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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ARAR O ENSINO DE LITERATURA A CONTRAPELO: TORTO ARADO E SEU


POTENCIAL PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO

NATÁLIA SOUZA NORO

Natal/RN
2022
NATÁLIA SOUZA NORO

ARAR O ENSINO DE LITERATURA A CONTRAPELO: TORTO ARADO E SEU


POTENCIAL PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do
título de Mestre em Estudos da Linguagem.

Área de concentração: Estudos em Literatura


Comparada.

Linha de pesquisa: Leitura do Texto Literário e Ensino

Orientadora: Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia


Gonçalves

Natal/RN
2022
NATÁLIA SOUZA NORO

ARAR O ENSINO DE LITERATURA A CONTRAPELO: TORTO ARADO E SEU


POTENCIAL PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________
Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves
Orientadora
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

________________________________________
Profa. Dra. Danielle Grace Rego de Almeida
Examinadora Interna
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

________________________________________

Prof. Dr. Fernando Maués de Faria Júnior


Examinador Externo
Universidade Federal do Pará
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Noro, Natália Souza.


Arar o ensino de literatura a contrapelo: Torto Arado e seu
potencial para o letramento literário / Natália Souza Noro. -
2022.
96f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e


Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2022.
Orientador: Prof.ª Dr.ª Marta Aparecia Garcia Gonçalves.

1. Vieira Junior, Itamar, 1979-.Torto Arado - Dissertação. 2.


Ensino de literatura - Dissertação. 3. Literatura contemporânea -
Dissertação. 4. Escritas de resistência - Dissertação. I.
Gonçalves, Marta Aparecia Garcia. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 821.134.3(81):37

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748


Ao meu vô Alberto,
minha referência longeva de Severo; de poesia e utopia revolucionária.
AGRADECIMENTOS

Ter a oportunidade de realizar e concluir essa dissertação de mestrado foi uma honra,
mas, principalmente, uma conquista que me conforta e alegra diante da imprevisibilidade dos
caminhos da vida. Quando achei que tudo estava perdido e quase me encerrei em mim
mesma, lembrei que carregava a literatura no calor do meu peito. Que sempre foi a literatura
quem me deu fôlego, quem alimentou minha fome. Foi reencontrando um caminho na
literatura e pela literatura que eu reencontrei as palavras que eu sou e que me orgulho em ser.
Então, antes de mais nada, eu celebro e agradeço a criança que se debruçou e se deslumbrou
com os livros. É honrando a criança que lia escondida de madrugada e cultuava o cheiro de
cada página como se fosse sagrada que eu chego até aqui, sabendo que, de uma forma ou de
outra, as raízes que fincam o meu pé nas palavras não podem ser arrancadas de mim.

Agradeço aos que forjam minha família no amor, na sabedoria e nas boas memórias.
Meu avô Alberto por ser a grande inspiração que orienta as minhas indignações e pelas
conversas infindáveis que conectam a nossa história. Vó Neuza por ser o colo sempre
afetuoso e irreverentemente engraçado. Vó Elsa pelas palavras de carinho e saudade. E vó
Rosa por ser o laço que generosamente nos acolhe e nos une.

Aos meus pais por me dedicarem um amor tão vital, tão sensível e tão sincero. À
minha mãe, por ser o ninho repleto de carinho e cuidado que me conforta de todas as
angústias e que ilumina os meus dias. E ao meu pai por ser quem melhor orienta os meus
caminhos e me oferta sua admiração e dedicação como uma dádiva divina.

Ao meu irmão, Giovanni, com quem eu divido a fonte da vida, das confidências e o
privilégio da ternura fraternal; que me dedica uma devoção imensurável e a quem eu sempre
protegerei e defenderei. Aos tios, primos e tantos outros familiares, obrigada por perguntarem
sempre com tanta empolgação sobre o mestrado e se alegrarem mesmo quando não
compreenderam muito bem a explicação.

A Norton, por aparecer na minha vida e dar início a essa aventura mágica que é ter o
amor da sua vida justo na sua vida. Obrigada por transformar todas as pedras em árvores, por
ser o lar onde eu repouso minhas desordens e inquietações e por nunca me deixar esquecer os
motivos pelos quais eu suspiro apaixonada. Agradeço também aos meus sogros e cunhada que
me dão a certeza de que eu não poderia ser mais feliz do que já sou ao me estenderem sua
família e seu afeto.
Aos meus amigos, que pacientemente permaneceram ao meu lado nessa jornada. Em
especial, agradeço à Érika, por nunca me deixar só e se interessar tão apaixonadamente por
este trabalho, e à Bianca, por encontrar um jeito sempre único e especial de me ouvir com
atenção e me presentear com suas palavras. Mas também à Isabel, Liz, Alice, Brena, Laís,
Beatriz, Laurinda e Ariane que me motivam e me acompanham com tanto carinho ao longo
desses anos, assim como os colegas de mestrado com quem troquei incentivos corajosos e
afetuosos durante esse percurso.

À Marta, minha orientadora, que desde o início do processo seletivo colaborou para
alimentar em meu coração o sonho da docência e me fazer crescer como pesquisadora com
seus ensinamentos e contribuições. E também a todos os professores que inspiraram esse
desejo que carrego de levar adiante uma educação compromissada com uma práxis humanista
e emancipadora a partir dessa coisa estarrecedora que é a literatura.

Ao Itamar Vieira Junior, que me dedicou seu disputado tempo para responder algumas
dúvidas com a mesma humildade e esmero que tem dedicado a todos que querem ouvi-lo.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que


financiou esta pesquisa e que eu espero que, mesmo em meio a dificuldades, consiga fomentar
tantas outras incentivando a ciência e a educação.

E à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que, pública, gratuita e de


qualidade, me formou e se fez lar.
Um poeta cultiva palavras como um homem da
terra cultiva o grão. [...] Uma palavra somente é
viva se ela transforma, encerrada em um livro,
não vive – é preciso lê-lo. O alimento somente
alimenta se amadurece. Você pode lançar
sementes na terra e elas não germinarem. Mas,
caso cresçam e se mostrem vivas, as sementes
irrompem a terra como as palavras irrompem um
livro, um muro, um aviso.

(Itamar Vieira Junior)


RESUMO

Um livro com tiragem de cinco mil costuma ser considerado um sucesso de vendas no Brasil.
Por sua vez, Torto Arado já alcançou a marca de cem mil cópias vendidas, além de ter
conquistado as principais premiações nacionais de romance. Um dos aspectos que se sobressai
na justificativa desse êxito é o fato da literatura de Itamar Vieira Junior ser uma literatura das
alteridades, dialogando diretamente com os postulados de Benjamin (1987b) ao propor
“escovar a história a contrapelo”, que convida não apenas a pensar em uma inversão da
ordem, mas a uma nova fundação da tradição dos oprimidos. Com este estudo, objetiva-se
então, analisar o romance a partir de suas representações de resistência à barbárie (Benjamin,
1987a; 1987b) e das cicatrizes do colonialismo (Fanon, 1968) para a composição do discurso
literário. Dessa interpretação, delimitam-se também apontamentos para um projeto de
letramento levando em consideração um percurso didático-metodológico em que se valoriza a
leitura literária como experiência (Larrosa, 2002) e compreende a escuta ativa (Bajour, 2012)
como importante método de apreensão da realidade por parte dos educandos. Diante das
análises suscitadas, conclui-se que Torto Arado traz contribuições enriquecedoras para a
formação humana ao se comprometer com um horizonte imaginativo revolucionário para/com
os oprimidos, assim como, as temáticas formalizadas em seu discurso apresentam um terreno
fecundo para uma educação literária crítica e libertadora.

Palavras-chave: Torto Arado. Ensino de literatura. Literatura contemporânea. Escritas de


resistência.
ABSTRACT

PLOWING THE TEACHING OF LITERATURE AGAINST THE GRAIN: TORTO


ARADO AND ITS POTENTIAL FOR LITERARY LITERACY

A book with a print run of five thousand is usually considered a best seller in Brazil. In
contrast, Torto Arado has already sold one hundred thousand, in addition to having won the
main national awards for novels. One of the aspects that stand out in justifying this success is
the fact that the literature of Itamar Vieira Junior is a literature of alterities, directly
dialoguing with the postulates of Benjamin (1987b) when proposing “brushing history against
the grain”, which invites not only to think of an inversion of the order, but of a new
establishment of the tradition of the oppressed. With this study, the goal is to analyze the
forementioned novel from its representations of resistance to barbarism (Benjamin, 1987a;
1987b) and the scars of colonialism (Fanon, 1968) for the composition of literary discourse.
From this interpretation, notes for a literacy project are also delimited, taking into account a
didactic-methodological path in which literary reading is valued as an experience (Larrosa,
2002) and active listening (Bajour, 2012) is understood as an important method of
apprehension. reality on the part of the students. In view of the analyzes raised, it is
concluded that Torto Arado brings enriching contributions to human formation by committing
to a revolutionary imaginative horizon for/with the oppressed, as well as the themes
formalized in his speech present a fertile ground for a critical and liberating literary education.

Key-words: Torto Arado. Literature teaching. Contemporary literature. Resistance writings.


LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – FOTOGRAFIA DA SÉRIE "NOUVELLE SEMENCE" ................................ 14

FIGURA 2 – CAPA DA EDIÇÃO BRASILEIRA DE TORTO ARADO ............................. 15


LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 - CONFIGURAÇÃO DA TERRA EM TORTO ARADO ................................. 36


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 14

1.2 Rio de sangue que banha a vida de comunidades campesinas no Brasil ........................ 19

2 LAVRANDO UM PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO ................................. 24

2.1 O novo espaço mnemônico para uma análise dialógica do discurso .............................. 24

2.2 Entre o ensino de literatura e a leitura literária ............................................................... 29

3 CAVANDO O SOLO DAS PALAVRAS: UMA ANÁLISE DO ROMANCE A


PARTIR DE ALGUNS PRECEITOS BENJAMINIANOS ............................................... 36

3.1 Estado da arte .................................................................................................................. 41

3.2 Em busca do coração: o espaço da terra como centro organizador da narrativa ............ 45

3.3 O dia que se planta a semente, não é o dia que se come a fruta: a passagem do tempo em
Torto Arado........................................................................................................................... 52

3.4 A narração em primeira pessoa como fundação do espaço mnemônico revolucionário de


Bibiana e Belonísia ............................................................................................................... 57

3.4.1 Bibiana, a irmã forjada na luta ................................................................................. 57

3.4.2 Belonísia, a irmã parida pela terra ............................................................................ 63

3.5 A construção das personagens que encarnam a força que ecoa de seus ancestrais ........ 70

4 SEMEANDO ORIENTAÇÕES A CONTRAPELO PARA A LEITURA DE TORTO


ARADO EM SALA DE AULA .............................................................................................. 77

COLHENDO OS FRUTOS: (ALGUMAS) CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................... 88

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 93
14

1 INTRODUÇÃO

Existe um imperativo não-autoritário que vaga por todo o território nacional durante
estes dois últimos anos que se manifesta por: “Você já leu Torto Arado?”. A crítica
especializada aponta o nascimento instantâneo de um clássico. O mercado editorial manifesta
surpresa diante de uma obra que vendeu mais de 100 mil cópias, quando cinco mil exemplares
vendidos já costumam ser celebrados como sucesso. Políticos, celebridades, intelectuais – e
provavelmente vários dos seus amigos pessoais – recomendam a leitura do livro ao posar em
fotos ao lado da capa cor de rosa.

A trajetória épica de Torto Arado começa a ser traçada no início dos anos 90 com um
Itamar Vieira Junior ainda muito jovem e apaixonado por literatura sentado em frente a uma
máquina de escrever dada por seu pai. Sem fôlego nem maturidade para dar corpo ao
romance, as páginas iniciais se perderam. O amor pela narrativa que dava vida ao povo da
Fazenda Água Negra, no entanto, nunca abandonou o jovem escritor baiano. Já em 2018, a
obra, que ainda não era conhecida nem publicada no Brasil, subverte a história oficial ao
atravessar o oceano e conquistar, desta vez apenas em termos poéticos, Portugal. O Prêmio
LeYa de melhor romance daquele ano foi entregue a Itamar. Na ocasião, o escritor Manuel
Alegre, presidente do júri, celebrou a obra “pela solidez da construção, o equilíbrio da
narrativa e a forma como aborda o universo rural do Brasil, colocando ênfase nas figuras
femininas, na sua liberdade e na violência exercida sobre o corpo num contexto dominado
pela sociedade patriarcal”1.

A partir desse evento, Torto Arado ganha casa editorial e relevância em seu país de
origem. A editora Todavia o publica no segundo semestre de 2019 e, no ano seguinte, a obra
se torna vitoriosa das principais premiações literárias nacionais, eleita como melhor romance
pelos prêmios Jabuti e Oceanos. Entretanto, o grande mérito do livro não são os êxitos, nem a
crítica especializada, nem a divulgação orgânica: é diegético. Essa declaração de amor à terra,
como define o próprio autor, é um relato visceral, mas sensível e poético que ousa, em termos
benjaminianos, “escovar a história a contrapelo”.

Em uma breve contextualização e resumo do mote inicial da obra, Itamar Vieira Junior
nos emerge em Torto Arado no universo e no processo de formação das irmãs Bibiana e
Belonísia. O fato que nos inicia na história dessas mulheres nascidas num quilombo no seio

1
Discurso disponível em: https://www.leya.com/pt/gca/areas-de-actividade/premio-leya/vencedor-2018/.
15

do sertão baiano é a descoberta pelas duas, ainda crianças, de uma faca de cabo de marfim
escondida numa mala antiga sob a cama da avó. O acontecimento marca a vida e a jornada de
rompimento do silenciamento das protagonistas. Ainda que uma delas perca a língua ao
experimentar o gosto do tal objeto como quem almeja experimentar o gosto da vida, a
narrativa descreve que a ausência do músculo é apenas um elemento físico desse
emudecimento, mas que este é perpetuado por uma estrutura colonial e capitalista que explora
a terra e o povo à exaustão.

Ainda era cedo para prever que Torto Arado seria o que é hoje quando em julho de
2020 decidi presentear meu avô com um exemplar do livro, em seu aniversário. O menino do
recôndito sertão baiano que ousou sonhar em estudar e migrou para a cidade com a utopia de
um mundo mais justo a tiracolo, como tantos nordestinos e protagonistas de romances, foi o
primeiro crítico da obra com quem tive contato e a imediata recomendação emocionada.
Assim nasceu a curiosidade que brotou em meu peito e nunca mais me abandonou porque
enraizou como vontade de ecoar o poder delicado e devastador que o romance tem de
implodir, poeticamente, a ordem social do mundo para que se veja a primavera florescer no
horizonte.

A partir dessa primeira leitura, evidenciou-se uma necessidade de ir em direção a uma


análise que leve em consideração os processos de historicidade envolvidos na repercussão das
imagens criadas e reverberadas pela obra. Mas, sobretudo, que se pensasse acerca de sua
inserção no ensino de literatura nas escolas regulares brasileiras, no qual o ordenamento entre
a experiência política e estética funcione como objeto de reflexão e emancipação do sujeito.

O ensejo desta pesquisa surge dessas provocações e se lança, então, ao estudo da


manifestação do caráter transgressor da obra diante das representações de resistência perante a
violência sob uma análise dialógica do seu discurso. Parte-se da hipótese de que esse ciclo de
florescer na intempérie é um fator predominante em Torto Arado, o que se propõe a atentar,
portanto, é como esse exercício se estabelece na representação do seu cenário, personagens e
nas temáticas abordadas no decorrer da obra. Urge, a partir desse ponto, a necessidade e a
oportunidade de se pensar em trabalhar o potencial narrativo (que o alça a um futuro
possivelmente canônico) do romance dentro do ensino de literatura a fim de conceber a
prática como um movimento de resistência enquanto “uma luz que ilumina o nó inextricável
que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico” (BOSI, 2002, p. 133).
16

Por se tratar de uma das primeiras incursões sobre Torto Arado, decorrente do fato de
ser uma obra contemporânea e que está em circulação há cerca de dois anos, não há, ainda,
amplo repertório acadêmico para orientar e direcionar nossa abordagem. Tem-se, por outro
lado, resenhas literárias produzidas para diversos meios de comunicação feitas por críticos
especializados, professores e jornalistas que garantem um rigor de análise e contribuem para o
debate no contexto cultural ao dar suporte para elevar os critérios de discussão suscitados ao
longo deste estudo. Por isso, como parte desta pesquisa, o autor Itamar Vieira Junior nos
concedeu uma entrevista (NORO e GONÇALVES, 2022, no prelo) como forma de ampliar o
entendimento acerca da obra.

Por outro lado, o que há de concreto para embasar o estado da arte é a antologia de
contos lançada pelo autor antes da publicação do romance. Publicada em 2017, A Oração do
Carrasco precede a abordagem de temáticas que também estão presentes no presente objeto
de pesquisa, como questões sobre racismo, escravidão e subserviência e ancestralidade. Essa
leitura ajuda a estabelecer um norte de intertextualidade para uma análise mais profunda
acerca da forma e do conteúdo que moldam o universo diegético de Torto Arado.

Questiona-se então de que maneira Torto Arado “escova a história a contrapelo” e


como esse potencial subversivo deve ser utilizado para o ensino de literatura. Para melhor
exploração e compreensão dessas temáticas, o arcabouço teórico que conduz o presente
estudo parte de uma leitura para desmistificação da barbárie (Benjamin, 1987a; 1987b) e da
construção de um novo espaço mnemônico (Seligmann-Silva, 2020). Para tanto, serão
traçados os paralelos entre alteridade (Bakhtin, 2015) e altericídio (Mbembe, 2014) a fim de
vislumbrar como as cicatrizes do colonialismo (Fanon, 1968) compõem o discurso literário-
romanesco.

Para estabelecer uma reflexão acerca de uma educação literária na qual a inversão
ética e estética em Torto Arado seja trabalhada em sala de aula, será necessário conciliar o
processo de letramento com uma consciência pensante propiciada pela literatura. Para tanto,
deve-se levar em consideração a definição de letramento proposta por Cosson (2020) como
sendo o processo de escolarização da literatura, entendendo que ele “compreende não apenas
uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também, e sobretudo, uma forma de
assegurar seu efetivo domínio” (p. 12). Diante disso, o que se pretende com este trabalho é
viabilizar uma proposta de análise que compreenda o ensino de literatura para estudantes do
Ensino Médio de escolas regulares, levando em consideração a leitura literária como
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experiência (Larrosa, 2002) e a escuta ativa (Bajour, 2012) como importantes métodos de
apreensão da realidade por parte dos educandos. Para tanto, serão analisados os documentos
que organizam atualmente a educação brasileira, como a Base Nacional Comum Curricular,
os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio.

Com o intuito de organizar e conduzir o percurso analítico a ser percorrido ao longo


desse estudo, realizaremos uma divisão em quatro capítulos elencando aspectos que serão
úteis para a conclusão dos objetivos propostos. Para introduzir o objeto de pesquisa e a
justificativa de seu estudo será apresentado, primeiramente, o pano de fundo que ambienta o
cenário social e político no qual a obra se posiciona atualmente, a fim de investigar a
importância de suas representações como uma ferramenta que incute questionamentos atuais,
contundentes e urgentes perante o imaginário colonial brasileiro e suas consequências.

A seguir, serão apontados os embasamentos teóricos e metodológicos que orientam e


embasam a análise dos conceitos e as temáticas presentes no romance numa leitura a
contrapelo. Assim como, também será realizado um panorama acerca dos documentos que
legislam sobre a educação básica brasileira a fim de traçar as possibilidades a serem
desenvolvidas a partir da leitura literária e do ensino de literatura com o romance em sala de
aula.

No terceiro capítulo, considerando que o terreno para aprofundamento da discussão já


foi semeado, buscar-se-á explorar e conceituar como a terra, as opressões, o silenciamento, a
luta e a ancestralidade compõem o todo de Torto Arado. Para isso será realizada uma análise
dialógica e a partir de contribuições benjaminianas sobre objetos de culturas e a tradição dos
oprimidos para obter profundidade crítica diante da obra. Tendo em vista que a definição de
barbárie, sob a ótica de Benjamin (1987b), diz respeito à perpetuação de uma concepção de
progresso que resulta numa história que exerce empatia para/com aqueles que venceram,
fazendo com que se sustente os valores dos opressores em detrimento à memória da tradição
dos oprimidos. A barbárie não é um estado de exceção, mas a regra geral, e manter as coisas
como são resultaria no extremo da catástrofe. O que Marinho (2015) analisa é que uma nova
constelação positiva acerca da barbárie seria necessária para interromper essa tragédia; com
uma nova barbárie, o homem prefere ver seu patrimônio destruído e a partir daí construir
outra cultura composta pelas ruínas.
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Diante desse trajeto, iremos nos debruçar no quarto capítulo a identificar um percurso
teórico que orientem a práxis educativa voltada para a literatura. Por conta da pandemia de
Covid-19, não houve a oportunidade de aplicar metodologias de letramento em sala de aula e
analisar os dados obtidos dessa experimentação. Os esforços se concentram, portanto, em
antecipar as implicações e possibilidades para a prática trazendo contribuições de autores que
enxergam no ensino literário uma ferramenta de crítica, contestação e reflexão confrontando a
realidade que a obra representa e como ela a refrata, levando em consideração tanto os
aspectos éticos quanto estéticos.

A partir dessas observações e proposições, surgiram as inquietações que movem a


realização deste trabalho. O principal questionamento que norteia a condução desta pesquisa
se orienta por entender: De que maneira Torto Arado, enquanto projeto artístico-literário,
pode ser utilizado como ferramenta para estimular uma prática de letramento questionadora e
crítica? Visa-se, assim, conter tanto o eixo analítico da obra, envolvendo seus aspectos
artísticos e sociológicos, como a proposição de reflexões sobre sua prática dentro da esfera do
ensino de literatura. Simultaneamente, outras reflexões devem ser respondidas ao longo do
presente estudo, como:

1. De que modo a obra reflete e refrata o contexto social e político brasileiro?

2. Como se manifestam as contraposições entre forças opostas na obra a fim de


desmistificar a barbárie?

3. Quais contribuições, enquanto objeto ético e estético, a leitura de Torto Arado


pode trazer à formação dos sujeitos?

4. Quais desafios o letramento literário enfrenta diante da literatura contemporânea e


de sua capacidade em se estabelecer como ferramenta social de mudança?

Em consequência desses apontamentos foram determinados os seguintes objetivos:

1. Objetivo geral

Compreender, a partir de uma leitura benjaminiana, como o enredo de Torto Arado


representa formas de resistência à barbárie e avaliar como esse aspecto pode ser
trabalhado em sala de aula a fim de proporcionar uma leitura crítica de mundo.
19

2. Objetivos específicos

a) Identificar manifestações de luta contra a barbárie ao longo do enredo e suas


elaborações nos demais elementos da narrativa;

b) Observar aspectos que justifiquem sua importância diante do contexto em que se


insere e seu destaque no confronto com outras obras contemporâneas;

c) Refletir sobre o ensino de literatura e as aplicações práticas que podem ser


suscitadas com o romance dentro de um projeto de letramento literário.

Dessa forma, espera-se entrelaçar as propostas analíticas e teóricas trazendo rigor e


profundidade para a discussão. Mas também que com esse estudo solidifique-se um caminho
para futuras rotas de investigação que apontem para outros elementos presentes na
complexidade e delicadeza de Torto Arado.

Para tanto, será estabelecido a seguir um panorama sobre a contextualização e


historiografia que permitiram a concepção visceral de uma obra que trata sobre violência no
campo e como sua refração interage com esse cenário.

1.2 RIO DE SANGUE QUE BANHA A VIDA DE COMUNIDADES CAMPESINAS


NO BRASIL

Para entender os contornos e entranhas que permeiam o universo de Torto Arado, é


necessário olhar para o Brasil que possibilitou a existência dessa narrativa, pois a arte é, de
acordo com Volóchinov (2019), inerentemente social: “o meio social extra-artístico, ao
influenciá-la de fora, encontra nela uma imediata resposta interior. Nesse caso, não é o alheio
que age sobre o alheio, mas uma formação social sobre a outra” (p. 113).

A partir disso, será averiguada, conforme discute Cândido (2016), a realidade social
como um fator interno da construção artística, sendo estudada, portanto, no nível explicativo e
não ilustrativo, e compreendendo que o conhecimento da estrutura literária, enquanto
20

componente transformado a partir dos aspectos sociais, é o que permite assimilar a função
exercida pela obra.

Para tanto, é necessário regressar às raízes do colonialismo que fundiram essa nação.
O Brasil foi um dos principais destinos do tráfico de povos africanos, totalizando mais de 4
milhões de cativos, que foram submetidos à escravidão entre 1550 e 1850, quando ficou
estabelecido o fim do tráfico de escravos. Ao vislumbrar o início de um processo
abolicionista, os grandes latifundiários e sesmeiros2 precisaram garantir que os lucros obtidos
com a mão de obra escrava não seriam prejudicados. Com isso, a terra e a atividade agrícola
foram vistas como uma oportunidade de mercadoria com potencial para exploração maciça,
inaugurando e perpetuando, assim, uma nova modalidade de propriedade privada.

