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Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
Rio de Janeiro
Março de 2016
Marcel Alvaro de Amorim
Rio de Janeiro
Março de 2016
A524d Amorim, Marcel Alvaro de
Da tradução/adaptação como prática transcultural: um olhar
sobre o Hamlet em terras estrangeiras / Marcel Alvaro de
Amorim. — Rio de Janeiro: UFRJ, 2016.
183 f.; 30 cm
Bibliografia: 165-175
CDD 791.43
DEDICATÓRIA
Aos meus pais, Rosângela e Sinésio Amorim (in memoriam), que, mais do que apenas
por terem me dado o privilégio da vida, me ensinaram que o único caminho para aproveitar
tudo que ela poderia me favorecer era o estudo. Aos meus irmãos, Franciele e Fábio, e
sobrinhos, Larissa, Vitor e Miguel, por me aturarem e, principalmente, por demonstrarem, das
mais diversas formas, que acreditam em mim.
À Marlene Soares do Santos, que, nos últimos quatro anos, ampliou sobremaneira a
percepção que construí sobre William Shakespeare a partir de aulas, textos, trabalhos e
conversas de corredor. Agradeço por ter me recebido em suas aulas, em sua casa, por ter
confiado a mim seus livros e conhecimentos e, acima de tudo, por ter me mostrado que certo
rigor é essencial na construção de uma pesquisa como esta.
A Luiz Barros Montez, que, desde a banca de seleção de meu ingresso ao doutorado,
apoiou ilimitadamente o desenvolvimento desta pesquisa, sempre com apontamentos
necessários e questionamentos desestabilizadores que fizeram esta Tese ir adiante e se
transformar no texto que agora defendo. Agradeço também pelas palavras amigas e de
incentivo ao longo desses quatro anos de encontros pelos corredores.
Aos professores suplentes na banca de arguição desta Tese, Kátia Carvalho da Silva e
Henrique Fortuna Cairus. Agradeço a Kátia, sempre gentil, amiga e solícita, desde nosso
primeiro encontro, quando eu ainda cursava o Mestrado. Agradeço também ao Henrique, que,
apesar dos poucos momentos de contato, sempre transpareceu profissionalismo e dedicação
que inspira a muitos graduandos e pós-graduandos da Faculdade de Letras da UFRJ.
Às minhas amigas Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt, Adriana Gonçalves da Silva e
Luciana Leitão da Silva. Ana, já te disse antes e aqui repito que você é, sem dúvida, um
exemplo para minha vida; além de pessoa íntegra, gentil e amiga, é uma pesquisadora
corajosa e de vanguarda. O Doutorado acabou, mas nossa amizade e parceria continua para
sempre! Adriana, não sei o que seria de mim sem você! Amizade que dura desde dois mil e
quatro e com a qual sei que posso contar em todas as horas, em todos os tempos. Obrigado
por todo o carinho e paciência. Seja em Niterói, Barra Mansa, Volta Redonda, na Argentina
ou na Dinamarca, estaremos juntos para o que der e vier. Luciana, você é, talvez, o presente
mais valioso que a UFRJ me deu. Amiga de Mestrado, Doutorado, de confidências e de vida,
como você mesma disse em sua Tese, “somos a maior prova de que a distância não
enfraquece amizades.” Obrigado pela paciência em me escutar, ler e, além disso, por ter
aprendido que seu amigo é um pouco devagar e precisa que pacientemente mostrem a ele em
que pasta os textos estão...
A Edson Pedroso, que acompanhou mais próximo que todos o desenvolvimento final
desta Tese, me dando força nos momentos de exaustão e me incentivando durante todo o
período final de escrita, estando sempre presente com palavras de carinho e conforto.
APRESENTAÇÃO 17
NOTA AO LEITOR
O episódio relatado nos diz muito sobre o alcance dos escritos de Shakespeare em
diferentes momentos e localidades geográficas: ao sublinhar uma passagem com versos
como “Cowards die many times before their deaths:/ The valiant never taste of death but
once”, Mandela estava não somente celebrando o gênio do autor inglês, mas também
expressando, pelas palavras de um outro por quem nutria certa admiração, os seus ideais e
o que esperava do movimento revolucionário em seu país. Dessa forma, nas páginas da The
1
SHAKESPEARE, William. Julius Caesar. Edited by Marvin Spevack. The New Cambridge Shakespeare.
Cambridge: Cambridge University Press, [1988] 2003.
2
“More generally, the play’s latent refusal to stay in one setting, genre, language, nation, character-position
or historical juncture is one reason why Shakespeare continues to be popular.” [Todas as traduções de textos
teóricos apresentadas ao longo desta Tese são de minha autoria].
3
Mais informações sobre a história por trás da The Robben Island Bible podem ser encontradas no endereço
eletrônico <http://edition.cnn.com/2013/12/06/world/the-smuggled-shakespeare-book/>.
18
Para o mundo, no entanto, esse episódio compõe mais do que uma expressão de
ideais e esperanças em relação ao movimento revolucionário sul africano: constitui a
própria construção de um herói do Antiapartheid a partir da leitura do texto dramático
shakespeariano. O dito sobre a coragem, enunciado na peça pelo próprio Julio César e
sublinhado na The Robben Island Bible por Mandela, parece, de certo modo, propício à
descrição simbólica de um homem que, futuramente, conduziria sua nação através de um
difícil período de transição. No entanto, a nós pode parecer irônico o fato de que Mandela
parece se identificar com uma passagem proferida na tragédia por um governante
tradicionalmente compreendido como opressor4. Porém, atentando para o enredo do drama,
podemos perceber que a leitura do ex-presidente africano parece focar no seguinte
contexto: a existência de uma figura política num ambiente hostil, tendo sua vida
continuamente ameaçada das mais diversas maneiras, de modo semelhante ao contexto
vivenciado por Mandela na prisão, em Robben Island.
4
Na tragédia shakespeariana, Julio César é um ditador romano morto como resultado de conspiração
construída por, dentre outros, Marco Bruto e Cássio. Esses, mesmo sem provas contundentes sobre o mal que
César poderia cometer contra o povo de Roma caso coroado imperador, afirmam agir de forma preventiva em
nome da população, a classe oprimida do império.
5
Nesta Tese, seguindo os princípios epistemológicos construídos a partir de uma teoria da adaptação de base
intertextual e dialógica, utilizarei termos como recriação, reconstrução, contestação, além de outros como
ressignificação e refratação na tentativa de demarcar o caráter não estável e dinâmico dos significados
construídos nas mais diversas práticas sociais.
19
para o Teatro da Restauração começam a ter lugar menos de cem anos após sua morte6 –,
mas também nas mais variadas mídias, dos quadrinhos ao Cinema.
A escolha de Hamlet me parece natural, uma vez que essa peça tem atraído, desde o
nascimento da chamada Sétima Arte, olhares diversos dos mais diferentes países. À guisa
de exemplificação, enfocando somente algumas produções das décadas de 1960 e 1970 –
período histórico de produção dos filmes que compõe o corpus desta Tese –, encontramos
um Hamlet japonês personificado em Homem mau dorme bem (悪い奴ほどよく眠る,
Warui yatsu hodo yoku nemuru, 1960) de Akira Kurosawa; um Hamlet russo, construído
em Hamlet (Гамлет, Gamlet, 1964), de Grigori Kozintsev; e dois Hamlet brasileiros,
encontrados em A Herança (1970), de Ozualdo Candeias, e O Jogo da Vida e da Morte
6
Apenas para sinalizar algumas das adaptações teatrais das peças de Shakespeare na Restauração Inglesa,
cito as famosas Tudo por Amor (All for Love, or The World Well Lost, 1671), de John Dryden (1631-1700),
uma adaptação de Antonio e Cleópatra (Antony and Cleopatra, 1606) que concentra-se nos momentos finais
dos heróis da trama, e as adaptações de Nahum Tate (1652-1715), muito populares durante o período, como
A História de Rei Lear (The History of King Lear, 1681), que teve seu final alterado para apresentar uma
conclusão feliz ao enredo, e A Ingratidão de uma Nação (The Ingratitude of a Commonwealth, 1682), uma
versão da peça Coriolano (Coriolanus, 1607) que se inseria na situação política inglesa de então, sobretudo
no debate entre os partidos Tory, pró-monárquico, e Whig, partido de oposição de aspirações republicanas.
7
Jan Kott ([1961] 2003) difundiu as bases para um pensar da obra de William Shakespeare como objeto
atemporal, uma vez que, para o autor, Shakespeare sempre será “nosso contemporâneo”. Já Harold Bloom
(1999, p. 10) apresenta-nos o trabalho de Shakespeare, e o próprio bardo, como universal, isto é, como
principal centro do cânone literário, sendo atemporal e possuindo consciência secular.
8
Nesta Tese, uso como referência principal a edição conflacionada de Hamlet editada por Philip Edwards
para a coleção The New Cambridge Shakespeare, da Cambridge University Press. As edições das três versões
da peça (primeiro e segundo in-quarto e fólio) da coleção The Arden Shakespeare, editadas por Ann
Thomson e Neil Taylor, são também consultadas para fins de cotejo textual, quando necessário.
20
(1971), de Mario Kuperman. Em dois dos principais países anglófonos, no mesmo período,
John Gielgud produz seu Hamlet (1964), nos Estados Unidos, como fazem Tony
Richardson e Peter Wood (1969 e 1970, respectivamente) em terras britânicas. Aqui,
direciono meu foco para as duas adaptações brasileiras mencionadas, pelo fato de que elas
se enquadram no recorte pretendido pela pesquisa delineada: a investigação do Hamlet em
tradução/adaptação em territórios estrangeiros, isto é, espaços sócio-histórico-culturais
diversos; no caso, um país da América do Sul, localizado em continente e hemisfério
diferentes do contexto de produção e recepção iniciais da obra de partida.
Acerca da popularidade da peça, Julie Sanders (2006, p. 52) chama atenção para o
fato de que Hamlet tem sido, juntamente a Otelo (Othello, 1603) e A tempestade (The
Tempest, 1611), uma das mais adaptadas peças shakespearianas para o cinema. Em
levantamento realizado por Kenneth S. Rothwell ([1999] 2004), até o ano de 2004, mais de
quarenta e três adaptações do drama protagonizado pelo príncipe dinamarquês haviam sido
produzidas em países diversos e realizadas em versões para crianças, jovens e adultos. Neil
Taylor (1994, p. 180) nos lembra ainda da existência de mais de noventa filmes que, até a
primeira metade da década de 1990, faziam ao menos alusões àquela peça. Com efeito,
Hamlet tem sido utilizada muitas vezes para que possamos falar de nosso próprio tempo,
dentro dos mais diferentes contextos de adaptação. Em especial, ressalto aqui que o caráter
político e, consequentemente, social da peça tem sido destacado por diversos filmes, em
específico aqueles que fazem parte do corpus desta pesquisa, sendo seu enredo utilizado
largamente pela cinematografia mundial, para que as audiências contemporâneas possam
assistir na tela a uma história sobre sua própria realidade social e política, ainda que
ressignificada pelas lentes do dramaturgo elisabetano.
9
“(...) is inescapably political, as novelists, poets, essayists, dramatists and critics, consciously or
inadvertently, have shown over the last two centuries.”
10
“(…) dramatizes different models of kingship and succession, and interrogates past, present and potential
occupants of the Danish throne.”
21
ponto de partida para diretores que pretendem, através dos escritos de Shakespeare, lançar
um olhar sobre a sociedade em que se inserem, sobretudo para as questões sociopolíticas
pertinentes ao seu próprio tempo. Corroboro, desse modo, o pensamento de Jan Kott
([1961] 2003, p. 27), que afirma que o trabalho de diferentes diretores – como aqueles
cujos textos fílmicos selecionei para esta Tese – permite ao público contemporâneo
“reencontrar nas tragédias de Shakespeare sua própria época” e, por consequência, se
aproximar da ‘“época shakespeariana’”. Parto aqui do pressuposto de que cada uma dessas
produções constrói leituras específicas de Hamlet.
Sendo assim, é intenção desta Tese a busca pela resposta das seguintes questões de
pesquisa:
11
De acordo com Robert J. C. Young (2003, p. 04), baseados no argumento de que as nações dos continentes
considerados não ocidentais (África, Ásia e América Latina) estão em grave situação de subordinação à
23
Sendo assim, considero, como Zygmunt Bauman ([2011] 2013), que “hoje os
modos de vidas flutuam em direções diferentes e não necessariamente coordenadas; entram
em contato e se separam, aproximam-se e se distanciam, abraçam-se e se repelem, entram
em conflito ou iniciam um intercâmbio de experiências ou serviços...” e, de acordo com o
autor, realizam tudo isso “flutuando numa suspensão de culturas, todas com uma gravidade
específica semelhante ou totalmente idêntica”. Desse modo, dada a fluidez e a ideia de
trânsito, movimento, atribuída aqui ao fator cultural, nesta Tese irei me referir sempre a
Europa e América do Norte, sobretudo economicamente, os estudos pós-coloniais procuram contestar essa
disparidade, continuando, de certo modo, lutas anti-coloniais do passado na tentativa de construção de novos
olhares sobre as relações de alteridade entre os polos ocidental e não-ocidental.
12
“(...) the way people draw analogies between different domains of their worlds”.
24
culturas, no plural, em vez de cultura, no singular, que não me parece um termo adequado
para dar conta da dinâmica de contatos culturais existentes em nosso mundo líquido13
([2011] 2013, p. 16).
A partir desse arcabouço, o que pretendo apontar é que uma prática de adaptação
cultural, se enxergada a partir das bases teóricas sinalizadas, é aquela que considera os
elementos do texto de partida, mas, ao mesmo tempo, os utiliza criativamente, renovando-
os, reconstituindo-os ferozmente e os inserindo mutuamente na tradição a partir desse
processo que aqui denomino Devoração Transcultural. Além disso, tal enfoque pode nos
ajudar a delinear o alcance interpretativo do texto dramático após inserido na língua e nas
culturas de chegada, uma vez que, em um novo contexto sócio-histórico, o texto pode
permitir a construção de sentidos não ainda evidentes no contexto inicial de sua produção.
Para tanto, são meus objetivos analíticos
13
Por mundo líquido, Bauman ([2011] 2013, p. 16) entende “(...) o formato atual da condição moderna (…).
O que torna ‘líquida’ a modernidade, e assim justifica a escolha do nome, é sua ‘modernização’ compulsiva e
obsessiva, capaz de impulsionar e intensificar a mesma, em consequência do que, como ocorre com os
líquidos, nenhuma das formas consecutivas de vida social é capaz de manter seu aspecto por muito tempo.”
Segundo o autor, ‘“Dissolver tudo que é sólido’ tem sido a característica inata e definidora da forma de vida
moderna desde o princípio; mas hoje, ao contrário de ontem, as formas dissolvidas não devem ser
substituídas (e não o são) por outras formas sólidas (...). No lugar de formas derretidas, e portanto
inconstantes, surgem outras, não menos – senão mais – suscetíveis ao derretimento, e portanto também
inconstantes.”
25
poderiam, de alguma forma, ser incoerentes com a fluidez dos textos dramáticos e fílmicos
e com a base epistemológica bakhtiniana adotada pelos estudiosos das Teorias da
Adaptação, observarei fatores como aqueles delineados por Roberto Ferreira da Rocha
(2003), para a análise do que o autor chama de Teatro Intercultural, e por Marcel Vieira
Barreto Silva (2013), para a análise de adaptações shakespearianas em território brasileiro
a partir da ideia de interculturalidade14. Dentre os caminhos sinalizados por esses autores,
adoto nesta Tese os seguintes enquadramentos que, adaptados à proposta aqui delineada,
serão detalhados ao longo do trabalho: Linguagem (tradução e adaptação do texto
shakespeariano), Estrutura do Enredo, Relação entre Gêneros, Caracterização Visual
(inserção da história em cinematografias nacionais) e Inserção histórico-social.
14
Considero aqui, como sinaliza Wolfgang Welsch (1999), a noção de interculturalidade como insuficiente
para os objetivos desta Tese, pois, em sua tradicional acepção, sua premissa ainda reside na noção clássica de
culturas baseada nas ideias de homogeneização social, consolidação étnica e delimitação intercultural.
26
Já no terceiro e último capítulo desta Tese, busco a construção de uma leitura dos
filmes A Herança (1970), de Ozualdo Candeia, e O Jogo da Vida e da Morte (1971), de
Mario Kuperman. Nessa análise, faz-se mister a compreensão, em relação ao primeiro
filme, de como os discursos sobre as propriedades de terra e a reforma agrária brasileira
são ressignificados nessa produção, que realoca a trama shakespeariana para um Brasil
rural do interior do Estado de São Paulo. Em relação ao segundo filme, procurar-se-á a
construção de inteligibilidade sobre o modo como a questão das drogas e da violência
presentes em uma comunidade de uma grande metrópole brasileira, São Paulo, pode
dialogar com a linha narrativa e os discursos que constroem o texto shakespeariano. Com
efeito, o que me interessa é a compreensão de como Candeias e Kuperman procuraram no
Hamlet de William Shakespeare um caminho para falar sobre o Brasil, sobre o povo
brasileiro, a partir de um outro, de um estrangeiro: Shakespeare.
José Roberto O’Shea (2010, p. 09) afirma ser Hamlet o texto mais frequentemente
analisado de toda a literatura ocidental. Já Ernest Jones ([1949] 1976, p. 22) vai além e
afirma que mais foi escrito sobre Hamlet do que sobre qualquer outro personagem da
literatura de ficção ou não, com exceção de Jesus Cristo, Napoleão e, claro, do próprio
Shakespeare. Pedro Süssekind (2008, p 16) sinaliza que, justamente por ser tão estudada,
comentada e interpretada, uma obra como essa pode comprovar o caráter inesgotável das
formas de expressão artísticas que, segundo o autor, estão sempre abertas a novas leituras.
Desse modo, em concordância com Susanne L. Wofford (1994, p. 181), acredito que
escrever a história crítica Hamlet é, de muitas maneiras, escrever a história cultural dos
15
“Hamlet seems to me a watershed in his [Shakespeare’s] career – his longest, most technically ambitious,
most stylistically varied, and above all most profoundly human play in which he reaches new levels of
interiority.”
28
Na história da peça, logo após a morte do Rei Hamlet, Hamlet, o filho, volta da
universidade em Wittenberg, Alemanha, para ver sua mãe se casar com seu tio Cláudio,
que ascende ao trono de modo suspeito. Em seguida, o espectro do Rei Hamlet, que ronda
o castelo, aparece para seu filho e acusa Cláudio de tê-lo assassinado, clamando que seu
filho empreenda vingança contra o novo rei. A partir desse momento, Hamlet se envolve
em diversas ações – e inações –, tais como fingir que está louco, rejeitar Ofélia, por quem
supostamente está apaixonado, fazer encenar no castelo uma peça de teatro em que são
representados os crimes do tio, sempre com a finalidade de desmascarar o atual rei. Essa
sequência de ações, e de mais algumas inações, como a decisão do príncipe de não matar
Cláudio no momento em que este se encontrava em oração, leva-nos ao apogeu da peça:
um duelo de espadas.
O enredo aqui relatado é aquele que tem suscitado as mais diversas análises, sob os
mais diferentes pontos de vista, por parte da crítica literária. Na tentativa de tecer breves
notas sobre história crítica de Hamlet, na primeira seção deste capítulo, apresento a fortuna
crítica shakespeariana construída ao longo dos últimos duzentos anos, procurando apontar,
por meio de seus principais expoentes, as formas pelas quais a crítica literária tem lido esse
texto do bardo de Stratford-upon-Avon. Em especial, procuro dialogar com os escritos de
Edward Dowden ([1875] 2009), A. C. Bradley ([1904] 2009), Sigmund Freud ([1900]
2001), Ernest Jones ([1949] 1976), L. S. Vygotsky ([1916] 1999, [1925] 2013), John
Dover Wilson ([1935] 2009), Harold Bloom ([2003] 2004), Pedro Süssekind (2008),
Victor Kiernan (1996), Andrew Fitzmaurice (2009) e José Garcez Ghirardi (2011). A partir
do diálogo construído, procurarei não esgotar as reflexões desses autores sobre a peça em
discussão, mas apresentar as linhas teóricas e analíticas traçadas para a abordagem da peça
as quais podem ou não ter influenciado as leituras fílmicas de Hamlet ao longo dos últimos
121 anos da história do cinema.
