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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

DA TRADUÇÃO/ADAPTAÇÃO COMO PRÁTICA TRANSCULTURAL:


UM OLHAR SOBRE O HAMLET EM TERRAS ESTRANGEIRAS

Marcel Alvaro de Amorim

Rio de Janeiro
Março de 2016
Marcel Alvaro de Amorim

DA TRADUÇÃO/ADAPTAÇÃO COMO PRÁTICA TRANSCULTURAL:


UM OLHAR SOBRE O HAMLET EM TERRAS ESTRANGEIRAS

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística
Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do Título de Doutor em Linguística
Aplicada.

Orientador: Prof. Dr. Roberto Ferreira da Rocha

Rio de Janeiro
Março de 2016
A524d Amorim, Marcel Alvaro de
Da tradução/adaptação como prática transcultural: um olhar
sobre o Hamlet em terras estrangeiras / Marcel Alvaro de
Amorim. — Rio de Janeiro: UFRJ, 2016.

183 f.; 30 cm

Orientador: Roberto Ferreira da Rocha.


Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Pós-Graduação em Linguística Aplicada,
2016.

Bibliografia: 165-175

1. Cinema. 2. Literatura. 3. Hamlet. 4. Shakespeare, William,


1564-1616. I. Rocha, Roberto Ferreira da. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.

CDD 791.43
DEDICATÓRIA

A construção desta Tese foi (e continua a ser) um


trabalho dialógico, em que várias vozes dialogaram (e
ainda dialogam) na tentativa de construção de modos
de se ler o ‘Hamlet’, de William Shakespeare, em
territórios estrangeiros. No entanto, duas, dentre todas
as vozes aqui refratadas, foram essenciais para o
desenvolvimento da pesquisa: as vozes (e todos os
discursos a elas relacionadas) de meu orientador de
doutorado, Prof. Dr. Roberto Ferreira da Rocha, e de
meu supervisor de estágio de doutoramento no
exterior, Prof. Dr. Vinicius Mariano de Carvalho.
‘Literalmente’ falando, sem vocês, este trabalho não se
realizaria. Por isso, dedico esta Tese, fruto direto de
nossas conversas, reuniões de orientação, leituras
conjuntas e ideias ventiladas no ar, a vocês e às suas
vozes que, é claro, estão aqui mais presentes do que
nunca. Muito obrigado!
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Rosângela e Sinésio Amorim (in memoriam), que, mais do que apenas
por terem me dado o privilégio da vida, me ensinaram que o único caminho para aproveitar
tudo que ela poderia me favorecer era o estudo. Aos meus irmãos, Franciele e Fábio, e
sobrinhos, Larissa, Vitor e Miguel, por me aturarem e, principalmente, por demonstrarem, das
mais diversas formas, que acreditam em mim.

Ao meu orientador, Roberto Ferreira da Rocha, pela orientação segura, apoio e


constante auxílio. Agradeço por ter acreditado na minha ideia e me auxiliado sobremaneira na
construção desta Tese. Agradeço também pelas conversas, orientações, atenção, paciência e,
sobretudo, pela amizade e confiança que sempre demonstra para com meu trabalho desde dois
mil e sete, quando pela primeira vez nos encontramos.

Ao meu supervisor de estágio de doutoramento no exterior, Vinicius Mariano de


Carvalho, que em seis meses foi capaz de iluminar os caminhos que esta Tese tomou, e que
inspirou, e continua a inspirar, minha construção como pesquisador e acadêmico. Agradeço
sobretudo pelas doses de cachaça compartilhadas e palavras amigas trocadas não só em
Aarhus, mas em todas as vezes em que nos encontramos depois de meu retorno da Dinamarca.

À Marlene Soares do Santos, que, nos últimos quatro anos, ampliou sobremaneira a
percepção que construí sobre William Shakespeare a partir de aulas, textos, trabalhos e
conversas de corredor. Agradeço por ter me recebido em suas aulas, em sua casa, por ter
confiado a mim seus livros e conhecimentos e, acima de tudo, por ter me mostrado que certo
rigor é essencial na construção de uma pesquisa como esta.

À Anne Sophie Haahr Refskou, que acreditou em minha pesquisa e demonstrou, em


todos nossos encontros, entusiasmo sem fim, além de um enorme carinho direcionado a mim
e a meu trabalho. Anne Sophie é, talvez, uma das pessoas mais competentes e, ao mesmo
tempo, afetuosas que já conheci. Tenho certeza que nossa parceria e amizade não termina na
banca de defesa desta Tese.

A Luiz Barros Montez, que, desde a banca de seleção de meu ingresso ao doutorado,
apoiou ilimitadamente o desenvolvimento desta pesquisa, sempre com apontamentos
necessários e questionamentos desestabilizadores que fizeram esta Tese ir adiante e se
transformar no texto que agora defendo. Agradeço também pelas palavras amigas e de
incentivo ao longo desses quatro anos de encontros pelos corredores.
Aos professores suplentes na banca de arguição desta Tese, Kátia Carvalho da Silva e
Henrique Fortuna Cairus. Agradeço a Kátia, sempre gentil, amiga e solícita, desde nosso
primeiro encontro, quando eu ainda cursava o Mestrado. Agradeço também ao Henrique, que,
apesar dos poucos momentos de contato, sempre transpareceu profissionalismo e dedicação
que inspira a muitos graduandos e pós-graduandos da Faculdade de Letras da UFRJ.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Linguística


Aplicada, especialmente a Paula Szundy, Rogério Tílio, Christine Nicolaides, Michela Rosa
Di Candia e Branca Fabrício, pela confiança e amizade ao longo desses quatro anos de
doutorado. Agradeço por serem exemplos de pessoas e pesquisadores, e por toda a confiança
em mim depositada. Muito do que sou hoje como professor e pesquisador devo a vocês que,
seja em aulas ou conversas de corredor, influenciaram dos mais diferentes modos minha
construção profissional. À professora Fernanda Teixeira de Medeiros, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, pelas aulas e conhecimentos compartilhados, pelo entusiasmo e
confiança que sempre demonstrou para com meu trabalho.

Às minhas amigas Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt, Adriana Gonçalves da Silva e
Luciana Leitão da Silva. Ana, já te disse antes e aqui repito que você é, sem dúvida, um
exemplo para minha vida; além de pessoa íntegra, gentil e amiga, é uma pesquisadora
corajosa e de vanguarda. O Doutorado acabou, mas nossa amizade e parceria continua para
sempre! Adriana, não sei o que seria de mim sem você! Amizade que dura desde dois mil e
quatro e com a qual sei que posso contar em todas as horas, em todos os tempos. Obrigado
por todo o carinho e paciência. Seja em Niterói, Barra Mansa, Volta Redonda, na Argentina
ou na Dinamarca, estaremos juntos para o que der e vier. Luciana, você é, talvez, o presente
mais valioso que a UFRJ me deu. Amiga de Mestrado, Doutorado, de confidências e de vida,
como você mesma disse em sua Tese, “somos a maior prova de que a distância não
enfraquece amizades.” Obrigado pela paciência em me escutar, ler e, além disso, por ter
aprendido que seu amigo é um pouco devagar e precisa que pacientemente mostrem a ele em
que pasta os textos estão...

Aos amigos próximos que, desde a seleção para o Doutorado, me incentivaram e me


animaram nos momentos de desânimo, seja em viagens, em festas, em conversas filosóficas
(ou não) em bares, e que fazem (ou fizeram) de mim a pessoa que sou hoje. Em especial, aos
amigos Bruno Chagas, Caio Graciani, Felipe Quinane, Marcus Magalhães, Guilherme Szpak
(mas não te perdoo por não gostar de Shakespeare...), Ronaldo Castro, Filipe Lopes, Silvio
Gomes, Glenda Melo, Tiago Cavalcante, Jonas Vitorino, Silvia Emília e Alvaro Carvalho. E
também àqueles amigos distantes, que conheci durante meu período de estágio de
doutoramento no exterior, mas que fizeram de minha vida na Dinamarca mais feliz e que,
mesmo após meu retorno ao Brasil, continuam a iluminar meus dias com palavras de amizade
e incentivo – seja online, seja em nossos poucos encontros em viagens e/ou congressos
mundo afora. Em especial, Fernanda Pinto, Kasper Rune Jensen, Paulo Gregório e Ana Paula
Mattos.

A Edson Pedroso, que acompanhou mais próximo que todos o desenvolvimento final
desta Tese, me dando força nos momentos de exaustão e me incentivando durante todo o
período final de escrita, estando sempre presente com palavras de carinho e conforto.

Aos funcionários da secretaria da Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ, pela


ajuda e paciência com minhas angústias, dúvidas etc.

Aos funcionários e professores dos departamentos de Aesthetics and Communication e


Culture and Society, da Aarhus University, pelo apoio e auxílio que me proporcionaram
durante meu período de estágio de doutoramento no exterior.

Ao CNPQ e à CAPES, pelas bolsas, no Brasil e no exterior, respectivamente, sem as


quais esta Tese não seria possível.

E a todos que me esqueci de mencionar por ser, sem desculpas, desligado.


Isso talvez tenha a ver com a prática já consagrada de
supervalorizar tudo o que vem de fora, notadamente da
Europa, aliada a certa desconfiança em relação à nossa
capacidade e competência de desenvolver posições e
propostas próprias, especificamente moldadas para
atender às nossas necessidades e às peculiaridades de
nossa realidade.
(RAJAGOPALAN, 2013, p. 157)

Uma cultura engole, digere e se alimenta da outra; um


tempo engole, digere e se alimenta do outro. Como na
boa cartilha antropofágica - que sempre existiu mas só
foi devidamente batizada pelos nossos canibais
modernistas. Na peça que você se prepara para atuar, o
pão de ontem não é necessariamente bolorento,
tampouco virou hóstia ou coisa santa com o passar dos
séculos. Aqui, o movimento é de ida e volta constante
entre tempos de igual valor, que NÃO se respeitam, mas
também NÃO trocam cotoveladas, deixando tudo muito
mais apetitoso. Impossível ser fiel ao espírito da peça
sem tocar a alma do público atual.
(LACERDA, 2015, p. 10)
RESUMO

Da tradução/adaptação como prática transcultural: um olhar sobre o Hamlet em terras


estrangeiras

Marcel Alvaro de Amorim


Orientador: Prof. Dr. Roberto Ferreira da Rocha

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em


Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Linguística Aplicada.

Com base em recentes teorias sobre a tradução/adaptação de obras literárias para o


cinema, esta Tese tem como objetivo analisar duas versões fílmicas da peça Hamlet (1600-
1601), de William Shakespeare, produzidas em um país não anglófono – o Brasil – durante a
década de 1970. É intenção desta pesquisa argumentar que os filmes analisados – A Herança
(Ozualdo Candeias, 1971) e O Jogo da Vida e da Morte (Mario Kuperman, 1970) –, mais que
traduções intersemióticas, são adaptações intertextuais e antropofágicas da famosa tragédia
shakespeariana: é a partir do contato entre diferentes culturas, da devoração transcultural do
estranho/estrangeiro e de sua reconstrução como um outro, que os significados dos textos são
construídos. Desse modo, é foco desta Tese a intenção de considerar os fatores socioculturais
como centrais nos vários procedimentos desenvolvidos durante a adaptação dos filmes em
questão. Sendo assim, dado o fato de que esta Tese se centra no diálogo entre a tragédia
shakespeariana, filmes e culturas, a análise do corpus será baseada em procedimentos
analíticos comparativistas, os quais, a partir de categorias de análises construídas para a
abordagem das películas mencionadas, guiarão a leitura desenvolvida.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura e Cinema; Teorias da Tradução/Adaptação; Antropofagia.


ABSTRACT

Translation/Adaptation as a transcultural practice: notes on Hamlet in Foreign Territories

Marcel Alvaro de Amorim


Orientador: Prof. Dr. Roberto Ferreira da Rocha

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em


Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Linguística Aplicada.

Based on recent translation/adaptation theories, this PhD Dissertation aims to analyze


two filmic versions of Hamlet (1600-1601), by William Shakespeare, produced in a non-
English-speaking country - Brazil - during the 1970s. It is our intention to argue that the
analyzed films - A Herança (Ozualdo Candeias, 1970) and O Jogo da Vida e da Morte
(Mario Kuperman, 1971) - are more than intersemiotic translations: they are intertextual
works and anthropophagic adaptations of one of Shakespeare's most popular tragedies. In this
sense, we consider that it is from the contact among different cultures, through a
transcultural-devouring process of the stranger/foreign and its reconstruction as a new
artifact, that the meaning of texts is constructed. Futhermore, it is the intention of this PhD
Dissertation to consider socio-cultural factors as central ones in the various procedures
developed during the translation/adaptation process of the films at stake. Thus, given the fact
that this Dissertation focuses on the dialogue between a Shakespearean tragedy, movies and
cultures, the corpus analysis will be based on comparativist analytical procedures, through an
analytical framework construct in order to address the aforementioned films.

KEY-WORDS: Literature and Cinema; Translation/Adaptation Theories; Anthropophagy.


ABSTRAKT

Oversættelse/filmatisering som en tværkulturel praksis: bemærkninger om Hamlet i fremmede


land

Marcel Alvaro de Amorim


Orientador: Prof. Dr. Roberto Ferreira da Rocha

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em


Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Linguística Aplicada.

Baseret på de seneste teorier om oversættelse/filmatisering af litterære værker til film, har


denne Ph.d. afhandling som formål at analysere to filmiske versioner af skuespillet Hamlet
(1600-1601), af William Shakespeare, produceret i et ikke engelsktalende land – Brasilien – i
1970’erne. Det er også formålet at argumentere at de analyserede film - A Herança (Ozualdo
Candeias, 1970) og O Jogo da Vida e da Morte (Mario Kuperman, 1970) –, er mere end
intersemiotiske oversættelser, de er intertekstuelle og antropofagiske filmatiseringer af
Shakespeares berømte tragedie: det er fra kontakten mellem forskellige kulturer, fra den
tværkulturelle fortæring af det underlige/fremmede og dens genopbygning som en anden, at
betydningen af teksterne er bygget på. På den måde, er denne afhandlings hensigt at betragte
de sociokulturelle faktorer som centrale i de adskillige procedurer som er udviklet under
filmatiseringen af de omtalte film. Betragtning af at denne afhandling fokuserer på dialogen
mellem Shakespeares tragedie, film og kulturer, så vil analysen af korpusset blive baseret på
komparative analytiskprocedurer, som gennem analysekategorier konstruerede til/for
tilgangen af de overnævnede film, vil guide den udviklede læsning.

NØGLEORD: Litteratur og Film; Oversættelses/Filmatiserings Teorier; Antropofagi.


LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – “Tem alguma coisa podre no fazendão”........................................................ 115


Quadro 2 – “Deve haver mais coisa entre o céu e a terra...”............................................. 115
Quadro 3 – “Ser ou não ser...”........................................................................................... 115
Quadro 4 – “Você vai aprender a não me chamar de mentiroso.”.................................... 138
Quadro 5 – “Oh, Marcelo. Fala com ele.”......................................................................... 139
Quadro 6 – “Ah, se a gente pudesse evaporar.”................................................................ 139
Quadro 7 – “Agora só te resta fugir de casa”.................................................................... 140
Quadro 8 – “Ser ou não ser”.............................................................................................. 147
Quadro 9 – “Ei, olha! Diz aí!”........................................................................................... 151
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Ambientação de A Herança ............................................................................. 114

Figura 2 – Solilóquio To be or not to be e a ‘peça-dentro-da-peça’ na visão de Candeias.118

Figura 3 – Aparição do Fantasma para Omeleto................................................................ 120

Figura 4 – A fazenda e as pessoas que nela habitam..........................................................122

Figura 5 – Close-up e duelo de armas................................................................................ 123

Figura 6 – Reencontro de Omeleto com Cláudio e Gertrudes........................................... 126

Figura 7 – Suposta loucura encenada por Omeleto............................................................ 127

Figura 8 – A herança de Omeleto.......................................................................................130

Figura 9 – A partida de Fortimbrás e o enterro de Omeleto...............................................131

Figura 10 – A questão étnica em A Herança......................................................................134

Figura 11 – Comunidade onde a história se passa..............................................................137

Figura 12 – Horácio (à esquerda) e Marcelo (à direita)..................................................... 138

Figura 13 – Influências do cinema policial americano e expressionista alemão................ 142

Figura 14 – Representações de Ofélia................................................................................ 143

Figura 15 – João e a reflexão sobre o fazer artístico.......................................................... 146

Figura 16 – O solilóquio To be or not to be....................................................................... 147

Figura 17 – A peça-dentro-da-peça transformada em samba............................................. 150

Figura 18 – Cena entre os coveiros e conversa de Laertes com o Padre............................ 152

Figura 19 – O duelo final................................................................................................... 153

Figura 20 – A sensualidade de Gertrudes e o horizonte de São Paulo em meio ao lixão.. 156


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 17

1. A CRÍTICA SHAKESPEARIANA: HAMLET NA LITERATURA E NO CINEMA 27


1.1 A crítica literária sobre Hamlet: breves notas 29
1.2 Hamlet no cinema: por uma historiografia crítica das principais adaptações 62

2. A ADAPTAÇÃO COMO PRÁTICA DE DEVORAÇÃO TRANSCULTURAL 75


2.1 As Teorias da Adaptação – princípios epistemológicos, teóricos e metodológicos 76
2.2 Relação entre culturas: por uma prática adaptativa de devoração transcultural 88
2.3 Caminhos para o devorar: construindo as categorias de análise 101

3. UM OLHAR TRANSCULTURAL PARA O HAMLET EM TERRAS


ESTRANGEIRAS 106
3.1 Hamlet ruralizado: uma leitura de A Herança, de Candeias 113
3.2 Hamlet no tráfico: uma leitura de O Jogo da Vida e Da Morte, de Kuperman 135

CONSIDERAÇÕES FINAIS 157


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 165
ANEXOS 176
16

NOTA AO LEITOR

As teorias por meio das quais construímos o mundo


mudaram e, portanto, devem mudar nossas abordagens
de compreendê-lo teórica e metodologicamente, ao nos
localizarmos nas fronteiras onde varias áreas de
investigação se encontram.
(MOITA LOPES, 2004, p. 164).

(...) a legitimidade que se busca agora é justamente a de


uma prática científica de investigação do diverso, do
complexo e do instável ou do provisório, a exemplo do
que ocorre em outros campos de produção do
conhecimento.
(SIGNORINI & CAVALCANTI, 1998, p. 08).

A pesquisa que aqui apresento funda-se essencialmente a partir da ideia de


transdiciplinaridade defendida e aclamada por pesquisadores em Linguística Aplicada
(doravante LA). Assim, conhecimentos de áreas diversas como da própria LA, da
Literatura Comparada, dos Estudos Shakespearianos, dos Estudos do Cinema, dos Estudos
da Tradução e da Adaptação, da Antropologia, da Sociologia etc. procuram, nesta Tese,
dialogar, tendo em vista a construção de um horizonte mais amplo de pesquisa para os
textos shakespearianos em adaptação em espaços sócio-histórico-culturais diversos.
Ademais, é importante ressaltar que, epistemologicamente, a pesquisa aqui construída se
alinha aos estudos Brasilianistas, cunhados no contexto do campo de pesquisa denominado
por Estudos Brasileiros, ao procurar sinalizar a existência e permitir a construção de um
pensamento brasileiro dentro das ciências sociais e humanidades (CARVALHO, 2013, p.
01). Desse modo, ao longo de todo o texto, mais do que me embasar num arcabouço
conceitual brasileiro para a proposta de teoria da adaptação aqui delineada, procuro
dialogar com a crítica nacional – nos mais diversos campos ao qual recorro para a
construção dos capítulos desta Tese –, trazendo à tona vozes nacionais que podem auxiliar
a compreensão do objeto de estudos da pesquisa: o processo de adaptação de obras
literárias para o cinema a partir de um prisma transcultural.
17

Apresentação – Delimitando o tema e construindo o objeto de pesquisa

Cowards die many times before their deaths,


The valiant never taste of death but once.
Of all the wonders that I yet have heard
It seems to me most strange that men should fear,
Seeing that death, a necessary end,
Will come when it will come.
(II. 2. 32-37)1

De modo geral, a latente recusa das peças em


permanecer em um único modo, gênero,
linguagem, nação, posição de personagem ou
conjuntura histórica é uma das razões pelas quais
Shakespeare continua a ser popular.2
(JESS-COOK, 2007, p. 04)

É fato conhecido pelos biógrafos do ex-presidente da África do Sul, Nelson


Mandela, que, em algum momento durante suas quase três décadas na prisão, em Robben
Island, o ativista teve acesso ao que hoje chamamos de The Robben Island Bible3. O livro
é, na verdade, uma edição das obras completas de William Shakespeare (1564-1616)
introduzida na penitenciária por outro condenado, Sonny Venkatrathnam, que a disfarçou
com uma capa reproduzindo imagens que celebravam o Festival Hindu das Luzes,
convencendo os responsáveis pela prisão de que se tratava de um exemplar da Bíblia
Sagrada. O livro passou pelas mãos de diversos prisioneiros, e alguns deles marcaram no
exemplar suas passagens favoritas. A Mandela, coube a marcação da passagem da peça
Júlio César (Julius Caesar, 1599), que abre esta Apresentação.

O episódio relatado nos diz muito sobre o alcance dos escritos de Shakespeare em
diferentes momentos e localidades geográficas: ao sublinhar uma passagem com versos
como “Cowards die many times before their deaths:/ The valiant never taste of death but
once”, Mandela estava não somente celebrando o gênio do autor inglês, mas também
expressando, pelas palavras de um outro por quem nutria certa admiração, os seus ideais e
o que esperava do movimento revolucionário em seu país. Dessa forma, nas páginas da The

1
SHAKESPEARE, William. Julius Caesar. Edited by Marvin Spevack. The New Cambridge Shakespeare.
Cambridge: Cambridge University Press, [1988] 2003.
2
“More generally, the play’s latent refusal to stay in one setting, genre, language, nation, character-position
or historical juncture is one reason why Shakespeare continues to be popular.” [Todas as traduções de textos
teóricos apresentadas ao longo desta Tese são de minha autoria].
3
Mais informações sobre a história por trás da The Robben Island Bible podem ser encontradas no endereço
eletrônico <http://edition.cnn.com/2013/12/06/world/the-smuggled-shakespeare-book/>.
18

Robben Island Bible, encontramos sublinhada não simplesmente uma citação


shakespeariana, mas sim um Shakespeare particular, relido, devorado e reconstruído a
partir do ponto de vista daquele que se tornaria um dos maiores símbolos da luta
revolucionária em território africano.

Para o mundo, no entanto, esse episódio compõe mais do que uma expressão de
ideais e esperanças em relação ao movimento revolucionário sul africano: constitui a
própria construção de um herói do Antiapartheid a partir da leitura do texto dramático
shakespeariano. O dito sobre a coragem, enunciado na peça pelo próprio Julio César e
sublinhado na The Robben Island Bible por Mandela, parece, de certo modo, propício à
descrição simbólica de um homem que, futuramente, conduziria sua nação através de um
difícil período de transição. No entanto, a nós pode parecer irônico o fato de que Mandela
parece se identificar com uma passagem proferida na tragédia por um governante
tradicionalmente compreendido como opressor4. Porém, atentando para o enredo do drama,
podemos perceber que a leitura do ex-presidente africano parece focar no seguinte
contexto: a existência de uma figura política num ambiente hostil, tendo sua vida
continuamente ameaçada das mais diversas maneiras, de modo semelhante ao contexto
vivenciado por Mandela na prisão, em Robben Island.

Esse fenômeno, o da apropriação do outro – no caso, Shakespeare – para falar sobre


si próprio, acontece não apenas no episódio relatado, mas também nos mais diversos meios
e mídias de diferentes países que enxergam em Shakespeare caminhos para a
recriação/contestação/reconstrução5 de suas próprias sócio-histórias. Como nos lembra
Marcel Vieira Barreto Silva (2011, p. 15), “(...) dos produtos culturais que são usualmente
apropriados nas mais variadas mídias, as peças de William Shakespeare (...) talvez sejam
os exemplos mais perenes de continuidade, circularidade e atualização.” O dramaturgo
elisabetano é, sem dúvida, aquele que mais forneceu matéria prima para a construção de
novos textos, não apenas no Teatro – é importante lembrar que adaptações de suas peças

4
Na tragédia shakespeariana, Julio César é um ditador romano morto como resultado de conspiração
construída por, dentre outros, Marco Bruto e Cássio. Esses, mesmo sem provas contundentes sobre o mal que
César poderia cometer contra o povo de Roma caso coroado imperador, afirmam agir de forma preventiva em
nome da população, a classe oprimida do império.
5
Nesta Tese, seguindo os princípios epistemológicos construídos a partir de uma teoria da adaptação de base
intertextual e dialógica, utilizarei termos como recriação, reconstrução, contestação, além de outros como
ressignificação e refratação na tentativa de demarcar o caráter não estável e dinâmico dos significados
construídos nas mais diversas práticas sociais.
19

para o Teatro da Restauração começam a ter lugar menos de cem anos após sua morte6 –,
mas também nas mais variadas mídias, dos quadrinhos ao Cinema.

Portanto, torna-se essencial a investigação sobre a maneira como o trabalho desse


autor tem sido ressignificado nos diferentes períodos da sócio-história mundial, de modo a
se constituir como objeto atemporal e, como apontam alguns, universal7. Nesta Tese,
dedicar-me-ei, sobretudo, à compreensão dos escritos do bardo inglês adaptados para o
Cinema em uma diferente e não anglófona localidade geográfica, o Brasil, na tentativa de
criar inteligibilidade acerca dos processos pelos quais passam os escritos de Shakespeare a
fim de se tornarem textos que possam refratar as identidades cambiantes dos países
estrangeiros e períodos históricos que os adaptam. Em específico, debruçar-me-ei sobre
duas adaptações da peça Hamlet8 (1600-1601) desenvolvidas em território nacional. É meu
interesse investigar como essas adaptações demonstram características fundamentais de
sua cultura de produção e recepção, a brasileira, a partir da fricção entre os novos textos e a
fontes textual e cultural europeia, especificamente inglesa, do período elisabetano.

A escolha de Hamlet me parece natural, uma vez que essa peça tem atraído, desde o
nascimento da chamada Sétima Arte, olhares diversos dos mais diferentes países. À guisa
de exemplificação, enfocando somente algumas produções das décadas de 1960 e 1970 –
período histórico de produção dos filmes que compõe o corpus desta Tese –, encontramos
um Hamlet japonês personificado em Homem mau dorme bem (悪い奴ほどよく眠る,
Warui yatsu hodo yoku nemuru, 1960) de Akira Kurosawa; um Hamlet russo, construído
em Hamlet (Гамлет, Gamlet, 1964), de Grigori Kozintsev; e dois Hamlet brasileiros,
encontrados em A Herança (1970), de Ozualdo Candeias, e O Jogo da Vida e da Morte

6
Apenas para sinalizar algumas das adaptações teatrais das peças de Shakespeare na Restauração Inglesa,
cito as famosas Tudo por Amor (All for Love, or The World Well Lost, 1671), de John Dryden (1631-1700),
uma adaptação de Antonio e Cleópatra (Antony and Cleopatra, 1606) que concentra-se nos momentos finais
dos heróis da trama, e as adaptações de Nahum Tate (1652-1715), muito populares durante o período, como
A História de Rei Lear (The History of King Lear, 1681), que teve seu final alterado para apresentar uma
conclusão feliz ao enredo, e A Ingratidão de uma Nação (The Ingratitude of a Commonwealth, 1682), uma
versão da peça Coriolano (Coriolanus, 1607) que se inseria na situação política inglesa de então, sobretudo
no debate entre os partidos Tory, pró-monárquico, e Whig, partido de oposição de aspirações republicanas.
7
Jan Kott ([1961] 2003) difundiu as bases para um pensar da obra de William Shakespeare como objeto
atemporal, uma vez que, para o autor, Shakespeare sempre será “nosso contemporâneo”. Já Harold Bloom
(1999, p. 10) apresenta-nos o trabalho de Shakespeare, e o próprio bardo, como universal, isto é, como
principal centro do cânone literário, sendo atemporal e possuindo consciência secular.
8
Nesta Tese, uso como referência principal a edição conflacionada de Hamlet editada por Philip Edwards
para a coleção The New Cambridge Shakespeare, da Cambridge University Press. As edições das três versões
da peça (primeiro e segundo in-quarto e fólio) da coleção The Arden Shakespeare, editadas por Ann
Thomson e Neil Taylor, são também consultadas para fins de cotejo textual, quando necessário.
20

(1971), de Mario Kuperman. Em dois dos principais países anglófonos, no mesmo período,
John Gielgud produz seu Hamlet (1964), nos Estados Unidos, como fazem Tony
Richardson e Peter Wood (1969 e 1970, respectivamente) em terras britânicas. Aqui,
direciono meu foco para as duas adaptações brasileiras mencionadas, pelo fato de que elas
se enquadram no recorte pretendido pela pesquisa delineada: a investigação do Hamlet em
tradução/adaptação em territórios estrangeiros, isto é, espaços sócio-histórico-culturais
diversos; no caso, um país da América do Sul, localizado em continente e hemisfério
diferentes do contexto de produção e recepção iniciais da obra de partida.

Acerca da popularidade da peça, Julie Sanders (2006, p. 52) chama atenção para o
fato de que Hamlet tem sido, juntamente a Otelo (Othello, 1603) e A tempestade (The
Tempest, 1611), uma das mais adaptadas peças shakespearianas para o cinema. Em
levantamento realizado por Kenneth S. Rothwell ([1999] 2004), até o ano de 2004, mais de
quarenta e três adaptações do drama protagonizado pelo príncipe dinamarquês haviam sido
produzidas em países diversos e realizadas em versões para crianças, jovens e adultos. Neil
Taylor (1994, p. 180) nos lembra ainda da existência de mais de noventa filmes que, até a
primeira metade da década de 1990, faziam ao menos alusões àquela peça. Com efeito,
Hamlet tem sido utilizada muitas vezes para que possamos falar de nosso próprio tempo,
dentro dos mais diferentes contextos de adaptação. Em especial, ressalto aqui que o caráter
político e, consequentemente, social da peça tem sido destacado por diversos filmes, em
específico aqueles que fazem parte do corpus desta pesquisa, sendo seu enredo utilizado
largamente pela cinematografia mundial, para que as audiências contemporâneas possam
assistir na tela a uma história sobre sua própria realidade social e política, ainda que
ressignificada pelas lentes do dramaturgo elisabetano.

Como R. A. Foakes (1993, p 43) aponta, Hamlet é “(...) inescapavelmente política,


como romancistas, poetas, ensaístas, dramaturgos e críticos, conscientemente ou não, têm
sinalizado ao longo dos últimos dois séculos”9. Emma Smith (2007, p. 141) atesta ainda
que isso se dá a partir do próprio material textual da peça, que “(...) dramatiza diferentes
formas de monarquia e sucessão, além de interrogar o passado, presente e potenciais
ocupantes futuros do trono dinamarquês”10. Assim, a peça se constitui como um excelente

9
“(...) is inescapably political, as novelists, poets, essayists, dramatists and critics, consciously or
inadvertently, have shown over the last two centuries.”
10
“(…) dramatizes different models of kingship and succession, and interrogates past, present and potential
occupants of the Danish throne.”
21

ponto de partida para diretores que pretendem, através dos escritos de Shakespeare, lançar
um olhar sobre a sociedade em que se inserem, sobretudo para as questões sociopolíticas
pertinentes ao seu próprio tempo. Corroboro, desse modo, o pensamento de Jan Kott
([1961] 2003, p. 27), que afirma que o trabalho de diferentes diretores – como aqueles
cujos textos fílmicos selecionei para esta Tese – permite ao público contemporâneo
“reencontrar nas tragédias de Shakespeare sua própria época” e, por consequência, se
aproximar da ‘“época shakespeariana’”. Parto aqui do pressuposto de que cada uma dessas
produções constrói leituras específicas de Hamlet.

Sendo assim, é intenção desta Tese a busca pela resposta das seguintes questões de
pesquisa:

 Como as culturas de produção e recepção dos textos fílmicos modificaram,


assimilando, restringindo, acrescentando ou reformulando as características que
julgamos serem próprias à peça adaptada e a seu contexto inicial de produção e
recepção?
 De que forma e até que ponto as adaptações elencadas para o corpus da pesquisa
refratam as cambiantes identidades culturais de seu contexto de produção a partir
de suas variantes históricas e nacionais?

Na tentativa de elucidação das questões de pesquisa delineadas, tomo como ponto


de partida o trabalho de estudiosos que, ao longo das últimas décadas, têm buscado
compreender os processos envolvidos na relação entre as Artes literária e cinematográfica.
No entanto, apesar de reconhecer o pioneiro trabalho de estudiosos filiados à chamada
Tradução Intersemiótica (cf. JAKOBSON, [1967] 1969; PLAZA [1987] 2008;
BLUESTONE, [1957] 2003 e McFARLANE, 1996), adoto principalmente a postura
epistemológica de teóricos que se enquadram, em algum nível, nas Teorias da Adaptação -
sobretudo, as contribuições de Robert Stam (2000, 2004 e 2005), Linda Hutcheon (2006) e
Julie Sanders (2006), autores que, embora com objetivos diferentes, constroem suas obras
considerando a dialogicidade e a intertextualidade como horizontes de leitura. Desse modo,
considerarei aqui enfocar a obra adaptada não como intrinsecamente ligada à original, mas,
ressignificando os postulados de Mikhail Bakhtin ([1979] 2003), como um elo na cadeia
discursiva de enunciados que nos circundam.
22

No entanto, dada a natureza transnacional do corpus escolhido, filio-me a Lawrence


Venuti (2007) que, ao examinar a suposta virada teórico-metodológica desempenhada
pelos estudos das Teorias da Adaptação, assevera que tal processo poderia ser melhor
compreendido se focalizado partir do prisma da comunicação transcultural – cf. Capítulo
dois –, em que o analista não apenas procuraria por relações, que o autor acredita existir,
entre textos de partida e de chegada, mas saberia que essas relações estão sujeitas às
exigências de um trabalho interpretativo que é determinado pela língua e pela cultura de
chegada. O que pretendo, ao adotar o posicionamento de Venuti, não é, portanto, um
abandono total da questão intertextual, mas a adição do fator cultural, que teria a
potencialidade para a construção de um novo olhar sobre o estudo da adaptação como
fenômeno midiático da contemporaneidade. Assim, o que busco nesta Tese é uma
ampliação do método textual comparativo comum aos estudos da adaptação, mais do que a
sua substituição por outra metodologia que teria seu foco apenas na questão cultural.

Nos estudos sobre a performance teatral, por exemplo, já na década de 1990,


Patrice Pavis ([1990] 2008, p. 02) apontava que a abordagem da intertextualidade deveria
ceder lugar ao estudo das relações entre culturas. De acordo com esse autor, além de ser
necessário descrever as relações existentes entre os textos para o entendimento do seu
funcionamento interno, “é preciso da mesma forma, e acima de tudo, compreender a sua
inserção nos contextos e culturas, bem como analisar a produção cultural que resulta desses
deslocamentos imprevistos”. No entanto, nesta Tese, procurarei uma visão alternativa à
ideia tradicional de interculturalismo, que, conforme aponta Pavis ([1990] 2008, p. 02), se
configura como uma tentativa de dar conta “da dialética de trocas dos bons procedimentos
entre as culturas”. Assim como esse autor, assevero aqui que tal relacionamento não se dá
de forma automática e passiva, e considero que a cultura de chegada procura ativamente na
cultura de partida o que necessita para preencher suas necessidades concretas – o que não
exclui a ideia de que a cultura de partida também seja influenciada nesse processo.

Tendo essas disposições em vista, reconheço nesta Tese a Antropofagia como o


fundamento de uma ferramenta interpretativa de base transcultural que, tendo antecedido
os estudos pós-colonialistas11, pode possibilitar um entendimento da relação dialética entre
eu-outro-eu.

11
De acordo com Robert J. C. Young (2003, p. 04), baseados no argumento de que as nações dos continentes
considerados não ocidentais (África, Ásia e América Latina) estão em grave situação de subordinação à
23

O termo Antropofagia, apropriado por Oswald de Andrade em seu Manifesto


Antropófago ([1990] 2009), originalmente publicado em 1928, remete ao ato de comer
partes de um humano, prática dos povos ditos primitivos, em particular os indígenas. Não
se trata apenas de um simples hábito primitivo alimentar, mas sim de um movimento de
devoração, uma vez que os povos que o praticavam acreditavam que estariam adquirindo
as habilidades e força das pessoas – e, por consequência, das tribos – que vorazmente
comiam. Com efeito, diferentemente do canibalismo, que se vincula à ideia de hábito
alimentar e comportamento predatório, a Antropofagia constitui-se como um movimento
de incorporação, admiração e vingança do/contra o outro.

Dessa forma, o que a ideia de uma Antropofagia instaura é um movimento


dialógico de construção cultural daquele que devora e daquele que é devorado: eu te
devoro para fazer de você parte de mim, e vice-versa. Sendo assim, o que Oswald de
Andrade parece realmente propor, como movimento estético, é assimilarmos as tendências
europeias, dominantes na época, para as elaborarmos a partir de uma outra epistemologia e,
com base nessas ações, produzirmos coisa nova, “coisa nossa” ([1990] 2009, p. 69). Com
efeito, ao adotar a postura Antropofágica nesta Tese, pretendo compreender de que modo o
global pode se tornar local, e o local pode conter o global, numa relação de
transfertilização (MOEHN, 2012). Tal postura coaduna também com a visão de cultura
aqui defendida, que, nas palavras de Marilyn Strathern (1992, p. 47), considera “(...) a
forma como as pessoas constroem analogias entre diferentes domínios de seus mundos”12,
constituindo a ideia de cultura, então, como um processo multidimensional de comparação,
de contatos.

Sendo assim, considero, como Zygmunt Bauman ([2011] 2013), que “hoje os
modos de vidas flutuam em direções diferentes e não necessariamente coordenadas; entram
em contato e se separam, aproximam-se e se distanciam, abraçam-se e se repelem, entram
em conflito ou iniciam um intercâmbio de experiências ou serviços...” e, de acordo com o
autor, realizam tudo isso “flutuando numa suspensão de culturas, todas com uma gravidade
específica semelhante ou totalmente idêntica”. Desse modo, dada a fluidez e a ideia de
trânsito, movimento, atribuída aqui ao fator cultural, nesta Tese irei me referir sempre a

Europa e América do Norte, sobretudo economicamente, os estudos pós-coloniais procuram contestar essa
disparidade, continuando, de certo modo, lutas anti-coloniais do passado na tentativa de construção de novos
olhares sobre as relações de alteridade entre os polos ocidental e não-ocidental.
12
“(...) the way people draw analogies between different domains of their worlds”.
24

culturas, no plural, em vez de cultura, no singular, que não me parece um termo adequado
para dar conta da dinâmica de contatos culturais existentes em nosso mundo líquido13
([2011] 2013, p. 16).

A partir desse arcabouço, o que pretendo apontar é que uma prática de adaptação
cultural, se enxergada a partir das bases teóricas sinalizadas, é aquela que considera os
elementos do texto de partida, mas, ao mesmo tempo, os utiliza criativamente, renovando-
os, reconstituindo-os ferozmente e os inserindo mutuamente na tradição a partir desse
processo que aqui denomino Devoração Transcultural. Além disso, tal enfoque pode nos
ajudar a delinear o alcance interpretativo do texto dramático após inserido na língua e nas
culturas de chegada, uma vez que, em um novo contexto sócio-histórico, o texto pode
permitir a construção de sentidos não ainda evidentes no contexto inicial de sua produção.
Para tanto, são meus objetivos analíticos

 Analisar, a partir da ideia de relações entre culturas proporcionada pela


Antropofagia, dois textos fílmicos baseados no drama shakespeariano Hamlet,
verificando de que forma as culturas de chegada reconstroem essa tragédia a partir
da apreciação do outro em seu contexto local.
 Verificar, a partir dos resultados da análise desempenhada, o lugar e a função das
películas elencadas como corpus da pesquisa dentro dos chamados filmes
shakespearianos. Em especial, interessar-me-ei pela posição dos filmes analisados
dentre aqueles considerados como os grandes filmes shakespearianos adaptados a
partir de Hamlet pela crítica especializada.

Metodologicamente, procuro, como sinalizei, partir da análise textual para a análise


de cunho cultural, considerando também as características cinematográficas dos textos
fílmicos selecionados. Apesar de não me prender em categorias de análise estanques que

13
Por mundo líquido, Bauman ([2011] 2013, p. 16) entende “(...) o formato atual da condição moderna (…).
O que torna ‘líquida’ a modernidade, e assim justifica a escolha do nome, é sua ‘modernização’ compulsiva e
obsessiva, capaz de impulsionar e intensificar a mesma, em consequência do que, como ocorre com os
líquidos, nenhuma das formas consecutivas de vida social é capaz de manter seu aspecto por muito tempo.”
Segundo o autor, ‘“Dissolver tudo que é sólido’ tem sido a característica inata e definidora da forma de vida
moderna desde o princípio; mas hoje, ao contrário de ontem, as formas dissolvidas não devem ser
substituídas (e não o são) por outras formas sólidas (...). No lugar de formas derretidas, e portanto
inconstantes, surgem outras, não menos – senão mais – suscetíveis ao derretimento, e portanto também
inconstantes.”
25

poderiam, de alguma forma, ser incoerentes com a fluidez dos textos dramáticos e fílmicos
e com a base epistemológica bakhtiniana adotada pelos estudiosos das Teorias da
Adaptação, observarei fatores como aqueles delineados por Roberto Ferreira da Rocha
(2003), para a análise do que o autor chama de Teatro Intercultural, e por Marcel Vieira
Barreto Silva (2013), para a análise de adaptações shakespearianas em território brasileiro
a partir da ideia de interculturalidade14. Dentre os caminhos sinalizados por esses autores,
adoto nesta Tese os seguintes enquadramentos que, adaptados à proposta aqui delineada,
serão detalhados ao longo do trabalho: Linguagem (tradução e adaptação do texto
shakespeariano), Estrutura do Enredo, Relação entre Gêneros, Caracterização Visual
(inserção da história em cinematografias nacionais) e Inserção histórico-social.

Buscando o desenvolvimento da investigação aqui proposta, apresento, no primeiro


capítulo, uma breve leitura da fortuna crítica shakespeariana no que se refere à peça
Hamlet, me interessando, especialmente, pelos principais modos de enquadramento crítico
do drama ao longo dos séculos XIX, XX e XXI e pela forma como as adaptações
cinematográficas deste texto refratam, em algum grau, tais enquadramentos. Desse modo,
procuro, nesse capítulo, a construção de uma abordagem teórica da peça Hamlet, e o
desenvolvimento de um movimento historiográfico crítico sobre as principais adaptações
desse texto dramático para o cinema. Com efeito, o recorte apresentado poderá auxiliar na
busca por completude do segundo objetivo analítico delineado para a presente Tese.

No segundo capítulo, partindo, como apontei, das Teorias da Adaptação de ordem


dialógica e intertextual, procuro construir a possibilidade de uma abordagem teórico-
metodológica transcultural, com base na ideia de Antropofagia, para a análise de filmes
baseados na obra shakespeariana produzidos em países não pertencentes ao mundo
anglófono. Nesse capítulo também apresento a visão de culturas subjacente ao trabalho,
explicando os caminhos analíticos adotados para a realização da leitura pretendida.
Observo, entretanto, que não é minha pretensão a criação de uma Teoria Geral da
Adaptação como prática Antropofágica de cunho Transcultural, uma vez que o caminho
teórico-metodológico traçado foi construído tendo em vista a análise do corpus
selecionado para esta Tese, isto é, não em busca de generalizações, mas procurando dar
conta do próprio objeto de análise.

14
Considero aqui, como sinaliza Wolfgang Welsch (1999), a noção de interculturalidade como insuficiente
para os objetivos desta Tese, pois, em sua tradicional acepção, sua premissa ainda reside na noção clássica de
culturas baseada nas ideias de homogeneização social, consolidação étnica e delimitação intercultural.
26

Já no terceiro e último capítulo desta Tese, busco a construção de uma leitura dos
filmes A Herança (1970), de Ozualdo Candeia, e O Jogo da Vida e da Morte (1971), de
Mario Kuperman. Nessa análise, faz-se mister a compreensão, em relação ao primeiro
filme, de como os discursos sobre as propriedades de terra e a reforma agrária brasileira
são ressignificados nessa produção, que realoca a trama shakespeariana para um Brasil
rural do interior do Estado de São Paulo. Em relação ao segundo filme, procurar-se-á a
construção de inteligibilidade sobre o modo como a questão das drogas e da violência
presentes em uma comunidade de uma grande metrópole brasileira, São Paulo, pode
dialogar com a linha narrativa e os discursos que constroem o texto shakespeariano. Com
efeito, o que me interessa é a compreensão de como Candeias e Kuperman procuraram no
Hamlet de William Shakespeare um caminho para falar sobre o Brasil, sobre o povo
brasileiro, a partir de um outro, de um estrangeiro: Shakespeare.

Por fim, apresento a seção de Considerações Finais, na qual busco delinear


brevemente as principais contribuições da pesquisa realizada, enumerando também os
possíveis desdobramentos para os apontamentos aqui expostos.
27

Capítulo um: A crítica shakespeariana: Hamlet na literatura e no cinema

Escrever sobre ‘Hamlet’ é fazer uso constante de


superlativos: a mais popular, a mais representada, a
mais citada, a mais filmada, a mais longa das peças
shakespearianas (cerca de quatro mil e cinqüenta
linhas, dependendo da edição) e a que contém o
mais longo papel da dramaturgia universal (cerca
de mil e quinhentas linhas, também dependendo da
edição).
(SANTOS, 2008, p. 197)

Hamlet me parece um divisor de águas em sua


carreira [de Shakespeare] – sua mais longa, a mais
tecnicamente ambiciosa, a mais estilisticamente
variada, e, acima de tudo, a mais profundamente
humana de suas peças, na qual ele atinge novos
níveis de interioridade.15
(WELLS, 2010, p. 88)

Neste capítulo, pretendo esboçar brevemente notas que contribuam para a


construção de uma histórica crítica do drama Hamlet, de William Shakespeare, na
literatura e no cinema. É necessário ressaltar, no entanto, que tal empreitada partirá de
escolhas realizadas tendo em vista os objetivos traçados para esta Tese, uma vez que, como
atestado nas epígrafes que abrem o capítulo, o interesse crítico por Hamlet é enorme e
cresce mais a cada ano: "Calcula-se que sobre a tragédia já se escreveram, entre livros,
dissertações e teses, cerca de 80.000 títulos, além de incontáveis artigos acadêmicos..."
(CARNEIRO, 2014, p. 75).

José Roberto O’Shea (2010, p. 09) afirma ser Hamlet o texto mais frequentemente
analisado de toda a literatura ocidental. Já Ernest Jones ([1949] 1976, p. 22) vai além e
afirma que mais foi escrito sobre Hamlet do que sobre qualquer outro personagem da
literatura de ficção ou não, com exceção de Jesus Cristo, Napoleão e, claro, do próprio
Shakespeare. Pedro Süssekind (2008, p 16) sinaliza que, justamente por ser tão estudada,
comentada e interpretada, uma obra como essa pode comprovar o caráter inesgotável das
formas de expressão artísticas que, segundo o autor, estão sempre abertas a novas leituras.
Desse modo, em concordância com Susanne L. Wofford (1994, p. 181), acredito que
escrever a história crítica Hamlet é, de muitas maneiras, escrever a história cultural dos

15
“Hamlet seems to me a watershed in his [Shakespeare’s] career – his longest, most technically ambitious,
most stylistically varied, and above all most profoundly human play in which he reaches new levels of
interiority.”
28

Estados Unidos da América e da Grã-Bretanha ao longo dos últimos quatro séculos.


Possivelmente por esse motivo, analistas “têm se focado mais em partes ou aspectos da
peça do que nela como um todo”16 (HAPGOOD, [1985] 2003, p. 72).

Na história da peça, logo após a morte do Rei Hamlet, Hamlet, o filho, volta da
universidade em Wittenberg, Alemanha, para ver sua mãe se casar com seu tio Cláudio,
que ascende ao trono de modo suspeito. Em seguida, o espectro do Rei Hamlet, que ronda
o castelo, aparece para seu filho e acusa Cláudio de tê-lo assassinado, clamando que seu
filho empreenda vingança contra o novo rei. A partir desse momento, Hamlet se envolve
em diversas ações – e inações –, tais como fingir que está louco, rejeitar Ofélia, por quem
supostamente está apaixonado, fazer encenar no castelo uma peça de teatro em que são
representados os crimes do tio, sempre com a finalidade de desmascarar o atual rei. Essa
sequência de ações, e de mais algumas inações, como a decisão do príncipe de não matar
Cláudio no momento em que este se encontrava em oração, leva-nos ao apogeu da peça:
um duelo de espadas.

O enredo aqui relatado é aquele que tem suscitado as mais diversas análises, sob os
mais diferentes pontos de vista, por parte da crítica literária. Na tentativa de tecer breves
notas sobre história crítica de Hamlet, na primeira seção deste capítulo, apresento a fortuna
crítica shakespeariana construída ao longo dos últimos duzentos anos, procurando apontar,
por meio de seus principais expoentes, as formas pelas quais a crítica literária tem lido esse
texto do bardo de Stratford-upon-Avon. Em especial, procuro dialogar com os escritos de
Edward Dowden ([1875] 2009), A. C. Bradley ([1904] 2009), Sigmund Freud ([1900]
2001), Ernest Jones ([1949] 1976), L. S. Vygotsky ([1916] 1999, [1925] 2013), John
Dover Wilson ([1935] 2009), Harold Bloom ([2003] 2004), Pedro Süssekind (2008),
Victor Kiernan (1996), Andrew Fitzmaurice (2009) e José Garcez Ghirardi (2011). A partir
do diálogo construído, procurarei não esgotar as reflexões desses autores sobre a peça em
discussão, mas apresentar as linhas teóricas e analíticas traçadas para a abordagem da peça
as quais podem ou não ter influenciado as leituras fílmicas de Hamlet ao longo dos últimos
121 anos da história do cinema.

