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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO


FACULDADE DE LETRAS

BEATRIZ GÓES CRUZ

ESCRITA CRIATIVA: A FANFICTION COMO


INSTRUMENTO DE ENSINO E APRENDIZAGEM EM
UMA CONCEPÇÃO DIALÓGICA.

Belém-PA
2017
BEATRIZ GÓES CRUZ

ESCRITA CRIATIVA: A FANFICTION COMO


INSTRUMENTO DE ENSINO E APRENDIZAGEM EM
UMA CONCEPÇÃO DIALÓGICA.

Trabalho de Conclusão de Curso, para a


obtenção do grau de Licenciado Pleno em
Letras, com habilitação em Língua
Portuguesa pela Universidade Federal do
Pará.

Orientadora: Prof.ª Drª. Rosa Maria de


Souza Brasil

Belém-PA
2017
BEATRIZ GÓES CRUZ

ESCRITA CRIATIVA: A FANFICTION COMO


INSTRUMENTO DE ENSINO E APRENDIZAGEM EM
UMA CONCEPÇÃO DIALÓGICA.

Trabalho de Conclusão de Curso de graduação


apresentado ao Instituto de Letras e Comunicação
da Universidade Federal do Pará como requisito à
obtenção do grau de Licenciatura Plena em Letras
– Habilitação em Língua Portuguesa.

Data de aprovação: ___/___/_____

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________
Prof.ª Dr.ª Rosa Maria de Souza Brasil – Universidade Federal do Pará

__________________________________________
Prof.ª Me. Lia Barile Carvalho da Silva – Universidade do Estado do Pará

__________________________________________
Prof. Me. Joaquim Maia de Lima – Universidade Federal do Pará
AGRADECIMENTOS
Os anos da graduação são difíceis, exaustivos. Foram longos quase cinco anos
de altos e baixos, perdas na família, conflitos e momentos que levaram bem próximo
do limite em que a desistência foi seriamente considerada. Por isso muito tenho a
agradecer a todos aqueles que estiveram ao meu lado esses anos, ajudando de
algum modo e possibilitando que esses anos também fossem de grandes
aprendizados e momentos de diversão e felicidade. Esses agradecimentos são para
aqueles que, à sua maneira, trouxeram cor mesmo nos dias mais complicados.
A Deus, primeiramente, por ter me dado forças para aguentar e por ter
colocado na minha vida as melhores pessoas para ficarem ao meu lado. Por todo e
qualquer aprendizado. Pela proteção toda vez que ia e voltava da UFPA. E até
mesmo pela beleza de cada parte da faculdade, em especial quando os ipês
florescem, e o tanto de passarinhos: ver isso sempre me deu mais paz.
À minha família, sempre, por ser esse núcleo de força e união revigorante, pelo
apoio constante. Mas nesse meio sou ainda mais grata a duas pessoas: meus pais.
Socorro Góes, mãe e pedagoga, que foi quem me ensinou a ler e escrever, me
inserindo nesse mundo das letras e incentivando sempre, inclusive ajudando em
muitos momentos da graduação e da vida, e muito em especial nas disciplinas
pedagógicas; meu pai, Irandi Cruz, pelos exemplos de superação e por sempre estar
por perto para estender a mão quando precisamos. Também àqueles que já se
foram, mas permanecem presentes em espírito e vivos no coração: meu avô Iran,
minha avó Zeza, e à minha tia Luzia Góes (que também foi profissional de Letras e
deixou seus livros, que muito me ajudaram na graduação). Obrigada por serem essa
fortaleza de amor e apoio, e por estarem sempre aqui por mim.
Aos amigos que já estão comigo desde o colégio e que, ainda que algumas
vezes fiquemos muito tempo sem nos falar, sei que sempre estarão ali com a
palavra certa e razões pra rir e força para lidar com todos os problemas: minha prima
e melhor amiga, Adriane Góes, sempre e sempre comigo, um laço de amizade
reforçado pelo sangue, mas que vai muito além dele; Amanda Alencar, outra melhor
amiga, uma “prima de coração”; Thamia El Souki, Andressa Melo, Manoela
Trindade, Enila Mergulhão, Maria Fernanda Fiedler: amigos que não importa o
tempo e a distância, sempre estão ali quando mais precisa. Amo todos vocês e
obrigada por fazerem parte da minha fortaleza.
Aos amigos que conheci na UFPA, graças ao curso, e que estiveram comigo
nas aulas mais exaustivas e nos trabalhos, nas tardes com almoços compartilhados,
passeios e exploração pela universidade dentro do ônibus circular, músicas
cantadas e gargalhadas compartilhadas pelos corredores, pelo ver-o-pesinho e na
Xerox: Jônatas Amaral, que é mais como um irmão mais velho, sempre de mão
estendida para ajudar, e com um coração gigante, e junto com Elaine Modesto,
Jéssica Castro, Maria Eloise Albuquerque, Ítala Nascimento e Breno Torres, passei e
dividi alguns dos melhores momentos do curso, pois até os trabalhos e aulas mais
cansativos se tornava mais leve com eles. Obrigada também ao André, da Xerox do
bloco de Letras, que se tornou um grande amigo e transformou aquela sala pequena
e laranja num dos melhores lugares para se passar o tempo e jogar conversa fora;
também ao Murilo Alberto, (grande amigo dos projetos de redação, grupo de estudos
e apoio moral durante o período do TCC), Kysa Melo e Mariza Soares. Obrigada de
todo coração a todos vocês.
Aos amigos que não vieram exatamente do curso, e nem da escola, mas que
chegaram à minha vida e também são de grande importância na fortaleza que me
mantém: Anaís Moraes, Neto Rodrigues (inclusive, obrigada pelo abstract), Lara
Nunes, Mariely Oliveira.
Obrigada à minha professora orientadora e amiga, Rosa Brasil, por todo
aprendizado e paciência, durante as manhãs nas aulas, e durante as tardes nos
projetos de redação e grupos de estudo de Bakhtin; obrigada por esses anos nos
projetos, pois foi durante essas tardes na UFPA, estudando Bakhtin em grupo e
aprendendo a corrigir redações do ENEM, que encontrei um caminho a seguir e um
modelo de professora que quero um dia alcançar.
Obrigada também aos demais professores que trouxeram grande aprendizado
na minha formação como futura profissional de Letras: professoras Lia Carvalho,
Márcia Goretti, Antônia Alves e aos professores Joaquim Maia e Silvio Holanda.
E por fim, obrigada também a todos que, mesmo não mencionados aqui,
torceram por mim e me apoiaram, ajudando de algum modo nessa jornada.
“(…) os seres humanos aprendem e
absorvem ideias através de narrativas, de
histórias e não de lições magistrais ou
discursos teóricos.”
(O Jogo do Anjo – Carlos Ruiz Zafón)
RESUMO
Não é raro escutar que “os jovens de hoje não sabem escrever direito e não tem
criatividade”, analisando-se algumas provas e exercícios de redação na escola e as
notas. Mas isso não é verdade. O que acontece muito nas escolas hoje em dia é
uma mecanização do processo de escrita, em que os alunos precisam produzir
tantas redações (isso quando têm aula de produção textual) e são avaliados muitas
vezes de forma superficial. Enquanto isso, muitos desses mesmos alunos produzem
narrativas denominadas fanfictions e publicam na internet, por livre vontade.
Considerando-se essas ocorrências, o objetivo desse trabalho é investigar uma
possibilidade de se trazer uma maior e mais maleável liberdade criativa para as
redações escolares ao mesmo tempo em que se trabalhe o senso crítico dos alunos.
Para tanto, a metodologia propõe uma sequência didática baseada nos conceitos
dialógicos de Bakhtin e sua perspectiva enunciativa, trabalhando dentro do estudo
de estrutura de gêneros discursivos, focando no conto, por meio de fanfictions, para
conseguir alcançar produções criativas.

Palavras-chave: escrita criativa, dialogismo, fanfiction, sequência didática.


ABSTRACT
It is not unusual to hear that “the youth of today can’t write properly and has no
creativity”, especially after evaluating a few school essays and their assigned scores.
However, that assumption is not true. What actually happens in many schools
nowadays is a sort of mechanization of the writing process, in which students are
prompted to produce too many essays (when there are text production classes, that
is), and are rated in a mostly superficial way. Meanwhile, many of these same
students willingly produce various narratives, called fanfictions, and then publish
these on the internet as a hobby. Considering this scenario, the present study aims
to investigate the possibility of enabling greater and more flexible creative freedom in
school essay writing, as well as developing the critical sense of students. For that
purpose, the adopted methodology proposes a didactic sequence based on the
dialogical concepts and enunciative perspectives of Bakhtin, analyzing the study of
discursive genre structures and focusing on short stories (through fanfictions) in
order to achieve creative written productions.

