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Orientação:
Prof. Dr. José Sávio de Oliveira Araújo
Natal/RN
2019
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Natal/RN
2019
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BANCA EXAMINADORA
AGRADECIMENTOS
Agradeço...
A Ravi, filho querido e maior aventura que vivi até hoje, inesperado presente do
universo, em meio a esse processo tão atribulado e devastador;
Ao professor Makarios Maia Barbosa, eterno Mestre, que me colocou no caminho da
pesquisa e que sempre buscou no âmago do meu ser a fagulha da criação, através da
qual posso me descobrir e a tantas outras coisas;
À minha amada família, suporte afetivo que me mantém firme na jornada; sobretudo à
minha mãe Rosangela Vasconcelos e minhas irmãs Roberta e Gilmara; e as queridas
Gerlane Silva e Thaíz Zilte, sem as quais nada disso seria possível; e ao meu pai
Gilmar Xavier Damasceno – que já não está presente, mas que também teve parte
marcante nessa trajetória – e seu irmão, meu tio Gildo Xavier Damasceno, cujos
exemplos de generosidade, justiça e amor desmedido me acompanharão, servindo de
guia;
Em especial ao meu grande amor, Arandú Tessaporam Pinheiro, um companheiro de
verdade, e nossos filhos Kaluanã e Ravi;
Aos amigos Everson Oliveira da Cruz e Priscilla Dayanne silva de Oliveira, exemplos
de generosidade e altruísmo; pessoas que quero ter comigo para toda a vida;
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte;
Ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGARC da UFRN;
À CAPES, cujo investimento facilitou a dedicação a esse trabalho;
Ao professor Dr. José Sávio de Oliveira Araújo, meu orientador, pela crença e
autonomia votadas a esse trabalho;
Aos professores Dr. Jefferson Fernandes e Dr.ª Adriana Vaz Ramos, cujos
apontamentos foram decisivos para a transfiguração e o transcurso do que
investigamos;
Aos queridos actantes investigados: Híkel Brawn, Sebastião Silva, Henrique Fontes e
César Ferrario, que gentilmente compartilharam conosco um pouco de suas trajetórias
nos palcos e nas salas de ensaio;
Às “vozes de outros cantos”, cujas canções ressoam através de nós e de tantos outros;
Ao Comboio de Teatro e a cada uma de suas componentes, por serem o meu “lugar”
enquanto artista, e compreenderem as necessidades, distanciamentos, retornos,
mudanças;
Aos colegas “chafurdentos” da turma do PPGARC 2016, com os quais pude aprender
muito;
Ao presidente Luís Inácio Lula da Silva – o Lula; e à Presidenta Dilma Rousseff, cujas
políticas de acesso ao ensino superior de qualidade tornaram o sonho do diploma
possível.
5
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho ao professor Makarios Maia Barbosa, querido amigo e mestre,
cuja crença, apoio, cobranças e amizade foram fundamentais para a compreensão da
maquiagem como algo que está além do que foi convencionado e para as reflexões que
ora fazemos sobre esse tema. Eu posso dizer com convicção que, sem suas provocações
e ensinamentos minha formação, inclusive pessoal, não seria a mesma.
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RESUMO
Em meio às diversas pesquisas que se realizam acerca das cenografias e das tecnologias
da cena, ainda é possível pensar uma “dramaturgia da cara pintada”? As reflexões que
fazemos em torno de uma dramaturgia da “cara pintada” assentam-se na área das Artes
Cênicas, como um estudo teatral alinhado à perspectiva de um teatro que compreenda a
imagem e o corpo para além do entendimento que tivemos na modernidade, ou seja,
compreendemos o corpo como percepção e sentido e a imagem, como um dispositivo e
uma presença. Para tanto, fazemos uso da percepção, aos moldes da fenomenologia
(Merleau-Ponty, 1996); da experiência como método de produção de conhecimento
(Larossa, 2002) e da dramaturgia como tessitura da teatralidade (Pavis, 1999; 2003;
2017), a partir de uma semiologia (Barthes, 1987; 2007) do mundo contemporâneo. Isso,
porque reconhecemos a “pintura da cara” como um fenômeno que está para além da
compreensão da maquiagem enquanto tecnologia de cena ou aparato visual ou técnica
cenográfica ou, mesmo, estética da composição plástica da personagem. O presente
trabalho considera a “cara pintada” um dos momentos mais significativos da criação
teatral contemporânea, apresentando-a como uma possível solução para o problema da
maquiagem como uma poética da cena. Partimos da investigação do ato de pintar-se como
poética do sujeito para discutir a importância da pintura da cara enquanto elemento
civilizatório humano. Para tal, organizamos uma breve “cosmogonia” acerca das
narrativas que estes constroem através de suas pinturas para construir significados na
sociedade em que estão inseridos, através de um “sistema da linguagem” que se organiza
na “figura” através da pintura. A partir daí, buscamos investigar a possibilidade de uma
leitura da “experiência” da pintura do rosto e dos aspectos de seu uso na cena teatral,
como um fenômeno dramatúrgico. Para isso, tentamos discutir a maquiagem, em seu
sentido mais amplo, como manifestação da teatralidade e o fazemos relatando e
dialogando com fenômenos de composição plástica a partir de experiências práticas de
actantes. Acreditamos na cara pintada como uma síntese conceitual cíclica da mise-en-
scène: drama + ação + tempo/espaço + imagem + percepção + leitura + comoção +
entendimento + novo drama. Dessa forma, no hall das novas dramaturgias, a cara pintada
pode ser compreendida como uma poética teatral da cena.
ABSTRACT
Amid the many researches that are being done about the scenography and technologies
of the scene, is it still possible to think of a “painted face dramaturgy”? The reflections
we make around a painted face dramaturgy are based on the Performing Arts area, as a
theatrical study aligned with the perspective of a theater that understands the image and
the body beyond the understanding we had in modernity, or that is, we understand the
body as perception and meaning and the image as a device and a presence. To do so, we
make use of perception, along the lines of phenomenology (Merleau-Ponty, 1996); of
experience as a method of knowledge production (Larossa, 2002) and of dramaturgy as a
fabric of theatricality (Pavis, 1999; 2003; 2017), from a semiology (Barthes, 1987; 2007)
of the contemporary world. This is because we recognize “face painting” as a
phenomenon that goes beyond the comprehension of makeup as scene technology or
visual apparatus or scenographic technique or even aesthetics of the plastic composition
of the character. The present work considers the "painted face" one of the most significant
moments of contemporary theatrical creation, presenting it as a possible solution to the
problem of makeup as a poetic of the scene. We started by investigating the act of painting
as a subject's poetics to discuss the importance of face painting as a human civilizing
element. To this end, we organized a brief "cosmogony" about the narratives they
construct through their paintings to construct meanings in the society in which they are
inserted, through a "language system" organized in the "figure" through painting. From
there, we seek to investigate the possibility of a reading of the "experience" of face
painting and the aspects of its use in the theatrical scene, as a dramaturgical phenomenon.
For this, we try to discuss makeup, in its broadest sense, as a manifestation of theatricality
and we do it by reporting and dialoguing with phenomena of plastic composition from
the practical experiences of actors. We believe in the painted face as a cyclical conceptual
synthesis of mise-en-scene: drama + action + time / space + image + perception + reading
+ commotion + understanding + new drama. Thus, in the hall of the new dramaturgies,
the painted face can be understood as a theatrical poetic of the scene.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............. 10
DO OBJETO E SEUS RECORTES ............. 12
DO CAMINHO TRILHADO E DO QUE SURGE À FRENTE ............. 13
DE “CARA LIMPA” OU A APROXIMAÇÃO COM O NOVO OBJETO ............. 19
A EXPERIÊNCIA COMO PERCEPÇÃO E ANÁLISE ............. 27
DA INVESTIGAÇÃO E SEUS APORTES METODOLÓGICOS ............. 33
INTRODUÇÃO
Não, solidão!
Hoje não quero me retocar
Nesse salão de tristezas
Onde as outras penteiam mágoas...1
Descobre o peito
Pinta a boca e beija o espelho
Que reflete a silhueta que você acabou de descobrir... 2
Venho para a festa, sei que muitos têm na testa
O deus-sol como um sinal, um sinal... 3
Que coisa incrível o meu coração
Todo pintado e nessa solidão
Espera a hora de sonhar... 4 5
As reflexões que ora fazemos em torno de uma dramaturgia da “cara pintada” são
fruto de uma pesquisa que durante um longo tempo se pautou pela tentativa de
6
compreensão do exercício criativo do actante quando maquiador e da ação de
1
Canção A Mais Bonita (Chico Buarque – 2003).
2
Canção Da Menina (Tulipa Ruiz – 2010).
3
Canção Palco (Gilberto Gil – 1981).
4
Canção Sonhos De Um Palhaço (Antônio Marcos – 1980).
5
As notas referentes às canções utilizadas neste trabalho foram colhidas no Dicionário Cravo Albim da
Música Popular Brasileira, acessadas em: <http://dicionariompb.com.br>.
6
Doravante, utilizaremos a expressões actante ou actantes, sem grifo tipográfico, para nos referir a atores
e atrizes, considerando o trabalho desses sujeitos para além da presença física na cena, mas como poética
de construção de personagens, personas, caracteres, simulacros etc., na acepção que a semiologia do teatro
11
“construção de um rosto” para sua personagem, partindo da hipótese de que esta seria
uma das manifestações da poética de atuação. O que buscávamos era perceber nuances
do fenômeno criativo no gesto de compor a maquiagem para ser uma força actante na
personagem.
A pesquisa que realizamos para este trabalho se reconhece dentro da área das Artes
Cênicas como um estudo teatral. Aceitamos que a maquiagem – em seu sentido mais
amplo – é a pintura da cara: o ato, o espírito, o significado da coisa. Acreditamos que a
“cara pintada” é mais que uma tecnologia de cena, que um aparato visual, que uma técnica
cenográfica, que uma estética da composição plástica da personagem. O presente trabalho
considera a “cara pintada” um dos momentos mais significativos da criação teatral
contemporânea.
tem utilizado tal expressão. Nossa intenção é unificar numa mesma percepção os agentes da cena, quer
sejam atores ou brincantes ou sacerdotes etc. O professor Patrice Pavis descreve o esquema actancial (em
que o actante é o agente da ação) como tem sido utilizado na semiologia teatral. (PAVIS, 1999, p. 8).
12
Sendo assim, não se trata de promover uma “discórdia” entre Objeto e Sujeito.
Isso, toda a Filosofia da Ciência, na contemporaneidade, já discute. Trata-se, então, de
promover um distanciamento – ao modo operado no Teatro Épico (FERNANDES, 2006)
– como posicionamento formal do Sujeito frente ao seu Objeto e à carga sensível e, da
mesma forma, semântica que este deve destinar à sua pesquisa.
2ª) Qual é (era/será) o Objeto de Pesquisa? Que recortes foram feitos para nutrir
tal Objeto? Poderíamos utilizar os recortes anteriores? O Objeto recortado se dava à
qualidade de uma investigação em nível de Mestrado? Que Objeto emerge a partir dessa
problematização?
3ª) Que hipóteses nascem a partir do novo Objeto? São hipóteses ou pressupostos
refletidos que levam a Questões Problemas? Que Questões? Que Questão é central ao
novo Objeto recortado?
4ª) Considerando a reforma que essa problematização provocou, que novas fontes
de investigação se estabeleceram? Que fontes são primárias? Que fontes, mesmo de
segunda ou terceira ordem, podem corroborar a densidade da investigação?
6ª) E quais os fundamentos que este novo Objeto exige? Que aporte teórico se dá
ao enquadramento das metodologias usadas na nova organização da pesquisa? Quais as
novas Referências e como dialogam com os resultados da investigação produzidos
anteriormente?
continuar com o pensamento redutor que se volta apenas para o figurino [...]” (Idem, p.
6-7), uma vez que nas obras contemporâneas – especialmente, nas artes do espetáculo –
a complexidade dos elementos postos em cena requer a compreensão dos campos de
significação de cada elemento, em particular, e sua manifestação no conjunto em que se
encontra inserido.
7
Fisiognomonia é uma “[...] teoria citada e aprovada por Goethe, que o desenho do perfil dos rostos
humanos expressasse a qualidade mais ou menos sutil ou civilizada de seus portadores. Martine Dumont,
num lúcido artigo de análise desse episódio pouco conhecido das idéias[sic] “físico-morais” do Ocidente,
sugere que se estivesse assim procurando reintroduzir pela mão de uma teoria científica, naturalizante, as
recém desacreditadas teorias tradicionais da diferença dos entes políticos”. (DUARTE, 2004, p. 10).
8
O psicanalista francês Didier Anzieu explica que “Envelope é uma noção abstrata que exprime o ponto
de vista de um observador minucioso, mas de fora” (1989, p.67). Na semiótica, de acordo com Fontanille,
o sujeito, a partir da experiência sensorial, passa a perceber seu próprio envelope, tanto no campo transitivo
quanto no recursivo. Desse modo, todos os objetos palpáveis, odoríficos, auditivos ou visíveis são dotados
de envelopes e podem envolver qualquer coisa com suas capas englobantes. Além disso, “o envelope
converte-se em uma parte característica de algo transformado em actante do mundo sensível” (2004a, p.
109). O envelope corporal seria “o resultado da energia do mundo ou do corpo-carne, aplicada à matéria
corporal, tratada como forma reativa e resistente” (FONTANILLE, 2004a, p.128). (MAGALHÃES, 2010,
p. 52).
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Além disso, o autor faz um levantamento dos aspectos metodológicos que vêm
sendo empregados no ensino da maquiagem em seis universidades brasileiras em que, a
partir das entrevistas realizadas com os professores responsáveis, SAMPAIO (2015)
analisa as propostas metodológicas de ensino, sua aplicação e seus resultados, e os
compara com sua própria experiência docente.
