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Natal/RN
2022
NATÁLIA SOUZA NORO
Natal/RN
2022
NATÁLIA SOUZA NORO
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves
Orientadora
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
________________________________________
Profa. Dra. Danielle Grace Rego de Almeida
Examinadora Interna
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
________________________________________
Ter a oportunidade de realizar e concluir essa dissertação de mestrado foi uma honra,
mas, principalmente, uma conquista que me conforta e alegra diante da imprevisibilidade dos
caminhos da vida. Quando achei que tudo estava perdido e quase me encerrei em mim
mesma, lembrei que carregava a literatura no calor do meu peito. Que sempre foi a literatura
quem me deu fôlego, quem alimentou minha fome. Foi reencontrando um caminho na
literatura e pela literatura que eu reencontrei as palavras que eu sou e que me orgulho em ser.
Então, antes de mais nada, eu celebro e agradeço a criança que se debruçou e se deslumbrou
com os livros. É honrando a criança que lia escondida de madrugada e cultuava o cheiro de
cada página como se fosse sagrada que eu chego até aqui, sabendo que, de uma forma ou de
outra, as raízes que fincam o meu pé nas palavras não podem ser arrancadas de mim.
Agradeço aos que forjam minha família no amor, na sabedoria e nas boas memórias.
Meu avô Alberto por ser a grande inspiração que orienta as minhas indignações e pelas
conversas infindáveis que conectam a nossa história. Vó Neuza por ser o colo sempre
afetuoso e irreverentemente engraçado. Vó Elsa pelas palavras de carinho e saudade. E vó
Rosa por ser o laço que generosamente nos acolhe e nos une.
Aos meus pais por me dedicarem um amor tão vital, tão sensível e tão sincero. À
minha mãe, por ser o ninho repleto de carinho e cuidado que me conforta de todas as
angústias e que ilumina os meus dias. E ao meu pai por ser quem melhor orienta os meus
caminhos e me oferta sua admiração e dedicação como uma dádiva divina.
Ao meu irmão, Giovanni, com quem eu divido a fonte da vida, das confidências e o
privilégio da ternura fraternal; que me dedica uma devoção imensurável e a quem eu sempre
protegerei e defenderei. Aos tios, primos e tantos outros familiares, obrigada por perguntarem
sempre com tanta empolgação sobre o mestrado e se alegrarem mesmo quando não
compreenderam muito bem a explicação.
A Norton, por aparecer na minha vida e dar início a essa aventura mágica que é ter o
amor da sua vida justo na sua vida. Obrigada por transformar todas as pedras em árvores, por
ser o lar onde eu repouso minhas desordens e inquietações e por nunca me deixar esquecer os
motivos pelos quais eu suspiro apaixonada. Agradeço também aos meus sogros e cunhada que
me dão a certeza de que eu não poderia ser mais feliz do que já sou ao me estenderem sua
família e seu afeto.
Aos meus amigos, que pacientemente permaneceram ao meu lado nessa jornada. Em
especial, agradeço à Érika, por nunca me deixar só e se interessar tão apaixonadamente por
este trabalho, e à Bianca, por encontrar um jeito sempre único e especial de me ouvir com
atenção e me presentear com suas palavras. Mas também à Isabel, Liz, Alice, Brena, Laís,
Beatriz, Laurinda e Ariane que me motivam e me acompanham com tanto carinho ao longo
desses anos, assim como os colegas de mestrado com quem troquei incentivos corajosos e
afetuosos durante esse percurso.
À Marta, minha orientadora, que desde o início do processo seletivo colaborou para
alimentar em meu coração o sonho da docência e me fazer crescer como pesquisadora com
seus ensinamentos e contribuições. E também a todos os professores que inspiraram esse
desejo que carrego de levar adiante uma educação compromissada com uma práxis humanista
e emancipadora a partir dessa coisa estarrecedora que é a literatura.
Ao Itamar Vieira Junior, que me dedicou seu disputado tempo para responder algumas
dúvidas com a mesma humildade e esmero que tem dedicado a todos que querem ouvi-lo.
Um livro com tiragem de cinco mil costuma ser considerado um sucesso de vendas no Brasil.
Por sua vez, Torto Arado já alcançou a marca de cem mil cópias vendidas, além de ter
conquistado as principais premiações nacionais de romance. Um dos aspectos que se sobressai
na justificativa desse êxito é o fato da literatura de Itamar Vieira Junior ser uma literatura das
alteridades, dialogando diretamente com os postulados de Benjamin (1987b) ao propor
“escovar a história a contrapelo”, que convida não apenas a pensar em uma inversão da
ordem, mas a uma nova fundação da tradição dos oprimidos. Com este estudo, objetiva-se
então, analisar o romance a partir de suas representações de resistência à barbárie (Benjamin,
1987a; 1987b) e das cicatrizes do colonialismo (Fanon, 1968) para a composição do discurso
literário. Dessa interpretação, delimitam-se também apontamentos para um projeto de
letramento levando em consideração um percurso didático-metodológico em que se valoriza a
leitura literária como experiência (Larrosa, 2002) e compreende a escuta ativa (Bajour, 2012)
como importante método de apreensão da realidade por parte dos educandos. Diante das
análises suscitadas, conclui-se que Torto Arado traz contribuições enriquecedoras para a
formação humana ao se comprometer com um horizonte imaginativo revolucionário para/com
os oprimidos, assim como, as temáticas formalizadas em seu discurso apresentam um terreno
fecundo para uma educação literária crítica e libertadora.
A book with a print run of five thousand is usually considered a best seller in Brazil. In
contrast, Torto Arado has already sold one hundred thousand, in addition to having won the
main national awards for novels. One of the aspects that stand out in justifying this success is
the fact that the literature of Itamar Vieira Junior is a literature of alterities, directly
dialoguing with the postulates of Benjamin (1987b) when proposing “brushing history against
the grain”, which invites not only to think of an inversion of the order, but of a new
establishment of the tradition of the oppressed. With this study, the goal is to analyze the
forementioned novel from its representations of resistance to barbarism (Benjamin, 1987a;
1987b) and the scars of colonialism (Fanon, 1968) for the composition of literary discourse.
From this interpretation, notes for a literacy project are also delimited, taking into account a
didactic-methodological path in which literary reading is valued as an experience (Larrosa,
2002) and active listening (Bajour, 2012) is understood as an important method of
apprehension. reality on the part of the students. In view of the analyzes raised, it is
concluded that Torto Arado brings enriching contributions to human formation by committing
to a revolutionary imaginative horizon for/with the oppressed, as well as the themes
formalized in his speech present a fertile ground for a critical and liberating literary education.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 14
1.2 Rio de sangue que banha a vida de comunidades campesinas no Brasil ........................ 19
2.1 O novo espaço mnemônico para uma análise dialógica do discurso .............................. 24
3.2 Em busca do coração: o espaço da terra como centro organizador da narrativa ............ 45
3.3 O dia que se planta a semente, não é o dia que se come a fruta: a passagem do tempo em
Torto Arado........................................................................................................................... 52
3.5 A construção das personagens que encarnam a força que ecoa de seus ancestrais ........ 70
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 93
14
1 INTRODUÇÃO
Existe um imperativo não-autoritário que vaga por todo o território nacional durante
estes dois últimos anos que se manifesta por: “Você já leu Torto Arado?”. A crítica
especializada aponta o nascimento instantâneo de um clássico. O mercado editorial manifesta
surpresa diante de uma obra que vendeu mais de 100 mil cópias, quando cinco mil exemplares
vendidos já costumam ser celebrados como sucesso. Políticos, celebridades, intelectuais – e
provavelmente vários dos seus amigos pessoais – recomendam a leitura do livro ao posar em
fotos ao lado da capa cor de rosa.
A trajetória épica de Torto Arado começa a ser traçada no início dos anos 90 com um
Itamar Vieira Junior ainda muito jovem e apaixonado por literatura sentado em frente a uma
máquina de escrever dada por seu pai. Sem fôlego nem maturidade para dar corpo ao
romance, as páginas iniciais se perderam. O amor pela narrativa que dava vida ao povo da
Fazenda Água Negra, no entanto, nunca abandonou o jovem escritor baiano. Já em 2018, a
obra, que ainda não era conhecida nem publicada no Brasil, subverte a história oficial ao
atravessar o oceano e conquistar, desta vez apenas em termos poéticos, Portugal. O Prêmio
LeYa de melhor romance daquele ano foi entregue a Itamar. Na ocasião, o escritor Manuel
Alegre, presidente do júri, celebrou a obra “pela solidez da construção, o equilíbrio da
narrativa e a forma como aborda o universo rural do Brasil, colocando ênfase nas figuras
femininas, na sua liberdade e na violência exercida sobre o corpo num contexto dominado
pela sociedade patriarcal”1.
A partir desse evento, Torto Arado ganha casa editorial e relevância em seu país de
origem. A editora Todavia o publica no segundo semestre de 2019 e, no ano seguinte, a obra
se torna vitoriosa das principais premiações literárias nacionais, eleita como melhor romance
pelos prêmios Jabuti e Oceanos. Entretanto, o grande mérito do livro não são os êxitos, nem a
crítica especializada, nem a divulgação orgânica: é diegético. Essa declaração de amor à terra,
como define o próprio autor, é um relato visceral, mas sensível e poético que ousa, em termos
benjaminianos, “escovar a história a contrapelo”.
Em uma breve contextualização e resumo do mote inicial da obra, Itamar Vieira Junior
nos emerge em Torto Arado no universo e no processo de formação das irmãs Bibiana e
Belonísia. O fato que nos inicia na história dessas mulheres nascidas num quilombo no seio
1
Discurso disponível em: https://www.leya.com/pt/gca/areas-de-actividade/premio-leya/vencedor-2018/.
15
do sertão baiano é a descoberta pelas duas, ainda crianças, de uma faca de cabo de marfim
escondida numa mala antiga sob a cama da avó. O acontecimento marca a vida e a jornada de
rompimento do silenciamento das protagonistas. Ainda que uma delas perca a língua ao
experimentar o gosto do tal objeto como quem almeja experimentar o gosto da vida, a
narrativa descreve que a ausência do músculo é apenas um elemento físico desse
emudecimento, mas que este é perpetuado por uma estrutura colonial e capitalista que explora
a terra e o povo à exaustão.
Ainda era cedo para prever que Torto Arado seria o que é hoje quando em julho de
2020 decidi presentear meu avô com um exemplar do livro, em seu aniversário. O menino do
recôndito sertão baiano que ousou sonhar em estudar e migrou para a cidade com a utopia de
um mundo mais justo a tiracolo, como tantos nordestinos e protagonistas de romances, foi o
primeiro crítico da obra com quem tive contato e a imediata recomendação emocionada.
Assim nasceu a curiosidade que brotou em meu peito e nunca mais me abandonou porque
enraizou como vontade de ecoar o poder delicado e devastador que o romance tem de
implodir, poeticamente, a ordem social do mundo para que se veja a primavera florescer no
horizonte.
Por se tratar de uma das primeiras incursões sobre Torto Arado, decorrente do fato de
ser uma obra contemporânea e que está em circulação há cerca de dois anos, não há, ainda,
amplo repertório acadêmico para orientar e direcionar nossa abordagem. Tem-se, por outro
lado, resenhas literárias produzidas para diversos meios de comunicação feitas por críticos
especializados, professores e jornalistas que garantem um rigor de análise e contribuem para o
debate no contexto cultural ao dar suporte para elevar os critérios de discussão suscitados ao
longo deste estudo. Por isso, como parte desta pesquisa, o autor Itamar Vieira Junior nos
concedeu uma entrevista (NORO e GONÇALVES, 2022, no prelo) como forma de ampliar o
entendimento acerca da obra.
Por outro lado, o que há de concreto para embasar o estado da arte é a antologia de
contos lançada pelo autor antes da publicação do romance. Publicada em 2017, A Oração do
Carrasco precede a abordagem de temáticas que também estão presentes no presente objeto
de pesquisa, como questões sobre racismo, escravidão e subserviência e ancestralidade. Essa
leitura ajuda a estabelecer um norte de intertextualidade para uma análise mais profunda
acerca da forma e do conteúdo que moldam o universo diegético de Torto Arado.
Para estabelecer uma reflexão acerca de uma educação literária na qual a inversão
ética e estética em Torto Arado seja trabalhada em sala de aula, será necessário conciliar o
processo de letramento com uma consciência pensante propiciada pela literatura. Para tanto,
deve-se levar em consideração a definição de letramento proposta por Cosson (2020) como
sendo o processo de escolarização da literatura, entendendo que ele “compreende não apenas
uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também, e sobretudo, uma forma de
assegurar seu efetivo domínio” (p. 12). Diante disso, o que se pretende com este trabalho é
viabilizar uma proposta de análise que compreenda o ensino de literatura para estudantes do
Ensino Médio de escolas regulares, levando em consideração a leitura literária como
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experiência (Larrosa, 2002) e a escuta ativa (Bajour, 2012) como importantes métodos de
apreensão da realidade por parte dos educandos. Para tanto, serão analisados os documentos
que organizam atualmente a educação brasileira, como a Base Nacional Comum Curricular,
os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio.
Diante desse trajeto, iremos nos debruçar no quarto capítulo a identificar um percurso
teórico que orientem a práxis educativa voltada para a literatura. Por conta da pandemia de
Covid-19, não houve a oportunidade de aplicar metodologias de letramento em sala de aula e
analisar os dados obtidos dessa experimentação. Os esforços se concentram, portanto, em
antecipar as implicações e possibilidades para a prática trazendo contribuições de autores que
enxergam no ensino literário uma ferramenta de crítica, contestação e reflexão confrontando a
realidade que a obra representa e como ela a refrata, levando em consideração tanto os
aspectos éticos quanto estéticos.