Keywords: creative writing, dialogism, fanfiction, didactic sequence.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
1. PERSPECTIVA ENUNCIATIVA E DIALOGISMO ................................................ 11
2. GÊNERO DISCURSIVO DA ORDEM DO NARRAR: O CONTO E AS
FANFICTIONS .......................................................................................................... 15
2.1. O GÊNERO DISCURSIVO ............................................................................. 15

2.2. O CONTO ....................................................................................................... 17

2.2.1. As fanfictions ............................................................................................ 18

3. A REDAÇÃO E A PRODUÇÃO ESCRITA CRIATIVA ......................................... 24


3.1. A “TEMIDA” REDAÇÃO ESCOLAR ................................................................ 24

3.2. A ESCRITA CRIATIVA ................................................................................... 26

4. DIALOGANDO COM AS FANFICTIONS: UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA ........... 28


CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 34
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 35
ANEXO ..................................................................................................................... 37
INTRODUÇÃO
Em muitas escolas, a escrita de redações tornou-se algo considerado “chato”,
enquadrado, em que muitas vezes os alunos escrevem apenas por escrever, sem
pensar realmente no que está sendo feito ou encontrar um sentido nisso. Por isso,
não raro escutar que “os jovens de hoje não sabem escrever direito”, se pegando
para analisar algumas provas e exercícios de redação na escola e as notas. Mas
isso não é verdade. O que acontece muito nas escolas hoje em dia é uma
mecanização do processo de escrita: os adolescentes têm que fazer tal texto
simplesmente porque vale nota, e tendo como feedback, às vezes, somente a
caneta vermelha do professor, que atenta mais para os erros ortográficos e
gramaticais. Mesmo quando se trata de narração ou outro gênero que não o tão
exigido dissertativo-argumentativo.
Por outro lado, muitos desses mesmos jovens entram em comunidades e sites
de fanfictions, onde produzem e leem histórias por puro entretenimento,
espontaneamente, e demonstram ter uma criatividade frequentemente mal
aproveitada e polida pela escola, que muitas vezes ainda insiste em não tentar
trazer uma aplicabilidade (além das avaliações bimestrais) para as produções
textuais realizadas nas aulas, especialmente para as narrativas: para alguns
professores passar textos narrativos é visto quase como perda de tempo ou apenas
como algo para exercitar. E se até o próprio professor já encara a produção narrativa
com desinteresse ou perda de tempo, é quase natural que a maioria dos alunos
enverede pelo mesmo caminho.
Assim, a ideia para esse trabalho surgiu da observação das fanfictions
publicadas nas plataformas na internet que são voltadas para escrita, em especial
por aquelas escritas por jovens em idade escolar; assim como também dos meses
de estágio no ensino fundamental II, em turmas de sétimo e nono ano, além de
interesse pessoal pela produção e escrita criativa. As observações feitas ao longo de
três anos em tais sites de fanfictions, somado aos anos de graduação, meses de
estágio e à minha própria experiência de como eram as aulas de redação na minha
escola me fizeram questionar: uma proposta de ensino que tenha como enfoque a
escrita criativa torna o ensino e produção de gêneros discursivos mais eficaz? Desse
modo, o objetivo desse trabalho é investigar uma possibilidade de se trazer uma
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maior e mais maleável liberdade criativa para as redações escolares ao mesmo


tempo em que se trabalhe o senso crítico dos alunos.
Para auxiliar e embasar o estudo centrou-se primeiramente na perspectiva
enunciativa e dialógica de Bakhtin, no qual este defende o enunciado como sendo
uma unidade de interação verbal, no qual todo discurso é dialógico por natureza e se
manifesta por meio dos gêneros discursivos.
O segundo capítulo contempla os gêneros discursivos de um modo geral, e
então afunilando para os que são da ordem do narrar, para então centrar-se na
estrutura de conto, sob a teoria de Massaud Moisés, na qual irá se basear as
propostas de produção de texto narrativo. Depois de esclarecido o essencial acerca
do gênero conto e sua estrutura, finalmente é trazido o conceito e definição de
fanfictions, que será ferramenta essencial na sequência didática.
No terceiro capítulo é trazida a questão das redações produzidas na escola e
o grande problema que se encontra nelas, no aspecto estrutural e de raso
desenvolvimento, abordando o problema de se usar a escrita mais como um
exercício de gramática e ortografia desligado de um propósito que não seja a
avaliação do professor. Após isso, há o contraponto abordando o que é a escrita
criativa e como esta pode ser esperada e manifestada no ambiente escolar,
trazendo à baila mais uma vez a questão dialógica e discursiva de Bakhtin, além dos
conceitos de escrita “imatura” e “madura” de Bereiter e Scardamalia (1987) e da
escrita criativa na escola, na teoria de Giglio (1996), e as correções dialógicas, por
Ruiz (1998).
Por fim, após toda teoria acerca da escrita criativa e dialógica, propõe-se uma
sugestão de sequência didática, que traz a fanfiction como uma ferramenta para se
realizar a escrita criativa dentro de sala de aula, com alunos a partir do sexto ano, e
na qual também se busca despertar nestes o senso crítico acerca de seus próprios
textos, para que possam estar sempre evoluindo, independente do gênero em que
trabalhem futuramente.
1. PERSPECTIVA ENUNCIATIVA E DIALOGISMO

Alguns conceitos são imprescindíveis para entendermos a relação dialogal


que se estabelece em nossas interações com o outro. Desta forma, antes de
entrarmos na questão proposta acerca do dialogismo, há a necessidade de
entendermos os conceitos de enunciado, oração, frase e palavra.
De acordo com Brait e Melo (2005),
Grosso modo, é possível dizer que enunciado, em certas teorias, equivale à
frase ou a sequências frasais. Em outras, entretanto, que assumem um
ponto de vista pragmático, o termo e Consequentemente o conceito por ele
gerado são utilizados em oposição à frase, unidade entendida como
modelo, como uma sequência de palavras organizadas segundo a sintaxe
e, portanto, possível de ser analisada ‘fora de contexto’. O enunciado, nessa
perspectiva, é concebido como unidade de comunicação, como unidade de
significação, necessariamente contextualizado. Uma mesma frase realiza-se
em um número infinito de enunciados, uma vez que são únicos, dentro de
situações e contextos específicos, o que significa que a ‘frase’ ganhará
sentido diferente nessas diferentes realizações ‘enunciativas’. (BRAIT e
MELO, 2005. p.63)

De modo que o enunciado se dá no contexto em que está inserido para que


faça sentido. Por exemplo, a frase: “Ele voltou”. É possível analisá-la sintaticamente,
fora de um contexto, mas dentro de um enunciado ela poderia estar expressando
alguma emoção, do medo à felicidade, que entregaria um sentido particular a essas
duas palavras que constituem uma oração, aparentemente desprovida de qualquer
juízo de valor, até o momento. Deste modo, os enunciados se tornam irrepetíveis,
por mais que a oração/fala seja idêntica em forma a outras tantas, já que estarão
inseridas em contextos diferentes, “cada vez tendo um acento, uma apreciação, uma
entonação próprios” (FIORIN, 2017, p.23). Outros aspectos que devem ser
ressaltados é que as unidades de língua, apesar de serem consideradas completas,
não possuem uma possibilidade de resposta, uma deixa para que esta se dê; além
disso, não possuem um destinatário, estão em seu sentido abstrato, sem autoria e
neutras.
Feita essa pequena diferenciação inicial, que pode ser novamente abordada
mais adiante, é necessário que se volte então para aquele que é considerado o “pai”
da concepção enunciativa da língua: Mikhail Bakhtin. Indo contra a concepção
estruturalista de Ferdinand Saussure -- que se detinha à estrutura da língua, como o
nome já sugere, praticamente ignorando o contexto social em que o falante que se
expressa está inserido -- e o Gerativismo de Noam Chomsky -- que levava em conta
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o sujeito falante e sua capacidade para desenvolver a linguagem como uma


habilidade inata do ser humano, algo com o qual já nascemos, mas desconsiderava
a interação e convívio social desses falantes e a influência que o tempo e espaço
interviam nesse falar –, Bakhtin considerava os aspectos sociais da linguagem e
postulava seu aspecto dialógico.
Para Bakhtin, o ouvinte não é um ser meramente passivo no processo de
comunicação, pois enquanto ouve, o processo de compreensão já é uma atitude
responsiva, e “essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo
processo de audição e compreensão, desde o seu início” (Bakhtin, 1992, p.271),
com esse ouvinte concordando ou discordando, aplicando ou completando o outro; é
um processo simultâneo e ativo.
Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente
responsiva (embora o grau de ativismo seja bastante diverso); toda
compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera
obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. A compreensão passiva de
significado do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da
compreensão ativamente responsiva real e plena, que se atualiza
subsequente resposta em voz alta. (BAKHTIN, 1992. p.271)

