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ENTRE SILÊNCIOS E VOZES EM TEMPOS DE (IN)DELICADEZA


Uma proposta de leitura literária dialógica a partir da obra Capitães da Areia

Mariana Roque Lins da Silva – DRE 117235748


Aluna do Mestrado no Programa Interdisciplinar em Linguística Aplicada

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa


Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários para a obtenção do
Título de Mestre em Linguística Aplicada.

Orientador: Prof. Dr. Marcel Alvaro de Amorim.

Faculdade de Letras/ UFRJ


Junho de 2019

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ENTRE SILÊNCIOS E VOZES EM TEMPOS DE (IN)DELICADEZA
Uma proposta de leitura literária dialógica a partir da obra Capitães da Areia

Mariana Roque Lins da Silva


Orientador: Prof. Dr. Marcel Alvaro de Amorim

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em


Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do Título de Mestre em Linguística Aplicada.

Examinada por:

_________________________________________________________
Prof. Dr. Marcel Alvaro de Amorim – IFRJ/UFRJ (Orientador)

_________________________________________________________
Profª. Drª. Paula Tatianne Carréra Szundy – UFRJ

_________________________________________________________
Profª. Drª. Glenda Cristina Valim de Melo – UNIRIO

_________________________________________________________
Profª. Drª. Ana Flavia Lopes Magela Gerhardt – UFRJ (Suplente)

_________________________________________________________
Prof. Dr. Clecio dos Santos Bunzen Júnior – UFPE (Suplente)

Faculdade de Letras/ UFRJ


Junho de 2019

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Beatriz e Helena, minhas eternas companheiras nesta vida,
esta Dissertação nasce, como deveria ser, do conflito, do embate, de um ato de
coragem de voltar à academia para me (re)descobrir pesquisadora. “A mamãe vai passar
na prova!”, vocês diziam e repetiam. Eu acreditei que podia e, por vocês, lutei contra
meus medos e minhas inseguranças. Travei batalhas imensas por/com vocês, que viram
o tempo correr em sua ligeireza, esperando a mamãe, a todo momento, liberar-se das
correções, das leituras e das escritas sem-fim.
A vocês duas, com quem aprendo, verdadeiramente, a ser humana, dedico este
trabalho, como um compromisso de que a nossa luta por um mundo mais delicado e justo
não seja em vão. Com vocês, que ainda estão se letrando, leio este mundo como um lugar
para quem não teme o debate, para quem não foge à discussão criadora, para quem
acredita que a educação pode ser um ato de amor e de (trans)formação, como tanto
defendeu Paulo Freire.
Minhas meninas, minhas fortalezas, a vocês duas, todo o meu amor!

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Tentei entender, nos últimos meses, esse processo doído de escrita acadêmica.
Estive sempre à beira do quase: quase mãe, quase companheira, quase filha, quase amiga,
quase educadora, quase pesquisadora. Estive sempre em pedaços. Fiz-me inteira aqui,
mas fui descaminho em outros lugares. Fui ausência. Fui saudade. Fui vontade de ser o
todo. Na verdade, não é possível estar inteira tanto quanto desejo em tudo o que faço. A
escrita desta Dissertação colocou-me em contato com uma solidão doída, revestida de
culpa. Na verdade, eu sei, muitas mãos escreveram comigo. Não estive só. Foram muitas
as vozes que falaram comigo. Nem sempre o dialogismo requer presença física. Assim,
entendo que minha história familiar está aqui. Tiago está aqui. Minhas meninas estão
aqui. Muitos amigos estão aqui. Não são só palavras. É mais, muito mais. Sigo tentando
aprender a lidar com tanto.

“Os homens se educam em comunhão!”


(FREIRE, [1968] 2005, p. 79).

Àqueles e àquelas que estiveram comigo, minha imensa gratidão!


Ao Tiago, que me mostrou um outro mundo possível, com quem me sinto forte
para ir à luta, para ir à vida.
À minha mãe, que me ensina, desde sempre, o que é o amor – em palavras, abraços
e aconchegos sem-fim.
Ao meu pai, que me ensina a ler o mundo com ele, mesmo que o direito ao
letramento não lhe tenha sido assegurado.
À minha avó Ely, que cresci vendo em meio aos livros e com quem aprendi que a
leitura não é – porque não pode ser! – privilégio para acadêmicos.
Aos meus familiares, que entenderam minhas ausências, cuidaram amorosamente
das minhas meninas e torceram pela conclusão desta etapa na minha vida.
Ao Diretor e à Coordenadora de Ensino do 9º ano do Colégio, que autorizaram a
realização do meu trabalho e em quem senti a confiança necessária para o
desenvolvimento da minha pesquisa.
Às minhas companheiras Flávia Coutinho e Márcia Bichara, com quem divido
minhas angústias e minha convicção de que a educação pode ser transformadora.

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À minha amiga Maristela Memere, com quem aprendo a ser tantas: mãe,
educadora e companheira.
Às minhas amigas queridas Alessandra Bento, Daniele Costa, Fátima Ribeiro e
Priscila Maia, pelo incentivo e pelas risadas de sempre.
Aos meus amigos e às minhas amigas da graduação na UFRJ.
Aos meus companheiros e às minhas companheiras do grupo de pesquisa Práticas
de Letramentos na Ensinagem de Línguas e Literaturas (PLELL), com quem aprendo que a
interação acadêmica pode e deve ser generosa.
Ao Marcel Amorim, com quem tanto aprendi, pela orientação constante, firme e respeitosa.
À Anabelle Considera, pelo exemplo como mulher-mãe-professora-pesquisadora e pelo
incentivo de sempre.
Ao Clécio Bunzen, pela leitura atenta e pelas contribuições valiosas na Qualificação.
À Paula Szundy, ao Marcel Amorim, à Ana Flávia Gehardt, à Liana Biar e ao Luiz Paulo
da Moita Lopes, pelas aulas que me atravessaram e (trans)formaram durante o Mestrado.
Aos meus alunos e às minhas alunas, sem os quais todo este diálogo não teria sido possível;
sem os quais o meu fazer docente perderia o sentido.
À Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), minha casa na graduação, na
Especialização e no Mestrado, lugar de tantas (des)aprendizagens.

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RESUMO

ENTRE SILÊNCIOS E VOZES EM TEMPOS DE (IN)DELICADEZA


Uma proposta de leitura literária dialógica a partir da obra Capitães da Areia

Mariana Roque Lins da Silva


Orientador: Prof. Dr. Marcel Alvaro de Amorim.

Resumo da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Pós-


Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Mestre em Linguística
Aplicada.

Vivemos fissuras, fragmentações e desestabilizações na contemporaneidade. Assim, se o


homem apresenta natureza contraditória, heterogênea e fluida, não se pode esperar que
verdades essencializadas deem conta de responder às necessidades atuais. Dessa maneira,
sendo a literatura uma importante forma de expressão artística, erguendo-se como
caminho para o ser humano (re)pensar seu estar-no-mundo, a leitura da obra Capitães da
Areia, escrita em 1937 por Jorge Amado, ergue-se como proposta para a construção de
um processo de letramento crítico e dialógico, no qual professora e estudantes de uma
escola privada de classe média alta, no Rio de Janeiro, encontram espaço para assumir
sua atitude ativa-responsiva diante das questões sociais suscitadas pelo livro. Nesse
sentido, considerando a palavra e o seu território social – sempre interacional e
ideológico, portanto –, a leitura literária prevista pelo presente trabalho visa a ventilar
proposições acerca de conceitos do Círculo de Bakhtin, como heteroglossia, ideologia,
responsividade e exotopia, no contexto da leitura dialógica e da produção escrita discente.
Por isso, no que se refere ao processo de leitura literária da obra amadiana, constata-se
que tal atividade oportunizará aos participantes a instauração de consonâncias,
dissonâncias e multissonâncias. Ler e, de algum modo, vivenciar – nas linhas e nas
entrelinhas amadianas – a realidade de centenas de crianças e adolescentes que vivem nas
ruas pode ser um importante convite para que os estudantes se posicionem, por meio da
análise e da produção de discursos, sobre esse tema de grande relevância social. Nessa
perspectiva, consoante Bakhtin ([[1920-24] 2010a e [1975] 2010b e [1953] 2011), Moita
Lopes (2006) e Volóchinov ([1929] 2017), a desconstrução de verdades pré-concebidas
e a responsividade diante das problemáticas sociais das quais trata a obra são estratégias
imprescindíveis para a efetiva leitura literária dialógica.

Palavras-chave: leitura literária, dialogismo, heteroglossia, transposição narrativa.

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ABSTRACT

ENTRE SILÊNCIOS E VOZES EM TEMPOS DE (IN)DELICADEZA


Uma proposta de leitura literária dialógica a partir da obra Capitães da Areia

Mariana Roque Lins da Silva


Orientador: Prof. Dr. Marcel Alvaro de Amorim.

Abstract da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Pós-


Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Mestre em Linguística
Aplicada.

The contemporary world is a broken, fragmentated and non-stable one. Thus, if mankind
is contradictory, heterogeneous, and fluid in nature, one can’t expect that essentialist
truths will be able to respond to society’s current needs. As a result, since literature is an
important form of artistic expression, rising itself as a tool for the human being to think
his/her state of being-in-the-world, the reading of Capitães da Areia, written in 1937 by
Jorge Amado, was proposed as a procedure for the construction of a process of critical
and dialogical literacy, in which a teacher and students of a private upper middle class
school in Rio de Janeiro find a space to assume their active-responsive attitude towards
the social issues raised by the book. In this sense, considering the word and its social
territory - therefore always interactional and ideological - the literary reading proposed
by the present master thesis aims to ventilate propositions about Bakhtin Circle concepts,
such as heteroglossia, ideology, responsiveness and exotopy applied to the dialogic
reading and composition in a school context. Therefore, as far as the literary reading
process of the work is concerned, it is verified if such activity will allow the participants
to establish consonances, dissonances and multissonances. Reading and somehow
experiencing - in the amadian lines and between the lines - the reality of hundreds of
children and adolescents living on the streets can be an important invitation for students
to position themselves, through the analysis and production of speeches, on this subject
of great social relevance. In this perspective, according to Bakhtin ([[1920-24] 2010a and
[1975] 2010b and [1953] 2011), Moita Lopes (2006) and Volóchinov ([1929] 2017), the
deconstruction of preconceived truths and the responsiveness in face of the social
problems that this master thesis deals with are indispensable strategies for an effective
literary dialogical reading.

Keywords: literary reading, dialogism, heteroglossia, narrative transposition.

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“É preciso que haja algum respeito,
ao menos um esboço,
ou a dignidade humana se afirmará
a machadadas.”

(NETO, 2004)

“Depois de te perder
Te encontro, com certeza
Talvez num tempo da delicadeza”

(BUARQUE & BASTOS, 1987)

“a literatura não corrompe nem


edifica [...]; mas, trazendo livremente
em si o que chamamos o bem e o que
chamamos o mal, humaniza em
sentido profundo, porque faz viver.”

(CANDIDO, 1988)

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO..........................................................................................................13
1.1. O desassossego movente: eis aqui uma pessoa se entregando....................................13
1.2. O cenário político-ideológico no Brasil: breve diálogo entre o passado e o presente.16
1.3. O cenário da pesquisa: a leitura literária em uma escola particular de elite............. 20
1.4. Breve desenho da pesquisa: tema, questões e descrição dos capítulos.......................27

2. ENTRE (DES)APRENDIZAGENS E RESISTÊNCIAS: POR UMA EDUCAÇÃO


LITERÁRIA DIALÓGICA..........................................................................................31
2.1. O conceito de ideologia e a suposta neutralidade discursiva......................................34
2.2. Educação dialógica à luz da Linguística Aplicada INdisciplinar: por uma pedagogia
do conflito........................................................................................................................36
2.3. O tempo das mordaças: o perigo de movimentos como o Escola Sem Partido..........37
2.4. Contribuições dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de literatura?...42
2.5. A defesa da educação literária plural, democrática e humanizadora: um ato de
resistência........................................................................................................................47

3. A LEITURA DIALÓGICA DA OBRA CAPITÃES DA AREIA.............................55


3.1. A responsividade docente-discente no processo de leitura literária...........................56
3.2. O romance amadiano e o território social da palavra.................................................58
3.3. O discurso literário amadiano e a tensão entre vozes sociais......................................62
3.4. A heteroglossia dialogizada no romance-denúncia de Jorge Amado.........................63

4. POSICIONAMENTO METODOLÓGICO: AÇÃO, INTERPRETAÇÃO E


INTERVENÇÃO...........................................................................................................69
4.1. Percurso metodológico: Análise Dialógica do Discurso (ADD)................................71
4.2. Reconstrução do contexto.........................................................................................74
4.3. Proposta pedagógica e apresentação de textos em diálogo com o romance Capitães
da Areia............................................................................................................................76
4.4. Participantes ativos e responsivos situados no tempo e no espaço.............................80
4.4.1. Grupo focal: turma de 9º ano do EF............................................................80
4.4.2. Pesquisadora-participante........................................................................82
4.5. Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)..........................................................................83

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5. DIÁLOGO COM AS VOZES E OS SILÊNCIOS: EM BUSCA DE UM TEMPO
DE MAIS DELICADEZA.............................................................................................85
5.1. Produção textual escrita a partir da questão “Menores abandonados: e eu com
isso?”...............................................................................................................................97
5.2. Produção textual escrita: adaptação do capítulo “Família”......................................115
5.3. Produção textual escrita: adaptação do capítulo “Reformatório” em diálogo com o
capítulo “Orfanato”........................................................................................................123
5.4. Produção textual escrita: adaptação da trajetória narrativa de Pedro Bala, Professor
ou Pirulito......................................................................................................................130

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: SOBRE AFETAÇÕES E


(TRANS)FORMAÇÕES.............................................................................................138

7. REFERÊNCIAS.......................................................................................................145

8. ANEXOS...................................................................................................................153

ANEXO 1..........................................................................................................153

ANEXO 2..........................................................................................................155

ANEXO 3..........................................................................................................157

ANEXO 4..........................................................................................................159

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1. INTRODUÇÃO

Esta pesquisa, de natureza dialógica, nasceu da minha experiência como


professora em uma escola particular de elite1, localizada no Centro do Rio de Janeiro.
Devido à minha crença em uma escola democrática, pública, gratuita e de qualidade,
muitas inquietações acompanham, há dez anos, minha prática em colégios privados.
Assim, estar na pós-graduação pesquisando a minha realidade na sala de aula da
Educação Básica impõe-me uma urgência: ventilar propostas de respostas às perguntas
levantadas por Paulo Freire em sua obra póstuma Pedagogia da indignação: cartas
pedagógicas e outros escritos:
Há perguntas que temos que fazer com insistência, que nos fazem
ver a impossibilidade de estudar por estudar, de estudar sem
comprometer-se. Como se de forma misteriosa, de repente, nada
tivéssemos em comum com o mundo exterior e distante. Para que
estudo? A favor de quem? Contra que estudo? Contra quem
estudo? (FREIRE, 2000, p. 37, grifos meus)

Ao lançar-me na tentativa de buscar possíveis respostas a esses questionamentos,


é preciso, antes, entender-me no desassossego movente que me levou/leva à sala de aula.

1.1. O desassossego movente: eis aqui uma pessoa se entregando

“O homem existe no tempo. [...] Temporaliza-


se.”
(FREIRE, p.56, [1967] 2018)

“O pesquisador tem corpo, raça, desejo, classe


social, gênero [...], enfim, tem história.”
(MOITA LOPES, 2004, p. 166)

Muitos são os caminhos que percorremos ao longo da vida. Esses trajetos nos
constituem humanos em eterna (trans)formação no tempo e no espaço. Na minha história,
tão entrelaçada a outras tantas trajetórias, exerci e exerço muitos papéis sociais, dentre os
quais os de mulher, filha, aluna, mãe, educadora e pesquisadora. Dessa maneira, entendo que

1
Recorro aqui à perspectiva de Paulo Freire ([1967] 2018) de que as elites organizam e comandam a
sociedade – devido ao poder proveniente do capital que possuem –, exercendo seus privilégios. Trata-se,
portanto, da classe dominante à qual às massas subordinam-se.

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minha pesquisa não se aparta de mim, como ser humano, e, por isso, evoco o educador Paulo
Freire na epígrafe desta seção da minha Introdução para confessar que há aqui uma pessoa
se entregando, inteira, ao fazer acadêmico, sem que, para isso, seja preciso abandonar alguns
laços, tantas histórias e grandes ideais. É exatamente por me lançar inteira que este trabalho
me permite reunir memórias e quereres, encontros e desencontros, anseios e desassossegos.
Não sou educadora ao acaso. Desde muito nova, havia em mim uma força que me
impelia, ingenuamente, a brincar de professora. No entanto, a vida desenhava-se de modo
mais cru todas as vezes em que eu saía de Bangu, bairro onde morava com minha mãe, para
visitar meu pai na favela da Cidade de Deus (CDD), em Jacarepaguá. Em Bangu, região do
subúrbio do Rio de Janeiro, eu morava em uma localização central e estudava em uma escola
particular do bairro, tendo pouco contato com a realidade das escolas públicas da região. Na
rua em que morava, era notória a desigualdade: algumas casas com “altos e baixos”, piscina,
terraço; outras casas, embora reduzidas numericamente, ainda se apresentavam em tijolo e
reboco. No entanto, era na favela da Cidade de Deus – que era e não era um espaço meu –,
que minha narrativa sempre ganhava novos capítulos que se escreviam imponentes em sons,
cores e sabores. Em um momento, a memória me carrega para o almoço nordestino
preparado pelo meu pai: a carne seca bem temperada, o arroz, o feijão e a farinha, que se
fazia imperativa. Em outro momento, vejo-me pequena, ouvindo o tiroteio do lado de fora e
sendo levada para o quarto, porque era hora de deitar para dormir – era sono ou proteção? O
fato é que as chegadas e as partidas da casa do meu pai povoam minha memória com cenas
marcantes, como quando via jovens carregando armas pesadas ou vendendo/usando drogas.
É importante contextualizar que toda a minha família por parte do meu pai veio da
Paraíba para o Rio de Janeiro, buscando melhores condições de vida. A favela, para muitos
migrantes nordestinos, acaba sendo um destino comum. Foi lá, na CDD, que meu pai
cresceu, desde o primeiro ano de idade, quando chegou com os pais e mais dois irmãos. É lá
que ele mora até hoje. Pouco estudou. Ainda bem jovem, conseguiu trabalho em um posto
de gasolina – ocupação que teve até recentemente, quando chegou a “aposentadoria”. Fez
até a antiga quarta série do primário, mas mal sabe ler ou escrever.
De algum modo, as minhas vivências com minha família paterna deixaram em mim
inquietações profundas. Por que a educação se rarefaz nos espaços periféricos? Por que,
mesmo tendo estudado até o fim do Ensino Fundamental I, meu pai não sabe ler e escrever?
Por que, embora tenha trabalhado a vida inteira como merendeira numa escola municipal, o
letramento nunca foi viável à minha avó? Por que direitos são extirpados de uma grande
parcela da sociedade?

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Na época, certamente, eu não sabia, mas esses desassossegos viviam em mim quando
escolhia brincar em casa com quadro-negro, giz e livros didáticos reaproveitados de anos
anteriores. Não por acaso, embora tenha escolhido primeiro a sala de aula, logo em seguida,
descobri que lecionaria língua portuguesa e literatura, almejando contribuir para o
desenvolvimento de práticas pedagógicas de letramentos na sociedade. Hoje, graduada há
dez anos em Letras – Português/Literaturas – pela UFRJ e pós-graduada na Especialização
em Saberes e Práticas, com ênfase no ensino de língua portuguesa, da Faculdade de
Educação desta mesma instituição, reconheço as minhas vivências familiares e as do chão
da sala de aula da Educação Básica como fundamentais para a minha formação como
educadora e pesquisadora.
É certo que minha maior vivência na sala de aula deu-se em escolas privadas e, diante
de tudo o que vivo e vivi, um desassossego acompanha meu fazer docente. Não se trata,
porém, de uma inquietação que me paralisa ou amedronta. Pelo contrário, minha angústia
impulsiona-me a não aceitar de modo passivo certos discursos mercadológicos e liberais que
se tornam lógicas em algumas instituições de ensino. Como educadora que sou, guardo
princípios que não podem ser transpostos por práticas ou projetos que sejam dissonantes aos
meus ideais de educação.
Assim, entendo a pungente necessidade de retomar constantemente os motivos que
me levaram à minha escolha profissional para assumir que posso, quero e devo
comprometer-me sempre com uma prática docente que seja libertadora, como defende Paulo
Freire ([1967] 2018). Como educadora que sou, carrego comigo ideais de educação, os quais
me permitem rechaçar discursos escolares que prezam pela adestração ou pela
“domesticação”. Afino-me com a perspectiva de que a escola precisa contribuir para a
formação do homem-sujeito, e não do homem-objeto (FREIRE, [1967] 2018). Defendo o
posicionamento de que a escola deve preocupar-se com a humanização da sociedade.
O fato é que, na dualidade explícita da escola brasileira, uns podem pagar – ou pagar
mais – e têm acesso, por isso, a uma dita educação de qualidade, construindo valores e
conhecimentos para a liderança, enquanto outros vivenciam escolas restritas, destinadas à
formação de mão de obra (FRIGOTTO, 2018). Entendo que, como educadora, devo
questionar essa lógica, buscando desnaturalizar a visão da educação como mercadoria. Na
verdade, penso que, com a minha pesquisa, tentei exatamente questionar as potências e as
limitações do meu fazer pedagógico num espaço de ensino privilegiado. Estar na condição
de professora de uma escola privada de elite do Rio de Janeiro coloca-me constantemente
frente a esta questão: como, em um país tão desigual como o Brasil, diante de toda a minha

15
trajetória de vida, posso lecionar para quem paga caro pela educação sem que, com isso, eu
contribua, também, para a divisão da sociedade movida pelo capital?
Assim, a minha pesquisa compromete-se com o viés político-ideológico necessário
ao fazer pedagógico, rechaçando ideais que pretendam, de algum modo, criminalizar
propostas docentes críticas e dialógicas. Embora a perspectiva de “caça” aos professores já
seja uma lógica em muitas instituições privadas há tempos – o que pode culminar na
demissão de vários professores –, avalio o projeto Escola Sem Partido (ESP) como uma
tentativa de oficializar a prática de silenciamento da postura docente ativa e responsiva
(BAKHTIN, [1920-24] 2010) – sobre a qual tratarei mais adiante. Nessa perspectiva,
enxergo que o fazer pedagógico dialoga com tantos dizeres que estão sobrepostos nos
discursos do professor, dos estudantes e dos gestores das instituições, sendo inviável
qualquer neutralidade discursiva. Por isso, se enunciar é responder, conforme tratarei mais
adiante nesta Dissertação, cabe ao professor considerar a realidade social e econômica do
Brasil para decidir se enunciará em defesa da inclusão de direitos sociais, visando à
diminuição de assimetrias, ou reforçará a perpetuação da exclusão que se escancara em nossa
sociedade. A minha realidade de vida e os processos formativos por meio dos quais me
construí como professora não me deixam dúvidas: a sala de aula não pode apartar-se das
questões sociais que emergem no tempo e no espaço, abrindo-se, portanto, ao convite de
posturas ativas e responsivas do professor e dos estudantes.

1.2. O cenário político-ideológico no Brasil: breve diálogo entre o passado e o presente

“Com negros torsos nus deixam em polvorosa


A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
(...)
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
Não há, não há”
(BUARQUE, 2017)

Comunistas! Esquerdistas! Ou melhor, esquerdopatas! Seus petistas! Petralhas!


Vivemos tempos em que as vozes da “gente ordeira e virtuosa” – os cidadãos de bem –
ressoam adjetivos, “em polvorosa”, na tentativa de desqualificar aqueles que se colocam

16
em defesa dos direitos humanos. Embora a canção “Caravanas”, de Chico Buarque, tenha
sido lançada em 2017, não é tão recente o desejo de silenciamento das vozes que se
levantam para defender os menos favorecidos.
Em fevereiro de 2014, no Flamengo, um menor negro foi acorrentado a um poste,
nu, sendo espancado por ditos “justiceiros” do bairro da Zona Sul carioca 2. Sob o título
“Jovem negro é acorrentado nu em poste por grupo de ‘justiceiros’”, uma notícia do site
Pragmatismo Político3 relata brevemente o episódio denunciado por uma artista plástica,
moradora do bairro.
Na matéria, destaca-se a foto do jovem negro, nu, machucado e preso pelo pescoço
a um poste com uma tranca de bicicleta. O texto afirma que o adolescente “teria sido
atacado por um grupo de três homens, a quem chamou de ‘os justiceiros’”. Diz-se, ainda,
que internautas da rede social Facebook afirmaram que ele seria um ladrão. Uma artista
plástica, moradora do bairro, em defesa do menor, ressaltou: “Eu não quero saber se ele
é bandidinho ou bandidão, você não pode amarrar uma pessoa no meio da rua. (...) Sei
que tem muita marginalidade e a polícia é ineficaz, mas você não pode juntar um grupo
e começar a executar pessoas.” Logo em seguida, a mulher afirma ter começado a receber
ameaças em sua rede social, conforme relata na referida matéria: “Eu recebo ameaças por
defender, mas estamos falando de seres humanos. Recebi no Facebook a seguinte
mensagem: ‘Pra mim essa raça tem que ser exterminada com requintes de crueldade’. De
um rapaz jovem, que não deve ter nem 20 anos.”.
O fato é que acontecimentos como esses são frequentemente veiculados pela mídia
brasileira, reforçando o discurso daqueles que se veem como ordeiros e virtuosos, pregadores
da moral e dos bons costumes. Nesse cenário, de tensão entre vozes sociais, os discursos
entram em conflito: de um lado, há os defensores dos direitos humanos; de outro, os defensores
da máxima “bandido bom é bandido morto”4.
Dois anos depois da ocorrência com o menor negro acorrentado no Rio de Janeiro, em
meio a essa arena discursiva, o ano de 2016 desenhou-se sob nossos olhos de maneira

2
É importante ressaltar que a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro é a região que abriga a população de
maior renda per capita, de acordo com dados do IBGE de 2010, pesquisados em
http://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/UFs/RJ/Anexos/Sebrae_INFREG_2014_CapitalRJ.p
df.
3
Conferir na íntegra em https://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/02/jovem-negro-e-acorrentado-
nu-em-poste-por-grupo-de.html
4
Cabe ressaltar que não se tratam apenas de duas vozes em cena. Na verdade, muitos são os discursos que
se aproximam ou se distanciam da – complexa – concepção atual da direita e da esquerda. Nesse cenário,
entram em disputa discursos – mais ou menos – contraditórios, na tentativa de buscar verdades para as
questões sociais do momento vigente. Para tanto, faz-se necessário recorrer aos conceitos de forças
centrípetas e centrífugas (VOLÓCHINOV, [1929] 2017), os quais serão discutidos adiante.

17
devastadora: assistimos a um processo político antidemocrático que transformou a
conjuntura da presidência da república e, impiedosamente, deu espaço ao crescimento de
movimentos contrários à defesa dos direitos humanos. Nesse cenário, por meio de
medidas provisórias e projetos de lei como o Escola Sem Partido – do qual tratarei mais
adiante –, cresceram no país ideais que não entendem a educação como um espaço para
a emancipação dos sujeitos, mas para a reprodução tecnicista5 de listas de conteúdos
didáticos – a serviço de interesses mercadológicos e da lógica neoliberal de avaliação da
educação, pautada por ideias de competências e habilidades, por exemplo – e para a
manutenção dos privilégios da classe dominante (GADOTTI, 2012).
Assim, a partir do golpe de 20166, o conservadorismo ganhou mais espaço e força
discursiva na sociedade brasileira, visando a descontruir as mudanças sociais engendradas
pelos anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT). Nesse sentido, a crise
instaurada no referido governo aparece como um aguçamento de conflitos de classes, que,
como afirma Marilena Chaui (2016, p. 25), representa “um conflito distributivo, pela
apropriação da riqueza, e ele envolve diversas classes e frações.” Não se trata, portanto,
do capitalismo contra o socialismo, mas de uma aparente luta contra a histórica corrupção
no país – escancarada e denunciada durante o governo petista. De acordo com Chaui
(2016, p.25), “de um lado, teríamos um governo e um partido corruptos e, de outro, um
grande arco oposicionista interessado em instaurar a moralidade pública”. No entanto, o
entrave contraditório dessas forças anticorrupção revelou-se no momento em que se
afastou a presidenta7 Dilma Rousseff. Nesse momento, o crescente movimento
antipetista, como fenômeno sociológico, torna-se uma “síntese antiesquerda, antigay,
antinegro, antimovimento social” (BOULOS & FERREIRA, 2016, p. 141).

5
Refiro-me à perspectiva da escola como espaço para o desenvolvimento de conhecimentos voltados para
uma formação positivista, cujo fim é o mercado de trabalho.
6
Aqui, escolho o vocábulo “golpe” por entender que o processo de impeachment da ex-presidenta Dilma
Rousseff deu-se de maneira antidemocrática, como defendem os autores dos artigos do livro Por que
gritamos golpe? – alguns citados por mim nesta Dissertação. Trata-se, portanto, de um posicionamento
discursivo. Reconheço que o governo do Partido dos Trabalhadores foi de conciliação de classe, evitando
confrontos com as forças do mercado. No entanto, ainda assim, não se trata de uma prova que criminalize
o mandato da ex-presidenta a fim de que se possa legitimar sua retirada do poder.
7
Defendo aqui a legitimidade ideológica da adoção do vocábulo “presidenta”, uma vez que, num país em
que as mulheres conformam a maioria estatística e, ao mesmo tempo, sofrem com menores oportunidades
e salários, além da constante violência que lhes é imposta – o que inclui os inúmeros casos de estupro e de
feminicídio –, foi necessário que a primeira mulher eleita no país registrasse seu poder, como mulher, por
meio de tal escolha lexical. Caso contrário, a mídia corrente não a reconheceria em todo o seu direito e em
toda a sua potência feminina. Isso quer dizer que, se vivemos na encruzilhada da democracia (SANTOS,
2018), constantemente ameaçados por forças centralizadores, posicionamentos linguísticos parecem-me
potentes e necessários à sobrevivência e à resistência do povo brasileiro.

18
Percebe-se, no entanto, que os conflitos entre as vertentes mais progressistas e as
mais conservadoras não são novidades no país. Paulo Freire afirma, em seu livro
Educação como prática da liberdade, de 1967, que o Brasil, àquela época, era um país
em transição. De acordo com o educador, o país nasceu e cresceu dentro de condições
negativas às experiências democráticas, sem relação, portanto, com o diálogo. O processo
de colonização a partir do qual nossa sociedade constituiu-se aconteceu por meio de uma
forte exploração econômica, proveniente de uma prática colonizadora predatória e
comercial, sem que houvesse preocupações ou interesses civilizatórios. Freire, sobre isso,
afirma:
O sentido marcante de nossa colonização, fortemente predatória, à
base da exploração econômica do grande domínio, em que o “poder
do senhor” se alongava “das terras às gentes também” e do trabalho
escravo inicialmente do nativo e posteriormente do africano, não
teria criado condições necessárias ao desenvolvimento de uma
mentalidade permeável, flexível, característica do clima cultural
democrático, no homem brasileiro. ([1967] 2018, p. 91)

Assim, para que a transição ocorresse e a sociedade ultrapassasse o mutismo, o


silêncio imposto pelo poder do colonizador, Freire advoga em benefício do homem que
não vive apenas, mas que existe. “Existir é individual, contudo só se realiza em relação
com outros existires” ([1967] 2018, p. 57), afirma o educador. É por meio do seu estar no
mundo, da sua existência, que o homem pode temporalizar-se, desvelando seu passado
histórico para conseguir construir seu porvir. “O homem pode ser eminentemente
interferidor” ([1967] 2018, p. 56), o que o integra à realidade, a fim de transformá-la.
Sobre isso, Freire estabelece uma importante distinção: o povo pode relacionar-se com
sua história a fim de alcançar a acomodação – como sujeitos objetificados,
desumanizados, coisificados, que visam apenas à adaptação; ou, ao contrário, pode,
enfim, historicizar-se para alcançar a integração, visando à transformação.
A educação brasileira pode, portanto, estar a serviço do tempo unidimensional, do
hoje e do fortalecimento do poder exacerbado nas mãos de poucos ou pode, efetivamente,
assumir seu caráter “dialogal” (FREIRE, [1967] 2018, p. 65). Paulo Freire estabelece uma
distinção entre a “sociedade fechada”, escravocrata, predatória, antidialogal, e a
“sociedade aberta”, aquela que pretende superar a situação dramática, visando a alcançar
a democracia, partindo do mutismo ao dialogismo, da opressão à liberdade.
É evidente, portanto, que esta pesquisa se coaduna com os anseios da chamada
“sociedade aberta”, transitiva-crítica, que “descruza os braços, renuncia a expectação e
exige a ingerência”, aquela que já não se satisfaz em assistir, porque deseja participar

19
ativamente. Essa perspectiva agentiva da educação, conforme será desenvolvido mais
adiante, pressupõe uma sala de aula aberta aos embates e à pluralidade discursiva. Freire
afirma, no entanto, que os movimentos da sociedade em trânsito, movente, abrindo-se,
ameaçam a elite detentora do poder no Brasil. O desenvolvimento da tomada de
consciência pelo povo amedronta as elites privilegiadas. Por isso, são rotulados aqueles
que se envolvem no dinamismo do trânsito de “subversivos” (p. 76, [1967] 2018). É esse
comportamento visto como “subversivo” que favorece a educação crítica e criticizadora,
voltada para a tomada de decisões, para a responsabilidade social e política. Nesse
sentido, Freire enxerga que a educação é um ato de coragem, que não pode temer o debate,
a análise da realidade, “não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa.”
([1967] 2018, p. 127). Para tanto, consoante Freire, defendo em minha pesquisa uma sala
de aula ativa, crítica e dialógica.

1.3. O cenário da pesquisa: a leitura literária em uma escola particular de elite

“Quanto mais se exercitem os educandos no


arquivamento dos depósitos que lhes são feitos,
tanto menos desenvolverão em si a consciência
crítica de que resultaria a sua inserção no mundo,
como transformadores dele.”
(FREIRE, [1968] 2010, p. 68)

“Essas crianças estão nas ruas porque, no Brasil,


ser pobre é estar condenado à marginalidade.
Estão nas ruas porque suas famílias foram
destruídas. Estão nas ruas porque nos omitimos.
Estão nas ruas e estão sendo assassinadas.”
(BETINHO, 1992)8

O educador Paulo Freire, na defesa de uma prática pedagógica comprometida com


a formação de uma consciência crítica e dialógica, revelou-nos a concepção bancária de
educação. Para ele, uma sala de aula comprometida apenas com depósitos de conteúdos
afasta os educandos de uma perspectiva humanizadora de educação, sendo eles meras
tábulas rasas. Nesse sentido, como não posso, devo ou quero pensar meu fazer docente de
modo apartado das questões sociais brasileiras, é importante conhecer a realidade da escola

8
Fala pública de Betinho, em 1992, reproduzida pelo site
http://blogs.correiobraziliense.com.br/aricunha/fome-de-politica-publica-que-de-autonomia/. Acesso em
08.06.2019, às 21h06.

20
privada na qual desenvolvi minha pesquisa a fim de que se compreendam, mais adiante,
as escolhas relacionadas à leitura literária que permeou todo o percurso do meu trabalho.
Sou professora de uma das unidades de uma escola privada de classe média alta,
localizada no Centro do Rio de Janeiro, com cerca de 1.800 alunos, atendendo da Educação
Infantil ao Ensino Médio, com mensalidade que varia de três a quatro salários mínimos9.
A instituição formou-se no Brasil com forte vínculo com a colônia alemã no Rio de
Janeiro, recebendo os filhos dos imigrantes que aqui chegavam e estabeleciam-se. No
colégio, há, portanto, grande ênfase no ensino dessa língua estrangeira, tornando-se
referência para famílias de classe média alta que buscam no alemão um diferencial para
a educação de seus filhos.
Nos últimos anos, o colégio colocou-se nas primeiras posições dos rankigns
externos, sendo procurado também pela possibilidade de promover o sucesso dos
estudantes no momento da aquisição de vagas nas diversas universidades. Por isso, o
perfil de muitas famílias é delineado por uma visão de educação padronizada, que nutre
a expectativa de que os alunos e as alunas sejam capacitados tecnicamente para ocuparem
os primeiros lugares.
Dia após dia, ônibus escolares, carros particulares e táxis param na porta do colégio
para deixar os estudantes. A poucos metros dali, no entanto, existem prédios ocupados por
pessoas que não têm moradia formal. Mais adiante, há uma praça, conhecida por “abrigar”
inúmeros moradores de rua, de idades variadas. A bolha que se ergue entre a escola separa
alunas/alunos e professoras/professores – o mundo do “saber”, enfim – do entorno social
do colégio. Por ali, diariamente, passam (ou permanecem) centenas de pessoas de quem
direitos são constantemente extirpados. Por isso, um questionamento instigou minha
prática nessa instituição privada de ensino: de que modo podem ser as aulas de língua
portuguesa, literatura e produção textual10, no 9º ano do Ensino Fundamental II, um
convite à abertura de portas, ao atravessamento de ruas e ao ressoamento de vozes
silenciadas?
Se vivemos, como está posto, um período de competição extrema, em que
progressos e avanços tecnológicos definem exigências para o mercado de trabalho, é
evidente que as aulas de língua portuguesa no 9º ano – que compreendem o ensino-
aprendizagem de leitura (literária), análise linguística e produção textual – geram a

9
O salário mínio, atualmente, está em R$ 954.
10
No capítulo de Metodologia, apresentarei como as aulas de língua, literatura e produção textual são
organizadas, na escola onde realizei a pesquisa, para o último ano do Ensino Fundamental II.

21
expectativa de que os estudantes consigam chegar ao Ensino Médio capazes de ler e
escrever de acordo com as demandas dos exames externos, preparados, desse modo, para
ingressar no Ensino Superior. Prolonga-se, nessa perspectiva, a lógica do mercado e
ignora-se, assim, que o ensino de língua e literatura deve extrapolar a finalidade
positivista11, possibilitando ao corpo discente uma formação humana e cidadã.
Assim, com o foco na perspectiva de educação freiriana libertadora, minha
pesquisa desenvolveu-se no 9º ano do Ensino Fundamental da referida escola por meio
da proposta de leitura literária dialógica da obra Capitães da Areia, do escritor baiano
Jorge Amado. É importante destacar que tal livro consta da lista de material do colégio
há alguns anos, acompanhado de outras obras12 que são lidas mais adiante no ano letivo,
também com enfoque social. Durante a minha pesquisa, busquei investigar a relação que
as alunas e os alunos estabeleceriam com personagens cuja realidade de vida é similar à
daqueles que vivem no entorno do colégio, invisibilizados pelos vidros dos automóveis e
pelos altos muros da escola.
É significativo destacar que o romance Capitães da Areia, publicado em 1937 por
Jorge Amado, nessa esfera de acontecimentos recentes no país, parece-nos extremamente
atual. Aproximando-se da realidade, a obra inicia-se com uma fictícia reportagem do
Jornal da Tarde. Nela, lê-se:
Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das
mais legítimas aspirações da população baiana, tem trazido notícias
sobre a atividade criminosa dos Capitães da Areia, nome pelo qual
é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam
a nossa urbe. [...] Esse bando que vive da rapina se compõe, pelo
que se sabe, de um número superior a cem crianças das mais diversas
idades, indo desde os oito aos dezesseis anos. Crianças que,
naturalmente devido à sua educação por pais pouco servidos de
sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos a uma vida
criminosa. (AMADO, [1937] 2008, p. 11, grifos meus)

Nota-se, claramente, a tentativa do autor de (re)criar discursos midiáticos na


abertura do livro. Assim, verifica-se que as ações criminosas dos menores são justificadas
devido à falha em sua educação por pais “pouco servidos de sentimentos cristãos”. Mais
adiante, ainda, diz-se que “o que se faz necessário é uma urgente providência da polícia
e do juizado de menores no sentido da extinção desse bando” (AMADO, 2008, p. 11,

11
Aqui, entendo o paradigma positivista como aquele que valoriza o quantitativo, o racionalismo, o desejo
de alcançar a verdade absoluta, a padronização e a generalização. Conforme Moita Lopes (2004, p. 332),
“na visão positivista, as variáveis do mundo social são passíveis de padronização, podendo, portanto, ser
tratadas estatisticamente para gerar generalizações.”
12
No 9º ano, nos dois últimos trimestres, trabalhamos, ainda, com o texto dramático Auto da Compadecida,
de Ariano Suassuna, e com o poema Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto.

22
grifo meu). Torna-se evidente, portanto, que a suposta reportagem que abre o romance
visa a veicular o discurso de ódio com o qual parte da mídia costuma tratar os casos de
infração praticados por menores.
Fica claro, nessa perspectiva, que o romance busca denunciar uma realidade da
década de 1930 de abandono, privação e miséria a que menores estavam submetidos no
tecido ficcional da obra, mas que, durante a leitura, entremeia-se à realidade dos tempos
atuais. Acontecimentos atuais frequentes, como o linchamento de menores infratores e as
péssimas condições das casas/reformatórios para as quais são enviados, podem contribuir
para que leiamos as palavras de Jorge Amado com um olhar atento, curioso e
investigador. Por que, comumente, nas notícias veiculadas pela “mídia empresarial”
(FRIGOTTO, 2018, p. 23), esses menores somente representam o mal? Por que nunca
ocupam o lugar de vítimas? Suas histórias de vida e as negligências do Estado em nada
contribuem para as suas práticas?
Torna-se evidente que, no momento político que vivemos, propor a leitura de
obras literárias com temáticas sociais é sobrepujar a lógica limitada de projetos como o
referido Escola Sem Partido. Em seu site, o ESP apresenta-se como defensor da realidade,
baseando-se em uma pretensa “neutralidade”. Assim, convida os jovens a denunciarem o
que chamam de “professor doutrinador” (de esquerda13, é claro!):
Se você sente que seus professores ou os professores dos seus filhos
estão comprometidos com uma visão unilateral, preconceituosa ou
tendenciosa das questões políticas e sociais; se percebe que outros
enfoques são por eles desqualificados ou ridicularizados e que suas
atitudes, em sala de aula, propiciam a formação uma atmosfera de
intimidação incompatível com a busca do conhecimento; se observa
que estão engajados na execução de um projeto de engenharia social,
que supõe a implementação de uma nova escala de valores, envie-
nos uma mensagem relatando sua experiência (acompanhada, se
possível, de elementos que possam comprová-la).14

Dessa forma, percebe-se claramente que o cenário de “caça às bruxas” ou de “caça


aos doutrinadores” pode ganhar espaço quando o livro a ser lido com/pelos estudantes
foca na defesa da humanidade de menores abandonados e, por vezes, infratores – como é
o caso dos protagonistas da obra Capitães da Areia. Nesse sentido, torna-se possível o

13
É importante destacar que, no cenário brasileiro atual, não é tão simples definir esquerda e direita. No
entanto, é perceptível o fato de que a defesa dos direitos humanos tem sido vista como uma bandeira
esquerdista – ou “esquerdopata”, como dizem alguns –, sendo associada, portanto, a vertentes comunistas.
Nas palavras de Boulos & Ferreira (2016, p. 141), “mesmo o PT não tendo feito um governo de esquerda,
fez o suficiente para a direita não tragar e simbolicamente reagir contra os ‘vermelhos’, os ‘bolivarianos’ e
os ‘comunistas’.”
14
Disponível em http://www.escolasempartido.org/apresentacao. Acesso em 02.05.2017, às 17h36min.