16
“(…) focused more on parts or aspects of the plays than on the whole.”
29
em distintas épocas. Para tanto, direciono o foco da abordagem para aquelas adaptações
que, independentemente de uma suposta relação estreita com o original (veja-se
problematização da ideia de original no Capítulo Dois desta Tese), contribuíram na tarefa
de reconstruir o cânone shakespeariano em diferentes momentos da história do cinema
mundial, anglófono ou não. Desse modo, espero pavimentar um caminho que me permitirá,
nas análises apresentadas e nas considerações finais desta Tese, compreender o lugar dos
dois textos fílmicos analisados dentro dos chamados filmes shakespearianos adaptados a
partir de Hamlet.
17
“The play is so many-faceted and its afterlife has been so richly varied that it is becoming more and more
difficult for interpreters to take it all in and make sense of it.”
30
(195 a.C. - 159 a.C). Além desses, outros textos de outros autores, como Boccaccio (1310 -
1375), difundiram-se em território inglês por meio de suas traduções. Obras que visavam à
circulação de feitos históricos, como Chronicles of England, Scotland and Ireland, de
Raphael Hollinshed (1529 - 1580), também influenciaram fortemente a produção de
dramas no período. A riqueza das relações entre esses textos-fonte e o drama de William
Shakespeare levou Geoffrey Bullough a construir uma monumental obra em oito volumes
intitulada Narrative and Dramatic Sources of Shakespeare (1957-1975), na qual mapeia e,
quando possível, reproduz os textos completos ou parciais, das fontes utilizadas pelo bardo
na construção de suas peças.
De acordo com Marlene Soares dos Santos (2008, p. 197), para o processo de
construção de Hamlet, Shakespeare se valeu de uma antiga lenda escandinava que havia
sido narrada originalmente em língua latina por um dinamarquês e que, após recontada por
um autor francês em sua língua materna (1570), teria sido traduzida para o inglês em 1608.
Além disso, a autora afirma também que um texto teatral anterior denominado pela crítica
de Ur-Hamlet, possa ter servido como fonte para a peça shakespeariana. Com efeito,
devido aos parcos registros de encenação de Ur-Hamlet, obtidos sobretudo a partir de
leituras de fragmentos soltos de textos do período, como, por exemplo, a introdução de
Thomas Nashe (1567 – 1601) para obra Menaphon (1589), de Robert Greene (1558 –
1592), Lawrence Flores Pereira (2015, p. 07) afirma que a história do herói malogrado não
era uma novidade nos palcos ingleses do período, desde o final da década de 1580. Uma
anotação sobre uma possível encenação dessa peça no ano de 1596, encontrada nos diários
de um empresário teatral elisabetano chamado Philip Henslowe (1550 – 1616), também
atesta a ideia de que o enredo de Hamlet era conhecido pelos cidadãos do período.
Ur-Hamlet, como já afirmei, não era a única fonte para a construção de Hamlet. É
muito provável que Shakespeare tenha consultado o relato de François Belleforest do
enredo, publicada em sua obra Histórias trágicas (Histoires Tragiques, 1570). Nessa obra,
Belleforeste apresentava uma tradução criativa de uma narrativa semelhante, Amleth,
escrita por Saxo Grammaticus, no século XII, e publicada na obra Gesta Danorum, no
início do século XIII (FITZMAURICE, 2009, p. 143). Na Gesta Danorum, de modo
semelhante ao enredo shakespeariano, o tio de Amleth, o herói, Feng, mata o antigo rei e
casa-se com a mãe de Amleth, Gerutha. No entanto, ao contrário do que ocorre na peça de
Shakespeare, o assassinato nessa narrativa não é um segredo. Desse modo, justifica-se
inclusive o fingimento de loucura por parte de Amleth, que necessitava dirimir suspeitas
sobre suas intenções, trilhando um caminho mais seguro para a efetivação do ato de
vingança. Nesse texto, ainda,
Usa-se uma linda jovem para sondá-lo [a Amleth] e desvendar suas intenções.
Espiado por um conselheiro do rei, Amleth o mata e desmembra. O tio
finalmente o manda para a Inglaterra para ser executado, escoltado por dois
acompanhantes. Amleth intercepta as instruções e substitui seu nome pelo dos
dois acompanhantes. Ao retornar a Dinamarca, ele vinga a morte de seu pai,
matando o tio e assumindo o trono (PEREIRA, 2015, p. 08-09).
Pereira (2015, p. 10-11) nos lembra também que lá estava a problemática da vingança,
como o dever do filho do Rei assassinado, a questão da loucura fingida, a suposta demora
do príncipe em cumprir a vingança, a morte de Polônio, a admoestação contra a mãe, a
viagem à Inglaterra, o retorno do príncipe à Dinamarca e, por fim, o assassinato do rei.
Entretanto, e de modo semelhante ao que ocorre no texto de Saxo Grammaticus, além do
fato de o assassinato também não ser um segredo, o texto apresenta outras diferenças
significativas em relação à peça shakespeariana, como, por exemplo, a idade de Amleth,
que na história de Belleforest é menor de idade, o que justifica a demora da realização da
vingança, uma vez que o protagonista ainda é impotente para planejar suas ações de
maneira eficaz (PEREIRA, 2015, p. 11).
denominado Fólio reafirma a popularidade do autor, uma vez que esse formato tinha alto
custo de publicação e era destinado, na maioria das vezes, à publicação de autores clássicos
e de renome. A inserção, no Fólio, de um poema de Ben Jonson, To the memory of my
beloved, the AUTHOR, Mr. WILLIAM Shakespeare: and what he hath left us, também
atesta a admiração que os contemporâneos de Shakespeare compartilhavam por ele e sua
obra.
No início da história crítica que aqui delineio, ainda no século XIX, no auge do
movimento romântico europeu, S. T. Coleridge (1772 – 1834) constrói sua empreitada
crítica sobre Hamlet a partir da ideia de que, na peça, Shakespeare nos apresenta um
personagem “corajoso e despreocupado com a morte; mas ele vacila por sensibilidade, e
procrastina por causa do pensamento, perdendo o poder de ação na energia para tomar uma
decisão”19 (COLERIDGE, [1818/1827] 1988, p. 30). Nesse sentido, o autor afirma que o
príncipe Hamlet tem uma personalidade mais apta para a abstração e para o hábito da
generalização do que para a execução de ações práticas. Com efeito, Philip Edwards
([1825] 2003, p. 33) afirma ser Hamlet, segundo Coleridge, um homem incapaz de agir,
uma vez que, mesmo sabendo o que deveria fazer e prometendo constantemente a
19
“Hamlet is brave and careless of death; but he vacillates from sensibility, and procrastinates from thought,
and loses the power of action in the energy of resolve.”
34
execução da tarefa que carrega, o príncipe é avesso à ação e gasta grande parte de sua
energia em um movimento de auto-reprovação. Ao construir Hamlet como um intelectual,
que valoriza mais a ação do pensar que as ações mundanas, Coleridge atesta que, para
Hamlet, o mundo da mente pareceria mais real que o mundo externo (EDWARDS, [1985]
2003, p. 33)
não é por covardia, uma vez que ele é retratado como um dos mais corajosos de
seu tempo – não é por desejo de premeditação ou por vagarosidade de
apreensão... mas simplesmente por aversão à ação, que prevalece entre aqueles
que têm um mundo em si mesmos.20
20
“(…) not from cowardice, for he is drawn as one of the bravest of his time – not from want of forethought
or slowness of apprehension… but merely from that aversion to action, which prevails among such as have a
world in themselves.”
21
“(…) effects of a great action laid upon a soul unfit for the performance of it.”
22
“A lovely, pure, noble and most moral nature, without the strength of nerve which forms a hero, sinks
beneath a burden which it cannot bear and must not cast away. All duties are holy for him; the present is too
hard.”
35
[1775-6] 1988, p. 23). Já Schlegel argumenta, de acordo com Wofford (1984, p. 187), que
Hamlet possui uma tendência a filosofar e meditar sobre aquilo que o torna incapaz de agir,
ressaltando, novamente, a faceta intelectual do personagem shakespeariano. De acordo
com Schlegel ([1809-11] 1988, p. 26-27), Hamlet demonstra possuir, ao longo da peça,
uma mente altamente cultivada, um príncipe de modos reais, dotado com o senso
mais fino de propriedade, suscetível à nobre ambição, e completamente aberto a
uma entusiasmada admiração daquilo que outros possuem de excelente e que
nele é deficiente.23
Nesse contexto, Wofford (1994, p. 1987) afirma que a admiração dos autores
mencionados sobre as características filosóficas e/ou especulativas de Hamlet se devia ao
fato de que elas inspiravam os leitores a considerar, juntamente ao personagem, a grande
questão da existência humana. Sob esse prisma de leitura, Hamlet se tornaria, ao mesmo
tempo, um personagem capaz de formular um pensar generalizante sobre sua própria
tragédia e um indivíduo que compartilha suas experiências e pensamentos individuais com
os leitores da peça.
A peça, que, de acordo com Dowden ([1875] 2009, p. 125), teria sido escrita por
Shakespeare quando o autor já havia se tornado um mestre dramaturgo, tendo seu estilo um
23
“(...) a highly cultivated mind, a Prince of royal manners, endowed with the finest sense of property,
susceptible of noble ambition, and open in the highest degree to an enthusiastic admiration of that excellence
in others of which he himself is deficient.”
36
lugar entre seu trabalho anterior e aquele que ainda estava por vir, constrói-se a partir do
mistério vital e obscuro que é a personalidade de seu personagem principal. Esse mistério,
para Dowden ([1875] 2009, p. 126), será “para sempre sugestivo, para sempre sugerido, e
nunca inteiramente explicado”24. No entanto, a busca pela resolução do mistério do drama
se dá, sobretudo, por ser Hamlet o ponto central da peça Hamlet. Com efeito, o foco da
crítica e da peça não pode estar na compreensão do fracasso da ordem político-social, ou
na queda da monarquia dinamarquesa, ou ainda na corrupção possível de ser encontrada
em sua sociedade. Segundo Dowden ([1875] 2009, p. 128), o ponto vital da tragédia “não
pode ser uma ideia; nem pode ser um fragmento de filosofia política. De dentro da
profunda simpatia de Shakespeare para com uma alma individual e uma vida pessoal, a
maravilhosa criação [Hamlet] veio à vida”25. Ao mesmo tempo, Dowden ([1875] 2009, p.
128) afirma que homem algum pode ser considerado separadamente das condições sociais
e morais sob as quais vive e age, e, tendo em mente essa relação, procura compreender a
personalidade de Hamlet frente ao mundo que o cerca.
podre tudo está – a cabeça está doente por completo e o coração completamente
fraco. No trono, o coração do organismo vivo do Estado, reina a aparência de um
rei; mas debaixo dessa aparência real está escondida uma alma miserável,
corrupta e covarde, um envenenador do verdadeiro rei e uma verdadeira
majestade incestuosa, bruto e irresponsável, um bebedor feroz, um equivocado
com sua consciência, e como Hamlet veementemente o descreve, “um rei
palhaço”, “um vilão e usurpador” (...). Assim é a monarquia na Dinamarca27
(DOWDEN, [1875] 2009, p. 136)
24
“(…) for ever suggestive; for ever suggested, and never wholly explicable.”
25
“(…) cannot be an idea; neither can it be a fragment of political philosophy. Out of Shakspere’s profound
sympathy with an individual soul and a personal life, the wonderful creation came into being.”
26
“Something is rotten in the state of Denmark.” (I. IV. 90) [Todas traduções de trechos da peça Hamlet que
aparecem nesta Tese são de autoria de Ana Amélia de Queiroz C. de Mendonça e Barbara Heliodora
(SHAKESPEARE, 2015). Os excertos em inglês, a partir da edição de Philip Edwards da peça, são citados
em nota.]
27
“(…) all is rotten – the whole head is sick and the whole heart is faint. On the Throne, the heart of the
living organism of a state, reigns the appearance of a king; but under this kingly appearance is hidden a
wretched, corrupt, and cowardly soul, a poisoner of the true king and of true kingship incestuous, gross and
37
wanton, a fierce drinker, a palterer with his conscience, and as Hamlet vehemently urging the fact describes
him ‘a vice of kings’ ‘a villain and a cut-purse’ (…) Such is kingship in Denmark.”
28
“(…) summed up many of the arguments of the previous century and took them a step further, becoming in
the process the principal articulation of a view of Hamlet that twentieth-century criticism would strongly
challenge.”
38
Em sua análise da peça, Bradley ([1904] 2009, p. 58), de certa forma, inicialmente
concorda com o posicionamento de autores como Coleridge e Schlegel ao afirmar que
Hamlet é profundamente racional e possui uma pré-disposição reflexiva, podendo,
inclusive, ser considerado, em termos amplos, como dono de um temperamento filosófico.
Isso se dá, sobretudo, pelo fato de o príncipe ser um homem bom e exibir inquietações,
senso crítico e até ansiedade pelo desejo de fazer o que é certo. No entanto, Bradley recusa
a ideia de que Hamlet, como apontado por Coleridge e Schlegel, seja enxergada apenas
como uma tragédia da reflexão, negando, dessa forma, que a causa da demora do herói
seja a irresolução causada por uma índole excessivamente filosófica ou reflexiva ([1904]
2009, p. 77). O autor ([1904] 2009, p. 77) sinaliza ainda que Dowden critica justamente a
visão intelectualizada de Hamlet, que negligencia a faceta emocional do caráter do
personagem, que o próprio Dowden considera tão importante quanto a intelectual. No
entanto, Bradley afirma que, mesmo efetuando essa ressalva, seu predecessor parece, no
geral, adotá-la.
Hamlet, ele [Dowden] diz, ‘perde a noção do concreto porque, nele, cada objeto
e evento se transforma e se expande convertendo-se numa ideia... Não consegue
manter viva dentro dele, de forma sólida, a noção da importância de qualquer
coisa delimitada, real – um ato, por exemplo’ (BRADLEY, [1904] 2009, p. 77).
Esse caráter peculiar pode ser inferido a partir da ciência de que o próprio Hamlet
não entende o porquê de postergar a ação que lhe foi incumbida, o que o deixa
desconcertado, uma vez que não entende sua própria passividade e incapacidade de agir.
Dessa forma, Bradley nos apresenta Hamlet com um caráter dividido, ao mesmo tempo
40
consciente, mas sem acesso a sua consciência, o que abre caminho, inclusive, para a leitura
psicanalítica do personagem realizada por Freud nos anos seguintes (WOFFORD, 1994, p.
189). Nesse sentido, Bradley sinaliza que “Hamlet nos faz vislumbrar a um só tempo a
grandeza da alma e a perdição que não apenas impõe limites a essa grandeza, mas parece
brotar dela” ([1904] 2009, p. 94).
Outra das grandes criações da poesia trágica, o Hamlet de Shakespeare, tem suas
raízes no mesmo solo que Édipo Rei. Mas o tratamento modificado do mesmo
material revela toda a diferença na vida mental dessas duas épocas, bastante
separadas, da civilização: o avanço secular do recalque na vida emocional da
espécie humana. No Édipo, a fantasia infantil desejosa que subjaz ao texto é
abertamente exposta e realizada, como ocorreria num sonho. Em Hamlet, ela
permanece recalcada; e, tal como no caso de uma neurose, só ficamos cientes de
sua existência através de suas consequências inibidoras (FREUD, [1900] 2001,
p. 265).
A partir dessa ideia, Freud busca compreender o motivo das hesitações de Hamlet
em cumprir a tarefa da vingança, uma vez que, para o autor, nada no texto apresentaria
uma razão séria ou motivo para essas hesitações ([1900] 2001, p. 265). A resposta, para
Freud, estava na natureza peculiar da tarefa: Hamlet não consegue agir contra o homem
que matou o Rei Hamlet e tomou o lugar deste junto a Gertrudes, pois esse homem revela
os próprios desejos recalcados da infância do príncipe, não realizados. “Desse modo, o
ódio que deveria impeli-lo à vingança é nele substituído por auto-recriminações, por
41
escrúpulos de consciência que o fazem lembrar que ele próprio, literalmente, não é melhor
do que o pecador a quem deve punir” (FREUD, [1900] 2001, p. 265).
Freud não poderia abandonar sua visão de Hamlet, e do que o autor teria vivido
logo depois da morte de seu pai, sem colocar em xeque os elementos que
confirmavam a correção de sua teoria edipiana. Isso era pedir demais de uma
leitura que só poderia se manter de pé se Hamlet tivesse sido escrita depois da
morte de John Shakespeare (SHAPIRO, [2010] 2012, p. 183).
Provavelmente por essa razão, de acordo com James Shapiro ([2010] 2012, p. 183),
o psicanalista passa a defender fortemente a ideia de que Hamlet, entre outras peças do
bardo, havia sido escrita, na verdade, pelo Conde de Oxford, fortificando mais uma das
42
Em sua leitura, e como já sinalizado neste capítulo, Jones ([1949] 1976, p. 71)
enxerga como problemática em Coleridge a ênfase numa suposta faculdade contemplativa
de Hamlet, que o impediria de realizar uma tarefa qualquer, uma vez que o personagem
sempre veria um grande número de diferentes aspectos e possibilidades de explicação para
cada problema surgido ([1949] 1976, p. 30). De acordo com esse mesmo autor, também
não se sustentaria a visão de Goethe, que realçou uma suposta sensibilidade exacerbada do
protagonista da peça, assim como não se manteria a perspectiva de Schlegel, que propôs a
resposta para todas as questões numa reflexividade deliberada do príncipe, que serviria
como um pretexto para esconder sua covardia e falta de atitude em tomar decisões. Jones, a
partir da leitura de autores como os mencionados, chega à obvia conclusão de que, na
verdade, Hamlet não queria desempenhar a tarefa que lhe fora confiada ([1949] 1976, p.
45), e que essa hesitação provavelmente tinha origem em algum conflito interno entre o
impulso para cumprir a tarefa e algum motivo especial que causava repugnância por parte
do protagonista da peça. Jones ([1949] 1976, p. 49) vai além e afirma que “a explicação
29
Para uma discussão mais aprofundada do suposto mistério da autoria dos textos dramáticos
shakespearianos, sugiro consultar a seguinte obra: SHAPIRO, J. Quem escreveu Shakespeare? A história
de mais de quatro séculos de disputa pela herança de uma autoria. Tradução de Christian Schwartz e Liliana
Negrello. Curitiba: Nossa Cultura, [2010] 2012.
43
por Hamlet não revelar a causa dessa repugnância pode ser o fato de que ele não era
consciente da sua natureza”.30
Desse modo, o autor ([1949] 1976, p. 58-59) constrói o príncipe como uma pessoa
que reprime certos pensamentos, e esses pensamentos são impedidos de vir à consciência
por uma força definida e uso maior ou menor de esforço mental; no entanto, o psicanalista
nos alerta que a pessoa que reprime seus pensamentos raramente está consciente do ato que
desempenha. No caso de Hamlet, há a angústia pelo fato de seu pai ter sido substituído no
afeto de sua mãe por outra pessoa que não ele, fato inaceitável para o personagem por
algum motivo do qual nem Hamlet parece estar ciente: “isto é como se a devoção de
Hamlet por sua mãe tivesse feito dele tão ciumento do afeto dela que ele tenha achado
difícil o suficiente compartilhar esse evento com seu pai e não possa tolerar compartilhar
30
“(...) the explanation of his not disclosing this cause of repugnance may be that he was not conscious of its
nature.”
31
“In short, the whole picture presented by Hamlet, his deep depression, the hopeless noted in this attitude
towards the world and towards the value of life, his dread of death, his repeated reference to bad dreams, his
self-accusations, his desperate efforts to get away from the thoughts of his duty, and his vain attempts to find
an excuse for his procrastination: all this unequivocally points to a tortured conscience, to some hidden
ground for shirking his task, a ground which he dare not or cannot avow to himself.”