1. Objetivo geral
2. Objetivos específicos
A partir disso, será averiguada, conforme discute Cândido (2016), a realidade social
como um fator interno da construção artística, sendo estudada, portanto, no nível explicativo e
não ilustrativo, e compreendendo que o conhecimento da estrutura literária, enquanto
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componente transformado a partir dos aspectos sociais, é o que permite assimilar a função
exercida pela obra.
Para tanto, é necessário regressar às raízes do colonialismo que fundiram essa nação.
O Brasil foi um dos principais destinos do tráfico de povos africanos, totalizando mais de 4
milhões de cativos, que foram submetidos à escravidão entre 1550 e 1850, quando ficou
estabelecido o fim do tráfico de escravos. Ao vislumbrar o início de um processo
abolicionista, os grandes latifundiários e sesmeiros2 precisaram garantir que os lucros obtidos
com a mão de obra escrava não seriam prejudicados. Com isso, a terra e a atividade agrícola
foram vistas como uma oportunidade de mercadoria com potencial para exploração maciça,
inaugurando e perpetuando, assim, uma nova modalidade de propriedade privada.
2
Como parte do projeto colonial, o reino de Portugal distribuía, através de doações, lotes de terra conhecidas por
sesmarias com o intuito de incentivar a produção agrícola. O dono dessas terras era conhecido por “sesmeiro”.
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fatos, conseguimos traçar o ponto de partida de onde operam a criação do autor, a formação
da obra e o destino da sua recepção do objeto desta pesquisa.
O Brasil de Torto Arado vingou sobre uma pilha de corpos. Muitos Severos foram
assassinados para que a representação ficcional escancarasse o espelho da refração com a
“consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a
realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente” (CÂNDIDO, 2016,
p. 22). Dentre um dos mais notórios e sangrentos episódios de conflitos fundiários, destaca-se
o Massacre de Eldorado dos Carajás3 que no ano de 1996 ceifou a vida de vinte e um
trabalhadores rurais e deixou outros cinquenta e seis feridos. A chacina leva o nome do
município localizado no Pará, onde as famílias organizadas pelo Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) protestavam devido ao não cumprimento por parte
das autoridades locais das promessas de desapropriação de uma fazenda improdutiva da
região que ocupavam e do não envio de alimento e medicação para o acampamento. Com o
cancelamento das negociações, os trabalhadores bloquearam a estrada localizada na curva do
S e lá, 155 policiais sem identificação, com conivência do governador do Estado, os cercaram
e atiraram deliberadamente com o intuito de matá-los deixando para trás o mesmo rio que
banha o romance que “era sangue e lágrima, caudaloso e lento, como uma corrente de lama
avançando pelas casas e chamando o povo para se unir ou fugir da fazenda” (VIEIRA
JÚNIOR, 2019, p. 206).
O rio dos conflitos agrários e da violência do aparelho estatal contra povos ribeirinhos,
quilombolas, indígenas, pequenos agricultores e trabalhadores rurais é perene e vitimou tantas
outras famílias e lideranças comunitárias, como o seringueiro Chico Mendes, assassinado em
1988, e a religiosa estadunidense Irmã Dorothy Stang, morta em 2005.
3
MST. Eldorado dos Carajás. [s.d.]. https://mst.org.br/nossa-historia/96-2/. Acesso em: 07 jun. 2021.
4
Todos os anos desde 1985, a CPT, através do seu centro de documentação, elabora um relatório sobre as
violências sofridas pelos trabalhadores e trabalhadoras no campo e os conflitos que enfrentam. O órgão se tornou
a principal referência a coletar dados e denunciar as violações no espaço rural brasileiro.
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Além disso, outro aspecto evidenciado no romance e que se mantém cruelmente atual
é a questão relativa ao trabalho análogo à escravidão. A comunidade da Fazenda Água Negra
é contextualizada num período histórico no qual os escravos foram então denominados
trabalhadores, mas sua condição de exploração não se alterou. Trabalhando de sol a sol sem
direitos e sem garantias, “onde gente morria sem assistência, onde vivíamos como gado,
trabalhando sem ter nada em troca, nem mesmo o descanso, e as únicas coisas a que tínhamos
direito era morar lá até quando os senhores quisessem” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 128), os
moradores continuaram sendo vistos e tratados como mercadorias e moedas de troca.
A realidade parece fincada nas raízes do passado colonial e demonstra que a mimese
literária ainda se mostra atual no contexto brasileiro contemporâneo. Em outubro de 2021 foi
feito um resgate de 116 pessoas trabalhando em regime análogo à escravidão no interior de
Goiás, onde realizavam a colheita de espigas de milho para a produção de cigarros (Nunes,
2021). Ainda este ano também foi noticiada a liberdade de uma mulher que era mantida há
mais de vinte anos para uma família na cidade de São José dos Campos, em São Paulo. O
inquérito policial aponta que a trabalhadora além de ter sua liberdade restringida, era
impedida de conviver com outras pessoas que não seus patrões e não recebia seu salário
regularmente (Rodrigues, 2021). Segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho
Escravo e do Tráfico de Pessoas (Smartlab, 2021), entre os anos de 1995 e 2020 foram
libertadas um total de 55.712 pessoas em condição análoga ao trabalho escravo no Brasil.
5
A frase é uma referência à expressão utilizada pelo ex-Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião
com o presidente Jair Bolsonaro em abril de 2020 quando afirmou ser um momento oportuno para passar
reformas “infralegais”, de “simplificação” e “desregulamentação” de leis ambientais. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-
regramento-e-simplificar-normas.ghtml. Acesso em: 10 jan. 2022.
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Diante desses números, é possível afirmar que Torto Arado evidencia, através de sua
forma e conteúdo, o que se esconde nos rincões do interior do Brasil, em especial do sertão
nordestino, de um modo que expande as noções prévias sobre a representação dessa vida árida
e marcada por processos e métodos violentos. O que o autor realiza com o romance parte não
apenas de se apoderar da tradição dos oprimidos, mas fundar uma nova tradição de resposta à
barbárie. Esse fator estabelece a possibilidade de uma relação de alteridade (eu-outro) na qual
o leitor intensifica a conexão com os sujeitos do livro, mas também questiona sua realidade
material, social e histórica por meio de reflexões que partem de um contexto visceral e propõe
uma nova maneira de enxergá-lo e de resistir a ele.
Credita-se ainda à dimensão dos fatos reais que orbitam o romance, um território
discursivo permeado de dúvidas e contestações acerca da luta por reforma agrária e
demarcação de terras, visto que o debate é pautado por interesses hegemônicos da
mentalidade colonial e coloca a população contra as ocupações e o direito à terra de povos
tradicionais e campesinos. Entender que a obra consegue penetrar esse território com o intuito
de promover uma nova referência cultural para essa esfera, direciona para a função e
relevância do percurso didático-pedagógico da utilização deste romance como projeto de
letramento literário e ensino de literatura.
Antes, porém, serão elucidados na próxima seção os aportes teóricos que norteiam os
procedimentos metodológicos para a análise dialógica do discurso e as contribuições de
Benjamin (1987b) para uma arte disruptiva que não reproduza apenas um documento de
barbárie.
24
Um exemplo que ilustra essa discussão é o fato de Itamar Vieira Junior rejeitar a ideia
de que sua obra seria categorizada dentro das concepções de “realismo fantástico” ou mesmo
como um “romance regional”. Dentro dessas duas segmentações, cabe de fato um
questionamento sobre se essas categorias servem como parâmetro para distinção e
qualificação de suas narrativas ou se essas definições não ecoam esse processo de
“outrização”, visto que romances que abordam grandes metrópoles do sudeste ou mencionam
religiões de cunho cristão não correspondem a nenhuma categoria específica, mas fazem parte
do que seria a totalidade, abrangente e generalizante “literatura nacional”.
Dessa forma, o que a obra apresenta conflui em direção a uma narrativa resistente,
entendendo resistência como uma oposição entre uma força própria e uma alheia, exterior ao
sujeito, como propõe Bosi (2002). De acordo com ele, esse tipo de escrita resgata tudo que é
calado por medo, angústia ou pudor e os aflora na superfície do texto ficcional manifestando
os valores mais autênticos e sofridos. Ainda segundo o autor, a resistência na literatura:
conformismo, mas também examinar os documentos que partem da perspectiva daqueles que
foram e continuam, incessantemente, vencidos, oprimidos, colonizados e marginalizados.
Para entender os caminhos para onde apontam uma análise dialógica é necessário
explanar sobre como essa relação se estabelece internamente no objeto por meio das palavras,
concebendo-as enquanto elemento vivo presente no discurso e não apenas como uma
abstração linguística ou subjetiva. Para Volóchinov (2019), toda palavra pronunciada ou
escrita é a expressão e o produto da interação social entre o autor, o leitor e aquele ou aquilo
sobre o que os personagens falam. Ou seja, a linguagem atua como um terreno para que os
discursos, a partir de suas vozes e contextos, evoquem uma opinião e uma posição axiológica
concreta e intencional.
minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento. (BAKHTIN, 1997,
p. 46)
Para além disso, outro conceito bakhtiniano que será fundamental para o
direcionamento da abordagem que será dedicado a Torto Arado é o do cronotopo. O
cronotopo consiste de maneira muito sólida como centro de organização dos acontecimentos
que sedimentam o enredo no romance e seu significado basilar gerador; nele ocorrem os
acontecimentos que atam e desatam os nós da narrativa romanesca, é onde se concentra a ação
e seu desenrolar. Através dele ocorre a passagem de tempo que conecta e permite a sucessão
entre os fatos representados, e o território se manifesta de maneira significativa para o
propósito axiológico.
É por entender que a terra atua não apenas como cenário, mas como espaço onde toda
a ação se desenvolve axiologicamente, que o cronotopo se torna relevante para este estudo,
por abordar um referencial teórico que abarca a complexidade dessa elaboração artística no
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Para conseguir traçar um percurso que oriente a prática de educação literária com o
romance Torto Arado juntamente com estudantes do ensino médio de escolas regulares é
necessário delimitar, a priori, sobre quais parâmetros se baseiam essa etapa da aprendizagem
escolar. Pois, afinal, é somente conhecendo os diferentes pisos aos quais se referem os “chãos
das sala de aula” brasileiras e as regulamentações e legislações que configuram a educação
básica atualmente que se pode estabelecer um diálogo a fim de contribuir para um letramento
que abarque toda a complexidade da obra e da literatura propriamente dita, apontando para
uma educação, como incentivada por Freire (1996), do “‘eu me maravilho’ e não apenas do
‘eu fabrico’” (p. 101).
Outra resolução que gerou muitas críticas e mobilizações por parte da comunidade
escolar, especialmente por estudantes, foi a da Medida Provisória 746/16 que instituiu a
chamada reforma do Ensino Médio. Com ela foram instituídas: a redução da carga horária das
disciplinas gerais e apenas português e matemática se tornaram obrigatórias; os itinerários
formativos, em que os educandos escolhem se especializar em uma das áreas de
conhecimento ou dentro do ensino técnico profissionalizante; a língua estrangeira obrigatória
se tornou o inglês; a prática docente sem necessidade de diploma em licenciatura; ampliação
da carga horária total do Ensino Médio; a permissão para que parte do ensino possa ser
oferecida na modalidade à distância. As críticas giram em torno de uma compreensão de que a
reforma funciona com o intuito de formar força de trabalho que reproduza a lógica capitalista
sem questionar o sistema e tampouco promover sua transformação, aprofundando as
desigualdades persistentes nesse modelo socioeconômico e promovendo uma elitização do
ensino. Além disso, ela também abre brechas para legitimar revisionismos promovidos por
iniciativas como o movimento Escola Sem Partido.
aspecto singular é necessário examiná-la sob uma ótica crítica que abarque sua complexidade
ética e estética entendendo que ela funciona como instrumento capaz de promover
conhecimento e gerar empatia, consciência crítica e expansão das noções de identidade,
coletividade e diversidade.
Convém apontar que, apesar disso, na BNCC a literatura não é mais um componente
curricular, mas um campo de atuação atrelado, de modo mais explícito, à arte. A este campo
são reservados apenas quatro páginas nos quais são desenvolvidas algumas expectativas
amplas e horizontalizadas acerca de sua organização e progressão curricular. O que se tem de
objetivo no documento se resume em:
A prática da leitura literária, assim como de outras linguagens, deve ser capaz
também de resgatar a historicidade dos textos: produção, circulação e recepção das
obras literárias, em um entrecruzamento de diálogos (entre obras, leitores, tempos
históricos) e em seus movimentos de manutenção da tradição e de ruptura, suas
tensões entre códigos estéticos e seus modos de apreensão da realidade.
