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Texto produzido para a aula de Prática de Ensino de Biologia I, do curso de Licenciatura

em Biologia da FFCLRP-USP, em 15/07/20.

A Formação de Professores de Biologia (EM) e o Estágio Supervisionado nas Escolas:


uma via de mão dupla para a formação inicial e a formação em serviço.
Clarice Sumi Kawasaki

Falamos a partir de um contexto de formação de professores de Biologia - Licenciatura


em Ciências Biológicas da FFCLRP-USP, onde desenvolvemos duas disciplinas-estágio –
Práticas de Ensino de Biologia I e II, as quais perfazem 150h (50%) de uma carga total
de 300h de estágio nas escolas do ensino médio.
Nessa formação docente, que integra Universidade-Escolas, a docência como base e a
escola pública como locus privilegiado dessa formação são os focos centrais, para os
quais convergem os movimentos de ação-reflexão-ação desenvolvidos em um Projeto
Integrado de Estágio. Projeto esse que antes desse período de pandemia, integrava
diretamente PEBio I e Didática e indiretamente as demais disciplinas pedagógicas do
curso de licenciatura em Biologia desta Faculdade.
O exercício da docência implica tomar várias decisões político-pedagógicas, as quais o
licenciando em sua formação inicial precisa se inteirar, fazendo uma boa leitura do
contexto em que irá atuar e interagir com os professores, alunos e outros profissionais
da escola. Entende-se que esse é o primeiro passo para construir um projeto de
estágio com a instituição escolar, evitando invadir um espaço do outro com questões e
assuntos que se afastem das finalidades da escola, de pouca relevância e
descontextualizados.
Nesse sentido, o texto inicia trazendo um dado atual da realidade educacional
brasileira que impacta enormemente uma discussão sobre a formação de professores.
Bizzo e Andrade (2018) discutem as implicações do documento denominado “Base
Nacional Comum Curricular” (BNCC, BRASIL, 2018) para a formação docente,
particularmente na área das Ciências Naturais. Paralelamente ao novo currículo para a
educação básica, o Plano Nacional de Educação traz os novos cursos de formação de
professores, em nível superior (graduação e pós-graduação). Trata-se de uma
regulamentação que vem extinguir a formação especializada nas ciências, instituindo
uma nova formação científica generalista para os professores de toda a educação
básica, e trazendo uma série de implicações, tanto epistemológicas como legais.
Freitas em seu blog, afirma que a BNCC não tem a função de orientar a educação
nacional e sim a de padronizar competências, habilidades e conteúdos do currículo
escolar, já que essa é obrigatória e não uma referência para os professores. A BNCC
está dentro de uma política educacional nacional que busca um alinhamento com as
demais políticas educacionais no país - avaliação censitária nacional, produção de
materiais instrucionais, apostilas e livros didáticos (que serão padronizados) e
formação inicial e continuada de professores, tornando os professores, coadjuvantes
dos processos educacionais na escola, pois esses deverão apenas conhecer e aplicar a
BNCC. É nesse cenário de “invisibilização” das disciplinas e áreas historicamente
constituídas e de desvalorização do professor e de sua formação que se propõe o
desenvolvimento do Ensino de Ciências/Biologia hoje.
Todo esse olhar sobre a escola e o ensino de Biologia não poderia ocorrer a partir de
uma perspectiva de formação docente que não oferecesse espaço para as mediações
educacionais que desenvolvemos entre ciência referência-ensino, escola-sociedade e
universidade-escola. É nesse contexto que abordaremos a formação docente
desenvolvida no curso de licenciatura em Biologia da FFCLRP-USP que busca enfrentar
o modelo 3+1, apropriando-se das várias contribuições oriundas desse campo da
Pedagogia, sendo o estágio o principal eixo organizador desse percurso formativo que
se dá ao longo de todo o curso de licenciatura.
Se fizermos uma retrospectiva dos modelos de formação docente ao longo do tempo,
verificaremos a existência de formatos mais tradicionais, como o famigerado modelo
3+1 (de minha formação e que persiste até os dias de hoje), no qual o perfil do
professor é o de técnico-especialista que aplica com rigor as regras advindas do
conhecimento científico, estabelecendo-se uma relação linear e hierárquica entre o
conhecimento científico e as suas aplicações práticas. Essa formação traz
implicitamente um modelo de aquisição do conhecimento que deverá guiar as ações e
condutas do professor em sala de aula, ou seja, uma concepção de ensino e
aprendizagem a ser seguida pelo professor (PÉREZ GÓMES, 1997). Aqui o
conhecimento do conteúdo específico, isto é, os conhecimentos básicos da área
disciplinar do professor estão dados pelas disciplinas específicas da Biologia (nos
primeiros anos do curso); as disciplinas pedagógicas viriam apenas complementar esse
conhecimento específico dado (no final do curso), trazendo abordagens pedagógicas
gerais. Até há pouco menos de dez anos, esse era o modelo vigente nos cursos de
licenciatura desta Unidade, no qual o conteúdo biológico a ser ensinado ou “o que” já
estava dado, cabendo às disciplinas pedagógicas ensinar o “como” ensinar, buscando
as melhores e mais inovadoras técnicas e métodos de ensino.
Outros modelos formativos, onde o professor envolve-se e participa ativamente da
elaboração e implementação da proposta curricular a ser desenvolvida na escola, são
discutidos por Lastoria e Assolini (2017). A partir de contribuições de Mizukami e
outros (2002), as autoras tratam da base do conhecimento para o ensino do professor.
Em um desses modelos, atribuído a Shulman (1986 e 1987), o professor transforma
seu conhecimento do conteúdo específico a partir dos propósitos do ensino, onde ele
desenvolve um conhecimento especifico da docência, ou seja, o conhecimento
pedagógico do conteúdo específico. Tanto na formação inicial como na continuada, o
professor desenvolve um novo tipo de conhecimento da área específica, que é
construído por ele e que se refere ao conhecimento de como ensinar algo, como o
professor pensa pedagogicamente um conteúdo específico, isto é, o raciocínio
pedagógico do professor.
Apoiado nos pressupostos do pensamento de Dewey, nos quais é enfatizada a
aprendizagem através do fazer, surge no cenário formativo o professor-reflexivo
