vezes, a gente se questiona por que acontecem coisas
ruins com quem não merece. Certamente, existe algum
motivo além do qual podemos imaginar. Não é falta de
merecimento, é luta. Cada ser humano tem uma luta in-
dividual, e é normal a gente se revoltar quando algumas
coisas não vão bem, ou quando alguma coisa acontece
e você não estava preparada para enfrentar. Sofremos
com banalidades e nos revoltamos com futilidades. Eu
era muito assim. Isso mudou.
Eu sempre achei que, depois do meu término com
o Bernardo, eu teria aprendido muito sobre força, resiliên-
cia e determinação. Tolice. Também achava que, por ter
sofrido além da conta e ter vivido a depressão pós fim de
namoro, nada mais tiraria tanto minha paz e me deixaria
tão triste como aquele momento.
Ao descobrir um câncer aos vinte e quatro anos, sua
vida muda do avesso. Gritei, chorei, me revoltei, pergun-
tei o que isso queria me ensinar, o porquê de ser comigo...
por fim, aceitei. Não restava nada além de aceitar. Nesse
milésimo de segundo onde a notícia chega como uma
bomba em seu coração, o mundo não gira, e sim

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capota. Um 360 de tudo que aconteceu desde o dia 1


até o momento quando recebe o laudo médico, en-
quanto se encontra deitada e apreensiva em uma cama
de hospital. “Você está com leucemia”. E eu que achei
que já sabia ser forte descobri que minha busca por essa
batalha estaria apenas começando. “Tu tem força, me-
nina”, eu repetia baixinho enquanto ouvia minha mãe
aos berros, chorando, ao meu lado.
Existiam milhares de perguntas que eu gostaria de
fazer a Deus naquele momento, mas não deveria pergun-
tar. Eu apenas precisava entender que teria que ser forte,
encarar da melhor forma e entregar na mão Dele porque
minha fé não iria acabar, e isso seria apenas, mais uma
vez, uma prova de que nada é tão ruim que não possa
melhorar. Se é sobre força que vamos falar, eu vou te
mostrar o poder da força que eu tenho.

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EM TEMPOS DE PAZ DE ESPÍRITO (ou não)

Eu me questiono sempre sobre quanto tempo eu tive e quanto tempo


terei. Sei que terei mais tempo pra evoluir do que tive até aqui, tenho
fé. Mas também sei que desperdiçamos tempo. Tempo esse que não
volta. Por isso, que se viva o hoje, que se ame hoje e que se perdoe
hoje. Queria eu reaproveitar todas as vezes que gastei meu tempo com
coisas que não me mereciam. Então, já que passei tanto tempo sem
aproveitar o tempo que me foi dado, hoje - enquanto luto contra ele
pra me curar o mais rápido possível - eu gastei meu lindo tempo cal-
culando se dará tempo de fazer tudo que sonhei. Enfim, o tempo é re-
lativo, já dizia a ciência, mas a única relação de que temos certeza é
que o tempo não volta, por isso, seja grato ao tempo que lhe foi dado e
reduza seu desperdício com futilidades.

Eu estava vivendo a melhor fase da minha vida, ou


pelo menos acreditava nisso. Solteira, livre do meu ex-na-
morado (não me lembrava mais dele) e seguia minha
vida feliz. Embustes? De vez em quando, aparecia uns,
era bom pra dar risada, mas não tirava mais o meu sos-
sego como antes. A verdade é que eu estava em paz
com tudo que vinha acontecendo, exceto por um mo-
tivo. Eu estava trabalhando em uma loja como vende-
dora pra dar conta da quantidade de boletos que tinha
diariamente pra pagar. O estresse acumulava, e a escala
de trabalhar seis vezes na semana, algumas vezes inclu-
sive aos domingos, me desgastava profundamente. Du-
rante o trabalho, tudo ocorria bem: sorriso no rosto, algu-
mas clientes mal educadas – não podemos negar –,

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salário na conta no final do mês, uma vidinha mais ou me-


nos, mas nada pra reclamar, certo?
Errado.
Eu reclamava muito. Reclamava que estava dor-
mindo pouco, que não gostava do trabalho, que isso es-
tava me tirando do sério e que eu estava completa e to-
talmente infeliz com o que fazia. Mas óbvio que eu não
compartilhava isso com quase ninguém. Nossa socie-
dade é toda doente, ninguém pode demonstrar fra-
queza e tampouco infelicidade. No instagram? Rindo hor-
rores para todos os lados. Mas, como eu sempre digo,
você pode sorrir o quanto quiser com os dentes, mas
quem dita sua felicidade é seu brilho no olhar. Infeliz-
mente, minha luz estava apagada. Apagada, quebrada,
desligada e sem perspectiva de volta.
Não sei se, em algum momento, você se sentiu ape-
nas sobrevivendo em vez de vivendo, pois era assim que
eu me sentia, e te explico agora o enorme abismo entre
esses dois verbos. Viver é maravilhoso, dá gosto, dá pra-
zer, dá satisfação e, principalmente, dá vontade de con-
tinuar vivendo, pois, como diria Gonzaguinha, “a vida é
bonita, é bonita e é bonita”. A vida não é feita apenas
de viver e morrer. Todos nós temos um propósito, mas, al-
gumas vezes, com o passar do tempo, nós cansamos de
buscar esse bendito e apenas nos deixamos levar. E isso é
sobreviver, apenas levar os dias para tapar o buraco que
a vida tem, cumprindo tabela.

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E, no meio dessa sobrevivência – pela qual muitos


passam e sequer se dão conta –, a gente começa um
ciclo vicioso de reclamações, apego a futilidades, inves-
tidas em banalidades, brigas desnecessárias e, pra piorar,
perda da essência da vida. Sobreviver, meus amigos, é a
pior coisa que você pode fazer por você. Tem gente que
morre aos vinte e cinco anos e só é enterrado aos oitenta,
não faça isso contigo.
Eu estava fazendo cada vez mais comigo. Lembra
quando eu disse que estava na melhor fase da minha
vida? Mentira. Eu achava que estava porque me enga-
nava com as aparências que criava para tentar canalizar
o que vinha passando. Eu estava, na verdade, sobrevi-
vendo e me enganando.
Ao chegar do trabalho depois de mais um dia can-
sativo, eu tinha preguiça de cozinhar qualquer coisa e es-
tava estressada pra falar com quem quer que fosse. O te-
lefone tocou, era minha mãe querendo saber se eu já ti-
nha me alimentado.
— Oi, Zi, já jantou?
“Zi” era um apelido carinhoso pelo qual meus pais
me chamavam.
— Oi, mãe. Ainda não, devo pedir qualquer coisa
no iFood. Muita preguiça de fazer algo — respondi, rís-
pida, enquanto colocava o celular no viva voz e caçava
alguma promoção pelo aplicativo.

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— Eita, que bicho te mordeu pra tá tão azeda? Chu-


pou limão? — falou, tentando fazer graça. Mães sempre
são fofas.
— Devo ter chupado o limoeiro inteiro, tô zero na
vibe de conversar, mãe. Nos falamos outra hora, tá? —
novamente uma cortada.
— Espera, Duda! Você e seu pai não se falam há
mais de um mês. Ele está aqui do meu lado, posso passar
o telefone?
— Não, mãe! Saco! Já disse que hoje eu tô sem pa-
ciência. Manda um beijo e fala que amo ele.
Ah, claro, amava tanto que nem nos falávamos. Mi-
nha relação com meu pai nunca tinha sido essas maravi-
lhas que muita gente transmite. Meu pai era extrema-
mente frio e acreditava em uma educação – como ele
mesmo dizia – pro mundo. Isso quer dizer, em poucas pa-
lavras: “eu crio meu filho até certa idade, depois ele se
vira e vive do jeito que ele quiser, já fiz minha parte”. Bem,
depois que me tornei oficialmente adulta e não preci-
sava mais de 50% das coisas que ele me dava, eu fui me
afastando. Falta de maturidade de lidar com nossas dife-
renças, eu não concordava em muito com o que ele
pensava, mas existia uma diferença entre não concordar
e não concordar, porém respeitar. A verdade era que es-
távamos cada vez mais distantes, e eu não fazia a mínima
questão de me reaproximar.

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Com o tempo, nossa relação foi amornando de tal


forma que nos falávamos uma vez por mês, e isso já era
considerado o suficiente. E o pior disso tudo era que eu
tinha convicção de que não sentia a menor falta do meu
pai. Ele não me dava nenhum pingo de saudades, e eu
conseguia viver tranquilamente sem o carinho e o amor
dele, afinal, me sentia muito autossuficiente para precisar
de alguém que ia contra muito do que eu pensava.
O modo como lidamos com as pessoas que estão
ao nosso redor diz muito sobre como nós lidamos com a
nossa vida. A ideia de ignorar a presença e a falta que
meu pai me fazia era basicamente o que eu fazia com as
minhas emoções: não as ouvia. Nossas escolhas nada
mais são do que o reflexo do que se passa dentro da
gente e elas se tornam consequências naturais do acú-
mulo de sentimentos que guardamos.
Desliguei o telefone e rodei o aplicativo inteiro em
busca de algo pra comer. Pedi hamburger e fritas, algo
bem leve, não é? Plena terça-feira, e eu já me entupia
de comida processada. Abri o whatsapp e mais de 200
mensagens. Grupos de festa, amigos marcando bar em
plena terça-feira, amigas pedindo conselhos, amigas fa-
lando mal de outras meninas. Ótima distração pra
quando se está estressada, com fome e esperando o mo-
toboy trazer um quilo de óleo puro.
Uma mensagem chegou no meu celular, era meu
melhor amigo, Vicente, e ele me chamava para um
grupo de divulgação de festas.

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“Fala, mané! Sabe aquela empresa de festas? Eles estão escolhendo


novos promoters, e, já que agora você é blogueiríssima, pensei que se-
ria uma boa entrar. Quer ir na reunião comigo amanhã?”

Grupo de divulgação de festas... Então, quer dizer


que eu ganho VIP pras festas? Ahhhhhhh! SIM, SIM, SIM!
Tudo que eu queria e precisava, já que meu salário de
vendedora não conseguia pagar quase nenhum baile
que eu ia no final de semana.

“O QUÊ? Quero entrar! NECESSÁRIO. Amanhã então me avisa. Te


amo, beijo”.

Era meio de março, duas semanas depois de um


carnaval que tinha tirado boa parte da minha saúde. Eu
me sentia fraca, mas também quem não estaria depois
de passar cinco dias bebendo e indo para blocos e fes-
tas? Eu estava em um momento frenético de saídas e
aproveitando bem minha liberdade emocional.
Sabe aquela fase da solteirice quando finalmente
vamos pra algum lugar única e exclusivamente porque
queremos? A gente não vai pra procurar ninguém, a
gente sequer está querendo achar, só quer mesmo um
bom drink na mão, um grupo de amigas pra rebolar a
bunda, um óculos de sol pra colocar a partir das seis da
manhã e uma disposição pra sair de lá só quando o se-
gurança expulsar.

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Fato era que esse momento era ótimo, viver para fa-
zer sentido a você! Incrível como o efeito “término de na-
moro” traz um pouco disso na nossa vida, não é? De tanto
levar porrada, você aprende a se defender, e – muitas
vezes – os socos que os embustes dão na nossa autoes-
tima, na realidade, transformam-se em pequenos belis-
cões. Por um lado, é bom, te deixa mais forte e faz você
reconquistar seu amor próprio, mas, por outro lado – mais
sombrio ainda - se torna péssimo, já que você se torna um
tanto quanto desacreditada no quesito relacionamentos.
Os anticorpos do amor entram em ação e, quando a
gente avista a decepção, já fala logo assim:

QUERIDA, PODE VIR QUE JÁ ME ACOSTUMEI!

Eu via que o crush iria despedaçar meu coração, e


isso nem me doía mais, era apenas mais um na fila de de-
cepções da vida amorosa de Maria Eduarda Riedel. A
gente quebra a cara hoje e amanhã já marca na
agenda quando vai ser o próximo toco. Você chama isso
de ansiedade? Eu preferia chamar de planejamento de
desamores mal sucedidos.
E eu sempre fui uma pessoa muito planejada, não
só no amor, mas em todos os aspectos da minha vida.
Naquele dia, vi no jornal que o dia seguinte estaria ótimo
para ir à praia, já que o sol não estaria tão quente. Me
programei pra ir, levar um livro comigo e aproveitar essa

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folguinha no meio da semana. Mas não foi assim que


aconteceu. Acordei, abri o olho, e um filme de terror se
instalava em meu travesseiro: sangue.
Era quase uma cena de crime dentro do meu
quarto. A princípio, me assustei, olhei pra aquilo e fiquei
pensando de onde teria saído tanto sangue. Senti um
gosto ruim na boca e corri para o banheiro. Ao me olhar
no espelho, eu enxergava meus lábios ressecados e mi-
nha gengiva inchada, vermelha e com bolhas de pus.
Como era possível? Ontem eu estava bem. Teria sido o
hamburger? Não podia ser.
Peguei o telefone e ameacei ligar pra minha mãe,
já que ela era dentista e saberia o que fazer. Não, era
melhor não. Eu iria levar uma bronca, ela iria falar que eu
não estava escovando meus dentes direito e iria fazer um
enorme discurso da importância da saúde bucal. Eu não
estava nenhum pouco disposta a ter que passar por isso,
então liguei para a primeira emergência de odontologia
que aparecia no Google e que era perto de mim.
— Bom dia, eu gostaria de marcar uma consulta
com urgência, vocês tem vaga err... sei lá... pra agora?
Eu precisava urgentemente, estava parecendo um
vampiro que tinha acabado de chupar o pescoço de al-
guém.
— Temos, sim, você consegue vir às onze horas? —
respondeu a atendente, bem solícita.

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— Consigo! Muitíssimo obrigada. — Desliguei, ainda


meio atordoada.
Fui até a cozinha e esquentei um pouco de água
com sal na tentativa de conter aquela cachoeira verme-
lha que saía pelas minhas gengivas. Nada fazia parar!
Mas que droga, o que estava acontecendo comigo? Me
arrumei para ir à consulta e, no meio do caminho, fui
orando para ser algo solucionável, afinal, eu iria viajar
com minha mãe em duas semanas, e ela não podia ima-
ginar que eu estava com algum problema dentário.
Cheguei no dentista, olhei ao redor e ouvi aquela
musiquinha de fundo de sala de espera. Impaciente, fi-
quei batendo o pezinho no canto do sofá enquanto
aguardava chamarem meu nome.
— Maria Eduarda? — gritaram, e eu me levantei ra-
pidamente.
— Eu mesma! — respondi com um sorriso fechado.
— Pode me acompanhar, por favor?
Entrei no consultório e vi que estava passando Glo-
bonews, mostrava a tragédia de Brumadinho e, dentro
de mim, eu só conseguia imaginar “que ano é esse que
só catástrofe acontece?”. No final de 2018, eu havia lido
um texto – de mais um daqueles videntes – sobre o fatí-
dico ano que se aproximava. Lembro que, assustada, eu
encaminhei para todas as minhas amigas, e nós debate-
mos o assunto.

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Tu tem força, menina!

Um tempo depois, recebi da minha mãe uma repor-


tagem que falava sobre “A data limite”, um termo usado
por Chico Xavier para alertar sobre o “fim do mundo” em
2019. Diferente daqueles “fins de mundo” que víamos em
filmes em que uma bomba nuclear destrói tudo de uma
só vez, nesta carta ele deixava muito claro que a socie-
dade estava morrendo aos poucos e que, se individual-
mente nós não entendêssemos a beleza da vida e a gra-
tidão pelo que realmente importava, o mundo acabaria
naquele ano. Essa era a tal “data limite” que os seres ce-
lestiais haviam estipulado para nossa evolução humani-
tária. Realmente, 2019 não estava sendo um ano fácil em
um aspecto geral.
— Então, Eduarda... Você entendeu o que eu disse?
— perguntou a doutora, claramente notando que eu não
tinha entendido nada.
— Sim, entendi perfeitamente. Mas, afinal, o que eu
tenho mesmo? — perguntei, assustada.
— É basicamente um caso de gengivite que pode-
ria se agravar muito se você não se cuidasse. Você têm
costume de usar fio dental?
Agora vou jogar um questionamento pra vocês,
queridos leitores, pra quem se mente mais: recrutador de
emprego ou dentista?
— Uso, claro! Isso foi apenas uma fatalidade — res-
pondi com deboche. — Mas vou ficar bem até semana
que vem?

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— Ao que tudo indica, sim! Vamos começar o pro-


cedimento agora.
Enquanto ela começava a limpeza para tirar o que
fosse necessário da minha boca, eu tinha a sensação de
que sangrava mais que o normal. O sangue escorria pela
minha boca e chegava ao meu queixo, manchava mi-
nha blusa bege clara e deixava um gosto horrível na
boca. Seria mesmo apenas uma gengivite? E como era
possível, com tamanha quantidade de pus, que meu sor-
riso voltasse ao normal em cinco dias úteis?
— Nossa, tá sangrando bem — falou a doutora en-
quanto pegava mais uma gaze para conter o sangra-
mento.
— Eu também acho. Isso é normal mesmo? — Eu es-
tava muito apreensiva.
— É, sim, fica tranquila! Ela estava bem irritado, mas
vai ficar ótima, você vai ver.
— Assim espero.
Depois que o procedimento acabou, olhei no espe-
lho e tomei um susto. Minha boca estava nova, porém
muito debilitada. A doutora me passou alguns remédios
para tomar durante alguns dias e pediu repouso total. Pe-
guei um atestado e fui andando pra casa ouvindo uma
música do Shawn Mendes no Spotify. No meio do cami-
nho, notei que minha boca sangrava mais um pouco.
Mas que raios! Eu tinha acabado de sair do consultório.

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Abri a porta de casa e já recebi uma mensagem do Vi-


cente falando sobre a reunião daquela noite:

“Não esquece que temos reunião no Humaitá às 20h. Te encontro na


porta, pode ser?”

Ah, gente! Eu tinha esquecido da reunião e teria


que ficar de repouso absoluto. Mas, se eu não fosse, seria
obrigada a perder todos os meus futuros VIPs e, com isso,
meu amor, não se brinca. Eu ia pra esse encontro nem
que minha boca estivesse coberta de sanguessugas.
Dormi a tarde inteira, uma fadiga fora do normal do-
minava meu corpo, devia ter sido alguma anestesia que
a dentista tinha passado ou apenas estresse de tanto tra-
balho e sono acumulado, que aproveitei pra pôr em dia
enquanto esperava a hora de me arrumar e ir pra reu-
nião.
Acordei atordoada, já eram seis horas, e o trânsito
no Rio de Janeiro não era brincadeira, meu irmão. To-
mando banho, senti uma dormência no braço esquerdo.
Me enxuguei e segui sentindo aquela dor como se eu ti-
vesse dormido por cima do meu corpo. Abri a gaveta de
remédios e notei o quanto eles aumentaram nos últimos
meses. Eu poderia te garantir que nem a farmácia mais
preparada do seu bairro tinha tantas opções de anti-in-
flamatórios e antibióticos como minha casa. De fato, mi-
nha saúde não era mais a mesma. Engoli um dorflex e

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Duda Riedel

enfiei qualquer roupa, fiz uma maquiagem básica, passei


perfume, pedi um UBER e segui para a reunião, tudo isso
em um total de vinte e cinco minutos.
Durante o trajeto, me comuniquei com o Vicente
pra saber onde ele estava. Eu não queria de maneira al-
guma entrar naquela sala sozinha. Pode não aparentar,
mas sou extremamente tímida pra conhecer pessoas que
já conheço, porém não tenho afinidade.
Meu telefone tocou, era minha irmã mais velha, ela
tinha acabado de voltar de uma temporada de um mês
pelo sul da Ásia. Uma daquelas viagens que a gente só
via no feed do instagram das blogueiras com mais de um
milhão de seguidores ou daquela amiga rica que passa
final de semana em Miami achando que isso é a coisa
mais normal do mundo. As fotos? De causar inveja em
nós, meros emergentes que andam de metrô às sete da
manhã e rezam para não sair com cheiro de mortadela.
— Duda, adivinha só? Fechamos o buffet do casa-
mento, tô muito animada!
Minha irmã ia casar no final de outubro e estava ra-
diando de felicidade, o maior sonho da vida dela era isso.
— Legal, Natty! — respondi sem muito entusiasmo.
— Custa ficar feliz? — alfinetou.
— Eu estou feliz por você. É só que não me empolgo
muito com essas coisas de casamento, você sabe... — Eu
realmente não tinha paciência pra isso e, pra completar,
meu braço e minha boca doíam.

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— Bem, pois comece a se animar, afinal, sou sua


irmã e é o primeiro casamento da nossa família. Ah, tam-
bém depositei um dinheiro pra te ajudar, preciso desligar
que tô indo pra uma reunião, acho que vou criar uma
marca de jalecos fashion.
— Uol! Mais um super empreendedorismo de Natty.
Boa sorte, também tô indo pra uma reunião pra ganhar
ingresso grátis pras festas. — Dou risada e desligamos.
Eu tinha três meias-irmãs mais velhas, mas convivia
mais com a Nathália por ser minha meia-irmã por parte
de mãe e ter morado a vida inteira comigo. Ela era dez
anos mais velha e era superprotetora comigo, já que eu
era a caçula. Isso foi motivo de muitas brigas entre nós
duas porque imagine ter, além da sua mãe, uma mãe-
postiça querendo te controlar. Por outro lado, eu tinha
uma enorme admiração sobre ela, mas, enraizada den-
tro de mim, existia uma cobrança excessiva e estressante
para chegar onde ela tinha chegado e conquistar o que
ela tinha. Irmãs mais velhas causam isso na gente.
Imaginem desde pequena ter um espelho à sua
frente e que você quer ser o total reflexo dele, porém sua
imagem nunca é tão nítida ou clara. Minha irmã sempre
foi primeiro lugar da turma, eu ficava de recuperação em
física todo ano. Ela era dentista, assim como minha mãe,
eu não conseguia ver sangue sem desmaiar e o optei
pelo teatro. A Natty já ganhou prêmio de melhor profissi-
onal de ortodontia da cidade por três anos consecutivos,

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e eu não conseguia pagar o condomínio do meu apar-


tamento sem pedir ajuda aos meus pais.
Por um lado, tê-la como espelho me dava garra e
força pra me tornar tão incrível quanto ela, mas isso tam-
bém me dava uma puta pressão psicológica que me fa-
zia pensar que eu era a fracassada da família enquanto
ela tinha dado certo na vida. E sabemos bem que no jan-
tar de natal sempre existe aquela tia que vive com os ga-
tos e sobrevive com uma pensão, e a outra que viaja três
vezes por ano com as crianças pra Disney. Eu sabia que
não seria a tia dos gatos por um único motivo: rinite alér-
gica, mas, com certeza, eu também não seria a tia amiga
íntima do Mickey Mouse.
Sabe a tal crise dos vinte anos? Aquela sensação de
sair da faculdade e ter um abismo em seus pés? Olhar na
revista e ver que Kylie Jenner é bilionária aos dezenove
anos, Marina Ruy Barbosa é casada aos vinte e três e Ney-
mar Jr. é eleito melhor jogador do mundo aos vinte e seis
anos? Isso causa pânico. Agora idealize você tendo refe-
rência dentro da sua própria casa. Isso me atormentava
diariamente, porque, além de ter a minha família me co-
brando sempre um futuro promissor, eu via na minha irmã
um futuro que eu não acreditava que conseguiria ter. Isso
me causava pânico. O fracasso era meu codinome.
Cheguei antes do Vicente na reunião e o esperei na
porta do local, olhei pro lado, vi um semi conhecido an-
dando na minha direção e me escondi atrás de uma ár-
vore. Me dá uma vontade absurda de rir. Quantos anos

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eu tinha? Por que eu não conseguia ser civilizada e dar


um singelo “oi”? Não existe nada de mais magnífico que
duas pessoas que se conhecem e fingem não se conhe-
cer pra não ter que enfrentar a dura barra de se cumpri-
mentar.
Já havia se passado quarenta e cinco minutos e
nada daquele menino chegar, até a reunião devia ter
começado. Vicente era daqueles que marca contigo
com duas semanas de antecedência e só aparece um
mês depois. Atrasado demais. Enquanto gravava um áu-
dio bem descabido reclamando da falta de comprome-
timento dele, ouvi um grito na rua:
— FALA TU, MANÉ! Cheguei, cheguei! — Correu em
minha direção com uma cara de “não me mate por fa-
vor”.
— Olha, eu não estou acreditando até agora que o
senhorzinho me fez esperar 45 minutos! A reunião já inclu-
sive deve ter acabado.
— Só começa quando a gente chegar, vamos, já tá
todo mundo lá em cima — falou afobado enquanto su-
bia as escadas.
— Vai na frente!
— Qual seu problema, Eduarda? Fala pra 100 mil
pessoas no instagram e é incapaz de conversar com doze
moleques que fazem festas no Rio de Janeiro. Franca-
mente... — prosseguiu com ar de desprezo.

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Duda Riedel

— Francamente o caramba! Você tá atrasado e


não tem direito de falar nada.
— Vem cá, por que você tá falando meio estranho?
— Eu fui na dentista hoje, acho que tô com uma
bactéria na boca...
— O QUÊ? Eduarda, esse carnaval te rendeu, hein
bebê?
— Sem brincadeiras, Vicente! Tô aqui me segu-
rando.
Entramos na sala e estava um frio estrondoso, me
tremi inteira e um calafrio me subiu pela espinha das cos-
tas. Comecei a cumprimentar todas aquelas pessoas que
eu já via fatalmente todo final de semana, mas fingi que
era a primeira vez que os conhecia. Olhei pra frente e vi
o Henrique. Ele era mais um daqueles que eu via em to-
dos os lugares. A diferença era que eu o chamava de “Sr.
prazer” pra todos meus amigos. A história era até um
pouco engraçada.
O Henrique trabalhava com a publicidade das cer-
vejas de agências de evento. Tinha vinte e cinco anos e
trabalhava com cerveja, um sonho de profissão. Eu sem-
pre achei incrível a maneira como ele montava tudo e
me dava uma grande admiração. Mas ele devia conhe-
cer muita gente, certo? Então, sempre que ele me en-
contrava nos lugares com pessoas que ele conhecia, ele
se apresentava e falava: “Prazer, Henrique!”. Eu poderia
contar nas mãos quantas vezes ele tinha se apresentado,

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mas acho que faltariam dedos. Vou na direção dele, es-


perando que, no mínimo, daquela vez, ele se lembrasse
de mim.
— Oi, prazer! Henrique — respondeu entusiasmado.
— Oi, prazer... Duda — respondi, sem mostrar muito
os dentes para ele não ver que eu estava parecendo o
Edward depois de chupar todo o sangue do pescoço da
Bella.
Acho que mais uma vez o Sr. Prazer fez questão de
se apresentar... Como era educado esse menino. Será
que ele fazia pra me sacanear ou realmente minha cara
era tão comum e insignificante para que ele não guar-
dasse na memória?
A reunião começou, e eu não dei um pio. Algumas
vezes, me sentia tonta a ponto de desmaiar, então fixei
minha visão em um ponto. Ele. Durante todo o tempo, eu
olhava pra aquele menino, fascinada. A forma como ele
amava o trabalho dele me inspirava. Dá uma certa inveja
quando vemos pessoas felizes na profissão. Existem pes-
quisas que dizem que mais de 70% da população brasi-
leira não gosta do que faz, eu queria estar naqueles 30%
de que ele fazia parte, porque claramente ele amava
aquele emprego.
Eu trabalhava em uma loja como vendedora, rece-
bendo R$ 1500 por mês e detestando o que fazia. Esse
dinheiro pagava algumas contas, o que era ótimo, mas
me dava dor de cabeça, tirava meu sono e não me

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satisfazia. Eu não gostava de ser vendedora, mas resolvi


aceitar apenas por precisar muito do dinheiro. No co-
meço, prometi que seria apenas por dois meses até en-
contrar algo na minha área, mas, depois que os meses
foram passando e nada surgia, fui me conformando com
a realidade em que havia me metido.
Atualmente, é difícil arranjar qualquer trabalho, ima-
gine um trabalho que te deixe completamente realizada
profissionalmente, na sua área, recebendo o que você
almeja e com a saúde mental intacta. Por isso, nós nos
conformamos com nossa realidade e tentamos não
mudá-la, temos medo do que poderá substituir. Um con-
formismo banal e coberto de inseguranças. Eu era extre-
mamente insegura.
Quantas vezes você esteve apenas “satisfeito” ao
invés de realizado e não fez nada para trocar essa situa-
ção? É difícil mudarmos nossa realidade, vivemos com
medo de perder o que já temos. Sentir-se satisfeito é uma
droga, pois a satisfação não te dá margem pra mudan-
ças reais. Eu estava satisfeita, mas estava muito longe de
ser feliz.
A reunião continuava, e eu não conseguia tirar Hen-
rique do meu campo de visão por um minuto sequer. Eu
respirava um pouco mais fundo, bebia uma água, ten-
tava olhar pro lado contrário, mas sentia que ele estava
me observando também. Durante uma fração de segun-
dos, nossos olhares se cruzaram, e eu timidamente desviei
olhando pra baixo.

