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CDU: 869.0(81)-3
Natalino da Silva de Oliveira
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Prof. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC MINAS) - Orientadora
______________________________________________
Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte (UFMG)
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Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre (UFMG)
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Prof. Dra. Melânia Silva de Aguiar (UFMG/PUC MINAS)
SUPLENTES:
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Prof. Dra. Maria Zilda Cury (UFMG)
_______________________________________
Prof. Dr. Antônio Geraldo Cantarela (UFMG)
Ao senhor da encruzilhada
Agradeço a Deus e aos Orixás que estão presentes em tudo que faço.
Aos meus Eguns, meus ancestrais que carrego comigo nesta performance/vida.
À minha companheira Joelma por me mostrar o que era realmente importante, por
À minha filha Mariana por alimentar minha alma, pelos abraços apertados em
À Maria Nazareth Soares Fonseca por incentivar-me e por corrigir-me com elegância e
humildade sempre.
À minha família.
Aos amigos.
É procurando pensar nessa voz emudecida, encenada pela ficção literária, que
esta tese buscará investigar as condições de enunciação do subalterno e os meios
empregados por ele para sobreviver e manterem suas identidades em situações extremas
e até mesmo desumanas. Esta estratégia é o que nesta pesquisa denominaremos estética
da dissimulação que compreende um conjunto de subterfúgios apropriados para que os
indivíduos sujeitados possam assumir, ainda que por artifícios de natureza estética, suas
subjetividades, suas culturas e suas línguas1.
1
O termo “língua” está sendo utilizado de forma abrangente para compreender elementos dos campos
10
A estética da dissimulação toma por base as discussões propostas por Eduardo
de Assis Duarte (2005, 2007), nas quais a expressão poética da dissimulação encaminha
novos pontos de vista sobre a obra de Machado de Assis, a partir do conceito de
afrodescendência. Apropriei-me de muitas das ideias do estudioso que me ajudaram a
pensar na situação dos subalternos na obra de Machado de Assis. Às considerações de
Duarte foram se agregando as reflexões de Octavio Paz (2000) e seus estudos sobre as
máscaras mexicanas, as elucubrações de Roberto Fernández Retamar (2005 [1971]) e
sua análise da personagem Caliban de Shakespeare. Somados a estes pensadores foram
conclamados outros, particularmente os que constroem teorizações sobre a
subalternidade, sobre o direito à voz, como Gayatri Chakravorty Spivak (1988) e Hugo
Achugar (2006).
O balbucio é nosso orgulho, nosso capital cultural, nosso discurso raro, nosso
discurso queer. O orgulho daqueles raros que, supostamente, não têm boca
como os planetas de Lacan e, portanto, carecem de discurso. Ou, seguindo
alguns, pior ainda, pois falam ou produzem um discurso antigo, nativo,
criollo, moderno, imitativo, derivado, carente de valor. (ACHUGAR, 2006,
p. 14)
É nesse sentido que a epígrafe de Deleuze, escolhida para figurar no início desta
Introdução, pode ser vista em estreita relação com o conceito de estética da
dissimulação que sustentará as discussões teóricas e as análises literárias encaminhadas
por esta tese. O conceito de estética da dissimulação é proposto como um desvio
caracterizado por transgressões, por tessituras escorregadias e, mais concretamente, por
construções irônicas e intertextuais que se apropriam livremente de um processo que
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vem sendo chamado por vários teóricos de canibalização2.
Este trabalho encontra nas reflexões de Retamar o porto mais seguro para
abordar este personagem-conceito ou conceito-metáfora, para utilizar os próprios termos
que ele cria. Assumir uma postura canibal diante da criação estética é, de acordo com
Retamar: “Assumir nossa condição de Caliban”, “(...) repensar nossa história a partir de
2
De acordo com José Jorge de Carvalho (2010), a canibalização tem sido concebida de diferentes modos:
a) O canibal devora o que alimenta e não está interessado com a comunidade do ser devorado; b) A
canibalização é uma forma de manter vivo (dentro das entranhas do canibal) o que foi devorado; c)
Canibalismo como incorporação ou re-contextualização, ressignificando o que foi devorado com o
objetivo de dar-lhe mais prestígio; d) O quarto e último tipo é o que mais se adequa à proposta aqui
defendida, ele ocorre quando há uma metamorfose antropofágica e o canibal passa a utilizar a pele do ser
devorado, apropriando-se de seus traços e passando até mesmo a assumir o papel do outro (passa a
performar o outro).
Nosso símbolo não é, pois Ariel, tal como pensou Rodó, mas Caliban. Isto é
algo que vemos com particular nitidez os mestiços que habitamos estas
mesmas ilhas onde viveu Caliban: Próspero invadiu as ilhas, matou a nossos
ancestrais, escravizou Caliban e o ensinou seu idioma para entender-se com
ele: Que outra coisa poderia fazer Caliban que não fosse utilizar esse mesmo
idioma para maldizer, para desejar que caísse sobre ele a “terrível praga”?
Não conheço outra metáfora mais correta para aludir a nossa situação
6
cultural, a nossa realidade. (Retamar, 2005 [1971], p. 33-34)
Este é o desvio que este trabalho almeja perseguir, o mesmo encontrado por
Caliban/canibal/caraíba para enfrentar as imposições de Próspero. O ancestral que se
procura defender nesta tese é o mesmo defendido por Retamar: o rude, instintivo e
guerreiro Caliban e não o refinado Ariel. Por mais que Ariel absorva os conhecimentos
de Próspero, ele sempre será o outro, mas jamais será o protagonista de sua própria
história. Assumir a postura estética canibal é, portanto, agir como Caliban estabelecendo
um posicionamento desviante diante de outras ideias prósperas.
5
“Asumir nuestra condición de Caliban”, “(…) repensar nuestra historia desde el otro lado, desde
el otro protagonista”.
6
“Nuestro símbolo no es pues Ariel, como pensó Rodó, sino Caliban. Esto es algo que vemos con
particular nitidez los mestizos que habitamos estas mismas islas donde vivió Caliban: Próspero invadió
las islas, mató a nuestros ancestros, esclavizó a Caliban y le enseñó su idioma para entenderse con él:
¿Qué otra cosa puede hacer Caliban sino utilizar ese mismo idioma para maldecir, para desear que caiga
sobre él la «roja plaga»? No conozco otra metáfora más acertada de nuestra situación cultural, de nuestra
realidad”.
14
O direcionamento estético com o qual esta tese buscará uma aproximação não
surge, contudo, somente de um posicionamento estilístico e sim de uma necessidade que
não se localiza apenas no fazer artístico. Há de se ter em mente que a dissimulação foi
(e em alguns casos ainda é) uma forma de sobrevivência e fora apresentada, na arte,
como forma do indivíduo manifestar sua real existência. A voz dos atores subalternos
somente se tornou possível com o desvio da fala com objetivo de fugir do controle. Este
desvio no texto machadiano estaria marcado pelo uso da ironia, ambiguidades e por
negaças que dão ao texto uma feição e sentidos escorregadios (tal como será
demonstrado nas páginas que seguem).
15
Retornando à citação que inicia esta introdução, há nela um impulso ao desvio,
algo que também é possível encontrar no conceito-metáfora Caliban, de Retamar e que
estará presente no decorrer desta tese como um eco. Expressões estéticas caracterizadas
pelo desvio serão cruciais para repensar a participação de indivíduos em situações de
subalternidade como personagens ou como autores. Os subalternos foram e são
caracterizados, na maioria das abordagens, como incapazes de se apropriarem da fala.
Partindo desta premissa, buscar-se-á até mesmo refletir sobre o silêncio como uma
realidade ambígua, ou seja, ao mesmo tempo em que é imposto, serve também como
malícia para escapar do controle. Buscando o desvio caracterizado por uma voz
subalterna audível, a estética da dissimulação, aqui proposta, se configura. Porém, esta
perspectiva estética não surge separada das demais; por sua natureza dissimulada, ela se
apropria de outras linguagens mais tradicionais para se fortalecer e tornar-se voz.
17
Reflexões sobre o conceito de Estética
7
“O juízo de gosto ou estético é universalizável: o seu objeto provoca a adesão de outros sujeitos
conscientes, na medida em que o prazer desinteressado não é uma satisfação confinada ao que
particulariza como indivíduo, mas depende da capacidade de sentir e de pensar, comum a todos os
homens” (NUNES, 2002, p.49).
8
O termo é utilizado nesta tese como um repetir irônico. Vários termos já foram utilizados para descrever
a artes de prestígio (Poética, Belo, Belas Artes, Cânone).
18
Desta forma, fica evidente que todas as vezes que houver mudanças nestes
parâmetros haverá ou deveria haver alteração nos modelos estéticos. Pois, os critérios
de valores são as diretrizes basilares que determinam a construção do limiar entre os
grupos ou as categorizações. Portanto, repensar parâmetros estéticos não é um mero
capricho de teóricos ou críticos, é sim uma necessidade diante de mudanças ocorridas
no mundo e que evidentemente afetam de forma decisiva a produção e recepção
artística.
É assim que Baumgarten, numa tentativa de construir uma ciência, uma lógica
do sensível (durante muito tempo fora empregado este termo para descrever a arte e
entre 1750 e 1800 desenvolveu-se uma teoria do belo relacionada à percepção sensorial)
determina o termo próprio para especificar o campo de estudos do belo artístico e inicia
a sua delimitação. Assim, o campo de estudos artísticos, a estética, passa a compor o
grande conjunto de estudos filosóficos.
Quase sempre são utilizados os textos de A crítica do juízo (1980) para abordar
os estudos de Kant sobre a beleza, porém as primeiras observações kantianas sobre o
problema de definição da estética e do belo estão presentes em Observações sobre o
sentimento do belo e do sublime e em Ensaio sobre as doenças mentais ambos
publicados em 1764. Nestes trabalhos há grandes avanços no entendimento do objeto da
estética separando o sentimento do belo e do sublime (“O sublime comove [rührt], o
belo estimula [reizt]” [KANT, 1993, p. 21]) e relacionando questões de natureza estética
com sentimentos humanos (sentimentos que deveriam ser evitados e outros que
deveriam ser admirados). Desde já é possível perceber a relação entre estética e ética
que será o mote do trabalho desenvolvido por Schiller em suas cartas que serão
formuladas somente em 1794. Entretanto, nem tudo pode ser encarado positivamente
nas reflexões kantianas quando as retomarmos para fortalecer o nosso objetivo de
estudo da estética. É o caso do fragmento abaixo:
9
A terceira crítica é o livro do Kant mais maduro. Neste trabalho Kant abordará a capacidade de julgar e,
portanto, a estética será o assunto principal. A crítica da faculdade de juízo é denominada terceira, pois
Kant já havia escrito anteriormente duas outras críticas: Crítica da razão pura e Crítica da razão prática.
20
Nas observações do comportamento humano em Observações sobre o
sentimento do belo e do sublime, de Kant há o emprego de critérios de valor, portanto
não estão isentas de preconceitos ou de elementos que são exteriores ao próprio objeto
analisado. Kant apresenta um caminho que deveria ser percorrido por todas as pessoas
na sociedade para que alcançassem o status de seres estéticos: Liberdade e civilidade
reforçam-se mutuamente, pois a ordem pública pressupõe o polimento das inclinações
que movem os agentes. O sentimento, aí, é a faculdade pela qual os valores se
estabilizam e se tornam compartilháveis (KANT, 1993, p. 15). Após estas conquistas, os
vícios individuais seriam sublimados pelas virtudes coletivas – refinamento popular.
Mesmo que seja possível reconhecer alguns equívocos na proposta de Kant com
relação aos estudos das personalidades ou até mesmo dos perfis de povos (equívocos
compartilhados e que não eram nem considerados pensamentos equivocados em sua
época - o preconceito contra a África e seus diferentes povos, por exemplo, era algo
comum, verdade, é só lembrar-se de Hume), cabe ressaltar que em seus estudos já havia
uma necessidade de relacionar estética, ética e cultura – tal como hoje se almeja fazer
com os Estudos Culturais.
Uma vez que o belo é o oposto do feio, trata-se de dois conceitos. Como não?
Se são dois, cada um constitui uma unidade. Isso também. [...] Nessa base,
continuei, estabeleço a seguinte distinção: de um lado coloco os que há
momentos denominaste amadores de espetáculos, os amigos das artes e os
homens práticos, e num grupo à parte os que a que nos referimos, os únicos
que fazem jus à denominação de filósofos. Em que consiste a distinção?
Perguntou. Os amadores de sons e de espetáculos, continuei, deleitam-se com
as belas vozes, as cores e as formas belas e todas as obras trabalhadas com
perfeição; porém, são de entendimento incapaz de perceber e de amar a
natureza do belo em si. É realmente o que se dá, observou. E os que são
capazes de elevar-se até ao belo e de contemplá-lo, não serão extremamente
raros? Sem dúvida. (PLATÃO, 2000, p. 267-268).
10
“O belo, num ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar ordem em suas
partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o Belo tem por condições uma certa
grandeza e a ordem. Pelo qual motivo, um ser vivente não pode ser (do) belo, se for excessivamente
pequeno... nem desmedidamente grande...” (ARISTÓTELES, s. d., cap.VII, p.250)
22
verossimilhança, do reconhecimento catártico, da representação e da experiência. O ato
de recriação da essência ou da origem que ocorre com a mimese não é privilegio do
campo das artes e sim uma representação linguística da escolha do signo que melhor
represente a coisa significada.
Os gregos identificavam a beleza com o belo clássico, mas Aristóteles parece ter
pressentido que ela apreendia outras categorias além do belo. Para ele o mundo após o
caos, passou a ser regido por uma harmonia. Uma luta entre a harmonia desejada os
destroços do caos ainda aqui existentes é fundamental em seus pensamentos. Ele inclui
o Feio no campo estético, sendo de fato não mais o objeto que ele estuda, e sim a
repercussão no espírito do contemplador. Isto é, a beleza como objeto que agrada ao
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contemplador como simples fruído. Assim, o campo do belo é ampliado agregando
outras categorias. O belo é único por sua capacidade de proporcionar conhecimento pelo
choque e a unidade na variedade também pode ser alcançada com o feio. Na filosofia
aristotélica o universo viveria como um todo harmônico que seria alcançado pelo
equilíbrio entre os destroços do caos e a ordem. Portanto, a arte também teria seus
elementos de ordem e seus elementos caóticos.
Assim, Aristóteles avança no campo dos estudos do belo quando percebe que o
modelo platônico seria inalcançável e, por conseguinte, impraticável. A realidade para
Aristóteles é o sensível que passa por uma série de abstrações inteligíveis até que
alcance o ideal universal de arte. Deste modo, a imitação não só é benéfica como passa
a ser fundamental para o processo de apreensão do belo. A experiência catártica produz
no receptor a possibilidade de experimentar e de enriquecer-se com seu caráter
pedagógico. A beleza, então, deixa de curvar-se a uma Beleza superior, ideal,
inalcançável, suprassensível. A estética aristotélica toma a imitação como representação
superior do sensível e não como reprodução imperfeita do absoluto, como fazia Platão.
O belo aristotélico é algo material palpável coordenado pelos valores de grandeza,
proporção, harmonia.
Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça
com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom
negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que
o melhor drama está no espectador e não no palco. (ASSIS, 2008, II volume,
p.282).
A reflexão kantiana sobre a beleza tem como grande contribuição a noção de que
a atribuição de valor estético a um objeto surge da relação complexa entre intelecção e
sensibilidade. É por esta relação que ao analisar esteticamente um objeto é impossível
fugir de valores subjetivos, parciais e tão efêmeros quanto a própria vivência. Para
corroborar com esta afirmação cito de forma mais esclarecedora o fragmento de Charles
Lalo:
(...) é nossa maneira de pensá-los que faz a beleza dos objetos ou das pessoas,
assim como também sua feiúra. Porque em si eles não são belos nem feios:
são o que são, e qualquer outra qualificação lhes é extrínseca e vem-lhes
exclusivamente de nós. (...) a beleza de uma coisa não se liga à natureza desta
coisa, mas ao livre jogo da imaginação e do entendimento, que pode se
produzir num contemplador por causa desta coisa, qualquer que seja a
natureza dela fora dele (LALO, 1952, p.2-3 apud: SUASSUNA, 1972, p.32-
33).
É após Kant que surge a subdivisão do campo estético e o belo passa a ser uma
das categorias do campo juntamente com o sublime. Nesta nova categorização que
surge também a questão do que seria belo, já que a mesma palavra abriga elementos tão
distintos. De acordo com Bruyne: “A arte não produz unicamente o belo, mas também o
feio, o horrível, o monstruoso. Existem obras-primas que representam assuntos
horríveis, máscaras terrificantes, pesadelos que enlouquecem.” (BRUYNE, 1930, p.41
apud: SUASSUNA, 1972, p.23). Kant já percebera a necessidade de se repensar a noção
de belo ampliando o conceito e incluindo o feio em sua concepção.
Para Kant, o belo é como o bem. Porém, as duas categorias não podem ser
fundidas, não são a mesma coisa e nem uma decorre da outra. O sentimento do belo é
desinteressado, é partilhável, é livre (ou deveria ser). O belo pode proporcionar fruição
por sua simples forma, mas o prazer verdadeiro surge na recepção, na capacidade de
compreensão, apreensão, na construção de um conhecimento. O sublime não provoca
fruição, ele oprime, aprisiona. Diante de uma sublime beleza contempla-se calado, o
espírito emudece-se. A arte, por sua vez, estimula, liberta. Este poder didático do belo
também pode ser encontrado na filosofia estética de Hume – o caminho da educação do
espírito livre para a apreciação do objeto artístico.
Schiller, por sua vez, busca inspiração em Kant principalmente na doutrina dos
26
costumes, ou seja, nas elucubrações de Kant sobre a relação entre moral e razão
objetivando encontrar uma relação entre virtude e gosto, sensibilidade e moral, estética
e valores. Contudo, o prazer livre e desinteressado presente em Kant é motivo de crítica
em Schiller. A beleza schilleriana precisa ser virtuosa e não há juízo sem pré-juízo, ou
seja, julgar é consequentemente tomar partido, expor-se. E, por isso, Schiller não
distingue eticidade (die Sittlichkeit), o ético (das Sittliche) e a moralidade (Moralität),
ou o sentimento estético (Schönheitsgefühl) e o gosto (Geschmack).
Para Schiller, a estética seria uma forma efetiva de se alcançar a ética. Sendo
assim, o conhecimento do belo poderia mudar o homem em sua essência, transmutar
vícios em virtudes, pois o objeto artístico teria o poder de afetar as sensações humanas
tornando-se perceptível pela inteligência e, portanto, afetando as emoções (patética).
Todo este processo de experiência estética é mediado pela linguagem que se constitui
como o verdadeiro exercício de apreciação artística por não haver outro meio de
apreender e/ou dividir a consciência daquilo que é belo. Kant defende que por meio da
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percepção estética, há a possibilidade de libertação das prisões conceituais. Isto se dá,
pois na filosofia kantiana a maioridade da razão também pode ser alcançada por meio da
apreciação estética. Por isso, a filosofia kantiana é tão importante para o
desenvolvimento da estética schilleriana. A apreciação estética não exige que o
contemplador possua conhecimento técnico, portanto possui capacidade abrangente e
possui caráter formador. Schiller compreende esta característica da estética e se apropria
desta para construir sua filosofia pedagógica da estética. É possível perceber, então, que
Schiller buscou refletir bastante sobre os trabalhos kantianos, em particular os
desenvolvimentos sobre estética e sobre razão prática. A divergência se dá quando Kant
defende a liberdade, a fruição livre. É sobre estes pontos divergentes que ele alerta
quando aborda a utilidade da moral nos costumes estéticos e quanto menciona os
perigos dos costumes estéticos.
11
“Foi Baumgarten quem denominou de estética a ciência das sensações, esta teoria do belo. Só aos
alemães esta palavra é familiar. Os franceses dizem théorie des arts ou des belles lettres. Os ingleses
incluem-na na critic. Os principais críticos de Home gozaram de grande voga no tempo em que este autor
publicou sua obra. Na verdade, o termo estética não é o que mais propriamente convém” (Hegel, 2000,
28
e às reflexões sobre o belo de origem alemã. Também faz uma inversão interessante se
comparadas à estética hegeliana e a kantiana: Hegel diante da dicotomia entre o belo da
natureza e o belo artístico considera o último superior. Porém, segue defendendo a ideia
kantiana de que a estética é tarefa da filosofia e denomina a reflexão sobre o belo como
filosofia das belas artes.
A arte e suas obras, decorrentes do espírito e geradas por ele, são elas
próprias de natureza espiritual, mesmo que sua exposição acolha em si
mesma a aparência da sensibilidade e impregne de espírito o sensível. Neste
sentido, a arte já está mais próxima do espírito e de seu pensar do que da
natureza apenas exterior e destituída de espírito (...). No entanto, se as obras
de arte não são pensamento e conceito, mas um desenvolvimento do conceito
a partir de si mesmo, um estranhamento na direção do sensível, então a força
do espírito pensante reside no fato de não apenas apreender a si mesmo em
sua Forma peculiar como pensamento, mas em reconhecer-se igualmente em
sua alienação no sentimento e na sensibilidade. (HEGEL, 2001, p. 36-37 –
grifo nosso).