Nesse contexto, o Império brasileiro outorga a Lei de Terras, dispositivo que


estabelecia que o direito às terras devolutas (aquelas que durante o período colonial foram
doadas para particulares, mas por não cumprirem a função de cultivo foram devolvidas ao
poder público) seria cumprido por meio de sua compra junto ao Estado. Com isso, foram
forjados documentos para garantir uma anistia e revalidação de posse aos proprietários
beneficiados pelo sistema de sesmarias e também se estabeleceu que, a partir de então, a
ocupação desses latifúndios por trabalhadores seria considerado crime passível de multa e
prisão. Assim, mesmo que desejassem adquirir um pequeno lote para habitar e produzir, os
exorbitantes preços de compra se tornaram um impeditivo para ex-escravos, comunidades
quilombolas, povos indígenas, camponeses e imigrantes pobres, forjando-os a manterem sua
condição de exploração enquanto mão de obra precarizada. Oficializa-se com o decreto, o
direito a grandes concentrações de terras e a consequente desigualdade social presente no
espaço rural brasileiro.

Além de priorizar a produção de monocultura para exportação, a distribuição de terras


tal como concebida outorgou a violência do Estado perante povos tradicionais e campesinos.
O modelo colonial se conserva tradicionalmente pelos perenes despejos ilegais, ameaças,
conflitos por água e terra e massacres no campo. Com isso, assistimos ao longo dos séculos os
efeitos de uma abolição da escravatura sem responsabilização histórica e garantia plena de
direitos universais às comunidades escravizadas e quilombolas, como também populações
indígenas inteiras serem dizimadas sem a chance de ter suas terras demarcadas. Diante desses

2
Como parte do projeto colonial, o reino de Portugal distribuía, através de doações, lotes de terra conhecidas por
sesmarias com o intuito de incentivar a produção agrícola. O dono dessas terras era conhecido por “sesmeiro”.
21

fatos, conseguimos traçar o ponto de partida de onde operam a criação do autor, a formação
da obra e o destino da sua recepção do objeto desta pesquisa.

O Brasil de Torto Arado vingou sobre uma pilha de corpos. Muitos Severos foram
assassinados para que a representação ficcional escancarasse o espelho da refração com a
“consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a
realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente” (CÂNDIDO, 2016,
p. 22). Dentre um dos mais notórios e sangrentos episódios de conflitos fundiários, destaca-se
o Massacre de Eldorado dos Carajás3 que no ano de 1996 ceifou a vida de vinte e um
trabalhadores rurais e deixou outros cinquenta e seis feridos. A chacina leva o nome do
município localizado no Pará, onde as famílias organizadas pelo Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) protestavam devido ao não cumprimento por parte
das autoridades locais das promessas de desapropriação de uma fazenda improdutiva da
região que ocupavam e do não envio de alimento e medicação para o acampamento. Com o
cancelamento das negociações, os trabalhadores bloquearam a estrada localizada na curva do
S e lá, 155 policiais sem identificação, com conivência do governador do Estado, os cercaram
e atiraram deliberadamente com o intuito de matá-los deixando para trás o mesmo rio que
banha o romance que “era sangue e lágrima, caudaloso e lento, como uma corrente de lama
avançando pelas casas e chamando o povo para se unir ou fugir da fazenda” (VIEIRA
JÚNIOR, 2019, p. 206).

O rio dos conflitos agrários e da violência do aparelho estatal contra povos ribeirinhos,
quilombolas, indígenas, pequenos agricultores e trabalhadores rurais é perene e vitimou tantas
outras famílias e lideranças comunitárias, como o seringueiro Chico Mendes, assassinado em
1988, e a religiosa estadunidense Irmã Dorothy Stang, morta em 2005.

De acordo com o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (2021), da


Comissão Pastoral da Terra (CPT)4, o ano de 2020 foi, estatisticamente, o mais violento em
toda a série histórica. O número geral de ocorrências saltou de 1.903 em 2019 para 2.054 em
2020 e 81.225 famílias foram vitimadas pela invasão de suas terras e territórios. Também em
estudo mais recente foram registrados 1.576 conflitos por terra, dentre eles, assassinatos,
tentativas e invasões. É o maior número de ocorrências desde 1985.

3
MST. Eldorado dos Carajás. [s.d.]. https://mst.org.br/nossa-historia/96-2/. Acesso em: 07 jun. 2021.
4
Todos os anos desde 1985, a CPT, através do seu centro de documentação, elabora um relatório sobre as
violências sofridas pelos trabalhadores e trabalhadoras no campo e os conflitos que enfrentam. O órgão se tornou
a principal referência a coletar dados e denunciar as violações no espaço rural brasileiro.
22

Em 2021 o tensionamento se agrava no contexto pandêmico. A campanha de


marketing voltada para popularizar o agronegócio como uma via pop avança ignorando seu
papel ativo no desmatamento da Amazônia e do Pantanal, na ameaça a diversos ecossistemas,
no agravamento do estado de miséria que condena milhões de brasileiros à fome e à exposição
a agrotóxicos extremamente nocivos, nos brutais despejos e reintegrações de posse, na
destruição do planeta. Os retrocessos em termos de políticas públicas que inviabilizam uma
reforma agrária popular e a demarcação de terras contribuem para que “a boiada continue a
passar”5 e atuam diretamente na promoção do genocídio em curso.

Além disso, outro aspecto evidenciado no romance e que se mantém cruelmente atual
é a questão relativa ao trabalho análogo à escravidão. A comunidade da Fazenda Água Negra
é contextualizada num período histórico no qual os escravos foram então denominados
trabalhadores, mas sua condição de exploração não se alterou. Trabalhando de sol a sol sem
direitos e sem garantias, “onde gente morria sem assistência, onde vivíamos como gado,
trabalhando sem ter nada em troca, nem mesmo o descanso, e as únicas coisas a que tínhamos
direito era morar lá até quando os senhores quisessem” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 128), os
moradores continuaram sendo vistos e tratados como mercadorias e moedas de troca.

A realidade parece fincada nas raízes do passado colonial e demonstra que a mimese
literária ainda se mostra atual no contexto brasileiro contemporâneo. Em outubro de 2021 foi
feito um resgate de 116 pessoas trabalhando em regime análogo à escravidão no interior de
Goiás, onde realizavam a colheita de espigas de milho para a produção de cigarros (Nunes,
2021). Ainda este ano também foi noticiada a liberdade de uma mulher que era mantida há
mais de vinte anos para uma família na cidade de São José dos Campos, em São Paulo. O
inquérito policial aponta que a trabalhadora além de ter sua liberdade restringida, era
impedida de conviver com outras pessoas que não seus patrões e não recebia seu salário
regularmente (Rodrigues, 2021). Segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho
Escravo e do Tráfico de Pessoas (Smartlab, 2021), entre os anos de 1995 e 2020 foram
libertadas um total de 55.712 pessoas em condição análoga ao trabalho escravo no Brasil.

5
A frase é uma referência à expressão utilizada pelo ex-Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião
com o presidente Jair Bolsonaro em abril de 2020 quando afirmou ser um momento oportuno para passar
reformas “infralegais”, de “simplificação” e “desregulamentação” de leis ambientais. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-
regramento-e-simplificar-normas.ghtml. Acesso em: 10 jan. 2022.
23

Diante desses números, é possível afirmar que Torto Arado evidencia, através de sua
forma e conteúdo, o que se esconde nos rincões do interior do Brasil, em especial do sertão
nordestino, de um modo que expande as noções prévias sobre a representação dessa vida árida
e marcada por processos e métodos violentos. O que o autor realiza com o romance parte não
apenas de se apoderar da tradição dos oprimidos, mas fundar uma nova tradição de resposta à
barbárie. Esse fator estabelece a possibilidade de uma relação de alteridade (eu-outro) na qual
o leitor intensifica a conexão com os sujeitos do livro, mas também questiona sua realidade
material, social e histórica por meio de reflexões que partem de um contexto visceral e propõe
uma nova maneira de enxergá-lo e de resistir a ele.

Credita-se ainda à dimensão dos fatos reais que orbitam o romance, um território
discursivo permeado de dúvidas e contestações acerca da luta por reforma agrária e
demarcação de terras, visto que o debate é pautado por interesses hegemônicos da
mentalidade colonial e coloca a população contra as ocupações e o direito à terra de povos
tradicionais e campesinos. Entender que a obra consegue penetrar esse território com o intuito
de promover uma nova referência cultural para essa esfera, direciona para a função e
relevância do percurso didático-pedagógico da utilização deste romance como projeto de
letramento literário e ensino de literatura.

Adiante, será abordado com mais profundidade os elementos constitutivos do romance


que merecem uma investigação robusta e complexa e que contribuem para o esmiuçamento da
obra a fim de absorver aspectos que possam ser úteis para seu trabalho em sala de aula
evidenciando o contexto supracitado.

Antes, porém, serão elucidados na próxima seção os aportes teóricos que norteiam os
procedimentos metodológicos para a análise dialógica do discurso e as contribuições de
Benjamin (1987b) para uma arte disruptiva que não reproduza apenas um documento de
barbárie.
24

2 LAVRANDO UM PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO

Nesta seção serão apresentados os conceitos-chave que irão orientar o procedimento


metodológico desta pesquisa. Serão utilizadas como referência para o desenvolvimento dessa
análise as teses sobre o conceito da história de Walter Benjamin (1987b) para posicionar a
literatura enquanto documento mimético de cultura que serve ao propósito da subalternização
das classes oprimidas, mas também o seu potencial, diante desse desafio, de contestar e fundar
um novo espaço mnemônico.

Levando em consideração que ao falarmos de literatura falamos intrinsecamente de


linguagem, trabalharemos essa concepção a partir de uma dimensão dialógica, entendendo-a
como um meio que serve ao propósito comunicativo e de expressão de vida e é capaz de
conceber o caráter axiológico de sentido do discurso. Compreendendo esse aporte teórico,
serão utilizados os postulados do Círculo de Bakhtin (1997; 2014; 2015; 2018; 2019) para
conceituar e explicar algumas definições primordiais de partes que compõem o todo da
análise, como os debates acerca da arquitetônica, da alteridade e do cronotopo.

Em seguida serão evidenciadas algumas contribuições acerca do ensino básico no


Brasil, sobretudo a respeito da leitura de literatura na escola e seus aspectos didático-
metodológicos. Para isso, serão analisados os documentos que orientam as disciplinas e os
conteúdos dedicados ao Ensino Médio de escolas regulares brasileiras para que seja possível
traçar alguns caminhos que apontem para um letramento literário que estimule e valorize a
escuta como uma prática pedagógica emancipadora, conforme aponta Bajour (2012), e a
relação entre aluno e professor pelo saber da experiência que, segundo Larrosa (2002),
concilia o conhecimento e a vida humana e está aberto à transformação.

2.1 O NOVO ESPAÇO MNEMÔNICO PARA UMA ANÁLISE DIALÓGICA DO


DISCURSO

A fim de levar adiante uma análise acerca da consistência e do acabamento de Torto


Arado em seu propósito estético e com isso dar suporte para uma práxis crítica diante de um
projeto de letramento literário, será necessário enxergar, a partir das contribuições teóricas de
Walter Benjamin, que a história e os documentos de cultura reproduzem uma noção de
progresso que se estabelece exclusivamente com a vitória sistemática dos opressores.
25

Ao estabelecer a importância da alteridade, enquanto exercício de enxergar o “outro”


como elemento constituidor para a formação do “eu”, Seligmann-Silva (2020) determina que
a impossibilidade de inscrição dos símbolos dos oprimidos através da história é uma tentativa
de apagamento ao não possibilitar o espaço para o estabelecimento da memória. Para o autor,
o pensamento colonial tenta o tempo todo “outrizar” o outro e impedir que ele seja “eu”; esse
outro não tem história, nem cultura, nem memória, realiza-se com isso um “altericídio”. Este
conceito é definido por Mbembe (2014) por conceber “o Outro não como semelhante a si
mesmo, mas como objecto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso proteger-se,
desfazer-se, ou que, simplesmente, é preciso destruir, devido a não conseguir assegurar o seu
controlo total” (p. 26, grifo do autor).

Um exemplo que ilustra essa discussão é o fato de Itamar Vieira Junior rejeitar a ideia
de que sua obra seria categorizada dentro das concepções de “realismo fantástico” ou mesmo
como um “romance regional”. Dentro dessas duas segmentações, cabe de fato um
questionamento sobre se essas categorias servem como parâmetro para distinção e
qualificação de suas narrativas ou se essas definições não ecoam esse processo de
“outrização”, visto que romances que abordam grandes metrópoles do sudeste ou mencionam
religiões de cunho cristão não correspondem a nenhuma categoria específica, mas fazem parte
do que seria a totalidade, abrangente e generalizante “literatura nacional”.

Ao analisar a história, a cultura e a filosofia sob a ótica do materialismo histórico e


dialético, Benjamin (1987b) postula na segunda tese presente em seu Sobre o conceito da
história, escrito em 1940, como a imagem da felicidade está intrinsecamente associada à da
salvação, assim como a imagem do passado impele à redenção e é transformado em fato
histórico. E levanta o questionamento: “Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes
que emudeceram?” (p. 223). Essa indagação traz um paralelo alegórico com um dos temas
centrais de Torto Arado, tanto pelo evento narrativo envolvendo o silenciamento das
personagens quanto pela narração feita por vozes tradicionalmente silenciadas. Portanto,
estabelece-se que, independentemente da mudez de Belonísia ter sido autoinfligida e de trazer
essa representação física da ausência da língua, tanto ela quanto os demais personagens são
socialmente emudecidos. É o emudecimento impositivo, ou seja, não é necessário que alguém
dê voz a essas figuras, o que as impede de articular seus discursos não é biológico, é uma
escolha ideológica de “altericídio”.
26

Ao ressoar os ecos desse silêncio, o romance reitera o potencial que Seligmann-Silva


(2005) estabelece à ficção de ser uma potente criadora de testemunhos. Esse rompimento com
a tradição dos opressores rompe também com a refração do discurso no leitor, visto que “os
que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A
empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores.” (BENJAMIN,
1987b, p. 225). A partir disso, abre-se espaço para uma outra construção mnemônica, mais
ampla, diversa, inclusiva e, também, dialógica.

Dessa forma, o que a obra apresenta conflui em direção a uma narrativa resistente,
entendendo resistência como uma oposição entre uma força própria e uma alheia, exterior ao
sujeito, como propõe Bosi (2002). De acordo com ele, esse tipo de escrita resgata tudo que é
calado por medo, angústia ou pudor e os aflora na superfície do texto ficcional manifestando
os valores mais autênticos e sofridos. Ainda segundo o autor, a resistência na literatura:

Trata-se de um fenômeno notável de resistência cultural pelo qual o drama de uma


existência, que é subjetivo e público ao mesmo tempo, sobe ao nível da consciência
inconformada e se faz discurso, entrando assim, de pleno direito, na história objetiva
da cultura (BOSI, 2002, p. 168)

Kramer (2008) enquanto estudiosa da filosofia benjaminiana reitera que o mais


importante dever do intelectual é evitar que o esquecimento se consolide caso a barbárie
continue a ganhar, pois a perda da memória dos vencidos faz com que estes não se lembrem
mais da história de ontem, restando apenas um passado contado pelos vencedores. “Mais do
que como ‘o que foi’, a história é vista como um ‘a se fazer’, como ação possível”
(KRAMER, 2008, p. 18), e à literatura também se estende esse chamado.

Diante desses aspectos, reitera-se que os esforços de uma literatura a contrapelo, em


termos benjaminianos, devem ser acompanhados também de uma educação a contrapelo,
contra a ilusão do que se entende por progresso. Para Benjamin (1987b) o método utilizado
para tanto é o da empatia; o historiador ao romper com o materialismo histórico contempla
com distanciamento os despojos do cortejo triunfal dos vencedores, que são os bens culturais.
Mas aquele que desvia e busca romper com esse processo de transmissão da cultura da
barbárie assume a responsabilidade de escovar a história a contrapelo, ou seja, de ir na direção
contrária às manifestações que reiteram as conquistas e as glórias dos opressores. Para tanto, é
requerido então uma práxis verdadeiramente compromissada em encontrar o potencial
subversivo escondido na dita “herança” cultural a fim de impedir que a tradição caia no
27

conformismo, mas também examinar os documentos que partem da perspectiva daqueles que
foram e continuam, incessantemente, vencidos, oprimidos, colonizados e marginalizados.

Assim, a literatura contemporânea, em específico, e a sua abordagem em sala de aula


devem incitar a que os alunos se entendam como sujeitos históricos do seu próprio tempo,
pois à arte não se deve conceber um processo alienante perante a tarefa de corresponder ao
seu ato ético e estético.

Pensar a educação com Benjamin requer pensar alternativas pedagógicas em que


professores e alunos são incentivados a recuperar a capacidade de deixar rastros,
imprimir marcas e ser autores. Significa a possibilidade de ver em cada adulto,
jovem ou criança a sua história. [...] para que ressignifiquem a história contada e
atribuam ou encontrem outros sentidos (KRAMER, 2008, p. 24)

Levando em consideração as abordagens teóricas suscitadas, traça-se o horizonte


metodológico que norteia a análise a ser desenvolvida sobre Torto Arado adiante e como
essas premissas dialogam entre si. Compreende-se até aqui que a obra opera em
manifestações que se contrapõem e desmistificam a barbárie e que isso pode ser observado ao
analisar dialogicamente seu discurso.

Para entender os caminhos para onde apontam uma análise dialógica é necessário
explanar sobre como essa relação se estabelece internamente no objeto por meio das palavras,
concebendo-as enquanto elemento vivo presente no discurso e não apenas como uma
abstração linguística ou subjetiva. Para Volóchinov (2019), toda palavra pronunciada ou
escrita é a expressão e o produto da interação social entre o autor, o leitor e aquele ou aquilo
sobre o que os personagens falam. Ou seja, a linguagem atua como um terreno para que os
discursos, a partir de suas vozes e contextos, evoquem uma opinião e uma posição axiológica
concreta e intencional.

O estabelecimento desse caráter pressupõe um exercício de alteridade que é


possibilitado, segundo Faraco (2007), ao observar a importância do outro como elemento
dialógico constituinte do “eu” e transformador de novos “eus”. O acabamento da obra só é
possível na alteridade, no contato com esse outro:

O excedente da minha visão contém em germe a forma acabada do outro, cujo


desabrochar requer que eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade.
Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores,
tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar,
completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele;
devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de
28

minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento. (BAKHTIN, 1997,
p. 46)

A compreensão da alteridade complementa a abordagem analítica ao depreender uma


interpretação responsiva que, para Bakhtin (2015), “é uma força essencial que participa da
formação do discurso, sendo ainda uma interpretação ativa, sentida pelo discurso como
resistência ou apoio que o enriquecem” (p. 54). Ainda de acordo com o autor, é na
interpretação ativa que há a familiarização do interpretável com o seu horizonte concreto-
expressivo e que está dialeticamente fundida e condicionada com a resposta, que é justamente
o que amadurece a interpretação. Levando em consideração que se visa compreender como o
romance escova a tradição a contrapelo ao evidenciar uma nova tradição dos oprimidos, uma
interpretação alteritária constitui elemento basilar para uma compreensão mais profunda
acerca de sua forma e conteúdo.

Para além disso, outro conceito bakhtiniano que será fundamental para o
direcionamento da abordagem que será dedicado a Torto Arado é o do cronotopo. O
cronotopo consiste de maneira muito sólida como centro de organização dos acontecimentos
que sedimentam o enredo no romance e seu significado basilar gerador; nele ocorrem os
acontecimentos que atam e desatam os nós da narrativa romanesca, é onde se concentra a ação
e seu desenrolar. Através dele ocorre a passagem de tempo que conecta e permite a sucessão
entre os fatos representados, e o território se manifesta de maneira significativa para o
propósito axiológico.

Para Bakhtin (2019), o cronotopo também é o centro da concretização figurativa, da


encarnação para todo romance, tendo em vista que funciona como materialização do tempo no
espaço. Para ele, esse conceito é dotado de uma importância vital para essa representação
fictícia, já que “todos os elementos abstratos no romance [...] gravitam em torno do cronotopo
e através dele se enchem de carne e sangue, comungam na figuralidade ficcional” (p. 227). É
interessante perceber como são utilizadas representações tão humanas para simbolizar a
pulsão de vida ao redor da questão temporal e espacial que circunda o romance, aspecto
também muito evidente em Torto Arado ao mencionar as questões envolvendo a terra e o
território.

É por entender que a terra atua não apenas como cenário, mas como espaço onde toda
a ação se desenvolve axiologicamente, que o cronotopo se torna relevante para este estudo,
por abordar um referencial teórico que abarca a complexidade dessa elaboração artística no
29

objeto estético. Dessa forma, as tensões temporais e espaciais presentes no romance se


conectam com a elaboração social e extraverbal, contextualizadas anteriormente, na qual “a
situação integra o enunciado como uma parte necessária da sua composição semântica”
(VOLÓCHINOV, 2019, p. 120, grifo do autor).

Adiante, será discutido como essa contraposição de força e as representações de


dualidade resistem entre si para estabelecer dialogicamente esse compromisso ético-estético
em sua forma, material e conteúdo. Antes, contudo, será necessário traçar algumas reflexões
sobre o panorama atual do ensino de literatura no Brasil e os caminhos para uma práxis
verdadeiramente questionadora e libertadora.

2.2 ENTRE O ENSINO DE LITERATURA E A LEITURA LITERÁRIA

Para conseguir traçar um percurso que oriente a prática de educação literária com o
romance Torto Arado juntamente com estudantes do ensino médio de escolas regulares é
necessário delimitar, a priori, sobre quais parâmetros se baseiam essa etapa da aprendizagem
escolar. Pois, afinal, é somente conhecendo os diferentes pisos aos quais se referem os “chãos
das sala de aula” brasileiras e as regulamentações e legislações que configuram a educação
básica atualmente que se pode estabelecer um diálogo a fim de contribuir para um letramento
que abarque toda a complexidade da obra e da literatura propriamente dita, apontando para
uma educação, como incentivada por Freire (1996), do “‘eu me maravilho’ e não apenas do
‘eu fabrico’” (p. 101).

Com os tensionamentos políticos vivenciados na conjuntura do Brasil desde 2016,


com o golpe da presidente Dilma Rousseff (2011-2016) e a consequente posse de Michel
Temer (2016-2018), a educação se tornou uma área de acirramentos mais deflagrados por
conta da adoção de uma agenda neoliberal, que tem sido aprofundada no governo de Jair
Bolsonaro (2019-atual).

A precarização do ensino público, já no governo Temer, foi evidenciada como projeto


a partir de políticas de austeridade fiscal implementadas pelo governo federal, sobretudo no
que concerne à Emenda Constitucional 95, também conhecida como PEC do Teto dos Gastos
Públicos, que congelou os investimentos públicos por 20 anos. A medida acabou por
inviabilizar o Plano Nacional de Educação (PNE), que determina metas e estratégias visando
30

um modelo de educação com mais equidade e qualidade, além da promoção de mais


diversidade e de uma gestão mais democrática.

Outra resolução que gerou muitas críticas e mobilizações por parte da comunidade
escolar, especialmente por estudantes, foi a da Medida Provisória 746/16 que instituiu a
chamada reforma do Ensino Médio. Com ela foram instituídas: a redução da carga horária das
disciplinas gerais e apenas português e matemática se tornaram obrigatórias; os itinerários
formativos, em que os educandos escolhem se especializar em uma das áreas de
conhecimento ou dentro do ensino técnico profissionalizante; a língua estrangeira obrigatória
se tornou o inglês; a prática docente sem necessidade de diploma em licenciatura; ampliação
da carga horária total do Ensino Médio; a permissão para que parte do ensino possa ser
oferecida na modalidade à distância. As críticas giram em torno de uma compreensão de que a
reforma funciona com o intuito de formar força de trabalho que reproduza a lógica capitalista
sem questionar o sistema e tampouco promover sua transformação, aprofundando as
desigualdades persistentes nesse modelo socioeconômico e promovendo uma elitização do
ensino. Além disso, ela também abre brechas para legitimar revisionismos promovidos por
iniciativas como o movimento Escola Sem Partido.

Para definir e organizar os componentes curriculares e os conteúdos a serem


contemplados na formação do estudante na educação básica foi elaborada a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), publicada em 2018. Os principais motivos que promovem
rejeição ao texto dizem respeito à falta de participação da população e, acima de tudo, dos
professores da Rede Básica de Ensino.

No entanto, por se tratar do documento oficial que institui as competências e


habilidades para organizar e uniformizar o ensino em todo território nacional, a BNCC será
um dos principais objetos a serem analisados neste estudo. De maneira crítica, serão
apontadas e questionadas suas falhas e suas contribuições no que tange a educação literária.
Para efeito de comparação, também serão utilizados os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN+, 2002) e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM, 2006) para a área
de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias como referências.