23
surgimento de pensamentos que entendem o trabalho com a obra de Jorge Amado como
“doutrinação de esquerda”15. Mais adiante, na análise dos dados, tratarei das reações ao
livro ocorridas no ano da minha pesquisa. Cabe, ainda, acrescentar a informação de que
é frequente que pais marquem reuniões com as coordenações pedagógicas do colégio a
fim de sinalizar insatisfações, inclusive no que se refere às escolhas textuais de equipes
de língua portuguesa, história e geografia. Já houve, também, o caso de um aluno que
entregou uma cartilha do ESP para que a coordenação distribuísse para os professores.
Soubemos do ocorrido, mas – ainda bem! – não chegamos a receber o material.
Entendo que, para alguns, ouvir os discursos dos oprimidos16 pode gerar
incômodos. Como nos ensina Paulo Freire ([1968] 2010, p. 19), “a libertação, por isso, é
um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce desse parto é um homem novo que
só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação
de todos.” Por essa razão, faz-se necessário pensar se a leitura literária da obra Capitães da
Areia pode propiciar a problematização de discursos pré-concebidos, abrindo espaço para um
olhar docente-discente comprometido com a diminuição das desigualdades que assolam a
sociedade brasileira. Cabe, nesta pesquisa, investigar de que modo, portanto, pode um
estudante de uma realidade privada privilegiada deslocar-se para a realidade dos menores
abandonados, ao mesmo tempo em que retorna ao seu lugar, assumindo uma posição
responsável e responsiva (SZUNDY, 2014) diante das questões referentes às desigualdades
do país.
Dessa maneira, por acreditar no poder da leitura literária, o trabalho dialógico
proposto com a obra Capitães da Areia, de Jorge Amado, ergue-se, para mim, como
caminho possível para desconstruir injustiças e segregações. As aulas tornam-se, assim,
espaço aberto para a leitura do texto literário em si e para a leitura de nós mesmos, do
outro, do mundo, enfim. Isso porque a “leitura literária permite preencher vazios do texto
ao mesmo tempo em que preenche os vazios da própria subjetividade”, conforme nos diz
Pacheco (2004, p. 2010). A autora afirma, ainda, que “a literatura, justamente por sua
dimensão estético-polifônico-dialógica, permite esse mergulho no outro paralelamente ao

15
Como “doutrinação de esquerda”, compreende-se a visão segundo a qual a defesa dos direitos humanos
constituiria uma forma de impor ideais político-ideológicos de partidos de esquerda. Essa visão é reforçada
pelo anteprojeto de lei federal Programa Escola Sem Partido, que, em seu Art. 2º, defende a neutralidade
política e ideológica no que se refere aos princípios da educação nacional. É importante frisar que entendo
educar como um ato político (e não partidário), isto é, de intervenção e transformação social, perspectiva
essa contrária à tese do projeto ESP.
16
Por “oprimido” entende-se, conforme Freire (2005), aquele que tem seus direitos humanos negados,
sufocados pelos “opressores”, ou seja, pelo grupo social e economicamente dominante.

24
mergulho no próprio eu.” (p. 211). Como arte da linguagem, a literatura ergue-se sempre
no intermédio, no diálogo. Por isso, entendo que
a arte, então, pode ser vista, na sociedade capitalista, como um meio
para transcender uma realidade mesquinha, que isola as
individualidades numa relação alienante. Ao evocar a
transcendência dessa realidade, está, ao mesmo tempo, evocando a
sua transformação, a possibilidade de plasmá-la segundo novos
ideais. Nesse movimento, não está presente apenas a consciência
aguçada do artista, mas sim uma corrente de consciências e vozes
que se presentificam com base numa tradição buscando,
paralelamente, uma orientação futura (PACHECO, 2004, p. 217).

Nesse sentido, na perspectiva da Linguística Aplicada “mestiça”, “transgressora”


(MOITA LOPES, 2006), entendida como prática interrogadora, compreendo que o
ensino-aprendizagem de literatura deve abarcar os desafios do mundo contemporâneo,
globalizado, repleto de injustiças, convidando-nos a repensar as periferias17. Como nos
afirma Fabrício,
tal posição, sem desprezar conhecimentos consagrados, nos força a
contínuos deslocamentos, movimentando o ângulo de observação do
centro (...) para as franjas do sistema globalizado, para as
organizações invisíveis, para as periferias, para as formas
consideradas subalternas ou inferiores. (2006, p. 51, grifo meu)

Para isso, apesar dos movimentos conservadores de extrema-direita, as aulas de


literatura se propõem a inaugurar um diálogo com as questões sociais de menores
abandonados, que, com idade próxima à dos meus alunos e à das minhas alunas, não têm
seus direitos garantidos pelo Estado, permanecendo alheios à construção de
conhecimento – caminho tão privilegiado para quem pode estudar em escolas particulares
de elite no Brasil. Considera-se, pois, o que defende o Estatuto da Criança e do
Adolescente (BRASIL, 1990), em seu artigo 4º,
é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Assim, acreditando no ensino-aprendizagem de literatura como caminho para ver


o mundo por meio de um “par diferente de óculos” (MOITA LOPES, 2006), entendo que
a sala de aula pode possibilitar a análise do contexto social em que sujeitos heterogêneos
são atravessados, contestando verdades universais e propiciando um ensino que não se

17
De acordo com Ana Lúcia Silva (2011, p. 30), ser das periferias significa “sofrer discriminação social e
racial, não tendo acesso a bens públicos de qualidade, ver os ‘irmãos’ morrendo ou sendo presos, viver a
realidade do desemprego, das drogas e da violência.”

25
comprometa com a manutenção do constante abismo existente entre aqueles que estão
nos centros e os que estão nas periferias18. Acredito, dessa forma, que a leitura e os
debates baseados na referida obra de Jorge Amado podem encaminhar uma perspectiva
de educação humanizadora, contrária à ótica positivista. Desse modo, em consonância
com o que postula Tiago Cavalcante da Silva (2015, p. 56), defendo que o viés
humanizador
deve ganhar corpo na educação básica, pois é por meio del[e] que
penso haver a possibilidade de não reproduzirmos/reiteramos o
social que está posto, mas sim de o rearranjarmos, provocando o
deslocamento do lugar histórico, político, ideológico, econômico,
cultural que ocupamos.

Considero, portanto, a necessidade de intensificação do diálogo entre os teóricos


da Educação, os da Linguística Aplicada INdisciplinar e os da Literatura. Isso porque
concordo que “se o texto é nossa matéria comum, não há porque manter o fosso entre as
abordagens feitas. Tal postura não significaria ignorar as tensões e contradições, e sim
encará-las como pontos de inquietação e produtividade.” (WALTY, 2004, p. 192). A
literatura é, pois, lugar de pluralidade, de diálogo.
Com a leitura da referida obra e os consequentes debates produzidos com/pelos
estudantes, buscarei propor, por meio de atividades de produção textual escrita, a
transposição19 do foco narrativo da história, conforme detalharei na Metodologia,
permitindo-lhes (re)narrar os lugares sociais ocupados pelas personagens daquele
universo ficcional. Desse modo, compreendo que assumir discursivamente as vozes
sociais dos sujeitos que estão à margem – os menores abandonados na rua – pode
constituir um processo que vise à pluriversalidade do conhecimento e à criação de
inteligibilidades sobre a vida contemporânea.
É, portanto, a leitura literária dialógica um caminho para o desenvolvimento de
uma sala de aula comprometida com a formação humana e cidadã. Nesse sentido,
cerrando fileiras com Soares (2004, p. 31), entendo que “a leitura literária democratiza o

18
Ressalta-se que se entendem os “centros” como espaços em que os sujeitos têm seus direitos
constantemente atendidos e respeitados, o que não ocorre nas ditas “periferias”, as “franjas” da sociedade.
Como defende Moita Lopes (2006, p. 86), o desafio do mundo contemporâneo é criar inteligibilidades sobre
a vida [...] ao produzir conhecimento e, ao mesmo tempo, colaborar para que se abram alternativas sociais
com bases nas e com as vozes dos que estão à margem: os pobres, os favelados, os negros, os indígenas,
homens e mulheres homoeróticos, mulheres e homens em situação de dificuldades sociais e outros. O autor
afirma, ainda, que talvez, “ao conhecer as margens em sua própria voz, também seja possível conhecer o
centro.” (2006, p. 94).
19
Para tratar do conceito de adaptação e transposição discursiva, recorri à obra Adaptation and
Apropriation, de Julie Sanders (2006).

26
ser humano porque mostra o homem e a sociedade em sua diversidade e complexidade, e
assim nos torna mais compreensivos, mais tolerantes.” Além disso, considero que “a
leitura literária democratiza o ser humano porque traz para seu universo o estrangeiro, o
desigual, o excluído, e assim nos torna menos preconceituosos, menos alheios às
diferenças” (SOARES, 2004, p. 32).

1.4. Breve desenho da pesquisa: tema, questões e descrição dos capítulos

O tema proposto para a minha Dissertação é a investigação acerca do impacto


da leitura da referida obra na construção da visão ética20 de mundo de estudantes de
uma escola particular que atende a alunos e alunas de classe média alta, no Centro do
Rio de Janeiro, favorecendo o conhecimento significativo e comprometido com a
ressignificação de lugares sociais. Para isso, foram propostas atividades de produção
escritas baseadas na transposição discursiva do foco narrativo da obra (da 3ª para a 1ª
pessoa do discurso).
Com base no que proponho para esta Dissertação, busco ventilar proposições para a
seguinte questão de pesquisa:

• De que modo a leitura literária dialógica e a produção discursiva dos estudantes,


por meio da transposição do foco narrativo da obra trabalhada e dos debates em
sala de aula, possibilitam aos alunos e às alunas a aproximação das vozes sociais
daqueles que são cotidianamente silenciados, ressignificando discursos pré-
concebidos?

Além disso, tal questão desdobra-se nestas outras subquestões:

• Do lugar social ocupado pelos alunos e pelas alunas da escola em que atuo, como
será possível contestar discursos hegemônicos, encaminhando-os para uma
trajetória mais questionadora e ética?

20
Por ética, entendo um agir no mundo comprometido com a responsividade e a responsabilidade de que
trata a obra Por uma filosofia do ato, de Bakhtin. A ética refere-se a um viver singular, que pressupõe
arriscar-se e comprometer-se com a singularidade de viver.

27
• Em tempos de grande conservadorismo – também, das camadas sociais de elite –
como o trabalho com a literatura numa perspectiva sócio-histórica pode
contribuir para a percepção de que a ideologia se materializa em todas as nossas
ações, não sendo procedente a acusação de que a abordagem de temas sociais
como o aqui enfocado constitui “doutrinação de esquerda”?

Teoricamente, minha dissertação baseia-se na ideia de educação crítica e


humanizadora de Paulo Freire ([1967] 2018, [1968] 2005, 1997, 2000), no Dialogismo
proposto pelo Círculo de Bakhtin (BAKHTIN, [1971] 2008, [1920-24] 2010a, [1975]
2010b, [1953] 2011; VOLÓCHINOV, [1929] 2017), na ideia de transposição do foco
narrativo proposto por Julie Sanders (2006) e nos pressupostos teóricos da Linguística
Aplicada INdisciplinar (MOITA LOPES, 2006, FABRÍCIO, 2006, ROJO, 2006). No
trabalho com a leitura literária dialógica, portanto, não se deve esperar concordâncias e
assimilações dos alunos e das alunas, mas, ao contrário, é preciso provocar dizeres ativos,
responsáveis e responsivos.
Quanto à base metodológica, minha dissertação harmoniza-se com a visão da
Linguística Aplicada INdisciplinar, coadunando-se, assim, com o cunho etnográfico-
interpretativista e intervencionista. Para tanto, de acordo com Cresswell (2003), defendo
que minha pesquisa seguirá uma abordagem qualitativa para entender o significado que
um indivíduo ou um grupo atribui a um problema social. Trata-se de uma pesquisa que
tem como premissa analisar e interpretar aspectos mais profundos, descrevendo a
complexidade do comportamento humano e, ainda, fornecendo análises mais detalhadas
sobre investigações, atitudes e posicionamentos. A ênfase da pesquisa qualitativa está,
pois, nos processos e nos significados, não podendo ser reduzida a operacionalização de
variáveis.
Nessa esfera metodológica, as produções escritas dos estudantes e o diário de
pesquisa – produzido por mim durante as aulas – serão analisados à luz da Análise
Dialógica do Discurso (BRAIT, 2004, 2012; SOBRAL e GIACOMELLI, 2016),
pressupondo a identificação das vozes sociais em tensão a partir da temática da aludida
obra literária. Para tanto, minha investigação buscará nas escolhas lexicais, nos recursos
morfossintáticos (voz ativa, voz passiva, sujeito indeterminado, entre outras
possibilidades) e estilísticos (figuras de linguagem e funções da linguagem, entre outros),
por exemplo, caminhos para perceber os embates ideológicos que se erguem por meio do
discurso verbal. Assim, minha pesquisa operacionalizará conceitos como Dialogismo,

28
Ideologia do Cotidiano e Sistemas Ideologicamente Formados, Discurso Autoritário e
Discurso Internamente Persuasivo, com base nos pressupostos teóricos do Círculo de
Bakhtin.
Desse modo, é importante apresentar os capítulos subsequentes a esta Introdução.
No primeiro, discorrerei sobre a concepção de escola e de educação em que minha
pesquisa ancora-se, ressoando as vozes de Gaudêncio Frigotto, Moacir Gadotti e Paulo
Freire, entre outros, em diálogo com linguistas aplicados, como Moita Lopes e Branca
Fabrício, para chegar à perspectiva de ensino-aprendizagem de leitura literária, com a
finalidade de propor caminhos efetivos para o letramento literário. A ideia é, portanto,
estabelecer diálogo entre os pressupostos da Educação Dialógica – em contraposição à
Educação Bancária – além de conceitos como Exotopia (BAKHTIN, [1920-24] 2010) e
Ideologia (VOLÓCHINOV, [1929] 2017) – e os ideais teóricos que versam sobre a
educação literária (COSSON E PAULINO, 2008; LAJOLO, 2009; SOARES, 2004;
ZILBERMAN, 2013; entre outros).
No segundo capítulo, articularei conceitos do Círculo de Bakhtin, como os já
citados, a fim de explanar meus pressupostos teóricos pautados, sobretudo, na concepção
de Dialogismo, Ideologia e Responsividade. No referido capítulo, pretendo considerar a
base epistemológica bakhtiniana em diálogo com as questões referentes ao cenário atual
da educação básica.
Em seguida, no terceiro capítulo, tratarei da relação entre a minha pesquisa e a
Linguística Aplicada Indisciplinar para, assim, apresentar a linha metodológica com a
qual minha pesquisa alia-se, pautando-se na já citada Análise Dialógica do Discurso. Para
tanto, serão considerados os participantes da pesquisa de cunho etnográfico
interpretativista e intervencionista: discentes e docente. Assim, meu interesse estará na
percepção dos participantes e no contexto social em que estão envolvidos. Por isso, como
docente há cinco anos na instituição, será preciso recorrer à ideia de estranhamento do
familiar, proposta pelo sociólogo Gilberto Velho (1978). Além disso, recorrerei aos
discursos verbais orais e impressos, engendrados nas rodas de leitura da obra literária
Capitães da Areia e nas consequentes produções textuais.
No quarto capítulo, analisarei os dados desta pesquisa à luz dos pressupostos
teórico-analíticos já mencionados, a fim de que se verifiquem a responsividade e a
agentividade decorrente da leitura literária proposta. Além das produções textuais dos
estudantes, meu diário de pesquisadora também servirá de suporte analítico, uma vez que
me percebo ativa na pesquisa.

29
Por fim, apresentarei as considerações finais em um capítulo que retomará a ideia
de que a leitura literária pode dialogar constantemente com as vivências dos estudantes e
do espaço ao redor da instituição de ensino, ressignificando lugares sociais – no sentido
de que aqueles que vivenciam o sofrimento humano podem colaborar na construção de
uma sociedade mais humana e mais delicada. Por isso, a partir da noção de que leciono
para estudantes que em poucos anos, possivelmente, estarão em posições de alto prestígio no
país, defendo que uma proposta de leitura literária dialógica pode ser um convite a que eles
estejam sempre “atentos e fortes” na luta coletiva por um país digno para todos.
É isto, companheiras e companheiros: “chegou a hora”21...

21
No capítulo “Os atabaques ressoam como clarins de guerra”, do livro Capitães da Areia, a revolução
chama Pedro Bala à luta. Analogamente, esta Dissertação convida todos – alunos, alunas, professores,
professoras, pesquisadores, pesquisadoras – à luta por uma sala de aula dialógica, responsável e responsiva.

30
2. ENTRE (DES)APRENDIZAGENS E RESISTÊNCIAS: POR UMA EDUCAÇÃO
LITERÁRIA DIALÓGICA

“Eu vejo o futuro repetir o passado


Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para
[...]
Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros”
(CAZUZA, 1988)

O poema-canção “O tempo não para”, composto por Cazuza, serve-nos como um


interessante caminho para descortinar um panorama do que se inculcou no país ao longo
de sua história: vivemos em um museu de grandes novidades. Isso quer dizer que, a partir
do estigma de nação colonizada e escravocrata, sob a égide da dominação, o paradoxo
“museu de grandes novidades” constrói sentido potente acerca de um Brasil que – do
ponto de vista das ideologias políticas – tem repetido o passado ao reforçar ideais
conservadores e contrários, portanto, às pluralidades.
Nesse cenário, vale-nos o posicionamento de Boaventura de Sousa Santos (2004)
de que o Brasil é um país do Sul, ou seja, um país que está nas franjas, nas margens da
sociedade, devido ao seu percurso histórico de dominação e privação. Assim, da reunião
nada amistosa entre os colonizadores e os colonizados, entre os senhores e os escravos,
entre burguesia e proletariado, entre os opressores e os oprimidos, enfim, surgimos nós,
brasileiros, que vivemos no limite da “escolha” entre (re)nascer, (sobre)viver e resistir
para existir. Nessa esfera, é prudente pensar que a marca da colonização sofrida pelo
Brasil é ventilada, nos dias atuais, em vários processos neocolonialistas metamorfoseados
na opressão e na imposição de crenças e valores. Para tanto, neste primeiro capítulo
teórico, urge discutir as ideologias que se impuseram ao/no Brasil visando à manutenção
de direitos para classes mais favorecidas. Além disso, é imperioso evocar vozes de
teóricos da educação, em diálogo com linguistas aplicados, acerca da concepção dialógica
com a qual esta pesquisa afina-se.
Nessa direção, é preciso, então, repensar as conjunturas sociais que formam e
formaram o país. Se, com a chegada da idade moderna, surgem a burguesia e a disputa
por espaços de desenvolvimento econômico e poder, é sabido, pois, que o colonialismo,
a partir do qual fomos constituídos como cidadãos, é proveniente de um desejo capitalista,

31
marca das grandes navegações e da “conquista” portuguesa de novos territórios. Portanto,
como sociedade, somos atravessados por um processo, desde o dito “descobrimento” do
Brasil, que nos cala e oprime. Sob a justificativa de educar o “bom selvagem”, a igreja
católica protagonizou episódios de intolerância religiosa, cultural e linguística, o que se
lança como ideal para parte da classe burguesa até os dias atuais. Sobre isso, Saviani
(2016, p. 60) nos diz: “Oriunda das atividades mercantis que permitiram um primeiro
nível de acumulação de capital, a burguesia tende a converter todos os produtos do
trabalho em valor-de-troca, cuja mais-valia é incorporada ao capital que se amplia
insaciavelmente.”. Para tanto, para que continue a evoluir economicamente, as classes
mais favorecidas não se cansam na busca pelo seu dito direito liberal de desenvolvimento,
impondo-nos um modelo uno de religião, cultura e língua.
Sobre isso, Boaventura de Sousa Santos, em seu livro Direitos humanos,
democracia e desenvolvimento, lança luz às questões referentes ao sentido propagado por
meio do ideal de direitos humanos. Segundo o autor, a modernidade ocidental foi
concebida por meio de um pensamento abissal que “dividiu o mundo entre sociedades
metropolitanas e coloniais” (2013, p. 44). Desse modo, o discurso dos direitos humanos
foi efetivamente validado para um dos lados: o das sociedades metropolitanas. Por isso,
mesmo com o “fim” da colonização no Brasil e a implementação da república, o que se
percebe é que se perpetuam outras formas de dominação de minorias. Assim, de acordo
com o autor, o conceito de direito humano é, na prática, individual, servindo ao
crescimento ou à manutenção de privilégios dos mais abastados, em vez de coletivo, para
servir às necessidades dos menos favorecidos.
É, ainda, necessário pensar o sujeito social contemporâneo, que vive
desestabilizações e vertigens (FABRÍCIO, 2006), navegando por novos e desconhecidos
mares. Nesse sentido, as certezas unas, prontas e acabadas não encontram eco na realidade
globalizada, sendo preciso que, por meio do discurso, desaprendamos as velhas e
essencializadas proposições para inaugurar a reinvenção da vida social (MOITA LOPES,
2006). Nesse caminho, entendo que se podem, verdadeiramente, pressupor direções
comprometidas com a emancipação dos sujeitos e a leveza de pensamento (ROJO, 2006),
o que diz respeito à possibilidade de enfrentamento e modificação das privações sofridas
por sujeitos sociais.
Essa necessária coligação anti-hegemônica que busca diálogo com as vozes do
Sul, no cenário do Brasil atual, não tem encontrado espaço e força. Isso porque, desde o
massacre colonizador europeu, até mais recentemente, com o fim da Ditadura Militar, que

32
vigorou de 1964 até 1985, o país percorreu trajetos paradoxais de avanços e retrocessos.
Depois do governo militar ditatorial, a Constituição Federal de 1988 ergueu-se, nessa
perspectiva, como um progresso por pleitear direitos iguais a todos os cidadãos brasileiros
– inclusive no que se refere à obrigatoriedade de acesso à Educação Básica. No entanto,
quase 30 anos depois da promulgação constitucional visando ao estado democrático de
direito – seguida de algumas emendas –, o processo de impeachment sofrido pela ex-
presidenta da república denunciou o severo desespero de determinadas classes. O medo
de o comunismo – entendido superficialmente por meio de uma visão do senso comum –
ser implementado no país e de o poder econômico ser dividido com os mais pobres – o
que está, evidentemente, muito distante do que o Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu
como modelo de governo – avançou até os extremos, contribuindo para o golpe de 2016,
já mencionado na Introdução desta Dissertação.
É preciso, no entanto, que se reconheça que o governo petista estabeleceu alianças
com governos de direita, como o Partido do Movimento Democrático Brasileira
(PMDB)22. Nessa perspectiva, por meio de acordo com setores conservadores e poderosos
do país, parece-me evidente que o PT esteve longe de constituir um governo comunista.
Ainda assim, os treze anos de governo petista foram os que mais profundamente
favoreceram o espaço e a voz das minorias, que sempre estiveram invisíveis na nossa
história. De acordo com Boaventura de Sousa Santos, o golpe institucional de 2016 deu
início a um “retrocesso social e político” (2018, p. 12). Ainda de acordo com o catedrático
da Universidade de Coimbra,
[o] golpe judiciário-parlamentar da destituição da presidenta
Rousseff e a operação Lava Jato, com o apoio ativo do imperialismo
norte-americano, tiveram por objetivo enfraquecer as forças de
esquerda que governaram o país nos últimos treze anos – e
conseguiram. E fizeram isso com tanto zelo que o Brasil recua agora
a muito antes de 2003, quando teve início a primeira gestão do
presidente Lula da Silva. A caricatura do Brasil real em que o
Congresso se transformou com o atual sistema eleitoral e a cada vez
mais abusiva judicialização da política fazem com que o sistema
político brasileiro experimente tal desequilíbrio que configura uma
situação de bifurcação: os próximos passos podem restabelecer a
normalidade democrática ou, pelo contrário, aprofundar de modo
irreversível a vertigem fascizante em que se encontra.” (2018, p. 50).

Para isso, vale-nos retomar o famoso livro Linguagem e escola23, escrito por
Magda Soares, que, publicado pela primeira vez no ano de 1986, já defendia que a prática

22
Atual Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
23
A edição que aqui utilizo data de 2008.

33
de ensino-aprendizagem de língua materna na realidade brasileira deve fundamentar-se
em conhecimentos sobre as relações entre linguagem, sociedade e escola para que seja
verdadeiramente “competente e comprometida com a luta contra as desigualdades
sociais” ([1986] 2008, p. 6). Mais adiante, a autora advoga que “a escola, como instituição
a serviço da sociedade capitalista, assume e valoriza a cultura das classes dominantes”
([1986] 2008, p. 15). Assim, considerando os embates que temos enfrentado no âmbito
político e educacional, importa-nos saber: que espaço a escola brasileira pode, quer ou
deve dar às questões referentes às práticas plurais de linguagem na nossa sociedade atual?
E ainda: é possível que a escola se comprometa, verdadeiramente, com a diminuição das
assimetrias relacionadas à aquisição de conhecimento e à garantia de direitos básicos para
todos?
Este capítulo propõe-se a traçar, assim, um percurso teórico-analítico referente
ao cenário político-ideológico do Brasil atual, visando a problematizar as ideologias
linguísticas24 centradas nas relações de poder, a partir das quais posições hegemônicas
têm se cristalizado no país. Cabe, ainda, dialogar com autores que se debruçaram a
pesquisar o ensino no Brasil a fim de que cheguemos a proposições viáveis à educação
literária na perspectiva transformadora, as quais visem a garantir que a literatura seja uma
força aliada às necessidades sociais e plurais brasileiras.

2.1. O conceito de ideologia e a suposta neutralidade discursiva

Em tempos de negação da ideologia, conforme defende o já citado movimento


Escola sem Partido – que será discutido de modo mais aprofundado a seguir –, é
necessário apresentar concepções teóricas acerca do conceito de ideologia mais afinadas
às propostas subsequentes, a fim de que, a seguir, possamos mergulhar de modo mais
profundo nas ideologias políticas que desenham o cenário do Brasil atual. Trata-se de um
conceito cunhado no final do século XVIII pelo filósofo francês Desttut de Tracy,
servindo ao projeto do Iluminismo (WOOLARD, 1998, p. 5).

24
De acordo com Woolard (1998, p. 3), ideologias linguísticas são representações, implícitas ou explícitas,
que constroem a relação entre linguagem e seres humanos em um mundo social. Portanto, não se trata da
língua isoladamente, mas das ventilações entre língua(gem), identidade, moral, conhecimento e estética.
Trata-se, assim, de um posicionamento linguístico que fala do lugar social de onde o sujeito projeta-se
discursivamente.

34
De acordo com Terry Eagleton (1991), a definição de ideologia é complexa,
possuindo sentidos nem sempre compatíveis entre si. Para o autor, “a palavra ‘ideologia’
é, por assim dizer, um tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais” (p.
15), não sendo, portanto, facilmente definida. Eagleton afirma, ainda, que Friedrich
Hegel, Karl Marx e Georg Lukács, entre outros pensadores marxistas posteriores,
entendiam ideologia como uma ilusão, uma distorção utilizada pelas classes dominantes
para manter seu poder sobre as dominadas.
Eagleton aponta, então, seis outras propostas de definição do termo “ideologia”:
I. “processo material geral de produção de ideias, crenças e valores na vida social.” (p.
38); II. “ideias e crenças (verdadeiras ou falsas) que simbolizam as condições e
experiências de vida de um grupo ou classe específico, socialmente significativo.” (p. 39);
III. “relações e conflitos”, ou seja, “promoção e legitimação dos interesses de grupos
sociais em face de interesses opostos.” (p. 39); IV. “ênfase na promoção e legitimação de
interesses setoriais, restringindo-a, porém, às atividades de um poder social dominante.”
(p. 39); V. “ideias e crenças que ajudam a legitimar os interesses de um grupo ou classe
dominante, mediante sobretudo a distorção e a dissimulação.” (p. 39); VI. “crenças falsas
ou ilusórias, considerando-as, porém, oriundas não dos interesses de uma classe
dominante, mas da estrutura material do conjunto da sociedade como um todo.” (p. 40).
Apesar da validade dos conceitos mencionados, dialogo, nesta Dissertação, com
a definição do Círculo de Bakhtin25. Sobre isso, Valdemir Miotello (2008) afirma que
Bakhtin e seus companheiros do Círculo “não trabalham [ideologia] (...) como algo
pronto e já dado, ou vivendo apenas na consciência individual do homem, mas inserem
essa questão no conjunto de todas as outras discussões filosóficas, (...) como a questão da
constituição dos signos.” (p. 170). Ainda segundo Miotello, o Círculo de Bakhtin parte
dos pressupostos marxistas já mencionados, relacionados à noção de falsa consciência ou
distorção da realidade social, para chegar, enfim, à ideia de que existe uma ideologia
oficial ao lado do que chamam de ideologia do cotidiano.
Assim, na obra Marxismo e filosofia da linguagem ([1929] 2017), Volóchinov
apresenta-nos a ideologia oficial como os sistemas ideológicos formados (a moral, a
ciência, a arte, a religião, a filosofia) que se cristalizam a partir da ideologia do cotidiano.
De acordo com o teórico, a ideologia do cotidiano é definida como “o conjunto de

25
Tratarei, neste primeiro capítulo, mais especificamente, do conceito de ideologia para o Círculo de
Bakhtin. Outros conceitos serão, no capítulo seguinte, focalizados a fim de propor a leitura literária
dialógica na sala de aula da Educação Básica.

35
vivências da vida e expressões externas” (VOLÓCHINOV, [1929] 2017, p. 213). Nessa
esfera, Miotello defende que, para o Círculo de Bakhtin, a ideologia é caracterizada como
“a expressão, a organização e a regulação das relações histórico-materiais dos homens”
(p. 171). Isso porque a ideologia é, para o Círculo, essa dupla face que faz com que o
signo – a palavra, o material discursivo – se mantenha na história e se transforme na
interação verbal. O lugar da ideologia instaura-se, pois, nas práticas de linguagem.
Desse modo, se a ideologia materializa-se na/pela linguagem, torna-se evidente
que os signos de que se compõe todo ato discursivo são naturalmente ideológicos. Assim,
se os signos emergem da interação social em uma realidade material, são eles índices de
valores e crenças articulados, pois, pela ideologia. Nesse sentido, é impossível que
qualquer produção discursiva não seja carregada das relações dialógicas que pressupõem
que enunciar, dizer, é sempre responder, é tomar partido, é construir posição valorativa.
Não existe, portanto, dizer neutro. Esta pesquisa, assim, não se pretende neutra, porque
nasceu exatamente do desejo de investigar os posicionamentos discursivos dissonantes e
consonantes suscitados pela leitura literária da obra Capitães da Areia. Trata-se de uma
pesquisa pautada na Educação Dialógica (FREIRE, [1967], 2018), comprometida com a
transformação dos “alunos-sujeitos”.

2.2. Educação dialógica à luz da Linguística Aplicada INdisciplinar: por uma


pedagogia do conflito

De acordo com George Snyders, em sua obra Escola, classes e luta de classes
([1976] 2005), “a escola é local de luta, a arena em que se defrontam forças
contraditórias.” (p. 102). Trata-se de um terreno fértil ao conflito entre as forças do
progresso e as forças conservadoras. Para o francês, a escola é um espaço em que,
simultaneamente, ocorre a reprodução das estruturas existentes – com base na ideologia
oficial, hegemônica, visando à “domesticação” –, mas é também lugar de “ameaça à
ordem estabelecida” e de criação de “possibilidade de libertação” (p. 103).
Assim, vale-nos recorrer, brevemente, ao percurso histórico da educação
excludente no Brasil. Em seu início, em 1533, a escola assumiu um tom confessional,
associando-se à educação jesuítica, pautada, incialmente, na catequização dos índios e,
depois, na educação apenas dos filhos dos colonos e dos novos sacerdotes. Coube à Igreja
Católica, portanto, nesse primeiro momento da educação no país, a formação de

36
estabelecimentos de ensino voltados para a consolidação da ideologia religiosa da
metrópole portuguesa.
Em 1759, por ordem do Marquês de Pombal, houve a expulsão da Companhia de
Jesus, instituindo-se as Aulas Régias, que se voltavam para o estudo das humanidades,
pertencentes ao Estado e dissociadas da Igreja Católica. Na prática, no entanto, o sistema
de Aulas Régias pouco modificou o perfil elitista da educação: cabiam ao rei a criação
dessas aulas isoladas e a nomeação de professores para lecionar para as elites da época.
Isso porque os estudos régios ocorriam na casa dos professores, impedindo que cidadãos
oriundos de outras localidades frequentassem tais espaços de educação.
De acordo com Frigotto (2018, p. 16), “a atual forma escolar tem sua gênese
histórica a partir, sobretudo, do século XVIII, dentro do mesmo processo de emergência
da ciência moderna e da ascensão da burguesia como classe social revolucionária no
embate com a Igreja e o Estado Absolutista.”. Assim, a burguesia responsabilizou-se pela
defesa da escola pública, gratuita, universal e laica, visando a contrapor-se à sociedade
feudal, dominada pela Igreja e pelo Estado Absolutista. Ao mesmo tempo, tal classe
revolucionária vinculou-se à reprodução de conhecimentos e valores relacionados “à
construção e à reprodução do sistema capitalista.” (FRIGOTTO, 2018, p. 16-17). O
teórico defende, ainda, que
a escola burguesa, desde sua origem, não podia cumprir sua
promessa para todos e de igual modo. Isso pela simples razão de que
a burguesia destruía uma sociedade de classes não para abolir as
classes sociais, mas para implantar outra estrutura de classe: os
detentores de capital e os trabalhadores que possuem apenas sua
força física e intelectual para ser vendida. (...) A exploração, na nova
sociedade de classes, é dissimulada no processo de produção, no
qual, supostamente, capitalista e trabalhador detêm trabalho o
mesmo grau de poder e de força na relação capital-trabalho.
(FRIGOTTO, 2018)

Nessa perspectiva, percebe-se que educação, saúde, trabalho, cultura e direitos


sociais acabam consolidando-se como serviços mercantis. Na educação, isso fica claro na
perspectiva de preparação dos indivíduos para o mercado de trabalho e na coexistência
de escolas públicas e privadas. Nesse sentido, a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional de 1996 apresentam oficialmente o “ensino livre à
iniciativa privada”. Isso quer, pois, dizer que se a sociedade brasileira é desigual desde
sua “origem”, a alguns caberá o “direito” de estudar em instituições de ensino cujas

37
mensalidades ultrapassam R$ 2.500 – como é o caso da instituição privada em que realizei
minha pesquisa.
Assim, após esse breve perfil histórico da educação brasileira, vale-nos a
percepção de que as práticas docentes podem comprometer-se com o viés bancário ou
com o viés dialógico. Para lançar luz à perspectiva dialógica da pedagogia freiriana, faz-
se necessário, antes, revisitar a noção de Educação Bancária.
De acordo com Paulo Freire ([1968] 2005), a concepção bancária de educação
pressupõe a memorização mecânica do conteúdo narrado pelo sujeito-educador. Aos
estudantes, resta o papel de “vasilhas” a serem preenchidas pelos depósitos de
conhecimentos construídos e fornecidos pelos docentes. Trata-se, aqui, da cultura
unilateral, monológica, que considera o objeto-aluno como ignorante e carente de
conteúdos propagados pelo professor. Nessa perspectiva, a desumanização torna-se o
cerne das relações estabelecidas em sala de aula, porque é – somente! –, a partir das
relações dos sujeitos com a realidade, “resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos
atos de criação, recriação e decisão” (FREIRE, [1967] 2018, p. 60, grifos meus), que se
pode dominar e dinamizar e humanizar o mundo.
Na contramão desse viés monológico, Paulo Freire ([1967] 2018 e [1968] 2005)
apresenta a concepção libertadora e problematizadora de educação. Segundo o educador,
“a educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação
não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres vazios a quem o mundo
‘encha’ de conteúdos.” (FREIRE, [1968] 2005, p. 78). Assim, percebe-se que a educação
libertadora relaciona-se com a perspectiva dialógica, porque “o educador já não é o que
apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando, que,
ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo.” (FREIRE,
[1968] 2005, p. 79).
Torna-se notório, assim, que esta pesquisa dialoga com a concepção de educação
como prática da liberdade, negando o “homem abstrato, isolado, solto, desligado do
mundo” (FREIRE, [1968] 2005, p. 81). Professores e estudantes são, aqui, considerados
sujeitos situados histórico e culturalmente, participantes do mundo social com ação,
criação, invenção e reinvenção. Ignora-se, então, a perspectiva unilateral, abrindo-se
espaço para as múltiplas vozes discursivas em sala de aula.
Nessa dimensão, “a escola não é a alavanca da transformação social, mas essa
transformação não se fará sem ela, não se efetivará sem ela”, conforme defende Gadotti
(2012, p. 96). Por isso, ao assumir seu caráter dialógico, a sala de aula pressupõe-se parte

38
de uma sociedade em conflito, aquela que “conquistou o direito de falar, de dar voz ao
seu grito sufocado.” (GADOTTI, 2012, p. 97).
É evidente, assim, que a Linguística Aplicada INdisciplinar consolida-se nesta
pesquisa como base epistemológica que ventila proposições relacionadas à aprendizagem.
Fabrício (2006) entende a LA como espaço movente, capaz de romper com as “torres de
marfim”. Defende-se, assim, a desaprendizagem como possibilidade de estranhamento de
sentidos essencializados, mumificados. Se em algum momento da nossa história, a
Educação Bancária foi caminho viável, é preciso que, urgentemente, no mundo atual –
fluido, globalizado –, pensemos na dimensão transgressiva da produção de conhecimento.
Dessa forma, esta pesquisa busca – na transgressão e na desaprendizagem de
discursos pedagógicos uníssonos – propor alternativas dialógicas para o ensino de leitura
literária na sala de aula da Educação Básica. Assim, estudantes e professores são
convidados a participar ativamente da construção de sentidos inauguradas pelo discurso
literário de Jorge Amado na obra Capitães da Areia.

2.3. O tempo das mordaças: o perigo de movimentos como o Escola Sem Partido

Iniciado em 2004, o Escola sem Partido apresenta-se como um movimento


proveniente de grupos de pais e estudantes preocupados com “o grau de contaminação
político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao
superior.”26 Trata-se, pois, de uma espécie de organização para a fiscalização das práticas
plurais adotadas nas escolas brasileiras, em defesa da suposta neutralidade do discurso
docente.
O movimento do ESP ganhou força no país mais recentemente, por coincidência
ou não, à época do último governo petista, sob liderança da ex-presidenta Dilma Rousseff.
Disponibilizando um site para recebimento de denúncias ao professor doutrinador, o ESP
vigora nas esferas municipal, estadual e federal por meio de projetos de lei. Conforme
afirma Algebaile (2017, p. 65), a identificação dos participantes do ESP, pelo site, não é
propagada de modo claro, ficando a cargo de Miguel Nagib, Procurador do Estado de São
Paulo, o discurso público “em nome da organização, demonstrando ampla autonomia na
sua condução e uma relação autoral com suas proposições.”. Ainda de acordo com

26
Disponível em www.escolasempartido.org/quem-somos. Acesso em 29.09.2018, às 22h.

39
Algebaile, há o total de oito projetos de lei inspirados no ESP em trâmite na esfera federal.
Isso significa que há outros apoiadores do movimento na esfera pública, com poder de
proposição e aprovação de PL. Entre esses representantes políticos que defendem os
pressupostos do ESP, estão Flávio e Carlos Bolsonaro – filhos do atual presidente Jair
Bolsonaro –, os quais deram entrada, com o aval de Nagib, em projetos de lei na
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e na Câmara dos Vereadores em 2014,
propondo a criação do Programa Escola sem Partido nas esferas estadual e municipal do
Rio de Janeiro.
É curioso notar, ainda, que além da obscuridade de todos os representantes à frente
da organização do ESP, o patrulhamento às práticas político-ideológicas em sala de aula
pressupõe também uma reivindicação às convicções políticas, ideológicas, morais e
religiosas das famílias dos estudantes. Entra em cena, conforme já mencionei no presente
trabalho, o ESP como caminho para vigiar qualquer menção a práticas religiosas, por
exemplo, que não sejam as da própria família do estudante. Isto me parece perceptível:
há a tentativa de sobrepujar as manifestações não são hegemônicas, como aconteceu
durante o processo de colonização do Brasil. Trata-se, portanto, do viés do colonialismo
metamorfoseado em defesa de neutralidade na construção de conhecimentos.
Assim, qualquer proposição didática que vise a problematizar concepções
hegemônicas relativas às questões de gênero, orientação sexual ou religião, por exemplo,
poderá sofrer intervenções e processos encaminhados ao Ministério Público por parte do
ESP. Trata-se de uma forma ideológica de tentativa de perpetuação do poder daqueles
que, na história do país, foram representantes das classes dominantes. Há, pois,
evidentemente um conjunto de crenças e valores reunidos, mascarados como uma
aparente preocupação dos pais acerca da vulnerabilidade de filhos, muitas vezes, menores
de idade, que, em verdade, visa a que a escola seja não de partidos, no sentido plural e
democrático, mas que seja escola de um partido único: aquele que privilegia os já
privilegiados. De acordo com Frigotto (2017, p. 81), “trata-se de tentar imprimir ao
currículo escolar sua ideologia a qual, enunciada como neutra, é, na verdade, totalmente
comprometida com a classe dominante, pois impede que os interesses dos dominados
sejam abordados na escola.”.
Cabe, ainda, esclarecer que o movimento ESP é ainda mais problemático, porque,
além de fortalecer práticas unívocas, pressupõe o apagamento e a passividade do
estudante na esfera da sala de aula. Isso contraria a relação de intersubjetividade já
defendida aqui, além da efetiva responsividade discente que defendo em meu trabalho.

