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http://dx.doi.org/10.24933/horizontes.v35i3.

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Abordagem clínica na análise da atividade docente: uma via unindo pesquisa,


intervenção e formação1
Rozania Maria Alves de Moraes*
Elisandra Maria Magalhães**

Resumo
A conjugação entre pesquisa e intervenção na Clínica da Atividade é um assunto que, aparentemente, ainda
não se esgotou, suscitando importantes discussões entre especialistas da área. Este artigo tem como objetivo
discutir experiências trazidas de duas pesquisas de caráter interventivo realizadas na formação inicial de
professores de língua francesa, utilizando as abordagens clínica e ergonômica da atividade; além disso, busca
também mostrar que, nas situações apresentadas, pesquisa e intervenção se mostram inseparáveis, e que, em
ambas as pesquisas, é perceptível a ampliação do poder de agir dos sujeitos – objetivo da Clínica da
Atividade. Esses resultados apontam para uma nova via que se abre para a formação inicial de professores de
línguas.
Palavras-chave: Abordagem Clínica; Atividade Docente; Pesquisa; Intervenção; Formação.

Clinical approach in the analysis of teaching activity: A path linking research, intervention and
training

Abstract
The combination of research and intervention in the Clinic of Activity is a subject that, apparently, has not
yet been exhausted, provoking important discussions among specialists in the area. This article aims to
discuss the experiences of two interventional studies carried out in the initial training of French teachers,
using the clinical and ergonomic approaches of the activity. It also seeks to show that, in the situations
presented, research and intervention are inseparable, and that in both researches, the increase in the power of
action of the subjects – objective of the Clinic of Activity – is noticeable. These results point to a new path
that opens to the initial training of language teachers.
Keywords: Clinical Approach; Teaching Activity; Search; Intervention; Training.

Introdução linguagem e trabalho. Situando-se nessa linha de


estudos, surgem no Brasil, nos anos 1990-2000, os
A área de formação de professores de trabalhos desenvolvidos por grupos de estudos da
línguas no Brasil tem recebido nos últimos anos Pontifícia Universidade Católica, de São Paulo, e
produtivas contribuições intermediadas pela da Universidade de São Paulo, tendo à frente
Linguística Aplicada (doravante LA) e por seu Maria Cecília Souza-e-Silva e Anna Rachel
diálogo com diferentes áreas de conhecimento, a Machado, respectivamente, professoras aliadas a
saber: educação, psicologia, sociologia, pesquisadores franceses (Universidade de
fonoaudiologia, enfermagem e direito, para citar Provence, atualmente, Aix-Marseille) e suíços
apenas algumas. (Universidade de Genebra).
Consciente do caráter Interessou-nos, sobremaneira, aprofundar
multi/pluri/interdisciplinar da LA, Celani (1998, conhecimentos atinentes a essa abordagem
p. 117) aborda ainda uma visão transdisciplinar adotada pelos referidos pesquisadores, tendo em
para a LA numa “colaboração de disciplinas”. vista que nossa experiência com a formação de
Para a autora, isto não significa simplesmente uma professores de língua francesa, no curso de Letras
justaposição de saberes, mas um envolvimento da Universidade Estadual do Ceará (de agora em
efetivo dos pesquisadores em suas respectivas diante UECE) que carece justamente de uma
áreas. proposta que traga “contribuições para o
Estudos sobre formação de professores aprofundamento da compreensão do trabalho do
de línguas avançam abordando aspectos que vão professor e, consequentemente, da sua formação”
além do processo de ensino e aprendizagem, dos (MACHADO, 2004, p. x).
materiais, dos métodos e abordagens e das Compartilhamos deste posicionamento de
avaliações, por exemplo; e contemplam também o Machado (2004), que se completa com o
ensino como trabalho, ou seja, a atividade laboral pensamento de Freire (1996, p. 9) de que “formar
do professor, focalizando as relações entre é muito mais do que puramente treinar o educando
*
Endereço eletrônico: r_de_moraes@hotmail.com
**
Endereço eletrônico: elisandrafortaleza@hotmail.com
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no desempenho de destrezas”, mas, é também busca não apenas “compreender para


torná-lo consciente do importante papel que transformar”, mas também “transformar para
(deve) exerce(r) “para a avaliação crítica do compreender”. Para tanto, apresentamos, de modo
processo de construção da ação pedagógica e sua não exaustivo, a Clínica da Atividade, seguida dos
reconstrução”, afirma Lima (2012, p. 37), também princípios teóricos e metodológicos, sobretudo
fundamentada em Freire naquela mesma obra. aqueles empregados nas investigações que
Os estágios supervisionados em ensino de realizamos em nosso grupo Linguagem, Formação
línguas estrangeiras do Curso de Letras da UECE, e Trabalho (LIFT)3. Na sequência, apontamos
realizados, em sua maioria, através de um projeto nosso posicionamento acerca da relação entre
de extensão deste curso – o Núcleo de Línguas pesquisa e intervenção na Clínica da Atividade, a
Estrangeiras – permitem aos estagiários, futuros partir das ideias de Silva (2016).
professores, a experiência de assumirem uma sala No intuito de ilustrarmos de forma
de aula, supervisionados por um coordenador concreta nossa prática com a pesquisa e a
pedagógico e por um professor formador. Nesta intervenção na formação inicial de professores de
experiência já devem, portanto, e evidentemente, francês da UECE, descrevemos duas pesquisas
seguir tudo aquilo que demanda o métier, ainda por nós realizadas – Moraes (2013) e Magalhães
que na condição de “professor iniciante”2. (2014) – esta última constituindo nossa seção de
Partindo dessa premissa, surgem inúmeros análises.
questionamentos, tanto da parte do formador Estamos conscientes de que estas duas
quanto da parte do formando. Para os iniciantes, experiências (e outras já realizadas, que, por
as incertezas e inseguranças são ainda constantes questões de espaço não poderemos detalhar) nos
na sua prática. Para o formador, a preocupação e o trouxeram importantes resultados e abriram
compromisso de levar o formando à aprendizagem perspectivas extremamente válidas para o trabalho
e à realização de uma prática concreta e eficaz. com a formação de professores na instituição
O contato com as abordagens clínica e mencionada. Essas informações constituem a
ergonômica da atividade, por intermédio dos última seção deste artigo, que será seguida de
estudos de Machado (2004), Souza-e-Silva e Faïta nossas considerações finais.
(2002) e das trocas estabelecidas nos últimos anos
com os pesquisadores da equipe ERGAPE Clínica da Atividade: recuperando a
(Ergonomia da Atividade dos Profissionais da experiência vivida
Educação) da Universidade Aix-Marseille, faz-
nos refletir sobre uma formação que conduza o A Clínica da Atividade, abordagem
futuro profissional a desenvolver um olhar clínico inserida no campo da teoria vigotskiana sócio-
sobre sua própria atividade em direção à histórico-cultural do desenvolvimento humano e
compreensão e à transformação desta atividade e fortemente fundamentada na filosofia da
de seu próprio desenvolvimento (como) linguagem de Bakhtin e do Círculo4, foca seus
profissional. Para isso, consideramos a estudos na experiência vivida do trabalhador: sua
possibilidade de utilizarmos conhecimentos atividade profissional e seu modo de agir em
(resultados) oriundos de pesquisas a fim de situação concreta de trabalho.
mobilizá-los como “meio de agir e de pensar” No entanto, a Clínica da Atividade –
(CLOT, 2008) a serviço dos professores em apoiando-se em estudos de Vigotski – entende que
formação. apenas por meio da observação direta de um
O presente artigo tem como objetivo observador externo, não é possível aceder ao real
discutir experiências trazidas de duas pesquisas de da atividade5 do trabalhador nem ao
caráter interventivo realizadas na formação inicial desenvolvimento de seu modo de agir. O objetivo,
de professores de língua francesa, utilizando as portanto, da abordagem clínica da atividade é
abordagens clínica e ergonômica da atividade;
além disso, busca também mostrar que, nas [...] propor o desenvolvimento e seus
situações apresentadas, pesquisa e intervenção se impedimentos como seu objeto, a clínica da
mostram inseparáveis, e que, em ambas as atividade conclui que a única maneira de
pesquisas, é perceptível a ampliação do poder de concretizar seus objetivos é através da
criação de contextos que provoquem esse
agir dos sujeitos – objetivo da Clínica da
desenvolvimento de modo a poder estudá-lo
Atividade. posteriormente (LIMA; BATISTA, 2016, p.
Seguindo esse pensamento, apresentamos 118).
neste artigo alguns aspectos relativos à Clínica da
Atividade numa tentativa de vislumbrar, na Nessa perspectiva, a criação de contextos
formação de professores, uma abordagem que