Na filosofia bakhtiniana de concepção da linguagem, esta é concebida


justamente de um ponto de vista histórico, sociológico e cultural, nos quais são
formados os discursos -- enunciados -- que formam o sujeito. Sujeito este que, no
ato de sua comunicação, reproduz dentro de seu “eu” o discurso de outros “eus” que
o formaram e precederam. O enunciado é dialógico por natureza, configurando o
processo interativo, verbal e não verbal, “que fazem parte de um contexto maior
histórico, tanto no que diz respeito a aspectos (enunciados, discursos, sujeitos, etc.)
que antecedem esse enunciado específico quanto ao que ele projeta adiante”
(BRAIT e MELO, 2005, p.67). Por seu caráter dialógico, um enunciado pode ser
considerado sempre a réplica a outro, portanto se escuta nele ao menos duas vozes,
ainda que estas não se manifestem explicitamente. Desta forma,

Bakhtin [...] considera o dialogismo o principio constitutivo da linguagem e a


condição do sentido do discurso. Insiste no fato de que o discurso não é
individual nas duas acepções de dialogismo mencionadas: não é individual
porque se constrói entre pelo menos dois interlocutores, que, por sua vez,
são seres sociais; não é individual porque se constrói como um ‘diálogo entre
discursos’, ou seja, porque mantém relações com outros discursos.
Conciliam-se, assim, nos escritos de Bakhtin, as abordagens do texto ditas
‘externas’ e ‘internas’ e recupera-se, no texto, seu estatuto pleno de objeto
linguístico -- discursivo, social e histórico. O autor critica as análises parciais
tanto do ‘ideologismo estreito’ quanto do ‘formalismo limitado’. (TODOROV,
1981, pp.37, 58)
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Deste modo, o sujeito está repleto do discurso de outros, que formam o “eu”
desse sujeito. O discurso toma a expressão alheia e expressão do enunciado que a
acolhe. Ou seja, todo discurso possui dentro de si um emaranhado de outros
discursos. O dialogismo é a relação de sentido que estes estabelecem entre si para
formar o todo do “novo” enunciado. Para Bakhtin, a alteridade faz parte essencial
desse processo dialógico, pois o “outro” é fundamental, uma vez que é impossível,
nessa concepção interacionista, que haja um sem o outro. Assim,
Quando escolhemos as palavras no processo de construção de um
enunciado, nem de longe as tornamos sempre do sistema da língua em sua
forma neutra, lexicográfica. Costumamos tirá-las de outros enunciados
congêneres com o nosso, isto é, pelo tema, pela composição, pelo estilo;
consequentemente, selecionamos as palavras segundo a sua especificação
de gênero. O gênero do discurso não é uma forma da língua mas uma
forma típica do enunciado; como tal forma, o gênero inclui certa expressão
típica a ele inerente.” (BAKHTIN, 1992. p. 292-293)

Os enunciados, por serem dialógicos, são dirigidos a um destinatário. Esse


destinatário pode ser concreto – um interlocutor direto num diálogo cotidiano; um
destinatário presumido pelo autor, que é criado no momento da concepção do
enunciado; ou o outro indeterminado, “um sobre destinatário, que esfacela fronteira
de espaço e tempo.” (BRAITH e MELO, 2005, p.72).
O enunciado se dá pelo e através dos gêneros discursivos. Na hora de
conceber o enunciado, o falante escolhe o gênero em que ele vai se dar, de acordo
com sua necessidade comunicativa, levando em consideração a temática do
discurso. Sua intenção discursiva, subjetividade e individualidade é aplicada nesse
gênero escolhido. Ou seja, a todo momento o discurso se dá através desses
gêneros, “todos nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas
de construção do todo.” (BAKHTIN, 1992). Ainda de acordo com Bakhtin, ao
aprender a falar também se aprende a construir enunciados (uma vez que a
comunicação se dá no enunciado e não em frases isoladas), e os gêneros do
discurso o organizam. “Se os gêneros do discurso não existissem e nós não
dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso,
de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação
discursiva seria quase impossível.” (BAKHTIN, 1992, p.283). Os gêneros do
discurso, portanto, são imprescindíveis para que aconteça o enunciado e, portanto, a
comunicação, pois é o que dá forma aos enunciados.
Assim, os discursos estão carregados de outros discursos, que se refutam,
afirmam, remetem, etc. Nos gêneros do tipo narrativo se vê muito tal dialogismo com
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outros textos, em especial quando se trabalha dentro dos textos escritos por jovens
que começam a dar seus primeiros passos dentro da escrita criativa, através,
principalmente, de fanfictions na internet.
2. GÊNERO DISCURSIVO DA ORDEM DO NARRAR: O
CONTO E AS FANFICTIONS

2.1. O GÊNERO DISCURSIVO


É nos gêneros discursivos que os enunciados tomam a forma com a qual vão
se apresentar, com características específicas e pontuais. Assim, uma mesma visão
sobre um tema pode ser abordado de variadas maneiras de acordo com o gênero
em que é inserida. Marcuschi define aos gêneros como
fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social.
Fruto do trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar
as atividades comunicativas do dia a dia. São entidades sociodiscursivas e
formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa.
No entanto, mesmo apresentando alto poder preditivo e interpretativo das
ações humanas em qualquer contexto discursivo, os gêneros não são
instrumentos estanques e enrijecedores da ação criativa. Caracterizam-se
como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem
emparelhados a necessidades e atividades socioculturais, bem como na
relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se
considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação a
sociedade anteriores à comunicação escrita. (MARCUSCHI, 2010, p.19)

Assim sendo, a escolha do gêneros antecede à formulação do enunciado; isto


é, “o gênero escolhido nos sugere os tipos e os seus vínculos composicionais”
(Bakhtin 1992, p.286). Marcuschi (2005) adverte ainda que não são (apenas) os
aspectos formais que definem o que é gênero, mas sim seu aspecto
sociocomunicativo e funcional – embora haja casos, sim, em que a forma ou o
suporte no qual o gênero circula é que o definirão. Desse modo,
A intenção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e
subjetividade, é em seguida aplicada e adaptada ao gênero escolhido,
constitui-se e desenvolve-se em uma determinada forma de gênero. Tais
gêneros existem antes de tudo em todos os gêneros mais multiformes da
comunicação oral cotidiana, inclusive do gênero mais familiar e mais íntimo.
[…] Falamos apenas através de determinados gêneros do discurso, isto é,
todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e
típicas de construção do todo. Dispomos de um rico repertório de gêneros
de discursos orais (e escritos). Em termos práticos, nós os empregamos de
forma segura e habilidosa, mas em termos teóricos podemos desconhecer
inteiramente sua existência. (BAKHTIN,1992, p.282)

Bakhtin, em sua perspectiva enunciativa, ancora as finalidades e condições


que marcam o enunciado em três elementos indispensáveis: seu conteúdo temático,
ou seja, o objeto do qual o discurso tratará; o estilo, que nada mais é que a escolha
dos recursos léxico-gramaticais dos quais irá dispor; e, por fim, a composição, no
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que tange à estrutura e organização do texto dentro dos “moldes” pertencentes ao


gênero.
Além disso, Bakhtin (1992, p.263) classifica os gêneros em primário e
secundário – sendo o primário aquele no qual se enquadram gêneros relacionados
aos sentidos e à oralidade de interação imediata, cotidiana (exemplos são: bilhete,
conversa familiar, debates, mensagens instantâneas, quadros, fotografias etc.); já o
segundo está relacionado à escrita, mas em seu sentido mais complexo, com tom
mais “oficial”, planejado (como textos científicos, literários, filosóficos, políticos e
etc.). Deve-se salientar, entretanto, que
Esses gêneros primários, que integram os complexos, aí se transformam e
adquirem um caráter especial: perdem o vínculo imediato com a realidade
concreta e os enunciados reais alheios: por exemplo, a réplica do diálogo
cotidiano ou da carta no romance, ao manterem a sua forma e significado
cotidiano apenas no plano do conteúdo romanesco, integram a realidade
concreta apenas através do conjunto do romance, ou seja, como
acontecimento artístico-literário e não da vida cotidiana. No seu conjunto o
romance é um enunciado, como a réplica do diálogo cotidiano ou uma carta
privada (ele tem a mesma natureza dessas duas) mas à diferença deles é
um enunciado secundário (complexo). (BAKHTIN, 1992, p.263-264)

Não é possível comensurar a quantidade de gêneros discursivos existentes,


uma vez que os gêneros do discurso são ricamente diversos e infinitos, e a
habilidade humana de formar novos sendo inesgotável, “em cada campo dessa
atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à
medida em que se desenvolve e se complexifica um determinado campo”
(BAKHTIN, 1992, p.262).
Ainda assim, há agrupamentos dos gêneros, que foram assim arrumados para
auxiliar no ensino-aprendizagem, aglutinando em cada grupo gêneros com funções
similares. Os autores Dolz e Schneuwly (2004) dividem os gêneros em cinco
agrupamentos, e são eles: os da ordem do narrar, do relatar, do argumentar, do
expor, e do instruir ou prescrever. Há também a divisão em tipos de gêneros
textuais, sendo que
Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga
para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária
e que apresentam características sociocomunicativas definidas por
conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica. Se
os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros.
(MARCUSCHI. 2010, p.23)

Neste trabalho, o enfoque é nos gêneros textuais literários, ou da ordem do


narrar que, como o nome já explica: estão no domínio literário e ficcional, explorando
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o imaginário, o lúdico, sendo marcado pelo traço estético. Exemplos marcantes


desse agrupamento são: HQ’s, fábulas, romances, novelas, contos, crônicas
literárias, teatro, músicas, etc. Mas por fins práticos, aqui vamos centrar apenas nos
contos e, relacionado a este, tratar um “novo” gênero que ganha cada vez mais
espaço: as fanfictions.