40
Com isso, criminaliza-se o ato pedagógico e anula-se a escola como um espaço de
formação humana, dando espaço a uma prática mais voltada para a relação fornecedor-
consumidor. Esse caminho é o que advoga Nagib, quando menciona que o Escola sem
Partido está ancorado no Código de Defesa do Consumidor (CDC), uma vez que se trata
da tentativa, segundo o advogado, de defender a parte supostamente mais vulnerável: o
estudante. Nota-se, nesse sentido, a lógica mercadológica por meio da qual tal movimento
enxerga a educação, reunindo esforços para a defesa de discursos prontos e acabados, que
contrariam as agentividades democráticas com que a sala de aula deve afinar-se.
É válido, ainda, ressaltar que o Escola Sem Partido (ESP) – como movimento
conservador em crescimento no país – tem projetos de lei em trâmite nas instâncias
federal, estaduais e municipais, defendendo o “direito dos pais a que seus filhos recebam
a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções” (Projeto de lei
01/2017 – Bahia/Salvador). Desse modo, pretende-se calar a sala de aula como espaço de
conflito entre vozes conservadoras e vozes humanizadoras, democratizantes, como uma
arena entre as forças centrípetas – centralizadoras e monologizantes – e as forças
centrífugas – descentralizadoras e dialogizantes (VOLÓCHINOV, [1929] 2017). Na
lógica do ESP, a escola não pode constituir-se ativamente para abrir espaço aos discursos
dissonantes; deve, ao contrário, corroborar verdades essencializadas a serviço do
“cidadão de bem” e dos valores morais da “família brasileira”.
Para Gadotti ([1979] 2012, p. 97), em conferência na Universidade Federal de
Santa Catarina, em 1979 – portanto, durante o período da Ditadura Militar brasileira –, a
sociedade em conflito é aquela que “conquistou o direito de falar, de dar voz ao grito
sufocado. (...) Uma sociedade que ainda não conquistou sua liberdade, mas apenas o
direito de dizer que não é livre”. Vivemos hoje uma sociedade que, quase quarenta anos
depois da referida conferência, volta a viver o conflito “entre a liberdade e a opressão,
entre o medo de gritar e a coragem de ser, entre a revolta e a resignação, enfim uma
sociedade em que duas forças contrárias medem seu poder.” (GADOTTI, [1979] 2012, p.
98). Assim, o ESP, nos dias atuais, ignorando as dissonâncias, defende uma suposta
neutralidade do educador em sala de aula, enquanto Gadotti, já àquela época, afirmava
que
educar (...) é tarefa de partido, isto é, não educa realmente aquele
que ignora o momento em que vive, aquele que pensa estar alheio
ao conflito que o cerca. É tarefa de partido porque não é possível ao
educador permanecer neutro: ou educa a favor dos privilégios da
classe dominante ou contra eles, ou a favor das classes dominadas
ou contra elas. Aquele que se diz neutro estará apenas servindo aos

41
interesses do mais forte, isto é, à classe dominante. (GADOTTI,
[1979] 2012, p. 98, grifos meus)

Projetos como o ESP valorizam uma sala de aula comprometida com uma
educação voltada para aspectos morais, cívicos e religiosos, descartando-se uma
formação dialógica, crítica, humana e cidadã. Todavia, é evidente que, ao defender a
escola como lugar apartidário, o que se pretende é que seja um espaço não para partidos,
no plural, mas para um partido bem definido: o do conservadorismo privilegiado. Para
Gadotti,
essa escola “sem”, é também uma escola “com”, uma escola com
propósitos bem definidos: ela se propõe a formar uma massa de
indivíduos para aceitar, indiferentemente, políticas antissociais
de um governo usurpador. Essa política se baseia numa cultura
da indiferença, individualista, quando não fascista, em
relação à pobreza, em relação aos “de baixo”. (GADOTTI,
2012, p. 150, grifos meus)

Diante disso, nesta Dissertação e na minha prática docente cotidiana, defendo a


sala de aula como um espaço de resistência a essas forças, homogeneizadoras, que
propagam o ideal do silenciamento das vozes engajadas pela educação transformadora.
Assim, entendo que educadores verdadeiramente comprometidos com uma educação
libertadora não conseguem nem devem calar-se.

2.4. Contribuições dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de


literatura?

Pensar a educação no Brasil atual exige que nos debrucemos na investigação sobre
ideologia política oficial a partir da qual são produzidos documentos que orientam a
educação brasileira. Para isso, dediquei minha análise à releitura dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998)27. No documento, detive-me às questões
referentes ao segmento em que se insere a minha pesquisa: o Ensino Fundamental II.

27
A recém-publicada Base Nacional Comum Curricular não foi objeto de análise, uma vez que, durante a
pesquisa, tal documento ainda não vigorava no país. Desse modo, considerei para a análise os Parâmetros
Curriculares Nacionais, de 1998, os quais, à época de minha pesquisa, configuravam o documento que regia
a construção de práticas pedagógicas no Ensino Fundamental no país.

42
Os PCN organizam-se, segundo consta do site do Ministério da Educação (MEC),
da seguinte maneira28:
• Volume 01 – Introdução aos PCNs
• Volume 02 – Língua Portuguesa
• Volume 03 – Matemática
• Volume 04 – Ciências Naturais
• Volume 05 – Geografia
• Volume 06 – História
• Volume 07 – Arte
• Volume 08 – Educação Física
• Volume 09 – Língua Estrangeira
• Volume 10.1 – Temas Transversais – Apresentação
• Volume 10.2 – Temas Transversais – Pluralidade Cultural
• Volume 10.3 – Temas Transversais – Meio Ambiente
• Volume 10.4 – Temas Transversais – Saúde
• Volume 10.5 – Temas Transversais – Orientação Sexual

Assim, antes mesmo de questionar as proposições referentes ao ensino de leitura


literária – o meu foco neste trabalho –, faz-se necessário observar a estrutura maior do
documento, que, conforme é possível notar, além das já conhecidas áreas do
conhecimento, apresentou a orientação de trabalho com “Temas Transversais” na sala de
aula da Educação Básica. Nesse sentido, vale reforçar que os PCN apresentam orientações
didáticas aos docentes, afirmando que defendem

uma prática educativa que tenha como eixo a formação de um


cidadão autônomo e participativo. Essa prática pressupõe que os
alunos sejam sujeitos de seu processo de aprendizagem e que
construam significados para o que aprendem, por meio de múltiplas
e complexas interações com os objetos de conhecimento, tendo, para
tanto, o professor como mediador. A interação dos alunos entre si
é outro aspecto essencial nesse processo. (BRASIL, 1998, p. 81,
grifos meus)

28
Disponível em http://portal.mec.gov.br/conaes-comissao-nacional-de-avaliacao-da-educacao-
superior/195-secretarias-112877938/seb-educacao-basica-2007048997/12657-parametros-curriculares-
nacionais-5o-a-8o-series

43
Entendo, pois, que a ideia de que o professor deve ser um mediador do
conhecimento propicia a visão do estudante como um ser ativo e realmente participativo
na sala de aula. Para isso, é importante perceber que a aprendizagem não se dá por meio
da desconstrução dos saberes prévios dos discentes para a implementação de um viés
tecnicista. Nesse sentido, segundo Gerhardt, para que exista aprendizado verdadeiramente
comprometido com as questões sociais, é necessária

uma didática diferente, distinta da que se ratifica no âmbito de um


letramento acrítico e baseado apenas na compreensão de
conhecimentos técnico-linguísticos: uma didática agentiva,
potencializadora de alunos e professores e permeável às realidades,
embates e desigualdades sociais. (2017, p. 1).

Para que se verifiquem as contribuições dos PCN para o ensino de literatura, faz-
se necessário problematizar a noção de aprendizagem, com base em uma visão social e
inclusiva da educação. Isso porque para que ocorra, verdadeiramente, a construção de
conhecimento, o estudante não pode ser visto como tábula rasa. É preciso que haja uma
integração docente-discente que vise à diminuição de assimetrias. Nesse sentido, resta-
nos responder a esta questão: como o texto literário em sala de aula pode contribuir com
a inauguração da intersubjetividade necessária à construção de conhecimentos?
Aos alunos e às alunas, com frequência, é negado o direito de acesso às suas
experiências cotidianas, existindo em sala de aula espaço apenas para cegas reproduções.
Por essa razão, a escola mais dificulta do que favorece a construção de novos
aprendizados. Sobre isso, Gerhardt afirma:

[n]a elaboração de novos conceitos, o aluno em dado momento sai


da realidade de sua vida cotidiana, mas [...] isso não significa
descolar-se dela, porque as bases para a compreensão tanto de uma
realidade quanto de outra são as mesmas. Nesse enquadramento, a
questão de o conteúdo a ser ministrado na escola estar próximo ou
distante do universo imediato do aprendiz é reconfigurada em
função de ele, no exercício do aprendizado, reconhecer como real,
ou seja, validar em sua mente, os domínios de experiências em que
conteúdos tomam lugar. (2010, p. 260)

Nesse sentido, consideram-se que tanto os conhecimentos prévios como os novos


precisam ser integrados pela pessoa-aprendente. Assim, somente favorecendo o
relacionamento entre a realidade imediata do estudante e a realidade a ser construída, é
que a escola poderá favorecer a abertura de novos caminhos para a aprendizagem. No
entanto, enquanto a escola continuar a perceber-se como espaço para os mais inteligentes,

44
para os mais capazes, desvelando aquilo que o estudante não sabe e está numa camada
inacessível para ele, não haverá sucesso na práxis escolar. Ainda de acordo com Gerhardt,
é visível que
[é] impossível construir um ensino para o letramento crítico quando
o propósito, no que diz respeito à materialidade linguística, é
descrever as estruturas da língua em vez de promover a construção
de saberes sobre as formas de construção de significados por meio
de práticas com a linguagem, porque, entre outros problemas, esse
propósito oblitera variados aspectos que singularizam o ensino
dessas práticas e justificam sua existência nas aulas de língua
estrangeira e materna. (2017, p. 2)

Assim, entre os objetivos previstos pelos PCN para o desenvolvimento discente,


diz-se que é preciso garantir “o conhecimento ajustado de si mesmo e o sentimento de
confiança em suas capacidades afetiva, física, cognitiva, ética, estética, de inter-relação
pessoal e de inserção social, para agir com perseverança na busca de conhecimento e no
exercício da cidadania.” (BRASIL, 1998, p. 7). Portanto, nota-se um viés que incentiva
as integrações entre os saberes já adquiridos nas outras esferas de aprendizagem do
estudante e aqueles oriundos do currículo escolar.
É por isso que, nesta Dissertação, reconheço a relevância dos PCN no que se
refere aos apontamentos para uma prática docente comprometida com a formação de
valores, para além da mera reprodução de conteúdos descolados das vivências discentes.
Nesse sentido, o trabalho com os Temas Transversais, proposto pelos PCN, visa a
colaborar na construção da cidadania do estudante, investindo em dimensões dialógicas
engendradas nas/pelas diferentes áreas do conhecimento. Desse modo, se a educação
literária ultrapassa a dimensão de pura análise linguística e assume seu compromisso
ideológico, torna-se uma “disciplina fronteiriça” (LEHAY-DIOS, 2000, p. 21), engajada,
por isso, na criação de uma consciência sociopolítica. Para tanto, os Temas Transversais
são, nessa perspectiva, atravessados pelos universos ficcionais literários, que permitem
que os sujeitos leitores construam sentidos plurais a partir das obras lidas.
No que se refere ao eixo de Língua Portuguesa, o PCNLP do Ensino Fundamental
II (3º e 4º ciclos, ou seja, 6º ao 9º ano) aponta para a noção de língua/linguagem como
discurso. Trata-se, pois, de um documento orientador para os professores de língua
materna surgido depois da chamada “virada linguística”. Isso quer dizer, portanto, que a
visão estruturalista de Saussure abre espaço agora para outras abordagens. Sobre isso,
Magda Soares afirma:
Na área das ciências linguísticas, primeiramente a Linguística, mais
tarde, a Sociolinguística e, ainda mais recentemente, a

45
Psicolinguística, a Linguística Textual, a Pragmática, a Análise do
Discurso chegam no final dos anos 80 e nos anos 90, à escola,
“aplicadas” ao ensino da língua materna. E são várias as
interferências significativas delas na disciplina Português, todas
ainda em curso: nova concepção da gramática, que resulta em uma
também nova concepção do papel e da função dela no ensino de
português, bem como da natureza e conteúdo de uma gramática para
fins didáticos, que há de ser tanto uma gramática da língua escrita
quanto uma gramática da língua falada. (1998, p. 58)

Logo, no PCNLP, pressupõe-se que o discurso assume sua dimensão dialógica,


conforme o referido documento esclarece:

A produção de discursos não acontece no vazio. Ao contrário, todo


discurso se relaciona, de alguma forma, com os que já foram
produzidos. Nesse sentido, os textos, como resultantes da atividade
discursiva, estão em constante e contínua relação uns com os outros,
ainda que, em sua linearidade, isso não se explicite. (BRASIL, 1998,
p. 21)

Assim, embora seja evidente o ganho para o ensino de língua portuguesa a partir
das orientações propostas pelos PCN, é notório que não se pode defender o mesmo avanço
no que se refere ao trabalho com os textos literários na sala de aula. Em uma curta seção
intitulada “A especificidade do texto literário”, cinco parágrafos procuram “orientar” a
prática docente. Nessa seção, lê-se:

O texto literário constitui uma forma peculiar de representação e


estilo em que predominam a força criativa da imaginação e a
intenção estética. (...) Ele os ultrapassa e transgride para constituir
outra mediação de sentidos entre o sujeito e o mundo, entre a
imagem e o objeto, mediação que autoriza a ficção e a
reinterpretação do mundo atual e dos mundos possíveis. (BRASIL,
1998, p. 26).

Nesse sentido, o documento valida que o texto literário não pode ser entendido
como mero pretexto para o trabalho com tópicos gramaticais ou valores morais – embora
não elucide bem a questão no que se refere aos valores. Assume-se, assim, a dimensão
autônoma e peculiar da literatura e diz-se que aos estudantes cabe o reconhecimento das
particularidades e da profundidade das construções literárias. Não há, no entanto, um
aprofundamento nesse sentido. Portanto, embora sejam notórios os avanços nos estudos
de linguagem, em comparação, houve um ínfimo destaque no que se refere ao ensino e à
aprendizagem de literatura. Nas referências bibliográficas do PCNLP, há apenas um título
que contempla o suporte teórico relacionado aos estudos de literatura, por exemplo, o que

46
comprova que os autores que se debruçaram a produzir os Parâmetros à época priorizaram
os avanços dos estudos de língua(gem).
Assim, nota-se que, no que se refere ao ensino-aprendizagem de leitura literária
no Ensino Fundamental II, poucas são as contribuições efetivas dos PCNLP, o que pode
corroborar a paradoxal percepção de que o texto literário é mero pretexto para as análises
linguístico-gramaticais. É evidente, pois, que esta pesquisa vislumbra no papel docente o
caminho para a constante investigação acerca da viabilidade de implementação de
práticas de leitura e escrita voltadas para o ensino de literatura. Faz-se necessário, assim,
um educador engajado no hábito de leitura para que, subsequentemente, desperte nos
estudantes o desejo, a curiosidade, a ação, a reação, a invenção e a reinvenção com base
no universo ficcional literário.
Fica evidente, assim, que embora existam os PCNLP, com as suas devidas
contribuições na área de linguagens, os pesquisadores da educação literária não foram
efetivamente revozeados no documento. Por isso, cabe a cada instituição de ensino a
proposição responsável de um ensino de literatura que se comprometa com a formação
de “pessoas melhores” e de sujeitos mais engajados na formação de comunidades
democráticas (LEHAY-DIOS, 2000, p. 273). Sobre isso, na seção seguinte – tônica de
toda a Dissertação –, apresentarei algumas proposições fincadas da dimensão política da
educação literária.

2.5. A defesa da educação literária plural, democrática e humanizadora: um ato de


resistência

Enquanto teóricos e docentes percebem a pura historiografia literária como um


impasse ao verdadeiro e significativo trabalho com o texto literário no Ensino Médio, as
séries finais do Ensino Fundamental, inclusive a partir dos já mencionados PCNLP,
priorizam uma abordagem mais estrutural dos gêneros textuais. Sobre isso, Rezende
afirma:
No ensino de língua portuguesa destas últimas quatro décadas, a
entrada das teorias linguísticas no âmbito do ensino abalou
concepções arraigadas (...). Ainda que a correlação teoria-prática
esteja longe de ser a ideal, os professores já não se sentem seguros
de defender o ensino tradicional de gramática. Nesse contexto,
paulatinamente, nas últimas décadas, a linguística textual e as teorias

47
discursivas instauraram um novo modelo, sendo quase hegemônica
a vertente “teoria dos gêneros”. (2013, p. 102)

No entanto, na contramão dessa lógica que prevê o ensino-aprendizagem de leitura


literária no Ensino Fundamental II como uma experiência voltada para a categorização
das estruturas fixas dos gêneros textuais, é preciso verificar a existência de teorias que
versem sobre a educação literária como um processo de aprendizagem que reconheça e
valorize os saberes prévios dos alunos e das alunas, para que sejam expandidos, em vez
de focalizar aquilo que eles não sabem. A isso, anteriormente, chamei de
intersubjetividade. Assim, entra em cena a natureza expansional do desenvolvimento da
aprendizagem (VYGOTSKY, [1978] 1998), que pressupõe o acionamento de um
processo relacional em vez do definicional com o qual a escola costuma atuar. Nessa
direção, cabe a seguinte questão: que experiências de vida prévias podem emanar da
vivência com o texto literário? É notório que, se a literatura é a confissão de que a vida
não basta, como já nos alertava Fernando Pessoa, talvez seja a experiência ficcional com
a leitura literária uma possibilidade de encontros e desencontros entre o universo ficcional
e a realidade discente.
Nessa perspectiva, Rezende afirma, em seu artigo O ensino de literatura e a
leitura literária, que a leitura literária se relaciona à identificação do aluno-leitor com o
texto. Isso quer dizer, portanto, que há um processo de agentividade previsto para o
estudante na sua relação com as obras literárias. No entanto, será que cabe apenas à
escola/ao docente a decisão do que deve ser lido e de como se devem ler os textos
literários? Rezende afirma que “a escola é menos livre que a sociedade: lida com objetivos
e conteúdos inseridos num currículo ou programa” (2013, p. 107), o que pode significar
que a educação literária, o ensino de literatura esteja mais centrado nos objetivos
curriculares do que na potencial relação com a pessoa-aprendente. Isso, obviamente,
impede a integração e o desejo do aluno por construir sentido e respostas ao universo
ficcional com o qual se integra.
Com base nessa visão de integração entre pessoas no processo de ensino-
aprendizagem de leitura literária, é importante considerar que nosso papel é resistir,
subverter a lógica bancária, instaurando um novo modo de ser, estar e fazer docente-
discente. Diante de tudo isso, é preciso que estudantes e professores estejam unidos,
buscando responder à seguinte questão: se as aulas sobre práticas de linguagem nos
permitem resistir, o que é possível fazer a partir disso? Assim, se os alunos e as alunas
já vivem experiências literárias fora da escola, o caminho proposto pelo professor será o

48
de potencializar o aluno-leitor por meio do compromisso ético e inclusivo com a
aprendizagem.
Para isso, no lugar da “gramaticalização” dos gêneros textuais no EF II – momento
em que se veem professores comprometidos com as listas de características estáveis de
gêneros como fábula, conto, carta, crônica, romance, por exemplo –, é urgente investigar
a existência de abordagens teóricas que assumam uma perspectiva de leitura das obras
literárias em um viés transformador (FREIRE, [1967] 2018), mesclando as experiências
ficcionais com as reais, aquelas trazidas previamente pelos leitores-aprendentes. Nessa
perspectiva, não estão mais em jogo estratégias de transcrição literal – no esquema cópia-
colagem – do material explícito do texto literário. Ao contrário, o que se pretende acionar
são as possibilidades de leitura das entrelinhas, dos implícitos textuais. Isso porque, como
é evidente para o educador engajado, somente o ensino de saberes linguísticos não dá
conta de ajudar a pensar sobre os saberes sobre práticas de linguagens.
Nesse sentido, é necessário que o professor seja um agenciador de práticas que
considerem propósitos docentes e discentes na sala de aula, ou seja, trata-se do
“aprendizado como uma realização agentiva baseada em um afetamento de mão-dupla
entre o aprendiz e o ambiente à sua volta” (GERHARDT, 2012, p. 23). Desse processo
de integração, de mesclagem entre o prévio e o novo, é que se capturam as aprendizagens
bem-sucedidas – no lugar daquelas mal-sucedidas e ocultas, comuns ao ambiente
tradicional escolar. Para tanto, é preciso que as práticas de ensino-aprendizagem
pressuponham a (des)aprendizagem das estratégias de leitura superficiais, baseadas na
noção de certo e errado e no silenciamento das vozes dissonantes – e tão importantes! –
no espaço da sala de aula. É preciso, pois, que o ensino-aprendizagem de leitura literária
se vincule às rupturas das “torres de marfim” (FABRÍCIO, 2006), abrindo espaço para o
transgredir e o desaprender necessários ao aprendizado dialógico e responsivo
(BAKHTIN, [1920-24] 2010).
Assim, recorro ao que defende Antonio Candido, em seu famoso texto O direito
à literatura (1988). O crítico aponta para o fato de que não há ser humano que não esteja
envolvido no universo de fabulação, de criação ficcional. Seria esse, segundo ele, um
direito inalienável de todo cidadão, porque “assim como todos sonham todas as noites,
ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega
ao universo fabulado.” (1988, p. 174). A partir disso, Candido defende que “nas nossas
sociedades, a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação,
entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e

49
afetivo.” (1988, p. 175). Assim, os valores preconizados ou rechaçados por uma sociedade
estão presentes nas manifestações da ficção. Defende-se, nessa perspectiva, que “a
literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a
possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.” (CANDIDO, 1988, p. 175). Por
isso, o autor defende que a literatura é uma “necessidade universal imperiosa”, que possui
caráter humanizador, “porque desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em
que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”
(CANDIDO, 1988, p. 176).
Assim, pois, Candido advoga que “negar a fruição da literatura é mutilar a nossa
humanidade” (1988, p. 186). O crítico também defende que “para que a literatura
chamada erudita deixe de ser um privilégio de pequenos grupos, é preciso que a
organização da sociedade seja feita de maneira a garantir uma distribuição equitativa de
bens”. (1988, p. 186). Assume-se, assim, a necessidade de uma sociedade igualitária no
que se refere ao acesso aos produtos literários. Por fim, o autor pleiteia:

A luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas


em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis de cultura. A
distinção entre cultura popular e cultura erudita não deve servir para
justificar uma separação iníqua, como se do ponto de vista cultural
a sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis, dando lugar
a dois tipos incomunicáveis de fruidores. Uma sociedade justa
pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e
da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um
direito inalienável. (CANDIDO, 1988, p. 191, grifo meu)

Com base no que defende o crítico, percebo um viés propositivo valioso no que
se refere à constatação de que a literatura deve ser encarada como um direito de todos os
cidadãos. No entanto, Candido não me parece problematizar de que modo essa
distribuição equitativa do “produto literário” deve acontecer. Além disso, enxergo um
olhar um tanto restrito pelo fato de a literatura ser vista como um direito para que os seres
se tornem “fruidores”. Essa perspectiva pode construir o sentido de que a literatura deva
ser fonte de prazer para todos os seres humanos, o que, admito, parece reduzir o potencial
humanizador proveniente da relação leitor-texto, na medida em que o leitor pode exceder,
extrapolar, preencher espaços da obra literária com o que o Círculo de Bakhtin chamou
de “excedente de visão”29 ou “compenetração” (BAKHTIN, 2010, p. 23). Candido, assim,
parece-me ainda voltado para a “superfície estrelada das letras”, nutrindo um olhar

29
No capítulo seguinte, aprofundarei a questão da relação estética proveniente da exotopia proposta pelo
Círculo de Bakhtin.

50
generoso e, talvez, ingênuo, sem considerar as possibilidades de o leitor poder produzir
afetações, (re)criações, respostas e acabamentos ao universo literário.
Em esteira similar à de Antonio Candido, Magda Soares, em seu artigo Leitura e
democracia cultural, retoma a ideia de democracia como “distribuição equitativa de bens
materiais e simbólicos.” (2004, p. 17). A leitura literária é, pois, assumida por Soares
como um bem simbólico que precisa ser distribuído de um modo equitativo, capaz de
diminuir preconceitos e romper barreiras de tempo e espaço. Sobre isso, ela afirma:

A leitura literária democratiza o ser humano porque mostra o homem


e a sociedade em sua diversidade e complexidade, e assim nos torna
mais compreensivos, mais tolerantes. (...) A leitura literária
democratiza o ser humano porque traz para seu universo o
estrangeiro, o desigual, o excluído. (SOARES, 2004, p. 31-32)

Essa dimensão extrapola a visão de teóricos que defendem um universo intocável


da obra literária. Pelo contrário, a perspectiva apresentada por Soares (2004) visa a
integrar ficção e realidade para que se chega a um processo democrático de leitura literária
– tanto do ponto de vista do acesso às obras, considerando o quantitativo de bibliotecas
públicas pelo país, quanto na perspectiva do direito à leitura agenciada, responsiva e
responsável. Isso porque, cerrando fileiras com Zilberman, “a leitura literária pode ser
qualificada como a mediadora entre cada ser humano e seu presente” (2013, p. 224).
Assim, o texto literário reclama um leitor comprometido, ativo, responsivo, que preencha
seus vazios e inacabamentos. Trata-se de um leitor que Zilberman caracteriza como
“indiscreto”, “penetrante” e “inquiridor” (2013, p. 225). Essa dimensão rompe o ideal de
leitura literária como fruição ou do texto como puro, pronto e acabado. Assim, a obra
ficcional é entendida, portanto, como “um artefato em eterna feitura, em perpétuo
entrelaçamento” (AMORIM, 2013, p. 231).
Nessa direção, rompendo com a tradição escolar que centra o conhecimento nos
professores, a leitura literária responsiva não pressupõe que o sentido de um texto seja
decifrado, como num processo de adivinhação. Sobre isso, Lajolo defende:

Não acredito mais na autonomia do texto, nem na solidão, nem no


caráter individual da escrita e da leitura. Aprendi que no texto
inscrevem-se elementos que vêm de fora dele e que os sujeitos que
se encontram no texto – autor e leitor – não são pura individualidade.
São atravessados por todos os lados pela história: pela história
coletiva que cada um vive no momento respectivo da leitura e da
escrita, e pela história individual de cada um; é na interseção destas
histórias, aliás, que se plasma a função autor e leitor. (2009, p. 104)

51
Assim, o processo de leitura literária na escola não pode construir-se de modo
neutro, isolado, certo ou errado. Não é possível, nessa perspectiva, que o trabalho com o
universo literário na escola distancie-se da “dimensão ideológica, afetiva, histórica,
linguística e discursiva” (LAJOLO, 2009, p. 107). Ler o texto literário é, nesse sentido,
escrever junto a ele novos sentidos e outras interpretações, porque, somente assim, é
possível que “o sujeito viva o outro na linguagem” (PAULINO e COSSON, 2009, p. 69),
incorporando-se à experiência do outro pela palavra. Isso porque

somos construídos pelos muitos textos que atravessam


culturalmente nossos corpos. (...) A experiência da literatura amplia
e fortalece esse processo ao oferecer múltiplas possibilidades de ser
o outro sendo nós mesmos. (PAULINO E COSSON, 2009, p. 69)

Por tudo isso, ainda que existam acertos e desacertos, aprendizagens e


desaprendizagens sobre os caminhos da educação literária, é preciso que consigamos
resistir à massificação, à homogeneização do processo pedagógico. A dimensão dialógica
da leitura literária pressupõe respostas, agentividades, inacabamentos, continuidades e
rupturas. Trata-se de uma perspectiva avessa à lógica da padronização prevista pela
Educação Bancária (FREIRE, [1968], 2005) pela lógica da neutralidade defendida pelo
ESP. Sem a esfera do outrar-se, conforme defende Silva (2015), do exercício exotópico
– conceito que será explicado no próximo capítulo – de construção de sentidos, não se
pode garantir a efetiva leitura literária na sala de aula.
Desse modo, entende-se que a literariedade não reside no texto como entidade
isolada; pelo contrário, o que é a literatura parte sempre de uma avaliação social. Impor
aos estudantes o que é literário ou não é um posicionamento ideológico que desconsidera
as pessoas-aprendentes e (re)afirma o já dito e produzido pelas classes dominantes. Para
tanto, revozeando com Bakhtin ([1920-24] 2010), a leitura literária responsiva pressupõe
a construção de sentidos baseados nos enunciados concretos por meio da refração das
avaliações sociais.
Nesse momento, cabe ao professor, indo muito além da preocupação com a lista
de conteúdos da série, perceber de que modo o texto literário na série em que atua pode
propiciar o agenciamento de práticas significativas de leitura. Para Considera (2017, p.
39), a leitura literária em sala vai além do saber sobre literatura, “mas, sim, uma
experiência de leitura capaz de dar sentido ao mundo em derredor, por meio de palavras
que fazem ecoar outras palavras”. Assim, a possibilidade de construção de conhecimentos
não está na obra literária fechada em si mesma, e sim nas pessoas que interagem com suas

52
vivências prévias a partir do processo de leitura/encontro do/com o novo. Sobre isso,
Lajolo afirma:
Ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um
texto. É a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significado,
conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para
cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que o autor pretendia e,
dono da própria vontade, entregar-se a essa leitura, ou rebelar-
se contra ela, propondo outra não prevista. (LAJOLO, [1993]
2000, p. 59, grifos meus.)

Dessa maneira, reafirmo que é preciso que a sala de aula subverta a lógica
bancária, conteudista para comprometer-se, verdadeiramente, com uma educação
humanizadora. É imperioso, pois, que se garanta, tanto quanto possível, uma sala de aula
transgressora, indisciplinar, que não se foque nos recortes conteudistas previstos. Nesse
sentido, importa o que dizem os autores, os textos, os professores, os estudantes, porque
todos eles estão em posições sociais e históricas que precisam dialogar, caso o interesse
seja o de verdadeiramente friccionar as verdades essencializadas às novas formas de se
produzir conhecimento. O desafio, nesse sentido, será o de efetivamente assumir a leitura
literária dialógica como perspectiva na sala de aula. Para tanto, os estudantes precisarão
de um objetivo específico para, junto ao processo individual e coletivo de leitura, pensar
sobre o que/como aprendem. Somente assim, pode a escola ser efetivamente um espaço
de luta, de fricção entre as forças centrípetas – centralizadoras – e as forças centrífugas –
descentralizadoras, vinculado, pois, ao agenciamento dos estudantes como pessoas éticas
e comprometidas com as questões humanas. Sobre essa dimensão democratizante da
literatura, Lehay-Dios afirma:

Não creio que exista o conhecimento puro de textos, de um ponto de


vista filológico, porque valores ideológicos transpassam toda ação
humana. Dessa maneira, torna-se possível responder para que se
estuda literatura e quais são seus objetivos na prática real de sala de
aula. (2000, p. 233)

Consoante Lehay-Dios, Silva (2015) defende, em sua tese, que é preciso que a
leitura literária possibilite aos estudantes “outras formas de ver, de pensar, de agir, de
sentir, de querer – de ser.” (p. 118). Por isso, não se pode assumir uma educação literária
isolada na historiografia, na biografia do autor ou nos aspectos linguísticos do texto. Para
Silva (2015), “a literatura tem de afetar o aluno, tirá-lo do seu lugar-comum, reverberar
pelo seu corpo, fazendo com que o mundo, a vida tremam, inteiros em suas mãos.” (p.

53
121). A educação literária é vista, assim, como uma potência capaz de provocar respostas
frente a questões da existência humana.
Dessa maneira, vale-nos a perspectiva do letramento crítico, que, conforme Green
(1998), deve ser compreendido como um processo em que os sujeitos se tornam capazes,
não apenas de participar de práticas de letramento existentes, mas também de transformar
e produzir ativamente essas práticas. Assim, cerrando fileiras com o que defende Magda
Soares (2004), não assumo em minha pesquisa a possibilidade de uma leitura literária
neutra. Pelo contrário, defendo como caminho viável a leitura literária na sua dimensão
dialógica e ideológica.
Nessa perspectiva, o texto é entendido como um lugar de luta, de tensão, diálogo
e mudanças, sendo um produto de forças ideológicas e sociopolíticas. Por meio dele, faz-
se possível compreender as representações dominantes, as intenções e as ideologias que
se materializam na trama textual. De acordo com Cosson (2016, p. 23) “devemos
compreender que o letramento literário é uma prática social e, como tal, responsabilidade
da escola.” Trata-se, pois, de favorecer que o leitor agencie com os textos literários os
sentidos do mundo, “compreendendo que a leitura é um concerto de muitas vozes e nunca
um monólogo”. (COSSON, 2016, p. 27).
No contexto de minha pesquisa, o trabalho com o livro Capitães da Areia vai
muito além de uma perspectiva técnica, assumindo, verdadeiramente, um caráter
dialógico, comprometido com práticas transformadoras. Por isso, a dimensão dialógica
da educação literária será desenvolvida mais detalhadamente no próximo capítulo.

54
3. A LEITURA DIALÓGICA DA OBRA CAPITÃES DA AREIA

Por acreditar na sala de aula plural, defendo em minha Dissertação a educação


escolar como um espaço de diálogos e conflitos (GADOTTI, 2012), visando a garantir
seu viés transformador (FREIRE, [1967] 2018), conforme apresentado no capítulo
anterior. Isso, claramente, conversa com a teoria do dialogismo bakhtiniano, que
pressupõe que a “orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo
discurso.” (BAKHTIN, [1975] 2010, p. 88). Assim, se professores e estudantes interagem
em sala de um modo discursivo, ativo e responsivo, instaura-se o dialogismo como
princípio para as práticas pedagógicas.
Nessa esteira, como professora de língua portuguesa, literatura e produção textual
do 9º ano de uma escola privada de elite, no Centro do Rio de Janeiro, não posso me
eximir da tarefa de tentar garantir que minha sala de aula promova oportunidades para
um processo dialógico de leitura literária, no qual os estudantes e eu estejamos imbricados
na proposição de uma leitura ativa, responsável e responsiva. Por essa razão, a escolha da
obra Capitães da Areia, feita pela equipe de professores de português do referido
colégio30, pode promover desestruturações nas forças hegemônicas. Isso porque o
romance amadiano poderá favorecer a fricção entre discursos essencialistas – como o
famoso e já mencionado “bandido bom é bandido morto” – e discursos anti-hegemônicos,
como aqueles que culminam da visão humanizadora do narrador da referida obra sobre
os menores abandonados que vagam pelas ruas de Salvador.
É relevante, ainda, destacar que, à época de sua publicação, o romance amadiano
Capitães da Areia foi queimado em praça pública, durante o governo varguista, sob a

30
Cabe, aqui, destacar o silenciamento dos estudantes nos processos de escolhas de livros didáticos e
paradidáticos. Tais seleções centralizam-se nas coordenações de área das duas unidades do colégio,
estendendo, tanto quanto possível, às equipes de professores da disciplina.

55
justificativa de que propagava o “credo vermelho”31, ou seja, o comunismo. Atualmente,
no entanto, o romance já é considerado canônico, sendo adotado sem maiores
questionamentos da coordenação e da direção escolar. Seu caráter de romance-denúncia,
82 anos depois da edição de 1937, ainda se faz potente na realidade brasileira atual.
Assim, na perspectiva de leitura dialógica e ideológica, os discursos, necessariamente,
reclamarão respostas. Isso significa, pois, que não haverá, na proposta que apresento nesta
Dissertação, qualquer dizer neutro, imparcial. Trata-se, pelo contrário, da defesa de uma
sala de aula plural e questionadora.

3.1. A responsividade docente-discente no processo de leitura literária

Vivemos fissuras, fragmentações e desestabilizações na contemporaneidade.


Como afirma Moita Lopes (2006, p. 104), “é tempo de reinventar a vida social”. Se o
homem contemporâneo apresenta natureza fragmentada, contraditória, heterogênea e
fluida, não se pode mais esperar que verdades essencializadas deem conta de responder
às necessidades atuais. Nesse sentido, faz-se necessário pensar em alternativas que
chamem a atenção do olhar humano para o sofrimento daqueles que estão mais ao Sul, as
chamadas “vozes do Sul”, para recorrer novamente a Boaventura de Souza Santos (2004).
Por essa razão, não resta dúvida, não se pode pensar em formas de produzir
conhecimentos sem considerar os projetos políticos em trâmite no país e os seus
consequentes desdobramentos na vida cotidiana e no sofrimento humano. A realidade de
uma escola privada de elite, no entanto, poderia comprometer-se com o maior
distanciamento entre a construção de conhecimentos por/para ricos e pobres, por
exemplo. Assim, seria reforçado o tradicional acúmulo de conteúdos a serviço de sucessos
acadêmicos e profissionais individuais, seguindo uma lógica positivista. Isso quer dizer,
pois, que a escolha de uma obra literária com a qual se trabalha em sala de aula poderia
voltar-se apenas para o que exames vestibulares e o ENEM esperam do desempenho do
estudante. Entretanto, é notório que uma formação escolar realmente comprometida com
uma abordagem humana, cidadã e crítica parte de atitudes docentes-discentes responsivas
em relação à leitura literária e ao processo de produção discursiva.

31
Conferir em https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/ditadura-vargas-incinerou-em-praca-
publica-1640-livros-de-jorge-amado/

56
Nesse sentido, a escolha da obra Capitães da Areia realiza-se como uma
alternativa que pode possibilitar a desconstrução de verdades ditas inquestionáveis. Trata-
se de uma tentativa de “experimentar a vida dos outros para além da vida local” (MOITA
LOPES, 2006, p. 92), desconstruindo certezas que apagam quem é diferente, permitindo-
nos, assim, viver de um modo mais humano e plural, tal como preconiza a já mencionada
Linguística Aplicada INdisciplinar. Dessa maneira, é importante ressaltar que “não se
trata de levar a verdade/o conhecimento às minorias [no caso da obra em estudo, os
menores abandonados], e sim de construir a compreensão da vida social com eles em suas
perspectivas e vozes.” (MOITA LOPES, 2006, p. 96).
Nesse sentido, em concordância com a filosofia da linguagem proposta pelo
Círculo de Bakhtin, o processo da leitura literária aqui em análise não se pretende como
um caminho que separa o “mundo da cultura” do “mundo da vida” (FIORIN, 2010, p.
207). Isso porque cada ser é único e, por isso, responsável, chamado a responder
eticamente por seus atos sem álibi, sem proteção. Por isso, a leitura da obra Capitães da
Areia exige dos participantes docentes e discentes uma real atitude responsiva. Há, nesse
processo, uma eventicidade que pressupõe que o ser é único e não pode prescindir de seu
papel na vida. Não se pode esperar que o outro leia o mundo e comprometa-se com a vida
por nós. Cada um deve estar envolvido nesse processo, porque, mesmo num estudo
teórico, não se pode estar apartado da vida social.
Por essa razão, a escolha da obra de Jorge Amado não pretende instituir
verdades, porque um discurso de verdade não pode substituir outro, mas pode
problematizá-lo. Assim, se há entre os estudantes um forte discurso de que os direitos
humanos existem apenas para defender bandidos, por exemplo, a leitura do romance
Capitães da Areia não pode pretender-se como instauradora de uma nova verdade – a de
que os meninos abandonados representam o bem e a polícia, o Estado, os reformatórios,
o mal, por exemplo. O que entra em cena durante a leitura do livro é a possibilidade de
cada aluno e cada aluna assumirem-se responsáveis, criando empatia em relação a uma
realidade de vida que lhes é estrangeira. Nesse sentido, vale-nos o conceito bakhtiniano
de exotopia: “um momento essencial (ainda que não o único) da contemplação estética é
a identificação (empatia) com um objeto individual da visão – vê-lo de dentro de sua
própria essência.” (BAKHTIN, [1920-24] 2010, p. 32). Assim, espera-se que o leitor seja
capaz de colocar-se do lado de fora de sua própria individualidade, assumindo a empatia
como viabilidade para a leitura literária, para, em seguida, retornar a si mesmo.

57
Esses processos empáticos que podem ocorrer durante a leitura não são
cronológicos; na verdade, o leitor busca conhecer o campo de visão do outro, ao mesmo
tempo em que também não prescinde do seu campo de visão. Sobre isso, afirma Bakhtin

Mas a pura empatia como tal é impossível. Se eu realmente me


perdesse no outro (em vez de dois participantes haveria um – um
empobrecimento do Ser), isto é, se eu cessasse de ser único, então
esse momento do não-ser nunca poderia se tornar um momento do
ser da consciência; o não-ser não pode se tornar um momento do ser
da consciência – ele simplesmente não existiria para mim, isto é, o
ser não se completaria através de mim nesse momento. (BAKHTIN,
[1920-24] 2010, p. 33)

É perceptível, no entanto, que a sala de aula precisa garantir a singularidade dos


eventos de leitura dos estudantes. Muito além de uma proposta que visa a apresentar o
que eles não conhecem – considerando-os tábulas rasas, como já contestava Paulo Freire
(2005) –, a leitura literária da obra de Jorge Amado necessita “evitar que esses diálogos
sejam monologizados no interior da palavra autoritária” (SZUNDY, 2014, p. 22) – aquela
com a qual a escola está muito acostumada. Sobre isso, Grillo afirma que

a palavra alheia desempenha um papel fundamental na formação


ideológica do homem e se apresenta como palavra autoritária e como
palavra interiormente persuasiva. A palavra autoritária exige
reconhecimento e assimilação, uma vez que está associada às
posições de poder – pai, professor, adulto, cientista, padre, etc. – das
diversas esferas ideológicas – família, escola, ciência, religião, etc.
A palavra internamente persuasiva está entrelaçada com as palavras
do homem em formação e é fundamental para o seu processo de
independência. (2010, p. 145)

No trabalho com a leitura literária dialógica, portanto, não se deve esperar


concordâncias e assimilações dos alunos e das alunas, mas, ao contrário, é preciso
provocar dizeres únicos, ativos, responsivos. Como defende Szundy (2014, p. 19) “é
fundamental que a escola forme analistas dos discursos capazes de compreender que
escolhas (verbais e não verbais) não apenas retratam, mas principalmente constroem
significados”. Assim, pode a leitura literária de cunho social, efetivamente, convidar
estudantes e professores a (re)construírem-se discursivamente, interagindo por meio das
questões emergentes da leitura e de seus possíveis desdobramentos. Sobre isso, Amorim
(2014, p. 364) advoga que é necessário que a escola proponha aos estudantes experiências
de engajamento com a linguagem, como uma ferramenta semiótica de atuação e
intervenção no mundo. “Somente dessa forma poderíamos (...) construir processos

58
educacionais voltados para o exercício pleno da cidadania”, afirma. Desse modo, a leitura
literária pode ser um ato que preze pela existência e pela resistência na sala de aula.