44
isto ainda com outro homem”32 (JONES, [1949] 1976, p.69). Com efeito, a leitura de Jones
constrói o Rei Hamlet como uma espécie de rival do príncipe, atribuindo a este um desejo
secreto de querer ver o pai fora do caminho, para que ele pudesse aproveitar um certo
monopólio do afeto da mãe ([1949] 1976, p. 70).
Nesse contexto, Jones ([1949] 1976, p. 70) apresenta como motivo para a
procrastinação de Hamlet a ideia de que o pensamento dos atos de incesto e de parricídio
combinados é um fardo pesado demais para que o príncipe possa carregar. Com efeito, ao
renegar e reprimir seus pensamentos e sentimentos sexuais, ocultando o fardo que carrega,
Hamlet desenvolve uma forte repulsa contra mulheres, em geral, e Ofélia, em particular, o
que justificaria os atos direcionados a ela, inclusive a famosa cena em que a manda para
um convento/prostíbulo33 ([1949] 1976, p. 86). Já a repulsão por seu tio, como sinalizado,
surge do fato de que Hamlet vê incorporadas em Cláudio as partes mais profundas e
enterradas de sua própria personalidade; desse modo, o herói não pode matar ao atual rei
sem matar a si mesmo, o que, para Jones, leva ao duelo que encerra a peça ([1949] 1976, p.
88).
32
“It is as if his devotion to his mother had made him so jealous for her affection that he had found it hard
enough to share this event with his father and could not endure to share it with still another man.”
33
“Get thee to a nunnery – why wouldst thou be a breeder of sinners?” (III. I. 119-120)
45
Com efeito, T. S. Eliot enxerga em Hamlet uma peça que trata, especialmente, do
efeito de culpa da uma mãe sobre o filho, mas considera que Shakespeare foi incapaz de
apresentar com êxito essa trama ao material considerável intratável de uma velha peça
([1919] 2015, p. 35). Nesse sentido, nas palavras do autor,
Eliot compara a peça à produção lírica do bardo, sobretudo aos sonetos, que
considera, como Hamlet, repletos de estofo que Shakespeare não conseguiu trazer
completamente a luz ou manipular o suficiente de modo a construir verdadeiras obras de
arte ([1919] 2015, p. 37). No caso de Hamlet, Edwards ([1985] 2013, p. 26) sinaliza que
Eliot caracteriza como a falha principal do texto o fato de Shakespeare não ter trabalhado
com o material da antiga peça ao não ser capaz de transmitir de modo adequado as
emoções com as quais a história trabalha. Para Eliot ([1919] 2015, p. 38),
Uma opinião sobre a peça menos comentada pela crítica contemporânea, mas
também de grande valor intelectual, é aquela desenvolvida por L. S. Vygotsky (1896 –
1934), autor amplamente conhecido, sobretudo, por sua psicologia pedagógica e suas
46
Nesse ensaio, de acordo com Bezerra (1999, p. IX), Vygotsky realiza a análise de
Hamlet a partir de uma concepção do trabalho analítico que denomina de crítica do leitor.
Nessa crítica, é dado valor secundário ao conceito de autoria, uma vez que Vygotsky
defendia que, uma vez criada, a obra de arte se separaria de seu criador, ganhando
autonomia e só vindo novamente à vida a partir da relação do texto com o leitor. A leitura
da peça é, desse modo, apenas uma possibilidade realizada pelo leitor. Com efeito,
Vygostky antecipa em algumas décadas os apontamentos da chamada crítica da
recepção34, além de atestar o caráter polissêmico das obras de arte, considerando-as como
inesgotáveis e fontes de múltiplas interpretações (BEZERRA, 1999, p. IX). Nas palavras
de Vygotsky, “Essa crítica não se alimenta de conhecimento científico ou de pensamento
filosófico, mas de impressão artística imediata. É uma crítica francamente subjetiva, que
nada pretende, uma crítica do leitor” ([1916] 1999, p. XVIII). Em termos amplos, o
trabalho analítico é focado, nessa vertente crítica, naquilo que o leitor constrói no processo
de leitura, uma vez que, para o autor soviético, a obra literária não tem existência própria
sem o leitor, sendo ele que a reproduz, cria e elucida ([1916] 1999, p. XXI.)
não existe o Hamlet de Shakespeare, existe meu Hamlet, teu Hamlet, o Hamlet
de Börne, o Hamlet de Gervinius, ou de Bernais, ou Rossi, ou de Mounet-Sully,
e que todos eles estão em pé de igualdade; uns estão mais próximos de nós,
34
Para maiores detalhes sobre as teorias que envolvem as críticas da recepção, sugiro a leitura dos capítulos
“O texto poético na mudança de horizonte da leitura”, de Hans Robert Jauss, e “Problemas da teoria da
literatura atual: o imaginário e os conceitos-chave da época”, de Wolfgang Iser, na obra: LIMA. L. C. (Org).
Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
47
outros mais distantes, mas todos estão mais ou menos corretos (VYGOTSKY,
[1916] 1999, p. XXIII).
Com efeito, como aponto no Capítulo Dois desta Tese, Vygotsky acaba também
por antecipar apontamentos críticos das teorias da adaptação, sinalizando, na segunda
década do século XX, a instabilidade da ideia de uma interpretação fiel à obra de arte. A
própria ideia de uma interpretação é problemática no pensamento de Vygotsky, uma vez
que interpretar, para o autor, significa esgotar, o que aniquilaria o porquê da leitura de um
texto artístico ([1919] 1999, p. XXIV). Sua crítica do leitor, portanto, não se preocupa em
interpretar uma obra de arte, mas sim em apresentar uma leitura possível, a qual, no caso
de Hamlet, nessa primeira análise da peça efetuada por Vygotsky, preocupa-se com o mito
como verdade religiosa revelada na arte da tragédia.
35
“If drama is action, Hamlet is the most extraordinary combination of drama and anti-drama.”
48
desconhecido e fora do tempo da peça; e o mundo de cá, temporal, visível, onde as coisas
parecem se mover como um reflexo do além, do mundo de lá, e que acaba por determinar e
dirigir as coisas e os acontecimentos do mundo de cá. A isso se atribui, de acordo com o
autor soviético, a construção do clima de mistério que domina a peça, clima que pode ser
considerado como um dos motivos que impedem Hamlet de agir, por provocar a
morosidade do personagem e retardar o desenrolar da ação dramática e o cumprimento da
vingança que esse personagem prometera efetuar ao fantasma de seu pai (BEZERRA,
1999, p. XIII). E a inação por parte do príncipe é, desse modo, o que leva a peça a sua
inevitável conclusão (VEER & VALSINER, [1991] 2009, p 35). Vygotsky pontua, de
acordo com Bezerra (1999, p. XIII), que
Veer e Valsiner ([1991] 2009, p. 33) lembram ainda que essa dualidade na leitura
inicial da peça por Vygotsky centra-se em termos da presença concomitante de forças
interdependentes – assim como o mundo de cá e o mundo de lá –, como noite e dia, ação e
inação, eventos e processos psicológicos externos e internos, o que coaduna, de modo
coerente, com a posição que o autor desenvolveria futuramente em seus trabalhos na área
da Psicologia. Além disso, essa dualidade, sobretudo em relação aos mundos da peça,
permitia ao autor enxergar os elementos mítico-religiosos próprios a sua leitura do drama.
No entanto, ao retornar à análise de Hamlet em um texto posterior, publicado em 1925,
Vygostky apresenta uma nova leitura da peça que diferiria consideravelmente da versão
anteriormente apresentada.
Como afirmam Veer e Valsiner ([1991] 2009, p. 35-36), quando volta a Hamlet,
Vygotsky tem sua visão plenamente influenciada pelo desenvolvimento de seu pensamento
em relação à estrutura dinâmica dos textos literários e pelo seu interesse em como a
chamada psicologia da arte subordina o receptor, forçando-o a sentir, respirar e até pensar
em direção pré-determinada, levando-o à catarse. Nessa nova leitura da peça, apesar de
manter as linhas básicas de seu pensamento anterior como a relação intrínseca entre as
ações e inações de Hamlet, Vygotsky abandona os elementos místicos e religiosos que
davam o tom ao seu trabalho prévio. No ensaio de 1925, o autor russo também considera
49
Nesse sentido, Vygotsky assevera que os críticos, de modo geral, buscam resolver o
mistério de Hamlet com base em um percurso argumentativo que não deriva da própria
tragédia, abordando-a como se a história fosse um caso de vida real – como demonstrei,
neste capítulo, especialmente a partir da análise das obras de Coleridge, Bradley, Freud e
Jones –, que deveria ser compreendido e explicado com base no senso comum. No entanto,
ressalta o autor, Hamlet foi deliberadamente construído como personagem de uma
tragédia, tragédia essa que se estrutura como um enigma que não pode ser resolvido ou
explicado a partir de métodos unicamente lógicos. Com efeito, para Vygotsky, ao separar o
enigma da tragédia, os críticos, ao longo dos últimos séculos, estariam privando o texto
shakespeariano de seu elemento mais essencial ([1925] 2013, n.p.). De acordo com o autor,
Desse modo, Vygotsky ([1925] 2013, n.p.) sinaliza que uma verdadeira tentativa de
investigação da peça deve ignorar o alto volume de comentários críticos voltados à
psicologia do herói e enfocar a tragédia, tal como ela se apresenta, procurando
compreender o que ela revela, contemplando-a tal como é.
36
“Si vamos a ver Hamlet no es para estudiar la psicología de la indecisión, cierto, pero es igualmente cierto
que si cambiáramos el carácter de Hamlet la obra perdería todo su efecto. Naturalmente que el autor no ha
escrito la tragedia para presentar un tratado de psicología o del carácter humano. Pero la psicología y el
carácter del héroe tampoco son elementos irrelevantes, azarosos ni arbitrarios; son sumamente importantes
desde un punto de vista estético...”
50
partir de rascunhos contraditórios, não sendo possível também encontrar uma explicação
racional para as palavras e os atos do personagem. Desse modo, o autor acredita respeitar o
fato de que Shakespeare provavelmente não tinha nenhuma intenção de revelar, descrever
ou estudar a ideia de caráter, podendo, inclusive, ter construído um caráter inadequado para
o herói da peça para obter efeito estético. Com efeito, Vygotsky, em seu ensaio, procura
demonstrar a falácia da crítica de Hamlet que enxerga a peça como uma tragédia de
caráter, pois, como aponta, “a falta de caráter é intencionada por parte do autor, que a usa
como mecanismo para fins artísticos concretos”37 (VYGOTSKY, [1925] 2013, n.p.), o que
leva o autor soviético, dessa forma, a iniciar sua análise pela estrutura da tragédia.
Em sua leitura da estrutura da peça, Vygotsky ([1925] 2013, n.p.) muda o foco da
questão que vinha assombrando a crítica literária da época: de Por que Hamlet demora?,
para Por que Shakespeare faz com que Hamlet demore?. E, em busca dessa resposta,
procura comparar a lenda de Hamlet ao argumento principal da tragédia. Nessa análise, o
autor aponta que Hamlet deve se vingar sem deixar que nenhuma causa, externa ou interna,
o impeça de agir; no entanto, Shakespeare brinca com a paciência do público, ao construir
cenas que criam a ideia de uma pronta ação do príncipe, a qual bruscamente é
interrompida. Assim, o público consegue perceber que Hamlet adia a vingança, mas não
compreende totalmente o motivo de tal adiamento; observa a evolução do enredo de um
Hamlet envolto em contradições e, de certo modo, esquivando-se de sua missão, mas não
consegue compreender o caminho traçado pelo dramaturgo (VYGOTSKY, 2013, n.p.).
Ademais, Vygotsky ([1925] 2013, n.p.) assevera que o significado dessa tragédia
reside em sua catástrofe: a morte de Cláudio, ação pela qual o público espera desde o
primeiro ato, mas que chega por um caminho completamente diferente e inesperado, como
resultado de uma nova trama, e não mais como resposta ao pedido de vingança do
fantasma do Rei Hamlet. Nas palavras de Vygotsky ([1925] 2013, n.p.),
A cena final não deixa a menor dúvida de que Hamlet mata o rei pelo seu crime
mais recente: o envenenamento da rainha e o assassinato de Laertes e do próprio
Hamlet. Nem uma palavra se diz acerca do pai de Hamlet, de quem o público
não se lembra mais. A conclusão é surpreendente e inexplicável: quase todos os
críticos concordam que a morte do rei nos deixa com o sentimento de um dever
cumprido, ou, ao menos, cumprido porque não havia outro remédio. 38
37
“(...) la falta de carácter es intencionada por parte del autor y que éste la usa como mecanismo para unos
fines artísticos concretos.”
38
“La escena final no deja la menor duda de que Hamlet mata al rey por su crimen más reciente: el
envenenamiento de la reina y el asesinato de Laertes y del propio Hamlet. Ni una palabra se dice acerca del
51
Em termos amplos, mesmo tendo a morte de Cláudio pelas mãos de Hamlet ocorrido por
motivos outros que o pedido de vingança pelo pai do príncipe, de alguma maneira o
público se dá por satisfeito. Segundo Vygotsky ([1925] 2013, n.p.), isso nos faz supor que
o dramaturgo joga com a contradição íntima entre a história e argumento da peça, optando
por explorar a contradição entre o caráter de inação do protagonista e a conclusão ativa da
ação da peça no quinto ato do drama.
padre de Hamlet, de quien el público ni se acuerda ya. El desenlace es sorprendente e inexplicable: casi todos
los críticos coinciden en que la muerte del rey nos deja con el sentimiento de un deber no cumplido o, como
mucho, cumplido porque no quedaba otro remedio.”
39
Ubersfeld ([1996] 2010, p. 112) enxerga a teatralidade como “[a] possibilidade de o espectador investir-se
na representação e, em último caso, de agir sobre ela.” Ou ainda, como uma expressão do “(...) teatro dentro
do teatro, no qual o público percebe uma área particular do espaço cênico em que se representa uma história
que é teatro”.
52
dezesseis. Para isso, o autor procura responder a questões como “Que tipo de Constituição
e Estado, por exemplo, um dramaturgo e seu público imaginariam como uma ambientação
apropriada para essa tragédia dinamarquesa?”40 (WILSON, [1935] 2009, p. 27, grifos
meus), considerando que as ações da peça acontecem não em um ambiente qualquer, mas
numa corte, e que os personagens principais da história são membros dessa corte,
habitando o palácio real.
Nessa leitura, o autor também pede que nós, leitores, consideremos que a Noruega e
a Polônia estão em guerra, que a presença de Fortimbrás é constante mesmo antes de seu
aparecimento em cena, que há existência de movimentação de embaixadores bem como o
risco de revolta popular em eminência, e que tenhamos em mente o problema que, mesmo
em segundo plano, agita a mente do príncipe Hamlet: a questão da sucessão ao trono
([1935] 2009, p. 27). Desse modo, a análise de Wilson não ignora, como pontua Santos
(2008, p. 198),
Nesse contexto, Hamlet é visto por Wilson ([1935] 2009, p. 43) como um espírito
grandioso e nobre, mas que sofre uma espécie de choque moral que tira todo entusiasmo e
40
“What kind of constitution and state, for example, would a sixteenth-century dramatist and his public
imagine as an appropriate setting for this Danish tragedy?”
53
crença que tinha pela vida. Esse choque se configura, inicialmente, pela morte de seu pai e
posterior casamento de sua mãe com o tio. No entanto, o choque se acentua com a
revelação do assassinato feita pelo fantasma do Rei Hamlet e o pedido de vingança que o
príncipe, como filho da vítima, deveria cumprir. Wilson ([1935] 2009, p. 44) enxerga o
fardo despejado sobre o príncipe, em profundo luto e horror pelos fatos ocorridos, como
intolerável e impossível de carregar. Segundo o autor, apenas o pensamento de Gertrudes
cometendo incesto com Cláudio, no leito real, já era motivo suficiente para macular a
mente de Hamlet, e essa mácula é um dos motivos pelos quais o príncipe não consegue
agir ([1935] 2009, p. 44 e 46).
Outra razão seria o fato de que o fantasma pede a Hamlet que vingue seu pai sem,
entretanto, atingir à mulher que atualmente divide a cama e a coroa com o assassino do
antigo rei, o que Wilson ([1935] 2009, p. 47) considera uma impossibilidade, dada a
imbricação construída na peça entre esses dois personagens. Uma possível tentativa de
preservar a coroa de escândalos públicos também poderia motivar a procrastinação de
Hamlet, uma vez que o assassinato do atual rei pelo príncipe sem causa aparente era contra
os princípios políticos e obrigações patrióticas que Hamlet provavelmente compartilhava.
No entanto, Wilson, ao fim de sua leitura da peça, afirma acreditar que a demora de
Hamlet em desempenhar a vingança, em resumo, se dava principalmente
41
“(…) because of the sheer weight of the load. So great is Hamlet’s moral stature, so tough is his nerve that
the back does not break. But he is crippled, and the arm which should perform the Ghost’s command is
paralyzed. Thus he continues to support the burden, but is unable to discharge it. That, in a sentence, is ‘the
tragical history of Hamlet, Prince of Denmark’.”
42
A bardolatria se configura como adoração a William Shakespeare e sua obra. Nas palavras de Bloom,
“Shakespeare é meu modelo e deus mortal” ([2003] 2004, p. 16).
54
passavam pelo castelo oferecendo seus serviços (WOFFORD, 1994, p. 200). Desse modo,
o foco dos estudos que, em geral, abordam a metateatralidade na peça e, em particular, do
livro de Bloom, está na elucidação da autoconsciência do próprio drama e na compreensão
da teatralidade da vida e do ser humano.
De acordo com Bloom ([2003] 2004, p. 17), Hamlet seria parte de um plano de
vingança de Shakespeare contra o gênero tragédia de vingança, configurando-se como um
poema ilimitado, uma reflexão sobre a fragilidade da figura humana frente à morte. Assim,
o autor acredita poder afirmar que a peça teria um caráter mais pessoal e, por isso, seria
mais próxima à afeição de Shakespeare do que qualquer outra peça de sua autoria, sendo
dedicada a hipóteses reflexivas de Shakespeare. No entanto, o crítico americano ressalta
que as obsessões de Shakespeare e Hamlet não necessariamente coincidem, embora os dois
compartilhem de uma suposta intensa teatralidade e de sagaz desconfiança quanto às
motivações humanas ([2003] 2004, p. 18). O cerne de sua análise está, desse modo, como
já sinalizei, na ideia de teatralidade, pois, para Bloom, “trata-se de uma peça sobre atuação
cênica, sobre encenação no lugar da vingança” ([2003] 2004, p. 23). Com efeito, segundo o
autor, Hamlet é, ainda hoje, o que há de mais avançado no mundo do teatro, por ser uma
peça constantemente imitada, inclusive por autores como Henrik Ibsen, Anton Chekhov,
Luigi Pirandello e Samuel Beckett, mas nunca superada.
A partir de seu argumento, Bloom ([2003] 2004, p. 60) procura dialogar com a
crítica anterior a sua obra, desconstruindo premissas. Para esse autor, argumentos como os
de Freud e Jones são falhos, pois o crítico não acredita haver traços de Édipo no príncipe.
Na verdade, afirma Bloom, o que os psicanalistas apontavam como natureza incestuosa da
peça se configura, de fato, como inclinação teatral. O crítico norte-americano acaba por
desconstruir também os escritos de Bradley, por não acreditar e descartar a avaliação de
que Hamlet estaria em estado de melancolia pela morte do pai e indignação diante da
sexualidade da mãe ([2003] 2004, p. 86). Em relação ao argumento de T. S. Eliot, Bloom
([2003] 2004, p. 94) aponta, em sua análise, que aquilo que o poeta via como um fracasso
estético seria, na verdade, um imenso triunfo estético, de acordo com os padrões de
teatralidade construídos pelo próprio personagem principal do texto e pela própria peça. De
modo diverso a esses autores, Bloom ([2003] 2004, p. 74) considera a razão da postergação
do príncipe como simples, uma vez que
De fato, mais uma vez, o autor confirma, em sua análise bardólatra da peça, o
potencial de Hamlet, o príncipe, como poeta-dramaturgo, autor de sua própria peça ([2003]
2004, p. 87), e de Hamlet, a peça, como um poema ilimitado, sendo grande demais para ser
tragédia, mesmo sendo denominada de tragédia do príncipe da Dinamarca ([2003] 2004, p.