A literatura, enquanto um terreno de conciliação entre a ciência e a produção artística-


cultural, requer análises profundas, sobretudo no contexto escolar, que gerem
questionamentos sobre o retrato social em que se insere e que reproduz. Para atender a esse
31

aspecto singular é necessário examiná-la sob uma ótica crítica que abarque sua complexidade
ética e estética entendendo que ela funciona como instrumento capaz de promover
conhecimento e gerar empatia, consciência crítica e expansão das noções de identidade,
coletividade e diversidade.

Convém apontar que, apesar disso, na BNCC a literatura não é mais um componente
curricular, mas um campo de atuação atrelado, de modo mais explícito, à arte. A este campo
são reservados apenas quatro páginas nos quais são desenvolvidas algumas expectativas
amplas e horizontalizadas acerca de sua organização e progressão curricular. O que se tem de
objetivo no documento se resume em:

A prática da leitura literária, assim como de outras linguagens, deve ser capaz
também de resgatar a historicidade dos textos: produção, circulação e recepção das
obras literárias, em um entrecruzamento de diálogos (entre obras, leitores, tempos
históricos) e em seus movimentos de manutenção da tradição e de ruptura, suas
tensões entre códigos estéticos e seus modos de apreensão da realidade.

Espera-se que os leitores/fruidores possam também reconhecer na arte formas de


crítica cultural e política, uma vez que toda obra expressa, inevitavelmente, uma
visão de mundo e uma forma de conhecimento, por meio de sua construção estética.
(BRASIL, 2018, p. 523)

Diante disso, o que se pode observar é que apesar de concentrar esforços numa
educação literária que de fato propicie uma leitura crítica e ampla a fim de expandir uma
visão de mundo e dar protagonismo ao estudante, a proposta peca por uma especulação muito
subjetiva e genérica acerca do que deve ser pautado e trabalhado metodologicamente a partir e
com a literatura em sala de aula, como aponta Ipiranga (2019):

A análise inicial da BNCC revela-nos um texto complexo, transversal em sua


proposta, com proposições inteligentes e inovadoras, embora muito abstratas. As
orientações aos educadores sobre as práticas literárias no Ensino Médio não indicam
conteúdos, mas sim habilidades a serem desenvolvidas de forma que competências
sejam mobilizadas. [...] As disciplinas, portanto, estão a serviço desse novo desenho.
Ou seja, o documento, ao contrário do que acontece em Portugal e na Espanha, por
exemplo, que também avançaram nas suas Diretrizes, mas não se furtaram a oferecer
conteúdos específicos e seriados para constituir uma base mínima, não instituiu
matéria curricular oficial. Além disso, apesar da intricada elaboração teórica e
conceitual, inexistem indicações de base metodológica para os devidos
encaminhamentos. (IPIRANGA, 2019, p. 112)

Ainda que reconheça que “a literatura possibilita uma ampliação da nossa visão do
mundo, ajuda-nos não só a ver mais, mas a colocar em questão muito do que estamos vendo e
vivenciando” (BRASIL, 2018, p. 499), o que a Base parece ignorar é a complexidade do
processo para se conquistar os objetivos ao que ela diz buscar para o campo literário: um
32

leitor que desenvolva uma fruição e seja hábil para compreender os processos que o levam a
essa apreciação. Para Mendes (2020), o que falta à BNCC é uma perspectiva dialógica, crítica
e reflexiva para a leitura literária que desafie o educando/leitor a reconhecer, confrontar e
reinventar o mundo a partir da experiência estética.

Os PCN+, por sua vez, além de irem mais a fundo nos conceitos, competências e
habilidades a serem desenvolvidos ao longo dos anos letivos, também trazem direcionamentos
de conteúdos e seus critérios, o que se espera para a formação do professor e do aluno em sala
de aula, recomendações de procedimentos para o desenvolvimento progressivo das
competências estabelecidas e formatos de avaliações.

Neste documento, também há uma diluição da literatura no capítulo dedicado à Língua


Portuguesa, que aparece com maior evidência dentro do grande tema “O texto como
representação do imaginário e a construção do patrimônio cultural” (BRASIL, 2002, p. 74) e
tem como competências gerais: a confrontação entre opiniões e pontos vistas a respeito das
diversas manifestações da linguagem; a recuperação por meio do texto literário das formas
instituídas de construção do imaginário coletivo, do patrimônio representativo da cultura e das
classificações divulgadas e preservadas dentro de seu eixo temporal e espacial; e, a
consideração da Língua Portuguesa como fonte que legitima acordos e condutas sociais além
de representar simbolicamente as experiências humanas manifestas nas formas de pensar,
sentir e agir na vida social.

Na competência textual, os PCN+ acabam por demonstrar uma certa incongruência ao


estabelecerem procedimentos que vão ao encontro de um ensino de literatura que prioriza a
historiografia, a periodização literária e suas definições e características estilísticas, o que foi
criticado e rechaçado em seu próprio texto. Optar por trabalhar com uma obra contemporânea
pode auxiliar a romper, em certa medida, com a lógica de ensino que visa uma abordagem
pautada pela história da literatura. Abrir espaço para uma leitura que não comporta somente a
periodização literária consolidada pode propiciar voltar à centralidade do tópico das aulas de
literatura que são os textos literários. Não significa que essas obras não se posicionem diante
de um tempo histórico e de suas especificidades, mas naturalmente sua leitura parte para uma
reflexão menos pasteurizada e amorfa a partir da historiografia, como se bastasse saber o
contexto de sua atualidade para compreender suas dimensões éticas e estéticas.
33

Há de se reconhecer, no entanto, que o documento acerta em preconizar a centralidade


das obras literárias e ressaltar a importância de trabalhá-las em sua integridade e não apenas
excertos recortados e descontextualizados a fim de construir e moldar as percepções dos
recursos que estabelecem relações com o contexto de produção e recepção, a axiologia das
temáticas abordadas e as estruturas composicionais. “A leitura da obra literária poderá assim
fazer muito mais sentido para os estudantes, pois passa a ser entendida não como mero
exercício de erudição e estilo, mas como caminho para se alcançar, por meio da fruição, a
representação simbólica das experiências humanas” (BRASIL, 2002, p. 58).

Já as OCEM, por outro lado, mesmo que escritas há mais de quinze anos, mostram-se
mais atualizadas diante das demandas e entraves enfrentados no ensino de literatura até os
dias de hoje. Nelas, há uma postura mais crítica e reflexiva sobre o papel da leitura literária e
da arte, pautando questões relevantes para o letramento, como a importância da estética da
recepção e a formação do leitor crítico na escola, além das mediações possíveis por meio da
relação do professor com a seleção de textos, o planejamento com o tempo e o
estabelecimento de espaços que funcionem como um estímulo para o leitor.

Um dos principais méritos dessas Orientações é o de defender a permanência da arte e,


sobretudo, da literatura no currículo do Ensino Médio não pela sua função utilitária, mas pela
sua função valorativa e como fonte de prazer que subverte essa noção de que a escola deve
preparar apenas para enfrentar o sofrimento da vida cotidiana e o trabalho alienado:

Nesse mundo dominado pela mercadoria, colocam-se as artes inventando


“alegriazinha”, isto é, como meio de educação da sensibilidade; como meio de
atingir um conhecimento tão importante quanto o científico – embora se faça por
outros caminhos; como meio de pôr em questão (fazendo-se crítica, pois) o que
parece ser ocorrência/decorrência natural; como meio de transcender o simplesmente
dado, mediante o gozo da liberdade que só a fruição estética permite; como meio de
acesso a um conhecimento que objetivamente não se pode mensurar; como meio,
sobretudo, de humanização do homem coisificado: esses são alguns dos papéis
reservados às artes, de cuja apropriação todos têm direito. (BRASIL, 2006, p. 52-53)

Em maior ou menor grau, todos os documentos que abordam as questões acerca do


ensino de literatura culminam em uma orientação que parece ser a mais importante quando se
fala da prática de leitura literária na escola: as obras não devem ficar à margem, mas devem
ser o centro para a formação do leitor e do processo de fruição.

Assim sendo, é confiada à literatura, em linhas gerais, uma abordagem amplamente


crítica que dialoga e questiona o meio no qual a sociedade está inserida. Ou seja, requer que
34

os professores escolham e abordem livros que auxiliem a compreender o mundo, mas,


sobretudo, a refletir e contestar suas representações e suas implicações. Levando em
consideração também que o educando e sua experiência são protagonistas do processo
emancipador que deve se constituir na práxis educativa.

Para tanto, é necessário praticar, priorizar e valorizar o exercício da escuta em sala de


aula. Como condição primeira da noção de alteridade, o ato de escutar, segundo Bajour
(2012), tem relação com o desejo e a disposição para reconhecer e apreciar a palavra do outro
não somente naquilo que esperamos dele, que nos tranquiliza e corresponde com os nossos
sentidos, mas também do que difere das nossas interpretações e visões de mundo. Partir desse
entendimento é primordial para a visão de que cada pessoa não apenas se comunica em suas
palavras, mas se realiza e se compreende nelas:

O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a
palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas
que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a
ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver
próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra.
(LARROSA, 2002, p. 21)

Dessa forma, o processo de aprendizagem se mostra dialógico por elaborar uma


conscientização socioeducacional que preza tanto pela expressão da experiência quanto pela
promoção de uma leitura crítica que visa reconhecer, confrontar e, especialmente,
transformar. O que ocorre nesse processo, de acordo com Tinoco (2013), é que “a pessoa se
aprimora enquanto desenvolve a capacidade de refletir, questionar, descobrir –
aprimoramento promovido pela conscientização de um sujeito-agente consciente de si e do
mundo que o cerca, em suas inúmeras variantes” (p. 148).

Diante de todos esses aspectos, a opção por uma obra contemporânea e que suscita
uma pauta tão cara ao imaginário coletivo brasileiro é uma escolha que compreende a
importância de ampliar o debate através do exercício da identidade e da alteridade. Esse
enlarguecimento do repertório literário deve estabelecer, simultaneamente, uma construção de
conhecimento verdadeiramente engajada e libertadora, na qual o aluno-leitor tenha autonomia
para contribuir com o debate de maneira aberta e honesta tendo a consciência de ser sujeito do
espaço territorial, momento histórico e contexto social em que se encontra, mas também
sendo capaz de estender seu olhar aos outros, visto que:
35

[...] o foco em diversidade revitalizou o aprendizado, ao transformar a educação para


que ela não refletisse e não sustentasse preconceitos inerentes ao pensamento
patriarcal imperialista capitalista supremacista branco. Ele recuperou a integridade
do ensino e do aprendizado havia muito perdida. [...] A diversidade em sala de aula,
tanto em relação aos corpos presentes quanto ao assunto estudado, frequentemente
criou um contexto construtivo para diálogo e engajamento melhorados (HOOKS,
2020, p. 166).

Ou seja, o pano de fundo que traz Torto Arado ao plano central da discussão aponta
para a necessidade de abordar como a obra se apropria da realidade para estabelecer sua
originalidade em forma, matéria e conteúdo, e, assim, apurar a percepção de um
posicionamento radicalmente crítico ao tratar as estruturas de opressão e violência no campo
como derivadas da raiz do problema colonial. Assim, por meio de relações intertextuais e de
uma abordagem interdisciplinar, o texto literário ganha contornos mais complexos e amplos
capazes de concretizar seu potencial discursivo. E Torto Arado, com todos seus elementos
constitutivos, mostra-se um território fértil para a viabilização de uma proposta educativa
transformadora.

Para viabilizar a construção teórica dessa proposta, será necessário realizar uma
análise dos elementos constitutivos do romance a fim de compreender o seu todo artístico
dentro dos propósitos ético-estéticos. Dessa forma, será possível, então, vislumbrar de que
maneira as suas temáticas e a sua poética podem ser utilizadas como maneira de contribuir
para uma educação literária a contrapelo.
36

3 CAVANDO O SOLO DAS PALAVRAS: UMA ANÁLISE DO ROMANCE A


PARTIR DE ALGUNS PRECEITOS BENJAMINIANOS

A devorante mão da negra Morte/ Acaba de roubar o bem, que temos;/ Até na triste
campa não podemos/ Zombar do braço da inconstante sorte./ Qual fica no sepulcro,/
Que seus avós ergueram, descansado;/Qual no campo, e lhe arranca os frios ossos/
Ferro do torto arado. (GONZAGA, Tomás Antônio, [s.d.], p. 19-20)

O trecho de Marília de Dirceu, do poeta português Tomás Antônio Gonzaga, foi a


única coisa que restou intacta dos primeiros manuscritos de Itamar Vieira Junior. O romance
que começou a ser escrito durante a juventude do autor se perdeu, mas a convicção da
representação ilustrada por este “torto arado” nunca abandonou o posto de título para o autor.

Numa análise material, a simbologia dessa ferramenta defeituosa carrega uma


representação metafórica que dá o tom da narrativa à qual ilustra: a padronagem reta dos
sulcos que se formaram na terra arada nunca mais serão os mesmos; atravessando as marcas
do tempo ele anuncia: não é a história linear que estamos acostumados a nos deparar que
estará presente aqui. Os anos de manejo incansável sobre um território infértil para firmar
raízes envergaram o instrumento, mas com ele se estabelecerá uma nova ordem de semear e
permanecer. Arar a terra tortuosamente é a manifestação física do exercício de “escovar a
história a contrapelo”.

Na capa cor de rosa da edição brasileira, a ilustração da artista visual Linoca Souza é
inspirada na fotografia do italiano Giovanni Marrozzini da série “Nouvelle semence” (2010)
realizada em Camarões (figura 1). Os facões da foto viraram Espadas-de-São-Jorge, ou, de
seu respectivo orixá, Espadas-de-Ogum, no desenho (figura 2). A planta, nativa da África do
Sul, traz consigo essa conexão que vigora entre a agricultura e sua utilização em práticas
litúrgicas de religiões de matrizes africanas. Dois aspectos se destacam dentre as
características da Espada e se confrontam com a representação da faca mencionada no enredo
de Torto Arado: o seu cultivo é atribuído, espiritualmente, a prover proteção; e, deve-se evitar
ingeri-la, pois é venenosa. O que te adoece a língua, te protege a alma.

Figura 1 – Fotografia da série "Nouvelle


semence"
37

Fonte: Giovanni Marrozzini, 2010

Figura 2 – Capa da edição brasileira de


Torto Arado

Fonte: Editora Todavia, 2019

Partindo para a estrutura interna do livro, o romance se divide em três partes, na qual
cada uma delas é narrada em primeira pessoa por personagens centrais da obra. A primeira
parte é intitulada como “Fio de Corte” e é narrada por Bibiana, filha mais velha de Zeca
Chapéu Grande e Salustiana Nicolau, em um total de 15 capítulos. A segunda, narrada por
Belonísia, irmã mais nova de Bibiana, é homônima ao título do livro, “Torto Arado”, e conta
com 24 capítulos. A terceira e última divisão leva o título “Rio de Sangue” e tem a narração
38

de Santa Rita Pescadeira, uma entidade do Jarê, que é a única personagem existente na
realidade fora da dimensão ficcional do enredo, de acordo com o autor.

Seguindo essa divisão narrativa, o livro acompanha cronologicamente a vida das irmãs
Bibiana e Belonísia, sua família e a comunidade da Fazenda Água Negra, situada na região da
Chapada Diamantina, na Bahia, entre os rios Utinga e Santo Antônio. O evento que
desencadeia o início do enredo é o incidente que une Bibiana e Belonísia para sempre. As
duas crianças encontram uma faca de cabo de marfim enrolada num pano com sangue seco
dentro da mala de couro de sua avó Donana e decidem colocá-la na boca “querendo
experimentar a beleza de um brilho misterioso e proibido” (VIEIRA JUNIOR, p. 34). A
brincadeira, porém, provoca um corte na língua e faz com que uma das duas personagens se
torne muda, mas sem que se saiba qual das duas perdeu o membro.

A partir desse evento, acompanha-se a jornada de amadurecimento das personagens.


Pelo desenvolvimento de seu amadurecimento emocional, esse percurso muito se assemelha à
ferramenta narrativa da Jornada do Herói6. Nesse caso, porém, o que se tem é uma jornada de
três heroínas, visto que uma dá continuidade ao narrar dos fatos a partir da sua perspectiva e
das suas provações pessoais ao longo do enredo, mas que comungam em uma trajetória de
propósito maior que suas próprias individualidades a fim de conquistar uma ruptura que irá
proporcionar uma vida melhor para toda a comunidade.

Nessa trajetória, tem-se inicialmente uma ambientação, no qual há a apresentação ao


herói e seu mundo, onde podemos ver suas qualidades e fraquezas. Durante a narração de
Bibiana ao longo do primeiro capítulo há o retrato dos conflitos enfrentados durante sua
infância, a partir do episódio com a faca, e adolescência. A partir disso são apresentados os
demais personagens e os principais aspectos e elementos do romance que ambientam a
Fazenda Água Negra. Quando, então, surge um conflito que desafia a personagem a sair de
seu mundo e ele ocorre quando Bibiana conhece e se apaixona por Severo, que começa a falar
de uma vida melhor na cidade, onde poderiam buscar estudo e trabalho e proporcionar um
pouco mais de tranquilidade às suas famílias, convidando-a a ir embora com ele. Ela recusa o
chamado por medo e insegurança diante do conflito, fazendo com que em um primeiro

6
A Jornada do Herói é um conceito da narratologia desenvolvida por Joseph Campbell em 1949 que descreve
um padrão no qual se inserem as histórias dos mitos clássicos. Originalmente possuía dezessete passos, mas foi
adaptada por Christopher Vogler em 1992 e passou a contar com doze estágios. São eles: o mundo comum; o
chamado à aventura; a recusa ao chamado; encontro com o mentor; a travessia do primeiro limiar; provas,
aliados e inimigos; aproximação da caverna secreta; a provação; a recompensa; o caminho de volta; a
ressurreição, e; o retorno com o elixir.
39

momento a personagem se negue a abrir mão do mundo no qual ela já tem certezas. Bibiana
reflete muito sobre se deveria fugir ou não com Severo, principalmente depois de descobrir
que está grávida. Além do medo de enfrentar o desconhecido, a jovem tem apenas dezesseis
anos e prefere manter-se ao apego e conforto familiar.

Para estimular a protagonista a seguir rumo à sua jornada, um mentor aparece para
ofertá-la o que for necessário para enfrentar o desafio. No romance, essa mentora é Santa Rita
Pescadeira que é invocada em uma festa de jarê e fala diretamente com Bibiana sobre a
profecia que a aguarda, dando coragem para que a protagonista enfim fuja com o primo e
deixe a fazenda para trás. A travessia do primeiro limiar ocorre a partir do momento em que a
personagem está pronta para deixar o mundo comum e ir em direção ao novo mundo. Neste
caso é justamente quando Bibiana presencia o gerente da fazenda humilhando seu pai e decide
fugir com Severo encerrando sua participação em primeira pessoa, quando se revela que foi
Belonísia quem teve a fala e deglutição prejudicada pelo evento com a faca.

Nesse ponto, as histórias se cruzam e Belonísia assume a narração do livro e passa


também pela sua própria travessia do primeiro limiar acirrando as disputas discursivas a partir
do seu desenvolvimento narrativo. As questões de gêneros se intensificam a partir do
momento que Belonísia vai morar com um vaqueiro que pede sua mão e que a mantém
submissa em humilhações e agressões verbais diárias. Portanto, a jornada segue para prepará-
la para o desafio maior, na qual a heroína passa por provações e descobre quem está do seu
lado nessa jornada e quem pode prejudicá-la. Nessa ocasião, Belonísia conhece Tobias mais
profundamente sofrendo com sua brutalidade e violência, mas também se aproxima de Maria
Cabocla, que sofre violência doméstica do marido e se transforma em um grande afeto da
protagonista. Há então uma pausa para que a personagem reveja questionamentos internos e
repense sobre os medos e inseguranças que a impediam de adentrar nessa jornada. Esse recuo
é marcado quando Belonísia reencontra a faca de Donana, que havia sumido logo após o
incidente na infância. O objeto é a demarcação física da coragem que a irmã precisava para
enfrentar os obstáculos maiores que a esperam que também é compensada com o retorno de
Bibiana e Severo à fazenda com os sobrinhos.

A protagonista precisa, então, passar por uma grande provação que terá grande
impacto na sua transformação, matando de vez a pessoa que era antes de chegar até ali e
ressuscitando para uma nova vida. Esse momento ocorre quando Belonísia decide enfrentar
Tobias e mostrar que não tem medo dele. Após a morte do companheiro, a personagem
40

também se fortalece para proteger Maria Cabocla do marido e o enfrenta direta e fisicamente
impedindo que a amiga seja violentada novamente. Dando continuidade, há um instante de
reflexão no qual a heroína retornará acolhida e reconhecida pelos demais, mas que precisará
escolher entre conquistar um objetivo pessoal ou lutar por um bem coletivo. Em Torto Arado
a situação se concretiza com a volta de Bibiana, que se torna professora da escola local, e de
Severo, que começa a pautar com a comunidade sobre questões envolvendo a identidade
quilombola e a luta de classes.

Com isso, a jornada das irmãs se mostra como uma única trajetória na qual suas
individualidades são respeitadas, mas suas vivências são interconectadas a um nível mais
profundo que desperta uma noção comunitária e ancestral acerca dos problemas que
enfrentam. Tem-se, assim, a batalha final com o inimigo, que ressurge quando ninguém
esperava. Por inspirar o sentimento de insurgência e reivindicação, Severo causa
descontentamento ao fazendeiro e morre assassinado, o que gera grande comoção em toda a
comunidade. Em seguida, Salomão também é encontrado morto misteriosamente.

A brutalidade cometida contra ele é o ensejo para a manifestação de Santa Rita


Pescadeira. A narradora do terceiro capítulo do livro faz parte do panteão de “Encantados ou
Caboclos, dependendo da região onde você ande você vai encontrar as duas palavras, eu
encontrei as duas, mas literariamente a palavra Encantados soa muito mais interessante, mais
forte” (VIEIRA JÚNIOR, 2020). A entidade relata a maturidade narrativa no seu atravessar
dos tempos e associa, em analepses, a rememorações de um passado que se mantém vigente,
sobretudo ao fazer um recorte temático racial. Ocorre por fim o reconhecimento efetivo das
protagonistas que deixa claro que as coisas nunca mais serão as mesmas a partir daquele
ponto. O desfecho após a morte do fazendeiro é de tranquilidade para a comunidade de Água
Negra, logo, é revelado ao leitor que as responsáveis pela morte de Salomão são Bibiana,
Belonísia e também a Santa Rita Pescadeira.

Com esse encerramento, a resolução de conflitos e pendências pretéritas evoca um


grande apelo de celebração ancestral, é a síntese do ditado iorubá que diz que “Exu matou um
pássaro ontem com uma pedra que arremessou hoje”; a subversão do passado e um novo
imaginário para o futuro.

Antes, então, de seguir adiante, é importante olhar o que antecede o romance e este
estudo.
41

3.1 ESTADO DA ARTE

O romance apresenta uma subversão não apenas na ordem de suas representações,


como também a refração se torna um importante trunfo para promover uma reflexão crítica
que reverbera na sociedade. Itamar Vieira Junior, dentro do seu projeto axiológico como um
todo, promove um exercício de construir novos documentos culturais no qual o caráter
utópico de reparação histórica não permite ser mais um documento que serve à barbárie.

Em sua obra prévia, a coletânea de contos A oração do carrasco, é possível encontrar


o mesmo eixo temático que orienta o romance. Para determinar os elementos interdiscursivos
que permeiam as obras, será feito um cotejo entre Torto Arado e o primeiro conto do livro,
intitulado Alma, que também está disponível na edição atualizada da coletânea, Doramar ou A
Odisseia, publicada em 2021.

