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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

RAABE ANDRADE

VINICIUS DE MORAES COM PAIXÃO:


POESIA, CORPO, MÚSICA E RELIGIÃO

RIO DAS OSTRAS


2018

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RAABE ANDRADE

VINICIUS DE MORAES COM PAIXÃO:


POESIA, CORPO, MÚSICA E RELIGIÃO

Monografia apresentada ao Departamento de Artes e


Estudos Culturais – ERA da Universidade Federal
Fluminense como pré-requisito para obtenção do
título de Bacharel em Produção Cultural, sob a
orientação do Prof. Dr. Gilmar Rocha.

RIO DAS OSTRAS


2018

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RAABE ANDRADE

VINICIUS DE MORAES COM PAIXÃO:


POESIA, CORPO, MÚSICA E RELIGIÃO

Monografia apresentada ao Departamento de Artes e


Estudos Culturais – ERA da Universidade Federal
Fluminense como pré-requisito para obtenção do título
de Bacharel em Produção Cultural, sob a orientação do
Prof. Dr. Gilmar Rocha.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Gilmar Rocha – Orientador – UFF

Prof. Dr. Edilberto José de Macedo Fonseca – UFF

Prof. Dr. Ericson Saint Clair - UFF

RIO DAS OSTRAS


2018

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À minha mãe, Noemi Andrade,
minha maior incentivadora, melhor
amiga e a mulher mais arretada que
já vi. “Sem você, meu amor, eu não
sou ninguém”.

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A BÊNÇÃO

A bênção, meus pais, Carmo – que agora descansa – e Noemi, que me deram a
vida e todas as oportunidades possíveis para chegar até aqui.
A bênção, meu orientador Gilmar Rocha, que ao ver em mim potencial para seu
projeto de pesquisa, me apontou um novo horizonte e me deu os remos para que pudesse
me lançar: “navegar é preciso”.
A bênção, Toninho Horta, o audaz, parceiro de todas as esquinas, que com sua
imensa generosidade me estendeu a mão para a amizade e desde então vem contribuindo
para meu crescimento musical, profissional e pessoal. “Aprender ou mais tentar”, não é,
Ton?
Sua bênção, Petrônio Souza Gonçalves. Você, que se derrama em poesia. Uai!
A bênção, Lan de Lancaster – outro poeta que tenho a honra de chamar de amigo.
Este trabalho tem muito de nossos devaneios.
A bênção, Luiz Carlos Prestes Filho, que entre um chopp e outro me mostrou
novos caminhos a percorrer neste trabalho e na vida.
A bênção, Dinho Batistão, meu padrinho e primeiro professor de produção
cultural.
Sua bênção, Rosildo Beltrão, que me deu o primeiro “estágio” como produtora
quando ainda era uma fedelha no auge de meus 15 anos. Que sorte a minha!
A bênção, Clayton Prosperi, meu mentor, mestre e amigo. Muito mais que me
ensinar a tocar piano – e a nele me derramar –, fez com que me apaixonasse ainda mais
pela música brasileira. A bênção, Ismael Tiso, Fernando Marchetti, Tutuca Tiso e Fredera
– a lenda. É sempre maravilhoso embarcar com vocês em viagens lunnares por harmonias
viscerais.
A bênção, André Cotta – mineiríssimo como eu –. que muito me orientou também
ao longo de todo o curso. A bênção, Ericson Saint Clair. Sua bênção Celina Sodré. A
bênção, Márcia Ferran. A bênção, Rôssi Alves. A bênção, Juliana Carneiro. A bênção,
Sônia Pimenta. A bênção, Walmeri Ribeiro. A bênção, Daniel Caetano. A bênção, Jorge
Vasconcelos. A bênção, Dil Fonseca. Professores queridos, tudo que aprendi e vivi com
vocês – mesmo com aqueles que não cruzei em salas de aula – vou carregar pra sempre
comigo. São tempos de luta, meus caros – que não vos falte ânimo e nem coragem!

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A bênção, Fernando Eugênio, que agora é uma estrela, imortal, como todos
aqueles que jamais serão esquecidos. “Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar!”
A bênção, João Eugênio. Você, que vive sempre atrasado mas com o carinho
sempre em dia.
A bênção, Juliana Monteiro. E obrigada, amiga, por me ensinar a criar minha
realidade.
A bênção, Lívia Bueno – amiga e comadre. A bênção, Gigi Coutinho e Vinicius
Barbosa. A bênção, Catherine Rocha e Christian Rybertt. A bênção, Larissa Paiva e Bruno
Andrade. A bênção, Luiz Otávio Frota e Marina Carvalho - amigos de todas as bossas. A
bênção, Leonardo e Helena Botrell. Beijos nas crianças – Joaquim, Rafael, Sofia, João e
Vininha.
A bênção, família Caetano.
A bênção, Bituca – meu xamã. Sua bênção, Wagner Tiso (professor Wagão). A
bênção, Beto Guedes. A bênção, Murilo Antunes. A bênção, Fernando Brant – que
saudade! A bênção, irmãos Borges – Marcinho, Marilton, Telo e Lô. A bênção, Ronaldo
Bastos. A bênção, Tavinho Moura. A bênção, Tunai e toda mineirada do Clube. Sonhos
não envelhecem!
A bênção, meu maestro soberano, Antônio Brasileiro, que choraste no piano todas
as minhas mágoas de amor. Ah, “se todos fossem no mundo iguais a você”.
A bênção, Carlinhos Lyra – “parceirinho cem por cento”.
A bênção, mestre João Donato.
A bênção, Roberto Menescal. “Ah, se eu pudesse no fim do caminho achar nosso
barquinho e leva-lo ao mar! Ah, se eu pudesse toda poesia! Ah, seu pudesse sempre
aquele dia!”
Sua bênção, João Gilberto.
A bênção, Nara Leão.
A bênção, Edu Lobo.
A bênção, Chico Buarque.
A bênção, Baden Powell.
A bênção, Toquinho.
A bênção, família Caymmi.
A bênção, Clarice Lispector e Adélia Prado. Foram tantas epifanias através de
vocês...
A bênção, Drummond.

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A bênção, Rubem Alves.
A bênção, Fernando Pessoa. Tens toda razão: “para ser grande, sê inteiro”.
A bênção, Ferreira Gullar. Acrescentou à minha vida te conhecer.
A bênção, Antônio Cândido. Fabular é mesmo preciso!

A bênção, poeta Vinicius de Moraes. Você – elemento de ligação entre a ação, o


sentimento e o pensamento – me inspira e me ajuda a viver. Hoje, meu tempo também é
quando. Sou vidrada em você, ouviu, ô cara?

Como dizia o poeta em seu Sanba da Bênção: “a


vida é arte do encontro embora haja tanto desencontro
pela vida”. Por isso sou grata por ter me encontrado com
cada um de vocês, nessa ou em outras dimensões.

Saravá!

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“E foi tão corpo que foi puro espírito.”
Clarice Lispector

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RESUMO

Vinicius de Moraes é considerado por muitos como o maior poeta da língua portuguesa.
Poeta, escritor, compositor, diplomata e, antes de tudo, um apaixonado, dominava como
ninguém a métrica, a rima, as formas tradicionais de poesia. Mas também é conhecido
como um homem de transição, tinha um lado camaleônico que o permitia se transmutar
de várias formas. Com uma formação erudita e direitista, deu início à sua carreira
publicando livros e poemas regidos pela moral católica, com altas doses de metafísica,
crises de introspecção e com sinais de uma busca pela purificação. Mas, mais ao fim de
sua trajetória, vive uma espécie de rito de passagem que faz valer sua afirmação: “Eu,
Vinicius de Moraes, poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil”. O presente
trabalho pretende analisar como se deu a apreensão da cultura afro-brasileira na vida e
obra de Vinicius de Moraes por meio da incorporação das tradições, da musicalidade e
corporeidade baiana. Como Vinicius e, consequentemente, sua obra foram se
aproximando deste imaginário cultural, a partir do significado do corpo na teoria
antropológica e fenomenológica.

Palavras-chave: Vinicius de Moraes; corpo; religião; afro-samba.

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SUMÁRIO

INTRO ........................................................................................................................... 11

OVERTURE
LADO A .........................................................................................................................17
I – ENTRE ANJOS, SANTOS E CAMISAS VERDES ...................................................... 17
II – SAÍ DE DIREITA, VOLTEI DE ESQUERDA .......................................................... 20
III – DE APOLO A DIONÍSIO ..................................................................................... 24

INTERMEZZO
LADO B ......................................................................................................................... 32
I – DA LIRA AO VIOLÃO: DO ERUDITO AO POPULAR ............................................. 32
II – BAHIA DE TODOS OS ORIXÁS ............................................................................ 40
III – O CASAMENTO COM BADEN ............................................................................ 45

FINALE
CORPO BRANCO COM ALMA NEGRA ................................................................. 51
I – O FILHO DE OXALÁ ............................................................................................. 51
II – A ÚLTIMA BOSSA ............................................................................................... 55

CONCLUSÃO .............................................................................................................. 66
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 69
DISCOGRAFIA ........................................................................................................... 71
FILMOGRAFIA .......................................................................................................... 72

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INTRO

Em outubro de 2017 fui convidada pelo professor e orientador Dr. Gilmar Rocha
a ser sua bolsista em um projeto de iniciação científica do PIBIC (Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica). Intitulado O corpo em perspectiva – da antropometria
à virada ontológica, tal projeto tinha como objetivo central apreender o significado do
corpo nas antropologias de Franz Boas, Marcel Mauss e Bronislaw Malinowski, e dentro
da perspectiva fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty – que muito contribuiu para a
virada ontológica nas ciências sociais em tempos mais recentes. Minha relação com a
antropologia ainda estava apenas do campo do interesse, eu ainda não havia adentrado de
“corpo e alma” neste universo. Por isso, a priori, dentre a rica bibliografia sugerida por
meu orientador, optei pelas obras que poderiam me oferecer uma maior compreenção da
antropologia em si ao proporcionar uma relação mais íntima com as figuras centrais da
pesquisa ao mesmo tempo que fornecia um apanhado geral da antropologia do corpo,
mais especificamente. O primeiro artigo lido e fichado, O corpo na teoria antropológica,
de Miguel Vale de Almeida, foi peça fundamental para dar um primeiro passo, pois o
texto apresenta a trajetória de uma epistemologia e metodologia desenvolvidas sobre o
corpo desde os primórdios à sua institucionalização na década de 1960, apresentando os
principais antropólogos que se debruçaram sobre o tema, entre eles Franz Boas e Marcel
Mauss, sem deixar de mencionar a importância da fenomenologia de Merleau-Ponty.
O estudo da fenomenologia de Merleau-Ponty, principalmente, e suas teorias
acerca da percepção e da incorporação me levaram a pensar em minha própria trajetória
enquanto artista/musicista e compositora, produtora cultural e cidadã, e em que medida o
conhecimento apreendido tem de fato sido experienciado e tem contribuído para minhas
reflexões acerca do corpo dentro da arte e da cultura. Em Fenomenologia da Percepção,
Merleau-Ponty tem como tema chave a percepção, a qual é vista como uma experiência
incorporada. Mas por ocorrer no mundo e não na mente, a percepção não é uma
representação interna de um mundo exterior. Lançando mão das palavras de Miguel Vale
de Almeida (2004, p. 14):

[...] a percepção baseia-se no comportamento, em ver, ouvir, tocar, por


exemplo, enquanto formas de conduta baseadas em hábitos culturais
adquiridos. Assim, o relato de Merleau-Ponty não é um relato da nossa
experiência “da” incorporação. A incorporação não é experienciada, é
a base mesma da experiência. Experienciamos através da nossa
incorporação sensível e sensorial. O nosso corpo é o nosso modo de
ser(estar)-no-mundo [...]

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Com isso, Merleau-Ponty se torna uma das fontes de inspiração da proposta de
Csordas (1990) da corporeidade como possível novo paradigma para a antropologia,
partindo do postulado de que o corpo deve ser compreendido como sujeito de cultura e
não visto como um objeto para ser estudado em relação à cultura. Para o antropólogo,
uma teoria da prática requer assentar no corpo socialmente informado.
Enquanto me dedicava à pesquisa do corpo na teoria antropológica, a figura de
Vinicius de Moraes, em especial, por vezes me atravessava. Por uma forte identificação
pessoal, já tinha certo conhecimento acerca de sua vida e de sua obra, e então Vinicius
passou a me cercar por todos os lados. O artigo Paisagens corporais na cultura brasileira
(2012), do Prof. Dr. Gilmar Rocha, foi fundamental para que tivesse a confirmação do
caminho que gostaria de seguir. Neste artigo é trabalhada a ideia de corporalidade
brasileira enquanto sistema de imagens e de estilo corporal, capaz de revelar importantes
imagens e significados no processo de construção da identidade nacional. Um dos artistas
citados no texto é Vinicius, que com Garota de Ipanema (1962), em parceria com Tom
Jobim, já denunciava os contornos de uma paisagem corporal brasileira, uma vez que
descreve o jeito de andar rebolado da mulher carioca. Sendo nítida a mudança que se deu
em sua própria corporalidade ao longo do tempo, a pesquisa me trouxe reflexões acerca
de seu corpo. O poeta teve sua vida marcada por grandes transformações, foi um homem
de transição e isso se deve ao fato de ter incorporado como ninguém os lugares por onde
passou e as culturas de que se aproximou. Sua obra é uma narrativa completa e perfeita
de um importante recorte da cultura brasileira, principalmente aquela que se desenvolveu
no Rio de Janeiro – cidade onde nasceu, se aventurou, e onde passou a maior parte de sua
vida – e na Bahia – lugar onde viveu intensos seis anos.
Partindo do pensamento do filósofo Maurice Merleau-Ponty de que o corpo é o
terreno da experiência – que é fruto da incorporação – podemos compreender que em
Vinicius de Moraes a apreensão da cultura afro-brasileira se deu por meio da incorporação
sensível, chegando à sua máxima quando o poeta vive uma espécie de rito de passagem
ao se mudar para a Bahia, lugar detentor de tais tradições – o que possibilita uma mudança
em sua corporalidade.
Este trabalho tem como objetivo analisar – a partir do significado do corpo nas
teorias antropológica e fenomenológica – como se deu então a apreensão da cultura afro-
brasileira na vida e obra de Vinicius de Moraes por meio da incorporação das tradições,
da musicalidade e corporeidade baiana, bem como o poeta e, consequentemente, sua obra
foram se aproximando deste imaginário cultural – entendido como realidade simbólica –

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conforme ele se aproximava dessa cultura – que veio a ser elemento fundamental de sua
criação. Tendo Merleau-Ponty afirmado que “o mundo não é aquilo que eu penso, mas
aquilo que eu vivo” podemos pensar que até mesmo a narrativa de tal cultura na obra de
Vinícius vai se aprimorando conforme o poeta passa a viver aquela realidade. Em Os
afro-sambas, principalmente, compostos ao lado de Baden Powell, é clara a africanidade
contida em sua estrutura rítmica, em sua melodia intencionalmente repetitiva ou em sua
harmonia visceral e desconcertante. Africanidade tal que se deve principalmente à
sensibilidade do poeta branco de alma negra. Poeta que se considerava “o branco mais
negro do Brasil”, em um país marcado por uma imensa desigualdade e veladas
discriminações. Em seu Auto-Retrato (1956) confessa, em versos, sua aversão aos racistas
e com isso não faz apenas uma declaração pública, mas uma profissão de fé, e quando,
seis anos mais tarde se auto-intitula, em Samba da Bênção (1962), “o branco mais negro
do Brasil”, não só confirma uma crença nele já enraizada como também deixa clara sua
admiração pela cultura negra. Vinicius de Moraes vivenciou essa admiração não só como
artista, fazendo música e poesia, mas também como ser humano.
Taddei e Gamboggi propõem que as tradições antropológicas ocidentais não são
capazes de falar sobre a dimensão ontológica da etnografia. Normalmente, a antropologia
se interessa em estudar corpos e emoções dos sujeitos etnografados, porém o corpo e as
emoções de quem observa é por vezes ignorado. Acredito que um dos diferenciais deste
trabalho está no fato de que o corpo estudado é de quem observa. Em antropologia, a
etnografia pode ser vista como uma experiência epistemológica tão rica quanto a de um
rito de passagem à medida que constitui um momento dramático de transformação social
e pessoal, materializando-se por meio do corpo dos envolvidos, com implicações na
(re)construção das identidades. Com isso, pretendo também, a partir da chave dos ritos
de passagem, relacionar essa aproximação de Vinícius de Moraes da cultura afro-
brasileira ao trabalho do antropólogo que chega à sua máxima na etnografia. Em outras
palavras, a experiência de Vinicius com a cultura afro-baiana o transformam avant la
lettre num etnógrafo.
Neste trabalho, será apresentado não só mais uma biografia de Vinicius de
Moraes, mas também uma análise do contexto histórico a qual ele está inserido,
ressaltando as mudanças corporais que vão surgindo conforme ele se aproxima da cultura
afro-brasileira, e também as mudanças em sua obra, que vem a ser uma narrativa dessa
paisagem corporal. Para isso, lancei mão de livros e artigos biográficos e antropológicos,
assim como filmes, documentários e entrevistas; e para melhor perceber as

13
transformações na vida e obra do poeta, mergulhei ainda mais fundo em sua obra, seus
poemas, suas canções, fazendo uso de livros e discos que venho colecionando desde
minha adolescência.
Gostaria também de ressaltar aqui o quão prazeroso foi escrever essa monografia.
Desde o início de minha pesquisa, Prof. Gilmar Rocha me orienta a trazer para meu
trabalho minha trajetória pessoal, por isso não poderia dar o ponta-pé inicial em minha
carreira acadêmica falando de outra figura se não Vinicius de Moraes, pois assim como o
poeta, preciso da paixão para me mover. Escrever sobre Vinicius, precisando mergulhar
ainda mais em sua obra e no entendimento do que foi sua vida, me trouxe ganhos
indescritíveis. Prof. Ericson Saint Claire certa vez disse em aula que o conhecimento
teórico por si só é inútil quando não vivido, praticado, por isso desde o início venho
buscando, assim como Vinicius o fez, incorporar tudo aquilo que pudesse beneficiar meu
crescimento profissional e pessoal. Os discos de Vinicius sempre estiveram entre os mais
tocados em minha vitrola, mas quando passei a ouvi-los a fim de analisa-los, tentando
voltar ao momento em que os sambas foram compostos, não me contentei em ficar apenas
na escuta. E então, eu, batuqueira de piano que sou, precisei me agarrar ao violão para
que nele pudesse ao menos tentar reproduzir a batida de João Gilberto, ou o som do
berimbau, como fez Baden, e até os belíssimos ornamentos de Toquinho. Então, se para
Vinicius a apreensão da cultura afro-brasileira foi como uma busca pela própria alma,
para mim, tudo que aprendi nos últimos meses serviu, não só como uma busca, mas como
um aprimoramento de minha alma, corpo e mente.