Hegel, embora possa parecer, não retoma o idealismo platônico. Platão pensava
em um mundo ideal, o das ideias, onde residia a estética. Hegel, por sua vez, defende
que o belo é de ordem espiritual. Contudo, este belo espiritual está relacionado ao
campo subjetivo e, portanto, não é inerente ao objeto, não e de ordem material. Há na
estética hegeliana um esforço que vai além da matéria, pois, em sua filosofia, o
fenômeno estético e verdadeiro conteúdo do belo seria o espírito. E neste ponto estaria a
superação do objeto estético que consegue ultrapassar sua materialidade e alcançar o
sensível: o campo subjetivo da existência humana.
34).
29
No século XX a questão torna-se mais complexa com as releituras e valorização
das reflexões nietzschianas sobre a crítica da metafísica. Assim, os teóricos nutrem uma
verdadeira aversão contra os essencialistas que se mantiveram durante muito tempo
como norma, modelo, e leitura obrigatória para o estudo do objeto artístico. A
complexidade e as desavenças apresentadas neste período fazem com que seja
desencadeada uma crise (abalos nas bases do pensamento) na forma de pensar a estética,
crise esta que é fruto de alterações no próprio fazer artístico fruto de elaborações
artísticas desencadeadas pelas vanguardas.
A crise pode ser comprovada pela presença massiva, em trabalhos atuais sobre
estética, da defesa da necessidade pungente de se repensar a disciplina (talvez o termo
que nomeia o campo já nem seja adequado, tal como já afirmara Hegel). Atualmente, a
denominação é considerada inadequada, pois é muito limitada levando-se em
consideração que, no conceito de estética, há uma variedade de saberes, intenções e de
mídias. Também há a controversa aparição das mais variadas discussões e estudos que
analisados profundamente objetivam o retorno aos estudos iniciais de Baumgarten, ou
seja, a estética enquanto percepção sensorial.
31
ainda serão e até mesmo os que já foram produzidos.
As mudanças que são geradas não são de forma alguma gratuitas ainda que não
sejam aplicadas conscientemente pelos respectivos criadores. Porém, ainda que sejam
necessárias e naturais, surgem problemas no que tange à avaliação deste produto. Como
avaliar, como armazenar, como manipular, como interpretar e hierarquizar estes novos
processos de apresentação e os novos produtos artísticos? Novos procedimentos e
abordagens são essenciais para lidar com as reconfigurações do campo estético. E o que
se observa é a reação contrária à mudança de posicionamentos conservadores que
tentam impor barreiras desqualificando e desvalorizando novas investidas artísticas.
12
Entendo reciclagem a partir da conceitualização feita por Klucinskas & Moser: Caracterizariam a
reciclagem deslocamentos espaciais e temporais de objetos estético-culturais, abarcando um processo que
consiste em várias fases de um gesto que comporta ao mesmo tempo repetição e transformação.
(KLUCINSKAS & MOSER, 2007, P. 17)
13
Mencionar estes fatos é só uma forma de ilustrar os questionamentos que sofreu a arte na época das
manifestações mencionadas acima. Contudo, estes golpes não conseguiram abolir os critérios de valor
presentes em qualquer tempo. Mas, deixou claro que estes critérios podem ser alterados e que o que
define a arte é a intenção e em alguns casos o projeto (principalmente se o foco é a arte contemporânea).
32
oportunidade de revitalização e de redefinição do mundo da arte.
(KLUCINSKAS & MOSER, 2007, P. 21)
Os teóricos mais saudosistas podem seguir pensando que o que há hoje não é
arte. Podem continuar buscando a verdadeira arte de nossos dias, embora,
provavelmente só pense encontrá-la no passado. Sendo assim, possivelmente, poderá
não encontrar o que busca. Enquanto não reconhecer no “novo” algo complexo e que
mereça ser analisado de forma reflexiva, não encontrará “novos” parâmetros analíticos,
estará perdido num lapso temporal, num tempo do já-não-é-mais, viverá num castelo de
ar almejando encontrar os alicerces basilares de uma arte que se apresenta em sua forma
gasosa.
A faculdade de sentir não legisla sobre objetos; [...] o senso comum estético
não representa um acordo objectivo das faculdades (isto é: uma submissão de
objectos a uma faculdade dominante, a qual determinaria ao mesmo tempo o
papel das outras faculdades relativamente a estes objectos), mas uma pura
harmonia subjectiva onde a imaginação e o entendimento se exercem
espontaneamente, cada qual por sua conta. Por conseguinte, o senso comum
estético não completa os outros dois [o senso comum lógico e o senso
comum moral]; funda-os ou torna-os possíveis (DELEUZE, 1987, p. 56-57,
grifo do autor).
Deste modo, chegar-se-á a nada simples conclusão de que por mais que os
estudos de estética e filosofia se afastem de seus umbigos sempre acabará retornando
àquela eterna maldição de morder a própria cauda, como se expressa na simbologia
alquímica do oroboro. A construção de conteúdos tautológicos é viciosa e mesmo
parecendo sem sentido, é sim produtiva, destarte absurda (como a tarefa de Sísifo).
Mas toda a ciência desta Terra não me dirá nada que me assegure que este
33
mundo me pertence. Vocês o descrevem e me ensinam a classificá-lo. Vocês
enumeram suas leis e, na minha sede de saber, aceito que elas são
verdadeiras. Vocês desmontam seu mecanismo e minha esperança aumenta.
Por fim, vocês me ensinam que este universo prestigioso e multicor se reduz
ao átomo e que o próprio átomo se reduz ao elétron. Tudo isto é bom e espero
que vocês continuem. Mas, me falam de um sistema planetário invisível no
qual os elétrons gravitam ao redor de um núcleo. Então percebo que vocês
chegaram à poesia: nunca poderei conhecer. (CAMUS, 2010, p.33)
34
O olhar exterior e a necessidade de se repensar a estética
Mesmo que não queiram, a divisão simplista entre primeiro e terceiro mundos
extrapola o âmbito da relação econômica e contamina as relações estéticas e culturais.
As antigas oposições entre metrópole e colônia, centro e periferia, ressurgem,
sorrateiramente, comprometendo até mesmo as mais, aparentemente, ousadas
produções. Isto pode ser percebido na tentativa de colocar expressões culturais e
artísticas tão díspares e até mesmo contraditórias a mesma etiqueta: artes e expressões
do terceiro mundo ou periféricas.
35
Politicamente alguns países assumem o discurso da ausência de diferenças.
Entretanto, na prática não é isto que observamos no cotidiano, nas ruas, em situações
corriqueiras e comuns. Reconheço que ser negro-mulher-homossexual-indígena14 em
determinados países seja diferente de negro-mulher-homossexual-indígena em outros e
ainda que se perceba que ser negro-mulher-homossexual-indígena pobre ou analfabeto
seja diferente de ser negro-mulher-homossexual-indígena rico ou com formação
acadêmica. Ainda assim estas relações de diferença existem, a discriminação existe em
variados níveis, disfarçada ou descaradamente assumida em diversas partes do globo.
14
O termo apresentado com traços indica uma crítica irônica à visão preconceituosa que coloca
indivíduos com características e histórias de luta tão diferentes numa única designação: minorias. Ao
mesmo tempo me aproprio da designação de forma positiva unindo este grupo não por suas características
tão particulares, mas sim pelo preconceito sofrido.
36
Estética da dissimulação
Olá! Negro
Olá, Negro!
Olá, Negro!
37
Jazzes,
songs,
lundus...
Apanhavas com vontade de cantar,
choravas com vontade de sorrir,
com vontade de fazer mandinga para o branco ficar
bom,
para o chicote doer menos,
para o dia acabar e negro dormir!
Não basta iluminares hoje as noites dos brancos com
teus jazzes,
com tuas danças, com tuas gargalhadas!
Olá, Negro! O dia está nascendo!
O dia está nascendo ou será a tua gargalhada que vem
vindo?
Olá, Negro!
Olá, Negro!
(LIMA, 1958, p.180)15
15
O poema foi utilizado apenas para retratar a ideia de dissimulação e foi apropriado e interpretado nesta
tese com um foco irônico ("com vontade de fazer mandinga para o branco ficar bom"). Ainda assim,
há que se reconhecer que Jorge de Lima em outros poemas retrata o negro de forma bem distante da
defendida neste trabalho.
38
vindo? Antes de tentar responder esta pergunta, este trabalho se concentrará na reflexão
sobre uma nova conceitualização estética: a Estética da Dissimulação.
39
outros pesquisadores de forma isolada ou sem a conexão que estabeleceu o pesquisador
Eduardo Duarte. É certo que muitos trabalhos críticos sobre Machado de Assis apontam
a ironia, o sarcasmo, as litotes, os binarismo e a preterição como recursos de
dissimulação habilmente utilizados pelo escritor em seus textos. Porém, a grande
contribuição de Eduardo Duarte está no reconhecimento da relação entre o estilo
machadiano e sua afro-descendência, entre estilística e a ética autoral (o que esta tese
denomina como performance autoral) que os textos machadianos exibem. Poder-se-ia
nomear o uso desses recursos como uma “poética” ou também percebê-los como
estratégias próprias de uma estética que assumiria os sentidos (e as estratégias) de uma
experiência artística de efeitos poderosos alcançados com o uso de determinados
recursos como os já assinalados.
Talvez, a utilização do termo tenha sido uma saída utilizada por ASSIS
DUARTE para abordar a literatura machadiana sem usar o conceito de estética. A
estética enquanto filosofia do belo está carregada de categorias que podem ser
interpretadas como desgastadas ou limitadas pela própria utilização. Contudo, é
prudente reiterar que o termo poética também apresenta suas limitações interpretativas
provenientes da solidificação de sua utilização e nestas condições, ele: "(...) não só
tende a ser intérprete das necessidades espirituais e dos movimentos culturais de uma
época, como também se revela particularmente sensível às condicionantes do poder e da
ideologia dominantes". (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p. 283). O uso
40
de poética também pode estar relacionado à intenção de apresentar a literatura de
Machado de Assis como algo único. O termo, portanto, também pode ser apresentado
como alusivo a elementos da obra de um escritor ou de objetos artísticos de
determinado autor.
Sendo assim, esta tese defende a utilização do termo estética por sua
abrangência e por ser muito mais pungente do que as suas próprias limitações. A sua
utilização, porém, deve concretizar-se: "numa acepção generalizada, indicando a
filosofia do belo e da arte independentemente das circunstâncias de tempo e lugar, é
uma operação que prescinde da natureza determinadamente histórica do conceito."
(CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.110). Portanto, as utilizações da
denominação estética nesta tese levarão em consideração esta acepção generalizada do
termo.
41
Para Walter Benjamin, a perda da AURA que a arte sofre na moderna
sociedade de massas desloca o seu centro de gravidade da dimensão do
"culto" e do "ritual" para a dimensão da prática "política". Nesta passagem, a
estética intervém a dois níveis: adquirindo um carácter político, acentuando,
portanto, a sua função crítica em relação aos poderes estabelecidos mesmo
não tendo intenções programáticas específicas; ou então, fazendo com que a
política renuncie às suas prerrogativas críticas e amplie as formas de
"exposição" do poder até se tornar pressuposto indispensável aos mecanismos
que, historicamente, deram vida a fenómenos como o fascismo (Opera).
(CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.114)
42
sofrendo alterações. Por isso, serão apresentadas as categorizações e aspectos do
significado que estão relacionados com as ideias defendidas neste trabalho sobre valor
estético, objeto estético, cânone.
43
fala-se de cânone para indicar um corpus de obras reconhecidas como
autênticas. 3) (…) cânone entendido como o conjunto das obras (literárias,
artísticas) a que determinada tradição reconhece um valor particular (…).
(…) o cânone não tem bases estéticas, mas sim ideológicas (…). (CARCHIA,
Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.60)
16
"Simulação e/ou dissimulação: reflexão sobre a estética em Memórias póstumas de Brás
Cubas e As visitas do Dr. Valdez" (OLIVEIRA in Scripta, V. 16, n. 31, p. 119-138, 2º Semestre 2012) e
"Maldito Tango: Disimulación y traición en Boquitas pintadas de Manuel Puig" (OLIVEIRA in
Literatura: teoría, historia, crítica. Vol. 14, n. º 2, julio - diciembre de 2012 ISSN (impreso) 0123-5931 -
(en línea) 2256-5450 www.literaturathc.unal.edu.co). No primeiro artigo há uma análise dos romances
Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis e As visitas do Dr. Valdez de João Paulo Borges
Coelho com a distinção entre o que seria a simulação e a dissimulação comparando as personagens
Prudêncio de Machado de Assis e Vicente de Coelho; No segundo há a abordagem do romance Boquitas
pintadas de Manuel Puig tentando demonstrar os processos dissimuladores desenvolvidos pelo autor na
intenção de aproximar cultura popular e cultura letrada relacionando as canções de tango e a literatura.
44
A estética da dissimulação, portanto, não se encontra presa aos objetos ditos
estéticos, ela também se faz presente enquanto estética da existência em vivências
performáticas, nos posicionamentos, nas posturas corporais, no pacto social, na História
e nos testemunhos, nas máscaras utilizadas para simular e dissimular. Por isso, o termo
poética limitaria as incursões feitas por esta pesquisa. E, ainda que, ao se propor uma
Estética da dissimulação na literatura de Machado de Assis, filiada às discussões
propostas pelo trabalho de Eduardo Duarte, o caminho percorrido nesta tese é outro,
diferente, mas com o mesmo teor político herdado do primeiro.
45
A abordagem da reciclagem artístico-cultural, aqui almejada, leva em
consideração alguns aspectos, no campo de análise crítica concernente aos romances de
Machado de Assis e coloca em evidência a dimensão recicladora de ressignificação de
elementos estilísticos e temáticos canonizados e de matriz europeia na construção
literária do autor brasileiro; já no campo teórico observa-se no que tange às estratégias
de revalorização17, de montagem e de sampling18 da teoria estética tradicional.
17
Refere-se à alteração de critérios de valores.
18
Sampling é uma técnica desenvolvida a partir de novas tecnologias digitais que permite utilizar uma
base de qualquer música para criar uma nova. Os elementos da música anterior são mantidos e novos
elementos são acrescentados gerando alterações que em alguns casos provocam uma mudança tão radical
que a nova música acaba fazendo apenas uma alusão à primeira. Desta forma me aproprio do termo tal
como fez Klucinskas & Moser, para pensar a estética.
46
O “verdadeiro” Machado de Assis, sua subjetividade, jamais será encontrada
escancarada em seus textos. Ele se encontra submerso sob seus disfarces, o mais
encolhido dos caramujos. Em seus textos, nem mesmo as suas personagens são
conhecidas em profundidade pelo leitor – são personas, pessoas de papel, por isso são
tão complexas – e esta complexidade afasta os que leem de suas intimidades, pois elas
também atuam no grande palco da existência.
A terceira voz19 (que esta tese objetiva encontrar) apresentada em seus romances
não é a voz autoral (da pessoa do autor) – é a voz do autor-função que representa muito
mais do que só uma personalidade. Esta função está marcada pelo local ocupado
(enunciação), modo em que vive, recepção dos textos e sensibilidade dos leitores. Esta
sim é possível ser buscada na rede estrutural e semântica da escrita.
Estas vozes não conseguiriam sobreviver se não fosse o desejo íntimo dos
sujeitos que tiveram podados seus direitos de existir. A arte nestes momentos passa a
assumir a trágica função de estética da existência propiciando para os subalternos uma
19
Assunto a ser tratado em capítulo específico.
47
alternativa: fazer de suas vidas uma expressão artística, uma performance da
sobrevivência. Por isso, a seção posterior abordará de modo particular a estética da
existência como subterfúgio empregado com objetivo de manter vivas as vozes
subalternas.
48
O cuidado de si ou a arte da existência
(...) estas devem ser entendidas como as práticas racionais e voluntárias pelas
quais os homens não apenas determinam para si mesmo regras de conduta,
como também buscam transformar-se. Modificar-se em seu ser singular, e
fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e
que corresponda a certos critérios de estilo. (FOUCAULT, 2004, p. 198-199).
49
obra artística. É exatamente este o esforço de Foucault, reativar os traços antigos da arte
clássica para amenizar o vazio existencial presente: “Eis o que tentei reconstituir: a
formação e o desenvolvimento de uma prática de si que tem como objetivo constituir a
si mesmo como o artesão da beleza de sua própria vida” (FOUCAULT, 2004, p. 244).
O problema das relações entre o sujeito e os jogos de verdade havia sido até
então examinado por mim a partir seja de práticas coercitivas..., seja nas
formas de jogos teóricos ou científicos... em meus cursos no Collège de
France, procurei considerá-lo através do que se pode chamar de uma prática
de si, que é, acredito, um fenômeno bastante importante em nossas
sociedades desde a era greco-romana, embora não tenha sido muito estudado.
Essas práticas de si tiveram, nas civilizações grega e romana, uma
importância e, sobretudo, uma autonomia muito maior do que tiveram a
seguir, quando foram até certo ponto investidas pelas instituições religiosas,
pedagógicas ou do tipo médico e psiquiátrico. (FOUCAULT, 2004, p. 264-
265)
20
O conto "Espelho" está acompanhando de um subtítulo: "Esboço de uma nova teoria da alma humana".
O subtítulo não poderia ser o mais apropriado. Nesta narrativa, Machado de Assis apresenta sua
teoria, sua análise da sociedade de aparências. O narrador afirma que temos duas almas e que há casos
em que a perda da alma exterior (máscara) implica a perda da existência. Há indivíduos, portanto, que
possuem em sua essência apenas a máscara e perdendo esta, perdem tudo. As pessoas que possuem
apenas a máscara representam a simulação e aquelas que possuem máscara ou alma exterior e
conseguem manter a alma interior são as que dissimulam. Outro conto do autor que pode facilitar o
entendimento destas duas almas é "Teoria do medalhão", não por acaso os dois contos carregam em
seus títulos o termo "teoria". Em "Teoria do medalhão", um pai dá conselhos ao filho e o tenta
persuadir a seguir a carreira de "medalhão" e de "medalhão completo", ou seja, viver de aparências.
52
A queda nas práticas dos cuidados-de-si foi drástica para a filosofia e
principalmente para as relações do sujeito consigo mesmo e com o outro. O conhece-te
a ti mesmo cartesiano não foi uma prática-de-si e se configurou mais como um
individualismo do ser que se isola ao passo que a epiméleia heatoû necessita da
alteridade para produzir conhecimento. O cristianismo também corroborou para a
defasagem da busca do conhecimento de si, pois no método cristão prevalece a auto-
anulação e um retorno à menoridade, posto que o indivíduo coloca toda a
responsabilidade de sua vida em Deus ou em Cristo.
53
A voz subalterna
Y es tanta la tiranía
De esta disimulación
Que aunque de raros anhelos
Se me hincha el corazón,
Tengo miradas de reto
Y voz de resignación.
21
(ALFONSO REYES, 1959, p. 68)
21
“E é tamanha a tirania / Desta dissimulação/Que ainda que as raras lembranças/ Façam palpitar meu
coração/ Tenho olhar desafiador/ E voz de resignação.”
54
necessário deixar claro que os Estudos Subalternos já possuem uma gama bem
diversificada de pensadores de renome e que devem ser mencionados. Para isso é
importante mencionar que há dois grupos mais importantes: 1) Grupo Latino em que os
pensadores mais influentes são os críticos: John Beverly, Robert Carr, Jose Rabasa,
Ileana Rodriguez, Javier Sanjines (fundadores do grupo em 1992); 2) Grupo Sul-
Asiático que possui como pesquisadores mais conhecidos os nomes de: Ranajit Guha,
Gayatry Spivak e Dipesh Chakrabarty.
22
Two senses of representation are being run together: representation as “speaking for”, as politics, and
representation as “re-presentation” as in art or philosophy. Since theory is also only “action”, the
theoretician does not represent (speak for) the oppressed group. [… ] These two senses of representation-
within state formation and the law, on the one hand, and in subject-predication, on the other-are related
but irreducibly discontinuous (SPIVAK. Can the subaltern speak? p.275).
55
Como o subalterno é representado na literatura? Seria possível ouvir sua voz23? (o
subalterno que é objeto desta tese é aquele representado na obra de Machado de Assis (e
que pode ser representativo de um contingente de indivíduos que viveram no Rio de
Janeiro do século XIX em situações de subalternidade): negro [escravizado ou o
alforriado dependente], o agregado, a mulher). Respondi, de forma ligeira, o
questionamento da voz em parágrafo acima. Sim, é possível o subalterno falar. Só que
para isso é necessária toda uma série de instrumentos que são mais facilmente
empregados no meio artístico e literário. A este conjunto de recursos que possibilitam
que a voz subalterna seja ouvida denomino: Estética da dissimulação.
23
A relação de dependência é caracterizada pelo silêncio. A voz que menciono não é o puro som emitido
pelas cordas vocais, é algo mais complexo. Voz e fala são categorias políticas que estão relacionadas ao
poder de autonomia do sujeito em manifestar seus pensamentos.
56
(...) à luz dos temas antigos relacionados ao cuidado de si, ao trabalho de si
sobre si, Foucault propõe uma arte de viver, uma estética da existência, um
estilo de vida, que não reproduziria, evidentemente, os exercícios espirituais
da Antiguidade, mas que abriria ao sujeito a possibilidade de se constituir na
liberdade, em oposição aos poderes exteriores. (...) O que caracteriza mais
particularmente a noção que Foucault tem do cuidado de si é, talvez, a
introdução da perspectiva estética, a de uma existência que se cria como um
objeto de arte (HADOT, 1996, p. 22).