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propícios pode levar o trabalhador não somente a autoconfrontação e o método de instrução ao


conhecer e a interpretar sua atividade, mas sósia, tratam-se de dois processos dialógicos nos
sobretudo a transformar sua futura situação quais o(s) trabalhador(es) e o analista externo, na
laborativa e, eventualmente, transformar-se como interação sobre a atividade do(s) primeiro(s),
profissional. Nas palavras de Clot (2006a, p. 107): criam as condições necessárias para que o(s)
próprio(s) trabalhador(es) desenvolva(m) por si
A clínica da atividade é isso: é como recurso mesmo(s) sua atividade profissional (LIMA;
para que os protagonistas da observação e da BATISTA, 2016). Ainda de acordo com Lima e
interpretação se transformem. Os operadores, Batista (2016, p. 123), “Tal experiência poderia
os trabalhadores, transformam-se em sujeitos lhe permitir [ao trabalhador] pensar sobre
da interpretação e da observação e não se
possibilidades de mudanças em um contexto no
reduzem a objeto da interpretação e da
observação dos pesquisadores. qual não houvesse apenas um expert analisando
sua atividade.” [grifo das autoras].
O desenvolvimento da atividade e seus Na interlocução consigo mesmo, com sua
impedimentos precisam ser, portanto, atividade (passada e futura) e com o analista
interpretados e reinterpretados pelo próprio externo – no caso da instrução ao sósia e da
trabalhador a partir de métodos indiretos6 de autoconfrontação – e ainda, com sua atividade
construção e reconstrução da experiência vivida; filmada, com seus pares e com seu coletivo
nas palavras de Silva (2016, p. 154), “[...] o profissional – no caso apenas da autoconfrontação
trabalhador do ofício em foco ocupa o lugar de – o trabalhador (re)formula suas próprias questões
protagonista”. e (re)mobiliza seus conhecimentos sobre o métier
Entretanto, é importante enfatizar que o para poder compreender e transformar sua
analista externo – interventor ou pesquisador – situação concreta de trabalho (MAGALHÃES,
também se torna “[...] fonte de engajamento dos 2014).
trabalhadores na análise [...]” (SILVA, 2016, p. Todas essas trocas dialógicas, entendidas
158), haja vista caber a este promover o diálogo como “lugar e espaço do desenvolvimento”
do trabalhador com seu próprio trabalho. Ainda (CLOT; FAÏTA, 2016, p. 43) da atividade,
segundo Silva (2016, p. 157), “Em todo o assumem uma posição fundamental dentro dos
percurso, a análise se dá em um diálogo no qual o estudos clínicos da atividade. São essas trocas que
clínico está ativo, tratando-se assim de uma abrem caminho para o conhecimento sobre o
coanálise.” métier e para que o trabalhador transforme sua
O quadro teórico-metodológico da atividade profissional no momento em que
autoconfrontação7 e o método da instrução ao reconstrói sua experiência vivida. A esse
sósia8 são entendidos como métodos indiretos de propósito, Clot e Faïta (2016, p. 53-54)
investigação e (co)análise que são utilizados no acrescentam que para a Clínica da Atividade:
campo da Clínica da Atividade e que possibilitam
[...] a pesquisa repousa sobre o
contextos provocadores de desenvolvimento do
desenvolvimento da atividade e não apenas
trabalho e do trabalhador. Ernica (2016, p. 54), sobre seu funcionamento. Desse ponto de
fundamentado na psicologia vigotskiana sobre o vista, é preciso não apenas compreender para
desenvolvimento humano, afirma que na Clínica transformar, mas também transformar para
da Atividade o conceito de desenvolvimento pode compreender. Compreender e explicar os
ser pensado: mecanismos do desenvolvimento passa então
por uma justa apreciação da potência dos
[...] como o processo pelo qual o humano diálogos nesse desenvolvimento.
passa a apresentar um comportamento ativo, Na nossa prática, eles são mesmo a mola do
isto é, um comportamento que não é desenvolvimento da atividade, de sua história.
adaptação passiva e limitada às determinações Nosso objeto é, aliás, menos a atividade como
do exterior mas que é voluntário, auto- tal do que o desenvolvimento dessa atividade
orientado, mediado pela consciência e pela e de seus impedimentos. A experiência
possibilidade de antecipação da atividade e de profissional não deve apenas ser reconhecida,
seus objetivos. [...]. Portanto, o mas transformada. Melhor, ela só pode ser
desenvolvimento diz respeito à formação do reconhecida graças à sua transformação. Só a
humano como sujeito de seu comportamento. vemos quando ela muda de estatuto: quando
[grifo do autor]. ela se torna um meio para viver outras
experiências.
O quadro teórico-metodológico da
Nesse sentido, compreender para

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transformar não é mais suficiente, é preciso obstáculos” (BRANDÃO, 2016, p. 137).