Os capítulos seguem a estrutura dos ritos de passagem, de modo que o primeiro


capítulo – Overture – trará um primeiro momento da vida de Vinicius de Moraes, quando
ainda era um homem com ideais integralistas, discreto, sofrido e recolhido, um poeta
erudito a produzir obras com altas doses de drasticidade e metafísica – resultado de sua
formação católica e erudita –, e que mesmo quando anos mais tarde resolve manifestar
em sua obra seu interesse pela cultura afro-brasileira, escreve a peça teatral Orfeu da
Conceição, que por sua vez ainda é um tanto distante da realidade. O segundo capítulo –
Intermezzo – já apresenta um Vinicius de Moraes um pouco mais descontruído, um
homem que finalmente se permite tomar pelos prazeres da vida, pelo torpor da alegria; é
o primeiro momento de transição do poeta, quando adentra o campo da música popular
tornando-se um dos precursores da Bossa Nova até que, anos mais tarde, com maior
conhecimento teórico acerca da cultura afro-brasileira, toma essa cultura como elemento

14
fundamental de sua obra, principalmente ao lado de Baden Powell. Já no terceiro e último
capítulo – Finale –, o leitor irá se deparar com um novo Vinicius de Moraes, já residente
na Bahia – local fortemente detentor das tradições negras no Brasil – e convertido ao
candomblé; é o momento em que o poeta incorpora a cultura afro-brasileira e conclui seu
rito de passagem que o leva a abandonar de vez o terno e a gravata adotando, enfim, uma
nova corporalidade.

“Mas é preciso tornar mais complexa essa noção de corpo,


mostrar o papel que nele desempenham as representações, as crenças,
os efeitos de consciência: nada mais que uma aventura aparentemente
‘fictícia’, com seus pontos de referência interiorizados redobrando os
pontos de referência imediatos, reorientando sua força e seu sentido.”
(CORBIN et al, 2008, p. 8)

15
OVERTURE

16
LADO A

I – Entre anjos, santos e camisas verdes

Vinicius de Moraes tem sua formação marcada pelo catolicismo, foi aluno do
Santo Inácio, um colégio de padres jesuítas. Via a igreja como centro de tudo, de forma
que o Rio de Janeiro, apesar de alegre, carnavalesco, para ele ainda era uma cidade um
tanto contraditória, atormentada, tenebrosa, assombrada por medos e prostrações.
Escrevia acreditando num lema drástico, muito influenciado por Nietzche – “Escreve com
teu sangue e verás que teu sangue também é espírito”. A primeira fase de sua obra é então
marcada por um forte catolicismo, um pessimismo extremo e altas doses de metafísica.
Quando adentra a Faculdade de Direito, em 1930, alia-se ao grupo cristão de Octávio de
Faria, que no momento já era bastante próximo ao integralismo – movimento partidário
de extrema-direita com inspiração fascista 1, idealizado por Plinio Salgado, líder e
organizador do partido que recebe o nome de AIB – Ação Integralista Brasileira, em 1932.
Formado para ser um intelectual de direita, Vinicius, junto a Octávio, passa a fazer parte
do Grupo Integralista Carioca do Caju 2.
Vinícius de Moraes era um rapaz tímido, silencioso, hipersensível e
impressionável, a habitar um Rio de Janeiro lúgubre e sombrio. “Na verdade, o poeta
ainda não pode ver a cidade real, e a cidade que vê é apenas reflexo de seu sobrecarregado
mundo interior” (CASTELLO, 2005, p. 34). Em 1933, aos 20 anos, se forma em Direito
e no mesmo ano publica seu primeiro livro, O caminho para a distância: não poupando
o leitor de mais uma citação de José Castello, “trata-se de um livro de poemas regidos
pela paixão metafísica, povoados por anjos e virgens inatingíveis, sentimentos místicos,
crises de introspecção e rumores vagos de revolta” (2005, p. 33). Naquele momento,
Vinicius buscava de fato se distanciar de tudo que parecesse mundano, banal,
pecaminoso, e vivia um desejo real de purificação3. Era como se o poeta vivesse nas

1
Uma diferença básica entre o integralismo e o nazi-fascismo está na questão racial – a doutrina integralista
pressupunha a miscigenação como formadora da sociedade brasileira, não havendo então uma intenção
explicitamente racista. Defende a ideologia da sociedade orientada pelos princípios cristãos, reconhecendo
as diferenças sociais entre os homens como naturais.
2
Durante minha pesquisa sobre a vida de Vinicius não encontrei muitas informações sobre sua relação
com os integralistas. No livro Vinicius de Moraes – uma geografia poética (2005) José Castello menciona
brevemente essa passagem do poeta pelo partido integralista e no filme documentário Vinicius (2005) de
Miguel Faria Jr. essa informação também é apresentada logo no início, mas sem muitos detalhes. Em vários
sites sobre o movimento integralista nosso poeta é citado entre alguns de seus membro
3
Interessante pensar que dois anos antes, em 1931, Jorge Amado havia publicado seu primeiro romance,
intitulado O país do carnaval, que conta a história de um intelectual brasileiro em busca de uma maior
participação na vida intelectual e política do país – curiosa coincidência. Em 1935, Vinicius vence o Prêmio
Felippe D’Oliveira com o livro Forma e Exegese, em disputa com Jorge Amado – ele, com Mar morto.

17
alturas, como um anjo, vendo a vida cotidiana ainda com certo distanciamento. Sua
poesia, embora de altíssima qualidade, era retórica, tradicionalista, solene. Nela, a
sexualidade, a paixão, por exemplo, já estavam presentes, mas traziam consigo todo o
peso de uma culpa católica – era um poeta tomado pelos rigores espirituais 4, como
podemos observar em Ânsia.

Na treva que se fez em torno a mim/ Eu vi a carne./ Eu senti a carne que


me afogava o peito/ E me trazia à boca o beijo maldito./ Eu gritei./ De
horror eu gritei que a perdição me possuía a alma/ E ninguém me
atendeu./ Eu me debati em ânsias impuras/ A treva ficou rubra em torno
a mim/ E eu caí!/ As horas longas passaram./ O pavor da morte me
possuiu./ No vazio interior ouvi gritos lúgubres/ Mas a boca beijada não
respondeu aos gritos./ Tudo quedou na prostração./ O movimento da
treva cessou ante mim./ A carne fugiu/ Desapareceu devagar, sombria,
indistinta/ Mas na boca ficou o beijo morto./ A carne desapareceu na
treva/ E eu senti que desaparecia na dor/ Que eu tinha a dor em mim
como tivera a carne/ Na violência da posse./ Olhos que olharam a carne/
Por que chorais?/ Chorais talvez a carne que foi/ Ou chorais a carne que
jamais voltará?/ Lábios que beijaram a carne/ Por que tremeis?/ Não
vos bastou o afago de outros lábios/ Tremeis pelo prazer que eles
trouxeram/ Ou tremeis no balbucio da oração?/ Carne que possui a
carne/ Onde o frio?/ Lá fora a noite é quente e o vento é tépido/ Gritam
luxúria nesse vento/ Onde o frio?/ Pela noite quente eu caminhei.../
Caminhei sem rumo, para o ruído longínquo/ Que eu ouvia, do mar. /
Caminhei talvez para a carne/ Que vira fugir de mim./ No desespero das
árvores paradas busquei consoloção/ E no silêncio das folhas que caíam
senti o ódio/ Nos ruídos do mar ouvi o grito de revolta/ E de pavor fugi./
Nada mais existe para mim/ Só talvez tu, Senhor./ Mas eu sinto em mim
o aniquilamento.../ Dá-me apenas a aurora, Senhor/ Já que eu não
poderei jamais ver a luz do dia.

José Castello soube muito bem descrever a corporalidade de Vinicius nesse


primeiro momento: “Vinicius – caladão e assustado – forma o semblante de homem e
vive dilemas espirituais extremos, em que espírito e carne se batem, como dois inimigos
mortais” (CASTELLO, 2005, p. 91). Essa afirmação de Castello demonstra o quanto a
carne pesa sobre a alma do cristão.

4
Importante lembrar que neste período há uma difusão de ideias teórico-filosóficas de Jacques Maritain e
Emmanuel Mounier, no Brasil4. Pablo Simpson destaca a proximidade da dicção elegíaca de Vinícius, tanto
em O caminho para a distância quanto em Forma e Exegese, em diálogo com poemas de Paul Claudel –
que dialogava com Maritain –, “poesia em que se tem a impressão, a cada momento, de uma possessão
do eu de sua existência” (SIMPSON, 2009, p. 153).

18
Acima, Vinicius – o quarto na segunda fileira, de cima para baixo, na Congregação
Mariana.
Abaixo (à esquerda), formatura na Faculdade de Direito do Catete, em 1933; (à direita)
Vinicius por volta dos 20 anos.
Fonte: http://www.viniciusdemoraes.com.br/

19
II – Saí de direita, voltei de esquerda

Em 1938, logo após lançar Novos Poemas, Vinicius parte para sua primeira
temporada no exterior quando torna-se bolsista do Conselho Britânico, no curso de língua
e literatura da Universidade de Oxford, Inglaterra. Casa-se por procuração com sua
primeira esposa, Beatriz Azevedo de Melo, a Tati – sua primeira grande paixão – que em
seguida vai ao seu encontro. Quando começa a Segunda Guerra, em 1939, o casal retorna
ao Brasil. Já com dois filhos e preocupado em “ganhar a vida”, Vinicius entra para o
Itamaraty, torna-se diplomata.
Porém, Tati era o oposto de Vinicius, era feminista, de esquerda, com ideais
progressistas, e então apresenta ao poeta uma nova realidade. Ainda assim, Vinicius conta
em entrevista que no início o casal ainda “quebrava um pau firme” em longas discussões
políticas. Além de Tati, outra figura teve papel fundamental neste primeiro despertar do
poeta: o escritor americano Waldo Frank – “um socialista, mas com uma grande dose de
filosofia hindu, bastante maluco”, como é descrito pelo poeta. Vinicius foi designado por
Oswaldo Aranha para ciceronear Frank em uma viagem pelo interior do país. Em sua
última entrevista, dada ao jornalista Narceu de Almeida Filho, em 1979, Vinicius fala
sobre a experiência:

Mas essa viagem com o Waldo Frank representou para mim, em um


mês, uma virada. Saí um homem de direita e voltei um homem de
esquerda. Foi o fato de ter visto a realidade brasileira, principalmente o
Nordeste e o Norte, aquela miséria espantosa, os mocambos do Recife,
as casas de habitação coletiva na Bahia, o sertão pernambucano,
Manaus. A barra me pesou mesmo. (online5)

Apaixonado por Tati e encantado com tudo que vivenciou em viagem com Waldo
Frank, Vinicius se transforma e essa transformação altera pela primeira vez sua forma de
ver, de ser(estar)-no-mundo e, consequentemente, também passa por um primeiro
momento de transição em sua vida literária. Sua obra começa a ganhar uma nova
roupagem, começa a perder pouco a pouco o peso do catolicismo que carregava.
Segundo Vinicius, essa virada começa a transparecer em sua obra

Logo em seguida, porque aí eu já tivera também a experiência inglesa.


No Brasil, pouca gente havia tido essa experiência com exceção de
Gilberto Freyre, que também estudou em Oxford. Para mim, a leitura
dos poetas ingleses foi muito importante, especialmente no sentido de

5
https://www.revistabula.com/369-a-ultima-entrevista-de-vinicius-de-moraes/ (acesso em: 1/11/18)

20
certa simplificação e desmistificação e todo aquele arcabouço
aristocrático, metafísico. Veio tudo por água abaixo. (online6)

Quando então conhece o poeta Manuel Bandeira, essa mudança em Vinicius fica
ainda mais evidente. É com Bandeira que “Vinicius aprende o gosto do cotidiano; é a seu
lado que dá o salto dos píncaros gelados da poesia metafísica para a rudeza fervente do
chão” (CASTELLO, 2005, p. 38). E no início dos anos de 1950, de volta ao Brasil após
uma temporada de cinco anos em Los Angeles como vice-cônsul brasileiro – sua primeira
missão diplomática no exterior – o poeta já começa a se voltar para a canção popular. Em
1953, ao lado de Antônio Maria, Vinicius compõe seu primeiro samba 7, Quando tu passas
por mim, gravado por Aracy de Almeida e Doris Monteiro.

6
https://www.revistabula.com/369-a-ultima-entrevista-de-vinicius-de-moraes/ (acesso em: 1/11/18)
7
Diferente do que muitos acreditam, na vida de Vinicius a música veio antes da poesia. Sua mãe e avó
materna eram pianistas, seu tio, Henriquinho de Melo Moraes, era um boêmio e junto com Bororó – outro
personagem muito presente na vida de Vinicius – organizava serestas, e ainda na casa de seus pais
costumava haver encontros musicais. Então, com essas influências musicais dentro de casa, o poeta chega
a dizer em entrevista que cantou antes mesmo de falar e que sempre compôs músicas sozinho, mas sem
o intuito de gravar ou cantar profissionalmente. Porém, aos 15 anos de idade se uniu aos Irmãos Tapajós,
uma dupla vocal, e então passou a compor com eles. Juntos compuseram várias músicas, das quais duas
fizeram muito sucesso: Loura ou morena e Canção da amante.

21
Com os filhos, Susana e Pedro.

Acima (à esquerda), Vinicius, como vice-consul, ao lado do embaixador Corrêa da Costa e


esposa, Zazi Monteiro Aranha e Walt Disney; (à direita) Vinicius em Los angeles em seu
primeiro posto como diplomata, em meados dos anos 40.
Fonte: http://www.viniciusdemoraes.com.br/

Com Tati e os filhos, Susana e Pedro.

22
Acima, com o poeta e amigo Manuel Bandeira.
Abaixo, com Pixinguinha, que também veio a ser seu parceiro musical.
Fonte: http://www.viniciusdemoraes.com.br/

23
II - De Apolo a Dionísio

Pouco a pouco sua poesia vai se aproximando da vida cotidiana, da cultura popular
brasileira, mas é em 1956, com Orfeu da Conceição, que Vinicius de Moraes assume e
coloca em prática seu desejo em apreender a corporalidade e herança dos negros no Brasil.
Segundo Vinicius, tudo começou quando
[a]companhava o autor de América Hispana [o escritor estadunidense
Waldo Frank] em todas as incursões por favelas, macumbas [sic],
clubes e festejos negros no Brasil que me sentia particularmente
impregnado do espírito da raça [...] criou-se subitamente em nós um
processo por associação caótica [...] como se o negro, o negro carioca
fosse um negro em canga – um grego ainda despojado de cultura e do
culto apolíneo à beleza, mas marcado pelo sentimento dionisíaco da
vida (Caderno de Programa de Orfeu da Conçeição, 1956, apud
Chediak, 1993 apud KUEHN, 2014, p. 6).

Nesta afirmação, Vinicius revela ser um leitor atento de Nietzsche – conhecido


por sua crítica mordaz à cultura ocidental e ao cristianismo.