Mas antes de explorar melhor os dois gêneros, é preciso que se responda: por
que estes foram os escolhidos? Ambos, o conto e a fanfiction, permitem tratar de
diversas formas os mais variados temas dentro de uma estrutura mais “simples”,
como o conto; e as fanfictions trazem certa familiaridade aos jovens e, por isso, uma
facilidade maior de fazê-los interagir e se interessar pelo processo de construção
textual, sendo favorável ao seu desenvolvimento em questão de leitura, escrita e
criatividade, e também proporcionar a esses jovens uma atividade colaborativa com
os outros que se envolvem no projeto. Futuramente, esse processo pode ajudá-los
também a compor outros tipos de gêneros, ao aprender as etapas em que se dá o
processo da escrita.

2.2. O CONTO
Geralmente relacionam o conto a uma narrativa menor e mais concisa que o
romance e a novela, e não está equivocado, embora isso tenha mais a ver com
questões estruturais do que com a relação quantitativa de número de páginas ou
palavras. Enquanto que no romance a trama se pode enredar para outras tramas
secundárias, no conto isso não ocorre: há apenas um núcleo, um clímax, poucos
personagens – não muito aprofundados – e acontecimentos breves.
Essencialmente, é a definição que se encontra quando se busca por “conto” em
mecanismos simples de busca. Tal definição é corroborada por Massaud Moisés,
conhecido teórico literário, ao endossar:
Para bem compreender a unidade dramática que identifica o conto, é
preciso levar em conta que os seus ingredientes convergem para o mesmo
ponto. A existência de uma única ação, ou conflito, ou ainda de uma única
“história” ou “enredo”, está intimamente relacionada com a concentração de
efeitos e de pormenores: o conto aborrece as digressões, as divagações, os
excessos. Ao contrário: cada palavra ou frase há de ter sua razão de ser na
economia global da narrativa, a ponto de, em tese, não se poder substituí-la
ou alterá-la sem afetar o conjunto. Para tanto, os ingredientes narrativos
galvenizam-se numa única direção, ou seja, em torno de um único drama ou
ação. (MOISÉS.1982, p.41)
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Uma vez tendo a noção básica – já que não é objetivo deste trabalho entrar em
detalhes minuciosos da construção literária neste momento – de como se estrutura o
conto, deve-se levar em consideração que este tem vários tipos. Dentre os mais
conhecidos estão: contos de fadas, contos de horror/terror, suspense, conto
maravilhoso, conto fantástico ou de fantasia, humorísticos, psicológicos,
sentimentais, policiais, de mistério, aventura e etc. No entanto,

a classificação dos contos não implica forçosamente restrição. Antes pelo


contrário. Primeiro, porque uma classificação, por mais rigorosa que seja,
não abrange todas as variedades possíveis. Segundo: qualquer ordenação
do gênero diz respeito ao emprego de recursos formais, estruturais,
dramáticos, etc., e não à matriz ou ao objetivo singular da narrativa. As
mudanças seriam periféricas, mais do acidente que da essência […]
Noutras palavras: quando nos referimos aos tipos de contos, temos em
mente as diferentes formas de congraçamento dos ingredientes do conto,
seu ajuste harmônico no interior da narrativa, […] Por fim, atente-se para o
fato de não existirem contos puros; toda narrativa breve apresenta múltiplas
facetas, decerto com o predomínio de uma, assim autorizando e
fundamentando sua localização em determinada categoria, dentro da árvore
classificatória. Casos há, até, em que se torna difícil fazê-lo pela
concorrência de traços que mesclam com análoga relevância. (MOISÉS,
1982, p.73)

Assim, o autor tem a seu dispor a liberdade criativa para moldar seus contos
como mais lhe aprouver, afinal a ficção possibilita uma infinidade de caminhos.

2.2.1. As fanfictions

As fanfictions (mais popularmente conhecidas pela abreviação “fanfic”) ganham


cada vez mais espaço como um gênero escrito – principalmente entre os jovens,
uma vez que eles sentem mais inseridos dentro desse universo interativo. No Brasil,
a fanfic ganhou mais espaço e popularidade com o fenômeno dos livros e filmes
Harry Potter, da escritora britânica J.K Rowling e difícil é encontrar websites
brasileiros voltados a fanfics que seja anterior aos anos 2000 – embora haja
evidências e relatos de que as fanfictions já existiam nos Estados Unidos antes
mesmo do suporte da internet (VARGAS, 2005, p.7).

Mas, afinal, o que exatamente seriam as fanfictions? O nome é uma junção


dos termos em inglês “fan” e “fiction”, que na tradução livre fica literalmente “ficção
de fã”: são histórias escritas por e para os fãs, e são divulgadas em sites como blogs
pessoais ou plataformas na web criadas justamente para esse propósito pelos
próprios fãs escritores. As fanfics podem ser originadas/baseadas em quaisquer
temas, gêneros, suportes, tais como livros, séries, quadrinhos, animes até
19

bandas/músicos/artistas, youtubers, letras de músicas, cartoons e até mesmo


novelas. Não há limites para o que pode ser tema de fanfics – inclusive há os que se
aproveitam de toda essa liberdade para criar histórias tidas como “absurdas” com
propósito humorístico. Também se deve ressaltar que embora haja fanfics que
acabem virando livro, após certa adaptação (como o best-seller “Cinquenta Tons de
Cinza”, de L.S James, que era uma fanfic de outro romance best-seller:
“Crepúsculo”, de Stephenie Meyer), grande parte das histórias fanfictions não visa a
fins lucrativos e muitos desses “ficwriters” as escrevem apenas por hobby – apesar
de haver escritores que agora trabalham histórias “originais” que confessam que o
seu interesse na escrita começou com as fanfictions. Outro atrativo nessas
plataformas e escrever na internet é a possibilidade de interação: o leitor se sente
mais próximo e atraído pelas histórias por ser de algo que ele já se interessa e
também tem a oportunidade de interagir com o autor, assim como o autor também
pode avaliar melhor o feedback que suas histórias estão tendo através de
comentários em cada capítulo e, em algumas plataformas em que é possível fazer a
recomendação (como resenha). Assim,

A fanfiction é, assim, uma história escrita por um fã, envolvendo os


cenários, personagens e tramas previamente desenvolvidos no original,
sem que exista nenhum intuito de quebra de direitos autorais e de lucro
envolvidos nessa prática. Os autores de fanfictions dedicam-se a escrevê-
las em virtude de terem desenvolvido laços afetivos tão fortes com o
original, que não lhes basta consumir o material que lhes é disponibilizado,
passando a haver a necessidade de interagir, interferir naquele universo
ficcional, deixar sua marca de autoria. (VARGAS, 2005, p.13)

Mas como exatamente são essas histórias? Félix (2008) compreende as fanfics
como um explícito exemplo do dialogismo bakhtiniano, já que as obras dos fãs vêm
a confirmar, refutar, complementar, retomar ou sugerir outras possibilidades aos
enunciados originais. Por isso, como dito acima, pode se tratar de qualquer coisa:
alguns apenas preenchem “buracos” que sentiram na narrativa original; imaginam
outro final para um filme/novela/série/livro; ou então rotas alternativas, como: “E se
tal personagem na verdade…?”. Há tantas outras que inserem seus personagens
favoritos em universos tão alternativos e destoantes do original, com personalidade
tão diferente, que se alterassem os nomes de tais personagens as histórias
poderiam se passar por completamente originais. Um exemplo mais concreto do que
pode acontecer dentro de uma fanfic: uma história de “Senhora”, do José de
Alencar, mesclada com a novela mexicana “A Madrasta”, misturando aspectos
20

(enredos e personagens) de ambas numa única trama. É possível e existe, sob o


nome “Em busca do Teu Perdão”1. Os que escrevem tais histórias se divertem
criando tais situações e imaginando rotas alternativas ou narrativas tendo seus
ídolos do mundo real como personagens, tanto quanto os fãs se comprazem lendo
tais aventuras.