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Tu tem força, menina!

EDUARDA, para agora com isso! Esse menino namora.


Foca unicamente nos seus ingressos VIPs.

Ao acabar a reunião, todos continuaram sentados


conversando sobre assuntos variados, mas eu não tinha
assunto com ninguém ali e me contentei em pedir meu
UBER para voltar pra casa quando escutei um dos garotos
falar sobre o Henrique.
— É o mais novo solteiro do Brasil. Mulherada vai cair
em cima, parceiro! — Então, eu não tava maluca, ele re-
almente havia trocado olhares comigo.
— Como assim, Henrique? Você acabou? Eu tô cho-
cada, achei que vocês fossem se casar! — completou
uma das meninas. Assuntos como aquele eu dominava
bem, e essa história de que ia se casar? Essa era minha
tour.
— Acabou, acontece. Mas tira isso do foco de vo-
cês fazendo favor.
Já tava vendo tudo, ele era do tipo que não gos-
tava de ninguém dando conta da vida dele. Meu UBER
chegou e fui direto pra casa. Que cansaço era aquele
que me dominava tanto? Deitei na traseira do carro e ar-
ranquei um cochilo enquanto via meu celular tocar com
várias notificações do novo grupo de festas que agora
fazia parte. Todos entusiasmados e felizes em conhecer
uns aos outros. Eu me contentei em apenas mandar uma

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figurinha e silenciar o grupo por um ano. Quem nunca,


não é mesmo?

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O COMEÇO DO FIM

Sabe, menina, eu aprendi que o meio do caminho é um pouco esqui-


sito mesmo. É aquele momento entre a partida e a chegada que parece
eterno. Na partida, a gente vai com todo o gás, sem medo do que vem
por aí; quando a gente vê a reta final, acelera, sabe que falta pouco
pra conseguir. Mas, no meio, tudo parece monótono, desafiador e pre-
ocupante. Falta força pra continuar e sobra vontade de desistir. São
nessas horas que temos que ter paciência e fé. Paciência pra saber que
a Terra gira igual pra todos e que, uma hora, a SUA hora vai chegar.
E é preciso - mais ainda - ter fé. Eu tive fé e, por isso, não sofri tanto.
O recomeço será ainda mais lindo. Não tema a vida, pois ela merece
ser vivida. E, quando pensar em desistir, olhe pra trás e veja o tanto
que já percorreu. O começo do fim nada mais é que um novo recomeço
que está por vir.

Os dias passavam cada vez mais rápidos; o traba-


lho, uma droga; vida amorosa (que vida?), festinhas em
dia, e uma fadiga que se instalava cada vez mais no meu
corpo. Eu realmente não estava feliz com a vida que le-
vava, mas precisava daquele emprego a qualquer custo,
prometi que iria aguentar mais um mês, mas a verdade
era que não dava pra aguentar mais nenhum dia.
— Você gosta mais de blusa de alcinha ou prefere
com uma manga mais curta, sem manga? — questionei
enquanto via a cliente dando uma olhada geral na loja.
— Gosto de algo que me deixe bem e que você me
traga rápido, pois tenho horário no dentista — respondeu
seca.

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Tu tem força, menina!

— Você está ótima. Vou pegar alguns modelos pra


você, aceita uma água?
Ela olhou pra mim com desdém e continuou dando
uma olhada na loja. Subi as escadas correndo, procurei
todas as blusas com alças, sem alças, manga longa,
manga curta e tamanho M. Enquanto me abaixava pra
pegar a última peça, desequilibrei e caí sentada no
chão. O estoquista – que é muito meu amigo – pronta-
mente pegou uma água e completou:
— Duda, você está branca feito uma parede, o que
houve? — Ele me abanava com um pedaço de papelão.
— Dia difícil, Lu, mais uma daquelas clientes que não
dão bom dia. — Me levantei rapidamente e peguei todas
as blusas.
Enquanto descia as escadas com rapidez e mais de
vinte peças na mão para não perder mais nenhum se-
gundo, ouvi minha gerente me chamar baixinho:
— Que cara pálida é essa? Passa uma maquiagem,
você está com cara de doente. — Ela riu e me entregou
um batom vermelho.
— Tô com pressa, essa cliente vai me matar se eu
não descer agora e ainda faltam R$ 1500 reais para eu
bater minha cota do dia. — O valor que eu precisava
vender em um dia de trabalho era o que eu ganhava em
um mês todo. O capitalismo é realmente frustrante.
— Ok, mas não posso deixar você descer assim pro
salão. Passa rápido o batom. — Passei e conferi no

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espelho pra ver se não tinha manchado meu dente.


Desci as escadas na maior velocidade possível e, quando
cheguei lá, a cliente simplesmente havia sumido.
— Onde ela está? — perguntei à caixa.
— Ela disse que tinha horário e que você estava de-
morando muito... — A bendita tinha ido embora. — Mas
pode ser que ela volte, Duda. Se acalma.
— Não vou bater a cota esse mês de novo. — En-
quanto eu dobrava as roupas, a cliente surgiu.
— Meu dentista está atrasado, vou dar uma olhada
enquanto não me chamam. — Mais uma vez sem ne-
nhum sorriso.
— Olha, ela voltou! Vai rápido! — Suspirou minha
amiga baixinho
— Oi, trouxe essas peças pra você. — Sorri e come-
cei a mostrar delicadamente, só então notei que, ao in-
vés de blusas, eu tinha pegado shorts da mesma es-
tampa. Minha cabeça estava um caos.
— Menina, você não ouviu que eu queria blusa?
Como que você me desce tudo isso de short, não tenho
mais idade pra usar short. E cade a água que você disse
que iria trazer? — Grosseria a gente vê por aqui.
— Peço desculpas, eu confundi porque estamos
mudando as peças de lugar no estoque. Mas já trago sua
água.
— Não precisa mais, já vou indo. — E saiu sem agra-
decer ou ao menos se desculpar.

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Tu tem força, menina!

Liguei aos prantos pra minha mãe como um pedido


de socorro. Nessas horas, conselho de mãe é conselho di-
vino e só ela poderia acalmar meu coração. Alguma vez
na sua vida você sentiu como se estivesse encurralada
em uma situação e não enxergava nenhuma saída para
aquele momento? Você olhava pra frente e apenas via
uma nuvem tapando qualquer perspectiva a que você
pudesse se agarrar? Era assim que eu me sentia. Sem for-
ças para dominar meu estresse emocional, sem brilho pra
buscar meus sonhos e sem esperança para mudar minha
perspectiva.
— Então pede demissão agora, eu não gosto de te
ver assim, Zizi. — Era o aval de que eu precisava para se-
guir em frente, eu sempre precisei muito de uma libera-
ção externa pra tomar decisões importantes da minha
própria vida.
— Mas eu vou viver de que, mãe? Fotossíntese? —
Como sempre, pensando em dinheiro, a gente se apega
a isso de tal forma...
— Não, você vai economizar o dinheiro que ga-
nhou, já vai lançar seu primeiro livro e tudo bem. Vai ser
apenas um mês sem trabalhar. Você foca em coisas no-
vas, Duda. — A voz dela parecia trêmula e abalada.
— Ok, então eu peço demissão amanhã, mas com
medo do futuro que me espera. — Eu estava apavorada.
— Do futuro, ninguém tem domínio, mas seu pre-
sente é você quem faz! Sai logo disso e vai viver.

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Era isso que eu precisava ouvir, sabe? Tem horas que


o conforto e a palavra de quem te botou nesse mundão
soa como um abrigo pro coração e um sorriso pra alma.
E aí você respira mais aliviado por saber que não está e
nunca estará sozinho.
Arrisco dizer que o dia que antecedeu meu pedido
de demissão foi um dos dias mais caóticos da minha vida.
Eu não pregava o olho. Era um misto de alívio com incer-
teza que dominava todo meu corpo. Sempre que temos
que tomar uma decisão em nossas vidas nós lidamos com
sentimentos muito profundos. Isso porque tomar uma de-
cisão nunca é algo que transmite nossa real certeza mo-
mentânea. Sempre resta uma dúvida, insegurança e
questionamento. Existe uma frase que diz: a vida começa
com coragem e termina com gratidão. Por mais convicto
que você esteja do que você quer mudar, você vai pre-
cisar de muita coragem. E ser corajoso é uma atitude no-
bre, porém extremamente desgastante. Tomei três mela-
toninas na esperança de dormir e não fizeram nem cos-
quinha no meu sono. A noite, no caso, foi repensando
tudo mesmo.
No dia seguinte, tomei um café da manhã delicioso,
eu estava a um passo de finalmente fazer algo pelo meu
bem-estar pessoal. Abri o grupo de festas de que agora
fazia parte e li a seguinte mensagem:

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Tu tem força, menina!

“Festinha domingo, só pra convidados! Vai ser bom pra geral se co-
nhecer melhor. Podem pegar algumas cervejas com o Henrique mais
tarde! Só vamos!”

Se aquilo não era uma mensagem do divino, nem


sabia mais o que era. Ia comemorar meu desemprego
domingo e naquele dia mesmo ia gelar aquela cerveja
pra comemorar o novo passo. Tinha como ficar melhor?
Minha chefe chegou e imediatamente a puxei para
conversar. Expliquei toda a situação, e ela, com o olhar
triste, porém feliz pela minha sinceridade, abriu um sorriso
e me desejou nada mais nada menos do que felicidades.
— Então, mocinha, espero que você trilhe agora o
caminho dos seus sonhos, fico feliz que foi honesta co-
migo — completou.
— Obrigada por entender e pode deixar que eu vou
cumprir o aviso prévio — respondi, aliviada.
— Ótimo, assinamos sua carta de demissão na se-
gunda-feira.
Olhei pra ela com a certeza de que tinha feito a es-
colha certa. Seria apenas um mês a mais ali dentro, e eu
já não teria aquela pressão que me atormentava tanto.
Tudo certo, novo ciclo, nova fase. No horário de almoço,
mandei uma mensagem pro Sr. Prazer para buscar mi-
nhas cervejinhas pro final de semana, ainda aproveitei
pra soltar um flerte, afinal, a gente ficou desempregada,
mas continua dando trabalho, né manas?

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Duda Riedel

“Oi, Henrique, preciso pegar as cervejas com você mais tarde. Pode ser
às 18h? E ah... tem alguma gelada aí? Pedi demissão, então preciso
relaxar”.

Eu estava afiada no quesito solteirice, o que uma


dose de amor próprio e autoconfiança não fazem, hein
irmãs? A verdade é que, quando você se sente segura
em relação a você mesma, nada nem ninguém tira essa
paz interior que você conquistou pós término. É como um
passarinho saindo da casca e aprendendo a voar. Eu sei
que é meio brega pensar dessa forma, mas imagina só!
No começo, ele não voa muito bem, leva algumas que-
das e tropeções, mas, quando pega o ritmo, meu par-
ceiro, o bichinho vai até a Austrália com toda essa liber-
dade e força de vontade.

“Oi, Duda, confirmado! Vou esperar você aqui e prometo a cerveja ge-
lada pra gente comemorar seu desemprego”

Entrei no escritório meio sem graça, olhei para os la-


dos e nada dele lá. Sério que ele não estaria presente?
Eu inclusive já tinha ensaiado meu flerte tímido para
aquele momento. Virei de costas, e lá estava ele:
— E aí? Como você está? — perguntou, dando uma
risadinha.
— Bem e desempregada... — completei com a voz
baixa

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Tu tem força, menina!

— Eu sei, espera aí. — E de repente ele tirou uma


cerveja da geladeira do canto. Dei uma risada tímida e
aceitei. — Por que você pediu demissão?
— Eu odiava aquele trabalho... — O que não era
uma mentira, mas vamos se controlar porque eu não ti-
nha intimidade. Eu não podia ver uma oportunidade de
desabafar com alguém que já começava, já dizia Seu
Antônio, meu porteiro.
— Eu também odiava o meu anterior... Já trabalhei
no mercado financeiro e foi um estresse... Mas passa!
Você vai ver que agora as coisas vão mudar.
Então, ali tínhamos duas questões a serem analisa-
das:

1) Se lembra quando eu disse que apenas 30% da popula-


ção está realizada profissionalmente? O Henrique já esteve do
outro lado da moeda e ele mudou a perspectiva dele. As coisas
não acontecem com facilidade pra todo mundo, mas sempre
preferimos julgar o livro pela capa e pensar que nossa vida é
sempre a mais complicada. Com certeza ele ralou muito pra
encontrar o emprego dos sonhos dele.
2) “As coisas vão mudar”. Era mais que um conselho, era
uma esperança de que essa fase ia acabar e eu poderia – final-
mente – me realizar no que eu de fato amava fazer. Ele tam-
bém já tinha passado por isso e me entendia. Empatia é a me-
lhor forma de compreensão. Tem algumas palavras que são

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Duda Riedel

como café quentinho na manhã fria da segunda-feira, aquecem


a alma e dão um gás.

— Então, você veio de carro ou pediu UBER? Posso


deixar as bebidas no porta-malas pra você — pergun-
tou, friamente.
— É... – Outch, eu esperava pelo menos que a gente
conversasse por mais alguns segundos e não um fora as-
sim de cara. — Eu vou pedir o UBER agora.
— Ok, sem problemas. — Ele sentou na sacada da
janela e continuou falando comigo. Olhei pro meu lado
e tinha uma cadeira totalmente vazia. Custava sentar
mais perto de mim? Será que eu estava fedendo? — An-
siosa pra domingo?
— Sim, muito! Vou com minhas amigas, você co-
nhece elas eu acho.. A Carol, a Bruna...
— Você é amiga delas? Essa cidade é pequena
mesmo, nunca te vi. — Olhei para ele com uma cara de
deboche, e ele riu. – Desculpa, sempre corro tanto nesses
eventos que, às vezes, acabo me perdendo nas pessoas.
— Meu UBER chegou, pode me ajudar? — respondi,
seca.
Ele desceu comigo até o carro e colocou as bebi-
das no banco traseiro, me despedi com um beijo e um
abraço. Ele olhou pra mim e falou:
— Fica bem, você vai ser mais feliz fora desse lugar
que te fazia mal.

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Tu tem força, menina!

Naquele momento – obviamente, pois vocês me co-


nhecem – eu já planejei toda nossa lua de mel e casa-
mento. Sim, sou intensa. Respeitem, pois sei que vocês
também são. O que acontece é que tem algumas pes-
soas que têm o poder de não saírem da nossa cabeça.
Deveria inclusive existir um shampoo de esquecimento
para esses casos. Elas ficam ali, na sua mente, lembrando
que existem. Você está muito bem vivendo sua vida e até
um simples copo de água te faz recordar a criatura em
questão. É assustador. Você muda o foco, a atenção,
troca o discurso e, de repente, lá volta aquele pensa-
mento. Sabe o nome disso? Paixão fulminante.
Se eu pudesse explicar metaforicamente o que seria
uma paixão à primeira vista, eu usaria comida como
exemplo. Vamos supor que você vai em um restaurante
e come um prato delicioso que, além de mexer com sua
barriga, mexe com seu psicológico. Aquele que te faz
lembrar alguma memória afetiva, sabe? Pois bem, pai-
xões são assim. Marcantes como um bom prato de massa
ou um delicioso hamburger. E o problema de comidas as-
sim é que você quer muito repetir, até um momento
quando ela se torna sua preferida, e isso significa que vira
amor, ou você enjoa, o que te comprova que não era
paixão, e sim fogo no rabo.
Bem, eu já sabia que queria bastante ficar com ele,
mas eu não sabia se ele queria muito ficar comigo. E a
insegurança era a chave para a paranoia. Nós precisa-
mos urgentemente parar de sofrer por antecedência. Eu

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Duda Riedel

sou uma dessas pessoas que não consegue não ter con-
trole da situação, e, se eu não consigo ler perfeitamente
os sentimentos do outro, isso me causa pânico. Só que –
cá entre nós – não temos domínio do nossos próprios sen-
timentos. Quantas vezes nos desesperamos por não saber
exatamente o que sentimos, o que queremos, de quem
gostamos? A gente sempre acha mais fácil entender o
outro e arriscar palpites, sendo que nós mesmos somos
uma caixa de surpresas pra gente. E aí a paranoia toma
conta de uma situação que ainda nem aconteceu e
nem sabíamos se iria acontecer. Prazer, essa é a vida de
uma pessoa ansiosa.
Domingo chegou e, com ele, os batimentos cardía-
cos acelerados. Uma mulher decidida da mira dela não
quer guerra com ninguém, a não ser que a guerra seja
com a sua impulsividade própria. O dia estava sem uma
nuvem no céu, meu cabelo – ainda bem – acordou de
bom humor, minha roupa – que eu já tinha trocado mais
de 100 vezes – estava sensacional, e minha autoestima,
elevada. Pronta pro ataque. Exceto por um motivo.
— Você emagreceu muito, amiga, que dieta é
essa? — curiosa, Carol me questionou.
— Acho que foi o nervosismo da demissão, não te-
nho comido muito bem... — Eu não tinha apetite algum,
no máximo duas refeições por dia.
— Nossa, Duda, mas você emagreceu muito
mesmo. Isso não pode ser saudável — interrompeu Bruna
enquanto me olhava com aquele julgamento de mãe.

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Tu tem força, menina!

— Gente, qual foi? Estou magra demais, ok, mas eu


recupero. Vou passar muito tempo em casa comendo
doritos e óreo. — Enquanto me levantava da cama, uma
tontura me fez enxergar tudo preto ao meu redor.
— Que foi? Por que você está pálida feito um pal-
mito? — Carol me segurou, e eu apertava sua mão com
força para não cair.
—Acho que levantei muito rápido. Eu tenho pressão
baixa, deve ter sido isso. — Dei de ombros e andei em di-
reção ao banheiro.
— Eu acho que você deveria comer algo, vou fazer
um sanduíche. — Bruna saiu e foi para cozinha fazer um
misto quente, Carol a seguiu, e eu ouvia elas cochicha-
rem sobre mim.
— Sinceramente, ela tá muito branca — sussurrou
baixinho.
— Ela é muito branca, Carol. Você já viu a Duda ir à
praia sem ser pra tirar foto pro instagram? — Será que elas
sabiam que meu apartamento só tinha cinquenta metros
quadrados e que era possível ouvir tudo?
— Ok, mas você não acha esquisito essas tonturas?
Esses dias a gente foi almoçar, e ela quase desmaiou. Eu
acho que ela pode tá grávida. Quanto tempo ela e o
João não transam? Deus me livre ele ser o pai...
— EEEEI, JÁ FAZ 4 MESES! — dei um grito do banheiro.
— Não era pra você ter ouvido isso! — Bruna gritou
de volta.

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Duda Riedel

— Não era pra vocês cochicharem sobre minha


vida sexual pelas minhas costas e dentro da minha casa.
E vocês são malucas, como eu estaria grávida se acaba-
ram de falar que eu estou mais magra? — Eu tinha mens-
truado há uma semana, impossível ter um bebê ali.
— Conheço uma série da HBO que investiga gravi-
dez de meninas que não sabiam que estavam grávidas.
Uma delas não tinha barriga até o oitavo mês. — Carolina
sempre com comentários desnecessários.
— Ótimo, agora vou ter que ir na farmácia comprar
um teste. Obrigada, Carol — respondi friamente en-
quanto comia meu sanduíche.
— Ninguém aqui está grávida, certo? Mas você pre-
cisa se alimentar melhor. — Bruna me deu mais um san-
duiche.
— Não estou grávida, mas hoje irei beijar o futuro pai
dos meus filhos. — Apertei sua bochecha, e ela me deu
um tapinha no ombro.
— Eu amo a intensidade dessa menina — retrucou
Bruna.
Intensidade era palavra de ordem no meu vocabu-
lário. Sempre fui e sempre serei intensa. Mania das pes-
soas de quererem botar o pé no freio. Ninguém sabe o
dia de amanhã. Um dia você está aqui e, no outro, sim-
plesmente você pode não estar. E aí você vive sua vida
com aquele ar de cuidado e precaução na tentativa de
se blindar de – unicamente – viver.

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Tu tem força, menina!

Cheguei na festa, e o Henrique foi a primeira pessoa


que vi. Olhei de longe ele correndo de um lado pro outro
com todo aquele ar de sabichão ariano. Obviamente, eu
já tinha investigado o mapa astral dele. Minhas amigas
foram para o bar pegar bebida, e eu continuei estática
no mesmo lugar. A Gabi veio em minha direção, e ele
logo atrás. Comecei a suar frio como uma adolescente
com hormônios aflorados. Eu o cumprimentei com dois
beijinhos e, logo em seguida, ele já pegou o rádio para
dar bronca em alguém.
— Preciso que mostrem mais o rótulo da cerveja. Da-
qui de baixo, não dá pra ver. Mais pra direita. Não, tá er-
rado assim. Não pode isso — reclamou em alto e bom
som. — Desculpa, vou resolver umas coisas depois nos fa-
lamos?
— Ok, a gente se vê — respondi com timidez.
— Ei, amiga. Sem dramas! Ele tá trabalhando. —
Logo a Gabi, minha amiga mais surtada e insegura, que-
rendo me dar sermão.
— Gabriela, você só pode tá me zoando com essa
good vibes toda...
— Amiga, eu conheço ele há anos, ok? Ele é muito
focado no trabalho. O chefe dele pega no pé depois. E
eu não duvido que, quando acabar tudo, ele converse
com você. Não surta. Pelo menos, você não tá interes-
sada no DJ, porque aí você teria que esperar a festa aca-
bar...

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Duda Riedel

— Se fosse com você, você já estaria surtando, né


linda? — Eu conheço bem minhas amigas
— Justamente, mas é sobre você. 100 mil seguidores
no instagram, conselheira amorosa, rainha do amor pró-
prio e influenciadora digital. Custa ser um pouco na vida
o que você é nas redes sociais? — Outch, doeu!
— Nas redes sociais, eu também mostro que sou a
louca que sempre dá errado com todos os caras... — Não
era uma mentira.
— Ok, bonita! Enquanto o príncipe não convida a
princesinha para a valsa, ela dança com as amigas. Va-
mos? — Pegou minha mão que estava fria como um gelo.
— Quê? Como você pode tá tão gelada nesse calor?
— Não estou gelada, é só nervosismo por ter visto
ele. — Claramente muito apaixonada e com alguns ca-
lafrios esquisitos.
— Eu dou um prêmio pro Henrique se ele te fizer es-
quecer o Bernardo e o João em um único tiro certeiro. —
Ri, e ela continuou — E te dou o Nobel se você fizer ele
esquecer aquela ex dele.
— E eu te dou um prêmio se você parar de falar de
ex, você sabe que odeio esse papo. — Me irritei e saí an-
dando para o palco.
— Ei, para de drama. Tenha paciência e calma, ele
tá a fim de você amiga!
Ter calma e paciência. Nunca fui uma pessoa pa-
ciente. Pelo contrário, eu era justamente o oposto que a

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Tu tem força, menina!

palavra paciência propunha. Sempre quis ter tudo na


mão e me irritava quando as coisas não saíam como o
planejado. Eu tinha um script de toda minha vida deta-
lhada para os próximos três meses. Eu tinha inclusive uma
lista de metas que eu deveria bater em um, cinco e dez
anos. Metas essas que incluíam sonhos absurdos que não
dependiam só de mim para serem solucionados. Por
exemplo: eu deveria casar, ter filhos e ter minha casa pró-
pria antes dos trinta e dois anos. Mas e se eu não encon-
trasse um marido até lá? O que eu faria? Surtaria obvia-
mente, pois eu não poderia dar check nesse item.
Existe um ditado milenar e que muitos de nós já ou-
vimos em momentos difíceis: “viva um dia de cada vez”.
Essa é uma dessas lições que recebemos em um biscoito
da sorte chinês e sempre gostamos de falar quando ve-
mos alguém querido passando por situações complica-
das. Só que, do lado oposto, quem escuta essa frase
sente uma vontade incalculável de socar a cara de
quem promove esse discurso.
Entrega. Ato de entregar-se. Dar. Doar-se. A ver-
dade é que nós todos recebemos uma missão, todos sa-
bemos que temos um propósito neste plano espiritual,
mas, ao longo da vida - pelas cobranças e afastamentos
-, nós nos desconectamos dele. E aí o tempo para e te
relembra da sua importância em Terra e de seu efeito de
mudança e evolução. Não só pra você, mas pra todo o
universo.

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Duda Riedel

A vida é uma verdadeira entrega sem conhecer o


caminho. Você não tem como saber como estará daqui
um, cinco ou dez anos. Você pode planejar muito, mas
não tem como ter a convicta certeza de como tudo es-
tará. E pessoas ansiosas sofrem em não ter essa previsão.
A imprevisão corrói e te deixa maluco.
A vida não te mostra um trailer do que vem por aí,
ela não prepara o terreno, muito menos te coloca um si-
nal florescente piscando para que você note que: “Ei!
Você não está aqui só de passagem, você tem uma li-
ção”. Ela não te cobra, mas ela te dá sinais. E você fica
aí fugindo deles, achando que o que importa é viver
aquela vidinha de passagem dando os “ok’s” diários
como se sua vida fosse uma lista de mercado. Não é as-
sim. E a vida te dá oportunidades, mas você prefere des-
perdiçá-las focando no que não te acrescenta nem te
importa. Prefere reclamar da segunda-feira, do dia chu-
voso, do trânsito parado e do dia não aproveitado. Pre-
fere focar em pedir, em não agradecer, em reclamar do
viver e do que você tem que fazer.
Pois bem, a vida não é cruel, nós somos. E então a
vida vem te parar e comunicar: “aqui está seu mais novo
desafio”. E o que fazemos? Reclamamos mais uma vez.
Recebemos como um castigo aquilo que pode ser utili-
zado como oportunidade de evolução, nos vitimizamos e
gritamos aos quatro ventos “por que isso só acontece co-
migo?”. Nos esquecemos que (re)clamar nada mais é
que clamar para que aconteça novamente. Por isso,

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Tu tem força, menina!

antes de pedir para que o universo reentregue a mesma


lição que ele está há anos tentando te ensinar, aprenda
com ele o que você precisa lidar para, assim, solucioná-
lo. Não fuja dos sinais, nem tenha medo da falta de pre-
visão. Afinal, os planos do divino são sempre muito maio-
res e melhores do que os nossos, mas preferimos não en-
xergar por medo de nos entregarmos.
O medo da entrega, de deixar na mão do universo,
Deus, ou queira lá como você prefira chamar, é muito en-
carado por muitos como: falta de responsabilidade. Al-
guns enxergam até como preguiça ou desleixo. Não é
pra ser assim. Não é que você vai deixar a vida te levar e
ficar flutuando como uma nuvem no céu, a verdade é
que: VOCÊ NÃO PRECISA TER CONTROLE DE TUDO. E tudo
bem! A gente precisa aprender a enxergar a beleza do
percurso. Respire em momentos que saem do controle,
são neles que o verdadeiro significado de viver aparece.
E, naquele dia, eu respirei, respirei tanto que achei
que fosse faltar ar para os que estavam ao meu redor. Já
tinha escurecido e, até então, nenhum sinal do Henrique.
E tudo bem! Porque eu estava com minhas amigas dan-
çando e lidando muito bem com toda aquela ansiedade
de “vai ou não vai”.
Por um instante, olhei para o lado e percebi que o
Vicente não estava mais ali, perguntei a todos sobre no-
tícias dele e ninguém sabia onde ele estava. Olhei pra
trás e notei que a ex-namorada maluca dele estava
perto e então já percebi tudo: ele devia ter ido embora

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Duda Riedel

com raiva. Saí correndo em busca do meu melhor amigo,


pois sabia que ele devia precisar de mim e, então, esbar-
rei com o Henrique.
— Opa, opa, tá fugindo de quem mocinha? — per-
guntou, intrigado.
— De ninguém, você viu o Vicente? Estou atrás dele.
— Eu estava aflita.
— Serve aquele ali atracado com a menina perto
da árvore? — Ele apontou e enxerguei o danado aos bei-
jos. E eu achando que ele estaria sofrendo por ex.
— Errr.... serve — respondi, tímida. — Achei que ele
precisasse de mim, enfim vou indo. — Saí na direção con-
trária.
— Espera. — Ele segurou minha mão e, naquele mo-
mento, tenham certeza de uma coisa: eu não sentia mais
meu corpo. — Quer uma? — ele me entregou uma cer-
veja.
— Achei que já tivesse acabado seu horário de tra-
balho. — Dei uma risada.
— A parte boa de trabalhar com cerveja é que sem-
pre tenho uma pra oferecer...
— É, podemos dar sequência a uma boa amizade
se você continuar me dando uma cada vez que a gente
se encontrar. — Ele me olhou torto. — Ou não também —
respondi mais seca.