É desta forma que Octavio Paz observará a realidade cultural mexicana. O povo
mexicano, assim como todos os povos das Américas, foi formado pelo processo
traumático da colonização. Neste processo, o povo indígena (povo autóctone) sofreu
demasiadamente com as mais variadas formas de violência. Este fato histórico marcará
profundamente o modo de ser e de agir deste povo. A dissimulação fará parte das
estratégias de existência utilizadas por eles durante todo o processo de colonização e até
mesmo posteriormente:
24
Talvez a dissimulação tenha nascido durante A Colonização. Índios e mestiços tinham, como no poema
de Reyes, que cantar quieto, pois “entre dentes mal se escutam palavras de rebelião”. O mundo colonial
desapareceu, mas não o temor, a desconfiança e o receio. E agora não somente dissimulamos nossa
cólera, mas também nossa ternura. Quando pede desculpas, a gente do campo costuma dizer: “Dissimule
senhor”. (OCTAVIO PAZ, 2000, P. 47)
57
passa é o de simulação, o de imitação dos modelos considerados de prestígio. Assim, o
indivíduo na condição de subalterno passa a ser um espelho que reflete as atitudes de
classes dominantes. Em muitos casos ela se torna um hábito tão arraigado culturalmente
que passa a fazer parte da própria identidade. Nestes casos, fica complicada a passagem
do estágio simulador para o estágio dissimulador.
25
A simulação, que não vem de nossa passividade, mas ao contrário exige uma invenção ativa e que se
recria a si mesma a cada instante, é uma de nossas formas de conduta habituais. Mentimos por prazer e
fantasia, sim, como todos os povos imaginativos, mas também, para ocultar-nos e colocar-nos ao abrigo
de intrusos. (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 44)
26
O simulador pretende ser o que não é. Sua atividade reclama uma constante improvisação, um ir
adiante sempre, entre areias movediças. A cada minuto é precisa refazer, recriar, modificar o personagem
que fingimos, até que chega um momento em que realidade e aparência, mentira e verdade, se
confundem. De tecido de invenções para deslumbrar ao próximo, a simulação se transforma numa forma
superior, por artística, da realidade. Nossas mentiras refletem, simultaneamente, nossas carências e nossos
apetites, o que não somos e o que desejamos ser. Simulando, nos aproximamos de nosso modelo e às
vezes o gesticulador, com já observou com profundidade Usigli, se funde com seus gestos, os faz
autênticos. (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 44)
58
E, como acentua Paz, “Esclavos, siervos y razas sometidas se presentan siempre
recubiertos por una máscara, sonriente o adusta27” (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 78). Só
que em algumas situações, a simulação precisa ocorrer de forma muito intensa. Para que
o individuo seja realmente ator de suas ações, ele precisa atuar. O sofrimento surge no
momento em que o simulador alcança o auge do processo (momento em que ele pode
avançar para o estágio de dissimulação ou não) e a máscara quase que se funde em seu
ser – a observação e repetição o levaram a aperfeiçoar tanto suas atitudes que já é
possível improvisar – o estágio do “ser como”. Ainda neste momento, o simulador
possui real consciência de sua situação, de sua condição e de suas identidades. Ele,
ainda que mimetizando todos os gestos, reconhece sua condição de espelho.
27
Escravos, servos e raças subjugadas se apresentam sempre cobertos por uma máscara, sorridente ou
séria (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 78).
28
A simulação é uma atividade parecida com a dos atores e pode expressar-se em tantas formas conforme
o número de personagens que fingimos. Mas, o ator, se é realmente um ator, se entrega a sua personagem
e a encarna completamente, ainda que depois, terminada a representação, a abandone como a serpente
abandona sua pele anterior. O simulador jamais se entrega e se esquece de si, pois deixaria de simular
caso viesse a fundir-se com a imagem. Ao mesmo tempo, essa ficção se converte em uma parte
inseparável – e espúria – do seu ser: está condenado a representar toda sua vida, porque entre sua
personagem e ele se estabeleceu uma cumplicidade que nada é capaz de romper, exceto a morte ou o
sacrifício. A mentira se instala em seu ser e se converte no fundo último de sua personalidade (OCTAVIO
PAZ, 2000, P. 46).
59
identidades. Assim, ele passa para o segundo estágio: a dissimulação (o termo não está
sendo utilizado aqui com sua carga de negatividade, dissimular é sobreviver sem deixar
de ser). A dissimulação é o estágio posterior à simulação. Dissimular é não chamar a
atenção, é não chocar. Deste modo, é possível ocupar lugares, assumir posições. Isso só
ocorre, pois o dissimulador (aparentemente) não coloca em perigo o status quo social.
29
Simular é inventar, ou melhor, aparentar e assim iludir nossa condição. A dissimulação exige maior
sutileza: o que dissimula não representa, mas quer fazer-se invisível, passar inadvertido – sem renunciar
seu ser. O mexicano excede na dissimulação de seus sentimentos e de si mesmo. Temeroso do olhar
alheio, se contrai, se reduz, se converte em sombra e fantasma, eco. Não caminha, se desliza; não propõe,
insinua; não replica, resmunga; não se queixa, sorri; até mesmo quando canta – se é sincero e abre o
coração – o faz entre os dentes e com voz trêmula, dissimulando seu cantar.
60
crânio da onça o jabuti fez seu escudo" (CALLADO, 1977, p.287).
61
Estratégias de dissimulação: literatura brasileira e literatura
afrodescendente
Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a
lei, que a Regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí, eu, o
mais encolhido dos caramujos, também entrei no préstito, em carruagem
aberta (...). Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra
30
ter visto. (ASSIS, “A semana” 14/02/1893).
Como se sabe, Machado foi identificado, pelo crítico Harold Bloom, como o
maior escritor negro de todos os tempos (declaração que chocou muitos críticos
brasileiros – a afrodescendência do fundador da Academia Brasileira de Letras
30
O pequenino fragmento apresentado acima (da ilustre obra de Machado de Assis) é uma mônada do
trabalho desenvolvido nesta tese, pois dele nasceram as reformulações que serão defendidas ao longo
deste trabalho. A crônica acima me foi apresentada em época já distante, quando iniciei meu curso de
Letras na Universidade Federal de Minas Gerais, pelo professor Eduardo Assis Duarte.
31
Tomando posição explicitamente benjaminiana, Zila Berndt defende a necessidade de “pentear o pelo
no sentido inverso ao do seu crescimento (...): ler a história literária não como uma totalidade fechada,
mas como possibilidade. Percebe-la permanentemente inacabada deverá permitir que autores ou
movimentos possam transitar da esfera da sombra para a esfera da consagração”. (BERND, 1988, p.16)
Posição assumida também por Eduardo Assis Duarte: “A conformação teórica da literatura “afro-
brasileira” ou “afrodescendente” passa necessariamente pelo abalo da noção de uma identidade nacional
una e coesa. E, também, pela descrença na infalibilidade dos critérios de consagração crítica presentes nos
manuais que nos guiam pela história das letras aqui produzidas”. (DUARTE, Literatura e
afrodescendência in:
www.acaocomunitaria.org.br/discussoes_tematicas/literatura_e_afro_descendencia.pdf
acesso em 20 de abril de 2012).
62
reconhecida por um renomado professor e crítico literário norte-americano). Mas cabe
ressaltar que de suas produções literárias, são em suas crônicas e contos que
encontramos de forma mais evidente a presença de sua negritude.
O teor crítico surge principalmente na imprensa, nos jornais, sendo que o autor se
apresentava através de pseudônimos (o escritor assumiu vários pseudônimos em seu
fazer jornalístico: Lélio, na seção “balas de estalo”; João das Regras, em A+B;
Malvólio, na “Gazeta de Holanda”; Boas Noites, na seção “Bons Dias”; Policarpo, em
“Crônicas do Relojoeiro”; Dr. Semana, na “Semana Ilustrada”, e outros). Geralmente
utilizando, em seus contos, a voz de narradores brancos, como Coutinho do conto
“Mariana”, o autor desmascara o universo escravocrata brasileiro.
32
“[Machado] exprimia-se como um escritor branco que não sentisse o mínimo de sangue negro correndo
em seu coração. É o patrono da Academia Brasileira de Letras, numa prova de sua branquitude de
inspiração, ficando à margem e pouco se preocupando com movimentos sociais do seu tempo, com a
Abolição e a República”. (RODRIGUES, 1997, p.256).
33
Em um ensaio intitulado Instinto de Nacionalidade, Machado de Assis diz que "o que se deve exigir do
escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo que o torne homem de seu tempo e país, ainda quando
trate de assuntos remotos e no espaço".
34
O falso liberalismo ou liberalismo de fachada é posição defendia por Roberto Schwarz em suas obras.
63
incontestável e entronizava a cultura branca, ocidental e cristã. A tese da inferioridade
genética de negros e mestiços estava presente até mesmo num texto que tinha como
objetivo fazer a propaganda brasileira na Europa (o texto de Arthur Gobineau,
representante diplomático do governo francês que residiu na Corte na época de
Machado e se tornou amigo de D. Pedro II – defendia a ideia de que os mulatos não
conseguiam se reproduzir além de certo número de gerações – tese da esterilidade).
O homem das letras, assumindo cargo estatal necessita intimamente assumir sua
Negritude35 e ironicamente confrontar a sociedade e o próprio Estado brasileiro neste
momento tão triste de nossa história. A escravidão era a base da ordem imperial,
chegando a ser defendida e admitida por alguns intelectuais, situação que revela a
hipocrisia da classe pensante do país.
35
Negritude (Négritude em francês) foi o nome dado a uma corrente literária que agregou escritores
negros francófonos e também uma ideologia de valorização da cultura negra em países africanos ou com
populações afrodescendentes expressivas que foram vítimas da opressão colonialista. A posição de
negritude é totalmente diferente da posição negrista. Enquanto a primeira é uma atitude de valorização do
povo negro enquanto ser humano e individuo, a segunda assume uma visão estereotipada. A negritude foi,
no início, conscientização da originalidade do pensamento africano.
36
No ramo do discurso político abolicionista o negro era constantemente tratado como um símbolo e não
em sua dimensão humana. A ideia era acabar com a escravidão e motivos econômicos também estavam
em jogo, além da pressão vinda de outros países.
37
Os autores citados apresentavam uma postura puramente negrista em relação ao negro e sua cultura. O
negrismo, enquanto manifestação especificamente literária, não é sinônimo de negritude, termo que
engloba aqueles movimentos, surgidos nos anos 30, que reivindicam os direitos dos negros. O negrismo
está acompanhado do exotismo, a introdução de uma estética ancorada nas máscaras, nos fetiches
africanos ou das máscaras polinésias e o retorno aos elementos primitivos da cultura.
64
ataca e se esconde, técnica apurada do “mais encolhido dos caramujos”. As sutilezas e
os incessantes deslizamentos de sentido caracterizam uma solução encontrada pelo
autor-caramujo para criticar o sistema de dentro. O “Bruxo do Cosme Velho” faz uso de
disfarces de toda ordem, sendo que estes constituem uma forma de sobrevivência.
Outra célebre arma utilizada pelo escritor é a poética da dissimulação. As personagens
afrodescendentes, caracterizadas por sua real situação de fragilidade econômica e social
frente a todo um sistema, na condição de escravizado ou dependente, só possuem uma
arma para lutarem – um posicionamento dissimulado. É por isso que para ler os livros
de Machado o leitor precisa ter quatro estômagos38 para digerir o texto. São nas
entrelinhas, em palavras utilizadas com a precisão de um bisturi que encontramos as
marcas da “pena da galhofa”, sarcástica e ácida de seus argumentos.
Machado cria escola, quando em seus contos e crônicas aborda de forma original,
o negro sob uma visão não de negrismo, mas de negritude. O negro passa a ser
protagonista como também os valores negros, suas angústias, sofrimentos, se tornam
temas centrais. Enquanto o branco surge como pano de fundo. Este é a conclusão que
defendo depois da leitura de sua obra e depois de percorrer um caminho de revisão
38
O termo stomachus também pode ser definido como: ―resignação, ―paciência (cf. Saraiva, 1993,
p.1131). A expressão quatro estômagos se faz presente em Esaú e Jacó: "O leitor atento, verdadeiramente
ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que
deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida" (ASSIS, 2008, p. 1148). A utilização da metáfora
orgânica do sistema digestivo pode ser uma referência a Quintiliano quando este afirma que o texto, tal
como os alimentos, não pode entrar totalmente cru em nosso espírito, precisa ser mastigado e triturado
(QUINTILIANO, S.D).
65
crítica da recepção desta por parte de um grande leque de críticos (caminho este que
será apresentado no próximo tópico).
66
Machado de Assis: cinismo, ironia, sarcasmo e dissimulação
O trajeto que farei está organizado da seguinte forma: dos críticos que mais se
distanciam de minhas ideias até àqueles que vão ao encontro destas com mais
frequência. Sendo assim, há uma manipulação estratégica dos dados encontrados com o
objetivo de convencer o possível leitor de que os argumentos levantados são plausíveis.
A seleção de críticos também foi manipulada, entretanto busquei os mais
representativos (os nomes que geralmente se repetem na maioria dos trabalhos). A
ordem cronológica de aparecimento das críticas selecionadas é seguida, mas não foi
organizada com este objetivo inicial (porém, os críticos que são contemporâneos
acabam por defender análises que estão concatenadas com as minhas). Deste modo,
parto dos críticos que veem um Machado de Assis alheio às questões mais pungentes de
seu tempo (tese da passividade – Pedro Couto, Mário Matos, Sílvio Romero, Raimundo
Faoro, Mário de Andrade, Luiza Lobo [1993], Domício Proença Filho [1998], Afonso
Romano de Sant’Anna [1994]) para chegar ao entendimento de que o escritor
mencionado não só estava atento a estas questões como também participou ativamente e
defendeu (talvez não de forma direta) seus posicionamentos (Machado de Assis como
historiador – Schwarz [2000], Sidney Chalhoub [2003], John Gledson [2007]).
67
A razão de toda esta disparidade quando tratamos da interpretação do texto
machadiano é decorrente da ironia presente em toda sua obra. O jogo entre o raso e o
profundo, entre o simples e o complexo, entre a essência e a aparência acaba por
dissimular a crítica do autor à realidade social e às principais questões de seu tempo. As
interpretações que julgam um Machado passivo acabam perdendo-se nas aparências de
seus textos. Procuram nos salões, nas presenças e se esquecem das entrelinhas e que até
mesmo no que aparentemente está ausente há reflexões sobre a situação social em que o
autor vivia. Outra dificuldade que surge na abordagem da obra machadiana é a
necessidade de se encarar sua produção como um todo lógico e interdependente. Não se
pode perder de vista que sua obra é feita de crônicas, contos, poemas, textos dramáticos
e romances (sendo estes os que mais sofrem com críticas ao absenteísmo autoral).
(...) vivendo numa época que foi talvez a dos maiores surtos da
nacionalidade, ele [Machado de Assis] ficou indiferente a todas idéias vitais e
tumultuosas da época. Ninguém praticou entre nós, em grau tão elevado, a
Arte pela Arte. Nos seus livros ele nunca nos revelou o homem nas suas
relações com o meio físico e social (apud BROCA, 1983, p. 28).
68
As críticas de Emílio Moura já caminham para a questão da passividade, o que
também é possível observar em Mário Matos que no capítulo de 1939 com o título já
polêmico de “O meio e o temperamento apolítico de Machado de Assis” em que afirma
que o autor fora: “espectador imparcial e desinteressado do espetáculo em que foi ator
de somenos ou quase de nenhuma importância” (MOURA, 1939, p.42). Este tipo de
crítica será comum em críticos posteriores. Assim como a questão da passividade
surgirá também relacionada à negação da identidade e mais especificamente a não
representação do negro ou a não menção do drama da escravidão por parte de Machado
em suas obras. É o caso, por exemplo, de Mário de Andrade de quem destaco a seguinte
posição:
A escravaria, por culpa do branco e dos seus interesses, ficou entre nós como
expressão do amor ilegítimo. Não só relativamente à casa grande, mas dentro
da própria senzala. Machado de Assis nem por sombra quer evocar tais
imagens do sangue que também tinha. Ele simboliza o conceito do amor
burguês, do amor familiar, e o sagra magnificamente (MÁRIO DE
ANDRADE, s/d, p. 94).
Mário de Andrade defende a tese de que o autor carioca teria renegado suas
próprias origens e representado em suas páginas apenas o modo de vida burguês (o
crítico se esqueceu das duras críticas feitas na obra de Machado a este mesmo modo de
vida). Deste modo, de acordo com Andrade, Machado teria conseguido vencer as
barreiras impostas contra sua condição social anulando sua verdadeira identidade para
assumir a de um burguês comum:
69
vida, o acusando de antimulato, anti-proletário, exemplo de arianização. Isso, pois
estamos falando de autor que escreve Instinto de nacionalidade defendendo a
necessidade de que o escritor seja homem de seu tempo e de seu país39. O crítico
também faz críticas ao estilo machadiano afirmando que o autor copiava os exemplos
de escrita europeus: “Machado de Assis continua insolitamente na literatura aquela
macaqueação com que a nossa Carta e o nosso parlamentarismo imperial foram na
América uma coisa desgarrada” (MÁRIO DE ANDRADE, s/d, p. 104). Não contente
com estes ataques, ele segue questionando até mesmo os que defendem Machado de
Assis como um escritor representante da tradição brasileira “é que esses brasileiros não
se acomodam passivamente com a pequena contribuição de alma brasileira existente no
homem Machado de Assis” (MÁRIO DE ANDRADE, s/d, p.105). Critica também os
pesquisadores que consideram o escritor carioca como um autor político ou como uma
mentalidade intelectual avançada: “Machado de Assis não profetizou nada, não
combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo” (MÁRIO DE ANDRADE,
s/d, p.107).
39
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se
dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a
empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne
homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço
(ASSIS, 1997, p.804).
70
Domício Proença Filho até reconhece na literatura machadiana temas que
abordam a questão da escravidão no Brasil, porém de acordo com o crítico a presença
desta temática na obra do escritor carioca não o exime da atitude passiva diante dos
dramas sociais de seu tempo. Pois, segundo Proença Filho, em contos como “O caso da
vara” ou “Pai contra mãe”, o autor estaria mais preocupado com a análise do caráter das
personagens do que com a situação do negro. Sendo assim, o crítico aguça ainda mais a
tese da passividade, pois reconhece a presença de negros na obra machadiana, contudo
assume a defesa de que estes estão presentes somente para servirem de argumento ou
exemplos para o desenvolvimento de outras questões. Ou seja, os negros são simples
objetos com os quais o autor articula sua narrativa:
Um dos mais importantes críticos que interpretam Machado de Assis pelo viés
histórico e que servirá de base para defender a atitude dissimulada e a presença da voz
subalterna na obra do autor é Schwarz. Foi por meio das leituras de seus livros que me
dei conta da presença tão importante (ainda que velada) de uma grande variedade de
indivíduos em situação de subalternidade (seja de gênero, de cor ou de situação social e
que são classificados como agregados – os que vivem do favor). E é Schwarz quem no
capítulo “A sorte dos pobres” (2000) de livro já considerado um clássico pela crítica
machadiana (Um mestre na periferia do capitalismo) afirma que a presença do negro e
da questão abolicionista nos livros de Machado de Assis é apresentada de forma
contundente e extremamente calculada:
73
Diríamos, não conheces nem o homem Machado, que ginga e dribla, que faz da
capoeira um estilema, nem muito menos aquele a que Machado se refere – este
homem, poço de iniquidades e incertezas, torturante e torturado, mais
precisamente: cada um de nós. (COSTA LIMA, 2002, p. 337).
Afinal, este estilo caracterizado pelas esquivas, pela capoeira verbal, pela
escrita constelacional, apontados por Costa Lima como auditividade e por Roberto
Schwarz como versatilidade do narrador, estão relacionados com o que, nesta tese,
denomina-se Estética da dissimulação. A auditividade, o tom conversacional é algo
intencional na obra de Machado de Assis. Esta também é uma de suas bruxarias, a
capacidade de tornar-se íntimo do leitor, um confidente, uma voz ao ouvido, uma
espécie de consciência.
A mesma pergunta feita por Costa Lima faz eco nas linhas deste trabalho:
“Pergunto-me então: Como se caracteriza a capoeira da palavra em Machado? Ou
melhor: pode-se entender a capoeira como princípio de individuação de uma forma de
escrita?” (COSTA LIMA, 2002, p. 331). Seria esta capoeira literária o que está
denominado nas pesquisas de Assis Duarte como uma poética da dissimulação? Seria,
então, um princípio de individuação que torna a literatura machadiana algo único? A
premissa pode ser defendida por alguns aspectos que se fazem presente apenas na
estilística do autor. Porém, a dissimulação surge em outros autores e em outras
estratégias de sobrevivência, tal como, a desenvolvida pelos negros escravizados nos
golpes e na ginga da capoeira. A capoeira só é dança para os que não são iniciados em
sua prática. Os que foram batizados em seu jogo conhecem suas malícias, suas negaças
e suas mandingas. E Machado mimetiza este jogo em seu estilo-estilete: “O estilete se
disfarçava em estilema para, como se fosse tão só palavra, graça e jogo, exprimir
posições, e convicções. (COSTA LIMA, 2002, p.329). A capoeira literária de Machado
de Assis é a técnica que assume sua maestria na escrita de um mandingueiro.