[...] o apolíneo e o dionisíaco constituíram para Nietzsche uma vez


princípios primordiais que se complementaram na cultura grega da
Antiguidade. Enquanto Apolo era a divindade da clareza, da forma, da
harmonia, da beleza, da criação e da ordem, Dionísio era a divindade
da vontade, da exuberância, da embriaguez e – da música.
[...] Ou seja, o elemento negro estaria se entregando ao culto de
Dionísio, diga-se ao lado vibrante e extático de celebrar a vida – no caso
brasileiro representado, ainda que como clichê, pelo trinômio de samba,
carnaval e futebol. (KUEHN, 2014, p. 7)

Tais afirmações do poeta podem significar a própria busca por se libertar de vez
do cristianismo que carregava desde o início de sua formação por meio de uma
aproximação das raízes da cultura brasileira. Como ainda explica Frank Kuehn,

O aspecto apolíneo, ao qual Moraes se refere, estaria nos elementos


brancos, europeus. Suas marcas seriam a racionalidade, o cristianismo
e as ciências modernas, ao passo que o elemento dionisíaco estaria na
poesia, assim como no próprio empenho de Moraes em buscar o
elemento negro como identidade complementar. Ainda que percebido
como “obscuro”, o elemento dionisíaco representa o elemento
afirmativo da vida. (KUEHN, 2014, p. 7)

O poeta reconta o mito grego de Orfeu8 – considerado por muitos como um dos
fundadores da história ocidental – a partir de um cenário suburbano, fortemente marcado

8
Orfeu era filho da musa Calíope e de Apolo – que o presenteou com uma lira. Era o mais talentoso dos
artistas. Quando tocava sua lira, os pássaros paravam de voar para escutar, os animais selvagens perdiam
o medo e até mesmo as árvores se curvavam para pegar os sons no vento. Quando se fixou na Trácia,

24
pelas desigualdades racial e social. O Orfeu de Vinícius nasceu e cresceu na favela e era
filho de pessoas simples; malandro jocoso, não possuía poderes mágicos, apenas um
talento inato para música, mas por ser desocupado e não ter um trabalho fixo, o que lhe
permitia dedicar-se exclusivamente ao seu violão – onde compunha sambas dedicados à
sua amada Eurídice e cantava alegrando a vida na favela. Toda a trama se passa durante
o carnaval, tradição popular vista por muitos como uma festa subversiva do riso, do corpo,
no universo das classes populares da sociedade carioca. “Mais do que uma manifestação
ritual, o carnaval, no sentido amplo do termo, revela uma cosmovisão que se pode dizer
é a expressão do ‘poder dos fracos’” (ROCHA, 2012, p. 82). Apesar de Vinicius ter feito
uso da forma poética em seu texto, também fica clara sua preocupação de adaptar a
linguagem aos jargões e gírias comuns da época e principalmente do lugar. Baseada em
uma tragédia grega, Orfeu da Conceição é uma peça que envolve os desígnios morais da
vida, porém, adaptada a uma realidade carioca, faz referência aos tristes acontecimentos
que ocorrem nas favelas da cidade do Rio de Janeiro, tão marcadas pela pobreza.
Porém, o texto também é fortemente marcado pela manutenção de estereótipos,
relativos especialmente à mulher negra – que demarcam o imaginário brasileiro com
questões principalmente ligadas à sexualidade – e à figura do malandro carioca (negro) –
representada por Orfeu. Florestan Fernandes9 em O negro no mundo dos brancos, procura
localizar na cultura tradicional o problema do preconceito contra negros. Para o
sociólogo, esse preconceito pode ser analisado em elementos do folclore 10,

uniu-se à Eurídice. Porém, a jovem com toda sua beleza despertou o interesse do pastou Aristeu, que
passou a persegui-la. Um dia, fugindo de Aristeu, Eurídice é picada por uma cobra e morre. Orfeu, então,
passa a buscar consolo em sua lira, mas as lembranças de sua amada o perseguiam em todas as horas.
Não podendo viver sem Eurídice, vai até o mundo dos mortos a fim de resgatá-la. Com o som de sua lira,
encanta a todos que ali habitam e faz adormecer Cérbero – o cão de três cabeças que vigia a entrada do
mundo inferior, e quando finalmente aborda Hedes, o Rei das Sombras, consegue que este lhe conceda
sua amada de volta, mas sob uma condição: não olhar para trás a ver se Eurídice o seguia. Impaciente,
Orfeu voltou-se para trás e com um só olhar perde para sempre sua amada. As Bacantes, ofendidas com
a fidelidade de Orfeu à Eurídice, atiram-se contra ele numa noite e esquartejam seu corpo. Porém, as
Musas, a quem Orfeu fielmente servia, recolhem seus membros e os sepultam ao pé do Olimpo; e sua
cabeça e sua lira, que haviam sido atiradas ao rio, foram jogadas pela correnteza na praia da ilha de Lesbos,
onde foram recolhidas e guardadas. A história de amor de Orfeu e Eurídice inspirou artistas ao longo do
tempo; poetas, pintores e escultores tentaram representa-la, cada um à sua maneira, de acordo com sua
época. (online)
9
Florestan Fernandes foi um dos intelectuais mais proeminentes no sentido de denunciar os preconceitos,
as desigualdades social e racial, e todo legado escravocrata.
10
“A inferioridade social do negro é fartamente expressa em várias situações do nosso folclore. Essa
inferioridade, todavia, não é simplesmente constatada, pois se chega a dar aos atos da vida social dos
pretos um significado deprimente e pejorativo, estabelecendo-se uma espécie de distinção entre esses atos
e os mesmos quando praticados pelos brancos. Doutro lado, atribui-se comumente aos negros o mais baixo
status da hierarquia social, correspondente ao nível econômico menos representativo, enquanto o
intercasamento, previsto, é proibido.” (FERNANDES, 1972, p. 207)

25
o qual pode ser a fonte desses estereótipos que fornecem juízos de valor
aos indivíduos, regrando sua conduta social. A consciência desses
juízos de valor pode fazer com que os indivíduos, antes de se porem em
contato direto, já se tenham julgado e avaliado reciprocamente,
determinando-se, assim, os aspectos que as interações possam assumir
(FERNANDES, 1972, p. 211).

Isso nos leva a crer que a cultura negra foi desvalorizada em detrimento de ideias
eurocêntricas. Afinal, Vinicius ainda não tinha um conhecimento profundo da cultura
negra, muito menos vivência naquele universo. Tinha talento, curiosidade e imaginação
farta. No prefácio de Orfeu da Conceição, Vinícius conta de onde veio a inspiração para
sua peça:
Assim é que, uma noite desse mesmo ano [1942], estando eu em casa
de meu cunhado, o grande arquiteto Carlos Leão, casa construída na
vertente de um morro em Niterói, a cavaleiro do saco de São Francisco,
pus-me a ler, por desfastio, num velho tratado francês de mitologia
grega, a lenda de Orfeu — o maravilhoso músico e poeta da Trácia.
Curiosamente, nesse mesmo instante, em qualquer lugar do morro,
moradores negros começaram uma infernal batucada, e o ritmo áspero
de seus instrumentos — a cuíca, os tamborins, o surdo — chegava-me
nostalgicamente, de envolta com ecos mais longínquos ainda do pranto
de Orfeu chorando a sua bem-amada morta. De súbito, as duas ideias
ligaram-se no meu pensamento, e a vida do morro, com seus heróis
negros tocando violão, e suas paixões, e suas escolas de samba que
descem à grande cidade durante o Carnaval, e suas tragédias passionais,
me pareceu tão semelhante à vida do divino músico negro, e à eterna
lenda da sua paixão e morte, que comecei a sonhar um Orfeu negro.
(MORAES; 2013, p. 7-8)

Datam desse mesmo período algumas pinturas de Heitor dos Prazeres11 que
parecem dar corpo (no sentido de visibilidade) ao imaginário do poeta ao retratar a cultura
dos morros cariocas no final dos anos de 1930. As imagens a seguir (página 29) são
reproduções fotográficas de duas de suas obras: Samba no Terreiro (1957) e Favela
(1965)12, respectivamente.

Embora tenha sido satisfatória a intenção de Vinicius de Moraes em perceber


como o teatro brasileiro estava fechado tanto para as temáticas suburbanas como para os
atores negros13, não há no texto um interesse em valorizar a cultura negra, um exemplo
disso é a oposição entre a música tocada por Orfeu e aquela executada no baile de
carnaval. As canções de Orfeu dedicadas à Eurídice, compostas pelo até então

11
Heitor dos Prazeres, músico e pintor carioca descendente de negros baianos, também era frequentador
assíduo das casas de Tia Ciata e Tia Esther, e foi quem criou a denominação “África em Miniatura” fazendo
referência à região da Praça 11 e às casas das “tias baianas”. (Enciclopédia Itaú Cultural)
12
Fonte: Heitor dos Prazeres/Enciclopédia Itaú Cultural.
13
Foi a segunda vez que um elenco de atores negros ocupou o mais famoso teatro brasileiro.

26
desconhecido Antônio Carlos Jobim, são bastante singelas e se aproximam dos ideais da
beleza da música presente no mito, enquanto o batuque executado pelo povo, “Os
Maiorais do Inferno”, é desconcertante e apenas acentua ainda mais o sofrimento de Orfeu
pela perda de sua amada. No entanto, como afirma Stuart Hall:

Não importa quão deformadas, cooptadas e inautênticas sejam as


formas como os negros e as tradições e comunidades negras pareçam
ou sejam representadas na cultura popular, nós continuamos a ver
nessas figuras e repertórios, aos quais a cultura popular recorre, as
experiências que estão por trás delas. Em sua expressividade, sua
musicalidade, sua oralidade e na sua rica, profunda e variada atenção à
fala; em suas inflexões vernaculares e locais; em sua rica produção de
contra narrativas; e, sobretudo, em seu uso metafórico do vocabulário
musical, a cultura popular negra tem permitido trazer à tona, até nas
modalidades mistas e contraditórias da cultura popular mainstream,
elementos de um discurso que é diferente – outras formas de vida,
outras tradições de representação (HALL, 2013, p. 380 apud VIEIRA,
2016, p. 25).

Ou seja, mesmo que a maior preocupação de Vinícius de Moraes tenha sido apenas
em poetizar aquele espaço urbano – a favela –, ainda assim Orfeu da Conceição serviu
de estímulo em um momento importantíssimo da história do teatro brasileiro quando
passou-se a valorizar temáticas sociais e o ator negro. Vale lembrar que na mesma época,
Vinicius publica pela primeira vez o célebre Operário em construção, poema que traça
um duro retrato da vida proletária e reforça o início de seu despertar de uma consciência
social:

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os


reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo: - Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque
a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe: - Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o
Senhor teu Deus e só a Ele servirás. Lucas, cap. V, vs. 5-8.
Era ele que erguia casas / Onde antes só havia chão./ Como um pássaro sem asas/ Ele
subia com as casas/ Que lhe brotavam da mão./ Mas tudo desconhecia/ De sua grande
missão:/ Não sabia, por exemplo/ Que a casa de um homem é um templo/ Um templo sem
religião/ Como tampouco sabia/ Que a casa que ele fazia/ Sendo a sua liberdade/ Era a
sua escravidão./ De fato, como podia/ Um operário em construção/ Compreender por
que um tijolo/ Valia mais do que um pão?/ Tijolos ele empilhava/ Com pá, cimento e
esquadria/ Quanto ao pão, ele o comia.../ Mas fosse comer tijolo!/ E assim o operário ia/
Com suor e com cimento/ Erguendo uma casa aqui/ Adiante um apartamento/ Além uma
igreja, à frente/ Um quartel e uma prisão:/ Prisão de que sofreria/ Não fosse,
eventualmente/ Um operário em construção./ Mas ele desconhecia/ Esse fato
extraordinário:/ Que o operário faz a coisa/ E a coisa faz o operário./ De forma que,
certo dia/ À mesa, ao cortar o pão/ O operário foi tomado/ De uma súbita emoção/ Ao
constatar assombrado/ Que tudo naquela mesa/ - Garrafa, prato, facão -/ Era ele quem
os fazia/ Ele, um humilde operário,/ Um operário em construção./ Olhou em torno:

27
gamela/ Banco, enxerga, caldeirão/ Vidro, parede, janela/ Casa, cidade, nação!/ Tudo,
tudo o que existia/ Era ele quem o fazia/ Ele, um humilde operário/ Um operário que
sabia/ Exercer a profissão./ Ah, homens de pensamento/ Não sabereis nunca o quanto/
Aquele humilde operário/ Soube naquele momento!/ Naquela casa vazia/ Que ele mesmo
levantara/ Um mundo novo nascia/ De que sequer suspeitava./ O operário emocionado/
Olhou sua própria mão/ Sua rude mão de operário/ De operário em construção/ E
olhando bem para ela/ Teve um segundo a impressão/ De que não havia no mundo/ Coisa
que fosse mais bela./ Foi dentro da compreensão/ Desse instante solitário/ Que, tal sua
construção/ Cresceu também o operário./ Cresceu em alto e profundo/ Em largo e no
coração/ E como tudo que cresce/ Ele não cresceu em vão/ Pois além do que sabia/ -
Exercer a profissão - / O operário adquiriu/ Uma nova dimensão:/ A dimensão da
poesia./ E um fato novo se viu/ Que a todos admirava:/ O que o operário dizia/ Outro
operário escutava./ E foi assim que o operário/ Do edifício em construção/ Que sempre
dizia sim/ Começou a dizer não./ E aprendeu a notar coisas/ A que não dava atenção:/
Notou que sua marmita/ Era o prato do patrão/ Que sua cerveja preta/ Era o uísque do
patrão/ Que seu macacão de zuarte/ Era o terno do patrão/ Que o casebre onde morava/
Era a mansão do patrão/ Que seus dois pés andarilhos/ Eram as rodas do patrão/ Que a
dureza do seu dia/ Era a noite do patrão/ Que sua imensa fadiga/ Era amiga do patrão./
E o operário disse: Não!/ E o operário fez-se forte/ Na sua resolução./ Como era de se
esperar/ As bocas da delação/ Começaram a dizer coisas/ Aos ouvidos do patrão./ Mas
o patrão não queria/ Nenhuma preocupação/ - "Convençam-no" do contrário -/ Disse ele
sobre o operário/ E ao dizer isso sorria./ Dia seguinte, o operário/ Ao sair da construção/
Viu-se súbito cercado/ Dos homens da delação/ E sofreu, por destinado/ Sua primeira
agressão./ Teve seu rosto cuspido/ Teve seu braço quebrado/ Mas quando foi perguntado/
O operário disse: Não!/ Em vão sofrera o operário/ Sua primeira agressão/ Muitas outras
se seguiram/ Muitas outras seguirão Porém, por imprescindível / Ao edifício em
construção/ Seu trabalho prosseguia/ E todo o seu sofrimento/ Misturava-se ao cimento/
Da construção que crescia./ Sentindo que a violência/ Não dobraria o operário/ Um dia
tentou o patrão/ Dobrá-lo de modo vário./ De sorte que o foi levando/ Ao alto da
construção/ E num momento de tempo/ Mostrou-lhe toda a região/ E apontando-a ao
operário/ Fez-lhe esta declaração:/ - Dar-te-ei todo esse poder/ E a sua satisfação/
Porque a mim me foi entregue/ E dou-o a quem bem quiser./ Dou-te tempo de lazer/ Dou-
te tempo de mulher./ Portanto, tudo o que vês/ Será teu se me adorares/ E, ainda mais,
se abandonares/ O que te faz dizer não./ Disse, e fitou o operário/ Que olhava e que
refletia/ Mas o que via o operário/ O patrão nunca veria./ O operário via as casas/ E
dentro das estruturas/ Via coisas, objetos/ Produtos, manufaturas./ Via tudo o que fazia/
O lucro do seu patrão/ E em cada coisa que via/ Misteriosamente havia/ A marca de sua
mão./ E o operário disse: Não!/ - Loucura! - gritou o patrão/ Não vês o que te dou eu?/
- Mentira! - disse o operário/ Não podes dar-me o que é meu./ E um grande silêncio fez-
se/ Dentro do seu coração/ Um silêncio de martírios/ Um silêncio de prisão./ Um silêncio
povoado/ De pedidos de perdão/ Um silêncio apavorado/ Com o medo em solidão./ Um
silêncio de torturas/ E gritos de maldição/ Um silêncio de fraturas/ A se arrastarem no
chão./ E o operário ouviu a voz/ De todos os seus irmãos/ Os seus irmãos que morreram/
Por outros que viverão./ Uma esperança sincera/ Cresceu no seu coração/ E dentro da
tarde mansa/ Agigantou-se a razão/ De um homem pobre e esquecido/ Razão porém que
fizera/ Em operário construído/ O operário em construção. (MORAES; 2012, p. 48)

28
29
Acima, Vinicius entre parte do elenco
de Orfeu da Conceição.
À esquerda, o ator Haroldo Costa
como Orfeu.
Abaixo, atores em cena na peça teatral
Orfeu da Conceição, no Teatro
Municipal do Rio de Janeiro.