Diante disso, o que se pode observar é que apesar de concentrar esforços numa
educação literária que de fato propicie uma leitura crítica e ampla a fim de expandir uma
visão de mundo e dar protagonismo ao estudante, a proposta peca por uma especulação muito
subjetiva e genérica acerca do que deve ser pautado e trabalhado metodologicamente a partir e
com a literatura em sala de aula, como aponta Ipiranga (2019):
Ainda que reconheça que “a literatura possibilita uma ampliação da nossa visão do
mundo, ajuda-nos não só a ver mais, mas a colocar em questão muito do que estamos vendo e
vivenciando” (BRASIL, 2018, p. 499), o que a Base parece ignorar é a complexidade do
processo para se conquistar os objetivos ao que ela diz buscar para o campo literário: um
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leitor que desenvolva uma fruição e seja hábil para compreender os processos que o levam a
essa apreciação. Para Mendes (2020), o que falta à BNCC é uma perspectiva dialógica, crítica
e reflexiva para a leitura literária que desafie o educando/leitor a reconhecer, confrontar e
reinventar o mundo a partir da experiência estética.
Os PCN+, por sua vez, além de irem mais a fundo nos conceitos, competências e
habilidades a serem desenvolvidos ao longo dos anos letivos, também trazem direcionamentos
de conteúdos e seus critérios, o que se espera para a formação do professor e do aluno em sala
de aula, recomendações de procedimentos para o desenvolvimento progressivo das
competências estabelecidas e formatos de avaliações.
Já as OCEM, por outro lado, mesmo que escritas há mais de quinze anos, mostram-se
mais atualizadas diante das demandas e entraves enfrentados no ensino de literatura até os
dias de hoje. Nelas, há uma postura mais crítica e reflexiva sobre o papel da leitura literária e
da arte, pautando questões relevantes para o letramento, como a importância da estética da
recepção e a formação do leitor crítico na escola, além das mediações possíveis por meio da
relação do professor com a seleção de textos, o planejamento com o tempo e o
estabelecimento de espaços que funcionem como um estímulo para o leitor.
O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a
palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas
que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a
ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver
próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra.
(LARROSA, 2002, p. 21)
Diante de todos esses aspectos, a opção por uma obra contemporânea e que suscita
uma pauta tão cara ao imaginário coletivo brasileiro é uma escolha que compreende a
importância de ampliar o debate através do exercício da identidade e da alteridade. Esse
enlarguecimento do repertório literário deve estabelecer, simultaneamente, uma construção de
conhecimento verdadeiramente engajada e libertadora, na qual o aluno-leitor tenha autonomia
para contribuir com o debate de maneira aberta e honesta tendo a consciência de ser sujeito do
espaço territorial, momento histórico e contexto social em que se encontra, mas também
sendo capaz de estender seu olhar aos outros, visto que:
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Ou seja, o pano de fundo que traz Torto Arado ao plano central da discussão aponta
para a necessidade de abordar como a obra se apropria da realidade para estabelecer sua
originalidade em forma, matéria e conteúdo, e, assim, apurar a percepção de um
posicionamento radicalmente crítico ao tratar as estruturas de opressão e violência no campo
como derivadas da raiz do problema colonial. Assim, por meio de relações intertextuais e de
uma abordagem interdisciplinar, o texto literário ganha contornos mais complexos e amplos
capazes de concretizar seu potencial discursivo. E Torto Arado, com todos seus elementos
constitutivos, mostra-se um território fértil para a viabilização de uma proposta educativa
transformadora.
Para viabilizar a construção teórica dessa proposta, será necessário realizar uma
análise dos elementos constitutivos do romance a fim de compreender o seu todo artístico
dentro dos propósitos ético-estéticos. Dessa forma, será possível, então, vislumbrar de que
maneira as suas temáticas e a sua poética podem ser utilizadas como maneira de contribuir
para uma educação literária a contrapelo.
36
A devorante mão da negra Morte/ Acaba de roubar o bem, que temos;/ Até na triste
campa não podemos/ Zombar do braço da inconstante sorte./ Qual fica no sepulcro,/
Que seus avós ergueram, descansado;/Qual no campo, e lhe arranca os frios ossos/
Ferro do torto arado. (GONZAGA, Tomás Antônio, [s.d.], p. 19-20)
Na capa cor de rosa da edição brasileira, a ilustração da artista visual Linoca Souza é
inspirada na fotografia do italiano Giovanni Marrozzini da série “Nouvelle semence” (2010)
realizada em Camarões (figura 1). Os facões da foto viraram Espadas-de-São-Jorge, ou, de
seu respectivo orixá, Espadas-de-Ogum, no desenho (figura 2). A planta, nativa da África do
Sul, traz consigo essa conexão que vigora entre a agricultura e sua utilização em práticas
litúrgicas de religiões de matrizes africanas. Dois aspectos se destacam dentre as
características da Espada e se confrontam com a representação da faca mencionada no enredo
de Torto Arado: o seu cultivo é atribuído, espiritualmente, a prover proteção; e, deve-se evitar
ingeri-la, pois é venenosa. O que te adoece a língua, te protege a alma.
Partindo para a estrutura interna do livro, o romance se divide em três partes, na qual
cada uma delas é narrada em primeira pessoa por personagens centrais da obra. A primeira
parte é intitulada como “Fio de Corte” e é narrada por Bibiana, filha mais velha de Zeca
Chapéu Grande e Salustiana Nicolau, em um total de 15 capítulos. A segunda, narrada por
Belonísia, irmã mais nova de Bibiana, é homônima ao título do livro, “Torto Arado”, e conta
com 24 capítulos. A terceira e última divisão leva o título “Rio de Sangue” e tem a narração
38
de Santa Rita Pescadeira, uma entidade do Jarê, que é a única personagem existente na
realidade fora da dimensão ficcional do enredo, de acordo com o autor.
Seguindo essa divisão narrativa, o livro acompanha cronologicamente a vida das irmãs
Bibiana e Belonísia, sua família e a comunidade da Fazenda Água Negra, situada na região da
Chapada Diamantina, na Bahia, entre os rios Utinga e Santo Antônio. O evento que
desencadeia o início do enredo é o incidente que une Bibiana e Belonísia para sempre. As
duas crianças encontram uma faca de cabo de marfim enrolada num pano com sangue seco
dentro da mala de couro de sua avó Donana e decidem colocá-la na boca “querendo
experimentar a beleza de um brilho misterioso e proibido” (VIEIRA JUNIOR, p. 34). A
brincadeira, porém, provoca um corte na língua e faz com que uma das duas personagens se
torne muda, mas sem que se saiba qual das duas perdeu o membro.
6
A Jornada do Herói é um conceito da narratologia desenvolvida por Joseph Campbell em 1949 que descreve
um padrão no qual se inserem as histórias dos mitos clássicos. Originalmente possuía dezessete passos, mas foi
adaptada por Christopher Vogler em 1992 e passou a contar com doze estágios. São eles: o mundo comum; o
chamado à aventura; a recusa ao chamado; encontro com o mentor; a travessia do primeiro limiar; provas,
aliados e inimigos; aproximação da caverna secreta; a provação; a recompensa; o caminho de volta; a
ressurreição, e; o retorno com o elixir.
39
momento a personagem se negue a abrir mão do mundo no qual ela já tem certezas. Bibiana
reflete muito sobre se deveria fugir ou não com Severo, principalmente depois de descobrir
que está grávida. Além do medo de enfrentar o desconhecido, a jovem tem apenas dezesseis
anos e prefere manter-se ao apego e conforto familiar.
Para estimular a protagonista a seguir rumo à sua jornada, um mentor aparece para
ofertá-la o que for necessário para enfrentar o desafio. No romance, essa mentora é Santa Rita
Pescadeira que é invocada em uma festa de jarê e fala diretamente com Bibiana sobre a
profecia que a aguarda, dando coragem para que a protagonista enfim fuja com o primo e
deixe a fazenda para trás. A travessia do primeiro limiar ocorre a partir do momento em que a
personagem está pronta para deixar o mundo comum e ir em direção ao novo mundo. Neste
caso é justamente quando Bibiana presencia o gerente da fazenda humilhando seu pai e decide
fugir com Severo encerrando sua participação em primeira pessoa, quando se revela que foi
Belonísia quem teve a fala e deglutição prejudicada pelo evento com a faca.
A protagonista precisa, então, passar por uma grande provação que terá grande
impacto na sua transformação, matando de vez a pessoa que era antes de chegar até ali e
ressuscitando para uma nova vida. Esse momento ocorre quando Belonísia decide enfrentar
Tobias e mostrar que não tem medo dele. Após a morte do companheiro, a personagem
40
também se fortalece para proteger Maria Cabocla do marido e o enfrenta direta e fisicamente
impedindo que a amiga seja violentada novamente. Dando continuidade, há um instante de
reflexão no qual a heroína retornará acolhida e reconhecida pelos demais, mas que precisará
escolher entre conquistar um objetivo pessoal ou lutar por um bem coletivo. Em Torto Arado
a situação se concretiza com a volta de Bibiana, que se torna professora da escola local, e de
Severo, que começa a pautar com a comunidade sobre questões envolvendo a identidade
quilombola e a luta de classes.
Com isso, a jornada das irmãs se mostra como uma única trajetória na qual suas
individualidades são respeitadas, mas suas vivências são interconectadas a um nível mais
profundo que desperta uma noção comunitária e ancestral acerca dos problemas que
enfrentam. Tem-se, assim, a batalha final com o inimigo, que ressurge quando ninguém
esperava. Por inspirar o sentimento de insurgência e reivindicação, Severo causa
descontentamento ao fazendeiro e morre assassinado, o que gera grande comoção em toda a
comunidade. Em seguida, Salomão também é encontrado morto misteriosamente.
Antes, então, de seguir adiante, é importante olhar o que antecede o romance e este
estudo.
41
Alma é o nome da mulher escravizada que narra, em primeira pessoa, sua fuga.
Acompanhando a narrativa em fluxo de consciência, Alma caminha sempre para frente em
busca de paz e liberdade e sem poder voltar, porque para trás há os passos e o passado, apesar
deste não ser possível de fugir. Em entrevista, Itamar Vieira Junior explica como surgiu a
ideia para o conto:
donos já não podiam ter mais escravos, por causa da lei, mas precisavam deles. Então, foi
assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores.” (VIEIRA JUNIOR,
2019, p. 204). Já em Alma, o que se tem é o retrato de alguém que vive, em contexto
escravagista, para encontrar sua liberdade: “eu, uma mulher que nasceu acorrentada aos
desejos de meus senhores, eu que não tinha nome porque não era nada, [...] eu que agora
caminho para frente, lembro-me de todas essas coisas que doem mais que as feridas abertas de
meus pés e do couro do meu cabelo” (VIEIRA JUNIOR, 2017, p. 18-19, grifo nosso).
Excetuando esse fator, e entendendo os limites estilísticos que se confrontam no encontro
entre dois gêneros literários distintos, os demais aspectos materiais, formais e éticos e
estéticos dialogam entre ambos a ponto de um mencionar fatos que antecedem o outro.
Quando Santa Rita Pescadeira relata a tristeza de presenciar Bibiana debruçada sobre o
corpo morto de Severo há a seguinte menção:
[...] o senhor de um golpe deitou Inácio com o rosto para o fundo do barco, vi o
sangue se diluindo na água, eu fiz prece que ninguém pôde saber pedindo por sua
vida, [...] os homens remavam rápido, seus braços dormentes e rápidos, para que
água não inundasse o barco, eu me importando com a vida de Inácio que tapava o
buraco, pedindo por sua vida, o balanço da água não me permitia saber se ele
respirava, até que aquela viagem infinita, que existe ainda hoje em meu corpo,
aquela viagem se findou, os homens ajudaram a atirar os baús e as tralhas que meus
senhores carregaram do engenho e por último tiraram Inácio, mas já não pude ver
[...]. (VIEIRA JUNIOR, 2017, p. 34)
dois projetos estéticos edificam o caminho para um desfecho insurgente que cresce a partir da
revolta e do encerramento de um ciclo de opressão.
Em seu movimento ativo para espantar a onça capaz de promover escuridão e pavor,
Bibiana e Belonísia são senhoras do destino mórbido do fazendeiro. Do mesmo modo, Alma
mata seus patrões com veneno de rato. A morte não é apenas o desfecho da trama e sua
refração tampouco serve a um propósito violento de vingança pessoal. Sua representação é,
antes de mais nada, uma manifestação de liberdade e de subversão da ordem das coisas.
O que se conclui com essa análise é que dentro do projeto artístico do autor-criador7
existe uma forte carga imaginativa de evocar um cenário de rebeldia e contestação perante a
realidade formal dos fatos. Sua proposta diverge do domínio das produções literárias
contemporâneas, que têm espaço e sucesso no mercado editorial, ao colocar no centro da
narrativa os histórica e socialmente marginalizados e não apenas por meio de uma
representatividade apática em pactos de conciliação. O que o autor realiza através de sua
7
Segundo Bakhtin (2014), o entendimento autor-criador passa por um sujeito o responsável por guiar os
elementos dentro da obra que exerce uma atividade produtiva de formalização axiológica. “O autor-criador é um
momento constitutivo da forma artística. Eu devo experimentar a forma como minha relação axiológica ativa
com o conteúdo, para prová-la esteticamente.” (BAKHTIN, 2014, p. 58, grifos do autor)
44
literatura é oferecer uma contra face utópica diante da violência, da dor e da morte, em que se
desprende do senso comum difundido acerca da mansidão do processo de formação do povo
brasileiro e apresenta um novo imaginário de justiça e reparação.
Pode-se afirmar que Torto Arado forja na literatura o que seria um “antimonumento”,
em termos benjaminianos, como a possibilidade de um novo documento de cultura:
Com o intuito de cumprir esse trajeto crítico, convém dar seguimento, na próxima
seção, a uma parte fundamental para análise dos elementos presentes no interior da obra, que
é ilustrar o contexto social e político que formou o universo diegético do Torto Arado. Com
isso, pretende-se compreender esse duplo entre a realidade material que permitiu sua
formação e o terreno artístico e político no qual se insere, entendendo que “a arte interpreta o
mundo e dá forma ao informe, de modo que, ao sermos educados pela arte, descobrimos
facetas ignoradas dos objetos e dos seres que nos cercam” (TODOROV, 2009, p. 65).
