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Natal-RN
2017
MAURICIO DA SILVA OLIVEIRA JUNIOR
Natal/RN
2017
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA
Deus. Não tenho como não agradecer a esse cara que programou o meu caminho e fez
com que as coisas acontecessem no tempo em que deveriam e da forma adequada, colocando
as pessoas certas no meu caminho e me permitindo ter os fracassos e sucessos na medida exata,
deixando-me chegar onde estou e me encorajando a almejar sempre uma nova conquista.
À minha família, que entendeu quando precisei negar todos os seus convites e, com o
protecionismo familiar que se espera, dizia-me que eu iria chegar lá. Deles, preciso destacar
alguns: meu pai, que, além de me dar o seu nome, me ensinou a sua profissão e, com o que
podia, me apresentou ao mundo da cultura e da arte, incentivando-me a enveredar nesse
caminho (principalmente quando me fez trocar meu vício pela chupeta por um conjunto de tinta
guache) e mostrando que era possível viver de arte. Ensinou-me, também, a responsabilidade e
a organização que, com certeza, ajudaram bastante na conclusão desta pesquisa; minha mãe,
que não está comigo há algumas décadas e me faz sentir ainda mais saudades a cada conquista
minha que não pudemos compartilhar... muito disso é para ela, que nunca conseguirei esquecer;
meus irmãos Shirley e Mateus, que confiam muito em mim. Nunca irei decepcioná-los.
À Andressa, minha esposa, que, há muito tempo, é minha maior incentivadora e
motivadora. Encoraja-me em todas as escolhas que faço e me inspira para ter foco e garra em
todos os meus projetos. Não bastando ser meu tudo, presenteia-me com a maior felicidade de
minha vida, minha filha Alissa, que está quase chegando e, mesmo na barriga da mamãe, já me
incentiva e me faz ter uma energia que eu nem sabia que existia. Sem essas duas nada faz
sentido.
A todos os amigos que me ajudaram a montar o caráter e a essência pelos caminhos da
vida. Cada um de vocês está aqui de uma forma ou de outra. Seria impossível nomear todos
eles, mas alguns se destacaram nessa etapa. Ivana, que me encorajou a conhecer a Linguística
Aplicada e me fez seguir esse caminho acadêmico; Kaline, minha parceira que divide muitos
desafios e conquistas e que me dá força em meus projetos e me incentiva a querer subir cada
vez mais novos degraus, além de garantir que eu não tenha escrito nenhuma bobagem neste
trabalho; Verônica, pelas muitas risadas e pelo apoio “normatizador” e Letícia que, com toda a
sua delicadeza, sempre me incentiva e me faz acreditar que eu sou capaz. Aos parceiros
acadêmicos Rosângela, Fabíola, Margot e Fabiana que, desde o início, acreditaram que eu
conseguiria.
Há um agradecimento muito especial aos meus amigos do “Pequeno Círculo”, Diana e
Arthur, que dividiram comigo cada etapa do mestrado, partilhando conquistas, sufocos e
desesperos. Eu os levarei comigo por toda a vida.
À Penha, que além de orientar muito bem esta pesquisa, foi uma excelente amiga quando,
com toda a paciência e humildade possível, me explicou cada detalhe da Linguística Aplicada,
até então inédita para mim. Cada mensagem, cada e-mail, cada encontro de corredores e,
especialmente, cada encontro de sábado mudou a minha cabeça para melhor, abriu um leque e
me deu lentes que não sei se iriam surgir um dia. Sou muito grato a você.
A Gilvando, pela postura e pelas orientações na banca de qualificação que fizeram com
que esse trabalho ganhasse um novo corpo e que me ajudaram a melhorar como pesquisador.
A Paulo Ramos, pelo esclarecimento do mundo dos “gêneros visuais” em seus trabalhos
e pela prontidão em aceitar o convite para examinar esta dissertação.
O que dizer de um objeto de pesquisa que sempre está disponível, comunica sobre novas
informações, debate ideias e indica caminhos de pesquisa? Ivan Cabral, continue sendo esse ser
humano iluminado e de coração puro. Obrigado por acreditar em meu trabalho e me ajudar no
que precisei.
Sem todos vocês, isso aqui não teria acontecido ou não haveria motivação alguma para
acontecer. Obrigado.
A charge é o verbal reciclado.
Ivan Cabral
RESUMO
The cartoon is a discursive genre that circulates in varied news vehicles and, currently, also
diffused in numerous other means of communication. This discursive genre allows a greater
visibility of the author's opinion, that is, the "talking author" produces the thematic content
carrying it ideologically and axiologically. The production of such concrete utterances
(cartoons) is directed towards a listener / reader who is also historical and is also situated in a
social environment, making this direction responsive to the reader, the situation and the facts.
For this research, we take as theoretical reference the concepts coming from the Circle of
Bakhtin in what concerns to dialogic relations, heterodiscursivity, positioning and dialogic
clashes. To understand the laughter from the cartoon, we support our reflections in Bergson,
Propp and Bakhtin. Given the specificity of the discursive cartoon genre, we sought to anchor
our forays into the work of Ivan Cabral, Ramos, Eisner and McCloud. The corpus of this
research are the cartoons produced by the potiguar cartoonist Ivan Cabral during the
impeachment process of former president Dilma Rousseff, which occurred between December
2, 2015 and May 13, 2016. The research is part of the mestiza, frontier and indisciplinary
Applied Linguistics whose objective is to build intelligibility on discursive practices,
considering, for that, the subjects, the spheres of activity and the historicity of human
interactions. The research analyzes the data constructed from the qualitative-interpretative
perspective and the Ginzburg indicationary method, which turns to the signs, the signs that
denounce meanings and positions. The results allow us to conclude that the charge, as a concrete
statement, elicits responsiveness that allows to give visibility to the dialogic clashes between
subjects situated and positioned, confirming that in the interaction subjects occupy places and
positions from their world view and a set of values.
1 RABISCOS INICIAIS
Há muito tempo, os consumidores de fontes de notícia têm tido contato com um gênero
de informação que foge aos padrões das publicações noticiosas impressas: desenhos que brotam
no meio das brochuras de jornais e revistas quebrando a harmoniosa disposição de textos
diagramados em colunas simétricas. Esse gênero, denominado de charge, tem por natureza a
característica de quebrar a linearidade, de romper com a lógica (seja estrutural ou semântica) e
ao mesmo tempo informar.
Além dos jornais, revistas e demais veículos impressos, a charge invadiu gradativamente
outros meios de comunicação como a televisão, em versões animadas dos desenhos outrora
estáticos, revelando uma crítica que não costumava fazer parte dos telejornais mais assistidos
do país. Há poucos anos, o Jornal Nacional da Rede Globo trazia a charge de Chico Caruso,
determinadas vezes na semana, criticando algum fato de destaque e expondo o posicionamento
do veículo acerca do assunto.
A internet foi outro espaço onde a charge ganhou muita visibilidade, originalmente
servindo de canais de replicação das charges impressas nos jornais e, depois, passando a um
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dos principais canais de veiculação – seja pela facilidade que o meio proporciona, seja pela falta
de espaço na mídia convencional para chargistas talentosos exibirem seus discursos. Até o meio
radiofônico, de certa forma, utiliza a charge: a rádio CBN tem um quadro chamado “A charge
do jornal”, em que um jornalista relata algum fato e expõe a sua crítica, simulando o que uma
charge convencional faz com recursos visuais.
A charge deixou de ter características restritas ao jornalismo, passando a enfocar outras
cenas do cotidiano que também mereciam o tom humorístico da crítica que ela propicia. Sites
específicos produzem ou veiculam charges dos seus respectivos temas – inclusive que fogem
do cotidiano jornalístico. Blogs restritos a temas específicos (videogames, moda,
comportamento, tecnologia etc.) também trabalham com discursos chargísticos voltados aos
seus temas. Isso mostra que o gênero agrada o leitor que provavelmente anseia por uma
parcialidade em um meio no qual a imparcialidade (por mais difícil que seja encontrá-la) é a
regra a ser seguida, além da melhoria de percepção do conteúdo por utilizar bem o recurso
imagem.
Jayme Cortez explica que a ilustração ajuda na compreensão do conteúdo, tornando-o
mais agradável de ser consumido:
Para ser um bom ilustrador, deve-se dominar a técnica do desenho; já para ser um bom
chargista, é necessário dominar mais do que os traços – precisa-se, também, ter a habilidade de
imprimir em seu discurso a crítica sem ferir diretamente o objeto da própria crítica, ou seja,
precisa-se ser sutil em seu enunciado. Foucault (1979, p. 86), falando sobre o poder no discurso
na ideologia, observa que “O sucesso [do poder no discurso] é proporcional à sua habilidade
para esconder seus próprios mecanismos”. Essa inserção velada da crítica do autor é inserida
nos diálogos verbais e, principalmente, nos traços da charge, o que é mais difícil de deixar
registrado. Quanto menos óbvia for a mensagem da charge, mais complexa terá sido a sua
construção. Assim, para elaborar o enunciado de maneira sutil, o chargista deve estar atento aos
conhecimentos do seu ouvinte e, só após isso, voltar à construção do discurso, encaixando-o
nesse repertório alheio e deixando que a informação inserida na charge seja complementada
pelo leitor. É nesse ponto que entra a Linguística Aplicada.
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A Linguística Aplicada, ou LA, investiga o uso da linguagem nas práticas sociais. Para
essa área do conhecimento, a estrutura da língua tem pouca importância quando analisada fora
do palco onde ela se torna viva. Não há como vivenciar a linguagem se não em sua forma
prática: construindo sentido entre a linguagem e o social. Assim, a Linguística Aplicada é a área
de pesquisa na qual se insere esta investigação, uma vez que consideramos a produção de
charges como prática discursiva. Para analisar a charge, utilizamos, principalmente, as
concepções teóricas do Círculo de Bakhtin sobre gênero discursivo, relações dialógicas,
heterodiscursividade e embates dialógicos, assim como reflexões sobre carnavalização
(restringindo-nos no que diz respeito ao riso e ao grotesco); para a abordagem do gênero
discursivo charge, apoiamo-nos, além de Bakhtin (1996, 1997, 1998, 2010, 2013, 2015a, 2015b,
2016), em Volóchinov (2017), Bergson (2001), Propp (1992), Ivan Cabral (2005, 2008, 2016,
2017) e Paulo Ramos (2009, 2011, 2016); os dois últimos autores também colaboram para
contextualizar o potencial dos enunciados ilustrados, junto a McCloud (2005) e Eisner (1989,
2005), dentre outros.
O gênero charge foi estudado nesta investigação por estar presente massivamente nas
grandes mídias e por se tratar de um gênero discursivo que permite que a opinião do autor
(mesmo que indiretamente) seja inserida no enunciado, isto é, a charge possibilita (e até exige)
que haja um posicionamento autoral. Assim, a ideologia do chargista empregada no enunciado
busca um outro enunciador que, para compreendê-lo, responde-o obrigatoriamente – mesmo
que não externe essa resposta. Como se trata de uma prática discursiva situada, historicamente
constituída e que busca a resposta nos seus interlocutores, justifica-se o estudo da charge no
âmbito da LA, considerando-se que construir conhecimento sobre essas práticas em diferentes
esferas da atividade humana é uma das prerrogativas de tal área de investigação.
As charges pesquisadas neste trabalho foram aquelas produzidas pelo chargista potiguar
Ivan Cabral durante o período de 02 de dezembro de 2015 a 13 de maio de 2016, recorte
temporal que compreende o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
A escolha do tema "política" se deu pela quantidade de charges relacionadas a ele, pois,
dos temas criticados nas mídias, o sistema político tem destaque, principalmente, por quase
sempre haver um grupo de oposição e por subsidiar o autor com um repertório de argumentos
para serem defendidos ou rebatidos, além de ser assunto comum à maioria dos ouvintes/leitores.
Lustosa (2008) afirma que charges e colunas satirizando o poder público sempre
existiram, mesmo em épocas nas quais não eram permitidas, mostrando que esse gênero, apesar
de já ser bem conhecido, ainda é uma fonte inesgotável de pesquisa, havendo muitos aspectos
a serem explorados.
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são mais consolidados e nutrem as interações nas esferas mais elaboradas: romances, dramas,
artigos científicos etc. que se constituem interpretando, reconstruindo e agrupando elementos
dos gêneros primários, aqueles que surgem nas comunicações imediatas do cotidiano – a
linguagem que surge na internet, os jargões de fala de grupos sociais (a linguagem militar ou
as gírias dos surfistas, por exemplo) ou até a linguagem coloquial utilizada nos aplicativos de
mensagens instantâneas.
É muito importante saber como um gênero surge e também como ele se mantém ativo,
mas, para a Linguística Aplicada, é ainda mais importante conhecer a sua historicidade do que
a sua gênese. É fundamental para esse estudo conhecer onde o gênero circula, em que círculo
ele vive e em qual esfera ele se constitui, ou seja, como ele se torna ferramenta nas/para as
interações.
Bakhtin (2016) apresenta, também, as características do gênero discursivo: o conteúdo
temático, que é o tema axiologicamente tratado e marcado pela intenção do autor; a construção
composicional, que diz respeito à estrutura do material e à forma do texto; e o estilo, que
concerne às escolhas de linguagem (padrão frasal, uso de abreviaturas, construções
fraseológicas e escolhas lexicais, por exemplo).
Bakhtin (2016, p. 21) conclui que "onde há estilo há gênero", mostrando que, por mais
que alguns desses gêneros não permitam uma maior intervenção estilística, sempre haverá a
presença de traços autorais. O grau de inserção particular na elaboração dos enunciados oscila
de acordo com o gênero pela sua própria natureza. Uma charge exige um posicionamento
autoral, um ofício militar utilizado em quartéis não, ou seja, a intervenção estilística varia de
acordo com o local onde enunciado está inserido, por quem está sendo dito e em que
circunstância social ele está inserido: o estilo vive em enunciados concretos.
Reforçamos que os gêneros nascem das interações sociais e são constituídos de
enunciados que também estão inseridos na prática social. Casado Alves (2016, p. 164),
ancorada em Bakhtin, diz que "o enunciado não é uma abstração linguística: ele nasce, vive e
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'morre' no processo de interação social", ou seja, não há como pensar nos enunciados sem
aplicá-los à vida, e isso é que o faz se tornar concreto e pleno.
Todo enunciado tem algo a dizer, e o cenário embasador de sua gênese e de sua vida é o
círculo social onde ele habita. Assim, por estar inserido em um ambiente "vivo", ele é voltado
a alguém e é, necessariamente, carregado de um posicionamento ideológico1.
Volóchinov traz, em uma conceituação sobre enunciado no livro Marxismo e filosofia da
linguagem, que
Bakhtin explica que, da mesma forma que a oração é a unidade da língua, o enunciado é
a unidade da comunicação discursiva, ou seja, assim como um texto (quando analisado
sintaticamente) é composto por orações, os diálogos (da linguagem aplicada na prática) são
compostos de enunciados, sem esquecermos que esses enunciados devem estar inseridos na
vida social para que haja a dialogicidade.
