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PUC-SP
SÃO PAULO
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SÃO PAULO
2009
Banca Examinadora
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As árvores velhas quase todas foram preparadas
para exílio das cigarras.
Salustiano, um índio guató, me ensinou isso.
E me ensinou mais: Que as cigarras do exílio
são os únicos seres que sabem de cor quando a
noite está coberta de abandono.
Acho que a gente deveria dar mais espaço para
esse tipo de saber.
O saber que tem força de fontes.
Manoel de Barros
AGRADEÇO...
À minha família – legitimadora deste dizer, bastidores – cabem, nesse núcleo familiar:
- meus primos que sonharam comigo esta conquista e ajudaram a dar a ela seu devido valor.
- aos meus tios, em especial a dois deles: a tia Zezinha - por me conduzir a paratopias
culinárias, durante os intervalos de estudo no sítio; ao tio Renato por transmitir muita
motivação com o orgulho que demonstra sentir pelo sobrinho e o diálogo lítero-artístico e
bem-humorado que sempre soube estabelecer.
- minha vó Natália por me fazer lembrar das minhas origens com os causos de seu tempo,
dando mais sentido ainda a este trabalho.
- meus irmãos de sangue e de sonhos: David e Priscila. Eles tiveram paciência de ouvir e
escutar muito do que é este trabalho, mesmo, algumas vezes, escutando por um ouvindo e
soltando pelo outro. Ele, por ser meu orientador para assuntos desta vida, amigo ouvinte
dos meus anseios e frustrações, fonte de motivação para seguir na realização de sonhos,
parâmetro para equilíbrio. Ela, nossa futura economista, orgulho e prova maior de que
apropriar-se do conhecimento é a possibilidade de mudar os rumos da nossa história.
- meu pai, Silvino, Sirvino, Vino... junto a minha mãe, por ter sabido me educar nos
princípios caipiras. É co-autor de muita coisa aqui, por seu saber que vai além de uma
dissertação, pelos diálogos estabelecidos com músicas caipiras, causos e caipiragens afins
que aparecem no rádio e na TV e, principalmente, por suas experiências e conversas pelas
veredas de nosso sertão.
- minha doce mãe, Maria José, a Dona Mazé, por me ensinar a ler, transcendendo aquela
cartilha que foi meu primeiro livro, antes de entrar para a escola. Seus gestos deram
alicerce necessário à construção de tudo até aqui, desde o cafezinho carinhosamente
preparado nas madrugadas de ida a São Paulo, à escuta atenta dos sonhos e dos projetos.
Minha gratidão não cabe aqui e nem caberá em todas as linhas deste trabalho, bem como de
trabalhos vindouros.
Ao Jarbas, cuja vivência, amizade e cumplicidade fizeram perder todos os pronomes de
tratamento e títulos que, teoricamente, acompanhariam o nome de meu orientador; mas,
para não quebrar de vez o protocolo, escrevo aqui: ao Professor Doutor Jarbas Vargas
Nascimento. Recepção amiga na PUC-SP. Sabiamente soube me orientar, fazendo-me
perceber, desde a especialização, temas que dialogassem com o sujeito que me constituí e
tenho me constituído. Serenidade que deixa os impasses da vida acadêmica fáceis de serem
transpostos. Companheiro de viagens, de Sul a Nordeste, que marcaram de forma especial
os anos de estudo. Conselheiro amigo, semeador de sonhos, inspiração.
Aos demais professores do programa que me fizeram transcender o olhar, dar relevância e
revestir de significado objetos de estudo: Prof. Dr. Dino Preti, Profª Drª. Jeni Turazza,
Profª. Drª. Dieli Vessaro Palma, Profª. Drª. Vanda Elias e Profª. Drª. Leonor Lopes
Fávero.
À Profª. Drª. Cecília Perez Souza-e-Silva e ao Prof. Dr. Inácio Rodrigues de Oliveira por
terem aceitado fazer parte da banca, durante o exame de qualificação, convertendo aquele
espaço-tempo em oportunidade de significativo aprendizado. Ela, por suas contribuições
teóricas e analíticas. Ele, por seu envolvimento com o gênero causo. Agradeço novamente
por continuarem na banca da defesa.
À minha melhor amiga dos dias de PUC-SP e agora da vida inteira, Edinéia. Chocolate
meio amargo: com sua doçura me cativou e me fez ver um pouco do lado amargo que a
vida tem. Ainda bem que o doce predomina e supera os dissabores. Obrigado pelo
companheirismo e cumplicidade; doçura predominante que dominou os meus melhores dias
em São Paulo.
A outros personagens, colegas e amigos da PUC-SP: a Maria Rita pelos constantes
diálogos, inspirações e caronas até a Dr. Arnaldo; a Cristiane, conversa caipira, moda de
viola e caronas até São Roque; meninas e menino da Ana Rosa: Marcinha, Maísa,
Patrícia, Losana e Luiz, parceiros de ansiedades; o Adriano Mesquita que também fazia
parte do grupo anteriormente mencionado e parceiro na abertura desta estrada [o mestrado]
que trilhamos; a Heidy, pela bibliografia via sedex.
Aos parceiros da EMEF Professor José Marcello, ex-alunos, atuais alunos, funcionários,
professores e, em especial: ao professor Rogério por compartilhar do mesmo sonho de se
tornar mestre, só que em Educação Matemática, e por poder realizá-lo juntamente comigo;
a Elizete, amiga incentivadora desde a graduação; a Enedi, Ziquinha, pelas pedaladas e
caminhas, movidas a muita conversa e apoio acadêmico; a Solange, minha professora de
Educação Moral e História, agora colega-amiga, sempre conselheira e presente na partilha
dos anseios.
Aos professores, alunos e funcionários da EE Jd. Daniel David Haddad pela compreensão e
credibilidade a mim confiada.
À Secretaria de Educação do Estado de São Paulo por garantir meu direito à formação
continuada.
A DEUS que, de graça, colocou toda essa gente no meu caminho e criou condições
favoráveis à produção deste trabalho.
RESUMO
Palavras-chave:
1.Causo 2. Análise do Discurso 3. Ethos Discursivo 4. Cornélio Pires
ABSTRACT
This dissertation examines the ethos construction of the “caipira” through the discursive
genre tale-story. The corpus of this work is composed by three tales-stories from the book
“As estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho, o queima-campo” (1924), of Cornélio
Pires, writer and story-teller from Tietê-SP, who lived in the beginning of twenty century.
Our general objective was to examine the scenes of the enunciation and the construction of
ethos of the “caipira”. Our specifics objectives were: to verify the construction of global
and generics scenes, characterizers of a type of discourse and genre, respectively; to
describe scenographies constructed by the stories-tales; and, through this analytic
movement, to observe how is created an image of the “caipira”, in those scenographies. The
“caipira’s” images were historically reconstructed by different medium means. These
constants reconstructions brought, in its discourses, different representations of the rural
man, since the lazy and alienated man about the economic world, until the bucolic man who
lives in peace with the nature and far way the urbans values. Then, it was interesting to us,
to notice how the caipira’s image was created in that discursive genre. The theorist base of
our analysis was upon D. Maingueneau’s (2005, 2006c, 2008) perspective. We chose to
work with his Global Semantic plans: scenes of the enunciation, ethos and language code.
We apprehended in the tale-story as belongs to the literary camp, trough the construction of
a global scene that legitimates its; by the generic scene, we understood the story-tale as a
discoursive genre; and, according to the scenographics analyses of the three tales-stories,
we realized the creation of a relaxing and interaction moment among the planters, in the
cold night, in the farm, time to rest after a hard day and enter in other places created by the
utterance. After that, we have studied the utterance of the story-tales, we proceeded the
study of the caipira’s ethos construction kind, in the three texts chosen, that they have as
theme: public health, technology and scientific progress and politic. We understood that the
construction of the ethos is made by the opposition between the man of the city and the
discourses that present the “caipira” like an antihero. The image constructed presents a
countryman characterized by: the resistant and the immunity in the presence of the
adversity resultant of the abandonanment of the politics public health; by a particular
knowledge that is not less important than the city habitant; and a politic posture. The faces
constructed are also confirmed by mechanism of the “caipira” variant spelling, configuring
an own language code. We considered, finally, that the tales-stories draw a countryman
ethos that exchanges the antihero for the hero, not accepting, by the humor, a negative and
polemic stereotype, since that time until nowadays.
Key-words:
1.Tales-stories 2. Discourse Analysis 3. Discursive ethos 4.Cornélio Pires
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................01
1.0 Introdução.......................................................................................................................05
2.0 Introdução.......................................................................................................................56
3.0 Introdução.......................................................................................................................82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................131
ANEXOS.............................................................................................................................135
INTRODUÇÃO
Foram quase quatro anos de idas e vindas do interior de São Paulo para a capital,
para estudos de pós-graduação em níveis lato e stricto sensu, na PUC-SP. Nessas viagens,
as diferenças se escancaravam a cada interlocução travada; a viagem de quase duas horas
era espaço para autoconhecimento na diluição paulistana. O impacto da diferença nos fez
optar pelo estudo de uma literatura pouco conhecida, embora com temática voltada a um
modo familiar de vida, às origens paulistas, em suma, ao universo caipira.
1
anti-herói; enquanto que Pires nos pinta um jeca heróico, bom selvagem, à moda do índio
para os românticos.
Outra justificativa se dá pelo fato de que há alguma tendência, no âmbito das Letras,
em valorizar manifestações literárias populares orais ou escritas, como a poesia de cordel,
por exemplo; no entanto, muito pouco se sabe e se tem pesquisado sobre as práticas
literárias paulistas, em sua vertente popular. Talvez, ainda que também não seja esse nosso
objeto de discussão, o esquecimento da literatura popular paulista tenha ocorrido em razão
de São Paulo ter sido o ícone modernista dos anos 20 e, com isso, o foco voltou-se mais ao
cânone literário, mesmo este tendo vertente popular. É, pois, como tentativa de rememorar
esse patrimônio imaterial paulista que este trabalho surge.
Assim, pelo estudo das cenas de enunciação, pudemos delimitar a forma como o
autor se legitima num campo discursivo, por meio da construção da cena englobante para,
por conseguinte, construir, com a cena genérica, o gênero de discurso causo. Optamos pelo
uso da terminologia causo em vez de caso, uma vez que o primeiro parece sugerir maior
proximidade à cultura caipira; já que o termo caso é de uso mais recorrente em norma culta.
O próprio autor da amostra dessa pesquisa oscila entre o termo ‘caso’, nas falas de narrador
e ‘causo’ quando o caipira é o locutor. Segundo o dicionário Houaiss (2005), a etimologia
de ‘causo’ provém do hibridismo de ‘caso’ e ‘causa’ e é de uso freqüente no português
popular brasileiro. Genericamente, podemos dizer que causos são narrativas comuns à
esfera discursiva caipira, tendo temáticas variadas, mas sempre caracterizadas pela variante
regional, o que aqui temos chamado de código linguageiro.
2
construção do ethos discursivo, entendendo-o como uma imagem construída pelo e no
discurso; logo, justificamos por não tê-lo tomado separadamente como objeto autônomo de
análise, mas sim, como parte das cenas de enunciação que dita regras sobre o como dizer e
sobre o conjunto de fatores do ritual enunciativo. O estudo do ethos discursivo compreende
a apreensão de um caráter, de uma corporalidade e de um tom, que serão objeto de nossa
investigação.
Sobre o autor dos textos, temos a dizer que Cornélio Pires era autodidata e exerceu
várias profissões, a maioria delas ligada à comunicação. Dentre suas atividades, na década
de 20 e metade da década de 30, realizou alguns shows de humor, abordando a temática
caipira. Escreveu cerca de vinte obras entre causos, contos, poemas e, no fim de sua
carreira, algumas obras de cunho espírita. Em seu currículo, não se pode deixar de
mencionar o fato de, mesmo tendo poucos recursos financeiros, haver sido mecenas de
algumas duplas de moda de viola, inaugurando a produção fonográfica desse gênero
musical. Acrescente-se à sua produção, freqüentes colaborações em meios periódicos de
humor comuns à época, como a revista O Pirralho e Almanaque d’O Sacy.
3
Portanto, queremos responder à seguinte questão de pesquisa: que imagem do
caipira é construída a partir dos causos, nas primeiras décadas do século XX? Para isso,
procedemos à análise dos três causos da obra. Os textos têm como temática as mentiras de
Joaquim Bentinho e, nessa inventiva, o enunciador deixa transparecer um ethos do homem
do campo, construído a partir da negação/reafirmação de estereótipos, bem como de uma
prática intersemiótica, compreendendo imagens e descrição indumentária.
No Capítulo II, Literatura Paulista, Cornélio Pires e seus causos, fizemos uma
contextualização que acreditamos ser necessária, dado o pouco conhecimento sobre autor e
sua obra. Assim, o leitor pode localizar-se no campo discursivo a que temos chamado de
literatura paulista.
Por fim, no Capítulo III, Cenas de Enunciação e Ethos no Gênero Causo fazemos a
análise propriamente dita, em que buscamos entender os meios pelos quais o enunciador
lança mão de recursos lingüístico-discursivos para construção das cenas de enunciação e,
conseqüentemente, do ethos que faz parte da cenografia.
4
CAPÍTULO I
A ANÁLISE DO DISCURSO
1.0 Introdução
Para melhor entendermos como se deu a construção dos conceitos que nortearão
nosso fazer acadêmico, fez-se necessário revisitar essas facetas com o objetivo de
5
sistematizar como se configurou a disciplina ao longo do tempo. Além disso, tal revistar
fazemos com certo tom didático com vistas a registrar um saber construído ao longo de
nossa formação.
Grosso modo, podemos dizer que o itinerário da AD passou por, pelo menos, três
momentos marcados por rupturas, nada estanques, no seio da própria disciplina. Fato
natural às ciências, as quais buscam novos paradigmas, quando os antigos não lhes dão as
respostas buscadas. Pela observação da totalidade da AD, podemos perceber movimentos
de continuidade versus descontinuidade históricas, ao longo de sua trajetória.