3.2. O romance amadiano e o território social da palavra

Para que se defenda a leitura da obra Capitães da Areia como uma verdadeira
proposta de leitura literária dialógica, é necessário que se revisitem, antes, outras
concepções do Círculo de Bakhtin, grupo composto por pessoas de diversas formações,
interesses intelectuais e atuações profissionais (FARACO, 2010, p. 13), o qual buscou,
claramente, trazer à luz contribuições para a chamada filosofia da linguagem – termo
proposto pelos filósofos, entre os quais M. M. Bakhtin e V. N. Volóchinov.
Contrariando os ideais propostos pelo formalismo russo, o Círculo de Bakhtin
inaugura a concepção da natureza social da filosofia da linguagem. Dessa maneira,
defende que, para se observar os fenômenos linguísticos, é necessário que os sujeitos
estejam em seu ambiente social, considerando a situação social mais próxima e o
ambiente social mais amplo no qual se inserem as vozes em diálogo. Para tanto, em
Marxismo e filosofia da linguagem ([1929] 2017), Volóchinov busca apresentar as duas
tendências fundamentais do pensamento filosófico e linguístico na modernidade: o
subjetivismo individualista e o objetivismo abstrato.
A primeira tendência – que teve Humboldt como mais importante fundador –
prioriza o ato discursivo e individual criativo como fundamento da língua, entendendo as
leis da criação linguística como leis individuais e psicológicas. Rechaçando as leis
sociológicas próprias de todo signo ideológico, essa tendência apresenta a visão de que
“a ideia de língua (...) é uma ideia poética; a verdade da língua é uma verdade artística, é
uma beleza consciente” (VOSSLER, 1910, p. 167). Trata-se, portanto, de uma tendência
da filosofia da linguagem que advoga pelos enunciados monológicos como ponto de
partida do pensamento sobre a linguagem (VOLÓCHINOV, [1929] 2017, p. 202).
Já para a segunda tendência – que apresenta raízes no racionalismo dos séculos
XVII e XVIII –, a língua é um arco-íris que se ergue acima do fluxo eterno dos atos
individuais discursivos (VOLÓCHINOV, [1929] 2017, p. 155), ou seja, trata-se de um
sistema estável e imutável – repetível, portanto – que não estabelece relação com valores
ideológicos. Tal tendência é, ainda, assumida em muitas salas de aula, deixando os
holofotes dos estudos linguísticos na identidade normativa da língua. Assim, nessa

59
perspectiva, o sujeito é considerado passivo em suas relações linguísticas, apenas
lançando mão das formas fonéticas, gramaticais e lexicais já constituídas para produzir
suas sentenças32. Trata-se, portanto, de uma tendência do pensamento filosófico-
linguístico que entende como centro organizador de todos os fenômenos linguísticos um
sistema de normas invioláveis, ao qual só resta ao indivíduo aceitar.
Torna-se evidente, no entanto, que o Círculo de Bakhtin não entra em consonância
com as duas tendências expostas, visto que defende que “a palavra está sempre repleta de
conteúdo e de significação ideológica” (VOLÓCHINOV, [1929] 2017, p. 181); portanto,
não pode ser observada apartada da sua construção social. Isso porque, para o Círculo de
Bakhtin, a palavra é entendida como um ato bilateral, como um produto das inter-relações
entre os sujeitos em diálogo. Sendo assim, nota-se que a linguagem se materializa na
interação discursiva por meio de sua produção sígnica e, portanto, ideológica. Considera-
se, pois, que “a realidade efetiva da linguagem não é o sistema abstrato de formas
linguísticas nem o enunciado monológico isolado (...), mas o acontecimento social da
interação discursiva que ocorre por meio de um ou de vários enunciados.”
(VOLÓCHINOV, [1929] 2017, p. 218-219). Portanto, não se pode separar, como
preveem as tendências citadas anteriormente, o processo de realização individual da
língua do seu conteúdo social, ideológico e cotidiano, já que, de acordo com o
Volóchinov, a palavra é “a ponte que liga o eu ao outro” ([1929] 2017, p. 205), é o
fenômeno ideológico que se transmuta em signo e ganha significação. A palavra é, pois,
o lugar em que se materializa o sistema social e ideológico. Acerca disso, Fiorin (2010,
p. 167) advoga que
os homens não têm acesso direto à realidade, pois nossa relação com
ela é sempre mediada pela linguagem. [...] Isso quer dizer que o real
se apresenta para nós semioticamente, o que implica que nosso
discurso não se relaciona diretamente com as coisas, mas com outros
discursos.

Assim, o livro Capitães da Areia, como um discurso verbal impresso, é também


um elemento componente da interação discursiva, que convida o leitor a assumir sua
posição social valorativa, respondendo, refutando ou confirmando o já dito. De acordo
com Volóchinov ([1929] 2017, p. 219), “O discurso verbal impresso participa de uma
espécie de discussão ideológica em grande escala: responde, refuta ou confirma algo,

32
A opção pelo emprego do termo “sentença” se deve ao fato de que, no objetivismo abstrato, não são
consideradas as relações discursivas que têm como resultado enunciados social e historicamente situados.
Vale-nos a citação de Fiorin (2010, p. 168): “As palavras e as orações são unidades da língua, enquanto os
enunciados são as unidades reais de comunicação.”

60
antecipa as respostas e críticas possíveis, busca apoio e assim por diante.” Isso porque,
por mais acabado em si que pareça, todo enunciado é apenas um momento da
comunicação discursiva.
Dessa maneira, o ideal saussuriano de que a língua, em sua concretização na/pela
linguagem, prevê uma posição ativa do enunciador e uma passiva do enunciatário não dá
conta dos pressupostos dialógicos levantados pelo Círculo de Bakhtin. Na verdade, para
o Círculo, essa visão unilateral de produção discursiva – também considerada no esquema
de comunicação de Jakobson33(1969) – não está errada, mas não compreende a totalidade
real da comunicação (FIORIN, 2009, p. 42). Sobre isso, no livro Estética da criação
verbal ([1953] 2011), Bakhtin nos diz:

Até hoje ainda existem na linguística ficções como “ouvinte” e o


“entendedor” (parceiros do “falante”, do “fluxo único da fala”, etc.).
Tais ficções dão uma noção absolutamente deturpada do processo
complexo e amplamente ativo da comunicação discursiva. [...] Toda
compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza
ativamente responsiva [...]; toda compreensão é prenhe de resposta.
(p. 271)

Por isso, o discurso literário, ao mesmo tempo em que responde a outros discursos
anteriores, reclama uma postura responsiva ativa do leitor-enunciatário. Sendo assim,
constata-se que todo enunciador é, antes, um enunciatário, visto que a interação discursiva
não se encerra na postura passiva dos sujeitos. Assim, a leitura literária que se pretende
dialógica pressupõe que “cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros
enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera da comunicação humana.”
(BAKHTIN, [1953] 2011, p. 297).
Dessa maneira, descontroem-se as vertentes atuais que entendem a sala de aula
como espaço para doutrinação ideológica. Ao contrário, espera-se que a escola seja um
espaço para a produção de discursos internamente persuasivos, dialógicos, que permitam
fricções, o que contraria a existência de discursos autoritários, monológicos, numa prática
escolar que seja, efetivamente, dialógica, responsável e responsiva. Isso quer dizer, pois,
que a leitura de uma obra de caráter denunciador como Capitães da Areia pode ser um
convite para que os estudantes se posicionem discursivamente sobre a realidade dos

33
A famosa teoria da comunicação de Roman Jakobson chegou ao Brasil da década de 1960, visando a
compreender as finalidades dos usos linguísticos, considerando estes seis elementos: emissor, receptor,
canal, mensagem, código e contexto. Nesse esquema, o receptor da mensagem não foi tratado por Jakobson
como um interlocutor de um processo em que a responsividade está em constante interação e disputa. Não
há, portanto, na lógica bakhtiniana, um receptor passivo, uma vez que enunciar é responder, é tomar partido,
é posicionar-se – até mesmo no silêncio, há comunicação.

61
menores abandonados, construindo inteligibilidades sobre um grave problema social
brasileiro. Não se trata de reproduzir uma verdade, mas de favorecer a criação de
interações discursivas várias – do eu para mim, do eu para o outro e do outro para mim
– que permitam uma posição responsiva ativa, e não somente uma compreensão passiva
do leitor. A leitura dialógica instaura-se, assim, como possibilidade para constituir a
“liberdade da alma” (FIORIN, 2009, p. 57). Desse modo, a escola pode, verdadeiramente,
comprometer-se com uma formação mais humana, delicada e cidadã.
3.3. O discurso literário amadiano e a tensão entre vozes sociais

É sabido que todos os campos da atividade humana se relacionam ao uso da


linguagem. Na concepção do Círculo de Bakhtin, o discurso é uma arena em que se
confrontam forças centrípetas – centralizadoras e monologizantes – e forças centrífugas
– descentralizadoras e dialogizantes. Nesse sentido, o trabalho dialógico com a linguagem
literária de Jorge Amado na sala de aula, invariavelmente, tocará, de modo sensível, nos
dizeres e nos sentires dos participantes do processo de leitura, não havendo lugar,
portanto, para posições neutras. Cabe mencionar, nessa direção, que toda produção
discursiva pressupõe posicionamento valorativo dos sujeitos sociais; portanto, a
experiência de leitura na sala de aula da educação básica instaura-se como um convite ao
dialogismo e à desconstrução de verdades prontas e acabadas. Assim, na concepção do
Círculo, o discurso é materializado na/pela linguagem, que é compreendida como um
sistema social que não apenas reflete, mas, sobretudo, refrata o mundo. Nesse sentido, os
signos de que a linguagem é constituída são sempre ideológicos, são um espaço de
encontro e confronto de/entre índices sociais.
Para tanto, vale-nos resgatar o conceito de ideologia proposto pelo Círculo de
Bakhtin. Para o Círculo, “a significação dos enunciados tem sempre uma dimensão
avaliativa, expressa sempre um posicionamento valorativo. Desse modo, qualquer
enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico.” (FARACO, 2010, p. 47). Para
Volóchinov (2017), sem signos, não existe ideologia. Desse modo, observa-se que toda
criação ideológica se situa social e historicamente, não podendo fechar-se na consciência
do indivíduo. Sendo assim, a ideologia não é entendida como o mascaramento do real; ao
contrário, o real é condicionado por uma ideologia, que não é dada a priori, pronta e
acabada em si mesma. Portanto, a ideologia é, na concepção do Círculo, um conjunto de
valores e de ideias que se constitui por meio da interação discursiva entre vozes sociais
pertencentes a grupos socialmente organizados na história concreta (2009, p. 60).

62
Nesse sentido, no que se refere ao processo de leitura literária da obra amadiana,
constata-se que tal atividade, na sala de aula de uma escola privada de classe média alta
no Rio de Janeiro, oportunizará aos participantes consonâncias, dissonâncias e
multissonâncias (FARACO, 2010, p. 68). “Delas pode resultar tanto a convergência,
quanto a divergência, o desacordo, o embate, o questionamento, a recusa”, afirma o autor.
Sobre isso, Faraco afirma:
Fica claro, então, que o Círculo de Bakhtin entende as relações
dialógicas como espaço de tensão entre enunciados. Estes, portanto, não
apenas coexistem, mas se tencionam nas relações dialógicas. Mesmo a
responsividade caracterizada pela adesão incondicional ao dizer de
outrem se faz no ponto de tensão deste dizer com outros dizeres (outras
vozes sociais): aceitar incondicionalmente um enunciado (e sua
respectiva voz social) é também implicitamente (ou mesmo
explicitamente) recusar outros enunciados (outras vozes sociais) que
podem se opor dialogicamente. (2010, p. 69)

Para tanto, é necessário pensar que o processo de leitura literária efetivamente


comprometido com as questões sociais pode, dessa maneira, favorecer o acesso às
fronteiras discursivas, por meio do tenso e necessário embate dialógico. Segundo Amorim
(2010, p. 111), “a tensão em Bakhtin não é algo negativo nem algo a ser superado. Ao
contrário, ela é constitutiva da criação humana, porque ela é o que atesta a presença do
outro, daquele que não se identifica comigo, daquele que me escapa e a quem minha
palavra se dirige.”. Ler e, de algum modo, vivenciar – nas linhas e nas entrelinhas
amadianas – a realidade de centenas de crianças e adolescentes que vivem nas ruas pode
ser um importante convite para que os estudantes se posicionem, por meio da análise e da
produção de discursos, sobre esse tema de grande relevância social.

3.4. A heteroglossia dialogizada no romance-denúncia de Jorge Amado

A leitura da obra Capitães da Areia – ao denunciar as ausências a que estão submetidos


menores abandonados – pressupõe-se claramente dialógica, devido aos discursos que
permeiam o romance. Para Bakhtin ([1953] 2011, p. 321), “o autor de uma obra literária
(romance) cria uma obra (enunciado) de discurso única e integral. Mas ele cria a partir de
enunciados heterogêneos, como que alheios”. No tecido literário, portanto, autor, narrador e
personagens constroem diferentes vozes discursivas, posicionando-se acerca dos
acontecimentos e das ações presentes no enredo. A esse processo, Bakhtin deu o nome de

63
plurilinguismo do romance34 ou heteroglossia. Em Questões de literatura e estética: teoria do
romance, o filósofo russo afirma que
o romance é uma diversidade social de linguagens organizadas
artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais. [...] E é
graças a este plurilinguismo social e ao crescimento em seu solo de
vozes diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo
seu mundo objetal, semântico, figurativo e expressivo. O discurso
do autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados,
os discursos das personagens não passam de unidades básicas de
composição com a ajuda das quais o plurilinguismo se introduz
no romance. ([1975] 2010, p. 74, grifos meus)

Além disso, como o romance Capitães da Areia é também composto por gêneros
extraliterários – como a reportagem, a notícia e a carta do leitor –, fica ainda mais clara a
multiplicidade de vozes com as quais a obra é arquitetada. Por isso, é perceptível a
intencionalidade ética e estética do romance em análise, já que as vozes dissonantes
entram em cena no tecido literário. Instaura-se, assim, a heteroglossia no romance
(BAKHTIN, [1975] 2010, p. 107), uma vez que a obra se compõe de discursos outros na
construção dialógica que refrata as intenções do autor. Sobre isso, Bakhtin ([1953] 2011,
p. 320) afirma que os enunciados extraliterários e as suas fronteiras, transferidos para a
obra literária, permitem que recaiam sobre o tecido ficcional “reflexos de outras vozes e
neles entra a voz do próprio autor”.
Para tanto, o leitor toma contato com as perspectivas várias acerca da existência
de menores abandonados na cidade de Salvador. Existe um primeiro posicionamento –
disposto logo nas primeiras páginas, na reportagem que abre o livro –, que é o que
exprime o desejo de extermínio das crianças e dos adolescentes, por vezes, infratores.
Logo em seguida, nas cartas, algumas vozes coadunam essa perspectiva, como a do chefe
de polícia e a do diretor do reformatório, por exemplo. Não se reconhece nas vozes dessas
figuras – os chamados “cidadãos de bem” – a preocupação com a trajetória de vida
daqueles menores e com os direitos que lhes foram negados – assim como acontece na
matéria citada em minha Introdução, que veiculou o espancamento de um menor nas
ruas do Flamengo, no Rio de Janeiro.
Assim, é a partir dessa apresentação do senso comum que o autor, logo em
seguida, apresenta-nos cartas da seção dos leitores. Nelas, o secretário do chefe de polícia,
o juiz de menores, a mãe de um dos meninos infratores, um padre e o diretor do

34
Na tradução de 2015, feita pela Editora 34, o termo russo rasnoriétchie (discursos diferentes) – aqui
traduzido como plurilinguismo – é chamado de heterodiscurso, devido ao caráter heteroglóssico do discurso
literário romanesco.

64
reformatório personificam as vozes sociais daqueles que, de algum modo, se envolvem
com a vida dos menores abandonados. Nos discursos dos que representam as instâncias
que zelam pela paz da população – não em sua totalidade, notoriamente, verifica-se a
propagação de um posicionamento próximo ao da reportagem do Jornal da Tarde. No
entanto, nas cartas da mãe de um dos menores e do padre, observa-se a (re)criação de
vozes que enxergam o sofrimento e a desassistência a que estão expostos as crianças e os
adolescentes em infração.
Logo depois dessa parte introdutória, iniciam-se os capítulos narrativos da obra.
Neles, um narrador em 3ª pessoa assume a direção do relato acerca das minúcias vividas
por crianças e adolescentes em estado de abandono na cidade de Salvador. Revelando
uma realidade que o leitor distanciado pouco pode imaginar, o romance nos apresenta os
Capitães da Areia, que “vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando
palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a
conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas.” (AMADO, 2008, p.
29). Dessa maneira, nota-se a intencionalidade da voz que cumpre a responsabilidade de
apresentar a leitores, das mais variadas idades, uma realidade que a mídia e o poder
público não propagam.
Assim, a voz do narrador parece denunciar a intencionalidade do autor. Nesse
sentido, o discurso do autor, no plano linguístico-literário, mistura-se aos discursos de
outrem. Como defende Bakhtin,
o autor não está na linguagem do narrador nem na linguagem
literária normal, com a qual está correlacionada a narrativa (embora
ela possa estar próxima de uma e de outra língua), mas ele se utiliza
de ambas para não entregar inteiramente as suas intenções a
nenhuma delas; ele utiliza essa comunicação, esse diálogo das
línguas em cada momento da sua obra, para permanecer como que
neutro no plano linguístico, como "terceiro" na disputa entre as duas
(mesmo que esse terceiro possa ser parcial). ([1975] 2010, p. 119)

Desse modo, percebe-se que a disposição dos capítulos consegue, aos poucos,
apresentar aos leitores um narrador preocupado e comprometido com as condições de
vida de personagens como Pedro Bala, Pirulito, Sem-Pernas e Professor. São meninos
que encontram em um trapiche abandonado possibilidade de moradia. Sobre esse lugar,
o narrador nos relata: “Durante anos, foi povoado exclusivamente pelos ratos que o
atravessavam em corridas brincalhonas, que roíam a madeira das portas [...]. Em certa
época, um cachorro vagabundo o procurou como refúgio.” (AMADO, 2008, p. 28). Nota-
se que o trapiche abandonado em nada se parecia com um lugar para morar. No entanto,

65
a descrição minuciosa com a qual o narrador apresenta o local ao leitor parece corroborar
com a perspectiva de que aqueles meninos abandonados não tinham sorte ou privilégios
na vida. Seus direitos básicos, como o de ter casa, família e acesso à educação e à saúde,
eram negados a eles constantemente, já que o único espaço no qual encontraram abrigo
fora anteriormente rechaçado por ratos e cães.
Nota-se, ainda, a heteroglossia com a qual se compromete o romance amadiano
por meio dos gêneros extralinguísticos que visam a representar a realidade exposta na
mídia – os gêneros jornalísticos –, por meio da voz do narrador sensível às amarguras
sofridas pelos menores do grupo Capitães da Areia e por meio das vozes sociais
explicitadas pelos diálogos entre personagens na obra. Um exemplo disso ocorre no
capítulo Docas. Nele, Pedro Bala encontra uma negrinha no areal do cais e a “derruba”,
estuprando-a. Angustiado com as descobertas que fizera anteriormente sobre a morte
injusta de seu pai, um grevista que lutava pelos direitos dos doqueiros, o protagonista
parece tentar substituir sua dor emocional pela dor física que provoca na menina. No fim
do capítulo, no entanto, Pedro escuta uma voz interna – nem a do autor, nem a da
negrinha, nem mesmo a sua, talvez o eco da voz do narrador –, que lhe diz que a pobre
negrinha era, como ele, uma criança. Assim termina o capítulo:
Primeiro ele ficou parado, depois deitou a correr no areal e ia como
se os ventos o açoitassem, como se fugisse das pragas da negrinha.
E tinha vontade de se jogar no mar para se lavar de toda aquela
inquietação, a vontade de se vingar dos homens que tinham matado
seu pai, o ódio que sentia contra a cidade rica que se estendia do
outro lado do mar, na Barra, na Vitória, na Graça, o desespero da
sua vida de criança abandonada e perseguida, a pena que sentia pela
pobre negrinha, uma criança também. ‘Uma criança também’ –
ouvia na voz do vento, no samba que cantavam, uma voz dizia
dentro dele. (AMADO, 2008, p. 95, grifo meu).

A voz que Pedro ouve no vento não é a sua própria voz nem a da negrinha, mas é
também sua e dela, do mesmo modo que também parece ressoar intencionalidades do
autor e do narrador. Fica claro, por meio desse exemplo, o quanto a obra se tece a partir
de uma multidão de vozes. Isso porque, para Bakhtin e para os membros do Círculo,
interessa a noção de dialogismo, o processo dialógico em que se instaura um enunciado.
Sendo assim, sobre as vozes sociais dos personagens no tecido romanesco, diz-nos
Bakhtin:
As palavras dos personagens, possuindo no romance, de uma forma
ou de outra, autonomia semântico-verbal, perspectiva própria, sendo
palavras de outrem numa linguagem de outrem, também podem
refratar as intenções do autor e, consequentemente, podem ser, em
certa medida, a segunda linguagem do autor. ([1975] 2010, p. 119)

66
Portanto, observa-se que a heteroglossia amadiana apresenta-se como o
entrecruzamento de discursos – do autor, do narrador, dos personagens, das vozes que
constroem os gêneros jornalísticos da obra –, propiciando leituras dialógicas. Descontrói-
se, assim, a ideia de que Capitães da Areia é um romance “defensor de bandidos” e, por
conseguinte, o professor que o adota em sala de aula também o é. Trata-se, em verdade,
de uma obra que apresenta um discurso plural, convidando o leitor a também se
sensibilizar e posicionar sobre uma realidade que não é só ficcional. Sem dúvida, há,
durante a leitura do romance, um convite à problematização de uma questão social que
urge ser resolvida no país35.
Assim, a heteroglossia instaura-se como a dialogização das vozes sociais
presentes no romance amadiano. Para tanto, é preciso considerar que cada discurso
responde a outros discursos, refutando-os ou confirmando-os. Trata-se do encontro de
vozes social e culturalmente dispostas na trama literária, a serviço de intencionalidades
discursivas comprometidas com as desigualdades que assolam a população sem moradia
definida. Isso pode ser verificado, ainda, no desfecho do romance, quando Pedro Bala
torna-se um grevista, lutando pelos direitos dos pobres. O narrador, desse modo, diz:

Companheiros, chegou a hora...


A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração.
Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. Uma voz que atravessa
a cidade, que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas
da religião ilegal dos negros. Uma voz que vem com o ruído dos
bondes onde vão os condutores e motorneiros grevistas. [...] Uma
voz que diz uma palavra bonita de solidariedade, de amizade:
“Companheiros”. Uma voz que convida para a festa da luta. [...] Voz
poderosa que o chama. Voz de toda a cidade pobre da Bahia. Voz da
liberdade. A revolução chama Pedro Bala. [...]
Porque a revolução é uma pátria e uma família. (AMADO, 2008, p
258, grifo meu)

Fica claro que a voz que chama Pedro Bala para a revolução é atribuída, nas
palavras do narrador, à liberdade, à revolução. Trata-se de uma voz que atravessa a cidade
e convida Pedro para a luta. Nesse desfecho, pode o convite ser estendido também aos
leitores, estimulando-os a, sensivelmente, (re)conhecerem as mazelas a que estão

35
É necessário destacar o fato de que, à época de sua publicação, o romance amadiano Capitães da Areia
sofreu perseguição devido à suposta ameaça de propagação do “credo vermelho”, do credo comunista.
Exemplares foram queimados em praça pública durante o governo varguista. Hoje, 82 anos depois, no
entanto, o livro é adotado em inúmeras escolas, sendo considerado canônico. Trata-se, portanto, de uma
obra cuja literariedade construiu-se nos discursos didáticos por meio da valoração social.

67
submetidas as populações mais pobres e desassistidas e a comprometerem-se com a busca
por um olhar mais delicado para as desigualdades sociais no país.
Desse modo, por acreditar que meu fazer docente é único no existir-evento, para
o qual não há álibi, o processo de leitura literária dialógica da obra Capitães da Areia
também precisa ser visto em sua singularidade por todos os participantes. Isso quer dizer,
pois, que as posições docente-discente não podem/conseguem ser neutras durante a leitura
da obra. Necessariamente, alunos e alunas são convidados a responder ativamente às
questões de que trata o romance. Essa atitude responsiva, no entanto, não é por mim
esperada de uma ou de outra maneira, visto que cada ser é único e repleto de consonâncias
e dissonâncias.
Assim, considerando a pluralidade de vozes de que o romance é constituído,
caberá a cada participante do evento a análise dialógica dos discursos e a construção ativa
e responsiva de seus próprios enunciados que, invariavelmente, confirmarão ou
rechaçarão outras vozes sociais. Nesse sentido, como docente em mediação do processo
de leitura numa escola privada de classe média alta, não acredito que a minha postura
ativa-responsiva – ou mesmo a do autor do romance ou a do narrador e a dos personagens
– pode ter qualquer impacto doutrinador na vida dos estudantes.
É, no entanto, verdadeiro o meu desejo de que os jovens para os quais leciono
comprometam-se com a leitura, sentindo e dizendo, a partir de seus lugares sociais, aquilo
que para eles resulta do processo de leitura como interação discursiva. Os estudantes não
são, portanto, leitores passivos, meros ouvintes. Na leitura dialógica proposta, todos os
participantes são protagonistas e ocupam lugares dos quais não podem prescindir.
Por fim, não resta dúvida de que a escola que defendo é a que pode, deve e quer
se engajar na produção de discursos persuasivos, refutando os autoritários com os quais
se constituiu ao longo de sua história. Portanto, considero imperativo que os conceitos
do Círculo de Bakhtin e os pressupostos da Linguística Aplicada INdisciplinar estejam
organizados, nessa proposta, como os fundamentos teóricos de maior relevância para que
a sala de aula seja verdadeiramente comprometida com uma formação literária dialógica,
ideológica, humana e cidadã.

68
4. POSICIONAMENTO METODOLÓGICO: AÇÃO, INTERPRETAÇÃO E
INTERVENÇÃO

“Nossas verdades são só possibilidades de tratar


certas questões – e são efêmeras.”
(MOITA LOPES, 2004, p. 161)

“A ‘realidade’ (familiar ou exótica) sempre é


filtrada por um determinado ponto de vista do
observador.”
(VELHO, 1978, p. 42)

Durante os capítulos teóricos, intencionei elucidar o viés político-ideológico de


minha investigação, afinada – por sua natureza dialógica (VOLÓCHINOV, [1929] 2017),
INdisciplinar (MOITA LOPES, 2006) e transgressiva (PENNYCOOK, 2006), com a
Linguística Aplicada (cf. o primeiro capítulo teórico). Por isso, é notório que a perspectiva
teórico-metodológica adotada diz respeito à proposição de inteligibilidades para questões
da vida social contemporânea.
Dessa maneira, minha investigação não se propõe instauradora de verdades,
porque, segundo Moita Lopes (2004), revozeando Foucault, “as verdades são desse
mundo”. São, portanto, efêmeras. Por isso, se o mundo globalizado, pós-moderno, é
fluido, movente, transitório, não se pode persistir em percursos metodológicos obsoletos.
Moita Lopes indaga-nos, de modo provocativo: “Que conhecimentos são esses que não
têm sido capazes de focalizar a vida social e suas motivações político-ideológicas?”
(2004, p. 162). Não se pode, portanto, pensar em produzir conhecimentos em LA
INdisciplinar de modo apartado das práticas sociais, de modo descompromissado com a
vida política, sociocultural e histórica (MOITA LOPES, 2004, p. 162).
Por isso, entendendo que é sempre preciso repensar os percursos teórico-analíticos
com os quais nos afinamos, defendo em minha pesquisa o viés híbrido, mestiço de
investigação. Isso porque, consoante Moita Lopes (2004), é urgente assumir as
contribuições das Ciências Sociais e Humanas para as pesquisas sobre práticas de
linguagens. Especialmente no que se refere à educação literária na dimensão dialógica,
percebe-se a necessidade de estabelecer relações com estudos antropológicos e históricos,
por exemplo. O desafio, portanto, é conseguir hibridizar minha pesquisa
metodologicamente, estranhando um contexto (o escolar) que me é familiar (VELHO,
1978).

69
Dessa maneira, afastando-me dos rótulos e das padronizações, minha pesquisa
consolida-se a partir do paradigma qualitativo interpretativista, de cunho etnográfico
intervencionista. Isso quer dizer, pois, que a verdade é disputada (VELHO, 1978); logo,
entende-se que fazer ciência é fazer política para descontruir forças contra as minorias.
Assim, percebe-se que “se queremos compreender os ‘outros’ e como eles se
comportam, precisamos suspender nossas interpretações dadas por certas para observar e
esperar que os significados fiquem claros no que vemos, como defende Frankham (2015,
p. 69). Por isso, entendo que o cunho etnográfico de minha investigação me coloca em
constante desassossego, porque o contexto, os participantes, as teorias, a vida, tudo,
enfim, está em constante movimento. É preciso, portanto, aprender a (des)aprender
olhares científicos essencializados para criar novas possibilidades de interpretação para a
produção de conhecimento. Torna-se necessário, desse modo, distinguir o que vejo do
que penso que vejo na pesquisa (FRANKHAN, 2015).
Assim, devido à tentativa de ressaltar o humano no ato humano (FRANKHAN,
2015), esta pesquisa considera o diário do pesquisador fundamental para a interpretação
dos dados. Não se trata, evidentemente, de produzir verdades sobre a observação, mas de
considerar o viés interpretativista da análise do grupo social em foco. Além disso, as
produções textuais escritas produzidas pelos estudantes favorecerão o diálogo entre os
discursos orais dos debates mediados e os discursos impressos, criados a partir da
transposição discursiva (SANDERS, 2006), para, enfim criar entendimentos acerca de
práticas situadas que podem contribuir para enriquecimento de nossa compreensão da
vida social (DENZIN; LINCOLN, 2006).
Cabe, nessa perspectiva, recorrer ao conceito de adaptação e de transposição,
evocados por Julie Sanders (2006). Para a autora, o processo de adaptação é entendido
como uma prática transposicional. Assim, o texto-base literário, de Jorge Amado, foi
(re)criado e (re)interpretado a fim de que os estudantes pudessem produzir seus
posicionamentos discursivos nos debates mediados a partir do livro. Além disso, para a
produção dos textos escritos, em diálogo com os capítulos da referida obra literária, às
alunas e aos alunos coube a postura ativa e responsiva (cf. segundo capítulo teórico) para
que produzissem suas versões por meio de um processo contínuo de interpretação e
reinterpretação, de avaliação e reavaliação, de escrita e de reescrita (SANDERS, 2006).
Nesse sentido, a transposição da narrativa amadiana, escrita em 3ª pessoa, para
(re)criação discente em 1ª pessoa objetivou que os estudantes, imbricados nas discussões
acerca da realidade dos menores abandonados apresentados no romance Capitães da

70
Areia, experimentassem (re)produzir as vozes de personagens como Pedro Bala e Sem-
Pernas, por exemplo, a fim de que pudessem ecoar as vozes daqueles que, muitas vezes,
aos olhos do senso comum, são vistos como bandidos, trombadinhas, ladrões (cf.
discussão na Introdução). A experiência de adaptação da obra original permitiu aos
estudantes ventilar proposições – coerentes e verossimilhantes com a narrativa original –
acerca do que sentiam, pensavam e desejavam aqueles menores abandonados. Não se
tratou, no entanto, de perceber a transposição discursiva como mera cópia ou plágio da
obra de Jorge Amado. Pelo contrário, o processo de adaptação pressupôs, conforme
defende Sanders (2006), a apropriação das alunas e dos alunos acerca da narrativa
precursora para – a partir da avaliação, da reavaliação e da expressividade (conforme
apresentarei na subseção a seguir) – propiciar o engajamento discente nas escritas
dialógicas e responsivas propostas.
Desse modo, nota-se o fato de que minha postura como pesquisadora não teve
como centro apenas a verificação da leitura literária dos estudantes. Intencionei, com os
debates e as propostas de transposição discursiva, interpretar a fricção de discursos –
hegemônicos e anti-hegemônicos – que se mesclavam em cada produção (oral ou escrita).
Nesse sentido, reafirmo o caráter qualitativo-interpretativista da minha investigação,
assumindo seu cunho etnográfico-intervencionista, uma vez que objetivei, com a minha
pesquisa, produzir inteligibilidades sobre a vida social em que culpabilização e
vitimização dos menores abandonados – por vezes, menores infratores – são conceitos
acionados, produzidos e reproduzidos constantemente nas produções discursivas da
atualidade (cf. discussão na Introdução).

4.1. Percurso metodológico: Análise Dialógica do Discurso (ADD)

Esta pesquisa valida a concepção de que o dialogismo é a base para as


interpretações acerca das práticas de linguagem que ocorrem em sala de aula. Nesse
sentido, é necessário resgatar a noção de que, de acordo com a base epistemológica do
Círculo de Bakhtin (cf. segundo capítulo teórico), todo enunciado/discurso dialoga com
outros enunciados/discursos. Sendo assim, para a chamada Análise Dialógica do Discurso
(ADD), vale a compreensão de que “a língua tem significação, que é o significado das
palavras e expressões no sistema da língua, enquanto o discurso cria sentido, ou seja, faz
as palavras e expressões da língua irem além dos significados do dicionário” (SOBRAL

71
e GIACOMELLI, 2016, p. 1078). Desse modo, o contexto em que a prática discursiva
ocorre, em sua manifestação no tempo e no espaço, envolverá um locutor que se dirige a
alguém, produzindo e adaptando seu discurso em função da tentativa de prever uma
atitude responsiva do seu interlocutor. Assim, percebe-se que toda escolha de palavra
pressupõe um receptor-regulador a fim de que se concretize o intercâmbio verbal. Por
isso, um enunciado, para a ADD, possuiu três componentes36: i. referenciabilidade, ou
seja, o assunto de que trata o discurso, sendo abstrato ou concreto; ii. expressividade, ou
seja, a avaliação, a valoração que o sujeito-autor faz sobre o assunto; iii.
endereçabilidade, ou seja, o direcionamento do discurso a interlocutores previstos. Cabe,
assim, resgatar a ideia de que esses componentes inter-relacionam-se na produção
discursiva, uma vez que “não há expressividade sem o locutor considerar o outro a quem
se dirige, assim como o locutor não pode se dirigir a um outro de modo não expressivo.”
(SOBRAL e GIACOMELLI, 2016, p. 1081).
Assim, defendo, consoante Beth Brait (2012), que a escola deve ter como
compromisso diante do ensino de gramática a postura que considere que, com base nas
escolhas lexicais e sintáticas existentes em uma língua, o sujeito produtor do discurso, no
momento da enunciação, tem “uma margem de escolha”, o que denuncia seu
posicionamento discursivo. Por isso, se somos sujeitos situados social, histórica e
culturalmente, nosso dizer pressupõe respostas valorativas. Estudar, por exemplo, sintaxe
para reconhecer o predicativo do sujeito bandido na oração ele é bandido não é o mesmo
que (re)conhecer o contexto em que esse enunciado pode ter sido produzido, por quem,
dirigindo-se a quem e com que intencionalidade. O reconhecimento da importância do
contexto para a ADD traz-nos à tona a perspectiva de que os sujeitos estão situados no
tempo e no espaço, existindo entre eles uma relação dialógica. As nomenclaturas
gramaticais não dão conta do processo dialógico de Análise do Discurso. Por isso,
entendo que
[o] trabalho metodológico, analítico e interpretativo com
textos/discursos se dá nessa proposta de criação de uma nova
disciplina, ou conjunto de disciplinas, herdando da linguística a

36
Dos três componentes citados, entendo que apenas a expressividade foi de autoria a responsabilidade
total dos estudantes. No caso da referenciabilidade, nota-se que os alunos e as alunas receberam o eixo
temático a partir da escolha ativa e responsiva – feita pelos docentes – da obra Capitães da Areia. Também
no que se refere à endereçabilidade, torna-se notório, principalmente no que se refere às produções textuais
escritas, que havia um interlocutor específico – a professora – e o contexto regulador de atribuição de notas
a fim de que se verificassem i. as habilidades para construir um texto narrativo bem organizado em
apresentação, conflito, clímax e desfecho; ii. o respeito à norma padrão da língua portuguesa; iii. a
articulação entre coesão e coerência para a produção de um texto inteligível; e iv. a verificação da leitura
literária da referida obra.

72
possibilidade de esmiuçar campos semânticos, descrever e analisar
micro e macro-organizações sintáticas, reconhecer, recuperar e
interpretar marcas e articulações enunciativas que caracterizam o(s)
discurso(s) e indiciam sua heterogeneidade constitutiva. (BRAIT,
2012, p. 87)

Dessa maneira, tanto quanto possível, entendo que os sujeitos em diálogo nas
minhas aulas puderam assumir esse percurso que considera as escolhas discursivas a
serviço da construção de posicionamentos que, necessariamente, respondem a outros
discursos, confirmando-os ou rechaçando-os. Isso porque “[o] cotidiano do homem é
entrecortado por discursos, isto é, formas de dizer e conceber o mundo que podem estar
expostas, visíveis, mas que também circulam sem que os envolvidos se deem conta.”
(BRAIT, 2004, p. 2). É por isso que identidade e alteridade são conceitos valiosos para
a ADD. Nesta pesquisa, por exemplo, a interação discursiva – ou interdiscursividade – é
o que me permite interpretar dados que estão situados no tempo e no espaço37. Para isso,
torna-se importante recorrer ao conceito bakhtiano de cronotopo, uma vez que os sujeitos
engajados na investigação fazem parte de um tempo e de um espaço. Assim, é importante
reconhecer que “os cronotopos podem se incorporar um ao outro, coexistir, entrelaçar-se,
permutar, confrontar-se, opor-se ou se encontrar nas inter-relações mais complexas.”
(BAKHTIN, [1975] 2010, p. 357).
Para entender essa esfera da interdiscursividade com a qual a ADD operacionaliza,
urge reconhecer que é da interação entre os sujeitos que se interpretam os sentidos. Além
disso, “a interação não é só o que acontece aqui e agora: ela vai da conversa face a face à
relação entre sujeitos de lugares distintos e mesmo de épocas distintas.” (SOBRAL e
GIACOMELLI, 2016, p. 1082). Por isso, tendo como base um romance escrito em 1937,
as vozes de Jorge Amado interagem com outras vozes no processo de interpretação da
atitude ativa e responsiva que cada estudante escolhe tomar diante da realidade de
privação e criminalidade dos menores abandonados apresentados pela obra literária.
Entende-se, dessa maneira, que a interação ocorre entre um sujeito-autor situado na
década de 30 do século passado com outros sujeitos-leitores – também autores – situados
na segunda década do século XXI. Isso é possível pelo fato de que, embora mais de oitenta

37
Neste caso, os participantes desta pesquisa situam-se na dimensão micro e macro do tempo e do espaço.
Estão no ano de 2018 e na escola – com as suas devidas especificidades – em que a investigação aconteceu,
mas, ao mesmo tempo, fazem parte de um país que se ergue na dimensão social, político e ideológica em
diálogo com o seu percurso de construção histórica, marcado por opressões e silenciamentos impostos aos
menos favorecidos.

73
anos tenham-se passado, a realidade de miséria e abandono a que menores estão expostos
ainda prevalece na atualidade (cf. discussão na Introdução).
Desse modo, com base nas construções discursivas dos estudantes, em suas
dimensões autorais, a ADD permitirá que eu investigue como as escolhas de palavras e
de organizações sintáticas, a seleção de informações, os acordos e os desacordos em
relação à narrativa original, entre outros aspectos, construirão dialogicamente
significados acerca do posicionamento ideológico ativo dos sujeitos-leitores-autores.
Portanto, não pretendo, em minha pesquisa, revelar verdades prontas, mas dialogar com
os sujeitos discursivamente ativos no processo de interação com o texto literário, com os
outros colegas da turma, comigo, como docente, e com a sua dimensão de sujeitos-
autores.

4.2. Reconstrução do contexto

Minha pesquisa desenvolveu-se na já mencionada escola particular de elite em


que trabalho, conforme apresentado na Introdução. Vale destacar que sou professora
dessa instituição privada há seis anos, lecionando, desde o primeiro ano, para turmas do
9º ano do Ensino Fundamental e, mais recentemente, para turmas da 1ª série do Ensino
Médio. Além de professora, atuo também como coordenadora de área do segundo
segmento do Ensino Fundamental (EF), desde 2015. Atualmente, comprometo-me
também com a coordenação de área do Ensino Médio (EM).
Na instituição, as aulas de língua portuguesa, literatura e produção textual, no
segundo segmento do EF, ocorrem de modo integrado. Não há, pois, professores
diferentes ou tempos específicos para cada “disciplina” na grade horária. Isso deve-se ao
fato de que o trabalho defendido pela equipe de professores visa a integrar as práticas
pedagógicas de linguagem na escola: a leitura dos textos – literários ou não –, a análise
de seu tecido linguístico, dos recursos artísticos/enunciativos e dos posicionamentos
discursivos, a produção textual – oral ou escrita – e o subsequente debate acerca do texto
produzido pelos estudantes. Com essa abordagem, a gramática não é estudada descolada
do texto. Do mesmo modo, o texto não é apartado de sua realidade de produção,
circulação e recepção, cabendo aos estudantes uma postura ativa para participar dos
debates acerca das obras e de seus eixos temáticos.