Fonte:
https://efemeridesdoefemello.com/

30
INTERMEZZO

31
LADO B

I - Da lira ao violão: do erudito ao popular

Sob o governo de Juscelino Kubitschek, desde meados dos anos de 1950 o Brasil
vinha passando por uma fase de crescimento industrial baseado no desenvolvimentismo
– “50 anos em 5” era a meta do presidente. O início da década de 1960 foi então marcado
por um ideário progressista e pelo modernismo que se arrastava desde a década anterior.
Nesse período há todo um movimento em direção em construir ou eleger símbolos de
identidade nacional, onde a macumba, a feijoada, a capoeira, etc., entram em cena e
também, consequentemente, a cultura afro-brasileira. A construção de Brasília foi um dos
marcos neste momento, mesmo que por trás de toda sua beleza e representação moderna
já existisse um contraste marcado pelas favelas das cidades satélites, repletas de retirantes
que viviam amontoados na periferia da cidade planejada – mas é claro que não era essa a
imagem passada ao restante do país. Em 1958, o Brasil havia conquistado seu primeiro
título mundial no futebol e em 1962 tornou-se bicampeão com Pelé e Garrincha; foi
campeão no tênis com Maria Esther Bueno – eleita a número um do mundo –, no boxe,
com Eder Jofre, e até de beleza, em 1963, com Ieda Maria Vargas coroada Miss Universo.
O país vivia seus “anos dourados”.
Este cenário despertou novas manifestações culturais como a poesia concreta de
Augusto e Haroldo de Campos, e a própria arquitetura modernista de Oscar Niemeyer.
Na música, a parceria firmada entre Vinícius de Moraes e Tom Jobim, ainda durante a
produção da trilha sonora de Orfeu da Conceição14, deu-se farta e foi um marco inicial
de um projeto modernizante. Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, jovem pianista
com um conhecimento ciclópico da música erudita, deu início a seus estudos com o intuito
de ser concertista. Foi aluno de dona Lúcia Branco, responsável pelo ensino de uma
importante geração de pianistas no Rio de Janeiro e a primeira pessoa a incentiva-lo a
adentrar no universo da composição depois de ler uma valsa que Tom acabara de compor.
Porém, preocupado em garantir o sustento de sua recém formada família, tocava em
boates na noite carioca. Logo começou a estudar orquestração a fim de ter uma nova
maneira de sobreviver escapando da vida noturna, até que em 1952 foi contratado pela
gravadora Continental como pianista e arranjador. A grande virada em sua vida se deu
em 1956 quando foi apresentado por Lúcio Rangel a Vinicius de Moraes, que no momento

14
Vale lembrar que A Felicidade, composta pela dupla para a peça Orfeu da Conceição, tornou-se um
estrondoso sucesso.

32
procurava alguém que pudesse compor a trilha sonora de Orfeu da Conceição. Tom e
Vinicius, juntamente com outros jovens compositores como Carlos Lyra, Roberto
Menescal, Ronaldo Bôscoli, Newton Mendonça, dentre outros, buscavam retroceder os
aspectos exóticos e festivos da cultura brasileira inaugurando um “movimento”15 musical
que fez frente a todo um passado artístico do país: a Bossa Nova.
Frente a este movimento – mesmo que sua adesão às suas propostas fosse datada
–, a atuação de Vinícius de Moraes como letrista foi de grande importância para a Bossa
Nova, principalmente no que diz respeito a sua temática. Vinicius era um homem de
transição e movia-se constantemente em sua poética entre o espiritual e o carnal, entre a
felicidade e a dor da perda da pessoa amada, o que caracteriza seu mundo interior pleno
do sofrimento consciente da efemeridade do bem. Com o veio lírico-amoroso de sua
poética, transitava do mais erudito ao mais popular, tanto na literatura considerada
canônica, quanto nas letras de canção popular e, principalmente, em seu modo de
ser(estar)-no-mundo, sendo visto por muitos como um “maldito”, em função de seu
comportamento por vezes transgressor do status quo em nível pessoal e social. Há quem
diga que Vinicius tenha sido um trovador em pleno século XX. Silveira (2013) compara
essa transição de Vinicius do erudito ao popular ao caminhar gradual e medieval do trobar
ric ao trobar leu:

Do ponto de vista estilístico, o trobar ric caracteriza-se pela


ornamentação e imagética excessivas, preferência pelas rimas difíceis,
pelo refinamento da expressão, atenta à beleza formal, à sonoridade e
aos efeitos sugestivos de vocabulários que tendem a afastar-se do léxico
comum. Jà o trobar leu fere as cordas da versificação simples, e
ausência de rebuscamento estilístico, tornando assim a mensagem
poética cristalina e facilmente acessível. (SILVEIRA, 2013, p. 303)

Na crônica Porque amo a Inglaterra (1959) Vinicius afirma que toda sua ambição
poética foi alcançar “uma forma cada vez mais enxuta e clara, com um anseio muito maior
de comunicação”. Ao poeta também pode ser perfeitamente aplicada a ideia de mediador
cultural, por ter também cumprido um papel de “tradutor” cultural entre o erudito e o
popular 16 visando a amplitude do público receptor.
Passados aquele primeiro momento, em que sua obra era ainda tomada pela
metafísica, na poesia Vinicius retoma a forma soneto em todas as suas nuances e

15
Na verdade, eu não vejo a Bossa Nova necessariamente como um movimento como o tropicalismo, por
exemplo, pois ela se deu de uma forma mais despretensiosa, diferente desses movimentos que foram muito
bem pensados antes – em sua forma, seus conceitos, etc.
16
Ver Metamorfose e mediação, de Gilberto Velho e Karina Kushinir.

33
possibilidades desafiadoras: um máximo de ideias num mínimo de palavras. Como
explica Sylvia Cyntrão,

O soneto foi para Vinícius um desafio e uma escolha em liberdade.


Desafio, sobretudo, pelo convite a reformar uma fórmula em princípio
esgotada e pela intenção de conciliar liberdade e disciplina.
[...] Ressignificando a lírica, no equilíbrio entre o sentimento
romântico, colorido pelos novos valores do século XX e a estrutura
clássica, Vinicius de Moraes foi, mantidas as diferenças de texto e
contexto, assim como o sonetista português Luís de Camões, um
polêmico homem do seu tempo. (CYNTRÃO, 2012, p. 112)

Se no início de sua carreira o erotismo aparecia seguido de culpa, nesse momento


Vinicius assume a temática do amor como sua marca maior, ora intenso e erótico, ou
concreto e carnal – agora sem culpa. Em Soneto do amor total (1951) o poeta permite que
o eu poético finalmente se manifeste com toda carga de sentimentos pessoais e
individuais, “num mundo em que a hegemonia masculina se envergonha de expressar
emoção” (CYNTRÃO, 2012, p. 7).

Amo-te tanto, meu amor... não cante/ O humano coração com mais
verdade.../ Amo-te como amigo e como amante/ Numa sempre diversa
realidade/ Amo-te afim, de um calmo amor prestante,/ E te amo além,
presente na saudade./ Amo-te, enfim, com grande liberdade / Dentro da
eternidade e a cada instante./ Amo-te como um bicho, simplesmente,/
De um amor sem mistério e sem virtude/ Com um desejo maciço e
permanente./ E de te amar assim muito e amiúde,/ É que um dia em teu
corpo de repente/ Hei de morrer de amar mais do que pude.
(MORAES; 2012, p. 32)

E, quando, no início da década de 1960 a poesia migrava para o advento


experimental do concretismo, Vinicius deixa sua inspiração emocional falar mais alto e
se volta completamente para a canção popular, ao lado de Tom Jobim. A Bossa Nova foi
uma ponte para que o poeta se transmutasse em definitivo em compositor popular. Mesmo
com sua bagagem ultrarromântica e sua influência da poesia simbolista um tanto trágica,
às vezes – “crava as garras no meu peito em dor/ esvai em sangue todo amor”, como
dizia o poeta em Serenata do Adeus (1956) –, Vinicius foi capaz de capturar o espírito
contido das relações amorosas, distante de grandes sofrimentos e dramas.
Mesmo que criticada por muitos que veem sua musicalidade um tanto distanciada
da temática popular, se aproximando mais das classes médias da Zona Sul carioca, a
Bossa Nova impulsiona as canções para frente, representando o que havia de mais
moderno nas terras tupiniquins, de eletrodomésticos a presidentes da república. Em
defesa deste movimento, lanço mão das palavras do próprio poeta:

34
Bossa Nova é também o sofrimento de muitos jovens, do mundo inteiro,
buscando na tranquilidade da música não a fuga e alienação aos
problemas de seu tempo, mas a maneira mais harmoniosa de configurá-
los. Bossa Nova é a nova inteligência, o novo ritmo, a nova
sensibilidade, o novo segredo da mocidade do Brasil: mocidade traída
por seus mais velhos, pais e educadores, que lhe quiseram impor os
próprios padrões, gastos e inaceitáveis. Bossa Nova foi a resposta
simples e indevassável desses jovens a seus pais e mestres: uma
estrutura simples de sons super-requintados de palavras em que
ninguém acreditava mais, a dizerem que o amor dói mas existe; que é
melhor crer do que ser cético; que por pior que sejam as noites, há
sempre uma madrugada depois delas e que a esperança é um bem
gratuito: há apenas que não se acovardar para poder merecê-lo.
(MORAES; 2008, p. 143)

A canção Chega de Saudade (1958), de Tom e Vinícius, é vista como um marco


inicial do movimento:

Vai minha tristeza/E diz a ela/Que sem ela não pode ser/Diz-lhe numa
prece que ela regresse/Porque eu não posso mais sofrer/Chega de
saudade, a realidade é que sem ela/Não há paz, não há beleza, é só
tristeza/E a melancolia que não sai de mim, não sai de mim, não sai/Mas
se ela voltar, se ela voltar/Que coisa linda, que coisa louca/Pois há
menos peixinhos a nadar no mar/Do que os beijinhos que eu darei na
sua boca/Dentro dos meus braços os abraços hão de ser milhões de
abraços/Apertado assim, colado assim, calado assim/Abraços e
beijinhos e carinhos sem ter fim/Que é pra acabar com esse negócio de
viver longe de mim/Não quero mais esse negócio de você viver
assim/Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim.

Na letra de Chega de Saudade, a forma como o amor é tratado revela que a tristeza
da ausência vem acompanhada pela esperança da volta; a música começa em modo menor
reforçando o sofrimento, mas eis que chega a segunda parte e a música modula para o
modo maior e tudo se ilumina. A interpretação do baiano João Gilberto com sua nova
batida no violão e seu canto intimista, quase falado – em contraponto com o exagero vocal
presente nas décadas de 1940 e 1950 – conclui o tripé que deu base às principais mudanças
trazidas pela Bossa Nova – letra, harmonia e batida (levada).
A Bossa Nova vem a ser também duramente criticada por José Ramos Tinhorão 17,
crítico ferrenho da “apropriação artificial e indevida” de elementos do jazz norte-
americano. Os anos de 1950 assistiram o nascimento do rock, bem como as experiências
dos Beatniks – formas de desassossego dos jovens do mundo anglo-saxão –, então muitos

17
José Ramos Tinhorão é pesquisador musical e um dos principais críticos da Bossa Nova, a qual afirma,
sem sutilezas, não ser um desdobramento do samba ou sequer ter origem brasileira.

35
intelectuais partilhavam da preocupação com a salvaguarda do popular, do autêntico, via
folcloristas e isebianos18 – e com razão.
Acontece que a Bossa Nova privilegiou muito a harmonia e o requinte melódico,
então de fato toma alguns acordes que eram muito utilizados no jazz – mas que também
já podiam ser ouvidos na música de Ary Barroso, por exemplo; ela não rompe com os
cânones da harmonia, mas a moderniza. Seus jovens compositores eram sim fortemente
influenciados por guitarristas norte-americanos como Barney Kessel e Herb Ellis – no
samba tradicional os instrumentistas não improvisavam, as formações eram standard, e a
partir da Bossa Nova foi possível introduzir qualquer instrumento num grupo de samba;
por outro lado, Tom – o principal músico compositor da Bossa Nova – muito contribuiu
com sua formação clássica, deveras influenciado pelos franceses Debussy e Ravel, pelos
americanos Cole Porter e George Gershwin, mas também, e principalmente, por Villa
Lobos, Radamés Gnatalli e Pixinguinha, conseguindo alcançar assim uma forma de
ultrapassar os limites melódicos e harmônicos da música brasileira, sendo extremamente
econômico nas notas e ao mesmo tempo moderno e original. Arrisco dizer que a Bossa
Nova, diferente do que acredita Tinhorão, não “tomou” elementos do jazz, mas viu nele
novas possibilidades já existentes na música mas muito mais exploradas pelos jazzistas.
Por isso acredito não ser possível afirmar que a Bossa Nova seja uma vertente do jazz,
mesmo porque ela mantém o ritmo do samba – muito bem definido pelo violão de João
Gilberto – apenas modificando uma síncope. Sua batida é então uma decantação do ritmo
do samba19. Quando perguntado por Tom de onde veio essa levada, João respondeu: “tirei
dos requebros das lavadeiras de Juazeiro”.
Com a miscigenação dos mais diversos elementos culturais e raciais, a música
brasileira jamais poderia estar assentada nesse ideal de pureza – a meu ver, um tanto
exacerbado – que tanto defende Tinhorão. Em uma sociedade multicultural como a nossa,
tal ideal de pureza é inócuo. E disse Vinicius sobre o encontro da Bossa Nova com o jazz:
“nós recebemos e depois demos. E estamos prontos a receber ainda, mais e sempre. E a
dar sempre, mais e ainda”. E assim, grandes músicos do jazz norte-americano também
foram fortemente influenciados pela Bossa Nova, buscando nela possíveis elementos que
pudessem colaborar com a construção de sua obra. Segundo Miguel Jost 20, esse é um

18
Intelectuais do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros.
19
João Gilberto mantém no violão a marcação regular do compasso binário (dois tempos), mas igualando
as suas intensidades, sem hierarquizar as duas acentuações e sem antecipar, tocando apenas duas notas
de bordão (nota obtida pelas cordas mais graves) por compasso.
20
Miguel Jost é mestre e doutor em Letras e professor de literatura brasileira. Pesquisador musical,
organizou e assinou o prefácio do livro Samba Falado: Crônicas Musicais de Vinicius de Moraes.

36
fenômeno muito raro, pois nem na literatura nem nas artes plásticas conseguimos elencar
muitos casos em que uma expressão cultural de um país de terceiro mundo viesse a
influenciar a produção cultural dos países do grande centro, como os Estados Unidos e os
grandes países da Europa. Basta lembrar aqui que Tom Jobim chegou a ser considerado
por Johnny Mercer, em 1964, o compositor que mais influenciou os meios musicais
americanos nos últimos dez anos, e que Garota de Ipanema, de Tom e Vinicius, consta
como a segunda música mais executada na história, ficando atrás de Yesterday, dos
Beatles – mas como Tom costumava dizer: os Beatles eram quatro, ele e Vinicius, dois.
Mesmo que em Orfeu da Conceição ou nas bossas de Vinícius o universo afro-
religioso transpareça através de alguns elementos eles ainda não são abordados pelo poeta
com um sentimento de devoção, fé e vislumbre como veio a acontecer posteriormente em
outras composições. Porém, essa fase foi de grande valia para vida e obra de Vinícius de
Moraes, pois delinearam aspectos formais de sua obra que foram fundamentais nas
composições seguintes, principalmente nos afro-sambas.
Também foi na década de 1950 que Vinicius se encontrou mais fortemente com
uma espécie de paraíso mundano – música, álcool, mulheres –, e finalmente se permitiu
tomar pelos prazeres da vida e o torpor da alegria, contrariando os padrões do poeta
discreto, sofrido e recolhido que era. Segundo o poeta, seu “encontro com Deus” foi
normal diante da realidade em que foi criado, “família católica, colégio de padres, aquele
negócio de confessar aos domingos. Mas acho que a vocação para o pecado era maior”.
Nesse momento, até mesmo

O amor deixa de ser um componente do casamento e da monogamia e


se torna libertário. Ele é agora a grande utopia pessoal. Mas é preciso,
aqui, distinguir: não se trata mais do amor-catástrofe, com suas dores-
de-cotovelo e suas mulheres impossíveis, verdadeiro surto de
melancolia e desconsolo que o dominou, até o aparecimento da Bossa
Nova, a música popular brasileira. (CASTELLO, 2005, p. 97)

E ao se converter em letrista e compositor popular, Vinicius de Moraes, já com


uma aversão à letra morta, recoloca a palavra no tempo e a torna viva. Esse retorno à
oralidade é decisivo na carreira do poeta. Na música, a palavra ganha corpo e a poesia,
nitidez.

37
Vinicius de Moraes e Tom Jobim, parceria que mudou a música popular brasileira.
Abaixo, ao lado de Tom Jobim e Agostinho dos Santos em um programa da TV Paulista, em
São Paulo, em 1960.
Fonte: http://www.viniciusdemoraes.com.br/

38
Na primeira foto, o poeta, na década de 1950, já convertido em compositor popular.
Depois, ao lado de Tom Jobim, autografando um cartaz no último dia do show que fizeram
na boate Au Bom Gourmet, e, 1962. E na foto abaixo, com Carlinhos Lyra e Nara Leão,
apresentando o show Pobre Menina Rica, também em 1962.