Tendo, pois, a pesquisa, que caracteriza a ciência normal, como base de realizações
científicas passadas, paradigma nada mais é do que essas realizações partilhadas e
consolidadas entre uma comunidade. Para ilustrar a conceituação, o filósofo da ciência cita
a Física aristotélica, como exemplo de um paradigma. Esses paradigmas são legitimados
pelos manuais científicos e apreendê-los constitui tarefa de todo iniciante numa ciência
normal. Portanto, podemos dizer que o Curso de Lingüística Geral, de Saussure [1916]
(2002), é um manual que legitima um paradigma científico; no caso, o estruturalismo
lingüístico.
6
Do mesmo modo que os paradigmas são construídos pelo fazer científico, são,
também, dinamitados por ele. Isso porque, segundo Kuhn (op. cit.: 93) algumas crenças ou
procedimentos anteriormente aceitos foram descartados e, simultaneamente substituídos
por outros. Logo, em meio às crises de uma teoria, novas teorias emergem. Assim, a
resposta a essa crise leva a uma transição de paradigmas e a esse movimento é que Khun
nomeia revolução científica.
7
de verdade tomam seu lugar, tanto teórica
quanto politicamente.
8
diálogo entre a Lingüística Estrutural, o Marxismo e a Psicanálise que surge o constructo
teórico-metodológico da AAD-69, com vistas à compreensão (esta definida em oposição à
inteligibilidade e interpretação) sobre como um objeto simbólico produz sentidos para e por
sujeitos.
9
Para dar conta desse impasse, Pêcheux propõe uma análise em dois níveis: um
lingüístico e outro discursivo. Para isso, propunha o uso da gramática gerativa, pela análise
transfrástica, o que, de certa forma, sugeria um movimento de continuidade histórica dos
padrões estruturalistas, embora caminhasse, antiteticamente, num movimento de
descontinuidade.
10
discurso (o comunista, para tomá-lo como
exemplo).
Esta fase tem como principal diferencial, nesse período, a agregação de conceitos
advindos da Filosofia de Foucault, sobretudo, o conceito de formação discursiva (daqui
para frente, FD). Pela FD é que se pode dizer que tais palavras somente fazem sentido se
relacionadas às condições sócio-históricas de seu uso. É por esse conceito foucaultiano que
se regula o que deve e o que não deve ser dito em uma situação sócio-histórico-ideológica
dada. Atrelado ao conceito de FD permeia a noção de formação ideológica (daqui para
frente, FI), que é exatamente o espaço sócio-histórico em que o sujeito se encontra. Por isso
é que Brandão (1997:38) diz que são as formações discursivas que, em uma formação
ideológica específica e levando em conta uma relação de classe, determinam “o que pode e
deve ser dito” a partir de uma posição dada, em uma conjuntura dada.
11
pois é constitutivamente “invadida” por
elementos que vêm de outro lugar (isto é, de
outras FD) que se repetem nelas, fornecendo-
lhe suas evidências discursivas fundamentais
(por exemplo, sob a forma de “pré-
construídos” e “discursos transversos”.
12
Uma FD é, portanto, heterogênea a ela
própria: o fechamento de uma FD é um
fundamentalmente instável, ela não consiste em
um limite traçado de forma definitiva,
separando um exterior e um interior, mas se
inscreve entre diversas FDs como fronteira que
se desloca em função dos embates da luta
ideológica.
Essa assertiva fez com que Ducrot postulasse a diferença entre sujeito falante (o
sujeito empírico ou instituição que “assina” o discurso materializado em forma de texto);
locutor (o sujeito que detém, porta os vários discursos, que são materializados em texto
13
pelo sujeito falante) e enunciador (ao contrário do locutor, o enunciador não se
responsabiliza pelas palavras do enunciado, mas pelo ponto de vista sobre ele; possibilita,
por exemplo, lançar olhar irônico sobre dada situação discursiva).
Como o locutor não é o dono de sua voz, mas o templo de muitas outras vozes,
perpassam por esse conceito as noções de polifonia e de heterogeneidade. A primeira,
conforme já mencionamos, é condição essencial para que se constitua o discurso, já que ele
se faz das muitas vozes (poli/fonia), que circulam no espaço de convivência do sujeito
empírico. A segunda, preconizada por Authier-Revuz, a partir das noções de dialogia e
polifonia, refere-se à materialização dessas outras vozes no discurso. Ela pode ser
classificada sob duas formas: a heterogeneidade constitutiva que torna implícita a voz do
sujeito; e a heterogeneidade mostrada, como sendo aquela que deixa transparecer a voz do
outro, que é parte constitutiva do discurso, são exemplos desse tipo de heterogeneidade as
citações, as referências a outros dizeres.
14
interdiscurso, possibilitando a análise do texto, entendido como a materialização de uma
rede semântica de discursos, do qual a AD se ocuparia da apreensão desse espaço de trocas.
Por outro lado, cabe ressaltar que em trabalhos recentes, Maingueneau (2006c)
começa a repensar o conceito de FD. Para ele, o termo foucaultiano-pechetiano, de dupla
paternidade, não é dotado de muita clareza. Ao referir-se à FD como aquilo que pode e
deve ser dito, articulado sob alguma forma, há a implicação de dois termos caros à AD, o
conceito faz menção ao posicionamento (aquilo que pode e deve ser dito) e ao gênero (o
que é dito é articulado sob uma forma). Maingueneau (op cit.:14-15) reconhece o uso
embaraçoso do termo:
15
inscritos na história. Nesse caso, Maingueneau reconhece certo valor à terminologia FD,
pois permitirá ao analista um recorte de determinada FD para um estudo plurifocal em
relação às demais ou para simples comparação. Como ilustração, remete à sua própria
pesquisa acerca do discurso religioso (Maingueneau: 2007), em que compara dois
posicionamentos num mesmo campo religioso: o discurso do humanismo devoto e o
jansenismo, com intuito não de compará-los, mas de construir uma unidade bifocal.
Desse modo, a esta altura da AD proposta por Maingueneau (op. cit: 19),
Como visto, a AD nesta perspectiva, pretende afastar-se ao máximo daquela que via
as FDs como ilhas justapostas. Antes, quer investigar as aproximações dessas ilhas
movediças, formadoras de fractais que se materializam em textos, em que parte dela remete
a um todo e o todo remete a uma parte. Portanto, o conceito de interdiscurso é ponto fulcral
para sua teoria.
16
planos, tanto na ordem do enunciado, da materialidade lingüística, como da enunciação, das
condições sócio-históricas de produção da prática discursiva. São alguns desses planos: o
vocabulário, a temática, o ethos, as cenas de enunciação, o gênero discursivo, os recursos
coesivos, os modos de encadeamento, entre outros. Centrar-se somente no vocabulário, por
exemplo, sem considerar a globalidade dos discursos, poder-se-ia correr o risco de uma
análise pouco profunda, reducionista.
Para esta pesquisa, optamos por trabalhar com os seguintes planos da Semântica
Global: cenas de enunciação, ethos discursivo e código linguageiro. Isso com vistas a
apreender pelo estudo do gênero (cena genérica) e do ethos, a imagem que se construía do
caipira paulista, no século XX, por Cornélio Pires.
17
1.2 As noções de enunciação, texto, discurso e interdiscurso
É aparente que cada fase da AD apóia-se num conceito-chave para sua respectiva
época, assinalando o movimento de descontinuidade. A primeira fase recorre ao conceito de
máquina discursiva, como estrutura única, geradora dos processos discursivos. Aos poucos,
o segundo momento pluraliza e abre-se para outras estruturas, a partir da incorporação das
formações de Foucault, possibilitando-se, pela análise, o confronto e as aproximações entre
as diferentes FDs justapostas. Já as tendências recentes, aproximam-se ainda mais de um
olhar heterogêneo sobre os fenômenos da linguagem, fazendo uso do termo interdiscurso,
em que as FDs não se apresentam mais como justapostas, mas sim, imbricadas, “invadidas”
entre si. É esta última tendência da AD que elegemos como mais adequada para nossa
reflexão. Por isso, é necessário tornar claros os conceitos dados às produções verbais
variadas, a saber: enunciado, texto, discurso e interdiscurso.
18
pela modalidade escrita da língua, com uma intencionalidade, estruturado especificamente
para o sucesso nas interações verbais específicas. Os textos podem ser produzidos tanto por
um como por vários locutores, até mesmo porque que a heterogeneidade dos textos – marca
constitutiva deles e do discurso - traz consigo novas vozes que são levadas em conta no
processo de sua constituição.
O referido termo é composto pelas três instâncias já citadas, mas que ora trataremos
com maior especificidade: o universo, o campo e o espaço discursivos. O universo
discursivo diz respeito à infinidade de formações discursivas existentes. São muitas as
formações existentes e impossível seria ao pesquisador privilegiá-las todas numa análise, já
que seu número é infinito, compondo um amplo universo discursivo.
19
Há, porém, o campo discursivo que é certo agrupamento de FDs que nos permite
inferir, a partir de textos e do conhecimento do analista, acerca da existência de um
determinado campo discursivo. Como exemplo, podemos citar os discursos jansenista e o
humanismo devoto, freqüentemente retomados por Maingueneau, os quais embora
apresentem concordâncias e/ou discordâncias pertencem a um mesmo campo discursivo: o
religioso. O campo discursivo é um afunilamento de média restrição em relação ao
interdiscurso, uma vez que se restringe a um grupo de FDs que permite certa dispersão de
textos com certa regularidade entre eles, já que pertence a um mesmo campo. Maingueneau
(op. cit.:36) diz que
20
enunciados que decorrem dele (op. cit.: 54). No entanto, é preciso deixar claro que os
Sujeitos não são puros, estáveis quanto à FD que “assujeitam”; eles podem, sim, deslizar
por outras competências discursivas que possam garantir o sucesso na sua interação verbal.
O conceito interacionista de máscaras, proposto por Goffman (2005) pode ser
relacionado com essa variação de competências. O indivíduo pode recorrer a outras
competências discursivas, outras máscaras, de acordo com a imagem que queria passar a
seu destinatário. Daí a necessidade de renomear essa competência como competência
interdiscursiva, já que permite aos Sujeitos recorrer a infinidade de FDs que compõem seu
universo discursivo.
Para sua Semântica Global, são caros conceito como o de intertextualidade que são
as relações intertextuais julgadas possíveis pela competência discursiva, diferentemente do
intertexto que é o conjunto de fragmentos citados pelo sujeito. A intertextualidade pode se
dar pelos empréstimos de textos de outras FDs, dum mesmo espaço discursivo, a que
Maingueneau chama de intertextualidade interna; ou, então, a partir de empréstimos
textuais de FDs que pertencem a outros campos discursivos, denominada intertextualidade
externa. O vocabulário, nessa semântica global, deve ser considerado como um sistema de
restrições do espaço discursivo, uma vez que a restrição do universo lexical é inseparável
da constituição de um território de conivência (op. cit.:85).
21
Como visto, o espaço discursivo é a unidade de análise proposta por Maingueneau.
O texto é apenas a materialização do discurso; seus aspectos formais e histórico-sociais do
texto são explicáveis pelo sistema de restrições que o permite constituir-se como nos é
apresentado. A tarefa do analista é, portanto, a de investigar como esses sistemas de
restrições tornam possível a leitura de determinado enunciado e não de outro, ou seja, pela
globalidade do texto, entender o funcionamento das relações interdiscursivas.
22
1.3 Discurso literário
Assim, numa perspectiva discursiva, o que delimita um texto e nos faz dizer ser ou
não ser literário é o pertencimento a uma instituição literária que, com suas práticas o
legitima. Ao contrário do que possa propor um quadro teórico de orientação mais
estruturalista em que a própria literatura abonaria e reconheceria suas formas de expressão,
mediante a taxionomia de escolas literárias e estilos de época. Por fim, segundo
23
Maingueneau (op.cit.:89) para produzir enunciados reconhecidos como literários, é
preciso apresentar-se como escritor, definir-se com relação às representações e aos
comportamentos associados a essa condição.
24
considerava a história literária, numa perspectiva filológica, isto é, a obra seria a expressão
e a representação de seu tempo; ou se considerava a clausura literária, numa perspectiva
estilística, ou seja, tomada como um universo fechado, traduziria o espírito, a consciência
criadora do autor.
Essas visões foram bem marcadas pela Filologia, pelo Estruturalismo e, embora
tenham se prolongado por muito tempo, não impediu que uma nova abordagem e
concepção do fato literário se instaurassem. Assim, correntes que viam a obra literária sob
um novo olhar, um olhar com empréstimos da Pragmática, passam a concebê-la como um
ato de comunicação no qual o dito e o dizer, o texto e seu contexto são indissociáveis.
A paratopia não pode ser entendida enquanto uma noção sociológica, sob esse
aspecto, nos referiríamos ao inexplorado interior paulista da década do início do século XX,
às favelas do nosso século, aos garimpos... como lugares paratópicos. No entanto, a
paratopia é uma noção discursiva que é embasada por um paradoxo. Isto significa ocupar
um lugar, sem ocupá-lo, de fato; estar num determinado lugar, sem estar realmente lá. Um
texto que exemplifica a noção de paratopia é dado por Maingueneau1 e que está no início
do Evangelho de São João: Cristo (o verbo) estava no mundo, fez o mundo, mas o mundo
não o conhecia; daí o motivo do verbo fazer carne e habitar no meio de nós. Maingueneau
cita protótipos de seres paratópicos como o judeu, que está num país e não pertence a ele. A
noção de paratopia é fundamental ao se tratar de discurso literário, pois se torna perceptível
a posição paradoxal do discurso constituinte e também dos seus produtores.
1
O exemplo foi dado por Dominique Maingueneau no curso de extensão “A Análise do Discurso por
Dominique Maingueneau”, ministrado entre 25 e 29 de agosto de 2008, na Universidade Federal da Bahia.
25
1.4 Gênero do discurso
A noção de gênero torna-se cara ao trabalho não por uma questão de tipologia, de
reconhecimento de estruturas que o caracterizam como gênero causo, mas por uma
necessidade preliminar para entender as relações sociais que implicam na sua constituição.