91).
Menos tendencioso que Bloom, mas seguindo a linha de investigação da peça como
lócus de reflexão teatral e metateatral, Pedro Süssekind (2008, p. 18) aponta que, se
Shakespeare não teorizou sobre a arte, sobre o teatro, tal teorização pode ser encontrada
refletida nas falas de seus personagens, em considerações inseridas em suas peças. A
abordagem metateatral é defendida por Süssekind até quando tenta explicar o motivo para
a postergação de Hamlet para realizar a vingança, sendo o pedido de vingança enxergado
como uma convocação para determinada atuação do personagem (2008, p. 20); de acordo
com o autor, Hamlet adia por considerar a tarefa de caráter duvidoso, só desempenhando o
ato da vingança, o assassinato do rei Cláudio, após a morte de sua mãe por envenenamento,
quando o crime cometido se apresenta em cena, tendo Hamlet a certeza da culpa do novo
rei, seu tio (2008, p. 19).
56
Ao procurar compreender o contexto político do drama – uma vez que, para o autor,
“Todo drama é também um estudo político...”44 (1996, p. 228) –, Kiernan nos lembra que a
peça pode ser lida como uma crítica ao sistema monárquico, assim como Júlio César pode
43
“Hamlet’s story is one of indecision.”
44
“Each drama is also a political study…”
57
Com efeito, a partir do prisma marxista que toma como base para sua leitura da
peça, Kiernan procura entender a sociedade construída em Hamlet a partir da ideia de luta
de classes4546. De acordo com esse autor (1996, p. 76), a sociedade do texto shakespeariano
parece configurar-se a partir de um enquadre binário – o da classe alta, de um lado, e da
classe baixa, de outro; a burguesia, classe intermediária, não figura nas páginas do drama.
Além disso, o autor enxerga na peça um movimento de opressão contra a classe baixa, que
sofreria independentemente de quem ocupasse o trono; o ressentimento relacionado à
prática de repressão pode ser notado, de acordo com o Kiernan, na grotesca cena entre os
coveiros, que discutem a validade do enterro de Ofélia em solo sagrado, uma vez que se
tratava de uma suicida. No entanto, um dos coveiros ressalta que a moça é uma lady, tendo,
por isso, mais direitos que outros indivíduos da sociedade, do que as pessoas comuns47
(1996, p. 76). Janette Dillon (2007, p. 69) parece concordar com Kiernan ao afirmar que
45
"Para Marx, (...) a luta de classes não era mais do que uma forma da lei geral da evolução da Natureza, que
de modo nenhum tem um caráter pacífico. A evolução é, para ele, (...) dialética, quer dizer, produto de uma
luta de elementos opostos que surgem necessariamente. Todo o conflito destes elementos irreconciliáveis
deve finalmente conduzir ao esmagamento de um dos dois protagonistas e, por consequência, a uma
catástrofe. (...) A derrubada de um dos antagonistas será inevitável, após a luta e o crescimento em força do
outro. (...) Na Natureza, como na sociedade." (KAUTSKY, s/d, p. 24)
46
É importante ressaltar que o conceito de Luta de Classes pré-existe a Marx, como o próprio autor afirma,
em 5 de março de 1852, em carta a Joseph Weidemayer. Nessa carta, Marx assevera que sua originalidade foi
a de comprovar (1) que a existência das classes liga-se às fases de desenvolvimento da “produção”; (2) que a
luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; e (3) que esta própria ditadura representa
somente a transição no sentido da supressão (Aufhebung) de todas as classes e de uma sociedade sem classes.
47
Na tradução: “Deve ser enterrada em sepultura cristã aquela que buscou voluntariamente a salvação? (...)
Assim o disseste; e é uma lástima que os grandes deste mundo tenham o direito de afogar-se ou de enforcar-
se, mais do que qualquer outro cristão.” Em inglês: “Is she to be buried in Christian burial, when she wilfully
seeks her own salvation? (…) Why, there thou sayst – and the more pity that great folk should have
countenance in this world to drown or hang themselves more then their even-Christen?” (V. i. 1-2 e 22-24).
58
(...) Ofélia não teria recebido um enterro cristão caso não tivesse nascido uma
nobre. Então, ao contrario da visão inerente da morte como niveladora (a ideia de
que todos os seres humanos, independentemente de classe, têm o mesmo fim) é o
fato de que mesmo depois da morte distinções que classificam um ser como
superior a outro são feitas.”48
Mesmo o adiamento da tarefa por parte de Hamlet é enxergado por Kiernan (1996,
p. 80) como uma atitude política. O autor afirma que, para o príncipe, seria fácil o
suficiente matar Cláudio; entretanto, um simples ato de assassinato não seria suficiente
para Hamlet, pois não teria impacto na mentalidade pública, como não teve a morte de
Polônio. Ao mesmo tempo, qualquer tentativa de expor publicamente o atual rei seria
anulada, uma vez que todos viam o príncipe como um homem perturbado. Além disso,
Hamlet não possuía evidências, além das palavras de um fantasma, para atacar
publicamente um homem como Cláudio, que não se configurava abertamente como um
opressor de seu país, como fora Macbeth, na tragédia de mesmo nome (1606), por
exemplo. No entanto, Hamlet tinha em mente que Cláudio deveria ser eliminado, não
apenas por vingança, mas também por considerar que, livrando-se do tipo, a Dinamarca
poderia se recuperar da doença que a assolava. Paradoxalmente, de acordo com Kiernan
(1996, p. 81), no final da peça, Hamlet realiza nada mais que sua tarefa inicial de vingança,
a mesma que enxergava como primitiva e repulsiva demais para incitá-lo a agir durante
todo o drama, uma vez que age por impulso, sem reflexão, após o envenenamento de sua
mãe, Gertrudes, e a morte de Laertes. De toda forma, o autor ressalta que Hamlet foi capaz
de entregar o desfecho que o vilão merecia, com toda a corte assistindo, mesmo sem
qualquer planejamento (1996, p. 86).
48
“(…) Ophelia would not have received Christian burial had she not been of gentle birth. Thus, against the
inherent background of death the leveler (the idea that all human beings, whatever their class, come to the
same thing in the end) is the fact that even after death distinctions are made that rank one human being above
another.”
59
como “profundamente preocupada com a corrupção e com seu impacto sobre a auto-
compreensão e auto-representação política”49 (2009, p. 140), e os leitores desse drama,
segundo Fitzmaurice, sempre atentaram para a abordagem da corrupção em Hamlet, um
dos temas mais claros desse enredo shakespeariano. No entanto, mais do que apontar a
corrupção no desenvolvimento da peça, a leitura de Fitzmaurice procura compreendê-la no
contexto do pensamento político do início da modernidade, uma vez que “Hamlet é, em si
própria, uma crônica de seu próprio tempo”50 (2009, p. 142).
Em sua leitura, Fitzmaurice (2009, p. 142) sinaliza para o fato de que a peça retrata
a história de um Estado em decadência. A Dinamarca, tal como representada por
Shakespeare, assemelha-se à Roma pós-republicana: Rei Hamlet, virtuoso e honrado, foi
substituído por uma corte corrupta e por Cláudio, considerado por Hamlet como bebedor,
adepto a festas e rei-palhaço. Desse modo, o autor afirma que o reino da peça teria
passado, no decorrer da ação, de um Estado com valores e virtudes republicanas para um
Estado imerso em corrupção imperial. No entanto, ao contrário de retratar uma nação sem
esperança, a abordagem de Fitzmaurice (2009, p. 145) aponta que a peça sustenta uma
certa esperança em uma reforma política, o que permitiria ao público da época a
construção de uma reflexão sobre como agiriam quando confrontados pela tirania.
49
“(…) profoundly concerned with corruption and its impact upon self-understanding and political self-
presentation.”
50
“Hamlet is itself a chronicle of its time.”
51
“(…) signifies the corruption of the most fundamental social relations, of family and friendship.”
60
mas ainda sim capaz de “tais coisas, que seria melhor que minha mãe não me tivesse
concebido”52 (III. i. 120-121) (FITZMAURICE, 2009, p. 147).
famoso solilóquio To be or not to be, não como a contemplação do suicídio, mas como a
possibilidade de escolha sobre ser ativamente engajado na vida política ou não.
Por fim, ao final desse passeio pela crítica shakespeariana, é importante ressaltar,
seguindo os passos de Wofford (1994, p. 201), que qualquer tentativa de levantar a fortuna
crítica de Hamlet deve ser radicalmente seletiva. Com efeito, áreas importantes da crítica
literária e estudos shakespearianos, como a crítica histórica, o materialismo cultural e os
estudos derivados de outras abordagens psicanalíticas como aquela proposta por Jacques
Lacan, apesar de merecerem ser mencionadas, não foram discutidas nestas páginas. No
entanto, sinalizo que o panorama aqui exposto pode auxiliar a nossa compreensão da peça
Hamlet em adaptação para os Cinemas, foco desta Tese. Portanto, passo, na próxima seção,
a uma breve discussão sobre a fortuna crítica de Hamlet legada pelo cinema, a partir da
análise de suas principais adaptações.
1.2. Hamlet no cinema: por uma historiografia crítica das principais adaptações
55
“Hamlet , the most filmed of Shakespeare’s play, gives us a range of cinematic interpretations to compare”
56
“Rapidly, but inexorably, Shakespeare films have assumed canonical positions...”
63
Na era do filme falado, Rothwell ([1999] 2004) nos chama a atenção para o fato de
que o primeiro país a adaptar o Hamlet shakespeariano foi a Índia, a partir do trabalho de
Sohrab Modi (1897 – 1984) em Sangue por Sangue (Khoon Ka Khoon, Índia, 1935). Na
década seguinte, entre outras produções que procuraram adaptar o drama para as telas,
57
Apesar de, por vezes, direcionar o peso de escolhas adaptativas ao diretor das películas sob escrutínio,
ressalto que o trabalho de construção fílmica não é um trabalho isolado, dependendo as decisões tomadas de
fatores diversos tais como o gênero do filme, o estúdio de filmagens, a influência dos produtores e roteiristas,
as exigências do mercado etc.
58
Nesta Tese, quando possível, sigo as traduções comerciais dos títulos do filme para a língua portuguesa –
brasileira ou europeia. Na inexistência de uma versão da tradução para fins comerciais em português, opto
por traduzir os títulos das películas.
64
destaca-se a leitura do cineasta britânico Laurence Olivier (1907 – 1989) sobre o drama em
Hamlet (Inglaterra, 1948). Além de dirigir, Olivier atua como o protagonista da peça/filme,
em atuação que lhe rendeu o prêmio máximo da academia americana de cinema para a
categoria, o Oscar de Ator. Hollywood também premiou o filme com o Oscar.
Rodado em preto e branco, Olivier abre sua película com os dizeres "Esta é a
tragédia de um homem que não conseguia se decidir"59, anunciando o tom psicanalítico,
talvez influenciado por leituras de Hamlet and Oedipus de Ernest Jones ([1949] 1976), que
daria a sua produção. É interessante lembrar que, na esteira da interpretação pretendida,
todo contexto político – incluindo-se o personagem Fortimbrás, herdeiro da Noruega, e
Guilderstern e Rosencrantz, retratos da corrupção do rei Cláudio – foi suprimido, dando
lugar a uma interpretação que privilegiava a questão edipiana visualizada por Jones. Taylor
(1994, p. 183) nos lembra, inclusive, da ocorrência de conversas entre Olivier e Jones, no
final da década de 1930, sobre as motivações do príncipe Hamlet. Esse autor afirma
também que, dentre os filmes shakespearianos, a leitura dada por Olivier é aquela “que
destaca as relações pessoais dentro da corte de Elsinore, a individualidade do príncipe e,
em particular, sua distinta condição psicológica”60 (1994, p. 181). Em resumo, nas palavras
de Crowl (2008, p. 24), o filme focaliza o
próprio desejo reprimido de Hamlet de matar seu pai e casar com sua mãe. Os
dois homens [Hamlet e Claudio] estão intrinsecamente ligados, e Hamlet
subconscientemente entende que matar Cláudio é o mesmo que cometer
suicídio.61
59
"This is the tragedy of a man who could not make up his mind".
60
"(...) which stress personal relationships within the court of Elsinore, the individuality of the Prince and, in
particular, his distinctive psychological condition."
61
“Hamlet’s own repressed desire to kill his father and marry his mother. The two men are intricately linked,
and Hamlet subconsciously understands that to murder Claudius is to commit suicide.”
62
"(...) the film as a whole explores Hamlet's inner life..."
65
o tom psicanalítico do filme ao afirmar que, além dos pontos aqui já sinalizados, podemos
encontrar mais ecos da abordagem de Freud e Jones na produção de Olivier, ao
observarmos, por exemplo,
A autora aponta, ainda, que a própria escolha da produção por Eileen Herlie para
atuar como Gertrudes no filme pode acentuar a leitura edipiana do longa, por meio do foco
nos laços eróticos que uniam a personagem a seu filho, uma vez que a atriz tinha vinte e
sete anos na época das filmagens e Olivier, intérprete de Hamlet, quarenta.
63
“(…) the erotic treatment of the relationship between Hamlet and Gertrude, emphasized by the use of an
unusually large bed in the ‘closet scene’ (which doesn’t call for a bed at all) on which Hamlet and Gertrude
roll in a sexually suggestive manner during their struggle of wills in 3.4; the attribution of Hamlet’s delay to
an implicit comparison between himself and Claudius; and the interpretation of his final acts as self-
destructive.”
66
Desse modo, o filme do diretor nipônico antecipa leituras políticas do drama que, apesar de
já latentes na década de 1970, só teriam forte impacto na crítica shakespeariana nas últimas
décadas do século XX. Sua leitura da peça, de certa maneira, assemelha-se à leitura
contextual de Andrew Fitzmaurice (2009), uma vez que o Hamlet do filme se configura
como um personagem profundamente afetado pela corrupção da vida política; no caso do
filme em questão, pelas relações políticas dentro de grandes corporações japonesas. Assim
como a Dinamarca da peça, o mundo em que o personagem principal do filme vive é um
mundo em decadência, com a presença de dissimuladores, espiões; uma decadência que, de
certo modo, provoca instabilidade emocional naqueles que o habitam. Com efeito,
Kurosawa demonstrou procurar em Hamlet uma chave para um movimento de
compreensão de sua própria época, de seu próprio momento sociopolítico.
O filme do cineasta japonês abriu espaço para outras adaptações que, no decorrer
dos séculos XX e XXI, procuraram em Hamlet embasamento para seu próprio processo
criativo de reescritura. No entanto, apesar do relativo sucesso do filme nipônico na Ásia e
na Europa, a mais famosa adaptação da peça dos anos 1960 foi a orquestrada na então
União Soviética por Grigori Kozintsev ( Гамлет, Gamlet, Russia, 1964). Diferentemente
de Olivier e na esteira de Kurosawa, o diretor russo traz de volta ao enredo a questão
política que se torna central em seu filme. Nas palavras de Kozintsev, a principal diferença
entre sua produção e aquela realizada por Olivier é que “Olivier corta o tema do governo, o
qual eu acho extremamente interessante”65 (KOZINTSEV apud TAYLOR, 1994, p. 185), o
que atesta a ligação do filme do diretor russo com leituras políticas da peça, sobretudo
64
Kurosawa's film seeks to expose the corruption at the core of Japan's giant corporations, employing a
suicidal Hamlet-figure (...) to destabilize a rigidly hierarchal world. (...) Kurosawa's source allows him to
develop his own variations on themes prominent in Hamlet, including spying, concealment, corruption,
power, psychological instability, isolation, deception, and betrayal.
65
"Olivier cut the theme of government, which I find extremely interesting."
67
Durante o stalinismo, como nos conta Birgit Beumers (2009, p. 99), foi criada uma
instituição, denominada Soyouzkino – Cinema da União – que era responsável por práticas
de censura, controlando a forma e conteúdo dos filmes produzidos em todos os estúdios da
URSS. Por décadas, essa instituição tornou impossível a emergência de filmes como o
Hamlet de Kozintsev, inclusive condenando os diretores que ousavam desrespeitar os
limites impostos à pena de enforcamento.
66
Visão doutrinária e prática política ligada ao governo de Josef Stalin (1878 – 1953) na antiga União
Soviética. O stalinismo se configura como uma interpretação particular do Marxismo.
67
"The film can be read as a critique of a specific political situation in Russia and as a fatalistic statement
about individual's experience of history."
68
"For a decade or so, during the rise of Nikita Khrushchev, Russian filmmakers were no longer tightly
bound by the structures of Soviet social realism, and Kozintsev's Hamlet is both a moving reaffirmation of
Russian romanticism and a covert critique of Stalinist power politics."
68
69
"(...) determined by a desire to avoid bright colouration as a way of glossing over the truth..."
69
70
"Here is a Hamlet who can’t make up his mind, and who is, in the words of the video blurb, 'more macho
than melancholy'".
71
"(...) equipped to survive in the world of Rambo and the Evil Empire."
70
No entanto, Zeffirelli não foi o único a levar a peça às telas nos anos 1990. Kenneth
Branagh, que já havia adaptado Henrique V (Henry V, Inglaterra, 1989), retorna, em 1996,
à obra do bardo inglês ao lançar sua versão de cerca de 4 (quatro) horas do drama – o mais
longo filme comercial já realizado desde Cleópatra (Cleopatra, Inglaterra, EUA, Suíça,
1963) de Joseph Mankiewicz (CROWL, 2008, p. 38) –, de acordo com o diretor, em seu
texto integral73. Hapgood ([1985] 2003, p. 72-73) enxerga na versão de Branagh para o
texto shakespeariano um impulso em direção a um movimento de inclusão daquilo que
normalmente era descartado por outros cineastas. Para esse autor, na reconstrução da
tragédia por Branagh, “especialmente louvável é o tratamento dado aos papeis secundários,
desempenhados por um time de estrelas com um respeito sensível à tragédia individual
desses personagens”74 ([1985] 2003, p. 73).
72
"By casting Close and Gibson, two of Hollywood's biggest stars, Zeffirelli was not only approppriating
their box-ofice appeal (...) was also aware that his approach to the Hamlet-Gertrude relationship, given his
stars' most recent films, would lead witty viewers (...) to make the natural connections: "Lethal weapon meets
fatal attraction in what turns out to be a dangerous liaison."
73
É importante ressaltar que tal afirmação é controversa, uma vez que, como demonstrado por O’Shea (2010,
p. 09), Hamlet faz parte das peças problemáticas de William Shakespeare por ser encontrada em, pelo menos,
três diferentes versões: primeiro in-quarto, segundo in-quarto e fólio. Além disso, diferentes versões
conflacionadas da peça – com recortes das três fontes primárias – também são encontradas no mercado
editorial. Desta forma, faz-se aqui necessária a indagação sobre qual seria a versão ‘integral’ da peça.
74
“Especially praiseworthy is its treatment of the supporting roles, played by an all-star cast with sensitive
respect for their individual tragedies.”
71
Hapgood ([1985] 2003, p. 73) afirma ainda que, por fatores como a inclusão de
flashbacks e memórias, que tornam a história mais longa, diversos críticos apontaram a
abordagem de Branagh como exagerada. Ademais, provavelmente também por motivo de
sua longa duração, o filme de Branagh falhou comercialmente, apresentando problemas
para encontrar uma audiência. No entanto, estudiosos têm voltado sua atenção para a
película, dada a bem sucedida tentativa do cineasta de levar os filmes shakespearianos a
outras direções criativas. De acordo com Crowl (2008, p. 39), Branagh, juntamente com
dois diretores que mais fortemente influenciaram sua obra, Orson Welles e Olivier,
são auteurs. Cada um desenvolveu seu estilo individual e único para a tradução
de Shakespeare para a linguagem dos filmes. Branagh foi claramente
influenciado por Olivier e Welles, mas o que ele pegou desses diretores ele
reformulou para seus próprios propósitos artísticos. 76
Em relação a seu trabalho como diretor, mesmo não obtendo sucesso comercial
com Hamlet, que posteriormente teve uma versão reduzida na tentativa de ampliar seu
75
“Then up he rose and donned his clothes / And dupped the chamber door; / Let in the maid that out a maid
/ Never departed more.” (IV. 5. 52-55).