Fonte: http://www.viniciusdemoraes.com.br/

39
II – Bahia de todos os orixás

Ainda na década de 1960, a Bossa Nova começa a passar por seu primeiro
processo de renovação e esse panorama não se estendeu apenas ao campo musical, mas
também ao cinema – especialmente o Cinema Novo –, ao teatro e outros seguimentos
artísticos. É o momento no Brasil em que a arte, sobretudo a MPB, ganha o tom da crítica
e da denúncia, momento também em que é construído no país – segundo a historiografia
da música popular brasileira – o conceito de nacional-popular21. Aí então, temas
nacionais passam a ocupar lugar nas propostas da esquerda brasileira. Por isso, Marcelo
Ridenti propõe a ideia de que uma brasilidade (romântico) revolucionária se desenvolveu
no Brasil na década de 1960, em que a arte quando partida de elementos da cultura popular
traria consigo uma mensagem de superação da situação em que se encontrava a sociedade
brasileira.
Esse momento é de grande importância na vida e obra de Vinícius de Moraes, pois
além de sua poesia se cobrir de engajamento, o poeta também passa a atuar como cantor,
mas ainda com alguns limites impostos pelo Itamaraty – só podia cantar de terno e sem
receber um centavo. Nesse período, Vinicius já começa a desconstruir o corpo do poeta.
Tínhamos em nossa cultura a imagem de um poeta como um homem sério – como
Drummond, João Cabral de Melo Neto, e até de Manuel Bandeira. Vinícius então rompe
com isso ao adentrar o universo da cultura popular se aproximando da imagem de um
homem “comum”, transgredindo protocolos chegando a causar certo embaraço no meio
diplomático.
A obra musical de Vinícius passa a ter o candomblé e a umbanda como elementos
fundamentais, podendo ser compreendida a partir do conceito de brasilidade
desenvolvido por Ridenti, pois se encaixa neste projeto nacional de consumação das
potencialidades do povo brasileiro, uma vez que o poeta passa a buscar cada vez mais
mergulhar no universo afro-religioso.

Vinícius de Moraes lança um novo modo de se olhar para cultura no


Brasil ao tomar a cultura baiana como tônica do nacional em suas obras.
Poderíamos certamente incorrer num equívoco, pois sempre fora a
Bahia local imaginado, representação fidedigna do que é o Brasil e de
fato a construção da unidade brasileira por meio da democracia racial
sempre se escorou nos estereótipos da baiana e nas imagens de
candomblé, reforçando até mesmo a vitalidade do mulato como parte

21
Tal conceito pode ser compreendido como portador de célula folclórica, como sinônimo de brasilidade ou
ufanismo, ou até mesmo como portador de um populismo de esquerda ou o despertar de um realismo
socialista, como explica Vieira (2016).

40
constitutiva da beleza deste povo brasileiro. A singularidade na obra de
Vinícius de Moraes ao imaginar a Bahia reside exatamente no contrário,
pois o que o poeta apresenta são as diferenças da cultura baiana, seja na
religião, no samba e na cultura negra preservada por lá, desse modo,
duas bases são fundamentais para que compreendamos tais contornos
em sua obra musical: acrítica à democracia racial e o interesse pela
pesquisa folclórica no campo da canção popular. (VIEIRA, 2016, p.
40)

Para Osmundo Pinho, o discurso da identidade nacional é forçosamente


construído tanto por uma ambiguidade entre interesses privados e cenas públicas, quanto
pela produção do outro significativo, o que vem a ser essencial para a produção de sentido
dos discursos: “povo e nacionalidade são a base ideológica dos regimes modernos de
dominação pública” (PINHO, 1998, p. X). Uma narrativa nacional, criada a partir da
invenção de tradições, quando contada em diferentes versões – seja por meio de mitos ou
pela mídia, por exemplo – materializa as representações que permitem que um indivíduo
se identifique com a história nacional, enfatizando fortemente a continuidade e
atemporalidade da identidade nacional que então passa a ser vista como única. A
estratégia discursiva do nacionalismo cultural constitui a montagem da nacionalidade
sobre a idealização de um “povo” suprimindo a pluralidade.
A obra de Vinícius não chega a ser uma crítica à democracia racial, mas nos serve
para romper com a ideia de uma cultura nacional homogênea, unânime para toda a nação.
No campo musical, naquele momento havia a intenção de se cantar aquilo que fosse
pertencente ao Brasil. E foi então que os compositores passaram a buscar sonoridades que
estivessem alinhadas a este ideal, podendo com isso apresentar parte de nossa cultura
ainda desconhecida por muitos. Eis o mote das obras de Vinícius de Moraes: pensar a
unidade a partir da diferença. Para isso, o poeta contou com a parceria de amigos
compositores com o mesmo interesse em explorar a cultura afro-brasileira.
Vinícius teve papel fundamental como mentor e catalizador de toda uma geração
de grandes talentos. Ainda na década de 1960, contou com outros parceiros nessa busca
por desvelar a cultura afro-brasileira, entre eles Edu Lobo – jovem que vivia atravessado
pelos sons da memória de suas viagens pelo Nordeste. Edu carregava em sua obra toda
riqueza e sofisticação harmônica herdadas de Tom Jobim e a partir disso passou a
impregnar sua música de uma herança cultural mais ampla e profunda. O primeiro disco
profissional de Edu, A música de Edu Lobo por Edu Lobo (1965), já traz duas de suas
parcerias com Vinícius – uma delas é Arrastão. Composta dois anos antes, foi interpretada
por Elis Regina no I Festival Nacional da Música Popular Brasileira, realizado pela TV

41
Excelsior em 1965 – levando o prêmio máximo do festival e consagrando a cantora. Nela,
além dos autores buscarem explorar a sonoridade e um cotidiano regional, também estão
inseridos elementos do candomblé. Em Arrastão22, apesar de o mar ser o lugar de onde
os pescadores tiram seu sustento a pescaria não é uma prática mecanizada, pois também
envolve os caprichos de Iemanjá que os satisfaz quando a fantasia da paixão por ela surge.

Eh! tem jangada no mar/ Hei! hei! hei!/ Hoje tem arrastão/ Eh! todo
mundo pescar/ Chega de sombra João/ Jovi, olha o arrastão/ Entrando
no mar sem fim/ Eh! meu irmão me traz/ Yemanjá prá mim/ Minha
Santa Bárbara/ Me abençoai/ Quero me casar/ Com Janaína./ Eh! puxa
bem devagar/ Hei! hei! hei!/ Já vem vindo o arrastão/ Eh! é a Rainha do
Mar/ Vem!/ Vem na rêde João/ Pra mim!/ Valha-me Deus/ Nosso
Senhor do Bonfim/ Nunca jamais se viu/ Tanto peixe assim.

Nessa mesma época Edu e Vinícius estavam trabalhando em uma série de canções
novas. Dessa safra, além de Arrastão, saiu uma outra música de ritmo mais acentuado,
repetitivo, “um tema negro” que Edu havia escrito pensando em fazer uma canção para
um herói do Quilombo dos Palmares, o rei dos negros libertos. Vinicius deu nome ao
tema ao ouvi-lo ainda sem letra e ainda sem saber quais eram as intenções de Edu para
com ele: Zambi.

‘O mais estranho dessa história’, conta Edu, ‘é que eu tinha descoberto


que Zumbi era uma coisa, e Zambi, outra. Zumbi era o rei dos Palmares.
Zambi era o nome do primeiro rei. Quando Zambi morreu, Ganga
Zumba se tornou o novo Zumbi’. (NEPOMUCENO, 2014, p. 45)

Aí fica claro que Vinícius já não era apenas um curioso, mas buscava cada vez
mais se aprofundar no assunto para melhor compreender a cultura que tanto lhe atraía.
Nesse momento se torna um “pesquisador errante”.

É Zambi no açoite, ei, ei, é Zambi/ É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi/ É
Zambi na noite, ei, ei, é Zambi/ É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi/ Chega
de sofrer, ei!/ Zambi gritou/ Sangue a correr/ É a mesma cor/ É o mesmo
adeus/ É a mesma dor/ É Zambi se armando, ei, ei, é Zambi/ É Zambi
tui, tui, tui, tui, é Zambi/ É Zambi lutando, ei, ei, é Zambi / É Zambi tui,
tui, tui, tui, é Zambi/ Chega de viver, ê/ Na escravidão/ É o mesmo céu/
O mesmo chão/ O mesmo amor/ Mesma paixão/ Ganga-zumba, ei, ei,
vai fugir/ Vai lutar, tui, tui, tui, tui, com Zumbi/ E Zumbi, gritou ei, ei,
meu irmão/ Mesmo céu, tui, tui, tui, tui/ Mesmo chão/ Vem filho meu,
meu capitão/ Ganga zumba/ Liberdade/ Liberdade/ Ganga Zumba/ Vem
meu irmão/ É Zambi lutando/ É lutador / Faca cortando/ Talho sem dor/
É o mesmo sangue/ E a mesma cor/ É Zumbi morrendo, ei, ei, é Zumbi/

22
O arrastão é uma prática comum no litoral em que pescadores se lançam ao mar e em determinado ponto
lançam sua rede na esperança que ela venha farta de peixes.

42
É Zumbi tui, tui, tui, tui, e é Zumbi/ Ganga Zumba, ei, ei, vem aí/ Ganga
Zumba, tui, tui, e é Zumbi.

Outra parceria desta mesma fase que vale a pena ser citada é a que se deu com
Carlos Lyra, e uma obra da dupla a ser destacada é Maria Moita, originalmente gravada
no LP Pobre Menina Rica (1964):

Nasci lá na Bahia/ De Mucama com feitor/ Meu pai dormia em cama/


Minha mãe no pisador/ Meu pai só dizia assim, venha/ Minha mãe dizia
sim, sem falar/ Mulher que fala muito perde logo seu amor/ Deus fez
primeiro o homem/ A mulher nasceu depois/ Por isso é que a mulher/
Trabalha sempre pelos dois/ Homem acaba de chegar, tá com fome/ A
mulher tem que olhar pelo homem/ E é deitada, em pé, mulher tem é
que trabalhar/ O rico acorda tarde, já começa resmungar/ O pobre
acorda cedo, já começa trabalhar/ Vou pedir ao meu Babalorixá/ Pra
fazer uma oração pra Xangô/ Pra por pra trabalhar gente que nunca
trabalhou.

Essa canção é uma narrativa de um conflito de classes, denuncia a pobreza já na


origem do indivíduo e sua manutenção na vida adulta. Nela os autores destacam a
localidade geográfica, a Bahia, local místico e principal detentor das tradições negras no
Brasil23. A referência a figuras como Babalorixá 24 envolve a localidade da fé no
candomblé. A partir de então os temas relacionados à cultura negra, principalmente ao
candomblé, passam a ser tratados de outra forma pelo poeta que percebe o potencial
emancipatório que vive junto da religião, diferente do que ocorre em Orfeu da Conceição.
Ou seja, Vinícius troca o conformismo para com a situação de vida, muitas vezes
acalentado pelo cristianismo, por um senso de justiça social encontrado em Xangô, na
mitologia dos orixás. A qualidade musical dessa fase de Vinicius está justamente na
junção da dialética crítica da canção à pesquisa social a respeito dos temas negros, tudo
isso com uma atenção à métrica, à rima e às formas tradicionais de poesia.

23
A Bahia, antiga capital do Brasil, durante séculos foi um ativo mercado de escravos e um porto de entrada
de migrantes negros livres. A isso se deve ao fato de que hoje sua população é predominantemente negra
e os seus costumes predominantemente africanos. Porém, não é possível nesse momento explorar em
profundidade o significado da Bahia como símbolo da tradição no Brasil entre os anos 1930 e 1940.
24
Tanto no candomblé quanto na umbanda, “Babalorixá” designa o pai-de-santo, assim como “Ialorixá” a
mãe-de-santo.

43
Acima, Francis Hime, Tom Jobim, Dori Caymmi, Sidney Miller, Dóris Monteiro, Zé Kéti,
Sônia Lemos, Ângela Maria, Eliseth Cardoso, Vinicius de Moraes e Edu Lobo.
Fonte: http://www.viniciusdemoraes.com.br/

Acima, Vinicius e Carlos Lyra, em 1961.


À esquerda, Vinicius e seu jovem
parceiro, Edu Lobo, recebendo o prêmio
de primeiro lugar na final do I Festival
da Música Popular Brasileira, em 1965.

44
III - O casamento com Baden

Uma das mais intensas parcerias de Vinícius, talvez a mais falada no que diz
respeito a essa busca por explorar a cultura afro-brasileira e desvendar os mistérios da
Bahia e de seus orixás, é a que se de seu encontro com Baden Powell. Foi durante um
show de Tom Jobim na boate Argèpe que Vinicius viu pela primeira vez Baden fazendo
misérias na guitarra – “estava ele com a cachorra”. “Eu estava tocando para você”, disse
Baden a Vinicius pouco depois quando foram apresentados – “tenho aí umas coisinhas
em que gostaria que você pusesse letra, caso você tope”. Eu poderia usar de minhas
palavras para contar o que se deu a seguir, mas nada melhor que as palavras do próprio
poeta:

Daí nos tornamos íntimos amigos, sem reservas nem segredos um para
o outro. Um disco folclórico que tinha recebido de meu amigo Carlos
Coquejo, da Bahia, foi a pedra de toque para darmos partida aos afro-
sambas, como os designei. Nele havia sambas de roda, pontos de
candomblé e toques de berimbau que nos sideravam. Baden partiu
pouco depois para a Bahia e andou escutando in loco os cantares do
candomblé baiano e frequentando os terreiros. Voltou a mil,
inteiramente tomado pelos cantos e ritos dos orixás, e me explicava
horas seguidas os fundamentos da mitologia afro-baiana. Assim fui
absorvendo o que há de mais rico e orgânico nessa bela religião, e
quando os temas de Baden vieram, eu estava, mesmo sem ser um crente
(pero que las hay, las hay...), preparado para formulá-los a meu modo.
(MORAES; 2008, p. 147)

Baden Powell de Aquino é hoje enquadrado na linhagem dos grandes violonistas


brasileiros justamente pela dimensão musical e destreza instrumental que revelou tanto
como compositor quanto como intérprete. Foi aluno do lendário violonista Jayme
Florence e do compositor, arranjador e saxofonista pernambucano Moacir Santos – que
por sua vez, lhe “passava exercícios de composição em cima dos sete modos gregos, os
modos litúrgicos do canto gregoriano. Foram esses exercícios que viriam a se tornar mais
tarde os afro-sambas”, como afirmou Powell (O Globo, Segundo Caderno, 24/03/2000
apud KUEHN, 2014).
O primeiro fruto deste projeto foi Berimbau, composta em 1962 e gravada em
1963 no disco Vinícius e Odete Lara. Sua introdução tem um violão marcante que remete
ao som do berimbau – era marca registrada de Baden essa capacidade de reproduzir no
violão instrumentos de percussão tipicamente brasileiros –, e além dos aspectos musicais,
em sua letra o “jogo de palavras expõe uma visão de mundo diferenciada, calcada na
cultura da capoeira, um ethos desconhecido na canção popular” (VIEIRA, 2016, p. 47), e

45
como ainda explica Vieira, isso se deu do “interesse cultural de Vinícius de Moraes por
um ethos diferente daquele produzido pela moral cristã”, pois nela o poeta apresenta
aquelas que seriam consideradas as características de um homem de bem:

Quem é homem de bem/não trai/o amor que lhe quer/seu bem/Quem


diz muito que vai/não vai/e assim como não vai/não vem/Quem de
dentro de si/não sai/vai morrer sem amar/ninguém/O dinheiro de
que/não dá/é o trabalho de quem/não tem/Capoeira que é bom/não cai/e
se um dia ele cai/cai bem/ Capoeira me mandou/ dizer que já chegou/
chegou para lutar/ Berimbau me confirmou/ vai ter briga de amor/
Tristeza, camará.

Outra canção da dupla lançada nesse mesmo disco foi Samba da bênção que,
mesmo com uma levada de samba-canção simples, diferente dos afro-sambas, apresenta
uma espécie de autorretrato do poeta. Em sua letra está contida talvez a principal
afirmação de Vinicius que revela seu interesse em incorporar a cultura afro-brasileira:
“Eu, por exemplo, o capitão do mato Vinícius De Moraes, poeta e diplomata, o branco
mais preto do Brasil na linha direta de Xangô, sarava!”
Depois de Berimbau e Samba da bênção nasceram outras canções da dupla que
quatro anos depois constituíram o disco Os afro-sambas (1966). Nesse disco, Vinicius e
Baden, ao trazerem elementos negros da Bahia, criam uma linguagem dando as bases para
uma inovação no campo da música popular brasileira. A influência religiosa é clara, pois
traz o universo ritualístico da umbanda e do candomblé de forma bastante explícita,
quando até mesmo a execução rítmica dos “pontos” ou “toques” – regida por Guerra-
Peixe25 – é estruturada de acordo com o orixá homenageado na música.
Canto de Ossanha – orixá da terra, da vegetação, das ervas e da medicina – abre
caminho para as outras “alas” do disco. Nessa canção também encontramos aquilo que
Túlio Villaça (2012) chama de afro-ética, pois assim como Berimbau, faz referência a
um tipo de comportamento que muito me lembra a passagem de Nietzche de Além do bem
e do mal, quando diz que “falar muito de si mesmo pode ser um jeito de esconder aquilo
que realmente é”26.

O homem que diz “dou”/ não dá/ porque quem dá mesmo/ não diz/ O
homem que diz “vou”/ não vai/ porque quando foi já não diz/ O homem
que diz “sou”/ não é/ porque quem é mesmo é/ não sou/ O homem que
diz “tô”/ não tá/ porque ninguém “tá” quando quer/ Coitado do homem
que cai/ no canto de Ossanha/ traidor/ Coitado do homem que vai/ atrás

25
O compositor, regente e arranjador César Guerra-Peixe (1914-1993) também era um eminente
pesquisador das raízes africanas na música brasileira e defensor das causas nacionais.
26
Essa passagem encontra-se no livro Além do Bem e do Mal, cuja página não foi possível ser identificada
nesse momento.