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Tu tem força, menina!

— Você pode achar esquisito, mas eu pensei em


você desde o dia daquela reunião. — Ele ficou vermelhi-
nho, acho tão fofo meninos tímidos.
— Conheço esse papo — E conhecia muito bem. —
E a recíproca é verdadeira. — Ri.
Eu não preciso nem falar que, depois disso, nos bei-
jamos. Não foi um beijo normal, foi mais um daqueles bei-
jos mágicos em que nos filmes a mocinha levantaria a
pontinha do pé e uma trilha musical romântica tocaria ao
fundo.
Eu sempre tive dedo podre para relacionamentos,
sempre me decepcionei muito no amor, mas um fato era
verdade: eu nunca deixava de acreditar que o amor po-
deria dar certo. Algumas vezes, eu ainda caía naquele
papo cafona de: “eu vou pra azaração, não estou nem
aí pra romance”. Mas, no fundo, aquela vontade de ca-
funé e cheirinho de domingo com sofá quentinho palpi-
tava no meu coração.
Eu sentia falta de ter um companheiro e não era por
não me amar ou por não conseguir ficar sozinha. Pelo
contrário, eu já sabia esse alfabeto completo. Sabia en-
carar a sexta à noite chuvosa sozinha, o sábado de noite
em casa tomando um bom vinho e a segunda-feira can-
sativa depois de um domingo. Eu sabia que minha própria
companhia seria meu maior templo e fiel escudeiro, mas
tinha horas que dava falta, sabe? Falta de ter alguém pra
simplesmente compartilhar. Eu sentia falta de um

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relacionamento porque amar é um sentimento muito


bom e genuíno pra ser desperdiçado.
As pessoas banalizaram muito o amor. Estragaram o
real sentido dele com tantos medos e inseguranças. Re-
lações amorosas se tornaram rasas, agora é sexo e cada
um pra sua casa. Eu queria muito mais que isso, eu queria
um companheiro. E o que há de errado em querer um
pouco de amor?

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Tu tem força, menina!

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PAIXÃO FULMINANTE

Oi, então, estou te entregando meu coração e, com isso, quero te dizer
algumas coisas. Ele é frágil, pois já foi muito despedaçado. Ele é frio,
pois já aqueceu ambientes que não o mereciam. Ele é espinhoso, pra
se defender de mãos que podem tentar amassá-lo. Por fora, ele não fi-
cou em bom estado, mas, se tiver a capacidade de vê-lo por dentro,
você há de se surpreender. Amar me fez ter medo de acreditar. É que
nesse conto de falhas da vida real tudo é meio torto e errado, esquisito
e bizarro. Nessa loucura de tentar dar mais uma chance - talvez a
centésima -, as coisas saíram um pouco do controle e resolvi deixar
rolar. Primeiro, me desculpa se, às vezes, eu não acredito em uma pa-
lavra do que você fala, pois uma vez já me deram o dicionário inteiro
de mentiras. Depois, me perdoa por não conseguir falar o que sinto,
perdi a voz depois de gritar aos quatro ventos que eu amei quem não
merecia isso. Eu tenho esse jeito meio desastrado de me relacionar,
essa vocação maluca de sofrer por amores infundados. Essa loucura
de suposição. Esse pé atrás cheio de indecisão. Mas, dessa vez, eu vou
finalmente entregar. Faz um favor pra mim? Cuida bem dele. Se al-
guém mais o machucar, acho que não vai ter outra solução que não
seja enterrar.

Desse dia em diante, não nos desgrudamos, eu me


apeguei ao Henrique como uma menina de quinze anos
que acabava de se entregar pela primeira vez. Sabe
todo aquele papo de “não entra de cabeça”, “vai com
calma”, “não se apega tão rápido”? Minha amiga, eu jo-
guei todo esse manual de instruções no lixo.
Embora uma parte de mim mandasse eu ter certa
cautela com tanta afobação, outra voz ecoava dentro

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Tu tem força, menina!

e falava “vive isso, sim, você merece”. Eu sabia o que eu


merecia. Merecia ser feliz e pronto. Mas dá tanto medo,
não é? Medo de machucar o mesmo machucado.
Porém, apesar da insegurança do “e se eu me de-
cepcionar de novo?”, eu resolvi deixar fluir, e foi bom. A
verdade é que foi deixando fluir que eu percebi que esse
coração despedaçado ainda era capaz de amar. Fazia
tempo que eu não tinha mais brilho no olhar ao falar de
alguém nem sorria boba olhando uma mensagem no ce-
lular. O Henrique despertou isso em mim.
Eu ainda tinha muitos medos, alguns que não pode-
riam ser solucionados tão facilmente assim. Feridas passa-
das, algumas até abertas e não cicatrizadas. Mas eu pa-
rei de me cobrar e de me sentir culpada por apenas sen-
tir. E eu - finalmente – senti novamente. E que maravilha é
o arrepio na alma, borboletas na barriga e pernas bam-
bas e descontroladas.
Eu me enfiava dentro de um duelo em que a razão
exigia que eu lembrasse de tudo que já tinha aprendido
ao longo de uma vida de quebrar a cara, e o coração
queria apenas me fazer sentir, sem ter que me prender. E
nessas horas, quem devemos ouvir?
Quem grita mais alto é que merece ser escutado. E
meu coração exigia que eu vivesse aquilo ali, sem medo,
sem angústia, apenas com leveza. A gente tem vivido de
esperas e esquecemos de dar o pontapé inicial, espera-
mos o amor pra expressar amor e, por isso, vivemos com
tanto medo de amar. Partir na frente exige coragem,

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amor não é para os fracos. Amar requer valentia. Dizem


que o amor dói porque não amamos, ou porque não é
correspondido, mas, às vezes, é por amar demais que
sentimos tamanha dor. Esse amor que se manifesta não
deve ser economizado, mas sim ser muito bem entregue.
Amor não é egoísmo, é se doar. Tenho pensado em como
nós tomamos as decisões na intenção de sermos felizes,
mas isso nos torna egoístas. Nós devemos - mesmo - é to-
mar nossas decisões por amor, só ele é capaz de sarar a
dor causada por sua falta aqui na Terra. O amor cura,
mas, pra curar, a sua missão é amar primeiro, sem ver
quem nem pra que, sem intuito e sem razão, sem esperar
e querer receber, apenas por amar e ser.
Quatro dias depois que ficamos pela primeira vez,
tivemos nosso primeiro encontro. Eu suava como um
porco, tomei um banho de perfume e tentava conter a
ansiedade a qualquer custo. Era impossível. Por que pri-
meiros encontros mexem tanto com nosso psicológico?
Abri o guarda-roupa mais de nove vezes em busca
de alguma roupa que me deixasse à altura do que seria
aquele momento. Nada ficava bom. Aos poucos, o
tempo ia passando, e o desespero se instalava. Amigas,
dica importante: prepare a roupa do primeiro encontro
com, no mínimo, uma semana de antecedência. E tenha
a certeza de uma coisa: você vai se produzir inteira, eles
vão apenas procurar uma blusa preta e passar perfume.
— O que você acha dessa? – mostrava a roupa pelo
facetime para a Gabi.

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Tu tem força, menina!

— Gosto, mas você não acha que tá muito arru-


mada? — Ela se encontrava de pijama comendo uma
panela de brigadeiro.
— Eu nem sei mais o que é ter um primeiro encontro,
todos que eu tinha com o João eu estava bêbada. —
Procurei outra blusa mais despojada.
— Amiga, eu gosto de te ver assim. — Ela parou e
me olhou pela tela do celular
— Nervosa? Que tipo de amiga você é? Estou à
beira de um colapso.
— Não, amiga, eu gosto de te ver assim, leve... Sem
ter domínio do que vai vir. Eu sei que você odeia quando
jogo expectativas, mas sinto que vocês dois vão se encai-
xar muito... — completou.
— Só vamos nos encaixar se eu arranjar uma roupa
pra esse momento, senão nem primeiro encontro vai ter.
— Minha respiração acelerava cada vez mais.
— Você tá linda! Bom encontro. Me liga quando ter-
minar... Isso é se terminar hoje...
Primeiros encontros causam tormento por medo do
desconhecido. Seria ótimo se viesse acompanhado de
cinco minutos de trailer pra gente ter certeza de onde
está se metendo. Como isso não é possível, nós mergulha-
mos em um mar de incertezas, o que explica o frio na bar-
riga.
A verdade é que você tem 25% de chance de ter
um péssimo encontro, daqueles que te dá a certeza de

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que você não quer repetir aquilo. Você tem 25% de


chance de ter algo indefinido – e esse é um péssimo caso
– que te dá a possibilidade de ter um segundo encontro
para tirar a dúvida. Outros 25% de certeza de que foi
muito bom, e você quer repetir. E 25% de certeza que
você quer continuar tendo essa pessoa na sua vida por
muito tempo, pois você já está apaixonada. Eu nunca fui
boa em matemática, tampouco em estatísticas, mas, de
uma coisa eu tenho certeza: números podem mentir, mas
o coração não.
Meu primeiro encontro durou oito horas. Primeiro, fo-
mos comer sushi, e o restaurante fechou. Então, fomos
para um bar continuar com o papo. O bar fechou. Con-
tinuamos sentados lá fora enquanto víamos os funcioná-
rios recolhendo as cadeiras e mesas. Todas as mesas e
cadeiras foram recolhidas, não restou ninguém na rua.
Decidimos ir para minha casa.
Você pode pensar que foi uma atitude precipitada.
Muitos vem com o discurso do “não se pode fazer sexo no
primeiro encontro”. Eu sou uma dessas que acha que não
é a melhor coisa a ser feita, mas, ali, eu só queria aprovei-
tar o momento.
É tão difícil a gente encontrar alguém interessante
que, quando isso acontece, a gente guarda o bilhete da
loteria, pois vale muito. Ainda é mais difícil você encontrar
alguém em que a química é tão boa quanto a pessoa.
Relacionamentos humanos são complicados. Às ve-
zes, a pessoa é legal, mas o sexo é uma droga. Às vezes,

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o sexo é incrível, mas a pessoa não está nem aí pra você.


E então, quando você encontra alguém cuja combina-
ção de sexo e pessoa é a perfeita, ela acabou um na-
moro recentemente e não quer se envolver. Pois bem,
adivinha qual o meu caso? Exatamente.
Eu já tinha lidado com recém solteiros, e eu também
em algum momento da vida já tinha sido uma. Eu sabia
o quanto o fantasma do ex batia na porta e deixava a
gente confuso, sabia que era muito arriscado me entre-
gar assim pra alguém que tinha acabado um namoro de
– pasmem – sete anos. Era óbvio que eu estaria brincando
com fogo, mas era como eu sempre dizia: aquariana
com ascendente em áries. Não entendeu o que signi-
fica? Eu traduzo: EU NÃO IA DESISTIR DELE.
Aos poucos, a gente foi construindo uma história, de
forma intensa, porém respeitando os limites dele. A ver-
dade é que, embora eu respeitasse, sabia muito bem o
que queria: namorar. Se apegar é muito fácil quando o
coração já está preparado pra amar, e é ainda mais fácil
quando há recíproca. Imagine só dormir juntos todos os
fins de semana, tomar vinho aos sábados à noite, almoço
na sexta à tarde e netflix no domingo à tarde. Tem como
não se apaixonar?
— Acorda, o despertador tá tocando. — Joguei os
braços dele pra longe de mim, e ele voltou a me abraçar.
— Cinco minutos agarradinho e prometo que já vou
— sussurrou no meu ouvido.

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— Você vai chegar atrasado, lindo! — O QUÊ? EU


CHAMEI ELE DE LINDO? Apelidos carinhosos são um
grande passo em relacionamentos. — Vamos, eu tam-
bém preciso ir.
— Ok, senhorita. Mas você tossiu muito à noite, não
é melhor ir ao médico ver o que é isso? — Levantou-se
rapidamente enquanto andava para o banheiro.
— É, eu sei. Acho que devo estar com sinusite ou
algo do tipo...
— Linda, desde que a gente se conhece, você tá
com essa tosse.
Eu deveria me preocupar com minha saúde, mas
naquele momento só conseguia me concentrar no
“linda”.
— Tá falando que eu atrapalho seu sono? Dorme na
sua casa então... — Rainha do drama que chama?
— Muito bobona. Quer jantar hoje à noite?
E eu tinha mesmo que responder o óbvio?
— Sim. Japa!
— Não sei porque ainda pergunto. — Me deu um
beijo enquanto colocávamos pasta na escova de dente.
Esqueci de mencionar que escova de dente na
casa do respectivo é um super grande passo na relação.
— Por sinal, amanhã tem um churrasco de alguns
amigos. Se você quiser ir comigo... — Olhei assustada, es-
perando a resposta dele.

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Tu tem força, menina!

Enquanto ele bochechava, eu pensava que talvez


eu não devesse ter convidado. Eu estava indo rápido de-
mais naquele relacionamento, tudo bem agir com inten-
sidade desde que eu não criasse expectativas e me de-
cepcionasse (mais uma vez). Eu sei, sou intensa 90% do
tempo, nos outros 10% faço drama por ter agido intensa-
mente. Mas fato era que o Henrique podia não ser assim
e, então, eu estaria o sufocando. Eu não sabia, porque
conhecia ele há no máximo vinte dias.
Ele cuspiu o resto de pasta na pia e enxugou a boca
com minha toalha de mão. Olhei discretamente para sa-
ber se ele iria ignorar a minha pergunta e tentei fingir na-
turalidade passando o fio dental. Aqueles segundos esta-
vam me matando.
— Vamos! Me passa o endereço depois. — Uma to-
nelada acabava de sair das minhas costas com essa res-
posta. — Mas vai logo no médico ver o que é isso. Se-
mana que vem, tem a maior festa que essa cidade já viu,
e quero você 100%.
Agora era oficial: eu estava completa e perdida-
mente apaixonada. Como eu sabia disso? Te conto
agora. Se seus pés tremem ao encontrar a pessoa, se suas
mãos suam ao esperar por ela, se seus olhos brilham
quando ela está diante de você e, se você sorri boba pro
vento enquanto a vê passar, tenha certeza: é paixão.
E não existe um comando ou um botão que você
acione e coloque no modo reset para que pare de sentir
tudo que você tem sentido. Pra ser sincera, caso esse

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botão exista, eu só lamento, pois eu não tenho como


apertar. O controle da minha vida amorosa eu já tinha
perdido e estava apenas no piloto automático. Não tinha
mais como colocar o pé no freio e, a cada dia que pas-
sava, eu me envolvia mais e mais. Só que, pra eles, a
gente nega, não é? Finge que é só uma ficada e que
tudo vai bem do jeito que for. Mas basta algo sair fora do
script que a gente surta.
O roteiro ia bem, mas toda história precisa de um
turning point, ou seja, desfecho. Faltavam oito dias para
a festa mais importante da vida do Henrique. A produtora
dele esperava um ano inteiro pra fazer a maior festa de
eletrônico do Rio. Uma das festas mais esperadas por to-
dos os cariocas e pela cearense aqui também.
Fui pro pronto atendimento saber o que eu tinha e
o porquê daquela tosse chata não sumir de jeito nenhum.
Chegando lá, esperei ser atendida e recebi uma mensa-
gem da minha chefe perguntando se eu não iria traba-
lhar. Sim, eu ainda estava em aviso prévio.

“Você não vem hoje?”

Liguei imediatamente pra ela:


— Laís, me desculpa. Estou no hospital fazendo exa-
mes pra saber que tosse e febre são essas que não so-
mem de jeito nenhum. Assim que eu sair daqui, vou pra
loja. — Eu sabia que ela iria se incomodar.

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Tu tem força, menina!

— Ok, Duda! Vou aguardar.


Entrei no médico e fiz um aparado de exames. Ele
me passou remédios, mas não passava de uma sinusite
normal. Uma semana me cuidando, e eu estaria perfeita
para ser a primeira dama da noite na minha festa prefe-
rida e ao lado do meu cara preferido. Peguei o metrô e
cheguei no meu trabalho, a Laís me chamou pra conver-
sar lá fora, e eu já sabia o que estava por vir.
— Duda, não quero que fique magoada, mas eu tô
vendo o quanto você anda cansada e não quero que
você se desgaste mais. Você já teve inúmeras crises aqui,
e eu penso muito na sua saúde. — A voz dela embargada
dizia tudo, mas preferi perguntar pra ter certeza.
— Eu tô dispensada? Não preciso vir mais trabalhar,
é isso? — questionei ainda sem entender.
— É, eu vejo o quanto você passa mal aqui. Isso é
estresse acumulado. Só falta uma semana mesmo pro
nosso contrato acabar, então acho que é uma boa você
ficar em casa se cuidando...
Aquele era um daqueles foras que a gente até
gosta de receber. Eu estava exausta mesmo, e uma se-
maninha relaxando em casa antes de começar minha
maratona em busca de entrevistas de trabalho ia me aju-
dar.
No trajeto do ônibus, fui olhando a praia, e aquela
sensação de liberdade e o ventinho gelado batendo no
rosto eram como um novo começo. Finalmente, agora –

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mais do que nunca – tudo fluía. Pra quem estava revol-


tada no pilar amoroso e profissional há um mês, a vida
deu um belo giro.

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NÃO É DOENÇA, É BÊNÇÃO

Aprendi - principalmente - que a vida é uma roda gigante, cheia de


altos e baixos. Que nada está tão ruim que não possa melhorar. Nem
sempre tudo vai bem, mas nunca também tudo vai mal, e, no final do
dia, o que fica é aquele sentimento de: “ufa, vencemos mais um!”.
Aprendi que tem vezes - muitas delas - que perdemos a esperança, mas
basta um sopro de fé para ela te mostrar que sempre existirá uma sa-
ída. E sempre existirá. No meio da jornada, vê se não esquece de dar
valor ao que, de fato, importa. Aquele abraço apertado, aquele sorriso
sincero, aquele olhar com cuidado e aquele gesto honesto. E assim a
vida segue. Feliz.

Eu sempre me questionei muito sobre minha existên-


cia. Não sei se todas as pessoas se sentem assim, mas tem
dias que nos perguntamos “o que a gente está fazendo
aqui?”. Por qual motivo, qual o propósito e por qual fina-
lidade viemos à Terra? É angustiante pensar que a vida é
só uma passagem, eu nunca gostei de idealizar minha
vida dessa forma, sempre tive vontade de deixar um
marco importante social. Não sei se seria por ego, ou sim-
plesmente para fazer sentido pra mim.
No colégio, eu nunca fui a aluna nota dez, mas tam-
bém não era a pior de todas. Eu era a famosa “média”.
Digamos que eu passava de raspão e cumpria minhas
obrigações. E chegou um momento da minha vida que
eu senti que ela não era mais nem nota dez nem zero, ela
era exatamente como eu havia sido durante todo o

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ensino médio: uma nota cinco. Você pode pensar que


isso é um bom número, já que é o meio da curva, mas
qual a graça de viver uma vida pela metade?
Quando todos os campos das minhas vidas amo-
rosa, profissional e pessoal iam bem, eu estava feliz e sa-
tisfeita, mas isso durava o quê? Uma semana no máximo,
pois a vida é uma eterna roda gigante cheia de altos e
baixos. E aí, depois que um único detalhe não saía como
o esperado, eu achava que todo o resto estaria total-
mente desgovernado, e isso se tornava motivo de raiva e
insatisfação.
Você pode pensar que, em momentos como esse,
nós nos confortamos em dividir a experiência, pois melhor
que saber que se está na merda é ver que tem tantas ou-
tras pessoas na merda como você, contudo, não é bem
assim. Nós, seres humanos, insistimos em parecer feliz o
tempo todo, como se felicidade fosse constante, e não
um estado de espírito.
Antigamente – quando não se tinha tantas redes so-
ciais –, nós tínhamos que lidar com essa exposição de
“vida perfeita” nos almoços de domingo na casa da avó.
Tinha aquela tia inconveniente cujo filho estudava medi-
cina em Harvard e ela fazia questão de exibir as fotos de-
pois de uma rodada de strogonoff com batata palha e
Coca-Cola. E aí os outros primos - que ainda nem tinham
descoberto o que queriam fazer da vida - davam um sor-
riso coberto de inveja e repleto de angústia e desespero
para aquela situação. “Ah, mas sentir inveja é feio, é

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Duda Riedel

pecado!”. É, concordo, mas a gente sente inveja o


tempo todo porque somos infelizes demais com esse inal-
cançável padrão de perfeição.
Pois bem, antes era difícil lidar com as tias e famílias
de comercial de margarina... Hoje é difícil lidar com uma
rede social onde 100 milhões de pessoas publicam rotinas
deslumbrantes, viagens que talvez nunca faremos, rou-
pas e sapatos que não temos dinheiro pra comprar e uma
vida que só nascendo de novo pelo menos umas cem
vezes pra gente conseguir conquistar.
Ser rico, feliz, bem empregado e satisfeito na internet
é mole, difícil mesmo é ter saúde mental pra entender
que tudo não passa de uma mentira. Vou te contar um
segredo: no final do dia, todo mundo tem pelo menos um
pepino pra resolver. Só que, obviamente, nós sempre
achamos que os nossos problemas são os maiores e pio-
res de todos. A dificuldade do meu 29 de abril de 2019,
uma segunda-feira, era começar a fazer uma dieta e fa-
zer meu almoço da semana para que eu não gastasse
tanto dinheiro no mês. Eu mal imaginava que essa era só
a pontinha do iceberg que viria pela frente, já que eu te-
ria problemas muito maiores.
Fui ao supermercado, comprei algumas frutas, legu-
mes e caminhei pra casa. Olhando pro fogão, senti pre-
guiça e falta de ânimo para fazer qualquer coisa, então
a melhor opção? Delivery de japonês. Dietas não preci-
sam começar na segunda pela manhã, não pode ser se-
gunda à noite? Claro que pode. Deitei no sofá na

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tentativa de assistir ao jornal e dormi. Acordei por volta de


7h40 da noite. “Que cansaço é esse que você sente
tanto, Maria Eduarda?”. Fui pra cozinha e enfrentei a mis-
são de preparar algo pra comer. Sanduíche de pasta de
atum. Leve, saudável e não suja muita coisa. Comi. Abri
o instagram. Rolei o feed umas cinco fotos pra baixo e foi,
a partir desse segundo, que o pesadelo começou.
Vocês já conversaram com Deus? Já sentiram a pre-
sença dele em algum momento da sua vida? Em uma
paisagem, na natureza, em um vento que bate na nossa
pele, na missa, na igreja, ou onde quer que você esteja?
Talvez eu não consiga expor em palavras o que é sentir
uma energia tão forte perto de você, mas tentarei passar
isso da melhor forma. Pesquisei relatos de pessoas que di-
zem ter falado com ele, ter visto Deus e ter ouvido sua voz.
Eu senti isso na pele, e Ele falou por mim.
Sabe quando você se engasga tomando água e
aquele sufoco, aquela agonia, te prende a atenção e a
respiração por alguns segundos? Minha garganta deu
um nó. Eu não estava engasgada, mas eu também não
conseguia falar. Comecei a colocar o dedo na minha go-
ela na tentativa de vomitar o que estaria prendendo mi-
nha respiração, porque eu sentia a presença de algo no
meu pescoço. Coloquei a lanterna do celular, comecei
a analisar o que seria e a forçar mais uma vez para que
algo saísse algo. Sem sucesso.
Comecei a cuspir sentada no chão do banheiro, e
uma borra de sangue foi o sinal que eu esperava. Olhei

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Duda Riedel

para aquilo assustada. Era sangue vivo. Minha cabeça


doía, e eu ouvi: “vai ao hospital”. E quando eu digo que
ouvi, eu não te digo que foi uma voz da minha cabeça,
meu inconsciente falando ou apenas um senso crítico da
minha parte, eu ouvi mesmo uma pessoa falando para
eu ir ao hospital.
Peguei minha carteira e entrei no carro o mais rá-
pido possível. No pronto atendimento, minhas pernas tre-
miam, e eu não conseguia disfarçar meu desespero, não
só por ter visto sangue, mas por estar ouvindo coisas que
não vinham de mim.
— O que te traz aqui? — perguntava a enfermeira
na sala de triagem.
— Eu, eu, eu...
Eu não conseguia falar, me tremia muito.
— Calma, preciso que você me explique o que está
acontecendo para que eu te encaminhe o quanto antes
para a médica — ela repetia enquanto media minha
pressão.
— Eu vomitei sangue, sangue vivo. Acho que tem
algo preso na minha garganta. — Meu desespero eco-
ava em todo o hospital, meus berros agoniavam quem
quer que estivesse presente.
— Alguém na chamada? Preciso de uma cadeira
de rodas com urgência pra triagem um. — Ela tirava o
aparelho de pressão, assustada, e colocou uma fita

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Tu tem força, menina!

vermelha no meu pulso direito. — Calma, minha linda,


tudo vai ficar bem.
Enquanto o maqueiro corria com a cadeira de ro-
das para o consultório médico, eu rezava uma Ave Maria
e um Pai Nosso, fazia pelo menos um ano que eu não
orava, mas estava completamente sozinha, e Deus era
quem eu tinha naquele momento. Aquele corredor até a
sala fria e congelante onde eu fui atendida nunca apa-
rentou ser tão longo. Deitando na cama do consultório e
explicando o que tinha acontecido para a doutora, ela
me acalmava e dizia que seria necessário uma tomogra-
fia e um hemograma e que, provavelmente, eu estaria
apenas com alguma infecção gástrica.
Fui fazer o hemograma e, depois de tirar sangue, o
acesso por onde havia sido feito a coleta não parava de
sangrar. Olhei aquilo assustada mais uma vez, e outra en-
fermeira vinha me acalmar:
— Sua veia deve ter estourado, é muito normal. —
Ela limpava o meu braço e se preparava para colocar
um pouco de soro — Você está sozinha?
— Sim, moro sozinha aqui — respondi, agoniada.
— Será que não seria bom você chamar alguma
amiga para ficar com você?
— Ah, não... devo receber medicação e já vou di-
reto pra casa.
Nesse instante, a médica entrava com uma pape-
lada na mão.