Isso é reafirmado por Volóchinov quando diz que:
Assim como os enunciados não podem existir se não estiverem associados à situação
social, eles também não podem ser analisados fora dessa perspectiva. Devem ser vistos pelo
pesquisador com atenção ao contexto em que foram elaborados, para quem se dirigem e com
qual finalidade, sem desprezar, também, o círculo social e temporal no qual o interlocutor que
interage com o enunciado está inserido. Volóchinov (2017, p. 216) conclui: "o centro
organizador de qualquer enunciado, de qualquer expressão não está no interior, mas no exterior:
no meio social que circunda o indivíduo".
1
“Ideologia, na teoria do Círculo de Bakhtin, é o nome dado ao universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia,
o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais. [...] Qualquer enunciado é
sempre ideológico – para eles, não existe enunciado não ideológico” (FARACO, 2009, p. 46, grifos do autor).
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Com essas reflexões, vemos que a charge também é um enunciado construído a partir de
experiências sociais intercaladas, carregadas de valores e aplicadas a um contexto real,
tornando-a um exemplo de enunciado concreto, com seus valores e suas ideologias bem
definidas.
Nesta pesquisa, trabalharemos a charge sob essa perspectiva de enunciado pleno e
concreto, valorado e inserido em situações reais do cotidiano social.
Durante os últimos cem anos, o tema da leitura tem sido diretamente vinculado
ao conceito de alfabetização;... aprender a ler… tem significado aprender a ler
palavras… mas… gradualmente a leitura foi se tornando objeto de um exame
mais detalhado. Pesquisas recentes mostram que a leitura de palavras é apenas
um subconjunto de uma atividade humana mais geral, que inclui a
decodificação de símbolos, a integração e a organização de informação… Na
verdade, pode-se pensar na leitura – no sentido mais geral – como uma forma
de atividade de percepção. A leitura de palavras é uma manifestação dessa
atividade; mas existem muitas outras leituras – de figuras, mapas, diagramas,
circuitos, notas musicais...
Assim, gêneros discursivos com grande potencial enunciativo passaram muito tempo
sendo tratados como produtos de função lúdica ou, nos melhores dos casos, para uso auxiliar
de construção de conhecimento, como as ilustrações em manuais de instruções, por exemplo.
Um desses gêneros visuais desprezados por alguns educadores e, consequentemente, por
seus discípulos, é o quadrinho. McCloud (2005, p. 18, grifos do autor) diz que "a expressão
'história em quadrinhos' teve conotações tão negativas que muitos profissionais preferem ser
conhecidos como ilustradores, artistas comerciais ou, na melhor das hipóteses, cartunistas!"
Como um gênero, o quadrinho possui padrões definidos que o caracterizam como tal.
Para McCloud (2005, p. 9), as histórias em quadrinhos são imagens pictóricas e outras
justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma
resposta no espectador; assim, as histórias em quadrinhos exigem um pré-conhecimento para
compreendê-las e dissociá-las de outros gêneros semelhantes.
Ramos (2016, p. 14), estudioso dos quadrinhos e de outros gêneros visuais, explica que
ler quadrinhos é ler sua linguagem, tanto em seu aspecto verbal quanto visual (ou não verbal).
A linguagem dos quadrinhos é híbrida. Por mais que haja inúmeros exemplos de histórias
produzidas apenas com imagens, é bem comum que os desenhos dispostos em quadros
separados por sarjetas tragam balões com texto verbal que complementem a narrativa
(RAMOS, 2016). Assim, com um potencial enunciativo composto por textos e imagens, os
quadrinhos podem ser utilizados de muitas maneiras, desde um produto de entretenimento até
uma base sólida para obtenção de conhecimento.
Alguns teóricos, como Paulo Ramos, Scott McCloud e Will Eisner sugerem que os
quadrinhos possam ser tratados como um "gênero-matriz", que serve como gênese para outros
gêneros visuais.
Ramos (2016, p. 20, grifos do autor) identifica três comportamentos teóricos sobre os
quadrinhos:
20
Barbieri (1998 apud RAMOS, 2016, p. 17-18) defende que as várias formas de linguagem
não estão separadas claramente; na verdade, estão interconectadas. Essa linguagem poderia ser
comparada a um grande ecossistema composto de pequenos ambientes que teriam
características próprias, podendo compartilhar características comuns. Da mesma forma, "os
quadrinhos dialogam com recursos da ilustração, da caricatura, da pintura, da fotografia [etc].
Isso não significa que os comics [sinônimo dos quadrinhos] não constituam um nicho próprio
e autônomo" (RAMOS, 2016, p. 18, grifo do autor). O autor (2016, p. 21) ainda explica que os
cartuns, as charges e as tiras (de modo geral) podem ser inseridos dentro desse hipergênero: os
quadrinhos.
Independentemente da linha teórica seguida, é consensual que os gêneros visuais são
semelhantes e possuem características muito parecidas; em alguns casos, são apenas pequenos
detalhes que os diferenciam. McCloud (2005, p. 21) diz que há uma grande relação entre
quadrinhos e cartuns (dentre outros gêneros), "contudo, não são a mesma coisa!".
Em uma estratificação rápida, podemos distinguir das histórias em quadrinhos alguns
gêneros visuais como o cartum2, as tiras (e as suas subdivisões como tiras cômicas, tiras
sequenciais etc.) e a charge.
O cartum é o desenho com traço simplificado, em que o mais importante é o conteúdo
discursivo em relação ao respeito às anatomias e à representação gráfica real de mundo.
McCloud (2005, p. 30) define o cartum como "forma de amplificação através da
simplificação". Continua (p. 31, grifos do autor): "Cartum não é só um jeito de desenhar, é um
modo de ver. [...] A capacidade que o cartum tem de concentrar nossa atenção numa ideia é
parte importante de seu poder especial, tanto nos quadrinhos quanto no desenho em geral".
Logo, concluímos que o cartum é o tipo de desenho que, além de também estar definido
como um dos estilos dentro das possibilidades do quadrinho, serve como base para a elaboração
de outros dois gêneros: as tiras e a charge.
2
"O texto caricatural denomina-se cartone (em italiano), carton (em francês) e cartoon (em inglês), passando para
o nosso léxico sob a denominação de cartum" (ROBERTO, 2005, p. 73-74).
21
As tiras (ou tirinhas) utilizam o estilo cartunesco para contar histórias fictícias com o
intuito mais próximo ao humorístico do que ao informacional ou opinativo (duas características
bem marcantes do gênero charge), tornando-se mais claras quanto à sua definição.
É comum encontrar as tiras em grandes jornais impressos, alocadas em páginas dedicadas
ao entretenimento, que abordam cultura e que também trazem jogos de passatempo como
cruzadas e caça-palavras. Assim como a charge, a tira pode trazer humor, mas diferencia-se no
tocante à notícia que a charge carrega, como aponta Ramos (2016, p. 16):
Charge e tira cômica, por exemplo, são textos unidos pelo humor, mas
diferentes no tocante às características de produção. Para ficar em apenas uma
distinção: a charge aborda temas do noticiário e trabalha em geral com figuras
reais representadas de forma caricata, como os políticos; a tira mostra
personagens fictícios, em situações igualmente fictícias.
A charge, termo que vem do francês com a mesma grafia, significa "carga de cavalaria",
ou seja, ataque (MARINGONI, 1996 apud ROBERTO, 2005, p. 76). Essa origem etimológica
justifica um dos principais objetivos do gênero charge: ele sempre é crítico, sempre tem um
"alvo" a atingir.
Diferente das charges, os cartuns são atemporais. Geralmente, eles não fazem
referência a nenhuma personalidade ou fato do noticiário. O cartum pode ser
considerado um texto de humor universal. Isso significa dizer que a
compreensão desses textos não apresenta maiores dificuldades como no caso
das charges, que exigem por parte do leitor um conhecimento de época, das
pessoas e dos fatos envolvidos. São comuns os cartuns de náufragos, bêbados,
e pessoas não identificadas (CABRAL, 2008, p. 80).
O elo entre os dois gêneros é tão intenso que, na língua inglesa estadunidense, os termos
utilizados para a charge são political cartoon e editorial cartoon (CABRAL, 2008, p. 77).
O meio de veiculação original das charges foram as páginas impressas de jornais. A
charge foi definitivamente incorporada ao jornalismo por volta de 1830, quando o francês
Charles Philipon fundou o jornal humorístico La Caricature (FONTANA, 2009), famoso
periódico de Paris que tinha como característica principal trazer charges comentando fatos do
cotidiano.
Colocada quase sempre em página nobre do jornal, a charge acaba sendo um tipo de
editorial gráfico. Não obstante tudo isso, estar atrelada a acontecimentos noticiosos pautados
em acontecimentos reais, a charge tem vida efêmera: passado o acontecimento, será difícil
compreendê-la (ROBERTO, 2005, p. 79).
Propp (1992) define o humor como a capacidade de perceber e criar o cômico, elencando
alguns elementos linguísticos para o riso como os trocadilhos, os paradoxos, as tiradas, as
ironias e as paródias. Quando falamos de charges, esse humor precisa se inserir na realidade do
outro para existir. Bergson (2001, p. 6, grifos do autor) explica bem: "a comicidade exige um
eco, uma cumplicidade com outros ridentes, reais ou imaginários. [...] A comicidade nascerá,
ao que parece, quando alguns homens reunidos em grupo dirigirem todos a atenção para um
deles, calando a própria sensibilidade e exercendo apenas a inteligência". Essa inteligência
apresentada por Bergson é utilizada, ainda, como estratégia de atenuação da crítica, tornando-
a mais sutil quando trabalhada com a intenção cômica.
O humor tem como objetivo principal causar o riso, e o humor na charge tem essa
característica: satirizar o cotidiano, rir da notícia. Para existir como charge, o enunciado busca
extrair o riso. Eisner (2005, p. 106) diz que há histórias que, para existirem, podem depender
de uma piada.
Para Alberti (2002 apud RAMOS, 2011, p. 37), o cômico surge por oposição ao trágico.
Ivan Cabral, em sua dissertação de mestrado, explica – utilizando como suporte a teoria
de carnavalização de Bakhtin (1996, 1997) – que
para que o homem realize o riso cômico é necessário que ele neutralize, pelo
menos momentaneamente, qualquer sentimento de compaixão ou piedade
para com o objeto do seu riso. [...] A compreensão mais completa do riso só é
possível se o analisarmos em seu contexto natural: a sociedade (CABRAL,
2008, p. 21).
Isso significa que o riso é deturpador. Ele é uma afirmação de superioridade frente a
alguma fraqueza humana (ALBERTI, 2002 apud RAMOS, 2011, p. 39). A gênese do riso é "a
mistura do prazer com uma das dores da alma, a inveja (manifestada na pessoa que é risível)"
(RAMOS, 2011, p. 37 e 39).
Um dos primeiros estudiosos a teorizar sobre o riso foi Mikhail Bakhtin. O pensador
russo, no livro “Problemas da poética de Dostoiévski”, afirma (1997, p. 106-107) que na
Antiguidade Clássica e durante o Helenismo, surgiram os gêneros do sério-cômico, opostos aos
"gêneros sérios" (como a epopeia, a tragédia, a história, a retórica clássica etc.).
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Esses gêneros classificados sério-cômicos estão relacionados por uma forte ligação com
o folclore carnavalesco, impregnando-se de uma cosmovisão carnavalesca. Ferreira (2013,
p. 63) resume a teoria da carnavalização:
Em síntese, o carnaval de Bakhtin é uma metáfora das trocas de relações entre o "baixo"
e o "alto", o "sagrado" e o "profano", o "belo" e o "grotesco" etc. Essa troca não é um
deslocamento que mantém as fronteiras entre os opostos, e sim uma transgressão dessas
fronteiras, que se misturam sem ordens hierárquicas, gerando formas híbridas de vozes – as
chamadas vozes polifônicas.
Bakhtin analisa o carnaval na Idade Média pelo fato de, nessa época, haver uma divisão
muito forte entre o cômico e o sério, em que o cômico estava associado a um mundo inferior,
principalmente devido à inferiorização do riso pela igreja, como explica neste trecho:
O riso na Idade Média estava relegado para fora de todas as esferas oficiais da
ideologia e de todas as formas oficiais, rigorosas, da vida e do comércio
humano. O riso tinha sido expurgado do culto religioso, do cerimonial feudal
e estatal, da etiqueta social e todos os gêneros da ideologia elevada. O tom
sério exclusivo caracteriza a cultura medieval oficial (BAKHTIN, 1996, p.
63).
26
Quando a igreja permitia o riso, fazia isto como uma exceção, um tipo de "bonificação"
para que os fiéis pudessem viver um pouco fora da penitência constante:
Para Muniz (2013, p. 47), "pode-se rir de diferentes maneiras, fazendo apelo a certos
saberes culturais e sociais, reproduzindo/resistindo/instituindo determinados aspectos
institucionais. Mas o fato é que todos riem, e sempre a partir de um procedimento linguístico e
discursivo".
Cabral (2008) enumera alguns atributos inerentes aos textos de humor, como a ausência
do medo ou piedade; o exagero; o inusitado; a metáfora e a superioridade. Todas essas
características são encontradas na charge, assim como em outros gêneros humorísticos, porém,
uma delas tem presença marcante no gênero: o exagero, representado pela caricatura.
Se uma das maneiras de se buscar o humor está no rebaixamento dos defeitos do risível
(daquilo que se ri), a caricatura é a representação gráfica exagerada destes defeitos ou, em uma
visão menos intensa, das características marcantes do indivíduo ou de suas ações.
Podemos posicionar a caricatura, na composição da cosmovisão carnavalesca
bakhtiniana, como o que ele chamou de realismo grotesco. Segundo Ferreira (2013, p. 62), "o
traço marcante desse realismo é o rebaixamento, a transferência de tudo o que é elevado para o
plano material e corporal; imperfeição, incompletude e inacabamento". Minois conclui:
No realismo grotesco, uma das imagens mais comuns é a do gigante por suas
dimensões exageradas e grosseiras. Com isso, a natureza do grotesco busca
mostrar a dualidade da vida e todo exagero era visto de maneira positiva,
sendo o realismo grotesco uma percepção da origem de todas as realidades –
incluindo-se as mais sublimes –, dos processos biológicos fundamentais
(MINOIS, 2003, p. 158).
É fato que as experiências imagéticas sempre estiveram associadas ao humor, seja, por
exemplo, nas brincadeiras infantis de caretas, buscando atingir o riso, ou seja nas narrativas
textuais que buscam montar a imagem grotesca e exagerada no detalhamento, por escrito, de
características e ações. Assim, a caricatura seria essa objetivação do riso pelo grotesco
representada graficamente. “A arte do caricaturista é captar esse movimento às vezes
imperceptível e, ampliando-o, torná-lo visível para todos os olhos” (BERGSON, 2001, p. 18-
19).
das ferramentas para tal é a caricatura), trazemos uma definição do chargista Chico Caruso
apresentada por Ivan Cabral (2008, p. 86) que define o que dissemos:
Nessa seção, apresentamos parte da teoria da carnavalização, uma das mais importantes
teorias definidas pelo Círculo de Bakhtin e fundamental para análise do humor e da comicidade,
restringindo-a ao que interessava para definição do humor no gênero charge: o riso e o grotesco.