No entanto, não se pode considerar este um gênero completamente inovador,


“quais criações ab ovo, sem ancoragem em outros gêneros já existentes. […] A
tecnologia favorece o surgimento de formas inovadoras, mas não absolutamente
novas” (MARCUSCHI, 2010, p.21). Desse modo, as fanfics seguem as estruturas de
conto, novela, romance, e às vezes também roteiro ou mesmo poema. Sendo que os
contos são conhecidos nesse meio como “one-shots”: capítulo único e, às vezes,
também pode se enquadrar em “short-fic”: história curta – embora neste último é
possível que também se enquadre uma novela ou romance curto, então é
necessário atentar para a estrutura do núcleo dramático.

As fanfictions, desse modo, também possuem gêneros (drama/tragédia,


aventura, suspense etc.) e as categorias (animes/mangás, filmes, livros, séries,
celebridades etc.) – que ajudam a organizá-las e filtrá-las nos sites, de acordo com o
que se procura; alguns gêneros literários são até mesmo criados em alguns
websites, para que se possa classificar algumas histórias – mas, como mencionado
no tópico sobre tipos de contos, anteriormente, a ficção é extremamente maleável. E
a fanfic é um dos mais perfeitos exemplos disso, podendo abarcar numa única
história uma enorme mistura de gêneros e até mesmo de categorias, havendo um
“crossover” (mistura) entre universos de história totalmente diferentes.

É importante levar em consideração também o suporte do gênero, onde ele


circula. Há muitas boas plataformas/sites para se verificar como se organizam essas
comunidades de escrita de fanfictions, mas por fins práticos vou usar apenas um,
que é brasileiro: o <https://spiritfanfics.com/> . Possui um bom mecanismo de busca
e filtro de gêneros dentro de uma categoria, além de grande interação entre
participantes, podendo conversar com outros usuários (o que facilita a divulgação
das histórias e também diálogos autor-leitor, por ser possível responder repetidas

1
Texto de autoria de “Loreh Rodrigues” (<https://fanfiction.com.br/u/513768/>) disponível em
<https://fanfiction.com.br/historia/585852/Em_Busca_de_Teu_Perdao>.
21

vezes ao mesmo comentário numa história) e também postar comunicados em


forma de “jornais”. Não é necessário criar uma conta no site para ler as histórias (a
menos que estejam classificados com censura de 16+ em alguns casos), mas isso
facilita para comentá-las ou saber quando são atualizadas; também possui seções
destinadas a “aulas” de português, além de possuir aqueles que se voluntariam para
“betar” e ajudar escritores com revisões e opiniões sobre a história. Possui certas
regras (de não fazer apologias a drogas, etc. e ser vetado uso de imagens
pornográficas como capas de histórias ou capítulos). A interface do site é bem
simples e prática, tentando facilitar ao máximo a navegação, como se vê em:

Figura 1: Página inicial do site Spirit. Foi diminuído o zoom da página e abaixado um pouco a página,
para que fosse possível visualizar onde se encontram as informações necessárias do site.

Figura 2: Recorte de tela do site Spirit, na seção Categorias.


22

Figura 3: Subcategoria “Teen Wolf”, dentro da categoria “Séries, Novelas e TV”, com as opções de
histórias e filtros de busca.

Na figura 2, após selecionar a categoria desejada (há mais 9 para baixo,


rolando a página), a busca pode ser mais filtrada. Para exemplificar melhor como
funciona, entrei na categoria “Séries, Novelas e TV”, e, dentro desta, escolhi a
subcategoria da série adolescente “Teen Wolf” (Figura 3). É possível filtrar ainda
mais as buscas em: personagens sobre que mais deseja ler dentro desse universo,
gênero, classificação de idade, histórias terminadas ou não, crossovers (mistura com
outros universos), até mesmo uma média de palavras, ou se não quer que apareçam
histórias com determinado personagem ou gênero.

De todo o modo, o

aspecto central no caso desse e de outros gêneros emergentes é a nova


relação que instauram com os usos da linguagem como tal. Em certo
sentido, possibilitam a redefinição de alguns aspectos centrais na
observação da linguagem em uso, como por exemplo, a relação entre a
oralidade e a escrita, desfazendo ainda mais as suas fronteiras. Esses
gêneros que emergiram no último século no contexto das mais diversas
mídias criam formas comunicativas próprias com certo hibridismo que
desafia as relações entre oralidade e escrita e inviabiliza de forma definitiva
a velha visão dicotômica ainda presente em muitos manuais de ensino da
língua. Esses gêneros também permitem observar a maior integração entre
os vários tipos de semioses: signos verbais, sons, imagens e formas em
movimento. A linguagem dos novos gêneros torna-se cada vez mais
plástica (MARCUSCHI, 2010, p.21)

Por fim, um dos fatos mais incríveis que se encontram dentro dos sites de
fanfics é que boa parte de seus autores ou participantes de tais comunidades são
jovens ainda em idade escolar a partir dos 10 anos, (ou que começaram a participar
nessa faixa etária e que continuam mesmo adultos) e estes apresentam uma
23

criatividade surpreendente, que quase nunca é aproveitada na escola. Geralmente,


é o contrário que acontece, com professores passando propostas de redação que
em nada estimulam essa criatividade e centram o foco das correções apenas em
erros ortográficos e gramaticais.
3. A REDAÇÃO E A PRODUÇÃO ESCRITA CRIATIVA

3.1. A “TEMIDA” REDAÇÃO ESCOLAR

Não há quem ainda não tenha feito, em seus anos de escola, alguma redação
em que se pedia que contasse o que fez durante as férias, ou algum assunto que
não exigia muito das habilidades inventivas. E então, após receber o texto de volta
do professor, só eram levados em consideração os aspectos linguísticos de ordem
ortográfica e gramatical. Além disso, muitas vezes (a significativa maioria) essas
redações produzidas em sala de aula não estabelecem um público-alvo, um objetivo,
função específica: é apenas um exercício, uma avaliação que tem como feedback
única e exclusivamente a caneta vermelha do professor, apontando os erros e
aferindo uma nota. E a motivação para a escrita? O estímulo?
Antunes (2003) ao refletir sobre a prática da aula do português faz algumas
constatações negativas ainda muito presentes nas escolas, fixando-se em quatro
campos: oralidade, escrita, leitura e gramática. Aqui, o enfoque está exclusivamente
na escrita, e entre os pontos destacados estão:
* a prática de uma escrita mecânica e periférica, centrada, inicialmente nas
habilidades motoras de produzir sinais gráficos e, mais adiante, na
memorização pura e simples de regras ortográficas: para muita gente, não
saber escrever ainda equivale a escrever com erros de ortografia […] * a
prática de uma escrita sem função, destituída de qualquer valor interacional,
sem autoria e sem recepção (apenas para “exercitar”), uma vez que, por
ela, não se estabelece a relação pretendida entre a linguagem e o mundo,
entre o autor e o leitor do texto […] *a prática, enfim, de uma escrita
improvisada, sem planejamento e sem revisão, na qual o que conta é,
prioritariamente, a tarefa de realizá-la, não importa “o que se diga” e o
“como se faz”. (ANTUNES, 2003, págs. 25-27)

Verdade que há professores que tentam mudar suas abordagens em sala de


aula, mas estes ainda são poucos para que haja uma mudança significativa no
ensino de produção textual (embora não desvalorizando aqui resultados e mudanças
que outros conseguiram alcançar, muito pelo contrário, inclusive). E algumas vezes
nem é culpa da falta de interesse do professor, e sim da falta de tempo somada à
grande quantidade de conteúdos que é obrigado a ministrar durante o período letivo,
às vezes em diferentes turmas/séries/escolas, e acabam, em favor de terminar todo
esse conteúdo a tempo, trabalhando os gêneros discursivos e as produções textuais
sem um adequado aprofundamento, assim como corrigindo as redações em
25