75
drible. Por isso, Machado de Assis busca um leitor com quatro estômagos. O leitor
machadiano é um desconfiado. O autor abusa de recursos estilísticos dissimuladores:
b) Preterição – Recurso dissimulador em que o narrador finge que não sabe alguma
coisa ou finge ocultar um fato quando, na verdade, o expõe e realça. O narrador
chama a atenção do leitor para um fato quando finge tentar ocultá-lo. O autor
esconde o lixo para debaixo do tapete perante os olhos atentos do leitor. Como
em Memórias Póstumas de Brás Cubas quando o narrador afirma que não dirá
alguma coisa e diz: “Não, não direi que assisti às alvoradas do romantismo, que
também eu fui fazer poesia efetiva no regaço da Itália; não direi coisa nenhuma.”
(ASSIS, 2008, p. 655). Machado de Assis utiliza a preterição para alfinetar o
Romantismo: “Ah! como eu sinto não ser um poeta romântico para dizer que isto
era um duelo de ironias! Contaria os meus botes e os dela, a graça de um e a
prontidão de outro, e o sangue correndo, e o furor na alma, até ao meu golpe
final (...)”. (ASSIS, 2008, p.981). Há também uma crítica feroz à hipocrisia da
elite brasileira: “Não obstante, calo-me, não digo nada, não conto os meus
serviços, o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que recebi,
nada, não digo absolutamente nada.” (ASSIS, 2008, p. 756). Brás Cubas afirma
que não falará de serviço prestado aos pobres, mas não perde a oportunidade de
vangloriar-se de seus feitos.
76
c) Sarcasmo e Ironia – o significa de ironia é a própria dissimulação. Sendo assim,
este é o recurso que possui mais importância para este trabalho. Até mesmo pelo
fato dela estar presente nos outros recursos analisados. Ela é um dos estilemas
mais utilizados pelo autor com objetivo de ocultar as reais intenções de seus
textos. O Sarcasmo, por sua vez, apresenta as críticas de forma mais direta.
Contudo, ele vem acompanhado do recurso do humor que acaba mascarando a
malícia. O riso surge nos sarcasmos como forma de mascaramento. A diferença
entre sarcasmo e ironia na literatura machadiana pode ser bem sútil. Afinal, as
sutilezas e os mascaramentos constituem o alicerce das narrativas do bruxo do
Cosme Velho. O próprio autor utiliza sua narrativa para didaticamente alertar o
leitor onde há sarcasmo em seus textos: “— Quem sabe onde é que há de morar
amanhã? disse ela com um tom leve de melancolia; mas, tornando logo ao
sarcasmo: E você no altar, metido na alva, com a capa de ouro por cima,
cantando... Pater noster...” (ASSIS, 2008, p. 756). Um bom exemplo de ironia é:
“Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico, -
uma pérola. (ASSIS, 2008, p. 645). Refletindo sobre o caráter de Marcela é
possível descobrir o tom irônico do narrador e o fato de um sujeito abastado e
tísico ser considerado uma pérola. O sarcasmo, por sua vez, disfarçado em riso
se apresenta de forma ácida, tal como o utiliza Brás Cubas ao resumir sua
relação com Marcela: “(...) Marcela amou-me durante quinze meses e onze
contos de réis; nada menos.” (ASSIS, 2008, p. 648). O sarcasmo utilizado em
Machado de Assis se apresenta de forma dissimulada na voz de um
representante da elite, tal como ocorre em Brás Cubas: “Ao contemplar tanta
calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora
escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu
que me pus a rir, – de um riso descompassado e idiota”(ASSIS, 2008, p.635).
Este riso descompassado e idiota fruto do sarcasmo se apresenta na voz do
ventríloquo Brás como uma crítica do próprio autor a toda uma série de
hipocrisias presente nos costumes da elite brasileira.
78
machadiano surge exatamente da leitura exaustiva de fragmentos isolados. Com certeza
este tipo de exercício repetitivo de leitores de sua obra acaba por dificultar ainda mais a
observação de outros pontos de vistas, de outros focos interpretativos. A análise da
literatura produzida pelo bruxo do Cosme Velho exigia a ação lenta, a vagarosa digestão
proporcionada pelos quatro estômagos. Pois, há em seus textos o constante e forte
direcionamento do leitor para sentidos que na maioria das vezes provam serem os mais
inadequados.
A busca – seja da originalidade a cada passo, seja da excitação intelectual em
base puramente emocional, a leitura dirigida para os “melhores momentos”
do romancista – dificultou a descoberta daquela que talvez seja a qualidade
essencial de Machado de Assis: a busca, lenta e medida do esforço criador em
favor de uma profundidade que não é criada pelo talento inato, mas pelo
exercício consciente e duplo, da imaginação e dos meios de expressão de que
dispõe todo e qualquer romancista. (SILVIANO SANTIAGO, 2000, p.28)
Quanto à crítica a não euforia de Machado diante do que viria a ser a libertação
de seus semelhantes e que viria a ser utilizado como uma forma de provar a alienação
diante da situação dos negros no Brasil utilizarei os ensaios de Octávio Ianni (1988) e
Raimundo Faoro (1988) em que há nitidamente nos dois a observação do ceticismo do
autor diante de uma abolição que não iria significar liberdade. Esta mesma postura
cética poderia ser observada diante outros fatos cruciais da história brasileira.
79
vida e trabalho que teriam de enfrentar (IANNI, 1988, p.22).
Esta pesquisa dialoga com uma variedade enorme de trabalhos que propiciaram
a reflexão que empreenderei nas próximas páginas. Contudo, grande parte do caminho
que será seguido teve como impulso inicial, como centelha, o trabalho do pesquisador
Eduardo de Assis Duarte. Ele faz todas as leituras que mencionei anteriormente e as
relacionando destaca as ciladas linguísticas utilizadas por Machado de Assis para
criticar duramente a sociedade senhorial e branca de sua época. É também no trabalho
de Assis Duarte que encontro o termo dissimulação e a defesa de uma postura
afrodescendente por parte do autor carioca.
80
carregado de dissimulação não ocorre simplesmente por uma questão de estilo ou de
escolha gerada pela busca da arte pela arte. A linguagem indireta é em Machado antes
de qualquer coisa um plano de defesa. Suas condições de vida o impeliam à ação contra
as doenças sociais de seu tempo. Todavia, até mesmo os seus posicionamentos pessoais
deveriam ser velados. Diante do dilema de sobreviver (negro, funcionário público,
dependente do sistema) versus existir (crítico, reconhecendo as injustiças,
afrodescendente), o bruxo do Cosme Velho escolhera os dois. Para resolver uma
equação tão perigosa, a saída encontrada por ele fora sua literatura. Pode o subalterno
falar? Pode. Só que a opção por existir e por exercer sua fala é perigosa e exige uma
técnica cautelosa, a existência com arte, por meio da arte e pela arte, velada, de
guerrilha, enviesada – a estética da dissimulação.
81
As estratégias do caramujo40
O que nos salvou do que a gente viveu nas ruas (e você sabe do que estou
falando) foi a nossa completa ignorância e falta de habilidade em se adequar
ao está posto. (Criolo em entrevista concedida ao Programa Espelho em
04/04/2013).
40
Ao retomar a metáfora do caramujo, faço alusão emprego desta no livro de Assis Duarte:
Machado de Assis afro-descendente: escritos de caramujo (2005).
82
após os festejos da libertação dos então escravizados. Essa pergunta está em
Nascimento (2002, p.61), quando acentua: “Passando ao longo dos movimentos
abolicionistas que fervilhavam na época em que as obras foram escritas, Machado deixa
patente, como a marcar o momento, sua descrença numa real inserção do negro nos
quadros representativos da sociedade brasileira”.
Por outro lado, as críticas a Machado de Assis não se resumem ao aspecto político
de sua obra ou à pretensa passividade do escritor diante de fatos marcantes da sociedade
em que viveu. Silvio Romero, por exemplo, irá criticar o estilo machadiano de escrever.
Em passagem conhecida dos estudiosos, o crítico centra sua observação em aspectos
relacionados ao estilo do escritor, comparando-o com o de escritores portugueses e
mesmo com o de Alencar:
(...) o estilo de Machado de Assis não se distingue pelo colorido, pela força imaginativa da
representação sensível, pela movimentação, pela abundância, ou pela variedade de
vocabulário. Suas qualidades mais eminentes são a correção gramatical, a propriedade dos
termos, a singeleza da forma. (...) Machado de Assis como já ficou acidentalmente dito, não
tem grande fantasia representativa, ou antes, não possui quase essa faculdade. Em seus
livros de prosa, como nos de verso, falta completamente a paisagem, falham as descrições,
as cenas da natureza, tão abundantes em Alencar, e as da história e da vida humana, tão
notáveis em Herculano e no próprio Eça de Queirós. (Romero, 1992, p.121-122).
Romero não se prende somente à questão das imagens, suas farpas também são
lançadas com objetivo de atingir a linguagem do autor. O crítico fala da escrita pouco
grandiosa ou eloquente, da psicologia indecisa do autor que reflete em sua obra.
Contudo, considero que é neste tropeçar, neste gaguejar do estilo que se apresenta a
grandiosidade do gênio machadiano. Essas qualidades configuram uma estética da
dissimulação da qual fazem parte aspectos criticados por Romero como a fala
escorregadia, a personalidade indecisa, a ausência de vivacidade e a presença de certa
melancolia irônica.
(...) [o estilo de Machado de Assis] é a fotografia exata de seu espírito, de sua índole
psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivaz, nem rútilo, nem grandioso, nem
eloqüente. É plácido e igual, uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe
profusamente, espontaneamente do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça,
que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra. Sente-se o esforço, a luta.
Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como fazem outros na palavra falada (...).
(Romero, 1992, p.122)
83
A escrita de Machado, repleta de subterfúgios, escorregadia, gaguejante, foi a
causa principal de sua ascensão social. Ainda que seus textos trouxessem uma crítica
cruel à sociedade brasileira de sua época, seus livros eram lidos por membros dessa
mesma sociedade. É pertinente destacar que são exatamente as características apontadas
por Romero como uma dicção gaguejante que serão valorizadas por Haroldo de
Campos:
Com maestria e coerência. Maestria porque não é nas linhas que se deve
buscar esta questão. O que está escrito não conta. Conta o que não foi dito
nem visto com os olhos de fora. (...) Coerência porque seu compromisso era
retratar a sociedade tal qual se lhe apresentava, e aí, o negro não constituía
uma representação significativa, melhor dizendo, nem mesmo como ser
social era reconhecido. Na ordem das representações, a lente do retratista não
poderia alcançar o que nem sequer era cogitado.
84
Essa é uma das chaves para entender a obra do autor, observar os detalhes, é
preciso ficar atento às entrelinhas, aos espaços, pois é nesses espaços que se percebe o
seu objetivo: utilizar a máscara ficcional para apresentar a verdadeira face da realidade
brasileira do século XIX, tal como afirma Merquior: “Machado é um escritor em quem
o aspecto fortemente retórico do estilo, longe de lesar, reforça a energia mimética da
linguagem, o seu poder de fingir (ficção) efetivamente a variedade concreta da vida”
(Merquior, 1977, p.174). Portanto, há em Machado uma coerência entre o que afirmam
seus textos e sua visão crítica, a reflexão na forma literária dos mandos e desmandos
presentes na sociedade burguesa. Contudo, como vimos afirmando, o posicionamento
crítico do autor se dá de forma indireta, pelo despistamento, pelos mascaramentos.
Reitere-se que, para se compreender a crítica feita pelo autor em seus textos é
preciso estar atento às entrelinhas. Machado consegue apropriar-se da linguagem
observada em seu convívio com a elite brasileira e transpor para suas narrativas o
mesmo estilo simulador visualizado. A estrutura da sociedade brasileira serve de modelo
para que o autor crie seu próprio estilo servindo de base para a construção estrutural de
seus livros. E como observa Schwarz, há coerência entre estrutura do romance e os
valores defendidos pelo autor, pois: “(...) a fórmula narrativa de Machado consiste na
alternância sistemática de perspectivas, em que está apurado um jogo de pontos de vista
produzido pelo funcionamento mesmo da sociedade brasileira” (Schwarz, 2000, p.11).
Tais aspectos estão defendidos em Instinto de nacionalidade, texto em que Machado
defende que o escritor deve ser homem de seu tempo, o que de certa forma explicaria a
literatura do autor. É o que considera Schwarz quando afirma:
85
que pelo seu mero movimento constituem um espetáculo histórico-social
complexo, do mais alto interesse, importando pouco o assunto do primeiro
plano (SCHWARZ, 2000, p.11).
É fácil constatar que o julgamento de críticos como Silvio Romero está baseado
na estética naturalista que ele defendia. É possível que em termos naturalistas o texto de
Machado realmente não apresentava o recurso do detalhismo de paisagens, ambiente e
personagens. Machado, contudo, era um exímio retratista, mas não se definia por longas
descrições de cenas ou de paisagens exibidas em detalhes, tal como defende Campos
(1992).
86
predominava a voz do senhor patriarcal, onde deveria estar o negro? Em qualquer
espaço que fosse distante da casa grande, das salas e dos salões, dos grandes eventos da
corte. Porém o retrato dessa sociedade pintado por Machado não poupa o “senhor”,
expõe seus defeitos e imperfeições do mesmo modo indica as bexigas que leva no rosto.
A imagem de fachada é corroída pelo verme, como um cupim que corrompe a madeira.
É de dentro desta sociedade, de seus salões e das casas burguesas que o narrador
machadiano decompõe as bases de todo um sistema escravocrata. Ao focalizar sua lente
no senhor, o escritor acabaria por comprovar a invisibilidade do negro na sociedade
brasileira do século XIX.
88
de sua obra, conseguiu descortinar alguns enigmas do texto machadiano. As várias
retomadas de sua obra puderam esclarecer que, ao contar suas histórias, Machado de
Assis, de certa forma reescreveu a história do Brasil no século XIX. Esta é a posição de
Chalhoub quando considera: “Essa é a hipótese que vem sendo defendida, a meu ver de
forma bastante convincente, por críticos literários como Roberto Schwarz e John
Gledson (...)” (CHALHOUB, 2003, p.17). Longe de ser um intelectual
descompromissado com a situação política e econômica do Brasil, Machado foi
“homem de seu tempo e de seu país”. Para destacar essa característica do escritor,
Chahoub irá considerar que, “se a pena de Gledson revela um Machado empenhado em
interpretar o sentido da história, também mostra que tal esforço é acompanhado de um
processo não menos intenso de “dissimulação” e “despistamento” do leitor (...)”.
(CHALHOUB, 2003, p.18, grifo nosso). As considerações de Chalhoub são importantes
para se entenderem as questões que serão postas no item que se segue.
89
A subalternidade e suas peculiaridades nas personagens machadianas
Mal Secreto
90
sua temática que é interessante para Machado de Assis. O poema apresenta uma dura
crítica à sociedade que vive de ilusão, soterrada pelas aparências. A capacidade de usar
as máscaras de forma tão perfeita que a identidade passa a ser algo inexistente é o que,
nesta tese, estamos chamando de simulação. Simular é no primeiro nível fingir e neste
jogo de fingimento não há distinção de classe social. Enquanto os cidadãos da elite
encontram na simulação o meio de demonstrar sucesso, os subalternos utilizam o
fingimento como forma de sobrevivência. O favor pode exigir que o subalterno faça de
tudo para manter a satisfação de quem o sustenta.
91
determinados ou são apenas mencionados, in absentia, revelando a situação de cada um
no contexto sócio-histórico em que vivem. Ainda que o status ocupado por estas pessoas
na sociedade as impossibilite de surgir em ambientes de prestígio, nos romances de
Machado elas são cruciais para o entendimento da narrativa e para a percepção da
dissimulação instaurada em seus textos.
93
Ressurreição
Mas o tempo, que é bom mestre, vem diminuir tamanha confiança, deixando-
nos apenas o que é indispensável a todo o homem, e dissipando a outra, a
confiança pérfida e cega. Com o tempo; adquire a reflexão o seu império, e
eu incluo no tempo a condição do estudo, sem o qual o espírito fica em
perpétua infância. (ASSIS, 2008, p. 235).
Em Ressurreição, não falta nem mesmo a inveja de outros pelo amor dos
amantes apaixonados, pois, a mulher amada deve ser o alvo de outros cavaleiros que
também a desejam. Lívia era desejada por Luís Batista, por Meneses e por vários
homens do salão de baile da casa do coronel. A simples aproximação entre Lívia e Félix
já era causadora de olhares de despeito de outros: “Não passou isto sem que notassem
alguns lábios despeitados” (ASSIS, 2008, p. 249). E tanto ela quanto ele eram
invejados, pois assim é o amor romântico, causa a ira alheia: “Um cavaleiro disse a uma
senhora: – Não lhe parece que dona Lívia tem um gosto deplorável? A senhora
arregaçou levemente a ponta esquerda do lábio superior, e respondeu: - O Félix não o
tem melhor” (ASSIS, 2008, p. 249).
94
Aqui podia acabar o romance muito natural e sacramentalmente casando-se
dois pares de corações e indo desfrutar a sua lua-de-mel em algum canto
ignorado dos homens. Mas para isso, leitor impaciente, era necessário que a
filha do coronel e o Dr. Meneses se amassem, e eles não se amavam, nem se
dispunham a isso. Uma das razões que desviavam da gentil menina os olhos
de Meneses era que este os trazia namorados da viúva. De admiração ou de
amor? Foi de admiração primeiro, e depois foi de amor; coisa de que nem ele,
nem o autor do livro temos culpa. Que quer? Ela era formosa e moça, ele era
rapaz e amorável, e de mais a mais inexperiente ou cego, que não adivinhava
a situação anterior da viúva e do médico ainda por entre os véus com que lha
ocultavam (ASSIS, 2008, p. 278).
95
personagens: Félix e Lívia. Todo o cenário social, político e geográfico surge dos olhos
deles e da perspectiva narrativa. O psicologismo linear do romance realista do século
XIX também é desprezado pelo autor, pois só conhecemos as personagens, suas
angústias e sentimentos ao final da narrativa. Suas personalidades vão sendo construídas
por suas ações e pensamentos.
O romance “(...) pertence à primeira fase da minha vida literária”. (ASSIS, 2008
[1905], p.235), contudo o autor expõe seus motivos que em muito se contrastam com os
defendidos naquele momento literário: “Não quis fazer romance de costumes; tentei o
esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres; com esses simples elementos
busquei o interesse do livro” (ASSIS, 2008, p.236). Há no romance a abordagem de
estereótipos comuns dos burgueses do século XIX: Félix representando o homem
ciumento, atormentado pela aguda dúvida e que só se preocupa consigo mesmo e com
as aparências: “Não me parece provável que houvesse lido Sá de Miranda; todavia,
punha em prática aquela máxima de um personagem do poeta: ‘Boa cara, bom barrete e
boas palavras custam pouco e valem muito’...” (ASSIS, 2008, p.239); Lívia, a mulher
que busca uma paixão intensa, romântica; Raquel e Meneses, os que vivem o amor. Isto
deixa claro que Silviano Santiago estava correto em afirmar: “O romance de Machado é
antes de tudo um romance ético (...).” (Silviano Santiago em ASSIS, 2008, p. 127). Esta
bem poderia ter sido uma novela que aborda as dicotomias entre razão e sensibilidade.
96
Contudo, ainda que fosse possível enquadrar a viúva no âmbito da sensibilidade seria
impossível aplicar à personagem masculina a moldura da razão sem as necessárias
adequações. Félix não era simplesmente um homem racional, também era frio,
calculista, egoísta e simulador. Somente se deixava envolver em relações em que tivesse
a certeza de lucro.
Tal era o contraste desses dois caracteres, que a estrela da viúva, não sei se
boa ou má estrela, reuniu a seus pés. Um, se viesse a adorar um rosto
hipócrita, desceria na escala das degradações, com os olhos fitos na quimera
da sua felicidade; outro, ardendo pela mais angélica das criaturas humanas,
quebraria com as próprias mãos a escada que o levaria ao céu. (ASSIS, 2008,
p. 278)
97
O autor das Memórias póstumas de Brás Cubas existia no de Ressurreição
como a Capitu da Glória estava na de Matacavalos – em germe; de vez em
quando, por uma frase, por uma indicação, por uma ideia apenas esboçada e
que mais tarde seria desenvolvida, parece aflorar, querer surgir das
profundezas em que mergulhava; mal se deixa surpreender, porém, e logo
some, abafado pelo narrador amante das conveniências, respeitador das
etiquetas sociais e literárias. (Miguel Pereira in ASSIS, 2008, p. 61).
98
1 - As críticas que foram escritas na época de publicação dos livros estão
preocupadas em comparar o autor com outros autores românticos nascidos no Brasil ou
no exterior. Especialmente, o teor da crítica se volta para a observação e busca de
encontrar na narrativa machadiana elementos do romantismo;
2 – Os críticos posteriores que escreveram suas observações após a publicação
de livros da denominada “segunda fase” do autor, comparam-no consigo mesmo. Há
uma visão maniqueísta comum entre um Machado ingênuo e aprendiz dos primeiros
livros e o bruxo do Cosme Velho de suas narrativas de madurez;
Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitos anos. Dado em nova
edição, não lhe altero a composição nem o estilo, apenas troco dois ou três
vocábulos, e faço tais ou quais correções de ortografia. Como outros que
vieram depois, e alguns contos e novelas de então, pertence à primeira fase
da minha vida literária. (ASSIS, 2008, p. 235)
Na citação acima se percebe que a divisão entre primeira fase e segunda também
é induzida pelo próprio Machado que utiliza de armadilhas ficcionais levando o crítico
a acreditar em dois autores distintos. Na tentativa já irônica de abrandar as possíveis
críticas, o autor escreve a advertência abaixo. Designar seu romance como um ensaio é
uma forma de minimizar os ataques. Machado de Assis já previa que a boa e sisuda
crítica iria levantar os pontos negativos que seriam as divergências entre sua literatura e
o romantismo da época.