Neste trabalho, não a utilizaremos por completo, pois o objetivo da pesquisa é analisar a
responsividade dos enunciados chargísticos; na sequência, apresentaremos as teorias que
servirão de base para essa análise.
Assim, observa-se que o discurso é, por natureza, interativo. O senso comum tem a ideia
de que o discurso é emitido por uma fonte para quem pouco importa o destinatário. Ao analisar
o discurso falado, a melhor e mais natural representação, é natural que se associe a uma
responsividade nata – quase sempre há um interlocutor a serviço do falante. Porém, ao pensar
em outros tipos de gêneros discursivos que parecem ser vias de mão única (como cartas, e-
mails, telegramas ou outros textos escritos, por exemplo) é difícil enxergar a interatividade do
discurso.
Bakhtin (2016, p. 122) observa que "todo discurso pressupõe um ouvinte, um apelo a
este", ou seja, o discurso, independentemente de gênero (inclusive os que parecem desprezar a
necessidade de um leitor ou aqueles em que o leitor seja passivo), pressupõe a presença de um
outro alguém que o complementa. E conclui (2015a, p. 271):
Assim, o falante (nesse caso, o chargista), desde o início da produção do seu enunciado,
procura direcionar a fala ao seu ouvinte, respeitando o repertório dele. Isso faz com que haja,
desde o início, uma espera pela resposta de quem receberá o discurso. "Desde o início o falante
aguarda a resposta deles, espera uma ativa compreensão responsiva. É como se todo o
enunciado se construísse ao encontro dessa resposta" (BAKHTIN, 2015a, p. 301).
Dessa maneira, o enunciado pertence tanto ao falante quanto ao ouvinte; é uma construção
feita por duas partes, partes essas que são fundamentais para que ele exista como enunciado
concreto.
3
A arquitetônica que Bakhtin apresenta (1998, 2010) está relacionada a um conjunto de relações construídas em
torno dos seres humanos em sociedade que orientam a sua percepção enunciativa/responsiva.
30
[...] a palavra é um ato bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem
ela procede quanto por aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é
justamente o produto das inter-relações do falante com o ouvinte. Toda
palavra serve de expressão ao “um" em relação ao "outro". Na palavra eu dou
forma a mim mesmo do ponto de vista do outro e, por fim, da perspectiva da
minha coletividade. A palavra é uma ponte que liga o eu ao outro. Ela apoia
uma das extremidades em mim e a outra no interlocutor. A palavra é o
território comum entre o falante e o interlocutor (VOLÓCHINOV, 2017, p.
205, grifos do autor).
Não há como criar um enunciado isolado, sem estar inserido em um contexto e sem estar
direcionado a um ouvinte responsivo para compreendê-lo. O exemplo a seguir mostra como a
responsividade é um elemento inerente ao processo interativo.
4
O enunciado ainda não faz parte, diretamente, da análise de dados desta pesquisa. Ele está presente pela
necessidade de ilustrar como a responsividade dos enunciados chargísticos acontece na prática.
31
condizentes com suas práticas políticas, invocando palavras de ordem e ética; no segundo
quadro, vemos o mesmo personagem concluindo a fala anterior com a expressão "Tchau,
querida!"5, utilizada pela oposição como slogan do momento de encerramento do mandato de
Dilma, só que dessa vez em uma viatura policial como preso. A expressão agora estava sendo
utilizada como despedida de sua companheira. A charge estava associada à prisão, por
corrupção, do prefeito de Montes Claros/MG, Ruy Muniz, dias após a votação do impeachment
(BRESCIANI, 2016): sua esposa, a deputada federal Raquel Muniz, foi enfática com a saída de
Dilma, votando pela cassação com a alegação de estar fazendo isso em nome da sua família e
da gestão competente de seu marido na prefeitura da cidade mineira.
Após publicar a charge em sua página pessoal no Facebook, um dos leitores de Ivan
explicou a sua metodologia de leitura da charge.
5
A expressão surgiu após ligação telefônica grampeada do ex-presidente Lula para a então presidente Dilma
Rousseff e, no final, ele se despede dessa maneira. A oposição se aproveitou da fala para utilizá-la como despedida
de Dilma do cargo.
32
Um leitor aponta uma característica da charge afirmando que Ivan havia repetido "o rosto
do homem na imagem"; outro leitor explica o porquê; Ivan, ironicamente, elogia o primeiro
leitor e o instiga a evoluir na análise; o leitor retorna e explica a metodologia que ele utiliza
para analisar charges: "gosto de analisar a charge por inteiro, a fisionomia, as cores usadas, o
tipo de letra, e qual a mensagem quer se transmitir [...]" (sic); surge outro leitor e aponta mais
detalhes da charge.
Como se observa, independentemente da leitura feita pelo receptor estar alinhada ou não
com o objetivo enunciativo proposto pelo chargista, ela é, por natureza, responsiva.
Isso mostra que a charge sempre busca o resgate de seu complemento na responsividade
dos leitores. A voz do chargista atinge esse leitor que não apenas ouve. Mesmo que não externe,
ele refrata essa voz que, sendo externalizada, volta ao enunciador, às vezes de forma pacífica e
às vezes não.
33
As ameaças foram postadas por um perfil criado, provavelmente, apenas para isso, pois,
logo após as publicações, foi excluído. O nome do perfil (desfocado na figura) menosprezava
a população do Rio Grande do Norte e, como se vê, as mensagens atacavam diretamente o
chargista por conta de seu posicionamento político.
Enquanto nas mesmas redes sociais víamos inúmeras manifestações de apoio aos
chargistas europeus vitimados pela falta de liberdade de expressão, também encontramos
posicionamentos de cobrança e ameaçadores, além de inúmeros processos enfrentados por
chargistas mundo afora devido ao desagrado provocado pela crítica das charges. Assim, sem
essa liberdade de o chargista se posicionar livremente, é possível mesmo dizer que "somos
todos Charlie"?
É fato que as charges, assim como qualquer outro enunciado, são responsivas (sejam elas
positivas ou não). Vemos que, nesse gênero, a "refração responsiva" é acentuada ainda mais
por sua característica acidez crítica.
35
Por mais que os periódicos ou sites de internet estejam povoados de charges dos mais
variados temas, a política ainda é tratada no gênero como principal assunto. Um leitor menos
atento às publicações chargísticas pode até dissociar outras charges que não sejam da temática
política como um gênero discursivo distinto, como se a charge, obrigatoriamente, tivesse que
estar pautada nos acontecimentos políticos. Isso acontece pelo fato de a sua origem ser
justamente este assunto, que foi se diversificando com o passar do tempo.
A gênese da charge brasileira também foi política. Segundo o jornalista Gutemberg Cruz
Andrade (2011), a primeira charge brasileira foi publicada no Jornal do Commercio do Rio de
Janeiro (Edição 277) em dezembro de 1837 e teve autoria atribuída a Manoel de Araújo Porto
Alegre. A charge satirizava Justiniano José da Rocha, político da época, em uma crítica às
propinas recebidas por um funcionário do governo relativas ao correio oficial. Observa-se,
assim, que o tema político sempre teve estreita relação com o gênero chargístico.
Muitos chargistas surgiram em meio à produção crítica à política, assim como muitos
folhetins também apareceram sob os holofotes dessa mesma temática. No Brasil, O Pasquim
foi um grande exemplo das publicações nascidas para o debate político, principalmente por ter
aparecido em uma época difícil para os meios de comunicação: a Ditadura Militar brasileira.
Editado entre 26 de junho de 1969 e 11 de novembro de 1991, O Pasquim trouxe grandes
nomes da charge nacional como Henfil, Millôr, Jaguar e Ziraldo, além de muitos outros, como
confirma Ivan Cabral (2008, p. 75):
A política nunca foi um assunto resolvido, isto é, ele jamais foi esgotado plenamente.
Sempre haverá o grupo eleito, que está no poder, e sempre haverá a oposição. De qualquer
forma, independente do posicionamento do chargista, haverá um outro a ser buscado, haverá
alguém para compreender o enunciado e resolvê-lo. Talvez por ter essa plateia sempre a postos
que a temática seja a preferida tanto pelos chargistas quanto pelos leitores.
Ao trabalhar a charge política, o chargista utiliza muitos elementos estratégicos para
conseguir uma responsividade, e um deles é a associação de fatos do cotidiano com o seu
enunciado por meio de recursos gráficos.
Não dá para trabalhar com os personagens de forma genérica, criar falsos nomes ou
representações gráficas neutras na charge política, uma vez que os políticos têm cara e nome.
Os eleitores podem até ser concebidos com traços simples e genéricos: um homem ilustrado
com um capacete e um macacão é normalmente utilizado para representar a classe trabalhadora,
por exemplo. Eisner (2005, p. 21) explica que esse recurso estereotipado é definido como uma
ideia ou um personagem que é padronizado numa forma convencional, sem individualidade,
37
Assim, um político comum pode até ser representado pelo uso do terno e de uma pasta,
mas a técnica da caricatura é fundamental para a representação dos personagens, ancorando-os
com a realidade. Dessa forma, o chargista busca o repertório do outro associando o real à
construção do seu produto.
O político graficamente representado nas charges chega a ter uma assimilação mais fácil
com o leitor até do que o seu próprio nome. Esse uso de imagem é inerente ao cargo e vem a
partir da associação natural deles com suas respectivas imagens. A imagem do personagem
político já é marcada em sua origem, desde as peças publicitárias que estampam rostos nas
campanhas (os famosos "santinhos") até as atitudes de alguns candidatos. Fernando Collor de
Mello (presidente do Brasil entre 1990 e 1992) era então conhecido como "O Caçador de
Marajás", assim, já subsidiava os chargistas com um estereótipo para caricaturá-lo e representá-
lo, buscando a responsividade do leitor. Outros presidentes ajudavam ainda mais por suas
características físicas: o topete de Itamar Franco, a grande boca de Fernando Henrique Cardoso,
a barba e a baixa estatura de Lula e os grandes dentes de Dilma Rousseff eram bem
representados (e evidenciados) nas caricaturas das charges políticas. Até o ex-presidente José
Sarney (2010), em sua coluna no jornal Folha de São Paulo, disse que, ao encontrar o cartunista
Chico Caruso, falou: "Eu ajudo muito os chargistas". Foi indagado: "Em quê?". "Com o meu
bigode, que facilita o trabalho de vocês", respondeu.
A charge sempre manteve um estreito laço com a política e a sua intensidade (seja
produtiva ou discursiva) é diretamente proporcional à situação política do ambiente onde ela
vive e é criada – a época política turbulenta que o Brasil passava durante o período desta
pesquisa também intensificou a produção chargística no país e, obviamente, as charges de Ivan
Cabral.
38
2.4 Brasil, mostra a tua cara: o contexto político do país e o corpus pesquisado
É fato conhecido que o Brasil nunca teve uma estabilidade política, uma situação em que
a maior parte da população estivesse satisfeita com o sistema de governo ou com o grupo
político que estivesse no poder.
Porém, desde o Golpe Militar de 1964, o movimento Diretas Já, entre 1983 e 1984 e os
Cara-pintadas de 1992 não se via um envolvimento político de grande repercussão em território
nacional. A partir de junho de 2013, após um aumento de passagem de ônibus, diversos grupos
em várias cidades do país começaram uma onda de protestos intitulada "Não são só 20
centavos" (MORI, 2013, extraído da internet), referindo-se ao aumento da passagem de ônibus
em R$ 0,20, além de um conjunto de fatos que estava acontecendo no Brasil. A movimentação
ganhou força e, pouco tempo depois, passou a usar a frase de efeito "O gigante acordou" como
lema. A manifestação tomou todo o país e deixou de se tratar de protestos locais sobre a
qualidade de vida brasileira, passando a mirar o governo federal, na época gerido por Dilma
Rousseff, eleita pelo Partido dos Trabalhadores em 2010.
As manifestações passaram de um tom pacífico de protesto para depredação e
vandalismo, promovidos por um grupo "neoanarquista" que se intitulava de Black Blocs, e
começaram a ganhar visibilidade os primeiros movimentos de identificação acirrada entre os
que apoiavam a esquerda e os opositores de direita.
A esquerda assumiu o poder no Brasil após a eleição de 2002 do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, ou apenas Lula, como é mais conhecido. A eleição de Lula trouxe esperança para
a população brasileira que estava descontente com o modo de gestão da direita, até então
dominante nos processos eleitorais. Lula foi reeleito em 2006 e, em 2010, Dilma Rousseff
conquistou o posto de presidente do país, sendo reeleita em 2014. No pleito da reeleição de
Dilma, o país começou a se mostrar mais receoso e dividido entre uma gestão de esquerda ou
de direita, divisão causada, principalmente, pelos muitos casos de corrupção envolvendo o
Partido dos Trabalhadores que vinham acontecendo desde a gestão de Lula.
Os casos de corrupção envolvendo o PT vieram à tona com a divulgação massificante na
mídia da Operação Lava Jato (G1, 2017), deflagrada pela Polícia Federal em 17 de março de
2014 e que, até a conclusão desta pesquisa, estava em curso, na 41ª fase e sem data para ter um
fim.
Em 2012, a disputa encerrou no segundo turno, com 51,64% de votos para Dilma
Rousseff, do PT, representando a esquerda, e 48,36% para Aécio Neves, candidato do PSDB,
partido de direita (UOL, 2014).
39
Logo após o pleito, o país acirrou a divisão político-ideológica, e quem estava descontente
com a gestão de Dilma assumiu a postura de oposição, criticando o governo e protestando pela
sua saída; quem apoiava também ia para as ruas em defesa do mandato.
O embate político não ficou restrito à população, chegando, também, a ser a pauta
principal da política brasileira, que apontava outros casos de corrupção e tentava criar uma
fragilidade no governo eleito. Vários pedidos de impeachment foram encaminhados à Câmara
dos Deputados e, o então Deputado Federal pelo PMDB (partido do vice-presidente Michel
Temer) e líder da Câmara, Eduardo Cunha, aceitou, em 2 de dezembro de 2015, a denúncia de
crime de responsabilidade proferida por Hélio Bicudo (Procurador de Justiça aposentado) e
pelos advogados Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal para cessar a presidência de Dilma
Rousseff. Cunha já aparecia publicamente nos noticiários mantendo uma postura firme e clara
de suas intenções de derrubar o mandato da ex-presidente, utilizando, inclusive, inúmeras
estratégias consideradas antiéticas a fim de conseguir realizar o seu objetivo. Mesmo assim,
parte da população apoiava veementemente o deputado, estampando em redes sociais e em
cartazes nos protestos a frase "Somos todos Cunha".
No dia 7 de dezembro, Michel Temer, que até o momento não havia se manifestado sobre
a possibilidade de impeachment, nem havia comentado nada sobre o acolhimento da denúncia
por Eduardo Cunha, publicou uma carta aberta à presidente Dilma Rousseff. A carta, escrita em
tom pessoal e reforçada com a expressão "Esta é uma carta pessoal. É um desabafo que já
deveria ter feito há muito tempo", posiciona Temer agora como outro opositor, o que
enfraquecia, ainda mais, a possibilidade de Dilma continuar no poder.