(SCHÖN, 2000). Embora o objeto de análise desse autor, nunca tenha sido
propriamente os professores, sua proposta teve enorme aceitação na educação por
valorizar os saberes profissionais e apresentar-se como alternativa à racionalidade
técnica dos modelos formativos tradicionais. A partir da conceitualização de
“experiência”, o autor formula uma nova epistemologia da prática, em torno de três
princípios: o primeiro se refere à reflexão na ação, que se dá enquanto o professor
está vivenciando esta situação, refletindo sobre as questões que são postas em seu
cotidiano como situações problemáticas; o segundo se refere à reflexão sobre a ação,
que consiste em pensar retrospectivamente sobre o que foi feito, pensando sobre a
reflexão-na-ação passada, consolidando o entendimento de determinada situação e,
desta forma, possibilitando a adoção de uma nova estratégia; e o terceiro se refere à
reflexão sobre a reflexão sobre a ação, que é um processo mais elaborado, que
repousa no ato de pensar sobre a reflexão na ação passada, consolidando o
entendimento de determinada situação e possibilitando a adoção de nova estratégia.
O movimento que valoriza a pesquisa na formação do professor é bastante recente e
ganha força no Brasil entre 1980 e 1990, mediante a publicação de uma coletânea
organizada por Nóvoa em 1992, possibilitando contextualizar e problematizar o que
vem a ser um professor pesquisador, um professor reflexivo e o papel da pesquisa na
educação, sob diferentes pontos de vista (FAGUNDES, 2016). O professor-pesquisador-
reflexivo é o sujeito que pensa e se pensa a partir da ação (NÓVOA, 2001), surgindo
como um movimento contra-hegemônico, frente ao processo de desprofissionalização
do professor e de instrumentalização da sua prática. Nesse modelo, são dadas as
condições para o professor assumir a sua própria realidade escolar como um objeto de
pesquisa, de reflexão e de análise.
De qualquer modo, algumas limitações a esses modelos são apontadas. Nunes (2010)
aponta ao problema de que as definições das políticas de ensino e de capacitação
profissional são feitas por especialistas e administradores e não pelos próprios
professores, não levando em conta suas experiências. Além disso, a atividade docente
é caracterizada pela individualidade e não pela coletividade ou os grupos, afetando a
reflexão dos professores, já que não conseguem incorporar o dado de outros
profissionais. Dentre outras críticas, há a de que a maior parte dos professores não
procura a pesquisa educacional para instruir e melhorar as suas práticas e a de que os
acadêmicos, envolvidos nos movimentos dos professores pesquisadores tem sido, na
maioria das vezes, para produzir uma literatura acadêmica sobre a pesquisa de
professores ou para produzir manuais e livros-textos para professores sobre como
pesquisar. De qualquer modo, esses formatos limitam-se a saberes disciplinares e
curriculares.
Tardif (2002), ao direcionar o olhar para os saberes profissionais e da experiência dos
professores, traz contribuições para além dos saberes das disciplinas e dos currículos.
Para ele, o professor é reconhecido como um profissional que possui um saber próprio
que se origina principalmente de sua experiência prática e pessoal, que ele adquire ao
longo de sua profissão e vida. A observação e a investigação da rotina dos professores
no cotidiano da escola são propostas por Lastória e Assolini (2017), a fim de conhecer
esses saberes profissionais e da experiência diminuindo a distância entre universidade
e escola.
Para além desses processos formativos que focam em uma ação individualizada do
professor, surgem experiências significativas referentes aos programas de formação
continuada de professores (FURIÓ e CARNICER, 2002) que norteiam o ensino como
processo investigativo envolvidos em grupos cooperativos, onde os saberes sobre a
docência são elaborados e produzidos pelos professores e educadores. Mudanças
significativas com o trabalho docente só ocorrerão, segundo esses autores, quando os
próprios professores incorporarem tarefas de inovação e investigação sobre os
problemas de ensino, em colaboração com equipes de professores universitários e em
serviço criando as “redes de investigadores e professores associados”. O professor
passa de consumidor da investigação de outros, para produtor das suas próprias
investigações, gerando mudanças epistemológicas relacionadas à ciência e ao seu
ensino, alterações atitudinais via investigação didática e mudanças metodológicas. A
experiência de Lastória (2008) desenvolvendo uma prática de pesquisa formativa e
investigativa na construção coletiva de um atlas escolar histórico, geográfico e
ambiental de Ribeirão Preto, ilustra bem essa perspectiva formativa.
Todavia, a perspectiva de formação docente, cujos avanços no campo teórico são
crescentes, precisa estar sintonizada à realidade escolar e à relação existente entre
Universidade e Escolas (campos de estágio) e essa, pelo menos na perspectiva que
desenvolvemos atualmente, está (bem) longe de ser colaborativa. Mal conseguimos
estabelecer um estagio em que um planejamento conjunto seja feito com as escolas,
havendo atualmente apenas quatro escolas onde conseguimos alguma parceria neste
momento. Não há um convênio institucional entre Universidade e Escolas, não há
apoio logístico para o licenciando e os professores desenvolverem essa parceria, não
há horário previsto para esse estágio na grade curricular do curso de Biologia e há
pouco espaço-tempo nas escolas para o desenvolvimento de processos mais
colaborativos de formação docente. E para piorar, estamos em um contexto de
pandemia mundial, que nos impede de uma interação presencial com a escola. É nesse
cenário pouco promissor, que colocamos em um horizonte futuro, a possibilidade de
trabalhos colaborativos com as escolas.
De qualquer modo, há todo um esforço das disciplinas de PEBio I, Didática e PEBio II na
direção de uma proposta de integração entre formação inicial e continuada/em
serviço, em uma via de mão dupla, por meio de um planejamento conjunto dos
estágios supervisionados com as escolas públicas de Ribeirão Preto, enfatizando um
processo contínuo de desenvolvimento profissional do professor (ANDRÉ e outros,
1999; GARRIDO, 2001; ZEICHNER, 1998) e de valorização da reflexão e da coletividade,
tendo a escola como espaço privilegiado para essa formação (CANDAU, 1997; MARIN,
1995; PORTO, 2000).

