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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CCHLA – DEPARTAMENTO DE LETRAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ISAMABÉLI BARBOSA CANDIDO

Do Romanesco à Cena: transbordamentos infinitos em Querô,


uma reportagem maldita de Plínio Marcos

NATAL – RN

2018
Isamabéli Barbosa Candido

Do Romanesco à Cena: transbordamentos infinitos em Querô,


uma reportagem maldita de Plínio Marcos

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Estudos da Linguagem do Departamento de
Letras da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como exigência parcial para a obtenção do
título de Doutora em Literatura Comparada. Linha
de Pesquisa: Poéticas da Modernidade e da Pós-
Modernidade.

Orientador: Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante

NATAL – RN

2018
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Candido, Isamabéli Barbosa.


Do romanesco à cena: transbordamentos infinitos em Querô, uma
reportagem maldita de Plínio Marcos / Isamabéli Barbosa Candido.
- 2018.
189f.: il.

Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do


Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de
Pós-graduação em Estudos da Linguagem. Natal, RN, 2018.
Orientador: Prof. Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante.

1. Querô. 2. Rapsódia. 3. Trágico do Quotidiano. 4. Adaptação


de Romance. 5. Apropriação (Arte). I. Cavalcante, Alex Beigui de
Paiva. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091-1

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748


ISAMABÉLI BARBOSA CANDIDO

DO ROMANESCO À CENA: TRANSBORDAMENTOS INFINITOS EM


QUERÔ, UMA REPORTAGEM MALDITA DE PLÍNIO MARCOS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da


Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência parcial para a obtenção
do título de Doutora em Literatura Comparada. Linha de Pesquisa: Poéticas da
Modernidade e da Pós-Modernidade.

Banca Examinadora:
________________________________________

Prof. Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Orientador

_________________________________________
Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Avaliadora

________________________________________
Profa. Dra. Monize Oliveira Moura
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Avaliadora

______________________________________
Profa. Dra. Rebeka Caroças Seixas
Instituto Federal do Rio Grande do Norte
Avaliadora

___________________________________
Profa. Dra. Vera Regina Martins Collaço
Universidade do Estado de Santa Catarina
Avaliadora
Ao meu avô, Sr. Zé Cândido, pela força que tem demonstrado.
Agradecimentos

Agradeço, antes de todos e de tudo, a Deus por me permitir escrever além das
linhas que se seguem uma Tese da vida, como costumava dizer, de aprendizados que
pude colher ao longo desses anos e que levarei para sempre.

Ao mestre Jesus, nosso Sol de grandeza maior e a toda a espiritualidade amiga


que aliviaram a tensão e o sofrimento me permitindo aprender a confiar cada vez mais,
por todo amor.

Aos meus pais que se esforçaram e se sacrificaram quando precisei morar em


Natal ainda sem bolsa. Por me fazerem acreditar que é possível e mostrar a importância
do conhecimento. Aos meus irmãos, Neto, Erivelton e Mariéli que tanto me ajudaram e
se doaram, muitas vezes seguindo viagem comigo para que eu não perdesse aula. Aos
meus pequenos, minha fonte de energia e de vida, Maísa, Miguel, Michel, Heloísa e
Eduarda, pela significativa contribuição, principalmente, na escrita da Tese da vida. Aos
familiares, avós, tios, primos, cunhadas e cunhado que acreditam no meu potencial e por
todo incentivo em dias de desânimo.

Ao meu companheiro, amigo, amor, Danilo Losada, que chegou quando a


caminhada do doutorado já havia iniciado e me trouxe aconchego e paz. Pela
compreensão quando precisei me isolar, por segurar em minha mão sempre que me
faltou força e pela família que estamos construindo.

Ao meu orientador Dr. Alex Beigui, não apenas pelas orientações e contribuição
para a construção da Tese, mas, pelo professor apaixonado que é pela profissão, por
dividir comigo sua experiência em sala de aula.

Aos jovens, crianças e à equipe de evangelizadores do Nosso Lar, Adalberto,


Catarina, Cris, Dani, Eduardo, Flávia, Graça e Tiana pelo companheirismo, incentivo e
apoio.

A banca de qualificação, Rebeka Caroças e Márcio Venício, pelo olhar atento


que fizeram a diferença para que conseguisse concluir.

Ao professor Edvaldo, Beth e Gabriel, por estarem sempre abertos a nos receber
e dispostos a ajudar.
Aos que fazem o Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, por
abrirem suas portas e nos tornarem pessoas de casa.

Aos amigos de hoje e de sempre, Thereza, Ana, Maísa, Maria da Luz, o Velho,
Sr. Leopoldo, Eulália e aos queridos professores do programa Marta Gonçalves,
Rosanne e Ilza Matias.

À Capes que não imagina o quanto agradeço a ajuda que tornou o fim desse
sonho possível.
RESUMO

Este trabalho faz uma reflexão teórica de aspectos relativos à nova forma dramatúrgica,
em desenvolvimento no teatro brasileiro moderno e contemporâneo, trata-se de um
estudo, a partir das leituras de Querô, uma reportagem maldita, de Plínio Marcos (1992,
2003, 2009). Compara-se, neste percurso, a adaptação do romance pelo próprio Plínio
Marcos para o texto dramatúrgico e a apropriação, nos termos de Beigui (2006), que
culmina no espetáculo, elaborado pelo grupo teatral de São Paulo, o Galpão Folias
d‟Arte, com o objetivo de discutir criticamente as leituras e construção dessas
produções. Observou-se que o processo apropriativo resulta em uma forma
dramatúrgica profundamente ligada às propostas de Jean-Pierre Sarrazac (2000, 2011,
2012), uma vez que aponta para o “rapsódico”, sobretudo porque se percebe nas várias
leituras de Querô uma forma mais livre, cujos limites entre mimese e diegese estão
tênues, como um conceito que amplia a mudança de paradigma, o “drama- da- vida”
(termo do próprio Sarrazac). Pesquisa-se também sobre a romancização, uma vez que o
conceito de “rapsódia”, pensado por Sarrazac (2002; 2012), de algum modo, está
relacionado à discussão apresentada por Bakhtin (1998) sobre a “romancização”. Esta
Tese, incluída no âmbito dos estudos comparativos, devido apresentar um caráter
intermidial, propõe discutir, através da análise/comparação de Querô, os elementos do
trágico, tendo em vista que, nela, se defende a presença de um “trágico do quotidiano”
bem como, conforme Sarrazac (2013), a presença do homem comum, o impersonagem
que vai sustentar o princípio do trágico no autor trabalhado.

PALAVRAS-CHAVE: Querô; rapsódico; trágico do quotidiano; adaptação;


apropriação.
ABSTRACT

This work seeks to make a theoretical reflection on aspects related to the new
dramaturgic forms, in development in modern and contemporary Brazilian theater, it is
a study, with several readings of Querô, a cursed report, by Plínio Marcos (1992, 2003,
2009). A comparsion is made, from the adaptation of the novel by Plínio Marcos
himself to the dramaturgical text and of the appropriation, in the terms of Beigui (2006),
that culminates in the spectacle, elaborated by the theatrical group of São Paulo, the
Galpão Folias d’Arte, with The objective of critically discuss the readings and
construction of these new productions. In this sense, it was observed that the
appropriative process results in a dramaturgical form that is deeply linked to the
proposals of Jean-Pierre Sarrazac (2000, 2011, 2012), since it points to the "rhapsodic",
especially since it is perceived in the various readings of Querô a freer form, in which
the boundaries between mimesis and diegesis are tenuous, as a concept that extends the
paradigm shift, the "drama-of-life" (Sarrazac's own term). In this way, we also discuss
about romanticise, since the concept of "rhapsody", by Sarrazac (2002, 2012), is related
to Bakhtin's (1998) discussion of "romantisizing". So that this thesis, included in the
scope of the comparative studies due to present an intermidial character, proposes to
discuss through the analysis / comparison of Querô, the tragic elements in the works,
considering that the presence of a “tragic quotidian" as well as, according to Sarrazac
(2013), the presence of the common man, the impersonnage that will sustain the tragic.

KEY WORDS: Querô; rhapsodic; tragic quotidian; adaptation; appropriation.


RESUMEN

Este trabajo busca hacer una reflexión teórica de aspectos relativos a las nuevas formas
dramatúrgicas, en desarrollo en el teatro brasileño moderno y contemporáneo, se trata
de una obra, con varias lecturas de Querô, un reportaje maldito, de Plínio Marcos (1992,
2003, 2009 ). Se comparó, en este ensayo, a partir de la adaptación de la novela por el
propio Plinio Marcos para el texto dramatúrgico y la apropiación, en los términos de
Beigui (2006), que culmina en el espectáculo, elaborada por el grupo teatral de São
Paulo, el Galpão Folias d’Arte, con el objetivo de discutir críticamente las lecturas y la
construcción de esas nuevas producciones. En ese sentido, se observó que el proceso
apropiativo resulta en una forma dramatúrgica profundamente vinculada a las
propuestas de Jean-Pierre Sarrazac (2000, 2011, 2012), ya que apunta al "rapsódico",
sobre todo porque se percibe en las varias lecturas de Querô una forma más libre, en
que los límites entre mimese y diegese son tenues, como un concepto que amplía el
cambio de paradigma, el "drama de la vida" (término del propio Sarrazac). Por lo tanto,
se discurre también sobre la romanciación, ya que el concepto de "rapsodia", pensado
por Sarrazac (2002; 2012), de algún modo, está relacionado con la discusión presentada
por Bakhtin (1998) sobre la "romancización". De modo que esta tesis, incluida en el
marco de los estudios comparativos, debido a presentar un carácter intermedio, propone
discutir, a través del análisis / comparación de Querô, los elementos del trágico en
Querô, teniendo en vista que se defiende la presencia de un "trágico de la vida cotidiana
"así como, según Sarrazac (2013), la presencia del hombre común, el impersonaje que
va a sostener lo trágico.

PALABRAS CLAVE: Querô; rapsódico; trágico de la vida cotidiana; adaptación;


apropiación.
ÍNDICE DE FIGURAS

FIGURA 01 – A Cantora e a banda do Cabaré Leite da Mulher Amada ................... 157


FIGURA 02 – Primeira Cena ..................................................................................... 159
FIGURA 03 – Cena do conflito entre Querô e os policiais ........................................ 159
FIGURA 04 – Cena entre Querô e a Repórter ............................................................ 160
FIGURA 05 – O coro de prostitutas do Cabaré Leite da Mulher Amada .................. 161
FIGURA 06 – O fantasma de Leda ............................................................................ 164
FIGURA 07 – Conflito entre Neslão, Sarará e Querô ................................................ 165
FIGURA 08 – Encontro entre Querô e Tainha ........................................................... 165
FIGURA 09 – Batismo de Querô ............................................................................... 166
FIGURA 10 – Diálogo entre “Tainha de Jesus” e Querô ........................................... 167
FIGURA 11 – Morte de Querô ................................................................................... 167
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 13
CAPÍTULO 1
QUERÔ: UM TRÁGICO DO QUOTIDIANO ........................................................................ 24
1.1 QUALQUER TEATRO É O MEU TEATRO ............................................................... 24
1.2 O NASCIMENTO DE UM TRÁGICO DO QUOTIDIANO ........................................ 30
1.3 IMPERSONAGEM E FAIT DIVERS .............................................................................. 50
1.4 QUERÔ: SUBALTERNIDADE, MARGINALIDADE E MULTIDÃO ..................... 56
CAPÍTULO 2
ENTRE LIMITES: ADAPTAÇÃO E APROPRIAÇÃO ......................................................... 62
2.1. O SURGIMENTO DE UM DIÁLOGO ........................................................................ 62
2.2. ADAPTAÇÃO TEXTUAL: DO ROMANCE À CENA ............................................... 71
2.3. APROPRIAÇÃO CÊNICA: DA PEÇA AO PALCO ................................................... 83
CAPÍTULO 3
UMA FORMA MAIS LIVRE DO DRAMA ........................................................................... 93
3.1 ROMANCE, OBRA HÍBRIDA E ROMANCIZAÇÃO: CAMINHOS PARA O
RAPSÓDICO ........................................................................................................................... 93
3.1.1 ROMANCIZAÇÃO ................................................................................................... 103
3.2 A MUTAÇÃO DA FORMA DRAMÁTICA .............................................................. 109
3.2.1 O RAPSÓDICO EM QUERÔ, UMA REPORTAGEM MALDITA ............................ 115
3.2.2 A PERSONAGEM NO TEATRO ............................................................................. 124
3.2.3 DIÁLOGO E DIALOGISMO ................................................................................... 135
CAPÍTULO 4
O TEATRO QUE SE QUER FAZER: GRUPO GALPÃO FOLIAS d‟ARTE ..................... 140
4.1 TEATRO - CONTEXTUALIZAÇÃO ............................................................................. 140
4.2 A CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA ....................................................................... 142
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 169
6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 174
7 - ANEXOS ........................................................................................................................... 184
7.1 FICHA TÉCNICA ............................................................................................................ 185
7.2 CRONOLOGIA DO TEATRO ADULTO – PLÍNIO MARCOS ................................... 186
7.3 PROGRAMA DO ESPETÁCULO .................................................................................. 188
7.4 MANUSCRITO ................................................................................................................ 189
INTRODUÇÃO

Durante nossa pesquisa, a proposta inicial de estudar aspectos da obra de Plínio


Marcos, Querô, uma reportagem maldita à luz das teorias desenvolvidas por Sarrazac
(2002; 2013a), as noções de “rapsódico” e o “trágico do quotidiano”, bem como uma
leitura que compara pela diferença a partir do conceito de apropriação, com base em
Beigui (2006) e Sanders (2015), se deparou com a falta de outros parceiros teóricos que
nos ajudassem ainda mais a fundamentar o que estávamos querendo defender.
Dessa forma, nosso primeiro passo ao ter em mãos o texto dramatúrgico Querô,
uma reportagem maldita (1979) de Plínio Marcos foi pensar o lugar dessa obra no
teatro moderno e contemporâneo brasileiro. Assim, as primeiras leituras despertaram
nosso interesse, levando-nos a inquietações que começaram desde os estudos iniciados
no ano de 2011, no projeto de Mestrado1. Desse modo, em nossas primeiras reflexões
observamos que a obra não correspondia às exigências das formas dramatúrgicas
conforme preconizadas pelas clássicas teorias dos gêneros.
A partir de uma reportagem, Plínio escreve a história de um menor abandonado,
nascido e criado por entre o Cais do Porto e os cabarés da cidade de Santos em São
Paulo. A teia de complexidades que se forma em Querô2 é representada a partir de cada
personagem que caracteriza a figura do homem moderno revelando, assim, através dos
contrastes e dos vazios, a forma estética do caos contemporâneo. Uma teia composta
por elementos comuns como: o menino que abandona a infância e junto ao bando do
Tainha ganha maturidade assumindo de vez o nome Querô; o lugar que torna-se o palco
onde acontecem as confusões, “O leite da Mulher Amada”, o cenário perfeito para a
personagem Cantora entoar para os fregueses a dor de uma vida; no cabaré somos
levados a conhecer Leda e sua forte vontade de ser mãe, a amizade com Ju e toda a
briga com Violeta, a cafetina encurralada pelas mulheres – primeira, segunda e terceira
mulher – uma espécie de coro formado para alertar Leda sobre os perigos que o filho de

1
Dissertação denominada Salmo 91: formas narrativas, adaptação e dramaturgia contemporânea no
Brasil orientada pelo Porfessor Dr. Diógenes André Vieira Maciel pela Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB), defendida no ano de 2013 e desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Literatura e
Interculturalidade (PPGLI/UEPB).
2
Iniciamos a apresentação da obra a partir do texto dramatúrgico por ser o primeiro texto com que
tivemos contato.
13
uma prostituta pode sofrer; o Repórter, escalado para fazer a cobertura do caso e
escrever sobre a reportagem maldita, surge como aquele que auxilia Querô na
rememoração dos fatos; e, por fim, o núcleo dos perseguidores do menino, os policiais,
Nelsão e Sarará e, com uma passagem rápida, o Delegado.
Para tanto, continuamos as pesquisas já iniciadas, visto constatar a necessidade
de alimentar debates mais amplos em torno da dramaturgia e do teatro, bem como entre
conceitos como de adaptação e de apropriação. O título “Do Romanesco à Cena:
transbordamentos infinitos em Querô, uma reportagem maldita de Plínio Marcos” está
associado à ideia de extravasamento, da mescla entre os gêneros, bem como aos
desdobramentos e as várias leituras de Querô3, uma vez que utilizamos como corpus da
pesquisa o romance (1976) e a adaptação4 para teatro (1979), ambos de mesmo título
Querô, uma reportagem maldita escritos por Plínio Marcos, bem como o espetáculo
Querô, uma reportagem maldita (2009) encenado pelo Grupo Teatral Galpão Folias
d‟Arte5 e dirigido por Marco Antônio Rodrigues6.
O mote inicial do nosso estudo é a reflexão sobre o drama moderno e
contemporâneo, principalmente, porque as novas produções exigem uma linguagem que
acompanhe os dramas do homem moderno e contemporâneo e os anseios de tradução7
desse ser em uma sociedade sempre em transformação. Para acompanhar as mudanças
que se davam no campo filosófico, das ciências e das ideologias, no final do século XX,
de certo modo, foi necessário reconstruir os novos modos de vida da sociedade nos
palcos. Nesse sentido, o “drama moderno” surge quando o teatro começa a ganhar
outras interpretações de seus dramaturgos, cada um especificando e recriando sua arte.

3
Valemo-nos do estilo da fonte itálico para nos referir a obra, Querô, diferenciando do nome da
personagem Querô.
4
Acreditamos que uma breve apresentação da obra auxilie o leitor não familiarizado com o texto. A
primeira adaptação textual de Querô, uma reportagem maldita aconteceu em 1979, elaborada pelo
próprio Plínio Marcos. No livro Querô narra a sua vida em um único ato: a vida do filho de uma prostituta
que engravida e decide ter o menino “para ter um precioso bem que seja só seu”. No entanto, ao ter a
criança, a mãe de Querô é expulsa do prostíbulo onde trabalhava e, para acabar com seus problemas, se
mata ao tomar querosene, por isso, o apelido Querô. Criado pela cafetina que se sentiu culpada pela morte
da prostituta, logo cedo o menino se envolve em cenários violentos, roubos, confusões como estratégia de
sobreviver. Morre furado de balas e esquecido.
5
Ver: Anexo 7.1 – Ficha Técnica. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento428123/quero-uma-reportagem-maldita>. Acesso em: 17 de
Mai. 2018.
6
“Marco Antônio Rodrigues (Santos SP 1955). Diretor. Artista identificado com um teatro de cunho
popular e brechtiano, um dos fundadores do grupo Folias d´Arte e do teatro Galpão do Folias”.
Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa350894/marco-antonio-rodrigues>. Acesso
em: 16 de Mai. 2018.
7
O termo tradução está no sentido de expressar, interpretar, uma vez que o sujeito no drama moderno é
utilizado para expressar uma subjetividade coletiva.
14
Para melhor esclarecimento, o drama moderno, a que nos referimos, consiste em
identificar recursos estilísticos da Lírica e da Épica8 como forma de superar a “crise”.
Nesse ínterim, mostrar os sentidos da “crise do drama moderno”, propostos por Szondi
(2011), é sublinhar as associações problemáticas entre forma e conteúdo e a crise do
diálogo, na tentativa de perceber a composição das novas formas dramáticas. Rodrigues
(2005) ao se referir a “crise” atesta que a Teoria do Drama Moderno “[...] fornece
munição para se pensar a emergência e o modo de configuração das crises no campo
artístico a partir de um prisma particular: a dramaturgia” (RODRIGUES, 2005, p. 211).
O teórico Jean-Pierre Sarrazac (2011) se debruça sobre a obra de Peter Szondi e
em resposta a Teoria do drama moderno (2011) afirma que “[...] em vez de „crise‟ – [...]
eu preferia falar de mutação, melhor, de mutação lenta, e duma mudança de paradigma
do drama” (SARRAZAC, 2011, p. 39). Entenda-se que Sarrazac não exclui a ideia de
uma crise, para ele, há uma continuidade e não uma superação. Dessa forma, aponta
quatro grandes crises, a saber: crise da fábula, crise da personagem, crise do diálogo e
crise da relação palco-plateia9.
Dentre as crises da forma dramática apresentadas por Sarrazac10 (2012),
elegemos para esse estudo a crise da personagem como categoria de análise, tendo em
vista que as transformações que ocorrem no drama implicam em uma nova concepção
de personagem. Entende-se assim que Querô ganha características de uma personagem
que deixa de ser o suporte da ação, deixa de impulsionar a ação, sobretudo porque torna
a ação diluída em fragmentos de vida, em extratos da realidade.
De modo que a crise do drama moderno eclodiu nos anos de 1880 em resposta às
inovadoras relações que o homem mantém com a sociedade. Tais relações que denotam
a crise da forma dramática são estabelecidas perante o indício da fragmentação entre
sujeito e objeto. Outras mudanças significativas aconteceram com a ruptura das formas
tradicionais do drama, em outras palavras, queremos dizer assim que a crise da

8
“A Lírica tende a ser a plasmação imediata das vivências intensas de um Eu no encontro com o mundo,
sem que se interponham eventos distendidos no tempo (como na Épica e na Dramática). A manifestação
verbal „imediata‟ de uma emoção ou de um sentimento é o ponto de partida da Lírica” (p.22). “O gênero
épico é mais objetivo que o lírico. O mundo objetivo (naturalmente imaginário), com suas paisagens,
cidades e personagens (envolvidas em certas situações), emancipa-se em larga medida da subjetividade
do narrador. Este geralmente não exprime os próprios estados de alma, mas narra os de outros seres”
(ROSENFELD, 2008, p. 22 – 24).
9
Ver: SARRAZAC, Jean-Pierre. Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. André Telles. São
Paulo: Cosac Naif, 2012, p. 33.
10
Para maior esclarecimento ver: Sarrazac, 2012, p. 33.
15
personagem resultou também na reformulação do conceito de herói, tendo em vista que
ganhou nova roupagem.
Entendido como o eixo que dá sustentação ao drama, o herói passa a ter
incluídas em sua forma as inquietações, inseguranças e convicções, visto que agora está
mais voltado para si e, desse modo, promove uma discussão a respeito do que se
entende pelo termo. É importante enfatizar que o nosso interesse em discutir sobre essa
nova definição está em compreendê-la para além do sentido clássico de protagonista,
sobretudo porque as transformações ocorridas e a adoção do conceito de “mudança de
paradigma” nos permitem falar cada vez mais sobre a figura do homem comum, o
“impersonagem11”, nos termos de Sarrazac:

[...] o objeto da representação não é tanto a fábula mas o seu


comentário. E é assim que as personagens – prefiro chamar-lhes
„impersonagens’ - de uma parte considerável do nosso teatro se
transformam em recitantes. Não apenas pela razão [...] de que „eles
habitam o tempo‟ mais do que o espaço, mas porque, encostados à sua
própria morte, produzem solilóquios contínuos sobre os percursos
erráticos, sobre os cruzamentos, as alternativas antigas, enfim, sobre
os possíveis de suas vidas, percorrendo-os continuamente
(SARRAZAC, 2009, p. 88).

Para Sarrazac, a personagem moderna é “sem caráter12”, e, nesse sentido, fraca


em diversos níveis, perdeu características tanto físicas quanto sociais. São personagens
sem referência como Querô que experimentam a “desterritorialização13” de sua própria
identidade com a ausência de essência e substância que resulta no vazio de sua própria
existência. No primeiro capítulo do romance, após extenso sofrimento, Querô relembra
o episódio do seu nascimento “Eu vim na pior. Com um urubu pousado na minha sorte.
[...] O filho da puta do meu pai encheu de porra a filha da puta da minha mãe e se
arrancou, deixando a desgraçada no “ora veja tou choca” (MARCOS, 1992, p. 9). O
menino percorre a vida a partir dos fragmentos que consegue ouvir de outras
personagens, assim, desterritorializa-se criando seus possíveis. De acordo com Deleuze

11
O termo impersonagem, pensado por Sarrazac (2009; 2011; 2013a), refere-se à figura do homem
comum, do homem quotidiano.
12
Quando nos referimos ao herói sem nenhum caráter, é impossível não citar Macunaíma, texto de Mário
de Andrade, de 1928, apontado pela crítica como a “rapsódia 12” modernista (GEORGE, 1990, p. 41). O
conceito de herói até então sustentado pela crítica é questionado em Macunaíma, uma vez que o “herói
brasileiro” se torna conhecido não apenas por sua preguiça, mas, especialmente, por não pertencer a lugar
algum e apresentar uma identidade rizomática, notadamente, devido às metamorfoses que marcam sua
passagem na obra.
13
As “[...] três características da literatura menor: a desterritorialização da língua, a articulação do
individual com o político e o agenciamento coletivo da enunciação” (DELEUZE, 2010, p. 13 – 14).
16
e Guatarri (1996, p. 37): “Jamais nos desterritorializamos sozinhos [...]”. Desse modo,
entendemos que nesse movimento de passar de um território para o outro, Querô
desterritorializa sua própria história ao abandonar o estado de coisa, de não
pertencimento quando busca encontrar o inesperado, na verdade, colher os fatos de sua
vida e construir sua história como gente.
Para Marco Antônio Rodrigues, diretor do espetáculo, Querô “„[...] tem muito a
ver com o tema do trabalho do Folias: êxodos, desterritorialização, essa ideia de não-
pertencimento, de perda do território político, geográfico, afetivo, que deixa o indivíduo
órfão de Deus e de si mesmo14‟”. Em Querô as personagens parecem não pertencer a
nenhum lugar, partilham do sentimento de que são esquecidos, aniquilados pela nova
ordem. Nesse caso, impersonagens que explicam e comentam, retrospectivamente, o seu
drama, como Querô, construindo uma espécie de análise da vida a partir dos relatos
sobre sua própria existência. Assim, aberto às “virtualidades” e às “máscaras que vai
acumulando” ao longo de sua trajetória, esses impersonagens seguem enquanto fixam
para si sua não-identidade.
Diante desse quadro, Plínio Marcos pertenceria à escrita desses autores menores,
pois, como afirma Deleuze (2010): “[...] Mas os verdadeiros grandes autores são os
menores, os intempestivos. É o autor menor quem dá as verdadeiras obras-primas, o
autor menor não interpreta seu tempo, o homem não tem um tempo determinado, o
tempo depende do homem” (DELEUZE, 2010, p. 35). Nesse sentido, é importante
compreender que ao falarmos sobre uma literatura menor não estamos defendendo a
ideia de uma língua menor, “[...] mas antes a que uma minoria faz em uma língua
maior” (DELEUZE; GUATARRI, 1977, p. 25). Considerar Querô, uma reportagem
maldita como pertencente ao grupo da “literatura menor” é declarar que há nessa escrita
um movimento de transgressão, visto que esse “menor” se encontra em uma escala de
nível abaixo da palavra de ordem, tendo em vista que se impõe por desafiar as verdades
estabelecidas.
Autor considerado maldito, Plínio Marcos ao representar em suas obras a
“multidão”, nos termos de Justino (2015), ou seja, os marginais, as prostitutas, os
menores abandonados, cafetinas, gays, entre outros, também contribui para a construção
de textos dramáticos que se preocupam com o homem moderno brasileiro. Alguns de
seus textos surgem como verdadeiros gritos. Embora não seja considerado um

14
Ver: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2901200910.htm. Acesso em: 22 de julho de 2014.
17
dramaturgo com estética e força dramática, a exemplo de Nelson Rodrigues, os textos
de Plínio merecem atenção, sobretudo pela carga trágica15 presente em cada um deles,
bem como por apresentar a “mudança de paradigma”, ou seja, de um “drama-na-vida”
para uma “drama-da-vida16”, conforme Sarrazac (2010). Em Plínio Marcos não estamos
mais lidando com uma ação que tem começo, meio e fim, sobretudo porque com o
surgimento desse novo paradigma do drama, de acordo com Sarrazac (2010), a
concepção da “peça bem feita”, com base em Aristóteles, desaparece. Assim, a ação
dramática eclode a partir de uma ação fragmentada, característica fundamental do
drama-da-vida, uma vez que só pode ser compreendida como fragmento.
De modo que as modificações na compreensão do drama moderno refletem
também na concepção de herói que era considerado como o modelo específico do
sentido da vida, um subordinado às forças dos deuses, mas, desde o romantismo, esse
herói ganha autonomia frente aos deuses, tendo em vista que agora o que o move são as
paixões, a cupidez e o delito. Eagleton (2013), no que se refere ao conceito de herói,
expõe: “É provável que palavras como „heroísmo‟ estejam por demais contaminadas
pela sua história aristocrática e patriarcal para terem outros usos, e rejeitá-las significa
uma radical reescrita da história” (EAGLETON, 2013, p. 116). É assim que, para a
representação dessas personagens, o drama moderno começa a apresentar um anti-herói
dotado de individualismo e indiferença em relação aos acontecimentos que o rodeiam.
A mudança de paradigma nos permite compreender que as novas produções de
Querô surgem apresentando em sua forma um caráter “híbrido 17” já anunciando

15
O termo trágico é considerado um princípio filosófico que encontra “[...] sua expressão mais pura na
tragédia, no entanto, pode „manifestar-se também no romance, na música, nas artes plásticas, às vezes até
na comédia, para não falar da tragicidade de situações da vida real‟” (LESKY, 2006, p. 14).
16
“[...] drama-na-vida – ou seja, da forma dramática de modelo aristotélico-hegeliano – para o drama-da-
vida. Drama-da-vida liberto dos antigos princípios da ordem, da extensão, e da completude (“o belo
animal”) e trabalhado por uma pulsão rapsódica que lhe abre todos os horizontes e o vota a um princípio
fundamental de irregularidade, o leva por vezes a roçar o monstruoso, e põe em prática não a “superação”
da forma dramática pelas formas épicas do teatro (Szondi) mas um constante transbordamento mútuo dos
diferentes modos poéticos: o dramático, o épico e o lírico” (SARRAZAC, 2010, p. 14-15).
17
Diante dos conceitos do termo híbrido apresentados pelo dicionário Houaiss (2009), optamos por
apresentar os que afirmam que híbrido: “2. diz-se de ou palavra formada por elementos tomados de
línguas diferentes; 3. que ou o que é composto de elementos diferentes, heteróclitos, disparatados”.
Estudos nos mostram que o conceito de hibridismo parte, a princípio, dos estudos na área da biologia,
tendo em vista que essas pesquisas investigam a fusão entre diferentes espécies. No caso da literatura: “A
produção crítica, artística e literária resultante dos cruzamentos étnicos, raciais e culturais ocorridos nas
últimas décadas vem contaminando a academia e a cultura de modo geral e provocando dissonância e
polêmica. A discussão da idéia de híbrido, do impuro e do transcultural é atualmente elaborada por
pensadores e correntes que por vezes se misturam, hibridamente, mas conservam especificidades e podem
também abrigar profundas discordâncias” (COSER, 2010, p. 171).

18
questões do teatro contemporâneo, ao que denominaremos “teatro rapsódico” nos
termos de Jean-Pierre Sarrazac (2002; 2012). Assim, teremos respaldo na apropriação
para os palcos com o espetáculo do Grupo de teatro Galpão Folias d‟Arte (2009) que
aparece como uma atualização da primeira montagem do espetáculo pelo Grupo TAPA
(1991), em São Paulo.
O romance Querô, uma reportagem maldita escrito em 1976, por Plínio Marcos,
recebeu o prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor romance
daquele ano. De modo que apresenta dez capítulos enumerados e sem títulos. No
primeiro capítulo esbarramos com a história do menino Querô contada na primeira
pessoa. A partir do Capítulo VIII nos deparamos com a personagem jornalista,
momento em que o leitor compreende que aquela história é, na verdade, uma entrevista
sobre o ocorrido no cabaré. O Capítulo X apresenta o relato do jornalista diante dos
fatos colhidos.
Como revela Beigui (2006) sobre a dialética baseada na percepção da tensão
entre o Eu e a realidade do mundo que encontra abrigo nos modelos estruturalistas; no
caso do teatro, trata-se “[...] de perceber o que leva estruturas e matrizes a sua inerente
condição de processo e o que conduz o posicionamento do artista a reinvenção de
modelos guiados pela urgência de respostas individuais e sociais” (BEIGUI, 2006, p.
19). Destaca-se, em todos os sentidos, que Querô é considerado uma obra híbrida, tanto
por fazer parte de um processo de transição da escrita de Plínio Marcos, ou seja, de uma
fase mística para uma fase caracterizada por adotar o tema do banditismo, mas,
principalmente, pelo fato de apresentar características de outros gêneros.
Nosso primeiro capítulo que recebe o título de Querô: um trágico do quotidiano
apresenta uma reflexão acerca do “trágico” no sentido de compreender como é que
houve a adequação de determinados elementos de uma forma dramatúrgica por muito
tempo considerada superior, marcando-se a maneira como Plínio Marcos utilizou-se
disso para compor uma dramaturgia nova no contexto nacional. O tópico Qualquer
teatro é o meu teatro apresenta um panorama da obra de Plínio e o contexto de escrita
do autor, tendo em vista que escreveu em um período marcado pela presença da
ditadura e, consequentemente, pela censura. Percebe-se que a noção de “trágico”
desvinculada da forma antiga da tragédia ajusta-se ao que se tem, atualmente, chamado
de “trágico do quotidiano”, também nos termos de Sarrazac (2013a). Para tanto,
apresenta-se também as discussões de Motta (2011) no que se refere às montagens de
19
tragédias no Brasil, ainda mais, o problema do trágico na era contemporânea,
notadamente porque espetáculos construídos nesse período trazem em sua marca o
questionamento dos modelos de dominação cultural e política.
Nesse percurso, obviamente, tornou-se imprescindível a compreensão em torno
dos conceitos de fait-divers18, “[...] na sua banalidade jornalística, uma poderosa fonte
de inspiração” e Impersonagem, sobretudo porque Querô é um exemplo desse homem
do quotidiano, o “impersonagem”. Nas palavras de Sarrazac (2013a) “[...] é cada vez
mais a figura do homem comum, do homem quotidiano, que vai sustentar o trágico. Um
homem comum que não pode ser chamado de „herói‟, a não ser impropriamente, apenas
porque possui o/um papel principal na peça” (SARRAZAC, 2013a, p. 7). Desse modo,
o teórico francês afirma: “Nem herói e nem mesmo „personagem agindo‟ (prattontes19),
a figura trágica moderna não combate, não age, não decide. Ela se submete”
(SARRAZAC, 2013a, p. 7). Esse impersonagem do fait divers quando pensado como
personagem do teatro pode se reconhecer como “pequeno criminoso”, como sub-
homem. Há entre eles um denominador comum, “um mergulho no não-humano do
humano”, visto que carregam consigo a marca do Zé Ninguém.
Nosso objetivo ao longo do segundo capítulo, Entre limites: adaptação e
apropriação é observar as relações entre as obras na tentativa de entender como
acontecem os cortes, ajustes, assimilações, entre outras ações, de modo que durante
nossa busca por parceiros que nos ajudassem a compreender melhor as relações entre as
obras, chega-se aos conceitos de tradução, adaptação e apropriação. Em seguida, o
tópico O surgimento de um diálogo apresenta questões referentes aos termos tradução,
adaptação e apropriação. Com base nestes conceitos, destacamos que todos os estudos
desenvolvidos por Linda Hutcheon (2011) sobre a adaptação sustentavam a discussão já
apresentada por Plínio Marcos ao dizer que o texto dramatúrgico (2003) é uma
adaptação do romance (1992).
Desse modo, a partir do conceito de adaptação, conforme propõe Linda
Hutcheon (2011), desenvolve-se também um estudo entre o romance Querô, uma
reportagem maldita (1992) e o texto dramatúrgico de mesmo nome (2003). Embora as
discussões sobre a adaptação respondessem nossas questões em relação ao romance e ao

18
SARRAZAC, 2011, p. 59.
19
Essa concepção prattontes, de Platão e Aristóteles, é utilizada para nomear o ator, especificamente, o
fingidor (FERNANDES, 2011, p. 13). Disponível: https:<
portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/5391/3860>. Acesso em: 12 de maio de 2017.
20
texto dramatúrgico, precisávamos ampliar nossa pesquisa e sentimos a real necessidade
de estudar o espetáculo do grupo teatral Galpão Folias d‟Arte, que nos tirava do nosso
lugar confortável e nos levava a refletir sobre a mise en scène, nesse caso, percebemos
que não nos era suficiente falar de adaptação. Foi quando encontramos parceria nas
discussões de Beigui (2006) e Sanders (2015) no que tange às questões em torno da
apropriação no teatro contemporâneo.
No terceiro capítulo, de título Uma forma mais livre do drama, reservamos a
análise das obras a partir do conceito de “teatro rapsódico”, de Jean-Pierre Sarrazac
(2002). O ponto de partida é a discussão sobre o romance, gênero por muito tempo
considerado problemático, à luz da teoria de Féher (1997) que considera o romance
como “gênero ambivalente”, bem como do conceito de “romance polifônico20”,
conforme Bakhtin (2015). Em Querô as personagens não são “[...] apenas objetos do
discurso do autor; mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante”
(BAKHTIN, 2015, p. 5), desse modo, compreende-se que a multiplicidade de vozes,
consciências, ideologias e contradições de cada personagem acontece em “pé de
absoluta igualdade”.
O intuito do percurso é o de ampliar as discussões que apontam o texto de Plínio
como obra híbrida, nos levando a escrever algumas linhas sobre híbrido e hibridismo. O
conceito de “rapsódia”, pensado por Sarrazac (2002; 2012), de algum modo, está
relacionado à discussão apresentada por Bakhtin (1998) sobre a “romancização”: Na
época da supremacia do romance, quase todos os gêneros resultantes em maior ou
menor grau, „romancizaram-se‟: romancizou-se o drama (por exemplo, o drama de
Ibsen, o de Hauptmann, todo o drama naturalista” (BAKHTIN, 1998, p. 399). Assim
sendo, discorre-se em torno do conceito de romancização, embora a teoria tenha sido
pensada em um momento diferente, a partir de uma compreensão distinta de drama.
Desse modo, a teoria de uma “forma mais livre” do drama formulada por
Sarrazac (2002, 2012), ou seja, de uma “pulsão rapsódica” é o que o diferencia do

20
“Dostoiévski é o criador do romance polifônico. Criou um gênero romanesco essencialmente novo. Por
isso sua obra não cabe em nenhum limite, não se subordina a nenhum dos esquemas histórico-literários
que costumamos aplicar às manifestações do romance europeu. Suas obras marcam o surgimento de um
herói cuja voz se estrutura do mesmo modo como se estrutura a voz do próprio autor no romance comum.
A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra comum do autor; não está
subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas características, mas tampouco serve de
intérprete da voz do autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse
ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de
outros heróis” (BAKHTIN, 2015, p. 5).
21
pensamento de Peter Szondi (2011), visto que para o teórico alemão a crise do drama se
instaura quando os pilares do drama (ação no presente, relacionamento interpessoal e o
diálogo) entram em conflito21. Assim, “[...] a rapsódia afirma-se como um conceito
transversal importante, que se declina em uma série de termos operatórios,
desembocando na constituição de uma verdadeira constelação rapsódica”
(SARRAZAC, 2012, p. 152). O objetivo de Sarrazac (2012) é explicar o surgimento de
um novo paradigma do drama, ou seja, o drama-da-vida em oposição ao drama-na-vida,
mais conhecido como o “drama absoluto22”, teoria desenvolvida por Szondi (2011) para
enfatizar o surgimento das dramaturgias épicas de Piscator e Brecht como a saída para a
superação do drama em crise.
Nesse sentido, Sarrazac (2012) não se refere a uma crise do drama, visto que
insiste na idéia de uma fragmentação, de uma ruptura necessária para o estabelecimento
desse novo paradigma. Com base no exposto, buscamos para as leituras de Querô a
teoria do teatro rapsódico, de Sarrazac, como uma linguagem direta que mais se
aproxima do homem contemporâneo.
Nosso quarto capítulo, de título O teatro que se quer fazer: Galpão Folias
d’Arte, apresenta uma conversa inicial, com o título Contextualização, sobre questões
em torno do drama e da cena, principalmente, no que se refere aos estudos que tentam
abordar não somente os textos, como também espetáculos, e por sua vez, os elementos
que estão por traz do maquinário teatral. Após essa apresentação, a proposta do tópico A
construção de um caminho é mostrar a luta de um coletivo para fazer teatro no Brasil, a
trajetória do Grupo, bem como questões em torno não só do espetáculo Querô, como
também de outros trabalhos montados pelo Folias. Por fim, compreender as dinâmicas
do Grupo e expor uma leitura das cenas com base em discussões que envolvem também
questões sobre a teatralidade, figurino, música e iluminação, de acordo com Sílvia
Fernandes (2010); Silva (2010), Beigui (2010) e Patrice Pavis (2008; 2013).
Em suma, seguimos com o objetivo de compreender os processos de leituras de
Querô como uma forma de atualizar a história e recontar os fatos dentro de uma
estrutura social. Entendemos assim que Querô forma um “[...] mosaico de escrita em

21
Por isso, propõe uma tentativa de superação, sobretudo porque a antiga forma dramática se esforça para
conter os novos assuntos, todos com uma dimensão épica, e, por fim, as tentativas de solução do drama
em crise.
22
“O drama, definido como um „acontecimento inter-humano‟ em presença, é absoluto na medida em que
exclui todo elemento exterior à troca interpessoal exprimida pelo diálogo” (KUNTZ; LESCOT, 2012, p.
73).
22
constante transformação23” e a figura do rapsodo24, “[...] artífice por excelência do
drama no mundo contemporâneo25”, ganha sentido nesse estudo, como aquele que é
capaz de dar voz a uma memória coletiva e pessoal.

23
HERSANT; NAUGRETTE (2012, p. 152).
24
“Através do poeta, algo passa dos deuses para nós; através do rapsodo, algo é passado do poeta para
nós” (OLIVEIRA, 2011, p. 63). Nesse sentido, a figura do rapsodo é entendida como intérprete do
intérprete, como revela o diálogo entre Socrátes e Íon (rapsodo): “Socrátes. Mas, então, vós, os rapsodos,
por sua vez, interpretais os versos dos poetas? Íon. Também em relação a isso dizeis a verdade. Sócrates.
Mas, então vós vos tornais intérpretes de intérpretes? Íon. Sim, completamente” (PLATÃO, 2011, p. 41).
25
MORAES, 2012, p. 13.
23
CAPÍTULO 1

QUERÔ: UM TRÁGICO DO QUOTIDIANO

1.1 QUALQUER TEATRO É O MEU TEATRO

Em 1969, a dramaturgia ganha a deformidade de “teatro alienado” por não se


guiar pelas formas do teatro político apresentado pelo Arena, Oficina e o Opinião. No
entanto, essa “[...] geração de 1969 constituiu um núcleo de criadores que,
„coletivamente‟ produziu algo reconfortante não só do ponto de vista estético como
também sob o viés político” (ANDRADE, 2013, p. 243). Nesse período aparece uma
nova geração formada por Antônio Bivar, José Vicente, Consuelo de Castro, Leilah
Assunção e Isabel Câmara. Entre esses dramaturgos está Plínio Marcos que “irrompe na
dramaturgia brasileira”, diz-nos Andrade.
Quando o governo publicou o AI-5, em 1968, o terror foi implantado e a censura
tornou-se as algemas para aqueles que tentassem proferir palavras contrárias. De modo
que “[...] se tornou tão feroz que somente passavam pelo seu crivo os textos nebulosos,
alegóricos, [...] incompreensíveis para o grande público de linguagem cifrada para
poucos entendedores de senhas ocultas, Plínio Marcos jamais tergiversou” (ZANOTO,
2009, p. 11). Em meados dos anos de 1970 a cena brasileira se volta à “questão
experimental”.
De acordo com Mostaço (2013), o novo quadro sociopolítico faz gerar em
meados dos anos 70, três movimentos simultâneos, são eles: i) o teatro de resistência
formado também pelos cepecistas; ii) um front contracultural conhecido às vezes por
desbunde, udigrudi, ou alternativo; bem como, iii) os lucros culturais do “milagre
econômico” dispostos pelos militares como uma alternativa de que o país conhecesse
intensamente o desenvolvimento das comunicações e da cultura de massa.
Ensaiava-se um novo fazer teatral com tendências formais e temáticas a partir de
peças de Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna, Dias Gomes, Jorge Andrade e a presença
24
do teatro político, de Brecht nas produções de Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e
Oduvaldo Viana Filho. Dentre esses novos autores que revelavam em suas obras a
necessidade de mudança, ou seja, uma “nova moldura dramatúrgica”, Plínio Marcos
leva para os palcos “[...] uma nova classe integrada por indivíduos até então ignorados
pela saga teatral, aos quais devota solidariedade irrestrita pelo simples fato de fazê-los
existir (ZANOTTO, 2009, p. 15). Durante esse período o teatro foi uma importante
ferramenta de expressão, uma vez que representou as lutas políticas da época. Essas
representações da história das lutas coletivas no teatro tiveram seu nascedouro no épico.
Conforme Beigui (2006):

O olhar paralelo e pela tangente encontrou na encenação e não na


dramaturgia um modo de reflexão e de compreensão dos nossos
problemas e de nossa miscigenação ideológica. De modo mais ou
menos consciente, a exploração da cena e dos arranjos de palco,
incluindo a improvisação concretizou a primeira e mais importante
contribuição do teatro épico no Brasil, ou seja: aproximou a crise da
representação à crise da consciência ligada, sobretudo, às
transformações ocorridas no drama. Paralelamente à crise da
consciência, a materialidade cênica revelou problemas de produção e
as limitações técnicas, o que de modo pouco justificável, mas
inegável, contribuiu para uma maior valoração da criatividade tanto do
diretor quanto do ator (BEIGUI, 2006, p. 22).

Embora algumas peças tenham sido impedidas de ganhar os palcos, muitos


foram os grupos e coletivos que continuaram construindo a história da dramaturgia no
Brasil, e, como afirma a citação, a exploração da cena, dos arranjos do palco e a
improvisação tornam-se um marco no que se refere à presença do épico no Brasil. Dessa
forma, surge o novo drama brasileiro a partir das absorções que fez dos conflitos da
geração de 1968, criando uma cena totalmente particular.
Em suma, desde a década de 1960 uma nova geração de teatrólogos brasileiros
marca o período conhecido como a “Nova Dramaturgia”, entre eles, o teatro pliniano
torna-se um marco diferencial. Plínio é “[...] saudado pela crítica como um
acontecimento original, ao lançar mão de uma atmosfera de expressionismo
confessional e investir em um naturalismo perturbador” (ANDRADE, 2013, p. 39).
Esse período também se caracterizou pela inserção da temática do quotidiano já
abordada na década anterior, ou seja, “[...] a classe média e seus impasses não deixaram
de figurar em cena, ao lado da adaptação de temas históricos, com o passado visto como
metáfora do presente” (VENDRAMINI, 2013, p. 257). A proposta da dramaturgia
25
coletiva muito intensa na década de 70 revelou uma grande importância para o
desenvolvimento da dramaturgia e dos espetáculos que surgiam pouco a pouco, uma vez
que assinala formas distintas de representação.
As obras do dramaturgo tentavam resistir às opressões de um sistema que não
deixava falar sobre “puta, pobre e cafetão”. Plínio Marcos revela o tom de sua escrita
quando defende que “[...] o intelectual brasileiro é um marginal de classe média
querendo ganhar status através da cultura” (MENDES, 2009, p. 210). Era assim que
escolhia suas personagens, os esquecidos que viviam junto a ele comendo quando
conseguiam e ainda assim, cantando samba e escrevendo suas obras.
A fama de Plínio como analfabeto sempre ganhou mais atenção, ele mesmo “[...]
cuidou de difundir a lenda de ser um analfabeto, citando à sua maneira uma crítica de
Patrícia Galvão26. Aos compradores de seus livros prometia morrer logo para valorizar o
autógrafo” (MENDES, 2009, p. 53). Para Cacilda Becker27, após ler Navalha na carne,
a escrita de Plínio era “Incrível! Conhece vinte palavrões e consegue escrever uma
peça” (MENDES, 2009, p. 53). No entanto, Patrícia Galvão afirma: “Atendendo à
obrigação de escrever a respeito, devemos partir da separação dos dois textos. O
primeiro é o texto de um principiante ainda: o segundo é um bom texto”. É interessante
conhecer a crítica que Patrícia Galvão, conhecida como Pagu, tece ao principiante Plínio
Marcos e a sua peça Os Fantoches, e a Jenny do Pomar, o bom texto de Charles
Thomas.
Caracteriza a tentativa do autor de passar do plano da reportagem, que
era o principal defeito da sua peça anterior, „A Barrela‟, para um plano
de criação, invadindo terreno difícil para sua experiência e seus
conhecimentos, desde que há a intenção de nos proporcionar um texto
de tonalidades filosóficas. E o nível mental e intelectual do autor,

26
“Patrícia Rehder Galvão (São João da Boa Vista, SP, 1910 - Santos, SP, 1962). Romancista, tradutora,
jornalista e professora. Aos três anos, muda-se com a família para São Paulo e vai residir no bairro
industrial do Brás. Conclui os estudos na Escola Normal em 1928, ao mesmo tempo que estuda literatura
e arte dramática no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. No ano seguinte, aos 19 anos,
conhece o escritor Oswald de Andrade (1890-1954) e a artista plástica Tarsila do Amaral (1886-1973),
envolvidos com o movimento antropofágico, e tem um de seus desenhos publicado na Revista de
Antropofagia. Em 1930, Pagu, nome criado pelo amigo e escritor Raul Bopp (1898-1984), casa-se com
Oswald e realiza o sonho de emancipar-se definitivamente da família”. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa451572/pagu>. Acesso em: 16 de Mai. 2018.
27
“Atriz. Protagonista de vários espetáculos do Teatro Brasileiro de Comédia, fundadora da companhia
que leva o seu nome, Cacilda Becker interpreta personagens antagônicos, como o moleque de Pega Fogo,
a velha de Jornada de um Longo Dia para Dentro da Noite, a devassa de Quem Tem Medo de Virgínia
Woolf?, a rainha de Maria Stuart, o clown de Esperando Godot. Indo da farsa à tragédia, do clássico ao
moderno, é considerada, por alguns teóricos, a maior atriz do teatro brasileiro”. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa349429/cacilda-becker>. Acesso em: 16 de Mai. 2018.
26
infelizmente, se desencontra, como possibilidade, para palmilhar o
terreno ambicionado28 [...].

Muitos dos textos de Plínio apresentam um discurso que tenta representar sua
própria experiência social, por conseguinte, problematiza a posição do intelectual como
único porta-voz dos sujeitos subalternos visto que fala e se torna um escritor advindo da
marginalidade. Dentre os autores considerados marginais, Plínio Marcos é referência
para os novos escritores: “A história da literatura marginal começou assim, eu nem bolei
nada, só peguei a referência do Plínio Marcos e do João Antônio [...]” (FERRÉZ apud
NASCIMENTO, 2008, p. 44). Do mesmo modo, Plínio Marcos afirma:

[...] o palavrão. Eu, por essa luz que me ilumina, não fazia nenhuma
pesquisa de linguagem. Escrevia como se falava entre os carregadores
do mercado. Como se falava nas cadeias. Como se falava nos puteiros.
Se o pessoal das faculdades de lingüística começou a usar minhas
peças nas suas aulas de pesquisas, que bom! Isso era uma contribuição
para o melhor entendimento entre as classes sociais29.

A linguagem utilizada pelo dramaturgo pressiona os que se posicionam no


centro a partir da ação da margem. Plínio não fez parte do cânone literário, escreveu
sem se preocupar muito com as formas. Baseado no que reflete Justino (2015) há nessas
obras algo que nos impulsiona a observá-las pela

[...] representação [...], dezenas de personagens vivendo vidas


ordinárias, no mais das vezes contra alguma espécie de ordem e ao
mesmo tempo radicalmente inseridos nelas, produzindo
ininterruptamente num ambiente dialógico [...], cujas negociações são
de solidariedade, de confronto ou da mais pura indiferença, mas que
se produzem, sempre, coletivamente (JUSTINO, 2015, p. 137).

Plínio, por sua vez, parece não ter se deixado abater e seguiu, possibilitando aos
silenciados, como ele, o direito à voz na tentativa de também se libertar dos poderes
opressivos da sociedade. Autores que “[...] se distinguem dos demais porque são
também atores dos espaços retratados nos textos e, portanto, sujeitos marginais que
estão inserindo suas experiências sociais no plano cultural” (NASCIMENTO, 2008, p.
76). Desse modo, é notável o crescente número de autores marginalizados que investem
no campo da literatura brasileira apresentando novas questões e dimensões.

