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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE SAÚDE COLETIVA


MESTRADO EM SAÚDE COLETIVA

RENAN VIEIRA DE SANTANA ROCHA

Saúde Mental e Racismo à Brasileira:

Análise de Narrativas em um Centro de Atenção Psicossocial em Salvador/BA

Salvador / BA
Março de 2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE SAÚDE COLETIVA
MESTRADO EM SAÚDE COLETIVA

RENAN VIEIRA DE SANTANA ROCHA

Saúde Mental e Racismo à Brasileira:

Análise de Narrativas em um Centro de Atenção Psicossocial em Salvador/BA

Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Saúde Coletiva (PPGSC), no âmbito do Mestrado Acadêmico em Saúde
Coletiva, do Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia
(MSC/ISC/UFBA), como requisito final e obrigatório para a obtenção do título
de “Mestre em Saúde Coletiva”.

Orientadora Responsável:
Prof.ª Dr.ª Mônica de Oliveira Nunes de Torrenté (ISC/UFBA)

Coorientadora Responsável:
Prof.ª Dr.ª Maria Thereza Ávila Dantas Coelho (ISC/UFBA)

Salvador / BA
Março de 2018
FICHA CATALOGRÁFICA
Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas (SIBI/UFBA),
com os dados fornecidos pelo autor.

Rocha, Renan Vieira de Santana.


Saúde Mental e Racismo à Brasileira: Análise de Narrativas em um Centro de Atenção
Psicossocial em Salvador/BA / Renan Vieira de Santana Rocha. -- Salvador/BA, 2018.
145 f.
Orientadora: Mônica de Oliveira Nunes de Torrenté.
Coorientadora: Maria Thereza Ávila Dantas Coelho.
Dissertação (Mestrado – Mestrado em Saúde Comunitária – Programa de Pós-
Graduação em Saúde Coletiva) -- Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva
(ISC/UFBA), 2018.
1. Saúde Mental. 2. Serviços de Saúde Mental. 3. Racismo. 4. Relações Étnico-
Raciais. 5. Análise de Narrativas. I. Torrenté, Mônica de Oliveira Nunes de. II. Coelho, Maria
Thereza Ávila Dantas. III. Título.
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“Agradecer e abraçar”... Há muito para se agradecer, e muita gente que preciso “abraçar” neste
momento, para reconhecer as contribuições, orientações e carinhos dados até aqui. Eis, então, que
procuro lembrar de cada uma e cada um, parceiras e parceiros na jornada acadêmica, profissional,
militante e afetiva. Sem vocês, isto não teria sido possível, e a vocês, toda a minha gratidão!

Agradeço, primeiramente, a Deus e ao microcosmo que me cerca e que também habita em mim, pela
energia vital, a leveza e a firmeza para caminhar até aqui, produzindo saúde em cada palavra escrita,
em cada reflexão produzida, em cada afirmação lançada ao mundo.

Agradeço a toda a minha família, mas, em especial, a Terezinha, Osvaldino e Gabriel Rocha, figuras
que me sustentam e sem as quais eu não teria tido o suporte necessário para chegar até aqui. O
mesmo vale para Luciene e Lucas Nere. Sou feliz e sou melhor por ter vocês em meu caminho.

Agradeço também às amigas e amigos queridos que fiz ao longo dessa jornada, com os quais foi
costurada muito mais que uma amizade. Com vocês, pude não apenas encontrar o apoio para
(sobre)viver a esta etapa, mas também para estar diante da vida com mais alegria no olhar. Assim,
agradeço especialmente a Lorena Pires Guimarães, minha dupla eterna, e sigo vibrando para que
possamos caminhar e compartilhar de mais e mais bons momentos nessa(s) vida(s). Atotô! Odoyá!

Agradeço, ainda, a todas e todos os companheiros de luta, militância e afeto, que segui costurando em
minha colcha de retalhos afetiva ao longo de meu caminhar como psicólogo: no Conselho Regional de
Psicologia da Bahia (CRP03); no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA);
na Universidade do Estado da Bahia (UNEB); na Fundação Estatal Saúde da Família (FESF-SUS); na
Residência Multiprofissional em Saúde Mental do ISC/UFBA; na Associação Bahiana de Psicodrama e
Psicoterapia de Grupo (ASBAP); e, obviamente, com a minha querida e aguerrida turma do Mestrado
Acadêmico em Saúde Coletiva do ISC/UFBA. Com vocês, sou muito, muito, muito mais!

Agradeço também ao Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) em si,
e a todas e todos os profissionais que o constroem, Alma Mater que, ao me acolher, tem possibilitado a
construção de um sonho profissional que é meu, mas que é tecido a muitas mãos, compartilhado no
fazer cotidiano das Reformas Sanitária e Psiquiátrica Brasileiras.

1 “Agradecimentos”, em Língua Èdè Yorùbá.


Agradeço, ainda, aos colegas pesquisadores do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Saúde Mental
(NISAM), com os quais eu aprendo continuamente sobre um fazer em pesquisa que é, acima de tudo,
ético, político e continuamente implicado com o mundo e as suas intempéries.

Agradeço também às queridas e queridos professores que tanto somaram a este trabalho: à Prof.ª Dr.ª
Mônica de Oliveira Nunes de Torrenté e à Prof.ª Dr.ª Maria Thereza Ávila Dantas Coelho, pela
cuidadosa orientação e pela contínua parceria acadêmica; à Prof.ª Dr.ª Leny Alves Bomfim Trad e à
Prof.ª Dr.ª Liliane de Jesus Bittencourt, pelas valiosas contribuições a este trabalho, tanto em sala de
aula, quanto nas Bancas Examinadoras; e ao Prof. Dr. Wesley Barbosa Correia, um grande
companheiro de batalha com o qual a vida, Oxalá e Obaluaê me presentearam para fortalecer-me na
cotidiana luta antirracista. Atotô! Epá Babá!

Agradeço, ainda, aos profissionais do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) aqui pesquisado. Apesar
de não poder citá-los diretamente, pelas questões éticas que impõem o sigilo e a confidencialidade,
agradeço imensamente a oferta genuína de vosso conhecimento profissional para a construção desta
pesquisa, e sei que vocês seguem, tão esperançosos quanto eu, na fé em dias melhores para a Saúde
Mental, a Atenção Psicossocial e para aqueles e aquelas de quem cuidamos cotidianamente.

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no âmbito do


Ministério da Educação (MEC), sem a qual esta pesquisa não poderia ter sido financiada e,
consequentemente, concluída. Que haja força e coragem para resistir aos temerosos tempos golpistas
que se apresentam ameaçando a Educação Superior pública, gratuita e de qualidade.

E, por fim, mas não menos importante, agradeço oceanicamente à minha ancestralidade, a todas e
todos os meus ancestrais, sem os quais eu jamais seria quem sou ou teria alcançado o que alcancei.
Que eu possa ser instrumento de luta, fazendo do vosso verbo o meu verbo, do vosso saber o meu
aprender, da vossa trajetória o meu astrolábio. Avante, companheiras e companheiros!

Atotô, Ajuberô! Atotô, Obaluaê!


Companheiros

quero escrever-me de homens


quero calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho

e quando ficar sem mim


não terei escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados

deixo-vos
a paciência dos rios
a idade dos livros que não se desfolham

mas não lego


mapa nem bússola
porque andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me às vezes viver
hei-de inventar
um verso que vos faça justiça

por ora
basta-me o arco-íris

em que vos sonho


basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço

companheiros

Texto: Companheiros, por Mia Couto, em “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”, Moçambique (1999).
RESUMO

O presente estudo diz respeito a uma Dissertação de Mestrado, construída no âmbito do Programa de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva, do Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia
(PPGSC/ISC/UFBA). Trata-se de um estudo qualitativo e exploratório, cujo objetivo geral é identificar
quais as narrativas ligadas ao racismo construídas por parte dos profissionais de um determinado
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade de Salvador/BA. Na continuidade, enquanto
objetivos específicos, procura-se: (1) compreender as formas de manifestação e/ou manutenção do
racismo nas práticas clínico-institucionais construídas pelos profissionais deste serviço; (2)
compreender a relação destas práticas clínico-institucionais com a construção do processo de trabalho
em Saúde Mental e Atenção Psicossocial dos profissionais deste serviço; e, por fim, (3) apresentar
uma Revisão Sistemática de Literatura acerca dos principais Descritores em Saúde concernentes ao
debate aqui proposto. Para alcançar estes objetivos, destacadamente o objetivo geral, lança-se mão do
referencial teórico-metodológico da técnica de Entrevistas Narrativas, segundo o escopo da Análise de
Narrativas de Fritz Schütze (1976; 2014), junto a uma equipe de Nível Superior atuante em um
determinado Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade de Salvador/BA. Logo, o trabalho
estrutura-se em cinco capítulos principais, a saber: (1) Da Fundamentação Teórica; (2) Do Método e do
Lócus de Pesquisa; (3) Da Revisão Sistemática de Literatura; (4) Da Análise das Narrativas
Produzidas; e (5) Da Discussão das Narrativas Produzidas. Os resultados do estudo revelam que o
fenômeno do racismo ainda é pouco debatido no campo da Saúde Mental, seja em nível
acadêmico/científico, seja em nível profissional/clínico-institucional, e menos ainda trabalhado no
âmbito das intervenções oferecidas no campo da Atenção Psicossocial, ainda que este seja
identificado como questão patente de forma majoritária pelos profissionais entrevistados. Destarte,
apontam-se possíveis elementos que contribuem para o silenciamento desta questão no fazer clínico-
institucional aqui exposto, bem como procura-se indicar caminhos possíveis, teóricos e metodológicos,
para a visibilização do debate sobre o racismo na Saúde Mental e para uma melhor abordagem do
mesmo no cotidiano das equipes profissionais que atuam no campo da Atenção Psicossocial.

PALAVRAS-CHAVE

(1) Saúde Mental; (2) Serviços de Saúde Mental; (3) Racismo; (4) Relações Étnico-Raciais; (5)
Entrevista Narrativa; (6) Análise de Narrativas.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ROCHA, Renan Vieira de Santana. Saúde Mental e Racismo à Brasileira: Análise de Narrativas em um
Centro de Atenção Psicossocial em Salvador/BA. 145 p. 2018. Dissertação (Mestrado em Saúde
Coletiva) – Instituto de Saúde Coletiva (ISC), Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador,
Bahia, Brasil, 2018.
ABSTRACT

The present study concerns a Master's Dissertation, built within the Post-Graduation Program in
Collective Health, of the Institute of Collective Health, Federal University of Bahia (PPGSC/ISC/UFBA –
acronym in the Portuguese Language). This is a qualitative and exploratory study, whose general
objective is to identify the narratives linked to racism constructed by the professionals of a particular
Psychosocial Attention Center (CAPS – acronym in the Portuguese Language) in the city of
Salvador/BA. In continuity, as specific objectives, we seek: (1) to understand the forms of manifestation
and/or maintenance of the racism in the clinical-institutional practices built by the professionals of this
service; (2) to understand the relationship of these clinical-institutional practices with the construction of
the work process in Mental Health and Psychosocial Care of the professionals of this service; and,
finally, (3) present a Systematic Review of Literature on the main Health Descriptors concerning the
debate proposed here. In order to achieve these objectives, especially the general objective, we intend
to use the theoretical-methodological framework of Narrative Interviews, according to the scope of the
Narrative Analysis by Fritz Schütze (1976, 2014), together with a Higher Education team working in a
specific Psychosocial Care Center (CAPS – acronym in the Portuguese Language) of the city of
Salvador/BA. Therefore, the work is structured in five main chapters, namely: (1) The Theoretical
Rationale; (2) The Method and The Research Locus; (3) The Systematic Review of Literature; (4) The
Analysis of the Produced Narratives; (5) The Discussion of the Produced Narratives. The results of the
study reveal that the phenomenon of the racism is still little debated in the field of Mental Health, either
at the academic/scientific level or at the professional/clinical-institutional level, and still less worked
within the scope of the interventions offered in the field of Psychosocial Attention, although this one is
identified as an issue that is most frequently expressed by professionals interviewed. Thus, it is possible
to identify possible elements that contribute to the silencing of this issue in the clinical-institutional work
presented here, as well as to identify possible theoretical and methodological paths for the visibility of
the debate on racism in Mental Health and for better approach of the same in the daily of the
professional teams that work in the field of Psychosocial Attention.

KEYWORDS

(1) Mental Health; (2) Mental Health Services; (3) Racism; (4) Ethnic-Racial Relations; (5) Narrative
Interview; (6) Narrative Analysis.

BIBLIOGRAPHICAL REFERENCE

ROCHA, Renan Vieira de Santana. Saúde Mental e Racismo à Brasileira: Análise de Narrativas em um
Centro de Atenção Psicossocial em Salvador/BA. 145 p. 2018. Dissertation (Master's Degree in
Collective Health) – Instituto de Saúde Coletiva (ISC), Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Salvador, Bahia, Brazil, 2018.
RÉSUMÉ

Cette étude porte sur la thèse de maîtrise, construit au sein de Programme d'Études Supérieures en
Santé Publique de l'Institut de Santé Publique de l'Université Fédérale de Bahia (PPGSC/ISC/UFBA –
Acronyme en Langue Portugaise). Il s‟agit d‟une étude qualitative et exploratoire, dont l'objectif général
est d'identifier les récits liés au racisme professionnels pour un particulier Centre de Attention
Psychosociaux (CAPS – Acronyme en Langue Portugaise) dans la ville de Salvador / BA. Dans ce
contexte, sont les objectifs spécifiques: (1) comprendre les manifestations et/ou d'entretien du racisme
dans les pratiques cliniques et institutionnels construits par des professionnels de ce service; (2)
comprendre la relation entre ces pratiques cliniques et institutionnelles avec la construction du
processus de travail en Santé Mentale et Attention Psycosociale de professionnels de ce service; et
enfin, (3) a une Revue Systématique de la Littérature sur les principaux Descripteurs en Santé
concernant le débat ici proposé. Pour atteindre ces objectifs, notamment l'objectif général, le cadre
théorique de la technique des Entretiens Narratifs est utilisé selon la portée de l'Analyse Narrative de
Fritz Schütze (1976, 2014), avec une équipe de haut niveau du personnel actif dans un certain Centre
de Attention Psychosociaux (CAPS – Acronyme en Langue Portugaise) dans la ville de Salvador/BA.
Donc, le travail est structuré en cinq rubriques principales, à savoir: (1) Les fondements théoriques; (2)
La méthode et le lieu de recherche; (3) Revue de la littérature; (4) Analyse des récits produits; et (5)
Discussion des récits produit. Les résultats du sondage révèlent que phénomène de racisme est encore
peu discuté dans le domaine de la Santé Mentale, que ce soit dans le niveau académique/scientifique,
que ce soit au niveau professionnel/clinique-institutionnel, beaucoup moins travaillé dans le cadre des
interventions offertes dans les soins psychosociaux, bien même qu'il soit considéré comme important
par des professionnels interrogés. Désormais, ils sont presentés éléments qui contribuent à faire-taire
cette question dans la clinique institutionnelle exposé ci-dessous et on treuve indiquer les chemins
possibles, théoriques et méthodologiques, pour la visualisation du débat sur le racisme en Santé
Mentale et en vue d‟une meilleure approche dans la quotidienne des équipes professionnelles qui
travaillant dans les soins psychosociaux.

MOTS-CLÉS

(1) Santé Mentale; (2) Services de Santé Mentale; (3) Racisme; (4) Relations Raciales-Ethniques; (5)
Entretien Narratif; (6) Analyse Narrative.

REFERENCE BIBLIOGRAPHIQUE

ROCHA, Renan Vieira de Santana. Saúde Mental e Racismo à Brasileira: Análise de Narrativas em um
Centro de Atenção Psicossocial em Salvador/BA. 145 p. 2018. Dissertation (Maîtrise em Santé
Publique) – Institut de Santé Publique (ISP), Université Fédérale de Bahia (UFBA). Salvador,
Bahia, Brésil, 2018.
SUMÁRIO

Introdução .................................................................................................................................. Pg. 012

Capítulo 01: Da Fundamentação Teórica ................................................................................. Pg. 018

(1.1) Compreensões Introdutórias: Raça, Etnia, Racismo, Relações Étnico-Raciais e Racismo à Brasileira ................... Pg. 020

(1.2) Formação Histórica da Sociedade Brasileira: do Modelo Senhorial-Escravista ao Burguês-Capitalista .................. Pg. 026

(1.3) Raça, Racismo e Ciência: das Teorias Frenológicas e Eugenistas ao Racismo Científico Brasileiro ...................... Pg. 033

(1.4) Raça, Racismo e Política: do Racismo de Estado Foucaultiano ao Racismo (Bio)Político Contemporâneo ............ Pg. 040

(1.5) Saúde Mental, Saúde Pública e Racismo: Tessituras Biopolíticas e Indicadores de Vigilância em Saúde .............. Pg. 044

(1.6) Saúde Mental e Racismo à Brasileira: Análises Contemporâneas do Sofrimento Psíquico Étnico-Racial ............... Pg. 048

Capítulo 02: Do Método e do Lócus de Pesquisa ................................................................... Pg. 056

(2.1) Caracterizações Iniciais do Método e do Lócus de Pesquisa ................................................................................... Pg. 056

(2.2) Da Entrevista Narrativa à Análise de Narrativas: O Método de Fritz Schütze ........................................................... Pg. 061

(2.3) Aspectos Éticos ......................................................................................................................................................... Pg. 066

Capítulo 03: Da Revisão Sistemática de Literatura ................................................................. Pg. 067

(3.1) Caracterizações Iniciais da Revisão Sistemática de Literatura ................................................................................. Pg. 067

(3.2) Saúde Mental e Relações Raciais: Enredos Históricos e Tramas Contemporâneas ................................................ Pg. 069

Capítulo 04: Da Análise das Narrativas Produzidas ............................................................... Pg. 086

(4.1) Das Trajetórias Individuais às Trajetórias Coletivas .................................................................................................. Pg. 086

(4.2) Dos Desfechos Analíticos .......................................................................................................................................... Pg. 103

Capítulo 05: Da Discussão das Narrativas Produzidas .......................................................... Pg. 104

(5.1) Percepções e Concepções de Racismo .................................................................................................................... Pg. 104

(5.2) O Racismo, a Loucura e a Interseccionalidade ......................................................................................................... Pg. 109

(5.3) O Racismo e a Fabricação do Sofrimento Psíquico .................................................................................................. Pg. 114

(5.4) O Racismo e a Organização do Processo de Trabalho em Saúde Mental ............................................................... Pg. 121

Considerações Finais ................................................................................................................ Pg. 126

Referências Bibliográficas ........................................................................................................ Pg. 131

Anexo Único: Tabela de Codificação dos Fragmentos Narrativos Selecionados ................ Pg. 139
12

INTRODUÇÃO

Ao transversalizarmos o campo das Ciências da Saúde com o debate proposto no âmbito das
Relações Étnico-Raciais, veremos que o atributo raça/cor agrega diferentes contornos aos processos
de saúde-doença-cuidado no Brasil, necessitando de uma constante vigilância e observância por parte
dos diferentes atores sociais que aí atuam no sentido da Promoção da Saúde e da garantia da
Equidade no Sistema Único de Saúde (SUS) (KALCKMANN et al, 2007; BRASIL, 2015).

Esta correlação, a princípio, se apresenta como um elemento desafiador: como podemos pensar
a questão da conformação do racismo no Brasil atrelada ao debate sobre as Reformas Sanitária e
Psiquiátrica Brasileiras e à construção do Sistema Único de Saúde (SUS)? Quais os caminhos teóricos
e metodológicos que têm se apresentado ante os pesquisadores brasileiros que se propõem a refletir
sobre como as nuanças do racismo e demais desigualdades sociais operam na oferta de cuidados em
saúde? Decerto que, se em certa medida estas questões revelam-se enquanto desafio, na mesma
medida hão de revelarem-se como necessidades, haja posto o compromisso ético-político do
movimento sanitário brasileiro em produzir saúde por vias mais justas e equânimes (PAIM, 2009).

Se quisermos transpor estas indagações ao campo da Saúde Mental, encontraremos urgências


ainda maiores, acompanhadas de especificidades próprias do debate sobre adoecimento mental e
sofrimento psíquico, analisadas sob o prisma das múltiplas desigualdades sociais que marcam e
demarcam a experiência humana ante o sofrimento. Isto porque, se analisarmos categorias como raça,
etnia, gênero e sexualidade de modo transversal à Saúde Pública e/ou à Saúde Coletiva, já teremos
todo um amálgama de questionamentos que colidem entre si no intuito de pensar sobre como ofertar
saúde em meio a tantas especificidades e marcadores interseccionais de opressão atuando para
diferentes segmentos populacionais (CRENSHAW, 2002; ALVES; RODRIGUES, 2010); amálgama
este que se amplia no bojo da Saúde Mental. Ao sobrepor todo este processo às vicissitudes da Saúde
Mental, pode parecer-nos que afunilamos a análise, mas esta necessária redução do fenômeno
estudado não confere a este uma maior simplicidade analítica.

Nesse sentido, estudos contemporâneos irão demonstrar que a vivência cotidiana do racismo
produz efeitos nefastos à saúde em diferentes instâncias. Exemplo disto é o estudo apresentado por
Faro e Pereira (2011), ao constatarem que, pelas discrepâncias sociais oriundas da formação histórica
racista da sociedade brasileira, diferentes sujeitos, na expressão fenotípica de sua “raça” (tomada,
13

neste exemplo, como “cor de pele”), apresentarão agravos à saúde oriundos da iniquidade resultante
do fenômeno do racismo. Assim, eles nos dirão que:

[...] é possível conceber que a saúde das minorias raciais está patenteada pela iniquidade,
vista através da concentração de poder, privilégios e recursos que submetem indivíduos a
uma realidade de mais frequentes experiências estressoras, limitada possibilidade de
transformação social e menor capacidade de manejo do estresse (FARO; PEREIRA,
2011, p. 274, grifo nosso).

Isto que, inicialmente, é apontado por Faro e Pereira (2011), em um dos raros estudos nacionais
a se debruçar sobre estes elementos especificamente a partir de uma leitura orientada pela Saúde
Mental, confirma-se em estudos mais gerais da Saúde Pública e/ou da Saúde Coletiva, ao ponderar
sobre os efeitos do racismo nas várias instâncias da vida cotidiana, como se vê nos estudos de Laura
Cecília López (2012) e Suzana Kalckmann e colaboradores (2007). Nestes últimos estudos, as autoras
nos indicarão, inclusive, que há, por parte do Estado Brasileiro, uma tendência de manutenção das
estruturas históricas que fundamentaram o racismo na base das principais instituições sociais e
públicas. Isto reverberará na manutenção da lógica racista em diferentes ordens, especialmente a
histórica, a científica e a política – âmbitos que serão retomados ao longo do presente trabalho – e
fundamentalmente ocasionará na instituição do próprio racismo como um mecanismo intrincado nas
ações ofertadas pelo aparato estatal-governamental (LÓPEZ, 2012; KALCKMANN et al, 2007). A isto,
ambas as autoras chamarão de “Racismo Institucional” e assim o mesmo será definido:

O racismo institucional é definido como o fracasso coletivo de uma organização para prover
um serviço apropriado e profissional para as pessoas por causa de sua cor, cultura ou
origem étnica. Ele pode ser visto ou detectado em processos, atitudes e comportamentos
que se totalizam em discriminação por preconceito involuntário, ignorância,
negligência e estereotipação racista, que causa desvantagens a pessoas de minoria
étnica. A prática do racismo institucional na área da saúde afeta preponderantemente as
populações negra e indígena (KALCKMANN et al, 2007, p. 146, grifo nosso).

Ora, se compreendemos que a Saúde Pública, estruturada no Brasil pela conformação do


Sistema Único de Saúde (SUS), é “direito de todos e dever do Estado” (BRASIL, 1988), rapidamente
poderemos pensar que ela também será marcada pelo racismo institucional2, e que isto
indubitavelmente reforçará as compreensões apresentadas pelos autores supracitados, ao afirmarem o
elemento racista como um causador/potencializador de adoecimentos variados em diferentes
instâncias da vida de sujeitos por ele afetados.

2Esta afirmativa se dá tendo por base o que nos apontam López (2012) e Kalckmann et al (2007), onde, ao se afirmar que
a Saúde Pública passa a ser “dever do Estado”, a mesma estará suscetível a ser acometida por todas as lógicas de
controle, influência e dominação das quais o Estado se utiliza; dentre estas, o racismo de Estado. Logo, como veremos
mais aprofundadamente na Fundamentação Teórica do presente trabalho, a estruturação pública de oferta de cuidados em
saúde não estará escape a estas mesmas lógicas, inclusive as de cunho racializado e racista.
14

Este processo, inclusive, não é uma exclusividade da realidade brasileira. Se observarmos as


contribuições de Edward Eric Telles (2003), em sua obra “Racismo à Brasileira: Uma Nova Perspectiva
Sociológica”, veremos que a questão da conjunção entre racismo e instituições sociais e públicas se
operou em diferentes povos e nações, em também diferentes tempos e espaços históricos. No entanto,
na realidade brasileira, pela congregação dos discursos históricos, científicos e políticos, produziu-se
uma determinada compreensão de uma suposta “diluição” do fenômeno racista no percurso de
miscigenação presente na formação histórica da sociedade brasileira – o que é, absolutamente,
inverídico e perigoso. Isto será responsável, em momentos passados e presentes, por uma
invisibilização do racismo em suas diferentes facetas. Esta invisibilização comungará com a
manutenção da lógica racista vigente, e será o ponto apontado não apenas por Telles (2003), mas
também por outras autoras e autores contemporâneos renomados, como Lilia Moritz Schwarcz (1993),
Andreas L. Hofbauer (2003), Kabengele Munanga (2004), Luís Eduardo Batista, Jurema Werneck e
Fernanda Lopes (2012), entre outros, para tratar de um modo muito específico como o racismo acaba
por operar na realidade brasileira: como um fenômeno, ao mesmo tempo, silencioso e gritante, discreto
e cortante, sutil e violento.

Por estas observações iniciais, intentamos nos apropriar, no presente trabalho, do uso da
expressão Racismo à Brasileira, conforme proposto por Telles (2003), para tratar deste racismo
velado e silencioso, porém brutal e poderoso, que se mantém presente nas relações sociais no Brasil
desde os tempos coloniais até o nosso momento presente, marcadamente afetando a expressão
brasileira das iniquidades em saúde. Esta compreensão dará base aos diálogos teóricos que se enseja
realizar no presente trabalho e servirá como ponte de costura entre os campos da Saúde Coletiva, da
Saúde Mental e das Relações Étnico-Raciais. Logo, fica patente a inclinação discursiva do presente
texto à esfera das Ciências Sociais em Saúde, no esforço de conjugarem-se horas em uma
perspectiva socioantropológica e horas em uma perspectiva sócio-histórica. Doravante, esta
demarcação não se dá ao acaso: acreditamos que a análise do fenômeno racista no campo das
Ciências da Saúde ainda se encontra bastante distante de ver-se esgotada, e mais ainda ao
pensarmos na Saúde Mental, o que nos faz assumir um posicionamento eminentemente exploratório
aqui – ponto que, também, será mais bem explanado no tópico metodológico do presente texto – e,
consequentemente, mais alinhado com as pesquisas de orientação qualitativa e que se debruçam
sobre uma análise mais acurada da experiência humana e da narração destas mesmas experiências
vividas (MINAYO; DESLANDES; ROMEU, 2012).

Vale ainda considerar que esta perspectiva investigativa dialoga diretamente com os arranjos da
Reforma Psiquiátrica Brasileira, haja posto que, durante séculos, o lugar conferido à loucura fora
15

majoritariamente o da desrazão, da periculosidade, da deslegitimação dos discursos e do


encarceramento involuntário e compulsório (AMARANTE, 2007). Logo, a experiência vivida pelos
sujeitos tidos como loucos por muito foi considerada como descartável, quando não abandonada e
relegada à morte – antes de física, simbólica. Isto nos coloca ante uma dívida para com a produção de
novos conhecimentos e novo lugares para se abordar a loucura e os loucos, em seus dramas,
sofrimentos e vivências cotidianas.

Se ao nível da pesquisa acadêmica estas questões hão de levar-nos a uma inclinação


qualitativa, ao nível da prática profissional, seremos então convocados a produzir novas tecnologias de
cuidado (MERHY; FEUERWERKER, 2009), que permitam o aparecimento do sofrimento dos sujeitos a
quem ofertamos cuidado sem enquadramentos psicopatológicos restritivos e sem o apagamento dos
elementos da vida cotidiana que também causam “dor”, “ansiedade”, “angústia” e “desespero”, sem
necessariamente estarem categorizados e sistematizados em manuais internacionais nosológicos de
Psiquiatria e/ou de Saúde Mental.

Nessa direção, compreendemos que os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – serviços


substitutivos símbolo do processo de desinstitucionalização e desospitalização de pacientes dos
grandes hospitais psiquiátricos brasileiros do século XX – configuram-se como o atual espaço de
apostas na possibilidade de produção de um novo cuidado em Saúde Mental, que rompa com os
ditames da indústria psiquiátrica que, por décadas, comandou a lógica de cuidado ofertada às pessoas
em sofrimento psíquico relacionado à vivência da psicose e demais “transtornos graves, severos e
persistentes”, pela via do controle dos corpos e do sequestro da subjetividade (AMARANTE, 2007).
Aqui, fazemos uma opção crítica e radical em defesa da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, tal qual
o fazemos em defesa da luta antirracista, posicionamentos sem os quais este trabalho não pode se
dar. Logo, a escolha por estudar serviços de Saúde Mental, construídos na perspectiva da Atenção
Psicossocial, é para que se comungue e se fortaleçam as práticas profissionais, clínico-institucionais,
que se processam diariamente na realidade construída e compartilhada entre usuários, profissionais,
familiares e gestores destes serviços.

Tendo em vista tudo o que fora apresentado até aqui, questionamos: como têm se dado as
práticas profissionais, no campo da Saúde Mental e/ou da Atenção Psicossocial, acerca de questões
envolvendo o fenômeno do racismo? Quais as compreensões dos profissionais de Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS) acerca do racismo? Como estes profissionais consideram que o racismo pode se
manifestar no campo da Saúde Mental e/ou nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)? Assumimos
16

estas questões como as nossas perguntas de investigação, no intuito de que as mesmas possam ser
respondidas ao longo do presente trabalho.

Enquanto objetivo geral, enseja-se identificar quais as narrativas ligadas ao racismo construídas
por parte dos profissionais de um determinado Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade de
Salvador/BA. Na continuidade, enquanto objetivos específicos, procura-se: (1) compreender as formas
de manifestação e/ou manutenção do racismo nas práticas clínico-institucionais construídas pelos
profissionais deste serviço; (2) compreender a relação destas práticas clínico-institucionais com a
construção do processo de trabalho em Saúde Mental e Atenção Psicossocial dos profissionais deste
serviço; e, por fim, (3) apresentar uma Revisão Sistemática de Literatura acerca dos principais
Descritores em Saúde concernentes ao debate aqui proposto. Para alcançar estes objetivos,
destacadamente o objetivo geral, lançar-se-á mão do referencial teórico-metodológico da técnica de
Entrevistas Narrativas, segundo o escopo da Análise de Narrativas de Fritz Schütze (1976; 2014) –
ponto que será mais bem explanado adiante.

Vale ainda sinalizar que, reconhecendo a lacuna técnico-científica quanto à temática aqui
proposta, bem como a necessidade de refletir sobre as práticas clínico-institucionais no campo da
Atenção Psicossocial, para dar base à criação de novas tecnologias de cuidado que contemplem o
debate sobre o racismo na Saúde Mental, justifica-se e apresenta-se a presente Dissertação, que
seguirá estruturada nos seguintes tópicos:

(1º) O primeiro capítulo trata da Fundamentação Teórica do presente texto. Neste, serão
abordados os principais conceitos a serem utilizados, bem como será feita a definição do corpus
teórico, com as respectivas linhas de abordagem teórico-conceitual, estruturadas segundo critérios
históricos, científicos e políticos. Serão também introduzidas as principais autoras e autores, tanto dos
campos da Saúde Coletiva e da Saúde Mental, como do campo das Relações Étnico-Raciais,
intentando produzir uma confluência discursiva para as linhas de pensamento apresentadas.

(2º) O segundo capítulo abordará o referencial teórico-metodológico utilizado para a construção


desta pesquisa, desde as suas caracterizações iniciais – como: Lócus de Pesquisa, tipo de pesquisa,
métodos de produção e análise dos dados, participantes do estudo, critérios de inclusão e de exclusão,
instrumentos para a produção dos dados, etc. – até uma explanação maior acerca do método-base
para a produção dos dados de campo – a saber: a Análise de Narrativas de Fritz Schütze (1976; 2014),
com as devidas contribuições de Sandra Jovchelovitch e Martin W. Bauer (2002).
17

(3º) O terceiro capítulo apresentará a Revisão Sistemática de Literatura proposta nos objetivos
específicos. Para tal, também serão apresentados os seus elementos de caracterização inicial – como
os descritores e as bases de dados indexadas utilizadas – bem como uma síntese analítica dos artigos
encontrados, tanto em termos da literatura nacional como em termos da literatura internacional, com
destaque para os achados na literatura científica norteamericana e europeia, maioria absoluta dos
artigos presentes nas bases de dados acessadas.

(4º) No quarto capítulo serão apresentados os principais achados da pesquisa de campo


realizada, devidamente analisados segundo o referencial teórico-metodológico da Análise de Narrativas
de Fritz Schütze (1976; 2014), intentando apresentar as categorias oriundas tanto dos dados indexados
(previstos a partir da Fundamentação Teórica e da Revisão Sistemática de Literatura) quanto dos
dados não indexados (não previstos a partir dos mesmos tópicos já citados).

(5º) Por fim, das categorias produzidas no quarto capítulo, será feita, no quinto e último
capítulo, a discussão quanto aos principais achados da pesquisa de campo realizada, a partir das
Trajetórias Individuais e Coletivas observadas e da interlocução com as autoras e autores da
Fundamentação Teórica e da Revisão Sistemática de Literatura do presente trabalho. Ainda neste
capítulo, intenta-se dar o devido desfecho ao objetivo geral da presente pesquisa, respondendo ao
mesmo, bem como às perguntas de investigação que o originaram, culminando-se o trabalho realizado
nas respectivas Considerações Finais, com a sistematização dos avanços, contribuições e limites
deste estudo.

Esperamos que, após este percurso, este trabalho possa configurar-se como um instrumento em
colaboração à luta antirracista na saúde e, mais especificamente, na Saúde Mental, sugerindo, a partir
de tal, estratégias de ação possíveis e necessárias para o enfrentamento do racismo no processo de
trabalho e nas práticas clínico-institucionais de profissionais de Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) na Bahia e no Brasil.
18

CAPÍTULO 01: DA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O campo da Saúde Coletiva, em sua composição de base, é constituído de contribuições


variadas a partir de suas três principais áreas de concentração: a Planificação (ou Planejamento e
Gestão) em Saúde, a Epidemiologia e as Ciências Sociais em Saúde (PAIM; ALMEIDA-FILHO, 2014).
Estas três áreas carregam consigo uma grande variedade de saberes e fazeres na construção do
debate sanitário, tanto em nível histórico, quanto científico e político.

Esta multiplicidade vai se expressar na construção dos saberes e fazeres sanitários ante os
fenômenos de cunho étnico-racial, conforme fartamente se verá no livro “Saúde da População Negra”,
de Luís Eduardo Batista, Jurema Werneck e Fernanda Lopes (2012). No entanto, estes mesmos
autores, em consonância com outras e outros autores que compõem a coletânea supracitada, nos
apontam um panorama em que se observa que, apesar de um aumento nos estudos de cunho étnico-
racial no campo da Saúde Coletiva, em suas três áreas de concentração, ainda se detecta a pouca
expressividade da questão representada pelo racismo nos estudos sanitários. Essa pouca
expressividade pode dialogar com a concepção de certo silenciamento do racismo oriundo dos modos
como o Brasil permitiu o entranhamento deste fenômeno em suas mais diversas estruturas, conforme
se vê em Telles (2003) e Schwarcz (1993).

Logo, temos aqui um pressuposto básico: para estudar o racismo brasileiro transversalizado com
os diferentes campos do conhecimento, inclusive em Saúde Coletiva e Saúde Mental, é preciso fazer,
no que tange a este, um necessário resgate histórico, que perpassa tanto pela compreensão da
conformação da sociedade brasileira em si, quanto pela observação do quanto este percurso histórico
ainda se faz presente no contexto contemporâneo. Vale considerar que esta observação histórica não
se faz necessária apenas por uma contextualização panorâmica do fenômeno: se queremos dialogar
com a questão do racismo na saúde, e produzir pesquisa a partir de tal, não é possível caminhar sem
compreender, com olhos e ouvidos atentos, o passo-a-passo da civilização, da urbanização e da
capitalização das relações sociais brasileiras, desde os tempos coloniais (de modelo senhorial-
escravista) até os tempos modernos (de modelo burguês-capitalista).

Quem nos aponta tal necessidade de maneira bastante assertiva é o historiador brasileiro Sidney
Chalhoub, tendo como exemplo a sua obra "Trabalho, Lar e Botequim: O Cotidiano dos Trabalhadores
no Rio de Janeiro da Belle Époque” (CHALHOUB, 1986). Chalhoub nos apresentará, analisando o
período histórico denominado como Belle Époque Brasileira (compreendido entre os anos de 1889 e
19

1931), a realidade de um Brasil que seguiria seu processo civilizatório no imediato da Pós-Abolição da
Escravatura, sendo necessária a criação de um “projeto de sociedade” que mantivesse o domínio
sobre os meios de produção nas mãos de quem sempre os deteve – os sujeitos brancos, de
ascendência europeia, responsáveis pela colonização e exploração das matérias-primas e das forças
de trabalho brasileiras entre o início do século XIX e meados do século XX. Este “projeto de sociedade”
será de profunda importância na leitura da conformação histórica da sociedade brasileira, pois suas
marcas são visualizadas até hoje na distinção dos modos de vida entre sujeitos brancos, negros e
indígenas – e serão retomadas para a nossa análise ainda neste mesmo capítulo.

O que nos interessa sinalizar é que a leitura sobre o fenômeno do racismo na saúde precisa
comungar de perspectivas variadas, sempre atentas a como a história do Brasil produziu alguns dos
problemas e agravos em saúde que hoje enfrentamos, profissional e academicamente. É como nos
aponta o médico sanitarista brasileiro Josué Laguardia (2004), ao dizer-nos que as pesquisas no
campo da saúde e da “raça” precisam sempre estar atentas às concepções de base que fundam os
conceitos utilizados, bem como aos usos históricos destas mesmas concepções para a criação de
“fossos de desigualdades sociais”. Se nos arriscamos à produção científica desatenta aos elementos
históricos e políticos que estão na base do surgimento de quem somos enquanto povo, enquanto
nação, podemos incorrer na produção de um conhecimento que não dialogue com as necessidades em
saúde concretas dos diferentes segmentos sociais lateralizados pelas estruturas sociais dominantes.

Quando se investigam as causas da desigualdade em saúde, é imperativo que o


pesquisador se mova para além do individualismo biomédico e esteja ciente tanto dos
processos e fatores sociais subjacentes à desvantagem social historicamente produzida,
quanto às restrições macrossociais impostas ao comportamento em saúde. Desse modo,
evita-se incorrer em afirmações, infelizmente ainda presentes em muitos estudos, que
culpam as vítimas e reforçam estereótipos racistas (LAGUARDIA, 2004, p. 223, grifo
nosso).

Aqui, mais uma vez convocamos, mas ainda em caráter preliminar, o elemento do racismo à
brasileira, conforme abordado em Telles (2003). O racismo à brasileira opera precisamente na tentativa
constante de silenciamento dos atores e atrizes sociais que intentam apontá-lo enquanto elemento
existente e operante na estrutura social do Brasil. Ao fazê-lo, processa-se de maneira também
silenciosa, mascarando a verdade cotidiana de sua manifestação e manutenção. Esse processo, tão
bem apontado por diversos autores de orientação sociológica – como Guimarães (2003), Moore (2007)
e Williams e Priest (2015) – precisa, portanto, ser devidamente evidenciado, e assim tomado como
objeto da produção científica brasileira, subvertendo a ordem silenciosa estabelecida.
20

Por todas estas primeiras observações é que, neste capítulo, serão abordados os principais
autores, conceitos e fatos históricos, científicos e políticos a serem utilizados ao longo da presente
Dissertação, estruturando-se em seis subtópicos basilares, a saber: (1.1) Compreensões Introdutórias:
Raça, Etnia, Racismo, Relações Étnico-Raciais e Racismo à Brasileira; (1.2) Formação Histórica da
Sociedade Brasileira: do Modelo Senhorial-Escravista ao Burguês-Capitalista; (1.3) Raça, Racismo e
Ciência: das Teorias Frenológicas e Eugenistas ao Racismo Científico Brasileiro; (1.4) Raça, Racismo
e Política: do Racismo de Estado Foucaultiano ao Racismo (Bio)Político Contemporâneo; (1.5) Saúde
Mental, Saúde Pública e Racismo: Tessituras Biopolíticas e Indicadores de Vigilância em Saúde; e
(1.6) Saúde Mental e Racismo à Brasileira: Análises Contemporâneas do Sofrimento Psíquico Étnico-
Racial. Intenta-se que, a partir desta estruturação, seja possível trafegar pelos aspectos históricos
necessários ao presente trabalho, passando posteriormente às dimensões científica e política, ao
debate sobre o racismo na saúde e, ao final, ao debate sobre o racismo à brasileira no campo da
Saúde Mental.

 1.1 – Compreensões Introdutórias: Raça, Etnia, Racismo, Relações Étnico-Raciais e


Racismo à Brasileira

Se quisermos tratar do racismo como fenômeno, é preciso, em uma primeira instância, defini-lo.
Logo, é preciso demarcar de imediato que o compreendemos aqui como uma estrutura operante sobre
as relações sociais, produtora de relações assimétricas, desiguais e injustas entre diferentes sujeitos,
tendo como premissa os atributos de raça e etnia (MUNANGA, 2004). Ele é socialmente construído,
estabelecendo a premissa de que elementos correlatos às matrizes não-brancas (p. ex.: indígena,
negra, cigana, etc.) são inferiores, errados ou exóticos. Atribui-se àquilo que destoa da matriz branca e
eurocentrada (dita “universal”) da sociedade o status de inferioridade, ponto que “justifica” que todo e
qualquer elemento destoante do pressuposto básico seja subjugado, subalternizado – permitindo que o
racismo se constitua, portanto, em um marcador social de exclusão (HOFBAUER, 2003).

Esta definição pressupõe que, para sua melhor compreensão, também possamos definir aquilo a
que chamamos de “raça”, bem como a que chamamos de “etnia”. Tratamos aqui de dois conceitos que,
por vezes, vemos quase que sempre unidos e, em mesma medida, quase que sempre confundidos.
Isto, em grande parte, pelo fato de que o conceito de raça assumiu uma dimensão polissêmica ao
longo do tempo, atravessada precisamente pelo seu viés originário (eminentemente morfobiológico) e
pelo seu viés, como nos diz Munanga (2004), mais “politicamente correto” (eminentemente
21

socioantropológico). Na tentativa de diluir o embaraço inicial representado pela proposição da


existência de “raças humanas distintas”, confundem-se estes conceitos por tentar-se atribuir à noção
de raça uma “roupagem” étnica.

Kabengele Munanga, antropólogo congolês-brasileiro, referência de base nos Estudos Étnicos e


Raciais, nos dirá que esta compreensão inicial nos permite partir para um primeiro embate no campo
das Relações Étnico-Raciais para compreender o racismo, que diz respeito à própria construção
histórica da ideia de raça. Isto porque, para determinados segmentos sociais, assume-se a noção de
raça a partir do prisma fenotípico – a “cor de pele” – enquanto que, para outros segmentos sociais, a
noção de raça perpassará muito mais por um prisma político-ideológico (que não se confunde com a
noção de “etnia”), sendo este prisma último uma derivação direta do prisma primeiro, ambos
contribuindo na determinação social dos acessos e não-acessos a direitos, inclusive em saúde. Sobre
isto, Munanga (2004) nos diz:

Podemos observar que o conceito de raça, tal como o empregamos hoje, nada tem de
biológico. É um conceito carregado de ideologia, pois, assim como todas as ideologias,
esconde uma coisa não-proclamada: a relação de poder e de dominação. A raça, sempre
apresentada como uma categoria biológica, isto é, natural, é de fato uma categoria
etnossemântica. De outro modo, o campo semântico do conceito de raça é determinado
pela estrutura global da sociedade e pelas relações de poder que a governam (ibidem, p. 22,
grifo nosso).

Ao fortalecer a ideia de que raça é um conceito etnossemântico, Munanga (2004) nos permite
conjeturar não apenas embates conceituais que se voltam à noção de raça, mas à própria
multifatorialidade de seu conceito – em outras palavras: para além de ser um conceito etnossemântico,
marcado por vieses etnocêntricos, é também um construto atravessado por diversas características de
cunho político-ideológico, econômico, sociocultural, etc., ainda que esteja fortemente atrelado a uma
noção biológica que serve como “pano de fundo” da questão central. Assim, aparece-nos como
conceito complementar à concepção de raça a noção de etnia, em uma tentativa de deslocar o viés
biológico do centro da questão e dar mais ênfase aos aspectos socioculturais presentes no debate em
jogo. Vejamos, novamente, o que nos diz Munanga (2004):

O conceito de raça é morfobiológico e o da etnia é sociocultural, histórico e psicológico.


Um conjunto populacional dito raça 'branca', 'negra', e 'amarela' pode conter, em seu seio,
diversas etnias. Uma etnia é um conjunto de indivíduos que, histórica ou
mitologicamente, têm um ancestral comum, têm uma língua em comum, uma mesma
religião ou cosmovisão, uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo
território (ibidem, p. 28, grifo nosso).

Ao trazer à tona o conceito de etnia em Munanga (2004), outro embate no campo das Relações
Étnico-Raciais se nos revela, potencializando o primeiro aqui exposto: há não apenas uma tentativa de
22

confundir os vieses morfobiológicos e socioantropológicos ante a noção de raça, mas há também uma
tentativa atual de enfocar os aspectos da vivência sociocultural, em uma perspectiva mais histórica e
socioantropológica, em detrimento aos aspectos da vivência morfobiológica anteriormente tipificados e
classificados hierarquicamente. Em termos mais simples: outrora se utilizou a noção de raça, em seu
sentido mais biológico possível, para classificar “tipos humanos específicos”, onde a “raça branca” seria
o símbolo máximo da civilidade, e as “demais raças” seriam inferiores; hoje, deseja-se deixar de lado
esta compreensão, assumindo a noção de etnia a partir de uma perspectiva mais abrangente,
intentando descartar os aspectos morfobiológicos que outrora foram centrais a este debate.

Não obstante, e o autor apresentará isto de maneira preponderante, essa tentativa não diminui o
impacto dos elementos já atrelados à noção de raça como um marcador social de exclusão em
decorrência da “cor da pele”, tendo em vista que o atributo morfobiológico já segue, em certa medida,
emparelhado a uma noção de inferioridade produzida paralelamente à estruturação da noção de
superioridade a tudo que nos remete à ideologia branca e suas formas de representação sobre o
mundo e as relações sociais. Nesse sentido, e ainda sobre o uso dos termos raça e etnia, Munanga
(2004) também apontará:

A maioria dos pesquisadores brasileiros que atuam na área das relações raciais e
interétnicas recorre com mais frequência ao conceito de raça. Eles empregam ainda este
conceito, não mais para afirmar sua realidade biológica, mas sim para explicar o racismo, na
medida em que este fenômeno continua a se basear em crença na existência das raças
hierarquizadas, raças fictícias ainda resistentes nas representações mentais e no imaginário
coletivo de todos os povos e sociedades contemporâneas. Alguns fogem do conceito de raça
e o substituem pelo conceito de etnia, considerado como um léxico mais cômodo que o de
raça, em termos de 'fala politicamente correta'. Esta substituição não muda em nada a
realidade do racismo, pois não destrói a relação hierarquizada entre culturas
diferentes que é um dos componentes do racismo. Ou seja, o racismo hoje praticado nas
sociedades contemporâneas não precisa mais do conceito de raça ou da variante biológica,
ele se reformula com base nos conceitos de etnia, diferença cultural ou identidade cultural,
mas as vítimas de hoje são as mesmas de ontem, e as raças de ontem são as etnias de
hoje (ibidem, p. 29, grifo nosso).