Para aprofundarmos essa noção sob olhar da AD, pareceu-nos conveniente entender como
esse conceito de originou com Bakhtin.
A discussão sobre gênero do discurso preconizada por Mikhail Bakhtin (2000) tem
reformulado a ciência da linguagem e aberto caminho para uma lingüística do enunciado.
Apesar de ter sua edição em ano não tão distante do Curso de Saussure, sua influência nos
estudos lingüísticos só veio a ocorrer na década de 60, em razão do difícil acesso à
produção científica soviética pelo Ocidente, principalmente por impasses políticos.
26
filosófico, entre outros — são produtos de trabalho em circunstância de comunicação
cultural, utilizando-se da tecnologia da escrita. Assim que os define, observa que os gêneros
primários, ao serem transformados em secundários (como na reprodução de um diálogo
num romance, por exemplo) muito perdem de sua relação com o mundo. Sobre esse
processo, Bakhtin (2000.: 281) diz:
Considera que uma análise eficiente deve tomar como ponto de partida a inter-
relação entre as duas modalidades de gênero e seu processo histórico, uma vez que aí se
encontra a natureza do enunciado. Aliás, a historicidade é a característica constitutiva de
todo enunciado. Além de que, a partir de sua análise, permite-se a apreensão de ideologias e
visões de mundo.
27
também através dos enunciados concretos que
a vida penetra na língua.
Pela citação acima, podemos inferir a sinonímia entre gênero discursivo e prática
social. Os gêneros são, antes tudo, práticas sociais.
Mais adiante, trata da questão do estilo. Defende que a sua apreensão dá-se somente
por meio do estudo dos gêneros. Acrescenta que os estilos individuais são mais visíveis em
gêneros da esfera literária; enquanto que em outros, como documentos oficiais, o próprio
gênero determina o seu estilo geral. Portanto, o estudo do estilo deve preceder o estudo do
gênero, o que a Estilística mostrou não haver feito. O autor vai mais além, salientando que
qualquer que seja novo fenômeno lingüístico, em qualquer que seja seu nível gramatical
(fonético, morfológico, sintático, semântico...) passa ou deveria passar, antes, pela
definição de gênero do discurso.
Ao Bakhtin (op. cit.:320) dizer, repetitivamente, que os gêneros são elo da cadeia
muito complexa de outros enunciados, deixa entrever a noção de dialogia como marca
norteadora de seu pensamento. Dessa forma o dito já-aqui, contém parte do dito antes, isto
é, de outros enunciados concretos utilizados para a interação humana. O dito já-aqui
pressupõe uma resposta do outro, que a fará em seu momento.
28
1.4.2 Maingueneau e o conceito de gênero de discurso
Há de se distinguir gênero e tipo. Tal distinção faz-se necessária, uma vez que
complementa a própria noção de gênero. O estudo da generecidade dos textos, por vertentes
29
cognitivistas, como as de Marcuschi (2005), apontam para uma infinidade de gêneros que
circulam na sociedade e cerca de quase meia dúzia de tipos que perpassam por essa
infinidade. Segundo aquele autor, os gêneros são atravessados por tipos predominantes,
sendo eles: a narração, a descrição, a argumentação, a exposição e a injunção. Os tipos
textuais têm subsidiado muitos trabalhos, sobretudo na Lingüística Textual, e suas relações
com o ensino.
A AD de Mainguenau (op. cit.: 61) propõe uma separação por tipo um pouco mais
variável e flexível. Para ele, os gêneros de discurso são pertencentes a vários tipos, não
apenas quase meia dúzia, pois os tipos de discurso são associados a vastos setores de
atividade social. Como exemplo, cita novamente o talkshow que é um gênero pertencente
ao tipo de discurso “televisivo”, o qual faz parte de um conjunto ainda mais vasto, o tipo de
discurso “midiático”, em que podemos identificar os discursos radiofônico e os da imprensa
escrita. Além da tipologia do discurso orientada pelo setor de atividade social,
Maingueneau propõe a classificação de tipos por: lugar institucional, como a escola, o
hospital, a família, a empresa etc; estatuto de parceiros, como o discurso do idoso, da
criança, da mulher; ou posicionamento de natureza ideológica, como o discurso católico, o
discurso socialista.
30
psicossocial que são parte de processo de atividades socialmente organizadas. O lingüista
norte-americano reforça ainda que os gêneros tipificam muitas coisas além da forma
textual.
Além do mais, o lingüista aponta três metáforas com o intuito de esclarecer como
caracterizar um gênero. Tais metáforas são o contrato, o papel e o jogo, respectivamente
dos seguintes campos o jurídico, o teatral e o lúdico.
31
Mas, contrariamente às regras do jogo, as
regras do discurso nada têm de rígido: elas
possuem zonas de variação, os gênero podem
se transformar. Além disso, o gênero de
discurso raramente é gratuito, ao passo que
um jogo exclui as finalidades práticas, visando
apenas o lazer.
32
Por seu turno, acerca do oral e do escrito, Marcuschi (2003) postula não haver
oposição entre eles, mas sim, uma relação que se funda num continuum entre as
modalidades e não numa dicotomia polarizada. Desse modo, fazendo coro a Maingueneau,
um texto ainda que se materialize pela escrita poderá conter marcas de um texto falado; o
contrário também pode ser verdadeiro.
Essa premissa é proposta por Marcuschi a partir da noção de gêneros textuais e das
atividades de retextualização. Por essas últimas, entende-se que é uma atividade corriqueira
na sociedade, como exemplo da transposição de gêneros da modalidade oral para a escrita,
temos a atividade de um jornalista, ao fazer uma entrevista. Ele transpõe um texto da
modalidade oral para a escrita. Essa atividade não é tão simples e requer conhecimento de
características próprias da fala e da escrita, sendo que, nessa atividade em especial, o
jornalista deverá eliminar as marcas de oralidade na produção de seu texto escrito; todavia,
algumas características próprias à fala permanecerão, considerando-se as condições de
produção do texto. A retextualiação poderá ocorrer, também, de forma inversa a nosso
exemplo, a partir de um texto escrito, poderão surgir novos textos na modalidade falada.
Também é possível a retextualização entre enunciados de mesma modalidade, por exemplo,
a resenha é uma escrita sobre outro texto também escrito. Portanto, os textos devem ser
vistos num continuum em que seu ponto de localização será determinado pelos critérios de
afastamento e proximidade em relação às modalidades escrita e oral.
33
1.5 Cenas de enunciação
Ao usar o discurso, o enunciador sempre encena sua fala, num contexto capaz de
enredar a si e a seu co-enunciador, colocando ambos os interlocutores numa rede de
sentidos. Desse modo, a enunciação cria espaços, cenas, onde as partes interessadas no que
veicula um discurso se negociam num espaço-tempo, por meio de construções textuais
próprias, com propósito e público-alvo também próprios. A essas cenas, Maingueneau
nomeia cena englobante, cena genérica e cenografia.
34
utilizado. Algumas cenas possuem certa estabilidade estrutural como uma carta comercial,
um relatório pericial, uma prescrição médica, uma receita culinária. No entanto, uma cena
genérica pode ser arquitetada com outros propósitos, além daqueles que já lhes são
ontológicos. Tal recurso é muito usado nos gêneros pertencentes a uma cena englobante
publicitária. É comum vermos anúncios sob diferentes estruturas genéricas: receitas,
telefonema, bilhete, e-mail entre muitas outras formas que compõe a diversidade genérica
de uma língua.
Vale ressaltar, também, que a cenografia pode apoiar-se no que Maingueneau (op.
cit. 92) tem chamado de cenas validadas. Para ilustrar esse conceito, o lingüista recorre a
uma propaganda política francesa em que o candidato à presidência, numa carta aos
franceses, refere-se a seus compatriotas para uma espécie de reflexão em comum, como
acontece quando a família se reúne à noite, em volta da mesa. Esse costume da reflexão em
família, à hora do jantar, é consolidado entre os hábitos culturais na França. Desse modo,
Maingueneau vê na fala do candidato o uso de uma situação já consolidada entre os
franceses e a essa estratégia para a composição da cenografia dá o nome de cena validada.
35
legitimante que traça um círculo: o discurso
implica uma certa situação de enunciação, um
ethos e um “código linguageiro”através do
qual se configura um mundo que, em retorno,
os valida por seu próprio desenvolvimento. O
“conteúdo” aparece assim inseparável da
cenografia que o porta.
Pela construção da cenografia, onde nasce a fala, é que se constroem condições para
enunciar como convém (uma cena genérica), considerando os lugares sociais de onde se
fala (uma cena englobante). Para além dos lugares sociais e dos dispositivos lingüísticos do
dizer, é pela cenografia que se torna possível apreender uma imagem do falante e um
código linguageiro apropriado e validado por ela.
36
1.6 Do ethos retórico ao ethos discursivo
Estudar o ethos implica considerar uma figura pessoal por de trás de um discurso.
Sempre que alguém fala, podemos perceber o lugar social de onde esse alguém fala, as
cenas da enunciação em que surge tal dizer; e, segundo a competência discursiva do
interlocutor, haverá ou não adesão ao discurso que é dito. Então, percebemos que apreender
o ethos tem relação, ainda que indireta, com os estudos acerca da manifestação da
subjetividade na linguagem.
A partir dessa controvérsia, a linguagem, em Sócrates, passa a ser terreno fértil para
a reflexão; uma vez que se buscava a chegar à essência dela, transpondo-se o terreno das
37
aparências. Aquele filósofo grego, na busca pela verdade, visava à definição divina das
palavras. Mais tarde, seus discípulos, Platão e Aristóteles, avançaram o pensamento do
mestre a partir da dialética, o que facultava ao homem invocar, pelos movimentos de
análise e síntese, o terreno divino.
Da Retórica antiga advém o conceito de ethos. Para ela, trata-se de uma das provas
que compõem um triângulo comunicativo do tratado aristotélico. Segundo Meyer
(1998:26), Aristóteles apresenta as três provas que constituem, em linhas gerais, a sua
retórica, a saber: ethos, pathos e logos. Nas duas primeiras provas estariam associados,
respectivamente, o orador e auditório, o qual é persuadido via uma linguagem (logos).
Desse modo, estaria completo o triângulo das provas de persuasão fornecidas pelo discurso:
Discurso (logos)
Para tanto, um discurso é apoiado num orador que, ao falar, revela uma imagem sua
ao seu auditório, e este é tocado por emoções e paixões movidas por aquele. Assim, temos a
adesão do auditório ao que se propôs o orador, logo, o discurso foi eficiente.
38
Como o foco do nosso trabalho é questão do ethos discursivo, fiquemos com esse
vértice do triângulo. Eggs (2005:29-56) conta que Aristóteles inovou em sua Retórica,
exatamente por incluir o ethos entre as provas, já que seus antecessores não o incluíam
como uma possibilidade persuasiva. E mais: o ethos foi entendido, por algum tempo, como
a imagem moral apresentada pelo orador2; mas, em outras passagens da Retórica, o termo
ethos não tem mais um sentido moral, mas antes um sentido neutro. Neste sentido, o ethos
vai se revelando no momento em que se fala pelas escolhas que fez o orador. Para que o
sujeito falante se revele positivamente ao seu auditório, Aristóteles (apud Maingueneau:
2008b) ensina que ele poderá se valer de três qualidades: a prudência, isto é, um parecer
ponderado (phronesis); a benevolência, o que implica transmitir uma imagem agradável de
si (eunóia); e a apresentação como um homem simples e sincero, virtuoso (areté).
E diz ainda mais: o que torna o ethos eficaz é o fato de ele se imiscuir numa
enunciação sem ser explicitado.
Como visto, a noção retórica de ethos, assim como a própria Retórica, parece ser um
embrião dos estudos da subjetividade na linguagem. A esse respeito, Meyer (1998:19) diz
que resta à Retórica uma
2
A retórica latina tinha como um de seus objetivos reconhecer o homem de bem que se pronunciava. Para os
romanos, o bem-dizer deveria estar articulado com a justiça. Assim nos ensina Meyer (1998:17-18) e, para
isso, cita Quintiliano: “Aquilo que melhor caracteriza [a retórica] é ter sido definida como a ciência do bem-
dizer, porque isso abrange simultaneamente todas as perfeições do discurso e a própria moralidade do orador,
uma vez que não se pode falar verdadeiramente se não formos homem de bem.”
39
especificidade que a modernidade soube
explorar: a subjectividade. Certamente que os
Gregos não a chamavam assim, mas apesar de
tudo podemos determinar a suam marca e a
sua presença através da contingência de
opiniões, da livre expressão das crenças e
oposições entre os homens, que procuram
sempre afirmar as suas diferenças ou, pelo
contrário, superá-las para libertar um
consenso.
40
de Saussure, feito o corte sincrônico que anulava o estudo diacrônico, tampouco houve
espaço para tratar de aspectos ligados à parole, uma vez que a preocupação, naquele
momento, era a de sistematizar a língua como um fato social, mensurável, para então
fundar a Lingüística como uma ciência positiva. Nascia o estruturalismo lingüístico e
esqueciam-se, de uma vez por todas, os estudos acerca do uso individual da língua.
Mas não foi bem isso o que aconteceu. Na década de 60, começa a surgir uma
lingüística da fala, mais especificamente com os estudos de Benveniste [1902- 1976]
(1988:284-293). Para aquele teórico, era impossível conceber o homem sem a linguagem,
bem como o inverso. É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como
sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser,
o conceito de “ego”. Concebendo a linguagem sob essa ótica, Benveniste propõe a
apreensão da subjetividade na linguagem a partir dos pronomes pessoais de uma língua, já
que ela é uma classe gramatical que funciona como marca de um “eu” que fala a um “tu”.
41
e das quais apenas designamos sumariamente
as mais aparentes. [grifos nossos]
3
Conforme mencionamos neste capítulo, em ciência, nada é estanque, há movimentos de continuidade e
descontinuidade. A reflexão de Khun (2006) é bem concretizada neste momento a que estamos nos referindo.