28
Ver: <http://www.pliniomarcos.com/criticas/jornada-pagu.htm>. Acesso em 07 de fevereiro de 2018.
29
Ver: <http://www.pliniomarcos.com/dados/censura.htm>. Acesso em: 14 de julho de 2014.
27
O dramaturgo de origem mais ou menos humilde foi de tudo um pouco,
jornalista, vendedor, palhaço, não foi bom aluno, repetiu de ano diversas vezes, por isso,
foi retirado da escola pelos pais e não concluiu os estudos. No começo da carreira como
dramaturgo, Plínio Marcos torna-se reconhecido por levar para os palcos personagens
bandidos, considerada a primeira grande fase do autor. Em sua segunda fase os místicos
começam a surgir como personagens, o que lhe rendeu severas críticas.
Os últimos30 textos escritos depois de Querô, uma reportagem maldita (1976)
marcam o período de transição da escrita de Plínio, por exemplo, em Jesus-homem
(1978) surge à personagem Jesus, uma idealização do homem como uma espécie de
místico-libertário, destinado a buscar um Deus justo; e, logo em seguida, Sob o signo da
discoteque (1979) traz Zé das Tintas, um profissional que trabalha como pintor de
parede, ganha um salário mínimo e por não conseguir um amor para si participa de uma
curra, visto que só fazia sexo quando recebia o pagamento uma vez no mês. Desse
modo, Querô, uma reportagem maldita é em todos os sentidos, ou seja, formal e
temático, uma obra híbrida, especificamente, pelo fato do dramaturgo mesclar em
Querô temáticas abordadas em sua fase anterior e o tema do banditismo.
A terceira fase do autor ganha características de uma escrita pautada na
religiosidade. Assim, surge Madame Blavatsky (1985) e em sequência Balada de um
palhaço (1986), visto que em “[...] sua mais recente criação, Plínio fez metateatro,
emprestando à palavra feliz carga poética. Muito se pode esperar de sua permanente
inquietação” (MAGALDI, 2008, p. 220). A personagem Bobo Plin, o palhaço que está
em crise com a sua profissão, improvisa com o parceiro Menelão no picadeiro.
Muitos são as personagens que atravessam a vida de Querô, algumas deixam
marcas, outras, nem tanto, visto que apenas são citadas durante os relatos. Entre um
acontecimento e outro conhecemos: Ju (amiga de Alzira), Violeta (madrinha de Querô),
padre, prostitutas, Alzira da Piedade (mãe), Tainha (chefe do bando), Bolacha Preta
(negro meio pirado da cuca), gringo (bichona louca), Kioto Japonês (empregador),
delegado, Nelsão e Sarará (policiais), todos os pivetes do reformatório: (Pivete da
Madame, Malhado, Tuim, Corvo Louco, Brancura, Zoinha, Mosca de Bolo, Lavinho,
Cativeiro entre outros), Cocada, Zulu, Edgar (cozinheiro), Dona Quita, Naná, Gina de
Obá, Bilu de Angola, Lica, Brandão, Toco de Vela e o Jornalista.

30
Ver: Anexo 7. 2 para conhecer a cronologia do Teatro adulto escrito por Plínio Marcos (MARCOS,
2003, p. 278 – 279).
28
Com dez capítulos enumerados e sem títulos Querô surge com base em uma
dessas “reportagens malditas” marcadas pela violência. Somos guiados pelo olhar de
um menino que narra os fatos de sua existência, desde o primeiro capítulo, quando
conta a história triste do seu nascimento, até o oitavo, quando se envolve na briga com
os policiais e é baleado, – “Eu ali, naquela escuridão do cais do porto, estava mal.
Percebi que, se parasse, não ia poder ir a mais nenhum lugar. Aquela porra daquela
perna estava doendo muito” (MARCOS, 1992, p. 84). Em seguida, nos deparamos com
o diálogo entre Querô e o Jornalista, nome da personagem no romance, e no décimo
capítulo o Jornalista assume a voz do narrador.
Cada capítulo apresenta ao leitor uma fase da vida de Jerônimo da Piedade, as
transformações, como a mudança de identidade quando assume o nome Querô, o
crescimento do menino, o ódio alimentado pela sede de vingar a morte da mãe e ao
mesmo tempo a necessidade de sobreviver. Assim, observamos que o leitor conhece a
zona portuária de Santos, em São Paulo, as ruas, becos, cabarés e a vida daquele lugar.
Embora a ação se volte para Querô, à multidão que circula pelos ambientes do cabaré
(as prostituta, clientes, Violeta, Ju), do reformatório (todos os meninos citados), da
delegacia (Nelsão e Sarará) constrói a trama.
O capítulo I traz a história do nascimento de Querô, filho de pai desconhecido,
bem como a luta de Alzira da Piedade, mãe do menino, para tê-lo e a maneira que
encontrou como saída para resolver seus conflitos, o suicídio. Outras personagens que
fazem parte desse mosaico são progressivamente apontadas ao longo dos relatos, como
a cafetina Violeta que após ser pressionada pelas outras prostitutas e responsabilizada
pela morte da mãe de Querô, sem saída, torna-se madrinha e ao mesmo tempo
perseguidora do menor. Ju, amiga de Alzira, surge como uma espécie de protetora do
menino. Embora não apareça muito no romance, também é responsável por contar
alguns fatos da vida de Jerônimo, ainda desconhecidos por ele, e a ajudá-lo a construir
uma imagem da mãe.
Além das características até então percebidas na obra de Plínio Marcos, o que
também aponta uma mudança é a presença do autor como personagem. Em Querô
(1976), o dramaturgo aparece como o Repórter que se sensibiliza pelos dilemas do
menino Jerônimo. Traçar esse panorama sobre as fases do autor e identificar as
personagens de uma escrita marcada esteticamente pela presença do marginalizado, pela
figura do homem comum, nos impulsiona a entender a categoria da personagem na
29
escrita plianiana, especificamente, em Querô, observando o que há de trágico no
simples fato de viver.

1.2 O NASCIMENTO DE UM TRÁGICO DO QUOTIDIANO

O termo “tragédia” não é utilizado apenas nas discussões da academia, visto que
no dia a dia o ser humano quando quer se referir as adversidades da vida sempre recorre
à expressão ligada à tragédia da vida humana. Raymond Williams diz que tragédia “[...]
não [é] um tipo de fato único e permanente, mas uma série de experiências, convenções
e instituições31”. No entanto, a palavra “tragédia” marca as produções de obras que
ganharam evidência pelo conteúdo e pela forma que apresentam, por exemplo, Oréstia,
de Ésquilo.
Ainda que partamos do conceito de tragédia, nossa intenção é entender a nova
concepção de trágico desvinculada da tragédia, ou seja, o que Sarrazac (2013a) chama
de trágico do quotidiano. Para Sarrazac (2013a) o desaparecimento da tragédia não
implica no desaparecimento do trágico, uma vez que as relações tanto pessoais, quanto
sociais influenciaram na produção de possíveis ferramentas para a construção de um
novo trágico. Achamos importante, nesse quadro, apresentar o que influenciou as
montagens de tragédias no Brasil. Motta (2011) revela em suas pesquisas que a
produção de tragédias no contexto nacional foi influenciada pela ideia de questionar os
modelos de dominação tanto cultural, quanto política.
Segundo Motta (2011) o aumento da montagem de tragédias no contexto
brasileiro é resultado dos acontecimentos “[...] na ordem social, política nacional e
internacional, como os atentados terroristas, as guerras, a devastação do meio ambiente,
a grande massa de desabrigados, a violência na esfera da vida doméstica, o controle da
vida sobre o cotidiano [...]” (MOTTA, 2011, p. 216). Para o teórico, esse movimento de
avivar a tragédia, do ponto de vista brasileiro, entre o período de 1960 até os dias
atuais32, permite identificar três fases, a saber:

31
WILLIAMS apud EAGLETON, (2013, p. 26).
32
Vale ressaltar o ano de publicação do livro (2011).
30
Uma primeira – final dos anos de 1960 até meados da década de 1970
– [...] rompem com a representação tradicional da tragédia e
estabelecem um diálogo direto com a realidade social e política
brasileira; A segunda fase parece ter início após o término da ditadura
militar estendendo-se até meados dos anos de 1990. [...] período de
mobilização em que a necessidade da afirmação de si, como elemento
fundamental da ética pós-moderna, procura se coadunar com o corpo
coletivo; Uma terceira fase do movimento da revivificação da tragédia
grega e do próprio pós-modernismo teatral brasileiro parece se
anunciar a partir do final do século XX. [...] a tragédia grega se
tornará uma forma privilegiada para questionar modelos de dominação
cultural e política, assim, como os diversos níveis de desigualdade, de
injustiça e de violência na vida atual (MOTTA, 2011, p. 216 – 218).

O surgimento de um posicionamento ontológico da tragédia revela, no contexto


brasileiro, uma escrita marcada pelo questionamento dos modelos pré-estabelecidos.
Observa-se que Plínio Marcos pode ser inserido em pelo menos duas das fases
apontadas por Motta (2011), embora não fosse um autor de tragédias. A primeira delas
refere-se ao engajamento do dramaturgo e a necessidade de auto-afirmação a partir de
uma escrita dilacerante; a segunda, diz respeito às características de suas obras
marcadas pelo diálogo direto com a realidade social e política nacional, tornando-se o
modo como expressa a violência, a multidão e a desigualdade, resultado dos
acontecimentos vividos. Plínio reúne, através de sua escrita, elementos importantes que
contribuem para a construção do que hoje se tem chamado de trágico do quotidiano,
marcando-se a maneira como o dramaturgo se utiliza desses fatores para compor uma
nova dramaturgia no contexto nacional.

A experiência estética da tragédia abriu espaço para uma especulação


de ordem ontológica: o trágico é visto como uma característica
fundamental da existência, decorrente da revelação de uma
contradição essencial entre o homem e o universo, contradição que
conduz ao sofrimento extremo. A tragédia revelou a questão do
trágico (MOTTA, 2011, p. 13).

Motta (2011, p. 216) assinala que espetáculos analisados em seu estudo, por
exemplo, Oresteia, o Canto do Bode, montagem do Grupo Galpão Folias d‟Arte da
trilogia Oréstia, de Ésquilo, refere-se também ao “problema trágico na era
contemporânea”, notadamente porque esses espetáculos trazem em sua marca o
questionamento dos modelos de dominação cultural e político.

O espetáculo possui também certa exemplaridade por vários aspectos


ao longo destas análises: o processo de deslocamento do texto grego
31
para o contexto político e cultural brasileiro; a atualização do texto a
partir da inserção de diversas linguagens artísticas e da fusão de
linguagens teatrais de caráter popular; o enquadramento da tragédia
grega no contexto urbano; a crítica à mídia; a utilização de recursos
tecnológicos para a construção da linguagem cênica; o movimento de
autorreflexão do grupo em relação ao próprio trabalho e, por fim, a
utilização de um espaço cênico de características alternativas
(MOTTA, 2011, p. 219-220).

De certo modo, as leituras de Querô apresentam aspectos desse modelo


“trágico”, mesmo que não exista um deslocamento de um texto grego para o contexto
nacional. No espetáculo, corpus da pesquisa, construído pelo Galpão Folias d‟Arte, a
fusão entre diversas linguagens acontece através da dança, da música, bem como da
crítica à sociedade que parte tanto do texto, como da reflexão que leva a construção de
um espetáculo inovador, colaborativo e também alternativo.

[...] porque preciso fazer teatro disso? A vida já não é tão forte? Que
poética pode saltar dali? A imagem daquela mulher sem cabelos, ou a
do menino que mama em pé em plena rua: isso não é suficientemente
expressivo e real? Que força terá a representação disso? (GUEDES,
2009, p. 14).

Foram questões como essas, levantadas durante uma oficina proposta pelo
Galpão Folias D‟arte, que revelaram ao grupo a necessidade de (re)montar o texto de
Plínio Marcos. Motta (2011) adverte que: “O interesse atual pela tragédia grega é
estimulado também pela reflexão acerca da moral” (MOTTA, 2011, p. 11), como uma
necessidade de mostrar a vida comum do homem comum. Esse panorama geral da
tragédia no contexto brasileiro torna-se fundamental para compreendermos a diferença
existente entre a tragédia e o trágico com vistas a entender o “trágico do quotidiano”
proposto por Sarrazac (2013a) nas produções de Querô, uma reportagem maldita.
Szondi (2004, p. 23) em seu livro Ensaio sobre o trágico afirma que: “Desde
Aristóteles há uma poética da tragédia apenas desde Schelling, uma filosofia do
trágico”. Para Staiger (1977) o uso do termo trágico precisa ser esclarecido e assim
expõe que “[...] teremos que levar em conta a divergência da tradição antiga e estar
cientes! De que nem toda obra chamada „tragédia‟, poderá ser considerada „trágica‟”
(SATAIGER, 1977, p. 78). Com a compreensão de que era possível pensar na vida, ou
seja, pensar na condição do humano, a tragédia ganhou um viés filosófico, de acordo
com Szondi (2004), o que deu início a noção de trágico.

32
Embora a base desse pensamento fosse as teorias de Schelling, teóricos como
Goethe e Schiller igualmente apresentaram apontamentos significativos quando se
tratava do trágico, sobretudo porque cada vez mais a fixação no pensamento aristotélico
perdia suas forças. Desse modo, “[...] Goethe reconhece como essencial ao trágico um
traço que o sistema idealista de Schelling e até o de Hegel ocultam, mas que lhe causa
grande estranheza: o fato de que o conflito trágico „não permite nenhuma solução”
(SZONDI, 2004, p. 48). Nesse sentido:

Se é verdade que a interpretação ontológica da tragédia grega foi


realizada, desde Schelling, em termos de antagonismo de princípios, a
definição da tragédia a partir da contradição ou do antagonismo se
deve a Schiller, antes mesmo de ter sido formulada por Schelling,
Hegel ou Hölderlin. Schiller, o mais kantiano dos autores de tragédia e
dos filósofos ou poetas que escreveram sobre a arte trágica,
profundamente imbuído da ética e da estética kantianas, pensa a
tragédia a partir da dualidade entre a vontade humana e os instintos, a
vontade livre e a determinação natural, a liberdade moral e a
necessidade natural (MACHADO, 2006, p. 50).

A partir de uma tradição normativa os teóricos chegaram a um raciocínio


filosófico que resultou na filosofia do trágico. A mudança de posicionamento pode ser
percebida com os novos conceitos elaborados. Do ponto de vista do pensamento de
Schiller, o trágico é entendido como um combate entre instinto e liberdade que resulta
na consolidação da liberdade moral. Em Schiller, o sofrimento das personagens ganha
vez e, por conseguinte, a tragédia se realiza.
Em sua obra intitulada O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche,
Machado (2006, p. 7) elabora um estudo que investiga a “[...] constituição histórica do
pensamento sobre o trágico”. Para isso, volta-se à Poética, referindo-se ao estudo
“poetológico” da tragédia desenvolvido por Aristóteles, e, aponta Schiller como
elemento fundamental que marca o processo de mudança entre um posicionamento
“poetológico” de encarar os estudos sobre o trágico para um “ontológico”. Para
Machado (2006), Schiller em sua teoria já apresenta sinais de uma discussão sobre uma
“filosofia do trágico”, embora defenda que somente com Schelling esse posicionamento
ontológico tenha realmente iniciado, pensamento que encontra aproximação entre os
estudos de Peter Szondi (2004), ao defender que a “filosofia do trágico” tem origem
com Schelling.

33
É interessante frisar que a associação do trágico à tragédia se rompe somente no
final do século XVIII. Machado (2006, p. 94) chega a questionar qual é a concepção do
trágico e da tragédia em Schelling. Como resposta, afirma que embora Schiller tenha
apresentando uma interpretação moral da tragédia, “Schelling é o grande marco da
reflexão sobre o trágico”. Há em Schelling, segundo Machado (2006, p. 106), “[...] uma
interpretação metafísica da tragédia”. O conceito de trágico em Schelling é
consequência do modo como se apreendia a tragédia, nesse sentido, a arte para ele era
considerada como uma manifestação conflitante entre o destino e a liberdade humana.
Eagleton adverte-nos:

Em seu Filosofia da arte, Schelling presume que a tragédia deve se


envolver com o destino e pergunta se pode haver uma versão moderna
dela. Ele responde que Shakespeare substitui o destino pelo caráter,
agora apresentado como necessidade insuperável. Para os antigos
gregos, argumenta ele, os deuses frequentemente infligiam erro à
humanidade e seu tipo de destino é, portanto, defectivo; mas esse não
pode ser o caso do deus perfeito do cristianismo. Portanto, o destino
como causa da ruína trágica precisa delocar-se, em vez disso, para o
caráter, que não mais pode ser considerado livre (EAGLETON, 2013,
p. 172).

A versão moderna da tragédia, com base em Schelling, dispensa o destino


imperfeito para apresentar o caráter como necessidade insuperável. Sendo assim,
liberdade e necessidade se ligam na tragédia, sobretudo, porque ao optar
espontaneamente vivenciar o caminho posto pelo destino, a personagem estaria
vencendo a necessidade. Nesse caso, o conflito entre a liberdade e necessidade surge a
partir do instante em que há a superação e a oposição com base na diferença apresentada
entre ambas. Para Schelling, compreender o ser está no íntimo dessa relação entre
liberdade e necessidade, ou seja, uma maneira de existir no mundo que leva a eclosão
do trágico.
Assinalamos que Querô tenta compreender o que se passa em sua vida. Há uma
investida, por parte da personagem, em mudar o destino, no entanto, seu nascimento
torna-se um castigo, uma vez que não importa o que faça, será sempre apontado como
filho de prostituta e de pai desconhecido. Sendo assim, não pode mais ser considerado
livre. Percebe-se que a personagem assume seu destino sustentado na ideia de vingar a
morte da mãe, força que sempre joga o menino para a roda da vida, desse modo, ao
mesmo tempo em que é livre para superar a marca que carrega, perde sua liberdade

34
quando precisa lutar contra as forças que lhe aprisionam. Nesse sentido, identificamos
na história traços desses conflitos entre liberdade e necessidade que surgem a partir da
superação e objeção nas ações de Querô.
Com a ajuda de Gina de Obá e Pai Bilu de Angola, Querô começa a escolher os
caminhos que o destino lhe apresenta. Encontra em sua caminhada Lica, menina por
quem se apaixona e, a partir das defumações e das conversas com os pretos velhos,
segundo ele, a vida parece querer se ajustar. Consegue passar um bom tempo em paz,
trabalhar para se sustentar, frequentar lugares sem se envolver em brigas, voltar a pensar
em si e até em sua aparência física até se envolver em uma nova confusão.

Ela também ria. Mas ficava nisso. E já era uma boa. Pensando nela,
quando ficava sozinho no meu quarto, eu ficava numa boa. Não me
lembrava da desgraceira que me fizeram e que eu fiz. Já me sentia à
vontade. Já não ficava mais nas encolhas. Me chegava nos pedaços
onde a corriola se juntava. Escutava papo, jogava sinuca, escutava
história e tudo. Até pensava em dar um capricho em mim, pra ela me
ver bem vestido. Parei de pensar tanto em arrumar um revólver, pra
pensar em roupa. Era do caralho curtir aquela menina, a tal da Lica.
Minha vida melhorou [...] Eu estava botando fé. Pela boca da moçada
do cais do porto, fiquei sabendo que o gorgota33 lá do Reformatório
não morreu. Ficou aleijado e se aposentou. O que já era menos bronca
em cima de mim. A bichona Naná eu via passar pelo cais do porto e
ela também me via. Nunca disse nada. Era sinal que não deu parte de
mim e que tudo saiu no mijo. E sem me meter em salseiro, fiquei
quase dois anos. Mas, uma tardinha de frio e chuva, por causa de uma
besteira de merda minha vida bagunçou tudo de novo (MARCOS,
1992, p. 52).

Com base no exposto, a compreensão da personagem Querô acontece a partir da


análise de suas ações, ou seja, de ações conscientes ligadas à liberdade e ações
inconscientes voltadas a necessidade formando, assim, o caráter da personagem que não
mais pode ser considerado livre. Essa falta de liberdade da personagem é resultado
também do seu próprio destino social, visto que Querô vem de uma genealogia social
que determina sua tragédia pessoal, é filho de pai desconhecido, mãe prostituta e criado
pela cafetina Violeta em um cabaré. Nesse sentido, o familiar aqui é social.
Desse modo, “[...] o herói trágico, afirma Schelling, pode erguer-se acima da
necessidade, valendo-se de sua inclinação em relação a ela, e assim ser vencido e
vencedor ao mesmo tempo” (EAGLETON, 2013, p. 174). Há uma compreensão por

33
De acordo com o dicionário Houaiss a palavra “gorgota” significa: “1) marujo com algum tempo de
experiência, veterano; 2) homossexual ativo” (HOUAISS, 2009).
35
parte de Schelling de um herói que combate. Embora exista um destino, esse herói
busca a autonomia mesmo que se depare com a derrota.

À medida que o herói trágico, na interpretação de Schelling, não só


sucumbe ao poder superior do elemento objetivo como também é
punido por sua derrota, ou simplesmente pelo fato de ter optado pela
luta, volta-se contra ele próprio o valor positivo de sua atitude, a
vontade de liberdade que constitui a „essência de seu eu‟ (SZONDI,
2004, p. 31).

A percepção de Schelling sobre a tragédia independente do aristotelismo permite


ir além da poética da tragédia, visto que transpõe tal legado e estabelece uma
interpretação filosófica. Com base em tais pressupostos, o trágico em Querô parte
também da liberdade com que o menino experimenta combater o destino e, ao mesmo
tempo, ser esmagado por ele. Nesse sentido, Querô é livre para combater e lutar contra o
destino ao passo que não pode derrotá-lo por completo, uma vez que está preso aos
fatos. Assim, resiste ao peso do destino e, através da perda de sua liberdade, prova a
existência dela. Nesse caso, Szondi afirma:

Com isso o trágico é compreendido, mais uma vez, como um


fenômeno dialético, pois a indiferença entre liberdade e necessidade
só é possível pagando-se o preço de o vencedor ser ao mesmo tempo o
vencido, e vice-versa. E a arena dessa luta não é um caminho
intermediário, exterior ao sujeito em conflito; ela é transportada para a
própria liberdade, que se torna assim, como que em desacordo consigo
mesma, sua própria adversária (SZONDI, 2004, p. 32).

Querô não apresenta traços de herói, por isso, não é pensado como um. No
entanto, é o homem comum que reúne as características de alguém que luta por sua
autonomia provando que prostituta também pode ser mãe e filho de prostituta é “gente”,
ao mesmo tempo em que sempre se depara com a derrota. “O trágico apresenta o
homem numa situação-limite, onde sua necessidade natural e sua liberdade moral – um
fim suprassensível – são colocadas em estado de tensão, ocasionando uma experiência
do dilaceramento humano” (MOTTA, 2011, p. 14). Os aspectos modernos na obra de
Plínio se fazem presentes através dos elementos do trágico. Por sua vez, o trágico de
que fala Szondi (2004) é compreendido de maneira dialética através do conflito entre
liberdade e necessidade e não pela aceitação do destino, sobretudo porque o herói não se
deixa vencer sem antes lutar.

36
A crise do drama apontada por Szondi por volta de 1880 revela os primeiros
questionamentos às discussões apresentadas por Hegel no que se refere a “colisão”
dramática. Nesse sentido, o quadro evolutivo incita a repensar a posição do conflito,
visto que as “[...] escritas da virada do século exploram formas em que os personagens
perdem seu status de heróis e se dissolvem, em que a ação não desempenha mais um
papel preponderante” (GAUDÉ; KUNTZ; LESCOT, 2012, p. 55). Nesse caso, a partir
de Szondi (2011), o que era inter-humano cede lugar para os acontecimentos no interior
do homem, contrapondo-se ao que pregava a tradição do drama que tinha como eixo
central sua estrutura interna e a representação das relações intersubjetivas através do
diálogo.
Para Sarrazac (2013a, p. 5): “O trágico moderno não procede mais daquilo que
Hegel chama de „grande colisão dramática‟”, nesse caso, “[...] o conflito dramático – se
é que há conflito – de interpessoal torna-se intrasubjetivo”. O teórico francês afirma que
“[...] há um trágico perfeitamente independente do gênero, a partir de agora
historicamente obsoleto, da tragédia” (SARRAZAC, 2013a, p. 4). Em seu artigo34 sobre
a possibilidade de um trágico moderno, Sarrazac (2013a) aponta a existência de um
novo trágico, ou seja, um “trágico desligado da tragédia”, o que para ele seria esse
“trágico moderno”.
De acordo com o teórico, o esgotamento da tragédia está relacionado à ideia de
que o modelo tradicional de tragédia já não é suficiente para dar conta das
transformações enfrentadas pela sociedade, o que não implica no desaparecimento do
trágico. É importante destacar que “[...] o desaparecimento da tragédia não está em nada
ligado a uma desaparição do trágico. É de ordem dramatúrgica e social” (SARRAZAC,
2013, p. 3). Desse modo, resultado também dessas mudanças, o herói associado à
tragédia desaparece e no centro da discussão surge a figura do homem comum.
O trágico moderno, portanto, reduz o foco, tendo em vista que agora direciona o
olhar para acontecimentos quotidianos, amiudados, que tomam para si os fragmentos.
Suas personagens, homens comuns, estão longe de serem os heróis da tragédia clássica,
uma vez que seus destinos não mais dependem da vontade dos deuses e sim, dos
homens. Para Sarrazac (2013a) “O trágico do drama-da-vida é um trágico com um pavio
que queima lentamente” (SARRAZAC, 2013a, p. 14). O aparecimento de uma filosofia

34
Ver: SARRAZAC, Jean-Pierre. Sete observações sobre a possibilidade de um trágico moderno - que
poderia ser um trágico (do) quotidiano. Trad. Lara Biasole Moler: Pitágoras 500 – vol.4 – Abr.2013a /
ISSN 2237m-387X.
37
do trágico faz com que o teórico perceba um rompimento com o paradigma dramático,
desse modo, lança a ideia do surgimento de um “trágico do quotidiano”. Partindo de tais
pressupostos, em Plínio Marcos o trágico do quotidiano pode ser entendido também
como chave de denúncia quando, por exemplo, o dramaturgo expõe as causas dos
sofrimentos e a violência com que mulheres, menores e marginalizados são tratados. O
trágico, nesse sentido, revela-se como uma arte de delação e questionamentos. A
temática política aparece em segundo plano na obra.
A crise do drama resulta na absorção de novos elementos na cena, como a
intervenção épica, diálogos entrecortados ou a presença da coralidade, o que revela a
inviabilidade da fala intersubjetiva. Nesse sentido, o que queremos dizer é que ao passo
que o drama-na-vida expressa o regresso do destino, que segundo Sarrazac (2009, p. 80)
acontece a partir do movimento que vai da felicidade à infelicidade ou vice-versa, uma
história que tem começo, meio e fim, o drama-da-vida desconsidera elementos como
tempo, espaço e ação, uma vez que o fato é dado no início para que possa ser
descontruído. Desse modo, a partir da ideia de uma mudança de paradigma (drama-na-
vida para drama-da-vida) uma nova postura para pensar o drama é assumida.
Nesse ínterim, entendemos que Querô é condenado a um destino trágico. Uma
personagem humana, enfraquecida e perdida que expõe os fatos de sua vida,
constituindo os cenários de uma história comum. Assim, movida ora por desejo, ora por
instinto, experimenta situações corriqueiras, com pouca ação. Não vimos em Querô uma
passagem que vai da felicidade à infelicidade ou o oposto disso, como queria o drama-
na-vida. Não há em Querô uma progressão convencional dos fatos, por isso, Plínio
ignora tempo, ação e espaço e constrói a partir de elementos estranhos ao drama
absoluto, interferências épicas, por exemplo, a fala do Repórter no texto dramatúrgico –
“E o Querô foi espremido, empilhado, esmagado de corpo e alma num cubículo
imundo, com outros meninos” (MARCOS, 2003, p. 255); diálogos distorcidos, como a
conversa entre Querô e o fantasma da mãe “Leda – Eu sei, eu sei, meu nenê... Me
perdoa... Eu queria tanto, tanto, ter alguém como você... Alguém que fosse por mim...
Mas, meu filho, eu não tive força para esperar tu crescer pra me valer [...] (MARCOS,
2003, p. 257) e a presença das mulheres, o coro formado pelas prostitutas do Leite da
Mulher Amada.
De modo geral, em Querô, a maneira como as personagens se impõem e até
mesmo as relações que estabelecem umas com as outras criam situações problemáticas,
38
revelando-nos o trágico que existe nesse “drama do quotidiano”. Várias são as situações
de conflitos que essas relações sugerem na obra, por exemplo, o sentimento de posse da
cafetina Violeta:
Ele é meu afilhado. Eu criei ele como se fosse meu filho. Meu próprio
filho. Juro, meu senhor, que não medi sacrifício por ele. Peguei ele
com dias de nascido. A mãe... Ah, a mãe... Uma louca. Bebeu
querosene. Ela sabia do meu coração grande. Deixou ele lá em casa.
Sabia que eu ia me compadecer e criar o menino como meu próprio
filho. Foi o que fiz. Eduquei ele muito bem educado. À antiga. Dentro
de todo respeito. Não foi fácil. Sou uma mulher sozinha. Mas ele, meu
senhor, só me dá desgosto. Já estou velha...cansada... não tenho mais a
mesma energia. Outro dia fui repreender ele, por andar em más
companhias, e ele me agrediu. (Chora.) Eu, que o criei como filho e
que quero ele como um filho. Mas não é do meu sangue...Se puxou
pela mãe... ou pelo pai... Quem sabe? Só Deus sabe... (MARCOS,
2003, p. 253).

Essa discussão explícita sobre a tortura, a desconfiança e a censura acontece a


partir de um deslocamento feito pelo dramaturgo. Plínio decide denunciar utilizando-se
da estratégia de mostrar um menor infrator, assim, escolhe falar de uma criança para
apontar as torturas e a censura da época. Querô só decide falar sobre o crime que
cometeu junto com outros parceiros seus após muita tortura física e psicológica.
Sobre o conflito Gaudé, Kuntz e Lescot (2012) afirmam que as escritas
modernas e contemporâneas seguem utilizando esse conceito, de modo geral, com o
sentido voltado para as tensões, oposições e lutas. Com a “crise do drama moderno” e
com o questionamento levantado por Szondi (2011) sobre o sistema hegeliano, as novas
escritas apresentam as personagens sem as capas de heróis e a ação também perde a
força. Nesse sentido, com a mudança, o conflito na forma dramática começa a ganhar
novo significado. Assim:

O conflito mobiliza forças que superam o indivíduo, voltando a ser o


próprio tema da peça. Ele deixa de ser o princípio motor da forma
dramática para tornar-se conflito real, veiculado por uma estrutura não
mais orgânica, mas feita de montagem, paralelismos, rupturas. Se a
crise da forma dramática leva a repensar a noção de conflito, não se
trata apenas de uma mudança qualitativa, de uma simples passagem da
colisão dos heróis trágicos aos microconflitos do teatro cotidiano ou
aos conflitos de grupos vigentes no teatro épico. Historicamente, o
nascimento do teatro épico decerto coincide com a tentativa de
representar um conflito social mais do que interpessoal (GAUDÉ;
KUNTZ; LESCOT, 2012, p. 57).

39
Desse modo, diversas perspectivas estéticas podem ser evidenciadas com o
intuito de comprovar o trágico, tais como as fronteiras entre o humano e as relações
sociais, a inconstância do humano diante do que compreende como crença, moral e
ética, os embates entre os poderes exercidos pela sociedade, política, religião e família.
Assim, poderíamos supor que a ideia de trágico presente na obra de Plínio tanto se
estabelece pela compreensão do senso comum, como pelo conflito, de acordo com o
conceito mencionado anteriormente formulado por Gaudé; Kuntz; Lescot (2012, p. 57).
É interessante perceber que

[...] o conflito real faz então sua entrada na cena teatral por oposição à
colisão dramática, concebida como uma luta ideal, uma oposição
abstrata. Assim, o conflito continua a desenvolver-se nas escritas
contemporâneas, como se a necessidade sentida pelo teatro de
exprimir a violência do mundo garantisse sua sobrevivência: relações
de força no casal, conflitos sociais e políticos, guerras, alienação
moderna; a forma dramática alimenta-se ainda amplamente desses
embates cotidianos. Mas o teatro épico também marca uma mudança
estrutural: de princípio dialético formal, o conflito torna-se autêntico
objeto de peça, e requer ser considerado em si (GAUDÉ; KUNTZ;
LESCOT, 2012, p. 57-58).

Em relação ao conflito real afirma-se que seu ingresso na cena teatral acontece
em objeção à colisão dramática, entendida como uma luta ideal. Assim sendo, conforme
os teóricos citados acima, o conflito se desenvolve nas escritas contemporâneas pela
urgência do teatro em exteriorizar a violência do mundo como garantia de
sobrevivência. Pode-se dizer que “[...] o discurso trágico é sempre atual, pois é no
interior de uma realidade contraditória cujos valores se dissolvem que a existência
humana é problematizada” (MOTTA, 2011, p. 14), assim, o trágico apresenta-se como
elemento recorrente nas relações estabelecidas entre o ser e o mundo, através de uma
presença que não acontece por acaso, e sim, a partir de conflitos.
Passemos, de modo geral, a compreender os conflitos35. O primeiro conflito que
podemos perceber no texto dramático é entre Querô e os policiais. “A tragédia põe em
cena um conflito insolúvel, uma ausência de quadros estáveis de valores no qual a ação
humana se fundaria, daí a tragicidade” (MOTTA, 2011, p. 13). Compreende-se que
socialmente os policiais exercem a função de proteger, no entanto, no texto de Plínio
essas personagens comportam-se de maneira contraditória, visto que passam a coagir o

35
É interessante deixar claro que, quando necessário, citaremos tanto o romance quanto o texto
dramatúrgico como exemplo.
40
menino. Nesse sentido, para caminhar livremente Querô deve repartir o apurado dos
furtos com os policiais. Desse modo, sabia que continuar alimentando-os seria como
uma prisão e, cansado dessa vida, “Querô – Não, rato nojento. Vou dar o teu. O que tu
merece. A tua parte tá aqui. (Puxa a arma e atira no Nelsão). Toma, filho da puta!
Toma!” (MARCOS, 2003, p. 236), atira nos policiais na tentativa de se libertar. Outro
conflito que pode ser observado é o poder exercido pelos policiais sobre o menino e
sobre as prostitutas, a maneira fria com que agem, a solidão, sentimento comum entre as
personagens, tendo em vista que cada um aprende a viver sem confiar nem em si,
tampouco no outro.
Na obra observa-se que existem conflitos menores, nesse caso, os pessoais, que
não sustentam os sociais, políticos, religiosos, considerados maiores, embora tais
conflitos apresentem uma carga trágica. Por exemplo, o conflito entre a Cafetina Violeta
e as prostitutas: “Ela sempre sacaneou com todos que pôde. As piranhas da Xavier da
Silveira é que sabem. Não podiam escutar o nome da vaca perebenta sem cuspir de
nojo. [...] A dona do puteiro não dava moleza pra ninguém. Disso eu sei. Penei na mão
da cadela” (MARCOS, 1992, p. 10). Ao analisar a fala de Querô percebemos que há um
conflito entre ele e Violeta, um confronto que tem início com Leda. Além dos conflitos
das personagens para com o externo, existem também os conflitos internos: “Já não
suportava a cafetina fedorenta, que cada vez ficava mais nojenta. Tinha virado mão
nesse tempo. Ficou greluda e vivia roçando com as mulheres mais novas. Pagava ela
como os machos (MARCOS, 1992, p. 13)”. Querô deixa claro não somente sua batalha
e a das prostitutas para com a cafetina, como também a própria luta de Violeta para
consigo.
Os caminhos que levam a mãe de Querô ao suicídio revelam um desfecho
através dos conflitos, desse modo “[...] o trágico se reinstala, posto que, na atualidade, o
ser humano está mais sensível às diversas formas de fragmentação, divisão e ruptura
interior e exterior que destroem a constituição da identidade” (MOTTA, 2011, p. 17), ou
seja, a atitude da personagem é levada ao máximo, ao grito de socorro não escutado,
como revela Querô, à destruição, à morte. Assim sendo, “[...] marca a distância trágica
na qual se situa infalivelmente a personagem do drama moderno: uma cegueira que a
nós é dada a ver no esplendor do teatro, a experiência oferecida ao espectador de uma
fraternidade ilusória” (SARRAZAC, 2002, p. 122). A sociedade ainda não está
preparada para receber o “filho de uma puta”, por isso, o grande conflito de Leda entre
41
ser mulher, puta e ser mãe. Temas como aborto e suicídio são abordados por Plínio na
obra.
Nesse sentido, através das falas de Violeta e das mulheres que formam o coro de
prostitutas: “o que poderia ser o filho de uma prostituta?”, Plínio questiona a ideia de
que Leda, ao escolher ser prostituta, não tem o direito de ser mãe, figura marginalizada
e tratada com indiferença na obra. A maneira crua como Plínio apresenta o nascimento
de Querô demonstra a neutralidade da sociedade junto à forma com que o assunto é
tratado. No romance, Plínio apresenta a insensibilidade do ser humano para com a dor
dos outros em uma cena em que Querô fala sobre a morte da mãe:

O que sei é que, quando estava bem chapada de pinga, bebeu


querosene. Foi pras picas. Mas devagar. Devagarinho. Saiu do boteco
e foi cair na porta da igreja do Valongo. Custou paca pra ir pro
beleléu. Ficou um cacetão de tempo no chão se contorcendo como
uma minhoca. Gemia, chorava, vomitava, cagava, mijava, chamava
por Deus, pelos santos, pedia por mim. Tinha um monte de gente
vendo. Mas ninguém se doía. Ninguém chamou ambulância, nem
porra nenhuma. Aqueles veados miseráveis eram todos surdos pra dor
dos outros. Estavam a fim de ver a palhaçada e não iam se arredar
dali. Sabe como é. Não é todo dia que uma putana bebe querosene. E
depois, nas quebradas do mundaréu, é de lei “cada um, cada um”.
Minha mãe se acabou. Foi ela quem quis, disseram. Bebeu querosene
por gosto. Então, que se foda o resto! (MARCOS, 1992, p. 10).

O suicídio provocado por Leda, o menosprezo daqueles que assistiam e até


mesmo a frieza com que a cafetina Violeta vivencia os fatos demonstra a frequência
desses infortúnios, situações relacionadas aos atos trágicos que marcam uma “vida sem
vida”, bem como os conflitos que partem do ser para o coletivo, do humano para o
social, revelando a miséria do indivíduo e da sociedade. Touraine (2010, p. 41) afirma
que: “Ser uma mulher para si, construir-se como mulher é, ao contrário, transformar esta
mulher para o outro em mulher para si”. Observando as personagens femininas em
Querô, somos levados a identificar papeis a partir da cafetina homoafetiva; das
mulheres que não questionam seus direitos; da personagem Leda que reclama seu
direito enquanto mulher que quer construir a si mesma, uma necessidade autoafirmação
existencial; da força da mulher negra através de Gina de Obá. De modo que é
importante identificar a personagem mulher na obra de Plínio, uma vez que o
dramaturgo traz à tona mulheres invisíveis ou tornadas coisas a serem ocultas.
São personagens sociais, seres humanos que parecem se encaminhar para uma
insensibilidade ante a tragédia quotidiana. Para Sarrazac (2002) “[...] os que chegaram a
42
esse ponto, que teriam a força e a coragem de colocar a própria vida no prato da
balança, dedicam-se, eles próprios, à jurisdição dos seus inimigos naturais. É assim que
fazem, involuntariamente, a seleção da sociedade de que se queixam” (SARRAZAC,
2002, p. 122). De modo que há um risco que leva as personagens plinianas a
transformarem a explosão em implosão, em uma espécie de automutilação. Assim, em
Querô, ao saber por Ju toda a luta da mãe para tê-lo, o menino segue com o desejo de
vingança e sede por justiça, tendo em vista que compreende que Leda resistiu até o fim
para gerá-lo, e, de algum modo, para que um dia defendesse seu nome.

[...] a prioridade dada nos últimos trinta anos a temas como o


relacionamento entre mãe e filho, os problemas da maternidade, a
crítica à dominação masculina, entre outros, trouxe à tona essas
personagens femininas, daí a constante presença de uma peça como
Medeia, de Eurípedes, no repertório teatral contemporâneo36
(MOTTA, 2011, p. 10).

Chegamos a supor que a importância dos textos de Plínio concentra-se na


profundidade com que o dramaturgo apresenta a realidade e as personagens que fazem
parte de um contexto que também se assemelha ao real. Ainda com base em Sarrazac
(2002) “[...] o sentimento trágico moderno nasce de uma dupla constatação: da forma
mesquinha como o homem habita o mundo; do fato que este homem é, ele próprio,
habitado por um poder estranho – a ideologia como forma de apropriação de corpos”
(SARRAZAC, 2002, p. 121). A marca do dramaturgo está na maneira dilacerante com
que nos mostra como estamos tratando nossos iguais, a compreensão do humano
presente na obra, despedaçado, fragmentado, em tons de cinza, nos fazendo questionar
as normas impostas para além da mera aceitação.
Outro conflito está para com a divindade. Em diversas passagens Querô e as
Mulheres rogam a Deus que os anjos bondosos possam defendê-los. Apegados a Deus,
as personagens confiam a Ele a liberdade humana. “Ai, meu Deus... Deus existe, do
gibi? Tu acredita em fantasma? Eu sei lá. Eu já vi fantasma... Ontem à noite...aqui...
veio... meus fantasmas todos... Tu não acredita em porra nenhuma, né? (MARCOS,

36
“O mito de Medeia serviu de tema para diversas obras artísticas e literárias ao longo da história da arte
ocidental. O texto de Eurípedes foi escrito e encenado em 431 a. C. e desde então foi retomado por
diversos autores teatrais. [...] na televisão brasileira, o mito foi, inicialmente, adaptado pelo dramaturgo
Oduvaldo Vianna Filho e realizado sob direção de Fábio Sabag, em 1973. Foi este trabalho de Oduvaldo
Vianna Filho que, por sua vez, viria a inspirar Paulo Pontes e Chico Buarque para a criação do espetáculo
Gota d’Água, em 1975, com direção de Gianni Ratto” (MOTTA, 2011, p. 173 – 174).
43
2003, p. 255). Depois da confusão com os policiais, o menino também é baleado e na
sequencia das cenas, em conversa com o Repórter questiona a existência de Deus.

Vemos em Plínio Marcos avultarem os temas da solidão e da


decadência humana, do círculo vicioso da tortura mútua, da absoluta
falta de sentido nas vidas degradadas, do beco sem saída da miséria e
da violência, da morte como horizonte permanente. Ao contrário desse
teatro, os diálogos de nosso autor nascem colados à ação e conduzem
céleres a intriga para o desfecho trágico (ZANOTTO, 2003, p. 8).

O que há de trágico nos textos plinianos tem correlação com temas tratados
como tabus pela sociedade: suicídio, sexo, homossexualidade, assassinato, machismo,
abandono, aborto. Essas características que marcam as obras de Plínio Marcos, como a
solidão, a falta de esperança, “o beco sem saída” e a miséria são também traços desse
trágico do quotidiano. Para escrever uma tragédia bem feita dois elementos eram
considerados fundamentais, o herói e a morte, contudo, obras recentes apresentam em
comum o tema da solidão entre as personagens diante de um destino cego, o que resulta
no isolamento por parte daqueles que Sarrazac (2013) identifica como impersonagens37.
Plínio Marcos também recorre ao coro, como a voz coletiva do cabaré. Losco e
Mégevan (2012) advertem “[...] o coro permanece, ao longo de toda a história, uma das
invariantes estruturais da cena dramática ocidental” (LOSCO; MÉGEVAN, 2012, p.
61). No texto dramático, a primeira cena em que o coro aparece composto por mulheres,
aparentemente as outras prostitutas amigas de Leda, induzem o leitor a entendê-las
como conselheiras que fazem uma espécie de previsão, tendo em vista que as Mulheres
parecem dizer o que vai acontecer com o filho de uma prostituta quando colocado no
mundo, embora, em alguns momentos, sigam apoiando a mãe de Querô. Respondendo a
fala de Ju, amiga de Leda, dizem:

PRIMEIRA MULHER – É loucura ter filho.


SEGUNDA MULHER – Que tu vai fazer com ele?
TERCEIRA MULHER – Puta não pode se dar esse luxo.
QUARTA MULHER – Besteira, Leda. Sai dessa.
QUINTA MULHER – Conheço uma parteira legal (MARCOS, 2003,
p. 243).

De modo que esse coro para Losco e Mégevan (2012) pode refletir “[...] um
sujeito dividido em várias realidades irredutíveis, seja uma realidade exterior ao sujeito,

37
Refere-se ao devir impessoal, a personagem sem qualidades.
44
mas por ele percebida como plural” (LOSCO; MÉGEVAN, 2012, p. 61). Plínio reúne a
partir da presença do coro a experiência, a maneira de perceber a vida, medos e
questionamentos das prostitutas. Novamente, argumentando a fala de Ju que diz: “- É
melhor tirar essa criança, Leda” (MARCOS 2003, p. 61), o coro responde revelando-
nos a maneira como encara o mundo:

PRIMEIRA MULHER – É loucura puta ter filho.


SEGUNDA MULHER – Que vai ser do teu filho?
TERCEIRA MULHER – Nesse mundo só tem maldade. Besteira
meter filho nele (MARCOS, 2003, p. 249).

As didascálias mostram que “As mulheres estão paradas. Leda pega uma
criança recém-nascida e a exibe para as mulheres. Leda carrega também uma sacola”
(MARCOS, 2003, p. 249). No texto dramatúrgico, Plínio não revela os detalhes do
nascimento de Querô, pelas didascálias percebe-se que Leda dá a luz e o fato de segurar
uma sacola deixa o leitor sem saber se ela abandonaria a criança diante de tantos
argumentos contrários a sua vontade de ser mãe, ou se largaria o Leite da Mulher
Amada em nome da maternidade. Com a chegada da criança, as Mulheres parecem
compreender a vontade de Leda de ter um filho, “um amor só seu” quando dizem:

PRIMEIRA MULHER – É lindo.


SEGUNDA MULHER – É um sonho.
TERCEIRA MULHER – Como eu queria ter um para mim!
QUARTA MULHER – Vai bancar a louca como a Leda? (MARCOS,
2003, p. 243).

No entanto, o endurecimento da quarta Mulher é, na verdade, a preocupação


com Leda diante de toda a situação. As prostitutas do Leite da Mulher Amada sabem
como Violeta costuma se comportar, mas, a quarta Mulher revela sempre uma
insensibilidade. O nome Jerônimo da Piedade é segundo Querô, uma homenagem ao
Santo do dia, segue a fala do menino:

A Violeta porca, gorda sebosa, nojenta, remelenta, me batizou na


igreja do Valongo. Não porque minha mãe se matou ali. Não. Isso não
tinha nada que ver. O que conta é que na bosta dessa igreja tem uma
Nossa Senhora, que todo povão lesado diz que é milagrosa e os
cambaus. [...] E as putas da Xavier começaram a ir na bosta da igreja,
de trepada em trepada. Todas à espera de milagre que não veio nunca.
O padre faturou pacas. E as putas ficaram cada vez mais putas, na puta
da vida. Mas isso não importa. O que importa é que fui batizado nessa
igreja pela Violeta. Ela me botou o nome do santo do dia, Jerônimo, e
45
o sobrenome da minha mãe, Piedade. Jerônimo da Piedade, filho da
puta com pai desconhecido, afilhado de uma cafetina que ficou sendo
madrinha e dona (MARCOS, 1992, p. 11).

Plínio constrói uma obra de caráter híbrido que apresenta fatos trágicos da vida,
de modo que, segundo Sarrazac (2013b), “[...] o „erro‟ trágico não está ligado a um ato
qualquer, mas está, na maioria das vezes, reduzido a um sentimento: o sentimento de
uma infelicidade ou de uma culpa de estar no mundo” (SARRAZAC, 2013b, p. 78).
Nesse caso, Querô em nada se parece com o herói da tragédia, uma vez que no drama
moderno as formas se misturam e a personagem assume o papel do homem comum,
sem esse heroísmo. Pelo que se observa a escolha do nome do menino já apresenta
traços de uma vida carregada de infortúnios, o nome de um santo parece querer livrá-lo
da desgraça de nascer filho de uma prostituta e não ter pai. No texto dramático, a
questão sobre o nome do menino é retomada através do diálogo entre Ju, Leda e as
Mulheres:
JU – Como vai chamar?
LEDA – Jerônimo.
JU – Xi... Jerônimo?
PRIMEIRA MULHER - Tem nome mais legal que esse.
LEDA – Jerônimo mesmo. Eu conheço uma parada de nome legal.
Mas em todos eles sempre tem um desgraçado filho de corno
pendurado. Vai ser Jerônimo. Vou batizar. A madrinha vai ser a
Violeta (MARCOS, 2003, p. 249-250).

As crenças daquelas Mulheres faziam-nas confiar que ao menos o nome


Jerônimo da Piedade poderia diminuir o sofrimento que já era grande. É interessante
observar que no texto dramatúrgico o nome de Querô aparece como Jerônimo da
Paixão, como se fosse fruto do sentimento da mãe de “querer ter um precioso bem”.
Essa debilidade social é também percebida através do coro, uma espécie de elemento
que o dramaturgo encontra para esconder as contradições da velha sociedade. Os
contrastes presentes no coro formado pelas Mulheres podem ser percebidos quando
Leda toma querosene como única saída para resolver seu conflito.

PRIMEIRA MULHER – Tu vai pagar por isso Violeta.


SEGUNDA MULHER – Vai se danar.
TERCEIRA MULHER – Nós vamos te ralar, sua cafetina escrota.
QUARTA MULHER – Assassina nojenta!
TERCEIRA MULHER – Tem que pagar pelo teu crime (MARCOS,
2003, p. 252).

46
Conhecemos a trajetória de um menino que enfrenta seus medos questionando a
imposição dos demais, o que provoca no texto a tensão, uma vez que assume a função
de apresentar ao público o que há de trágico no drama do quotidiano. De acordo com
Sarrazac (2013b): “A catástrofe no drama moderno e contemporâneo se modula de
diferentes formas: o simples fato de ter nascido, de ter sido lançado ao mundo; uma
espera do Apocalipse (com Revelação)” (SARRAZAC, 2013b, p. 79). O trágico
moderno se mantém em Plínio pela via inevitável com que as ações acontecem. As
personagens abusam do linguajar cotidiano das grandes massas, dos palavrões e das
gírias. As Mulheres entendem que a responsável pelo suicídio de Leda é Violeta e
decidem pressioná-la. Sentindo-se encurralada, a cafetina decide batizar o menino e, em
nome de Deus afirma: “Segundo o que está escrito na lei do Senhor, eu consagro esse
menino” (MARCOS, 2003, p. 252). A incoerência na fala do coro está em apontar a
loucura de Leda ao decidir ter a criança, uma vez que aparecem como uma espécie de
terceiro olho, em outro momento aceitam o nascimento.

MULHERES – (Em coro.) Ilumine-o, Senhor, com vossa luz. Que


seja lúcido em seus conflitos, justo em seus combates, generoso em
seus dons. Que saiba sobretudo renunciar em favor de um mundo
melhor que há de ser construído. Purifica-lhe o coração, Senhor, para
que ele possa, livre e digno, oferecer amor no final dos tempos
(MARCOS, 2003, p. 253).

A oração é a representação do rito de passagem do batismo, a maneira


encontrada pelas mulheres do cabaré para abençoar Querô. A esperança, o amor, a
dignidade e a liberdade parecem alimentar o coro, visto que a oração funciona como um
pedido coletivo para que o menino seja iluminado em sua caminhada. É através das
Mulheres que o público toma nota dos acontecimentos ligados as personagens. O coro
sai da cena cantando uma música sacra, Violeta diz: “- Que assim seja” (MARCOS,
2003, p. 253). Consciente ou não das orações que lhes foram ofertadas, Querô cresce
impulsionado em vencer as relações que a ele foram impostas, às condições de vida que
lhes foram apresentadas e o ambiente em que foi destinado a viver.
Esses detalhes do quotidiano apresentam uma realidade grotesca. Através da
tragédia quotidiana Plínio deixa falar aqueles considerados a banda podre da sociedade,
assim, mostra aquilo que ela não quer enxergar, o cancro social. As personagens
parecem ter perdido a sensibilidade e tornam o diálogo sem harmonia, cada qual está
fechada, trancafiada em sua dor, sendo sugada por uma sociedade cada vez mais egoísta
47
e injusta. Os espaços como o cabaré, o cais do Porto e o reformatório mostram o
quotidiano urbano habitado pelas personagens, revelando, de certo modo, o mundo
empobrecido de oportunidades. O coro urbano aparece como uma espécie de grito de
socorro daquelas Mulheres que ora se posicionam em favor do nascimento da criança,
ora se posicionam contra por preverem a falta de vida diante daquele contexto, tendo em
vista que assumem também a função de elucidar a ação em um tom realista.
O ato de sobrevivência, os conflitos e o combate julgado pela sociedade como
crime se contrapõe ao fato de Querô sentir ódio, piedade, sentimentos presentes também
na relação com sua mãe, Leda. Querô é também uma dessas personagens apresentadas
por Sarrazac (2013b), uma espécie de espectador. Tem acesso a sua vida a partir dos
relatos de Ju e dos outros, e até dos fatos revividos através da entrevista feita pelo
Repórter, presença do autor-rapsodo38 na peça, ou seja, a presença de Plínio Marcos.
Essas contradições, inseguranças e todas as características assumidas por Querô
descontroem a figura do herói, do protagonista.
O que pode ser observado em Querô, nesse caso, é que toda a imagem que o
menino tem de si é fruto de uma construção subjetiva apresentada pelas figuras que
compõem a história de sua vida, assim: “Personagens que quase não falam e são
enquadrados por um ponto de vista muito particular” (JUSTINO, 2015, p. 133). Por
exemplo, a Cafetina que se considera dona do menino e por remorso o cria, mas,
acredita que de uma prostituta nada de bom poderia sair. Ou mesmo, da construção da
figura da prostituta que não pode desfrutar do prazer de ser mãe, dessa maneira, uma
teia de subjetivações vai se formando.
Com o linguajar longe de ser nobre e as personagens em nada consideradas
“superiores”, Plínio não poderia ser associado a um escritor de tragédias. No entanto, a
escrita, a visão de mundo adotada por Plínio Marcos e suas personagens em muito
contribui para essa formulação do conceito de “trágico do quotidiano”. Marco Antônio
Rodrigues, também diretor de Oresteia, o Canto do Bode, encenação da trilogia Oréstia,
de Ésquilo composta por Agamêmnon, Coéforas e Eumênides, demonstra em sua fala a
ideia de trágico ao questionar o que seria essa tragédia, para isso responde: “Existe um
impedimento coletivo. Qual é a dos gregos, qual é o nosso? O que tinha no céu deles? O
Olimpo, Zeus. O nosso está cheio de antenas parabólicas, satélites. São deuses também.