O processo de impeachment aconteceu entre 2 de dezembro de 2015 e 12 de maio de
2016. Após ter o mandato cassado, Dilma Rousseff saiu de cena como presidente e Michel
Temer assumiu o cargo.
Após a mudança de gestão, os protestos continuaram. Pela direita, de forma mais branda,
e mais intenso pela esquerda. Os opositores de Dilma, Lula, PT e da esquerda como um todo
apoiaram o processo e criticavam o atual governo discretamente, mesmo se tratando do vice-
presidente eleito junto a Dilma; os apoiadores esquerdistas chamavam o processo de golpe e
pediam eleições diretas. Além das críticas de ambos os lados, havia uma outra demonstração
ideológica: os manifestantes de direita vestiam-se com as cores verde e amarelo (muitas vezes
carregadas nas camisas da seleção brasileira de futebol) e os de esquerda estampavam a
tradicional cor vermelha em suas vestes.
Uma análise sobre os acontecimentos políticos mostra que há muito tempo não se via a
população brasileira tão dividida politicamente e nem se mantinha uma postura tão ativa acerca
40
dos acontecimentos políticos do país. Essa dicotomia gerou dois grupos bem distintos e até a
mídia se posicionava contrária ou favorável aos grupos políticos e suas respectivas ideologias.
Assim, era comum ver posicionamentos firmes nas ruas, nas redes sociais, na mídia e, claro,
nas charges.
Ivam Cabral da Silva nasceu em Areia Branca, município do Litoral Norte do Rio Grande
do Norte, em 16 de julho de 1963. Cristão evangélico, marido, pai de dois filhos e servidor
público: essas são algumas das muitas funções que ele exerce em sua rotina. Mas há um outro
Ivam, o chargista politizado, ético, experiente e talentoso, mais conhecido como Ivan Cabral,
grafado com "n" no fim do primeiro nome em seu discreto "pseudônimo".
Ivan surgiu como chargista naturalmente e começou os trabalhos sem um vínculo oficial,
publicando, inicialmente, na revista Maturi6 no início da década de 1980. Por mais que não
fosse um veículo comercial – tratava-se de uma publicação livre e distribuída gratuitamente –
o desenho já alcançava leitores e estava alinhado ao discurso chargístico, abordando ecologia e
criticando o descaso com o meio ambiente, ou seja, estava associado a um problema do
cotidiano e trazia a opinião do chargista.
6
A Revista Maturi é publicada no Rio Grande do Norte sem periodicidade estabelecida. Foi criada por Aucides
Sales e Enoch Domingos e começou a ser publicada pelo GRUPEHQ (Grupo de Pesquisa de História em
Quadrinho) em 1976. Ivan Cabral começou a ilustrar para a revista em 1984 (MEDEIROS, 2015, p. 39-44).
41
7
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA. Diário de Natal: fim da versão impressa. 2012. Disponível
em: <http://www.abi.org.br/diario-de-natal-fim-da-versao-impressa/>. Acesso em: 4 jul. 2017.
42
Figura 5 – Charge de 1983, Ivan Cabral substituindo Edmar Viana no Diário de Natal.
Fonte: Acervo de Ivan Cabral.
Além de charges, Ivan também produz cartuns, materiais publicitários e animações, assim
como materiais didáticos para várias editoras do país.
O chargista já foi premiado em diversos salões de humor no Brasil, dentre os quais o
Unacon/DF, em 1997, obtendo o 1º lugar; Volta Redonda/RJ, também em 1997, e mais uma
vez em primeiro lugar; Volta Redonda/RJ, 1998, repetindo a primeira colocação, e Natal/RN,
1999, com o 2º lugar. Possui, ainda, diversas menções honrosas em outros eventos de humor.
Ivan é Mestre em Educação pela UFRN, com uma pesquisa sobre a relação entre o humor
gráfico e a formação do leitor, e tem três livros publicados: "Já era Collor" (1991), em parceria
com Cláudio Oliveira, Edmar Viana e Emanoel Amaral; "Humor Diário" (2005) e "Humor
Sustentável" (2016).
A maior parte das publicações de Ivan tem como pauta os acontecimentos políticos,
principalmente por ser uma característica muito forte das charges publicadas em jornais e
também pela situação política conflitante em que o Brasil sempre viveu.
Em seu primeiro livro, Humor Diário, Ivan agradeceu aos políticos brasileiros que, com
os seus modos de trabalhar, proporcionam "abundante matéria-prima para o humor". Conclui:
44
"Que outro país de língua portuguesa teria um dos envolvidos nos escândalos chamado Jacinto
Lamas?8" (CABRAL, 2005, p. 4). Os números mostram que Ivan possui um grande acervo de
enunciados chargísticos e experiência composicional, conquistados ao longo dos anos
produzindo esses discursos, fornecendo muito material para ser pesquisado.
As charges produzidas por Ivan, que eram publicadas exclusivamente nos jornais por
onde ele passou, hoje são veiculadas, principalmente, em sua página pessoal no Facebook e em
seu blog intitulado "Sorriso Pensante", além de replicada em outros sites de abrangência
nacional. Em uma visita a algumas de suas postagens, observa-se que, politicamente, ele se
alinha à esquerda, mas não mostra ser partidário claramente. Pelo fato de o Partido dos
Trabalhadores ser atualmente o grupo político de esquerda com maior força e Ivan notadamente
elaborar as suas charges criticando a direita, o chargista constantemente é rotulado como petista.
Por mais que na construção da charge haja espaço para que o chargista exponha a sua
ideologia, Ivan Cabral também é um profissional da comunicação que defende a imparcialidade
em seu código de ética e precisava justificar-se perante as críticas ao seu posicionamento.
Em 4 de abril de 2016, Ivan fez uma postagem em seu blog na qual dava uma satisfação
aos seus leitores sobre o seu posicionamento político. Intitulada "Eu, Petista?", a publicação
visava justificar a intenção discursiva do autor.
Logo no início da postagem, após o título "Eu, petista?", vem uma frase enfatizando a
dúvida: em letras maiúsculas, o autor destaca em negrito a palavra "PETISTA?!", finalizando-
a com um ponto de exclamação, como se estivesse surpreso com a associação ao partido.
Ivan explica que, para os opositores do PT, qualquer pessoa que não se posicione
contrário ao partido ou que questione o processo de impeachment automaticamente está
associado a ele:
Diante desse quadro, qualquer posicionamento que não seja alinhado com a
expulsão do PT do cenário político é tido como prova cabal que você é um
petista e, por decorrência, a favor da corrupção. E mesmo que você tenha
severas críticas ao PT, se ousar defender a continuidade do mandato legítimo,
mesmo que pífio, da presidente Dilma, suas críticas são sumariamente
desconsideradas ou tratadas como prova de incoerência (CABRAL, 2016,
extraído da página).
8
Jacinto Lamas foi tesoureiro do Partido Liberal (PL), hoje Partido da República (PR), condenado no processo do
Mensalão.
45
golpe, retomando que ser contra o impedimento da presidente não significa ser conivente com
as atitudes do Partido dos Trabalhadores.
Ser contra o impeachment, pelo menos com o que se tem apurado até agora
na Operação Lava-jato, não significa aprovação plena dos governos petistas
(CABRAL, 2016, extraído da internet, grifos nossos).
Na continuação do texto, Ivan aponta a crítica para a mídia e a culpa como uma das
principais responsáveis pelo apoio da população ao impeachment.
Ivan conclui a postagem com uma clara definição sobre o seu posicionamento:
Com essa postagem, Ivan quis mostrar que não estava alinhado ideologicamente ao
Partido dos Trabalhadores, estava posicionado como um defensor da democracia, ao mesmo
tempo em que justificava que o seu posicionamento de esquerda e que ele estava inserido dentro
dos seus enunciados chargísticos.
jornal e replicadas na página eletrônica, agora também eram criadas exclusivamente para a rede
social, deixando o conteúdo mais ácido para tal veículo.
As críticas intensas estavam voltadas a Michel Temer, o novo presidente do Brasil, ao seu
partido, o PMDB, e à perseguição a Lula, Dilma e ao PT. O chargista continuou produzindo no
jornal impresso e, lá, também inseria a sua crítica nas charges, porém, quando desejava ser mais
incisivo, elaborava postagens exclusivas para as redes sociais.
No dia 15 de setembro de 2016, Ivan foi demitido do Novo Jornal e, após dois dias de
silêncio, fez uma postagem revelando a sua demissão com um desabafo:
Nova fase
Sempre gostei de produzir charges, mesmo quando não sabia fazê-las. Graças
ao socorro de grandes artistas e irmãos do traço consegui engatinhar até dar
os primeiros passos e, entre um tombo e outro, andar sem auxílio direto desses
mestres. Entre esses cito o saudoso Edmar Viana e Cláudio Oliveira. Outras
referências da terrinha – Emanoel Amaral, Aucides Sales e o também saudoso
Evaldo – me influenciaram bastante. Por mais de 30 anos – 33 para ser mais
exato – venho produzindo charges na imprensa potiguar; de forma
ininterrupta, desde 1988. Essa atividade sempre teve para mim um caráter
contínuo e prazeroso, mas confesso que nos últimos 5 anos a obrigação de ter
que produzir foi me incomodando. E não podia ser diferente para quem
trabalha com um jornal diário. Minha intenção era sair do jornalismo impresso
e ficar publicando charges no lotezinho que adquiri nos latifúndios da internet.
Nesse projeto "meu blog minha vida" publicaria quando estivesse com
vontade, sem ouvir o tique-taque do cronômetro e sem me preocupar com
editorias e editores. Quem sabe a produtividade até aumente, né? Sempre falei
em palestras que a charge é sintética e o chargista não consegue retratar em
uma única charge todos os ângulos do tema que aborda. Meus planos
profissionais agora incluem, além de manter o blog Sorriso Pensante, publicar
livros, ministrar palestras e oficinas, escrever, desentocar projetos
engavetados, investir mais na produção de cartuns, quadrinhos e desenhar,
desenhar e desenhar.
Vou inclusive evitar trabalhar em jornais impressos já que por onde passo
deixo um rastro de falências! Vai ser pincel frio assim nos Estados Unidos do
Brasil... não é, Serra?"
A justificativa para a demissão dada por Ivan Cabral no desabafo citado acima não liga,
necessariamente, o fato ao conteúdo e ao teor crítico de suas charges. Desde que Ivan deixou o
jornal, o seu cargo não foi ocupado por outro chargista, o que talvez deixe claro que não se
tratou de uma represália devido ao seu posicionamento. Independentemente do motivo de
demissão, esse fato é um marco que finaliza, até então, o Ivan Cabral como chargista de um
jornal impresso, uma vez que, como ele explica no texto, os planos já eram de se aposentar.
Após não estar mais ligado ao jornal, Ivan continuou com a sua produção, sem se
preocupar com prazos de entrega e, muito menos, com posições editoriais. Assim, as críticas se
tornaram diretas e mais intensas.
49
Bakhtin viveu boa parte de sua vida adulta sob um regime totalitário, tendo
sido, inclusive, vítima de perseguição política, o que resultou em prisão, num
exílio de seis anos no Cazaquistão e num ostracismo de trinta anos em cidades
provincianas, já que, como antigo prisioneiro político, era alcançado pela
proibição do regime stalinista de fixar residência e trabalhar em grandes
centros urbanos.
Os textos de Bakhtin (e do Círculo) foram esquecidos por quase três décadas enquanto o
teórico estava sob punição, e só vieram a ser redescobertos em 1960 por três estudantes de
Moscou (Vadim Kójinov, Serguei Botcharov e Gueórgui Gátchev), que os trouxeram à luz do
conhecimento público (GRILLO; AMÉRICO, 2013, p. 117), adquirindo o direito de reproduzi-
los e dar continuidade à disseminação do conhecimento elaborado pelo Círculo.
Essa descoberta de Bakhtin aconteceu tardiamente para os padrões dos estudos da
linguagem que existem há décadas. Bakhtin foi recolocado nos holofotes do conhecimento
linguístico por volta de 1960, quando a sua obra sobre Dostoiévski foi revista e republicada sob
o título “Problemas da poética de Dostoiévski” (1963) e seguida da publicação “A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais” (1965), além de
uma coletânea de ensaios: “Questões de literatura e estética” (GRILLO; AMÉRICO, 2013, p.
117).
Muitos cursos de Linguística Aplicada vêm formando linhas de pesquisa alinhadas à
análise dialógica do discurso e também utilizando as concepções do Círculo de Bakhtin. É
necessário, além de enriquecedor, ter um embasamento teórico de outros autores e de outras
linhas de pesquisa, mas, em geral, as concepções bakhtinianas orientarão toda esta análise.
As concepções do Círculo que compõem esta pesquisa são, essencialmente, as relações
dialógicas – nas quais se inserem as questões de alteridade e de contrapalavra, além da
conceituação de vozes sociais – e o uso da palavra do outro e a sua importância na construção
do repertório do autor/falante, considerando, para tanto, a visão de heterodiscursividade, no
que diz respeito ao gerenciamento e ao processo construtivo das vozes sociais e as forças que
as constituem, assim como a forma em que elas se apresentam no discurso.
A carnavalização, como já dissemos, foi trabalhada em pontos específicos (o riso e o
grotesco) apenas para a definição do gênero charge. Essa concepção não se encontra no corpo
deste capítulo por não ser necessária, diretamente, para o objetivo de análise desta pesquisa.
51
Para caracterizar, então, aquilo que é uma das pedras angulares das teorizações
do Círculo, isto é, a dinâmica inerente ao universo da criação ideológica, o
jogo de forças que torna esse universo vivo e móvel, o Círculo de Bakhtin
adotou a metáfora do diálogo (FARACO, 2009, p. 58, grifos nossos).
Antes de continuar, é interessante apontar que o diálogo tratado pelo Círculo vai além da
noção geral de diálogo que se tem presente em narrativas escritas, que representam as falas de
personagens, e tampouco tem a conotação de diálogo como "solução de conflitos". Pelo
contrário: o diálogo bakhtiniano pode resultar tanto na convergência, no acordo, na adesão,
quanto na divergência, no desacordo e no embate (FARACO, 2009, p. 68).
A corrente teórica não trabalha com o diálogo como componente narrativo, mas sim se
preocupa com as interações que acontecem nele, que é o que Bakhtin aponta em um manuscrito
inacabado intitulado “O problema do texto”, em que caracteriza as relações dialógicas como
relações de sentido que se estabelecem entre enunciados (BAKHTIN, 2015a apud FARACO,
2009, p. 65).
A linguagem já é constitutivamente dialógica. Qualquer falante que a utilize o está
fazendo baseado em experiências já vividas, pois nenhum discurso é adâmico. O falante sempre
construirá o discurso no outro, assim como estará produzindo qualquer enunciado objetivando
esse outro.
Mesmo antes de experimentar a dialogicidade por meio de gêneros e de diferentes práticas
discursivas, o homem procura aprender a viver no mundo por meio de interações com o outro.