Não sei o que deva pensar deste livro; ignoro sobretudo o que pensará dele o
leitor. A benevolência com que foi recebido um volume de contos e novelas,
que há dois anos publiquei, me animou a escrevê-lo. É um ensaio. Vai
despretensiosamente às mãos da crítica e do público, que o tratarão com a
justiça que merecer. (ASSIS, 2008, p. 235).
No meu ponto de vista, a literatura machadiana não deveria ser dividida em duas
fases (primeira e segunda). A ideia de amadurecimento é interessante por demonstrar
que o espírito evolui com o tempo. E com o bruxo do Cosme Velho não seria diferente.
Pode-se perceber que o amadurecimento carrega junto um agravo do pessimismo e
maior liberdade para abordar assuntos polêmicos e fazer críticas mais contundentes. O
espírito que caminha e evolui para fugir da perpétua infância traz inspirações kantianas
para a advertência de Machado. A diminuição da confiança é um eufemismo para o que
99
virá a proceder no futuro com a forma de refletir sobre a sociedade e sobre a vida que se
encontra nos romances da denominada segunda fase.
Mas o tempo, que é bom mestre, vem diminuir tamanha confiança, deixando-
nos apenas o que é indispensável a todo o homem, e dissipando a outra, a
confiança pérfida e cega. Com o tempo; adquire a reflexão o seu império, e
eu incluo no tempo a condição do estudo, sem o qual o espírito fica em
perpétua infância. (ASSIS, 2008, p. 235)
É necessário assumir que por vezes o trabalho aqui desenvolvido não conseguirá
fugir totalmente ao segundo modo apresentado de fazer crítica machadiana, contudo há
a tentativa de amenizar e evitar comparações que prejudiquem a reflexão sobre seus
livros tentando abordá-los sem levar em conta uma visão progressista sobre o estilo de
escrita machadiano, relacionando os textos de acordo com o contexto de cada época.
100
com a gente elegante, que via passar de carro” (PEREIRA, 1988, p. 141).
Não é difícil notar que as críticas de Alfredo Pujol, de Lúcia Miguel Pereira e de
José Veríssimo somente são possíveis, pois, os críticos conhecem a obra de M. de Assis
tanto da “primeira fase” quanto da “segunda”. Estão, por conseguinte, amparadas num
perspectivismo comparativo e sincrônico. Nesta visão também não é um absurdo lógico
deduzir que para eles há um M. de Assis melhor e, consequentemente, um pior, ou que
há o início do projeto e uma conclusão dele.
Em Ressurreição o amor entre Félix e Lívia sofre obstáculos que não são
produzidos por elementos externos ao casal. O maior obstáculo do romance advém do
ciúme extremo manifestado por Félix: “A vida solitária e austera da viúva não pôde
evitar o espírito suspeitoso de Félix. Creu nela a princípio. Algum tempo depois
duvidou de que fosse puramente um refúgio; acreditou que seria antes uma
dissimulação” (ASSIS, 2008, p. 314). Assim, como veremos em Dom Casmurro, há o
101
mote shakespeareano em Ressurreição. Entretanto, no Otelo de Shakespeare a
personagem masculina, que é ciumenta ao extremo, mata a própria mulher por acreditar
que esta o tinha traído. No drama, a personagem principal, o mouro de Veneza ocupava
no passado uma posição subalterna e por doentio ciúme destrói todas suas conquistas.
Minha ideia ao escrever este livro foi pôr em ação aquele pensamento de
Shakespeare:
Our doubts are traitors,
And make us lose the good we oft might win,
By fearing to attempt. (ASSIS, 2008, p. 236)
O coração de Félix não era dado às relações duradouras, pois ele facilmente se
enojava de seus novos amores, que se tornavam velhos após uma fugaz passagem de
tempo. E assim no ano novo resolve dar cabo às suas velhas ilusões: “Naquele dia,
aurora do ano, escolhera-o o nosso herói para ocaso de seus velhos amores. Não eram
velhos; tinham apenas seis meses de idade” (ASSIS, 2008, p. 237). E assim, lentamente,
o narrador revela para o leitor traços de sua personalidade, afirmando, ironicamente, ser
Félix um herói, não um romântico, mas um que escolhe um lindo dia de começo de ano
para terminar antigos amores de seis meses de idade.
(...) os meus amores são todos semestrais; duram mais que as rosas, duram
duas estações. Para o meu coração um ano é a eternidade. Não há ternura que
vá além de seis meses; ao cabo desse tempo, o amor prepara as malas e deixa
o coração como um viajante deixa o hotel; entra depois o aborrecimento, mau
hóspede. (ASSIS, 2008, p. 242).
É com essas estratégias que ele termina seu relacionamento com Cecília que fora
para ele um puro cálculo, um passatempo: “(...) o que faço agora não é novidade;
ouviste-me dizer muita vez que a nossa afeição era um capítulo curto. Rias então de
mim; fazias mal, porque era alimentar uma esperança vã.” (ASSIS, 2008, p. 241). Ele
justifica o término do relacionamento deslocando a situação a seu favor e defendendo
que todo amor é ilusão e de pouca duração.
104
asilos de inválidos do Parnaso, onde as musas reumáticas e manetas vão soltar os seus
gemidos” (ASSIS, 2008, p. 262).
Fizeste brotar dentre as ruínas uma flor solitária, mas bela; única neste árido
terreno do meu coração. Não basta; é preciso agora um raio que a anime e lhe
conserve o perpétuo viço; essa é a confiança, não de uma hora, mas a de
todos os dias, a que não falece nunca e nos restitui a serenidade dos primeiros
tempos. Sem ela, o meu amor será um largo e inútil martírio (ASSIS, 2008, p.
275).
Nesta sociedade mais vale o engodo que a verdade. O que importa é o que as
105
outras pessoas afirmam como verdade e não o que ocorreu de fato. Assim se dá com o
caso de amor entre Lívia e Félix. Ele descobre elementos que comprovariam a inocência
de Lívia, contudo mantém sua postura fria diante da situação. O amor entre os dois não
deu frutos e morreu antes mesmo de florescer pela incapacidade de Félix em assumir
seus sentimentos e de lutar por eles. Sua fraqueza estava justamente na impossibilidade
de colocar-se acima das conveniências sociais.
A veracidade da carta que impedira o casamento, com o andar dos anos, não
só lhe pareceu possível, mas até provável. Meneses disse-lhe um dia ter prova
cabal de que Luís Batista fora o autor da carta; Félix não recusou o
testemunho nem lhe pediu a prova. O que ele interiormente pensava era que
suprimida a vilania de Luís Batista, não estava excluída a verossimilhança do
fato, e bastava ela para lhe dar razão. (ASSIS, 2008, p. 314)
As aparências eram para Félix a mais absoluta verdade, ou a única que ele
seguia. Não significa que ele não sofria com a situação, aliás, o único sentimento que
ele carregava com intensidade desastrosa era o sofrimento. Esta dor era causada
principalmente por sua consciência amarga, repleta de ceticismo e o egoísmo próprio
dos que não se envolvem por não suportarem a possibilidade de decepção. Qualquer
gesto, as mínimas variações do olhar amado causavam-lhe suspeitas ameaçadoras que
terminavam por turvar-lhe o espírito.
O dia estava esplêndido; uma fresca bafagem do mar vinha quebrar um pouco
os ardores do estio; algumas raras nuvenzinhas brancas, finas e transparentes
se destacavam no azul do céu. Chilreavam na chácara vizinha à casa do
doutor algumas aves afeitas à vida (...). Parecia que toda a natureza
colaborava na inauguração do ano. (ASSIS, 2008, p. 236).
Ao que tudo indica este fragmento poderia bem ser o início de um tradicional
romance romântico: o dia esplêndido, o sol, a brisa do mar que abrandava o estio, as
doces e transparentes nuvens. Os pássaros que cantavam como que homenageando o
novo dia de um novo ano. Porém, como é comum neste romance, as expectativas são
quebradas e o aparente pacto com o leitor é rompido. Na passagem a seguir, as rabugens
de Félix ficam claras e, aliás, o diálogo direto entre narrador e leitor também serviria
com um alerta para as frustrações que seriam provocadas no decorrer da narrativa.
106
Tudo nos parece melhor e mais belo, - fruto da nossa ilusão, - e alegres com
vermos o ano que desponta, não reparamos que ele é também um passo para
a morte. Teria esta última idéia entrado no espírito de Félix, ao contemplar a
magnificência do céu e os esplendores da luz? Certo é que uma nuvem ligeira
pareceu toldar-lhe a fronte. Félix embebeu os olhos no horizonte e ficou largo
tempo imóvel e absorto, como se interrogasse o futuro ou revolvesse o
passado. Depois, fez um gesto de tédio, e, parecendo envergonhado de se ter
entregue à contemplação interior de alguma quimera, desceu rapidamente à
prosa, acendeu um charuto, e esperou tranquilamente a hora do almoço.
(ASSIS, 2008, p.236-237).
Está bem nítida a impossibilidade de Félix se deixar levar pelo amor ou pelas
ilusões. O romantismo era, para ele, apenas uma ideia vaga, uma nuvem ligeira a toldar-
lhe a fronte, nada que não pudesse ser destruído pelo tédio. Tamanha era sua frieza que
chegava a envergonhar-se destes pequenos momentos de contemplação da
magnificência do céu e dos esplendores da luz. Sua invencível quimera interior não
permitia o livre divagar e ele voltava para a personalidade inquisidora de sempre. Nem
mesmo os pensamentos mais íntimos da amada escapavam ao seu mirar conservador e
investigativo. O narrador que pode desvendar as intimidades da personagem permite
que o leitor conheça os elementos próprios do caráter de Félix. Esta seria a principal
diferença entre os romances Ressurreição e Dom Casmurro. Enquanto no primeiro há
um narrador onisciente, no segundo, o narrador é também personagem da trama, repleto
de segundas intenções a controlar a narração. O foco narrativo de Ressurreição indica
uma maior intromissão no capítulo IX e o leitor passa a conhecer a intranquilidade de
Félix perante o possível amor:
Afinal, o que realmente Félix via em Lívia que o deixara apaixonado? Será que
conseguia ver Lívia como ela realmente era ou percebia somente aquela que estava em
seu íntimo, em seu ideal padronizado de mulher. Ele queria aquela que observava à
distância e não a que estava ao seu lado. Tudo indica que o medo do protagonista era
provocado pela possível frustração ao conhecer a mulher real. Talvez, essa mulher
107
pudesse destruir a estátua passiva que ele criara mentalmente.
A obra não está completa – continuou Félix -; metade apenas. Fizeste brotar
dentre as ruínas uma flor solitária, mas bela; única neste árido terreno do meu
coração. Não basta; é preciso agora um raio que anime e lhe conserve o
perpétuo viço; essa é a confiança, não de uma hora, mas a de todos os dias a
que não falece nunca e nos restitui a serenidade dos primeiros tempos. Sem
ela, o meu amor será um largo e inútil martírio. (ASSIS, 2008, p. 275)
É interessante observar a atitude de Félix perante a vida, sua incapacidade de seguir seu
coração e sua inescrupulosa capacidade de trair a todos e a si mesmo e depois conseguir
dormir o sono tranquilo dos justos e esquecer-se de tudo: “Uma hora depois do baile, a
viúva, a dança, tudo se lhe desvaneceu do espírito, graças a um sono tranquilo e
profundo, como essas nuvens douradas do ocaso que a noite absorve ou dissipa”
(ASSIS, 2008, p. 249). O seu amor por Lívia representava apenas uma simples nuvem
dourada do ocaso dissipada pela obscuridade de sua personalidade incerta. Seu amor era
sustentado pela presença, a simples distância servira para apagar de seu coração a
existência de Lívia em sua vida.
108
Nem mesmo o claustro vivenciado pela viúva após as seguidas frustrações
vividas conseguiu amolecer o coração de Félix. Ele não sentira remorsos pela tristeza
que causara a ambos. Como sempre o som de seu coração é abafado por uma lógica
dominada pelas aparências e por um ceticismo sórdido: “A vida solitária e austera da
viúva não pôde evitar o espírito suspeitoso de Félix. Creu nela a princípio. Algum
tempo depois duvidou de que fosse puramente um refúgio: acreditou que seria antes
uma dissimulação” (Machado de Assis, 2008, p. 314). Assim, ele cumpre sua existência
como um cidadão que possuía todos os elementos considerados pela sociedade como
essenciais para encontrar a felicidade. Todavia, era um espírito infeliz como muitas
personagens masculinas machadianas. Desistira do amor antes mesmo de se entregar,
antes mesmo de amar e termina seu relacionamento com Lívia por meio de uma carta
que também expressa a sua covardia:
Lívia
O que vou dizer é indigno, bem o sei; mas é ainda mais cruel do que indigno.
O nosso casamento é fatalmente impossível. Não tens nenhuma culpa direta
nem indireta na minha resolução. Esta carta, que me condena, será a tua cabal
defesa. Adeus (ASSIS, 2008, p. 303).
109
perceber que suas personagens são psicologicamente complexas. Em alguns momentos,
é possível vislumbrar em Félix um esforço para fugir de sua própria condição e viver
um amor livre, louco e feliz. Contudo, as amarras sociais e as marcas profundas que
formaram sua identidade o impedem de seguir os impulsos pulsantes de seu coração.
110
época, significava controle, tranquilidade e passividade de uma união estável em todos
os sentidos: “um sentimento moderado, regrado, um pretexto conjugal sem ardores, sem
asas, sem ilusões...” (ASSIS, 2008, p.273).
O relacionamento entre Félix e Lívia fora marcado pelas vontades de Félix. Por
três vezes seguidas ele termina sua relação com Lívia: a primeira pela semente da
discórdia lançada por Luís Batista, a segunda por ciúmes de Meneses e a terceira por
causa de uma carta falsa e anônima que lançava suspeitas sobre a fidelidade de Lívia
111
pelo primeiro marido. Félix não dá direito de defesa para Lívia. O tratamento dado à
mulher é o de submissão e ela deveria demonstrar total passividade diante das
determinações. Contudo, a última palavra na ligação dos dois quem dá é ela,
demonstrando que não seguira o ideal social de passividade feminina:
O destino ou a natureza não nos fez um para o outro. O casamento entre nós
seria uma cerimônia apenas. Seria mais; seria o nosso infortúnio, e mais vale
sonhar com a felicidade que poderíamos ter do que chorar aquela que
houvéssemos perdido. (ASSIS, 2008, p. 311).
E assim, o último e derradeiro golpe nas ilusões do leitor romântico. Talvez, este
leitor fosse verdadeiramente o leitor idealizado por Machado de Assis, o que ele
desejava frustrar com sua literatura. O desenlace desta situação desigual poderia
terminar feliz ou trágica, mas não tediosa como terminou. O leitor romântico poderia
imaginar a queda de Lívia e imaginar que ela viesse a cometer algum tipo de sacrifício,
mas não foi o que aconteceu. Ao contrário visualiza a queda de Félix que pela primeira
vez se vê atônito perante a atitude de Lívia.
112
acima das conveniências sociais:
O tempo marca fisicamente a todos no romance, mas a Lívia ele afeta de forma
desigual possivelmente contando com o aliado da tristeza. Ainda assim havia encanto e
feitiço em sua figura. A beleza de Lívia não estava em sua tez tal como pensava o
materialista Félix. Lívia era bela em seu interior e este não envelhecia e nem sofria a
decadência provocada pelo tempo. Sua alma não perdera o encanto, a integridade jovial
de seu ser estava acima de qualquer vaidade e por isso a velhice não lhe causava medo.
Ela não vivia das aparências.
Talvez o tempo lhe respeitasse a beleza, a não ser a catástrofe que lhe enlutou
a vida. Já na meiga e serena fisionomia vão apontando sinais de decadência
próxima. Os poucos que lhe frequentam a casa não reparam nisso, porque a
alma não perdeu o encanto, e é ainda hoje a mesma feiticeira amável de outro
tempo. Ela, sim, ela vê que a flor inclina o colo, e que não tarda o vento da
noite a dispersá-la no chão. Mas do mesmo modo que a beleza lhe não
acordara vaidades, assim a decadência lhe não inspira terror. (ASSIS, 2008,
p. 313).
Cecília não era hipócrita quando dizia gostar de um homem; qualquer que
fosse a natureza dos seus afetos, ela os sentia sinceramente; mas era raro que
sobrevivessem vinte e quatro horas à causa que lhos inspirara. Não se lhe
desmentira a constância durante os seis meses de intimidade com Félix; mas
se ela era amante para querer a um só homem, era independente para o
esquecer depressa (ASSIS, 2008, p.250).
Outra personagem que sofre com as críticas morais do narrador é Viana. Ele
também é personagem secundária na narrativa. O interesse por ela se justifica pelas
marcas da subalternidade que a caracteriza e por exemplificar a política do favor tão
presente na literatura machadiana. Viana, o irmão de Lívia, decide aproximar os dois já
pensando numa forma de receber favores do futuro cunhado: “O parasita, que parecia
empenhando em preparar uma aliança de família com o médico (...)” (ASSIS, 2008, p.
260). O próprio narrador descreve Viana como um parasita consumado. Ele tinha mais
capacidade que preconceitos, ou seja, conseguia facilmente simular suas emoções em
busca de um único objetivo: a sobrevivência. Viana, apesar da aparente insignificância
na narrativa, é a personagem que representa a epistemologia da classe dominante do
país no século XIX, a sociedade das aparências. Haja vista que, conforme diz o
narrador, ele parecia seguir a máxima do autor português, Sá de Miranda, que diz do
valor das aparências numa sociedade que as valoriza e um tipo de elite para a qual o
bem mais valioso era o que fisicamente podia ser visto.
Viana era um parasita consumado, cujo estômago tinha mais capacidade que
preconceitos, menos sensibilidade que disposições. Não se suponha, porém,
que a pobreza o obrigasse ao ofício; possuía alguma coisa que herdara da
mãe, e conservara religiosamente intacto (...). Mas esses contrastes entre a
fortuna e o caráter não são raros. Viana era um exemplo disso. Nasceu
parasita como outros nascem anões. Era parasita por direito divino. Não me
parece provável que houvesse lido Sá de Miranda; todavia, punha em prática
aquela máxima de um personagem do poeta: “Boa cara, bom barrete e boas
palavras custam pouco e valem muito...” (ASSIS, 2008, p. 239).
Como Félix não lhe animasse a conversa no terreno em que ele a pôs. Viana
entrou a elogiar-lhe os vinhos.
— Onde acha o senhor vinhos tão bons? Perguntou depois de esvaziar um
cálix.
— Na minha algibeira.
— Tem razão; o dinheiro compra tudo, inclusive os bons vinhos. (ASSIS,
2008, p. 20).
116
Estamos salientando este episódio do romance porque é ele que nos pode
conduzir ao problema ético da conduta do homem ciumento no universo
romanesco de Machado. A carta – pressente acertadamente Félix – deve ter
sido escrita por Luís Batista, também pretendente aos favores de Lívia e
preterido, e portanto não merecia crédito ou confiança, escrita que foi pela
pena da inveja ou do orgulho ferido. Mas isso não tinha importância para
Félix, porque para ele contava mais a verossimilhança da situação criada pela
carta do que a verdade proporcionada pelo exame detido dos fatos.
(SILVIANO SANTIAGO in ASSIS, 2008, p. 128)
O que será apresentado a seguir é uma leitura de Dom Casmurro que tenta
perceber no texto literário aspectos da sociedade brasileira do século XIX abordando a
tensão entre a elite e a classe dos subalternos composta, sobretudo, por agregados,
escravos, alforriados e mulheres e a relação entre o narrador e personagens. Neste
contexto, o leitor será guiado por um narrador amargurado que narra as negatividades e
mazelas resultantes de uma vida simulada em que verossimilhança vale mais do que
verdade. Sendo assim, Dom Casmurro é uma geografia das simulações presentes na
sociedade narrada pelo livro.
117
Dom Casmurro
O narrador é o próprio Bentinho e por isso a narrativa está direcionada por suas
memórias, logo por construções, talvez, filtradas pela imaginação e pela incapacidade
de a memória ser fiel ao realmente acontecido. O velho e amargurado Dom Casmurro é
quem narra toda a história e é a própria personagem que deixa isto claro quando insere a
dúvida nas expectativas do leitor.
Duas atitudes, entre outras, são típicas de Dom Casmurro, quando analisa os
que o rodeiam: a) joga a culpa de toda calúnia nos outros, isentando-se
aparentemente de qualquer responsabilidade, colocando-se ainda na
qualidade de vítima; b) empresta aos outros contradições entre o que
chamaremos por enquanto de interior e exterior. (SILVIANO SANTIAGO in
ASSIS, 2008, p. 132)
A insegurança de Bentinho é alimentada por uma série de fatos que ele interpreta
como provas. O seu discurso vai construindo uma Capitu adúltera. Os fatos descritos
pelo narrador nada provam, mas em sua imaginação são provas irrefutáveis da traição.