aspectos apenas superficiais – sem realmente mostrar ao aluno como melhorar o


próprio texto.
Segundo Bereiter e Scardamalia (1987, apud SILVA, 2014), autores dos
modelos conhecidos como “reprodução do conhecimento” e “transformação do
conhecimento”, a escrita dita como “imatura” é aquela em que há apenas a
reprodução de conhecimento na construção do texto, sem que haja um plano ou
meta específica ou solução de problemas. “Geralmente, é um recontar de
experiências, em ordem cronológica, incluindo passos mais descritivos ou
narrativos.” (SILVA, 2014, p.22)
Trazendo isso para o gênero da ordem do narrar, que é o foco do presente
trabalho, em muitas escolas ainda é presente a produção de um “texto narrativo”.
Nas famosas “narrações de escola”, o aluno tem de desenvolver em até 30 linhas,
no máximo, e 15 ou 10, no mínimo, uma história em que haja: apresentação,
problema/complicação, clímax e então o desfecho. Ainda há as vezes em que se
exige ao menos um tipo de diálogo na história ou até mesmo uso de flashback.
Muitas dessas vezes, também, as propostas passadas são consideradas “insossas”
por muitos desses jovens; ou então, no caso dos que tem o hábito e gosto por
escrever, há certo sentimento de cerceamento de liberdade criativa por conta do
número máximo de linhas. Além do fato que as narrativas não são tão levadas a
sério em detrimento dos textos dissertativos, em especial do nono ano em diante,
então: para quê e para quem estão escrevendo? Qual o objetivo e sentido de se
escrever a tal redação (além de uma possível nota para avaliação)? Para muitos é
apenas uma perda de tempo. E ainda vem a “cereja do bolo” já mencionada: após
receberem de volta seus textos corrigidos pelo professor, com os erros marcados em
vermelho e um juízo de valor, apenas o “entocam” em suas mochilas, sem se
preocuparem (em muitos casos) em uma revisão ou reescrita do texto – sendo que
muitas vezes o próprio professor não incentiva ou dá espaço para esse momento de
revisão e reescrita, já com pressa para passar ao assunto seguinte.
Isso pode ser considerado uma escrita “imatura”, rasa em desenvolvimento.
Mas como seria, então, uma escrita “madura” e criativa dentro do ambiente escolar?
26

3.2. A ESCRITA CRIATIVA

Antes de tudo, o que seria uma escrita criativa? Na concepção geral, é uma
expressão usada para designar toda escrita literária, como contos, poemas,
romances, novelas, etc., distinguindo-se, assim, da escrita técnica ou jornalística. A
criatividade está diretamente ligada à “criar”, inventar, e também é associada à
imaginação. Mas, em sala de aula, como essa escrita criativa poderia se manifestar?
Primeiramente, e isso é quase óbvio, fazendo o oposto do que foi pontuado no
tópico anterior, isto é: empregar às propostas de redação um objetivo, uma
motivação e um destinatário/público-alvo. Em suma, trabalhar com o texto dentro do
gênero, trabalhar com sua funcionalidade. Afinal,
Quanto melhor dominarmos os gêneros, tanto mais livremente os
empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa
individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos de modo
mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma,
realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso.
(BAKHTIN, 1992, p.285)

Assim, o trabalho com gênero se faz essencial, pois é o que dará a estrutura e
direcionamento necessários ao texto. É parte importante do processo da produção
entender por que e para quem se está escrevendo. Para alcançar a escrita dita
criativa, é imprescindível que o processo de produção seja mais crítico e reflexivo:
não basta simplesmente passar uma proposta “inovadora”, e negligenciar o
processo da construção textual, delegando tudo para a “criatividade” do aluno.
Para Giglio (1996) os critérios para a produção do texto criativo atentam para o
processo e não apenas para o resultado, e alguns desses critérios seriam
justamente: o conhecimento e uso da linguagem formal, saber ler e entender o texto
dentro do contexto em que se apresenta, conhecer sobre o que se vai escrever,
possuir e aumentar o repertório de informações, e ter motivação. Além disso,
enfatiza o papel do professor, que também precisa ser criativo. Afinal, como exigir
que os alunos sejam criativos se o próprio mestre não mostra como e não assume
tal atitude?
Voltando a Bereiter e Scardamalia (1987 apud SILVA, 2014), a escrita dita
“madura” seria então aquela que possui a reprodução de conhecimento já como
parte de um complexo processo de solução de problemas, em que o autor
constantemente faz escolhas conscientes no que tange ao conteúdo, retórica, léxico
e resoluções de problemas. No caso da narrativa, que é nosso enfoque aqui, seria
27

trabalhar o texto dentro da estrutura de conto e fanfiction, com função, destinatário, e


trabalhando cada etapa da construção do texto com um propósito final.
É assim que,
para se trabalhar um texto de forma criativa é preciso estar atento a
situações em que prevalecem a unicidade, a multidimensionalidade, a
simultaneidade, a urgência e a incerteza. Situações onde prevalecem a
unicidade, pois raramente um texto se assemelha a outro; a
multidimensionalidade, pois na maioria da vezes, as dificuldades surgem do
complicado cruzamento entre fatores sociais, psicológicos, educativos,
institucionais; a simultaneidade, pois deve-se trabalhar com o grupo, sem
descuidar de cada um; a urgência e a incerteza, pois os acontecimentos
podem tomar um rumo imprevisto, por isso ocorre desenvolver capacidades
de reação rápida. Vale ainda destacar que, dentro do processo de
desenvolvimento e aprendizagem, a criatividade se dá por meio da
interação com outras pessoas. Assim, o sujeito não é apenas ativo, mas
interativo. (AQUINO, DA SILVA JR. 2012, p.59)

Um último ponto que é vital para o processo de amadurecimento da escrita é a


revisão. Não apenas corrigir e apontar onde o aluno “pecou” em sua escrita, mas
também indicar o que pode ser melhorado e como, ajudá-lo a reler criticamente o
que escreveu e até mesmo reescrever, se for necessário. É a chamada “correção
dialógica” (RUIZ, 1998), em que professor e aluno refletem sobre o texto e há duas
linguagens em pauta: a linguagem do próprio texto (que é a redação do aluno), e a
linguagem interventiva do professor.
Por fim, é válido e essencial ressaltar que, embora o foco em questão aqui seja
o gênero da ordem do narrar, e que muitos, senão a maioria das pessoas, associe a
escrita criativa a uma escrita apenas ligada à imaginação em seu lado mais
“ficcional”, isso não corresponde à realidade: a criatividade é tão necessária e
imprescindível nas dissertações e descrições quanto nas narrações, e o processo de
escrita acima mencionado é cabível para toda e qualquer produção em sala.
4. DIALOGANDO COM AS FANFICTIONS: UMA SEQUÊNCIA
DIDÁTICA
Depois de tudo que foi discorrido nos capítulos anteriores, e levando em
consideração os objetivos deste trabalho, é proposta uma sequência didática em
que se busca trazer para alunos a partir do sexto ano a escrita criativa através de
fanfictions, na estrutura de contos.
Mas por que as fanfictions? Como já mencionado anteriormente, as fanfics têm
enorme apelo entre os jovens, sendo que muitos as produzem e publicam pela
internet, então seria mais fácil atrair a atenção deles em sala de aula e trabalhar a
produção textual de forma lúdica e ao mesmo tempo crítica: ensiná-los a pensar
criticamente sobre o próprio texto, além de também ser possível trabalhar a
ortografia e gramática de forma aplicada, ajudando-os a refletir e revisar os textos.
Na produção final, é pretendido que publiquem o texto em algum site, em
preferência em alguma conta coletiva para a turma.
Ao final dessa sequência, espera-se que os alunos sejam capazes de: 1)
conhecer a fundo a estrutura narrativa; 2) reconhecer e diferenciar contos, e seus
tipos, de outros gêneros; 3) adquirir um senso crítico com relação às suas
produções; 4) desenvolver o comportamento crítico leitor/autor durante o processo
de produção textual.
Pretende-se alcançar tais objetivos através de 3 módulos, que transcorrerão
pelo tempo mínimo de um bimestre – tempo que geralmente as escolas costumam
oferecer à cada “tipo textual” (como algumas ainda insistem em continuar seguindo).
A sequência também é perfeitamente adaptável para o ano em que se pretende
ministrá-la, inclusive na produção final seguem dois tipos de propostas para se
trabalhar. Também deve ser lembrado que o tempo para cada módulo vai variar de
acordo com a turma e a receptividade desta, assim como a seu nível de dificuldade
ou facilidade, podendo levar mais ou menos tempo que o estipulado.