76
"(...) are film auteurs. Each man developed his own individual and unique style for translating Shakespeare
into the language of film. Branagh was clearly influenced by both Olivier and Welles, but what he took from
them he reshaped to his own artistic purposes."
72
alcance público, Branagh se tornou um dos cineastas shakespearianos mais eminentes, com
3 (três) outras adaptações do bardo lançadas nos cinemas: a já citada Henrique V, além de
Trabalhos de amor perdidos (Love’s Labour’s Lost, Inglaterra, França e EUA, 2000) e
Como gostais (As you like it, EUA e Inglaterra, 2006). O trabalho de Branagh também
abriu caminho para outras adaptações de Hamlet que, no final do século XX e início do
século XXI, procuraram construir novos caminhos de leitura para a abordagem desse
drama shakespeariano nos cinemas.
Uma dessas adaptações é a de Michael Almereyda, que pode ser tida como
controversa: se por um lado Almereyda procurou manter o texto original shakespeariano
nos diálogos e solilóquios de seus personagens, clamando uma direta ligação com o texto
dramático, por outro, modernizou a história ao realizar o movimento de realocação da
narrativa para os dias atuais, na cidade de New York, num mundo coorporativo, seguindo a
prática de Akira Kurosawa, que, como sinalizei, também vê o mundo empresarial como
cenário para sua versão de Hamlet. Com efeito, Almereyda rearranja o texto
shakespeariano a fim de adaptá-lo a sua escritura fílmica. De acordo com Hapgood ([1985]
2003, p. 73-74),
Nas palavras de Leão, “Celebrado por alguns, criticado por outros, Michael
Almereyda realiza um Hamlet contemporâneo, em que a corrupção está representada pela
cultura e economia das grades corporações” (2008, p. 297). Sua versão da peça, desse
modo, apresenta-se como influenciada não só pela crítica política (corrupção nas grandes
corporações) e de caráter (foco claro em Hamlet, o personagem) da peça, mas também por
versões fílmicas anteriores, como a já citada versão corporativa de Kurosawa para o drama
shakespeariano. A história de Hamlet, o filme, é contada em ritmo ágil, procurando dar
conta da mobilidade e fluidez do cenário contemporâneo. Hamlet é aqui representado
como um jovem novaiorquino, sendo extremamente urbano e atento às novas tecnologias
digitais. As atualizações na performance do texto shakespeariano vão desde a utilização de
imagens em laptops, passando por trechos da peça reproduzidos em folhas de fax (em vez
das cartas comuns à época do texto dramático) a conversas que, ao contrário do marcado
no texto original, acontecem pelo telefone. Os vídeo-diários também são frequentes
durante a película. Solilóquios como o famoso Too solid flesh são apresentados ao
espectador por meio das filmagens do jovem Hamlet.
Desse modo, de acordo com Hapgood ([1985] 2003, p. 74), o que faz o filme de
Almereyda funcionar é, diferentemente da versão de Branagh, uma extrema seletividade. O
filme de baixo orçamento, como sinaliza esse autor, é dominado por duas motivações inter-
relacionadas:
74
78
“(…) in it Shakespeare’s Elsinore has much in common with late capitalist New York City in 2000; and
what in Shakespeare is expressed through spoken words may be communicated visually and electronically,
by camera and telephone and through such high-tech means as cam-corders, fax machines, word-processors,
and surveillance cameras.”
75
79
Nesta Tese, ao abordar a adaptação de textos shakespearianos para o cinema, considero a produção desse
autor a partir de seu prisma literário, e não do viés teatral. Trabalho, dessa forma, com a noção de teatro
como gênero literário por meio da ideia de texto dramático, que configura, segundo Patrice Pavis ([1990]
2008, p. 22) “o texto lingüístico tal como é lido como texto escrito, ou tal como o ouvimos pronunciar no
decorrer da representação”. Assim, considera-se aqui somente o texto teatral que preexiste à encenação como
traço escrito e que não é (re-)escrito no momento da performance dramática.
76
Para esta Tese, apesar de considerar alguns dos apontamentos daqueles afiliados à
ideia de Tradução Intersemiótica – apontamentos esses que serão explicitados na próxima
seção –, alinho-me aos estudiosos das Teorias da Adaptação, sobretudo àqueles que partem
de um prisma intertextual e dialógico, como apontei na seção introdutória. Desse modo,
faz-se mister neste capítulo a apresentação das principais contribuições desses teóricos
para o repensar sobre as práticas de ressignificação de um texto literário para as telas do
cinema. No entanto, como é meu objetivo ir além da questão intertextual, perscrutando o
trabalho adaptativo também como uma prática transcultural, apresentarei aqui, a partir da
ideia de Antropofagia, o conceito de culturas e de relações culturais que permeia a Tese
construída, e também apontarei e discutirei as categorias analíticas escolhidas para
auxiliarem a leitura do corpus selecionado.
Como aponta Susan Bassnett ([1980] 2003), o linguista russo Roman Jakobson foi
o primeiro a dividir e a classificar os tipos de tradução realizados em nossas práticas de
compreensão de significados. Para este autor, em seu artigo Aspectos linguísticos da
tradução, poderíamos realizar de três formas o ato de transfigurar um texto em outro:
80
É importante ressaltar que tal classificação, em suas três subdivisões, encontra coerência na forma como o
linguista enxerga o ato de produção do significado. Para Jakobson é o contexto linguístico que nos oferece o
necessário para a interpretação dos sentidos, sendo esses um fator semiótico também significativo. Dessa
forma, o autor constrói sua teoria da tradução como, na verdade, uma grande teoria da interpretação de
textos, dado que “(...) o significado de um signo linguístico não é mais que sua tradução por um outro signo
77
No sistema proposto pelo linguista, pode-se traduzir qualquer texto para qualquer
língua. A linguagem, como experiência cognitiva, pode ser recodificada das mais diversas
formas para sagrar-se universal e, “(...) onde houver uma deficiência, a terminologia
poderá ser modificada por préstimos, calços, neologismos, transferências semânticas e,
finalmente, circunlóquios” (JAKOBSON, [1967] 1969, p. 67). No caso da tradução
intersemiótica de obras literárias para o cinema, a interpretação dos signos verbais por
signos não verbais, tais como a música, o som, a imagem, o gesto etc. é uma ferramenta
importante para a recodificação do texto da língua de partida.
Para Plaza ([1987] 2008), ainda, o ato de traduzir sempre extrapola o limite
linguístico e, seja a tradução interlingual, intralingual ou intersemiótica, depende sempre
de outros sistemas de signos para se realizar de forma concreta, guiando-nos, assim, em
que lhe pode ser substituído, especialmente um signo ‘no qual ele se ache desenvolvido de modo mais
completo’” (JAKOBSON, [1967] 1969, p.64).
78
direção a uma abordagem semiótica do fenômeno. A tradução, para Plaza ([1987] 2008), é
entendida como uma forma de retextualização e, pela filiação do autor à escola de
Frankfurt, especialmente à obra de Walter Benjamin, é uma retextualização sobre o
passado. Para o autor, a tradução cria um original sobre o passado, realizando uma ponte
entre pretérito-presente-futuro. Plaza deixa claro, dessa forma, o norte que tomará em seu
trabalho: a tradução intersemiótica como transação criativa entre as diferentes linguagens
ou sistemas de signos (PLAZA, [1987] 2008).
Também a partir dos estudos intersemióticos, Brian McFarlane (1996) propõe uma
perspectiva prática para a análise estrutural da relação entre obras literárias e
cinematográficas. Para esse autor, a questão narratológica deve estar no centro das
preocupações de qualquer estudo sobre o processo de adaptação, que este considera ser
pouco estudado pelos chamados críticos da adaptação, que voltam seus olhares para
pormenores referentes à relação entre a literatura e o cinema. Enxergando, como já apontei,
a adaptação como uma tradução intersemiótica, McFarlane (1996) propõe a realização de
uma análise da estrutura narrativa, das ações que traçam o esqueleto da história contada no
livro, as quais são adaptadas para o filme.
81
Para mais informações sobre a virada sociológica nos estudos da adaptação, recomendo o capítulo de R.
Barton Palmer, “The Sociological Turn of Adaptation Studies: The Example of Film Noir”, em A
companion to literature and film, editado por Robert Stam e Alessandra Raengo (cf. STAM e RAENGO,
2004).
79
Para tanto, tendo em mente que seu método analítico enfoca a centralidade da
narrativa, o autor propõe existirem nas obras literárias dois tipos de elementos: (1) aqueles
que podem ser facilmente transferidos ou traduzidos do texto verbal para o
cinematográfico por meio de um processo de transferência; e (2) aqueles que dependem de
maior criatividade, exigindo mais do tradutor, configurando-se como um processo de
adaptação (McFARLANE, 1996). Seguindo os pressupostos metodológicos elencados por
McFarlane, a análise da adaptação deveria focalizar a identificação desses elementos e, no
caso dos que são transpostos por um processo de adaptação, na elucidação das etapas
criativas por trás deles.
82
"(...) is obsessively concerned with problems of textual fidelity - and necessarily so, because the major
purpose of his book is to demonstrate how the 'cardinal features' of narrative, most of them exemplified by
canonical, nineteenth-century novels from British and American authors, can be transposed intact to movies.
As he puts it, he wants to set up ‘procedures for distinguishing between that which can be transferred from
one medium to another (essentially, narrative) and that which, being dependent on different signifying
systems, cannot be transferred (essentially, enunciation)’."
80
83
A ideia de Desconstrução cunhada por Jacques Derrida emprega o termo emprestado da arquitetura para
indicar a decomposição de uma estrutura. Derrida compõe e emprega a ideia na tentativa de desfazer,
denunciar, sem jamais destruir, um sistema falo-fonocêntrico de pensamento hegemônico e dominante (cf.
DERRIDA e ROUDINESCO, 2001).
84
É importante ressaltar que, apesar das contribuições evidentes dos efeitos da diferenciação efetuada por
Stam (2000) entre as duas mídias - o romance e o filme -, a compreensão que o autor apresenta de romance
pode ser considerada limitada, uma vez que hoje já se encontra no mercado livreiro um sem número de
romances com imagens, gráficos, fotos, ilustrações etc. que se comportam como elementos da narrativa.
85
“the shift from a single-track, uniquely verbal medium such as the novel, which “has only words to play
with”, to a multitrack medium such as film, which can play not only with words (written and spoken), but
also with theatrical performance, music, sound effects, and moving photographic images, explains the
unlikelihood – and I would suggest even the undesirability – of literary fidelity.”
81
Para o autor, adotar um critério de fidelidade é ignorar a diferença entre os meios que se
diferenciam até mesmo em seus processos de produção. Aceitar a fidelidade como uma
categoria crítica seria, portanto, essencializar a relação entre as duas mídias, assumindo
que o romance – ou quaisquer outras formas de obras de partida – contém uma espécie de
espírito que deveria ser captado pela adaptação, independentemente de suas
especificidades textuais.
De acordo com Stam (2000, p. 59), para evitarmos tais visões essencialistas, é
necessário, então, que não enxerguemos a adaptação como subordinada à obra de partida,
mas sim a entendamos como uma nova obra, produto de outro ato criativo, com suas
próprias especificidades. Uma das formas consideradas pelos estudiosos é, dessa maneira,
a percepção do texto de chegada como a leitura de um romance, poesia ou drama fonte, um
texto de partida, leitura essa que “(...) é inevitavelmente parcial, pessoal e conjuntural”86
(STAM, 2004, p. 04). Stam (2000, p. 64) propõe, então, que assumamos o processo de
adaptação como uma forma de dialogismo intertextual, sugerindo que todas as formas de
texto são, na verdade, intersecções de outras faces textuais.
86
“(…) is inevitably partial, personal, conjunctural”
82
cada enunciado [como] pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais
está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva”.87
Linda Hutcheon (2006, p. 02), em A theory of adaptation, defende que, nos dias
atuais, as adaptações de qualquer espécie estão em todo lugar. Considerando tal
pressuposto, a autora promove um questionamento sobre a prática de classificar as
adaptações como secundárias, como trabalhos derivados: para Hutcheon, a rotulação da
obra adaptada como inferior ou cópia de um original é derivada de uma concepção
pejorativa sobre o próprio processo de adaptação (HUTCHEON, 2006, p. 02-03).
87
Para Bakhtin e seu círculo, a língua(gem) em sua totalidade concreta, viva, em seu uso real, tem a
propriedade de ser dialógica. Essa propriedade vai além do diálogo face a face e existe em todas as esferas da
comunicação humana. De acordo com o autor, todo discurso é, indiscutivelmente, ocupado e atravessado
pelo discurso alheio, ou seja, o discurso de um está sempre atravessado pelo discurso de outrem (cf.
VOLOSHINOV/BAKHTIN, [1929] 2006). A lingua(gem) passa, desse modo, a ser vista como o ponto de
tensão e interação entre as vozes sociais. Nas palavras de Bakhtin, “somente na sua totalidade tal ato [de
linguagem, entendido como uma forma de engajamento na corrente ininterrupta do discurso] é
verdadeiramente real, participa do existir-evento; só assim é vivo, pleno e irredutivelmente, existe, vem a ser,
se realiza” ([1920-24] 2010, p. 42).
88
“In telling (...) our engagement begins in the realm of imagination, which is simultaneously controlled by
the selected, directing words of the text and liberated – that is, unconstrained by the limits of the visual or
aural.(…) But with the move to the mode of showing, as in film and stage adaptations, we are caught in an
unrelenting, forward-driving story. And we have moved from the imagination to the realm of direct
83
perception – with its mix of both detail and broad focus. (…) Interacting with a story is different again from
being shown or told it – and not only because of the more immediate kind of immersion it allows.”
89
Júlia Kristeva é a responsável pela construção do termo intertextualidade em artigo publicado
originalmente na revista Critique, no qual a autora promove uma longa discussão acerca das teorias
bakhtinianas contidas nas obras Problemas da poética de Dostoievski e A obra de François Rebelais (cf.
FIORIN, [2006] 2008, p. 162-163). Para Kristeva o discurso não seria um ponto com sentido fixo, mas sim
um cruzamento de superfícies textuais, diversas escrituras em diálogo. Desta forma, todo texto seria
construído como um mosaico de citações, sendo absorvido e transformado a partir de outro – ou outros –
texto – ou textos (cf. KRISTEVA, [1969] 1974).
90
Trabalhando a partir dos conceitos cunhados por Bakhtin (dialogismo) e Kristeva (intertextualidade),
Genette desenvolve em sua obra Palimpsestes: La littérature au second degré novas formas de entender a
relação entre textos. Seu trabalho tem sido considerado útil pela crítica especializada no estudo das teorias da
adaptação, principalmente no que diz respeito às cinco formas de transtextualidade, termo mais inclusivo
cunhado pelo autor para se referir a textos que, implícita ou explicitamente, se encontram em relação com
outros textos (cf. GENETTE, [1982] 1997).
91
“(…) adaptations and appropriations can vary in how explicitly they start their intertextual purpose. Many
of the film, television, or theatre adaptations of canonical works of literature that we look at in this volume
openly declare themselves as an interpretation or re-reading of canonical precursor. (…) In appropriations the
84
Ecoando Deborah Cartmell, Sanders (2006, p. 20) nos apresenta três pontos de vista
possíveis para a análise das adaptações, as quais, nas palavras da autora, não deveriam ser
julgadas por valores como fidelidade, mas sim por sua metodologia e análise ideológica.
Nessa linha, os três horizontes possíveis seriam:
intertextual relationship may be less explicit, more embedded, but what is often inescapable is the fact that
political or ethical, commitment shapes a writer’s, director’s, or performer’s decision to re-interpret a source
text...”
92
“‘Transposition’, in which the literary text is transferred as accurately as possible to film (Branagh’s
Hamlet, 1996, for instance); ‘commentary’, in which the original is altered (as in Joffé’s Scarlet Letter,
1995), and analogy, in which the original text is used as a point of departure (as in Amy Heckerling’s
Clueless, 1995).”
85
Venuti (2007, p. 28) defende, então, uma visão de adaptação análoga aos estudos da
tradução – importante ressaltar que essa visão não se pauta pela ideia de uma tradução
intersemiótica – e subsidiada por uma abordagem da linguagem como constitutiva do
pensamento e determinante da realidade. Dessa forma, enxerga-se a teoria da adaptação
como uma interpretação que constrói uma forma e sentido no texto de partida de acordo
com crenças, valores e representações da língua e culturas de chegada. Em termos amplos,
para o autor, essa atividade é uma forma de comunicação transcultural que deve procurar
não relações – que ele acredita existir – entre textos de partida e de chegada, mas saber que
essas relações estão sujeitas às exigências de um trabalho interpretativo que é determinado
86
pela língua e culturas de chegada. Há, dessa forma, uma visão da adaptação como um
processo de recontextualização: de um contexto – de partida – a outro – de chegada. Nas
palavras de Venuti (2007, p.35)
O que o autor parece clamar, como sinalizei na seção de apresentação desta Tese,
não é um abandono total da questão intertextual, mas a adição do fator cultural, que teria a
potencialidade para a construção de um novo olhar sobre o estudo da adaptação como
fenômeno popular da contemporaneidade. No entanto, apesar das válidas críticas
delineadas por Venuti, o que se pode notar é que, na academia, sobretudo no mundo
anglófono, ainda são poucos os estudos centrados na questão cultural. Em uma das mais
recentes coletâneas organizadas sobre a problemática da adaptação, True to the spirit: film
adaptation and the question of fidelity, de Colin MacCabe, Kathleen Murray e Rick
Warner (2011), pouco espaço foi dado às questões culturais, e, quando o tema se faz
presente nos textos que compõem o volume, elas são abordadas de forma secundária e
periférica.
epígrafe deste capítulo, “[...] traduzir significa [...] perpetuar ou contestar, aceitar ou
desafiar. Do mesmo ponto de vista, envolve, sobretudo, uma leitura transcultural” (DINIZ,
1994, p.41).
94
Além de distinguir as três diferentes fases da confecção de um texto fílmico, Miranda e Inokuchi adaptam
não apenas a terminologia proposta por Pavis, que, como afirmado anteriormente, estava interessado na
questão da performance teatral, mas também adicionam um item aos demais já estabelecidos pelo autor: a
concretização da edição, que não ocorre com o texto teatral em performance (cf. MIRANDA e INOKUCHI,
2009).
88
Para tanto, na tentativa de delinear o que entendo nesta Tese como culturas e como
relações culturais, construo a próxima seção.
2.2. Relação entre culturas: por uma prática adaptativa de devoração transcultural
A síntese
O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
(ANDRADE, [1990] 2011, p. 63)
método, com a forma como abordamos os textos enquanto objetos transculturais, nas
palavras do autor: “com a estratégia de leitura dos textos afins” (SANTIAGO, [1980]
2001, p. 05). Em resumo, nem a postura etnocêntrica que privilegia a metrópole sobre a
colônia, nem a abordagem radicalmente nacionalista, ufanista, parecem dar conta do
pensamento e da produção literária brasileira em sua relação com o pensamento e a cultura
literária europeia. A partir desse pressuposto, Santiago explicita sua proposta de um
processo tático e desconstrutor, que visaria a destacar os aspectos diferenciais inaugurados
pelos textos produzidos na America Latina, sem deixar de lado sua clara inter-relação.
Essa forma de pensar enfatiza a diferença que o texto dito dependente instaura
sobre o texto da matriz europeia, diferença essa que constrói significativamente as marcas
de uma cultura considerada pelo autor como periférica. A dependência, dessa forma, passa
a ser enxergada como inevitável; “não se escamoteia a dívida95 para com as culturas
dominantes, pelo contrário enfatiza-se a sua força coerciva; não se contenta com a visão
gloriosa do autóctone e do negro, mas se busca a inserção diferencial deles na totalização
universal” (SANTIAGO, [1980] 2001, p. 05). Dialogicamente, Santiago sugere que, caso
abordemos os textos ditos periféricos por meio do horizonte de leitura que apresenta,
conseguiremos realmente que os textos da cultura europeia tenham, pela primeira vez e de
forma concreta, uma possível avaliação real da sua universalidade: “A universalidade só
existe, para dizer a verdade, nesse processo de expansão em que respostas não-
etnocêntricas são dadas aos valores da metrópole” (SANTIAGO, [1980] 2001, p. 06).