Esta dúvida gera em Bentinho um bloqueio no que diz respeito ao relacionamento com
o filho e com a esposa e até mesmo com seu grande amigo Escobar. Quais seriam as
provas do adultério de Capitu? Todos os argumentos do narrador são questionáveis, pois
não se baseiam em provas. Bentinho só conta com o recurso da argumentação para
buscar convencer o leitor. Um fato considerado evidência de que a esposa o tinha traído
é apresentada pelo narrador durante o velório do amigo: “(...) A confusão era geral. No
meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente
fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas (...)” (ASSIS,
122
2008, p. 1054).
Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que
vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem. Juro só que não eram
amarelas por que execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido ou
confusão. E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda
bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu,
quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço em
chegando ao fim é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele.
[...] É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho
as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas. (ASSIS, 2008,
p. 994)
124
voz na realidade brasileira do século XIX.
O narrador apresenta sua versão da história como verdade, além disso, é a única
versão que o leitor conhecerá. É impossível para quem lê encontrar a versão da história
contada por Capitu. Este narrador manipulador tenta com todos os esforços conduzir a
leitura do livro utilizando para isto suas artimanhas pelo viés da simulação. Por vezes
ele é incisivo e utiliza estratégias de convencimento que fogem do simples recurso da
bajulação ou da sensibilização. Um dos recursos de efeito mais direto é o da repetição
de fatos numa tentativa de incutir no leitor o que o narrador-protagonista considera
como verdade: “Há conceitos que devem incutir na alma do leitor à forca de repetição”.
(ASSIS, 2008, p.963). O objetivo do narrador é ocupar todos os espaços até que não
sobre nenhuma brecha para que a imaginação do leitor possa intervir no texto, que sabe
que, como observa o narrador: “tudo se pode meter nos livros omissos”. (ASSIS, 2008,
p.994).
125
Capitu, apesar de todas as suas estratégias de dissimulação, permanece em
posição de submissão a Bentinho. O leitor não pode esquecer o fato do narrador ser o
próprio protagonista do romance. Ficamos sabemos da história de Capitu pela voz de
Bento Santiago. E afinal, quem é Bento Santiago? A personagem poderia ser
interpretada como a voz patriarcal da elite brasileira do século XIX. Neste espaço, o
lugar ocupado por Capitu é o da subalterna. Esta posição trazia muita dor para a
personagem e isto fica claro quando o leitor observa seu aborrecimento ao ouvir o
pregão do preto que vende cocadas: “(...) o pregão que o preto foi cantando, o pregão
das velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância (...) lhe deixara uma
impressão aborrecida.” (ASSIS, 2008, p.950). E este singelo pregão dizia: “Chora,
menina, chora, \Chora, porque não tem vintém.” (ASSIS, 2008, p.950). Não ter vintém é
uma transnominação que simboliza o fato da menina não fazer parte da elite. Esta toada
representava sua triste realidade que deveria ser repetida como forma de deixar clara a
sua posição na sociedade, por isso a canção era conhecida: “(...) ela a sabia de cor e de
longe, usava repeti-la nos nossos jogos da puerícia, rindo, saltando, trocando os papéis
comigo, ora vendendo, ora comprando um doce ausente.” (ASSIS, 2008, p. 951). Até
este momento, a brincadeira era só uma brincadeira. Era divertido até que ela percebe
que o jogo não era um simples fazer de conta infantil. O jogo de puerícia refletia sua
real condição e a realidade era ainda mais cruel, pois não havia troca de papéis. Ela se
dá conta do significado da letra da canção: “Creio que a letra, destinada a picar a
vaidade das crianças, foi que a enojou agora, porque logo depois me disse: — Se eu
fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.” (ASSIS, 2008, p. 951).
Claro que Capitu luta contra as amarras sociais. A arma utilizada é a dissimulação. Ela é
bem sucedida em seu jogo, porém o narrador insiste em colocar Capitu em seu lugar. A
astúcia de Capitu em perceber suas condições e ficar incomodada é logo condenada
pelo narrador:
Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos
que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática
faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de
salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponde uma concepção
grande executada por meios pequenos.
É assim que Bentinho descreverá Capitu ao longo de 148 capítulos. O leitor não
126
pode desconsiderar o fato de que todas as características de Capitu e até mesmo seus
mais recônditos sentimentos são revelados na narrativa pelo narrador casmurro. Como
forma de manter a subalternidade de Capitu, após um longo tempo, vinte e dois
capítulos depois de contar o ocorrido, Bentinho volta a mencionar o pregão do preto das
cocadas e afirma que procurou um músico para escrever a partitura: “Justamente,
quando contei o pregão das cocadas, fiquei tão curtido de saudades que me lembrou
fazê-lo escrever por um amigo, mestre de música, e grudá-lo às pernas do capítulo.”
(ASSIS, 2008, p. 995). Porém, Bentinho reflete sobre o pregão e percebe que a canção
somente se torna lembrança para os que a viveram. Por isso, é necessário ter padecido e
vivenciar as repetidas ações de humilhação, tal como Capitu, para que o apregoado faça
sentido: “Já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os opúsculos de
seminário, encerrem casos, pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha
conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo é calado e incolor.” (ASSI, 2008, p.
995). Ele volta a falar sobre o pregão outras vezes, como na ocasião resgatada de uma
reunião familiar:
Gostava de música, não menos que de doce, e eu disse a Capitu que lhe
tirasse ao piano o pregão do preto das cocadas de Mata-cavalos... — Não me
lembra. — Não diga isso; você não se lembra daquele preto que vendia doce,
às tardes... — Lembra-me de um preto que vendia doce, mas não sei mais da
toada. — Nem das palavras? — Nem das palavras. A leitora, que ainda se
lembrará das palavras, dado que me tenha lido com atenção, ficará espantada
de tamanho esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda as vozes da
sua infância e adolescência; haverá olvidado algumas, mas nem tudo fica na
cabeça. Assim me replicou Capitu, e não achei tréplica. Fiz, porém, o que ela
não esperava; corri aos meus papéis velhos. Em São Paulo, quando estudante,
pedi a um professor de música que me transcrevesse a toada do pregão; ele o
fez com prazer (bastou-me repetir-lho de memória), e eu guardei o
papelzinho; fui procurá-lo. Daí a pouco interrompi um romance que ela
tocava, com o pedacinho de papel na mão. Expliquei-lho; ela teclou as
dezesseis notas. (ASSIS, 2008, p. 1024)
127
tão importante: “Em si, a matéria é chocha, e não vale a pena de um capítulo, quanto
mais dois (...).” (ASSIS, 2008, p. 1046), é preciso perceber que a repetição em um livro
de Machado de Assis não ocorre por mero acaso. Em outro momento, Bentinho retoma
o assunto: “Capitu e eu tínhamos jurado não esquecer mais aquele pregão; foi em
momento de grande ternura, e o tabelião divino sabe as coisas que se juram em tais
momentos, ele que as registra nos livros eternos.” (ASSIS, 2008, p. 1046). Havia então
um juramento entre os dois para que não se esquecessem do pregão. Qual seria o motivo
de manter na lembrança um episódio tão banal. Fato é que os dois se esquecem. Capitu
assume o esquecimento e Bentinho simula lembrar-se: “Mas hás de crer que, quando
corri aos papéis velhos, naquela noite da Glória, também não me lembrava já da toada
nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e este é que foi o meu pecado; esquecer,
qualquer esquece.” (ASSIS, 2008, p. 1046). Então, a escrita da música e da partitura
servia como memória auxiliar, como uma forma de manter o juramento e a
subalternidade de Capitu.
128
(ASSIS, 2008, p. 1067). Note que o narrador utiliza a primeira pessoa do plural para
reger os verbos que utiliza. Assim, ele falsamente apresenta a ideia da viagem ter sido
uma decisão conjunta. Porém, ao chegar na Suíça, o Dom Casmurro deixa a mulher e o
filho e parte de volta para o Brasil. Capitu ainda tenta manter uma relação amorosa com
o homem que amava: “Capitu começara a escrever-me cartas, a que respondi com
brevidade e sequidão. As dela eram submissas, sem ódio, acaso afetuosas, e para o fim
saudosas; pedia-me que a fosse ver.” (ASSIS, 2008, p. 1067). Bentinho nunca mais
procurou a esposa e para manter a imagem do casamento viajava para a Europa apenas
de fachada: “Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o
mesmo resultado.” (ASSIS, 2008, p. 1067). Quando os conhecidos perguntavam por
Capitu ele simulava que tinha estado com ela: “Na volta, os que se lembravam dela,
queriam notícias, e eu dava-lhas, como se acabasse de viver com ela; naturalmente as
viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião.” (ASSIS,
2008, p. 1067). A simulação permanece e o casamento segue à distância. Até o
momento de sua morte, Capitu continua valorizando a imagem do marido que a
abandonou: “A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente, como o
homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido.” (ASSIS, 2008, p. 1070)43.
A posição de submissão da esposa permanece por toda a narrativa.
43
A voz que fala no fragmento anterior é a de Ezequiel. Um dos fatos interessantes é que ao visitar o pai
Ezequiel fica admirando um dos bustos pintados na parede. Não era qualquer busto, era o de
Massinissa: “Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado
na parede” (ASSIS, 2008, p. 1070). Estaria esta alusão repetida ao rei da Numídia figurando na
narrativa como uma mera coincidência? (Ver nota 43). Tratando-se de Machado de Assis, nada do que
ocorre em seus textos se dá por mero acaso ou por descuido. A repetida alusão ao Rei da Numídia,
agora pelos olhos de Ezequiel, necessita ser observada. O objetivo de Machado de Assis é chamar a
atenção do leitor atento para este personagem histórico e para o que ele simboliza na narrativa. O
envenenamento de um(a) inocente? A falsa acusação de traição? Ou a acusação sem provas? Cabe ao
leitor decidir se buscará ou não uma interpretação do fato.
129
Machado de Assis – podemos concluir – quis com Dom Casmurro
desmascarar certos hábitos de raciocínio, certos mecanismos de pensamento,
certa benevolência retórica – hábitos, mecanismos e benevolência que estão
para sempre enraizados na cultura brasileira, na medida em que foi ela
balizada pelo ‘bacharelismo’, que nada mais é, segundo Fernando de
Azevedo, do que ‘um mecanismo de pensamento a que nos acostumara a
forma retórica e livresca do ensino colonial’, e pelo ensino religioso.
(SILVIANO SANTIAGO in ASSIS, 2008, p.138)
Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga
fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se
por médico homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia então um
andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber
nenhuma remuneração. Então meu pai propôs ficar ali vivendo, com pequeno
ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de
sapé do pobre. (ASSIS, 2008, p. 935).
131
livro elevando ao papel de protagonista o agregado José Dias. Nesta tese, defende-se
que o indivíduo subalternizado de maior importância no romance Dom Casmurro é José
Dias. Muito mais do que Capitu, José Dias move as peças que articularão toda a
narrativa. Assim, a informação do artigo de Malard corrobora com a importância da
personagem nesta pesquisa e no romance de Machado de Assis.
44
A professora Marta de Senna alerta para uma figura destoante no grupo de medalhões:
Massinissa. “Junto a César, Augusto e Nero, porém, o narrador introduz a figura menos conhecida do rei
Massinissa da Numídia. Aliado dos romanos, Massinissa é casado com Sofonisba, cartaginesa irmã de
Aníbal, educada para odiar Roma. Compelido pelo vitorioso Cipião a entregar a mulher para ser
submetida à vergonha pública em Roma, Massinissa dela se compadece e, para poupá-la do que seria um
ultraje bem pior que a morte, manda-lhe uma taça de veneno, que ela toma de bom grado. O episódio está
em Tito Lívio e foi retomado em várias tragédias (por Corneille, entre outros) e em várias óperas. É
possível que numa dessas versões Massinissa envenene a mulher por ter ela participado de uma
solenidade em honra de Cipião.” (SENNA, 2008, p. 62). Ainda que exista a versão da história que afirme
132
poderia passar sem que despertasse o receptor para o sentido dela. O próprio narrador
despista qualquer suspeita afirmando: “Não alcanço a razão de tais personagens.”
(ASSIS, 2008, p. 932). Todavia, nada no texto machadiano é por acaso. E o agregado é
quem chama novamente a atenção do leitor para os medalhões quando vai explicar para
Capitu quem eram aquelas figuras. Ao narrar a vida das personagens, ele só apresenta
César e o faz contando a história da pérola que o imperador presenteara sua amada:
“Um homem que dava a uma senhora uma pérola do valor de seis milhões de
sestércios!” (ASSIS, 2008, p.964). O narrador se aproveita deste fato para chamar a
atenção para a ambição de Capitu: “A pérola de César acendia os olhos de Capitu.”
(ASSIS, 2008, p. 964). Uma frase de José Dias indica para o leitor o tema da traição:
“Tu quoque brute?” (Assis, 2008, p. 964 – grifo do autor). Esta frase faz referência ao
fato de César ter sido traído até mesmo por aquele em quem mais confiava.
No segundo momento em que o narrador fala sobre José Dias, o leitor descobre
que ele adora os superlativos, uma maneira para dar mais importância às suas ideias e na
ausência destas, uma forma de prolongar as frases. Além disso, há um capítulo
específico para ele intitulado “O agregado”. É personagem de extrema importância na
narrativa. Uma das características mais marcantes dele era o cálculo, a capacidade de
ludibriar, de fazer valer sua vontade sem, contudo, levantar suspeitas.
que Massinissa tenha assassinado a esposa por ela ter participado da solenidade em honra de Cipião, o
fato não justificara sua morte e nem representava em si uma traição. O autor, neste momento, implanta a
dúvida no entendimento do leitor. Seria Capitu vítima de uma injustiça, assim como Sofonisba e
Desdêmona?
133
arrepende de seu parecer sobre a noiva e passa a vê-la como um anjo, um anjíssimo:
“Cuidei o contrário, outrora; confundi os modos de criança com expressões de caráter, e
não vi que essa menina travessa e já de olhos pensativos era flor caprichosa de um fruto
sadio e doce...” (ASSIS, 2008, p. 133). Contudo, posteriormente, ele muda sua
percepção não por uma correção de análise, mas sim por perceber que Capitu adulta
tornar-se-ia esposa de seu ‘senhor’. Bentinho já percebera esta capacidade de simular
que ele possuía: “E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham
antes do cálculo que da índole” (ASSIS, 2008, p. 936). O narrador carrega na tinta ao
descrever o agregado como uma personagem que molda seu caráter à situação em que
se encontra e que utiliza muito bem a linguagem a seu favor.
É também o próprio José Dias que afirma que Bentinho será feliz: “‘Tu serás rei,
Macbeth!' — 'Tu serás feliz, Bentinho!'. O problema está na comparação com Macbeth.
É de conhecimento do leitor atento que esta é uma alusão às três bruxas que dialogam
com Macbeth. Uma delas afirma que professa que ele será rei, porém nenhuma delas
afirma que será feliz. O regicida Macbeth vive sob a constante ameaça.
134
A construção da personagem Bentinho é a elaboração de um ser inocente e
constantemente enganado e manipulado por todos na narrativa. O discurso de Bentinho
caracteriza-se por argumentos, comprovações e sugestões próprias do discurso do
advogado e do promotor. Do advogado que quer absolver de culpa o seu cliente e do
promotor que quer provar a culpabilidade de Capitu. Deste modo, o discurso utilizado
por Bentinho coloca o leitor na condição de juiz. Marcado por essa astúcia, o romance
passa a refletir sobre o próprio julgamento e sobre a própria lei. Motivada por essas
artimanhas, a recepção crítica do romance considerava inquestionável a culpa de Capitu.
Este fato leva a reflexão sobre o porquê desta certeza. A dúvida só se tornou mais forte
no momento em que os subalternos passam a ocupar algum espaço e a ter alguma voz.
Pelos motivos apresentados até aqui, é possível perceber que Dom Casmurro é
muito mais do que a história de personagens subalternas, de um narrador suspeito ou de
uma história de amor, desilusão e dor. Analisando o processo de recepção do romance, é
perceptível que se trata também da história do leitor e de suas inúmeras formas de ler
um livro.
É isto, vamos, é isto... Ideia só! Ideia sem pernas! As outras pernas não
queriam correr nem andar. (ASSIS, 2008, p.971).
Era este senso crítico que impedia Machado de se alegrar com euforia diante de
grandes fatos da história oficial do Brasil, por isso não se sentira eufórico diante do
episódio da abolição da escravatura ou diante da alteração de regime político: da
monarquia para a república. Já podiam ser identificadas no autor as posições críticas que
constantemente são vistas como pessimismo ou até mesmo, em algumas análises, como
passividade.
137
Belas e viçosas, mas em vaso de Sèvres
Estêvão era mais ou menos o mesmo homem de dois anos antes. Vinha
cheirando ainda aos cueiros da academia, meio estudante e meio doutor,
aliando em si, como em idade de transição, o estouvamento de um com a
dignidade do outro. As mesmas quimeras tinha, e a mesma simpleza de
coração (...). (ASSIS, 2008, p. 323).
139
páginas. Como Estêvão representa o leitor, aquele que criticara o autor pela ausência de
romantismo em suas obras, Machado o utiliza para enviar suas farpas aos seus
receptores não idealizados. O leitor que ele buscava deveria ser crítico e atento. O leitor
ávido, devorador de páginas, não conseguiria entender as densas laudas da narrativa
machadiana.
Tinha leitura de uma e outra coisa, mas leitura veloz e à flor das páginas.
Estêvão não compreenderia nunca esse axioma de lorde Macaulay – que mais
aproveita digerir uma lauda que devorar um volume. Não digeria nada; e daí
vinha o seu nenhum apego às ciências que estudara. Venceu a repugnância
por amor-próprio; mas, uma vez dobrado o cabo das Tormentas disciplinares,
deixou a outros o cuidado de aproar à Índia. (ASSIS, 2008, p. 323).
(...) cândida – cândida e outra coisa, que eu nesse tempo não entendia muito
bem; mas agora, relembrando o caso, penso que era um riso misto, como
devia ter a criatura que nascesse, por exemplo, de uma bruxa de Shakespeare
com um serafim de Klopstock. Não sei se me explico. (ASSIS, 2008, p.647).
140
Guiomar.
Por ter o espírito tão cândido, Guiomar percebe logo no início que seria
impossível escolher Estêvão como marido. Faltava nele o impulso necessário para adiar
a virtude em busca de um ideal. Ele não simulava, não dissimulava. Deste modo, ele
não poderia ser o amado de uma mulher que tão alto mirava:
141
O terceiro pretendente, Luís Alves, representava a melhor materialização do
ideal almejado por Guiomar. Era objetivo, obstinado, dissimulado e, por vezes, frio. Ele
é advogado e ambiciona o acesso à carreira pública e, além disso, soube ser habilidoso
no jogo da conquista e seduziu a protagonista por, aparentemente, jogar seu próprio jogo
com segurança de seus atos. Guiomar “(...) queria um homem que, ao pé de um coração
juvenil e capaz de amar, sentisse dentro em si a força bastante para subi-la aonde a
vissem todos os olhos.” (ASSIS, 2008, p. 365-366). O objetivo da protagonista,
portanto, era unir duas qualidades essenciais a uma união promissora, o amor e a
comodidade. A felicidade para ela não poderia vir carregada de infortúnios, pois não
poderia viver uma vida de privação por causa do amor: “Pedia amor, mas não o quisera
fruir na vida obscura; a maior das felicidades da Terra seria para ela o máximo dos
infortúnios, se lha pusessem num ermo.” (ASSIS, 2008, p. 365). Luís Alves seria o
parceiro ideal, pois possuía o nome e a ambição necessária para alçar voos mais altos.
Guiomar queria sair da condição do favor. Estêvão não poderia fornecer meios
para que a protagonista alcançasse todos os sonhos que sua ambição produzia; Jorge,
por sua vez, era sobrinho da baronesa e como era um bon vivant, não ofereceria a ela
possibilidade de mudança de situação já que continuaria vivendo de favor; Luís com sua
ambição seria o que a levaria no ponto mais alto de seus sonhos. Contudo, apesar de sua
afeição por Luís, ela precisava manter sua discrição e dissimular seus sentimentos –
qualidade tão valorizada na época.
Antes de tomar sua decisão, ela precisava dissimular para manter em suas rédeas
os três pretendentes. O narrador destaca sua capacidade de utilizar a arte de Armida, ou
seja, a arte de encantar e ao mesmo tempo esconder suas reais intenções. A dissimulação
é tática utilizada por pessoas da elite, contudo, nos fragilizados, a técnica adquire o
patamar de arte. Guiomar dissimula para conseguir tempo. A escolha deveria passar pelo
cálculo, pois deveria conciliar uma gama de interesses: o de ser amada, o de conseguir
alcançar a posição social desejada e o de não desagradar a madrinha – o que, de certa
forma, não deixa de caracterizar uma das amarras do favor. Por isso, a necessidade de
refletir. A decisão a ser tomada pode ser a solução para a realização de seus sonhos ou
uma forma de intensificar seus infortúnios. Sua reflexão a leva a imaginar. Mas, engana-
se o leitor que vir nesses devaneios aspectos de uma heroína romântica: “Nada disso era
nem fazia; e por mais longe que velejasse levaria entranhadas na alma as lembranças da
terra” (ASSIS, 2008, p. 351). Ela velejava pelo mar da imaginação sem deixar de mirar
a terra firme.