Referências Bibliográficas:
BIZZO, N. e ANDRADE, C.C. Reformas Educacionais e a Formação de Professores de
Ciências. In: FOGUEL, D.; SCHEUENSTUHL, M.C.B. (organizadores). Desafios da
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Ciências, 2018.
FAGUNDES, T.B.F. Os conceitos de professor pesquisador e professor reflexivo:
perspectivas do trabalho docente. Revista Brasileira de Educação, (21) 65, abr.-jun.
2016
FURIÓ, C.; CARNICER, J. El desarollo profesional del professor de Ciências mediante
tutorias de grupos coooperativos. Estudio de otros casos. Ensenanza de Las Ciências,
(20)1: 47-73, 2002.
IBIAPINA, I.M.L.M. Pesquisa colaborativa: Investigação, formação e produção de
conhecimentos. Brasília/DF: Liber Livro Editora, 2008.
LASTÓRIA, A.C.; ASSOLINI, F.E.P. A base de conhecimento para o ensino, os saberes da
profissão docente e as rotinas dos professores. In: MASSABNI, V.G. (org.). Ensaios
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LASTÓRIA, A.C.; TINÓS, L.M.S. Comunidade de Aprendizagem Profissional e estudo da
Localidade de Ribeirão Preto-SP. Anais Simpósio de Formação de Professores e
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LASTORIA, A. C. A construção coletiva do atlas escolar do município de Ribeirão Preto.
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NÓVOA, A. Os professores e as histórias da sua vida. In: NÓVOA, António. Vidas de
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NÓVOA, A. Profissão docente: Há futuro para esse ofício? VII Congresso Internacional
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PÉREZ GÓMEZ, A.I.A. O pensamento prático do professor: a formação do professor
como profissional reflexivo. In: NÓVOA, A. (org.). Os professores e a sua formação.
Lisboa: Dom Quixote, 1997.
SCHÖN, D.A. Educando o Profissional Reflexivo: um novo design para o ensino e a
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SAMBUGARI, M.R.N. Educação continuada coletivizada como espaço de investigação
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set./dez. 2010.
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 2ª ed. Petrópolis, Vozes, 2002.

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