também transformar para compreender. Ou seja, Por tudo isso que aqui apresentamos,
apenas compreender o funcionamento da entendemos, assim como Silva (2016, p.156), que
atividade para poder transformá-la parece não a Clínica da Atividade, “[...] seja na pesquisa, seja
mais dar conta da complexidade de uma análise no ato clínico”, compreende uma intervenção. O
clínica e/ou científica que vise aumentar o poder analista externo, seja ele pesquisador ou não,
de agir dos trabalhadores em seu meio assume a responsabilidade de mediar as trocas
profissional. dialógicas estabelecidas durante o processo
As trocas dialógicas estabelecidas entre interventivo, o que o faz produzir discurso, não
analista externo, trabalhador(es) e a atividade sendo, portanto, possível considerá-lo neutro. Em
deste(s) último(s) podem provocar o outras palavras, ao usar seu saber para provocar o
desenvolvimento da atividade laborativa ou até pensamento do(s) trabalhador(es) e pôr em
mesmo do(s) próprio(s) trabalhador(es). E é andamento uma ação transformadora desse(s)
exatamente esse desenvolvimento e seus mesmo(s) trabalhador(es) sobre sua própria
impedimentos ocorridos no momento dessas situação de trabalho, o analista também contribui
trocas que passam a ser o objeto de interesse do para a transformação do(s) profissional(ais) e de
analista que se fundamenta nas premissas da seu meio de trabalho (SILVA, 2016). Expomos,
Clínica da Atividade. abaixo, uma citação de Silva (2016, p. 168) que
O analista, portanto, estuda a atividade expõe seu posicionamento sobre a questão:
profissional em movimento – seus avanços,
retrocessos, convergências, divergências, etc. – e A clínica da atividade pode ser feita tendo
dentro de um particular espaço dialógico. À luz da como objetivo a intervenção, sem nenhum
psicologia vigotskiana, Brandão (2016, p. 135) objetivo de pesquisa no sentido acadêmico do
ratifica nosso pensamento ao afirmar que: termo. Nas situações de intervenção espera-se
do clínico que auxilie os trabalhadores em seu
trabalho de manutenção permanente do ofício,
É somente em movimento que uma atividade
trabalho esse que ocorre também fora de
pode se revelar. Até porque não conseguimos
enquadres clínicos de intervenção.
acessar o seu desenvolvimento [da atividade]
diretamente, senão através de suas idas e
vindas, das manifestações de seus conflitos, Concluímos, assim, que o
revelando seu caráter dialético, histórico e desenvolvimento da atividade (e seus
relativo a um gênero profissional. impedimentos) provocado pelo analista por meio
de métodos indiretos de investigação e análise é a
Ao se tornar(em) protagonista(s) de todas base de novos conhecimentos, tanto para que o(s)
essas trocas dialógicas, o(s) trabalhador(es) trabalhador(es) consiga(m) ressignificar sua
busca(m) perceber em sua experiência vivida, atividade quanto para que ele(s) se desenvolva(m)
enquanto ser(es) sócio-histórico(s) e cultural(ais) como profissional(ais).
que é(são), possibilidades para realizar novas A seção seguinte trata do construto
experiências. Para Clot e Faïta (2016, p. 54), a teórico-metodológico que fundamenta as
abordagem clínica da atividade busca levar o pesquisas desenvolvidas no grupo LIFT,
trabalhador a: particularmente a de Moraes (2013) e a de
Magalhães (2014), que ilustram este artigo como
[...] se desprender de sua experiência, a fim de exemplos de pesquisas cujas análises se situam
que esta se torne um meio de realizar outras nas abordagens clínica e ergonômica da atividade
experiências. É um procedimento que pode docente, amalgamando pesquisa e intervenção na
tornar a experiência já realizada disponível formação inicial de professores de francês língua
para experiências a se realizar. estrangeira (FLE).
Daí a importância, na Clínica da Construto teórico-metodológico das pesquisas
Atividade, de colocar a atividade profissional em
movimento, ou seja, utilizar procedimentos O Grupo de Estudos LIFT, do qual
metodológicos indiretos que viabilizem ao(s) participamos, já realizou e vem realizando
trabalhador(es) recuperar(em) sua experiência pesquisas com professores estagiários de línguas
vivida por meio de trocas dialógicas; trocas estas estrangeiras e materna. No intuito de podermos
que o(s) levam a se dar conta dos inúmeros intervir na formação desses futuros professores
conflitos profissionais e, igualmente, dos “[...] por meio dessas investigações que adotam as
caminhos tomados e não tomados para realizar o abordagens clínica e ergonômica da atividade, já
que tem que ser realizado, apesar dos

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contabilizamos cinco pesquisas realizadas e filmadas de sua atividade inicial com o analista.
quatro que se encontram em curso. Na autoconfrontação cruzada, dois profissionais
Conforme explicitamos anteriormente, comentam as sequências filmadas da atividade um
uma abordagem clínica requer admitir que aquilo do outro também na presença do analista.
que é possível acessar da atividade pela 3) A fase da extensão do trabalho de análise ao
observação direta nada mais é do que uma coletivo profissional trata-se de uma fase de “[...]
pequena parte dessa atividade, e que somente os percolação da experiência profissional posta em
métodos indiretos podem viabilizar o acesso à discussão sobre situações rigorosamente
dimensão não observável da atividade. Para isso, delimitadas” (CLOT et al. 2000, p. 5). Ainda de
Vigotski (2007) fornece fundamentos “para a acordo com os autores, nesta ocasião é possível se
elaboração de métodos suscetíveis de sustentar a estabelecer um ciclo “entre o que os trabalhadores
clínica da atividade no seu intuito de transformar fazem e o que eles dizem do que eles fazem, e,
contextos laborais” (LIMA; BATISTA, 2016, para terminar, o que eles fazem do que eles
p.118). Ainda de acordo com as autoras, Vigotski dizem” (CLOT et al. 2000, p. 5)9.
A pesquisa de Moraes (2013)
[...] insistiu na criação de métodos indiretos compreendeu todas as fases da autoconfrontação,
que pudessem organizar a passagem da já o estudo de Magalhães (2014) constituiu-se
experiência vivida em contextos diferentes somente da autoconfrontação simples. As duas, no
com a finalidade de provocar uma duplicação entanto, desenvolveram análise e interpretação do
dessa experiência. A criação desses espaços,
discurso dos protagonistas (alunos e/ou
definidos como espaços dialógicos, pode
favorecer esse objetivo [...] (LIMA; professores participantes) numa perspectiva
BATISTA, 2016, p. 118). [grifos nossos]. dialógica e sócio-histórica, sustentando-se nos
fundamentos da teoria da enunciação círculo-
Assim, reconhecendo a importância bakhtiniana e da teoria vigotskiana do
desses métodos para o empreendimento da análise desenvolvimento humano.
da atividade docente, adotamos nessas
investigações o quadro teórico-metodológico da Pesquisa e intervenção dialogando na formação
autoconfrontação, processo dialógico que permite de professores
ao profissional (neste caso, especificamente, o
professor em formação), a partir do filme de sua Nesta seção, apresentamos uma breve
própria atividade, resignificar, em novo contexto, discussão em torno de questões relacionadas à
a experiência vivida, conforme evocado acima pesquisa e à intervenção no domínio da Clínica da
pelas autoras. Atividade. Iniciamos apontando algumas visões
A decisão de utilizarmos o quadro teórico- sobre esses dois movimentos trazidas por Clot
metodológico da autoconfrontação deu-se pela (2008), Lima e Batista (2016) e Brandão (2016)
vantagem de se dispor das imagens – em vídeo – que são analisadas e debatidas por Silva (2016).
da atividade dos professores protagonistas, pois é Logo em seguida, apontamos duas pesquisas
justamente a imagem que favorece a construção realizadas em nosso grupo que, a nosso ver,
do espaço-tempo para que se possa realizar a correspondem a exemplos de intervenção.
reflexão sobre o vivido (VIEIRA; FAÏTA, 2003). Na Clínica da Atividade, segundo Clot
A autoconfrontação instaura entre os (2008), a pesquisa consiste numa retomada da
participantes um processo dialógico e histórico- ação realizada, e com isso é possível estudar os
desenvolvimentista possível e, segundo os autores mecanismos relacionados ao desenvolvimento ou
(VIEIRA; FAÏTA, 2003) se constitui das ao impedimento de tal ação. Também
seguintes fases: compartilhando o pensamento do autor, Lima e
1) A fase da constituição do grupo de análise Batista (2016, p. 128) indicam que a finalidade
trata-se da composição de um grupo maior da intervenção na Clínica da Atividade
representativo daquele meio profissional e que, consiste na restauração/ampliação do poder de
juntamente com o analista, discutirá aspectos agir do trabalhador. Nessa perspectiva
relacionados à pesquisa ou à intervenção (como interventiva, na qual “a clínica é ação e não
por exemplo, o objeto da pesquisa, as sequências apenas quadro” (CLOT, 2010, p. 77) o trabalhador
que serão discutidas nas autoconfrontações). (ou interlocutor) é convocado, por meio de uma
2) A fase das autoconfrontações (simples e atividade dialógica sobre o trabalho, a
cruzada) consiste em uma conjugação das compreender e a “cuidar” do trabalho que realiza,
experiências profissionais. Na autoconfrontação ainda conforme Clot (2010).
simples, o profissional comenta as sequências Brandão (2016, p. 134) apresenta os

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elementos que distinguem pesquisa e intervenção, profissional deste(s).