Não queremos aqui, de forma alguma, deixar subentendida uma compreensão de que as
variantes raça e etnia não sejam de suma importância para a compreensão do fenômeno do racismo
frente ao debate proposto no âmbito das Relações Étnico-Raciais. O que o autor nos diz, e nós
concordamos, é que a questão central em debate está para além das puras terminologias utilizadas; é
preciso compreender severamente o que está no bojo e na estrutura de fundação dessas concepções,
bem como estas mesmas irão se incutir nas diferentes subjetividades para produzir formas de relação
entre os sujeitos que seguem balizadas por essas noções e reificam o estigma, a discriminação, o
preconceito e a subalternização de determinados segmentos sociais. Logo, não descartamos o uso
23

destes conceitos: do contrário, apresentamos os mesmos, em suas definições básicas e em suas


contradições, para que possamos avançar, a partir de tal, cientes do terreno pedregoso em que
caminhamos.

Compreender este percurso histórico e semântico nos abre a possibilidade de voltar a refletir
sobre o racismo propriamente dito. Este pode ser tomado a partir de inúmeras acepções, sendo que
todas elas podem, em certa medida, se influenciar para produzir uma compreensão muito maior,
multifacetada. Sendo assim, considera-se que a noção de raça é etnossemântica e polissêmica, tal
qual o será a noção de racismo, ainda que sobre este se direcione uma noção claramente posta: a
distinção, segmentação e diferenciação entre supostas raças humanas a partir de critérios que vão
desde elementos biológico-naturais a elementos socioculturais, históricos, políticos e econômicos
(HOFBAUER, 2003; MUNANGA, 2004). A fundação desta concepção abriu brecha à estruturação de
diversas ações de classificação e sectarização em diferentes sociedades, alicerçando modos de
organização social absolutamente calcados na “fantasia” de uma hierarquia racial humana. Assim, nos
aponta Guimarães (2003):

Todos sabemos que o que chamamos de racismo não existiria sem essa ideia que divide os
seres humanos em raças, em subespécies, cada qual com suas qualidades. Foi ela que
hierarquizou as sociedades e populações humanas e fundamentou um certo racismo
doutrinário. Essa doutrina sobreviveu à criação das ciências sociais, das ciências da
cultura e dos significados, respaldando posturas políticas insanas, de efeitos
desastrosos, como genocídios e holocaustos (GUIMARÃES, 2003, p. 96, grifo nosso).

Esta perspectiva “doutrinária” atribuída ao racismo se dá pela compreensão apresentada por


Guimarães (2003), e reforçada por Moore (2007), de que o racismo se configurará como uma forma de
consciência e, consequentemente, como uma estrutura de organização social de origem
inequivocamente histórica. Logo, para entender o racismo não basta conceituá-lo; conforme já
apontamos aqui, é preciso produzir sobre ele leituras devidamente contextualizadas em cada tempo e
em cada espaço em que este opera, leituras que só podem ser construídas ao observamos os
caminhos históricos que formaram a base de assentamento do racismo para cada povo, para cada
nação.

É dessa pluralidade conceitual que surge o campo das Relações Étnico-Raciais, como um
campo interdisciplinar e multiprofissional, atravessado pelos conhecimentos produzidos nas diferentes
formas de fazer ciência. Essa pluralidade nos convoca a, sempre que for preciso falar de raça, etnia e
racismo, lançar mão de autores de diferentes frontes epistemológicos, dialogando com as Ciências
Humanas e Sociais, e com as Ciências Biológicas e da Saúde.
24

Carlos Moore (2007), em sua obra “Racismo e Sociedade: Novas Bases Epistemológicas para
Entender o Racismo”, ao partir de um referencial de base orientado pelas Ciências Sociais, nos
provoca a pensar a relação entre racismo e sociedade precisamente a partir dos aspectos históricos
que desenham o racismo brasileiro, sem deixar de apontar para a necessidade de produzir uma
epistemologia de base que nos permita estudar este fenômeno segundo as especificidades de sua
formação ante a realidade brasileira. Logo, o autor sinaliza os caminhos do racismo brasileiro em seus
aspectos mais íntimos, convocando-nos a produzir novas leituras sobre o tema devidamente orientadas
por uma leitura interdisciplinar do fenômeno, visando ao fortalecimento da própria luta antirracista.

É a partir destes postulados de Moore (2007) que delineamos aquilo a que aqui chamamos de
campo das Relações Étnico-Raciais: a tentativa de fazer confluir, em um novo movimento
epistemológico, diferentes campos e formas de produção do conhecimento, para tratar da raça, da
etnia e do racismo e seus efeitos. Em tempo, não partimos aqui deste posicionamento na tentativa de
produzir uma simples “colcha de retalhos” conceitual; antes, apontamos que, como a produção de
saberes e fazeres sobre os fenômenos étnicos e raciais, por muitas vezes, esteve diluída entre os
demais campos de produção do conhecimento, faz-se necessário um esforço teórico e metodológico
de aproximar diferentes correntes de pensamento e linhas conceituais para fortalecer, profissional e
academicamente, os discursos que fundamentam a luta antirracista, dentro e fora das ciências
modernas e do saber-fazer universitário brasileiro.

Compreendemos que o esfacelamento teórico e metodológico que se tenta impor ao campo das
Relações Étnico-Raciais segue a linha do que assumimos como conceito de base deste trabalho: é
expressão do racismo à brasileira. Conforme Telles (2003), podemos visualizar especificidades no
campo dos Estudos Étnicos e Raciais no Brasil, quando estes são comparados a estudos em outros
países – o que deve ampliar a nossa leitura, não cerceá-la. Desta forma, assim como a nossa luta
antirracista apresenta contornos muito próprios, os modos de manutenção histórica do racismo também
assim o são, sendo a sua principal marca ante a realidade brasileira a constante tentativa de
invisibilização do problema, ancorada na diluição do mesmo nos ideais de Democracia Racial e de
miscigenação passiva e pacífica.

Edward Eric Telles (2003), ao analisar o campo das Relações Étnico-Raciais e os contornos do
racismo no Brasil, nos apresentará três ideias centrais de suma relevância: a primeira é a de que
alguns autores brasileiros tentaram produzir, em suas obras, noções de uma “vivência racial” brasileira
estruturada de maneira harmônica e pouco conflituosa (como se nota, p. ex., nas obras de Gilberto
Freyre), em absurda dissonância a um segundo corpo de autores, radicalmente crítico do primeiro,
25

localizado em exemplos como o da Escola Paulista de Sociologia (centrada em figuras de renome,


como Florestan Fernandes), que compreendia as relações raciais no Brasil a partir de toda a sua
estruturação conflituosa, que não se findou com a Pós-Abolição da Escravatura, sendo reconfigurada –
e mantida – com os novos desenhos das relações de trabalho na alvorada do Capitalismo. Este ponto
dialogará diretamente com os estudos que viriam a se desenhar futuramente em Sidney Chalhoub
(1986), ao estudar a formação da classe trabalhadora do Rio de Janeiro entre o final do século XIX e o
início do século XX.

A segunda ideia central apresentada por Telles (2003) é a de que não se pode descartar o
elemento da miscigenação racial na conformação da sociedade brasileira; logo, o mesmo procura
analisar este fenômeno, mas sem descartar ou desconsiderar todas as problemáticas raciais que
também advêm deste, ponderando como as questões que se encontram entre a miscigenação racial e
as diferentes tensões raciais repercutem no cotidiano da população brasileira. Por fim, a terceira ideia
central apresentada por Telles (2003) é a de uma comparação entre os modos de organização das
relações raciais e do racismo ante a realidade brasileira e a realidade estadunidense, demarcando as
características elementares de convergência e divergência entre ambas as realidades.

O estudo realizado por Telles (2003) culminará, finalmente, no reconhecimento de que os


engendramentos raciais brasileiros se dão por vias que, historicamente, ocorreram de maneira velada e
metaforizada, incutindo-se nos hábitos e nas leituras de mundo cotidianas, sem necessariamente
anunciarem a distinção pela “cor de pele” de maneira tão frontal como no caso dos Estados Unidos da
América (EUA) e da experiência do Apartheid, regime de segregação racial adotado de 1948 a 1994,
na África do Sul. Por essas distinções é que Telles (2003) cunhará a expressão “Racismo à Brasileira”,
que posteriormente viria a ser utilizada por outros autores para designar os modos particulares de
manifestação e/ou manutenção do racismo no Brasil (a exemplo de Andreas L. Hofbauer e de Roberto
Da Matta).

É no seio deste debate que o presente trabalho se encontra, ensejando partir de uma
perspectiva alicerçada nas Ciências Sociais, entre a Antropologia e a Sociologia, com contribuições
relevantes da História, para evidenciar as especificidades do racismo à brasileira no delineamento das
relações raciais no Brasil. Por esta evidente hibridez é que assumimos a concepção de racismo à
brasileira como eixo central a orientar o referencial teórico do presente texto, haja posto o diálogo
constante que as formulações sociológicas de Telles (2003) permitem com os demais estudos de
26

orientação sociológica, mas também com os estudos de profunda orientação antropológica – haja
posto os estudos, já inicialmente apresentados, de Kabengele Munanga (2004)3.

Apresentadas estas compreensões introdutórias, passaremos agora ao desenvolvimento da


compreensão sobre o racismo a partir de três postulados principais: (1) o racismo histórico; (2) o
racismo científico; e (3) o racismo político. Estes três postulados, a serem trabalhados,
respectivamente, nos próximos subtópicos deste capítulo, são derivados das compreensões
encontradas na leitura atenta de Darcy Ribeiro (1995), Robert W. Slenes (2011), Edward Eric Telles
(2003), Lilia Moritz Schwarcz (1993) e Michel Foucault (1979; 1993), com as devidas contribuições de
demais autoras e autores que possam aqui estar em diálogo. Em tempo, estes serão importantes
subtópicos da presente Fundamentação Teórica, pois darão base a uma compreensão mais acertada
da correlação entre racismo e saúde e entre o racismo à brasileira e a Saúde Mental, subtópicos finais
deste capítulo.

 1.2 – Formação Histórica da Sociedade Brasileira: do Modelo Senhorial-Escravista ao


Burguês-Capitalista

Como é sabido, o início da formação histórica da sociedade brasileira, como hoje se apresenta,
acompanha o período das Grandes Navegações (compreendidas entre o século XV e o século XVII),
tendo como marco clássico para a História e a Historiografia brasileiras oficiais o início da colonização
portuguesa no Brasil. O fato é que, para tratar desta formação histórica, não encontraremos
perspectivas uníssonas (RIBEIRO, 1995; SCHWARCZ, 1993; GUIMARÃES, 2003; SLENES, 2011).

Conforme os autores pontuam, uma primeira visão acerca do assunto nos apresenta este enredo
histórico tendo como principal marcador a chegada dos povos portugueses ao Brasil, sem levar em
conta, de maneira relevante, a presença de todos os muitos e distintos povos indígenas que aqui já
habitavam antes deste fato. Pontua-se ainda que esta desconsideração se dá, em grande medida, pelo
fato de que a colonização portuguesa rapidamente promoveu uma absorção e uma dissolução da vida
cotidiana e da cultura destes povos, relegando a sua existência à resistência pela via do combate ou à
subjugação às necessidades econômicas e expansionistas de Portugal (RIBEIRO, 1995).

3 Esta pontuação é necessária para que não se compreenda a profusão de autoras e autores apresentados como uma
coletânea aleatória de contribuições teóricas diante da questão aqui trabalhada. É a própria multifatorialidade do racismo
que nos convoca a esta delicada costura, procurando encontrar, para cada produção, os aspectos teóricos e metodológicos
que possam contribuir com o meio do caminho entre a produção científica e a luta antirracista (MOORE, 2007).
27

Já em uma segunda visão, procura-se subverter o simplismo e o eurocentrismo desta primeira,


considerando que, onde houve o processo de colonização (e, em igual medida, de escravização),
houve também uma intensa resistência, responsável por manter, ainda que parcialmente, grande
legado dos elementos históricos e culturais dos povos que aqui antes habitavam, bem como dos povos
expropriados de suas terras e trazidos, forçosamente, ao Brasil – condição majoritária das negras e
negros africanos escravizados (RIBEIRO, 1995; SLENES, 2011).

Darcy Ribeiro, importante antropólogo brasileiro, autor da obra canônica “O Povo Brasileiro: A
Formação e o Sentido do Brasil” (1995), nos revela informações preciosas sobre este processo. Isto
porque o que o autor indicará é que, se em grande medida a nossa constituição enquanto povo deu-se
de maneira amorfa, isto não é sinônimo de que tenha se dado sem um projeto de sociedade em sua
base, projeto este alicerçado na compreensão de que os modos europeus e eurocentrados seriam os
melhores, desde o princípio, para a nossa colônia e, posteriormente, o nosso Estado-Nação. Logo, se
de um lado a imigração europeia e africana eram necessárias para tocar o projeto expansionista
europeu (majoritariamente português) nestas terras, em mesma medida era necessário atentar para
que os modos “civilizados” (brancos) não deixassem de ocupar o centro da organização social, e nem
mesmo para que as camadas sociais mais baixas acessassem, em igual medida, os meios de
produção e de ascensão às camadas sociais mais elevadas.

Em diálogo com essa ótica, o pesquisador Robert Wayne Andrew Slenes, historiador
estadunidense radicado no Brasil, professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), será
uma das figuras centrais a apontar para como este fenômeno gerou intensos movimentos de
resistência e sobrevivência aos povos não-brancos nestas terras, destacadamente as negras e negros
trazidos de África, desde o Brasil Colônia até os primeiros desenhos do Brasil Império e,
posteriormente, do Brasil República. Slenes, em sua célebre obra “Na Senzala, Uma Flor – Esperanças
e Recordações na Formação da Família Escrava: Brasil Sudeste, Século XIX”, publicada em 1999 e
revisada em 2011, nos revelará um panorama da escravidão brasileira e uma nítida compreensão
sobre como a constituição de famílias entre escravos acabou por funcionar como um ato de resistência
e de sobrevivência, ante as violências constantes impostas pela colonização europeia e pela
escravização africana em terras brasileiras. Essas conjunções familiares revelavam, inclusive, a forte
expressão do inacesso das populações negras a construções sociais outras possíveis, sendo, portanto,
a congregação entre negras e negros uma das principais estratégias de sobrevivência física, cultural e
simbólica possíveis – pilar na formação das centenas de quilombos surgidos no Brasil (RIBEIRO, 1995;
SLENES, 2011).
28

Os melindres maiores desse processo não nos são tão relevantes para a reflexão que aqui se
deseja produzir, mas sim os seus efeitos ao longo da história, especialmente no decorrer entre os
séculos XVIII e XX. O que se precisa salientar é que as terras brasileiras, entre o final do século XV e o
início do século XVII, verão um intenso movimento de chegada de povos de outras terras aqui, e que o
encontro destes povos, mediado por violências constantes entre o branco europeu colonizador e o
índio e o negro expropriados de suas terras e submetidos, inicialmente, ao trabalho e às relações
econômicas de tipo senhorial-escravista, formarão um encontro forçado de modos de existência entre
os sujeitos aqui descritos, que comungará dos ideais racistas de “distintas raças humanas” e de
consequente categorização e hierarquização dos modos de vida em jogo (RIBEIRO, 1995; TELLES,
2003).

Como apontado por Telles (2003), este movimento produziu, para as teóricas e teóricos
nacionais e internacionais, duas compreensões radicalmente distintas quanto à formação da sociedade
brasileira: de um lado, será apregoada a miscigenação racial como a dissolução dos “conflitos de raça”
provenientes deste encontro de povos, ocasionando em uma inevitável “Democracia Racial”, onde as
pessoas, então, viveriam de maneira absolutamente harmoniosa, ou, ao menos, com o mínimo de
conflitos raciais possível. Esta primeira tese será sustentada por famosos intelectuais, a exemplo de
Gilberto Freyre e Donald Pierson.

Do outro lado, será apresentada uma compreensão oposta, de que o fenômeno da miscigenação
racial pouca expressão teve no sentido do enfrentamento ao racismo, resultando em uma formação de
sociedade eminentemente excludente quanto aos povos não-brancos, com destaque, para fins deste
trabalho, às negras e negros brasileiros. Aqui, coloca-se uma nítida contraposição à tal “inevitável
Democracia Racial”, sendo o racismo um fenômeno presente a todo o tempo, permeando todas as
relações sociais. Como alguns dos principais intelectuais responsáveis por tal, teremos as figuras de
Florestan Fernandes e Carlos Hasenbalg (TELLES, 2003).

Resguardando-se as contribuições extremamente relevantes de alguns destes autores às


pesquisas no campo das Relações Étnico-Raciais – como é o caso de Florestan Fernandes e Carlos
Hasenbalg –, Telles (2003) apontará para a necessidade de refletir sobre o fenômeno racista na
realidade brasileira a partir de um encontro destas teses: não se poderia negar a existência da
miscigenação racial em nosso país, na mesma medida em que não seria possível afirmar que esta, em
momento algum, produzira uma efetiva “Democracia Racial” e/ou uma não-exclusão das negras e
negros brasileiros dos espaços de decisão e/ou das camadas econômicas médias e altas. Desta forma,
ao comparar os modos de exercício do racismo nas realidades brasileira e estadunidense, o autor nos
29

indicará que o ponto de maior distinção entre ambas as experiências de construção de sociedade se dá
pelo fato de que, enquanto o fenômeno racista nos Estados Unidos se dá pela via da segregação
direta, no Brasil este se dá pela via da segregação indireta, onde a miscigenação (ou mestiçagem)
apresenta uma dupla face: inclusiva, mas também excludente.

Doravante, retornando a Ribeiro (1995), este nos apontará que, a qualquer historiador que se
preze, é inegável observar os efeitos da miscigenação racial na formação étnico-racial de nosso povo –
conforme indicamos, anteriormente, no pensamento de Telles (2003). No entanto, Ribeiro (1995)
também afirmará que esse percurso histórico se deu não sem conflitos, não sem mortes, não sem dor,
e que essas tensões raciais hão de produzir marcas históricas severas e hão de fazerem-se presentes
até os dias atuais, mascarando-se nas questões de classe social, mas ainda com um pano de fundo
fortemente racializado e racista. Logo, Darcy Ribeiro acusa, cirurgicamente, que a distância social mais
espantosa na realidade brasileira é a que se processa separando e opondo os pobres e os ricos; isto
porque a pobreza, estruturada na distinção de classes sociais, somar-se-á a tantas outras
discriminações para ver-se consolidada, e, não raro, este peso será maior, ao tratarmos do fenômeno
do racismo, para os índios, os negros e as demais camadas étnico-raciais miscigenadas desta terra.
Logo, a principal luta que se estabelece em meio a este cenário é a luta por cidadania, pelo
enfrentamento à erradicação da diferença, que serve como “justificativa” para a eliminação física,
sociocultural e simbólica da diferença e a subalternização de determinados segmentos sociais – dando-
se, aqui, o devido destaque à questão que envolve a população negra. Como nos diz este mesmo
autor: “A luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi – e ainda é – a
conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional” (ibidem, p. 220).

Se partirmos direto para o período da Pós-Abolição da Escravatura, estas afirmações nos soarão
mais audíveis. Basta tomarmos o estudo aqui já citado de Sidney Chalhoub (1986), acerca da
formação da classe trabalhadora no Rio de Janeiro da Belle Époque brasileira (1889-1931). Chalhoub
(1986) nos apresenta, pela via de uma reconstrução da capital carioca a partir de matérias de jornais e
autos jurídicos processuais da época, que a sociedade de então, na Pós-Abolição, deparou-se com
uma questão irremediável: o que fazer com a massa de trabalhadoras e trabalhadores negros ex-
escravizados que se formara imediatamente após a publicação da Lei Áurea (Lei Imperial N.º 3.353, de
13 de Maio de 1888)? Este questionamento vem acompanhado de uma profunda preocupação sobre
como manter nas mãos dos brancos europeus e descendentes dos europeus, donos de terras e dos
meios de produção, o controle sobre a economia local e sobre as relações de trabalho. Note-se, como
apontado por Chalhoub (1986), que a questão aqui colocada também poderia afetar às populações
indígenas trabalhadoras da capital, bem como as massas de imigrantes europeus e asiáticos sem
30

acesso a altas remunerações, mas que, indubitavelmente, os principais afetados pelas lógicas de
trabalho que viessem a ser construídas seriam as massas de negras e negros ex-escravizados.

Assim, a questão apresentada verá como resposta a necessidade de incutir na sociedade da


época um novo modelo de relações trabalhistas, que já não funcionasse aos moldes do modelo
senhorial-escravista, mas que mantivesse as relações de dominação entre quem detém os meios de
produção (os brancos) e quem só tem como posse a ser ofertada a sua própria força de trabalho (os
não-brancos). Converte-se a noção do trabalho como elemento repulsivo, “digno de negros e
escravos”, em elemento dignificador do homem, que, pela venda de sua força de trabalho, poderia
acumular capital e deslocar-se entre as camadas econômicas sociais (CHALHOUB, 1986) – ainda que,
na prática, saibamos que isto era (e ainda o é) um movimento praticamente impossível, haja vista o
projeto eurocentrado de sociedade brasileira, como já apontado, também, por Darcy Ribeiro (1995) e
Robert Slenes (2011). Veremos isto ser bem exemplificado em uma série de dados sociodemográficos
apresentados pelo próprio Sidney Chalhoub (1986), onde se demonstra, por exemplo, que a maioria
dos cargos de chefia, mesmo à época da Belle Époque brasileira, já apresentavam uma tendência em
serem ocupados por sujeitos brancos, em geral homens, em detrimentos dos homens negros, que
acabavam por ocupar as funções mais associadas à produção portuária, agrícola e/ou industrial, de
tipo eminentemente braçal; realidade correlata, ainda que com variações, aos tempos atuais.

Na continuidade, o autor procura refletir sobre a conformação demográfica do Rio de Janeiro da


época, apontando que o processo de imigração europeia, associada à condição dos negros e negras
libertas, produzirá, precisamente, a nova camada social de trabalhadoras e trabalhadores, que
precisava de novos contornos para constituir-se enquanto peça da engrenagem social que começava a
consolidar o capitalismo para o Estado Brasileiro. Isto porque, se vivenciava-se a transição entre o
modelo econômico senhorial-escravista para o burguês-capitalista, conforme já apontado, era preciso
produzir um novo lugar para esta massa populacional, que não prejudicasse diretamente o controle dos
meios de produção por quem, desde sempre, o possuía. Logo, o próprio surgimento do ideal
republicano no país se estrutura a partir dos pilares ideológicos do capital, acompanhando a transição
do modelo trabalhista e econômico senhorial-escravista para o burguês-capitalista, haja vista que,
conforme se deduz, apenas uma “nação de trabalhadoras e trabalhadores fortes” poderia produzir as
mudanças e o crescimento do Brasil ante o cenário mundial. Vende-se, portanto, e simbolicamente, a
noção de que os homens e mulheres precisavam dignificar-se, acompanhando a própria modernização
e civilização que se impunha ante a capital carioca; e esta dignificação não poderia dar-se de outra
forma que não fosse pela via do trabalho, devidamente monitorada e controlada pelo braço policial do
aparato estatal-governamental.
31

Aqui, cabe citar ipsi literis o texto de Chalhoub (1986):

A imersão do trabalhador previamente expropriado nas leis do mercado de trabalho


assalariado passa por dois movimentos essenciais, simultâneos e não excludentes: a
construção de uma nova ideologia do trabalho e a vigilância e repressão contínuas exercidas
pelas autoridades policiais e judiciárias. [...] Assim, a perspectiva do fim da escravidão
colocava para os detentores do capital a questão de garantir a continuação do suprimento de
mão-de-obra, e tal objetivo só poderia ser alcançado caso houvesse uma mudança radical
no conceito de trabalho vigente numa sociedade escravista. Era necessário que o conceito
de trabalho ganhasse uma valorização positiva, articulando-se então com conceitos
vizinhos, como os de „ordem‟ e „progresso‟, para impulsionar o país no sentido do
„novo‟, da „civilização‟, isto é, no sentido da constituição de uma ordem social
burguesa (CHALHOUB, 1986, p. 47-48, grifo nosso).

Ora, aqui o autor nos leva a pensar a própria questão do fim do regime escravocrata, mas a
partir de uma leitura de manutenção da ordem social, ou seja: como manter as relações de controle,
influência e dominação, frente à enorme massa de sujeitos ex-escravos que se colocava frente à
sociedade? Isto só poderia se dar a partir da construção de um “projeto de sociedade” – ou da
atualização do “projeto” eurocentrado já vigente – que colocasse o trabalho como elemento construtor
da base da noção de cidadania, transformando a força de trabalho de cada homem e cada mulher em
sua principal mercadoria, e a mais digna possível de se vender. Não é preciso partir de pressupostos
marxistas para entender que aqui se procurava manter as camadas sociais e econômicas conforme
sempre estiveram dispostas na história da sociedade brasileira, onde as massas brancas exerciam os
papeis de dominadores, e as massas não-brancas (negros, indígenas, asiáticos, etc.) exerciam os
papeis de dominados. Tal processo dará base, então, à estruturação da desigualdade de classes no
Brasil, processo que, conforme veremos em Chalhoub (1986), mas também em Darcy Ribeiro (1995),
Robert Slenes (2011) e Lilia Schwarcz (1993), mantém-se até os dias atuais, e com profundos
imbricamentos, quase que indissociáveis, entre a questão da classe e a questão da raça no país.

Essa questão, que, a princípio, pode nos parecer despretensiosa ou construída de maneira não
intencional, revela toda a sua brutalidade na formação histórica da sociedade brasileira, ao pensarmos
que ela buscava se apropriar de noções extremamente caras à formação de uma certa consciência
cidadã: vende-se a noção de uma liberdade que se constrói exatamente na venda de sua força de
trabalho, sem que se observe essa venda como elemento de base na fornalha de formatação das
subjetividades individuais e sociais e de total exploração das camadas pretas e pobres pelos senhores
brancos, em suas lógicas de dominação das massas, de exploração do capital e de alienação da
classe trabalhadora frente às suas possibilidades de luta. Logo, Chalhoub (1986) nos aponta, de
maneira certeira, que o principal alvo deste movimento é, então, “[...] a „mente‟ ou o „espírito‟ dos
homens livres em questão” (CHALHOUB, 1986, p. 49).
32

Aqui é preciso produzir uma necessária intertextualidade entre as contribuições elencadas até
então, para que não incorramos no risco de observar o processo descrito por Chalhoub (1986) sem o
devido panorama racial provocado e anteriormente aqui apresentado por parte de Telles (2003), em
paralelo às contribuições de Schwarcz (1993). Falamos aqui da conformação de uma nova classe
trabalhadora carioca, ensaio de uma nova classe trabalhadora brasileira, mas que, conforme dados do
próprio Chalhoub (1986), era majoritariamente negra. Isto significa dizer que a sociedade brasileira
moderna, que seguirá construindo-se após a Belle Époque brasileira, terá na base de sua camada
social mais baixa negras e negros que, como sua principal posse, ofertarão apenas a sua força de
trabalho, em condições precárias de produção e de acesso a higiene, saneamento básico e saúde em
geral (SCHWARCZ, 1993; CHALHOUB, 1986; TELLES, 2003).

Lilia Moritz Schwarcz (1993), em sua obra “O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e
Questão Racial no Brasil, 1870-1930” irá sinalizar que, em período muito similar ao compreendido
pelos estudos de Sidney Chalhoub (1986), seguia-se conformando no Brasil posicionamentos
científicos quanto à formação de nosso povo, sendo que a questão da miscigenação racial e do
predomínio da população negra ante a classe trabalhadora nacional seria, necessariamente, um
elemento de “atraso” no desenvolvimento da nação – discurso este que, com a legitimação de alguns
estudiosos da época, orientados já pelas teorias frenológicas e eugenistas, viria a servir como base
para a fundamentação do que, anos depois, denominou-se como “racismo científico”.

O que Schwarcz (1993) nos permitirá arrematar quanto à formação histórica da sociedade
brasileira é que o processo de miscigenação produziu um povo com características muito próprias, mas
marcado pela experiência racista que, para além do prisma histórico já vigente, passaria a ver
fortalecidos os prismas científico e político. Logo, a leitura apresentada por Ribeiro (1995), Slenes
(2011), Telles (2003) e Chalhoub (1986) comunga da compreensão de que os lugares sociais ofertados
aos sujeitos não-brancos na civilização brasileira não foram construídos ao acaso: figuram como
resultado de um projeto de sociedade capitalista pensado, desde a sua gênese, pela via de um ideal
racializado e racista.

O que nos resta observar é como esse projeto de sociedade deu margem às bases do racismo
em suas facetas científica e política, com destaques ao discurso da natural degenerescência racial
negra, para então compreendermos, ainda apoiados pelos estudos de Schwarcz (1993) e demais
autoras e autores, como estes enredos históricos repercutiram na oferta nacional de cuidados em
saúde – elementos abordados a seguir.
33

 1.3 – Raça, Racismo e Ciência: das Teorias Frenológicas e Eugenistas ao Racismo


Científico Brasileiro

A trajetória histórica de fundação do racismo na base da sociedade brasileira comunga de


trajetórias internacionais similares, a despeito das especificidades do racismo à brasileira (TELLES,
2003). Isto também significa dizer que, ao mesmo passo em que seguíamos fundamentando o racismo
na base de nossa estrutura social, os discursos científicos seguiam também ganhando novos
contornos, que se apropriassem dos ideais racistas de sociedade perpassados pela história nacional e
mundial para conceber uma linha discursiva supostamente organizada segundo referenciais da “boa
ciência” (SCHWARCZ, 1993; CORRÊA, 2013).

Decerto que nem todas as doutrinas raciais que aqui chegaram partiam de um pressuposto
originário eminentemente racista; no entanto, a sua chegada concomitante e confluente com o período
da Belle Époque brasileira e da transição do modelo senhorial-escravista para o burguês-capitalista,
especialmente na Pós-Abolição, produziu uma certa percepção equivocada de que todas estas
tendências discursivas poderiam caminhar em uma única visão de época, ou uma única interpretação,
necessariamente biologicista e de exaltação às Ciências Biológicas (SCHWARCZ, 1993). Vê-se:

A partir de 1870, introduzem-se no cenário brasileiro teorias de pensamento até então


desconhecidas, como o positivismo, o evolucionismo, o darwinismo. No entanto, a entrada
coletiva, simultânea e maciça dessas doutrinas acarretou, nas leituras mais contemporâneas
sobre o período, uma percepção por demais unívoca e mesmo coincidente de todas essas
tendências (ibidem, p. 43).

Lilia Schwarcz (1993) propõe-se a fazer um reconhecimento dessas tendências discursivas para,
a partir de tal, observar os seus usos na realidade brasileira. Quais os fenômenos sociais orientados
pela visão local dessas doutrinas? Como essas, de alguma maneira, podem (ou não) ter influenciado a
organização social local, especialmente nas principais capitais – como Salvador, São Paulo e Rio de
Janeiro? Quais as incursões destas tendências abrasileiradas no âmbito acadêmico e científico local?

A princípio, é preciso localizar que essas doutrinas derivam de duas perspectivas teóricas
primárias: a monogenista e a poligenista. Esses conceitos são centrais para pensar as derivações
teóricas que deles advêm. De um lado, o modelo monogenista, dominante até meados do século XIX,
“congregou a maior parte dos pesquisadores que, conforme as escrituras bíblicas, acreditavam que a
humanidade era una” (SCHWARCZ, 1993, p. 48), sendo o homem originário de uma mesma fonte
comum e as suas diferenças produzidas ao longo do tempo seriam apenas o fruto da “maior
degeneração ou perfeição do Éden” (ibidem, p. 48), conforme o homem estivesse ou não próximo dos
caminhos e dos preceitos adequados à salvação de sua alma.
34

Apesar da grande aceitação desta corrente de pensamento por muitos anos, tendo em vista,
inclusive, o poder da Igreja Católica na formação das ideias até grande parte do século XIX, Schwarcz
(1993) nos dirá que desta concepção inicial surge o modelo poligenista, em meados do século
anteriormente citado. Este outro modelo concebia a possibilidade da existência de diferentes “centros
da criação humana primordial”, o que justificaria a existência das diferenças raciais que começaram a
ser observadas exponencialmente desde o período das Grandes Navegações, no contato dos povos
europeus com os povos ameríndios, africanos e asiáticos. Assim, a autora nos diz:

A partir de meados do século XIX, a hipótese poligenista transformava-se em uma alternativa


plausível, em vista da crescente sofisticação das ciências biológicas e, sobretudo, diante da
contestação ao dogma monogenista da Igreja. [...] A versão poligenista permitiria, por
outro lado, o fortalecimento de uma interpretação biológica na análise dos
comportamentos humanos, que passam a ser crescentemente encarados como
resultado imediato de leis biológicas e naturais. Esse tipo de viés foi encorajado,
sobretudo, pelo nascimento simultâneo da frenologia e da antropometria, teorias que
passavam a interpretar a capacidade humana tomando em conta o tamanho e a proporção
do cérebro dos diferentes povos (ibidem, p. 48-49, grifo nosso).

É neste terreno fértil para o crescimento do pensamento frenológico e antropométrico nas


ciências que se viu ocorrer um maior distanciamento para com os modelos humanistas de produção de
conhecimento, abrindo espaço às novas hipóteses essencialmente deterministas e biologicistas sobre
as diferenças raciais e de comportamento humano. Como um dos principais exemplos mundiais que
teremos disto, cabe aqui citar os estudos de Cesare Lombroso, médico italiano cuja obra funda o que
hoje se chama por Teorias Bioantropológicas da Criminologia (MATOS, 2010).

De acordo com o pensamento lombrosiano, todos os homens e mulheres já nasceriam com


características orgânicas e tipológicas que possibilitariam a identificação prévia dos indivíduos com
“tendências” à delinquência, em contraposição aos indivíduos ditos “normais”. Conforme Lombroso
aponta, o sujeito a que aqui chamaremos de devir-criminoso já nasceria carregando consigo as
características físicas e psíquicas herdadas de seus ancestrais, que seriam os marcadores indicativos
da “tendência” à delinquência, e que poderiam estar relacionadas a elementos como o tamanho do
crânio, das orelhas, das sobrancelhas, dos lábios, etc. (SCHWARCZ, 1993; MATOS, 2010).

Vale aqui abrir uma brecha para pontuar as contribuições desse tipo de pensamento aos estudos
sobre a loucura durante o século XIX, conforme nos explica Schwarcz (1993):

Larga também foi a influência desse tipo de pesquisa no campo da doença mental. Os
estudos sobre loucura, um dos primeiros domínios de aplicação da frenologia, tinham
nesse modelo científico a base para novas concepções e para a justificação de seus
métodos de tratamento „moral‟ sobre o indivíduo e para o estabelecimento de conclusões
35

que traçavam as ligações entre a loucura individual e a degeneração de cunho racional


(ibidem, p. 49, grifo nosso).

Para fins do presente estudo, tanto Schwarcz (1993) quanto Matos (2010) irão nos sinalizar que
esse modelo de pensamento fora gradualmente abandonado por volta do final do século XIX, sendo as
suas premissas consideradas um certo tipo de discurso muito mais alicerçado no sofismo do que no
rigor científico necessário para que este ganhasse a repercussão que, deveras, ganhou. Contudo, isto
não isentou a frenologia, ou mesmo o pensamento lombrosiano, de causar fortes impactos racistas às
Ciências Biológicas e aos estudos sobre o comportamento humano ao longo do início do século XX.
Com isso, teremos as bases para a fundação do pensamento eugenista.

Exemplificamos isto ao observar que os postulados darwinistas, derivados da famosa obra “A


Origem das Espécies” (publicada por Charles Darwin, originalmente, em 1859), com seus conceitos de
“competição”, “seleção do mais forte”, “evolução” e “hereditariedade”, ao serem colocados em
conjunção com as perspectivas poligenistas que foram crescendo com o findar do século XIX,
passaram a vigorar também com forte peso ante a ciência da época e, ao serem interpostos aos
estudos sobre o comportamento humano, acabaram somando-se aos postulados frenológicos para
sedimentar os ensaios do que viria a ser a base do pensamento eugenista – o darwinismo social
(SCHWARCZ, 1993; BOLSANELLO, 1996; MATOS, 2010).

O darwinismo social – também denominado como “teoria das raças” – seria determinante para
os pressupostos de base da eugenia, ao propor que as noções construídas por Charles Darwin, para
tratar dos animais e das plantas, seriam passíveis de equiparação com as normas e estruturas sociais
presentes nas relações humanas (BOLSANELLO, 1996). Ainda que não se possa afirmar tacitamente
que tenham sido estas as intenções da obra e dos estudos de Darwin, os efeitos de seus usos pelos
teóricos frenológicos e pré-eugenistas que o sucederam foram nefastos em termos de terem
possibilitado uma inserção das ideologias racistas de maneira poderosíssima no campo da produção
científica da modernidade – fato que, até hoje, produz sérios efeitos nas ciências contemporâneas, seja
entre as Ciências Sociais e Humanas, seja entre as Ciências Biológicas e da Saúde (SCHWARCZ,
1993; BOLSANELLO, 1996; MATOS, 2010).

Sobre tal, Schwarcz (1993) nos indicará quais as três teses de base que daí advieram:

[...] partiam os teóricos da raça de três proposições básicas, respaldadas nos ensinamentos
de uma antropologia de modelo biomédico. A primeira tese afirmava a realidade das raças,
estabelecendo que existiria, entre as raças humanas, a mesma distância encontrada entre o
cavalo e o asno, o que pressupunha também uma condenação ao cruzamento racial. A
segunda máxima instituía uma continuidade entre caracteres físicos e morais,
36

determinando que a divisão do mundo entre raças corresponderia a uma divisão entre
culturas. Um terceiro aspecto desse mesmo pensamento determinista aponta para a
preponderância do grupo „racio-cultural‟, ou étnico, no comportamento do sujeito,
conformando-se enquanto uma doutrina de psicologia coletiva, hostil à ideia do arbítrio do
indivíduo (ibidem, p. 59-60).

As autoras irão nos demonstrar que essas três teses, inequivocamente, impulsionaram uma
espécie de “execução avançada do darwinismo social”, que inclusive legitimava a submissão ou a
possível erradicação das raças inferiores, na tentativa de evitar a degeneração humana, inevitável ante
o cruzamento das raças e o perigo da perpetuação daquelas mais inferiores – no caso, já se revelando,
de maneira bastante direta, que tratavam-se das raças de origem ameríndia, asiática e, principalmente,
africana (SCHWARCZ, 1993; BOLSANELLO, 1996; MATOS, 2010). A esta busca pela construção de
uma suposta “perfectibilidade” racial, chamou-se, enfim, de eugenia (do grego, eu: “boa” e genus:
“geração”), em 1883, pelo antropólogo inglês Francis Galton (SCHWARCZ, 1993).

Vale considerar que a eugenia se revela não apenas como uma compreensão científica sobre a
superioridade de determinadas raças sobre outras, mas também como um posicionamento político e de
executabilidade da busca pela perfectibilidade racial, orientada pelas três teses da “teoria das raças”.
No entanto, essa “perfectibilidade”, que será a marca da eugenia entre os séculos XIX e XX, não trata
mais de uma busca pelas “qualidades intrínsecas ao homem”, mas sim de um atributo próprio das
“raças civilizadas”, que acaba por determinar a existência de uma única perfectibilidade possível: a
branca e eurocentrada. Às demais raças, restaria, apenas, o estigma da inevitável degeneração
(SCHWARCZ, 1993).

Apesar da rápida e poderosa expansão dos ideais eugenistas pela Europa e, posteriormente,
pela América do Norte, duras críticas foram levantadas a esse movimento à época de seu surgimento,
para que não pensemos que o mesmo ocorreu de maneira incólume e sem resistência de outros
setores sociais e acadêmicos da época. Exemplo disto são as críticas feitas por Hannah Arendt (1973),
ao acusar que os ideais eugenistas, longe de apontarem para um maior e melhor desenvolvimento
humano, foram responsáveis pela produção de um fosso nas relações entre os diferentes povos,
resultando em prejuízos à construção da igualdade e da solidariedade ante a diferença humana
(ARENDT, 1973; SCHWARCZ, 1993; PASSOS, 2013).

A despeito disto, os ideais eugenistas, alicerçados no darwinismo social, adentram o Brasil com
força e proficuidade, de forma tal a se expandirem largamente até a década de 30 do século XX
(SCHWARCZ, 1993; BOLSANELLO, 1996; MATOS, 2010). Isto será a base de conformação do que,
anos depois, ficou conhecido como “racismo científico”, encontrando na comunidade acadêmica
37

brasileira inúmeros expoentes, dentre os quais muito se destaca o médico legista, psiquiatra e
antropólogo brasileiro Raimundo Nina Rodrigues (SCHWARCZ, 1993; CÔRREA, 2013; RODRIGUES,
2015).

Apesar de ser considerado por muitos como o fundador da Antropologia Criminal Brasileira e
como um dos pioneiros nos estudos sobre a questão negra no país, Nina Rodrigues, bastante
orientado pelo pensamento lombrosiano (já apresentado neste estudo), partia de uma perspectiva
científica necessariamente racista e cientificista (SCHWARCZ, 1993; MATOS, 2010; CÔRREA, 2013;
RODRIGUES, 2015). Assim, fora um dos principais representantes do discurso sobre a “natural
tendência à degenerescência” da população negra, concepção fundante do racismo científico
brasileiro, e que encontra enorme respaldo nas obras de Nina Rodrigues, tendo como marcos
principais os livros “O Animismo Fetichista dos Negros Baianos” (publicado originalmente em 1900) e
“Os Africanos no Brasil” (publicado originalmente, post mortem, em 1932).

Nestas obras, Nina Rodrigues apregoava a concepção de que o subdesenvolvimento brasileiro,


quando comparado a outros países mais desenvolvidos, seria uma consequência direta da
predominância da população negra como a base de nossa classe trabalhadora nacional – fato que já
vimos, neste estudo, apresentado por Sidney Chalhoub (1986). Os postulados de Nina Rodrigues,
tomados como fatos científicos por um longo período no país, fundamentaram a política de imigração
de brancos europeus para as terras brasileiras, por parte do governo brasileiro da época, como parte
do projeto de “embranquecimento” da sociedade, realidade esta visualizada até meados do século XX.

Seus estudos, inclusive, foram determinantes na compreensão, até hoje vigente, de uma
correlação bastante controversa entre a criminalidade e a população negra, com contornos similares ao
debate sobre a loucura, conforme podemos ver nos estudos de Rodrigues (2015):

[...] para Nina Rodrigues, não era somente nos crimes que se percebia o quanto os negros
eram degenerados. A degenerescência explicava a alienação entre os negros e os mestiços,
e que, muitas vezes, o crime e a alienação andavam de mãos dadas, de modo que seria
difícil dizer, a partir dos casos analisados pelo autor, o que vinha antes: o louco ou o
criminoso. A única certeza do autor era a de que os negros e mestiços estavam, por suas
condições raciais, mais propensos a uma vida criminosa do que os brancos (RODRIGUES,
2015, p. 1132, grifo nosso).

O fato que aqui nos interessa explorar é que os estudos de Nina Rodrigues abrirão as portas de
um racismo de contornos científicos que viria a influenciar fortemente os rumos do país no século XX,
formando seguidores que, em várias instâncias da vida social, se utilizaram dos pressupostos de Nina
Rodrigues para incutir o racismo nas instituições sociais e públicas no Brasil (SCHWARCZ, 1993;
38

CORRÊA, 2013; RODRIGUES, 2015). Logo, apesar das influências eugenistas internacionais, como a
vigência do regime nazista na Alemanha e, posteriormente, em outros países do continente europeu,
nos interessa mais observar o quanto as construções eugenistas brasileiras se atrelaram, inclusive, aos
dispositivos da saúde, afirmando o interesse na produção de uma organização social mais “higiênica”
ante a realidade brasileira (RODRIGUES, 2015) – vide a criação de dispositivos como a Liga Brasileira
de Higiene Mental (LBHM), em 1923, também estruturada em um modo higienista eugenista.

Apesar de, aqui, o discurso racista aparecer com mais força e mais abertamente, vemos
novamente traços do que neste estudo já conceituamos como racismo à brasileira. Isto porque, na
medida em que se depositava a culpa por um suposto subdesenvolvimento nacional nas costas das
populações negras e mestiças, o que se intentava produzir eram mecanismos de segregação indireta,
não tão escancarados ou genocidas como vimos em outros exemplos internacionais – basta observar a
história da questão racial e bélica em países como os Estados Unidos da América (EUA), a África do
Sul, a Alemanha e a Itália, entre outros (MATOS, 2010; RODRIGUES, 2015).

No Brasil, as estratégias assumidas possuíam um caráter simbólico muito mais forte, de tentativa
de apagamento das diferenças raciais pela via do projeto de embranquecimento da sociedade, com o
“subsequente”, “natural” e “esperado” desaparecimento dos aspectos culturais que envolviam as
populações negras e, também, indígenas (BOLSANELLO, 1996). Tendo em vista a literatura científica
aqui acessada, não nos é possível precisar minuciosamente os contornos motivacionais da época para
que este enredo histórico assim se desenhasse, mas, a partir da leitura de Chalhoub (1986), surge-nos
o seguinte paradoxo: como mediar a “necessidade” de se utilizar das massas negras para tocar o
modelo econômico burguês-capitalista no Brasil com a “necessidade” de embranquecer o país para
interromper a degenerescência nacional derivada da raça negra e, assim, alcançar um “melhor
desenvolvimento” quando comparado aos países desenvolvidos do Eixo Norte Global? Não há
resposta precisa para este paradoxo aqui apresentado, mas podemos rascunhar algumas noções a
partir do que nos diz Bolsanello (1996):

Analisando-se o panorama socioeconômico do período da escravidão e pós-escravidão no


Brasil e a receptividade que tiveram as ideias do darwinismo social, da eugenia e do racismo
'científico' entre a intelectualidade brasileira, infere-se que, na realidade, estas ideias se
caracterizavam por um discurso ideológico bastante cômodo, no sentido de mascarar
a realidade social, impedindo a percepção desta realidade e do modo de produção das
relações sociais, com fins únicos de domínio e expropriação (ibidem, p. 162, grifo
nosso).

Vale ponderar que, no entanto, tal qual se criticou o pensamento eugenista internacional, a sua
chegada ao Brasil não ocorre também sem resistência e sem discursos de enfrentamento a estas
39

lógicas racistas. Contemporâneo de Nina Rodrigues, veremos a matriz desse pensamento de oposição
à eugenia surgir com força a partir dos estudos do médico psiquiatra brasileiro Juliano Moreira (ODA;
DALGALARRONDO, 2000). Para além de suas fortíssimas contribuições ao estabelecimento da
psiquiatria no Brasil, Juliano Moreira fora responsável por travar os principais embates ideológicos às
concepções difundidas localmente por Nina Rodrigues e seus seguidores.

Um aspecto marcante na obra de Juliano Moreira foi sua explícita discordância quanto à
atribuição da degeneração do povo brasileiro à mestiçagem, especialmente a uma
suposta contribuição negativa dos negros na miscigenação. A posição de Moreira era
minoritária entre os médicos, na primeira década do século XX, época em que ele mais
diretamente se referiu a esta divergência, polemizando com o médico maranhense
Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) (ibidem, p. 178, grifo nosso).

Oda e Dalgalarrondo (2000) nos demonstram que o pensamento de Juliano Moreira, apesar de
reconhecer a possibilidade da tal “degenerescência” que vigorava ante a população negra, questionava
os possíveis elementos causais desse fenômeno. Logo, Juliano Moreira acabava por enfrentar
frontalmente a questão da culpabilização da população negra pelas simples explicações biologicistas
de tradição pós-frenológica e eugenista, questionando quais os contornos sociais, históricos, culturais e
políticos que poderiam “empurrar” as camadas negras e pobres da população à sua condição de
subdesenvolvimento.