4
Toda unidad léxica es, en un cierto sentido, subjetiva, dado que las palabras no son jamás otra cosa que
símbolos sustitutivos y interpretativos de las “cosas”.
42
‘nosso’ e quer transmitir um sentimento ufânico, patriota aos pequenos franceses a quem o
livro destina, em razão da lexia avaliativa ‘doce’.
Segundo Amossy (2005), uma aproximação à noção retórica de ethos também foi
feita pelo sociólogo Erving Goffman, cuja obra possui um título bastante sugestivo a essa
proximidade – A representação do eu na vida cotidiana. O autor teve considerável
repercussão nos estudos de análise da conversação, justamente por tratar da construção das
imagens nas interações sociais. A teoria tem como base uma metáfora com o teatro,
considera-se que os interlocutores exercem papéis sociais com fim de manterem
determinado status, o que dita determinado comportamento, dada a situação social dos
interactantes. Esse status dos falantes é assegurado por faces que as rotinas sociais
demandam, a que o autor chama de face-work. Assim, as conversações são constantes
“lutas” para a manutenção da face intencionada. Kerbrat-Orecchioni (apud Amossy,
2005:13) incorpora a sua teoria sobre interação social, o conceito goffmaniano de face e
redefine a noção como o conjunto das imagens valorizantes que, durante a interação,
tentamos construir de nós mesmos e impor aos outros.
43
ciências da linguagem; ali, ainda pouco explorado. Um longo percurso teórico precedeu a
primeira aparição do termo em Lingüística, Ducrot estava preocupado em fazer crítica à
tendência da “lingüística moderna” em considerar a unicidade do sujeito falante. Para ele,
haveria outras vozes presentes no quadro da enunciação e não que cada enunciado possui
um, e somente um autor.
A fim de comprovar sua tese, ele define a disciplina que cria, a qual chama de
“pragmática semântica” ou “pragmática lingüística”. O percurso argumentativo apresentado
pelo autor inicia-se pela distinção rigorosa entre frase e enunciado5. Além desses dois
conceitos, Ducrot (op.cit.:168) ainda deixa claro o que entende por enunciação:
5
Tal distinção já a fizemos no item 1.2..
44
etiquetado “significação”. A manobra me
parece interessante na medida em que suponho
possível formular leis, de um lado para
calcular a significação das frases a partir de
suas estruturas léxico-gramatical, e de outro
lado para prever, a partir desta significação,
os sentidos dos enunciados.
Uma vez apresentado, ainda que muito sumariamente, o quadro teórico geral da
polifonia da enunciação, partamos para que o que Ducrot (op. cit.:178) reconhece como o
tema próprio do capítulo de sua obra, já que buscar atender ao objetivo geral de sua
epistemologia, que é criticar e substituir a teoria da unicidade do sujeito da enunciação. O
sujeito da enunciação, por sua unicidade que apontam os lingüistas modernos6, tem de ser
capaz de apresentar as seguintes propriedades. Primeiro, ser uma entidade psico-fisiológica,
dotada de faculdades para produzir enunciados, o que se pressupõe um lugar de onde se
fala, um esforço muscular, um processamento audível; segundo, ser responsável pelos atos
ilocutórios presentes nos enunciados; e, em terceiro lugar, revelar-se nos enunciados pelas
marcas de primeira pessoa.
Para tornar mais concreta essa distinção, Ducrot (op. cit.:182) ilustra, muito
didaticamente, com o seguinte exemplo. Ao receber em casa, de um filho, o seguinte
6
Entenda-se aqueles que praticam a “lingüística moderna”, o que Ducrot (op. cit.: 161) sugere ser desde o
comparativismo, o estruturalismo e a gramática gerativa.
45
enunciado: “Eu abaixo-assinado, autorizo meu filho a [...]. Assinado:”; e, ao assiná-lo, será
responsável pelo enunciado, ainda que não seja o autor dele. O mesmo exemplo podemos
aplicar a abaixo-assinados, cheques, atas de reuniões, notas promissórias, tíquete de um
cartão de crédito... Assinamos um texto que não é nosso e nos tornamos responsáveis pelo
que está dito nele. Somos responsáveis por ações como pagar algo, tomar ciência de fatos
tratados numa reunião... Os autores desses textos, como o exemplo do gênero escolar,
poderiam ser a diretoria da escola, a secretaria; todavia, a responsabilidade passa a ser de
quem o assinou. Assim sendo, aquele que assina passa a ser locutor (ser discursivo),
enquanto que aquele que enuncia, o autor empírico, é o enunciador (ser empírico).
46
Essa referência ao ethos, bem como a própria pragmática semântica (ou lingüística)
é que será a mola propulsora aos estudos de Maingueneau, motivo pelo qual aqui a
recuperamos sumariamente, a fim de clarear o arcabouço teórico que escolhemos para
perceber ethos dos sujeitos que se fazem presentes no gênero causo. Passemos, portanto, à
noção discursiva de ethos.
47
Comumente, desde Aristóteles e até os novos estudiosos da argumentação, interessa a
noção de ethos em gêneros da tipologia argumentativa ou com predominância desse
tipo/seqüência textual7. Neste ponto, Maingueneau inova ao propor sua percepção em
outros textos, de outras tipologias, que pressupõe um público, o qual tem o direito de
ignorar ou recusar os textos a ele apresentado.
O tom, que, grosso modo, seria imanente ao discurso oral, é concebido também no
discurso escrito, pois para o autor, independentemente da inscrição material de um
discurso, há sempre uma vocalidade associada a uma corporalidade e um caráter,
percebidos pelo co-enunciador. Essa vocalidade é também variável em relação aos gêneros
de discurso em que o ethos se manifesta; tem ligação intrínseca com o código linguageiro
construído na cenografia, como ilustramos no item anterior. Já o caráter e corporalidade
devem ser entendidos como aspectos ligados a concepções historicamente atribuídas ao
comportamento global do enunciador, quer sejam indumentária, compleição corporal, a
forma como se move no espaço social, enfim, os estereótipos dos enunciadores.
7
A referência a tipos textuais é feita por Maingueneau, que o faz na perspectiva de Adam.
48
Considerados tom, caráter e corporalidade associados ao ethos discursivo,
entendemos que sua constituição é de natureza híbrida. Entram na composição híbrida da
natureza do ethos os seguintes fatores: psicossocial, plurissemiótico e histórico. Pelo fato de
considerarmos o ethos discursivo como ativação de estereótipos, esses não são tem natureza
lingüística, mas sim, psicossocial; embora seja constituído por marcas lingüísticas. A
plurissemioticidade do ethos é justificada pelo fato de considerarmos outros sistemas
semânticos que contribuem para a construção da imagem do enunciador, são eles: roupas,
gestos, mímicas, imagens associadas. A faceta histórica do ethos também não pode ser
ignorada, uma vez que estereótipos variam de época para época. Por fim, é necessário
atentar para a natureza híbrida do ethos a fim de olhá-los a partir de suas múltiplas facetas,
capazes de darem conta de comportamentos verbais e não-verbais do enunciador. Segundo
Maingueneau (2006c:58): o ethos, por natureza, é um comportamento que, enquanto tal,
articula verbal e não-verbal para provocar no destinatário efeitos que não decorrem
apenas das palavras.
Para que haja uma imagem construída pelo co-enunciador (um fiador), é preciso
haver um processo que Maingueneau tem chamado de incorporação. O destinatário
incorpora, com base em indícios lingüísticos fornecidos pelo enunciador, uma imagem,
temos, então, o ethos construído. À AD interessa como o enunciador lança mão de recursos
lingüísticos para sua construção ethos. A incorporação somente ocorre porque há
estereótipos que são partilhados, o que permite associar a ele um tom, um caráter e uma
corporalidade.
49
A incorporação não se atém simplesmente à identificação de uma personagem
fiadora. Ela implica, também, de acordo com Maingueneau (2008b:62),
50
- a enunciação da obra confere
uma corporalidade ao fiador, ela lhe dá corpo;
- o destinatário incorpora,
assimila um conjunto de esquemas que
correspondem a uma maneira específica de
relacionar-se com o mundo habitando seu
próprio corpo;
É necessário frisar que, em AD, o que importa é o ethos construído, mas não
somente como meio de persuasão, como quereria a retórica tradicional. Importa ao ethos os
possíveis efeitos de adesão pretendidos ao destinatário. No entanto, compete para esse
movimento não apenas o papel exercido pelo ethos, ele é parte pregnante da cena de
enunciação; desse modo, convém considerá-la como a motriz geradora daquela, motivo
pelo qual o estudo do ethos não deve ser tomado separadamente. É por meio dele que o
destinatário está convocado a um lugar e a um tempo, inscritos na cena de enunciação que o
texto implica. A cena de enunciação, como já vimos, comporta outros três planos: a
englobante, a genérica e a cenografia.
51
hipotetizar sobre a imagem de quem fala; todavia, essa imagem é confirmada ou
reconstruída pela situação de enunciação. Assim, caminhamos para uma construção do
ethos discursivo, o qual estreita relações interativas com o ethos pré-discursivo. O
discursivo manifesta-se via ethos dito e ethos mostrado. Esses subconjuntos do ethos
discursivo, apóiam-se, respectivamente, no dizer/mostrar preconizados pela pragmática.
52
Ethos efetivo
8
Optamos por “ethos prévio” em vez de “ethos pré-discursivo”. Maingueneau (2005:71) sugere sinonímia
entre os termos, sendo que o primeiro fora usado por Amossy e Haddad, em mesma obra. O adjetivo “prévio”
nos é mais viável por considerar estereótipos socialmente partilhados que entram na configuração de um ethos
discursivo efetivo e, exatamente por serem partilhados socialmente, são ativados pelos leitores. Já ethos pré-
discursivo pode abrir margem para interpretação de uma imagem que não faz parte da construção discursiva
do ethos. No entanto, entendemos que há um ethos prévio, do mundo exterior, que integra a efetivação de
uma imagem construída pelo discurso.
53
1.7 Código Linguageiro
Para percebermos como se construía a imagem do caipira no século XX, nos causos de
Cornélio Pires, não só os planos das cenas da enunciação, bem como ethos discursivo
servirão para reconstruirmos tal imagem. Partimos do pressuposto de que a configuração de
uma imagem do caipira paulista perpassa, além dos planos já mencionados, pelo uso de
uma variante lingüística capaz de até mesmo reforçar a cena genérica que configura o
causo. O uso dessa variante é o código linguageiro que deixa pistas nas cenas de
enunciação, de modo a nos fornecer indícios reveladores de uma imagem.
Quando entendemos que a construção da cenografia é que permite uma forma de ser e
de usar a linguagem concernente à situação enunciativa, pressupomos, nessa premissa, um
ethos e um código linguageiro. Pelo código é que podemos, também, perceber inclusive
certo posicionamento do enunciador. Ao considerarmos o código linguageiro, fazemos uma
opção por concepção de língua num bloco heterogêneo, cuja variabilidade assume formas
sugeridas pelas situações enunciativas. Uma vez que, segundo Maingueneau (2006a:182) o
escritor não fabrica seu estilo a partir de sua língua, mas antes impõe a si, quando deseja
produzir literatura, uma língua e códigos coletivos apropriados a gêneros de textos
determinados.
54
Nessa perspectiva, a matéria prima do escritor não seria a língua, mas a interlíngua,
entendida como uma interação de língua e usos. Tal conceito apóia-se no princípio
dialógico da linguagem, de modo que a interlíngua trabalharia com um plurilingüismo
capaz de dialogar com sua própria diversidade lingüística – plurilingüismo interno -, bem
como com a diversidade de outras línguas, de outros tempos e outras obras literárias –
plurilinguismo externo. Sobre esse último, bem fazia Guimarães Rosa; só para exemplificar
o título de sua obra Sagarana, busca elementos do germânico, ‘saga’ – canto heróico – e
‘rana’, do tupi – à maneira de.
Atemo-nos, no entanto, ao plurilingüismo interno, uma vez que mais nos interessa neste
trabalho. A respeito dessa modalidade, lembra Rocha (1997:128) que variáveis de
diferentes ordens são consideradas: variáveis geográficas (dialetos, regionalismos),
elementos de estratificação social (popular, aristocrática, ...), especificidade das situações
de comunicação (jurídica, médica, ...) e diferenças ligadas aos níveis de língua (familiar,
oratório, etc).
55
CAPÍTULO II
2.0 Introdução
Ser caipira está longe de ser um grupo étnico é, antes de tudo, um modo de vida.
Além dessa concepção errônea, o termo “caipira” é usualmente empregado no senso
comum como um adjetivo, passível de ser substituído pelo termo “tímido”, “vergonhoso”,
“inibido”. A fim de ilustrar essa acepção, citamos a fala do ator interiorano Paulo Betti que,
em uma entrevista ao Jornal da Tarde, de 18/11/2008, a propósito da dificuldade de fazer
cenas de nudez, disse: Eu era muito caipira, vim de Sorocaba, e até beijar no rosto era
estranho. Mas logo foi ficando claro que como ator a gente usa o corpo.
56
Entender o caipira no contexto histórico do Brasil implica voltar nosso olhar ao final
do século XVI, perpassando pelos ciclos econômicos que atravessam os séculos
subseqüentes. O percurso histórico da formação da cultura caipira é longo e exauri-lo seria
quase que impossível, resta-nos, portanto, traçar um panorama geral da moldagem desse
agrupamento. Antes, porém, é necessário o esclarecimento do conceito de cultura caipira.
Temos recorrido a Cândido (2003:45), o qual assim a define:
A Paulistânia era a junção das capitanias de São Vicente com a de Santo Amaro e os
originais caipiras eram justamente esses que ali viviam. Trata-se, pois, de dois grupos
separados pela serra do mar, mas com afinidades no modus vivendi: os de serra abaixo
(litoral) e os de serra acima (interior). Ambos falantes de língua do tronco tupi-guarani, que
mais tarde seriam gramatizadas pelos jesuítas e a denominariam língua geral. Francisco
(2003:28) explica como, na língua indígena, aqueles dois grupos eram diferenciados: todo
morador do litoral como ‘kai-ñ-çara’ e o do interior ‘kai-ñ-pira’. Eis as designações
primitivas dos termos caiçara e caipira.