Na segunda e última seção do capítulo, construirei uma historiografia crítica de


Hamlet em adaptação para o mercado cinematográfico, procurando apontar, especialmente,
as condições que viabilizaram a leitura das obras desse dramaturgo por diferentes diretores

16
“(…) focused more on parts or aspects of the plays than on the whole.”
29

em distintas épocas. Para tanto, direciono o foco da abordagem para aquelas adaptações
que, independentemente de uma suposta relação estreita com o original (veja-se
problematização da ideia de original no Capítulo Dois desta Tese), contribuíram na tarefa
de reconstruir o cânone shakespeariano em diferentes momentos da história do cinema
mundial, anglófono ou não. Desse modo, espero pavimentar um caminho que me permitirá,
nas análises apresentadas e nas considerações finais desta Tese, compreender o lugar dos
dois textos fílmicos analisados dentro dos chamados filmes shakespearianos adaptados a
partir de Hamlet.

1.1. A crítica literária sobre Hamlet: breves notas

Existe um final para ‘Hamlet’, mas não para Hamlet: o


personagem vive em seu legado. Seu ‘cadáver filho da
mãe’, após quatro séculos, não se decompôs.
(BLOOM, [2003] 2004, p. 111)

A peça é tão multifacetada e sua continuidade tem sido


tão ricamente diversificada que está se tornando cada
vez mais difícil para que intérpretes possam considerar
e compreender tudo isso.17
(HAPGOOD, [1985] 2003, p. 81)

Antes de iniciarmos nosso passeio pela crítica literária de Hamlet, é importante


compreendermos o movimento de construção da peça até sua estreia nos palcos
elisabetanos. Shakespeare é conhecido pela crítica literária como um grande adaptador. Na
construção de suas obras, o autor faz uso extensivo não apenas de outras fontes dramáticas,
mas também de obras poéticas e narrativas que circulavam em território inglês no final do
século XVI e no início do século XVII. O’Shea (2010, p. 09) nos lembra que a prática de
adaptar textos antigos e/ou recentes era corrente, e que essas adaptações guiavam-se por
diferentes propósitos, fossem eles ideológicos, políticos ou apenas cênicos.

Dentre os autores que possivelmente influenciaram a construção do cânone


shakespeariano, estão aqueles adotados pelos currículos escolares da época, tais como
Virgílio (70 a.C. - 19 a.C.), Plauto (230a.C. - 180 a.C), Sêneca (4 a.C - 65 d.C.) e Terêncio

17
“The play is so many-faceted and its afterlife has been so richly varied that it is becoming more and more
difficult for interpreters to take it all in and make sense of it.”
30

(195 a.C. - 159 a.C). Além desses, outros textos de outros autores, como Boccaccio (1310 -
1375), difundiram-se em território inglês por meio de suas traduções. Obras que visavam à
circulação de feitos históricos, como Chronicles of England, Scotland and Ireland, de
Raphael Hollinshed (1529 - 1580), também influenciaram fortemente a produção de
dramas no período. A riqueza das relações entre esses textos-fonte e o drama de William
Shakespeare levou Geoffrey Bullough a construir uma monumental obra em oito volumes
intitulada Narrative and Dramatic Sources of Shakespeare (1957-1975), na qual mapeia e,
quando possível, reproduz os textos completos ou parciais, das fontes utilizadas pelo bardo
na construção de suas peças.

De acordo com Marlene Soares dos Santos (2008, p. 197), para o processo de
construção de Hamlet, Shakespeare se valeu de uma antiga lenda escandinava que havia
sido narrada originalmente em língua latina por um dinamarquês e que, após recontada por
um autor francês em sua língua materna (1570), teria sido traduzida para o inglês em 1608.
Além disso, a autora afirma também que um texto teatral anterior denominado pela crítica
de Ur-Hamlet, possa ter servido como fonte para a peça shakespeariana. Com efeito,
devido aos parcos registros de encenação de Ur-Hamlet, obtidos sobretudo a partir de
leituras de fragmentos soltos de textos do período, como, por exemplo, a introdução de
Thomas Nashe (1567 – 1601) para obra Menaphon (1589), de Robert Greene (1558 –
1592), Lawrence Flores Pereira (2015, p. 07) afirma que a história do herói malogrado não
era uma novidade nos palcos ingleses do período, desde o final da década de 1580. Uma
anotação sobre uma possível encenação dessa peça no ano de 1596, encontrada nos diários
de um empresário teatral elisabetano chamado Philip Henslowe (1550 – 1616), também
atesta a ideia de que o enredo de Hamlet era conhecido pelos cidadãos do período.

A autoria de Ur-Hamlet não é uma questão completamente esclarecida pelas


críticas literária e teatral. No entanto, a maior parte dos críticos a atribui a Thomas Kyd
(1558-1594), autor de A tragédia espanhola (The Spanish Tragedy, 1582-1592), outro
texto teatral que poderia ter influenciado na construção de Hamlet devido a sua abordagem
do gênero dramático tragédia de vingança. No entanto, Pereira (2015, p. 08) afirma que
essa atribuição é frágil, uma vez que se baseia principalmente no fato de o nome de Kyd
ser mencionado na mesma página da introdução de Menaphon em que Hamlet é citada.
Harold Bloom ([2003] 2004, p. 15) também considera a atribuição da autoria a Thomas
Kyd como problemática, acreditando que o próprio Shakespeare havia escrito ambas as
31

versões da história de Hamlet, o príncipe da Dinamarca. Contudo, mesmo que não


consideremos a hipótese defendida por Bloom, é possível afirmar com certo grau de
assertividade que Shakespeare muito provavelmente teve acesso ao texto de Ur-Hamlet,
uma vez que, na metade da década de 1590, essa peça fazia parte do repertório dramático
encenado pela Chamberlain’s Men, companhia teatral à qual Shakespeare era associado no
período (PEREIRA, 2015, p. 08).

Ur-Hamlet, como já afirmei, não era a única fonte para a construção de Hamlet. É
muito provável que Shakespeare tenha consultado o relato de François Belleforest do
enredo, publicada em sua obra Histórias trágicas (Histoires Tragiques, 1570). Nessa obra,
Belleforeste apresentava uma tradução criativa de uma narrativa semelhante, Amleth,
escrita por Saxo Grammaticus, no século XII, e publicada na obra Gesta Danorum, no
início do século XIII (FITZMAURICE, 2009, p. 143). Na Gesta Danorum, de modo
semelhante ao enredo shakespeariano, o tio de Amleth, o herói, Feng, mata o antigo rei e
casa-se com a mãe de Amleth, Gerutha. No entanto, ao contrário do que ocorre na peça de
Shakespeare, o assassinato nessa narrativa não é um segredo. Desse modo, justifica-se
inclusive o fingimento de loucura por parte de Amleth, que necessitava dirimir suspeitas
sobre suas intenções, trilhando um caminho mais seguro para a efetivação do ato de
vingança. Nesse texto, ainda,

Usa-se uma linda jovem para sondá-lo [a Amleth] e desvendar suas intenções.
Espiado por um conselheiro do rei, Amleth o mata e desmembra. O tio
finalmente o manda para a Inglaterra para ser executado, escoltado por dois
acompanhantes. Amleth intercepta as instruções e substitui seu nome pelo dos
dois acompanhantes. Ao retornar a Dinamarca, ele vinga a morte de seu pai,
matando o tio e assumindo o trono (PEREIRA, 2015, p. 08-09).

Como se pode perceber, o final da narrativa se distancia consideravelmente do


desfecho do texto shakespeariano, no qual Hamlet também é morto, dando sua voz e seu
voto a Fortimbrás, príncipe norueguês, como futuro governante do reino dinamarquês. No
entanto, as premissas básicas do drama inglês – assassinato do rei, casamento do novo rei
com a mãe do príncipe, construção da vingança por parte do príncipe etc. – já estão
delineadas no texto de Grammaticus.

A tradução criativa de Belleforest para Amleth aproxima-se ainda mais do enredo


que encontramos em Hamlet. Nela existe, por exemplo, a encenação de uma espécie de
duelo entre o velho Hamlet e o rei da Noruega, o movimento de sedução de Gertrudes por
Cláudio, a morte do Rei Hamlet, bem como o casamento de Gertrudes com Cláudio.
32

Pereira (2015, p. 10-11) nos lembra também que lá estava a problemática da vingança,
como o dever do filho do Rei assassinado, a questão da loucura fingida, a suposta demora
do príncipe em cumprir a vingança, a morte de Polônio, a admoestação contra a mãe, a
viagem à Inglaterra, o retorno do príncipe à Dinamarca e, por fim, o assassinato do rei.
Entretanto, e de modo semelhante ao que ocorre no texto de Saxo Grammaticus, além do
fato de o assassinato também não ser um segredo, o texto apresenta outras diferenças
significativas em relação à peça shakespeariana, como, por exemplo, a idade de Amleth,
que na história de Belleforest é menor de idade, o que justifica a demora da realização da
vingança, uma vez que o protagonista ainda é impotente para planejar suas ações de
maneira eficaz (PEREIRA, 2015, p. 11).

Após construída por Shakespeare, a história de Hamlet continua a ser


constantemente reconstruída ao longo dos últimos quatro séculos. Wofford (1994, p. 181)
afirma que “cada geração cria um Shakespeare para si mesma, tanto através de
reinterpretações acadêmicas, quanto em reencarnações criativas dadas a peças individuais
no palco, em pinturas, na poesia e em filmes.”18 A autora afirma também que a capacidade
de ser constantemente reciclada, adaptando-se às mudanças de mentalidade de diferentes
períodos, é o que torna possível definir uma obra artística como um clássico. No caso de
Shakespeare, seu status de clássico na literatura ocidental pode ser atestado inclusive pelo
fato de que, nos meios letrados, por vezes consideram-se como menos civilizadas as
pessoas que não tiveram contato com os textos dramáticos desse autor (WOFFORD, 1994,
p. 189). Independentemente de se concordar com essa postura ou não, é certo que a obra de
Shakespeare, em especial Hamlet, tem constantemente sido foco de atenção da sociedade e
da crítica especializada. No mundo da crítica, há uma constante busca sobre o modo mais
adequado de leitura desse texto dramático, sendo, para muitos comentadores, o motivo da
demora por parte de Hamlet em cumprir sua vingança a questão-chave para a compreensão
da peça (SINFIELD, [1980] 2005, p. XXIII).

Wofford (1994, p. 182) lembra que a crítica shakespeariana começou quando o


autor ainda era vivo e que, logo após sua morte, Shakespeare já era reconhecido como o
maior dramaturgo de sua geração, talvez de sua era. A autora afirma ainda que o drama
Hamlet já era considerado a mais importante das peças de William Shakespeare ainda no
século XVII. A publicação, em 1623, de trinta e seis de suas peças num volume
18
“Each generation makes Shakespeare its own, both through its scholarly reinterpretations and in the
creative reincarnations that individual plays are given onstage, in paintings, in poetry, and on film.”
33

denominado Fólio reafirma a popularidade do autor, uma vez que esse formato tinha alto
custo de publicação e era destinado, na maioria das vezes, à publicação de autores clássicos
e de renome. A inserção, no Fólio, de um poema de Ben Jonson, To the memory of my
beloved, the AUTHOR, Mr. WILLIAM Shakespeare: and what he hath left us, também
atesta a admiração que os contemporâneos de Shakespeare compartilhavam por ele e sua
obra.

Além do questionamento da problemática da demora de Hamlet para efetuar a


vingança prometida, o senso de que Hamlet, de algum modo, transcende os limites de
qualquer momento histórico também teve importante papel na história crítica da peça.
Diversos estudiosos encontram nesse texto dramático o que entendem como uma
universalidade de espírito, que atravessa tanto períodos históricos quanto fronteiras
nacionais (WOFFORD, 1994, p. 183). Nesse sentido, mais do que apenas um autor que
ajudou a construção dos cânones literários inglês e norte-americano, parte da crítica atribui
a Shakespeare a criação de possibilidades de entendimento de nós mesmos, o que, no
entanto, não faz com que o autor, de acordo com Wofford (1994, p. 184), possa ser
considerado acima de qualquer crítica. E a crítica shakespeariana, em especial, a crítica de
Hamlet, pode nos permitir a compreensão sobre as mudanças ocorridas nos modos de
abordar obras de arte ao longo dos últimos três séculos: do foco no enredo como o
elemento central do drama à ênfase na construção do caráter dos personagens da peça e
seus aspectos políticos.

No início da história crítica que aqui delineio, ainda no século XIX, no auge do
movimento romântico europeu, S. T. Coleridge (1772 – 1834) constrói sua empreitada
crítica sobre Hamlet a partir da ideia de que, na peça, Shakespeare nos apresenta um
personagem “corajoso e despreocupado com a morte; mas ele vacila por sensibilidade, e
procrastina por causa do pensamento, perdendo o poder de ação na energia para tomar uma
decisão”19 (COLERIDGE, [1818/1827] 1988, p. 30). Nesse sentido, o autor afirma que o
príncipe Hamlet tem uma personalidade mais apta para a abstração e para o hábito da
generalização do que para a execução de ações práticas. Com efeito, Philip Edwards
([1825] 2003, p. 33) afirma ser Hamlet, segundo Coleridge, um homem incapaz de agir,
uma vez que, mesmo sabendo o que deveria fazer e prometendo constantemente a

19
“Hamlet is brave and careless of death; but he vacillates from sensibility, and procrastinates from thought,
and loses the power of action in the energy of resolve.”
34

execução da tarefa que carrega, o príncipe é avesso à ação e gasta grande parte de sua
energia em um movimento de auto-reprovação. Ao construir Hamlet como um intelectual,
que valoriza mais a ação do pensar que as ações mundanas, Coleridge atesta que, para
Hamlet, o mundo da mente pareceria mais real que o mundo externo (EDWARDS, [1985]
2003, p. 33)

Ao analisar a abordagem de Coleridge sobre Hamlet, Wofford (1994, p. 186)


chama atenção para o fato de que o foco do escritor inglês está no poder intelectual, e não
na sensibilidade. A autora afirma ainda que essa abordagem nos relegou o Hamlet que
ainda hoje encontramos em muitas montagens e que é ensinado nas mais diversas salas de
aula; o Hamlet que pensa demais e que, por isso, não consegue agir. Nesse sentido, o
Hamlet de Coleridge é um filósofo, o que poderia ser comprovado por partes do texto
como o famoso solilóquio To be, or not to be, passagem em que personagem hesita e
racionaliza sobre sua tarefa, escapando, desse modo, da ação. Nas palavras de Coleridge
(apud WOFFORD, 1994, p. 186), a constante postergação de Hamlet

não é por covardia, uma vez que ele é retratado como um dos mais corajosos de
seu tempo – não é por desejo de premeditação ou por vagarosidade de
apreensão... mas simplesmente por aversão à ação, que prevalece entre aqueles
que têm um mundo em si mesmos.20

Outros autores românticos, como os alemães J. W. Von Goethe (1749 – 1832) e A.


W. Schlegel (1767 – 1845), parecem, de certo modo, também atribuir a postergação de
Hamlet em realizar a tarefa que lhe foi confiada a uma espécie de grandeza de espírito ou
forte atividade intelectual. Goethe ([1775-6]1988, p. 26) afirma que a chave clara para que
se possa desvendar o mistério em Hamlet é a compreensão de que Shakespeare procurou
construir na peça uma representação dos “efeitos de uma grande ação colocada sobre uma
alma inadequada para desempenhá-la”21. Hamlet teria, de acordo com o autor alemão,
“uma natureza amável, pura, nobre e quase inteiramente moral, a qual, sem a fibra forte
que constrói um herói, afunda sob um fardo que não pode carregar, mas que não pode
rejeitar. Todas as tarefas são sagradas para ele; o presente é muito difícil.”22 (GOETHE,

20
“(…) not from cowardice, for he is drawn as one of the bravest of his time – not from want of forethought
or slowness of apprehension… but merely from that aversion to action, which prevails among such as have a
world in themselves.”
21
“(…) effects of a great action laid upon a soul unfit for the performance of it.”
22
“A lovely, pure, noble and most moral nature, without the strength of nerve which forms a hero, sinks
beneath a burden which it cannot bear and must not cast away. All duties are holy for him; the present is too
hard.”
35

[1775-6] 1988, p. 23). Já Schlegel argumenta, de acordo com Wofford (1984, p. 187), que
Hamlet possui uma tendência a filosofar e meditar sobre aquilo que o torna incapaz de agir,
ressaltando, novamente, a faceta intelectual do personagem shakespeariano. De acordo
com Schlegel ([1809-11] 1988, p. 26-27), Hamlet demonstra possuir, ao longo da peça,

uma mente altamente cultivada, um príncipe de modos reais, dotado com o senso
mais fino de propriedade, suscetível à nobre ambição, e completamente aberto a
uma entusiasmada admiração daquilo que outros possuem de excelente e que
nele é deficiente.23

Nesse contexto, Wofford (1994, p. 1987) afirma que a admiração dos autores
mencionados sobre as características filosóficas e/ou especulativas de Hamlet se devia ao
fato de que elas inspiravam os leitores a considerar, juntamente ao personagem, a grande
questão da existência humana. Sob esse prisma de leitura, Hamlet se tornaria, ao mesmo
tempo, um personagem capaz de formular um pensar generalizante sobre sua própria
tragédia e um indivíduo que compartilha suas experiências e pensamentos individuais com
os leitores da peça.

Diferentemente de Coleridge e dos alemães Goethe e Schlegel, Eduard Dowden


(1843 – 1913) nos apresenta Hamlet como um personagem que não consegue se assegurar
completamente da trama que envolve o pedido de vingança ([1875] 2009, p. 134). Para
esse autor, o pensamento de Coleridge falha ao colocar exagerada importância em apenas
um dos elementos da personalidade do príncipe dinamarquês: a consideração calculada.
Com efeito, Dowden afirma que Hamlet não é só um intelectual e pondera que o lado
emocional do personagem é tão importante quanto o reflexivo e intelectual, e a doença que
o príncipe carrega estaria instalada não apenas em seu cérebro, mas também em seu
coração ([1875] 2009, p. 131-132). Além disso, o autor afirma ser Hamlet consciente de
que não foi feito para o mundo da ação, uma vez que esse personagem sempre se afasta do
fato para aproximar-se, reflexivamente, da ideia. No entanto, Dowden ([1875] 2009, p.
146) assevera que o príncipe não é incapaz de ação vigorosa; porém, para isso, seria
necessário impedir Hamlet de ter tempo suficiente para transformar o fato em uma ideia.

A peça, que, de acordo com Dowden ([1875] 2009, p. 125), teria sido escrita por
Shakespeare quando o autor já havia se tornado um mestre dramaturgo, tendo seu estilo um

23
“(...) a highly cultivated mind, a Prince of royal manners, endowed with the finest sense of property,
susceptible of noble ambition, and open in the highest degree to an enthusiastic admiration of that excellence
in others of which he himself is deficient.”
36

lugar entre seu trabalho anterior e aquele que ainda estava por vir, constrói-se a partir do
mistério vital e obscuro que é a personalidade de seu personagem principal. Esse mistério,
para Dowden ([1875] 2009, p. 126), será “para sempre sugestivo, para sempre sugerido, e
nunca inteiramente explicado”24. No entanto, a busca pela resolução do mistério do drama
se dá, sobretudo, por ser Hamlet o ponto central da peça Hamlet. Com efeito, o foco da
crítica e da peça não pode estar na compreensão do fracasso da ordem político-social, ou
na queda da monarquia dinamarquesa, ou ainda na corrupção possível de ser encontrada
em sua sociedade. Segundo Dowden ([1875] 2009, p. 128), o ponto vital da tragédia “não
pode ser uma ideia; nem pode ser um fragmento de filosofia política. De dentro da
profunda simpatia de Shakespeare para com uma alma individual e uma vida pessoal, a
maravilhosa criação [Hamlet] veio à vida”25. Ao mesmo tempo, Dowden ([1875] 2009, p.
128) afirma que homem algum pode ser considerado separadamente das condições sociais
e morais sob as quais vive e age, e, tendo em mente essa relação, procura compreender a
personalidade de Hamlet frente ao mundo que o cerca.

Para Dowden ([1875] 2009, p. 130), Hamlet, ao voltar da universidade em


Wittenberg, volta pra um mundo no qual a confusão moral e a obscuridade prevalecem.
Ademais, o príncipe recebe a difícil tarefa de reconstruir a ordem moral em um ambiente
onde reinam a fraude, a espionagem e o egoísmo (DOWDEN, [1875] 2009, p. 130-131). O
autor nos lembra que é importante observar a exclamação de Marcelo de que “Algo está
podre aqui na Dinamarca”(I. IV.)26, e afirma que

podre tudo está – a cabeça está doente por completo e o coração completamente
fraco. No trono, o coração do organismo vivo do Estado, reina a aparência de um
rei; mas debaixo dessa aparência real está escondida uma alma miserável,
corrupta e covarde, um envenenador do verdadeiro rei e uma verdadeira
majestade incestuosa, bruto e irresponsável, um bebedor feroz, um equivocado
com sua consciência, e como Hamlet veementemente o descreve, “um rei
palhaço”, “um vilão e usurpador” (...). Assim é a monarquia na Dinamarca27
(DOWDEN, [1875] 2009, p. 136)

24
“(…) for ever suggestive; for ever suggested, and never wholly explicable.”
25
“(…) cannot be an idea; neither can it be a fragment of political philosophy. Out of Shakspere’s profound
sympathy with an individual soul and a personal life, the wonderful creation came into being.”
26
“Something is rotten in the state of Denmark.” (I. IV. 90) [Todas traduções de trechos da peça Hamlet que
aparecem nesta Tese são de autoria de Ana Amélia de Queiroz C. de Mendonça e Barbara Heliodora
(SHAKESPEARE, 2015). Os excertos em inglês, a partir da edição de Philip Edwards da peça, são citados
em nota.]
27
“(…) all is rotten – the whole head is sick and the whole heart is faint. On the Throne, the heart of the
living organism of a state, reigns the appearance of a king; but under this kingly appearance is hidden a
wretched, corrupt, and cowardly soul, a poisoner of the true king and of true kingship incestuous, gross and
37

Nesse contexto, Dowden ([1875] 2009, p. 153) enxerga Horácio, amigo e


companheiro acadêmico de Hamlet, como a única pessoa honesta no podre Estado da
Dinamarca, o que justifica, inclusive, a proximidade que o príncipe demonstra para com o
amigo. Para fortificar sua tese, o autor nos apresenta ainda uma leitura da famosa cena do
closet, o diálogo entre Hamlet e sua mãe, Ato III Cena IV da edição adotada para esta
Tese, como a cena em que Hamlet nos entrega um ensaio sobre a libertação da alma
humana da escravidão da corrupção ([19875] 2009, p. 157). No entanto, de acordo com o
autor, só ao final da peça temos uma perspectiva de restauração de uma ordem prática e do
sentimento de positividade, com o declínio da família real e a chegada de Fortimbrás, a
quem Hamlet dá sua voz, e, consequentemente, seu voto, ao trono real dinamarquês
(DOWDEN, [1875] 2009, p. 159).

O percurso crítico construído nos anos que se seguiram à publicação da análise de


Dowden, especificamente no início do século XX, intensificou uma ênfase na abordagem
do caráter de Hamlet. Wofford (1994, p. 187-188) aponta que, talvez, o maior dos críticos
a abordar essa faceta da peça tenha sido A. C. Bradley (1851 – 1935), que procurou, em
sua obra originalmente publicada em 1904, desvelar o caráter do príncipe da Dinamarca.
Bradley “resumiu muitos dos argumentos construídos nos séculos anteriores e os levou
adiante, tornando-se, nesse processo, a principal articulação de uma visão de Hamlet que a
crítica do século XX iria fortemente desafiar”28 (WOFFORD, 1994, p. 187-188). Sua
abordagem da peça consistia, assim como a abordagem de Sigmund Freud (1856 – 1939),
que discutirei a seguir, numa tentativa de responder a muitas das questões do drama a partir
do foco no caráter do personagem principal, Hamlet, que em si mesmo esconderia os
segredos mais profundos do texto shakespeariano em questão. Edwards ([1985] 2003, p.
35-36) nos lembra ainda que a obra de Bradley foi, por muito tempo, o exame mais
considerado e mais extenso que Hamlet havia recebido. De fato, o autor considera o
trabalho de Bradley um pilar central nos estudos shakespearianos de então; essa leitura
assume uma visão de Hamlet como um jovem nobre que não consegue compreender o
porquê de não ser capaz de realizar a vingança que prometera a seu pai, e por isso busca
entender a razão que leva o príncipe à paralisia.

wanton, a fierce drinker, a palterer with his conscience, and as Hamlet vehemently urging the fact describes
him ‘a vice of kings’ ‘a villain and a cut-purse’ (…) Such is kingship in Denmark.”
28
“(…) summed up many of the arguments of the previous century and took them a step further, becoming in
the process the principal articulation of a view of Hamlet that twentieth-century criticism would strongly
challenge.”
38

Em sua análise da peça, Bradley ([1904] 2009, p. 58), de certa forma, inicialmente
concorda com o posicionamento de autores como Coleridge e Schlegel ao afirmar que
Hamlet é profundamente racional e possui uma pré-disposição reflexiva, podendo,
inclusive, ser considerado, em termos amplos, como dono de um temperamento filosófico.
Isso se dá, sobretudo, pelo fato de o príncipe ser um homem bom e exibir inquietações,
senso crítico e até ansiedade pelo desejo de fazer o que é certo. No entanto, Bradley recusa
a ideia de que Hamlet, como apontado por Coleridge e Schlegel, seja enxergada apenas
como uma tragédia da reflexão, negando, dessa forma, que a causa da demora do herói
seja a irresolução causada por uma índole excessivamente filosófica ou reflexiva ([1904]
2009, p. 77). O autor ([1904] 2009, p. 77) sinaliza ainda que Dowden critica justamente a
visão intelectualizada de Hamlet, que negligencia a faceta emocional do caráter do
personagem, que o próprio Dowden considera tão importante quanto a intelectual. No
entanto, Bradley afirma que, mesmo efetuando essa ressalva, seu predecessor parece, no
geral, adotá-la.

Hamlet, ele [Dowden] diz, ‘perde a noção do concreto porque, nele, cada objeto
e evento se transforma e se expande convertendo-se numa ideia... Não consegue
manter viva dentro dele, de forma sólida, a noção da importância de qualquer
coisa delimitada, real – um ato, por exemplo’ (BRADLEY, [1904] 2009, p. 77).

Distanciando-se, desse modo, de visões anteriores sobre a peça, Bradley ([1904]


2009, p. 59) inicia sua análise colocando Hamlet, o príncipe, como central ao drama. Em
sua concepção do enredo, toda a história gira em torno do caráter peculiar do herói, não
podendo a peça existir sem esse elemento, pois sua ausência transformaria a história do
drama em uma história “excessiva e apavorante” ([1904] 2009, p. 65). Por isso, afirma o
autor, Hamlet tem exercido tamanho fascínio, tendo se tornado o maior objeto de discussão
de toda literatura mundial ([1904] 2009, p. 66). Com efeito, Bradley ([1904] 2009, p. 59)
coloca o foco da ação da peça não no assassinato, visto por ele como exterior ao enredo,
mas sim no esforço do herói para cumprir seu dever: vingar o assassinato do pai por seu tio
Cláudio. A postergação do cumprimento desse dever, de acordo com Bradley, é
provavelmente a principal mudança realizada por Shakespeare na história já encenada nos
palcos elisabetanos, devido à reinvenção que o bardo efetua no caráter de Hamlet ([1904]
2009, p. 65). O entendimento da motivação que leva Hamlet a postergar o cumprimento da
promessa feita ao pai é o que guia, desse modo, a leitura de Bradley da peça
shakespeariana.
39

De acordo com Bradley ([1904] 2009, p. 79), a causa direta da postergação de


Hamlet não estava apenas no lado intelectual ou em sua faceta emotiva, mas em “um
estado de espírito profundamente anormal e induzido por circunstâncias especiais – um
estado de profunda melancolia”. O autor sinaliza, entretanto, que o trabalho intelectual de
Hamlet sem dúvida influenciou a formação de seu estado melancólico, como uma causa
indireta que pode ter contribuído para sua irresolução. Mas, em contrapartida, a instalação
da melancolia pode ter provocado também ponderações excessivas sobre o ato necessário
por parte do herói. A ponderação excessiva não é, segundo o autor, a causa direta da
irresolução, nem pode ser apontada como a única causa indireta, devendo ser considerada
pela crítica mais como um sintoma do estado melancólico do que sua causa. Edwards
([1985] 2003, p. 35) acrescenta que, possivelmente, a melancolia desenvolvida por Hamlet
seja resultado de ações como a morte do Rei Hamlet e o casamento de Gertrudes com
Cláudio. Com efeito, a aflição de Hamlet impede a completude de seus propósitos e
provoca nele a necessidade de, constantemente, procurar desculpas para o atraso em
executar a vingança prometida.

Wofford (1994, p. 188-189) afirma ainda que, para uma compreensão da


melancolia em Hamlet, como a proposta por Bradley, devemos enxergar o personagem
como alguém completo, como um ser humano. A partir disso, a autora sinaliza a
necessidade de reconstruirmos a sensibilidade do personagem que está latente na peça,
começando por especular o estado mental de Hamlet logo antes da morte de seu pai.
Wofford ressalta também que a melancolia, conforme diagnosticada por Bradley em
Hamlet, não é um estado de humor, mas uma doença, produzida por uma condição mental
que nem o próprio príncipe é capaz de entender, e que tem como uma de suas principais
causas, além da morte do pai, o fato de Gertrudes ter direcionado seus sentimentos a
alguém que Hamlet considera indigno. No entanto, o crítico afirma que em Hamlet temos
uma forma de melancolia bastante diferente de outros tipos que Shakespeare já havia
retratado, e isso se dá pelo fato de o temperamento do príncipe Hamlet ser bastante
peculiar (BRADLEY, [1904] 2009, p. 81).

Esse caráter peculiar pode ser inferido a partir da ciência de que o próprio Hamlet
não entende o porquê de postergar a ação que lhe foi incumbida, o que o deixa
desconcertado, uma vez que não entende sua própria passividade e incapacidade de agir.
Dessa forma, Bradley nos apresenta Hamlet com um caráter dividido, ao mesmo tempo
40

consciente, mas sem acesso a sua consciência, o que abre caminho, inclusive, para a leitura
psicanalítica do personagem realizada por Freud nos anos seguintes (WOFFORD, 1994, p.
189). Nesse sentido, Bradley sinaliza que “Hamlet nos faz vislumbrar a um só tempo a
grandeza da alma e a perdição que não apenas impõe limites a essa grandeza, mas parece
brotar dela” ([1904] 2009, p. 94).

As leituras psicanalíticas de Hamlet surgem quase ao mesmo tempo que a crítica do


caráter desenvolvida por Bradley, a partir de uma nota de rodapé, posteriormente
incorporada ao texto, da famosa obra de Freud A interpretação dos sonhos, originalmente
publicada em 1900. Freud, como Bradley, retratava Hamlet como uma pessoa completa,
sujeita a análises médicas e psicológicas além dos limites do texto. Isso levou o
psicanalista austríaco a utilizar Hamlet, juntamente com a peça Édipo Rei, de Sófocles, em
seus escritos sobre o inconsciente (WOFFORD, 1994, p. 189). Em sua obra, Freud ([1900]
2001, p. 264) afirma, a partir de sua leitura de Édipo Rei, que muitos homens sonham
praticar relações sexuais com suas mães, mesmo quando mencionam esse fato com
indignação e assombro. Além disso, o psicanalista assevera que, em complemento a esse
primeiro sonho, muitos sonham também com o fato de o pai estar morto, sendo o enredo de
Édipo “a reação da imaginação a esses dois sonhos típicos” (FREUD, [1900] 2001, p. 264).
Sobre Hamlet, Freud apresenta a seguinte posição:

Outra das grandes criações da poesia trágica, o Hamlet de Shakespeare, tem suas
raízes no mesmo solo que Édipo Rei. Mas o tratamento modificado do mesmo
material revela toda a diferença na vida mental dessas duas épocas, bastante
separadas, da civilização: o avanço secular do recalque na vida emocional da
espécie humana. No Édipo, a fantasia infantil desejosa que subjaz ao texto é
abertamente exposta e realizada, como ocorreria num sonho. Em Hamlet, ela
permanece recalcada; e, tal como no caso de uma neurose, só ficamos cientes de
sua existência através de suas consequências inibidoras (FREUD, [1900] 2001,
p. 265).

A partir dessa ideia, Freud busca compreender o motivo das hesitações de Hamlet
em cumprir a tarefa da vingança, uma vez que, para o autor, nada no texto apresentaria
uma razão séria ou motivo para essas hesitações ([1900] 2001, p. 265). A resposta, para
Freud, estava na natureza peculiar da tarefa: Hamlet não consegue agir contra o homem
que matou o Rei Hamlet e tomou o lugar deste junto a Gertrudes, pois esse homem revela
os próprios desejos recalcados da infância do príncipe, não realizados. “Desse modo, o
ódio que deveria impeli-lo à vingança é nele substituído por auto-recriminações, por
41

escrúpulos de consciência que o fazem lembrar que ele próprio, literalmente, não é melhor
do que o pecador a quem deve punir” (FREUD, [1900] 2001, p. 265).

A partir do argumento descrito, como sinaliza Wofford (1994, p. 189), torna-se


clara a intenção de Freud de ler Hamlet em direção à descoberta do Complexo de Édipo,
um fenômeno psíquico que o psicanalista afirma ocorrer na peça de modo especialmente
claro a partir do evento da morte do pai de Hamlet. Após a morte do Rei Hamlet, com o
casamento de Gertrudes e Cláudio, de acordo com a autora, Hamlet se mantém reprimido:
ele é capaz de cumprir qualquer ação, exceto a ação prometida de vingança contra o
homem que assassinou seu pai e tomou o lugar deste na cama ao lado de sua mãe, pelo fato
de Cláudio fazer emergir em Hamlet seus próprios desejos repreendidos de seu período de
infância (WOFFORD, 1994, p. 190). Com efeito, tanto Freud quanto Bradley, sob
diferentes perspectivas, enxergam Hamlet como lócus para uma forma de emoção
escondida, desconhecida, postulando ser o trabalho do crítico recuperar essa emoção e
compreendê-la. Bradley busca tal recuperação e compreensão, como sinalizei, a partir do
diagnóstico de uma melancolia arquetípica, enquanto Freud enxerga em Hamlet a
representação perfeita do Complexo de Édipo, devido aos seus sentimentos inconscientes
causados pela afeição que tem pela própria mãe (WOFFORD, 1994, p. 191).

É interessante mencionar que, para a construção de sua teoria, Freud considerou


cuidadosamente os apontamentos de George Brandes (1842 – 1927), que, em sua obra
William Shakespeare, atribuía o nascimento de Hamlet aos sentimentos conflitantes de
Shakespeare após a morte de seu pai. Desse modo, o psicanalista austríaco era capaz de
justificar, a partir da própria vida do bardo, a inclinação edipiana do texto do bardo inglês.
No entanto, Freud teve acesso, posteriormente, a estudos que, baseados nos poucos fatos
recuperáveis do período, provavam que a peça havia sido escrita antes da morte de John
Shakespeare, pai de William Shakespeare, em setembro de 1601. Entretanto,

Freud não poderia abandonar sua visão de Hamlet, e do que o autor teria vivido
logo depois da morte de seu pai, sem colocar em xeque os elementos que
confirmavam a correção de sua teoria edipiana. Isso era pedir demais de uma
leitura que só poderia se manter de pé se Hamlet tivesse sido escrita depois da
morte de John Shakespeare (SHAPIRO, [2010] 2012, p. 183).

Provavelmente por essa razão, de acordo com James Shapiro ([2010] 2012, p. 183),
o psicanalista passa a defender fortemente a ideia de que Hamlet, entre outras peças do
bardo, havia sido escrita, na verdade, pelo Conde de Oxford, fortificando mais uma das
42

várias teorias que acreditavam desvendar um suposto mistério da composição do repertório


dramático de Shakespeare29.

Apesar das controvérsias em relação à autoria da obra shakespeariana, o


pensamento de Freud influenciou sobremaneira o pensar psicanalítico sobre a peça que se
seguiu à proposição de sua hipótese. Edwards ([1985] 2003, p. 36) aponta, nesse sentido, o
trabalho de Ernest Jones (1879 – 1958), que, a partir de 1910, iniciou a construção de
diversos estudos sobre Hamlet, que partiam da alegação de os problemas do protagonista
da peça serem causados, sobretudo, pelo desejo do príncipe de, em substituição a seu pai,
deitar-se com Gertrudes. Wofford (1994, p. 1962) afirma ainda que a leitura de Jones, bem
menos sutil ou complicada do que a de Freud, teve também grande influência na crítica
shakespeariana, inclusive nas adaptações da obra realizadas para o cinema, como apontarei
na próxima seção deste capítulo. Jones ([1949] 1976, p. 27), em um de seus últimos textos
sobre peça, no qual aprofunda seu pensamento em relação a Hamlet, aponta que a crítica
de então, de modo geral, buscava entender as razões pelas quais o príncipe era
inerentemente incapaz de agir. Com efeito, o autor busca, inicialmente, a compreensão de
como diversos críticos procuraram a resposta para esse mistério.

Em sua leitura, e como já sinalizado neste capítulo, Jones ([1949] 1976, p. 71)
enxerga como problemática em Coleridge a ênfase numa suposta faculdade contemplativa
de Hamlet, que o impediria de realizar uma tarefa qualquer, uma vez que o personagem
sempre veria um grande número de diferentes aspectos e possibilidades de explicação para
cada problema surgido ([1949] 1976, p. 30). De acordo com esse mesmo autor, também
não se sustentaria a visão de Goethe, que realçou uma suposta sensibilidade exacerbada do
protagonista da peça, assim como não se manteria a perspectiva de Schlegel, que propôs a
resposta para todas as questões numa reflexividade deliberada do príncipe, que serviria
como um pretexto para esconder sua covardia e falta de atitude em tomar decisões. Jones, a
partir da leitura de autores como os mencionados, chega à obvia conclusão de que, na
verdade, Hamlet não queria desempenhar a tarefa que lhe fora confiada ([1949] 1976, p.
45), e que essa hesitação provavelmente tinha origem em algum conflito interno entre o
impulso para cumprir a tarefa e algum motivo especial que causava repugnância por parte
do protagonista da peça. Jones ([1949] 1976, p. 49) vai além e afirma que “a explicação
29
Para uma discussão mais aprofundada do suposto mistério da autoria dos textos dramáticos
shakespearianos, sugiro consultar a seguinte obra: SHAPIRO, J. Quem escreveu Shakespeare? A história
de mais de quatro séculos de disputa pela herança de uma autoria. Tradução de Christian Schwartz e Liliana
Negrello. Curitiba: Nossa Cultura, [2010] 2012.
43

por Hamlet não revelar a causa dessa repugnância pode ser o fato de que ele não era
consciente da sua natureza”.30

De fato, Jones ([1949] 1976, p. 50-51) desenvolve ainda mais o pensamento de


Freud sobre o drama, ao afirmar que a popularidade da peça só é possível porque o conflito
carregado por Hamlet encontra eco em um conflito interior semelhante em seu público
espectador/leitor, afirmando que, quanto mais intenso o conflito presente neste, maior será
o efeito da peça. Dessa forma, não só o herói do texto dramático, mas também o próprio
poeta e o público encontram-se fortemente influenciados por sentimentos que têm fonte e
origens desconhecidas ([1949] 1976, p. 51). O psicanalista afirma ainda que o público
reconhece em Hamlet um homem que diversas vezes fornece diferentes desculpas para não
realizar o ato que lhe fora confiado, e que, ao adiar dessa forma a realização da ação,
Hamlet oculta, conscientemente ou não, as verdadeiras razões que o impedem de matar
Cláudio. Nas palavras de Jones ([1949] 1976, p. 57),

Resumidamente, o quadro completo apresentado por Hamlet, sua depressão


profunda, a desesperança notada em suas atitudes em relação ao mundo e ao
valor da vida, seu temor pela morte, suas contínuas referências a pesadelos, suas
auto-acusações, seus esforços desesperados para escapar dos pensamentos de seu
dever, e suas tentativas em vão de encontrar uma desculpa para sua
procrastinação: tudo isso inequivocamente aponta para uma consciência
torturada, para alguma obscura base que lhe permita fugir de sua tarefa, uma
31
base que ele não se atreve ou não quer confessar para si mesmo.

Desse modo, o autor ([1949] 1976, p. 58-59) constrói o príncipe como uma pessoa
que reprime certos pensamentos, e esses pensamentos são impedidos de vir à consciência
por uma força definida e uso maior ou menor de esforço mental; no entanto, o psicanalista
nos alerta que a pessoa que reprime seus pensamentos raramente está consciente do ato que
desempenha. No caso de Hamlet, há a angústia pelo fato de seu pai ter sido substituído no
afeto de sua mãe por outra pessoa que não ele, fato inaceitável para o personagem por
algum motivo do qual nem Hamlet parece estar ciente: “isto é como se a devoção de
Hamlet por sua mãe tivesse feito dele tão ciumento do afeto dela que ele tenha achado
difícil o suficiente compartilhar esse evento com seu pai e não possa tolerar compartilhar
30
“(...) the explanation of his not disclosing this cause of repugnance may be that he was not conscious of its
nature.”
31
“In short, the whole picture presented by Hamlet, his deep depression, the hopeless noted in this attitude
towards the world and towards the value of life, his dread of death, his repeated reference to bad dreams, his
self-accusations, his desperate efforts to get away from the thoughts of his duty, and his vain attempts to find
an excuse for his procrastination: all this unequivocally points to a tortured conscience, to some hidden
ground for shirking his task, a ground which he dare not or cannot avow to himself.”
44

isto ainda com outro homem”32 (JONES, [1949] 1976, p.69). Com efeito, a leitura de Jones
constrói o Rei Hamlet como uma espécie de rival do príncipe, atribuindo a este um desejo
secreto de querer ver o pai fora do caminho, para que ele pudesse aproveitar um certo
monopólio do afeto da mãe ([1949] 1976, p. 70).

Nesse contexto, Jones ([1949] 1976, p. 70) apresenta como motivo para a
procrastinação de Hamlet a ideia de que o pensamento dos atos de incesto e de parricídio
combinados é um fardo pesado demais para que o príncipe possa carregar. Com efeito, ao
renegar e reprimir seus pensamentos e sentimentos sexuais, ocultando o fardo que carrega,
Hamlet desenvolve uma forte repulsa contra mulheres, em geral, e Ofélia, em particular, o
que justificaria os atos direcionados a ela, inclusive a famosa cena em que a manda para
um convento/prostíbulo33 ([1949] 1976, p. 86). Já a repulsão por seu tio, como sinalizado,
surge do fato de que Hamlet vê incorporadas em Cláudio as partes mais profundas e
enterradas de sua própria personalidade; desse modo, o herói não pode matar ao atual rei
sem matar a si mesmo, o que, para Jones, leva ao duelo que encerra a peça ([1949] 1976, p.
88).

De acordo com Edwards ([1985] 2003, p. 26), visões psicanalíticas de Hamlet de


algum modo subjazem ao famoso ensaio do poeta T. S. Eliot (1888 – 1965), Hamlet e seus
problemas (Hamlet and his problems), publicado originalmente em 1919. Para Eliot
([1919] 2015, p. 31), poucos críticos foram capazes de assumir que o problema central da
peça Hamlet é a própria peça, e não Hamlet, o personagem, que se configura apenas como
um problema secundário. Com base nessa afirmação, o poeta assevera que críticas como as
desenvolvidas por Goethe e Coleridge sobre Hamlet são do tipo mais enganoso que há,
uma vez que esses autores teriam se aproveitado de seu status junto à crítica da época para
apresentar em seus textos não o Hamlet de Shakespeare, mas o Hamlet que eles próprios
imaginavam, a partir do dom criativo que possuíam ([1919] 2015, p. 31). Eles teriam
falhado ao não apontar, por exemplo, que os textos nos quais Shakespeare havia se baseado
para a criação de sua história, em especial a peça Ur-Hamlet, provavelmente de Thomas
Kyd, possuíam motivos para a postergação e a loucura do personagem principal, mas o
texto shakespeariano não.

32
“It is as if his devotion to his mother had made him so jealous for her affection that he had found it hard
enough to share this event with his father and could not endure to share it with still another man.”
33
“Get thee to a nunnery – why wouldst thou be a breeder of sinners?” (III. I. 119-120)
45

Com efeito, T. S. Eliot enxerga em Hamlet uma peça que trata, especialmente, do
efeito de culpa da uma mãe sobre o filho, mas considera que Shakespeare foi incapaz de
apresentar com êxito essa trama ao material considerável intratável de uma velha peça
([1919] 2015, p. 35). Nesse sentido, nas palavras do autor,

Longe de ser uma obra-prima de Shakespeare, a peça [Hamlet] é certamente um


fracasso artístico. De vários modos, a peça é desconcertante e perturbadora, tal
como não é nenhuma das outras peças de Shakespeare. De todas as peças, é a
mais longa e é talvez aquela em que Shakespeare mais despendeu esforços e,
mesmo assim, deixou nela cenas supérfluas e inconsistentes que até uma revisão
apressada teria apontado (ELIOT, [1919] 2015, p. 36).

Eliot compara a peça à produção lírica do bardo, sobretudo aos sonetos, que
considera, como Hamlet, repletos de estofo que Shakespeare não conseguiu trazer
completamente a luz ou manipular o suficiente de modo a construir verdadeiras obras de
arte ([1919] 2015, p. 37). No caso de Hamlet, Edwards ([1985] 2013, p. 26) sinaliza que
Eliot caracteriza como a falha principal do texto o fato de Shakespeare não ter trabalhado
com o material da antiga peça ao não ser capaz de transmitir de modo adequado as
emoções com as quais a história trabalha. Para Eliot ([1919] 2015, p. 38),

O único modo de expressar emoção na forma de arte é encontrar um ‘correlativo


objetivo’, em outras palavras, um conjunto de objetos, uma situação, um
encadeamento de eventos que será a fórmula de uma emoção particular; de modo
tal que, quando os fatos exteriores, que devem terminar em experiência sensória,
estiverem dados, a emoção é imediatamente evocada.

Para o poeta, Hamlet, o personagem, era um homem dominado por emoções


inexprimíveis, sobretudo por estar em sobrecarga com os fatos do mundo como eles
surgiam ([1919] 2015, p. 38). Wofford (1994, p. 194) nos lembra que isso se dava
principalmente em relação aos sentimentos verdadeiros de Hamlet sobre Gertrudes. Por
esta razão, Eliot enxerga em Hamlet não apenas uma peça problemática, mas também um
problema enfrentado por Shakespeare, e pede que os críticos admitam que, ao tentar
construir Hamlet enquanto obra dramática, o bardo teria enfrentado “um problema que se
provou árduo demais para ele” (ELIOT, [1919] 2015, p. 38). Essa visão configura a crítica
de T. S. Eliot, de acordo com Jones ([1949] 1976, p. 42-43), como mais uma das visões
pessimistas sobre a peça.

Uma opinião sobre a peça menos comentada pela crítica contemporânea, mas
também de grande valor intelectual, é aquela desenvolvida por L. S. Vygotsky (1896 –
1934), autor amplamente conhecido, sobretudo, por sua psicologia pedagógica e suas
46

contribuições para a área da educação. Anteriormente a seus interesses educacionais,


Vygotsky demonstrou “interesse constante por assuntos relacionados à literatura, teatro,
arte e crítica literária” (VEER & VALSINER, [1991] 2009, p. 31), o que constituiu, na
obra desse autor, o contexto de investigação social/pessoal que levou, consequentemente, a
pesquisa de Vygostsky para a esfera da Psicologia. Dentro do campo das artes, o primeiro
trabalho importante do autor soviético, e sua primeira incursão na análise deste texto
shakespeariano, foi o ensaio A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, de
Shakespeare, que teve sua primeira versão desenvolvida em 1915, mas que foi revisada e
publicada no ano de 1916.

Nesse ensaio, de acordo com Bezerra (1999, p. IX), Vygotsky realiza a análise de
Hamlet a partir de uma concepção do trabalho analítico que denomina de crítica do leitor.
Nessa crítica, é dado valor secundário ao conceito de autoria, uma vez que Vygotsky
defendia que, uma vez criada, a obra de arte se separaria de seu criador, ganhando
autonomia e só vindo novamente à vida a partir da relação do texto com o leitor. A leitura
da peça é, desse modo, apenas uma possibilidade realizada pelo leitor. Com efeito,
Vygostky antecipa em algumas décadas os apontamentos da chamada crítica da
recepção34, além de atestar o caráter polissêmico das obras de arte, considerando-as como
inesgotáveis e fontes de múltiplas interpretações (BEZERRA, 1999, p. IX). Nas palavras
de Vygotsky, “Essa crítica não se alimenta de conhecimento científico ou de pensamento
filosófico, mas de impressão artística imediata. É uma crítica francamente subjetiva, que
nada pretende, uma crítica do leitor” ([1916] 1999, p. XVIII). Em termos amplos, o
trabalho analítico é focado, nessa vertente crítica, naquilo que o leitor constrói no processo
de leitura, uma vez que, para o autor soviético, a obra literária não tem existência própria
sem o leitor, sendo ele que a reproduz, cria e elucida ([1916] 1999, p. XXI.)