Uma criança que ainda não tenha domínio da língua, por exemplo, sabe que precisa do outro
para sobreviver e alcança-o, dialogicamente, com o que aprendeu nas poucas experiências já
vividas, e esse é o meio natural para que se aprenda a utilizar as interações convencionadas:
52
Mesmo em gêneros em que se espera que não haja muita responsividade, ainda há uma
conflituosa relação com um "outro", mesmo que "mais discreto", pois, como afirma Bakhtin
(2016, p. 129), "o direcionamento da palavra para o objeto sempre se complica com a presença
de palavras do outro sobre o mesmo objeto", havendo sempre uma influência do ouvinte no
discurso. Não há como elaborar um enunciado sem que este almeje um outro, embora
desconhecido ou até aparentemente inexistente.
As relações dialógicas são uma relação entre dois sujeitos posicionados no mundo; dois
centros de valor que são compostos de enunciados e cada enunciado “[...] responde a um
enunciado anterior ou a uma realidade concreta, como também projeta novos enunciados que
serão responsivos a ele, numa cadeia discursiva em que ele será um elo” (CASADO ALVES,
2016, p. 167).
Esses centros de valor fazem com que existam relações dialógicas, pois não há como
haver o diálogo sem a inserção dos enunciados em um contexto social concreto e valorado.
Faraco (2009, p. 66, grifo do autor) reforça isso quando diz:
Para haver relações dialógicas, é preciso que qualquer material linguístico (ou
de qualquer outra materialidade semiótica) tenha entrado na esfera do
discurso, tenha sido transformado num enunciado, tenha fixado a posição de
um sujeito social. Só assim é possível responder (em sentido amplo e não
apenas empírico do termo), isto é, fazer réplicas ao dito, confrontar posições,
dar acolhida fervorosa à palavra do outro, confirmá-la ou rejeitá-la, buscar-lhe
um sentido profundo, ampliá-la.
Esse entrecruzamento de vozes é trabalhado pelo Círculo como a contrapalavra, que está
diretamente associada à alteridade. A contrapalavra trata da visão de que quando falamos ou
ouvimos estamos trabalhando com enunciados relacionados (ou recebidos) do nosso
interlocutor, colocando a posição de falar e ouvir no mesmo patamar, isto é, enquanto falamos
também ouvimos. Nossas palavras são respostas, contrapalavras à palavra do outro; só assim
conseguimos construir a compreensão, por meio da interação.
Bakhtin, em um jogo de palavras muito bem elaborado em “Para uma refeitura do livro
sobre Dostoiévski” resume esse pensamento: "Eu não posso me arranjar sem um outro, eu não
9
Bakhtin utiliza muitos termos de outras áreas do conhecimento para explicar as teorias da linguagem, como a
polifonia, termo advindo do vocabulário da música (FARACO, 2009, p. 77), assim como as terminologias
emprestadas da Física, como a reflexão, a refração e as forças centrípetas e centrífugas da linguagem que
apresentaremos adiante.
54
posso me tornar eu mesmo sem um outro; eu tenho de me encontrar num outro para encontrar
um outro em mim" (BAKHTIN, 1997 apud FARACO, 2009, p. 76).
Vemos, assim, que as relações dialógicas constituem o sujeito falante em suas
experiências sociais ao mesmo tempo que é dessas experiências sociais que as relações
dialógicas emanam, formando um círculo dialógico. Isso nos leva à conclusão de que, inseridos
em um meio vivo e interativo como na sociedade real, as relações dialógicas e,
consequentemente, seus sujeitos, suas vozes e seus enunciados são fundamentais para que a
linguagem exista.
Concluímos que o diálogo é composto de enunciados que carregam vozes que se
complementam. A análise dessas vozes que constituem o falante e direcionam a sua produção
enunciativa é um assunto a ser tratado por uma outra teoria advinda das relações dialógicas: a
heterodiscursividade.
10
Paulo Bezerra, tradutor do livro de Bakhtin "Teoria do Romance I: a estilística" (2015b, p. 29), explica o termo
"heterodiscurso" como sua tradução para a palavra russa raznorétchie, que já havia sido traduzida no Brasil como
"plurilinguismo" e "heteroglossia".
11
Segundo Casado Alves (2016, p. 168), complementando o que já apresentamos, "voz é uma concepção que se
refere à consciência falante presente nos enunciados, pois estes sempre se constroem a partir de um ponto de vista".
55
Na charge, esse modo de construção em que o autor chargista menciona a voz alheia para
compor o seu enunciado e construir sentido é muito comum. Bakhtin chama esse tipo de
fenômeno de construção híbrida, que é uma mistura de diferentes enunciados, de estilos
distintos e de linguagens diversas na construção de um único enunciado.
Ainda segundo a mesma teoria bakhtiniana, no romance humorístico (no qual incluímos
novamente a charge pela mesma natureza da construção que esse tipo de romance),
12
“Esta “língua comum" é a linguagem falada e escrita em um determinado círculo” (BAKHTIN, 2015b, p. 80).
57
Como já apresentamos, todo enunciado é complementado por uma resposta, o que faz
com que toda relação enunciativa seja, naturalmente, uma relação dialógica composta por
diferentes vozes, porém essas vozes nem sempre estão alinhadas em um mesmo tom ideológico,
o que faz com que nem sempre essa relação dialógica seja pacífica. Bakhtin (1997) classificou
as relações entre as vozes presentes no diálogo em grupos, e destacamos o que o autor nomeou
como polêmica aberta e polêmica velada.
Os dois tipos de polêmica apresentam embate ideológico, o conflito entre as ideias dentro
do discurso. A diferença entre elas está na forma como aparecem. A polêmica aberta é mais
clara e expõe abertamente o posicionamento do falante, atacando diretamente o outro lado. Na
polêmica velada, ainda há a voz refutadora, porém, ela aparece de forma indireta, encobrindo o
real desejo do falante mas, mesmo assim, carregando o seu real objetivo: o de também criticar.
59
Na charge, um dos recursos utilizados pelo autor para polemizar é a ironia e, nela, o
chargista invoca um questionamento velado, uma inversão na relação entre o dito e o
intencionado (CABRAL, 2008, p. 35). A polêmica aberta também pode aparecer neste tipo de
gênero discursivo, porém é algo mais difícil de ser encontrado, pois é na sutileza da construção
enunciativa que está a maior parte do potencial chargístico.
Bakhtin (2016, p. 148, grifos do autor) auxilia nessa compreensão quando explica que:
Como afirma Bakhtin, a presença das polêmicas abertas ou veladas aparece durante a
construção do enunciado pelo autor, pois ele sempre leva em conta a resposta subsequente,
assim como também está presente na resposta de seus leitores/ouvintes.
A identificação das vozes nas respostas dos enunciados chargísticos produzidos por Ivan
Cabral, durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, será um dos nossos pontos de
apoio para a análise da responsividade das charges publicadas.
60
Uma área de produção de conhecimento como a Linguística Aplicada, que trabalha com
um universo composto por seres pensantes inseridos em contextos sociais e históricos diversos,
exige um método de pesquisa diferente dos tradicionais métodos de investigação utilizados nas
pesquisas de Ciências Naturais e Exatas.
As tradicionais pesquisas quantitativas positivistas, quando utilizadas para analisar o
conhecimento nas Ciências Sociais, podem deixar passar itens que, se analisados de uma
maneira mais detalhada – com atenção a minúcias em sua construção, podem produzir um
resultado mais completo e mais alinhado com a realidade.
Moita Lopes (1994) explica que o mundo das Ciências Sociais necessita de um método
diferenciado para que a análise dos seus produtos seja fiel e defende o método interpretativista
como o adequado, pois, com ele, não é possível ignorar a presença de um ser social em sua
construção. Segundo o autor, "na posição interpretativista, não é possível ignorar a visão dos
participantes do mundo social caso se pretenda investigá-lo, já que é esta que o determina: o
61
mundo social é tomado como existindo na dependência do homem" (p. 331). Casado Alves
complementa o pensamento:
No método interpretativista, ainda segundo Moita Lopes (1994, p. 332), "os múltiplos
significados que constituem as realidades [do mundo das Ciências Sociais] só são passíveis de
interpretação, é o fator qualitativo, isto é, o particular, que interessa", ou seja, não há como
analisar a produção das Ciências Sociais exclusivamente quantificando dados e negligenciando
a construção particular de cada produção, pois cada uma tem a sua singularidade e não segue
padrões naturais para existir. O autor ainda conclui que "a interpretação de dados de natureza
quantitativa fica completamente arbitrária ou especulativa se dados de natureza subjetiva e
qualitativa forem ignorados" (MOITA LOPES, 1990 apud MOITA LOPES, 1994, p. 332-333).
O método de análise deste trabalho usou as técnicas de pesquisa qualitativo-
interpretativista para compreender o discurso do chargista em cada enunciado. Por se tratar de
uma análise de charges produzidas em um determinado período, também se trabalhou com
números quantitativos de produção e de temática, assim como também utilizou outras formas
de se fazer pesquisa como o paradigma indiciário.
Giovanni Morelli elaborou, entre 1874 e 1876 (sob o pseudônimo Ivan Lermolieff), um
método de análise de obras artísticas que mais tarde ficou conhecido como “método
morelliano”, no qual, para catalogar obras de artes ou identificar cópias em museus quando a
maioria delas não possuía assinatura, analisava as nuances artísticas de cada pintor para poder
classificá-las (GINZBURG, 1989, p. 144). Morelli passou a identificar características
composicionais particulares de cada autor que passavam despercebidas por um olhar geral
menos atento. As obras de arte costumam ser analisadas como um todo, em que os pequenos
detalhes são apenas coadjuvantes na construção completa da obra. Assim, os copistas deixavam
que essas características mínimas fossem desprezadas nas cópias, e o método de Morelli
consistia em avaliar, justamente, os detalhes até então ignorados, como sutilezas na construção
do sorriso, a posição dos olhos em contemplação ao observador ou outros elementos da tela e,
principalmente, os detalhes que normalmente são ainda mais desprezados na observação, como
os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés. Esse método de busca
62
e interpretação de uma série de índices também é conhecido como método (ou paradigma)
indiciário.
De acordo com a análise do método morelliano por Wind, por mais que haja muita
subjetividade nesse tipo análise, ainda é possível se criar um método, a ponto de, mesmo sem
assinatura, reconhecer o autor de uma obra de arte pelas técnicas utilizadas, assim como
identificar um chargista pelo traço do desenho, pela anatomia utilizada nos personagens, pelos
tons de cor escolhidos, os cenários onde o diálogo ocorre e, inclusive, o tipo de técnica artística
que o chargista utiliza para finalizar o seu enunciado (GINZBURG, 1989, p. 145).
Por mais que essas características marcantes estilísticas do autor pareçam superficiais,
elas são eficientes – é justamente nas marcações espontâneas que se encontram os elementos
que definem a autoria, por mais sutis que elas pareçam. A marca autoral é o que define a
autenticidade de um autor e, também, é o que faz com que ele exista e não seja apenas um
copista; o ineditismo de sua composição é natural, mesmo que seja inspirado em outros nomes.
Essas marcas de autoria não são exclusivas da composição artística. Elas também estão
presentes, por exemplo, na caligrafia, como nas assinaturas que, até hoje, em meio a inúmeras
evoluções tecnológicas que garantem autenticidade, servem como comprovante autoral. Uma
assinatura, por mais que seja falsificada com maestria, deixa a ausência de marcações que o
autor original faria, o que gera a necessidade de profissionais especialistas (grafólogos) para
identificar a autenticidade dessa marca de escrita.
Analisar obras artísticas (nas quais as charges estão incluídas) exige que o pesquisador
apure o seu potencial analítico e perceba todas as inserções propositais de elementos, assim
como as marcas que o autor inseriu naturalmente com o seu inconsciente13. Por mais que o
paradigma indiciário de pesquisa tenha suas técnicas, é necessário aguçar o olhar investigativo
quando se for utilizá-la. Ginzburg (1989, p. 179) afirma que “ninguém aprende o ofício de
conhecedor ou diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de
conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de
vista, intuição".
Não há como interpretar o discurso chargístico de outra forma que não a pesquisa
qualitativa como base principal, pois o gênero nasce e vive dentro das interações sociais. O
13
Segundo Ginzburg, Sigmund Freud (um dos nomes mais importantes quando se trata de análise do inconsciente)
menciona Morelli (ainda sob o pseudônimo Ivan Lermolieff) em sua obra “O Moisés de Michelângelo” (1914),
comparando o seu método com a psicanálise: "Creio que o seu método está estreitamente aparentado à técnica da
psicanálise médica. Esta também tem por hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco
notados ou despercebidos [...]" (FREUD, 1914 apud GINZBURG, 1989, p. 147).
63
pesquisador entra no contexto construtivo, analisa os dados e retorna com o resultado objetivo,
como proposto por Chizzotti (2003, p. 221):
O termo qualitativo implica uma partilha densa com pessoas, fatos e locais
que constituem objetos de pesquisa, para extrair desse convívio os
significados visíveis e latentes que somente são perceptíveis a uma atenção
sensível e, após este tirocínio, o autor interpreta e traduz em um texto,
zelosamente escrito, com perspicácia e competência científicas, os
significados patentes ou ocultos do seu objeto de pesquisa.
Desta forma, a pesquisa qualitativa serviu de base para este estudo, partindo de dados
quantitativos, gerando dados reais sobre o gênero chargístico e os analisando com boa parte da
contextualização teórica do Círculo de Bakhtin, que ancora esta pesquisa, como as relações
dialógicas entre os participantes do diálogo nos enunciados e a heterodiscursividade que
compõe o contexto social formador do repertório dos enunciadores.
Nesta pesquisa, analisamos os enunciados chargísticos elaborados pelo chargista potiguar
Ivan Cabral durante o processo oficial de impeachment de Dilma Rousseff, desde o acolhimento
da denúncia pela Câmara dos Deputados Federais até a conclusão do processo. O período da
pesquisa ficou delimitado entre os dias 2 de dezembro de 2015 e 13 de maio de 2016. A escolha
do chargista e o período de coleta de dados foram definidos pela postura política ideológica de
Ivan em um momento crítico do cenário governamental brasileiro, o que fez com que vozes de
leitores ecoassem responsivamente em alguns enunciados elaborados pelo chargista.
A pesquisa realizou levantamento diário das postagens em dois canais: blog e Facebook,
quantificando as charges produzidas e agrupando-as por temática. Inicialmente foram filtradas
apenas as charges com a temática política e, após mais uma seleção, agrupamos apenas as
charges que envolviam o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Feito isso,
identificamos os enunciados que tiveram respostas mais incisivas e os analisamos com os
métodos aqui apresentados.
Para a objetivação da análise, escolhemos cinco enunciados chargísticos que estruturaram
a apresentação dos dados, sendo um enunciado de cada mês do processo que tivesse respostas
bem direcionadas, desprezando janeiro de 2016 – o mês de férias de Ivan Cabral, que reduziu
a quantidade de enunciados produzidos (apenas um sobre política nacional, publicado no blog
e no Novo Jornal e sem resposta dos leitores). Cada enunciado escolhido traz um enunciado
principal (a charge produzida, que iremos chamar de enunciado-chave) e outros enunciados –
quando necessários – para apresentar as respostas (que denominaremos enunciado(s)-resposta.
64
A análise dialógica das charges não poderia desprezar as respostas dos seus leitores, pois,
assim como disse Bakhtin, "o enunciado como totalidade sempre está direcionado, endereçado
a alguém” (BAKHTIN, 2016, p. 135). Só analisando as suas respostas poderíamos vê-lo por
completo.