[...] Martine Dumont, num lúcido artigo de análise desse episódio pouco
conhecido das idéias[sic] “físico-morais” do Ocidente, sugere que se estivesse
assim procurando reintroduzir pela mão de uma teoria científica, naturalizante,
as recém desacreditadas teorias tradicionais da diferença dos entes políticos
(cf. M. Dumont, 1984). Sem dúvida, disso se tratava, mas – na verdade – de
muito mais do que isso. Não apenas a recusa ao igualitarismo político
característico da Revolução Francesa e do primeiro Napoleão, mas a recusa de
todo o universalismo, inclusive no seu aspecto fisicalista, já que se tratava
exatamente de reintroduzir uma medida “físico-moral”, uma nova mediação
positiva e localizada entre a matéria e o espírito. (DUARTE, 2004, p. 10).
Ou seja, crer no rosto como suporte definido e tácito, presente nos traços
fisionômicos de alguém, pode ser um exercício de fundo determinista, historicamente
aprisionador, que reduz o rosto do actante em sua mera condição de suporte. Pode mesmo
ser algo de fundo etnocêntrico, que incorre em negação dos processos de autoconstrução
e de auto expressão que pertencem à ordem da criação artística e do corpo. Não
compreendemos a maquiagem como desenvolvimento de rostos, mas como dramaturgia
na composição dos rostos para a cena.
nela reconhecer a falta de valor e eficácia nos meandros teórico-metodológicos dos seus
objetos de estudo.
Sobre este tema não é sem motivo que os principais teóricos, desde a Antropologia
até as Artes, insistem em aludir a apetência e competência dos estudiosos de qualquer
tema destas áreas a condição de pertencimento, pertinência e presença, portanto, de
aproximação.
Quem nos demonstra isso é Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química de 1977,
professor da Universidade Livre de Bruxelas e da Universidade de Austin, no Texas,
juntamente com a sua colaboradora Isabelle Stengers, em um livro necessário à
compreensão do que fazemos como pesquisadores da Artes: um livro sobre o Tempo,
intitulado A Nova Aliança (1987).
9
Maurice Merleau-Ponty foi um filósofo existencialista francês que, partindo do estudo da percepção,
desenvolvera uma sólida base de reflexão acerca da Fenomenologia, reconhecendo que o "corpo próprio"
não é apenas uma coisa, um objeto potencial de estudo para a ciência, mas também é uma condição
permanente da experiência, a abertura perceptiva para o mundo e seu investimento. Com seu trabalho,
22
Prigogine; Stengers (1987) nos apresentam outro cientista que, como Merleau-
Ponty e Bergson, busca compreender a experiência humana como um processo
11
pertencente à natureza, como existência física. Trata-se de Alfred North Whitehead ,
um filósofo, lógico e matemático britânico que repudia a tradição filosófica mecanicista.
o impediu de ir receber o Nobel de Literatura de 1927 em Estocolmo. Faleceu em 4 de janeiro 1941, aos 81
anos, em Paris.
11 Alfred North Whitehead foi um filósofo, lógico e matemático britânico. É o fundador da escola filosófica
conhecida como a filosofia do processo, atualmente aplicada em vários campos da ciência, como dentre
outros na ecologia, teologia, pedagogia, física, biologia, economia e psicologia.
24
Dessa forma, a vida e o universo, assim como, a filosofia que nutre a ciência e a
ciência que se nutre da filosofia, não podem desconsiderar que toda investigação se trata
de uma situação histórica e não de um destino, e nem a ciência nem a cultura estão votadas
a ficar prisioneiras dessa confusão.
De acordo com a teoria clássica das sensações, o que alcançaríamos dos objetos
seria somente a sua representação, como um reflexo no espelho. Desta forma,
uma mesa ou um rochedo seriam, antes de mais nada, um conjunto de
conteúdos de consciência perdendo toda a sua substância. É como se os objetos
se diluíssem na consciência [...] (SARTRE, 2005, p.55).
“[...] fazer da imagem uma cópia da coisa, existindo ela própria como uma coisa”
seria, para o filósofo existencialista, a “metafísica ingênua da imagem” (SARTRE, 2008,
p. 9). A imagem não é a coisa acrescida ao nosso modo de pensar, de deduzir, de abstrair,
ela é por si a coisa encontrada na leitura.
A cadeira não está jamais na consciência. Nem mesmo como imagem. Não se
trata de um simulacro da cadeira que penetra imediatamente na consciência
[...] trata-se de um certo tipo de consciência, isto é, de uma organização
sintética que se relaciona diretamente com a cadeira existente e cuja essência
26
E isso não nos serve. Isto é mais uma armadilha que estrutura nossa arte e nossos
saberes em dizeres “estrangeiros” a nós. Quando, na verdade tratava-se de agir na
definição de um novo campo problemático, no âmago do que investigávamos, conforme
apreendemos a partir da leitura de Bergson, Merleau-Ponty, Whitehead (apud PRIGOGINE;
STENGERS, 1987).
A questão que se apresenta, agora, para nós é não estruturar, já de saída, o que
poderíamos encontrar como conhecimento na prática cênica da maquiagem. A questão
não é compreender a experiência da maquiagem fora dos contornos da experiência
27
humana. Assim, os processos físicos de “existir” e “fazer arte”, daquele jeito que
fazíamos, não estariam fora de um universo de coerência da pesquisa.
Sabemos, que não podemos encontrar uma separação, uma distância, entre a forma
e o conteúdo. E o filósofo francês Jacques Derrida, em Força e Significação (2002),
destaca que algumas ideias-forças do estruturalismo nada mais são do que ações
“vingativas” contra a intuição, a percepção sensível.
De fato, não estamos aludindo às ciências naturais, nem tão pouco à história
natural como preposto no parágrafo acima. Estamos nos referindo às ciências humanas, a
análise das Artes e das práticas poéticas assentadas neste território do conhecimento.
Por maior que possa ser a gratidão que se deve experimentar pelo espírito
objetivo [...] é preciso ter cautela mesmo com a própria gratidão, evitar os
exageros, que na renúncia à independência e à personalidade do espírito surge
um escopo em si, uma redenção e uma transfiguração [...]. (NIETZSCHE,
1992, p. 124).
É neste intuito que a análise arqueológica e reflexiva nos serve como aporte
teórico metodológico para a presente pesquisa. Da mesma maneira, a consciência
imaginativa que temos das imagens de maquiagem, dentro de espetáculos teatrais
precisos, tomadas como experiências: 1) manifestas no fenômeno de se maquiar e de
apresentar publicamente; 2) de observarmos criticamente seus meandros, como algo que
nos perpassa, como vida e poética, é nosso intento metodológico.
Tais preceitos são pensados a partir da ideia de percepção sensível que ultrapassa
a herança metafísica e se nos apresenta como experiência, a partir da revisão crítica da
contemporaneidade teórico-filosófica, que se pode encontrar na obra de inúmeros
cientista, tais como Prigogine, Stengers, Whitehead; e de filósofos, tais como Nietzsche,
Sartre, Merleau-Ponty, Foucault, Derrida, conforme abaixo apresentados pelo sociólogo
Anthony Giddens (2002),
[...] Isto significa que não pode fazer face aos traços definidores da nossa
humanidade. E esse é o facto de sermos capazes de refletir sobre a nossa
própria história, quer como indivíduos, quer como membros da sociedade mais
vasta; e de usar essa reflexão justamente para alterar o curso da história. Esta
perspectiva está ausente em todas as formas de filosofia e de teoria social –
usualmente referidas como “positivismo” – que tentam moldar as ciências
sociais às ciências naturais. (GIDDENS, 2002, p. 160).
31
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que
se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas,
porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se
passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um
texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso
mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais
rara. (LAROSSA, 2002, p. 21).
A herança que o termo experiência traz do início da ciência moderna está ligada
à celeuma entre empirismo moderno, nas premissas e teses de Francis Bacon em
contraposição às elaborações críticas de Immanuel Kant.
12
JORGE LARROSA é doutor em pedagogia pela Universidade de Barcelona, Espanha, onde atualmente
é professor titular de filosofia da educação. Publicou diversos artigos em periódicos brasileiros e tem dois
livros traduzidos para o português: Imagens do outro (Vozes, 1998) e Pedagogia profana (Autêntica,
1999).
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Toda experiência encerra, além da intuição dos sentidos para a qual algo é
dado, o conceito de um objeto que é dado ou aparece na intuição, por isso, na
base de todo conhecimento experimental há conceitos de objetos em geral
como condições a priori; por conseguinte, a validade objetiva das categorias,
como conceitos a priori, dever-se-á ao fato de que só graças a elas é possível
a experiência (segundo a forma do pensamento). (ABBAGNANO, 2007, p.
414).
somente da experiência possível, experiência na plena acepção do termo, como algo que
não só afete os sentidos, mas seja também o sujeito do pensamento" (PEIRCE, 1958, p.
131).
Para a condição do que pesquisamos, o actante (agente vivo na cena) está em uma
condição muito especial de percepção sensível de si, de sua imagem, da imagem que
distribui em torno de si, para quem o assiste, do simbólico dessa imagem e de como a
construiu e a constrói a partir desse bloco de experiências que o perpassam. A experiência
da maquiagem é, portanto, uma experiência de narrativa de sujeitos, uma dramaturgia.
Tudo o que nos atravessou, durante o caminho percorrido nessa pesquisa, será
utilizado como fonte de investigação. Mais especificamente, as leituras bibliográficas
realizadas e as incursões na pesquisa pictográfica, que nos legou muitas imagens – suporte
material de primeira ordem para a análise. Na atual conjuntura da investigação,
acoplamos às descrições de fenômenos espetaculares assistidos e aos registros de
experiência retirados do bloco de notas, os relatos de experiência de profissionais das
artes cênicas e os dados coletados através de entrevistas.
Optamos por uma estrutura de questionário para a pesquisa que, embora fosse
individualizado, ou seja, destinado exatamente a cada actante questionado/a, também
pudesse conter um sentido de coletivo, de captação de informações à partir de nossos
objetivos, pois, os sujeitos estudados são contemporâneos, partícipes da mesma dimensão
cultural, do mesmo contexto histórico. Entre eles, inclusive, ocorre um trânsito artístico
e técnico, além de uma correspondência na economia da cultura. Os grupos em que estes
actantes trabalham se relacionam, de algum modo, estão conectados aos estudos teatrais
contemporâneos no cenário intelectual e artístico do Rio Grande do Norte.
do espelho objetivo, a materialidade explícita e real que nos possa apontar um caminho
metodológico.
c) análise síntese do conjunto que forma esse recorte do Corpus nesse capítulo,
ou seja, a fotografia + a descrição + o comentário + as vozes dos actantes (recolhidas nas
entrevistas) a partir da condição de “leitura transversal”, aos moldes proposto por Richard
Demarcy (1988), que se baseia na ruptura com o olhar despreparado, “neutro”, que
37
CAPÍTULO I
13
Repito, aqui, a Nota de Tradução, de J. Guinsburg, sem dúvida de que diz o que o texto diz, pensa o que
penso, me remete ao que almejo: “Alguns críticos têm considerado que a melhor tradução de jouissance
para o português seria gozo[grifo nosso], uma vez que esta palavra daria, de um modo mais explícito, o
sentido do prazer físico contido no termo original. De nossa parte, acreditamos que a palavra fruição,
embora algo mais delicada, encerra a mesma acepção gozo, posse, usufruto, com a vantagem de reproduzir
poeticamente o movimento fonético do original francês. Em todo caso fica para o leitor o prazer que
pretenda desfrutar nesta leitura”. J. Guinsburg [Tradutor] (BARTHES, 1987, p. 8).
39
De fato. O gozo em pensar o que penso desse Objeto, desse estudo, ainda me faz
vacilar, tropeçar... me confunde. De que modo a “pintura da cara” se precipitou dentro de
mim para que eu pudesse tê-la como esse “lugar” de reflexão, que tanto interesse desperta
e, do mesmo modo, que tanto “foge de minhas mãos”, me afugenta, me recalca, como um
“território” de medo e inibição? A esse respeito, nada sei. Suspeito que há uma
cosmogonia da “cara pintada” fundando um “universo” e, ao mesmo tempo, me
desnudando, me proibindo de seguir. Por isso, essa pesquisa me custou tanto afeto, tempo,
desgaste e, contraditoriamente, desvelamento, reconhecimento, gozo.
A imagem pode ser uma fonte de produção de dados que defina compreensão
epistêmica, e em profundidade, de um objeto? A partir dessa questão, Bachelard recria a
leitura da imagem como o que chamou de “o paradoxo de uma fenomenologia da
imaginação” (Idem; Ibidem). Assim, busca a compreensão de uma poética do mundo
material a partir do imaginário, considerando que,
Desse modo, a cosmogonia pode nos evidenciar o valor intrínseco das imagens
como campo de aprendizagem. Conforme conclui Bachelard, a exemplo da leitura de
imagens para dimensionar a compreensão que o poeta tem do que o cerca:
41
[...] O poeta está sempre pronto para ler o grande e o pequeno. Por exemplo, a
cosmogonia de um Claudel assimilou rapidamente, beneficiada pela imagem,
o vocabulário — senão o pensamento — da ciência de hoje. Claudel escreve
em Les Cinq Grandes Odes (As Cinco Grandes Odes) (pg. 180):
"Como a gente vê as pequenas aranhas ou certas larvas de insetos como
pedras preciosas bem escondidas em sua bolsa de algodão e de cetim.