Guiomar refletiu ainda muito e muito, e não refletiu só, devaneou também,
soltando o pano todo a essa veleira escuna da imaginação, em que todos
143
navegamos alguma vez na vida, quando nos cansa a terra firme e dura, e
chama-nos o mar vasto e sem praias. A imaginação dela porém não era
doentia, nem romântica, nem piegas, nem lhe dava para ir colher flores em
regiões selváticas ou adormecer à beira de lagos azuis. (ASSIS, 2008, p. 351)
Luís Alves, por sua vez, admira Guiomar e com o tempo passa a amá-la,
contudo é o que apresenta maior controle dos sentimentos. Estevão e Luís se tornaram
amigos na época de faculdade, o primeiro de origem mais humilde e o segundo de
família mais abastada. Desde o início Estevão confessara para Luís o seu dilema por
amar tanto a protagonista que o desprezara. O amor era tão forte que em alguns
momentos Estevão desejara a morte, o suicídio.
Todavia, é por desejo da baronesa que Guiomar se casa com Luís. Prevendo os
sentimentos da afilhada e o possível sofrimento de um casamento sem amor, a dona da
casa, que recebera os pedidos de Luís e de seu sobrinho, escolhe o que mais agradava à
sua protegida. Com isso, o ambicioso Jorge logo se recupera da perda e segue sua vida
enquanto o apaixonado Estevão se agarra ainda mais à ideia do suicídio. Após o
casamento, a protagonista revela os motivos de sua escolha:
144
Vi que você era homem resoluto, disse a moça a Luís Alves, que, assentado, a
escutava. Resoluto e ambicioso, ampliou Luís Alves sorrindo; você deve ter percebido
que sou uma e outra coisa. A ambição não é defeito. Pelo contrário, é virtude; eu sinto
que a tenho, e que hei de fazê-la vingar. Não me fio só na mocidade e na força moral;
fio-me também em você, que há de ser para mim uma força nova. Oh! sim! exclamou
Guiomar. E com um modo gracioso continuou: Mas que me dá você em paga? Um
lugar na câmara? Uma pasta de ministro? O lustre do meu nome, respondeu ele.
Guiomar, que estava de pé defronte dele, com as mãos presas nas suas, deixou-se cair
lentamente sobre os joelhos do marido, e as duas ambições trocaram o ósculo
fraternal. Ajustavam-se ambas, como se aquela luva tivesse sido feita para aquela mão
(ASSIS, 2008, p. 387).
Poderia, inclusive, parecer certo conformismo por parte do autor em retratar uma
situação demasiadamente burguesa. Os enlaces e desenlaces, as conquistas e frustrações
amorosas só possuem a função de manter as coisas da forma como estão. “Resulta uma
espécie de conformismo insolente, expedito, antepassado da modernização reacionária
de nossos dias, em que inteligência, vitalidade e antipatia se dão as mãos” (SCHWARZ,
2012, p. 95). Tudo não passaria de um enredo romântico se a protagonista não fosse
Guiomar uma personagem subalterna, mas forte e que, por sua situação de fragilidade
econômica e social, precisa usar de todos os subterfúgios para conseguir a tal almeja
ascensão de classe. É assim que a inteligência e a dissimulação imperam na
personalidade da personagem que “Usando de “tino e sagacidade”, (...) procura
substituir-se junto à madrinha à filha que esta perdeu. Sai bem da empresa, e deixa de
ser “a simples herdeira da pobreza de seus pais”” (SCHWARZ, 2012, p. 96).
Guiomar amava deveras. Mas até que ponto era involuntário aquele
sentimento? Era-o até o ponto de lhe não desbotar à nossa heroína a castidade
do coração, de lhe não diminuirmos a força de suas faculdades afetivas. Até
aí só; daí por diante entrava a fria eleição do espírito. Eu não a quero dar
como uma alma que a paixão desatina e cega, nem fazê-la morrer de um amor
silencioso e tímido. Nada disso era, nem faria. Sua natureza exigia e amava
essas flores do coração, mas não havia esperar que as fosse colher em sítios
agrestes e nus, nem nos ramos do arbusto modesto plantado em frente de
janela rústica. Ela queria-as belas e viçosas, mas em vaso de Sèvres, posto
sobre móvel raro, entre duas janelas urbanas, flanqueado o dito vaso e as
ditas flores pelas cortinas de caxemira, que deviam arrastar as pontas na
alcatifa do chão. Machado (ASSIS, 2008, p. 165)
147
subalterno. Sendo assim, é preciso deixá-la escondida dos olhos dos membros de
famílias abastadas, pois este sentimento, em pessoas que são seus dependentes, os
amedronta. É preciso ser ambicioso e ao mesmo tempo simular a ausência deste
sentimento. A ambição funciona como um segredo de combate, pois deve-se manter a
sensação de segurança daqueles que estão em posição hierárquica superior no sistema. A
personagem feminina que vive do favor não deve de forma alguma ambicionar o amor
de membros da família que a acolhe. Porém, pode viver o amor em um casamento
arranjado. É assim que a frieza e a ambição de Guiomar deixam de ser vistas como
defeitos e passam a ser reconhecidas como qualidades.
Nas obras de Machado de Assis as mulheres são piores que os homens, mais
perversas. Não que os homens sejam bons, está claro, mas são mais animais,
se posso me exprimir assim, mais espontâneos. As mulheres não: há em
quase todas elas uma inteligência mais ativa, mais calculista; há uma dobrez,
uma perversidade e uma perversão em disponibilidade, prontas sempre a
entrar em ação. Talvez nisto se possa ver ainda uma boa prova da forte
sensualidade (ANDRADE, apud ASSIS, 2008, p. 48).
O próprio autor fornece falsas pistas para o leitor quando afirma no início do
romance sua passageira verve romântica. O maior desafio encontrado pelo leitor no
processo de interpretação da literatura de Machado de Assis advém da dificuldade de
150
definir os elementos irônicos de seu texto. A ironia machadiana se faz presente até
mesmo na apresentação do livro. Quando revela o ar romanesco da narrativa, ele o faz
de forma irônica. Esta declaração se apresenta como mais um dos despistes do autor, um
embuste, uma bruxaria, uma negaça de capoeirista que quando diz que vai não vai.
Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras,
que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que compus e
imprimi, diverso do que o tempo me fez, correspondendo assim ao capítulo
da história do meu espírito naquele ano de 1876. (ASSIS, 2008, p. 391).
Entre o que era e o que poderia ser, Machado de Assis observava no momento de
transição de paradigmas uma possibilidade, uma dádiva. O problema é que as dádivas
quando caem em mãos desavisadas acabam por perder o valor perante àqueles que não
as enxergam. Por isso, o ceticismo em alguns momentos toma conta das reflexões do
autor. Mas, no fragmento apresentado é possível vislumbrar um certo ar de otimismo:
Finalmente, a geração atual tem nas mãos o futuro, contanto que lhe não
afrouxe o entusiasmo. Pode adquirir o que lhe falta, e perder o que a
deslustra; pode afirmar-se e seguir avante. Se não tem por ora uma expressão
151
clara e definitiva, há de alcançá-la com o tempo; hão de alcançá-la os idôneos
(MACHADO DE ASSIS, 2008, vol. 3, p.1242).
152
É por baixo da cortina do melodrama que se observa a real intenção do autor. A
contradição tão comum ao Romantismo, os fracassos, as tragédias, os dramas
acompanhados da morte – todos estes elementos não funcionam em Helena como um
recurso meramente estilístico. Há em Machado de Assis um ideal maior relacionado
com questões que se inserem numa revisão da subalternidade ou do espaço relegado
àqueles que se encontram nesta condição. A morte da protagonista, neste contexto,
funciona como uma vontade, um poder e um dos poderes mais nobres – o poder de
decidir-se pela própria vida. É este direito que não é dado à heroína criada por Eça de
Queirós. Ao passo que Helena contraria o paradigma romântico, Luísa é apenas uma
escrava das circunstâncias e das regras do Realismo. Machado chega até mesmo a
afirmar que a personagem não passa de um títere: “(...) a Luísa é um caráter negativo, e
no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral” (ASSIS,
2008, p. 1234). Fica claro que este maniqueísmo na construção das personagens
incomoda o bruxo do Cosme Velho. Afinal, Luísa é o ponto mais frágil da narrativa de
Eça, podendo inclusive ser considerada uma presença subalterna. Luísa é a mulher
burguesa que sofre com a monotonia de um casamento por conveniência e que vê no
adultério a possibilidade de realizar em sua vida o que observava na literatura que lia:
“Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo
outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência” (ASSIS
2008, p. 1234). Luísa é um títere, pois não morre com o peso de sua própria consciência
ou por remorso. Ela morre para atender a uma moralidade externa, um desejo do autor.
É desta ausência de poder no processo de decisão que descende “a inanidade de caráter
da heroína” (ASSIS, 2008, p. 1234).
Sua obra é dominada pelo senso estético, pelos valores estéticos. O que nela
predomina não é a preocupação social, sem embargo de estar presente a
153
imagem do social, a sociedade do seu tempo (...). Mas, a realidade, o meio,
para ele, constituíam apenas a base, a matéria-prima que, à imagem de todos
os grandes artistas, ele transfigurava e transformava em arte. Para ele, a
verdade histórica existia para ser transmutada em verdade estética.
(COUTINHO, 2004, p. 24)
154
O espelho quebrado
(…) apesar do perigo constante de invasão e rapina por seus algozes, e
certamente por isso mesmo, o desafio de Helena, Luís Garcia, Capitu e outros
tantos era afirmar a diferença no centro mesmo dos rituais da dominação
senhorial. (CHALHOUB, 1998, p.99)
Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Das que então fiz, este me
era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e
diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé
ingênua. É claro que em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra
pertence ao seu tempo. (ASSIS, 2008, p.391)
Pode ser que os que considerem esta fase do autor como “ingênua”, levem em
consideração a advertência acima. Mas, antes de tomar conclusões apressadas, o leitor,
tal como já mencionei anteriormente, deve levar em consideração o tom ambíguo da
orientação do autor, pois não significa que Helena estivesse determinado a ser lido
somente com os princípios estéticos mais marcantes de uma época, a do Romantismo,
mas sim que determinadas leituras do romance só poderiam ocorrer anos mais tarde
definindo, assim, o caráter atemporal da obra literária.
155
Helena é um romance que apresenta ao leitor a história do Brasil em meados do
século XIX, descrevendo sua situação política, social e econômica. Os fatos
apresentados na narrativa se dão durante a década de 1850. Entretanto, como assinala
Chalhoub, há na obra duas temporalidades ou historicidades: “Machado escreveu tal
romance em 1876, evocando práticas sociais e o ‘clima’ vigentes na década de 1850”.
Por isso o autor teve possibilidade de analisar e fazer a “(...) denúncia, dos
antagonismos e da violência inerentes às relações sociais vigentes durante ‘o tempo
saquarema’”. Segundo Chalhoub (2003): “Os capítulos iniciais do romance, e
especialmente o segundo, são uma cuidadosa descrição da ideologia senhorial”. É
possível perceber nestes capítulos a situação da classe senhorial e seus valores. Entre
estes, talvez o mais valorizado seja a chave para que possamos entender o paternalismo
em Helena: a vontade do chefe de família, sim “a vontade do chefe de família, do
senhor proprietário, é inviolável e é essa vontade que organiza e dá sentido às relações
sociais que a circundam (...)”. A vontade do senhor é tão forte que a família de Estácio,
filho do Conselheiro Vale, é obrigada a aceitar Helena; não seria só uma simples divisão
de herança, não, a “filha” bastarda viveria em comunhão com os demais membros da
família e todos deveriam tratá-la “com desvelo e carinho, como se de seu matrimônio
fosse”45.
45
As citações apresentadas neste parágrafo estão presentes em CHALHOUB, 2003, p.37.
46
As citações apresentadas neste parágrafo estão presentes em CHALHOUB, 2003, p.37
156
(ASSIS, 2008, p. 391). A presença das primeiras fileiras da hierarquia social no funeral
não está relacionada à importância do morto que não fizera grandes coisas em vida e
sim à representatividade de sua família pelas relações e manutenção da imagem passada
“O conselheiro, posto não figurasse em nenhum grande cargo do Estado, ocupava
elevado lugar na sociedade, pelas relações adquiridas, cabedais, educação e tradições de
família” (ASSIS, 2008, p. 391). O conselheiro representa uma parcela significativa da
sociedade patriarcal que, assim como Brás Cubas, passara inerte e ainda assim
conseguira manter o status social.
Assim, Helena, por exemplo, entra em uma família que não é a sua e, uma
vez instalada, faz de tudo para tornar-se membro dessa família, mimetizando
os gostos e caprichos de cada um dos outros membros, agradando a todos,
disfarçando-se em algo que não é senão a fabricação de um outro eu”.
(CAMARGO, 2005, p. 31)
No início, havia certa resistência por parte dos servos, estes viam com receio a
chegada de uma parenta desconhecida. Afinal, neste cenário tão delimitado, a inclusão
de um diferente poderia alterar toda a configuração da casa e dificultar ainda mais a
vida dos dependentes. Contudo, o posicionamento da filha bastarda do conselheiro
conquista a todos. Sua simplicidade era mesmo gratuita e desinteressada.
(…) Dos próprios escravos não obteve Helena desde logo a simpatia e boa
vontade; esses pautavam os sentimentos pelos de D. Úrsula. Servos de uma
família, viam com desafeto e ciúme a parenta nova, ali trazida por um ato de
generosidade. Mas também a esses venceu o tempo. Um só de tantos pareceu
vê-la desde princípio com olhos amigos; era um rapaz de dezesseis anos,
chamado Vicente, cria da casa e particularmente estimado do conselheiro.
Talvez esta última circunstância o ligou desde logo à família do seu senhor.
Despida de interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia haver, era
precária e remota, a afeição de Vicente não era menos viva e sincera;
159
faltando-lhe os gozos próprios do afeto, — a familiaridade e o contato, —
condenado a viver da contemplação e da memória, a não beijar sequer a mão
que o abençoava, limitado e distanciado pelos costumes, pelo respeito e pelos
instintos, Vicente foi, não obstante, um fiel servidor de Helena, seu advogado
convicto nos julgamentos da senzala. (ASSIS, 2008, p.404)
Estácio logo utiliza a cena para fazer um discurso didático para a irmã sobre a
superioridade dos valores da riqueza. O rapaz deixa clara sua visão elitista e patriarcal
da vida: “(…) A riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugidio bem que
nos coube. Vê aquele preto que ali está? Para fazer o mesmo trajeto que nós, terá de
gastar, a pé, mais uma hora ou quase.” (ASSIS, 1997, p.18). Por meio da cena descrita e
160
das atitudes de Estácio é possível percebê-lo como representação dos homens da elite
patriarcal brasileira que pode ser caracterizada pela visão utilitária da vida.
— Valem muito os bens da fortuna, dizia Estácio; eles dão a maior felicidade
da Terra, que é a independência absoluta. Nunca experimentei a necessidade;
mas imagino que o pior que há nela não é a privação de alguns apetites ou
desejos, de sua natureza transitórios, mas sim essa escravidão moral que
submete o homem aos outros homens. (ASSIS, 2008, p. 413).
— Tem razão, disse Helena: aquele homem gastará muito mais tempo do que
nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de vista? A
rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o esperdicemos, quer o
economizemos. O essencial não é fazer muita coisa no menor prazo; é fazer
muita coisa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais aprazível é, talvez,
esse mesmo caminhar a pé, que lhe alongará a jornada, e lhe fará esquecer o
cativeiro, se é cativo. É uma hora de pura liberdade. (ASSIS, 2008, p. 414).
161
qualidades impressionam Estácio. No momento em que Dr. Camargo sugere que Estácio
entre para o ramo da política, este chega ao ponto de afirmar que iria consultar Helena
sobre o assunto, pois “há nela muita reflexão escondida, uma razão clara e forte, em boa
harmonia com as suas outras qualidades feminis” (ASSIS, 2008, p.420). O
posicionamento de Estácio causa certo desconforto em Dr. Camargo que chega a
questionar: “Helena! – disse ele com alguma hesitação. – Que vem fazer sua irmã neste
negócio?” (ASSIS, 2008, p. 420). O que assusta Dr. Camargo é o fato de Estácio dar
tanta importância aos conselhos de uma mulher, ainda mais em se tratando de política –
assunto que naquela época era do âmbito e de interesses específicos do gênero
masculino.
Talvez o conflito fosse ainda mais profundo e complicado. Afinal era Helena que
lutava contra Helena. A pobreza financeira da verdadeira e a pobreza de espírito a que
deveria se submeter aceitando a máscara da segunda. O conflito vivido pela
protagonista é provocado pela necessidade de viver simulando para continuar
desfrutando das benesses do sistema paternalista. Contudo, os benefícios não surgem
sem uma contrapartida e o preço a ser pago seria o de seguir com o processo de
simulação. Helena, todavia, não consegue se submeter por muito tempo à situação. Em
grande parte, o que a faz desistir da simulação é a aproximação de seu pai verdadeiro.
Ainda a propósito do pai de Helena, Camargo afirma: “E é lá que mora o pai, chamado
Salvador, mais uma ironia machadiana, já que o pai é sua perdição” (CAMARGO,
3005, p.). Tal como afirma Camargo, há uma ironia no nome do pai, mas há também um
paradoxo. Salvador é a perdição para a mascarada e simulada Helena, mas, por outro
lado, é a salvação da verdadeira Helena e a morte da máscara com que tentara exercer
com artifícios que lhe causavam imensa dor.
Outro ponto da narrativa que gera discussão é a morte da heroína. Seria possível
partir da tese de que a morte de Helena seria um recurso romântico? Porém, seguindo a
linha de pensamento da reflexão aqui empreendida, pode-se pensar que a morte da
protagonista funcionaria como um trunfo apresentado pelo autor: para que a
personagem fizesse parte daquela sociedade, era preciso que a verdadeira Helena
morresse e ficasse a simulada. Há várias personagens que representam esta grande
163
parcela da sociedade escravocrata e paternalista que consegue viver a verossimilhança,
mas a máscara não ficava bem em Helena, não se encaixava, assim como também não
se encaixou em Prudêncio47, personagem do romance Memórias Póstumas de Brás
Cubas. Na primeira, o ato de tentar ser o que não era causou-lhe dor, desespero, aflição
e humilhação; no segundo, tornou-o motivo de chacota.
47
Helena, por inadequação ao sistema e por não conseguir usar a máscara, acaba se anulando e
sofrendo de tal forma que a morte foi a solução encontrada. Prudêncio, por sua vez, não consegue
utilizar a máscara de senhor e assume até o fim da narrativa a posição de subalternizado.
164
Estácio saiu dali, para ir, longe, desabafar o desespero; desceu à chácara,
vagou por ela delirante, a soluçar como uma criança, ora abraçado a uma
árvore, ora ajoelhado e pedindo a Deus a vida de Helena. O coração do moço
não conhecia o fervor religioso; mas a imagem da morte deu-lhe o que a vida
lhe levara, e ele rezou, rezou sozinho, sem hipocrisia nem dúvida. (ASSIS,
2008, p. 504)
— Não posso ser outra coisa a seus olhos, prosseguiu a moça, tristemente.
Quem o convencerá de que a declaração de seu pai não foi obtida por
artifícios de minha mãe? Quem lhe dará a prova de que, cedendo aos rogos
de meu pai, não fiz mais do que executar um plano preparado já? São dúvidas
que lhe hão de envenenar o sentimento e tornar-me suspeita a seus olhos.
Resista quem puder; é-me impossível encarar semelhante futuro! (...) Ela
fitou no moço uns olhos de corça moribunda; as pernas fraquearam, e o corpo
esmorecido iria a terra, se lho não sustivessem as mãos de Estácio. (ASSIS,
2008, p. 503)
Ela não pertence àquele espaço, seria sempre um estorvo para a família Vale48.
Por isso, a solução mais centrada na situação real de uma mulher em situação de
subalternidade, que se apaixona pelo senhor patriarcal e que não consegue dissimular é
a morte. Eugênia é a personagem que merece triunfar naquela sociedade, é a que merece
os beijos do pai e, portanto, merece as benesses do poder patriarcal. Assim, a mais bela
cena romântica se transforma em uma severa crítica à sociedade de aparências e aos
modus operandi da elite patriarcal brasileira do século XIX.
A morte de Helena pode ser entendida como um recurso utilizado pelo autor para
demonstrar que não existem para o subalterno apenas os caminhos da simulação ou da
dissimulação, porque é possível manter as suas identidades. Mas, para isso, há um preço
e nem todos estão dispostos a pagar.
48
O título inicial do livro seria Helena do Vale e isto evidenciaria de forma mais forte a presença da voz
patriarcal no romance. Contudo, a mudança para Helena reforça o estudo do caráter da protagonista.
166
a partir dos estudos da subalternidade, primeiro, porque o romance de Assis coloca uma
subalterna como protagonista; segundo, por deixar clara a condição de similaridade
entre o agregado e o escravizado. Esta relação de similaridade é constatada até mesmo
no modo como a protagonista se comporta em relação aos escravizados. Helena não se
coloca de forma alguma em uma posição de superioridade. Entre a heroína e Vicente há
uma amizade sincera, coisa difícil de ser encontrada em cenário carregado de interesses.