A fim de compreender o todo do objeto estético que compõe o escopo desta pesquisa,
foram levantados os quesitos mais relevantes que direcionam seu eixo temático. Levando em
consideração que o intuito do estudo é verificar como Torto Arado, por meio de seu material,
forma e conteúdo, retrata manifestações de luta contra a barbárie, este capítulo propõe analisar
como a terra, a ancestralidade, o feminino e a resistência são representados na obra e nos
operadores de leitura da narrativa para sua composição artística e política, visto que “A
resistência da obra não é o socorro que a arte presta à política. Ela não é a imitação ou
antecipação da política pela arte, mas propriamente a identidade de ambas. A arte é política”
(RANCIÈRE, 2004, p. 129, grifo do autor).
Torto Arado é, segundo Vieira Junior (2020), uma declaração de amor à terra. O
romance é um tratado literário que visa pautar como se exprimem as questões agrárias no país
da violência no campo. A centralidade dessa questão traz a visceralidade e profundidade da
obra pelo fato exposto por Fanon (1968) de que a terra é o valor mais essencial para a
população colonizada, é ela que assegura o pão e, sobretudo, a dignidade.
De acordo com o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (2020), até os anos
1970, o conceito de território era apenas um espaço geográfico do Estado, mas o termo ganha
outras camadas de complexidade para os povos que ocupam esse espaço em questão:
Numa relação intrínseca entre o texto e o contexto, vê-se que esses questionamentos
levantados estão presentes em Torto Arado e funcionam ao enfrentar uma concepção amorfa
de espaço, trazendo-o ao centro da literariedade como o território que tensiona as disputas e
46
evidencia as opressões sofridas. É por conta da relação com a terra, do contato com a
natureza e da ambientação do sertão que o propósito axiológico do romance se concretiza.
Isto posto, a dimensão espacial da narrativa opera como um dos principais pilares que
a sustenta, visto que, como apontado por Soethe (2007), tematiza os condicionamentos entre
as figuras humanas e o seu entorno, além de problematizar a relação entre elas mesmas na
partilha de espaços comuns. Ou seja, no plano diegético, assim como no contexto social, o
espaço da terra é um espaço em disputa.
Diante disso, pode-se afirmar que a terra não opera no plano secundário da ação
narrativa. Sua concepção é tão presente e inerente à obra que os personagens frequentemente
são caracterizados com adjetivos associados ao solo, ao clima e à vegetação, assim como ela
também possui características profundamente humanas, muito por conta da religião
expressada na obra, que cultua a natureza como o sagrado. Dessa forma, as expressões de vida
que conectam o humano e a natureza como um todo são equivalentes e não podem ser
categorizados a partir de uma perspectiva antropocêntrica, como costuma operar a lógica
ocidental. A terra é tão central em Torto Arado quanto os personagens.
8
Breve história do jarê. Disponível em: <http://cantigasdojare.com.br/historia-do-jare.html>. Acesso em:
22 dez. 2021.
48
inquisidor, árido como o tempo que nos cercava [...]” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 82, grifo
nosso).
No segundo excerto, por sua vez, se em termos concretos o adjetivo “árido” faz
referência ao clima seco e estéril da região, sua caracterização figurada atribuída a um olhar
ganha contornos ainda mais rígidos ao acrescentar uma nova camada de características
humanas que emergem do cenário, assim como o insere, com mais profundidade, numa
ambientação reflexa. Nessa comparação implícita há uma nítida redução de contraste que
poderia haver entre a natureza e a personagem, ambas se assemelham em seus aspectos e
comportamentos e são ressaltados concomitantemente no excerto, tamanha conexão e
influência que exercem uma sobre a outra. Não há distinção entre si: a terra e a pessoa são um
só corpo.
“Fui parida, mas também pari esta terra. Sabe o que é parir? A senhora teve filhos.
Mas sabe o que é parir? Alimentar e tirar uma vida de dentro de você? Uma vida que
irá continuar mesmo quando você já não estiver mais nesta terra de Deus? Não sei se
a senhora sabe, mas eu peguei em minhas mãos a maioria desses meninos, homens e
mulheres que a senhora vê por aí. Sou mãe de pegação deles. Assim como apanhei
cada um com minhas mãos, eu pari esta terra. Deixa ver se a senhora entendeu: esta
terra mora em mim”, bateu com força em seu peito, “brotou em mim e enraizou”.
“Aqui”, bateu novamente no peito, “é a morada da terra. Mora aqui em meu peito
porque dela se fez minha vida, com meu povo todinho. No meu peito mora Água
Negra, não no documento da fazenda da senhora e de seu marido. Vocês podem até
me arrancar dela como uma erva ruim, mas nunca irão arrancar a terra de mim.”
(VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 229-230, grifos nossos)
49
Analisando esse trecho, há mais uma vez esse vínculo indissociável em relação à
terra: ao mesmo tempo que Salustiana foi parida por ela, também a pariu. Da mesma forma
que ela foi criada nesse território, também contribuiu para que ele fosse moldado, seja por
fazer parte da sua história ou por ser quem produz nele. A representação comunga com os
questionamentos suscitados por comunidades campesinas sobre quem verdadeiramente dá
sentido à vida nesse espaço de terra, assim ela reitera que pode até ser arrancada de lá como
um pedaço de mato qualquer, mas nunca conseguirão arrancar a terra que brotou e enraizou
na formação da sua identidade.
O último inverno tinha sido de muita chuva e ventos fortes, que haviam causado
avarias na casa em que morava sozinho com minha mãe depois da partida dos filhos.
O barro havia cedido, deixando à mostra o trançado de madeira que sustentava a
parede da frente. Era como um corpo corroído que nos permitia ver os ossos. Que
nos permitia ver a intimidade de uma casa, porque buracos e frestas já não cobriam
o seu interior. Guardava segredos que nunca seriam revelados. Guardava segredos
50
que eram parte do que todos nós éramos naquelas paragens. Ele não dizia as razões
da pressa para construir, mas todos nós intuíamos: que o corpo de nosso pai
declinava como as paredes da casa que se desfazia. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p.
159, grifos nossos)
Essa relação entre o corpo e a morada também é percebida quando Belonísia narra que
“Foi com as casas de barro e nossos corpos como mobília que venderam a terra a um casal
com dois filhos” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 176). Nessa situação, se reverte a conexão entre
o espaço e o corpo e o que se apresenta é uma objetificação da personagem ao rebaixar sua
condição de existência a uma mobília sem distinção de valor para com a vida humana. Se
evidencia com isso um questionamento acerca da posição de servidão a qual todos eles estão
submetidos, visto que, por mais que vivam num período em que não há mais a escravidão
como nos moldes do regime colonial, ainda assim suas vidas e mão de obra continuam sendo
comercializadas como objetos de troca entre os fazendeiros. As heranças do colonialismo
vigoram tanto no que concerne à exploração da terra quanto à exploração do ser humano. O
que se sucede diegeticamente, a partir desse processo de conscientização acerca da condição
de colonizado, é o estabelecimento da necessidade formulada por Fanon (1968) de que, para
destruir o mundo colonial é necessário abolir uma zona, enterrando-a profundamente no solo
ou expulsando-o do território.
Esse processo de politização por parte das personagens começa a ser absorvido quando
Severo, marido de Bibiana, pauta as questões que envolvem o reconhecimento da identidade
quilombola e a reivindicação do direito à terra. Com isso, a força da luta que tensiona a corda
das opressões converge para a fundação de uma nova tradição por meio da perspectiva
territorial e estabelece uma ética da memória em que há “por um lado a destruição da falsa
51
ordem das coisas e, por outro, a construção de um novo espaço mnemônico” (SELIGMANN-
SILVA, 2008, p. 51). Ou seja, naquele local, compreendendo todas as suas demarcações
geográficas e subjetivas para a constituição dos sujeitos que ali habitam, reside a
representação da luta para uma ressignificação histórica que interpele a barbárie que se
perpetua.
Mas como aponta seu referencial extraliterário, quem ousa se indignar contra as
desigualdades no campo acaba sofrendo reiteradas violências que, frequentemente, culminam
em morte. Se Torto Arado não tivesse como projeto artístico produzir uma literatura das
alteridades, a morte de Severo simbolizaria uma apatia diante da tragédia. No entanto, o que
se configura a partir do luto é um lampejo para reação. Nesse ponto, tem-se que a barbárie
“fundamenta a manutenção do poder e da violência nesse mundo, aquela que oprime e
sustenta essa opressão como cultura. O ‘desencantamento’ com o mundo que essa barbárie
revela é o primeiro passo para sua transformação” (MARINHO, 2015, p. 123).
A rebeldia diante das ruínas do passado serve como motor de mudança da sociedade e
se manifesta com o discurso de Bibiana ao dizer que a “semente que Severo plantou por nossa
liberdade e por nossos direitos não irá morrer. [...] Mas somos muito ainda nesta fazenda. Foi
embora um fruto, mas a árvore ficou. E suas raízes são muito fundas para tentarem arrancar”
(VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 221). A simbologia da primavera florescendo no meio do sertão
baiano partilha da concepção de uma utopia, sob a ótica benjaminiana, mnemônica: a
construção imagética do espaço propicia a ação política. E,
Então o colonizado descobre que sua vida, sua respiração, as pulsações de seu
coração são as mesmas do colono. Descobre que uma pele de colono não vale mais
do que uma pele de indígena. Essa descoberta introduz um abalo essencial no
mundo. Dela decorre toda a nova e revolucionária segurança do colonizado. Se, com
efeito, minha vida tem o mesmo peso que a do colono, seu olhar não me fulmina,
não me imobiliza mais, sua voz já não me petrifica. Não me perturbo mais em sua
presença. Na verdade eu o contrario. Não somente sua presença deixa de me
intimidar como também já estou pronto para lhe preparar tais emboscadas que dentro
de pouco tempo não lhe restará outra saída senão a fuga. (FANON, 1968, p. 34)
Como para Vieira Junior (2021a) já não há mais tempo para conciliações, Bibiana e
Belonísia vingam a morte de Severo matando o fazendeiro Salomão. O desfecho opera,
conforme o entendimento proposto por Löwy (2011) sobre a Tese VI de Benjamin, como um
impeditivo das classes dominantes de tentar apagar as chamas da cultura passada que as
ameaça com o conformismo. O exercício crítico e subversivo do romance compreende uma
nova tradição dos oprimidos e nela a terra mantém sua centralidade simbólica no ato, pois o
52
personagem morre em um fojo cavado pelas irmãs, tal qual uma armadilha de caça, onde tem
seu pescoço cortado. A terra é o solo, a ferramenta e o destino. Não há brechas, portanto,
sobre quem, de fato, concretiza essa força produtiva e afetiva e que, por isso, colhe as
recompensas proporcionadas por essa mesma terra, que é o solo, o rio e a entidade que se
materializa dele. É o desfecho que ara o enredo a contrapelo, que orienta a não abaixar a
cabeça e que sentencia, que sobre ela, “há de viver sempre o mais forte” (VIEIRA JUNIOR,
2019, p. 262).
A priori, muitos críticos supuseram se tratar de uma obra que fazia referência ao
período pós-abolicionista, no final do século XIX. O que há na narrativa, no entanto, são
alguns elementos sutilmente posicionados para situar o tempo sem precisar fazer menção a
uma data específica. No início da história, logo após as irmãs se cortarem com a faca de
Donana, elas vão a um hospital na cidade mais próxima num carro Ford Rural, que era um
modelo de veículo disponível entre os anos 60 e 70 no Brasil. Já ao final do romance, Bibiana
tenta cicatrizar a mão machucada com água gelada, ou seja, há eletricidade e uma geladeira,
item que se tornou disponível no início dos anos 2000 nos interiores do país. Pode-se inferir,
então, que a narração contempla cerca de 40 anos da vida das personagens. Essas informações
conferem uma situacionalidade à obra, mas ressaltam, sobretudo, o que o estilo literário
destaca em termos de conteúdo: Torto Arado é um romance que fala sobre memória e
identidade, mas também a resiliência e a resistência como subversão perante a perpetuação de
uma cicatriz colonial coletiva.
A opção por um tempo verbal que representa um passado que não é claramente
delimitado, mostra a atualidade temática abordada ao longo da narrativa, a continuidade e a
duração no tempo do racismo estrutural e da violência no campo, tornando-as questões que
53
são tão pertinentes hoje quanto eram num período pós-abolição. É o passado que não acabou,
nem no tempo verbal nem na representação da vida. O material amplifica o conteúdo e o
conteúdo molda o material.
Assim, há uma relação de causa e consequência que permeia as ações dos personagens
em consonância às manifestações da natureza. A esterilidade e a secura são prenúncios de
angústias, derrocadas e morte, enquanto que, por outro lado, a fertilidade e a chuva trazem a
bonança e a esperança de prosperarem na colheita e nos seus destinos. A ação da natureza
reflete o espírito humano e vice-versa.