Alma é o nome da mulher escravizada que narra, em primeira pessoa, sua fuga.
Acompanhando a narrativa em fluxo de consciência, Alma caminha sempre para frente em
busca de paz e liberdade e sem poder voltar, porque para trás há os passos e o passado, apesar
deste não ser possível de fugir. Em entrevista, Itamar Vieira Junior explica como surgiu a
ideia para o conto:

Há muitos anos, estive em uma comunidade em Senhor do Bonfim, no sertão da


Bahia. A ancestralidade foi levada até lá por uma mulher que vivia em Salvador,
chamada Maria Rodrigues. Ela vivia escravizada, mas fugiu do cativeiro e caminhou
terra adentro até chegar onde, hoje, é Senhor do Bonfim. Foram 400 quilômetros, no
século 19. Ser cativa deve ser uma angústia muito grande, e qualquer pessoa sentiria
vontade de fugir, e não por acaso muitos resistiram à escravização. Como eu não
sabia mais nada, e as pessoas também não, anos depois imaginei o caminho
percorrido por ela, o que a faria fugir para um lugar tão longe, tão ermo. Uma amiga
antropóloga com acesso a arquivos de Salvador me contou que escravizados
cometiam crimes bárbaros, como envenenamento, para resistir até serem libertos. A
partir daí, foi fácil imaginar o que faria uma mulher andar para tão longe, com os pés
feridos, os calçados que se desfazem, sofrendo com a chuva, o sol na cabeça e ainda
chegar viva. Foi fácil juntar tudo para contar sobre um momento tão triste da nossa
história. (VIEIRA JUNIOR, 2021b)

O fator predominante que distingue o conto do romance consiste no período retratado


e o que isso representa na condição das personagens: em Torto Arado, tem-se uma
ambientação temporal concretizada a partir de meados do século XX, nesse contexto, “os
42

donos já não podiam ter mais escravos, por causa da lei, mas precisavam deles. Então, foi
assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores.” (VIEIRA JUNIOR,
2019, p. 204). Já em Alma, o que se tem é o retrato de alguém que vive, em contexto
escravagista, para encontrar sua liberdade: “eu, uma mulher que nasceu acorrentada aos
desejos de meus senhores, eu que não tinha nome porque não era nada, [...] eu que agora
caminho para frente, lembro-me de todas essas coisas que doem mais que as feridas abertas de
meus pés e do couro do meu cabelo” (VIEIRA JUNIOR, 2017, p. 18-19, grifo nosso).
Excetuando esse fator, e entendendo os limites estilísticos que se confrontam no encontro
entre dois gêneros literários distintos, os demais aspectos materiais, formais e éticos e
estéticos dialogam entre ambos a ponto de um mencionar fatos que antecedem o outro.

Quando Santa Rita Pescadeira relata a tristeza de presenciar Bibiana debruçada sobre o
corpo morto de Severo há a seguinte menção:

Vi tanta crueldade ao longo do tempo, e mesmo calejada me comovo ao ver os


homens derramando sangue para destruir sonhos. Vi senhores enforcarem seus
escravos como castigo. [...] Outro fez do corpo de seu escravo um reparo para o
barco imprestável que navegava. Entrava água na embarcação. O barco chegou ao
seu destino com o homem afogado. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 206-207, grifo
nosso)

Este fato se sucede no conto quando os senhores decidem se mudar e precisam


atravessar um rio com um barco velho de madeira. Com o peso da carga transportada, o barco
empena e o companheiro de Alma, chamado Inácio, tal qual o primogênito de Bibiana, é
usado como ferramenta para consertar as avarias do transporte:

[...] o senhor de um golpe deitou Inácio com o rosto para o fundo do barco, vi o
sangue se diluindo na água, eu fiz prece que ninguém pôde saber pedindo por sua
vida, [...] os homens remavam rápido, seus braços dormentes e rápidos, para que
água não inundasse o barco, eu me importando com a vida de Inácio que tapava o
buraco, pedindo por sua vida, o balanço da água não me permitia saber se ele
respirava, até que aquela viagem infinita, que existe ainda hoje em meu corpo,
aquela viagem se findou, os homens ajudaram a atirar os baús e as tralhas que meus
senhores carregaram do engenho e por último tiraram Inácio, mas já não pude ver
[...]. (VIEIRA JUNIOR, 2017, p. 34)

O fato de ambas as narrativas serem realizadas em primeira pessoa estabelece também


um parâmetro formal que as assimila. Através da perspectiva das mulheres que narram as
duas histórias tem-se uma concretização de um vislumbre onisciente que permite unir
memórias e sentimentos aos eventos precisamente representados. Dentro dessa construção, os
43

dois projetos estéticos edificam o caminho para um desfecho insurgente que cresce a partir da
revolta e do encerramento de um ciclo de opressão.

No romance, as mulheres partem à caça de um animal feroz que anda à solta


apavorando a fazenda utilizando a alegoria da onça, que era “uma lembrança daquele passado
tão distante e havia retornado para amedrontar os moradores. [...] A onça que passamos a
caçar havia derramado sangue e estava disposta a rasgar a carne de mais gente, até conseguir
o que queria.” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 260). No conto, a personagem “sabia que se desse
as costas e fosse embora, eles iriam me buscar, eu, Alma, não podia fugir e deixar meus
senhores como onças soltas para virem me caçar, muitas vezes eu vi como eles caçaram os
homens pretos que fugiram” (VIEIRA JUNIOR, 2017, p. 44). O animal, que na natureza
representa um predador nato que se posiciona no topo da cadeia alimentar, também conta com
referências mitológicas para povos originários que podem contribuir para a interpretação de
sua metáfora nas obras supracitadas. Para os povos Tupi-Guarani, por exemplo, a onça é
associada a um espírito maligno responsável pelos eclipses. No mito, inclusive, ela vive em
perseguição de dois irmãos, Guaraci, que é o sol, e Jaci, a lua, e é necessário espantá-la em
dias de eclipse para evitar que ela devore ambas as entidades e, assim, acabe por extinguir a
luz e trazer o fim do mundo.

Em seu movimento ativo para espantar a onça capaz de promover escuridão e pavor,
Bibiana e Belonísia são senhoras do destino mórbido do fazendeiro. Do mesmo modo, Alma
mata seus patrões com veneno de rato. A morte não é apenas o desfecho da trama e sua
refração tampouco serve a um propósito violento de vingança pessoal. Sua representação é,
antes de mais nada, uma manifestação de liberdade e de subversão da ordem das coisas.

O que se conclui com essa análise é que dentro do projeto artístico do autor-criador7
existe uma forte carga imaginativa de evocar um cenário de rebeldia e contestação perante a
realidade formal dos fatos. Sua proposta diverge do domínio das produções literárias
contemporâneas, que têm espaço e sucesso no mercado editorial, ao colocar no centro da
narrativa os histórica e socialmente marginalizados e não apenas por meio de uma
representatividade apática em pactos de conciliação. O que o autor realiza através de sua

7
Segundo Bakhtin (2014), o entendimento autor-criador passa por um sujeito o responsável por guiar os
elementos dentro da obra que exerce uma atividade produtiva de formalização axiológica. “O autor-criador é um
momento constitutivo da forma artística. Eu devo experimentar a forma como minha relação axiológica ativa
com o conteúdo, para prová-la esteticamente.” (BAKHTIN, 2014, p. 58, grifos do autor)
44

literatura é oferecer uma contra face utópica diante da violência, da dor e da morte, em que se
desprende do senso comum difundido acerca da mansidão do processo de formação do povo
brasileiro e apresenta um novo imaginário de justiça e reparação.

Pode-se afirmar que Torto Arado forja na literatura o que seria um “antimonumento”,
em termos benjaminianos, como a possibilidade de um novo documento de cultura:

Quando uma narrativa torna-se impossível de ser rememorada, cabe à arte,


principalmente, dar uma “forma” ao caos que se imobiliza por um instante.
Encontramos, dessa forma, nos antimonumentos, uma categoria de obras que têm
por desejo criar símbolos dessas memórias dolorosas, para que sejam passíveis de
tornarem-se objetos de rememoração, de admoestação, buscando evitar novas
tragédias. Essas obras tentam trazer à superfície, e ao debate, aquelas histórias,
motivo de vergonha, embaraço e dor, mas com as quais precisamos lidar, se
quisermos dar ao presente sua força revolucionária; realizam levantamentos, exigem
a participação ativa e a decisão do público quanto ao futuro das obras [...].Embora
realizem uma tarefa indispensável, seu valor só se realiza se, daí, surgirem ações
políticas que atribuam a essa rememoração um caráter prático de transformação
social, com mecanismos legais e sociais que não nos façam esquecer. (MARINHO,
2015, p. 173)

Com o intuito de cumprir esse trajeto crítico, convém dar seguimento, na próxima
seção, a uma parte fundamental para análise dos elementos presentes no interior da obra, que
é ilustrar o contexto social e político que formou o universo diegético do Torto Arado. Com
isso, pretende-se compreender esse duplo entre a realidade material que permitiu sua
formação e o terreno artístico e político no qual se insere, entendendo que “a arte interpreta o
mundo e dá forma ao informe, de modo que, ao sermos educados pela arte, descobrimos
facetas ignoradas dos objetos e dos seres que nos cercam” (TODOROV, 2009, p. 65).

A fim de compreender o todo do objeto estético que compõe o escopo desta pesquisa,
foram levantados os quesitos mais relevantes que direcionam seu eixo temático. Levando em
consideração que o intuito do estudo é verificar como Torto Arado, por meio de seu material,
forma e conteúdo, retrata manifestações de luta contra a barbárie, este capítulo propõe analisar
como a terra, a ancestralidade, o feminino e a resistência são representados na obra e nos
operadores de leitura da narrativa para sua composição artística e política, visto que “A
resistência da obra não é o socorro que a arte presta à política. Ela não é a imitação ou
antecipação da política pela arte, mas propriamente a identidade de ambas. A arte é política”
(RANCIÈRE, 2004, p. 129, grifo do autor).

Para tanto, as seções pretendem apresentar as questões espaciais que envolvem a


politização e subjetividade da dimensão da terra no romance; como Santa Rita Pescadeira
45

opera para o movimento do atravessar do tempo e reflete o testemunho como ato de


perpetuação da memória e da história; o confronto entre a imposição do silenciamento para
manutenção da opressão e da barbárie e a resistência por meio de um novo imaginário
mnemônico que pauta a ação política no horizonte a partir da narração de Bibiana e Belonísia;
e, o destaque do debate sobre as questões acerca da ancestralidade pautadas pelos personagens
que constituem o núcleo central da obra.

3.2 EM BUSCA DO CORAÇÃO: O ESPAÇO DA TERRA COMO CENTRO


ORGANIZADOR DA NARRATIVA

Torto Arado é, segundo Vieira Junior (2020), uma declaração de amor à terra. O
romance é um tratado literário que visa pautar como se exprimem as questões agrárias no país
da violência no campo. A centralidade dessa questão traz a visceralidade e profundidade da
obra pelo fato exposto por Fanon (1968) de que a terra é o valor mais essencial para a
população colonizada, é ela que assegura o pão e, sobretudo, a dignidade.

Para entender como a delimitação espacial da narrativa em torno da terra se manifesta


em Torto Arado, convém contextualizar a simbologia da representação do espaço e da sua
concepção de territorialidade na vida de comunidades tradicionais campesinas.

De acordo com o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (2020), até os anos
1970, o conceito de território era apenas um espaço geográfico do Estado, mas o termo ganha
outras camadas de complexidade para os povos que ocupam esse espaço em questão:

Quilombolas e indígenas – como também diversas outras comunidades camponesas


– passam a mostrar que dentro de um território nacional estão contidas múltiplas
territorialidades. O conceito de território foi politizado. Os povos do campo, por
meio de sua cultura, atribuem diversos sentidos à natureza. Denunciam o
colonialismo interno, mais difícil de combater do que o outro. Pensar no território
sempre pressupõe discutir as relações de poder: quem manda no território? Quem dá
sentido à vida nesse pedaço de terra? (CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DOM
TOMÁS BALDUÍNO, 2020, p. 128)

Numa relação intrínseca entre o texto e o contexto, vê-se que esses questionamentos
levantados estão presentes em Torto Arado e funcionam ao enfrentar uma concepção amorfa
de espaço, trazendo-o ao centro da literariedade como o território que tensiona as disputas e
46

evidencia as opressões sofridas. É por conta da relação com a terra, do contato com a
natureza e da ambientação do sertão que o propósito axiológico do romance se concretiza.

Isto posto, a dimensão espacial da narrativa opera como um dos principais pilares que
a sustenta, visto que, como apontado por Soethe (2007), tematiza os condicionamentos entre
as figuras humanas e o seu entorno, além de problematizar a relação entre elas mesmas na
partilha de espaços comuns. Ou seja, no plano diegético, assim como no contexto social, o
espaço da terra é um espaço em disputa.

O aprofundamento temático do que concerne o conteúdo do romance visa a terra como


centro organizador do enredo. Seja pelos contornos físicos espaciais de suas contribuições
geográficas, meteorológicas, agrárias e do estabelecimento do trabalho e da moradia; seja pela
relação subjetiva para com esse lugar que representa o lar e o espaço da e para manifestação
do sagrado e o estabelecimento de suas casas como um lar; ou pela relação direta que
estabelece com personagens enquanto o território das ações, da memória e da identidade.
Essas relações podem ser compreendidas com o gráfico a seguir:

Quadro 1 – Configuração da terra em Torto Arado

Fonte: Autoria própria


47

Diante disso, pode-se afirmar que a terra não opera no plano secundário da ação
narrativa. Sua concepção é tão presente e inerente à obra que os personagens frequentemente
são caracterizados com adjetivos associados ao solo, ao clima e à vegetação, assim como ela
também possui características profundamente humanas, muito por conta da religião
expressada na obra, que cultua a natureza como o sagrado. Dessa forma, as expressões de vida
que conectam o humano e a natureza como um todo são equivalentes e não podem ser
categorizados a partir de uma perspectiva antropocêntrica, como costuma operar a lógica
ocidental. A terra é tão central em Torto Arado quanto os personagens.

Adentrando na especificidade do seu aspecto, o espaço do romance é o interior da


Bahia, único local em que se poderia realizar sua dimensão valorativa, em virtude de: 1) a
religião dos protagonistas da trama é o jarê, uma prática de grande sincretismo religioso,
variante do candomblé caboclo, e exclusiva da região da Chapada Diamantina8; 2) a
comunidade representada é quilombola, geralmente presentes nos interiores dos estados
brasileiros; e 3) existe um tom de denúncia no ato ético que conflui para a questão agrária e
lutas campesinas que difere muito do contexto urbano do país.

Com essa alegoria, o sertão na obra também é apresentado como o espaço da


representação de luta, da resistência e da cadência lírica da obra. Num paralelo com outras
obras que tematizam os conflitos numa ambientação sertaneja, como foram os romances
regionalistas da geração de 30, a terra era o que impelia os personagens a se retirarem. Em
Torto Arado, por outro lado, ela é ressignificada para dar vazão ao caráter opressor das
cicatrizes coloniais. A terra é o que impele a ficar. O que a dimensão espacial evidencia é que
Torto Arado é um romance que fala de permanências.

Por isso, a elaboração do imaginário acerca do sertão no romance apresenta contornos


menos previsíveis e arquetípicos ao conferir uma complexidade que o sincretiza de maneira
vívida e palpável com delineados e traços particularmente humanos: “Meu pai, quando
encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu
interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à
procura do coração.” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 100, grifo nosso). Assim como os
personagens se mostram tão enraizados nesse território que realizam ações ou são
caracterizados a partir de adjetivos referentes ao espaço que os rodeia: “Seu olhar era

8
Breve história do jarê. Disponível em: <http://cantigasdojare.com.br/historia-do-jare.html>. Acesso em:
22 dez. 2021.
48

inquisidor, árido como o tempo que nos cercava [...]” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 82, grifo
nosso).

O primeiro exemplo é seguido, narrativamente, de uma explicação de que Zeca


Chapéu Grande, pai de Bibiana e Belonísia, não possuía letra nem matemática. Ao equipará-
lo a um médico, que diante da terra enxerga um paciente, sua sabedoria enquanto agricultor é
elevada a um patamar de notoriedade tanto no aspecto da ciência, pois mesmo sem
conhecimentos formais ele é a referência máxima no assunto, quanto do cuidado, já que é
preciso ter zelo em seu trato e deitar para ouvir seu interior comunicar os problemas. Ou seja,
a construção formal evidencia a importância de ambos, terra e ser humano, em suas
individualidades e também na relação que se estabelece entre os dois.

No segundo excerto, por sua vez, se em termos concretos o adjetivo “árido” faz
referência ao clima seco e estéril da região, sua caracterização figurada atribuída a um olhar
ganha contornos ainda mais rígidos ao acrescentar uma nova camada de características
humanas que emergem do cenário, assim como o insere, com mais profundidade, numa
ambientação reflexa. Nessa comparação implícita há uma nítida redução de contraste que
poderia haver entre a natureza e a personagem, ambas se assemelham em seus aspectos e
comportamentos e são ressaltados concomitantemente no excerto, tamanha conexão e
influência que exercem uma sobre a outra. Não há distinção entre si: a terra e a pessoa são um
só corpo.

Pode-se afirmar que todos os espaços dentro da narrativa são antropomorfizados, o


que dá uma conotação poética aos seus elementos por meio de metáforas. Por meio desse
referencial, a terra, seja enquanto o solo em que se pisa ou enquanto o lar que abarca as vidas
e histórias das personagens, é a materialização espacial da memória do povo representado em
Torto Arado:

“Fui parida, mas também pari esta terra. Sabe o que é parir? A senhora teve filhos.
Mas sabe o que é parir? Alimentar e tirar uma vida de dentro de você? Uma vida que
irá continuar mesmo quando você já não estiver mais nesta terra de Deus? Não sei se
a senhora sabe, mas eu peguei em minhas mãos a maioria desses meninos, homens e
mulheres que a senhora vê por aí. Sou mãe de pegação deles. Assim como apanhei
cada um com minhas mãos, eu pari esta terra. Deixa ver se a senhora entendeu: esta
terra mora em mim”, bateu com força em seu peito, “brotou em mim e enraizou”.
“Aqui”, bateu novamente no peito, “é a morada da terra. Mora aqui em meu peito
porque dela se fez minha vida, com meu povo todinho. No meu peito mora Água
Negra, não no documento da fazenda da senhora e de seu marido. Vocês podem até
me arrancar dela como uma erva ruim, mas nunca irão arrancar a terra de mim.”
(VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 229-230, grifos nossos)
49

Observa-se aqui o uso do verbo “parir” para a construção metafórica da sentença. É


extremamente simbólico que a terra, nesse romance, seja capaz de algo tão visceral quanto
parir. Capaz de parir aptidões, pessoas, plantas, rochas, alimentos, animais, pedras preciosas.
A terra é a origem e a mãe de tudo e de todos que compõem esse imaginário. Ela não seria o
que se é em nenhum outro verbo de caráter denotativo. É conhecendo os contornos e detalhes
da sua fertilidade que os personagens são capazes de mudar de vida; de ir embora dessa terra,
tendo o deslocamento como um amadurecimento ético, e voltar como filho pródigo, como o
fazem Bibiana e Severo.

Analisando esse trecho, há mais uma vez esse vínculo indissociável em relação à
terra: ao mesmo tempo que Salustiana foi parida por ela, também a pariu. Da mesma forma
que ela foi criada nesse território, também contribuiu para que ele fosse moldado, seja por
fazer parte da sua história ou por ser quem produz nele. A representação comunga com os
questionamentos suscitados por comunidades campesinas sobre quem verdadeiramente dá
sentido à vida nesse espaço de terra, assim ela reitera que pode até ser arrancada de lá como
um pedaço de mato qualquer, mas nunca conseguirão arrancar a terra que brotou e enraizou
na formação da sua identidade.

Na concepção de terra que corresponde ao espaço geográfico do lar, há uma relação de


afeição mesmo com um forte imperativo por parte dos donos da fazenda de que aquele espaço
não os pertence. Ainda que traga a questão da memória e do autorreconhecimento na sua
própria terra ao longo dos anos, a comunidade quilombola que mora e trabalha na Fazenda
Água Negra é tratada como objeto perecível e o mesmo se reflete em suas habitações, que não
podia ser de alvenaria para não despertar a cobiça dos herdeiros, precisava ser de barro e
taboa para não durar. A casa em Torto Arado é feita para não deixar rastros ou vestígios das
pessoas. Sem fixar a gente que verdadeiramente produz sobre aquela terra, não se fixam
também seu passado, sua história e sua memória.

O excerto a seguir fala sobre o processo de envelhecimento e adoecimento de Zeca


Chapéu Grande e sua pressa em construir uma nova casa para morar junto com a sua esposa
Salustiana:

O último inverno tinha sido de muita chuva e ventos fortes, que haviam causado
avarias na casa em que morava sozinho com minha mãe depois da partida dos filhos.
O barro havia cedido, deixando à mostra o trançado de madeira que sustentava a
parede da frente. Era como um corpo corroído que nos permitia ver os ossos. Que
nos permitia ver a intimidade de uma casa, porque buracos e frestas já não cobriam
o seu interior. Guardava segredos que nunca seriam revelados. Guardava segredos
50

que eram parte do que todos nós éramos naquelas paragens. Ele não dizia as razões
da pressa para construir, mas todos nós intuíamos: que o corpo de nosso pai
declinava como as paredes da casa que se desfazia. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p.
159, grifos nossos)

Diante desse confronto cronotópico à narrativa, pode-se afirmar que na construção


formal se amplia a dimensão inseparável que conecta os personagens ao espaço, fazendo com
que um seja a extensão do outro. Há uma espécie de simbiose entre a casa e o corpo humano.
A casa era como um corpo corroído e o corpo de Zeca declinava como as paredes da casa. A
casa é Zeca e Zeca é a casa. Apesar de ser atribuída à casa a capacidade de guardar segredos
mesmo que fosse possível enxergar sua intimidade, era Zeca, como curador e um dos
primeiros moradores da fazenda, que carregava consigo as raízes da memória de sua família e
comunidade. Por serem inerentes, a morte de um representa a destruição do outro. Sua
urgência em construir uma nova casa pode ser associada com a necessidade de deixar um
rastro de sua existência no aspecto físico e na subjetividade de sua descendência.

Essa relação entre o corpo e a morada também é percebida quando Belonísia narra que
“Foi com as casas de barro e nossos corpos como mobília que venderam a terra a um casal
com dois filhos” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 176). Nessa situação, se reverte a conexão entre
o espaço e o corpo e o que se apresenta é uma objetificação da personagem ao rebaixar sua
condição de existência a uma mobília sem distinção de valor para com a vida humana. Se
evidencia com isso um questionamento acerca da posição de servidão a qual todos eles estão
submetidos, visto que, por mais que vivam num período em que não há mais a escravidão
como nos moldes do regime colonial, ainda assim suas vidas e mão de obra continuam sendo
comercializadas como objetos de troca entre os fazendeiros. As heranças do colonialismo
vigoram tanto no que concerne à exploração da terra quanto à exploração do ser humano. O
que se sucede diegeticamente, a partir desse processo de conscientização acerca da condição
de colonizado, é o estabelecimento da necessidade formulada por Fanon (1968) de que, para
destruir o mundo colonial é necessário abolir uma zona, enterrando-a profundamente no solo
ou expulsando-o do território.

Esse processo de politização por parte das personagens começa a ser absorvido quando
Severo, marido de Bibiana, pauta as questões que envolvem o reconhecimento da identidade
quilombola e a reivindicação do direito à terra. Com isso, a força da luta que tensiona a corda
das opressões converge para a fundação de uma nova tradição por meio da perspectiva
territorial e estabelece uma ética da memória em que há “por um lado a destruição da falsa
51

ordem das coisas e, por outro, a construção de um novo espaço mnemônico” (SELIGMANN-
SILVA, 2008, p. 51). Ou seja, naquele local, compreendendo todas as suas demarcações
geográficas e subjetivas para a constituição dos sujeitos que ali habitam, reside a
representação da luta para uma ressignificação histórica que interpele a barbárie que se
perpetua.

Mas como aponta seu referencial extraliterário, quem ousa se indignar contra as
desigualdades no campo acaba sofrendo reiteradas violências que, frequentemente, culminam
em morte. Se Torto Arado não tivesse como projeto artístico produzir uma literatura das
alteridades, a morte de Severo simbolizaria uma apatia diante da tragédia. No entanto, o que
se configura a partir do luto é um lampejo para reação. Nesse ponto, tem-se que a barbárie
“fundamenta a manutenção do poder e da violência nesse mundo, aquela que oprime e
sustenta essa opressão como cultura. O ‘desencantamento’ com o mundo que essa barbárie
revela é o primeiro passo para sua transformação” (MARINHO, 2015, p. 123).

A rebeldia diante das ruínas do passado serve como motor de mudança da sociedade e
se manifesta com o discurso de Bibiana ao dizer que a “semente que Severo plantou por nossa
liberdade e por nossos direitos não irá morrer. [...] Mas somos muito ainda nesta fazenda. Foi
embora um fruto, mas a árvore ficou. E suas raízes são muito fundas para tentarem arrancar”
(VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 221). A simbologia da primavera florescendo no meio do sertão
baiano partilha da concepção de uma utopia, sob a ótica benjaminiana, mnemônica: a
construção imagética do espaço propicia a ação política. E,

Então o colonizado descobre que sua vida, sua respiração, as pulsações de seu
coração são as mesmas do colono. Descobre que uma pele de colono não vale mais
do que uma pele de indígena. Essa descoberta introduz um abalo essencial no
mundo. Dela decorre toda a nova e revolucionária segurança do colonizado. Se, com
efeito, minha vida tem o mesmo peso que a do colono, seu olhar não me fulmina,
não me imobiliza mais, sua voz já não me petrifica. Não me perturbo mais em sua
presença. Na verdade eu o contrario. Não somente sua presença deixa de me
intimidar como também já estou pronto para lhe preparar tais emboscadas que dentro
de pouco tempo não lhe restará outra saída senão a fuga. (FANON, 1968, p. 34)

Como para Vieira Junior (2021a) já não há mais tempo para conciliações, Bibiana e
Belonísia vingam a morte de Severo matando o fazendeiro Salomão. O desfecho opera,
conforme o entendimento proposto por Löwy (2011) sobre a Tese VI de Benjamin, como um
impeditivo das classes dominantes de tentar apagar as chamas da cultura passada que as
ameaça com o conformismo. O exercício crítico e subversivo do romance compreende uma
nova tradição dos oprimidos e nela a terra mantém sua centralidade simbólica no ato, pois o
52

personagem morre em um fojo cavado pelas irmãs, tal qual uma armadilha de caça, onde tem
seu pescoço cortado. A terra é o solo, a ferramenta e o destino. Não há brechas, portanto,
sobre quem, de fato, concretiza essa força produtiva e afetiva e que, por isso, colhe as
recompensas proporcionadas por essa mesma terra, que é o solo, o rio e a entidade que se
materializa dele. É o desfecho que ara o enredo a contrapelo, que orienta a não abaixar a
cabeça e que sentencia, que sobre ela, “há de viver sempre o mais forte” (VIEIRA JUNIOR,
2019, p. 262).