38
Autor-rapsodo, termo pensado por Sarrazac (2002) refere-se à presença da figura rapsódica, antes
conhecido por Szondi em Teoria do drama moderno (2011) como o “sujeito épico”.
48
São intransponíveis. Essa é a tragédia” (MOTTA, 2011, p. 223). Se olharmos para as
montagens de tragédias que são levadas aos palcos brasileiros, identificaríamos certa
necessidade de atualização39 a partir do deslocamento do texto grego para outro período
e contexto.
Nesse sentido, para Motta (2011) “[...] a encenação de tragédias na cena
brasileira revelar-se-á indissociável de um questionamento radical de diversos
problemas sociais e políticos” (MOTTA, 2011, p. 25). De modo que partindo dessa
afirmação, percebemos que Plínio Marcos utiliza a linguagem coloquial que caracteriza
o falar das massas e, ao lado dos temas polêmicos, “[...] subvertera os limites dos textos
teatrais até então conhecidos ao instaurar no palco a ação movida à força da linguagem
mais brutal e chula, totalmente justificada pelo tema [...], - quedamos todos ávidos de
curiosidade” (ZANOTTO, 2003, p. 9). As peças de Plínio se situam em um contexto
nacional, às vezes num “quarto de hospedagem de última categoria” ou no cais do
Porto.
A obra de Plínio faz ecoar temas antes silenciados diante dos quais, ganham
destaque o crime, a violência, a exploração e a denúncia. “[...] não vim até ali por gosto.
Não escolhi. Então me empurraram. E eu estava ali, na surda. E foi ali que cresci”
(MARCOS, 1992, p. 26). A imersão de Querô no mundo do crime não é apenas uma
escolha sua e do destino, uma vez que se apresenta como uma tentativa de resistir à
opressão dos policiais, a repressão que sofria por parte de quem deveria protegê-lo.
Em suma, partindo-se do que já foi dito, há, portanto, uma persistência do
trágico nas produções modernas e contemporâneas, isso não significa dizer que essa
presença se restringe ao teatro, visto que similarmente se estende à literatura. Plínio
Marcos não seria considerado um autor de tragédias, principalmente, pelo linguajar e
pelas personagens do submundo. Diante dessas questões entendemos que o trágico em
Querô é percebido a partir da própria ideia de uma “despersonalização da personagem”,
ou seja, do surgimento desse imerpesonagem, tendo em vista que no trágico moderno,

39
“Os modos de atualização são os mais diversificados, estando intimamente relacionados com a poética
teatral desenvolvida pelos criadores do espetáculo. Nesse trajeto, foi possível perceber tendências
estéticas específicas. Observou-se a tendência da popularização da tragédia grega, dada pela inserção de
elementos da cultura popular na encenação. Em outra vertente, viu-se a tendência a se utilizar recursos de
multimídia. Já numa terceira, viu-se a presença do teatro ritual. Uma última vertente é dada pelo trabalho
de Antunes Filho, que se destaca entre os encenadores analisados não somente por ter encenado três
textos gregos, mas, sobretudo, por afirmar uma atitude sempre investigativa, em que as questões estéticas
se fundem aos problemas éticos e a pesquisa sobre o trabalho do ator parece caminhar com a pesquisa
acerca da própria teatralidade” (MOTTA, 2011, p. 240).
49
ou trágico quotidiano o homem perde sua identidade. Em Querô não identificamos mais
o herói e ao invés de mito falamos do fait divers, desses fatos diversos, de uma ocasião
perdida como o mote que inaugura a dramaturgia.

1.3 IMPERSONAGEM E FAIT DIVERS

Diante dos vários estudos que tomam como corpus a obra de Plínio Marcos,
Querô, uma reportagem maldita (1992, 2003, 2009), encontramos a publicação de uma
dissertação, que de algum modo, se aproxima do nosso objetivo. Com o título
Subalternidade, violência e hibridização de gêneros em Querô, uma reportagem
maldita40, de Celeste Silva Sousa, a dissertação estuda “[...] aspectos da marginalidade e
da subalternidade como fatores essenciais na configuração do espaço e das
personagens” e ainda aponta “[...] os principais elementos que evidenciam o processo de
hibridização de gêneros na narrativa que, nesse sentido, se constitui por uma constante
relação de interdependência41”.
A aproximação entre as pesquisas se dá pelo fato de reconhecermos a força dos
marginalizados e dos subalternos ganhando voz nos textos de Plínio, assim como o
questionamento que nos faz perceber o processo de hibridização dos gêneros. Embora
os estudos se cruzem, visto que não poderíamos deixar de dizer o que a obra nos sugere
enquanto pesquisadoras de um mesmo escrito, ao trabalhar e enfatizar categorias
estéticas e dramatúrgicas, bem como investigar os elementos trágicos para a
constituição de um “trágico do quotidiano” nas obras em questão, constatando a
formação de um novo paradigma, conforme propõe Sarrazac (2013a), construímos
percurso com objetivos diferentes.
A partir da análise da categoria da personagem, vimos também em Plínio
Marcos a presença do impersonagem42, o que nos permite compreender o papel da
multidão para além da violência que marca os trabalhos do dramaturgo, visto que cada

40
SOUZA, Celeste da Silva. Subalternidade, violência e hibridização de gêneros em Querô, uma
reportagem maldita, de Plínio Marcos. Dissertação (Programa de Pós-Graduação de Mestrado em Letras.
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2014.
41
SOUZA, 2014. Observação: Citação extraída do resumo da dissertação.
42
O termo impersonagem pode ser entendido aqui como o sujeito que representa uma subjetividade
coletiva.
50
vez mais a figura do homem comum compõe o cenário desse trágico do quotidiano.
Personagens como Querô que não são em nada semelhantes aos heróis trágicos, tendo
em vista que as características que o menino reúne são de alguém violento, malandro,
feio, franzino. A nossa ideia é mostrar que Querô assume a voz desse impersonagem
que tem a função de apresentar ao público o que há de trágico nesse drama-da-vida, no
simples fato de viver.
Em se tratando da escrita dramática, falar a respeito da personagem é,
atualmente, tão imprescindível quanto falar da ação e do diálogo, tendo em vista que no
século XX tal categoria tem se apresentado em crise. A proposta de Sarrazac (2013a) é
rever o conceito de mimese, não mais sendo compreendida como imitação, sobretudo
por conceder a personagem uma ideia de “duplo espectador”, sugerindo, com base na
exegese moderna, um “tornar presente”. Nesse caso, “[...] a personagem moderna seria
assim presença de um ausente ou ausência de um presente” (ZURBACH, 2011, p. 15).
Assim, observamos em Querô que a personagem se enxerga como um zé ninguém,
imagem também construída pelos outros, uma fuga do ser para consigo. Existem
passagens no romance que marcam a mudança de identidade de Querô, nos permitindo
compreender a maneira como o garoto consegue se ver. A primeira delas é quando
começa a fazer parte do bando do Tainha: “E foi o melhor tempo da minha vida. Do que
eu gostava mais era que ninguém me chamava de Querosene. Ali eu era Querô”
(MARCOS, 1992, p. 17). O menino abandona o nome de batismo e assume a identidade
nova, como se ganhasse mais força.
Encontramos exemplos desse impersonagem em O Pagador de Promessas, de
Dias Gomes, quando nos deparamos com Zé do Burro, caracterizado como homem
ingênuo e teimoso, como mostra o diálogo entre o Repórter e Zé do Burro:
“REPÓRTER: [...] Parabéns! O senhor é um herói. ZÉ: (com estranheza) Herói? [...]”
(GOMES, 2002, p. 65-66). Observa-se que a repercussão do caso de Zé do Burro,
homem comum que estava tentando pagar a promessa feita a Santa Bárbara, foi tanta
que nem a personagem compreendia. Zé não queria adquirir uma dívida com a Santa e
não se considerava herói.
É interessante perceber que essas personagens assumem o papel de “[...] „cada
um‟ (nome que trai a ausência de nome)” (CERTEAU, 2008, p. 60). Citando caso
análogo, em o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (2000), embora assuma papel
principal, João Grilo reúne características de pequeno, fraco, franzino, amarelo e
51
desnutrido que não o tornam um herói. É reconhecido pela esperteza e pela maneira
inventiva de modificar as adversidades.
Querô, por exemplo, torna-se o que Sarrazac (2013a) chama de
“Impersonagem”, tendo em vista que para o trágico moderno não existe herói, “[...] é
cada vez mais a figura do homem comum, do homem quotidiano, que vai sustentar o
trágico. Um homem comum que não pode ser chamado de „herói‟, a não ser
impropriamente, apenas porque possui o/um papel principal na peça” (SARRAZAC,
2013b, p. 7). Plínio Marcos traça linhas de fuga para a linguagem e possibilita a
invenção de novas forças, entenda-se que não se trata de reduzir o teatro a uma questão
de linguagem, vai além.

O que está no palco? Cafetões, assassinos, traficantes, drogados,


escória das escórias, das docas, das zonas, dos bordeis, dos bares, que
Plínio Marcos conheceu a fundo no ziguezaguear pelos becos santistas
– sequer são personagens do lumpenproletariat brechtiano, que ao
menos sabiam da própria abjeção, mas os marginais mais absolutos,
aqueles que não têm voz, nem vez (ZANOTTO, 2003, p. 16).

A escrita pliniana ultrapassa limites estabelecidos e transgride as fronteiras de


uma linguagem, desse modo, assume o objetivo de forjar novas sensibilidades,
tornando-se revolucionária por possibilitar a abertura de um imaginável “devir”, de criar
um “devir minoritário”, no sentido de que caminha contra a hegemonia.

Nasci foi pra contar a história do negão que está na pior, que come da
banda podre, que come bagulho catado no chão da feira. Eu nasci foi
pra contar a história dessa gente que mora na beira do rio e quase se
afoga toda vez que chove. Eu nasci pra falar dessa gente torcida
generosa que só berra na geral, sem nunca influir no resultado
(MARCOS apud VIEIRA, in ALEXANDRE; ROJO, 2010, p. 230).

Esse impersonagem assume no trágico do quotidiano a função de “[...] fazer com


que [o espectador] veja o que há de espantoso no simples fato de viver” (SARRAZAC,
2013a, p. 9). Não podemos esquecer que Querô anda em círculos e abandona qualquer
um que não esteja ligado a sua obsessão de expiar a ausência de seus pais. O menino
age, sofre, pensa e torna-se consciente dentro dos seus limites, para ele a vida se revela
em escalas de cinza, varia em tons de preto e branco. Nas peças que se baseia no fait
divers, Zurbach assegura:

52
Na dramaturgia contemporânea, o „fait-divers‟ inspirado na
banalidade jornalística fez a sua entrada com uma geração de autores
do teatro dito do quotidiano, juntamente com a personagem popular
que já não se refere a Brecht, mas a uma percepção da alienação
psíquica ou social dos seres mais desprotegidos (ZURBACH, 2011, p.
14).

Embora Zurbach (2011) afirme que a produção de um “teatro-realidade” por


meio do jornalismo ou de reportagens como acesso mais rápido ao real pode ser uma
ilusão, a partir do exposto, observamos que Plínio relata de forma desviada a história de
um menor abandonado e “na sua banalidade jornalística”, aproxima o público desse
real, talvez, sua maior fonte de inspiração. É importante deixar claro que:

[...] se, enquanto „fait-divers‟, o acontecimento é da ordem do gesto


inexplicável como definia Roland Barthes, remetendo o dramaturgo
para o confronto do teatro com o real e o quotidiano, o drama-da-vida
a que pertence só poderá ser representado se a escrita desnaturalizar
esse mesmo „fait-divers‟, lhe retirar o espetacular e anedótico:
relatando-o de forma desviada e inventando para tal uma forma-desvio
que incidirá no processo retrospectivo do „fait-divers‟ e não na
narração cronológica da catástrofe em si (ZURBACH, 2011, p, 14).

Os fatos da vida trágica, o contexto em que a obra estava sendo escrita, ou seja, a
década de 70 “[...] e a temática do banditismo urbano, restrita aos jornais populares
ganharam repercussão, impulsionando o dramaturgo para não somente registrá-las, mas,
sobretudo, questionar as ações do Estado e recuperar o fôlego depois da experiência de
uma ditadura” (FREIRE, 2008, p. 234). Esses assuntos variados, notícias consideradas
de pouca importância ajudam a construir o conceito de fait divers.
A partir da análise de Querô(s) e seu hibridismo formal questiona-se “o que há
de trágico no quadro do drama-da-vida?”, tomando como fundamento a “tragédia
universalmente humana”, ou seja, o simples fato de vir ao mundo sem escolha e ser
lançado à miséria, ao desdém, ao sofrimento. Assim: “Se existe uma nêmesis trágica
ligada ao drama-da-vida, esta não poderia ser senão a própria vida ocupada em vingar-
se – que seja sobre inocentes – por ter sido transformada em uma morte-viva”
(SARRAZAC, 2013a, p. 15). Pelo crime que cometeu contra o “gringo” da marinha, ter
apanhado, sofrido choque elétrico e a experiência da amargura no reformatório fazem
de Querô um homem “novo”. “Foi nesse tempo, em que fiquei sozinho, que deixei de
ser pivete trouxa. Ali, sozinho na surda. Comecei a me ligar na bosta toda. Cresci.

53
Cresci paca.” (MARCOS, 1992, p. 25). Querô cresceu com os ratos, sede por vingança,
gosto de sangue na boca e nenhuma ajuda.
Ainda preso no reformatório e envolvido em confusão, a personagem cada vez
que experimenta a amargura de estar só, os seus desejos não realizados, fracassos, seus
pequenos sonhos sendo esmagados, uma vida que lhe consome, cresce alimentando o
ódio. “E me senti crescer de novo. Jurei pra mim que eu ia ser mais eu. Ia ter banca no
cais do porto. Ia arrumar um revólver e cagar e pisar em cima de meio mundo”
(MARCOS, 1992, p. 33). Assim, “[...] resta uma única verdade, e que só pode ser
gritada, um grande grito mudo que precede a agonia, a verdade do desenlace, da nudez,
da rua” (SARRAZAC, 2011, p. 61). A vida entendida como tragédia, uma existência
cinza, quase nula, sobretudo porque para a sociedade o menino é considerado perigoso,
um fardo.
Querô – (Interrompendo a Leda. Por que, mãe, por que... tu me pôs no
mundo? Vê o que tu fez comigo. Ah, mãe, eu nunca fui o mais forte,
nem o mais bonito, nem o mais sabido. Só me trato de favor. Como de
esmola. Durmo de esmola. E isso não presta. Isso deixa a gente ruim
(MARCOS, 2003, p. 257).

Embora tendo por base o contexto real do país, Plínio consegue sair do realismo
aparente, com o qual se preocupa Sarrazac (2011), fugindo da essência jornalística,
tendo em vista que Querô não se torna apenas um dado estatístico, uma vez que somos
levados a questionar e, de algum modo, sentimos, embora como leitores, sua dor. Nesse
sentido, “[...] o fait divers – gênero jornalístico – aponta um facto de sociedade e
escamoteia-o numa curiosidade, numa monstruosidade desprovida de qualquer
exemplaridade” (SARRAZAC, 2011, p. 62). Plínio não estava querendo encher os olhos
do espectador-leitor de violência e cenas absurdas, mas, sobretudo, questionar às ações
do Estado, perceber até que ponto o ser humano consegue ser indiferente.
A linguagem utilizada pelas personagens, o horror dos acontecimentos, a
repetição dos fatos, tanto nos texto dramatúrgico, como no romance, nos permite, na
verdade, compreender os conflitos. Sarrazac (2011) chega a supor que dependendo da
situação o fait divers pode ser entendido como a “[...] microepopeia dos anônimos [...]”
(SARRAZAC, 2011, p. 67), visto que assume no teatro contemporâneo o lugar do mito
na tragédia grega. A morte de Leda funciona como um tiro disparador.
Segundo Sarrazac (2011, p. 73): “No teatro contemporâneo, a personagem
parece muitas vezes estar a mais” e esse a mais é, sem dúvida, um dos resultados da
54
crise da mimese. O problema não é em um passe de mágica sumir com esse a mais, e,
sim, observar as diferentes possibilidades com que esse ator, encenador, autor constrói
“[...] essa personagem a mais para transformar em um personagem a menos”. Como
solução Sarrazac (2011, p. 75) sugere a “presença dum ausente, ou ausência tornada
presente”. Há, portanto, um esvaziamento das características assumidas pelas
personagens em relação a posicionamentos anteriores, uma negação do que definia a sua
singularidade (kharater), ou seja, de acordo com Roberto Abirached apud Sarrazac
(2011, p. 77), essa categoria, finalidade da dramaturgia moderna e contemporânea, seria
o sustentáculo da persona (o seu papel) e do typus (valor simbólico).
O que antes era considerado como singularidade tornou-se também, com as
obras de Plínio Marcos, a representação de uma diversidade pouco mostrada, um
diferencial na escrita pliniana por apresentar a presença dos muitos marginalizados que
ganharam em suas obras o papel e a fala. O dramaturgo Plínio Marcos também é um
marginalizado que divide a tribuna com Querô, embora a personagem não seja um
duplo do dramaturgo na obra, de forma que promove rever o papel do intelectual no que
se refere à posição assumida por ele e pelo Repórter, tendo em vista que permite
questionar e alocar esse intelectual em uma nova posição frente aos grupos
marginalizados. Justino (2015, p.132-133) orienta que “[...] nestas narrativas são
encenadas as formas do viver cotidiano”. São personagens sem pai, filhos de prostitutas,
modos de vida e movimentos de sentido que essas figuras criam na obra, a multidão é
composta por todos, inclusive pelas personagens secundárias.
A obra de Plínio Marcos nos permite enxergar as várias formas de vida de um
devir-Brasil quer seja a partir de Querô, que desde o nascimento luta para sobreviver, da
obstinação de Leda para ter a criança ou mesmo o suicídio como forma de resistência,
quer seja a batalha das prostitutas do Leite da Mulher Amada, o que revela as estratégias
de subsistir e os modos de vida do cidadão comum. “O trágico do drama-da-vida é um
trágico com um pavio que queima lentamente. Nesse teatro de essência estática, o
trágico está presente desde os primeiros instantes da peça e não faz senão revelar-se
progressivamente, no sentido fotográfico da palavra” (SARRAZAC, 2013a, p. 14).
Observado em outro contexto, o texto pode dizer muito sobre as diversas formas de vida
de um Brasil desigual e, não apenas isto, como também as fugas criadas como defesa de
uma multidão e de um autor frente ao sistema de escrita.

55
O que torna possível essa compreensão da obra pliniana é o meio vivo do qual o
autor se alimenta, ele mesmo um marginalizado por resistir às normas e trazer para seus
escritos os excluídos, obra esta inserida nas discussões sobre “literatura marginal”. Para
Nascimento (2008), “[...] a expressão “literatura marginal” serviu para classificar as
obras literárias produzidas e veiculadas à margem do corredor editorial; que não
pertencem ou que se opõem aos cânones estabelecidos [...]” (NASCIMENTO, 2008, p.
22). Textos que desviam o olhar do protagonista para também dividir em mesmo grau
de importância a atuação com as outras personagens que ficam em segundo plano.
Desse modo, seguindo a linha de raciocínio de Justino (2015), ou seja, “[...]
dando especial importância à produtividade dos personagens secundários, que são a
força centrípeta da multidão e centrífuga do protagonismo” (JUSTINO, 2015, p. 133).
Nesse caso, afirmam Hardt e Negri (2005): “A multidão é múltipla, é composta de
inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou
identidade única. Multidão é uma multiplicidade de todas as diferenças singulares
(culturas, raças, etnias, gêneros etc.)” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 4). Nos termos de
Justino (2015) multidão e protagonismo são forças opostas, a primeira por ser
considerada força centrípeta, parte do uno e aponta para o múltiplo através do processo
de individuação, a segunda, como força centrífuga apoiada em um exterior plural
concentra a multiplicidade em uma única figura. Por isso, propõe caminhos transversais
para perceber nessa multidão os modos de vida, a relação com a linguagem e os
movimentos de sentido dessas personagens.

1.4 QUERÔ: SUBALTERNIDADE, MARGINALIDADE E MULTIDÃO

Para além de toda a violência que percorrem as páginas da obra de Plínio, existe
algo que ganha maior foco, visto que ali em cada história narrada está a marca de uma
multidão em ação, responsável também por construir, mesmo através de exageros e
descrições minuciosas de cenas trágicas, a potência de um povo. Desse modo, Justino
(2015) afirma: “Precisamos reaprender a procurar outras coisas nos livros. Fazê-los
dizer o que eles não andam dizendo, [...], pois tanto um livro quanto a literatura em

56
geral são eles mesmo produtores de subalternidades, e de resistências e insurreições
contra elas” (JUSTINO, 2015, p. 135). Nesse sentindo, afirma:

[...] observar como a multidão aparece configurada sob o enredo e a


linguagem, como a literatura se transforma na multiplicidade, não só
do “personagem principal” ou do narrador tratando do tema, mas,
como o mundo da vida faz indício no e para além do enunciado,
personagens de nada, pequenos atos ordinários, utopias de consumo e
de reconhecimento, cujo aparecimento pode se dar em apenas uma
página, um parágrafo, um átimo de voz na boca do narrador
(JUSTINO, 2015, p. 141).

Como mais uma reportagem que estampa a morte de um menor, alimentando a


“sociedade do espetáculo” pouco interessada em história de menor filho de “puta”, de
morte de prostituta, que trata o subalterno como um diferente, as pequenas cenas são
construídas tornando a narrativa singular. Assim, para observar a multidão presente na
obra de Plínio, precisamos olhar as diversas relações que existem entre as personagens,
eliminando qualquer categoria de protagonista presente. Para tanto, é possível afirmar
que a partir de Querô pode-se discutir a respeito do sujeito marginalizado, notadamente
porque Plínio, como estratégia, precisou inserir uma personagem repórter na história
para que o menino fosse ouvido. O que se percebe é que há uma tentativa de posicionar
o intelectual de forma diferente frente a esses sujeitos.
Embora o termo “subalterno” não se refira a todos os sujeitos marginalizados, a
situação, ou seja, o contexto de surgimento da obra de Plínio Marcos nos leva a refletir
a respeito, já que o dramaturgo fala de uma posição que possivelmente conhece. Spivak
(2010, p. 126) afirma decisivamente que “O subalterno não pode falar”, de modo que
“[...] para ela, não se pode falar pelo subalterno, mas pode-se trabalhar “contra” a
subalternidade” (ALMEIDA, 2010, p. 14). Nesse sentido, “Plínio Marcos também
poderia ter sido um desses nomes, se não tivesse que esperar ainda alguns anos para que
conseguisse novamente fazer ouvir sua voz” (FREIRE, 2008, p. 14). A impossibilidade
de fala torna-se uma das condições da situação política e social desse sujeito.

Segundo Spivak, a tarefa do intelectual pós-colonial deve ser a de


criar espaços por meio dos quais o sujeito subalterno possa falar para
que, quando ele ou ela o faça, possa ser ouvido (a). Para ela, não se
pode falar pelo subalterno, mas pode-se trabalhar “contra” a
subalternidade, criando espaços nos quais o subalterno possa se
articular e, como consequência, possa também ser ouvido
(ALMEIDA, 2010, p. 14).

57
Existe um espaço de fronteira entre essa literatura construída por autores
“menores” e os considerados intelectuais. O próprio Grupo Teatral Galpão Folias d‟Arte
recorre desde junho de 2000 a uma equipe de intelectuais constituída por Iná Camargo
Costa, J. C. Serroni, Paulo Arantes, Emília Viotti, Fernando Peixoto e Maria Sílvia
Betti, os dois últimos afastados desde 2008, formando um conselho artístico com o
intuito de contribuir com uma visão distanciada no desenvolvimento do trabalho do
grupo. De modo que publicavam reflexões teóricas no Caderno do Folias, uma
publicação editorial quadrimestral. O objetivo do grupo ao elaborar o Caderno é
conseguir ainda mais contato, não só da comunidade de Santa Cecília, mas como da
sociedade em geral. “Trabalhamos [...] com uma arte efêmera que é o TEATRO. Então
nos cabe produzir nosso próprio material escrito para que nossa assinatura fique
também, além das imagens produzidas em nossos espectadores, também para as
gerações que virão” (FIGUEIRA, 2008, p. 10). O caderno apresenta a programação do
grupo, tornando-se um espaço de discussão e reflexão e análise do fenômeno teatral.
Partindo-se dessa discussão, observamos que a importância de refletir a respeito
do escritor brasileiro “[...] não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural,
mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências sociais
específicas” (NASCIMENTO, 2008, p. 3). Desse modo, esse escritor se posiciona cada
vez mais em espaços periféricos e decide falar, deslocando a posição única do
intelectual, tendo em vista que agora surge também da marginalidade, condição até
então não reconhecida. Nesse sentido, passa a assumir a função de “alguém que fala
por” para alguém que se torna também parte representante dos espaços marginalizados
retratados.
Plínio traz para o centro do discurso os subalternos como Querô, Leda, as
prostitutas, assim, demonstra a impossibilidade de tradução da voz do subalterno por
parte de um único porta-voz. De modo que sugere questionar e deslocar a função desse
representante. Embora marginalizado, torna-se também o intelectual que fala. [...] Mas
enquanto os “poderosos” iam dizendo “Não! Não! Não!”, ele [Plínio] ia ganhando o
respeito dos humildes de coração, um “povo que berra da geral sem nunca influir no
resultado, um povo fudido, os marginais, as putas” (LAMA, 2013, p. 92). Não se trata
de por fim ao sujeito que se sente porta-voz dos sujeitos periféricos, e, sim, propor
questões que movimentem esses espaços, fazendo com que cada um fale por si.

58
Observa-se que Querô poderia ser mais um dado, mais uma reportagem para um
jornal. No entanto, Plínio enquanto sujeito marginalizado consegue falar através do
Repórter, uma vez que a ele não foi dada alternativa, teria mesmo que encarar a
reportagem maldita.

QUERÔ – Pra que essa merda, ô do gibi?


REPÓRTER – Pra ficar bem gravado tudo o que você disser. Pra não
se perder nada.
[...]
QUERÔ – Tou sabendo. É um puta de um jogo sujo. Um puta de um
jogo porco, nojento, sujo. Uma merda. Pra que tu veio aqui, ô do gibi?
Sabe, tudo isso é frescura. Só tou falando contigo porque foi a Ju que
te trouxe. Mas pra que tu quer saber dessa merda toda da puta da
minha vida? Eu sei como é. Na bosta do teu jornal, eu tou fazendo e
acontecendo. Sei como é. Querô, o Perigosão. Matador de tira.
Fudido. Tu e os outros filhos da puta como tu preparam o presunto
pros ratos fritarem a gente. Olha, do gibi, eu quero que se foda. Não
vou mais a lugar nenhum com essa porra dessa perna (MARCOS,
2003, p. 238).

A partir da escrita de Plínio e da atuação do Repórter percebe-se a capacidade de


escuta social da personagem, sobretudo porque esse intelectual deixou de assumir o
papel de privilegiado representante dos marginalizados. Não se trata apenas de ouvir o
que o outro tem para dizer especialmente porque é uma ação que requer maior
engajamento. Nascimento (2008, p. 3) afirma que “[...] a cultura da periferia sempre
existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz”. Nesse caso, analisar o outro
envolve mecanismos de poder discursivo que muitas vezes desqualificam e
menosprezam a fala dos sujeitos envolvidos. A obra Querô se configura como um
exercício de alteridade, uma literatura que desloca e faz a voz do subalterno ecoar,
assim, revela um espaço no qual habita uma minoria, preservando e renovando formas
de viver e pensar o mundo.
Querô vive situações limites, passa pela vida sem fazer escolhas. Não escolheu
nascer, ser pobre, menor abandonado e morar em um cabaré. De modo que se mantém
vivo até quando não conseguir mais lutar pela sobrevivência. É interessante analisar a
última fala do Repórter que parece revelar uma preocupação com o destino de Querô:

REPÓRTER – Era de tardezinha, quando os homens, com suas armas,


encontraram o Querô. Mas já não era necessário despejarem o veneno
de suas metralhadoras no corpo inanimado. Querô já estava caído pra
sempre. Assim mesmo, despejaram ódios no pequeno bandido. E ele
ficou lá caído para sempre. Ou caído até o dia em que, animado pela
59
virilidade espiritual transformadora, ele e outros como ele se ergam
das cinzas onde se sufocam, das chamas onde se ardem, das fomes
onde se desesperam, dos cubículos onde são empilhados, espremidos,
esmagados de corpo e alma, nos sórdidos recantos onde se degeneram
e venham cobrar de nós, cidadãos contribuintes, as ofensas todas que
em nome de nossos tesouros, de nossos privilégios, de nosso conforto,
fizemos à dignidade humana (MARCOS, 2003, p. 273).

Na obra, o Repórter assume a voz de Plínio e se torna o responsável por


apresentar a sociedade às atrocidades que são feitas contra um menor abandonado.
Exige providências e questiona aqueles que não querem abrir mão dos privilégios, ao
mesmo tempo, revela o poder e o preconceito de uma sociedade ao se referir a Querô
como um “pequeno bandido” em um tom de lástima e acusação. Parece fazer muito ao
tomar nota sobre a vida de alguém que “nada vale” e prejudica a sociedade. Escreve
com palavras bonitas preocupando-se em não perder cada fala de Querô, no fim
demonstra compaixão e reivindica providências alegando compreender a vida de
vingança de muitos dos que vivem silenciados, ele também um subordinado.
Portanto, se compreende o fato de Spivak (2010) relegar a voz do subalterno,
uma vez que afirma: “Tornar o pensamento ou o sujeito pensante transparente ou
invisível parece, por contraste, ocultar o conhecimento implacável do Outro por
assimilação” (SPIVAK, 2010, p. 83). Nesse sentido, quando é vítima, como retratado
em Querô, ou, quando recebe o direito à fala, à imagem e à voz desse sujeito estão
impregnadas de uma mediação estabelecida pelo código linguístico e cultural
dominante.
Plínio reconhece, [...] a partir de suas obras dramáticas, as “elites do
poder” e seus discursos dominantes e, por isso, dão [dá] voz à mulher,
refletindo sobre os diferentes arquétipos aos quais a figura feminina
costuma ser associada na sociedade: mãe, filha, puta, mantedora do lar
(ALEXANDRE; ROJO, 2010, p. 228).

As mulheres são as maiores vítimas da subalternização, ainda mais quando são


pobres e putas como Ju e Leda, mãe de Querô, nesse caso, a exclusão torna-se ainda
maior, como fala Violeta, a cafetina que “criou” o menino: “Mas o que é que vai ser teu
filho? O que é que vai ser o filho da puta? Um santo, um gênio, um general? O que é
que vai ser teu filho atirado nesse mundo louco de cada um pra si?” (MARCOS, 2003,
p. 243). As mulheres aparecem na obra de Plínio em posições até antes pouco
mostradas, cafetina lésbica, puta querendo ser mãe. Assim, o “sujeito emudecido da
mulher subalterna” parece ganhar voz nas obras plinianas. Para Leda não importava o
60
que o filho dela seria, queria experimentar amar e ser amada por alguém “ter um
precioso bem só seu”.
Resultado de uma cultura que sustenta o patriarcalismo, a mulher sempre foi
colocada numa posição de inferioridade. Dessa forma, nas transformações enfrentadas
pela sociedade, no que se refere principalmente à atuação das mulheres, questionar
sobre “O que é ser mulher?” ou ainda, “O que é ser homem?”, até mesmo como são
construídas as masculinidades e as feminilidades, contribui para desestabilizar a
compreensão a respeito não apenas de gênero como também do opressor e do
subalterno, forçando-nos a pensar os valores “(ultra)passados” que definiram durante
longas datas o silenciamento do feminino e que seguem uma lógica responsável pela
construção de uma identidade excludente sustentada por uma hierarquia.
A multidão é assim chamada “[...] porque têm em comum serem narrativas que
multiplicam o número de personagens na trama, semiotizando uma „quantidade infinita
de encontros‟, de ações que potencializam contatos” (JUSTINO, 2015, p. 131). Desta
feita, Plínio causa uma transformação por enfrentar o que considera um tempo “mau” e,
além disso, representar os socialmente excluídos e marginalizados como ele.
Personagens que fazem eclodir uma “multidão”, antes silenciadas pelas classes
dominantes. De modo que possibilitou novas discussões que se dedicam às análises dos
processos de subalternização e marginalização. O intelectual, tanto na figura de Plínio,
como na figura do Repórter, é convidado para trabalhar contra a subalternidade em
Querô.
Querô vive seu drama ao sabor da má sorte, as relações sociais e pessoais que o
mantém se transforma em matéria prima para a construção do “trágico do quotidiano”.
Fragmentada, a pequena história do homem comum e sem qualidades é apresentada. Os
elementos desse trágico moderno surgem através dos conflitos internos e existenciais
das personagens. Querô parece sentir o vazio de sua existência e o peso de estar só no
mundo. As ações da personagem diluem-se em extratos de uma realidade conflitante, os
acontecimentos tanto impossibilitam a ação por parte do menino, como podem
impulsioná-lo, construindo, desse modo, um trágico que se sustenta por detrás da ação.

61
CAPÍTULO 2

ENTRE LIMITES: ADAPTAÇÃO E APROPRIAÇÃO

2.1 O SURGIMENTO DE UM DIÁLOGO

Em seu estudo, a partir de uma abordagem diferencial43 do texto, Ute Heidmann


(2014) define a tradução como a criação de “[...] efeitos de sentido em relação com o
contexto discursivo no qual ela [obra literária] é deste modo novamente, ou de outra
forma, realizada” (HEIDMANN, 2014, p. 15). De modo que a tradução é entendida
como uma “re-configuração” de uma obra com base no contexto discursivo e
sociocultural daquele que traduz.
Nesse sentido, queremos iniciar uma discussão a partir da definição de tradução,
visto que muitos são os teóricos que tentam dar conta desse conceito e ainda maiores
são as polêmicas em torno da temática, bem como das nomenclaturas que surgem a
partir de novas pesquisas. Justino44 (2015, p. 83) assegura que dada à característica
uniformizadora da sociedade, os estudos de tradução e traduzibilidade são importantes
para se interpretar as “dinâmicas centrípetas e centrífugas”.
Seguindo a linha de teóricos que escrevem sobre a tradução, destacamos
Haroldo de Campos e sua transluciferação, termo criado por ele quando mapeou
traduções do Fausto, de Goethe, entendido como uma reinvenção, uma recriação e uma
reescrita do texto. De acordo com Justino (2015), um dos primeiros textos que Haroldo
de Campos escreveu sobre a transluciferação foi A tradução como criação e como
crítica (2002). A posição assumida por Haroldo de Campos nesse texto é de que “[...] a
poesia e a prosa literárias, assim como toda arte, são intraduzíveis, em virtude da

43
Para a teórica alemã, “[...] a análise diferencial consegue mostrar o potencial criador de tal dialogismo
entre os textos, gêneros e culturas que põe em ato o próprio trabalho de traduzir” (HEIDMANN, 2014, p.
14).
44
Nos valemos do livro de Justino (2015), Literatura de Multidão e intermidialidade: ensaios sobre ler e
escrever o presente, uma vez que o autor apresenta uma visão panorâmica sobre os estudos de tradução
elaborados por Haroldo de Campos e sua “transluciferação”. Para nossa pesquisa, cabe-nos compreender,
de modo geral, o que vem a ser a tradução.
62
relação indissociável no objeto estético entre forma e conteúdo” (JUSTINO, 2015, p.
89). Os estudos sobre a tradução se intensificam e Haroldo de Campos “[...] se
desvencilha de seus pressupostos metafísicos ao demonstrar que a fragilidade da
sentença absoluta da informação estética pode sim ser traduzida através de uma
„transcriação‟” (JUSTINO, 2015, p. 90). Desse modo à tradução é pensada como desvio
no sentido mesmo de trair. Traduzir por assim dizer, não significa passar de uma língua
para outra, é muito mais passar de uma cultura para outra. Para Haroldo de Campos, a
tradução é considerada uma “empresa satânica”.
Em seu texto Transluciferação mefistofáustica, conforme Justino (2015),
Campos tece reflexões a respeito da concepção de tradução de Walter Benjamin como
sendo algo angelical, visto que “[...] compreende a tradução enquanto recriação como
uma espécie de equivalência na/da diferença” (JUSTINO, 2015, p. 90). A tradução para
Campos assume, antes de tudo, um caráter luciferino e não angelical, sobretudo por não
aceitar a subjugação de questões pré-definidas.

Assim, o texto original está em dívida com a tradução, não há mais


resgate possível, a empresa satânica implica numa leitura, política da
tradição em que o tradutor não se prende a uma falsa reapropriação,
atualização ou equivalência para deixar intacto o sentido mesmo e
reforçar, em terra alheia, a superioridade de „original‟. O passado só
está vivo enquanto diferença crítica sendo a tradução uma potência
constituinte, que implica seleção e escolha, resistência não
hierarquizante e sem culpa ou castigo (JUSTINO, 2015, p. 92).

A tradução insere o original “[...] num „tempo carregado de agoras [...]”


(JUSTINO, 2015, p. 86), assim sendo, o tradutor, “anjo profano”, ocupa-se na atividade
de “[...] trabalhar num médium amontoado de ruínas e de destruição”. Esse termo
médium, com base em Justino (2015) está voltado para o sentido de mediação, ao entre,
do entorno. É ele quem possibilita uma tradução interlíngua, aquele responsável por
mediar discursos de naturezas distintas.
Conforme os estudos de Julio Plaza (2003) sobre a Tradução Intersemiótica, a
tradução “[...] ou „transmutação‟ foi por ele definida como sendo aquele tipo de
tradução que „consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de
signos não verbais‟, ou „de um sistema de signos para outro” (PLAZA, 2003, p. XI).
Assim, fundamentado em Plaza, a tradução pode ser entendida como um processo,
como uma transmutação que consiste na interpretação de um sistema de signos para

63
outro, por exemplo, no caso do nosso estudo, que tem como ponto inicial o romance
Querô, passa pelo texto dramatúrgico e chega até o espetáculo. Plaza (2003) ao rever
também as concepções e as definições dos tipos de tradução apresentadas por Roman
Jakobson compreende que a tradução acontece em etapas, uma vez que o teórico parte
do princípio de que há uma transposição criativa que contribui para o aprimoramento do
original. É importante ressaltar que encontramos aproximação entre a concepção de
tradução pensada por Plaza com a teoria sobre a adaptação de Linda Hutcheon (2011)
como veremos mais adiante.
No Brasil, um dos primeiros trabalhos que ganha relevância em torno das
discussões sobre intertextualidade, tradução e adaptação é a dissertação de Linei Hirsch
(1988), Transcriação teatral: Da Narrativa ao Palco sobre o panorama das principais
transcriações realizadas entre 1978 e 1985, conforme estudos desenvolvidos por Beigui
(2006). Naquele momento, a autora para desenvolver os estudos sobre a adaptação ou
transcriação se baseava nos conceitos de Haroldo de Campos para os estudos de
tradução. As pesquisas em torno da transcriação, desenvolvidas por Hirsch, se atualizam
na medida em que crescem os estudos sobre adaptação sinalizando também certa
aproximação com os estudos propostos por Hutcheon (2011).

[...] se como vimos anteriormente “adaptação”, nos termos postos por


Linei Hirsch e a maior parte da tradição crítica vigente das décadas de
setenta e oitenta, propõe um limite mimético entre o texto e a cena; o
ato apropriativo desloca esse mesmo limite ao lugar de fronteira. Daí a
necessidade de uma distinção mais sistemática entre os dois termos
uma vez que “adaptação” sugere um movimento mais conciliatório, o
que de certo modo justifica e explica as inúmeras tentativas de
precisar uma metodologia para a “transcriação” obra-peça. Ao passo
que “apropriação” revela um movimento mais desestabilizador, o que
se não inviabiliza tais tentativas de criação de uma metodologia da
“transcriação, leva-nos a questionar sua exeqüibilidade e mesmo
aplicabilidade. Antes de “métodos”, trata-se de processos criativos,
pautados em pactos de leitura e, nos casos por nós analisados,
envolvendo um alto grau de interferências Sujeito-Obra / Obra –
Sujeito (BEIGUI, 2006, p. 49).

Embora Hirsch (1988) observe a transcriação a partir da teoria de Haroldo de


Campos e Augusto de Campos sobre a tradução45, o conceito defendido pela autora se

45
O significado de tradução, de acordo com os irmãos Campos, estaria voltado para o sentido de se
desviar, o que para nós se assemelha as discussões desenvolvidas por Beigui (2006) e Sanders (2015)
sobre a apropriação, tendo em vista que apropriar é o mesmo que tomar para si revelando um “movimento
mais desestabilizador”, como aponta Beigui.
64
aproxima do que Linda Hutcheon (2011) chama de adaptação, ou seja, como algo que
deriva e é retirado de outro texto, uma vez que não toca no termo “apropriação”, e,
portanto, não propõe um deslocamento entre texto e cena ao lugar de fronteira,
conforme a citação acima. Fato é que os estudos que têm por objetivo traçar leituras a
partir de possíveis correspondências entre obras podem tomar as mais diferentes formas.
Com uso mais recorrente, os estudos mostram que a adaptação tenta dar conta de
fenômenos de reescrituras, transposição, interpretação.
De acordo com Hutcheon (2011), “[...] a adaptação é uma derivação que não é
derivativa, uma segunda obra que não é secundária – ela é a sua própria coisa
palimpséstica46” (HUTCHEON, 2011, p. 30). A proposta de Hutcheon (2011) é
apresentar uma teoria da adaptação que carrega em si a ideia de uma relação declarada
com outros textos. A adaptação ainda é compreendida como um procedimento que
cobra fidelidade entre as obras, por isso, o pesquisador Robert Stam (2006, p. 19)
preocupa-se em propor “[...] uma linguagem alternativa [...]” para falar de adaptações
entre o romance e o cinema. Talvez, a questão não está voltada a uma cobrança ou não
de fidelidade e, sim, requer a atualização do termo.
Stam (2006) tenta discutir sobre a ideia ainda negativa que cobra fidelidade ao
fenômeno da adaptação. Por sua vez, afirma que não tem por objetivo corrigir
avaliações erradas de determinadas adaptações, o que também não é o nosso caso. O
teórico expõe que quer “[...] desconstruir a doxa não declarada que sutilmente constrói o
status subalterno da adaptação [...]” (STAM, 2006, p. 20). Para isso, compartilha das
reflexões apresentadas por Kristeva no que se refere à intertextualidade, bem como a
teoria de Genette e o conceito de “desconstrução” de Derrida. Sobre o conceito de
intertextualidade desenvolvido por Kristeva, bem como o de Genette, Stam (2006)
afirma que ambos assimilam “[...] a interminável permutação de textualidades, ao invés
da „fidelidade‟ de um texto posterior a um modelo anterior, e desta forma também
causam impacto em nosso pensamento sobre adaptação” (STAM, 2006, p. 21). Nesse
sentido, por carregar o sentido de “ajuste”, o que se compreende com base no senso
comum é que ao adaptar uma obra para outra mídia estaríamos subtraindo e perdendo
elementos, decerto, a adaptação por lidar com aproximação promove esse tipo de
assimilação.

46
Para Heidmann (2014): “É esta sobreposição de diferentes diálogos intertextuais que faz destes textos
autênticos palimpsestos. Para os decodificar, importa considerar que cada um destes diálogos intertextuais
possui uma lógica própria que interage de modo significativo com as outras” (HEIDMANN, 2014, p. 70).
65
Embora a teoria da intertextualidade certamente tenha reformulado os
estudos da adaptação, outros aspectos do pós-estruturalismo ainda não
haviam sido levados em conta na re-elaboração do status e prática da
adaptação. A desconstrução de Derrida, por exemplo, desfez
binarismos excessivamente rígidos em favor da noção de „mútua
invaginação47‟. A desconstrução também desmantela a hierarquia do
„original e da „cópia‟. Numa perspectiva derridiana, o prestígio aural
do original não vai contra a cópia, mas é criado pelas cópias, sem as
quais a própria ideia de originalidade perde o sentido. [...] A crítica
derridiana das origens é literalmente verdadeira em relação à
adaptação. O „original‟ sempre se revela parcialmente „copiado‟ de
algo anterior; A Odisséia remonta à história oral anônima, Don
Quixote remonta aos romances de cavalaria, Robinson Crusoé
remonta ao jornalismo de viagem, e assim segue ad infinitum (STAM,
2006, p. 22).

Nessa perspectiva a ideia de texto “original” e “cópia” perde sentido, uma vez
que esse original se revela também como cópia de algo preexistente. No entanto, o
impasse não mais está em pensar sobre a melhor maneira de dizer o texto e sim sobre os
desvios. Concordamos com Stam (2006) quando afirma que é necessário pensar em uma
linguagem alternativa. De acordo com o pensamento derridiano “[...] além de a própria
coisa representada já constituir um signo, a repetição deste provoca sua constante
modificação, o que impede a delimitação de seu uso [...] e, portanto, indiferencia a
simples presença de uma repetição da presença” (PEREIRA, 2010, p. 147). Sendo
assim, o signo é compreendido como multiplicidade e ainda como uma rede de
fragmentos significantes.
De modo que toda essa discussão sobre a “interminável permutação de
textualidade” nos remete ao conceito de intertextualidade, tanto para Kristeva, como
para Genette (2010) que defende que as relações dos textos com outros textos seriam
apenas uma das primeiras relações transtextuais. A intertextualidade para Genette
(2010) é “[...] o mecanismo próprio da leitura literária. De fato, ela produz a
significância por si mesma, enquanto que a leitura linear, comum aos textos literários e
não-literários, só produz sentido” (GENETTE, 2010, p. 15). A significância, portanto, é
uma espécie de janela para o processo de significação e a produção de significados,
enquanto que a leitura linear só gera informação a partir do texto mimético.
A teoria de Gerard Genette (2010) define que o objeto da poética não é o texto
em si, e sim, a transtextualidade, melhor dizendo, as relações manifestas ou secretas
47
A invaginação seria uma espécie de desdobramento, de acordo com o Dicionário Houaiss “1 –
penetração de parte de uma estrutura orgânica em outra, sendo ambas do mesmo indivíduo” (HOUAISS,
2009).
66
que o texto mantém com outros. A definição de transtextualidade estaria ligada às
relações perceptíveis ou entre esses textos, ou seja, “[...] a transtextualidade ultrapassa
então e inclui a arquitextualidade48”. De modo que um texto pode experimentar
diferentes categorias transtextuais, sobretudo, porque não são estanques.
Sanders (2015) estabelece que os estudos sobre adaptação e apropriação são
voltados às “[...] áreas e práticas cognatas tais como intertextualidade e estudos de
tradução49” (SANDERS, 2015, p. 21). De modo que a pesquisadora explora também a
intertextualidade, pensada por Kristeva, e sua manifestação específica nos processos de
adaptação e de apropriação. Sobre o termo intertextualidade, Julia Kristeva50, afirma:

Nessa perspectiva, o texto é definido como um aparato translingüístico


que redistribui a ordem da linguagem relacionando o discurso
comunicativo, que visa informar diretamente, os diferentes tipos de
enunciados anteriores ou sincrônicos. O texto é, portanto, uma
produtividade, e isso significa; primeiro, que sua relação com a
linguagem em que se situa é redistributiva (destrutiva-construtiva) e,
portanto, pode ser melhor abordada por meio de categorias lógicas e
não lingüísticas; E, segundo, que é uma permutação de textos, uma
intertextualidade: no espaço de um determinado texto, várias
expressões, tiradas de outros textos, se cruzam e neutralizam
(KRISTEVA, 1980, p. 36). Tradução nossa.

A proposta de Julia Kristeva (2005) está relacionada aos ecos dos textos em
outros textos. Para Kristeva, as pesquisas em torno da intertextualidade têm sua fonte no
conceito de “dialogismo51”, de Bakhtin, uma vez que esse pensador introduziu na teoria

48
Genette (2010, p. 13) define “arquitextualidade” como o mesmo que dizer a “[...] literariedade da
literatura, isto é, o conjunto das categorias gerais ou transcendentes – tipos de discurso, modos de
enunciação, gêneros literários, etc. – do qual se destaca cada texto singular”.
49
“[…] strongly linked to work in cognate areas and practices such as intertextuality and translation
studies” (SANDERS, 2015, p. 21). Todas as citações do livro Adaptation and Appropriation de Julie
Sanders (2015) foram traduzidas por nós.
50
“In this perspective, the text is defined as a trans-linguistic apparatus that redistributes the order of
language by relating communicative speech, which aims to inform directly, to different kinds of anterior
or synchronic utterances. The text is a therefore a productivity, and this means; first, that its relationship
to the language in which it is situated is redistributive (destructive-constructive), and hence can be better
approached through logical categories rather than linguistic ones; and second, that it is a permutation of
texts, an intertextuality: in the space of a given text, several utterances, taken from other texts, intersect
and neutralize one another” (KRISTEVA, 1980, p. 36).
51
Para Kristeva (2005, p. 75) “[...] o termo bakhtiniano dialogismo como complexo sêmico francês
implicaria o duplo, a linguagem e uma outra lógica. Uma nova abordagem dos textos poéticos delineia-se
a partir desse termo que a semiótica literária pode adotar. A lógica que o dialogismo implica é,
simultaneamente: 1. uma lógica de distância e de relação entre os diferentes termos da frase ou da
estrutura narrativa, indicando um devir- em oposição ao nível de continuidade e de substância, que
obedecem à lógica do ser e que serão designadas como monológicas; 2. uma lógica de analogia e de
oposição não-exclusiva, em oposição ao nível de causalidade e de determinação identificadora, que será
designada como monológica; 3. uma lógica do transfinito, conceito que emprestamos de Cantor e que
introduz, a partir da potência do contínuo a linguagem poética (0-2), um segundo princípio de formação, a
67
literária a ideia de que “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto
é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade,
instala-se a de intertextualidade [...]” (KRISTEVA, 2005, p. 68). Essa intersubjetividade
é compreendida pela teórica como a relação entre o autor e o leitor.
Conforme Sanders (2015), Julia Kristeva descreve o processo de
intertextualidade com base na semiótica, uma vez que encara o texto como um sistema
de signos. “O foco de Kristeva foi impulsionado pela semiótica; ela estava interessada
em como textos foram permeados pelos sinais, significadores, e expressões da cultura
em que participaram, ou a partir do qual derivam52” (SANDERS, 2015, p. 2). Nesse
sentido a intertextualidade:

[...] se refere a uma noção muito mais textual em contraponto àquela


direcionada pelo enunciado de como os textos englobam e respondem
a outros textos durante ambos os processos de sua criação e
composição e em termos de qualquer resposta subsequente individual
ou coletiva do leitor ou espectador53 (SANDERS, 2015, p. 2).
Tradução nossa.