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Duda Riedel

— Maria Eduarda?
— Sim
— Querida, você está com 50 mil plaquetas. — Eu
sabia que o mínimo que um ser humano saudável deveria
ter era 150 mil. — E então nós precisamos fazer uma en-
doscopia e te internar...
— O quê? O que você disse? Internar? Como assim?
Eu me sinto bem...
— Calma, me escute. Você precisa chamar alguém
pra ficar com você. Você precisa ficar em observação
no CTI. Dependendo do resultado, nós vamos...
Cortei ela sem pensar duas vezes:
— Por que CTI? O que está acontecendo?
— Provável que você esteja com alguma úlcera, he-
morragia digestiva, algo mais sério... apenas o exame vai
falar.
Eu sabia que não era apenas isso, no fundo a gente
tem esperanças, tenta se enganar, mas sabe a verdade.
Úlcera? Gastroenterite? Infecção? Nada disso abaixa
tanto um hemograma assim. A primeira pessoa que veio
à minha mente naquele segundo foi o tio do meu pai,
que teve um tumor no estômago da mesma idade que
eu e morreu sofrendo por amor e câncer. Eu não preci-
sava de nenhum exame, eu já sentia dentro de mim que
eu estava com “a doença que não se pode falar o
nome”.

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Tu tem força, menina!

Liguei pra Bruna e pedi para que ela fosse ao hospi-


tal me acompanhar. Enquanto eu esperava ela chegar,
meu coração palpitava mais forte, e eu tentava avisar a
todos os enfermeiros que isso era um equívoco e que eu
estava bem.
— Eu não tô entendendo mais nada. Se eu tivesse
com algo extremamente grave, eu sequer estaria conse-
guindo falar... — Olhei intrigada para a técnica de plan-
tão.
— Sua acompanhante chegou — ela respondeu.
— Amiga, o que aconteceu?
— Eu não sei, querem me internar, e eu me sinto
ótima...
— Me mostra seus exames, você já falou com sua
mãe?
— Não, não vamos envolver minha mãe nisso... Se
for algo grave, eu ligo, mas até agora não é nada. Talvez
apenas uma gastroenterite.
Se minha mãe soubesse que eu estava internada,
ela iria vir pro Rio em dois segundos.
— Ok, mas como você vai esconder dela que você
vai estar em um CTI? Pera, você já avisou ao Henrique?
— Não, preciso que você fale com ele e peça para
que ele venha amanhã às duas porque eu vou fazer en-
doscopia. — Os enfermeiros tiravam todos meus acessó-
rios e me entregaram uma bata. — O que é isso?

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Duda Riedel

— Preciso que você tire tudo, no CTI você não pode


ficar com nada. — E me entregou um termo de consenti-
mento.
— Amiga, eu vou avisar ele e as outras meninas. —
O maqueiro me trocava de cama, e meu olho enchar-
cado de lágrimas já não via mais nada. — Não chora! Vai
ficar tudo bem.
— Tô com medo, amiga. O que pode ser? — Apre-
ensiva, eu olhava pra Bruna com dúvidas sobre o que es-
taria acontecendo ali.
— Não se desespera.
A enfermeira chegou e me levou direto para aquele
quarto gelado. Na manhã seguinte, acordei com a enfer-
meira colhendo mais uma amostra do meu sangue. Olhei
assustada aquele corredor cheio de pacientes de todas
as idades, muitos inconscientes, e uma lágrima escorreu
pelo meu olho. Ela sorriu pra mim e disse:
— Já está quase na hora da visita, tem uma pessoa
lá fora querendo te ver.
Eu já podia sentir quem era.
— Henrique?
— Sim, ele já está sentado lá há mais de meia hora.
Uma amiga sua também. Vou pedir pra eles entrarem
logo...
— Por favor.
Me levantei e joguei o cabelo pra de trás da orelha
na tentativa de parecer mais apresentável. Enquanto via

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Tu tem força, menina!

os parentes e familiares de todos aqueles internos en-


trando, eu observava inquietamente a aflição daquelas
pessoas. A angústia que elas deviam sentir sem poder vê-
los a todo instante. Olhei mais um pouco e rapidamente
um rosto familiar apareceu. Era ele.
— Ei, o que aconteceu? — Ele se aproximou e olhou
meus batimentos, que naquele momento estavam a 122.
— Eu não sei. — Comecei a chorar, desesperada. —
Eu não entendo por que estão me prendendo aqui.
— Calma, eu tô aqui, ok? — Ele me deu um beijo e
enxugou meu rosto. — Não vai ser nada, e vamos passar
por essa juntos.
— Eu só quero ir sábado, tinha que acontecer justo
agora?
— Duda, você não tem que pensar nisso agora...
Você tem que se cuidar.
— Eu tô com medo de tá com... — Me proibi de falar
e olhei pra ele na esperança de que decifrasse o que
queria dizer.
— O quê? Anemia?
— Não, câncer... — Soltei a mão dele e coloquei no
meu rosto, cobrindo meus olhos.
— Ou, para com isso! Você tá viajando. Você não
está com câncer, certo? Isso deve ser algum tipo de ane-
mia...

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Duda Riedel

— E se for? E se eu tiver morrendo? Eu vomitei san-


gue, Henrique, eu desmaiava com frequência, emagreci
nos últimos meses.
— Para, Duda! — Ele olhava mais uma vez meus ba-
timentos, que chegavam a 130. — Me escuta, você vai
sair daqui e vai ficar bem. Você só precisa se cuidar, e eu
vou pegar no seu pé pra isso. Depois que passar essa con-
fusão da festa, eu passo uns dias na sua casa pra ver se
você se alimenta melhor.
— Eu nunca tive tanto medo de morrer em toda mi-
nha vida.
— E você não vai. Espera sair o resultado da endos-
copia. Amanhã, se der, passo na sua casa, aposto que
você já vai ter saído daqui.
Foram duas noites naquela UTI, sem resultados ofici-
ais na endoscopia, apenas com meu hemograma des-
pencando em números. Eu orava e pedia a Deus por uma
resposta enquanto driblava para disfarçar pra minha
mãe que tudo ia bem. O choro me consumia tanto que
nem os barulhos ensurdecedores do monitor cardíaco,
que estava conectado ao meu peito, me assustava mais.
Eu precisava de respostas, mas só me surgiam dúvidas.
No dia seguinte, acordei decidida a trocar de hos-
pital, já que, em quarenta e oito horas, não tinham con-
seguido me dizer o que eu tinha. Enquanto me levantava
e desconectava tudo o que eu podia, a enfermeira do
plantão surgiu.

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Tu tem força, menina!

— Ei, por que você está tirando tudo isso? — Ela se-
gurava os equipamentos.
— Pois eu não vou mais ficar aqui sem respostas. Eu
pedi quarenta e oito horas para o médico me falar o que
eu tinha. Eu não posso ver nem falar com ninguém, e até
agora não sei o que tenho. Eu vou pra casa.
— Cuidado, menina. Melhor você se tratar. Leuce-
mia mata.
Congelei. Enquanto eu vestia minha roupa, ela ha-
via dito aquela exata frase: “Leucemia mata”. Se você
abrir no Google e pesquisar sobre leucemia, a primeira
coisa que aparece é: doença rara, 150 mil casos por ano
no Brasil. Em um país com 209 milhões de habitantes, me-
nos de 0,0007% de pessoas são atingidas por ela. Sabe
qual a probabilidade de isso ter acontecido comigo? A
mesma de um raio cair sobre sua cabeça em um dia que
nem está chovendo. Mas esse raio caiu na minha, e eu
não estava nenhum pouco feliz com ele. Entretanto,
nada é por acaso. O destino e uma missão nunca erram
o endereço.
O médico entrou na sala naquele momento e, apre-
ensivo com o que até ele mesmo acabara de escutar,
tentava me acalmar:
— Maria Eduarda, pedimos que você tenha um
pouco mais de paciência que nós vamos chamar um He-
matologista pra verificar o seu caso.

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Duda Riedel

Descabelada e sem saber o que dizer, eu apenas


gritava.
— Calma, eu não quis... — a enfermeira tentava se
explicar.
— Não quis o quê? Me ofender? Me dar um diag-
nóstico não confirmado? Eu não tenho essa maldita do-
ença. Eu não tenho câncer, e você merece ser demitida.
Eu quero agora os papéis e eu vou pra minha casa.
— Não é seguro que você saia daqui — o doutor
tentava fazer eu mudar de ideia.
— E o seguro é me manter aqui? Pra que eu fique
doida? Vocês não têm um pingo de compaixão pelos
pacientes. — Eu procurava minha bolsa e saía andando
pela UTI descalça.
— Nós precisamos que você assine um documento.
— Eu não assino nada, eu quero sair desse lugar
agora.
— Você está sozinha, menina, precisa de um acom-
panhante. — Ela tirava meu acesso.
— Eu não quero mais que você dirija a palavra a
mim. Sai da minha frente agora. — Outro enfermeiro me
segurava.
— Eu vou ligar pra um acompanhante vir lhe buscar,
e você pode sair, tudo bem?
Aqueles quarenta e cinco minutos de espera para
que a prima da minha mãe fosse me buscar no hospital
me arrepiavam e deixavam minha cabeça – já fraca

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Tu tem força, menina!

com tantas incertezas – criando inúmeras paranoias. Meu


coração disparava, minha mão suava, meu peito doía, e
minha vontade era gritar para que tudo aquilo não pas-
sasse de um pesadelo.
Momentos como aquele te fazem repensar em tudo
que já te aconteceu, fazem você questionar se sua vida
precisa dar uma freada brusca para que você finalmente
entenda o que não faz sentido pra você. Eu repetia in-
cansavelmente dentro de mim “por quê?”, “o que eu fiz
de errado?”, “pra que tamanha dor?” e “será que eles
não estão dando um diagnóstico totalmente equivo-
cado, e eu rapidamente sairei dessa?”. Eram várias per-
guntas, mas com nenhuma resposta.
Minha tia chegou no hospital, entrei no carro e, du-
rante todo o caminho pra casa, eu a ouvia repetir incan-
savelmente sobre minha alimentação. Ela, assim como
eu, estava confiante: “era apenas uma anemia acompa-
nhada de uma sinusite”.
— Você precisa comer mais comidas que conte-
nham ferro. Feijão, fígado, suco de beterraba com la-
ranja... Você já falou com sua mãe? — ela questionava
enquanto corria mais rápido que um piloto de fórmula 1.
— Não sei como falar, acho melhor conversar com
a Nathália primeiro, pra limpar a barra. — Eu sabia que
não iria falar pra nenhuma das duas.
— Você quer ir pra minha casa? Posso ficar com
você lá até sua mãe chegar no Rio...

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Duda Riedel

— Não, tia, prefiro ficar em casa mesmo, umas ami-


gas já estão indo lá levar comida e me ajudar. — Desci
do carro rapidamente e dei um beijo de agradecimento.
Ao chegar em casa, lá estava minha patrulha de
amigas com 500g de açafrão em pó, fígado acebolado,
feijão preto e três sacos de inhame. Claro que elas pes-
quisaram tudo aquilo no Google e tentavam de todas as
maneiras me animar. Receitas para plaquetas subirem es-
tão em diversos sites de dieta saudável, mas nada da-
quilo ajudava a melhorar o óbvio e já constatado dentro
do meu coração: eu estava com câncer, mas ainda não
tinha coragem de assumir. Tanto eu quanto você sabe-
mos como essa história terminaria, mas, àquela altura, to-
mar um litro de água com 500g de açafrão em pó era
minha única solução.
Eu me sentia torturada dentro de casa, mais do que
eu estava no hospital. Uma intranquilidade que consumia
minha alma. Por um resumido espaço de tempo, eu sen-
tia que estaria melhorando ao me entupir de alimentos
ricos em ferro, mas o conforto só durava dezesseis horas
e, a partir do tic-toc do primeiro segundo quando a dor
surgia, eu sabia que aquela esperança de ser uma sim-
ples sinusite ia por água abaixo.
No conforto da minha casa com o wi-fi ligado, co-
mecei a pesquisar sobre a maldita doença que me ame-
açava e tirava meu sossego. Naquele dia, o Rio marcava
38 graus, mas eu me enrolava com três cobertores para

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Tu tem força, menina!

tentar conter meus diversos calafrios que não só faziam


suar apenas meu corpo como todos os meus neurônios.
Eu tinha dificuldade de imaginar que, naquele mo-
mento, eu poderia estar perdendo minha vida tão jovem,
então não ter um laudo médico concreto fazia com que
eu achasse que poderia controlar os sintomas. Mas eles
não conseguiam mais me deixar em paz. Olhava para
meus calcanhares e via que, cada vez mais, eles tinham
marcas roxas; ao abaixar meu olho, eu via o quão branco
ele estava – faltava sangue no meu corpo; ao abrir minha
boca, eu notava um pus preto na minha garganta. Eu
não estava bem.
Ao soar das duas da manhã de uma quinta-feira,
enquanto eu ouvia mais uma música católica e suplicava
para aquela maldita dor passar, eu tomei coragem e en-
frentei meus dragões. Meu medo de enfrentar a verdade
desconfortável que ecoava no meu peito e no meu san-
gue tinha que ter um basta já. A vida era simples e boa
comigo, mas eu era ingrata e rancorosa com ela. A vida
precisou me mostrar que meu medo de viver me impedia
de enxergar o lado bom, mas, se eu quisesse viver, eu pre-
cisava me cuidar.
Desesperada, liguei pra minha irmã que, ainda ator-
doada sem saber o que fazer, apenas me disse:
— Corre pro hospital Buena Vistta.
Esse era o hospital mais caro do Rio de Janeiro, uma
consulta custava mil reais e era referência em

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Duda Riedel

hematologia. Abri meu saldo bancário e lá estava o di-


nheiro da minha rescisão. Dois mil e quinhentos reais que
seriam muito bem gastos. A missão era muito suicida, pois
eu sabia que essa conta poderia sair muito mais do que
eu estaria imaginando, mas eu também sabia que ali eu
precisava parar de querer bancar super-heroína e pedir
ajuda à única pessoa que sempre estaria comigo em
qualquer situação: minha mãe.
Ao entrar no primeiro consultório, um aparato de
exames foi pedido. Antes mesmo de sair o resultado, res-
pirei fundo, olhei fundo nos olhos da médica e disse:
— Você acredita que uma enfermeira me disse que
eu poderia estar com leucemia? Isso é loucura, né? — Dei
um sorriso amarelo, torcendo para que ela concordasse
comigo.
— Sabe, Duda, leucemia não é mais essa doença
apavorante que era há algumas décadas. — Ela apal-
pava meus gânglios e fazia anotações em uma cader-
neta pequena com uma caneta BIC.
— É, mas eu estou apenas com uma sinusite e um
pouco de dor de garganta...
— Já ligaram pra sua mãe, e ela disse que chega
por volta das 19 horas no Rio de Janeiro. Vamos pedir pra
que você tome esse comprimido para ficar calma até ela
chegar. — Ela me entregava um medicamento rosa claro
que eu já tinha visto na casa da minha avó algumas ve-
zes.

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Tu tem força, menina!

— Isso é um calmante? Por que querem me dar um


calmante?
— Duda, seus batimentos já chegaram a 145 por mi-
nuto; se continuar assim, é perigoso que você tenha algo
grave.
Tomei aquele remédio e adormeci. Posso afirmar
com propriedade que aquelas foram as horas mais mer-
das – desculpe o termo – de toda a minha vida. Assim
como um cachorro que espera o dono voltar do trabalho
durante o dia inteiro, eu esperava a minha mãe abrir a
porta daquele quarto a noite toda. E, no momento
quando ela adentrou naquele quarto de hospital, um alí-
vio e descarrego enraizado arrepiaram minha pele e sol-
taram toda aquela angústia de dias sem notícias ou si-
nais.
Dizem que viver é esperar por algo. Todos os dias,
quando acordamos, nós esperamos que algo aconteça
e, se algo não acontece, nós não estamos dando a de-
vida importância à vida. A vida é fazer valer, fazer o co-
ração pulsar, reduzir o sofrimento e levar a vida espe-
rando algo bom acontecer. Mas todos os dias, quando
acordamos, nossa primeira reação é reclamar por mais
um dia de trabalho, cobranças e desesperos. Sabe o que
isso significa? Que ainda não encontramos a nossa es-
pera, porque, no momento em que isso acontece, signi-
fica que estamos fazendo sentido à qualquer sinal de
vida.

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Duda Riedel

Minha mãe era minha espera incansável da se-


mana, do dia e quem sabe do meu ano inteiro, pois ela
era meu motivo de esperança para não enfrentar um di-
agnóstico tão duro sozinha. Aguardando o médico en-
trar, ela segurava minha mão com tanta força que eu po-
dia sentir as unhas delas arranharem minha mão frágil.
Mas aquela dor nem se comparava ao desespero incan-
sável e incalculável que habitava em meu coração há
dias.
— Duda, vamos fazer a punção da sua medula. É
um exame um pouco desconfortável, mas tem anestesia,
qualquer reação nos comunique. — Enquanto eu fe-
chava os olhos e me pregava no olhar vazio de minha
mãe, eu sentia uma sucção da minha medula óssea e
uma vontade desesperadora de sair dali correndo. — Es-
tamos quase acabando, aguente um pouco mais — ele
repetia, e aquela dor ainda era angustiante.
— Doutor, está perto? — Minha mãe, desesperada,
tentava ver as lâminas, mas seus olhos encharcados de
lágrimas não permitiam que ela abrisse o olho.
— Acabamos agora. Preciso que vocês tenham
bastante paciência nesse momento. Temos que analisar
no microscópio e enviar pra São Paulo.
— Quanto tempo vai demorar? — Meu coração
não aguentava mais tamanha espera.
— Amanhã, umas duas horas, eu te dou a resposta.
Isso não é um diagnóstico fechado, consegue entender?

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Tu tem força, menina!

Estamos na dúvida entre Leucemia e Mononucleose. Te-


mos que analisar todas as possibilidades.
Uma ponta de esperança surgia novamente em
meu coração. Esperança essa que podia radiar minha
vida e fazer com que aquele terror que eu sentia desde
segunda-feira acabasse naquela sexta-feira, dia três de
maio. Se não tivermos um pingo de esperança, nossas
chances de futuro morrem e escorrem pela nossa pele.
Temos que ter fé que aquele dia vai melhorar, que aquela
notícia não é nosso ultimato e que podemos, sim, acredi-
tar em um destino melhor.
Aquela noite foi desesperadora e, enquanto eu me
virava de um lado pro outro na cama do hospital, meus
olhos não pregavam de tamanha inquietação. Eu orava,
fazia promessas absurdas, chorava, me descabelava e,
por fim, dormia por cerca de quinze minutos até acordar
e repetir os mesmos movimentos anteriores.
Às 9h20 da manhã, minha mãe me acordou e disse:
— Duda, você tem uma visita especial.
Naquele instante, pensei que poderia ser o Doutor
Danilo com a minha sonhada notícia de que eu estaria
apenas com um vírus e que toda aquela maluquice de
câncer era apenas um susto da vida. Mas não era. Em
troca, meu ex-namorado, Bernardo, estava ali com os
olhos lacrimejados e um sorriso bobo de quem diz: “estou
aqui e prometo que sempre vou estar”.

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Duda Riedel

Já tive todas as fases imagináveis com meu ex, al-


gumas que facilmente podíamos ter pulado, mas, graças
a nossa grandiosa imaturidade, era impossível ignorar. Só
que – apesar de todos os pesares – nós sempre estivemos
disponíveis um para o outro. A gente tinha esse lance
bobo de falar mal um do outro, de fazer exigências des-
cabidas e até mesmo críticas irrelevantes.
Por que é tão difícil abrirmos o coração e tratarmos
um fim de um ciclo com leveza? Preferimos esquecer as
boas lembranças e reproduzimos uma imagem errônea
de com quem convivemos e fomos felizes. Isso é ingrati-
dão. E sinto que fui ingrata durante muito tempo. Não me
culpo, todos precisam do momento do luto. Eu costumo
dizer que eu tenho o melhor ex-amor do mundo. Sempre
gosto de falar que eu tive uma baita sorte de viver o que
vivi com ele. Por isso, sempre o chamo assim: antigo amor.
Amor não é pra ser esquecido, e sim superado. Algumas
vezes, pelas confusões da vida, nos irritamos e brigamos
por banalidades e futilidades, mas tivemos nossa reden-
ção naquele dia.
Foi ele que esteve ao meu lado quando recebi a
pior notícia da minha vida e não largou minha mão em
nenhum segundo. É engraçado como as coisas aconte-
cem, mas era pra ser ele naquele momento. Ele segurou
a barra, me deu força e fez eu ter a certeza de que era
só uma fase. Talvez isso seja a personificação do que é
realmente amor e cuidado. Sorte de quem tem o prazer
de viver um sentimento desse. Valorizem hoje, amem

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Tu tem força, menina!

hoje, não briguem por bobagens e, se - por algum mo-


mento - você achar que vale a pena brigar, pense duas
vezes e veja que a melhor solução é sempre pelo cami-
nho do amor.
Depois de dez minutos que o Bernardo entrou na
sala, o Doutor Danilo também entrou com uma papelada
de exames e imediatamente segurou minha mão. Ele me
olhou com um tom de esperança como quem já tivesse
dado aquele diagnóstico para centenas de pessoas, mas
sabendo que sempre é muito difícil e doloroso.
— As lâminas estão prontas, e tudo indica que você
está com LMA, mais conhecido como Leucemia Mieloide
Aguda.
Meu coração saía pela boca, e os gritos da minha
mãe ensurdeciam o corredor do hospital.
— Eu vou morrer? É isso que você quer dizer?
O Bernardo segurava meus braços para que eu não
arrancasse todos aqueles equipamentos que me segura-
vam naquela cama.
— Maria Eduarda, eu preciso que você tenha cer-
teza de que leucemia tem cura, você vai se tratar na sua
cidade e vai conseguir sua vitória. Você é jovem, cheia
de garra, isso é apenas uma fase.
— Isso não é justo, eu não mereço isso! Por que isso
tá acontecendo comigo? — eu repetia aos berros.
Eu gostaria de transmitir aqui um momento de paz e
serenidade e falar que recebi essa notícia com muita

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Duda Riedel

força e calmaria, porém não foi assim. Eu gritei, atirei ob-


jetos no chão, berrei, arranquei os cabelos, chorei – e
como chorei –, olhei para minha mãe e para o meu ex e
apenas suspirei estas exatas palavras:
— Eu preciso viver! Eu não quero morrer! Minha irmã
casa em outubro! Quero conhecer meus futuros sobri-
nhos! Eu quero publicar um livro! Conhecer Paris! Viajar
com minha mãe pra serra. Ver meu pai segurando meus
filhos no colo! EU PREVISO VIVER!
Os meus caminhos se interromperiam ali, mas não
seria o fim de tudo. E foi quando entendi tudo. Eu preci-
sava viver, não só por mim, mas por todos que me ama-
vam e me queriam vivendo radiante. A desesperança
consome nosso corpo em uma proporção maior que
qualquer célula cancerígena, e adivinhem só? Meu
corpo já estava tomado por ela. Se eu deixasse que mi-
nha mente também fosse afundada por essa desgra-
çada, eu estaria ali passando o cheque para o meu cai-
xão.
Nos últimos meses, eu me sentia inteiramente per-
dida e sem objetivo pelo que lutar. Uma frieza amargu-
rada e infeliz de uma menina de vinte e quatro anos que
não enxergava uma perspectiva promissora. Mas agora
eu tinha uma grande fonte de inspiração para manter
meu propósito em Terra, e ela só seria possível de ser rea-
lizada se eu estivesse firme e forte nesta batalha fria e ár-
dua em que eu tinha entrado.

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Tu tem força, menina!

A esperança surgiu dentro do meu peito no mesmo


momento que olhei nos olhos trêmulos e angustiados da-
quela que me colocou no mundo. Minha mãe – mais do
que ninguém – não precisaria passar por isso. Enterrar
uma filha? Sério? Nenhuma mãe no mundo deveria pas-
sar por isso. E eu, pelo amor que tinha a ela, não permitiria
que isso acontecesse. Eu sabia que a minha garra por vi-
ver - não só por mim, mas por nós duas - iria honrá-la e
fazer com que a jornada fosse um pouco mais confortá-
vel.
São essas coisas boas que fazem a gente enxergar
uma saída, um caminho e um motivo pelo que lutar. As
pessoas que amamos são nossos combustíveis. Essa seria
a porta de entrada para um propósito maior. Sabe toda
aquela vontade de dar o orgulho que eu tanto queria aos
meus pais? Aquela era a hora. Sabe aquela busca por
uma missão que eu não conhecia? Ela chegou. Sabe
todo aquele papo de autoconhecimento, de uma des-
coberta pessoal de quem vivia há vinte e quatro anos
como alguém que não se reconhece? Psiu, ele apare-
ceu. Essa era a hora, menina. A hora de se tornar mulher.
Eu andava por aí planejando minha vida sem ter
ideia do que realmente me esperava. Acreditava que as
linhas da minha história seriam escritas unicamente por
mim, esqueci que um plano maior seria oferecido e não
adiantava eu contestar ou negar o que estava aconte-
cendo. Eu tinha que aceitar minha nova narrativa e

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Duda Riedel

entender que eu não era a autora dessa história, mas se-


ria sua maior protagonista.
No aeroporto, me despedindo dos meus amigos,
meu coração acelerado não conseguia fazer outra coisa
que não fosse bater sem parar e descontroladamente.
Dentro do meu peito, aquela coreografia ensaiada pul-
sando me deixava aflita e angustiada. Será que aquele
seria o último abraço? Quando seria que eu estaria ali no-
vamente? A minha vida teria parado justamente ali?
Os olhos apreensivos e esperançosos de todos anun-
ciavam o que eu já sabia: NÃO SERIA FÁCIL, MAS ERA
MUITO POSSÍVEL. O choro contido na tentativa de não me
assustar, o abraço com cuidado para não machucar e o
aperto de uma saudade que a gente não sabia quando
iria matar. Dói muito dizer adeus para quem você quer
sempre ter por perto. Dói ainda mais quando você não
quer de jeito nenhum deixar.
— Atenção passageiros do voo J1402 com destino à
Fortaleza, embarque iniciado. — Os abraços começaram
a ser mais rápidos, porém mais apertados.
— Então, é isso gente... — Olhei para eles, sem
ânimo. — Vamos conseguir...
— Enche esse peito de coragem! – completou Ca-
rol.
— A gente vai estar aqui pra quando você voltar! —
Bruna se desmanchava em lágrimas.

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Tu tem força, menina!

— E vamos mesmo! — Gabi continuou e, nesse mo-


mento, o Bernardo me puxou pra conversar.
— Quero que você saiba que você é a mulher mais
forte que eu conheço. Não vai dar nada errado, e nós
todos queremos você de volta o quanto antes. — Ele se-
gurava a lágrima com os olhos arregalados e sem cora-
gem de piscar. — Eu te amo, pode contar comigo! — E
um beijo na testa finalizava aquilo que já estava me do-
endo muito.
Olhei pra trás e vi todos acenando como se fosse
apenas uma semana que eu ficaria longe, mas com um
rosto de medo e incertezas pelo que estaria por vir. A ver-
dade é que meus amigos eram minha família, e você
nunca pode desistir nem decepcionar aqueles que te
amam e torcem por você. Naquele instante, o meu gás
foram todas as pessoas que queriam me ver bem, eu não
poderia deixá-los desamparados e muito menos deixar
tentar lutar por todos nós. O impulso para você criar co-
ragem é o sacrifício que você deve ter para não aban-
donar quem te quer ao seu lado.
Câncer não é castigo, é cura. É cura de pessoas
que te rodeiam e estão precisando ser tocadas com o
que esse mistério de mandato tem a te ensinar. Você
pode renegar, não querer encarar, pensar no pior, mas a
verdade é que você não pode, nem por um centésimo
de segundo, pensar em desistir, por mais difícil que pa-
reça ser. A missão só acaba quando você acabar com
ela primeiro; o câncer era foda, mas eu seria muito mais.