95
É importante ressaltar que, numa visão antropofágica, a ideia de dívida de certas culturas para com outras é
problemática, uma vez que o movimento de inter-relação entre as culturas é enxergado como dialógico, com
benefícios mútuos.
90
Assim como Santiago ([1980] 2001), Schwarz (1987) argumenta que atitudes
ufanistas que visam à subtração do europeu à procura da substancia autêntica brasileira são
experiências pré-destinadas ao fracasso, uma vez que nossa cultura se constitui muito mais
da “(...) diversificação de modelos europeus à exclusão do modelo português” (p. 33).
Também considera inúteis tentativas de separar as influências francesas e inglesas, pois, se
as colocarmos à parte, restauraríamos na cultura brasileira a ordem colonial, isto é, uma
criação portuguesa. Nesse sentido, o autor afirma que, ao contrário de empreender uma
busca pelo substrato original da cultura brasileira, “seria mais exato e neutro imaginar uma
sequência infinita de transformações, sem começo nem fim, sem primeiro ou segundo, sem
91
pior ou melhor” (1987, p. 35). Nesse contexto, o programa proposto por Oswald de
Andrade poderia permitir a alteração da tônica do sentimento de cópia e inadequação
causado no Brasil pela cultura ocidental: “É o primitivismo96 local que devolverá à cansada
cultura europeia o sentido moderno, quer dizer, livre da maceração cristã e do utilitarismo
capitalista” (1987, p. 37).
Depois de tratarem bem de seus prisioneiros por longo tempo e com todas as
comodidades em que podem pensar, aquele que é o chefe faz uma grande
reunião de seus conhecidos; amarra em um dos braços do prisioneiro uma corda,
por cuja ponta o segura, e dá ao mais querido de seus amigos o outro braço para
ser segurado da mesma forma; e ambos em presença de toda a assembleia,
96
O uso do termo privitivismo por Schwarz (1987) me parece problemático, por, implicitamente, criar um
vértice hierárquico no qual a cultura brasileira seria vista como rudimentar e a europeia como desenvolvida.
92
97
“(...) the way people draw analogies between different domains of their worlds”.
94
ou construtores. O autor ([1992] 2002a, p. 209) também afirma pensar ser mais
interessante que a definição estática das culturas, a indagação das condições que facultam a
certas culturas a atribuição de uma posição relacional de suplementaridade ou de
alternatividade em relação ao próprio sistema de crenças que apresentam. É importante
lembrar ainda, de acordo com o antropólogo brasileiro, que a própria ideia de uma “(...)
relação apenas pode existir entre o que difere e na medida em que difere98” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2004, p. 20).
O que Oswald de Andrade fez ao trazer o ritual indígena para o campo cultural,
desse modo, foi lançar “(...) o mito99 da antropofagia, trazendo para as relações culturais
internacionais o ritual canibal.” (VELOSO, 2012, p. 54), conforme descrito por Viveiros
de Castro. Caetano Veloso (2012, p. 54) nos conta ainda que, a partir da antropofagia como
um conceito cultural, criava-se a ideia de que não deveríamos imitar, mas sim devorar a
informação nova, de onde quer que ela viesse, reinventando a partir do prisma brasileiro a
experiência estrangeira. A ideia de uma Antropofagia funciona, portanto, como a receita de
um comportamento criativo que se diferenciava em muito das vigentes formas de
compreensão das relações culturais. Desse modo, o conceito oswaldiano permite, segundo
Veloso (2012, p. 53), a libertação das vanguardas europeias por meio de um ato
originalmente nativo, sobretudo, Tupinambá (VIVEIROS DE CASTRO, [1992] 2002a).
99
Entendo que, ao contrário da compreensão proposta por Veloso (2012), Oswald de Andrade não construía
o conceito de Antropofagia como uma proposta mítica, uma vez que os mitos se configuram no universo do
imaginário como modelos de explicação – descritivos, portanto– da realidade. Andrade, pelo contrário,
propunha o conceito como procedimental, isto é, a Antropofagia como um procedimento para o contato
transcultural.
100
“The confrontation should implicate the two sides mutually, altering the discourses it brings into play in
equal measure, since the aim of the procedure is not to arrive at a consensual optimum, but a conceptual
maximum.”
96
Shohat & Stam ([1994] 2008, p 307) descrevem o processo antropofágico como
uma atividade cultural pela qual os modernistas brasileiros devoravam os produtos
importados que no Brasil chegavam, os explorando como material bruto para a formulação
de novas sínteses, novos produtos, que poderiam, após transformados, serem impostos
contra a imagem do colonizador. Desse modo, o conceito de Antropofagia ganha também
uma definição pautada na luta pós-colonialista, isto é, como uma técnica de produção de
conhecimento pelos países ditos subdesenvolvidos que lhes permitiria a luta contra o
movimento de dominação artística e cultural por meio de uma “(...) reciclagem crítica da
cultura estrangeira” (SHOHAT & STAM, [1994] 2008, p. 308)101. Com efeito, torna-se
possível enxergar a prática da antropofagia não como uma atividade canibalística, que
implica a devoração da carne humana como comida para o corpo, mas como uma prática
de resistência cultural, que representa a ingestão de comida para a alma (ARENS, 1998, p.
46).
101
“(…) critical recycling of foreign culture.”
102
“(…) as the means to construe a hybrid and unique Brazilian cultural identity.”
97
Apesar de sua visão universal do surgimento dessas literaturas, Campos afirma que,
dentro de sua universalidade, obras como as da literatura brasileira apresentam um caráter
diferencial, e é esse caráter diferencial que as destaca em relação ao código universal. O
nacionalismo, a cultura nacional, é fundado, desse modo, a partir da diferença. Com efeito,
Campos ([1992] 2010a, p. 235) retoma o conceito de Antropofagia de Oswald de Andrade,
para destacar a capacidade de apropriação, assim como de expropriação, desierarquização
e desconstrução dos valores culturais europeus, estrangeiros. A Antropofagia nos
permitiria, então, compreender a “Relação entre patrimônio cultural universal e
particularidades locais” ([1992] 2010a, p. 231) num contexto de “relações universais, uma
interdependência universal de nações” ([1992] 2010a, p. 233). Nas palavras de Campos,
A partir dessa perspectiva, Campos afirma que “escrever, hoje, na América Latina
como na Europa, significará, cada vez mais, reescrever, remastigar.” (CAMPOS, [1992]
2010a, p. 255), ou ainda, recriar, criar paralelamente, como afirma em Da tradução como
criação e como crítica (CAMPOS, [1992] 2010b). Nesse processo, os valores culturais
tradicionais estrangeiros são adaptados às necessidades locais e temporais, num
movimento denominado pelo autor de transculturação ou transvaloração. A ideia de uma
transculturação fundada numa perspectiva antropofágica apresenta-se como uma
ferramenta útil para a construção de inteligibilidade sobre as relações transculturais que
envolvem um diálogo dialógico entre um eu e um outro, além de permitir, de acordo com
Campos ([1992] 2010a, p. 243), a desconstrução – e, acrescento, posterior reconstrução –
da herança cultural europeia. A prática de transculturação, já enraizada na cultura brasileira
– o que leva, inclusive, à afirmação de Frederick Moehn (2012, p. 204) de que na música
nacional, por exemplo, gêneros importados como rock, funk e rap são pensados como
gêneros da própria cultura local -, é enxergada nesta Tese como uma possível prática
universal: isto é, não se atendo apenas ao contexto brasileiro, mas a diversos outros
contextos nos quais se fez necessário devorar a cultura estrangeira para fazer dela parte de
si própria e, ao mesmo tempo, outra. Shohat & Stam ([1994] 2008, p. 313) corroboram
essa visão ao afirmarem que até mesmo
103
“Native (North) American artists perform their own kind of anthropophagy. Everything brought in from
Europe, says Jimmie Durham, ‘was transformed with great energy… (…) We are able to do that because of
our cultural integrity and because our societies are dynamic and able to take in new ideas.’”
99
(...) o fim último da análise intertextual da obra literária é verificar de que modo
o intertexto absorveu o material do qual se apropriou e não se deter nas
semelhanças entre o enunciado transformador e seu lugar de origem ([1997]
2010, p. 166).
É importante ressaltar também que a Antropofagia, como aqui entendida, que não
se trata, como apontei, de um simples ato provocado por um hábito primitivo alimentar,
que implicaria a simples absorção violenta do outro pela cultura receptora, mas sim de um
movimento de devoração, isto é, de experimentação violenta do outro, uma vez que os
povos que o praticavam acreditavam que estariam adquirindo as habilidades e força das
pessoas e das tribos que comiam. Nesse sentido, a devoração promulgada pelos
antropófagos afasta-se da ideia de um simples canibalismo, isto é, de hábito alimentar e
comportamento predatório; a Antropofagia constitui-se como um movimento de, como
sinalizado pelos autores com quem dialogo nesta seção, incorporação, admiração e
vingança do/contra o outro. Com efeito, o que o conceito que aqui proponho, o da
Devoração Transcultural como horizonte de leitura, instaura é um movimento de relação
104
A postura Antropofágica permite o questionamento do binarismo local-global, possibilitando a
compreensão da cultura como um fenômeno glocal; em outros termos, local e global não como instâncias
excludentes e contrárias, mas sim que partilham e circulam discursos concomitantemente (CANCLINI, 1995,
p.85).
101
mútua de construção cultural de um ser: eu te degusto para fazer de você parte de mim, e
vice-versa.
Tal enfoque pode nos ajudar a delinear o alcance interpretativo do texto literário
dramático – no caso, Hamlet – após inserido na língua e culturas de chegada, uma vez que,
em um novo contexto socio-histórico, em novas culturas, o texto pode permitir a
construção de sentidos não ainda evidentes no contexto e culturas iniciais de sua produção.
No entanto, para instrumentalizar a utilização do conceito aqui proposto, é necessário que
consideremos categorias de análise que permitirão a abordagem do texto fílmico adaptado
a partir de suas próprias especificidades, e considerando o processo de adaptação como um
processo eminentemente transcultural. A apresentação de tais categorias é o tópico da
próxima seção.
105
A adaptação textual é compreendida nesta Tese como um Procedimento Técnico Global de Tradução
(AMORIM, 2013b, p. 296); isto é, sendo enxergada como "(...) o limite extremo da tradução..." e podendo
ser aplicada não somente em contextos onde se faz necessária a adaptação cultural - como promulgado pelos
principais expoentes dos Procedimentos Técnicos de Tradução –, mas ao texto como um todo (2013, p. 295).
103
106
A ideia de erros de sintaxe é altamente problemática no cenário apresentado pela linguística
contemporânea, especialmente se considerarmos a discussão mais ampla sobre as variantes linguísticas como
promulgada pela sociolinguística variacionista (BORTONI-RICARDO, 2005).
107
“(…) manipulated, cut, re-arranged according to the directives of a mise en scène, can it still maintain an
identity with the “original”? In other words, after so many changes is it still Shakespeare’s play?”.
104
como nos lembra Stam (2000, p. 56), inevitáveis no processo de adaptação de um texto
verbal para uma mídia multimodal como o cinema. Em especial, atentar-me-ei para a
transformação genérica da tragédia elisabetana para os gêneros cinematográficos nos quais
se inserem os diretores brasileiros. Um exemplo de transformação radical de gêneros
dentro do chamado cinema shakespeariano é a releitura efetuada em 1979, no Brasil, por
José Amâncio da peça Romeu e Julieta (Romeo and Juliet, 1595-1596), intitulada Mônica
e Cebolinha no mundo de Romeu e Julieta. Além de transpor a tragédia elisabetana para a
comédia infantil, o diretor ainda constrói seu filme no formato de desenho animado, com
os personagens do enredo shakespeariano sendo representados pelos famosos personagens
da Turma da Mônica, série em quadrinhos criada e imortalizada no Brasil pelo desenhista
Maurício de Souza. A mudança de gêneros em relação ao texto de partida impulsiona
reformulações no enredo e caracterização visual na tentativa de adequar a trama ao novo
contexto estrutural determinado pelo gênero de chegada. Nesse sentido, ao observamos tal
mudança, também dialogamos com as culturas cinematográficas de cada país de chegada
do texto Hamlet, uma vez que as características dos gêneros cinematográficos são, muitas
vezes, reconfiguradas em diferentes culturas cinematográficas.
108
“(…) does not concern itself solely with work on the verbal text. (…) the analysis of all the other non-
verbal texts is unavoidable.”
105
Como atestado pelas epígrafes que abrem este capítulo, a fala de Jô Soares, em
entrevista com Dilma Rousseff, ao abordar os escândalos que assolaram a maior
companhia estatal do país, a Petrobrás, na segunda década do século XXI, e a
rememoração de Silva em relação a uma piada construída no filme Tropa de Elite 2, de
José Padilha, William Shakespeare e seus textos são, continuadamente, intertextualizados e
dialogizados nos mais diferentes textos e discursos que constituem o território brasileiro. O
dramaturgo elisabetano-jaimesco tem trechos de suas peças e fatos de sua vida ventilados
por discursos construídos nos mais diferentes meios de comunicação, dentro dos mais
diversos suportes, em nossa sociedade contemporânea. Nesse sentido, resta-nos indagar
sobre como o relacionamento do bardo com a cultura brasileira principiou; assim, nesta
primeira seção, procuro apresentar como William Shakespeare e suas peças chegaram ao
Brasil, especialmente por meio da história de suas encenações, traduções e adaptações,
sejam elas para o teatro, o cinema ou ainda para a TV.
Marcia Martins (2008, p. 302) nos conta que, inicialmente, as peças de Shakespeare
chegavam ao Brasil a partir da visita de companhias estrangeiras, em específico as
francesas, que traziam em seu repertório montagens de tragédias do bardo, como Romeu e
Julieta e Otelo. Essas montagens geralmente eram encenadas na própria língua estrangeira,
normalmente o francês, ou, quando muito, a partir de traduções portuguesas de versões
francesas dos dramas. Assim, na maior parte das vezes, os textos encenados não eram
traduções lineares das obras em inglês, mas das versões e adaptações em francês, que
109
Jô Soares, em entrevista com a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, transmitida pela Rede Globo
de televisão no dia 12 de junho de 2015. O vídeo da entrevista pode ser encontrando em diversas plataformas
de streaming na internet, como em: https://www.youtube.com/watch?v=JOwzBFkwBMI.
107
apesar dos comentários negativos recebidos de grande parte da elite literária e cultural da
época, representada, por exemplo, pelas figuras de poetas como Gonçalves Dias e
Machado de Assis. Nos anos seguintes, o ator voltaria a trabalhar com os textos
shakespearianos em montagens de Otelo e Macbeth, ambas utilizando retraduções para o
português brasileiro a partir das adaptações francesas de Ducis (MARTINS, 2008, p. 303).
De acordo com Silva (2013, p. 271-271), Caetano, com o Otelo, não só atingiu o maior
sucesso comercial de sua carreira, como também ficou marcado para a posterioridade
como o primeiro grande ator shakespeariano brasileiro. Foi também a partir da encenação
de Otelo por João Caetano que Shakespeare entra de vez na cultura teatral brasileira, e com
isso, mais uma vez, é interessante notar a transculturalidade do sucesso de Shakespeare no
país: o Otelo de João Caetano era uma peça originalmente inglesa, encenada para
brasileiros e em português, a partir de uma adaptação francesa.
Após as famosas montagens de João Caetano, por quase um século não houve
atores brasileiros interessados em levar peças de Shakespeare aos palcos nacionais.
Encenações dos textos dramáticos do bardo só chegavam aos teatros brasileiros por meio
de companhias estrangeiras, que as traziam em seu repertório também a partir de versões
domesticadas sob os princípios neoclássicos. Heliodora (2008, p. 325-326) nos conta que
“(...) entre 1871 e o final do século, o Brasil foi visitado por oito companhias italianas,
duas espanholas e mais duas portuguesas, com peças de Shakespeare (ou suas
adaptações)...”. Dentre essas companhias, as que fizeram mais sucesso foram as italianas,
que encenavam os textos em traduções para o italiano, muitas vezes realizadas a partir de
versões em francês das peças originalmente escritas na Inglaterra do início da Modernidade
em inglês. Já no início do século XX, as companhias francesas voltaram a disputar lugar
com as italianas nos palcos brasileiros: em 1905, por exemplo, chega ao Brasil uma versão
de Hamlet com a atriz Sarah Bernhardt, que, como apresentei no Capítulo um desta Tese,
havia participado cinco anos antes da primeira adaptação dessa peça para a linguagem
cinematográfica.
em nossa história literária”, como Machado de Assis (cf. CLARO, 2015), Visconde de
Taunay (cf. GREGÓRIO, 2015), Álvares de Azevedo e Alphonsus de Guimaraens (cf.
GUILHEN, 2015), em textos de ampla circulação no mercado editorial nacional durante as
primeiras décadas do século XX. Como aponta Silva,
Ainda sobre o teatro, é interessante sinalizar que, durante as quatro últimas décadas,
as adaptações de Shakespeare por companhias brasileiras aumentaram consideravelmente
em volume. De qualidades diversas, diferentes peças têm sido montadas e, em alguns
casos, por mais de uma vez – Hamlet, por exemplo, chegou aos teatros nos últimos dez
anos pelas mãos de Aderbal Freire Filho (2008) e Ron Daniels (2012). No entanto,
algumas montagens têm se destacado, na tentativa de ressignificar os textos do bardo para
o território brasileiro. Uma dessas montagens é a encenação de Romeu e Julieta, pelo
Grupo Galpão, de Belo Horizonte, com Gabriel Vilella como diretor convidado. Esta
montagem da tragédia elisabetana, concebida para ser apresentada na rua, como é tradição
do grupo, corta o texto e o recria, antropofagicamente, entremeando a ação com canções
tradicionais mineiras e regionais e destacando a visualidade da peça por meio de aplicação
de técnicas circenses universais ao mesmo tempo em que se mantém próxima ao enredo
shakespeariano. A peça obteve êxito estrondoso, não só no Brasil, mas também em países
outros, como a própria Inglaterra, terra natal do bardo. Temos, então, novamente o traçado
de um percurso transcultural extremamente antropofágico: um texto inglês do início da
modernidade traduzido e adaptado por um grupo teatral do Brasil e encenado em culturas
outras, entre elas a própria cultura inglesa, a partir do imaginário cultural brasileiro. O
sucesso da peça na Inglaterra pode ser conferido, por exemplo, a partir do depoimento de
Jacquelyn Bessell em seu texto Romeu e Julieta (Reprise): Grupo Galpão, Novamente no
Globe:
Heliodora (2008, p. 332) nos lembra ainda de um interessante Sonho de uma noite
de verão, dirigido por Márcio Meireles e encenado na Bahia, que faz uso de tradições
baianas no movimento de montagem da peça, e da versão do grupo Nós do Morro, do
111
Vidigal, favela localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, para a peça Dois
cavaleiros de Verona que, segundo a autora, fez Shakespeare caminhar por caminhos “bem
brasileiros” em seu percurso antropofágico e transcultural de encenação. Vale a pena citar
ainda o musical Otelo da Magueira, de 2006, que transpõe para o morro carioca a história
de amor e ciúmes elisabetana-jaimesca desta vez embalada por versos de Cartola, a partir
da direção segura de Daniel Herz. De acordo com Heliodora (2008, p. 332), a montagem se
configura como “surpreendentemente fiel à trama original”, mesmo sendo constituída a
partir de um movimento dialógico e antropofágico de devoração transcultural.