Para uma análise mais profunda que esgotasse todo o potencial do gênero chargístico, há
muitos outros panoramas que poderiam ter sido utilizados. Restringimo-nos nos passos aqui
apresentados por acreditarmos que sejam pontos suficientes para analisar a responsividade dos
enunciados chargísticos e suas réplicas. Qualquer outro ponto que adicionássemos como
complemento fugiria da proposta dessa pesquisa. Assim, para analisar o embate responsivo das
charges produzidas no período já apresentado, vimos que esses procedimentos metodológicos
são suficientes para cumprir os objetivos desta pesquisa.
66
no rol dos maiores chargistas brasileiros, dito isso pela qualidade de material produzido
(comprovado pelas inúmeras respostas que os seus enunciados recebem), assim como pelos
prêmios recebidos, como apontamos no item 2.5 desta pesquisa.
O grande alcance das charges produzidas por Ivan aos leitores deve-se, também, à
facilidade de divulgação dos seus enunciados pela internet, seja pelo seu site (Sorriso Pensante)
ou, principalmente, pela sua página pessoal no Facebook. Devido a isso, este é o campo onde
pesquisamos a responsividade dos seus enunciados, desprezando as publicações no Novo Jornal
por estarem sempre replicadas no site – e, algumas vezes, no Facebook –, assim como esses
meios eletrônicos possuem charges produzidas exclusivamente para eles. Outro ponto pelo qual
optamos por ignorar o jornal deu-se pelo fato de que o veículo impresso não permite que as
possíveis respostas dos leitores sejam analisadas, uma vez que não há um canal direto para isso
e muito menos a exposição das respostas enunciativas caso elas fossem enviadas ao periódico
por outros meios.
De acordo com as concepções de Bakhtin (2016, p. 135), não poderíamos começar sem
levar em conta o ouvinte e seu campo aperceptivo.
A página de Ivan possui um campo de interação que alguns leitores utilizam para
responder aos enunciados produzidos e ali postados. O Facebook também se mostra uma
excelente plataforma para análise responsiva, já que as interações podem ser notadas de várias
maneiras. Existem as interações com um clique por meio de "curtidas" (durante o período do
corpus de análise – exatamente no dia 24 de fevereiro de 2016 –, a plataforma inseriu outras
reações "clicáveis" além do tradicional botão "Curtir": "Amei", para mostrar um grande apreço
à postagem; "Haha", para representar o humor alcançado por ela – ou quem sabe o riso irônico;
"Uau", para surpresa; "Triste", para expressar tristeza, como o nome deixa claro; "Grr",
expressando raiva), compartilhamentos e comentários, o método de interação que mais
utilizaremos na análise.
Por meio do estudo das interações na página e no Facebook, procuraremos, inicialmente,
as vozes dos embates dialógicos e tentaremos identificar em qual tipo de polêmica (aberta ou
velada) eles se inserem; buscaremos as possíveis réplicas do chargista (sejam elas textuais,
imagéticas ou de outras configurações) e concluiremos com um posicionamento sobre a
responsividade nesses embates.
Essas interações serão norteadas por um enunciado-chave que nomeará a seção e servirá
de base para análise. Para preservar a identidade dos leitores que responderam às charges,
desfocamos suas fotos e seus nomes iniciais, deixando apenas o sobrenome para identificação
dos diálogos que irão surgir nos enunciados-resposta.
69
No dia 13 de dezembro, o Brasil foi palco de mais um protesto pedindo a saída de Dilma
Rousseff do cargo de presidente. O número de participantes nesse protesto foi menor em relação
aos últimos que já haviam acontecido. No dia 15, Ivan fez uma charge que criticava isso: a
baixa adesão dos manifestantes pró-impeachment.
"mortadelas". A origem do termo coxinha não tem um consenso, mas os registros etimológicos
encontrados explicam que o apelido é paulista e está associado àqueles que se consideram
conservadores e defensores do bom costume; uma das possíveis gêneses está associada à polícia
militar paulistana, que oferecia proteção a padarias em troca de coxinhas (ARAGÃO, 2012). Já
os mortadelas foram nomeados assim após circularem notícias, sem fonte confirmada, de que
os apoiadores da esquerda marcavam presença nas manifestações por troca de um lanche de
pão com mortadela.
No enunciado-chave 1, produzido em 15 de dezembro de 2015, Ivan ilustra um
personagem de traços felinos, porém humanizado – utilizando as técnicas do cartum que
permitem que se fuja da representação realística em detrimento da carga enunciativa
(McCLOUD, 2005; RAMOS, 2016). O personagem é um gato, vestido com as cores dos
apoiadores da direita: o verde e o amarelo.
O gato segura em sua pata direita uma coxinha mordida (associada aos "coxinhas"
opositores), enquanto a sua mão esquerda está acima dos olhos como se mirasse ao longe,
procurando algo. As sobrancelhas do personagem franzem seus olhos, reforçando a ideia de
dificuldade de enxergar. O olhar do gato está para a direita da charge, como se procurasse algo
neste lado.
O personagem está em pé em uma representação de solo curva, transmitindo a ideia de
amplitude ao seu redor. Por trás, vê-se sombras de prédios, localizando a narrativa em uma
cidade grande, o ambiente onde mais aconteciam os protestos.
Nota-se que o gato tem gotas escorrendo pelo seu corpo que chegam a empoçar o chão.
Essa representação (por mais que já esteja explicada no título da charge) exige que o leitor
recupere em seu repertório uma associação com ditados populares que resgatem a leitura correta
do enunciado e que consiga extrair o humor, assim como facilite a compreensão do enunciado
de acordo como objetivo do chargista.
O ditado popular associado à charge é o de "gato pingado", popularmente reconhecido
como "poucas pessoas", "pouca coisa" ou "quase nada/ninguém". A origem do ditado vem de
uma cruel tradição do Japão Antigo, quando se derramava óleo quente em criminosos ou
animais – a maioria gatos – e poucas pessoas suportavam assistir a essa tortura, restando apenas
os "gatos pingados" no local (RIBOLDI, 2015 apud TERRA, 2017).
Um balão de pensamento foi usado para trazer o discurso do personagem ao invés de um
balão de fala, como se o personagem estivesse envergonhado para perguntar em voz alta pelos
outros participantes. O balão traz o texto "Ué? Cadê todo mundo?", reforçando o conceito de
que o gato está sozinho e não sabe onde estão os demais manifestantes. Assim, o chargista
72
utiliza da fusão (BAKHTIN, 2015b, p. 100) de sua voz com a voz do personagem, dizendo o
seu pensamento com a voz alheia, no caso, a do personagem principal.
Nesse enunciado, o chargista volta seu olhar para o possível enfraquecimento dos
opositores de sua ideologia e emoldura (BAKHTIN, 2015b, p. 141) o discurso no que lhe
interessa: criticar a baixa adesão ao novo protesto em relação aos números dos outros que já
haviam acontecido, apontando que o movimento estava se enfraquecendo, que os atuais
protestos haviam perdido o ar de novidade e que possivelmente, na sequência, haveria ainda
menos participantes.
Nos enunciados chargísticos, o discurso crítico quase sempre aparece na forma da
polêmica velada, pois essa é uma característica do gênero que mantém uma voz contestadora
que aparece de forma indireta, camuflando a real intenção do chargista. Assim, analisando o
enunciado-chave 1, vê-se que há um cuidado para que a crítica não seja direta, classificando-o
como um discurso de polêmica velada, por mais que, após compreendido o enunciado com as
intenções do autor, pareça que ele esteja abertamente polemizado.
Até o dia 22 de julho de 2017, Ivan Cabral tinha 2.248 amigos no Facebook (dos quais
2.063 o seguiam, isto é, recebiam notificações de suas publicações); o seu blog estava com 287
seguidores e o Novo Jornal tinha uma tiragem de 2.500 exemplares diários, aumentando para
3.000 na edição dominical (MEIO&MENSAGEM, 2017). Por mais que os dados sejam
referentes ao período final da pesquisa, os números não diferem exageradamente do período da
análise, mostrando que Ivan tem muitos leitores de seus enunciados que, por meio da facilidade
de exposição proporcionada pelas redes sociais, sempre se manifestam sobre os seus
enunciados.
73
Enunciados-resposta 1.
Fonte: Facebook.
petista: devagar, devagarinho, insistindo...", sugerindo que o chargista havia elaborado a charge
com um posicionamento partidário. Aponta ainda que Ivan, lentamente (devagar,
devagarinho…), isto é, sutilmente como a charge deve ser, lutava contra o inevitável para o
leitor: a retirada do PT da presidência.
Ivan responde abertamente ao leitor, justificando a construção do seu enunciado: "Não
torço pelo PT, torço para que a economia se ajuste, os programas sociais avancem, os
criminosos (de todos os partidos) sejam punidos, e as desigualdades diminuam... Por aí...". Com
essa resposta, o autor tenta justificar que o seu enunciado foi produzido de forma parcial, sem
posicionamento político, apenas desejando a melhoria para o Brasil.
Oliveira, outro leitor, no trecho "b", articulando veladamente, diz: "Não torce
[respondendo a Ivan], a gente que sempre entende os desenhos errado". Por meio da ironia, o
leitor atinge Ivan, resgatando (por meio da palavra "sempre") o histórico de sua produção
chargística mostrando, também, que é um leitor já habituado às suas produções.
O leitor Varela surge destoando o debate sobre o posicionamento político do chargista
com uma abordagem exterior ao que o enunciado traz, retomando o assunto de forma mais
ampla, abordando a questão do golpe ou impeachment de Dilma, polemizando abertamente:
"Quem apóia [sic] impeachment sem base jurídica apóia golpe. Quem apóia golpe é golpista.
Simples assim".
O comentário não teve réplicas e, logo após, o assunto sobre o posicionamento de Ivan é
retomado pelo leitor Dantas: "mas os desenhos são sempre a favor do PT…..kkkkkk" (como já
sabido, a repetição da letra "k" é uma das formas de representar o riso com caracteres em
ambientes virtuais). O uso da palavra "sempre" mais uma vez mostra a frequência com que o
leitor acompanha os enunciados de Ivan, assim como retoma, novamente, o histórico de suas
charges.
Ivan retorna respondendo que suas charges não são sempre a favor do PT, explicando que
já produziu algumas sobre os problemas do governo e, também usando da ironia, como havia
feito o leitor Oliveira, Dantas sugere alguns temas que o chargista poderia usar em outras
charges, expondo uma lista de pontos negativos do governo petista (trecho "c"). Após isso, um
outro leitor surge para o embate. Furtado diz: "Ah, agora é você que pauta os cartuns de Ivan?
Vai sonhando...". Erroneamente o leitor aponta que a charge é um cartum, expondo seu
enunciado-resposta criticando veladamente o leitor Dantas. O embate continua, como vemos
no trecho "d".
Ivan retorna, no trecho "e", instigando o leitor Dantas a um desafio: "O exercício é
interessante. Mas façamos assim: diz alguma coisa boa sobre os governos do PT
75
14
IFRN – Instituto Federal do Rio Grande do Norte. Durante a gestão petista, o número dos Institutos Federais de
Educação aumentou significativamente em todo o país.
15
Ciência sem Fronteiras foi um programa criado durante o governo PT que oferecia apoio para alunos de
graduação e pós-graduação, visando melhorar a pesquisa no Brasil com intercâmbios internacionais.
16
A sigla SQN é uma gíria que surgiu nos últimos anos e significa "Só Que Não". É utilizada com efeito irônico,
quando o enunciador apresenta inicialmente uma ideia da qual não concorda e discorda dela finalizando com a
sigla.
76
até o trecho em que usa a sigla SQN. Depois disso, abre a polêmica deixando clara a sua
ideologia política apoiadora da esquerda.
Dantas conclui o embate com Ivan em meio aos enunciados de Costa e Oliveira: "kkk
acertou mais??!!! Fala serio omi….o país ta falido...em q planeta vc mora ?? O PT destruiu o
país meu amigo…..Tem MST lutando por melhoras, por terras, como assim???!! Depois de 12
anos de PT? Eh pra rir viu….mas claro...eh democracia...vc tem o direito de apoiar quem bem
achar melhor….e eu vou ficando por aqui…….kkk valeww" [sic]. Observamos que a polêmica
fica ainda mais aberta principalmente por acusações diretas ao chargista em trechos como "Fala
serio omi… [Fala sério, homem!]" e "em q planeta vc mora ?? [Em qual planeta você mora?]",
apontados diretamente para Ivan, assim como os julgamentos contra o PT.
Nos trechos "h" e "j", os leitores Costa e Oliveira continuam o diálogo analisando a
possível crise econômica no Brasil por meio de uma foto de um shopping center lotado em
dezembro, o mês de Natal, data conhecida como responsável por aumentar as vendas em quase
todo o mundo.
Mesmo concluindo o seu diálogo com Ivan no trecho "g", Dantas finaliza as respostas ao
enunciado-chave "Gato Pingado" no último trecho do enunciado-resposta: "A pessoa querer
comparar a economia de uma nação com uma foto de um shopping….. eh ser muito leigo e
inocente viu !!! Fala sério !! [sic]".
Nota-se que o enunciado do chargista surge com a crítica construída veladamente e as
primeiras respostas também seguem esse estilo de voz. Ao longo da evolução do embate
dialógico, as polêmicas passam a se tornar mais claras e abertas, deixando os recursos irônicos
amenizadores de lado, expondo o que cada enunciador realmente queria dizer.
Em fevereiro de 2016, Ivan ilustrou 12 charges sobre política entre as 21 que fez no mês.
Cinco tratavam da política nacional sobre a presidente Dilma Rousseff e o processo de
impeachment. As charges foram publicadas no jornal e no site de Ivan. No Facebook, duas
foram publicadas.
A maioria das charges elaboradas nesse mês tratavam da situação política do Rio Grande
do Norte, onde uma investigação mostrou que muitos dos cargos na Assembleia Legislativa
eram ocupados por pessoas que não compareciam ao trabalho. Esses contratados ficaram
conhecidos como os Fantasmas da Assembleia. As notícias do Novo Jornal estavam pautadas
nesses acontecimentos, o que exigiu que o chargista focasse neles, deixando um pouco de lado
o cenário nacional.
Enquanto os "fantasmas" assombravam os políticos do Rio Grande do Norte, os
acontecimentos em Brasília deixavam cada vez mais claro que seria difícil que Dilma
permanecesse no poder. A fragilidade que se montou ao redor do governo eleito ecoava nas
ruas e o partido de maior oposição ao PT, o PSDB, não era cobrado pela população, assim como
não era investigado pela maior operação anticorrupção da época: a Lava Jato.
78
Enunciado-chave 2 – O alvo.
Fonte: Ivan Cabral. Disponível em: <http://www.ivancabral.com/2016/04/charge-do-dia-tchau-
querido.html>. Acesso em 9 jul. 2017
Os partidos políticos brasileiros possuem elementos que os distinguem facilmente uns dos
outros. Além do posicionamento governista entre esquerda, direita, centro etc., há, também,
outros elementos que os representam.