A despeito do fato de que a sociedade caminhava orientada por projetos de desenvolvimento de


cunho essencialmente eurocentrado e eugenista – fenômeno que seria difícil de escapar, tendo em
vista que tal pensamento conformara uma tendência discursiva da época – Juliano Moreira procurava,
no desenvolvimento da psiquiatria brasileira, desenvolver os ideais de profilaxia e promoção de higiene
mental, de maneira tal que fosse possível o estímulo a melhores condições de vida e existência,
também, a negros e mestiços (ODA; DALGALARRONDO, 2000). Dessa forma, ainda que de maneira
por vezes intermitente e fragmentada, se a obra de Nina Rodrigues pode ser tomada como o marco
inicial do racismo científico brasileiro, a obra e os estudos de Juliano Moreira, certamente, podem ser
tomados como o marco de oposição a estes ideais, representando o princípio da desconstrução
nacional quanto à soberania das teses eugenistas, seja no campo da psiquiatria brasileira, seja no
próprio campo da medicina social.

Doravante, cabe ainda pontuar que, embora a grande expressividade das teorias eugenistas no
âmbito acadêmico e científico tenha se esvaído com o caminhar da segunda metade do século XX,
com destaque ao período posterior às Grandes Guerras Mundiais, não descartamos, neste estudo, o
reconhecimento de que os ideais eugenistas deixaram suas marcas em várias instâncias do cotidiano
social brasileiro, fundamentando, ainda, os contornos de nosso atual racismo à brasileira.
40

Por fim, se compreendermos, assim, que o racismo científico se estrutura alicerçado no racismo
histórico, para mascarar a realidade de dominação de determinados segmentos sociais sobre outros ao
longo da história da humanidade, poderemos então avançar no estudo aqui proposto, para pensar nas
influências que estas duas dimensões do fenômeno racista geram à sua estruturação, por fim,
enquanto fenômeno político. É partindo dessas premissas que apresentaremos o debate que se segue
sintetizado no próximo subtópico.

 1.4 – Raça, Racismo e Política: do Racismo de Estado Foucaultiano ao Racismo


(Bio)Político Contemporâneo

Se tomarmos a conformação da sociedade brasileira como base de reflexão ao tratar dos


Determinantes Sociais da Saúde, veremos que a miscigenação racial se apresenta como um de seus
elementos mais marcantes. Exatamente por isso, o atributo étnico-racial possui extrema relevância na
constituição das relações sociais para a sociedade aqui apresentada, mas não a isentou de ideologias
racializadas, preconceituosas e discriminatórias – conforme vimos ao tratar da estruturação do racismo
científico no Brasil. Por ser um território marcado pela herança étnico-racial afrodescendente e
indígena de maneira preponderante, mas também pelos ditames do projeto de embranquecimento, vê-
se fortemente que o Racismo e as estruturas de manutenção da desigualdade racial se perpetuam nos
diferentes espaços da sociedade brasileira – e assim, marcadamente, também na expressão das
Iniquidades em Saúde (BATISTA; WERNECK; LOPES, 2012).

A população negra morre mais jovem que a população branca; homens negros de 10 a 29
anos apresentam risco de morrer 80% maior do que os jovens brancos. Mulheres negras da
mesma idade, o risco é 30% maior do que o apresentado para as brancas. O risco de morte
é maior tanto nas causas transmissíveis como nas causas não transmissíveis entre a
população negra de 10 a 29 anos. No primeiro grupo, a chance de morrer por AIDS (40%) ou
tuberculose (130%) é maior entre a população jovem negra. O mesmo é observado no
segundo grupo, particularmente nas doenças falciformes e hipertensivas (BATISTA;
WERNECK; LOPES, 2012, p. 40).

Reconhecer a existência dessas disparidades é o passo inicial para perceber o quanto o racismo
ainda marca os acessos e não-acessos aos dispositivos públicos que atuam no sentido da Prevenção
de Agravos, da Proteção e da Promoção da Saúde. Mais ainda, estes dados nos trazem pistas para
apontar a existência de um racismo, de cunho institucional e político, que segue velado na própria
execução das ações na esfera público-governamental, incutido de forma sutil, porém poderosa, no
direito à saúde e à vida de grande parcela da população brasileira – elemento a que, como já
apontamos, podemos também chamar de “racismo institucional” e que fala, precisamente, de certo tipo
41

de biopoder que se faz exercer pelos ditames de uma Ideologia Branca (LÓPEZ, 2012; ZAMORA,
2012). Estes pontos, como não poderiam deixar de ser, também terão influência sobre a Saúde Mental,
na medida em que revelam os efeitos do racismo na conformação das subjetividades dos diferentes
sujeitos por ele afetados.

O caráter perverso do racismo brasileiro está justamente na invisibilidade dessa realidade,


desse sentimento que faz com que essas pessoas, que são bombardeadas cotidianamente
por esse estigma, mantenham uma dor profunda em um lugar bem guardado e que, apesar
de reatualizado com as novas vivências, se mantém como algo que não é falado, não
ecoado, e sim silenciado. No entanto, é sentido, percebido e deixa marcas bem profundas
(BATISTA; WERNECK; LOPES, 2012, p. 266).

Michel Foucault, ao analisar o fenômeno do racismo globalmente, nos faz compreender que
este, enquanto recurso biopolítico, vai apresentar o ensaio de seus contornos a partir do período
colonial, momento em que o poder, enquanto jogo de relações, vai começar a se alicerçar muito mais
nas disparidades territoriais e geográficas, mas também nos elementos biológicos e de manutenção da
espécie (FOUCAULT, 1993; CANDIOTTO; D‟ESPÍNDULA, 2012). Este arremate virá, de maneira muito
mais fortalecida, no bojo da Revolução Industrial, momento em que os processos econômicos ditarão
muito mais intensamente a forma de organização da vida dos diferentes trabalhadores, tomados como
instrumentos para a produção necessária ao sobrepujamento do capital – haja vista, mais uma vez, o
estudo de Sidney Chalhoub (1986) e as contribuições de Kabengele Munanga (2004). Desta feita, o
biopoder surge como mecanismo de controle das massas, a partir das disciplinas do corpo e das
regulações da população (FOUCAULT, 1993; CANDIOTTO; D‟ESPÍNDULA, 2012; PASSOS, 2013;
COSTA, 2015).

O corpo vigiado da disciplina se presta à contenção de suas vontades, sob o olhar do outro,
capaz de puni-lo a qualquer momento em que fuja às regras. Estes processos disciplinares
são respostas à grande explosão demográfica e ao crescimento do sistema e da escala de
produção. Há, por conseguinte, uma substituição gradativa do poder centrado naqueles que
o exercem, como era o caso do poder soberano, por outra modalidade disciplinar centrada
na pluralidade de corpos de uma coletividade específica (CANDIOTTO; D‟ESPÍNDULA,
2012, p. 29).

Constroem-se, então, na continuidade do século XX, instrumentos de ampliação das


possibilidades de controle sobre a vida e sobre os corpos, na medida em que se deseja manter as
relações de poder estabelecidas na continuidade histórica (CASTELO BRANCO, 2004). Cabe,
portanto, a lógica do “fazer viver e deixar morrer”, que se materializa principalmente sob a égide do
controle destes corpos, e que passa a ser incorporada à lógica de funcionamento governamental-
estatal – na medida em que esta instituição se associa às lógicas de produção do capital e do
42

necessário controle da vida, condições sine qua non à sua permanência e à manutenção dos
segmentos populacionais historicamente detentores do poder (CASTELO BRANCO, 2004; 2009).

Castelo Branco (2004; 2009) nos apresenta, desta feita, as bases para a compreensão
foucaultiana do racismo enquanto elemento basilar da própria biopolítica, na medida em que quem
detém o poder sobre os corpos e sobre a vida são os segmentos populacionais que se estruturaram
como hegemônicos ao longo da modernidade: em essência, os povos europeus e, posteriormente,
norteamericanos. Assim, este autor nos diz: “O quadro descrito por Foucault não é nada otimista e vem
nos alertar que o mundo está rachado entre o que o europeu tradicionalmente entende como ocidente
(civilização) e o resto do mundo (barbárie)” (CASTELO BRANCO, 2004, p. 136).

Essa segmentação social e política dá base para que os processos que estruturam a ideologia
branca apareçam, social e culturalmente, como os hegemônicos, na medida em que representam a
possibilidade do “resto do mundo” (ou dos não-brancos) saírem de sua condição de barbárie, rumo ao
referencial da perfectibilidade branca, da proposta eugenista. Logo, este racismo histórico, que nasce
dos processos constituintes das guerras da modernidade, renova-se na medida do exercício do
biopoder, configurando-se como um racismo de cunho político e ideológico, onde este se exerce
segundo uma crescente e renovável divisão da população em grupos e subgrupos, em raças e sub-
raças, “numa escalada sem fim, de modo a que seja sempre possível, no interior de uma sociedade ou
coletividade, apontar para grupos inferiores, patológicos, doentes, anormais, em oposição a grupos
saudáveis, superiores, viçosos” (CASTELO BRANCO, 2009, p. 32).

Ao se organizar desta maneira, o “racismo contemporâneo” vive uma dúbia relação com a
estrutura governamental-estatal hegemônica: de um lado, este necessita desta para manter-se quase
que imaculado, haja posto que a sua sobrevivência pressupõe, em uma sociedade de instituições
democráticas, a inabilidade do Estado em assegurar seu enfrentamento e o estabelecimento de
melhores condições no sentido da equidade de acesso a bens e serviços (CASTELO BRANCO, 2004;
2009; CANDIOTTO; D‟ESPÍNDULA, 2012). Por outro lado, o Estado necessita do fenômeno do
racismo no sentido da manutenção dos corpos em seus locais subalternizados, ensejando alcançarem
uma condição de embranquecimento, que apenas afaste estes segmentos minoritários subalternizados
da possibilidade de subversão da lógica de sua própria dominação, da qual subsiste o próprio Estado –
é desejável que os sujeitos mantenham-se em seus locais subalternos, estruturando-se na crença
socialmente aceita de que “uma vez nascido sob o signo de uma raça, cor ou espécie, não há como
reverter” (TESHAINER; KÜLLER, 2005, p. 262). Eis o racismo de Estado.
43

Foucault afirma que o fenômeno racista é fundamental para a manutenção da biopolítica,


pois cria uma estratégia política em torno do indivíduo e da sua vida. Em outras palavras, o
racismo é um meio pelo qual o Estado acessa a vida dos indivíduos, gerando uma
identificação com um grupo (TESHAINER; KÜLLER, 2005, p. 276).

Deste percurso, cabem três amarrações. A primeira se dá pelo que podemos, então, afirmar que
o racismo, em Foucault, se dá na medida histórica da luta pela vida e pelas condições concretas de
existência, que, em tomando a modernidade como objeto de análise, aponta a gênese deste fenômeno
na construção, pelas guerras, da soberania dos povos europeus e, posteriormente, norteamericanos
sobre os demais. A segunda se dá pelo reconhecimento de que o Estado surge como instituição que
assegura a manutenção desta lógica, na medida em que reproduz o modus operandi eurocêntrico
como o justo e o adequado, construindo a concepção de que aquilo que não se encaixa neste formato
é desviante, imoral e necessita ser ajustado. A terceira amarração consiste na constatação de que esta
estrutura se mantém como resultante da modernidade, como elemento presente na
contemporaneidade, estruturando como em um “pacto racista” os fenômenos que hoje chamamos, por
exemplo, de racismo institucional e ideologia branca. Aqui, para pensar a realidade brasileira, devemos
então trazer à baila um questionamento apresentado por Lia Vainer Schucman (2010), psicóloga social
brasileira e pesquisadora da ideologia branca no Brasil, que nos diz:

Uma vez que negros e brancos constroem a si mesmos e suas experiências em um mundo
racista e racializado, tendo como parâmetros uma relação hierárquica e assimétrica, já que o
racismo confere a um dos grupos a capacidade para estabelecer os parâmetros do que é
considerado normal, belo, estético, bom, mal, racional, emocional e o negro é sempre
marcado como „o outro‟, como esses sujeitos racializados poderão desvencilhar-se da raça
se é através dessa categoria que são vítimas de discriminação e preconceito? (SCHUCMAN,
2010, p. 53).

A questão apresentada por esta autora revela-se, por fim, como a inquietação que nos faz
pensar, de maneira mais ampliada, em como enfrentar o fenômeno do racismo em sua significação
biopolítica. Para além, nos convoca ainda a pensar em como enfrentar a questão do racismo quando
esta se atrela à experiência da loucura, vivenciada por outros tantos sujeitos subalternizados, como
vemos na história da loucura, também descrita por Michel Foucault (1979)4. Estas categorias
subalternas, apesar das diferenças reconhecidas, se encontram na expressão de sua própria
subalternidade, por um lado, mas também da sua existência e resistência, por outro lado (COSTA,
2015). Reconhecer sua transversalidade, no sentido do controle exercido pelo biopoder, apresenta-se
como um desafio da atualidade aos estudos sobre biopoder e biopolítica.

4 Em tempo, vale à pena diferenciar que, aqui, a subalternidade é analisada não apenas a partir da questão étnico-racial em
Michel Foucault (1979; 1993), mas também a partir da noção de “desrazão”, que torna as pessoas incapazes para o
trabalho e, portanto, para a venda da sua mão-de-obra.
44

 1.5 – Saúde Mental, Saúde Pública e Racismo: Tessituras Biopolíticas e Indicadores de


Vigilância em Saúde

Consideramos que o campo da Saúde Mental é, sem dúvidas, repleto de atravessamentos


socioculturais, que dizem respeito ao que vai do mais íntimo ao mais amplo nas relações humanas, na
constituição da sociedade e nos seus elementos de permanência e de ruptura histórica; que falam dos
símbolos e das simbologias assumidas, respeitadas e introjetadas por diferentes povos e segmentos
populacionais no transcorrer de sua caminhada pela história, caminho este que, por sua vez, faz
emergir e imergir tantos outros símbolos e simbologias, de tal forma que a caminhada nunca é
estanque, ainda que perene.

Ao posicionar, assim, o campo da Saúde Mental dentro das construções socioculturais que
marcam e demarcam a sociedade, podemos então dizer que não é possível discutir Saúde Mental sem
problematizar quais as práticas e ideologias que embasam as ações e o percurso sócio-histórico de
conformação das relações sociais, refletindo nestas, inclusive, as direções às quais se assume o
exercício de influência, controle e dominação – ou, em outras palavras, o exercício de poder (RAUTER;
PEIXOTO, 2009).

Não obstante, quando falamos em “exercício de poder”, várias podem ser as leituras a serem
realizadas. Se tomarmos como perspectiva a ideia de que a Saúde Mental e a Atenção Psicossocial –
tal qual a Saúde Coletiva – irão direcionar o seu saber e a sua práxis como um olhar que busca
enxergar o corpo em sua totalidade semântica, teremos indícios de que nos cabe, então, pensar o
poder nestes campos enquanto estrutura que se volta ao controle dos corpos e da vida (AMARANTE,
2007; RAUTER; PEIXOTO, 2009). Nesta mesma linha, tomar o corpo enquanto totalidade semântica
nos apontará as múltiplas dimensões que o constituem na relação com a experiência sensível do
vivido, revelando-nos que o mesmo, em sua existência, afeta e é afetado continuamente pela
ambiência – social, histórica e economicamente entrelaçada – em que se encontra inserido.

Decorre deste plano de interferências a emergência de existências complexas que têm sua
gênese na experiência sensível, a qual expressa o poder de ser afetado de cada ser e se
constitui de uma diversidade de domínios: domínio biológico; domínio psíquico; domínio
sensível-perceptivo; domínio emocional-afetivo; domínio energético; domínio espiritual. Toda
existência é complexa, uma vez que as interferências entre domínios efetuam-se o tempo
todo (RAUTER; PEIXOTO, 2009, p. 273).

Essas compreensões iniciais dão base para que possamos afirmar que há uma inegável relação
entre a Saúde Mental e as formulações foucaultianas de biopoder e biopolítica, em acordo com a linha
de pensamento apresentada no subtópico anterior. Isto porque, em primeira instância, não há na teoria
45

foucaultiana a pretensão de construir uma teoria do poder, mas sim uma teoria das relações de poder
(DANNER, 2010). Para Foucault, falar em poder de maneira isolada demandaria que este fosse
sempre contextualizado diante de sua realidade, em um dado tempo e um dado espaço, de tal forma
que fosse possível acessar a sua gênese. Sendo assim, não é possível pensar o poder como uma
entidade apriorística; este se apresenta sempre no âmbito das relações entre os sujeitos, como prática
sócio-histórica, socialmente constituída; tal qual o é o fenômeno da loucura (FOUCAULT, 1979).

Em segunda instância, porque, diante do campo da saúde, como já foi dito anteriormente,
falamos de relações de poder que se debruçam sobre o corpo enquanto totalidade semântica, em sua
imanência sociorrelacional. Por assim dizer, falamos então de um poder que opera sobre a vida,
afetando e sendo afetado pelos sujeitos sobre os quais este poder é exercido – o que Foucault
chamará, assim, de biopoder (FOUCAULT, 1979). Em linhas gerais, o biopoder se apresentará
enquanto uma “tecnologia de poder”, que visa operar, com base em discursos de “proteção da vida”, na
regulação do corpo e no controle das populações – deslocando-se de um exercício de dominação
individual para uma estrutura de dominação coletiva. Dele deriva a biopolítica, que se apresenta
enquanto prática de biopoderes locais em que o conjunto dos sujeitos é alvo e instrumento,
simultaneamente, das relações de poder (FOUCAULT, 1979). Nesse bojo, a biopolítica será, enfim, a
maneira como a sociedade se estrutura sob o julgo de ideologias dominantes de exercício de poder e a
forma como estas acabam por constituírem-se, baseadas no discurso de saberes hegemônicos sobre a
vida humana, em uma macroestrutura de influência, controle e dominação coletiva (DANNER, 2010).

Se pudéssemos chamar de „bio-história‟ as pressões por meio das quais os movimentos da


vida e os processos da história interferem entre si, deveríamos falar de „biopolítica‟ para
designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos
explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana (FOUCAULT,
1988 apud DANNER, 2010, p. 154).

As características apresentadas para tratar dos conceitos de biopoder e biopolítica se


aproximam do campo da Saúde Mental exatamente nos pontos em que: (1) priorizam a reflexão sobre
as relações dos sujeitos na experiência concreta do vivido em detrimento dos conceitos neutros e
totalizantes; (2) priorizam o corpo enquanto totalidade semântica dotada de condicionamentos sociais,
históricos, econômicos e políticos, em detrimento de um corpo eminentemente biológico; (3) e
potencializam o reconhecimento destas relações enquanto tecnologias, que, por assim o serem,
expressam as dinâmicas do saber-fazer humano, ou seja, de sua práxis.

O reconhecimento desses pontos nos permite retomar a reflexão inicial aqui apresentada: o
campo da Saúde Mental é, sem dúvidas, repleto de atravessamentos socioculturais. Se quisermos
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produzir neste campo novas formas de saber-fazer, contextualizadas nos novos paradigmas das
Reformas Sanitária e Psiquiátrica Brasileiras e atentas aos ditames da biopolítica em seus atuais
contornos medicalizantes, precisamos então refletir os aspectos sociais, econômicos e culturais que
permeiam as relações humanas e, consequentemente, os processos de produção de saúde e
adoecimento. Falamos, assim, dos Determinantes Sociais da Saúde – expressão das Iniquidades em
Saúde (ALVES; RODRIGUES, 2010).

Em Boletim Epidemiológico divulgado no ano de 2015 pela Secretaria de Vigilância em Saúde,


do Ministério da Saúde, aborda-se diretamente a questão dos possíveis contornos do fenômeno racista
ante a Determinação Social em Saúde, onde se observa este panorama a partir da análise de
Indicadores de Vigilância em Saúde, construídos segundo a variável raça/cor. Uma leitura atenta deste
documento nos permitirá tecer algumas compreensões auxiliares. O Boletim irá analisar diversos
âmbitos sobre os quais os Sistemas de Informação em Saúde já possuem dados e que, a partir destes,
se faz possível extrair informações segundo o quesito raça/cor. A interpretação dos dados em questão
nos possibilitará enxergar o quanto a estrutura racista, racializada e discriminatória de sociedade acaba
por impor lógicas ao direito à vida e à saúde de parcelas substanciais da população brasileira (BRASIL,
2015); ponderações às quais não poderemos simplesmente recusar ou refutar.

Persistem também barreiras de acesso a diversos espaços e direitos para as pessoas


negras, o que se reflete em suas condições de vida, moradia, trabalho, renda e acesso a
serviços públicos. As pessoas pretas e pardas têm maior risco de adoecer ou morrer por
tuberculose quando comparadas com as pessoas de cor branca. No Brasil, 14,1% da
população preta ou parda está entre os 10% mais pobres do país. Tem-se ainda que, em
2009, dos 2 milhões de domicílios em assentamentos subnormais, 66% eram chefiados por
pessoas negras, e que, entre os 10% mais pobres da população, 72% eram negros. A
vulnerabilidade social, possivelmente, justifica o maior risco de pessoas pretas, pardas e
indígenas adoecerem ou morrerem por tuberculose, quando comparadas às pessoas
amarelas e brancas (BRASIL, 2015, p. 16).

Estes dados nos levam à conclusão, como apontado pelo próprio Boletim Epidemiológico, que
“as diferenças encontradas podem estar relacionadas não somente com a saúde, mas com outros
determinantes que sobre ela exercem impacto direto, como educação, renda e cultura, entre outros”
(BRASIL, 2015, p. 34). Por assim o ser, acabam por dar à questão do racismo na saúde status de
problema em âmbito nacional, e que afeta de maneira direta grande parte da população brasileira – o
que nos permitirá, em última instância, dizer que se trata de um problema de Saúde Pública.

A obra “Saúde da População Negra” – organizada por Batista, Werneck e Lopes (2012) –
comunga desta última ideia apresentada, e conta com a contribuição de diversos autores na temática
47

transversal entre saúde e raça, podendo nos dar ainda mais pistas interessantes sobre a relevância de
pensar os indicadores em saúde na interface com o campo das Relações Étnico-Raciais.

Cunha (2012), em texto onde aborda o estado atual da pesquisa em saúde da população negra,
nos dirá que a importância de enfocar a dimensão étnico-racial nos estudos do campo da saúde parte
do próprio reconhecimento da discriminação racial histórica no Brasil, bem como da consequente
vivência deste segmento populacional de condições de marginalidade e vulnerabilidade que se
estendem desde a Abolição da Escravatura até os dias atuais. Contudo, dirá também que, ainda que
estes processos determinem as suas condições de viver e de morrer (em claro diálogo com a
perspectiva biopolítica foucaultiana), e “apesar de ser amplamente conhecida essa constatação, a
abordagem em pesquisas dessa dimensão enfrentou e enfrenta até hoje várias resistências” (CUNHA,
2012, p. 23).

Além das reflexões propostas por Cunha (2012) no livro em questão, teremos as ponderações
levantadas por Soares Filho (2012, p. 35), que nos dirá que a incorporação do quesito raça/cor nos
Sistemas de Informações em Saúde (SIS) “possibilita evidenciar, mediante constatações empíricas,
diferenciais raciais e vulnerabilidades produzidas no processo saúde-doença”. Dito isto, “conhecer os
perfis de morbimortalidade da população brasileira no que tange à autodeclaração étnico-racial permite
subsidiar a objetivação de políticas e ações de saúde universais, destinadas à superação de
iniquidades de grupos específicos” (SOARES FILHO, 2012, p. 35-36).

Ao considerar os pontos mencionados anteriormente, Soares Filho (2012) irá novamente indicar
elementos que denunciam a relevância e a urgência da inclusão do tema das Relações Étnico-Raciais
nas diferentes instâncias da saúde e da produção de conhecimento, com destaques para os estudos
no âmbito da Vigilância em Saúde. Soares Filho (2012) seguirá afirmando a necessidade de ampliar os
estudos nesse campo, de forma a que se possa embasar a ação dos diferentes gestores na criação de
estratégias eficazes de enfrentamento ao problema do racismo no âmbito da sociedade brasileira e da
saúde como um todo. Como uma de suas principais conclusões, o autor nos dirá que:

[...] o conhecimento da informação por gestores, não somente da saúde, pode ser utilizado
na tomada de decisões, na implementação e monitoramento de políticas e ações que
atendam necessidades específicas de subgrupos populacionais, em particular da
população negra (SOARES FILHO, 2012, p. 41, grifo nosso).

Ainda que outros autores, nesta mesma obra, apontem para as dificuldades existentes, por
exemplo, para a inclusão do debate étnico-racial nas ações de Educação Permanente e Formação
Continuada (MONTEIRO, 2012), caminhos possíveis vão sendo visualizados se tomarmos como de
48

extrema relevância a necessidade de produzir referencial teórico e técnico acerca do debate aqui
proposto. Isto não só pode ser realizado a partir do momento em que questões de cunho étnico-racial
passem a vigorar como uma das pautas prioritárias da Vigilância em Saúde no Brasil, e em cidades
onde esta questão possui centralidade, a exemplo de Salvador, como pode instrumentalizar a própria
Vigilância em Saúde na argumentação sobre a importância do tema enquanto reflexão para o campo
científico e enquanto práxis para o campo profissional – destacadamente no âmbito do Sistema Único
de Saúde (SUS). Estas questões, como nos diz Müller (2012), ainda no capítulo final do livro em
questão, “convidam-nos a repensar a sociedade em que vivemos e aquela que queremos, incluindo a
população negra como prioritária na implementação de políticas públicas, uma vez que fora
historicamente excluída” (MÜLLER, 2012, p. 364).

Se tomarmos estas questões como problemas sérios diante da realidade social e política no
Brasil, veremos que não tratamos de dados isolados ou mesmo de processos estanques; antes,
reconhecer a magnitude que o problema do racismo representa na conformação da sociedade
brasileira torna possível dar a esta questão a devida seriedade e a necessária abordagem por parte
das instâncias público-governamentais e de pesquisa, sempre acompanhadas de perto pelos olhos
atentos do Controle Social – ponderações que falam diretamente do exercício e da garantia da
Equidade em Saúde no Brasil (VIEIRA-DA-SILVA; ALMEIDA FILHO, 2009), bem como dos objetivos
geral e específicos que seguem preconizados em Políticas Públicas já aprovadas, como é o caso da
Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (BRASIL, 2009). Lutar pela sua efetiva
implementação torna-se, portanto, missão das trabalhadoras e trabalhadores da saúde que possuam
um real comprometimento ético-político com a melhoria das condições de saúde e da oferta de
cuidados a esta população no contexto brasileiro.

 1.6 – Saúde Mental e Racismo à Brasileira: Análises Contemporâneas do Sofrimento


Psíquico Étnico-Racial

Até este momento, procuramos fundamentar o presente estudo a partir de uma estrutura,
inicialmente, de cunho conceitual, passando pelos vieses históricos, científicos e políticos do tema em
voga, para, enfim, apresentá-lo a partir do prisma biopolítico foucaultiano correlacionado a estudos
atuais no campo da interface entre a Saúde Mental, a Saúde Pública e a questão étnico-racial
brasileira. Doravante, procuraremos, neste subtópico, apresentar algumas das principais referências no
49

cenário acadêmico e científico nacional ao debatermos Saúde Mental, sofrimento psíquico e o


fenômeno racista.

A princípio, é preciso retomar a obra de Lilia Moritz Schwarcz (1993), no que tange aos seus
estudos sobre como a prática médica acabou por ser influenciada pelos ideais eugenistas advindos de
fora do país, e aqui alimentados por Nina Rodrigues e seus seguidores – ponto pelo qual passamos,
brevemente, no subtópico 1.3 da presente Dissertação. A autora irá nos sinalizar, em consonância com
o estudo da antropóloga brasileira Mariza Corrêa (originalmente publicado em 1983), que os estudos
de Nina Rodrigues influenciaram diretamente parte substancial da classe médica da época, resultando
na criação de uma autodenominada “Escola Nina Rodrigues”, que viria a ser chamada, posteriormente,
de “Escola Baiana de Antropologia”, e que era diretamente vinculada à Faculdade de Medicina da
Universidade Federal da Bahia (FAMEB/UFBA).

Sem negar os avanços que a produção acadêmica e científica dessa “Escola” produziu – a
exemplo da colaboração direta na fundação da Medicina Legal no Brasil – Schwarcz (1993) irá traçar
uma análise sobre como esses estudos ocasionaram em distintas contribuições à formação do
pensamento médico brasileiro. Destarte, evidenciará que aqui seguiu-se o mesmo desenhar teórico
que se revelou na Europa anos antes, ao ver-se que uma série de abordagens anteriormente
assumidas foram esvanecendo para dar lugar às novas teorias de cunho frenológico e, posteriormente,
eugenista. Esse processo irá reverberar do final do século XIX, no imediato da Pós-Abolição, até a
terceira década do século XX, fortalecendo os projetos de “higiene pública” e, consequentemente, de
“higiene mental”.

No entanto, segue a autora, esses projetos não serão idênticos em nível nacional. Enquanto que
na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro procurava-se desenvolver uma originalidade do saber
médico pelo estudo das doenças tropicais, a exemplo da febre amarela e do mal de Chagas, na
Faculdade de Medicina da Bahia procurava-se a mesma originalidade, mas pela via dos estudos sobre
a miscigenação racial, a mestiçagem, os mestiços, os negros e os seus efeitos nefastos na produção
da degenerescência, da criminalidade e da loucura: “[...] enquanto para os médicos cariocas tratava-se
de combater doenças, para os profissionais baianos era o doente, a população doente que estava em
questão. Era a partir da miscigenação que se previa a loucura, se entendia a criminalidade” (ibidem, p.
190). A despeito das divergências produzidas entre ambas as formas de construir a medicina no país, o
que se visualiza aqui é o surgimento de um posicionamento, enquanto núcleo profissional, acerca da
formação da sociedade brasileira e dos seus problemas internos que, por causas diversas, pudesse
ocasionar no subdesenvolvimento da nação. Logo, na “ótica médica”, fortemente orientada pelos
50

estudos baianos, o propósito não poderia ser outro que não fosse o de “curar um país enfermo, tendo
como base um projeto médico-eugênico, amputando a parte gangrenada do país, para que restasse
uma população de possível „perfectibilidade‟” (ibidem, p. 190, grifo nosso) 5.

Essa tentativa de “reconstrução” da população nacional, pela via de um novo projeto racial, para
além de seus contornos históricos, científicos e políticos, fortemente alicerçados em uma matriz de
pensamento a que hoje podemos apontar como biopolítica (FOUCAULT, 1979; 1993), revela a
brutalidade do domínio dos ideais racistas e de hegemonia branca ante o saber-fazer sanitário das
classes médicas brasileiras do início do século XX. Ainda que visualizemos distinções entre as escolas
baiana e carioca, a “questão do negro” e das distintas raças permanecerá no centro do debate,
provocando uma questão ininterrupta: o que fazer com as camadas negras e de tendências enfermas
do Brasil?

Para tratar dessa questão, a própria Schwarcz (1993) irá lançar mão do pensamento
foucaultiano quanto à formação e ao lugar social da classe médica frente aos projetos de sociedade
cultivados entre os séculos XIX e XX. Seguindo o rastro do pensamento de Michel Foucault, a autora
irá nos apontar para como o saber médico, ao debruçar-se sobre as moléstias, as doenças e seus
contextos temporo-espaciais, formará o desenho que será a base para constituir-se como ciência do
controle do corpo, das suas relações com o mundo, do viver e do morrer. Este lugar conduzirá a classe
médica ao lócus de quem detém poder para apontar os melhores rumos em diversos aspectos na
constituição de variados povos e nações, não sendo isto diferente para a realidade brasileira. Apesar
do lento desenvolvimento da medicina brasileira entre os séculos XVIII e XIX, resultado da vivência
colonial que aqui vigorou até 1815, quando o Brasil é elevado à condição de Reino Unido de Portugal e
Algarves, o surgimento futuro de novos cursos médico-cirúrgicos e acadêmicos, tendo como principais
expoentes a Bahia (em Salvador) e o Rio de Janeiro (também em sua capital), será o solo fecundo
para o asseguramento das classes médicas baiana e carioca, protótipos da classe médica nacional.

Resguardando-se todos os aspectos históricos que poderiam ampliar a visão aqui colocada, o
que nos é relevante saber é que a tradição médica brasileira beberá diretamente da tradição médica
portuguesa, em seus preceitos basilares, mas acabará ganhando contornos próprios pelo fato de dar-
se em, conforme dito, terras tropicais; processo este que se desenhará com mais força entre 1822,
momento da Independência do Brasil, 1888, momento da Abolição da Escravatura, e o início dos anos

5Estas fortes acepções, presentes no estudo de Schwarcz (1993), encontrarão ecos em outros estudos nacionais, como é o
caso da obra “As Ilusões da Liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil” (originalmente publicado em
1983, revisado e atualizado em 2013), de autoria da antropóloga brasileira Mariza Corrêa.
51

de 1900, transição do século XIX para o século XX. E, se estas terras apresentavam as suas
especificidades, era preciso, portanto, compreender a sua gênese, de maneira a abordar a questão do
“saneamento” das enfermidades nacionais desde a sua origem.

Ora, no momento em que as teorias eugenistas se ampliam na realidade nacional, tendo o seu
salto de crescimento na terceira década do século XX, resultante, em grande medida, dos estudos da
Escola Nina Rodrigues, teremos o contexto histórico exato para a responsabilização da miscigenação
racial como o pressuposto frontal para a degenerescência da sociedade brasileira e o seu consequente
adoecimento. Desta feita, de maneira conjunta, dá-se o status de patológico aos elementos que
remetiam a tudo o que era tropical (logo, de ascendência ameríndia) e africano (de ascendência
negra): “Assim, a peculiaridade das feições, o clima, a raça, a natureza ou mesmo o „grau de
civilização‟ seriam todos elementos potencialmente interessantes para a descoberta de uma ciência
brasileira original” (ibidem, p. 200).

Não apenas consolidava-se o saber médico na mesma medida em que se entranhava no seio da
nação o racismo em diversas instâncias, como também se contava com apoio dos setores midiáticos
da época na reprodução das concepções médico-eugênicas. Com a devida colaboração da mídia,
apregoava-se que a melhor solução viria pela via da “prevenção”, justificando-se o projeto do
embranquecimento como possibilidade de “salvação” da nação. Isto justificaria a ampliação dos
estudos sobre os “alienados perigosos”, bem como seria o terreno fértil para a propagação da ideia de
que era preciso “cuidar das raças”, a partir de uma tônica absolutamente eugenista.

Isto fará com que comecemos a observar o aparecimento de artigos em revistas de


proeminência nacional, a exemplo da Gazeta Médica da Bahia, onde veremos estudos conclamando a
nação à luta pela “regeneração somática” de nosso povo, como “condição indeclinável de nossa
sobrevivência política entre as nações” (ibidem, p. 215). Apesar da concepção poligenista originária,
que estruturava o pensamento da miscigenação como mal irremediável, começam a aparecer novas
acepções para a ciência médica brasileira, que previam a necessidade de repudiar a “má mestiçagem”
– representada na figura dos mestiços alcoólatras, loucos, epilépticos, etc. – compreendendo ser
possível a parte dos mestiços a cura de sua enfermidade, pela via da busca pelo embranquecimento.

Estas são as bases que demarcarão a experiência relacional entre a medicina que inaugura o
século XX do Brasil e a questão do negro e do indígena brasileiro. Se para a realidade baiana a
questão do negro ganha centralidade, para a totalidade do país haverá contornos diferenciados, mas
que também caminharão pela conclusão de que o projeto de embranquecimento nacional seria o
52

melhor projeto para o desenvolvimento do Brasil como Estado-Nação frente à realidade mundial e ao
Eixo Norte Global. Pondera-se que, para além do estudo de Schwarcz (1993), outras autoras e autores
apontarão as nuanças contemporâneas deste fenômeno – a exemplo de Bolsanello (1996), Matos
(2010), Corrêa (2013) e Rodrigues (2015). Logo, se observarmos todo este percurso a partir dos três
prismas que temos sempre provocado aqui – o histórico, o científico e o político – nos será possível
visualizar os entranhamentos do modelo eugenista de pensamento em todas estas instâncias na
formação da sociedade brasileira, dando o tom de um racismo nacional que acompanhará o povo
brasileiro durante a segunda metade do século XX e a transição deste para o século XXI.

Temos aqui e agora condições teóricas e históricas para acrescentar a contribuição primordial da
psiquiatra e psicanalista baiana Neusa Santos Souza, a partir de sua obra “Tornar-se Negro: ou as
Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social” (1983), para a compreensão sobre
os contornos do sofrimento psíquico de base étnico-racial, advindo do fenômeno do racismo à
brasileira.

Neusa Santos Souza (1983) nos apresenta uma obra de excelência e de cunho raríssimo na
realidade brasileira, e precisamente por isso bastante inovadora, ao propor um estudo com
contribuições da Psicologia, da Psicanálise e da Psiquiatria para analisar as emoções, o sofrimento e
os caminhos do desenvolvimento da identidade negra nacional, frente ao projeto racista e de
embranquecimento da sociedade brasileira, que aqui já apresentamos pela ótica de Schwarcz (1993).

Logo, desenvolvendo de maneira bastante articulada conceitos elementares da psicanálise


(tronco central de sua escrita) com conceitos complementares psicológicos e psiquiátricos, a autora
procurará desenvolver a ideia de que, desde os tempos mais primordiais da história humana,
procuramos racializar e classificar os seres humanos em grupos raciais distintos, onde a experiência
negra e africana, ao menos entre a Idade Média e a Idade Moderna, passará a ser mais fortemente
marcada pela vivência de ser subjugada, inferior. O Brasil não estaria escape deste transcorrer
histórico – como vimos aqui, também, em Sidney Chalhoub (1986), Darcy Ribeiro (1995), Robert
Slenes (2011) e, mais uma vez, Lilia Schwarcz (1993).

Ao fazê-lo, comungando das ideias e dos achados de boa parte das leituras que apresentamos
nesta Dissertação até aqui, Souza (1983) fundamentará a compreensão de que a rejeição sentida pelo
negro deriva de uma rejeição socialmente construída aos aspectos que marcam e demarcam seu
corpo, sua aparência, sua história, sua cultura e seus modos de vida. Isto não apenas representa a
própria produção social de uma “patologização” dos elementos afrocentrados, como representa
53

também que, se tratamos de um processo de construção de identidade (ou subjetividade, a depender


da corrente teórica que se assuma), será demandado das mulheres e homens negros um forte
investimento psíquico e de reconfiguração de sua própria experiência e psiquê ante o mundo que os
circunscreve. Neusa Santos Souza (1983) apontará que o desenho social e histórico desse fenômeno
só poderá produzir às negras e negros brasileiros adoecimento e sofrimento psíquico ante a vida.

Como, então, produzir Saúde Mental na contramão deste processo? Como poder produzir
discursos mais orientados pela Promoção da Saúde do que pelo reconhecimento dos agravos do
racismo? Aqui, é a própria Neusa quem nos provoca: “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido
massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida a exigências, compelida
a expectativas alienadas” (SOUZA, 1983, p. 17-18). Logo, pressupõe-se uma ruptura radical com os
ideais de embranquecimento da sociedade brasileira, que tanto tenta impor sobre os sujeitos não-
brancos um “ideal de ego branco”, inalcançável pela concretude fenotípica que se apresenta no fronte
de todos os sujeitos, a partir do mais óbvio de sua “cor de pele”. Segundo Souza (1983), é a tentativa
de não sucumbir a esta expressão racista que custará às negras e negros o seu próprio equilíbrio
psíquico – resultando em adoecimento mental.

Se, por um lado, a autora irá apontar este fenômeno como um grande causador de adoecimento
psicopatológico específico às populações negras – generalizável em termos de outras populações não-
brancas, como as massas indígenas – por outro lado, ela apontará como único caminho possível o
fortalecimento da luta antirracista, espaço onde negras e negros poderiam produzir redes afetivas e
solidárias de (re)fortalecimento de sua identidade racial, inclusive com sujeitos políticos de outras
camadas raciais, mas atentas e atentos à perversidade física e simbólica do racismo. Em mesma
medida, somar-se-iam esforços no sentido do questionamento dos lugares sociais impostos às negras
e negros, e outros lugares sociais poderiam ser tensionados e, doravante, produzidos, mediante a
organização social e militante antirracista.

Destarte, o pensamento de Souza (1983) encontrará respaldo nos estudos de Frantz Fanon,
psiquiatra e filósofo francês de ascendência africana, particularmente em sua obra “Pele Negra,
Máscaras Brancas” (2008). Em seu capítulo “O Preto e a Psicopatologia”, Frantz Fanon irá fazer um
estudo das conformações racistas ante a realidade europeia, destacadamente a francesa, e apontará
algumas análises de cunho psicológico e psicopatológico frente à questão da vivência do racismo pelas
camadas negras de ascendência francesa e africana.
54

Subvertendo a ordem psicopatológica individualista, bem como os referenciais eugenistas, tal


qual o faz deveras bem Neusa Santos Souza (1983), Fanon (2008) apontará para diagnósticos de
cunho eminentemente social, através dos quais ele formulará uma tese de que a questão da alienação
e/ou do enlouquecimento do negro não se trata de um ponto de âmbito individual, mas sim de um
âmbito socialmente construído, que atua como herança do colonialismo e como instrumento de
fortalecimento ante o sistema capitalista da modernidade. Nesta seara, o racismo revelar-se-á como
instrumento de manutenção da ordem e do poder nas mãos de quem sempre o deteve – perspectiva
próxima daquela que aqui já se apontava dentro do pensamento biopolítico foucaultiano, como peças
de base do racismo de Estado. Aqui, ao somarmos o pensamento de Frantz Fanon (2008) ao
pensamento de Neusa Santos Souza (1983), teremos argumento o suficiente para apontar a existência
de uma certa “produção social do sofrimento psíquico do negro”, que verá seus rascunhos brasileiros
mais primordiais remeterem-se às produções de Juliano Moreira, em oposição à Escola Baiana de
Antropologia. Esta formulação se dá com maior nitidez na medida da observação sobre os mecanismos
de defesa dos sujeitos negros e negras advindos da vivência racista cotidiana na convivência com o
projeto histórico de subjugamento dos povos não-brancos ante a soberania daqueles de ascendência
eurocentrada – ou seja, a produção de seus modos de sobrevivência subjetiva social e individual.

Longe de produzir, a partir disto, uma compreensão fatalista, queremos provocar o debate sobre
como temos observado a questão do sofrimento psíquico advindo do racismo no percurso histórico da
oferta de cuidados em psiquiatria e em Saúde Mental no Brasil. Se, de um lado, veremos a psiquiatria
brasileira conceber-se a partir do pensamento médico-eugênico nacional, conforme apresentado de
maneira bastante sucinta por Schwarcz (1993), de outro lado veremos um total silenciamento após o
gradativo desaparecimento discursivo do pensamento médico-eugênico nacional, com o declínio do
darwinismo social como teoria para explicar as questões étnico-raciais brasileiras.

Os estudos históricos sobre a psiquiatria brasileira deixam uma enorme lacuna para pensar a
questão do racismo no processo de institucionalização tanto da própria psiquiatria quanto da vivência
da loucura junto aos grandes manicômios brasileiros. No entanto, essa mesma defasagem não
inviabiliza que possamos depreender que a psiquiatria e a institucionalização da loucura se fundam a
partir de ideais racistas sorrateiramente posicionados em diversas instâncias do imaginário brasileiro
ao longo do século XX. Retomamos, então, o conceito de racismo à brasileira, como já o vimos em
Telles (2003)6. Isto porque, se reconhecemos o silêncio acadêmico e científico posto frente a tal

6A análise da relação entre a institucionalização da psiquiatria e da loucura e as influências do racismo, no que tange à
experiência estadunidense, é o melhor parâmetro de comparação que encontramos para refletir sobre a realidade brasileira.
Tal ponto, no presente estudo, será mais bem explanado adiante, quando tratarmos do estudo de Shervington (1976).
55

processo, só podemos compreender que o mesmo se deu por vias da segregação indireta que Telles
(2003) pontua ao analisar a experiência racista brasileira. E, se reconhecemos o elemento do silêncio
como marcador aqui presente, quais as ações que temos, hoje, feito para romper com a denúncia
histórica que aqui se descortina?

Jurandir Freire Costa, psicanalista brasileiro, autor do prefácio do livro aqui já abordado de
Neusa Santos Souza (1983), levantará uma inquietante provocação à classe das psicanalistas
brasileiras e brasileiros:

A violência racista pode submeter o sujeito negro a uma situação cuja desumanidade
nos desarma e deixa perplexos. Seria difícil encontrar o adjetivo adequado para nomear
esta odiosa forma de opressão. Mais difícil ainda, talvez, é entender a flácida omissão com
que a teoria psicanalítica tratou, até então, este assunto. Pensar que a psicanálise brasileira,
para falar do que nos compete, conviveu tanto tempo com esses „crimes da paz‟, adotando
uma atitude cúmplice ou complacente ou, no melhor dos casos, indiferente, deve conduzir-
nos a uma outra questão: Que psicanálise é esta? Que psicanalistas somos nós?
(ibidem, p. 16, grifo nosso).

Esta provocação que Jurandir Freire Costa faz às/aos psicanalistas serve para que, substituindo-
se a classe profissional, provoquemo-nos a nós mesmos, enquanto trabalhadoras e trabalhadores da
Saúde Mental, militantes das Reformas Psiquiátrica e Sanitária Brasileiras: Que Saúde Mental é esta?
Que trabalhadores da Atenção Psicossocial somos nós? Diante do reconhecimento das décadas e
séculos de silenciamento frente à questão do racismo na Saúde Mental brasileira, só nos resta o
movimento contrário e, curiosamente, ensurdecedor: temos de abordar a questão continuamente, a
partir das múltiplas e interdisciplinares contribuições que constituem o campo da Saúde Mental,
atentando sempre aos vieses históricos, científicos e políticos presentes. Todas as autoras e autores
que aqui comungam de uma linha de pensamento antirracista, assim se posicionam.

Decerto que, se por um lado, encontramos o desafio de produzir conhecimento acadêmico e


científico ante uma lacuna tão abissal e ao mesmo tempo tão silenciada pelo racismo à brasileira, por
outro lado, haveremos de nos responsabilizar, pela via do comprometimento ético-político, ante o fato
aqui exposto, certos de que se trata de uma produção não sem sofrimento, não sem angústia, não sem
dor. No entanto, esta pode ser a base para a construção de uma Saúde Pública e Coletiva
efetivamente atenta às necessidades psíquicas das populações não-brancas no Brasil, que carregam
as marcas cotidianas de um sofrimento psíquico de cunho racista que, longe de permanecer
individualizado, precisa ser tomado em toda a sua potência coletiva e social, como nos orienta Fanon
(2008). Que façamos, então, de uma força motriz destruidora, uma força motriz transformadora.
56

CAPÍTULO 02: DO MÉTODO E DO LÓCUS DE PESQUISA

No presente capítulo, serão apresentadas as principais referências de base para o


desenvolvimento metodológico da pesquisa de campo aqui proposta. Para tal, o texto se apresentará
estruturado em três distintos subtópicos, a saber: (2.1) Caracterizações Iniciais do Método e do Lócus
de Pesquisa; (2.2) Da Entrevista Narrativa à Análise de Narrativas: O Método de Fritz Schütze; e (2.3)
Aspectos Éticos. Em tempo, quanto à descrição metodológica que envolve especificamente a etapa de
Revisão Sistemática de Literatura, a mesma constará do capítulo correspondente, a ser apresentado
mais à frente no presente estudo.

 2.1 – Caracterizações Iniciais do Método e do Lócus de Pesquisa

Esta pesquisa compreende-se no campo teórico, crítico e metodológico da Saúde Coletiva, a


partir de sua área de concentração em Ciências Sociais em Saúde, estando também na interface entre
a Saúde Mental e as Relações Étnico-Raciais. Parte-se de uma abordagem Qualitativa e Exploratória
(MINAYO; DESLANDES; ROMEU, 2012), sendo o seu método de produção de dados a Entrevista
Narrativa – conforme se vê, respectivamente, em Schütze (1976; 2014), Jovchelovitch e Bauer (2002)
e Muylaert et al (2014) – e o seu método de análise de dados a Análise de Narrativas – orientada
também pelos pressupostos de Schütze (1976; 2014), Jovchelovitch e Bauer (2002) e Muylaert et al
(2014), com contribuições complementares de Castellanos (2014). A processualidade deste referencial
teórico-metodológico de base será mais bem explanada no subtópico 2.2, do presente capítulo.