Ribeiro (2006), após compor vasta teoria da história do Brasil, também cônscio do
caldeamento de raças formadora do povo brasileiro e da necessidade da criação de uma
antropologia [do povo brasileiro], acha conveniente a divisão do país em Brasis. Desse
modo, o antropólogo vê o processo de gestação da etnia brasileira marcada por períodos
históricos e ciclos econômicos que trazem consigo novos núcleos que se aglutinam, cujo
fruto é a unidade sociocultural básica de todos os brasileiros.
57
As ilhas-Brasil que admite são, exatamente nesta ordem: o Brasil Crioulo; o Brasil
Caboclo; o Brasil Sertanejo; o que mais aqui nos interessa, o Brasil Caipira; e o Brasil
Sulino. A divisão é possível pela adoção de critérios econômicos, geográficos e ecológicos.
Em certo ponto de sua explanação, Ribeiro diz que a identidade do brasileiro se concretiza
ante a perenidade e os fracassos dos ciclos econômicos.
58
perdera a autonomia da aldeia igualitária,
toda voltada para o provimento da própria
subsistência, a igualdade do trato social de
sociedades não estratificadas em classes, a
solidariedade da família extensa, o virtuosismo
de artesãos.
Conta Ribeiro (op. cit.:336) que a ambição dos bandeirantes teve seu sucesso com a
descoberta das primeiras lavras de ouro, primeiramente nos sertões Taubaté em garimpos
pobres; depois em aluviões prodigiosamente ricos das morrarias de Minas Gerais. O
achado modificou a estrutura da região Sudeste, a começar pela transferência da capital de
Salvador ao Rio de Janeiro, um período próspero e de revoltas, como a dos Emboabas,
começaria. Os prósperos, antigos mineradores, passam a fazendeiros; e a população rural,
agora cidatinos, apossam-se de glebas devolutas e vão selecionando suas terras, não mais
em busca do ouro, mas sim, de terra para cultivá-la e fixar moradia. Desse modo, ainda
segundo Ribeiro (op. cit.:346) a população se dispersa e se sedentariza, esforçando-se por
atingir níveis mínimos de satisfação de suas necessidades.
59
herdadas da matriz indígena, um exemplo dessas ações é o que as populações caipiras
denominaram “mutirão” ou “muchirão”, uma vez que a mata virgem teria de ser devastada
para o plantio da roça.
Portanto, o Brasil caipira que teve sua gênese num contexto miserável, conquistou
certo apogeu econômico no ciclo do ouro, teve suas riquezas extraviadas nos ciclos
econômicos posteriores, regressando à condição miserável inicial do período colonial, mas,
60
lutando contra um inimigo ainda mais forte: a modernização. Esse período em que São
Paulo experimentou das tendências modernas em todas as áreas, recebeu, como imitação e
resquício de uma cultura galicista, o nome de Belle Époque Paulista. E é na década de 20 e
seus entornos que a literatura com marcas do interior paulista começa a pipocar, cujos
nomes mais lembrados são Monteiro Lobato, Valdomiro Silveira, Paulo Setúbal e Cornélio
Pires.
61
2.2 Literatura Paulista
A citada autora atenta para o fato de que, quando se fala em região paulista no
começo do século passado, há, em grande parte, uma correspondência com o Estado de São
Paulo. No entanto, lembra que há escritores cuja produção trabalhou com a temática do
universo caipira – como é o caso de Cornélio Pires, Monteiro Lobato – e, ao tratar de
universo caipira, a territorialidade geográfica é extensa, não cabendo somente o estado de
São Paulo, mas como vimos com Ribeiro (2006), o Brasil Caipira compreende outros
estados como Minas Gerais, Rio de Janeiro, norte do Paraná e Mato Grosso.
Vale dizer que a literatura paulista surge num Estado de São Paulo que sente
necessidade de se auto-afirmar, dado o momento exitoso que vive, graças à lavoura
62
cafeeira. Em conseqüência do poderio econômico, os paulistas detinham também a
hegemonia política, haja vista que o Partido Republicano Paulista tivera importante papel
desde os primórdios da República. O 15 de novembro de 1889 estimulou os paulistas a um
sentimento ufânico regional, em que o caipira, à moda dos românticos em relação ao índio,
era a representação rosseauniana do bom selvagem. Não obstante a presença dos paulistas
na configuração da República, o advento dela favorecia o federalismo republicano que, em
outras palavras significava a autonomia dos estados, de acordo com Leite (op. cit.: 50).
Com a Primeira Grande Guerra, o sentimento nacionalista é retomado.
Produzir livros neste país não era algo fácil (e ainda não é), o que se tornava um
obstáculo para construir uma pátria de homens e de livros, como quereria Monteiro Lobato.
Este desempenhou papel revolucionário frente a ações de circulação e divulgação da
literatura, sobretudo a partir de 1918, publicando textos que se enquadravam num
regionalismo paulista. Assim como fazia Cornélio Pires com a música caipira, sendo
mecenas de algumas duplas, divulgando o gênero pelo país. As ações de ambos, embora de
sistemas semióticos diferentes – literatura e música – contribuíram em grande parte para
promover imagens do homem do campo paulista; ainda que o primeiro tenha retratado o
caipira do Vale do Paraíba e o segundo o do sul de São Paulo, mais precisamente da sua
terra natal, Tietê. Cornélio Pires também enfrentou as deficiências do mercado editorial
brasileiro de sua época e valeu-se das ações lobatianas para superá-las.
63
Tácito, Raul Freitas, Quinzinho Correia,
Indalécio Aguiar, Armando Rodrigues, Júlio
César da Silva, Wasth Rodrigues, Roberto
Moreira, Ricardo Cipicchia, Voltolino,
Cornélio Pires, Sílvio Floreal, Amadeu
Amaral, Simões Pinto, Cândico Fontoura,
Gelásio Pimenta, Oswald de Andrade, Jairo de
Góes, Mario Pinto Serva, Moacir Piza, Reé
Thiollier, Rebouças, Pinheiro Junior, Assis
Cintra, Antônio Figueiredo, Jacomino Define,
Adalgiso Pereira etc. Do interior, do Rio, de
outros estados, intelectuais e artistas que
vinham a São Paulo sempre passavam pela
redação da Revista. [destaque nosso]
Temos acima uma lista de nomes – uns conhecidos, outros nem tanto - que
escreveram a história da literatura paulista. A Revista, esse espaço paratópico dos escritores
das duas primeiras décadas do século passado, seguiu até o ano de 1924 quando a editora
“Monteiro Lobato & Cia” declarou falência. Outros periódicos, também, ajudaram a
circular as letras paulistas, conforme lembra Saliba (2002:179)
9
Os humoristas a que se refere Saliba são principalmente Cornélio Pires e Juó Bananére. Esse retratou um
novo ethos que aparecera na Paulicéia: o imigrante italiano; porém, numa versão urbana e operária. Sua obra é
caracterizada pelas paródias dos poemas das estéticas anteriores, a qual fazia numa variante lingüística que
era uma mescla do falar caipira com elementos do italiano.
64
Dentre as revistas que eram suporte para a diversidade literária e gráfica da Belle
Époque, destacam-se “O Pirralho” (1911 a 1917), a qual, inclusive, contou com a direção
de Oswald de Andrade e a contribuição de Cornélio Pires em vários artigos; “O Malho”, do
Rio de Janeiro, cuja primeira publicação de Cornélio nela se deu, em 1910, dando
repercusão nacional ao poeta caipira; houve, também, uma revista fundada por Cornélio
Pires, em 1926, o “Almanaque d’O Sacy”, a qual contava com ilustrações do famoso
caricaturista Voltolino; mas o empreendimento falhou com a morte de Voltolino, em agosto
daquele ano. Outra forma de disseminar a literatura com os periódicos era a partir de
patrocinadores, como o fez Monteiro Lobato com seu almanaque do Jeca Tatuzinho,
custeado pelo fármaco Biotônico Fontoura.
65
Convém também destacar o uso da variante caipira, a qual oscila nas trocas de turno
entre os narradores e os personagens. O uso dessa variante inspirou Amadeu Amaral a
escrever, em 1920, seu livro “O dialeto caipira”. Sobre essa obra trataremos mais adiante.
Ademais, o “caipirês” - quase um pidgin criado pelos imigrantes que viviam a
efervescência paulista - também ganhava seu espaço no campo da literatura.
Havia uma tendência em valorizar o campo, o caipira. Dantas (1976:75) dizia que
na década de 1910, o sertão estava bem na moda (...) Havia cansaço da cultura francesa
que há um século comandava o nosso pensamento, nosso processo artístico. Essa tendência
prosseguiu, gradativamente, pela primeira década daquele século que se iniciava, conforme
ressalta Saliba (op. cit.: 175)
66
O primeiro deles é o Jeca Tatu, de 1914, de Urupês e Velha Praga. Neste momento,
Monteiro Lobato (1984:XXX) vê o caipira pelas lentes de um fazendeiro que era àquela
época. Para ele, no artigo Velha Praga10, o caboclo era um
Esse olhar sobre o caipira foi corroborado no outro artigo escrito publicado em
mesmo ano. Em Urupês, Lobato critica exatamente a retomada do bom selvagem pelos
escritores do seu tempo não mais do índio; agora, do caipira, do caboclo. Diz o fazendeiro
Lobato: Pobre Jéca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!
A verdade é que esse primeiro jeca foi sucesso de vendagem, ao final da primeira
década do século passado. Duas razões justificam o êxito: a primeira pelo fato de ser um
tratamento polêmico dado ao camponês, suscitando debates sobre sua condição social; a
segunda porque Lobato foi citado por Rui Barbosa, em plena segunda campanha
presidencial civilista, aos 20 de março de 1919, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Lobato
em carta a Rangel (apud Leite (op. cit.:75)) diz que a menção à obra feita por Rui foi um pé
de Vento que deu nos Urupês. Não ficou um pra remédio dos sete mil!
10
Conservamos a ortografia da publicação utilizada, a saber: LOBATO, Monteiro. Urupês. 30ª ed., São
Paulo: Brasiliense, 1984.
67
Dez anos mais tarde, um segundo jeca é apresentado: o Jeca Tatuzinho. Como já
mencionamos, este personagem foi difundido pelo Brasil graças à publicação de um
almanaque publicitário dos Laboratórios Fontoura. Este jeca não se diferencia do primeiro
apenas pelo diminutivo, o que conforme lembra Lajolo (op.cit.: 101) – o que em nossa
prática lingüística supõe certa afetividade entre nomeador e nomeado – mas,
principalmente, porque este jeca é criação de um Lobato preocupado com a saúde pública
do sitiante. O Jeca Tatuzinho é uma criação higienista com fins didáticos, é apresentado um
caipira que calça botinas para conviver entre os porcos. Importante lembrar que o segundo
jeca é contemporâneo do Joaquim Bentinho, de Cornélio Pires.
O terceiro tipo criado por Lobato, já em 1947 (só para aqui citar, já que é situado
numa época que estende-se ao período que dispomos a analisar) é a figura do Zé Brasil.
Uma versão civilizada, politizada do jeca. Fruto da criação de um Lobato que viajou para
os Estados Unidos, engajado na exploração de petróleo em terras tupiniquins e envolvido
com o Partido Comunista. Registra Lajolo (op. cit.:103) que Monteiro Lobato agora não é
agora patrocinado por empresas privadas, como no momento anterior; agora, seus livros são
publicados pela editora Vitória, que possui uma orientação marxista.
68
São Paulo, onde o interiorano trabalhava como revisor, que dizia o seguinte: Vim para dar-
te um abraço e, ao mesmo tempo, confirmar a minha imensa admiração por sua obra,
ainda não bem compreendida.
Por outro lado, em correspondência com seu amigo Godofredo Rangel11, no ano da
publicação de Urupês, Lobato deixa entrever uma contradição sobre Cornélio Pires,
conforme apotam Saliba (op. cit.: 176) e Luzzi (op. cit.:20):
Tantos são os “lobatos” quanto são os “jecas”. A citação anterior põe em xeque o
clima amistoso evidenciado pelos elogios. O Lobato fazendeiro, militante de uma saúde
pública no país e o simpatizante pelo Partido Comunista tinha outros olhares sobre o
caipira, para ser mais específico, três formas de olhá-lo, de acordo com Lajolo. Exatamente
pela diversidade de olhares ao velho paulista interiorano e ao novo paulista cosmopolita, é
11
As cartas de Lobato e Rangel foram publicadas em 1943, pela Editora Nacional. Foi a última obra
publicada pela editora, cujo título e subtítulo eram “A Barca de Gleyre: quarenta anos de correspondência
literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel.”
69
que podemos falar de uma literatura paulista, sobre o estado de São Paulo, bastante
difundida neste período pré-modernista, mas pouco lembrada entre os cânones, com
exceção de Monteiro Lobato.
70
2.3 Cornélio Pires e o maior de todos os seus causos: sua vida
Já sua vida adulta foi pitoresca, conforme adjetiva um de seus maiores biógrafos,
Jofre Martins Veiga (1960), em seu livro A vida pitoresca de Cornélio Pires. O poeta
caipira, como foi chamado, viveu em várias cidades do país. Autodidata, exerceu várias
profissões dentre elas as de: aprendiz de tipógrafo; auxiliar em loja síria de tecidos, em
Laranjal Paulista; repórter do jornal O Comércio de São Paulo, na capital; colaborador do
jornal O Tietê, onde, inclusive, estréia como poeta em 1905; professor de ginástica, durante
sua estadia em Botucatu, já que fugira de São Paulo, onde opositores queriam destruir a
redação do jornal em que trabalhava; foi também radialista; trabalhou — conforme vem se
chamando em estudos anteriores — como conferencista em teatros e cinemas, uma espécie
de showman, principalmente durante a década de 20 e metade da década de 30, pois essas
conferências eram, na verdade, shows de humor, abordando a temática caipira; além, é
claro, de escritor de 23 obras.