74
No trimestre em que a leitura da obra Capitães da Areia aconteceu, os conteúdos
previstos pelo programa de curso38 eram:

FRASE / ORAÇÃO/ PERÍODO; PERÍODO SIMPLES/


COMPOSTO, COORDENAÇÃO E SUBORDINAÇÃO (formas
GRAMÁTICA de combinação), ORAÇÕES SUBORDINADAS
SUBSTANTIVAS (desenvolvidas e reduzidas/ conjunção
integrante).
LEITURA TEXTO LITERÁRIO E NÃO LITERÁRIO, DENOTAÇÃO E
LITERÁRIA39 CONOTAÇÃO (revisão), A DIMENSÃO SUBJETIVA DA
PALAVRA, POLISSEMIA, A ARTE LITERÁRIA,
VERSIFICAÇÃO: ESTUDO DA MÉTRICA E DA RIMA,
ELEMENTOS DA COMUNICAÇÃO, FUNÇÕES DA
LINGUAGEM.
PRODUÇÃO TIPOS TEXTUAIS: DESCRIÇÃO E NARRAÇÃO, O VALOR
TEXTUAL DO FOCO NARRATIVO, MECANISMOS DE COESÃO E
COERÊNCIA.

A partir da minha pesquisa, embora não pudesse prescindir dos conteúdos


programáticos listados para o trimestre – tendo em vista que, na instituição, os estudantes
fazem avaliações únicas nas cinco turmas, o que dificulta dissonâncias e maiores
proposições autorais –, estabeleci alguns objetivos, dentre os quais i. conhecer a literatura
brasileira engajada, por meio da obra Capitães da Areia; ii. perceber as possibilidades de
Análise Dialógica do Discurso (ADD), por meio das escolhas lexicais, dos recursos
sintáticos e estilísticos, além do registro linguístico (variedade padrão como privilegiada
em detrimento da não padrão); iii. reconhecer nas diversas construções discursivas o
posicionamento do enunciador; iv. experimentar a possibilidade da exotopia como
exercício de empatia e resgate da humanidade; v. estabelecer diálogo entre obras

38
É importante ressaltar que a criação do programa de curso ocorre a partir do diálogo entre o coordenador
de área da unidade em que leciono e o coordenador de área da outra unidade do colégio, respeitando as
colocações dos professores à frente das turmas em cada série. Esses conteúdos previstos foram alinhados
pela coordenação de área anterior, em 2014. Houve revisão do programa em 2016 e, mais recentemente, há
um processo de análise para a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em toda a
escola.
39
No segundo segmento do Ensino Fundamental, a disciplina chama-se Língua Portuguesa apenas, inter-
relacionando-se nela o estudo da gramática, da leitura literária e da produção de textos.

75
ficcionais e a realidade brasileira; vi. avaliar e (re)criar discursos narrativos em diálogo
com o texto-base Capitães da Areia, por meio de uma prática de adaptação focada na
transposição discursiva.
Para tentar cumprir os objetivos elencados, dos cinco tempos semanais que tive
com a turma, cada um com 45 minutos, destinei dois ou três, no início do trimestre, para
a leitura literária. Diante disso, é preciso conhecer a proposta pedagógica planejada para
as aulas.

4.3. Proposta pedagógica e apresentação de textos em diálogo com o romance


Capitães da Areia

É importante ressaltar que, para apresentar uma proposta de leitura literária


dialógica, baseada no já citado romance, de Jorge Amado, Capitães da Areia, o eixo
temático suscitado pela obra percorreu todo o primeiro trimestre do ano letivo em que
realizei minha pesquisa. Dessa maneira, devido à característica mais autônoma de
trabalho com fichas didáticas – conforme mencionado na seção anterior deste capítulo –,
todos os textos, de diferentes gêneros textuais – das esferas artísticas, jornalísticas e
jurídicas – tratavam da realidade de menores abandonados.
Como o objetivo era favorecer a criação de discursos autorais, ativos, responsáveis
e responsivos (SZUNDY, 2004), o diálogo com outros pontos de vista – além daqueles
apresentados no tecido ficcional da obra – foi de imensa contribuição para o percurso
metodológico da investigação. Por isso, o quadro a seguir apresenta, aula a aula, as
atividades previstas e os objetivos pretendidos.
Vale-nos a observação de que a pesquisa, de cunho etnográfico-intervencionista,
considerou todas as trajetórias, de acertos e desacertos, não sendo os objetivos uma
certeza do sucesso da investigação, mas um norte epistemológico para o estabelecimento
de uma constante atitude aberta à revisão e ao reexame. Para tanto, planejei as atividades
da seguinte maneira:

76
AULA ATIVIDADES OBJETIVOS
Abertura do romance: impressões sobre o Estabelecer vínculo
1/2 título e a capa + proposições temáticas dialógico a partir da obra
baseadas em conhecimentos prévios. literária.
Leitura e análise (escolhas lexicais, seleção Orientar, brevemente, os
de informações, posicionamentos estudantes acerca do
2/3 discursivos) da reportagem fictícia que conceito de discurso e
introduz o romance Capitães da Areia. posicionamento do
enunciador.
Leitura de fragmento do Estatuto da Criança Conhecer o respaldo legal
e do Adolescente (ECA) + Produção textual que prevê o olhar
diagnóstica sem valor para nota – resposta à humanista acerca dos
4/5/6 provocação Menores abandonados: e eu com menores abandonados +
isso? propiciar o livre
posicionamento discursivo
dos estudantes.
Leitura da crônica De quem são os meninos Abrir debate livre ao
de rua?, de Marina Colasanti, seguida de posicionamento discursivo
7/8 debate mediado. dos estudantes, visando à
discussão sobre a origem
de menores abandonados.
Debate mediado acerca dos capítulos “O Propiciar diálogo entre a
trapiche”, “Noite dos capitães da areia”, leitura subjetiva realidade
“Ponto das pitangueiras” e “As luzes do em casa e os
carrossel”. posicionamentos do
9 professor-pesquisador e
dos outros participantes
discentes envolvidos na
pesquisa.
Leitura e discussão acerca do poema-canção Estabelecer pontos de
“O meu guri”, de Chico Buarque, em diálogo diálogo entre o universo
com a realidade ficcional da obra Capitães da ficcional do poema-canção
10/11 Areia. e a obra amadiana,

77
revisando o conceito de
verossimilhança.
Debate mediado acerca dos capítulos Propiciar diálogo entre a
12 “Docas”, “Aventura de Ogum”, “Deus sorri leitura subjetiva realidade
como um negrinho” e Família”. em casa e os
posicionamentos do
professor-pesquisador e
dos outros participantes
discentes envolvidos na
pesquisa.
Leitura dos textos “Medo e vergonha”, de Abrir debate livre ao
13/14 Denise Fraga, e “Os nomes da criança”, de posicionamento discursivo
Cristóvam Buarque. dos estudantes, visando à
discussão sobre a origem
de menores abandonados.
Primeira produção textual: transposição do Apresentar, brevemente, o
foco narrativo, assumindo a voz de um menor conceito de exotopia e de
abandonado. transposição discursiva,
orientando os estudantes a
15 produzirem a primeira
produção textual escrita
valendo nota para o
trimestre.
Debate mediado acerca dos capítulos Propiciar diálogo entre a
16 “Manhã como um quadro”, “Alastrim”, leitura subjetiva realidade
“Destino” e “Filha de bexiguento”. em casa e os
posicionamentos do
professor-pesquisador e
dos outros participantes
discentes envolvidos na
pesquisa.
Apresentação de seminário de análise Revisar as estratégias de
(escolhas lexicais, seleção de informações, análise do posicionamento

78
17/18 registros linguísticos e posicionamentos discursivo de diferentes
discursivos) das cartas ficcionais enunciadores, com
introdutórias do romance Capitães da Areia. perspectivas distintas
acerca da realidade de
menores infratores.
Debate mediado acerca dos capítulos “Dora, Propiciar diálogo entre a
19 mãe”, “Dora, irmã e noiva”, “Reformatório” leitura subjetiva realidade
e “Orfanato”. em casa e os
posicionamentos do
professor-pesquisador e
dos outros participantes
discentes envolvidos na
pesquisa.
Segunda produção textual: transposição do Retomar e discutir o
foco narrativo, assumindo a voz de um dos capítulo escolhido para a
capitães da areia. adaptação e orientar os
20 estudantes acerca das
escolhas lexicais coerentes
no universo do narrador-
personagem em
construção.
Apresentação teatral, no auditório, da equipe Instigar a postura ativa dos
21 Palco Literário, com a adaptação do romance estudantes quanto ao
amadiano em estudo. diálogo entre a leitura
subjetiva feita em casa, os
debates dialógicos
mediados ocorridos em
sala e a adaptação criada
pelo grupo de teatro
parceiro da escola.
Debate em sala de aula acerca das impressões Comparar a leitura
22 dos estudantes sobre o romance adaptado subjetiva feita em casa, os
para a linguagem teatral. debates dialógicos

79
mediados ocorridos em
sala e a adaptação criada
pelo grupo de teatro
parceiro da escola.
Terceira produção textual (prova): Abrir possibilidades de
23/24 transposição do foco narrativo, assumindo a recriação do capítulo
voz de um dos capitães da areia. escolhido para a adaptação.

4.4. Participantes ativos e responsivos situados no tempo e no espaço

4.4.1. Grupo focal: turma de 9º ano do EF


Na escola em que desenvolvi minha pesquisa, que atende a famílias de classe
média alta, no segundo segmento do Ensino Fundamental, há cinco turmas por série. Em
2018, ano em que desenvolvi minha investigação, lecionei para duas turmas de 9º ano.
Minha investigação, no entanto, realizou-se em uma das turmas, que tinha 25 alunos, dos
quais 13 constituíam-se como meninas e 12, como meninos. No grupo, majoritariamente
branco, apenas dois alunos eram negros, cuja participação nos debates foi imprescindível
para instigar posicionamentos discursivos acerca de classe e raça. O processo de escolha
da turma deu-se a partir de uma primeira produção textual, provocativa, que partia da
seguinte motivação: Menores abandonados: e eu com isso? (cf. seção mais adiante).
Cabe mencionar que, quando convidei os alunos e as alunas para a participação
em minha pesquisa acadêmica, percebi neles boa receptividade e o
surgimento/crescimento de um olhar de admiração por mim. Durante todo o processo da
pesquisa, busquei dividir com os estudantes algumas de minhas angústias, visando a fazê-
los compreender que o estudo para a construção de conhecimentos não se encerra na
Educação Básica. Alguns deles, os mais curiosos, perguntaram-me sobre o processo de
escrita de uma dissertação acadêmica, o que me deixou instigada a compartilhar com a
turma as minhas questões diante das escolhas que precisei fazer ao longo do percurso.
Percebo, assim, que, embora tenha atribuído notas às atividades produzidas por eles ao
longo de todo o ano – incluindo as produções textuais escritas que me serviram como

80
dados para análise –, a relação em sala de aula foi de interesse e desejo por alcançar as
metas que cada um deles estipulou para si mesmo.
Vale, ainda, destacar que, devido ao trabalho com uma obra literária de cunho
social e humanista, busquei informações prévias com a coordenação de segmento, que
me relatou que a turma escolhida para o desenvolvimento da pesquisa apresentava muitas
famílias “de direita” e, portanto, conservadoras. Isso foi comprovado por mim devido à
fala de alguns estudantes e, também, à recusa de um deles a prosseguir com a leitura da
obra Capitães da Areia. Tentei, tanto quanto possível, negociar as interações a partir do
livro e dos debates temáticos, mas, em certo momento, percebi em mim discurso docente
autoritário, vinculando a leitura literária à nota do trimestre. Como o livro era o
proponente do eixo temático do trimestre no que se refere ao teste, à prova e às produções
textuais escritas, vali-me da minha posição hierárquica para defender que o estudante não
poderia não gostar de uma obra que não havia lido. Minha tentativa foi, nesse sentido,
fracassada, uma vez que a ele coube a decisão de ler somente os fragmentos relidos em
sala de aula, recusando-se efetivamente a comprometer-se com a leitura integral.
É necessário, também, no que se refere ao processo de leitura do romance
amadiano, mencionar que alguns alunos demonstraram, na prova de produção textual,
não ter finalizado o livro. Como os capítulos eram, inicialmente, lidos em casa e debatidos
em sala, alguns estudantes restringiram suas leituras aos fragmentos relidos nas Rodas de
Leitura semanais, alegando que estavam comprometidos com as inúmeras avaliações –
nas diversas disciplinas – a que eram expostos frequentemente40. No que tange ao meu
objetivo com a pesquisa, esse fato apenas confirma a suposição de que a leitura literária
pode, para alguns, ser vista como secundária, especialmente na escola em que desenvolvi
a minha pesquisa, tantos são os focos em conteúdos a serviço de um ensino de excelência
(cf. discussão na Introdução).

40
Vale recorrer à informação de que o 9º ano do Ensino Fundamental II é um momento de grande
sobrecarga de compromissos escolares na escola em que desenvolvi minha pesquisa. Os estudantes
participam de imersão de Alemão, testes orais e escritos definidores de seus progressos no estudo dessa
língua estrangeira, além de ser o primeiro ano de contato com disciplinas como Física e Química, que
costumam exigir bastante deles.

81
4.4.2. Pesquisadora-participante

Devido ao caráter qualitativo-interpretativista de cunho etnográfico-


intervencionista, entendo-me, além de pesquisadora, também como participante da
pesquisa. Isso relaciona-se à defesa de que minha atuação docente – desde a escolha da
obra literária, além dos outros textos com os quais dialogamos a partir do eixo temático,
até a proposição das propostas de produção textual – não foi neutra, imparcial ou
silenciada. Minhas escolhas como professora reforçam a visão de que, na sala de aula que
defendo em minha pesquisa, professora e estudantes puderam desenvolver um processo
ativo e responsivo a partir da leitura literária (cf. segundo capítulo teórico).
Conforme já mencionado neste Capítulo, trabalho na escola em que desenvolvi
minha pesquisa, desde janeiro de 2014, com turmas de 9º ano do EF. Quando cheguei ao
colégio, a série já era conhecida pelo trabalho de cunho social. Uma professora, que não
faz mais parte da equipe, à época de minha chegada, disse que estava aliviada por não ter
mais de atuar na série, porque não gostava de discutir tais questões. Para mim, por outro
lado, foi uma oportunidade muito bem avaliada devido ao fato de que compreendo meu
fazer docente de modo amplo, vinculando-se não apenas a um compromisso isolado com
o ensino da gramática. Com o passar dos anos, percebi que, devido às questões político-
ideológicas que se instauraram no Brasil, principalmente a partir do golpe de 2016 (cf.
Introdução), investigar as produções discursivas em torno das questões relacionadas às
minorias poderia ser uma importante estratégia para o (re)conhecimento de mim mesma,
como educadora, e dos estudantes com os quais trabalho semanalmente.
Embora não trabalhasse apenas na escola em que desenvolvi meu trabalho, trata-
se da instituição em que tinha maior carga horária, atuando como professora das turmas
em três dias por semana, de 7h15 às 12h55. Além do turno da manhã, às quartas-feiras, à
tarde, de 13h40 às 15h15, também participava de reuniões pedagógicas. Nesses
encontros, discutíamos questões disciplinares, projetos interdisciplinares, planejávamos
avalições em conjunto, entre outras tarefas. Embora o tempo não fosse o suficiente devido
a tantas demandas, valorizo a oportunidade de, semanalmente, encontrar meus pares,
professores de língua portuguesa, literatura e produção textual como eu.
Embora existisse espaço para trocas com outros professores e com a coordenação,
tive imensa liberdade de atuação para o desenvolvimento de minha pesquisa. Em
momento algum fui interpelada por quem quer que fosse a fim de receber
questionamentos acerca da minha investigação acadêmica. Tive, desde o início do meu

82
trabalho nessa escola, liberdade para fazer escolhas. Isso só foi questionado nos raros
momentos em que sozinha não consegui resolver alguma demanda. Normalmente, eu
solucionava os impasses e dialogava com os estudantes ou seus responsáveis – nas
reuniões de atendimento aos pais e às mães –, narrando, em seguida, o caso já resolvido
para a coordenação. Isso aconteceu, por exemplo, no fim do trimestre em que um já citado
estudante que não leu o livro ficou com média abaixo de 7 (cf. subseção anterior).
Conversando com a mãe desse aluno, reforcei a importância da leitura literária,
independentemente da temática, e defendi a visão de que a sala de aula deve estar sempre
aberta às vozes consonantes e dissonantes. Não se lê texto algum para confirmar o
posicionamento de seu sujeito-autor, mas não se pode prescindir de construir valoração –
evidentemente, lendo e interpretando a obra literária – se o sujeito-leitor se pretende
autônomo e ativo na construção de conhecimentos.

4.5. Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)

É necessário esclarecer que, durante a pesquisa, foram preservados os nomes dos


alunos, das alunas e da instituição por uma questão ética. Além disso, defendo que minha
responsabilidade como pesquisadora foi a de evitar danos e prejuízos a todos os
participantes, preservando direitos, interesses e suscetibilidades. Para tanto, todo o
processo foi autorizado pela direção da escola e o trabalho com os textos dos alunos e das
alunas foi consentido41 via autorização assinada por eles e por seus responsáveis legais,
atendendo às exigências das Resoluções (1996, 2012 e 2016) acerca da necessária ética
em pesquisa feita com seres humanos.
Fica evidente a relação assimétrica de poder entre o pesquisador e os demais
participantes, uma vez que ele é quem toma decisões do ponto de vista epistemológico e
dos procedimentos a serem adotados. Por isso, coube a mim, como investigadora, uma
postura ética e responsável na condução de seu trabalho, esclarecendo aos participantes,
menores de idade, os objetivos da pesquisa, o método e a garantia da sua liberdade de
expressão.

41
Dos 25 alunos da turma, obtive 18 autorizações dos responsáveis e dos estudantes para a realização da
pesquisa. Esse processo envolveu a negação da participação por parte de dois estudantes, além de outros
terem esquecido de entregar o termo assinado, mesmo com minhas insistentes tentativas para recordá-los.

83
Faz-se necessário destacar, ainda, que os resultados devem ser compartilhados
com os participantes. Para Celani (2005), a pesquisa é um processo de empoderamento,
tendo alguma finalidade. Por isso, é relevante o questionamento de como a investigação
pode ser útil para o desenvolvimento de quem dela participa. Daí a necessidade de se
compartilharem os resultados. Assim, se o meu objetivo é promover transformações e
desconstruções de verdades pré-concebidas, dividir os resultados com os estudantes
permitirá a eles: i. entender e respeitar pesquisas acadêmicas de campo como
possibilidade de construção de conhecimentos para docentes e discentes; ii. validar a
leitura literária na escola como espaço de diálogo em que se confirmam e rechaçam
discursos; iii. perceber o ensino de literatura muito além do estudo das características
históricas; iv. reconhecer a escola como espaço de criação, e não de reprodução; v.
entender a sala de aula como espaço para o ressoamento de múltiplas vozes, erguendo-se
como uma arena discursiva (cf. segundo capítulo teórico).
Desse modo, a partir das autorizações mencionadas anteriormente, pude submeter
meu projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da UFRJ. O processo deu-se via
internet, no site Plataforma Brasil, sendo, por fim, autorizado (cf. anexo). Esse processo
visou a garantir a credibilidade e a aceitabilidade da minha pesquisa com seres humanos
como não sendo prejudicial a nenhuma das partes.

84
5. DIÁLOGO COM AS VOZES E OS SILÊNCIOS: EM BUSCA DE UM TEMPO
DE MAIS DELICADEZA

“Te encontro, com certeza


Talvez num tempo da delicadeza”
(BUARQUE, 1987)

“A liberdade, que é uma conquista, e não uma


doação, exige uma permanente busca.”
(FREIRE, [1968] 2005, p. 37)

O processo de Análise Dialógica do Discurso (ADD), conforme já apresentado no


capítulo de Metodologia, exigiu de mim, como pesquisadora-participante, uma posição
de interpretação ativa e responsiva dos dados. Não foi, por isso, um caminho fácil, dado,
certeiro, pronto e acabado, comprovado por meio da análise de estruturas linguísticas.
Pelo contrário, tratou-se de um percurso de investigação que pressupôs uma completa
entrega a um não saber, a uma postura constantemente aberta à mudança, ao
estranhamento de qualquer dizer que se apresentasse de modo uniforme, unívoco. Foi,
portanto, como percorrer uma estrada em que o “talvez” – emerso por um processo de
análise dialógico, multiforme, comprometido com a interação para o conflito, para as
multissonâncias, e não para a adesão incondicional – e a “certeza” – manifestada por uma
consistente fundamentação teórico-metodológica – dialogavam constantemente, à
procura da descoberta de um tempo de mais delicadeza.
Nessa perspectiva, é importante observar que entendo que meus alunos e minhas
alunas, participantes da pesquisa aqui apresentada, foram por mim vistos como sujeitos
sociais, ativos e responsivos, constituídos discursivamente em múltiplas relações de
interação socioideológica. Todo o dizer com o qual me deparei não foi por mim avaliado
como melhor ou pior, mas foi entendido como parte de uma multidão de vozes sociais
caracterizadas pela dimensão heteroglóssica do discurso. Assim, os enunciados discentes
produzidos, em vertentes escritas ou orais, foram interpretados como integrantes de uma
discussão axiológica em grande escala, por meio da qual se pôde responder ao já dito,
objetivando ao encontro ou ao confronto das múltiplas vozes com as quais se falou.
Dessa maneira, é necessário destacar que a leitura literária da obra Capitães da
Areia aconteceu durante um trimestre do ano letivo de 2018. A partir dos capítulos lidos
em casa, em nossa roda de leitura semanal, intercambiávamos acerca de nossas
impressões, opiniões, expectativas e sentimentos provocados pela leitura da obra

85
amadiana. As colocações eram livres e mesclavam-se, em muitos momentos, com
narrativas pessoais. Para mim, como pesquisadora-participante, ler novamente o romance
em diálogo com as avaliações dos estudantes, trouxe uma experiência que me atravessou
de maneira singular. Os discursos ventilados durante as produções discentes orais e
escritas dialogaram com a minha vivência de inúmeras maneiras, uma vez que acredito
que as vozes são plurais, ainda que um ser esteja como responsável no momento pontual
de (re)produção. Nesse sentido, entendo que minha pesquisa foi realizada em um
ambiente escolar com práticas discursivas que não eram neutras e envolviam, todo o
tempo, escolhas (intencionais ou não), referentes a posicionamentos ideológicos e
políticos, sempre atravessadas por relações de poder (FABRÍCIO, 2006).
No trimestre em que se deu a leitura literária, todas as fichas didáticas, as
propostas de produção escrita, os testes e as provas dialogaram com a temática suscitada
pelo romance. Nesse sentido, pudemos passear pelo universo da ficção com a leitura do
livro e de outras obras literárias, mas também tivemos a oportunidade de nos
posicionarmos sobre a real existência de menores abandonados a partir da leitura de textos
jornalísticos e jurídicos.
Como dados, considerei o meu diário de pesquisadora-participante, no qual
registrei minhas anotações acerca do processual trabalho com a obra de Jorge Amado.
Além disso, também foram fonte de dados as produções textuais escritas feitas pelos
estudantes: texto 1 – diagnóstico, com foco no livre posicionamento dos estudantes; texto
2 – adaptação do capítulo “Família”, com foco na transposição da 3ª para a 1ª pessoa do
discurso; texto 3 – adaptação do capítulo “Reformatório”, com foco na transposição da 3ª
para a 1ª pessoa do discurso; texto 4 – adaptação em âmbito mais global, com escolha de
personagem e transposição da 3ª para a 1ª pessoa do discurso.
Logo no início da pesquisa, perguntei aos estudantes se eles tinham alguma ideia
da temática do romance com qual trabalharíamos durante aqueles três meses. Com base
na resposta de um aluno – que obtivera um breve relato em casa, da mãe que também lera
o livro com a mesma idade de seu filho –, evidenciou-se na turma que, naquele período e
por meio daquela leitura, teríamos contato com as trajetórias de “meninos de rua”. Desse
modo, na sequência, apresentei em slides um primeiro questionamento, que culminaria
numa produção escrita com um viés opinativo, livre de qualquer exigência de
embasamento teórico e de qualquer prescrição estrutural.

86
Essa primeira produção textual escrita aconteceu antes de os estudantes iniciarem
a leitura do romance Capitães da Areia e não computou ponto para a média trimestral.
Do ponto de vista teórico-analítico com o qual trabalho nesta Dissertação, entendo que
esses textos foram os que mais dados suscitaram para mim, como pesquisadora, uma vez
que, embora a endereçabilibidade fosse a mesma (um texto escrito em sala de aula e
entregue para a professora), o fato de ser uma atividade que não valia ponto deixou os
alunos e as alunas mais livres para expressarem seus posicionamentos, o que contribuiu
sobremaneira na minha investigação.42 Nesse sentido, foi possível perceber nessa
discussão oral inicial e nas produções escritas o quanto a temática era relevante diante da
realidade do entorno da escola (cf. Introdução). Por isso, pude notar o quanto as

42
Cabe ressaltar que, na escola em que desenvolvi a pesquisa, existe uma forte tensão nos estudantes acerca
das notas. Essa cobrança, de certo modo, faz parte do cotidiano dos estudantes e dos professores. Em casa,
há a cobrança dos pais em relação ao desempenho acadêmico de seus filhos. Em sala, a cobrança é
transposta para o professor, que muitas vezes é visto como aquele que dá a nota baixa ou tira ponto nas
avaliações.

87
dissonâncias e as consonâncias dialogizavam outras vozes discursivas que não estavam
ali presentes, na sala de aula, mas que, por meio do discurso plural, da heteroglossia
dialogizada (BAKHTIN, [1975] 2010), estavam ali no dizer verbal e não verbal, assim
como nos silêncios.
Em seguida, fizemos em sala a leitura da reportagem fictícia que abre o romance
(cf. Introdução). Com base nela, percebemos, juntos, como as escolhas lexicais marcam
o posicionamento do enunciador. Na suposta reportagem do Jornal da Tarde, palavras
como “bando”, “infestam” e “extermínio” denunciam a perspectiva essencializada
adotada pela mídia, ainda que de modo ficcional. A partir dessa primeira leitura, em roda,
os estudantes puderam relatar experiências variadas em que se perceberam em uma
postura avaliativa diante de menores abandonados nas ruas ou, ainda, mencionaram
notícias veiculadas recentemente pelos jornais impressos e televisivos acerca da violência
praticada por menores nas ruas. Os estudantes observaram, no diálogo em roda, a
intencionalidade de Jorge Amado ao (re)criar um discurso jornalístico focado no viés de
infração e violência associado a menores abandonados. Perguntei a eles o que aquele texto
não dizia acerca daquelas crianças. Uma aluna, então, percebeu que a reportagem estava
mais direcionada a resolver o “problema” causado pelos menores aos outros moradores
da cidade de Salvador, mas que, em momento algum, havia real preocupação com a
situação precária em que viviam as crianças do “bando” dos Capitães da Areia.
Nessa mesma aula, em que tive a oportunidade de discutir o livro em dois tempos,
um aluno negro da turma dividiu conosco uma vivência forte e marcante: ele e um amigo
andavam pelo bairro de Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro (região em que muitos
têm maior poder aquisitivo na cidade), quando, ao brincar um com o outro, começaram a
correr. Não demorou muito para aparecer um dito “justiceiro” (cf. discussão na
Introdução), que interrompeu o menino negro em seu livre direito de ir e vir, para que
respondesse ao questionamento que visava a averiguar se ele corria para assaltar o outro
menino, branco. No momento em que esse aluno relatou essa experiência, a turma ficou
em silêncio, indicando um impacto com o fato de que, apesar de ser um menino de classe
média alta, morador da Zona Sul, por ser negro, foi confundido com um menor infrator.
Fiz algumas perguntas no debate com a intenção de que os estudantes tivessem maior
espaço de fala. Alguns, no entanto, só baixaram a cabeça e permaneceram em silêncio.
Depois da análise da reportagem, em outro dia da semana, abri oficialmente a
leitura dos capítulos do romance e pedi que, em grupo, os estudantes analisassem as cinco
cartas introdutórias do livro. Nela, o secretário do chefe de polícia, o juiz de menores, a

88
mãe de um dos menores, o padre José Pedro e o diretor do reformatório enunciam suas
vozes endereçadas ao fictício Jornal da Tarde para relatar seus depoimentos sobre a
reportagem que aventava os Capitães da Areia como um “bando” de criminosos que
impediam que a cidade de Salvador dormisse seu sono tão merecido (cf. discussão no
segundo capítulo teórico). Na carta do secretário do chefe de polícia, por exemplo, lê-se:

Tendo chegado ao conhecimento do dr. chefe de polícia a local


publicada ontem na segunda edição desse jornal sobre as atividades
dos Capitães da Areia, bando de crianças delinquentes, e o assalto
levado a afeito por este mesmo bando na residência do comendador
José Ferreira, o dr. chefe de polícia se apressa a comunicar que a
solução do problema compete antes ao juiz de menores que à
polícia. (...) Mas que, no entanto, vai tomar sérias providências
para que semelhantes atentados não se repitam e para que os autores
do de anteontem sejam presos para sofrerem o castigo merecido.
(AMADO, [1937] 2008, p. 13, grifos meus)

Na análise das cartas, como se percebe no fragmento da carta fictícia do secretário


do chefe de polícia, foi possível notar que os discursos (re)produzidos na obra de Jorge
Amado em muito dialogam com os dizeres da “mídia empresarial” (FRIGOTTO, 2018).
Para isso, notam-se escolhas lexicais como “problema” e “castigo merecido” que,
semanticamente, refletem e refratam um universo punitivo por meio do qual
constantemente os menores abandonados e infratores são contextualizados na sociedade.
Para entender o caminho metodológico proposto, é importante destacar que cada
grupo, com cinco alunos/alunas, analisou a carta do modo como analisamos, previamente,
a reportagem, com foco nas seguintes orientações:

89
Nas análises das cartas, os estudantes puderam verificar que a produção discursiva
de um enunciador se constrói, também, por meio de recursos linguísticos, mas, sobretudo,
pelo lugar social de onde se fala. Na carta do secretário do chefe de polícia, do juiz de
menores e do diretor do reformatório, os alunos e as alunas observaram escolhas lexicais
que visavam a transpor a responsabilidade pelo abandono e pela vida de crime para as
próprias crianças. Em momento algum, por exemplo, há indício de preocupação com as
condições miseráveis de vida dos menores. O foco fica, apenas, na questão da violência
e na defesa da segurança para os outros moradores de Salvador. Essa perspectiva não
apareceu, no entanto, com vigor em todas as apresentações de análise das cartas. Muitos
estudantes focaram mais na estrutura superficial do texto, associando a proposta de
análise dialógica do discurso à ideia de análise linguística. Por vezes, marcavam o
vocábulo como um exemplo de escolha lexical, sem desenvolver a dimensão de que o
discurso é dito por alguém, situado social, histórica, econômica e culturalmente. Foi,
portanto, mais acessível para os estudantes a dimensão de análise referente ao que foi dito
e ao que não foi dito (seleção de informações).
Os grupos que analisaram as cartas da mãe Maria Ricardina e do padre José Pedro,
por exemplo, perceberam que a seleção de informações apontava para uma maior
preocupação acerca da realidade de vida dos menores que faziam parte dos Capitães da
Areia. Durante o seminário, por exemplo, uma aluna destacou o quanto o reformatório
devia ser desumano, porque, na carta, a mãe de um dos menores defendia que preferia ver
seu filho com os Capitães a vê-lo sofrendo torturas naquele estabelecimento. Nesse
momento, alguns estudantes demonstraram ter dúvidas sobre o que é um reformatório.
Pedi, então, que livremente, alguns se candidatassem a pesquisar a situação de instituições
como essas na realidade atual do Brasil.43
Mais adiante, em uma segunda produção escrita, a proposta tomava como norte
um capítulo do romance intitulado “Família”. Nele, Sem-Pernas, um complexo
personagem amadiano, consegue abrigo na casa de uma senhora, em um dos bairros mais
abastados da cidade de Salvador, valendo-se de seu “defeito físico” (AMADO, [1937]
2008). Em seguida, vive um importante conflito interno: ficar na casa da senhora Ester e

43
A investigação foi feita por duas alunas, mas, infelizmente, o intercâmbio não aconteceu como eu
gostaria, uma vez que os cinco tempos semanais não me permitiam destinar sempre dois deles para a roda
de leitura. Elas trouxeram a pesquisa duas semanas depois, quando já eu já estava tensa e precisava focar
em aspectos gramaticais visando ao cumprimento do programa de curso (cf. capítulo de Metodologia),
tendo em vista que as avaliações são padronizadas e a pesquisa foi realizada em uma das cinco turmas de
9º ano do colégio.

90
aceita ser, enfim, um “menino de família” (cf. anexos) ou retornar aos Capitães da Areia,
grupo que o acolheu e que se tornou sua verdadeira família na beira do cais?
É importante mencionar que, antes da proposta de produção de texto centrada no
personagem Sem-Pernas, em nossa roda de leitura, lemos fragmentos do referido capítulo
e dialogamos sobre as nossas impressões. Intercambiamos, também, sobre o que nós
faríamos no lugar do menor coxo e abandonado. Alguns defenderam que ficariam na casa
da senhora Ester, aproveitando para ter uma vida digna, com amor, carinho e bem
materiais; outros, em direção oposta, disseram que jamais trairiam os Capitães da Areia,
que eram a verdadeira família de Sem-Pernas. No romance, o menino manco e marcado
pelo ódio de uma vida de privação e miséria decide abandonar a casa no bairro nobre de
Salvador, indicando para os outros meninos do grupo onde ficavam os objetos de valor
para que um assalto fosse posto em prática logo em seguida. Mesmo sem verbalizar à
dona da casa que iria partir, o narrador amadiano detalha ao leitor um modo de comunicar
a dor e o sofrimento do personagem:

Dona Ester o beijou na face onde as lágrimas corriam:


– Não chore, que sua mãezinha fica triste.
Então os lábios do Sem-Pernas se descerraram e ele soluçou, chorou
muito encostado ao peito de sua mãe. E enquanto a abraçava e se
deixava beijar, soluçava porque a ia abandonar e, mais que isso,
a ia roubar. E ela talvez nunca soubesse que o Sem-Pernas sentia
que ia furtar a si próprio também. Como não sabia que o choro
dele, que os soluços dele eram um pedido de perdão. (AMADO,
[1937] 2008, p. 127, grifos meus)

No momento em que lemos esse fragmento, o espaço da roda de leitura foi


dominado pelo silêncio. Naquele contexto, o silêncio falava também. Dizia a respeito de
uma afetação, de um atravessamento. Aquele personagem agressivo – que fazia “pilhéria”
(AMADO, [1937] 2008) de tudo e todos, que aprendera o ódio como única linguagem
possível, surrado pelo homem a quem chamava de padrinho, antes de ir para as ruas e
encontrar os Capitães, surrado também pelos guardas na delegacia, certa vez, quando foi
apreendido – mostrava-se, enfim, em sua fragilidade, chorando diante da senhora que o
acolheu como uma mãe. Notei que alguns olhos se encheram de lágrimas na sala de aula
ao fim da leitura desse trecho do romance, o que foi interpretado por mim como uma
possível adesão ao discurso amadiano que impregnava Sem-Pernas de humanização.
Sem-Pernas, que ria de tudo e de todos, fazia piada com o sofrimento alheio, estava,
enfim, revestindo-se de sensibilidade e bondade.

91
No entanto, logo após esse momento de comoção na turma, de acordo com as
anotações que fiz em meu diário de pesquisadora, registrei que Bianca, aluna que resistia
à leitura do romance, sentiu-se à vontade naquela aula para enunciar suas valorações
(VOLÓCHINOV, [1929] 2017) acerca dos acontecimentos e das ações narrativas.
Segundo ela, “Ninguém faz o bem pelo outro. É sempre para si mesmo. Ele [Sem-Pernas]
não pensava de verdade nos Capitães da Areia. Não estava preocupado de verdade com a
situação dos outros, sem casa, comida, brinquedos. Ele estava se importando com ele
mesmo, porque sabia que logo a senhora descobriria que ele estava mentindo. Por isso,
não podia ficar lá como se fosse filho dela.”. Durante as colocações da aluna, procurei
respeitar seu direito à fala, mas notei que, do modo como ela falava, não havia lido o
capítulo em análise na Roda de Leitura. Como eu já sabia que ela não lera outros capítulos
e mostrava-se resistente à temática, resolvi lhe perguntar se havia lido realmente. Ela me
disse que não, mas que era essa a sua opinião: ninguém faz bem para o outro
verdadeiramente, a não ser por pensar em, de algum modo, obter vantagens com isso.
Bianca afirmou, ainda, que não existe real solidariedade, empatia, que tudo isso é
“desculpa” para a verdadeira postura individualista do ser humano.
Como pesquisadora, interpreto que Bianca não falava sozinha. Havia, com ela,
uma multidão de vozes (BAKHTIN, [1975] 2010) que consideram que o ser humano não
pode ser, de fato, empático, solidário. Havia em sua enunciação a defesa de que agimos
de modo individualista e que a defesa de direitos para os outros passa, antes, pela busca
por direitos para si mesmo. Sua fala, de algum modo, visava a deslegitimar a humanidade
atribuída a Sem-Pernas. Se ele agiu daquele modo por pensar em si mesmo, não havia
razão para comoção na turma, pois, de certa maneira, ele continuava a ser o mesmo Sem-
Pernas egoísta e cheio de ódio de sempre.
No momento da aula, percebi que internamente eu estava alterada, insatisfeita com
as colocações da aluna, principalmente naquele momento, quando alunos e alunas que
frequentemente brincavam muito nas Rodas de Leitura estavam finalmente envolvidos,
interessados e afetados por analisar o conflito do personagem Sem-Pernas. Fiz, por isso,
a seguinte anotação em meu diário: “Bianca não está lendo o livro e, por isso, não sabe
realmente o que aconteceu no capítulo.”. No entanto, durante a análise, percebi que, de
fato, ela não conhecia minuciosamente o capítulo, porque não o lera. Entretanto, seu
enunciado avaliativo dizia sobre um incômodo com a possibilidade de um menor
abandonado, que pretendia roubar Dona Ester, ser visto como um ser humano, como
alguém que pensa nos amigos, que sofre e pode pedir perdão. Sua fala transparecia o

92
motivo de seu incômodo com a leitura do romance, porque menor infrator, talvez, não
pode ser humano e ter sensibilidade, direitos.
Uma semana depois, era o momento de produzir uma adaptação do capítulo
“Família”, enunciando em 1ª pessoa, a partir do posicionamento de Dona Ester ou de
Sem-Pernas. No dia em que discutimos a proposta de produção escrita, alguns alunos
comentaram que o narrador do romance, embora estivesse em 3ª pessoa, conhecia muito
bem a perspectiva interna dos Capitães. Assumi, assim, embora não fosse um conteúdo
em foco na série, que o narrador no livro não era observador, mas onisciente. Uma aluna
ponderou que o narrador, conforme já havíamos observado em capítulos anteriores,
defendia a perspectiva de “vitimização” (o que considero como humanização) dos
menores infratores que faziam parte dos Capitães da Areia. Nesse sentido, tendo em vista
a proposta de adaptação, seria mais fácil escolher o Sem-Pernas como narrador para a
produção do texto, porque o que ele sentiu estava posto ali, em detalhes, pelo narrador
amadiano. Por outro lado, alguns sentiram-se estimulados a narrar o capítulo na
perspectiva de Dora Ester pelo desafio de criar com um pouco mais de liberdade o
posicionamento daquela senhora.44 A possibilidade de escolha da perspectiva narrativa
desenhou-se para a turma a partir desta proposta:

44
É importante mencionar que a aluna Bianca fez a produção, porque, da semana em que discutimos até o
dia da produção do texto, ela enfim leu o capítulo. O narrador-personagem escolhido por ela foi a Dona
Ester, talvez porque fosse mais consonante aos seus posicionamentos escolher narrar na perspectiva da
senhora enganada por Sem-Pernas do que na perspectiva do menor abandonado e em situação de infração.

93
Na condição de pesquisadora, percebo que dar aos estudantes a liberdade de
escolher a perspectiva da senhora, que foi furtada pelo “bando” (AMADO, [1937] 2008)
dos Capitães da Areia, ou a perspectiva do avesso Sem-Pernas, que viveu um importante
conflito narrativo, foi uma estratégia interessante para analisar se os alunos e as alunas
escolheriam a voz daquele que sempre sofreu com o abandono e a miséria nas ruas ou a
voz daquela que, aparentemente, tinha uma boa condição de vida, mas que sofreu com o
desaparecimento de seu novo filho e com o assalto praticado pelos menores do grupo. É
válido, assim, ressaltar que, diante do quantitativo de produções escritas, um total de 15
estudantes narrou a partir do ponto de vista do Sem-Pernas e outros 10 usaram o ponto de
vista de Dona Ester.
Na proposta de produção seguinte, em momento de prova (chamada de P1 de
Redação), os estudantes não puderam debater o tema previamente em sala. Com o formato
de prova, cada um recebeu a proposta que também tinha por finalidade – além da
adaptação de outro capítulo do romance Capitães da Areia, em 1ª pessoa, enunciando na
perspectiva de um dos menores abandonados do grupo – verificar a leitura da obra. Isso
porque as rodas de leitura aconteciam mais regularmente no início no trimestre, mas,
quando se iniciaram testes e outras avaliações, esses encontros para a discussão do livro
tornaram-se mais raros. Nesse sentido, a prova de produção textual escrita cumpria a
tarefa de averiguar quem estava com a leitura em dia ou não, a fim de que a leitura literária
da obra de Jorge Amado fosse, de alguma forma, também pontuada, fazendo parte da
média trimestral.
Na proposta elaborada para a prova de produção textual, os capítulos escolhidos
para nortear a transposição discursiva foram “Reformatório” e “Orfanato”. Neles, Pedro
Bala, o líder dos Capitães da Areia, é apreendido e enviado a um reformatório, onde sofre
terríveis maus-tratos. Mais uma vez, o narrador detalha a perspectiva de sofrimento do
menor, que vive o conflito de tentar sobreviver à escassa alimentação – o feijão duro,
boiando em um caldo salgado, e a pouca água –, preso na “cafua”, delirando e com
saudade de Dora, que fora mandada para um orfanato depois de ser também apreendida.
No orfanato, a menina não é maltratada, mas adoece rapidamente. Os estudantes,
novamente, deveriam escolher Pedro Bala ou Dora para assumir seu posicionamento
discursivo, enunciando em sua voz. Nesse caso, a escolha não culminaria numa
perspectiva discursiva tão diferente, porque os dois estavam na mesma condição de
menores de idade, órfãos e abandonados nas ruas de Salvador. Para isso, a proposta foi
assim desenhada:

94
Vale ressaltar que, como se tratava de uma prova, a discussão sobre os referidos
capítulos aconteceu somente depois. As práticas de violência cometidas contra Pedro Bala
comprovaram, na narrativa, os maus-tratos denunciados nas cartas introdutórias do
romance pela mãe Maria Ricardina e pelo padre José Pedro. Uma aluna relatou que, com
aquele tratamento, o reformatório não poderia cumprir a sua função de “recuperar os
jovens para um caminho de bem”. Outro aluno estabeleceu diálogo com um texto que

95
lemos em uma ficha didática, escrito pelo jornalista Gilberto Dimenstein (cf. anexos), no
qual o autor defende que reformatórios são lugares onde os menores aperfeiçoam-se no
crime, o que geraria aumento da violência nas ruas a partir de sua libertação. Nesse
momento, abri espaço breve para que as alunas que haviam feito uma pesquisa sobre
reformatórios atualmente registrassem o que encontraram para o grupo. A fala delas
direcionou-se aos casos de rebelião em alguns estabelecimentos e à reincidência de
menores no crime.
A quarta produção textual escrita aconteceu no início do trimestre seguinte. Seria
o último texto narrativo produzido pelos estudantes, pois começaríamos, logo depois, o
trabalho com a dissertação-argumentativa. Tratou-se, também, de uma última
oportunidade para aqueles que não finalizaram a leitura do romance no trimestre anterior.
Com a proposta, os alunos e as alunas puderam escolher um dos personagens listados
(Pedro Bala, Professor ou Pirulito) para produzir uma adaptação, (re)narrando as
vivências que, para eles, tinham maior destaque em toda a narrativa de Jorge Amado. Para
isso, produzimos como proposta o seguinte material:

96
Cabe destacar que, dos 25 estudantes, sete escolheram narrar na perspectiva de
Pirulito – o religioso do grupo que tem o desfecho de se tornar padre; quatro narraram de
acordo com o ponto de vista de Pedro Bala, que teve como desfecho seguir a trajetória do
pai, tornando-se grevista e lutando pelos direitos dos trabalhadores; catorze escolheram
narrar na perspectiva de Professor, que teve como desfecho ir para o Rio de Janeiro,
estudar Belas Artes e tornar-se pintor. Percebo, com isso, que o foco na trajetória de João
José, o Professor do grupo, pode indicar a necessidade de que os estudantes encontrassem
a possibilidade de narrar a história de vida de alguém que, mesmo tendo feito parte dos
Capitães da Areia, conseguiu mudar e “vencer na vida”.
Considerando todas essas situações vividas durante a leitura literária do livro
Capitães da Areia, com base também nas 18 autorizações que obtive dos responsáveis e
dos estudantes da turma, a seguir, analisarei, incialmente, sete produções escritas45 com
foco no Texto Diagnóstico, que tinha como objetivo uma proposição discursiva à
pergunta-tema E eu com isso?. Dessas, nas propostas subsequentes, analisarei dois textos
em cada, conforme justificarei a seguir. Ressalto, ainda, que a minha expectativa não é
encontrar respostas objetivas, prontas, mas pretendo observar e dialogar com os discursos
produzidos pelos alunos e pelas alunas, em diálogo com a minha participação de
pesquisadora.