Assim, as práticas da reescritura, entendidas para além da imitação, articulam-se


a ideia de intertextualidade. Conforme o conceito de “dialogismo intertextual”, proposto
por Heidmann (2014), a intertextualidade pode ser entendida como “[...] um processo no
qual um texto „responde‟ a uma proposta de sentido patente num texto anterior, criando
novos efeitos de sentido e não raro radicalmente diferentes” (HEIDMANN, 2014, p.
72). Desta feita, muito mais do que indicar a existência de um texto primeiro ou mesmo
um tema, o diálogo intertextual permite com que o texto responda ao texto anterior, e,
assim, desloque e crie novos sentidos. A proposta de uma comparação pela diferença, de
Heidmann (2014), consegue ampliar ainda mais as discussões sobre a apropriação, uma
vez que sinalizam aproximação pelo nível de resposta entre dois ou mais textos.

saber: uma seqüência poética é imediatamente superior (não deduzida causalmente) a todas as seqüências
precedentes da série aristotélica (científica, monológica, narrativa)”.
52
“Kristeva‟s focus was driven by semiotics; she was interested in how texts were permeated by the
signs, signifiers, and utterances of the culture in which they participated, or from which they derived”
(SANDERS, 2015, p. 2).
53
“Intertextuality as a term has, however, come to refer to a far more textual as opposed to utterance-
driven notion of how texts encompass and respond to other texts both during the processo f creation and
composition and in terms of any individual or cellective reader or spectator response” (SANDERS, 2015,
p. 2).
68
A análise comparativa diferencial apresentada por Heidmann (2014) considera
três “dinâmicas discursivas54”, entre as três, consideramos importante discutir a respeito
da modalidade do diálogo intertextual, uma vez que é entendida como uma “[...]
resposta a uma proposta de sentido de um texto ou de um discurso anterior, em vez de o
conceber, como frequentemente se faz, como um “empréstimo”, uma “imitação”, ou
uma “influência” sofrida” (HEIDMANN, 2014, p. 20). Assim sendo, a dimensão
intertextual, oposta a ideia de influência e imitação, é uma resposta do texto a outros
discursos construídos anteriormente nesse jogo constante de renovação.
Sanders (2015, p. 2) apresenta um novo caminho para pensar a intertextualidade,
visto que discute sobre a nova era da Web 2.0 e toda a rede coletiva de criatividade e
personalização da geração de plataformas e sites como o youtube. Ao olharmos para a
tecnologia, de um modo geral, observamos que toda essa discussão sobre originalidade
perde sentido, uma vez que as relações estabelecidas entre autor, público, adaptador e
etc, são ressignificadas dada à velocidade com que esses movimentos acontecem. Desse
modo, o vocabulário cotidiano desafia as questões sobre autonomia e propriedade
intelectual versus criatividade e acesso aberto. Pereira (2010) em seu artigo sobre essas
Redes Literárias também fala da tecnologia afirmando que:

A revolução tecnológica da atualidade intensifica as discussões em


torno da inteligência e da autoria de base coletiva, pois ao fornecer
recursos para sua efetivação – ferramentas interativas como e-mails,
blogs, chats, software livre, TV digital, educação a distância –
potencializa seu raio de ação e consolida os novos processos
cognitivos deflagrados por comunidades heterogêneas e metamórficas
(PEREIRA, 2010, p. 150)

Com isso, mostra que a tecnologia nos torna conhecedores das ofertas da arte em
seus termos mais amplos. Assim, “[...] adaptações e apropriações (ou mediações e
remediações) podem variar em como explicitamente declaram seu propósito intertextual
ou conectivo55” (SANDERS, 2015, p. 2). Por isso, o foco de Sanders (2015) volta-se
também para as novas comunidades de práticas que envolvem o trabalho adaptativo e
comunidades de fãs que se formam como fabricantes e produtores de novos tipos de

54
Para melhor aprofundamento consultar: HEIDMANN, Ute. Diálogos intertextuais e interculturais. A
comparação como método. Trad. João Domingues e Maria de Jesus Reis Cabral. Portugal: Edições
Pedagogo, 2014.
55
“[…] adaptations and appropriations (or mediations and remediations) can vary in how explicitly they
state their intertextual or connective purpose” (SANDERS, 2015, p. 2).
69
histórias, tornando, nesse sentido, a linha entre produtor e consumidor cada vez menos
evidente.
A discussão de Sanders (2015) sobre a ideia de original é redimensionada para
uma questão de distribuição em rede e uma interpretação coletiva. Como exemplo,
afirma que um ponto de partida para os jovens chegarem aos textos canônicos como
Romeu e Julieta ou Alice no País das Maravilhas pode ser a partir das adaptações
cinematográficas ou das animações de Walt Disney, revelando também essa
multiplicidade conforme a fala de Pereira (2010) na citação a seguir:

Desdobrando-se incessantemente no âmbito da literatura, a potência


da narrativa atua „como um ser vivo que é capaz de se reproduzir‟.
Sendo gerada, nutrida e atualizada pelos intercâmbios das múltiplas
inteligências que a compõem, a matéria da literatura é suficientemente
porosa para acolher e associar diferentes códigos e linguagens,
permitindo que eles circulem por entre os homens e as artes. Por isso,
o mundo fabuloso da arte literária constitui um campo propício para o
cultivo de três princípios textuais da cultura de hoje:
hipertextualidade, conectividade, e transversalidade. Estruturando-se
eles próprios como redes, tais conceitos se associam entre si nas
infinitas teias que se deslocam por telas e textos da atualidade, e assim
reorientam o uso estético-social da escritura e da leitura. Se é verdade
que a inteligência coletiva é a inteligência das aprendizagens, sendo,
portanto, potencialmente inesgotável, estamos diante de uma tão
profunda revolução das formas de pensar e viver que ainda não
conseguimos prever o alcance de sua extensão. De qualquer forma,
uma coisa parece certa: a literatura continua funcionando como a
linguagem que, circulando por entre saberes e artes, antecipa novas
formas de viver e pensar pois absorve, reúne e dissemina os sinais de
mudança presentes nas linguagens com as quais interage. Imersa no
universo complexo da humanidade e de seus signos, a arte literária
estabelece redes de sentido onde só parece haver não senso e, dessa
forma, contribui para se imaginar e reconstruir o mundo (PEREIRA,
2010, p. 153).

Sendo assim, cada vez que um texto passa ao longo do tempo por diversas
formas e desenvolve histórias múltiplas, é importante considerar como o leitor ou
espectador encontra o original. No entanto, essa ideia de original não pode ser o
primeiro na sequência de caminhos56. Nesse percurso, o vocabulário da adaptação é
instável, o surgimento das novas tecnologias ampliou ainda mais seu léxico. Sanders

56
De acordo com Heidmann “[...] o conceito de dialogismo intertextual e interdiscursivo permite repensar
também as noções de „filiação‟ e de „fonte‟. Numerosos trabalhos [...] abordam os textos antigos
principalmente no seu papel de fonte, para aí encontrarem os motivos e os temas recorrentes a que
chamamos, desde Lévi-Strauss, „mitemas‟, que se trata depois de reencontrar nos textos modernos para
demonstrar a sua perenidade e a sua pretensa universalidade. Na minha perspectiva, a relação intertextual
é bem mais do que um indicador de filiação ou de fonte” (HEIDMANN, 2014, p. 20).
70
(2015) afirma que os estudos de adaptação lançam “[...] um rico léxico de termos:
versão, variação, interpretação, continuação, transformação, imitação, pastiche, paródia,
falsificação, travesti, transposição, reavaliação, revisão, reescrita, eco57” (SANDERS,
2015, p. 22). Resultado desse leque de termos, os estudos de adaptação, conforme
Sanders (2015, p. 22) “[...] favorecem necessariamente uma espécie de „estruturalismo
aberto‟ nas linhas propostas por Genette58” (SANDERS, 2015, p. 22). Assim,
significaria uma espécie de leitura relacional, ou seja, conforme Genette (2010, p. 145),
ler dois ou mais textos, um em relação ao outro, tendo em vista que envolvem dois
estruturalismos, o primeiro deles é o de fechamento do texto, e o segundo o de
deciframento das estruturas internas.

2.2 ADAPTAÇÃO TEXTUAL: DO ROMANCE À CENA

Entendidos os aspectos teóricos iniciais da nossa pesquisa, passemos a


compreender os diálogos entre as obras Querô, uma reportagem maldita (1992; 2003;
2009) na tentativa de pensar cada fenômeno, conforme a obra nos sugere. Durante nosso
segundo capítulo, utilizamos não por acaso, os termos adaptação e apropriação59
referindo-nos às relações de contato, cortes, aproximações, assimilações, desvios e
tantas outras operações feitas entre as obras que constituem o corpus da pesquisa. Com
base na fala de Plínio Marcos por meio da qual o texto dramatúrgico é uma adaptação
do romance, observa-se que toda a discussão desenvolvida por Linda Hutcheon sustenta
o que o próprio Plínio já havia apresentado. Desse modo, a partir do conceito de
adaptação, conforme propõe Linda Hutcheon (2011), desenvolve-se um estudo entre o
romance Querô, uma reportagem maldita (1992) e o texto dramatúrgico de mesmo
nome (2003).
É notável a crescente discussão em torno do conceito de adaptação e, mais
recente, sobre a apropriação. Em sua pesquisa Beigui (2006) distingue “apropriar”,
57
“Adaptation studies throws up a rich lexicon of terms: version, variation, interpretation, continuation,
transformation, imitation, pastiche, parody, forgery, travesty, transposition, revaluation, revision,
rewriting, echo” (SANDERS, 2015, p. 22).
58
“[…] as a result adaptation studies necessarily favous a kind of „open structuralism‟ along the lines
proposed by Genette [...]” (SANDERS, 2015, p. 22).
59
Nesse contexto, entendemos aqui que o termo apropriação deve ser compreendido como um
movimento de ruptura, uma vez que se refere a processos criativos baseados em possíveis leituras.
71
identificando dois caminhos para se pensar o vocábulo, do termo “adaptar”, entendido
como uma ação genérica.

Originalmente, “apropriação” deriva do verbo “apropriar”. Sua


significação bifurca-se em duplo sentido: no primeiro, “apropriar”
[dar de propriedade], [tornar próprio o adequado, adaptar, acomodar,
proporcionar]; no segundo, apropriar [tornar próprio, tomar para si,
apossar-se]. Já no caso do verbo “adaptar”, este traz consigo o sentido
de [ajuste]; [equilíbrio entre fatores internos e externos]; [relação que
a língua escrita mantém com a língua falada]; [capacidade gerativa de
adequar estrutura e conhecimento intuitivo das regras que o locutor
possui]; [valor aproximativo de ambigüidades produzidas pelo
enunciado]; [correspondência exata com a natureza da coisa]. Adaptar
designa uma ação genérica, sendo a utilização ainda não devidamente
refletida pelos estudos tratados como fenômeno histórico e estético
(BEIGUI, 2006, p. 16-17).

Com base no exposto, observa-se que há por parte desses pesquisadores uma
preocupação em distinguir o conceito de adaptação e apropriação, tendo em vista as
crescentes pesquisas em torno dos movimentos de leituras e processos criativos que
podem surgir a partir de uma obra. Por exemplo, Julie Sanders (2015) também apresenta
uma distinção dos termos na abertura do primeiro capítulo do livro Adaptation and
Appropriation, quando questiona: “O que é adaptar?60”. Assim, percebe-se que termos
como “ajustar”, “acomodar” ou “encaixar” estariam no mesmo campo semântico de
adaptar, já apropriar, estaria relacionado aos conceitos de “tomar para si”, “tomar como
próprio”.
Sobre a adaptação, Hutcheon (2011) declara: “Tal como a tradução, a adaptação
é uma forma de transcodificação de um sistema de comunicação para outro”
(HUTCHEON 2011, p. 9). Durante o desenvolvimento da pesquisa Hutcheon (2011)
apresenta uma discussão sobre a adaptação como processo “(reinterpretação criativa e
intertextualidade palimpséstica)” e como produto “(transcodificação extensiva e
particular)”. Desse modo, afirma: “O fato de utilizarmos a palavra „adaptação‟ tanto
para o produto como para o processo de criação e recepção sugere a necessidade de uma
perspectiva teórica que seja ao mesmo tempo formal e „experiencial‟” (HUTCHEON,
2011, p. 15). A teórica sugere que a adaptação seja compreendida enquanto um processo
dinâmico na relação com outras obras, de acordo com as mais diversas intenções.
Assim, apresenta três categorias distintas para pensar a adaptação, a saber: i) como

60
“What is adaptation?” (SANDERS, 2015, p. 21).
72
entidade ou produto: “Uma transposição declarada de uma ou mais obras reconhecíveis;
ii) como processo de criação: “Um ato criativo e interpretativo de
apropriação/recuperação; iii) como processo de recepção: “Um engajamento
intertextual extensivo com a obra adaptada” (HUTCHEON, 2011, p. 30).
A adaptação em nada está voltada para questões em torno da fidelidade ou não
do texto adaptante. Seja qual for o motivo que tenha levado Plínio Marcos a adaptar a
história de Querô é certo que, das mãos do autor, uma nova obra surgiu. Como bem
afirma Hutcheon (2011): “Tal como a tradução, a adaptação é uma forma de
transcodificação de um sistema de comunicação para outro” (HUTCHEON, 2011, p.
09). Ainda como comenta Deleuze, o homem do teatro crítico é um operador: “Por
operação deve-se entender o movimento da subtração, da amputação, mas já recoberto
por outro movimento, que faz nascer e proliferar algo de inesperado” (DELEUZE,
2010, p. 29). Como adaptador Plínio Marcos assumiu a função de operar, subtrair e
contrair, uma vez que romances, especialmente os longos, exigem essa “arte cirúrgica”,
nas palavras de Hutcheon (2011, p. 43). De modo que a adaptação não deve ser
compreendida como uma cópia ordinária, sobretudo porque o adaptador recria, de
alguma forma, outro material.
Familiarizado com as outras obras, longe de cobrar fidelidade à adaptação ao
ponto de enfraquecer a análise, para o sujeito leitor, espectador ou ouvinte “[...] a
adaptação como adaptação é inevitavelmente um tipo de intertextualidade se o receptor
estiver familiarizado com o texto adaptado” (HUTCHEON, 2011, p. 45). Desse modo,
estaríamos comparando a obra já conhecida àquela que estamos conhecendo, e, assim,
ampliando ainda mais a nossa leitura crítica frente às produções.
Interessante perceber que, no romance, Plínio Marcos apresenta a personagem
desde o seu nascimento até sua morte. Cronologicamente, acompanhamos o crescimento
do menino, as mudanças de ciclos marcadas por uma necessidade de lutar pela
sobrevivência. “Ou a gente nasce de bunda virada pra Lua, ou nasce cagado de arara.
Não tem por onde. Assim é que é. Uns têm tudo logo de saída. Os outros só se
estrepam. Não têm arreglo61. É um puta de um jogo sujo de dar nojo” (MARCOS, 1992,
p. 9). A partir de uma leitura entre as obras, observa-se que o dramaturgo opta por fazer

61
Segundo o dicionário, o termo “arreglo” significa: “1) ato ou efeito de arreglar; ajuste; combinação;
acordo; 2) adaptação de peça teatral” (HOUAISS, 2009).
73
uma operação de ruptura com a ordem cronológica, uma vez que inicia com a descrição
do cabaré. Nesse caso, a infância de Querô não aparece no texto dramatúrgico.
Hutcheon (2011) expõe que: “A dupla natureza da adaptação não significa,
entretanto, que proximidade e fidelidade do texto adaptado devam ser o critério de
julgamento ou o foco de análise” (HUTCHEON, 2011, p. 28). Tomando como base
esses apontamentos, a partir de agora, apresentaremos um pouco do corpus da nossa
pesquisa na tentativa de compreender aspectos relevantes para nosso estudo sobre
adaptação como adaptações, partindo do conceito de Linda Hutcheon (2011) sem,
contudo, cobrar aspectos de fidelidade e originalidade entre as obras.
Na sucessão dos capítulos conhecemos “à curriola do Tainha”, um grupo de
menores que se uniram para viver como queriam. “Ai, a gente fazia o que podia.
Ajudava a descarregar barco de pesca, roubava café da sacaria do caminhão, levava
recado de puta, comia bundão de marujo veado [...]” (MARCOS, 1992, p.17). Até que
no episódio do gringo, vítima do bando, Tainha entrega Querô aos policiais, e, para
infelicidade do menino, os policiais o levam preso. “O que a gente não sabia era que o
veado era troço pacas na puta da vida. Oficial da Marinha inglesa. Como a gente ia
adivinhar? (MARCOS, 1992, p. 21).
Querô se entrega e relata como aconteceu a história do assalto ao oficial “Ele
deu tudo pra eu enrabar ele. O gringo é bichona. Bicha escrota. Deu relógio e tudo que
tinha” (MARCOS, 2003, p. 247). Como não gostava de “bicha”, segundo palavras suas
no texto, afanou o relógio do “gringo” e ainda bateu nele, para seu azar, pois, o oficial o
denunciou. Foi quando toda perseguição de Nelsão e Sarará começou, uma vez que
entenderam que poderiam ganhar muito mais ajudando a dar cobertura aos crimes
cometidos por Querô. O delegado surge no momento em que o menino é apreendido.
Essa cena, propriamente dita, aparece no texto dramatúrgico apenas na fala dos
policiais quando questionam Querô sobre o roubo, a maneira que o dramaturgo
encontrou para contextualizar o leitor no que se refere a perseguição de Nelsão e Sarará
e o início da confusão com o menino. “SARARÁ – Pode se abrir. Eu já sei de tudo. O
Tainha contou. Pra mim e pro Nelsão. (Balançando o relógio na cara do Querô). Tu
roubou o relógio do gringo e deu pro Tainha. Foi tu. O tal de Querô. Não foi?”
(MARCOS, 2003, p. 244). Hutcheon (2011) afirma que os temas são, talvez, os
elementos das histórias considerados mais adaptáveis. Personagens também podem ser
transportadas entre as adaptações, bem como as unidades separadas da história podem
74
ser transmidiadas, quando não, encurtadas ou traduzidas. Em Querô a história do menor
abandonado é recontada no texto dramatúrgico, no entanto, algumas personagens, por
exemplo, Naná, saem e outros se juntam para formar novas personagens, como é o caso
da presença de Ju no lugar de Pai Bilu de Angola e Gina de Obá.
Na sequência, o Capítulo III mostra a vida de Querô no reformatório, o
sofrimento pelo abuso cometido pelos outros meninos, à revolta, o crime e a fuga. Em
busca de sobreviver, no Capítulo IV, Querô pede ajuda a Naná, um travesti que em troca
queria liberdade para acariciá-lo, no entanto, o menino reage com golpes e agride Naná.
No Reformatório, entre todos os menores citados e já conhecidos por Querô, o
que ganha destaque é Zulu, sobretudo porque em cenas após o episódio do
Reformatório, Querô volta a visitá-lo. Zulu, se apresenta aparentemente bem de vida
apenas porque possui uma arma. Querô se aproveita do momento, rouba a arma do
pivete e ainda o atinge até a morte. “Porra, a barra pesou. É foda. Um defunto nas costas
é foda. Pode ser um bunda-mole, como o tal de Zulu, mas pesa” (MARCOS, 1992, p.
81), isso se passa no capítulo VII. Os outros meninos são citados antes da cena da
provocação por parte de Cocada para atingir Querô que se envolve em briga e fica preso
na solitária. Fora da cela, sofre abuso sexual tendo como atuantes os pivetes. Em
seguida, aparece o Edgar, o cozinheiro, o roubo da faca e a fuga de todos do
Reformatório.
A fuga leva Querô ao “puteiro” de D. Quita, citada na obra como dona do local
onde trabalhava Naná. Com o dinheiro e a roupa que pegou da Naná, Querô se instala
em um quarto de pensão e lá conhece Gina de Obá, “[...] chegada à macumba e que me
levou no terreiro do pai-de-santo dela, um tal de Bilu de Angola, homem legal, alegre
[...]” (MARCOS, 1992, p. 51). No terreiro, Querô se apaixona por Lica, personagem
que é somente mencionada.
Cada acontecimento faz crescer em Querô uma revolta e uma necessidade de
vingança, no entanto, o Capítulo V mostra uma vontade de mudança quando Querô
começa a se sentir atraído por Lica no terreiro que estava frequentando do pai-de-santo
Bilu de Angola. Toda essa possibilidade de mudança foi apagada quando o menino
adquire uma dívida em um jogo e começa a ser perseguido pelos policiais Nelsão e
Sarará. No Capítulo VI a perseguição dos policiais continua e a dívida de Querô só
aumenta.

75
Para conseguir ir a uma festa no terreiro, Querô apostou com Brandão “[...]
crioulão grande, metido a valente” (MARCOS, 1992, p. 52), um jogo de sinuca.
Brandão vence todas as partidas, Querô, sem dinheiro, se envolve em mais uma dívida e
não consegue ir à festa. Na tentativa de pagar e resolver a situação, o menino começa a
buscar uma forma de ganhar dinheiro, nessas caminhadas percebe que está sendo
importunado por dois rapazes, o Nelsão e o Sarará. Perseguido pelos policiais, Querô
agora só pensa em vingança. É quando se depara com Zulu e marca a história do seu
primeiro crime, a morte do menino.
Depois do crime, escondido em casa, começa a tramar a morte dos policiais e, no
Capítulo VIII, Querô resolve enfrentar Nelsão e Sarará. “Puxei o trinta e oitão e
despejei” [...]. Acertei o Nelsão e vi o puto cair. Mas errei o Sarará. [...]. O Sarará
atirava também” (MARCOS, 1992, p. 83). O fim do romance chega com o acerto de
contas entre Querô e os policiais. As trocas de tiros acontecem e o menino é baleado.
Somente no último capítulo surge o jornalista. É quando Querô também é acertado e
somos levados para o Capítulo IX nos deparando com o menino sendo entrevistado pelo
jornalista e, no último capítulo, X, tomamos conhecimento de que se trata de um relato
sobre os acontecimentos.
Toda a história se passa em Santos, lugar considerado por Querô como sua casa.
“Quase às duas e meia, saí do mangue e entrei numa rua do Itapema” (p.38), e ainda,
“[...] ali no mercado, eu me sentia em casa, mas na verdade a situação continuava a
mesma” (MARCOS, 1992, p. 43). Além desses lugares, Querô passeia pelo Cais do
Porto, Xavier da Silveira, rua em que ficavam as prostitutas, Valongo, onde se batizou,
e o Macuco.
Em 1977, o romance que conta a vida trágica de um menor abandonado ganhou
as telas sob a direção de Reginaldo Farias. Stepan Nercessian atuou como Querô. O
filme recebe o nome de Barra Pesada, um título forte que, de algum modo, revela a
situação do país e a luta do menino para sobreviver diante da vida tortuosa em que se
encontrava. Barra Pesada apresenta uma estrutura direta e cronológica na narrativa dos
fatos que ocorriam com Querô (Stepan Nercessian), no caso do filme, um rapaz que está
sempre envolvido em confusão, sobrevivendo através dos dribles que conseguia dar na
vida ao lado do seu amigo Negritinho (Cosme dos Santos).

É claro que há uma ampla gama de razões pela quais os adaptadores


podem escolher uma história em particular para então transcodificá-la
76
para uma mídia ou um gênero específico. [...] o propósito pode muito
bem ser o de suplantar econômica e artisticamente as obras anteriores.
A vontade de contestar os valores estéticos e políticos do texto
adaptado é tão comum quanto a de prestar homenagem. Isso, claro, é
uma das razões pela quais a retórica da fidelidade é inadequada para
discutir o processo de adaptação. Qualquer que seja o motivo, a
adaptação, do ponto de vista do adaptador, é um ato de apropriação ou
recuperação, e isso sempre envolve um processo duplo de
interpretação e criação de algo novo (HUTCHEON, 2011, p. 44-45).

Tanto Plínio Marcos, como Reginaldo Farias podem ter apresentado razões
diversas para transcodificar a obra, um para teatro, outro para cinema, no entanto, o
certo é que ambos revelam a partir de Querô uma preocupação com a situação do país e,
principalmente, com o menor abandonado. Plínio escolheu partir do modo contar para o
mostrar e, claramente, há nesse diálogo entre as obras diversas intenções, bem como
cortes e ajustes. Por exemplo, o texto dramatúrgico não apresenta cenas precisas. A
história funciona como se tudo fosse contado de uma só vez, de repente, estamos em
meio aos tiroteios entre Querô, Nelsão e Sarará. Uma das primeiras cenas do texto
dramatúrgico menciona que em um cabaré de baixa categoria “Nelsão e Sarará, dois
oficiais, estão misturados com os fregueses, bebendo à vontade” (MARCOS, 2003, p.
235). Os três modos de engajamento que envolvem a adaptação de que fala Linda
Hutcheon são: contar, narrar e interagir. Para a teórica:

A ênfase no processo permite-nos expandir o foco tradicional dos


estudos de adaptação, centrados na especificidade midiática e nos
estudos de caso comparativos, de modo a incluir também as relações
entre os principais modos de engajamento, ou seja, permite-nos pensar
sobre como as adaptações fazem as pessoas contar, mostrar ou
interagir com as histórias (HUTCHEON, 2011, p. 47).

Nesse sentido, cada modo é imersivo a sua maneira, tendo em vista que contar
(um romance) nos faz imergir “[...] num mundo ficcional através da imaginação”, o
“[...] mostrar (peças e filmes) nos faz imergir através da percepção”, e o “[...] o modo
participativo (videogames) nos faz imergir física e cinestesicamente” (HUTCHEON,
2011, p. 47 – 48). Assim, compreende-se que em uma adaptação acontece um manuseio
astuto de mídias, formas e modos de engajamentos por parte do adaptador.
Dessa maneira, para além da compreensão da obra como adaptação, ou seja,
como simples ação de ajustar, Plínio Marcos criou outra produção, sobretudo porque
houve a eliminação, criação de novas personagens e a fusão entre outras já existentes no

77
romance, por exemplo, Zulu e Tainha tornam-se uma só. No texto dramatúrgico
contamos com a presença de Querô, Leda (nome da mãe de Querô no texto
dramatúrgico), Ju (aparece mais nas cenas), Violeta, Repórter (nome da personagem),
Sarará, Nelsão, Tainha, Cantora (personagem que canta no cabaré), homens e mulheres.
A obra “adaptante” Quero, uma reportagem maldita (2003) estaria no âmbito da
adaptação como uma transposição declarada, uma vez que Plínio permuta alguns
elementos como tema, lugar e personagens, com base na teoria de Hutcheon (2011),
quando apresenta os modos como a adaptação pode ser descrita. “Como transposição
criativa e interpretativa de uma ou mais obras reconhecíveis, a adaptação é um tipo de
palimpsesto extensivo, e com freqüência, ao mesmo tempo, uma transcodificação”
(HUTCHEON, 2011, p. 61). Essa concepção da obra de Plínio enquanto transposição
nos remete também a discussão de Hirsch (1988) sobre a transcriação, anteriormente
abordada, visto que a partir desse olhar o texto dramatúrgico, ou seja, a adaptação de
Plínio seria uma derivação de outro texto, nesse caso, do romance de 1976.
Durante um longo diálogo entre Querô e o Repórter, o menino demonstra não
entender o por quê de tudo aquilo, desconfiado de “toda aquele jogo sujo”, em meio as
dores do ferimento e da tentativa de ajuda do Repórter, Querô apresenta Ju, Madame
Violeta, a Cantora e outras personagens. Somente depois o leitor compreende que se
trata da rememoração dos fatos vividos por Querô e contados por ele a personagem
Repórter.
No texto dramatúrgico as cenas se constroem aleatoriamente mediante a
lembrança de Querô, no romance, os acontecimentos seguem uma continuidade, um
começo, meio e fim. De acordo com Hutcheon (2011): “Um romance, ao contrário, a
fim de ser dramatizado, tem de ser destilado, reduzido em tamanho e, por conseguinte,
em complexidade” (HUTCHEON, 2011, p. 64). Essa definição de uma das operações da
adaptação se aplica em parte a Plínio Marcos, sobretudo porque ao adaptar o romance
para o texto dramatúrgico, como operador, Plínio decide amputar algumas partes do
texto, como se fossem excessos, deixando o conflito entre Querô e os policiais. No
entanto, o texto dramatúrgico sofre alterações e nem por isso é reduzido em
complexidade, visto que pode ser “[...] um procedimento amplificador engajado em
adição”, conforme Sanders (2015, p. 22).
Alguns cortes são percebidos na obra: sabemos apenas que o crime acontece no
cabaré “Leite da Mulher Amada”, no entanto, Plínio Marcos não mais inclui no texto
78
dramatúrgico todos aqueles lugares citados por Querô; apenas se refere ao episódio do
Reformatório “QUERÔ – Eu sei... Eu sempre... sempre, não, às vezes, eu via o fantasma
da minha mãe. A primeira vez que ela me apareceu... foi no reformatório... Eu tava na
surda... [...]” (MARCOS, 2003, p. 256); como foi dito, o assalto ao gringo aparece como
forma de revelar o motivo pelo qual Querô é perseguido; algumas personagens são
subtraídas ou mescladas.

A adaptação pode ser uma prática transposicional, lançando um


gênero específico em outro modo genérico, um ato de re-visão em si
mesmo. Pode-se paralelizar a prática editorial em alguns aspectos,
entregando-se ao exercício de aparar e podar: mas também pode ser
um procedimento amplificador engajado em adição, expansão,
acréscimo e interpolação (compare, por exemplo, Deppman et al. no
“criticism genético”). A adaptação é, mesmo assim, frequentemente
envolvida na oferta de comentários sobre um texto-fonte62
(SANDERS, 2015, p. 22). Tradução nossa.

A cena do terreiro e as personagens desse núcleo também não aparecem no texto


dramatúrgico. É interessante observar que essa cena surge em uma nova leitura para o
cinema. Com o título Querô, uma reportagem maldita (2007) sob a direção de Carlos
Cortez, a cena do terreiro é substituída pela ida de Querô a uma igreja evangélica,
talvez, uma das possibilidades é a de que a adaptação tenha por objetivo atingir um
número maior de público. O romance entre Querô e a menina permanece63. Dessa
maneira, supomos que os adaptadores exercem primeiro um papel de intérpretes e,
somente depois, conseguem criar. Isso porque precisam conhecer bem a obra que
querem adaptar, visto que além desses procedimentos de ajustes, cortes, ampliações e
misturas, é necessário estar ciente da intencionalidade da obra adaptada para que
favoreça a relação entre a obra adaptante e, consequentemente, o público.
Outro ponto é em relação à redução dos fatos, por exemplo, o batizado de Querô
na igreja do Valongo aparece no texto dramatúrgico apenas no coro das Mulheres. O
tom de narrativa deixa claro que Plínio, de algum modo, elege o épico para apresentar a

62
“Adaptation can be a transpositional practice, casting a specific genre into another generic mode, an act
of re-vision in itself. It can parallel editorial practice in some respects, indulging in the exercise of
trimming and pruning: yet it can also be an amplificatory procedure engaged in addition, expansion,
accretion and interpolation (compare, for example, Deppman et al. 2004 on „genetic criticism‟).
Adaptation is nevertheless frequently involved in offering commentary on a source text” (SANDERS,
2015, p. 22).
63
Não temos, aqui, neste trabalho, o propósito de estudar essa relação entre o filme de Carlos Cortez, no
entanto, nosso interesse em citar essa passagem é o de observar as várias intenções por parte daquele que
faz a adaptação.
79
história do menino Querô. Assim, escreve em gênero épico como disfarce do diálogo,
depois realoca o romance no próprio diálogo.
Há por parte de Plínio uma manipulação engenhosa de mídias e gêneros,
tornando esse adaptador um transformador. De acordo com Hutcheon (2011): “Essa é
uma das razões pelas quais uma adaptação tem sua própria aura, sua própria „presença
no tempo‟ e no espaço, uma existência única no local da obra adaptada” (HUTCHEON,
2011, p. 27). Diferente do romance, no drama o leitor logo de início toma conhecimento
de que se trata de uma entrevista entre o Repórter e um menor sobre o crime no Leite da
Mulher Amada.
Querô, uma reportagem maldita (2003) estaria na dimensão do épico-narrativo,
sobretudo porque a história de sua vida vai se construindo a partir de fatos colhidos no
passado e enfatizados a certa distância. Plínio para auxiliar na contextualização do leitor
/espectador se utiliza da personagem Cantora e da música A pomba roxa ardente como
recurso para mostrar a vida daquele lugar. Na primeira cena a Cantora diz:

Ei, chegue mais perto


bem mais perto
mais perto, mais perto
Eu tenho o coração aberto
Tenho entre as pernas uma fornalha
Eu sou a pomba roxa ardente
a grande mãe indecente
a irmã ausente
a santa bandalha
sempre calada, no cio
sempre alerta de plantão
para falar de amor
não tem recordação
Venha como tantos vieram
feridos de amor me procuraram
querendo embrulhar a solidão
nos pálidos lençóis do meretrício
Amar é o meu ofício
Ou será meu vício
Amo, amo com sofreguidão
Venha ser mais um
um entre tantos
a se sentir o único
e eu não esquecerei nenhum
e não há quem me esqueça
Martelarei sua cabeça
para sempre, eternamente
com a pomba roxa ardente
que é festa, lar, esposa adorada
Venha, venha como todos
80
venha se divertir
venha se nutrir
no leite da mulher amada
Venha, venha como todos
Eu te espero
Eu te quero
Entre as pernas tenho uma fornalha
Eu sou a pomba roxa ardente
a grande mãe indecente
a irmã ausente
a santa bandalha (MARCOS, 2003, p. 234-235).

Existem momentos em que os trechos da música aparecem, por exemplo,


enquanto o crime no Leite da Mulher Amada acontece. Após a cena de Querô e Tainha,
a Cantora volta a cantar a mesma música em tom provocativo retomando a primeira
cena, em seguida, Querô dialoga com os policiais. As músicas são de autoria de Plínio
Marcos. Assim que sabe que está grávida, Leda também canta,

Eu quero tanto, tanto


ter um precioso bem
que seja meu, meu
muito meu, meu
amor garantido
meu amor sentido
Mas não sinto ninguém
meu precioso bem
na cidade populosa
me faça venturosa
única na multidão
que se consome de solidão
Eu quero tanto, tanto
ter um precioso bem
que seja meu, meu
que ele seja alguém
que vista a camisa do meu time
que me compreenda e me redima
de no amor ter sido mal-amada
que seja meu bem
meu precioso bem
carne da minha carne, meu bem
sangue do meu sangue, meu bem
Vem, não tarda, vem
Eu quero tanto, tanto
um precioso bem
Meu amado filho, vem (MARCOS, 2003, p. 248 -249).

Vale ressaltar que as músicas só aparecem no texto dramatúrgico. Ao convocar a


forma coral, Plínio Marcos recorre ao canto das várias vozes de suas personagens

81
estruturadas em forma melódica, não limitando esse coro a porta-voz, visto que “[...] o
coro é sempre um estranho à representação, pelo excesso de real que se precipita com
ele no palco, como se sua lei fosse permanecer nas franjas do representável” (LOSCO;
MÉGEVAN, 2012, p. 63). Leda sempre repete o fato de querer ter a criança para ter
alguém que a reconheça na multidão, que a ame de verdade, um precioso bem só seu. A
música soa como o grito de Leda pedindo para ter o filho, há também outro momento
em que Querô, ainda preso, tem uma visão da mãe cantando “Eu quero tanto, tanto / ter
um precioso bem / que seja só meu, meu” (MARCOS, 2003, p. 256).
Sobre as adaptações do meio impresso para mídias performativas, Hutcheon
(2011, p. 70) revela que os estudos muitas vezes são voltados às questões visuais,
esquecendo o auditivo. Não poderíamos deixar de mencionar as músicas do texto
dramatúrgico e comentar a maneira como Plínio se utiliza desse recurso épico para
promover no leitor familiaridade diante da obra. No romance, Plínio desfruta de mais
tempo para contar os fatos da vida do menino com detalhe. No teatro, há uma redução
do tempo e a melhor maneira encontrada por ele além dos cortes e ajustes foi inserir
uma personagem de cabaré chamada Cantora.
A entrevista de Querô com o Repórter se manteve como veículo que guiava a
narrativa. Enviado para a cena do crime pelo chefe de reportagem e não mais por Pai
Bilu de Angola, o Repórter que aparece agora desde o início e não apenas no fim da
história assume o lugar daquele que narra e fala diretamente com o leitor/espectador. É
Ju, que agora deixa de ser apenas citada e ganha papel importante na vida de Querô,
quem leva o Repórter até Querô e não Gina de Obá, personagem do romance. Por se
tratar de uma entrevista, ao passo que Querô responde os questionamentos feitos pelo
Repórter, narra os acontecimentos que o levaram até o momento em que foi atingido.
São falas entrecortadas sem seguir exatamente uma sequência, mas, que não provocam
estranhamento no leitor, visto que estão bem costuradas.
Em posse do espetáculo do grupo teatral Galpão Folias d‟Arte estabelecemos uma
leitura comparativa com o romance e o texto dramatúrgico, o que nos exigiu falar sobre
adaptação. No entanto, a teoria da adaptação não foi suficiente para responder as
questões em torno da mise en scène, por isso, recorremos às discussões apresentadas por
Beigui (2006) e Sanders (2015) no que se refere à apropriação alargando ainda mais
nossa visão em relação às obras.

82
Desse modo, para a análise do espetáculo do Grupo Galpão Folias d‟Arte e
quando necessário, tomamos como base teórica os estudos sobre apropriação discutidos
por Beigui (2006) em sua Tese Dramaturgia por outras vias: a apropriação como
matriz estética do teatro contemporâneo – do texto literário à encenação, pioneira nos
estudos sobre apropriação no Brasil. Para o teórico: “Apropriar é reinventar a palavra
como forma de interdiscursividade e de alteração do suporte lingüístico em suas
possibilidades de uso e de manipulação” (BEIGUI, 2006, p. 14). O pesquisador afirma
que a concepção de “adaptação” no Brasil se delineia “[...] a partir do Modernismo
Brasileiro e solidifica-se no amálgama de movimentos subseqüentes, entre eles, o
Experimentalismo e o Concretismo, desenvolvendo-se como idéia a ser concretizada”
(BEIGUI, 2006, p. 17). Já Sanders (2015, p. 35) assegura que existem maneiras pelas
quais a prática e os efeitos da adaptação e da apropriação se atravessam e estão inter-
relacionadas, no entanto, é necessário manter distinções claras entre esses fenômenos
enquanto atividades criativas.

2. 3 APROPRIAÇÃO CÊNICA: DA PEÇA AO PALCO

A discussão sobre apropriação ganha espaço nos estudos apresentados por Begui
(2006). O termo adaptação se tornou inadequado para os estudos dos fenômenos teatrais
a que se dispôs: Um sopro de vida (1978) de Clarice Lispector e A fúria do corpo
(1960) de João Gilberto Noll, ambos guiados pelas encenadoras Nadja Turenko e Celina
Sodré. De modo que:

A pesquisa acerca da apropriação aponta para uma necessidade de


atualização do texto-referente a partir de um estudo minucioso da obra
de base. Foi assim com Vau da Sarapalha, reescritura do texto de
Guimarães Rosa, e assim ocorre com Clarices de Nadja Turenko e o
O Evangelho de Nossa Senhora de Copacabana de Celina Sodré. O
movimento de atualização a que aludimos está intrinsecamente ligado,
além do contato e pesquisa, com o texto e com uma filiação estética
que direciona a criatividade do encenador. Só a partir de uma leitura
comparativa que não exclua, nem mesmo coloque em oposição um
código do outro e, sobretudo, analise cada processo em si, poderemos
encontrar os dispositivos que justificam o ato apropriativo e a sua
exeqüibilidade (BEIGUI, 2006, p. 30).

83
Beigui (2006) discorre que o termo “apropriação” sugere uma complexidade
maior que o conceito de adaptação, sobretudo porque rompe com a noção de
originalidade. Para o autor, a apropriação se desvia do conceito de adaptação
encontrando sentido maior nas discussões sobre a intertextualidade, e, de algum modo,
na definição de tradução apresentada por Haroldo de Campos, no sentido de manter uma
relação tangente ou desviada com outros textos.
Ao citar Deborah Cartmell, Sanders (2015, p. 25) enfatiza as três categorias
pensadas pela teórica a respeito dessas relações entre obras, são elas: o conceito de i)
transposição que estaria ligado ao que Genette comenta sobre paratexto64, o ii)
comentário se afasta de uma aproximação simples para algo mais carregado
culturalmente e o iii) analógico. Nesse sentido, com base na subcategoria pensada por
Cartmeell como analógica, a apropriação65 efetua uma trajetória mais decisiva longe do
texto informativo para um produto e domínio cultural totalmente novo. Assim sendo,

[...] a apropriação pode ou não envolver uma mudança genérica e


pode certamente ainda exigir os tipos de "leituras paralelas" ou
abordagens comparativas que justapõem (pelo menos) um texto contra
outro, que começamos a delinear como central para a admissão de
adaptações. Mas, certamente, as apropriações tendem a ter um
relacionamento mais complicado, intrincado e às vezes embutido com
seus intertextos do que uma versão cinematográfica mais direta de um
texto canônico ou que um texto bem conhecido poderia sugerir. A
relação pode, portanto, parecer mais tangente ou desviada66
(SANDERS, 2015, p. 35). Tradução nossa.

A autora, acima citada, evidencia a diferença entre a apropriação e a adaptação


em relação aos seus intertextos, deixando claro que a apropriação exige mais do que a
versão direta proposta pela adaptação. As subcategorias de Cartmell são semelhantes às

64
Entre os cincos tipos de relações transtextuais definidas por Genette (2010, p. 15), temos o paratexto:
“constituído pela relação, geralmente menos explícita e mais distante, que, no conjunto formado por uma
obra literária, o texto propriamente dito mantém com o que se pode nomear simplesmente seu paratexto:
título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé,
de fim de texto; epígrafes; ilustrações; release, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios,
autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial
ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição externa, nem sempre pode
dispor tão facilmente como desejaria e pretende”.
65
Aqui “[...] o ato de se apropriar de um texto para o teatro implica o direito de, em maior ou menor grau,
modificá-lo, reordená-lo, violentá-lo” (BEIGUI, 2006, p. 36).
66
“Indeed, appropriation may or may not involve a generic shift and it may certainly still require the
kinds of „readings alongside‟ or comparative approaches that juxtapose (at least) one text against another,
which we have begun to delineate as central to the reception of adaptations. But certainly appropriations
tend to have a more complicated, intricate and sometimes embedded relationship to their intertexts than a
straightforward film version of a canonical or well-known text would suggest. The relationship can
therefore seem more sideways or deflected” (SANDERS, 2015, p. 35).
84
propostas por Linda Hutcheon (2011), quando a autora fala sobre os modos como as
adaptações podem ser descritas. Por exemplo, Hutcheon quando se refere ao que chama
de segundo modo, um processo de criação, afirma que “[...] a adaptação sempre
envolve tanto uma (re-) interpretação quanto uma (re-)criação; dependendo da
perspectiva, isso pode ser chamado de apropriação ou recuperação” (HUTCHEON,
2011, p. 29). A diferença de Cartmell parece estar nos desvios encarados como
apropriações e não na concentração de tudo em um só termo, ou seja, na adaptação,
aproximando-se do que afirma Beigui (2006). Hutcheon (2011) deixa fissuras na
definição do termo, uma vez que para ela a apropriação depende da perspectiva em que
se observa. Por não considerar acidental o uso da palavra adaptação tanto para o
produto, quanto para o processo, Hutcheon (2011) afirma:

[...], embora a ideia de adaptação possa, a princípio, parecer simples,


ela é, na realidade, bastante difícil de definir, em parte, como visto,
porque usamos a mesma palavra tanto para o processo quanto para o
produto. Como um produto, é possível dar à adaptação uma definição
formal; como um processo de criação e de recepção, por outro lado, é
necessário levar em consideração outros aspectos. É por isso que as
diferentes perspectivas mencionadas anteriormente são necessárias
para discutir e definir adaptação (HUTCHEON, 2011, p. 39).

A afirmação ganha sustento na discussão desenvolvida pela própria Linda


Hutcheon (2011, p. 225-226) nas questões finais do seu livro sobre adaptação quando
responde a pergunta O que não é adaptação?. Torna-se evidente que a adaptação como
produto é definida por Hutcheon (2011) como uma revisão declarada, o que para a
teórica seria comparada a uma tradução. Como processo, ao definir que os adaptadores
antes de tudo são intérpretes para só depois atuarem como criadores, afirma: “[...] o que
está envolvido na adaptação pode ser um processo de apropriação, de tomada de posse
da história de outra pessoa que é filtrada, de certo modo por sua própria sensibilidade,
interesse e talento” (HUTCHEON, 2011, p. 43). Ao considerar a adaptação e a
apropriação como ações correspondentes, Hutcheon (2011) não apenas deixa de
dissociar os termos, como também não observa que o ato de apropriar envolve rupturas.
De modo que Hutcheon (2011) determina limites para a compreensão da
adaptação enquanto revisitação anunciada, extensiva e deliberada de uma obra de arte
específica, e em resposta assegura o que não é adaptação: “[...] rápidas alusões
intertextuais a outras obras ou regravações de fragmentos musicais” (HUTCHEON,
2011, p. 225-226); bem como, as diversas performances de um mesmo espetáculo.
85
“Paralelamente, trabalhos de performance ao vivo são igualmente fluidos, uma vez que
duas produções de uma peça ou de uma partitura musical, ou inclusive duas
performances de uma mesma produção, jamais serão iguais” (HUTCHEON, 2011, p.
225-226). Hutcheon (2011) deixa claro que nem tudo pode ser encarado como
adaptação, no entanto, a nossa questão é: se não é adaptação, o que seria?
Se as múltiplas performances não são, de acordo com Hutcheon (2011),
consideradas adaptações, então, como considerar as performances do espetáculo Querô,
uma reportagem maldita, produzidas pelo Galpão Folias d‟Arte, sabendo que durante o
período em que esteve em cartaz o elenco se revezava, ou seja, durante um espetáculo o
ator poderia assumir o papel de Querô e, em outro dia, poderia assumir o papel de
qualquer outra personagem? Não queremos dizer com isso que as “sobras” da
comparação devem ser encaradas como apropriações, por isso, é fundamental
compreender e definir bem os limites entre os termos.
Sendo assim, nossa questão não está em medir forças com outros teóricos, uma vez
que estamos tentando entender melhor, com base nas teorias já elaboradas, como
acontecem os fenômenos. Para isso, não temos interesse em apontar o melhor método
criativo e, sim, ampliar ainda mais as discussões. Como resposta à nossa questão
anterior, Beigui (2006) nos apresenta uma definição clara sobre a adaptação e elucida a
apropriação. Assim sendo:

Enquanto a adaptação constitui uma atividade criativo-figurativa,


ilustrativa, trabalhando quase sempre via aproximação, a
„apropriação‟ se concretiza pela ruptura, isto é, por uma atividade
crítico-criativa-interpretativa. Em ambas ocorrem, em maior ou menor
grau, desvios, o que torna improdutiva a questão muitas vezes
levantada de „fidelidade autoral‟, medida pelo grau de aproximação ou
distanciamento da encenação em relação ao texto. Não se trata de
estabelecer parâmetros de aproximação ou de distância entre um
código e outro. Uma apropriação difere de uma adaptação não pela
proximidade ou distanciamento com a obra base, mas pela elaboração
formal responsável por redimensionar, postos em movimento, os elos
que constituem o diálogo entre duas linguagens (BEIGUI, 2006, p.
33).

Observa-se a dificuldade que é compreender ou conceituar a adaptação e a


apropriação, ainda mais porque o conceito de adaptação é entendido como uma “ação
genérica”, nesse sentido, o estudo comparativo entre obras diversas quase sempre
aponta a adaptação como resposta. Diante dessa problemática, nosso interesse é

86
contribuir para a construção de novos caminhos que auxiliem na distinção entre os
fenômenos. Por isso, a escolha de determinadas produções de Querô, uma reportagem
maldita, (1992; 2003; 2009) uma vez que nos dá suporte para avaliar e definir, de algum
modo, cada um dos termos.
Diante do exposto, a construção e as várias encenações de Querô, de acordo com
Hutcheon (2011), não seria adaptação. No entanto, as pesquisas desenvolvidas por
Beigui (2006) e Sanders (2015) nos permitem pensar no desdobramento que levou o
texto teatral ao palco como um ato de ruptura, portanto, uma apropriação. Embora esteja
citando outro exemplo, a reflexão de Sanders (2015) nos ajuda a compreender o
processo em Plínio Marcos, mesmo que esse não seja obviamente o seu objeto de
estudo.
Este é um bom exemplo de uma mais substancial e imaginativa (e às
vezes politicamente inclinada à esquerda) reconstrução do texto-fonte
que eu estou identificando aqui como intrínseca à apropriação: ao
invés dos movimentos de aproximação ou interpretação genérica
cruzada que identificamos como centrais para adaptação, aqui temos
uma reformulação mais atacadista, ou mesmo uma recriação, do
intertexto67 (SANDERS, 2015, p. 37). Tradução nossa.

O amontoado de atores dando vida ao cabaré, bem como a banda acentuam o


tom épico daquela reportagem maldita. Como uma espécie de balé, no lugar das luzes
presentes no texto dramatúrgico como mudança de cena, os atores ganham o palco e
cada qual, a sua maneira, interpreta as figuras esquecidas e marginalizadas daquele
submundo. Nas palavras de Beigui (2006) “apropriar” é o mesmo que reinventar “[...] a
palavra como forma de interdiscursividade e de alteração do suporte lingüístico em suas
possibilidades de uso e de manipulação” (BEIGUI, 2006, p. 14), de modo que
observamos essa reinvenção por parte do Galpão quando recria o texto através das
personagens, do cenário explorando as possibilidades para se refazer. Um espetáculo
polifônico, nos termos de Bakhtin (2015), tendo em vista que cada ator, cada
personagem, em pé de igualdade atuou e foi espectador de si e do outro. Uma mistura,
que gerou um espetáculo de múltiplas vozes e híbrido. Segue o trecho do texto “Notas

67
“This is a good example of the more sustained imaginative (and sometimes politically left-leaning)
reworking of the source text which I am identifying here as intrinsic to appropriation: rather than the
movements of proximation or cross-generic interpretation that we identified as central to adaptation, here
we have a more wholesale redrafting, or indeed recrafting, of the intertext (SANDERS, 2015, p. 37).
87
sobre uma oficina de dramaturgia” que trata de uma oficina no Galpão do Folias d‟Arte
ministrada por Lucienne Guedes68.

Mas uma oficina de curta duração é principalmente um lugar de fazer.


Lugar de tentar, lugar de refletir fazendo, lugar de abrir as
possibilidades do que possa ser um processo de criação que tenha
sentido para quem o faz, lugar de problematizar, na prática,
pressupostos já muito arraigados. Então, é possível, estudar como
Plínio Marcos escrevia suas peças. Mas reproduzir o que fez,
reproduzir o olhar que tinha para o mundo, é algo que não é tão fácil
(GUEDES, 2009, p. 13).

O espetáculo e o processo de construção como foram descritos deixam uma


marca diferenciada do Grupo. Enquanto nossos primeiros estudos identificam entre o
romance (1992) e o texto dramatúrgico (2003) uma reescrita, no sentido mesmo de
adaptação, a obra Querô, uma reportagem maldita do Folias d‟Arte mostra interação e
criatividade, ao mesmo tempo em que apresenta desvios, logo uma apropriação. A partir
de questionamentos feitos aos alunos da oficina sobre a necessidade de montar Querô,
tendo em vista que a vida já era cruel o bastante, Guedes afirma:

Expandir a idéia do que é pensar, aumentar a capacidade de sermos


alterados por alguma experiência, exercitar o „olhar de poeta‟, o
primeiro olhar e o último olhar, extrair as palavras que já estão
contidas nas situações e nas pessoas, etc. Foram muitos exercícios de
escrita, que não necessariamente resultaram em cenas maravilhosas.
Um exercício é um exercício, só. Ele não precisa “dar certo”, mas ser
um procedimento de descobertas. Não se trata de fazê-lo bem,
coerentemente, mas de explorá-lo com liberdade. É necessário dar
mais ar para a pergunta, oferecer-lhe água. E dar mais ar a uma
questão pode ser, ao contrário do que se espera de nós, que não a
respondamos a qualquer custo, mas que possamos potencializá-la
ainda mais, como questão. O exercício é um detonante do que temos
em nós mesmos, daquela coisa de que falamos no início: de como
somos capazes de ver este mundo, este que está ai, lá fora, ali
(GUEDES, 2009, p. 14).

68
Dramaturga, atriz, professora e pesquisadora. Graduada em artes Cênicas com habilitação em Teoria do
Teatro (2000), Mestrado em Artes – Teatro (2011) e Doutorado em Artes – Teatro (2016), todos pela
Universidade de São Paulo (USP). Recebeu as Laureas Acadêmicas – USP por seu desempenho na
graduação. Integrante e atriz fundadora do Teatro da Vertigem, grupo teatral com o qual realizou os
espetáculos O Paraíso Perdido (1992), Apocalipse 1, 11 (2000) e A última Palavra é a Penúltima 2.0
(2014), entre outras colaborações. Lucienne Guedes tem colaborado nos últimos anos com vários grupos
em São Paulo. Disponível em: <
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4424556P0>. Acesso em 14 de fevereiro de
2018.

88
Cada ator ganha a liberdade de experimentar, ação própria da apropriação,
sobretudo porque aproxima o ato do indivíduo como se participasse juntamente com
diretor e com o encenador na elaboração de algo novo ao reescrever a cena com sua
atuação. A expansão do texto gerou alterações, cortes e tantas outras operações
necessárias. Nesse sentido, como declara Beigui:

A apropriação reflete um duplo movimento: o de uma experiência


singular e uma experiência social do texto. Singular no sentido [...] de
estar ligada a um sujeito histórico e a um contexto seja ele real ou
imaginário; social, no sentido dos meios de emancipação e valores
simbólicos e ideológicos que determinada experiência estética
engendra e veicula (BEIGUI, 2006, p. 25-26).