As cores dos partidos são, sem dúvida, os elementos mais fortes quando estamos falando
de associação imagética, porém, o número de legenda é um outro que também tem muita força
representativa, assim como as siglas, que têm um poder de assimilação até maior do que o
próprio nome dos partidos, fazendo com que muitos eleitores nem saibam o que significam cada
letra que as compõem.
Pela força que a sigla tem na associação partidária, surgem, rotineiramente,
substantivações a partir delas: eleitores e membros do PT são "petistas"; PSDB
"peessedebistas"; PMDB "peemedebistas", por exemplo.
Outro elemento que tem muita força representativa são os logotipos de alguns partidos,
principalmente o PT, que é representado por uma estrela vermelha com a sigla do partido
grafada em caixa alta no centro, e o PSDB, representado por um tucano (que, por sinal, também
nomeia os seus seguidores).
79
Utilizando a representação gráfica dos logotipos dos partidos em embate (PT e PSDB), o
chargista transformou-os em personagens para a construção do enunciado-chave 2. A estrela
vermelha representa, obviamente, o PT e o tucano azul e amarelo é a representação do PSDB.
Na charge, o plano de fundo com um tom de azul claro e nuvens brancas remete ao céu.
Essa representação é reforçada, também, pelos elementos principais do enunciado: o tucano
com asas abertas voando e, por trás dele, uma estrela em seu "habitat natural", o céu. O tucano
tem uma expressão de tranquilidade repassada pela ilustração de seu olho fechado aliado a um
sorriso sutil, como se não se preocupasse e não precisasse ter cautela alguma por estar seguro e
livre.
Vê-se, no canto inferior direito, como se partisse do solo, a ponta de um cano de uma
arma, disparando contra o pássaro, como se percebe pela fumaça na ponta desse cano. Uma
linha tracejada representa o caminho que a bala percorre e, contra todas as leis da Física e
almejando o humor, contorna o tucano peessedebista e atinge a estrela petista que estava logo
atrás dele, sendo perfurada ao centro como se atingisse o local onde supostamente estaria o
coração em um personagem humano. Gotas17 saltam da estrela transmitindo a ideia de surpresa
e preocupação da vítima por ter sido atingida em situação tão improvável.
Assim, o chargista, em uma polêmica velada, enforma (BAKHTIN, 2015b, p. 141) o seu
discurso para atacar os opositores de seu posicionamento ideológico, criticando, sutilmente, a
proteção que havia ao PSDB que não tinha, na época, nenhum de seus políticos investigados na
operação Lava Jato que, a cada dia, buscava um novo caso de corrupção envolvendo o Partido
dos Trabalhadores.
Mesmo com toda a sutileza empregada na elaboração do enunciado buscando polemizar
veladamente, o chargista atinge em cheio os seus leitores, que trazem suas respostas de
imediato.
17
Segundo Paulo Ramos (2016, p.110 e 111), gotas nos quadrinhos/cartuns, charges podem representar, além de
surpresa, preocupação, desespero, entusiasmo e esforço físico excessivo.
80
Enunciados-resposta 2.
Fonte: Facebook.
O leitor Oliveira, que já havia aparecido nos enunciados-resposta 1, retorna (trecho "a")
iniciando os embates na publicação de Ivan. Veladamente, o leitor polemiza sobre a charge:
"Ainda bem que a bala defendeu o passarinho… Foi a favor da natureza e furou uma estrela
decadente com uma sigla suja". O enunciado de Oliveira recebeu três curtidas, e um outro
enunciado na sequência, um minuto após o do enunciador Fernandes, elogia com a palavra
"excelente". Não é possível identificar claramente se o elogio foi direcionado ao enunciado-
81
18
O uso de letras maiúsculas em meio às demais em “caixa baixa”, além de ser um destaque normalmente utilizado
em textos escritos, quando feito na internet ainda pode representar um grito ou uma voz falada em tom elevado.
82
[sic]". As falas de Furtado analisadas dessa maneira parecem desconexas, porém está claro que
as mensagens do seu coenunciador foram apagadas, provavelmente pelo teor ácido que o
embate incorporou.
No trecho "c", um leitor de sobrenome Othon posta que "todo Petista se acha o paladino
da moralidade….", não deixando claro se se referia ao enunciado-chave ou aos enunciados-
resposta de Furtado, polemizando veladamente sobre o assunto. O leitor conclui a postagem
com uma imagem de um personagem com expressão de surpresa. Logo após repete o mesmo
texto, porém sem a imagem, e aparecem duas respostas diretas. Farias responde abertamente a
Othon: "A interpretação depende de cada um. Posso pensar que o PSDB está se saindo melhor
que o PT na defesa". Costa conclui ainda mais abertamente: "O PSDB é mais dissimulado e
mais astuto em matéria de corrupção. Os tucanos sempre gostaram de ostentar o status de
'refinados', e assim o são até na arte da bandidagem".
Nesses embates, vemos que os leitores se atacam pela divergência ideológica, por mais
que nenhum tenha revelado abertamente o seu posicionamento. Esses "leitores responsivos"
também não haviam direcionado os seus enunciados a outros leitores específicos, o que
solicitaria uma resposta direcionada e, mesmo assim, há a troca enunciativa intensa, mostrando
que a responsividade é algo inerente e inseparável dos enunciados concretos.
No trecho "d" vemos alguns comentários de elogio e motivação a Ivan, porém Dantas,
19
outro leitor já conhecido, polemiza veladamente com o enunciado "kkkkkkkkk tá serto !!
[sic]".
O último enunciado-resposta traz uma imagem com um texto e outras imagens menores.
O texto diz: "Você conhece a teoria das tesouras. Dois grupos, ou dois partidos fingem ser
adversários, se ofendem, brigam, xingam, disputam eleições com se fossem inimigos, mas na
verdade, servem aos mesmos senhores e aos mesmos interesses: o tal de comunismo moderno
… e desse jeito e aos poucos, vão podando a Democracia dos dois lados." [sic]. A figura é
ilustrada com duas imagens de tesouras antagônicas (uma partindo da esquerda e outra da
direita) e três fotos menores de Lula e Fernando Henrique Cardoso em momentos de amizade,
mostrando que o PT e o PSDB que já foram próximos e hoje se afastam em prol de interesses
próprios. A postagem tem, aparentemente, um tom neutralizador, apontando que ambos os lados
têm seus interesses, porém, ao final, critica a esquerda com o trecho "[...] o tal de comunismo
19
A expressão comumente utilizada na internet “tá serto" [sic] é grafada erroneamente de propósito, ironizando
algo que o enunciador não concorda. É o oposto de "está certo", ou seja, está errado.
83
moderno … e desse jeito e aos poucos, vão podando a Democracia dos dois lados", uma vez
que é sabido que o comunismo é alinhado à ideologia esquerdista.
Durante a análise do enunciado-chave 2, percebe-se que, diferentemente do enunciado-
chave 1 e seus enunciados-resposta, Ivan silenciou-se perante os comentários dos seus leitores,
deixando que a responsividade natural do enunciado suprisse a exposição de seu
posicionamento abertamente.
No mês de março de 2016, Ivan elaborou 27 charges, das quais 26 abordavam a política
de maneira geral e 24 eram referentes ao processo de impeachment. Nesse mês, houve duas
publicações exclusivas no Facebook que não ganharam espaço no Novo Jornal. Março foi, sem
dúvidas, o período em que a política foi o tema que mais motivou a elaboração de enunciados.
96,3% das charges publicadas traziam o tema político, e 88,88%, do total, eram referentes ao
impedimento de Dilma.
Um domingo, 13 de março, foi escolhido para ser o dia da maior manifestação contra a
corrupção no Brasil. A data 13 provavelmente foi escolhida por ser o dia com o número do
Partido dos Trabalhadores e para associá-la à corrupção (motivo da manifestação) ao partido.
Como já mostramos, as cores verde e amarelo tornaram-se "obrigatórias" nas vestes dos
manifestantes. Isso fez com que Ivan utilizasse essa característica marcante para representar os
eleitores manifestantes de forma genérica em suas charges.
Ivan preparou uma charge para ser publicada na edição de domingo do Novo Jornal, no
dia 13, data de mais um protesto. Tradicionalmente, a edição mais vendida dos jornais é a
dominical e isso faria com que mais leitores vissem o enunciado e associassem facilmente a
charge ao que estava acontecendo no dia.
85
Ivan Cabral produziu esse enunciado criticando a oposição do governo, que pedia,
intensamente, a saída da governante. Os apoiadores de Dilma acreditavam que esses
manifestantes requisitavam a saída da presidente sem um embasamento sólido, crendo que,
apenas levados pelo movimento da massa, pediam esse impedimento.
O desenho mostra a população pró-impeachment aglomerada fugindo de um livro de
História lançado no meio da multidão de fora para dentro, como se o chargista estivesse ali,
arremessando o livro e inserindo o seu próprio pensamento no enunciado, ou seja, inserindo a
sua própria voz, criticando claramente aqueles que estavam com um pensamento divergente.
Os personagens, ilustrados como eleitores manifestantes genéricos, estão vestidos com
uma camisa verde e amarela (como já dito, um dos símbolos das manifestações) e, em algumas
20
Trecho de trabalho apresentado na XXVI Jornada do Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste – GELNE,
sob o título "Reverberação das charges online", em 2016, pelo mesmo pesquisador desta dissertação.
86
O leitor que reconstruiu o enunciado de Ivan explicou em sua página pessoal do Facebook
o processo de alteração do enunciado original.
89
Como dito pelo próprio autor do enunciado-resposta 3 na Figura 11, ele assume que fez
uma montagem, mas inserindo as suas ideologias. Explica ainda como era a charge original e
detalha o processo de intervenção, apontando que deixou a assinatura de Ivan "só para
sacanear", único ponto que põe em xeque o seu processo de reconstrução, aproximando-o de
um possível plágio ao invés de uma paródia. O autor ainda mostra que se agradou pelo fato de
seu discurso ter tomando uma grande repercussão21.
O leitor reelaborou o desenho original, criando uma paródia que, além de "refazer" o
desenho, criou uma nova visão ideológica sobre o mesmo tema. Por mais que tenha sido
21
A paródia da charge de Ivan feita pelo coenunciador tomou proporções enormes, reverberando pela internet
mais rápido do que a original. Em um perfil de direita no Facebook as reações chegaram à marca de 39.300
interações. A Revista IstoÉ, na edição de nº. 2423 de 18 de maio de 2016, publicou uma matéria intitulada “Humor
em tempos de crise” e publicou a charge parodiada como se fosse original (OLIVEIRA JUNIOR, 2016).
90
22
Fernandes (2011, p. 5), citando Kurt Lewin (1947), define que a passagem da notícia em alguns veículos de
comunicação depende de "portões" (gates) que funcionam dentro desses mesmos canais de comunicação. Em
tradução livre, os gatekeepers seriam os "porteiros" da notícia, aqueles que determinam o que sai da edição e ganha
espaço nas páginas veiculadas.
91
Enunciados-resposta 4.
Fonte: Facebook.
23
Assim como "mortadela", “petralha” é outra expressão pejorativa para referir-se aos apoiadores do PT.
92
governo petista; consequentemente, atacar também o chargista. Ivan não se pronunciou nesse
embate das respostas no Facebook.
Em resposta à solicitação do Novo Jornal, Ivan elaborou um novo enunciado abrandando
a sua voz e construindo uma nova crítica velada, mais sutil, que foi publicada pelo periódico.
Com esse enunciado, Ivan deixou a crítica particular de lado e voltou à crítica
institucional, apontando as falhas do processo e os conchavos partidários de interesses.
A nova charge passou pelo crivo editorial do Novo Jornal e foi publicada, além de
republicada no Facebook e no blog. Dessa vez o blog, que normalmente é uma plataforma com
pouca interação, recebeu uma resposta de um leitor também questionando a postura de Ivan e
de suas charges.
plano de governo fosse ampliado. A população já queria saber mais sobre o possível novo
presidente e o que os aguardava.
Um dos maiores problemas do Brasil sempre foi o de moradia e, tentando amenizar essa
questão, a gestão petista elaborou um programa social que se tornou um dos mais destacados
dos governos Lula/Dilma: o programa "Minha Casa, Minha Vida", que consistia em oferecer
moradia própria à população de baixa renda e subsídios para aquisição de imóvel próprio para
outras faixas de renda.
Com a possível ascensão ao poder de Michel Temer, os apoiadores de Dilma levantaram
o questionamento do fim dos programas de governo petistas e, consequentemente, a
apresentação do programa de governo peemedebista. Um desses programas ficou bastante
conhecido negativamente. Chamado de "Uma Ponte para o Futuro" (PMDB, 2015), traz pontos
de austeridade para controlar a crise econômica e isso, de acordo com os comentários dos
apoiadores da esquerda, estagnaria o desenvolvimento do país, principalmente para a população
inserida nas faixas de renda mais baixas.
97
Ivan, criticando o projeto Ponte para o Futuro, trouxe uma ilustração muito comum para
representar a falta de moradia: pessoas morando embaixo de pontes, um reflexo de uma
realidade sempre presente no país.
A ponte ilustrada traz uma inscrição com o nome do projeto e, logo abaixo, um cartaz
colado em um dos pilares de sustentação com o título "Minha ponte, Minha vida", parodiando
o programa de governo petista outrora elogiado. O ícone que acompanha o título do cartaz tem
as mesmas cores do logotipo oficial: verde, azul e amarelo, substituindo a casa original por uma
ponte.
Com o uso dos dois enunciados (a charge como um todo e a paródia do logotipo), Ivan
utiliza da construção híbrida que Bakhtin (2015b) explicou como uma mistura de estilos
distintos ou linguagens diversas na construção de um só enunciado.
Assim como no enunciado-chave 1, há a representação de prédios ao fundo situando a
charge em uma cidade grande. Sobre a ponte, vê-se carros – elementos representantes de um
alto poder aquisitivo – dirigindo-se à direita (direção observada pelo posicionamento dos
retrovisores dos veículos de cor cinza e laranja).
Abaixo da ponte, vemos duas situações: primeiro uma família que vem da esquerda da
charge em direção à suposta nova moradia, um barraco feito com pilares de madeira e uma
frágil cobertura. Essa família é composta por uma mulher de vestido com um lenço na cabeça,
em um estereótipo da "dona de casa", um homem vestido como um operário por seu capacete
e macacão nas cores da bandeira brasileira (como crítica a um possível manifestante por estar
usando as cores dos protestos ou crítica às novas dificuldades oferecidas a um trabalhador que
vestia as cores do país), e uma criança, representada por uma cabeça que aparece entre o homem
98
e a mulher como se estivesse em seus braços. A família está contemplando o cartaz com uma
expressão triste notada pela sobrancelha ascendente e a boca do homem arqueada para baixo.
A segunda situação mostra um homem à direita do pilar sentado embaixo de um barraco
similar ao da primeira situação, descalço e acompanhado de um cachorro, tradicional
companheiro de moradores de rua. A expressão do homem e do seu animal também é de tristeza,
índices notados pelos desenhos da sobrancelha e da boca do cachorro.