Passemos então, de imediato, à caracterização do Lócus de Pesquisa. Trata-se de um estudo


realizado em um determinado Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade Salvador/BA. Estes
são serviços de saúde abertos e comunitários, integrantes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e
do Sistema Único de Saúde (SUS), sendo especializados no cuidado a pessoas com sofrimento
psíquico grave, severo e persistente, e que demandam uma “intensificação” nos cuidados em saúde
oferecidos (AMARANTE, 2007). Atuam na oferta não apenas de cuidados clínicos psicológicos,
psiquiátricos e psicofarmacológicos, mas sim a partir da Atenção Psicossocial – campo de atuação
onde se processam cuidados que visam ao desenvolvimento da autonomia, da manutenção dos
vínculos territoriais e da luta contra os preconceitos sociais acerca da loucura, pensados aqui como
aquilo a que chamamos de intervenções clínico-institucionais.
57

Para fins de esclarecimento, os CAPS podem ter sua atenção especializada direcionada a
públicos específicos, como: (1) adultos e idosos; (2) crianças e adolescentes; e (3) usuários com
necessidades de saúde especificamente decorrentes do uso abusivo e/ou da dependência de álcool e
outras drogas (BRASIL, 2011)7. Dessa forma, são estruturalmente divididos de acordo com a demanda
que abrangem, podendo ser classificados em:

(1) CAPS I: Pode prestar atendimento a todas as faixas etárias, para pessoas com transtornos
mentais graves, severos e persistentes, inclusive em casos infantojuvenis e/ou por conta do
uso abusivo de substâncias psicoativas. Em geral, funciona em escala de 20h/semanais e
atende cidades e/ou Regiões de Saúde com o mínimo total de quinze (15) mil habitantes.

(2) CAPS II: Pode prestar atendimento a todas as faixas etárias, mas com destaque aos adultos
e idosos – acima de dezoito (18) anos de idade – com transtornos mentais graves, severos e
persistentes, inclusive em casos de uso abusivo de substâncias psicoativas. Em geral,
funciona em escala de 40h/semanais e atende cidades e/ou Regiões de Saúde com o
mínimo total de setenta (70) mil habitantes.

(3) CAPS ia (Infância e Adolescência): Presta atendimento especializado a crianças e


adolescentes – abaixo de dezoito (18) anos de idade – com transtornos mentais graves,
severos e persistentes, inclusive em casos de uso abusivo de substâncias psicoativas. Em
geral, funciona em escala de 40h/semanais e atende cidades e/ou Regiões de Saúde com o
mínimo total de setenta (70) mil habitantes.

(4) CAPS ad (Álcool e Outras Drogas): Presta atendimento a todas as faixas etárias, sendo
especializado em transtornos mentais graves, severos e persistentes especialmente
decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas. Em geral, funciona em escala de
40h/semanais e atende cidades e/ou Regiões de Saúde com o mínimo total de setenta (70)
mil habitantes.

(5) CAPS III: Presta atendimento a todas as faixas etárias, para pessoas com transtornos
mentais graves, severos e persistentes, inclusive em casos de uso abusivo de substâncias
psicoativas. Em geral, funciona em escala ininterrupta, com possibilidade de acolhimento à
crise e observação noturna contínua, e atende cidades e/ou Regiões de Saúde com o
mínimo total de cento e cinquenta (150) mil habitantes.

7 Para fins da presente caracterização, parte-se do disposto na Portaria Nº 3.088, de 23 de Dezembro de 2011.
58

(6) CAPS ad III (Álcool e Outras Drogas): Pode prestar atendimento a todas as faixas etárias,
sendo especializado em transtornos mentais graves, severos e persistentes especialmente
decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas. Em geral, funciona em escala
ininterrupta, com possibilidade de acolhimento à crise e observação noturna contínua, e
atende cidades e/ou Regiões de Saúde com o mínimo total de cento e cinquenta (150) mil
habitantes.

Estes serviços surgem em caráter substitutivo aos hospitais psiquiátricos, pela compreensão de
que os modos de cuidado de cunho manicomialista e hospitalocêntrico são ineficazes na oferta de uma
Saúde Mental que efetivamente desenvolva a autonomia dos sujeitos de quem cuidamos. Assim,
partimos do reconhecimento de que os hospitais psiquiátricos, em maior medida, em muito
negligenciaram a possibilidade de cuidados reais à saúde e promoveram uma verdadeira parceria com
as ideologias de higienização social dos sujeitos destoantes dos modos “civilizados” e capitalistas de
interação social. Este mesmo reconhecimento é que dará a base para o surgimento de diferentes
propostas de cuidado em Saúde Mental, alternativas ao modelo asilar convencional oferecido pelos
manicômios. Os CAPS surgem, destarte, como uma derivação brasileira direta deste movimento, tendo
os seus primeiros ensaios a partir dos Núcleos de Assistência Psicossocial (NAPS), em 1992, que
viriam a dar lugar aos CAPS, propriamente ditos, em 2002 (AMARANTE, 2007).

São serviços que atuam orientados pela perspectiva da assistência em rede, constituídos por
equipes multiprofissionais e que atuam sob a ótica interdisciplinar, podendo ter como núcleos
profissionais agregados trabalhadores da Gestão e da Administração Pública, da Psicologia, da
Psiquiatria, do Serviço Social, da Educação Física, da Enfermagem, da Farmácia e da Terapia
Ocupacional, entre outros. Como são serviços de base essencialmente territorial, pressupõe-se que o
seu trabalho clínico-institucional seja desenvolvido em constante parceria com a comunidade onde se
encontram inseridos, devendo ter a comunidade como parceira de suas ações, e não apenas como
sujeito-alvo de suas intervenções. Logo, são serviços que devem estar constantemente atentos à
realidade local, sua história, sua cultura, os principais problemas sociais presentes e as principais lutas
políticas que se expressam no cotidiano local (AMARANTE, 2007; BRASIL, 2011).

É pelo reconhecimento destas características e por fazermos aqui uma opção crítica e radical
em defesa da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, tal qual o fazemos em defesa da luta antirracista,
que selecionamos este serviço como Lócus para a pesquisa aqui proposta. Reconhecemos, assim, que
é necessário desenvolver pesquisas junto aos CAPS, fortalecendo seu caráter substitutivo aos
hospitais psiquiátricos e contribuindo com o desenvolvimento de tecnologias de cuidado que melhorem
59

a sua assistência oferecida (MERHY; FEUERWERKER, 2009). Em mesma proporção, selecionamos


também este serviço como Lócus por compreender que o mesmo, ao dever estar atento à realidade
local que o circunscreve, deve, portanto, estar também mais consciente das iniquidades em saúde que
possam afetar o processo de trabalho das suas equipes multiprofissionais (AMARANTE, 2007).

Em síntese, fora então selecionado como Lócus para a presente pesquisa um serviço do tipo
CAPS II, localizado na cidade de Salvador/BA, em uma das regiões mais antigas da cidade – a Cidade
Baixa. Esta região acompanhou grande parte do início do processo de urbanização da capital baiana,
tendo sido, em seu princípio, uma colônia de pescadores e/ou trabalhadores portuários e industriais,
espaço que viria a receber a sede de grandes indústrias, mas também uma grande parcela
populacional da classe trabalhadora que se desenhou na capital baiana entre o final do século XIX e o
início do século XX (FLEXOR; SCHWEIZER, 2011). Se o processo de formação de nossa classe
trabalhadora nacional teve como desafio mediar o lugar planejado às negras e negros brasileiros, a
Cidade Baixa de Salvador não esteve em situação distinta, revelando, até os dias atuais, os dramas e
as tramas históricas que perpassam todo o restante de Salvador, sendo, desta forma, um interessante
extrato social da totalidade da capital baiana. O serviço selecionado, desta feita, é um serviço público,
cuja edificação apresenta uma estrutura razoável. É composto por uma equipe multiprofissional,
formada de profissionais de Nível Médio (na execução de ações de cunho administrativo e de serviços
gerais, como higienização e segurança patrimonial) e de Nível Superior (na execução de ações de
cunho clínico-institucional e sanitário). É um dos serviços mais antigos da cidade; tal qual, a maioria
dos seus profissionais também atuam na Saúde Mental soteropolitana há um período similar ao de
funcionamento do serviço, havendo estes acompanhado grande parte do processo da Reforma
Psiquiátrica em nível local.

Os participantes do estudo foram os profissionais deste serviço. Tratam-se, obrigatoriamente, de


profissionais maiores de dezoito (18) anos de idade, onde foram aceitos apenas aqueles e aquelas que
compunham o quadro efetivo da instituição há pelo menos seis (06) meses e que tenham se disposto,
por livre e espontânea vontade, a participar da pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE) e o Termo de Autorização para Gravação de Entrevista (TAGE).

Para a realização das entrevistas, foi construído um Tópico-Guia, composto exclusivamente de


uma única questão exmanente (de interesse central aos objetivos da pesquisa), onde foram inseridas,
ao longo da realização das mesmas, questões imanentes (advindas do próprio processo de entrevista,
na interação entre entrevistador e entrevistados) (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002). O Tópico-Guia
formulado previamente e apresentado como disparador inicial para a narração foi:
60

TÓPICO-GUIA

“Gostaria que você me narrasse qual a sua compreensão acerca do racismo, e


como você acredita que ele possa se manifestar no campo da Saúde Mental
e/ou da Atenção Psicossocial, tendo como principal parâmetro para a(s) sua(s)
resposta(s) a sua própria experiência profissional”.

Quadro 01: Tópico-Guia da Entrevista Narrativa (Elaborado pelos Autores).

Como se trata de um método não estruturado de realização de entrevistas, não foi formulado um
roteiro prévio de perguntas direcionadas ou cadenciadas, mas apenas um levantamento nuclear das
questões imanentes desenvolvidas ao longo das entrevistas. Consequentemente, temos:

(1) O que você entende por racismo? Quais os exemplos cotidianos de racismo que você pode
citar? Você já vivenciou e/ou presenciou algum episódio de opressão em decorrência do
racismo? Você já vivenciou e/ou presenciou algum episódio de opressão em decorrência do
racismo, no trabalho em Saúde Mental?

(2) Algum/a usuário/a do serviço já referiu ter vivenciado algum episódio de opressão em
decorrência do racismo? Algum/a usuário/a do serviço já demandou cuidado em Saúde
Mental devido à vivência de algum episódio de opressão em decorrência do racismo?
Algum/a usuário/a do serviço já demandou cuidado em Saúde Mental devido à vivência de
algum episódio de opressão em decorrência do racismo, associado a algum outro tipo de
opressão (por exemplo, machismo, sexismo ou lesbohomotransfobia)?

(3) Você já teve dificuldades para abordar episódios de opressão em decorrência do racismo
em suas intervenções profissionais? Você já promoveu cuidado a algum usuário do serviço,
devido à vivência de algum episódio de opressão em decorrência do racismo? O serviço em
que você atua já promoveu alguma atividade, seja com os usuários, os familiares ou a
comunidade em geral, que tratasse de questões envolvendo o racismo?

Para além dessas questões imanentes, ao final, sempre era franqueado um espaço mais aberto
e de caráter autorreflexivo (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002), onde se facultou a cada entrevistado a
possibilidade de ponderação e relato sobre se este já havia vivenciado alguma experiência de racismo
por si mesmo (independentemente da sua autodeclaração étnico-racial), bem como para observações
finais também mais livres. Todas as entrevistas foram gravadas e, ao fim, transcritas para posterior
codificação e análise, conforme os pressupostos que serão apresentados no subtópico a seguir.
61

 2.2 – Da Entrevista Narrativa à Análise de Narrativas: O Método de Fritz Schütze

Fritz Schütze, sociólogo alemão, doutor em Sociologia pela Universidade de Münster e livre-
docente pela Universidade de Bielefeld (Alemanha), desde 2009 é professor emérito do Instituto de
Sociologia da Otto-von-Guericke-Universität Magdeburg, na Alemanha. Schütze (1976; 2014)
desenvolveu um método de produção e análise de dados essencialmente orientado pela prerrogativa
da produção de narrativas como uma técnica de reconstituição de histórias, ocorrências e contextos
situacionais pregressos e atuais, onde se concebe que estas narrativas produzidas revelam uma
correlação constante entre linguagem e experiência, entre discurso e conjuntura social e histórica.

Schütze (1976; 2014) compreende que, pelo acesso às narrativas produzidas por diferentes
sujeitos, ampliamos a possibilidade de acesso em pesquisa a determinados elementos e fatos
históricos que envolvem determinados indivíduos e suas coletividades. Partindo-se desta afirmação, o
mesmo estrutura o que, posteriormente, denominou-se como Análise de Narrativas, corpo teórico-
metodológico do campo das pesquisas em Ciências Sociais, cuja técnica básica para a produção de
dados é a realização de Entrevistas Narrativas.

Conforme veremos em Muylaert e colaboradores (2014), as Entrevistas Narrativas podem ser


compreendidas como instrumentos de produção de dados, em pesquisas qualitativas, que se
apresentam como métodos não estruturados, de imersão em profundidade em determinado elemento
que se enseja alcançar, a partir da narração das histórias de vida e dos elementos contextuais que
circundam e circunscrevem os sujeitos participantes da pesquisa, em seus âmbitos sociais, políticos,
econômicos, históricos e culturais.

As entrevistas narrativas se caracterizam como ferramentas não estruturadas, visando à


profundidade de aspectos específicos, a partir das quais emergem histórias de vida, tanto
do entrevistado como as entrecruzadas no contexto situacional. Esse tipo de entrevista
visa encorajar e estimular o sujeito entrevistado (informante) a contar algo sobre algum
acontecimento importante de sua vida e do contexto social. [...] Nesse caso, emprega-se a
comunicação cotidiana de contar e escutar histórias (MUYLAERT et al, 2014, p. 194,
grifo nosso).

Pressupõe-se, a partir da utilização destas, enquanto instrumento de pesquisa, uma profunda


interação entre o pesquisador (entrevistador) e o informante (entrevistado), sendo este elemento
característica indispensável à sua boa execução, tendo em vista que “há, nas entrevistas narrativas,
uma importante característica colaborativa, uma vez que a história emerge a partir da interação, da
troca, do diálogo entre entrevistador e participantes” (MUYLAERT et al, 2014, p. 194).
62

A opção pela Entrevista Narrativa também se dá na medida em que se deseja que os sujeitos
participantes da pesquisa não apenas “descrevam” suas opiniões e impressões acerca de
determinados fenômenos, mas sim que os mesmos possam apresentar seus discursos enquanto uma
“narração”, uma “contação de histórias” acerca do que se aborda, construindo uma necessária
implicação discursiva ante o que será apresentado.

[...] a narrativa implica uma posição de participação assumida pelo escritor em face da
vida e dos problemas da sociedade. Nesse sentido, há engajamento entre os
interlocutores. A descrição, por seu lado, se relaciona a uma posição de observação, de
desvelamentos do fato per si, sem, necessariamente, provocar interfaces entre o fato e os
sujeitos a ele pertencentes, na conjuntura do discurso (MUYLAERT et al, 2014, p. 194, grifo
nosso).

Este retorno do reconhecimento quanto à relevância do “contar histórias” no âmbito das


pesquisas científicas é bem descrito por Sandra Jovchelovitch, psicóloga social brasileira, e Martin W.
Bauer, psicólogo social suíço, ambos docentes e pesquisadores da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), no Brasil, e da London School of Economics and Political Science (LSE), na
Inglaterra. Jovchelovitch e Bauer (2002), a partir de seu texto “A Entrevista Narrativa”, publicado no
Brasil por Bauer e Gaskell (2002), no livro “Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e Som”,
certamente produzem um marco temporal quanto à assunção da Entrevista Narrativa e da Análise de
Narrativas, segundo a perspectiva de Fritz Schütze, no contexto da pesquisa científica brasileira.
Segundo estes autores, o interesse pelas narrativas humanas remonta à própria Poética de Aristóteles,
datada entre os anos 335 a.C. e 323 a.C., sendo mais recentemente intensificado o seu uso no campo
das pesquisas em Ciências Humanas e em Ciências Sociais, entre os séculos XX e XXI.

O texto de Jovchelovitch e Bauer (2002) contextualiza a metodologia desenvolvida por Fritz


Schütze à realidade brasileira, estruturando o passo-a-passo da Análise de Narrativas para as
pesquisas em Ciências Humanas e em Ciências Sociais no Brasil. Além de sistematizarem as
propostas teórico-metodológicas de Schütze, Jovchelovitch e Bauer (2002) apresentam uma síntese de
suas principais ideias, resgatando a dimensão da produção e da Análise de Narrativas como um
instrumento de representação, codificação e interpretação da realidade em seus âmbitos sociais,
políticos, econômicos, culturais e, acima de tudo, históricos, ante cada indivíduo e suas coletividades.

Nesse sentido, Schütze (1976; 2014) nos aponta o que considera serem aspectos importantes
da Análise de Narrativas, na interface entre os estudos da Linguística e as pesquisas em Ciências
Humanas e em Ciências Sociais: (1) a estrutura da narração de histórias se apresenta como um
processamento recapitulativo de vivências e experiências pregressas e atuais; (2) o material narrativo
produzido se revela como um corpus textual para questões extranarrativas, que dizem respeito ao
63

comportamento discursivo e à conjuntura social, política, econômica, cultural e histórica dos indivíduos
e das coletividades; (3) a narração de histórias se constitui como uma reatualização retrospectiva
institucionalizada de categorias canônicas e não-canônicas da experiência e de valores culturais de
uma sociedade, auxiliando na estruturação do conhecimento acerca de si; (4) e o potencial da narração
de histórias para se obter informações também sobre constelações de acontecimentos ainda
desconhecidos ou apenas parcialmente conhecidos.

Por conseguinte, ao contextualizar a Análise de Narrativas ao campo das pesquisas em Saúde


Coletiva, Castellanos (2014) faz precisamente o mesmo esforço de Schütze (1976; 2014) e
Jovchelovitch e Bauer (2002), apontando que a reconstrução de narrativas para descrever os
fenômenos no campo da saúde pode ser uma boa ferramenta de acesso às vivências concretas dos
indivíduos que constroem as instituições e as práticas contemporâneas em Saúde Pública e Coletiva.
Ao produzir tal efeito, o uso da Entrevista Narrativa e da Análise de Narrativas em Saúde Coletiva
possibilita contribuir com a (re)estruturação do conhecimento histórico e institucional sobre os
fenômenos que operam e se entrecruzam no trabalho dos operadores da saúde, mesmo os da Saúde
Mental, o que, novamente, dialogará com Muylaert e colaboradores (2014), quando estes nos dizem
que “[...] uma das funções da entrevista narrativa é contribuir com a construção histórica da
realidade” (MUYLAERT et al, 2014, p. 195, grifo nosso).

As entrevistas narrativas são, pois, técnicas para gerar histórias e, por isso, podem ser
analisadas de diferentes formas após a captação e a transcrição dos dados. Neste processo
são envolvidas as características paralinguísticas (tom da voz, pausas, mudanças na
entonação, silêncio que pode ser transformado em narrativas não ouvidas, expressões, entre
outras), fundamentais para se entender o não dito, pois, no processo de análise de
narrativas, explora-se não apenas o que é dito, mas também como é dito. [...] As narrativas
combinam histórias de vida a contextos sócio-históricos; ao mesmo tempo em que as
narrativas revelam experiências individuais e podem lançar luz sobre as identidades dos
indivíduos e as imagens que eles têm de si mesmos, são também constitutivas de
fenômenos sócio-históricos específicos nos quais as biografias se enraízam. [...]
Dessa maneira, o objetivo das entrevistas narrativas não é apenas reconstruir a história de
vida do informante, mas compreender os contextos em que essas biografias foram
construídas e os fatores que produzem mudanças e motivam as ações dos
informantes (MUYLAERT et al, 2014, p. 195-196, grifo nosso).

Desta maneira, a construção da pesquisa pela via da Análise de Narrativas perpassa, em um


primeiro momento, por um levantamento extenso das principais referências teóricas que constroem a
Fundamentação Teórica do estudo a ser realizado, bem como por um levantamento sistemático dos
principais estudos na área publicados ao longo dos últimos anos, em termos da reconstituição do que
se chama de Estado da Arte. A partir de tal, compreendem-se a criação de algumas categorias
analíticas “previsíveis”, derivadas dos chamados Dados Indexados; em outras palavras, são possíveis
64

– e não obrigatórias – algumas inferências quanto aos achados que a produção dos dados de campo
nos revelará no decorrer da realização das entrevistas. Aos dados indexados, somam-se os Dados
Não Indexados, aqueles que, diferentemente dos primeiros – previsíveis a partir da literatura científica
– se insurgem no processo de pesquisa, a despeito de estarem ou não sistematizados em estudos
anteriores. Desta forma, as categorias analíticas finais, que fundamentarão a discussão dos resultados
encontrados, serão a composição final entre os dois tipos de dados aqui descritos (JOVCHELOVITCH;
BAUER, 2002). Ainda quanto a estes dados, os indexados referem-se ao conhecimento de ordem mais
estruturada e racional, logo, mais facilmente classificáveis; destoam precisamente dos dados não
indexados quanto à carga subjetiva e de valoração pessoal destes últimos sobre a vida e a experiência
narrada. Esses elementos também devem ser levados em conta na produção das categorias analíticas
que, assim, só podem ser conclusas após a finalização da produção dos dados – ou seja, da aplicação
das Entrevistas Narrativas.

Estas categorias analíticas culminam na criação, também para fins analíticos, do que o
referencial teórico-metodológico da Análise de Narrativas chamará de Trajetórias Individuais e
Trajetórias Coletivas – conforme veremos em Muylaert et al (2014) e Jovchelovitch e Bauer (2002). As
Trajetórias Individuais serão a correlação analítica entre os dados indexados e não indexados
presentes em cada entrevista, analisada, em um primeiro momento, separadamente e distintamente
das demais. Da produção das categorias analíticas para cada Trajetória Individual, surgem as
categorias analíticas centrais ao estudo realizado, derivadas, enfim, das chamadas Trajetórias
Coletivas. As Trajetórias Coletivas seriam, assim, a soma das Trajetórias Individuais, devendo estas
serem analisadas conforme a Fundamentação Teórica e a Revisão de Literatura que alicerçam a
pesquisa em questão (MUYLAERT et al, 2014; JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002).

Logo, quanto à produção e à finalização das categorias analíticas, as mesmas não se dão
aprioristicamente, sendo constituídas apenas durante e após a própria realização das entrevistas, no
encontro entre os elementos previamente relevantes ao pesquisador e à literatura científica e os
posteriormente revelados pelos sujeitos participantes da pesquisa. Vê-se isto na descrição
metodológica de Muylaert et al (2014), orientada pelos pressupostos de Schütze (1976; 2014) e
Jovchelovitch e Bauer (2002):

Para analisar o material recomenda-se reduzir o texto gradativamente, operando-se com


condensação de sentido e generalização, divide-se o conteúdo em três colunas, na primeira
fica a transcrição, na segunda coluna a primeira redução e na terceira apenas as palavras-
chave. Então, desenvolvem-se categorias, primeiramente para cada uma das entrevistas
narrativas, posteriormente são ordenadas em um sistema coerente para todas as entrevistas
realizadas na pesquisa, sendo o produto final a interpretação conjunta dos aspectos
65

relevantes tanto aos informantes como ao pesquisador (MUYLAERT et al, 2014, p. 196,
grifo nosso).

Isto não significa dizer que o pesquisador não partirá de algumas concepções formuladas
previamente, haja posto o que pode ser produzido antecipadamente pelo encontro do pesquisador com
a literatura científica atual que se tenha acerca do tema e/ou do contexto temporal e espacial
pesquisado. No entanto, estas primeiras concepções devem abrir espaço à formação de outras
concepções, novas e, por vezes, contrastantes com o que se pressupunha saber ante as leituras
prévias. Assim, mediando o conhecimento preexistente e o conhecimento latente que se apresenta no
ato da pesquisa, da narração e da análise desta, é desejável que o pesquisador esteja constantemente
atento aos “ditos e não ditos do discurso circulante” (MUYLAERT et al, 2014, p. 196).

Além destas questões, pondera-se ainda a absoluta necessidade, por parte do pesquisador, de
uma escuta atenta e em profundidade, que apreenda os sentidos da linguagem, em seu viés stricto
sensu, mas também as construções do discurso, em seu viés lato sensu, tendo em vista que “[...] a
captura em profundidade exige do entrevistador um aprender a ouvir tanto as falas quanto as pausas,
silêncios, ritmos e o próprio cenário que vai se configurando no decorrer de uma história que ali é
contada” (MUYLAERT et al, 2014, p. 197). Essa escuta atenta é estruturante não apenas no sentido da
captação mais completa possível dos enunciados operados pelo sujeito entrevistado, mas também pela
compreensão que temos de que a narrativa correlaciona-se diretamente com a experiência vivida,
manifestando-se em todos os sentidos comunicativos do corpo de quem fala (CLANDININ;
CONNELLY, 2000). Logo, se a linguagem e a experiência se encontram na narração, tudo o que a
circunscreve é relevante aos olhos e aos ouvidos do entrevistador/pesquisador.

Seguindo-se as orientações aqui colocadas, sem compreendê-las como um engessamento do


método, mas sim como um mapa-guia para o seu melhor aproveitamento, acreditamos que este
método possa ser de suma importância na produção de pesquisas como a que aqui se apresenta, bem
como a tantas outras que se constroem nas várias áreas da Saúde Coletiva e nas várias linhas de
pensamento quanto à Saúde Mental. Sendo assim, é novamente Castellanos (2014) quem arremata
esta ideia, ao dizer que:

[...] as pequenas e grandes narrativas permeiam nossas experiências enquanto


pesquisadores inscritos em determinados campos científicos. Se há uma crise das grandes
narrativas totalizadoras, ainda assim, isso não retira a importância de integrarmos nossas
experiências enquanto pesquisadores em narrativas mais amplas sobre esses campos. Na
Saúde Coletiva – talvez, mais do que em outros campos – isso nos leva a um eterno trabalho
de Penélope, ou seja, a intensas reconstruções narrativas em direção aos objetos
desejados, trilhando assim antigos e novos caminhos em que estes se delineiam
(CASTELLANOS, 2014, p. 1074, grifo nosso).
66

No que tange à presente pesquisa, foram realizadas doze (12) entrevistas narrativas, de caráter
não estruturado e em profundidade, com profissionais de Nível Superior atuantes em um determinado
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade de Salvador/BA. Foram entrevistados sujeitos de
oito (08) núcleos profissionais distintos, a saber: Gestão e Administração Pública, Psicologia,
Psiquiatria, Serviço Social, Educação Física, Enfermagem, Farmácia e Terapia Ocupacional. As
entrevistas narrativas realizadas foram gravadas, transcritas e submetidas à Análise de Narrativas,
conforme disposto em Schütze (1976; 2014), Jovchelovitch e Bauer (2002) e Muylaert et al (2014), bem
como a partir das contribuições complementares de Castellanos (2014). Após esta etapa, os dados
indexados e os dados não indexados produzidos foram correlacionados aos marcos teórico-conceituais
da presente Dissertação, no intuito de construir, a partir da identificação das Trajetórias Individuais e
das Trajetórias Coletivas, a Análise de Narrativas propriamente dita, conforme se verá nos capítulos
quarto e quinto da presente Dissertação.

 2.3 – Aspectos Éticos8

A presente pesquisa foi devidamente submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa, do Instituto de


Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia (CEP/ISC/UFBA), bem como à Subcoordenadoria
de Capacitação e Desenvolvimento de Pessoal, da Coordenadoria de Gestão de Pessoas da Saúde,
da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador (SMS), havendo cumprido todos os requisitos devidos e
sido aprovada em todas as instâncias necessárias. A mesma considerou todas as diretrizes e normas
regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos, descritas nas Resoluções Nº 466/2012 e
Nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde. As normas éticas foram sempre respeitadas, inclusive
no sentido de esclarecer aos participantes da mesma os objetivos e benefícios que poderão advir deste
trabalho, bem como de assegurar aos mesmos que os riscos seriam os mínimos possíveis. Todos os
participantes da pesquisa receberam um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e um
Termo de Autorização para Gravação de Entrevista (TAGE), constando as informações sobre os
objetivos da pesquisa, métodos de produção dos dados e contatos para esclarecimentos. Ambos os
documentos foram assinados pelo pesquisador e por todos os participantes que concordaram em
participar da pesquisa, antes do início das atividades. Por fim, vale ressaltar que, aos participantes, foi
e permanecerá assegurado o caráter absolutamente sigiloso quanto aos dados que, porventura,
permitam a identificação dos informantes, sendo estes utilizados só para fins acadêmicos e científicos.

8 Conforme Parecer Consubstanciado do CEP/ISC/UFBA, de Nº. 2.420.373, e Carta de Anuência da SMS, de Nº. 068/2017.
67

CAPÍTULO 03: DA REVISÃO SISTEMÁTICA DE LITERATURA

Neste capítulo, será apresentada a Revisão Sistemática de Literatura necessária à execução do


presente projeto, conforme o modelo proposto por Galvão e Pereira (2014) e correlacionada tanto às
etapas basais da Análise de Narrativas de Fritz Schütze (1976; 2014), quanto aos objetivos específicos
do presente estudo. Para tal, o texto se apresentará estruturado em dois distintos subtópicos, a saber:
(3.1) Caracterizações Iniciais da Revisão Sistemática de Literatura; e (3.2) Saúde Mental e Relações
Raciais: Enredos Históricos e Tramas Contemporâneas.

 3.1 – Caracterizações Iniciais da Revisão Sistemática de Literatura

Para a construção da presente Revisão Sistemática de Literatura, partimos dos pressupostos


escalonados por Galvão e Pereira (2014), onde se diz que esta forma de produção acadêmica diz
respeito a “um tipo de investigação focada em questão bem definida, que visa identificar, selecionar,
avaliar e sintetizar as evidências relevantes disponíveis” quanto a um determinado tema pré-
selecionado e de interesse do pesquisador (GALVÃO; PEREIRA, 2014 p. 183). Desta maneira, a
Revisão Sistemática de Literatura, seguindo passos bem estruturados, possibilita ao pesquisador a
construção de um bom panorama sobre o Estado da Arte acerca do tema de sua seleção, a partir dos
contextos temporais e espaciais definidos por ele.

No tocante a esta pesquisa, o principal objetivo desta Revisão de Literatura é, portanto, a partir
das principais bases de dados indexadas em Saúde Coletiva para o Brasil e para a América Latina,
traçar um perfil dos estudos transversais entre os campos da Saúde Mental e das Relações Étnico-
Raciais, tendo como parâmetro estudos publicados sem margem temporal delimitada (ou seja, a
qualquer época), mas disponíveis para livre acesso nas bases de dados consultadas e que sejam
derivados de pesquisas acadêmicas estritamente correlacionadas aos campos aqui já descritos.

Com fins à realização deste levantamento bibliográfico, em específico, foram, então,


selecionados quatro (04) descritores do vocabulário estruturado e trilíngue DeCS (Descritores em
Ciências da Saúde), instrumento criado pelo Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em
Ciências da Saúde, também conhecido pelo seu nome original como Biblioteca Regional de Medicina
(BIREME), centro especializado da Organização Pan-Americana da Saúde / Organização Mundial da
Saúde (OPAS/OMS).
68

Os descritores foram selecionados a partir dos eixos prioritários que compõem o núcleo temático
desta pesquisa, sendo estes: Saúde Mental / Mental Health (F02.418; N01.400.500; SP2.006.102;
SP4.001.002.043.034); Relações Raciais / Race Relations (I01.880.735.768); Serviços de Saúde
Mental / Mental Health Services ou Centros de Atenção Psicossocial (F04.408; N02.421.461;
SP2.031.267); e Racismo / Racism (F01.145.813.550.500; F01.145.813.629.625; F01.829.595.500;
I01.880.735.768.500)9.

Para a realização do levantamento, foram consultadas três (03) das principais bases de dados
indexadas em Saúde Coletiva no Brasil e na América Latina, a saber: o Portal de Periódicos da
CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior); o Portal da SciELO
(Scientific Electronic Library Online); e o Portal da BVS (Biblioteca Virtual em Saúde). Os descritores
foram combinados de acordo com o formato “Saúde Mental OR Serviços de Saúde Mental AND
(Descritor Complementar)”, agrupados segundo segue: (1) Saúde Mental OR Serviços de Saúde
Mental AND Relações Raciais; e (2) Saúde Mental OR Serviços de Saúde Mental AND Racismo. As
bases de dados foram acessadas no período compreendido entre Maio/2017 e Junho/2017.

Os resultados preliminares, logo, nos revelam o seguinte quantitativo de artigos encontrados:

Artigos Encontrados nos Bancos de Dados por


CAPES SciELO BVS TOTAL
Combinação dos Descritores

Saúde Mental OR Serviços de Saúde Mental


36 00 10 46
AND Relações Raciais

Saúde Mental OR Serviços de Saúde Mental


64 01 36 101
AND Racismo

TOTAL 100 01 46 147

Tabela 01: Resultados Preliminares do Levantamento Bibliográfico (Elaborada pelos Autores).

Enquanto critérios de inclusão e de exclusão, foram aceitos, em primeira instância, artigos


publicados sem margem temporal delimitada, em línguas portuguesa, inglesa e/ou espanhola,
necessariamente publicados em periódicos indexados às bases de dados escolhidas e cujos textos
estivessem disponíveis para acesso livre e integral. Em segunda instância, foram excluídos artigos que
não se ativessem aos descritores específicos da Saúde Mental e/ou dos Serviços de Saúde Mental, e
ainda que não trouxessem contribuições diretas ou indiretas à reflexão que envolve este eixo central.

9 Os códigos alfanuméricos apresentados junto a cada descritor dizem respeito às categorias hierárquicas do DeCS.
69

Conforme proposto por Galvão e Pereira (2014), os cento e quarenta e sete (147) artigos
encontrados preliminarmente foram analisados, a partir de seus objetivos, resultados e conclusões.
Feito isto, foi feita a primeira seleção, excluindo-se as repetições e duplicatas, bem como aqueles que
não se ativessem aos critérios de inclusão e exclusão já expostos. No entanto, cabe ressaltar que,
neste primeiro momento, do quantitativo preliminar de artigos encontrados nas bases de dados
indexadas, nota-se uma presença considerável de escritos que transversalizam o debate entre
raça/etnia e saúde de maneira mais ampliada, mas sem necessariamente se ater a elementos
correlatos à Saúde Mental. Pelos critérios de inclusão e de exclusão previamente apresentados, estes
artigos foram excluídos do presente levantamento bibliográfico.

Por fim, após a análise geral dos cento e quarenta e sete (147) artigos encontrados, e de acordo
com o objetivo específico que rege esta Revisão de Literatura, juntamente aos objetivos da presente
pesquisa e os critérios de inclusão e de exclusão indicados acima, chegamos a um quantitativo final de
vinte e dois (22) artigos selecionados, que efetivamente apresentam dados relevantes para a
Revisão de Literatura aqui em questão, em acordo com os descritores selecionados no DeCS. A estes,
para enriquecer a análise aqui proposta, somaremos alguns outros materiais bibliográficos, compostos
pelos livros e artigos já apresentados no primeiro capítulo desta Dissertação, por considerarmos que os
mesmos podem acrescentar relevantes contribuições para o debate que aqui se seguirá.

É importante salientar que o texto do próximo subtópico foi construído conforme as indicações
de Galvão e Pereira (2014): logo, dando continuidade à identificação e à seleção dos artigos que foi
apresentada neste primeiro subtópico, faremos agora uma avaliação e uma síntese de cada um dos
vinte e dois (22) artigos selecionados, evidenciando os principais achados e tendências dos mesmos.

 3.2 – Saúde Mental e Relações Raciais: Enredos Históricos e Tramas Contemporâneas

As caracterizações iniciais previamente apresentadas encontram respaldo ao observarmos


alguns estudos da última década (MCKENZIE, 2003; COOPER et al, 2005; KALCKMANN et al, 2007),
quando estes nos apontam que as pesquisas e a produção científica sobre a interface entre a raça e a
saúde têm crescido bastante ao longo das últimas décadas, inclusive diminuindo uma lacuna histórica
existente quanto ao estudo destas relações. Contudo, em alguns destes mesmos estudos, iremos
observar o reconhecimento de que segue ainda pouco estudada a relação direta que há entre as
questões étnico-raciais e a saúde psíquica, inclusive no sentido do acesso a bens e serviços de saúde
localizados como pertencentes ao campo da Saúde Mental (COOPER et al, 2005).
70

Lisa Cooper e colaboradores, em estudo publicado em Baltimore, nos Estados Unidos, no ano
de 2005, apontam que há crescentes evidências de que grupos étnicos minoritários recebem uma
assistência em saúde de menor qualidade, resultante de relações interpessoais estabelecidas de
maneira diferenciada, frente ao atributo raça/cor, quando comparamos sujeitos brancos e não-brancos.
Esta diferença, segundo apontam, reverbera na própria possibilidade de acesso à saúde pública, na
medida em que a maneira como estas relações se desenham – diferenciadas e permeadas por
elementos racistas – influencia as díades clínica-comunidade, clínica-clínica e clínica-paciente,
podendo influir diretamente nas práticas profissionais ofertadas à sociedade. Note-se: “Em resumo, a
literatura existente demonstra vários aspectos relacionais que são influenciados pela raça e/ou
etnicidade dos participantes no cuidado em saúde” (COOPER et al, 2005, p. S25, tradução nossa).

Isso ganha força se observamos o que nos aponta Kwame McKenzie (2003), ao afirmar que o
racismo é um fenômeno comum, e que “acredita-se que disparidades entre minorias étnicas e grupos
majoritários, no que tange à moradia, educação, prisões e sentenças judiciais, são decorrentes do
racismo, e não apenas de forças econômicas” (MCKENZIE, 2003, p. 65-66, tradução nossa). O autor
nos diz ainda que estudos longitudinais realizados nos Estados Unidos evidenciam a relação que há
entre a percepção da discriminação racial sofrida e o prejuízo em quadros como hipertensão, aumento
de peso, autocuidado, etc., ao longo da vida – afirmação também presente em outros estudos, como o
Grandner et al (2012) e Tobler et al (2013), onde se apontam mais especificamente os agravos à saúde
psíquica das populações não-brancas. Considera-se, para tal, que estes processos tenham relação
com o estresse resultante da vivência da discriminação racial – elemento já apresentado em estudo
brasileiro, realizado por Faro e Pereira (2011) – e que os sistemas públicos de saúde devem ter um
compromisso estabelecido com o enfrentamento destas disparidades, haja vista a sua existência
enquanto “arte e ciência de prevenir doenças, prolongar a vida e promover saúde, frente aos
esforços da sociedade organizada” (MCKENZIE, 2003, p. 66, tradução nossa, grifo nosso).

McKenzie (2003), ao analisar as condições deste debate na realidade do Reino Unido, questiona
que, se são sabidas as consequências à saúde em decorrência do problema representado pelo
racismo, quais os reais entraves à sua superação? Questiona ainda em como é possível pensar em
equidade na saúde se um dos principais problemas para se alcançar tal ponto se dá exatamente pela
experiência do racismo vivenciada continuamente por grupos étnicos minoritários, sendo este problema
o foco ainda de poucos estudos e esforços no sentido da criação de estratégias de prevenção.

Faro e Pereira (2011), no que segue o disposto por McKenzie (2003) ao apontar o estresse
oriundo do racismo como elemento “prejudicial” à saúde, nos apontam novos e maiores elementos. Em
71

estudo realizado no ano de 2011, nos estados brasileiros da Bahia e de Sergipe, os autores nos
apresentam a ideia de que iniquidades em saúde existem globalmente, mas que há peculiaridades na
forma como se estruturam estas iniquidades, notadamente a partir da relação entre os diferentes
elementos que as constituirão (como demarcação espacial-territorial, por exemplo). Demarcam que as
condições de vida e morte de uma população se revelarão díspares ao observar extratos sociais
específicos, tidos como grupos minoritários, e que até se espera que haja certas diferenças nos
níveis de desigualdade na distribuição dos recursos sociais, mas que o tamanho dessas
disparidades e seus efeitos na saúde devem nos chamar a atenção, alertando-nos para os efeitos
nocivos que a iniquidade pode acarretar à saúde destes segmentos sociais minoritários – elemento que
se confirma nos estudos de McKenzie (2003) e de McKenzie e Bhui (2007).

Esses autores irão sinalizar que as iniquidades em saúde irão resultar em mais altos índices de
adoecimento físico e mental para os segmentos sociais por estas mesmas iniquidades acometidos, a
exemplo de pior qualidade de vida, restrição no acesso às tecnologias em saúde e maiores
riscos de morrer prematuramente ou de serem acometidos por doenças graves. Partirão, então,
do princípio de que as diferenças dos perfis de saúde dos grupos sociais extrapolam a própria
compreensão que temos sobre as diferentes desigualdades sociais, alcançando diretamente a
conformação dos processos saúde-doença-cuidado destas populações, resultando na definição
propriamente dita de iniquidades em saúde. Com efeito, “estas estão imbricadas em processos
psicossociais que influenciam marcantemente os determinantes da saúde, criando iniquidades na
distribuição social do adoecimento, inclusive, na distribuição social do estresse” (FARO;
PEREIRA, 2011, p. 272, grifo nosso).

Em seguida, ao apresentarem uma série de dados e estudos que revelam as iniquidades em


saúde analisadas segundo o critério raça/cor, Faro e Pereira (2011) irão então concluir que há uma
manifestação quase sempre presente de que sujeitos não-brancos apresentarão maiores condições
vulnerabilizantes para a sua saúde do que os sujeitos brancos, apontando a existência do que eles vão
chamar de “Ideologia da Branquitude” – ou, como temos chamado neste estudo, Ideologia Branca,
conforme vemos em Schucman (2010; 2014). Nesse ínterim, acusam que os indivíduos pertencentes à
raça branca são detentores de um lugar social historicamente construído, marcado pelo privilégio, onde
o próprio referencial de sucesso estará diretamente associado a ser ou não ser branco, deixando aos
demais segmentos sociais não-brancos a marca do insucesso e do adoecimento físico e
psíquico inerente à sua condição de inferioridade – ponto que também se afina à compreensão do
racismo segundo as perspectivas histórica e biopolítica que aqui discutimos, com destaque aos
72

estudos sobre a eugenia, como vimos em Schwarcz (1993), Souza (1983), Castelo Branco (2004;
2009), Teshainer e Küller (2005), Candiotto e D‟Espíndula (2012), Passos (2013) e Costa (2015).

Faro e Pereira (2011) concluem, assim, que os elementos racistas que serão produzidos a partir
dessa sectarização social estarão diretamente relacionados à experiência de um adoecimento mental
cada vez maior entre os segmentos não-brancos, possivelmente oriundo do estresse motivado pelo
racismo – o que se confirma no estudo de Rostain, Ramsay e Waite (2015), onde estes afirmam que o
racismo perpassa a própria conformação histórica da relação entre a psiquiatria e a compreensão
científica sobre a saúde e o adoecimento psíquico dos adultos afro-americanos, na realidade
estadunidense. Este processo se revelará na própria produção do saber em psiquiatria (tomada como
recorte do saber médico que se debruça sobre a Saúde Mental), que se apresentará, em diferentes
contextos, igualmente influenciado pela existência do racismo – haja vista os estudos, também aqui
apresentados, sobre o desenvolvimento da eugenia como projeto científico e político de sociedade.

No contexto internacional, Walter W. Shervington, em estudo realizado em São Francisco, na


Califórnia, no ano de 1976, já acusava a negligência em perceber os efeitos nefastos do racismo e
apontava a necessidade de continuar batalhando para que o tema jamais saísse de voga. Acusava que
a psiquiatria não só foi cúmplice no processo de manutenção da lógica racista vigente no contexto das
sociedades americanas, mas também que a mesma teve um “ativo envolvimento na perpetuação do
racismo individual e institucional” (SHERVINGTON, 1976, p. 91, tradução nossa, grifo nosso).

O autor toma como base estudos anteriores realizados nos Estados Unidos – a exemplo dos
estudos de Thomas e Sillen, realizados em 1972, em Nova York, e de Willie, Kramer e Brown,
realizados em 1973, em Pittsburgh. Ao analisar estes estudos, Shervington (1976) nos dirá que a
Psiquiatria Americana, na relação com o racismo e a população afro-americana, se estruturou em torno
de duas concepções básicas: (1) a de que pessoas negras nascem com cérebros inferiores e com
limitada capacidade de desenvolvimento mental; e (2) a de que pessoas negras têm uma tendência a
possuir uma personalidade “anormal”, seja por natureza ou por estímulo – acepções que já vimos ao
estudar as teorias frenológicas e antropométricas (SCHWARCZ, 1993; CORRÊA, 2013).

Shervington (1976) nos aponta que essas concepções foram o sustentáculo de uma série de
teorias outras (não apenas estadunidenses, mas também europeias) que influenciaram o próprio fazer
psiquiátrico – mas também o de outros campos profissionais da saúde – em uma direção médico-
eugênica, que vai desde a afirmação da tendência de crianças moradoras do subúrbio (em sua maioria,
negras) em desenvolver quadros de comportamento antissocial, até a suspeita de que crianças
73

negras fossem geneticamente inferiores e que, por estas e outras razões, as populações negras ou
pobres e marginais seriam inapropriadas para um trabalho psicoterapêutico mais aprofundado.

Se tomarmos como base a realidade brasileira, veremos, mais uma vez, a partir do exemplo da
Escola Baiana de Antropologia, que os estudos de Nina Rodrigues não se distanciam muito do legado
histórico da psiquiatria estadunidense apresentado por Shervington (1976). Podemos visualizar isto no
que já nos foi apresentado por Schwarcz (1993), ao sinalizar que a tentativa de compreender o
fenômeno da miscigenação racial no Brasil resultou, entre as últimas décadas do século XIX e as
primeiras do século XX, na consolidação de um pensamento médico-eugênico fundamentado na
degenerescência da raça negra, calcado na teoria do darwinismo social, amplamente defendido pelo
antropólogo e psiquiatra brasileiro Nina Rodrigues.

O que Shervington (1976) vai nos apontar, e se confirma em estudos brasileiros mais atuais
produzidos no campo dos saberes antropológico, psiquiátrico e psicológico – vide Hofbauer (2003),
Munanga (2004), Faro e Pereira (2011), Batista, Werneck e Lopes (2012) e Zamora (2012) – é que o
racismo funciona como uma espécie de “engrenagem da fábrica de nossa sociedade”, de tal
maneira que não é possível para qualquer um de nós crescermos sem ter presente esta incorporação,
ideia já apresentada ao analisarmos os estudos de Foucault (1979; 1993) sobre a biopolítica e o
racismo de Estado. Exceção aqui seja feita, conforme nos diz o mesmo autor, a casos de
agrupamentos sociais onde este processo é minimizado por movimentos de reforçamento dos atributos
étnico-raciais não-brancos, a exemplo dos movimentos “Black Is Beautiful” e “Black Power”, e de
organizações políticas de empoderamento acerca de seu pertencimento étnico-racial, a exemplo do
“Black Panther Party for Self-Defense” (ou, como ficou conhecido no Brasil, “Movimento dos
Panteras Negras”, que possui todo um legado de contribuições ao sistema público de saúde dos
Estados Unidos, conforme nos apresenta Alfredo Morabia, em estudo complementar publicado em
2016, pela revista Journal of Public Health, da Oxford Academic)10.

Shervington (1976) concluirá indicando que os estudos alicerçados no racismo seguirão


influenciando a psiquiatria desde a conformação dos modelos de assistência em saúde pública, de tal
maneira que terão impacto direto no modo de organização e acesso das comunidades negras a
diferentes serviços de atenção à saúde, destacadamente à Saúde Mental. Apontará também que este
processo associa-se a uma construção classista e elitista de sociedade, o que dificulta ainda mais o

10 Para maiores informações acerca das contribuições do Movimento dos Panteras Negras ao sistema público de saúde dos
Estados Unidos, ver o seguinte estudo: MORABIA, Alfredo. Unveiling the Black Panther Party Legacy to Public Health. Am.
J. Public Health., v. 106, n. 10, p. 1732-1733, 2016. Não há tradução para a língua portuguesa.
74

enfrentamento ao racismo e suas disparidades, haja posta a própria dificuldade disciplinar em construir
discursos integrados entre os diferentes campos de saber-fazer da saúde, no sentido de colaborar com
este enfrentamento.