4.1 OS MÓDULOS

Módulo 0: onde se apresenta a proposta do bimestre, o trabalho de narrativa


dentro da estrutura de conto, e o trabalho com fanfictions. Além disso, são
29

explicados os objetivos do bimestre e é distribuída uma tabela2 que mostra como


eles serão avaliados durante as correções – tabela esta que será melhor explicada
posteriormente. É também o momento em que se explica como serão as atividades
e o que se espera alcançar no final, a produção final, e os planos de publicá-la numa
plataforma na internet.
Explicados os objetivos e como se pretende alcançá-los, deve-se estabelecer
um diálogo com os alunos sondando seus gostos e conhecimentos pelo tema:
conhecem o gênero das fanfictions? Gostam de ler ou mesmo escrever? Qual tipo
favorito de narrativas (aqui abrangendo todos os tipos: dos livros às HQ’s, das
animações aos filmes e séries, até mesmo algumas músicas, para que até mesmo
aqueles que não costumam ler, se incluam na atividade)? Quais histórias mais
gostam? Por quais gêneros se sentem mais atraídos: terror, romance, aventura,
ação? Esse diálogo é importante não apenas para sondar os conhecimentos deles e
saber seus interesses – em cima dos quais irá trabalhar – mas também para
estabelecer uma proximidade com os alunos, que em muito auxilia no processo
produtivo, e engajá-los mais nas atividades.
Baseado no diálogo estabelecido, levar contos e fanfics curtas sobre alguns
dos gêneros e categorias mencionados – talvez seja uma boa ideia também sugerir,
aos que já estão familiarizados com o gênero e seu ambiente virtual, que tragam um
exemplo de fanfiction, de preferência curta. Ler um ou dois dos exemplos, tecendo
comentários acerca da estrutura de ambos os gêneros e das histórias em questão:
construção de personagens, tempo e espaço – simplificando ou aprofundando as
análises sobre a estrutura e elementos da narrativa de acordo com o ano com que
se está tratando.
Após isso, propor como produção inicial que eles escolham entre os contos, até
mesmo mais de um – se o aluno quiser arriscar um chamado “crossover”, comum
em muitas fanfictions – em que eles teriam que mudar algum ponto na história, que
poderia desencadear um final diferente, ou mesmo escrever sobre outra perspectiva;
poderiam também colocar como personagens quem eles quisessem. Como
acontece nos sites, eles teriam que colocar título, em quê se baseia a fanfic – qual a
categoria – e qual gênero. Essa é uma proposta que os deixa um pouco mais livres
em suas produções, permitindo até mesmo que o número de linhas máximo seja um

2
Em anexo.
30

pouco maior que o costume (uma lauda e meia no máximo). Será com base nos
resultados dessa primeira produção que os módulos seguintes irão trabalhar,
avaliando em que aspectos os alunos apresentaram mais dificuldades, e irão se
adaptar de acordo com a necessidade de cada turma.
Módulo 01: no qual se busca estudar passo a passo a estrutura e elementos
do gênero conto. Após ler a primeira produção escrita dos alunos, pontuando e
avaliando quais as maiores dificuldades que apresentaram, seja no aspecto
linguístico, seja no estrutural, assim como os pontos positivos – e é importante
apontar as falhas como “aspectos a serem melhorados”, com alguma sugestão de
como fazê-lo, em vez de apenas indicar os erros; isso aumenta a receptividade
deles, uma vez que verão uma forma mais concreta para melhoria.
Nesse módulo, entretanto, o objetivo é centrar na estrutura do gênero narrativo
conto, então, por algumas aulas vão centrar em cada parte que constitui a narração:
apresentação, complicação, clímax e desfecho. Quando estiver trabalhando com
uma parte, centrar apenas nesta: ler e analisar em outros contos (nos que já havia
lido antes com eles, mas também novos exemplos) como tal parte se desenvolve,
quais os conectores que o autor usa, assim como os “ganchos” que levam para o
outro momento e que prendem a atenção do leitor. É importante que eles tenham
noções das partes que constituem o texto, mas sem nunca perder de vista o todo
que elas compõem e que cada trecho analisado ali está seguindo um objetivo para
formar a mensagem completa desse todo.
Assim, ao se dar por concluída cada uma dessas partes, propor que eles
construam ao menos um parágrafo – mas frisando que não deve ser apenas algo
aleatório: vão ter que seguir o que começaram na parte de “apresentação”, pois
mesmo que essa produção seja fragmentada, terão que ter em mente ao menos a
ideia do “todo” que querem alcançar. No final, ao transcrever os parágrafos para
outra folha, poderão retificar e dar uma revisada antes de entregarem a folha. A
segunda produção é, portanto, a junção dessas partes.
Módulo 02: no qual se busca aguçar o senso crítico em suas próprias
produções. Seguir na segunda produção o mesmo modelo de correção dialógica que
usada na anterior. É necessário mencionar que a pontuação aferida nas produções
segue a tabela distribuída anteriormente, na apresentação da sequência (e que se
baseia na tabela de competências do ENEM, com devidas adaptações, e que pode
31

ser ainda mais simplificada de acordo com o ano/turma), deixando às claras como
se dá a correção.
A proposta dessa vez será um pouco mais dinâmica e até mesmo lúdica, em
sua primeira parte: formando grupos, serão dispostas tantas “ideias” de acordo com
o número grupos. Tais ideias consistem num “combo” de duas imagens ligadas por
uma espécie de palavra-chave, e cada “combo” será sorteado entre os grupos. Há
duas maneiras que se pode proceder a partir de ter as ideias devidamente
distribuídas: a primeira é que cada grupo irá escrever só a parte inicial da ideia que
recebeu e então passará para o outro, numa ordem em sentido horário ou estipulada
pelo professor (dando números aos grupos, talvez), de modo que cada um terá que
dar continuidade às histórias, deduzindo o que pode acontecer no enredo a partir do
que recebeu. Nesse primeiro estilo, os textos produzidos num processo totalmente
colaborativo e até mesmo intuitivo e como numa gincana, não serão pertencentes a
apenas um grupo específico, mas à turma inteira. Do segundo modo, caso não seja
possível o primeiro, por qualquer motivo que seja (desde preferências pessoais até
por muitos alunos na turma, impossibilitando uma boa dinâmica na atividade), essa
construção pode se dar apenas entre os alunos dentro do grupo, cada um
produzindo uma parte da história, depois de entrarem em comum acordo sobre o
todo do enredo. No segundo caso, o processo pode ser tão interessante quanto, e
talvez mais organizado.
A segunda parte da atividade é a qual realmente se propõe o módulo: a
revisão. Se a escola possuir os recursos de data show, seria interessante digitar as
redações para “corrigi-las” e comentá-las diante da turma. E então entraria em
questão tanto os aspectos estruturais do gênero, da construção do enredo, quanto
os lexicais: gramaticais, ortográficos, coesão, coerência e até mesmo estilo,
contemplando cada competência da tabela usada para a avaliação em sala, pondo
em evidencia os pontos altos e mostrando em que aspectos se pode melhorar nas
falhas apresentadas. Desse modo, os alunos vão ter a chance de estudar de modo
mais aplicado as regras da norma culta da língua, em um texto produzido por eles
mesmos e dentro de um contexto. Outra alternativa, caso a escola ou professor não
possuam recursos de multimídia disponível em sala de aula, seria (ainda tendo as
redações digitadas, para facilitar leitura) imprimir as redações, que não seriam
tantas, e bater cópia para os alunos e ir lendo pelo papel, e eles acompanhando com
suas cópias.
32

Se a turma, na parte da produção, tiver optado pela primeira proposta de


realização da tarefa, será interessante porque todas as produções analisadas serão
da turma inteira, e não estará apontando qual grupo escreveu o quê – então a
chance de constrangimento e timidez pode ser bastante reduzida por essa questão,
e pode angariar a participação da turma inteira (ou ao menos a maioria) na parte de
revisão dos textos. No caso de terem seguido a segunda alternativa, que pode ter os
mesmos benefícios mencionados da outra, também facilita para uma possível
reescrita da história – embora nada impeça que um único aluno se sinta impelido a
reescrever individualmente qualquer uma das produções, quer tenha escrito junto
com seu grupo do segundo modo, ou coletivamente com a turma.
Aliás, incentivar – se for possível – a reescrita de alguma das produções
anteriores, tendo em vista tudo que aprenderam sobre revisar os próprios textos,
para que exercitem o aprendido ali, seria uma boa ideia também, tendo em vista já o
resultado final da sequência.
Módulo 03: no qual se chega ao objetivo final da SD, fazendo uma produção
final. Esta produção final pode ou não contar como a “prova”, dependendo do
mecanismo da escola, ou podendo servir como trabalho avaliativo. A proposta para
a última produção também é adaptável de acordo com o ano.
A atividade nesse caso seria escrever uma fanfiction, publicando-a no melhor
site que se adaptar aos propósitos da turma e do trabalho: o que importa é que seja
publicado em um site mais interativo em que seja possível um rápido feedback.
Nesse caso, seria criada uma conta/perfil para a turma, para que postem suas
produções. Se a escola tiver o recurso de multimídia em sala de aula, é possível
criar a conta em sala mesmo, no data show, enquanto demonstra aos que não
conhecem como funciona ali (sendo que os jovens da atualidade costumam pegar
rapidamente esses mecanismos da internet) ou então passar todas as informações
necessárias a eles em sala de aula.
Na primeira produção, foi dada a liberdade de escreverem sobre o que se
sentissem mais afeiçoados, no universo ficcional que preferissem. A proposta agora,
no entanto, é que escrevam a fanfiction (conto) baseada em algo da literatura
nacional: para os mais velhos, podendo ser sobre alguma leitura obrigatória, para os
mais novos (do sexto e sétimo ano), algo talvez relacionado aos contos populares e
lendas brasileiras. É o momento de discutir as ideias com eles, pesquisas sobre as
possibilidades de ideias e temas. A produção pode começar em sala, mas não
33