3.3 O DIA QUE SE PLANTA A SEMENTE, NÃO É O DIA QUE SE COME A


FRUTA: A PASSAGEM DO TEMPO EM TORTO ARADO

No que concerne à esfera discursiva, Torto Arado é, majoritariamente, construído no


pretérito imperfeito. Pode-se estabelecer que essa escolha foi tomada pelo autor tanto pelo
fato do romance ser narrado a partir das memórias das três personagens, como por não ser
especificamente datado.

A priori, muitos críticos supuseram se tratar de uma obra que fazia referência ao
período pós-abolicionista, no final do século XIX. O que há na narrativa, no entanto, são
alguns elementos sutilmente posicionados para situar o tempo sem precisar fazer menção a
uma data específica. No início da história, logo após as irmãs se cortarem com a faca de
Donana, elas vão a um hospital na cidade mais próxima num carro Ford Rural, que era um
modelo de veículo disponível entre os anos 60 e 70 no Brasil. Já ao final do romance, Bibiana
tenta cicatrizar a mão machucada com água gelada, ou seja, há eletricidade e uma geladeira,
item que se tornou disponível no início dos anos 2000 nos interiores do país. Pode-se inferir,
então, que a narração contempla cerca de 40 anos da vida das personagens. Essas informações
conferem uma situacionalidade à obra, mas ressaltam, sobretudo, o que o estilo literário
destaca em termos de conteúdo: Torto Arado é um romance que fala sobre memória e
identidade, mas também a resiliência e a resistência como subversão perante a perpetuação de
uma cicatriz colonial coletiva.

A opção por um tempo verbal que representa um passado que não é claramente
delimitado, mostra a atualidade temática abordada ao longo da narrativa, a continuidade e a
duração no tempo do racismo estrutural e da violência no campo, tornando-as questões que
53

são tão pertinentes hoje quanto eram num período pós-abolição. É o passado que não acabou,
nem no tempo verbal nem na representação da vida. O material amplifica o conteúdo e o
conteúdo molda o material.

Já no âmbito do enredo, o nó que dá origem ao conflito dramático, interrompendo o


fluxo da situação inicial da narrativa, é o acidente com a faca ocorrido entre Bibiana e
Belonísia. A partir disso há o percurso de formação das irmãs, em que se acompanha suas
trajetórias de crescimento e amadurecimento até a idade adulta. A ordem temporal e a ordem
causal dos fatos se conectam cronologicamente a um processo de desenvolvimento agrícola e
ao tempo dedicado à colheita, respeitando o momento de plantar a semente, regar a terra e
colher os frutos.

Como, para estabelecer essa conexão, há uma dependência direta de condições


climáticas favoráveis, as circunstâncias que se desenrolam e a psique das personagens
também acompanham as mudanças de clima e tempo no decorrer da obra. Em tempos de seca,
há uma atmosfera de tristeza que ronda a Fazenda Água Negra; em tempos de chuva, a
alegria. Se por um lado, tem-se: “Minha mãe creditava nossa melancolia à seca que
enfrentávamos, dizia que era o mal do tempo.” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 79); também se
encontra: “Não tardou muito para as primeiras gotas de chuva caírem do céu, e mesmo com
todo desalento em que nossa casa havia afundado com a partida de Bibiana, minha mãe sorriu
[...]” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 94). Pelo fato de representarem uma vida pautada pela
agricultura, a referência ao clima é de suma importância para o estado emocional das
personagens, visto que, independentemente do que ocorrer no desenlace pessoal de cada um,
o que movimenta a narrativa é o vínculo de trabalho e cuidado com a terra.

Assim, há uma relação de causa e consequência que permeia as ações dos personagens
em consonância às manifestações da natureza. A esterilidade e a secura são prenúncios de
angústias, derrocadas e morte, enquanto que, por outro lado, a fertilidade e a chuva trazem a
bonança e a esperança de prosperarem na colheita e nos seus destinos. A ação da natureza
reflete o espírito humano e vice-versa.

Contudo, esses duplos antagônicos em Torto Arado, que se manifestam tanto na


relação entre o humano e a natureza quanto em outros eixos temáticos presentes no enredo
(como as tensões entre a opressão e resistência, a vida e a morte, entre outras), não se anulam
como se fossem polos binários e opostos, nem se findam em si mesmos. Mas estabelecem
54

mutuamente uma relação intrínseca e complementar para o desenvolvimento cíclico de


desencadeamento dos fatos. Nesse sentido, Vieira Junior (2020) esclarece:

A vida são polos opostos. [...] Os animais morrem e se a sua carcaça continuar ali na
terra, outros animais vão se alimentar, aqueles ossos vão se desintegrar com o tempo
e aquela matéria passa a fazer parte do que nasce, do que vive, as plantas que
nascem sobre aquilo. [...] Assim como na história, as personagens não têm
consciência plena sobre isso, mas é muito marcada pela vida dos ancestrais [...]. A
vida delas não começa nem acaba com elas. Como eu acredito, a minha vida não
começa nem acaba comigo, eu ando com os pés dos que vieram antes, dos meus
antepassados. (VIEIRA JUNIOR, 2020)

A partir dessa reflexão, reitera-se um dos elementos primordiais para a dimensão


temporal da obra: a presença de Santa Rita Pescadeira. A Encantada se divide numa
representação entre a natureza e o espiritual desempenhando uma função física e simbólica de
anunciar, com o seu movimento, o atravessar dos tempos. Essa travessia a designa enquanto
detentora de uma concepção material e concreta no que concerne à inscrição da memória e da
história, que, por ser um elemento traumático, penetra no presente tanto quanto serve de
cimento para o passado (Seligmann-Silva, 2005). Santa Rita Pescadeira é o próprio rio, que
perene atravessa a História e deságua no afluente da vida das personagens dessa narrativa.

Entre o sagrado e o profano, a entidade representa uma onisciência ilimitada capaz de


interpor digressões que acrescentam detalhes ao enredo que só são possíveis por ela possuir
uma voz narrativa. Em consequência disso, sua preocupação e lamento é de que a comunidade
já não a recorde mais e há um perigo iminente em não perpetuar o que compõe a memória de
um povo que é “O sangue do passado corre feito um rio. Corre nos sonhos, primeiro. Depois
chega galopando, como se andasse a cavalo” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 225). No ensaio
Experiência e pobreza, escrito em 1933, Benjamin demonstra os riscos que a incapacidade de
comunicar experiências, seja ela retirada de maneira confessa ou sorrateira, acarreta numa
perda de valor dos patrimônios culturais e, consequentemente, numa pobreza coletiva da
experiência, propiciando o surgimento de uma nova barbárie.

O excerto predecessor representa uma premonição no nível diegético que se traduz


como uma reparação histórica que será cobrada com a morte de Salomão, o dono da fazenda,
no futuro. Dessa forma, estabelece um diálogo com o pensamento benjaminiano, conforme
aponta Seligmann-Silva (2008), que “pensou essa nova prática de escritura do passado a partir
das ruínas de seu presente. A própria natureza aparece aí [...] como uma paisagem arruinada
que se lamentaria se lhe fosse dada uma voz” (p. 50). Ou seja, reside nisso a ideia de que a
55

articulação com o passado deve estabelecer, de acordo com Benjamin (1987b), uma ruptura
da reprodução da história, enquanto regra geral, que se solidariza com os dominadores e
comunga com o cortejo triunfal sobre os corpos dos oprimidos.

No romance, é Santa Rita Pescadeira quem assiste ao violento funeral dos povos
negros escravizados. O que Itamar Vieira Junior realiza em sua narração é um reflexo de um
panorama historiográfico subjetivo ao reverberar uma descrição de acontecimentos factuais e
verídicos sob a ótica formal da literatura. Como ao narrar que cavalgando o corpo de
Belonísia foi que a Encantada sentiu que “o passado nunca nos abandona. Belonísia era a
fúria que havia cruzado o tempo. Era filha da gente forte que atravessou um oceano, que foi
separada de sua terra, que deixou para trás sonhos e forjou no desterro uma vida nova e
iluminada” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 261, grifo nosso). A síntese do período histórico,
nesse caso, retrata a crueldade de ter a vida arrancada da sua terra e as cicatrizes geracionais
que a violência deixa numa relação direta com o contexto social extradiegético.

Se a repercussão da mentalidade colonial destina curtos parágrafos nos livros de


História para trazer os relatos de brutalidade, marginalização e subserviência, essa lógica é
totalmente subvertida em Torto Arado, que repercute a axiologia do seu propósito alteritário
ao trazer um testemunho literário em uma perspectiva dos, sobre e para os oprimidos.

Esse caráter testemunhal, evidenciado também pela narração na primeira pessoa do


discurso, reitera o processo de formação da identidade das personagens por meio da
construção e estabelecimento de um outro imaginário possível e uma nova memória coletiva.
Pois, na elaboração fictícia, assim como na psique humana concreta, “Há, em cada
sobrevivente, uma necessidade imperativa de contar e, assim, conhecer sua própria história,
desimpedido pelos fantasmas do passado contra os quais deve se proteger. É preciso saber a
verdade enterrada para ser capaz de viver sua vida” (LAUB, 1995, p. 63, grifos do autor,
tradução nossa)9. A importância do relato oral para a perpetuação da memória é um recurso
constantemente abordado na narrativa:

[...] ela parecia entusiasmada, desandou a contar muitas histórias, era um livro vivo.
Contava as histórias dos bisavós, dos avós, da Fazenda Caxangá, onde também
morou, das terras do Bom Jesus, de onde veio. Intervinha ativa, ciente da
importância das coisas que sabia. A essa altura, já haviam percebido que se não

9
Do original: “There is, in each survivor, an imperative need to tell and thus to come to know one’s story,
unimpeded by ghosts from the past against which one has to protect oneself. One has to know one’s buried truth
in order to be able to live one’s life.”
56

fizéssemos barulho para garantir nossa permanência na fazenda, não teríamos para
onde ir. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 198, grifo nosso)

Quando Salustiana começa a contar a história do seu passado, traz consigo também o
passado de toda a gente. O tempo é percorrido nos caminhos e seu relato é um ato que rompe
com o silenciamento e o esquecimento de sua descendência. Transmitir o legado dos
antepassados é propiciar a criação de um verdadeiro estado de exceção, defendido por
Benjamin (1987b) como um despertar das centelhas da esperança de que os mortos não
estarão em segurança enquanto os inimigos não cessarem de vencer. É nos ecos da
ancestralidade que o romance defende o direito de pertencer e permanecer.

Ainda ao falar dessa herança ancestral perpetuada pela dor e pelo sofrimento, a
travessia do espaço e do tempo abarca também uma complexidade emocional que pode ser
observada com o seguinte trecho da obra:

O medo atravessou o tempo e fez parte de nossa história desde sempre. Era o medo
de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra.
Medo dos castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela gente.
Medo de andar, medo de desagradar, medo de existir. Medo de que não gostassem
de você, do que fazia, que não gostassem do seu cheiro, do seu cabelo, de sua cor.
Que não gostassem de seus filhos, das cantigas, da nossa irmandade. [...] Foi a nossa
valência poder se adaptar, poder construir essa irmandade, mesmo sendo alvos da
vigilância dos que queriam nos enfraquecer. Por isso espalhavam o medo. (VIEIRA
JUNIOR, 2019, p. 157)

Neste parágrafo, há a representação não apenas de todas as facetas dos medos sofridos
pelas personagens e pela sua comunidade, como também a justificativa que motiva todos
esses medos e o estabelece como uma característica íntima a quem se identifica com ela.
Além disso, o medo, por si só, contou uma história, serviu como narração de passagem do
tempo: foi ele que esteve presente na vida da personagem desde sempre, quando os seus
foram arrancados de sua terra, atravessaram o mar em um grande depósito de gente, foram
condenados à escravidão e aos maus tratos; o medo é o pesar do tempo, é ultrapassado por
todas as gerações de pessoas negras no Brasil, é o que se herda de um passado colonial.
Passado, presente e futuro se misturam na narrativa de um único elemento. Sua
universalização compreende o conhecimento que se tem do sentimento, mas é no ato ético que
se concretiza o valor axiológico da capacidade de resistir a ele e de como será sempre
utilizado como ferramenta de coerção a fim de continuar enfraquecendo e subalternizando
aqueles que a ele se adaptaram e construíram a partir dele uma irmandade para enfrentá-lo.
57

Essa compreensão ancestral do que se herda em termos de memória coletiva é


reiterado pela construção formal do discurso. Ter a narração de Santa Rita Pescadeira
aprofunda o elo entre o passado, o presente e o futuro; o que foi e o que deve ser subvertido
para não voltar a ser; as cicatrizes que são perpetuadas por gerações até que se possam verter
direitos que deveriam ser garantidos e nunca foram. Diante da dimensão cronotópica da
passagem do tempo é que se revela a sua relação com o espaço, visto que a Encantada é tanto
o movimento de travessia da temporalidade quanto a manifestação da natureza em sua
concepção materializada.

Para entender como esse fluxo temporal vigora sobre o enredo a fim de justificar seu
clímax e desfecho, é necessário analisar como suas protagonistas, e também narradoras, se
posicionam diante do contexto que as cerca.

3.4 A NARRAÇÃO EM PRIMEIRA PESSOA COMO FUNDAÇÃO DO ESPAÇO


MNEMÔNICO REVOLUCIONÁRIO DE BIBIANA E BELONÍSIA

Torto Arado é um romance predominantemente feminino. Bibiana e Belonísia são não


apenas protagonistas como também narradoras do livro. Em entrevista, o escritor explica:

Quando eu pensei nessa história na Chapada Diamantina, sobre comunidades


quilombolas, a mulher tinha um protagonismo muito forte. Em todo esse
tempo que eu trabalho como servidor público, encontrei muitas mulheres
presidentes de associações, muitas mulheres lideranças de sua comunidade,
eu arrisco dizer que elas são maioria nesse segmento. Então pra mim seria
muito estranho narrar uma história sobre uma comunidade quilombola que
fosse protagonizada por um homem. [...] não tinha outro jeito, não tinha
como escapar. (VIEIRA JUNIOR, 2020)

Diante disso, serão abordadas a seguir as questões por trás da construção e


representação das protagonistas a partir de suas próprias narrações em primeira pessoa.

3.4.1 Bibiana, a irmã forjada na luta

Bibiana é a primeira narradora em Torto Arado. Filha mais velha de Zeca Chapéu
Grande e Salustiana Nicolau, sua participação em primeira pessoa começa e termina com dois
momentos decisivos para o desenvolvimento de sua personagem: o dia que descobre a faca de
58

Donana e corta a língua junto a Belonísia e o dia que vai embora, grávida, da Fazenda Água
Negra.

Não se sabe ao certo em que momento da vida se encontra a Bibiana que narra a
história, no entanto, a linguagem utilizada aponta para uma maturidade expressiva, o que leva
à conclusão de que é a mulher adulta quem conta os fatos decorridos no enredo. Parte-se do
princípio então, que há um distanciamento entre o tempo da ação e o da narração. O que se
tem em primeira pessoa, que permite uma caracterização da personagem feita por ela mesma,
é mais uma rememoração do que uma descrição em si. Suas percepções pessoais,
pensamentos e emoções dão conta de um período que abarca sua infância e início da
juventude, período em que sua personalidade e individualidade estão em formação e sendo
apreendidas partindo dessa ótica infanto-juvenil.

Também pelo fato de ser a personagem que introduz o romance, o ritmo das ações é
mais lento por estar justamente preparando o solo do enredo para ser adentrado pelo leitor.
Sendo assim, a maior parte do que se estabelece como caracterização de Bibiana será
desenvolvida de maneira mais complexa nas narrações futuras, nas quais ela será vista em
terceira pessoa.

Dito isso, cabe ressaltar que poucas vezes, de fato, há descrições detalhadas no
romance sobre a fisionomia das personagens. Nesse âmbito, o que há de mais
concreto, primordial e indiscutível para compreensão de seu universo é que se tratam, em sua
maioria, de pessoas negras e essa dimensão física e visual traz consigo a profundidade das
questões que permeiam o debate racial. Logo no início da narrativa, quando em torno de sete
anos de idade, ela e a irmã cortam a língua e precisam ir a um hospital e Bibiana relata ser a
primeira vez que está em um ambiente com mais pessoas brancas do que negras e esse
aspecto é determinante para o direcionamento de olhares de curiosidade e exotismo para ela e
sua família. É nessa memória que reside para a criança o momento decisivo de percepção do
que é o diferente, de quem sou eu e quem é o outro e o que os distingue, e para a menina que
narra, essa diferença é exposta não apenas na pele (descrição física), mas no olhar
(interpretação alheia) para consigo.

Ainda ao falar dessa autocompreensão enquanto uma menina de pele preta, a


personagem narra que o único espelho ao qual ela tinha acesso era o reflexo da água do rio,
“onde nos víamos negras num espelho também negro, talvez criado exatamente para nos
59

descobrirmos” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 32). Essa referência simbólica ao mito de Narciso,
nesse caso, traz não um enamoramento e uma perspectiva egóica, tal qual a lenda, mas uma
consciência precoce sobre quem se é e qual sua posição no mundo. Logo, conclui-se que
mesmo que sejam poucas as descrições de outros aspectos físicos que compõem a sua
fisionomia e a dos demais personagens, é inegável que muito se sabe sobre sua psicologia e
espírito, o que proporciona uma construção dotada do calor e da vividez de um ser humano
com traços subjetivos complexos. É na força da construção representativa das personagens
que o romance desempenha sua força como projeto ético e estético.

O episódio com a faca é crucial para o que se impõe à Bibiana e também à Belonísia,
naturalmente, enquanto personagens. A faca que divide o mundo é o que estabelece uma
quebra no espectro da inocência infantil das meninas, visto que “o silêncio passaria a ser
nosso mais proeminente estado a partir desse evento” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 15), e, por
consequência disso, é o elo incomunicável que as conecta mais profunda e intimamente. Ter a
fala fisiologicamente comprometida como uma imposição silenciosa é o elemento que
determina não apenas suas vidas a posteriori, como também é um reflexo físico e material de
um silenciamento forçoso ao qual seus antepassados igualmente padeceram.

Nisso reside todo o sofrimento final da vida da avó Donana, inclusive, que enveredada
numa trama de vida e morte por conta do objeto, passa seus últimos dias recordando as dores
do passado e as lembranças que a mantinham viva e ela passa a acreditar que Deus não apenas
não a havia perdoado pelo assassinato que cometera com o punhal, como havia ferido a carne
de sua carne, as netas que queria ver livres. O estado de saúde física e mental da matriarca
piora consideravelmente após esse fato e mergulhada em memórias e cicatrizes ela falece, e é
Bibiana quem encontra o corpo morto da avó emborcado no rio Utinga, rompendo
definitivamente com a aura sagrada da infância.

Mas a juventude só se amadurece de fato com a chegada de seu primo Severo à


Fazenda Água Negra. O afeto despertado entre ele e sua irmã provoca em Bibiana um ciúme
desconcertante e cria uma fissura entre ela e Belonísia quando aquela mente para mãe que viu
a mais nova aos beijos com o rapaz. O desenlace dá início ao processo gradual de
desprendimento do núcleo familiar por parte da primogênita em direção a um questionamento
da ordem do mundo ao se relacionar com Severo.
60

Essa ruptura afeta sobretudo sua relação com a irmã, visto que até então uma era a
voz da outra e a conexão intimamente desenvolvida entre as duas é rompida para que cada
uma siga seu caminho. Severo representa o chamado à aventura e Belonísia o principal
motivo para a recusa do chamado. Mas quanto mais se envolve com o primo, mais Bibiana se
questiona sobre a realidade de violência e subserviência de seu entorno, pois “nunca havia
parado para pensar porque estávamos ali, o que poderia modificar nessa história, o que
dependia de mim mesma ou o que dependeria das circunstâncias” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p.
72).

A gravidez repentina e inesperada logo se torna mais um fator que acarreta no peso da
responsabilidade que a vida adulta cobra tão cedo de muitas meninas. Esse senso de carregar
nas costas a incumbência de ser a pessoa que vai em busca de algo maior e melhor capaz de
mudar o bem-estar de toda a sua família é uma característica que define bem a personalidade
da personagem. O ensejo e o propósito de Bibiana são sempre coletivos e esse traço é
definitivo para a tomada de decisões que ela toma ao longo da narrativa.

Quando Santa Rita Pescadeira, incorporada em Miúda, sentencia na roda de jarê que
do movimento de Bibiana virá sua força e sua derrota, representa um ponto sem volta na vida
da protagonista. Não apenas a partida, como um movimento concreto de ação, mas também as
escolhas que ela virá a tomar trarão uma nova perspectiva, uma nova concepção de barbárie,
em que será impossível viver sem ter consciência desse processo no qual estará inserida. O
estopim se concretiza após o pai ser humilhado pelo gerente da fazenda e forçado a dar toda a
abundância de alimentos, condenando à pobreza e à fome os trabalhadores que
verdadeiramente produzem e dão sentido àquelas terras.

A primogênita então vai embora da fazenda e como a força gravitacional do romance


gira em torno desse espaço, encerra-se sua participação diante dele e, consequentemente, sua
narração.

É apenas em seu retorno ao espaço das tensões que se sabe sobre a vida que Bibiana
levou ao longo do tempo na cidade e o que isso acarretou na construção da personagem:

Nessa jornada percebeu que a vida além da Água Negra não era muito diferente no
que se referia à exploração. Mas havia Severo, e os sonhos, e tudo que construíam
juntos. [...] Sentiram vontade de retornar, à medida que foram acumulando
informações sobre o que era pertencer a uma comunidade de moradores, talvez
invisíveis para todo o resto, no coração de uma fazenda (VIEIRA JUNIOR, 2019, p.
214-215)
61

Com isso, tem-se que o mesmo ímpeto que a fez ir embora foi o que a fez retornar.
Essa indistinguível linha tênue é ressaltada quando Belonísia se depara com a irmã e
menciona que o tempo parecia ter passado com violência para Bibiana, que agora trazia o
filho Inácio consigo, mas que isso não significava nada para mulheres da roça, acostumadas
desde cedo a gerarem novos trabalhadores para os senhores. Ou seja, a cidade não
proporcionou uma grande transformação de perspectiva de vida, apenas intensificou a
convicção estabelecida diante de problemas que são estruturais.

Mas ela faz o caminho de volta como professora, mãe e esposa e todas as categorias
correspondem a um sujeito político. Seja na educadora que exercita uma práxis engajada e
libertadora no que concerne o seu povo e sua história, na maternidade participativa que exerce
ou na companheira que, lado a lado, reivindica a luta e o legado de Severo.

A determinação acerca dos comportamentos e estilos de vida femininos acabam


reverberando na produção do imaginário popular e coletivo sobre quais papéis e quais lugares
são predestinados às mulheres na sociedade em si. Observar a trajetória de Bibiana é estar de
frente a uma lógica a qual muitas mulheres, sobretudo as mais pobres, são submetidas: a
gravidez na adolescência, o processo de migração, a perda de familiares assassinados, o
rompimento do silenciamento socialmente institucionalizado através da luta. Todos esses
aspectos suscitam debates no que concerne às estruturas que sustentam a perpetuação da
lógica colonialista e patriarcal e podem levar a discussões sobre o papel da literatura na
promoção de um questionamento acerca dos papéis de gênero, raça e classe desempenhados
por minorias marginalizadas e como romper esse ciclo.

A construção da personagem serve uma representação que rompe com o padrão de


personagens femininos em romances de autoria masculina, que se preocupam em desenvolver,
sobretudo, a aparência física que corresponda a uma performance de feminilidade (que
envolve beleza, docilidade e pureza). Tampouco vai ao encontro do que se espera de
marcadores discursivos acerca da definição de mulheres negras, que frequentemente são
desumanizadas sob estigmas que cruzam a misoginia e o racismo, definindo-as ora como
raivosas, ora como hipersexualizadas, ou mesmo no estereótipo da empregada doméstica que
é “quase da família”.