Além disso, Vygostky parece, indiretamente, rebater a crítica de T. S. Eliot


direcionada a autores como Goethe e Coleridge, ao afirmar que esses autores não discutiam
o Hamlet de Shakespeare, mas sim seus próprios Hamlets:

não existe o Hamlet de Shakespeare, existe meu Hamlet, teu Hamlet, o Hamlet
de Börne, o Hamlet de Gervinius, ou de Bernais, ou Rossi, ou de Mounet-Sully,
e que todos eles estão em pé de igualdade; uns estão mais próximos de nós,

34
Para maiores detalhes sobre as teorias que envolvem as críticas da recepção, sugiro a leitura dos capítulos
“O texto poético na mudança de horizonte da leitura”, de Hans Robert Jauss, e “Problemas da teoria da
literatura atual: o imaginário e os conceitos-chave da época”, de Wolfgang Iser, na obra: LIMA. L. C. (Org).
Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
47

outros mais distantes, mas todos estão mais ou menos corretos (VYGOTSKY,
[1916] 1999, p. XXIII).

Com efeito, como aponto no Capítulo Dois desta Tese, Vygotsky acaba também
por antecipar apontamentos críticos das teorias da adaptação, sinalizando, na segunda
década do século XX, a instabilidade da ideia de uma interpretação fiel à obra de arte. A
própria ideia de uma interpretação é problemática no pensamento de Vygotsky, uma vez
que interpretar, para o autor, significa esgotar, o que aniquilaria o porquê da leitura de um
texto artístico ([1919] 1999, p. XXIV). Sua crítica do leitor, portanto, não se preocupa em
interpretar uma obra de arte, mas sim em apresentar uma leitura possível, a qual, no caso
de Hamlet, nessa primeira análise da peça efetuada por Vygotsky, preocupa-se com o mito
como verdade religiosa revelada na arte da tragédia.

Ao analisar Hamlet, seguindo os princípios da crítica do leitor, Vygotsky omite


aspectos científicos e históricos da peça, como época da escrita, fontes textuais, autoria,
possíveis influências, além de toda a vasta fortuna crítica dessa tragédia. Em sua análise, o
autor soviético considera o texto shakespeariano como a tragédia das tragédias, pois
enxerga Hamlet como um resumo da essência do trágico: “o princípio, o sentido da
tragédia, sua ideia e seu tom, aquilo que transforma um simples drama em tragédia, o que é
comum a todas as tragédias, a voragem trágica e as leis da construção” (BEZERRA, 1999,
p. XII). No entanto, Vygotsky aponta também que Hamlet difere de outras tragédias por
não apresentar uma ação dramática propriamente dita – aquilo que, inicialmente, pensamos
ser essencial para qualquer texto do gênero: aqui é interessante lembrar a afirmação de
Alexander Leggatt (2005, p. 61) de que, “se drama é ação, Hamlet é a mais extraordinária
combinação de drama e anti-drama”35. Na visão de Vygotsky, no enredo de Hamlet
percebemos certa manipulação efetuada por forças situadas fora da ação dramática, forças
provindas do além, de um mundo estranho, e daí advém a morosidade que o faz postergar a
ação, criando o paradoxo da tragédia da inação (BEZERRA, 1999, p. XII).

Em relação à estrutura do processo dramático da peça, Vygostky aponta que o


enredo da tragédia começaria antes de seu início, uma vez que o elemento que desencadeia
toda ação no palco, a saber, o assassinato do Rei Hamlet por Cláudio, ocorre antes dos
eventos narrados no primeiro ato da peça e estabelece uma relação dual entre os dois
mundos nos quais a ação dramática se constrói simultaneamente: o mundo de lá, invisível,

35
“If drama is action, Hamlet is the most extraordinary combination of drama and anti-drama.”
48

desconhecido e fora do tempo da peça; e o mundo de cá, temporal, visível, onde as coisas
parecem se mover como um reflexo do além, do mundo de lá, e que acaba por determinar e
dirigir as coisas e os acontecimentos do mundo de cá. A isso se atribui, de acordo com o
autor soviético, a construção do clima de mistério que domina a peça, clima que pode ser
considerado como um dos motivos que impedem Hamlet de agir, por provocar a
morosidade do personagem e retardar o desenrolar da ação dramática e o cumprimento da
vingança que esse personagem prometera efetuar ao fantasma de seu pai (BEZERRA,
1999, p. XIII). E a inação por parte do príncipe é, desse modo, o que leva a peça a sua
inevitável conclusão (VEER & VALSINER, [1991] 2009, p 35). Vygotsky pontua, de
acordo com Bezerra (1999, p. XIII), que

Hamlet é um ser que vive em um movimento pendular entre a dor, a aflição


configurada nos seus discursos obscuros e no luto permanente, e a falta de
vontade, o que marca sua imagem como personagem central. Manipulado por
uma força do além, Hamlet vive fora do mundo, fora da vida; é, segundo
Vigotski, um místico no limiar entre dois mundos, duas vidas.

Veer e Valsiner ([1991] 2009, p. 33) lembram ainda que essa dualidade na leitura
inicial da peça por Vygotsky centra-se em termos da presença concomitante de forças
interdependentes – assim como o mundo de cá e o mundo de lá –, como noite e dia, ação e
inação, eventos e processos psicológicos externos e internos, o que coaduna, de modo
coerente, com a posição que o autor desenvolveria futuramente em seus trabalhos na área
da Psicologia. Além disso, essa dualidade, sobretudo em relação aos mundos da peça,
permitia ao autor enxergar os elementos mítico-religiosos próprios a sua leitura do drama.
No entanto, ao retornar à análise de Hamlet em um texto posterior, publicado em 1925,
Vygostky apresenta uma nova leitura da peça que diferiria consideravelmente da versão
anteriormente apresentada.

Como afirmam Veer e Valsiner ([1991] 2009, p. 35-36), quando volta a Hamlet,
Vygotsky tem sua visão plenamente influenciada pelo desenvolvimento de seu pensamento
em relação à estrutura dinâmica dos textos literários e pelo seu interesse em como a
chamada psicologia da arte subordina o receptor, forçando-o a sentir, respirar e até pensar
em direção pré-determinada, levando-o à catarse. Nessa nova leitura da peça, apesar de
manter as linhas básicas de seu pensamento anterior como a relação intrínseca entre as
ações e inações de Hamlet, Vygotsky abandona os elementos místicos e religiosos que
davam o tom ao seu trabalho prévio. No ensaio de 1925, o autor russo também considera
49

mais fortemente a discussão crítica publicada sobre o texto shakespeariano e afirma a


existência de um étimo comum aos comentários surgidos nesse meio nos últimos séculos: a
tentativa de resolução do enigma deixado por Shakespeare em sua peça: por que Hamlet
não se vinga? Por que a obra não tem outro foco se não a incapacidade de Hamlet de
realizar a ação? No entanto, Vygostky ([1925] 2013, n.p.) afirma que a maioria desses
críticos falha por se apoiar apenas em experiências reais da vida e da natureza humana,
ignorando o caráter e a estrutura artística da obra shakespeariana.

Nesse sentido, Vygotsky assevera que os críticos, de modo geral, buscam resolver o
mistério de Hamlet com base em um percurso argumentativo que não deriva da própria
tragédia, abordando-a como se a história fosse um caso de vida real – como demonstrei,
neste capítulo, especialmente a partir da análise das obras de Coleridge, Bradley, Freud e
Jones –, que deveria ser compreendido e explicado com base no senso comum. No entanto,
ressalta o autor, Hamlet foi deliberadamente construído como personagem de uma
tragédia, tragédia essa que se estrutura como um enigma que não pode ser resolvido ou
explicado a partir de métodos unicamente lógicos. Com efeito, para Vygotsky, ao separar o
enigma da tragédia, os críticos, ao longo dos últimos séculos, estariam privando o texto
shakespeariano de seu elemento mais essencial ([1925] 2013, n.p.). De acordo com o autor,

Se vamos examinar Hamlet, não é para estudar a psicologia da indecisão, certo,


mas é igualmente certo que, se mudassem o caráter de Hamlet, a obra perderia
todo seu efeito. Naturalmente, o autor não escreveu a tragédia para apresentar
um tratado de psicologia ou do caráter humano. Mas a psicologia e o caráter do
herói também não são elementos irrelevantes, infortunos, nem arbitrários; são
sumariamente importantes a partir de um ponto de vista estético... 36
(VYGOTSKY, [1925] 2013, n.p.).

Desse modo, Vygotsky ([1925] 2013, n.p.) sinaliza que uma verdadeira tentativa de
investigação da peça deve ignorar o alto volume de comentários críticos voltados à
psicologia do herói e enfocar a tragédia, tal como ela se apresenta, procurando
compreender o que ela revela, contemplando-a tal como é.

Em sua própria análise, Vygotsky toma como ponto de partida e ideia da


impossibilidade de atribuir um caráter específico a Hamlet, por ele ter sido construído a

36
“Si vamos a ver Hamlet no es para estudiar la psicología de la indecisión, cierto, pero es igualmente cierto
que si cambiáramos el carácter de Hamlet la obra perdería todo su efecto. Naturalmente que el autor no ha
escrito la tragedia para presentar un tratado de psicología o del carácter humano. Pero la psicología y el
carácter del héroe tampoco son elementos irrelevantes, azarosos ni arbitrarios; son sumamente importantes
desde un punto de vista estético...”
50

partir de rascunhos contraditórios, não sendo possível também encontrar uma explicação
racional para as palavras e os atos do personagem. Desse modo, o autor acredita respeitar o
fato de que Shakespeare provavelmente não tinha nenhuma intenção de revelar, descrever
ou estudar a ideia de caráter, podendo, inclusive, ter construído um caráter inadequado para
o herói da peça para obter efeito estético. Com efeito, Vygotsky, em seu ensaio, procura
demonstrar a falácia da crítica de Hamlet que enxerga a peça como uma tragédia de
caráter, pois, como aponta, “a falta de caráter é intencionada por parte do autor, que a usa
como mecanismo para fins artísticos concretos”37 (VYGOTSKY, [1925] 2013, n.p.), o que
leva o autor soviético, dessa forma, a iniciar sua análise pela estrutura da tragédia.

Em sua leitura da estrutura da peça, Vygotsky ([1925] 2013, n.p.) muda o foco da
questão que vinha assombrando a crítica literária da época: de Por que Hamlet demora?,
para Por que Shakespeare faz com que Hamlet demore?. E, em busca dessa resposta,
procura comparar a lenda de Hamlet ao argumento principal da tragédia. Nessa análise, o
autor aponta que Hamlet deve se vingar sem deixar que nenhuma causa, externa ou interna,
o impeça de agir; no entanto, Shakespeare brinca com a paciência do público, ao construir
cenas que criam a ideia de uma pronta ação do príncipe, a qual bruscamente é
interrompida. Assim, o público consegue perceber que Hamlet adia a vingança, mas não
compreende totalmente o motivo de tal adiamento; observa a evolução do enredo de um
Hamlet envolto em contradições e, de certo modo, esquivando-se de sua missão, mas não
consegue compreender o caminho traçado pelo dramaturgo (VYGOTSKY, 2013, n.p.).

Ademais, Vygotsky ([1925] 2013, n.p.) assevera que o significado dessa tragédia
reside em sua catástrofe: a morte de Cláudio, ação pela qual o público espera desde o
primeiro ato, mas que chega por um caminho completamente diferente e inesperado, como
resultado de uma nova trama, e não mais como resposta ao pedido de vingança do
fantasma do Rei Hamlet. Nas palavras de Vygotsky ([1925] 2013, n.p.),

A cena final não deixa a menor dúvida de que Hamlet mata o rei pelo seu crime
mais recente: o envenenamento da rainha e o assassinato de Laertes e do próprio
Hamlet. Nem uma palavra se diz acerca do pai de Hamlet, de quem o público
não se lembra mais. A conclusão é surpreendente e inexplicável: quase todos os
críticos concordam que a morte do rei nos deixa com o sentimento de um dever
cumprido, ou, ao menos, cumprido porque não havia outro remédio. 38

37
“(...) la falta de carácter es intencionada por parte del autor y que éste la usa como mecanismo para unos
fines artísticos concretos.”
38
“La escena final no deja la menor duda de que Hamlet mata al rey por su crimen más reciente: el
envenenamiento de la reina y el asesinato de Laertes y del propio Hamlet. Ni una palabra se dice acerca del
51

Em termos amplos, mesmo tendo a morte de Cláudio pelas mãos de Hamlet ocorrido por
motivos outros que o pedido de vingança pelo pai do príncipe, de alguma maneira o
público se dá por satisfeito. Segundo Vygotsky ([1925] 2013, n.p.), isso nos faz supor que
o dramaturgo joga com a contradição íntima entre a história e argumento da peça, optando
por explorar a contradição entre o caráter de inação do protagonista e a conclusão ativa da
ação da peça no quinto ato do drama.

Coincidentemente ou não, Wofford (1994, p. 195) aponta que os trabalhos que


seguiram às reflexões de Vygotsky a partir do século XX, se moveram da questão do
caráter do protagonista da peça para outros aspectos relevantes do drama shakespeariano.
Dentre essas novas abordagens, três têm lugar de destaque na crítica de Hamlet. A
primeira, de caráter formalista, coloca ênfase na leitura da imagem poética da peça como
forma de compreender os sentidos do texto dramático (WOFFORD, 1994, p. 198). A
segunda abordagem procura destacar a teatralidade39, ou a (in)consciente metateatralidade,
presente na peça (WOFFORD, 1994, p. 199). A terceira coloca a ênfase sobre a ordem
simbólica da peça como um todo, sugerindo que o problema de Hamlet não seria privado,
psicológico ou intelectual, mas sim um problema com a ordem simbólica das coisas, com a
corrupção do universo que, por consequência, afeta e deixa doente o mundo em que o
príncipe habita; essa corrupção moral generalizada, de acordo com essa abordagem, seria
encontrada não só em Hamlet, mas no próprio estado da Dinamarca (WOFFORD, 1994, p.
195 e 199).

A primeira abordagem, como sinaliza Wofford (1994, p. 198), tem como um de


seus principais expoentes Dover Wilson que, em O que acontece em Hamlet (What
happens in Hamlet), obra originalmente publicada em 1935, constrói quase um sumário do
enredo da peça, na tentativa de demonstrar exatamente o que acontece atrás das sentenças
em cada fala e em cada cena do texto shakespeariano. No entanto, Wilson ([1935] 2009, p.
26) afirma que a compreensão que propõe do texto só é possível caso pensemos em como
as ações da peça se apresentariam para seu público original: ingleses do fim do século

padre de Hamlet, de quien el público ni se acuerda ya. El desenlace es sorprendente e inexplicable: casi todos
los críticos coinciden en que la muerte del rey nos deja con el sentimiento de un deber no cumplido o, como
mucho, cumplido porque no quedaba otro remedio.”
39
Ubersfeld ([1996] 2010, p. 112) enxerga a teatralidade como “[a] possibilidade de o espectador investir-se
na representação e, em último caso, de agir sobre ela.” Ou ainda, como uma expressão do “(...) teatro dentro
do teatro, no qual o público percebe uma área particular do espaço cênico em que se representa uma história
que é teatro”.
52

dezesseis. Para isso, o autor procura responder a questões como “Que tipo de Constituição
e Estado, por exemplo, um dramaturgo e seu público imaginariam como uma ambientação
apropriada para essa tragédia dinamarquesa?”40 (WILSON, [1935] 2009, p. 27, grifos
meus), considerando que as ações da peça acontecem não em um ambiente qualquer, mas
numa corte, e que os personagens principais da história são membros dessa corte,
habitando o palácio real.

Nessa leitura, o autor também pede que nós, leitores, consideremos que a Noruega e
a Polônia estão em guerra, que a presença de Fortimbrás é constante mesmo antes de seu
aparecimento em cena, que há existência de movimentação de embaixadores bem como o
risco de revolta popular em eminência, e que tenhamos em mente o problema que, mesmo
em segundo plano, agita a mente do príncipe Hamlet: a questão da sucessão ao trono
([1935] 2009, p. 27). Desse modo, a análise de Wilson não ignora, como pontua Santos
(2008, p. 198),

o fato de que a peça se intitula Hamlet, príncipe da Dinamarca, sendo não só a


trajetória de um herói trágico, mas a de seu país que ‘tem algo de podre’ (I.4),
em que ‘o tempo é de terror’, e que Hamlet se vê obrigado a mudar: ‘Maldito
fardo/ Ter eu de consertar o que é errado’. (I.5). Além de ser a história do
príncipe, Hamlet é, também, a história da Dinamarca, que, devido à usurpação do
trono por Cláudio e à vingança de Hamlet, cai nas mãos estrangeiras de
Fortimbrás.

De acordo com Wilson ([1935] 2009, p. 21), compreender a Constituição do Estado


da Dinamarca é vital para a construção de uma leitura integral do drama. Nesse movimento
de compreensão, o autor chega à conclusão de que, quando Shakespeare construía a peça e,
por consequência, o reino da Dinamarca nela retratado, tinha em mente, na verdade, a
Inglaterra do período elisabetano. Com efeito, o dramaturgo inglês construiu, segundo
Wilson ([1935] 2009, p. 28), Hamlet como um príncipe inglês, a corte de Elsinore como a
corte inglesa de então, e a própria Constituição Dinamarquesa como a Constituição Inglesa
vigente em território britânico sob o comando da Rainha Elisabete. Essa compreensão é,
para o autor, essencial para analisarmos a ação da peça e, principalmente, as ações de seu
personagem principal.

Nesse contexto, Hamlet é visto por Wilson ([1935] 2009, p. 43) como um espírito
grandioso e nobre, mas que sofre uma espécie de choque moral que tira todo entusiasmo e

40
“What kind of constitution and state, for example, would a sixteenth-century dramatist and his public
imagine as an appropriate setting for this Danish tragedy?”
53

crença que tinha pela vida. Esse choque se configura, inicialmente, pela morte de seu pai e
posterior casamento de sua mãe com o tio. No entanto, o choque se acentua com a
revelação do assassinato feita pelo fantasma do Rei Hamlet e o pedido de vingança que o
príncipe, como filho da vítima, deveria cumprir. Wilson ([1935] 2009, p. 44) enxerga o
fardo despejado sobre o príncipe, em profundo luto e horror pelos fatos ocorridos, como
intolerável e impossível de carregar. Segundo o autor, apenas o pensamento de Gertrudes
cometendo incesto com Cláudio, no leito real, já era motivo suficiente para macular a
mente de Hamlet, e essa mácula é um dos motivos pelos quais o príncipe não consegue
agir ([1935] 2009, p. 44 e 46).

Outra razão seria o fato de que o fantasma pede a Hamlet que vingue seu pai sem,
entretanto, atingir à mulher que atualmente divide a cama e a coroa com o assassino do
antigo rei, o que Wilson ([1935] 2009, p. 47) considera uma impossibilidade, dada a
imbricação construída na peça entre esses dois personagens. Uma possível tentativa de
preservar a coroa de escândalos públicos também poderia motivar a procrastinação de
Hamlet, uma vez que o assassinato do atual rei pelo príncipe sem causa aparente era contra
os princípios políticos e obrigações patrióticas que Hamlet provavelmente compartilhava.
No entanto, Wilson, ao fim de sua leitura da peça, afirma acreditar que a demora de
Hamlet em desempenhar a vingança, em resumo, se dava principalmente

por causa do peso exuberante da carga. A estatura moral de Hamlet é tão


grandiosa, sua fibra é tão forte, que o que vem de fora não as atinge. Mas ele está
incapacitado, e o braço com o qual deveria desempenhar o comando do fantasma
está paralisado. Desse modo, ele continua a carregar o fardo, mas não é capaz de
se livrar dele. Isso, em uma frase, é “a trágica história de Hamlet, Príncipe da
Dinamarca”41 (WILSON, [1935] 2009, p. 50).

Harold Bloom ([2003] 2004), critico literário americano e conhecido bardólatra42,


apresenta sua leitura da peça com foco na tentativa de compreensão da teatralidade latente
no drama. Desse modo, Bloom enquadra-se na segunda das abordagens contemporâneas,
construindo um texto que considera amplamente, como marcos centrais para a
interpretação de Hamlet, a peça-dentro-da-peça e o discurso de Hamlet aos atores que

41
“(…) because of the sheer weight of the load. So great is Hamlet’s moral stature, so tough is his nerve that
the back does not break. But he is crippled, and the arm which should perform the Ghost’s command is
paralyzed. Thus he continues to support the burden, but is unable to discharge it. That, in a sentence, is ‘the
tragical history of Hamlet, Prince of Denmark’.”
42
A bardolatria se configura como adoração a William Shakespeare e sua obra. Nas palavras de Bloom,
“Shakespeare é meu modelo e deus mortal” ([2003] 2004, p. 16).
54

passavam pelo castelo oferecendo seus serviços (WOFFORD, 1994, p. 200). Desse modo,
o foco dos estudos que, em geral, abordam a metateatralidade na peça e, em particular, do
livro de Bloom, está na elucidação da autoconsciência do próprio drama e na compreensão
da teatralidade da vida e do ser humano.

De acordo com Bloom ([2003] 2004, p. 17), Hamlet seria parte de um plano de
vingança de Shakespeare contra o gênero tragédia de vingança, configurando-se como um
poema ilimitado, uma reflexão sobre a fragilidade da figura humana frente à morte. Assim,
o autor acredita poder afirmar que a peça teria um caráter mais pessoal e, por isso, seria
mais próxima à afeição de Shakespeare do que qualquer outra peça de sua autoria, sendo
dedicada a hipóteses reflexivas de Shakespeare. No entanto, o crítico americano ressalta
que as obsessões de Shakespeare e Hamlet não necessariamente coincidem, embora os dois
compartilhem de uma suposta intensa teatralidade e de sagaz desconfiança quanto às
motivações humanas ([2003] 2004, p. 18). O cerne de sua análise está, desse modo, como
já sinalizei, na ideia de teatralidade, pois, para Bloom, “trata-se de uma peça sobre atuação
cênica, sobre encenação no lugar da vingança” ([2003] 2004, p. 23). Com efeito, segundo o
autor, Hamlet é, ainda hoje, o que há de mais avançado no mundo do teatro, por ser uma
peça constantemente imitada, inclusive por autores como Henrik Ibsen, Anton Chekhov,
Luigi Pirandello e Samuel Beckett, mas nunca superada.

Seguindo o raciocínio de Bloom ([2003] 2004, p. 40-42), encontramos em Hamlet


um personagem que, tendo o drama como sua verdadeira vocação, tem consciência de que
representa um papel. Em seu movimento de representação, Ofélia é a maior vítima da
dissimulação do príncipe, uma vez que sofre diretamente com os atos – seja a loucura da
cena da peça-dentro-da-peça ou a falta de controle da cena do convento/bordel – por ele
encenados. A compreensão do personagem sobre o teatro – talvez a compreensão mesma
de Shakespeare – se torna ainda mais clara no momento em que o príncipe divaga sobre os
propósitos da atuação cênica. Nessa cena, de acordo com Bloom ([2003] 2004, p. 53-54), o
ator, um rapaz que gritava em vez de declamar os versos da peça, é incitado a imitar
Hamlet, e, por meio dele, o próprio Shakespeare. Sendo assim, ao se apresentar na
condição de consciência autoral, estando relacionado ao próprio bardo – sem que sejam
confundidos como a mesma consciência –, Hamlet já não é apenas um papel que deveria
ser representado por um ator; segundo Bloom ([2003] 2004, p. 107-108), “Hamlet é um de
nós, e ainda detém o conhecimento de como nos relacionamos com ele”.
55

A partir de seu argumento, Bloom ([2003] 2004, p. 60) procura dialogar com a
crítica anterior a sua obra, desconstruindo premissas. Para esse autor, argumentos como os
de Freud e Jones são falhos, pois o crítico não acredita haver traços de Édipo no príncipe.
Na verdade, afirma Bloom, o que os psicanalistas apontavam como natureza incestuosa da
peça se configura, de fato, como inclinação teatral. O crítico norte-americano acaba por
desconstruir também os escritos de Bradley, por não acreditar e descartar a avaliação de
que Hamlet estaria em estado de melancolia pela morte do pai e indignação diante da
sexualidade da mãe ([2003] 2004, p. 86). Em relação ao argumento de T. S. Eliot, Bloom
([2003] 2004, p. 94) aponta, em sua análise, que aquilo que o poeta via como um fracasso
estético seria, na verdade, um imenso triunfo estético, de acordo com os padrões de
teatralidade construídos pelo próprio personagem principal do texto e pela própria peça. De
modo diverso a esses autores, Bloom ([2003] 2004, p. 74) considera a razão da postergação
do príncipe como simples, uma vez que

Hamlet é incapaz de acreditar que o uso adequado de suas faculdades, de sua


razão divina, é levar a cabo a morte por vingança. Na verdade, ele não quer
executar Cláudio, ação que não exigiria uma capacidade de atenção hamletiana.
(BLOOM, [2003] 2004, p. 74)

De fato, mais uma vez, o autor confirma, em sua análise bardólatra da peça, o
potencial de Hamlet, o príncipe, como poeta-dramaturgo, autor de sua própria peça ([2003]
2004, p. 87), e de Hamlet, a peça, como um poema ilimitado, sendo grande demais para ser
tragédia, mesmo sendo denominada de tragédia do príncipe da Dinamarca ([2003] 2004, p.
91).

Menos tendencioso que Bloom, mas seguindo a linha de investigação da peça como
lócus de reflexão teatral e metateatral, Pedro Süssekind (2008, p. 18) aponta que, se
Shakespeare não teorizou sobre a arte, sobre o teatro, tal teorização pode ser encontrada
refletida nas falas de seus personagens, em considerações inseridas em suas peças. A
abordagem metateatral é defendida por Süssekind até quando tenta explicar o motivo para
a postergação de Hamlet para realizar a vingança, sendo o pedido de vingança enxergado
como uma convocação para determinada atuação do personagem (2008, p. 20); de acordo
com o autor, Hamlet adia por considerar a tarefa de caráter duvidoso, só desempenhando o
ato da vingança, o assassinato do rei Cláudio, após a morte de sua mãe por envenenamento,
quando o crime cometido se apresenta em cena, tendo Hamlet a certeza da culpa do novo
rei, seu tio (2008, p. 19).
56

A terceira abordagem contemporânea da peça Hamlet apontada por Wofford (1994,


p. 95), a abordagem política, parece ter lugar de destaque na crítica shakespeariana,
sobretudo, após a publicação da obra Political Shakespeare, editada por Jonathan
Dollimore e Alan Sinfield em 1994. Nessa obra, sem tratar diretamente do drama em
questão, Dollimore (1994, p. 03-04) apresenta o teatro shakespeariano como
explicitamente preocupado com as operações do poder e, desse modo, ressalta a
necessidade de contextualizar a literatura para compreender suas questões políticas,
eliminando a divisão normalmente desempenhada pela crítica entre a literatura e seu
background, entre texto e contexto. Na tentativa de sinalizar aqui as principais correntes do
pensar político sobre Hamlet, abordo os apontamentos de Victor Kiernan (1996), Andrew
Fitzmaurice (2009) e José Garcez Ghirardi (2011).

Kiernan (1996, p. 64) vê em Hamlet um personagem mais obcecado com a raiva, o


dever, com a vontade e a consciência do que com a parte prática da tarefa que lhe foi
confiada. Isso se dá, segundo o autor, porque Shakespeare provavelmente procura escrever
mais do que uma simples tragédia, mas uma peça sobre a tragédia e sua natureza. Nesse
sentido, vemos o personagem principal do texto imergindo em uma trágica situação,
aparentemente sem solução fácil, e Hamlet faz de tudo para compreender o contexto em
que está inserido; durante a ação da peça, ele está, de acordo com Kiernan, ansioso por
entender as próprias emoções e construir o destino da tragédia. No entanto, esse autor nos
lembra que “A história de Hamlet é uma história de indecisão”43 (1996, p. 65), mas se
afasta de compreensões como as legadas por Coleridge e Schlegel ao constatar que, mesmo
tratando-se de uma tragédia da indecisão, o adiamento e a (in)ação na peça nada devem aos
dons intelectuais do príncipe (1996, p. 66). Para Kiernan (1996, p. 68) a tortura de Hamlet,
que pode estar impedindo-o de agir, é mais social do que intelectual: até mesmo a loucura
fingida do príncipe pode ser considerada como um modo de alívio em relação aos seus
próprios sentimentos, um escape do suspense torturante e, principalmente, da realidade que
o cerca, da prisão que enxerga no reino da Dinamarca.

Ao procurar compreender o contexto político do drama – uma vez que, para o autor,
“Todo drama é também um estudo político...”44 (1996, p. 228) –, Kiernan nos lembra que a
peça pode ser lida como uma crítica ao sistema monárquico, assim como Júlio César pode

43
“Hamlet’s story is one of indecision.”
44
“Each drama is also a political study…”
57

ser entendida a partir da ideia de insatisfação em relação ao republicanismo (1996, p. 72).


Em Hamlet, segundo o autor, ainda encontramos uma certa louvação da monarquia, em
termos do legado Tudor-Stuart; no entanto, a história focaliza a atuação de um usurpador
que sobe ao trono ao assassinar o rei e de dois ou mais bajuladores que veneram a coroa
como a instituição suprema, compreendendo que apenas dela a segurança nacional
depende. Kiernan (1996, p. 232) nos conta ainda que isso se dá uma vez que, para
Shakespeare, a monarquia fazia parte de antiga ordem que ele, de diferentes formas, havia
valorizado; no entanto, apesar de aparentemente enxergar os problemas dessa forma de
governo, o bardo também enxergava como problemáticas as alternativas em vista, que
poderiam levar a uma nova configuração social para o período.

Com efeito, a partir do prisma marxista que toma como base para sua leitura da
peça, Kiernan procura entender a sociedade construída em Hamlet a partir da ideia de luta
de classes4546. De acordo com esse autor (1996, p. 76), a sociedade do texto shakespeariano
parece configurar-se a partir de um enquadre binário – o da classe alta, de um lado, e da
classe baixa, de outro; a burguesia, classe intermediária, não figura nas páginas do drama.
Além disso, o autor enxerga na peça um movimento de opressão contra a classe baixa, que
sofreria independentemente de quem ocupasse o trono; o ressentimento relacionado à
prática de repressão pode ser notado, de acordo com o Kiernan, na grotesca cena entre os
coveiros, que discutem a validade do enterro de Ofélia em solo sagrado, uma vez que se
tratava de uma suicida. No entanto, um dos coveiros ressalta que a moça é uma lady, tendo,
por isso, mais direitos que outros indivíduos da sociedade, do que as pessoas comuns47
(1996, p. 76). Janette Dillon (2007, p. 69) parece concordar com Kiernan ao afirmar que

45
"Para Marx, (...) a luta de classes não era mais do que uma forma da lei geral da evolução da Natureza, que
de modo nenhum tem um caráter pacífico. A evolução é, para ele, (...) dialética, quer dizer, produto de uma
luta de elementos opostos que surgem necessariamente. Todo o conflito destes elementos irreconciliáveis
deve finalmente conduzir ao esmagamento de um dos dois protagonistas e, por consequência, a uma
catástrofe. (...) A derrubada de um dos antagonistas será inevitável, após a luta e o crescimento em força do
outro. (...) Na Natureza, como na sociedade." (KAUTSKY, s/d, p. 24)
46
É importante ressaltar que o conceito de Luta de Classes pré-existe a Marx, como o próprio autor afirma,
em 5 de março de 1852, em carta a Joseph Weidemayer. Nessa carta, Marx assevera que sua originalidade foi
a de comprovar (1) que a existência das classes liga-se às fases de desenvolvimento da “produção”; (2) que a
luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; e (3) que esta própria ditadura representa
somente a transição no sentido da supressão (Aufhebung) de todas as classes e de uma sociedade sem classes.
47
Na tradução: “Deve ser enterrada em sepultura cristã aquela que buscou voluntariamente a salvação? (...)
Assim o disseste; e é uma lástima que os grandes deste mundo tenham o direito de afogar-se ou de enforcar-
se, mais do que qualquer outro cristão.” Em inglês: “Is she to be buried in Christian burial, when she wilfully
seeks her own salvation? (…) Why, there thou sayst – and the more pity that great folk should have
countenance in this world to drown or hang themselves more then their even-Christen?” (V. i. 1-2 e 22-24).
58

(...) Ofélia não teria recebido um enterro cristão caso não tivesse nascido uma
nobre. Então, ao contrario da visão inerente da morte como niveladora (a ideia de
que todos os seres humanos, independentemente de classe, têm o mesmo fim) é o
fato de que mesmo depois da morte distinções que classificam um ser como
superior a outro são feitas.”48

O fato de haver uma multidão seguindo Laertes em direção ao castelo, de acordo


com Kiernan (1996, p. 236), também parece indicar uma espécie de insatisfação da classe
baixa em relação ao atual reinado e, mais, uma forte demonstração da falta de credibilidade
do povo em relação à monarquia, ao governo dinamarquês.

Mesmo o adiamento da tarefa por parte de Hamlet é enxergado por Kiernan (1996,
p. 80) como uma atitude política. O autor afirma que, para o príncipe, seria fácil o
suficiente matar Cláudio; entretanto, um simples ato de assassinato não seria suficiente
para Hamlet, pois não teria impacto na mentalidade pública, como não teve a morte de
Polônio. Ao mesmo tempo, qualquer tentativa de expor publicamente o atual rei seria
anulada, uma vez que todos viam o príncipe como um homem perturbado. Além disso,
Hamlet não possuía evidências, além das palavras de um fantasma, para atacar
publicamente um homem como Cláudio, que não se configurava abertamente como um
opressor de seu país, como fora Macbeth, na tragédia de mesmo nome (1606), por
exemplo. No entanto, Hamlet tinha em mente que Cláudio deveria ser eliminado, não
apenas por vingança, mas também por considerar que, livrando-se do tipo, a Dinamarca
poderia se recuperar da doença que a assolava. Paradoxalmente, de acordo com Kiernan
(1996, p. 81), no final da peça, Hamlet realiza nada mais que sua tarefa inicial de vingança,
a mesma que enxergava como primitiva e repulsiva demais para incitá-lo a agir durante
todo o drama, uma vez que age por impulso, sem reflexão, após o envenenamento de sua
mãe, Gertrudes, e a morte de Laertes. De toda forma, o autor ressalta que Hamlet foi capaz
de entregar o desfecho que o vilão merecia, com toda a corte assistindo, mesmo sem
qualquer planejamento (1996, p. 86).

Andrew Fitzmaurice (2009, p. 140), em uma leitura mais contextual e menos


marxista do drama, argumenta que o público elisabetano veria Hamlet como um homem
profundamente afetado pela corrupção da vida política. Com efeito, o autor enxerga a peça

48
“(…) Ophelia would not have received Christian burial had she not been of gentle birth. Thus, against the
inherent background of death the leveler (the idea that all human beings, whatever their class, come to the
same thing in the end) is the fact that even after death distinctions are made that rank one human being above
another.”
59

como “profundamente preocupada com a corrupção e com seu impacto sobre a auto-
compreensão e auto-representação política”49 (2009, p. 140), e os leitores desse drama,
segundo Fitzmaurice, sempre atentaram para a abordagem da corrupção em Hamlet, um
dos temas mais claros desse enredo shakespeariano. No entanto, mais do que apontar a
corrupção no desenvolvimento da peça, a leitura de Fitzmaurice procura compreendê-la no
contexto do pensamento político do início da modernidade, uma vez que “Hamlet é, em si
própria, uma crônica de seu próprio tempo”50 (2009, p. 142).

Em sua leitura, Fitzmaurice (2009, p. 142) sinaliza para o fato de que a peça retrata
a história de um Estado em decadência. A Dinamarca, tal como representada por
Shakespeare, assemelha-se à Roma pós-republicana: Rei Hamlet, virtuoso e honrado, foi
substituído por uma corte corrupta e por Cláudio, considerado por Hamlet como bebedor,
adepto a festas e rei-palhaço. Desse modo, o autor afirma que o reino da peça teria
passado, no decorrer da ação, de um Estado com valores e virtudes republicanas para um
Estado imerso em corrupção imperial. No entanto, ao contrário de retratar uma nação sem
esperança, a abordagem de Fitzmaurice (2009, p. 145) aponta que a peça sustenta uma
certa esperança em uma reforma política, o que permitiria ao público da época a
construção de uma reflexão sobre como agiriam quando confrontados pela tirania.

A corrupção em Hamlet, segundo Fitzmaurice (2009, p. 142), não é representada


apenas em nível macro, nos discursos de Estado, mas também nas relações micro,
sobretudo, nas relações entre Hamlet e sua mãe, Gertrudes, e entre Hamlet e seus amigos
da universidade, Rosencrantz e Guildenstern. Com efeito, a corrupção no reino, enquanto
Estado, refrata e “significa a corrupção das relações sociais mais fundamentais, a familiar e
a da amizade.”51 No Renascimento inglês, família e amizade eram consideradas as bases da
sociabilidade, o fundamento daquelas sociedades que alcançavam o sucesso; dessa forma,
o rompimento desse laços na Dinamarca retratada na peça indica uma profunda corrupção
no reino como um todo (2009, p. 142). Hamlet, no entanto, não enxerga a si mesmo como
apartado da podridão que é a Dinamarca: ele se descreve como “passavelmente honesto”,

49
“(…) profoundly concerned with corruption and its impact upon self-understanding and political self-
presentation.”
50
“Hamlet is itself a chronicle of its time.”
51
“(…) signifies the corruption of the most fundamental social relations, of family and friendship.”
60

mas ainda sim capaz de “tais coisas, que seria melhor que minha mãe não me tivesse
concebido”52 (III. i. 120-121) (FITZMAURICE, 2009, p. 147).

Além de ser encontrada também no caráter do príncipe, a corrupção no estado da


Dinamarca, como afirma Fitzmaurice (2009, p. 147), também é evidente na dissimulação
profunda empregada por aqueles que circulam pela corte real. Polônio e Osric, por
exemplo, são grandes dissimuladores que riem quando o príncipe ri, suam quando ele sua,
elogiam quando elogia etc. A dissimulação de Rosencrantz e Guildenstern, considera o
autor, é ainda mais mortal, uma vez que esses rompem os laços de amizade com Hamlet
por veneração à coroa e em troca de reconhecimento. Cláudio, como governante, explora o
sistema para a manutenção constante de seu poder (FITZMAURICE, 2009, p. 153).
Hamlet, nesse contexto, configura-se como um jogador em uma corte corrupta (2009, p.
156), um jogador que, por vezes, sente-se preso, escravizado – “Ó que canalha e que
escravo camponês eu sou!”53 (II. ii. 502) –, não sendo capaz de ser o governante de si
mesmo: “ele precisaria apenas agir, encolher os ombros, falar, e ele poderia libertar a si
mesmo”54 (FITZMAURICE, 2009, p. 149).

Fitzmaurice (2009, p. 151) nos lembra, entretanto, que a auto-escravidão de Hamlet


não se baseia em medo ou covardia; Hamlet não é subjulgado por outros, mas por sua
própria vontade, isto é, ele escravizou a si mesmo. Essa escravidão voluntária, desse modo,
é causada pela corrupção. Em termos amplos, Hamlet, o príncipe da Dinamarca, escraviza
a si mesmo por forte rejeição à corrupção, sendo a própria corte na qual o personagem vive
um mundo dominado por uma dependência entre aqueles que comandam e seus servidores
(FITZMAURICE, 2009, p. 153). Ao construir Hamlet como alguém auto-emprisionado e
que deseja governar a si próprio, Shakespeare, afirma Fitzmaurice (2009, p. 154), não
impõe ao personagem desejos pelo fim da monarquia e o inicio de um governo
republicano; em movimento diverso, a busca por auto-governança retratada por parte de
Hamlet, especialmente num contexto onde reina a corrupção, poderia ser enxergada como
um sintoma da tensão irresolvida, presente nos discursos da época, entre regras
monárquicas e uma cultura republicana. A partir desse prisma, o autor reinterpreta o seu
52
“ indifferent honest” / “such things, that it were better my mother had not borne me.”
53
No inglês, “O what a rogue and peasant slave I am”. Para essa tradução, optei pela versão da peça de Elvio
Funk (SHAKESPEARE, [2003] 2005), uma vez que a tradução apresentada por Bárbara Heliodora e Ana
Amélia de Queiroz C. de Mendonça, “Que camponês canalha e baixo eu sou”, suaviza no texto a ideia de
escravidão, vital para o desenvolvimento do argumento de Andrew Fitzmaurice.
54
“He need only act, to shrug, to speak, and he would free himself.”
61

famoso solilóquio To be or not to be, não como a contemplação do suicídio, mas como a
possibilidade de escolha sobre ser ativamente engajado na vida política ou não.

José Garcez Ghirardi (2011, p. 180-181), numa direção diferente de Kiernan e


Fitzmaurice, enxerga Hamlet politicamente como um indivíduo preso a um mundo que não
é o seu, em um contexto sociopolítico do qual não faz parte. Esse mundo, representado,
sobretudo, pelos códigos morais implícitos e presentes no discurso do velho rei, tem em
vista a ação guiada pelos valores representados pela honra e pela fama. Hamlet é, desse
modo, condenado a permanecer nesse mundo em que a ação que lhe foi confiada não faz
sentido para ele, e a inação se configura como uma possibilidade. Dessa maneira, para
Guirardi (2011, p., 181), o coração da tragédia de Hamlet reside no fato de que o príncipe,
apesar de todas as suas dúvidas, não pode deixar de agir, uma vez que “seu lugar no mundo
impõe, ainda que a contragosto, a obediência a códigos sociais sem os quais a existência é
impensável”. Com efeito, a existência social de Hamlet é governada não por ele próprio,
como indivíduo, mas pelo coletivo da ordem.

De acordo com Ghirardi (2011, p. 181-182), no contexto da peça, é a condição


pública de Hamlet como príncipe da Dinamarca e filho de pai assassinato, e não suas
motivações intelectuais e psicológicas internas, que devem definir o curso da ação. Dessa
forma, o príncipe se vê obrigado a agir segundo valores considerados ultrapassados, de um
mundo em decadência, no qual os cidadãos aceitam, estoicamente, o cumprimento de
deveres que se impõem, mesmo se considerados vazios de sentido: “As razões do mundo
medieval ainda prevalecem e tornam vãs as especulações introspectivas da nova filosofia”
(GHIRARDI, 2011, p. 182).

Ghirardi (2011, p. 185) aposta também, em sua leitura da peça, na descrença


profunda que Hamlet parece carregar em relação à natureza humana e a sua capacidade
para o bem e a virtude. A partir dos acontecimento presentes no enredo do drama, o
príncipe parece depreender a ideia de que o egoísmo e o interesse são os motores da ação
humana, que seguem perdoando quaisquer atos do vencedor, sejam eles justos ou injustos.
Por exemplo, na Dinamarca retratada pela peça, o rei e a rainha, longe de serem
representados como justos, são descritos como dominados pelos instintos, vaidades e
interesses mais baixos, contrários à fundação de uma sacralidade da política (2011, p. 188),
mas ainda sim venerados por grande parte da corte. Com efeito, para o autor, o único
personagem em Hamlet, além do próprio príncipe, que poderia negar a visão pessimista da
62

natureza humana é Horácio, representado nas páginas do texto shakespeariano como


venerável, por ser senhor de suas próprias paixões. No entanto,

Para Hamlet, cético quanto às razões humanas e descrente na capacidade de os


homens se regenerarem, só resta reconhecer que há algo de visceralmente
corrupto em toda a Dinamarca, uma putrefação que vem de dentro e à qual não
se pode escapar (GHIRARDI, 2011, p. 189).

De acordo com Ghirardi (2011, p. 189), o reconhecimento da corrupção inerente ao


Estado da Dinamarca por Hamlet reforça, no personagem, a descrença em quaisquer
motivações que tornariam válida a tentativa de restaurar a ordem tradicional, e mantém o
estado de paralisia no qual o príncipe se encontra.

Por fim, ao final desse passeio pela crítica shakespeariana, é importante ressaltar,
seguindo os passos de Wofford (1994, p. 201), que qualquer tentativa de levantar a fortuna
crítica de Hamlet deve ser radicalmente seletiva. Com efeito, áreas importantes da crítica
literária e estudos shakespearianos, como a crítica histórica, o materialismo cultural e os
estudos derivados de outras abordagens psicanalíticas como aquela proposta por Jacques
Lacan, apesar de merecerem ser mencionadas, não foram discutidas nestas páginas. No
entanto, sinalizo que o panorama aqui exposto pode auxiliar a nossa compreensão da peça
Hamlet em adaptação para os Cinemas, foco desta Tese. Portanto, passo, na próxima seção,
a uma breve discussão sobre a fortuna crítica de Hamlet legada pelo cinema, a partir da
análise de suas principais adaptações.

1.2. Hamlet no cinema: por uma historiografia crítica das principais adaptações

‘Hamlet’, a mais filmada das peças de Shakespeare, nos


fornece uma gama de interpretações cinemáticas para
comparar.55
(SMITH, 2007, p. 39)

Rapidamente, mas inevitavelmente, filmes


shakespearianos têm assumido posições canônicas...56
(BURNETT, 2013, p. 01)

55
“Hamlet , the most filmed of Shakespeare’s play, gives us a range of cinematic interpretations to compare”
56
“Rapidly, but inexorably, Shakespeare films have assumed canonical positions...”
63

Em concordância com Emma Smith (2007, p. 40), enxergo, nesta seção, as


adaptações aqui comentadas como equivalentes cinematográficos de leituras críticas de
Hamlet, e considero a abordagem desses textos crucial para a construção de um debate
sobre a peça e seus significados. No entanto, ressalto que a breve leitura aqui apresentada
não pretende esgotar interpretações possíveis acerca de todos os filmes adaptados a partir
desse texto shakespeariano, pois, além de me focar principalmente nos filmes considerados
como os grandes filmes shakespearianos adaptados a partir de Hamlet pela crítica
especializada, procuro apenas sinalizar os principais caminhos de leitura e adaptação
seguidos pelos diretores e suas equipes57 na construção de uma trajetória para esse drama
shakespeariano nas telas de cinema, procurando perscrutar também se, de algum modo, tais
adaptações dialogam com a crítica literária especializada. Dessa forma, é minha intenção
construir um contexto que me permita responder ao segundo objetivo analítico desta Tese:
a verificação do lugar e da função das películas elencadas como corpus para esta pesquisa
dentro dos chamados filmes shakespearianos.

Historicamente, o primeiro Hamlet de que se tem registro, intitulado O duelo de


Hamlet58 (Le Duel d'Hamlet, França, 1900), é uma versão muda e em preto e branco da
peça que marcou a estreia da atriz Sarah Bernhardt nas telas, tendo sido rodada como uma
produção francesa. O próprio George Méliès (1861 – 1938), considerado por muitos como
o pai do cinema como arte de entretenimento, realizou, também na França, sua versão da
peça em 1907: Hamlet (França, 1907). Em um país de língua inglesa, especificamente na
Inglaterra, a peça só chegaria às telas do cinema no ano de 1910, pelas mãos de William
George Baker (1864 – 1929) (Hamlet, EUA, 1910). Ainda na era do cinema mudo,
adaptações dinamarquesas, italianas e alemãs do drama foram produzidas.

Na era do filme falado, Rothwell ([1999] 2004) nos chama a atenção para o fato de
que o primeiro país a adaptar o Hamlet shakespeariano foi a Índia, a partir do trabalho de
Sohrab Modi (1897 – 1984) em Sangue por Sangue (Khoon Ka Khoon, Índia, 1935). Na
década seguinte, entre outras produções que procuraram adaptar o drama para as telas,

57
Apesar de, por vezes, direcionar o peso de escolhas adaptativas ao diretor das películas sob escrutínio,
ressalto que o trabalho de construção fílmica não é um trabalho isolado, dependendo as decisões tomadas de
fatores diversos tais como o gênero do filme, o estúdio de filmagens, a influência dos produtores e roteiristas,
as exigências do mercado etc.
58
Nesta Tese, quando possível, sigo as traduções comerciais dos títulos do filme para a língua portuguesa –
brasileira ou europeia. Na inexistência de uma versão da tradução para fins comerciais em português, opto
por traduzir os títulos das películas.
64

destaca-se a leitura do cineasta britânico Laurence Olivier (1907 – 1989) sobre o drama em
Hamlet (Inglaterra, 1948). Além de dirigir, Olivier atua como o protagonista da peça/filme,
em atuação que lhe rendeu o prêmio máximo da academia americana de cinema para a
categoria, o Oscar de Ator. Hollywood também premiou o filme com o Oscar.