O cinema brasileiro, como nos lembra Aimara da Cunha Resende (2015, p. 02),
também exerceu influência na construção da imagem de Shakespeare no Brasil. Ao longo
dos últimos 100 (cem) anos, diversas peças shakespearianas foram adaptadas para as telas
nacionais, dentre elas, excluindo da enumeração as duas películas que analiso neste
capítulo, uma adaptação das duas partes de Henrique IV, por Eduardo Coutinho (Faustão,
1969), cinco adaptações de Romeu e Julieta, por diretores como José Amâncio (Mônica e
Cebolinha no Mundo de Romeu e Julieta, 1979), Paulo Aragão e Alexandre Boury (Didi, o
cupido trapalhão, 2003), Bruno Barreto (O casamento de Romeu e Julieta, 2005), Lúcia
Murat (Maré, Nossa História de Amor, 2007), e Breno Silveira (Era uma vez..., 2008), uma
adaptação de Ricardo III, por Paulo Thiago (Águia na Cabeça, 1984) e uma adaptação de
As alegres Comadres de Windsor (As Alegres Comadres, 2003), por Leila Hipólito.
112
Resende (2015, p. 02) nos lembra ainda de outros filmes que, mesmo não sendo adaptações
de Shakespeare em sentido restrito, realizaram leituras críticas de passagens da obra do
bardo, como a sátira sobre as cenas de balcão de Romeu e Julieta, apresentada por Oscarito
e Grande Otelo na chanchada Carnaval no Fogo (1949).
Os filmes elencados como corpus para esta Tese, além de se configurarem como
produtos de seu tempo, também contribuíram, em alguma instância, para propagar
Shakespeare em território brasileiro, em especial a partir da peça Hamlet. No entanto,
Ozualdo Candeias e Mario Kuperman nos entregam, em suas películas, não um
Shakespeare elisabetano-jaimesco do início da modernidade, mas um Shakespeare lido,
relido, devorado transculturalmente, a partir do imaginário cultural e cinematográfico
brasileiro do início da década de 1970. Na seção seguinte, apresento minha leitura dos
filmes em questão, A Herança (1970) e O Jogo da Vida e da Morte (1971), a partir do
110
“Shakespeare is never mentioned, but it creates, nevertheless, several opportunities for consideration of
the meaning of love and matrimony, family relations, political maneuvers, social-economic interests and
futility, just as the Bard has done."
113
Ainda nessas primeiras cenas, duas escolhas estéticas de Candeias que perpassam
todo o filme são perceptíveis: (1) a opção pela não utilização de diálogos ao longo da
película; (2) a presença de uma forte trilha sonora, composta quase exclusivamente por
acordes de viola, instrumento típico do meio rural brasileiro, misturados a barulhos de
animais comuns a grandes fazendas, como cavalos, galinhas, patos etc. Essas duas escolhas
115
ajudam a construir A Herança, nas palavras de Silva (2013, p. 313), como “um dos filmes
shakespearianos que mais chamam a atenção – e não me restrinjo aqui aos realizados no
Brasil, mas a toda cinematografia de Shakespeare.” A falta de diálogos é substituída pela
presença de poucas legendas que, ao longo do filme, apresentam o texto shakespeariano
reconstruído, em tradução que não encontra paralelos em outras versões de Hamlet para o
português disponíveis no mercado editorial brasileiro, como se pode observar a partir dos
fragmentos apresentados abaixo em cotejo com o texto em inglês, a partir da edição
conflacionada adotada por esta Tese:
111
As traduções de Ana Amélia de Queiroz C. de Mendonça e Barbara Heliodora para os trechos da peça
Hamlet presentes neste quadro e nos que o seguem estão disponíveis no Anexo 3, de acordo com a ordem em
que são dispostos nesta Tese. Optei por não disponibilizar as traduções nos quadros ou em notas para fins de
organização visual do capítulo analítico.
116
também faz parte do movimento de devoração cultural desempenhado, uma vez que a
presença de circos itinerantes nas cidades do interior brasileiro, ainda comum no início do
século XXI, era recorrente na segunda década do século XX, já que as artes circenses eram
consideradas formas de entretenimento barato para os estratos menos abastados da
população.
É importante ressaltar, entretanto, que, ao optar pela utilização de uma trupe que
entoa a moda de vida composta por Omeleto, Candeias dirige seu filme na contramão do
que Bloom ([2003] 2004) e Süssekind (2008) apontam como característica central do texto
shakespeariano, omitindo quaisquer reflexões sobre a gênese do fazer teatral ou de
qualquer outro tipo de arte, visto que, nessa cena, o personagem central do filme brasileiro
não parece aconselhar os artistas sobre a maneira como a moda deveria ser entoada, ou
demonstrar, ao longo do filme, qualquer preocupação com questões artísticas mais
restritas.
Nuno César Abreu (2006, p. 65) assevera que, apesar de brasileiríssima, a mistura
da viola com os ruídos naturais é utilizada, no filme, de forma não realista, o que contribui,
ao meu entender, para a construção de significados sobre a película: por exemplo, no
momento em que Omeleto encena certa loucura no drama, o descompasso entre a trilha
sonora e as cenas em exibição, e a incoerência da utilização das modas de viola, que
abruptamente mudam de ritmo, velocidade e tom, podem ilustrar os conflitos interiores
construídos textualmente no texto shakespeariano. Nesse sentido, Silva (2013, p. 314)
afirma que o desenho sonoro esteticamente trabalhado por Candeias acaba por relegar ao
texto verbal, em legendas, uma função quase acessória, o que é corroborado pelo próprio
diretor, que, em entrevista, afirmou que sua intenção inicial era a de colocar uma única
legenda, “... e o resto é silêncio”, na cena final do filme; entretanto, achou “melhor colocar
outras legendas pra facilitar a exibição” (CANDEIAS apud REIS, 2010, p. 97). Nesse
contexto, vale lembrar, como nos conta Jean-Claude Bernardet (2009, p. 19), que o público
da época se queixava do som das películas nacionais, geralmente de péssima qualidade, o
que impedia a compreensão total das falas dos personagens, apontando que “uma coisa que
realmente ele [o público brasileiro] sabe fazer, e com destridade, é ler legendas”, o que
pode ter favorecido a opção estética de Candeias pela supressão das falas em sua obra.
Como afirma Candeias na citação transcrita acima, a história básica do príncipe que
perde o pai e retorna a seu reino para se deparar com o casamento de sua mãe com o tio,
que supostamente assassinara seu pai, é mantida. Além disso, algumas ações presentes na
peça shakespeariana, como o aparecimento do fantasma do pai para relatar a Hamlet que
havia sido assassinado, o suposto caso amoroso entre Hamlet e Ofélia, a suposta loucura de
Hamlet, a viagem organizada por Cláudio para pôr fim à vida de Hamlet, o assassinato de
Polônio pelo príncipe, a morte de Ofélia e o duelo final ainda estão presentes na história,
mesmo que ressignificados, devorados transculturalmente. Para manter esses traços da
narrativa de partida, algumas cenas são rearranjadas e o enredo é contado, por vezes, com
pequenas diferenças na cronologia dos fatos. A primeira aparição do fantasma, conforme
descrita na cena i, ato I, do drama shakespeariano, por exemplo, só ocorre perto da metade
da história narrada no filme, à luz do dia, após a encenação de diversas ações que, na peça,
só teriam lugar posteriormente, como, por exemplo, o primeiro contato de Hamlet com
Ofélia. Além disso, algumas passagens apenas sugeridas pelo drama shakespeariano são
também apresentadas, como o enterro do Rei Hamlet, que abre a película em lugar da
vigilância noturna do castelo por Barnardo e Francisco.
O encontro, como toda a narrativa, se passa no fazendão, composto por terras que
pertenciam ao pai de Omeleto e que foram tomadas por Cláudio após o casamento com
Gertrudes. No contexto do filme de Candeias, a fazenda assume o lugar da Dinamarca
shakespeariana, funcionando como microcosmo para a representação de relações de poder
e opressão. Além disso, a fazenda funciona também como cenário que ambienta o filme do
diretor brasileiro no gênero que, em outro trabalho, denominei filme rural (AMORIM,
2015, p. 322), caracterizado no cinema nacional por, entre outros aspectos, uma temática
que engloba brigas por terras rurais, retratos da exploração de camponeses que vivem em
terras latifundiárias, presença de capatazes e coronéis, representação da vida nas fazendas
etc. É interessante ressaltar que, no ano anterior ao lançamento de A Herança, Eduardo
Coutinho divulgou o seu Faustão (1969), adaptação das duas partes do drama histórico
Henrique IV (Henry IV, 1596-1597), construindo esses textos shakespearianos no novo
contexto também a partir de uma estética rural, mas mais próxima do que a crítica
cinematográfica geralmente aponta como filmes de cangaço.
112
Em tradução: "Uma figura, / Como a do rei, armado de alto a baixo, / Surge diante dos dois, e em nobre
passo / Anda lento e solene;". Em inglês: "A figure like your father, / Armèd at point exactly, cap-a-pe, /
Appears before them, and with solemn march / Goes slow and stately by them." (I. ii. 199-202)
113
Em tradução: “Ouvi o galo / Que, com a clarinada da manhã, / Com sua voz aguda e penetrante, / Acorda
o deus do dia; e ao seu alarma / No mar, no fogo, no ar, como na terra, / Os errantes espíritos se apressam /
Aos seus negros confins; dessa verdade / O nosso próprio caso é bem a prova.”. Em inglês: “I have heard, /
The cock, that is the trumpet to the morn, / Doth with his lofty and shrill-sounding throat / Awake the god of
day; and at his warning, / Whether in sea or fire, in earth or air, / Th’extravagant and erring spirit hies / To his
confine. And of the truth herein / This present object made probation.” (I. i. 149-156)
122
114
"Time is out of joint: O cursèd spite, / That ever I was born to set it right. - / Nay come, let's go together."
(I. v. 188-190)
123
Candeias nos conta ainda, que, devido à escassez de dinheiro, a produção foi rodada
em locações cedidas por Agnaldo Rayol, famoso músico brasileiro do período, que, em
troca, pediu para fazer um papel no filme, recebendo a tarefa de desenvolver o personagem
Fortimbrás do texto shakespeariano. Nas palavras do diretor, “É assim que eu faço: penso
numa coisa. Deu pra fazer, tudo bem; caso contrário, vou ajeitando e vamos tocando”
(CANDEIAS apud REIS, 2010, p. 97). Fernão Ramos (1987, p. 87) sinaliza esse modo de
produzir cinema, “com poucos recursos e utilizando material humano e cenográfico que
não exige grandes investimentos”, como típico do esquema não hegemônico do fazer
fílmico da época. Com maiores detalhes, Nuno Cesar Pereira de Abreu (2006, p. 194)
assevera que
origem desse movimento, uma vez que sua primeira película, profeticamente intitulada A
Margem (1967), é considerada, juntamente com O Bandido da Luz Vermelha (Brasil,
1968), de Rogério Sganzerla, como fundadora da estética da marginalidade no cinema
nacional, sendo o segundo filme, inclusive, já celebrado pela crítica como introdutor de
uma certa lógica antropofágica no cinema nacional, como sinalizado por Ramos (1987, p.
78), ao afirmar que
A capacidade de deglutição é exatamente o que, ao meu ver, distingue de forma
radical O Bandido do Cinema Novo, em cujo estômago objetos menos
apetecíveis eram imediatamente expelidos e ainda acompanhados de toda uma
ladainha sobre as impurezas de sua constituição. A atração antropofágica de O
Bandido por todo um mundo industrial, urbano, cinematográfico, que circunda a
realidade da metrópole, não contém em si um discurso valorativo que intervenha
dispondo este universo numa hierarquia de importâncias.
sinaliza Abreu (2006, p. 27), é considerado um marginal entre os marginais, uma vez que
seus filmes eram tidos como pouco digeríveis pelo grande público, talvez pelas opções
estéticas do diretor, como tenho apontado ao longo dessa leitura do filme A Herança, e por
isso não tiveram, em alguns casos, bem sucedida carreira comercial. Como afirma Angela
Aparecida Teles (2012, n.p.), o cinema de Candeias não se configura tradicionalmente
como produto da indústria cultural, voltado exclusivamente a servir como forma de
entretenimento dos espectadores, mas como “obra de arte produtora de reflexão”, uma vez
que, por meio de seus filmes, “ele constrói sua relação com a cidade de São Paulo e se
insere nas questões sociais e políticas daquele contexto”.
Então eu botei na fita a nossa questão social da terra: antes do duelo com o tio,
Omeleto passa toda a sua herança para quem trabalha na terra. Ai eu mostro os
beneficiários. Quando o tio chega, ele já deu as terras. O tio fica puto e chega na
orelha dele e grita: filho da puta. Você lê na boca dele. Isso não tem no original,
é claro, mas eu botei na fita, no meu Shakespeare caipira, interiorano, tanto no
sentido geográfico quanto cultural.
diretor para esses críticos, que aparentemente ainda se guiavam por critérios como o de
fidelidade ao original, que discuti no Capítulo dois desta Tese, é memorável, e merece ser
aqui reproduzida:
O Hamlet pra mim é um puta babaca, se visto no lado social, e eu dei uma
dignidade para a morte dele. Antes de morrer, pegou as terras dele e deu para
aquele pessoal que trabalha. (...) Então o que eu fiz foi livrar a cara do Hamlet e
vocês ainda vêm aqui me encher o saco? (CANDEIAS apud REIS, 2010, p. 95).
Sobre essa cena, Resende (2015, p. 05) apresenta a interessante inferência de que, a
partir do ato realizado por Fortimbrás de amassar e jogar no chão a carta de Omeleto, o
filme apresentaria uma construção circular, o que, de acordo com a autora, demonstraria
que o sistema latifundiário provavelmente se repetiria, agora nas mãos de Fortinbras, que
clama para si as terras. No entanto, no filme, após amassar e jogar a carta no chão,
Fortimbrás, aparentemente irritado, parece deixar a fazenda a cavalo juntamente com seu
séquito. Tal ação, a par do fato de vermos o corpo de Omeleto em um carro de bois puxado
pelos camponeses da fazenda, numa clara expansão (AMORIM, 2013b, p. 267) do texto
shakespeariano, que não apresenta o enterro do príncipe da Dinamarca, pode se contrapor à
131
hipótese levantada pela autora, representando o início de um novo ciclo para aqueles que
trabalham na terra e o fim do sistema latifundiário em vigor naquela fazenda.
Teles (2012, n.p.) nos lembra que a mobilidade da população caipira e a condição
do sujeito marginalizado eram temas frequentes do cinema de Ozualdo Candeias. Nesse
sentido, como aponta a autora, a abordagem do diretor de personagens que viveram em
processos de transformação social e cultural, na condição de marginais, visa a provocar um
debate sobre os significados dessas mudanças, que buscavam a superação do que Candeias
considerava como características arcaicas da sociedade brasileira: sobretudo, a
desigualdade, a pobreza e a falta de desenvolvimento econômico. De fato,
dessa personagem e de outros a seu redor, como o irmão Laertes, Candeias coloca em cena
a discussão sobre a segregação e o preconceito étnico existentes na sociedade brasileira.
Ismail Xavier e Ipojuca Pontes (1986, p. 47) asseveram que o negro, no cinema nacional,
sempre foi utilizado no papel de serviçal, sobretudo porque nossa sociedade ainda aparecia,
na década de 1980, e ainda hoje aparece, como uma sociedade preconceituosa. João Carlos
Rodrigues (2011, p. 15) sinaliza que apenas na última década do século XX, cento e vinte
anos após a Abolição, “os negros começaram a ser lentamente absorvidos pela sociedade
de consumo e pelo sistema político”. Com efeito, era natural que um cineasta como
Candeias, que em suas películas procurava a abordagem da questão social, fosse
influenciado por discursos sobre racismo que circundavam o Brasil naquele momento.
É interessante também ressaltar, como apontado por Resende (2015, p. 04), que nas
cenas entre Omeleto e Ofélia, a desarmonia em relação aos acordes sonoros apresentados
no filme de Candeias dá lugar à melodia da música Sertaneja, de Nelson Gonçalves, que
115
“Then up he rose and donned his clothes / And dupped the chamber door; / Let in the maid that out a maid
/ Never departed more.” (IV, v. 51-55)
133
conta a história do amor de um cantor por uma garota sertaneja, que chora quando escuta a
voz do amado. Desse modo, Candeias parece indicar alguma realidade no sentimento de
Omeleto em relação à Ofélia, algo não plenamente desenvolvido no filme, tendo em vista a
construção de um distanciamento emocional entre o público e um personagem
naturalmente apresentado como sarcástico e apático, como sinalizei anteriormente. Outro
motivo apresentado pelo diretor para a não plenitude do relacionamento entre Omeleto e
Ofélia é a etnia negra da moça: a partir da ideia de musa, que é um dos estereótipos com os
quais o cinema brasileiro normalmente constrói seus personagens negros (RODRIGUES,
2011, p. 45), Ofélia é parcialmente apresentada no roteiro como aparentemente respeitável
e pudica, e por isso não há apelos para o erotismo vulgar; ainda sim, a questão étnica é um
impedimento a ser considerado no filme brasileiro: diferentemente do que ocorre na peça,
quando Laertes aconselha Ofélia a se manter afastada de Hamlet, pelo fato de o rapaz ser
um príncipe, um nobre, como representado no excerto do texto shakespeariano reproduzido
abaixo,
No filme, ao discutir com a irmã, Laertes aponta e esfrega sua pele, em clara alusão
à sua etnia negra, gesto completado com os falares, em legenda, “...além do mais, é o
patrão.../...gente assim não pode gostar de gente como a gente...”. Se na peça
shakespeariana a oposição entre monárquico e não-monárquico impedia o relacionamento,
uma vez que a vontade de Hamlet “Não lhe pertence, mas à sua estirpe”, isto é, ao trono,
na película, é a posição social dentro do sistema latifundiário, a oposição entre patrão-
empregado, acrescida da questão étnica, uma vez que Omeleto é representado como
branco, que dão tonalidade à segregação no contexto brasileiro, no movimento de
devoração transcultural desempenhado por Candeias, como atesta a figura abaixo.
116
“Think it no more. / For nature crescent does not grow alone / In thews and bulk, but as this temple waxes
/ The inward service of the mind and soul / Grows wide withal. Perhaps he loves you now, / And now no soil
nor cautel doth besmirch / The virtue of his will ; but you must fear, / His greatness weighed, his will is not
his own, / For he himself is subject to his birth” (I. iii. 10-18).
134
lançava outra adaptação da peça para os cinemas brasileiros, que é a segunda, juntamente
com o filme de Candeias, das duas únicas adaptações dessa peça existentes na
cinematografia nacional: o filme O Jogo da Vida e da Morte, que desempenha também,
como sinalizarei na próxima seção, sua leitura antropofágica da história do príncipe
dinamarquês ao transpô-la para terras estrangeiras, para terras brasileiras.
O Jogo da Vida e da Morte ilustra bem essa potencialidade, que aqui chamo de
devoração transcultural, do trabalho adaptativo. O famoso texto shakespeariano Hamlet é
transferido para o subúrbio, no contexto do tráfico de drogas, em um distrito pobre da
cidade de São Paulo. A Dinamarca da peça elisabetana é, desse modo, ressignificada
transculturalmente quando o diretor realoca o ambiente da narrativa para um espaço
tipicamente brasileiro: comunidades de tráfico nos arredores de grandes cidades do país.
Desse modo, o filme em questão, assim como a produção de Candeias, trabalha com o
princípio da equivalência, buscando, de acordo com Silva (2013, p. 308), “no mundo
histórico que pretendem retratar, caracteres, instituições e situações que se assemelhem à
ordem social presente em Hamlet”.
117
É interessante notar que, Foucault (1984, p. 25), em A História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres,
refere-se à ideia de "Jogo da Vida e da Morte" em relação com "o outro sexo, com a questão da esposa como
parceira privilegiada, no jogo entre a instituição familiar e o vínculo que ela cria; relação com o seu próprio
sexo, com a questão dos parceiros que nele se pode escolher, e com o problema do ajustamento entre papéis
sociais e papéis sexuais; finalmente, relação com a verdade, onde se coloca a questão das condições
espirituais que permitem ter acesso à sabedoria.", o que, como demonstro ao longo dessa leitura do filme, em
muito refletem o tom dado à película.