Isso se dá por conta do vínculo no âmbito ético entre autor e personagem que
promovem no plano estético as questões vivenciadas por pessoas negras à superfície do
62

discurso. Bibiana reivindica, na esfera de suas ações e discurso, a politização de seu povo,
uma militância revolucionária, a afirmação da identidade quilombola e a luta por esse
reconhecimento como a porta-voz das denúncias pretendidas dentro do projeto axiológico da
arte de Itamar Vieira Junior.

As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o
que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente palavras. E, por
isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle das palavras, pela
imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras palavras
são lutas em que se joga algo mais do que simplesmente palavras, algo mais que
somente palavras. (LARROSA, 2002, p. 21)

Quando Bibiana diz que irá reivindicar a comunidade da Fazenda Água Negra
enquanto quilombolas mesmo que não haja um “atestado” ou determinação formal para isso, é
um discurso de ir a contrapelo no sentido da compreensão de si, da sua história e do seu povo.
Essa imposição por parte da personagem, de reivindicação da sua identidade comunica
efetivamente que nenhum órgão ou autoridade detém o poder de autorizá-la a ser quem ela é.
Ainda que não constem nos autos, não é o outro quem determina ou efetiva a memória e a
herança cultural, social e historiográfica que a comunidade carrega consigo. Se ser
quilombola significa pertencer a um grupo étnico-racial que tem como principal razão de ser a
resistência à barbárie, se afirmar como tal legitima sua autodeterminação e identificação
reiterando semanticamente a perpetuação do termo como uma contestação que opera uma
demanda concreta para efetivação de direitos, e simbólica para preservação da memória e do
devir.

O que Vieira Junior realiza em sua protagonista e ao longo do enredo pode ser
categorizado dentro do termo cunhado por Conceição Evaristo como “escrevivência” que
consiste numa fusão entre a memória, tanto individual quanto coletiva, e ficção, que funciona
como aporte para as narrativas dos excluídos ao prezar pela narração sobre a experiência e a
partir dela para causar provocações:

Essa história silenciada, aquilo que não podia ser dito, aquilo que não podia ser
escrito, são aquelas histórias que incomodam, desde o nível da questão pessoal,
quanto da questão coletiva. A escrevivência quer justamente provocar essa fala,
provocar essa escrita e provocar essa denúncia. E no campo da literatura é essa
provocação que vai ser feita da maneira mais poética possível. Você brinca com as
palavras para dar um soco no estômago ou no rosto de quem não gostaria de ver
determinadas temáticas ou de ver determinadas realidades transformadas em ficções.
(EVARISTO, 2020a)
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Pode-se observar então, a potência da memória enquanto registro coletivo da história


do povo negro e o ensejo de se utilizar dessas vivências para a criação de ficção. Bibiana não
apenas representa a mulher negra do campo pauperizada, sua construção desempenha uma
identificação que refrata na história e na ancestralidade de todo seu povo. As camadas de
personalidade que encobrem suas dores, lutos, alegrias e prazeres operam num processo que
confere dignidade à memória de tantas mães, avós e gerações antepassadas que reivindicaram
a terra, o pão e os sonhos dos que hoje lutam e pautam uma sociedade antirracista e que
rompa com os valores coloniais perpetuados com o capitalismo.

Convém ressaltar que esse potencial provocativo e subversivo de Torto Arado se


concretiza na sua linguagem. Diante de uma construção formal que evoca a
contemporaneidade das questões tratadas por meio do linguajar simples do povo do campo é
que se torna possível orientar uma chave de leitura capaz de evidenciar as críticas sociais
contidas no romance. O olhar etnográfico do autor beneficia a construção de uma Bibiana tão
vívida e pulsante, eficiente em transmitir o que Itamar Vieira Junior (2019) expõe em termos
estéticos como: “Cada mulher sabe a força da natureza que abriga na torrente que flui de sua
vida” (p. 260). É na linguagem que se determina o caráter alteritário de seu romance e na
representação e refração de suas personagens, permitindo realizar uma contrapartida de
narrativas a contrapelo.

3.4.2 Belonísia, a irmã parida pela terra

Analisemos, então, Belonísia, a irmã mais nova que perdeu a língua com o incidente
da faca. Durante a primeira parte, na narração de Bibiana, se conhece uma Belonísia em
terceira pessoa que vive em função do ambiente familiar e da relação de afeto com a irmã até
a ruptura entre ambas por seu suposto envolvimento com Severo e um consequente rancor por
conta da situação. Como afirmado anteriormente, é possível que a narração de Bibiana se
concretize por meio de rememorações de uma mulher adulta, dessa forma, sua percepção
sobre a irmã também é afetada por esse olhar distanciado e proporciona uma perspectiva
diferente que o passar do tempo permite.

Portanto, há sobre Belonísia uma visão mais sentimental a partir desse afastamento.
Muito do que se tem é sobre a relação entre as duas irmãs e a firmação do elo inexorável que
se estabelece ao cortarem a língua juntas. Repousa sobre esse fato uma questão pertinente a
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respeito do senso de coletividade e solidariedade que existe entre pessoas que sofreram as
mesmas violências juntas. O sofrimento como conexão para o desenvolvimento da empatia e
da compaixão ao compreender e se enxergar na dor do outro.

O que se sabe sobre a irmã mais nova na primeira parte é basicamente da relação de
união, confiança e intimidade com Bibiana. A construção desse vínculo é importante na
dimensão do enredo na compreensão da potência do desenvolvimento de solidariedade,
companheirismo, irmandade e nas noções de comunidade e coletividade. Para entender que a
união de sangue entre as duas vai além de suas relações pessoais, mas que também a
potencializa para a construção da esfera axiológica de seu discurso.

Já em sua própria narração em primeira pessoa, tem-se um relato de compaixão e


perdão pelas escolhas de Bibiana. Narrado a partir da fuga da irmã, se conhece uma Belonísia
cercada de violências simbólicas, mas também um relato de amor para com a terra e a
natureza. A mais nova gostava da roça, da cozinha, de despolpar o buriti, de fazer azeite. Essa
aptidão voltada para os fazeres domésticos costuma ser reiterada na literatura como um
espaço habitual de atuação feminina, como o cerne da opressão via reprodução social. Para a
personagem, a subversão desse conflito entre a educação formal e o trabalho com a terra, é
uma maneira não só de escapar de um ambiente hostil, mas também de exercer sua vocação se
dedicando ao território pelo qual sente devoção.

O elemento mais tangível que acaba por trazer os grandes contornos de personalidade
de Belonísia é, inevitavelmente, sua mudez. De acordo com Holanda (1992), emudecer
alguém significa reduzir a pessoa a nada, e equivale dizer:

O silêncio pode ser reserva de força; ou o sinal de seu esgotamento. Nada muda no
indivíduo mudo. E mais, o outro pode, daí, haurir sua força. A primeira providência
do arbítrio político: a redução ao silêncio. Temos estigmas recentes disso.
Resignação silenciosa que finda em aceitação de incerteza se temos, realmente,
direitos. Impassibilidade, impossibilidade – fator que reforça a arma forte do
opressor. (HOLANDA, 1992, p. 57)

As mulheres que narram o livro fazem da experiência o espaço de agitação das suas
próprias memórias, a urgência de pautar suas histórias e seu passado, pois a memória se firma
como uma imposição contra o silêncio. Mesmo Belonísia, que tem o silêncio como
determinação física, não se deixa silenciar e expressa a vontade de ter filhos apenas “para ter
com quem sentar para desfiar essas histórias que não me abandonam. Talvez lhes desse uma
pilha de cadernos velhos, manchados de umidade da chuva, ou roídos de traças, para que
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lessem e pudessem entender do que somos feitos” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p.170-171). É a
conscientização da riqueza contida no repasse da experiência, da recusa do silêncio como
forma de perpetuar sua própria versão da história.

Portanto, por mais que se tenha debatido o quanto as violências, as injustiças e as


cicatrizes coloniais são elementos de uma imposição simbólica ao silêncio, é inegável que a
personagem em questão padece de maneira física, o que se torna um impeditivo a mais para
qualquer tipo de reação. Esse silenciamento vem junto de uma abordagem bem delimitada
sobre a temática das questões de gênero e do feminino, que fica em evidência durante toda sua
narração.

Esse pilar se funda quando surge Tobias que a corteja e a leva para morar consigo com
o consentimento de seu pai. Lá, Belonísia se defronta, muito jovem, com a submissão
requerida dentro das condições do papel, ainda que informal, de esposa e a simbologia do
matrimônio enquanto tratado econômico-comercial de garantia de posses. Há uma relação
ambígua, inclusive, com o vocativo “mulher”, que tanto funciona como aquilo que diz
respeito ao gênero feminino quanto como sinônimo para esposa. A informalidade do
chamamento entre casais incomoda pelo fato de não haver uma relação de afeto entre
Belonísia e Tobias, mas também pela apóstrofe fazer referência a cobranças associadas ao
feminino. A personagem demonstra ter consciência dessa distinção em seu discurso ao
mencionar que sempre carregaria a vergonha de ter sido ingênua ao se deixar encantar pelas
cortesias do vaqueiro, que não era diferente de tantos outros homens que sabiam apresentar
“ao inferno que pode ser a vida de uma mulher” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 136).

A partir da mudança, a protagonista que agora se vê reduzida à função de dona de casa


submissa que vive uma apreensão rotineira e não encontra forças para reagir. Nesse ponto,
acompanha-se uma perspectiva quase psicanalítica acerca dos processos que a personagem
reprime que pode ser se analisada por meio das suas ações, pensamentos e sentimentos em
decorrência da narração em primeira pessoa. A angústia vivida por ela se expressa numa
antecipação de solucionar problemas antes mesmo de ser cobrada.

Me levantava logo quando o via se mexer na cama, antes de o sol nascer. Mas era só
acordar que vinha mais queixa: ou o café estava ralo como xixi de anjo, ou estava
forte, uma borra de amargo. Procurava enxada, procurava foice, coisas que eu nem
havia mexido. E se ele mesmo deixasse as coisas num lugar diferente, só por não
lembrar, perguntava: “Mulher, onde está isso?”, “Onde está aquilo?”, e sentia
aflição, parava o que estava fazendo para lhe ajudar a procurar. Se eu encontrasse,
era como se ele tivesse feito, nem dizia palavra para agradecer. A coisa ficou tão
ruim que eu me antecipava, nem esperava ele pedir, já dava tudo em suas mãos:
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cinto, sapato, chapéu, gibão, facão, só para não o ouvir chamando “mulher”. Me
sentia uma coisa comprada, que diabo esse homem tem que me chamar de mulher,
minha cabeça agitada gritava. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 116)

Como parte das provações que a personagem precisa enfrentar, surge a figura de
Maria Cabocla, uma vizinha que sofre com violência doméstica e se refugia na casa de
Belonísia. As duas, estiadas de afeto em suas relações matrimoniais, se confortam e
compartilham de cuidado e carinho como fonte de resiliência para suportar as próprias dores.

Essa representação literária, aliás, denuncia uma realidade de violência muito pujante
no contexto brasileiro. A cada minuto, oito mulheres foram agredidas fisicamente entre o
período de maio de 2020 a maio de 2021 segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(2021). Uma em cada quatro mulheres foi vítima de violência doméstica no Brasil, o que
contempla um total de 17 milhões de mulheres que sofreram com agressões físicas, ofensas
verbais e abuso ou tentativa de abuso sexual. Dentre elas, cerca de 28% são mulheres negras.
Ter ciência desses dados e fazer um paralelo com Torto Arado é uma necessidade para quem
se dispõe a fazer uma crítica sociológica, visto que tanto no âmbito diegético quanto no
extradiegético falar de mulher é, quase consequentemente, falar de violências e abusos.

Mas é na relação com Maria Cabocla que Belonísia encontra forças para romper com o
mutismo e a estagnação. Tem-se nisso a evidência de que em situações de abandono e
violência, as mulheres se unem por meio do afeto. É na afetividade e na solidariedade que se
efetivam os laços e se fortalece a autoestima. É por ser tocada com carinho por Maria Cabocla
e ter seus cabelos trançados por ela que a protagonista reage conforme suas revoltas e
angústias e da prisão que a imposição do silêncio pode representar.

Meus olhos estavam secos, tamanha era a duração da estiagem. Estiou alguma coisa
em mim desde o dia em que permiti aquela união, desde quando entrei na casa
repleta de entulhos e deixei que Tobias levantasse minha roupa. Desde quando me
permiti ouvir insultos sem devolver da maneira que gostaria. (VIEIRA JUNIOR,
2019, p. 139)

Há menções de que Belonísia preferia trabalhar a terra com o pai desde criança, no
entanto, a intensificação desse amor pela agricultura se dá conforme se observa o seu próprio
amadurecimento pessoal. Não há outra forma de explicar a sensação de tristeza que não como
uma estiagem interna da personagem que mantém uma conexão tão íntima com a natureza
como forma de se posicionar no mundo. Em meio a tantos abusos, humilhações e agressões
verbais é na terra que Belonísia se consola. Nessa conexão das suas raízes com as raízes das
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plantações, a sua infertilidade para gerir um filho se compensa com o seu amor por tudo que
colhe sem deixar que o contexto a permita apodrecer. Ou seja, sua fertilidade se traduz na
fertilidade da terra: nesse relacionamento, mulher e natureza são um só corpo, semelhantes e
indissociáveis. Os atos de parir e de germinar são, neste romance, não apenas sinônimos, mas
de mesmo valor semântico tamanha a conexão entre suas progenitoras. O parto contempla a
visceralidade requerida na narrativa do processo da colheita.

Ao reencontrar a faca perdida de Donana, Belonísia é levada a questionamentos


internos sobre seus medos e inseguranças, mas também sobre a coragem que carrega como
herança ancestral. Ela passa então a não temer mais os homens e mesmo condenada ao
silêncio decide reagir fisicamente, visto que suas ações, gestos e posturas também são capazes
de comunicar sua raiva e sua valentia.

Mas eu já me sentia diferente, não tinha medo de homem, era neta de Donana e filha
de Salu, que fizeram homens dobrar a língua para se dirigirem a elas. [...] Ouvi gritar
de casa que eu era burra. Que não falava. Que era aleijada da língua. Engoli cada
insulto que ouvia de sua boca. Dava um golpe mais forte fazendo desprender da
terra grandes torrões. Que se atrevesse a vir me agredir que faria o mesmo com sua
carne: a faria se soltar da face com um golpe apenas. Antes que qualquer homem
resolvesse me bater, lhe arrancaria as mãos ou cabeça, que não duvidassem de minha
zanga. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 121).

A fúria silenciosa de Belonísia reitera a opção axiológica do próprio autor no intuito


narrativo de expressar que não se pode confundir a reação do oprimido com a violência do
opressor. Reitera-se uma concepção positiva da barbárie (Benjamin, 1987a), em que opera
uma mobilização da língua a serviço da luta e da transformação da realidade, e não apenas
como uma renovação técnica a fim de descrevê-la.

O que a modifica e a torna forte para reagir à altura é o retorno de Bibiana e Severo à
fazenda. Os laços de alteridade em seu discurso a respeito da irmã prezam pelo afeto
restituído entre ambas a partir da noção de que as correntes que as aprisionam, na cidade ou
no campo, são as mesmas que as unem. Esse retorno para casa traz à Belonísia também uma
ordenação teórica acerca das amarras que ela já sentia em seu cotidiano. Por meio do discurso
do cunhado, ela consegue sintetizar as opressões e explorações às quais seu povo foi
submetido e como a admiração por sua retórica foi o que a conectou, inclusive em sua
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juventude quando rompeu com a primogênita, com Severo através de uma concepção de amor
camarada10 como uma antítese à sobreposição tradicional do amor romântico.

Queria ouvir de Severo as explicações para o que vivíamos em Água Negra. Eram
histórias que se comunicavam com meus rancores, com a voz deformada que me
afligia e por vezes me despedaçava, com todo o sofrimento que nos unia nos lugares
mais distantes. Que juntos, talvez, pudéssemos romper com o destino que nos
haviam designado. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 132)

É na história que se comunica com seus rancores que Belonísia formula sua própria
práxis revolucionária. A terra, como seu tesouro, como parte de seu corpo, se torna a extensão
da personagem. Ela que segue os passos do pai entende que a voz do mundo, os sons da
natureza são a sua voz. Ao dedicar sua força de trabalho e afeto à terra, a personagem passa a
guardar os melhores alimentos da colheita para a família ou mesmo oferece aos animais para
não dar gratuitamente o fruto de seu labor a seus algozes.

Tem-se, então, uma reação por parte da personagem ao confrontar Tobias apenas com
um olhar feroz, o mesmo que direciona para o marido de Maria Cabocla e a quem ameaça
com a faca de Donana. O exercício reflexivo a partir de um revide11 opõe-se à realidade em
que o feminicídio impera e se sobressai numa situação como essa. Encontrado
misteriosamente morto após debochar de Santa Rita Pescadeira, o vaqueiro é enterrado junto
com todos os receios e inseguranças de Belonísia.

Adiante, se mobiliza entre as famílias uma agitação promovida pela luta de Severo
que, por inspirar uma utopia de insurgência e reivindicação junto com a comunidade
quilombola da Fazenda Água Negra, é assassinado brutalmente. Com isso, Belonísia passa
então a compreender, no luto, o que representa a morte dele, assim como a sua
responsabilidade diante das incertezas do futuro. A instância da lavoura na alegoria da dor
passa em seu discurso pela sua escavação interna diante da ausência:

É quando você pressente e aceita que suas mãos, as mesmas que lavram a terra de
onde se levanta a vida, poderiam ser o amparo ou o fracasso de toda uma luta. Se
escava por dentro com a ausência do primo na vida dos sobrinhos, dos pais, da irmã,

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O amor camarada é um conceito desenvolvido por Kollontai (2011), que postula a relação amorosa como um
laço de fraternidade e companheirismo que deveria contemplar: a) igualdade nas relações, na qual se eliminaria a
autossuficiência masculina e a noção de que a individualidade da mulher é de uma submissão servil ao amor; b)
desaparecimento do sentimento de propriedade no qual se reconheceria recíproca e mutuamente os direitos sem
que os seres unidos por relações de amor pretendam se apossar do coração e da vida do ser amado; c) a
assimilação e a compreensão do trabalho psíquico que se realiza na alma do ser amado por meio da sensibilidade
fraternal, que não seja exercida exclusivamente por mulheres.
11
O revide é um conceito-chave da teoria pós-colonial, determinado por Bonnici (2005, 2009), que analisa quais
são as formas de resistência utilizadas pelos subalternos na busca por romper com a hegemonia do opressor.
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na sua própria vida. Ele, como seu pai, que havia lhe dado tanto conhecimento sobre
a história esquecida, sobre os direitos negados. Corroía-se pelo que lhe fizeram, pelo
que poderiam fazer, pelo que queriam retirar de todos. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p.
248)

A partir do evento trágico Belonísia se torna suporte para sua irmã, agora viúva. Com
a ressurreição do inimigo, a onça que vive à solta querendo derramar o sangue do seu povo, as
irmãs passam a reivindicar as lutas empenhadas por Severo para preservar seu legado e
garantir seus direitos.

A ação em busca de uma reparação diante da barbárie reitera a simbologia dúbia da


faca de marfim que silenciou Belonísia para sempre: ao mesmo tempo que acarreta nesse
silenciamento forçado fisicamente, também é o objeto utilizado para cortar o mal pela raiz; é a
lâmina quem divide o mundo e a vida das personagens em dois, entre o assujeitamento e a
insubordinação. A própria, inclusive, menciona logo no início de sua narração sobre um
sonho, que adiante se mostra premonitório, no qual relaciona a faca ao retorno de sua fala
como se nunca houvesse sido muda antes. O sonho anuncia o rio de sangue que será projetado
junto a um homem bem vestido com a pele igual a de um cavalo branco, estabelecendo uma
alegoria bíblica na qual o animal é relacionado ao Cavaleiro do Apocalipse, que simboliza o
anticristo. O mesmo fio de corte que tirou a fala de Belonísia é o que devolve a ela as suas
palavras, as palavras das quais ela é feita.

Quando então ocorre a morte misteriosa de Salomão, o dono da fazenda, sucedem-se


chuvas abundantes e uma colheita próspera. Ou seja, o elixir narrativo é a paz da reparação
que juntas, Bibiana e Belonísia, desempenham para suas sinas e desígnios. É quando cavalga
em Belonísia que Santa Rita Pescadeira sente a fúria de um passado inacabado, das feridas
sempre em exposição, em decomposição. É a mais nova que, mais uma vez, encerra o enterro
dos vitoriosos e funda uma nova tradição de barbárie.

Com isso, a personagem comunga numa subversão sobre o que se espera da


representação dos papéis de gênero, e seu recorte de raça e classe, na literatura. As duas
irmãs, mulheres negras e quilombolas, são dotadas de uma sabedoria ancestral que as guia em
nome de justiça social a serem as protagonistas de suas vidas e seus destinos, não aceitam
mais ser submissas, subjugadas ou rebaixadas.

Por fim, convém também analisar como os demais personagens que constituem a
família e ascendência de Bibiana e Belonísia ajudam a criar, na dimensão ética e estética do
70

discurso, um dos principais eixos que orientam a vida das personagens e colocam suas utopias
no horizonte: a ancestralidade.

3.5 A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS QUE ENCARNAM A FORÇA QUE ECOA


DE SEUS ANCESTRAIS

Para entender a conexão entre Bibiana e Belonísia para com suas histórias e sua
comunidade é necessário direcionar também algumas observações sobre as raízes que
sustentam sua ancestralidade de pé. Nessa seção será analisada a composição de três
personagens que precedem a existência constitutiva das protagonistas e são vitais para
conectar os fios que atam o nó do propósito ético e estético do enredo de Torto Arado. São
eles: Donana, Zeca Chapéu Grande e Salustiana.

Como na seção a respeito do tempo foi explanada a determinação desse elemento


como fator substancial para a construção e a complexidade da personagem Santa Rita
Pescadeira, ela não será explorada aqui. Mas é importante ressaltar o quanto essa e aquela
parte se comunicam diretamente e estabelecem uma conexão indissociável para a noção do
que se entende por ancestralidade.

Antes de adentrar nesse terreno, cabe explicar o que será compreendido como
ancestralidade a fim de convergir a um denominador comum para o escopo dessa análise.
Muito mais que uma determinação meramente biológica e genética, a ancestralidade diz
respeito a um olhar profundo voltado ao passado, aos que vieram antes e trilharam o caminho
em direção ao presente e ao futuro e saber honrar e vislumbrar parte de si na trajetória do
outro. É nos ecos da ancestralidade que se torna possível compreender como vidas que correm
em paralelo, eventualmente, vão se encontrar no infinito nos entremeios do destino: “Sofrer,
esse sentimento difícil de exprimir e rejeitado por todos, mas que a unia de forma
irremediável a todo seu povo. O sofrimento era o sangue oculto a correr nas veias de Água
Negra” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 247).

Tem-se um exercício de alteridade para com os seus familiares, mas também uma
noção ampla sobre comunidade e coletividade entendendo que parte do que se é hoje carrega
marcas, reminiscências e resquícios de uma herança social do todo ao qual se insere.
71

A situação em que os afro-brasileiros se encontram, esse passado não foi expurgado


[...], nem em termos emocionais mesmo, nem em uma política concreta. [...]
Trabalhar esse passado é uma maneira também de reivindicar uma posição de
dignidade no presente e talvez mais do que isso ainda, trabalhar esse passado na
literatura é uma forma também de afirmar sua identidade afro-brasileira.
(EVARISTO, 2020b)

Dito isso, atém-se para um outro conceito que pauta uma construção dessa
coletividade levando em consideração o valor da individualidade para a constituição subjetiva
do ser: a experiência. Segundo Larrosa (2002), a experiência pode ser definida como algo que
nos acontece, é a passagem da existência, o simples existir de forma única, finita, intrínseca e
contingente. Ou seja, denota a singularidade de como os fatos e circunstâncias afetam de
maneira particular a cada um. Pela experiência é que se mostra o crescimento e o
enfrentamento individual diante dos acontecimentos da vida ou, neste caso, da narrativa.

Confluem então a importância tanto da dimensão pessoal, singular e intransferível da


experiência quanto da noção alteritária acerca da construção de uma memória coletiva para a
composição do que se entende por herança ancestral. Como um quebra-cabeças, no qual todos
os personagens, em sua própria biografia e legado pretérito, são necessários para o todo
concreto e para suas ramificações futuras. O que, segundo Larrosa (2002), pode ser traduzido
como o saber de experiência que é dado na relação entre a vida humana e o conhecimento.