Rodado em preto e branco, Olivier abre sua película com os dizeres "Esta é a
tragédia de um homem que não conseguia se decidir"59, anunciando o tom psicanalítico,
talvez influenciado por leituras de Hamlet and Oedipus de Ernest Jones ([1949] 1976), que
daria a sua produção. É interessante lembrar que, na esteira da interpretação pretendida,
todo contexto político – incluindo-se o personagem Fortimbrás, herdeiro da Noruega, e
Guilderstern e Rosencrantz, retratos da corrupção do rei Cláudio – foi suprimido, dando
lugar a uma interpretação que privilegiava a questão edipiana visualizada por Jones. Taylor
(1994, p. 183) nos lembra, inclusive, da ocorrência de conversas entre Olivier e Jones, no
final da década de 1930, sobre as motivações do príncipe Hamlet. Esse autor afirma
também que, dentre os filmes shakespearianos, a leitura dada por Olivier é aquela “que
destaca as relações pessoais dentro da corte de Elsinore, a individualidade do príncipe e,
em particular, sua distinta condição psicológica”60 (1994, p. 181). Em resumo, nas palavras
de Crowl (2008, p. 24), o filme focaliza o

próprio desejo reprimido de Hamlet de matar seu pai e casar com sua mãe. Os
dois homens [Hamlet e Claudio] estão intrinsecamente ligados, e Hamlet
subconscientemente entende que matar Cláudio é o mesmo que cometer
suicídio.61

Além disso, Hamlet e seu comportamento estão em evidência em praticamente cada


frame da película: quando não corporalmente, por meio de reflexões de outros
personagens. Como apontado por Taylor (1994, p. 182), a impressão deixada é a de que “o
filme inteiro explora a vida interior de Hamlet”62, o que é reforçado por técnicas como o
uso da voice-over na construção de quase todos os solilóquios da peça e pelos usos da
câmera que, em grande parte da película, segue a perspectiva de Hamlet, mostrando-nos o
que esse protagonista vê, e como vê. Wofford (1994, p. 192-193) reforça a discussão sobre

59
"This is the tragedy of a man who could not make up his mind".
60
"(...) which stress personal relationships within the court of Elsinore, the individuality of the Prince and, in
particular, his distinctive psychological condition."
61
“Hamlet’s own repressed desire to kill his father and marry his mother. The two men are intricately linked,
and Hamlet subconsciously understands that to murder Claudius is to commit suicide.”
62
"(...) the film as a whole explores Hamlet's inner life..."
65

o tom psicanalítico do filme ao afirmar que, além dos pontos aqui já sinalizados, podemos
encontrar mais ecos da abordagem de Freud e Jones na produção de Olivier, ao
observarmos, por exemplo,

O tratamento erótico da relação entre Hamlet e Gertrudes, enfatizado por uma


cama atipicamente grande na ‘cena do closet’ (que não pede de modo algum por
uma cama), na qual Hamlet e Gertrudes rolam de uma maneira sugestiva durante
sua luta de desejos em 3.4; a atribuição da postergação de Hamlet a uma
comparação implícita entre ele mesmo e Cláudio; e a interpretação de seus atos
finais como autodestrutivos63 (WOFFORD, 1994, p. 192-193).

A autora aponta, ainda, que a própria escolha da produção por Eileen Herlie para
atuar como Gertrudes no filme pode acentuar a leitura edipiana do longa, por meio do foco
nos laços eróticos que uniam a personagem a seu filho, uma vez que a atriz tinha vinte e
sete anos na época das filmagens e Olivier, intérprete de Hamlet, quarenta.

Davies ([2000] 2007) nos lembra do imenso sucesso da adaptação de Olivier na


década de 1940, sobretudo em território americano. O autor ressalta também que essa
adaptação de Hamlet foi central para o estabelecimento de uma Grande Tradição de
Shakespeare no Cinema, tradição essa fortificada por filmes dirigidos por cineastas como
Orson Welles (1915 – 1985), Akira Kurosawa (1910 – 1998), Grigori Kozintsev (1905 –
1973), Peter Brook (1925 - Atual) e Franco Zeffirelli (1922 – Atual). Esses diretores, cada
um a sua maneira, procuraram, por meio da adaptação de grandes peças do bardo, construir
seus filmes a partir dos códigos e imagética do cinema de suas respectivas épocas,
localizando os enredos shakespearianos a partir das tradições teatral, literária e
cinematográfica de então, e contribuindo também, dessa forma, para ampliar a fortuna
crítica cinematográfica dos mais diversos textos de Shakespeare.

Na década seguinte, Akira Kurosawa, diretor considerado como o responsável por


reavivar o cinema japonês após a Segunda Grande Guerra, se volta a Hamlet em Homem
mau dorme bem (悪い奴ほどよく眠る,Warui yatsu hodo yoku nemuru, Japão, 1960). No
entanto, na contramão de filmes como o de Olivier, Kurosawa reconta a história
shakespeariana realocando-a na sociedade corporativa japonesa contemporânea à
realização do filme. Ao contrário de Olivier – e como fariam outros cineastas –, Kurosawa

63
“(…) the erotic treatment of the relationship between Hamlet and Gertrude, emphasized by the use of an
unusually large bed in the ‘closet scene’ (which doesn’t call for a bed at all) on which Hamlet and Gertrude
roll in a sexually suggestive manner during their struggle of wills in 3.4; the attribution of Hamlet’s delay to
an implicit comparison between himself and Claudius; and the interpretation of his final acts as self-
destructive.”
66

procura, em sua leitura e reescritura da peça, aspectos políticos possíveis de serem


utilizados para a compreensão da sociedade de então. A partir desse mote,

O filme de Kurosawa procura expor a corrupção em movimento nas gigantes


corporações japonesas, empregando uma figura hamletiana suicida (...) para
desestabilizar um mundo rigidamente hierárquico. (...) [A utilização da peça
como fonte] permite ao cineasta que desenvolva suas próprias variações dos
temas proeminentes em Hamlet, incluindo espionagem, dissimulação, corrupção,
poder, instabilidade psicológica, isolamento, decepção e traição64 (CROWL,
2008, p. 44)

Desse modo, o filme do diretor nipônico antecipa leituras políticas do drama que, apesar de
já latentes na década de 1970, só teriam forte impacto na crítica shakespeariana nas últimas
décadas do século XX. Sua leitura da peça, de certa maneira, assemelha-se à leitura
contextual de Andrew Fitzmaurice (2009), uma vez que o Hamlet do filme se configura
como um personagem profundamente afetado pela corrupção da vida política; no caso do
filme em questão, pelas relações políticas dentro de grandes corporações japonesas. Assim
como a Dinamarca da peça, o mundo em que o personagem principal do filme vive é um
mundo em decadência, com a presença de dissimuladores, espiões; uma decadência que, de
certo modo, provoca instabilidade emocional naqueles que o habitam. Com efeito,
Kurosawa demonstrou procurar em Hamlet uma chave para um movimento de
compreensão de sua própria época, de seu próprio momento sociopolítico.

O filme do cineasta japonês abriu espaço para outras adaptações que, no decorrer
dos séculos XX e XXI, procuraram em Hamlet embasamento para seu próprio processo
criativo de reescritura. No entanto, apesar do relativo sucesso do filme nipônico na Ásia e
na Europa, a mais famosa adaptação da peça dos anos 1960 foi a orquestrada na então
União Soviética por Grigori Kozintsev ( Гамлет, Gamlet, Russia, 1964). Diferentemente
de Olivier e na esteira de Kurosawa, o diretor russo traz de volta ao enredo a questão
política que se torna central em seu filme. Nas palavras de Kozintsev, a principal diferença
entre sua produção e aquela realizada por Olivier é que “Olivier corta o tema do governo, o
qual eu acho extremamente interessante”65 (KOZINTSEV apud TAYLOR, 1994, p. 185), o
que atesta a ligação do filme do diretor russo com leituras políticas da peça, sobretudo

64
Kurosawa's film seeks to expose the corruption at the core of Japan's giant corporations, employing a
suicidal Hamlet-figure (...) to destabilize a rigidly hierarchal world. (...) Kurosawa's source allows him to
develop his own variations on themes prominent in Hamlet, including spying, concealment, corruption,
power, psychological instability, isolation, deception, and betrayal.
65
"Olivier cut the theme of government, which I find extremely interesting."
67

aquelas que afirmam o potencial da peça de dramatizar diferentes formas de governo e


governança, interrogando o passado, o presente e o futuro político do Estado ao qual faz
referência (SMITH, 2007, p. 141).

O filme, derivado de uma produção teatral dirigida também por Kozintsev, em


1954, e apresentada no Pushkin Academic Theatre of Drama, em Leningrado, demonstra
ainda fortes ligações com a atmosfera stalinista66, levando o diretor a afirmar que Hamlet
era um homem de seu tempo. De acordo com Taylor (1994, p. 186-187), “o filme pode ser
lido tanto como uma critica a uma situação política específica na Russia quanto como uma
afirmação fatalista sobre a experiência individual da história”67. Isso se dá, provavelmente,
pelo conflitante compromisso de Kosintsev com um realismo social em decadência na arte
do período, além da influência de sua própria identidade política como um artista que
sobreviveu ao stalinismo para viver sob o governo de Khrushchev. Crowl (2008, p. 49)
afirma ainda que o filme soviético só se torna possível devido ao novo contexto político e
cultural que se seguiu à morte de Stalin, em 1953, uma vez que

Por uma década ou mais, durante a ascensão de Nikita Khrushchev, cineastas


russos não estavam mais fortemente ligados pelas restrições do realismo social
soviético, e o Hamlet de Kozintsev é tanto um movimento de reafirmação do
romantismo russo quanto uma crítica sutil à poderosa política stalinista68.

Durante o stalinismo, como nos conta Birgit Beumers (2009, p. 99), foi criada uma
instituição, denominada Soyouzkino – Cinema da União – que era responsável por práticas
de censura, controlando a forma e conteúdo dos filmes produzidos em todos os estúdios da
URSS. Por décadas, essa instituição tornou impossível a emergência de filmes como o
Hamlet de Kozintsev, inclusive condenando os diretores que ousavam desrespeitar os
limites impostos à pena de enforcamento.

A influência do contexto político soviético no movimento de produção da película


pode também ser notada, de acordo com Sokolyansky ([2000] 2007, p. 204), pela nova
atmosfera espiritual que animava a Rússia do período, a partir da reabilitação da massa de

66
Visão doutrinária e prática política ligada ao governo de Josef Stalin (1878 – 1953) na antiga União
Soviética. O stalinismo se configura como uma interpretação particular do Marxismo.
67
"The film can be read as a critique of a specific political situation in Russia and as a fatalistic statement
about individual's experience of history."
68
"For a decade or so, during the rise of Nikita Khrushchev, Russian filmmakers were no longer tightly
bound by the structures of Soviet social realism, and Kozintsev's Hamlet is both a moving reaffirmation of
Russian romanticism and a covert critique of Stalinist power politics."
68

pessoas inocentes a suas casas – sobretudo aquelas encarceradas durante o stalinismo – e a


partir da intensificação da vida cultural e intelectual, o que fortificava e incentivava a
produção cinematográfica de então. Esteticamente, até mesmo a decisão por rodar a
película em preto e branco – o primeiro Hamlet (Inglaterra, 1969) em cores só chegaria às
telas do cinema cinco anos depois pelas mãos do diretor britânico Tony Richardson – em
uma época em que os filmes em cores já eram realidade, pode ser considerada como
motivada por razões políticas: como nos conta Sokolyansky ([2000] 2007, p. 205), a
utilização do preto e branco no Hamlet de Kozintsev provavelmente foi “determinada por
um desejo de evitar a forte coloração como um modo de encobrir a verdade” 69, uma
tendência encorajada pela ideologia oficial soviética e repudiada pelo diretor.

Curiosamente, em direção oposta à tomada pelo filme de Kurosawa, que utilizava


texto completamente inédito, restando pouca ou nenhuma semelhança com o material
textual do drama shakespeariano, o filme de Kozintsev utiliza uma clássica tradução russa,
a tradução de Hamlet por Boris Pasternak (1890 – 1960), como fonte para a elaboração do
roteiro, atendo-se ao enredo básico da peça, mas construindo sua crítica política a partir
dos elementos cinemáticos já sinalizados, além de outros, como, por exemplo, uma maior
presença da população em determinadas tomadas e a ambientação do castelo como uma
prisão por meio de frequentes enquadramentos que enfatizam grades e barras. A
possibilidade de reinventar a peça visualmente, mesmo a partir da utilização do texto dito
original ou de uma tradução considerada clássica, foi um artifício explorado por outros
cineastas que adaptaram Hamlet às telas do cinema, como demonstrarei a seguir.

No mundo anglo-europeu, a par de produções pouco expressivas para cinema e


alguns especiais de TV (cf. ROTHWELL, [1999] 2004), Hamlet só voltaria às telas do
cinema em 1990, pelas mãos de Franco Zeffirelli, diretor que já havia, nos anos de 1967 e
1968, adaptado, respectivamente, A megera domada (The Taming of the Shrew, Itália e
EUA, 1967) e Romeu e Julieta (Romeo and Juliet, Itália e Inglaterra, 1968), também de
William Shakespeare. Seu Hamlet (EUA, Inglaterra e França, 1990), estrelado por um
elenco internacional de astros como Mel Gibson, no papel do príncipe, Glenn Close, como
Gertrudes, e Helena Bonham Carter, desempenhando o papel de Ofélia, foi, como os
filmes anteriores de Zeffirelli, extremamente criticado pelo pouco uso do texto
shakespeariano – apenas 31% (trinta e um) do texto é levado às telas –, pelos rearranjos

69
"(...) determined by a desire to avoid bright colouration as a way of glossing over the truth..."
69

orquestrados, por atuações psicologicamente fracas – sobretudo a de Mel Gibson – e pela


preocupação excessiva com fatores técnicos, isto é, com a faceta espetacular da história,
mais do que com a própria história (PILKINGTON, 1994, p. 163-166).

Na tentativa de criação de um Hamlet para o contexto contemporâneo, Zeffirelli


adota as convenções cinemáticas dos filmes de ação dos anos 1980 para a construção de
sua adaptação. Nesses filmes, um herói geralmente anti-social e com senso de humor
desafia um vilão corrupto e imoral – Hamlet e Cláudio, respectivamente. Além disso, a
violência se encontra também presente como um item estruturador do enredo. Já no nível
narrativo, cortes e sequências rápidas dão o tom da ação (TAYLOR, 1994, p. 192). Tais
recursos levam Taylor (1994, p. 192-193) a afirmar que “aqui está um Hamlet que não
consegue se decidir e que é, nas palavras da sinopse fílmica, ‘mais macho que
melancólico’”70, o que, de acordo com Rothwell ([1999] 2004, p. 132), não agride ao
cânone shakespeariano que já experenciou, em outras produções, desempenhos de Hamlet
com forte presença masculina.

A simplificação da narrativa para adequar o filme a uma nova audiência também é


evidente, sobretudo no tocante a convenções teatrais que poderiam parecer estranhas ao
público-alvo almejado pelo diretor italiano. A intenção de Zeffirelli para esse filme, como
em outras adaptações shakespearianas realizadas pelo cineasta, parece ser a de restaurar
Shakespeare para as massas, popularizando-o e tornando-o acessível para o público do
final do século XX. Mais amplamente falando, Zeffirelli constrói seu Hamlet “equipado
para sobreviver num mundo de Rambo e Evil Empire”71 (ROTHWELL, [1999] 2004, p.
132). No entanto, apesar das liberdades criativas tomadas, Zeffirelli constrói como trama
central para sua película o relacionamento edipiano entre o príncipe e sua mãe, Gertrudes,
conforme realizado anteriormente por Olivier, afinado às leituras de Freud ([1900] 2001) e
Jones ([1949] 1976) da peça. De acordo com Crowl (2008, p. 57, grifos meus),

Ao selecionar [Glenn] Close e [Mel] Gibson, duas das maiores estrelas


hollywoodianas, [para os papeis,] Zeffirelli está não somente se apropriando do
apelo comercial desses atores, (...) [mas também] estava consciente de sua
abordagem para o relacionamento entre Hamlet e Gertrudes considerando os
filmes mais recentes de suas estrelas, o que levaria espirituosos espectadores (...)

70
"Here is a Hamlet who can’t make up his mind, and who is, in the words of the video blurb, 'more macho
than melancholy'".
71
"(...) equipped to survive in the world of Rambo and the Evil Empire."
70

a realizar as conexões naturais: ‘Máquina Mortífera encontra Atração Fatal no


que acaba por ser uma ligação perigosa.72

No entanto, Zeffirelli não foi o único a levar a peça às telas nos anos 1990. Kenneth
Branagh, que já havia adaptado Henrique V (Henry V, Inglaterra, 1989), retorna, em 1996,
à obra do bardo inglês ao lançar sua versão de cerca de 4 (quatro) horas do drama – o mais
longo filme comercial já realizado desde Cleópatra (Cleopatra, Inglaterra, EUA, Suíça,
1963) de Joseph Mankiewicz (CROWL, 2008, p. 38) –, de acordo com o diretor, em seu
texto integral73. Hapgood ([1985] 2003, p. 72-73) enxerga na versão de Branagh para o
texto shakespeariano um impulso em direção a um movimento de inclusão daquilo que
normalmente era descartado por outros cineastas. Para esse autor, na reconstrução da
tragédia por Branagh, “especialmente louvável é o tratamento dado aos papeis secundários,
desempenhados por um time de estrelas com um respeito sensível à tragédia individual
desses personagens”74 ([1985] 2003, p. 73).

No entanto, mesmo aparentemente procurando pelo máximo de proximidade a um


virtual texto original, Branagh constrói seu Hamlet a partir de cenários e figurinos que
remetem a uma Inglaterra vitoriana, e da utilização de subtextos, sobretudo flashbacks,
que, em vez de confirmar a fidedignidade que hipoteticamente a realização integral da peça
traria, demonstram sua própria leitura do texto elisabetano. Em um desses subtextos, por
exemplo, o cineasta nos mostra uma cena de sexo entre o protagonista (o próprio Branagh)
e Ofélia – Kate Winslet – que explicita a questão da perda da virgindade da donzela apenas
sugerida por uma das canções entoadas por Ofélia na peça:

Ele ergueu-se e se vestiu,


Abriu a porta do quarto,
Deixou entrar a menina,
A donzela Valentina,

72
"By casting Close and Gibson, two of Hollywood's biggest stars, Zeffirelli was not only approppriating
their box-ofice appeal (...) was also aware that his approach to the Hamlet-Gertrude relationship, given his
stars' most recent films, would lead witty viewers (...) to make the natural connections: "Lethal weapon meets
fatal attraction in what turns out to be a dangerous liaison."
73
É importante ressaltar que tal afirmação é controversa, uma vez que, como demonstrado por O’Shea (2010,
p. 09), Hamlet faz parte das peças problemáticas de William Shakespeare por ser encontrada em, pelo menos,
três diferentes versões: primeiro in-quarto, segundo in-quarto e fólio. Além disso, diferentes versões
conflacionadas da peça – com recortes das três fontes primárias – também são encontradas no mercado
editorial. Desta forma, faz-se aqui necessária a indagação sobre qual seria a versão ‘integral’ da peça.
74
“Especially praiseworthy is its treatment of the supporting roles, played by an all-star cast with sensitive
respect for their individual tragedies.”
71

Que donzela não saiu.75

Hapgood ([1985] 2003, p. 73) afirma ainda que, por fatores como a inclusão de
flashbacks e memórias, que tornam a história mais longa, diversos críticos apontaram a
abordagem de Branagh como exagerada. Ademais, provavelmente também por motivo de
sua longa duração, o filme de Branagh falhou comercialmente, apresentando problemas
para encontrar uma audiência. No entanto, estudiosos têm voltado sua atenção para a
película, dada a bem sucedida tentativa do cineasta de levar os filmes shakespearianos a
outras direções criativas. De acordo com Crowl (2008, p. 39), Branagh, juntamente com
dois diretores que mais fortemente influenciaram sua obra, Orson Welles e Olivier,

são auteurs. Cada um desenvolveu seu estilo individual e único para a tradução
de Shakespeare para a linguagem dos filmes. Branagh foi claramente
influenciado por Olivier e Welles, mas o que ele pegou desses diretores ele
reformulou para seus próprios propósitos artísticos. 76

Leão (2008, p. 293) nos lembra ainda de que, esteticamente, a visualidade


perseguida pelo estilo de Branagh está sempre a serviço do texto, e que, na tentativa de
reconstrução da peça nas telas, recursos como interpolações visuais entre diferentes
quadros e cenas e a relação entre o mise-em-scène e a visualidade, que já haviam sido
explorados por diretores como Zeffirelli, auxiliam o cineasta na tentativa de dar um passo
adiante na popularização de Shakespeare. Conceitualmente falando, em sua película,
Branagh apresenta a interessante ideia de Hamlet tanto como um herói, quanto como um
anti-herói, uma vez que, no desenvolver da história, esse personagem é retratado como
cada vez mais maculado pelo sangue daqueles que o cercam. Ademais, apesar de não
aderir a um tom prevalentemente político, como fizeram cineastas anteriores, o filme
dirigido por Branagh traz uma discutível abordagem da queda de uma dinastia no reino da
Dinamarca, metaforizada, sobretudo, pela presença de uma estátua do rei que, no final do
filme, tem sua parte de cima arrancada (HAPGOOD, [1985] 2003, p. 72).

Em relação a seu trabalho como diretor, mesmo não obtendo sucesso comercial
com Hamlet, que posteriormente teve uma versão reduzida na tentativa de ampliar seu

75
“Then up he rose and donned his clothes / And dupped the chamber door; / Let in the maid that out a maid
/ Never departed more.” (IV. 5. 52-55).
76
"(...) are film auteurs. Each man developed his own individual and unique style for translating Shakespeare
into the language of film. Branagh was clearly influenced by both Olivier and Welles, but what he took from
them he reshaped to his own artistic purposes."
72

alcance público, Branagh se tornou um dos cineastas shakespearianos mais eminentes, com
3 (três) outras adaptações do bardo lançadas nos cinemas: a já citada Henrique V, além de
Trabalhos de amor perdidos (Love’s Labour’s Lost, Inglaterra, França e EUA, 2000) e
Como gostais (As you like it, EUA e Inglaterra, 2006). O trabalho de Branagh também
abriu caminho para outras adaptações de Hamlet que, no final do século XX e início do
século XXI, procuraram construir novos caminhos de leitura para a abordagem desse
drama shakespeariano nos cinemas.

Uma dessas adaptações é a de Michael Almereyda, que pode ser tida como
controversa: se por um lado Almereyda procurou manter o texto original shakespeariano
nos diálogos e solilóquios de seus personagens, clamando uma direta ligação com o texto
dramático, por outro, modernizou a história ao realizar o movimento de realocação da
narrativa para os dias atuais, na cidade de New York, num mundo coorporativo, seguindo a
prática de Akira Kurosawa, que, como sinalizei, também vê o mundo empresarial como
cenário para sua versão de Hamlet. Com efeito, Almereyda rearranja o texto
shakespeariano a fim de adaptá-lo a sua escritura fílmica. De acordo com Hapgood ([1985]
2003, p. 73-74),

Michael Almereyda chama sua própria versão fílmica de “não tanto um


rascunho, mas uma colagem, um retalho de intuições, imagens e ideias”. Falas
são realocadas e quebradas. Palavras e imagens em telas geralmente seguem seu
próprio caminho: nós escutamos a maior parte dos solilóquios de Hamlet em
voz-over; por vezes, vemos uma livre associação de imagens tocando acordes de
palavras. Embora Almereyda, que é bem versado em interpretações anteriores de
Hamlet, seja notavelmente tradicional em sua concepção dos personagens e de
suas inter-relações, ele fragmenta radicalmente o texto de Shakespeare. 77

A adaptação se passa no ano 2000, e Hamlet, interpretado por Ethan Hawke, é um


jovem aspirante a diretor de vídeos digitais que tem o pai, diretor da grande Corporação
Dinamarca – em alusão ao reino da Dinamarca, do texto dramático – assassinado. Após o
assassinato, seu tio Cláudio assume a direção da empresa, lugar outrora ocupado por seu
pai, e se casa com a mãe de Hamlet, a viúva Gertrudes. Ao retornar da faculdade onde
estuda, Hamlet é, como no drama, visitado pelo fantasma de seu pai, que confessa ter sido
assassinado por Cláudio e pede para que seu filho o honre em vingança. A partir desse
77
“Michael Almereyda call his own film version ‘not so much a sketch but a collage, a patchwork of
intuitions, images and ideas’. Speeches are relocated and broken up. Words and screen images often go their
own ways: we hear most of Hamlet’s soliloquies in voice-overs; at times we see a free association of images
playing riffs on the words. Although Almereyda, who is well versed in past Hamlet interpretations, is
remarkably traditional in his conception of the characters and their interrelations, he has radically fractured
Shakespeare’s text.”
73

ponto, de maneira semelhante à peça, Hamlet se encontra num estado de indecisão,


angústia e melancolia constante.

Nas palavras de Leão, “Celebrado por alguns, criticado por outros, Michael
Almereyda realiza um Hamlet contemporâneo, em que a corrupção está representada pela
cultura e economia das grades corporações” (2008, p. 297). Sua versão da peça, desse
modo, apresenta-se como influenciada não só pela crítica política (corrupção nas grandes
corporações) e de caráter (foco claro em Hamlet, o personagem) da peça, mas também por
versões fílmicas anteriores, como a já citada versão corporativa de Kurosawa para o drama
shakespeariano. A história de Hamlet, o filme, é contada em ritmo ágil, procurando dar
conta da mobilidade e fluidez do cenário contemporâneo. Hamlet é aqui representado
como um jovem novaiorquino, sendo extremamente urbano e atento às novas tecnologias
digitais. As atualizações na performance do texto shakespeariano vão desde a utilização de
imagens em laptops, passando por trechos da peça reproduzidos em folhas de fax (em vez
das cartas comuns à época do texto dramático) a conversas que, ao contrário do marcado
no texto original, acontecem pelo telefone. Os vídeo-diários também são frequentes
durante a película. Solilóquios como o famoso Too solid flesh são apresentados ao
espectador por meio das filmagens do jovem Hamlet.

Já a peça-dentro-da-peça, presente na obra teatral – The murder of Gonzago ou The


Mousetrap –, o metadrama, surge na película de Almereyda como um filme experimental
dirigido pelo próprio Hamlet. As críticas aos problemas de representação dentro do texto
teatral, em particular às questões relacionadas com a arte dramática e a imitação (mimesis)
verossímil da natureza humana, como posto em foco por críticos como Bloom ([2003]
2004) e Süssekind (2008), cedem lugar a reflexões sobre a edição e montagem da obra
cinematográfica, porém de forma claramente menos enfática. A utilização de um
metacinema, além da recorrência aos vídeo-diários, aumenta ainda mais a crença na
centralidade de Hamlet no filme: ao se filmar, rever suas gravações, meditar sobre elas e
editá-las infinitas vezes, o jovem Hamlet entra em contato consigo mesmo, observa-se,
deixando às claras, também, sua confusão interior.

Desse modo, de acordo com Hapgood ([1985] 2003, p. 74), o que faz o filme de
Almereyda funcionar é, diferentemente da versão de Branagh, uma extrema seletividade. O
filme de baixo orçamento, como sinaliza esse autor, é dominado por duas motivações inter-
relacionadas:
74

nele a Elsinore de Shakespeare tem muito em comum com a capitalista cidade de


New York City em 2000; e o que em Shakespeare é expresso através de palavras
faladas, pode ser comunicado visual e eletronicamente, por câmera e telefone, e
através de meios altamente tecnológicos como filmadoras, maquinas de fax,
processadores de texto e câmeras de vigilância. 78

A partir dessa abordagem, Almereyda parece conduzir sua adaptação em direção a


um público contemporâneo, dando a ideia de fragilidade de valores espirituais num mundo
materialista, comum a sua leitura do drama, uma abordagem nova, apta ao tempo presente.
O filme, a última das grandes adaptações cinematográficas celebradas pela crítica literária,
também foi o primeiro a sinalizar uma possível entrada do drama elisabetano para o século
XXI.

Após abordar a história crítica de Hamlet na literatura e no cinema, no próximo


capítulo, tendo em vista o primeiro objetivo analítico desta Tese, analisar de que forma as
culturas de chegada reconstroem a peça a partir da apreciação do outro em seu contexto
local, apresento minha compreensão das relações transculturais, em geral, e do processo de
adaptação de obras literárias para o cinema, em particular, a partir do horizonte
epistemológico de leitura favorecido pela Antropofagia modernista brasileira.

78
“(…) in it Shakespeare’s Elsinore has much in common with late capitalist New York City in 2000; and
what in Shakespeare is expressed through spoken words may be communicated visually and electronically,
by camera and telephone and through such high-tech means as cam-corders, fax machines, word-processors,
and surveillance cameras.”
75

Capítulo dois: A Adaptação como prática de Devoração Transcultural

(...) traduzir significa (...) perpetuar ou contestar,


aceitar ou desafiar. Do mesmo ponto de vista,
envolve, sobretudo, uma leitura transcultural.
(DINIZ, 1994, p.41).

Só a Antropofagia nos salva desses enganos e


dessa má consciência, por assumir alegremente a
escolha e a transformação do velho em novo, do
alheio em próprio, do ‘deja vu’ em original. Por
reconhecer que a originalidade nunca é mais do
que uma questão de arranjo novo.
(PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 98-99)

Muito se tem pesquisado sobre a prática, já intrínseca à contemporaneidade, de


traduzir/adaptar obras literárias79 para o cinema. Tal prática, iniciada no século XIX,
portanto quase paralelamente ao surgimento da chamada sétima arte, intensificou-se e
popularizou-se a partir do final da década de 1920, sobretudo com a tentativa de produtores
de atingir a camada burguesa da população (SKYLAR, 1975, p. 14). Atualmente, na
segunda década do século XXI, filmes traduzidos/adaptados de obras preexistentes –
literatura, quadrinhos, pintura etc. – já dominam boa parte da produção cinematográfica
mundial, ganhando destaque até mesmo em importantes premiações como o Oscar, o
Globo de Ouro e o Emmy (HUTCHEON, 2006, p. 04).

Na academia, as críticas literária e cinematográfica contemporâneas sustentam o


estudo da prática da tradução/adaptação em duas diferentes linhas teóricas: 1) a Tradução
Intersemiótica, corrente crítica iniciada por Roman Jakobson ([1967] 1969) e desenvolvida
por, entre outros, Julio Plaza ([1987] 2008), George Bluestone ([1957] 2003) e Brian
McFarlane (1996); e 2) as Teorias da Adaptação, que, atualmente, têm como seus
principais expoentes Robert Stam (2000, 2004, 2005 e 2008), Linda Hutcheon (2006) e
Julie Sanders (2006). É importante ressaltar que cada uma dessas correntes se afilia a
diferentes epistemologias, o que torna possível, em seu interior, a construção de caminhos
metodológicos diversos.

79
Nesta Tese, ao abordar a adaptação de textos shakespearianos para o cinema, considero a produção desse
autor a partir de seu prisma literário, e não do viés teatral. Trabalho, dessa forma, com a noção de teatro
como gênero literário por meio da ideia de texto dramático, que configura, segundo Patrice Pavis ([1990]
2008, p. 22) “o texto lingüístico tal como é lido como texto escrito, ou tal como o ouvimos pronunciar no
decorrer da representação”. Assim, considera-se aqui somente o texto teatral que preexiste à encenação como
traço escrito e que não é (re-)escrito no momento da performance dramática.
76

Para esta Tese, apesar de considerar alguns dos apontamentos daqueles afiliados à
ideia de Tradução Intersemiótica – apontamentos esses que serão explicitados na próxima
seção –, alinho-me aos estudiosos das Teorias da Adaptação, sobretudo àqueles que partem
de um prisma intertextual e dialógico, como apontei na seção introdutória. Desse modo,
faz-se mister neste capítulo a apresentação das principais contribuições desses teóricos
para o repensar sobre as práticas de ressignificação de um texto literário para as telas do
cinema. No entanto, como é meu objetivo ir além da questão intertextual, perscrutando o
trabalho adaptativo também como uma prática transcultural, apresentarei aqui, a partir da
ideia de Antropofagia, o conceito de culturas e de relações culturais que permeia a Tese
construída, e também apontarei e discutirei as categorias analíticas escolhidas para
auxiliarem a leitura do corpus selecionado.

2.1. As Teorias da Adaptação – princípios epistemológicos, teóricos e metodológicos

É bem isto o intertexto: a impossibilidade de se viver


fora do texto infinito.
(BARTHES, 2010, p. 45)

Vista como uma prática de (re-)escritura


intertextual, a adaptação transcende a mera
imitação, somando, suplementando, improvisando e
inovando o texto de partida, fazendo deste um outro.
(AMORIM, 2013a, p. 254)

Como aponta Susan Bassnett ([1980] 2003), o linguista russo Roman Jakobson foi
o primeiro a dividir e a classificar os tipos de tradução realizados em nossas práticas de
compreensão de significados. Para este autor, em seu artigo Aspectos linguísticos da
tradução, poderíamos realizar de três formas o ato de transfigurar um texto em outro:

1) A tradução intralingual, ou reformulação, (rewording) [que] consiste na


interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua. 2)
A tradução interlingual ou tradução propriamente dita, [que] consiste na
interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua. 3) A tradução
inter-semiótica ou transmutação, [que] consiste na interpretação dos signos
verbais por meio de sistemas de signos não-verbais (JAKOBSON, [1967] 1969,
p.64-65).80

80
É importante ressaltar que tal classificação, em suas três subdivisões, encontra coerência na forma como o
linguista enxerga o ato de produção do significado. Para Jakobson é o contexto linguístico que nos oferece o
necessário para a interpretação dos sentidos, sendo esses um fator semiótico também significativo. Dessa
forma, o autor constrói sua teoria da tradução como, na verdade, uma grande teoria da interpretação de
textos, dado que “(...) o significado de um signo linguístico não é mais que sua tradução por um outro signo
77

Desse modo, Jakobson funda, em sua obra, o que denominamos Tradução


Intersemiótica: de acordo com o autor ([1967] 1969, p.72), essa ocorre quando se traduz
“(...) de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a
dança, o cinema ou a pintura”. Jakobson é, assim, o precursor da atenção ao ato da
tradução como recodificação, ou seja, não do transporte de uma língua para outra, mas sim
da decodificação da mensagem que deverá ser transmitida. Segundo o autor, essa
recodificação é em grande parte determinada pelo sistema gramatical da língua de chegada,
e, no caso da tradução intersemiótica, do sistema de signos de chegada.

No sistema proposto pelo linguista, pode-se traduzir qualquer texto para qualquer
língua. A linguagem, como experiência cognitiva, pode ser recodificada das mais diversas
formas para sagrar-se universal e, “(...) onde houver uma deficiência, a terminologia
poderá ser modificada por préstimos, calços, neologismos, transferências semânticas e,
finalmente, circunlóquios” (JAKOBSON, [1967] 1969, p. 67). No caso da tradução
intersemiótica de obras literárias para o cinema, a interpretação dos signos verbais por
signos não verbais, tais como a música, o som, a imagem, o gesto etc. é uma ferramenta
importante para a recodificação do texto da língua de partida.

A partir de proposta do linguista russo, diversos estudiosos, ao longo do século XX,


procuraram desenvolver a ideia de uma Tradução intersemiótica, enfocando especialmente
a relação entre as mais diferentes Artes. Julio Plaza ([1987] 2008), em sua obra Tradução
intersemiótica, desenvolve a categoria apontada por Jakobson, procurando a formulação de
uma teoria da tradução intersemiótica, teoria essa que, segundo o autor, ainda não existia
de modo sistematizado até meados da década de 1980 (PLAZA, [1987] 2008). O conceito
de intersemiose apresentado por Plaza é semelhante ao de Jakobson, porém o estudioso
brasileiro alarga o escopo do linguista russo ao postular que, além da tradução do verbal
para outros sistemas de signos como a dança, a música etc., poderíamos também considerar
como tal a passagem de outros sistemas de signos para expressões verbais, abrindo uma
visão dialética para a teoria que ele se propôs a desenvolver.

Para Plaza ([1987] 2008), ainda, o ato de traduzir sempre extrapola o limite
linguístico e, seja a tradução interlingual, intralingual ou intersemiótica, depende sempre
de outros sistemas de signos para se realizar de forma concreta, guiando-nos, assim, em

que lhe pode ser substituído, especialmente um signo ‘no qual ele se ache desenvolvido de modo mais
completo’” (JAKOBSON, [1967] 1969, p.64).
78

direção a uma abordagem semiótica do fenômeno. A tradução, para Plaza ([1987] 2008), é
entendida como uma forma de retextualização e, pela filiação do autor à escola de
Frankfurt, especialmente à obra de Walter Benjamin, é uma retextualização sobre o
passado. Para o autor, a tradução cria um original sobre o passado, realizando uma ponte
entre pretérito-presente-futuro. Plaza deixa claro, dessa forma, o norte que tomará em seu
trabalho: a tradução intersemiótica como transação criativa entre as diferentes linguagens
ou sistemas de signos (PLAZA, [1987] 2008).

Nos estudos do cinema propriamente ditos, George Bluestone ([1957] 2003), em


seu livro Novels into film, originalmente publicado em 1957, é o primeiro a defender uma
visão do processo de adaptação como uma forma de tradução. Em seu trabalho seminal, o
autor analisa a adaptação procurando discutir os limites estéticos tanto dos romances
adaptados quanto dos filmes que lhes serviram como textos de partida. Seu interesse
principal é a defesa de certos filmes às acusações de que eles “violariam” seus textos de
partida. Para tanto, Bluestone realiza a análise de filmes baseados em obras literárias
canônicas como Madame Bovary (Gustave Flaubert, 1857), Orgulho e Preconceito (Pride
and prejudice, Jane Austen, 1813), O informante (The informer, Liam O'Flaherty, 1925),
entre outras. É interessante apontar que, hoje, na segunda década do século XXI, os
estudos das teorias da adaptação, no que tange à escolha do corpus para análise, têm
buscado percursos contrários ao proposto por Bluestone, procurando na literatura best-
seller caminhos para entender questões mercadológicas nos estudos de cinema, o que
configura a chamada virada sociológica nos estudos da adaptação81.

Também a partir dos estudos intersemióticos, Brian McFarlane (1996) propõe uma
perspectiva prática para a análise estrutural da relação entre obras literárias e
cinematográficas. Para esse autor, a questão narratológica deve estar no centro das
preocupações de qualquer estudo sobre o processo de adaptação, que este considera ser
pouco estudado pelos chamados críticos da adaptação, que voltam seus olhares para
pormenores referentes à relação entre a literatura e o cinema. Enxergando, como já apontei,
a adaptação como uma tradução intersemiótica, McFarlane (1996) propõe a realização de
uma análise da estrutura narrativa, das ações que traçam o esqueleto da história contada no
livro, as quais são adaptadas para o filme.
81
Para mais informações sobre a virada sociológica nos estudos da adaptação, recomendo o capítulo de R.
Barton Palmer, “The Sociological Turn of Adaptation Studies: The Example of Film Noir”, em A
companion to literature and film, editado por Robert Stam e Alessandra Raengo (cf. STAM e RAENGO,
2004).
79

Para tanto, tendo em mente que seu método analítico enfoca a centralidade da
narrativa, o autor propõe existirem nas obras literárias dois tipos de elementos: (1) aqueles
que podem ser facilmente transferidos ou traduzidos do texto verbal para o
cinematográfico por meio de um processo de transferência; e (2) aqueles que dependem de
maior criatividade, exigindo mais do tradutor, configurando-se como um processo de
adaptação (McFARLANE, 1996). Seguindo os pressupostos metodológicos elencados por
McFarlane, a análise da adaptação deveria focalizar a identificação desses elementos e, no
caso dos que são transpostos por um processo de adaptação, na elucidação das etapas
criativas por trás deles.

De acordo com James Naremore (2000), o problema dos estudos da adaptação


como tradução é a excessiva valorização do cânone literário, como notado em Bluestone
([1957] 2003), e a essencialização da natureza do Cinema. Em outras palavras, o foco
desses estudos ainda se encontra na arte literária, que não recebe os textos
cinematográficos como seu contrapeso. Naremore (2000) ressalta, no entanto, que
McFarlane dá um passo adiante na área, uma vez que, ao dar relevo para a questão da
criatividade, considerando-a uma face do processo que exigiria mais do tradutor, parece
estar consciente de ao menos alguns dos problemas inerentes à posição intersemiótica,
sobretudo aquele referente à existência de uma hipotética necessidade de fidelidade ao
original. No entanto, paradoxalmente, Naremore (2000, p. 09) aponta que McFarlane

(...) está obsessivamente preocupado com problemas de fidelidade textual – e


necessariamente, pois a principal proposta de seu livro é demonstrar como os
“pontos cardinais” da narrativa, a maior parte deles exemplificada por romances
canônicos de autores britânicos e americanos do século XIX, podem ser
transpostos de forma intacta para os filmes. Como ele [McFarlane] coloca, ele
almeja definir “procedimentos para a distinção entre aqueles que podem ser
transferidos de uma mídia para outra (essencialmente, narrativa) e aqueles que,
sendo dependentes de diferentes sistemas de significação, não podem ser
transferidos (essencialmente, enunciação)”82.

A busca pela desconstrução do paradigma da fidelidade ao texto de partida é o que


leva esta Tese à adoção da perspectiva intertextual e dialógica dos estudos da relação entre
as artes literária e cinematográfica. Robert Stam (2000), indo além dos estudos da tradução

82
"(...) is obsessively concerned with problems of textual fidelity - and necessarily so, because the major
purpose of his book is to demonstrate how the 'cardinal features' of narrative, most of them exemplified by
canonical, nineteenth-century novels from British and American authors, can be transposed intact to movies.
As he puts it, he wants to set up ‘procedures for distinguishing between that which can be transferred from
one medium to another (essentially, narrative) and that which, being dependent on different signifying
systems, cannot be transferred (essentially, enunciation)’."
80

e situando-se entre os estudiosos das Teorias da Adaptação, propõe-se a discutir a questão


da fidelidade nos processos de adaptação de obras literárias para o cinema – e, por
consequência, o próprio processo – em seu artigo Beyond fidelity: the dialogics of
adaptation. Para esse autor, a crítica especializada lida com as adaptações de uma forma
extremamente moralista, usando termos como infidelidade, traição, violação e vulgarização
para descrever adaptações que, segundo os críticos, não alcançam seu objetivo: ser fiel ao
texto de partida (STAM, 2000, p. 54).

De acordo com Stam (2000, p. 54), para superarmos a crítica da fidelidade, é


necessária a percepção de que, quando classificamos uma obra como infiel ao original,
expressamos, na verdade, nosso desapontamento ao sentirmos que a adaptação falha ao
captar o que nós, como leitores, consideramos os aspectos narrativos, temáticos e estéticos
fundamentais da fonte literária. A palavra infidelidade é, então, uma forma de exteriorizar
nossos sentimentos em relação à obra de chegada que, por vezes, consideramos inferior ao
texto de partida.

O conceito de fidelidade é, por si só, extremamente problemático e discutível. Stam


(2000, p. 55), adotando uma postura desconstrutivista83, questiona até a possibilidade da
fidelidade em adaptações, já que as mudanças são automatizadas, dado o caráter das
mídias84. O autor (2000, p.56) chama-nos a atenção para o fato de que

(...) a mudança de uma mídia unimodal, unicamente verbal como um romance, a


qual “tem somente palavras para jogar com”, para uma mídia multimodal como
um filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas
também com performance teatral, música, efeitos especiais e imagens
fotográficas em movimento, explica porque a fidelidade literal é improvável – e,
eu sugiro, até mesmo indesejável 85.

83
A ideia de Desconstrução cunhada por Jacques Derrida emprega o termo emprestado da arquitetura para
indicar a decomposição de uma estrutura. Derrida compõe e emprega a ideia na tentativa de desfazer,
denunciar, sem jamais destruir, um sistema falo-fonocêntrico de pensamento hegemônico e dominante (cf.
DERRIDA e ROUDINESCO, 2001).
84
É importante ressaltar que, apesar das contribuições evidentes dos efeitos da diferenciação efetuada por
Stam (2000) entre as duas mídias - o romance e o filme -, a compreensão que o autor apresenta de romance
pode ser considerada limitada, uma vez que hoje já se encontra no mercado livreiro um sem número de
romances com imagens, gráficos, fotos, ilustrações etc. que se comportam como elementos da narrativa.
85
“the shift from a single-track, uniquely verbal medium such as the novel, which “has only words to play
with”, to a multitrack medium such as film, which can play not only with words (written and spoken), but
also with theatrical performance, music, sound effects, and moving photographic images, explains the
unlikelihood – and I would suggest even the undesirability – of literary fidelity.”
81

Para o autor, adotar um critério de fidelidade é ignorar a diferença entre os meios que se
diferenciam até mesmo em seus processos de produção. Aceitar a fidelidade como uma
categoria crítica seria, portanto, essencializar a relação entre as duas mídias, assumindo
que o romance – ou quaisquer outras formas de obras de partida – contém uma espécie de
espírito que deveria ser captado pela adaptação, independentemente de suas
especificidades textuais.

De acordo com Stam (2000, p. 59), para evitarmos tais visões essencialistas, é
necessário, então, que não enxerguemos a adaptação como subordinada à obra de partida,
mas sim a entendamos como uma nova obra, produto de outro ato criativo, com suas
próprias especificidades. Uma das formas consideradas pelos estudiosos é, dessa maneira,
a percepção do texto de chegada como a leitura de um romance, poesia ou drama fonte, um
texto de partida, leitura essa que “(...) é inevitavelmente parcial, pessoal e conjuntural”86
(STAM, 2004, p. 04). Stam (2000, p. 64) propõe, então, que assumamos o processo de
adaptação como uma forma de dialogismo intertextual, sugerindo que todas as formas de
texto são, na verdade, intersecções de outras faces textuais.

Mais amplamente falando, o conceito defendido pelo autor se refere às


possibilidades infinitas de disseminação geradas por todas as práticas discursivas de uma
cultura, isto é, a matriz comunicativa de enunciados dentro dos quais o texto artístico é
situado e que o alcança não somente por meio de influências perceptíveis – intertextos –,
mas também por meio de um processo sutil de disseminação discursiva – dialogicidade
(STAM, 2000; BAKHTIN, [1979] 2003).

A intertextualidade e a dialogicidade ajudam a transcender os limites do conceito de


fidelidade. O cinema, se encarado de forma intertextual e dialógica, remete-nos a outras
formas de Arte. Sendo assim, as adaptações devem ser encaradas não como cópias, mas
como transmutações ou hipertextos, derivados de um texto de partida – ou vários – com ou
sem origem especificada na intricada rede dialógica de sentidos. Da forma como são
apresentadas, as pressuposições de Stam ecoam a obra do filósofo da linguagem Mikhail
Bakhtin ([1979] 2003, p. 297), que considera, em uma perspectiva sócio-histórica, “(...)

86
“(…) is inevitably partial, personal, conjunctural”
82

cada enunciado [como] pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais
está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva”.87

Linda Hutcheon (2006, p. 02), em A theory of adaptation, defende que, nos dias
atuais, as adaptações de qualquer espécie estão em todo lugar. Considerando tal
pressuposto, a autora promove um questionamento sobre a prática de classificar as
adaptações como secundárias, como trabalhos derivados: para Hutcheon, a rotulação da
obra adaptada como inferior ou cópia de um original é derivada de uma concepção
pejorativa sobre o próprio processo de adaptação (HUTCHEON, 2006, p. 02-03).

Segundo Hutcheon (2006, p. 06), é necessária, dessa forma, a percepção de que


adaptar não significa ser fiel. Ecoando Robert Stam, a autora defende que fidelidade não
deve ser um critério de julgamento ou foco de análise para as obras adaptadas. Hutcheon
(2006, p. 07) lembra ainda que, de acordo com o dicionário, adaptar se refere a ajustar,
alterar, algo que pode ser feito de diferentes maneiras, já que, para adaptar uma obra
literária para o cinema, por exemplo, deve-se considerar a transposição aí realizada como
uma apropriação e interpretação criativa, além de uma atividade de engajamento
intertextual. Dessa forma, a metodologia de análise proposta por essa autora tem como
foco a compreensão das formas de engajamento entre as obras artísticas e o público
espectador, sendo três os possíveis modos de entender tal relação: (1) o contar; (2) o
mostrar; e (3) o interagir. Como afirma Hutcheon (2006, p. 23-25),

No contar (…), nosso engajamento começa no reino da imaginação, que é


simultaneamente controlado pelo direcionamento selecionado das palavras do
texto e liberado (…) pelos limites do visual ou aural. (…) Mas, com a mudança
para o modo do mostrar, como num filme ou em adaptações para o palco, (…)
movemo-nos da imaginação para o reino da percepção direta – com seu misto de
detalhes e enfoque amplo. (…) [Já] Interagir com uma história é diferente de ver
ou escutar – e não somente por causa do tipo de imersão mais direta que esse
modo permite88.

87
Para Bakhtin e seu círculo, a língua(gem) em sua totalidade concreta, viva, em seu uso real, tem a
propriedade de ser dialógica. Essa propriedade vai além do diálogo face a face e existe em todas as esferas da
comunicação humana. De acordo com o autor, todo discurso é, indiscutivelmente, ocupado e atravessado
pelo discurso alheio, ou seja, o discurso de um está sempre atravessado pelo discurso de outrem (cf.
VOLOSHINOV/BAKHTIN, [1929] 2006). A lingua(gem) passa, desse modo, a ser vista como o ponto de
tensão e interação entre as vozes sociais. Nas palavras de Bakhtin, “somente na sua totalidade tal ato [de
linguagem, entendido como uma forma de engajamento na corrente ininterrupta do discurso] é
verdadeiramente real, participa do existir-evento; só assim é vivo, pleno e irredutivelmente, existe, vem a ser,
se realiza” ([1920-24] 2010, p. 42).
88
“In telling (...) our engagement begins in the realm of imagination, which is simultaneously controlled by
the selected, directing words of the text and liberated – that is, unconstrained by the limits of the visual or
aural.(…) But with the move to the mode of showing, as in film and stage adaptations, we are caught in an
unrelenting, forward-driving story. And we have moved from the imagination to the realm of direct
83

De acordo com a autora, entender os modos de engajamento do espectador (ou


leitor) com a história é entender as especificidades de cada mídia e as possibilidades
narrativas que elas oferecem. Entender a passagem entre esses modos – o contar para o
mostrar, o mostrar para o contar, o contar para o interagir, por exemplo – é, dessa maneira,
entender o processo e o produto da adaptação a partir de um prisma dialógico e
intertextual.