71
calor do momento e a comunicação direta,
eletrizante, com o público.
Em seu currículo, não se pode deixar de mencionar o fato de, mesmo tendo poucos
recursos financeiros, haver sido mecenas de algumas duplas de moda de viola,
possibilitando a essas o lançamento de discos. Por esse feito, Cornélio Pires tornou
difundida a música caipira, tendo sido freqüentemente lembrado na história do gênero
musical no país. Ainda no fim de sua carreira, vencido pela mídia da sétima arte, tentou
juntar-se a ela, gravando alguns filmes.
Sua produção literária é bem eclética ademais dos contos e causos, produziu
também poemas e, nos anos 40, escreveu alguns livros de cunho espírita, haja vista sua
adesão ao espiritismo. Acrescente-se à sua produção, freqüentes colaborações em meios
periódicos de humor comuns à época, como a revista O Pirralho e Almanaque d’O Sacy, do
próprio Cornélio.
Com certeza, muito de seu êxito deveu-se à ida a São Paulo e os contatos que
manteve na capital, a começar pela pensão em que se hospedava quase que gratuitamente,
uma vez que a proprietária era sua tia, Dona Belisária, viúva do filólogo Júlio Ribeiro. Na
capital, conviveu com os jornalistas Amadeu e Rubens do Amaral, os quais além de amigos
e incentivadores de Cornélio, eram seus primos.
72
publicação de mais um novo volume, que viria a ser publicado em 1929. Até mesmo o
modernista Mário de Andrade (apud Dantas (op. cit.:297)), também folclorista, não deixou
de reconhecer o tipo criado pelo tieteense:
Como dito anteriormente, os anos 40 foram marcados por uma produção espírita;
envolvido pela doutrina, iniciou trabalhos sociais em sua terra natal, inaugurando um abrigo
para crianças. No final de sua vida, menos atuava como conferencista, até porque o cinema
ia tomando seu lugar nos teatros.
Aos 74 anos incompletos, morria Cornélio Pires no Hospital das Clínicas, em São
Paulo, vítima de câncer na laringe, aos sete dias do mês de fevereiro de 1958.
73
2.4 As estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho, o queima-campo
A diferença entre esses dois volumes é que o primeiro trata do caipira com um olhar
mais romântico, vendo-o como o bom selvagem. Já no segundo momento, ainda de acordo
com Dantas (op. cit.:132), há na prosa de 29, um tom melancólico, saudosista,
74
Em ambos os livros há a predominância do gênero causo, cuja composição
estrutural se dá por meio das trocas de turnos entre o homem da cidade (o próprio narrador)
e o personagem título, o homem do campo. A própria forma composicional do causo já
sugere a presença de variantes lingüísticas usadas por seus respectivos falantes, o que já
impõe um estilo próprio ao gênero, fato que faz Dantas apontar para a existência de uma
língua dual. A temática comum é a mentira que os sitiantes pregam no “estrangeiro”,
produzindo, a partir daí, o humor. O narrador da cidade, um verdadeiro “caipirólogo”, nos
explica sobre a temática do causo, de acordo com Pires (1927:14):
75
Causo 4 De como o Queima Campo descobre um bando de macacos
“águias”.
Toda essa mentirada, contada ao pé do fogo, vai revelando uma série de saberes que
o camponês detém acerca da fauna e da flora paulista, modos e costumes, da paisagem,
visões de mundo... Precede as histórias uma contextualização por parte do narrador,
76
situando o leitor em seu espaço – a fazenda velha – e descrevendo detalhadamente o
personagem que irá conduzir todos os causos.
77
2.5 O dialeto caipira, de Amadeu Amaral
A obra de Amaral é de suma importância para este trabalho, bem como para o
cenário geral da história das idéias lingüísticas do país. Essa assertiva justifica-se pelo fato
de que, certamente, Amaral, “pescou os regionalismos de verdade”, no dizer corneliano.
Buscamos, pois, nesse estudo pioneiro da dialetologia, algumas pressuposições sobre o que
Amaral entendeu por dialeto caipira.
78
O referido estudo sobre o dialeto caipira aponta aspectos fonéticos, fonológicos,
morfossintáticos e um vasto estudo lexicográfico.
79
Segundo Amaral (op. cit.:170), o pronome mais utilizado na variante são os
derivados de vossa mercê, ou seja, vossuncê, vassuncê, vamicê, vancê, vacê, ocê, mecê. O
uso de mecê denota mais distanciamento que vacê ou vancê, os quais denotam ainda menos
solidariedade que ocê. Sobre essa última forma, o estudioso diz que se reserva para
crianças e íntimos, sendo, porém, mais usado pelos pretos que por qualquer outra gente. É
interessante notar que não se faz referência alguma quanto ao uso de você; pois, para o
autor, restringe-se somente ao uso culto.
80
se trata, de fato, de um dialeto, mas de uma variante não estandartizada do Português. No
entanto, naquele tempo o termo dialeto era usado para mostrar essa variante falada pelos
caipiras. À época, a obra significa um grande salto nos estudos lingüísticos brasileiros e um
dos poucos, quiçá o único trabalho específico com a variante caipira.
81
CAPÍTULO III
3.0 Introdução
Após termos apresentado aspectos da vida e obra de Cornélio Pires no contexto das
produções lingüístico-literárias paulistas e o discurso objeto de nossa análise, é chegado o
momento de investigarmos como se constroem as cenas da enunciação e o ethos do homem
do campo, no gênero de discurso causo.
Como vimos no capítulo II, a imagem do homem do campo, durante o início século
XX, foi controversa e multifacetada, sobretudo, com Monteiro Lobato que, inclusive,
chegou a deixar claro — em carta a Godofredo Rangel — acerca de seu posicionamento
polêmico sobre o caboclismo que tinha intenção de bulir com Cornélio Pires.
82
“primeiro jeca” encenado por Monteiro Lobato, razão pela qual perceber esse diálogo nos é
interessante.
Como analisar a obra em sua totalidade não seria viável para este trabalho,
escolhemos três causos que julgamos pertinentes por apresentarem questões bem marcadas
referentes ao contexto da República Velha. Trata-se dos causos 1, 3 e 15. Além desses,
foram também tomados como objeto de análise os capítulos que precedem os causos
propriamente ditos, que apresentam o autor e sua obra. Uma ou outra referência aos outros
causos também faremos durante a análise, todavia centrar-nos-emos nos três selecionados.
83
faz, utilizando elementos de seu universo para sustentar seu posicionamento em relação à
República.
Parafraseando nosso autor que, ao início de alguns textos utiliza a comanda “vamos
ao caso”; dizemos, então, vamos à análise.
84
3.1 Cornélio Pires e a construção do causo
85
personagem de Cornélio existiu realmente e
viveu bom tempo em Tietê.
Excerto 1
E é só...
O AUTOR.
86
A primeira palavra do autor é de estabelecer, logo de início, contato com seus
interlocutores. Esses, a quem chama de “minha gente”, devem ser os caipiras; no entanto, o
termo é expandido a caipiras da cidade e do sítio. Mas o que será que o autor quis nos dizer
com “caipiras da cidade”? Duas leituras nos são possíveis: 1) aqueles que praticaram o
êxodo rural e passaram a viver nas cidades; 2) aqueles que mesmo não sendo moradores
dos sítios, admiram e gostam desse modo de vida.
A introdução à obra é atravessada por uma questão polêmica e são dadas respostas a
essa questão, na materialidade lingüística. Ainda segundo Veiga, o biógrafo corneliano, em
continuação à citação anterior, diz:
87
Apodrecerem nas livrarias não era o caso das aventuras de Joaquim Bentinho, dado
o sucesso de vendagem na época. Em resposta aos críticos, o enunciador pede paciência e
deixa por completar o dito popular “quem dá o que tem...”
Se Cornélio Pires já estava consagrado como autor, por que ainda apresentava sua
obra num tom de auto-afirmação? Essa necessidade parece decorrer da justificativa acerca
do emprego da variante caipira. Sua obra não serviria somente para contar casos e mentiras;
serviria como corpus, para que competentes lingüistas de seu tempo – Cândido Figueiredo,
Leite de Vasconcellos, Carolina Michaelis, entre outros – pudessem “pescar” ali, naquela
obra, usos lingüísticos da genuína variante caipira, no dizer do enunciador: regionalismos
de verdade. O enunciador faz, implicitamente, um convite aos estudiosos para que sigam o
que já havia feito Amadeu Amaral, em 1920. Ao enunciar “regionalismos de verdade”,
deixa entrever que sua obra não é retrato estereotipado do caipira, é realmente uma
fotografia lingüística do homem do campo que habita na zona Sorocabana, que é legitimado
pelo uso de um código linguageiro.
Nessa introdução à obra, fica clara a vocação enunciativa de Cornélio Pires. Essa
vocação é entendida, nos termos de Maingueneau (op. cit.: 152), como o processo através
do qual um sujeito se “sente” chamado a produzir literatura. Na República Velha em que
vivia Cornélio, o sentimento ufanista e regionalista, associados à “moda caipira” da Belle
Époque, os encontros na Revista do Brasil, às imagens polêmicas do Jeca Tatu de Monteiro
Lobato, às palestras que dava pelo Brasil... Tudo isso fez com o que o autor se sentisse
“chamado” a produzir literatura, investindo, no caso da obra em questão, no gênero de
discurso causo.
88
literários de sua época, ele se apresenta como autor, inclusive assinando a introdução como
“o autor”. Esse ato vem a reforçar o posicionamento regionalista, juntamente com o gênero
investido na obra, instituindo seu discurso no campo literário.
89
3.2 O causo como um gênero de discurso: a cena genérica
Excerto 2
90
— Ah! Impuiei um bobo da villa... Contei pr’ele um deluvio de puía e o bocó
aquerditô!
Fica evidente, no excerto, a relação polêmica entre campo e cidade: mentir torna-se
prazeroso principalmente se esse proximo é da cidade. Torna-se perceptível aí que o
“cidadão” é um estrangeiro que, embora apresente supremacia sobre o homem do campo,
não sabe tanto quanto ele, sendo capaz de ser enganado pela astúcia do camponês. Eis aí
uma contra-imagem do jeca tatu doente, passivo, de Monteiro Lobato. Esse caipira tem, na
mentira, um poderoso recurso para o entretenimento: enganar os homens da vila. O
enunciador ainda especifica dois tipos de mentira: as de troça, ditas somente para fazer rir;
e as de verdade, que não podem ser contrariadas por quem conta, já que são ditas para
serem aceitas como verdadeiras. A mentirada de seu personagem, o Bentinho, é exatamente
essa última. E, para dar à mentira o estatuto de verdade, o tipo criado faz uso de estratégias
que veremos mais adiante.
91
se considerarmos, conforme já apontou Veiga (1960), que Joaquim Bentinho, de fato,
existiu.
Excerto 3
92
iê vô conta.
Vale ressaltar que o causo opera uma transformação do anti-herói para herói, em se
tratando do caipira. Como vimos, o caipira apresenta-se como o superado que se supera no
desenvolver da narrativa. Isso faz com que papéis antitéticos sejam, de alguma forma,
sugeridos na constituição da história, conforme lembra Oliveira (op. cit.:103), destacam-se
aqueles que se mostram como antítese, como o interiorano e o cidatino, o poderoso e o
fraco, o dominador e o dominado, mas no paralelismo desenvolvem-se mais os defeitos do
mais forte para destacar o valor do mais fraco.
É evidente o uso da variante caipira até mesmo para nomear o gênero em questão:
para o narrador, caso; para o personagem, causo. Evidentes também se tornam os atores
envolvidos na cena genérica: um mentiroso que conta seus causos ao homem da cidade e os
demais caipiras que ali se aglomeram ao pé do fogo.
93
3.3 A cenografia no gênero causo: espaço e tempo empíricos e discursivos
Ademais das cenas englobante e genérica, o enunciador dos causos cria outros
espaços que enredam o leitor num outro espaço (topografia), num outro tempo
(cronografia), criando uma nova dêixis empírica e discursiva. Tais espaços dizem respeito a
quem Maingueneau (2006a.:252) tem chamado de cenografia, conforme:
Tanto é que o texto literário começa enredando o leitor em sua armadilha, que As
estrambóticas aventuras... começam pelo narrador, situando a topografia e cronografia em
que se encontra:
Excerto 4
No sul de S. Paulo, nesta época, os dias são mais curtos, e o caipira, ao contrario
do que certos escriptores asseveram, provando não ser vadio, diariamente lamenta a
curteza do dia, que “não dá pra nada... Malemá se começa o serviço, dia cabo, e a noite
chega de sopetão”.
94
Na sala sem forro, de paredes negras, carcomidas aqui e alli, mostrando as ripas
de taquara, quaes estranhas e luzidias costelas, crepita o fogo desde a madrugada, ora
fumarento, enegrecendo tecto e paredes, ora alegre, em labaredas vivas e irrequietas. No
meio do dia, entre o almoço e o jantar, só fumega o “guarda fogo”, grande tição que
reanimará a fogueira ao entardecer.
Ao redor desse ponto de reunião, emquanto os mais moços vão á roça, ficam os
velhos caboclos e pretos, estes restos da escravidão, pacientes e asmáticos esperando o fim
da vida.
O frio força-me a dar um descanso á velha rede, em que ora só me deito na força
do sol, nos silencio do “sitio”, a observar os picumans pendentes de velhos caibros de
palmito e ripas esfiapadas, pingentes de fuligem baloiçantes ao ventinho impertinente do
sul, que tudo regela e irrita.
Cada roceiro que chega do serviço, arria num canto o seu feixe de lenha, catada na
tigüera onde há poucos existiam roças que foram colhidas.