Quem muito traduz e personifica o saber da experiência é o personagem Zeca Chapéu


Grande. O trabalhador rural que sem letra e sem estudo incorpora a ciência da agricultura por
meio da epistemologia da natureza. No trato com a terra e com tudo que ela produz, sejam os
alimentos que sustentam sua prole e sua estadia na fazenda ou a casa que dela brota e rumina
efemeramente seu descanso, Zeca é o portador da sabedoria curativa, producente, significativa
e espiritual da natureza. É por entender das fases da lua, do clima seco e hostil, do sopro do
vento, da intimidade com os orixás que o pai de Bibiana e Belonísia configura uma liderança
e uma referência para o povo da Fazenda Água Negra. É por ocupar esse espaço e essa função
que ele inspira na mais nova das irmãs a paixão por trabalhar a terra, permitindo que ela
conseguisse ter nos sons do mundo a sua voz.

Além disso, é ele quem coordena e organiza as rodas de jarê da comunidade local. É
ao deitar nu e inconsciente pela floresta, protegido por uma onça, que cabe a Zeca Chapéu
Grande desenvolver sua mediunidade e espiritualidade. Ao convocar os orixás a dançarem
consigo é que surge espaço para o aparecimento primeiro de Santa Rita Pescadeira. É em uma
72

das rodas que a Encantada se manifesta e fala diretamente sobre o movimento e a mudança
que irá ocorrer na vida de Bibiana e o que isso acarretará em seu destino, uma sina de alegria
e dor.

Em determinados momentos há uma contestação sobre o fato de Zeca Chapéu Grande


não se mostrar favorável às reivindicações que Severo orienta no ódio de classe. Ainda que o
personagem defenda que seria ingratidão se rebelar contra seus patrões, pois eles os permitem
viver numa terra que pertence a quem compra e não a quem produz, seria uma falácia afirmar
que este se comporta de maneira passiva e submissa diante da sua realidade. Concordar com
as ideias do genro acarretaria numa criação anacrônica do personagem e afetaria sua
verossimilhança mimética. Como filho de uma mulher que foi escravizada, Zeca enxerga a
oportunidade de morada como um favor e não como um direito garantido. Mas, ainda assim,
sua posição não é de inércia. O pai demonstra saber qual seu papel para com sua família e sua
comunidade ao pleitear a construção de uma escola para as crianças da fazenda terem acesso à
educação formal como moeda de troca em detrimento aos serviços de cura prestados ao
fazendeiro. É na sagacidade da escolha de Zeca Chapéu Grande que repousa, de certa forma,
o futuro de Bibiana que trilha seu destino no magistério e leciona nessa mesma escola.

Essa era a razão de todo o esforço que meu pai fez para que tivéssemos um professor
e, percebendo que não era o suficiente, uma escola. Meu pai não era alfabetizado,
assinava com o dedo de cortes e calos de colher frutos e espinhos da mata. Escondia
as mãos com a tinta escura quando precisava deixar suas digitais em algum
documento. De tudo que vi meu pai bem-querer na vida, talvez fosse a escrita e a
leitura dos filhos o que perseguiu com mais afinco. Quem acompanhasse sua vida de
lida na terra ou a seriedade com que guardava as crenças do jarê, acharia que eram
os bens maiores de sua existência. Mas pessoas como nós, quando viam o orgulho
que sentia dos filhos aprendendo a ler e do valor que davam ao ensino, saberiam que
esse era o bem que mais queria poder nos legar. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 66)

Na pequenez do homem simples que, mesmo sendo o médico especializado da terra e


espiritualizado da gente, esconde os dedos como quem tenta esconder a ignorância é que se
pode perceber o peso e a responsabilidade de se comunicar não apenas com a sua
ancestralidade, mas como sendo a ancestralidade de sua descendência.

O mesmo ocorre com sua esposa, Salustiana. Ainda que sua presença ao longo do
romance seja menos emblemática que a figura de Zeca, a mãe de Bibiana e Belonísia quando
não está em ação narrativa é sempre rememorada em sua força, vigor e convicções pelas
filhas. Nos capítulos anteriores é possível encontrar passagens nas quais sua representação
73

aponta para momentos de grandes viradas no enredo, que proporcionam indagações e


reivindicações por parte das protagonistas.

Quando Belonísia passa a não temer mais a agressividade de Tobias é na figura da


mãe que encontra uma referência para ser uma mulher que fez homens dobrarem a língua para
se dirigir a ela. Assim como, após a morte de Severo, Salustiana desanda a contar a história de
seu passado ciente da importância da narração oral de recordações como manutenção da
memória viva de sua família e seu povo, como postula Benjamin (1987b):

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele foi’. Significa
apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um
perigo. [...] O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio
exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em
segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
(BENJAMIN, 1987b, p. 224-225)

Logo, ao falar de liberdade tem-se a importante noção de que não existe liberdade
individual. Só se poderá ser verdadeiramente livre se todos forem livres. É uma perspectiva
coletiva: é horizontal, pois é solidária com todo o seu povo, e ancestral, visto que visa uma
reparação da memória de sua própria história e suas raízes.

E diante disso há uma das passagens de maior destaque para a personagem, que
acontece quando a mulher de Salomão, o fazendeiro, passa a frequentar a fazenda juntamente
com um pastor no intuito de celebrar um culto. Salustiana é uma das poucas personagens que
possuem um discurso direto durante toda a narrativa e em seu discurso é possível encontrar
um excerto sensível e simbólico sobre parir a terra e a sua comunidade que, por mais que
tentem arrancá-la dali, será impossível arrancar aquela terra que brotou e enraizou em seu
peito. O confronto entre as duas mulheres aponta para as diferenças coloniais de gênero que
se tensiona entre a mulher branca esposa do dono da fazenda que visa um apagamento
civilizatório e a mulher negra que sustenta a perpetuação de seu quilombo, sua memória e sua
sabedoria:

A transformação civilizatória justificava a colonização da memória e,


consequentemente, das noções de si das pessoas, da relação intersubjetiva, da sua
relação como mundo espiritual, com a terra, com o próprio tecido de sua concepção
de realidade, identidade e organização social, ecológica e cosmológica. Assim, à
medida que o cristianismo tornou-se o instrumento mais poderoso da missão de
transformação, a normatividade que conectava gênero e civilização concentrou-se no
apagamento das práticas comunitárias ecológicas, saberes de cultivo, de tecelagem,
do cosmos, e não somente na mudança e no controle de práticas reprodutivas e
sexuais (LUGONES, 2014, p. 938)
74

Ou seja, apesar de ser mencionada em menor quantidade no decorrer do texto, sua


representação é repleta de camadas de complexidade, o que não a reduz a esposa ou a mãe.
Mesmo que sua função seja ligada ao trabalho de reprodução social e do cuidado, Salustiana é
também uma mulher com desejos, sonhos, dores e ânsias. E é em suas palavras e gestos que
se reivindica as primeiras construções de casas de alvenaria para a comunidade da Fazenda
Água Negra, “nunca teve nenhum bem, e não abria mão de ter sua casa, era um sonho antigo
que acalentou com o marido” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 255). Tem-se, então, mais uma
conquista obtida, em nome da coletividade, pelos progenitores de Bibiana e Belonísia. Mesmo
que as irmãs sejam a representação mais evidente da fundação de uma nova tradição dos
oprimidos, a garantia de direitos básicos também parte de um esforço ativo de suas referências
ancestrais mais diretas.

Ao posicionar Torto Arado como uma escrevivência, que segundo Evaristo (2007),
não pode, então, ser lida como uma história de “ninar os da casa grande”, mas como algo que
os incomoda em seus sonos injustos, é necessário analisar a personagem que mobiliza e
direciona a narrativa em busca de um futuro de justiça e reparação: a avó Donana. A narração
pretérita de sua história só é possível graças a Santa Rita Pescadeira, que atravessa os tempos
e acrescenta os detalhes que trazem à tona os elementos basilares que adicionam a faca como
objeto central do enredo.

A trajetória de Donana rende praticamente um spin-off12 à parte, no qual o leitor


acessa os caminhos tortuosos que a fizeram lutar pela glória de sua descendência, mas que se
defronta com tantas derrotas que a levam à loucura. E essa jornada se deve de maneira
significativa à faca de marfim que ela rouba dos viajantes que circulavam pela Fazenda
Caxangá, onde morava antes de se mudar para Água Negra. Exceto no momento em que há a
explicação do passado de Zeca Chapéu Grande rumo a seu dom de curandeiro, a narrativa que
envolve a matriarca da família é marcada pelo objeto cortante, de forma que a história de uma
se torna, de certa forma, a história do outro. É na evidenciação da trajetória de Donana que se
delimita o ciclo de vida da faca para o arco narrativo do romance.

Logo no início, quando as crianças cortam a língua, já há uma indicação secreta sobre
o que se realizou e viria a se realizar novamente com uma despretensiosa descrição da função
de um punhal, que sangram caças e matam homens. Nesse ponto, o leitor sabe muito pouco

12
Termo utilizado para quando se desenvolve um subproduto que é derivado de outra obra.
75

sobre a origem do objeto e a sua simbologia. Mas o que ele desencadeia é a decadência de
Donana que vislumbra, na faca, a sina de sofrimento e tragédia que ela trouxe à sua vida.

Em toda nossa vida, Donana nunca tinha nos batido como naquele dia em que
contrariamos o que considerava sagrado, violando seu passado, trazendo de volta
coisas que decerto não gostaria de recordar. Nem queria que nossas mãos inocentes
segurassem o motivo de suas dores, ao mesmo tempo que não gostaria de ter que se
desfazer de suas lembranças por completo, porque a mantinham viva. Davam
sentido ao que lhe sobrara dos dias, na mesma medida em que demonstravam que
não havia sido compassiva com as dificuldades que encontrou em seu caminho
(VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 27)

Nesse trecho, vê-se que a faca guarda um significado singular e representativo para a
sua história, memória e psique. É o objeto que conserva lembranças dolorosas e dá sentido
aos seus dias. A personagem então se perde em suas próprias recordações e angústias e decide
esconder o punhal que havia dividido a sua vida e a de sua prole. Donana morre e pouco se
sabe sobre o que de fato aconteceu consigo no passado e como o instrumento seria necessário
para que suas netas subvertessem a barbárie.

Para entender toda essa relação ao redor da faca de marfim é necessário, portanto, que
Santa Rita Pescadeira narre os fatos que ocasionaram a derrota física, afetiva e psíquica de
Donana. A mulher acredita que Deus irá perdoar a pequena infração de se apegar a um objeto
que a encanta diante de uma vida inteira de servidão e subserviência impostas pela escravidão.

Surge, então, a figura de um homem por quem Donana demonstra afeição e se torna
seu companheiro. Contudo, anos depois, a mulher presencia o que seria a maior de suas
desgraças: ela encontra sua filha mais nova, Carmelita, sendo abusada sexualmente pelo
homem. Dominada pelo ódio, Donana compreende que a menina apanhava e era violada
debaixo do seu teto e decide o destino de seu companheiro:

Não havia luz, não havia candeeiro nas mãos de Donana. Não queria deixar rastros
ou lembranças de seus passos e atos. Ninguém saberia de nada, diria apenas que ele
havia partido sem deixar indicação de destino. Antes de pensar na justificativa que
daria, sangrou o homem como se sangrasse um porco. Arrastou seu corpo com os
bolsos cheios de pedras, que ela mesma enfiou lá, para dentro do rio. Não temeu que
viessem lhe perguntar pelo desaparecimento do companheiro nos dias que se
seguiriam. Voltou para casa encharcada do esforço. As poucas horas desde que
havia deixado sua morada para dar fim ao seu último erro nas terras de Caxangá
foram suficientes para que sua filha fosse embora sem indicar o paradeiro. O resto
da história foi vagar seus últimos anos vendo o rosto de Carmelita em todas as
crianças que havia amado (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 240)

Após essa descrição é possível compreender como Donana sofreu diversas violências
que se tornaram feridas nunca cicatrizadas. Ela não apenas perde a filha, que foge e de quem
76

nada se sabe o destino, como também carrega a culpa por nunca ter percebido os abusos que
esta sofria. E, por ver o rosto de Carmelita nas crianças que amou é que Donana rememora
este infortúnio ao descobrir que suas netas se feriram com a faca que mais uma vez acaba por
dividir sua história e sua família, destruindo o sonho de liberdade que sonhou para sua
descendência.

O que a posteridade reserva é uma simbologia de subversão da imposição opressora do


que tradicionalmente se esperaria para o futuro. A faca que sentenciou Belonísia ao silêncio é
a mesma que sangra o fazendeiro Salomão e assegura a dignidade das netas de Donana e de
toda a comunidade da Fazenda Água Negra. A faca representa a síntese do ditado iorubá que
diz que “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que arremessou hoje”; a subversão do
passado e um novo imaginário para o futuro. E, assim, o objeto acaba completando seu ciclo
na representação de uma nova tradição dos oprimidos, escovando a literatura a contrapelo por
meio da evocação da ancestralidade.
77

4 SEMEANDO ORIENTAÇÕES A CONTRAPELO PARA A LEITURA DE TORTO


ARADO EM SALA DE AULA

Dentro do projeto axiológico de escovar a história a contrapelo, Torto Arado também


concretiza no ato ético uma profunda crítica acerca da educação escolar. À sua própria
maneira, o romance tece uma síntese poética sobre como o ensino pode ser amorfo, alienante
e voltado para um assujeitamento ao reproduzir a lógica, a história e as estruturas dominantes.
Tem-se então o que Rancière (2004) propôs ao afirmar que a resistência da arte consiste em
produzir tanto um testemunho da inultrapassável alienação do humano como também um
testemunho da catástrofe que pode surgir da ignorância dessa alienação.

Isso pode ser observado durante a narração de Belonísia, que ao relatar sua vivência
dentro da escola aponta para um processo burocratizado e enfadonho que se apresenta quase
como uma fantasia diante da sua realidade. Por outro lado, ao mencionar que prefere trabalhar
na roça, a ambientação deste espaço se mostra como dotada de saberes e conhecimentos
ancestrais e enriquecedoras para sua experiência humana. Zeca Chapéu Grande, a autoridade
em assuntos relacionados à terra, representa de maneira mais concreta a figura de professor
das matérias da vida, do mundo e da realidade do que a professora, dona Lourdes, que “não
sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos, se em suas
frases e textos só havia histórias de soldado, professor, médico e juiz” (VIEIRA JUNIOR,
2019, p. 99).

Essa dimensão aprofunda a ideia de que a educação formal de que o Brasil oficial dos
mapas, dos livros e da ciência completamente deslocados dos outros “Brasis”, que contempla
uma diversidade e uma pluralidade de histórias também oficiais, mas por vezes ignorada em
detrimento à História que convenientemente trata “invasão” por “descobrimento”.

Diferente de Bibiana, que falava em ser professora, eu gostava mesmo era da roça,
da cozinha, de fazer azeite e de despolpar o buriti. Não me atraía a matemática,
muito menos as letras de dona Lourdes. Não me interessava por suas aulas em que
contava a história do Brasil, em que falava da mistura entre índios, negros e brancos,
de como éramos felizes, de como nosso país era abençoado. Não aprendi uma linha
do Hino Nacional, não me serviria, porque eu mesma não posso cantar. Muitas
crianças também não aprenderam, pude perceber, estavam com a cabeça na comida
ou na diversão que estavam perdendo na beira do rio, para ouvir aquelas histórias
fantasiosas e enfadonhas sobre os heróis bandeirantes, depois os militares, as
heranças dos portugueses e outros assuntos que não nos diziam muita coisa.
(VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 97)
78

Neste trecho, mesmo a cozinha, que é um espaço tradicionalmente opressivo à


condição de mulher, e a atividade laboral se mostram mais vívidos, palpáveis e sensíveis do
que as letras e a matemática. Kramer (2008) aponta para o fato de que, no ensino, é a
possibilidade de agir sobre o ambiente, de ser modificado por ele e poder modificá-lo, que
gera um sentimento de prazer, mas isso não acontece quando o sujeito é percebido apenas de
modo mecânico como sendo incapaz de resistência.

Há uma associação quase irônica, inclusive, quando a personagem despreza a letra do


hino nacional e explica que não lhe serviria por conta da mudez. Traça-se um paralelo sobre
como se forma sua perspectiva diante do utilitarismo pelo qual é pautado ainda o ensino: se a
seleção de conteúdos se estabelece porque existe um propósito utilitário atribuído a aquele
conhecimento específico, uma aluna que é fisicamente impedida de cantar também não
precisaria aprender a letra de uma música, independentemente do que ela signifique ou
represente. É um questionamento bastante pertinente, aliás, sobre a questão da inclusão de
pessoas que não correspondem ao que se entende por normatividade e como elas são
contempladas e inseridas num ambiente que ignora que a vida vai muito além do que é útil.
Visto que, mesmo sendo “útil” compreender e absorver os símbolos nacionais como parte da
identidade de um povo, há algo de mais urgente e universal na identidade desse povo que é o
anseio pela comida no prato, como exemplificado na narrativa.

Tem-se ainda uma associação a essa sina de violências perpetuadas por bandeirantes,
militares, portugueses como a bênção cristã que recai sobre esse país. A miscigenação como o
grande saldo positivo diante da barbárie instaurada e em vigor até hoje. É uma conotação
extremamente simbólica para falar da ignorância sobre a nossa própria história, tradição,
cultura e povo. As heranças do colonialismo são mascaradas como grandes vitórias que
legitimam o opressor como detentor do monopólio da violência e por isso queimar o
documento de cultura que é a estátua do Borba Gato13, que caçou, escravizou, assassinou e
estuprou indígenas, é considerado como manifestação de radicalismo e extremismo, mas a
falta de garantia de direitos básicos a populações marginalizadas não gera a mesma comoção.

Escovar a história a contrapelo é recusar toda identificação com os heróis oficiais do


V centenário, os conquistadores espanhóis, os poderosos europeus que levaram a

13
Referimo-nos aqui ao episódio ocorrido no dia 24 de julho de 2021 durante uma manifestação contra o
presidente Jair Bolsonaro, no qual um grupo de pessoas do movimento Revolução Periférica ateou fogo na
estátua do Borba Gato localizada em São Paulo (SP). A ação ocasionou na prisão preventiva de três ativistas.
Disponível em: https://ponte.org/fogo-no-borba-gato-e-uma-resposta-da-sociedade-a-uma-indignacao-coletiva-
diz-erica-malunguinho/. Acesso em: 15 jan. 2022.
79

religião, a cultura e a civilização aos índios “selvagens”. Em consequência, é preciso


considerar cada monumento da cultura colonial – a catedral do México, o palácio de
Cortez em Cuernavaca – como um documento da barbárie, um produto da guerra, da
exterminação, de uma opressão impiedosa. Ao examinar a história do ponto de vista
dos vencidos, das diversas culturas indígenas das Américas eliminadas pelos
vencedores, é preciso considerar os acontecimentos culturais do passado tendo em
conta os perigos que ameaçam os descendentes dos escravos índios e negros da
época colonial, particularmente o risco representado pelos dirigentes imperialistas
atuais que substituíram o império espanhol no cortejo triunfal. Nenhuma pintura
alegórica celebra os desfiles vitoriosos do Fundo Monetário Internacional na
América Latina, mas nem por isso deixa de existir uma filiação secreta entre os
antepassados reduzidos à escravidão trabalhando nas minas para enviar cada vez
mais ouro à coroa espanhola e os pobres do continente de hoje, esmagados pelo peso
de uma dívida externa impossível de ser paga.” (LÖWY, 2011, p. 26)

Uma subversão que se realiza em Torto Arado é da sua concepção em primeira pessoa,
na qual o mundo sob a ótica do oprimido, que é sujeito histórico e não mero objeto de estudo,
é o que gera a capacidade de despertar no leitor uma sensível percepção de identificação e
empatia. A fluidez da formalidade discursiva desperta uma comoção própria e exclusiva do
texto literário, que se posiciona, subjetiva, mas assertivamente, contra as opressões
vivenciadas pela comunidade representada.

O que posiciona a utopia como horizonte revolucionário no que concerne à educação


no romance é uma perspectiva humanista e emancipatória intrinsecamente freireana
representada em Bibiana. A irmã mais nova identifica a problemática acerca do que se
concebe “educação bancária” e a mais velha, que opta pela docência, é quem traz uma nova
abordagem como em Freire (1996), identificada com as condições da realidade e levando o
indivíduo a refletir sobre sua ontológica vocação de ser sujeito, consciente de que se a
compreensão é predominantemente crítica, a ação também será.

Nem de longe lembra a professora que ensinava sobre a história do povo negro, que
ensinava matemática, ciências e fazia as crianças se orgulharem de serem
quilombolas. Que contava e recontava a história de Água Negra e de antes, muito
antes, dos garimpos, das lavouras de cana, dos castigos, dos sequestros de suas
aldeias natais, da travessia pelo oceano de um continente para outro. As crianças
ficavam atentas, não sabiam que havia uma história tão antiga atrás daquelas vidas
esquecidas. Uma história triste, mas bonita. E passavam a entender por que ainda
sofriam com preconceito no posto de saúde, no mercado ou nos cartórios da cidade.
Onde lhes apontavam, dizendo: “olha o povo do mato” ou “negrinhos da roça”.
Compreendiam por que tudo aquilo não havia terminado. Você incutiu naquelas
vidas um respeito grande por suas próprias histórias. Mas agora nem você
conseguia mais se iluminar com a esperança de que a mudança fosse possível,
muito menos acreditava que algo do que aprenderam pudesse fazer diferença para
serenar a revolta que lhe incendiava. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 243, grifo nosso)

Nesse trecho narrado por Santa Rita Pescadeira percebe-se a distinção estabelecida
entre o educar de Bibiana e o de dona Lourdes, a professora de sua infância. A matemática e a
80

ciência se fazem presentes, mas também, na mesma proporção, se faz a história do povo
negro. E essa história é contada partindo do microcosmo da Fazenda Água Negra para o
macro que contempla a experiência coletiva relacionada à diáspora africana.

A partir dessa interpretação acerca da memória coletiva do processo de formação


histórica surge nos alunos essa autocompreensão de serem sujeitos do seu tempo,
posicionados e reconhecidos na sociedade e no contexto em que se inserem. No exercício de
enxergar o passado como retrovisor da própria vida é que torna possível aos educandos o
discernimento de que o curso do rio da história é perene e permanece. Que o fim da
escravidão não simbolizou uma ruptura na estrutura social, apenas mudaram os contratos e as
nomenclaturas aos quais aqueles trabalhadores foram submetidos, sendo a servidão e a
subserviência, ainda, uma realidade e um imperativo.

No entanto, isso é apresentado em termos estéticos relacionados a incutir um respeito


pela própria história, pela história dos seus antepassados. E a maior frustração de Bibiana era
de que, mesmo fazendo parte desse processo, ela passara a não nutrir mais esperanças de que
a educação e toda a consciência desenvolvida a partir dela seriam capazes de provocar uma
ação no mundo, que fosse verdadeiramente consciente, emancipadora e capaz de realizar
mudanças significativas em suas vidas. Ou seja, há uma preocupação muito séria e
comprometida que sua práxis seja conectada em termos teóricos e práticos e, assim, atribuída
das ferramentas capazes de representar todo o potencial de ruptura e subversão aos quais
devem se prestar os professores no exercício da docência. Por uma educação que deve ser
corajosa, como orienta Freire (1996), que propusesse ao povo uma reflexão sobre si mesmo e
“lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua
instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse poder, na explicação de suas
potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção” (p. 67).

Diante disso é possível afirmar que a personagem apresenta uma possibilidade de


refração para um ensino que vise uma leitura de mundo em direção contrária da sustentada
como referencial. O texto não apenas traz essa noção benjaminiana no cerne do seu projeto
artístico como também aponta uma direção frutífera para a qual papel deve se prestar a
docência, e, aqui especificamente, o letramento literário. É necessário, portanto, que seja
profundamente questionador sobre os discursos que cala ao levar adiante uma história de
vangloriação do opressor e respeite a troca de experiência e a prática da escuta como
81

elaborações capazes de enxergar e produzirem novas chaves de leitura seja da literatura em si


ou do contexto social no qual educando e educador se inserem.

Diante das análises suscitadas ao longo deste estudo, cabe, por fim, desenvolver uma
reflexão crítica sobre a utilização de Torto Arado dentro de um projeto de letramento literário
em sala de aula. Para melhor conduzir um percurso didático-metodológico que tenha como
objetivo essa relação pautada na práxis libertadora descrita em Torto Arado e que vise esse
mesmo propósito ao trabalhar o romance em sala de aula, deve-se levar em conta alguns
aspectos que podem ser suscitados com a obra e como ela pode servir para uma leitura
literária a contrapelo.

Devido à simplicidade de sua linguagem e a complexidade de sua poética, o romance


pode ser utilizado em diversas etapas da formação do leitor, mas aqui será levada em
consideração o trabalho necessário para o despertar da fruição e da dimensão social da leitura
como um instrumento de aprendizagem para educandos do Ensino Médio, como norteiam as
OCEM.