A ideia da oficina e o estudo detalhado da obra proporcionam ao Grupo transpor,


dilacerar a compreensão ainda muito presa de “texto original”, ou seja, ligada à
adaptação, e seguir incorporando a experiência tanto singular como social,
características da apropriação. Nesse sentido, o elo que sustenta a relação entre a
apropriação e o texto dramatúrgico, talvez, seja a história de vida de Querô e, ainda
mais, de todos aqueles que formam o Leite da Mulher Amada. Para Beigui (2006, p.
35), encontrar esse elo entre a obra e a cena revela uma das complexidades da
apropriação nesse processo entre o texto e o palco. Desse modo, Sanders (2015, p. 54)
afirma que é necessário encarar a adaptação e a apropriação a partir da ideia de algo que
cria ativamente um novo produto cultural e estético. Antes de tudo, é necessário
compreendê-los como ações distintas, vejamos como acontece no espetáculo corpus da
pesquisa.
A primeira cena surge embalada com a música A pomba roxa ardente na voz da
Cantora, personagem cuja função já foi apresentada anteriormente. Todos os atores se
concentram no centro do palco do cabaré Leite da Mulher Amada. Logo, chegam
Nelsão e Sarará, se apresentam como dois policiais que falam em outro idioma,
debochados e que muito se divertem naquele espaço. Nesse pequeno exemplo, percebe-
se o que Beigui (2006) conceitua: “A apropriação estimula o pensamento independente,
ao mesmo tempo em que o localiza dentro de uma referência: o texto” (BEIGUI, 2006,
p. 32). Ao passo que localizamos a presença dos policiais, percebemos a maneira com
que cada ator constrói sua personagem sem, necessariamente, depender de um roteiro
prévio para (re)criá-las.

89
Em seguida, chega Querô, avistando o fantasma de sua mãe entre as outras
personagens do cabaré. Ao mesmo tempo, Leda canta para o filho como se fosse uma
tentativa de explicá-lo a vontade de deixá-lo nascer. É quando o Repórter, ou melhor, a
Repórter – isso fica bem claro no espetáculo – narra com microfone em mãos:

REPÓRTER – (Dirigindo-se ao público, em tom de narrativa.) São


milhares de menores abandonados que perambulam pelas ruas da
cidade onde moro. Diariamente, centenas deles praticam crimes contra
o patrimônio e contra a segurança dos cidadãos contribuintes.
Diariamente, esses cidadãos contribuintes exigem soluções para o
problema dos menores abandonados, sem contudo quererem abrir mão
dos seus privilégios, dos seus tesouros, dos seus confortos. Por isso,
eu preferi ignorar o crime no cabaré Leite da mulher amada. Sabia que
lá um menor de idade matara um policial e ferira outro. Era o bastante
para eu não me interessar pelo assunto. Porém (e sempre tem um
porém), o chefe de reportagem do jornal onde eu trabalho me escalou
pra fazer a cobertura do caso. Foi então que, por dever do ofício, eu
comecei a escrever essa reportagem maldita (MARCOS, 2003, p.
237).

No espetáculo o Repórter ganha liberdade para improvisar. Com voz ativa, além
de narrar os fatos revela sua opinião, uma vez que não está para cobrir mais um crime.
Assume a voz de Plínio e em pé de igualdade divide seu microfone com os policiais na
tentativa de também ouvi-los, assim como, apresenta a quem estiver disposto a escutar
os fatos da história trágica do menor abandonado.
A música dissimula o sofrimento, tendo em vista que a cena apresenta um tom
de festa. Os acontecimentos parecem se entrecortarem, o fantasma de Leda, que quase
sempre percorre o salão, observa seu menino sendo interrogado pelo assalto ao
“gringo”. A discussão entre Leda e Violeta acontece e lá está Ju apoiando à amiga. A
confusão com Violeta cessa. Leda, após tomar querosene, está nos braços do ideal de
filho, do precioso bem que cuidaria dela, ao seu lado está Ju tentando salvá-la. Nessa
cena Querô se apresenta como imagem projetada de Leda, uma vez que somente depois
em meio a toda essa agitação nasce Jerônimo. Diante da plateia, agora é com Querô que
a Repórter divide o microfone, cabe ao menino contar a história do seu nascimento.
Uma espécie de coro é formado pelas prostitutas e o batismo acontece ao som de uma
música sacra. Baleado e com dores, Querô espera apenas a chegada dos policiais,
embora para Ju fosse possível à fuga. Ao lado de Querô aparece uma menina levando-
nos a entender que era sua companheira.

90
Poderíamos dizer que a montagem do Galpão teria o caráter luciferino de que
falou Haroldo de Campos pela necessidade de refazimento e de posturas do Grupo sem
se submeter às obras preexistentes. A leitura política dos envolvidos não se prendeu a
uma falsa reapropriação. O Galpão reconhece a potência do texto de Plínio e além dos
cortes, subtrações e reescrituras, amplia as cenas quando experimenta indagar e
aprofundar o texto.
Uma das cenas que chama atenção é a de Tainha, a maneira como o ator se
apropriou do papel conferiu a ele destaque. A personagem ganhou um sotaque baiano,
celular e uma arma como garantia de malandragem. O diálogo com Querô é cheio de
novidades e arranca gargalhada do público. Como se estivesse em um ritual, com vela
acesa Tainha parece rogar pela proteção de Exú e Jesus Cristo. Há um episódio de
desconstrução, uma vez que a personagem cria um sentido próprio para o campo da
leitura cênica. A banda improvisa um som enquanto chega Querô que parece atuar com
maior desenvoltura diante de Tainha. Para Querô, Tainha pergunta: “O que você quer
comigo seu resto de Ebó?69”. Tainha de Jesus, nome que assume no espetáculo,
compara Querô a Jesus Cristo pelas vestes e cita todos os acontecimentos trágicos da
vida do menor, por exemplo, a prisão de Jerônimo no reformatório e o abuso sexual. A
maneira como Tainha conduz a cena atualiza o texto, a Repórter ganha o nome de “A
menina do Tempo”. Se ainda restava alguma dúvida para compreender a distinção entre
adaptação e apropriação, a performance de Tainha de Jesus surge como um divisor de
águas, visto que, como assinala Beigui:

Enquanto a adaptação liga-se ao texto como roteiro da encenação, a


apropriação atravessa o texto, recortando-o. Enquanto a primeira tenta
dizer melhor o texto, a segunda procura ultrapassá-lo sem, contudo,
abandoná-lo. A apropriação reedita-o sob a luz de um novo prefácio
(BEIGUI, 2006, p. 33).

A improvisação por parte dos atores e da banda só demonstra que é improdutivo


cobrar fidelidade, o que também iria de encontro à proposta inovadora e de criação
coletiva do grupo. A partir de um olhar que compara, mas, que não exclui, tentamos
justificar o fenômeno da apropriação no espetáculo criado pelo Galpão Folias d‟Arte.
As discussões a respeito da apropriação ganharam grandes proporções, embora ainda

69
A fala da personagem foi transcrita do DVD do espetáculo Querô, uma reportagem maldita,
gentilmente, cedido pelo Grupo Galpão Folias d‟Arte.
91
apareça de forma tímida. Beigui (2006) elucida e apresenta conceitos, além de traçar
limites que nos permitem melhor compreender a adaptação e a apropriação.
Mesmo que as palavras de Flávio Desgrandes e Giuliana Simões sejam para
explicar outro novo espetáculo do Galpão, o Folias Galileu, nos ajudam a resumir, de
alguma maneira a proposta do Grupo. De modo geral, se relaciona ao sentido de
apropriação:
[...], da falha no entendimento, da incompreensibilidade, ou da leitura
que não tem o conhecido e o compreendido como destino final, que
não se conduz em torno de uma perspectiva central, mas se desvia
para a margem, para o detalhe, para o sutil, pode se produzir
experiência estética. Caracterizada por uma percepção flutuante,
atenta e distraída ao mesmo tempo, que olha por variados pontos de
vista e captura lances possíveis em pleno vôo, o ato proposto ao
espectador se aproxima da invenção, da ideia de suspensão e
deslocamento, de correr riscos, percorrer traçados inesperados,
desdobrar a proposta artística e criar algo singular (DESGRANDES;
SIMÕES, 2015, p. 3).

Buscamos assim, para além da leitura textual, compreender a criação e o


processo de significação de uma obra em constante “devir”. O sentido de “devir” estaria
ligado ao que Srarazac (2012, p. 66) conceitua como “devir cênico”, ou seja, não
estamos apenas nos referindo ao acervo cênico da peça, tampouco as prováveis
encenações de um texto dramático, mas, sim, a força com que essas cenas reinventam a
obra. Assim, a partir da leitura da obra, identificamos as relações, os desvios e as
rupturas através da análise de materiais, vídeos e outros extratos que revelaram a
apropriação por parte do Grupo Galpão Folias d‟Arte e toda a rede de elementos que fez
criar outros possíveis.

92
CAPÍTULO 3
UMA FORMA MAIS LIVRE DO DRAMA

3.1 ROMANCE, OBRA HÍBRIDA, ROMANCIZAÇÃO: CAMINHOS PARA O


RAPSÓDICO

O que impulsiona a escrita do presente capítulo é a fala de Plínio Marcos: “Eu


fui escrever literatura porque a censura não estava liberando nenhuma peça minha. O
Querô ia ser mais uma peça de teatro. [...] Só escrevi em forma de romance porque não
achei que iria passar na censura. Tanto é que ele está adaptado para teatro 70”.
Schollamer (2009, p. 9) em Ficção brasileira contemporânea fala sobre o escritor
contemporâneo, antes de tudo, afirma que contemporâneo “[...] é aquele que, graças a
uma diferença, uma defasagem ou um anacronismo, é capaz de captar seu tempo e
enxergá-lo”. Para ele: “O escritor contemporâneo parece estar motivado por uma grande
urgência em se relacionar com a realidade histórica, estando consciente, entretanto, da
impossibilidade de captá-la na sua especificidade atual [...] (SCHOLLAMER, 2009,
p.10)”.
Queremos dizer, com isso, que ao olhar a escrita de Plínio Marcos identificamos
características de uma obra atual, tempestiva e contemporânea, tendo em vista que
Plínio pode ser um exemplo desse autor de quem fala Schollamer (2009), sobretudo,
pela urgência e força de uma escrita que se impõe e se vinga no sentido de que atinge o
leitor. A eficiência nas obras de Plínio está no impacto provocado em certas realidades
sociais a partir de uma escrita contundente, bem como pelo compromisso assumido pelo
autor em relação às questões de seu tempo.
Romance, peça teatral ou novela, fato é que a primeira versão de Querô, uma
reportagem maldita ficou conhecida como pertencente ao gênero romanesco, embora

70
Disponível em: <http://www.pliniomarcos.com/dados/literatura.htm>. Acesso em: 18 de agosto de
2017.
93
diversos questionamentos voltados à forma do texto sempre apareçam. Como diz
Cristiana Livramento71:
Então temos nosso primeiro problema. Querô é um romance ou uma
peça de teatro? Ou é uma novela? O livro tem 98 páginas. [...].
Também tentei falar com algumas pessoas que conviveram com o
Plínio, mas as pessoas na sala de jantar estão ocupadas em nascer e
morrer. É melhor deixar pra lá. Talvez a resposta para a minha
pergunta seja essa: o livro impresso e sem mais quás-quás-quás.

E, como não poderia ser diferente, nosso primeiro problema ao ter em mãos o
romance Querô foi analisar e entender o texto e a escrita do autor em relação ao
romance, nesse caso, a dúvida parece ser geral, como revela novamente a fala de
Livramento, “[...] liguei para um amigo ator e comentei que ia escrever sobre Querô, o
primeiro romance do Plínio Marcos. – Romance, mas o Plínio não escreveu romance, só
peça de teatro. – Tá, mas a Edições Símbolo imprimiu a obra como romance72”.
Falavam sobre a 2ª edição do livro que estava sem data. Seria o romance um gênero
problemático? Teria Plínio Marcos escrito um “romance dramatizado” ou um “drama
romancizado73”? Ao passo que líamos o texto diversos questionamentos como esses
foram surgindo, sendo assim, foi necessário compreender melhor o romance enquanto
gênero em construção para darmos conta das possíveis respostas, ou, melhor dizendo,
possíveis caminhos.
Precisar o surgimento do romance não é tarefa fácil, Benjamin (1994) apresenta
dois fatores que podem ter levado à morte da narrativa, nesse caso, a informação e o
romance. A ideia da restituição do épico de Döblin presente em A construção da obra
épica é para Benjamin “[...] uma contribuição magistral e bem documentada para a
compreensão da crise do romance, que se inicia com a restauração da poesia épica e que
encontramos em toda parte, inclusive no drama” (BENJAMIN, 1994, p. 55). Destaca-se
também a referência que Benjamin faz ao teatro épico de Brecht.
De acordo com Goody (2009, p. 49), Benjamin “[...] viu no advento do romance
o ocaso da arte de narrar (considerada por ele fundamentalmente um forma oral), um

71
Disponível em: < https://umbigodascoisas.com/2013/12/03/reportagem-maldita-quero-romance-1976-
plinio-marcos/>. Acesso em: 18 de agosto de 2017.
72
Disponível em: <https://umbigodascoisas.com/2013/12/03/reportagem-maldita-quero-romance-1976-
plinio-marcos/>. Acesso em 28 de agosto de 2017.
73
Os termos “romance dramatizado” e “drama romancizado” são utilizados por Plana (2012, p. 168) para
analisar a obra de Zola, visto que “[...] aplicando ao seu drama as normas de uma escola romanesca
precisa, não o liberta das convenções, e sim cria novas: sua adaptação de Théresè Raquin é mais um
romance dramatizado do que um drama romancizado, uma vez que ele adiciona regras dramáticas e
romanescas”.
94
caso que tem início no final do século XV com a difusão da imprensa na Europa”.
Desse modo, também para Benjamin (1994) o romance, diferente da narrativa, esta
associado ao livro74. Segundo Goody (2009, p. 36), Bakhtin “[...] utiliza o termo
„romance‟ numa acepção muito mais ampla do que Benjamin - faz remontar suas
origens aos romances de aventura gregos do século II d.c. e ao romance da vida
cotidiana assim como às metamorfoses, [...]”. A teoria bakhtiniana defendia que
somente o romance estava à altura para acompanhar as transformações da sociedade
contemporânea. No volume A cultura do romance organizado por Franco Moretti
(2009), há uma questão que chama atenção: como falar dos romances, visto serem
inúmeros os romances do mundo? Para o teórico:

Em primeiro lugar, o romance é para nós um grande acontecimento


cultural, que redefiniu o sentido da realidade, o fluxo do tempo e da
existência individual, a linguagem e as emoções e os comportamentos.
Romance como cultura, portanto; mas certamente também como
forma, aliás, formas, no plural, porque na sua longa história
encontram-se as criaturas mais surpreendentes, e o alto e o baixo
trocam de lugar de bom grado, e os próprios limites do universo
literário se tornam incertos. Às vezes, ocorre-nos pensar em Babel;
mas é exatamente essa flexibilidade que fez do romance a primeira
forma simbólica verdadeiramente mundial: uma fênix que onde quer
que se encontre sabe retomar o vôo, e que tem a astúcia de acertar
sempre a linguagem justa para os seus novos leitores (MORETTI,
2009, p. 11).

Para Moretti, o romance é um gênero flexível e, portanto, uma forma que


representa verdadeiramente o mundo, sendo então, responsável por diversas mudanças,
como a compreensão da realidade, o curso do tempo, a linguagem e as emoções. Por ser
um gênero inacabado e ainda em construção, Bakhtin (1998, p. 397) afirma que “[...] o
estudo do romance enquanto gênero caracteriza-se por dificuldades particulares”. Isso
se deve ao fato de que o gênero romance se constrói à luz da História.

O romance não é simplesmente mais um gênero ao lado dos outros.


Trata-se do único gênero que ainda está evoluindo no meio de gêneros
já há muito formados e parcialmente mortos. Ele é o único nascido e
alimentado pela era moderna da história mundial e, por isso,
profundamente aparentado a ela, enquanto que os grandes gêneros são

74
“O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no
início do período moderno. O que separa romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele
está essencialmente vinculado ao livro” (BENJAMIN, 1994, p. 201).

95
recebidos por ela como um legado, dentro de uma forma pronta, e só
fazem se adaptar – melhor ou pior – às suas novas condições de
existência (BAKHTIN, 1998, p. 398).

Considerado como o “gênero típico da modernidade” o romance é caracterizado


como inacabado, visto que como o humano, passa por quadros evolutivos, sendo esse o
fator que mais contribui para dificultar a criação de uma teoria do romance. George
Lukács (2000) ao escrever a Teoria do Romance tenta perceber a modernidade e suas
interferências na concepção do romance. A comparação entre a epopéia e o romance e a
valorização da primeira revelam o posicionamento do teórico em relação ao “gênero
literário tão ligado à história moderna”. Sobre os estudos de Lukács (2000), Fehér
afirma:
A tese de partida – ao mesmo tempo estética e de filosofia da história
– desta obra é que o período épico e seu produto artístico são de uma
ordem superior e de maior valor que o capitalismo e sua epopéia, o
romance. [...] O período da epopéia é caracterizado por sua segurança,
quando vida e essência eram noções idênticas; do mesmo modo, o
universo épico é homogêneo, as relações e os produtos do homem são
tão substanciais quanto sua personalidade; a forma do romance, ao
contrário, é a expressão de um isolamento transcendental, o romance é
a epopéia de uma época para a qual a totalidade (e, corolariamente a
homogeneidade reinante no mundo, a substancialidade humana, a
relação substancial entre o homem e seus produtos) não passa de
problema e aspiração. O romance é portanto, problemático em duplo
sentido, pois exprime o caráter tornado problemático das estruturas e
do homem de sua época (em relação à medida de valores precedentes)
e porque, justamente como conseqüência, seu modo de expresão, toda
a sua construção representam uma tarefa não resolvida (segundo
Lukács, insolúvel); logo, um problema (FEHÉR, 1997, p. 30 – 31).

Lukács (2000) defende em Teoria do romance a sucessão entre o gênero épico e


o romance, para isso, refere-se ao romance e a épica como sendo de naturezas históricas
advindos da epopéia e compara esses gêneros com a tragédia. “A grande épica dá forma
à totalidade extensiva da vida, o drama à totalidade intensiva da essencialidade”
(LUKÁCS, 2000, p. 44). O teórico defende que a literatura ocidental está dividida entre
epopeia e tragédia, a primeira seria a essência, uma vez que está relacionada a uma
realidade social, a segunda a existência. Para o teórico, o indivíduo épico precisa se
tornar o herói que seu destino exige, tendo em vista que é somente dessa forma que
exerce o seu papel social, externamente. Já a personagem do romance caracteriza-se
pela interioridade, pela luta que estabelece ao longo de sua existência, e não o que esse
indivíduo será no fim dessa batalha.
96
A defesa de Lucáks (2000) em relação ao caráter problemático do romance foi
repensada por outros teóricos. Por exemplo, Fehér em posição contrária afirma que “[...]
este enunciado significa que, na história, existe uma medida do não-problemático e que
esta se origina – mesmo no caso de uma aspiração utópica – do passado” (FEHÉR,
1997, p. 33). O autor chega a concluir que:

Com sua „informidade, seu „prosaísmo‟, seu caráter não-canônico, o


romance não ocupa um lugar inferior nesta escala de valores das
formas artísticas estabelecidas a propósito da substancialidade
humana. Não se trata somente do fato de que o romance é uma
expressão „adequada de sua época, que serve à auto-expressão da
sociedade burguesa com meios de que a epopéia do tipo antigo não
dispunha, pois isto seria limitar-nos a uma resposta digna do
relativismo sociológico (FEHÉR, 1997, p. 35 -36).

Partindo-se desse pressuposto, embora muitos teóricos revelem a dificuldade


para formular uma teoria do romance, a ideia de encarar o romance como gênero
problemático é ultrapassada. Bakhtin (1998, p. 401) revela em seus estudos que vários
foram os pesquisadores que tentaram “apontar um traço característico do romance,
invariável e fixo”, mas, não conseguiram. De modo que aponta quatro exigências-teses75
que, segundo ele, são consideradas “vértices da tomada de consciência do gênero” e não
uma teoria do romance. Dessa forma, a pergunta inicial que impulsiona a escrita do
presente estudo é elucidada, tendo em vista que compreendemos que assim como o
romance, de um modo geral, Querô apresenta características de um gênero em
transformação, em devir. Com base nos estudos de Fehér: “O romance não é
problemático, é ambivalente” (FEHÉR, 1997, p. 36). Por essa ambivalência Fehér
compreende que embora o romance lute contra a sociedade burguesa, advém dela,
gerando assim, uma crise na representação.
Bakhtin (1998) desenvolve exigências-teses que, segundo ele, não constituem
uma teoria do romance, revelando, assim, alguns apontamentos a respeito do gênero.
Nesse sentido, para o teórico, a personagem do romance não reúne em si características

75
“1) O romance não deve ser „poético‟ no sentido pelo qual os outros gêneros literários se apresentam
como tais; 2) O personagem do romance não deve ser „heróico‟, nem no sentido épico, nem no sentido
trágico da palavra: ele deve reunir em si tanto os traços positivos, quanto negativos, tanto os traços
inferiores, quanto os elevados, tanto os cômicos, quanto os sérios; 3) O personagem deve ser apresentado
não como algo acabado e imutável, mas como alguém que evolui, que se transforma, alguém que é
educado pela vida; 4) O romance deve ser para o mundo contemporâneo aquilo que a epopéia foi para o
mundo antigo (esta idéia, com toda a clareza, foi exposta por Blankenburg, e mais tarde retomada por
Hegel” (BAKHTIN, 1998, p. 402 - 403).
97
de herói. No romance as personagens tornam-se indivíduos que controlam suas
existências, uma vez que são capazes de guiar sua própria tragédia individual. Sendo
assim, como já mencionamos ao longo do trabalho, Querô seria um dessas personagens
que carrega em si elementos positivos, uma vez que é persistente e corajoso “Pai Bilu de
Angola ia por mim e dizia sempre que eu ia me aprumar na vida. Eu estava botando fé”
(MARCOS, 1992, p. 52). No entanto, prevalecem na trama os elementos negativos -
“Nunca fui o mais forte, nem o mais sabido, nem o mais bonito. Só me tratei de favor.
Comi de esmola, dormi de esmola. E isso não presta (MARCOS, 1992, p. 32) -,
sobretudo pelas estratégias que busca ao longo de sua caminhada para sobreviver.
Para Féher (1997) a crise do romance fora impulsionada também pela perda de
fé do escritor na evidência forma-estrutura. O romance surge a partir de uma sociedade
sem comunidade e, portanto, seu suporte não é comunitário. Sendo assim, “[...] nem o
indivíduo personifica diretamente os poderes dominantes da esfera da existência
focalizada, nem as próprias objetivações do herói do romance lhes são [...] dadas”
(FEHÉR, 1997, p. 40). Embora defendam que o romance é abandonado por Deus, ao
mesmo tempo, percebem a liberdade concedida a esse gênero, sobretudo por “comportar
os acréscimos da emancipação”. Nesse sentido, Bakhtin expõe: “A experiência, o
conhecimento e a prática (o futuro) definem o romance” (BAKHTIN, 1998, p. 407), ou
seja, o romance é um gênero que assume a tendência de pensar para o futuro. Ele é
contemporâneo no sentido próprio do termo.

Esta orientação para o futuro é a tendência original do romance, em


conseqüência precisamente da atividade do herói do romance que
funda seu próprio mundo [...] o romance não fez seu herói agir graças
a „instâncias superiores‟, mas segundo sua própria presunção
teleológica; é assim que ele funda seu próprio universo (ou, pelo
menos, esforça-se para construí-lo de acordo com sua teologia
pessoal); ora, o resultado desta presunção será a série causal que
forma o edifício romanesco (FEHÉR, 1997, p. 42).

Os pesquisadores sempre deixam claro que há uma distinção evidente entre o


herói da epopéia e a personagem do romance que vive diante do paradoxo, ora celebra a
modernidade, ora critica. Para Bakhtin (1998, p. 422) “[...] a modificação da orientação
temporal e da zona de edificação das representações não revela nada mais profundo e
essencial do que a reestruturação da representação do homem na literatura”. Partindo da
análise comparativa que elabora entre a epopeia e o romance, para Bakhtin, a epopeia

98
possui um passado absoluto76, o herói universal e uma forma totalmente perfeita,
acabada e absoluta. As transformações que ocorreram com a dissolução da distância
épica resultou na formação do romance e, consequente, alteração da categoria da
personagem. Nesse sentido, sem Deus a personagem do romance é considerada “livre”,
visto que se torna alguém como Querô, um indivíduo independente no sentido
romanesco, visto que luta por si, mas, dependente das forças sociais.

Foi nesse tempo, em que fiquei sozinho, que deixei de ser pivete
trouxa. Ali, sozinho na surda. Comecei a me ligar na bosta toda.
Cresci. Cresci paca. Todas as pancadas que me deram, as sacanagens
todas que me fizeram começaram a se escancarar em mim. Comecei a
perceber que estava ficando duro ou sacana. Já podia olhar bem pras
coisas, sem me apavorar, sem ter pena de mim. Então, abri bem as
janelas e pude cheirar a bosta toda. Um „salve-se quem puder‟
(MARCOS, 1992, p. 25).

O leitor passa a conhecer um menor abandoando através de ações que o colocam


em teste, ou Querô parte para a violência ou é vítima dela. Bakhtin (1998, p. 425) revela
que: “Um dos principais temas interiores do romance é justamente o tema da
inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação”. Entende-se assim que
a personagem romanesca busca reconhecer a si, nesse sentido, “[...] como regra, é um
ideólogo em maior ou menor grau” (BAKHTIN, 1998, p. 426), sendo assim, agora não
mais depende de deuses, diferente da epopéia em que o herói é destinado a um fim, ele
luta por se conhecer.

Decerto o termo „romance‟ remonta à época medieval, e há os


romances gregos, mas se poderia dizer que estes, quando merecem ou
justificam o nome, já trazem – em formas embrionárias e com todas as
características culturais, sociais e estilísticas de suas épocas – aquelas
características de modernização, para bem e para mal, e de
ambivalência que definem o verdadeiro romance: sua relação com a
dissolução da épica, a ambivalente simbiose de crise epigonal e
inovação técnica, resíduos do universo épico remodelados e
recompostos em novas estruturas, declínio de antigos valores e
arrojada construção da realidade; mistura de estratégias narrativas
populares, serial e feuilletons que fascinaram o público antigo, como
mais tarde o burguês, polifônica contaminação de gêneros – e
especialmente de registros de temas – altos e baixos. De resto, o fim

76
“Não é sem razão que o passado épico é chamado “passado absoluto”; ele, que atua simultaneamente
como passado de valorização (hierárquica), está desprovido de qualquer relatividade, isto é, despojado
daquelas transições graduais, puramente materiais, que o ligariam com o presente. Ele está isolado pela
fronteira absoluta de todas as épocas futuras e, antes de tudo, daquele tempo no qual se encontram o
cantor e os seus ouvintes. Esta fronteira, por conseguinte, é imanente à própria forma da epopéia e
percebe-se que ela ressoa em cada sua palavra” (BAKHTIN, 1998, p. 407).
99
do mundo antigo parece, cada vez mais um espelho do moderno
(também do pós-moderno?) e da elusiva iminência de algum outro, e
radicalmente diferente que percebemos mas não sabemos definir nem
imaginar (MAGRIS, 2009, p. 1016).

Os romances carregam a característica de um gênero sempre em


transformação, alguns podem ser reflexos do contexto em que surgiu resultado da
modernização, outros carregam a marca da ambivalência apresentando novas estruturas,
tal como o romance polifônico. De modo que o romance Querô, uma reportagem
maldita (1992) seria também exemplo do que defende Magris (2009, p. 1018) “[...] a
história de um indivíduo que busca um sentido que não há, é a odisseia de uma
desilusão”, como revela a fala do menino:

Me senti jogado fora. E voltei a ter pena de mim. Ali, naquele escuro,
chorei. Não foi de raiva. Chorei de medo, das baratas, dos ratos, do
escuro, das pessoas, da vida, da puta da vida. E tudo que cresci na
cela-surda da polícia encolhi ali no chiqueirinho. Chorei como um
veadinho filhinho de papai. E chamei minha mãe. Que me lembre, foi
a primeira e única vez que chamei por minha mãe. As lágrimas me
corriam pelo rosto e eu chamava por minha mãe. Naquela hora, não
tinha raiva dela, nem nojo. Até entendia por que ela tomou querosene
e por que me largou no meio das feras. Me deu muita pena daquela
mulher que me pôs no mundo. Pra ela ter bebido querosene, devem ter
realmente feito muita sacanagem pra ela. Sacanagem grossa. Uma
atrás da outra. E se ela me botou no mundo, se ela não me abortou,
nem nada, é que queria fazer alguém dela. Alguém por ela. Alguém de
verdade (MARCOS, 1992, p. 32).

Magris (2009) afirma que o romance torna-se, antes de tudo, a antiepopeia da


frustração e da fragmentação. A partir dessa compreensão, por exemplo, observamos
que Querô carrega consigo o sentimento de culpa que se faz presente no momento em
que tenta encontrar algum sentido para o suicídio da mãe e o fato de ter nascido. Há em
Querô o paradoxo característico do romance, visto que ao mesmo tempo em que o autor
apresenta debates a respeito das grandes questões sociais, como o abandono, o aborto, o
abuso de poder, entre outros temas, informa e noticia os fatos da sociedade da qual faz
parte através da fala do Jornalista.
Desse modo, em Querô, constatamos que há elementos de outros gêneros, por
exemplo, da tragédia, uma vez que a personagem busca sua essência e estabelece uma
relação de coragem com o que lhe é destinado; e da épica, tendo em vista que se
estabelece uma relação entre Querô e sua comunidade, como se o menino não estivesse
ligado diretamente a uma comunidade, a algo que o caracterize, nesse caso, Querô
100
torna-se o que a sociedade espera pela condição de seu nascimento, um menor
abandonado e não o herói.
Diante do que já expomos a respeito das características do romance e,
principalmente, o fato do romance ser considerado um gênero ambivalente,
compreendemos que o romance narrado por Querô é construído a partir do olhar da
personagem, um narrador autodiegético, embora alguns fatos da vida pessoal do menino
sejam reflexos das informações que consegue obter das outras personagens em relação
aos acontecimentos de sua existência. De acordo com Bakhtin (1998, p. 423) o homem
épico “[...] vê e sabe de si somente aquilo que os outros vêem e sabem. Tudo o que
outros, ou o autor, dizem dele, ele poderá dizer sobre si mesmo e vice-versa”. Em posse
dessas informações, chegamos a supor que a personagem Querô apresenta também
elementos épicos comprovando aquilo que Magris (2009) afirma sobre a natureza
polifônica e a contaminação de gêneros no romance, de um modo geral e,
consequentemente, despertando uma discussão que nos leva, inevitavelmente, ao
conceito de “romance polifônico77” de Bakhtin (2015).
Analisando as características de outros gêneros, sabendo que o tempo na épica e
na tragédia não influencia o indivíduo e o destino, no romance, o tempo existe e tem
extensão, por exemplo, em Querô participamos da história de vida do menino desde o
nascimento até sua morte; em outros gêneros o espaço é sempre fixo, contudo, o
romance possui seu próprio espaço. Plínio é o regente do coro de vozes, ele mesmo é
parte desse coro. Querô pode ser considerado então, o exemplo de um romance
ambivalente, de acordo com Fehér (1997) uma vez que esboça suas personagens em
evidente conflito com as organizações sociais, e polifônico nos termos de Bakhtin
(2015), na medida em que a voz das personagens ecoa no mesmo tom, visto que “[...] as
vozes, aqui, permanecem independentes e como tais, combinam-se numa unidade de
ordem superior à da homofonia” (BAKHTIN, 2015, p. 23). Trata-se, assim, da essência
da polifonia, cuja característica refere-se à combinação de “vontades individuais” e a
“vontade do acontecimento”.

77
“A imagem da polifonia e do contraponto indica apenas os novos problemas que se apresentam quando
a construção do romance ultrapassa os limites da unidade monológica habitual, assim como na música os
novos problemas surgiram ao serem ultrapassados os limites de uma voz. Mas as matérias da música e do
romance são diferentes demais para que se possa falar de algo superior à analogia figurada, à simples
metáfora. Mas é essa metáfora que transformamos no termo romance polifônico, pois não encontramos
designação mais adequada. O que não se deve é esquecer a origem metafórica do nosso tempo”
(BAKHTIN, 2015, p. 24).
101
Nesse sentido, as personagens em Querô são autônomas, cada qual apresenta sua
visão de mundo, porém, não estamos querendo dizer com isso que Plínio Marcos não
aparece enquanto autor. A própria palavra de Querô se confunde com a do autor, e, em
alguns momentos chegamos a pensar que a personagem e o autor são os mesmos78. Para
tanto, nos esclarece Bakhtin (2015, p. 12) que essa liberdade gera uma “[...]
independência que elas [personagens] assumem na própria estrutura do romance em
relação ao autor, ou melhor, em relação às definições comuns exteriorizantes e
conclusivas do autor”. De modo que se percebe em Querô a autonomia das personagens
em relação a Plínio, embora, essa emancipação e liberdade complementem o plano do
dramaturgo.
Partindo desse pressuposto, compreendemos que Querô, uma reportagem
maldita assume a característica de obra polifônica. A apropriação elaborada pelo Grupo
teatral Galpão Folias d‟Arte amplia nossa visão não somente com relação ao espetáculo,
mas, sobretudo em relação ao texto. Desse modo, estaríamos olhando para uma criação
polifônica79 e adentrando nas discussões de Bakhtin (2015) sobre dialogismo, polifonia
e gêneros. Para Bakhtin (2015) a linguagem é lugar de interação, assim sendo, as
categorias filosóficas como dialogismo80 e polifonia consideram que a linguagem só
acontece a partir da relação entre um eu e um tu.
O hibridismo presente na obra de Plínio Marcos é incontestável. A partir de
outra perspectiva, estudos como o de Souza (2014) abordam a obra como sendo híbrida,
sobretudo pela mescla entre os gêneros presentes. Para a pesquisadora o que revela em
Plínio Marcos a “hibridização de gêneros” é quando o dramaturgo “[...] deixa
transparecer traços do seu projeto estético relacionado ao teatro, e Querô, uma
reportagem maldita é prova disso [...]” (SOUZA, 2014, p. 46).
78
Ver a entrevista que a Revista Status realiza com Plínio na edição 33 de 1977. Disponível em:
<https://umbigodascoisas.com/2013/12/03/reportagem-maldita-quero-romance-1976-plinio-marcos/>.
Acesso em 01 de setembro de 2017.
79
Referindo-se ao romance polifônico observado a partir de um minucioso estudo sobre as obras de
Dostoiévski, Bakhtin afirma: Por sua natureza mesma, o gênero literário reflete as tendências mais
estáveis, “perenes” da evolução da literatura. O gênero sempre conserva os elementos imorredouros da
archaica. É verdade que nele essa archaica só se conserva graças à sua permanente renovação, vale
dizer, graças à atualização. O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo.
O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra
individual de um dado gênero. Nisso consiste a vida do gênero. Por isso, não é morta nem a archaica que
se conserva no gênero; ela é eternamente viva, ou seja, é uma archaica com capacidade de renovar-se. O
gênero vive do presente, mas sempre recorda o seu passado, o seu começo. É o representante da memória
criativa no processo de desenvolvimento literário. É precisamente por isso que tem a capacidade de
assegurar a unidade e a continuidade desse desenvolvimento (BAKHTIN, 2015, p. 121).
80
“[...] o dialogismo como forma de interação e intercomplementação entre as personagens literárias”
(BEZERRA, 2015, p. VI).
102
Influenciado pela teoria bakhtiniana, o termo hibridismo surge, principalmente
através da crítica pós-colonial, especialmente com Bhabha, passando também pelos
conceitos de interdisciplinaridade e transculturalidade dos Estudos Interculturais. Na
América Latina, com base em Coser (2010, p. 171), destaca-se a obra de Nestor
Canclini. No Brasil “[...] diversos pesquisadores vêm abordando e dialogando sobre as
questões culturais híbridas”. De modo que a autora defende: “Podem-se observar
manifestações de „hibridação literária‟ na estética, na construção de personagens e/ou
nas narrativas propriamente ditas” (COSER, 2010, p. 179).
Nesse sentido, o romance Querô, como já exposto por Souza (2014), é um
exemplo de obra híbrida não só por apresentar elementos do épico e do drama em sua
estrutura, mas, sobretudo, por apresentar em seus desdobramentos (romance, texto
dramatúrgico e espetáculo) a absorção, exclusão, fusão, entrecruzamento e reciclagem,
como exposto nos capítulos anteriores. Sendo assim, Querô, enquanto romance
ambivalente é polifônico pelo fato de que a voz 81 de Querô e das outras personagens
não está subordinada à palavra, à voz de Plínio, ela surge independente, bem como é
híbrido por apresentar elementos de outros gêneros em sua composição. Nossa questão
agora é entender se Plínio escreveu um romance dramatizado ou um drama
romancizado, desta feita, passemos a compreender a romancização e a irrupção do
romance no teatro.

3.1.1 ROMANCIZAÇÃO

Diante do que já expomos, compreendemos que Plínio Marcos escreveu um


romance, gênero narrativo, mas a ideia inicial era escrever uma peça. Ao escrever o
romance, potencializou aspectos do drama, texto prenhe de teatralidade e, assim,
escreveu uma obra híbrida. Essa hibridação de gêneros, da qual falou Coser (2010), foi

81
Fala-se aqui da “voz dramatúrgica”. “Com esse tipo de dramas „apaixonados pela voz e o ouvido‟
(Jean-Pierre Martin), a representação torna-se um lugar de articulação entre uma dimensão fisiológica da
voz e o que se assemelha a uma poética da voz, numa vocalização de vozes (textuais). Ela orquestra sua
polifonia, tornando audíveis ou perceptíveis, em sobreimpressão, múltiplas vozes – as dos atores, as do
texto -, sem que continuem sendo possível dissociá-las, no que se refere à recepção do público e à
elaboração de significações. A voz participa nesse aspecto do ponto de vista proposto ao espectador, bem
como do devir cênico e da encenação de um texto. Ela contribui para a resistência mimética do teatro
contemporâneo, ao mesmo tempo que cria formas de hipertextualidade (Samuel Beckett, Heiner Müller)
ou de minimalismo textual (Jean-Luc Lagarce, Jon Fosse)” (JOLLY; DA SILVA, 2012, p.186).
103
também pensada por Bakhtin (1998) e denominada de romancização. Para Bakhtin
(1998), os gêneros quando combinados com o romance, romancizam-se. De modo que a
romancização de outros gêneros acontece a partir do momento em que:

[...] eles se tornam mais livres e mais soltos, sua linguagem se renova
por conta do plurilingüismo extraliterário e por conta dos extratos
„romanescos‟ da língua literária; eles dialogizam-se e, ainda mais, são
largamente penetrados pelo riso, pela ironia, pelo humor, pelos
elementos de autoparodização; finalmente – e isto é o mais importante
-, o romance introduz uma problemática, um inacabamento semântico
específico e o contato vivo com o inacabado, com a sua época que está
se fazendo (o presente não acabado) (BAKHTIN, 1998, p. 400).

Nesse sentido, explica-se o fato de alguns gêneros desaparecerem, falamos aqui


de uma forma “pura” e da formação de novos gêneros a partir do contato com essa
diversidade, o que inclui o romance. O objetivo de Bakhtin é “[...] definir a influência
histórica libertadora do romance sobre outros gêneros literários” (PLANA, 2012, p.
167). A teoria bakhtiniana amplia as discussões sobre o romance e estabelece distinções
em relação a gêneros como o drama e a poesia, através de características como a “[...]
polifonia, o movimento, a instabilidade e a resistência” (PLANA, 2012, p. 167). Essa
liberdade assumida pelo romance se deve a capacidade de interação textual
característica da polifonia, uma vez que o romance apresenta uma problemática, uma
incompletude semântica.
Bakhtin (1998, p. 403) sugere que o romance é um gênero que está por se
constituir e, considerando a evolução da literatura na modernidade, três características o
diferenciam de outros gêneros, a saber: i) à consciência plurilíngüe; ii) a mudança
radical do tempo nas representações literárias do romance, por isso, compara o romance
a epopéia; e iii) a área de contato entre o presente e sua incompletude. A teoria
bakhtiniana revela que o processo de romancização não acontece apenas através da
influência “direta” e “espontânea” do romance, visto que as transformações da realidade
também se tornam fator de contribuição, sobretudo porque o romance é um gênero
inacabado e acanônico82.

82
“A romancização da literatura não implica em absoluto a imposição aos outros gêneros de um cânone
estrangeiro e não peculiar, pois o próprio romance está privado deste cânone; ele, por sua natureza, é
acanônico. [...] Por isso, a romancização dos outros gêneros não implica a sua submissão a cânones
estranhos; ao contrário, trata-se de liberá-los de tudo aquilo que é convencional, necrosado, empolado e
amorfo, de tudo aquilo que freia sua própria evolução e de tudo aquilo que os transforma, ao lado do
romance, em estilizações de formas obsoletas” (BAKHTIN, 1998, p. 427).
104
O romance, enquanto gênero, desde o início se constituiu e se
desenvolveu no solo de uma nova sensibilidade em relação ao tempo.
O passado absoluto, a tradição, a distancia hierárquica não tiveram
nenhuma parte no processo da sua formação como gênero (eles
desenharam somente um papel insignificante em certos períodos da
sua evolução, quando este era submetido a uma certa „epicização‟,
como por exemplo, o romance barroco (BAKHTIN, 1998, p. 427).

A dramaturgia de Plínio Marcos revela aspectos descritivos e narrativos, de


modo que assume essa hibridação. O romance Querô torna-se referência, no entanto, o
texto dramatúrgico apresenta uma liberdade singular, essa romancização não é uma
recusa do teatro tampouco uma afirmação da literatura, sobretudo porque é resultado, de
alguma maneira, de uma escrita espontânea. Sarrazac (2002) em O futuro do drama
quando discorre sobre a “Obra híbrida” desenvolve uma discussão a respeito da
romancização.
Plana (2012, p. 167) expõe que: “Em meados do século XVIII, em todo caso, o
romance, ao dominar „economicamente‟ a cena literária, exerce grande fascinação sobre
os autores de teatro, principalmente Diderot [...]”. O pensamento de Diderot exprime
que “o „romance‟, considerado como modelo, é o estado original de uma peça, o seu
material ou, se quisermos, a sua fábula desenvolvida – „Ó meu amigo, quem
transformará isto em cenas? Quem dividirá este romance em actos?‟” (SARRAZAC,
2002, p. 49-50). Dessa forma, seguindo o quadro de exemplos, Sarrazac (2002, p. 50)
denota Zola como vítima da forma dramática pouco apropriada para suas necessidades
realistas. Nesse sentido,

[...] retomará a ideia de uma contaminação benéfica, tanto no plano


estrutural como no plano temático, do drama pelo romance. Para o
mestre naturalista, é o alicerce romanesco que garante a uma obra
dramática tanto a abertura social como o afastamento relativamente ao
cânone ultrapassado da „peça bem feita‟ (SARRAZAC, 2002, p. 50).

O teórico refere-se à compreensão de Bakhtin sobre a liberdade do romance


como uma intuição a respeito do que já defendia Diderot e Zola. De modo que afirma:
“Bakhtine teoriza, no século XX, a intuição de Diderot e de Zola: o romance, em virtude
da sua forma inteiramente livre, pode ajudar a evolução dos outros gêneros, em
particular o teatro” (SARRAZAC, 2002, p. 50). Esses escritores acreditavam que o

105
romance aborda temas modernos, através de personagens reais e a partir de um tempo e
espaço bem mais flexíveis83.

A adaptação teatral, prática que se intensifica desde então, acelera a


primeira fase da romancização do drama. A matéria-prima romanesca,
que se tenta embutir num drama de forma clássica, termina por
esbarrar nas regras de unidade e por amenizar a construção das peças.
As rubricas desenvolvem-se em números e em extensão; são
repensados o lugar, o personagem, a representação e o jogo; os
cenários são enriquecidos e multiplicados. O iluminismo e o
romantismo dão então início, atacando as convenções e abordando
reputados temas romanescos, à modernização da forma dramática
(PLANA, 2012, p. 168).

É interessante observar que a partir de semelhante pensamento Plana (2012, p.


168) expõe que a recorrente prática da “adaptação” parece acelerar o processo de
romancização. Sendo assim, é importante frisar que, de acordo com Plana (2012, p.
168), “[...] nem toda libertação ou modernização do drama vem do romance”, como
exemplo cita Zola que criou uma nova forma ao aplicar ao seu drama as normas de uma
escola romanesca precisa ao elaborar uma adaptação de Thérèse Raquin escrevendo
mais um romance dramatizado do que um drama romancizado.
Assim sendo, poderíamos então observar que os caminhos que levaram Plínio
Marcos a escrever o texto em forma de romance, tendo em vista que foi primeiro
pensado para teatro, resultou em uma “romancização”, resta-nos saber se o drama
romancizou ou se o romance foi dramatizado. Sarrazac (2009, p. 9) chega a afirmar:
“Quando o processo foi de algum modo bloqueado, tentamos fazer adaptações teatrais,
adaptações dramáticas de romances”. Desse modo, para o teórico, a “romancização”
consiste em um processo de fratura em relação às formas teatrais canônicas.

É incontestável que, durante os dois últimos séculos, o romance


ajudou a modernização da forma dramática e sua renovação, mas
Bakhtin, pressupondo sua superioridade libertadora, negligencia a

83
“O Brasil não demorou muito para se arriscar na aventura de extrair teatro da literatura. Um dos
pioneiros foi certamente Antunes Filho, com seu lendário Macunaíma (1928). Seria exaustivo listar todos
os que enveredaram por esta trilha. Mas não podemos deixar de destacar a trajetória diretorial de Bia
Lessa, compostas quase que totalmente por romances teatralizados, como Orlando, de Virgínia Woolf, Os
possessos, de Dostoievski, Viagem ao centro da terra, de Júlio Verne e O homem sem qualidades, de
Roberto Musil. No Rio de Janeiro, uma das experiências mais fecundas foi A mulher carioca aos 22 anos,
romance de João de Minas, que Aderbal Freire-Filho pôs no palco sem nenhum corte ou alteração do
texto original. Cumpre não esquecer também as tentativas bem sucedidas de jovens talentos da direção
teatral, como Vau da Sarapalha, conto de Guimarães Rosa e Alcassino e Nicoleta, história anônima da
tradição oral medieval, montados respectivamente por Luiz Carlos Vasconcellos e André Paes Leme”
(NUNES, 2000, p. 40).
106
importância da teatralidade na evolução do romance: modelos
dramáticos adotados pelos romancistas (Sade, Balzac, Hugo) também
o libertaram de suas próprias normas; hoje, em Duras, em Beckett e
em muitos outros, drama e narrativa comungam, intercalam-se ou se
confundem. A modernização (se assim chamarmos a emancipação)
das formas baseia-se então menos na romancização unilateral do que
na interação recíproca das escritas, pois frequentemente as obras
contemporâneas mantêm-se abertas e adotam uma pluralidade de
modelos – inclusive e principalmente estrangeiros (PLANA, 2012, p.
169).

No que se refere à Querô, uma das primeiras a observar esse processo discutido
na obra é Souza (2014) quando analisa o sentido do termo “[...] „romance dramático‟ e
como o processo de „hibridização de gêneros‟, genericamente aqui definidos como uma
amálgama entre dois gêneros textuais, se realiza na obra Querô [...]” (SOUZA, 2014, p.
41). Para tanto, percebe-se que o texto de Plínio assume a forma do romance, pelo que
já se expôs e, para além da forma, traços de outros gêneros, a saber, o drama e o épico
rompendo com a visão tradicional dos gêneros. Sarrazac (2009) diz: “No limite, a noção
de gênero não mais existe. Estamos no transmodos84, passamos do épico ao dramático,
saltamos de um para o outro, estamos em uma espécie de hibridização do dramático e
do épico” (SARRAZAC, 2009, p. 14). A linha entre épico e dramático é tênue a ponto
de Sarrazac (2009) repensar a noção de gêneros e sugerir o “rapsódico”.
A obra Querô, no que se refere à construção do texto, nos permite apresentar
indagações a respeito dos “modos” e, nesse sentido, seguimos com a teoria de Sarrazac
(2009) sobre os “transmodos”, sobretudo pelo contexto em que a obra foi criada. Nesse
caso, entende-se que a adaptação elaborada por Plínio Marcos apresenta aspectos de um
monólogo confessional, por exemplo, quando Querô diz: “No meu quarto, sozinho, eu
sentia uma vontade doida de ir ver o Pai Bilu de Angola e talvez encontrar a Lica.
Largar no pé do santo toda minha carga. Chorar minhas pitangas pra moça. Mas, que
nada” (MARCOS, 1992, p. 63). Vale ressaltar que Querô narra sobre sua vida e
somente no fim o leitor compreende que ali se trata de uma entrevista.

84
Por muito tempo a Poética serviu como manual para aquele que quisesse escrever uma peça bem feita.
Aristóteles precisou pensar e desenvolver três critérios de diferenciação, os meios (diz respeito ao ritmo,
linguagem e harmonia); os modos (distingue drama e narração); e, por último, os objetos (define o tipo de
ação e as características das personagens voltadas para cada ação). “Mas já os outros gêneros
„romancizados‟ colocaram a teoria em xeque. Sobre o problema do romance, a teoria dos gêneros
encontra-se em face de uma reformulação radical” (BAKHTIN, 1998, p. 401). Desde Aristóteles, pouco
se acrescentou às teorias dos gêneros até enquanto não se falava sobre o romance.

107
Há, portanto, nos termos de Sarrazac (2009, p. 14) “uma hibridização do épico e
do dramático”. Querô conta em primeira pessoa a sua história enquanto garoto
marginalizado. Para o teórico, parte dessa relação entre o teatro e o romance tem a ver
com essa “romancização”, para isso, não precisa criar muitas teorias, visto que “[...] o
romance é a reserva de histórias que temos a contar sobre o mundo” (SARRAZAC,
2009, p. 9). Por isso, chegamos a supor que Querô não é, necessariamente, nem
romance dramatizado, nem drama romancizado, visto que:

A imensa variedade de obras produzidas nas quatro últimas décadas,


no entanto, exige instrumentos de análise mais flexíveis e ao mesmo
tempo mais afiados e naturalmente promove o descarte de tais juízos
estreitos. O foco posto sobre essa produção nos leva para outro rumo:
aceitando que a convenção dos gêneros tradicionais é insuficiente para
responder às diferentes soluções combinatórias de elementos, tanto
dramáticos quanto narrativos, que surgem na dramaturgia
contemporânea, a busca se faz agora por novos campos de referencias
que possam nos orientar na apreensão dessas formas dramáticos-
épicas (GARCIA, 2013a, p. 10).

Poderíamos entender assim que Querô é uma dessas obras que apresenta
combinação de elementos, visto que a montagem dinâmica a partir de uma voz-
narradora apresenta uma associação e dissociação ao mesmo tempo do épico e do
dramático. Por isso que para responder nossas questões recorremos às definições de
Sarrazac (2002) sobre o teatro rapsódico. Ao resgatar a figura do autor-rapsodo, aquele
que combina elementos dramáticos e narrativos para resolver questões referentes à
fábula e discutir questões em torno do teatro rapsódico, o teórico francês acredita que
estaria promovendo a “emancipação do drama pelo romance”, por isso, trata o rapsódico
como uma forma mais livre.
Assim, a ideia de um teatro rapsódico que costura, monta e hibridiza, uma
espécie de animal bizarro apresentado por Kafka, meio gato, meio cordeiro que deseja
se tornar um cão, pode ser percebida em Querô. Essa definição nos permite
compreender uma obra que nasce da inversão, ou seja, da adaptação de um texto
nascido para o palco e que ganha contornos de romance elaborados pelo próprio autor
em circunstâncias históricas específicas. Nesse caso, passemos a compreender melhor
essa “pulsão rapsódica” de que fala Sarrazac (2009), visto que para ele, ora o ser que
relata surge como personagem, como narrador, ora, no palco, pode aparecer como o
autor dramático.

108
3. 2 A MUTAÇÃO DA FORMA DRAMÁTICA

O termo rapsodo, de acordo com o Dicionário Houaiss (2009) refere-se: “1) na


Grécia antiga, [ao] recitador profissional de poesias épicas”; e ao “2) escritor de poesias;
poeta; vate”. Conhecido também como os intérpretes da poesia grega, o rapsodo é “[...]
o sujeito da vocalidade poética, que assume a responsabilidade de sua performance85,
autorizado por uma tradição, e deixa marcas em seu público. [...] aquele cujo dizer
transita entre o cantor e o narrador” (FARRA, 2015, p. 279).
No diálogo Íon, Platão (2011) discute sobre a arte poética, nesse caso, “[...] o Íon
é o único texto cuja dinâmica total gira em torno da poesia (ou da rapsódia, tanto faz)”
(PUCHEU, 2011, p. 7). Assim, conclui-se que em Íon, Sócrates revela que o rapsodo
atrai a multidão ao falar sobre Homero, não por possuir o conhecimento da arte poética,
isso porque se acreditava que a inspiração do rapsodo é concedida pelas musas, fato que
o deixa fora de si e o aproxima do que está sendo narrado86.