5.1. PRODUÇÃO TEXTUAL ESCRITA A PARTIR DA QUESTÃO “MENORES


ABANDONADOS: E EU COM ISSO?”

“Delinquente, infrator, avião, pivete, trombadinha, menor, pixote.


Sete nomes para o conjunto das relações de nossas crianças com o
crime.
[...]
Como resumo de todos estes tristes verbetes, há também criança-
triste, como um verbete adicional.”
(BUARQUE, 2000)

Conforme apresentado anteriormente, a proposta para a produção dos Textos


Diagnósticos aconteceu de um modo livre, voltando-se para a escrita mais relacionada à
temática dos menores abandonados e, por vezes, infratores. Nesse sentido, os textos
apresentaram estruturas muitos distintas entre si: alguns com título, outros não; alguns

45
É importante salientar que os textos foram digitados exatamente do modo como cada autor os redigiu.

97
em 1ª pessoa, outros em 3ª; alguns com o relato de vivências pessoais, outros com falas
mais vagas e generalizadoras. Essa dimensão de estímulo à produção autoral teve como
base a perspectiva de agentividade dos discursos discentes, porque entendi que, embora
não conhecessem a obra Capitães da Areia especificamente, muitos já apresentavam
posicionamento discurso acerca da realidade de menores abandonados devido à provável
adesão a outras vozes valorativas (VOLÓCHINOV, [1929] 2017).
A seguir, apresento a análise de sete textos em que pude perceber, de algum modo,
enunciados que adotam diferentes vieses responsivos acerca da existência de menores
abandonados. É, pois, nítido o quanto as produções escritas discentes interagem com
outros discursos, porque entendo que, quando enunciamos, “não tomamos nossas
palavras do dicionário, mas do lábio dos outros.” (FARACO, 2010, p. 85). Assim,
acredito que os enunciados discentes aqui reproduzidos não partem de uma produção
oriunda de uma consciência individual, mas de uma multidão de vozes interiorizadas.
Portanto, a análise que me propus a construir considera não as estruturas
linguísticas isoladamente, mas a linguagem, o discurso, concebido como heteroglossia,
ou seja, um conjunto de vozes sociais, um conjunto de formações socioideológicas e
verboaxiológicas. Desse modo, embora cada estudante tenha recebido como proposta o
questionamento “E eu com isso?”, entendo que cada sujeito não pode ser percebido como
verbalmente uno, mas como um agitado balaio de vozes, de onde emergem inúmeros
encontros e desencontros (FARACO, 2010).

TEXTO 1: Vivian
E eu com isso?
Quando eu passo pelas ruas e vejo moradores que vivem nesses lugares, eu fico
triste por não terem em casa e muitas vezes não terem o que comer. Muitos moradores de
rua, (especialmente crianças) para conseguirem em dinheiro, vendem balas nos sinais, o
que seria o certo, pois eles lutariam pela “sobrevivência”, porém muitos deles para
conseguirem comida, dinheiro furtam lojas e acabam fazendo o errado.
Então, o que eu aconselho a eles que estão fazendo errado é serem gentis, educados
nas ruas para que as pessoas doem o próprio dinheiro e eles possam comprar sua comida.
Com isso, eles estariam fazendo o certo.

98
Vivian, durante todo o ano letivo de 2018, foi uma aluna calada. Tratava-se de um
caso que, para muitos docentes, representaria o estereótipo da “boa aluna”. Atenta,
mantinha suas anotações em dia. Buscava melhorar, quando eu sinalizava alguma falha
em avaliações. Como pouco falava, não tive muito acesso aos seus discursos orais, o que
precisei respeitar por parecer um traço de personalidade. No entanto, essa primeira
produção escrita ventilou um viés socioideológico claramente definido, comprometido
com discursos pautados na avaliação moral do que é o certo e do que é o errado.
Na primeira produção escrita, que chamei de Texto Diagnóstico, Vivian não
terminou nos tempos designados inicialmente, registrando no topo da folha a informação
“Não terminei!”. Somente dois dias depois, quando levei os textos para a sala novamente,
ela conseguiu me entregar uma versão efetivamente concluída. Houve, portanto, tempo
para que a aluna (re)pensasse a opinião registrada, escolhendo sua posição axiológica
(BAKHTIN, [1920-24] 2010) de autoria.
A aluna optou por reproduzir a pergunta-tema no título do texto. Em seguida, logo
no primeiro parágrafo, usou formas verbais no presente do indicativo em “passo”, “vejo”
e “fico”, na 1ª pessoa do singular, o que pode caracterizar que ela tem consciência de que
sua relação com os “moradores de rua” não é esporádica. Pelo contrário, como acontece
com frequência, o presente foi usado com o aspecto de continuidade, hábito. Há, também,
o uso do presente do indicativo em relação aos moradores que “vivem” nas ruas e
“vendem” balas para conseguir dinheiro. Na mesma dimensão, percebo o aspecto verbal
durativo, por se tratar de uma situação cotidiana nas regiões por onde a estudante passa –
inclusive devido ao entorno no colégio, no Centro do Rio de Janeiro, próximo a uma praça
em que muitas pessoas em situação de vulnerabilidade passam ou permanecem (cf.
Introdução).
Depois de apresentar esse contexto, a aluna escolhe usar o futuro do pretérito do
modo indicativo para ressaltar que acredita que vender balas “seria o certo”, pois, desse
modo, o morador de rua “lutaria” pela sua “sobrevivência”. Nesse sentido, observo as
formas verbais indicando o que ela defende que poderia representar um caminho “certo”
para conseguir sobreviver, em meio à ausência de moradia e alimentação. Desse modo,
em contraposição à postura que representa “o certo”, a aluna termina o parágrafo
ressaltando que “muitos deles” furtam e “acabam fazendo o errado”. Essa estrutura
“acabam fazendo” demonstra que, para ela, não se trata de uma escolha comum. Pelo

99
contrário, há um indício de que ela considera o furto, o roubo, “o errado”, portanto, uma
espécie de consequência diante da necessidade de conseguir “comida”.
No segundo e último parágrafo, a enunciadora insere em seu texto um conselho a
“eles”, ou seja, aqueles “que estão fazendo o errado”, sugerindo que sejam gentis e
educados nas ruas. Percebe-se, claramente, que, para ela, ser gentil e educado é
imprescindível para a interação com o outro. Isso fica claro no modo como ela dirige-se
aos outros, no modo como se comporta em sala. No entanto, também se nota o fato de
que ser gentil e educado torna-se uma espécie de pré-requisito, de exigência para que as
pessoas “doem o próprio dinheiro”, caso contrário, não terão vontade de contribuir com
a situação do morador de rua. Assim, “eles” estariam fazendo “o certo”.
É interessante notar, ainda, que, mesmo em tom de aconselhamento, a aluna opta
pela 3ª pessoa do plural, em “eles”, reforçando o distanciamento. Não há, portanto, marca
direta de interlocução, indicando que o conselho não poderia representar diálogo, contato
entre ela e os moradores de rua.
O texto, de modo geral, marca a percepção de que a estudante sabe da existência
de moradores de rua e defende que sente tristeza por não terem casa e comida. Entretanto,
o que se sobressai é a sua visão – um tanto ingênua – acerca da divisão entre “o certo” e
“o errado”, o que pode também dialogar com a percepção de que existem
comportamentos, posturas “boas” ou “ruins” praticadas por cidadãos “do bem” ou “do
mal”. Percebe-se, assim, o quanto o discurso da aluna dialoga com princípios
moralizantes propagados no viés político conservador de direita, que cresceram no país
nos últimos anos (cf. discussão na Introdução). Nesse sentido, se o menor abandonado
segue o caminho do “bem”, pode receber ajuda em dinheiro. Caso contrário, fará parte do
caminho do “mal”, destinando-se a sofrer punições por meio de castigos merecidos
(AMADO, [1937] 2008).
Assim, noto que a perspectiva dialética do “certo” em oposição ao “errado”, na
construção interpretativa da referenciabilidade (SOBRAL & GIACOMELLI, 2016), ou
seja, do assunto, diante da autoria da aluna, pressupõe que realidade dos menores
abandonados é enxergada por Vivian por meio de uma lente acusatória, revestida de um
discurso aconselhador, que, em verdade, parece comprometer-se com a criminalização e
a culpabilização das populações mais pobres. Nesse sentido, fazer o “certo” é um pré-
requisito, não importam as condições de vida dos sujeitos, para que sua condição
desviante seja desconsiderada a fim de que alguma doação financeira lhe chega como
forma de sobrevivência.

100
TEXTO 2: Gilberto
E eu com isso?
Eles estão por todo o Brasil, em toda cidade e em todo bairro, à cada praça e a
cada esquina. São frutos de má digestão e uma crescente pobreza, vivendo em uma
sociedade de medo e desprezo. E eu com isso?
Todos já tiveram algum contato com eles. Eu vejo os na minha rua, saindo de casa,
indo para escola, praia e outros lugares. Eu nunca tive uma experiência ruim em específico
mas tento sempre evitar passar por eles, sempre sinto certo medo, mesmo que nada tem
acontecido comigo ainda sinto o perigo.

Gilberto foi um aluno calado ao longo do ano. No entanto, obteve bons


rendimentos quantitativos. Foi um aluno ausente em algumas rodas de leitura, porque teve
faltas frequentes durante o ano letivo, sem que fosse devido a uma causa grave que
precisasse justificar à escola.
Na primeira produção, chamada de Texto Diagnóstico, o aluno também não
terminou a composição no tempo indicado para a escrita, necessitando de um outro
momento, dois dias depois, para terminar seu texto. Entretanto, apesar do afastamento e
do retorno à produção escrita, Gilberto pouco aprofundou detalhes acerca da sua opinião
sobre a realidade de vida dos menores abandonados, o que interpretei como tentativa de
manter-se imparcial ou neutro na abordagem da temática.
Em seu discurso, noto que, em momento algum, Gilberto efetivamente
contextualizou a quem forma pronominal “eles” faz referência. No primeiro parágrafo, o
aluno já inicia afirmando que “eles estão por todo o Brasil”, sem identificar claramente o
referente para o pronome. Essa postura indica a tentativa grande de distanciamento do
estudante em relação aos moradores de rua – o que é comprovado no fim do segundo
parágrafo.
Embora declare que não teve “uma experiência ruim em específico”, afirma que
sempre evita passar por “eles”, porque sente “certo medo”. A escolha das expressões “em
específico” e “certo” pode indicar, nesse caso, a dificuldade do aluno em se aproximar
propriamente da temática abordada. A tentativa de afastamento, nesse caso, pode
pretender alcançar a neutralidade com a qual alguns pensam que podem enunciar.

101
Entretanto, se todo dizer é responsivo (BAKHTIN, [1920-24] 2010), nenhum discurso
pode, por mais que se tente, construir-se de modo neutro.
Na sequência, o aluno afirma, ainda, que “todos já tiveram algum contato com
eles” e que os vê nos lugares por onde passa. No entanto, mais uma vez, o termo
pronominal indefinido “todos” marca seu distanciamento. Ele, como cidadão, já teve
“algum contato”, uma vez que defende que todos têm. Todavia, não foi um contato “em
específico”, o que comprova a falta de relação significativa com “eles” e,
consequentemente, de produção autoral opinativa, que pudesse ir além da dimensão
suscitada pelas formas substantivas “medo” e “perigo”.
Nesse sentido, o medo gerado pelo perigo que menores abandonados causam a
“todos” está, no discurso de Gilberto, relacionado às vozes interiorizadas pelo aluno. Isso
porque, embora estivesse produzindo um texto em uma sala de aula, o verdadeiro
ambiente de produção de um enunciado diz respeito ao viés heteroglóssico dialogizado
(BAKHTIN, [1975] 2010), fronteiriço entre produções autorais, em que se pressupõe uma
postura axiológica (VOLÓCHINOV, [1929] 2017), e dizeres plurais, multiformes, em
constante entrecruzamento. Assim, por mais que Gilberto nunca tenha experimentado o
medo provocado por menores nas ruas, esse signo ideológico referente ao menino de rua
como trombadinha, pivete, assaltante está em seu discurso em grande escala de valoração
social. O medo e o perigo não se relacionam, portanto, ao que o menor que está na rua
sente, experimenta, devido à sua situação de abandono e miséria, mas ao que “todos” os
outros, aqueles que têm a maioria de seus direitos humanos de existência garantidos,
sentem frente à presença daqueles indivíduos na rua, num viés de discriminação de classe
e criminalização da pobreza.

TEXTO 3: Sabrina
Um dia estava eu e minha mãe andando pela praça Sãens Pena em direção ao
Shopping Tijuca. Nós estavamos andando tranquilas até que nós vemos um grupo de
crianças/adolescentes, moradores de rua, furtando todo mundo, qualquer pessoa que
estivesse com alguma coisa de ouro ou até dourada (bijouteria) eles pegavam. Eu e minha
mãe atravesamos a rua imediatamente e fomos para a calçada do outro lado, pois não
queríamos ser furtadas.

102
Eu tinha só 8 anos de idade, e aquilo foi chocante para mim. Até hoje eu me
pergunto: porque um problema do outro tem que se tornar meu também? Porque eu não
posso sair na rua com um colar de ouro, sem ter medo de ser assaltada no meio do caminho?
Até quando nós vamos ter medo de andar pela nossa cidade?
Eu realmente acho que a pessoa que assalta os outros, faz isso por conta de sua
condição na classe social. Espero que tudo melhore para todos, pois assim, não teremos
medo de sair de casa.

Sabrina foi uma aluna pouco participativa nos debates, que demonstrava ter uma
intensa vida social. Fazia parte de um grupo mais popular da sala e parecia estar sempre
atenta aos acontecimentos relacionados às novidades da adolescência, demonstrando
cuidar com grande vaidade de sua aparência física.
É interessante notar que, na primeira produção escrita, que chamei de Texto
Diagnóstico, Sabrina escolheu relatar um acontecimento antigo que parece ter marcado
sua vida. A tranquilidade com a qual caminhava pelo bairro da Tijuca46, Zona Norte do
Rio de Janeiro, foi interrompida pelo grupo de crianças e adolescentes que furtavam quem
estivesse passando. O operador argumentativo de valor temporal “até que” marca o
momento em que a aluna e sua mãe perderam a tranquilidade ao andarem pelas ruas do
bairro. Vale, ainda, destacar que, no primeiro parágrafo, ela afirma que os moradores de
rua roubavam tudo o que parecia de valor, ainda que fossem réplicas de joias.
No segundo parágrafo, em um tom de queixa, o termo adjetivo “chocante” marca
o fato de que Sabrina sentiu-se impactada com a ação dos menores. Já a forma adverbial
“só” indica a pouca idade, 8 anos, para vivenciar uma situação grave. Entretanto, o texto
não problematiza o fato de que aquela poderia ser a mesma idade de outras crianças que
furtavam naquele grupo. Em seguida, em forma de perguntas, Sabrina afirma não
entender por que o “problema do outro” – que até então ela não contextualiza qual seja –
tem de ser também dela. Parece-me claro o fato de que, para essa aluna, a condição de
privação e marginalização a que estão submetidos os jovens abandonados nas ruas do país

46
Vale destacar que a Tijuca é um bairro da Zona Norte, mas é comum que seus moradores se identifiquem
mais com regiões de alto poder aquisitivo, como o bairro emergente da Barra da Tijuca, onde é comum a
existência de carros caros e casas e prédios de luxo. Muitos alunos e muitas alunas do colégio onde
desenvolvi minha pesquisa são moradores da Tijuca, bairro que fica, relativamente, próximo à escola.

103
não é uma preocupação para ela, a não ser pelo fato de que provoca nela o “medo de ser
assaltada”.
A aluna constrói, também, uma última questão que diz respeito a “até quando” o
medo fará parte da rotina de quem anda pela cidade. Como introdução da última pergunta
presente no segundo parágrafo, a expressão temporal evoca um tom reivindicador. No
entanto, Sabrina se incluiu em um grupo social por meio do termo pronominal pessoal
“nós”. Do ponto de vista linguístico, esse pronome poderia referir-se à Sabrina e à sua
mãe. Entretanto, noto que esse “nós” diz respeito a todos aqueles que sentem medo dos
moradores de rua ao caminhar pela cidade. Nesse sentido, interpreto que se trata de um
encontro adesão às vozes da “gente ordeira e virtuosa” (BUARQUE, 2012), conforme
apresentei na Introdução desta Dissertação.
No terceiro e último parágrafo, Sabrina afirma que “realmente” acha que os
assaltos praticados nas ruas acontecem em função da “classe social” desses moradores de
rua. Sem aprofundar a discussão, ela defende que espera que “tudo melhore para todos”
com a finalidade de que alguns – como ela – não precisem mais sentir medo ao sair de
casa. O emprego das formas pronominais indefinidas “tudo” e “todos” pressupõe uma
generalização que, em verdade, parece comprometida com a melhoria da situação de
violência nas ruas, ou seja, há um desejo, ainda que distante, de que a situação melhore,
mas essa melhoria parece dirigir-se apenas àqueles que querem/podem sair nas ruas com
um colar de ouro, o que mais uma vez parece dialogar discursivamente com a “gente
ordeira e virtuosa”, citando novamente o poema-canção de Chico Buarque. Além disso,
noto que a construção “Espero que” reforça um distanciamento da verdadeira
possibilidade de intervenção na realidade de abandono e privação a que aqueles que
vivem nas ruas estão submetidos.
Nessa perspectiva, é válido ressaltar que as escolhas de palavras e estruturas
sintáticas refletem e refratam o viés ideológico (VOLOCHÍNOV, [1929] 2017) com o
qual o dizer da aluna dialoga. Sabrina opta por enunciar uma narrativa específica para
comprovar o posicionamento de que é legítimo sentir medo nas ruas da cidade do Rio de
Janeiro. Essa seleção de informações pressupõe um total silenciamento acerca da
condição de privação e miséria de vida dos menores mencionados no texto. Não há,
portanto, problematização. Por que aqueles jovens estavam roubando, inclusive falsas
joias? Qual era a situação de vida que os impelia a agir daquele modo? Não houve, desse
modo, esse olhar para a investigação acerca de informações que dimensionaria as razões
para as infrações cometidas. A única causa apresentada diz respeito à “condição na classe

104
social”, que, se resolvida, geraria a diminuição do medo sentido por “nós”, seus pares no
que se refere à posição axiológica, social, econômica e cultural.
Desse modo, o que se percebe no texto de Sabrina é o discurso estereotipado de
que a sociedade se organiza de um determinado modo, existindo, portanto, a pobreza
como consequência da desordem social. Assim, um problema que é do outro gera um
grande incômodo na aluna por causar insegurança e violência nos locais por onde passa,
o que está vinculado à perspectiva de indiferença em relação à miséria a que o ser humano
está submetido e ao viés de criminalização das populações mais pobres.

TEXTO 4: Maria Cecília


Eu fico extremamente incomodada com a realidade da cidade do Rio de Janeiro
atualmente. É muito difícil me deparar diariamente com jovens como eu que não têm onde
morar, o que comer. São sentimentos como angústia, pena, culpa e medo que me cercam
em situações assim.
Hoje em dia não me sinto a vontade para caminhar pelo meu bairro como me senti
antigamente. É impressionante o quanto o número de pessoas que vivem nas ruas aumenta
a cada dia mais.
Espero realmente que esses jovens um dia encontrem um lar, tenham comida todos
os dias na mesa, possam frequentar uma boa escola e ter um ensino e estudo adequado,
assim como eu.

Maria Cecília foi uma aluna com excelente rendimento acadêmico durante o ano
letivo. Parecia, por isso, conseguir equilibrar os anseios de relacionamentos comuns à
adolescência e as demandas de estudo impostas pelo sistema da escola. Nesse sentido,
sua atuação discente consolidou-se de um modo protocolar, ou seja, tudo o que era
solicitado era cumprido de acordo com as normas – inclusive a norma-padrão da língua
portuguesa. No entanto, sua participação nas rodas de leitura foi mínima. Assim, percebo
que ela produzia discursos orais apenas quando solicitada.
Em seu Texto Diagnóstico, Maria Cecília demonstrou facilidade para escrever
sobre o assunto, não dividindo comigo dúvidas acerca da perspectiva que deveria adotar
na produção escrita. Essa postura permaneceu assim ao longo do ano letivo.

105
No seu texto inicial, a aluna centrou-se no emprego da 1ª pessoa do discurso,
marcando claramente seu ponto de vista com relação ao tema dos menores abandonados.
Logo no início do primeiro parágrafo, Maria Cecília empregou os termos adjetivos
“incomodada” e “difícil”, relacionando-os ao mal-estar que ela sente quando se “depara
diariamente” com moradores que vivem nas ruas. O incômodo e a dificuldade resultam
para ela no surgimento de sentimentos como “angústia, pena, culpa e medo”. Parece-me,
porém, que, ao longo do texto, somente a “angústia” e o “medo” ganham verdadeiro
desdobramento no seu discurso.
Logo no segundo parágrafo, a aluna elucida a questão do incômodo, da angústia
e do medo ao relatar que não se sente mais à vontade de caminhar no seu bairro como
“antigamente”. Há, aqui, uma divisão temporal que parece indicar que, no passado, havia
mais tranquilidade nas ruas, devido ao menor número de pessoas vivendo sem casa. No
entanto, esse aspecto temporal não é desenvolvido ao longo da produção escrita. Depois,
por meio do emprego de nova forma adjetiva, Maria Cecília marca posicionamento,
afirmando que é “impressionante” o aumento do número de moradores de rua. Não há,
todavia, qualquer busca por uma causa significativa para esse aumento. Ainda assim, o
termo adjetivo “impressionante” constrói o viés queixoso assumido pela enunciadora.
Há, assim, no enunciado da aluna a interpretação de que a existência de pessoas
em situação de rua necessariamente se relaciona ao aumento da violência nas ruas. Desse
modo, não se pode caminhar livremente na rua, com segurança, porque a presença de
pessoas sem moradia gera insegurança e medo. Nesse sentido, Maria Cecília sustenta
como tese a perspectiva simplificada de criminalização da pobreza, sem aprofundar a
discussão.
Por fim, no terceiro e último parágrafo, a aluna vale-se da estrutura “Espero (...)
que”, distanciando-se de uma postura interventiva verdadeira que possa engajar-se na
proposição de uma modificação da realidade desigual percebida. Mais uma vez, noto o
termo adverbial “realmente” como uma tentativa de assegurar que sua preocupação é
verdadeira. Entretanto, diferentemente dos parágrafos anteriores, nesse final, Maria
Cecília enuncia um discurso que parece preocupar-se com o fato de jovens, como ela, não
terem lar, comida “todos os dias na mesa” ou acesso a um “estudo adequado”. Ainda que
essa forma adjetiva “adequado” não esteja aprofundada, ressaltando efetivamente o que,
para ela, seria uma educação adequada, observa-se no discurso produzido a consciência
de que “esses jovens” são como ela e que deveriam, também, ter acesso a direitos básicos
que ela tem.

106
Assim, noto que, ao fim do texto, Maria Cecília deixa emergir de seu enunciado
uma postura mais bivocal (BAKHTIN, [1975] 2010), evocando, também, sua
preocupação com a situação desigual no país. O texto, nesse sentido, ultrapassa a
dimensão estereotipada de que os jovens que estão em situação de rua necessariamente
se relacionam ao crime para assumir uma dimensão – embora pouco engajada – mais
voltada para a defesa dos direitos humanos, também, para quem vive no abandono.

TEXTO 5: Marcos
Eu acho que para diminuir essa distância, que é real, as infrações cometidas por
menores de idade na rua precisa ser diminuída. Um dos jeitos de diminuir, na minha opinião
é: já que muitas dessas infrações são feitas para conseguir comida o estado poderia bancar
uma loja em que coisas simples como pão e garrafas d'água poderiam ser vendidas por
cinquenta centavos. Assim se a criança conseguisse só R$ 2 já poderia comprar dois pães
e duas águas. Eu penso que todo o país deveria se envolver, mas por enquanto não posso
fazer essas coisas, mesmo assim ajudo com o que posso, participando da ação social e às
vezes no projeto da praça.

Marcos foi um aluno introspectivo ao de todo o ano letivo. Como demonstrou


muita dificuldade na organização discursiva em produções textuais escritas, chamei-o
para conversar algumas vezes. Sua postura, com frequência, foi a de acatar minhas
sugestões interventivas docentes, sem maiores problematizações ou questionamentos.
Na primeira produção textual escrita, intitulada Texto Diagnóstico, Marcos
demonstrou certa ingenuidade no tratamento da temática, sugerindo que as infrações
cometidas por menores precisam “ser diminuída[s]”. A responsabilidade por tal controle,
para o aluno, está nas mãos do Estado, do Governo. No entanto, o exemplo que Marcos
traz é ingênuo, porque elenca como necessidades para a sobrevivência humana o acesso
à água e a pão. Isso indicaria que o menor receberia a doação e poderia, sozinho, comprar
duas garrafas d’água e dois pães.
Embora superficial e ingênuo, o discurso escrito de Marcos aponta para uma maior
preocupação com a privação e a miséria a que os menores abandonados estão submetidos.
Isso indica que, para ele, os atos infracionais podem diminuir na mesma dimensão em

107
que o acesso a direitos, como a alimentação, pode aumentar para a população em situação
de rua. Nesse sentido, a escolha do termo substantivo “criança” para fazer referência aos
“menores de idade” sugere um olhar que assume uma adesão a uma perspectiva
humanizadora.
Assim, o enunciado de Marcos ergue-se na fronteira entre o reconhecimento do
problema causado pelas infrações promovidas por menores – visto que ele defende a
diminuição desse acontecimento – e a constatação de que a criança em situação de
vulnerabilidade precisa de ajuda do Governo para sobreviver. Entendo, assim, que seu
texto se reveste de discursos centrífugos, comprometidos com hibridizações,
bivocalizações, e não apenas com a homogeneizadora perspectiva do medo, do perigo e
da violência relacionados aos menores abandonados.
Por fim, o aluno, que antes limitou a responsabilidade ao Estado, coloca-se
ativamente como cidadão que pode relacionar-se à temática. Ele defende, assim, que todo
o país “deveria” se envolver. Por meio do uso do futuro do pretérito do modo indicativo,
o enunciador elucida que, em verdade, esse envolvimento não ocorre. Além disso, ele,
como cidadão, entende que ainda não pode envolver-se com essas “coisas”, o que aponta
para um distanciamento da problemática. Entretanto, o envolvimento não acontece “por
enquanto”. Essa expressão temporal indica que, em algum momento, Marcos estará
efetivamente comprometido com a situação dos menores abandonados.
Logo em seguida, o emprego da estrutura “mesmo assim” sugere que Marcos
entende que, embora não possa modificar diretamente a realidade dos menores em
situação vulnerável, precisa contrariar sua limitação etária, dialogando ativamente com a
realidade em pauta. Para isso, ele afirma que participa da Ação Social e, às vezes, de um
evento intitulado Curta a Praça. Trata-se de eventos/projetos interligados, que acontecem
nas duas unidades da escola em que desenvolvi minha pesquisa. Neles, de modo eletivo,
os estudantes inscritos reúnem-se às sextas-feiras à tarde para promover ações
humanitárias. Alguns alunos e algumas alunas dão aula de reforço para estudantes de
instituições parceiras, ensinam Alemão, fazem apresentações musicais em hospitais,
como o Instituto Nacional do Câncer (INCA), organizam eventos, entre outras ações. O
projeto da Ação Social ocorre desde 2006, do 6º ano do Ensino Fundamental II à 3ª série
do Ensino Médio, tendo como compromisso a “formação cidadã na escola”, conforme
defende-se em seu site.
Assim, o texto de Marcos mostra preocupação com a agentividade necessária à
diminuição das infrações cometidas por menores. No entanto, não há real

108
problematização acerca da diminuição da pobreza e da fome, visto que o foco está na
consequência e não na causa. Ainda assim, seu discurso não se coaduna com o
estereotipado dizer que criminaliza os mais pobres como maus que geram medo e
insegurança nas ruas. Embora suas proposições sejam ingênuas, ressalto-as como
tentativas válidas de participação ativa (BAKHTIN, [1920-24] 2010), ainda que em
projetos escolares dos quais as propostas partem, em larga escala, dos professores e das
coordenações.

TEXTO 6: Leonardo
Meus três amigos
Em uma tarde, desci pra jogar futebol. Desci porque logo embaixo da minha rua
tem uma quadra poliesportiva. Normalmente a quadra estaria cheia naquele horário, mas
dessa vez estava vazia. Eu moro perto de uma favela onde existem muitos menores
abandonados.
Logo quando eu entrei e chutei a bola, um menor chegou e se apresentou dizendo:
“Koe neguim, bora bater uma bola, tem eu e mais três pra gente jogar 2 contra 2”. No
primeiro momento fiquei com vergonha, mas não tive medo como a maioria das pessoas
porque já tinha jogado bola com moradores de rua antes.
Mas nunca achei que dali nasceria uma grande amizade. Eles se chamavam Zé,
Everton (ou Vertinho) e Juan (apelidado de chola, porque era muito chorão). Eu ia jogar
bola com eles toda quarta às seis horas da tarde e às vezes ia surfar com Vertinho no
Arpoador. Eu fiquei muito próximo dele em especial porque amo surfar. Mas acabou que
perdi o contato com eles porque tive um problema no joelho e fiquei um bom tempo sem
futebol, mas pelo menos uma coisa boa aconteceu nesse tempo. O Vertinho foi para um
orfanato e foi adotado. Já José e Juan eu ainda vejo pelo bairro, e às vezes eu pago um
lanche para eles numa padaria perto da quadra que nos conhecemos. Nunca vou me
esquecer do Vertinho, pois eu também sou adotado e minha família biológica passou por
maus bocados. Eu era o 7º e mais novo filho. Graças a Deus fui adotado com 6 meses. Então
não vivi isso como o Everton. Mas vejo muita coisa da vida dele em mim.

109
Leonardo demonstrou ser um aluno bem sociável durante todo o ano letivo.
Frequentemente, interagia com outros alunos e outras alunas, inclusive de outras turmas.
Estava sempre sorrindo e parecia ter mais maturidade do que os outros da sala. Assim,
nos momentos formais de explicação/interação docente, agia com segurança e
determinação.
Na primeira produção textual escrita, que chamei de Texto Diagnóstico, embora
a proposta direcionasse para uma postura ativa e responsiva dos estudantes por meio do
questionamento “E eu com isso?”, não supus imediatamente que poderia receber relatos
como o de Leonardo. Como pesquisadora-participante e, portanto, sem possibilidade de
alguma de posicionamento neutro (MOITA LOPES, 2004), tracei expectativas que se
relacionavam a um lugar social pré-concebido por mim acerca dos estudantes daquele
colégio de classe média alta, onde trabalho há desde 2014. Do meu lugar social de
educadora e pesquisadora, também houve um julgamento que pressupôs que os alunos e
as alunas daquela instituição de ensino não teriam contato com a realidade de tantos
Capitães da Areia da realidade, que circulam no entorno do Centro da cidade do Rio de
Janeiro, onde fica a escola.
Assim, se os significados não foram por mim descobertos, mas construídos
ativamente, por meio de um processo dialógico de pesquisa interpretativista (BAKHTIN,
[1975] 2010; FRANKHAN, 2015), percebo que a leitura do texto desse aluno levou-me
para um outro lugar como pesquisadora – e, certamente, como educadora –, porque pude,
enfim, estranhar o que me era familiar (VELHO, 1978). Como colaboradora da escola há
anos, por meio de interações verbais com os estudantes, com as coordenações e com as
famílias, eu sabia que a maioria chegava e partia daquele espaço em transporte escolar,
em táxi ou carro particular. Alguns, inclusive, tinham motorista e andavam em carros de
luxo. Meu olhar para a realidade sociocultural dos alunos e das alunas dizia sobre uma
certeza acerca de um distanciamento entre aqueles adolescentes que estavam na bolha,
dentro da instituição, e os que passavam do outro lado dos muros, privados de tantos
direitos básicos. De fato, no quantitativo dos textos lidos, somente dois demonstraram
alguma aproximação – física e/ou identitária – com a realidade “estrangeira” dos menores
abandonados. Nos dois casos, a autoria do discurso vinha de estudantes negros,
conscientes de seus privilégios, como me parece apontar o texto de Leonardo.
Nessa direção, a escolha do título já aponta para uma perspectiva ideológica que
caminha rumo ao fortalecimento de forças centrífugas, descentralizadoras acerca da
existência de menores abandonados nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Isso porque,

110
por meio do discurso, Leonardo constrói como posicionamento a dimensão de que Zé,
Vertinho e Juan não são enunciados como menores de rua ou moradores da favela
próxima à sua residência. Os três são, para ele, amigos, o que marca a proximidade da
relação que se estabelece daquele dia em diante entre Leonardo e os outros meninos.
No segundo parágrafo, o estudante revozea o discurso de um dos menores, em seu
primeiro contato. Usando o vocativo “neguim”, Leonardo emprega um vocativo
identitário com o qual, aulas depois, declarou afinar-se, quando, em diálogo com outro
aluno negro da sala, mencionou: “esse preconceito acontece com gente da nossa cor.”
Sobre isso, tratarei mais adiante.
É interessante observar que, diante do convite de um dos menores para “bater uma
bola”, Leonardo admite que ficou com “vergonha”. A escolha desse termo substantivo
ocupa o lugar de outros que apareceram com mais frequência nas produções textuais
escritas dos estudantes, referentes ao medo e ao perigo. Nesse sentido, ressalto o quanto
o enunciado produzido pelo aluno, de seu lugar social, rompeu com o discurso pronto de
que a aproximação entre um adolescente em situação de abandono e um em situação
privilegiada deva necessariamente gerar perigo e medo. A vergonha sentida por Leonardo
pode ser a experimentada por ele com a proximidade com qualquer outro jovem de sua
idade, com quem não tenha relação íntima anterior.
Assim, daquele primeiro contato, por meio do operador argumentativo “mas”,
Leonardo menciona que não imaginava que nasceria uma grande amizade. Os três
meninos passam a ser seus companheiros de partida de futebol e as formas verbais que
enunciavam ações pontuais no pretérito perfeito, agora, passam, no terceiro parágrafo, a
apresentar ações e acontecimentos rotineiros no pretérito imperfeito, o que comprova a
perspectiva da amizade: Leonardo “ia” jogar bola “toda” quarta.
Ainda no terceiro e último parágrafo, o aluno afirma que Vertinho foi o menino
com quem teve maior vínculo, indo surfar no Arpoador. Não há detalhes, no entanto,
acerca de como isso acontecia. Provavelmente, infiro, Leonardo levava sua prancha de
surfe e emprestava para Vertinho.
Em seguida, um acontecimento marca um distanciamento: Leonardo tem um
problema no joelho que o impede de praticar esporte. Assim, descobre, um tempo depois,
que Vertinho foi para um orfanato e pôde ser adotado, o que ele defende ser uma “coisa
boa”. Nesse momento, nota-se uma alternância na construção narrativa entre a
agentividade e a passividade: o menor Everton foi para um orfanato, o que pressupõe,
discursivamente, uma estrutura agentiva; em seguida, foi adotado por alguém, o que

111
indica uma construção passiva para o menor; no entanto, o agente responsável pela
adoção é desconhecido pelo autor do texto, o aluno Leonardo.
No fim do texto, o estudante afirma que nunca se esquecerá de Vertinho, porque
vê muito da vida do menino na dele, por ser também adotado. A semântica verbal em
torno do “vejo” comunica para mim, como pesquisadora-participante, que Leonardo
apresentava uma maturidade proveniente de uma realidade de vida que lhe permitia
constatar que a adoção foi, para ele, também uma “coisa boa”. Vertinho não era o outro,
era, de algum modo, também um retrato social dele, como sétimo filho de uma família
que passou por “maus bocados”. Embora o aluno não tenha detalhado as dificuldades
pelas quais a família biológica passou, a escolha do termo pronominal em “minha
família”, mais uma vez, aponta para a perspectiva da proximidade com a realidade de
provável privação e pobreza, o que, para ele, parece constituir sua identidade. Entendo,
assim, que a construção discursiva que o aluno traz ao longo de sua produção escrita
aponta para um engajamento ideológico, aparentemente bastante intencional, que visa a
ler o mundo por meio de lentes que não ignorem as “vozes do sul” (SANTOS, 2004).
Pelo contrário, parece-me notório que, em uma primeira proposta como essa, em que o
aluno poderia ter feito um texto protocolar, frio, genérico, houve o nítido posicionamento
discursivo de que tratar de menores abandonados para ele não seria um problema – nem
por envolver medo, como muitos da turma enunciavam oralmente, nem por envolver
identificação, como seu discurso enunciou na produção escrita.
Portanto, para mim, como pesquisadora, interpreto que Leonardo certamente não
viveu como um Capitão da Areia, porque “graças a Deus”, como ele afirma em seu texto,
foi adotado aos seis meses. Entretanto, tomando como base que é preciso considerar a
endereçabilidade desse discurso, o aluno sabia que estava produzindo um texto – o que
fez em um primeiro dia, sem necessidade de revisão – direcionado a mim, como
professora e pesquisadora. Ele optou por apresentar a ideia de que a referenciabilidade
(SOBRAL & GIACOMELLI, 2016), ou seja, o assunto daquele enunciado em diálogo
comigo não era “estrangeiro” para ele, que, apesar de não conhecer propriamente a obra
literária com a qual trabalharíamos naquele trimestre, tinha como trajetória de vida uma
narrativa que julgou que eu precisava também conhecer.

112
TEXTO 7: Bruno
Então, o meu nome é Bruno S. e tenho 14 anos de idade. Meus pais Wanderson e
Angélica moravam no subúrbio carioca em sua infância e adolescência. Venceram na vida
e hoje sou um dos poucos que tem minha raça que moram na parte mais nobre do Rio de
Janeiro, a zona sul.
Eu sou o irmão do meio e tenho um imenso privilégio de ter uma ótima condição
financeira. Sou grata a Deus e aos meus pais por me proporcionarem estar com parentes
residentes em bairros pobres. Sempre tive contato com pessoas humildes e isto é crucial
para a formação do meu caráter.
Certo dia, eu e minha família fomos almoçar numa churrascaria e ao voltarmos
para casa resolvemos passar numa livraria e nem imaginei que este ato de ir a esta livraria
iria mudar meus conceitos. Meus pais estavam andando lentamente, portanto eu e meu
irmão menor Fernando, também negro, nos aproximamos primeiro do local, imediatamente
no segurança apareceu. Ele retirou do local o receio do que proporcionaríamos aos clientes
desta livraria. Racismo? Provável. Esta atitude do segurança é o retrato das atitudes que o
nosso país inclusive eu teria, mas me magoou o fato de nem poder comprar livros sem
causar receio em alguém somente pela minha cor. Com este ato, me senti parte das pessoas
sem assistência, já que fui confundido por um deles.

Bruno foi um aluno participativo em vários sentidos. Popular e falante, estava


sempre integrado no grupo dos estudantes mais interativos da turma. Com frequência,
pedia para ler os textos trabalhados em fichas. Foi, também, um dos poucos da turma a
relatar, ao longo do ano letivo, ter ido ao teatro, levando para a turma as contribuições da
peça a que assistira.
Em sua primeira produção escrita, que chamei de Texto Diagnóstico, Bruno não
precisou de mais tempo. No primeiro dia, escreveu mais do que a maioria dos colegas da
sala e considerou, verdadeiramente, a pergunta “E eu com isso?”, porque trouxe para o
seu enunciado o foco em experiências pessoais como norte para dialogar com a realidade
dos menores abandonados.
Assim, logo no primeiro parágrafo, Bruno seleciona como informação a breve
trajetória de vida de seus pais, oriundos do subúrbio carioca. De acordo com o aluno, os
pais “venceram na vida”, o que lhe permitiu morar na parte mais nobre do Rio de Janeiro.