95
Cá dentro, ao pé do fogo, estão os velhos pretos, “tios” Romualdo, Militão,
Ponciano, o bôa e pesadona tia Policena; as sacudidas Zabé, Flora, Gertrudes; os guapos
Misael, Terenciano e Ignácio; as crias, o bom velho, caipira branco, Nho Thomé,
veneravel chefe da Fazenda Velha, e os caboclos da vizinhança que vêm “lavar
cachorro...”
Do povo que se reúne ao pé do fogo, tiro por conta o Joaquim Bentinho, o rei dos
caipiras mentirosos, apellidado o....
QUEIMA-CAMPO.
A cenografia criada pelo discurso nos mostra um hábito roceiro nos dias de inverno.
Isso nos permite dizer que ela se apóia em cenas validadas, isto é, cenas já instaladas na
memória coletiva, seja a título de modelos que se rejeitam, seja a títulos de modelos que se
valorizam, de acordo com Maingueneu (2008a:52). A conversa ao pé do fogo é uma cena
validada, instalada positivamente na cultura caipira.
96
Percebemos uma seqüência do dia que é curto demais para tantos afazeres. O fogo é
o companheiro de todos os momentos do dia, ele acaba funcionando como um relógio ao
modo de vida rústico do camponês; por ser acesso todos os dias é que as paredes estão
enegrecidas sempre. O fogo se acende pela madrugada, quando o roceiro já levanta; entre o
almoço e o jantar, só fumega um “guarda fogo”, um pedaço de lenha de grandes dimensões
que se mantém acesso, um tição que sustentará a fogueira da noite; ao entardecer, os
trabalhadores rurais trazem os feixes que animarão o “guarda fogo”; à noite, fogo e sala
estarão animados, ouvindo as histórias dos caipiras.
97
Para além de um espaço físico (a fazenda) e um tempo cronológico (a noite de
inverno), a cenografia criada nos envia a um outro espaço e a um outro tempo. Um espaço
discursivo da confraternização entre os roceiros, após um árduo dia de trabalho, é nesse
espaço que reinam as histórias que povoam o livro e o imaginário dos sitiantes. O novo
tempo é o tempo do lazer, da descontração, após o curto dia passado, em razão dos afazeres
no campo.
98
3.4 Um caboclinho mirradinho... A construção do sujeito no causo
Excerto 5
Como se vê, a justificativa ao apelido se faz por uma história e por uma história que
desobedece, para usar um termo da Lingüística Textual [segundo Charrolles (1978) apud
Costa Val (1994)], ao requisito da não-contradição. Charrolles considera que um texto
coeso e coerente deva satisfazer a quatro requisitos básicos: repetição, progressão, não-
contradição e relação. A meta-regra da não-contradição volta-se para o princípio textual da
coerência e diz respeito ao que deve ser observado tanto no âmbito interno quanto no
99
âmbito das relações do texto com o mundo a que se refere, evitando contradições
comprometedoras da coerência textual. No caso dos causos, como as histórias contadas são
passíveis de contradição e não obedecem, portanto, àquela meta-regra, o sujeito contador é
rotulado como mentiroso, queima-campo.
O outro apelido também é justificado a partir de uma história que contraria a meta-
regra da não-contradição, uma vez que não há a observação de um diálogo com questões
ligadas ao âmbito das relações do texto com o mundo caipira. A irara é um animal de
hábitos solitários e, segundo causo do mentiroso, diz ter visto um bando delas. O
enunciador apresenta o contador de causo como esse mentiroso, que atrai público nas
situações da vida rural, como o muchirão sobre o qual já tecemos algumas considerações no
capítulo II.
Excerto 6
100
Observei que, como os outros roceiros, traz uma das pernas da calça arregaçada
mais alta que a outra. Porque será? Depois de muito matutar, descobri que é para evitar
que o enrodilhado de uma perna se esfregue no outro, ao ser mudado o passo, rustindo e
estragando a roupa...
101
E segue retomando a posição do jeca:
Imagem 01
102
produção de efeitos de sentidos possíveis, comandados por uma semântica global, segundo
propõe Maingueneau (2007).
103
3.5 Cá estou eu na fazenda velha... A construção da cenografia de três causos
CAUSO 1: De como Joaquim Bentinho não morreu á míngua, vivendo sozinho no sitio,
atacado de maleita, bexigas, e febre amarella, ao mesmo tempo.
Vamos a eles.
Durante esse período, sobretudo após a primeira grande guerra, a produção literária
tinha, como vimos no capítulo II, marcas de um nacionalismo e um sentimento de
construção de uma identidade nacional. Segundo Santos (1985:194),
104
civilização. A outra corrente preocupava-se em
recuperar no interior do país as raízes da
nacionalidade, e buscava integrar o sertanejo
ao projeto de construção nacional.
Monteiro Lobato começa sua segunda fase “jeca”. Agora ele vê o roceiro como
abandonado pelo Estado e julga que somente com medidas profiláticas com vistas à saúde e
à educação do povo é que poder-se-ia alcançar o ideal de ordem e progresso.
O longo título dado ao causo – De como Joaquim Bentinho não morreu á míngua,
vivendo sózinho no sitio, atacado de maleita, bexigas, e febre-amarella, ao mesmo tempo –
por meio das lexias “míngua” e “sozinho” reforçam a idéia de abandono do Estado, em
relação ao caipira. Desse modo, o discurso emerge no espaço interdiscursivo estabelecido
pela relação polêmica entre “progresso do país versus abandono do interior”. O tratamento
a essa questão é dado, pelo enunciador, pelo viés humorístico.
105
Excerto 7
Vacê vê, alli pro meio dia, a cachorrada garra reuni perto do fogo, tudo ripiado, e
garra treme: é maleite!
Vacê vai no terreno, chega perto do chiquero, vê a porcada tudo muntuado um riba
d’outro, gemeno que nem gente: é maleite!
Vacê óve de repente uma búia de ramaiada chacuaiada no mato, vacê cuida que é
caça u é vento, vai vê; são as arve que tão tremeno... é maleite! Inté ninho de passarinho
car do gaio!
Além desse cenário contaminado pela maleita, outras doenças são trazidas à cena: a
bexiga e a febre amarela; e, mais uma vez, o abandono é sugerido pela lexia “borrecido” e o
último período, aponta para outro problema, conseqüência do primeiro: a fome. Na
seqüência, o queima-campo conta, de maneira fantástica, como acaba contraindo as
enfermidades das quais não haveria de escapar. O inevitável contágio se dá por dois
micróbe, moço! Dois microbão, dos ligite! A descrição dos dois vetores traz marcas
lingüísticas que revelam as duas doenças já mencionadas, além da maleita:
Excerto 8
Um, era bem marello, verde no encontro das aza, barriga pelluda, listrada; co as
unha vorteada... Otro era cor de mardade, co a cacunda tudo pipocado...
106
O enunciador deixa implícito pelas marcas em negrito que o primeiro microbe era o
causador da febre amarela e o segundo é que fazia pipocar as bexigas. Mesmo já estando
com a maleita e agora com as duas novas doenças, o caipira sobrevive. Apresenta os
sintomas da febre amarela: tive um febrão e gumitei preto e, ao ouvir um barulho como
pipoca na panela, queimada na mata, descobre: era bixiga que tava rebentando! Sozinho no
mato, à míngua, o Bentinho fica sete semanas na cama.
Essa situação calamitosa é ainda revertida pelo capiau, gerando o humor que
desfecha o causo. Ao ser perguntado se morreu de fome, responde contrariamente: inté
ingordei. A razão está no fato de Bentinho possuir umas galinhas de raça, imunes ao
microbe em virtude das penas que cobrem sua pele das picadas. Como se não bastasse a
imunidade, as galinhas devoram o inxame de microbe que saiam do quarto do doente, como
se eles fossem gafanhotos. Desse modo, as galinhas se alimentavam e punham ovos, os
salvadores ovos:
Excerto 9
As gallinha, na hora de ponha ovo, vinha ua, devagarzinho, pra não me incomodá,
trepava nos pé da cama, aninhava in riba da cuberta, botava o ovo e sahia, desfarçano, e
só no chega no terreno é que garrava grita: — “Já ponhei... já ponhei!” Vinha ótra e ótra
e, ansim, era tudo duzia e meia...
— Nhor não... Tava coa febre tão arta que ponhava um ovo in baxo do de sovaco e:
um minuto, bebia ovo quente... dois minuto, cumia ovo cuzido...
O final inesperado garante o humor do causo. Para confirmar que não se trata de
mentira, o queima-campo apela a testemunha, um cúmplice difícil de ser encontrado:
Defunto Fidencio pode conta pra vassuncê, se num aquerditá. Elle ia me vê tudo o dia...
Torna-se evidente neste causo, ainda que pelo veio cômico, uma crítica à condição
do homem do campo, durante a primeira República, à margem de condições básicas de
107
saneamento. Assim, faz-se coro à campanha sanitarista, tornando o causo risível dado o
contexto de luta pela sanitarização do meio rural, tão em voga nos anos 20. Há um reforço
ao clamor para que se voltem os olhos ao homem do interior, assim como pediam os
sanitaristas. Nega-se, portanto, o posicionamento nacionalista sem preocupação com as
condições básicas de saneamento.
Logo nos primeiros parágrafos do causo 3, o autor contextualiza sua época, dando-
nos pistas sobre o clima da belle époque paulista, notadamente favorecido pelo êxito na
cultura, comercialização e exportação do café. É transparente a consciência e o orgulho do
autor sobre a modernidade, quando se refere ao sucesso dos brasileiros em muitas áreas,
projetando seu ideal nacionalista. O destaque dado à engenharia resulta do mega
empreendimento que rasgou o interior com vistas ao transporte do precioso produto
nacional: a estrada de ferro sorocabana. O ufanismo do narrador se estende a outras áreas
como o direito, as artes e, enfim, a medicina. A alusão feita a uma cirurgia plástica, ponto
de extrema novidade, causa inquietude no jeca corneliano.
Tal inquietude será o início de uma discussão que permeará toda a narrativa, uma
vez que a atitude da medicina moderna opõe-se ao modo de vida caipira, pelo seguinte: a
vida nesse tipo de sociedade é à mercê da decisão da natureza é, portanto, resposta a um
modo de vida que espera a organização do caos pelas reações orgânicas e automáticas da
natureza; e mais: a ação humana só fará sentido para atender às necessidades humanas.
Assim, de acordo com Cândido (2003:29), o equilíbrio social depende em grande parte da
correlação entre as necessidades e sua satisfação. Esse princípio nos permitirá
entendermos que as ações humanas, no universo caipira, são sempre premeditadas para
108
atender a uma necessidade de subsistência. Então, o sitiante dará resposta à modernidade,
numa tentativa inútil de vencê-la, baseando-se nas necessidades que a vida cotidiana e
afastada da modernidade oferece.
Ao receber o turno, Joaquim Bentinho inicia com o causo da carne quente e faz uma
digressão e, nessa instrutiva variante, mostra o conhecimento do camponês sobre os
mistérios da natureza, mais precisamente acerca da colheita de mel. Em seguida, retoma o
tópico inicial, o causo da carne quente. Torna-se evidente, principalmente ao assumir o
compromisso de fidelidade com a história narrada por Bentinho, que o narrador deixa
entrever o caráter de retextualizador do gênero causo, uma vez que sua emergência se dá
numa cultura oral, portanto, nos termos de Maingueneau trata-se, neste caso, de gênero
escrito com estilo de gênero oral. A digressão presente no causo 3 é uma marca contumaz
109
da oralidade presente no gênero, conforme também salientou Fávero et alli na citação
anterior.
Excerto 10
Vacê sabe: os pai de mé, abeinha do mato, tem de tudas qualidade: manda-saia,
mandaguary, tuvuna, jetahy, que é me bão pró peito; guirupú, mumbuca, irapuã, lôco pra
inleá nos cabello da gente; mé de cachorro, que dá no chão, na frôr da terra, e cachorro de
caipira, que num é bobo cumo os da cidade, cavóca e tira pra lambê; caga-fogo, bespinha
escamungada que larga ua urininha que quêma que nem fogo; sonharão, o mais brabo de
tudo; mandury, aranxim, de mé muito gostoso, com gosto de foia de limão; móra-longe,
que fais o canudinho de cêra quage no pé do pau e vae ponha os favo no oco do úrtimo
gaio; mé de anta, é um mé dannado! Vacê chupa elle co só quente, elle sobe na cabeça que
nem pinga, e dexa a gente chucro. Tem tamêm outro mé que num me alembro o nome, que
os inseto tira mé de estrume e de carniça... tem um fedô inseportave...
A nova cenografia instalada pelo causo, lugar em que se encontra com os demais
personagens, nos remete a outra necessidade caipira, a de explorar a mata virgem, quer seja
em busca de caça, quer seja em busca de novas terras para as roças de subsistência ou
simplesmente para chupar as jabuticabas e coletar mel silvestre. Abrindo picadas na mata,
110
desastrosamente, apara o nariz de seu cunhado e, detentor de conhecimento previamente
instituído ao do homem da cidade — o de que carne quente pega — Bentinho põe de volta
no lugar o nariz do cunhado e o ata. Vemos aí a tendência caipira em esperar da natureza e
do tempo as respostas para suas necessidades; a carne quente pega por razão orgânica, não
porque o homem é capaz de reconstruir, na visão caipira.
A mentira é outra vez o artifício usado pelo personagem para convencer os citadinos
de que as questões “modernas” não são nada novas para o homem do campo. Com isso, o
enunciador caipira, envolve o leitor numa cenografia onde as necessidades são supridas
naturalmente, ao sabor do tempo. Um exemplo de como a mentira é reforçada no texto está
na fala do nhô pai que diz “— Ocês num sabe campeá nari, disse o véio: ocês vão vê.”. O
tratamento com naturalidade sobre a questão – saber procurar nariz - gera também o humor,
pois parece que procurar nariz é algo muito normal. O uso do rapé para fazê-lo espirrar fecha,
com muito humor, o episódio hilário e fantástico. Além do mais, há novamente o
envolvimento de cúmplices, as quais não sabemos se ainda são acessíveis: — Puis vae lá!