A defesa de um projeto curricular que não apenas inclua como se proponha


genuinamente a investir na literatura dentro de escolas básicas brasileiras parte da
compreensão de que ela é responsável por um processo de humanização, como postula
Cândido (1995). Essa quota de humanidade é desenvolvida, segundo o sociólogo, ao nos
tornar compreensivos e receptivos para a natureza, a sociedade e ao nosso semelhante por
meio do exercício da reflexão, da aquisição de saberes, do afinamento das emoções, da
capacidade de se inserir nos problemas da vida, do senso de beleza, da percepção sobre a
complexidade do mundo e de todos os seres.

Cabe ressaltar, então, que o próprio ato da escolha do texto literário por parte do
professor evidencia um processo de dimensões ideológicas, visto que é um processo que
termina por despertar um discernimento crítico e estético a partir de um objeto que encontra
outros termos e meios de mimetizar a realidade que não corresponde à sua concretização tal
qual ela se apresenta. E nessa nova maneira de conceber e absorver essa realidade
representada literariamente é que reside a possibilidade de se estender uma perspectiva
dialógica elaborada na noção de alteridade. Optar, portanto, por obras que divergem das
expectativas centradas em arquétipos e estereótipos que promovam a subordinação e
subalternização de povos historicamente marginalizados é um dever ativo do professor que
82

objetiva uma práxis pedagógica verdadeiramente livre e emancipatória. “Quando você é


membro de um grupo sem direitos, explorado e/ou oprimido, no íntimo você sabe que
qualquer pensador ou escritor que apoie a cultura do dominador, ainda que o faça a partir da
inocência da ignorância, apoia um mundo que prejudica sua vida” (HOOKS, 2020, p. 170).

No âmbito estético de seu discurso, o romance apresenta uma linguagem simples sem
ser rasa, que se apropria de figuras de linguagem voltadas principalmente à natureza e faz uso
de elementos da oralidade para a narração de memórias pretéritas das protagonistas do enredo.
As questões supracitadas só concretizam uma nova fundação da tradição dos oprimidos por
serem narradas em primeira pessoa e a expressão de suas revoltas serem exprimidas nas
confissões humildes que a imposição do silêncio não conseguiu calar. A voz do povo é a voz
do campo e a voz que conduz uma poética que reverbera o seu conteúdo. Por meio dessa
construção se torna possível incitar um processo de fruição da literatura sem abrir mão do seu
potencial como ferramenta social de mudança, já que a linguagem estética fornece “modos
alternativos, diversificados e por vezes transgressores de nomear o mundo. Na literatura não
importa apenas aquilo que impacta nossas valorações, ideias ou experiência de vida, mas
também como ela faz” (BAJOUR, 2012, p. 25-26).

Assim sendo, Torto Arado traz frutos, tanto éticos quanto estéticos, oportunos para um
desenvolvimento do processo de humanização e que justificam a sua leitura em sala de aula.
Dessa forma, corrobora-se a defesa de que o texto literário deve ser o centro das aulas de
literatura na escola, pautada por todos os documentos que organizam a educação brasileira. E
que, acima de tudo, é por um projeto que vise uma leitura integral do texto, valorizando a
construção da identidade por meio da experiência individual e da alteridade por meio da
escuta coletiva, pelo qual o processo de letramento deve se orientar.

Para tanto, atividades de introdução e incentivo à leitura podem ser estimuladas pelo
professor a fim de se apropriar da obra como um todo, podendo ser utilizados os aspectos
visuais, pré-textuais e extratextuais do livro para captar a atenção e despertar o interesse dos
alunos para com o enredo propriamente dito. Há, então, espaço para debater sobre a semiótica
da capa, uma breve apresentação do autor, e mesmo o contexto social que situa a história do
Brasil e, sobretudo, dos povos negros e indígenas que foram explorados, escravizados e
violentados de diversas formas sem verem nenhum registro de responsabilização de seus
opressores.
83

Este é de extrema importância para a compreensão da profundidade em que Torto


Arado se insere e se debruça, podendo ser utilizadas referências intertextuais assim como o
trabalho em conjunto com outros professores estimulando uma proposta metodológica
interdisciplinar. Ignorar o contexto de violência decorrente do colonialismo, que é tido como
central na obra dá seguimento a um processo cunhado por Carneiro (2005) como
“epistemicídio” que se define por uma epistemologia em que:

O seu domínio é a razão, a produção dos saberes e dos sujeitos de conhecimento e os


efeitos de poder a eles associados. Nessa dinâmica, o aparelho educacional tem se
constituído, de forma quase absoluta, para os racialmente inferiorizados, como fonte
de múltiplos aniquilamentos ou subordinação da razão. Dinâmica e produção que
tem se feito pelo rebaixamento da auto-estima que compromete a capacidade
cognitiva e a confiança intelectual, pela negação aos negros da condição de sujeitos
de conhecimento, nos instrumentos pedagógicos ou nas relações sociais no cotidiano
escolar, pela deslegitimação dos saberes dos negros sobre si mesmos e sobre o
mundo, pela desvalorização, ou negação ou ocultamento das contribuições do
Continente Africano ao patrimônio cultural da humanidade, pela indução ou
promoção do embranquecimento cultural, etc. (CARNEIRO, 2005, p. 324)

Em vista disso, é importante que o professor encontre métodos de divisão e


organização do tempo para que a leitura se efetive e permita que se tenha um prosseguimento
do projeto literário em seu todo concreto. A obra possui 262 páginas e é dividida em
cinquenta e três capítulos, ou seja, cada capítulo tem, em média, cinco páginas. Se, por dia,
forem negociados a leitura extraclasse de dois capítulos, isto é, cerca de dez páginas, o livro
será finalizado em vinte e seis dias.

No entanto, recomenda-se que parte da leitura seja feita e incentivada em sala de aula
tendo em vista os recursos textuais que podem ser facilitados a partir da bagagem e do
planejamento docente para inserção na poética da romance. É importante que, por semana,
seja dedicado ao menos um dia para a discussão do que foi lido até determinado prazo e para
que, se necessário, sejam realizadas interpretações conjuntas ao longo do processo.

Os três primeiros capítulos, por exemplo, retratam toda a ação envolvida no acidente
com a faca de marfim entre Bibiana e Belonísia. As onze páginas contempladas por esse
intervalo podem suscitar o interesse e a curiosidade acerca das consequências deste fato na
vida e na deglutição e fala das irmãs.

Conforme se avança na leitura é importante que não se perca de vista três pilares que
devem sustentar a educação literária e sobre o qual o rigor interpretativo deve ser apurado: o
aluno-leitor como protagonista do processo formativo, a valorização da experiência para a
84

construção de saberes conjunta e o exercício da escuta compartilhada como construtor de


significados.

Levar adiante o processo de educação centralizado no educando é o que dá finalidade


ao ensino de literatura. Pensar nas modalidades práticas desse ensino prevê, de acordo com
Rouxel (2013), a formação de leitores livres, responsáveis e críticos com uma personalidade
sensível e inteligente, aberta ao outro e ao mundo, capazes de construir sentidos de modo
autônomo e de argumentar sua própria recepção.

Assim, o método de constituição de identidade dos sujeitos passa diretamente pela


elaboração de suas experiências e da valorização desse saber como parte fundamental para a
subjetividade específica necessária para a leitura e para a interpretação de outrem:

Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração
do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, [...] trata-se de um saber que revela ao
homem concreto e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou o sem-
sentido de sua própria existência, de sua própria finitude. Por isso, o saber da experiência é
um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o que
acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo
acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a
experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida.
(LARROSA, 2002, p. 27)

A dimensão da experiência conversa diretamente com uma concepção dialógica da


escuta, que por sua vez, trata de uma socialização de significados por meio do
compartilhamento da experiência de leitura. A partir da apreciação e do enaltecimento da
escuta enquanto ato pedagógico há uma conclusão que Bajour (2012) define como a
“democracia da palavra compartilhada”, em que há a aceitação do outro em sua diferença e
uma para enriquecer a vida, a leitura e a própria visão de mundo nas diferenças para construir
significados com outros, nunca individualmente.

Todos esses fatores podem beneficiar o estudo com Torto Arado, visto que a obra
fomenta uma perspectiva visceral a respeito da elaboração do povo brasileiro e de opressões
perpetuadas ao longo da história. A atualidade com que se formalizam as discussões presentes
no romance pode ser fecunda para uma educação literária que seja, por essência, libertadora e
leve a refletir e interpretar a realidade, e também crítica em direção ao ímpeto de
transformação.

Pela profundidade dos assuntos encarnados, os trabalhos de metaleitura fazem sentido,


levando em consideração a leitura integral do texto. Seria incongruente com a máxima
85

defendida até aqui, definir o assunto que vale uma abordagem mais aprofundada, pois cada
turma é formada por sujeitos únicos que darão contribuições diferentes conforme suas
experiências e cada discussão pode incentivar a elaboração de atividades diversas. Mas, para
além da elaboração de textos, como é comum na expansão da leitura, cabe também
exercícios que conectem de modo mais intrínseco a comunidade escolar à comunidade local
com o intuito de trocar, conciliar e estender os saberes. Muito do que se encontra em Torto
Arado pode ser amplificado nas vozes de povos quilombolas e indígenas, de camponeses e
trabalhadores rurais sem terra, em coletivos feministas e no movimento negro. Dessa forma,
inserir essas vozes dentro do contexto escolar pode constituir uma vivência enriquecedora
sobre narrativas em primeira pessoa dentro da realidade histórico-social e auxiliar uma
aquisição de conhecimento que se faça realizável pela experiência de outros sujeitos.

Ressalta-se ainda que realizar projetos que incentivem uma avaliação criativa é uma
estratégia que aproxima e incentiva os educandos da prática de leitura em sala de aula.
Considerando a dificuldade para mensurar os conhecimentos por meio de provas tradicionais,
um procedimento a ser analisado é o The Unessay14 (livremente traduzido para “Desenredo”).
A prática ficou conhecida anos atrás ao viralizar no Twitter a partir da publicação de um
professor estadunidense de História que explicava como aplicava essa proposta de atividade
utilizada com seus alunos. A ideia era que fossem utilizados os aprendizados obtidos durante
as aulas para montar um projeto que pudesse ser viabilizado com liberdade artística,
criatividade para execução e autonomia para a plataforma ou método de concretização das
criações.

Semelhante aos projetos de feira de ciências, comumente realizados por professores de


disciplinas da área de Ciências Exatas no Brasil, o “Desenredo” pode abarcar desde letras de
música, criação de poemas, história em quadrinhos, até criação de jogos de tabuleiro,
bordados, esculturas, pinturas, colagens, entre outros. Levando em consideração as temáticas
abordadas neste trabalho, há um conjunto de possibilidades interpretativas que podem ser
suscitadas com a leitura de Torto Arado, como as questões acerca da identidade racial, das
expectativas e violências de gênero, da condição de trabalho análogo à escravidão, ou mesmo

14
Em tradução literal, seria um “não-ensaio”. Mas, a opção por “desenredo” além de se configurar como
antônimo da palavra “ensaio”, também traz uma alusão mais elementar à literatura. Na página
https://catherinedenial.org/blog/uncategorized/the-unessay/ é possível encontrar mais informações sobre a
origem do projeto, as sugestões de métodos avaliativos e também alguns exemplos de “Desenredos” feitos por
alunos da professora Catherine Denial que podem servir como inspiração.
86

em tópicos mais subjetivos como descendência e ancestralidade, identidade e pertencimento e


memória e história.

Assim, um projeto de “Desenredo” poderia abarcar trabalhos feitos a partir de linhas


do tempo ou construção de árvores genealógicas com colagens a fim de proporcionar aos
educandos um debate sobre a sua ancestralidade e a conexão com o passado da história oficial
com o intuito de se entender como parte fundante do todo. Ou mesmo uma conciliação com
saberes acerca de agroecologia e botânica podem ser levantados com a apresentação de
diferentes plantas e suas características, a história de seu cultivo em território nacional e como
ela tem sido modificada e comercializada com o avanço do agronegócio. Ou também suscitar
como opera a construção de subjetividade acerca das questões raciais e/ou de gênero com o
fim de perpetuar os estereótipos e as opressões nas produções midiáticas por meio de vídeos e
fotografias. Convém ressaltar que o mais importante nessa atividade é levar em consideração
a individualidade interpretativa promovida com a leitura da obra em sala de aula e que os
trabalhos produzidos partam de uma iniciativa dos próprios estudantes, que devem sugerir a
proposta e discorrer ao professor como seu projeto comunica os anseios e questionamentos
que lhe ocorreram a partir do romance. O que se espera é que o fechamento em torno da
recepção da obra não seja mensurado nas métricas tradicionais de uma interpretação objetiva
de múltipla escolha, mas numa tentativa de aliar a valorização da aprendizagem por meio da
escuta e do compartilhamento de ideias, projetos e ações entre si e para com a comunidade
escolar.

Ou seja, a ideia é que os Desenredos sirvam como uma expansão, na qual seja possível
vislumbrar na leitura literária uma ampliação e uma intensificação de seu potencial para o
letramento baseado na fruição e na formação crítica para ação no mundo.

A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de


algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como
sinal de atenção que sugere alerta, faz parte integrante do fenômeno vital. Não
haveria criatividade sem curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente
impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que
fazemos. (FREIRE, 2019, p. 33)

Concebe-se com esse percurso teórico-metodológico uma perspectiva que pensa a


educação com Benjamin, que defende que um conhecimento desconectado da práxis, que não
ensina sobre a situação de classe do proletariado, não é perigoso para os opressores (Kramer,
2008). E, sendo o romance em questão um verdadeiro tratado poético e político sobre
87

rompimento das correntes que aprisionam todo um povo, uma comunidade e uma classe, seria
inconcebível não pensar um ensino de literatura que não considerasse a ferramenta de
resistência e subversão, que pode ser fomentada a partir da obra e do propósito educativo em
si. A educação requer o estímulo à curiosidade e à reflexão e uma convocação da imaginação
e das emoções; e assim também o faz a literatura.
88

COLHENDO OS FRUTOS: (ALGUMAS) CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura, segundo Seligmann-Silva (2005), está na vanguarda da linguagem. No


jogo com o simbólico, ela anuncia e preconiza, em seus próprios termos, a frase de um grande
revolucionário latino-americano que falou sobre a necessidade de se endurecer diante das
mazelas, mas sem perder a ternura jamais. Se o mundo se mostra um lugar cruel, tampouco
seria melhor sem as palavras, as metáforas, a poesia.

A capa cor de rosa estampada por duas mulheres negras traz em letras garrafais o
título que comoveu um país construído e forjado nas ruínas do colonialismo. O ferro retorcido
do Torto Arado penetrou as entranhas, sempre abertas e ainda em decomposição, da memória,
da história e de um passado perene de servidão, exploração e de violências simbólicas e
concretas. No entanto, a boniteza e simplicidade de sua linguagem não deixaram o gosto
amargo do silêncio imposto e infligido, mas refletiu a capacidade de inspirar uma nova
construção imagética e imaginária sobre o enfrentamento à barbárie e o desejo de mudanças
pautadas numa utopia engajada, emancipatória e subversiva. Dentro do projeto de uma arte de
resistência cabe então:

formar imagens das coisas que não compreendem, das coisas geradas por sua época,
mas não são interpretáveis, e seguir procurando nas ruínas do passado as brechas da
revolução, as frechas de uma força que permitirá ao oprimido romper com o
contínuo e abrir novos espaços de leitura da história, leituras que farão jus aos
vencidos e esquecidos. (MARINHO, 2015, p. 172).

Neste estudo, buscamos propor uma leitura a contrapelo do romance de Itamar Vieira
Junior para compreender em profundidade como a sua forma e conteúdo concretizam seus
atos éticos e estéticos em busca de uma nova tradição dos oprimidos. Centrando a análise em
Benjamin, tentamos responder como a obra reflete e refrata o contexto social em que se
insere. A partir de reportagens e dados estatísticos objetivamos aproximar o enredo
ambientado no cenário rural brasileiro com a realidade de violência no campo imposta por
meio de assassinatos, despejos, ameaças e, também, com a manutenção de trabalho em
condições análogas à escravidão. Ao analisarmos as contribuições acerca da constituição
espacial de Torto Arado dentro do seu cronotopo é possível confirmar que, diegeticamente, o
espaço da terra é, tal qual a realidade, um espaço em disputa.

Além disso, a terra se configura na centralidade da obra. Ela é tão intrinsecamente


conectada aos personagens da narrativa que há um processo de simbiose entre ambos, não
89

sendo possível distinguir a linha tênue que os separa ou categorizar hierarquicamente a


relação entre eles para o desenvolvimento da trama. Esse caráter é concretizado no que o
autor define como “uma carta de amor à terra”, pois o romance estabelece uma conexão tão
intensa, tão profunda e tão íntima com esse espaço onde se fixam a vida, a memória e a
história do povo da Fazenda de Água Negra que a questão da permanência ali se torna uma
manifestação de resistência. Por mais árido e improdutivo que seja aquele solo, as raízes da
comunidade quilombola representada foram fincadas naquele pedaço de terra, mesmo que
sendo considerada como uma erva daninha. É possível até arrancar um ou dois deles dali, mas
é impossível conter o avanço da primavera.

Complementando o referencial do cronotopo do romance, tem-se na dimensão da


temporal, tanto no discurso quanto na mensagem, um passado que não acabou. Analisamos
ainda como essa passagem do tempo é figurada na personagem de Santa Rita Pescadeira que
desempenha um vínculo entre uma manifestação da natureza e espiritual que evoca a
ancestralidade ao narrar o passado e anunciar o futuro.

Como narradora de Torto Arado, a Encantada, juntamente de Bibiana e Belonísia,


efetiva um exercício cunhado por Evaristo (2007) como escrevivência, na qual se tem uma
fusão entre ficção e memória, individual e coletiva. O que concluímos em relação a isso é que
a narração em primeira pessoa contribui para esse caráter testemunhal de valorização da
experiência e da formação da identidade das personagens, vistos aqui como sujeitos
históricos, e, por isso, capaz de despertar uma recepção que gera identificação e empatia por
meio do estabelecimento de novos imaginários possíveis que venham a emancipar os
tradicionalmente excluídos e oprimidos, na vida e na diegese. Instaura, então, tanto a
destruição da falsa ordem das ordens como também a idealização de um novo espaço
mnemônico (Seligmann-Silva, 2008).

Da parte de Bibiana, observamos como sua representação suscita debates sobre as


estruturas patriarcais e colonialistas enfrentadas por muitas mulheres, sobretudo as que fazem
parte de grupos socialmente marginalizados, como a gravidez precoce, a migração para a
cidade numa tentativa de melhorar as condições de toda sua família, o assassinato de
familiares envolvidos com a militância política. Diante de todas essas adversidades a
personagem assume sua revolta e se fortalece para traçar um caminho que não seja o da apatia
e do fatalismo. Nesse desequilíbrio de forças entre o opressor e o oprimido, se constata que
90

ela realiza uma trajetória forjada na luta, inspirada a promover uma transformação social e
capaz não apenas de sobreviver, mas de resistir.

Já para Belonísia, o elemento que sobressai em nossa investigação é a questão


envolvendo o seu silêncio. Ela é a personagem que tem no emudecimento uma imposição
física pela ausência da língua cortada, que se torna um empecilho para comunicar suas dores e
fragilidades. Mas convém ressaltar que o imperativo silencioso faz parte de um projeto de
determinação ativa contra o seu povo como um todo; mesmo os que podem falar lhe são
arrancados o direito à palavra e o que elas comunicam na reivindicação de direitos, justiça e
igualdade. Portanto, ter uma narração por parte da irmã mais nova reflete um mergulho na sua
psique de modo a valorizar as suas palavras e a importância delas para a constituição de seu
ser e para sua perspectiva de alteridade para com os outros.

A partir dos três focos narrativos o enredo subverte a representação tradicionalmente


evocada na literatura em relação aos papéis de gênero, raça e classe. As irmãs detêm o
protagonismo de suas narrações e de suas ações e destinos como forma de enfrentar as forças
que operam a barbárie. Mesmo que Bibiana e Belonísia sejam as personagens que de maneira
mais explícita carregam a responsabilidade por estabelecer uma nova tradição dos oprimidos,
há um esforço ativo de suas referências ancestrais mais diretas e de sua comunidade para a
conquista da libertação.

Dessa forma, o conceito da ancestralidade em si foi determinante para este estudo a


fim de compreender como ela opera visando a desmistificação da barbárie no romance nas
figuras de Zeca Chapéu Grande, Salustiana e Donana. Pois, é na ancestralidade que se ata o
nó inextricável entre o passado, o presente e o futuro, formando um quebra-cabeças que
conecta os personagens aos seus antepassados e à construção da memória coletiva, assim
como aprecia a experiência pessoal e singular para os aspectos que determinam a
individualidade de cada um.

Assim sendo, todos os fatores investigados apresentam os duplos antagônicos que


Itamar Vieira Junior tensiona em seu projeto axiológico. Torto Arado reflete que as heranças
do colonialismo, representadas pela morte de Severo, por exemplo, não são uma fatalidade ou
um determinismo histórico, mas uma imoralidade. O dever imaginativo suscitado pela obra
deve seguir em direção a um sentimento de profunda indignação e revolta, mas desperta para
uma ação que alimenta uma esperança para com o futuro. E por isso seu desfecho mórbido
91

acaba por despertar não a angústia que costuma imperar na presença da morte, mas no
sentimento de uma insurgência profundamente revolucionária que orienta os sonhos e as
utopias.

Entre a opressão e a resistência, a vida e a morte, a luta e o silenciamento, o funeral


que corteja os corpos oprimidos em Torto Arado derruba as grades, enfrenta os poderosos,
resiste às contraposições de forças que impedem o direito de viver em paz. O que o autor
realiza por meio do seu discurso é tomar “a linguagem do opressor e voltamo-la contra si
mesma. Fazemos das nossas palavras uma fala contra-hegemônica, libertando-nos por meio
da língua” (HOOKS, 2017, p. 233). Se na História oficial são reservadas narrativas que
reiteram a perspectiva dos vencedores, no romance há um propósito pautado na alteridade,
que revela um imaginário partindo dos, sobre e para os oprimidos.

Isto posto, é possível admitir que em seu projeto ético, Torto Arado levanta discussões
atuais, pertinentes e de caráter profundamente questionador acerca das temáticas que aborda.
Na construção da arquitetônica do romance e em seus operadores de leitura encontram-se
escovados a contrapelo as disputas narrativas que representam uma resistência à barbárie. Seja
no que concerne à terra, à ancestralidade ou às discussões sobre gênero, raça e classe, a obra
traz contribuições capazes de gerar indagações construtivas e servir a um propósito político de
conscientização do processo de formação dos sujeitos, das suas condições e histórias, e de
emancipação ao projetar novos futuros possíveis por meio de um imaginário utópico e
subversivo.

Diante disso, fizemos questionamentos acerca da potencialidade de trabalhar essa obra


com alunos da rede básica de ensino. Para tanto, traçamos então um panorama das
expectativas de aprendizado na área de literatura determinadas pelos documentos que
organizam a educação brasileira a fim de compreendê-los, problematizá-los e encontrar
métodos de promover uma leitura literária que mantenha um compromisso com a centralidade
dos textos buscando respeitar a experiência dos sujeitos-leitores para a construção conjunta de
saberes por meio de uma escuta ativa, estimulando a coragem e a criatividade para agir no
mundo. Pois, “O professor que pensa certo deixa transparecer aos educandos que uma das
bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, é a
capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo” (FREIRE, 2019, p. 30).
92

Torto Arado traz contribuições diversas e enriquecedoras para a formação humana que
passam, sobretudo, pela maneira como se compromete com a luta e a resistência dos
oprimidos. As discussões formalizadas no romance demonstram a abertura de um terreno
fecundo para uma educação literária essencialmente crítica e libertadora. Portanto, a nossa
defesa é de que a leitura da obra seja feita de maneira integral de acordo com um
planejamento estruturado e organizado para cumprir esse requisito indispensável na apreensão
de sua linguagem e seus significados em toda sua complexidade. Mas que não sejam
descartados os momentos de escutar e compartilhar experiências como exercícios para
desenvolver a fruição estética e a dimensão social da leitura.

Dessa forma, o que se tem do pensamento benjaminiano e que se sobressai em Torto


Arado é um ímpeto em direção a fazer justiça à memória através da erradicação de um recorte
histórico que sirva exclusivamente para ressaltar as conquistas daqueles que incessantemente
continuam a vencer. Esse estabelecimento de um novo espaço mnemônico é o responsável
pela fundação de uma nova barbárie, fundamentada na tradição dos oprimidos. Se é este o
papel do historiador materialista, como define Benjamin (1987b), também é o papel do
educador, que assumindo uma atuação democrática, dialógica e estreitamente comprometida
com a promoção de mudanças estruturais na sociedade, leva adiante um projeto de apreensão
da realidade alimentando a esperança de intervenção no mundo, de respeito à autonomia e aos
seres históricos-sociais que são os educandos e da formação educativa por meio de uma
concepção humanista e humanizadora da experiência ética e estética que só a literatura é
capaz de promover.
93

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