113
É notório o quanto essa ideia dialoga com uma narrativa neoliberal de vida. Nota-se,
portanto, uma intenção de estabelecimento de diálogo entre a condição social da
população negra e a condição atual de sua família, uma vez que ele afirma ser “um dos
poucos” negros que moram na Zona Sul da cidade. Fica evidente, assim, a percepção do
estudante de que sua narrativa identitária como negro, de algum modo, pode interagir
com a de tantos menores que vivem em situação de privação e abandono.
Mais adiante, em seu segundo parágrafo, o aluno enuncia que é o irmão do meio
e que tem o “imenso privilégio de ter uma ótima condição financeira”. Agradece, em
seguida, a Deus e aos pais por isso. Como pesquisadora, diante de todos os textos que li,
somente as produções de Bruno e de Leonardo trouxeram algum reconhecimento do
privilégio de sua realidade socioeconômica e familiar. Não por acaso, os dois meninos
foram os que dialogaram em um dos debates sobre o livro para posicionarem-se sobre o
preconceito comumente sofrido por eles por serem negros. Bruno relatou que, certo dia,
corria com um colega, brincando, e foi segurado por alguém, que julgava que ele fosse
um assaltante – situação parecida com a relatada no fim do texto. Isso mostra que a
narrativa escolhida para a produção do Texto Diagnóstico não foi a única em que Bruno
sofreu discriminação por ser um negro retinto.
Bruno diz, ainda, em sua produção textual, que tem parentes que residem em
bairros mais pobres e que o contato com pessoas humildes é crucial para a formação de
seu caráter. Como o aluno não desenvolve essa afirmação, parece-me aqui que, pela idade,
ele revozea o discurso de outras pessoas, talvez os próprios pais, que reconhecem o quanto
suas origens preservam seus valores quanto ao que é realmente necessário para a
formação do ser humano.
Em seguida, no terceiro parágrafo, Bruno narra o episódio que “iria mudar [s]eus
conceitos”. Em uma livraria, acompanhado do irmão, longe dos pais, sofreu a
interferência de um segurança. Há, na construção discursiva, a opção pela agentividade
direcionada ao segurança: “um segurança apareceu e nos retirou do local”. Isso indica
que o jovem tem consciência da ação praticada pelo adulto responsável pela “segurança”
do estabelecimento. Logo em seguida, Bruno problematiza se aquele ato seria racismo.
Como constrói a problematização em frase interrogativa, ele mesmo responde com o
termo adjetivo “provável”. Diz, ainda, que a atitude do segurança é o “retrato” do país,
afirmando que inclusive ele o faria. Depois, embora afirme que adotaria a mesma conduta,
Bruno usa o operador argumentativo “mas”, deixando em evidência a informação

114
construída mais adiante, que diz respeito ao fato de que ele ficou magoado por não poder
comprar livros somente por sua “cor”.
Percebo, assim, o quanto as forças centralizadoras e descentralizadoras estão
fortemente presentes no discurso de Bruno. Naquele espaço, diante daquele tema exposto,
o aluno se viu em fricção entre os dizeres familiares e tantos dizeres com os quais ele,
como negro, vivencia. No entanto, como defende que ocupa um espaço privilegiado, tenta
reproduzir a ideia de que um “provável” racismo é o retrato do país – incluindo-se nesse
enquadramento. O embate vivido por ele é notório, embora sua construção discursiva
deixe evidente o fato de que ele rechaça práticas racistas que impedem que ele, ou
qualquer outro menino negro, tenha o direito de ir e vir.
Dessa maneira, tendo em vista a pergunta-tema, Bruno assume o quanto a vivência
narrada o aproxima dos menores abandonados que, somente estando nas ruas, são
estigmatizados como a personificação do perigo, da violência, da insegurança. Essa
constatação foi proveniente do fato de que ele foi confundido [pelo segurança] com um
deles. Torna-se notório, assim, o quanto o aluno não poderia responder ao meu
questionamento genericamente, porque estava afetado por uma realidade que o
atravessava devido à sua construção identitária.

5.2. PRODUÇÃO TEXTUAL ESCRITA: ADAPTAÇÃO DO CAPÍTULO


“FAMÍLIA”
“E se para alguém o Sem-Pernas abria exceção no seu ódio, que
abrangia o mundo todo, era para as crianças que formavam os
Capitães da Areia. Estes eram seus companheiros, eram iguais a ele,
eram as vítimas de todos os demais, pensava o Sem-Pernas.”
(AMADO, [1937] 2008, p. 126)

“– Tua família tá te procurando, Sem-Pernas. Tua mãe tá te


procurando pra dar de mamar a tu...
Mas não disse mais nada, porque o Sem-Pernas já estava em cima
dele e levantava o punhal. E esfaquearia sem dúvida o negrinho se
João Grande e Volta Seca não o tirassem de cima dele. [...] O Sem-
Pernas foi indo para um canto, um olhar de ódio para todos.
[...]
E rebentou em soluços, que deixaram os Capitães da Areia
estupefatos. [...] Lá fora o vento corria sobre a areia e seu ruído era
como uma queixa.”
(AMADO, [1937] 2008, p. 130)

É importante recordar que a leitura literária do livro Capitães da Areia proposta


em minha pesquisa intencionou despertar a dimensão ativa e responsiva de leitura no

115
diálogo entre o tecido ficcional amadiano e a realidade do entorno do colégio, por onde
passam e permanecem muitos menores e maiores de idade em situação de rua.
Para tanto, embora estivéssemos trabalhando com uma obra escrita em 1937,
nosso cronotopo (BAKHTIN, [1975] 2010) foi favorável à lente dialógica por meio da
qual lemos e discutimos cada capítulo em nossas Rodas de Leitura. Isso quer dizer que,
mesmo 81 anos depois da publicação do romance de Jorge Amado, que propunha como
protagonistas menores abandonados e infratores, a permanência da situação de privação
e abandono de crianças e adolescentes nas ruas do país, em especial no entorno do colégio
em que desenvolvi minha pesquisa, trouxe significado à proposta de leitura literária ativa
e responsiva.
Além do espaço – na dimensão macro e micro – em que se percebem menores em
situação de miséria nas ruas, o tempo, em 2018, era fértil à heteroglossia dialogizada
(FARACO, 2010), uma vez que havia um forte embate discursivo entre vozes mais
conservadoras e vozes mais descentralizadoras. De um lado, havia os discursos de
criminalização da pobreza, inclusive em defesa da redução da maioridade penal; de outro,
o discurso da defesa dos direitos humanos para todos e todas, inclusive para aqueles em
situação de criminalidade. Essa divisão ideológica ficou bastante evidente durante o
segundo turno das eleições para a Presidência da República, em outubro de 2018, quando
as forças centrípetas e, portanto, homogeneizadoras, em defesa da “família tradicional” e
do “cidadão de bem”, elegeram Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL) (cf.
discussão na Introdução).
Diante desse processo dialógico proposto, que preconizava uma sala de aula fértil
ao embate discursivo, ao conflito, à pluralidade de posicionamentos socioideológicos, a
adaptação do capítulo “Família”, presente no romance amadiano, foi uma interessante
oportunidade para verificar: i. a leitura literária realizada em casa; ii. a compreensão ativa
e responsiva dos estudantes acerca do tecido ficcional; iii. a coerência entre a adaptação
discente e a narrativa amadiana original; iv. a exotopia (BAKHTIN, [1920-1924] 2010)
como estratégia de leitura e transposição discursiva, da 3ª para a 1ª pessoa.
Para a análise, selecionei duas narrativas de estudantes já apresentados aqui: a
primeira é da Sabrina, que optou por adaptar o referido capítulo com a transposição do
discurso para a narração na perspectiva da personagem Dona Ester; a segunda é de
Leonardo, que escolheu adaptar o capítulo com a transposição do discurso para a narração
na perspectiva do personagem Sem-Pernas.

116
Na Roda de Leitura em que discutimos o capítulo “Família”, houve efetivo
envolvimento dos alunos e das alunas, seguindo a perspectiva da exotopia, porque, por
meio da compenetração, nós entendemos que a leitura literária acontece verdadeiramente
quando o sujeito-ativo-leitor defende: “eu devo vivenciar – ver e inteirar-me – o que ele
[o personagem] vivencia, colocar-me no lugar dele, como que coincidir com ele”
(BAKHTIN, [1920-24] 2010, p. 23). Em seguida, no processo de escrita, as narrativas
experimentaram em maior ou menor escala a possibilidade da exotopia, conforme
veremos na análise a seguir.

TEXTO 1: Sabrina
À espera de Augusto
Enquanto meu coração se apertava olhando o pequeno Augusto se encolhendo e
chorando sentido, perguntei angustiada o motivo de tal choro. O pequeno limpou as
lágrimas, mordeu a mão e negou que estivesse chorando. Fiquei preocupada, pensando que
ele estivesse sentindo a falta de sua pobre mãe morta havia poucos dias.
Com carinho, puxei-o para meu colo e o abracei com amor. Disse palavras
reconfortantes e afirmei para que ele não se preocupasse e não se sentisse só, pois, a partir
daquele dia, eu seria sua mãezinha e faria tudo para substituir a mãe que perdera.
Dei um beijo onde as lágrimas escorriam e o coloquei para dormir.
Alguns dias se passaram e, aparentemente, o jovem órfão estava calmo. Fui
surpreendida, em uma tarde, pela entrada de Augusto no meu quarto, dizendo que iria até
Campo Grande passear. Senti vontade de proibir esse passeio, mas achei melhor deixá-lo
ir e pedi que não demorasse muito, pois Raul iria trazer uma bicicleta do Rio de Janeiro de
presente para ele. Fui retribuída com um beijo e palavras ditas baixinhas: “A senhora é
muito boa. Eu nunca vou esquecer.”.
Quando Raul chegou, me dei conta do quão tarde estava e nada ainda de Augusto.
Quando deu 10 horas da noite, já estava desesperada e pedi a Raul que fôssemos de carro
até Campo Grande.
Chegamos a nossa casa depois de meia-noite e nada de Augusto. Quando
amanheceu, meu coração era uma imensa tristeza com a suspeita da perda, pela segunda
vez, de meu filho Augusto.

117
Fomos à delegacia dar parte do desaparecimento do pequeno Augusto, coxo de uma
perna, tímido, que vestia uma roupa de casimira cinza, com 13 anos de idade e que devia
ter se perdido na cidade que pouco conhecia.

Já no título da narrativa de Sabrina, é possível identificar a tentativa de adoção da


exotopia (BAKHTIN, [1920-24] 2010) como caminho para a transposição do discurso.
No romance, Dona Ester havia perdido um filho, ainda criança, cujo nome era Augusto.
O narrador amadiano, em 3ª pessoa, não apresenta ao leitor como Sem-Pernas, menor
integrante do grupo dos Capitães da Areia, conseguiu escolher esse nome para se
apresentar à senhora quando chegou à sua casa, em um dos bairros mais ricos da cidade
de Salvador.
Dessa maneira, observa-se que Sabrina assume em sua adaptação a
responsabilidade de atribuir ao seu texto o título “À espera de Augusto”. Pode-se
interpretar essa estrutura adverbial temporal como anterior à chegada de Sem-Pernas,
visto que a mãe, Dona Ester, poderia viver o luto referente à morte de seu filho, esperando
por um reencontro com ele; ou, ainda, pode-se inferir que o título remete-se à condição
de espera que Dona Ester viveu depois de perder, pela segunda vez, seu filho Augusto,
agora o adotivo, quando ele partiu sem deixar pistas de seu paradeiro.
É interessante observar que, do modo como a narrativa foi conduzida, não há um
discurso de desconfiança ou culpabilização direcionado a Sem-Pernas. A aluna, que
conhecia o enredo original e que sabia, portanto, que o menino havia partido da casa de
Dona Ester para informar aos outros Capitães da Areia onde estavam os bens materiais
da família para que ocorresse o assalto, poderia adotar, direta ou indiretamente, um
discurso que apontasse uma conduta desviante de Sem-Pernas. No entanto, em respeito à
coerência com a personagem escolhida, a narradora, Dona Ester, que realmente de nada
sabia sobre o envolvimento de seu novo filho com os Capitães, opta pela escolha da
experiência do sentir a tristeza e a preocupação com o destino de “Augusto”, em vez da
dúvida, da hesitação, da desconfiança, do medo, da culpabilização.
São notórios o afeto e a preocupação por meio dos quais a narradora-personagem,
Dona Ester, dirige-se a Sem-Pernas, seu novo filho. Isso pode ser percebido por meio das
escolhas lexicais como “pequeno” – em “pequeno Augusto” e “O pequeno” –, “apertava”
– em “meu coração se apertava” –, “angustiada” – em “perguntei angustiada o motivo de

118
tal choro” –, logo no primeiro parágrafo. Essas estruturas substantivas, adjetivas e verbais
posicionam discursivamente a narradora como alguém que se sente preocupada diante do
choro e do sofrimento de Sem-Pernas/Augusto.
A cena escolhida como inicial para a narrativa de Sabrina foi a que lemos, dias
antes, em sala e que gerou o silêncio da turma. Assim, percebo que, embora a proposta
pedisse que a narração ocorresse a partir do momento em que Sem-Pernas já estivesse
instalado na casa de Dona Ester, a aluna optou por omitir muitos acontecimentos e muitas
ações anteriores, priorizando o momento em que – para além da alegria mútua inicial de
ter seu filho de volta e de ter casa e família, enfim – ambos, Sem-Pernas e Dona Ester,
experimentavam o sofrimento da despedida.
Durante os primeiros três parágrafos, a adaptação do capítulo “Família”
permanece com o tom afetuoso já mencionado. Somente no quarto parágrafo, há a seleção
da informação de que a narradora e personagem Dona Ester é surpreendida pela entrada
de Augusto no quarto. Nesse momento da narrativa, a opção pela estrutura passiva
analítica deixa Dona Ester como paciente, como aquela que sofre com a ação de outro
personagem que, nesse caso, é Augusto/Sem-Pernas, entrando em seu quarto para lhe
contar que sairia de casa para passear em outro bairro da cidade de Salvador. A surpresa
marca uma mudança na narrativa, uma vez que, a partir daquele momento, a inicial
estrutura linear e estável dá lugar ao desassossego.
Diante da entrada de Augusto/Sem-Pernas no quarto da narradora e personagem
Dona Ester, há o comunicado – e não o pedido – de que o menino iria passear em outro
bairro. Ainda assim, a mãe afirma que sente “vontade de proibir esse passeio”, mas
escolhe permitir, dando-lhe apenas a recomendação de que não demorasse, já que Raul,
o pai, estava voltando do Rio de Janeiro, trazendo-lhe uma bicicleta de presente.
O tom de desassossego ganha maior destaque no momento em que o marido Raul
chega a casa e a narradora percebe que havia passado muito tempo, sem que o filho
Augusto/Sem-Pernas tivesse retornado. Passam-se duas horas desde a ida até o bairro de
Campo Grande e a busca pelo menino não tem sucesso, o que provoca “imensa tristeza”
na narradora, que afirma ter a “suspeita da perda, pela segunda vez” do filho Augusto.
No desfecho, nota-se que a história termina com o relato desesperado da mãe na
delegacia, apresentando uma estrutura descritiva, em que, novamente, o termo adjetivo
“pequeno” volta à cena para fazer referência a Sem-Pernas, que “devia ter se perdido na
cidade que pouco conhecia”. A adjetivação da cidade, em forma de oração subordinada,
como sendo aquela desconhecida para o “pequeno Augusto”, comprova que a narrativa

119
foi concluída com a mesma perspectiva de afeto e preocupação com a qual a narradora e
personagem Dona Ester enunciou no primeiro parágrafo, o que pressupõe a preocupação
de Sabrina em respeitar a progressão temática e a verossimilhança em relação à narrativa
amadiana original.
É preciso destacar que, como Sabrina escolheu como narradora a mulher que
acolheu Sem-Pernas como filho e, em seguida, teve a casa assaltada pelos Capitães da
Areia, diante do enunciado produzido pela aluna como Texto Diagnóstico, o tom de
criminalização atribuído ao Sem-Pernas poderia aparecer em seu discurso na narrativa de
transposição discursiva (SANDERS, 2006) em análise. No entanto, a tese que defendo
como coerente em minha análise diz respeito ao fato de que a aluna já havia lido outros
textos propostos (cf. planejamento de atividades na Metodologia), que dialogavam com
a temática do livro, já havia lido e apresentado a análise do discurso da carta da mãe de
um dos menores infratores, Maria Ricardina47 – que apresenta o viés ideológico de defesa
da humanidade dos menores abandonados e infratores dos Capitães da Areia –, já havia
lido e intercambiado sobre os capítulos anteriores do romance e já se havia afetado diante
da perspectiva humanizadora das crianças e dos adolescentes que vivem nas ruas em
situação de abandono.

TEXTO 2: Leonardo
Família de verdade
Cheguei aqui, nessa casa. Tudo é perfeito. Ganhei uma mãe, uma família, roupas,
comida e carinho. Mas, de qualquer maneira, ainda me sinto um estranho no ninho, não fui
criado assim. Fui criado com meus companheiros, que dependem de mim, assim como eu
dependo deles. Ou dependia, pois agora tenho a escolha de deixar tudo para trás. Me sinto
no meio de um tiroteio, entre o lado da minha real família, que sempre me deu o melhor
possível e me ensinou contra essa nova família, que é rica e me dá todos os caprichos
possíveis.
Não tenho certeza do que quero. Só sei que sinto saudade, tanto de meus
companheiros como do simples fato de estar ali com eles. Essa nova mãe me dá tudo, mas

47
Devo destacar que, embora os grupos tenham sido organizados pelos estudantes, o processo de
distribuição das cartas aconteceu por sorteio. O grupo de Sabrina, assim, sorteou a carta 3, da mãe Maria
Ricardina, para analisar e apresentar em forma de seminário.

120
não o que eu realmente preciso, que é estar em família. Mesmo se quisesse, eu sentiria e
saberia que não pertenço a essa vida. De qualquer maneira, ainda não sei explicar o que
esta nova “mãe” faz comigo. Deve ser o que as pessoas chamam de “amor”. Só de pensar
nisso já me sinto culpado, pois logo irei roubar esta casa. Irei trair a mulher que me acolheu
e me tratou como um filho.
Eu sei que irei voltar para minha verdadeira família uma hora, mesmo que isto me
custe uma mãe, pois pertenço a outro mundo e a outra vida. Então, se você for ler isso
algum dia, “mãe”, lhe peço perdão. Sou muito grato por tudo que você fez por mim e você
realmente não mereceu isso. Me desculpe, mas preciso voltar para a minha verdadeira
família, pois eles estão contando comigo. Por favor, não se sinta usada, pois isso só pioraria
meu arrependimento.

A adaptação do capítulo “Família”, produzida pelo aluno Leonardo, traz como


protagonista Sem-Pernas, personagem já apresentado anteriormente. O menino, coxo, era
o escolhido pelo grupo para se apresentar a senhoras dos bairros mais ricos, despertando-
lhes piedade. No romance, o narrador amadiano relata que Sem-Pernas estava
acostumado com a entrada na casa das famílias ricas para desempenhar algum serviço em
troca de dinheiro, cabendo a ele o espaço dos empregados da casa. No entanto, daquela
vez, conhece Dona Ester, que o recebe como a um filho.
Apesar do diferencial tratamento recebido por Sem-Pernas, Leonardo estabelece
já no título de sua adaptação a percepção de que o termo substantivo “família”, nesse
contexto, perde seu caráter intransitivo, como frequentemente se usa nas diferentes
práticas de linguagem. Para Sem-Pernas, como voz que enuncia a narrativa, não há apenas
uma família, até mesmo porque o próprio menino não tem a família dita biológica.
Portanto, a estrutura adjetiva “de verdade” construída no título refere-se ao grupo dos
Capitães da Areia, aqueles que o acolheram e trataram como membros de uma família.
Como leitores, no entanto, sabemos que a família verdadeira é a representada
pelos Capitães apenas quando lemos o primeiro parágrafo da adaptação. Nele, o
enunciador Sem-Pernas emprega o vocábulo “perfeito” para adjetivar “tudo” que existe
na casa de Dona Ester. O termo pronominal indefinido “tudo” diz respeito, como se vê
mais adiante, ao que ele ganhou naquele lugar: “uma mãe, uma família, roupas, comida e
carinho”. Esses termos coordenados relacionam-se semanticamente ao universo de bem-

121
estar e direitos básicos atendidos, como a convivência familiar, a alimentação e o afeto,
o que, até então, não era uma realidade para o menino.
Logo em seguida, há a inserção do termo com valor adversativo “mas”, que opõe
o bem-estar de receber tudo o que nunca Sem-Pernas tivera antes e a constatação de que,
naquele espaço, o menino sentia-se “um estranho no ninho”, porque não fora criado com
todos aqueles direitos assegurados. Então, o dilema construído no capítulo pelo narrador
amadiano, em 3ª pessoa, é renarrado pelo narrador Sem-Pernas, em 1ª pessoa, por meio
de uma metáfora, a do tiroteio. Com essa construção metafórica, o enunciador defende a
tese de que se encontra sem alternativa indolor, porque, de um lado, há a família de
verdade, os Capitães da Areia, e, do outro lado, a família nova, adjetivada como “rica e
que [lhe] dá todos os caprichos possíveis”. Nesse momento, a escolha lexical do termo
substantivo “caprichos” relaciona-se à percepção de que aquela família proporcionava ao
menino excessos, além do necessário à sua sobrevivência. A escolha por ficar ou partir,
assim, envolverá, necessariamente, o sofrimento de alguém, o que inclui o narrador e
personagem Sem-Pernas.
No segundo parágrafo, mais uma vez, o dilema é recontado: “não tenho certeza
do que quero”. Há, entretanto, uma certeza, a de que ele sente saudade de estar com os
Capitães. A nova mãe lhe dá tudo, mas não aquilo de que o menino realmente precisa.
Portanto, nota-se que, nesse parágrafo, a decisão de Sem-Pernas desenha-se de modo mais
contundente. Com a estrutura “mesmo que quisesse”, o enunciador ratifica a tese de que
não quer estar com aquela família nova, naquele lar no qual não se reconhece como
pertencente. Em seguida, refere-se à “mãe”, pela primeira vez, com o termo substantivo
entre aspas, o que pode indicar o afastamento da dimensão materna que, até o momento,
o personagem tentava aceitar para si mesmo. Afirma, assim, que a “mãe” faz com ele o
que ele não sabe explicar, mas que julga ser o que “as pessoas chamam de ‘amor’”. Nesse
momento, fica evidente o fato de que Sem-Pernas não reconhece o amor maternal, que,
em verdade, em vez de promover bem-estar, gera culpa pelo abandono e pelo roubo que
estavam prestes a acontecer.
No terceiro e último parágrafo, o narrador Sem-Pernas comunica diretamente que
voltará para a “verdadeira família”, os Capitães da Areia. Ainda que isso lhe custe uma
mãe, a decisão está tomada. O texto termina, então, com uma interlocução dirigida à Dona
Ester, com um pedido de desculpas e a justificativa pelo abandono.
Estruturalmente, a produção textual escrita de Leonardo não segue a tipologia
narrativa tradicional exigida pela proposta: apresentação, conflito, clímax e desfecho. O

122
aluno opta por um texto mais estático, numa espécie de diálogo interior narrado, em que
as ações e os acontecimentos apresentados no capítulo não aparecem propriamente. Não
há movimento. Há um tempo único, estático, interior, sofrido, de quem não se encaixa no
bem-estar familiar apresentado no primeiro parágrafo e que, logo no segundo, decide
retomar a vida nos Capitães da Areia. Não há, assim, interação verbal com personagem
algum.
Para a pesquisa, entendo que a escolha pelo tempo estático foi feita por Leonardo
devido ao seu envolvimento com a temática e com a trajetória de tantos menores que,
como ele, podem assumir novos rumos familiares como ressignificação de seus direitos
básicos de vida. Para o aluno, portanto, assumir a voz de Sem-Pernas e recusar o
acolhimento da nova família pode não ter sido um processo tão fácil, tendo em vista que
ele, tal como enunciou no Texto Diagnóstico, sente-se grato “a Deus” por ter sido adotado
aos seis meses de idade, tendo acesso, a partir de então, a direitos básicos que sua família
biológica, que viveu “maus bocados”, certamente não poderia lhe assegurar.

5.3. PRODUÇÃO TEXTUAL ESCRITA: ADAPTAÇÃO DO CAPÍTULO


“REFORMATÓRIO” EM DIÁLOGO COM O CAPÍTULO “ORFANATO”

“Castigos... Castigos... É a palavra que Pedro Bala mais ouve no


reformatório. Por qualquer coisa são espancados, por um nada são
castigados. O ódio se acumula dentro de todos eles.”
(AMADO, [1937] 2008, p. 208)

“Um mês de orfanato bastou para matar a alegria e a saúde de Dora.


[...] Não era uma flor de estufa. Amava o sol, a rua, a liberdade.”
(AMADO, [1937] 2008, p. 211)

Com base nos procedimentos teóricos adotados para a proposição da pesquisa


relacionada à leitura literária dialógica da obra Capitães da Areia, conforme destaquei no
subitem 5.2., é importante destacar aqui que o processo de transposição do discurso – da
3ª para a 1ª pessoa –, objetivando a adaptação do capítulo intitulado “Reformatório” ou
do capítulo “Orfanato”, foi diferente da produção textual escrita anterior. Isso porque,
neste caso, os alunos e as alunas produziram seus textos a partir de suas leituras prévias,
realizadas em casa, sem que ocorresse um longo e detalhado debate sobre os
acontecimentos e as ações da narrativa amadiana antes da prova.

123
Nesse sentido, conforme já foi destacado anteriormente, um dos objetivos era
verificar a compreensão ativa e responsiva (BAKHTIN, [1920-24] 2010) da leitura
literária na dimensão humanizadora proposta pelo narrador do romance Capitães da
Areia. Além disso, também esperei observar a capacidade de os estudantes efetivamente
experienciarem o que os personagens – Dora ou Pedro Bala – vivenciaram durante o
período de reclusão, enquanto um esteve no reformatório e o outro, no orfanato. Nessa
direção, esperei de cada autor das adaptações a capacidade de compreensão de que
deveria “entrar em empatia com esse outro indivíduo [o personagem], colocar-[se] no
lugar dele e, depois de ter retornado ao [seu] lugar, completar o horizonte com o excedente
de visão que desse [seu] lugar se descortina fora dele” (BAKHTIN, [1920-24] 2010, p.
23), num processo ativo e responsivo de leitura e escrita, no qual a exotopia possibilitasse,
necessariamente, que o sujeito-leitor fosse também sujeito-autor de sentidos e
acabamentos para o tecido ficcional amadiano, em diálogo com a compreensão
responsiva do cronotopo (BAKHTIN, [1975] 2010) atual.
É importante ressaltar, ainda, que, na turma inteira, 19 escolheram renarrar na
perspectiva de Pedro Bala e seis, na perspectiva de Dora. Assim, considerando os sete
estudantes com os quais trabalhei na análise dos Textos Diagnósticos, somente uma
enunciou na voz da narradora e personagem Dora: a aluna Maria Cecília. Por isso, escolhi
sua produção textual como possibilidade de análise, visando a identificar maior ou menor
fricção aos discursos hegemônicos em torno da apreensão de menores em situação de
criminalidade.
O outro texto escolhido, novamente do aluno Leonardo, assumiu como enunciador
o narrador e personagem Pedro Bala. Diante das seis possibilidades de escolha, selecionei
a produção textual escrita desse aluno devido ao teor mais heteroglóssico dialogizado
(BAKHTIN, [1975] 2010) que a seu tecido discursivo apresenta, conforme apresentarei
na análise a seguir.

TEXTO 1: Maria Cecília


Um por todos e todos por um
Chegando no orfanato, ainda não tinha caído a ficha. Nunca havia me imaginado
indo para um lugar com aquele, quase um inferno. Tiraram de mim o meu único privilégio:
a liberdade. Além disso, pensar que ficaria longe dos meus companheiros e do meu amor

124
me partia o coração. No entanto, no fundo, eu sentia que alguns dos meus amigos me
tiraram algum dos meus amigos me tiraria de lá. Afinal, eu fui pega enquanto eles fugiam.
O tempo corria e eu esperava ansiosamente o dia em que viriam me buscar. Ao
mesmo tempo, não deixava de me questionar: como deve estar Bala? Será que ele também
sente a minha falta? A saudade só aumentava. Não via a hora de sair daquilo. Eu estava
rodeada de meninas chatas. Pessoas cultas tentavam me ensinar “bons modos”, entre
outras coisas que eu nada entendia. Eu não tenho pertencia àquele lugar nem desejava
pertencer.
O dia chegou. Eu estava no pátio do orfanato e, quando olhei para a rua, lá estavam
eles. Alguns dos Capitães, entre eles Pedro. Não sabia como, mas meus heróis deram um
jeito de me salvar. O sorriso de orelha a orelha retornou ao meu rosto. Eu estava livre
novamente e junto da minha nova família. A emoção era imensa. Entretanto, mal sabia eu
que aquele momento de alegria poderia ser o último da minha vida.

Logo no título da adaptação do capítulo “Reformatório”, em diálogo com o


capítulo “Orfanato”, a escolha sugere a defesa da perspectiva de união entre os
componentes dos Capitães da Areia. Nesse sentido, embora separados, após a
apreensão da polícia, o título construído por Maria Cecília aponta na direção de um
reencontro e da defesa mútua entre os componentes do grupo. De fato, o narrador
amadiano, em 3ª pessoa, constrói como panorama que, depois de apreendidos pela
polícia, Dora e Pedro Bala não relatam à polícia onde fica o “quartel general”
(AMADO, [1937] 2008) dos Capitães da Areia. Caso dissessem, todos os outros
meninos seriam também apreendidos e o grupo seria desfeito. Nesse sentido, a voz de
Dora, que enuncia na adaptação produzida pela aluna Maria Cecília, parece seguir
coerentemente o posicionamento discursivo defendido no romance.
No primeiro parágrafo, na mesma medida, a narradora e personagem Dora fala
sobre um incômodo com o orfanato, como um espaço que seria adjetivado como “quase
um inferno”. Em seguida, por meio de uma construção de indeterminação da autoria, a
forma verbal “tiraram” aponta na direção de que alguém foi responsável por tirar dela
o único “privilégio” que tinha: a liberdade. Nesse sentido, a escolha lexical do termo
“privilégio” parece-me curiosa, uma vez que, na narrativa, a menina havia acabado de
perder os pais com uma doença contagiosa, a bexiga, encontrando em seguida os

125
Capitães da Areia, os únicos que a acolheram como família – apesar da existência de
uma regra que não permitia mulheres no grupo. Portanto, entendo que há um notório
posicionamento de que a liberdade das ruas foi vista, nessa construção, como uma
espécie de vantagem – para além de uma necessidade –, em comparação à realidade de
outras adolescentes da mesma idade. Dora, desse modo, produz um revozeamento do
discurso que o narrador amadiano constrói em diálogo com Pedro Bala: “A liberdade
é como o sol. É o bem maior do mundo.” (AMADO, [1937] 2008).
Ainda no primeiro parágrafo, há um elemento de costura com o título: a
narradora e personagem do enredo Dora afirma que ficar longe dos companheiros e do
seu amor, Pedro Bala, parte seu coração, usando uma construção conotativa,
representativa da tristeza, do sofrimento proveniente da separação. Logo em seguida,
porém, há o emprego do termo adversativo “no entanto”, marcando que, apesar da falta
que Dora sentia dos outros dos Capitães, ela sabia que seria resgatada por “algum” –
de modo indefinido, porque poderia ser qualquer um – dos seus amigos, já que ela fora
presa, enquanto eles fugiam. Parece-me aqui, na visão da aluna, que se constrói um
discurso que cobra o cumprimento de uma exigência: como ela e Pedro Bala ficaram e
foram aprisionados para que os outros escapassem, era esperado que alguém os
resgatasse, como uma espécie de obrigação. Desse modo, o viés de união do grupo,
construído no título, dissolve-se para assumir a dimensão de uma cobrança, sobretudo
imposta por meio do termo conclusivo “afinal”, introdutório do último período do
parágrafo.
No segundo parágrafo, mais uma vez, há a construção sintática de
indeterminação de autoria para quem iria buscar Dora no orfanato: “viriam me buscar”.
Essa escolha relaciona-se à ideia de que qualquer Capitão da Areia tinha, com ela e
Pedro Bala, uma espécie de dívida, conforme já relatei. Nesse momento, há o emprego
do termo adverbial “ansiosamente”, marcando o quanto a narradora e personagem
desejava sair daquele espaço em que se via aprisionada.
Em meio ao seu anseio de fuga do reformatório, Dora constrói um
autoquestionamento, demonstrando preocupação com o bem-estar de Pedro Bala e com
o sentimento dele em relação a ela. Em seguida, há o emprego do termo “[d]aquilo”,
em referência ao orfanato, o que comprova o quanto a menina não construiu laços
afetivos com o lugar, enunciando discursivamente seu distanciamento por meio da
estrutura pronominal citada. Assim, é possível notar que nada no orfanato afetou
positivamente a menina, sendo as outras internas chamadas de “chatas”.

126
Em seguida, Dora enuncia que “pessoas cultas” tentavam lhe ensinar “bons
modos”. Com essa construção, entendo que Maria Cecília revozeia uma pluralidade de
outras vozes (FARACO, 2010), que entendem e defendem que o orfanato poderia ser,
para Dora, um bom caminho, uma espécie de espaço regenerador, capaz de lhe ensinar
a ter boas condutas, opostas, portanto, às dos Capitães da Areia. De certa maneira, essa
percepção coaduna-se à defendida por Maria Cecília em seu Texto Diagnóstico, quando
a aluna defendeu que esperava que aqueles jovens [abandonados] pudessem frequentar
uma boa escola e ter um ensino e um estudo adequado, assim como ela. Aqui, de algum
modo, a ideia do “bom” retorna em forma de “bons modos”, visando a ofertar à Dora
um caminho alternativo à vida com os Capitães. É importante ressaltar, ainda, que a
aluna escreveu o termo entre aspas, o que reforça a ideia de que usava a expressão em
forma de citação, provavelmente referente às vozes da “gente ordeira e virtuosa”
(BUARQUE, 2017), propagadora dos ideais do “cidadão de bem” (cf. discussão na
Introdução).
Já no terceiro e último parágrafo, há a construção do período “O dia chegou”.
A única estratégia de determinação para o dia foi construída por meio do artigo “o”,
embora não haja mais informações acerca de que dia Dora falava. Intencionalmente,
“o” dia dizia respeito ao dia mais aguardando, ansiosamente mencionado no segundo
parágrafo. Nesse momento, Dora vê seus “heróis”. A escolha lexical desse termo
substantivo ressalta o quanto Dora sofria no orfanato e retoma a perspectiva amiga e
heroica, alheia à ideia de obrigatoriedade atribuída ao resgate em outros momentos do
texto. Assim, volta um largo sorriso ao rosto da menina, o que foi enunciado por meio
da expressão cotidiana “de orelha a orelha”. A menina sente-se, nesse momento, livre
novamente e imensamente emocionada.
No último período do parágrafo, há um apontamento feito, por meio de uma
escolha intencional de informação, de que aquela alegria poderia não ser tão duradoura.
Nessa perspectiva, com base no que foi solicitado na proposta, não era necessário que
a aluna mencionasse acontecimentos e ações posteriores aos capítulos-base para a
adaptação. Ainda assim, houve a opção por trazer como informação, depois do
reencontro e da satisfação de Dora, que aquele sentimento não duraria, sendo o
marcador “entretanto” responsável pela oposição entre o bem-estar e o sofrimento que
estava por vir na narrativa.
Assim, de algum modo, o sucesso da fuga foi intencionalmente interrompido
por uma espécie de adiantamento da situação conflituosa que viria a segui – que

127
culmina na morta da jovem menina – o que pode, nesse contexto, representar uma
punição por Dora não ter podido ou conseguido receber os “bons modos” que estavam
dispostos a lhe ensinar no orfanato. Defendo, nesse sentido, que o excedente de visão
de Maria Cecília permitiu-lhe, como autora da produção textual, marcar seu
posicionamento ideológico moralizante, uma vez que, ao assumir a voz de Dora, optou
por não concluir o desfecho em tom de reencontro e satisfação, mas em um viés de
angústia, dúvida e sobressalto.

TEXTO 2: Leonardo
Procurando Dora
Infelizmente fui pego. O plano deu errado. Pelo menos, Gato João Grande e Sem-
Pernas fugiram. O que me preocupa é a situação de Dora, que também ficou para trás.
Entretanto, foi para um orfanato, que provavelmente é muito melhor que qualquer
reformatório. Principalmente este, onde estão me mantendo como um animal, preso em uma
pequena sala onde comida e água são escassas. A única coisa boa que pode vir daqui é o
tempo que tenho para pensar. Pensar, eu digo, sobre tudo: sobre Dora, sobre meu futuro e
quem sabe nosso, sobre meus amigos e, principalmente, pensar como um lugar desses pode
ajudar alguém. Como isso é possível? Nos tratam como animais, não nos alimentam e ainda
nos surram.
Se as pessoas lá fora acham que isso tudo em direito alguém, elas estão muito
erradas. Já se passaram dois dias até eu chegar a essa conclusão, já me tiraram daquela
cafua infernal. E é incrível a quantidade de jovens que estão aqui comigo. É ainda mais
incrível a capacidade de suportar os maus-tratos feitos pelos guardas. Acho que estou
começando a ficar louco, estou chegando a um ponto que faria qualquer coisa para sair
daqui. Ninguém merece algo como isso.
Demorou. mas consegui sair. Os Capitães conseguiram me tirar de lá, consegui
passar pelo muro com ajuda de uma corda. Só tem uma coisa que consigo pensar agora,
Dora. Vou atrás dela. Chego no orfanato facilmente entro em cada cômodo com meus
companheiros. Quando abro a porta e vejo ela; como eu amo, me lembro como a luz
daqueles olhos me guiam.

128
A adaptação produzida pelo aluno Leonardo assume, desde o título, a perspectiva
de Pedro Bala, que sente saudade de sua amada Dora, apreendida como ele, após a
tentativa de furto em uma casa, na ladeira de São Bento, na cidade de Salvador. Nessa
dimensão, a renarração do capítulo “Reformatório” acontece em diálogo coerente entre a
perspectiva de Pedro Bala, em 1ª pessoa, construída sob autoria do aluno, e a perspectiva
no narrador amadiano, em 3ª pessoa.
Logo no primeiro parágrafo, o termo adverbial “infelizmente” marca a
insatisfação do protagonista Pedro Bala diante de sua apreensão pela polícia, momento
em que precisa assumir que o plano dos Capitães da Areia deu errado pela primeira vez.
Em seguida, por meio da construção “pelo menos”, o narrador e personagem aponta uma
visão positiva de ter sido preso: conseguiu favorecer a fuga de Gato, João Grande e Sem-
Pernas.
Embora demonstre preocupação com a situação de Dora no orfanato, o enunciador
Bala defende que o orfanato provavelmente é “muito melhor” que o reformatório em que
ele se encontra. Nesse local, Pedro Bala relata que é tratado como um animal. É
importante frisar que, na análise do discurso que a turma fez das cartas introdutórias do
romance, tendo em vista o trabalho com a perspectiva plurivocal, heteroglóssica
(BAKHTIN, [1975] 2010) do romance amadiano, Leonardo estava no grupo que analisou
a carta do padre José Pedro, na qual o sacerdote constrói a seguinte estrutura: “As crianças
no aludido reformatório são tratadas como feras, essa é a verdade.” (AMADO, [1937]
2008). Percebe-se, assim, na autoria de Leonardo, uma dimensão dialógica com vozes
presentes na obra de Jorge Amado, que denunciam os maus-tratos que ocorrem no
reformatório representado no tecido ficcional. Essa comparação entre os menores
infratores e animais é justificada pela falta de alimento e pelas surras frequentes.
A única vantagem que o narrador Bala afirma ter no reformatório é tempo para
pensar. Assim, seu pensamento remonta Dora, seus amigos dos Capitães da Areia e a
própria estrutura do reformatório. Quando se questiona como é possível um lugar
[daqueles] ajudar alguém, Pedro indaga, em uma espécie de diálogo interior narrado,
outras vozes discursivas que foram construídas ao longo do romance, em defesa do
reformatório como espaço para recuperar menores em situação de infração. Há, nesse
momento, a dimensão heteroglóssica dialogizada (FARACO, 2010), tal qual ocorre no
tecido amadiano, uma vez que a pergunta revozeia um questionamento interno do

129
personagem em diálogo com questionamentos propagados por outras personas no
romance, como a mãe Maria Ricardina e o padre José Pedro.
No segundo parágrafo, o narrador Pedro Bala continua em seu processo interior
narrativo, sem seguir propriamente a estrutura tradicional da tipologia, para reforçar a
ideia de que “as pessoas lá fora”, que podem representar os “cidadãos de bem”, acham
que “isso”, o reformatório, endireita alguém. Essa correção, no entanto, não ocorre, na
perspectiva enunciativa de Pedro Bala.
Em seguida, o narrador menciona o quanto o pequeno espaço em que foi
aprisionado era “infernal”. Além disso, menciona que “é incrível”, destacando-se o
caráter do que é surpreendente, a quantidade de jovens que estão retidos no reformatório,
suportando os maus-tratos. A escolha lexical de “suportar” indica que eles não estão
apenas recebendo castigos, mas estão suportando-os, como que lutando pela
sobrevivência.
No último parágrafo do texto, em um salto narrativo, o narrador e personagem
Pedro Bala afirma que, embora tenha demora, conseguiu sair do reformatório com a ajuda
dos Capitães da Areia. Diante da fuga, consegue pensar apenas em Dora, em resgatá-la
do orfanato, o que dialoga com o título da produção textual. Quando a encontra, Pedro
menciona seu amor pela menina. Do encontro, é construída a metáfora da “luz” que
emana dos olhos de Dora, a fim de que Pedro Bala seja guiado. Nesse caso, há o que se
pode chamar de desfecho com um “final feliz”, visto que as intempéries que ainda
acontecem no romance, em seguida, não são selecionadas por Leonardo, que decide
concluir o texto com o viés positivo do reencontro e da esperança de felicidade para Pedro
e Dora.

5.4. PRODUÇÃO TEXTUAL ESCRITA: ADAPTAÇÃO DA TRAJETÓRIA


NARRATIVA DE PEDRO BALA, PROFESSOR OU PIRULITO

“Companheiro... Companheiro... Pedro Bala acha a palavra mais


bonita do mundo.”
(AMADO, [1937] 2008, p.252)

“– Gentes, Professor vai embora. Vai ser pintor no Rio de Janeiro.