Tal como alerta Chalhoub: “Escravidão e paternalismo, cativeiro e dependência pessoal,
pareciam duas faces de uma mesma moeda” (CHALHOUB, 2003, p. 135).
167
Brás Cubas e o riso irônico
A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,
pago-te com um piparote, e adeus (ASSIS, 2008, p. 626).
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se
poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. (...)Moisés, que também
contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o
Pentateuco. (ASSIS, 2008, p. 626)
‘Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho
que fazer; e, realmente, expedir magros capítulos para esse mundo sempre é
tarefa que distrai um pouco da eternidade...’ Fala Brás Cubas? Fala um
homem que morreu para a vida e só conservou a paixão de analisar ou a
mania de escrever, como o Trigorin de Tchekhov, sujeito dúbio que é ao
mesmo tempo Brás Cubas e Machado de Assis. E esse homem escrevia livros
como só um morto poderia escrever, porque vivia fora do mundo, no seu
subterrâneo eterno. (AUGUSTO MEYER IN ASSIS, 2008, p. 30)
169
Os bobos, os loucos, as crianças e os que estão no limiar entre vida e morte
gozam de certa liberdade para falar o que pensam. O que dizer então de um bobo que é
ao mesmo tempo um defunto-autor? A voz narrativa pertence a um “poeta camaleônico”
(SOUZA, 2006, p. 10) que tal como na cena do delírio se converte em uma infinidade
de papéis sempre com o mesmo objetivo: destruir todos os valores, tradições e
ideologias da elite patriarcal e escravocrata brasileira. Talvez por isso possa se
considerar o nome Brás como uma forma onomatopaica de representar a destruição
empreendida pelo autor.
170
que muda de máscaras conforme a situação. Schwarz relaciona a volubilidade do
protagonista com a realidade sociopolítica da sociedade brasileira do século XIX. O
Brasil vivia a agonia do sistema escravocrata e do governo monárquico. Há uma
mudança no caráter nacional no que seria a identidade brasileira. Além disso, a
intelectualidade brasileira importava as ideias modernizantes da Europa e as tentava
adaptar à cor e geografia local. Isto tudo tentando manter a elite patriarcal, as amarras
do favor e das relações governadas por interesses.
Rindo de si era ao mesmo tempo rir de toda uma classe. Assim, Brás Cubas se
converte em “retrato de um personagem que se revela em seu próprio ser a natureza
ambígua e reticente da condição humana” (SOUZA, 2006, p. 118). Ao rebaixar todos,
parte do seu próprio autorebaixamento para atacar o bacharelismo: “Bacharelo-me”.
Sua formação era de fachada tal como ocorria com outros que viviam em Portugal uma
vida boêmia e voltavam com o diploma do curso de Direito: “estudei-as muito
mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel” (ASSIS, 2008, p. 654). Os
rapazolas da elite brasileira faziam a formação em Portugal, entretanto este processo
não era, sob o ponto de vista do narrador, em disciplinas relacionadas à prática jurídica:
Brás Cubas ri de si mesmo com tamanha naturalidade que parece até mesmo
171
estar rindo de outro. De certa forma, esse outro de que ele ri pode ser caracterizado
como ele mesmo no passado, enquanto estava vivo, o “eu de outrora” chega ele a
afirmar. Mas pode ser também o eu que ele representa, ou seja, o estereótipo de um
homem da elite patriarcal. Essa estratégia é vista por Souza quando diz que “a ironia
suprema do narrador machadiano decorre do reconhecimento de que o ser do mundo e
do homem se manifesta como duplicidade originária, e não como unicidade
ontoteológica” (SOUZA, 2006, 35). O riso da personagem é um diagnóstico da doença
social que assolava a realidade nacional.
Isto tudo só é possível por se valer de sua autoridade de defunto: “talvez espante
ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a
franqueza é a primeira virtude de um defunto” (ASSIS, 1997: 94). A morte para Brás
Cubas caracteriza a liberdade assim como a morte de Helena, embora de forma
diferente. O protagonista se vê livre das amarras sociais e da necessidade de simular o
tempo todo. Durante a vida é preciso seguir o protocolo, o trato social:
Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente
pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se,
despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de
ser! (ASSIS, 2008, p. 658).
172
mas nem por isso universais” (p. 59).
E quem seria melhor para ocupar este papel de narrador que um morto
representante do próprio grupo que critica. Se fosse o caso de se buscar um títere na
obra machadiana, seria possível encontrá-lo ocupando o papel de um representante da
elite patriarcal e em um dos pontos mais altos da hierarquia social. A voz do senhor na
obra de Machado somente funciona como uma artimanha para desmontá-la com a pena
da galhofa e a tinta da melancolia de uma vida artificial e vazia. Se cobravam de
Machado de Assis a presença da cor local em seus romances, poderia ser questionado se
há algo mais peculiarmente brasileiro no século XIX que o processo de fingimento, do
que o regime simulação social a que todos estavam sujeitos:
173
(...) no escravismo para a produção interna e no liberalismo para a
comercialização externa do produto do mercado liberal. O disfarce é uma
exigência do comércio exterior. Dissimulando o que é e simulando o que não
é, a elite brasileira do século XIX detém lucro duplicado, não gastando para
produzir nem se desgastando para vender. No jogo cínico da dissimulação e
da simulação, a oligarquia nacional nada tem de volúvel, porque se mantém
sempre na mesma e única posição ideológica de dominação (Souza 2006:
27).
A cena é uma das mais tristes da narrativa machadiana, exatamente porque o uso
do humor (ou falso humor) permite que leiamos traços da realidade perversa referida. A
escrita assume claramente o recurso da dissimulação que faz da descrição da brincadeira
do menino Brás um recurso hábil para leitura do contexto social vigente:
Em cena anterior, observamos o menino Brás fazendo suas pilhérias infantis como
quando quebra a cabeça de uma escravizada, porque essa lhe negara uma colher do doce
de coco que estava fazendo, e, não contente com a maldade, ainda estraga o doce que
ela estava fazendo, culpando-a por isso. Os atos praticados pelo menino Brás reiteram o
ditado: “Onde há criança, adulto não leva a culpa”. E onde há escravizados?
Outra cena do romance que chama atenção é quando Brás observa seu antigo
174
“cavalo”, o alforriado Prudêncio, a bater com chicote em outro negro. Nesta situação,
mais uma vez o autor revela sua maestria, pois, se Machado colocasse na cena um
branco chicoteando um negro, a situação não causaria qualquer estranhamento; se
colocasse um negro chicoteando um branco, a cena seria inverossímil.
Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo
depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um
preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia
somente estas únicas palavras: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor,
perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com
uma vergalhada nova. (ASSIS, 2008, p.696).
A grande contradição para o protagonista está no fato de ser “um preto que
vergalhava outro”. A maestria está em colocar um negro chicoteando outro negro, pois a
cena instiga a pergunta: por que esta cena não é aceita pela sociedade? Por que choca
tanto? Por que a cena de um escravizado sendo chicoteado por um senhor branco não
choca tanto? O mais interessante é que, mesmo na posição de homem livre e
proprietário de escravizado, Prudêncio é um mero repetidor, um títere. E pior, como
títere, continua na posição de subalternizado em relação ao senhor. Ao ser interpelado
por seu antigo senhor, o que Prudêncio faz? Como senhor deveria assumir seu
posicionamento e a postura senhorial. Contudo, além de obedecer, ele ainda chama Brás
Cubas de nhonhô: “— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede.” (ASSIS, 2008,
p.696). Assim, fica claro que Prudêncio simplesmente imita um papel, o de opressor:
“Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, —
transmitindo-as a outro.” (ASSIS, 2008, p. 696). O que era oprimido, ao experimentar a
liberdade e a capacidade de também escravizar, acaba repetindo ações e simulando
posições: “(...) comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de
mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!”. (ASSIS, 2008, p. 696). Porém, perante a
sociedade patriarcal representada na personagem Brás Cubas, Prudêncio continuava
sendo o moleque da casa, maroto na tentativa de imitar o senhor. Prudêncio possui o
chicote, a carta de alforria e ainda é proprietário de pessoas escravizadas, porém isto o
torna senhor? Ele apenas repete o que vivenciou como escravizado e quando o
verdadeiro senhor aparece, esse toma dele o chicote e o coloca em seu lugar de
subalternizado.
Brás Cubas, na condição de morto, possui uma posição privilegiada para narrar e
175
para distribuir suas farpas. Segundo Walter Benjamin, “(...) é no momento da morte que
o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida – (...) assumem pela
primeira vez uma forma transmissível” (BENJAMIN, 1987, p.207). Por isso, o
protagonista sabiamente afirma que sua campa foi o berço. Machado reconhece com
satisfação o posicionamento interessante de seu narrador e já afirma com um tom
sarcástico os objetivos de Brás “Não digo mais para não entrar na crítica de um defunto,
que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo” (ASSIS, 2008,
p.625). A pena da galhofa e a tinta da melancolia aliadas às “rabugens do pessimismo”
fazem da narrativa um turbilhão de ataques à classe senhorial. Porém, é possível ler em
suas páginas um tom provocativo de quem acredita na arte literária, no poder do
sensível em alterar estados negativos da alma humana ou tal como defende Schiller,
uma crença no poder pedagógico da arte: “Ao martelar semanalmente nas páginas da
Revista brasileira, oito anos antes da abolição, as corrosivas memórias do cadáver
insepulto de Brás Cubas” (ASSIS DUARTE in BERNARDO, G., MICHAEL, J.,
SCHÄFFAUER, M.[Org.], 2010).
176
Prudêncio: o simulador
177
mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste
capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o
legado da nossa miséria. (ASSIS, 2008, p. 758)
Com sarcasmo o narrador cria uma situação fantasiosa e faz a suposição que se
Dona Plácida falasse no momento de seu nascimento diria:
178
pode ser comparada até mesmo à condição do escravizado. O lema viver para servir e
servir para viver revela-se um círculo vicioso que se repete como uma espécie de
herança de geração para geração. Brás Cubas usa Dona Plácida para acobertar a relação
com Virgília, sua amante. O protagonista suborna a velha beata pobre com cinco contos
de réis para que esta assuma o papel de moradora de uma pequena casa na Gamboa,
casa que era utilizada pelos amantes em seus encontros. O mesmo se repete no uso que
faz do moleque Prudêncio, tornando-o cavalo e brinquedo durante a infância. Na idade
adulta sendo considerado “homem livre”, o ex-escravizado continua seguindo, como já
dito, as ordens do senhor. Se esta e outras cenas aparecem em romances e contos de
Machado de Assis, como negar que em sua literatura haja evidentes provas do seu
interesse pela situação do negro no Brasil do século XIX? A narrativa machadiana
atualiza, de forma irônica, os processos de formação da sociedade brasileira e do país,
indicando contradições e desmandos que persistem ainda. A pena do escritor desfere
duros golpes na sociedade escravocrata, embora faça isso de forma dissimulada e
indireta, disfarçando suas reais intenções.
Pode ser dito que sua obra está marcada pela originalidade da pela incompletude,
pelo estilo fragmentário, pela dubiedade e veia cômico-trágica-irônica do narrador e
pela intervenção direta com o leitor (quase sempre invasiva). Com estas características o
estilo machadiano rompe com o realismo de Flaubert, marcado pela tentativa de
neutralidade do narrador, e com o naturalismo de Zola, que buscava retratar a realidade
de forma objetiva e com uma visão minuciosa de dados da realidade. Tal como explica o
autor:
Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e
áspero, que está longe de vir dos seus modelos. É taça que pode ter lavores de
igual escola, mas leva outro vinho. Não digo mais para não entrar na crítica
de um defunto, que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e
mais certo. (ASSIS, 2008, p. 625).
179
significativa de todas as outras.
180
A aprendizagem do menino prossegue por meio da observação. É em um jantar
em que estava reunida a seleta sociedade da época (“o juiz-de-fora, três ou quatro
oficiais militares, alguns comerciantes e letrados, vários funcionários da administração”
[ASSIS, 2008, p.641] ) o ensino prossegue. Em clima de total descontração, Brás ouve a
conversa dos adultos que falam sobre banalidades e entre elas surge o assunto de
compra e negociação de escravizados, tratado como cotidianidade, efemérides sem
nenhuma importância – ou com mera importância financeira.
Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro notícia recente dos negros novos que estavam a vir,
segundo cartas que recebera de Luanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já
negociado cerca de quarenta cabeças, e outra carta em que... Trazia-as justamente na
algibeira mas não as podia ler naquela ocasião. O que afiançava é que podíamos contar, só
nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos. (ASSIS, 2008, p. 642)
- Ora, mano, deixe-se dessas coisas, disse Sabina, erguendo-se do sofá; podemos arranjar
tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, o Cotrim não aceita os pretos, quer só o
boleeiro de papai e o Paulo...
- O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro.
- Bem, fico com o Paulo e o Prudêncio.
- O Prudêncio está livre.
- Livre?
- Há dois anos.
- Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar parte a ninguém! Está
direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata? (ASSIS, 2008, p.676)
181
ações que sofrera com Brás no passado.
Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e
ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na
praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras:
- "Não, perdão meu senhor; meu senhor, perdão!" Mas o primeiro não fazia cada súplica,
respondia com uma vergalhada nova.
- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
- Meu senhor! gemia o outro.
Cala a boca, besta! replicava o vergalho. (ASSIS, 2008, p. 696)
Brás percebe que o vergalho era o seu cavalo, o moleque da casa, seu joguete de
infância, que agora, na condição de senhor, repete suas ações. Prudêncio simula ser
aquilo que verdadeiramente não é. Esta simulação é tão forte que ele sem ao menos
perceber, repete inconscientemente as mesma ações que ocorreram no passado – só que
agora ele passa da condição de vítima para a de algoz, da condição de escravizado para
a de “senhor”. Um senhor, porém, ao avesso que na condição de “homem livre”
continua pedindo bênção a seu nhonhô do passado e seguindo suas ordens.
- É sim, nhonhô.
- Fez-te alguma cousa?
- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia
lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. (ASSIS, 2008, p.696)
(…) era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir,
desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e
ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do
maroto! (ASSIS, 2008, p. 696).
182
Repetindo a ação e a violência recebida do antigo dono, Prudêncio reforça
elementos da relação senhor/escravizado e da sociedade escravocrata, apresentando-se
como um ridículo repetidor de uma fantasia desconjuntada de senhor. Brás Cubas é
extremamente cínico ao narrar o episódio: “(...), aliás, seria matéria para um bom
capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco." (ASSIS, 2008,
p. 696). Onde estaria a alegria deste capítulo? O próprio narrador alerta para a
complexidade da cena: “Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só
exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio, achei-lhe um miolo
gaiato, fino, e até profundo”. (ASSIS, 2008, p. 696). A ação revela muito mais do que
está sendo apresentado. Superficialmente, seria um capítulo alegre; mas só
superficialmente. Prudêncio toma a atitude de senhor com todas os aspectos negativos
deste tipo de caráter, desta máscara. Exteriormente, ele seria uma espécie de traidor,
desumano e sórdido. Porém, o autor utiliza de negaças que fazem com que o leitor sinta
compaixão desta personagem que se constrói como um simples títere, macaqueando
comportamentos do branco. Esta é só uma das sutilezas do bruxo e sua crítica alcança a
todos. Sua visão não maniqueísta do mundo instaura uma poderosa razão cética e cínica
diante dos fatos mais pungentes da realidade brasileira.
183
É bem, e o resto?
184
também, como um organismo”. É nesse jogo de camada em camadas, de pano em pano,
desfazendo e reconstruindo, como um organismo vivo, que a obra machadiana deixa o
leitor, que não possui os quatro estômagos, impossibilitado de digerir sua obra, perdido
em meio aos palimpsestos que são formados constantemente. O bruxo, na condição de
Pharmakeús, sem utilizar de nenhum subterfúgio que não fosse a linguagem, enfeitiça,
encanta, e cega impossibilitando a visão plena de seus objetivos. Consequentemente, o
fio da narrativa não se rompe, mas envolve como um casulo e movimenta, indica o
caminho e conduz aquele que participa do jogo da leitura à sua armadilha, à sua teia.
Muitas das novas ideias apresentadas somente serviam para justificar atitudes de
exploração e apagamentos de alguns grupos sociais. E era contra estas ideias que
Machado se servia da pena que, na maioria das vezes, era a da galhofa para que seu riso
destronante abalasse algumas verdades ideologicamente construídas. O autor, como um
cidadão de origem subalterna, não admitia o fato da não existência e utilizava a
insistência e a dissimulação para alcançar os postos de mais destaque da hierarquia
patriarcal. Tal como defende Slavoj Zizek, o não existir não pode significar passividade
e nem sempre apresenta um significado que é antônimo de existência: “o contrário da
existência não é a inexistência, mas insistência, o que não existe continua a insistir,
lutando para existir” (ZIZEK, 2003, p.37-38). Por vezes, o não existir pode sim assumir
o papel de oposição ao existir ou de oposição àqueles que existem. Os marginalizados
187
de qualquer espécie insistem e resistem apesar daqueles que querem minar suas
identidades. E uma das formas mais interessantes de resistência consiste no conjunto de
estratagemas presentes em uma forma particular de uma Estética da existência, a
Estética da Dissimulação.
Falar em estética pode ser um ato que remete ao passado e que acaba
delimitando muito o campo de estudos. Não que a disciplina seja em si limitada, mas
sua utilização ficou marcada pelas abordagens quase sempre europeizantes que foram
feitas dela. Todavia, como se vem demonstrando, muitos questionamentos podem ser
levantados sobre a estética e sobre a utilidade do conceito. De acordo com Klucinskas e
Moser, a estética sofreu nos últimos tempos uma dura crise sobre a aplicabilidade do
comceito: "Esses livros lançam um olhar crítico sobre a estética enquanto disciplina de
pesquisa. Eles preconizam a necessidade de renovar a estética ou anunciam seu fim.”
(KLUCINSKAS & MOSER, 2007, p. 24). A crise da estética enquanto disciplina
filosófica surge da história do conceito e de suas abordagens mais tradicionais e,
portanto, mais excludentes.
188
busca de novos significados: “lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de
certo modo, a apaga-los, neutralizá-los ou purificá-los. São como que contraespaços”.
(FOUCAULT, 2013, p.20 – grifo do autor). O esforço desenvolvido nesta tese se
assemelha, portanto, ao que empreendeu Machado de Assis: fundar espaços
impensáveis para indivíduos em situação de subalternidade.
Pois bem, sonho com uma ciência – digo mesmo uma ciência – que teria por
objeto esses espaços diferentes, esses outros lugares, essas contestações
míticas e reais do espaço em que vivemos. Essa ciência estudaria não as
utopias, pois é preciso reservar esse nome para o que verdadeiramente não
tem lugar algum, mas as hetero-topias, espaços absolutamente outros; e,
forçosamente, a ciência em questão se chamaria, se chamará, já se chama
“heterotopologia”. (FOUCAULT, 2013, p.20-21 – grifo do autor)
189
ainda que apresente o subalterno em lugar de destaque, ele transforma o senhor em
personagens vazias e as ridiculariza quando não as mata.
49
Esta nota não é do autor e sim desta tese para explicar que o livro mencionado na narrativa é: Memórias
para servir à História do Reino do Brasil. O livro escrito por Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844) que
também era conhecido como Padre Perereca é composto por dois volumes. O livro apresenta fatos
históricos e se inicia com a transladação da corte imperial para o Rio de Janeiro. Há um teor
propagandístico da Regência de D. João no Brasil.
190
Machado de Assis era um cidadão que se destacava no meio da classe social que
ocupava. Nas fotos dele que não foram alteradas, é possível perceber que sua
afrodescendência estava marcada na pele. Mesmo assim, muitos críticos acabam criando
um mito do “antimulatismo” do autor. Eles caracterizam sua postura cética com um
posicionamento passivo perante os problemas sociais de seu tempo, principalmente os
relacionados à questão da escravidão. Todavia, se ele não pode ser considerado um
abolicionista tout court, é impossível caracterizá-lo em qualquer forma de
agrupamentos. A sua severidade crítica o levara ao limite do pessimismo, porém, este
caráter não significava passividade. Machado de Assis criticou a escravidão sobretudo
no âmbito literário, lutou contra a escravidão em seu posto no Ministério da Agricultura.
Também se emocionou com a abolição e logo percebeu que era só mais uma troca de
tabuletas. A abolição não significaria igualdade de condições, a tradição da
inferioridade do negro ainda permaneceria por muitos anos. Como cobrar a consciência
da negritude de um subalterno que, empoderado, conseguira chegar a uma posição
privilegiada após duras penas?
191
Uma tese, mais que qualquer outro gênero textual, é um fazer caracterizado pela
multiplicidade de vozes, em discurso entrecortado por citações e alusões conscientes ou
inconscientes. Há sempre embate, diálogo e, por vezes, apropriação. Muitos embates
foram estabelecidos na realização desta pesquisa, mas também diálogos frutificantes e
essenciais surgiram. Durante o percurso, o grande risco foi o de se perder perante
trabalhos já cristalizados na crítica machadiana e ser anulado por presenças tão
marcantes. Talvez, a maior descoberta durante o longo período de análise empreendido
não seja a do autor ou a de elementos presentes na narrativa. O que melhor se descobre
num trabalho desta envergadura é a si mesmo. A literatura é instrumento primordial para
o autoconhecimento.
192
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