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Minha primeira batalha seria traçada naquele ins-


tante: encarando um voo de três horas enquanto minhas
plaquetas estariam em trinta mil, e os blastos dominavam
meu corpo. Meus ossos doíam, minha cabeça doía, mi-
nha pressão estava baixa, minha febre muito alta. Eu re-
zava sem parar para que aquele sofrimento acabasse o
quanto antes. Perto do pouso, minha mãe chamou a co-
missária de bordo e pediu para que nós saíssemos antes
dos outros passageiros.
Ao aterrissar, uma ambulância me aguardava, e to-
dos meus familiares estavam ali olhando pra mim. Deitei
naquela maca e, olhando para o céu, eu reparei que
nunca o havia visto tão iluminado. Mirei uma estrela, fe-
chei os olhos com força e fiz um pedido: força. Eu poderia
ter pedido saúde, cura ou que tudo acabasse o quanto
antes, mas, acima daquilo tudo, eu precisaria ter muita
força, só ela iria me dar a vitória que eu merecia.
A vida precisa fazer sentido, senão ela nunca vai te
fazer sentir.

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Tu tem força, menina!

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REDENÇÃO

Uma das principais coisas que o câncer me ensinou foi a viver um dia
de cada vez, a não planejar tanto nem deixar pra depois. A sensação
que dá - naqueles dias mais difíceis quando sair da cama não é uma
opção - é que tudo não passa de um sonho e que, em pouco tempo, eu
irei acordar, e tudo voltará a ser como antes. Mas não vai ser. Eu não
sou mais a mesma de antes nem gostaria de ser. O complicado é lidar
com incertezas e a falta de previsões. Não saber quando um jantar
fora de casa vai ser possível, andar pela areia molhada, sentar com as
amigas em uma mesa de bar, sair sem ter hora pra voltar... E, se pos-
sível, ainda seria como antes? Então, o tal “um dia de cada vez” vem
pra que a gente não pense se vai ser possível ou não, mas sim que já
está sendo dentro das minhas limitações; que, antes de sair pro jantar
fora de casa, eu já tenho que agradecer por não jantar mais no hospi-
tal; que, antes de sair sem ter hora pra voltar, eu já tenho que agrade-
cer pelo tempo de sobra pra viver e que, antes de pedir pra que tudo
volte a ser como antes, eu deveria agradecer por não ser como era.
Pode ser que agora eu não enxergue, mas, lá na frente, o futuro vai
ser melhor que o agora, mas com certeza o agora já está bem melhor
que o antes. Portanto, vivamos esse dia e agradeçamos por ele. Afinal,
pra chegar no amanhã, precisamos vencer o hoje.

Quando me perguntam se eu perdi meu chão ao


receber meu diagnóstico de câncer, eu sempre res-
pondo que não, que foi aí que senti o chão firme em
meus pés. O câncer não foi meu fim, mas sim meu reco-
meço. Eu sabia que, se tivesse a oportunidade de vencê-
lo, eu iria ter uma nova vida completamente diferente.

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Tu tem força, menina!

Não podemos encarar uma notícia como essas


como um atestado de óbito. Câncer tem cura e começa
por dentro. Começa quando você entende que aquilo é
passageiro, quando você cura a doença, mas junta-
mente cura sua alma, quando você muda seu olhar e sua
perspectiva.
Em alguns dias, eu vi minha vida se tornando um da-
queles dramas que eu amava assistir. Literalmente, come-
cei a odiar todos aqueles autores que me fizeram chorar
e me apaixonar por escrever. Eu ficava revendo filmes e
livros de histórias com pessoas com câncer, e a grande
maioria tem um final melodramático em que uma pessoa
do casal simplesmente morre. Veja só: “A culpa é das es-
trelas”, “A cinco passos de você” e “Um amor pra recor-
dar”.
Eu olhava aquilo e pensava “me perdoe qualquer
roteirista renomado, mas meu final vai ser completa-
mente diferente”. Não dei a possibilidade em nenhum
momento para a morte; pra falar a verdade, eu sequer
coloquei isso como algo possível de acontecer.
Dá medo? Sim, o tempo todo! Mas dá mais medo se
você não lutar e aceitar uma sentença que não te per-
tence. Não é porque você conhece dezenas de histórias
de pessoas que morreram pelo câncer que você tam-
bém vai morrer. Eu sempre acreditei 100% na minha cura,
pois entrei naquela guerra me sentindo vitoriosa. E isso fez
toda a diferença no meu tratamento. A única luta em
que entro hoje é pela vida.

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Em um momento como aquele, é importante ter


muita fé; caso contrário, você entra em um conflito muito
grande com Deus. E ter raiva de Deus não iria facilitar as
coisas pro meu lado, na verdade, iriam até piorar.
Como eu disse, nunca fui boa em matemática, mas
era sensacional em interpretação de texto. Cada história
é individual e única, coreto? Números são apenas núme-
ros, e eu sou um coração. Agradeço os bancos de dados
que fazem belíssimas pesquisas com mais de mil pessoas,
porém não sou nenhuma delas. Além disso, sempre tive
certeza de que a força de vontade com uma pitada de
esperança e um temperinho de otimismo podiam mudar
todo um quadro clínico.
Se me dessem apenas 1% de chance de sobreviver,
eu iria lutar com essa estimativa até o final com uma
única certeza: ela era A minha chance. E foi por isso que
eu encarei a minha história como minha, sem me com-
parar ou ler nada a respeito. Estimativas oncológicas exis-
tem, tempo de vida dado pelos médicos existe, mas,
acima disso tudo, também existe a sua força de vontade
e, quando você acredita muito em algo, ela se trans-
forma em realidade. Interpretar uma fase vista como ruim
com a capacidade emocional de entender que ela vai
passar muda todo o curso da coisa.
Todos os dias, quando eu acordava, rezava e agra-
decia. Olhava pra janela e falava: “mais um dia perto da
cura”. A arte de resistir está justamente em pensar que
não é mais um dia ali sofrendo, e sim menos um dia de

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Tu tem força, menina!

sofrimento. Esses pensamentos positivos alinhavam minha


mente e coordenava minhas emoções. É aparentemente
algo muito simples o ato de agradecer, mas ultimamente
a palavra gratidão entrou pra moda, só exercê-la ainda
é algo raro.
A boa notícia é que, a partir do momento que você
entende a importância dos pensamentos positivos para
passar por fases conturbadas, tudo flui com mais leveza.
A gratidão deve ocorrer principalmente quando algo
não vai bem, pois é nesse momento que devemos enxer-
gar a capacidade do aprendizado. Lições não surgem
em momentos gloriosos, elas aparecem quando o caos
se instala.
É algo muito complexo para pessoas céticas acre-
ditarem que nós mesmos podemos ajudar no nosso pro-
cesso de cura, mas isso é possível sim por mais difícil que
pareça ser. Sempre me perguntam a receita do bolo
para ter lidado da melhor forma com tudo que me acon-
teceu, e eu digo que não sei o passo a passo, mas tenho
noção dos ingredientes:

✓ FÉ
✓ OTIMISMO
✓ FORÇA
✓ ESPERENÇA
✓ BOM HUMOR
✓ PACIÊNCIA

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A maneira como encaramos e reagimos a certas si-


tuações é fundamental para nossa melhora. Você tem o
poder de escolher o que quer pra você com um único
passo: pensando positivo. Para você tratar qualquer fase
difícil da sua vida, primeiro tem que aprender a tratar sua
cabeça, pois ela comanda tudo. Por isso, eu encarei
todo o processo do câncer como uma cura espiritual, e
isso tornou as coisas mais fáceis.
A verdade é que a quimioterapia acaba com todas
as suas células malignas, ela deixa você com a imuni-
dade no ralo e destrói por inteiro seu corpo para assim
regenerá-lo do zero com qualidade de novo, e claro que
tudo começa pela alma. Nosso corpo é apenas matéria
física, mas a alma é nossa herança divina que carrega
todo o resto. Se sua alma está podre, seu corpo também
está. Portanto, se eu estava com células cancerígenas
dentro de mim, também estaria doente por todo meu es-
pírito. Diante disso, eu tinha apenas uma opção: aceitar
que a minha alma também estaria sendo reconstruída e,
com isso, deveria tirar o melhor proveito do que essa do-
ença poderia me ensinar.
Sempre gostei de metáforas, então, no momento
que decidi que iria iniciar os tratamentos, entendi tudo
que estava acontecendo. A cura maior seria na minha
mudança interior, a forma como eu iria enxergar o
mundo dali pra frente. Quantas vezes eu agi com

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maldade na vida? Quantas vezes fui ingrata com meus


privilégios? Quantas vezes reclamei que nada daria certo
quando na verdade eu tinha tudo? Quantas vezes fui le-
viana em achar que tinha problemas e, na verdade, eu
tinha um leque de soluções? Quantas vezes nós pedimos
ao invés de apenas agradecer?
Estamos todos doentes e insistimos em achar que
tudo vai bem porque a vida está “muito difícil”. Será que
não fomos nós, com nossas escolhas e decisões, que a
deixamos assim? Reclamar por banalidades se tornou
algo constante em nosso ciclo, e aí alguém vira e fala:
“Ah, mas tem que reclamar mesmo”, como se a reclama-
ção fosse a melhor solução, como se reclamar fosse ao
menos uma solução.
Não está tudo bem se você começa a semana es-
tressada só porque pegou um trânsito. Não está tudo
bem se você reclama que vai chover no final de semana.
Não está tudo bem se você briga com todos ao seu redor
por pouco. Não está tudo bem você achar que tudo vai
errado quando, na verdade, é você que não enxerga
onde pode melhorar. Não está tudo bem se você culpa
o mundo externo por atitudes que deveriam começar de
você. Reclamar não faz bem, desabafar e entender o
que acontece aí tudo bem.
Antes de reclamar, procure pensar. Uma vez, ouvi
de um velho senhor: para aquilo que não há solução, so-
lucionado estará. Eu sempre fui reclamona do que tinha
e, no momento que vi que não me sobrou nada – além

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de fé –, percebi o quanto tinha tudo e mais um pouco. E


é aí que você começa a entender o sentido da vida.
Eu era uma menina de vinte e quatro anos que que-
ria abraçar o mundo fantástico dos outros que eu acom-
panhava a partir de comparações em redes sociais. Eu
invejava a vida magnífica que eles postavam e esquecia
que eu mesma fazia isso. Aparentava viver bem, mas na
verdade estava mal. O ciclo é vicioso.
Todos nós nascemos ouvindo a seguinte frase: “di-
nheiro não traz felicidade”, mas sempre associamos o va-
lor monetário das coisas a uma satisfação pessoal. E ver
que, aos vinte e quatro anos, eu não havia conquistado
nenhum patrimônio ou sequer conseguia terminar o mês
sem ser no vermelho me causava um tremendo desen-
cantamento. Eu me sentia fracassada. Mas por que raios
uma pessoa de apenas vinte e quatro anos se sente fra-
cassada? Isso é a pressão.
Você não é fracassada aos vinte e quatro anos por
não saber o que quer, nem aos trinta e quatro, nem aos
quarenta e quatro nem aos oitenta e quatro! Toda idade
é válida para recomeçar ou tentar algo novo. Se eu não
estava feliz no que fazia, podia me reinventar. Afinal, en-
quanto ainda estamos em vida, todo dia é um novo dia
para se tentar algo diferente. Mas, acima de tudo, temos
que entender de uma vez por todas que felicidade só
vem quando você aprende o verdadeiro significado
dela.

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Tu tem força, menina!

Nós não precisamos de roupas caras, carros magní-


ficos, tampouco de joias ou artigos de luxo; o que preci-
samos - de verdade - é de um colo quentinho, saúde em
dia, um amor pra chamar de nosso e uma família que
apoia. O resto é apenas aquela gota no fundo do oce-
ano que, se evaporar, não fará falta, porque você ainda
tem um mar inteiro de sobra pra te fazer incrivelmente fe-
liz.
A doença é dura, mas te ensina que, antes de le-
vantar as mãos aos céus para pedir, você tem que dobrar
os joelhos para agradecer. Ah, pra falar a verdade, eu
também parei com o estigma de chamar leucemia de
doença, eu preferi aceitar como uma benção. Assim –
pra mim –, era mais fácil concordar com os planos que o
universo já tinha traçado pra mim. Eu poderia me afundar
e me deprimir com o fardo de ter câncer com tão pouca
idade e uma porcentagem de cura pequena, ou eu po-
deria simplesmente tirar o que fosse de melhor desse mo-
mento e, com ele, ajudar outras pessoas.
Então, comecei com minha rotina de gratidão e,
como eu chamo hoje, visão colorida. Enxergar até nos
dias mais cinzentos uma vontade enorme de viver, e o
que importa não é você ser 100% todos os dias, mas ten-
tar ver felicidade nos dias quando estiver apenas com
20%. Reclamar menos e agradecer mais. Parece uma ta-
refa fácil, mas, quando você está há 30 dias trancada
dentro de uma cama de hospital, enxergar o lado bom
das coisas se torna árduo, porém necessário. Eu

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agradecia pela minha vida e por ter a oportunidade de


mais um dia estar ali lutando por ela.
O nosso coração precisa de profundidade, de inte-
rioridade. Eu não poderia me tornar uma pessoa vazia na-
quele momento, tinha que me encobrir de força de von-
tade, e isso seria o impulso para minha cura. Eu sempre
ouvi um mantra que dizia: antes de Deus fazer algo por ti,
ele vai fazer algo em ti. E tudo fez sentido no meu trata-
mento. Para a vitória vir, eu precisava primeiro entender
o que o lado ruim gostaria de me ensinar.
Nem todos os dias foram fáceis, nem todos os dias
eu sorria ou conseguia demonstrar agradecimento por
estar ali, contudo, exercitei a minha capacidade de
agradecer por viver. E isso, naquela altura, já era mais
que o suficiente.
Água parada apodrece, o mundo quer ver você
transbordar. Não seja uma pessoa vazia, tenha uma vida
interior. Quando estamos cheios de amor, de força, de fé
e de resiliência não sobra tempo pra buraco nem pra
pensar em coisas ruins. O câncer é difícil, machuca, dói,
atormenta, mas te ensina. Aprendi com ele mais do que
em qualquer outro momento da minha vida. Aprendi a
dar valor ao amor, a dar valor à simplicidade de um dia
comum, a ajudar e ser menos rancorosa, o real sentido
de generosidade. Aprendi que nada na vida é mais ina-
balável que a força de vontade de toda uma família em
busca de um recomeço. Minha família se reestruturou. Eu
clamei pelo meu pai nos momentos mais difíceis, e ele se

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Tu tem força, menina!

tornou minha fortaleza e meu herói. Isso não seria possível


em nenhum outro momento.
Acordei dia 13 de maio, e meu corpo ardia em fe-
bre. Segurei um terço que minha irmã havia me dado e
comecei a rezar. Na segunda Ave Maria, ela entrava no
quarto com um sorriso.
— Consegui uma pessoa pra te visitar e acho que
você vai gostar. — Ela pegou o celular e procurava algo
nele.
— Achei que eu estivesse proibida de ver qualquer
pessoa que não fosse da família. — Minha mãe saiu do
banheiro com o olho inchado, ela amava chorar no ba-
nheiro para que eu não visse. — Mãe?
— Nathalia, combinamos que só vamos ver pessoas
da família.
— Ok, mas essa pessoa vai trazer um testemunho de
fé. Você disse que acreditaria em tudo agora, né? En-
tão...
— E por que eles não vem hoje? Não tenho nada
pra fazer hoje à noite, amanhã tem masterchef.
— Hoje é dia de Nossa Senhora... Amanhã, a Irmã
Dulce vem te ver. — Ela abriu um sorriso.
— O quê?? — minha mãe deu um berro.
— Qual o problema de uma freira vir me ver, ma-
mãe? — perguntei, assustada, até porque sempre achei
freiras pessoas fofinhas.

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Duda Riedel

— Ela morreu tem vinte anos. Como que ela vem ver
a Maria Eduarda?
— Eu quis dizer que um testemunho de milagre da
irmã Dulce vem ver a Duda amanhã. Ele teve câncer
também e acho que vai ser bom esse encontro. Sabia
que ela está prestes a ser canonizada? Só falta aprova-
rem um milagre.
Abri o Google e, naquele dia, li tudo sobre Irmã
Dulce. Toda sua história de fé, humanidade e solidarie-
dade. Rezei. Como rezei por ela. Mesmo sem nunca ter
ouvido nada a respeito, assisti a todos os vídeos e me ar-
repiei em cada um deles. A fé é algo divino. Ela une. Dia
14 de maio às 16h, minha irmã entrou novamente no meu
quarto e, daquela vez, aos prantos.
— O que foi, Nathalia? Recebeu alguma notícia
ruim? — Eu sempre esperava o pior.
— Duda, o Vaticano aprovou a canonização da
Irmã Dulce hoje. Logo hoje. O dia que combinamos que
o Mauro e a Consuelo vinham te ver. Eles estão che-
gando.
— Como canonização? O que vai acontecer com
ela? — Nunca entendi muito a igreja católica.
— Ela agora é considerada santa. Santa Dulce dos
Pobres. Esse é o Mauro, ele teve câncer no cérebro duas
vezes e foi curado.
Ouvi atenta o testemunho de fé daquele casal.
Toda sua dedicação à causa e às obras da Irmã Dulce.

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Tu tem força, menina!

Meu coração aquecia e, ao mesmo tempo, eu suava. Mi-


nha febre estava baixando ao mesmo tempo que rezá-
vamos o terço da misericórdia. Todos ao meu redor de
joelhos. Mauro dava início na oração enquanto a sua es-
posa abraçava minha irmã. Meu pai segurava a mão da
minha mãe que chorava. E eu apenas pedia aos céus
que todo aquele sofrimento se transformasse em alegria.
No final da oração, o Maurinho olhou pra mim sorri-
dente e puxou um colar com uma imagem da irmã
Dulce. Deu um beijo na correntinha e, com lágrimas nos
olhos, apertou minha mão e disse:
— Antes do meu pai morrer, ele disse que os dias
mais felizes da vida dele seriam quando eu me curasse
do câncer e quando a irmã Dulce fosse canonizada. Não
é à toa que estou aqui hoje pra presenciar a felicidade
dele. Essa medalha ele que me deu no dia da minha ci-
rurgia. Eu vou te dar...
Meu olho encharcado de lágrimas não negava a
emoção.
— Não, eu não posso aceitar...
— Pode, Duda. Você vai se curar. Irmã Dulce vai te
curar como eu me curei. E você um dia também vai re-
passar essa medalha.
Minha ligação com minha melhor e mais querida
amiga começou naquele instante. Eu sabia que ela não
me desemparia em momento nenhum e, dali em diante,
seríamos unidas.

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Duda Riedel

A vida girou. Me desafiou. Me desnorteou. Mas me


abençoou. A vida me deu a missão mais linda e incrível
que eu poderia receber no momento quando estaria
mais desacreditada de esperança. Ela me deu a possibi-
lidade não só de me curar, mas de ser ponte de cura. Ser
objeto de perseverança, garra e luta. Eu a recebi de bra-
ços abertos e estava disposta – mais do que nunca – de
continuar com todo o amor que ela tinha construído.
Um dia, eu me senti perdida, mas foi depois de me
perder que finalmente me achei. Achei o motivo de estar
aqui. Eu estou aqui por amor, para o amor e para dar
amor. Nós somos amor, basta vermos.

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QUIMIO E SEUS EFEITOS TERAPÊUTICOS

Sinto saudades de acordar às 7h30 e tomar um café na pressa, pegar o


metrô correndo e chegar às 8h em ponto pra trabalhar. Sinto saudades
daquela hora de almoço corrida, de fugir, escondida, da dieta e ir pra
casa exausta depois de um dia cansativo de trabalho. Sinto saudades
de não ter criatividade pra montar o jantar, ir pra academia ter que
malhar e até mesmo do Wi-fi de casa sem funcionar. Sinto saudades
de não ter planos pro final de semana e acabar em casa sem ter o que
fazer, mas na companhia do meu lar. Sinto saudades de poder comer
o que eu quisesse e na hora que eu quisesse. Sinto saudades de dias
chuvosos, do trânsito caótico e até mesmo de lavar a louça. Sinto sau-
dades de tudo que vivi e quero viver mais milhões de vezes. A única
diferença é que, quando eu reviver tudo isso novamente, não vou re-
clamar, pois, quando eu tinha tudo, achava que estava cheia de nadas,
mas, agora que não tenho nada - além de fé -, eu daria tudo pra ter
tudo isso de novo.

Sempre tive medo da quimioterapia, depois fui me


acostumando aos poucos com ela. Não é fácil encarar
doses e mais doses de substâncias tóxicas e achar que
você vai lidar de boa com o processo. Ele é exaustivo. No
começo, você não sente nada, mas, depois de um
tempo, os efeitos colaterais são como um filme de drama
daqueles bem mexicanos.
Lembro como se fosse hoje o primeiro dia que colo-
quei o Athos. Pra quem não sabe, esse é o nome que dei
para o meu companheiro hospitalar, o meu cateter.
Athos significa “não temes a nada”, e era assim que eu

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Tu tem força, menina!

estava me sentido: sem medo do que estava por vir, ou


pelo menos tentando disfarçar. Eu tinha algumas opções,
colocá-lo a sangue frio ou com anestesia em um centro
cirúrgico. Óbvio que escolhi a segunda opção, e até hoje
agradeço por ela.
Eu estava há três dias no hospital e tinha visto um
total de zero homens. O máximo foi o maqueiro que me
levou na cadeira de rodas até o quarto, ou seja, eu pre-
cisava de um pouco de emoção na minha vida zero
amorosa dentro daquele ambiente hospitalar. O jogo vi-
rou no dia que o meu médico magia entrou pela porta
do quarto.
Eu estava deitada assistindo a um episódio de Gos-
sip Girl, e minha mãe e minha irmã discutiam ao lado so-
bre onde deveriam comprar minha primeira peruca. O Dr.
Jorge entrou na sala exalando simpatia e boa confiança.
Um metro e noventa, sorriso colgate, cabelos castanhos
escuros e um óculos de grau charmoso que o deixavam
com aspecto de personagem de Greys Anatomy.
— Fiquei sabendo que temos uma paciente me-
drosa por aqui. — Entrou dando risada e cheirando a per-
fume da Calvin Klein.
Olhei pra minha irmã com o canto do olho e dei
uma risada que não disfarçava meus sentimentos. Ela
mordia os lábios tentando negar o que estava aconte-
cendo enquanto minha mãe se aproximava para tentar
entender sobre o procedimento. MÃE, NÓS ESTAVAMOS

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Duda Riedel

CAGANDO PARA O CATETER, QUERÍAMO O MÉDICO MA-


GIA.
— Dr. Jorge, fico muito feliz em saber. Perdão, posso
lhe chamar apenas de Jorge? Você é tão novo. — Dou
uma gargalhada ao fundo, e minha irmã derrubou todo
o santuário que havíamos montado na mesinha de cabe-
ceira. Jesus, me perdoe.
— Claro, me chame como quiser, mas fiquem tran-
quilas que é bem rápido e zero dolorido. Vamos cuidar
dessa menina pra ela ficar boa o quanto antes.
Dr. Jorge, só de olhar pra você, eu já me sinto 100%
anestesiada, nem precisa me dar sedativo. Desculpa,
Henrique, mas não deu pra não flertar. Quando ele saiu
do quarto, eu e minha irmã caímos no riso. Momentos
como aqueles me faziam esquecer que eu estava lu-
tando pela minha vida. Essa leveza me fazia ter mais
força e imaginar que os dias eram normais, apenas um
pouco mais complicados de lidar.
Entrei na sala de cirurgia e, pra minha surpresa, o
Doutor Jorge estava mais gato ainda. Aquela farda verde
de centro cirúrgico deixava qualquer pessoa aguada.
Olhei pra ver se ele tinha aliança, mas obviamente ele
estaria sem. Ele sorriu pra mim com aquele sorriso que de-
via custar 20 mil reais só de implantes branquinhos e disse:
— Queria entender por que a senhorita riu tanto hoje
mais cedo. — Deu uma piscada enquanto colocava
anestesia na minha veia.

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Tu tem força, menina!

— É complicado de explicar, doutor. Me perdoa,


mas, se eu estava rindo, era de nervoso.
— Imagino. É uma barra, mas você vai sair dessa.
Quer escutar alguma música especial para este mo-
mento?
— Demi Lov... — Eu já estava apagada e dormindo
profundamente.
Triste informar que, depois disso, não encontrei mais
o meu médico magia em nenhum momento. Até dei
uma leve stalkeada nele pelo facebook, mas ficou por
isso aí. A sorte do dia foi a herança que ele deixou no meu
pescoço. O meu mini sanguessuga, Athinhos. De primeira,
não nos demos bem, mas, ao decorrer do processo, a
gente foi se conhecendo melhor.
O fato de você ter um cateter instalado na sua ju-
gular dá um certo incômodo nas primeiras 48 horas, de-
pois você agradece por aquilo. Afinal, é muito mais fácil
não precisar ser furada o tempo todo, e a rotina hospita-
lar é exaustiva.
Imagine uma meia maratona, 21km em 2 horas. Eu
fazia uma ultra maratona por dia. Remédios, soros, trans-
fusões, retirada de sangue. Tudo pelo meu pescoço. Ti-
nha dias que eu nem me movimentava mais quando as
enfermeiras entravam. Apenas me virava e deixava elas
ali conversando com meu amigo vampirinho.
Era extremamente desgastante, mas os efeitos não
eram tantos quanto eu imaginava que seriam, o que de

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Duda Riedel

fato mostra o quanto é importante termos consciência de


que nosso organismo é único e que cada um reage de
uma maneira. Quando fui fazer minha primeiríssima ses-
são de quimio, me colocaram muito medo. Ouvi de di-
versas pessoas relatos aterrorizantes, e a única ideia que
surgia em minha mente era: ok, não irei sobreviver a isso,
mas, depois que a última gota de citarabina entrou pela
minha veia, eu disse:
— Ué, terminou? — questionei sem entender se teria
mais algo depois daquela bolsa.
— Terminou, está sentindo algo ? — a enfermeira
perguntava enquanto jogava alguns utensílios em um
saco laranja escuro com uma caveira desenhada.
— Bem, não sinto nada, será que entrou direito? —
Minha mãe, ao meu lado, estava grudada no terço e
com os olhos inchados de tanto chorar.
— Parabéns, Duda! Você venceu sua primeira bata-
lha.
Eu não vomitava nem sentia tantas dores de ca-
beça quanto me falavam, mas minha pressão baixava e
muito. Os desmaios eram frequentes, e desmaiar, quando
se tem câncer, é como um tiro no peito. Primeiro porque
a sensação de visão turva e embaçada te causa desâ-
nimo e preocupação; por mais forte que você seja,
aquilo ali é quase que um atestado de óbito.
A primeira vez que desmaiei, foi após a minha ter-
ceira quimioterapia. Eu estava bem, tinha acabado de

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Tu tem força, menina!

fazer mais uma sessão e me sentia forte, fui ao banheiro


como de costume para colher minha urina. Depois, ao
lavar as mãos – olhando meu rosto no reflexo do espelho
–, senti tudo preto. Pisquei algumas vezes na tentativa de
ser apenas algo momentâneo, mas não era. Fui lenta-
mente caindo no chão e senti os braços da minha mãe
me segurando.
— Duda, filha! Duda!!! — ela gritava enquanto me
colocava no chão.
— Mãe... — Suspirei já jogada.
Ela saiu gritando pelos corredores. Eu estava com os
olhos fechados, mas conseguia ouvir tudo que se pas-
sava. Enquanto eu estava semi desacordada no piso da-
quele banheiro gelado, eu pedia para que Deus acal-
masse o coração da minha mãe, mas óbvio que nem
Deus conseguiria aquela proeza naquele momento.
— Ela desmaiou! Enfermeira, por favor, me ajuda,
ela caiu no chão! — Ouvia os gritos da minha mãe como
se ela estivesse ali do meu lado.
— Chama o maqueiro agora. Ventilação, todos a
postos, agora! — A enfermeira saiu correndo com um len-
çol na mão, enquanto eu continuava ali, ouvindo tudo,
mas sem conseguir me mover. – Duda, como você se
sente? — Colocando meus pés pra cima.
— Eu... eu estou bem. — Uma mentira muito mal
contada na tentativa de conseguir canalizar a dor da mi-
nha mãe.