Os efeitos atuais do que Shervington (1976) apontava podem ser bem observados nos estudos
de Gabbidon et al (2014) e McKenzie e Bhui (2007). Jheanell Gabbidon e colaboradores, em estudo
epidemiológico transversal realizado em Londres, no Reino Unido, no ano de 2014, entrevistaram cerca
de duzentos (200) usuários de serviços públicos de Saúde Mental, na tentativa de acessar suas
experiências de discriminação sofridas e suas possíveis atribuições, particularmente relacionadas ao
adoecimento mental ou à raça/etnia. Os dados encontrados nos revelam informações-chave:

A maioria dos participantes (88%) relatou discriminação em pelo menos um contexto de vida,
sendo que 94% relataram ter sofrido discriminação diária. Os locais mais comuns de grande
discriminação foram nos serviços de saúde mental (44%), entre os vizinhos (42%), a
polícia (33%), o emprego (31%) e em serviços de cuidados médicos em geral (31%). As
atribuições mais comuns para a discriminação sofrida foram o adoecimento mental (57%),
a raça-etnia (24%), a educação ou renda (20%) ou a aparência (19%). Quase metade
(47%) atribuiu experiências de discriminação a duas ou mais causas (GABBIDON et al,
2014, p. 1360, tradução nossa, grifo nosso).

Os dados coletados por Gabbidon et al (2014) revelam o resultado de um processo histórico de


perpetuação da lógica racista dentro dos serviços que deveriam oferecer cuidado em Saúde Mental.
Apesar de não serem identificadas diferenças na comparação da discriminação sofrida entre os
diferentes grupos étnicos minoritários, nesta pesquisa, o pertencimento étnico-racial é percebido
como marcador de diferenciação no tratamento e na discriminação sofrida pelos sujeitos
entrevistados. Ainda que não tenham sido reportadas grandes diferenças entre determinados grupos
minoritários, ao serem analisados os dados de maneira mais esmiuçada, observa-se que diferentes
grupos sociais negros, por exemplo, têm uma percepção da discriminação sofrida maior do que outros
(a exemplo da comparação entre a discriminação percebida entre grupos negros caribenhos e grupos
negros britânicos, onde a percepção desta discriminação é consideravelmente maior nos primeiros
grupos). Dessa feita, o estudo em questão, ao analisar a realidade do Reino Unido, conclui que:

[...] a discriminação relacionada ao adoecimento mental continua a ser uma questão comum
em vários grupos étnico-raciais e que a discriminação baseada na raça-etnia também foi
prevalente para os grupos mistos e negros. Há uma necessidade de estratégias
antidiscriminatórias direcionadas que combinem esforços para reduzir a experiência
da discriminação atribuída à doença mental e étnico-racial para grupos étnico-raciais
minoritários (GABBIDON et al, 2014, p. 1366, tradução nossa, grifo nosso).

Os achados de Gabbidon e colaboradores encontram ressonância nos estudos de Kwame


McKenzie e Kamaldeep Bhui (2007). Em pesquisa realizada também no Reino Unido, com cerca de
75

trinta (30) mil usuários de serviços de Saúde Mental, entre as redes pública e privada, foi observado
que cerca de 21% dos usuários destes serviços eram classificados como negros ou
pertencentes a demais grupos étnicos minoritários, ainda que estes representassem apenas 7%
do total populacional compreendido pela Inglaterra e demais ilhas que, então, compunham a
totalidade do Reino Unido11. Os dados apontam ainda que pessoas de grupos étnicos minoritários,
como os negros africanos, os negros caribenhos e os brancos e negros caribenhos pertencentes a
grupos mistos têm índices de admissão nestes serviços cerca de três vezes maiores que os sujeitos
brancos britânicos, os indianos e os chineses. No que tange à internação involuntária, os dados são
ainda mais alarmantes:

Não só as pessoas nesses três grupos [os negros africanos, os negros caribenhos e os
brancos e negros caribenhos pertencentes a grupos mistos] eram mais propensas a serem
admitidas no hospital, mas as já internadas eram cerca de 19-39% mais propensas a terem
sido admitidas involuntariamente. Uma vez no hospital, as pessoas que se definiram
como negros caribenhos tiveram a maior permanência (MCKENZIE; BHUI, 2007, p. 649,
tradução nossa, grifo nosso).

McKenzie e Bhui (2007) questionam a associação entre esses dados e os censos realizados à
época no sentido da análise do crescimento de determinados quadros psicopatológicos, ponderando
que o aumento destas internações, em determinados momentos, pôde não estar diretamente
associado ao aumento dos índices de determinados quadros psicopatológicos para a região, como é o
caso da psicose. Não obstante, segundo apontam, os resultados apresentados fazem coro às
crescentes evidências de que há inegáveis diferenças étnico-raciais no tratamento da doença mental.
Apontam que, para alguns grupos negros e étnicos minoritários, há uma menor propensão à oferta
de psicoterapia, por exemplo, ainda que, na contrapartida, haja um maior estímulo à oferta de
drogas psicotrópicas e de tratamentos orientados pela coerção, mesmo que as diferenças
socioeconômicas e diagnósticas sejam também levadas em conta.

O estudo paulista de Sônia Barros e colaboradores pode nos trazer instigantes contribuições
comparativas entre a realidade brasileira e as realidades apresentadas nos estudos internacionais aqui
descritos. Em um dos raros estudos nacionais que se debruçam sobre a construção de perfis
epidemiológicos analisados segundo o critério raça/cor, tendo como recorte analítico o campo da
Saúde Mental, Barros e colaboradores apresentam-nos dados oriundos de uma pesquisa realizada no

11Esse é um dado que inscreve um paradoxo, porque a admissão pode dever-se a terem mais pessoas desse grupo que
adoecem, ou ao fato de pessoas negras serem mais diagnosticadas com doença mental. Por outro lado, se observamos
pelo lado da acessibilidade, elas estão adentrando serviços comunitários, e não só hospitalares. Há estudos, explorados na
presente pesquisa, que mostram que pessoas negras têm menos acesso a tratamento, sobretudo quando este é de melhor
qualidade. Cabe a observação, para que não passemos desatentos quanto a tais melindres.
76

ano de 2014, no estado de São Paulo. Neste estudo, os autores objetivaram verificar o perfil dos
moradores dos hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo, analisado segundo o critério raça/cor,
cujos dados foram obtidos a partir do Censo Psicossocial de Moradores em Hospitais Psiquiátricos
Próprios e Conveniados pelo SUS do Estado de São Paulo, realizado em 2008, sendo selecionados os
casos de pacientes que estivessem com tempo de internação igual ou superior a um ano, a partir de
novembro de 2007. Vide:

Ao caracterizar o perfil dessa população, foi identificado que a população branca é


predominante nesses hospitais, totalizando 60,29% do total de moradores. No entanto, os
dados de raça/cor do censo demográfico do ano 2000 informam que 27,4% da população do
estado de São Paulo é preta e parda e na população moradora de hospitais psiquiátricos,
esse número alcançou 38,36%. Como resultados, constatou-se uma maior proporção de
negros que estão internados porque não têm renda e/ou lugar para morar. Essa
população possui uma rede social frágil (ibidem, p. 1235, grifo nosso).

Barros e colaboradores (2014) atribuem parte desta problemática visualizada ao histórico que há
na relação entre psiquiatria e racismo, onde este campo de saber, por muitas vezes, teria atuado
como cúmplice no acobertamento de lógicas institucionais patologizantes dos segmentos
negros (e não-brancos), quando não foi este mesmo campo de saber quem fundou estas tais
lógicas – contribuindo com o projeto de sociedade eugenista, conforme vimos em Shervington (1976),
Schwarcz (1993) e Oda e Dalgalarrondo (2000). Segundos estes autores, psiquiatras importantes do
período compreendido entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX teriam
contribuído diretamente na formulação de proposições científicas que apontassem para a natural
degeneração mental dos extratos sociais negros (a exemplo do já mencionado Nina Rodrigues, mas
também de outros nomes proeminentes à época, como os de Afrânio Peixoto e Henrique Roxo). O fato
é que algumas destas formulações acabaram por dar base ao surgimento de uma compreensão que,
conforme vimos, viria a ser nominada como “racismo científico” e que estruturaria sutis discursos de
ampliação das estratégias de controle e dominação social, frente aos “perigos” que os extratos sociais
negros representavam à higiene mental da sociedade brasileira. Deste reconhecimento histórico,
Barros e colaboradores (2014), ao tomarem os dados apresentados pelo Censo Psicossocial de
Moradores em Hospitais Psiquiátricos Próprios e Conveniados pelo SUS do Estado de São Paulo,
alicerçados nas ideias aqui já apresentadas, chegarão à conclusão de que:

[...] a população negra sofre historicamente processos ininterruptos de abandono e


apartamento social. O lugar por excelência do abandono e exclusão é o manicômio, assim
como outras instituições totais. Os dados consolidados comprovaram que à população
negra cabe a injusta posição de prioritária no ranking da exclusão social nos hospitais
psiquiátricos do estado de São Paulo (ibidem, p. 1240, grifo nosso).
77

Barros e colaboradores (2014) apontarão ainda alguns outros dados que ratificarão a tese de
que há um possível racismo sistêmico presente nas relações de cuidado estabelecidas no campo da
Saúde Mental, seja pelo reconhecimento da consequente precariedade social da tripla condição de ser
“preto”, “pobre” e “doido”, seja pela observação dos dados clínicos apresentados pelo Censo realizado,
e que chamam a atenção para a proporção de quadros de esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e
delirantes entre homens e mulheres, pretos e pardos.

Doravante, retomando os resultados apresentados no estudo de McKenzie e Bhui (2007), estes


afirmam, tal qual podemos visualizar nos estudos apresentados por Shervington (1976), Gabbidon et al
(2014) e Rostain, Ramsay e Waite (2015) – e endossados pelos estudos nacionais de Kalckmann et al
(2007) e López (2012) – que todos estes dados, quando observados à luz da relação histórica entre a
psiquiatria e o racismo para as sociedades ocidentais, revelam a construção de um tipo muito
específico de racismo que se incute à lógica organizacional dos dispositivos institucionais das
diferentes sociedades organizadas: o racismo institucional. Destarte, o definem como:

A falha coletiva de uma organização em fornecer um serviço apropriado e profissional às


pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica. Isso pode ser visto ou detectado em
processos, atitudes e comportamentos que equivalem à discriminação por meio de
preconceitos involuntários, ignorância, irreflexão e estereótipos racistas que prejudicam
pessoas em grupos étnicos minoritários (MCKENZIE; BHUI, 2007, p. 650, tradução nossa).

McKenzie e Bhui (2007) acusam, inclusive, que este processo não recebe a atenção merecida e
os devidos estudos, no sentido de possibilitar a efetiva superação do racismo e o estabelecimento de
uma equidade factível para o campo da saúde, por falta de interesse dos setores sociais hegemônicos
que se encontram nas posições privilegiadas de poder – acusação esta que já havia sido levantada
previamente por McKenzie em seu estudo anterior, de 2003, já mencionado neste texto, e que
encontrará ressonância em estudos internacionais outros, como os de Fennell (2005) e Ascoli et al
(2012), em estudos de cooperação técnica internacional, como o de Malagón-Oviedo e Czeresnia
(2014), e em estudos nacionais, como os de Munanga (2004), Kalckmann et al (2007) e López (2012).

Ampliando a discussão para a realidade da América Latina, Perreira e Telles, em estudo


realizado no ano de 2014, na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, analisaram as condições de
acesso à saúde por parte de povos latinoamericanos, destacadamente, a partir de dados do Project on
Ethnicity and Race in Latin America (PERLA), um estudo internacionalmente representativo de adultos
que vivem em quatro países da América Latina (Brasil, Colômbia, México e Peru). Eles buscaram
examinar as possíveis associações entre as categorizações étnico-raciais autoatribuídas e a
autoavaliação da própria saúde entre adultos latinoamericanos (com idades entre 18 e 65 anos).
78

Também buscaram examinar as possíveis associações entre estas categorizações étnico-raciais


autoatribuídas com três analisadores adicionais das condições de acesso à saúde – (1) discriminação
por cor de pele, (2) discriminação por classe social e (3) status socioeconômico.

Os resultados encontrados pelos autores são condizentes com pesquisas anteriores, realizadas
no contexto dos Estados Unidos e do Canadá, demonstrando que indivíduos de pele mais escura
costumam relatar condições de saúde física, mental e infantil inferiores aos indivíduos de pele
mais clara. Mais grave ainda, os indivíduos latinoamericanos que referem algum tipo de
ancestralidade indígena referem condições de saúde ainda mais baixas que os demais
indivíduos – o que, segundo os autores, também encontra respaldo na literatura estadunidense e
canadense, bem como em outros artigos encontrados no âmbito da presente pesquisa, a exemplo do
estudo espanhol de Susana Ramírez Hita (2014), antropóloga argentina.

Perreira e Telles (2014) identificam também uma considerável associação entre baixas
condições de saúde autorreferidas, discriminação racial e discriminação por classe social, afirmando
que, em geral, quando as duas formas de discriminação citadas se associam, há uma tendência a uma
ainda maior redução das condições de saúde. O mesmo ocorre para questões de acesso à educação,
onde se verifica que, quanto maior a possibilidade de acesso à mesma, melhores são as condições de
saúde autorreferidas. O estudo de Perreira e Telles (2014) chama-nos a atenção para a necessidade
de observar as dimensões que envolvem gênero, raça, classe social, educação, territorialidade e
cultura na análise das condições de saúde de uma determinada população. Nesse sentido, estes
mesmos elementos devem ser agregados para pensar o acesso à Saúde Mental, em específico, haja
posto que, como já demonstrado nos estudos de McKenzie (2003) e Faro e Pereira (2011), as
disparidades sociais que irão advir dos elementos sociais de diferenciação podem produzir
iniquidades em saúde que, em sua própria existência, acabem por ampliar o nível de estresse a
que determinados grupos étnicos minoritários estão acometidos, produzindo as condições
suficientes e necessárias ao adoecimento mental destes segmentos populacionais.

Como estratégia ao enfrentamento dessas disparidades, Fennell (2005) nos convoca a um


posicionamento de concretamente colocar os aspectos étnico-raciais e culturais presentes no jogo da
mediação e do encontro clínico com os sujeitos-foco dos sistemas de saúde, destacadamente aqueles
de Saúde Mental – o que encontra congruência com o que segue disposto por Ascoli e colaboradores
(2012). A autora sinaliza que é preciso utilizar estes elementos como mediadores potentes do encontro
clínico, na medida em que, ao respeitar e valorizar os elementos que subjetivamente costuram o
pertencimento étnico-racial de um determinado sujeito, abrimos margem para combater
79

disparidades e pensar a produção de saúde dentro das reais necessidades e demandas de cada
segmento populacional. Ao mesmo tempo, ela nos provoca, como outros autores e autoras já o
fizeram, a colocar esta questão como centro do debate na produção de dados acadêmicos e científicos
em saúde; ou seja, é preciso dar aos fenômenos inerentes às Relações Étnico-Raciais a devida
importância na articulação de novas formas de cuidar e não reificar os malefícios do racismo.
Note-se: “E, finalmente, precisamos de mais informações sobre como corrigir as disparidades
inadequadas que surgem do preconceito e dos estereótipos, embora reconheçamos que as diferenças
culturais podem ocasionalmente levar a conhecidas diferenças no cuidado” (FENNELL, 2005, p. 1720,
tradução nossa).

Chiara Pussetti, em estudo realizado em Portugal, em 2010, reforçará o que Fennell (2005) nos
provoca a construir, ao analisar as novas demandas clínicas que se apresentam à psiquiatria a partir
da experiência de ofertar cuidado em Saúde Mental a pessoas em processos migratórios. Pussetti
(2010) nos convoca a refletir sobre o quanto fluxos migratórios mexem na forma como são
institucionalizados os cuidados em Saúde Mental, haja vista que os mesmos, muitas vezes, são
construídos tendo por base as experiências da vida cotidiana dos segmentos sociais hegemônicos e
padronizados de acordo com um dado agrupamento social, de tal maneira que, ao nos depararmos
com a concretude da diferença, o que haverá será uma tendência à patologização – algo que pode
estar relacionado aos processos descritos por Gabbidon et al (2014) e McKenzie e Bhui (2007), na
realidade britânica, mas que são facilmente transpostos para outros contextos, a exemplo do Brasil.

Pussetti (2010) nos apontará que há movimentos que vêm tentando compreender estas
diferentes dinâmicas étnico-raciais e culturais e suas influências no cuidado em saúde, a exemplo da
Psiquiatria Transcultural – posteriormente ampliando-se e dando lugar à “Saúde Mental
Transcultural”12. Não obstante, ela afirma que estes movimentos serão ineficazes se o encontro
com os elementos étnico-raciais e culturais de determinados grupos étnicos minoritários não
ocorrer de maneira genuína e despida dos paradigmas eurocêntricos de mensuração do certo e
do errado – provocação esta que, por sua vez, nos remete à ideia apresentada por Michel Foucault e
destrinchada por Castelo Branco (2004), ao pontuar que o racismo se estrutura precisamente na
compreensão de que o mundo funciona dividido entre “o que o europeu tradicionalmente entende como
ocidente (civilização) e o resto do mundo (barbárie)” (CASTELO BRANCO, 2004, p. 136). Basta ver o
que reflete Pussetti (2010):

12Pondera-se que o uso da expressão “Saúde Mental Transcultural” pode revelar-se, de certa maneira, como reducionista,
haja posto que o movimento da Psiquiatria Transcultural é enorme e comporta grupos de autores muito distintos, o que faz
com que esta expressão seja, eventualmente, alvo de críticas.
80

Paradoxalmente, apesar das melhores intenções, mesmo os profissionais da Saúde Mental


Transcultural patologizam crenças culturais, comportamentos e práticas, lendo-os como
interpretações inadequadas de experiências humanas ou mesmo como sintomas de
problemas de Saúde Mental (PUSSETTI, 2010, p. 128, tradução nossa).

Essas preocupações apresentadas por Pussetti (2010) vão na mesma linha das inquietações
levantadas por Hita (2014), em estudo antropológico espanhol, ao problematizar os efeitos dos
fenômenos da globalização e da interculturalidade sobre as condições de vida das populações
indígenas, especialmente as da América do Sul: “A globalização reconhece a diversidade, mas, por sua
vez, propõe sua homogeneização em prol de uma suposta convivência harmônica dentro de um mundo
global” (HITA, 2014, p. 4062, tradução nossa).

Dessa afirmação inicial, Hita (2014) afirma que os povos serão “convocados” a uma coexistência
harmônica que pressuponha a supressão de determinados elementos que os diferenciam social e
culturalmente, intentando a produção de uma lógica comum de avanço coletivo – que, em verdade,
trata-se do modo de produção capitalista. Todavia, afirma não ser o propósito do capitalismo a
produção destes modos harmônicos de existência, mas sim a produção de modos padronizados de
produção de capital e consumo, que inequivocamente acabam por reverberar em aumento da pobreza
e prejuízos ao acesso à educação, ao trabalho e à saúde por parte das populações mais pobres.

Hita (2014) questiona a própria proposição de um modelo de Saúde Intercultural, haja posto que
o surgimento de um modelo com esta proposta, alicerçado no modo de produção capitalista, tenderá a
suprimir os modos de produção de saúde que rompem com os modelos biomédicos. Aqui, a autora
destaca os modos de produção de saúde das populações indígenas, que, ao se confrontarem com o
modelo biomédico ocidental de cuidado em saúde, só podem encontrar dois destinos: serem
suprimidos pelo saber biomédico ocidental ou serem absorvidos como mercadoria para a lógica
de consumo e produção de capital. Ambas as condições revelam muito mais a desestruturação da
saúde destes segmentos sociais minoritários do que a sua efetiva equidade e integralidade no acesso
à saúde – ponto em que a autora acusa o racismo presente na construção da ideia de uma saúde
global e intercultural construída nestes moldes. Desta feita, propõe que, para pensar a saúde dos
povos indígenas, é necessário, antes de tudo, valorizar seus aspectos culturais e sua territorialidade,
intentando produzir uma Saúde Ambiental que não deprede tanto os recursos naturais imprescindíveis
à sua sobrevivência, quanto sua própria história e ancestralidade: “Assim, não se deveria falar sobre
a melhoria da saúde dos povos indígenas, mas de melhorar suas condições de vida, de acordo
com as decisões de produção e reprodução que adotem tanto a nível simbólico como na vida
econômica, política ou social” (HITA, 2014, p. 4068, tradução nossa, grifo nosso). Ora, a proposição
81

apresentada por Hita (2014) vai na mesma direção dos poucos estudos brasileiros disponíveis nas
bases de dados indexadas e que tratam das condições de Saúde Mental de grupos étnicos minoritários
– no sentido de reforçar que a tentativa de homogeneizar as demandas em saúde pode representar
precisamente o pacto racista que busca sempre manter a centralidade hegemônica do que é
interessante para os extratos sociais que detêm o poder; ou seja, para os extratos sociais brancos e de
orientação ocidental e/ou eurocêntrica (FREITAS et al, 2011; ROCHA; ALELUIA; 2015).

Na continuidade da análise dos artigos selecionados, cabe uma especial ponderação quanto aos
estudos brasileiros. Veremos que, para o presente levantamento bibliográfico, cujos descritores já
foram outrora apresentados, evidenciou-se que uma parcela substancial dos poucos escritos brasileiros
que se debruçam sobre a interface aqui trabalhada vai analisar as condições de saúde de
comunidades tradicionais, com destaque absoluto para a realidade dos quilombos brasileiros – vide
Gomes (2010), Freitas et al (2011), Barroso, Melo e Guimarães (2014), Cardoso, Melo e César (2015),
e Oliveira et al (2015). Dos sete (07) únicos estudos brasileiros encontrados, quatro (04) abordarão a
realidade específica de comunidades quilombolas brasileiras, um (01) abordará aspectos envolvendo
religiões de matriz africana e dois (02) abordarão pesquisas de cunho mais epidemiológico específicas
quanto à relação entre Saúde Mental e raça/etnia – este últimos sendo os estudos de Sônia Barros e
colaboradores (2014) e de Faro e Pereira (2011), já apresentados acima.

Freitas e colaboradores, em estudo de cooperação técnica internacional entre o Brasil e a


Colômbia, realizado em 2011, buscaram investigar as principais produções publicadas a partir do ano
de 2000, no que tange à saúde das comunidades quilombolas. Neste estudo, identificaram que as
comunidades quilombolas figuram como um dos segmentos sociais mais violados em seus
direitos, elemento de permanência histórica que segue o legado decorrente do processo de
escravização de negros no Brasil, sendo esta uma marca que ainda prejudica o seu direito à saúde
integral junto ao Sistema Único de Saúde (SUS). Afirmam que estas dificuldades de acesso têm
relação direta com a estrutura racista que, por muitas vezes, incute-se na organização das diferentes
instituições públicas – elemento a que aqui já nominamos como racismo institucional (MCKENZIE;
BHUI, 2003) – e que seu enfrentamento pressupõe uma mudança radical de posição frente ao
fenômeno do racismo no Brasil. Assim, nos dizem:

O assunto „saúde de quilombolas‟ é extremamente novo e ainda há muito por debater


e avançar neste caminho. A literatura demonstra que ainda existe uma grande disparidade
na Atenção à Saúde no Brasil, e que é necessário o envolvimento social e profissional para
alteração desta realidade. [...] É fundamental que todas as profissões de saúde despertem
para este grande desafio, e possam se unir numa corrente inter, multi e transdisciplinar,
aumentando a proximidade a importantes grupos de brasileiros que, por uma motivação
82

triste de nosso passado, estiveram e ainda estão excluídos do processo atual de


desenvolvimento (FREITAS et al, 2011, p. 940-941, grifo nosso).

Os estudos de Cardoso, Melo e César (2015) e Oliveira et al (2015) vão ratificar o que foi
colocado por Freitas et al (2011). Cardoso, Melo e César (2015) desenvolveram um estudo acerca da
prevalência do consumo moderado e excessivo de álcool e seus fatores associados entre residentes
de comunidades quilombolas do município de Vitória da Conquista, no sudoeste do estado da Bahia.
Já Oliveira e colaboradores (2015) desenvolveram um estudo sobre a autopercepção de saúde entre
membros de comunidades quilombolas do norte de Minas Gerais.

No primeiro estudo não se identificam diferenças determinantes na prevalência do consumo de


álcool para as comunidades estudadas no sudoeste baiano, em comparação com outras pesquisas
nacionais realizadas junto a outros centros urbanos – mas se aponta a absoluta ausência de estudos
na área e a necessidade de aprofundar este tipo de pesquisa, no sentido de cuidar da Saúde
Mental destas comunidades13. Já no segundo estudo foi identificada uma alta prevalência de
autopercepção de saúde negativa por parte da população quilombola do norte de Minas Gerais, que é
possivelmente atribuída a variáveis como idade, escolaridade, hipertensão, diabetes, artrite/artrose,
depressão e problemas de coluna, mas também, e, sobretudo, ao isolamento geográfico e à
iniquidade racial à qual estão submetidas as diferentes comunidades quilombolas. Oliveira e
colaboradores (2015) avançam nesta análise, na medida em que também apontam as disparidades em
saúde para a população negra no Brasil, que estão presentes desde as dificuldades de acesso aos
sistemas públicos de cuidado em saúde, até a “carência de estudos nacionais que avaliam saúde
da população negra de modo geral” (OLIVEIRA et al, 2015, p. 2883, grifo nosso) – compreensão
esta que comunga das mesmas proposições de Freitas et al (2011) e Cardoso, Melo e César (2015).

Por sua vez, temos as contribuições dos estudos de Gomes (2010) e Barroso, Melo e Guimarães
(2014). Gomes (2010) realizou um estudo a partir das experiências vivenciadas no Projeto “Ylê Ayiê
Yaya Ilera”, no município do Rio de Janeiro/RJ, que consistiu na implantação de um serviço de saúde
vinculado a um terreiro de Candomblé da região. Já Barroso, Melo e Guimarães (2014) desenvolveram
uma pesquisa populacional, transversal, com cerca de setecentos (700) participantes, selecionados
aleatoriamente em cinco comunidades quilombolas do município de Vitória da Conquista, intentando
estimar a prevalência e os fatores associados à triagem positiva para depressão nestas comunidades.
Os dados de ambos os artigos nos revelam informações complementares relevantes.

13 Pondera-se que esta ausência aparece, principalmente, quando o descritor “racismo” é requisitado, haja posta a
existência de um número mais expressivo de estudos sobre uso problemático de álcool em populações indígenas.
83

Primeiramente, Gomes (2010) irá nos sinalizar a extrema relevância que há em construir
serviços de saúde estruturados de acordo com as demandas sinalizadas pela sua população-foco,
ainda que haja inúmeros entraves e empecilhos que sugerem um racismo velado e silencioso, porém
também de cunho institucional, quando tratamos da realidade específica de grupos étnico-raciais
minoritários. Afirma, doravante, que não bastam leis e projetos institucionais para efetivar a
superação da lógica racista de desassistência que acomete a população negra em todas as
suas expressões – seja pelos vieses territoriais, no contexto das comunidades quilombolas, seja pelos
vieses religiosos, no contexto das religiões de matriz africana, como o Candomblé, a Umbanda e o
Vodu. A autora afirma que só é possível conjeturar mudanças concretas na oferta de cuidados em
saúde à população negra no Brasil a partir de uma mobilização para a mudança das práticas
profissionais.

[...] a organização da rede de saúde ainda desfavorece o acesso a todas as ações e


serviços para a população negra e de religião de matriz afro-brasileira, e não é
possível mudar a realidade por meio apenas de projetos e leis. Alguns gestores e
profissionais não se sentem responsáveis pela desigualdade e pobreza, assim não estão
comprometidos/solidários com essas mulheres e suas famílias. [...] É necessário que sejam
construídos vínculos e responsabilização entre os serviços de saúde e a população
para garantir equidade e integralidade (GOMES, 2010, p. 669, grifo nosso).

Em seguida, o estudo efetuado por Barroso, Melo e Guimarães (2014) aponta que a prevalência
de episódios depressivos na população quilombola foi semelhante à da população geral brasileira;
entretanto, os autores sinalizam que isto pode estar relacionado à própria dificuldade em estabelecer
parâmetros fidedignos que permitam mensurar estas questões de acordo com a realidade específica
destas comunidades. Logo, apontam que outros estudos encontrados, em análises mais ampliadas,
revelam que as comunidades quilombolas estão acometidas pelas mesmas precárias condições
sanitárias e de segurança que outras populações vulneráveis do país comungam, sendo um de seus
principais problemas a cobertura de saúde ruim ou inexistente. Os autores sinalizam que esse pior
acesso aos serviços de saúde indica uma considerável perda de oportunidades para o diagnóstico
precoce, nesses casos, sendo que “ações públicas de combate à desigualdade social e de saúde
devem ser implantadas para garantir a equidade nessas comunidades” (BARROSO; MELO;
GUIMARÃES, 2014, p. 256, grifo nosso). Não obstante, os autores sinalizam, tal qual Gomes (2010),
que não é possível conjeturar mudanças concretas na assistência oferecida se não for possível
produzir nos profissionais um compromisso com a superação das lógicas racistas que seguem
subjacentes à costura destas relações, sob o risco de que as ações propostas não se efetivem pela
falta da implicação política e profissional das equipes de saúde.
84

Esses últimos estudos apresentados abrem margem para que possamos produzir algumas
amarrações. A priori, fica evidente que há uma lacuna nos estudos sobre Saúde Mental e racismo
no Brasil, que se aprofundem na realidade cotidiana da experiência negra (ou, mais
amplamente, da experiência não-branca) urbana. A maior existência de estudos que se debruçam
sobre a realidade das comunidades quilombolas se justifica, em parte, pelo reconhecimento destas
comunidades como uma das principais expressões da desigualdade social e de acesso à saúde no
Brasil, ponto que indubitavelmente apresenta-se como produtor de sofrimento psíquico e que, como tal,
necessita ser mais bem investigado, no sentido da superação da problemática em questão. Outrossim,
podemos pensar de maneira similar no que tange à experiência vivenciada pelas religiões de matriz
africana, a exemplo do Candomblé, da Umbanda e do Vodu. Contudo, a ausência de maiores estudos
nacionais que reflitam essas experiências vivenciadas no cotidiano das relações sociais e, mais
particularmente, das relações institucionais nos espaços urbanos, nos revela uma possível presença do
racismo à brasileira, propriamente dito. Ora, não é objetivo deste silenciar as pautas que podem,
sobremaneira, levar à gradativa superação do racismo enquanto lógica de organização social e
de controle dos corpos, das vidas e das mortes?14

Aqui, cabe retomar a provocação de Schucman (2010; 2014): é preciso romper com o pacto
racista. Este é um pacto de subalternização dos segmentos sociais não-brancos, mas também um
pacto de silêncio e silenciamento, de não dar a devida visibilidade a questões que estruturam
mecanismos de morte e apagamento de vidas consideradas desviantes às normas sociais impostas
pelo capital e pelo modo de organização social pautado nos modelos eurocêntricos de sociedade,
conforme também nos acusam Foucault (1979; 1993), Schwarcz (1993) e Barros et al (2014): “[...] há
que se perguntar o quanto do pensamento eugênico ainda impregna a formação na área da
saúde, contribuindo na representação social dos profissionais sobre o louco e a loucura”
(BARROS et al, 2014, p. 1245, grifo nosso).

Apresentados os artigos selecionados, buscamos concluir este tópico apresentando uma breve
síntese das principais tendências que os mesmos revelam.

14Apesar do questionamento apresentado, reconhece-se o necessário cuidado em grandes generalizações, haja vista que a
presente Revisão Sistemática de Literatura não pôde levar em conta muitos livros escritos que, talvez, se debrucem com
mais efetividade acerca da interface aqui trabalhada, lacuna onde se situa boa parte da produção de estudos
socioantropológicos, por exemplo. De todo modo, como visto, há, sem dúvida, uma boa parte da ciência que coaduna com
esse pensamento racista, reforçando a visão de que o racismo à brasileira (TELLES, 2003) pode ter grande expressão na
produção científica sanitária brasileira.
85

Primeiramente, não se pode desconsiderar o imenso vazio de artigos correlacionados a


pesquisas de origem nacional. Os poucos encontrados, como visto, para além de enfocarem muito
mais a realidade de comunidades tradicionais, apontam para o fato de que muito pouco se sabe,
nacionalmente, em termos da realidade epidemiológica quanto à questão racial na institucionalização
da loucura. Se em termos dos estudos históricos o que se visualiza é um vazio, em termos dos estudos
sanitários, os artigos de Sônia Barros e colaboradores (2014) e de Faro e Pereira (2011) são,
certamente, dois marcos – haja vista o fato de, nesta pesquisa, terem sido os únicos deste perfil
encontrados nas bases de dados.

Já internacionalmente, veremos uma predominância dos artigos estadunidenses e britânicos,


com alguns poucos estudos latinoamericanos quanto à temática aqui proposta. Nestes, a inclinação
maior se dá aos estudos epidemiológicos de tipo transversal e/ou longitudinal, com alguns poucos
debruçando-se sobre os aspectos históricos do fenômeno racista na Saúde Mental – o que confere ao
artigo de Walter W. Shervington (1976) uma suma importância, ao servir como parâmetro de
comparação para a realidade de outros países, inclusive a brasileira. Em mesma medida, chama a
atenção o fato da maioria dos estudos refletir a realidade das populações negras e de ascendência
africana, em detrimento de um maior estudo quanto às experiências indígenas – ainda que saibamos
ser vasta a concentração de estudos sobre saúde da população indígena para alguns países da
América do Sul. A isto, talvez, possamos salientar que a ausência dos descritores “Etnicidade” e
“Grupos Étnicos” possa ter impactado nos artigos encontrados, mas não exclui a observação da
ausência destes estudos diante dos quatro (04) descritores selecionados previamente informados.

Em suma, e a despeito destas limitações, os artigos encontrados e selecionados nos conferem


um bom panorama do estado atual das pesquisas envolvendo os campos da Saúde Mental e das
Relações Étnico-Raciais, condição esta que contempla o objetivo de realização da presente Revisão
Sistemática de Literatura, pois dará base a boa parte das análises e discussões que faremos a seguir,
ao comparar estes resultados com a Fundamentação Teórica do presente estudo e com os dados
produzidos ao nível da pesquisa de campo – conforme veremos ao longo dos próximos dois capítulos.
86

CAPÍTULO 04: DA ANÁLISE DAS NARRATIVAS PRODUZIDAS

Neste capítulo, serão apresentados os principais achados referentes às Entrevistas Narrativas


realizadas, estruturando-se na identificação, como apontado pelos pressupostos de Schütze (1976;
2014), Jovchelovitch e Bauer (2002) e Muylaert et al (2014), das Trajetórias Individuais e das
Trajetórias Coletivas entre as narrativas dos profissionais entrevistados. Desta estruturação, procura-
se, ao final, apontar os principais Desfechos Analíticos, para que, no capítulo seguinte, possamos,
então, costurá-los junto aos marcos teórico-conceituais desenvolvidos ao longo da Fundamentação
Teórica e da Revisão Sistemática de Literatura.

Em tempo, vale retomar que foram realizadas doze (12) entrevistas, com doze (12) profissionais
de Nível Superior, atuantes no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) selecionado, sendo os mesmos
dos seguintes núcleos profissionais: Gestão e Administração Pública, Psicologia, Psiquiatria, Serviço
Social, Educação Física, Enfermagem, Farmácia e Terapia Ocupacional. Todas as entrevistas foram
realizadas nas instalações do serviço aqui descrito, tendo uma média de duração entre vinte (20) e
trinta (30) minutos. Todas foram gravadas e, posteriormente, transcritas, sendo então submetidas ao
processo de codificação para identificação dos dados indexados e dos dados não indexados.

Destes últimos, resultaram os Fragmentos Narrativos, textos-síntese das Trajetórias


Individuais e Coletivas abaixo descritas, conforme se apresentará, no intuito da definição dos
Desfechos Analíticos. Os fragmentos das entrevistas serão apresentados por numeração, sem
identificação do informante primário, visando à garantia dos critérios de sigilo e confidencialidade.

 4.1 – Das Trajetórias Individuais às Trajetórias Coletivas

Inicialmente, observam-se as definições apresentadas ao conceito de racismo, bem como as


principais características atribuídas a este. Para a maioria dos profissionais, trata-se de um fenômeno
que apresenta aspectos “culturais”, “históricos”, “estéticos” e diretamente correlacionados a opressões
de outras ordens, como machismo, sexismo, pobreza e intolerância religiosa. Assim, vê-se:

(1) “O racismo eu acho que é algo cultural, né? E muito forte no Brasil. É, pra muitos,
velado, é claro, mas ele existe, existe e é muito forte. E os nossos usuários
sofrem duplamente por preconceitos, ou triplamente, eu diria... Pela cor, pela
condição econômica e por ser louco, né?” (Fragmento Narrativo 01, Mulher Negra,
2018, grifo nosso).
87

A questão racial se apresenta como rapidamente atribuída à questão do “ser negro”, ainda que
este direcionamento não seja dado, no ato da entrevista, por quaisquer tipos de indicativos do
entrevistador. Trata-se de um dado, em certa medida, previsível na literatura científica, mas chama a
atenção o fato de grande parte dos profissionais parecer compreender este elemento como algo que,
invariavelmente, adentra a realidade cotidiana do serviço, conforme se vê:

(2) “[...] quando nós falamos assim, racismo, as palavras que vêm logo em mente são
três, né? Negro, preconceito e discriminação. E aí que a gente diz assim: „Nosso
público, já que estamos em Salvador, e a população de Salvador é 90%, 95% negra,
principalmente na classe mais baixa, né? E os nossos usuários de Saúde Mental são
esse público, né? E esse público pertence à classe mais baixa e são negros na
grande maioria‟. É, você observa que aqui dentro dificilmente você vê uma pessoa de
uma pele mais clara. Ou é negro, ou é mulato ou é moreno. E a gente diz assim:
‘Gente, a pessoa carrega esses dois estigmas... Três, na verdade... Da pobreza,
da loucura e do preconceito racial, do racismo, né?’” (Fragmento Narrativo 02,
Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

Nota-se que a questão demográfica inerente à realidade de Salvador, em sua expressão étnico-
racial majoritariamente negra (ou seja, entre pretos e pardos), não passa despercebida (FLEXOR;
SCHWEIZER, 2011). Em mesma medida, a questão da “classe social” aparece fortemente atrelada,
revelando constantemente, na fala de praticamente todos os entrevistados, essa variável da “tripla
estigmatização” no perfil do público que acessa o Sistema Único de Saúde (SUS) e a rede pública de
serviços de Saúde Mental: os pretos, pobres e loucos.

Paralelamente, também são apresentadas noções de um certo reconhecimento do atributo


comportamental racista como algo inerente a todas as pessoas, que estaria presente e manifestando-
se em maior ou menor proporção, considerando-se estes comportamentos como resultantes do
processo histórico que conformou a nossa população, e que se apresenta, novamente se pontua,
atrelado a outras opressões, alargando a amplitude da dimensão comportamental do racismo. Vide o
que se coloca no seguinte fragmento:

(3) “Racismo? Deixa eu pensar aqui… (Silêncio). É, eu acho que todos nós
carregamos uma questão racista. Mesmo que a gente não pare pra pensar sobre
isso, sempre tem esse preconceito, né? Faz parte de nossa história. E, não sei te
dizer exatamente o que é racismo, mas sei que é uma ideia preconcebida de que
alguém possa ser inferior por conta de sua cor, por conta de sua questão econômica,
por conta de sua… sua escolha sexual. Acho que são essas ideias que a gente já
traz preconcebidas acerca dessas temáticas. E eu acho que todos nós
carregamos, em uma maior ou uma menor escala” (Fragmento Narrativo 03,
Mulher Branca, 2018, grifo nosso).

Ressalta-se, ainda, como evidenciado no último fragmento, dois aspectos bastante interessantes
da narração acerca do racismo: primeiro, o elemento do silêncio. Por diversas vezes, os informantes
88

silenciaram longamente durante o transcorrer da entrevista, especialmente nos momentos em que


objetivaram a definição do fenômeno discutido, em algo que soava entre a dúvida e a necessidade de
pensar cuidadosamente nas respostas que seriam dadas – ainda que não se estivesse procurando
respostas de cunho “certo” ou “errado”. Em segundo lugar, salienta-se que o elemento da conjunção do
racismo com outras opressões, na mesma medida em que pode nos apontar para uma questão da
perspectiva interseccional na leitura dos marcadores sociais de opressão, pode também evidenciar
uma certa “confusão” na leitura destes fenômenos. Isto aparece exemplificado no fragmento anterior,
mas também será uma constante em narrativas de outros informantes.

No entanto, não se pode deixar de evidenciar, dado o fragmento anterior, a rica percepção de
que alguns informantes “reconhecem-se” racistas. Isto dialoga com algumas compreensões teóricas, já
evidenciadas aqui, de que o racismo pode ocorrer como práticas de cunho direto e frontal, mas
também como práticas mais veladas, mais sutis, de maneira tal que os seus perpetuadores nem
sempre assumam à “consciência” a ação de cunho racista. Vejamos isto novamente, em outro
fragmento bastante representativo:

(4) “[...] se a gente parar pra pensar, eu acho que o louco branco, por exemplo, e de
um maior poder aquisitivo, causa menos impacto do que o preto, louco e
pobre, e isso é inegável, né? Quando a gente olha, dentro de um Shopping, um
branco doido, é diferente. Agora, se você botar lá dentro de um Shopping um usuário
da gente, eu tenho certeza que as pessoas vão sair correndo. Por que causa impacto
muito maior na cabeça de todo mundo” (Fragmento Narrativo 04, Mulher Branca,
2018, grifo nosso).

Isto, a que o informante acima chama de “impacto muito maior na cabeça de todo mundo”, fala
de uma distinção estabelecida na maneira como a sociedade e os informantes desta pesquisa tratam a
expressão da loucura manifesta entre brancos e negros. Sem adentrar em maiores análises teóricas –
o que faremos no capítulo seguinte – chama-nos a atenção o fato de que o informante não apenas
salienta a visualização “inegável” da diferença narrada, como aponta que ela se processa alicerçada
em contornos eminentemente raciais e fenotípicos – é a condição do ser “branco” ou do ser “preto” que
causará uma maior ou menor estranheza, quando associada à própria condição da loucura.

Confirmam-nos as compreensões anteriores outros fragmentos que irão se debruçar sobre a


tentativa de explicar de onde advém essa “natural distinção”. Se, por um lado, há o reconhecimento de
sua existência – ponto que já revela um posicionamento político ante o fenômeno abordado – por outro,
serão apontadas as possíveis causas que conformam essa forma de pensar a questão racial. Vide:

(5) “Eu acho que a gente vê episódios de racismo todos os dias. Eu mesma faço isso,
involuntariamente. Eu mesma faço isso. Procuro me policiar, mas eu mesma faço
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isso. Se um cara negro chega perto de mim, sozinho, mal vestido, eu já tô mais
ligada, é natural. Acho que vem de nossa criação. Se é um cara branco, é claro que
eu vou olhar pra ele com estranhamento, né? Mas, eu acho que o negro chama
mais atenção. Por saber que ele tá mais sujeito à miséria, à pobreza, por saber
também que é capaz que ele acabe enveredando por esse caminho das drogas,
do roubo e tal. É instintivo, já tá enraizado na gente, depois é que você vai se
policiar e procurar estar atento às suas próprias questões, a seus próprios
preconceitos, e tal” (Fragmento Narrativo 05, Mulher Branca, 2018, grifo nosso).

Neste fragmento, somam-se ainda às compreensões anteriores novas questões. Primeiro,


reforça-se esse comportamento de um certo “racismo involuntário”, resultante dos modos como as
pessoas acabam por incutir pensamentos de cunho racista, derivados do reconhecimento de que o
negro estaria mais “suscetível” a determinados agravos sociais que ampliariam a sua condição de
vulnerabilidade – condição esta que, por sua vez, poderia aumentar as chances de que este “envereda-
se pelo caminho da criminalidade”. Segundos os informantes, tais fatos resultam em um
“estranhamento” que, em termos do risco de exposição à criminalidade, ainda que se suponha ser um
fenômeno passível a brancos e negros, é aos negros que se volta o maior “estranhamento”, como
resultante do reconhecimento de sua condição de maior vulnerabilidade social. A esta vulnerabilidade,
aparecem como possíveis causas, novamente, a transversalidade das opressões sofridas, onde
marcadores outros, como a história da escravização da população negra e a conformação das classes
sociais no Brasil, terão forte pregnância nas narrativas.

Outra compreensão que aparece bem marcada nas narrativas dos informantes é a de que estes
pensamentos de cunho racista podem, em maior ou menor escala, influenciar as suas práticas
profissionais. Vejamos o seguinte fragmento:

(6) “[...] o racismo, ele tá em todos os lugares, né? A gente percebe algumas condutas,
alguns termos inadequados com que as pessoas se reportam a outras e até, assim,
em questões pejorativas, no sentido mesmo de questão com a cor de pele, da raça,
ou do pensamento religioso, filosófico, enfim... O que a gente percebe é, às vezes,
um tratamento inadequado, uma palavra mal dita num atendimento, que não sai
como deveria ter saído por conta dessas questões mesmo” (Fragmento Narrativo
06, Homem Negro, 2018, grifo nosso).

O reconhecimento destes pensamentos de cunho racista na vivência dos profissionais


informantes desta pesquisa nos leva a ponderar sobre o quanto estes efetivamente reverberam em
suas vidas, tanto na medida da execução voluntária ou involuntária do racismo, como na própria
dimensão experiencial de cada informante. Em outras palavras, chama-nos a atenção o fato de que
alguns informantes irão relatar episódios de racismo sofridos per si, que acabam por reverberar na
construção de suas práticas profissionais por distintas ordens. Este sofrimento narrado é revelado
como um elemento que produz um olhar diferenciado na oferta de cuidado em saúde.
90

Vejamos uma destas narrativas:

(7) “Há um tempo atrás, eu dizia, eu me peguei um dia pensando: „Por que é que eu não
gosto de tomar sol?‟. Aí eu lembrei o porquê: porque, quando eu vinha pra Salvador,
que eu ficava aqui um tempo e voltava para Campo Formoso, eu chegava lá e todo
mundo dizia, inclusive a minha mãe: ‘Meu Deus! Você tá preta demais! Que coisa
horrível é essa!? Por que você tomou tanto sol?’. Porque moreno, tomou sol, fica
negão na hora, né? Aí eu ficava assim: „Por que é que eu tomei sol?‟. Aí eu comecei
a dizer que o sol me coçava, que eu não gostava, e ainda dizia assim: „Ainda bem
que eu sou morena, porque eu não gosto de sol. Eu não gosto de sol‟. Isso há
bastante tempo. Só que, um dia desses, eu me peguei pensando: ‘Gente, eu adoro
praia, por que é que eu não gosto do sol?’. Aí eu pensei, pensei, pensei... Lógico!
Porque, quando eu chegava das férias, depois de um mês ou dois meses em
Salvador, eu chegava lá em Campo Formoso e eu ficava traumatizada, porque todo
mundo dizia ‘Você tá preta! Tá horrível!’. Então, o negro ouve isso.
Cotidianamente. Se ele é pobre, ainda tem essa coisa arrastada: „Você é feio, você
não tem dinheiro, você não tem estudo‟. Imagine quanta coisa. E, com transtorno
mental, você ainda é louco. Você ainda é louco!” (Fragmento Narrativo 07, Mulher
Negra, 2018, grifo nosso).

Note-se que o elemento da “cor da pele” possuirá uma forte relevância na narrativa
anteriormente apresentada. O elemento da influência familiar ante a expressão das marcas étnico-
raciais associadas ao negro é tomado como sinônimo de “feiura”, de maneira tal que a informante
descreve a tentativa, ainda que inconsciente, de afastar-se daquilo que, ainda que lhe dê prazer, possa
conduzir-lhe ao desconforto de ser reconhecida como “negra” – e, como visto, como “feia”.

No entanto, não é só a “cor de pele” que se destaca na identificação e na desvalorização de


atributos negros. Encontraremos narrativas também associadas à experiência estética de assumir um
cabelo de características negras, conforme se vê:

(8) “Outro ponto é que, há muito, quando eu comecei a fazer o processo de transição
capilar, tem uma usuária aqui que ela, tem um humor assim bem ótimo. Aí, teve um
dia que ela fez assim, porque eu tava com o cabelo bem assanhado: „Por que você
tá andando com o cabelo assanhado agora? Por que você não arruma o cabelo?‟.
Fiz assim: „Oxe! Meu cabelo tá arrumado. Esse aqui que é o arrumado dele‟. Já
aconteceu, assim, mais escancarado, mas são situações mais discretas, assim...
Mais sutis” (Fragmento Narrativo 08, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

As duas últimas narrativas apontam, inclusive, para a relevância da questão estética ante o
debate aqui revelado. Trata-se de duas mulheres, profissionais de Nível Superior, que revelam as
dificuldades de sustentar um posicionamento pessoal e estético associado à matriz afrocentrada pela
constante abordagem social que procura apontar este posicionamento pela via de um lugar
esteticamente não desejável, não cabível, fora da conformidade com o que se espera em termos
socialmente aceitos. Isto não apenas gera ecos de uma experiência racista pessoal sofrida que
91

reverbera ao longo de uma vida, mas, conforme narrado, expõe também a dificuldade que é transpor a
influência do racismo na composição de novas práticas, sejam pessoais, sejam profissionais.