"Foi assim que me mostraram uma porção de sóis ainda embaraçados nas
barras frias da nebulosa".
Olhe um poeta no microscópio ou no telescópio, vê sempre a mesma
coisa. (BACHELARD, 1978, p. 185).
1) A dimensão tribal;
2) O lúdico essencial;
3) A beleza como política civilizatória;
4) A subjetivação do desejo de ser;
5) A dramaturgia da “cara pintada”.
A dimensão tribal é uma alegoria da qual nos apropriamos para tentar criar uma
possibilidade explicativa do mundo e seus mundos. Por certo, nem mesmo os estudos
antropológicos e sociológicos tenham dado fim às questões que perpassam essa dimensão.
Muitos dos caminhos das ciências humanas e das ciências sociais estão vinculados à
constituição de objetos de estudo que se caracterizam por serem a base do que se instituiu
como “o tribal” ou, por conseguinte, das organizações coletivas e suas práticas.
Seguindo tais premissas, o antropólogo Clifford Geertz (1989) nos apresenta uma
perspectiva dos estudos da cultura centrados na ideia de interpretação como método. Para
tanto, faz dialogar, numa encruzilhada epistemológica, o sujeito investigador versus a
cultura investigada; o “Ethos” que se constitui como modo de vida desta cultura versus a
“visão de mundo” que os sujeitos dessa cultura elaboram como formas organizadas de
civilização (p. 93-103).
[...] de fato, seja por atração ou por repulsão, a algo que me empurra para ou
contra o outro. É, pois, em relação ao outro que me situo. Pode-se ver que isso
forma uma antinomia com o ideal democrático moderno, que repousa em uma
concepção de indivíduo autônomo, dono de si e de sua história, entrando em
relação contratuais com outros indivíduos autônomos, para fazer a História e a
sociedade. (MAFFESOLI, 1995, p. 56).
A dimensão tribal, como nós a compreendemos e como nos interessa, está ligada
diretamente à manifestação não-material dos exercícios de “criação” do mundo.
Consubstancia-se, portanto, numa lógica discursiva que tem a Imagem como princípio
material significante. O conceito de cultura e, dentro dele, o conceito de tribo, de sujeito
e de alteridade, com o qual trabalhamos, não descende filosoficamente da antropologia
estrutural nem da sociologia materialista. Estamos mesmo assentados na ideia de leitura
imagética das identidades tribais.
[Na] Idade Média [os conceitos de Imagem] foram utilizados com fins
teológicos, para esclarecer a relação entre a natureza divina e a humana [...].
Na filosofia moderna, [...] "é ato de sentir e só difere da sensação assim como
o fazer difere do fato" [...]. Mas, em filosofia, o termo [Imagem], em seu
significado geral, começou a perder terreno para idéia[sic], em Descartes, e
representação, em Wolff. A preferência por esses dois termos persiste na
filosofia contemporânea, que só lança mão do termo [Imagem], em seu 2º
significado, quando quer acentuar o caráter ou a origem sensível das idéias[sic]
ou representações de que o homem dispõe. É o que faz, p. ex., Bergson:
"Vamos fazer de conta, por um instante, que nada sabemos das teorias sobre a
matéria e sobre o espírito, que nada sabemos sobre as (discussões acerca da
realidade ou da idealidade do mundo externo. Estaremos então em presença da
[Imagem] no sentido mais vago em que se possa tomar essa palavra, [Imagem]
percebidas quando abro meus sentidos, não percebidas quando “os fecho”)
(ABBAGNANO, 2007, p. 537).
A etnografia com a qual nos munimos para realizar a leitura das imagens que
compõem a cosmogonia da “cara pintada” se dá a partir do pensamento do antropólogo
americano Clifford Geertz (1989). Para ele, a etnografia é estabelecida através das
relações que se estabelecem entre atores que circundam no mesmo grupo social. E, para
que ela se estabeleça, faz-se necessário que os levantamentos de genealogias e os
mapeamentos de campos de atuação (sua língua, trabalho, religião e manifestações
materiais entre outras), a partir dos quais se organizam os textos e as informações desse
grupo cultural. E, para o autor, este protocolo rigoroso é o “[...] esforço intelectual que
ele representa: um risco elaborado para uma ‘descrição densa’”. (GEERTZ, 1989, p. 15).
Em sua cabeça um cocar de penas coloridas com base feita em palha. Um pedaço
de madeira adornando a orelha, um colar de palha, barbante e sementes em volta do
pescoço, a partir de onde surge uma pintura preta que cobre todo o dorso do guerreiro.
Nos braços adornos de penas nas mesmas cores do cocar. A luz vem de seu lado direito,
de um ponto abaixo do rosto, que ajuda a vivificar as cores de seu rosto.
A estética Asurini nos remete à ideia de que os elementos que constituem sua
aparência refletem códigos convencionados desse grupo cultural. Portanto, podemos
compreender que o tipo de maquiagem que se materializa no guerreiro Asurini garante
que sua imagem seja lida no conjunto cosmológico de uma pintura tribal.
Na Figura 2, observa-se que, assim como o guerreiro Asurini (Figura 1), no rosto
dos guerreiros Pataxós há uma pintura tribal evidenciada pelos elementos comuns
utilizados por vários membros da tribo para transmitir o sentido da pintura, que pode estar
relacionado a questões ritualísticas ou socioculturais. Eles usam uma base amarela sobre
toda a parte superior do rosto, até a linha que vai da ponta dos lábios até a altura da orelha.
14
As figuras, neste trabalho, foram espalhadas no percurso do texto. Suas referências estão em formato de
legenda abaixo de cada uma das imagens utilizadas.
47
Figura 2: Guerreiro Pataxó em passeata realizada em Brasília (2019) na Cúpula dos Povos Indígenas.
Fotografia de Fabio Rodrigues (S/D).
Figura 3: Tribo Dessana Tucana (Amazônia – Brasil). Fotografia de Diego Imai (S/D).
48
Figura 4: Tribo Huli – Papua Nova Guiné. Fotografia de Wolfgang Kaehler (S/D).
Acima, observamos que, com os rostos pintados com uma cor amarelo vivo e
detalhes delineados em vermelho e preto, os guerreiros da tribo Huli tem uma imagem
impactante. Ao invés dos cocares que estamos habituados a ver nas imagens dos índios
brasileiros, os guerreiros dessa tribo utilizam adornos de cabeça mais similares a chapeis
bem extravagantes, feitos de couro, palha, penas e plantas. Seus dorsos são pintados de
vermelho e eles também utilizam adornos de couro e sementes ao redor dos pescoços,
além de galhos de plantas nos braços.
49
Figura 5: Homens de Barro da tribo Asaro (Papua Nova Guiné). Fotografia de Danita Delimont (S/D).
Suas máscaras têm caráter belicoso, feitas artesanalmente por cada guerreiro,
garantem a singularidade de cada uma. No entanto, ainda que cada máscara tenha
características únicas, a base de construção estética dos guerreiros dessa tribo pode ser
percebida como uma só: uso do barro esbranquiçado para cobrir tanto o rosto, quanto o
corpo dos indivíduos com o intuito de alcançarem o bem comum: a segurança da tribo.
Assim como os mencionados anteriormente, esses guerreiros estão, portanto, colocando
a necessidade de seu grupo por sobre suas necessidades individuais e, por isso, fazem
parte da cosmologia da dimensão tribal.
Ao contrário dos indivíduos das tribos mencionadas até então, as mulheres da tribo
Apatani, que vemos na Figura 6, não trazem elementos de pintura que se destaque em
seus rostos, no entanto, nas laterais de seus narizes elas utilizam alargadores de madeira
50
Figura 6: Mulheres da tribo Apatani – Arunachal Pradesh (Índia). Fotografia S/A e S/D.
Além dos alargadores, as mulheres têm tatuada uma linha vertical que desce pelo
meio de seus rostos, do couro cabeludo até o nariz, além de linhas também verticais
tatuadas nos queixos. O que permite a leitura dessa imagem como parte da dimensão tribal
é a consideração do comportamento de grupo que podemos observar nas mulheres, que
adotam o mesmo estilo estético. A aparência, que causa um estranhamento, foi adotada
por questões de segurança, já que as mulheres dessa tribo eram consideradas muito
bonitas e sofriam constantemente ataques sexuais, sobretudo por parte de tribos rivais.
Na Figura 7, vê-se uma menina com a pele pintada de barro vermelho, que tem
uma aderência tão boa na pele que parece ser sua coloração natural, utiliza o barro como
base para outros adornos utilizados em seu corpo, como nos dreads feitos com os cabelos,
cobertos por esse barro e no colar de barro, ossos e sementes. A imagem da menina com
belas cores se destaca no cenário pálido da região desértica em que vive.
Figura 8: Menino das tribos Mursi e Surma – Vale do rio do Omo (Etiópia).
Fotografia de Hans Silvester (S/D).
No entanto, ela não se destaca como indivíduo e sim como membro pertencente a
um grupo ou tribo, uma vez que quando a olhamos já fazemos a ligação de sua imagem
com a imagem de seu grupo identitário e, por isso, a consideramos parte da dimensão
tribal. O que também ocorre quando vemos a Figura 8, em que um dos integrantes das
tribos Mursi e Surma, que vivem na região do Vale do rio Omo, na Etiópia.
O menino que vemos, a seguir, (Figura 9) utiliza-se do barro branco e laranja para
pintar seu rosto, os mesmos elementos utilizados no menino tribal que aparece na foto
anterior (Figura 8). No entanto, sua pintura divide seu rosto em duas partes, sendo metade
pintada de branco e a outra de laranja. Como a divisão não é exata e a pintura não tem as
52
Figura 9: Menino das tribos Mursi e Surma – Vale do rio do Omo (Etiópia).
Fotografia de Hans Silvester (S/D).
Na Figura 10, a menina que vemos também utiliza o barro de cor amarela em sua
pintura facial, com uma mistura nas cores branco e laranja. Ela circunda o rosto com uma
linha branca, pinta um dos lados de amarelo e desenha detalhes brancos no lado oposto.
Sua cabeça está adornada com galhos de flores, seu pescoço com colares de contas
coloridos e no busto a pintura floral e circular cobre os seios.
Figura 10: Menina das tribos Mursi e Surma – Vale do rio do Omo (Etiópia).
Fotografia de Hans Silvester (S/D).
53
Figura 11: Menino das tribos Mursi e Surma – Vale do rio do Omo (Etiópia).
Fotografia de Hans Silvester (S/D).
O menino da Figura 11 pertencente à mesma tribo das outras crianças das figuras
anteriores. Da mesma maneira, ele utiliza o barro nas cores laranja, branca e a mistura
dos dois para garantir um tom mais amarelado para pintar seu rosto. Na sua testa, podemos
observar pequenos círculos vermelhos sobre a base branca. O restante do rosto, que está
coberto de um tom mais amarelado, tem destaque mais escuro nas bochechas. Nas orelhas
vemos alargadores e a testa está ornada com flores cores de rosa e laranjas. O pescoço
rodeado de colares de conta e linha.
Figura 12: Irmãos das tribos Mursi e Surma – Vale do rio do Omo (Etiópia).
Fotografia de Hans Silvester (S/D).
54
O que podemos verificar nas caras pintadas presentes na Figura 12, em que vemos
dois meninos que se utilizam de uma mesma tonalidade de pintura (tanto nos rostos,
quanto nos corpos), que dividem espaço com o tom próprio de suas peles, nas partes em
que estas aparecem como detalhes. Essas crianças adornam suas cabeças com plantas e
frutos e utilizam colares de linhas nos pescoços.
A particularidade parece ser matéria da expressão pintada nos rostos, bem como
a unidade estética buscada na ação de auto significação dos indivíduos dessa tribo, como
podemos observar nas fotos. Muitos dos integrantes dessas tribos mudam de pintura e
adornos, várias vezes por dia, para se expressar. No entanto, apesar de parecer haver neles
uma necessidade de se destacar, de se expressar individualmente através de sua estética,
eles ainda estão fazendo isso a partir da organização estética de seu grupo identitário e,
portanto, de sua dimensão tribal.
Figura 13: Guerreiro Maori (Nova Zelândia). Fotos de Jimmy Nelson (S/D).
55
Essa percepção pode se alastrar por outras tribos. É o caso dos guerreiros Maoris,
que são conhecidos por tatuagens que têm aspecto bem particular. As tatuagens que
cobrem seus rostos, além de ter função informativa dentro da tribo, onde os símbolos
tatuados são elementos significantes dentro de sua cultura, tem também a função de
intimidar indivíduos de tribos inimigas, dando ao guerreiro aspecto assustador.
15
A Figura 13 mostra um guerreiro com os cabelos em dreadlocks , que são
ornados com penas e no pescoço um colar de sementes e presas de animais. O Maori usa
uma capa feita com couro e penas que lhe cai sobre os ombros. Quanto mais tatuado o
rosto do guerreiro, mais reconhecido e respeitado ele é dentro da tribo.
Figura 14: Guerreiro Maori Aborígene (Nova Zelândia). Fotos de Jimmy Nelson (S/D).
Na Figura 14, observamos outro guerreiro Maori, que também tem o rosto tatuado,
mas ao contrário do primeiro, seus cabelos são raspados e as tatuagens sobem até o couro
cabeludo. Na cabeça ele utiliza um adorno feito de osso e sobre os ombros uma capa feita
15
Dreadlock ou “Lock-dread”, “Rasta” ou simplesmente “Dread”, é como são conhecidos popularmente
alguns penteados na forma de mechas emaranhadas, ou uma forma de se manter os cabelos que se tornou
famosa com o movimento Rastafari (Movimento estético e político surgido na Jamaica em meados de
1930). Os primeiros registros do termo "Dread" são da época da escravidão. Durante a travessia para outro
continente, as pessoas eram mantidas presas umas às outras, sem espaço para higiene pessoal e de
organização do aspecto do cabelo, assim no desembarque os fios estavam embaraçados e crescidos em
tufos. Devido essa aparência, foram chamados pelos moradores da América do Norte com o termo
"Dreadful". Este foi encurtado décadas depois para perder o tom pejorativo.