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Duda Riedel

— Você consegue se sentar nessa cadeira? — per-


guntou o maqueiro com uma bomba de ar e outros mi-
lhões de equipamentos.
— Acho que sim... — bastou um passo e novamente
desmaiei.
Acho que devo ter dormido por três horas nesse dia,
acordei com minha mãe, meu pai e minha irmã no
quarto me observando com olhos arregalados e inquie-
tos. Essa era a única sensação que eu jamais gostaria de
despertar em ninguém. Sabe pena? Pois é, acho pena o
pior sentimento do mundo, e eu não gostava de desper-
tar isso em ninguém.
E assim foi durante os meus longos ciclos de trata-
mento, sem sensações diferenciadas, muito menos um
mal estar exorbitante. A meditação ajudava muito. A
força do pensamento principalmente. O ponto era:
quando eu estava bem, a quimioterapia fluía bem.
Quando eu estava mal com problemas externos, tudo ia
pelo ralo. Eu não estava com câncer, esse danado que
estava comigo, e ele ia embora o mais rápido que pu-
desse.
A quimioterapia mexeu muito mais com meu psico-
lógico que com meu estado físico, e o fato de ser dessa
forma foi muito complicado por um único motivo: se tor-
nar um fardo. O meu maior medo era me tornar um pro-
blema na vida das pessoas que estavam ao meu lado e,
durante vários dias, eu me sentia assim.

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Tu tem força, menina!

Imagine uma mulher na TPM, agora imagine uma


mulher na TPM sem chocolate, com cólica, com hormô-
nios aflorados e brigada com o namorado. Era exata-
mente assim que eu me sentia, em uma TPM eterna. Às
vezes, do nada, eu me debulhava em lágrimas sem expli-
cação nenhuma ou me irritava quando alguém falava
de maneira – ao meu ver – seca. E tudo se tornava muito
maior do que era.
A impressão que eu tinha era que todos já estavam
no limite comigo e que ninguém aguentava mais os meus
dramas e confusões mentais. Então, por vezes, eu me iso-
lava e ficava chorando quietinha no meu canto, tor-
cendo pra que ninguém ouvisse o que se passava dentro
do turbilhão de emoções que eu guardava.
A verdade é que nós sabemos a barra que é, mas a
gente não quer que alguém segure essa barra por nós
sem precisar. Então, nesses dias, eu simplesmente sumia
para não dar oportunidade para minhas paranoias. Era
mais um dos meus mecanismos de defesa. Desligava o
Wi-fi e ignorava o meu celular. Depois, quando eu me
sentia mais à vontade, eu voltava fingindo que nada ha-
via acontecido, mas com as emoções totalmente corroí-
das. Guardar emoções não faz bem.
— Tenta comer só mais um pouco do arroz com fei-
jão, Duda. — Minha irmã segurava o garfo enquanto mi-
nha mãe enchia um copo com suco.
— Não quero mais. — Fechei a cara.

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Duda Riedel

— Só um pouco, você já não tomou o café da ma-


nhã, filha. — Joguei a bandeja de comida no chão e
voou arroz e feijão pra todo lado
— Eu não quero mais. Vocês conseguem entender?
Eu já estou surtando há dias aqui. Eu não quero mais,
mãe. — Meu choro chamando pela minha mãe era de-
sesperador.
As enfermeiras entraram no quarto tirando minha
pressão e meus batimentos cardíacos. A Nathalia tentava
conter meu desespero enquanto meu pai acolhia minha
mãe. As lágrimas inundavam os lençóis da cama.
É extremamente devastador pensar que nós não
aceitamos quando somos fracos e frágeis. Enxergar a fra-
gilidade é um dom e é nela que vemos o quanto somos
fortes. Foram nos meus piores dias que percebi o meu po-
tencial para enfrentar cada um daqueles ciclos. O esgo-
tamento faz parte e, numa hora, o que restava era urrar
de estafa. A quimioterapia não é fácil, mas, quanto mais
ciclos você faz, mais você percebe o seu sucesso se apro-
ximando.
Alguns pensam: “Ela está acabando comigo!”, e
acho que por isso a QT vira um vilão aterrorizante. Mas, se
pararmos pra pensar que ela também é o que te salva,
esse efeito negativo perde força e te dá a força para en-
cará-la.
A quimio tem seu próprio ritmo, nós não ditamos. Ha-
verá dias que você vai apenas existir, em outros é como

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Tu tem força, menina!

se nada tivesse acontecido. Nos dias em que eu não me


aguentava em pé, tinha que engolir meu orgulho e pedir
ajuda.
É muito complicado pra uma pessoa que morava
sozinha há seis anos depender de alguém pra fazer qual-
quer atividade simples, mas tive que reaprender a ser alta
e totalmente depende, assim como um recém-nascido.
Afinal, onde o orgulho mora, o amor não brota.
Em um desses dias quando abrir o olho já se tornava
uma vitória, passei por um sufoco daqueles que, na hora,
é angustiante, mas depois damos boas risadas. A prisão
de ventre faz parte de alguns efeitos das drogas que to-
mamos no tratamento, era uma tremenda aflição passar
dias sem conseguir ir ao banheiro. Por isso, a médica me
receitou um remédio para soltar meu intestino. Eu não ti-
nha problema com nenhum medicamento, apenas com
esse bendito. Imagine uma cachaça de mel com choco-
late branco, era tão doce que doía no meu maxilar. To-
mar aquilo me dava um embrulho no estômago, e o re-
sultado era imediato, embora as enfermeiras dissessem
que não.
— Vamos, Duda! Toma logo isso. — Me entregou a
Mari, uma enfermeira fofa que fez amizade comigo.
— Eu não consigo, me dá náuseas. — Afastei com
as mãos o copinho.
— Aposto que você já tomou coisa pior. — De fato,
Mari, já tomei sim!

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Duda Riedel

Virei o shot de laxante como se fosse uma tequila


ouro de péssimo nível. Imediatamente, senti os gazes se
formando na minha barriga. Quem foi que falou que
aquilo não era imediato? Comecei a me contorcer na
cama e orar para que eu não fizesse o número 2 ali
mesmo. Era impossível aguentar mais do que dois minutos
para ir no banheiro, porém eu precisava esperar minha
mãe esterilizar a privada, passar álcool, desligar a bomba
de soro, me levantar, me levar com calma até o banheiro
e me sentar calmamente para fazer minhas necessida-
des. Mas ninguém pode pedir ao cu – me perdoem o
termo – pra ele segurar um pouquinho, não é?
— Vai logo, mãe, não consigo segurar mais! — gri-
tava enquanto me remexia na cama.
— Vânia, vai decolar, ela não para de peidar, viu?
— brincava meu pai tentando tirar sarro da situação.
— Para, pai! Tá doendo! — Eu ia defecar nas calças,
que lástima.
— Calma, calma! Vamos lá, tô chegando. Segura
em mim. — Me apoiei no ombro da minha mãe e fui an-
dando o mais rápido que eu podia para o banheiro.
— Ok, sentadinha, pode fazer. — E ficou ali, parada,
me olhando.
— O quê? Eu tenho que fazer com você aqui me
olhando? — Simplesmente, toda aquela vontade que eu
tinha de soltar o número 2 travou completamente.

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Tu tem força, menina!

— Duda, não podemos arriscar. Você não pode fi-


car sozinha no banheiro. É perigoso. — Ela tapou o nariz,
eu tinha soltado uma bomba daquelas.
— Mãe, tá constrangedor pra mim e pra você, por
favor... Será que você pode ficar na porta apenas?
— Eu posso ficar atrás do box, fica melhor? — E se
escondeu atrás da cortina do chuveiro.
— Ok. Vou me concentrar.
Quando as primeiras fezes caíram no vaso, ouvi mi-
nha mãe comemorando:
— Boa filhota!!!! — E colocou a cabecinha pra fora
me observando.
— Mãe, assim você me trava, eu não consigo!
— Ok, força! Quer dizer, não faz força, suas plaque-
tas estão baixas, e você não pode sangrar. — Voltou pra
dentro do box.
— Certo, acabei. — Enquanto pegava o papel higi-
ênico, ela saiu colocando luvas e pegou um sabonete ní-
vea. — Hã??? O que você ousa fazer?
— Limpar seu bumbum.
— Não, por favor! Aí já é demais. — Me levantei da
privada, e minha pressão caiu novamente.
— Maria Eduarda, já falamos que você tem que to-
mar cuidado.
Se você pensa que isso foi constrangedor, imagine
só o dia em que meu pai teve que me levar ao banheiro.

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Pra quem passava um mês sem conversar com o coroa,


ter que ser forte o suficiente para evacuar na frente dele
nos aproximou a nível de intimidade mais que demais.

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Tu tem força, menina!

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A CARECA DO AMOR

É que beleza é esse negócio que as pessoas têm mania de externalizar


e materializar com futilidades. Eu prefiro fazer da minha maneira e
enxergar a alma. E, depois que eu vi a beleza que ela tem, entendi que
de nada adianta ter o cabelo mais bonito, a roupa mais elegante, o
corpo mais malhado se sua energia não estiver elevada. Carne é ape-
nas carne. Ela fica, e a gente vai. Minha energia se elevou e, por isso,
hoje me sinto mais bela. Eu tenho focado em coisas muito mais espe-
ciais, por isso, meu exterior tem chamado tanto sua atenção.

Lá estava eu no meu auge dos vinte e quatro anos,


deitada em uma cama de hospital cheia de medica-
mentos presos ao meu pescoço. Externamente, você
pode imaginar o quanto eu estaria debilitada, mas está
errada. Eu estava – modéstia parte – linda, reluzente, bri-
lhando e radiante. Lidei internamente tão bem com tudo
que isso refletiu no meu eu externo e, a cada dia que pas-
sava, meus olhos estavam mais cheios de vida.
Me parece um pouco cruel pensar que eu estava
tão linda daquela forma. Em alguns momentos, sentia
que me elogiavam por pena ou piedade, mas eu me
olhava no espelho diariamente e podia comprovar o ób-
vio: sim, eu nunca estive tão incrível como estaria ali.
Acordar pra vida te deixa experto, te dá ânimo e te
abre os olhos. É impossível ver beleza onde existe um mar
de amargura. Então, quando seus pensamentos mudam,

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automaticamente isso muda sua casca e transforma sua


alma.
Houve um tempo em minha vida quando nada que
eu vestisse ou tentasse fazer me deixava bela. Eu culpava
meu corpo, meu cabelo, minhas olheiras e minhas espi-
nhas. Portanto, comecei a usufruir de centenas de proce-
dimentos estéticos na expectativa que aquilo preen-
chesse a beleza que, na verdade, me faltava por dentro.
Certa vez, ouvi uma frase “ela é bonita, mas total-
mente sem sal”, hoje eu compreendo a dor e o signifi-
cado que se traz por dentro dessa colocação. Beleza é
algo que vem muito mais de dentro. Esse clichê e a mili-
tância absurda de “se ame” é real, mas muito deturpado
porque poucos sabem o que realmente importa. Não é
sobre quem é gordo ou magro, cabelo liso ou cacheado,
malhada ou normal... Isso é casca. Isso é carne. Isso fica.
Temos inúmeras influências externas que fazem
parte da criação da nossa beleza; padrão estético,
moda e personalidade são os principais. Mas fato é que
tem um deles, e sem dúvida o mais importante de todos,
que vem de dentro e faz com que todo o resto seja dei-
xado de lado: autoestima. Beleza não é algo óbvio, cada
um tem sua beleza, e ela se expressa de alguma forma.
Quando sua beleza é corrompida pelos fatores internos,
você não deixa de ser bela, mas perde seu brilho. No es-
curo, ninguém enxerga luz.
A discussão então deveria ser sobre: quem tem luz
ou não. Se sua luz está apagada, você não tem como

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Duda Riedel

gostar de você e, por vias, também não vai se achar


bela. Agora, se você brilha e enxerga sua alma, não tem
quem diga que não está incrivelmente linda.
Quando sua autoestima está elevada, quando seu
amor próprio está em dia, quando você se sente bem
com você, acredita, esse é o seu melhor acessório. E eu
não entendia isso por muito tempo. Ao me dar conta de
que casca fica e alma vai, parei de investir tanto dinheiro
em tentar me deixar parecida com a atriz loira e gostosa
que eu seguia no instagram e comecei a dedicar nas ses-
sões de terapia para curar o buraco que tinha em meu
coração.
Se desapegar da casca é difícil. Um momento de
transição aterrorizante pra tantas mulheres. Afinal, o que
enxergamos nesse plano é a carne física, sólida e pre-
sente, é se olhar no espelho e enxergar aquela figura que
vai encarar o mundo todos os dias pela manhã. O pro-
cesso de se achar bem com você mesma leva tempo, é
um ensinamento diário, mas a gente só deixa de dar valor
a isso quando começamos a dar valor ao interno. E esse
processo demora, mas uma hora acontece.
Um fato sobre a quimioterapia e um sintoma quase
que unanime é a alopecia, mais conhecida como care-
quinha ou queda de cabelo. Acontece em cerca de 80%
dos pacientes e, embora seja o sintoma menos doloroso
fisicamente, é o mais agoniante e desesperador pra tan-
tas pessoas. Acredite: é bem melhor cair todo seu cabelo
que você cair todos os dias de fraqueza.

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Tu tem força, menina!

Eu tomava banho e via metade dos fios irem pelo


ralo e a outra metade ficava na toalha quando eu enxu-
gava. Acompanhar essa cena me lembrava filmes e no-
velas com fundo musical dramático e lágrimas em se-
quência. Eu passava tranquilidade a todos por raspar a
cabeça, não demonstrava esse apego e esse medo ab-
surdo que causava em tantos. Sempre fui extremamente
imediatista, então, quando dava vontade de fazer algo,
eu queria resolver pra ontem. Pensar duas vezes? Jamais.
Nem uma direito eu conseguia.
— Quero raspar meu cabelo, pode chamar alguém
pra vir aqui? — Mais um tufo de fios estava no meu traves-
seiro.
— Mas já? Não prefere esperar cair mais um pouco?
— A Nathalia pegou um turbante e colocou na minha ca-
beça na tentativa de disfarçar.
— Eu tô pronta. Eu escondo essas falhas dos outros,
não de mim. Sei que ele está caindo e sei que ainda vai
cair mais, pra que vou postergar a dor se posso cessá-la
imediatamente?
— Você está certa! Vou ligar pra Ivana. — E saiu do
quarto com o telefone na mão.
Nossa intuição dita muito nossas escolhas e segui-la
é sempre um bom caminho. Paradoxalmente, eu estava
certa, mas a verdade é que eu estava aterrorizada com
o fato de ficar careca. Acho que, ao falar da boca pra

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Duda Riedel

fora que eu estava pronta pra isso, queria mesmo era au-
toafirmar até que se tornasse tranquilo pra mim também.
Eu nunca tive apego ao meu cabelo, ele nunca foi
o cabelo mais bonito de parar o trânsito e ser elogiado,
mas fato é que era um cabelo. Dizem que o cabelo é a
moldura do rosto, mas penso que talvez o cabelo seja o
acessório que temos para não chamar atenção ao nosso
rosto. Muitas vezes, olhamos primeiro pra ele que pros
olhos, e os olhos sim são a porta de entrada pra alma.
Bem, o dia que antecedeu à raspagem total me
causou pânico. Eu vomitei, não conseguia dormir e não
me aquietava na cama. Girava de um lado pro outro, e
isso fazia ele cair mais. Acendi a luz e pedi pra minha mãe
tirar uma foto de como estaria atrás. Ao olhar a foto, um
buraco na minha cabeça me chamou a atenção. Já ha-
via caído mais do que eu imaginava.
Enxuguei as lágrimas, virei o rosto, fechei os olhos e
comecei a orar. Não para que eu não ficasse feia ao ras-
par, mas para que eu tivesse forças para encarar esse
momento.
O tal dia chegou e, com ele, incertezas que cambi-
avam por todo meu corpo. Será que eu iria gostar da-
quele meu novo eu? O silêncio obrigatório no quarto re-
gia o ambiente para tentar me acalmar e diminuir a ten-
são. Não funcionou. Fim da espera, lá estava Ivana com
uma máquina de barbear em suas mãos.

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Tu tem força, menina!

— Prontas? — Ela ligou a máquina e olhou para mi-


nha família.
— Espera, eu não vou ficar. — Minha mãe se levan-
tou e pegou a bolsa, eu sabia que ela não iria aguentar
ficar ali sem chorar.
— Prontas — respondeu minha irmã entusiasmada.
— Vamos por uma música pra animar! — Procurei
minha lista mais animada do spotify — Essa aqui! — Colo-
quei um funk 150bpm.
— Meu Deus, Maria Eduarda, nem pra colocar um
MPB. Caetano chora neste momento. — Meu pai dava
risadas nervosas.
— Lá vamos nós!
E fomos. Fomos pro lugar mais mágico que eu já es-
tive, o lugar mais acolhedor e sincero. Fui para as profun-
dezas do meu eu. Ao decorrer da raspagem, enquanto
eu assistia àqueles fios caírem no chão, eu me transfor-
mava no que sou hoje. Minha moldura, ou falta do ca-
belo, abriu espaço para que essa mulher se redescobrisse
e entendesse o poder da sua alma. Minha alma estava
cada vez mais em evolução. Orgulhe-se do que seu co-
ração reflete para entender o que você é. Você fica in-
crivelmente mais linda quando se veste de você.
Os cabelos caídos no chão simbolizavam uma Duda
que não existia mais. E, enquanto meus novos fios nas-
ciam, eu também renascia. O cabelo era a parte que me
prendia naquilo que eu já não era. Eu era aquilo que

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Duda Riedel

restou, a parte mais bela do quadro. A perda dos cabelos


me deixou ainda mais linda, mas não porque sou linda
sem cabelo, mas porque não preciso dele para construir
o que virei. Eu virei uma mulher linda, autoconfiante, ho-
nesta e batalhadora. Eu era tudo aquilo independente
de ter cabelos e, pode apostar, não ter cabelos é uma
maravilha.

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Duda Riedel

REMISSÃO

Enquanto sinto o chão se abrir diante dos meus pés, olho pra aquela
que me atormenta. Eu já tive meu momento de escondê-la. Hoje pre-
firo encarar. Você não pode fingir que a dor não existe, você tem que
enfrentá-la, tem que ver que ela existe e está ali. Você tem que olhar
pro fundo dessa dor e falar em voz alta: você não tem mais vez. Parece
um sonho efêmero pensar que aquela imensa sensação de liberdade
que eu sentia seria tão rara de acontecer novamente, e que essa dor
que me consome dia após dia me fazia perder as esperanças. Parece
que essa liberdade, longe dessa realidade, só existe quando eu fecho
meus olhos ao dormir. É que não é óbvio - em momentos dolorosos -
conseguir enxergar aquela luz no fim do túnel. Mas a luz existe. O
que me mantém viva aqui dentro é entender e compreender uma equa-
ção de matemática básica. +1/-1. A arte de resistir é pensar que é me-
nos um dia, e não mais um dia. É menos um dia de sofrimento e mais
um dia perto da glória, da glória de que nenhum momento é eterno,
muito menos se ele for ruim. A parte boa - venho agora te mostrar - é
que tanto dias ruins como dias bons têm a mesma quantidade de
tempo. Em 24 horas, isso acaba, e um novo recomeço se instala. Acre-
dite, isso também passa.

Nunca me senti sortuda. Pra falar a verdade, eu


sempre fui uma daquelas que a vida dá uma rasteira, e
tudo que é pra acontecer de errado dá errado. Minhas
amigas até brincavam comigo:
“Estou tranquila que a Duda vai, pois sei que, se algo
de ruim acontecer, vai ser com ela”.

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Tu tem força, menina!

Literalmente, eu era e sempre fui a azarada do role.


Isso era engraçado para alguns, mas me machucava às
vezes. Por que tudo que tinha de errado acontecia co-
migo? Por que o amor sempre sumia das minhas mãos?
Por que eu não conseguia uma vaga no trabalho dos
meus sonhos? Por que tudo comigo? Eram tantas pergun-
tas que, se eu me sentasse diante do criador, eu o ques-
tionaria centenas de vezes até ter uma resposta plausível.
Por que devemos sofrer?
Eu sabia que não poderia perguntar diante dele, en-
tão um dia fui em um centro espírita conversar com quem
mais poderia me confortar nas minhas inquietações. Dois
meses antes de descobrir meu câncer. Nervosa e aflita
em um lugar que nunca estive. Primeiro, eu apenas ob-
servei tudo que acontecia até tomar coragem para sen-
tar e falar com alguém. Me levantei, olhei para a enti-
dade, e imediatamente ela falou comigo:
— Você não é uma menina de sorte, mas é uma
menina de fé.
Nem fé eu tinha mais.
— E o que mais? — eu queria respostas.
— Você está formosa, fia?
Formosa, o que era aquilo?
— Eu não entendo, o que é formosa? — questionei
enquanto as lágrimas encharcavam meu olho.
— Como está sua saúde, você tá bem? — Àquela
altura, eu achava que minha saúde estava ótima e

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Duda Riedel

apenas concordei com a cabeça. — Você vai passar por


uma provação, e sua fé será restaurada, não desista.
Eu recebi uma mensagem, mas claro que, na
época, não entendi o que significava e fiquei matutando
em minha cabeça por qual provação eu teria que pas-
sar. Eu já sabia que não poderia contar com minha sorte,
mas com minha fé? Que fé seria essa?
Dizem – em alguns livros – que, antes de descermos
pra Terra, o criador, Deus, ou como você preferir chamar,
escreve toda sua vida com você e pergunta se você está
de acordo. Depois disso, você passa por uma lavagem
em que esquece tudo e desce para esse plano a fim de
cumprir sua missão.
Portanto, se estamos aqui é porque nós concorda-
mos com nossa história, mas sempre reclamamos da au-
toria dela. Mas, se nós escrevemos cada linha, por que
discutimos tanto? Contraditório, não é? Mas é que preci-
samos esquecer tudo para evoluir e esquecemos de con-
fiar que é, nas dificuldades e nas mais difíceis lições, que
vem as maiores vitórias e os maiores aprendizados.
Eu tive minha fé provada durante todo o tratamento
de indução e me apeguei à minha cura. Eu podia não
saber o que aconteceria, mas sabia que era uma das
maiores colaboradoras da história e que ela não acaba-
ria ali. Eu seria curada graças à minha vontade de viver e
de crescer com tudo aquilo.

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Tu tem força, menina!

Se você me perguntar qual foi o melhor dia da mi-


nha vida, eu te respondo com precisão: 8 de Junho de
2019. O dia que saí do hospital depois de mais de 35 dias
internada. Eu via os carros na rua e chorava, via pessoas
andando e sorrindo, olhava diretamente pro céu sem ser
através de uma janela de um quarto de hospital, eu po-
dia andar sem ter que segurar um carrinho de soro e me-
dicamentos! Eu me sentia livre e viva.
Fui até o consultório do meu médico realizar mais
uma punção de medula, aquele exame que constatou
toda minha doença. Enquanto a anestesia entrava, eu
lembrava a mesma cena que tinha ocorrido um mês.
Orei. Dessa vez, um pouco mais tranquila, eu conseguia
falar durante o procedimento, mesmo sentindo meu
corpo sair junto com aquela seringa.
— E seu cabelo caiu todo, hein Duda? Gostou de
usar lenços? — Dr. João Paulo, sempre simpático.
— Caiu, Dr. Os lenços me deixam mais estilosa que
as perucas — completei a frase e dei um gritinho no final.
— Última lâmina, Duda, aguenta! — ele puxou mais
um pouco.
— Nem parece que estou doente, não é? Me sinto
lin... AI!
Pronto, finalmente acabou. Virei o rosto e olhei pro
Dr. João que estava com cara de espanto.
— Por essas lâminas, parece que você não está mais
mesmo — ele guardou tudo. — O resultado deve sair até

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Duda Riedel

segunda-feira... Te ligamos. Sua próxima internação ficou


para o dia 18, certo?
Saí da clínica com um pouco de dor ainda, deitei
de bruços na cama e dormi. Aquele sonho de poder dor-
mir em casa era gratificante, valorizar cada vez mais os
pequenos feitos que a vida nos dá.
Sonhar era meu momento favorito do dia, pois meus
sonhos sempre me davam a liberdade que a doença ha-
via me tirado. Quando eu sonhava, nunca estava com
leucemia ou em uma cama de hospital. Eu sempre es-
tava feliz, correndo, me divertindo e em um universo to-
talmente paralelo do que eu estava passando. Sonhos
alimentavam minha alma.
Acordei no susto com meu celular tremendo. Olhei
e vi uma ligação da minha irmã. Desliguei e coloquei no
silencioso, pois estava muito bem no aconchego da mi-
nha cama. Mais uma vez, ela insistiu e me ligou, atendi e
ouvi os gritos de felicidade que ela dava:
— Duda! Duda! Você está curada, não tem mais cé-
lulas ruins no seu corpo!! — os gritos e a respiração ofe-
gante dela me fizeram não entender muito o que era
dito.
— Natty, não entendi! O que você disse? — tentei
me acalmar e buscar explicações.
— Você está em remissão, Duda! Não tem mais leu-
cemia.

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Tu tem força, menina!

Caí de joelhos no chão e encostei minha cabeça


na cama. As lágrimas inundaram meu quarto, e eu, para-
lisada, não conseguia reagir àquela informação.

“Maria Eduarda, você teve remissão completa. Não


tem mais nenhuma célula de leucemia em seu corpo”.

Eu ouvi, e a frase continuava ecoando dentro de


mim. A dúvida e a incerteza da morte desapareciam na-
quele instante, e o alívio de “eu estou a um passo da
cura” se fazia presente. Ao mesmo tempo que eu vibrava
e sentia vontade de gritar ao mundo minha remissão
completa, eu chorava e me lembrava daquela menina
que recebia a pior notícia do mundo há um mês. Aquela
menina que chorava no colo da mãe com medo da
morte, que perguntava e gritava com os médicos “por
que comigo?”, que batia e atirava objetivos com raiva e
conflitava Deus, que tinha medo de se olhar no espelho
e enxergar um rosto de sofrimento e desespero.
Aquela menina evoluiu. Ela mobilizou uma cidade
inteira de dentro de um hospital para doação de sangue,
raspou o cabelo ouvindo Beyoncé, fez uma semana de
quimioterapia sem derramar uma lágrima, consolou sua
família quando nem ela tinha mais forças, enxugou as lá-
grimas de sua mãe enquanto rezavam. Quando essa
mesma menina - que teve que se tornar mulher em tão

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Duda Riedel

pouco tempo - ouviu a tão esperada notícia da remissão,


ela voltou a ser menina por um segundo.
Meu pai chegou no meu quarto e me viu jogada no
chão rezando. Quando contei a notícia, ele me pegou
em seu colo como um bebê e gritava agradecendo a
Deus por ter a oportunidade de ver mais passos da sua
caçula. A sensação de ter uma segunda chance de viver
é algo inexplicável.
Essa foi, sem dúvidas, a melhor notícia que eu já re-
cebi. Há meses, minha maior preocupação era ter cora-
gem pra pedir demissão de um emprego que eu não gos-
tava, não demonstrar pro cara que eu ficava que estava
apaixonada e conseguir terminar o mês sem estar nega-
tivada no banco. Pois bem, evolui, cresci, amadureci e
entendi que a vida podia girar em um 360°, que seus so-
nhos podiam parecer distantes, que sua esperança po-
dia ser abalada, que sua fé podia ser questionada, mas,
acima de tudo - e por causa de tudo -, Ele não desam-
parava. Somos instrumentos de algo maior, e nossos de-
safios nada mais são que a jornada para nossa missão.
Eu me sentia extremamente azarada antes, mas
certamente eu tive a maior sorte da vida: obter remissão
completa com apenas um ciclo de QT. A minha fé me
ajudou, mas o que mais fez tudo dar certo foi parar de
me vitimizar.
Olhei pela porta do quarto e lá estava meu pai, mi-
nha mãe, minha irmã e meu cunhado abraçados, cho-
rando e comemorando. Deixei aquele momento pra eles,

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Tu tem força, menina!

eu tinha uma sensação de que as pessoas não gostavam


de chorar na minha frente, e, algumas vezes, chorar era
preciso. Fechei a porta do quarto devagarzinho, para
que eles não notassem que eu estava observando. Foi ali
que parei de frente pro espelho, me olhei e me perdoei.
Tenho esse problema cruel de aceitar que as coisas
não iam ser como eu esperava, mas sim como tinham
que ser, e os caminhos Dele eram melhores que o meu. É
que tinha sido difícil assumir que não tinha mais controle
sobre tudo que vinha acontecendo e que tudo bem se
nada estivesse indo bem. A ansiedade batia na porta e
a agonia berrava no meu coração, mas, naquele ins-
tante, eu percebi: confia, isso também passa.
Cada fase traz consigo uma lição árdua, mas, com
fé e perseverança, nós passamos por cada uma delas e
organizamos nossa história. História essa que temos tanto
orgulho de olhar e dizer: é minha. Eu lutei, sofri, chorei, mas
eu venci.
É chegado o momento quando essas dores não vão
mais te machucar tanto, vão ter cicatrizado. Essa cicatriz
não vai ser olhada com revolta, pois faz parte da sua ba-
talha. Sua batalha não vai te magoar, vai ter te ensinado.
E aquela lembrança ruim não vai te atormentar, pois foi
necessária. Esse momento chegou pra mim.
Se curar é um largo e duro processo, leva tempo. Se
refazer e recomeçar sem culpa do que já se foi, olhar pro
passado e dar risada das escolhas bizarras, encarar o fu-
turo sem tantas pressões psicológicas desenfreadas,

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Duda Riedel

respeitar o tempo e acreditar que tudo vai melhorar,


basta confiar.
Pode ser que as coisas não se acertem amanhã,
nem semana que vem, mas, aos poucos, elas vão se ali-
nhando. Hoje, por exemplo, já está melhor que ontem, e
amanhã, sem dúvidas, já vai ser um pouco melhor que
hoje. Naquele dia, eu tive a certeza de que tudo de me-
lhor aconteceria em minha vida.
A meta era ficar bem, os obstáculos eram incontá-
veis, mas, na aula da vida, a prova não era apenas pra
passar de ano, e sim pra aprender a colocar as lições em
prática. Acredite, isso um dia também vai te ensinar algo.