85
“Performance implica competência. Além de um saber-fazer e de um saber-dizer, a performance
manifesta um saber-ser no tempo e no espaço. O que quer que, por meios lingüísticos, o texto dito ou
cantado evoque, a performance lhe impõe um referente global que é da ordem do corpo. É pelo corpo que
nós somos tempo e lugar: a voz o proclama, emanação do nosso ser. A escrita também comporta, é
verdade, medidas de tempo e espaço: mas seu objetivo último é delas se liberar. A voz aceita
beatificamente sua servidão. A partir desse sim primordial, tudo se colore na língua, nada mas nela é
neutro, as palavras escorrem, carregadas de intenções, de odores, elas cheiram ao homem e à terra (ou
àquilo com que o homem os representa). A poesia não mais se liga às categorias do fazer, mas às do
processo: o objeto a ser fabricado não basta mais, trata-se de suscitar um sujeito outro, externo,
observando e julgando aquele que age aqui e agora. É por isso que a performance é também instância de
simbolização: de integração de nossa relatividade corporal na harmonia cósmica significada pela voz; de
integração da multiplicidade das trocas semânticas na unicidade de uma presença” (ZUMTHOR, 2010, p.
166).
86
“[...] Mas, como não é em virtude de uma técnica que fazem poemas e dizem muitas e belas coisas
acerca desses assuntos, como tu acerca de Homero, mas em virtude de uma concessão divina, cada um é
capaz de fazer apenas isto a que a Musa o inspira: um, ditirambos; outro, encômios; outro, pantomimas;
outro, poemas épicos; outro, iambos; mas, em relação aos outros gêneros, cada um deles é medíocre. Pois
não dizem essas coisas em virtude de uma técnica, mas em virtude de um poder divino, uma vez que, se
eles estivessem, em virtude de uma técnica, a ciência de falar belamente em um gênero, também teriam
em todos os outros; mas, por isso, o deus retira dele o senso e se serve deles como servidores, e também
dos cantores de oráculos e dos adivinhos divinos, para que nós, os ouvintes, saibamos que não são eles –
aqueles nos quais o senso está ausente – os que falam essas coisas assim dignas de tanto valor, mas o
próprio deus é quem fala, e através deles se faz ouvir por nós. [...] Sócrates: Mas, espera ai, dize-me isto,
Íon, e não me escondas o que quer que eu te pergunte: quando tu bem recitas versos épicos e arrebatas
completamente os espectadores, seja quando canta Ulisses tomando de assalto a soleira da porta,
revelando-se aos pretendentes as flechas [...], nessa hora, estás em teu juízo ou te tornas fora do teu juízo
e a tua alma, estando ela entusiasmada, acredita estar junto das coisas de que tu falas, estando seja em
Ítaca, seja em Troia, ou onde quer que os versos se passe?” (PLATÃO, 2011, p. 39-41).

109
Íon, considerado rapsodo, é aquele que recitava poemas elaborados por outros,
por exemplo, Homero, que afirma conhecer bem. Além de recitantes, os rapsodos
comentavam e interpretavam os poemas. Responsável por sua performance, o rapsodo
“[...] é aquele que cose os cantos, como que cose panos de uma roupa. Sua agulha tece
com linhas grossas e finas o leve e o pesado, junta o preto, o branco e o colorido: une o
transparente e o opaco [...]” (FARRA, 2015, p. 279). Para tanto, o rapsodo não
precisava de conhecimento técnico, tendo em vista que acreditava-se na inspiração
divina. Esse sujeito da vocalidade poética assumiu diversos nomes tais como aedo,
narrador e rapsodo.
Essa ideia do rapsódico está “[...] ligada de saída ao domínio do épico: o dos
cantos e da narração homéricos, ao mesmo tempo que a procedimentos de escrita tais
como a montagem, a hibridização, a colagem, a coralidade” (HERSANT;
NAUGRETTE, 2012, p. 152). Assim, o conceito de rapsódia “[...] corresponde ao gesto
do rapsodo, do „autor-rapsodo‟, que, no sentido etimológico literal – rhaptein significa
„costurar -, „costura ou ajusta cânticos” (HERSANT; NAUGRETTE, 2012, p. 152). Em
seu livro O futuro do drama, Sarrazac (2002) apresenta reflexões a respeito do que
surge atualmente no drama moderno, de modo que revela um novo comportamento
diante dos gêneros literários, da fábula e da montagem, bem como diante da
personagem encarada como incompleta, entre outras questões.
Jean- Pierre Sarrazac (2012, p. 22) esclarece sobre a importância dos estudos de
Szondi para desenvolver suas pesquisas, no entanto, demarca distância do teórico
alemão “[...] quando ele se entrega às tendências teleológicas da época e sugere que a
„forma épica do teatro‟, a de Brecht em particular, poderia constituir uma superação ou
uma espécie de saída da crise inaugurada na época do naturalismo”. Em O futuro do
drama, Sarrazac afirma que

[...] ninguém duvida que o abalo que Brecht provocou nas bases
aristotélicas do teatro ocidental, graças, sobretudo, à sua teoria de um
teatro épico, onde os elementos narrativos rivalizam com os elementos
dramáticos, abriu ao nosso teatro perspectivas de emancipação. [...]
Vítimas do mito de um progresso em literatura, que repousa numa
analogia abusiva entre o desenvolvimento das artes e das ciências
alguns autores acreditaram convictamente que se tratava de „superar‟ a
forma dramática e de se instalar completamente no domínio do épico,
no teatro. Por não ser objetivamente possível essa „superação‟,
deixaram-se absorver pelo modelo da obra brechtiana (SARRAZAC,
2002, p. 35-36).

110
O tom de crítica na fala de Sarrazac (2002) revela o posicionamento do teórico
em relação à teoria de Peter Szondi que defendia a superação da forma dramática
através do “épico”. De modo que Ibsen, Maeterlinck, Tcheckov, Strindberg,
Hauptmann, conforme Szondi (2011), diante de uma forte mudança cultural,
estabelecem as linhas de uma tradição alternativa, cada um sendo o responsável por
construir a sua poética do drama. Para Szondi (2011), de acordo com o pensamento de
Lukács (2000), esses autores conseguiam com o novo estilo ajustar adequadamente as
novas formas ao contexto social. Logo, a partir deles, “[...] o diálogo ofusca-se diante do
monólogo” (SARRAZAC, 2012, p. 69). Nesse sentido, do ponto de vista szondiano,
esses dramaturgos
[...] procuraram „resolver‟ a crise do drama assumindo como
elementos temáticos e formais, tão plenamente quanto possível, os
elementos contraditórios em cuja emersão ele se manifesta e, assim,
procurando recuperar para o teatro uma integridade estética à altura
dos impasses que ele defronta (PASTA JR., 2011, p. 14).

Peter Szondi ao apontar a “crise do drama” reconhece que as formas de base


aristotélica não conseguem “expressar o conteúdo-histórico social” em fins do século
XIX. Nesse sentido, identifica recursos da Lírica e da Épica como tentativas de
superação da “crise”. Para o teórico, as dramaturgias épicas de Piscator e Brecht
tornam-se formas de solução para uma crise do drama. “De maneira mais sutil, o
conceito do drama absoluto pode apontar para uma hibridização do épico e do
dramático, do individual e do coletivo, que as estéticas do século XX não cessaram de
reinventar” (KUNTZ; LESCOT, 2012, p. 74). Essa forma que ruma à “epicização87” é
decorrente de uma nova experiência que tem como foco o complexo das relações
sociais. O conceito proposto parte do pressuposto de que:

“Epicizar o teatro, portanto, não é transformá-lo em epopeia ou


romance, nem torná-lo puramente épico, mas incorporar-lhe
elementos épicos no mesmo grau que lhe incorporamos
tradicionalmente elementos dramáticos ou líricos. Logo, a epicização
[...] implica o desenvolvimento da narrativa sem ser uma simples
narrativização do drama” (BARBOLOSI; PLANA, 2012, p. 77).

87
Para José da Costa “Os elementos da narrativização do teatro contemporâneo ocidental de um modo
amplo já não se limitam à tendência epicizante e à forma épica deliberada, ambas, respectivamente por
Peter Szondi em exemplos dramatúrgicos extraídos respectivamente do final do século XIX e das décadas
iniciais do século XX” (COSTA, 2013, p. 87).
111
Dessa maneira, se o épico, em algum momento, foi encarado como algo negativo
pelas teorias de base aristotélicas da “composição dramática”, foi com Bertolt Brecht
que a teoria de um “teatro épico88” e, portanto, “não-aristotélico”, ganhou novas
interpretações no que se refere à compreensão de que o drama passa a incorporar
elementos narrativos nas representações dramáticas. No entanto, para Sarrazac (2002),
Szondi está obcecado pelo “devir épico” e não pensa no futuro do drama, visto que
aposta como tentativa de solução a “forma épica do teatro”.
A crise, nesse sentido, é percebida a partir de um deslocamento entre a relação
forma-conteúdo, visto que revela uma incongruência interna da forma do drama: “A
contradição interna do drama moderno consiste, por conseguinte, que um sobrepor-se
dinâmico de sujeito e objeto na forma se contrapõe, no conteúdo, a uma dissociação
estática” (SZONDI, 2011, p. 79). Nesse ínterim, Szondi (2011) afirma que nas “[...]
relações sujeito-objeto o caráter absoluto dos três conceitos fundamentais” que
sustentavam o drama são desfeitos, destruindo-se também o caráter absoluto dessa
forma, a saber:
O presente (1) do drama é absoluto porque não possui nenhum
contexto temporal: o drama não conhece o conceito de tempo [...]; a
unidade de tempo significa o ser suspenso por sobre o curso temporal.
O âmbito inter-humano (3) é no drama absoluto porque não se
encontra equiparado nem à interioridade dos homens nem ao que lhes
é externo. Limitando-se no Renascimento ao diálogo, o drama escolhe
a esfera do „entre‟ como seu espaço exclusivo. E o acontecimento (2)
é no drama absoluto, porque se vê destacado tanto da
condicionalidade anímica interna quanto da externa própria à
objetividade, fundando a dinâmica da obra em sua supremacia
(SZONDI, 2011, p. 78-79).

88
“A expressão „teatro épico‟ pareceu a muitos contraditória em si, pois, a exemplo de Aristóteles,
considerava-se que a forma épica e a forma dramática de narrar uma fábula eram fundamentalmente
distintas uma da outra. Em caso algum, a diferença existente entre ambas se atribuía apenas à
circunstância de uma ser apresentada por seres vivos e de outra utilizar a forma do livro – houve obras de
épica, como as de Homero e dos jograis medievos, que foram também realizações teatrais, e dramas,
como o Fausto, de Goethe, e o Manfredo, de Byron, que, como é do conhecimento de todos, tiveram
maior repercussão como livros. A diferença entre a forma dramática e a forma épica já em Aristóteles era
atribuída à diferença de estrutura, sendo, assim, tratadas as leis respeitantes a estas duas formas em dois
ramos distintos da estética. A estrutura dependia das diversas maneiras pelas quais a obra era oferecida ao
público – por meio do palco ou do livro. Mas, independentemente desse fato, surgia ainda um cunho
dramático nas obras épicas e um cunho épico nas obras dramáticas. O romance burguês do século passado
cultivou um pendor dramático bastante intenso, pendor este que se traduziu em intensa concentração da
fábula e interdependência entre as partes isoladas. O tom emocional da narração e um realce especial
dado ao entrechocar das forças em causa caracterizavam essa „dramaticidade‟. Ao épico Döblin se deve
uma excelente caracterização dos dois gêneros ao afirmar que, ao contrário do drama, a epopéia pode ser,
a bem dizer, retalhada em pedaços, pedaços que permanecem, apesar de tudo, com inteira vitalidade”
(BRECHT, 2005, p.64-65).
112
Essa noção de Szondi de que o drama não conhece o conceito de tempo refere-se
ao fato de que o drama não identifica o que é histórico, assim, defende que o conteúdo é
oriundo da história e a forma alheia a história. A falta de vínculo histórico com o drama
tradicional permitiu com que o drama fosse possível em qualquer tempo e recorrido na
poética de qualquer época. De modo que a “crise” revela a transformação da tríade
apontada por Szondi como base de sustentação do drama, ou seja, um fato ocorrido no
presente mediante relações intersubjetivas. Assim, o drama moderno a que se refere o
teórico alemão, parte também da ideia de uma “crise” do diálogo, uma vez que era
compreendido como a base de sustentação do drama absoluto.
O objetivo de Sarrazac (2012) é também discutir sobre o esgotamento de um
paradigma do drama a que Szondi denomina de “drama absoluto”, baseado em um
evento interpessoal, que tem por base o modelo aristotélico-hegeliano de uma ação
dramática extensa e ordenada. Por isso, aponta um contra modelo da peça “bem feita”.
Nesse sentido, Sarrazac (2012) segue com a proposta de apresentar um novo paradigma
da forma dramática, por ele, denominado de drama-da-vida em oposição ao drama-na-
vida. A tentativa é de repensar a noção de crise a partir da ideia de ruptura para o
estabelecimento de um novo paradigma.
Seguindo esse quadro de mutação do drama, temos a teoria de um “teatro pós-
dramático” que parte também da crítica que Lehmann (2007) faz a Szondi (2011) em
relação à ideia de uma superação da crise do drama mediante o épico. Para Lehmann,
“dramático” pode ser um conceito com maiores possibilidades, desse modo, “[...] „pós-
dramático‟ designa um teatro que se vê impelido a operar para além do drama, em um
tempo „após‟ a configuração do paradigma do drama no teatro” (LEHMANN, 2007, p.
33). De acordo com José da Costa (2013, p. 87) “Hans-Thies Lehmann, partindo da
reflexão de Peter Szondi, postula a exaustão do drama e a tendência do teatro
experimental dos dias atuais para o radical abandono e a nítida ultrapassagem do campo
dramático”. Entende-se que a partir dos anos 70 houve uma fratura na maneira de
pensar e fazer teatro. De modo que o século XX já anunciava “[...] a valorização da
autonomia da cena e a recusa a qualquer tipo de textocentrismo” (CARVALHO, 2007,
p. 7). Sendo assim, o “pós-dramático”

[...] supõe a presença, a readmissão e a continuidade das velhas


estéticas, incluindo aquelas que já tinham dispensado a idéia
dramática no plano do texto ou do teatro. A arte simplesmente não
pode se desenvolver sem estabelecer relações com formas anteriores.
113
O que está em questão é apenas o nível, a consciência, o caráter
explícito e o tipo específico dessa relação. Da mesma maneira, é
preciso distinguir entre a retomada do anterior no novo e a (falsa)
aparência de validade contínua ou necessidade de „normas‟
tradicionais (LEHMANN, 2007, p. 34).

A proposta de Hans-Thies Lehmann (2007) diz respeito ao abandono do texto ou


de quem o criou para possibilitar o surgimento de um teatro de estados e de composição
dinâmica. Para a cena pós-dramática, essa “[...] recusa a adotar uma cosmovisão
ficcional, mesmo que negativa, se completa com uma utilização alegórica das
especificidades presenciais do teatro que expressa um estado de paralisia das lutas
sociais” (CARVALHO, 2007, p. 12). Constata-se a partir de Lehmanna (2007) um
teatro pós-brechtiano e, portanto, pós-dramático. Para dar sentindo ao termo “pós-
brechtiano” é necessário considerar dois dramaturgos na lista do pós-dramático, Heiner
Müller e a ideia de que “o corpo do teatro é sempre da morte”, bem como o encenador
Robert Wilson e a capacidade de provocar a “experiência abissal da metamorfose”. Para
Lehmann (2007) a “experiência da morte89” é o resultado do melhor teatro pós-
dramático.
Em seu texto A reprise (resposta ao pós-dramático), Sarrazac (2011) expõe
algumas considerações em relação à teoria de Lehmann. Sarrazac (2011) não
desconsidera a importância do pós-dramático no que se refere a “exploração dos teatros
em geral exteriores ao drama”, contudo, a maior divergência em relação ao teórico
alemão diz respeito à ideia de uma “morte do drama”.
Em relação ao posicionamento de Lehmann, Sarrazac (2011, p. 33) afirma que a
moda do pós-dramático “[...] têm pelo menos a vantagem de nos recordarem o
desemparelhamento do teatro e do drama”. Para Sarrazac (2011), essa autonomia do
teatro em relação ao drama, bem como a exaltação da teatralidade, de modo algum,
significa uma perda para o drama, sobretudo por acreditar que a forma do drama só
ganhou com esse desemparelhamento, visto que evitou tornar-se paralisada.
Nesse ínterim, o teórico francês aponta críticas à teoria apresentada por
Lehmann, sobretudo em relação ao pensamento de que “[...] a encenação do „teatro da
época moderna‟ seja apenas „de maneira geral declamação e ilustração do drama

89
“Uma poética da morte configura menos pela atuação espectral à maneira do teatro nô (tão comum na
cena contemporânea) e mais pela tentativa de criar um „espaço-tempo comum de mortalidade‟ [...], em
que o corpo é visto em seu presente de dissolução, que gera implicações éticas, afetivas e históricas”
(CARVALHO, 2007, p. 13).
114
escrito‟” (SARRAZAC, 2011, p. 35). Para Sarrazac (2011), a ideia de considerar o
drama como obsoleto e o anúncio de uma crise terminal do drama são comuns entre
teóricos como Adorno e Lehmann. Por isso, não fala de uma crise do drama e sim, de
uma mutação por acreditar que “[...] uma crise só pode ser breve e só pode desaguar
numa resolução, sendo a morte do drama efetivamente uma delas – eu preferia falar de
mutação, melhor, de uma mutação lenta, e duma mudança de paradigma do drama”
(SARRAZAC, 2011, p. 39).
Em suma, de modo geral, traçamos um percurso que apresenta, a partir do
conceito de Szondi até Sarrazac, a mutação do drama. Para nós, é fundamental discutir
questões em torno da “crise do drama” apontada por Szondi (2011) para
compreendermos o surgimento de um novo paradigma do drama revelado por Sarrazac
(2002). Entende-se com isso que a peça bem feita com começo, meio e fim perde
sentido para uma ação fragmentada. A partir de uma ideia de um drama fechado, da
crise apresentada por Szondi e das divergências com Lehmann, principalmente em
relação à morte precipitada do drama, Sarrazac (2002) expõe uma forma totalmente
aberta para se reconectar com o mundo e livre para praticar revezamentos entre os
modos dramáticos, épicos e líricos.

3.2.1 O RAPSÓDICO EM QUERÔ, UMA REPORTANGEM MALDITA

Desde Aristóteles a “forma épica de narrar à fábula” e a “forma dramática” eram


consideradas diferentes. De modo que a diferença se dava marcadamente pelo fato de
uma ser apresentada por seres vivos e a outra utilizar os livros. Nesse sentido, a épica e
a dramática se diferenciavam na estrutura, de acordo com a teoria aristotélica, ou seja,
de acordo com a forma que a obra era ofertada ao público. Contudo, independente
dessas questões, fato é que as obras começavam a experimentar tanto elementos do
épico, como do dramático. Sendo assim, essa oposição entre épico e dramático perdeu a
rigidez, sobretudo pelo fato de a “[...] cena, pelas aquisições técnicas, ter adquirido
condições para incorporar nas representações dramáticas elementos narrativos”
(BRECHT, 2005, p. 65). Citamos como exemplo em Querô uma cena em que
presenciamos esses elementos narrativos.
115
LEDA – É querosene.
(Leda destapa a garrafa e bebe. As mulheres berram. Ju se desespera.
Leda bebe. Grita de dor. Leda larga a garrafa. Cai no chão
contorcendo-se de dor. Todas ficam paradas. Leda rola de dor até
morrer. Pausa longa. Ju, com a criança nos braços, volta-se para
Violeta. As mulheres ameaçadoramente vão cercando a cafetina).
VIOLETA – Eu não tive culpa (MARCOS, 2003, p. 251).

Ao pegar a garrafa e afirmar que era querosene, o leitor não sabe o que vai
acontecer até que a descrição do suicídio se desenvolva lentamente. Em Querô (2003),
os elementos narrativos e descritivos, bem como a utilização do coro com finalidade
crítica revelam a forma épica presentes na obra. O espectador diante da cena deve ser
testemunha da ação, forçado a tomar decisões, visto que a cena acontece diante dele e
lhe proporciona visão de mundo. Com base no exposto e partindo do pressuposto de que
as novas dramaturgias libertam-se da dialética aristotélico - hegeliana, visto que
resultam mais por ajustes, junção de elementos que não resistem uns aos outros,
dramático, lírico e épico, vejamos como esse extravasamento resulta na obra rapsódica
Querô, uma reportagem maldita.
Sarrazac (2002) afirma que há bastante tempo estamos vendo se extinguir a ideia
de que a forma dramática está engessada em gêneros. O rapsódico proposto por
Sarrazzac (2002) parte das teorias propostas por Aristóteles, Szondi, Lehmann, entre
outros teóricos, para pensar em uma mutação que permite a formação de uma forma
mais livre do drama, mas, que não é ausente de forma. Desconstrução seria a palavra
que marca a diferença entre a dramaturgia contemporânea da dramaturgia clássica.

As características da rapsódia, tais como Jean-Pierre Sarrazac as


formula são ao mesmo tempo „recusa do belo animal‟ aristotélico,
caleidoscópio dos modos dramáticos, épico, lírico, inversão constante
do alto e do baixo, do trágico e do cômico, colagem de formas teatrais
e extrateatrais, formando o mosaico de uma escrita em montagem
dinâmica, investida de uma voz narradora e questionadora,
desdobramento de uma subjetividade alternadamente dramática e
épica (ou visionária) (HERSANT; NAUGRETTE, 2012, p. 152-153).

No que se refere à hibridização em Querô, como já foi mencionada, ela acontece


a partir dessa junção dos modos dramáticos, épico e lírico formando o mosaico de uma
escrita dinâmica. As músicas na voz da personagem Cantora também conferem à peça
um tom épico quando entoa a história do cabaré ao dizer: “Venha como tantos vieram/
feridos de amor me procuraram/ querendo embrulhar a solidão/ nos pálidos lençóis do
116
meretrício/ Amar é o meu ofício/ Ou será meu vício/ Amo, amo com sofreguidão”
(MARCOS, 2003, p. 234).
O lírico é conhecido como o gênero mais subjetivo “[...] no poema lírico uma
voz central exprime um estado de alma e o traduz por meio de orações” (ROSENFELD,
2008, p. 22). Em Querô conhecemos esse lirismo durante a entrevista entre o menino e
o Repórter, sobretudo por expressar a emoção, a concepção das personagens, suas
reflexões e visões que são intensamente vividas e experimentadas. O lírico em Querô
refere-se também à solidão experimentada pelas personagens, visto que cada uma
parece viver no isolamento, a falta de convívio que demonstram ter umas com as outras,
bem como a carga de emoção, a vida interior.

É o que Jen-Pierre Sarrazac chama de „teatro dos possíveis‟, no qual


coexistem e se somam os contrários, no qual tudo é colocado sob o
signo da polifonia – Bakhtin mostrou suas principais características:
propensão à mistura, à pluralidade, à heterogeneidade, à inversão dos
gêneros e das vozes -, que o trabalho rapsódico de emenda e
cerzimento assume todo seu sentido, engendrando nas escritas
contemporâneas a estrutura de uma „montagem dinâmica‟
(HERSANT; NAUGRETTE, 2012, p. 153-154).

Sobre a montagem e a colagem, termos oriundos das Artes plásticas associados


ao teatro, os teóricos afirmam que são opostas ao conceito de “belo animal”, uma vez
que ambos “[...] designam, com efeito, uma heterogeneidade e uma descontinuidade que
afetam igualmente a estrutura e os temas do texto teatral” (BAILLET; BOUZITAT,
2012, p. 120). Embora os limites entre os termos sejam tênues, a montagem e a colagem
muitas vezes são empregadas como sinônimos.
Por sua vez, a montagem designa “[...] uma descontinuidade temporal, de
tensões instaurando-se entre as diferentes partes da obra dramática” (p. 120). A colagem
diz respeito “[...] a justaposição de materiais diversos, a inserção de elementos
„inusitados‟” (BAILLET; BOUZITAT, 2012, p. 120). No texto dramatúrgico Querô
esse procedimento da montagem e colagem estão presentes quando o fluxo dramático é
interrompido, quando o dramaturgo decide encaixar os fatos presentes no romance em
capítulos diferentes e, como um arquiteto, constrói uma obra teatral que diz de outra
forma o que já foi revelado pelo romance. Observamos, com isso, os instantes em que
Querô narra fatos de sua vida ao Repórter que estão em diferentes momentos no
romance.

117
Querô – (Bravo.) Para com essa merda! Essa porra molhada só me dá
frio. Para com isso! Eu já morri, do gibi. Não adianta mais nada.
Minha perna ta podre. Eu sinto o fedor. Tu não sente? Esse fedor me
enjoa o estomago. Minha garganta ta seca. Ai, meu Deus do céu,
quem pode alguma coisa por mim? (MARCOS, 2003, p. 238-239).

Nesse sentido, há momentos em que Querô narra fatos de sua vida ao Repórter
sem, consequentemente, seguir a lógica do romance, sobretudo porque elementos do
romance são subtraídos. No romance essa passagem acontece apenas quando o leitor já
sabe que o Jornalista está entrevistando Querô, de modo que encontramos na obra a
fragmentação de que fala Sarrazac (2012). Os fragmentos da vida de Querô se juntam
ao fim do relato e a partir de então estamos diante de acontecimentos que não obedecem
a uma progressão sistemática, “[...] o fragmento designa o caráter incompleto ou
inacabado de uma obra [...], o essencial não parece encontrar-se no que resta dela ou no
que foi composto, mas sim no que não chegou até nós, no que falta” (LESCOT;
RYNGAERT, 2012, p. 89). Assim, observa-se a importância da montagem, do ponto de
vista e da coerência para aqueles que questionam a “escrita fragmentária” que se refere
ao rapsodo, levando em conta o “duplo gesto” do escritor de ligar e desligar a obra. No
Capítulo I do romance a cena do batismo de Querô aparece como um exemplo do que
queremos dizer sobre o duplo gesto do autor de cortar e recortar.

O que importa é que fui batizado nessa igreja pela Violeta. Ela me
botou o nome do santo do dia, Jerônimo, e o sobrenome da minha
mãe, Piedade. Jerônimo da Piedade, filho da puta com pai
desconhecido, afilhado de uma cafetina que ficou sendo madrinha e
dona (MARCOS, 1992, p. 11).

No texto dramatúrgico a cena que chega até o leitor é fragmentada e ressurge


através do ritual realizado por Violeta e pelo coro formado pelas prostitutas. O padre sai
de cena e quem assume são as “MULHERES – (Em coro.) Que assim seja. Que Deus
seja louvado. VIOLETA – Será chamado Jerônimo, e com seus braços trabalhará
valorosamente, será humilde de coração e temente a Deus todo poderoso [...]”
(MARCOS, 2003, p. 252). Na cena citada essa fragmentação é percebida, por exemplo,
a partir do momento em que o dramaturgo retira elementos do romance e os distribui
por toda a obra dramática.
De modo que o “teatro rapsódico” pensado por Sarrazac (2002) exerce um
trabalho sobre a forma teatral de decompor e recompor, sobretudo porque considera a

118
obra teatral em seu devir, no sentido de que é múltipla, visto que tem a possibilidade de
criar novos territórios. Para o teórico, a grande transformação do teatro contemporâneo
já não implica mais em um desenvolvimento da fábula de um drama na vida, o que ele
chama de mudança de paradigma. De modo que “[...] descreve este novo paradigma
como o resultado da passagem do drama-na-vida para o drama-da-vida90” (ZURBACH,
2011, p. 13). Entendido de outra maneira, o drama-na-vida, ou seja, a forma dramática
com base no modelo aristotélico-hegeliano foi perdendo espaço para o drama-da-vida,
compreendido como um drama dos possíveis, uma maneira de “refazer a vida de
múltiplas maneiras91”. Nos deteremos, a partir de agora, a conhecer desde a noção de
fábula, segundo Sarrazac (2013b), atém as noções de personagens em Plínio Marcos e
suas características.
As discussões sobre fábula (mythos) ganham fôlego nesse contexto pela
constante transgressão em relação aos critérios como “ordem”, “extensão” e
“completude” associados aos modelos aristotélicos para aquele que pretende
desenvolver uma boa fábula. Como se pode observar a partir da definição de fábula,
vários outros termos como “mito92”, “enredo”, “intriga” são empregados como
sinônimos. Patrice Pavis (2008a) define fábula ou enredo como “[...] o estabelecimento
cronológico dos acontecimentos que constituem o esqueleto da história representada
(PAVIS, 2008a, p. 157)”. Para Tomachevski (1976) fábula é “[...] o conjunto de
acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados no decorrer da obra”
(TOMACHEVSKI, 1976, p. 173). Sendo assim, os acontecimentos podem ocorrer na
ordem cronológica ou independente da ordem que estão dispostos na obra.
No que se refere à obra corpus da nossa pesquisa, o tiro disparador para ação no
texto dramatúrgico encontrado por Plínio Marcos é a morte da prostituta ao dar à luz e
tomar querosene. De modo que esse conflito na peça é antecipado ao passo que os dados
que o esclarecem são construídos, visto que somente depois quando a “(Luz apaga no
cabaré e acende no Repórter, que está sentado num canto do palco)” (Marcos, 2003, p.

90
A mudança de paradigma, conforme Sarrazac (2011, p. 13), faz surgir esse drama-da-vida “cuja
dramaticidade se situa no que designa de infra-dramático, ou seja, oriunda da banalidade e insignificância
do quotidiano, sem herói, nem mito, em uma ação sem tensão, desdramatizada”.
91
“No plano formal, portanto, trata-se de uma estética completamente diferente da postulada pelo absoluto
do drama oriundo das normas aristotélicas e clássicas (Drama absoluto)”. “[...] o teatro dos possíveis
inscreve-se como a afirmação de uma aptidão humana à transformação e à decisão, e como baluarte
contra a fascinação e a resignação trágicas” (LESCOT, 2012, p. 148-149).
92
Ver: ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poetica, 1998.
119
237), ou seja, quando o Repórter volta-se ao público em tom de narrativa, o
leitor/espectador sabe da entrevista. Para Sarrazac:

A fábula é a instância de controle do real sobre a ficção e não uma


forma de vetar a montagem. É também ao fazer o exame da fábula,
ainda que esta seja mínima nas peças contemporâneas, que a
montagem se documentará, politicamente, tornando-se assim
socialmente produtiva (SARRAZAC, 2002, p.84).

Sarrazac (2002) considera que a fábula, no sentido “brechtiano93” é útil,


sobretudo porque o teórico defende que é necessário não apenas para os formalistas,
como também para a época “Transgredir o „fabulismo‟ linear, optar pela repetição em
detrimento da progressão, pela variação em vez de variedade” (SARRAZAC, 2002, 84).
A quebra do belo animal, ou seja, da peça bem feita com começo, meio e fim, faz surgir
“[...] a estranha besta, metade gato, metade cordeiro” (KUNTZ, 2012, p. 42). Sarrazac
aponta essa quebra do „belo animal‟ aristotélico como uma das características da
rapsódia, ao invés de mito fala-se agora em fait divers, nesse sentio afirma:

Meu ponto de partida é, portanto, a definitiva não semelhança com o


„belo animal‟ aristotélico, é o questionamento da unidade de ação, é o
desenvolvimento errático, até mesmo anárquico e, em certa medida,
teatrológico da fábula – ou do que resta dela (SARRAZAC, 2013b, p.
75).

Portanto, partimos do pressuposto de que a crise da forma dramática é


anunciada, talvez, em consequência do surgimento da crise da fábula94, “[...] desse
ponto de vista tudo se passa como se o drama não tivesse cessado, desde o fim do
século XIX, de sair da pele do “belo animal” (KUNTZ, 2012, p. 41). Desse modo, para
o teórico tudo nos leva a diferenciar, no teatro moderno e contemporâneo, duas
categorias de fábula, tendo em vista que os questionamentos voltados para a crise da
fábula no teatro moderno e contemporâneo surgem a partir de confirmações: “[...] da
época naturalista até hoje, o „sistema de fatos‟ vem se desfazendo” (SARRAZAC,
2013b, p. 75). Esse caráter inovador da forma dramática demarcou seu lugar na
contemporaneidade. “Durante muito tempo a forma dramática sofreu influências do

93
“A montagem surge como um procedimento característico de um teatro que tenderia a se desviar do
„dramático‟ em prol do épico” (BAILLET; BOUZIAT, 2012, p. 121).
94
Entendendo-se fábula como “primeira das partes constitutivas do poema dramático em Aristóteles”
(SARRAZAC, 2012, p. 79).
120
romance (da época naturalista) e da poesia (principalmente simbolista)95”. No entanto,
“[...] atualmente, o drama agencia outras artes como a dança, o cinema, o vídeo, a
fotografia ampliando ainda mais seu campo de ação e estabelecendo um novo
paradigma do drama ainda em transformação96”.

[...] fim do belo animal. O(s) tratamento(s) da fábula – esta venha ou


não a ser „minimalista‟ ou „cotidiana‟ ou „banal‟ – não serão mais
doravante pautados por um ideal natural, orgânico etc., mas antes por
valores modernos – contranatureza, mecânica, em suma, procedendo
por montagem – de fragmentação, desconexão, descontinuidade e, até
mesmo disjunção (SARRAZAC, 2012, p. 82).

Para Sarrazac (2012), as duas categorias da fábula se encontram entre o primeiro


nível, ou seja, o leitor ou o espectador só é capaz de construir o relato cronológico e
seriado das ações a posteriori; e o segundo nível se revela a partir da construção
(descontrução), composição (descomposição) dos mesmos acontecimentos e ações.
Assim, constatar a passagem de um nível para outro é encontrar “[...] no ponto de
junção, um operador, uma consciência – Szondi denomina-o „sujeito épico‟; proponho
de minha parte „sujeito rapsódico‟ [...] – que, mais ou menos à vista, agencia, monta os
elementos do „material‟ para erigi-los em „trama‟” (SARRAZAC, 2012, p. 83). Esse
“sujeito épico”, de acordo com Szondi (2011), está relacionado à “presença do autor na
narrativa”, há por parte dele um “deslocamento da ação” em privilégio da narrativa. A
presença do “sujeito épico” é para Szondi um indicativo da crise do drama. Para
Sarrazac (2012) esse “sujeito épico” ganha novo termo, o de “autor-rapsodo”, ou seja, a
voz do autor na peça.

QUERÔ – Ninguém chega perto de mim. Ninguém encosta, que eu


grampeio. Já fiz o serviço. Já ganhei quem eu queria. Mas ninguém
chega em mim, que leva teco. Vou de pinote.
[...]
(Luz acende num quarto imundo e mal iluminado. Querô está ferido,
deitado numa cama, mas com o revólver na mão. A seu lado está um
gravador. O Repórter se aproxima dele.)
QUERÔ – Pra que essa merda, ô do gibi?
REPÓRTER – Pra ficar bem gravado tudo o que você disser. Pra não
se perder nada (MARCOS, 2003, p. 237).

95
CANDIDO, 2013, p. 49.
96
Ibidem.
121
A presença do “autor-rapsodo” em Querô acontece a partir do momento em que
identificamos a figura de Plínio Marcos dando voz ao Repórter. Anunciado o fim do
belo animal e sabendo que a fábula procede por montagem, decorre então que a
montagem do Galpão Folias d‟Arte acontece na obra mantendo o confronto entre o
passado através da narrativa, visto que o menino narra fatos de sua vida, e o presente
quando, de fato, o diálogo se instaura a partir da entrevista.
De acordo com o teórico francês, a fábula não deixou de existir mesmo após
terem anunciado a morte do drama, na verdade, o que acontece, segundo ele, refere-se a
um novo modo de fábula que nasce com as obras contemporâneas. Nesse sentido,
aponta dois atalhos importantes para a compreensão do que propõe como nova
configuração da fábula: i) “„o drama não é representado, o que é representado é um
voltar-se sobre o drama‟”, esse voltar-se ao drama caracteriza-se pelo sentido contrário
ao fluxo do movimento propriamente dramático, como pensavam Hegel e Aristóteles, e
“[...] „o drama na vida dá lugar ao drama da vida‟, é que a catástrofe não é mais terminal
– não fecha mais a fábula, mas se torna inaugural” (SARRAZAC, 2013b, p. 78), o que
significa dizer que a catástrofe no drama moderno e contemporâneo se articula de
maneiras distintas, por exemplo, o simples fato de ter sido lançado ao mundo ou uma
espera do Apocalipse. No drama da vida o fato é dado no início para que seja
descontruído, a proposta de Sarrazac é:

Mais do que fazer, uma vez mais, o inventário das manifestações ou


dos sintomas da crise da fábula, eu gostaria de privilegiar a hipótese
de outra lógica, uma lógica alternativa da fábula nas dramaturgias
modernas e contemporâneas. Um novo uso plural, claro, da fábula; ou
ainda, novos tratamentos da fábula. Minha preocupação é procurar o
que há por trás da tela onde está escrito, sob pretextos variados –
morte do drama (Theodor Adorno) ou teatro pós-dramático (Hans-
Thies Lehmann) (SARRAZAC, 2013b, p. 75).

Sarrazac (201) define a “crise” como “mudança de paradigma”, nos auxiliando a


compreender de que forma a modernidade nos concedeu espaço para o início de uma
dramaturgia firme e contundente, através do “rapsódico”. Defendemos aqui a mudança
de paradigma em Plínio Marcos pelo fato do autor apresentar, em certo sentido, a ideia
da quebra do belo animal, da peça bem feita, (com base no modelo aristotélico –
hegeliano), uma vez que, pelo contrário, cada vez mais a figura humana ganha papel
principal em seus textos.

122
Deste modo, há uma recusa não da fábula por parte de Sarrazac (2013b), mas de
um fabulismo, ou seja, da ideia de uma fábula ossificada. Assim, observando o declínio
do “[...] continuum fabular e, concomitantemente, o do personagem [...], não seria
oportuno aprender a sondar essa fábula quase invisível, as microações imersas no
diálogo, em resumo, todo o aparato de um teatro poderia denominar „da palavra‟ [...]?”
(SARRAZAC, 2013b, p. 91). Em resposta ao questionamento, para Sarrazac (2013) a
solução, talvez, fosse pensar a fábula moderna a partir de dois termos: “enunciado e
enunciação; fábula material (que só o espectador poderá reconstituir a posteriori), e
trama (forma de organização do material” (SARRAZAC, 2012, p. 83). Com base no
exposto, observamos que essa operação acontece por parte de Plínio a partir do
momento em que amarra os acontecimentos que estão distribuídos de maneira diferente
no romance. Querô, uma reportagem maldita pode ser pensada como o lugar que revela
as contradições de uma sociedade.
Plínio Marcos escreve sobre personagens que são consideradas fora do comum,
a história de um indivíduo completamente imerso na massa, sobretudo, porque partilha
da sorte dessa multidão através da qual funciona a dialética de uma sociedade. Por
exemplo, cronologicamente, acompanhamos o nascimento de Querô e seu crescimento
até o que o leva à morte no romance, no entanto, no texto dramatúrgico o
leitor/espectador já se depara com o menino transformado, embora ainda menor de
idade, já se apresenta na fase adulta. As passagens do romance são evocadas sem,
contudo, seguir uma ordem sucessiva de acontecimentos, tendo em vista que o
dramaturgo lança mão da causalidade.
Em suma, a dramaturgia do rapsodo faz surgir esse “outro diálogo” que já não se
limita ao indescritível. De modo que a pulsão rapsódica em Querô se constata também
na reconstrução do diálogo que se revela através do dialogismo, da liberdade com que
cada personagem assume a sua voz, inclusive, a do autor-rapsodo. Assim, essa rapsódia
que se desdobra em vários termos operatórios é resultado da recusa do belo animal, da
constante inversão do alto e do baixo, do mosaico de formas teatrais características de
uma “escrita em montagem dinâmica” por parte de uma voz que narra e que questiona.
Esse status híbrido, essa influência do romance em Querô gera a romancização, bem
como essa associação e dissociação do épico e do dramático percebidos a partir de uma
leitura atenta da obra.

123
3.2.2 A PERSONAGEM NO TEATRO

Para escritores como Plínio Marcos, a arte torna-se uma aliada, uma vez que
permite expressar a violência como uma condição de vida de muitas das personagens
que compõe suas obras, uma forma de resistir e produzir novos sentidos. Em Dois
perdidos numa noite suja (1966), Plínio expõe o comportamento de Paco e Tonho,
personagens que se confrontam através de um diálogo cortante. Assim, vamos
conhecendo cada história, a vida das personagens que contribuem para revelar, de
algum modo, o panorama de um país desigual. A cortina se abre para apresentar as
dificuldades, os sofrimentos e os infortúnios de Neusa Sueli em Navalha na carne
(1975), peça em um único ato, que assim como Querô, parte de uma cena que começa
em um momento de crise, visto que Vado, seu companheiro, está enfurecido pelo fato
de não ter dinheiro. Desse modo, conhecemos tantos outros como Bereco, Tirica,
Portuga em Barrela (1958), bem como Giro, Dilma, Célia, Leninha, em O abajur lilás
(1969)97.
Chegamos a supor que o objetivo da escrita de Plínio é tentar estabelecer entre o
leitor/ espectador e as personagens uma relação em que todos desenvolvam um ponto de
vista específico sobre o mundo e sobre si mesmo, bem como esse mesmo público se
reconheça através da personagem. Para Bakhtin (2015, p. 52) “[...] não importa o que a
[...] personagem é no mundo mas, acima de tudo, o que o mundo é para a personagem e
o que ela é para si mesma”. Desse modo:

A auto-obervação praticada pelo artista, um ato artificial de


autodistanciamento, de natureza artística, não permite ao espectador
uma empatia total, isto é, uma empatia que acabe por se transformar
em autêntica auto-renúncia; cria, muito pelo contrário, uma distância
magnífica em relação aos acontecimentos. Isso não significa, porém,
que se renuncie à empatia do espectador. É pelos olhos do ator que o
espectador vê, pelos olhos de alguém que observa; deste modo se
desenvolve no público uma atitude de observação expectante
(BRECHT, 2005, p. 78).

97 Ver: Contundente, Plínio está à altura de Nelson, crítica de Luiz Fernando Ramos. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1902200925.htm>. Acesso em 19 de outubro de 2017. Luiz
Fernando Ramos é crítico da Folha de São Paulo e professor do Departamento de Artes Cênicas da
Universidade de São Paulo desde 1998, lecionando as disciplinas de Crítica, História e Teoria do Teatro.

124
Portanto, para saber algo sobre as personagens de Plínio, por exemplo, o que
querem; quais os obstáculos em relação a sua caminhada; o que estão dispostos a fazer
para conseguir o que querem; precisamos estar diante da construção textual, tendo em
vista que essa é maneira como o dramaturgo encontra para pensar cada um deles. Ball
(2008, p. 87) afirma que “[...] no drama, a personagem se revela de um único modo;
pela ação, aquilo que a pessoa faz, seus atos”. À pergunta Quem sou eu? Querô
responde:
DELEGADO – Nome do pai?
QUERÔ – Não tenho pai.
DELEGADO – Pai desconhecido. Nome da mãe?
QUERÔ – Leda da Paixão.
DELEGADO – Seu nome.
QUERÔ – Jerônimo da Paixão.
DELEGADO – Tem apelido?
QUERÔ – Querô.
NELSÃO – Querô, o caralho! Teu apelido é Querosene. Ele é
Querosene porque a mãe se empapuçou de querosene e morreu. (Ri
muito.)
QUERÔ – Querosene é a puta que te pariu (MARCOS, 2003, p. 254).

Querô é uma dessas personagens que tem sua subjetividade minada, a resposta
para - Quem sou eu? - parece mínima, um nome ou a identidade que adquiriu, segundo
seus atos. De Jerônimo da Piedade ou Jerônimo da Paixão para Querosene (combustível
usado em fogareiros e lampiões, que serve como solvente por corroer), ou melhor,
Querô, explosivo, é a maneira como o dramaturgo encontra para revelar a passagem do
menino para a formação de um pequeno criminoso.

„Quem sou eu?‟ Ninguém pode dar uma resposta completa, perfeita.
Ainda assim, para ajudá-lo a apresentar uma personagem no palco –
quer você escreva, ou faça a cenografia, ou desenhe os figurinos, ou
dirija, ou atue – agarre o menor fragmento concreto da personagem
que você puder descobrir. E lembre-se: mesmo depois de décadas de
intenso estudo psicológico e de pesquisas, não há quem conheça meio
melhor de apresentar, de interpretar uma personagem – que não seja
através do que ela faz (BALL, 2008, p. 95).

As características da personagem Querô nos fazem questionar porque no fim da


história, mesmo com toda a violência provocada pelo menino, furtos, morte, ainda
assim, sentimos algum tipo de identificação. Para nós, o que parece acontecer é que
Querô estabelece com o leitor/espectador certa empatia, visto que se entende como “[...]
a experiência mediante a qual nos projetamos em determinado objeto, animado ou

125
inanimado, a ponto de operar-se uma identificação ou personificação [...]” (MOISÉS,
2004, p. 141). Essa empatia com a personagem Querô é refletida na fala do Repórter e
na maneira como muda a forma de pensar – ele não queria fazer aquela reportagem -
depois de ouvir toda a história. A inserção do Jornalista na obra pode gerar no público
essa capacidade de se colocar no lugar do outro, como podemos perceber em sua fala no
romance:
Deixei o Querô dormir. Cobri seu corpo com trapos. Rezei por ele e
por seus fantasmas. E era tudo o que podia fazer por aquele menino.
Fui embora com o meu gravador, com uma história brutal de um dia-
a-dia patético, feroz, com meus próprios fantasmas e com meu
coração pesado. Andei no mato, desci uma pirambeira, atravessei um
riacho e sai na estrada. Era de tardinha. Tudo era silêncio. De repente,
o estardalhaço das sirenas foram crescendo, crescendo e vieram parar
ao meu lado. Das viaturas, desceram homens nervosos e armados de
metralhadoras e revólveres. Um deles arrancou brutalmente, de um
dos carros, o Pai Bilu e nega Gina (MARCOS, 1992, p. 95).

De acordo com Jean-Pierre Ryngaert (1995), a identidade das personagens


também pode ser revelada através de nomes, tendo em vista que se manifestam como
“[...] uma indicação importante, a ponto de alguns dramaturgos as privarem de nomes,
certamente para que não fiquem muito marcadas socialmente e para que a ênfase se
coloque no que elas dizem” (RYNGAERT, 1995, p. 132). Por exemplo, o Repórter
assume o nome da série limitada do seu papel e da sua função, de modo que nos permite
pensar “[...] até que ponto essas personagens se encontram destinadas, na cadeia da
existência, a lugares precisos e exíguos dos quais não podem despertar” (RYNGAERT,
1995, p. 114). Como Plínio, suas personagens desempenham o papel da camada social
da qual fazem parte, no caso do Repórter, se expressa através da entrevista que
apresenta o destino trágico de Querô.

[...] O chefe dos homens berrou:


- É aqui, seu vagabundo?
Com a cabeça, Pai Bilu confirmou. A negrona Gina começou a chorar.
Os homens a deixaram onde estava. Empurraram o Pai Bilu para o
mato e foram atrás. Outra vez tudo ficou silêncio (MARCOS, 1992, p.
93).

Assim, compreende-se que a utilização do nome Querô adquirido pelo menino


constrói uma pista para o leitor, porquanto se refere à ação de Leda, tornado-se também
memória que confidencia parte da história de sua vida. Vale ressaltar que fazer o
levantamento da identidade da personagem só tem sentido se considerarmos o contexto
126
da peça. Para Bakhtin (2015, p. 53): “A personagem requer métodos absolutamente
específicos de relação e caracterização artística”. De modo que funciona como se o
leitor/espectador não conseguisse ver quem é a personagem, e sim, a maneira pela qual
essa personagem toma consciência de si.
Desta maneira, o menino toma consciência a partir do instante em que assume
para si uma nova identidade, agora como Querô. “Além da realidade da própria
personagem, o mundo exterior que a rodeia e os costumes se inserem no processo de
autoconsciência, transferem-se do campo de visão do autor para o campo de visão da
personagem” (BAKHTIN, 2015, p. 55). O cabaré O leite da Mulher Amada faz parte do
mundo exterior do menino, sua casa “(Um cabaré de baixa categoria, [...] De repente,
entra Querô. Está visivelmente transtornado. Com o olhar, percorre o ambiente e por
fim se fixa no Nelsão e no Sarará. Depois de um tempo, Querô grita nervoso.)”
(MARCOS, 2003, p. 234 – 235).
Querô é uma personagem relativamente livre e independente, principalmente, da
relação com o seu autor, sem a presença dos pais é criado por Violeta, cresce sem amor
e em meio a toda a agitação do cabaré, fatos que lhes servem como material para a
construção de sua autoconsciência. De modo que aprende a ouvir as palavras dos outros
sobre si, olhando-se aparentemente através de um espelho que reflete a consciência das
personagens que convivem com ele, como revela a fala de Violeta sobre o menino.

Mas o que sei é que agora deu pra roubar. Quem sai aos seus não
degenera...Cresceu um pouco... Não posso mais com ele. Vai para a
rua, anda em más companhias, é um ladrão. Ah, meu filho, um
ladrão... Doutor, ele está lá em casa. De dia fica lá... Dorme de dia... o
dia inteiro. Se o senhor quiser... por favor... é pro bem dele... Eu já
estou desacorçoada. Sei que no asilo, no reformatório, ele endireita...
Eu não quero ver meu afilhadinho... (Chora.) Eu sofro do coração... A
qualquer momento, eu... bem, doutor... Isso não interessa. Só não
quero ver meu afilhado se tornar um bandido (MARCOS, 2003, p. 253
- 254).

A autoconsciência da personagem refere-se ao que afirma Bakhtin (2015) ao


falar sobre o herói do subsolo “[...] a sua consciência vive de sua inconclusibilidade, de
seu caráter não fechado e de sua insolubilidade” (BAKHTIN, 2015, p. 60). Talvez,
vingar-se pela morte da mãe seria a outra ponta que Querô procura para conseguir, de
algum modo, “fechar seu caráter”, construir essa autoconsciência. A dor de Querô é
expressa a partir da fala do Jornalista quando demonstra identificação imediata e o

127
envolvimento com os fatos, sobretudo porque revela compreensão, e a empatia da qual
falamos.
No texto dramatúrgico esse ponto de ligação é expresso a partir da inserção da
personagem Repórter que se revela como a presença do autor na obra, retomando o
termo de Sarrazac (2011), o dramaturgo-rapsodo. “O projeto de autor-rapsodo que faz
uma mediação assumida entre os personagens mas também entre estes e os espectadores
começa a concretizar-se” (SARRAZAC, 2011, p. 52). As personagens de Plínio
parecem revelar um denominador comum: consomem seus corpos e exalam o cheiro das
ruas, do medo, da solidão, do vazio, da ausência, do Zé Ninguém.
Entende-se, desse modo, que a personagem faz uso da palavra quando o rapsodo
tiver antes conferido a ele. Como aconteceu em Querô, tendo em vista que o menino é
convidado a contar sobre a história de sua vida pelo Repórter. Nesse sentido, afirma-se
que: “A estrita mimese teatral cede terreno a esse gênero misto, a essa semi-mimese
que, segundo Platão, caracterizava a epopeia” (SARRAZAC, 2011, p. 53). O resultado
desse terreno misto é a quebra do isolamento da cena em relação à plateia, visto que
torna-se possível dirigir-se a esse público. Ao eleger o rapsódico e não o épico como
ponto de partida, Sarrazac (2011) afirma que somente assim se liberta da ilusão
teleológica de uma superação do drama através do épico, visto que para ele o drama
passa pelo processo de mutação, há nele a presença do devir rapsódico. A vantagem
desse sujeito rapsódico em relação ao épico diz respeito ao fato de ser simultaneamente
“[...], personagem que toma parte na ação e testemunha da ação” (SARRAZAC, 2011,
p. 53), compreende-se assim que experimenta ser ao mesmo tempo épico e dramático.
Desse modo, constata-se que: “Das diferentes possibilidades que se oferecem ao
escritor de teatro nas suas relações com as respectivas personagens duas são bastante
conhecidas” (SARRAZAC, 2002, p. 97), ou seja, ou o escritor se apaga completamente
perante elas, de acordo com as leis do teatro, ou fala através delas. No entanto, o que
Sarrazac (2002) vai constatar nos novos escritos dramatúrgicos é a presença de uma
nova possibilidade, específica do dramaturgo-rapsodo: “[...] a de um personagem de um
antropomorfismo incerto que o autor acompanharia ao longo do seu périplo teatral,
cujas tribulações ele seguiria passo a passo e à qual estaria tão indissociavelmente
ligado [...]” (SARRAZAC, 2002, p. 97). De modo que Querô representa essa
personagem que cada vez mais experimenta ser uma personagem-testemunha de si e da

128
ação na qual está inserido, revelando suas dores ao autor que está presente na obra
através da figura do dramaturgo-rapsodo, o Repórter.

[...] aquele que diante da separação consumada, da total consciência


de que o vínculo entre homem e mundo se perdeu, opta justamente por
não mais escrever sobre o mundo, mas sim sobre esse vínculo
desfeito, e o faz (e como poderia ser diferente?) a partir de um
completo retalhamento dos enunciados formais – rapsódico remete,
especialmente em francês, àquilo que é mal engendrado, que é
formado por fragmentos, daí o rapsodo ser o artífice por excelência do
drama no mundo contemporâneo (MORAES, 2012, p. 13).