46
de mandinga/ de amor/ Vai, vai, vai, vai!/ Não vou!/ Não vou/ que eu
não sou ninguém de ir/ em conversa de esquecer/ a tristeza de um amor
que passou/ Não/ eu só vou se for pra ver/ uma estrela aparecer/ na
manhã de um novo amor/ Amigo, senhor, saravá/ Xangô me mandou
lhe dizer:/ se é canto de Ossanha/ não vá/ que muito vai/ se arrepender/
Pergunte ao seu orixá/ Amor só é bom se doer/ Vai, vai, vai, vai/ Amar/
Sofrer/ Chorar/ Viver.

Canto de Ossanha vem seguida por Canto de Xangô – de quem, segundo a


mitologia, Ossanha tentou roubar Obá, uma de suas mulheres, e o fogo, que o teria dado
aos homens, causando rivalidade entre ambos os orixás. A segunda canção, como explica
Kuehn (2014), “reverencia o antepassado mítico e fundador da nação nagô. De origem
real, é o orixá do fogo, do raio e do trovão. É também o orixá da justiça, simbolizado pelo
machado de dois gumes”.

Eu vim de bem longe, eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim/ Sou
filho de rei muito lutei pra ser o que eu sou/ Eu sou negro de cor mas
tudo é só amor em mim/ Tudo é só amor, para mim/ Xangô Agodô/
Hoje é tempo de amor/ Hoje é tempo de dor, em mim/ Xangô Agodô/
Salve, Xangô, meu Rei Senhor/ Salve meu Orixá/ Tem sete cores sua
cor/ sete dias para a gente amar/ Salve Xangô, meu Rei Senhor/ Salve
meu Orixá/ Tem sete cores sua cor/ sete dias para a gente amar/ Mas
amar é sofrer/ Mas amar é morrer de dor/ Xangô, meu Senhor, saravá!/
Me faça sofrer/ Ah me faça morrer/ Mas me faça morrer de amar/
Xangô, meu Senhor, saravá!/ Xangô agodô.

O arranjo de Guerra-Peixe parece recriar o ambiente de terreiro. Nos ritos de


candomblé, o agogô e os atabaques são instrumentos indispensáveis para a realização do
culto – não à toa estão presentes em praticamente todo o disco. Na terceira faixa do disco,
Bocoché (Segredo), essas características também são muito marcantes, assim como em
Canto de Iemanjá27, faixa seguinte, seguida por Tempo de Amor, Canto do caboclo Pedra
Preta, Tristeza e Solidão, e Lamento de Exu28, respectivamente.
No final do século XIX, Sílvio Romero 29 já alertava sobre a necessidade de se
realizar estudos científicos sobre o negro e sua cultura no Brasil. Todavia, nesse período,
elementos do negro e do indígena brasileiro já eram tema de algumas incursões artísticas

27
Iemanjá é a orixá das águas salgadas, a mãe de todos os orixás, regendo também a maternidade.
Segundo as lendas, costuma seduzir suas vítimas através dos sentidos, arrastando-as para as profundezas
do mar.
28
“Relacionado diretamente aos ancestrais, Exu é o mais humano dos orixás. Seu nome significa “dono da
força”. É o guardião das cidades, das casas, dos templos e das encruzilhadas. Por analogia sincrética, Exu
corresponde a Santo Antônio ou a São Benedito”. (KUEHN, 2014, p. 17)
29
Sílvio Romero (1851-1914) foi um filósofo, sociólogo e historiador brasileiro. Em Estudos sobre a poesia
popular no Brasil (1888), escreveu: “É uma vergonha para a ciência do Brasil que nada tenhamos
consagrado de nossos trabalhos ao estudo das línguas e das religiões africanas” (1977, p. 34).

47
de cunho romântico de compositores como Carlos Gomes30 – com A Cayumba (1857) e
o clássico O Guarani (1870) –, Alberto Nepomuceno31 – com Batuque da Série Brasileira
(1897) – e Alexandre Levy32 – com Samba da Suíte Brasileira (1890). Quanto aos estudos
científicos em torno da formação histórica étnico-racial, cultural e social do Brasil, eles
foram empreendidos a partir do início do século XX por um grupo de intelectuais, entre
eles Nina Rodrigues33, Artur Ramos34 e Gilberto Freire35.
Diferente do que muitos acreditam, ainda não foi com os afro-sambas, tampouco
com essas outras parcerias na década de 1960, que Vinícius atingiu o ponto mais alto de
sua busca por uma alma negra. O que podemos dizer é que Vinícius, até esse momento,
saiu do campo da curiosidade dando um salto em direção ao estudo e ao trabalho de
pesquisa da cultura afro-brasileira. Inclusive já existia, na obra de Vinicius, o que na
década seguinte veio a ser chamado pedagogia das religiões36, pois seu interesse era
formativo a respeito dos ritos e da ética religiosa. Porém, é no início da década de 1970
que o poeta atinge o ponto máximo de aproximação com essa cultura.

30
Antônio Carlos Gomes (1839-1896): compositor brasileiro que, com uma verve nacionalista, já buscava
se desvencilhar dos padrões preestabelecidos da música europeia, que em suas óperas e peças para piano
solo fazia leituras dos ritmos brasileiros como as modinhas, valsas, quadrilhas e danças de negros.
31
Alberto Nepomuceno (1864-1920): compositor, pianista, organista e regente brasileiro, é considerado o
“pai” do nacionalismo na música erudita brasileira.
32
Alexandre Levy (1864-1892): compositor, maestro, pianista e crítico musical brasileiro. Mesmo que
fortemente influenciado por Schumann, também está entre os precursores do nacionalismo musical
brasileiro.
33
Nina Rodrigues (1862-1906), autor de O animismo fetichista dos negros da Bahia (1900) e Os africanos
no Brasil (1932).
34
Artur Ramos (1903-1949), autor de O folclore negro no Brasil (1935), As culturas negras do novo mundo
(1937), A aculturação negra no Brasil (1942) e Introdução à antropologia brasileira (1947).
35
Gilberto Freire (1900-1987), autor do clássico Casa grande e senzala (1933).
36
Segundo o sociólogo Wagner Gonçalves da Silva, na década de 1970, a busca por temas relativos a afro-
religiosidade se expandiu de tal forma no campo da música popular que era possível conhecer o ethos
umbandista e candomblecista a partir das ondas dos rádios. Ver Vieira (2016).

48
Nas fotos, Vinicius e Baden Powell em alguns de
seus intensos encontros em que foram compostos
os afro-sambas. Na foto acima, a dupla em
apresentação na década de 1960, quando o poeta
e diplomata ainda era obrigado a cantar de terno
e gravata.

Fonte: http://www.viniciusdemoraes.com.br/

49
FINALE

50
CORPO BRANCO COM ALMA NEGRA

I – O filho de Oxalá

Em 1969, Vinícius de Moraes – visto pelo governo como um artista de esquerda,


um homem subversivo, contestador – é exonerado do Itamaraty após uma ordem direta
do então presidente Arthur Costa e Silva. No mesmo ano conhece Gessy Gesse – atriz
baiana e filha de santo. Vinicius, que costumava comparar suas parcerias musicais com o
matrimônio, no ano de 1970 embarca em três “casamentos”: com Gessy Gesse, com a
Bahia, e com seu mais novo parceiro musical, Toquinho.
No ano seguinte, Vinicius se muda com Gessy para Itapuã, na Bahia, e é nesse
momento que passa a ocorrer uma transformação mais evidente em sua corporalidade.
Também conhecido como “o poeta da paixão” – não à toa – Vinicius mais uma vez se
transforma a partir da paixão por uma mulher, e foi então que passou a se envolver de
forma mais contundente com a religião afro-brasileira. Em 1973 – três anos depois de já
terem se casado no Uruguai –, o casal realizou uma cerimônia de casamento um tanto
mística – um ritual cigano, com direito a cortes nos pulsos e troca de sangue –, um
casamento de almas.
Na Bahia, também deu-se o encontro do poeta com uma figura que veio a ser
essencial em sua vida, Maria Escolástica da Conceição Nazaré, a Mãe Menininha do
Gantois – Iyalorixá baiana, filha de Oxum, responsável pelo Terreiro do Gantois em
Salvador. Vinicius, que até então era um ateu materialista – pois já havia se desencantado
com o cristianismo há algumas décadas - resolveu acreditar nos mistérios dos orixás e se
converter ao candomblé. De acordo com José Flávio de Barros e Maria Lina Teixeira, “o
candomblé pode ser definido como uma manifestação religiosa resultante da reelaboração
das várias visões de mundo e de ethos provenientes das múltiplas etnias africanas que, a
partir do século XVI, foram trazidas para o Brasil”. Lançando mão do pensamento de
Clifford Geertz (1978, p. 103), os autores definem o candomblé como

um complexo no qual se verifica um conjunto de significados


transmitidos historicamente, reelaborados em novo contexto e que vão
dar origem a formas simbólicas específicas, por meio das quais os
adeptos transmitem e desenvolvem seu conhecimento e suas atitudes em
relação à vida. (BARROS; TEIXEIRA; 2000, p. 105)

Quando um indivíduo se converte ao candomblé, sua construção social no âmbito


dos terreiros é desenvolvida gradualmente a partir de um processo de iniciação

51
responsável pela instauração de uma visão de mundo e uma maneira de ser peculiares em
um sistema de crenças que privilegia o corpo humano e a vida. Sendo o corpo visto, neste
contexto, como veículo da comunicação com os deuses, através da possessão ritual, forças
da natureza incorporam em seus “cavalos” ou médiuns. Dessa forma, crenças e
sentimentos básicos na vida social do terreiro estão associados e são remetidos ao corpo,
constituindo então “um conjunto de representações que ultrapassam as características
biológicas inerentes ao ser humano” (BARROS; TEIXEIRA; 2000, p. 108). Então, a
iniciação pode ser vista como um mecanismo social de internalização da dicotomia aiê e
orum – mundo dos homens e mundos dos deuses, respectivamente – no pensar e no agir
dos iniciados. Tal dicotomia representa a especificidade da maneira de ser do
candomblecista. A descida periódica dos orixás no corpo de um indivíduo iniciado
promove uma estreita relação entre os habitantes de aiê e orum: por um lado, o corpo
torna-se veículo para as divindades, por outro, ele é fonte maior da expressão da
individualidade. Nas instâncias sagrada e profana dos terreiros, o corpo tem papel
primordial.

A maneira de ser do adepto do candomblé exprime esta valoração dada


pela perspectiva religiosa que se imprime no corpo, estipulando seus
usos e marcando a estrutura somática individual, de forma que o
psíquico, o físico e o coletivo possam formar um complexo que somente
a abstração pode separar (RODRIGUES, 1979, p. 47 apud BARROS;
TEIXEIRA, 2000, p. 109).

Lançando mão das teorias apreendidas durante o projeto de pesquisa O corpo em


perspectiva – da antropometria à virada ontológica, gostaria de trazer aqui uma
comparação dessa experiência de Vinicius de Moraes com o trabalho etnográfico. Em
antropologia, a etnografia pode ser vista como um rito de passagem à medida que
constitui um momento dramático de transformação social e pessoal, materializando-se
por meio do corpo dos envolvidos, com implicações na (re)construção das identidades.
Viver “a” Bahia foi o rito de passagem na vida de Vinícius, afinal foi na presença da
alteridade radical que se deu sua total apreensão da cultura afro-brasileira, resultando em
uma transformação social, pessoal e corporal.
A iniciação de Vinicius no candomblé marca um novo ser social em formação.

Entendemos que a construção social da pessoa no candomblé expressa,


desta forma, tanto o processo de individuação como o de integração
social. Evidentemente as relações sociais não são reproduções exatas
do pensamento religioso, mas as articulações produzidas pelos padrões
desse ethos geram a peculiaridade do sistema de relações sociais e do

52
discurso. (MONTEIRO, 1985 apud BARROS; TEIXEIRA, 2000, p.
111)

O panteão das divindades presentes no candomblé compreende 16 orixás, sendo


cada um deles concebido como associado a um dos quatro elementos naturais – água,
fogo, terra e ar – e como masculinos, femininos e “metá-metá”37. Cada uma dessas
divindades também está relacionada a fenômenos meteorológicos, formas, cores, dias da
semana, espécies vegetais e minerais. Dessa forma, cada orixá pode ser pensado como
um arquétipo que informa e fornece padrões de temperamento e comportamento. É, então,
primeiramente necessário ao iniciado saber “de quem é filho”, ou a qual dos orixás
“pertence”. Tal veredicto é dado por um especialista, pai ou mãe-de-santo, por meio do
jogo de búzios. Maria Bethânia, no filme documentário Vinicius (2005), ao falar sobre o
primeiro encontro do poeta com Mãe Menininha do Gantois, conta que no terreiro todos
se sentam no chão, com excessão do pai ou mãe-de-santo, mas quando Vinicius chegou,
Mãe Menininha pediu que buscassem uma cadeira para que ele se sentasse. Bethânia diz
que achou um tanto estranho e quis saber se tal sinal de respeito se devia ao fato de
Vinicius ser homem ou um intelectual conhecido, e a resposta que recebeu foi que “certas
coisas não se explicam”. Acontece que Vinicius de Moraes era filho de Oxalá – orixá
maior do candomblé e da umbanda –, e foi reconhecido como tal imediatamente por Mãe
Menininha, “a maior Ialorixá da Bahia”, como dizia o poeta.

37
Metá-metá são as divindades ao mesmo tempo ou alternadamente masculinas e femininas.

53
Vinicius e Gesse em sua cerimônia de casamento em Salvador, em 1974.

Vinicius (usando seu “colar de contas”), Gesse e Mãe Menininha do Gantois.

Fonte: http://www.viniciusdemoraes.com.br/

54
II – A última bossa

Paralelamente à relação com Gesse e com a Bahia, se dava o “casamento” do poeta


com Toquinho, como já mencionamos no início do capítulo. Antônio Pecci Filho já era
um violonista conhecido por suas participações nos Festivais de Música Popular e
parcerias com novos nomes da MPB, como Chico Buarque. Após o exílio de Chico para
a Itália, em 1969, o mesmo deveria cumprir uma agenda de shows no país e para isso
convidou o poeta e o violonista para acompanha-lo. Quando voltaram ao Brasil, Toquinho
e Vinicius deram início ao “casamento” mais longínquo do poeta, que durou mais de dez
anos.
O primeiro disco da dupla, Como dizia o poeta...música nova (1971), carrega o
nome de uma das canções do álbum e reforça a função de Vinícius como “poeta” – ele,
que sempre deixou claro não haver a menor distinção entre o fazer literário e o fazer
musical –, e marca o início da parceria que veio a ser consagrada metaforicamente com a
expressão “poeta e violão”. Vinicius, por mais que se aproximasse da canção popular,
não deixava de lado sua excelência poética; com Toquinho, jovem violonista que trazia
consigo as inovações da música brasileira pós-Bossa Nova, ele viu a possibilidade de
continuar trabalhando em torno da cultura afro-brasileira, porém dentro da realidade
musical em que viviam. A década de 1960 foi marcada por um período de renovação da
música brasileira e as gravadoras investiam naquilo que poderia se tornar tendência,
assim, Vinicius representava um chamariz da transformação da canção, atenta ao
nacional-popular e a uma linguagem mais refinada – os discos gravados por Vinicius
junto a selos menores como a Elenco ou a Forma, tinham um caráter um tanto
experimental. Porém, na década de 1970 foram trazidos para o campo da música popular
novos paradigmas instalados pelo Tropicalismo, tais como uma valorização do pop e uma
recusa por manifestações nacionalistas.
Sua parceria com Toquinho pode ser caracterizada como um desdobramento dos
afro-sambas que perseguia a religiosidade afro-religiosa, mas diferentemente do que
acontecia nos afro-sambas em parceria com Baden, com Toquinho a linguagem musical
não é mais trabalhada em função do conteúdo da letra, a sonoridade não nos coloca
naquele universo dos terreiros, das giras e da capoeira, para onde somos levados logo nos
primeiros segundos d’Os afro-sambas. Em Como dizia o poeta...música nova o universo
afro-religioso não tem um destaque tão acentuado e as canções que compõem este

55
primeiro álbum da dupla dizem respeito à vida comum e aos grandes impasses colocados
pela paixão, como podemos ver na letra da canção que dá nome ao álbum:

Quem já passou por essa vida/ E não viveu/ Pode ser mais mas sabe
menos/ Do que eu/ Porque a vida só se dá/ Pra quem se deu/ Pra quem
amou, pra quem chorou,/ Pra quem sofreu/ Ai! quem nunca curtiu uma
paixão/ Nunca vai ter nada, não/ Não há mal pior do que a descrença/
Mesmo o amor que não compensa/ É melhor que a solidão/ Abre os teus
braços, meu irmão/ Deixa cair/ Pra quê somar se a gente pode/ dividir?/
Eu, francamente, já não quero/ nem saber/ de quem não vai porque tem
medo/ de sofrer/ Ai de quem não rasga o coração/ Esse não vai ter
perdão.

Ainda assim, Toquinho e Vinicius recolocaram em cena o samba tradicional que


havia se perdido e sido rechaçado no mercado musical devido às transformações causadas
pela MPB e pelo advento da soulmusic. A única canção desse disco que versa sobre o
universo afro-religioso é À Benção, Bahia. Nessa canção, o uso do atabaque – instrumento
utilizado nas giras de candomblé e umbanda como recurso para invocar os cantos dos
orixás – é muito marcante, assim como a flauta que é utilizada para acentuar a invocação
aos orixás descritos na canção.