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Tu tem força, menina!

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Duda Riedel

A VIDA CONTINUA

Simplesmente, tem vezes que não vale a pena nossa insistência, muito
menos nossa paz de espírito. Algumas vezes, precisamos nos despren-
der daquilo que tira nosso sono e atormenta nossa mente. Tem situa-
ções, problemas e pessoas que não merecem nosso sacrifício. É melhor
- somente - deixar pra lá. Nós depositamos toda nossa energia em coi-
sas que sugam nossa harmonia e nosso equilíbrio e, depois que perce-
bemos que não era pra tanto, nos irritamos com nós mesmos por ter-
mos dado tanta importância. Não tinha necessidade, agora eu sei. A
gente tem que sacodir a poeira, jogar pra cima, deixar cair no chão e
não catar. Deixa lá mesmo. Fecha a porta. Tranca com chave e não
volte naquele lugar. A poeira vai continuar lá, mas não é obrigação
sua limpar. Eu sei, é que a gente tem essa mania mesmo de querer re-
solver tudo, de querer entender tudo, de querer que tudo seja do nosso
jeito. Não é. E, por não ser do meu jeito, parei de tentar consertar. De
tanto tentar organizar, percebi que eu desorganizava meus sentimen-
tos e minha saúde mental com tudo isso. Não gaste seu tempo com
quem não tem tempo.

Durante toda minha vida, eu tive medo de viver.


Medo de me machucar no amor, de não conseguir o em-
prego que queria, de decepcionar meus pais... Uma vida
coberta de inseguranças por um ato que devemos fazer
e nos arriscar diariamente que é estar vivo. E, por medo
de viver, a gente para de tentar.
Nós preferimos a segurança da areia que agito do
mar. Algumas pessoas param de viver e apenas ligam o
piloto automático. Vivem como um robô, só que

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Tu tem força, menina!

esqueceram de nos avisar que máquinas não tem senti-


mentos, mas seres humanos sim. E, quando eles explo-
dem, minha amiga, é melhor você saber lidar com eles.
Tem gente que mascara sentimento. Joga pra de-
baixo do tapete como faz com sujeira. Saber viver é muito
difícil, mas, depois que você aprende, é que entende a
maravilha e a delícia que é estar vivo. Pois bem, eu era
assim, mas aprendi a lidar com minhas sujeiras e sou imen-
samente grata a elas, sabe? Sou grata pelas voltas que a
vida dá. E aí não me sobra tempo para questionar o “por
que comigo?”. Hoje eu não me irrito mais quando o pneu
do carro fura nem quando a água acaba enquanto eu
estou toda ensaboada. Eu paro, respiro e dou risada.
A gente não fica mais tão focado no mundo ex-
terno porque lembramos que já temos que dar conta da
nossa vida interna. Entretanto, tudo foi, e ainda é, um pro-
cesso. A terapia do câncer me ajudou a curar minha Leu-
cemia, mas principalmente o meu olhar pro mundo. A
vida continuou, diferente é claro, e ver a transição foi do-
lorosa, mas extremamente necessária.
O mais duro durante todo o tratamento foi sentir jus-
tamente o afastamento de algumas pessoas. Sentir que
as coisas saíram do controle e que não existia nada que
eu pudesse fazer ou agir para recuperar aquele amor
perdido. Alguns dias eu chegava a chorar enquanto co-
locava o lençol na boca para tapar meus soluços nas
madrugadas dos sábados. O final de semana sempre era
um tiro no estômago pra mim.

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Duda Riedel

Domingos eram os dias mais difíceis no hospital, um


dia depois de um sábado agitado pra muita gente e to-
talmente parado pra mim. Ter 24 anos e lutar contra um
câncer trancafiada há mais de vinte dias dentro de um
quarto de dezenove metros quadrado é um teste psico-
lógico diário. Entrar em redes sociais me deixava inquieta,
e olhar aquilo me dava náuseas. Todos estavam vivendo
intensamente enquanto eu tentava intensamente viver.
Minha saúde mental agradecia ao fato de existir modo
avião no celular, e meu coração ficava mais calmo da-
quela maneira.
Lutar pela vida enquanto você via pessoas da sua
mesma idade a curtindo era um paradoxo sem fim. Eu ti-
nha tudo aquilo e, do dia pra noite, me foi tirado das
mãos. Perdi aquela liberdade, aqueles momentos e
aquela felicidade. E aquelas pessoas que sempre apro-
veitavam tudo isso comigo continuavam aproveitando,
afinal, a vida continuava pra elas, mas e pra mim? Doía...
e como doía. Não era fácil.
Se tornava ainda mais difícil quando eu via em
quem eu acreditava que seriam meus amigos até o fim a
frieza por não saber suportar o que eu estava passando.
Eu estava longe de boa parte das pessoas que eu
amava, e a distância – para alguns - não era apenas fí-
sica, em um momento também se tornou sentimental.
Não era como se estivéssemos apenas em cidades dife-
rentes, a vida pra eles seguia plenamente, e o quarto de
hospital tornava a distância mais amarga.

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Tu tem força, menina!

Foram inúmeras perdas durante essa jornada, mas


perdas essas que me fizeram ganhar tempo e te explico
o porquê. A primeira e mais dolorosa foi no amor. Eu con-
tinuei me envolvendo com o Henrique, mas me envolvia
completamente só. Nossa sintonia ia morrendo na
mesma proporção que eu ia ficando mais saudável. Era
contraditório e desesperador, pois eu sabia que voltaria,
mas agora voltaria sem ele na minha vida. Me entristecia,
me arruinava, eu sofria. Como sofria... Um câncer não ha-
via me derrubado, mas um amor não correspondido ti-
rava minha paz. Como isso era possível?
Eu tentava de todas as formas resgatar aquele sen-
timento, mas a verdade é que nem tudo está em nossas
mãos. Eu me dedicava muito a ele, talvez por não ter tan-
tos compromissos, tantas opções, ou talvez porque, sim,
eu havia me entregado a ele. Eu via a pessoa por quem
era apaixonada se enfiando em um abismo no qual tinha
medo de me deixar em uma situação tão delicada e ser
um babaca, mas só aguentava ficar pois ainda gostava
um pouco de mim.
Eu precisaria ter paciência, pois não teria um certifi-
cado de cura com um felizes para sempre ao lado dele.
E, mesmo que tivesse, como saber quando seria? Essa
constante falta de respostas fazia com que eu não con-
seguisse pensar em futuro, somente no agora. Mas o que
o agora gostaria de me dizer eu estava preparada para
ouvir?

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Duda Riedel

Era terça-feira, e eu acordei angustiada e com um


pouco de dor no pescoço. Já fazia uma semana que nós
não nos falávamos. O máximo era um “e aí, como você
está?”. A fisioterapeuta chegou no quarto pedindo para
que eu fizesse alguns exercícios para aliviar aquela ten-
são. Liguei uma música no spotify e comecei a fazer mo-
vimentos diferentes e dar boas risadas. Meu celular to-
cava descontroladamente com algumas mensagens de
amigos, pausei a música e resolvi ver o que seria. Era uma
mensagem do Bernardo, meu ex-namorado.

“Como vai você e o Henrique? Estão distantes mesmos?”

Naquele segundo, meu coração acelerou mais


forte, e meus olhos marejados já sabiam a bomba que
estaria vindo. Encarei a verdade e respondi friamente. Es-
perei inquieta aqueles cinco minutos enquanto o via digi-
tando pelo whatsapp. Desbloqueei o celular e ali estaria
o que eu precisava entender.

“Que bom que você desencanou dele. Encontrei ele e a ex-namorada


no shopping no domingo. Ele não te merece”.

As lágrimas escorreram, e minha fisioterapeuta pu-


xava a cadeira para que eu sentasse. Me segurei na
bomba de soro, inclinei minha cabeça e deixei que as

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Tu tem força, menina!

lágrimas rolassem pelo meu rosto. Às vezes, a melhor solu-


ção é chorar.
Li uma matéria que dizia que 70% das mulheres com
câncer acabavam sendo abandonadas por seus parcei-
ros. Eu cogito que, dentro dos outros 30%, algumas tantas
sejam abandonadas pelos seus projetos de sonhos. Eles
simplesmente vão sem sequer nos darmos conta, per-
dem-se no caminho como tantas outras pessoas.
A porta se fecha. A luz apaga. A voz some da nossa
mente aos poucos, até que um momento não dói mais
tanto. Contudo, na hora que acontece, machuca de-
mais. Sempre machuca quando somos deixadas por al-
guém, machuca o dobro ser deixada no momento
quando você não tem mais ninguém.
Imagine saber pelo seu ex-namorado que o cara
que você estava envolvida estava com a ex-namorada.
O mais sofrido não era saber que ele estaria voltando
com ela, e sim que nada que eu fizesse poderia mudar
isso. Eu estava isolada dentro daquele hospital, não po-
deria batalhar por ele, e a única luta que merecia minha
garra ali era a pela minha vida.
Tem vezes que temos medo do presente por ele ser
a única parte física da nossa constante vida. Vejamos só:
o passado é nostálgico e já passou; o futuro é incerto e
ainda não se realizou. Portanto, passado e futuro são abs-
trações do nosso inconsciente. Já o agora é preciso e
exato, ele está acontecendo, será que é isso que nos
causa tanto pânico?

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Duda Riedel

Eu nem era tão apaixonada assim por ele, mas o


nosso passado juntos foi incrível, e sonhar com meu futuro
ao lado dele quando eu estivesse curada era tentador.
Mas o fato consumado aqui seria: o nosso agora não me
deixava tão feliz assim. Não era mais como antes e me
angustiava ficar triste toda vez que ele não atendia às mi-
nhas expectativas. Então, eu precisava me desprender
dessas projeções que eu criava dentro de mim.
Temos esse frequente receio de fazer e realizar no
agora porque sabemos que não temos pra onde fugir.
Por isso, procrastinamos tanto nossas decisões no intuito
de tentar esquecer – nem que seja por uma fração de
segundo – que precisamos tomar um partido e assumir
nossa escolha. Assumir que nossa relação não era como
antes e que nem seria como eu tinha imaginado me ator-
mentava. Por isso, naquele dia - mesmo despedaçada -
, eu tomei uma decisão que era o necessário para mim;
eu estava vivendo pelo presente e não tinha como pre-
ver o amanhã.
Terminei o que nem havia começado, proibi ele de
falar comigo. Se antes nós estávamos distantes, agora
nós não teríamos contato, pois eu sabia que iria me doer
muito mais receber tantas informações que me magoa-
vam. Eu sabia que ele estava se envolvendo com outras
pessoas enquanto eu estava dentro do hospital. As notí-
cias chegavam a todo segundo. Isso me massacrava por
inteira. Eu não podia mais deixar essa história me consumir
tanto.

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Tu tem força, menina!

Muita coisa já havia mudado em três meses de tra-


tamento e muita coisa poderia mudar até minha volta. O
Henrique fazia a parte dele, me dava suporte, me aju-
dava, era companheiro, mas relacionamento não era
bater ponto, não era “cumprir tabela”. Se não era de co-
ração, não devia ser feito. Sentir que a pessoa só está ali
pois sente obrigação é terrível.
Eu não podia exigir dele, muito menos forçá-lo a não
conhecer ninguém durante o tempo que eu estava me
cuidando. Tudo poderia acontecer, inclusive ele voltar
com a ex. Nós só ficamos durante um mês, não era justo
eu querer cobrar fidelidade e boas ações de alguém que
estava apenas vivendo a vida.
Antes de enxergar a pessoa que gostamos como al-
guém que queremos que esteja ao nosso lado, devemos
ter habilidade e compreensão de nos enxergamos como
ser humano acima disso. Vale mesmo a pena estar com
alguém só por amor, mesmo causando tanta dor? Nós
também não podemos exigir que alguém pegue uma
cadeira e espere nossa volta. Gostaria que fosse assim,
seria mais simples, mas não é como funciona.
Então, como suportar o climão de ver o relaciona-
mento que você havia construído em sua mente indo
pelo ralo durante uma fase tão conturbada? Se amando,
se colocando em primeiro lugar. Essa é a importância do
amor próprio.
Eu tive minha fase de chorar e me comparar, de so-
frer e me maltratar, de me rebaixar e vangloriá-lo. Noites

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Duda Riedel

mal dormidas, dias silenciosos, tardes sem fim... Mas isso


também passou. Eu pensei melhor e, honestamente, real-
mente não era pra ser com ele e tudo bem, paciência.
Refleti sobre nós dois e parei de me preocupar com quem
ele estaria, eu só tinha ouvidos pra quem estava ali e na-
quele momento, e era a minha pessoa. Minha saúde. Mi-
nha cura.
Eu sou tão mais eu. Nada daquilo me atingia mais,
porque, de uma vez por todas, entendi que, se o outro
não me quer, o problema não era meu. Eu andava extre-
mamente ocupada me amando, por isso - sinto muito -,
não tinha mais tempo para sofrer pela aquela falta de
amor.
Eu poderia me vitimizar e fazer dele o vilão dessa his-
tória. Como alguém seria capaz de voltar com a ex-na-
morada enquanto a ficante atual lutava contra leuce-
mia? Mas, sinceramente, foi como eu disse no começo
do livro: isso não é sobre uma história de amor, é uma his-
tória de vida. Dane-se se meu final feliz não seria ao lado
dele, o importante é que eu não teria meu final reduzido
por agora. Ele era o menor dos meus problemas, outros
aprendizados iriam surgir.
A vida não pode se resumir e se reduzir por coisas
banais e pequenas. O que seria um câncer perto de uma
paixonite? O que seria uma cara quebrada comparada
a um transplante de medula? O que seria um relaciona-
mento jogado no lixo perto de uma vida inteira pela
frente? Do que valia desperdiçar sua energia com tão

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Tu tem força, menina!

pouco quando você pode preencher um todo? Foque


no que importa.
Uma vida sem amor é uma vida de solteiro. Uma
vida sem amigos é uma vida entediante. Depois dessa
perda aflitiva, passei a sentir que alguns amigos pararam
de fazer questão de mim também. Eles sequer percebe-
ram o quanto se afastavam de mim e me tratavam com
uma tremenda frieza em um momento quando eu mais
precisaria deles. Tinha dias que eu cobrava aquela aten-
ção, mas a rotina e o movimento do dia-a-dia fazia al-
guns acharem que “estava tudo bem”, e eu passava des-
percebida. Não estava tudo bem. Minha frequência es-
tava diferente da deles. E, por mais que eu tentasse não
dramatizar o que acontecia e achasse que era apenas
algo da minha cabeça, eu sabia que não era. Alguns sim-
plesmente me abandonaram.
A realidade era que qualquer coisa que alguém fa-
lasse pra mim de maneira mais fria tinha uma ressonância
completamente diferente dentro do meu coração por eu
estar mais frágil. Só que muitos não conseguiram enten-
der isso. Nem tudo é drama, às vezes é dor. Não ache que
suas palavras não magoam. Me revoltei durante alguns
momentos, hoje já aprendi com isso.
Sejamos honestos, mas principalmente cautelosos.
Se você não consegue ficar, vá. Mas se quiser estar, es-
teja, não finja. Não finja se importar e depois arruíne as
emoções de alguém. Se suas palavras podem machucar,
se cale. Consideração é palavra de ordem pra

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Duda Riedel

estabelecer qualquer relação. E, já que infelizmente


ainda não é possível viver em um mundo empático onde
tudo é verdadeiro, vou eu te falar uma verdade sobre os
seres humanos. A verdade é que algumas pessoas não
vão te acompanhar em todos as situações. Algumas tam-
bém não vão suportar a barra e o turbilhão de emoções
no qual você vai se transformar. Outras não vão ter ma-
turidade pra saber o que dizer e quando dizer e, por isso,
vão sumir. Por fim, preciso ser honesta com você, também
terão aquelas pessoas – que infelizmente – vão saber le-
var a vida muito bem sem sua presença. Não fique triste
por nenhuma dessas pessoas nem dê tanta importância
a elas. Algumas fases são melhores com menos soldados.
Antes eu me irritava e perdia o sono quando
achava que estavam se distanciando de mim por eu es-
tar passando por um momento conturbado, mas depois
percebi que isso era um favor que o universo estava me
dando. Muitas vezes, achamos que estamos perdendo
algo e não notamos a importância que a perda pro-
move. Nunca que uma porta se fecha para o seu mal.
Sempre que algo é tirado de você, o mundo conspira
para que você receba algo melhor, ou simplesmente te
livra do que não te acrescentaria em nada. Pra que ter
ao meu lado alguém indisponível para lutar junto a mim?
Sei que dói, sei que muitas vezes nos culpamos por
ver alguém de quem gostamos demonstrando tamanha
falta de desinteresse. Temos essa mania boba de achar
que o problema sempre somos nós. Mas o problema do

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Tu tem força, menina!

outro é do outro, a maneira como você recebe isso é que


se torna um problema pra você, ou não. A realidade é
dura e preciso te encorajar nesse momento a entender o
que demorou a fazer sentido pra mim. Não podemos cor-
rer atrás de migalhas. Vai doer muito mais se você insistir
onde não pode existir insistência. Carinho e atenção são
atos de amor. Se não é gratuito, não vale a pena.
E o que fazer em momentos como esses? Quando
vemos pessoas que amamos escorrerem pelas nossas
mãos? Quando vemos elas se distanciarem logo quando
mais precisamos? Aceitar. Treine sua habilidade de com-
preensão e acalme seu coração. Por mais difícil que seja,
algumas pessoas não estão contigo em todos os momen-
tos. A verdade é essa, nua, crua, fria e pronto.
Eu aprendi – da pior maneira – que, nessa vida, te-
mos que dar valor a quem se importa com a gente, e não
lamentar por quem não está ao nosso lado. É um pro-
cesso complicado, nós – seres humanos – gostamos de
correr atrás do impossível, do que pisa na gente. Temos
essa coisa de querer ser aceito e de fazer todos gostarem
de nós. Não precisa ser assim. Existem sete bilhões de pes-
soas no mundo, então aceite, nem todo mundo vai gos-
tar de você. Mas se lembre de que os que gostam mere-
cem sua atenção. Os que não se importam merecem
apenas sua indiferença.
Amizade não é sobre o número de amigos que você
tem, e sim sobre a qualidade da amizade. Temos que co-
meçar a dar valor aos que amam e parar de fazer

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Duda Riedel

cobranças sentimentais de quem não quer viver contigo


nos momentos difíceis. É extremamente fácil ser amigo
quando é conveniente. Quando tudo vai bem, quando
tem churrasco em casa, quando o chopp é gelado e
quando precisa de roupa emprestada. Ser amigo no su-
foco, quando o outro ficou desacreditado, quando o
mundo parece acinzentado e a esperança acabada, é
um trabalho complicado.
Eu engoli o choro e apaguei com borracha o que
tirava meu sossego. Alguns problemas tiram nossa paz,
mas não merecem desgastar nossa saúde mental. Eu ti-
nha coisas mais importantes para me preocupar, como,
por exemplo, lutar pela minha vida. E, ao mesmo tempo,
tinha gente decidida a atrapalhar minha luta com falta
de responsabilidade afetiva. O mundo é nojento quando
quer. Por isso, aprendi a ser só para não perder a fé
quando me deixassem.
Bloqueei meus sentimentos por essas pessoas. Não
foi fácil, mas é só mudar a perspectiva e pesar na ba-
lança. Valia muito mais a pena eu gastar meu tempo de
vida conversando com quem queria saber como eu es-
tava, que se preocupava com meus exames diários, que
pedia meu resultado do hemograma para vibrar quando
minhas plaquetas subiam, que fazia campanha de doa-
ção de sangue e que doava sangue. Falamos tanto so-
bre o tempo e o valor dele em nossas vidas e o gastamos
com quem não tem tempo pra gente. Pra quê?

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Tu tem força, menina!

Não tiro seu direito de ficar triste com isso, de chorar


- eu chorei muito -, de se revoltar e de achar que o mundo
tá sendo injusto com você. Logo no momento que mais
se precisa, as pessoas somem, não é? É, eu sei... É revol-
tante. Mas a revolta gera pensamentos negativos, e tudo
de que você menos precisa em um momento difícil é de
energias ruins ao seu redor.
Depois que a gente abraça a morte e dança co-
lada na incerteza do “será que vou viver amanhã?”, a
gente simplesmente para. Para e revê que a vida é muito
mais que um amor afundado, amizades ociosas, uma de-
missão inesperada e um boleto atrasado. A gente co-
meça a enxergar que vai muito além que nossos olhos
podem ver ou que nossos pensamentos podem prever. E
são nessas horas que a gente desliga o piloto automático
e toma as rédeas da nossa vida. Então, começamos a
agradecer o pouco que nos é dado, pois não sabemos
quando ele nos será tirado. O que seria pouco vira muito,
já se torna suficiente, e aí não sobra mais espaço para as
lamentações externas, pois a vida começa interna-
mente.
Tenho me perguntado frequentemente sobre o re-
médio do tempo. Um santo remédio. O tempo tem essa
coisa de sarar as feridas e resolver questões. Sejamos ho-
nestos, o tempo cura. O tempo desmembra nossas dores
até que não a sintamos mais. Ele se dedica a carregar
todas as angústias e inquietações para longe de nós. Ele

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Duda Riedel

fraciona todas as preocupações até que elas não se fa-


çam mais presentes na nossa rotina.
Com o tempo, aprendi a rir de um dia que foi ago-
nizante, a não lembrar mais a dor de um término inespe-
rado, de uma amizade não valorizada e das reviravoltas
que não aguardava. O tempo te ensina a admirar a be-
leza de uma fase ruim, a ter esperança em um recomeço,
a redescobrir sua força em meio ao caos. A vida te dá
tempo, mas ela não perde tempo. Ela tropeça nos seus
sonhos, bate na suas escolhas, altera sua rota e modifica
suas ideias. O que resta é aceitar o que te foi dado, agra-
decer a oportunidade, lidar com a trajetória e criar uma
nova história. O tempo cura. Hoje eu uso meu tempo ao
meu favor.

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Tu tem força, menina!

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Duda Riedel

O TEMIDO TRANSPLANTE

Parei com essa ideia de ser forte. Cansei de tentar ser uma rocha to-
dos os dias. Tem dias que eu estou mais pra água. To fluída, transpa-
rente e chorosa. A gente precisa acabar com esse estigma de guerreira
que vai vencer todas as batalhas. Sabe por quê? Tem batalhas em que
não vou sequer aparecer. Vou mesmo é ficar trancada no quarto, co-
mendo brigadeiro e assistindo netflix. Tem dias que nada vai bem e,
mesmo assim, tudo bem. Às vezes, ser forte o tempo todo é chato. Eu
aprendi - depois de muito quebrar a cara - que ser forte é também re-
conhecer nossa vulnerabilidade. Enxergar que precisamos de um
tempo. Ouvir nosso coração e respeitar o nosso eu. Você não precisa
aguentar tudo. Permita-se. Deixe que a tristeza venha, mas não a
deixe ser morada. Aceite pedir ajuda quando não conseguir resolver
tudo e entenda isso como uma solução adequada. Tolere seus dias
ruins e perceba que eles também fazem parte de uma rotina esperada.
Admita que você precisa descansar de vez em quando, e isso não é um
problema extraordinário. Entenda que a vida só flui com equilíbrio e
que, até mesmo na fraqueza, descobrimos nosso eu. Se permita viver
lentamente e desfrutando o que a vida tem a te oferecer. A vida per-
mite que a gente tenha tempos de fraqueza, ela só não permite que a
gente pare de viver.

Eram 12h37min da tarde, minha mãe entrou pela


porta da frente em casa e me comunicou que eu teria
consulta no meu médico naquele mesmo dia às 18h. Meu
coração gelou. Eu tinha acabado de terminar meu ter-
ceiro ciclo de quimioterapia e, a princípio, faltaria apenas
um. O coração pequeno batia forte e me faltava fôlego,
eu conseguia sentir o que iriam me falar.

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Tu tem força, menina!

Ao chegar no consultório, apertei a mão do Dr. Fe-


lipe – o chefe da equipe de médicos – e me sentei à sua
frente, olhando firme para aqueles olhos castanhos escu-
ros e topete grisalho. Nunca tive medo de jaleco branco;
quando pequena, adorava ir ao pediatra e ganhar um
pirulito após as consultas, mas, naquele dia, eu sabia que
o pirulito não seria o meu prêmio.
Minhas mãos suavam, minha garganta estava seca,
minha pressão caía e minha visão embaçava. Acredito
que não existe uma forma boa e amorosa de dar uma
notícia sobre um próximo passo para o tratamento do
câncer, mas, de qualquer forma, aquilo precisaria ser dito
sem mais delongas.
Ouvindo todo o comunicado de meu médico sem
querer prestar muita atenção, ele detalhava e dese-
nhava todo o esboço de meu tratamento desde o dia
zero até então. Sou formada em jornalismo, mas, desde
que descobri a LMA, eu me especializei em hematologia.
Embora ninguém soubesse, eu já tinha lido mais de 50 ar-
tigos sobre a doença e mais de 100 histórias sobre o tra-
tamento. Nada daquilo parecia novo pra mim. Por fim,
ouvi a frase que eu mais temia:
— Dentre essas circunstâncias, Duda, pensando em
uma sobrevida longa pra você, mesmo em remissão, a
melhor alternativa é o transplante de medula — finalizou,
segurando minha mão, e eu podia ouvir os soluços de mi-
nha mãe ao meu lado.