Julie Sanders (2006), em Adaptation and appropriation, também assumindo como


base o conceito de intertextualidade, e influenciada especialmente pelas obras de Julia
Kristeva89 e Gérard Genette90, classifica, em conformidade com o título de sua obra, os
textos cinematográficos derivados da literatura de duas diferentes maneiras: como
adaptações e como apropriações. Por adaptação, Sanders (2006, p. 04) entende uma
relação sinalizada, explícita, entre o texto de partida e o texto de chegada. Em uma
apropriação, por sua vez, é empregada uma jornada maior para longe do texto de partida,
jornada essa que deriva em novo produto cultural, localizado em um novo domínio. O
texto apropriado, ou textos, como se preferir, não é claramente sinalizado no processo da
apropriação, que depende do conhecimento prévio do leitor para tornar-se reconhecível.
Ou seja,

(...) adaptações e apropriações podem variar em quão explicitamente elas


começam seus propósitos intertextuais. Muitos dos filmes, programas de
televisão ou peças adaptadas de obras canônicas da literatura que [a autora
examina em sua obra] se declaram abertamente como uma interpretação ou uma
(re)leitura de um precursor canônico (…). Na apropriação, a relação intertextual
pode ser menos explicita, mais incorporada...91 (SANDERS, 2006, p.2).

perception – with its mix of both detail and broad focus. (…) Interacting with a story is different again from
being shown or told it – and not only because of the more immediate kind of immersion it allows.”
89
Júlia Kristeva é a responsável pela construção do termo intertextualidade em artigo publicado
originalmente na revista Critique, no qual a autora promove uma longa discussão acerca das teorias
bakhtinianas contidas nas obras Problemas da poética de Dostoievski e A obra de François Rebelais (cf.
FIORIN, [2006] 2008, p. 162-163). Para Kristeva o discurso não seria um ponto com sentido fixo, mas sim
um cruzamento de superfícies textuais, diversas escrituras em diálogo. Desta forma, todo texto seria
construído como um mosaico de citações, sendo absorvido e transformado a partir de outro – ou outros –
texto – ou textos (cf. KRISTEVA, [1969] 1974).
90
Trabalhando a partir dos conceitos cunhados por Bakhtin (dialogismo) e Kristeva (intertextualidade),
Genette desenvolve em sua obra Palimpsestes: La littérature au second degré novas formas de entender a
relação entre textos. Seu trabalho tem sido considerado útil pela crítica especializada no estudo das teorias da
adaptação, principalmente no que diz respeito às cinco formas de transtextualidade, termo mais inclusivo
cunhado pelo autor para se referir a textos que, implícita ou explicitamente, se encontram em relação com
outros textos (cf. GENETTE, [1982] 1997).
91
“(…) adaptations and appropriations can vary in how explicitly they start their intertextual purpose. Many
of the film, television, or theatre adaptations of canonical works of literature that we look at in this volume
openly declare themselves as an interpretation or re-reading of canonical precursor. (…) In appropriations the
84

Ambos os processos, a adaptação e a apropriação, são considerados pela autora


como práticas intertextuais, e o interesse por eles se justifica na tentativa de entender como
a literatura cria literatura, a arte cria arte etc. Além disso, como leitores e espectadores,
deveríamos, segundo Sanders (2006, p. 12), reconhecer que adaptações e apropriações são,
fundamentalmente, práticas de difusão literária por meio das redes intertextuais. Vista
como uma prática de reescritura intertextual, a adaptação transcende a mera imitação,
somando, suplementando, improvisando e inovando o texto de partida, fazendo deste um
outro.

Ecoando Deborah Cartmell, Sanders (2006, p. 20) nos apresenta três pontos de vista
possíveis para a análise das adaptações, as quais, nas palavras da autora, não deveriam ser
julgadas por valores como fidelidade, mas sim por sua metodologia e análise ideológica.
Nessa linha, os três horizontes possíveis seriam:

“Transposição”, no qual o texto literário é transferido tão cuidadosamente


quanto possível para o filme (o Hamlet, 1996, de Branagh, por exemplo);
“comentário”, no qual o original é alterado (como em A Letra Escarlate,
1995, de Joffé); e “analogia”, no qual o texto original é usado como um
ponto de partida (como em As patricinhas de Berverly Hills, 1995, de
Amy Heckerling)92 (CARTMELL, 1999, p.24).

Segundo Sanders (2006, p. 20), por transposição entenderíamos, num sentido


amplo, toda prática de transformação de uma obra em outra da forma mais acurada
possível. O comentário, a segunda categoria apresentada por Deborah Cartmell, de acordo
com Sanders (2006, p. 21), seria a adaptação que funciona propriamente como um
comentário politizado do texto fonte. A última categoria elencada por Cartmell, a analogia,
distancia-se das duas primeiras por não evocar proximidade com seu(s) texto(s) base. Na
analogia não precisamos de um pré-conhecimento do texto a ser adaptado para a
compreensão da obra derivada (SANDERS, 2006, p. 22-23). É interessante ressaltar que a
analogia assemelha-se ao conceito de apropriação defendido pela autora, que, no entanto,
não procura problematizar a questão.

intertextual relationship may be less explicit, more embedded, but what is often inescapable is the fact that
political or ethical, commitment shapes a writer’s, director’s, or performer’s decision to re-interpret a source
text...”
92
“‘Transposition’, in which the literary text is transferred as accurately as possible to film (Branagh’s
Hamlet, 1996, for instance); ‘commentary’, in which the original is altered (as in Joffé’s Scarlet Letter,
1995), and analogy, in which the original text is used as a point of departure (as in Amy Heckerling’s
Clueless, 1995).”
85

Como se pode reconhecer a partir das informações apresentadas, Robert Stam,


Linda Hutcheon e Julie Sanders, com objetivos diferentes, constroem suas obras
considerando a intertextualidade e a dialogicidade como horizonte epistemológico. Esses
autores enfocam a obra adaptada não como intrinsecamente ligada à original, mas como
um elo na cadeia discursiva de enunciados que nos circundam (BAKHTIN, [1979] 2003).
No caso de Stam e Sanders, dá-se, então, a procura pelas formas de intertextualidade
envolvidas no processo de adaptação – ambos pensando com base em Julia Kristeva
([1969] 1974) e Gérard Genette ([1982] 1997), mas com Sanders considerando
proximamente as categorias analíticas elencadas por Cartmell. Já Hutcheon se preocupa
com os modos de engajamento entre texto e leitor/espectador e, a partir do estudo das
transferências entre um modo para o outro, pauta sua visão de adaptação como processo e
como produto.

Entretanto, Lawrence Venuti (2007, p. 27), em Adaptation, translation, critique,


chama-nos a atenção para os problemas de tais abordagens centradas na questão
intertextual. Segundo o autor, apesar da válida sofisticação teórica desse tipo de pesquisa,
ele apresenta uma forte tendência a privilegiar a adaptação fílmica sobre o texto adaptado,
o que demonstraria apenas uma inversão de valores em relação àqueles que assumem o
texto de partida como original e o adaptado como secundário. Além disso, o autor
argumenta também que, mesmo não comparando os filmes diretamente com seus textos de
partida, os estudos da adaptação baseados na intertextualidade continuam a prática da
comparação entre os textos, sendo dessa vez uma comparação entre o texto de chegada e
uma versão do texto de partida mediada por uma crítica ideológica, ou seja, pelo ponto de
vista crítico.

Venuti (2007, p. 28) defende, então, uma visão de adaptação análoga aos estudos da
tradução – importante ressaltar que essa visão não se pauta pela ideia de uma tradução
intersemiótica – e subsidiada por uma abordagem da linguagem como constitutiva do
pensamento e determinante da realidade. Dessa forma, enxerga-se a teoria da adaptação
como uma interpretação que constrói uma forma e sentido no texto de partida de acordo
com crenças, valores e representações da língua e culturas de chegada. Em termos amplos,
para o autor, essa atividade é uma forma de comunicação transcultural que deve procurar
não relações – que ele acredita existir – entre textos de partida e de chegada, mas saber que
essas relações estão sujeitas às exigências de um trabalho interpretativo que é determinado
86

pela língua e culturas de chegada. Há, dessa forma, uma visão da adaptação como um
processo de recontextualização: de um contexto – de partida – a outro – de chegada. Nas
palavras de Venuti (2007, p.35)

Os contextos nos quais a tradução ou a adaptação foram produzidas e recebidas,


as tradições e práticas de tradução e construção fílmica, assim como as condições
sociais que envolvem os atos de ler um texto ou de assistir a um filme, devem ser
levados em conta para que se evite a construção de julgamentos essencialistas
que ignorem as contingências históricas93.

O que o autor parece clamar, como sinalizei na seção de apresentação desta Tese,
não é um abandono total da questão intertextual, mas a adição do fator cultural, que teria a
potencialidade para a construção de um novo olhar sobre o estudo da adaptação como
fenômeno popular da contemporaneidade. No entanto, apesar das válidas críticas
delineadas por Venuti, o que se pode notar é que, na academia, sobretudo no mundo
anglófono, ainda são poucos os estudos centrados na questão cultural. Em uma das mais
recentes coletâneas organizadas sobre a problemática da adaptação, True to the spirit: film
adaptation and the question of fidelity, de Colin MacCabe, Kathleen Murray e Rick
Warner (2011), pouco espaço foi dado às questões culturais, e, quando o tema se faz
presente nos textos que compõem o volume, elas são abordadas de forma secundária e
periférica.

No Brasil, a Tese de Doutorado da Professora Thaïs Flores Nogueira Diniz (1994),


da Universidade Federal de Minas Gerais, intitulada Os enleios de Lear: da semiótica à
tradução cultural, foi um dos primeiros trabalhos a considerar a questão cultural como
parte dos estudos da adaptação. No entanto, apesar de flertar com a perspectiva
intertextual, o trabalho de Diniz se afilia à visão de adaptação como tradução
intersemiótica. Nas palavras da autora, a tradução “[...] é um signo, aquilo que está no
lugar de algo... para alguém... num determinado momento ou corte da cadeia semiótica”
(DINIZ, 1994, p. 41). A partir dessa ideia, a adaptação como tradução abandonaria sua
característica tradicional de simplesmente transportar, tornando-se “[...] um procedimento
complexo que envolve também as culturas, os artistas, seus contextos históricos/sociais, os
leitores/espectadores, as tradições, a ideologia, a experiência do passado e as expectativas
do futuro” (DINIZ, 1994, p. 41). Em termos amplos, para a autora, como apontei na
93
“The contexts in which the translation or adaptation was produced and received, the traditions and
practices of translating and filmmaking as well as the social conditions of reading and viewing, must be taken
into account to avoid rendering essentialist judgments that ignore historical contingencies.”
87

epígrafe deste capítulo, “[...] traduzir significa [...] perpetuar ou contestar, aceitar ou
desafiar. Do mesmo ponto de vista, envolve, sobretudo, uma leitura transcultural” (DINIZ,
1994, p.41).

Já dentro das Teorias da Adaptação, Celia Arns de Miranda e Suzana Tamae


Inokuchi (2009), em Um olhar oriental sobre Shakespeare: ‘Trono Manchado de Sangue’
de Akira Kurosawa, em busca de uma metodologia que lhes permitisse a análise do filme
em questão, desenvolveram a proposta teórico-metodológica da Performance Intercultural
do estudioso de teatro Patrice Pavis ([1990] 2008), buscando descrever e analisar as
transformações do texto literário escrito quando adaptado para o cinema.

No esquema que propõem, as autoras partem da distinção do que consideram as três


fases da confecção de um texto fílmico – pré-produção, produção e pós-produção – ao
adaptar e acrescentar categorias às chamadas etapas de concretização do texto cênico para
a performance intercultural conforme tais etapas foram delineadas por Pavis ([1990]
2008)94. Miranda e Inokuchi justificam tais modificações por conta da especificidade da
produção cinematográfica, que difere, como processo e como produto, do texto teatral em
encenação. As estudiosas ressaltam também, em concordância com Stam (2000), que as
concretizações no cinema são realizadas por diversas equipes de trabalho, uma vez que as
obras cinematográficas são atividades coletivas, o que influencia diretamente os atos de
concretização realizados ao longo do processo de adaptação para forma fílmica.

As contribuições do esquema de Miranda e Inokuchi, a saber, a divisão das três


fases da produção de um filme, a visão sobre os procedimentos técnicos do planejamento e
execução do roteiro, e o fato de o esquema englobar a montagem, edição e som (cf.
MIRANDA e INOKUCHI, 2009) são fundamentais para um estudo da obra literária
adaptada para o cinema. Argumento, porém, que ainda há a necessidade de promover um
repensar das questões culturais, que foram abordadas apenas superficialmente no esquema
elaborado pelas autoras e afirmadas somente na fase denominada por elas elaboração do
roteiro literário.

94
Além de distinguir as três diferentes fases da confecção de um texto fílmico, Miranda e Inokuchi adaptam
não apenas a terminologia proposta por Pavis, que, como afirmado anteriormente, estava interessado na
questão da performance teatral, mas também adicionam um item aos demais já estabelecidos pelo autor: a
concretização da edição, que não ocorre com o texto teatral em performance (cf. MIRANDA e INOKUCHI,
2009).
88

Para tanto, na tentativa de delinear o que entendo nesta Tese como culturas e como
relações culturais, construo a próxima seção.

2.2. Relação entre culturas: por uma prática adaptativa de devoração transcultural

A síntese
O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
(ANDRADE, [1990] 2011, p. 63)

A diferença podia agora pensar-se como fundadora.


(CAMPOS, [1992] 2010a, p. 247)

Considerando a necessidade de situar o pensamento brasileiro, por vezes


considerado cópia de valores europeus, nas circunstâncias econômicas, sociais, políticas e
culturais que o constituem, Silviano Santiago ([1980] 2001), em Apesar de dependente,
universal, critica a utilização, na área da Literatura Comparada, de métodos
fundamentalmente etnocêntricos que dão foco apenas àqueles aspectos de obras nacionais
que são repetidos a partir dos que são apresentados em obras europeias, o que acaba por
“sublinhar o percurso todo poderoso da produção dominante nas áreas periféricas” ([1980]
2001, p. 05). Nesse sentido, a obra brasileira – e a latino-americana, de um modo geral – é
apresentada como um produto semelhante ao originado na metrópole, construído,
entretanto, em um espaço hierarquizado no qual ela se constitui como uma cópia
inferiorizada diante do original europeu. Isso se dá, sobretudo, pela ideologia de um atraso
cultural nas sociedades brasileira e latino-americana em relação à europeia e pela crença na
aparente ausência de originalidade na cultura tida como inferior.

No mesmo sentido, Santiago acredita serem falhas as tentativas de enxergar o


pensamento e a literatura brasileira como completamente desligados do contexto europeu,
o que considera como um possível “devaneio verde-amarelo” (SANTIAGO, [1980] 2001,
p. 04). É necessário sim, de acordo com o crítico literário, colocar o pensamento brasileiro
em comparação com as contingências político-culturais e econômico-sociais que o
constituíram, mas fugindo de uma postura ufanista; no entanto, é preciso ter cuidado com o
89

método, com a forma como abordamos os textos enquanto objetos transculturais, nas
palavras do autor: “com a estratégia de leitura dos textos afins” (SANTIAGO, [1980]
2001, p. 05). Em resumo, nem a postura etnocêntrica que privilegia a metrópole sobre a
colônia, nem a abordagem radicalmente nacionalista, ufanista, parecem dar conta do
pensamento e da produção literária brasileira em sua relação com o pensamento e a cultura
literária europeia. A partir desse pressuposto, Santiago explicita sua proposta de um
processo tático e desconstrutor, que visaria a destacar os aspectos diferenciais inaugurados
pelos textos produzidos na America Latina, sem deixar de lado sua clara inter-relação.

Essa forma de pensar enfatiza a diferença que o texto dito dependente instaura
sobre o texto da matriz europeia, diferença essa que constrói significativamente as marcas
de uma cultura considerada pelo autor como periférica. A dependência, dessa forma, passa
a ser enxergada como inevitável; “não se escamoteia a dívida95 para com as culturas
dominantes, pelo contrário enfatiza-se a sua força coerciva; não se contenta com a visão
gloriosa do autóctone e do negro, mas se busca a inserção diferencial deles na totalização
universal” (SANTIAGO, [1980] 2001, p. 05). Dialogicamente, Santiago sugere que, caso
abordemos os textos ditos periféricos por meio do horizonte de leitura que apresenta,
conseguiremos realmente que os textos da cultura europeia tenham, pela primeira vez e de
forma concreta, uma possível avaliação real da sua universalidade: “A universalidade só
existe, para dizer a verdade, nesse processo de expansão em que respostas não-
etnocêntricas são dadas aos valores da metrópole” (SANTIAGO, [1980] 2001, p. 06).

Nesse sentido, Santiago procura no modernismo brasileiro antídotos fabricados


para a abordagem dos textos literários latino-americanos a partir de uma visão que, numa
postura descontrutivista, busque a diferença, ao invés das semelhanças, como unidade
fundadora. Como um desses antídotos, o autor aposta na Antropofagia cunhada por Oswald
de Andrade, noção considerada por Santiago como mal-intencionada, que surge “(...) num
desejo de incorporar, criativamente, a sua produção dentro de um movimento universal”
([1980] 2001, p. 05). A ideia da Antropofagia poderia, assim, favorecer o questionamento
das categorias de fonte e influência, consideradas pelo autor como categorias de fundo
lógico e complementar que mantêm a distinção entre dominado e dominante, favorecendo
a ideia de um solo histórico e cultural homogêneo.

95
É importante ressaltar que, numa visão antropofágica, a ideia de dívida de certas culturas para com outras é
problemática, uma vez que o movimento de inter-relação entre as culturas é enxergado como dialógico, com
benefícios mútuos.
90

Roberto Schwarz (1987), em Nacional por subtração, também procura refletir


sobre a experiência do que denomina de caráter postiço, inautêntico e imitado da vida
cultural latino-americana. O autor busca, desse modo, analisar as origens da tendência
imitativa na cultura brasileira desde o período colonial, quando afirma ter desembarcado
no Brasil a noção pejorativa de cópia. Para abordar tal problemática, é necessário, segundo
Schwarz, compreender “o sentimento da contradição entre a realidade nacional e o
prestígio ideológico dos países que nos servem de modelo” (1987, p. 30). Com efeito, o
autor demonstra que tal sentimento contraditório que afligia a sociedade brasileira
originava-se em seu próprio processo de fundação: a criação de um Estado com
orientações burguesas e com influências perceptíveis da Revolução Industrial europeia
que, no entanto, organizava-se com base no regime de escravidão. Desse modo, o
incômodo se relacionaria mais com a insatisfação com a configuração da estrutura social
do que com o processo de imitação da cultura europeia propriamente dito.

Trabalhando a partir do campo da Teoria Literária, Schwarz continua sua discussão


sobre o caráter postiço de nossa cultura ao constatar que, mesmo na academia brasileira, o
gosto por novidades terminológicas e doutrinárias, na maior parte das vezes importadas,
prevalece sobre o processo de construção de conhecimento local, o que configura, mais
uma vez, “o caráter imitativo de nossa vida cultural” (1987, p. 30). De acordo com o autor,
“O apetite pela produção recente dos países avançados muitas vezes tem como avesso o
desinteresse pelo trabalho da geração anterior, e a consequente descontinuidade da
reflexão” (1987, p. 30). Com efeito, Schwarz propõe que voltemos nosso olhar por meio do
que chama de um juízo refletivo sobre propostas de literatos brasileiros como Oswald de
Andrade e sua ideia de uma Antropofagia.

Assim como Santiago ([1980] 2001), Schwarz (1987) argumenta que atitudes
ufanistas que visam à subtração do europeu à procura da substancia autêntica brasileira são
experiências pré-destinadas ao fracasso, uma vez que nossa cultura se constitui muito mais
da “(...) diversificação de modelos europeus à exclusão do modelo português” (p. 33).
Também considera inúteis tentativas de separar as influências francesas e inglesas, pois, se
as colocarmos à parte, restauraríamos na cultura brasileira a ordem colonial, isto é, uma
criação portuguesa. Nesse sentido, o autor afirma que, ao contrário de empreender uma
busca pelo substrato original da cultura brasileira, “seria mais exato e neutro imaginar uma
sequência infinita de transformações, sem começo nem fim, sem primeiro ou segundo, sem
91

pior ou melhor” (1987, p. 35). Nesse contexto, o programa proposto por Oswald de
Andrade poderia permitir a alteração da tônica do sentimento de cópia e inadequação
causado no Brasil pela cultura ocidental: “É o primitivismo96 local que devolverá à cansada
cultura europeia o sentido moderno, quer dizer, livre da maceração cristã e do utilitarismo
capitalista” (1987, p. 37).

Para Schwarz, a partir da proposta de uma Antropofagia, Oswald de Andrade


permite ao Brasil, pela primeira vez, se enxergar como tendo algo a oferecer no contexto
da atualidade mundial. Dessa forma, o conceito parece permitir a superação do sentimento
de inferioridade por meio de uma postura cultural irreverente, o que é metaforizado no
processo de devoração do estranho, do alheio; operação de cópia, mas regeneradora. De
acordo com Schwarz, ao serem acopladas no contexto brasileiro, no mundo da
sociabilidade colonial, as características culturais europeias passavam a operar segundo
outra lógica, não mais a mesma em funcionamento nos países dito hegemônicos. A
Antropofagia poderia permitir, desse modo, a negação da ideia de cópia que oporia o
nacional ao estrangeiro e o original ao imitado, permitindo que enxerguemos “(...) parte do
estrangeiro no próprio, a parte do imitado no original, e também a parte original no
imitado” (1987, p. 48).

Em termos amplos, a Antropofagia oswaldiana ([1990] 2011) se refere ao ato de se


comer partes de um humano, ato praticado pelos povos ditos primitivos, sobretudo pelos
indígenas. No entanto, como sinalizei na seção de Apresentação, tal ato não deve ser visto
como um simples hábito alimentar primitivo, mas sim como um movimento de devoração,
uma vez que os povos que o praticavam acreditavam que estariam adquirindo as
habilidades e forças das pessoas – e, por consequência, das tribos – que comiam. Desse
modo, diferentemente do canibalismo, que se vincula à ideia de hábito alimentar e
comportamento predatório, a Antropofagia constitui-se como um movimento de
incorporação, admiração e vingança do/contra o outro, como expressado por M. de
Montaigne em seus Ensaios ([1580] 2002, p. 312-313):

Depois de tratarem bem de seus prisioneiros por longo tempo e com todas as
comodidades em que podem pensar, aquele que é o chefe faz uma grande
reunião de seus conhecidos; amarra em um dos braços do prisioneiro uma corda,
por cuja ponta o segura, e dá ao mais querido de seus amigos o outro braço para
ser segurado da mesma forma; e ambos em presença de toda a assembleia,

96
O uso do termo privitivismo por Schwarz (1987) me parece problemático, por, implicitamente, criar um
vértice hierárquico no qual a cultura brasileira seria vista como rudimentar e a europeia como desenvolvida.
92

liquidam-no a golpes de espada. Feito isso, assam-no, comem dele em comum e


enviam pedaços aos amigos que estiverem ausentes. Não é, como se acredita,
para se alimentarem dele, como faziam antigamente os citas; é para expressar
uma extrema vingança.

Em seu Manifesto Antropófagico, Oswald de Andrade enxerga na Antropofagia não


apenas um ato de diferenciação entre contextos culturais, mas como um ato de junção,
união, uma vez que “SÓ A ANTROPOFAGIA NOS UNE. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente.” ([1990] 2011, p. 67). Para o literato brasileiro, o ato de degustar
intelectualmente o estranho, o estrangeiro, fazendo dele parte de nós e nós como parte dele,
é uma realidade na fundação do paradigma cultural brasileiro: “Fizemos Cristo nascer na
Bahia. Ou em Belém do Pará” (ANDRADE, [1990] 2011, p. 69). Um movimento
antropofágico poderia, dessa forma, ir de encontro à importação do que chama de
consciência enlatada, isto é, daquilo que é trazido pelas caravelas, da metrópole, fundando,
assim, uma visão dialógica e dialética do processo de construção cultural brasileiro.

A construção de uma definição exata para a Antropofagia, entretanto, é considerada


mesmo por Andrade ([1990] 2009, p. 65) como uma tarefa hercúlea, uma vez que toda
definição do fenômeno pode ser considerada imprecisa, não dando conta de sua totalidade.
Em entrevista publicada em Os dentes do dragão, Andrade ([1990] 2009) tece um esboço
definicional ao argumentar que

A Antropofagia é o culto à estética instintiva da Terra Nova. Outra: É a redução,


a cacarecos, dos ídolos importados, para a ascensão dos totens raciais. Mais
outra: É a própria terra da América, o próprio limo fecundo, filtrando e se
expressando através dos temperamentos vassalos de seus artistas ([1990] 2009,
p. 65)

Trata-se, então, de um movimento de assimilação das tendências europeias, por meio de


um processo subconsciente de elaboração, tendo em vista a produção de coisa nova, coisa
nossa. E esse processo de assimilação, para Andrade ([1990] 2009), não se baseia em um
movimento de ódio: comemos aquilo que julgamos superior. Assim como o exposto por
Montaigne ([1580] 2002), o literato brasileiro acredita que o movimento cultural de uma
Antropofagia procura naquele que possuiria um dom sobrenatural as substâncias que lhe
interessa devorar: “(...) nunca se soube de homem que deglutisse o que lhe desagradasse”
(ANDRADE, [1990] 2009, p. 66). A Antropofagia seria, assim, um movimento que
possibilitaria a revitalização do Brasil, ou, mais amplamente, das culturas – de quaisquer
93

culturas –, a partir da ótica constante do homem enquanto animal devorante, enquanto


aquele que devora.

Eduardo Viveiros de Castro ([1992] 2002a), no já clássico ensaio O mármore e a


murta: sobre a inconstância da alma selvagem, revisita a Antropofagia como prática
atribuída aos índios brasileiros. Segundo o antropólogo, os índios Tupinambás enxergavam
nos europeus que devoravam, figuras de afinidade em potencial, facetas de uma alteridade
que atraía e que devia ser atraída. Para o autor ([1992] 2002a, p. 207), sem essa alteridade,
restaria ao mundo uma sobrevida por meio da indiferença e da paralisia. Nesse sentido, “O
outro não era ali apenas pensável – ele era indispensável.” (VIVEIROS DE CASTRO,
[1992] 2002a, p. 195). E não se tratava de copiar – por parte dos índios – ou de se impor –
por parte dos europeus – aleatoriamente a identidade do/sobre o outro ou mesmo de recusar
tal processo, mas sim de atualizar-se em uma relação dialógica com o outro, atualização
essa que visava, sobretudo, a transformação da própria identidade. Mais do que isso,
Viveiros de Castro ([1992] 2002a, p. 206) afirma ser “a troca, não a identidade, o valor
fundamental a ser afirmado”. Nas palavras do autor,

Se europeus desejavam os índios porque viram neles ou animais úteis, ou


homens europeus e cristãos em potência, os Tupi desejaram os europeus em sua
alteridade plena, que lhes pareceu como uma possibilidade de auto-
transfiguração, um signo de reunião do que havia sido separado na origem da
cultura, capazes portanto de vir alargar a condição humana, ou mesmo de
ultrapassá-la (VIVEIROS DE CASTRO, [1992] 2002a, p. 206).

A ideia de relações na prática antropofágica dos povos indígenas brasileiros


corrobora, dessa forma, a visão de culturas que defendo nesta Tese e já apresentada na
seção de Apresentação, isto é, culturas como “(...) a forma como as pessoas constroem
analogias entre diferentes domínios de seus mundos”97 (STRATHERN, 1992, p. 47), ou
ainda, nas palavras de Bauman ([2011] 2013, p. 16), como “modos de vidas [que] flutuam
em direções diferentes e não necessariamente coordenadas; [que] entram em contato e se
separam, aproximam-se e se distanciam, abraçam-se e se repelem, entram em conflito ou
iniciam um intercâmbio de experiências ou serviços”. Viveiros de Castro ([1992] 2002a, p.
209) acrescenta que, nesse contexto, a ideia de culturas não deve ser enxergada como um
sistema de crenças, mas sim como um conjunto de estruturações potenciais da
experiência, que é capaz de manter os conteúdos tradicionais variados ao mesmo tempo em
que absorve novos. Culturas, desse modo, se constituiriam como dispositivos culturantes

97
“(...) the way people draw analogies between different domains of their worlds”.
94

ou construtores. O autor ([1992] 2002a, p. 209) também afirma pensar ser mais
interessante que a definição estática das culturas, a indagação das condições que facultam a
certas culturas a atribuição de uma posição relacional de suplementaridade ou de
alternatividade em relação ao próprio sistema de crenças que apresentam. É importante
lembrar ainda, de acordo com o antropólogo brasileiro, que a própria ideia de uma “(...)
relação apenas pode existir entre o que difere e na medida em que difere98” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2004, p. 20).

Pensando a cultura do outro, do estranho, Viveiros de Castro ([1992] 2002a, p. 223)


argumenta que, já na prática dos Tupinambás, as culturas estrangeiras eram muitas vezes
observadas em seu todo como um valor a ser apropriado, signo a ser assumido. Esse
movimento de apropriação, ao contrário do que nos mostram leituras simplistas da
antropofagia indígena, não partia de um raso impulso de absorção e controle simbólico-
político do outro, uma vez que, como nos conta o autor, “incorporar o outro é assumir sua
alteridade” (VIVEIROS DE CASTRO, [1992] 2002a, p. 224). Na prática de devoração de
outras tribos e/ou dos europeus, na medida em que iam capturando e executando os
prisioneiros de guerra, os índios acumulavam nomes e renome. Para tanto, os inimigos
eram transformados em seres à imagem dos próprios índios Tupinambá: eram pintados,
deviam dançar, comer e beber com os captores, por vezes até os acompanhando à guerra
ou sendo transformados em cunhados, como em um processo de socialização, para então
serem devorados nesse jogo de incorporação da alteridade (VIVEIROS DE CASTRO,
[1992] 2002a, p. 232). Esse ato de socialização, além de permitir a construção do inimigo à
sua imagem, permitia também, dialogicamente, aos Tupinambás conhecer seus inimigos já
que, como nos lembra Viveiros de Castro, “Conhecer é personificar, tomar o ponto de vista
daquilo que deve ser conhecido...” (2002b, p. 358).

Assim como afirmam Silviano Santiago e Roberto Schwarz em relação às


literaturas brasileira e latino-americana, a universalidade e a imortalidade só eram
alcançadas pelos Tupinambás por meio desse ato de vingança: a devoração do outro a fim
de transformá-lo em parte do que sou e me fazer, consequentemente, parte dele. Segundo
Viveiros de Castro ([1992] 2002a, p. 241), a vingança Tupinambá só se exprimia ao se
constituir como ponto-chave de sua própria sociedade, esta tida como possuindo uma
radical incompletude: “Constância e inconstância, abertura e teimosia, eram duas faces de
98
“(…) a relation can only exist between what differs and in so far as it differs.”
95

uma mesma verdade: a indispensabilidade dos outros, ou a impensabilidade de um mundo


sem outrem.” (VIVEIROS DE CASTRO, [1992] 2002a, p. 241). Com efeito, ao absorver o
inimigo – ou, no caso abordado por esta Tese, as culturas de outrem –, o corpo social
tornava-se ritualmente determinado pelo inimigo, sendo constituído por este em um
movimento dialógico de construção da identidade cultural por meio da troca.

O que Oswald de Andrade fez ao trazer o ritual indígena para o campo cultural,
desse modo, foi lançar “(...) o mito99 da antropofagia, trazendo para as relações culturais
internacionais o ritual canibal.” (VELOSO, 2012, p. 54), conforme descrito por Viveiros
de Castro. Caetano Veloso (2012, p. 54) nos conta ainda que, a partir da antropofagia como
um conceito cultural, criava-se a ideia de que não deveríamos imitar, mas sim devorar a
informação nova, de onde quer que ela viesse, reinventando a partir do prisma brasileiro a
experiência estrangeira. A ideia de uma Antropofagia funciona, portanto, como a receita de
um comportamento criativo que se diferenciava em muito das vigentes formas de
compreensão das relações culturais. Desse modo, o conceito oswaldiano permite, segundo
Veloso (2012, p. 53), a libertação das vanguardas europeias por meio de um ato
originalmente nativo, sobretudo, Tupinambá (VIVEIROS DE CASTRO, [1992] 2002a).

As influências de tal pensamento na compreensão do legado cultural brasileiro são


extensas. O próprio Caetano Veloso reconhece a presença da perspectiva antropofágica
inclusive no iê-iê-iê, que, de acordo com autor, sofreu transformações para se firmar no
contexto musical nacional, não sendo, em seus melhores momentos, apenas cópia do
estrangeiro (VELOSO, 2012, p. 12). Essa transformação não se dá por um simples ato de
assimilação, como já apontado, mas por uma atividade dialógica de confronto:

O confronto deve implicar os dois lados mutuamente, alterando os discursos que


traz ao jogo em igual medida, uma vez que o objetivo do procedimento não é
chegar à melhor situação consensual, mas a uma máxima conceptual
(VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 480)100.

99
Entendo que, ao contrário da compreensão proposta por Veloso (2012), Oswald de Andrade não construía
o conceito de Antropofagia como uma proposta mítica, uma vez que os mitos se configuram no universo do
imaginário como modelos de explicação – descritivos, portanto– da realidade. Andrade, pelo contrário,
propunha o conceito como procedimental, isto é, a Antropofagia como um procedimento para o contato
transcultural.
100
“The confrontation should implicate the two sides mutually, altering the discourses it brings into play in
equal measure, since the aim of the procedure is not to arrive at a consensual optimum, but a conceptual
maximum.”
96

Shohat & Stam ([1994] 2008, p 307) descrevem o processo antropofágico como
uma atividade cultural pela qual os modernistas brasileiros devoravam os produtos
importados que no Brasil chegavam, os explorando como material bruto para a formulação
de novas sínteses, novos produtos, que poderiam, após transformados, serem impostos
contra a imagem do colonizador. Desse modo, o conceito de Antropofagia ganha também
uma definição pautada na luta pós-colonialista, isto é, como uma técnica de produção de
conhecimento pelos países ditos subdesenvolvidos que lhes permitiria a luta contra o
movimento de dominação artística e cultural por meio de uma “(...) reciclagem crítica da
cultura estrangeira” (SHOHAT & STAM, [1994] 2008, p. 308)101. Com efeito, torna-se
possível enxergar a prática da antropofagia não como uma atividade canibalística, que
implica a devoração da carne humana como comida para o corpo, mas como uma prática
de resistência cultural, que representa a ingestão de comida para a alma (ARENS, 1998, p.
46).

O que Oswald de Andrade propunha, desse modo, era um esforço de modernização


do Brasil que não deixava de lado nem a cultura nacional, nem a europeia, por meio da
incorporação de discursos estrangeiros (BELLEI, 1998, p. 90). Nesse sentido, trata-se de
uma forma de se absorver tanto a cultura estrangeira quanto a cultura nativa “(...) como
uma forma de construir uma identidade cultural brasileira hibrida e única” (BELLEI, 1998,
p. 91).102 No cenário contemporâneo, a compreensão que a Antropofagia favorece
apresenta-se desejável como horizonte para uma prática de compreensão de processos de
transculturação. Bellei (1998, p. 101) nos conta que foram os escritos de Haroldo de
Campos as primeiras experiências realizadas no sentido de trazer o conceito oswaldiano
para além do círculo modernista, como uma ferramenta de compreensão do campo estético.
Dessa forma, a proposta perdia seu caráter utópico na tentativa de dar conta do
entendimento dos processos de recriação dos discursos estrangeiros para os contextos
cultural e social brasileiro.

Em Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira, Haroldo de


Campos ([1992] 2010a), assim como Silviano Santiago e Roberto Schwarz, argumenta que
a literatura latino-americana não é nem política, nem culturalmente determinada e
dependente pelas/das literaturas metropolitanas, em especial europeias. Procurando ir de

101
“(…) critical recycling of foreign culture.”
102
“(…) as the means to construe a hybrid and unique Brazilian cultural identity.”
97

encontro à visão de historiografia literária tradicional promulgada por, dentre outros,


Antônio Cândido e Afrânio Coutinho, Campos se mostra contrário à ideia da presença de
uma literatura superior que teria influenciado a literatura nacional desde suas origens até
sua plenitude, quando, nessa visão historiográfica, o espírito nacional seria cunhado. Nesse
contexto, esse autor propõe uma historiografia modal, que se preocuparia com o modo
como a literatura latino-americana realmente se constituiu, e promove, assim, a
compreensão dessa questão a partir de um movimento dialógico da diferença. Em outras
palavras, a proposta de Campos procura fugir à ideia de que a literatura sofreria um
aprimoramento progressivo, e admite a existência de períodos de altos e baixos numa
trajetória sem início e fim identificáveis, sem linearidade. Com efeito, a própria ideia da
data de origem das literaturas latino-americanas vem não de um ponto especificado na
linha temporal, mas surge a partir do conceito de universalidade, isto é, essas literaturas
têm sua não-origem temporal creditada a um movimento dialógico e universal de criação
da obra de arte, sendo oriundas de um “código universal extremamente elaborado”
(CAMPOS, [1992] 2010a, p. 239).

Apesar de sua visão universal do surgimento dessas literaturas, Campos afirma que,
dentro de sua universalidade, obras como as da literatura brasileira apresentam um caráter
diferencial, e é esse caráter diferencial que as destaca em relação ao código universal. O
nacionalismo, a cultura nacional, é fundado, desse modo, a partir da diferença. Com efeito,
Campos ([1992] 2010a, p. 235) retoma o conceito de Antropofagia de Oswald de Andrade,
para destacar a capacidade de apropriação, assim como de expropriação, desierarquização
e desconstrução dos valores culturais europeus, estrangeiros. A Antropofagia nos
permitiria, então, compreender a “Relação entre patrimônio cultural universal e
particularidades locais” ([1992] 2010a, p. 231) num contexto de “relações universais, uma
interdependência universal de nações” ([1992] 2010a, p. 233). Nas palavras de Campos,

(...) com a antropofagia de Oswald de Andrade, nos anos 20 (...), tivemos um


sentimento agudo dessa necessidade de pensar o nacional em relacionamento
dialógico e dialético com o universal. A ‘Antropofagia’ oswaldiana (...) é o
pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a
partir da perspectiva submissa e reconciliada do ‘bom selvagem’ (...), mas
segundo o ponto de vista desabusado do ‘mau selvagem’, devorador de brancos,
antropófago. Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma
transculturação; melhor ainda, uma transvalorizacão (...). Todo passado que nos
é ‘outro’ merece ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado
(CAMPOS, [1992] 2010a, p. 234-235)
98

A partir dessa perspectiva, Campos afirma que “escrever, hoje, na América Latina
como na Europa, significará, cada vez mais, reescrever, remastigar.” (CAMPOS, [1992]
2010a, p. 255), ou ainda, recriar, criar paralelamente, como afirma em Da tradução como
criação e como crítica (CAMPOS, [1992] 2010b). Nesse processo, os valores culturais
tradicionais estrangeiros são adaptados às necessidades locais e temporais, num
movimento denominado pelo autor de transculturação ou transvaloração. A ideia de uma
transculturação fundada numa perspectiva antropofágica apresenta-se como uma
ferramenta útil para a construção de inteligibilidade sobre as relações transculturais que
envolvem um diálogo dialógico entre um eu e um outro, além de permitir, de acordo com
Campos ([1992] 2010a, p. 243), a desconstrução – e, acrescento, posterior reconstrução –
da herança cultural europeia. A prática de transculturação, já enraizada na cultura brasileira
– o que leva, inclusive, à afirmação de Frederick Moehn (2012, p. 204) de que na música
nacional, por exemplo, gêneros importados como rock, funk e rap são pensados como
gêneros da própria cultura local -, é enxergada nesta Tese como uma possível prática
universal: isto é, não se atendo apenas ao contexto brasileiro, mas a diversos outros
contextos nos quais se fez necessário devorar a cultura estrangeira para fazer dela parte de
si própria e, ao mesmo tempo, outra. Shohat & Stam ([1994] 2008, p. 313) corroboram
essa visão ao afirmarem que até mesmo

Artistas (Norte) Americanos nativos desempenham seu próprio tipo de


antropofagia. Tudo que foi trazido da Europa, disse Jimmie Durham, “foi
transformado com grande energia... (...). Nós podemos fazer isso por causa de
nossa integridade cultural e porque nossas sociedades são dinâmicas e aptas a
absorver novas ideias”.103

Nesse sentido, a ideia de um processo de Devoração Transcultural criada a partir


de minha leitura do conceito de Antropofagia coincide, em muitos pontos, com a teoria da
intertextualidade, já amplamente utilizada nos estudos das chamadas Teorias da Adaptação
(STAM, 2000, 2004, 2005 e 2008; HUTCHEON, 2006; SANDERS, 2006), como
demonstrado na segunda seção deste capítulo. Tal coincidência já era apontada por Leila
Perrone-Mosés (1990, p. 95-96), que afirmava ser a Antropofagia a expressão do desejo do
outro, permitindo a abertura e a receptividade para o alheio, a absorção crítica da
alteridade. De acordo com a autora, “Há, então, na devoração antropofágica, uma seleção

103
“Native (North) American artists perform their own kind of anthropophagy. Everything brought in from
Europe, says Jimmie Durham, ‘was transformed with great energy… (…) We are able to do that because of
our cultural integrity and because our societies are dynamic and able to take in new ideas.’”
99

como nos processos da intertextualidade. Ao mesmo tempo em que o Manifesto


Antropófago diz: ‘Só me interessa o que não é meu’, diz também: ‘Contra os importadores
de consciência enlatada’”. Dessa forma, a Antropofagia, assim como a teoria da
intertextualidade, põe por terra a ideia de uma obra que possa ser considerada original:
“(...) se o fosse, não poderia ter sentido para seu leitor” (HUTCHEON, [1988] 1991, p.
166). E, de fato, as fontes deixam de interessar por si mesmas, só sendo interessantes na
medida em que podemos verificar a forma como elas foram usadas, transformadas,
devoradas.

Ao se associar o conceito da Antropofagia com a ideia de intertextualidade, funda-


se a “concepção de literatura [e, eu acrescentaria, da obra artística em suas diversas
modalidades] como constante troca cultural” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 96). Essa
concepção nos permitiria: 1) a compreensão de que a literatura – e, advogo aqui, as artes
em geral – se produz em constante diálogo de textos e culturas; 2) privilegiar,
metodologicamente, nos estudos da adaptação, a busca das diferenças em vez das
analogias, a análise das transformações em vez dos parentescos, e o foco naquilo que é
recriado, como uma forma de superar a ideia de fidelidade ao original; e 3) “(...) uma
desmontagem ativa dos elementos da obra, para detectar processos de produção e
possibilidades variadas de recepção” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 97). A virada do foco
das semelhanças para as diferenças já era, inclusive, apontada pelos estudos da
intertextualidade, uma vez que, de acordo com Nitrini,

(...) o fim último da análise intertextual da obra literária é verificar de que modo
o intertexto absorveu o material do qual se apropriou e não se deter nas
semelhanças entre o enunciado transformador e seu lugar de origem ([1997]
2010, p. 166).

A Antropofagia, se enxergada como uma forma crítica, dialógica, de reescritura


intertextual, como um movimento transculturador, pode nos permitir ainda a fuga da ideia
de receptividade passiva de um original a ser copiado por assumir a ideia de transformação
“(...) do velho em novo, do alheio em próprio, do déjà vu em original. Por reconhecer que a
originalidade nunca é mais do que uma questão de arranjo novo” (PERRONE-MOISÉS,
1990, p. 98-99).

Nos estudos da adaptação, sobretudo na teoria da intermidialidade, Claus Clüver


enxerga a ideia da transculturação como producente, e afirma que essa pode vir a se tornar
uma ferramenta analítica interessante “sempre que o texto-fonte for produto de uma cultura
100

histórica ou geograficamente distante” (CLÜVER, 1997, p. 43), o que, de acordo com o


autor, reflete o crescente interesse da área dos estudos da adaptação pela absorção de
abordagens provenientes dos Estudos Culturais (1997, p. 52).

Em suma, como apontei na seção de Apresentação e no decorrer deste capítulo, ao


adotar a postura Antropofágica nesta Tese, pretendo compreender de que modo o global
pode se tornar local, e o local pode conter o global104, numa relação de transfertilização
(MOEHN, 2012), isto é, de mútuos benefícios e transformações. Sendo assim, o que
pretendo sinalizar é que uma prática de adaptação cultural, se enxergada a partir das bases
teóricas de orientação dialógica e intertextual discutidas, e partindo do conceito de
Antropofagia cunhado por Oswald de Andrade, é aquela que considera os elementos do
texto de partida, mas, ao mesmo tempo, os utiliza criativamente, renovando-os,
desconstruindo-os, reconstituindo-os e os inserindo mutuamente na tradição e nas culturas
de chegada em uma relação com as culturas de partida, a partir de um processo que chamo
de Devoração Transcultural. É necessário sinalizar, entretanto, que, nesta Tese, apesar de
partir do conceito proposto por Oswald de Andrade, procuro não aderir a leituras
modernistas de cunho nacionalista do termo, uma vez que a Antropofagia aqui é entendida
como um conceito estético que busca a compreensão de relações transculturais entre
diferentes povos e nações.

É importante ressaltar também que a Antropofagia, como aqui entendida, que não
se trata, como apontei, de um simples ato provocado por um hábito primitivo alimentar,
que implicaria a simples absorção violenta do outro pela cultura receptora, mas sim de um
movimento de devoração, isto é, de experimentação violenta do outro, uma vez que os
povos que o praticavam acreditavam que estariam adquirindo as habilidades e força das
pessoas e das tribos que comiam. Nesse sentido, a devoração promulgada pelos
antropófagos afasta-se da ideia de um simples canibalismo, isto é, de hábito alimentar e
comportamento predatório; a Antropofagia constitui-se como um movimento de, como
sinalizado pelos autores com quem dialogo nesta seção, incorporação, admiração e
vingança do/contra o outro. Com efeito, o que o conceito que aqui proponho, o da
Devoração Transcultural como horizonte de leitura, instaura é um movimento de relação

104
A postura Antropofágica permite o questionamento do binarismo local-global, possibilitando a
compreensão da cultura como um fenômeno glocal; em outros termos, local e global não como instâncias
excludentes e contrárias, mas sim que partilham e circulam discursos concomitantemente (CANCLINI, 1995,
p.85).
101

mútua de construção cultural de um ser: eu te degusto para fazer de você parte de mim, e
vice-versa.

Tal enfoque pode nos ajudar a delinear o alcance interpretativo do texto literário
dramático – no caso, Hamlet – após inserido na língua e culturas de chegada, uma vez que,
em um novo contexto socio-histórico, em novas culturas, o texto pode permitir a
construção de sentidos não ainda evidentes no contexto e culturas iniciais de sua produção.
No entanto, para instrumentalizar a utilização do conceito aqui proposto, é necessário que
consideremos categorias de análise que permitirão a abordagem do texto fílmico adaptado
a partir de suas próprias especificidades, e considerando o processo de adaptação como um
processo eminentemente transcultural. A apresentação de tais categorias é o tópico da
próxima seção.

2.3. Caminhos para o devorar: construindo as categorias de análise

Aqui é preciso saber personificar, porque é preciso


personificar para saber. O objeto da interpretação é
a contra-interpretação do objeto.
(VIVEIROS DE CASTRO, [1992] 2002a, p. 360)

A contribuição mais importante que o


Comparativismo pode prestar, hoje em dia, reside
no fato de ele se ocupar das diversas culturas
mundiais nas quais os textos inter e transmidiáticos
de origem ocidental, cada vez mais divulgados no
mundo inteiro, encontram outras tradições de
produção textual intermidiática e outras maneiras
de se pensar sobre elas.
(CLÜVER, 2006, p. 37)

Em busca de instrumentalização da ideia de Devoração Transcultural como


horizonte de leitura para filmes adaptados a partir da obra shakespeariana Hamlet para
diferentes matizes culturais, procuro, nesta seção, categorias de análise que nos permitam
compreender as reconfigurações de sentido do texto de partida ao ser adaptado para uma
nova língua, um novo código, uma nova cultura. É importante lembrar, como aponta Silva
(2013, p. 65), que toda adaptação fílmica é, por si, uma adaptação cultural, isto é, da
cultura literária para a cultura cinematográfica. Além disso, ao lidarmos com adaptações
shakespearianas para países tão diversos em relação ao cenário europeu, em geral, e a
102

Inglaterra, em particular, como o Brasil, não podemos considerar o método de adaptação


utilizado pelos cineastas como único, o que me levou à busca por categorias analíticas que
abrangessem às diversidades de leituras possível do texto fílmico adaptado a partir de seus
aspectos micro – linguísticos, textuais e cinemáticos – até àqueles considerados macro –
sociais, políticos e de inserção em cinematografias nacionais.

Além disso, as categorias elencadas procuram dar conta do ato de criação de


inteligibilidade sobre o fenômeno da adaptação transcultural, levando à compreensão da
forma como seus elementos estruturantes são reconfigurados ao serem reconstruídos da
língua e culturas de partida para a língua e culturas de chegada. Desse modo, considerei
para a (re-)construção de tais categorias os trabalhos de Roberto Ferreira da Rocha (2003),
que empreende a busca por uma metodologia para a análise intercultural de performances
para o teatro do texto shakespeariano Coriolano (Coriolanus, 1608), e Marcel Barreto
Vieira Silva (2013), que, também sob a abordagem da interculturalidade, analisa filmes
adaptados da obra shakespeariana produzidos no cinema brasileiro. Dentre os caminhos
sinalizados por esses autores, adoto, nesta Tese, os seguintes, que, adaptados à proposta
aqui delineada, serão detalhados nesta seção: Linguagem (tradução e adaptação do texto
shakespeariano), Estrutura do Enredo, Relação entre Gêneros, Caracterização Visual
(inserção da história em cinematografias nacionais) e Inserção Histórico-Social.