informa que cada uma possui “objetos, A experiência de realizar pesquisa em um
destinatários, e recursos distintos”, por locus de formação inicial reforça nosso
conseguinte, “objetivos, enquadramentos e posicionamento, tendo em vista que tem trazido
exigências distintos” e alerta para o cuidado certa “oxigenação” para o trabalho do formador e
necessário em separar uma da outra. Obviamente perspectivas de uma formação renovada e
a autora não ignora o fato de que a intervenção reflexiva para o professor em formação.
venha a se tornar pesquisa, mas defende o ponto A seguir, focalizaremos duas pesquisas
de vista de que as duas não devem acontecer alinhadas ao grupo LIFT que se sustentam nas
juntas, que a pesquisa deve vir antes ou depois da abordagens clínica e ergonômica da atividade. A
intervenção “para que esta última não seja escolha dessas duas pesquisas justifica-se pelo
comprometida pelo saber dos pesquisadores” caráter interventivo que ambas apresentam na sua
(BRANDÃO, 2016, p. 139). realização, em outras palavras, são pesquisas que
Entretanto, é importante ressaltar que, se constituem como intervenções diretamente
diferentemente do que acontece, a priori, nas ligadas à formação de professores de línguas,
pesquisas e intervenções em Clínica da Atividade nestes casos especificamente, a língua francesa.
e em Ergonomia da Atividade, nossa área de A primeira pesquisa, intitulada Análise da
investigação (formação de professores no campo atividade de professores de francês e elaboração
da LA), aqui no Brasil, na grande maioria das de uma estratégia e de uma engenharia de
vezes, parte de uma demanda específica do formação profissional contínua: uma experiência
próprio pesquisador. Considerando, portanto, essa na Universidade Estadual do Ceará (MORAES,
particularidade, torna-se difícil separar os 2013) corresponde a um projeto desenvolvido no
movimentos “coexistentes” – para utilizamos o período de 2011 a 2013, sob a coordenação de
termo empregado por Silva (2016) – da pesquisa Moraes, mas em colaboração com equipes
e da intervenção. Silva (2016), debatendo os francesa e brasileira no desenvolvimento de um
textos, destaca pontos irrefutáveis sobre os dois projeto maior subvencionado pela Agência
processos apresentados nos textos de Lima e Universitária de Francofonia10.
Batista (2016) e de Brandão (2016), concorda com A proposta era desenvolver um plano de
a ideia de que “intervenção e pesquisa se ação e transferência de aquisições e ferramentas, a
fertilizam mutuamente”, mas diverge no que diz partir do trabalho desenvolvido pela equipe
respeito ao fato de “que ocorram em momentos ERGAPE, na formação de professores de francês
distintos” (SILVA, 2016, p. 160). no Brasil. Além disso, nossos propósitos
É fato que a Clínica da Atividade pode específicos eram: 1) analisar a atividade docente
realizar intervenção sem objetivar a pesquisa, de professores de francês em formação, realizando
podendo esta vir a ser uma ação consequente, seus estágios curriculares no Núcleo de Línguas
posterior àquela. Mas, reafirmamos, no contexto em turmas de mesmo nível; 2) verificar a
de sala de aula, em específico, dificilmente intervenção do professor formador e o papel do
realizaremos uma pesquisa sem intervenção, uma coletivo de trabalho na formação e na prática
vez que a presença (não-neutra) do pesquisador docente desses estagiários, ou seja, a relação dessa
em sala de aula, geralmente, já interfere na ação prática com a própria formação; 3) analisar a
do sujeito observado, quando provoca neste a relação dos estagiários com as prescrições; e 4)
realização de um diálogo interior. Assim, mais elaborar estratégias para a formação continuada de
uma vez amparadas nos fundamentos de Silva professores.
(2016), também nos situamos a favor dessa A pesquisa revelou dificuldades
“interferência mútua” de pesquisa e intervenção. encontradas pelas alunas-estagiárias11 no que
A nosso ver, na Clínica da Atividade concerne ao déficit de prescrições, por
sempre há uma intervenção no meio consequência, a necessidade de se servir de
socioprofissional em que a análise se realiza. Seja materiais complementares; ao uso equilibrado (ou
efetuando uma análise no âmbito clínico ou uma não) da língua materna na classe: quanto de
análise no âmbito acadêmico, o analista externo português se pode usar em sala; à inviabilidade de
faz uma intervenção, ele suscita uma ação alguns materiais ou da própria estrutura física para
transformadora no(s) trabalhadore(s) e em sua melhor aproveitamento do método adotado
atividade profissional. Nesse sentido, vemos o (vídeos, por exemplo); e outras. Mas também
pesquisador (no sentido acadêmico do termo) revelou a autonomia das estagiárias em assumirem
também como um interventor, pois ele modifica o a sala de aula, reconhecendo-se como
meio no qual atua e coanalisa juntamente com o(s) “verdadeiras professoras”, adaptando algumas
trabalhador(es) o desenvolvimento da atividade prescrições, uma vez que, apesar de estarem

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Abordagem clínica na análise da atividade docente: uma via unindo pesquisa, intervenção e formação

apenas em estágio, realizam tudo o que faz um reflexões sobre sua atividade poderiam ajudar
professor diplomado em atividade; e ainda, esses estagiários na elucidação de suas dúvidas
apontou marcas de transformação e ampliação do e/ou dificuldades e na transformação de sua
poder de agir dessas estagiárias, e aprendizagem (futura) prática; e, ainda, refletir sobre como a
do métier pelo próprio fazer, ou seja, nem sempre utilização da autoconfrontação, a partir da
dependendo das intervenções dos formadores. atividade de professores experientes registrada em
O estudo adotou os procedimentos de vídeo, poderia contribuir na formação inicial
autoconfrontações simples e cruzada com as duas desses futuros professores de francês.
estagiárias. Também foi realizado um retorno ao Selecionamos a pesquisa de Magalhães
coletivo constituído dessas mesmas protagonistas, (2014), para ilustrar nossas análises no presente
de uma professora formadora e da coordenadora estudo, a fim de sustentar nossa ideia sobre a
pedagógica do Núcleo de Línguas. A ocasião possibilidade do uso de instrumentos e
favoreceu o debate de questões de ordem didática procedimentos metodológicos utilizados pela
(tradução na aula, uso do livro, etc.), no entanto, abordagem Clínica da Atividade de forma
foram as questões de natureza ergonômica (por interventiva na formação inicial de futuros
exemplo, o cansaço do professor), até então pouco professores de línguas.
discutidas naquele coletivo, que mais despertaram
a atenção das participantes, sobretudo das Uma análise dialógica e clínica
formadoras. Essa experiência nos deu a
confirmação de que “o que pode ser visto Na primeira parte desta seção
inicialmente, como um problema, torna-se, na descrevemos sucintamente o quadro geral da
verdade um trunfo, o princípio norteador em que pesquisa de Magalhães (2014): os sujeitos, os
se sustenta a metodologia histórico- locais de pesquisa, a escolha da disciplina de
desenvolvimentista proposta por essa abordagem” Estágio Supervisionado III, o procedimento e os
(LIMA; BATISTA, 2016, p. 117). instrumentos adotados para a produção dos dados
A última etapa da pesquisa deu-se com e, por fim, realizamos um breve comentário sobre
uma formação piloto para professores o papel do pesquisador na referida pesquisa, de
(formadores, professores em formação, acordo com a autora.
professores experientes e iniciantes) incluindo as Já na segunda parte trazemos algumas
participantes da pesquisa acima citadas. Nesta análises de trechos extraídos dos comentários
fase, a apresentação das abordagens clínica e entre alunos-estagiários, professora formadora e
ergonômica da atividade, com seus princípios e pesquisadora durante a visualização dos vídeos
métodos, atraiu o interesse desses professores, das duas professoras experientes em
despertando-lhes a conscientização de refletir e autoconfrontação simples13 .
analisar o próprio trabalho, e de se dar conta de
que muitos dos problemas que o professor Contexto da pesquisa
enfrenta acontecem nos sistemas público e
privado de educação, na educação básica, no O trabalho de Magalhães (2014) que aqui
ensino médio ou superior, no Brasil e em outros trazemos como exemplo de uma pesquisa que une
lugares do mundo, como, por exemplo, em escolas intervenção, pesquisa e formação inicial de
francesas12. professores de FLE foi realizada com um grupo de
A segunda pesquisa – retomada adiante na alunos do curso de Letras/Francês da UECE.
seção de análises – foi realizada por Magalhães Esses alunos estavam, no primeiro
(2014) e empreendeu uma intervenção numa semestre letivo de 2013, regularmente
turma de Estágio III de língua francesa. Intitulada matriculados na disciplina de Estágio
Autoconfrontação Simples (ACS): um instrumento Supervisionado III14 e participaram, juntamente
a serviço da formação de futuros professores de com a sua professora formadora, da pesquisa em
francês como língua estrangeira (FLE), esta questão. Além desse grupo, havia ainda um
pesquisa além de analisar o papel da segundo grupo de sujeitos: duas professoras
autoconfrontação simples como um instrumento experientes de FLE pertencentes ao quadro de
na formação de professores de francês, também docentes do Ensino Básico, Técnico e
teve como objetivos específicos identificar as Tecnológico de uma outra universidade pública do
dúvidas e/ou dificuldades dos formandos de mesmo Estado15.
francês na prática de seus estágios; demonstrar Em relação à escolha de uma disciplina de
como uma reflexão suscitada a partir do trabalho observação para a realização da pesquisa, segundo
de professores experientes e suas próprias a autora, a decisão pela disciplina de Estágio