56
com couro e penas. Seu colar é composto por um cordão simples onde está amarrada uma
bela pedra azul escura.
Tais chaves podem ser identificadas pelo uso de fardamentos (quando são grupos
institucionalizados) e de elementos simbólicos (de união, de força, de corporativismo, de
materialidade espetacular e de performance), como o uso de tatuagens, piercings, adornos
nas roupas, braços e pescoços. O uso da cor (preta), do couro e do jeans tem sido base de
unidade semântica dos puns londrinos, por exemplo.
Figura 15: “Freiras”. Aparecida (São Paulo – Brasil). Fotografia de Eliária Andrade (2007).
Figura 16: “Skinheads in Chelsea” (Londres – Reino Unido). Fotografia de Derek Ridgers (1982).
Assim como vem sendo construído na leitura de todas imagens tribais que
recortamos em nossa pesquisa, ser parte de um grupo se sobrepõe à condição de
58
individualidade. Como podemos ver na Figura 16, em que skinheads, estão dispostos e se
afirmam através dos elementos físicos (visuais) e de sua ação social de aglomerados
urbanos, que os “forma” enquanto grupo, no qual esses indivíduos se identificam (estética
e politicamente), atribuindo às tatuagens, às cabeças raspadas e às vestimentas com base
em jeans e couro, suas identidades de indivíduos-grupo. Os cabelos raspados são marcas
identitárias que dá nome a alguns desses grupos, de forma alusiva às tribos nativas que os
antecederam.
De outro modo, com a moça gótica, da Figura 17, em contraposição à outra moça
surfista, apresentada na Figura 18, percebemos a mesma estratégia de “pintura” para dois
grupos tribais, naturalizados, definitivamente distintos.
Com essas figuras em aproximação, podemos observar que tanto o uso da pintura
“sombria”, do rosto gótico, com cores marcantes (geralmente contrastes de branco e
preto) e roupas em negrume; quanto a pintura “solar”, com pintura facial feita à base de
protetor solar, e uso de roupas de tecidos sintéticos de microtexturas (que se destacam nas
praias), produzem sentido de organização estético-identitária que nos permite
compreendê-las, cada uma, em estado de pertencimento às suas tribos.
Figura 19: “Caras Pintadas”, mobilização popular pelo impeachment do presidente Fernando Collor (Rio
de Janeiro – Brasil). Fotografia de Eder Chiodetto (1992).
Figura 20: “Torcedor brasileiro comemora primeira vitória do Brasil” (São Paulo – Brasil). Fotografia de
Fernando Dantas (2018).
Figuras 23 e 24: Monge Sadhu pintando o rosto; Monge Sadhu pintado. Fotografias S/A e S/D.
Podemos observar isso nas Figuras 23 e 24, em que vemos que os monges Sadhus
destacam-se da população que fazem parte através da pintura e da vestimenta,
diferenciando-se para assumir a sua função como um indivíduo destacado de seu grupo.
Esse destaque, nesse caso, se dá pelo posicionamento espiritual-religioso deste indivíduo
em relação a sociedade em que está inserido. Essa diferenciação faz parte do jogo
estabelecido no grupo social em que ele está inserido.
Figuras 25, 26 e 27: Banda Kiss; David Bowie; Marcel Marceau. Fotografias S/A e S/D.
pinturas são imagens icônicas para a sociedade ocidental atual. Quando vemos cada um
desses indivíduos, identificamos suas especificidades a partir das imagens construídas
para destacá-los de sua conjuntura social, agregando ao seu fazer artístico a marca
registrada através do apelo visual.
Figuras 28, 29 e 30: Caboclo de lança do Maracatu Rural (Pernambuco). Fotografia S/A e S/D; Mateus,
brincante do Boi de Reis (Rio Grande do Norte). Fotografia do arquivo pessoal do artista Sebastião Silva;
Caveirinhas de açúcar em comemoração do Día de Los Muertos. Ronaldo Shemidt (S/D).
1) Livre – uma vez que o jogo se joga por sua natureza espontânea;
2) Delimitada – circunscrita a limites de espaço e de tempo, sob regras
rigorosas e previamente estabelecidas;
3) Incerta – já que o seu desenrolar não pode ser determinado, nem o resultado
obtido previamente; o enredo do jogo é obrigatoriamente deixado à iniciativa
das ações de jogar, há nisso uma liberdade essencial que promove no jogo a
potencialização da invenção e da criatividade;
4) Improdutiva – porque não gera bens, nem riquezas nem elementos novos
de espécie alguma; salvo a própria condição de sociabilidade lúdica;
5) Regulamentada – sujeita às convenções que suspendem as leis normais e
que instauram momentaneamente uma legislação nova – suas regras;
6) Fictícia – acompanhada de uma consciência específica de uma realidade
outra, ou de franca irrealidade em relação à vida normal.
63
Figuras 31, 32 e 33: Carlitos (Charles Chaplin); Ferrugem (Gena Leão); Carequinha (George Savalla
Gomes). Fotografias S/A e S/D.
Cabe ressaltar que para Caillois (2001, p. 29) as duas últimas características estão
em franca oposição, pois “os jogos não são regulamentados e fictícios. São, antes ou
regulamentados ou fictícios”. Essa é constituição dialética fundante da dimensão do jogo,
centrada nos paradoxos da contradição e da complementaridade:
Atrás deles há uma fogueira que permanece acesa, de onde escapa a luz que se
projeta na parede à sua frente e onde parecem enxergar por este artifício de simulacro, a
realidade, outros homens “livres” fazendo coisas. Mas como esses homens estão sentados
de costa para a boca da caverna, veem as coisas projetadas, meras sombras do que pode
ser o mundo.
64
Certo dia, seguindo a narrativa do mito, um desses homens que estava aprisionado
no interior da caverna consegue levantar-se e escapar. Ao sair de sua condição de
impossibilidade, se depara com a realidade. No entanto, a claridade que enxerga (vinda
tanto da fogueira, quanto do exterior da caverna) fere seus olhos, que nunca tinha visto a
luz. Esse homem, então, depara-se frente a um grande conflito: 1) volta para a caverna e
mantem-se inerte e protegido dos riscos que a realidade o trouxe? 2) esforçar-se para sair
à vida e se habituar à nova realidade?
Figuras 34, 35 e 36: Monsenhor Jonas Abib, Padre Marcelo Rossi e Padre Fábio de Melo. Fotografia S/A
e S/D; Yalaxé Isa de Nanã. Fotografia S/A (2018); Sacerdotes em cerimônia judaica. Fotografia de Adam
Propp (2018). (Leitura em sentido horário).
Figura 37: Uma Yaô em feitura de santo no Candomblé. Fotografia de Pierre Verger (S/D).
Em seguida, a narrativa bíblica nos conta que Adão preferiu separar-se de Deus,
rompendo assim com sua condição de “ente querido” do Paraíso, tornando-se o “primeiro
homem”, passando a ter que viver do “suor do seu rosto”.
“Alta e, bronzeada e, jovem e amável” 16, poderíamos ainda dizer: loira, poliglota,
com olhos azuis, inteligente, com dentes brancos, sexy, “pacífica”, com status social e
econômico e herdeira de uma tradição familiar – eis a mulher ideal na civilização
ocidental. É bem assim que nosso imaginário funciona na busca de construir padrões de
beleza como instrumentos de definição do viver para o belo, para o bom e para o bem.
Para ilustrar essa construção, a imagem na capa de uma revista de moda e beleza
serve como exemplo. Nesta imagem (Figura 39) vemos uma jovem loira, magra, de olhos
claros em uma pose construída para acentuar suas formas físicas diante de uma praia
paradisíaca. A estratégia de uso da imagem da jovem loira e magra como um modelo de
beleza impresso na capa de um editorial de moda, como um ideal a ser alcançado, é usado
para atrair a atenção das leitoras para as “soluções” ofertadas pela revista para
“necessidades” criadas pela indústria para seu público alvo.
16
Alusão aos versos da canção popular da Bossa Nova de 1962: Garota de Ipanema (Vinícius de Moraes
e Tom Jobim), em sua versão para o idioma inglês Girl of Ipanema (Tom Jobim).
68
Para tanto, a capa da revista escolhe o modelo de beleza a ser alcançado e estipula
as medidas através das quais seu público poderá alcançá-lo, criando a ilusão de que se
seguirmos as sugestões dispostas em suas páginas conseguiremos, em alguns meses, estar
por dentro das “novidades quentíssimas da moda”; ou utilizar os “3 aparelhos, uma dieta
e o guia de exercícios para arrasar no biquini” como método de alcançar a necessidade
criada por essa indústria para nos impelir ao consumo de seus serviços e produtos.
Figuras 40, 41, 42 e 43: Tutorial de beleza: “passo a passo” da maquiagem feita pelo maquiador
Da'Vandre Terrelle. Fotografia retirada do perfil do artista em rede social (S/D).
69
Nesse sentido, vemos uma jovem que tem seu rosto redesenhado através da
maquiagem (Figuras 40, 41, 42 e 43), aos moldes de milhares de tutoriais que ficaram
populares nas redes sociais, para aproximar-se do que está convencionado como belo.
17
Período da história contado a partir do desenvolvimento da escrita, entre 4000 e 3500 anos a.C., até a
queda do Império Romano do Ocidente, em 476 da Era Cristã.
70
about, skin tone is also closely connected to gender” [(...) embora não seja algo sobre o
que pensamos conscientemente, o tom da pele também está intimamente ligado ao gênero
– Tradução nossa] (ELDRIDGE, 2015, p. 40). Encontramos diversas referências
históricas que reafirmam essa ligação em algumas sociedades ao longo do tempo,
atrelando o desejo ou imposição do embranquecimento da pele aos direitos e deveres –
de expressão e cuidados – das mulheres através do uso de cosméticos.
[...] mulheres eram seres destituídos de direitos cívicos. Elas tinham, porém o
dever de manter sua pele branca, o que demonstrava que ficavam em seu
domicílio e não saíam ao sol, e não deveriam usar maquiagem, exceto para
receber seu marido ou amigos. (LOBO, 2015, p. 41).
Assim, a mulher Grega precisava cumprir o seu papel social de “ser virtuosa” e
ficar em casa supervisionando o seu funcionamento e, como eram excluídas do mundo
exterior, ter a pele clara e intocada pelo sol – o que era o objeto de desejo dos homens da
época – era, para elas, uma imposição.
71
Se essa imposição nos parece familiar, é porque a relação das mulheres com o uso
da maquiagem em muitos momentos esteve relacionada à subjugação do feminino em
sociedades patriarcais, fortalecido principalmente pelo cristianismo, em que o exemplo
de beleza a ser seguido era o da virgem Maria. Assim sendo, a conexão da imagem da
mulher virtuosa e recatada que ficava em casa cuidando da família com uma pele bem
cuidada e uso modesto de cosméticos – bastante reforçada durante o período
Renascentista –, perdura até hoje.
Figuras 44 e 45: Aeromoça. Fotografia promocional (S/A e S/D); Vendedoras de ‘O Boticário’, em loja.
Fotografia S/A (2014).
Esse padrão ainda pode ser observado na atualidade se considerarmos que quanto
mais independente (financeiramente, emocionalmente) for a mulher, mais liberdade ela
tem para manipular sua aparência. Vale salientar que mesmo as mulheres que têm
empregos e conseguem arcar sozinhas com seus custos de vida, não são totalmente
72
[...] estamos todos refletidos de algum modo nas numerosas imagens que nos
rodeiam, uma vez que elas já são parte daquilo que somos: imagens que
criamos e imagens que emolduramos; imagens que compomos fisicamente, à
mão, e imagens que se formam espontaneamente na imaginação; imagens de
rostos, [...] e imagens daquelas imagens – pintadas, esculpidas, encenadas,
fotografadas, impressas, filmadas. (MANGUEL, 2001, p.20).
Figuras 47, 48 e 49: Tutorial de maquiagem de contorno masculino para a dimensão metrossexual que o
homem contemporâneo se permite. Fotografias S/A e S/D.
Muito embora a maior pressão em relação ao senso estético ainda seja atribuída
ao gênero feminino, os homens já não estão isentos das cobranças de um padrão de beleza
que, na maioria das vezes, também só é alcançável através de intervenções estéticas. Com
74
isso, mesmo entre o público masculino os tutoriais de beleza e moda fazem sucesso, como
exemplificado nas Figuras 47, 48 e 49, uma vez que criam a ilusão de que possibilitam
aos indivíduos o alcance da beleza ideal.
Na busca pela aparência desejada (e desejável), esses homens não poupam gastos
ou esforços, o que os coloca como um novo campo de exploração da indústria da beleza,
que logo se adapta ao novo nicho, elaborando linhas de produtos e tratamentos voltadas
para esse público – que “assume” seu lugar no consumismo estético, antes tido como
tradição do universo estético feminino.
Neste “novo” contexto, é possível entender a aproximação das relações que se dão
entre o parecer e o ser, na estreita medida da aceitação social. Cada vez mais, à medida
em que os sujeitos podem escolher como querem ser vistos e se dedicam a se transformar
no que veem de si, refletido no espelho ou nas imagens fotográficas, que produzem; e
discursivas, que recebem do imaginário de seu grupo social, torna-se mais difícil delimitar
até que ponto esse “novo” homem se constrói a partir de seu próprio desejo (e) de (seu)
ser. E até que ponto sua subjetivação é contaminada pelas expectativas projetadas no
individuo pelo seu grupo social.