Toda essa narrativa acontecendo ao redor da ponte é, claramente, uma ironia relacionada
ao nome do programa de governo do PMDB. Ivan emoldura, mais uma vez, o seu discurso e
aponta a sua crítica para os pontos negativos do projeto do governo de oposição, polemizando
veladamente o tema tratado na charge.
Enunciados-resposta 7.
Fonte: Facebook.
Iniciado por Medeiros, que elogia o trabalho de Ivan (trecho "a"), o embate de respostas
entra na categoria de polêmicas com o já conhecido leitor Oliveira, quando diz que Ivan já havia
começado a fazer críticas ao governo, no caso uma polêmica aberta. Ivan, ironicamente, como
recurso comum às polêmicas veladas, questiona: "Qual governo?", mostrando que não
reconhecia o governo de Temer como um governo válido. Oliveira responde que estava se
referindo a um governo de forma geral. Oliveira Jr., outro leitor, tenta explicar o enunciado,
também com ironia, apontando que Oliveira desconhecia o projeto de governo de Temer quando
100
diz: "Acho que ele não conhece o 'mega projeto' do PSDB Ponte para o 'futuro'" [sic]. O uso
das palavras destacadas em aspas é um marcador da polêmica velada no discurso do leitor, que
também ironiza o plano de governo, como se não fosse grande e também não fosse garantia de
futuro. Oliveira retoma explicando que não é partidário: "não falei que sou defensou do PSDB,
não sou militonto" [sic]. A palavra aglutinada "militonto" também polemiza, pois elenca os
militantes partidários como tontos por apoiarem partidos políticos. Oliveira Jr. retorna ao debate
justificando que o seu comentário não se dirigia a ele, e sim ao partido PSDB, posicionando-se
fora do embate direto com o outro leitor. Ivan reaparece e corrige que o partido do projeto Ponte
para o Futuro é o PMDB, concluindo que "agora não faz muita diferença" sobre qual partido
seja o criador do projeto, mostrando um descontentamento com a proximidade da posse de
Temer.
No trecho "b", o leitor Ferreira, provavelmente desconhecendo o programa de governo de
Michel Temer, associou a charge como crítica à gestão petista e diz: "o artista, agora, depois de
domingo, voltou à lucidez! Parabéns, Ivan!". O domingo ao qual o leitor se refere foi o dia 17
de abril de 2016, dia da votação do afastamento de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados
Federais.
No mesmo trecho, outros leitores parabenizam o enunciado-chave. Dias insere um link
externo com uma matéria sobre o que temer no novo governo e o leitor Gomes, abertamente,
posiciona-se contra o possível novo governo.
Vemos, nesse enunciado, que há a recorrência de leitores que já haviam se posicionado
em diversos outros enunciados, aparecendo sempre com comentários velados que se tornam
abertos gradualmente a cada nova resposta. Assim como os leitores que expõem os seus
posicionamentos por meio de textos, há ainda os leitores que não externam as suas respostas,
porém concordam com os enunciados compartilhando-os e os que respondem apenas com
reações clicáveis disponíveis na rede Facebook.
101
No último mês analisado, Ivan produziu 11 charges, das quais oito tratavam de política,
sendo sete as exclusivas sobre Dilma/impeachment. Devemos lembrar que o levantamento de
dados finalizou no dia 13 e os números refletem apenas o período que essa pesquisa considerou.
As charges foram impressas no Novo Jornal e alimentaram o blog Sorriso Pensante. No
Facebook, Ivan postou apenas a charge que utilizamos na análise do mês, intitulada "Sexta-
feira 13".
102
Michel Temer assume o cargo de presidente do Brasil no dia 13 de maio e Ivan ilustra o
fato em uma charge sem texto, mas com muita carga enunciativa. O dia 13 de maio caiu em
uma sexta-feira e, no Brasil, a combinação da data com o dia da semana é conhecida como
azarada, em que bruxos estão à solta e as coisas tendem a dar errado.
Utilizando do conhecimento folclórico envolvendo o dia, Ivan ilustrou o novo presidente
centralizado no enunciado com o plano de fundo composto por cores frias e escuras, criando
um ambiente sombrio.
O Michel retratado por Ivan é um homem de traços sérios, porém carregando um leve
sorriso que beira a inocência com um pouco de felicidade. A caricatura do novo presidente tem
nariz afilado e bem vertical, sobrancelhas marcantes, rugas da idade no rosto, cabelos grisalhos
e bem penteados. Há um queixo curto, porém, protuberante com uma leve "papada" abaixo do
rosto e dos olhos; Temer está vestido com um paletó azul – traje típico de políticos do sexo
masculino – e uma gravata vermelha, destoando de toda a composição de cores da charge. Os
braços do personagem estão para trás, escondendo as mãos nas costas, simbolizando uma
103
posição defensiva. Descendo a partir do ombro direito, há um cinto grosso com uma marcante
fivela no local onde deveria estar a faixa presidencial, símbolo que representa a posse do cargo
no Brasil. A substituição da suave faixa por um cinto aparentemente resistente transmite a ideia
de que o novo presidente assumiu o cargo "à força" e que, agora, estava garantido na posição.
Os olhos de Temer miram o leitor, encarando-o diretamente.
Sobre os ombros do novo presidente há um gato preto, outro elemento que simboliza o
azar e também está diretamente ligado à sexta-feira 13. O gato tem as patas traseiras sobre o
ombro esquerdo e as dianteiras sobre o direito e, passando por trás da cabeça de Michel Temer,
o "felino azarado" também contempla o leitor. Com o gato nessa posição, o chargista repassa a
ideia de que era o azar que estava por trás da presidência de Temer, além de que, para ele, esse
azar estaria, agora, com a população brasileira.
A última charge analisada nesta pesquisa é a primeira que Ivan faz de Michel Temer como
presidente do Brasil (embora que ainda em exercício, porém confirmado meses depois). O
enunciado gerou 150 reações clicáveis no Facebook, além de 37 compartilhamentos e oito
comentários.
O chargista polemizou veladamente sobre o final do mandato de Dilma e a ascensão de
Temer ao poder, criticando com sutileza enunciativa, porém carregada de valoração.
104
Enunciados-resposta 8.
Fonte: Facebook.
Outra polêmica velada surge logo após, porém apoiando o novo presidente. Ákila afirma
que "não há o que Temer". O uso do "temer" como verbo mostra que o leitor explica para o
chargista que não há motivos para ter medo da gestão do novo presidente e reforça isso quando
transforma o verbo em sujeito, grafando-o com a primeira letra maiúscula, transformando
"temer" em Temer, sobrenome de Michel.
O leitor Dias traz uma polêmica aberta, afirmando que ele (Temer) vai trair o gato,
apontando que o novo presidente é capaz disso após fazer o mesmo com Dilma, antiga aliada
política que chegou ao cargo junto a ele.
Silva, comentando como se fosse o gato ilustrado no ombro de Michel Temer, faz sua
crítica veladamente: "Oh não, um Temer cruzou o meu caminho!!! 180 dias d azar!!! [sic]".
Aludindo à falta de sorte que o gato teria em estar próximo a ele. Os 180 dias aos quais a leitora
se referiu em seu enunciado referem-se ao tempo em que Michel estaria como presidente
temporário enquanto a presidente afastada poderia defender-se e voltar ao cargo, provavelmente
em uma demonstração de esperança do retorno de Dilma Rousseff.
Gomes parabeniza Ivan pelo enunciado e tenta explicá-lo quando diz que o azar esteve
em descobrir "um traidor que se acha mais esperto que um gado" (provavelmente o leitor se
referia ao gato mas digitou errado), polemizando abertamente. Paiva finaliza a onda de
respostas com uma gargalhada grafada pela letra "k" repetida.
Alguns enunciados apresentam uma quantidade maior de respostas, pois o nível de
polêmica que gira em torno do acontecimento que serve como base para a produção da charge
direciona a proporcionalidade da quantidade de respostas recebidas pelo enunciado. Embora
haja, em outros momentos, uma pequena quantidade de respostas nos enunciados, isso não
interfere na análise dos resultados e tampouco reduz a importância da intensidade enunciativa
dos embates que surgem, pois, como já dito, em uma análise social os detalhes que compõem
essas respostas são mais importantes do que a quantidade em que elas aparecem. Seja em muitas
ou em poucas respostas, observamos que os enunciados chargísticos sempre buscam um leitor
e esses, quando encontram um meio para externar as suas respostas, o fazem com afinco.
106
6 ACABAMENTO FINAL
Um dos pontos que faz com que haja uma alta responsividade das charges é o fato de que
elas são enunciados concretos, construídos e baseados na realidade vivida por leitores e
chargista, inseridos em contextos reais (e atuais) que aproximam ainda mais o público leitor.
Para fins de pesquisa, necessitamos restringir o corpus da análise nas charges de Ivan
Cabral, porém a escolha de charges com uma grande carga de embates serviu para mostrar que
a responsividade existe em todo enunciado e, agora, com o avanço das redes sociais e da
internet, que possibilitam uma interatividade ainda maior, essas respostas vêm à tona com muito
mais facilidade.
Os enunciados que apresentamos eram, naturalmente, compostos de vozes
desconcertantes, como representantes das forças centrífugas apresentadas por Bakhtin, assim
como as vozes presentes nos embates que surgiram nas análises, algumas com a característica
centralizadora das forças centrípetas (em relação aos enunciados produzidos por Ivan quando
de acordo com eles) mas, em sua maioria, ainda mais desestabilizadoras quando o embate estava
entre chargista e leitor com posicionamento ideológico antagônico.
Enquanto a charge traz, naturalmente, a polêmica revestida de técnicas que a tornem
velada, os embates, que inicialmente surgem da mesma maneira, passam a ser mais claros e
abertos, fazendo com que o sentido da palavra “diálogo” fique ainda mais distante do uso
comum, passando de uma relação apaziguadora a um embate entre duas ou mais vozes.
Como visto durante a pesquisa, baseando-se nas teorias bakhtinianas de
heterodiscursividade e relações dialógicas, os discursos não podem ser construídos
isoladamente (principalmente, os produzidos com a fôrma composicional do gênero charge). O
discurso chargístico é carregado de repertórios e de saberes pertencentes ao enunciador que os
constituiu em suas experiências, direcionado a um leitor que também tem suas experiências e
vivências e vai utilizá-las para compreender e, necessariamente, responder ao enunciado (por
mais que não externe essa resposta). Para resgatar o repertório do leitor e fazer com que o
enunciado seja compreendido, o chargista insere a sua fala em um contexto que seja comum à
sua plateia; assim, nos enunciados que analisamos, podemos encontrar inúmeras situações do
cotidiano, palco onde as charges vivem.
Todos os cinco enunciados analisados trazem elementos comuns para construção de
sentido, contextualizando o que acontecia à época e ilustrando os acontecimentos, carregados
com a ideologia do chargista Ivan Cabral. A ideologia (no caso, política) foi empregada em
todos os enunciados, assim como em seus enunciados-resposta, pois não há discurso neutro,
não há discurso sem ideologia, e ela se apresenta naturalmente nos enunciados.
108
O simples ato de fazer uma escolha lexical para se referir a alguma situação já faz o
enunciador denunciar a qual "círculo ideológico" pertence; a sua articulação enunciativa
também aponta qual o direcionamento de seu pensamento crítico.
As charges analisadas estavam alinhadas aos acontecimentos de um país politicamente
desestabilizado, com uma visível segregação dos lados opostos que conflitavam sobre o
assunto. Nos embates dessas charges, vimos leitores-enunciadores divergindo ideologicamente
e necessitando deixar registrado o seu posicionamento, a sua resposta e o seu ataque àquilo que
lhe era estranho, que não condizia com a sua opinião, da mesma forma que o apoio e o suporte
àqueles que lhes eram coerentes no raciocínio.
Em muitos casos, como nos enunciados-resposta 1, 2 e 7, esses embates ficaram mais
claros entre os leitores das charges, quando a troca de enunciados estava visivelmente entre
opostos que tentavam refutar o outro a cada articulação.
Essas polêmicas enunciativas surgiam veladamente e ganhavam abertura de acordo com
as réplicas que surgiam, deixando evidente o que o enunciador desejava desde o início. Da
mesma forma aconteceu com os enunciados produzidos por Ivan: no primeiro que analisamos
(enunciado-chave 1, Gato Pingado), a polêmica trazida pelo chargista surge velada, sugerindo
uma neutralidade enquanto ele questionava a baixa participação nos protestos por meio de um
gato humanizado, não deixando tão claro qual o seu "alvo", podendo ser apenas uma crítica aos
manifestantes que haviam deixado de lado a luta pela corrupção no país. No último enunciado
analisado (enunciado-chave 5, Sexta-feira 13) temos também um outro gato na cena
enunciativa, desta vez em sua forma animalesca, porém deixando mais claro o seu
posicionamento: criticar o novo presidente.
Vimos, com essa pesquisa, que a charge é um gênero discursivo de fato, composta de
enunciados concretos que, para existirem, necessariamente são ancorados à realidade. Isso faz
com que haja uma necessidade responsiva muito grande em relação a outros gêneros, pois para
ser compreendida exige um alinhamento entre o autor, o leitor e o meio onde foi concebida.
Concluímos também que a carga construtiva dos enunciados chargísticos (assim como suas
respostas) evolui de acordo com o tema ao qual está se referindo, compartilhando das tensões
que o cercam. No nosso recorte temporal para a pesquisa, estávamos situados em um país
dividido politicamente, com embates constantes e severos – fossem em articulações políticas
ou fossem nas ruas – e, nas charges que analisamos, vimos a mesma intensidade, porém,
trocando os votos das plenárias e os gritos das avenidas pelas palavras e enunciados construídos
e expostos nas páginas eletrônicas da internet.
109
Pensar a charge sem pensar em resposta é tão difícil quanto pensar em enfrentamentos
ideológicos envolvendo política sem embates polêmicos e vozes conflitantes.
Esta pesquisa traz a atenção a um gênero discursivo naturalmente complexo, que tem uma
construção híbrida, trazendo imagem, texto, vozes distintas que se misturam, brevidade
construtiva, curto prazo de validade, humor e arte; um gênero que busca o outro por meio do
ataque e que, em um mundo cada vez mais digital, esse outro retorna ao enunciado com suas
respostas das mais variadas formas possíveis. Assim, vemos que a responsividade da charge,
além de ser inerente ao gênero, se torna muito mais ativa quando há um canal para que essas
respostas sejam expostas e, quando o meio em que o enunciado é concebido está repleto de
ideias antagônicas e conflitantes, elas acompanham o tom, surgem rapidamente e trazem uma
carga acentuada com ideologias favoráveis ou inversas, assim como as charges que as motivam.
6.1 Epílogo
REFERÊNCIAS
AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-
chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 95-114.
______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
______. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015a.
BARBIERI, Daniele. Los lenguajes del cómic. 1 reimpr. Barcelona: Paidós, 1998.
CABRAL, Ivan. Humor Diário: Charges de Ivan Cabral. Natal: [s.n.], 2005.
______. Humor gráfico: o sorriso pensante e a formação do leitor. 2008. 130f. Dissertação
(Mestrado) – Curso de Educação, Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal, 2008.
______. Entrevista concedida a Mauricio da Silva Oliveira Junior. Natal, 19 maio 2016.
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