Cumo ia dizeno, Nho pai, eu, meu ermão, o Gabrié, compadre Caria, Dito de Nhanna, Chico
de Nhã Angérca, e meu cunhado Sarafim, fomo chupá fruito no mato e porveitá pra fura
uas veiêra
Excerto 11
No afriçuramento que eu fiquei, afrito, foi que assucedeu o desastre... Ponhei o nari
ás canha...
— Como é ás canha?
— Que horror!
111
— O povre do Sarafim, num sae mais de casa... Quãno elle tá pitano, vacê vê: sorta
aquela fumacêra pra riba, pró nari, que nem chaminér... Inté já criô picuman na aba do
chapéu.
— Que coisa!
O causo 15 difere-se dos outros dois anteriores por não apresentar uma seqüência
narrativa de Joaquim Bentinho. Agora é o autor quem conta uma experiência sua vivida
com o contador de causos. Num diálogo com ele, Joaquim Bentinho expõe seu pensamento
sobre a República com uma interessante metáfora.
112
Excerto 12
— Despois, a gente se apura: vae vota cum, otro zanga... Num paga a pena ranja
nimigo...
— Mas a Republica...
— Quá... Interviu o Joaquim Bentinho. O meió é mecê larga mão disso... O’i, eu já
fui monacrista... virei repurbicano; desvirei... revirei... E hoje nem num sei o que sô!
113
antiliberal, os “tenentes” não acreditavam que
o “liberalismo autêntico” fosse o caminho
para a recuperação do país. Faziam restrições
às eleições diretas, ao sufrágio universal,
insinuando uma via autoritária para a reforma
do Estado e da sociedade.
Mas o caipira não crê na mudança possível. O acocorar-se que Lobato aponta é, de
alguma forma, corroborado por Cornélio Pires, mas com uma justificativa que se opõe a
modorra de que falara o primeiro. Tal justificativa é feita pela seguinte metáfora:
Excerto 13
— Isso que mecê falô eu num sei o que é: mais isso eu num sô! Puis vacê veja: —
vacê recóie um capado magro no chiquero: pincha um jacá de mio de minhã: vai simbora;
otro jacá de mio de meio dia: vai simbora; otro na bocca da noite: de minhan cedo tá
puido? O chão, tá impo...
O porco vae cumeno, vae cumeno, e vae ingordano, inté num podê mais, de gordo:
oreia caida, zóio impapuçado, buchechão estufado... Tá gordo; qué só durmi, roncá...
Vancê pincha uma espiguinha de mio cateto elle esprementa e larga; inda sobra mio na
espiga pras gallinha pinicá... Já cumeu muito... tá gordo, tá infarado; parô de cumê...
114
Esse é o imperadô... Incheu, parô de cumê... Mais coa Repurbica!... Mecê recoie
um; ante desse um ingordá, sae, entra otro...
Como se vê, a justificativa pelo acocorar-se do jeca está no fato de que, para ele, a
monarquia explora os recursos de um povo até certo limite; enquanto que o sistema
republicano favorece uma troca de representantes do povo que exploram tudo quanto
podem, já que ao findarem os quatro anos de mandato, outro entrará em seu lugar. Desse
modo, ao caipira não importa o nacionalismo que quer inclui-lo como eleitor, tampouco o
que contribui para sua marginalização; a ele o que importa é a coroa. Para sustentar seu
ponto de vista, recorre à metáfora anterior. Cândido (1993:250), contando de suas andanças
pelo interior, também nos fala de um caipira alheio à política:
115
Já no causo 15, o humor se dá especialmente porque o Joaquim Bentinho tem uma
opinião formada sobre a conjuntura política e faz a sustentação de sua tese por uma
metáfora inusitada. Assim, há um caipira apresentado com um posicionamento político, que
se omite à República por nutrir maior simpatia pela Monarquia.
116
3.6 A construção do ethos discursivo nos causos
Excerto 14 (Causo 3)
— Puis váe lá! Cumo ia dizeno, Nho Pae, eu, meu ermão, o Gabrié, compadre
Caria, Dito de Nhana, Chico de Nhá Angérca, e meu cunhado Sarafim fomo chupa fruito
no mato e porveitá pra fura as veiêra.
117
Pelo trecho acima podemos observar que o narrador tenta passar, por seu turno, uma
imagem de si que se assemelha ao caipira, isso com vistas a manter a interação e ouvir o
causo que espera poder registrar. Esse ethos de caipira é perceptível pela apropriação da
forma de tratamento Nho, incomum ao código de linguagem que afirmaria um
posicionamento de cidatino, de homem culto da cidade. Em seguida, o mesmo narrador usa
a forma o senhor, o que demonstra certo distanciamento do contador de causo e, em
momento algum, o tratará de você. Outro caipira que estava ao pé do fogo, também faz uso
de Nho.
Em outro momento, ainda no causo 3, o cunhado de Bentinho, ao ter seu nariz aparado
por um facão, assim o trata:
Excerto 15
— Num ande, rapais, ocê piza no meu nari, masgaia o nari... o meu nari de
tanta estimação!
O caipira para o homem da cidade não hesita em usar informalmente vacê para o
narrador, porém, essa forma aparenta um pouco mais de distanciamento que a forma ocê.
Vejamos um exemplo desse uso no causo 3:
Excerto 16
118
Vacê sabe: os pai de mé, abeinha do mato, tem de tudas qualidade: manda-saia,
mandaguary, tuvuna, jetahy...
Vacê chupa elle co só quente, elle sobe na cabeça que nem pinga, e dexa a
gente chucro.
Vacê sabe. . . no mato tem esses matinho mai miúdo; guainxúma, unha de
gato...
Quãno elle tá pitano, vacê vê: sorta aquela fumacêra pra riba, pró nari, que
nem chaminér...
Note-se a permanência dessa forma de tratamento em várias falas, num mesmo causo.
Isso evidencia a freqüência do uso, quase desconhecida na fala popular atual.
Outra forma também utilizada de maneira mais formal do que as até aqui mencionadas
é o mecê, sugere um distanciamento ainda maior que ocê, vacê, vancê. Retiramos um trecho
em que o narrador faz uso de mecê, novamente com o intuito de passar uma imagem de
também caipira. O excerto é retirado de um causo 8, em que Bentinho cavalgou (se assim
podemos dizer) numa anta, por vários dias:
Excerto 17
— E mecê?
— Eu no piloto... Imbico e nua corrida loca, co’a dor do anzó, garro barranco a
riba c’a canôa e tudo...
— E mecê?
— Eu no piloto!
O uso de mecê nos permite a inferência de que Bentinho era mais velho que o
narrador. Por três motivos. O primeiro é em razão do uso da forma anteriormente mostrada
119
no excerto 15, o senhor. O segundo, pela forma que agora expusemos. E terceiro, pela
forma pronominalizada que o homem do campo usa para com o homem da cidade em:
Excerto 18
Por seu turno, o caipira vê no homem da cidade um sujeito mais novo com quem
interage, fazendo uso de formas adequadas à interação com mais novos, não importando a
titulação que o outro possa ter, diferenciando-se do tratamento aos demais caipiras pelo uso
das formas vacê e vancê. O ethos mostrado pelos dêiticos nos leva a presumir certo
distanciamento do homem da cidade por ele não pertencer à comunidade rural e estar ali na
condição de visitante.
120
3.6.2 O ethos efetivo de Joaquim Bentinho
Assim, temos uma construção inicial do ethos caipira feita a partir da contraposição
a um outro discurso, essa construção se baseia na desconstrução de estereótipos já lançados
sobre homem do campo, sugerindo a ele um novo caráter. Isso nos faz repetir o dizer de
Barthes (apud Maingueneau, 2008b:13) e relacionar à apresentação de Bentinho, ao
apresenta-lo em oposição ao discurso lobatiano, o sujeito enunciador nos diz: eu sou isto
aqui, não aquilo lá. Está instaurado, então, um caráter que somado a um tom e uma
corporalidade assegurará a construção de um ethos caipira. O ethos do jeca corneliano é um
homem bucólico, trabalhador e comunicativo com seus pares, nas horas vagas. Esse fiador
nos é possível construir pelo seguinte excerto:
Excerto 19
Cada roceiro que chega do serviço, arria num canto o seu feixe de lenha, catada na
tigüera onde há pouco existiam as roças que foram colhidas.
A cenografia criada, o uso da variante lingüística nos permite dizer que o homem é
bucólico; os trechos sublinhados tornam possível a inferência de que se trata de sujeitos
121
trabalhadores; a parte negritada confirma o hábito de interagir a partir de histórias, o que
nos permite dizer serem homens comunicativos.
Como vimos no início deste capítulo, o enunciador constrói uma cenografia em que
o tempo é marcado pelo fogo constante no dia frio da fazenda. Há um tom de monótono de
repetição, de mesmice. Sempre o fogo a arder, o trabalho na roça, a feitura das refeições e a
roda, à noite, ao pé do fogo. Talvez esse ritmo lento, repetitivo é que tenha feito Lobato
usar o termo modorra ao jeca passivo e acocorado.
122
criada nos causos é mostrado outro ethos discursivo que, associados a um ethos prévio,
permitem a construção do ethos discursivo efetivo do caipira.
123
espantos nos cidatinos. Desse modo, é dito aos da cidade que o camponês já sabia das
descobertas do mundo moderno, como o fato de que carne quente pega. O causo confirma
uma faceta sábia do caipira, opondo-se ao discurso de Lobato que o vê como ignorante.
Novamente, as palavras de Leite (op. cit.:123), que tratam-se de teses cornelianas sobre o
caipira, identificadas pela autora em estudo de Conversas ao pé do fogo, confirmam a
imagem construída pelo sujeito enunciador:
124
perceber como o escritor de Tietê constrói o ethos caipira. Essa construção pode ser
representada pelo seguinte diagrama:
125
3.7 Algumas considerações sobre o código linguageiro
É bem visível que uma das marcas lingüísticas que constituem a cena genérica do
causo é o emprego da variante caipira ou, nos termos de Amaral (1920), do dialeto caipira.
A variedade lexical da obra convoca o autor, inclusive, à elaboração de um glossário para o
leitor com pouca fluência em caipirês. Nossas considerações que seguem não têm o
objetivo de gramati(cali)zar a variante caipira, como já o fizeram Amaral e o próprio
Cornélio Pires, mas perceber como o uso da variante pode contribuir para uma
configuração das cenas de enunciação e do ethos discursivo do caipira.
Excerto 20
P’ra vacê vê! Quano Deus qué, inté o cadave de um defunto revive e perobera é capais de
dá bacaxi...
Eu moro sózinho no sitio, ua capuava na vorta do riu, na invernada, lugá que, in certos
anno, dá maleite in tudo!
É notório o uso da variante que “domina” o resto do texto, dispensando até mesmo o
uso verbos dicendi e até sinais de pontuação para indicar a fala em alguns momentos. É
pelo código linguageiro, essa variante do plurilingüismo interno da interlíngua, que essa
ruptura se torna possível. Ruptura com a cenografia outrora instalada, a cena validada.
126
Percebe-se pela fala do personagem a instalação de outra dêixis empírica, bem marcada
pela variante: capuava na vorta do riu, invernada, lugá, in certos anno... Isso tudo para
criar um lugar discursivo do caos, do abandono, da distância das políticas de saúde pública;
mas, como o caipira é, antes de tudo um forte; ele resiste às doenças e adversidades, citadas
pelo código linguageiro: maleite, bixiga pipocano, micróbe, febre marella, febre arta... A
seleção lexical exagerada reforça a imunidade do caipira frente às adversidades e o
tratamento bem humorado dado a elas.
127
poupa dissabor na caminhada; que parar à
sombra da aroeirinha é ficar com o corpo
empipocado de coceira vermelha; que, quando
um cavalo começa a parecer mais comprido, é
que o arreio está saindo para trás, com o
respectivo cavaleiro; e, assim, longe outras
coisas. Mas muitas mais outras eu ainda tinha
que aprender.
Muitas outras coisas também sabe o caipira! Esse ethos da sapiência camponesa é
também construído pelo conhecimento de que ele é proprietário. O código linguageiro,
assim, reforça o valor do saber popular.
Para Joaquim Bentinho, negócio de governo é a merma coisa que criação de porco!
A comparação é sustentada por termos ligados à suinocultura camponesa. Ter um
representante do povo no poder seria o mesmo que recolher um capado magro no chiquero;
o povo, pagando os impostos, estaria tratando do porco com os jacá de mio, de minhã, de
tarde e na boca da noite. Quando o porco não quer mais comer, fica enfarado, não devora
um cateto lançado, deixando as migalhas para as galinhas pinicarem; temos aí o imperador
que se farta de tanto comer às custas do povo. Já quanto ao representante da República, o
caipira sustenta o seguinte posicionamento, sustentado por exemplificação de práticas
rotineiras de seu mundo: recolhe-se um capado e, antes mesmo de ele ingordá, sae, entra
otro... Num hai mio que chegue.
128
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cabe ressaltar que a pesquisa contribuiu para um outro olhar sobre o ethos caipira
no contexto da literatura brasileira, construído a partir de uma amostra pouco conhecida e
trabalhada no meio acadêmico. Além da novidade da amostra, foi-nos muito prazeroso
perceber o contexto sócio-histórico em que os causos emergiram, possibilitando um diálogo
instigante entre presente e passado.
Por meio de uma literatura até então distante da academia e do cânone literário nos
fez muito sentido o processo de legitimação do discurso literário através das cenas da
enunciação e a construção do ethos caipira. A verificação de como se deu a construção das
cenas englobante e genérica, permitiu-nos reconhecer o tipo de discurso literário e a
construção do gênero causo.
129
discursivo apresenta uma natureza social (pela ativação de estereótipos) e plurissemiótica
(ativados por língua e imagens).
A verdade é que o universo caipira é uma esfera discursiva ampla, rica e polêmica
que convém ser explorada. Nosso percurso aqui traçado é somente uma ínfima amostra de
um terreno muito fecundo e instigante. Mais perguntas poderão ser feitas e a AD pode
muito ajudar a respondê-las.
130
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ANEXOS
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