Horizontes, v. 35, n. 3, p. 105-120, set./dez. 2017


112 Rozania Maria Alves de Moraes, Elisandra Maria Magalhães

Supervisionado III deve-se à uma inquietação sua real do trabalho docente:


em relação às disciplinas de observação16 do curso
de Letras/Francês da universidade onde realizou [...] o que percebemos é que fica faltando-lhes
sua pesquisa e onde treze anos antes havia [aos alunos-estagiários] o contato com o real
concluído sua licenciatura em Letras/Francês e, do trabalho do professor observado. Em outros
ainda, ao fato de os alunos-estagiários nela termos, os alunos conseguem enxergar apenas
o realizado da atividade docente, mas não têm
matriculados já terem vivenciado uma experiência
acesso à organização do trabalho do
em sala de aula como professores de francês profissional nem à sua reflexão ao término da
durante a disciplina de Estágio Supervisionado II. aula, isto é, as escolhas feitas, o que o
Fundamentada em Gimenez (2005), Magalhães professor estava pensando no momento da sua
(2014, p. 35) coloca que: ação, aquilo que deu certo ou não, o que foi
adequado e eficaz – ou não – naquele espaço
Os estágios de observação oferecem aos de tempo. O alunos-estagiários não estão,
alunos que estão em fase de formação inicial e pois, agregando à sua formação essa parte
que ainda não exercem o métier a invisível e fundamental do trabalho do
oportunidade de um contato direto com o seu professor (MAGALHÃES, 2014, p. 36-37).
futuro campo de trabalho. No entanto, [grifo da autora].
incomoda-nos continuar a ver as disciplinas
que são voltadas para a observação como Além disso, a autora também considera
disciplinas que prescrevem atividades com fundamental a criação de um espaço dialógico
roteiros a serem seguidos à risca, e saber que dentro do qual alunos-estagiários, professora
os futuros professores estão indo à sala de aula
formadora e professores observados possam
para olhá-la apenas sob um olhar
contemplador, investigativo e/ou estabelecer uma relação de diálogo:
frequentemente avaliativo.
[...] tento, com esta pesquisa, eliminar – pelo
menos em parte – essa neutralização
Para a autora da pesquisa em questão, a
comunicacional entre alunos em estágio de
disciplina de Estágio Supervisionado III não observação e professores experientes
dispunha de um “instrumento” suficientemente observados. Dizendo com outras palavras,
satisfatório para “validar” o Estágio. As fichas de procuro fazer com que a experiência fale à
observação17 disponibilizadas pelos professores formação e busco compor um espaço
formadores da disciplina focavam, dentre outras interacional muito particular – ainda durante a
atividades: o espaço físico, as atividades graduação – para que os alunos possam não
desenvolvidas, o professor, os alunos, as apenas contemplar o trabalho docente, mas
opções/decisões, as interações, os objetivos, as também responder às suas convocações
tarefas, as perguntas/respostas, os erros/correções, (MAGALHÃES, 2014, p. 97-98).
as situações positivas/negativas, os equipamentos
técnicos, etc., porém, não davam, e nem poderiam Isto posto, apresentamos abaixo o quadro
dar conta do real da atividade do professor de Magalhães (2014) que ilustra sinteticamente o
observado. Assim, por mais detalhadas que procedimento e os cinco instrumentos utilizados
fossem as orientações presentes nessas fichas para a construção do objeto de estudo da pesquisa
pedagógicas, elas nunca conseguiriam mostrar o em questão.

QUADRO 1 – Descrição do procedimento e dos instrumentos utilizados para a construção do objeto


de estudo

Instrumentos e procedimento Natureza Finalidade (s)


Instrumento 1: Questionário Identificação de temas, dúvidas e/ou Verificar temas, dúvidas e/ou
orientado [dentro das questões dificuldades dos alunos-estagiários a dificuldades dos alunos matriculados
levantadas pela abordagem respeito do ensino como trabalho. na disciplina de Estágio
ergonômica da atividade docente em Supervisionado III de Letras/Francês
relação ao ensino como trabalho] em relação ao ensino como trabalho;
Ajudar a pesquisadora na seleção das
sequências das atividades das
professoras experientes a serem
trazidas para uma posterior análise
com os alunos-estagiários e a
professora-formadora da disciplina de

Horizontes, v. 35, n. 3, p. 105-120, set./dez. 2017


113
Abordagem clínica na análise da atividade docente: uma via unindo pesquisa, intervenção e formação

Estágio Supervisionado III.

Procedimento de observação para Observação para familiarização. Familiarizar-se com o ambiente onde
familiarização as duas professoras experientes
exercem seu trabalho e ter contato
inicial com as mesmas e com seus
alunos.
Instrumento 2: Filmagem das aulas Gravação em vídeo das aulas das Selecionar, editar e levar para cada
das professoras experientes professoras experientes. professora sequências de suas aulas,
tornando-as observadoras e
produtoras de um discurso sobre sua
própria atividade.
Instrumento 3: Filmagem das ACS Autoconfrontação simples: professora Abrir espaço para que as professoras
[autoconfrontações simples] com as experiente/imagens de sua experientes produzam um discurso
professoras experientes atividade/pesquisadora. sobre sua experiência vivida,
buscando gerar diálogos que possam
alimentar algumas reflexões sobre seu
agir profissional (atividade sobre a
atividade).

Instrumento 4: Filmagem da Relação dialógica particular: Instaurar uma particular relação


confrontação dos alunos-estagiários interação dos alunos-estagiários e dialógica entre professores em
com os vídeos das professoras professora-formadora com a formação, professora-formadora e
experientes em ACS pesquisadora, a partir das imagens das professoras experientes, buscando
[autoconfrontação simples] professoras experientes em ACS estabelecer uma zona potencial de
[autoconfrontação simples]. aprendizagem e desenvolvimento para
aqueles.
Instrumento 5: Narrativa Relato escrito dos alunos-estagiários Narrar a experiência com os vídeos
autobiográfica acerca de sua experiência com a ACS das professoras experientes em ACS
[autoconfrontação simples] [autoconfrontação simples] durante a
vivenciada durante a disciplina de disciplina de Estágio Supervisionado
Estágio Supervisionado III. III.

FONTE: Magalhães (2014, p. 108-109). [grifos da autora].