necessita de que terminem nesse ambiente, ao contrário das outras produções. Eles
têm um limite maior de espaço para escrita do que as outras atividades também, já
que esse texto será digitado e publicado. Ajudá-los com a revisão e correção, mas
sendo mais no campo da sugestão ou quando pedirem ajuda, tentar não interferir
tanto e ver como se saem sozinhos. Se a escola possuir uma sala de informática em
funcionamento, levá-los até lá para que digitem seus textos de acordo com a versão
revisada e reescrita final.
Esse trabalho também pode servir de mote para introduzi-los em outros
gêneros posteriormente: resenha dos textos dos colegas, divulgação das histórias
em redes sociais, sinopse, críticas (construtivas) nos textos dos colegas através do
mecanismo de comentários. As outras produções feitas em sala, caso revisem,
também podem ser publicadas.
Esta sequência é apenas uma sugestão de como se trabalhar a escrita criativa
mesclando as fanfictions, com as quais a maioria dos jovens é familiarizada, em sala
de aula e também trazendo o ensino dos aspectos formais da língua de forma
aplicada. E como dito no começo, pode ser adaptada conforme o necessário de
acordo com os propósitos e objetivos desejados.
Assim, o que se busca mostrar no resultado final das produções é que o
importante não é minar os alunos com tantas redações, não é isso que os fará
escrever melhor; e sim, uma revisão eficiente e colaborativa com o professor, que
mostre o quê e como melhorar em vez de apontar erros, motivação e alguma
liberdade de trabalhar sobre aquilo que demonstram interesses. O momento de
produção textual não precisa e nem deve ser uma hora de “tortura”. Embora seja
mais trabalhoso, e deixar as coisas como estão seja o mais “fácil”, ninguém ganha
com isso: o aluno que não aprende, e o professor, que fica abarrotado de textos
para corrigir e às vezes precisa lutar para prender a atenção desses alunos. Então,
trabalhar em cima daquilo que eles têm interesse costuma ser o melhor caminho
para trazê-los para mais perto e alcançar a competência comunicativa almejada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao contrário do que alguns podem pensar, as fanfictions não são um gênero
novo, com a internet se popularizaram e ganharam mais espaço, fazendo parte da
vida de muitos que tiveram seu primeiro contato com a escrita criativa através dela.
Sendo um gênero que permite tanta maleabilidade, abrangendo estruturas que vão
deste o conto até romances, e tendo tanto apelo entre os jovens, é imprescindível se
pensar em estratégias que tragam essa “nova forma” de escrever para dentro da
sala de aula, e abandonar velhas práticas de trabalho com texto que já demonstram
estar mais que ultrapassadas e ineficientes.
Esse trabalho se propôs a investigar a possibilidade de trazer para a escola
aulas de redação em que seja trabalhado tanto o senso crítico dos alunos, quanto
sua criatividade, enquanto lhes dá certa liberdade para produzir. Esta sequência se
baseou, essencialmente, na teoria enunciativa e dialógica bakhtiniana, afinal, a
comunicação se dá pelos enunciados, que são dialógicos, ideológicos, e se
manifestam pelos gêneros discursivos, com uma intenção comunicativa em uma
situação específica. Assim, a sequência didática tem como base o dialogismo para o
aprendizado dos alunos, trazendo para isso a fanfiction, constitutivamente dialógica,
e também as correções propostas por Ruiz (1998). As fanfictions abrem espaço para
o trabalho com outros gêneros, que podem ser continuados através de outras
sequências didáticas ao longo do ano, o importante é que haja um trabalho crítico e
uma intenção maior do que apenas avaliações bimestrais: uma intenção
comunicativa e social, algo que os alunos possam aplicar e ver na prática como
funciona, no “mundo real”, um trabalho que não se restrinja à sala de aula.
Há certamente muitas maneiras de se trabalhar escrita criativa, afinal a
proposta é trabalhar com a criatividade, e aqui foi proposto desenvolver o senso
crítico quanto o criativo lúdico, pois assim a formação e capacidade de
desenvolvimento textual dos alunos serão mais bem incentivadas. No entanto, pelo
tempo reduzido, ainda não houve possibilidade para se aplicar a sequência e colher
seus resultados: o que é de fato aplicável em sala de aula e que aspectos podem
ser melhorados para aumentar o alcance de alunos e seu desenvolvimento. Há
sempre algo que pode ser aperfeiçoado e, em busca dessa constante melhora que
se vai desenvolvendo meios de aprendizagem mais eficientes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MARCUSCHI, Luiz Antônio et al. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: __
Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, v. 20, 2002. P.19-38
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1998. Disponível em: <http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/269074>
Acesso em: 01/08/17
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TODOROV, Tzvetan. Mikhail Bakhtine: Le Principe dialogique, suivi d'Ecrits du
Cercle de Bakhtine. Mikhail Bakhtin: The Dialogical Principle.Paris, Seuil, 1981.
36

VARGAS, Maria Lucia Bandeira. O fenômeno fanfiction: novas leituras e


escrituras em meio eletrônico. Universidade de Passo Fundo, 2005
ANEXO
Compet Norma Culta Tipo Coesão Estética
ências/
Notas
Nota 1 Domínio precário da Muito incoerente e pouco Articula as partes do Os recursos estilísticos
escrita formal, com convincente. A escolha de texto de forma são muito raros.
frequentes desvios estilo é na generalidade precária, com sérios e Vocabulário rudimentar
gramaticais inconsistente e/ou pouco frequentes problemas ou que não combine
gravíssimos e apropriada; os elementos em: frases quebradas com o estilo seguido.
graves, marcas de estruturais adequados ao e/ou justapostas,
oralidade e quebra tipo de texto são conector inadequado,
de enunciado. raramente usados. ausência de
parágrafos, etc.
Nota 2 Domínio regular da Texto parcialmente claro Articula de forma Recursos estilísticos
escrita, com grande mas pouco convincente. regular; repertório são limitados.
quantidade de Escolha de registro e limitado de recursos; Vocabulário rudimentar
desvios gravíssimos, estilo por vezes muitas frases ou pouco, mas
graves e leves, sem consistente / apropriada; quebradas, “combina” com o estilo
quebra de os elementos são usados sequências escolhido.
enunciado. de forma limitada, e por justapostas, frase sem
vezes, pouco oração principal;
apropriadas; cópia de regularmente conector
outros textos. inadequado, repetição
de palavras, etc.

Nota 3 Domínio adequado. Escolha de estilo Domínio adequado. Recursos estilísticos


Pode apresentar apropriada. Elementos Repertório pouco apropriados para o tipo
desvios gravíssimos, estruturais são usados na diversificado; poucas de texto são usados de
mas sem generalidade de forma frases quebradas e forma eficaz, mas
regularidade; e eficaz e apropriada; falta etc; eventualmente algumas vezes pouco
muitos graves e/ou de originalidade/senso repetição de palavras, variada.Vocabulário
leves. comum. conector inadequado, simples, mas de acordo
etc. com estilo; pontuação
um pouco mais
sofisticada.
Nota 4 Apresenta bom Escolha de registro e Bom domínio. Articula Os recursos estilísticos
domínio. Pode ter estilo eficaz e apropriada. as partes do texto com são adequados ao tipo
desvios gravíssimos, Os elementos estruturais poucas inadequações; de texto e são usados
mas sem se repetir, são usados e contribuem repertório de forma eficaz e
assim como para coerência e clareza diversificado; poucas diversificada.
pouquíssimos graves no decorrer do texto; frases quebradas e Vocabulário mais
e poucos leves. indícios de originalidade. etc; pode apresentar sofisticado de acordo
(e se repetir UMA vez) com estilo; pontuação e
conector inadequado e frases arrumadas de
etc. forma mais original.

Nota 5 Excelente domínio, Texto convincente, Excelente domínio. Recursos estilísticos


com nenhum desvio expressivo, revelando Articula bem as partes para o tipo de texto são
gravíssimo, e criatividade e sofisticação. do texto, com eficazes, diversificados,
pouquíssimos graves Escolha de registro e repertório e reveladores de
e leves, sem estilo eficaz e consistente; diversificado; não criatividade e
repetições. elementos estruturais do apresenta frases sofisticação. Escolhas
tipo são usados e justapostas e etc; lexicais/vocabulares
contribuem para pode apresentar (e sofisticadas; pontuação
coerência e clareza de não repetir) conector e estruturas frasais
forma absoluta. inadequado e etc. compostas de forma
mais criativa.
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