Gentes, viva o Professor!”
(AMADO, [1937] 2008, p.223)

130
Depois de finalizada a leitura individual e as discussões sobre o livro nas Rodas
de Leitura, a proposta de renarração da trajetória de um dos três personagens – Pedro
Bala, Professor e Pirulito – ofertou aos alunos e às alunas a possibilidade de dialogar com
o enredo do personagem que mais tenha chamada a atenção. Em diálogo com as outras
professoras da série, houve a decisão democrática de que limitássemos a proposta a esses
três personagens, o que precisei respeitar como professora e pesquisadora.
A proposta era ousada: a partir do desfecho do personagem escolhido o aluno-
autor deveria assumir a autoria da adaptação da trajetória de um dos três, selecionando os
acontecimentos e as ações que julgassem mais importantes na composição narrativa. Em
todos os casos, houve uma espécie de satisfação pelo desfecho, de algum modo esperado:
Pirulito vira religioso; Professor, pintor no Rio de Janeiro; e Pedro, um líder em defesa
dos direitos dos trabalhadores.
É importante ressaltar que, na turma, catorze estudantes escolheram narrar a
perspectiva enunciativa de Professor; sete optaram por assumir o revozeamento de
Pirulito; e quatro escolheram narrar na voz de Pedro Bala. Dos sete que trabalhei na
análise dos Textos Diagnósticos, dois enunciaram na voz de Pedro Bala e cinco, na de
Professor. Desse modo, defendo a tese de que essas escolhas não foram aleatórias. A
maioria da turma afinou-se com a perspectiva de superação de Professor, que, com suas
habilidades como pintor, conseguiu estudar Belas Artes no Rio de Janeiro, tornando-se
um pintor conhecido. Outros encontraram na trajetória de Pirulito uma razão para a
renarração, tendo em vista o fato de que entrar para a igreja, diante de seu desejo, relato
ao longo do romance, construía como significado um desfecho bem-sucedido. Poucos,
porém, escolheram narrar na visão do líder de greves Pedro Bala, o que se pode analisar
como uma postura de rechaçamento do desfecho em defesa do proletariado. Nesse
sentido, avalio que a voz que chama Pedro Bala no fim do romance pode não ter afetado
tão profundamente muitos alunos e muitas alunas para a importância da função social
daqueles que lutam pela manutenção dos direitos dos trabalhadores, impedindo sua livre
exploração.
Nesse sentido, defendo que as propostas de adaptação de capítulos do livro
Capitães da Areia puderam propiciar – como experiência docente em diálogo com o viés
teórico-metodológico do universo acadêmico – o desenvolvimento do processo de
letramento crítico dos alunos e das alunas, por meio da leitura literária, travando contato
“o estrangeiro, o desigual, o excluído” (SOARES, 2004). Assim, como finalidade,
intencionei que os estudantes pudessem construir ressignificações acerca de discursos

131
pré-concebidos relacionados à população que vive em situação de abandono e miséria,
friccionando vozes mais ou menos preconceituosas para construir novos significados,
ativos e responsivos, sobre a vida atual.

TEXTO 1: Vivian
O quanto uma vivência influencia um futuro?

Quando fui um dos integrantes dos Capitães da Areia, minha vida era muito
diferente da atual. No dia em que furtei um livro de histórias, comecei a me interessar pela
leitura. A partir de então, nunca mais saí dessa caminhada. Eu era o único leitor entre os
meninos, buscando ampliar meu conhecimento. Além disso, também gostava muito de pintar
e desenhar (até hoje gosto!). Tanto que, em muitas noites, contava histórias as quais faziam
os olhos vivos dos Capitães da Areia brilharem como brilhavam as estrelas na noite da
Bahia. Além disso, era eu quem planejava os furtos naquele grupo, vivenciei alguns dias
que influenciaram o meu futuro e, entre eles, um em especial, quando recebi a melhor
proposta da vida...
Em uma manhã, Pedro Bala e eu caminhávamos pela ladeira da Bahia, um lugar
cotidianamente festivo, escondendo muitas das suas mazelas que preenchiam a vida dos
meninos abandonados, quando Pedro Bala sugeriu que eu fizesse uma pintura do local a
respeito das pessoas ali existentes: um violinista e outros. Pensei um pouco, mas, afinal,
tirei um giz do bolso e comecei a desenhar retratos, até que...
Um senhor fumando uma piteira aproximou-se de mim, elogiou minha “arte” e
ofereceu um cartão com seu endereço, propondo-me estudar com ele. Era grande chance
da minha vida! No entanto, como menino de rua, jamais acreditaria naquilo. Por isso, fiquei
na dúvida em guardar o cartão ou não, mas, ao final de tudo, joguei fora, uma ação a que
Pedro Bala se opôs, pois ele achava que o homem realmente poderia me ajudar.
Após a morte de Dora, um fato que desagradou e entristeceu muito o grupo,
tornando-o insignificante e inútil, pois era ela quem me completava trapiche, resolvi, então,
procurar o senhor da piteira, cujo endereço estava ainda na memória de Pedro Bala, para
que eu pudesse seguir para o Rio de Janeiro e tornar-me um grande pintor, reproduzindo
cenas retratadas sobre a realidade dos meninos abandonados.

132
Hoje, como adulto, percebo, por meio da minha arte, o quanto aquelas vivências
mudaram o meu trabalho, a minha essência, para que me tornasse o pintor que sou hoje.

Vivian optou por renarrar a trajetória do personagem Professor. Logo no título, a


aluna constrói um enunciado interrogativo que traça um paralelo entre uma vivência de
uma pessoa – no passado, portanto – e o seu futuro. Em seguida, no primeiro parágrafo,
o narrador e personagem Professor relembra sua experiência com os Capitães da Areia,
destacando que a leitura fez sempre parte de sua caminhada, proporcionando-lhe maior
“conhecimento”. Há, aqui, a valorização da leitura literária, uma vez que, no romance
amadiano, Professor era responsável por ler ficção literária – sobretudo as narrativas de
aventura – aos meninos do grupo, divertindo-os e fazendo seus olhos brilharem. Nesse
momento, a estrutura conotativa, por meio de uma comparação com as estrelas na noite
da Bahia, trata do brilho nos olhos dos meninos do grupo para construir significado
positivo associado à leitura propiciada pelo narrador e personagem Professor.
Em seguida, no segundo parágrafo, o enunciador remete-se a um acontecimento
marcante na vida de Professor, quando recebe uma proposta de um homem para estudar
Belas Artes no Rio de Janeiro. Quando discutimos esse capítulo em sala, alguns
estudantes demonstraram dificuldade para entender por que João José, o Professor, não
havia aceitado o convite. No romance, o menino diz a Pedro Bala: “Deixa de ser besta.
Tu bem sabe que do meio da gente só pode sair ladrão... Quem é que quer saber da gente?
Quem? Só ladrão, só ladrão...” (AMADO, [1937] 2008, p. 138). Como aquele menino
pobre poderia recusar um convite daqueles? Como defendo a dimensão ativa e responsiva
de compreensão do tecido literário, lemos e relemos fragmentos do capítulo “Manhã
como um quadro”, momento em que um enunciava uma possibilidade de interpretação ao
outro, que consentia ou rechaçava, construindo novos significados.
Desse debate na Roda de Leitura, semanas antes, do qual Vivian participou mais
como espectadora, surgiu sua adaptação. Nela, no segundo parágrafo, o emprego do termo
pronominal “suas” deixa escapar o distanciamento da enunciação em 1ª pessoa:
“escondendo muitas das suas [nossas] mazelas”. Em referência ao narrador e personagem
Professor e ao amigo Pedro Bala, o termo adequado seria o “nossas”. Entretanto, quando
trata das mazelas dos jovens abandonados, sem intenção prévia, a aluna constrói a
adaptação em distanciamento da situação narrada.

133
No terceiro parágrafo, um homem com uma piteira, tal como o narrador amadiano
constrói no romance, em 3ª pessoa, elogia o desenho de Professor. Na adaptação da aluna,
o elogio ao trabalho vem revestido de um questionamento, uma vez que há o emprego de
aspas na palavra “arte”, como se não fosse arte de verdade, já que se tratava de um
desenho no chão. Assim, depois de apresentar a recusa ao convite do homem, Professor
é confrontado com o acontecimento de maior peso na sua vida: a morte de Dora.
No quarto parágrafo, a morte da personagem Dora, por quem Professor nutria
grande sentimento, é destacada como razão para que o grupo dos Capitães da Areia seja
adjetivado como “insignificante e inútil”. Sem o enredo amoroso como pano de fundo,
Vivian assume o posicionamento de que nada mais importava para Professor nos
Capitães, o que não acontece dessa maneira na obra original. Ainda que o texto apresente
a ideia de que, como pintor, Professor representará “a realidade dos meninos
abandonados”, isso é dito de modo genérico. Não está, intencionalmente, claro que
meninos serão retratados em suas pinturas.
Defendo, assim, a tese de que, para o posicionamento ideológico da aluna, a
construção enunciativa de que Dora era o único motivo para manter Professor no trapiche
traz para sua adaptação um viés mais romântico e uma tentativa de apagamento da relação
de amizade existente entre os meninos do Capitães da Areia. Mesmo contrariando a
verossimilhança em relação à obra de Jorge Amado, Vivian opta por omitir o fato de João
José sente desejo de desistir de ir e, quando enfim escolhe partir, o faz pensando também
no grupo, determinado a retratá-los em seus quadros, no Rio de Janeiro.

TEXTO 2: Bruno
Às vezes, eu fico relembrando a minha adolescência na Bahia, minhas aventuras,
assaltos, amigos, prisões, entre tantas outras coisas que passaram repentinamente e
parecem eternas em minha memória. Admito que, apesar de certos momentos difíceis que
passei em algumas horas, a saudade aperta e sinto vontade de ver todos aqueles que
conviviam comigo, mesmo de Ezequiel eu sinto falta.
O grupo se desfez. Resolvi, então, tomar meu rumo, mas não sabia qual, já que
minha única virtude era a agilidade para praticar os assaltos, mas agora, sem meus fiéis
companheiros, eu não me sentia fortalecido o suficiente para voltar a realizar assaltos.
Muitos me contavam que meu falecido pai, o Loiro, covardemente assassinado por

134
policiais, era referência e aclamado por parte do povo por lutar corajosamente contra
opressão imposta sobre eles. Estava aí o rumo que queria.
Certa vez, lembrei-me dos relatos que faziam sobre meu pai. Estava decidido a dar
continuidade à luta pela liberdade e pelos direitos dos trabalhadores. Entrei em contato
com alguns antigos de papai e fui convidado a chefiar a organização de protestos dos
grevistas. Pensando no futuro, eu aceitei a proposta.
Com muita dor, saudade, tristeza e satisfação, deixei a Bahia. Provavelmente, meu
pai estaria cheio de orgulho de mim. Estava fazendo isso por mim, mas também por ele.
Utilizei todas as vivências de minha sofrida adolescência na Bahia para almejar um futuro
melhor e para que os assim como eu, meninos de rua, enxerguem a possibilidade de sair da
criminalidade. Hoje, tenho um trabalho digno.

Bruno assumiu o posicionamento de Pedro Bala para produzir sua adaptação. Foi
um dos quatro estudantes da sala que optaram por recontar a trajetória do líder dos
Capitães da Areia, o que vejo que, de certa maneira, coincide com sua posição discursiva
na sala de aula nas Rodas de Leitura, sempre trazendo perspectivas que os outros alunos
e as alunas não dominavam ou mesmo conheciam.
Dessa maneira, logo no início de sua narrativa, o narrador e personagem Pedro
Bala adota um tom memorialista em relação ao seu passado aventureiro com os Capitães
da Areia. Entre as lembranças, são coordenados os termos “minhas aventuras, assaltos,
amigos, prisões”, o que indica que o posicionamento com o qual o enunciador constrói
seu relato diz respeito a uma memória genuína de muito do que foi vivido – o que inclui
menção às aventuras e aos amigos, mas também aos eventos desviantes. Assim, o
narrador admite que alguns momentos foram difíceis, mas que, ainda assim, a “saudade
aperta”.
No segundo parágrafo, Pedro Bala fala sobre a saída de muitos amigos dos
Capitães da Areia. Na narrativa original, o grupo não se desfaz realmente. No entanto,
percebo que Bruno construiu a estrutura “O grupo se desfez” porque, na posição de Bala,
sem Professor, Sem-Pernas, Pirulito, Volta Seca, Gato e Dora, não havia mais o mesmo
grupo. Os desfechos dos outros componentes variam entre o suicídio e compromisso
religioso, por exemplo. Desse modo, na adaptação de Bruno, o narrador busca entender
qual seria a sua vocação para seguir novos rumos, fora dos Capitães da Areia.

135
Nesse momento, Pedro pensa em outro personagem de sua história: o pai. Embora
não o tenha conhecido, soube por João de Adão que seu pai fora “covardemente
assassinado por policiais”. A estrutura com a qual Bruno escolheu enunciar esse fato
indica que, embora se perceba a voz passiva analítica, deixando o agente “por policiais”
por último na organização sintática, há o destaque para o fato de que essa morte foi
covardemente provocada, uma vez que o pai de Pedro Bala, o Loiro, era referência, era
aclamado por lutar pelos direitos dos trabalhadores. Assim, seu assassinato constrói-se
diante da perspectiva adverbial “covardemente”. Por outro lado, percebendo que o pai
luta “corajosamente” pelo povo, Pedro encontra o rumo que deseja seguir.
Assim, Pedro Bala aceita chefiar uma organização de protestos de grevistas,
seguindo o mesmo caminho de seu pai. Na adaptação de Bruno, no último parágrafo, o
narrador afirma que essa escolha foi feita pensando em si mesmo, mas também em seu
pai, que, “provavelmente”, estaria cheio de orgulho dele.
Em seguida, a “sofrida adolescência” instiga Pedro Bala a almejar um “futuro
melhor” e um “trabalho digno”. Os termos adjetivos com os quais Bruno construiu esse
desfecho coadunam-se, de certa maneira, à perceptiva enunciada por ele em seu Texto
Diagnóstico acerca do fato de que seus pais “venceram na vida”, vindos do subúrbio e
oportunizando a ele uma condição financeira confortável.
A abstração em torno da perspectiva de vencer, do que é melhor e do que é digno
não é considerada por Bruno. Para ele, pelo que se percebe, “vencer” na vida está
relacionado a um viés econômico e, de certa maneira, meritocrático. Já a perspectiva do
futuro “melhor”, embora vaga, constrói-se pelo afastamento de Pedro Bala de uma
narrativa desviante de vida, visto que não mais praticará assaltos, mas lutará
“corajosamente”, como o pai, pelos direitos dos trabalhadores. Por isso, o julgamento de
que isso seria, enfim, um trabalho “digno”, que poderia servir de exemplo a outros
meninos de rua, que viriam nele a possibilidade de também conseguir sair da
criminalidade.
Nesse sentido, nota-se, na construção discursiva de Bruno, a adoção da
perspectiva que reforça a relação entre criminalidade e vulnerabilidade para as pessoas
em situação de rua. Seu discurso, embora parta da fricção entre a valorização da luta pelos
direitos dos trabalhadores e o abandono da prática de assaltos, endossa a viés ideológico
(VOLOCHINÓV, [1929] 2017] de que, por conta própria, se pode sair da vida desviante,
assumindo uma condição “digna”. Os vocábulos “vencer”, “melhor” e “digno”, nesse
contexto, ideologicamente, revozeam posicionamentos comuns à “gente ordeira e

136
virtuosa” (BUARQUE, 2017). No entanto, há outras vozes também na arena reproduzida
por Bruno, uma vez que a perspectiva de que a polícia pode matar “covardemente” e que
um líder grevista pode lutar “corajosamente” pelos direitos do povo está
contundentemente construída na adaptação.
Assim, a fricção por meio da qual Bruno enunciou em sala, nas Rodas de Leitura,
e nas suas produções textuais escritas diz respeito a um revozeamento, em constante
conflito, embate, de diferentes posicionamentos discursivos. Isso indica o quanto, na sua
adaptação – talvez, na sua vida – a heteroglossia dialogizada, ou seja, a dialogização das
vozes sociais (FARACO, 2010) está fortemente presente.

137
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: SOBRE AFETAÇÕES E (TRANS)FORMAÇÕES

“De punhos levantados, as crianças saúdam Pedro Bala, que parte


para mudar o destino de outras crianças.”
(AMADO, [1937] 2008, p. 261)

Cristóvam Buarque, em seu artigo publicado no O Globo, em 2000, afirma: “A


sociedade brasileira, em sua maldita apartação, foi obrigada a criar palavras que
distinguem cada criança conforme sua classe, sua função e sua casta.” (grifo meu). Por
não me poder calar diante dessa realidade partida, é que defendi, ao longo da minha
pesquisa, a tese de que os alunos e as alunas com os quais trabalhei a leitura literária
dialógica da obra Capitães da Areia poderiam assumir o compromisso de construir novos
significados para a vida social contemporânea, enxergando nosso cronotopo (BAKHTIN,
[1975] 2010) – em 2018, na realidade do colégio de classe média alta em que desenvolvi
a pesquisa – de modo menos preconceituoso, mais humano e humanizador – mais
delicado, enfim.
Nesse sentido, o desfecho de Pedro Bala – que assume como destino a tarefa de
mudar o futuro de outras crianças desvalidas – suscita a possibilidade de inspirar como
desejo nos adolescentes de classe média alta, com os quais trabalhei, a problematização
das assimetrias na sociedade. Ainda que essa resistência a calcificações, essencializações
discursivas aconteça, inicialmente, por meio da recusa aos estereótipos relacionados à
criminalização da pobreza, entendo que é preciso acreditar que a leitura literária pode
propiciar um significativo processo de letramento literário crítico, ofertando aos alunos-
leitores novos caminhos para compreender o mundo atual.
Para isso, se a escolha da obra Capitães da Areia – inspirando debates nas Rodas
de Leituras, suscitando a produção de materiais didáticos que dialogassem com o tema,
servindo de temática para as produções textuais escritas e orais – foi feita pelo corpo
docente, e não pelos estudantes, a minha defesa nesta Dissertação foi por um processo
de leitura discente ativa e responsiva (BAKHTIN, [1920-24] 2010), permeada pela
fricção entre os discursos pré-concebidos com os quais, de modo geral, chegaram à sala
de aula, os discursos jornalísticos, literários, artísticos, enfim, com os quais dialogamos,
a fim de que, de modo responsável, produzissem seus próprios enunciados acerca da
realidade de menores desassistidos e, por vezes, infratores.

138
Essa postura discente autoral foi estimulada em todos os debates nas Rodas de
Leitura, mas, sobretudo, nas propostas de adaptações de capítulos do romance amadiano.
Com essas propostas, por meio da transposição do discurso da 3ª para a 1ª pessoa,
intencionei que cada estudante pudesse colocar-se no lugar social de um menor do grupo
dos Capitães da Areia, a fim de mergulhar profundamente em seus dramas, para tentar
sentir discursivamente o peso do abandono, da miséria, da violência, da indiferença e da
repressão do Estado. Que linguagem, portanto, se pode aprender, se essas são as únicas
com as quais foi viável (sobre)viver?
Desse modo, foi urgente considerar o crescimento de vozes conservadoras, como
as que elegeram o atual presidente da República, para não ignorar o fato de que o discurso
de culpabilização de menores em situação de criminalidade interessa a muitos, que podem
defender que, se a polícia não os pode prender, é preciso que se faça justiça com as
próprias mãos (cf. notícia propagada na Introdução). Nesse sentido, resistir a esses
posicionamentos ideológicos por meio de uma pesquisa ancorada na Linguística Aplicada
INdiscplinar é entender que é possível agir em um campo de forças plurais, contrárias à
imposição de certezas e engessamentos, a fim de estabelecer novas relações discursivas,
afinadas com uma sociedade mais humana. É preciso, pois, reconhecer a complexidade
da trama movente em que vivemos (FABRÍCIO, 2006), visando a garantir um mundo
mais delicado para todos e todas.
Assim, por acreditar no tempo da delicadeza (BUARQUE, 1987), a minha luta
por uma educação transformadora acontece, também, na sala de aula, todos os dias, em
cada postura docente que assumo como sendo necessariamente responsável e responsiva
(SZUNDY, 2014), como em cada escolha que fiz durante o processo de pesquisa. É por
isso que esta Dissertação nasce de uma dimensão plurivocal, heteroglóssica. Muitos
teóricos falam comigo em cada página deste trabalho; entretanto, falam comigo,
sobretudo, meus alunos e minhas alunas, que decidiram contribuir com a realização desta
investigação, emprestando-me suas vozes, em um constante revozear de tantas outras
vozes, propagadas pelos seus familiares, pela “mídia empresarial” (FRIGOTTO, 2018),
enfim, pelas pessoas com e por quem falam.
Nessa direção, cabe, agora, retomar minhas questões de pesquisa:
I. De que modo a leitura literária dialógica e a produção discursiva dos estudantes, por
meio da transposição do foco narrativo da obra trabalhada e dos debates em sala de
aula, possibilitaram aos alunos e às alunas a aproximação das vozes sociais daqueles
que são cotidianamente silenciados, ressignificando discursos pré-concebidos?

139
II. Do lugar social ocupado pelos alunos e pelas alunas da escola em que atuo, como foi
possível contestar discursos hegemônicos, encaminhando-os para uma trajetória mais
questionadora e ética?

III. Em tempos de grande conservadorismo – também, das camadas sociais de elite –


como o trabalho com a literatura numa perspectiva sócio-histórica pôde contribuir para
a percepção de que a ideologia se materializa em todas as nossas ações, não sendo
procedente a acusação de que a abordagem de temas sociais como o aqui enfocado
constitui “doutrinação de esquerda”?

Para buscar entender as proposições que fiz, recorro aos capítulos teórico-
metodológicos construídos e ao capítulo analítico, conforme retomarei a seguir.
No primeiro capítulo teórico, intitulado Entre (des)aprendizagens e resistências:
por uma educação literária dialógica, recorro a autores do campo da Educação – o que
inclui os estudiosos acerca do ensino de literatura –, das Ciências Sociais e da Linguística
Aplicada INdisciplinar, a fim de construir compreensões sobre o momento do Brasil atual.
Para isso, dialogo com Paulo Freire, a fim de defender a escola como espaço para alunos-
sujeitos, e não alunos-objetos, meros reprodutores. Por essa razão, exatamente me opondo
ao emudecimento discente e à perspectiva de mera reprodução de listas de conteúdos,
oponho-me veementemente à possibilidade de uma sala de aula neutra, isenta de
posicionamentos – de estudantes ou de professores. Assim, como educadora que sou, com
a voz de quem vive cotidianamente o chão da sala de aula, declino energicamente
qualquer possibilidade de implementação de projetos como o Escola Sem Partido – o
qual, em verdade, se trata de escola com um partido único, conforme discutido
anterioremente.
No segundo capítulo teórico, A leitura dialógica da obra Capitães da Areia,
discorri propriamente sobre o ensino de literatura numa perspectiva dialógica e
ideológica, uma vez que a leitura literária é fecunda ao processo de desenvolvimento do
letramento crítico, o que envolve, necessariamente, a agentividade, a responsividade e a
responsabilidade do sujeito-leitor. Desse modo, busquei dialogar, sobretudo, com os
teóricos do Círculo de Bakhtin para entender como processos como o dialogismo, a
exotopia e a heteroglossia, entre outros, podem relacionar-se com a experiência da leitura
literária.

140
Já no terceiro capítulo, Posicionamento metodológico: ação, interpretação e
intervenção, apresentei encaminhamentos metodológicos com os quais operacionalizei
ao longo da pesquisa. Para tanto, tratei da Linguística Aplicada também como campo
teórico-metodológico, em que as certezas oriundas de processos de pesquisa são
substituídas por uma atitude problematizadora, questionadora, INdisciplinar. Desse
modo, em um percurso híbrido, tracei diálogo com teóricos defensores do paradigma
qualitativo interpretativista de pesquisa, com foco em um cunho etnográfico
intervencionista. Assim, busquei apresentar o caminho de investigação com o qual me
afinei, advogando que os discursos não fossem vistos como meros reprodutores da
realidade, mas que, por meio deles, em um processo contínuo, nossa realidade possa ser
interpretada e reinterpretada. Desse modo, o processo de análise validado para o
tratamento dos meus dados foi a Análise Dialógica do Discurso (ADD), base
epistemológica do Círculo de Bakhtin.
Ainda no capítulo em que me posicionei metodologicamente, busquei apresentar
meu contexto de pesquisa e o planejamento das atividades previstas para o trabalho com
o livro Capitães da Areia, que culminariam na proposição de propostas de adaptação de
capítulos do romance, visando à criação autoral dos estudantes. Além disso, discorri,
também, sobre os participantes da pesquisa, momento em que me incluí como
pesquisadora-participante. Por essa razão, desse processo de planejamento,
experienciação dialógica das propostas, em sala, em constante debate com os estudantes,
percebo que se (trans)formou aqui uma pesquisadora, ativa, interventiva, que precisou
desconfiar de qualquer dado que aparece de modo pronto, como resultado fechado em si
mesmo. Sinto-me agora, diante de todo o processo dialógico, desejosa de mais vivências
que me permitam estabelecer pontes, interações entre a sala de aula da Educação Básica
e a Pós-Graduação no Ensino Superior. Somente assim, percebo, é possível efetivamente
criar possibilidades de resistência aos discursos educacionais homogeneizadores,
presentes em cartilhas, materiais didáticos unificados e documentos reguladores para a
educação com peso de lei – como a recente Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Diante disso, considero que, no capítulo analítico, operacionalizei conceitos de
base teórico-metodológica, a fim de compreender como o processo de leitura e,
consequentemente, de produção discursiva discente poderia, por meio da transposição do
foco narrativo, estimular que os estudantes exercessem ativamente a responsabilidade de
reposicionarem-se no lugar social de menores desassistidos e infratores, da obra
amadiana, a fim de compreender sua realidade, para além da culpabilização e da

141
criminalização. Dessa maneira, iniciei o processo com o Texto Diagnóstico, para o qual
não seria atribuída nota alguma, o que deixou os alunos e as alunas livres para construir
seus posicionamentos socioideológicos. Como eu supunha, nesse momento, notei que os
discursos ventilavam vozes hegemônicas, pouco questionadoras, que atribuíam à
existência de pessoas em situação de rua o perigo, a violência e, consequentemente, a
causa para o medo.
Avalio que o processo de produção desses discursos ocorreu em um ambiente
favorável ao livre posicionamento, uma vez que uma aluna se sentiu à vontade para
questionar por que um problema que era de outras pessoas tinha de transformar-se em um
problema dela (devido ao aumento da violência nas ruas). Esse ambiente aberto ao debate,
ao conflito e à pluralidade de vozes ocorreu nas Rodas de Leitura, nos debates sobre textos
do livro ou sobre textos que dialogavam com a obra amadiana, o que avalio que aconteceu
de modo satisfatório, considerando o ritmo acelerado de conteúdos a ministrar na escola
em que realizei a pesquisa. Como todas as turmas precisam fazer prova única e estar,
relativamente, em um mesmo ponto da matéria, abrir espaço para essas discussões foi
uma opção arriscada diante da minha condição de professora de escola particular; no
entanto, penso que essa liberdade, de algum modo, foi a mim ofertada e eu tive o desafio
de administrar os percalços no caminho.
Além das minhas expectativas, deparei-me, também, com discursos anti-
hegemônicos, que não viam nas crianças e nos adolescentes de rua potenciais criminosos;
pelo contrário, houve uma produção discursiva em que menores desassistidos foram
chamados de amigos. Entendo, assim, que a pesquisa permitiu a mim, como ser humano,
o encontro e o confronto com as minhas, também, verdades pré-concebidas, uma vez que,
como professora da escola há quase seis anos, acreditei que conheceria o viés ideológico
dos integrantes do grupo focal da minha pesquisa, dando-o, em certo momento, como
pronto. Felizmente, a pesquisa com seres humanos, na perspectiva da Análise Dialógica
do Discurso (ADD), leva-nos a outro lugar, a outra dimensão como pesquisador. Sinto-
me uma pesquisadora mais humana e interessada na interpretação dos dizeres ativos, e
não na descoberta das respostas que esperava encontrar.
Em seguida, quando analisei as adaptações dos estudantes, entendi que as adesões
e as resistências às próprias exigências da proposta, no que se refere à estrutura narrativa
tradicional, por exemplo, diziam muito a respeito do posicionamento autoral dos
estudantes. Além disso, percebi fricções, embates discursivos em um mesmo texto, uma
vez que existia uma recomendação, uma espécie de “cartilha” a seguir, que culminaria

142
em uma nota – o que no contexto do colégio em que pesquisei, conforme já mencionei,
tornava, muitas vezes, o processo tenso e adestrado.
Entretanto, apesar das amarras das propostas, fui observando as escolhas lexicais
em consonância ou dissonância com o tecido ficcional amadiano, momento em que os
estudantes se colocavam ativamente na adaptação. Isso ficou bastante evidente no texto
em que uma aluna escreveu, depois do reencontro entre Pedro Bala e Dora, uma ácida
proposição de que aquela alegria duraria pouco. Essa escrita final ultrapassava a proposta,
porque tocava em um acontecimento de um outro capítulo, o que poderia, portanto, ser
mal avaliado para efeito de nota. No entanto, em uma postura ativa e responsiva, a aluna
selecionou aquela sugestão de desfecho mais trágico, porque, para ela, o final não poderia
ser tão feliz assim. Como menores infratores, depois de apreendidos e enviados para um
reformatório e para um orfanato poderiam escapar e tudo ficaria bem? Para ela, esse “final
feliz” não bastou diante agentividade de sua visão autoral na adaptação dos capítulos.
Assim, por todos os atravessamentos sofridos, entendo que a pesquisa, talvez, não
tenha tocado tão abertamente, sobretudo, na questão mais ampla da disputa política
vivenciada pelo país em 2018. Durante a análise da carta do padre José Pedro, um aluno
perguntou-me se poderia mencionar que o padre fora chamado de comunista durante um
determinado capítulo do romance. Ele me fez essa pergunta de modo extremamente
constrangido, quase sem conseguir pronunciar a palavra “comunista”, a qual eu respondi
em altura e clareza. Disse-lhe que sim, ele deveria afirmar tudo o que quisesse, porque a
análise, no seminário, era autoral. O menino assim o fez, ainda um pouco constrangido,
mas a problematização não passou muito disso.
Em uma das aulas, um aluno fez o sinal da “arminha”, símbolo da campanha
Bolsonaro. Inverti a mão, transformando em “L”, perguntando-lhe o que aquilo
significava no nosso contexto de sala de aula – não estávamos trabalhando com o livro;
tratava-se de uma aula de sintaxe. Em outra ponta da sala, um aluno respondeu “Lula
Livre” e eu perguntei à turma se, em um caso ou no outro, era o momento para aquele
posicionamento, tendo em vista que não estávamos em uma aula mais aberta àquele
debate. Tratava-se de um momento mais voltado para o quadro, as orações e a resolução
de exercícios. Desse modo, a discussão não foi adiante.
Em outro momento, quando estávamos na véspera do segundo turno, uma aluna
da turma estava com um adesivo do candidato do PT, Fernando Haddad, escondido por
um casaco. Outro aluno, sorrindo, tirou da bolsa, mais para o fim da aula, uma camisa
verde-e-amarela, com dizeres da campanha bolsonarista. Como o menino logo guardou a

143
camisa, eu não me pronunciei. De algum modo, meu silenciamento falava comigo,
respondendo a possíveis ameaças de estudantes envolvidos com a ideologia do Escola
Sem Partido. Minha coragem e minha postura agentiva, responsiva, porém, estiveram
constantemente comigo no trabalho com a obra amadiana, momento em que não surgiu
propriamente um debate aberto sobre esquerda ou direita.
De todo o processo de investigação, ergue-se aqui, por fim, uma pesquisadora em
estado de afetação e (trans)formação, que assume como compromisso revozear os tantos
autores com os quais interagi, dentro e fora da sala de aula da Educação Básica. Eis aqui,
companheiros e companheiras, uma educadora em postura ativa, empunhando livros em
defesa de uma prática pedagógica agentiva, que desperte em todos e todas a
responsabilidade pelo direito ao sonho, pelo direito a uma sala de aula humana,
democrática, dialógica e delicada.

144
7. REFERÊNCIAS

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152
8. ANEXOS

ANEXO 1

DE QUEM SÃO OS MENINOS DE RUA?


Eu, na rua, com pressa, e o menino segurou no meu braço, falou qualquer coisa
que não entendi. Fui logo dizendo que não tinha, certa de que ele estava pedindo dinheiro.
Não estava. Queria saber a hora.
Talvez não fosse um Menino de Família, mas também não era um Menino de
Rua. É assim que a gente divide: Menino de Família é aquele bem vestido, com tênis da
moda e camiseta de marca, que usa relógio e a mãe dá outro se o dele for roubado por um
Menino de Rua. Menino de Rua é aquele que quando a gente passa perto segura a bolsa
com força porque pensa que ele é pivete, trombadinha, ladrão.
Ouvindo essas expressões tem-se a impressão de que as coisas se passam muito
naturalmente, uns nascendo de Família, outros nascendo de Rua. Como se a rua, e não
uma família, não um pai e uma mãe, ou mesmo apenas uma mãe os tivesse gerado, sendo
eles filhos diretos dos paralelepípedos e das calçadas, diferentes, portanto, das outras
crianças, e excluídos das preocupações que temos com elas. É por isso que se vemos uma
criança bem vestida chorando sozinha num shopping center ou num supermercado, logo
nós a cercamos, protetores, perguntando se está perdida, ou precisando de alguma coisa.
Mas se vemos uma criança maltrapilha chorando num sinal com uma caixa de chicletes
na mão, engrenamos a primeira no carro e nos afastamos pensando vagamente no seu
abandono.
Na verdade, não existem meninos de Rua. Existem meninos na Rua. E toda vez
que um menino está na rua é porque alguém o botou lá. Os meninos não vão sozinhos aos
lugares. Assim como são postos no mundo, durante muitos anos também são postos onde
quer que estejam. Resta ver quem os põe na rua e por quê.
Quando eu era criança, ouvi contar muitas vezes a história de João e Maria, dois
irmãos, filhos de pobres lenhadores, em cuja casa a fome chegou a um ponto em que, não
havendo mais comida nenhuma, foram levados pelo pai ao bosque e ali abandonados.
Não creio que os 7 milhões de crianças brasileiras abandonadas conheçam a história de
João e Maria. Se conhecessem, talvez nem vissem a semelhança, pois João e Maria tinham
uma casa de verdade, um casal de pais, roupas e sapatos. João e Maria tinham começado
a vida como Meninos de Família, e pelas mãos do pai foram levados ao abandono.

153
Quem leva nossas crianças ao abandono? Quando dizemos “crianças
abandonadas” subentendemos que foram abandonadas pela família, pelos pais. E embora
penalizados, circunscrevemos o problema ao âmbito familiar, de uma família gigantesca
e generalizada, à qual não pertencemos, e com a qual não queremos nos meter.
Apaziguamos assim nossa consciência, enquanto tratamos, isto sim, de cuidar
amorosamente de nossos próprios filhos, aqueles que “nos pertencem”.
Mas, embora uma criança possa ser abandonada pelos pais, ou duas ou dez
crianças possam ser abandonadas pela família, 7 milhões de crianças só podem ser
abandonadas pela coletividade. Até recentemente, tínhamos o direito de atribuir esse
abandono ao governo e responsabilizá-lo. Mas em tempos de Nova República, quando
queremos que os cidadãos sejam o governo, já não podemos passar adiante a
responsabilidade.
A hora chegou, portanto, de irmos ao bosque, buscar as crianças brasileiras que
ali foram deixadas.

COLASANTI, M. Revista Manchete. 1986.

154
ANEXO 2

OS NOMES DA CRIANÇA
Para um habitante de cidade brasileira, todas as árvores de uma floresta são apenas
mato, sem distinção entre elas. Os habitantes do deserto, ao contrário, têm nomes
diferentes para se referir à areia. Da mesma forma, os esquimós têm diversos nomes para
indicar aquilo que, para nós, é apenas neve.
Cada povo desenvolve sua cultura, com palavras distintas, para diferenciar as
sutilezas do seu ao-redor, como forma de sobreviver mais facilmente e usufruir
esteticamente. A riqueza de uma cultura se mede pelo número de palavras usadas para
definir o meio ao redor. Quanto mais palavras distinguindo as coisas, em detalhes
imperceptíveis para os demais, mais rica é a cultura.
Os brasileiros urbanos também desenvolveram, em sua cultura, nomes diferentes
para dizer o que entre outros povos teria um nome apenas: criança.
Em suas cidades, os brasileiros do começo do século XXI têm muitas maneiras
para dizer criança com sutis diferenças manifestadas em cada palavra. É a riqueza
cultural, manifesta num rico vocabulário, que mostra a degradação moral de uma
sociedade que trata suas crianças como se não fossem apenas crianças. O português falado
no Brasil é certamente o mais rico e o mais imoral dos idiomas do mundo atual, no que
se refere à definição de criança.
(...)
Delinquente, infrator, avião, pivete, trombadinha, menor, pixote. Sete nomes para
o conjunto das relações de nossas crianças com o crime. Cada qual com sua maldita
sutileza, de acordo com o artigo do Código Penal em que é enquadrado, com a maneira
de abordar suas vítimas ou com o crime ao qual se dedica.
Pode também, no lugar de criança, ser boy, engraxate, menino-do-lixo, reciclador-
infantil, conforme o trabalho que faz.
(...)
Como resumo de todos estes tristes verbetes, há também criança-triste, como um
verbete adicional. Não pela tristeza de um brinquedo quebrado, de uma palmada ou
reprimenda recebida, nem da perda de um ente querido. No Brasil, há um tipo de criança
que não apenas fica ou está triste; criança que nasce e vive triste, cujo primeiro choro
mais parece um lamento do futuro que ainda não prevê do que a inspiração do ar em que
vai viver, que por primeira vez recebe em seus diminutos pulmões.

155
Criança-triste como substantivo e não adjetivo, como estado permanente de vida
- esta talvez seja a maior das vergonhas no vocabulário da realidade social brasileira. Tal
e qual a maior vergonha da realidade política está na falta de tristeza nos corações de
nossas autoridades diante da tristeza das crianças brasileiras, com as sutis diversidades de
suas posições sociais, refletidas no vocabulário que indica os nomes da criança.
(...)
Quem sabe será preciso que um dia chegue ao Governo uma das crianças-tristes
de hoje, para que o Brasil faça arcaicas as palavras que hoje enriquecem o triste
vocabulário brasileiro, construindo um dicionário onde criança seja apenas criança, sem
nomes diferentes como, para o poeta, uma rosa é uma rosa.

BUARQUE, C. http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0121.html
Acesso em 26.02.2018.

156
ANEXO 3

QUANTO CUSTA SEU FILHO?


Um dos maiores disparates sociais brasileiros, divulgado na semana passada, custa
R$ 7.000 por mês. Poucas cifras revelam com tanta precisão o desperdício de recursos
públicos -e o perigo das ruas.
Um estudo da Secretaria Nacional de Direitos Humanos informou que o custo para
manter uma criança ou adolescente infrator internado chega, em alguns Estados, até a R$
7.000 mensais. Essa quantia seria suficiente para manter um jovem em uma escola de
elite suíça.
O gasto médio no país, de acordo com o estudo, é de R$ 4.000, aproximadamente
quatro vezes o valor de uma mensalidade nas melhores escolas de ensino médio do Brasil.
Dinheiro que, muitas vezes, é jogado fora. A taxa de reincidência é alta e, pior,
frequentemente a internação serve de estágio de aperfeiçoamento "profissional" no crime.
Um dispêndio de R$ 7.000 é muito alto? A verdade dura de dizer e incômoda de
ouvir é que ainda é pouco para recuperar um jovem contaminado pela delinquência.
Faça as contas.
Pais de classe média alta sabem como sai caro tratar corretamente um filho com
dificuldade de aprendizado, mesmo suave: além de mensalidade escolar, exigem-se
professores particulares, psicólogos ou psicopedagogos. Levando em conta todas as
despesas educacionais – incluindo, por exemplo, material didático, livros, aulas de inglês
–, o gasto final ultrapassa R$ 3.000 mensais.
Se o adolescente tiver associados à deficiência de aprendizado problemas de
depressão ou decorrentes do consumo de drogas, demandando uma terapia mais intensa,
o dispêndio facilmente atingirá os R$ 4.000.
Existem mais valores embutidos nessa soma. Crianças e adolescentes de classe
média desfrutam de museus, teatros, cinemas, livros, exposições, o que, obviamente, não
é de graça. Há também um valor inestimável e, claro, um dos mais importantes: o apoio
da família, que os ajuda a desenvolver um projeto de vida.
Imagine, então, a dificuldade de recuperar um jovem de baixa escolaridade,
contaminado pelas drogas, filho de uma família desestruturada, que vive em comunidades
onde os traficantes são heróis e os policiais são corruptos e onde, além disso, impera o
desemprego.

157
Vivemos numa sociedade que já começa a exigir de faxineiros um diploma de
segundo grau (e sem exagero) e que, ao mesmo tempo, oferece a um professor
universitário em início de carreira menos de R$ 3.000 mensais. Em contrapartida, um
iniciante no tráfico consegue faturar, por mês, R$ 1.500 numa favela do Rio de Janeiro
ou de São Paulo.
A verdade – que, mais uma vez, quase ninguém gosta de reconhecer – é que,
exceções à parte, não existem recursos suficientes para recuperar adequadamente jovens
depois de determinado estágio de delinquência, tantos são os focos a serem atacados ao
mesmo tempo. A sociedade trata de exterminá-los -seja pelo homicídio, seja pelas
doenças- do jeito mais "barato".
Dois dias depois da divulgação do estudo da Secretaria Nacional de Direitos
Humanos, divulgou-se, com mais precisão, o tamanho do problema. Um documento do
Unicef informou que, dos 21 milhões de jovens brasileiros de 12 a 17 anos, 8 milhões
(38%) vivem em áreas de risco.
Eis a matemática do terror infanto-juvenil: 1,3 milhão de jovens, entre aqueles 8
milhões, são analfabetos ou semianalfabetos; 3 milhões deles não estão na escola; 2
milhões, que estão na faixa etária de dez a 14 anos, estudam e trabalham; 3,2 milhões,
com idades entre 15 e 17 anos, somente trabalham. Aí estão os candidatos a viver na
fronteira da irreversibilidade.
DIMENSTEIN, G.www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/gilberto/gd161202.htm. Acesso em
03.02.2018.

158
ANEXO 4

159
160
161

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