A vida são polos opostos. [...] Os animais morrem e se a sua carcaça continuar ali na
terra, outros animais vão se alimentar, aqueles ossos vão se desintegrar com o tempo
e aquela matéria passa a fazer parte do que nasce, do que vive, as plantas que
nascem sobre aquilo. [...] Assim como na história, as personagens não têm
consciência plena sobre isso, mas é muito marcada pela vida dos ancestrais [...]. A
vida delas não começa nem acaba com elas. Como eu acredito, a minha vida não
começa nem acaba comigo, eu ando com os pés dos que vieram antes, dos meus
antepassados. (VIEIRA JUNIOR, 2020)
articulação com o passado deve estabelecer, de acordo com Benjamin (1987b), uma ruptura
da reprodução da história, enquanto regra geral, que se solidariza com os dominadores e
comunga com o cortejo triunfal sobre os corpos dos oprimidos.
No romance, é Santa Rita Pescadeira quem assiste ao violento funeral dos povos
negros escravizados. O que Itamar Vieira Junior realiza em sua narração é um reflexo de um
panorama historiográfico subjetivo ao reverberar uma descrição de acontecimentos factuais e
verídicos sob a ótica formal da literatura. Como ao narrar que cavalgando o corpo de
Belonísia foi que a Encantada sentiu que “o passado nunca nos abandona. Belonísia era a
fúria que havia cruzado o tempo. Era filha da gente forte que atravessou um oceano, que foi
separada de sua terra, que deixou para trás sonhos e forjou no desterro uma vida nova e
iluminada” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 261, grifo nosso). A síntese do período histórico,
nesse caso, retrata a crueldade de ter a vida arrancada da sua terra e as cicatrizes geracionais
que a violência deixa numa relação direta com o contexto social extradiegético.
[...] ela parecia entusiasmada, desandou a contar muitas histórias, era um livro vivo.
Contava as histórias dos bisavós, dos avós, da Fazenda Caxangá, onde também
morou, das terras do Bom Jesus, de onde veio. Intervinha ativa, ciente da
importância das coisas que sabia. A essa altura, já haviam percebido que se não
9
Do original: “There is, in each survivor, an imperative need to tell and thus to come to know one’s story,
unimpeded by ghosts from the past against which one has to protect oneself. One has to know one’s buried truth
in order to be able to live one’s life.”
56
fizéssemos barulho para garantir nossa permanência na fazenda, não teríamos para
onde ir. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 198, grifo nosso)
Quando Salustiana começa a contar a história do seu passado, traz consigo também o
passado de toda a gente. O tempo é percorrido nos caminhos e seu relato é um ato que rompe
com o silenciamento e o esquecimento de sua descendência. Transmitir o legado dos
antepassados é propiciar a criação de um verdadeiro estado de exceção, defendido por
Benjamin (1987b) como um despertar das centelhas da esperança de que os mortos não
estarão em segurança enquanto os inimigos não cessarem de vencer. É nos ecos da
ancestralidade que o romance defende o direito de pertencer e permanecer.
Ainda ao falar dessa herança ancestral perpetuada pela dor e pelo sofrimento, a
travessia do espaço e do tempo abarca também uma complexidade emocional que pode ser
observada com o seguinte trecho da obra:
O medo atravessou o tempo e fez parte de nossa história desde sempre. Era o medo
de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra.
Medo dos castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela gente.
Medo de andar, medo de desagradar, medo de existir. Medo de que não gostassem
de você, do que fazia, que não gostassem do seu cheiro, do seu cabelo, de sua cor.
Que não gostassem de seus filhos, das cantigas, da nossa irmandade. [...] Foi a nossa
valência poder se adaptar, poder construir essa irmandade, mesmo sendo alvos da
vigilância dos que queriam nos enfraquecer. Por isso espalhavam o medo. (VIEIRA
JUNIOR, 2019, p. 157)
Neste parágrafo, há a representação não apenas de todas as facetas dos medos sofridos
pelas personagens e pela sua comunidade, como também a justificativa que motiva todos
esses medos e o estabelece como uma característica íntima a quem se identifica com ela.
Além disso, o medo, por si só, contou uma história, serviu como narração de passagem do
tempo: foi ele que esteve presente na vida da personagem desde sempre, quando os seus
foram arrancados de sua terra, atravessaram o mar em um grande depósito de gente, foram
condenados à escravidão e aos maus tratos; o medo é o pesar do tempo, é ultrapassado por
todas as gerações de pessoas negras no Brasil, é o que se herda de um passado colonial.
Passado, presente e futuro se misturam na narrativa de um único elemento. Sua
universalização compreende o conhecimento que se tem do sentimento, mas é no ato ético que
se concretiza o valor axiológico da capacidade de resistir a ele e de como será sempre
utilizado como ferramenta de coerção a fim de continuar enfraquecendo e subalternizando
aqueles que a ele se adaptaram e construíram a partir dele uma irmandade para enfrentá-lo.
57
Para entender como esse fluxo temporal vigora sobre o enredo a fim de justificar seu
clímax e desfecho, é necessário analisar como suas protagonistas, e também narradoras, se
posicionam diante do contexto que as cerca.
Bibiana é a primeira narradora em Torto Arado. Filha mais velha de Zeca Chapéu
Grande e Salustiana Nicolau, sua participação em primeira pessoa começa e termina com dois
momentos decisivos para o desenvolvimento de sua personagem: o dia que descobre a faca de
58
Donana e corta a língua junto a Belonísia e o dia que vai embora, grávida, da Fazenda Água
Negra.
Não se sabe ao certo em que momento da vida se encontra a Bibiana que narra a
história, no entanto, a linguagem utilizada aponta para uma maturidade expressiva, o que leva
à conclusão de que é a mulher adulta quem conta os fatos decorridos no enredo. Parte-se do
princípio então, que há um distanciamento entre o tempo da ação e o da narração. O que se
tem em primeira pessoa, que permite uma caracterização da personagem feita por ela mesma,
é mais uma rememoração do que uma descrição em si. Suas percepções pessoais,
pensamentos e emoções dão conta de um período que abarca sua infância e início da
juventude, período em que sua personalidade e individualidade estão em formação e sendo
apreendidas partindo dessa ótica infanto-juvenil.
Também pelo fato de ser a personagem que introduz o romance, o ritmo das ações é
mais lento por estar justamente preparando o solo do enredo para ser adentrado pelo leitor.
Sendo assim, a maior parte do que se estabelece como caracterização de Bibiana será
desenvolvida de maneira mais complexa nas narrações futuras, nas quais ela será vista em
terceira pessoa.
Dito isso, cabe ressaltar que poucas vezes, de fato, há descrições detalhadas no
romance sobre a fisionomia das personagens. Nesse âmbito, o que há de mais
concreto, primordial e indiscutível para compreensão de seu universo é que se tratam, em sua
maioria, de pessoas negras e essa dimensão física e visual traz consigo a profundidade das
questões que permeiam o debate racial. Logo no início da narrativa, quando em torno de sete
anos de idade, ela e a irmã cortam a língua e precisam ir a um hospital e Bibiana relata ser a
primeira vez que está em um ambiente com mais pessoas brancas do que negras e esse
aspecto é determinante para o direcionamento de olhares de curiosidade e exotismo para ela e
sua família. É nessa memória que reside para a criança o momento decisivo de percepção do
que é o diferente, de quem sou eu e quem é o outro e o que os distingue, e para a menina que
narra, essa diferença é exposta não apenas na pele (descrição física), mas no olhar
(interpretação alheia) para consigo.
descobrirmos” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 32). Essa referência simbólica ao mito de Narciso,
nesse caso, traz não um enamoramento e uma perspectiva egóica, tal qual a lenda, mas uma
consciência precoce sobre quem se é e qual sua posição no mundo. Logo, conclui-se que
mesmo que sejam poucas as descrições de outros aspectos físicos que compõem a sua
fisionomia e a dos demais personagens, é inegável que muito se sabe sobre sua psicologia e
espírito, o que proporciona uma construção dotada do calor e da vividez de um ser humano
com traços subjetivos complexos. É na força da construção representativa das personagens
que o romance desempenha sua força como projeto ético e estético.
O episódio com a faca é crucial para o que se impõe à Bibiana e também à Belonísia,
naturalmente, enquanto personagens. A faca que divide o mundo é o que estabelece uma
quebra no espectro da inocência infantil das meninas, visto que “o silêncio passaria a ser
nosso mais proeminente estado a partir desse evento” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 15), e, por
consequência disso, é o elo incomunicável que as conecta mais profunda e intimamente. Ter a
fala fisiologicamente comprometida como uma imposição silenciosa é o elemento que
determina não apenas suas vidas a posteriori, como também é um reflexo físico e material de
um silenciamento forçoso ao qual seus antepassados igualmente padeceram.
Nisso reside todo o sofrimento final da vida da avó Donana, inclusive, que enveredada
numa trama de vida e morte por conta do objeto, passa seus últimos dias recordando as dores
do passado e as lembranças que a mantinham viva e ela passa a acreditar que Deus não apenas
não a havia perdoado pelo assassinato que cometera com o punhal, como havia ferido a carne
de sua carne, as netas que queria ver livres. O estado de saúde física e mental da matriarca
piora consideravelmente após esse fato e mergulhada em memórias e cicatrizes ela falece, e é
Bibiana quem encontra o corpo morto da avó emborcado no rio Utinga, rompendo
definitivamente com a aura sagrada da infância.
Essa ruptura afeta sobretudo sua relação com a irmã, visto que até então uma era a
voz da outra e a conexão intimamente desenvolvida entre as duas é rompida para que cada
uma siga seu caminho. Severo representa o chamado à aventura e Belonísia o principal
motivo para a recusa do chamado. Mas quanto mais se envolve com o primo, mais Bibiana se
questiona sobre a realidade de violência e subserviência de seu entorno, pois “nunca havia
parado para pensar porque estávamos ali, o que poderia modificar nessa história, o que
dependia de mim mesma ou o que dependeria das circunstâncias” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p.
72).
A gravidez repentina e inesperada logo se torna mais um fator que acarreta no peso da
responsabilidade que a vida adulta cobra tão cedo de muitas meninas. Esse senso de carregar
nas costas a incumbência de ser a pessoa que vai em busca de algo maior e melhor capaz de
mudar o bem-estar de toda a sua família é uma característica que define bem a personalidade
da personagem. O ensejo e o propósito de Bibiana são sempre coletivos e esse traço é
definitivo para a tomada de decisões que ela toma ao longo da narrativa.
Quando Santa Rita Pescadeira, incorporada em Miúda, sentencia na roda de jarê que
do movimento de Bibiana virá sua força e sua derrota, representa um ponto sem volta na vida
da protagonista. Não apenas a partida, como um movimento concreto de ação, mas também as
escolhas que ela virá a tomar trarão uma nova perspectiva, uma nova concepção de barbárie,
em que será impossível viver sem ter consciência desse processo no qual estará inserida. O
estopim se concretiza após o pai ser humilhado pelo gerente da fazenda e forçado a dar toda a
abundância de alimentos, condenando à pobreza e à fome os trabalhadores que
verdadeiramente produzem e dão sentido àquelas terras.
É apenas em seu retorno ao espaço das tensões que se sabe sobre a vida que Bibiana
levou ao longo do tempo na cidade e o que isso acarretou na construção da personagem:
Nessa jornada percebeu que a vida além da Água Negra não era muito diferente no
que se referia à exploração. Mas havia Severo, e os sonhos, e tudo que construíam
juntos. [...] Sentiram vontade de retornar, à medida que foram acumulando
informações sobre o que era pertencer a uma comunidade de moradores, talvez
invisíveis para todo o resto, no coração de uma fazenda (VIEIRA JUNIOR, 2019, p.
214-215)
61
Com isso, tem-se que o mesmo ímpeto que a fez ir embora foi o que a fez retornar.
Essa indistinguível linha tênue é ressaltada quando Belonísia se depara com a irmã e
menciona que o tempo parecia ter passado com violência para Bibiana, que agora trazia o
filho Inácio consigo, mas que isso não significava nada para mulheres da roça, acostumadas
desde cedo a gerarem novos trabalhadores para os senhores. Ou seja, a cidade não
proporcionou uma grande transformação de perspectiva de vida, apenas intensificou a
convicção estabelecida diante de problemas que são estruturais.
Mas ela faz o caminho de volta como professora, mãe e esposa e todas as categorias
correspondem a um sujeito político. Seja na educadora que exercita uma práxis engajada e
libertadora no que concerne o seu povo e sua história, na maternidade participativa que exerce
ou na companheira que, lado a lado, reivindica a luta e o legado de Severo.
Isso se dá por conta do vínculo no âmbito ético entre autor e personagem que
promovem no plano estético as questões vivenciadas por pessoas negras à superfície do
62
discurso. Bibiana reivindica, na esfera de suas ações e discurso, a politização de seu povo,
uma militância revolucionária, a afirmação da identidade quilombola e a luta por esse
reconhecimento como a porta-voz das denúncias pretendidas dentro do projeto axiológico da
arte de Itamar Vieira Junior.
As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o
que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente palavras. E, por
isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle das palavras, pela
imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras palavras
são lutas em que se joga algo mais do que simplesmente palavras, algo mais que
somente palavras. (LARROSA, 2002, p. 21)
Quando Bibiana diz que irá reivindicar a comunidade da Fazenda Água Negra
enquanto quilombolas mesmo que não haja um “atestado” ou determinação formal para isso, é
um discurso de ir a contrapelo no sentido da compreensão de si, da sua história e do seu povo.
Essa imposição por parte da personagem, de reivindicação da sua identidade comunica
efetivamente que nenhum órgão ou autoridade detém o poder de autorizá-la a ser quem ela é.