Em relação à Linguagem, atentar-me-ei para o modo como o texto shakespeariano,


inicialmente escrito em inglês do início da modernidade, é traduzido para a língua de
chegada. É minha intenção observar, especialmente, as maneiras de regionalização (ou não
regionalização) do texto, além do modo como a linguagem da peça se adapta às
particularidades sociais e geográficas do contexto de produção e circulação do texto de
chegada. Também será considerada a necessidade ou não da efetuação de adaptações
textuais, sobretudo omissão, expansão, atualização, adequação cultural ou situacional e
criação (AMORIM, 2013b, p. 297), no texto traduzido/adaptado105. Silva (2013, p. 346)
nos conta, por exemplo, que, ao ser adaptada para o Brasil no filme Maré, nossa história
de amor (2007), de Lúcia Murat, a peça Romeu e Julieta foi traduzida tendo em vista a
preservação da “verossimilhança com o estilo realista dos diálogos e o ambiente linguístico

105
A adaptação textual é compreendida nesta Tese como um Procedimento Técnico Global de Tradução
(AMORIM, 2013b, p. 296); isto é, sendo enxergada como "(...) o limite extremo da tradução..." e podendo
ser aplicada não somente em contextos onde se faz necessária a adaptação cultural - como promulgado pelos
principais expoentes dos Procedimentos Técnicos de Tradução –, mas ao texto como um todo (2013, p. 295).
103

próprio aos personagens, sem acesso a uma educação de qualidade, costumeiramente as


falas são cheias de gírias, erros de sintaxe106 e palavrões”. Processo inverso ao ocorrido na
adaptação de Kenneth Branagh para Hamlet (1996), uma vez que, como sinalizei no
Capítulo um, o diretor afirmava adaptar o texto integral da peça, mantendo-o na língua
inglesa, por se tratar de uma adaptação anglófona, e procurando ser fiel ao que o cineasta
julgava serem as características do falar elisabetano. Além disso, questionaremos, como
sugerido por Rocha (2003, p. 82) se, após “manipulado, cortado, rearranjado de acordo
com as direções dadas pela mise em scène, [o texto] pode ainda manter uma identidade
com o ‘original’. Em outras palavras, depois de tantas mudanças, é o texto ainda uma peça
shakespeariana?”107.

Ao observar a Estrutura do Enredo, procurarei apontar de que modo a linha


narrativa central do drama shakespeariano foi adaptada pelos diretores dos filmes que
compõem o corpus desta Tese. Possíveis cortes e rearranjos na estrutura narrativa serão
sinalizados, bem como adições que tenham sido necessárias para a transposição da peça
para o território estrangeiro. Tais mudanças são consideradas aqui como motivadas
culturalmente e podem modificar sobremaneira a recepção e interpretação do drama em
questão. Um exemplo célebre dessa categoria é o ilustre filme Falstaff (1965) de Orson
Welles, que rearranja não uma, mas cinco peças shakespearianas – as duas partes de
Henrique IV (Henry IV, 1596-1597 e 1597-1598), Henrique V (Henry V, 1598-1599), As
alegres comadres de Windsor (The Merry Wives of Widsor, 1597-1598) e Ricardo II
(Richard II, 1598-1596) – na construção de seu texto fílmico (cf. AMORIM, 2010).
Menores, mas não menos significativos, são os cortes e rearranjos efetuados por Michael
Almereyda em sua versão corporativa de Hamlet (2000), ambientada na cidade de Nova
Iorque, no século XX. Essas transformações costumam realizar reconfigurações relevantes
em outras características do texto de partida, sobretudo na caracterização dos personagens
e nas relações entre esses e outros personagens da trama.

A partir da ideia de Relações entre Gêneros, procuro analisar as mudanças


necessárias para a recriação de um texto dramático no formato fílmico, mudanças essas,

106
A ideia de erros de sintaxe é altamente problemática no cenário apresentado pela linguística
contemporânea, especialmente se considerarmos a discussão mais ampla sobre as variantes linguísticas como
promulgada pela sociolinguística variacionista (BORTONI-RICARDO, 2005).
107
“(…) manipulated, cut, re-arranged according to the directives of a mise en scène, can it still maintain an
identity with the “original”? In other words, after so many changes is it still Shakespeare’s play?”.
104

como nos lembra Stam (2000, p. 56), inevitáveis no processo de adaptação de um texto
verbal para uma mídia multimodal como o cinema. Em especial, atentar-me-ei para a
transformação genérica da tragédia elisabetana para os gêneros cinematográficos nos quais
se inserem os diretores brasileiros. Um exemplo de transformação radical de gêneros
dentro do chamado cinema shakespeariano é a releitura efetuada em 1979, no Brasil, por
José Amâncio da peça Romeu e Julieta (Romeo and Juliet, 1595-1596), intitulada Mônica
e Cebolinha no mundo de Romeu e Julieta. Além de transpor a tragédia elisabetana para a
comédia infantil, o diretor ainda constrói seu filme no formato de desenho animado, com
os personagens do enredo shakespeariano sendo representados pelos famosos personagens
da Turma da Mônica, série em quadrinhos criada e imortalizada no Brasil pelo desenhista
Maurício de Souza. A mudança de gêneros em relação ao texto de partida impulsiona
reformulações no enredo e caracterização visual na tentativa de adequar a trama ao novo
contexto estrutural determinado pelo gênero de chegada. Nesse sentido, ao observamos tal
mudança, também dialogamos com as culturas cinematográficas de cada país de chegada
do texto Hamlet, uma vez que as características dos gêneros cinematográficos são, muitas
vezes, reconfiguradas em diferentes culturas cinematográficas.

Em Caracterização Visual, procurarei entender de que modo o drama foi adaptado


de maneira a se inserir no projeto cinematográfico e ideológico dos diretores dos filmes
elencados e do movimento cinematográfico do qual esses cineastas faziam parte na época
de produção do filme. Essa parte do processo de adaptação envolve, certamente,
procedimentos estilísticos que visam à inserção do drama, no caso, Hamlet, ao projeto
autoral de cada cineasta, à época histórica e ao sistema de produção. A abordagem de
Hamlet por Franco Zeffirelli (1990), por exemplo, ilustra a tentativa do cineasta de
investimento em seu projeto de visualidade para adaptações dos textos shakespearianos –
investimento já visível em suas adaptações anteriores de textos do bardo. Zeffirelli também
procura, em sua adaptação da peça, a inserção de elementos que caracterizavam filmes de
ação dos 1980, como sinalizei no Capítulo um desta Tese, numa tentativa de popularizar o
enredo do drama. Nesse sentido, a análise aqui empregada, assim como aquela proposta
por Rocha (2003, p. 83), “(...) não se preocupa somente com o trabalho no texto verbal”, de
fato, “(...) a análise de todos os outros textos não-verbais é inevitável”108.

108
“(…) does not concern itself solely with work on the verbal text. (…) the analysis of all the other non-
verbal texts is unavoidable.”
105

Por fim, em Inserção histórico-social, atentar-me-ei às mudanças temáticas,


regionais e de ambientação que, de modo amplo, influenciaram na construção do texto
fílmico. Sobretudo, serão observadas as realocações temporais, geográficas e físicas, bem
como as adaptações necessárias da peça a uma nova realidade política e social decorrente
de tais realocações. Com efeito, o drama Romeu e Julieta novamente nos oferece um
exemplo a partir da adaptação Romeu + Julieta (Romeo + Juliet, 1996), do diretor Baz
Luhrmann. Ao realocar o enredo de Verona, na Itália, para Verona Beach, na costa
americana, o cineasta transforma também a rivalidade entre as famílias Montéquio e
Capuleto em uma rivalidade entre famílias que possuem conglomerados empresariais,
adequando a trama ao século XX, momento de produção do filme. Nesse sentido, aspectos
como a caracterização dos personagens e suas relações dentro da trama também se
modificam, uma vez que a inserção do texto em um novo momento histórico e uma nova
sociedade pode provocar reformulações significativas no texto de partida shakespeariano.

Em suma, essas cinco categorias fazem parte do horizonte de leitura transcultural


que esta Tese pretende seguir, a partir da ideia de devoração ofertada pela Antropofagia
oswaldiana, para a análise de textos fílmicos adaptados de peças shakespearianas para
outros contextos, outras culturas. A escolha por essa rota analítica se justifica pelo fato de
que a análise comparativo-textual isolada não poderia dar conta das especificidades dos
textos fílmicos elencados como corpus desta Tese, por não possibilitar a compreensão das
reconfigurações dialógicas vorazes, isto é, violentas, de sentido causadas no processo de
adaptação.

A base epistemológica e as categorias de análise aqui (re)construídas são aplicadas


na análise dos dois filmes selecionados e analisados no próximo capítulo. No entanto, não
é meu objetivo transformá-las em categorias estanques de análise textual e cultural, mas
sim utilizá-las como guias de leitura para os textos analisados. É necessário sinalizar ainda
que não é minha intenção apontar uma universalidade da abordagem e categorias aqui
delineadas para todos os filmes não-anglófonos adaptados a partir do legado
shakespeariano; a abordagem e as categorias aqui apresentadas surgiram a partir da leitura
dos textos fílmicos elencados, não sendo precedentes a eles e nem valendo-se como
ferramentas universais de construção de inteligibilidade sobre os diversos textos fílmicos
adaptados.
106

Capítulo três: Um olhar Transcultural para o Hamlet em Terras Estrangeiras

Há algo de podre no reino do petróleo.


(SOARES, 2015109)

(...) no filme Tropa de Elite 2 (2011, dir. José Padilha),


dois membros da milícia carioca retiram os dentes da
ossada de uma mulher recém assassinada, e um deles
faz uma brincadeira em torno do ‘ser ou não ser’. O
outro miliciano, sem reconhecer o sentido da frase,
pergunta ao colega de onde vem aquilo. O sujeito que
citou o famoso verso de Hamlet, no entanto, responde
que não sabe ao certo, deve ter sido de uma novela.
(SILVA, 2013, p. 307)

Como atestado pelas epígrafes que abrem este capítulo, a fala de Jô Soares, em
entrevista com Dilma Rousseff, ao abordar os escândalos que assolaram a maior
companhia estatal do país, a Petrobrás, na segunda década do século XXI, e a
rememoração de Silva em relação a uma piada construída no filme Tropa de Elite 2, de
José Padilha, William Shakespeare e seus textos são, continuadamente, intertextualizados e
dialogizados nos mais diferentes textos e discursos que constituem o território brasileiro. O
dramaturgo elisabetano-jaimesco tem trechos de suas peças e fatos de sua vida ventilados
por discursos construídos nos mais diferentes meios de comunicação, dentro dos mais
diversos suportes, em nossa sociedade contemporânea. Nesse sentido, resta-nos indagar
sobre como o relacionamento do bardo com a cultura brasileira principiou; assim, nesta
primeira seção, procuro apresentar como William Shakespeare e suas peças chegaram ao
Brasil, especialmente por meio da história de suas encenações, traduções e adaptações,
sejam elas para o teatro, o cinema ou ainda para a TV.

Marcia Martins (2008, p. 302) nos conta que, inicialmente, as peças de Shakespeare
chegavam ao Brasil a partir da visita de companhias estrangeiras, em específico as
francesas, que traziam em seu repertório montagens de tragédias do bardo, como Romeu e
Julieta e Otelo. Essas montagens geralmente eram encenadas na própria língua estrangeira,
normalmente o francês, ou, quando muito, a partir de traduções portuguesas de versões
francesas dos dramas. Assim, na maior parte das vezes, os textos encenados não eram
traduções lineares das obras em inglês, mas das versões e adaptações em francês, que

109
Jô Soares, em entrevista com a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, transmitida pela Rede Globo
de televisão no dia 12 de junho de 2015. O vídeo da entrevista pode ser encontrando em diversas plataformas
de streaming na internet, como em: https://www.youtube.com/watch?v=JOwzBFkwBMI.
107

buscavam ‘encaixar’ Shakespeare dentro dos padrões teatrais rígidos do Neoclassicismo


(SILVA, 2013, p. 271). Bárbara Heliodora (2008, p. 321) assevera que, nesse período
inicial, a história dos textos shakespearianos no Brasil é reflexo da predominância clara das
culturas de origem francesa sobre as portuguesas, culturas essas que influenciavam
também o desenvolvimento intelectual do Brasil enquanto colônia. Acostumada ao modelo
e ao gosto francês (SILVA, 2013, p. 271), a elite brasileira da época, para quem as peças
eram normalmente montadas, consumia sem maiores problemas essas encenações que, já
na origem do teatro shakespeariano no Brasil, demonstravam forte colocação transcultural,
uma vez que, como sinalizei, eram peças originalmente inglesas dos séculos XVI e XVII,
adaptadas na França e encenadas em território brasileiro com o uso do idioma francês.

As versões francesas encenadas no território brasileiro eram geralmente aquelas


adaptadas pelo francês Jean-François Ducis (HELIODORA, 2008, p. 322), que se
configuravam como um produto muito específico das mudanças então ocorridas no teatro
francês, que visava a disciplinar Shakespeare, ao cortar o que era considerado chocante e
adequando o conteúdo das tragédias ao gênero dramalhão romântico, tão caro ao gosto da
sociedade francesa e, por conseguinte, da sociedade brasileira da época. Apesar da
predominância do uso dos textos de Ducis, Martins (2008, p. 301) nos lembra que, no
século XIX, o Brasil já possuía importantes tradutores, como J. C. Craveiro, J. A. Oliveira
e Silva e Francisco José Pinheiro Guimarães, mas esses profissionais, quando começaram a
traduzir os textos shakespearianos para encenação no teatro nacional, optaram
preferencialmente pela tradução das versões adaptadas oriundas do trabalho de Ducis.
Esses tradutores foram responsáveis pela tradução de uma grande quantidade de peças do
bardo encenadas no Brasil, sobretudo por aquelas levadas ao palco por João Caetano
(1808-1863), o primeiro grande ator do teatro nacional, sendo também o primeiro a se
notabilizar por viver personagens shakespearianos com o uso do português brasileiro.

A incursão inaugural de João Caetano pelo teatro shakespeariano se deu em 1835, a


partir da tentativa inédita de levar Hamlet aos palcos brasileiros usando um texto vertido
diretamente do inglês (MARTINS, 2008, p. 302-303). O público, entretanto, desprezou a
versão de João Caetano, considerando-a sombria e tornando-a um fracasso. O ator, desse
modo, só retornaria a essa peça cinco anos depois, em 1840, numa versão traduzida a partir
de Ducis e considerada por Heliodora (2008, p. 323) como mutiladora do texto
shakespeariano, mas tendo finalmente êxito crítico e comercial (SILVA, 2013, p. 272),
108

apesar dos comentários negativos recebidos de grande parte da elite literária e cultural da
época, representada, por exemplo, pelas figuras de poetas como Gonçalves Dias e
Machado de Assis. Nos anos seguintes, o ator voltaria a trabalhar com os textos
shakespearianos em montagens de Otelo e Macbeth, ambas utilizando retraduções para o
português brasileiro a partir das adaptações francesas de Ducis (MARTINS, 2008, p. 303).
De acordo com Silva (2013, p. 271-271), Caetano, com o Otelo, não só atingiu o maior
sucesso comercial de sua carreira, como também ficou marcado para a posterioridade
como o primeiro grande ator shakespeariano brasileiro. Foi também a partir da encenação
de Otelo por João Caetano que Shakespeare entra de vez na cultura teatral brasileira, e com
isso, mais uma vez, é interessante notar a transculturalidade do sucesso de Shakespeare no
país: o Otelo de João Caetano era uma peça originalmente inglesa, encenada para
brasileiros e em português, a partir de uma adaptação francesa.

Após as famosas montagens de João Caetano, por quase um século não houve
atores brasileiros interessados em levar peças de Shakespeare aos palcos nacionais.
Encenações dos textos dramáticos do bardo só chegavam aos teatros brasileiros por meio
de companhias estrangeiras, que as traziam em seu repertório também a partir de versões
domesticadas sob os princípios neoclássicos. Heliodora (2008, p. 325-326) nos conta que
“(...) entre 1871 e o final do século, o Brasil foi visitado por oito companhias italianas,
duas espanholas e mais duas portuguesas, com peças de Shakespeare (ou suas
adaptações)...”. Dentre essas companhias, as que fizeram mais sucesso foram as italianas,
que encenavam os textos em traduções para o italiano, muitas vezes realizadas a partir de
versões em francês das peças originalmente escritas na Inglaterra do início da Modernidade
em inglês. Já no início do século XX, as companhias francesas voltaram a disputar lugar
com as italianas nos palcos brasileiros: em 1905, por exemplo, chega ao Brasil uma versão
de Hamlet com a atriz Sarah Bernhardt, que, como apresentei no Capítulo um desta Tese,
havia participado cinco anos antes da primeira adaptação dessa peça para a linguagem
cinematográfica.

Com a insurgência da Primeira Grande Guerra, Shakespeare fica esquecido dos


palcos por muitos anos, uma vez que o fluxo de visitas de companhias europeias foi
prejudicado pelos esforços militares internacionais. Heliodora (2008, p. 326) nos lembra,
entretanto, que as obras do dramaturgo inglês não ficaram ignoradas no Brasil, “pois antes
e durante a guerra influenciaram considerável número de escritores de grande significação
109

em nossa história literária”, como Machado de Assis (cf. CLARO, 2015), Visconde de
Taunay (cf. GREGÓRIO, 2015), Álvares de Azevedo e Alphonsus de Guimaraens (cf.
GUILHEN, 2015), em textos de ampla circulação no mercado editorial nacional durante as
primeiras décadas do século XX. Como aponta Silva,

(...) é comum aparecer em escritores como Álvares de Azevedo, Gonçalves de


Magalhães, Gonçalves Dias, José de Alencar, Machado de Assis, Cruz e Souza,
Coelho Neto e mesmo Rui Barbosa diversas referências à literatura
shakespeariana, tanto em citações esparsas, quanto na própria composição
estética das obras. (SILVA, 2013, p. 277)

Shakespeare só voltaria a ser encenado novamente por uma companhia brasileira


em 1938, a partir do trabalho do entusiasta do teatro Paschoal Carlos Magno, fundador da
Casa do Estudante do Brasil e, no interior dessa instituição, do Teatro do Estudante do
Brasil. A primeira peça shakespeariana, e primeira peça no geral, a ser encenada por essa
companhia foi uma montagem, bastante suntuosa para a época, de Romeu e Julieta,
dirigida por Itália Fausta, com apoio do próprio Paschoal (HELIODORA, 2008, p. 328-
329). A peça também inaugura de vez, se desconsiderarmos a tentativa fracassada de João
Caetano de levar Hamlet aos palcos em 1935, a prática de encenar montagens do bardo a
partir de traduções diretas do inglês, e não mais de adaptações francesas. O texto dessa
encenação foi traduzido pelo Dr. Domingo Ramos, e a peça parece ter sido um enorme
sucesso, trazendo de vez o teatro shakespeariano à cena cultural e teatral brasileira
(SILVA, 2013, p. 276).

Apesar de não se restringir a montagens do bardo, “o teatro do Estudante foi


reincidente em matéria de Shakespeare.” (HELIODORA, 2008, p. 329), e trouxe aos
palcos nacionais mais montagens dos textos desse dramaturgo inglês nos anos seguintes.
Silva também sinaliza que, após a montagem exitosa do Teatro do Estudante do Brasil,
outras companhias ousaram encenar Shakespeare em território nacional, como, por
exemplo, “o Teatro Experimental do Negro (com Otelo, 1946), [o] Grupo do Teatro
Experimental de São Paulo (As alegres comadres de Windsor, também em 1946), [o]
Teatro Escolar do Pedro II (Sonho de uma noite de verão, em 1947) e [o] Teatro do
Estudante de Pernambuco (Otelo, em 1951 e 1952)”. A total afirmação de Shakespeare no
teatro brasileiro se concretiza no final dos anos 1940, com a realização de um festival que
celebrava montagens diversas dos dramas do bardo, realizado pelo Teatro do Estudante do
Brasil. Curiosamente as peças de Shakespeare só viriam a ser encenadas em inglês no
110

território nacional em 1964, durante as comemorações do quarto centenário do nascimento


do dramaturgo, a partir do trabalho de uma companhia profissional estrangeira a qual, sob
a liderança de Ralph Richardson e Barbara Jefford, apresentou com relativo sucesso, no
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, versões de Sonho de uma noite de verão e O
mercador de Veneza (HELIODORA, 2008, p. 330).

Ainda sobre o teatro, é interessante sinalizar que, durante as quatro últimas décadas,
as adaptações de Shakespeare por companhias brasileiras aumentaram consideravelmente
em volume. De qualidades diversas, diferentes peças têm sido montadas e, em alguns
casos, por mais de uma vez – Hamlet, por exemplo, chegou aos teatros nos últimos dez
anos pelas mãos de Aderbal Freire Filho (2008) e Ron Daniels (2012). No entanto,
algumas montagens têm se destacado, na tentativa de ressignificar os textos do bardo para
o território brasileiro. Uma dessas montagens é a encenação de Romeu e Julieta, pelo
Grupo Galpão, de Belo Horizonte, com Gabriel Vilella como diretor convidado. Esta
montagem da tragédia elisabetana, concebida para ser apresentada na rua, como é tradição
do grupo, corta o texto e o recria, antropofagicamente, entremeando a ação com canções
tradicionais mineiras e regionais e destacando a visualidade da peça por meio de aplicação
de técnicas circenses universais ao mesmo tempo em que se mantém próxima ao enredo
shakespeariano. A peça obteve êxito estrondoso, não só no Brasil, mas também em países
outros, como a própria Inglaterra, terra natal do bardo. Temos, então, novamente o traçado
de um percurso transcultural extremamente antropofágico: um texto inglês do início da
modernidade traduzido e adaptado por um grupo teatral do Brasil e encenado em culturas
outras, entre elas a própria cultura inglesa, a partir do imaginário cultural brasileiro. O
sucesso da peça na Inglaterra pode ser conferido, por exemplo, a partir do depoimento de
Jacquelyn Bessell em seu texto Romeu e Julieta (Reprise): Grupo Galpão, Novamente no
Globe:

Quando vi Romeu e Julieta pela primeira vez no Globe to Globe Festival, em


2000, eu era membro da equipe do Globe. Lembro-me de soluçar
incontrolavelmente em mais de um momento durante a performance (...). De
fato, o retorno de Romeu e Julieta para o Globe em 2012 foi, para mim, uma
verdadeira reprise, um retorno a um espaço amado, uma peregrinação à cena de
uma memória querida (BESSELL, [2013] 2015, p. 205).

Heliodora (2008, p. 332) nos lembra ainda de um interessante Sonho de uma noite
de verão, dirigido por Márcio Meireles e encenado na Bahia, que faz uso de tradições
baianas no movimento de montagem da peça, e da versão do grupo Nós do Morro, do
111

Vidigal, favela localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, para a peça Dois
cavaleiros de Verona que, segundo a autora, fez Shakespeare caminhar por caminhos “bem
brasileiros” em seu percurso antropofágico e transcultural de encenação. Vale a pena citar
ainda o musical Otelo da Magueira, de 2006, que transpõe para o morro carioca a história
de amor e ciúmes elisabetana-jaimesca desta vez embalada por versos de Cartola, a partir
da direção segura de Daniel Herz. De acordo com Heliodora (2008, p. 332), a montagem se
configura como “surpreendentemente fiel à trama original”, mesmo sendo constituída a
partir de um movimento dialógico e antropofágico de devoração transcultural.

Foi o cinema, entretanto, que inseriu a figura de Shakespeare em larga escala no


cenário cultural brasileiro. Ao logo do século XX, os principais filmes realizados a partir
da obra do bardo em países como Estados Unidos, Inglaterra, Itália, França, Alemanha etc.
foram exibidos nas salas de cinema nacionais, tendo sido esses filmes fundamentais para a
construção da imagem de Shakespeare em território brasileiro. Nas palavras de Silva
(2013, p. 279),

(...) o cinema desempenhou um papel fundamental na introdução de Shakespeare


na cultura brasileira, seja estimulando as novas gerações para melhor conhecer a
sua obra, seja apresentando as histórias e cenas mais célebres e, com isso,
ajudando a criar uma imagética própria de Shakespeare na cultura visual da
primeira metade do século XX.

É interessante ressaltar também que, em inglês, Shakespeare chegou ao Brasil


primeiro pelo cinema, por meio dos filmes falados americanos e britânicos, para depois
fazer sua estreia nos palcos de teatros.

O cinema brasileiro, como nos lembra Aimara da Cunha Resende (2015, p. 02),
também exerceu influência na construção da imagem de Shakespeare no Brasil. Ao longo
dos últimos 100 (cem) anos, diversas peças shakespearianas foram adaptadas para as telas
nacionais, dentre elas, excluindo da enumeração as duas películas que analiso neste
capítulo, uma adaptação das duas partes de Henrique IV, por Eduardo Coutinho (Faustão,
1969), cinco adaptações de Romeu e Julieta, por diretores como José Amâncio (Mônica e
Cebolinha no Mundo de Romeu e Julieta, 1979), Paulo Aragão e Alexandre Boury (Didi, o
cupido trapalhão, 2003), Bruno Barreto (O casamento de Romeu e Julieta, 2005), Lúcia
Murat (Maré, Nossa História de Amor, 2007), e Breno Silveira (Era uma vez..., 2008), uma
adaptação de Ricardo III, por Paulo Thiago (Águia na Cabeça, 1984) e uma adaptação de
As alegres Comadres de Windsor (As Alegres Comadres, 2003), por Leila Hipólito.
112

Resende (2015, p. 02) nos lembra ainda de outros filmes que, mesmo não sendo adaptações
de Shakespeare em sentido restrito, realizaram leituras críticas de passagens da obra do
bardo, como a sátira sobre as cenas de balcão de Romeu e Julieta, apresentada por Oscarito
e Grande Otelo na chanchada Carnaval no Fogo (1949).

A TV brasileira também apresentou, ao longo dos últimos anos, grande interesse


pelas peças shakespearianas, especialmente por meio de suas telenovelas, como apontado
por Resende (2015, p. 07). Apesar de discordar da visão redutora apresentada pela autora
quando afirma que brasileiros de estratos sociais mais baixos assistem às novelas, ao final
do dia, demonstrando pouca preocupação por produções eruditas, concordo que telenovelas
são, cada vez mais, fonte de entretenimento da população brasileira, desempenhando forte
papel na disseminação dos textos shakespearianos em território nacional. Resende nos
lembra, por exemplo, das produções Pedra sobre pedra (1992) e Fera ferida (1993-1994)
que ecoavam situações da peça Romeu e Julieta, além de O cravo e a rosa (2000), dirigida
por Amora Mautner a partir do texto de Walcyr Carrasco, que, no novo milênio, trazia a
história de A megera domada para o Brasil da década de 1920. Nessa produção, de acordo
com Resende (2015, p. 09), “Shakespeare nunca é mencionado, mas a novela cria, todavia,
diversas oportunidades para a consideração sobre os significados de amor e matrimônio,
relações familiares, manobras políticas, interesses socioeconômicos e fúteis, assim como o
bardo fez”110. Nesse sentido, a autora afirma que Shakespeare, no Brasil, tem se tornado
um cidadão Global, não apenas no sentido de pertencer ao mundo, mas também à rede
Globo de televisão (2015, p. 07).

Os filmes elencados como corpus para esta Tese, além de se configurarem como
produtos de seu tempo, também contribuíram, em alguma instância, para propagar
Shakespeare em território brasileiro, em especial a partir da peça Hamlet. No entanto,
Ozualdo Candeias e Mario Kuperman nos entregam, em suas películas, não um
Shakespeare elisabetano-jaimesco do início da modernidade, mas um Shakespeare lido,
relido, devorado transculturalmente, a partir do imaginário cultural e cinematográfico
brasileiro do início da década de 1970. Na seção seguinte, apresento minha leitura dos
filmes em questão, A Herança (1970) e O Jogo da Vida e da Morte (1971), a partir do

110
“Shakespeare is never mentioned, but it creates, nevertheless, several opportunities for consideration of
the meaning of love and matrimony, family relations, political maneuvers, social-economic interests and
futility, just as the Bard has done."
113

horizonte epistemológico de leitura fornecido pela Antropofagia modernista brasileira,


considerando a ideia de devoração transcultural e as categorias para a análise da adaptação
como prática transcultural, ou antropofágica, conforme apresentei no Capítulo dois desta
Tese.

3.1. Hamlet ruralizado: uma leitura de A Herança, de Candeias

Adaptação é adaptação. É claro que há diferença de


linguagem, é claro que a adaptação é uma leitura muito
particular que o autor faz da obra de origem. Na
verdade, não é o fato de fazer esta diferença que
provoca o problema. É até bom que haja essa diferença,
é até bom que as adaptações sejam leituras
particulares, sejam algo mais que não a pura tradução
no sentido mais restrito do termo.
(XAVIER & PONTES, 1986, p. 35)

...matam meu pai... prostituem minha mãe... tomam o


que é meu... eu, vadio dos mais vis... não mexo nem um
dedo... não verto nenhuma lágrima. Ouvi dizer que tem
gente que já chorou por Hécuba, sem nunca saber o que
é, ou quem fora, Hécuba... não, não sou um Homem...
devo ser um homeleto....
(Omeleto em A Herança, 1970)

A Herança (1970), de Ozualdo Candeias, é um filme muito particular. Produzido no


final da década de 1960 e lançado no ano de 1970, esse filme adapta para o interior do
estado de São Paulo, em uma fazenda, um latifúndio, a história do príncipe dinamarquês
que teve seu pai assassinado e sua mãe desposada pelo tio. Em sua adaptação, Candeias
não apenas modifica o tempo histórico da narrativa, ao trazer os acontecimentos para o
Brasil do século XX, como também altera o contexto da história contada. A produção,
considerada pelo diretor como “uma adaptação bem rigorosa da peça” (CANDEIAS apud
REIS, 2010, p. 88), traz o contexto monárquico do reino da Dinamarca para o mundo
caipira. Nas palavras de Candeias,

Eu peguei o Hamlet, um personagem da corte de uma monarquia europeia na


Idade Média, e coloquei numa fazenda no interior de São Paulo nos tempos
modernos. Em Shakespeare é um rei que tem um filho. Na minha adaptação é
um fazendeiro rico com um filho, Omeleto, que ele manda pra São Paulo pra
fazer Direito. Isso acontece sempre pelo interior: os ricos mandam os filhos
estudar na Capital e voltar doutor. Então surgem todos aqueles problemas da
peça de Shakespeare: o pai é morto, o tio toma conta de tudo. O filho volta e
encontra a mãe com o tio. E vai por aí afora até o final, igual a Shakespeare,
quando ele morre no duelo. Só que o meu é um duelo caipira do século 20 (apud
REIS, 2010, p. 90).
114

Desse modo, já é perceptível o movimento de devoração transcultural efetuado pelo


diretor, que relê e recria a peça elisabetana na tentativa de construir uma narrativa
brasileira, que fale sobre o contexto nacional a partir das lentes legadas a nós pelo
dramaturgo William Shakespeare. As imagens iniciais da película já dão tom à narrativa
que segue, construindo e contextualizando o filme de Candeias a partir do ambiente rural
que abriga a história que no longa-metragem é contada.

Na primeira parte da Figura 1, reproduzida abaixo, percebe-se o letreiro de abertura


do filme, que apresenta, em meio a faces borradas, o rosto da atriz que desempenha o papel
de Gertrudes na película, bem como a imagem da sede da fazenda, onde grande parte da
ação se desenvolve. Na segunda parte da imagem, encontramos um sertanejo guiando um
carro de bois que traz o corpo do Rei Hamlet da película em cena que, se configurando
como uma expansão ao texto shakespeariano, uma vez que amplia, adiciona ou explicita
informações do texto de partida (AMORIM, 2013b, p. 267), e também contribui para o
movimento de ambientação da história no Brasil sertanejo, já que carros de bois eram – e
ainda são – um dos principais veículos utilizados para o transporte de cargas no interior de
fazendas em território nacional.

Figura 1: Ambientação de A Herança.

Ainda nessas primeiras cenas, duas escolhas estéticas de Candeias que perpassam
todo o filme são perceptíveis: (1) a opção pela não utilização de diálogos ao longo da
película; (2) a presença de uma forte trilha sonora, composta quase exclusivamente por
acordes de viola, instrumento típico do meio rural brasileiro, misturados a barulhos de
animais comuns a grandes fazendas, como cavalos, galinhas, patos etc. Essas duas escolhas
115

ajudam a construir A Herança, nas palavras de Silva (2013, p. 313), como “um dos filmes
shakespearianos que mais chamam a atenção – e não me restrinjo aqui aos realizados no
Brasil, mas a toda cinematografia de Shakespeare.” A falta de diálogos é substituída pela
presença de poucas legendas que, ao longo do filme, apresentam o texto shakespeariano
reconstruído, em tradução que não encontra paralelos em outras versões de Hamlet para o
português disponíveis no mercado editorial brasileiro, como se pode observar a partir dos
fragmentos apresentados abaixo em cotejo com o texto em inglês, a partir da edição
conflacionada adotada por esta Tese:

A Herança Texto apresentado em Inglês111


“Tem alguma coisa podre no fazendão.” “MARCELLUS
Something is rotten in the state os Denmark.” (I. v.
90)
Quadro 1: “Tem alguma coisa podre no fazendão.”

A Herança Texto apresentado em Inglês


“Deve haver mais coisa entre o céu e a terra que a “HAMLET
nossa já estúpida filosofia.” There are more things in heaven and earth, Horatio, /
Than are dreamt of in your philosophy.” (I. v. 166-
167)
Quadro 2: “Deve haver mais coisa entre o céu e a terra...”

A Herança Texto apresentado em Inglês


“Ser ou não ser… “HAMLET
Morrer p’ra dormir, To be, or not to be, that is the question -
Dormir p’ra sonhar... Whether 'tis nobler in the mind to suffer
To be or not to be The slings and arrows of outrageous fortune,
That is the…” Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them. To die, to sleep -
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache and the thousand natural shocks
That flesh is heir to - 'tis a consummation
Devoutly to be wished. To die, to sleep -
To sleep, perchance to dream. Ay, there's the rub,
For in that sleep of death what dreams may come,
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause. There's the respect
That makes calamity of so long life,
For who would bear the whips and scorns of time,
Th'oppressor's wrong, the proud man's contumely,
The pangs of disprized love, the law's delay,
The insolence of office, and the spurns

111
As traduções de Ana Amélia de Queiroz C. de Mendonça e Barbara Heliodora para os trechos da peça
Hamlet presentes neste quadro e nos que o seguem estão disponíveis no Anexo 3, de acordo com a ordem em
que são dispostos nesta Tese. Optei por não disponibilizar as traduções nos quadros ou em notas para fins de
organização visual do capítulo analítico.
116

That patient merit of th'unworthy takes,


When he himself might his quietus make 75
With a bare bodkin? Who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,
The undiscovered country from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will, 80
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all,
And thus the native hue of resolution
I s sicklied o'er with the pale cast of thought, 85
And enterprises of great pitch and moment
With this regard their currents turn awry
And lose the name of action. Soft you now,
The fair Ophelia. - Nymph, in thy orisons
Be all my sins remembered” (III, i. 56-89).
Quadro 3: “Ser ou não ser...”

No primeiro excerto reproduzido, percebe-se a tentativa de atualizar culturalmente


e situacionalmente (AMORIM, 2013b, p. 267) a passagem da peça shakespeariana, uma
vez que ocorre a recriação do texto em inglês para um contexto mais familiar ao texto de
chegada – no caso, uma deslocação do foco do reino da Dinamarca para o Fazendão, onde
os personagens principais do filme vivem. O segundo excerto procura atualizar o trecho da
peça Hamlet, apresentado no texto shakespeariano no primeiro ato, cena cinco, para o
português corrente nos anos 1970. Há também uma mudança de interlocutor e uma
realocação da fala no enredo, uma vez que, no filme de Candeias, o personagem que
representa Hamlet não dirige sua fala a Horácio, mas a apresenta como resultado de um
momento de reflexão, proferindo-a nos minutos finais do longa-metragem, logo antes de
sua morte. Assim, é incitada, a partir da fala, uma reflexão sobre a vida e morte a partir das
palavras de um personagem que se encontra à beira do fim.

Em relação ao famoso solilóquio To be or not to be, uma das passagens mais


icônicas da dramaturgia shakespeariana, é importante atentar que, linguisticamente,
enquanto no drama do bardo ele se estende por 35 (trinta e cinco) versos, no texto do filme
brasileiro, somos apresentados a 05 (cinco) linhas traduzidas em prosa, que em muito
reduzem o caráter auto-questionador e reflexivo construído no texto em inglês: dessa
forma, como roteirista, Candeias, ao verter essa passagem para o português, utiliza a
omissão como procedimento de adaptação textual (AMORIM, 2013b, p. 267). No entanto,
adiciona-se visualmente o elemento irônico a essa cena, uma vez que o personagem que
representa o Hamlet brasileiro, conhecido no filme a partir do nome Omeleto, declama o
117

solilóquio segurando o crânio de um boi, o que também atesta o movimento de devoração


cultural desempenhado pela película, dado que tal elemento simboliza a seca em regiões
rurais brasileiras, e, ao declamá-lo, sorri ironicamente. Nessa mesma passagem, também é
possível observar a opção do diretor por uma variante regional da língua portuguesa
expressa, por exemplo, pela utilização do termo p’ra, que reafirma a tentativa de Candeias
em realocar o drama em termos geográficos e culturais.

A cena do solilóquio e a cena que representa a peça-dentro-da-peça do texto


shakespeariano são os dois únicos momentos da película em que Candeias nos presenteia
com diálogos falados. Na cena do solilóquio, após o aparecimento das legendas que trazem
os dizeres “Ser ou não ser... Morrer p’ra dormir, Dormir p’ra sonhar...”, ouvimos a voz de
Omeleto, que pronuncia “To be or not to be, that is the...” a partir de um acento
regionalista incorporado aos dizeres na língua inglesa. A utilização do inglês nessa
passagem também é curiosa, por sinalizar explicitamente um diálogo do filme brasileiro
com o legado shakespeariano, ao mesmo tempo em que faz uma crítica à presença do
estrangeiro não devorado em território nacional, uma vez que o falar é interrompido, como
sinalizei, por Omeleto, que sorri ironicamente. Após a interrupção, ouvimos, na faixa
sonora, assobios que aos poucos preenchem a cena, quebrando novamente qualquer
possibilidade de convencionalidade por parte do filme brasileiro. O choque construído
entre o texto visual – Omeleto segurando o crânio de boi – e o texto pronunciado na língua
estrangeira também auxilia no movimento de devoração transcultural do drama
shakespeariano para o Brasil rural, sertanejo.

Já a segunda cena falada do filme, que se refere à representação, no texto


elisabetano, da peça The murder of Gonzago ou The Mousetrap, em vez de apresentar
referências ao modo de representação no teatro, configurando, como apontei no Capítulo
um, o que estudiosos classificam por metadrama, investe na apresentação de violeiros,
repentistas, entoando o que no filme é chamado de moda de vida, com letra escrita por
Omeleto, que oferece dinheiro aos violeiros que se apresentam no circo local para entoá-la.
A moda tocada e cantada pela trupe musical narra a história do assassinato do pai do
personagem principal; essa música que ouvimos representa, desse modo, os falares do
Brasil, tanto na linguagem musical, quanto na letra de Omeleto e no recitar dos violeiros,
construído a partir de uma variante da língua portuguesa típica de regiões interioranas do
Sudeste no período. A utilização do circo como ambientação para a apresentação da moda
118

também faz parte do movimento de devoração cultural desempenhado, uma vez que a
presença de circos itinerantes nas cidades do interior brasileiro, ainda comum no início do
século XXI, era recorrente na segunda década do século XX, já que as artes circenses eram
consideradas formas de entretenimento barato para os estratos menos abastados da
população.

É importante ressaltar, entretanto, que, ao optar pela utilização de uma trupe que
entoa a moda de vida composta por Omeleto, Candeias dirige seu filme na contramão do
que Bloom ([2003] 2004) e Süssekind (2008) apontam como característica central do texto
shakespeariano, omitindo quaisquer reflexões sobre a gênese do fazer teatral ou de
qualquer outro tipo de arte, visto que, nessa cena, o personagem central do filme brasileiro
não parece aconselhar os artistas sobre a maneira como a moda deveria ser entoada, ou
demonstrar, ao longo do filme, qualquer preocupação com questões artísticas mais
restritas.

Figura 2: O solilóquio To be or not to be e a ‘peça-dentro-da-peça’ na visão de Candeias.

No entanto, mais importante que as legendas ou os poucos diálogos falados da


película é a presença de uma trilha sonora não convencional, composta quase inteiramente
com sons de viola intercalados com sons que Moura Reis (2010, p. 18) descreve como
brasileiríssimos, como “canto de pássaros, rosnadura de animais...” etc. Candeias, desse
modo, ousa ao ressignificar transculturalmente o texto shakespeariano, dado o status desse
texto no cânone literário e a estatura de William Shakespeare como dramaturgo clássico
europeu. Reis aponta, porém, que essa ousadia não agride a peça, mantendo as linhas
centrais do enredo de Hamlet. Ressalto, no entanto, haver sim uma agressão à peça;
agressão essa necessária para uma prática de adaptação antropofágica, que desconstrói para
119

reconstruir no movimento de devoração transcultural do texto e culturas de partida para o


texto e culturas de chegada.

Nuno César Abreu (2006, p. 65) assevera que, apesar de brasileiríssima, a mistura
da viola com os ruídos naturais é utilizada, no filme, de forma não realista, o que contribui,
ao meu entender, para a construção de significados sobre a película: por exemplo, no
momento em que Omeleto encena certa loucura no drama, o descompasso entre a trilha
sonora e as cenas em exibição, e a incoerência da utilização das modas de viola, que
abruptamente mudam de ritmo, velocidade e tom, podem ilustrar os conflitos interiores
construídos textualmente no texto shakespeariano. Nesse sentido, Silva (2013, p. 314)
afirma que o desenho sonoro esteticamente trabalhado por Candeias acaba por relegar ao
texto verbal, em legendas, uma função quase acessória, o que é corroborado pelo próprio
diretor, que, em entrevista, afirmou que sua intenção inicial era a de colocar uma única
legenda, “... e o resto é silêncio”, na cena final do filme; entretanto, achou “melhor colocar
outras legendas pra facilitar a exibição” (CANDEIAS apud REIS, 2010, p. 97). Nesse
contexto, vale lembrar, como nos conta Jean-Claude Bernardet (2009, p. 19), que o público
da época se queixava do som das películas nacionais, geralmente de péssima qualidade, o
que impedia a compreensão total das falas dos personagens, apontando que “uma coisa que
realmente ele [o público brasileiro] sabe fazer, e com destridade, é ler legendas”, o que
pode ter favorecido a opção estética de Candeias pela supressão das falas em sua obra.

É importante ressaltar, entretanto, que a ousadia estética demonstrada por Candeias


é uma característica recorrente de sua obra, o que levou David Cardoso, ator que
desempenhou o papel de Omeleto na película, a afirmar, em entrevista, que o diretor
produzia “(...) cinema hermético, fechado, difícil de entender, com metáforas...” (apud
ABREU, 2006, p. 66). A liberdade de Ozualdo Candeias em trabalhar com a materialidade
cinematográfica se dava, acima de tudo, pelo fato de o diretor não se filiar ao chamado
cinemão, aquele que possuía os maiores recursos, grande financiamento estatal e
produtores com tradição no mercado cinematográfico, mas sim a um modo de fazer cinema
mais alternativo, mais marginal, o que muitos chamavam de udigrude brasileiro (XAVIER
& PONTES, 1986, p. 13). No entanto, mesmo a partir de uma proposta estética não
convencional, o diretor mantém a estrutura geral do enredo shakespeariano com suas
tramas e subtramas, modificando, quando muito, a ordem dos acontecimentos da narrativa.
120

Como afirma Candeias na citação transcrita acima, a história básica do príncipe que
perde o pai e retorna a seu reino para se deparar com o casamento de sua mãe com o tio,
que supostamente assassinara seu pai, é mantida. Além disso, algumas ações presentes na
peça shakespeariana, como o aparecimento do fantasma do pai para relatar a Hamlet que
havia sido assassinado, o suposto caso amoroso entre Hamlet e Ofélia, a suposta loucura de
Hamlet, a viagem organizada por Cláudio para pôr fim à vida de Hamlet, o assassinato de
Polônio pelo príncipe, a morte de Ofélia e o duelo final ainda estão presentes na história,
mesmo que ressignificados, devorados transculturalmente. Para manter esses traços da
narrativa de partida, algumas cenas são rearranjadas e o enredo é contado, por vezes, com
pequenas diferenças na cronologia dos fatos. A primeira aparição do fantasma, conforme
descrita na cena i, ato I, do drama shakespeariano, por exemplo, só ocorre perto da metade
da história narrada no filme, à luz do dia, após a encenação de diversas ações que, na peça,
só teriam lugar posteriormente, como, por exemplo, o primeiro contato de Hamlet com
Ofélia. Além disso, algumas passagens apenas sugeridas pelo drama shakespeariano são
também apresentadas, como o enterro do Rei Hamlet, que abre a película em lugar da
vigilância noturna do castelo por Barnardo e Francisco.

Figura 3: Aparição do Fantasma para Omeleto.

Na cena da aparição do fantasma, Omeleto é avisado pelos personagens que


desempenham os papeis de Horácio e Marcelo na narrativa fílmica de que estes teriam
avistado “Assombração em pleno dia... com galos cantando... de chapéu... capa oriental...”.
Nesse sentido, Candeias afasta-se novamente do contexto medieval construído pela peça
121

shakespeariana, que aponta o rei como vestido em trajes de batalha112, ao sinalizar o


personagem correspondente ao Rei Hamlet não como adornado em armas, mas com o
vestuário tradicional de um coronel de terras, um senhor de latifúndios, que no filme
aparece à luz do dia, com o cantar dos galos, que sinaliza, aqui, não a hora de recolher
devido ao despertar do deus do dia113, como na peça shakespeariana, mas os sons da
fazenda. Apesar das mudanças efetuadas no movimento de devoração transcultural
efetuado por Candeias, o pai de Omeleto, de modo semelhante ao ocorrido no drama
shakespeariano, relata ao filho seu próprio assassinato e clama por vingança contra o
personagem que representa o Cláudio da história de Candeias, ao mesmo tempo em que
solicita ao filho que deixe Gertrudes em paz, com o peso da própria consciência. O
fantasma se esvai, como na peça shakespeariana, proferindo a sentença “Adeus, não me
esqueças...”.

O encontro, como toda a narrativa, se passa no fazendão, composto por terras que
pertenciam ao pai de Omeleto e que foram tomadas por Cláudio após o casamento com
Gertrudes. No contexto do filme de Candeias, a fazenda assume o lugar da Dinamarca
shakespeariana, funcionando como microcosmo para a representação de relações de poder
e opressão. Além disso, a fazenda funciona também como cenário que ambienta o filme do
diretor brasileiro no gênero que, em outro trabalho, denominei filme rural (AMORIM,
2015, p. 322), caracterizado no cinema nacional por, entre outros aspectos, uma temática
que engloba brigas por terras rurais, retratos da exploração de camponeses que vivem em
terras latifundiárias, presença de capatazes e coronéis, representação da vida nas fazendas
etc. É interessante ressaltar que, no ano anterior ao lançamento de A Herança, Eduardo
Coutinho divulgou o seu Faustão (1969), adaptação das duas partes do drama histórico
Henrique IV (Henry IV, 1596-1597), construindo esses textos shakespearianos no novo
contexto também a partir de uma estética rural, mas mais próxima do que a crítica
cinematográfica geralmente aponta como filmes de cangaço.

112
Em tradução: "Uma figura, / Como a do rei, armado de alto a baixo, / Surge diante dos dois, e em nobre
passo / Anda lento e solene;". Em inglês: "A figure like your father, / Armèd at point exactly, cap-a-pe, /
Appears before them, and with solemn march / Goes slow and stately by them." (I. ii. 199-202)
113
Em tradução: “Ouvi o galo / Que, com a clarinada da manhã, / Com sua voz aguda e penetrante, / Acorda
o deus do dia; e ao seu alarma / No mar, no fogo, no ar, como na terra, / Os errantes espíritos se apressam /
Aos seus negros confins; dessa verdade / O nosso próprio caso é bem a prova.”. Em inglês: “I have heard, /
The cock, that is the trumpet to the morn, / Doth with his lofty and shrill-sounding throat / Awake the god of
day; and at his warning, / Whether in sea or fire, in earth or air, / Th’extravagant and erring spirit hies / To his
confine. And of the truth herein / This present object made probation.” (I. i. 149-156)
122

Na figura reproduzida abaixo, que traz quadros da chegada de Omeleto à Fazenda,


em uma expansão (AMORIM, 2013b, p. 267) do texto shakespeariano, somos
apresentados a um ambiente precário, onde, como afirma o personagem principal, o tempo
não passou: “Tudo no mesmo lugar e do mesmo tamanho... se o tempo parasse... Para esta
gente, ele parou.”, em sentença construída a partir da regionalização de passagem
shakespeariana semelhante: "O tempo é de terror. Maldito fado / Ter eu de consertar o que
é errado. / Vamos, entremos juntos."114, mas que, no filme, em vez de se referir à
corrupção do estado da Dinamarca, recém-descoberta por Hamlet, que acabara de
conversar com o fantasma de seu pai, refere-se ao retrato construído pelo ambiente rural
onde a trama se materializa e às pessoas que nele trabalham. É interessante sinalizar a
intenção de Candeias ao representar o sofrimento de quem vive e trabalha nas terras de
latifúndio, conforme sinalizado pelo próprio diretor através do processo de escolha de seu
elenco de apoio, dos figurantes da película: “E o pessoal que trabalha, os caras que eu botei
como essas pessoas, são os mais fodidos possíveis” (CANDEIAS apud REIS, 2010, p. 95).