É o que veremos, com bastante lucidez, na seguinte narrativa:

(9) “Eu queria muito usar torço pra trabalhar. Eu uso torço pra sair, pra me divertir, mas
eu não consigo vir trabalhar. Eu coloco o torço e acho que não fica legal, eu fico
achando que é muito enfeite. E aí que eu vejo S., minha amiga, por exemplo, que é
professora da Rede Estadual de Educação, e ela vai de torço trabalhar. A gente fez
uma atividade juntas recentemente, uma oficina de Redução de Danos, e aí um dia
ela foi com um vestido africano, de tecido africano, e no outro dia ela foi de torço, e
isso, eu tenho certeza, do tanto que é para os alunos dela ter uma professora negra,
e que usa elementos da cultura negra, faz uma diferença na identificação, na
construção da identidade do aluno e de quem tem ela como referência. Eu não
consigo e eu reconheço que eu não consigo usar torço, por exemplo, pra vir
trabalhar, por uma questão de... É resistência minha mesmo, assim, achar que não
cabe dentro do trabalho, eu estar assim. Assim como, quando eu uso as contas de
Orixá, eu escondo quando eu tô no trabalho, por conta do número de pessoas que
eu sei que adoeceram, né, que estão em sofrimento porque acreditam que são, que
foram vítimas” (Fragmento Narrativo 09, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

Notemos três pontos que se destacam: primeiro, o reconhecimento da dificuldade de assumir


uma indumentária estética afrocentrada como marca da influência racista no âmbito da vida pessoal;
segundo, o mesmo reconhecimento da dificuldade de assumir uma indumentária estética afrocentrada,
ainda que se reconheça que ela pode gerar efeitos benéficos à construção da identidade de diferentes
sujeitos, pela via da representatividade ante o outro; e terceiro, o fato de que, quando estas
indumentárias remetem às religiões de matriz africana, o marcador social de opressão representado
pela intolerância religiosa pode se fazer presente, somando-se ao marcador racista, ampliando a
dimensão da impossibilidade de sustentar, socialmente, tais elementos15.

Não se pode desconsiderar a força da narrativa anteriormente apresentada, especialmente


quando contrastamos os elementos acima descritos com a realidade cotidiana dos usuários que
frequentam um serviço público de Saúde Mental em Salvador/BA. Isto porque, se a expressão étnico-
racial da cidade é majoritariamente negra – como já apontamos aqui (FLEXOR; SCHWEIZER, 2011) –
necessariamente a expressão étnico-racial nestes serviços também será majoritariamente negra. No
entanto, o que deveria funcionar como um elemento de empatia acaba por produzir, muitas vezes, um
efeito inverso, onde tanto o trabalhador quanto o usuário acabam por expressar o sofrimento psíquico
advindo da experiência de sofrer racismo.

15Pondera-se que o fragmento acima não necessariamente revela intolerância religiosa, pois pode revelar, também, uma
das etiologias intrínsecas ao idioma das igrejas afrobrasileiras, que é o adoecimento por feitiço ou por descuidar do Orixá.
Logo, ambas as interpretações precisam ser aqui evidenciadas, no sentido de evitar possíveis vieses interpretativos.
92

Se tomarmos isto pelo exemplo da associação entre racismo e intolerância religiosa, fica mais
fácil descrever o fenômeno narrado pelos informantes: o atributo da estigmatização dos elementos
afrocentrados será determinante na estigmatização das religiões de matriz africana entre os usuários
de Saúde Mental. Isto, que é consenso entre os entrevistados, aponta para aspectos já narrados em
outros estudos, que evidenciam discursos de que o “enlouquecimento”, por vezes, é atribuído, entre
usuários e familiares, a experiências espirituais “não exitosas”, via de regra correlacionadas ao
Candomblé, à Umbanda, ao Vodu e a outras expressões religiosas espiritualistas de matriz
afrocentrada16. Destaque-se:

(10) “Mas eu percebo e sinto também, né? É... Eu fico imaginando, pra quem, desde
pequeno, já nasceu com toda essa, essa carga. Então, eu acredito que dentro do, do
processo de adoecimento, o racismo é um dos principais fatores. Se você faz um
corte de usuários que a gente acompanha, se você faz uma seleção aleatória, assim:
„Ah! Vamos pegar dez usuários, vinte usuários, que são atendidos neste serviço‟,
aleatoriamente, você vai ali aos prontuários e pega vinte prontuários aleatórios, se
você for chamar esses vinte, com certeza os vinte serão negros. [...] E se você
tirar vinte usuários, provavelmente ali, de três a cinco, ou talvez mais, acreditam que
aconteceu alguma coisa espiritual, que alguém fez despacho, trabalho do
Candomblé” (Fragmento Narrativo 10, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

Percebamos a díade controversa que se revela nos fragmentos narrativos apresentados até
aqui; se, de um lado, teremos serviços majoritariamente negros, de outro lado teremos serviços
impregnados por concepções de cunho racista que tendem a colocar os elementos de matriz
afrocentrada em um lugar constantemente malquisto: seja a cor da pele, seja o cabelo, sejam as
indumentárias estéticas, sejam as expressões de religiosidade. E, reforçando, o mais interessante:
como já dissemos, isto vale tanto para alguns dos profissionais (entre aqueles cujas narrativas revelam
uma autodeclaração negra), quanto para os usuários.

Contudo, os informantes sinalizam algo que já nos era esperado: conforme dito, trata-se aqui de
manifestações consideradas como racistas, mas essencialmente veladas, sutis, silenciosas, discretas.
Inclusive, no que tange especificamente às práticas dos trabalhadores da instituição, dificilmente, nas
narrativas dos entrevistados, são apresentadas ações diretas de racismo no âmbito do serviço e/ou das
práticas dos profissionais, sendo sempre sinalizado que estas ocorrem pela via de “simbolismos”, de
“metáforas”, de fatos não expressamente revelados.

(11) “[...] às vezes, a gente, mesmo atuando com pessoas formadas, capacitadas, com
qualificação para a saúde, para estar atendendo todo e qualquer tipo de sujeito livre
de racismo, enfim, de preconceitos de classe social, sexo, religião, enfim... A gente

16Pondera-se, também, que isso ocorre igualmente no continente africano, direcionado a grupos étnicos mais isolados, e
que nem sempre significa intolerância religiosa, embora possa o ser em determinadas situações e momentos históricos.
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também vê essa questão aparecer. Não são diálogos grandes, e não são
manifestações muito claras, mas basta você olhar pra perceber” (Fragmento
Narrativo 11, Homem Negro, 2018, grifo nosso).

Eventualmente, até se afirma a existência de falas de cunho racista de maneira mais direta, mas
sem necessariamente se atribuir estas falas a um ou outro colega. O que se pontua é que frases como
“Quanto azar tem na vida, viu? Preto e ainda pobre e doido. É muito azar!”, ou “Preto, pobre e ainda
fica exigindo coisas! Ainda quer um tratamento melhor...”, e ainda “O usuário Fulano de Tal é negro,
mas até que é bonito” estão presentes, e extrapolam essa dimensão da sutileza racista, trazendo ao
verbo a brutalidade deste tipo de pensamento – embora, narradamente, não sejam a maioria expressa.

Logo, muito embora não sejam narradas situações onde estas expressões foram utilizadas
diretamente com os usuários da instituição, há um reconhecimento quase que unânime de que a
questão racista opera influências nas práticas ofertadas pelo serviço, seja no sentido da oferta de um
tratamento diferenciado – como vimos no sexto fragmento narrativo – seja na expressão da ausência
de maiores problematizações quanto à questão do racismo no cotidiano profissional e clínico-
institucional. Podemos ver isso a seguir:

(12) “[...] essa questão não é trabalhada, mas ela existe como existe em todo lugar e é
velada, como se não existisse racismo, „todo mundo aqui é igual‟. E aqui, quando eu
fui colocando algumas coisas e quando você me perguntou especialmente do que o
serviço faz no seu planejamento, ou tem feito com relação a isso, eu percebo como
isso não é trabalhado e que isso é também uma forma de racismo (risos). [...] Se
a gente não aborda abertamente, sabe, pelo menos temos que deixar essa questão
fluir em alguns momentos nas falas dos usuários, quando eles tão relatando seu
sofrimento” (Fragmento Narrativo 12, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

Observemos que, na narrativa da profissional acima descrita, a ausência da questão racial como
elemento presente no planejamento das práticas clínico-institucionais é tomada pela mesma
profissional como uma possível expressão do racismo influenciando o funcionamento do serviço. Essa
leitura assumida pela informante supracitada somar-se-á à leitura de uma segunda informante, que
também irá ponderar a ausência de intervenções mais focadas na questão do sofrimento psíquico
oriundo do racismo como uma questão a ser destacada em seu próprio processo de trabalho.

(13) “Eu sei que eu tenho empatia pra entender o quanto aquilo afeta a Saúde Mental
dela, o quanto aquilo afetou, o quanto aquilo afetará. Por que é tudo muito
encadeado, né? É uma coisinha envolvendo a outra, então se é uma pessoa que
desde muito nova foi tratada de uma maneira diferente por ser negra, ela vai,
fatalmente, desenvolver alguma coisa... Pode até nem deprimir, nem ser ansiosa
ou tal, mas isso pode fazer com que ela fique mais suscetível a isso. Que ela
fique mais susceptível a tantas coisas, na verdade, né? Então, eu sei entender
isso, e talvez trazer isso à tona, mas é algo que realmente não é dito. É um dado que
até está ali, na anamnese, mas que a gente não pergunta, de fato: ‘E aí, você já
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sofreu racismo?’, ‘Você acha que isso te atrapalhou de alguma forma?’, ‘Você
acha que isso tem relação com a forma como você tá se sentindo hoje?’. Não,
dificilmente a gente pergunta isso, mas seria necessário” (Fragmento Narrativo 13,
Mulher Branca, 2018, grifo nosso).

Se, por um lado, os últimos fragmentos evidenciam um certo tipo de silenciamento da questão
representada pelo racismo nos serviços de Saúde Mental, por outro, eles nos apontam para o que
parece ser um reconhecimento profissional da relevância da questão. Em certa medida, não podemos
dizer que isso fosse de todo esperado pelos pesquisadores. Mas há, e não se pode negar, nos
profissionais informantes, em sua maioria, uma leitura mais atenta aos fenômenos que operam os
ditames racistas na construção do processo de trabalho em Saúde Mental. Doravante, se essa leitura
mais atenta opera mudanças concretas nos cuidados ofertados, aí já temos um nó crítico. Isto porque,
conforme também foi visto nos últimos fragmentos, não necessariamente uma narrativa que aponta
para um reconhecimento inicial quanto ao problema tem repercutido em novas narrativas que apontem
para ações concretas de enfrentamento ao problema reconhecido.

Em que pese em favor de uma compreensão mais ampliada do fenômeno, os profissionais


informantes narram também as dificuldades que enfrentam na execução de mudanças concretas em
seu processo de trabalho, seja pelas dificuldades de implicar-se empaticamente com a questão (pelo
próprio sofrimento racial carregado por cada um destes sujeitos), seja pela enorme diferença nos
modos de vida que se apresentam na relação entre profissionais e usuários.

Basta ver o que nos narra esta profissional:

(14) “[...] muitos vieram da palafita. E eu tava falando com eles sobre as histórias de vida,
como foi cada um criança, adolescente, adulto e agora, na maturidade. Aí eu pedi
que cada um falasse: „Na infância, como era seu quarto? E sua escola?‟. Eis que um
me disse assim: „Quarto? Que quarto?‟. Eu me senti até ridícula. „Quarto? Não, não
tinha quarto não, dormia todo mundo junto, num cômodo só‟. E aí eu pensei: „Gente,
cai a ficha! Por que é que você tá perguntando isso!?‟. Então, daí, as pessoas
começaram a falar „Quê? Escola? Que escola?‟. A maioria era preta e analfabeta.
Então, veja, todas essas questões tão atreladas: cor, educação, escolaridade,
nível socioeconômico e o adoecimento... e o adoecimento psíquico” (Fragmento
Narrativo 14, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

Há que se observar o encontro de “dois mundos” narrados pela profissional acima. De um lado,
a perspectiva de uma sociedade em que as pessoas possam acessar condições ditas como básicas
para a sua existência, enquanto, de outro lado, a concretude de uma grande parcela populacional que
se vê privada da possibilidade de acessar determinados estilos de vida que, a uma grande maioria, são
tomados como exemplos de uma vida cotidiana. Mais uma vez, inclusive, a questão interseccional se
vê narrada: ao mesmo tempo em que se observa a narração da questão fenotípica como um marcador
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do inacesso a um “quarto” ou a uma casa em melhores condições, se aponta uma série de agravantes
outros: a escolarização, a classe social e o próprio adoecimento mental.

Ainda em termos do debate interseccional, a todo o tempo é dado um maior destaque à


condição das mulheres negras. Também há, por parte da maioria dos profissionais entrevistados, uma
compreensão evidente de que o atributo de gênero se soma ao atributo étnico-racial para expressar
maiores ou menores condições de vida, acesso a direitos e, por consequência, saúde/adoecimento. A
tripla estigmatização presente no ser preto, pobre e doido ganha uma dimensão ainda maior,
quádrupla, ao ser abordada a condição do ser mulher, preta, pobre e doida.

(15) “As mulheres trazem muito isso. De as mulheres negras serem mais subjugadas,
serem ainda mais vítimas de violência, de abuso sexual, muitas mulheres, né?
Eu? Eu penso também no racismo, eu penso também na pobreza. Muitas dessas
mulheres trabalham em casas de família ou em situação de muita pobreza, o que
acaba gerando uma maior vulnerabilidade e casos de abuso sexuais ocorrendo em
80% das mulheres que vêm até aqui. Uma maioria, uma grande maioria dessas
mulheres, referem a questão do abuso sexual e a maioria delas são negras”
(Fragmento Narrativo 15, Mulher Branca, 2018, grifo nosso).

Muito embora nem sempre a questão do sofrimento psíquico seja correlacionada diretamente
como resultante das experiências vividas, ela permeia as narrativas dos informantes a todo o tempo.
São trazidos, em diversos momentos, argumentos estruturados na empiria para apontar o que a grande
maioria deles acredita ser uma relação causal entre os modos e as condições de vida e a produção do
adoecimento mental para boa parte dos usuários acompanhados. Não como uma condição crônica,
própria da concepção de natural degenerescência da raça negra – como vimos na Fundamentação
Teórica do presente estudo, a partir dos ideais eugenistas – mas como uma derivação direta de suas
precárias condições concretas de existência e de sobrevivência ante a sociedade burguês-capitalista.

(16) “[...] a gente atende uma clientela em que 60%, 70% são negros, negros mesmo.
Então a gente tem que pensar que o racismo existe e existe junto com a pobreza
e, por que não pensar que o adoecimento psíquico está interligado, né? Se
você é preto, se você é pobre, eu acho que você tem uma chance maior sim de você
adoecer psiquicamente. Se bem que eu falei uma frase pesada agora, viu? Não é
que tenha uma chance maior em termos genéticos, mas sim pela condição social,
pela pobreza, pelas circunstâncias de vida que você tem e, pela minha vivência aqui,
já há dezessete anos na Saúde Mental, a gente vê isso. Então, é claro que uma
pessoa que vive em condições de vida ligadas à pobreza, a muito sofrimento, e
que normalmente vem carregado com uma história de violência doméstica,
uma violência de vida toda mesmo, essa pessoa vai ter uma probabilidade
maior de desenvolver um transtorno mental, e isso pra mim é inegável. Muito
mais do que aquelas que não são negras e têm uma vida melhor, digamos
assim, socialmente falando” (Fragmento Narrativo 16, Mulher Branca, 2018, grifo
nosso).
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Em termos das práticas ofertadas, no entanto, e conforme temos visto, esse reconhecimento não
é condição sine qua non para que se apontem quais as melhores práticas a serem desenvolvidas. Os
profissionais informantes salientam que essa questão, inclusive, não se restringe aos serviços de
Saúde Mental, afetando a conjuntura das diferentes redes de atenção à saúde como um todo. Isto, ao
mesmo passo em que revela uma circulação do racismo nas complexas redes que interligam os
serviços, segundo narram, revela também um elemento que pode se agregar à noção de que “a
loucura pertence a um determinado lugar”, contribuindo na construção de uma concepção de que os
CAPS são uma espécie de novos locais destinados à institucionalização dos usuários de Saúde
Mental. Os informantes nos trazem que estas dimensões, por vezes, parecem somar-se: é o
preconceito racial influenciando o preconceito contra os loucos e o preconceito contra os loucos
influenciando o preconceito racial.

(17) “No próprio Sistema de Saúde, se você pedir pra um usuário que tá com uma dor de
dente procurar um Serviço de Odontologia, ele já se sente discriminado, pela
questão mesmo de ser usuário de Saúde Mental, que já é um peso, e as pessoas
têm medo. Os profissionais já vão dizer: „Não, não pode vir sozinho, tem que ter
alguém acompanhando‟. É tanto que eles se fecham no CAPS, né? Como se fosse o
universo deles, além da casa. É como se, à condição de ser doido, fosse somada
a condição de ser pobre e de ser preto” (Fragmento Narrativo 17, Mulher Negra,
2018, grifo nosso).

Seguindo nessa linha, ao abordarem as intervenções possíveis diante do reconhecimento do


fenômeno racista, as opiniões não são tão uníssonas. De um lado, veremos uma parcela que consegue
reconhecer a existência do racismo, mas não necessariamente sabe como operar profissionalmente
diante dele, ou mesmo reconhece nos usuários uma prática frequente de ações de enfrentamento:

(18) “De que forma a gente pode ajudar? Se para a gente, ditos normais, com raciocínio
lógico, com a velocidade de raciocínio dita normal, na hora você reage de uma forma
que não deveria, avalie pra eles, no caso, para a maioria. O que eu percebo não é o
hábito de reagir, de enfrentar, mas sim de se encolher, de somatizar aquilo ali”
(Fragmento Narrativo 18, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

Já do outro lado, temos uma parcela profissional que, para além de reconhecê-lo, na busca por
intervir diante dele, entende que o seu principal instrumental técnico é a escuta qualificada, orientada
por um movimento genuíno de encontro com o sofrimento do outro, evitando maiores julgamentos.
Ponderam, assim, não apenas o que fazer, mas também o que não fazer:

(19) “[...] na relação do profissional com a pessoa, eu imagino que pode ser na forma de,
talvez, não, não dar ouvidos ou não, não escutar, é, no sentido bem integral do
verbo, né? Escutar, ouvir. Porque dentro da Saúde Mental, o que esse verbo
representa eu acho que pode se manifestar aí, porque a partir da escuta você pensa
as intervenções, você pensa o cuidado daquela pessoa. Então, na medida em que
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sua escuta ela é filtrada pelo racismo, você pode não dar importância ao
sofrimento que aquela pessoa traz. E na pessoa, para a pessoa, o que pesa
mesmo é o sofrimento provocado por aquela, por uma situação de racismo”
(Fragmento Narrativo 19, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

O último fragmento narrativo apresentado aponta precisamente para algo que abordamos ao
tratar da obra de Neusa Santos Souza (1983): é preciso cuidar para não silenciar o sofrimento que
advém da experiência de sofrer racismo, de maneira a não reendossar a postura socialmente mais
comum, que é a de fingir ou negar a existência da opressão que aí se instala. Encontraremos essa
mesma linha de pensamento em outras narrativas aqui presentes:

(20) “[...] não tem que haver julgamento, nem teoria, nem o que eu acho, e nem o que eu
acho que sei. Não tenho que dizer „Olha, eu acho tal coisa...‟, não. O que eu faço?
Eu escuto. [...] Quando as pessoas falavam de abuso, mesmo, eu dizia: „Meu Deus,
o que é que eu vou dizer pra essas pessoas? Meu Deus, é um sofrimento que tá tão
distante de mim, que é tão difícil‟. Mas, gente! Hoje, com o tempo e as escutas, eu
percebo que não tem que dizer nada não, você tem é que estar aberta pra ouvir,
que às vezes essa escuta, de quem nunca teve ninguém pra fazer isso por ela,
é tudo, tudo, a pessoa se sente completamente aliviada, sabe? De, de poder falar.
[...] Esse sofrimento não pode ser menosprezado, então você precisa tomar
cuidado com qualquer coisa que você vai falar, você pode estar até na boa intenção,
mas a pessoa pode sentir dentro dela, inconsciente ou consciente mesmo, que „Meu
sofrimento, pra ela, não é tão intenso como é pra mim, porque é uma bobagem‟, e
não é por aí” (Fragmento Narrativo 20, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

Veremos, então, desenhar-se uma compreensão de que falamos de um sofrimento


extremamente delicado aqui. Delicado, inclusive, pelo fato de que os profissionais seguirão narrando,
orientados pela empiria, a relação que estes veem entre o sofrimento oriundo do racismo e a
constituição do sofrimento psíquico e do adoecimento mental. Estes irão se questionar: “[...] isso deve
impactar no psiquismo, né? A coisa da exclusão, do não pertencimento. A coisa de não ter um
lugar, digamos assim, respeitável. Um lugar onde o sujeito possa, realmente, ali, se colocar. É um
lugar de resto, né? Esse lugar de resto é bem, digamos assim… Favorece ao adoecimento”
(Fragmento Narrativo 21, Mulher Branca, 2018, grifo nosso).

Os profissionais, em geral, em maior ou menor escala, compreendem haver uma íntima relação
entre as condições concretas da existência, as opressões cotidianas e a construção identitária dos
sujeitos. No meio do caminho em que se processa este encontro, está a terra fértil para a produção de
saúde e/ou adoecimento mental. No entanto, pelo entrecruzamento do racismo brasileiro com todas as
demais opressões aqui apontadas (dando-se o devido destaque ao machismo, ao sexismo, à pobreza
e à intolerância religiosa), o que se vê é a contínua fabricação de sujeitos adoecidos, abandonados por
diferentes instâncias sociais que poderiam atuar no sentido da garantia de seus direitos e de um
melhor desenvolvimento psicossocial: “O abandono é o pior adoecimento que tem, a pior forma de
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provocar uma depressão, porque, o que é que você abandona? Aquilo que não te serve mais, né?
Aquilo que não tem mais utilidade pra você” (Fragmento Narrativo 22, Mulher Negra, 2018, grifo
nosso).

Aqui, cabe uma nota onde se pontua que o Sistema Único de Saúde (SUS) é compreendido, por
muitos, como o espaço que absorve essa população, não por ser o sistema público de prestação de
serviços em saúde, mas por ser o espaço que “resta” às pessoas pretas, pobres e doidas, pela falta de
maiores condições para acessar um serviço particular, imaginado como de melhor qualidade. Essa
compreensão nos fala de algo que a literatura sanitária já aponta – que é a de uma compreensão,
estruturada no neoliberalismo, de que o que é público é de menor qualidade (PAIM, 2009). No entanto,
ao ser atravessada pela questão do racismo, a esta dimensão somar-se-á a visão de uma clara
distinção entre os espaços de oferta de saúde para sujeitos brancos e para sujeitos negros.

(23) “Eu nunca, eu nunca tinha parado, eu nunca paro pra pensar muito sobre isso,
porque já faz parte do contexto em que a gente trabalha. A gente não visita casas de
pessoas loiras, de pessoas brancas. São raríssimas aquelas casas que os pacientes
são brancos, né? Mas, a maioria mesmo é negro, e vive em condições de muita
miséria e de muito sofrimento. [...] Dificilmente você vai ver uma figura mais
loirinha aqui... E até quando existe isso, eu noto, quando é uma pessoa mais
branquinha, mais bonitinha, assim, mais clara, as pessoas têm um cuidado
diferenciado” (Fragmento Narrativo 23, Mulher Branca, 2018, grifo nosso).

Não queremos aqui negligenciar, inclusive como já dito pelos profissionais em suas narrativas, a
questão da própria expressão étnico-racial da cidade de Salvador/BA como algo que impulsiona uma
presença maior de negras e negros em determinados espaços. No entanto, é orientando-se pelas
próprias narrativas destes profissionais, em seu esforço de recomposição discursiva da realidade e da
experiência cotidiana vivida, que localizamos a suspeita de que o que distingue brancos e negros no
SUS, na Saúde Mental de ordem pública, é a questão do racismo. Não necessariamente
coadunaremos da concepção de que o que é privado seja de melhor qualidade, mas não pode nos
passar despercebida essa concepção de que o que é público – e, tal qual é compreendido, de menor
qualidade – fica como o espaço destinado às negras e negros. Isto aparece em várias das narrações.
Veem-se aqui narrativas que apontam para a incursão dos ideais racistas na Saúde Pública como um
todo, expandindo-se para além da Saúde Mental e da Atenção Psicossocial.

E, como não poderia deixar de ser, todas as compreensões apresentadas pelos profissionais e
aqui descritas correlacionam-se à narração de casos clínicos, sujeitos acompanhados no cotidiano
das práticas profissionais e que, na expressão de sua fala, de seu comportamento e/ou de seu
adoecimento, hão de revelar, segundo a narração dos profissionais entrevistados, marcas profundas do
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que seria o sofrimento psíquico correlacionado à experiência do sofrer racismo. Vale pontuar que, tal
qual o fizemos no que tange aos profissionais, aqui assumiremos o mesmo cuidado com os critérios de
sigilo e confidencialidade, procurando, acima de tudo, impossibilitar a identificação dos sujeitos e das
histórias abaixo relatadas. Também nominaremos os casos, de forma a facilitar sua retomada adiante.

A primeira narração de um caso que nos chama a atenção é a do caso “Michael Jackson”.
Vejamos o que nos diz a profissional entrevistada:

(24) “Tinha um rapaz que queria clarear a pele. Tipo Michael Jackson (risos). Ele dizia
que ia encontrar uma fórmula para clarear a pele. O que é que faz ele entender que
ele precisa clarear a pele? Não digo que, que não possa existir gente branca que
traga essa fala, mas, dificilmente você vai encontrar ou, pelo menos, dentro da minha
experiência, o único relato que eu tenho de alguém que queira mudar a cor da pele é
de preto pra branco. Eu não encontro de branco pra preto. Eu não sei outros colegas,
né? Até porque é a minha, a minha experiência. Eu não posso tirar o mundo por
mim. Mas esse, esse processo de sofrimento, o sofrimento dele era todo em cima da
cor da pele dele, porque ele não conseguia clarear a pele dele. E aí, o que é que faz
ele pensar, querer, desejar, construir um delírio de que ele ia, um delírio não,
mas assim, um desejo de que ele ia encontrar tal coisa. É toda, todo esse
processo velado, ou não velado, né? De opressão, de... Como é que fala? Quando
você... De menosprezo, de... Desrespeito, de... Discriminação, de... De tudo que
venha, que seja relativo à cor negra, ao negro” (Fragmento Narrativo 24, Mulher
Negra, 2018, grifo nosso).

Já a segunda narração de um caso que não pode nos passar despercebida diz respeito ao caso
que aqui chamaremos de “Saco de Batatas”. Vide:

(25) “Então, abuso é um dos problemas mais fortes de todos. Violência também, mas eles
também trazem temáticas do racismo nesse meio. E aí essa menina, não é nem uma
menina mais, já é uma senhora, ela trouxe essa questão da vida dela. Ela já fazia
parte do grupo há um tempo, mas não abordava essas questões tão claramente.
Nesse dia, porém, ela veio por conta desse carro. Segundo ela, ela encostou no
carro, e o homem disse: „Sai sua preta, pra não sujar o meu carro‟. E, a partir daí, ela
traz toda uma história de vida, que ela se acha feia, que ela não se olha no
espelho. O cabelo dela é bem alisado, ela é negra, sempre anda bem arrumada,
sempre anda maquiada. Então, assim, eu fiquei meio chocada quando ela disse isso,
né? Porque eu achava ela uma mulher vaidosa. [...] Ela disse que se achava feia,
que ela acha que todo homem não gosta dela, não olha pra ela pra nada. E aí ela
conta que, na casa dela, a mãe dela odiava ela, porque ela era a mais escura de
todos os irmãos e que a mãe arremessava a cabeça dela na parede. Disse
também que a mãe tirou ela da escola, dizendo assim: ‘O que é que uma feia,
igual a você, quer estudar? Pra que você vai aprender a ler e escrever?’. Nesse
dia, todo mundo do grupo ficou muito mobilizado, porque ela trouxe uma série de
questões de preconceito, e eu mesma saí meio assim, atordoada. Meu Deus! [...]
Hoje ela já é uma mulher, tem filhas e ela ainda se sente feia, ela acha que um
homem nunca vai olhar pra ela, porque ela é uma mulher feia. Ela fala: ‘Porque eu
sou preta, né? Eu sou...’. Aí ela conta que se envolveu com um homem, e esse
companheiro dela era loiro e dos olhos azuis, só que ele fazia vários abusos com ela,
ele espancava, ele abusou das filhas e ela aceitava tudo isso. Veja que coisa! Essa
100

baixa autoestima dessa mulher de achar que ninguém no mundo é capaz de


desejá-la, que não era capaz de ser amada por ninguém. Aí você começa a
entender o adoecimento dela, a depressão, a tentativa de suicídio, e coisa e
tal...” (Fragmento Narrativo 25, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

Ambos os casos trazem uma dimensão de sofrimento absolutamente perpassada pela questão
fenotípica e, ainda que tenhamos reservado ao próximo capítulo a construção de maiores análises
teóricas, não nos é possível observar estes casos sem compreender, de imediato, as afirmações
presentes nos estudos de Neusa Santos Souza (1983). Os modos de organização da sociedade, em
defesa de um ideal racista, podem conduzir sujeitos a uma profunda negação de sua existência a partir
de seu aspecto fenotípico, o que, per si, pode ser causador de um profundo adoecimento, haja vista a
inalcançável condição de embranquecimento que se impõe frente aos sujeitos não-brancos, como o do
caso “Michael Jackson”. Em igual medida será chamado de intenso o sofrimento da mulher do segundo
caso, na expressão de uma inaceitação familiar que se desvela desde a violência física infantil, até a
manutenção de relações adoecidas com seu companheiro.

A estes dois casos, podemos somar um terceiro, a que nominaremos como “Menina dos Olhos
de Lentes de Contato”:

(26) “É como num caso que eu acolhi uma vez: uma menina negra, que sempre foi muito
estudiosa, e que, quando ela terminou o Segundo Grau, ela tentou trabalhar numa
loja, como vendedora, e aí ela teve uma coisa bem explícita, onde disseram a ela
que não dava para ela trabalhar ali, porque ela não era bonita, não fazia o padrão
da loja. Então, assim, pra uma pessoa que pensava em ser médica, ouvir que não
servia pra trabalhar porque ela não tinha um tipo que combinasse com o público da
loja? Então, foi a partir daí que ela começou a dizer que ela era loira, e que ela
usava lente de contato para esconder os olhos, os olhos azuis, porque os
olhos azuis dela chamavam muita atenção e aí ela tinha medo de, na rua, ser
atacada. Enfim que ela pintava o cabelo de preto, e aí foi piorando até chegar ao
„padrão CAPS‟” (Fragmento Narrativo 26, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

Ora, que metáfora mais ajustada para descrever as máscaras brancas apontadas por Frantz
Fanon (2008) poderíamos elencar neste estudo? Decerto que, para este caso, as tais máscaras
brancas revelam-se muito mais como a expressão de um adoecimento profundo, metaforizado na
inconformidade insustentável de existir socialmente diante dos atributos físicos e fenotípicos
carregados pela menina desta narração. Sofrimento este que se expressará, inclusive, em um ato
contínuo de negação de si, na constante afirmação (e busca) de um “ser algo que não se é”, e que
jamais, jamais estará ao alcance dos olhos. Veremos sofrimento similar na breve narração do caso “Eu
não sou neguinha!”:

(27) “Eu tenho a história de uma usuária que, inclusive, o principal delírio dela era ouvir as
pessoas chamando ela de „neguinha‟, e aí ela se destemperava, falava cada
101

palavrão que eu nunca nem ouvi, e aí dizia: „Eu não sou neguinha, não! Neguinha
é você!‟. E xingava sem parar” (Fragmento Narrativo 27, Mulher Negra, 2018, grifo
nosso).

Os quatro casos narrados até aqui revelam o componente de uma desorganização psíquica
maior que, se não pudermos dizer que está diretamente motivada pela dimensão da experiência do
sofrer racismo, decerto também não poderemos negar que a questão racista as atravessa, ainda que
em aspecto transversal, mas causando fortes impactos. No entanto, nem todas as experiências
narradas correlacionam-se necessariamente a episódios de uma maior desorganização psíquica (ou de
uma psicose ou de uma neurose grave, em termos psicanalíticos). Exemplificando, veremos a narração
de um caso que envolve uma profissional, e não uma usuária, que é o caso “Cor de Formiga”:

(28) “Há alguns anos atrás, uns três anos atrás, veio um grupo aqui falar sobre racismo,
que nós pedimos uma palestra. E aí, eles falaram sobre a questão no dia combinado,
dizendo que ninguém quer ser negro, porque quando a gente fala que é negro as
pessoas logo associam o negro como uma coisa ruim, que o negro é feio, que o
negro é pobre, então que ninguém gostaria de ser negro, por todas essas questões.
Eu lembro que os usuários realmente ficaram muito atentos à questão. E aí, no meio
da palestra, eles pediram para que se identificassem todas as pessoas que se
achavam negras, sendo que quase todo mundo levantou a mão. No entanto, teve
uma funcionária aqui que não levantou a mão. Ela já não trabalha mais aqui, mas
todo mundo olhou pra ela e fez assim: „Você é negra!‟. Ela fez assim: ‘Eu não, eu
sou cor de formiga! Eu sou cor de formiga, eu não sou negra, não!’. Todo
mundo ficou, assim, impressionado e perplexo com a resposta dela, né? Aí, diante
da resposta dela, foi que os palestrantes abriram o tema, sinalizando que essas
coisas ruins todas que dizem sobre o negro fazem com que algumas pessoas não
queiram se manifestar como negros diante de tantas, tantos preconceitos”
(Fragmento Narrativo 28, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

Vejamos que, neste caso, o que se revela enquanto possível negação de uma experiência de
existência perpassada pela expressão fenotípica é a partir da vivência de uma profissional, que
deveria, em seu processo de trabalho, ofertar cuidado, estando também atenta às questões que
envolvem o sofrimento psíquico correlacionado à experiência do sofrer racismo.

Por fim, temos a inquietante provocação do último caso narrado, “Pedagoga e Faxineira”:

(29) “Tem muitas narrativas como a de C., por exemplo. Ela atualmente fez alguns
trabalhos como faxineira, como diarista, e ela disse que teve dificuldade até pra isso.
Você sabe que ela é pedagoga, né? Pois bem, ela teve dificuldade até pra isso,
porque já chamaram ela até de ‘preta suja’, questionando como que ela poderia
trabalhar na cozinha, como que ela poderia já que ela é uma ‘preta suja’? Então,
acho que as pessoas se sentem mais à vontade até pra poder agredir o usuário de
Saúde Mental, porque o que ele diz não tem muita credibilidade, né? Pra muita
gente, doido não tem credibilidade no que fala, na narrativa, pode ser negado”
(Fragmento Narrativo 29, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).
102

Este último caso narrado nos levanta uma última ponderação, ainda no âmbito de análise das
Trajetórias Individuais às Trajetórias Coletivas, sem a qual esta análise não pode findar-se: há
credibilidade no discurso atribuído às pessoas em sofrimento psíquico severo, grave e persistente,
usuárias e usuários dos serviços de Saúde Mental?

Essa é uma questão primordial para o debate que aqui queremos provocar, e que se evidencia a
partir da análise das narrativas então produzidas. Primordial porque, se queremos discutir o racismo e
os seus efeitos no âmbito da Saúde Mental e das práticas profissionais, iremos nos deparar com um
fenômeno de duplo silenciamento: se o racismo já aparece como fenômeno silenciado, velado, sutil e
discreto – como apontado nas próprias narrativas dos profissionais entrevistados – a condição de louco
duplicará a potência de ser silenciado em seu sofrimento. Isto porque, conforme narrado, apregoa-se a
ideia de que o racismo foi superado, juntamente à ideia de que “não se confia em gente louca”. É a
mesma informante anterior quem segue problematizando esta derradeira questão:

(30) “O racismo na Saúde Mental é muito mais perverso, porque é... Camuflado. É
aquilo que eu te falei mais cedo, doido não tem credibilidade no que fala, então, se
um doido diz que você, profissional, ou você, vizinho, o chamou de „nego sujo‟, de
„nega suja‟, isso pode não ser verdade. As pessoas pensam: ‘Será? Não é um
delírio, não?’. Então, é muito mais perverso, porque não é ouvido, a queixa não é
ouvida. Talvez nós, profissionais, por estarmos no dia-a-dia com o usuário, talvez a
gente sabe se ele tende a delirar sobre aquilo ou não, e a gente pode dar mais
credibilidade, e dizer: „Olha, eu acho que realmente aconteceu, porque Fulano de Tal
não tem esse perfil‟. Mas, no geral, não. Então, se até nós profissionais nem
sempre damos credibilidade, acho que a família e a sociedade tendem a ignorar
também” (Fragmento Narrativo 30, Mulher Negra, 2018, grifo nosso).

Este último fragmento narrativo nos convoca a retomar a posição que os trabalhadores da Saúde
Mental ocupam frente à questão do racismo no âmbito da Saúde Mental. Isto porque, como narrado,
para além de compreender os efeitos do racismo na conformação do sofrimento psíquico e do
adoecimento mental, evidencia-se o necessário comprometimento ético-político diante da questão
exposta. E, se for reconhecida a negação do discurso destas pessoas, acometidas por estigmatizações
variadas, como parece-nos que boa parte dos profissionais entrevistados aparenta reconhecer, em ato
os mesmos indicarão, como já dito, a necessidade de enriquecer a escuta qualificada como
instrumental de trabalho. É a partir da escuta que essas questões poderão, logo, ser acolhidas,
trabalhadas, reconhecidas e visibilizadas, gerando ecos na oferta das intervenções pensadas para
cada usuária, para cada usuário.
103

 4.2 – Dos Desfechos Analíticos

Da identificação das Trajetórias Individuais e Coletivas, apresentadas no subtópico anterior e


fundamentadas a partir dos Fragmentos Narrativos selecionados, nos é possível indicar a existência de
quatro (04) categorias centrais de análise, aqui denominadas como Desfechos Analíticos, conforme a
tabela em anexo. São elas: (1) Percepções e Concepções de Racismo; (2) O Racismo, a Loucura e a
Interseccionalidade; (3) O Racismo e a Fabricação do Sofrimento Psíquico; e (4) O Racismo e a
Organização do Processo de Trabalho em Saúde Mental. Estes desfechos serão analisados no
próximo e último capítulo, cumprindo com a tarefa da produção do diálogo entre a Fundamentação
Teórica, a Revisão Sistemática de Literatura e a Análise das Narrativas Produzidas do presente estudo.

O primeiro desfecho deriva das narrativas apresentadas no sentido da definição acerca do


fenômeno. Logo, correlaciona-se diretamente às falas que apresentam esforços mais conceituais,
paralelamente às falas acerca dos contextos em que foram percebidos elementos que possivelmente
apontam para aspectos racistas. Este desfecho correlaciona-se mais diretamente às contribuições
teóricas visualizadas no primeiro capítulo desta Dissertação, destacadamente a partir de autoras e
autores como Munanga (2004), Telles (2003), Ribeiro (1995), Schwarcz (1993) e Chalhoub (1986).

O segundo desfecho está mais relacionado às narrativas que procuram evidenciar outros
fenômenos em conjunção ao racismo – como visto na narração constante de uma profunda relação
entre este e fenômenos outros, como o machismo, o sexismo, a intolerância religiosa e, principalmente,
a pobreza. Desta feita, este desfecho perpassa pela tentativa de costurar como esses fenômenos
confluem entre si para ampliar a experiência de sofrimento advinda do que se chamou de “tripla
estigmatização”: ser preto, ser pobre e ser louco. Aqui, contribuem diretamente os estudos presentes
na Revisão Sistemática de Literatura, com alguns acréscimos oriundos da Fundamentação Teórica.

O terceiro e o quarto desfechos articulam-se diretamente. O terceiro desfecho correlaciona-se às


narrativas que procuram uma possível relação de causalidade entre a questão do racismo, do
sofrimento psíquico e do adoecimento mental. Longe de produzir afirmações categóricas, intentamos
avaliar a pertinência deste argumento, tendo as contribuições mais diretas de Neusa Santos Souza
(1983), Schwarcz (1993) e Frantz Fanon (2008) para tecer o diálogo. O quarto e último desfecho
desembocará desta discussão para pensar junto às narrativas que refletem sobre como a questão do
racismo produz efeitos à organização do processo de trabalho em Saúde Mental, evidenciando os
pontos em que se é possível avançar e os pontos em que ainda há o perigo de se recrudescer ante o
necessário fortalecimento da luta antirracista na Saúde Mental e na Atenção Psicossocial.
104

CAPÍTULO 05: DA DISCUSSÃO DAS NARRATIVAS PRODUZIDAS

Neste último capítulo, procura-se explorar os Desfechos Analíticos apontados pela Análise das
Narrativas Produzidas, no sentido da conexão teórica entre as percepções, as concepções e as
experiências narradas pelos profissionais entrevistados com a Fundamentação Teórica e a Revisão
Sistemática de Literatura da presente Dissertação. Intenta-se, essencialmente, articular sínteses a
partir dos achados de campo, apontando os aspectos que dialogam com a literatura identificada e
aqueles que ainda não dialogam. Para tal, o presente capítulo se estrutura em quatro (04) subtópicos,
já descritos ao final do capítulo anterior.

 5.1 – Percepções e Concepções de Racismo

Das narrativas apresentadas, conforme se vê, há uma constatação de que o fenômeno racista
apresenta diversos âmbitos de compreensão. Ao mesmo passo em que são apontadas questões de
cunho histórico, por exemplo, remetendo-nos ao contexto de escravização dos povos africanos no
Brasil, nos é apresentada uma percepção de que este fenômeno gera efeitos no presente, “enraizando-
se” – como nas palavras de uma das profissionais entrevistadas – em nós, repercutindo em nosso
comportamento e, consequentemente, nas práticas profissionais para o campo da saúde.

Enquanto principais características narradas, nos chama a atenção, inicialmente, o aspecto


“silencioso” do racismo, como apontado por Schwarcz (1993), Telles (2003) e Munanga (2004).
Enquanto Schwarcz (1993) e Munanga (2004) nos dirão que esse silêncio é resultante do projeto
histórico de formação da sociedade brasileira, em sua forma de distinguir as populações brancas e
não-brancas, Telles (2003) nos apontará que este projeto silencioso não surge e nem se mantém ao
acaso, sendo precisamente a questão do silêncio a marca que dará a particularidade do racismo
brasileiro: cunhando, para nós, a já apresentada expressão “Racismo à Brasileira”. Este silêncio é a
liga que manterá o racismo como elemento de permanência histórica ao longo dos diferentes períodos
políticos do Brasil desde o início do século XVI até os dias atuais. E, conforme apontado por
Kalckmann et al (2007) e López (2012), se infiltrará na constituição das relações sociais e públicas das
grandes instituições sanitárias brasileiras, ocasionando o racismo institucional na Saúde Pública.

O uso das expressões “velado”, “sutil” e “discreto” para narrar o fenômeno do racismo na Saúde
Pública e na Saúde Mental, por parte dos autores selecionados, demonstra que as compreensões
105

destes autores não se distanciam daquelas as quais, portanto, foram narradas pelos profissionais
informantes desta pesquisa. As influências do fenômeno racista na Atenção Psicossocial são descritas
de igual maneira àquelas que encontraremos nos estudos que procuram descrever as formas de
manutenção e manifestação do racismo em todas as demais esferas da vida social contemporânea
(TELLES, 2003; MUNANGA, 2004; MOORE, 2007).

No entanto, a questão da loucura é relatada como uma dimensão que pode potencializar a
experiência de silenciamento advinda do racismo, numa relação de mútua influência entre preconceito
racial e preconceito contra as loucas e os loucos – pontos que vimos descritos em produções
internacionais, como os estudos britânicos de Jheanell Gabbidon e colaboradores (2014) e Kwame
McKenzie e Kamaldeep Bhui (2007). Em igual medida, chama a atenção o fato do reconhecimento de
que a loucura, ao ser combinada com o racismo, possa produzir um lugar de duplo silenciamento, o
que reforça as compreensões apresentadas por Schwarcz (1993), quanto às teorias frenológicas,
antropométricas e eugenistas, ao apontar-nos que a intencional patologização de determinados
segmentos sociais foi extremamente importante à manutenção de certa ordem social (questão que
abordaremos mais intensamente ao tratar da relação entre racismo e a fabricação do sofrimento
psíquico); logo, silenciar os loucos e silenciar os efeitos do racismo caminha no mesmo patamar
histórico, estrutural à lógica racista de dominação de determinados segmentos sociais ante outros que
detêm o poder.

O que nos importa ver aqui é como a questão de mascarar este fenômeno ganha centralidade
no debate proposto, haja posto que aquilo que não se vê e aquilo sobre o que não se fala, por lógica,
não existe. Logo, para além de ser este o formato exato como o racismo à brasileira opera (TELLES,
2003), será este também o elemento primeiro a ser narrado quando se pergunta aos profissionais
informantes desta pesquisa sobre como o racismo opera na Saúde Mental e na Atenção Psicossocial.
Ainda no que tange ao silêncio, não podemos descartar também a dificuldade, apresentada por muitos
informantes, em discorrer sobre a questão posta. Como dito no capítulo anterior, isto pode ser atribuído
tanto à dificuldade em tratar da questão em termos cotidianos, quanto à procura por fornecer as
respostas mais “politicamente corretas”. Não podemos produzir maiores inferências quanto a tal, mas,
em considerando que a maioria absoluta dos participantes reconhece o fenômeno como algo presente
e que opera influências nas práticas clínico-institucionais do serviço, até que ponto não nos é lícito
cogitar que este fenômeno seja também mais um sintoma do racismo à brasileira (TELLES, 2003).

Outro ponto ainda sobre a dimensão conceitual que envolve o racismo é a afirmação constante e
direta de que estaríamos tratando de um fenômeno que envolve especificamente as populações
106

negras, e que se manifesta na direção destas em ações de preconceito e discriminação. Hofbauer


(2003) e Munanga (2004) nos dizem que esta questão trafega por duas proposições distintas e, em
mesma medida, convergentes e divergentes: primeiro, que o racismo afeta exponencialmente mais a
vida das pessoas negras; segundo, que, por conta disto, o racismo é costumeiramente uma pauta
tomada como exclusiva das pessoas negras.

Quanto à primeira proposição, não consideramos haver dúvidas, especialmente se partirmos de


uma base comparativa entre as populações branca e negra. São fartos os estudos que apresentam
maiores agravos em saúde à vida das populações negras, quando comparadas às populações
brancas, sejam oriundos de pesquisas nacionais ou internacionais – como se verá em McKenzie e Bhui
(2007), Kalckmann et al (2007), Faro e Pereira (2011), Batista, Werneck e Lopes (2012), López (2012),
Barros et al (2014), Gabbidon et al (2014), Brasil (2015), entre outros. No entanto, quanto à segunda
proposição, apresenta-se aqui uma questão central ao debate: o racismo não é e nem pode ser tomado
como objeto de debate exclusivo da vivência das populações negras (SCHUCMAN, 2010; 2014).
Decerto que, se os informantes desta pesquisa referem-se diretamente à vivência das populações
negras ao serem convocados a narrar episódios e compreensões envolvendo o fenômeno racista,
ambas as proposições apresentadas podem fazer-se representar. No entanto, queremos aqui salientar
que se esta predominância discursiva se opera em acordo com a primeira proposição, temos aqui um
posicionamento profissional de grande parceria com os ideais da luta antirracista na saúde. Por outro
lado, se esta mesma predominância discursiva caminha em sentido similar à segunda proposição,
temos então posta a necessidade de um enfrentamento ideológico inicial: a luta antirracista é
compromisso de todos, haja vista que a lógica de funcionamento racista perpassa a vida de todos
(SCHUCMAN, 2010; 2014).