Ainda que não constem nos autos, não é o outro quem determina ou efetiva a memória e a
herança cultural, social e historiográfica que a comunidade carrega consigo. Se ser
quilombola significa pertencer a um grupo étnico-racial que tem como principal razão de ser a
resistência à barbárie, se afirmar como tal legitima sua autodeterminação e identificação
reiterando semanticamente a perpetuação do termo como uma contestação que opera uma
demanda concreta para efetivação de direitos, e simbólica para preservação da memória e do
devir.
O que Vieira Junior realiza em sua protagonista e ao longo do enredo pode ser
categorizado dentro do termo cunhado por Conceição Evaristo como “escrevivência” que
consiste numa fusão entre a memória, tanto individual quanto coletiva, e ficção, que funciona
como aporte para as narrativas dos excluídos ao prezar pela narração sobre a experiência e a
partir dela para causar provocações:
Essa história silenciada, aquilo que não podia ser dito, aquilo que não podia ser
escrito, são aquelas histórias que incomodam, desde o nível da questão pessoal,
quanto da questão coletiva. A escrevivência quer justamente provocar essa fala,
provocar essa escrita e provocar essa denúncia. E no campo da literatura é essa
provocação que vai ser feita da maneira mais poética possível. Você brinca com as
palavras para dar um soco no estômago ou no rosto de quem não gostaria de ver
determinadas temáticas ou de ver determinadas realidades transformadas em ficções.
(EVARISTO, 2020a)
63
Analisemos, então, Belonísia, a irmã mais nova que perdeu a língua com o incidente
da faca. Durante a primeira parte, na narração de Bibiana, se conhece uma Belonísia em
terceira pessoa que vive em função do ambiente familiar e da relação de afeto com a irmã até
a ruptura entre ambas por seu suposto envolvimento com Severo e um consequente rancor por
conta da situação. Como afirmado anteriormente, é possível que a narração de Bibiana se
concretize por meio de rememorações de uma mulher adulta, dessa forma, sua percepção
sobre a irmã também é afetada por esse olhar distanciado e proporciona uma perspectiva
diferente que o passar do tempo permite.
Portanto, há sobre Belonísia uma visão mais sentimental a partir desse afastamento.
Muito do que se tem é sobre a relação entre as duas irmãs e a firmação do elo inexorável que
se estabelece ao cortarem a língua juntas. Repousa sobre esse fato uma questão pertinente a
64
respeito do senso de coletividade e solidariedade que existe entre pessoas que sofreram as
mesmas violências juntas. O sofrimento como conexão para o desenvolvimento da empatia e
da compaixão ao compreender e se enxergar na dor do outro.
O que se sabe sobre a irmã mais nova na primeira parte é basicamente da relação de
união, confiança e intimidade com Bibiana. A construção desse vínculo é importante na
dimensão do enredo na compreensão da potência do desenvolvimento de solidariedade,
companheirismo, irmandade e nas noções de comunidade e coletividade. Para entender que a
união de sangue entre as duas vai além de suas relações pessoais, mas que também a
potencializa para a construção da esfera axiológica de seu discurso.
O elemento mais tangível que acaba por trazer os grandes contornos de personalidade
de Belonísia é, inevitavelmente, sua mudez. De acordo com Holanda (1992), emudecer
alguém significa reduzir a pessoa a nada, e equivale dizer:
O silêncio pode ser reserva de força; ou o sinal de seu esgotamento. Nada muda no
indivíduo mudo. E mais, o outro pode, daí, haurir sua força. A primeira providência
do arbítrio político: a redução ao silêncio. Temos estigmas recentes disso.
Resignação silenciosa que finda em aceitação de incerteza se temos, realmente,
direitos. Impassibilidade, impossibilidade – fator que reforça a arma forte do
opressor. (HOLANDA, 1992, p. 57)
As mulheres que narram o livro fazem da experiência o espaço de agitação das suas
próprias memórias, a urgência de pautar suas histórias e seu passado, pois a memória se firma
como uma imposição contra o silêncio. Mesmo Belonísia, que tem o silêncio como
determinação física, não se deixa silenciar e expressa a vontade de ter filhos apenas “para ter
com quem sentar para desfiar essas histórias que não me abandonam. Talvez lhes desse uma
pilha de cadernos velhos, manchados de umidade da chuva, ou roídos de traças, para que
65
lessem e pudessem entender do que somos feitos” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p.170-171). É a
conscientização da riqueza contida no repasse da experiência, da recusa do silêncio como
forma de perpetuar sua própria versão da história.
Esse pilar se funda quando surge Tobias que a corteja e a leva para morar consigo com
o consentimento de seu pai. Lá, Belonísia se defronta, muito jovem, com a submissão
requerida dentro das condições do papel, ainda que informal, de esposa e a simbologia do
matrimônio enquanto tratado econômico-comercial de garantia de posses. Há uma relação
ambígua, inclusive, com o vocativo “mulher”, que tanto funciona como aquilo que diz
respeito ao gênero feminino quanto como sinônimo para esposa. A informalidade do
chamamento entre casais incomoda pelo fato de não haver uma relação de afeto entre
Belonísia e Tobias, mas também pela apóstrofe fazer referência a cobranças associadas ao
feminino. A personagem demonstra ter consciência dessa distinção em seu discurso ao
mencionar que sempre carregaria a vergonha de ter sido ingênua ao se deixar encantar pelas
cortesias do vaqueiro, que não era diferente de tantos outros homens que sabiam apresentar
“ao inferno que pode ser a vida de uma mulher” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 136).
Me levantava logo quando o via se mexer na cama, antes de o sol nascer. Mas era só
acordar que vinha mais queixa: ou o café estava ralo como xixi de anjo, ou estava
forte, uma borra de amargo. Procurava enxada, procurava foice, coisas que eu nem
havia mexido. E se ele mesmo deixasse as coisas num lugar diferente, só por não
lembrar, perguntava: “Mulher, onde está isso?”, “Onde está aquilo?”, e sentia
aflição, parava o que estava fazendo para lhe ajudar a procurar. Se eu encontrasse,
era como se ele tivesse feito, nem dizia palavra para agradecer. A coisa ficou tão
ruim que eu me antecipava, nem esperava ele pedir, já dava tudo em suas mãos:
66
cinto, sapato, chapéu, gibão, facão, só para não o ouvir chamando “mulher”. Me
sentia uma coisa comprada, que diabo esse homem tem que me chamar de mulher,
minha cabeça agitada gritava. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 116)
Como parte das provações que a personagem precisa enfrentar, surge a figura de
Maria Cabocla, uma vizinha que sofre com violência doméstica e se refugia na casa de
Belonísia. As duas, estiadas de afeto em suas relações matrimoniais, se confortam e
compartilham de cuidado e carinho como fonte de resiliência para suportar as próprias dores.
Essa representação literária, aliás, denuncia uma realidade de violência muito pujante
no contexto brasileiro. A cada minuto, oito mulheres foram agredidas fisicamente entre o
período de maio de 2020 a maio de 2021 segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(2021). Uma em cada quatro mulheres foi vítima de violência doméstica no Brasil, o que
contempla um total de 17 milhões de mulheres que sofreram com agressões físicas, ofensas
verbais e abuso ou tentativa de abuso sexual. Dentre elas, cerca de 28% são mulheres negras.
Ter ciência desses dados e fazer um paralelo com Torto Arado é uma necessidade para quem
se dispõe a fazer uma crítica sociológica, visto que tanto no âmbito diegético quanto no
extradiegético falar de mulher é, quase consequentemente, falar de violências e abusos.
Mas é na relação com Maria Cabocla que Belonísia encontra forças para romper com o
mutismo e a estagnação. Tem-se nisso a evidência de que em situações de abandono e
violência, as mulheres se unem por meio do afeto. É na afetividade e na solidariedade que se
efetivam os laços e se fortalece a autoestima. É por ser tocada com carinho por Maria Cabocla
e ter seus cabelos trançados por ela que a protagonista reage conforme suas revoltas e
angústias e da prisão que a imposição do silêncio pode representar.
Meus olhos estavam secos, tamanha era a duração da estiagem. Estiou alguma coisa
em mim desde o dia em que permiti aquela união, desde quando entrei na casa
repleta de entulhos e deixei que Tobias levantasse minha roupa. Desde quando me
permiti ouvir insultos sem devolver da maneira que gostaria. (VIEIRA JUNIOR,
2019, p. 139)
Há menções de que Belonísia preferia trabalhar a terra com o pai desde criança, no
entanto, a intensificação desse amor pela agricultura se dá conforme se observa o seu próprio
amadurecimento pessoal. Não há outra forma de explicar a sensação de tristeza que não como
uma estiagem interna da personagem que mantém uma conexão tão íntima com a natureza
como forma de se posicionar no mundo. Em meio a tantos abusos, humilhações e agressões
verbais é na terra que Belonísia se consola. Nessa conexão das suas raízes com as raízes das
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plantações, a sua infertilidade para gerir um filho se compensa com o seu amor por tudo que
colhe sem deixar que o contexto a permita apodrecer. Ou seja, sua fertilidade se traduz na
fertilidade da terra: nesse relacionamento, mulher e natureza são um só corpo, semelhantes e
indissociáveis. Os atos de parir e de germinar são, neste romance, não apenas sinônimos, mas
de mesmo valor semântico tamanha a conexão entre suas progenitoras. O parto contempla a
visceralidade requerida na narrativa do processo da colheita.
Mas eu já me sentia diferente, não tinha medo de homem, era neta de Donana e filha
de Salu, que fizeram homens dobrar a língua para se dirigirem a elas. [...] Ouvi gritar
de casa que eu era burra. Que não falava. Que era aleijada da língua. Engoli cada
insulto que ouvia de sua boca. Dava um golpe mais forte fazendo desprender da
terra grandes torrões. Que se atrevesse a vir me agredir que faria o mesmo com sua
carne: a faria se soltar da face com um golpe apenas. Antes que qualquer homem
resolvesse me bater, lhe arrancaria as mãos ou cabeça, que não duvidassem de minha
zanga. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 121).
O que a modifica e a torna forte para reagir à altura é o retorno de Bibiana e Severo à
fazenda. Os laços de alteridade em seu discurso a respeito da irmã prezam pelo afeto
restituído entre ambas a partir da noção de que as correntes que as aprisionam, na cidade ou
no campo, são as mesmas que as unem. Esse retorno para casa traz à Belonísia também uma
ordenação teórica acerca das amarras que ela já sentia em seu cotidiano. Por meio do discurso
do cunhado, ela consegue sintetizar as opressões e explorações às quais seu povo foi
submetido e como a admiração por sua retórica foi o que a conectou, inclusive em sua
68
juventude quando rompeu com a primogênita, com Severo através de uma concepção de amor
camarada10 como uma antítese à sobreposição tradicional do amor romântico.
Queria ouvir de Severo as explicações para o que vivíamos em Água Negra. Eram
histórias que se comunicavam com meus rancores, com a voz deformada que me
afligia e por vezes me despedaçava, com todo o sofrimento que nos unia nos lugares
mais distantes. Que juntos, talvez, pudéssemos romper com o destino que nos
haviam designado. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 132)
É na história que se comunica com seus rancores que Belonísia formula sua própria
práxis revolucionária. A terra, como seu tesouro, como parte de seu corpo, se torna a extensão
da personagem. Ela que segue os passos do pai entende que a voz do mundo, os sons da
natureza são a sua voz. Ao dedicar sua força de trabalho e afeto à terra, a personagem passa a
guardar os melhores alimentos da colheita para a família ou mesmo oferece aos animais para
não dar gratuitamente o fruto de seu labor a seus algozes.
Tem-se, então, uma reação por parte da personagem ao confrontar Tobias apenas com
um olhar feroz, o mesmo que direciona para o marido de Maria Cabocla e a quem ameaça
com a faca de Donana. O exercício reflexivo a partir de um revide11 opõe-se à realidade em
que o feminicídio impera e se sobressai numa situação como essa. Encontrado
misteriosamente morto após debochar de Santa Rita Pescadeira, o vaqueiro é enterrado junto
com todos os receios e inseguranças de Belonísia.
Adiante, se mobiliza entre as famílias uma agitação promovida pela luta de Severo
que, por inspirar uma utopia de insurgência e reivindicação junto com a comunidade
quilombola da Fazenda Água Negra, é assassinado brutalmente. Com isso, Belonísia passa
então a compreender, no luto, o que representa a morte dele, assim como a sua
responsabilidade diante das incertezas do futuro. A instância da lavoura na alegoria da dor
passa em seu discurso pela sua escavação interna diante da ausência:
É quando você pressente e aceita que suas mãos, as mesmas que lavram a terra de
onde se levanta a vida, poderiam ser o amparo ou o fracasso de toda uma luta. Se
escava por dentro com a ausência do primo na vida dos sobrinhos, dos pais, da irmã,
10
O amor camarada é um conceito desenvolvido por Kollontai (2011), que postula a relação amorosa como um
laço de fraternidade e companheirismo que deveria contemplar: a) igualdade nas relações, na qual se eliminaria a
autossuficiência masculina e a noção de que a individualidade da mulher é de uma submissão servil ao amor; b)
desaparecimento do sentimento de propriedade no qual se reconheceria recíproca e mutuamente os direitos sem
que os seres unidos por relações de amor pretendam se apossar do coração e da vida do ser amado; c) a
assimilação e a compreensão do trabalho psíquico que se realiza na alma do ser amado por meio da sensibilidade
fraternal, que não seja exercida exclusivamente por mulheres.