75
Como reflete Trinca (2008, pp. 114-115): “Aparecer, assistir, consumir, adorar
e se projetar nas imagens e nos modos de vida dos ricos, poderosos e famosos
passou a constituir a nova moral, um novo ideal de felicidade que tem a vida
como entretenimento”. Através da mídia a sociedade acompanha o espetáculo
da vida do outro: bens materiais, o corpo dito perfeito, todos indicando uma
vida feliz e de sucesso (LOPES; MENDONÇA, 2016, p. 22).
Vale salientar que “não é cabível a todos os indivíduos ostentar riqueza e poder,
tampouco fazer parte da rede de influências que os sustenta na mídia, [então] resta
aproximar-se do que se encontra mais acessível a qualquer um: a aparência corporal”
(LOPES; MENDONÇA, 2016, p. 22). Assim, o mundo virtual se mostra como um espaço
18
No inglês, derivação de Storyteller: a person who tells a story, conjugando o verbo no infinitivo, portanto
“uma pessoa que está contando uma história”, ou “uma história sendo contada por uma pessoa”. (Easier
English Student Dictionary – S/D).
76
ideal para a construção do que Stuart Hall (1992) chamou de “narrativa do eu” (p. 13),
em que o homem pós-moderno é tido como um
[...] sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável
[que] está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas.
Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais “lá
fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades”
objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças
estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual
nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório,
variável, problemático. (HALL, 1992, p. 12-13).
Acreditar em uma “verdade” identitária sobre nós mesmos pode ser tranquilizante,
mas as possibilidades que se abrem no mundo virtual dentro da busca por visibilidade,
confronta essas identidades, modificando-as a serviço do parecer.
Figura 51: Ana Flávia Santos e seu cabelo Black Power. Fotografia S/A e S/D.
Figuras 52 e 53: Norma Jeane Baker e sua Alter ego, Marilyn Monroe. Fotografias S/A e S/D.
19
“Like” ou “curtir” é a forma mais básica de interação em redes sociais como Instagram, Facebook e
Twitter, usada para demonstrar sua aprovação em relação a determinado conteúdo publicado.
20
“[...] as selfies – no feminino, que passa por ser o de emprego mais utilizado pela mídia brasileira –
constituem uma nova forma não só de nos expressarmos e nos apresentarmos aos outros, mas de nos
comunicarmos uns com os outros através de imagens, além de fazê-lo por meio de textos (Gunthert, 2014;
Rawlings, 2013). Daí seu caráter fundamentalmente [de rede e] social.” (SANTOS, 2016, p. 2).
78
Ocorre que ao compartilhar com as pessoas que acessam nossas “páginas” (sítios
na Internet) nas redes sociais, em tempo real, a imagem que construímos de nós e não a
aparência “natural” que temos, acessamos um jogo perigoso de oferta do que pensamos
que somos para comportamentos de valoração imagética de nós e do que de fato somos.
Nossa imagem, enquanto indivíduo, pode ser compreendida como a imagem de uma
“Norma”, enquanto as nossas imagens esteticamente produzidas e postadas nas redes
sociais, estariam sendo entendidas como a simbolizada da Marilyn. Assim, através do
número de acessos e “likes” que nossa imagem “Marilyn” recebe, nos tornamos mais
“belos”, “aceitos”, célebres. Ou seja, o valor que passamos a ter, através de estratégias de
pontuação no mundo virtual, nos torna indivíduos que esperamos ser reconhecidos como
pertencente ao grupo considerado como “de sucesso”.
Criar para si uma imagem, portanto, esbarra nas normas estéticas vigentes no
grupo social do qual se faz parte. Estas normas definem de maneira muito objetiva o que
79
é belo e o que é feio. Umberto Eco (2007) expõe que “Belo – junto com ‘gracioso’,
‘bonito’, ou ‘sublime’, ‘maravilhoso’, ‘soberbo’ e expressões similares – é um adjetivo
que usamos freqüentemente[sic] para indicar algo que nos agrada. Parece que, nesse
sentido, aquilo que é belo é igual àquilo que é bom [...]”, portanto não é de se estranhar
que as pessoas persigam o ideal de beleza de seu grupo social.
Figura 56: Mulher com cabelo estilo rastafári. Fotografia S/A e S/D.
Daí, para as mulheres, nessas sociedades, a imagem da falta de beleza pode estar
diretamente ligada à existência de problemas de saúde física e psicológica, gerando um
fenômeno cultural universalizado da ansiedade, causada pela insatisfação e pelos esforços
extremos empregados nessa empreitada de ser “o ideal desejado”.
Figuras 57 e 58: A atriz Keira Knightley sem maquiagem e com maquiagem. Fotografias S/A e S/D.
Podemos, por esse mecanismo, observar como nem mesmo as personalidades que
são colocadas nas capas de revista como modelo de perfeição a ser alcançado, alcançam
81
esse almejado padrão estético a não ser através do uso de cosméticos e/ou outros
elementos.
Algumas pessoas, como pudemos verificar nas figuras acima, adotam, portanto,
elementos estéticos com os quais se identificam, utilizando a própria aparência como
símbolo de sua liberdade de expressão. Mas, no caso desses indivíduos dispostos nas
imagens, é possível perceber que essas construções ainda estão de acordo com as normas
estéticas vigentes no grupo social do qual fazem parte. No caso dessas pessoas a
intervenção estética visível lhes modifica basicamente aspectos externos (cabelos, roupas,
maquiagem).
21
Acreditamos que este campo teórico pode ser melhor tratado em estudos futuros, na continuidade dessa
pesquisa.
82
sociedades atuais, que desafia conceitos teóricos e padrões culturais do mundo que se
organizou na civilização ocidental. E o caso das imagens que vemos nas figuras a seguir.
Figuras 59 e 60: Angelina Jolie antes e depois de passar pelos procedimentos indicados para sua
harmonização facial. Fotografias S/A e S/D.
Figuras 61 e 62: A cantora Gretchen antes e depois de passar pelos procedimentos indicados para sua
harmonização facial. Fotografias S/A e S/D.
83
Algo similar ocorreu com a cantora Gretchen, que buscou revisão sua aparência
estética através do “Body building” para recuperar a juventude perdida e mudar de estilo,
na tentativa de alcançar uma imagem de mulher desejável. Ocorre que, por algum motivo,
o procedimento cirúrgico teve problemas e a artista se viu desfigurada de qualquer beleza
que ocorrem nos padrões (Figura 61). O que a levou a se submeter a outros procedimentos
de cirurgia estética até conseguir modificar sua estrutura facial (Figura 62).
O garoto (e a artista) Pablo Vittar emegem como imagem ícone do universo pop,
22
baluarte do Movimento LGBT brasileiro e latino, e super sucesso da industria
fonográfica e do show business e pode ser compreendido, no Antes e Depois (Figuras
abaixo), por sua transição de gênero como uma construção de identidade pela
manipulação da imagem.
Figuras 63 e 64: O jovem cantor e a artista transformista Pablo Vittar. Fotografias S/A e S/D.
22
(Gays, Lésbicas e Simpatizantes) [Nomenclatura anterior, dedicada ao tema dos movimentos populares
internacionais em favor dos direitos humanos e de diversidade de gênero e sexualidade] foi substituída por
GLBT (com a inclusão de Bissexuais e Transgêneros e exclusão dos Simpatizantes). A sigla aqui adotada,
LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Trangêneros), segue deliberação da I
Conferência Nacional LGBT, realizada em 2008. Há controvérsias quanto à nomeação de todos os Ts, a
inclusão de um Q (para queers) ou um A (para assexuais), um I (para intersexos), mas há consenso na busca
por inclusão das mais variadas dimensões da construção das desigualdades trazendo à tona pertencimentos
sexuais e de gênero. (VIANNA, 2015, p. 4).
84
23
O termo subjetivação, conforme utilizamos aqui, diz respeito a uma tentativa de produção de sentido em
sintonia com a psicologia cognitiva contemporânea, na forma como o utiliza o professor Larossa: tentando
condensar numa única palavra os termos experiência e sentido, no tocante a fazer uso concreto da ação de
subjetivação como uma ação que transcende a percepção, tornando-se experiência de sujeitos através de
suas formas sensíveis (LAROSSA, 2002, p. 20-21).
86
tatuagens, piercings, próteses e apliques fixos, que afirmem “para sempre” a aparência
como subjetivação.
Portanto, para Platão, ainda que haja uma aproximação da aparência com a
realidade, estas não podem ser consubstanciadas, uma vez que uma não é, senão, uma
leitura superficial e inconstante da outra. Contudo, Aristóteles, um outro filósofo grego
clássico reconhecia que a “Aparência sensível” habitava um lugar de neutralidade, no
qual poderia “ser tão verdadeira quanto falsa [de modo que não contém] nenhuma garantia
de verdade e só o juízo intelectual a respeito dela pode certificá-la ou refutá-la”
(ABBAGNANO, 2007, p. 68-69).
87
habita no campo das ideias, mas que se faz real a partir do fenômeno, perdendo, assim,
seu caráter ilusório (Idem, Ibidem).
Figura 68: Professora Duda Salabert, primeira mulher transgênero candidata ao Senado no Brasil.
Fotografia (2018).
Figuras 69 e 70: Laerte antes e depois da transição de gênero. Imagens do arquivo pessoal da cartunista.
90
A compreensão do organismo como parte desse mundo, bem como de seus limites
está na base da percepção descrita pelo filósofo francês. Ou seja, apenas através das
experiências vividas no mundo é possível perceber o mundo. Assim, conforme Merleau-
Ponty (1996), a percepção é a base psíquica sobre a qual os acontecimentos se organizam
e se materializam, em si já pressuposta no próprio acontecimento. Para a “fenomenologia
da percepção” o pensamento é fato, que se compreende como o modo de ser do “ser no
mundo”, isto é, o que sentimos e pensamos já é uma experiência viva de nós. O mundo,
portanto, não existe (pré)posto na existência abstrata, mas é um agir do ser perceptível
em estado de comunicação em sociedade.
Figuras 71, 72 e 73: (Leitura em sentido horário) Silvério Pereira (Travesti Elis Miranda na
teledramaturgia A força do querer, da Rede Globo. Fotografia de João Miguel Jr. (2017); Ikaro Kadoshi
(Drag Queen. Fotografia de Thiago Mota (S/D); Divina Shakira e Jarida Night and Day (Kengas/Drag
Queen. Fotografia S/A (2017).
24
As Travesti, as Kengas e as Drag Queens (Figuras acima) representam, assim
como Duda e Laerte, uma ruptura com o modelo vigente de beleza. No entanto, a estética
24
[...] bloco de rua que ocorre no carnaval potiguar, ou seja, na cidade de Natal, capital do Estado do Rio
Grande do Norte, no Nordeste brasileiro[...] As Kengas, enquanto fenômeno espetacular, são
compreendidas [...] considerando a maneira como nelas se organizam o carnaval, a folia de rua, o teatro
popular, o desenvolvimento de personagens-tipo, a caracterização, a performance, a diversidade de gênero,
enfim, algumas de suas matrizes culturais. [...] Compreende-se ainda que estas atitudes de afirmação da
diversidade de gênero são construtos corporais destes sujeitos em espetacularidade. (BARBOSA, 2005).
92
dessas personas parte de um exagero de uso dos elementos convencionados como padrões
para a construção da beleza.
Figuras 74, 75, 76 e 77: (Leitura em sentido horário) Ted Richards, o “homem-papagaio”; Tom
Woodbridge, o “homem-leopardo”. Erik Sprague, o “homem-lagarto”. Fotografais S/A e S/D.
A imagem que o sujeito cria para passar para o mundo a compreensão de como se
percebe a si, busca propor para o outro a leitura fiel da percepção que construiu de si.
Cada um dos sujeitos vai apreender os signos contidos naquela imagem com base em
93
muitos fatores que não se pode mensurar – dada a subjetivação do desejo de ser pela
aparência.
CAPÍTULO II
O FENÔMENO DA “CARA PINTADA”
Figura 78: Frame de cena do filme Náufrago (20th Century Fox - 2001) em que o actante Tom Hanks
contracena com a bola de vôlei. 25
Toda gente conhece aquela história do homem que, depois de um terrível acidente
aéreo, cai numa ilha deserta e passa dias e mais dias prisioneiro da condição selvagem de
25
Nesse Capítulo, buscamos homenagear algumas “luzes” da actância, ponteando nossas reflexões com
imagens que ilustram o texto – fotografias de agentes significantes da cena, como “caras pintadas”.
95
náufrago. Isso mesmo! O filme Náufrago 26, em que o protagonista, vivendo sofrimento
e solidão, depois de um quase apagamento de sua condição humana, “pinta” um rosto
humanoide em uma bola de Vôlei, da marca Wilson e passa tratar a bola como um
humano, um “ser em si”; a conviver com ela, votando-lhe atenção e consideração. Passa
a tratá-la de Mr. Wilson, seu necessário e precioso parceiro de naufrágio, ponto de
resistência e de conexão com o mundo que conhecera antes da tragédia, seu antagonista
nos diálogos, uma outra voz humana, mesmo que simbólica, no espaço da solidão, uma
esperança.