Magalhães (2014) toma como corpus de Na sequência, apresentamos alguns


análise o questionário orientado, o texto resultante trechos extraídos do corpus da pesquisa e algumas
da relação dialógica instaurada entre alunos- análises realizadas por Magalhães (2014) sobre
estagiários, professora formadora, pesquisadora e esses trechos.
imagens das professoras experientes em
autoconfrontação simples e, por fim, a narrativa Um particular envolvimento dialógico
autobiográfica escrita pelos alunos-estagiários
narrando sua experiência com os vídeos das duas Magalhães (2014) mostra aos alunos-
professoras experientes em autoconfrontação estagiários e à professora formadora o vídeo da
simples. atividade inicial da professora experiente P2 e o
Vale, ainda, ressaltar que Magalhães comentário desta sobre sua atividade. O assunto
(2014), durante a análise que realizava de seu em discussão versava sobre A segurança do
corpus fundamentando-se em Faïta e Maggi professor em sala de aula19.
(2007, p. 62), reconhece-se como mediadora entre No vídeo de sua atividade inicial, P2
“o passado e o atual” dos sujeitos de sua pesquisa realiza uma pronúncia inapropriada na estrutura
e, portanto, discute, em uma seção dedicada ao da língua francesa, mas logo em seguida se
papel do pesquisador18, sobre a importância do corrige. Durante a autoconfrontação simples, P2
pesquisador que atua no campo de uma reflete sobre situações de erros20 e de
abordagem clínica da atividade. Nas palavras da aprendizados pelos quais já passou e ainda está
autora, o papel do pesquisador “[...] não é apenas passando como professora de francês. P2 admite
o de coletar dados, [...], mas o de ser um mediador que quando percebe que “erra” tenta se corrigir
e um co-analista das situações dialógicas criadas tão logo possível. Vejamos a fala do aluno-
no decorrer do processo” (MAGALHÃES, 2014, estagiário A3 sobre a visualização do vídeo de P2
p. 158). em autoconfrontação simples:

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114 Rozania Maria Alves de Moraes, Elisandra Maria Magalhães

constituição dos sujeitos [...]” (MAGALHÃES,


290 A3: [...] é uma professora experiente e tá 2014, p. 70). Aqui neste trabalho, devido às
mostrando a humildade de dizer que ela não limitações de espaço, não é possível apresentar
sabe tudo, que se ela tiver algum problema, todos os detalhes das análises realizadas por
que [se] ela ensinou algum conteúdo errado Magalhães (2014) sobre o trecho apresentado.
numa aula, na outra ela vai corrigir. Isso é
ótimo pra gente que tá começando e
também não tem que se culpar pelos erros Um olhar transformado sobre a observação
que a gente tem. Então, tem que tentar
melhorar, assim como ela faz, né? [grifo da Ao término da visualização dos vídeos das
autora]. duas professoras experientes em autoconfrontação
[...] simples, a pesquisadora interpela os alunos-
292 A3: É um ótimo exemplo pra gente estagiários e a professora formadora sobre a
(MAGALHÃES, 2014, p. 136). importância daquelas visualizações durante a
disciplina de Estágio Supervisionado III:
A fala de P2, de certa forma, conforta ou
alivia “a culpa” que muitas vezes o aluno- 357 P: [...] vocês acham que esses
estagiário sente por cometer alguns “erros” comentários [das duas professoras
durante a sua prática ou por ainda não saber experientes em ACS], eles complementariam
suficientemente do métier e/ou da língua as observações que vocês fizeram durante as
estrangeira que (vai) ensina(r). Esse processo disciplinas de Estágio de observação?
dialógico entre alunos-estagiários, professora 358 A2: Sim. [A1 concorda com A2
movimentando positivamente a cabeça].
formadora e pesquisadora aqui estabelecido a
359 A3: Sim. Porque agora a gente tem o lado
partir da fala da professora experiente deles [A3 refere-se aos professores
desencadeia, pois, em A3 um aprendizado, uma experientes em geral] [...]. A gente segue um
tomada de consciência sobre o seu papel de cronograma [A3 refere-se às fichas
professor (ainda) em formação, apontando, no pedagógicas utilizadas durante a disciplina]
entanto, para uma transformação no futuro: que muitas vezes eles [professores
“Então tem que tentar melhorar como ela faz, experientes] nem têm acesso [...].
né?” (290 A3). [...]
Em sua análise sobre a fala de A3, 363 A1: E até a gente teve a oportunidade de
Magalhães (2014, p. 136-137) postula que o ver outros pontos que a gente não...
364 A3: Não deu atenção.
discurso de P2 impulsiona o processo de
365 A1: ... não viu, não prestou atenção na
desenvolvimento de A3: hora da... da observação, né?
[...]
Cabe, pois, afirmar que o papel da professora 376 A2: [A2 continua respondendo à
experiente P2 em ACS [autoconfrontação pergunta (357) da pesquisadora] Eu acho que
simples] foi condição sine qua non para “o surte muito efeito quando você realmente
despertar” dos processos internos de confronta os experientes conosco, no caso, nós
desenvolvimento de A3: “É um ótimo que estamos em sala de aula. Se isso fosse
exemplo pra gente” (292). Essa constatação aplicado, digamos, no Estágio I que é só
de A3 não se deu porque ela [a aluna- observação e o aluno não foi pra sala de aula,
estagiária] observou a cena da atividade inicial tudo bem, fica importante, ilustra, mas ele não
de P2, mas porque P2, confrontada com a sua vai ter a... a...
atividade inicial, fez comentários a respeito. 377 A3: A experiência.
Algo que nos confirma que somente a simples 378 A2: ... a experiência, né? Eu acho
observação da atividade inicial de professores interessante você aplicar no aluno que esteja
experientes não leva os alunos em estágio de realmente na sua atividade docente, porque
observação a compreender e a refletir sobre o você se identifica, né? [...]. Eu acredito que
real da atividade docente [...] [grifos da deva ser uma coisa concomitante.
autora]. 379 A3: Dentro da sala de aula e tendo a
experiência com o vídeo pra trabalhar os dois
Magalhães (2014), à luz da filosofia em conjunto, antes disso eu acho também que
bakhtiniana da linguagem e da teoria vigotskiana não é muito interessante.
sócio-histórico-cultural do desenvolvimento [...]
humano, faz uma análise mais aprofundada em 381 A1: [...] teve momentos que eu fiquei
sua pesquisa sobre a fala de A3 acima muito calada porque eu realmente eu ainda eu
apresentada, mostrando a importância do outro não tive uma sala de aula minha propriamente
como professora, então eu realmente não ia
como “[...] um elemento imprescindível na
responder uma coisa que eu não tinha certeza