11
O revide é um conceito-chave da teoria pós-colonial, determinado por Bonnici (2005, 2009), que analisa quais
são as formas de resistência utilizadas pelos subalternos na busca por romper com a hegemonia do opressor.
69
na sua própria vida. Ele, como seu pai, que havia lhe dado tanto conhecimento sobre
a história esquecida, sobre os direitos negados. Corroía-se pelo que lhe fizeram, pelo
que poderiam fazer, pelo que queriam retirar de todos. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p.
248)
A partir do evento trágico Belonísia se torna suporte para sua irmã, agora viúva. Com
a ressurreição do inimigo, a onça que vive à solta querendo derramar o sangue do seu povo, as
irmãs passam a reivindicar as lutas empenhadas por Severo para preservar seu legado e
garantir seus direitos.
Por fim, convém também analisar como os demais personagens que constituem a
família e ascendência de Bibiana e Belonísia ajudam a criar, na dimensão ética e estética do
70
discurso, um dos principais eixos que orientam a vida das personagens e colocam suas utopias
no horizonte: a ancestralidade.
Para entender a conexão entre Bibiana e Belonísia para com suas histórias e sua
comunidade é necessário direcionar também algumas observações sobre as raízes que
sustentam sua ancestralidade de pé. Nessa seção será analisada a composição de três
personagens que precedem a existência constitutiva das protagonistas e são vitais para
conectar os fios que atam o nó do propósito ético e estético do enredo de Torto Arado. São
eles: Donana, Zeca Chapéu Grande e Salustiana.
Antes de adentrar nesse terreno, cabe explicar o que será compreendido como
ancestralidade a fim de convergir a um denominador comum para o escopo dessa análise.
Muito mais que uma determinação meramente biológica e genética, a ancestralidade diz
respeito a um olhar profundo voltado ao passado, aos que vieram antes e trilharam o caminho
em direção ao presente e ao futuro e saber honrar e vislumbrar parte de si na trajetória do
outro. É nos ecos da ancestralidade que se torna possível compreender como vidas que correm
em paralelo, eventualmente, vão se encontrar no infinito nos entremeios do destino: “Sofrer,
esse sentimento difícil de exprimir e rejeitado por todos, mas que a unia de forma
irremediável a todo seu povo. O sofrimento era o sangue oculto a correr nas veias de Água
Negra” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 247).
Tem-se um exercício de alteridade para com os seus familiares, mas também uma
noção ampla sobre comunidade e coletividade entendendo que parte do que se é hoje carrega
marcas, reminiscências e resquícios de uma herança social do todo ao qual se insere.
71
Dito isso, atém-se para um outro conceito que pauta uma construção dessa
coletividade levando em consideração o valor da individualidade para a constituição subjetiva
do ser: a experiência. Segundo Larrosa (2002), a experiência pode ser definida como algo que
nos acontece, é a passagem da existência, o simples existir de forma única, finita, intrínseca e
contingente. Ou seja, denota a singularidade de como os fatos e circunstâncias afetam de
maneira particular a cada um. Pela experiência é que se mostra o crescimento e o
enfrentamento individual diante dos acontecimentos da vida ou, neste caso, da narrativa.
Além disso, é ele quem coordena e organiza as rodas de jarê da comunidade local. É
ao deitar nu e inconsciente pela floresta, protegido por uma onça, que cabe a Zeca Chapéu
Grande desenvolver sua mediunidade e espiritualidade. Ao convocar os orixás a dançarem
consigo é que surge espaço para o aparecimento primeiro de Santa Rita Pescadeira. É em uma
72
das rodas que a Encantada se manifesta e fala diretamente sobre o movimento e a mudança
que irá ocorrer na vida de Bibiana e o que isso acarretará em seu destino, uma sina de alegria
e dor.
Essa era a razão de todo o esforço que meu pai fez para que tivéssemos um professor
e, percebendo que não era o suficiente, uma escola. Meu pai não era alfabetizado,
assinava com o dedo de cortes e calos de colher frutos e espinhos da mata. Escondia
as mãos com a tinta escura quando precisava deixar suas digitais em algum
documento. De tudo que vi meu pai bem-querer na vida, talvez fosse a escrita e a
leitura dos filhos o que perseguiu com mais afinco. Quem acompanhasse sua vida de
lida na terra ou a seriedade com que guardava as crenças do jarê, acharia que eram
os bens maiores de sua existência. Mas pessoas como nós, quando viam o orgulho
que sentia dos filhos aprendendo a ler e do valor que davam ao ensino, saberiam que
esse era o bem que mais queria poder nos legar. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 66)
O mesmo ocorre com sua esposa, Salustiana. Ainda que sua presença ao longo do
romance seja menos emblemática que a figura de Zeca, a mãe de Bibiana e Belonísia quando
não está em ação narrativa é sempre rememorada em sua força, vigor e convicções pelas
filhas. Nos capítulos anteriores é possível encontrar passagens nas quais sua representação
73
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele foi’. Significa
apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um
perigo. [...] O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio
exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em
segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
(BENJAMIN, 1987b, p. 224-225)
Logo, ao falar de liberdade tem-se a importante noção de que não existe liberdade
individual. Só se poderá ser verdadeiramente livre se todos forem livres. É uma perspectiva
coletiva: é horizontal, pois é solidária com todo o seu povo, e ancestral, visto que visa uma
reparação da memória de sua própria história e suas raízes.
E diante disso há uma das passagens de maior destaque para a personagem, que
acontece quando a mulher de Salomão, o fazendeiro, passa a frequentar a fazenda juntamente
com um pastor no intuito de celebrar um culto. Salustiana é uma das poucas personagens que
possuem um discurso direto durante toda a narrativa e em seu discurso é possível encontrar
um excerto sensível e simbólico sobre parir a terra e a sua comunidade que, por mais que
tentem arrancá-la dali, será impossível arrancar aquela terra que brotou e enraizou em seu
peito. O confronto entre as duas mulheres aponta para as diferenças coloniais de gênero que
se tensiona entre a mulher branca esposa do dono da fazenda que visa um apagamento
civilizatório e a mulher negra que sustenta a perpetuação de seu quilombo, sua memória e sua
sabedoria:
Ao posicionar Torto Arado como uma escrevivência, que segundo Evaristo (2007),
não pode, então, ser lida como uma história de “ninar os da casa grande”, mas como algo que
os incomoda em seus sonos injustos, é necessário analisar a personagem que mobiliza e
direciona a narrativa em busca de um futuro de justiça e reparação: a avó Donana. A narração
pretérita de sua história só é possível graças a Santa Rita Pescadeira, que atravessa os tempos
e acrescenta os detalhes que trazem à tona os elementos basilares que adicionam a faca como
objeto central do enredo.
Logo no início, quando as crianças cortam a língua, já há uma indicação secreta sobre
o que se realizou e viria a se realizar novamente com uma despretensiosa descrição da função
de um punhal, que sangram caças e matam homens. Nesse ponto, o leitor sabe muito pouco
12
Termo utilizado para quando se desenvolve um subproduto que é derivado de outra obra.
75
sobre a origem do objeto e a sua simbologia. Mas o que ele desencadeia é a decadência de
Donana que vislumbra, na faca, a sina de sofrimento e tragédia que ela trouxe à sua vida.
Em toda nossa vida, Donana nunca tinha nos batido como naquele dia em que
contrariamos o que considerava sagrado, violando seu passado, trazendo de volta
coisas que decerto não gostaria de recordar. Nem queria que nossas mãos inocentes
segurassem o motivo de suas dores, ao mesmo tempo que não gostaria de ter que se
desfazer de suas lembranças por completo, porque a mantinham viva. Davam
sentido ao que lhe sobrara dos dias, na mesma medida em que demonstravam que
não havia sido compassiva com as dificuldades que encontrou em seu caminho
(VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 27)
Nesse trecho, vê-se que a faca guarda um significado singular e representativo para a
sua história, memória e psique. É o objeto que conserva lembranças dolorosas e dá sentido
aos seus dias. A personagem então se perde em suas próprias recordações e angústias e decide
esconder o punhal que havia dividido a sua vida e a de sua prole. Donana morre e pouco se
sabe sobre o que de fato aconteceu consigo no passado e como o instrumento seria necessário
para que suas netas subvertessem a barbárie.
Para entender toda essa relação ao redor da faca de marfim é necessário, portanto, que
Santa Rita Pescadeira narre os fatos que ocasionaram a derrota física, afetiva e psíquica de
Donana. A mulher acredita que Deus irá perdoar a pequena infração de se apegar a um objeto
que a encanta diante de uma vida inteira de servidão e subserviência impostas pela escravidão.
Surge, então, a figura de um homem por quem Donana demonstra afeição e se torna
seu companheiro. Contudo, anos depois, a mulher presencia o que seria a maior de suas
desgraças: ela encontra sua filha mais nova, Carmelita, sendo abusada sexualmente pelo
homem. Dominada pelo ódio, Donana compreende que a menina apanhava e era violada
debaixo do seu teto e decide o destino de seu companheiro:
Não havia luz, não havia candeeiro nas mãos de Donana. Não queria deixar rastros
ou lembranças de seus passos e atos. Ninguém saberia de nada, diria apenas que ele
havia partido sem deixar indicação de destino. Antes de pensar na justificativa que
daria, sangrou o homem como se sangrasse um porco. Arrastou seu corpo com os
bolsos cheios de pedras, que ela mesma enfiou lá, para dentro do rio. Não temeu que
viessem lhe perguntar pelo desaparecimento do companheiro nos dias que se
seguiriam. Voltou para casa encharcada do esforço. As poucas horas desde que
havia deixado sua morada para dar fim ao seu último erro nas terras de Caxangá
foram suficientes para que sua filha fosse embora sem indicar o paradeiro. O resto
da história foi vagar seus últimos anos vendo o rosto de Carmelita em todas as
crianças que havia amado (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 240)
Após essa descrição é possível compreender como Donana sofreu diversas violências
que se tornaram feridas nunca cicatrizadas. Ela não apenas perde a filha, que foge e de quem
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nada se sabe o destino, como também carrega a culpa por nunca ter percebido os abusos que
esta sofria. E, por ver o rosto de Carmelita nas crianças que amou é que Donana rememora
este infortúnio ao descobrir que suas netas se feriram com a faca que mais uma vez acaba por
dividir sua história e sua família, destruindo o sonho de liberdade que sonhou para sua
descendência.
Isso pode ser observado durante a narração de Belonísia, que ao relatar sua vivência
dentro da escola aponta para um processo burocratizado e enfadonho que se apresenta quase
como uma fantasia diante da sua realidade. Por outro lado, ao mencionar que prefere trabalhar
na roça, a ambientação deste espaço se mostra como dotada de saberes e conhecimentos
ancestrais e enriquecedoras para sua experiência humana. Zeca Chapéu Grande, a autoridade
em assuntos relacionados à terra, representa de maneira mais concreta a figura de professor
das matérias da vida, do mundo e da realidade do que a professora, dona Lourdes, que “não
sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos, se em suas
frases e textos só havia histórias de soldado, professor, médico e juiz” (VIEIRA JUNIOR,
2019, p. 99).
Essa dimensão aprofunda a ideia de que a educação formal de que o Brasil oficial dos
mapas, dos livros e da ciência completamente deslocados dos outros “Brasis”, que contempla
uma diversidade e uma pluralidade de histórias também oficiais, mas por vezes ignorada em
detrimento à História que convenientemente trata “invasão” por “descobrimento”.
Diferente de Bibiana, que falava em ser professora, eu gostava mesmo era da roça,
da cozinha, de fazer azeite e de despolpar o buriti. Não me atraía a matemática,
muito menos as letras de dona Lourdes. Não me interessava por suas aulas em que
contava a história do Brasil, em que falava da mistura entre índios, negros e brancos,
de como éramos felizes, de como nosso país era abençoado. Não aprendi uma linha
do Hino Nacional, não me serviria, porque eu mesma não posso cantar. Muitas
crianças também não aprenderam, pude perceber, estavam com a cabeça na comida
ou na diversão que estavam perdendo na beira do rio, para ouvir aquelas histórias
fantasiosas e enfadonhas sobre os heróis bandeirantes, depois os militares, as
heranças dos portugueses e outros assuntos que não nos diziam muita coisa.
(VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 97)
78
Tem-se ainda uma associação a essa sina de violências perpetuadas por bandeirantes,
militares, portugueses como a bênção cristã que recai sobre esse país. A miscigenação como o
grande saldo positivo diante da barbárie instaurada e em vigor até hoje. É uma conotação
extremamente simbólica para falar da ignorância sobre a nossa própria história, tradição,
cultura e povo. As heranças do colonialismo são mascaradas como grandes vitórias que
legitimam o opressor como detentor do monopólio da violência e por isso queimar o
documento de cultura que é a estátua do Borba Gato13, que caçou, escravizou, assassinou e
estuprou indígenas, é considerado como manifestação de radicalismo e extremismo, mas a
falta de garantia de direitos básicos a populações marginalizadas não gera a mesma comoção.
13
Referimo-nos aqui ao episódio ocorrido no dia 24 de julho de 2021 durante uma manifestação contra o
presidente Jair Bolsonaro, no qual um grupo de pessoas do movimento Revolução Periférica ateou fogo na
estátua do Borba Gato localizada em São Paulo (SP). A ação ocasionou na prisão preventiva de três ativistas.