Figura 79: O cantor Al Jolson realiza a primeira performance de “um branco que canta como um negro”,
para o show business americano, em meados da primeira metade do século XX. 27
Entretanto, para além da narrativa fílmica, poderíamos crer que uma “cara
pintada” numa bola de vôlei nos devolvesse a condição humana em uma situação de
naufrágio? É aceitável que o Mr. Wilson seja um “ser humano” sociocultural? Que há por
trás da “pintura” na bola? Mr. Wilson, antes de ser o coadjuvante na situação dramática
do filme, é uma bola de vôlei. Assim como no cinema, no teatro nos munimos de
26
Película produzida pela 20th Century Fox, dirigida por Robert Zemeckis, lançada mundialmente em
janeiro de 2001. < http://www.adorocinema.com/filmes/filme-27770/> (Acesso em 12.11.2018; às 23:06h).
27
Nesta imagem vemos o ator Al Jolson com o rosto pintado de preto para interpretar um personagem negro
na televisão. A ação que ganhou o nome de “black face” era muito comum na primeira metade do século
XX, quando aos negros não era dada a devida visibilidade e, por isso, atores brancos eram selecionados
para os papeis de negros retratados pejorativamente. Atualmente esse tipo de ação discriminatória ainda
vem sendo discutida, sobretudo por integrantes de movimentos de luta antirracista, já que a prática não foi
extinguida e ainda podemos ver registros de celebridades fazendo esse tipo de pintura por motivos diversos.
Não iremos nos aprofundar na problemática questão, mas trouxemos a imagem como exemplo da marca
que as “caras pintadas” deixam nas pessoas e na história. (ROGIN, 1996).
96
subterfúgios simbólicos como a narrativa que abriga Mr. Wilson. Mas, antes que lhe
pintem um rosto, Mr. Wilson é uma bola. O que nos leva a questionar, no tocante ao
teatro, há um rosto anterior à maquiagem?
O teatro contemporâneo não pertence mais ao texto. E isso parece ser unanimidade
entre os teóricos dos estudos teatrais. O teatro contemporâneo parece ter migrado dos
“lugares” de “beleza” e “arte” para a vida: concreta e orgânica, como são as pessoas que
fazem e assistem teatro. De fato. O teatro contemporâneo sequer se contentou em aceitar
a alcunha de arte na modernidade, se insurgiu contra o pensamento que se tornou parte
de um mundo sem diversidade, sem contradição, sem arestas étnico-sociais, sem
confrontos estéticos, teóricos, essenciais. O teatro contemporâneo também não é mais
refém da encenação, abriu espaço para discussões que permitem o corpo vivo exercer
papel fundamental nos acontecimentos da cena. Aproximou-se das tecnologias e das
linguagens, refutando parte do que se determinou como modelo, convenção, arbítrio. O
teatro, enfim, contemporâneo se humanizou.
28
Trecho da canção Canto das três raças – Mauro Duarte; Paulo César Pinheiro (1976).
98
Não é de hoje que a cena teatral tem se esforçado para romper com a tradição
clássica. Com isso, o teatro passou a ter novo valor na sociedade e cultura de massa. Um
sintoma muito específico da historicidade do teatro do século XX é Bertolt Brecht e sua
revisão do teatro a partir de uma dinâmica materialista histórica, centrada no paradigma
filosófico da dialética sociológica. Tal revisão implica o nascimento do Teatro Épico de
Brecht, que se ampliara para além do épico que sempre existiu na tradição teatral
(BORNHEIM, 1992, p. 317-318).
29
Aqui, aludimos às songs brechtianas: canções no Teatro Épico, “[...] que ilustra uma situação ou um
estado d’alma.” (PAVIS, 1999, p. 367).
99
Dessa forma, na fricção entre o estado geral das coisas, que se apresentam como
condição política da sociedade pós-guerra e a própria falência do teatro em sua face
pública, essencial à sociedade reflexiva, Brecht compreendera que era necessário
ultrapassar o “teatro de ilusão”, ou seja, “o drama burguês”, que tivera assunção a partir
da crise romântica, com:
5. A continuação da ação (no sentido de que ela não termina com o fim da
peça) – O cuidado aqui está em que o espectador não se possa fixar na
linearidade compreendida como um todo acabado da ação, justamente um dos
pontos de honra da dramaturgia aristotélica. [...] há diversas possibilidades de
verificar-se, ou não, a continuação, e o tema pode ser sintetizado nos seguintes
termos: em (a) a continuação se concentra dentro da estrutura interna da peça;
por serem as cenas independentes, elas trazem implícitas em si o princípio da
101
teatro francês, bem como a resistência por parte dos críticos, o teatro épico demorou a
participar do fazer artístico brasileiro (COSTA, 1996, p. 51).
Figura 80: “Cara Pintada” do actante Cláudio Tovar em Dzi Croquettes. Fotografia S/A e S/D. 30
30
Em 1972, um grupo de rapazes vestindo roupas consideradas femininas, utilizando muita maquiagem e
purpurina, apresentou números de dança e teatro em um clube de Niterói e em um programa de televisão
bastante popular na época. Batizaram-se de "Dzi Croquettes", o que aguçou ainda mais a curiosidade do
público sobre quem eram eles, que tipo de espetáculo faziam e qual o significado do nome que utilizavam.
A dissertação de mestrado de Rosemary Lobert, defendida na UNICAMP em 1979, sob a orientação do
professor Peter Fry, é agora publicada como o livro A Palavra Mágica: a vida cotidiana dos Dzi Croquettes.
[...] Na vida e no palco, os Dzi Croquettes esquivavam-se de enquadramentos, classificações e definições
fechadas, o que quer dizer que eles evitavam classificar a si mesmos e aos outros. [...] A centralidade das
classificações mostrou-se desde a divulgação do espetáculo, que precisava ser definido quanto a um "tipo"
artístico. A opção escolhida (pelos próprios Dzi Croquettes) foi enquadrá-lo como um "show de travestis".
Segundo Lobert, a escolha deve ser compreendida no contexto em que a terminologia "travesti" estava
enraizada na produção artística e comercial dos anos 70, enquanto o termo "homossexual" remetia ao
sensacionalismo do noticiário criminal ou ao universo da prostituição masculina. [...] O uso do termo
[travesti] remete a uma das cenas do espetáculo, na qual o protagonista de "As Borboletas" afirma que de
"um novo renascimento" havia surgido um "novo ser" que trazia "toda a força do macho e toda a graça da
fêmea". Apesar de o artista inicialmente evitar nomear este "novo ser" ("eu só não sei explicá-lo", em suas
palavras), a definição é lançada: "é o Andrógino!", que sai em um grito [...] "andrógino" passou a significar
uma simples alternativa à categoria "homossexual" [...] Embora a filosofia dos Dzi Croquettes apontasse
para uma não segmentação das identidades (entre negros, brancos, gays ou heterossexuais), a tendência
geral do público - em boa parte catalisada pela mídia, ou vive-versa - foi relacioná-los a movimentos como
103
Alguns fatos ocorridos na Europa, a partir de 1968, tais como a tomada do Théâtre
National de l’Odéon (em Paris) por estudantes e a contestação do público à representação
de Paradise Now de Jean Vilar, foram de suma importância para a mudança que ocorreria
com a prática teatral, desde aquela época até nós, ainda que de maneira indireta. Os
autores transpuseram para seus trabalhos o reflexo das mudanças que começavam a se
fazer pungentes no cenário artístico e político da sua atualidade.
Essas mudanças, não apenas no pensamento, mas nas práticas, buscavam tocar o
espectador através de seus sentidos e, sobretudo, causar nele uma transformação
psicológica, que para ser atingida necessitava de um meio de comunicação mais imediato
do que a linguagem verbal (RYNGAERT, 1998).
31
A queda do muro de Berlim e o fim do comunismo em 1989 marcam uma virada decisiva para o
pensamento intercultural. Esse pensamento significa o desaparecimento do princípio de universalidade, o
do humanismo ocidental, assim como o do internacionalismo proletário, florão fanado do socialismo. [...]
nos anos de 1970 e 1980, o interculturalismo foi antes bem acolhido pelos poderes de direita como os de
esquerda, pois ele parecia querer estabelecer uma ponte, um diálogo entre culturas separadas ou grupo
étnicos que se ignoravam. Após o 11 de setembro de 2001, todavia, um temor em relação a culturas mal
conhecidas pode conduzir a certa desconfiança com respeito às performances interculturais. Talvez seja
este o sinal de que a metáfora da troca entre uma cultura e outra, entre o presente e o passado, não funciona
mais tão bem e que seria preciso ao menos rever a sua teoria. A teoria e a prática do teatro intercultural dos
anos 1980 se vêem como que superadas pela mise em scène e a performance atuais. Como se não pudesse
mais pensá-las em termo de identidade nacional ou cultura. (PAVIS, 2017, p. 169-170).
105
Figura 81: “Cara Pintada” do actante Procópio Ferreira, nos primórdios do Teatro Brasileiro Moderno,
no espetáculo O Avarento. Fotografia S/A e S/D.
“O teatro... deve romper com a atualidade..., seu objetivo não é resolver conflitos
sociais ou psicológicos..., mas exprimir objetivamente verdades secretas.” (ROUBINE,
2003, p. 189), é assim que Artaud influencia as experiências teatrais para que evoquem
mergulhos profundos no âmago dos organismos vivos (actantes/espectadores), que
buscavam recriar “o princípio da atualidade”, determinando o afastamento do teatro de
toda atualidade circunstancial, efêmera, de superfície.
São o corpo e suas forças secretas e profundas que devem governar o teatro,
pensava-se. O living theatre, nos Estados Unidos e depois na Europa,
Grotowski na Polônia e na esteira deles muitos dos partidários da criação
coletiva, entregaram-se a vertigem da improvisação, apelando por vezes a
Antonin Artaud. Este havia sonhado com uma ressacralização do teatro, com
uma eliminação do texto em favor do gesto e do movimento, com um contato
direto entre o criador demiurgo e o palco. (RYNGAERT, 1996, p. 27).
106
“Pintar a cara” (bem como o corpo, da qual não a dissociamos) é uma das mais
antigas manifestações humanas de transmutação registradas na história da humanidade,
como mencionado anteriormente.
espiritual – que podemos conjecturar como sendo uma versão primitiva do que viria a ser
a maquiagem/caracterização cênica, posto que essas pinturas tinham a intenção de
informar que aquele indivíduo estava fora do seu eu cotidiano, muitas vezes
representando as divindades a quem prestavam suas homenagens. Ou seja, há dezenas –
talvez até centenas – de milhares de anos, através da pintura, o indivíduo sai do seu eu
para tornar-se outro, um outro transcendente.
2.1.2.1 A Flor
Zeami encontra na flor a figura que descrevem os poetas. A figura que, além de
sua condição biológica de delicadeza e efemeridade, carrega em si o mistério que sua
transitoriedade lhe permite adquirir. Desta via, a flor, assim como a poética do actante,
atrai um olhar que pretende, mais do que admirá-la e atestar sua condição de beleza fugaz,
desvendá-la.
A flor é o “resultado” da planta. Parte de sua pele que desabrocha para o mundo
em sensibilidade, estesia, poesia. Talvez por isso tantos poetas tenham se encantado por
sua superfície efêmera e a usado para traduzir suas emoções. Uma vez que “as imagens
que formam nosso mundo são símbolos, sinais, mensagens e alegorias” (MANGUEL,
2001, p.21), o actante, enquanto poeta da cena, se utiliza dessa linguagem para criar
também a “sua flor”, embora não na perspectiva do discurso-palavra-falada, mas, como
um ser que oferece aos sentidos (através do desafio da percepção e compreensão de sua
beleza, seu cheiro, seu néctar) um pouso atraente para uma troca, uma experiência que
visa transformar aquele que dela se aproxima para saborear sua existência através dos
sentidos.
Assim também faz o actante: abre sua flor nos palcos para exalar para o público a
sua poética. “A flor é uma das mais belas imagens para exprimir o inefável do ator, a
intensidade e o prazer de seu encontro com o público, o momento insólito de fusão entre
espetáculo e espectador”. (PAVIS, 2017, p.136).
Ao andar pela rua asfaltada e ver à frente uma bela xanana 32 que rompe o cimento
e se projeta para o sol, um olhar demora-se, uma respiração suspende-se, um sorriso abre-
se... enfim, somos tocados pela flor, ou, mais precisamente, pela experiência desse
encontro. Portanto, embora não se costume pensar na flor como uma potência, o encontro
com sua beleza é potencialmente transformador. Este mesmo momento de suspensão e
encanto rege o encontro do actante com seu público quando este se faz presente no
momento cênico.
Não há no corpo do actante superfície e atmosfera mais análogas à flor que sua
comunicação facial. O rosto do actante, muito mais do que a face humana reconhecível,
é um campo de mistério e prazer que se estabelece pela expressão. A flor é a “máscara”
que o actante constrói a partir de si.
[...] a partir do momento em que alguém aceita esse fato como verdadeiro e se
começa a interrogar a seu respeito, pode-se verificar que a expressão facial
costumeira ou oculta, que não está em sintonia com aquilo que não está
acontecendo por dentro (sendo uma máscara nesse sentido), ou passa uma
versão embelezada: representa um processo interno num viés mais lisonjeador
ou atraente; apresenta uma impressão mentirosa. A expressão cotidiana se
constitui numa máscara na medida em que não passa de uma ocultação, ou de
uma mentira; não está em harmonia com o movimento interno. Assim, se o
32
Flor da espécie Turnera que é conhecida no Nordeste brasileiro pelo nome popular de chanana e, em
outros lugares do país como “flor-do-guarujá”. Crescem em subarbustos e frutificam e florescem o ano
inteiro. (BARBOSA; SILVA; AGRA, 2007).
109
A flor de Zeami afirma-se como uma metáfora eficaz para a dramaturgia da “cara
pintada”. Da mesma forma, compreende em si a dimensão metonímica do gesto universal
de ser a “arte” do actante. Pensando em uma pragmática para essa metáfora (ORLANDI,
1993, p. 34-36), também não falamos em maquiagem e nem em máscaras. Falamos na
delicada ação de manter-se em presença física, material, por conta das imagens que se
podem construir nas faces e, com elas, abrir índices de significados capazes de serem
reconhecidos no conjunto da encenação, como parte da total narrativa que se conta no
teatro, isto é, uma dramaturgia inscrita na pele.