Essa presença do dramaturgo-rapsodo em Querô é percebida a partir das leituras


que fizemos do Repórter. De acordo com a concepção aristotélico-hegeliana do drama,
o autor se ausenta da obra, ou seja, é visto como um “dramaturgo-ventríloquo”, visto
que se encontra por trás das personagens que atuam como marionetes, uma vez que a
elas cede sua voz e seu discurso. No entanto, os diálogos entre o Repórter e Querô não
demonstram que há por parte do entrevistador à intenção de elevar o menino ao estatuto
de herói ou até mesmo de um anti-herói, como se costuma classificar. Na verdade o que
se apresenta é uma dramaturgia original do Zé Ninguém, para o qual se transfere essa
representação do imaginário contemporâneo para todos aqueles oprimidos e
marginalizados.
A “pulsão rapsódica” de que fala Sarrazac (2009) está presente em Querô
quando o Repórter encarrega-se tanto da voz da personagem, como da voz de narrador,
visto que assume o papel de tomar nota da história trágica da vida do menino. A
rapsódia além de gerar uma crise salutar do drama, possibilita a abertura de espaços de
confronto e tensão entre as formas, nesse sentido, “[...] o que está em jogo [...] é a
instauração de um teatro em busca perpétua, que nunca se basta, que se reinventa
incansavelmente, sob o ímpeto fundador de uma pulsão sempre recomeçada [...]”
(HERSANT; NAUGRETTE, 2012, p. 154). Em suma, quando a voz do dramaturgo-
rapsodo ecoa, não é expressa em vocábulos, e sim, no gesto da montagem. “Não se trata
de formular a totalidade de atributos e dos requisitos, mas de chamar a atenção para
alguns princípios que regem a vocalidade poética do rapsodo: sua voz em performance”
(FARRA, 2015, p. 279). Em Querô essa voz é assumida pelo Repórter, responsável por
costurar e descosturar, por juntar e desconstruir o que acaba de reunir.

129
A grande inovação da dramaturgia, bem como da encenação contemporânea é a
proposta de recuperar o ator narrador, para melhor dizer, o ator-rapsódico nas palavras
de Sarrazac (2002). Para Nunes (2000, p. 40): “O discurso narrativo direto é assumido
integralmente: os atores tornam-se porta-vozes do autor-contador”, o que significa
afirmar que a narratividade passou a ser entendida na sua circunstância literária e
relacionada ao épico teatral, tornando-se hipótese a partir do que estava acontecendo
nos palcos. A troca que se estabelece entre a voz do autor transforma-se na personagem
que narra, desse modo, inaugura uma ligação produtiva entre o épico e o dramático. Em
Plínio, por exemplo, notamos que a dramaturgia está na categoria do épico. Nunes
(2000) em sua pesquisa sobre as formas de atuação entre o épico e o literário revela que
entre os oito atores de sua pesquisa, dois tipos de atuação rapsódica são básicos:

[...] o ator cumprindo exclusivamente a função de fábula e mantendo-


se assim todo o tempo exterior à esfera da ficção, e o ator alternando-
se entre os papéis de contador e de personagem, entrando no espaço
dramático para participar da ação, para logo a seguir saltar fora dele e
comentá-la (NUNES, 2000, p. 42).

Esse primeiro ator do qual fala Nunes (2000) é conhecido como “narrador puro”,
cuja atuação se dá através de dois processos, primeiro narra “do lado de fora”, a ação é
observada externamente, no segundo, ocupa o espaço de atuação e chega até a disputá-
lo com as demais personagens. No romance e no texto dramatúrgico o Jornalista/
Repórter seria esse narrador “do lado de fora” por assumir uma posição afastada, sua
fala revela esse distanciamento, vejamos um exemplo:

(Repórter vem para sua posição inicial e se dirige ao público.)


REPÓRTER – De repente, me pareceu que o Querô se conscientizou
de que não tinha mesmo escapatória. E também, com paciência, fui
ganhando sua confiança. Sei lá. O certo é que, por livre vontade sem
que eu tornasse a insistir, ele começou a contar sua vida. Ele estava
sentindo muitas dores, febril, às vezes acho que delirava. Misturava
todos os casos, sem ordem cronológica.
(Repórter volta para junto de Querô.)
QUERÔ – Eu vim na pior. O filho da puta do meu pai encheu de porra
a filha da puta da minha mãe e se arrancou. Deixou a desgraçada no
ora-veja. E se o corno largou a grana na mesa antes de sair, não teve
estrilo. Não sei por que minha mãe não me soltou num purgante, ou
por que não deu um nó nas trompas. Eu virava anjo. Estava melhor.
Quem me contou foi a Ju. Era colega da minha mãe no puteiro da
Violeta. A Ju... a Ju é gente fina... Ela me contou tudo... tudo...
(MARCOS, 2003, p. 241).

130
De modo que, tanto no romance como na peça, por se tratar de uma entrevista, o
narrador torna-se um ouvinte e em alguns momentos leva o leitor a refletir sobre a
situação do menino. No entanto, no espetáculo do Galpão, esse narrador além de falar
oferece seu microfone aos policiais e ao menino, bem como leva para a cena fatos da
vida de Querô que estão presentes no romance, por exemplo, o caso do reformatório. Ao
falar sobre o narrador, Keiserman (2005, p. 18) apresenta dois tipos: o primeiro deles, o
narrador personagem, é aquele que narra em terceira pessoa e se confunde com a figura
pessoal do autor; o segundo, personagem-narrador, é aquele que narra em primeira
pessoa e apresenta uma visão parcial dos fatos. Para a teórica:

O ator rapsodo vai transitar entre estes corpos, passando de um para o


outro com fluência e ostentação, podendo mesmo chegar a habitá-los
simultaneamente, no caso em que empresta a voz à narração pretérita,
enquanto seu corpo fiscaliza o personagem, presentificando-o. [...] O
fato de não estar colado ao personagem e sim distanciado dele, oferece
ao ator um espaço a ser preenchido por uma opinião, um ponto de
vista – fundamental tanto no teatro brechtiano quanto no rapsódico.
Mesmo no caso do personagem narrador ser o protagonista da história
narrada, ele estará sempre colocado, por diferentes recursos da
linguagem da encenação disponíveis, em algum grau de
distanciamento que permite revelar este seu caráter de manipulador e
de encaminhador do relato (KEISERMAN, 2005, p. 19).

Observando as falas do Jornalista/Repórter, percebemos que ele tem sempre uma


opinião sobre o caso do menino e dos menores abandonados, leva o público a fazer
análises, parece ser aquele que disputa com outras personagens, no entanto, nas três
obras corpus da pesquisa percebemos que sua atuação acontece igualmente as demais,
sobretudo porque em cada fala sua ouvimos a voz de cada um. No que se refere ao
espetáculo encenado pelo Galpão Folias d‟Arte, o Repórter procede do deslocamento
“[...] da condição naturalista de narrador, deixa por vezes de conduzir o relato dando
lugar às pulsões de Querô e das personagens do bordel. Tais estratégias ampliam a
dimensão literária do texto e consagram o próprio espetáculo como narrativa 98”. De
modo que Querô deixa de ser protagonista e a atuação do Repórter não se dá apenas
como narrador, isso porque assume a função de personagem-narrador, diferente da
postura que é revelada no romance.

98
Crítica de Luiz Fernando Ramos publicada na Folha. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1902200925.htm>. Acesso em 19 de outubro de 2017.
131
A ideia de prestar uma homenagem a Plínio Marcos e montar uma oficina leva
ao galpão do Folias mais de quatrocentos atores inscritos, sendo que desses, restaram
trinta e nove. O grande número de atores e a proposta do Grupo Galpão Folias d‟Arte
não só deu conta de homenagear Plínio, mas, sobretudo consegue atualizar a cena
contemporânea quando realiza um rodízio entre o elenco, como afirma o crítico:

Mas o que torna a produção do Folias interessante não são as


credenciais combativas do autor ou a óbvia atualidade de suas
denúncias, e sim a forma teatral inventiva e vigorosa de que se serve
para confirmar a contundência do texto. A opção do encenador Marco
Antônio Rodrigues – um dos mais produtivos criadores de sua geração
– foi a de trabalhar com um elenco numeroso, de 39 atores e atrizes.
Isso lhe permitiu criar a massa humana no centro da cena que ora
serve de moldura para a ação dramática, ora como fonte da própria
narrativa, na medida em que do conjunto de figuras amontoadas,
habitantes do bordel Leite da Mulher Amada, onde transcorre o
drama, sobressaem tramas paralelas99.

Desse modo, cada ator pode experimentar ser um espectador de si a partir da


ideia de que há no palco essa multiplicação das personagens. Não se trata de uma
metamorfose100, como previne Brecht (2005) ao afirmar: “Para o ator é difícil e
cansativo provocar em si, todas as noites, determinadas emoções ou estados de alma;
em contrapartida, é-lhe mais fácil revelar os indícios externos que acompanham e
denunciam emoções” (BRECHT, 2005, p. 81). Presumimos que a forma como o Galpão
constrói o espetáculo isenta-o desse cansaço, a própria atuação do ator que faz Querô e a
performance do ator que faz Tainha, a título de exemplo, nos permitem afirmar,
sobretudo pela improvisação, levando-nos a crer que foi possível construir um novo
espetáculo todos os dias, embora essa improvisação em alguns momentos tenha deixado
espaços vazios quando observamos as cenas.
Cada personagem toma consciência de si, do seu papel, a partir dos seus gestos,
movimentos, voz. Essa consciência pode acontecer também a partir do momento em que
o ator consegue se enxergar no outro, da atuação do outro. As cenas fazem com que o

99
Ibidem.
100
“O ator ocidental esforça-se por aproximar o espectador tanto quanto possível dos acontecimentos que
estão sendo representados e das personagens que estão representando. De acordo com este objetivo,
procura levar o espectador a pôr-se na sua pele, e emprega toda a energia de que dispõe para se
metamorfosear o mais completamente possível num outro tipo humano, o tipo da personagem
representada. E, se consegue uma completa metamorfose, a sua arte como que se esgota, assim. O ator,
uma vez transformado no caixa bancário, no médico ou no general que está representando, necessita de
tão pouca arte como a que o caixa, o médico ou o general necessitam da vida real” (BRECHT, 2005, p.
79).
132
espectador reconheça a montagem sem se esforçar muito. As características de cada
personagem são bem definidas e a apropriação do Grupo cria um espetáculo para além
do que está evidente.
A auto-observação praticada pelo artista, um ato artificial de
autodistanciamento, de natureza artística, não permite ao espectador
uma empatia total, isto é, uma empatia que acabe por se transformar
em autêntica auto-renúncia; cria, muito pelo contrário, uma distância
magnífica em relação aos acontecimentos. Isso não significa, porém,
que se renuncie à empatia do espectador. É pelos olhos do ator que o
espectador vê, pelos olhos de alguém que observa; deste modo se
desenvolve no público uma atitude de observação, expectante
(BRECHT, 2005, p. 78).

No espetáculo do Folias o espectador experimenta essa distância de que fala


Brecht, isso porque os atores parecem se dirigir ao público com a pergunta: não é assim
mesmo? De modo que a ilusão enquanto espectador inesperado é desfeita. Nunes (2000)
afirma que para se tornar “[...] um porta-voz competente da fala autoral, o ator narrador
exercita um outro tipo de comunicação que quer chegar de forma mais direta ao
espectador” (NUNES, 2000, p. 47). A empatia gerada a partir das leituras dos textos é
desfeita, praticamente esvaziada no espetáculo, resultado da improvisação e da linha
tênue entre o épico e o dramático. Sendo assim, o espectador está diante da ação e torna-
se testemunha dela, agora consciente de que ali está para analisar, para ampliar sua
visão de mundo. De acordo com a proposta de Keiserman (2011) ao apresentar a
pesquisa sobre o ator rapsodo e propor procedimentos para uma linguagem gestual
chega a concluir, sem esperar que sua proposta se transforme em cânone, que:

a) Na encenação rapsódica, há os que narram e os que ouvem


(emissores e receptores).
b) Os que narram devem decidir a quem endereçam o seu texto, se
para outros narradores ou para os espectadores da plateia;
c) É preciso decidir se o movimento, que acompanha a fala, o faz sob
o ponto de vista de algum dos personagens a que se refere ou o do
narrador.
d) No caso de a gestualidade elaborada estar conectada com a
personagem, é preciso decidir se será uma corporização da sensação,
do sentimento ou do objetivo desejado.
e) No caso de a gestualidade elaborada estar conectada com o
narrador, as opções, quanto à gestualidade, visam corporizar uma
opinião ou um comentário, que poderá ser quer de ordem mental ou
afetiva, quer emocionado ou crítico.
f) Sobre os graus de distanciamento: estabelecer a distância temporal
em relação ao fato narrado e seu valor afetivo.

133
g) Os narradores, nos momentos em que não estão com o texto, vão
optar entre adotar movimentos ou atitudes como ouvintes que
conhecem ou não toda a história narrada.
h) ao fazer a opção por uma gestualidade entre várias experimentadas,
estas também estarão presentes, levando para o palco o pensamento
dialético que reforça a epicidade teatral (KEISERMAN, 2011, p. 85).

Assim, o rapsodo precisa furar a quarta parede e se mostrar convincente. De


modo que no teatro tradicional o autor deve desaparecer diante das suas personagens,
estar ausente. Nesse sentido, entendemos que na forma moderna e contemporânea essa
voz é capaz de fazer uma operação como a montagem de diferentes elementos, uma voz
que não se sobrepõe, mas que surge ao lado das personagens, que não assume o tom de
autoridade do autor, uma voz preocupada, muitas vezes subversiva, voz rapsódica que
retorna e se insere na ficção. Como revela Nunes (2000): “O rapsodo nasce e vive num
mundo inventado, mas possui o dom de abrir uma janela para o lado de fora, para a
vida, coisa que é mesmo negada aos atores personagens. Continua, como eles, sendo um
ator, mesmo sem carregar um herói” (NUNES, 2000, p. 48). Esse narrador possui
identidade, não é uma voz solta no palco, visto que cativa o público por possuir uma
fisionomia.
Com base em Nunes (2000), questionamos qual benefício poderíamos obter ao
permitir que o autor seja o narrador? Nesse sentido, entendendo “[...] que tudo o que se
desenrola num palco será sempre uma operação narrativa, por mais que tente disfarçar
seus mecanismos, não temos porque impedir a entrada do ator rapsodo” (NUNES, 2000,
p. 49). Através do Repórter a voz de Plínio Marcos é apresentada, voz questionadora,
sobretudo porque sempre que “[...] o sujeito épico exprime-se sob o modo de
enunciação, ele é obrigado a inventar seu emissário, seu porta-voz, seu mediador, seu
“narrador épico” (BARBOLOSI; PLANA, 2012, p. 79). Esse rapsodo que une à sua
performance as propriedades do narrador, torna-se o ouvinte de uma multidão excluída
embora apareça de terno e com um microfone na mão, talvez, por se tratar de alguém
que trabalha na imprensa dos anos 70, diferente dos espetáculos violentos que a grande
mídia apresenta. Essa é a maneira como o Folias apresenta a potência de um autor que
leva para o teatro a realidade difícil de muitos, revelando os conflitos de uma país
desigual, sua voz é representada pela figura do rapsodo, o Repórter. Em relação à
performance do ator, o rapsodo carrega características específicas, como vimos no
Repórter, tendo em vista que reflete a visão de Plínio, o dramaturgo-rapsodo.

134
3.2.3 DIÁLOGO E DIALOGISMO

No romance, o Jornalista é convidado por Pai Bilu de Angola para fazer aquela
reportagem, no texto dramatúrgico o convite é feito pelo chefe de reportagem do jornal,
fato que o leitor só vai saber depois do conflito de abertura entre Querô e os policiais
Nelsão e Sarará. A partir de uma leitura atenta das obras, percebe-se que a estratégia do
autor foi a de escrever em gênero épico como disfarce do diálogo e, somente assim,
reposicionar o romance nesse diálogo, ou seja, há no texto dramatúrgico Querô um
aparente diálogo que surge através do romance.
Ryngaert (1995) afirma que a distinção entre diálogo e monólogo é menos
perceptível do que se imagina. Segundo Pavis (2008a,), o monólogo é “[...] um discurso
que a personagem faz para si mesma” (PAVIS, 2008a, p. 247). Com base em Hausbei e
Heulot (2012), o monólogo exerce “[...] funções épicas (Épico) e líricas a fim de
comunicar informações que escapam seja no aqui e agora do ato enunciativo, seja na
esfera „inter-humana‟, trazendo à tona o estado interior da personagem” (HAUSBEI;
HEULOT, 2012, p.118). Nesse sentido, Sarrazac (2009) questiona sobre o que acontece
quando o diálogo não consegue mais dar conta daquilo que se quer dizer? De acordo
com o teórico, a reposta parece estar relacionada à romancização do drama, uma vez
que o monólogo interior ocupa também os palcos e se depara com o diálogo.

A partir do século XIX, o drama abre-se progressivamente a


problemáticas do social e do íntimo que extrapolam necessariamente o
conflito interpessoal, acolhendo em seu seio um volume de
enunciados que não encontram lugar no diálogo. Nessa nova
configuração, o monólogo muda de status e torna-se o espaço aberto
de uma fala em busca de interlocutor ou o universo fechado de uma
comunicação impossível. [...] O monólogo é hoje uma forma
nevrálgica da conversação que confina com os limites do silêncio ou
se esvai num fluxo de fala cuja retórica dá lugar a uma musicalidade
que o outro parece interromper de maneira quase arbitrária
(HAUSBEI; HEULOT, 2012, p. 116).

Nesse sentindo, Szondi (2011) também chama atenção para outros elementos
que sofreram modificação, por exemplo, o diálogo, isso porque no fim do século XIX e
início do XX as grandes dramaturgias “[...] principalmente as de Ibsen, Strindberg e
Tchekhov – antecipam as do fim do século XX – e [...] Beckett – no sentido de que o
diálogo ofusca-se diante do monólogo” (SARRAZAC, 2012, p. 73). Sendo assim, ao
135
analisar, especificamente, a crise do diálogo, Sarrazac (2012) afirma que “[...]
poderíamos resumi-la a um questionamento da relação interindividual entre os
personagens e, através dessa relação, do desenvolvimento do conflito dramático até a
catástrofe e ao desfecho” (SARRAZAC, 2012, p. 69). Isso faz com que se compreenda
que o “ser-aí” da personagem e sua ligação problemática com o externo, o mundo, a
sociedade e o cosmo, predominem sobre a relação interpessoal. O estado de isolamento
da personagem prevalece e, em consequência, a ideia de que apenas pelo diálogo os
indivíduos se revelam é questionada.
A presença do autor na figura do sujeito rapsodo sugere uma nova concepção de
diálogo dramático, visto que quando desvinculado da cena assume uma dimensão
dialógica. “As relações dialógicas [...] são um fenômeno quase universal que penetra
toda a linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em
suma, tudo o que tem sentido e importância” (BAKHTIN, 2015, p. 17). Mas, é
importante não confundir relação dialógica com diálogo, visto que é possível ter relação
dialógica em qualquer gênero. Com base no conceito de Bakhtin, o dialógico estaria
vinculado a ideia das relações que uma obra mantém com as partes externas e internas.
Por isso, Sarrazac (2002) sugere como o representante desse caráter dialógico a figura
do rapsodo:
“[...] Do estilhaçamento do diálogo, da coralidade, pode surgir a voz
rapsódica, „voz do questionamento, voz da dúvida, da palinódia, voz
da multiplicação dos possíveis, voz errática que engrena, desengrena,
se perde, divaga ao mesmo tempo que comenta e problematiza”
(HERSANT; NAUGRETT, 2012, p. 154).

Em Querô essa voz questionadora, da dúvida e da multiplicação dos possíveis é


representada pela figura do Repórter, tendo em vista que se torna o elo entre esse
diálogo interno e externo. A fala da personagem na peça revela a presença forte de
Plínio “[...] Eu não sou tira, Querô. Sou Repórter. Repórter de um tempo mau, quando
as pessoas como você são perseguidas, não têm chance nenhuma de escapar de uma
vida miserável. Quero contar a sua história. Te ajudar” (MARCOS, 2003, p. 240).
A maneira como o dramaturgo encontrou para revelar o diálogo foi através do
romance, no entanto, percebe-se que se instaura no texto dramatúrgico um aparente
diálogo, tendo em vista que Querô parece falar sozinho em alguns momentos, fazendo-
nos identificar em sua fala um monólogo interior, embora no fim o leitor tome
consciência de que se trata de uma entrevista.
136
A fala de Querô está carregada da expressão do outro, sua mãe, isso faz com que
ele carregue em seu discurso interno dúvida e sofrimento como uma espécie de saída
para o que estava vivendo e sentindo, visto que a conversa com Leda, a ideia de estar
diante da mãe fazem com que a personagem crie a esperança de resolver seus
problemas. Esse aparente diálogo surge na cena como uma proposta de Plínio de alargar
as discussões no que se refere ao teatro e fazer com que cada personagem mergulhada
em sua dor dialogue com a dor do outro, por exemplo, Querô e Leda. No entanto, por
saber que Leda está morta e que o menino está delirando, presumimos que a
personagem fala consigo, com o que imagina da mãe, sua consciência revela os fatos.

QUERÔ – Mãe... minha mãe... deixa comigo. Eu tou crescendo. E a


raiva crescendo em mim. Eu vou fazer a cobrança. Juro, mãe, pela luz
que me ilumina. Vou ser o Querô, a zorra encarnada. Vou mandar ver.
Eu não choro, mãe. Eu sou o Querô. Vou à forra. Com todos. Com
todos. Que entre um no rabo do outro e venham pra cima de mim. Um
por um, mãe. Um por um. Mãe... Mãe... Mãe... (MARCOS, 2003, p.
258).

Querô assume também a característica desse sujeito monologizante, visto que


em alguns momentos, por exemplo, quando estabelece um aparente diálogo com a mãe,
ou quando rememora os episódios do reformatório, assume a posição contrária à postura
das personagens das dramaturgias tradicionais. Assim, constata-se que sua maior
virtude não é agir, mas sim a capacidade de relembrar os fatos de sua existência.
Com base na dramaturgia tradicional o monólogo surge como uma interferência
na “cadeia dialética da ação dialogada”. De acordo com Lehmann (2007) os estudiosos
sobre o monólogo muitas vezes deixam de observar a sutileza teatral do monólogo,
visto que enfatizam em sua maioria a polaridade diálogo/monólogo. Assim, “[...] o
monólogo de personagens sobre o palco reforça a certeza de nossa percepção do
acontecimento dramático como uma realidade no espaço do agora, atestada pela
implicação direta do público” (LEHMANN, 2007, p. 211). Para Lehmann (2007), o
traço sintomático do pós-dramático é a dissolução da estrutura dialógica para a ascensão
do monólogo e do coro.
A proposta em Querô seria, então, a construção do diálogo com base no
dialogismo, nessa visão de mundo que a nosso ver se instaura, principalmente, pelos
conflitos existentes das muitas vozes presentes na multidão que compõe o cenário das
histórias de Plínio Marcos. A percepção e os diálogos com o Repórter revelam aos

137
poucos as outras personagens e a ligação de cada uma com o menino, um aparente
diálogo inacabado com sua mãe resultando em um monólogo que tem como mola
impulsionadora o delírio, a partir de uma linguagem clara que tem como proposta o
resgate da fala cotidiana que retrata e denuncia as quebradas do mundaréu. Assim, como
expõe Sarrazac (2002):

O monólogo das novas dramaturgias – ou, para retomar o vocábulo do


teatro que Ruzzante consagrou, a conversação – recorta, na prática
teatral contemporânea, um novo gesto teatral: a escuta profunda –
mesmo nos momentos de concentração de silêncio – de uma ou de
várias „personagens entrevistadas‟ (SARRAZAC, 2002, p. 161).

Depois do delírio, da tentativa de Leda de explicar, de pedir perdão ao filho por


não ter forças para esperar que ele crescesse, o rapsodo volta à cena, junta o que acaba
de cortar “REPÓRTER - (Tentando conter o Querô.) Calma, Querô, calma. Bebe água”
(MARCOS, 2003, p. 258). O diálogo entre os dois é recuperado e a entrevista continua.
Como disse Sarrazac (2012), a ideia comum de toda essa mestiçagem e hibridização
corresponde a uma necessidade de ampliar o diálogo dramático do monologismo e da
univocidade, como adverte Bakhtin, nesse sentido, implantar “[...] no seio da obra
dramática, um verdadeiro dialogismo, „captar o diálogo de sua época‟, „ouvir sua época
como um grande diálogo‟, aprender não apenas as vozes diversas, mas, acima de tudo,
as relações dialógicas entre essas vozes, sua interação dialógica” (SARRAZAC, 2012,
p. 73). De modo que Bakhtin, segundo Sarrazac (2002), teórico da escrita polifônica,
defende que o diálogo dramático está, por natureza, voltado ao monologismo. Essa
aparição do monólogo no território dramático só ressalta a luta contra a homogeneidade
da língua no teatro.
Diante do que já expomos, realizamos um apanhado sobre a tragédia na tentativa
de perceber, a partir de um viés filosófico, o surgimento do trágico, bem como
elementos desse “trágico do quotidiano” em Querô. De modo que ao elaborar uma
leitura comparativa entre as obras corpus da nossa pesquisa, observamos questões em
torno da adaptação e da apropriação chegando a compreender que a apropriação do
Grupo Teatral Galpão Folias d‟Arte e a obra do próprio Plínio culminam em uma obra
rapsódica, com base em Sarrazac (2002). Vale ressaltar que características dessa
rapsódia estão presentes desde o romance, quando discutimos o conceito de
“romancização”, conforme Bakhtin (1998), até elementos da “pulsão rapsódica” no

138
texto dramatúrgico. O capítulo que se segue apresenta a trajetória e a luta do Grupo
teatral Galpão Folias d‟Arte.

139
CAPÍTULO 4

O TEATRO QUE SE QUER FAZER: GRUPO GALPÃO FOLIAS D’ARTE

4.1 TEATRO: CONTEXTUALIZAÇÃO

O teatro brasileiro se constrói a cada página escrita com textos, espetáculos,


dramaturgos, diretores, atores e atrizes, encenações e novos espaços que renovam todo
um cenário teatral que vem lutando para ampliar sua história. É interessante para a
nossa pesquisa falar, embora que brevemente, sobre a dificuldade inicial de muitos
teóricos para pensar e elaborar a Historiografia do Teatro Brasileiro. Para nós é
importante, tendo em vista que revela também nossa dificuldade em relação a questões
em torno do drama e da cena, bem como em relação à crítica, mesmo que para alguns,
as obras de Plínio Marcos conte com um grande aporte teórico. Desse modo,
começamos falando sobre o atraso101 da história do teatro quando comparada a
historiografia da literatura, conforme Faria (2013)102.
A dramaturgia sempre foi estudada como um suplemento dessa historiografia
literária, sem considerar a arte do espetáculo. Foi a partir de 1904 que Henrique
Marinho escreve O Teatro Brasileiro: Alguns apontamentos para a sua História
considerando a dramaturgia apenas. A situação do teatro ainda se agrava pelo fato de
peças encenadas e escritas no século XIX permanecerem inéditas. Desde então, com
base em Faria (2013), nomes como o de Sílvio Romero e José Veríssimo tentam
escrever as linhas iniciais de uma História do Teatro Brasileiro, visto que tanto “[...]
Henrique Marinho como Múcio da Paixão escreveram histórias do teatro brasileiro sem
levar em conta ou estudar a dramaturgia, ao contrário de Veríssimo, e Romero, que
101
“Por atraso entendo o seguinte: ao longo do século XIX nossa literatura foi objeto de vários estudos
críticos e historiográficos, os primeiros feitos com regularidade no país, nos quais se estabeleceu o cânone
relativo aos gêneros épico e lírico que serviu de base às histórias literárias do século XX. [...] entre muitos
textos críticos, seguramente serviram de guia para as duas primeiras histórias da literatura brasileira
realmente importante: a de Sílvio Romero (1888; 2. ed. 1902) e a de José Veríssimo (1916). Estava
consolidada a tradição a partir da qual seriam escritas as demais histórias da nossa literatura” (FARIA,
2013, p. 15).
102
Embora Magaldi e Farias ainda olhem apenas para os aspectos dramatúrgicos do teatro brasileiro,
especialmente para o eixo Rio de Janeiro – São Paulo, nossa intenção ao citar os teóricos é a de observar,
a partir de suas pesquisas, o contexto de escrita de Plínio Marcos e o do Galpão Folias d‟Arte.
140
escreveram capítulos sobre o teatro brasileiro considerando apenas a dramaturgia”
(FARIA, 2013, p. 16).
Faria (2013) observa que a proposta de construir a Historiografia do Teatro
Brasileiro apresentada por Mendonça deve considerar, pelo menos, três aspectos
básicos: o literário, o cênico e o social. Percebe-se, então, que o texto dramático e a cena
ainda não eram estudados paralelamente, no entanto, uma visão moderna do teatro
começa a se desenhar a partir da História do Teatro Brasileiro, de Carlos Sussekind de
Mendonça, contudo, o teórico não seguiu adiante e lançou apenas um volume, crítica
apontada por Faria (2013, p. 16). Mesmo com as contribuições de Carlos Sussekind,
“Quero crer que sua obra deveria ter servido de modelo para quem viesse a escrever a
próxima história do teatro brasileiro”, revela Faria (2013, p. 17), as obras que se
sucederam permaneceram repetindo os problemas anteriores, uma vez que estavam
preocupados com datas, nomes, e pouca crítica. Portanto, alguns estudos pouco
contribuíram para a formação de uma História do Teatro Brasileiro, visto que não
consideraram como objeto de estudo os aspectos literários e cênicos. Entende-se, assim,
que a evolução do texto dramático implica na evolução da cena, o que torna impossível
separá-los.
Após algumas tentativas, a primeira História do Teatro Brasileiro que apresenta
aspectos dramatúrgicos e cênicos é escrita por José Galante de Sousa em 1960 com o
título O teatro no Brasil. No entanto, como afirma Faria (2013): “Sem fôlego crítico,
Galante sanciona o tempo todo as opiniões que Décio de Almeida Prado havia exposto
em 1956, num capítulo de obra coletiva – A literatura no Brasil -, intitulado „A
evolução da Literatura Dramática‟” (FARIA, 2013, p. 18). Outros teóricos, por
exemplo, Magaldi (2008) em 1962 quando escreve Panorama do Teatro Brasileiro,
desenvolveram estudos na tentativa de construir uma crítica que contribuísse para a
formação dessa história. Atualmente, contamos com a obra coletiva organizada por João
Roberto Faria “[...] a primeira em nosso país escrita com base no espírito universitário
de pesquisa” (FARIA, 2013, p. 20), segundo ele, que tenta dar conta juntamente com a
contribuição de mais de quarenta especialistas para apresentar uma nova dimensão do
teatro brasileiro.
Guinsburg e Patriota (2012) ao escrever Teatro brasileiro: ideias de uma
história revelam que a princípio, a História do Teatro Brasileiro ganhava seus contornos
com os relatos de viagens “[...] e/ou investigadores que visavam registrar ritos e
141
representações, em sua maioria, religiosas” (GUINSBURG; PATRIOTA, 2012, p. 19).
Com o passar do tempo a dramaturgia foi vinculada à literatura e “[...] em meio às
movimentações em prol de práticas nacionalistas, a dramaturgia passou a ser vista como
um ramo da literatura e, com isso, a literatura dramática tornou-se um capítulo da
história da literatura no Brasil” (GUINSBURG; PATRIOTA, 2012, p. 19). A associação
entre literatos, críticos e textos teatrais resultou na propagação do teatro e na inclusão
dos estudos teatrais em programas de graduação e pós-graduação.
Para Guinsburg e Patriota (2012), na medida em que os estudos avançam, novos
objetos de pesquisas surgem (coletivos, atores, diretores, cenografia, performance, entre
outros), formulando diferentes abordagens e concepções da História do Teatro
Brasileiro. Os estudos começaram a considerar não somente os textos, como também os
cadernos produzidos pelos coletivos, as fotografias, o espetáculo, ou seja, o acervo da
obra. De modo que essa atualização da abordagem das obras que nascem para teatro,
desde o texto ao espetáculo em si, nos alerta para o fato de que precisamos entender
uma obra de arte em constante transformação.
Nos capítulos anteriores apresentamos questões referentes ao romance, ao texto
dramatúrgico, ao Folias e a encenação, contudo, a partir de agora nossa intenção no
presente capítulo é expor para além dos aspectos que envolvem o texto, questões
voltadas, especificamente, à cena, à teatralidade, ao figurino, cenário, bem como à
recepção do público e a crítica em torno do espetáculo encenado pelo Galpão. Para
tanto, contamos com os cadernos produzidos pelo Folias, as críticas apresentadas nos
jornais, as análises elaboradas por espectadores em blogs, os vídeos, entrevistas e
estudos que, de algum modo, contribuíram para o desenvolvimento da nossa pesquisa.

4.2 A CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA

É durante a década de 70 no Brasil que grupos teatrais se reúnem com o objetivo


de desenvolver uma militância cultural e artística através de uma compreensão que
pensa o teatro em sua função política e social. “Entre esses grupos, poderiam ser citados
ainda o Folias d‟Arte, de São Paulo, o Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre, O Bando
de Teatro Olodum, de Salvador, e a Companhia Ensaio Aberto, do Rio de Janeiro”

142
(GARCIA, 2013b, p. 304). De acordo com Maia103, Em Verás que tudo é verdade
(2008)104, o Folias se organiza como os grupos dos anos cinquenta, não há dono
tampouco hierarquias. Ainda é apresentado como “um grupo fora do tom estético”, isso
se deve ao reconhecimento de que fazer teatro é também uma luta política, de um modo
ou de outro.
É interessante observar que João Roberto Gomes de Faria em 2010 ministra uma
disciplina com o objetivo de “[...] estudar as relações entre o teatro e a vida política
brasileira num período que vai da segunda metade dos anos 1950105 à primeira década
do século XXI”. Para isso, faz um recorte que aponta como percurso o estudo da “[...]
retomada do teatro político a partir dos anos 1990, com destaque para o trabalho da
Companhia do Latão, do Grupo Folias d‟Arte e do Teatro da Vertigem”. Ainda, em
História do teatro brasileiro (2013, vol. 2), organizado pelo mesmo pesquisador,
referências são feitas ao Galpão no capítulo IV. O teatro contemporâneo (1978...),
subdivido em I. A Dramaturgia dos Anos de 1980/1990, de Silvana Garcia, a teórica
aborda as Parcerias (p. 319) colaborativas no teatro e, para isso, cita o Galpão. Na
segunda subdivisão 2. A Encenação, Sílvia Fernandes menciona o Grupo quando se
refere ao tema O teatro e a cidade (p. 355), mostrando a predominância do urbano no
teatro; bem como no tópico Teatro Crítico (p. 363) discute o processo colaborativo
voltado para formação de um teatro crítico e político, centrado na dramaturgia e na
tradição brechtiana.

103
“Reinaldo Maia foi um dos fundadores do Folias d‟Arte e, além de eventualmente atuar e dirigir
espetáculos do grupo, teve lugar destacado nas tarefas da dramaturgia; tradução, preparação de roteiros–
como em Surabaya, Johnny (2000) – e dramaturgismo. Também autor de diversos livros, Maia escreveu
para o Folias, e para a direção de Marco Antonio Rodrigues, o primeiro espetáculo daquele que seria o
núcleo original do grupo, Verás que Tudo é Mentira (1995), inspirado em Théophile Gauthier (GARCIA,
2013b, p. 320).
104
“Esta obra continua sendo sobre impressões e expressões de um coletivo. Coletivo esse ampliado pelos
nossos espectadores que acompanharam, nesse período de dez anos, a trajetória real da formação de um
espaço público de discussões reflexivas sobre o papel dialético da importância e da desimportância da
Arte na vida de todos os cidadãos. Como lá atrás, esse percurso foi sendo modificado de acordo com as
necessidades solicitadas pelo coletivo ampliado e agora também modificado para um período mais longo.
Afinal não é todo dia que um grupo teatral consegue neste país, ou até mesmo fora dele, completar dez
anos de atividades ininterruptas” (FIGUEIRA, 2008, p. 10).
105
Entre 1950 a 1960, o teatro brasileiro conhece uma instigante imersão política da sociedade que
desejava a transformação social. O teatro moderno chega ao Brasil a partir de grupos amadores como uma
forma de teatro alternativo, cuja preocupação era artística e não comercial. Esse amadorismo exerceu
papel renovador com suas vertentes: i) o movimento carioca (1938-1947); ii) o movimento paulista
(1942-1948) que marca também o surgimento do TBC e a EAD; iii) e o início do movimento
pernambucano, com extensão para todo o Nordeste em (1940) e a incorporação dos modos e meios
teatrais em uso no Sudeste.

143
Durante os anos de 1980, a movimentação dos encenadores começa a fazer a
diferença, nomes como o de Antunes Filho, Gabriel Vilela, Bia Lessa, como também,
Gerald Thomas que “[...] sintetiza um período em que o diretor volta a funcionar como
o eixo irradiador das propostas teatrais, concentrando em torno de si colaboradores que
auxiliam sua execução” (FERNANDES, 2010, p. 3). A dramaturgia deixou de ser
compreendida como uma realização apenas de cunho literário, passando a envolver a
finalização cênica.
Na prática dos encenadores, os espetáculos são desenvolvidos de
ideias originais ou de adaptações de outros materiais literários; porém,
mesmo quando a autoria do material primário pertence ao repertório
da dramaturgia consagrada, são nítidas as marcas autorais do diretor
no texto espetacular. O dramaturgo original passa, assim, a ser apenas
uma das assinaturas do texto cênico (GARCIA, 2013b, p. 312).

Os processos colaborativos surgem durante a década de 1990 a partir da aparição


de dramaturgos-diretores comprometidos com processos de criação coletiva. Os
modelos conhecidos durante a década de 70 são recuperados, pautados em projetos
participativos. Essa prática colaborativa “[...] constitui-se pelo princípio de que o
processo de criação – do projeto artístico ao final – é partilhado por todos, mas sem que
haja troca de papéis ou anulação das especialidades” (GARCIA, 2013b, p. 317). De
modo que o dramaturgo rompe as paredes do escritório, da sala de produção para ficar
junto àqueles que querem produzir arte. Por toda a trajetória que já expomos da carreira
de Plínio Marcos, a partir das palavras que se seguem quando fala sobre o papel do
diretor de teatro, entendemos que ele seria esse dramaturgo corpo a corpo, que mantém
sua obra viva. Em outras palavras:

Um diretor não pode dar nada ao ator, pois não há o que dar. Um
diretor pode instigar um ator a procurar o que precisa dentro de si
mesmo por mais que o ator insista em pedir luz ao diretor, esse não
pode ir além do limite de insentivador. Mesmo que tente o diretor não
conseguira dar. Quanto mais tentar mais diretor e ator vão se
embrutecendo, se redusindo o diretor a um amestrador e o ator a um
animal treinado. Nada que vem de fora ajuda um ator a criar seu
personagem. Esse tem que nascer de dentro do ator. Nutrido de coisas
que estão dentro dele (MARCOS, Manuscritos 3106).

Embora pareça assumir uma posição radical, Plínio revela a liberdade com que
atores, diretores, encenadores podem incumbir-se diante de suas obras, visto que todos
106
Ver anexo 7.3 – Reflexões sobre a Arte Cênica – Manuscritos. Disponível em:
<http://www.pliniomarcos.com/manus.htm>. Acesso em 25 de outubro de 2017.
144
os envolvidos são também criadores inspirados em uma proposta de trabalho em grupo,
não menos complexo, mas que envolve a colaboração e a participação de todos de
maneira igualitária. Portanto, não é para menos que ao falar sobre Plínio Marcos e
Querô: uma reportagem maldita pensamos imediatamente na apropriação feita pelo
Folias d‟Arte, sobretudo, pelo percurso trilhado pelo Grupo desde sua origem até os dias
atuais, principalmente, pelo trabalho conjunto e a produção inovadora a partir de uma
montagem dinâmica.
A escolha desta obra do Plínio coaduna-se com provocação geral
temática do nosso projeto de Fomento intitulado “Êxodos”,
perspectivando as potências do indivíduo diante, dentro e entretanto à
uma sociedade contemporânea de instituições e narrativas
comunitárias e coletivas absolutamente falida. O Plínio Marcos, que
tem dentro do Galpão do Folias uma foto gigante e itinerante, dentro
de uma galeria que inclui Maiakovski, Bertolt Brecht, Garcia Loca,
Che Guevara inspirada com sua postura polêmica e subversiva a
oportunidade de um projeto como esse, através da figura imaginária
do „Querô‟, moleque sem pai, órfão também de mãe criado e cuidado
nos intervalos de um número e outro de um cabaré decadente. O
espetáculo de seu suplício é apresentado „em reportagem maldita‟
como filet mignon da programação do „Cabaré Leite da Mulher
Amada107‟.

É impossível entrar na sede do Galpão sem pensar em Plínio Marcos, visto que
nos deparamos com a enorme fotografia dele ao subir a escada que dá acesso ao bar e ao
escritório, ainda mais quando se conhece a luta e a história do grupo. Conflitos à parte,
Plínio já havia trabalhado com Marco Antonio Rodrigues em outras situações, e,
quando ainda vivo, acompanhou o comecinho do trabalho do Folias:

Plínio acompanhou o trabalho do Folias no começo, até 1999, data da


sua morte. Morava perto do Arena, onde a Funarte estava sediada na
época, e passava lá os dias. Plínio Marcos é importante pela sua
independência, generosidade e exigência, e por se tratar de um artista
excepcional, cuja estética é muito influente e próxima do Folias. A sua
trajectória é um pouco o arquétipo do artista, diz Marco, e tornou-se
uma figura exemplar para muitos dos artistas de São Paulo
(FIGUEIRA, 2008, p. 94).

107
Texto extraído do Panfleto de divulgação do espetáculo: Folias apresenta: Querô, uma reportagem
maldita.
145
A ideia da encenação de Querô era de uma festa em celebração à falta física de
Plínio108. Como forma de oficina, o Galpão elaborou um convite público para os colegas
de palco, muitos se inscreveram para a oficina e como resultado, mais de sessenta
artistas envolvidos, sendo que quarenta selecionados para fazerem parte do espetáculo,
como revela o folheto de divulgação do Grupo:

6 de julho de 2008. tem início nossa


pesquisa.
Dilmas, Berecos, Querôs, Bobo Plin, Vados,
Pacos e Tonhos...
o mundo de Plínio Marcos ganha voz,

como e por que montar “Querô,


uma Reportagem Maldita?
...

o processo criativo vai se instalando


o diretor provoca e nós reagimos, observamos,
estudamos, trocamos, indagamos, duvidamos
um descobre uma coisa aqui, outro acolá
eu pego a idéia do outro, ele transforma a
minha

o Cabaré “Leite da Mulher Amada “ está navegando,


mas não em um mar calmo –

é um fio de navalha.

Neste barco o ator precisa ter uma energia de


Violência, de sexualidade, ou...

O barco afunda.
e a cada dia tudo tem que acontecer de novo,
de verdade, não dá pra representar.
e tem que ter TESÃO
ou tudo fica muito chato
[...] (FOLIAS, 29 de janeiro de 2009).

Nossa ida até o Galpão do Folias, em São Paulo, nos rendeu alguns materiais,
entre eles, os cadernos incluindo fotos e comentários dos trabalhos já realizados pelo
grupo, bem como um DVD do espetáculo. Vale ressaltar que os cadernos produzidos
pelo Folias são divididos em dois semestres. O caderno elaborado no ano em que Querô
estava em cartaz é o Caderno do Folias nº 12 – 1º semestre de 2009, ano que marca

108
Ver: Grupo Folias estreia remontagem de “Querô”, de Plínio Marcos. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2009/01/495800-grupo-folias-estreia-remontagem-de-quero-de-
plinio-marcos.shtml>. Acesso em: 19 de outubro de 2017.
146
também a morte do diretor Reinaldo Maia, por isso, é apresentada uma “Dedicatória à
memória do marido, pai, irmão, padrinho, amigo, mestre, professor, dramaturgo,
filósofo, escritor, orientador109”. O Caderno do Folias n º 13 – 2º semestre de 2009, diz:
“[...] este número carrega em nosso imaginário e, sem dúvida, o momento atual se
mostra um momento de impasses, de crises, de mudanças, de decisões e de escolhas
necessárias110”. Para nossa surpresa, tínhamos em nossas mãos apenas uma das
encenações, ou seja, apenas a encenação de um dos quatro núcleos que se revezavam
durante a temporada em que o espetáculo esteve em cartaz.

[...]
a estrutura vai se desenhando
são quatro elencos, quatro peles diferentes
para a mesma história
quatro vertentes de uma mesma fonte,
quatro possibilidades de espetáculo a partir
de um mesmo texto.

desejos, dúvidas, angústias,


épico, dramático, político, sistêmico

o eu e o outro?
o eu e o coletivo?
eu no coletivo?

a importância da desimportância.

“o teatro só faz sentido quando é uma


tribuna onde se pode discutir até as últimas
consequências os problemas dos homens”

não como julgadores, mas sim jogadores/


observadores/ contestadores
abrimos as portas do Cabaré “Leite da
Mulher Amada” e com ele nossos múltiplos
corpos (FOLIAS, 29 de janeiro de 2009).

Embora já faça parte da cena teatral do Estado de São Paulo com uma
diversidade de montagens há algum tempo (1997-2015), o Folias d‟Arte ainda luta para
abrir brechas no cenário cultural, tendo em vista que fazer teatro no país não é fácil.
Existe um repertório diversificado de trabalhos desenvolvidos pelo grupo, são eles: Enq.
o Gnomo (1990), Um uísque para Rei Saul (1993), Ressuscita-me (1994), Antígone

109
Caderno do Folias, nº 12 – 1º Semestre de 2009, p. 5.
110
Caderno do Folias, nº 13 – 2º Semestre de 2009, p. 5.

147
Tropical (1997), O Assassinato do Anão do Caralho Grande (1997), Verás que Tudo é
Mentira (1995), Cantos Peregrinos (1997), Folias Fellinianas (1998), Surabaya,
Johnny (1999), Happy End (2000), A Maldição do Vale Negro e Pavilhão 5 (2001),
ainda em Babilônia (2001), Otelo (2003), El dia Que Me Quieras (2005), Orestéia
(2007)111. As palavras que se seguem descrevem de maneira singular o espaço do
Galpão:
Num lugar de São Paulo que nem é bom lembrar, um galpão
abandonado por um culto pentecostal, instalou-se [...] certo grupo de
que vos falo. Hoje é um estúdio de paredes negras onde cai chuva por
entre as brechas do telhado mas onde, depois de encher o peito de
coragem, a cada passo dado se resplandece nas noites de espetáculo.
Quando se espreita alguém a martelar tábuas entre escadotes, telas e
baldes de tinta, o Galpão do Folias mais parece área de bastidores ou
o depósito de cenografia do que o palco de um teatro. Mas é aqui
mesmo que se trabalha o corpo e a mente, pondo em cena o
pensamento de um conjunto de pessoas (não só os membros do grupo,
mas também autores de outras épocas e terras), seguindo e inovando
as tradições do teatro Ocidental. Acções físicas e verbais são
reconstituídas como apresentação de factos e representação de
argumentos e, nessas noites, público e artistas lançam-se em busca de
outras verdades. Cada espetáculo é uma aventura por mares ignotos,
plena de erros e contradições, e esses dez anos uma série de episódios
de viagem entre bancos de areia, ínsuas isoladas e arquipélagos
perdidos. Neste maço de páginas relata-se a história do Grupo Folias,
tentando conhecer as práticas artísticas e intelectuais levadas a cabo
em dez anos de vida, lançando o olhar sobre os trabalhos
apresentados, vendo a que se propôs e o que alcançou, e aprendendo a
reconhecer o seu rosto na multidão (FIGUEIRA, 2008, p. 15).

A vida do grupo Galpão Folias d‟Arte tem início antes mesmo da ocupação do
espaço, hoje sede do Grupo, em 1997 no bairro que recebe o nome da padroeira dos
músicos, Santa Cecília. “O Folias enquanto grupo, existe desde o começo da montagem
do espetáculo Folias Fellinianas, em 96, mas as pessoas já vinham trabalhando juntas há
um tempo sem essa qualidade de grupo” (FIGUEIRA, 2008, p. 91). O lugar foi cedido
pela Fundação Conrado Wessel em Maio de 1998, as primeiras experiências pelos que
escolheram fazer parte do Folias já datava o início dos anos 90.
Segundo o texto Verás que tudo é verdade (2008), “[...] o Folias tem um pouco
dessa coisa meio cigana e meio Plínio Marcos” (FIGUEIRA, 2008, p. 93), por funcionar
“numa espécie de anarquismo organizado”. Explica-se que há uma equipe permanente
que forma o corpo foliniano, no entanto, existe uma preocupação por parte desses

111
FIGUEIRA, 2008, p. 16.
148
componentes de não manterem um grupo fechado, visto que “[...] por ele perpassam
uma série de pessoas, inclusive integrantes de outros grupos”. De modo que forma-se
sempre uma grande família impulsionada em continuar uma luta que resiste à
exterminação dos coletivos e que prova a força e a possibilidade de vida longa ao teatro,
preocupado em desenvolver um trabalho de qualidade. Quando questionado sobre as
expectativas do Galpão, Reinaldo Maia responde:

Perspectiva era continuar fazendo um teatro, ter um espaço para fazer


um teatro, que eu nunca gostei muito de chamar de resistência, mas
um teatro, no mínimo que fosse na contramão do pensamento
hegemônico do país, entendeu? Que havia a possibilidade de uma
outra sociedade, que o regime capitalista não é o fim da história, que
no fundo um grupo de teatro é um ensaio de uma sociedade possível,
porque como você decide que você é dono da sua força de trabalho,
assim como dos meios de produção do teu trabalho, isso pode ser um
ensaio de uma sociedade socialista futura, sempre coisas que eu
defendi; e penso que isso a gente se bateu, quer dizer, O Marco,
Renata, Dagoberto... sem ter discutido muito profundamente...até
porque eles eram militantes [...] (FIGUEIRA, 2008, p. 86).

Querem mesmo um espaço para fazer teatro da maneira como acreditam, um


teatro dos contrários se fosse necessário. Definem-se como um coletivo que “[...] lutam
para não ser reduzidos a um grupo político, redução que limita o valor artístico e
cultural do grupo ao de uma milícia, permitindo um olhar snob por parte dos fazedores
de modas a que se segue o consumo limitado e a descartabilidade do produto”
(FIGUEIRA, 2008, p. 33). Fazer parte do Folias é uma decisão que cabe a cada um,
segundo Nani, integrante do Grupo:

Todo o dia liga gente no Galpão perguntando como é que faz para ser
do grupo e a gente sempre responde que não sabe. É porque não existe
um caminho das pedras para isso. Todo o mundo que hoje está no
Folias, não teve um critério, este é do grupo, este não é do grupo.
Porque o grupo não tem dono, então se tivesse dono a gente falaria,
olhe, essa pessoa está querendo ser do grupo, o que você acha? Então
não tem muito isso. Eu acho que tem o envolvimento das pessoas, as
pessoas irem se apropriando daquilo, daquela linguagem, do
pensamento, porque é difícil, a gente sabe que é, mesmo para mim que
estou dentro, ainda pelo próprio discurso (FIGUEIRA, 2008, p. 84).

A auto-crítica permite com que o grupo se avalie e avance “[...] umas das
características principais do trabalho do Folias é a referência crítica, sem reverências, à
própria natureza do trabalho artístico, e isso representa um dos traços da sua

149
modernidade radical” (FIGUEIRA, 2008, p. 27). Preocupam-se em buscar a renovação
da arte atendendo às necessidades da época, por isso, estão em constante luta na
tentativa de superar as expectativas não só da crítica, mas do público e do grupo. As
referências ao trabalho do Grupo enfatizam sempre o fato de introduzir a comunidade
do seu entorno não somente como espectadores de seus espetáculos, mas, se necessário,
atuantes. Conseguiram se erguer em meio a um cenário entre pontos de drogas,
cracolândia e mendigos:

Inseridos nessa zona urbana degradada, entre prédios abandonados e


ocupados por militantes do Movimento dos Sem Teto do Centro, o
grupo passa a desenvolver atividades culturais e teatrais com a
população do entorno. O contato prolongado com a marginalidade e a
exclusão fortalece na equipe o desejo de aprofundar a discussão sobre
os problemas sociais do país e encontrar mecanismos de intervenção
cultural e teatral nesse contexto. Na longa trajetória que alia trabalhos
sociais e cênicos, o Folias define um programa de ação cultural que
visa a transformar o modo de produção e a forma do teatro. A
proposta não determina apenas um repertório teatral, mas uma série de
ações que resultam da mobilização e da reflexão crítica sobre a
realidade brasileira (GARCIA, 2013b, p. 363-364).