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115
Abordagem clínica na análise da atividade docente: uma via unindo pesquisa, intervenção e formação

ou que eu não ia reagir daquela forma porque alunos-estagiários já terem vivenciado uma
eu realmente não tive contato ainda em sala de experiência prática em sala de aula como
aula como professora, então eu acho que professores de francês na disciplina de Estágio
precisa ter (MAGALHÃES, 2014, p. 152- Supervisionado II faz com que essas verbalizações
153).
sejam refletidas de forma mais eficaz para sua
[...]
406 A2: [...] se eu não tenho a experiência [A2 própria formação docente.
refere-se à experiência de já ter dado aula] é
como eu digo, fica... acho que fica um pouco A autoconfrontação simples na formação
complicado você se situar, porque você não inicial: resultados e perspectivas
passou pela experiência né? Eu acho que ela
acaba sendo essencial para que eu possa Em suas análises, Magalhães (2014)
realmente me identificar com o que tá entende que os alunos matriculados na disciplina
acontecendo, pra que eu possa realmente de Estágio Supervisionado III se apropriaram das
tirar dúvidas, pra que eu possa até refletir verbalizações das duas professoras experientes
em cima da minha própria atividade num
autoconfrontadas com suas atividades iniciais,
é? Às vezes a gente pensa que o trabalho da
gente não é válido ou a gente acha que não tá transformando-as em “instrumento”21 para
fazendo legal, a gente às vezes se diminui auxiliar na sua atual e/ou futura prática docente.
também, a gente se enche de dúvidas e
quando você assiste um vídeo como esse [...] ao realizarmos nossas análises,
você fica é... você renova suas esperanças, conseguimos perceber no discurso dos alunos-
suas forças né? [A3 mostra que concorda estagiários que as confrontações das duas
com A2 ao fazer um gesto positivo com a professoras experientes com suas atividades
cabeça] você se sente até com mais ânimo iniciais os levaram a melhor compreender o
pra poder entrar em sala de aula [...] real da atividade docente e o ensino como
(MAGALHÃES, 2014, p. 171). [grifos da trabalho, a desenvolver um olhar mais
autora]. aguçado sobre as ações pedagógicas do outro
e, consequentemente, sobre as suas próprias e
Em sua análise sobre esses trechos do a construir, desde a graduação, sentido para
suas (atuais e/ou futuras) atividades em sala de
diálogo, Magalhães (2014) compreende que a
aula. Ou seja, a ACS [autoconfrontação
experiência com os vídeos das duas professoras simples] demonstrou-se um instrumento
experientes em autoconfrontação simples foi (trans)formador no contexto desta pesquisa.
enriquecedora para os alunos-estagiários da As observações obrigatórias, exigidas pela
disciplina de Estágio Supervisionado III. Para a disciplina de Estágio Supervisionado III,
pesquisadora, essa experiência levou os alunos- foram complementadas pelos vídeos das duas
estagiários a refletirem sobre sua atual e/ou futura professoras experientes em ACS
prática docente. [autoconfrontação simples] e o envolvimento
dialógico ocasionado, [...] que se constituiu da
Observando, pois, o discurso do aluno- observação e da reflexão de uma observação
estagiário A2 (406) [...], confirmamos o que já confrontada pelo próprio profissional
havíamos mencionado no capítulo anterior docente, teve um caráter (trans)formador para
sobre a questão do “horizonte alargado” do os alunos-estagiários envolvidos neste estudo
qual falam Vieira e Faïta (2003, p. 50), (MAGALHÃES, 2014, p. 173). [grifo da
fundamentados na filosofia bakhtiniana da autora].
linguagem. Ou seja, para que os alunos-
estagiários se identifiquem melhor com as A inserção, portanto, de aportes
ACS [autoconfrontações simples] de provenientes da abordagem clínica e ergonômica
professores experientes é preciso que aqueles da atividade na formação de futuros professores
consigam perceber esse “horizonte alargado” de francês poderia ser uma forma inovadora de
do qual fazem parte os professores experientes levar para a formação inicial o real da atividade
(MAGALHÃES, 2014, p. 173). [grifos da docente. Além disso, também poderia ser salutar a
autora].
interação entre alunos em estágio de observação,
professores experientes observados e professor
Ou seja, Magalhães (2014) considera
formador da disciplina de estágio de observação
positivo para a formação profissional desses
para o processo de construção de conhecimentos
futuros professores o contato com verbalizações
sobre o métier docente.
de professores experientes sobre sua própria
atividade em sala de aula durante a disciplina de O quadro metodológico da autoconfrontação,
Estágio Supervisonado III e que o fato de esses

Horizontes, v. 35, n. 3, p. 105-120, set./dez. 2017


116 Rozania Maria Alves de Moraes, Elisandra Maria Magalhães

ao dispor do vídeo da atividade inicial como detalhadamente nos exemplos da pesquisa de


principal suporte para efetuar as observações e Magalhães (2014), os implícitos do métier
favorecer as trocas dialógicas, proporcionou docente podem ir até a sala de aula da
aos alunos-estagiários as condições universidade, viabilizando, assim, aos alunos-
necessárias para o desenvolvimento de
estagiários – no caso específico da pesquisa em
diálogos reflexivos sobre a atividade docente e
sobre sua própria formação inicial questão, entendemos os alunos da disciplina de
(MAGALHÃES; MORAES, 2016, p. 172). estágio de observação – a compreensão do real da
atividade dos professores observados. Mais
Nessa perspectiva, acreditamos que os especificamente, a autora mostrou, com sua
alunos em formação poderiam se beneficiar desse pesquisa, que é possível instaurar um dialógo
particular envolvimento dialógico entre formação entre expertise e formação inicial e,
inicial e expertise para aumentar seu poder de agir consequentemente, ressignificar esse momento da
sobre suas atuais e/ou futuras práticas docentes e prática de ensino.
até mesmo sobre eles próprios. Convém, aqui, ressaltar a importância dos
Em suma, com o auxílio do quadro pressupostos da Ergonomia da Atividade na
teórico-metodológico da autoconfrontação, os fundamentação das duas pesquisas expostas neste
alunos-estagiários teriam acesso ao invisível, artigo e esclarecer que, por limitações de espaço,
“porém não indizível” (MAGALHÃES, 2014, p. optamos por apresentar apenas a Clínica da
37), da atividade de professores experientes em Atividade em maiores detalhes. Para maior
sala de aula e poderiam, desde a graduação, detalhamento sobre como essas pesquisas
estabelecer um diálogo com a expertise apoiaram-se na Ergonomia da Atividade com o
profissional, ou seja, interagir com professores objetivo de intervir na formação inicial, sugerimos
experientes e com suas reflexões sobre sua própria a leitura das mesmas na íntegra.
atividade docente. Achamos também importante esclarecer
que por uma questão de objetivo pretendido na
Considerações finais escrita deste artigo, não foi possível abordar, com
o aprofundamento necessário, os conceitos
Com este breve estudo, tentamos, a partir círculo-bakhtinianos que subsidiaram as análises
da apresentação de duas pesquisas realizadas na das duas pesquisas e nem discorrer sobre a teoria
UECE, mostrar como as abordagens clínica e vigotskiana sócio-histórico cultural do
ergonômica da atividade e seus aportes teórico- desenvolvimento humano que, assim como
metododológicos podem intervir na formação Bakhtin e o Círculo, trata da linguagem como
inicial de professores de FLE, contribuindo para a motor de desenvolvimento humano.
transformação das atuais e/ou futuras práticas Em suma, a nosso ver, as duas
desses professores, para a ampliação de seu poder pesquisadoras – Moraes (2013) e Magalhães
de agir e, por conseguinte, para a sua própria (2014) – ao levarem as premissas das abordagens
formação profissional. clínica e ergonômica da atividade e o quadro
Nosso propósito foi, então, expor como teórico-metodológico da autoconfrontação para a
alunos em formação – já em sala de aula como formação inicial de professores de FLE,
professores, ou não – podem, com a intervenção intervieram positivamente para uma maior
de um professor formador e/ou de um aproximação dos alunos em formação com a
pesquisador, servirem-se dos princípios e métodos realidade de sua (futura) profissão e buscaram
que sustentam os estudos clínicos e ergonômicos mostrar que a formação inicial docente não é um
da atividade para refletirem e, eventualmente, para sistema de regras imutáveis e/ou inquestionáveis
transformarem suas atuais e/ou futuras práticas em estabelecidas pela licenciatura em Letras/Francês
sala de aula. da UECE. Moraes (2013) e Magalhães (2014)
Promover a verbalização do trabalhador mostraram que há, portanto, a possibilidade de se
sobre sua própria atividade em movimento e, em repensar, discutir e, mesmo, transformar os atuais
seguida, levar essa verbalização para o meio modelos de formação de professores de FLE nesse
acadêmico de formação inicial, contribuiu, nos curso.
contextos das duas pesquisas aqui expostas, para
mostrar o potencial que tem a linguagem na Notas
redução da distância entre formação inicial
docente e atividade real do professor e, por 1 Este trabalho foi apresentado em uma mesa
conseguinte, na formação de futuros professores redonda no III Colóquio Clínica da Atividade,
de FLE. na Universidade de São Paulo, em outubro de
Como pudemos verificar mais 2016. Agradecimentos a Fundação Cearense de