Doravante, feitas estas ressalvas, é correto ponderar que a questão do negro tenha uma maior
expressividade no racismo brasileiro, bem como que expressões como “preconceito” e “discriminação”
apareçam com forte pregnância, tendo em vista que já conceituamos racismo e já apresentamos os
percursos históricos de sua instituição no Brasil, como uma estrutura operante sobre as relações
sociais, produtora de relações assimétricas, desiguais e injustas entre diferentes sujeitos, tendo como
premissa os atributos de raça e etnia (MUNANGA, 2004). Schwarcz (1993) e Chalhoub (1986) já nos
apresentaram argumentos o suficiente para considerar, inclusive, que esta estrutura se processa
distinguindo sujeitos brancos e não-brancos, sendo destacadamente, no cenário brasileiro, os negros e
os indígenas aqueles mais afetados negativamente pelas ações de cunho racista. Como vimos, a
sociedade brasileira desenvolve-se em cima de um projeto onde o ideal de base é manter o controle
sobre os meios de produção nas mãos daqueles que, metaforicamente, ainda representam o lugar dos
107

colonizadores (no caso, as massas brancas), cabendo àqueles que aí não se encaixam o papel de
mantenedores da base da pirâmide social que se organiza destas relações de exploração econômica e
capitalista – ditames do que também já vimos como o ideal biopolítico que fundamenta o racismo de
Estado e que perpassa as sociedades modernas (FOUCAULT, 1979; 1993). Logo, não se poderia
esperar, em termos de leitura histórica e política, outra visão sobre o racismo que não fosse a de que
este opera distinções entre brancos e negros, invariavelmente prejudicando os segundos em privilégio
aos primeiros. É salutar que isto apareça na fala dos informantes desta pesquisa, revelando-nos que,
apesar dos melindres silenciosos narrados que envolvem o fenômeno racista, seus contornos não
figuram como, de todo, desconhecidos.

Além disso, é preciso ressaltar também a compreensão trazida pelos profissionais entrevistados
de que, em maior ou menor medida, “todos somos racistas”. Telles (2003), Hofbauer (2003) e Munanga
(2004) já nos apontaram isto, ao ponderar que, se o racismo é um fenômeno que existe alicerçado na
própria existência das relações sociais, este subsistirá veladamente no tecer cotidiano destas relações,
produzindo efeitos diretos e indiretos, perceptíveis e imperceptíveis, sendo nem sempre facilmente
detectável pelos sujeitos partícipes destas mesmas relações. Logo, este pode, como apontado por
Faro e Pereira (2011), mas também por Neusa Santos Souza (1983), “enraizar-se” nas práticas
cotidianas, sendo um elemento permanentemente presente no jogo das relações, ainda que “invisível”
ou involuntário. Este reconhecimento é central para o enfrentamento do racismo, inclusive retornando à
falsa proposição de que o racismo seja uma pauta exclusiva das pessoas negras: se ele se processa
como aqui o descrevemos, todos estão sujeitos, a todo o tempo, a manifestarem comportamentos de
base racista, demandando uma vigilância perene (SCHUCMAN, 2010; 2014).

Se partirmos para a realidade da capital baiana, em sua forte expressão étnico-racial


afrocentrada (FLEXOR; SCHWEIZER, 2011), esta questão se apresenta como essencial para entender
e esquadrinhar o racismo à brasileira, isto porque esta cidade revela evidentes fronteiras históricas
construídas entre brancos e negros, inclusive na expressão da leitura sobre fenômenos outros, como a
loucura e a criminalidade. Note-se que, tal qual vimos na construção da imagem social do negro
perpetuada nos ideais eugenistas nacionais, a natural degenerescência atribuída às massas negras
reverberou em uma compreensão social de sua maior inclinação a quadros de um suposto desvio
comportamental inerente (SCHWARCZ, 1993), que por mais absurdo que seja aos olhos dos tempos
atuais, ainda gera efeitos na forma como a sociedade compreende as experiências concretas de vida
de sujeitos negros, especialmente quando em comparação com sujeitos brancos.
108

Muito embora, hoje, se afirme que esta suscetibilidade possa estar correlacionada a uma visão
de uma maior vulnerabilidade social imposta a estas populações – o que já representa uma visão mais
contextualizada sobre o fenômeno do racismo – isto não nos isenta de reconhecer este mecanismo
como um componente da lógica social de estigmatização dos atributos negros, mais uma vez
endossando a afirmação de que os ideais eugenistas apresentam influências no comportamento da
modernidade e, mais uma vez endossando também o argumento de que estes comportamentos
possam se processar no campo do implícito, do simbólico, do inacessível, do imperceptível
(SCHWARCZ, 1993; FARO; PEREIRA, 2011; ZAMORA, 2012).

Vemos estas questões aparecerem nas falas dos profissionais entrevistados também quando
observamos o lugar dado à estética afrocentrada. Como vimos, com base em Neusa Santos Souza
(1983) e Schwarcz (1993), é parte do projeto de uma sociedade racializada e racista, de moldes
eurocentrados, a construção da concepção de que o negro e os seus atributos são feios, são errados,
são desviantes, necessitando de serem ajustados. Para além dos efeitos psicossociais deste
fenômeno, que abordaremos com maior abrangência a seguir, salienta-se que o racismo é
compreendido também pela expressão da inaceitação de determinados elementos afrocentrados,
sejam eles corporais ou simbólicos – como a cor de pele, o cabelo, as indumentárias estéticas e os
símbolos de religiosidade de matriz africana. Todos estes elementos, narrados como metáforas da
expressão racista, compõem o leque de um processo descrito minuciosamente por Souza (1983), e
cujos objetivos são de não apenas apontar a suposta incongruência do negro, mas o referencial branco
(e eurocentrado) como aquele mais justo, mais digno, mais adequado. Vale lembrar o que nos aponta
Foucault (1993): estes são ideais que precisam ser alicerçados diariamente, como mecanismo
primordial à manutenção do Estado e das relações de influência, controle e dominação conforme se
apresentam historicamente.

Contudo, é também curioso o fato de que estes elementos estéticos apontados pelo racismo são
percebidos com mais força no discurso das profissionais que se sentem, de alguma forma, afetadas
por este processo – com o devido destaque àquelas que, pelas narrativas apresentadas, expõem uma
autodeclaração negra. Fica evidente que o aspecto da autorreferência influencia diretamente nesta
percepção: percebo porque sofro tal qual. E, se assim o é, mais uma vez, será Souza (1983) quem nos
indicará que esta poderá ser uma forte marca no sentido da compreensão empática sobre o que faz os
diferentes sujeitos sofrerem ante a experiência do racismo. A empatia que se produz nessa relação –
que será apontada pela autora como parte componente da negritude – figurará como um possível
ponto de virada, estruturante para a luta antirracista.
109

Outrossim, observamos que os conceitos de racismo perpassarão por dimensões claramente


distintas na vivência dos profissionais entrevistados: quem viveu e quem não viveu a experiência de
sofrer racismo encontrará caminhos diferenciados para abordar o fenômeno. Constatamos, desta feita,
que é um conceito bastante mutável e em constante reconfiguração, embora a compreensão sobre a
sua dimensão de estigmatização de grupos sociais minoritários e de produção de acessos e não-
acessos a direitos a partir dos critérios de raça e etnia se mantenha. Destacamos, assim, que um de
nossos principais achados é a constatação de que se trata de um conceito construído na experiência e,
pela própria experiência, reformulado, potencializado, pormenorizado ou silenciado. Tal qual, seus ecos
na produção de cuidados em saúde revelar-se-ão intimamente imbricados.

 5.2 – O Racismo, a Loucura e a Interseccionalidade

Este segundo desfecho analítico deriva diretamente das compreensões apresentadas pelos
profissionais entrevistados acerca dos marcadores sociais de opressão outros que transversalizam a
questão do racismo na vivência cotidiana dos usuários de Saúde Mental. Cabe ponderar que nos
utilizaremos da noção de interseccionalidade nos apropriando dos estudos sobre tal de cunho
feminista, a partir do referencial de Kimberlé Williams Crenshaw (2002), autora de referência nos
estudos interseccionais.

Se formos tomar associadamente a condição social dos loucos e dos negros, já teremos aí posta
uma primeira interseccionalidade, conceito que trata precisamente da compreensão de que diferentes
marcadores sociais de opressão e de exclusão se associam, ampliando a dimensão da estigmatização
e da maior dificuldade de acesso a direitos por parte dos sujeitos afetados por estas associações
(CRENSHAW, 2002). A interseccionalidade compreende que as diferentes distinções e as exclusões
derivadas destas distinções, que operam continuamente sobre as relações sociais, podem conjugar-se
em modos de opressão mais fortes e violentos, pela medida de estigmatizações múltiplas que podem
derivar destas conjunções. Logo, uma mesma pessoa pode possuir dois ou mais marcadores sociais
de exclusão, estando sujeita a estigmatizações a partir de variadas categorias sociais, como: “AIDS e
outros tópicos relacionados à saúde, desenvolvimento econômico, acesso à terra e aos recursos
naturais, casamento e família, velhice, violência doméstica, chefia de domicílios, direitos reprodutivos e
controle populacional, poder político, cultura popular e educação” (CRENSHAW, 2002, p. 188), entre
outros.
110

Desta forma, como apontado pelas narrativas dos informantes, ressalta-se a compreensão de
que a condição do adoecimento mental se associaria à condição da estigmatização racial, produzindo
uma dupla estigmatização. Apesar da enorme defasagem destes estudos no que tange ao contexto
brasileiro17, essa compreensão específica que envolve a correlação entre loucura e racismo já aparece
em alguns estudos internacionais (MCKENZIE, 2003; COOPER et al, 2005; MCKENZIE; BHUI, 2007;
GABBIDON et al, 2014; PERREIRA; TELLES, 2014; ROSTAIN; RAMSAY; WAITE, 2015), onde se
atesta que ambas as condições, individualmente, são percebidas como elementos que conduzem a
agravos à saúde, e que, ao se associarem, ampliam a margem destes mesmos agravos e interferem
na autopercepção de saúde dos sujeitos afetados, no sentido da identificação, por parte destes, de
piores condições de saúde. As narrativas dos informantes, desta forma, parecem dialogar diretamente
com os achados da literatura científica internacional.

No entanto, a questão se agrava quando observamos mais de perto estas mesmas narrações.
Isto porque os informantes nos apontarão que não se trata apenas de uma associação entre a
condição de ser louco e de ser negro: somar-se-ão a estas variáveis outras condições que ampliarão
ainda mais os efeitos decorrentes de tal. Com maior destaque, aparece a questão da pobreza, sendo,
sobretudo, a associação entre ser louco, ser negro e ser pobre aquela que mais será mencionada na
pesquisa, sendo um elemento presente em todas as entrevistas realizadas. Todos os profissionais
informantes compreendem que essa tripla estigmatização acarretará efeitos nefastos à vida e à saúde
dos usuários de Saúde Mental que se encontram inseridos nesta posição, embora compreendam
também ser difícil distinguir as estigmatizações. São condições sociais que, pelas narrativas operadas,
ao estarem unidas, produzem um fosso de inacesso a direitos, e remontam à própria organização
histórica da sociedade brasileira (CHALHOUB, 1986; RIBEIRO, 1995; TELLES, 2003; SLENES, 2011).

Como vimos na Fundamentação Teórica do presente estudo, especificamente ao analisarmos o


racismo como fenômeno histórico, constatamos que o mesmo fora constituído no Brasil em paralelo à
própria formação nacional de sua população. Em mesma medida, os aspectos redistributivos da
riqueza nacional operaram a manutenção da desigualdade que já se processava pela via do critério
racial: as negras e os negros foram os principais afetados pela reformulação do modelo econômico
nacional de senhorial-escravista para burguês-capitalista. Destarte, racismo e pobreza operam como

17 No contexto brasileiro, o estudo de Faro e Pereira (2011) não pondera diretamente o fenômeno do racismo associado à
loucura, apesar de tratar da questão de como o racismo pode ser um impulsionador de um maior adoecimento mental,
decorrente de uma maior vivência estressora derivada do racismo. Já o estudo de Sônia Barros e colaboradores (2014)
apontará que o critério étnico-racial pode sim ter se configurado como um elemento que influenciou no processo de
institucionalização de determinados sujeitos loucos e negros no estado de São Paulo. Em todo o caso, o fato é que estes
estudos são ainda poucos para que se possa afirmar que tal correlação, nos estudos nacionais, tenha sido bem explorada.
111

fenômenos distintos, necessariamente alicerçados como marcadores sociais de opressão específicos,


mas que caminham correlatos, especialmente quando se trata das camadas pobres brasileiras
(CHALHOUB, 1986; RIBEIRO, 1995; SLENES, 2011).

Isto explica o porquê de, em todas as entrevistas realizadas, a condição socioeconômica


precária ter sido associada à condição do preconceito racial, como processos que se influenciam
mutuamente e ampliam a experiência do sofrer racismo. Todavia, na mesma medida em que revelam
um olhar ampliado para a questão dos sujeitos pretos, pobres e doidos, revelam também a necessária
parcimônia destas análises, pela tendência discursiva de colocar a pobreza como elemento que
“engolfa” e “abafa” o racismo, silenciando este último (TELLES, 2003; HOFBAUER, 2003; MUNANGA,
2004). Ou seja: não negamos que a experiência da pobreza caminha pari passu com a experiência do
racismo brasileiro, apenas alertamos que se referem a processos distintos, que se influenciam, mas
não se anulam. Doravante, o fato da pobreza aparecer na narrativa dos profissionais revela que a
questão não passa despercebida, o que é de suma importância na reflexão sobre as práticas
profissionais que se debruçam ante tais sofrimentos – como veremos a seguir.

De posse dessas ressalvas, podemos endossar, então, a afirmação de que a pobreza


potencializará os inacessos já presentes na relação entre o racismo e a loucura, como acreditam e nos
apontam em suas narrativas os informantes. Definitivamente, a privação de acesso a determinados
recursos básicos de subsistência será responsável pela produção de agravos em saúde, condição esta
percebida por usuários de Saúde Mental como um agravante em seu processo de cuidado (ROCHA;
COELHO, 2017).

Destarte, dos efeitos relatados ao abordarmos a questão da pobreza, derivará um segundo


marcador social de exclusão, que se trata do inacesso à escolarização. A falta de acesso à educação
formal, percebida pelos informantes como mais um agravante à questão aqui posta, revela-se em
comum acordo com a literatura científica. Assim, o estudo estadunidense de Perreira e Teles (2014),
como vimos no terceiro capítulo, aponta não só que indivíduos não-brancos costumam relatar
condições de saúde, física e mental, inferiores aos indivíduos brancos, mas também que a condição do
acesso à educação formal é referida como um diferenciador da autopercepção de acesso à saúde. Em
outras palavras, o acesso à escolarização é percebido como um atributo que amplia as condições de
acesso à saúde e ao autocuidado. O estudo britânico de Gabbidon et al (2014) também confirma essa
perspectiva, ao afirmar que o inacesso à escolarização, por parte de usuários de Saúde Mental do
Reino Unido, fora percebido como um possível elemento de ampliação da percepção de discriminações
sofridas, para além das discriminações de cunho étnico-racial e/ou associada à experiência da loucura.
112

Vemos, mais uma vez, que a narrativa dos profissionais informantes desta pesquisa caminha em
sentido similar ao que é apontado na literatura científica.

Salientam-se, ainda, mais dois marcadores sociais percebidos como de profunda influência na
relação estabelecida entre racismo e loucura: as discriminações envolvendo questões de gênero e de
intolerância religiosa. As opressões representadas pelo machismo e pelo sexismo ganham um especial
destaque na fala dos profissionais. Como vimos em diversos fragmentos narrativos, com destaque para
o que se refere ao caso “Saco de Batatas”, as mulheres vivenciam uma condição ainda mais
vulnerabilizada do que os homens. Essa condição é confirmada pela própria Crenshaw (2002), como o
disparador que fundará a própria noção de interseccionalidade. Desta maneira, as narrativas aqui
construídas nos indicam que teremos uma ampliação do sofrimento representado por ser “preto, pobre
e doido” ao observarmos a vivência cotidiana das “mulheres, pretas, pobres e doidas”. Muito embora a
literatura localizada no terceiro capítulo nos revele que esta questão não consta diretamente posta nos
artigos encontrados e selecionados das bases de dados utilizadas, sabemos que ela figura entre as
categorias sociais que produzem distinções de acessos a direitos, tais quais as demais categorias que
temos trabalhado até aqui (CRENSHAW, 2002). Destaque-se, em tempo, que as narrativas que mais
abordaram as questões acerca da estética afrocentrada foram oriundas de profissionais mulheres,
especialmente no tocante aos elementos que envolvem o cabelo de características afrocentradas, o
que dá à dimensão da estética um forte peso nas ações de cunho racista que se atrelam à
discriminação de gênero – e que encontrará forte ressonância nos estudos de Souza (1983).

Já ao abordarmos a questão da intolerância religiosa, teremos mais elementos presentes na


Revisão Sistemática de Literatura. O estudo de Gomes (2010) ganhará um especial destaque, seja por
ser o único exclusivamente direcionado a abordar a questão das religiões de matriz africana, seja
porque é o estudo que nos diz mais diretamente da necessidade de produzir saúde contextualizada
com a realidade das diferentes comunidades tradicionais que existem e coabitam a costura imensa do
que é a população brasileira como um todo – em franco diálogo com os autores que abordarão a
questão da territorialidade e da Saúde Mental junto às comunidades quilombolas no Brasil, como
Freitas et al (2011), Barroso, Melo e Guimarães (2014), Cardoso, Melo e César (2015) e Oliveira et al
(2015). Decerto que a questão do preconceito junto a religiões de matriz afrocentrada, como é o caso
do Candomblé, da Umbanda e do Vodu, apresenta fronteiras muito tênues e delicadas ao tratarmos da
correlação entre este fenômeno e o racismo per si. O fato é que, na narrativa dos informantes, essas
questões apareceram profundamente atreladas, com uma pregnância similar às narrações que
associam a pobreza e o racismo. Rapidamente podemos pensar que isto é resultado, como vimos no
subtópico anterior, de uma associação direta entre o racismo e a questão do negro no Brasil (por
113

consequência, com todos os elementos correlatos à matriz africana, como as religiões afrocentradas)
(MUNANGA, 2004).

Considerando ser bastante complexa a análise desta conjunção interseccional, em particular,


inclusive extrapolando em muito as possibilidades de análise e discussão do presente estudo, o que
nos importa reconhecer, frente à complexidade destas relações, é que se confirma na pouca literatura
científica nacional sobre este tema a necessidade de uma postura de rompimento com eventuais
concepções preconceituosas que se voltem a estes corpos religiosos, sendo isto central na oferta de
um cuidado em Saúde Mental que não estigmatize estas expressões religiosas, sob pena de
incorrermos em uma atualização do sofrimento pela via da discriminação ou em uma produção de
cuidado ineficaz, que não dialogue com as características básicas das pessoas que comungam destas
expressões religiosas, também reverberando em inacesso e agravos à saúde (GOMES, 2010).

A percepção de que estes marcadores mencionados, junto a outros possíveis não trazidos ao
longo desta pesquisa, podem produzir maiores agravos à saúde em geral e à Saúde Mental é essencial
para o debate que aqui estamos a colocar, isto porque a própria conjunção entre sofrer racismo e ser
discriminado por ser usuário de Saúde Mental já agrega contornos interseccionais relevantes de serem
pensados – e, felizmente, endossados na literatura científica internacional, ainda que bastante
inicialmente. Para a realidade brasileira, identifica-se a lacuna técnico-científica de maiores estudos
sobre como estas conjunções interseccionais influenciam no processo de adoecimento mental.

E, de um modo geral, observa-se nas narrativas construídas que os profissionais informantes


aparentam compreender não ser possível pensar o fenômeno da loucura descolado de todas estas
questões de cunho social, histórico, político e econômico – o que dialoga com as autoras e autores
nacionais que se arvoram nesta discussão, como é o caso de Barros e colaboradores (2014). A
transversalidade das opressões narradas, especialmente a que envolve loucura, racismo e pobreza, é
uma constante nas narrações, levando-nos a pensar que seja também uma constante na vida dos
sujeitos cuidados nestes serviços. Não obstante, se a presente Revisão Sistemática de Literatura nos
permite dizer que essa compreensão já não é desconhecida ao campo acadêmico e científico, ela
também nos permite dizer que, no que tange à interface direta entre loucura e racismo, como
fenômenos interseccionais, muito há que se avançar em termos de novos estudos e novas pesquisas.
Ainda que se identifiquem estudos iniciais abordando a correlação entre loucura e racismo, pobreza,
machismo, sexismo, intolerância religiosa, inacesso à escolarização, entre outros, os estudos que
temos até hoje são poucos e ainda frágeis para que teçamos maiores análises sustentáveis.
114

 5.3 – O Racismo e a Fabricação do Sofrimento Psíquico

Pelas narrativas apresentadas, nota-se uma constante tentativa de aproximar o fenômeno do


adoecimento mental dos fenômenos associados ao sofrer racismo e suas interseccionalidades. Vemos
nas narrações um esforço em delinear como questões de cunho social podem se incutir nos aspectos
de formação identitária dos distintos sujeitos, influenciando sua posição ante o mundo. Vemos também,
com similar impacto, um esboço reflexivo sobre como os acessos e inacessos a direitos básicos –
como saúde, educação e moradia adequadas – podem influenciar também no processo de sofrimento
psíquico de determinados sujeitos.

Para a literatura científica, afirmações categóricas quanto a esta correlação – se o racismo pode
causar adoecimento mental – são dificultosas, íngremes (MCKENZIE, 2003; MCKENZIE; BHUI, 2007;
FARO; PEREIRA, 2011). Vemos que as narrações dos profissionais informantes caminham nessa
mesma linha. No entanto, constatamos também que, em meio à raridade destas produções
acadêmicas, há uma espécie de consenso em que se apregoa que, se o racismo não causa
adoecimento mental, minimamente podemos dizer que o mesmo possui fortes influências na
composição do sofrimento psíquico para determinados sujeitos e para determinados segmentos
sociais. Longe de querermos, aqui, resolver este impasse, nos é mais pertinente apontar quais as
narrativas que os profissionais da Saúde Mental e da Atenção Psicossocial tecem sobre tal argumento.
Isto pode nos dar o parâmetro para pensar o quanto estas concepções influem na organização do
processo de trabalho em Saúde Mental – um dos principais objetivos deste estudo, próximo subtópico
do presente capítulo.

Primeiramente, é importante distinguir o que chamamos de “doença” do que chamamos de


“adoecimento”. Coadunamos da concepção apresentada por Ferreira e colaboradores (2014), em que
a doença seria a expressão desviante da saúde, agravo a uma condição clínica de “completo bem-
estar biopsicossocial”, enquanto que o adoecimento seria o processo, o caminho percorrido pelo sujeito
“doente” na sua relação com a doença manifesta e com os simbolismos do mundo acerca de tal. Logo,
se não podemos afirmar que o racismo esteja na base da constituição de doenças mentais, tendo em
vista a ausência de maiores estudos nosológicos que permitam esta afirmação, decerto que
poderemos apontar o fato de que o mesmo configura-se como característica intimamente presente no
campo das relações sociais no Brasil – como vimos em Schwarcz (1993), Ribeiro (1995) e Chalhoub
(1986) – permeando, portanto, a construção identitária dos sujeitos. Se assim o é, a formação
identitária dos sujeitos negros brasileiros perpassará essas mesmas dimensões, sendo então afetada
pela lógica racista que aí se encontra imbricada.
115

Partimos aqui da concepção foucaultiana de que, no entremeio das relações sociais, haverá um
constante jogo de poder que indicará normas e condutas sobre os corpos, sendo estas mesmas
normas e condutas tecnologias de poder (ou biopoderes locais), que produzem ressonância direta na
maneira como os sujeitos se desenvolvem e se comportam (FOUCAULT, 1979). Em mesma medida,
esse conjunto de biopoderes locais, de origem essencialmente eurocentrada, formulará um modo de
organização social e de jogo de poder muito maior (a biopolítica), que direciona comportamentos e
modos de existência adequados e inadequados por uma via racializada e racista, interferindo, inclusive,
na organização do Estado e na oferta de seus serviços (FOUCAULT, 1993; CASTELO BRANCO, 2004;
2009). Essas formulações foucaultianas dão base para que compreendamos que estas tecnologias de
poder irão se processar a todo o tempo, permeando o mais íntimo das relações entre os sujeitos na
contemporaneidade, e modelando o que aqui chamaremos de existências-sobrevivências, o que
comungará diretamente dos estudos de Neusa Santos Souza (1983) sobre como o fenômeno do
racismo e suas influências operará nas relações sociais e na identidade dos sujeitos negros brasileiros.

Tendo que livrar-se da concepção tradicionalista que o definia econômica, política e


socialmente como inferior e submisso, e não possuindo uma outra concepção positiva de si
mesmo, o negro viu-se obrigado a tomar o branco como modelo de identidade, ao estruturar
e levar a cabo a estratégia de ascensão social (SOUZA, 1983, p. 19).

Como explanado anteriormente, Souza (1983) estrutura, em torno dos conhecimentos


psicanalíticos, psicológicos e psiquiátricos, uma linha de pensamento que nos aponta para como o
racismo pode socialmente influenciar na construção das identidades: pela via de uma profunda
negação dos referenciais afrocentrados, na tentativa de uma maior aceitação em um mundo cujo
padrão adequado é essencialmente eurocentrado. Destacamos aqui que tais elementos aparecem
narrados nas falas dos profissionais entrevistados, inclusive em termos de uma narração sobre uma
razoável compreensão deste fenômeno. Aparece-nos que o racismo executa entre os profissionais
entrevistados uma noção, reconhecida por estes como incoerente, de que é preciso negar os
referenciais negros, como se os mesmos estivessem associados a coisas indevidas, inclusive à própria
possibilidade de enlouquecer. Em mesma medida, veremos aparecer ideias depreciativas quanto à
estética afrocentrada, destacadamente voltadas às mulheres negras.

Souza (1983) nos dirá que, no caminho de enquadrar-se nesta sociedade eurocentrada,
viabilizando uma vida “possível”, será preciso “perder a cor”, “negar as tradições negras” e silenciar a
dor advinda deste processo. Novamente, constituírem-se como sujeitos de uma existência-
sobrevivência, onde aquilo que não remete ao ideal imaginado e sonhado da brancura não só pode
como deve ser descartado, em vias de criarem-se indivíduos melhores, ou, como nos aponta
116

Schucman (2010; 2014), “os mais brancos possíveis”. É-nos inegável a afirmação de que este
processo produza um intenso sofrimento em quem o vive, e os autores com os quais aqui dialogamos
partem da mesma premissa, seja em estudos de orientação psicológica de base eminentemente mais
cognitiva – como o estudo de Faro e Pereira (2011) – seja em estudos de orientação eminentemente
psicanalítica, como é o caso do estudo de Souza (1983). Os estudos no campo da Psicologia Social do
Racismo similarmente reivindicarão que a vivência cotidiana do racismo produz sofrimentos também
cotidianos, posto um dos ideais básicos do racismo enquanto projeto de sociedade, que é o de uma
busca incessante e inalcançável por embranquecer-se, o que, pela sua dimensão de impossibilidade,
há de gerar nos sujeitos uma inevitável vivência de angústia e ansiedade (SCHUCMAN, 2010; 2014).

Se tomarmos os estudos acima descritos, poderemos voltar à questão da distinção entre doença
e adoecimento, ampliando agora a nossa reflexão especificamente para o campo da Saúde Mental.
Ora, isto se dá pelo reconhecimento de que se nosologicamente não podemos atribuir ao racismo a
condição de produtor de doença mental, em outra via teremos argumentos suficientes para dizer que o
mesmo produz sofrimento psíquico, sendo, no mínimo, uma peça angular no contexto do adoecimento
mental de pessoas negras no Brasil.

Isto encontrará respaldo na análise dos casos narrados pelos profissionais entrevistados. Se
tomarmos o caso “Michael Jackson”, por exemplo, notemos como é emblemática a busca pelo sujeito
do caso em “clarear sua pele”. Veremos aqui a mesma busca descrita por Souza (1983), cujos efeitos,
se não tratamos de um profundo condicionamento comportamental devidamente ajustado aos
parâmetros eurocentrados esperados, revelarão uma violenta disruptura do sujeito com o universo
simbólico que o circunda. Funda-se, então, a procura por desfazer-se como se é, na direção de um
devir-branco fantasioso, perverso, subjugador e impossível.

O pensamento do sujeito negro, parasitado pelo racismo, termina por fazer do prazer um
elemento secundário na vida do corpo e da mente. Para o psiquismo do negro em ascensão,
que vive o impasse consciente do racismo, o importante não é saber, viver e pensar o que
poderia vir a dar-lhe prazer, mas o que é desejável pelo branco. E, como o branco não
deseja o corpo negro, o pensamento vai encarregar-se de fazê-lo inexistir, desaparecer
enquanto representação mental (SOUZA, 1983, p. 07).

O mesmo fenômeno visualizamos na narração do caso “Menina dos Olhos de Lentes de


Contato”. O choque da menina desta narrativa com o pressuposto social de sua inadequação aos
padrões esperados produz nesta, conforme narrado, a fantasia de que os seus olhos são, deveras,
azuis. Nesta fantasia, seus olhos são tão azuis (ou tão belos, se assim pudermos inferir), que é preciso
escondê-los, motivo pelo qual usaria lentes de contato.
117

Este exemplo, como sinalizamos, nos convoca, em sua brutalidade, a recorrer à noção de
máscaras brancas em Frantz Fanon (2008), onde estas máscaras seriam precisamente a assunção
dos caracteres brancos e eurocentrados como possibilidade de existir socialmente. Logo, os tais olhos
azuis seriam a demonstração do que é bem quisto, do que é desejável, sendo preciso assumi-los como
atributos fantasiosos seus, na procura por reconhecer-se dentro dos padrões, então, esperados – ou,
novamente, como “o mais branco possível” (SCHUCMAN, 2010; 2014). Fanon (2008) nos dirá que
esses padrões comportamentais podem ser lidos como uma espécie de “desistência” do negro ante a
imposição social do branco, mas também nos dirá que podem ser lidos como psicopatologias, advindas
da necessidade de existir no mundo ocidental, sendo o seu enfrentamento solitário doloroso demais 18.

Tais psicopatologias hão de reverberar, como nos diz o autor, em uma profunda negação de si,
em um claro diálogo com o que Souza (1983) chamaria anos depois de uma “negação do Ego”. Esta
negação do Ego para as negras e os negros, e os não-brancos de um modo geral, em termos
psicanalíticos, é a base da constituição do projeto de sociedade que se estrutura no projeto do
embranquecimento, sendo, portanto, uma condição primordial destruir todo e qualquer referencial
positivo ante os elementos afrocentrados, como uma estratégia para a manutenção do poder e do
controle ocidental de tipo burguês-capitalista, como bem veremos no Brasil. Controlar o corpo, logo, é
condição para a manutenção do poder dentro dos moldes sociais eurocentrados, e o racismo brasileiro
não se furtará de tal tecnologia de poder (FOUCAULT, 1993; CASTELO BRANCO, 2004; 2009).

Enquanto que Souza (1983) nos dirá que a estratégia possível ante tal fenômeno será,
preponderantemente, o fortalecimento da negritude – enquanto (re)valorização dos atributos
afrocentrados na constituição das identidades das negras e dos negros brasileiros – o que veremos é
que o racismo à brasileira, como nos aponta Telles (2003), procura silenciar a questão. Temos aqui um
claro embate: um processo de resgate de referenciais positivos não pode se dar pela via do
silenciamento, mas sim pelo sentido diametralmente oposto, que é o da visibilização, da fala, do grito
de uma outra realidade possível. Contudo, o processo de silenciamento e de negação de si perpassará
a todas e todos que carregam consigo elementos afrocentrados, ponto onde a estética tem uma função
de ampla relevância.

18 Registra-se que o uso da expressão “psicopatologia”, neste contexto, em nada tem a ver com a noção de natural
degenerescência da população negra, advinda dos ideais eugenistas (SCHWARCZ, 1993; CORRÊA, 2013). A perspectiva
abordada por Frantz Fanon (2008) e reendossada por Neusa Santos Souza (1993) é a de psicopatologias socialmente
produzidas. Aqui, subverte-se a noção de natural degenerescência para reivindicar-se a noção de que as condições
concretas da existência, alicerçadas no racismo em suas dimensões histórica, científica e política, mas também simbólica,
impulsionam sujeitos a vivências adoecidas, resultantes das iniquidades sociais.
118

Se tomarmos o fragmento narrativo em que uma das informantes narra o episódio da profissional
que afirma ser “cor de formiga”, veremos que o racismo no campo da Saúde Mental e da Atenção
Psicossocial opera indistintamente, como o é para além destes campos, afetando usuários e
profissionais. Ao fazê-lo, revela-nos o encontro de sujeitos condicionados à lógica racista em diferentes
contornos, a despeito de suas posições sociais, e cuja invisibilização do fenômeno por parte de alguns
profissionais pode ser resultado de seu próprio sofrimento ante a sua própria vivência como sujeito que
carrega elementos afrocentrados. No entanto, se lembrarmos de outro fragmento narrativo, em que
outra profissional entrevistada afirma o seu desejo de utilizar o “torço” como indumentária por entender
que o mesmo pode contribuir em termos de “representatividade” para outras pessoas, veremos que
essa questão já não passa tão despercebida, ameaçando a manutenção incólume do racismo.

Nessa linha, é pela ameaça que representa ao racismo que a representatividade negra é
constantemente atacada. A prospecção de que as negras e os negros possam visualizar melhores
condições de existência sem ter que despir-se de seus atributos afrocentrados fragiliza o projeto
burguês-capitalista de sociedade brasileira forjado no racismo, como vimos em Chalhoub (1986), ao
estremecer a concepção individualista de ascensão social imposta historicamente pela lógica racista.
Logo, começamos a entender os engendramentos de concepções como “Democracia Racial” na
desmobilização do debate étnico-racial no Brasil, elemento apontado por Telles (2003) no início deste
estudo. Nesse sentido, Souza (1983) nos explica:

A inexistência de barreiras de cor e de segregação racial – baluartes da democracia racial –


associada à ideologia do embranquecimento, resultava num crescente desestímulo à
solidariedade do negro, que percebia seu grupo de origem como referência negativa, lugar
de onde teria que escapar para realizar, individualmente, as expectativas de mobilidade
vertical ascendente. O caráter individualista da ascensão era coerente com as prédicas da
democracia racial, que colocava ênfase na capacidade individual como responsável pela
efetivação do projeto (SOUZA, 1983, p. 22).

Como temos afirmado a todo o tempo, visualizar esse percurso histórico é condição basilar para
que entendamos a gênese de grande parte das narrativas dos profissionais entrevistados, quando
estes especulam a possível relação que há entre as condições concretas da existência, em termos
econômicos e políticos, a condição étnico-racial de cada sujeito e seus distintos processos de
adoecimento mental. Tudo fala do lugar de um grande projeto, que pressupõe o apagamento de um
grupo social em privilégio e soberania a outro grupo. Destarte, a submissão identitária é peça-chave e,
se assim o foi em todo o percurso do Brasil Colônia de antes ao Brasil República de agora, seus efeitos
históricos gerarão ecos também agora, ecos que podem se manifestar em tônicas de sofrimento.
119

A história da ascensão social do negro brasileiro é, assim, a história de sua assimilação aos
padrões brancos de relações sociais. É a história da submissão ideológica de um estoque
racial em presença de outro que se lhe faz hegemônico. É a história de uma identidade
renunciada, em atenção às circunstâncias que estipulam o preço do reconhecimento ao
negro com base na intensidade de sua negação (SOUZA, 1983, p. 23).

Tais percursos históricos, inclusive, revelarão ainda outros sentidos igualmente relevantes nas
narrativas que estamos aqui a trabalhar, e que apontam para leituras sobre a conjunção entre racismo
e adoecimento mental. Vejamos, por exemplo, o que nos diz a narração do caso “Faxineira e
Pedagoga”, ao ponderar que a condição de estudo e ascensão educacional da usuária em questão não
fora condição suficiente para lhe permitir deslocar-se de seu lugar de inferiorização. A despeito de todo
o peso da expressão “preta suja”, o que per si já é gritante, esse caso nos exemplifica o marcador
étnico-racial como um elemento de destaque na relação interseccional entre racismo e pobreza.
Notemos que, apesar dos relatos de estudos outros trazidos nesta pesquisa de que o acesso à
escolarização formal poderia melhorar a autopercepção de acessos a direitos, o fato da usuária do
caso narrado ser negra é trazido como o elemento que ainda lhe atribui dificuldades no acesso, por
exemplo, ao trabalho. Tal narração não apenas nos remete novamente à compreensão da
interseccionalidade como processo que marca a experiência de discriminação advinda do ser preto e
do ser louco, mas nos exemplifica o que dissemos anteriormente, ao ponderar que racismo e pobreza
são fenômenos distintos, que operam comportamentos e consequências sociais também distintas. Por
conseguinte, questionamos: ao ascender em termos educacionais, a usuária do caso narrado se
aproxima dos ideais brancos de vida e sociedade ocidental, mas ainda assim tem a sua cor da pele
trazida à tona como elemento de deslegitimação de suas capacidades laborais. O que estrutura esse
pensamento? Mais ainda, quais efeitos esse pensamento produz à pessoa a quem ele se destina?
Como constituir-se enquanto sujeito “saudável” frente a um aparato social que produz a desigualdade
de maneira tão brutal e ainda a reproduz no discurso?

Tanto Souza (1983), quanto Fanon (2008) e Schwarcz (1993), nos trazem ponderações quanto a
este fenômeno. Enquanto Souza (1983) nos dirá do inevitável caminho da negação de si e do
sofrimento pela busca de um referencial branco inalcançável, Fanon (2008) nos dirá, como visto, que
tal processo irá impor a necessidade de vestir máscaras, que permitam a existência-sobrevivência da
maneira menos adoecedora possível, mas não sem dor, não sem sofrimento, não sem morte.
Schwarcz (1993) nos afirma que esse processo está na fundação da sociedade brasileira, estando os
seus efeitos mais nefastos entranhados nas estruturas do Estado e da produção científica brasileira –
ultrapassando as reverberações dos ideais eugenistas do início do século XX para (re)engendrar o
racismo cotidianamente em novos formatos, silenciosos e poderosos, como completa Telles (2003).
120

Em Souza (1983), todo este arcabouço há, então, de produzir dois caminhos possíveis: a aceitação
(em geral, involuntária e inconsciente) do sofrimento psíquico ou o empoderamento étnico-racial.

O caso “Saco de Batatas” nos aponta nesta direção. A profissional entrevistada que narra este
caso nos diz que a usuária em questão, negra, seguiu sua vida, demonstrando na continuidade de sua
história diferentes consequências das violências sofridas – interseccionais, frise-se, tendo em vista a
brutalidade também presente do machismo e da violência infantil narradas no episódio. Desenvolveu-
se como sujeito, mas com marcas profundas que remetem à sua experiência vivida como mulher,
negra e pobre, violentada em diferentes esferas. Se antes o seu sofrimento e o seu consequente
adoecimento foram atribuídos a uma perversa noção de natural degenerescência da população negra,
calcada na plena eugenia (SHERVINGTON, 1976; SCHWARCZ, 1993), o que contribui para que este
caso permaneça ainda hoje em sofrimento é a dimensão do silenciamento, da não-ressonância acerca
do quanto vidas marcadas cotidianamente pela expressão de iniquidades sociais tão profundas
tenderão a apresentar inúmeros agravos (SOUZA, 1983; TELLES, 2003).

E, seguindo no que tange à correlação interseccional entre loucura e racismo, há que se pontuar
uma dimensão apresentada no último fragmento narrativo selecionado. Se, de um lado, reconhecemos
agora que o fenômeno racista pode reverberar em processos comportamentais e sociais que possam
ampliar a experiência do sofrimento psíquico humano, de outro lado é preciso lembrar que a condição
do enlouquecimento (propriamente dito) constitui-se, por si mesma, em um marcador social de
exclusão. Desta forma, o adoecimento mental correlacionado à experiência do sofrer racismo possuirá
uma dimensão característica praticamente autofágica: adoecem-se as pessoas pelas vivências
cotidianas de opressão e exclusão racial, e negam-se às pessoas a legitimidade de suas falas no
momento em que este sofrimento aponta para uma suposta incoerência em sua leitura ante o mundo.
Neste tocante, torna-se menos relevante pensar a questão da causalidade na relação entre racismo e
loucura, e muito mais importante compreender como se constroem mecanismos de produção de
sofrimento e de manutenção deste, ainda inseridos na lógica de um projeto de sociedade em que o
desviante é descartável – seja como negro, seja como louco (SOUZA, 1983; FOUCAULT, 1979; 1993).

Em síntese, ainda que tenhamos acesso apenas aos elementos discursivos dos profissionais
acerca destes casos, o instrumental teórico-metodológico escolhido para esta pesquisa – a Análise de
Narrativas – como vimos, pressupõe que uma narração não se trata apenas de uma descrição de
elementos vividos, mas sim de uma tentativa de reconstituição discursiva da realidade. Portanto, a
narração destes casos pressupõe que os sujeitos informantes destes reconhecem nestas experiências
narradas elementos fortes o suficiente para caracterizar a realidade a partir destas narrações.
121

Logo, isto nos permite afirmar, pelo reconhecimento dos casos narrados, que os profissionais
aqui entrevistados atribuem ao fenômeno racista forte peso no processo de sofrimento psíquico e
adoecimento mental de uma majoritária parcela dos usuários que se encontram sob os seus cuidados.
Todavia, se este reconhecimento geral do fenômeno irá desembocar em um conhecimento específico
quanto à sua abordagem, este é o ponto que trataremos no próximo e último subtópico do presente
capítulo.

 5.4 – O Racismo e a Organização do Processo de Trabalho em Saúde Mental

Conforme visto no subtópico anterior, as narrativas dos profissionais entrevistados apontam para
uma compreensão bastante ampliada acerca do fenômeno do racismo e suas influências no sofrimento
psíquico de usuários de Saúde Mental. Até aqui, a maioria dos profissionais entrevistados produz
narrativas que em muito dialogam com aspectos da literatura científica que alicerça o presente estudo,
seja em sua Fundamentação Teórica, seja em sua Revisão Sistemática de Literatura.

No entanto, não necessariamente as narrativas apresentadas nos apontam que o aparente


reconhecimento geral do problema aqui debatido garantirá uma execução adequada de ações no
sentido de visibilizar e abordar o sofrimento que advém da experiência de sofrer racismo. Isto não
significa dizer que foram detectadas maiores ações diretas de cunho racista – a despeito dos
fragmentos narrativos que indicam o uso de frases de cunho bastante racista por parte de profissionais
não identificados – mas aponta para uma presença não assegurada do debate étnico-racial no que
tange à organização do processo de trabalho em Saúde Mental. Veremos, ao longo deste subtópico,
como e onde isto se faz representar.

Quanto à organização do processo de trabalho em Saúde Pública, de maneira geral, não


podemos deixar de analisar as narrativas que apontam para o Sistema Único de Saúde (SUS) como o
local inevitável onde as negras e os negros em sofrimento psíquico severo, grave e persistente
acabarão por obter cuidado. Não apenas é atribuída ao trabalho oferecido no âmbito do setor público
uma qualidade inferior à que será oferecida no setor privado, como se considera que o fato destas
pessoas acessarem o Sistema Único de Saúde (SUS) repercute em uma menor assistência aos seus
quadros de sofrimento, o que poderia ocasionar, conforme narrado, em um maior agravo à sua saúde.
Em igual medida, se aponta que os usuários do setor público de saúde, portanto, têm cor: negra. Mais
ainda, se aponta que, por essa realidade “evidente”, o acesso de pessoas ditas como “mais claras” –
ou brancas – tornar-se-á diferenciado, indicando que a questão da cor de pele poderá ser um elemento
122

de diferenciação na qualidade do atendimento oferecido. Ora, temos aqui três concepções que
envolvem dimensões de estigmatização e, paralelamente, de um racismo de caráter institucional:

(1) A concepção de que o que é público é de qualidade inferior nos remete diretamente aos
ideais neoliberais e capitalistas que se voltam para a deslegitimação do Sistema Único de
Saúde (SUS), como uma estratégia para a justificação das ações de privatização e
desmantelamento da coisa pública, em privilégio às grandes empresas médicas. Esse tipo
de pensamento colabora com os discursos que procuram atacar a Saúde Pública nacional
visando a uma inserção neste âmbito pela via das terceirizações e/ou da venda dos planos
privados de saúde, reduzindo os processos saúde-doença-cuidado a uma dimensão
mercadológica e lucrativa (PAIM, 2009; PAIM; ALMEIDA-FILHO, 2014). Tal tipo de
pensamento precisa ser veementemente visibilizado, logo a princípio, para que, em
sequência, possa ser também veementemente refutado, sob pena de que interesses
escusos operem sobre o setor público de saúde, produzindo os discursos de uma má
qualidade assistencial sem que os mesmos sejam, deveras, um fato.

(2) A concepção de que os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) sejam majoritariamente
negros é coerente com o processo de formação histórica da sociedade brasileira, na medida
em que se produziu uma concepção de que aquilo que é público é voltado para os
“desvalidos”, ou seja, as camadas sociais mais baixas e de menor poder aquisitivo. Sendo
assim, como vimos, o projeto de sociedade burguês-capitalista no Brasil reservou às negras
e aos negros esse lugar social (CHALHOUB, 1986), o que conduz ao fato de que estes
acabam por serem, então, os principais usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). No
entanto, chama a atenção o fato deste componente ser associado à concepção anterior: não
só o Sistema Único de Saúde (SUS) é compreendido como um lugar de ofertas de baixa
qualidade em saúde, como essas ofertas são compreendidas como majoritariamente
oferecidas à população negra. Até que ponto tais discursos se associam no caminho de uma
dupla estigmatização – frente ao que é público e frente à população negra?

(3) A concepção de que o acesso de pessoas brancas ao Sistema Único de Saúde (SUS) é
diferenciado revela os contornos atuais daquilo que aqui já definimos como racismo
institucional, influenciado pelos ditames da ideologia branca. Assim, chama também a nossa
atenção o fato de que a presença de pessoas brancas neste espaço – pensado como de
menor qualidade e destinado aos negros – é narrada como algo que se destaca e que, em
última instância, ocasionará em uma oferta profissional mais cuidadosa, diferenciada.
123

As três concepções apresentadas revelam uma lógica cadenciada de compreensão sobre o


Sistema Único de Saúde (SUS): que ele seria ruim, que ele é destinado aos negros, e que os brancos
ao utilizarem-no devem receber um tratamento distinto. Ainda que esta lógica possa não revelar-se em
práticas de racismo direto, certamente elas irão configurar práticas de racismo indireto, conforme
narrado, especialmente se retomamos a fala de alguns dos profissionais entrevistados, ao apontarem a
percepção de que “todos somos racistas” e que, pelo “enraizamento” do racismo em nós, podemos
assumir atos de cunho racista a qualquer momento, ainda que não os percebamos.

Ainda no âmbito geral da Saúde Pública, conforme nos apontam Kalckmann e colaboradores
(2007), essa lógica acabaria por ocasionar em um eminente “fracasso” na oferta de cuidados nos
serviços públicos de saúde. O fracasso estaria precisamente no fato de que um funcionamento cujas
bases assentem nestas concepções não conseguirá acessar a complexidade do sofrimento
apresentado pelas camadas sociais compostas pelas pessoas pobres e pelas pessoas negras – seja
pela incapacidade de afetar-se empaticamente por estes sofrimentos, seja pela dificuldade de produzir
conhecimento e um saber-fazer contextualizado com as necessidades reais de saúde. López (2012)
complementará esta ideia nos sinalizando que isso não ocorre ao acaso, sendo, como já dissemos em
diversos momentos, parte de um projeto biopolítico de controle sobre as massas das camadas mais
baixas, no sentido da manutenção da ordem social de tipo burguês-capitalista eurocentrada, vide: “Na
área da saúde, esses mecanismos podem ser analisados como dispositivos de biopoder, na medida
em que gerenciam a vida da população conforme um olhar racial” (LÓPEZ, 2012, p. 131).