Olorô38, Bahia/Nós viemos pedir sua bênção, saravá!/Hepa hê39, meu


guia/Nós viemos dormir no colinho de lemanjá!/Nanã40 Borokô fazer
um Bulandê/Efó, caruru e aluá41/Pimenta bastante pra fazer
sofrer/Bastante mulata para amar./ Fazer junto/ Meu guia, hê/ Seu guia,
hê/ Bahia/ Saravá, Senhor/ Nossa mãe foi-se embora pra sempre do
Afojá/ A rainha agora/ É Oxum, é a Mãe Menininha do Gantois/ Pedir
à Mãe Olga do Alakêto, hê/ Chamar Iansã para dançar/ Xangô, rei
Xangô, Kabueci-elê/ Meu pai! Oxalá, hepa babá/ A bênção, mãe/
Senhora mãe/ Menina mãe/ Rainha!/ Olorô, Bahia/ Nós viemos pedir
sua bênção, sarava!/ Hepa hê, meu guia/ Nós viemos dormir no colinho
de Iemanjá!

A dupla consegue ao mesmo tempo apresentar na letra elementos da cultura afro-


brasileira, porém dentro de uma remodelagem do samba tradicional, livre da interferência
estrangeira que atravessava boa parte da música popular brasileira naquele momento.
Além disso, Vinicius reforça sua convicção de que o samba – herança autêntica da cultura

38
Olorô, em iorubá, remete à festividade. (online)
39
Hepa hê é uma forma tradicional de saudação aos orixás do candomblé. (online)
40
Aqui no Brasil, os escravos africanos introduziram com muito êxito suas divindades, como a Deusa Nanã,
Oya, entre outras, nas religiões como o candomblé, a umbanda e o batuque. Essas religiões incluem a
possessão por parte dos deuses. Quando Nanã se manifesta numa de suas iniciadas é saudada pelos
gritos de Salúba! (online)
41
Bulandê, efó, caruru e aluá, são ervas medicinais receitadas por Nanã para a cura de doenças ou para
resolução de problemas de amor. (online)

56
negra – é o gênero musical que define o país. O texto da contracapa do álbum escrito por
Vinicius deixa isso claro, além de nos apresentar mais da vivência baiana do poeta. A
citação a seguir, embora extensa, faz-se necessária para delinearmos traços importantes
dessa fase de Vinicius de Moraes – fase primordial para este trabalho, já que se trata do
contato mais intenso do poeta com a Bahia e, consequentemente, com a cultura afro-
brasileira:

“Êste LP se deve a um banho de banheira tomado na hora certa. De fato, nada me


predispõe melhor para pensar. Instalo à minha volta o telefone, minha táboa de
escrever, os cigarros, às vezes um gin-tônica bem gelado, e me deixo horas lendo,
rabiscando ou simplesmente fazendo nada. E foi assim que uma manhã, há quatro
mêses atrás, meu pensamento se foi deixando levar para Bahia, onde não ia desde
1966, e perguntei a minha mulher, que é baiana e vidrada em sua terra, que tal
passarmos uns dias em Salvador. Ela vibrou, por isso que nunca havíamos estado
juntos por lá. E que tal, propôs-me ela, se eu aproveitasse e fizesse um show no
Teatro Castro Alves? Afinal de contas, nunca tinha me apresentado na Bahia.
Telefonamos para Salvador e pedimos pauta no Teatro para os dias 6, 7 e 8 de
setembro, na ótima oportunidade de três feriados seguidos. Meia-hora depois eu
acordava Toquinho em São Paulo que, estremunhado, topou o plano de saída e
prometeu-me vir passar o fim-de-semana conosco, para acertarmos tudo.
Consertamos em que a cantora que levaríamos seria nossa querida Marilia Medalha,
uma intérprete sem qualquer espécie de vedetismo e, além do mais, uma mulher fora-
de-série, digna, leal e corajosa quanto as que mais o sejam. Marília começou como
atriz no Teatro de Arena, em São Paulo: uma excelente escola de consciência e
humildade profissional, e quando se apresentou no “Zum-Zum”, no Rio, ao lado de
Edú Lobo, eu vira-e-mexe estava por lá, cativado pela naturalidade de sua emissão
e pela graça modesta de sua presença no pequeno praticável da boate de meu amigo
Paulinho Soledade. Marília não canta como uma cantora; canta como uma mulher
que gosta de cantar. E tem, ademais, um notável senso de divisão rítmica.
O resto é só perguntar a qualquer baiano. O show foi um banho, e tivemos a prova
de que a mocidade, por mais comprometida que esteja com a música beat e as
novíssimas experiências com o som, nunca deixou de estar atenta ao que de melhor
se fêz da bossa nova para cá, no campo da canção. O recital do dia 7 de setembro,
que dedicamos aos estudantes, mereceu uma ovação memorável. Era a resposta ao
que nós queríamos saber. E na deliciosa copa da casa de Sônia e Édio Gantois, que
nos hospedavam na Bahia, e onde nós sentávamos para biritar e receber a brisa que
vem da Barra, a música começou a brotar do Violão de Toquinho e de Marília, depois
que a cidade os bezuntou bem de dendê e pirão de leite, os surrou bem com carne de
sol, os envolveu irremediavelmente em seus dengues e feitiços. Marília, por exemplo,
nunca havia composto em sua vida. Ouçam sua primeira canção neste LP, a “Valsa
para o ausente”: é linda. Eu, no dia seguinte a uma tarde em Itapoan, depois de um
longo lapso de desisnterêsse, voltei a escrever canções ao sentir a beleza e o mistério
daquele conúbio paradisíaco de coqueirais, areia, céu e mar: a praia que Caymmi
imortalizou e a cuja pracinha dá nome, e onde, verdadeiramente, “com o olhar
esquecido no encontro de céu e mar” a gente bem devagar vai sentindo a terra tôda
rodar...Foi tudo um tremendo barato, e quando chegamos os três a Buenos Aires,
duas semanas depois, para atuar na boate “La Fusa”, o nosso moinho-de-canções
estava em pleno trabalho. A curtição baiana foi definitiva, nesse particular, e do
resto encarregou-se a paz e o bom-gôsto do apartamentinho de Las Heras, de meu

57
amigo Fred Sill, que nos hospedou. Ficavámos, Marília, Toquinho e eu, estimulados
pelo interêsse de Fred Sill e minha mulher, muito baiana e muito amada, grudados,
êles no violão, eu num grosso caderno escolar que, pouco a pouco, se foi escurecendo
de sambas e canções; e até um dombe argentino fizemos, que incluímos neste LP não
só com um abraço a Egle Martin, a grande vedeta portenha que nos ensinou o único
ritmo de procedência africana existente na Argentina (e que está ela mesma
pesquisando e cultuando, com vistas a um lançamento internacional em grande
escala) como para marcar a importância que Buenos Aires teve nesse
prosseguimento de nossa parceria. Foi minha mulher, Gesse quem nos pôs, também,
de orelha em pé quanto à expressão africana songa da mironga do kabuletê, ouvida
por ela na Bahia, e que, ao que parece, não quer propriamente dizer que os cabelos
da mulher amada cheiram a jasmim-do-cabo. Substituímos, por uma questão de
ênfase tonal, songa por tonga, e mandamos lenha, encantados pelo som insolente da
expressão, que ecoa como um tremendo desabafo. Em dezembro, em São Paulo, na
bela cobertura de Maria Alice Rufino, namorada de Toquinho, eu acabei de pôr letra
nas canções, e ali passamos duas deliciosas semanas de trabalho e gravação,
Toquinho a mil, dando tudo, orientando os play-backs rítmicos e até na mixagem
pondo o dedinho, na gana de fazer um bom disco bem equalizado. O resto deve-se à
primorosa cobertura orquestral do maestro Briamonte e aos bons ouvidos e
infatigável colaboração do técnico de gravação Milton Rodrigues.
Estou contente porque fizemos, tirante o dombe, música brasileira com som
brasileiro. Não tenho nada contra o som universal, nem qualquer outro; mas me
parece que o que fizemos aqui tem melhores condições de permanência. É um
problema de quintal. Ninguém pode ser universal fora do seu quintal. A palavra
telúrico não é uma mera abstração.
A gleba está aí. A placenta existe. Quem disser ao contrário vai acabar mesmo é na
tonga da mironga do kabuletê.
P.S. para Toquinho: Eu estou vidrado em você, ouviu, ô cara? Que tal
sairmos rápido para outra, e botar o Chico nesta patota?”

No segundo disco da dupla, Toquinho & Vinicius (1971), a experiência da


baianidade surge a partir de novos valores. Na canção Maria vai com as outras o poeta
canta o cotidiano praieiro e os efeitos da religiosidade sobre a vida comum.

Maria era uma boa moça/ Pra turma lá do Gantois/ Era a Maria vai com
as outras/ Maria de coser, Maria de casar/ Porém o que ninguém sabia/
É que tinha um particular/ Além de coser, além de rezar/ Também
era Maria de pecar/ Tumba-ê, caboclo, tumba lá e cá/ Tumba-ê,
guerreiro, tumba lá e cá/ Tumba-ê, meu pai, tumba lá e cá/ Não me deixe
só, tumba lá e cá/ Maria que não foi com as outras/ Maria que não foi
pro mar/ No dia dois de fevereiro/ Maria não brincou na festa de
lemanjá/ Não foi jogar água-de-cheiro/ Nem flores pra sua Orixá/ Aí,
Iemanjá pegou e levou/ O moço de Maria para o mar/ Tumba-ê,
caboclo, tumba lá e cá/ Tumba-ê, guerreiro, tumba lá e cá/ Tumba-ê,
meu pai, tumba lá e cá/ Não me deixe só, tumba lá e cá.

Essa canção nos traz um alerta sobre o cuidado com os desígnos da vida,
principalmente quando “ela está pautada na ética religiosa do candomblé, pois de uma
vez que isso ocorre é necessário ter-se em conta as obrigações necessárias com o mundo
espiritual e com as vontades dos orixás” (VIEIRA, 2016, p. 94). Importante aqui observar
58
que os versos que compõem o refrão da música são uns dos mais famosos pontos de
Oxóssi, orixá das matas, florestas e regente da natureza, porém não se relaciona com o
restante da canção, que faz referência à Iemanjá, orixá dos mares.
Nesse momento, faz-se necessário também estabelecermos uma ligação entre
Vinicius de Moraes e Dorival Caymmi, afinal, talvez nenhum outro artista tenha
conseguido interpretar a vida à beira mar com tanta sagacidade como o fez o compositor
baiano e amigo íntimo do poeta.

“Acontece que eu sou baiano”, disse ele num de seus melhores sambas.
E é realmente difícil encontrar alguém mais baianamente dengoso que
Caymmi, apesar de sua grande quilometragem carioca. Sua barriga
redonda e cheia de ritmo, que parece dançar por conta própria quando
ele canta – a barriga de um homem que viveu e amou a vida – é o retrado
da sua Bahia. Como, de resto, sua cor; a malemolência brejeira de seus
olhos, quando interpreta, e o balanço gordo e descansado do seu samba;
samba que parece ter o visgo gostoso do ar da Bahia, feito de calor e
brisa, o quebranto de suas ladeiras, por onde as baianas descem
desmanchando as ancas; a untuosidade pungente de suas comidas e seus
pirões afrodisíacos, onde o dendê, o amendoim, o gengibre e a pimenta
de cheiro são condimentos obrigatórios; a pática do seu casario, como
no Pelourinho; e a misteriosa claridade de seu lar, que o fez dizer, num
verso da mais alta síntese poética, em sua canção sobre a Lagoa do
Abaeté: A noite tá que é um dia... (MORAES, 2008, p. 171)

A descrição acima mostra o quanto a Bahia estava presente na corporalidade de


Caymmi, baiano de nascença. Da mesma forma, a Bahia passa a habitar o corpo de
Vinicius, baiano por opção. Tal experiência da baianidade de Vinicius, que tem origem
na observação do cotidiano e na influência do contexto praieiro na vida dos personagens
e em sua própria vida, diga-se de passagem, é devedora a Dorival Caymmi –

grande, sábio, vasto, intenso: um excelso mandarim baiano, que ainda


representa melhor que ninguém esse maravilhoso berço mestiço da
nacionalidade que é sua Bahia nativa – a terra onde os preconceitos não
têm cor e a falta de bossa não tem vez. (MORAES, 2008, p. 172)

Tarde em Itapuã (1970), a primeira parceria de Toquinho e Vinicius, é uma


homenagem à Caymmi e retrata bem essa “vida baiana”.

Um velho calção de banho/ Um dia pra vadiar/ Um mar que não tem
tamanho/ E um arco-íris no ar/ Depois, na Praça Caymmi/ Sentir
preguiça 42 no corpo/ E numa esteira de vime/ Beber uma água de côco/
É bom/ Passar uma tarde em Itapuã/ Ao sol que arde em Itapuã/
Ouvindo o mar de Itapuã/ Falar de amor em Itapuã/ Enquando o mar

42
“A preguiça, antes de ser um estado de corpo, é uma maneira de se sentir na pele o tempo” (Rocha,
2006: 27). O tempo ibérico, que na interpretação de Gilberto Freyre é um tempo experimentado
corporalmente, profundamente existencial.

59
inaugura/ Um verde novinho em folha/ Argumentar com doçura/ Com
uma cachaça de rolha/ E com o olhar esquecido/ Num encontro de céu
e mar/ Bem devagar e sentindo/ A terra toda rodar/ É bom/ Passar uma
tarde em Itapuã/ Ao sol que arde em Itapuã/ Ouvindo o mar de Itapuã/
Falar de amor em Itapuã/ Depois sentir o arrepio/ Do vento que a noite
traz/ E o diz-que-diz-que macio/ Que brota dos coqueirais/ E nos
espaços serenos/ Sem ontem nem amanhã/ Dormir nos braços morenos/
Da lua de Itapuã/ É bom/ Passar uma tarde em Itapuã/ Ao sol que arde
em Itapuã/ Ouvindo o mar de Itapuã/ Falar de amor em Itapuã.

A forma intensa como Vinicius vive “a” Bahia, a finalização de seu rito de
passagem, reflete fortemente em sua corporalidade. Nos palcos, ele adota outro
comportamento, passa a se apresentar sentado em uma mesa com um copo de whisky em
uma mão e o cigarro noutra, contando histórias e evocando os orixás quase como um “pai-
de-santo branco”. Na vida, de ateu materialista, passando a acreditar piamente nos
mistérios dos orixás, deixa de lado todas as formalidades, abandona de vez a imagem de
homem sério, compra um jipe, torna-se um hippie, deixa os cabelos crescerem, passa a
usar batas e camisas de mangas arregaçadas e abertas até o peito – fazendo uso de apenas
determinadas cores, de acordo com seu orixá –, sandálias feitas de pneu, e seu colar de
contas – colar sacralizado cujas contas são da cor insigna de seu orixá. Um verdadeiro
filho de Oxalá. Extremo oposto daquele Vinicius católico e com ideais integralistas com
a qual nos deparamos no primeiro capítulo. O poeta, que era mais velho aos 24 anos de
idade – velho de comportamento, por todas as rigorosidades que foi abandonando ao
longo do tempo –, se torna jovem. Embora esse tipo de mudança tão radical não seja fácil
para ninguém, independentemente de sua fama ou talento, Vinicius se permitiu mudar
mesmo tendo que enfrentar tudo o que essa mudança implicava: solidão, rejeição, falta
de respeito e até mesmo em uma insegurança pessoal como artista, afinal seu
reconhecimento e vasto conhecimento acerca da poesia tinha para ele grande valor. Foi
muito esculhambado pela crítica, e volta e meia voltava a ideia do “poetinha” não como
uma forma carinhosa como quando começou entre seus amigos – por ter um forte apreço
pelo diminutivo –, mas o colocando como um poeta menor, como se sua obra tivesse
decaído. O grande poeta João Cabral de Melo Neto certa vez afirmou em entrevista a José
Castello que Vinicius teria sido o maior poeta da língua portuguesa de todos os tempos,
não tivesse tido essa mania de se envolver com a música popular, como se ele tivesse se
perdido. De certa forma, para Castello, isso era verdade – e por um lado bom – pois
Vinicius era um homem que se perdia na vida, que se permitia se perder. Em sua vida ele
foi múltiplo, gostava de dizer a piada “eu sou muitos, eu não sou um só. Se eu fosse um

60
só me chamaria ‘Vinicio de Moral’ e não Vinicius de Moraes”. Para Sylvia Cyntrão
(2012, p. 6), “lido a partir do projeto poético brasileiro, e em linha com a nova ordem
mundial que se delineia a partir da segunda metade do séc. XX”, Vinicius, como
cancionista, ocupa “o lugar da descanonização, da desconstrução, da fragmentação, da
performance, bem como do seu repensar em bases inclusivas, não dicotômicas”. Certa
vez, em estrevista a Clarice Lispector, quando pergutado sobre sua vida diplomática,
Vinicius faz a seguinte confissão:

Acontece que detesto tudo que oprime o homem, inclusive a gravata.