Figura 4: A fazenda e as pessoas que nela habitam.

114
"Time is out of joint: O cursèd spite, / That ever I was born to set it right. - / Nay come, let's go together."
(I. v. 188-190)
123

No movimento de transposição do enredo de Hamlet do gênero tragédia,


especificamente tragédia de vingança elisabetano-jaimesca, para o gênero filme rural,
Candeias também ressignifica diversas referências a outras formas do fazer
cinematográfico, sobretudo aos filmes de faroeste norte-americanos, também ambientados
em regiões desoladas, com a presença de figuras fortes que se envolvem em duelos e
tiroteios, como apresentado na cena final de A Herança, e também ao cinema silencioso,
uma vez que Candeias constrói muito da visualidade de seu filme a partir da utilização de
close-ups que enfocam os olhares e a expressividade dos personagens.

Figura 5: Close-up e duelo de armas.

É importante sinalizar, neste ponto, que muitas das características cinematográficas


apresentadas pelo filme de Candeias se enquadram ao fazer fílmico do diretor constituído
antes e depois da produção de A Herança, bem como no movimento cinematográfico com
o qual ele mantinha certa proximidade. Reis (2010, p. p. 14) nos lembra que, apesar de
entusiasmar críticos e plateia pela originalidade, experimentação, criatividade, sentido
poético e olhar crítico com que dotava seus filmes, Candeias, geralmente, rodava essas
películas sem “nenhum glamour”; em termos amplos, suas produções possuíam pouco ou
nenhum financiamento, o que obrigava a equipe a filmar as cenas, na maioria das vezes, de
uma única vez, para não desperdiçar as poucas pontas e sobras de filme virgem disponíveis
para a realização das filmagens. No caso de A Herança, a situação não foi diferente:
Candeias (apud REIS, 2010, p. 91-92) afirma que, apesar de ter conseguido financiamento
estatal para rodar a película, por meio de um concurso promovido pelo estado de São Paulo
para financiar quatro roteiros, o dinheiro não foi suficiente, uma vez que a comissão
julgadora decidiu premiar dez roteiros com a mesma quantia que, anteriormente, havia sido
destinada para a execução de quatro.
124

Candeias nos conta ainda, que, devido à escassez de dinheiro, a produção foi rodada
em locações cedidas por Agnaldo Rayol, famoso músico brasileiro do período, que, em
troca, pediu para fazer um papel no filme, recebendo a tarefa de desenvolver o personagem
Fortimbrás do texto shakespeariano. Nas palavras do diretor, “É assim que eu faço: penso
numa coisa. Deu pra fazer, tudo bem; caso contrário, vou ajeitando e vamos tocando”
(CANDEIAS apud REIS, 2010, p. 97). Fernão Ramos (1987, p. 87) sinaliza esse modo de
produzir cinema, “com poucos recursos e utilizando material humano e cenográfico que
não exige grandes investimentos”, como típico do esquema não hegemônico do fazer
fílmico da época. Com maiores detalhes, Nuno Cesar Pereira de Abreu (2006, p. 194)
assevera que

Para obter rentabilidade, os filmes precisavam apoiar-se em esquemas de


produção ‘controlados’: tempo de filmagem reduzido, economia de negativo
(filme virgem), remuneração negociada com elenco e equipe, captação de
investimentos com pequenos e médios empresários (e, ‘às vezes’, grandes
empresários); merchandising (anúncios velados) e marketing (divulgação);
crédito em laboratórios e locadoras de equipamentos; apoio de empresas e de
prefeituras do interior etc. E, principalmente, negociação – participação
societária, vendas dos direitos de distribuição, co-produção etc. – com exibidores
e distribuidores.

Essas características comerciais que, diretamente, influenciavam no fazer fílmico


de Candeias são normalmente relacionadas às produções rodadas sob o rótulo de Cinema
Marginal, que, apesar de se considerar como problemática sua caracterização como
movimento dentro do cinema, permite seu encapsulamento como tal, uma vez que seus
filmes possuem inegável coesão em nível estético (RAMOS, 1987, p. 13 e 115).

A forma do fazer cinematográfico comum ao Cinema Marginal se contrapunha ao


promulgado Cinema Novo, movimento predominante na época, que, apesar de
inicialmente se propor a abordar o que chamava de estética da fome, expondo os
problemas sociais brasileiros e determinada postura estética que ressaltava os conflitos na
sociedade (XAVIER & PONTES, 1986, p. 15), acabava, como aponta Ramos (1987, p.
24), por apenas representar a classe média brasileira à procura de seu marginalismo, em um
processo de produção de películas que se aproximavam da linguagem europeia e elitista da
chamada sétima Arte (ABREU, 2006, p. 27). A ideia de marginalidade proposta pelo
Cinema Marginal, desse modo, traz uma proposta alternativa ao cinema hegemônico
produzido no interior do Cinema Novo, sendo lema e bandeira de toda uma geração de
cineastas. É interessante ressaltar que o nome de Candeias encontra-se marcado na própria
125

origem desse movimento, uma vez que sua primeira película, profeticamente intitulada A
Margem (1967), é considerada, juntamente com O Bandido da Luz Vermelha (Brasil,
1968), de Rogério Sganzerla, como fundadora da estética da marginalidade no cinema
nacional, sendo o segundo filme, inclusive, já celebrado pela crítica como introdutor de
uma certa lógica antropofágica no cinema nacional, como sinalizado por Ramos (1987, p.
78), ao afirmar que
A capacidade de deglutição é exatamente o que, ao meu ver, distingue de forma
radical O Bandido do Cinema Novo, em cujo estômago objetos menos
apetecíveis eram imediatamente expelidos e ainda acompanhados de toda uma
ladainha sobre as impurezas de sua constituição. A atração antropofágica de O
Bandido por todo um mundo industrial, urbano, cinematográfico, que circunda a
realidade da metrópole, não contém em si um discurso valorativo que intervenha
dispondo este universo numa hierarquia de importâncias.

Dentro do Cinema Marginal, há um lugar de destaque para filmes produzidos num


lugar que se convencionou chamar Boca do Lixo, espaço urbano localizado entre os bairros
Santa Cecília e Luz, em São Paulo, conhecido pela presença forte de prostitutas e situado
proximamente às estações rodoviária e ferroviária, o que facilitava, inclusive, a mobilidade
das latas de filme para o interior do Estado e outras regiões do país, e onde também
estavam instalados escritórios de exibidores nacionais e estrangeiros, bem como agências
de distribuidores (ABREU, 2006, p. 21). Mais especificamente, os cineastas pertencentes à
Boca se encontravam regularmente na rua Triunfo, para beber, conversar e idealizar seus
filmes (RESENDE, 2015, p. 04). Abreu (2006, p. 12) assevera que esse grupo, de modos
nada educados e filmes de gosto discutível, incomodava o cinema brasileiro de então,
especialmente os grupos ligados ao Cinema Novo, por desenvolver produtos independentes
a partir de formas de produção desligadas dos estratos intelectuais dominantes; a Boca, de
acordo com o autor (2006, p. 40), produzia entretenimento para a classe popular, realizado
por cineastas egressos dessas mesmas classes.

Com efeito, os filmes produzidos pelo Boca, dentro do Cinema Marginal, ao


discutirem questões como a identidade brasileira e a presença de um traço que
caracterizaria a ideia de brasilidade (XAVIER & PONTES, 1986, p. 16), conseguiram uma
boa inserção no mercado de exibição, tendo alguns de seus expoentes alcançado carreiras
bem sucedidas. David Cardoso, por exemplo, passa de ator das películas produzidas pelo
grupo, nas quais geralmente desenvolvia personagens machões, marcados por
características populares, a diretor e produtor de renome, tornando-se figura lendária no
universo cinematográfico brasileiro (ABREU, 2006, p. 57). Candeias, no entanto, como
126

sinaliza Abreu (2006, p. 27), é considerado um marginal entre os marginais, uma vez que
seus filmes eram tidos como pouco digeríveis pelo grande público, talvez pelas opções
estéticas do diretor, como tenho apontado ao longo dessa leitura do filme A Herança, e por
isso não tiveram, em alguns casos, bem sucedida carreira comercial. Como afirma Angela
Aparecida Teles (2012, n.p.), o cinema de Candeias não se configura tradicionalmente
como produto da indústria cultural, voltado exclusivamente a servir como forma de
entretenimento dos espectadores, mas como “obra de arte produtora de reflexão”, uma vez
que, por meio de seus filmes, “ele constrói sua relação com a cidade de São Paulo e se
insere nas questões sociais e políticas daquele contexto”.

No entanto, mesmo apresentando tônica levemente diferente das outras produções


do Boca e do chamado Cinema Marginal, A Herança mantém com eles também
semelhanças. Como nos lembra Ramos (1987, p. 1994), a produção marginal, assim como
sinalizei em relação ao filme de Candeias, é caracterizada por romper com esquemas de
produção, sobretudo por não receber financiamento pesado estatal ou privado como o
cinema hegemônico da época. Outra característica marcante das produções do movimento,
o humor irônico e debochado (RAMOS, 1987, p. 42), é latente na produção, sobretudo pela
forma como Omeleto se relaciona com os outros personagens da película: logo na primeira
cena de encontro entre Cláudio, Gertrudes e Omeleto, por exemplo, após refletir sobre a
beleza da mãe – “Nem os anos, e... nem a morte de meu pai. É ainda uma bela mulher...” –
e a envolver num abraço claramente marcado por certa tensão, Omeleto, de repente, ri,
sarcasticamente, o que leva Cláudio a afirmar que o sobrinho “Está homem... estranho e
atrevido”. Esse comportamento de Omeleto é recorrente no filme, inclusive na cena do
solilóquio To be or not to be, como apontei anteriormente.

Figura 6: Reencontro de Omeleto com Cláudio e Gertrudes.


127

A postura debochada das produções marginais é esteticamente refletida no filme de


Candeias, inclusive em cenas como a suposta encenação de loucura desempenhada por
Omeleto, como ocorre na peça shakespeariana, para confundir a seu tio e disfarçar as suas
reais intenções: no filme de Candeias, o personagem, aparentemente perturbado, pula e
relincha como um cavalo, emulando um ato imaginário de cavalgada, enquanto dispara
tiros de pistola para o céu. Nesse sentindo, Ramos (1987, p. 125) assevera que “a atitude
do deboche histérico-agressivo é geralmente sentida como uma afronta ao senso estético
[convencional], e, acrescida da imagem do abjeto, confronta-se com a percepção do ‘objeto
belo’.”

Figura 7: Suposta loucura encenada por Omeleto.

Os personagens do filme de Candeias, incluindo Omeleto, são construídos a partir


de um senso de individualismo mesquinho, tão comum às produções do Cinema Marginal
(RAMOS, 1987, p. 81), e por essa razão não despertam no espectador uma relação de
catarse através da compaixão. Em vez disso, provocam um certo distanciamento, causado,
inclusive, pela ironia e sarcasmo retratados como características evidentes das diversas
formas de representação de caráter que atravessam a película; ao longo do filme, o
espectador não é levado a sentir compaixão, nem por Omeleto e sua história, nem pelos
outros personagens que estão em primeiro plano na película – Gertrudes, Cláudio e Ofélia.
Na verdade, Candeias apenas proporciona a possibilidade de construção de um olhar
envolto em compaixão quando se trata dos personagens secundários, figurantes, da obra:
em especial, aqueles que representam os trabalhadores da fazenda que aparecem ao longo
da narrativa.
128

Além dessa característica, o filme de Candeias mantém um aspecto também


considerado latente nas produções marginais, que é uma relação com o cinema norte-
americano, especialmente pela apropriação regionalizada, devorada transculturalmente, do
gênero faroeste, e se apropria de narrativas clássicas – no caso, o próprio Hamlet, texto de
partida que deu origem à película (RAMOS, 1987, p. 129). A Herança igualmente adota
daquele modo de fazer cinema o desenvolvimento de uma narrativa fragmentada que, por
vezes, interrompe o fluxo da ação para se fixar demoradamente num rosto, como sinalizei
em relação à utilização de close-ups, comuns ao cinema silencioso, ou numa paisagem,
como é possível notar nos quadros da película que se seguem ao solilóquio To be or no to
be, que apresentam Omeleto em meio à fazenda, sendo demoradamente seguido por
Ophelia, ou até mesmo em elementos abjetos, como o crânio de boi utilizado por Omeleto
no mesmo solilóquio.

No entanto, talvez a característica do Cinema Marginal mais presente nesse filme


de Candeias seja a tentativa de questionar posições sociais, por meio de um olhar crítico
sobre o contexto ideológico do Brasil na época (RAMOS, 1987, p. 123). Mesmo em um
ambiente cercado por agentes da Censura (XAVIER & PONTES, 1986, p. 84), A Herança
mantém, ao longo de toda narrativa, uma tônica de crítica social, presente tanto entre os
elementos da trama quanto no texto visual da película, e no ponto de vista dos personagens
(SILVA, 2013, p. 314). Essa tônica se dá, sobretudo, (1) pela abordagem crítica do sistema
latifundiário em vigência à época e da extração desordenada dos recursos dessas
propriedades sob o comando de uma só pessoa que, geralmente, aproveita-se da mão de
obra local e barata para tanto, e (2) da questão étnica no Brasil da segunda metade do
século XX, e, acrescento, ainda presente na sociedade brasileira contemporânea. Nas
palavras de Candeias (apud REIS, 2010, p. 94-95),

Então eu botei na fita a nossa questão social da terra: antes do duelo com o tio,
Omeleto passa toda a sua herança para quem trabalha na terra. Ai eu mostro os
beneficiários. Quando o tio chega, ele já deu as terras. O tio fica puto e chega na
orelha dele e grita: filho da puta. Você lê na boca dele. Isso não tem no original,
é claro, mas eu botei na fita, no meu Shakespeare caipira, interiorano, tanto no
sentido geográfico quanto cultural.

Candeias atesta, desse modo, mais uma vez o movimento de devoração


transcultural realizado, como ele próprio afirma, “tanto no sentido geográfico quanto
cultural”, Com efeito, A Herança se engaja nos discursos iniciais sobre a Reforma Agrária,
em circulação no Brasil desde o final da década de 1950 e início da década de 1960.
129

Tendo começado tardiamente em território nacional, a Reforma Agrária,


movimento que fazia parte das reivindicações por reformas de base: agrária, urbana,
bancária e estudantil, tomou corpo e passou a fazer parte das discussões populares no final
da década de 1950 e início da década de 1960. Nesse contexto, era exigida a extinção do
latifúndio existente desde a época de colonização do Brasil e a melhoria das condições de
vida daqueles que moravam no campo. Tendo esses objetivos em mente, oito anos antes do
lançamento do filme – e, com certeza, ainda com grande impacto nos discursos sobre o
desenvolvimento do Brasil em circulação em 1970 –, foi criada a Superintendência
Regional de Política Agrária - SUPRA, em 1962. No entanto, apenas em 1964 foi
elaborado um decreto que desapropriava terras em torno de rodovias federais e as
destinava ao propósito da reforma.

O decreto, entretanto, não entrou efetivamente em vigor devido à insurgência, no


mesmo mês em que ele havia sido assinado, de um golpe de Estado que iniciava o período
da Ditadura Militar no Brasil, regime que atravancou o desenvolvimento de políticas
sociais agrárias por vinte e um anos. Contraditoriamente, o governo ditatorial aprovou, em
novembro de 1964, a Lei Nº 4.504 (BRASIL, 1964), o Estatuto da Terra, que, sendo o
primeiro documento oficial sobre a reforma agrária no Brasil, cria o Instituto Brasileiro de
Reforma Agrária – IBRA – e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário – INDA –
em substituição à SUPRA, além do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária –
INCRA –, que tinha por objetivo realizar tal reforma no país, manter o cadastro nacional
de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União. No entanto, apesar das medidas
tomadas, os militares, em vez de alavancar a reforma, a atrasaram mais, visto que
incentivaram as culturas de exportação e a mecanização dos processos produtivos, o que,
por sua vez, favorecia a manutenção dos latifúndios.

Os discursos relacionados à Reforma Agrária brasileira, em vigência na sociedade


de então, eram provavelmente do conhecimento de Ozualdo Candeias, que, de modo
semelhante, mas seguindo um caminho diverso ao pontuado por Kiernan (1996),
Fitzmaurice (2009) e Ghirardi (2011), como demonstrei no Capítulo um, enxerga em
Hamlet um caráter político que o permitia falar, a partir de um processo de devoração
transcultural, da situação política brasileira da época. No entanto, a tentativa do diretor de
abordar politicamente a peça de Shakespeare não passou despercebida pela crítica de
então, que, de acordo com Candeias, o acusou de deformar a peça do bardo. A resposta do
130

diretor para esses críticos, que aparentemente ainda se guiavam por critérios como o de
fidelidade ao original, que discuti no Capítulo dois desta Tese, é memorável, e merece ser
aqui reproduzida:

O Hamlet pra mim é um puta babaca, se visto no lado social, e eu dei uma
dignidade para a morte dele. Antes de morrer, pegou as terras dele e deu para
aquele pessoal que trabalha. (...) Então o que eu fiz foi livrar a cara do Hamlet e
vocês ainda vêm aqui me encher o saco? (CANDEIAS apud REIS, 2010, p. 95).

Em clara ressignificação do duelo de espadas presente no ato V da peça


shakespeariana, que leva às mortes de Gertrudes, Laertes, Cláudio e do próprio Hamlet, na
película, ao final do duelo de pistolas, vemos a chegada de um personagem que representa
o Fortimbrás shakespeariano, curiosamente caracterizado por Candeias como tio de
Hamlet, em “O tio fica puto e chega na orelha dele e grita: filho da puta” (apud REIS,
2010, p. 94-95), que encontra e lê uma carta em que Omeleto relega a terra da fazenda para
aqueles que nela trabalham e nasceram, como pode ser conferido na figura abaixo.

Figura 8: A herança de Omeleto.

Sobre essa cena, Resende (2015, p. 05) apresenta a interessante inferência de que, a
partir do ato realizado por Fortimbrás de amassar e jogar no chão a carta de Omeleto, o
filme apresentaria uma construção circular, o que, de acordo com a autora, demonstraria
que o sistema latifundiário provavelmente se repetiria, agora nas mãos de Fortinbras, que
clama para si as terras. No entanto, no filme, após amassar e jogar a carta no chão,
Fortimbrás, aparentemente irritado, parece deixar a fazenda a cavalo juntamente com seu
séquito. Tal ação, a par do fato de vermos o corpo de Omeleto em um carro de bois puxado
pelos camponeses da fazenda, numa clara expansão (AMORIM, 2013b, p. 267) do texto
shakespeariano, que não apresenta o enterro do príncipe da Dinamarca, pode se contrapor à
131

hipótese levantada pela autora, representando o início de um novo ciclo para aqueles que
trabalham na terra e o fim do sistema latifundiário em vigor naquela fazenda.

Figura 9: A partida de Fortinbras e o enterro de Omeleto.

Teles (2012, n.p.) nos lembra que a mobilidade da população caipira e a condição
do sujeito marginalizado eram temas frequentes do cinema de Ozualdo Candeias. Nesse
sentido, como aponta a autora, a abordagem do diretor de personagens que viveram em
processos de transformação social e cultural, na condição de marginais, visa a provocar um
debate sobre os significados dessas mudanças, que buscavam a superação do que Candeias
considerava como características arcaicas da sociedade brasileira: sobretudo, a
desigualdade, a pobreza e a falta de desenvolvimento econômico. De fato,

A criação de Candeias contribuiu para o debate político e cultural daquele


momento e, sendo obra de arte, foi aqui tomada como um produto histórico,
enraizado em seu tempo, mas que também se mostrou ativa e atualizada por
questões do presente. Essa perspectiva, construída a partir da história social,
busca situar essa criação cultural no processo sócio-histórico sem explicá-la por
um contexto que lhe é exterior e existente a priori, mas considerando-se a
realidade construída na articulação entre conteúdo e forma nos filmes (TELES,
2012, n.p).

Em A Herança, além dos discursos sobre latifúndio e reforma agrária, e


considerando, como aponta Abreu (2006, p. 15), a imensa densidade e tensão dos temas
presentes na sociedade brasileira dos anos 1970, Candeias insere também outro debate em
voga no Brasil de então: a questão étnica.

O filme apresenta, dentre os vanguardismos acrescentados por seu diretor, a


presença de uma Ofélia negra: “Eu gosto da fita também porque acrescentei coisas,
vanguardismos. Botei a Ofélia negra.” (CANDEIAS apud REIS, 2010, p. 95). Por meio
132

dessa personagem e de outros a seu redor, como o irmão Laertes, Candeias coloca em cena
a discussão sobre a segregação e o preconceito étnico existentes na sociedade brasileira.
Ismail Xavier e Ipojuca Pontes (1986, p. 47) asseveram que o negro, no cinema nacional,
sempre foi utilizado no papel de serviçal, sobretudo porque nossa sociedade ainda aparecia,
na década de 1980, e ainda hoje aparece, como uma sociedade preconceituosa. João Carlos
Rodrigues (2011, p. 15) sinaliza que apenas na última década do século XX, cento e vinte
anos após a Abolição, “os negros começaram a ser lentamente absorvidos pela sociedade
de consumo e pelo sistema político”. Com efeito, era natural que um cineasta como
Candeias, que em suas películas procurava a abordagem da questão social, fosse
influenciado por discursos sobre racismo que circundavam o Brasil naquele momento.

Ofélia é retratada na película como pudica, de bons modos e humilde, sobretudo


por apresentar um constante olhar para o chão ao longo do desenvolvimento da história, e
Omeleto aparentemente a enxerga como sua namorada: "Ah!... Minha namorada!". Não é
claro o tom do relacionamento entre esses dois personagens, mas pode-se inferir a
concretização de relações sexuais entre Omeleto e Ofélia a partir de dois diferentes
indicadores: (1) em determinado momento da película, quando a moça sai para colher
flores, é agarrada à força por um Omeleto sem camisa, ao som incidental da tradicional
cantiga brasileira O cravo brigou com a rosa, o que é mais um indicativo do movimento de
devoração transcultural. Após isso, Ofélia parece ceder a Omeleto, seguindo-o; e (2)
Omeleto, ao provocar Polônio, diz algo no ouvido desse personagem e, em seguida, lemos
a legenda "... e não vai ter casamento...", o que pode indicar que o rapaz garantia ao pai de
Ofélia que sua filha se havia engajado em relações sexuais com ele. Na peça
shakespeariana, no entanto, em parte de uma canção entoada por Ofélia em seu estado de
loucura após a morte do pai, assassinado por Hamlet, “Ele ergueu-se e se vestiu, / Abriu a
porta do quarto, / Deixou entrar a menina, / A donzela Valentina, / Que donzela não
saiu”115, não há indicações claras de ato sexual ocorrido entre a moça e o personagem
principal do drama.

É interessante também ressaltar, como apontado por Resende (2015, p. 04), que nas
cenas entre Omeleto e Ofélia, a desarmonia em relação aos acordes sonoros apresentados
no filme de Candeias dá lugar à melodia da música Sertaneja, de Nelson Gonçalves, que

115
“Then up he rose and donned his clothes / And dupped the chamber door; / Let in the maid that out a maid
/ Never departed more.” (IV, v. 51-55)
133

conta a história do amor de um cantor por uma garota sertaneja, que chora quando escuta a
voz do amado. Desse modo, Candeias parece indicar alguma realidade no sentimento de
Omeleto em relação à Ofélia, algo não plenamente desenvolvido no filme, tendo em vista a
construção de um distanciamento emocional entre o público e um personagem
naturalmente apresentado como sarcástico e apático, como sinalizei anteriormente. Outro
motivo apresentado pelo diretor para a não plenitude do relacionamento entre Omeleto e
Ofélia é a etnia negra da moça: a partir da ideia de musa, que é um dos estereótipos com os
quais o cinema brasileiro normalmente constrói seus personagens negros (RODRIGUES,
2011, p. 45), Ofélia é parcialmente apresentada no roteiro como aparentemente respeitável
e pudica, e por isso não há apelos para o erotismo vulgar; ainda sim, a questão étnica é um
impedimento a ser considerado no filme brasileiro: diferentemente do que ocorre na peça,
quando Laertes aconselha Ofélia a se manter afastada de Hamlet, pelo fato de o rapaz ser
um príncipe, um nobre, como representado no excerto do texto shakespeariano reproduzido
abaixo,

Não penses nisso.


A natureza não se desenvolve
Apenas em volume; enquanto cresce,
O corpo, a alma e o espírito também se estendem,
Crescem também. Talvez ele te ame
Agora, e não há mácula ou embuste
Que manche o seu desejo; mas, cuidado:
Ele é um nobre, e assim sua vontade
Não lhe pertence, mas à sua estirpe.116

No filme, ao discutir com a irmã, Laertes aponta e esfrega sua pele, em clara alusão
à sua etnia negra, gesto completado com os falares, em legenda, “...além do mais, é o
patrão.../...gente assim não pode gostar de gente como a gente...”. Se na peça
shakespeariana a oposição entre monárquico e não-monárquico impedia o relacionamento,
uma vez que a vontade de Hamlet “Não lhe pertence, mas à sua estirpe”, isto é, ao trono,
na película, é a posição social dentro do sistema latifundiário, a oposição entre patrão-
empregado, acrescida da questão étnica, uma vez que Omeleto é representado como
branco, que dão tonalidade à segregação no contexto brasileiro, no movimento de
devoração transcultural desempenhado por Candeias, como atesta a figura abaixo.

116
“Think it no more. / For nature crescent does not grow alone / In thews and bulk, but as this temple waxes
/ The inward service of the mind and soul / Grows wide withal. Perhaps he loves you now, / And now no soil
nor cautel doth besmirch / The virtue of his will ; but you must fear, / His greatness weighed, his will is not
his own, / For he himself is subject to his birth” (I. iii. 10-18).
134

Figura 10: A questão étnica em A Herança.

Por fim, também é interessante ressaltar que, na película de Ozualdo Candeias, a


falta de diálogos falados – apenas dois – e a escassez de diálogos escritos pode atestar a
presença do que T. S. Eliot chamava de correlato objetivo, isto é, de ações que permitem a
construção das emoções de Omeleto, sem exagero da expressão verbal; falha, de acordo
com Eliot ([1919] 2015), fortemente em vigor na peça shakespeariana. Ainda em relação à
fortuna crítica da obra do bardo que apresentei no Capítulo um desta Tese, apesar de duas
passagens que ligeiramente parecem indicar uma certa aproximação sexual entre Omeleto
e Gertrudes, (1) a fala transcrita em legenda, na primeira parte da película, onde Omeleto
afirma “Nem os anos, e... nem a morte de meu pai... É ainda uma bela mulher...”, e (2) a
cena em que o rapaz, ao ser mandado pelo tio até a casa de Manelão, que deveria
assassiná-lo, em referência a viagem de Hamlet à Inglaterra no texto shakespeariano, vê o
rosto da mãe em uma prostituta, não encontramos provas mais concretas que ligariam o
filme de Candeias às interpretações psicanalíticas de Freud ([1900] 2001) e Jones ([1949]
1976), e, por consequência, a filmes como o dirigido por Lawrence Oliver (Hamlet, 1948).
A partir do movimento de devoração transcultural realizado, A Herança parece dialogar
mais, como sinalizei, com a crítica política da peça e com filmes como aqueles realizados
por Kurosawa (Homem mau dorme bem, 1960) e Kozintsev (Hamlet, 1964), que
encontram em Hamlet motivações para falar sobre seu próprio contexto, sobre sua própria
realidade sociopolítica.

A Herança não foi, entretanto, a única adaptação do enredo do Hamlet


shakespeariano a chegar no Brasil na década de 1970. Um ano depois, Mario Kuperman
135

lançava outra adaptação da peça para os cinemas brasileiros, que é a segunda, juntamente
com o filme de Candeias, das duas únicas adaptações dessa peça existentes na
cinematografia nacional: o filme O Jogo da Vida e da Morte, que desempenha também,
como sinalizarei na próxima seção, sua leitura antropofágica da história do príncipe
dinamarquês ao transpô-la para terras estrangeiras, para terras brasileiras.

3.2. Hamlet no tráfico: uma leitura de O Jogo da Vida e Da Morte, de Kuperman

O escritor original não é aquele que concebe uma


história nova – não existem histórias novas, na verdade
–, mas aquele que conta uma das histórias mais
famosas do mundo de uma maneira nova.
(FRYE, 1999, p. 46)

As adaptações radicais, que geralmente tomam grandes


liberdades com o texto fonte, tratando-o como um
pretexto para plasmar uma obra nova, operam
substanciais mudanças que incluem inserções e
expansões, cortes e múltiplas modificações.
(CAMATI, 2015, p. 154)

A coincidência de duas adaptações de Hamlet sendo lançadas na mesma década é


apenas aparente: Bernardet (2009, p. 216) nos conta que, no início dos anos 1970, o então
Ministério da Educação e Cultura instituiu no Brasil uma espécie de prêmio que agraciaria
filmes adaptados de obras literárias. Esse prêmio teria incentivado a corrida dos diretores
aos romances. Na verdade, a prática de adaptar obras literárias para o cinema já era
concretizada no Brasil do período, como atestam produções adaptadas a partir de romances
como Iracema e O Guarani, em circulação em território nacional desde a década de 1920.
No entanto, “depois a coisa assumiu um certo caráter compulsivo” (BERNARDET, 2009,
p. 216). Segundo o autor, essa decisão do governo ocorre durante a Ditadura Militar,
quando se julgava oportuno controlar a temática e as colocações críticas de filmes
produzidos por diretores brasileiros. Com efeito, esperava-se o enfraquecimento do
Cinema Novo, que trazia à tona discursos considerados perigosos pelos governantes, e da
pornochanchada, que, apesar dos bons resultados comerciais, poderia trazer uma imagem
negativa do Brasil: “a imagem de um brasileiro chulo obcecado por sexo” (2009, p. 216-
217). Nesse contexto, na
136

mentalidade cultural das ‘autoridades competentes’, a concepção tradicional de


cultura conforme letrados e acadêmicos, levaram à literatura. O cinema ficaria,
assim, atrelado à literatura, e o prestígio de grandes romancistas e de grandes
romances poderia então ser transferido para o cinema. (...) [Ademais] A manobra
governamental era claríssima: recuperação de um verniz cultural do tipo
museológico, sem ferir a ideologia no poder (BERNARDET, 2009, p. 217).

Apesar de não se poder asseverar que o prêmio instituído pelo Ministério da


Educação e Cultura tenha diretamente incentivado a adaptação de Hamlet em O Jogo da
Vida e da Morte117, de Mario Kuperman, é possível afirmar, com certa assertividade, que
discursos sobre a prática de adaptação eram constantemente ventilados na esfera da
produção cinematográfica da época, o que pode ter indiretamente influenciado o trabalho
de Kuperman, e do próprio Candeias. No entanto, diferentemente do apontado por
Bernardet (2009, p. 217), não enxergo o trabalho de adaptação como um trabalho mais
fácil, cabendo ao roteirista apenas “a tarefa de cortar aqui, cortar ali, fazer ou adaptar
diálogos” (BERNARDET, 2009, p. 217), mas como um trabalho criativo
multidimensional, que permitia ao cinema da época, e também ao cinema contemporâneo,
o falar sobre o próprio tempo, sobre a própria época, a partir, muitas vezes, de olhares
outros (cf. Capítulo dois).

O Jogo da Vida e da Morte ilustra bem essa potencialidade, que aqui chamo de
devoração transcultural, do trabalho adaptativo. O famoso texto shakespeariano Hamlet é
transferido para o subúrbio, no contexto do tráfico de drogas, em um distrito pobre da
cidade de São Paulo. A Dinamarca da peça elisabetana é, desse modo, ressignificada
transculturalmente quando o diretor realoca o ambiente da narrativa para um espaço
tipicamente brasileiro: comunidades de tráfico nos arredores de grandes cidades do país.
Desse modo, o filme em questão, assim como a produção de Candeias, trabalha com o
princípio da equivalência, buscando, de acordo com Silva (2013, p. 308), “no mundo
histórico que pretendem retratar, caracteres, instituições e situações que se assemelhem à
ordem social presente em Hamlet”.

117
É interessante notar que, Foucault (1984, p. 25), em A História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres,
refere-se à ideia de "Jogo da Vida e da Morte" em relação com "o outro sexo, com a questão da esposa como
parceira privilegiada, no jogo entre a instituição familiar e o vínculo que ela cria; relação com o seu próprio
sexo, com a questão dos parceiros que nele se pode escolher, e com o problema do ajustamento entre papéis
sociais e papéis sexuais; finalmente, relação com a verdade, onde se coloca a questão das condições
espirituais que permitem ter acesso à sabedoria.", o que, como demonstro ao longo dessa leitura do filme, em
muito refletem o tom dado à película.
137

Figura 11: Comunidade onde a história se passa.

Nesse novo contexto, algumas mudanças foram efetuadas por Kuperman no


processo de readequação da peça para o cinema: em especial, o diretor, apesar de manter
quase todos os nomes dados por Shakespeare aos personagens principais, mesmo que em
tradução – Claudius/Cláudio, Polonius/Polônio etc. –, modifica substancialmente o nome
do personagem que dá nome a peça do bardo que, em sua película, se chama João, um
nome bastante popular no Brasil. Aqui, João é, como o Hamlet do drama shakespeariano, o
personagem central da trama, e o seu ponto de vista tem a tarefa de mediar a construção da
mise-em-scène por meio da aplicação de técnicas diversas: planos ponto de vista,
ocularização direta etc., que visam a acentuar a perspectiva da história como aquela
relacionada a esse personagem (SILVA, 2013, p. 310).

Além de João, apenas dois outros personagens secundários têm seus nomes
modificados: os amigos de Hamlet, Guildenstern e Rosencrantz, que, no filme, são
chamados de Tostão e Rosa. Horatio, nessa película brasileira, se chama Horácio e,
curiosamente, é representado não como amigo de João, com idade semelhante, mas sim
como um adolescente, mais jovem que João, que não apresenta a maturidade ou o nível de
educação apresentados pelo personagem do texto de partida. Com efeito, diversas falas e
fatos que, na peça, são atribuídas a Horácio, no filme são enunciadas por Marcelo, que,
sendo mais velho, pode declamá-las compondo um quadro de maior maturidade e reflexão.
138

Figura 12: Horácio (à esquerda) e Marcelo (à direita).

Textualmente, em relação à tradução do texto shakespeariano realizada, percebem-


se, como principais procedimentos técnicos empregados, a omissão, ou seja, a eliminação
de partes do texto, o exotismo, que é a substituição de formas de falar no texto de partida
por gírias e dialetos da língua de chegada, e a adequação cultural ou situacional, isto é, “a
recriação de um contexto do texto de chegada mais familiar ou culturalmente mais
apropriado ao leitor,” (AMORIM, 2013b, 267). Em termos amplos, apesar de se manter
próximo à ordem dos fatos e episódios narrados na peça Hamlet, Kuperman, que também é
creditado como roteirista da película juntamente com o responsável pelos diálogos Mario
Alberto Prata, reconstrói o texto shakespeariano tendo em vista o movimento de devoração
transcultural desempenhado, (a) omitindo trechos, falas e até personagens, como, por
exemplo, Barnardo, que não contribuíram diretamente para a nova história contada; (b)
construindo as falas não raro a partir de regionalismos e gírias próprias da nova
ambientação dada a história: o subúrbio nos arredores de São Paulo; e (c) adequando o
texto à situação e às culturas de chegada, procurando abrasileirar passagens e situações do
original shakespeariano.

Observemos os trechos reproduzidos abaixo, conforme presentes no roteiro do


filme, O Jogo da Vida e da Morte, e no texto do bardo em inglês:

O Jogo da Vida e da Morte Texto apresentado em Inglês


Horácio: Você vai aprender a não me chamar de Marcellus: What, hás this thing appeared again
mentiroso. ‘Guenta mão aí... tonight?
Marcelo: Vai me dizer que ele apareceu hoje outra Barnardo: I have seen nothing.
vez. Marcellus: Horatio says ’tis but our fantasy,
Horácio: Hoje, não, ainda não apareceu, né. And will not let belief take hold of him
Marcelo: Você está imaginando coisas. Você está Touching this dreaded sight, twice seen of us.
me gozando. Therefore I have entreated him along
Horácio: Calma, né Marcelo. Pensa que é assim de With us to watch the minutes of this night,
139

cara? Calma pô. That if again this apparition come


He may approve our eyes, and speak to it.
Horatio: Tush, tush, ’ twill not appear.
Barnardo: Sit down awhile,
And let us once again assail your ears,
That are so fortified against our story,
What we two nights have seen (I. i. 21-33).

Quadro 4: “Você vai aprender a não me chamar de mentiroso.”

O Jogo da Vida e da Morte Texto apresentado em Inglês


Horácio: Oh, Marcelo. Fala com ele. Qualquer coisa, Marcellus: Thou art a scholar, speak to it Horatio. (I.
vâmo. i. 42).
Marcelo: Eu não. Por quê eu?
Horácio: ‘Cê tem ginásio.
Quadro 5: “Oh, Marcelo. Fala com ele.”

O Jogo da Vida e da Morte Texto apresentado em Inglês


João: Ah, se a gente pudesse evaporar. Dissolver, Hamlet: O that this too too solid flesh would melt,
sumir, sair por ai... sei lá. Evaporar que nem água. Thaw and resolve itself into a dew,
Dissolver. Bolas, que se dane. Um animal qualquer Or that the Everlasting had not fixed
teria sentido a morte do marido por mais tempo. His canon ’gainst self-slaughter. O God, God,
Outro dia e, agora, olha aí. Casada. Meu tio. O How weary, stale, flat and unprofitable
irmão do marido. E nem parece irmão. Inteirinho Seem to me all the uses of this world!
diferente como... Fie on’t, ah fie, ’tis an unweeded garden
That grows to seed, things rank and gross in nature
Possess it merely. That it would come to this!
But two months dead – nay not so much, not two –
So excellent a king, that was to this
Hyperion to a satyr, so loving to my mother
That he might not beteem the winds of heaven
Visit her face too roughly – heaven and earth,
Must I remember? why, she would hang on him
As if increase of appetite had grown
By what it fed on, and yet within a month –
Let me not think on’t; frailty, thy name is woman –
A little month, or ere those shoes were old
With which she followed my poor father’s body
Like Niobe, all tears, why she, even she –
O God, a beast that wants discourse of reason
Would have mourned longer – married with my
uncle,
My father’s brother, but no more like my father
Than I to Hercules – within a month,
Ere yet the salt of most unrighteous tears
Had left the flushing in her gallèd eyes,
She married. Oh most wicked speed, to post
With such dexterity to incestuous sheets.
It is not, nor it cannot come to good.
But break, my heart, for I must hold my tongue. (I.
ii. 129-159)
Quadro 6: “Ah, se a gente pudesse evaporar.”
140

No primeiro excerto, apresentado logo nas cenas iniciais do filme, e no qual Horácio leva
Marcelo para ver a incorporação do espírito do pai de João por Mãe Chiquinha, fato que
discutirei posteriormente nesta leitura, temos a omissão do personagem Barnado;
exotismos como acréscimos de regionalismos próprios a certa variante do português
brasileiro, como 'Guenta mão aí..., de cara, e a utilização de partículas com valor de
interjeição como né e pô; e um forte movimento de adequação situacional: aqui, ao
contrário do que ocorre no texto shakespeariano, é Marcelo que não acredita na aparição, e
cabe a Horácio comprovar o fato. Ainda na mesma cena entre esses dois personagens, o
segundo excerto apresenta, além de um procedimento de extensão tradutória (AMORIM,
2013b, p. 267), uma atualização não só situacional como também cultural, uma vez que,
no filme, Marcelo, e não Horácio, deve falar com o Fantasma, pois, como o Horácio da
película afirma, ele tem ginásio – segunda fase do Ensino Fundamental brasileiro –, grau
de escolaridade mais comum ao contexto nacional da época, em especial no subúrbio, do
que o Ensino Superior creditado a Horácio na peça shakespeariana.

Em relação à terceira fala destacada, a tradução do solilóquio O that this too too
solid flesh, percebe-se o uso significativo da omissão: o solilóquio passa de 30 linhas em
verso, para poucas linhas em prosa, além da eliminação de temas presentes no texto em
inglês como, por exemplo, a caracterização da Dinamarca como um jardim profanado, a
comparação entre o Rei Hamlet e Cláudio a partir de personagens da literatura e mitologia
clássica, e a acusação direta da prática do incesto. No filme, o solilóquio parece se
concentrar em uma certa crise existencial desempenhada pelo personagem João e no fato
de sua mãe ter se casado às pressas com seu tio, o qual, para o personagem, é inferior e
diferente de seu pai morto.

Outro trecho interessante de ser analisado é a tradução de uma parte do diálogo


entre Hamlet e Ofélia, conhecida na crítica shakespeariana como a cena do convento. No
filme, além de adequar a fala para uma variante coloquial do português brasileiro, tenta-se
reproduzir a dualidade de significado existente na palavra nunnery no inglês do início da
modernidade, que poderia sinalizar tanto convento quanto casa de prostituição, como
ilustrado no quadro abaixo, com os dizeres tal como representados no filme e em inglês, no
texto de partida.

O Jogo da Vida e da Morte Texto apresentado em Inglês


João: Agora só te resta fugir de casa. Por que não Hamlet: Get thee to a nunnery – why wouldst thou
141

experimenta um convento, hein? Talvez seja um be a breeder of sinners? I am myself indifferent


bom lugar. Pelo menos, você fica longe dos idiotas. honest, but yet I could accuse me of such things, that
Como eu, por exemplo! Acha ruim a ideia de um it were better my mother had not borne me. I am
convento? Então vai pra zona! Vai pôr pra render very proud, revengeful, ambitious, with more
isso ai. Bem longe de mim! offences at my beck than I have thoughts to put them
in, imagination to give them shape, or time to act
them in. What should such fellows as I do crawling
between earth and heaven? We are arrant knaves all,
believe none of us. Go thy ways to a nunnery.
Where’s your father? (III. i. 119-126)
Quadro 7: “Agora só te resta fugir de casa.”

Apesar da readequação linguística efetuada no movimento de tradução do texto da peça


shakespeariana para o português, Mario Kuperman mantém, em seu filme, a estrutura
básica do enredo de Hamlet, talvez de maneira ainda mais próxima do que o ato efetuado
por Candeias em A Herança: apesar da omissão de passagens e de alguns personagens,
Kuperman mantém a história básica do príncipe que, após o assassinato de seu pai pelo tio
e o casamento deste com sua mãe, recebe a tarefa de se vingar pelo crime. Elementos como
a aparição do fantasma, a presença dos amigos Guildenstern e Rosencrantz, a suposta falsa
confusão mental, ainda que atenuada, de Hamlet, o relacionamento com Ofélia, o
assassinato de Polônio, a reflexão sobre formas de artes e o duelo final são mantidos,
mesmo que ressignificados, devorados culturalmente. O Jogo da Vida da Morte,
diferencialmente do que ocorre no filme de Candeias, evita expansões drásticas do texto, e
mantém a ordem dos acontecimentos tal como eles se sucedem na peça shakespeariana,
arriscando menos um retrabalho com o drama tendo em vista questões estéticas. Resende
(2015, p. 06) nos lembra, por exemplo, que tanto a cena do closet quando as cenas que
envolvem a loucura de Ofélia no texto dramático foram quase “literalmente transpostas” na
adaptação de Kuperman.

No entanto, ao realocar o drama de Hamlet para o subúrbio brasileiro, o diretor


afasta-se do gênero tragédia de vingança e aproxima-se, cinematograficamente, do
repertório estilístico do filme policial hollywoodiano vigente nos anos 1940, popularmente
chamado de cinema noir, além de, como assevera Silva (2013, p. 309), se aproximar da
matriz expressionista do cinema alemão dos anos 1920, sobretudo “com o uso expressivo
da fotografia em preto e branco, com ênfase no jogo de claro e escuro, que cria volumes
para a composição do quadro, além, é claro, da trama de investigação sobre a verdade em
torno do assassinato”, nesse caso, do assassinato do pai de João. Nas cenas representadas
na figura abaixo, pode-se perceber, por exemplo, o uso particular, com alto contraste, que
142

Kuperman faz do preto e branco, numa cena de diálogo entre Cláudio, Gertrudes e Polônio,
e a divergência entre claro e escuro, que cria um tom de suspense na cena de encontro de
João com a vidente Mãe Chiquinha.

Figura 13: Influências do cinema policial americano e expressionista alemão.

Em relação à última cena, é interessante observar o movimento de devoração


transcultural efetuado pelo diretor. No filme de Kuperman, o fantasma do pai de João não
aparece personificado, mas sim incorporado numa médium - a mãe de santo chamada Mãe
Chiquinha. Relatos sobre incorporações espirituais são comuns em certas regiões do
espaço sócio-histórico-cultural brasileiro, que, além de abrigar a prática de religiões
espíritas, também abriga a prática de religiões africanas como a umbanda e o candomblé.
Nesse sentindo, discordo de Resende (2015, p. 06) quando a autora afirma que a consulta a
médiuns é comum no Brasil, “especialmente entre pessoas menos escolarizadas” 118, uma
vez que não enxergo um laço direto entre religião e escolarização. Não é possível, no
entanto, localizar Mãe Chiquinha em nenhuma vertente religiosa específica, pelo fato de
que, em O Jogo da Vida e da Morte, pouco nos ser apresentado sobre essa personagem,
que só figura na narrativa quando incorporada pelo pai de João. Ademais, é necessário
afirmar que, ao contrário do apontado por Rodrigues (2011, p. 98), que afirma que muitas
vezes essas religiões são apresentadas em filmes como algo exótico, percebe-se, no filme
de Kuperman, que a mediunidade é apresentada como traço daquilo que constitui a cultura
brasileira.

Além da questão religiosa, outro traço que figura em O Jogo da Vida e da Morte,
de modo semelhante ao apresentado por Candeias em A Herança, é a presença de uma
Ofélia negra. No entanto, no filme de Kuperman, essa personagem é construída como

118
“(…) especially among less educated people…”
143

altamente sexualizada, aparentemente a partir do estereótipo da mulata boazuda


(Rodrigues, 2011, p. 45), uma vez que é representada com base nas ideias de vaidade, já
que ela usa, durante grande parte da película, uma peruca lisa, comprida, e desejo sexual,
porque Ofélia, aqui, agarra João e procura engajar-se com ele em um ato sexual a céu
aberto, logo após o encontro de João com Mãe Chiquinha. Além disso, a personagem é
apresentada como dependente química, dependência essa incentivada por Cláudio, que
fornece drogas à moça, e esse fato traz, como veremos posteriormente, uma das temáticas
sociais mais fortemente empregadas no filme.

Figura 14: Representações de Ofélia.

É importante sinalizar que João, enquanto rola com a moça pelo chão da
comunidade, enxerga, ao olhar pra ela, a imagem de uma serpente em posição de ataque.
Dessa forma, Kuperman parece construir uma relação entre o desprezo que o personagem
começa a demonstrar por Ofélia, que culmina em um tapa que João dá no rosto da moça,
findando a relação carnal, e a cobra que havia sido falsamente acusada de picar e matar seu
pai. Também é interessante a ideia construída pelo diretor de que a morte do pai de Ofélia
pelas mãos de João a levou a experimentar drogas injetáveis, mais fortes do que a maconha
que a personagem fumava anteriormente. O uso dessas drogas funciona, no filme, como
144

um atenuante da justificativa da loucura da moça, que, após injetar em si mesma alguma


espécie de alucinógeno, aparece sem a peruca que usava durante todo o filme frente a
Gertrudes e Cláudio, com o olhar perdido, cantando músicas folclóricas brasileiras – “O
anel que tu me deste era vidro e se quebrou” – e enunciando sentenças sem sentido
aparente.

Entretanto, ao apresentar Ofélia como uma personagem negra e dependente


química, Kuperman, não explora a discussão étnica em voga no Brasil de então, nem
aprofunda a ideia da dependência química. Não há, no filme, qualquer menção à etnia de
Ofélia ou de traços que a distinguiriam de outros personagens, assim como não há uma
problematização da relação entre as drogas e a etnia negra, historicamente constituída no
Brasil como etnia à qual pertence grande parte das classes C, D e E brasileiras e, portanto,
estaria mais suscetível ao uso de entorpecentes. É importante ressaltar, porém, que a não
diferenciação e problematização por parte do diretor pode ter se dado tendo em vista a
nova ambientação da história shakespeariana, uma vez que grande parte da população de
comunidades brasileiras pertence à etnia negra, não fazendo sentido a diferenciação da
personagem em relação a outros que habitavam o mesmo ambiente, como, por exemplo,
Horácio, também representado por um ator negro. No entanto, também é necessário
considerar que a família que aparentemente tem o controle da comunidade, composta de
Cláudio, Gertrudes e João, é representada na película como branca, o que serve para
reafirmar no filme a estratificação social e o lugar de negros e brancos na sociedade
brasileira de então.