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Duda Riedel

— Não há outra saída? — questionei, sem querer


acreditar.
— A leucemia que você teve foi de alto risco, seria
leviano da nossa parte não realizar o transplante. Conver-
sei com algumas equipes médicas de outros países e não
há alternativa mais segura. É claro que você pode optar
por não fazer, mas aí estaria interrompendo o trata-
mento...
— A Nathalia... — eu tentava me expressar sem con-
seguir completar a frase.
— Duda, a Nathália vai casar... — meu pai respon-
deu enquanto segurava o choro.
— Eu não vou poder ir pro casamento da Nathália?
— Mais uma vez a resposta me atormentava.
— Infelizmente, não, Duda... Seu transplante não
pode ser realizado em Fortaleza. Você deve ir pra São
Paulo. O médico de lá já está ciente do seu caso, e você
deve ir semana que vem.
Sempre soube que a vida era coberta de altos e
baixos. Alguns tão altos que era impossível ver o chão, e
outros tão baixos que parecia impossível rever o céu. Eu
me encontrava – mais uma vez – no subsolo da vida. En-
carei mais uma notícia decepcionante como um sopro
de esperança, como um sinal de que algo iria ser extraído
de bom daquilo tudo. Tinha que aparecer algo de grati-
ficante no meio de um transplante de medula.

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Tu tem força, menina!

O transplante era uma realidade. Não tinha como


escapar. Eu teria que fazer, mas a única coisa que podia
garantir era que eu realizaria e que ia dar certo. Eu ficaria
curada. Estava confiante que, dali em diante, a vida iria
sorrir novamente pra mim, assim como estive sorrindo du-
rante os dias cinzentos.
Naquele dia, olhando para meu novo médico, tive
a sensação de que precisava passar por isso para encer-
rar meu ciclo com o câncer. A cura por meio do trans-
plante não seria apenas para eu nunca mais ter câncer
na vida, e sim, para curar outras pessoas disso. Eu tinha
entendido tudo.
— Iremos fazer exames com suas duas irmãs mais ve-
lhas e com um doador voluntário do banco que parece
ter uma boa compatibilidade — disse meu novo médico
com toda a calmaria de quem faz isso todos os dias.
— Minha irmã se casa mês que vem... — Olhei pra
baixo e segurei o choro.
— Duda, nós vamos realizar um exame de DRM, sig-
nifica Doença Residual Mínima, e, caso ela esteja contro-
lada, você pode ir pro casamento... Confie que vai ser da
maneira que precisa ser — respondeu.
— Eu tenho chances? — perguntei com receio.
— De curar por completo? Sim! Claro.
Não era isso que eu queria saber.
— Não, de morrer... de ter complicações...

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Duda Riedel

— É um transplante. Você vai se expor a riscos, mas


tudo em prol da sua saúde. Paciência e calma.
Eu já tinha ouvido aquilo antes.
Assinei um termo daqueles que tem mais de dez pá-
ginas e dá preguiça de ler. No final, a clássica frase: de-
claro que li e estou de acordo. Bem, eu não estava. Pela
primeira vez, li palavra por palavra de um contrato. O
contrato da minha cura. Basicamente, assinei que estava
ciente de que poderia morrer realizando o transplante.
Ciente? Estou. De acordo? Jamais. Engoli o choro e guar-
dei a caneta no bolso.
Daquele dia em diante, esbarrei com o medo todo
dia antes de dormir. Fingia que não via esse sentimento.
O bicho papão de quando eu tinha sete anos era menos
aterrorizante. Cedo ou tarde, eu sabia que ele - o medo -
iria aparecer. Normal, né? Ele era esperado. No entanto,
era uma fase em que não me sobrava tempo pra sentir
medo, então, sempre que ele batia na porta, eu saía pela
dos fundos. Preguiça de ter que pensar em tudo que po-
deria acontecer. Morrer? Talvez. A doença voltar? Quem
sabe. Reações? Provavelmente. Viver? Sempre.
Se tomei a decisão mais certa da minha vida assi-
nando aquele papel? Isso eu não tinha como dizer na-
quele momento. Não deu tempo de pensar, de mudar
de ideia ou de sequer desistir. Só deu tempo de pensar
que esse talvez seria o melhor pra mim.

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Tu tem força, menina!

Levei a vida toda com medo de viver. Estranho, né?


Estranho como, em um piscar de olhos, a gente se ressig-
nifica. Passei a vida coberta de medos de me manter viva
e hoje vivo com medo de não viver. O seu medo te define
ou te motiva? O meu me motivou a me manter viva.
Depois do caótico susto do transplante, realizei al-
guns lindos desejos. O câncer surgiu como um gênio na
lâmpada que eu não aguardava, mas me concederia
três surpresas. Afinal, a vida te derruba, mas te dá base
para se levantar. A felicidade faz morada onde é bem
recebida e almejada.

I) O PRIMEIRO DESEJO: ERA PRA EU ESTAR LÁ

Passados três dias da consulta, eu esperava o resul-


tado do tal DRM. Durante todo o tratamento, rezei noite
após noite pra não perder o dia mais importante da vida
da minha irmã. A Nathalia não era apenas a minha irmã,
ela era meu encontro de alma, a pessoa que eu mais
amava e que já amei em toda minha vida. Desde o co-
meço, sonhei junto com ela cada um dos detalhes do dia
mais aguardado. Em meio a exames, tomografias, cole-
tas e transfusões de sangue, eu acompanhei de dentro
do hospital a construção daquele sonho dourado que ela
tinha em mente.
Até que chegou o resultado. Estávamos sentadas
na cozinha comendo macarrão com molho de tomate –
a especialidade da casa – quando o celular da minha

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Duda Riedel

mãe tocou com o e-mail e a mensagem do médico. Eu


estaria ali naquele dia. Nada me impediria de presenciar
o dia mais feliz da vida da minha irmã, nem mesmo um
documento que me assustou e arrepiou até o último fio
de cabelo da alma.
Esse termo – realmente - foi um dos papeis mais ater-
rorizantes que já tinha lido, mas, francamente, não era um
contrato de morte, era o contrato da minha nova vida.
Era mais gratificante pensar dessa forma. Sobre o tal
termo, ele devia ter mais medo de mim que eu dele. Afi-
nal, ele segue dentro da gaveta. Sobre o casamento da
minha irmã, foi um dos dias mais lindos e emocionantes
da minha vida.

II) O SEGUNDO DESEJO: ERA PRA SER VOCÊ

Eu sabia que seria difícil, mas nunca seria impossível


encontrar um doador. Por fora, sempre imaginei que o
transplante seria um tremendo risco. Por dentro, tinha cer-
teza de que ele tinha um objetivo para acontecer na mi-
nha vida. No dia que descobri meu doador, eu entendi a
missão.
E se você pudesse salvar a vida de alguém, você
salvaria? Você diria sim pra alguém que nunca viu? Que
você ao menos conhece? Disseram sim pra mim. Alguém
que nunca me viu, não me conhecia e sequer sabia o
que eu estava enfrentado me disse sim. Alguém de outra
parte do mundo resolveu me fazer sonhar novamente.

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Tu tem força, menina!

Eu achei meu doador anônimo por meio do Re-


dome (Registro Nacional de Doadores Voluntários de Me-
dula Óssea). Éramos 100% compatíveis, e ele não devia
nem imaginar, mas, no momento quando aceitou me sal-
var, ele se tornou minha pessoa preferida do mundo.
Meu doador me deu esperança e ajudou milhares
de pessoas a se cadastrarem como possíveis doadores.
Nós – mesmo sem nos conhecermos – movimentamos um
país em prol da vida. A chance de encontrar alguém
compatível por meio do banco de doação é rara, uma
para cem mil, mas, como sempre disse, eu não sou uma
estatística. No que dependesse de mim, eu iria diminuir
esse número, ia influenciar quem eu pudesse para ajudar
quem precisasse.
Doar é um ato não só de amor, mas de humani-
dade. Quem recebe não é quem tem que agradecer, e
sim quem doa, pois tem algo para doar. É essencial aju-
darmos de qualquer forma com o que tivermos. Ninguém
é tão pobre que não tenha nada para oferecer, nem tão
rico que não tenha nada para ganhar. Doe o que preci-
sar. Seja sangue, medula, órgão, cabelo, amor ou tempo.
Sempre vai ter alguém precisando.
Eu amo meu doador, como se fosse parte de mim,
e penso nele até hoje todos os dias antes de dormir e sem-
pre quando acordo. Ele me deu a luz, a oportunidade de
renascer. Essa pessoa não me salvou apenas, ela salvou
toda minha família, deu a oportunidade aos meus pais de
me verem crescer, de eu conhecer os futuros filhos das

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Duda Riedel

minhas irmãs, de tomar mais um chá com minha avó, de


abraçar meus amigos, de garantir novas conquistas, de
voar mais alto, de viver.
A doação é a forma de união mais bela que existe,
e sou imensamente grata por saber que alguém me deu
um pouco de saúde quando eu não tinha mais nada a
oferecer. Minha fé me manteve viva e me trouxe o melhor
presente que já ganhei na vida: uma segunda chance.
Hoje, em minhas veias, corre um pouco dele em mim. E
eu sou grata em saber que essa generosidade e bon-
dade se encontram como combustível todos os dias
quando abro meus olhos.
,

III) O TERCEIRO DESEJO: ERA PRA SER AGORA

O que meu tratamento teve de fácil o transplante


teve de complicado. Foram dias intensos. Dias em que
me perguntei se eu iria aguentar outro dia, uma dor que
me consumiu desde o dia da data da infusão até o dia
que minha medula pegou. E, mesmo depois, as dores não
passavam, as náuseas não acabavam, e a febre me de-
sesperava.
No dia anterior ao meu transplante, sentei na beira
da cama e abri a porta para todas as angústias que
ainda cercavam meu coração. Disse com a maior edu-
cação do mundo: “Pode entrar, mas não fica muito
tempo, faço um transplante amanhã, e a casa já está lo-
tada. Convidei a fé, a esperança, a vitória, a cura e o

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Tu tem força, menina!

bom humor, por isso não tem mais espaço pra você.” De-
pois disso, nos cumprimentamos, agradeci a visita, fechei
a porta e tranquei com chave. Encarei meu medo, mas
não deixei ele se tornar protagonista.
Naquele primeiro dia que marcaria meu novo início,
enquanto a nova medula entrava, eu já sentia o mal es-
tar. Horas depois, vieram os primeiros sustos e calafrios.
Mas – sem dúvidas – o pior dia foi no dia oficial da minha
pega. Minha medula começou a funcionar no D+11 e, no
D+13, viria a confirmação, mas ela poderia ser interrom-
pida por uma grande catástrofe que foi impedida a
tempo.
Eu sentia fortes dores na garganta devido à muco-
site (uma inflamação ocasionada pela quimioterapia
pré-transplante) e, por isso, vivia à base de morfina para
conter a sensação desgastante de ter mais de cem facas
entrando em meu corpo. Mas a morfina não estava mais
adiantando e resolveram trocar por outra medicação
que me causou uma arritmia cardíaca.
Sabe a sensação de morrer? Pois bem, eu senti isso
à flor da pele. Acordei tonta e com meu coração palpi-
tando tanto que parecia que sairia não pela boca, mas
arrancando minha pele. Vi enfermeiras correndo com
bomba de oxigênio, vi médicos da UTI procurando solu-
ções, vi minha mãe ajoelhada rezando, vi minha vida
indo embora.
— Como está a frequência cardíaca? — perguntou
a médica, conferindo as medicações.

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Duda Riedel

— 168 batimentos por minuto, doutora.


— Coloquem oxigênio nela. Duda, se mantenha
calma...
Calma e paciência. Já tinha ouvido aquela frase
antes, mas não foi isso que me acalmou, foi olhar mais
uma vez pra minha mãe. Não tenho dúvidas de que ela
é minha fortaleza em Terra. Acho que mãe é pessoa sa-
grada. Deus fez as mães como anjos em Terra. Sempre
digo: nenhuma mãe deveria sentir a dor de ter que dar
adeus a seu filho. Por isso, em toda minha vida, sempre
que eu ousava fazer extravagâncias, a imagem dela vi-
nha em minha mente. Durante todo meu tratamento em
momentos de dores quando ousei desistir, olhava no olho
dela e pensava: ela não merece passar por isso! E,
mesmo doendo, mesmo pensando que a melhor saída
seria jogar a toalha e sair de cena, eu sabia que não po-
deria deixá-la. Quando uma mãe perde um filho, todas
as outras perdem também. A dor é coletiva. Nada substi-
tui o amor de mãe.
— Os batimentos estão caindo, doutora, já está em
140...
— Ótimo, Duda, continua garota! Você tá se recu-
perando...
— Graças a Deus. — Ouvi minha mãe falar baixinho
— Eu nunca vou te deixar, mamãe... eu prometo —
falei em lágrimas.
— Eu sei que não, Zizi! Eu te amo.

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Tu tem força, menina!

— Normalizou... 120 — comemorava a enfermeira.


Houve dias, no passado, que eu ia dormir questio-
nando a Deus o motivo pelo qual eu tanto rezava e nada
acontecia em minha vida. Dormia com uma lágrima es-
correndo em meu rosto e uma dor profunda que não
consigo nem ao menos descrever. Então, o jogo virou, e
eu ganhei o que foi - até hoje - o maior desafio de minha
vida.
Atualmente, eu já entendo e percebo que, em
nossa missão, não importa o quão desafiadora ela pa-
reça, não importa se achamos que não merecíamos pas-
sar por aquilo, muito menos as respostas que procuramos
para fazer sentido, o que importa é saber resistir, saber
carregar a nossa cruz e compreender que ela nunca será
maior do que nós.
É preciso ter fé. Eu tenho fé e não sinto mais tanta
dor e, quando penso no câncer, já não temo a vida, pois
hoje sei que orar não é somente pedir, é agradecer.
Agradecer porque o autor de minha vida não está pre-
parando algo de bom pra ela, ele já tem algo preparado
e está me preparando para receber isso.
Havia dias quando não estava feliz, dias quando es-
tava mais triste, mas sempre havia dias e, no final de tudo,
mais dias pra outros vários que teria na minha longa vida.
O transplante não termina quando acaba. Na ver-
dade, é aí que ele realmente começa. Lidar com a dura
missão da segunda chance versus o medo de perdê-la é

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Duda Riedel

literalmente aprender a viver novamente. Aprender a vol-


tar a gostar de comer, uma vez que a quimioterapia tira
todo seu apetite e faz você criar um trauma de comer,
pois sempre vomitava após as refeições; é aprender a li-
dar com datas, o dia que poderá novamente sair em pú-
blico, entrar na piscina, botar o pé na areia e respirar um
ar sem máscara; é não surtar quando der uma dor de
barriga ou quando sentir um calafrio, é não ter medo de
botar o termômetro embaixo do braço e rezar toda noite
antes de dormir para ter a chance de poder abrir o olho
no outro dia ao acordar. É, sem dúvidas, trabalhar seu psi-
cológico e aprender a lidar com o fato de que, pra sem-
pre, você será um paciente transplantado. Por isso, você
requer maiores cuidados. É também ter paciência, bas-
tante paciência, para não surtar com os seus medos. É
tomar mais de dez comprimidos por dia, é chorar no final
dele e é sentir que ninguém entende o que você sente.
Ser transplantada é como ser mãe de um recém-nascido,
quando toda atenção é necessária. Olhos atentos e co-
ração à flor da pele. A diferença é que, além de ser a
mãe, nós também somos os bebês. Nós cuidamos e sen-
timos as dores. É difícil, é abençoado, é confuso, requer
cuidado, paciência, amor, dedicação e requer, acima
de tudo, muita compreensão.

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MEU FINAL RENASCIMENTO FELIZ

Se não te falaram ainda, eu me responsabilizo por ser a primeira a te


tranquilizar: calma, isso também vai passar. Eu te entendo e sei que
essa agonia por ter controle do seu futuro é apenas um sinal de que
você tem medo do que está por vir. Mas não tema a vida, minha cara.
Você já esteve melhor, mas também já esteve muito pior e olha só
onde você está agora! Sei que essa fase tem te deixado triste, apreen-
siva e angustiada, sei que você chora toda noite antes de dormir, que
não consegue mais fingir que tudo vai bem, eu sei - e como sei - que
tem horas em que pensa que não vai mais aguentar. Entretanto, tam-
bém sei o quanto essa fase - que você tanto pede pra que acabe - tem te
ensinado. Sei o quanto tem amadurecido e, embora não enxergue
agora, o que você tem passado hoje vai ser o degrau para que chegue
onde você quer amanhã. Sei que não se conforma por todos os outros
estarem bem e apenas você mal, mas não se iluda, cada um passa pelo
que precisa no momento primordial. Sei que talvez você precise de
respostas, mas não posso te dar todas agora. Continue no caminho e
não desista, você vai ser feliz, mas, antes, a vida vai te ensinar a ser
forte.

Não é fácil ser tirada da sua realidade de um dia pro


outro. Ver seus sonhos sendo interrompidos, suas ativida-
des deixadas de lado, sua rotina adiada e sua vida so-
frendo uma brusca freada. Foi assim que me senti ao re-
ceber meu diagnóstico de leucemia: parada, sem dire-
ção, rumo ou visão.
Eu quase perdi minha vida e sempre ouvi dizer que,
quando a gente perde, ou quase perde, algo é que

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finalmente aprendemos a lhe dar valor. Infelizmente, é as-


sim. A vida acontecia lá fora enquanto eu me desperdi-
çava aqui dentro. Vivi anos dessa forma. Perdi tempos
chorando por quem não me dava valor, meses chorando
em um trabalho que eu detestava só pra pagar meus bo-
letos atrasados, minha serenidade brigando com amiza-
des tóxicas e desnecessárias, meu sono com quem ficava
comigo e sumia sem nenhum tipo de responsabilidade.
Depois que a morte bateu na minha porta, parei de me
perder por aí e gastar meu tempo com o que não importa
nem acrescenta.
Não perco mais minha história com quem não
soma, não me perco em acontecimentos banais, não re-
duzo minha vida a quem só diminui a minha paz. Enfim,
aprendi a viver. Ciclos de sofrimento também passam, e
o que fica é aprendizado. Apesar de todas as dores e an-
gústias, a vida tem que continuar, pois ela é rápida de-
mais.
Posso dizer que existem duas “Dudas” dentro de
mim. Uma antes do câncer e outra depois do câncer
(D.A.c e D.D.c.). E é assim que eu reescrevo minha histó-
ria. Houve uma ruptura biográfica que foi um verdadeiro
divisor de águas pra mim. Hoje eu olho pra esse marco
histórico e tenho certeza de que fez toda a diferença na
minha vida.
Sempre que passamos por um ponto crucial, que
transforma nosso olhar sobre o mundo, carregamos um
pouco do que éramos, mas nós nos reerguemos,

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Duda Riedel

principalmente, com aquilo que construímos depois. E a


nova vida é muito melhor. Não só por - finalmente - en-
tendermos o sentido dela, mas, acima de tudo, por
aprendermos a olhar com mais amor.
Antes, a Duda via a vida como uma constante co-
brança pessoal, hoje ela entende que a vida não é me-
cânica, ela é inconstante. Essa Duda não vai dar conta
de tudo, não vai acertar sempre - talvez ela nem acerte
na maioria das vezes –, mas é por isso que ela vai apren-
der tanto. Tudo bem se ela não for feliz todos os dias, mas
ela também não tem que sofrer por tudo. Ela vai apren-
der que chorar limpa a alma, que rir é a melhor terapia,
que se sentir pra baixo não é sinal de fraqueza e que não
ser forte o tempo todo é normal; que tem dias que são
mais longos, e outros que passam voando; e que a simpli-
cidade de um dia comum não tem preço, pois, na turbu-
lência dos dias ruins, tudo que nós queremos é um dia de
sossego.
Mas o melhor disso tudo é que, nessa inconstância
maluca, ela vai vivendo. Viver é sofrido mesmo, não existe
roteiro, mas é bem melhor viver assim que somente se
manter vivo. Alguns dizem pra esperar a tempestade pas-
sar, já eu prefiro dançar na chuva enquanto espero. Fases
ruins também merecem ser vividas. A sabedoria está em
transformar a dificuldade em aprendizado.
Eu aprendi, nessa louca e incrível jornada, a convi-
ver com meus fantasmas, e hoje eles já não me causam
mais tanto medo. Meus fantasmas nada mais são que

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minhas maiores lutas e batalhas. Eu destruí todos, mas, vez


ou outra, confesso: tenho medo de eles voltem e me ar-
rasem novamente.
Não banco a super-heroína ou coisa assim, sei que
não posso vencer todas as batalhas da vida, e tudo bem.
Mas posso sempre ir de cabeça erguida para cada uma
delas, e isso já basta.
Olhar o lado bom, entender o ruim, agradecer o
que nos é dado e não sofrer pelo que é retirado, não bus-
car todas as respostas, não se desesperar com tantas per-
guntas, apreciar a vida e desmistificar a morte. Tenho
convivido melhor com minhas angústias e aflições, hoje
sei – mais do que nunca – que elas que me tornaram o ser
humano que eu sou. Obviamente, não olho pra nenhum
deles com desdém, respeito cada um assim como me-
reço ser respeitada, pois não sou de ferro. Mas também
não me deixo ser humilhada!
Não vivo com medo, mas sei que ele surge, e,
quando ele aparece, sem ao menos pedir licença, ape-
nas deixo o sentimento vir e relembro que eu também
mereço ter meus dias ruins. Eles não me tiram mais tanto
do sério. A magia de enfrentar o problema é saber
aceitá-lo.
Sempre fui uma dessas que achava ter muitos pro-
blemas e que os meus eram os maiores possíveis até que
- de fato - eu tive câncer e nada mais tirou minha paz e
importância. Mas é que tudo depende da maneira que
olhamos pra nossa vida. Infelizmente, nós gostamos de

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Duda Riedel

fazer comparações. Então, te ensino agora uma regra de


três daquelas que a gente aprende no ensino fundamen-
tal, acha que nunca vai precisar, mas um belo dia tem
que usar.
Se a gente olha pro problema comparado a al-
guém que está melhor que nós, a gente realmente tem
um problema, contudo, se compararmos a nossa gotinha
a um grande tsunami, ela some. Não é que sua dor não
importa, veja se entende...
Não reclame de comer alface na segunda-feira,
tem gente que não tem comida pra nenhum dia do mês;
não reclame do trânsito caótico dentro do seu carro blin-
dado, tem gente em pé no ônibus; não reclame de ter
muito trabalho, tem gente que está desesperado atrás
de um. Se você olhar para a dor do outro com compai-
xão, as suas dores diminuem, e adivinha? Você não ha-
verá do que reclamar. Saia da bolha.
Eu aceitei meu câncer, comemorei minha cura e
hoje vivo com ela marcada em minha memória, mas
também em laudos médicos. Faço exames três vezes por
semana e, a cada resultado, eu os transformo em uma
nova vitória. Uma nova vida floresce em mim. Dentro da-
quele papel com o diagnóstico ideal de que “não foram
encontrados alterações em neutrófilos, e leucócitos e lin-
fócitos sem atipias”, uma Duda agradece todos os dias
por saber que tenho mais um dia de vida.
Até quando terei tantos dias? Eu simplesmente não
sei. Deus nos deu um dos maiores presentes que poderia

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Tu tem força, menina!

nos dar: a imprevisibilidade do tempo. Nós simplesmente


poderíamos ter juntas a data do nosso nascimento a data
da nossa partida. Talvez isso pouparia nossos sentimentos,
não iríamos viver com medo, entretanto, viveríamos mais
intensamente. Se você soubesse que vai morrer amanhã,
o que faria hoje? Aproveitaria como seu último dia, faria
tudo que tem vontade. Mas como o amanhã chega, nós
temos medo de arriscar. Não é pra ser assim.
É que a imprevisibilidade do tempo de Deus é dife-
rente na nossa concepção. Achamos que, por não ter
previsão, devemos ter medo, mas é por não saber
quando iremos partir que devemos vivenciar unicamente
cada dia desses.
E meus medos? Pode ser que eles voltem e, com
isso, algumas assombrações, mas hoje já não me sinto
mais tão perdida para enfrentá-los, porém não deixo isso
tomar mais tanto tempo do meu dia. E por isso aprendi a
dar valor à vida que me foi dada e vejo a importância de
vivê-la diariamente. Eu não vivo mais de esperas, a es-
pera que tenho pra minha vida é ter mais uma oportuni-
dade nela, e isso eu já posso fazer diariamente.
A vida te prega várias peças. Você está lá vivendo
e pensa que tudo se encontra no rumo. Depois, ela vem
e te mostra que não existe apenas um caminho, e sim vá-
rios. Então, cabe a nós decidir que rumo tomar, muitas
vezes sem nem saber se é o caminho correto.
Acredito que nenhum caminho seja completa-
mente certo ou imensamente errado, só que todos eles

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vão te levar a um único lugar: sua evolução. Se não fizer-


mos nada para evoluir, a vida se encarrega de fazer isso
por nós. A vida te tira da rota principal para que a gente
mude com ela e aprenda de outra forma o que nos recu-
samos a entender. O meio do caminho assusta, mas de-
veria ser a parte mais bela e essencial dessa jornada.
A gente recebe o que emana. Se vivermos de recla-
mações, vamos ter dificuldades. Até no sofrimento, nós
temos o poder de tirar uma lição e um aprendizado para
nos tornarmos pessoas melhores. A imprevisibilidade nos
transforma.
A vida é um eterno equilíbrio em aceitar suas esco-
lhas e desapegar das suas renúncias, no entanto, não te-
mos segurança dos nossos atos, não confiamos em nin-
guém, nem mesmo em nós. Se nem diante dos nossos
passos nós estamos seguros, imagine entregar nas mãos
de alguém? Aprender a confiar no destino é o maior
passo para conquistar o que tanto queremos: a busca
pela felicidade.
Dar sentido à vida é árduo, pois, na maioria do
tempo, a vida não faz sentido pra gente. Pensamos em
injustiça, karma, desigualdade e tantas coisas que nos fa-
zem refletir e pensar: “Era mesmo pra ser assim? Por que
comigo? Eu não merecia isso!”. Calma. Era pra ser assim,
e a gente não vai entender o motivo agora; pra ser sin-
cera, acho que não vamos entender nem depois, quiçá
iremos entender em vida. E está tudo bem.

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Tu tem força, menina!

Hoje eu consigo lidar melhor com as voltas que a


vida dá. Não fico mais tonta com tantas mudanças,
aprendi a dançar conforme a música e só paro de me
movimentar quando o som acaba. Desistir não é uma op-
ção, por mais que em tantas vezes ela pareça a única.
Tenho um recadinho pra você que acha que está
aqui de passagem. Adivinha só? Você não está. Você
tem algo muito maior pra cumprir, é que custa entender,
não é? Às vezes, sei que você se sente completamente
perdido e sem rumo, mas, acredite, é no decorrer do per-
curso que você aproveita a viagem. E, se você não esti-
ver seguro do que estiver fazendo, tenha calma. Entregue
seus medos e suas inseguranças. A vida foi feita pra ser
vivida, e não compreendida.
Tem momentos que a incerteza pergunta se esta-
mos sendo felizes, mas, antes de querer ser feliz, dê sen-
tido a sua felicidade. Não viva sem rumo, busque novos
caminhos, viva para você e, principalmente, acredite.
Quando você escolhe ser feliz, as decisões secundárias se
tornam desnecessárias. Não ocupar seu coração com
bobagens é o primeiro passo para viver saudável.
Ainda bem que eu sigo acreditando, e não perdi
essa inocência de crer. Tem gente que me acha lunática,
outros me chamam de boba, eu prefiro aceitar que ape-
nas sou esperançosa. Nesse mundo doido, cheio de re-
voltas, coberto de reclamações e bobagens, eu tento ver
o lado bom da vida, pois sei que ele existe.

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Duda Riedel

A vivência me ensinou que a vida não pode ser per-


feita, mas pode ser feita de momentos incrivelmente per-
feitos, e com isso já estou satisfeita. A gente nem precisa
de muito pra torná-los melhores, basta mudar a perspec-
tiva. Quando estiver difícil, lembre-se de que você já es-
teve muito pior, e veja: você ainda está aqui.
Só temos certeza de duas coisas na vida: da morte
e da felicidade, que só é sentida se você der sentido à
sua vida. Caso esteja difícil viver, reviva pra assim trans-
cender. Não tenha medo de mudar. Você tem tudo de
que precisa pra dar sentido à sua vida. Renascer dói, mas
é necessário.

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