137
Além de João, apenas dois outros personagens secundários têm seus nomes
modificados: os amigos de Hamlet, Guildenstern e Rosencrantz, que, no filme, são
chamados de Tostão e Rosa. Horatio, nessa película brasileira, se chama Horácio e,
curiosamente, é representado não como amigo de João, com idade semelhante, mas sim
como um adolescente, mais jovem que João, que não apresenta a maturidade ou o nível de
educação apresentados pelo personagem do texto de partida. Com efeito, diversas falas e
fatos que, na peça, são atribuídas a Horácio, no filme são enunciadas por Marcelo, que,
sendo mais velho, pode declamá-las compondo um quadro de maior maturidade e reflexão.
138
No primeiro excerto, apresentado logo nas cenas iniciais do filme, e no qual Horácio leva
Marcelo para ver a incorporação do espírito do pai de João por Mãe Chiquinha, fato que
discutirei posteriormente nesta leitura, temos a omissão do personagem Barnado;
exotismos como acréscimos de regionalismos próprios a certa variante do português
brasileiro, como 'Guenta mão aí..., de cara, e a utilização de partículas com valor de
interjeição como né e pô; e um forte movimento de adequação situacional: aqui, ao
contrário do que ocorre no texto shakespeariano, é Marcelo que não acredita na aparição, e
cabe a Horácio comprovar o fato. Ainda na mesma cena entre esses dois personagens, o
segundo excerto apresenta, além de um procedimento de extensão tradutória (AMORIM,
2013b, p. 267), uma atualização não só situacional como também cultural, uma vez que,
no filme, Marcelo, e não Horácio, deve falar com o Fantasma, pois, como o Horácio da
película afirma, ele tem ginásio – segunda fase do Ensino Fundamental brasileiro –, grau
de escolaridade mais comum ao contexto nacional da época, em especial no subúrbio, do
que o Ensino Superior creditado a Horácio na peça shakespeariana.
Em relação à terceira fala destacada, a tradução do solilóquio O that this too too
solid flesh, percebe-se o uso significativo da omissão: o solilóquio passa de 30 linhas em
verso, para poucas linhas em prosa, além da eliminação de temas presentes no texto em
inglês como, por exemplo, a caracterização da Dinamarca como um jardim profanado, a
comparação entre o Rei Hamlet e Cláudio a partir de personagens da literatura e mitologia
clássica, e a acusação direta da prática do incesto. No filme, o solilóquio parece se
concentrar em uma certa crise existencial desempenhada pelo personagem João e no fato
de sua mãe ter se casado às pressas com seu tio, o qual, para o personagem, é inferior e
diferente de seu pai morto.
Kuperman faz do preto e branco, numa cena de diálogo entre Cláudio, Gertrudes e Polônio,
e a divergência entre claro e escuro, que cria um tom de suspense na cena de encontro de
João com a vidente Mãe Chiquinha.
Além da questão religiosa, outro traço que figura em O Jogo da Vida e da Morte,
de modo semelhante ao apresentado por Candeias em A Herança, é a presença de uma
Ofélia negra. No entanto, no filme de Kuperman, essa personagem é construída como
118
“(…) especially among less educated people…”
143
É importante sinalizar que João, enquanto rola com a moça pelo chão da
comunidade, enxerga, ao olhar pra ela, a imagem de uma serpente em posição de ataque.
Dessa forma, Kuperman parece construir uma relação entre o desprezo que o personagem
começa a demonstrar por Ofélia, que culmina em um tapa que João dá no rosto da moça,
findando a relação carnal, e a cobra que havia sido falsamente acusada de picar e matar seu
pai. Também é interessante a ideia construída pelo diretor de que a morte do pai de Ofélia
pelas mãos de João a levou a experimentar drogas injetáveis, mais fortes do que a maconha
que a personagem fumava anteriormente. O uso dessas drogas funciona, no filme, como
144
119
“Something is rotten in the state of Denmark” (I. v. 90)
147
Outros solilóquios, como o O that this too too solid flesh, já analisado, também são
ressignificados no texto fílmico brasileiro sobretudo a partir da intercalação de voz off, de
monólogos diretos ou planos ponto de vista, nos quais a câmera assume o papel dos
personagens, que visam a auxiliar na construção das características subjetivas de João, o
Hamlet brasileiro da película de Mario Kuperman. Em relação à visualidade, é interessante
notar ainda a influência de filmes shakespearianos de Laurence Olivier, Akira Kurosawa e
Orson Welles, sobretudo, da montagem que este último realizou para Macbeth (Macbeth,
EUA, 1948), na construção da atmosfera sombria e noturna que permeia boa parte do
filme, bem como na estilização dos enquadramentos que, como na cena que se refere à
peça-dentro-da-peça do texto do bardo inglês que sinalizarei abaixo, criam sensações
psicológicas e físicas ligadas aos personagens da trama.
o samba como ritmo escolhido. Com efeito, o diretor insere na trama não só um ritmo
brasileiro – comum, especialmente, no Sudeste do país –, mas um ritmo brasileiro de
origens africanas, uma vez que o samba originou-se da chamada semba, uma forma de
umbigada angolana, acentuando ainda mais o caráter transcultural de toda produção
artística.
No filme, João, após ser convidado por Rosa e Tostão para escutar um grupo de
samba tocar, decide convidar esse grupo para vir à comunidade entoar uma música, a
fictícia Arma Negra, com modificações e acréscimos realizados na letra por ele, na
tentativa de confirmar a culpa de Cláudio sobre o crime cometido. No momento da
apresentação do grupo, acompanhado pelas/os tradicionais passistas de uma escola de
samba paulistana convidada por Kuperman para participar do filme, João instrui o jovem
Horácio para que preste atenção especial nas reações de Cláudio, sobretudo quando no
samba se mencionasse o verso “veneno, veneno...”. É interessante notar que, ao ser
questionado por Cláudio sobre o nome da canção, João faz uma referência direta ao drama
shakespeariano, respondendo que seu título é A Ratoeira. Em outro acréscimo transcultural
efetuado por Kuperman na construção do personagem como fanfarrão, Cláudio, já bêbado
pela ingestão de altas doses de cachaça, ao escutar a história do assassinato do irmão e,
especialmente, o verso “veneno, veneno...”, passa mal, vomita, e a apresentação se dá por
encerrada, confirmando-se assim, para João, as palavras do espírito do pai declamadas por
Mãe Chiquinha.
150
Algumas cenas após, o filme nos apresenta a cena do enterro da Ofélia, decorrente
do assassinato de Polônio por João e o posterior suicídio da moça. É interessante apontar
151
que, apesar de não propriamente discutir diretamente a divisão social de classes ao longo
do filme, mesmo quando este visualmente apresenta a ideia de segregação e estratificação,
como já sinalizei, Kuperman mantém, na cena do enterro, a discussão entre os coveiros
que, como aponta Kiernan (1996, p. 76), traz à tona discursos que se relacionam à ideia de
luta de classes marxista, como demonstrado pelo trecho abaixo, na versão de O Jogo da
Vida e da Morte e no texto de partida em inglês.
Ainda no cemitério, após o confronto inicial entre João e Laertes que tem lugar ao
lado da cova de Ofélia, Cláudio manda, como na peça shakespeariana, que convoquem
João para o duelo final. Na película brasileira, quem convoca João para o duelo é Osrico,
um homossexual representado como efeminado, em mais uma das ressignificações
efetuadas por Kuperman no movimento de devoração transcultural que efetua sobre a
peça. A retratação de Osrico como efeminado faz parte da estereotipação midiática,
corrente no período e ainda existente na sociedade contemporânea, do homossexual como
aquele que portaria características escandalosas, comumente associadas às mulheres. Nesse
sentido, J. F. Freire afirma que os estereótipos
pode ter sido motivada pela circulação de discursos sobre as drogas em território global.
Rosa Del Olmo (apud ZACCONE, 2007, p. 86) nos lembra, por exemplo, que, no início da
década de 1960, uma série de acontecimentos sociais e políticos, ocorridos tanto em escala
nacional quanto internacional, promoveu grandes transformações na política de combate às
drogas. Além disso, esses anos deram início aos movimentos de rebeldia juvenil, à
chamada contracultura e aos principais movimentos de protestos políticos - incluindo-se aí
grupos de rebeliões dos negros e os movimentos guerrilheiros na América Latina. Nos anos
1960, também surgem as drogas psicodélicas, entre elas o LSD, e é flagrante o aumento do
consumo de maconha entre trabalhadores e jovens das classes média e alta. Com efeito,
Com efeito, é possível supor que Mário Kuperman, como cidadão brasileiro, foi de
algum modo atingido pelos discursos sobre a questão da droga ventilados no país de então.
Apesar disso, novamente o diretor não apresentou uma problematização direta da questão,
apenas utilizando o tráfico como elemento constituinte da ambientação da película. No
entanto, a abordagem da questão, mesmo não problematizadora, permite que consideremos
O Jogo da Vida e da Morte como um filme que faz o texto shakespeariano, a peça Hamlet,
dialogar com “o problema das estruturas sociais do Brasil (...) com a sugestão de que não
155
existe caminho de saída para o pobre, que é dominado em todos os níveis” (RESENDE,
2015, p. 07), uma vez que, na narrativa, o tráfico atinge, como já sinalizei, uma
comunidade carente aos arredores da cidade de São Paulo. Além disso, essa referência a
um dos problemas da realidade social e cultural brasileira poderia permitir aos
espectadores da época que se relacionassem com a história contada,
Não necessariamente por oferecer um ponto de vista crítico sobre essa realidade,
mesmo quando tentativa de imitação da produção estrangeira, mesmo quando a
realidade brasileira apresentada pelo filme está obviamente deturpada, esse filme
oferece uma determinada imagem dessa sociedade (BERNARDET, 2009, p. 31).
Por fim, é interessante lembrar também que o tom político da adaptação já era
indicado na primeira cena da película, quando somos apresentados a um espaço teatral,
prestes a fechar as portas, que exibe uma montagem de Hamlet – mais uma vez, em ligação
direta com o texto shakespeariano. Nesse espaço, vemos o cartaz da peça, que apresenta o
drama com os dizeres Hamlet: a corrupção no reino da Dinamarca. Desse modo, o diretor
parece deixar claro, desde a primeira cena, o direcionamento que, mesmo de forma um
tanto quanto sinuosa, pretendeu dar ao seu filme.
157
Assim como a epígrafe que abre a seção de Apresentação desta Tese, referente ao
trecho de Julío César, de William Shakespeare, sublinhado por Nelson Mandela em seu
período na prisão em Robben Island, a extensa epígrafe que abre esta seção de
Considerações Finais atesta que os escritos do dramaturgo inglês, quando relidos,
devorados transculturalmente, falam sobre nossos tempos, sobre quem somos e sobre
nosso contexto sociopolítico. O poema de Olavo Bilac composto em 1893, ao construir
uma caricatura do então presidente Floriano Peixoto, a partir da imagem do príncipe
158
dinamarquês Hamlet, que reflete sobre o direcionamento político que tomará, no Palácio
do Itamarati, com uma cópia da Constituição Brasileira nas mãos, atesta a potencialidade
da peça Hamlet, que, sendo constantemente devorada no contexto brasileiro, tem permitido
desde o século XIX a construção de sentidos sobre nossa vida política, sobre nossa
sociedade, através das lentes fornecidas pelos escritos do autor elisabetano.
enredos das peças do bardo, elisabetanas, em origem, mas presentes nas mais diferentes
culturas, nos mais diversos países.
Ainda no Capítulo um, apresentei, em linhas gerais, breves notas sobre a história
da cinematografia de Hamlet nos cinemas, sinalizando mais detalhadamente características
e opções artístico-estéticas tomadas em produções de filmes adaptados a partir dessa peça
do bardo consideradas como parte dos grandes filmes shakespearianos pela crítica
especializada: a saber, Hamlet (Inglaterra, 1948), de Laurence Olivier, Homem mau dorme
bem (悪い奴ほどよく眠る,Warui yatsu hodo yoku nemuru, Japão, 1960), de Akira
Kurosawa, Hamlet ( Гамлет, Gamlet, Russia, 1964), de Grigori Kozintsev, Hamlet (EUA,
Inglaterra e França, 1990), de Franco Zeffirelli, Hamlet (EUA e Inglaterra, 1996), de
Kenneth Branagh, e Hamlet: vingança e tragédia (Hamlet, EUA, 2000), de Michael
Almereyda. Uma vez que esses filmes, como parte da fortuna crítica da peça, podem
acrescentar considerações diversas sobre interpretações do texto shakespeariano, procurei
apontar os caminhos adaptativos tomados em cada película e o modo como elas dialogam,
ou não, com a crítica literária no processo de reconstrução da história do príncipe da
Dinamarca para o cinema. Essa breve leitura do cinema shakespeariano se fez essencial em
uma Tese que tem, como um de seus objetivos analíticos, a localização dos filmes
elencados para seu corpus dentro dos chamados grandes filmes shakespearianos.
diálogo entre as culturas, como em Miranda e Inokuchi (2009), o que acaba por minimizar
a importância da questão cultural na prática de reescritura de textos artísticos para outras
artes e, no caso desta pesquisa, de obras shakespearianas para os cinemas em terras
estrangeiras.
Com efeito, tal histórico pôde auxiliar também no entendimento dos modos de leitura do
dramaturgo elisabetano no país, que podem, em alguma instância, ter influenciado a
construção dos textos fílmicos selecionados. Neste ponto das Considerações Finais, é
importante ressaltar que, devido à proposta brasilianista de construir entendimentos sobre o
Brasil a partir de um olhar também brasileiro, procurei, ao longo de todo percurso teórico
da Tese, dialogar vozes estrangeiras com vozes nacionais, as quais poderiam, de algum
modo, contribuir para a construção do quadro teórico-analítico necessário para o
desenvolvimento da pesquisa em questão.
a cultura de partida, não pode ser considerado como uma metodologia universal para a
leitura de dramas shakespearianos ou quaisquer outros textos artísticos adaptados para o
cinema. Mesmo reconhecendo que a adaptação enquanto prática antropofágica de
devoração transcultural pode, em analogia com as palavras de Haroldo Campos (2010a, p.
234), transcriar, criar o texto novamente, adaptando não apenas o significado, mas
também a própria materialidade do literário, suas propriedades, sua narrativa, suas culturas
de partida etc., é preciso sinalizar que tal abordagem sugere apenas um caminho possível
para o tratamento de alguns textos fílmicos construídos a partir da obra de Shakespeare: é
imperativa a consciência de que há ainda portas abertas – e, talvez, impossíveis de se
fechar – no que tange ao entendimento da adaptação como um fenômeno transcultural,
antropofágico.
165
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Filmografia analisada
A HERANÇA. Direção de Ozualdo Candeias. Brasil: LF. Longfilm. 1970. 90min. P/B.
DVD.
ANEXO 1
177
ANEXO 2
178
ANEXO 3
"MARCELO
Algo está podre aqui na Dinamarca."
"HAMLET
Há mais coisas, Horário, em céus e terras,
Do que sonhou nossa filosofia."
"HAMLET
Ser ou não ser, essa é a questão:
Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer - dormir;
Dormir, talvez sonhar - eis o problema:
Pois os sonhos que vierem nesse sono
De morte, uma vez livres deste invúlucro
Mortal, fazem cismar. Esse é o motivo
Que prolonga a desdita desta vida.
Quem suportara os golpes do destino,
Os erros do opressor, o escárnio alheio,
A ingratidão no amor, a lei tardia,
O orgulho dos que mandam, o desprezo
Que a paciência atura dos indignos,
Quando podia procurar repouso
Na ponta de um punhal? Quem carregara
Suando o fardo da pesada vida
Se o medo do que vem depois da morte -
O país ignorado de onde nunca
Ninguém voltou - não nos turbasse a mente
179
"MARCELO
Aquela aparição veio esta noite?
BERNARDO
Eu nada vi.
MARCELO
Horácio diz que é simples fantasia
E que ele não aceita a nossa crença
Dessa visão que duas vezes vimos.
Por isso convidei-o para hoje
Vir conosco guardar alguns minutos;
Pois se de novo vier esse fantasma,
Ele confirmará os nossos olhos
E poderá falar-lhe
HORÁCIO
Não aparecerá.
BERNARDO
Senta-te um pouco;
Deixa-nos repetir aos teus ouvidos,
Tão prevenidos contra nossa história,
O que duas vezes vimos."
180
"MARCELO
Tu, que és um mestre, vai falar-lhe Horácio!"
"HAMLET
Oh, se esta carne rude derretesse,
E se desvanecesse em fino orvalho!
Ou que o Eterno não tivesse oposto
Seu gesto contra a própria destruição!
Oh, Deus! Como são gestos e vãos, inúteis,
A meu ver, esses hábitos do mundo!
Que horror! São quais jardins abandonados
Em que só o que é mau na natureza
Brota e domina. Mas chegar a isto!
Morto há dois meses só! Não, nem dois meses!
Tão excelente rei, em face deste,
Seria como Hipério frente a um sátiro.
Era tão dedicado à minha mãe
Que não deixava nem a própria brisa
Tocar forte o seu rosto. Céus e terras!
Devo lembrar? Ela se reclinava
Sobre ele, qual se a força do apetite
Lh viesse do alimento; e dentre um mês
- Não, não quero lembrar - Frivolidade,
O teu nome é mulher. Um mês apenas!
Antes que se gastassem os sapatos
Com que seguiu o enterro de meu pai,
Como Níobe em prantos... eis que ela própria -
Oh, Deus, um animal sem raciocínio
Guardaria mais luto - ei-la casada
Com o irmão de meu pai, mas tão diverso
Dele quanto eu de Hércules: um mês!
E apenas essas lágrimas culposas
181
"HAMLET
Entra para um convento. Por que desejarias conceber pecadores? Eu próprio sou
passavelmente honesto; mas poderia ainda assim acusar-me a mim mesmo de tais coisas,
que seria melhor que minha mãe não me tivesse concebido. Sou muito orgulhoso,
vingativo, ambicioso, com mais erros ao meu alcance do que pensamentos para expressá-
los, imaginação para dar-lhes forma, ou tempo para cometê-los. O que podem fazer
sujeitos como uns rematados velhacos; não acredites em nenhum de nós. Entra para um
convento. Onde está teu pai?"
"HAMLET
Ser ou não ser, essa é a questão:
Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer - dormir;
Dormir, talvez sonhar - eis o problema:
Pois os sonhos que vierem nesse sono
De morte, uma vez livres deste invúlucro
Mortal, fazem cismar. Esse é o motivo
Que prolonga a desdita desta vida.
Quem suportara os golpes do destino,
Os erros do opressor, o escárnio alheio,
A ingratidão no amor, a lei tardia,
O orgulho dos que mandam, o desprezo
Que a paciência atura dos indignos,
182
"1º COVEIRO
Deve ser enterrada em sepultura cristã aquela que buscou voluntariamente a salvação?
2º COVEIRO
Digo-te que deve; potanto, abre logo essa cova. O pontífice informou-se de tudo e
deliberou que o enterro fosse cristão.
1º COVEIRO
Como pode ser isso, a não ser que ela se afogasse em sua própria defesa?
2º COVEIRO
Ora, foi decidido assim.
1º COVEIRO
Deve ter sido se offendendo, nem pode ser de outro modo. Pois essse é o ponto: se eu me
afogo voluntariamente, isso indica ato, e um ato tem três partes, a saber: agir, fazer e
consumar. Ergum, ela afogou-se voluntariamente.
2º COVEIRO
Não; mas, escuta, mestre cavuqueiro...
183
1º COVEIRO
Com licença. Aqui está a água, bem; aqui está o homem, bem; se o homem vai para esta
água e se afoga, queira ou não queira, é ele que vai. Presta atenção: mas se a água vem para
ele e o afoga, não é ele que se afoga; ergum, ele não é o culpado de sua própria morte, ele
não encurta a própria vida.
2º COVEIRO
Mas isso é lei?
1º COVEIRO
É, sim, senhor; lei de borla e capelo.
2º COVEIRO
Querer saber a verdade? Se ela não fosse nobre, seria enterrada fora do ritual cristão.
1º COVEIRO
Assim o disseste; e é uma lástima que os grandes deste mundo tenham o direito de afogar-
se ou de enforcar-se, mais do que qualquer outro cristão. - Vamos, a minha há. Não há
gentis homens mais antigos do que os jardineiros, os cavadores e o os coveiros; eles
conservam a profissão de Adão."