Diferentemente de Ozualdo Candeias, Mario Kuperman não pode ser caracterizado


como um diretor de tradição ou renome na cinematografia nacional. O Jogo da Vida e da
Morte foi o único longa metragem de Kuperman, que, afora a direção de alguns curta-
metragens e a composição de roteiros, dedica-se, mais extensamente, à produção literária,
sobretudo de crônicas e contos. Todavia, mesmo não se filiando a movimento algum da
produção cinematográfica nacional da época, esse diretor imprime a sua película certas
opções fílmicas e características estéticas que merecem ser aqui examinadas e que, por
vezes, dialogam com as mais diferentes instâncias do fazer cinematográfico em voga no
país à época. A primeira dessas características envolve a prática, hoje em dia corriqueira,
de escalar para a produção cinematográfica um elenco de famosos tanto da TV quanto do
cinema e da música.
145

Para viver Gertrudes e Cláudio, respectivamente, Kuperman escalou Odete Lara,


atriz com larga experiência no cinema e nas novelas da TV Tupi, extinta emissora
televisiva, e Juca de Oliveira, famoso, na época, por seus papéis em novelas também da
TV Tupi, e que posteriormente se aperfeiçoaria na interpretação de papéis shakespearianos
no teatro, incluindo um recente e duvidoso Rei Lear (2014) em formato de monólogo e
com um final feliz. Escalou também o famoso – à época – comediante Chocolate para o
papel de Polônio. No entanto, apesar da escalação de artistas com background televisivo, o
filme não se assemelha à estética das novelas do período, nem ao estilo de atuação
construído na tela pequena. Como bem apontam Xavier e Pontes (1986, p. 53), “há muita
diferença na maneira como as pessoas trabalham num lugar e noutro”, diferença essa
notada não apenas no método de trabalho, mas também nos efeitos da atuação.

Contando com nomes já conhecidos do grande público, Kuperman escala também a


inexperiente Yo Braga e o inexpressivo Walter Cruz para viver os papéis, respectivamente,
de Ofélia e João. Braga, apesar da inexperiência e dos poucos exageros na personificação
sexualizada de Ofélia, parece entender bem as nuances e mudanças de estado da
personagem. Cruz, por sua vez, não consegue imprimir claramente o conflito interior do
protagonista. Odete Lara constrói sua Gertrudes como uma personagem fria, distante, na
tentativa de sinalizar que, apesar de sua atração por Cláudio, ela também se sente perdida
em relação aos acontecimentos ligados ao filho. Quando comparada ao Cláudio
personificado por Juca de Oliveira, temos em Gertrudes uma mulher privada, resguardada,
em claro contraste com a personalidade fanfarrona e expansiva do novo marido.
Curiosamente, já que o filme investe na atuação de atores de TV, o momento
metarreflexivo da película, relacionado à metateatralidade apontada pela crítica na peça
shakespeariana (BLOOM, [2003] 2004; SÜSSEKIND, 2008), é aquele no qual João,
aparentemente em um estúdio de TV, olhando para monitores, reflete sobre o papel do
artista televisivo, que facilmente chora e finge ao interpretar seu papel, como todos ao seu
redor parecem fazer.
146

Figura 15: João e a reflexão sobre o fazer artístico.

Esteticamente, Kuperman aposta na visualidade da película para construir


significados sobre características latentes na peça shakespeariana. A ideia de podridão
relacionada ao estado da Dinamarca no drama shakespeariano – “Algo está podre aqui na
Dinamarca.”119 – aqui se faz presente por meio dos signos visuais, uma vez que a
comunidade na qual a história é ambientada é cercada por uma espécie de depósito de lixo,
que apresenta as mais diversas caracterizações do abjeto, representando, inclusive, a ideia
de um contexto em declínio figurativizado por meio da fumaça que sobe do lixo em
decomposição.

Na cena que na película se refere ao famoso solilóquio To be or not to be, também é


perceptível o trabalho do diretor com o signo visual: a primeira parte do solilóquio, “Ser ou
não...”, é encontrada por João quando o personagem mexe no lixo com um pedaço de vara.
Com efeito, a impressão inicial que se dá é, como apontado por Resende (2015, p. 06), a
reflexão sobre a miséria da condição humana num mundo dominado por estruturas de
poder. Vemos também na película um gato moribundo sendo atacado por ratos, o que
incita no personagem a reflexão sobre a possibilidade de luta, em uma cena que, montada a
partir de cortes rápidos e da contraposição de dois planos que aparentemente não têm
conexão entre si, em Faux Raccord, constroem, nesse momento, certo desnorteamento por
parte de João.

119
“Something is rotten in the state of Denmark” (I. v. 90)
147

Figura 16: O solilóquio To be or not to be.

A tradução apresentada em O Jogo da Vida e da Morte para essa passagem do texto


shakespeariano também é significativa, por apontar em João dúvidas sobre a aceitação ou a
reação contra a violência que o circunda, reflexões sobre o valor da vida, além de,
diretamente, responder à pergunta que tem guiado a crítica literária em sua análise do
drama Hamlet pelos últimos três séculos: por que Hamlet posterga o ato da vingança?
Como perceptível no texto do filme brasileiro, reproduzido abaixo, o adiamento se deve ao
fato de que o personagem “pensa, pensa e fica covarde. Não se arrisca e deixa de fazer o
que tem que ser feito”. Com efeito, o filme de Kuperman dialoga, de alguma forma, com
críticos como Coleridge ([1818/1827] 1988) e Schlegel ([1809-11] 1988), que enxergavam
em Hamlet intensa atividade intelectual, o que, por consequência, o impedia de agir. Sobre
o trecho, é interessante ressaltar ainda que, apesar de mais extenso do que o apresentado no
filme de Candeias, como demonstrei na seção anterior, o solilóquio é também construído a
partir de procedimentos de tradução como omissão e adequação situacional e cultural
(AMORIM, 2013b, p. 267), no movimento de devoração transcultural efetuado pelo
roteirista e diretor ao trazer Hamlet para terras estrangeiras.

O Jogo da Vida e da Morte Texto apresentado em Inglês


João: Ser ou não ser. É essa a questão. Será que é Hamlet: To be, or not to be, that is the question -
mais certo aceitar a violência ou reagir e acabar com Whether 'tis nobler in the mind to suffer
tudo isso. Morrer, dormir, sonhar. Ah, a morte. Será The slings and arrows of outrageous fortune,
pior que a porcaria dessa vida? Se não, quem ia Or to take arms against a sea of troubles,
aguentar a covardia dos mais fortes? As tristezas do And by opposing end them. To die, to sleep -
amor. A injustiça. As leis. O coice dos inúteis. No more; and by a sleep to say we end
Morrer. As vezes, é melhor não arriscar o inferno e The heart-ache and the thousand natural shocks
viver. A gente pensa, pensa e fica covarde. Não se That flesh is heir to - 'tis a consummation
arrisca e deixa de fazer o que tem que ser feito. Devoutly to be wished. To die, to sleep -
To sleep, perchance to dream. Ay, there's the rub,
For in that sleep of death what dreams may come,
When we have shuffled off this mortal coil,
148

Must give us pause. There's the respect


That makes calamity of so long life,
For who would bear the whips and scorns of time,
Th'oppressor's wrong, the proud man's contumely,
The pangs of disprized love, the law's delay,
The insolence of office, and the spurns
That patient merit of th'unworthy takes,
When he himself might his quietus make 75
With a bare bodkin? Who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,
The undiscovered country from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will, 80
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all,
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o'er with the pale cast of thought, 85
And enterprises of great pitch and moment
With this regard their currents turn awry
And lose the name of action. Soft you now,
The fair Ophelia. - Nymph, in thy orisons
Be all my sins remembered. (III, i. 56-89).
Quadro 8: “Ser ou não ser.”

Outros solilóquios, como o O that this too too solid flesh, já analisado, também são
ressignificados no texto fílmico brasileiro sobretudo a partir da intercalação de voz off, de
monólogos diretos ou planos ponto de vista, nos quais a câmera assume o papel dos
personagens, que visam a auxiliar na construção das características subjetivas de João, o
Hamlet brasileiro da película de Mario Kuperman. Em relação à visualidade, é interessante
notar ainda a influência de filmes shakespearianos de Laurence Olivier, Akira Kurosawa e
Orson Welles, sobretudo, da montagem que este último realizou para Macbeth (Macbeth,
EUA, 1948), na construção da atmosfera sombria e noturna que permeia boa parte do
filme, bem como na estilização dos enquadramentos que, como na cena que se refere à
peça-dentro-da-peça do texto do bardo inglês que sinalizarei abaixo, criam sensações
psicológicas e físicas ligadas aos personagens da trama.

Para a construção da cena mencionada, a saber, o equivalente à peça-dentro-da-


peça shakespeariana, Kuperman novamente devorou transculturalmente o texto
shakespeariano, e, assim como Candeias, substituiu, no movimento de realocação cultural
do drama para terras brasileiras, a encenação de The murder of Gonzago ou The mousetrap
por um ato musicado. Entretanto, diferentemente do ocorrido em A Herança, que musicava
a história do assassinato do rei por meio de uma moda de vida, comum aos ambientes
sertanejos dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, em O Jogo da Vida e da Morte temos
149

o samba como ritmo escolhido. Com efeito, o diretor insere na trama não só um ritmo
brasileiro – comum, especialmente, no Sudeste do país –, mas um ritmo brasileiro de
origens africanas, uma vez que o samba originou-se da chamada semba, uma forma de
umbigada angolana, acentuando ainda mais o caráter transcultural de toda produção
artística.

No filme, João, após ser convidado por Rosa e Tostão para escutar um grupo de
samba tocar, decide convidar esse grupo para vir à comunidade entoar uma música, a
fictícia Arma Negra, com modificações e acréscimos realizados na letra por ele, na
tentativa de confirmar a culpa de Cláudio sobre o crime cometido. No momento da
apresentação do grupo, acompanhado pelas/os tradicionais passistas de uma escola de
samba paulistana convidada por Kuperman para participar do filme, João instrui o jovem
Horácio para que preste atenção especial nas reações de Cláudio, sobretudo quando no
samba se mencionasse o verso “veneno, veneno...”. É interessante notar que, ao ser
questionado por Cláudio sobre o nome da canção, João faz uma referência direta ao drama
shakespeariano, respondendo que seu título é A Ratoeira. Em outro acréscimo transcultural
efetuado por Kuperman na construção do personagem como fanfarrão, Cláudio, já bêbado
pela ingestão de altas doses de cachaça, ao escutar a história do assassinato do irmão e,
especialmente, o verso “veneno, veneno...”, passa mal, vomita, e a apresentação se dá por
encerrada, confirmando-se assim, para João, as palavras do espírito do pai declamadas por
Mãe Chiquinha.
150

Figura 17: A peça-dentro-da-peça transformada em samba.

Desta cena, decorrem as complicações já relatadas no texto shakespeariano. De


imediato, somos apresentados ao momento em que Hamlet na peça posterga, mais uma
vez, o ato de vingança contra o tio que se encontra em oração. No caso do filme de
Kuperman, Cláudio é retratado deitado, em sua cama, em uma mistura de febre e
embriaguês, quando começa a recitar trechos de uma reza, em repetição a um evangélico
que passa na frente de sua casa declamando, em voz alta, orações ao Senhor, em outra
adição típica da cultura brasileira. João entra no quarto do tio e, ao vê-lo em estado febril,
pega a arma que Cláudio guarda no criado-mudo e retira todas as balas desse objeto, menos
uma, como em um jogo de roleta russa. Entretanto, ao refletir, João decide que a vingança
deveria estar à altura do crime cometido e retira a bala restante do tambor da arma. Desse
modo, este adiamento, diferentemente do que ocorre no texto shakespeariano, não é
motivado por questões religiosas isoladas, mas, sobretudo, por um aparente desejo por
parte de João de fazer seu tio sofrer mais do que o que seria possível com um tiro de arma
de fogo.

Algumas cenas após, o filme nos apresenta a cena do enterro da Ofélia, decorrente
do assassinato de Polônio por João e o posterior suicídio da moça. É interessante apontar
151

que, apesar de não propriamente discutir diretamente a divisão social de classes ao longo
do filme, mesmo quando este visualmente apresenta a ideia de segregação e estratificação,
como já sinalizei, Kuperman mantém, na cena do enterro, a discussão entre os coveiros
que, como aponta Kiernan (1996, p. 76), traz à tona discursos que se relacionam à ideia de
luta de classes marxista, como demonstrado pelo trecho abaixo, na versão de O Jogo da
Vida e da Morte e no texto de partida em inglês.

O Jogo da Vida e da Morte Texto apresentado em Inglês


Coveiro 1: Ei, olha! Diz aí! Mêmo se morreu porque Clown: Is she to be buried in Christian burial, when
quis pode ser enterrado, é? she willfully seeks her own salvation?
Coveiro 2: A água está aqui, certo? Eu vou, entro e Other: I tell thee she is, therefore make her grave
me afogo. Está certo? Ah... A verdade é que os straight. The crowner hath sat on her, and finds it
graúdo sempre encontram um jeito de ter um enterro Christian burial.
cristão. Mesmo que se enforquem. Clown: How can that be, unless she drowned herself
in her own defence?
Other: Why, ’ tis found so.
Clown: It must be se offendendo, it cannot be else.
For here lies the point: if I drown myself wittingly, it
argues an act, and an act hath three branches – it is
to act, to do, to perform. Argal, she drowned herself
wittingly.
Other: Nay, but hear you goodman delver –
Clown: Give me leave. Here lies the water – good.
Here stands the man – good. If the man go to this
water and drown himself, it is will he, nill he, he
goes – mark you that. But if the water come to him,
and drown him, he drowns not himself. Argal, he
that is not guilty of his own death shortens not his
own life.
Other: But is this law?
Clown: Ay marry is’t, crowner’s quest law.
Other: Will you ha’ the truth on’t? If this had not
been a gentlewoman, she should have been buried
out o’ Christian burial.
Clown: Why, there thou sayst – and the more pity
that great folk should have countenance in this world
to drown or hang themselves more than their even-
Christen. Come, my spade; there is no ancient
gentlemen but gardeners, ditchers, and gravemakers;
they hold up Adam’s profession (V. i. 1-26)
Quadro 9: “Ei, olha! Diz aí!”

Na versão em português, além da adoção de uma variante popular da língua


atestada pelo uso de expressões como mêmo e os graúdo, temos a omissão (AMORIM,
2013b, p. 267) de grande parte do diálogo shakespeariano, que em muito reduz a
construção sagaz da conversa entre os coveiros. No entanto, o questionamento desses
personagens, retratados como figuras da classe popular, em relação ao ato do enterro de
Ofélia em terra cristã, por esta ser graúda é mantido. Além disso, no momento do enterro,
152

e reafirmando a questão social sinalizada no texto shakespeariano, Laertes pede ao padre


que entoe um réquiem para a irmã, mas o padre nega o pedido, afirmando que o máximo
que poderia fazer seria tocar o sino, e que isso só seria feito por conta do dinheiro pago à
igreja por Cláudio, uma vez que tais procedimentos cristãos são normalmente negados a
almas suicidas.

Figura 18: Cena entre os coveiros e conversa de Laertes com o Padre.

Ainda no cemitério, após o confronto inicial entre João e Laertes que tem lugar ao
lado da cova de Ofélia, Cláudio manda, como na peça shakespeariana, que convoquem
João para o duelo final. Na película brasileira, quem convoca João para o duelo é Osrico,
um homossexual representado como efeminado, em mais uma das ressignificações
efetuadas por Kuperman no movimento de devoração transcultural que efetua sobre a
peça. A retratação de Osrico como efeminado faz parte da estereotipação midiática,
corrente no período e ainda existente na sociedade contemporânea, do homossexual como
aquele que portaria características escandalosas, comumente associadas às mulheres. Nesse
sentido, J. F. Freire afirma que os estereótipos

atuam como uma forma de impor um sentido de organização ao mundo social; a


diferença básica, contudo, é que os estereótipos ambicionam impedir qualquer
flexibilidade de pensamento na apreensão, avaliação ou comunicação de uma
realidade ou alteridade, em prol da manutenção e da reprodução das relações de
poder, desigualdade e exploração; da justificação e da racionalização de
comportamentos hostis e, in extremis, letais (...) Estereótipos, por exemplo, sobre
a predisposição natural dos negros para atividades físicas (trabalhos braçais ou,
na melhor das hipóteses, esportes e dança), em detrimento de tarefas e ocupações
intelectuais, almejam explicar e justificar sua escassa presença nos níveis
superiores de ensino, em sociedades cuja ideologia oficial é a democracia racial
(2004, p. 47).

Novamente, Kuperman perde a chance, em seu filme, de problematizar essa questão


cara às políticas identitárias, uma clara adição ao texto shakespeariano, e reproduz o
153

estereótipo do homossexual efeminado, sem questioná-lo – lembrando que, como aponta


Regina Facchini (2016), o movimento da luta LGBT tem seus passos iniciais na década de
1970, podendo o diretor do filme estar ciente dos discursos pela igualdade que começavam
lentamente a circular na sociedade brasileira.

O duelo final mencionado também é constituído como parte do movimento de


devoração transcultural realizado, uma vez que, em vez de um duelo de espadas, Cláudio
propõem que as coisas se resolvam na porrada. No entanto, mais do que uma simples
briga de rua, Kuperman acrescenta acordes de berimbau e uma gingada inicial, por parte
dos lutadores, que faz referência à capoeira, dança-luta afro-brasileira, e substitui o vinho
envenenado do texto shakespeariano por um pouco de cerveja, bebida altamente
consumida no Brasil, servida em um copo americano, tradicionalmente encontrado nas
casas de famílias brasileiras. Além disso, é importante mencionar que, após a morte dos
personagens principais, não há a invasão da comunidade por Fortimbrás que, nesse filme
brasileiro, aparece, em rápida passagem e não corporalmente, como um delegado que, após
pedido de Cláudio, é transferido para outra localidade por ameaçar os negócios locais.

Figura 19: O duelo final.

Podemos dizer que a principal contribuição de Mário Kuperman à devoração


transcultural conferida ao texto shakespeariano é a adição da ideia de tráfico de drogas à
narrativa. O pai de João era, na película, o comandante do tráfico de drogas na
comunidade, cargo esse que é tomado por Cláudio após o assassinato. O dinheiro que
permite à família de João se destacar e controlar aos outros personagens na comunidade é,
então, proveniente da venda de drogas. Nesse contexto, Ofélia talvez seja a personagem
mais afetada pela atmosfera do tráfico, uma vez que é a única personagem do enredo
construída como abertamente dependente. A opção pelo tratamento desse assunto no filme
154

pode ter sido motivada pela circulação de discursos sobre as drogas em território global.
Rosa Del Olmo (apud ZACCONE, 2007, p. 86) nos lembra, por exemplo, que, no início da
década de 1960, uma série de acontecimentos sociais e políticos, ocorridos tanto em escala
nacional quanto internacional, promoveu grandes transformações na política de combate às
drogas. Além disso, esses anos deram início aos movimentos de rebeldia juvenil, à
chamada contracultura e aos principais movimentos de protestos políticos - incluindo-se aí
grupos de rebeliões dos negros e os movimentos guerrilheiros na América Latina. Nos anos
1960, também surgem as drogas psicodélicas, entre elas o LSD, e é flagrante o aumento do
consumo de maconha entre trabalhadores e jovens das classes média e alta. Com efeito,

O problema da droga se apresentava como uma `luta entre o bem e o mal’,


continuando o estereótipo moral, com o qual a droga adquire perfis de 'demônio’;
mas sua tipologia se tornaria mais difusa e aterradora, criando-se o pânico devido
aos `vampiros’ que estavam atacando tantos `filhos de boa família’. Os culpados
tinham de estar fora do consenso e ser considerados `corruptores’, daí o fato do
discurso jurídico enfatizar na época o estereótipo criminoso, para determinar as
responsabilidades; sobretudo o escalão terminal, o pequeno distribuidor, seria
visto como o incitador ao consumo, o chamado pusher ou revendedor de rua.
Este indivíduo geralmente provinha dos guetos, razão pela qual era fácil
qualificá-lo como 'delinqüente’. (DEL OLMO apud ZACCONE, 2007, p.87).

Especificamente no Brasil, a questão das drogas é explicitamente mencionada pela


legislação no Decreto Lei 159, de 1967, que dispunha sobre “as substâncias capazes de
determinar dependência física ou psíquica...” (BRASIL, 1967). Com a promulgação do Ato
Institucional nº 5, o famoso AI-5, na Ditadura Militar, todavia, há uma substancial
fortificação da política de repressão às drogas. No entanto, o ano de 1971 marca-se como
aquele em que o Brasil definitivamente construiu uma política de repressão anti-drogas por
meio da lei 5.726/71, que, apesar de deixar de considerar o dependente como criminoso,
não diferenciava o usuário eventual do traficante, ao dispor “medidas preventivas e
repressivas ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência
física ou psíquica...” (BRASIL, 1971).

Com efeito, é possível supor que Mário Kuperman, como cidadão brasileiro, foi de
algum modo atingido pelos discursos sobre a questão da droga ventilados no país de então.
Apesar disso, novamente o diretor não apresentou uma problematização direta da questão,
apenas utilizando o tráfico como elemento constituinte da ambientação da película. No
entanto, a abordagem da questão, mesmo não problematizadora, permite que consideremos
O Jogo da Vida e da Morte como um filme que faz o texto shakespeariano, a peça Hamlet,
dialogar com “o problema das estruturas sociais do Brasil (...) com a sugestão de que não
155

existe caminho de saída para o pobre, que é dominado em todos os níveis” (RESENDE,
2015, p. 07), uma vez que, na narrativa, o tráfico atinge, como já sinalizei, uma
comunidade carente aos arredores da cidade de São Paulo. Além disso, essa referência a
um dos problemas da realidade social e cultural brasileira poderia permitir aos
espectadores da época que se relacionassem com a história contada,

Não necessariamente por oferecer um ponto de vista crítico sobre essa realidade,
mesmo quando tentativa de imitação da produção estrangeira, mesmo quando a
realidade brasileira apresentada pelo filme está obviamente deturpada, esse filme
oferece uma determinada imagem dessa sociedade (BERNARDET, 2009, p. 31).

Em relação à fortuna crítica shakespeariana, percebe-se, no filme de Kuperman,


uma certa filiação, como sinalizado, às leituras políticas da peça (KIERNAN, 1996;
FITZMAURICE, 2009; GHIRARDI, 2011), pelo fato de o diretor tonar o problema de
Hamlet / João mais relacionado a questões contextuais que emocionais, salvo as claras
afirmações (a) em relação à duvida sobre a autoria do ato de assassinato cometido, que leva
João a pedir a entoação do samba para medir as reações de Cláudio, e (b) em relação à
covardia que poderia impedi-lo de realizar o ato de vingança, no solilóquio To be or not to
be, que relacionariam a montagem a leituras que enfocam nas questões do caráter e da
intelectualidade, respectivamente, presentes na peça. Desse modo, mesmo sem realizar
qualquer intervenção crítica mais direta sobre a realidade social brasileira, ao abordar as
temáticas discutidas ao longo desse capítulo – etnia, sexualidade, estratificação social,
drogas etc. –, O Jogo da Vida e da Morte se aproxima mais de filmes que apostam na trato
com temas políticos, como os dirigidos por Kurosawa (Homem mau dorme bem, 1960),
Kozintsev (Hamlet, 1964) e Almereyda (Hamlet, 2000) – cf. Capítulo 1 –, do que de
adaptações que apontem para significados psicanalíticos do drama shakespeariano, como
ocorre no Hamlet (1948) de Laurence Olivier; apesar de sinalizar uma possível atração da
mãe pelo filho na representação da cena do closet, como demonstrado na figura abaixo, na
qual Gertrudes acaricia de modo sensual a mão do filho, ao final da película, é a cidade de
São Paulo, a partir do horizonte criado pelo depósito de lixo nos estornos da comunidade,
que encerra o filme.
156

Figura 20: A sensualidade de Gertrudes e o horizonte de São Paulo em meio ao lixão.

Por fim, é interessante lembrar também que o tom político da adaptação já era
indicado na primeira cena da película, quando somos apresentados a um espaço teatral,
prestes a fechar as portas, que exibe uma montagem de Hamlet – mais uma vez, em ligação
direta com o texto shakespeariano. Nesse espaço, vemos o cartaz da peça, que apresenta o
drama com os dizeres Hamlet: a corrupção no reino da Dinamarca. Desse modo, o diretor
parece deixar claro, desde a primeira cena, o direcionamento que, mesmo de forma um
tanto quanto sinuosa, pretendeu dar ao seu filme.
157

Considerações Finais – tecendo alguns resultados...

Ser ou não ser... Minh’alma, eis o fatal problema!


Que deves tu fazer, nesta angústia suprema,
Alma forte? Cair, degringolar no abismo?
Ou bramir, ou lutar contra o federalismo?
Morrer, dormir... dormir... ser deposto... mais nada!
Oh! a deposição é o patamar da escada...
Ser deposto! Rolar por este abismo, às tontas...
(Depois de Longa Meditação)
Morrer, dormir... Dormir? Sonhar talvez! Que sonho?
Que sonho? A reeleição!
(Nova meditação)
Se os batalhões disponho
Com jeito, e os afeiçoo às ambições que sinto,
Venço... E esta é a opinião do Moreira Pinto!
(Cai numa reflexão profunda)
Mas, enfim, para quê ser novamente eleito?
Se não fosse o terror... Se não fosse o respeito
Que a morte inspira, e horror desse sono profundo...
Ah! quem suportaria os flagelos do mundo;
O ódio de Juca Tigre; o armamento estragado;
O comércio que morre; a indústria que adormece;
A míngua da lavoura; o déficit que cresce
Horrivelmente, como a estéril tiririca;
A bravura do Mouro; o gênio do Oiticica...
Oh! quem resistiria a tanto, de alma forte,
Se não fosse o terror do ostracismo e da morte?
(Pausa)
O ostracismo, região triste e desconhecida,
Donde nenhum viajor jamais voltou à vida...
Ah! eis o que perturba... Ah! eis o que entibia
A coragem maior e a maior energia!
(Entre Ofélia)
Aí vem a bela Ofélia...
(Voltando-se para ela)
Anjo! quando rezares,
Nunca peças a Deus pelo Silva Tavares...

(BILAC, 2003, p. 126-131)

Assim como a epígrafe que abre a seção de Apresentação desta Tese, referente ao
trecho de Julío César, de William Shakespeare, sublinhado por Nelson Mandela em seu
período na prisão em Robben Island, a extensa epígrafe que abre esta seção de
Considerações Finais atesta que os escritos do dramaturgo inglês, quando relidos,
devorados transculturalmente, falam sobre nossos tempos, sobre quem somos e sobre
nosso contexto sociopolítico. O poema de Olavo Bilac composto em 1893, ao construir
uma caricatura do então presidente Floriano Peixoto, a partir da imagem do príncipe
158

dinamarquês Hamlet, que reflete sobre o direcionamento político que tomará, no Palácio
do Itamarati, com uma cópia da Constituição Brasileira nas mãos, atesta a potencialidade
da peça Hamlet, que, sendo constantemente devorada no contexto brasileiro, tem permitido
desde o século XIX a construção de sentidos sobre nossa vida política, sobre nossa
sociedade, através das lentes fornecidas pelos escritos do autor elisabetano.

A potencialidade dos escritos de Shakespeare de falar sobre nossos tempos, de


serem apropriados nos mais diferentes contextos históricos, ideológicos e geográficos, foi
o que motivou a construção desta Tese. Num mundo em que as palavras e versos de
Shakespeare são cada vez mais ventilados em diversos discursos que nos atingem – e nos
constituem – a cada instante, compreender as formas de ressignificação cultural de tais
discursos quando esses adentram em novas esferas discursivas, em novos territórios,
territórios estrangeiros, se torna tarefa essencial de qualquer estudioso de sua obra. Como
muitos autores apontam, quase tudo já foi dito sobre William Shakespeare, mas,
acrescento, muito ainda há a ser dito sobre a influência desse autor e de sua obra na
construção do imaginário artístico e cultural ao longo da história posterior à sua morte:
apenas para citar as artes mais populares, diversos textos do bardo foram – e
constantemente são – adaptados para o cinema, para a TV, para os quadrinhos, para
desenhos animados e até para brinquedos de parques temáticos.

Nesta Tese, nosso foco de atenção se voltou para a análise do cinema


shakespeariano. Filmes adaptados de obras do bardo surgem, a cada ano, desde 1899,
quando foi lançado Rei João (King John, Inglaterra, 1899), curta-metragem que, todo
filmado com uma câmera fixa, documentava a interpretação de Sir Herbert Beerbohm Tree
(1852 – 1917), um dos maiores atores da época, como o protagonista do drama. A partir
dessa obra seminal, centenas de filmes baseados nas obras do bardo estrearam nos mais
diferentes países, 1852 - 1917 falados nos mais diversos idiomas. A força dessas
adaptações chegou a fazer surgir, entre os críticos do cinema, o conceito filmes
shakespearianos, que, como um megagênero, agrupa as mais diferentes películas
produzidas a partir da adaptação de obras do dramaturgo elisabetano. A análise do cinema
shakespeariano, devido à sua abrangência e popularidade, pode, então, permitir a
compreensão não apenas de diferentes formas e modos de adaptação, mas, especialmente,
da maneira como se dá a dinâmica das relações culturais no processo de apropriação dos
159

enredos das peças do bardo, elisabetanas, em origem, mas presentes nas mais diferentes
culturas, nos mais diversos países.

Nesse contexto, a partir da análise dos filmes A Herança (1970), de Ozualdo


Candeias, e O Jogo da Vida e da Morte (1971), de Mario Kuperman, essa Tese buscou
responder às seguintes questões de pesquisa: (1) Como as culturas de produção e recepção
dos textos fílmicos modificaram, assimilando, restringindo, acrescentado ou reformulando,
as características que julgamos serem próprias à peça adaptada e a seu contexto inicial de
produção e recepção?; e (2) De que forma e até que ponto as adaptações elencadas para o
corpus da pesquisa refratam as cambiantes identidades culturais de seu contexto de
produção a partir de suas variantes históricas e nacionais? Além disso, no processo de
construção de respostas a essas questões, procurou-se também o alcance de dois diferentes
objetivos analíticos: (A) analisar, a partir da ideia de relações entre culturas proporcionada
pela Antropofagia, dois textos fílmicos baseados no texto shakespeariano Hamlet,
verificando de que forma as culturas de chegada reconstroem essa tragédia a partir da
apreciação do outro em seu contexto local; e (B) verificar, a partir dos resultados da análise
desempenhada, o lugar e a função das películas elencadas como corpus da pesquisa dentro
dos chamados filmes shakespearianos. Em especial, interessei-me pela posição dos filmes
analisados dentre aqueles considerados como os grandes filmes shakespearianos adaptados
a partir de Hamlet pela crítica especializada.

Para tanto, no Capítulo um desta pesquisa, realizei inicialmente um passeio pela


crítica literária shakespeariana publicada sobre a peça Hamlet. Esse passeio, altamente
seletivo por conta da fertilidade de interpretações críticas do drama ao longo dos últimos
quatro séculos, teve como objetivo a construção de um panorama a partir dos olhares
críticos lançados por diferentes analistas em suas abordagens da peça, panorama esse que
poderia, em alguma instância, lançar luz sobre as opções adaptativas realizadas pelos
diretores dos filmes brasileiros na produção de suas versões da peça para o território
nacional. Como fio condutor dessa leitura da crítica shakespeariana realizada, foi
selecionada a questão do motivo da postergação do príncipe para desempenhar o ato de
vingança prometido, o que, no entanto, não tornou reducionista a abordagem dos textos
críticos nesse capítulo analisados. Com efeito, foram apresentados apontamentos críticos
que emergiram de diferentes abordagens: os provindos do romantismo europeu, os da
crítica de caráter, os da psicanálise freudiana, os do formalismo russo, os da
160

metateatralidade e os da teoria política. No entanto, devido à grande fortuna crítica da


peça, algumas áreas importantes dos Estudos Shakespearianos, como o materialismo
cultural, a psicanálise de origem lacaniana e a crítica histórica, ficaram fora da leitura
realizada, sobretudo pelo menor impacto que essas linhas de pensamento apresentam na
cinematografia shakespeariana, foco desta Tese.

Ainda no Capítulo um, apresentei, em linhas gerais, breves notas sobre a história
da cinematografia de Hamlet nos cinemas, sinalizando mais detalhadamente características
e opções artístico-estéticas tomadas em produções de filmes adaptados a partir dessa peça
do bardo consideradas como parte dos grandes filmes shakespearianos pela crítica
especializada: a saber, Hamlet (Inglaterra, 1948), de Laurence Olivier, Homem mau dorme
bem (悪い奴ほどよく眠る,Warui yatsu hodo yoku nemuru, Japão, 1960), de Akira
Kurosawa, Hamlet ( Гамлет, Gamlet, Russia, 1964), de Grigori Kozintsev, Hamlet (EUA,
Inglaterra e França, 1990), de Franco Zeffirelli, Hamlet (EUA e Inglaterra, 1996), de
Kenneth Branagh, e Hamlet: vingança e tragédia (Hamlet, EUA, 2000), de Michael
Almereyda. Uma vez que esses filmes, como parte da fortuna crítica da peça, podem
acrescentar considerações diversas sobre interpretações do texto shakespeariano, procurei
apontar os caminhos adaptativos tomados em cada película e o modo como elas dialogam,
ou não, com a crítica literária no processo de reconstrução da história do príncipe da
Dinamarca para o cinema. Essa breve leitura do cinema shakespeariano se fez essencial em
uma Tese que tem, como um de seus objetivos analíticos, a localização dos filmes
elencados para seu corpus dentro dos chamados grandes filmes shakespearianos.

No Capítulo dois, visando ao desenvolvimento do percurso teórico-analítico da


pesquisa, inicialmente, apresentei uma discussão sobre o campo dos estudos da adaptação,
procurando perscrutar considerações provindas dos principais pesquisadores dessa área que
poderiam incitar caminhos que possibilitariam a construção de um horizonte metodológico
textual e cultural de leitura para a abordagem dos filmes selecionados para análise nesta
Tese. Para tanto, realizei apontamentos críticos tanto a partir da obra de teóricos que se
agrupam sob a ideia de Tradução Intersemiótica, quanto a partir daqueles que se filiam às
Teorias da Adaptação. Todavia, foi perceptível, nessa leitura, que poucos são os estudiosos
de ambas as áreas que direcionam alguma atenção à questão cultural latente no processo de
adaptação de textos literários para o cinema; quando o fazem, eles trabalham a partir de
visões restritas do processo de adaptação, como em Diniz (1994), e/ou do movimento de
161

diálogo entre as culturas, como em Miranda e Inokuchi (2009), o que acaba por minimizar
a importância da questão cultural na prática de reescritura de textos artísticos para outras
artes e, no caso desta pesquisa, de obras shakespearianas para os cinemas em terras
estrangeiras.

Na segunda parte do Capítulo dois, apresento a proposta conceitual e teórico-


metodológica construída para a abordagem dos filmes elencados como corpus para esta
Tese. Nesse sentido, procuro dialogar com diferentes autores que, a partir da ideia de
Antropofagia cunhada pelo escritor brasileiro modernista Oswald de Andrade, procuram
construir inteligibilidade sobre as formas de comunicação e construção conjunta entre/de
diferentes culturas. Esses diferentes autores, provenientes de áreas diversas como a
Literatura Comparada, a Teoria Literária, os Estudos do Cinema e a Antropologia,
procuram também, cada um à sua maneira, ressignificar o conceito modernista nos campos
de estudos em que trabalham. Nesta Tese, a Antropofagia surge, então, como uma forma
de compreensão da relação de alteridade entre as culturas que nos permitiria a negação da
ideia de hierarquização cultural e a desconstrução de conceitos como os de Global e Local,
ao sinalizar o processo de incorporação cultural como um movimento crítico do que aqui
chamei de devoração transcultural: devora-se aquele que se admira para fazer dele parte
de si próprio e, como consequência, fazer de si parte do outro. A adaptação como prática
de devoração transcultural é, dessa forma, aquela que, mais do que simplesmente se
apropriar do texto de partida, de modo intertextual, o incorpora, fazendo dele parte da
cultura de chegada, ao mesmo tempo em que incita novos caminhos dialógicos de leitura
para o próprio texto de partida. Com base nesse horizonte epistemológico, sinalizei cinco
categorias de análise que, partindo da abordagem textual para a abordagem cultural,
poderiam auxiliar na construção de compreensões sobre os textos shakespearianos
adaptados para o cinema brasileiro: Linguagem (tradução e adaptação do texto
shakespeariano), Estrutura do Enredo, Relação entre Gêneros, Caracterização Visual
(inserção da história em cinematografias nacionais) e Inserção histórico-social.

O Capitulo três apresentou, em sua primeira seção, um curto histórico do


relacionamento entre os textos shakespearianos e o Brasil, no teatro, cinema e TV. O
objetivo dessa seção foi o de permitir a compreensão sobre as formas como os dramas do
bardo adentraram nas culturas brasileiras e sobre a maneira como Shakespeare se
constituiu no imaginário artístico, seja teatral, cinematográfico ou televisivo, nacional.
162

Com efeito, tal histórico pôde auxiliar também no entendimento dos modos de leitura do
dramaturgo elisabetano no país, que podem, em alguma instância, ter influenciado a
construção dos textos fílmicos selecionados. Neste ponto das Considerações Finais, é
importante ressaltar que, devido à proposta brasilianista de construir entendimentos sobre o
Brasil a partir de um olhar também brasileiro, procurei, ao longo de todo percurso teórico
da Tese, dialogar vozes estrangeiras com vozes nacionais, as quais poderiam, de algum
modo, contribuir para a construção do quadro teórico-analítico necessário para o
desenvolvimento da pesquisa em questão.

Na segunda seção do Capítulo três, apresento minha leitura do filme A Herança,


de Ozualdo Candeias, a partir do horizonte epistemológico de leitura construído, a saber, a
ideia de devoração transcultural baseada no conceito oswaldiano de Antropofagia, e das
categorias de análise delineadas. Com efeito, é possível afirmar que o filme de Candeias se
apresenta como uma violenta leitura da peça Hamlet, ao realocar o drama tanto histórica,
quanto geográfica e culturalmente para o Brasil rural, dentro do sistema latifundiário em
vigor na época da produção do filme. Candeias, em sua leitura da obra shakespeariana,
procura afirmar a causa social da terra, além de outras, como o debate relacionado ao
preconceito étnico, engajando-se em diversos discursos sociais em circulação no final dos
anos 1960 e início dos anos 1970, como aqueles que abordavam a necessidade de uma
Reforma Agrária em território brasileiro. Com esse fito, o diretor apresenta uma obra
esteticamente ousada, que, a partir da ausência quase total de diálogos falados, da presença
tímida de legendas e de uma trilha sonora não usual constituída pela mistura de sons do
campo e modas de viola, é corajosa ao problematizar os temas nela abordados a partir das
lentes fornecidas pelo dramaturgo inglês em um de seus mais famosos textos. No contexto
do Cinema Marginal brasileiro, Candeias constrói uma obra inovadora, tanto cultural como
esteticamente, que faz de Shakespeare mais do que um estrangeiro, e sim um brasileiro.

Já na terceira seção do Capítulo três, analisei o filme O Jogo da Vida e da Morte,


de Mario Kuperman, também com base no arcabouço teórico-metodológico construído
para a Tese. Esse filme, ao trazer a história do príncipe dinamarquês para um distrito de
classe baixa situado nos arredores da cidade de São Paulo, constrói um diálogo entre a peça
shakespeariana e discursos relacionados à questão das drogas no Brasil, etnia, sexualidade,
estratificação social etc. Além disso, a película, que não se filia diretamente a nenhum
movimento cinematográfico em voga no momento de sua produção, também realiza, como
163

parte do movimento de devoração transcultural efetuado, uma releitura de diversos trechos


da peça shakespeariana tendo em vista o horizonte social e cultural brasileiro, como, por
exemplo, a ressignificação da peça-dentro-da-peça por meio de um samba enredo, gênero
musical tradicional de nosso país. No entanto, diferentemente do apresentado por
Candeias, o filme de Kuperman é mais contido tanto estética quanto tematicamente. Em
relação à questão estética, O Jogo da Vida e da Morte se constitui a partir de uma tradução
do texto shakespeariano que promove diversas adequações culturais e situacionais aos
diálogos, omitindo passagens e personagens, mas mantendo a linha básica do enredo da
peça de partida. Além disso, baseando-se nos filmes policiais americanos e no movimento
expressionista alemão, o cineasta constrói uma atmosfera sombria e noturna que ambienta
a narrativa. Tematicamente, apesar de sinalizar, como afirmei, diversos temas em voga na
sociedade de então, o filme opta por não problematizá-los, apresentando em relação a eles
uma certa distância crítica.

Ademais, é importante sinalizar que as duas adaptações analisadas no Capítulo


três, em seu movimento de devoração transcultural, dialogam intensamente com a crítica
shakespeariana e com os grandes filmes shakespearianos adaptados a partir de Hamlet. O
diálogo com a crítica se dá, mesmo que por caminhos diversos, a partir da abordagem
política do drama de partida. Esse diálogo é apresentado de maneira mais contundente no
filme de Candeias, mas também se faz presente como principal abordagem do filme de
Kuperman, o qual, no entanto, parece construir pequenas referências a outros modos de
enxergar a história do príncipe dinamarquês envolto num mundo onde reina a corrupção.
Com efeito, ambos os filmes constituem um diálogo temático e, por vezes, estético com
filmes como Homem mau dorme bem (悪い奴ほどよく眠る,Warui yatsu hodo yoku
nemuru, Japão, 1960), de Akira Kurosawa, Hamlet ( Гамлет, Gamlet, Russia, 1964), de
Grigori Kozintsev, e Hamlet: vingança e tragédia (Hamlet, EUA, 2000), de Michael
Almereyda. Tais filmes também utilizam, em alguma instância, as lentes fornecidas por
William Shakespeare para a compreensão de diferentes momentos sociopolíticos da
história recente.

Por fim, ressalto que o horizonte de leitura aqui delineado, a perspectiva


antropofágica, que tem a devoração como mote, isto é, devorar o elemento estranho,
estrangeiro, para transformá-lo a partir do local, recontextualizando-o e transformando-o
em um outro produto, de outras culturas e, ao mesmo tempo, influenciando dialogicamente
164

a cultura de partida, não pode ser considerado como uma metodologia universal para a
leitura de dramas shakespearianos ou quaisquer outros textos artísticos adaptados para o
cinema. Mesmo reconhecendo que a adaptação enquanto prática antropofágica de
devoração transcultural pode, em analogia com as palavras de Haroldo Campos (2010a, p.
234), transcriar, criar o texto novamente, adaptando não apenas o significado, mas
também a própria materialidade do literário, suas propriedades, sua narrativa, suas culturas
de partida etc., é preciso sinalizar que tal abordagem sugere apenas um caminho possível
para o tratamento de alguns textos fílmicos construídos a partir da obra de Shakespeare: é
imperativa a consciência de que há ainda portas abertas – e, talvez, impossíveis de se
fechar – no que tange ao entendimento da adaptação como um fenômeno transcultural,
antropofágico.
165

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A HERANÇA. Direção de Ozualdo Candeias. Brasil: LF. Longfilm. 1970. 90min. P/B.
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O JOGO DA VIDA E DA MORTE. Direção de Mario Kuperman. Brasil: Futura Filmes


Ltda. 1971. 91 min. P/B. DVD.
176

ANEXO 1
177

ANEXO 2
178

ANEXO 3

"MARCELO
Algo está podre aqui na Dinamarca."

"HAMLET
Há mais coisas, Horário, em céus e terras,
Do que sonhou nossa filosofia."

"HAMLET
Ser ou não ser, essa é a questão:
Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer - dormir;
Dormir, talvez sonhar - eis o problema:
Pois os sonhos que vierem nesse sono
De morte, uma vez livres deste invúlucro
Mortal, fazem cismar. Esse é o motivo
Que prolonga a desdita desta vida.
Quem suportara os golpes do destino,
Os erros do opressor, o escárnio alheio,
A ingratidão no amor, a lei tardia,
O orgulho dos que mandam, o desprezo
Que a paciência atura dos indignos,
Quando podia procurar repouso
Na ponta de um punhal? Quem carregara
Suando o fardo da pesada vida
Se o medo do que vem depois da morte -
O país ignorado de onde nunca
Ninguém voltou - não nos turbasse a mente
179

E nos fizesse arcar co'o mal que temos


Em vez de voar para esse, que ignoramos?
Assim nossa consciência se acovarda,
E o instinto que inspira as decisões
Desmaia no indeciso pensamento,
E as empresas supremas e oportunas
Desviam-se do fio da corrente
E não são mais ação. Silêncio agora!
A bela Ofélia! Ninfa, em tuas preces
Recorda os meus pecados."

"MARCELO
Aquela aparição veio esta noite?
BERNARDO
Eu nada vi.
MARCELO
Horácio diz que é simples fantasia
E que ele não aceita a nossa crença
Dessa visão que duas vezes vimos.
Por isso convidei-o para hoje
Vir conosco guardar alguns minutos;
Pois se de novo vier esse fantasma,
Ele confirmará os nossos olhos
E poderá falar-lhe
HORÁCIO
Não aparecerá.
BERNARDO
Senta-te um pouco;
Deixa-nos repetir aos teus ouvidos,
Tão prevenidos contra nossa história,
O que duas vezes vimos."
180

"MARCELO
Tu, que és um mestre, vai falar-lhe Horácio!"

"HAMLET
Oh, se esta carne rude derretesse,
E se desvanecesse em fino orvalho!
Ou que o Eterno não tivesse oposto
Seu gesto contra a própria destruição!
Oh, Deus! Como são gestos e vãos, inúteis,
A meu ver, esses hábitos do mundo!
Que horror! São quais jardins abandonados
Em que só o que é mau na natureza
Brota e domina. Mas chegar a isto!
Morto há dois meses só! Não, nem dois meses!
Tão excelente rei, em face deste,
Seria como Hipério frente a um sátiro.
Era tão dedicado à minha mãe
Que não deixava nem a própria brisa
Tocar forte o seu rosto. Céus e terras!
Devo lembrar? Ela se reclinava
Sobre ele, qual se a força do apetite
Lh viesse do alimento; e dentre um mês
- Não, não quero lembrar - Frivolidade,
O teu nome é mulher. Um mês apenas!
Antes que se gastassem os sapatos
Com que seguiu o enterro de meu pai,
Como Níobe em prantos... eis que ela própria -
Oh, Deus, um animal sem raciocínio
Guardaria mais luto - ei-la casada
Com o irmão de meu pai, mas tão diverso
Dele quanto eu de Hércules: um mês!
E apenas essas lágrimas culposas
181

Deixaram de correr nos falsos olhos,


Casou-se: Oh, pressa infame de lançar-se
Com tal presteza entre os lençóis do incesto!
Não 'stá certo, nem pode ter bom termo:
Estala, coração - mas guarda a língua!"

"HAMLET
Entra para um convento. Por que desejarias conceber pecadores? Eu próprio sou
passavelmente honesto; mas poderia ainda assim acusar-me a mim mesmo de tais coisas,
que seria melhor que minha mãe não me tivesse concebido. Sou muito orgulhoso,
vingativo, ambicioso, com mais erros ao meu alcance do que pensamentos para expressá-
los, imaginação para dar-lhes forma, ou tempo para cometê-los. O que podem fazer
sujeitos como uns rematados velhacos; não acredites em nenhum de nós. Entra para um
convento. Onde está teu pai?"

"HAMLET
Ser ou não ser, essa é a questão:
Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer - dormir;
Dormir, talvez sonhar - eis o problema:
Pois os sonhos que vierem nesse sono
De morte, uma vez livres deste invúlucro
Mortal, fazem cismar. Esse é o motivo
Que prolonga a desdita desta vida.
Quem suportara os golpes do destino,
Os erros do opressor, o escárnio alheio,
A ingratidão no amor, a lei tardia,
O orgulho dos que mandam, o desprezo
Que a paciência atura dos indignos,
182

Quando podia procurar repouso


Na ponta de um punhal? Quem carregara
Suando o fardo da pesada vida
Se o medo do que vem depois da morte -
O país ignorado de onde nunca
Ninguém voltou - não nos turbasse a mente
E nos fizesse arcar co'o mal que temos
Em vez de voar para esse, que ignoramos?
Assim nossa consciência se acovarda,
E o instinto que inspira as decisões
Desmaia no indeciso pensamento,
E as empresas supremas e oportunas
Desviam-se do fio da corrente
E não são mais ação. Silêncio agora!
A bela Ofélia! Ninfa, em tuas preces
Recorda os meus pecados."

"1º COVEIRO
Deve ser enterrada em sepultura cristã aquela que buscou voluntariamente a salvação?
2º COVEIRO
Digo-te que deve; potanto, abre logo essa cova. O pontífice informou-se de tudo e
deliberou que o enterro fosse cristão.
1º COVEIRO
Como pode ser isso, a não ser que ela se afogasse em sua própria defesa?
2º COVEIRO
Ora, foi decidido assim.
1º COVEIRO
Deve ter sido se offendendo, nem pode ser de outro modo. Pois essse é o ponto: se eu me
afogo voluntariamente, isso indica ato, e um ato tem três partes, a saber: agir, fazer e
consumar. Ergum, ela afogou-se voluntariamente.
2º COVEIRO
Não; mas, escuta, mestre cavuqueiro...
183

1º COVEIRO
Com licença. Aqui está a água, bem; aqui está o homem, bem; se o homem vai para esta
água e se afoga, queira ou não queira, é ele que vai. Presta atenção: mas se a água vem para
ele e o afoga, não é ele que se afoga; ergum, ele não é o culpado de sua própria morte, ele
não encurta a própria vida.
2º COVEIRO
Mas isso é lei?
1º COVEIRO
É, sim, senhor; lei de borla e capelo.
2º COVEIRO
Querer saber a verdade? Se ela não fosse nobre, seria enterrada fora do ritual cristão.
1º COVEIRO
Assim o disseste; e é uma lástima que os grandes deste mundo tenham o direito de afogar-
se ou de enforcar-se, mais do que qualquer outro cristão. - Vamos, a minha há. Não há
gentis homens mais antigos do que os jardineiros, os cavadores e o os coveiros; eles
conservam a profissão de Adão."

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