Ora é território que o diplomata é um homem que usava gravata. Dentro
da diplomacia fiz bons amigos até hoje. Depois houve outro fato: as
raízes e o sangue falaram mais alto. Acho muito difícil um
homem que não volta ao seu quintal para chegar ou pelo menos
aproximar-se do conhecimento de si mesmo. (online43)

Num segundo momento, as canções de Vinicius e Toquinho passam a apresentar


também um ethos contemplativo que nos dá o tom da Bahia. Em São demais os perigos
dessa vida, álbum lançado em 1972, apenas duas canções privilegiam o universo afro-
religioso, Tatamirô e Canto de Oxalufã, porém a dupla apresenta uma elaboração mais
refinada na disposição das faixas que remetem ao candomblé. A música Tatamirô, por
exemplo, é uma espécie de homenagem à Mãe Menininha do Gatois e uma profissão de
fé ao seu orixá, Oxalá.

Apanha folha por folha, Tatamirô/ Apanha maracanã, Tatamirô/ Eu sou


filha de Oxalá, Tatamirô / Menininha me apanhou, Tatamirô!/ Xangô
me leva, Oxalá me traz/ Xangô me dá guerra, Oxalá me dá paz/ Apanha
folha por folha, Tatamirô/ Apanha maracanã Tatamirô/ Eu sou filho de
Ossain, Tatamirô/ Menininha me adotou, Tatamirô!/ Oxalá de frente,
Xangô de trás/ Xangô me dá guerra, Oxalá me dá paz/ Apanha folha
por folha, Tatamirô/ Apanha maracanã, Tatamirô/ Eu sou filho de
Ogun, Tatamirô/ Menininha me ganhou, Tatamirô!/ Apanha folha por
folha, Tatamirô/ Apanha maracanã, Tatamirô/ Eu sou filha de Inhansã,
Tatamirô/ Menininha me batizou, Tatamirô!/ Apanha folha por folha,
Tatamirô/ Apanha maracanã, Tatamirô/ Ela é a Mãe Menininha do
Gantois / Que Oxum abençoou, Tatamirô!/ Oxalá me vem, todo mal me
vai/ Xangô é meu Rei, Oxalá é meu pai.

Nessa canção, o narrador, antes de pedir proteção aos orixás, se reporta à Bahia,
local místico que na canção torna-se também uma entidade, o que acentua a ideia de como
o Estado, na década de 1960, foi reconhecido na arte por seu exotismo e por sua cultura
singular que ainda preservava valores já perdidos em outras regiões do país. Então,

43
https://www.portalraizes.com/clarice-lispector-entrevista-vinicius-de-moraes-2/ (acesso em: 13/06/18)

61
embora essa canção não apresente nenhum elemento relativo à ética religiosa, ela vem a
ser uma variação da baianidade de Vinicius de Moraes.
Se a À benção, Bahia apresenta um ethos contemplativo e Maria vai com as
outras, o universo regional baiano e sua sustentação religiosa, em Tatamirô e em outras
canções presentes nos próximos discos de Toquinho e Vinicius o que está em jogo é
justamente a valorização da mitologia que cerca o candomblé e o cotidiano dos terreiros.
Como já mencionado anteriormente, na década de 1970 surgiu em meio à canção popular
uma espécie de pedagogia das religiões. Thiago de Oliveira Vieira (2016) explica que

dentro da construção da experiência viniciana sobre a Bahia essa


pedagogia das religiões já existia e era um importante recurso em sua
obra, pois não exibia mera devoção, tampouco apenas elementos
festivos, existia um interesse formativo a respeito dos ritos e da ética
religiosa. Isso não é uma novidade se olharmos linearmente a trajetória
de nosso compositor, pois reside em sua história a parceria com Baden
Powell e uma grande preocupação relativa a este tema cortando a obra
principal dos dois artistas – Os Afro-sambas – mas é diferente ao lado
de Toquinho, posto que é um outro momento, com novas demandas e
novas características sonoras. Deixemos claro: a pedagogia das
religiões notada por Wagner Gonçalves não leva em conta apenas um
artista, o que nota o sociólogo é a presença do tema atravessando a
época e se fazendo presente nas canções, informando sobre ou
desmistificando o candomblé e a umbanda. Chamamos a atenção para
o fato de que Vinícius emprega em suas canções também um tipo de
pedagogia ao lançar mão de uma perspectiva que não apenas menciona,
mas que se interessa em revelar o que há por detrás dos pontos, da
devoção aos Orixás e da correspondência entre a personalidade do
sujeito crente na ética afro-religiosa e a entidade que o representa. Fator
contributivo na conformação da experiência da bahianidade do
compositor. (VIEIRA, 2016, p. 104)

Se na primeira fase de Vinicius, ele, ainda muito apegado aos valores impostos
pelo catolicismo e com uma grande preocupação em salvar sua alma, o corpo era o lugar
do pecado devendo por isso ser supliciado, nessa última fase, com o poeta iniciado ao
candomblé, o corpo cósmico dá lugar à vida, ao prazer. Não há mais uma separação, mas
sim uma união cósmica com a terra. Corpo, mente e espírito não estão mais separados.
Ou seja, seu interesse em desvelar a cultura afro-brasileira e sua fé adquirida no
candomblé não refletiu apenas em suas composições, mas também, e muito, e
principalmente, em sua corporalidade. O ponto alto de sua incorporação se deu quando
escolheu deixar a vida urbana do Rio de Janeiro para vivenciar o que há de mais exótico
– para ele – e extravagante da Bahia.
A partir de 1974, Vinicius passa por um processo de autocrítica que o leva a
abandonar a imagem despojada, espiritualizada e religiosa que ele construiu desde os anos
62
de 1960. Muitos se perguntam se sua adesão a este modo de vida peculiar foi de fato
natural ou se o poeta teria apenas seguido por um caminho aberto pela intelectualidade,
visando assumir uma indentidade um tanto contenstarória como reflexo da contracultura
no Brasil.
Pois bem, minha admiração e respeito por Vinicius de Moraes, por sua obra, sua
trajetória, me obrigam a reconhecer que não sou capaz de operar afirmações categóricas
a respeito de sua vida. No entanto, acredito que seja clara a ideia de que a apreensão da
cultura afro-brasileira na vida e obra do poeta por meio da incorporação das tradições, da
musicalidade e corporeidade baiana, tenha sido verdadeira em Vinicius, mesmo que tenha
passado por transformações ou que seu conteúdo tenha sido deixado de lado a partir de
determinado momento.

A Bahia continua a existir como recorte imaginado, como fração de um


Brasil a ser descoberto, a fé ora surge como devoção e/ou
contemplação, ora como força transformadora, em suma é a
interpretação de Vinicius para a brasilidade da década de 1960.
(VIEIRA, 2016, p. 112)

Não à toa, Ferreira Gullar, no filme Vinicius (2005) afirma que o poeta pouco a
pouco vai se convertendo em Vinicius de Moraes, vai se tornando brasileiro, ao buscar,
cada vez mais, incorporar a corporalidade afro-brasileira, raíz de nossa cultura.

63
Acima, com o jovem parceiro, Toquinho,.na Bahia.
Abaixo, em show no Canecão, em 1974. Na segunda foto, ao lado de Miúcha no mesmo
show.
Fonte: http://www.viniciusdemoraes.com.br

64
Acima, em apresentação com Toquinho, seu último parceiro, no final da década de 1970.
Abaixo, ao lado de Tom Jobim, Miúcha e Toquinho, durante a longa turnê que fizeram
juntos durante a década de 1970.

Fonte: http://www.viniciusdemoraes.com.br

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CONCLUSÃO

Cada ser humano tem sua visão de mundo que, consequentemente, reflete em seu
corpo e em seu modo de ser(estar)-no-mundo, mas nem todos se permitem viver aquilo
que pensam. No caso de Vinicius de Moraes, sua muldividência não só se transubstancia
em arte, como extrapola todos os limites sendo fortemente e visivelmente exteriorizada.
Não por acaso, em Pátria Minha (1949) Vinicius diz ser “elemento de ligação entre a
ação e o pensamento”. Num momento em que a pedagogia das religiões estava presente
na música popular brasileira, a obra de Vinícius tinha um grande diferencial: ela não fazia
apenas referência a elementos do candomblé baiano, para além disso, Vinícius revela o
que há de mais profundo e verdadeiro por detrás da cultura e principalmente da religião
afro-brasileira, e isso se deve ao fato de ele ter vivido no contexto social dessa cultura.
Taddei e Gamboggi (2016) ao discorrerem sobre o corpo do etnógrafo, descrevem a
etnografia como “uma experiência fundada na ideia de que o pesquisador deve apreender
os modos de vida estudado”, e falam da crítica sobre muitos antropólogos que, embora se
interessem pela vida do interlocutor, não são capazes de se conectar a ela e com isso
acabam falando de sua própria cultura. Talvez, por não ser antropólogo e não se render
às exigências acadêmicas, Vinicius tenha aproveitado melhor essa “experiência
etnográfica” por ele vivida, experiência que veio a ser a finalização de seu rito de
passagem.
Em Orfeu da Conceição, ao descrever o negro e a favela, o olhar de Vinicius ainda
é externo ao cotidiano ali representado. N’Os afro-sambas, na década seguinte, Vinicius
ainda não havia incorporado a cultura afro-brasileira, mas já demonstrava um cuidado em
se aprofundar, mesmo que teoricamente, dessa cultura de modo a representa-la com maior
verdade. Quando, na década de 1970, Vinícius incorpora de vez a cultura afro-brasileira
muito bem inserida na cultura baiana, a real apreensão dessa cultura se dá, e a isso as
ciências sociais dá o nome de virada ontológica: a ideia de conhecimento deixa de ser
uma questão epistemológica dando lugar às experiências como forma de se conhecer a
vida, como explica Gilmar Rocha (2017).
Tônia Carrero, no filme Vinícius (2005) começa seu primeiro depoimento sobre o
poeta descrevendo-o como “um camarada que viveu de paixões”, e complementa
afirmando que “quando uma paixão tomava conta de Vinicius ele era inigualável”. Pode
parecer um tanto estranho falar de paixão no contexto deste trabalho, mas falar de
Vinicius de Moraes sem levar isto em conta é impossível. Afinal, Vinicius de Moraes,

66
escritor, compositor, poeta e diplomata, foi, antes de tudo, um apaixonado. Ele era um
homem inquieto, queria viver tudo com toda sua intensidade, por isso mergulhava de
cabeça em tudo pela qual se apaixonava – mulheres, parceiros, lugares –, e com a cultura
afro-brasileira não foi diferente. Dele disse Drummond que “Vinicius é o único poeta
brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão, quer dizer, da poesia em estado natural.
Foi o único de nós que teve vida de poeta. Eu queria ter sido Vinicius de Moraes”
(MORAES, 1967, Prefácio). Venho a concordar com Comte-Sponville (2011) que nos
lembra que Eros para os gregos era muito mais que uma pulsão de vida. Eros, na mitologia
grega, era o deus da paixão amorosa, mas uma paixão não é apenas um impulso, mas algo
forte o suficiente para nos fazer conhecer (ou reconhecer) nossa própria essência.
Em uma definição de Leibniz, as paixões “não são contentamentos ou desprazeres
nem opiniões, mas tendências, ou antes, modificação da tendência, que vêm da opinião
ou do sentimento, e que são acompanhadas de prazer ou desprazer” (LEIBNIZ apud
LEBRUN, p. 17). Gérard Lebrun, em O conceito da paixão (1987)44 lembra que o
significado de paixão traz o sentido epistemológico de passividade (paschein, pathos).
Descartes em Tratado das Paixões (1649) diz que os filósofos chamam de paixão tudo
que se faz ou acontece de novo, relativamente ao sujeito a quem o novo acontece, e de
ação àquele (ou àquilo) que faz com que aconteça. Numa definição aristotélica, agir e
padecer são conceitos inseparáveis, mas cada um designa uma potência bem distinta.

Padecer é inferior a agir por dois motivos. Em primeiro lugar, é próprio


do agente encerrar em si mesmo um poder de mover ou mudar, do qual
a ação é a atualização; o ajuste está naquilo que faz ocorrer uma forma.
Diz-se paciente, ao contrário, àquele que tem a causa de sua
modificação em outra coisa que não ele mesmo. A potência que
caracteriza o paciente não é um poder-operar, mas um poder-tornar-se,
isto é, a suscetibilidade que fará com que nele ocorra uma nova forma.
A potência passiva, está então em receber a forma. Em termos
aristotélicos, deve ser lançada à conta da matéria. Em segundo lugar,
padecer consiste essencialmente em ser movido – ao passo que o agente,
na medida em que sua atividade própria está em comunicar uma forma,
não é essencialmente mutável. Ocorre, decerto, que ele deve mover-se
para agir sobre o paciente, mas não enquanto agente. É porque também
ele é um ser que contém matéria. O paciente como tal é que é, por
natureza, um ser mutável, caracterizado pelo movimento. (LEBRUN,
ANO, p. 17-18)

44
In: NOVAES, Adauto. Os sentidos da paixão. São Paulo: FUNARTE/ Companhia das Letras, 1987, p. 17-
33.

67
Vinicius não se converteu ao candomblé por uma questão de fé, mas de paixão.
Em entrevista dada à Revista Veja em maio de 1979, ele é indagado sobre ser ou não um
homem religioso, e em resposta, afirma:

Tenho a impressão de que, no fundo, sou. Mas não acredito naquilo, e


tampouco acho que deva acreditar; é uma religião deles, dos negros, e
eu sou um homem branco, com uma cultura muito diferente. Agora, a
beleza dos ritos, a Mãe Menininha... minha relação é mais com a
Menininha do que com o candomblé, é algo mais pessoal do que
místico...

Esse mergulho nas raízes negras, como ele mesmo certa vez afirmou, era “a busca
pela própria alma”. Nesse sentido proposto por Lebrun, o fato de um indivíduo buscar
por uma transformação (ou por um encontro com sua verdadeira essência) demonstra que
ele não possui todas as qualidades de uma vez, e que o encontro dessas qualidades (ou
seu aperfeiçoamento) depende de um agente exterior. Para Lebrun, portanto, não existe
paixão onde não há mobilidade ou imperfeição ontológica.
Jerome Bruner (1986) explica que

a mudança cultural, a continuidade e transmissão, ocorrem


simultaneamente nas experiências [dadas pela incorporação] e nas
expressões da vida social. São todos processos interpretativos e são
todas experiências nas quais o sujeito se descobre a si próprio.
(ALMEIDA, 2004, p. 18)

E de fato Vinicius se descobriu. Mesmo no final de sua vida, quando deixa de lado
a afro-religiosidade buscada na última década, a baianidade, a paixão e o encantamento
pela cultura afro-brasileira permanecem e volta e meia são evocadas.
Vinicius, ao incorporar o elemento negro na busca por desvelar a cultura afro-
brasileira, se livra de todos os grilhões da tradição que carregava, de uma moral cristã que
lhe foi imposta desde cedo. Ao ver de perto o negro brasileiro, “um grego ainda
despojado de cultura e do culto apolíneo à beleza, porém marcado pelo sentimento
dionisíaco da vida”, Vinicius troca sua concepção estética fundamentalmente apolínea e
europeia por uma alma negra, incorpora a cultura afro-brasileira e ao reconhecer o
elemento negro como algo dionisíaco, torna-se então “o branco mais preto do Brasil”.

68
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LOBO, Edu. A música de Edu Lobo por Edu Lobo. Elenco, 1965. 1 LP
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MESTRE BIMBA; ALAKÊTU, Olga de. Sambas de roda e candomblés da Bahia. JS
Discos, 1969. 1 LP
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70
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BOSSA NOVA – VINICIUS DE MORAES, ANTONIO CARLOS JOBIM, BADEN
POWELL, TOQUINHO, MIÚCHA (OLYMPIA, PARIS). Produção: Franco Fontana.
Paris: Franco Fontana, 1978. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Gjz_PznEHeA

COISA MAIS LINDA – HISTÓRIAS E CASOS DA BOSSA NOVA. Direção: Paulo


Thiago. Produção: Glaucia Camargo. Rio de Janeiro: Vitória Produções
Cinematográficas, 2005.
GLOBO NEWS ESPECIAL – 100 ANOS DE VINICIUS DE MORAES. 2013.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=x4jicMvFC98&t=139s>
NÓS SOMOS UM POEMA. Direção: Beth Formaggini e Sergio Sbragia. Produção:
LumeArte. Brasil: LumeArte, 2008. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=qLYZi1Giw5Y&t=3s
ORFEU NEGRO. Direção: Marcel Camus. Produção: Sasha Gordine. Brasil-França-
Itália: Dispat Films; Gemma; Cinematográfica; Tupan Filmes, 1959.
POESIA, MÚSICA, PAIXÃO: VINICIUS DE MORAES (CAMINHOS DA
REPORTAGEM). Direção: Isabelle Gomes. Produção: Carolina Pessôa e Luciana Góes.
Rio de Janeiro: TVBrasil, 2013. Disponível em:
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SARAVAH. Direção: Pierre Barouh. Brasil: Frémeaux & Associés Televisions, 1972.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZXJEMg5vT40

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VINICIUS. Direção: Miguel Faria Jr. Produção: Miguel Faria Jr; Susana de Moraes. Rio
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VINICIUS, POESIA I. Programa Ensaio. São Paulo: TV Cultura, 1973. Disponível em:
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