Com a montagem de Babilônia em (2001) o grupo e mais cinco companhias


ganham o prêmio “Teatro cidadão” e como premiação recebem a soma de R$ 65 mil
reais. “A cidade, mais especificamente os moradores de rua, são os personagens da peça
Babilônia, [...], o grupo há muito tempo vem trabalhando com os moradores da
vizinhança, como na criação de um coral, atualmente com 30 integrantes” (FIGUEIRA,
2008, p. 154). O grupo é aberto para vivenciar todas as possibilidades que estiverem ao
seu alcance, desde estudar o início da história do teatro até conhecer os dramaturgos e
encenadores mais tradicionais, tais como: Ibsen, Tchekov, Antoine, Stanislavski,
Pirandello e Brecht. A grande questão é o modo como apreciam, operam e reinventam a
partir do pensamento desses grandes nomes, visto que não se interessam em
desenvolver um trabalho “[...] nas convenções já estabelecidas, por puro tédio
intelectual, e por identificação com uma classe de pessoas que também já não encaixa
nos moldes pré-estabelecidos” (FIGUEIRA, 2008, p. 28). Para eles, nesse caso, a “[...]
utopia é a da liberdade, artística e política” (p. 29).
O espetáculo encenado pelo Folias chega ao público e consegue ter boa
receptividade para alguns, para outros, no entanto, o Grupo deixou a desejar e foi alvo
de fortes opiniões. Luiz Fernando Ramos, crítico de teatro da Folha de São Paulo entre

150
2008 e 2013, apresenta uma crítica de título “Encenação inventiva do Folias confirma
contundência e atualidade de „Querô‟”, sustentando a ideia de que o teatro tem por
função mostrar a plateia uma realidade com mais clareza. O crítico afirma que o Grupo
“[...] consegue vitalizar latências numa dramaturgia coroada e jogar luzes sobre uma
problemática bem conhecida112”. De acordo com Ramos, Marco Antônio Rodrigues
cria:
[...] uma massa humana no centro da cena que ora serve de moldura
para a ação dramática, ora como fonte da própria narrativa, na medida
em que do conjunto de figuras amontoadas, habitantes do bordel Leite
da Mulher Amada, onde transcorre o drama, sobressaem tramas
paralelas113.

Para ele, o Folias não só resgata a força do texto de Plínio e a “[...] óbvia
atualidade de suas denúncias”, como também inova o seu fazer teatral enfatizando o
número de atores no palco. Assim sendo, para o crítico, Querô narra sua vida em
flashback ao repórter, este por sua vez é considerado cínico e se torna a voz que traduz a
imagem da imprensa, bem como “a perspectiva do público, com que se acumplicia”,
desse modo:
Em irônica inversão, esse narrador prioritário torna-se o típico coro da
tragédia grega, eco da consciência dos cidadãos, enquanto a massa
coral, quase se desdobra nos personagens, encarna a ação dramática.
Outro aspecto notável da encenação é a fluidez de seus planos
narrativo114.

A presença física da mãe de Querô, reflexo da alucinação do menino, chama a


atenção do crítico. A banda é um elemento indiscutível quando se trata da montagem do
Folias, Ramos entende que os músicos não só colaboram com a narração, como chegam
a ser confundidos com ela passando também a fazer parte do cenário, de todo aquele
contexto. De modo que expõe: “Tais estratégias ampliam a dimensão literária do texto e
consagram o próprio espetáculo como narrativo115”. Pela ideia de compor quatro grupos
que formam o elenco, Ramos não aponta o melhor ator ou atriz para não desconsiderar o
trabalho do coletivo.

112
Ver: Encenação inventiva do Folias confirma contundência e atualidade de “Querô”. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1902200925.htm>. Acesso em 19 de outubro de 2017. As
citações seguintes provêm deste site.
113
Ibidem.
114
Ibidem.
115
Ibidem.
151
Maurício Alcântara, escritor da Revista virtual Bacantes, expõe suas impressões
ao assistir o espetáculo encenado pelo Galpão Folias d‟Arte, de título “Da polifonia e de
ciganos sem dente”. A partir da apresentação de documentos, seja do site oficial de
Plínio Marcos mantido pelos filhos, seja de citações do programa de montagem do
Folias, das falas do diretor Marco Antônio Rodrigues, ou até mesmo de escritos seus
sobre o que já havia assistido, de lembranças sobre as poucas montagens de Plínio, o
colaborador da Bacantes constrói seu ponto de vista em relação ao espetáculo. Paulo V.
Bio Toledo116, também espectador da apropriação elaborada pelo Folias, em resposta
(destacadas em vermelho117) aos argumentos apresentados por Maurício Alcântara
também expõe o texto “Crítica sobre Crítica118”. Os dois textos iniciam com uma fala
sobre o programa de montagem do Grupo que diz:

(…) e o espetáculo que agora estreamos conta com mais de sessenta


artistas envolvidos nele, dos quais quarenta atores. // Nossa ambição
maior era que, um grupo de sete fazedores do Folias compartilhassem
com este grande número de artistas, os procedimentos de trabalho
utilizados por nós na investigação e montagem de um espetáculo.
Tratava-se de um convite de urso – não havia, como não houve,
qualquer tipo de remuneração ou ajuda de custo prevista, já que o
projeto contemplado pela Lei de Fomento tivera uma redução de 35%
dos valores orçados, obrigando-nos a cortar na própria carne em todos
os segmentos do Plano Geral que previa iniciativas como a
investigação de um novo espetáculo, publicações, seminários, edições
de vídeos e a manutenção da própria estrutura física. (…)119.

Embora tenha consciência da proposta inicial do Folias, uma vez que apresenta o
posicionamento do Grupo em relação ao elenco, ao citar as palavras de Marco Antônio
Rodrigues, Alcântara não considera que a extensão do elenco “[...] não é um mérito da
montagem, mas aponta para uma condição difícil do país: o cara não tem o que fazer,
então acaba se vinculando de corpo e alma. Isso por um lado é bacana, porque as coisas
se reorganizam de outra forma que não a econômica120”. Para ele, o elenco numeroso

116
Professor, dramaturgo, diretor teatral e crítico de teatro.
117
“Em homenagem à editora da Revista Bacante e suas edições coloridas e ao fluxo de pensamentos do
Maurício”. Acesso em: 19 de outubro de 2017. Disponível em: <http://www.bacante.org/critica/quero-
uma-reportagem-maldita-2/>.
118
Ver: Crítica sobre crítica. Disponível em: <http://www.bacante.org/critica/quero-uma-reportagem-
maldita-2/>. Acesso em: 19 de outubro de 2017.
119
Ver: Da polifonia e de ciganos sem dente. Disponível em: <http://www.bacante.org/critica/quero-uma-
reportagem-maldita/>. Acesso em 19 de outubro de 2017.
120
Ver: Crítica sobre crítica. Disponível em: <http://www.bacante.org/critica/quero-uma-reportagem-
maldita-2/>. Acesso em: 19 de outubro de 2017.
152
prejudica a cena, uma vez que parece não ter função e provoca dificuldade para quem
assiste, visto que é quase impossível observar o trabalho de cada ator.

Elenco imenso, coro que dá a cara da montagem mas que,


contraditoriamente, soa como um elemento “decorativo” para o texto e
para a encenação – afinal quase toda a narrativa acontece fora deste
coro e independente dele. Pouco pude ver do trabalho dos atores que
compunham a grande massa de gente no centro do palco. Talvez eles
apareçam nas demais apresentações – afinal há quatro elencos
diferentes que se revezam pelas apresentações, mas como só vi uma
apresentação, fica uma estranha sensação de excesso e falta ao mesmo
tempo121.

Paulo Toledo, por sua vez, acrescenta comentários aos textos retirados da mesma
fonte122 dando sequência à opinião já exposta por Alcântara. Para tanto, cita Marco
Antônio Rodrigues afirmando que a proposta do Folias não é assumir “[...] esse papel
originalmente jesuíta do teatro brasileiro, de denúncia, mas sim o de transformar as
grandes angústias em interrogações, matéria-prima para o trabalho [...]”. Para Toledo
essa prática de duplicar, triplicar o ator em cena pode ser “[...] uma revolução nos
métodos de avaliação de Escolas de teatro (!)”, embora questione o objetivo do diretor
do espetáculo por considerar que não foi alcançado. Para nós, desconsiderar o número
de atores e atrizes formando o grande coro é não compreender a proposta coletiva do
Folias, sobretudo porque essa “multidão” sempre presente nos textos de Plínio fica clara
no espetáculo do Galpão sem deixar vazios, ainda mais porque possibilita a eclosão de
toda uma carga simbólica, como revela Marco Antônio Rodrigues, permite transformar
angústias em interrogações.
O fato de Plínio Marcos falar sobre pobre, puta e cafetão, ressaltado pelos dois
espectadores, para Toledo não é chato, pelo contrário, é estético. “A tragédia social hoje
é a ponta de lança da arte e do jornalismo (já apontava o repórter123)”. No entanto, chega
a duvidar “[...] onde a montagem do Folias ultrapassa a denúncia para „transformar as
grandes angústias em interrogações‟”, conforme expõe Marco Antônio Rodrigues. De
modo que revela:
Têm-se alguns elementos épicos, mas que se tornam formais e não
dialéticos. Isto é, aparecem como recursos de encenação, mas não

121
Ibidem.
122
Ver: Grupo Folias estreia remontagem de “Querô”, de Plínio Marcos. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2009/01/495800-grupo-folias-estreia-remontagem-de-quero-de-
plinio-marcos.shtml>. Acesso em: 19 de outubro de 2017.
123
Ibidem.
153
realçam a contradição dos fatos (como ofertava Brecht). Isso se dá,
acredito, pelo alto grau de maniqueísmo no texto, por um lado, e pela
sua própria estrutura dramática, por outro. O Jornalista é onde mais se
tem contradição, como aponta o Maurício, mas ele fica como uma ilha
perdida em meio ao mar dramático da sina do menino Querô.

A presença de elementos épicos no espetáculo é evidente, mas, quanto aos


apontamentos de Toledo, o fato de não expor com detalhes a presença de elementos
formais e não dialéticos é questionável. O Repórter, para nós o rapsodo na obra, chega a
provocar incômodo nos dois espectadores citados anteriormente, visto que representa a
maior contradição por não apresentar uma visão coletiva e distanciada da história.
Embora Maurício Alcântara apresente esse argumento cobrando a isenção por parte da
personagem, ao mesmo tempo, afirma que sabemos que “[...] o papel social da imprensa
não é tão social assim, muito menos isenta de ser contada sob um viés – que pode ser
tão sutil como o ponto de vista do indivíduo que não abre mão de sua vida privada para
mergulhar no universo da matéria que escreve124”. O Galpão sempre deixou claro que
parte de uma visão brechtiana e quer provocar no espectador esse distanciamento,
portanto, o espetáculo mostra também toda essa espetacularização da mídia que se
alimenta de violência, de crimes, como revela Bianca, atriz de Querô em resposta a
crítica. Nesse sentido, para ela, a mídia assume “[...] outra função nessa época, por isso
o repórter tem outro caráter no papel125”.
Os fragmentos para um ensaio escrito por Mariangela Alves de Lima126 revelam
certa sensibilidade em relação ao texto de Plínio, uma vez que, para a crítica, as
personagens plinianas “[...] sofrem não apenas as privações resultantes da pobreza e da
marginalidade [...], mas também feridas psíquicas que poderiam golpear seres humanos
em qualquer estrato social127”. Diante da proposta do Galpão e da maneira inovadora do
grupo, Mariangela afirma:

124
Ver: Da polifonia e de ciganos sem dente. Disponível em: <http://www.bacante.org/critica/quero-uma-
reportagem-maldita/>. Acesso em 19 de outubro de 2017.
125
Ver: Crítica sobre crítica. Disponível em: <http://www.bacante.org/critica/quero-uma-reportagem-
maldita-2>/. Acesso em: 19 de outubro de 2017.
126
Mariângela Alves de Lima Vallim (São Paulo SP 1947). Crítica, ensaísta e pesquisadora. Observadora
minuciosa da vida teatral paulistana desde os anos 1970, Mariângela marca presença na atividade
crítica por meio da profundidade com que analisa espetáculos, balanços de ano ou de lançamentos de
realizações. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa100326/mariangela-alves-de-
lima>. Acesso em: 30 de Mai. 2018. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7.
127
Ver: “Quem ainda não viu não sabe o que está perdendo”. Disponível em:
<http://fragmentosparaumensaio.zip.net/arch2009-03-22_2009-03-28.html#2009_03-28_14_21_44-
117632533-0>. Acesso em: 19 de outubro de 2017.
154
Embora representado por quatro elencos diferentes, fazendo parte de
um experimento educacional, o arcabouço visível da concepção pode
servir a diferentes atores. O fato é que nesta encenação a função
exemplar e o mecanismo analógico, dois instrumentos para aferroar a
inteligência do público, que o grupo Folias D‟Arte maneja com
destreza, subordinam-se a um protagonista desenhado pelo
dramaturgo para incitar o terror e despertar a piedade. Há modos de
produção da infelicidade coletiva que é possível explicar e combater,
mas nada redime o mal feito às crianças e é essa alma russa que o
Folias D‟Arte identifica e respeita ao levar para o palco o pequeno,
feroz e tristíssimo bandido de Plínio Marcos128.

Com base no exposto, como se pode verificar, o público se dividiu, visto que
aponta para dois tipos de reação. Sendo assim, é difícil avaliar o efeito produzido sobre
o espectador. Para nós, o Galpão capta esse “[...] desejo de teatro por se realizar [...]” do
texto de Plínio e estabelece o elo entre texto e representação quando leva ao palco
Querô e as personagens que compõe a sua trágica história. “O que estimula, num texto e
não em outro, a realização teatral? Provavelmente uma linguagem, uma voz da escrita,
suscitando a fala e o gesto” (JOLLY; PLANA, 2012, p. 178). Nesse sentido, o despertar
da encenação fez com que a representação do Galpão se vinculasse a ideia de
teatralidade como resposta aos limites existentes entre obra e processo. É importante
destacar que
[...] hoje parece arriscado dissociar teatralidade de textualidade, já que
muitas vezes a criação conjunta de cena e texto supera a polarização
entre as duas instâncias e contribui para a diluição de fronteiras
rígidas, abrindo espaço a um vasto campo de práticas que subsidia e
informa tanto a produção do texto literário quanto do texto cênico
(FERNANDES, 2010, p. 102).

O repertório atual do teatro contemporâneo envolve dança, artes plásticas,


música. De modo que “[...] a perda de fronteiras entre os diferentes domínios artísticos é
uma constante” (FERNANDES, 2011, p.11). Fruto dessa produção heterogênea, a
discussão sobre a teatralidade e a performatividade tem aumentado, revelando-os,
assim, como instrumentos para se pensar questões em torno da cena 129. Se a teatralidade

128
Ibidem.
129
“Ao mesmo tempo em que os dois conceitos definem campos de estudo específicos, chegam a
confundir-se em determinadas abordagens, dependendo da filiação do ensaísta a uma ou outra tendência
de análise do fenômeno cênico. De qualquer forma, usadas metaforicamente ou como conceito operativo,
de modos divergentes ou até mesmo contraditórios, as noções são recorrentes não apenas na teoria teatral,
mas em disciplinas como a antropologia, a sociologia, a filosofia, a política, a psicanálise e a economia”
(FERNANDES, 2011, p. 11).
155
é pensada como o resultado da subtração do texto130, em Plínio não se pode separar essa
teatralidade da textualidade, uma vez que nascem juntas.
A proposta do Folias de fazer o rodízio de atores, o próprio espaço que o
grupo dispõe, um Galpão localizado em uma área conhecida pela violência, moradores
de rua, fome e miséria gera toda uma carga simbólica e política dos espaços compondo
o quadro a partir de elementos percebidos naquilo que estamos tentando definir como
teatralidade. Como fala o próprio Plínio: “Minhas peças são atuais porque o país não
evoluiu131”, de modo que a preocupação do Grupo com o momento brasileiro, tudo que
está ao redor do Galpão precisa ser levado em conta quando estamos tentando
desenvolver uma leitura em relação à obra pliniana e seu surgimento nos palcos.

A representação, portanto, não é um suplemento ou complemento do


qual, a rigor, poderíamos prescindir; é um fim nos dois sentidos da
palavra: a obra é feita para ser representada, eis sua finalidade; ao
mesmo tempo, a representação denota uma realização, o momento em
que enfim a obra se vê nas condições requeridas para existir
dramaticamente. É de fato a existência mesma da obra teatral que
exige que sua criação seja duplicada por uma recriação (SARRAZAC,
2012, p. 67).

De modo que a teatralidade em Querô se revela a partir dessa montagem


dinâmica, o fio condutor que faz com que o romance como gênero sem fronteiras
experimente esse devir e chegue aos palcos, sendo assim: “O texto não é mais, nessa
perspectiva, senão um produtor de signos entre outros; encenação é „teatro‟, é sobre ela
que repousa a teatralidade” (JOLLY; PLANA, 2012, p. 179). A teatralidade é observada
em Querô a partir de dois vieses, um que se dá pelo real e outro pelo verossímil. O
Galpão chega a explorar a potência visual e auditiva do Cabaré Leite da Mulher Amada
e, além disso, leva para o palco as músicas escritas por Plínio.

130
“A teatralidade permite igualmente pensar o teatro sem o texto: ela seria então, como observa Jean-
Pierre Sarrazac em Gordon Craig, „advento, no âmago da representação, do próprio teatro‟, mas de um
teatro emancipado, „do espetacular que associa o espectador à produção do simulacro cênico e seu
processamento‟. O teatro indica então que leva em conta a percepção do espectador, e que ele é teatro – e
somente teatro -, distinguindo-se da literatura dramática, como das outras artes do espetáculo, no
momento da representação” (JOLLY: PLANA, 2012, p. 179).
131
Panfleto de divulgação do Grupo Teatral Galpão Folias d‟Arte.
156
Figura 01 – A Cantora e a banda do Cabaré Leite da Mulher Amada132
Fonte: DVD do Galpão Folias d‟Arte

Ao assistir ao DVD, especificamente a apresentação do dia 23/04/2009, o que


nos chamou logo atenção foi à presença da banda no palco. A Cantora ganhou forma e
ao mesmo tempo deu voz as canções elaboradas por Plínio. As portas do Leite da
Mulher Amada são abertas, palco para todos os acontecimentos. Diante de nós uma obra
reveladora da “pulsão rapsódica”, que atravessa o texto e recorta-o, sobretudo porque
possibilita ao Grupo expandir as formas de representação até então realizadas por eles,
reinventando uma postura própria frente ao esgotamento de formas já instituídas.
Diríamos ainda mais, visto que a escritura cênica do Grupo é notável a partir da
ressignificação da cena por parte de cada ator, texto e espetáculos tornam-se obras
distintas, sobretudo porque o texto suplementa a cena e ganha potência teatral.
De acordo com Patrice Pavis (2008b) não é tarefa fácil levar um texto para o
palco, visto que para o espectador que está assistindo o espetáculo pode ser tarde para
conhecer o trabalho de preparação realizado pelo encenador. A partir de um estudo
sobre a teoria materialista da encenação, Pavis (2008b) apresenta as contradições com o
objetivo de esclarecer sobre o que “[...] a teoria da encenação não pode, ou não pode
mais, afirmar” (PAVIS, 2008b, p. 23).
Assim, de acordo com Pavis (2008b, p. 24-27) a encenação i) não é apenas a
representação de significados cênicos de um texto escrito, iluminando a diferença
existente entre o verbal e o não-verbal; ii) o ponto de partida não deve ser a comparação
entre a encenação e o texto dramático com o objetivo de exigir a fidelidade entre ambos

132
Todas as imagens são retiradas da apresentação do DVD do dia 23/04/2009 cedido pelo Galpão do
Folias d‟Arte durante nossa visita ao Galpão, em São Paulo.
157
como resultado; visto que, iii) a encenação não destrói o texto dramático, pelo contrário,
texto e encenação acontecem ao mesmo tempo quando colocados em função do público;
iv) as encenações de um mesmo texto dramático em momentos históricos diferentes não
são iguais [...]; v) a encenação não é a representação de pedaços do texto que esperam
ganhar sentido; bem como, vi) não é o reencontro do textual com o cênico, visto que
busca encontrar uma correlação estrutural entre os dois, por fim, vii) não é uma receita.
Desse modo, Pavis (2008b, p. 27) parte da ideia de que a relação entre texto e
representação não corresponde à redução de um para o outro, tendo em vista que para o
teórico há “[...] criação de efeitos de sentido, e contraste entre sistemas semióticos
diferentes [...]”. Assim, compreende-se que texto e cena são percebidos ao mesmo
tempo e no mesmo lugar, visto que a encenação tenta encontrar uma situação de
enunciação que ofereça sentido ao enunciado, porém, além de produtora de sentidos a
encenação é também produtora de sensações, sobretudo porque faz dialogar o que é dito
e o que é mostrado.
Na primeira cena da montagem, música lenta, a Cantora canta A pomba roxa
ardente enquanto o amontoado de personagens emudecidas e espantadas se reúnem
inicialmente para formar o grande coro. Os policiais surgem e parecem saudar o
público, estão no cabaré Leite da Mulher Amada, palco de toda a tragédia. Querô
aparece diante de Nelsão e Sarará, a cena pára e entre esse coro aparece Leda cantando
“Eu quero tanto, tanto ter um precioso bem que seja meu”.
No espetáculo a música parece dar o tom de cada cena, por exemplo, na cena do
conflito entre Querô e os policiais a música soa em um ritmo pesado influenciando
também nossa percepção, enquanto espectador, em relação ao que estamos assistindo.
“Não se trata de examinar a música e sua recepção em si, mas a maneira pela qual é
utilizada pela encenação, colocada a serviço do evento teatral” (PAVIS, 2008b, p. 130).
De algum modo essa música determina a relação de força entre a música e o restante da
encenação.

158
Figura 02 – Primeira Cena
Fonte: DVD do Galpão Folias d‟Arte

No momento em que Querô é abordado pelos policiais, as prostitutas parecem


querer conter o menino até que a arma é apontada por ele na tentativa de ferir Nelsão e
Sarará, todos se desesperam, a banda continua tocando no palco mantendo o ritmo da
cena. O instante do tiro propriamente dito não acontece, quando nos damos conta, o
menino está diante do público deitado no chão.

Figura 03 – Cena do conflito entre Querô e os policiais


Fonte: DVD do Galpão Folias d‟Arte

A Repórter, por se tratar de uma mulher como já deixamos claro em capítulos


anteriores, chega para cobrir o caso, ao mesmo tempo em que fala com as personagens,
narra os acontecimentos ao público transformando aquele instante de angústias em
interrogações. A passagem de cena parece ser feita através da presença do coro de
prostitutas no palco, por exemplo, quando as prostitutas e a Cantora se reúnem no
159
centro do palco, a vida do Cabaré parece continuar, visto que as mulheres continuam
seus trabalhos. A agitação do Leite da Mulher Amada é enfatizada pela música tocada
pela banda até que Querô chega carregado, fica diante da Repórter que sofre ameaças
com uma arma apontada para sua cabeça e é levada a tirar a roupa.

Figura 04– Cena entre Querô e a Repórter


Fonte: DVD do Galpão Folias d‟Arte

É interessante falar sobre o figurino133, de modo geral, sobretudo porque, como


afirma Pavis (2008b, p. 161) “[...] existem concretamente no palco como materiais,
significantes, colocados ali pelos artesãos do espetáculo”. Doravante, nos esclarece
Pavis (2008b) que alguns elementos são mais materiais, tais como figurino, maquiagem,
do que outros, por exemplo, os que não estão vinculados a presença dos atores, como a
voz, espaço-tempo, ritmo, música.

Não é tão fácil dizer onde começa a roupa, e tampouco é simples


distinguir o figurino de conjuntos mais localizados como as máscaras,
as perucas, os postiços, as jóias, os acessórios ou a maquiagem. É uma
operação delicada extrair o figurino do conjunto do ator em seu meio.
O que ganhamos então na precisão das análises das roupas, arriscamos
perdê-lo na avaliação de seu impacto sobre o resto da representação.
Na medida em que o figurino constitui muitas vezes o primeiro
contato, e a primeira impressão, do expectador do ator e sua
personagem, é por ele que poderíamos começar a descrição (PAVIS,
2008b, p. 163).

133
“Em sua gênese, a caracterização (da personagem) abarcaria aspectos de identificação do sujeito, tendo
por princípio a materialização da persona. Durante o período grego é entendida principalmente como
máscara, já que o figurino (quiton, capa e coturno) e outros artifícios (barba, peruca e enchimento no
tórax) são complementos para garantir a verossimilhança. Então, a persona se manifesta na máscara, não
exatamente no corpo-atuante, ocultado pelo figurino” (SILVA, 2010a, p. 47).
160
O figurino revela muito, visto que pode caracterizar o meio social, a época, o
estilo, uma vez que ajuda para que o ator, diretor e encenador encontre a identidade da
personagem. Observamos em Querô que algumas prostitutas se apresentam com peças
íntimas, outras com os seios a mostra, descabeladas, com maquiagem forte revelando
certo exagero134. De acordo com Silva (2010a), a escolha do figurino solidifica as
intenções do processo de construção da cenografia. Assim, o figurino não funciona “[...]
mais como mediador, mas um causador; também, não mais a materialização da
subjetividade de um corpo-outrem. Um figurino-lancinante, a por o corpo-atuante em
estados alterados. Pungente, vivo, intenso” (SILVA, 2010b, p. 2). A imagem retirada do
espetáculo revela essa potência do figurino que está além do invólucro, uma vez que se
une ao corpo das personagens adentrando cada corpo sem negociar.

Figura 05 – O coro das prostitutas do Leite da Mulher Amada


Fonte: DVD do Galpão Folias d‟Arte

Na encenação contemporânea as discussões sobre o figurino ganham força.


Atualmente, se defende a “des-hierarquização” dos elementos que compõem a cena,
visto que quando pensado como paisagem e contraindo as condições do espaço local,
conforme Silva (2006, p. 3), “[...] mantém com o corpo íntima relação e consegue
desestabilizar dois pontos que considero mais estáveis nas cenas postas em espaços
comuns”. No primeiro ponto o objetivo é “[...] deslocar do olhar sobre as informações
que normalmente o acompanham, haja visto sua vida pregressa – a roupa – e a

134
“A maquiagem não é, no entanto, uma extensão do corpo como podem ser a máscara, o figurino ou o
acessório. Não é tampouco uma „técnica do corpo‟, uma „maneira com a qual os homens sabem utilizar
seu corpo‟. É, melhor dizendo, um filtro, uma película, uma fina membrana colada no rosto: nada está
mais perto do corpo do ator, nada melhor para servi-lo ou traí-lo que esse filme tênue” (PAVIS, 2008b, p.
170).
161
dificuldade de se desvencilhar das significações já impostas previamente”. O segundo
ponto tem a intenção de superar “[...] certa estagnação comum à matéria do figurino. É
um truísmo que as transformações sempre ocorrem, em função das relações internas e
externas nos jogos entre os elementos cênicos” (SILVA, 2006, p. 3).
A preocupação com o figurino é uma prática antiga, no entanto, nos dias de hoje
tem-se como pretensão expandir os significantes cênicos quando se pensa em um
figurino, de acordo com Silva (2006), como elemento presente no processo de criação.
Nesse sentido, o figurino das prostitutas não é apenas elemento de leitura do espectador,
o que também pode acontecer, mas, além disso, existe na cena como devir, como
condição da ação. Por exemplo, em Querô tanto o figurino tem a função de vestir, como
também permite uma comparação com o contexto histórico do país e estimula questões,
visto que causa desconforto os trajes apresentados por Querô, os farrapos que envolvem
o corpo de Leda, e até mesmo a nudez nos fazendo refletir a respeito da vida daquela
multidão.
Essa perspectiva da multidão nos permite romper com o sujeito e sua
representação para pensar nos processos que “atravessam esses sujeitos e os produzem”,
com base em Justino (2015). Desse modo, observamos que diversos elementos são
levados em conta quando estamos traçando uma leitura crítica sobre determinada obra.
Na maioria das pesquisas que têm como corpus a obra de Plínio, a violência assume
papel de protagonista. No entanto, aquele que olha para a multidão não se detém a um
único foco, visto que a literatura de multidão caracteriza-se pela multiplicidade.
Nesse sentido, as cenas, as músicas, o figurino e todas as personagens carregam
em si uma carga simbólica potencializando a produção desse homem comum e de suas
particularidades. Assim, nosso interesse é pensar os modos de vida, por exemplo, na
maneira como Leda, mãe de Querô, reúne ferramentas para fugir da ideia de que
prostituta não pode ser mãe, na maneira como Querô, Naná, Pai Bilu de Angola, Gina
de Obá e tantas outras personagens constroem seus lugares comuns e suas estratégias
para resistir.
Em Querô, especificamente na apropriação do Folias, tudo se desenrola em um
único lugar, o espaço cênico é o cabaré. O coro concentra-se sempre no meio do palco,
uma espécie de meia lua, e se amontoa em um tablado destinado a ele de frente para a
plateia. A banda fica no palco, especificamente na lateral esquerda, como se estivesse
diante do público do cabaré. Entre a área direcionada ao coro e o público ficam os
162
outros personagens, muitos deles como Querô e a Repórter passeiam de um canto a
outro, outros se posicionam apenas no centro, na mira do público.
O cenário apresenta poucos elementos, muitas vezes composto apenas pelo
coro, amontoado de pessoas, a banda, por vezes, algumas cadeiras, uma espécie de carro
de mão presente na cena em que Querô está ferido, e em algumas cenas um tablado para
o coro e para Tainha, nesse caso, como uma maneira encontrada para demonstrar a
situação “mais elevada” da personagem em relação à Querô que parece pedir licença
para entrar em seu espaço. Em Plínio observamos que o espaço é cada vez menor, do
cabaré para o quarto. De acordo com Beigui (2010, p. 2) há “[...] um afunilamento do
drama e do teatral tanto no texto quanto na cena. Espécie de concentração, focalização,
busca de uma unidade mínima de representação”. Talvez, a ideia do Grupo em utilizar o
cenário minimalista esteja ligada a proposta de Plínio, o de construir um teatro político e
reflexivo, coadunando-se aos objetivos do Folias.
Esse conceito de mínimo não quer dizer menor, “[...] mas porque móvel diante
dos sentidos que lhes são atribuídos, daí porque talvez, seja mais adequado falar de uma
„diversidade mínima‟ dos sentido(s)” (BEIGUI, 2010, p. 2). No espetáculo do Galpão,
cada elemento contribui para dar sentido ao espaço cênico constituído de uma meia lua
no centro onde se concentra o coro e algumas cenas acontecem, por exemplo, o
encontro de Tainha com Querô. É importante deixar claro que esse minimalismo
constatado em Querô em nada interfere na compreensão do espetáculo, visto que
também gera sentidos.
Não menos importante a iluminação135 no espetáculo do Folias influencia no
figurino, maquiagem, espaço, cenografia e ator. Patrice Pavis (2008b) afirma que: “A
iluminação ocupa um lugar chave na representação, já que ela a faz existir visualmente,
além de relacionar e colorir outros elementos visuais [...] conferindo a ele certa
atmosfera” (PAVIS, 2008b, p. 179). Atendendo aos propósitos do espetáculo, uma
iluminação sombria, própria de ambientes noturnos facilitando a compreensão da
proposta do Grupo, como podemos ver na cena seguinte:

135
Ao abordarmos a iluminação tendo por base o vídeo cedido pelo Galpão, sabemos que alguns
equívocos podem surgir. Nesse sentido, compreendendo que a luz é efêmera, bem como o próprio teatro,
nosso objetivo não é o de esgotar a discussão, por isso, não nos detivemos em aspectos técnicos do
espetáculo.

163
Figura 06 – O fantasma de Leda
Fonte: DVD do Galpão Folias d‟Arte

A cena acima mostra o momento em que Querô está ameaçando a Repórter e


começa a ter alucinações. A presença do fantasma de Leda, vestida aos trapos, com uma
maquiagem lembrando as pinturas que caracterizam as personagens do Butoh (Butô),
aparece na cena como um momento de delírio do menino. A luz no centro do palco, um
pouco mais ao fundo e, logo em seguida, focalizando Leda, contribui para suscitar no
público o efeito da emoção. Estamos diante do drama do nascimento de Querô, diante
daquela que decidiu colocá-lo no mundo e se matar ao tomar querosene, sua mãe. O
aparente diálogo se instaura na cena, pela primeira vez o menino parece sentir a
presença da mãe e a justificativa dela de ter um “precioso bem só seu”.
O coro de prostitutas juntamente com a banda cantam marchinhas de carnaval,
primeiro “Jardineira”, mudando completamente o ritmo da cena. A ideia é voltar ao
momento em que a história do nascimento de Querô é contada. No centro, Leda e as
outras prostitutas se divertem, até aparecer Violeta, ao som de “Maria Sapatão” em
meio a toda uma agitação do coro. A cafetina percebe a agitação da moça e questiona o
fato dela estar grávida. As prostitutas param e a luz foca em uma das Mulheres do coro
que agora canta “Eu quero tanto, tanto ter um precioso bem que seja meu, meu muito
meu, meu amor garantido/ meu amor sentido136”. Querô volta para a cena,
aparentemente uma improvisação do grupo, passeia por entre as prostituas que
continuam paralisadas, ali aprendeu a sobreviver, aquela era a sua casa.

136
Transcrevemos a música conforme a letra cantada no espetáculo, letra também presente no texto
dramatúrgico de Plínio Marcos.
164
A Repórter regressa e questiona sobre a situação dos menores abandonados,
tenta dividir o microfone com Nelsão e Sarará, a cena de conflito entre Querô e os
policiais retorna enquanto o fantasma de Leda circula cambaleante. A personagem
experimenta viver o sofrimento do filho, agora quem parece querer vingá-lo, tendo em
vista que surge na cena provocando sensações de dor nos policiais, aparentemente, sem
que eles a vejam, visto que se trata de um fantasma.

Figura 07 – Conflito entre Nelsão, Sarará e Querô


Fonte: DVD do Galpão Folias d‟Arte

A cena continua com o diálogo entre Querô e os policiais, a pausa acontece, o


menino fica de pé, vai até o meio do palco e encontra Tainha, chefe do bando. Os dois
conversam sobre o crime contra o oficial da Marinha. O fantasma de Leda permanece
observando tudo, por fim, a banda entoa uma música em ritmo “pesado” para fazer
entrar novamente Nelsão e Sarará.

Figura 08 – Encontro entre Querô e Tainha


Fonte: DVD do Galpão Folias d‟Arte
165
Querô confessa o crime sozinho para livrar o amigo. Através da música as
personagens parecem improvisar o momento em que os policiais batem no menino,
aparentemente uma espécie de dança, como uma tourada. A cena do Delegado é
antecipada, o Galpão parece fazer uma crítica social e política, visto que o delegado
naquele momento faz uma ligação para algum deputado avisando o fato de estar diante
daquele que roubou o oficial estrangeiro. Em sequência, voltamos para cena do
nascimento de Querô e toda a briga com a cafetina. É quando Leda abre a bolsa e de lá
retira o querosene, toma e morre. Querô segura à mãe enquanto Ju tenta salvá-la, nesse
momento, surge a Repórter oferecendo o microfone ao menino, este por sua vez narra
trechos das obras sobre o seu nascimento. Sentindo-se culpada e cobrada pelas
prostitutas, Violeta decide criar a criança. A cena de batismo acontece a partir de uma
espécie de prece feita pela cafetina, ao mesmo tempo, o coro de prostitutas canta
“Ilumine-o, Senhor, com vossa luz”.

Figura 09 – Batismo de Querô


Fonte: DVD do Galpão Folias d‟Arte

A Repórter volta para o centro do palco e questiona o público, através da


narrativa sobre a situação do menor abandonado a entrevista continua. Querô delira e
Leda surge entre o coro das prostitutas justificando ao filho a sua decisão. Ju tenta
convencer o menino que para aquele instante o melhor mesmo seria fugir, no entanto,
Querô ainda se depara com os policiais e é fortemente agredido. A luz apaga e Querô
volta a encontrar Tainha, essa cena já comentada por nós revela a performance da
personagem Tainha e a apropriação do texto, visto que em relação ao espetáculo o ator
parece demonstrar maior desenvoltura.

166
Figura 10 – Diálogo entre “Tainha de Jesus” e Querô
Fonte: DVD do Galpão Folias d‟Arte

O espetáculo caminha para o final e os policiais retornam para o cabaré o Leite


da Mulher Amada, enquanto a Cantora canta “A pomba roxa ardente”. Querô já está
baleado, sendo cuidado por Ju e a Repórter, uma espécie de sino de igreja toca para
sinalizar a morte do menino. O coro reunido parece cantar a dor de uma prostituta que
quer ser mãe, ter um precioso bem só seu.

Figura 11- Morte de Querô


Fonte: DVD do Galpão Folias d‟Arte

A apropriação do grupo Galpão Folias d‟Arte consegue captar a força do texto


de Plínio e revisita a obra não como chave de denúncia, tendo em vista que transforma
as angústias de Querô em matéria-prima. A prática apropriativa do Galpão é
consequência da fragmentação, do recorte e da ressignificação da história revisitada, a
partir de um processo mais livre. Nos termos de Beigui (2006, p. 28) a encenação que
resulta do processo apropriativo de outras linguagens “[...], no caso da literatura, ergue-
se sobre a interferência de múltiplas vozes [...]. Nessa ordem, o encaminhamento do
texto literário para o palco configura-se como o resultado de um conjunto de planos
[...]”. Assim, o espetáculo Querô se apossa do texto de Plínio como sendo seu, desse
167
modo, gera uma ruptura com as textualidades pensadas como base a partir de um novo
olhar.
Entendemos que o Grupo percebe na obra o devir rapsódico de que fala Sarrazac
(2002): “Será que a tendência rapsódica que, como vimos, transforma profundamente a
personagem e a língua, não afetará, do mesmo modo, a estrutura geral das peças e não
provocará mestiçagem [...]?” (SARRAZAC, 2002, p. 177). O Folias está em constante
movimento em forma de espetáculo, “[...] criando em grupo, tentando incorporar e
superar os limites impostos pelas outras fontes da imaginação dramatúrgica,
nomeadamente a televisão e o cinema, mas também a música, a dança e até as artes
plásticas” (FIGUEIRA, 2008, p. 18). Nesse caso, o Folias percebe a necessidade de
pensar a peça de Plínio Marcos como processo de ruptura no seu lugar de pertencimento
do teatro contemporâneo a partir da tentativa do Grupo de sair do esgotamento das
formas de representação tanto do texto de Plínio, como das representações até então
realizadas por eles.

168
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O percurso que decidimos seguir parte de um estudo comparativo que tem como
corpus a obra de Plínio Marcos, Querô uma reportagem maldita e três diferentes
leituras dessa obra, o romance, o texto dramatúrgico e o espetáculo do Grupo teatral
Galpão Folias d‟Arte. É importante destacar a atualidade da obra de Plínio Marcos não
somente pela escrita do autor que caracteriza-se esteticamente pela presença do
marginalizado, mas, sobretudo pelo lugar que Querô assume no teatro moderno e
contemporâneo brasileiro.
Assim, a análise-interpretação de Querô seguiu seu curso tendo como ponto de
partida a escolha da crise da personagem como chave de análise para as nossas
discussões, uma vez que identificamos em Querô as mudanças sofridas pelo drama e
consequente alteração na concepção da personagem. Constata-se na obra que a mudança
de identidade, o enfraquecimento, a alteração das características físicas e sociais
sugerem uma redefinição dessa personagem que agora assume traços de alguém sem
caráter e sem qualidades.
Dessa forma, ao escrever sobre personagens advindas da subalternidade,
concluímos que Plínio demonstra sua preocupação ao revelar a potência do pobre, nos
permitindo perceber a “multidão”, nos termos de Justino (2015), que ganha enfoque em
sua obra, justificando a nossa escolha, uma vez que ao olhar para o mosaico de
personagens que compõem a história de Querô, o coro formado pelas mulheres, as
prostitutas, os meninos do reformatório, Pai Bilu de Angola, Lica, Gina de Obá e todas
as outras, observamos os processos que atravessam e produzem esses sujeitos.
Diante dessas questões, depreende-se que o trágico em Querô é percebido a
partir de elementos como a própria ideia de uma “despersonalização da personagem”,
visto que no trágico moderno, ou trágico desvinculado da tragédia, o homem perde
totalmente sua identidade pessoal. O surgimento de uma filosofia do trágico, de acordo
com Sarrazac (2013a), é o resultado do rompimento com o paradigma dramático, e,
portanto, a aparição de um “trágico do quotidiano”.
A partir de uma teoria do “trágico do quotidiano” começamos a observar os
caminhos que levam o dramaturgo a escrever sobre essa “multidão”, o homem comum,
o impersonagem, tornando-se, portanto, um exemplo do que Jean-Pierre Sarrazac
169
(2013a, p. 7) pretende ao revelar que: “A figura trágica se torna uma pura alegoria do
homem comum no caminho da vida”. No “trágico do quotidiano” as questões são
reduzidas e ligadas diretamente aos fragmentos da vida desse sujeito aberto a todas as
virtualidades. Sendo assim, chegamos à conclusão de que o trágico em Querô revela-se
também a partir das denúncias sociais e políticas, na presença do coro de prostitutas, nas
relações conflituosas entre o ser e o mundo, nos temas tratados como tabus pela
sociedade.
Para Sarrazac (2013a), o fluxo migratório que as personagens assumem, visto
atravessarem diversos papeis no interior de uma obra, gera a impossibilidade de se criar
uma personalidade, resultado também dos extravasamentos experimentados pelas novas
dramaturgias ao revelar uma linha tênue entre mimese e degesis e, consequentemente, a
impossibilidade de distinção desses dois modelos de representação do teatro
contemporâneo, por isso, sugere como resposta o impersonagem. Em Querô essa marca
do impessoal revela-se no instante em que as personagens acumulam máscaras, por
exemplo, Leda prostituta e Leda mãe, bem como os saltos que o próprio menino dá de
um papel para o outro, por exemplo, quando precisa fingir que estava interessado no
“gringo” para roubar o relógio, acumulando máscaras para si.
Nesse ínterim, não poderíamos excluir os desdobramentos experimentados pela
obra de Plínio, ou seja, as várias leituras que nos permitiram chegar as teorias sobre
adaptação, conforme Linda Hutcheon (2011), e a reposta para as nossas questões, a
teoria da apropriação com base em Beigui (2006) e Julie Sanders (2015). A ideia de
uma teoria da adaptação, entendida como um roteiro, uma reprodução, ou seja, “uma
derivação não derivativa” nos termos de Hutcheon (2011), foi suficiente para pensar o
diálogo entre o romance e o texto dramatúrgico Querô. A análise-interpretação do ponto
de vista da comparação seguiu seu curso sem cobrar fidelidade entre as obras, assim,
personagens, suas linguagens, categorias de tempo e espaço nos levaram a constatar que
o processo adaptativo já pensado por Plínio Marcos refere-se ao que Linda Hutcheon
(2011) denomina como “adaptação como produto”, uma vez que a obra adaptante, nos
termos da teórica, seria o resultado da adaptação. Portanto, o texto dramatúrgico,
resultaria em uma derivação declarada da obra adaptada, no caso, o romance, aquele que
sofre a adaptação.
No entanto, em posse do espetáculo do Grupo teatral Galpão Folias d‟Arte,
observamos que a obra de Plínio Marcos foi revisitada, ressignificada, fraturada em sua
170
base, assim, mais livre de suas textualidades referentes, surge como procedimento
metodológico intertextual, nos termos de Beigui (2006), como processo apropriativo.
Desse modo, a partir da comparação, a nossa proposta não foi em apenas distinguir os
usos dos termos adaptação e apropriação, visto que nosso maior interesse é
compreendê-los de maneira clara a partir de exemplos.
Assim, ao construir para si um espetáculo totalmente inovador a partir dos
desvios, seja em relação ao texto, seja em relação a performance, concluímos que o
Galpão toma para si o texto de Plínio e a consequência desse “parto” do texto para o
palco envolve “um conjunto de planos: discursivo, emotivo-sensorial, semiótico,
simbólico, pragmático, entre outros” (BEIGUI, 2006, p. 26). Com base no exposto, um
exemplo significativo do que estamos afirmando é a performance de “Tainha de Jesus”,
porquanto o ator se apropriou da personagem pliniana e a reconstruiu dando-lhe um
novo significado, tanto em relação ao romance, quanto ao texto dramatúrgico.
De modo que a parceria conquistada com as discussões de Beigui (2006) e
Sanders (2015) nos permitiram alçar voos maiores, uma vez que encontramos a ponte
entre o “rapsódico” já visualizado entre o texto dramatúrgico Querô e o espetáculo. A
partir de então, a leitura comparativa entre as obras ganhou novo sentido, tendo em vista
que a apropriação se tornou um caminho mais livre para o encontro de respostas
criativas, visto que permitiu pensar a obra Querô como “matriz”, sobretudo por revelar
o “processo de leitura e montagem” de textos diversos e suas leituras específicas.
Essa construção do conceito de trágico do quotidiano e da apropriação ganhou
ainda mais força com a proposta de um teatro rapsódico. A partir de então, nosso olhar
para o fragmento, para o menor na obra, nos levou a identificar a presença do
dramaturgo-rapsodo na voz do Repórter, responsável por efetuar a montagem entre as
vozes de todas as outras personagens, voz polifônica, da multiplicação dos possíveis,
aquela que ecoa em tom de igualdade com as demais personagens. Sarrazac (2011) põe
em dúvida a teoria de uma “crise do drama” conforme pensada por Szondi, sem
desconsiderar a importância de suas pesquisas para os anos de 1950. No entanto, o que
não pode mais, segundo ele, é olhar para as obras dos anos 2000 e pensar que nada
evoluiu, continuar com as mesmas teorias diante de obras contemporâneas. Por isso,
propõe como ruptura do modelo szondiano a mudança de paradigma que parte do drama
absoluto, ou seja, do drama-na-vida, para um drama-da-vida.

171
Em Plínio, constata-se essa mudança de paradigma a partir do instante em que o
diálogo é desconstruído instaurando-se em determinados momentos a voz monológica, a
partir da desconstrução das personagens, do surgimento dessa tragédia universalmente
humana que não corresponde ao momento de existência do herói, visto que não há
protagonista. De modo que “[...] a duração do drama-da-vida é inversamente
proporcional à intensidade da existência do homem comum” (SARRAZAC, 2011, p.
40). Contrário à unidade de tempo, de lugar e ação, o drama-da-vida consegue abarcar
toda uma existência, para isso, serve-se da rememoração dos fatos. Os fatos menores,
como a simples história do nascimento do filho de uma prostituta, reúnem os
acontecimentos que constituem esse drama-da-vida.
Uma série de pequenas catástrofes marca o novo paradigma e não uma grande
reviravolta que vai da passagem da felicidade para a infelicidade, uma vez que se
confundem. Não falamos mais de heróis, visto que a presença do homem comum ganha
destaque, e, ao invés de mito, identificamos o fait divers que poderia em Querô nascer
de uma “[...] ocasião perdida para inaugurar a dita dramaturgia” (SARRAZAC, 2011, p.
57), desse modo, pensada e formulada da seguinte maneira: “Prostituta morre após dar à
luz e tomar querosene”. Desse modo, assistimos ao crime como a abertura de um tempo
vindouro, onde Querô pode de fato expor o que foi a sua não-vida.
Assim, a análise-interpretação de Querô seguiu seu curso a partir de diversas
direções, uma delas foi perceber que Querô não atendia às condições determinantes das
formas dramatúrgicas impostas pelos pressupostos canônicos das teorias dos gêneros,
uma vez que se volta à representação do contemporâneo e para um processo estético,
comum após o século XIX, da mescla dos gêneros (Épico, Lírico e Dramático).
Esse primeiro aspecto nos permitiu perceber que Querô apresenta em sua
constituição a hibridização dos gêneros. No entanto, considerando a pertinência dessas
questões e a necessidade de atualizar as discussões em torno da obra e da dramaturgia,
elegemos para a leitura de Querô os pressupostos daquilo o que Jean-Pierre Sarrazac
denominou de “teatro rapsódico”, encontrando respaldo na apropriação do Grupo teatral
Galpão Folias d‟Arte. Nesse sentido, o espetáculo Querô nos permitiu investigar,
elucidar e, por conseguinte, perceber o surgimento de uma forma dramática mais livre e
aberta que tenta dar conta da existência humana na sua multiplicidade. De modo que a
presença do caráter híbrido em Querô é uma realidade que nos exigiu pensar na
proposta de um novo paradigma, para lembrar Sarrazac, para dar conta das mutações da
172
forma dramática, uma vez que o “rapsódico” consegue abordar as dramaturgias
contemporâneas a partir de suas fragmentações estruturais, para além da estrutura
totalizante como costuma ser caracterizada a forma dramática.
A ideia de pensar em Querô e seus “transbordamentos” ao utilizar o termo
pensando por Sarrazac (2009), parte do pressuposto de que estabelecemos a partir dos
desdobramentos da obra possíveis leituras, uma vez que constatamos que Querô, uma
reportagem maldita nasce da instabilidade, da inquietação, visto que é o resultado dessa
constante mutação identificável também na apropriação do Galpão Folias d‟Arte que
culmina com a proposta do “rapsódico” na obra. A pulsão rapsódica em Querô surge
com a voz do rapsodo em performance, no centro discussão a forma não é excluída por
completo, mas, ganha liberdade, sobretudo porque segue em busca de um equilíbrio
entre texto e prática teatral.
Em suma, assistimos em Querô a pulsão rapsódica extravasar a forma canônica
do drama, o belo animal agora cede lugar a irregularidade, a multiplicidade, aos
possíveis, por isso que para Sarrazac (2002) o rapsódico está no contexto da polifonia.
Os transbordamentos infinitos caracterizam-se na obra pela variedade com que os
pequenos fragmentos acontecem, as leituras e seus possíveis, bem como noções de
tempo e espaço se alteram e a ação é distendida, característica desse drama-da-vida. Em
Querô tudo é desordem.

173
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Elementos para uma poética do drama moderno e contemporâneo. Tradução de Luís
Varela. Editora Licorne, 2011, p. 11-15.

183
ANEXOS

184
Anexo7. 1

Ficha Técnica

Autoria (Premiação) - Plínio Marcos


Direção (Premiação) - Marco Antonio Rodrigues
Direção (assistente) (Premiação) - Bruna Bressani
Cenografia (Premiação) - Atílio Bellini Vaz
Cenografia (assistente) (Premiação) - Mauro Tosta
Figurino (Premiação) - Atílio Bellini Vaz
Figurino (assistente) (Premiação) - Leide de Castro
Iluminação (Premiação) - Tulio Pezzoni
Direção musical (Premiação) - Bruno Perillo
Coreografia (Premiação) - Joana Mattei
Elenco / Personagem (Premiação) - Adriano Merlini; Adriano Motta; Andrea Tedesco;
Bia Toledo; Bianca Sgai Franco; Camila Urbano; Carla Kinzo; Carol Cal; Daniela
Caielli; Danilo Moreno; Débora Raquel; Edson Aranha; Edson Thiago; Fernanda Aloi;
Flávia Tavares; Ieltxu Martinez Ortueta; Jonaya de Castro; Jucelma Araújo; Júlio
Mello; Letícia Monsó; Luiz Xavier; Melany Kern; Paula Flaiban; Pedro Henrique
Carneiro; Pedro Lopes; Pedro Schwarcz; Rafael Tosta; Réggis Silva; Regina Aparecida;
Renata Rosa; Ricardo Corrêa; Ricardo Leite; Rodrigo Scarpelli; Rogério Lima; Tarcila
Albuquerque; Tatiana Freire; Thiago Bugallo; Tulio Pezzoni; Valéria Simeão.
Produção (Premiação) - Folias d'Arte

185
Anexo7. 2

Cronologia do Teatro Adulto – Plínio Marcos

1. Barrela (1958)

2. Os fantoches, 1ª versão (1959)

Chapéu sobre paralelepípedo para alguém chutar, 2ª versão (1965)

Jornada de um imbecil até o entendimento, 3ª versão (1969)

3. Reportagem de um tempo mau (1965)

4. Dois perdidos numa noite suja (1966)

5. Navalha na carne (1967)

6. Quando as máquinas param (1967); a 1ª versão chamava-se Enquanto os navios


atracam (1963)

7. Homens de papel (1968)

8. O abajur lilás (1969)

9. Oração para um pé de chinelo (1969)

10. Balbina de Iansã – musical (1970)

11. Feira livre – opereta (1976)

12. Noel Rosa, O poeta da Vila e seus amores – musical (1977)

13. Jesus-homem (1978); a 1ª versão chamava-se Dia virá (1967)

14. Sob o signo da discoteque (1979)

15. Querô, uma reportagem maldita (1979); adaptação para teatro do romance do
mesmo título, escrito em 1976

16. Madame Blavatsky (1985)

17. Balada de um palhaço (1986)

18. A mancha roxa (1988)

19. A dança final (1993)

186
20. O assassinato do anão do caralho grande (1995); adaptação para teatro da
novela de mesmo título

21. O homem do caminho (1996); monólogo adaptado de um conto do mesmo título,


originalmente intitulado Sempre em frente

22. O bote da loba (1997)

23. Chico Viola – há várias versões anteriores, a ultima versão é de 1977


(inacabada).

187
Anexo 7. 3

Programa do espetáculo

188
Anexo 7.4

Manuscrito

189

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