Figura 82: “Cara Pintada” da actante Fernanda Montenegro. Fotografia S/A e S/D.
2.1.2.2 A Pele
A pele é essa barreira fronteiriça entre o indivíduo e o mundo ou, quem sabe, o
elo que os mantém unidos na mesma dimensão de materialidade, que permite a percepção
do que está dentro, pela superfície delineada. Esse importante órgão do sistema nervoso
que, “além de demonstrar o estado exterior e interior de nossos órgãos, mostra também
110
Figura 83: “Cara Pintada” da actante e militante feminista brasileira Ruth Escobar. Fotografia S/A e S/D.
Figura 84: “Cara Pintada” da atriz Tereza Raquel, no espetáculo A Mãe. 34 Fotografia S/A e S/D.
33
Nota de rodapé da autora supracitada, que nos contempla em relação ao termo: O conceito das operações
de debreagem (...) não será utilizado neste trabalho. Verificar GREIMAS e COURTÉS. Dicionário de
Semiótica, 2008, p. 159; e FONTANILLE e ZILBERBERG. Tensão e significação, 2001, p. 200.
(MAGALHÃES, 2010, p. 55).
34
Escrita em 1924 pelo filósofo, pintor e dramaturgo polonês Stanislaw Witkiewicz, A Mãe é uma
realização da Companhia Tereza Raquel que traz o diretor francês Claude Régy para remontar, com atores
brasileiros, o espetáculo que, em 1970, obteve grande sucesso em Paris. (Fonte: MICHALSKI, 2004. p.
171.).
112
Figura 85: “Caras Pintadas” dos actantes José Wilker e Tereza Raquel, em A Mãe. Fotografia S/A e S/D.
A pele tem sido a tela do indivíduo, através dela ele se expressa e manifesta signos
que dialogam com a sociedade em que ele está inserido. Podemos observar alguns
113
exemplos de sociedades cuja imagem física das pessoas cumpre uma função narrativa
especifica, como, por exemplo, as tribos Maori, nativas da Nova Zelândia que, há séculos
pintam seus corpos e rostos com tinta preta permanente, atribuindo diversos significados
políticos, sociais e espirituais através das marcas tatuadas. Neste grupo social, quanto
mais tatuagens tem o indivíduo, mais influência política e social ele tem dentro de sua
tribo.
A etnia Mursi e Karo do Vale do Omo, no sul da Etiópia (África) tem diversos
rituais relacionados à beleza. Os Mursi praticam a escarificação desde cedo nos rituais de
transição das crianças para a vida adulta. Estas marcas servem como elemento estético –
sendo consideradas símbolo de beleza – e como elemento narrativo, informando a
maturidade dos Mursi, e sua disposição para o casamento e geração de filhos. Além disso,
é comum que se utilizem de diversos elementos agregados ao corpo a fim de embelezá-
lo, tais como discos de madeira colocados como alargadores de orelhas e bocas, chifres
de animais usados como brincos ou adornos para a cabeça, além de vegetais, metais e
outros elementos que encontram em suas terras. Já os nativos da tribo Karo são exímios
pintores faciais e corporais, e utilizam-se dessa caracterização inscrita na pele com
elementos naturais (como carvão vegetal, giz branco, terra amarela, entre outros) como
um elemento valioso de seus rituais e cerimônias.
As tribos indígenas brasileiras também adornam seus corpos com pinturas, colares
e pulseiras feitos com sementes, penas de aves e palhas, sendo possível encontrar
semelhanças imagéticas entre elas, sobretudo em relação ao uso de cores e elementos. No
entanto, seus grafismos variam de acordo com cada tribo, tendo também caráter
informativo dentro daquele grupo social.
No Japão temos a figura icônica da gueixa, cujos trajes e a pintura facial marcada
pela máscara branca com destaque nos olhos e boca, advém de uma antiga tradição do
país. E na Índia, é comum que o uso do bindi, um ponto vermelho (feito com vermilion
35
, tradicionalmente), usado por mulheres casadas para sinalizar seu estado civil.
35
Ou “vermelhão” é um pigmento opaco alaranjado que tem sido usado desde a antiguidade. O pigmento
ocorrente na natureza é conhecido como zinabre. Quimicamente, o pigmento é sulfeto de mercúrio e [...] é
tóxico. Hoje, vermelhão é na maior parte comumente produzido artificialmente reagindo mercúrio com
enxofre derretido. A maior parte do vermelhão produzido naturalmente vem de zinabre extraído na China,
daí seu nome alternativo vermelho China ou vermelho chinês. (Cf. GETTENSFELLER; CHASE, 1993, p.
159).
114
[...] estamos todos refletidos de algum modo nas numerosas imagens que nos
rodeiam, uma vez que elas já são parte daquilo que somos: imagens que
criamos e imagens que emolduramos; imagens que compomos fisicamente, à
mão, e imagens que se formam espontaneamente na imaginação; imagens de
rostos, árvores prédios, nuvens, paisagens, instrumentos, água, fogo, e imagens
daquelas imagens – pintadas, esculpidas, encenadas, fotografadas, impressas,
filmadas.” (MANGUEL, 2001, p.20).
Figura 86: “Cara Pintada” da actante Cacilda Becker (Estragon), em Esperando Godot, (de Samuel
Beckett, direção de Antunes Filho, levado pelo Teatro Brasileiro de Comédia (1978). Fotografia: Dedoc.
O que será a flor na pele? Que mistérios tem a pele – que nos protege, nos
circunscreve – que nos dá forma? Que perfume dorme na flor da pele? O que somos com
a pele ou pela pele? O que há na pele que nos faz rosa?
intervenções ora se dão pela consciência do actante como um “duplo de si” estilizado para
a cena – ou seja, pela construção de uma “cara pintada” que não se pauta pela adesão de
elementos materiais –, ora pelo acrescimento de elementos materiais (cosméticos,
próteses, objetos etc.).
teatrólogo Bernard Dort, em seu livro O Teatro e sua Realidade (1977), destaca a
importância da formação da “Suma” – o sistema que se originou na escrita sistemática e
profícua de Constantin Stanislavski, o mestre russo. Para Dort (1977), a herança que
Stanislavski lega ao teatro ocidental moderno vai além de enriquecer uma epistemologia
do processo de encarnação. Stanislavski organizou seu “Sistema” (ou método) de
preparação do actante para a encenação teatral, considerando que, para além da leitura e
entendimento da dramaturgia, da recitação do texto ou ação que correspondia à fábula, o
indivíduo actante se entendesse capaz de usar seu “instrumento psíquico interior”
transfigurado na realização das ações psicofísicas da personagem.
Figura 87: “Cara pintada” do actante Konstantin Stanislavski. Em After My Life in Art, Part 4: The
System. Fotografia: Routledge Performance Archive (S/D).
Portanto, o que pode ser aceito como a grande contribuição para o teatro que vivia
a crise do drama moderno (SZONDI, 2001, p. 35-88) fora exatamente a emergência do
actante como parte poética do processo de encenação.
36
A citação é longa para que não haja interferência da linha de raciocínio construída pelo autor original.
118
[...] esperava dar com algum traje que me sugerisse uma imagem atraente. Um
simples fraque velho chamou-me a atenção. Era de um tecido notável, que eu
nunca vira antes – uma espécie de pano cor-de-areia, esverdeado, parecendo
desbotado, coberto de manchas de pó misturado com cinza. Tive a impressão
de que um homem com aquele fraque pareceria um fantasma. Uma sensação
quase imperceptível de asco, mas, ao mesmo tempo, um senso de fatalidade
ligeiramente aterrador apossara-se de mim ao fitar a velha roupa.
Combinando com um chapéu, luvas, sapatos empoeirados e maquilagem e
cabeleira da mesma cor e nos mesmos tons do tecido do fraque – tudo
acinzentado, amarelado, esverdeado, desbotado e penumbroso – obter-se-ia
um efeito sinistro mas, de certo modo, familiar. Qual seria esse efeito eu não
podia ainda determinar.
Os encarregados da rouparia separaram o fraque que escolhi e prometeram
procurar acessórios que combinassem com ele: sapatos, luvas, cartola, bem
como peruca e barba. Mas eu não estava satisfeito e continuei procurando até
o último instante, quando a amável chefe de rouparia disse-me, finalmente, que
precisava se preparar para a representação daquela noite. Não havia nada a
fazer senão retirar-me sem ter chegado a uma decisão final e deixando
reservado para mim apenas o fraque manchado.
Emocionado, perturbado, saí da rouparia, levando comigo este enigma: que
personalidade deveria assumir quando envergasse aquele velho fraque
estragado?
[...]
Ainda me achava nesse estado de divisão interior, de insegurança e de
incessante busca de alguma coisa que não conseguia achar quando entrei no
camarim geral onde teríamos de envergar nossos trajes e fazer nossas
maquilagens, todos juntos, em vez de isoladamente.
[...]
Nosso camarim retumbava de exclamações tal como se se tratasse de alguma
representação comum de amadores.
[...]
⸻ “Alguma coisa está errada... não sei bem o que é... quem é ele?” “não
entendo, quem é que você quer ser?”
Como era horrível ouvir essas observações e perguntas sem ter nada para
responder!
Quem é que eu queria representar? Como ia saber? Se pudesse adivinhar seria
o primeiro a dizê-lo.
[...]
Finalmente saíram todos e foram para o palco da escola a fim de serem
inspecionados por Tórtsov. Sozinho no camarim sentei-me, prostrado de todo,
fitando desamparadamente no espelho meu rosto teatral desprovido de feições
próprias. No íntimo, já me convencera do fracasso. Resolvi não me apresentar
ao Diretor e tirar o traje, remover a maquilagem com auxílio de um creme
esverdeado de horroroso aspecto que estava à minha frente. Já metera um dedo
nele e começara a esfrega-lo na cara. E... continuei esfregando. Todas as outras
cores se esfumaçaram, como aquarela que tivesse caído em algum líquido. Meu
rosto ficou amarelo-cinzento-esverdeado como uma espécie de réplica ao meu
traje. Era difícil distinguir onde estava o meu nariz, ou os olhos, ou os lábios.
Espalhei um pouco do mesmo creme na barba e no bigode e, finalmente, em
toda a cabeleira. Alguns fios grudaram em pelotas... e então, quase como se
estivesse delirando, pus-me a tremer, meu coração batia, apaguei as
sobrancelhas, empoei-me a esmo, lambuzei as costas das mãos com uma cor
esverdeada e as palmas com um rosa-claro. Estiquei o casaco e dei um puxão
na gravata. Fiz tudo isso com um toque seguro e rápido, pois desta vez sabia
119
Das questões que emergem nesse relato, as que mais nos saltam aos olhos referem-
se a “cara pintada” como um fenômeno que não se instaura pelo simples ato de passar
cosméticos no rosto, uma vez que, se observarmos a história contada, podemos perceber
que o actante, mesmo tendo o rosto “desenhado” pelo maquiador de seu grupo, não havia
encontrado uma dramaturgia para sua criação, nem para sua realização no palco. Foi
preciso que o actante se entregasse ao fenômeno criativo para conseguir encontrar sua
cara “por acidente”.
Figura 88: “Cara pintada” do actante Konstantin Stanislavski. Fotografia: Daily Express (2018).
A “cara pintada”, portanto, não apenas é decorrência de uma tradição teatral, mas
complementa a cena naquilo que ela carece de organização narrativa de significados. Para
121
Aquilo que pode ser denominado Carácter (voz narrativa, pessoa, persona,
personagem), ainda que esteja formulado no corpo de um ser humano (igualmente:
pessoa, persona, sujeito, ser) não prescinde de uma construção simbólica que defina sua
face como a marca mais preponderante de sua existência espetacular.
Desse modo, sobre a tez do actante, ainda que esteja aparentemente nua, se
estabelece a “máscara” que unifica em significados palco e plateia. Encontra-se naquele
rosto a agonia que se estabelece como a matriz do drama. De tal sorte, as intensões, os
anseios, os objetivos, as paixões e os conflitos que permeiam a vida no universo dramático
não pertencem ao actante, por mais que ele haja construído toda essa carga emocional e
a ressignificado em um papel; pertence, assim, ao personagem que a ele se liga pelo corpo,
inclusive, pela dimensão da pele, através da “cara pintada”, ainda que esta não traga os
efeitos transfiguradores da aplicação da maquiagem. Ainda em A construção da
personagem (1998) Stanislavski faz menção a essa construção da “máscara facial” que
não depende da pintura, quando Tórtsov questiona o grupo e Kóstia sobre sua construção
poética:
⸻ [...] será que ele teria a coragem de nos mostrar essas mesmas emoções sem
usar a máscara de uma imagem criada? Quem sabe se, nas profundezas de seu
ser, não haveriam sementes capazes de produzir uma outra personalidade
repulsiva? Suponhamos que o fizéssemos demonstrá-lo agora, aqui, sem
maquilagem e sem traje adequado. Acha que teria coragem?
Tórtsov disse esta última frase em tom de desafio.
⸻ Por que não? – retruquei – afinal tentei muitas vezes representar o papel
sem nenhuma maquilagem.
⸻ Mas usou as expressões faciais, os gestos e o modo de andar adequado?
⸻ Naturalmente ⸻ respondi.