Doravante, se estes são processos presentes e potentes em termos de influência na


organização do processo de trabalho em Saúde Pública, de maneira geral, certamente também o serão
ao pensarmos, ainda inseridos no âmbito do setor público, na organização do processo de trabalho dos
serviços e das equipes de Saúde Mental e de Atenção Psicossocial. Na ausência de maiores estudos
nacionais publicados que abordem essa questão, nos firmamos nas pesquisas de Barros et al (2014),
Cooper et al (2005), McKenzie e Bhui (2007) e Gabbidon et al (2014), entre outros, para apontar que os
efeitos do racismo institucional já são sentidos na oferta de cuidados em Saúde Mental em distintas
realidades, gerando efeitos e ressonâncias variadas, inclusive sendo perceptíveis na vivência das
usuárias e usuários destes serviços.

O estudo de Shervington (1976), um dos mais antigos, porém mais relevantes para a presente
Dissertação, já nos apontou que a questão do racismo gerava efeitos na oferta de cuidados em Saúde
Mental desde a década de 1970, quando observada a realidade dos Estados Unidos. Podemos partir
do estudo de Shervington (1976), tendo em vista o que sabemos sobre a influência dos ideais
124

eugenistas na realidade brasileira, para inferir que tal processo seja visualizado também aqui no Brasil.
Se, no princípio, a base dessa afirmação estaria no reconhecimento dos efeitos nocivos das teorias
frenológicas e antropométricas na saúde e, particularmente, na psiquiatria, hoje essa afirmação se
atualiza no processo de silenciamento do racismo, que se estrutura nos ideais de miscigenação
passiva e pacífica e democracia racial (TELLES, 2003; MUNANGA, 2004).

Consequentemente, nos depararemos com o fato de que (re)pensar a questão do racismo na


organização da oferta de cuidados em Saúde Mental pressupõe quatro movimentos primordiais, e que
aparecem de maneira diluída nas narrativas dos entrevistados, sem necessariamente serem relatados
como processos interligados e confluentes: (1) é preciso reconhecer a existência do racismo na Saúde
Mental e os seus decorrentes efeitos; (2) é preciso reconhecer a falta de recursos tecnológicos leves
em saúde para abordar essa questão diante da profundidade subjetiva e sócio-histórica do fenômeno;
(3) é preciso produzir novas pesquisas sobre essas correlações, de maneira a fortalecer as políticas
públicas já existentes sobre o tema; e (4) é preciso revisitar as noções de clínica e de escuta
qualificada frente aos sofrimentos de base social, sejam os raciais, sejam os demais aqui em diálogo,
inclusive na perspectiva interseccional.

Compreendemos que as quatro proposições acima só podem ter algum nível de impacto
relevante se feitas de forma indissociada. Por conseguinte, o primeiro movimento primordial seria o
reconhecimento da existência do fenômeno. Isto significa romper com o pacto racista – como vimos em
Schucman (2010; 2014) – de silenciamento das questões que envolvem o sofrimento oriundo do
racismo. Ao fazê-lo, retirando o véu que encobre o problema, podemos visualizá-lo em toda a sua
construção. Decerto que isto implica em um alto grau de empatia e comprometimento ético-político por
parte dos profissionais implicados nesta oferta de cuidado. Entretanto, e como veremos em Amarante
(2007), o processo de trabalho na Atenção Psicossocial pressupõe esse posicionamento político e de
leitura da realidade histórica a todo o tempo, para que não incorramos em erros pregressos que
deslegitimem os sujeitos, suas falas e seus sofrimentos.

A partir desse primeiro passo, podemos então vislumbrar a continuidade do segundo e do


terceiro movimento primordial: o reconhecimento da falta de recursos tecnológicos leves em saúde
para abordar essa questão – ou seja, um instrumental clínico-institucional específico (MERHY;
FEUERWERKER, 2009) – fatalmente nos conduzirá ao reconhecimento de que é preciso estudar mais
este fenômeno, seja porque as pesquisas neste campo ainda são poucas e frágeis, seja porque o
mesmo figura como uma questão percebida como geradora de fortes impactos no cotidiano de trabalho
dos serviços e das equipes de Saúde Mental e de Atenção Psicossocial.
125

Por fim, há que se processar o quarto movimento primordial, pela via de um encontro genuíno de
cada sujeito cuidador com seus próprios pensamentos, paradigmas e experiências ante a questão
étnico-racial brasileira. Salientamos isto rememorando as narrações que nos sinalizam que os
profissionais também estão suscetíveis a terem sua escuta “filtrada pelo racismo”, bem como
suscetíveis também ao seu próprio sofrimento psíquico que advém da experiência de sofrer racismo.
Destarte, tais experiências podem gerar efeitos subjetivos dúbios: ou um cerceamento da possibilidade
de avançar no enfrentamento à questão – estruturado no condicionamento racista e na negação de si,
como vimos em Souza (1983) – ou um encontro empático e genuíno com o sofrimento de quem sofre.

Nessa linha, o estudo publicado por Mary Fennell (2005), abordado na Revisão de Literatura,
nos traz uma importante sinalização: é urgente colocar os aspectos étnico-raciais e culturais presentes
no cotidiano das relações sociais no jogo da mediação profissional-usuário e no encontro clínico que
vise produzir cuidado a estes sujeitos. Isto não significa, forçosamente, trazer a questão à tona acima
do próprio discurso do sujeito de quem cuidamos, mas sim, como sinalizado por algumas de nossas
profissionais entrevistadas neste estudo, manter aberto o canal de comunicação e a possibilidade para
que o sujeito aborde os seus sofrimentos sem encontrar, do outro lado, julgamentos que valorem e
classifiquem o seu sofrimento como maior ou menor, coerente ou incoerente, real ou delirante.

Da provocação de Fennell (2005), apontamos então três “encontros genuínos” possíveis e


necessários aos trabalhadores da Saúde Mental e da Atenção Psicossocial, se é objetivo nosso
ultrapassar as barreiras racistas que possam se interpor em nossa oferta de cuidados clínico-
institucionais: (1) um encontro com o outro, bem como com o seu sofrimento, sem formas pré-dadas,
julgamentos preconcebidos ou instruções claramente definidas; (2) um encontro consigo mesmo,
com o “racista que habita em nós”, voluntário ou involuntário, e que se manifesta em nossos
comportamentos cotidianos; e (3) um encontro com o nosso saber-fazer, ou com o nosso não-saber-
fazer, ante o fenômeno do sofrimento psíquico oriundo da experiência de sofrer racismo e os sujeitos
que o manifestam em suas existências-sobrevivências.

Estes “encontros”, certamente, não serão a solução final para os problemas narrados pelos
profissionais entrevistados e identificados na literatura científica quanto ao racismo e à organização do
processo de trabalho em Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Não obstante, eles podem nos dar
interessantes pistas, que contribuam tanto com o imediato das práticas profissionais e clínico-
institucionais desenvolvidas no cotidiano dos serviços públicos de Saúde Mental, quanto com a
produção acadêmica e científica brasileira que, deveras, possui uma dívida junto às massas pretas,
pobres e usuárias destes serviços em nosso país.
126

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Abordar a questão do racismo, a despeito de todo e qualquer contexto que se enseje trabalhar,
não é tarefa simples, direta ou mesmo de rudimentar consecução. Trata-se de um fenômeno de
características tão invisíveis na realidade brasileira que tocá-lo representa um esforço de, antes de
qualquer outra atribuição, reconhecer e reafirmar a sua existência, em um movimento de negar os
pressupostos até hoje vigentes e poderosos que procuram refutar a presença do racismo no cotidiano
das relações brasileiras pela afirmação da miscigenação racial e da democracia racial.

Ora, é fato que a miscigenação racial produziu no Brasil uma realidade fenotípica muito peculiar,
especialmente se comparamos o processo colonizador ocorrido no Brasil com o que fora ocorrido em
outros países do Eixo Sul Global (RIBEIRO, 1995). No entanto, essa miscigenação, como vimos, não
pode ser tomada como elemento justificador de discursos que nos conduzam à concepção de que isto
produziu em nosso país um acesso a direitos indistinto e igualitário a todos os segmentos
populacionais, nisto que fora chamado de “democracia racial” (TELLES, 2003). Longe disso, essas
concepções funcionaram muito mais para produzir um racismo brasileiro de contornos muito próprios,
fazendo da marca da experiência racista nacional o silêncio e o silenciamento dos que sofrem histórica
e continuamente com os efeitos nefastos do racismo, mesmo em tempos atuais (SOUZA, 1983).

Como vimos aqui, os profissionais da Saúde Mental e da Atenção Psicossocial não estão
sujeitos a escaparem destes arranjos. Enquanto que os mesmos possam apresentar um conhecimento
geral considerável da questão do negro e dos demais segmentos sociais não-brancos brasileiros –
ponto que, deveras, muito nos surpreendeu – esse conhecimento não se revela como condição motriz
basilar para a produção de conhecimentos mais específicos quanto à questão do sofrimento psíquico
advindo da experiência de sofrer racismo. Em outras palavras, saber e/ou reconhecer a existência do
racismo como fenômeno contemporâneo, na ordem dos discursos, não é condição sine qua non para
que sejam pensadas e executadas estratégias de ação possíveis e necessárias para abordar e acolher
experiências existenciais de sofrimento que sejam concebidas dentro dos moldes de funcionamento do
racismo à brasileira.

Isto, ressalvado o caráter parcial de inferência da afirmação que aqui se seguirá, pode revelar
mais um dos mecanismos de engendramento do racismo à brasileira nas instituições públicas de nosso
país: o não-desenvolvimento de instrumental sanitário e psicossocial para abordar o racismo como
fenômeno pode ocasionar em agravos à saúde que perpassam por uma série de dimensões da vida
127

humana, em aspectos biológicos, históricos, políticos, culturais e interseccionais em geral


(SCHWARCZ, 1993; FARO; PEREIRA, 2011; ZAMORA, 2012). Tanto pode reverberar em agravos à
saúde pela própria concepção da assistência ineficaz pela ausência de adequação às condições
concretas da existência de determinados segmentos sociais politicamente minoritários, quanto pode
reverberar em ampliação do sofrimento psíquico advindo destes agravos pela desassistência
decorrente do seu não-reconhecimento como questão de saúde, Pública e Coletiva.

No entanto, para fins desta pesquisa, mais nos interessa resgatar o objetivo geral proposto ao
presente estudo: “identificar quais as narrativas ligadas ao racismo construídas por parte dos
profissionais de um determinado Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade de Salvador/BA”.
Assim, o que constatamos é que o fenômeno do racismo não é uma questão que passa incólume ante
os discursos (ou narrativas) apresentados pelos profissionais entrevistados do serviço selecionado – o
que nos permite pensar que talvez não seja, então, uma questão de todo desconhecida aos
profissionais atuantes na Saúde Pública local. De maneira geral, as narrativas apresentadas
compreendem que é à negra e ao negro que se voltam os maiores efeitos prejudiciais da manifestação
e/ou da manutenção desse fenômeno social no âmbito das relações cotidianas, embora apontem ser
muito difícil esquadrinhar e identificar os tempos e os espaços em que tais efeitos se fazem valer.

Retomam continuamente narrações históricas e culturais, remontando ao período da


escravização de negros africanos e afrobrasileiros, para justificar a existência das disparidades
observadas entre brancos e negros, inclusive associando a questão da classe social (ou, sendo mais
específico, da pobreza) como agravante do problema narrado – sem, necessariamente, apresentarem
a concepção, como aqui descrevemos na literatura científica, de que, no Brasil, trata-se de fenômenos
intimamente correlatos, derivados do projeto de sociedade que vemos vigorar por estas terras.

Vemos que as percepções e concepções sobre o fenômeno se fundamentam a partir de díades


analíticas muito particulares, mas coletivizáveis em quatro tipos: (1) relação profissional-usuário; (2)
relação profissional-profissional; (3) relação usuário-profissional; e (4) relação usuário-usuário. Quanto
às relações de tipo usuário-profissional e usuário-usuário, muito pouco poderemos afirmar aqui, tendo
por base tão somente a literatura científica – haja posto que os nossos informantes foram, unicamente,
profissionais de um serviço público especializado em Saúde Mental, não sendo acessadas as
narrativas diretamente produzidas por usuários destes serviços. Não obstante, quanto às relações de
tipo profissional-profissional e profissional-usuário, teremos relevantes dados coletados, como
apresentados nos capítulos quarto e quinto da presente Dissertação, onde se vê que o racismo é
percebido e narrado como fenômeno presente, seja na vivência dos profissionais (que se percebem
128

sofrendo ou não com o fenômeno racista em suas próprias vidas), seja em casos clinicamente
assistidos (em que a questão racial, quando trabalhada, não é diretamente, mas sim tangencialmente).

Isto se revela como um limite do presente estudo. Acessar as narrativas dos usuários destes
serviços pode nos complementar os estudos com dados essenciais à leitura sobre como as equipes
profissionais dos serviços de Saúde Mental e Atenção Psicossocial atuam diante de sofrimentos
correlacionados a aspectos étnico-raciais, e sobre como estes mesmos usuários percebem a
efetividade desta oferta de cuidados. Em mesma medida, podem nos autorizar um mergulho muito
mais intenso na análise de alguns de nossos desfechos analíticos deste estudo, como é o caso do
desfecho trabalhado no subtópico 5.3 – “O Racismo e a Fabricação do Sofrimento Psíquico” – do
quinto capítulo.

Consideramos também como um limite do presente estudo o fato de não ter sido possível
produzir uma observação etnográfica, sistemática ou participante da realidade concreta vivenciada no
serviço estudado. A imersão no cotidiano do serviço supracitado pela via de recursos etnográficos, por
exemplo, poderia ter nos dado informações preciosas quanto à vivência de todos os atores e atrizes
sociais que constroem a instituição – ultrapassando a análise exclusiva acerca dos profissionais, para
acessar as experiências vividas por parte dos usuários, dos familiares e, quiçá, dos gestores. Isto
certamente abre margem a ponderarmos sobre a necessidade da realização de um estudo deste perfil,
no sentido de contribuir com a processualidade dos achados da presente pesquisa.

Outro limite que não podemos desconsiderar é a ausência de maiores estudos acerca da
interface direta entre Saúde Mental e racismo. Como visto, por diversas vezes tivemos de recorrer a
estudos de caráter internacional para tentar contextualizar estas pesquisas à realidade brasileira. Não
que consideremos que os estudos internacionais sejam ineficazes para pensar a nossa própria
conjuntura, mas uma maioria de estudos nacionais teria uma maior coerência e nos daria maiores
embasamentos, inclusive comparativos, para tentar traçar um perfil da questão da abordagem ao
racismo na Saúde Mental e na Atenção Psicossocial brasileira de maneira mais ampliada.

Destaque-se, inclusive, que isso gera o esforço teórico-metodológico de aproximar autoras e


autores, escolas e correntes de pensamento que nem sempre passeiam pelas mesmas bases
epistemológicas – confluem, apenas, na decidida escrita direcionada à luta antirracista em todas as
suas esferas. Se intentamos aproximar tais autoras, autores, escolas e correntes de pensamento, é
seguindo a provocação feita por Moore (2007), de que é preciso pensar novas bases epistemológicas
para debater o racismo nos diferentes campos de produção do conhecimento.
129

Neste aspecto, tencionamos ainda o fato de os estudos voltados às questões étnicas e raciais
estarem diluídos nos diferentes campos de saber-fazer, sem que necessariamente produza-se uma
confluência discursiva sobre os seus achados e os seus postulados. Não queremos aqui reivindicar a
uniformização dos discursos sobre a raça, a etnia e o racismo e seus feitos. Se o fizéssemos,
poderíamos correr o perigo de abrir margem a discursos uniformizadores que, em algum momento,
reendossassem e hegemonizassem os discursos sobre a raça por vias também elas racistas. Apenas
apontamos a urgência de que autoras, autores, escolas e correntes de pensamento que se debruçam
sobre o estudo das Relações Étnico-Raciais precisam assentar-se no posicionamento primordialmente
ético-político de que, se pesquisamos a raça, a etnia e o racismo e seus feitos, o fazemos porque
desejamos contribuir com a luta antirracista na produção acadêmica e científica, primordialmente.

Logo, tal qual nos provoca uma das profissionais entrevistadas desta pesquisa, ao dizer-nos da
precisão de cuidar para que a nossa escuta não esteja “filtrada pelo racismo”, também a nossa
produção de saber-fazer em Saúde Mental, Saúde Pública e Saúde Coletiva não pode estar “filtrada
pelo racismo”. Filtro este que pode revelar-se tanto no desencontro dos discursos sobre a raça, a etnia
e o racismo e seus feitos – fortalecendo o discurso do opressor, eurocentrado e embranquecedor –
quanto na não-visibilização do profundo sofrimento psíquico que advém da experiência de sofrer
racismo, onde, muito embora tenhamos afirmado que há pouca produção nacional sobre o assunto, a
pouca produção que temos é de uma rica e, em mesma medida, avassaladora potência.

Não nos esqueçamos, jamais, do exemplo de Neusa Santos Souza (1983). Se a sua publicação
de “Tornar-se Negro: ou as Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social” foi um
marcador sem precedentes da análise sobre o sofrimento psíquico advindo da experiência de sofrer
racismo, tal qual o fora a sua morte. Neusa Santos Souza cometeu suicídio em 20 de Dezembro de
2008, às vésperas da comemoração dos cento e vinte (120) anos da Abolição da Escravatura no Brasil,
que ocorrera no ano de 2009. Sem maiores detalhes sobre os motivos que a levaram a tal, Neusa
Santos Souza deixou apenas um bilhete, pedindo desculpas pela radical decisão assumida.

Podemos, apenas, imaginar os motivos que conduziram esta psiquiatra e psicanalista negra
baiana a uma decisão tão radical. Seria isto fruto da vivência particular e cotidiana de racismo a que
ela, certamente, também fora acometida por toda a vida? Seria isto fruto do silêncio e do silenciamento
de seu sofrimento psíquico, também advindo da experiência de sofrer racismo? Seria isto fruto da
ausência de encontros empáticos genuínos que acolhessem o seu sofrimento, produzindo novas
formas de cuidado e novas ofertas de saúde que lhe permitissem outros e novos sopros de vida?
Jamais o saberemos.
130

Não obstante, o que podemos apontar é que se trata de uma escrita solitária. Escrita solitária
que se opera não sem dor, não sem sofrimento, não sem morte. E se assim o é, esta escrita só é
possível se compreendemos que ela é parte de uma luta muito maior, uma luta antirracista que se
processará ainda por longos tempos, e da qual todas e todos nós, que optamos por abordar a questão
do racismo em termos acadêmicos e científicos, faremos parte, como peças de um todo também muito
maior, muito mais complexo e, ainda, inacabado.

Em suma, o desejo final é que este trabalho possa, em suma, não apenas contribuir com a
construção da luta antirracista na saúde, mas que este seja, também, mais uma provocação, mais uma
fagulha que contribua no imprescindível iluminar de um caminho que é, deveras, solitário e perigoso,
porém vital à luta antirracista. Afinal, como nos canta o Ilê Aiyê, se preciso for: “Nós faremos
Palmares de novo!”.
131

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139

ANEXO ÚNICO – TABELA DE CODIFICAÇÃO DOS FRAGMENTOS NARRATIVOS SELECIONADOS

Núcleos de Desfechos
Sentido por Analíticos das
Fragmentos Narrativos Selecionados Narração Narrações
Nº.
(Síntese das Entrevistas Narrativas Produzidas) (Síntese das (Síntese das
Trajetórias Trajetórias
Individuais) Coletivas)

Conceitos de Racismo
Percepções e
“O racismo eu acho que é algo cultural, né? E muito forte no Brasil. É, pra muitos, Concepções de
Dimensões
velado, é claro, mas ele existe, existe e é muito forte. E os nossos usuários sofrem Racismo
Componentes do
01
duplamente por preconceitos, ou triplamente, eu diria... Pela cor, pela condição Racismo
O Racismo,
econômica e por ser louco, né?”. a Loucura e a
Racismo e
Interseccionalidade
Interseccionalidades

“[...] quando nós falamos assim, racismo, as palavras que vêm logo em mente são
três, né? Negro, preconceito e discriminação. E aí que a gente diz assim: „Nosso Conceitos de Racismo
Percepções e
público, já que estamos em Salvador, e a população de Salvador é 90%, 95% negra, Concepções de
principalmente na classe mais baixa, né? E os nossos usuários de Saúde Mental são Dimensões
Racismo
Componentes do
02 esse público, né? E esse público pertence à classe mais baixa e são negros na grande
Racismo
maioria‟. É, você observa que aqui dentro dificilmente você vê uma pessoa de uma O Racismo,
pele mais clara. Ou é negro, ou é mulato ou é moreno. E a gente diz assim: „Gente, a a Loucura e a
Racismo e
pessoa carrega esses dois estigmas... Três, na verdade... Da pobreza, da loucura Interseccionalidade
Interseccionalidades
e do preconceito racial, do racismo, né?‟”.

“Racismo? Deixa eu pensar aqui… (Silêncio). É, eu acho que todos nós carregamos
uma questão racista. Mesmo que a gente não pare pra pensar sobre isso, sempre
tem esse preconceito, né? Faz parte de nossa história. E, não sei te dizer exatamente Conceitos de Racismo
o que é racismo, mas sei que é uma ideia preconcebida de que alguém possa ser Percepções e
03 Dimensões Concepções de
inferior por conta de sua cor, por conta de sua questão econômica, por conta de sua…
Componentes do Racismo
sua escolha sexual. Acho que são essas ideias que a gente já traz preconcebidas Racismo
acerca dessas temáticas. E eu acho que todos nós carregamos, em uma maior ou
uma menor escala”.

Conceitos de Racismo

“[...] se a gente parar pra pensar, eu acho que o louco branco, por exemplo, e de Dimensões Percepções e
um maior poder aquisitivo, causa menos impacto do que o preto, louco e pobre, Componentes do Concepções de
e isso é inegável, né? Quando a gente olha, dentro de um Shopping, um branco Racismo Racismo
04
doido, é diferente. Agora, se você botar lá dentro de um Shopping um usuário da
Manifestações O Racismo,
gente, eu tenho certeza que as pessoas vão sair correndo. Por que causa impacto Possíveis de Racismo a Loucura e a
muito maior na cabeça de todo mundo”. Interseccionalidade
Racismo e
Interseccionalidades
140

“Eu acho que a gente vê episódios de racismo todos os dias. Eu mesma faço isso,
involuntariamente. Eu mesma faço isso. Procuro me policiar, mas eu mesma faço Conceitos de Racismo
isso. Se um cara negro chega perto de mim, sozinho, mal vestido, eu já tô mais ligada,
é natural. Acho que vem de nossa criação. Se é um cara branco, é claro que eu vou Dimensões
Percepções e
Componentes do
05 olhar pra ele com estranhamento, né? Mas, eu acho que o negro chama mais Concepções de
Racismo
atenção. Por saber que ele tá mais sujeito à miséria, à pobreza, por saber Racismo
também que é capaz que ele acabe enveredando por esse caminho das drogas, Manifestações
do roubo e tal. É instintivo, já tá enraizado na gente, depois é que você vai se policiar Possíveis de Racismo
e procurar estar atento às suas próprias questões, a seus próprios preconceitos, e tal”.

Manifestações
“[...] o racismo, ele tá em todos os lugares, né? A gente percebe algumas condutas, Possíveis de Racismo Percepções e
alguns termos inadequados com que as pessoas se reportam a outras e até, assim, Concepções de
em questões pejorativas, no sentido mesmo de questão com a cor de pele, da raça, ou Racismo no Âmbito Racismo
06 dos Serviços de
do pensamento religioso, filosófico, enfim... O que a gente percebe é, às vezes, um
Saúde Mental O Racismo,
tratamento inadequado, uma palavra mal dita num atendimento, que não sai a Loucura e a
como deveria ter saído por conta dessas questões mesmo”. Racismo e Interseccionalidade
Interseccionalidades

“Há um tempo atrás, eu dizia, eu me peguei um dia pensando: „Por que é que eu não
gosto de tomar Sol?‟. Aí eu lembrei porque: porque quando eu vinha pra Salvador, que
eu ficava aqui um tempo e voltava para Campo Formoso, eu chegava lá e todo mundo Percepções e
dizia, inclusive a minha mãe: „Meu Deus! Você tá preta demais! Que coisa horrível Concepções de
é essa!? Por que você tomou tanto Sol?‟. Porque moreno, tomou Sol, fica negão na Racismo
Manifestações
hora, né? Aí eu ficava assim: „Por que é que eu tomei Sol?‟. Aí eu comecei a dizer que
Possíveis de Racismo
o Sol me coçava, que eu não gostava, e ainda dizia assim: „Ainda bem que eu sou O Racismo,
morena, porque eu não gosto de Sol. Eu não gosto de Sol‟. Isso há bastante tempo. a Loucura e a
Relatos Pessoais de
07 Interseccionalidade
Só que, um dia desses, eu me peguei pensando: „Gente, eu adoro praia, por que é Episódios de Racismo
que eu não gosto do Sol?‟. Aí eu pensei, pensei, pensei... Lógico! Porque, quando O Racismo e a
eu chegava das férias, depois de um mês ou dois meses em Salvador, eu chegava lá Racismo e
Organização do
Interseccionalidades
em Campo Formoso e eu ficava traumatizada, porque todo mundo dizia „Você tá Processo de
preta! Tá horrível!‟. Então, o negro ouve isso. Cotidianamente. Se ele é pobre, Trabalho em Saúde
ainda tem essa coisa arrastada: „Você é feio, você não tem dinheiro, você não tem Mental
estudo‟. Imagine quanta coisa. E, com transtorno mental, você ainda é louco. Você
ainda é louco!”.

Percepções e
“Outro ponto é que, há muito, quando eu comecei a fazer o processo de transição
Concepções de
capilar, tem uma usuária aqui que ela, tem um humor assim bem ótimo. Aí, teve um Manifestações Racismo
dia que ela fez assim, porque eu tava com o cabelo bem assanhado: „Por que você tá Possíveis de Racismo
08 andando com o cabelo assanhado agora? Por que você não arruma o cabelo?‟. Fiz O Racismo e a
assim: „Oxe! Meu cabelo tá arrumado. Esse aqui que é o arrumado dele‟. Já Relatos Pessoais de Organização do
aconteceu, assim, mais escancarado, mas são situações mais discretas, assim... Episódios de Racismo Processo de
Mais sutis”. Trabalho em Saúde
Mental
141

“Eu queria muito usar torço pra trabalhar. Eu uso torço pra sair, pra me divertir, mas eu
não consigo vir trabalhar. Eu coloco o torço e acho que não fica legal, eu fico achando
que é muito enfeite. E aí que eu vejo S., minha amiga, por exemplo, que é professora
da Rede Estadual de Educação, e ela vai de torço trabalhar. A gente fez uma atividade
Percepções e
juntas recentemente, uma oficina de Redução de Danos, e aí um dia ela foi com um
Concepções de
vestido africano, de tecido africano, e no outro dia ela foi de torço, e isso, eu tenho Manifestações Racismo
certeza, do tanto que é para os alunos dela ter uma professora negra, e que usa Possíveis de Racismo
09 elementos da cultura negra, faz uma diferença na identificação, na construção da O Racismo e a
identidade do aluno e de quem tem ela como referência. Eu não consigo e eu Relatos Pessoais de Organização do
reconheço que eu não consigo usar torço, por exemplo, pra vir trabalhar, por uma Episódios de Racismo Processo de
questão de... É resistência minha mesmo, assim, achar que não cabe dentro do Trabalho em Saúde
Mental
trabalho, eu estar assim. Assim como quando eu uso as contas de Orixá, eu escondo
quando eu tô no trabalho, por conta do número de pessoas que eu sei que
adoeceram, né, que estão em sofrimento porque acreditam que são, que foram
vítimas”.

“Mas eu percebo e sinto também, né? É... Eu fico imaginando, pra quem, desde
pequeno, já nasceu com toda essa, essa carga. Então, eu acredito que dentro do, do Manifestações O Racismo,
processo de adoecimento, o racismo é um dos principais fatores. Se você faz um corte Possíveis de Racismo a Loucura e a
de usuários que a gente acompanha, se você faz uma seleção aleatória, assim: „Ah! Interseccionalidade
Vamos pegar dez usuários, vinte usuários, que são atendidos neste serviço‟, Racismo no Âmbito
10 dos Serviços de O Racismo e a
aleatoriamente, você vai ali aos prontuários e pega vinte prontuários aleatórios, se
Saúde Mental Organização do
você for chamar esses vinte, com certeza os vinte serão negros. [...] E se você tirar Processo de
vinte usuários, provavelmente ali, de três a cinco, ou talvez mais, acreditam que Racismo e Trabalho em Saúde
aconteceu alguma coisa espiritual, que alguém fez despacho, trabalho do Interseccionalidades Mental
Candomblé”.

“[...] às vezes, a gente, mesmo atuando com pessoas formadas, capacitadas, com Manifestações
O Racismo e a
qualificação para a saúde, para estar atendendo todo e qualquer tipo de sujeito livre Possíveis de Racismo
Organização do
11 de racismo, enfim, de preconceitos de classe social, sexo, religião, enfim... A gente Processo de
Racismo no Âmbito
também vê essa questão aparecer. Não são diálogos grandes, e não são Trabalho em Saúde
dos Serviços de
manifestações muito claras, mas basta você olhar pra perceber”. Mental
Saúde Mental

“[...] essa questão não é trabalhada, mas ela existe como existe em todo lugar e é
velada, como se não existisse racismo, „todo mundo aqui é igual‟. E aqui, quando eu
Manifestações
fui colocando algumas coisas e quando você me perguntou especialmente do que o O Racismo e a
Possíveis de Racismo
serviço faz no seu planejamento, ou tem feito com relação a isso, eu percebo como Organização do
12 Processo de
isso não é trabalhado e que isso é também uma forma de racismo (risos). [...] Se Racismo no Âmbito
Trabalho em Saúde
a gente não aborda abertamente, sabe, pelo menos temos que deixar essa questão dos Serviços de
Mental
fluir em alguns momentos nas falas dos usuários, quando eles tão relatando seu Saúde Mental
sofrimento”.

“Eu sei que eu tenho empatia pra entender o quanto aquilo afeta a Saúde Mental dela,
o quanto aquilo afetou, o quanto aquilo afetará. Por que é tudo muito encadeado, né?
É uma coisinha envolvendo a outra, então se é uma pessoa que desde muito nova foi O Racismo e a
tratada de uma maneira diferente por ser negra, ela vai, fatalmente, desenvolver Fabricação do
Manifestações
alguma coisa... Pode até nem deprimir, nem ser ansiosa ou tal, mas isso pode Sofrimento Psíquico
Possíveis de Racismo
fazer com que ela fique mais suscetível a isso. Que ela fique mais susceptível a
13 O Racismo e a
tantas coisas, na verdade, né? Então, eu sei entender isso, e talvez trazer isso à Racismo no Âmbito
Organização do
tona, mas é algo que realmente não é dito. É um dado que até está ali, na anamnese, dos Serviços de
Processo de
mas que a gente não pergunta, de fato: „E aí, você já sofreu racismo?‟, „Você acha Saúde Mental
Trabalho em Saúde
que isso te atrapalhou de alguma forma?‟, „Você acha que isso tem relação com Mental
a forma como você tá se sentindo hoje?‟. Não, dificilmente a gente pergunta isso,
mas seria necessário”.
142

“[...] muitos vieram da palafita. E eu tava falando com eles sobre as histórias de vida, Racismo e Pobreza
como foi cada um criança, adolescente, adulto e agora, na maturidade. Aí eu pedi que
O Racismo,
cada um falasse: „Na infância, como era seu quarto? E sua escola?‟. Eis que um me Racismo e Educação
a Loucura e a
disse assim: „Quarto? Que quarto?‟. Eu me senti até ridícula. „Quarto? Não, não tinha Interseccionalidade
Racismo e
14 quarto não, dormia todo mundo junto, num cômodo só‟. E aí eu pensei: „Gente, cai a
Interseccionalidades
ficha! Por que é que você tá perguntando isso!?‟. Então, daí, as pessoas começaram a O Racismo e a
falar „Quê? Escola? Que escola?‟. A maioria era preta e analfabeta. Então, veja, todas Fabricação do
Racismo e Possíveis
essas questões tão atreladas: cor, educação, escolaridade, nível Sofrimento Psíquico
Influências no
socioeconômico e o adoecimento... e o adoecimento psíquico”. Psiquismo

Racismo e Pobreza
“As mulheres trazem muito isso. De as mulheres negras serem mais subjugadas,
O Racismo,
serem ainda mais vítimas de violência, de abuso sexual, muitas mulheres, né? Racismo e Gênero
a Loucura e a
Eu? Eu penso também no racismo, eu penso também na pobreza. Muitas dessas Interseccionalidade
Racismo e
15 mulheres trabalham em casas de família ou em situação de muita pobreza, o que
Interseccionalidades
acaba gerando uma maior vulnerabilidade e casos de abuso sexuais ocorrendo em O Racismo e a
80% das mulheres que vêm até aqui. Uma maioria, uma grande maioria dessas Fabricação do
Racismo e Possíveis
mulheres, referem a questão do abuso sexual e a maioria delas são negras”. Sofrimento Psíquico
Influências no
Psiquismo

“[...] a gente atende uma clientela em que 60%, 70% são negros, negros mesmo.
Então a gente tem que pensar que o racismo existe e existe junto com a pobreza e,
por que não pensar que o adoecimento psíquico está interligado, né? Se você é
preto, se você é pobre, eu acho que você tem uma chance maior sim de você adoecer
Racismo e Pobreza
psiquicamente. Se bem que eu falei uma frase pesada agora, viu? Não é que tenha O Racismo,
uma chance maior em termos genéticos, mas sim pela condição social, pela pobreza, a Loucura e a
Racismo e
pelas circunstâncias de vida que você tem e, pela minha vivência aqui, já há Interseccionalidade
Interseccionalidades
16
dezessete anos na Saúde Mental, a gente vê isso. Então, é claro que uma pessoa
O Racismo e a
que vive em condições de vida ligadas à pobreza, a muito sofrimento, e que Racismo e Possíveis
Fabricação do
normalmente vem carregado com uma história de violência doméstica, uma Influências no
Sofrimento Psíquico
Psiquismo
violência de vida toda mesmo, essa pessoa vai ter uma probabilidade maior de
desenvolver um transtorno mental, e isso pra mim é inegável. Muito mais do que
aquelas que não são negras e tem uma vida melhor, digamos assim, socialmente
falando”.

O Racismo,
“No próprio Sistema de Saúde, se você pedir pra um usuário que tá com uma dor de
a Loucura e a
dente procurar um Serviço de Odontologia, ele já se sente discriminado, pela questão Racismo e
Interseccionalidade
mesmo de ser usuário de Saúde Mental, que já é um peso, e as pessoas têm medo. Interseccionalidades
17 Os profissionais já vão dizer: „Não, não pode vir sozinho, tem que ter alguém O Racismo e a
Racismo no Âmbito
acompanhando‟. É tanto que eles se fecham no CAPS, né? Como se fosse o universo Organização do
dos Serviços de
deles, além da casa. É como se, à condição de ser doido, fosse somada a Processo de
Saúde Pública
condição de ser pobre e de ser preto”. Trabalho em Saúde
Mental

“De que forma a gente pode ajudar? Se para a gente, ditos normais, com raciocínio O Racismo e a
lógico, com a velocidade de raciocínio dita normal, na hora você reage de uma forma Formas de Atuação Organização do
18 Profissional frente ao Processo de
que não deveria, avalie pra eles, no caso, para a maioria. O que eu percebo não é o
Racismo Trabalho em Saúde
hábito de reagir, de enfrentar, mas sim de se encolher, de somatizar aquilo ali”. Mental
143

“[...] na relação do profissional com a pessoa, eu imagino que pode ser na forma de,
talvez, não, não dar ouvidos ou não, não escutar, é, no sentido bem integral do verbo,
né? Escutar, ouvir. Porque dentro da Saúde Mental, o que esse verbo representa eu O Racismo e a
acho que pode se manifestar aí, porque a partir da escuta você pensa as Formas de Atuação Organização do
19 Profissional frente ao Processo de
intervenções, você pensa o cuidado daquela pessoa. Então, na medida em que sua
Racismo Trabalho em Saúde
escuta ela é filtrada pelo racismo, você pode não dar importância ao sofrimento Mental
que aquela pessoa traz. E na pessoa, para a pessoa, o que pesa mesmo é o
sofrimento provocado por aquela, por uma situação de racismo”.

“[...] não tem que haver julgamento, nem teoria, nem o que eu acho, e nem o que eu
acho que sei. Não tenho que dizer „Olha, eu acho tal coisa...‟, não. O que eu faço? Eu
escuto. [...] Quando as pessoas falavam de abuso, mesmo, eu dizia: „Meu Deus, o
O Racismo e a
que é que eu vou dizer pra essas pessoas? Meu Deus, é um sofrimento que tá tão
Formas de Atuação Fabricação do
distante de mim, que é tão difícil‟. Mas, gente! Hoje, com o tempo e as escutas, eu Profissional frente ao Sofrimento Psíquico
percebo que não tem que dizer nada não, você tem é que estar aberta pra ouvir, Racismo
20 que às vezes essa escuta, de que nunca teve ninguém pra fazer isso por ela, é O Racismo e a
tudo, tudo, a pessoa se sente completamente aliviada, sabe? De, de poder falar. [...] Racismo e Possíveis Organização do
Esse sofrimento não pode ser menosprezado, então você precisa tomar cuidado Influências no Processo de
com qualquer coisa que você vai falar, você pode estar até na boa intenção, mas a Psiquismo Trabalho em Saúde
Mental
pessoa pode sentir dentro dela, inconsciente ou consciente mesmo, que „Meu
sofrimento, pra ela, não é tão intenso como é pra mim, porque é uma bobagem‟, e não
é por aí”.

“[...] isso deve impactar no psiquismo, né? A coisa da exclusão, do não


pertencimento. A coisa de não ter um lugar, digamos assim, respeitável. Um lugar Racismo e Possíveis O Racismo e a
21 Influências no Fabricação do
onde o sujeito possa, realmente, ali, se colocar. É um lugar de resto, né? Esse lugar
Psiquismo Sofrimento Psíquico
de resto é bem, digamos assim… Favorece ao adoecimento”.

“O abandono é o pior adoecimento que tem, a pior forma de provocar uma Racismo e Possíveis O Racismo e a
22 depressão, porque, o que é que você abandona? Aquilo que não te serve mais, né? Influências no Fabricação do
Aquilo que não tem mais utilidade pra você”. Psiquismo Sofrimento Psíquico

“Eu nunca, eu nunca tinha parado, eu nunca paro pra pensar muito sobre isso, por que Racismo e Pobreza
O Racismo,
já faz parte do contexto em que a gente trabalha. A gente não visita casas de pessoas a Loucura e a
loiras, de pessoas brancas. São raríssimas aquelas casas que os pacientes são Racismo e
Interseccionalidade
Interseccionalidades
23 brancos, né? Mas, a maioria mesmo é negro, e vive em condições de muita
miséria e de muito sofrimento. [...] Dificilmente você vai ver uma figura mais loirinha O Racismo e a
Racismo e Possíveis
aqui... E até quando existe isso, eu noto, quando é uma pessoa mais branquinha, Fabricação do
Influências no
mais bonitinha, assim, mais clara, as pessoas têm um cuidado diferenciado”. Sofrimento Psíquico
Psiquismo
144

“Tinha um rapaz que queria clarear a pele. Tipo Michael Jackson (risos). Ele dizia
que ia encontrar uma fórmula para clarear a pele. O que é que faz ele entender que
ele precisa clarear a pele? Não digo que, que não possa existir gente branca que traga
essa fala, mas, dificilmente você vai encontrar ou, pelo menos, dentro da minha Racismo e Possíveis O Racismo e a
experiência, o único relato que eu tenho de alguém que queira mudar a cor da pele é Influências no Fabricação do
de preto pra branco. Eu não encontro de branco pra preto. Eu não sei outros colegas, Psiquismo Sofrimento Psíquico
né? Até porque é a minha, a minha experiência. Eu não posso tirar o mundo por mim.
24 Relato de Caso O Racismo e a
Mas esse, esse processo de sofrimento, o sofrimento dele era todo em cima da cor da
Organização do
pele dele, porque ele não conseguia clarear a pele dele. E aí, o que é que faz ele Racismo no Âmbito Processo de
pensar, querer, desejar, construir um delírio de que ele ia, um delírio não, mas dos Serviços de Trabalho em Saúde
assim, um desejo de que ele ia encontrar tal coisa. É toda, todo esse processo Saúde Mental Mental
velado, ou não velado, né? De opressão, de... Como é que fala? Quando você... De
menosprezo, de... Desrespeito, de... Discriminação, de... De tudo que venha, que seja
relativo à cor negra, ao negro”.

“Então, abuso é um dos problemas mais fortes de todos. Violência também, mas eles
também trazem temáticas do racismo nesse meio. E aí essa menina, não é nem uma
menina mais, já é uma senhora, ela trouxe essa questão da vida dela. Ela já fazia
parte do grupo há um tempo, mas não abordava essas questões tão claramente.
Nesse dia, porém, ela veio por conta desse carro. Segundo ela, ela encostou no carro,
e o homem disse: „Sai sua preta, pra não sujar o meu carro‟. E, a partir daí, ela traz
toda uma história de vida, que ela se acha feia, que ela não se olha no espelho. O
cabelo dela é bem alisado, ela é negra, sempre anda bem arrumada, sempre anda
maquiada. Então, assim, eu fiquei meio chocada quando ela disse isso, né? Porque eu
Racismo e Possíveis O Racismo e a
achava ela uma mulher vaidosa. [...] Ela disse que se achava feia, que ela acha que
Influências no Fabricação do
todo homem não gosta dela, não olha pra ela pra nada. E aí ela conta que, na casa Psiquismo Sofrimento Psíquico
dela, a mãe dela odiava ela porque ela era a mais escura de todos os irmãos e
25 que a mãe arremessava a cabeça dela na parede. Disse também que a mãe tirou Relato de Caso O Racismo e a
ela da escola, dizendo assim: „O que é que uma feia, igual a você, quer estudar? Organização do
Pra que você vai aprender a ler e escrever?‟. Nesse dia, todo mundo do grupo ficou Racismo no Âmbito Processo de
muito mobilizado, porque ela trouxe uma série de questões de preconceito, e eu dos Serviços de Trabalho em Saúde
Saúde Mental Mental
mesma saí meio assim, atordoada. Meu Deus! [...] Hoje ela já é uma mulher, tem filhas
e ela ainda se sente feia, ela acha que um homem nunca vai olhar pra ela, porque ela
é uma mulher feia. Ela fala: „Porque eu sou preta, né? Eu sou...‟. Aí ela conta que se
envolveu com um homem, e esse companheiro dela era loiro e dos olhos azuis, só
que ele fazia vários abusos com ela, ele espancava, ele abusou das filhas e ela
aceitava tudo isso. Veja que coisa! Essa baixa autoestima dessa mulher de achar
que ninguém no mundo é capaz de desejá-la, que não era capaz de ser amada
por ninguém. Aí você começa a entender o adoecimento dela, a depressão, a
tentativa de suicídio, e coisa e tal...”.

“É como num caso que eu acolhi uma vez: uma menina negra que sempre foi muito
estudiosa, e que quando ela terminou o Segundo Grau, ela tentou trabalhar numa loja,
como vendedora, e aí ela teve uma coisa bem explícita, onde disseram a ela que não
dava para ela trabalhar ali porque ela não era bonita, não fazia o padrão da loja. Racismo e Possíveis
Então, assim, pra uma pessoa que pensava em ser médica, ouvir que não servia pra Influências no O Racismo e a
26 Psiquismo Fabricação do
trabalhar porque ela não tinha um tipo que combinasse com o público da loja? Então,
Sofrimento Psíquico
foi a partir daí que ela começou a dizer que ela era loira, e que ela usava lente de Relato de Caso
contato para esconder os olhos, os olhos azuis, porque os olhos azuis dela
chamavam muita atenção e aí ela tinha medo de, na rua, ser atacada. Enfim que
ela pintava o cabelo de preto, e aí foi piorando até chegar ao „padrão CAPS‟”.
145

“Eu tenho a história de uma usuária que, inclusive, o principal delírio dela era ouvir as Racismo e Possíveis
pessoas chamando ela de „neguinha‟, e aí ela se destemperava, falava cada palavrão Influências no O Racismo e a
27 Psiquismo Fabricação do
que eu nunca nem ouvi, e aí dizia: „Eu não sou neguinha, não! Neguinha é você!‟.
Sofrimento Psíquico
E xingava sem parar”. Relato de Caso

“Há alguns anos atrás, uns três anos atrás, veio um grupo aqui falar sobre racismo,
que nós pedimos uma palestra. E aí, eles falaram sobre a questão no dia combinado,
dizendo que ninguém quer ser negro, porque quando a gente fala que é negro as O Racismo,
Racismo e
pessoas logo associam o negro como uma coisa ruim, que o negro é feio, que o negro a Loucura e a
Interseccionalidades
Interseccionalidade
é pobre, então que ninguém gostaria de ser negro, por todas essas questões. Eu
lembro que os usuários realmente ficaram muito atentos à questão. E aí, no meio da Racismo e Possíveis
O Racismo e a
palestra, eles pediram para que se identificassem todas as pessoas que se achavam Influências no
Fabricação do
Psiquismo
28 negras, sendo que quase todo mundo levantou a mão. No entanto, teve uma Sofrimento Psíquico
funcionária aqui que não levantou a mão. Ela já não trabalha mais aqui, mas todo Relato de Caso
mundo olhou pra ela e fez assim: „Você é negra!‟. Ela fez assim: „Eu não, eu sou cor O Racismo e a
de formiga! Eu sou cor de formiga, eu não sou negra, não!‟. Todo mundo ficou, Organização do
Racismo no Âmbito
Processo de
assim, impressionado e perplexo com a resposta dela, né? Aí, diante da resposta dela, dos Serviços de
Trabalho em Saúde
foi que os palestrantes abriram o tema, sinalizando que essas coisas ruins todas que Saúde Mental
Mental
dizem sobre o negro fazem com que algumas pessoas não queiram se manifestar
como negros diante de tantas, tantos preconceitos”.

“Tem muitas narrativas como a de C., por exemplo. Ela atualmente fez alguns Racismo e Possíveis O Racismo e a
trabalhos como faxineira, como diarista, e ela disse que teve dificuldade até pra isso. Influências no Fabricação do
Você sabe que ela é pedagoga, né? Pois bem, ela teve dificuldade até pra isso, Psiquismo Sofrimento Psíquico
porque já chamaram ela até de „preta suja‟, questionando como que ela poderia
29 Relato de Caso O Racismo e a
trabalhar na cozinha, como que ela poderia já que ela é uma „preta suja‟? Então,
Organização do
acho que as pessoas se sentem mais a vontade até pra poder agredir o usuário de Racismo no Âmbito Processo de
Saúde Mental, porque o que ele diz não tem muita credibilidade, né? Pra muita gente, dos Serviços de Trabalho em Saúde
doido não tem credibilidade no que fala, na narrativa, pode ser negado”. Saúde Mental Mental

“O racismo na Saúde Mental é muito mais perverso, porque é... Camuflado. É


aquilo que eu te falei mais cedo, doido não tem credibilidade no que fala, então, se um O Racismo e a
doido diz que você, profissional, ou você, vizinho, o chamou de „nego sujo‟, de „nega Racismo e Possíveis Fabricação do
suja‟, isso pode não ser verdade. As pessoas pensam: „Será? Não é um delírio, Influências no Sofrimento Psíquico
não?‟. Então, é muito mais perverso porque não é ouvido, a queixa não é ouvida. Psiquismo
30 O Racismo e a
Talvez nós, profissionais, por estarmos no dia-a-dia com o usuário, talvez a gente
Racismo no Âmbito Organização do
sabe se ele tende a delirar sobre aquilo ou não, e a gente pode dar mais credibilidade, dos Serviços de Processo de
e dizer: „Olha, eu acho que realmente aconteceu, porque Fulano de Tal não tem esse Saúde Mental Trabalho em Saúde
perfil‟. Mas, no geral, não. Então, se até nós profissionais nem sempre damos Mental
credibilidade, acho que a família e a sociedade tendem a ignorar também”.

Tabela Anexa: Tabela de Codificação dos Fragmentos Narrativos Selecionados (Elaborada pelos Autores).

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