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117
Abordagem clínica na análise da atividade docente: uma via unindo pesquisa, intervenção e formação

Apoio ao Desenvolvimento Científico e travailleurs font et ce qu’ils en disent, et, pour


Tecnológico (FUNCAP). terminer, ce qu’ils font de ce qu’ils disent "
2 Ver Saujat 2004. (CLOT et al. 2000, p. 5).
3 O grupo de estudos LIFT está vinculado ao 10 Agence Universitaire de la Francophonie
Programa de Pós-Graduação em Linguística (AUF) – trata-se de uma associação
Aplicada da UECE e foi fundado em 2010 por internacional que reúne, no mundo inteiro,
Rozania Moraes. universidades, escolas, redes universitárias e
4 O Círculo de Bakhtin corresponde a um grupo centros de pesquisas científicas tendo em
de intelectuais, com formações e interesses comum o uso da língua francesa. Para maiores
diversificados, que viveram na Rússia, e que se detalhes consultar o site https://www.auf.org/
reuniram entre os anos 1919-1929, dentre os 11 A pesquisa teve como sujeitos duas alunas de
quais destacamos Mikhail Bakhtin, Valentin Letras/Francês e estagiárias do Núcleo de
Voloshinov e Pavel Medvedev. Línguas.
5 Parafraseando Clot (1999 [2006]), Friedrich 12 Nesse curso apresentamos a plataforma
(2012, p. 50) afirma que “O real da atividade francesa Neopass@ction e algumas situações ali
contém tudo o que não foi feito, mas que analisadas. Para maiores informações consultar
poderia ter sido para a realização da atividade.” o site http://neo.ens-lyon.fr/neo
6 “Sobre a questão dos métodos indiretos de 13 É importante ressaltar que todo o discurso dos
análise, Clot (2011) coloca que Vigotski, em alunos-estagiários, professora formadora e
seus estudos sobre psicologia, insiste que a pesquisadora se apoia no filme das aulas das
observação direta não é suficiente para duas professoras experientes e nos comentários
investigar os movimentos internos não que estas fazem sobre os vídeos de suas
realizados pelo sujeito, sendo, pois, essencial atividades em sala de aula.
certos métodos indiretos que consistam em 14 De acordo com o projeto pedagógico da
organizar a reduplicação da experiência vivida” universidade onde foi realizada a pesquisa de
(MAGALHÃES, 2014, p. 82). Magalhães (2014), o aluno do Estágio
7 A autoconfrontação é um processo dialógico de Supervisionado III cumpre 68h/a, das quais
análise e coanálise graças ao qual o(s) 38h/a são de teoria. Inclusas nas 30 horas
profissional(is) é (são) conduzido(s) por um restantes da disciplina estão as observações
analista externo a falar sobre seu trabalho e obrigatórias em sala de aula de francês em
sobre sua experiência profissional a partir do cursos de idioma e para fins específicos.
filme de sua própria atividade laborativa. 15 Os alunos-estagiários são identificados na
Detalhamos esse processo na seção seguinte. pesquisa de Magalhães (2014) por A1, A2 e A3,
8 Segundo Clot (2000, s/n), a instrução ao sósia a professora formadora da disciplina de Estágio
trata-se de um “exercício de instrução a um Supervisionado III por PF, a pesquisadora por P
sósia”. Mais precisamente, o analista externo e as duas professoras experientes no ensino de
propõe ao profissional o seguinte comando: francês língua estrangeira por P1 e P2.
supõe que eu sou teu sósia e que me encontro 16 Esclarecemos que na época da realização da
em situação de dever te substituir em teu pesquisa, as observações pedagógicas eram
trabalho. Quais são as instruções que devo efetuadas durante a disciplina de Estágio
seguir a fim de que ninguém se dê conta da Supervisionado I e de Estágio Supervisionado
substituição? Convém ressaltar que já nos anos III. Nas disciplinas de Estágio Supervisionado
1970 Ivar Oddone, médico e psicológo do II e de Estágio Supervisionado IV os alunos
trabalho utilizava o método da instrução ao realizavam o estágio de regência.
sósia com operários. Tal método permite ao 17 Essas fichas pedagógicas utilizadas durante as
profissional descrever ao analista a imagem e disciplinas de estágio de observação são
representação que ele tem de sua própria adaptações de um material em língua inglesa
atividade. Ou seja, trata-se de “uma dos anos 1990. Para maiores informações sobre
confrontação do trabalhador com os seus o assunto conferir Magalhães (2014) capítulo 2,
próprios planos, possibilitando uma crítica a tais seção 2.1.3.
planos e sua transformação” (MUNIZ et al. 18 Conferir Magalhães (2014) capítulo 4, seção
2013, p. 287). 4.4.
9 No original : “[...] une percolation de 19 Todos os temas (dúvidas e/ou dificuldades)
l’expérience professionnelle, mise en discussion discutidos pelos sujeitos da pesquisa de
à propos de situation rigoureusement Magalhães (2014) foram apontados pelos
délimitées. Un cycle s’établit entre ce que les próprios alunos-estagiários nas respostas que

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118 Rozania Maria Alves de Moraes, Elisandra Maria Magalhães

estes deram no questionário orientado. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis (RJ):


20 A palavra “erro” foi utilizada pela própria Editora Vozes, 2006.
professora P2 em sua fala durante a
autoconfrontação simples. Magalhães (2014, p. CLOT, Y. Entrevista : Yves Clot. Cadernos de
157-158) diz que “[...] o quadro metodológico Psicologia Social do Trabalho. Vol. 9, n. 2,
da autoconfrontação não tem como objetivo ir 2006a. p. 99-107.
em busca dos ‘erros’ dos professores, mas de
‘[...] fazer falar os sujeitos sobre seu trabalho’ CLOT, Y. A formação pela análise do trabalho:
(DARSES; MONTMOLLIN, 2006, p. 55), por uma terceira via. Tradução de Claudia Osario,
torná-los coanalistas de sua própria atividade Kátia Santorum e Suyanna Barker. Maneiras de
‘[...] para a transformação das situações de agir, maneiras de pensar em formação. 2000.
trabalho ordinárias’” (DUBOSCQ; CLOT, [S.I.:s.n.]. Não paginado. Disponível em: <
2010/2, p. 263). http://www.pqv.unifesp.br/Aformacaoatravesdaan
21 O conceito de instrumento é, aqui, entendido alisedotrabalhoYvesClot.pdf>.
no sentido utilizado na psicologia vigotskiana
sócio-histórico-cultural do desenvolvimento CLOT, Y.; FAÏTA, D. Gêneros e estilos em
humano. Segundo Friedrich (2012, p. 66), “(...) análise do trabalho: Conceitos e métodos.
utilizando os instrumentos psicológicos, o Tradução de Rozania Moraes e Aline Leontina
homem controla e influencia seu Gonçalves Farias. Revista Trabalho & Educação.
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Sobre os Autores:

Rozania Maria Alves de Moraes é professora Adjunta do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação
em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Possui Doutorado em Ciências da
Linguagem, pela Universidade Grenoble III (2005), e Pós-Doutorado em Ciências da Educação, pela
Universidade Aix-MArseille (2012).

Elisandra Maria Magalhães é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da


Universidade Estadual do Ceará. Bolsista da FUNCAP (Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento
Científico e Tecnológico).

Recebido em julho de 2017.


Aprovado em julho de 2017.

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