Disponível em: https://ponte.org/fogo-no-borba-gato-e-uma-resposta-da-sociedade-a-uma-indignacao-coletiva-
diz-erica-malunguinho/. Acesso em: 15 jan. 2022.
79
Uma subversão que se realiza em Torto Arado é da sua concepção em primeira pessoa,
na qual o mundo sob a ótica do oprimido, que é sujeito histórico e não mero objeto de estudo,
é o que gera a capacidade de despertar no leitor uma sensível percepção de identificação e
empatia. A fluidez da formalidade discursiva desperta uma comoção própria e exclusiva do
texto literário, que se posiciona, subjetiva, mas assertivamente, contra as opressões
vivenciadas pela comunidade representada.
Nem de longe lembra a professora que ensinava sobre a história do povo negro, que
ensinava matemática, ciências e fazia as crianças se orgulharem de serem
quilombolas. Que contava e recontava a história de Água Negra e de antes, muito
antes, dos garimpos, das lavouras de cana, dos castigos, dos sequestros de suas
aldeias natais, da travessia pelo oceano de um continente para outro. As crianças
ficavam atentas, não sabiam que havia uma história tão antiga atrás daquelas vidas
esquecidas. Uma história triste, mas bonita. E passavam a entender por que ainda
sofriam com preconceito no posto de saúde, no mercado ou nos cartórios da cidade.
Onde lhes apontavam, dizendo: “olha o povo do mato” ou “negrinhos da roça”.
Compreendiam por que tudo aquilo não havia terminado. Você incutiu naquelas
vidas um respeito grande por suas próprias histórias. Mas agora nem você
conseguia mais se iluminar com a esperança de que a mudança fosse possível,
muito menos acreditava que algo do que aprenderam pudesse fazer diferença para
serenar a revolta que lhe incendiava. (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 243, grifo nosso)
Nesse trecho narrado por Santa Rita Pescadeira percebe-se a distinção estabelecida
entre o educar de Bibiana e o de dona Lourdes, a professora de sua infância. A matemática e a
80
ciência se fazem presentes, mas também, na mesma proporção, se faz a história do povo
negro. E essa história é contada partindo do microcosmo da Fazenda Água Negra para o
macro que contempla a experiência coletiva relacionada à diáspora africana.
Diante das análises suscitadas ao longo deste estudo, cabe, por fim, desenvolver uma
reflexão crítica sobre a utilização de Torto Arado dentro de um projeto de letramento literário
em sala de aula. Para melhor conduzir um percurso didático-metodológico que tenha como
objetivo essa relação pautada na práxis libertadora descrita em Torto Arado e que vise esse
mesmo propósito ao trabalhar o romance em sala de aula, deve-se levar em conta alguns
aspectos que podem ser suscitados com a obra e como ela pode servir para uma leitura
literária a contrapelo.
Cabe ressaltar, então, que o próprio ato da escolha do texto literário por parte do
professor evidencia um processo de dimensões ideológicas, visto que é um processo que
termina por despertar um discernimento crítico e estético a partir de um objeto que encontra
outros termos e meios de mimetizar a realidade que não corresponde à sua concretização tal
qual ela se apresenta. E nessa nova maneira de conceber e absorver essa realidade
representada literariamente é que reside a possibilidade de se estender uma perspectiva
dialógica elaborada na noção de alteridade. Optar, portanto, por obras que divergem das
expectativas centradas em arquétipos e estereótipos que promovam a subordinação e
subalternização de povos historicamente marginalizados é um dever ativo do professor que
82
No âmbito estético de seu discurso, o romance apresenta uma linguagem simples sem
ser rasa, que se apropria de figuras de linguagem voltadas principalmente à natureza e faz uso
de elementos da oralidade para a narração de memórias pretéritas das protagonistas do enredo.
As questões supracitadas só concretizam uma nova fundação da tradição dos oprimidos por
serem narradas em primeira pessoa e a expressão de suas revoltas serem exprimidas nas
confissões humildes que a imposição do silêncio não conseguiu calar. A voz do povo é a voz
do campo e a voz que conduz uma poética que reverbera o seu conteúdo. Por meio dessa
construção se torna possível incitar um processo de fruição da literatura sem abrir mão do seu
potencial como ferramenta social de mudança, já que a linguagem estética fornece “modos
alternativos, diversificados e por vezes transgressores de nomear o mundo. Na literatura não
importa apenas aquilo que impacta nossas valorações, ideias ou experiência de vida, mas
também como ela faz” (BAJOUR, 2012, p. 25-26).
Assim sendo, Torto Arado traz frutos, tanto éticos quanto estéticos, oportunos para um
desenvolvimento do processo de humanização e que justificam a sua leitura em sala de aula.
Dessa forma, corrobora-se a defesa de que o texto literário deve ser o centro das aulas de
literatura na escola, pautada por todos os documentos que organizam a educação brasileira. E
que, acima de tudo, é por um projeto que vise uma leitura integral do texto, valorizando a
construção da identidade por meio da experiência individual e da alteridade por meio da
escuta coletiva, pelo qual o processo de letramento deve se orientar.
Para tanto, atividades de introdução e incentivo à leitura podem ser estimuladas pelo
professor a fim de se apropriar da obra como um todo, podendo ser utilizados os aspectos
visuais, pré-textuais e extratextuais do livro para captar a atenção e despertar o interesse dos
alunos para com o enredo propriamente dito. Há, então, espaço para debater sobre a semiótica
da capa, uma breve apresentação do autor, e mesmo o contexto social que situa a história do
Brasil e, sobretudo, dos povos negros e indígenas que foram explorados, escravizados e
violentados de diversas formas sem verem nenhum registro de responsabilização de seus
opressores.
83
No entanto, recomenda-se que parte da leitura seja feita e incentivada em sala de aula
tendo em vista os recursos textuais que podem ser facilitados a partir da bagagem e do
planejamento docente para inserção na poética da romance. É importante que, por semana,
seja dedicado ao menos um dia para a discussão do que foi lido até determinado prazo e para
que, se necessário, sejam realizadas interpretações conjuntas ao longo do processo.
Os três primeiros capítulos, por exemplo, retratam toda a ação envolvida no acidente
com a faca de marfim entre Bibiana e Belonísia. As onze páginas contempladas por esse
intervalo podem suscitar o interesse e a curiosidade acerca das consequências deste fato na
vida e na deglutição e fala das irmãs.
Conforme se avança na leitura é importante que não se perca de vista três pilares que
devem sustentar a educação literária e sobre o qual o rigor interpretativo deve ser apurado: o
aluno-leitor como protagonista do processo formativo, a valorização da experiência para a
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Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração
do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, [...] trata-se de um saber que revela ao
homem concreto e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou o sem-
sentido de sua própria existência, de sua própria finitude. Por isso, o saber da experiência é
um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o que
acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo
acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a
experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida.
(LARROSA, 2002, p. 27)
Todos esses fatores podem beneficiar o estudo com Torto Arado, visto que a obra
fomenta uma perspectiva visceral a respeito da elaboração do povo brasileiro e de opressões
perpetuadas ao longo da história. A atualidade com que se formalizam as discussões presentes
no romance pode ser fecunda para uma educação literária que seja, por essência, libertadora e
leve a refletir e interpretar a realidade, e também crítica em direção ao ímpeto de
transformação.
defendida até aqui, definir o assunto que vale uma abordagem mais aprofundada, pois cada
turma é formada por sujeitos únicos que darão contribuições diferentes conforme suas
experiências e cada discussão pode incentivar a elaboração de atividades diversas. Mas, para
além da elaboração de textos, como é comum na expansão da leitura, cabe também
exercícios que conectem de modo mais intrínseco a comunidade escolar à comunidade local
com o intuito de trocar, conciliar e estender os saberes. Muito do que se encontra em Torto
Arado pode ser amplificado nas vozes de povos quilombolas e indígenas, de camponeses e
trabalhadores rurais sem terra, em coletivos feministas e no movimento negro. Dessa forma,
inserir essas vozes dentro do contexto escolar pode constituir uma vivência enriquecedora
sobre narrativas em primeira pessoa dentro da realidade histórico-social e auxiliar uma
aquisição de conhecimento que se faça realizável pela experiência de outros sujeitos.
Ressalta-se ainda que realizar projetos que incentivem uma avaliação criativa é uma
estratégia que aproxima e incentiva os educandos da prática de leitura em sala de aula.
Considerando a dificuldade para mensurar os conhecimentos por meio de provas tradicionais,
um procedimento a ser analisado é o The Unessay14 (livremente traduzido para “Desenredo”).
A prática ficou conhecida anos atrás ao viralizar no Twitter a partir da publicação de um
professor estadunidense de História que explicava como aplicava essa proposta de atividade
utilizada com seus alunos. A ideia era que fossem utilizados os aprendizados obtidos durante
as aulas para montar um projeto que pudesse ser viabilizado com liberdade artística,
criatividade para execução e autonomia para a plataforma ou método de concretização das
criações.
14
Em tradução literal, seria um “não-ensaio”. Mas, a opção por “desenredo” além de se configurar como
antônimo da palavra “ensaio”, também traz uma alusão mais elementar à literatura. Na página
https://catherinedenial.org/blog/uncategorized/the-unessay/ é possível encontrar mais informações sobre a
origem do projeto, as sugestões de métodos avaliativos e também alguns exemplos de “Desenredos” feitos por
alunos da professora Catherine Denial que podem servir como inspiração.
86
Ou seja, a ideia é que os Desenredos sirvam como uma expansão, na qual seja possível
vislumbrar na leitura literária uma ampliação e uma intensificação de seu potencial para o
letramento baseado na fruição e na formação crítica para ação no mundo.
rompimento das correntes que aprisionam todo um povo, uma comunidade e uma classe, seria
inconcebível não pensar um ensino de literatura que não considerasse a ferramenta de
resistência e subversão, que pode ser fomentada a partir da obra e do propósito educativo em
si. A educação requer o estímulo à curiosidade e à reflexão e uma convocação da imaginação
e das emoções; e assim também o faz a literatura.
88
A capa cor de rosa estampada por duas mulheres negras traz em letras garrafais o
título que comoveu um país construído e forjado nas ruínas do colonialismo. O ferro retorcido
do Torto Arado penetrou as entranhas, sempre abertas e ainda em decomposição, da memória,
da história e de um passado perene de servidão, exploração e de violências simbólicas e
concretas. No entanto, a boniteza e simplicidade de sua linguagem não deixaram o gosto
amargo do silêncio imposto e infligido, mas refletiu a capacidade de inspirar uma nova
construção imagética e imaginária sobre o enfrentamento à barbárie e o desejo de mudanças
pautadas numa utopia engajada, emancipatória e subversiva. Dentro do projeto de uma arte de
resistência cabe então:
formar imagens das coisas que não compreendem, das coisas geradas por sua época,
mas não são interpretáveis, e seguir procurando nas ruínas do passado as brechas da
revolução, as frechas de uma força que permitirá ao oprimido romper com o
contínuo e abrir novos espaços de leitura da história, leituras que farão jus aos
vencidos e esquecidos. (MARINHO, 2015, p. 172).
Neste estudo, buscamos propor uma leitura a contrapelo do romance de Itamar Vieira
Junior para compreender em profundidade como a sua forma e conteúdo concretizam seus
atos éticos e estéticos em busca de uma nova tradição dos oprimidos. Centrando a análise em
Benjamin, tentamos responder como a obra reflete e refrata o contexto social em que se
insere. A partir de reportagens e dados estatísticos objetivamos aproximar o enredo
ambientado no cenário rural brasileiro com a realidade de violência no campo imposta por
meio de assassinatos, despejos, ameaças e, também, com a manutenção de trabalho em
condições análogas à escravidão. Ao analisarmos as contribuições acerca da constituição
espacial de Torto Arado dentro do seu cronotopo é possível confirmar que, diegeticamente, o
espaço da terra é, tal qual a realidade, um espaço em disputa.
ela realiza uma trajetória forjada na luta, inspirada a promover uma transformação social e
capaz não apenas de sobreviver, mas de resistir.
acaba por despertar não a angústia que costuma imperar na presença da morte, mas no
sentimento de uma insurgência profundamente revolucionária que orienta os sonhos e as
utopias.
Isto posto, é possível admitir que em seu projeto ético, Torto Arado levanta discussões
atuais, pertinentes e de caráter profundamente questionador acerca das temáticas que aborda.
Na construção da arquitetônica do romance e em seus operadores de leitura encontram-se
escovados a contrapelo as disputas narrativas que representam uma resistência à barbárie. Seja
no que concerne à terra, à ancestralidade ou às discussões sobre gênero, raça e classe, a obra
traz contribuições capazes de gerar indagações construtivas e servir a um propósito político de
conscientização do processo de formação dos sujeitos, das suas condições e histórias, e de
emancipação ao projetar novos futuros possíveis por meio de um imaginário utópico e
subversivo.
Torto Arado traz contribuições diversas e enriquecedoras para a formação humana que
passam, sobretudo, pela maneira como se compromete com a luta e a resistência dos
oprimidos. As discussões formalizadas no romance demonstram a abertura de um terreno
fecundo para uma educação literária essencialmente crítica e libertadora. Portanto, a nossa
defesa é de que a leitura da obra seja feita de maneira integral de acordo com um
planejamento estruturado e organizado para cumprir esse requisito indispensável na apreensão
de sua linguagem e seus significados em toda sua complexidade. Mas que não sejam
descartados os momentos de escutar e compartilhar experiências como exercícios para
desenvolver a fruição estética e a dimensão social da leitura.
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