⸻ Bem, então foi o mesmo que uma maquilagem. Mas isso não é o mais
importante. Pode-se apresentar a máscara mesmo sem maquilagem [grifo
nosso]. Não, o que eu quero é que nos mostre os seus próprios traços, sejam
eles quais forem: bons ou maus, mas que sejam os mais íntimos e secretos, e
que seja você mesmo, sem se ocultar atrás de qualquer imagem ⸻ insistiu
Tórtsov.
⸻ Eu teria vergonha de fazê-lo ⸻ confessei. (STANISLAVSKI, 1998, p. 46).
122
Uma poética do actante pode ser reivindicada como presença. Tal processo pode
ser mapeado nos estudos teatrais do século XX. Em sua tese de doutoramento, o professor
Dr. José Sávio Araújo, nosso grande parceiro nessa pesquisa, apresenta uma síntese que
enuncia a necessidade de compreensão de tal “dramaturgia” para compreendermos o
teatro do nosso tempo, que promoveu, por seus inúmeros caminhos trilhados, uma
ampliação do conceito de dramaturgia, para acolher o trabalho do ator, com o qual se
pode imaginar . Para o professor Sávio,
Assim, uma “poética” da “cara pintada” que se torna presente no rosto (corpo) do
actante, enquanto dimensão plástica, também é uma “dramaturga do ator”, quando se faz
presente no processo de criação e como resultado, na cena, independente dos elementos
materiais dos quais ele faça uso para se pintar. Desta via, a flor na pele, para nós, é a
poética do actante que se organiza como uma dramaturgia: teatralidade e presença.
antes disso, crer era compreender a “ideia” autoral do que se tinha organizado no palco
como a manifestação dramática das paixões.
Descende desta herança o que compreendemos como dramaturgia dos sécs. XIX
e XX. Fundamentalmente, dramaturgia se estabeleceu como o resultado escrito do que
haja se manifestado como matéria cênica.
A partir do trabalho desenvolvido por Brecht, conforme nos informa Pavis (1999),
a dramaturgia passa a englobar as escolhas estéticas que a equipe de realização do
espetáculo faz no processo de sua concepção. Ou seja, dentro dessa ótica, “[...] a noção
de dramaturgia passa a estar relacionada não somente com a escritura de textos
dramáticos, mas com a articulação dos diversos elementos que compõem a cena”
(BONFITTO, 2011, p. 56).
Pavis (2017, p. 82) afirma que “O dispositivo é uma máquina para jogar
(representar), pois ‘diante de um dispositivo que faz corpo com o drama, que não é um
cenário anedótico, mas um instrumento de trabalho, nossa atenção fica presa’.”. Desta
via, as diversas dramaturgias que se engendram para instaurar o fenômeno cênico,
apresentam-se como este dispositivo que prende a atenção do espectador, ou melhor, o
arrebata para dentro da narrativa, onde ele passa a construir para si a encenação a partir
de suas percepções.
Para nós, está implícita a condição de “se pintar” como uma ação universal do
humano de construção de um tipo de narrativa de sujeitos que usa o corpo e suas
ressignificações visuais e pictográficas na tentativa de uma interferência poderosa no
mundo. E constatamos, a partir de levantamentos bibliográficos, que, de fato, existe a
possibilidade do actante que se pinta para a cena estar realizando processos de criação ou
composição dramatúrgica.
que muda o espectador. Sendo ele o leitor, parte fundamental de qualquer sistema
comunicacional, esse espectador de teatro possui, na dimensão dessa teatralidade, parte
da compreensão da organização do processo que o faz ler e compreender o espetáculo.
Foi graças a esse modo de assimilação das mudanças pelas quais a civilização
passa que o teatro sobreviveu até hoje. Como quando se aliou à estética e lógica do mito
clássico, na Antiguidade; como se adequou à dimensão metafísica, em toda a Era
Moderna; como se aliou à literatura e filosofia neoclássica, a partir do século XVIII; e
como se alia à condição de interatividade, dialogismo (polifonia) tecnológico e
discursividade imagética, como em nossos dias.
A herança que trazemos do teatro psicofísico, que emergiu no final do século XIX,
como já demostramos, é, na atualidade, aprimorada em diversas possibilidades de
fiscalização, jogo, materialidade imagética, ritual etc.
Numa representação, as ações (isto é, tudo que tem a ver com a dramaturgia)
não são somente aquilo que é dito e feito, mas também os sons, as luzes, e as
mudanças no espaço. Num nível mais levado de organização, as ações são
episódios da história ou as diferentes facetas de uma situação, os espaços de
tempo – ou mesmo a evolução da contagem musical, a mudança de luz e as
variações de ritmo e intensidade que um fator desenvolve seguindo certos
temas físicos precisos (maneiras de andar, de manejar bastões, de usar
maquiagem). (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 68).
na polifonia do teatro. Através da composição material do rosto que vem à cena, também
se institui as tessituras de significados da teatralidade, com a qual se dá a enunciação e a
leitura da narrativa da cena.
A fim de oferecer uma imagem que exemplifique tal fenômeno, podemos fazer
uma aproximação do termo presença cênica com uma famosa teoria experimental da
física quântica, “o gato de Schrödinger” 37, que se define pelo momento em que um dado
observador olha para um gato (partícula) e, nessa ação – e somente neste momento –,
define a presença (estado) do gato no espaço-tempo. No caso, só se é possível atestar a
condição de presença do gato se, assim, também houver um observador que o observe.
De outro modo, não se pode atestar que exista um gato presente.
37
Eriwn Schroedinger, físico austríaco, elaborou em 1932 uma teoria da física quântica que afirma que as
partículas subatômicas existem em todos os seus estados ao mesmo tempo enquanto não estão sendo
observadas. A interferência do observador, portanto, faz com que a partícula se apresente em um único
estado. Para explicar tal fenômeno o físico propõe o exercício mental que elabora que um gato está em uma
caixa totalmente fechada com um elemento radioativo que pode ou não entrar em ação, em uma
probabilidade de 50% para qualquer dos resultados. Caso a radioatividade seja liberada, envenena o gato,
gerando sua morte. Caso permaneça como está, o gato segue vivo. Na teoria de Schroedinger, enquanto a
caixa não é aberta, ambas possibilidades se mantêm, de modo que o gato segue, ao mesmo tempo, vivo e
morto; apenas quando ela for aberta será possível assumir um dos estados como “real”, uma vez que o olhar
do observador constatará o estado do gato. (GRECA; MOREIRA; HERSCOVITZ, 2001).
132
Com isso se define o estado de percepção do espectador que constitui a cena e sua
espetacularidade. Dessa maneira, constatar a presença do actante em cena pode ser o
“grau zero” da codificação teatral, como podemos deduzir da concepção do uso do termo
pelo semiólogo Roland Barthes 38, nos estudos da “escrita”. É neste momento da presença
cênica se estabelece a (re)lação, o encadeamento das partes do “sistema da linguagem”
(emissor, meio, código, mensagem, receptor, resposta), fechando o ciclo dialógico,
conforme se dá nos processos estudados pela semiologia. (BARTHES, 2007, p. 75-78).
38
Semiólogo e ensaísta francês Roland Barthes (1915-1980) é um dos fundadores da semiologia como
disciplina aplicada às ciências sociais. Trabalhando conceitos de diversas temáticas e áreas do
conhecimento, Barthes colaborou na elaboração de teorias que constituíram a base fundamental do
pensamento do século XX, sobretudo, nos estudos da linguagem e das poéticas. Em seu livro Elementos
de semiologia, estuda a formação da cadeia significante tendo o signo como princípio fundante, aos moldes
da semiótica e semiologia tradicional, como Pierce e Saussure. Assim, reorganiza a linguagem como
fenômeno da comunicação social e propõe um modelo de relação entre ambos as potências do significado
e do significante, estabelecendo a relação entre forma e função de forma.
133
pela presença do corpo em cena, mas por toda textura dramatúrgica que compõem a cena,
incluindo o corpo do actante e, nele, a “cara pintada”.
LEHMANN (2007) por sua vez, destaca a presença a partir de dois vieses: 1) o
fenômeno do tempo presente; 2) e a produção de presença. Enquanto a primeira está mais
próxima da função semântica da palavra, relacionando-a com o que se apresenta no aqui
e agora; a segunda tem cunho alusivo, referindo-se a algo que se anseia. Neste sentido,
talvez seja no campo da dualidade proposto por Lehmann, em que se distingue a presença
apenas do se fazer presente no momento atual que se encaixe o fenômeno da “cara
pintada”, uma vez pode-se considerar que este se faz presente no momento em que ele
acontece perante o seu criador (actante), bem como ao se presentificar diante do público.
Além da figura (do latim figura: forma, configuração, efígie, maneira de ser) o
sentido das figuras de estilo retórica, a noção de figura conhece na estética, na
filosofia, nas ciências humanas e nas artes visuais um largo destino. A figura
134
A proposta de reflexão do ato de pintar a cara para a cena teatral, a que nos
obrigamos, desde 2009, tem nascedouro em parte do material recolhido na análise dos
estudos da dramaturgia que aparece na Europa, a partir dos anos de 1950, configurada
como uma dramaturgia pós-brechtiana.
A “cara pintada” é uma “dramaturgia visual” (PAVIS, 2017, p. 207) que pode
designar, em espetáculo com ou sem texto, uma sequência de imagens (como em Robert
Wilson ou na Dança-Teatro de Pina Bausch ou no teatro musical ou no Teatro do Gesto
ou nas Artes da Performance ou de toda a Ação Performativa) a condução visual como
dominante da produção de sentido na cena teatral.
CAPÍTULO III
Quando falamos de poética dos actantes, estamos nos referindo a tudo o que ele
cria dentro de seu jogo cênico (dentro e fora do palco), tudo o que o perpassa em seu
processo criativo e que se engendra na constituição das ações da personagem.
c) análise síntese do conjunto que forma esse recorte do Corpus nesse capítulo,
ou seja, a fotografia + a descrição + o comentário + as vozes dos actantes (recolhidas nas
entrevistas) a partir da condição de “leitura transversal”, aos moldes proposto por Richard
Demarcy (1988), que se baseia na ruptura com o olhar despreparado, “neutro”, que
produziria, segundo o semiólogo, uma recepção horizontal no sentido de apenas aceitação
dos códigos apresentados como referências legíveis.
139
O caminho que percorremos, até aqui, nos faz enxergar na ação individual de cada
actante, que empresta sua “cara” a servir de imagem, uma dramaturgia desse novo
paradigma da cena. Assim, a “cara pintada” que se instaura na criação poética do actante
é a própria cena.
3.1.1 Travessia
Travessia é um título sugestivo que nos faz pensar em jornada, percurso, caminho,
e por si já coloca em ação um sujeito. Inicialmente, precisamos dizer que, por uma questão
de compreensão fenomenológica, trataremos o campo da performatividade do
ilusionismo como espetáculo. Abordaremos o que se instaura no espaço/tempo da ação
do actante Hórus como uma figura que se faz imagem através de um dispositivo cênico
muito específico que é a observação.
39
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
140
Para isso, Hórus assume uma persona cuja figura se pauta pela ideia de
naturalidade imagética, ou seja, não há nada em sua figura no espaço da cena que destoe,
em excesso, da sua figura cotidiana. A similaridade, aqui, tem a função estratégica de
sugerir ao espectador a crença na “normalidade”, exatamente, numa não espetacularidade.
No palco uma figura que não difere das pessoas com quem cruzamos em nosso
cotidiano. Um homem, alto, cabelos e olhos castanhos escuros, vestindo um figurino
composto de calça jeans preta e camisa de botões na mesma cor. Um homem “comum”,
como percebemos na primeira leitura que fazemos de sua imagem. Para o ilusionista esse
141
lugar de “homem comum” é interessante, pois não chama a atenção do público para suas
práticas de prestidigitação.
Em uma segunda parte de seu ato, Hórus opta por usar uma venda nos olhos,
criando no seu espectador a tensão provocada pelo símbolo do perigo eminente.
Figura 90: Outra cena da ação performática Travessia, de Hórus. Fotografia de Paula Araújo (2018).
com o rosto “limpo”, sem adição de cosméticos, próteses e adereços não significa estar
com o rosto desnudo. O actante precisou construir a figura ou, em suas palavras, “uma
atitude” que se personifica em sua imagem, através da qual o público se ligará com o
fenômeno da teatralidade. O que, corrobora o pensamento de MAGALHÃES (2010):
Ao ser questionado sobre como deveríamos nos referir ao seu trabalho, Hórus nos
deu uma a seguinte resposta:
40
Entrevista colhida em 12 de fevereiro de 2019, conforme Anexo I.
143
risco de colocar sua relação com o público em um lugar diferente do que considerava
como necessário para a concretização de sua ação ilusória.
Aqui podemos verificar que imagem, presença e atitude (ou seja, experiência e
percepção) são os grandes campos semânticos que o artista manipula para construir sua
narrativa. Da mesma forma, “pintar a cara” é para Hórus uma atitude “Confortável e
desconfortável. Mas me passa a sensação de completude da proposta”. Assim, “pintar a
cara”, para este actante, o coloca em estado de percepção do que projetou para a
performance.
uma imagem próxima a do brâmane indiano, do faquir. Ainda pretendo experimentar com
o público”.
Apesar de considerar que é possível realizar Travessia com uma “cara pintada”
diferente e de estar disposto a tal experimentação, Hórus traz como ponto de referência
para o segundo momento de sua performance em que supostamente se coloca em situação
de risco, o faquir indiano, do qual nós, enquanto membros de uma sociedade ocidental
organizada a partir de uma matriz europeia, temos um pré-conceito formado que se baseia
na imagem construída do faquir em meios de divulgação de mídia, mas, em grande
maioria, ignoramos as questões religiosas, filosóficas, antropológicas, culturais que
circundam estes “personagens” orientais. A imagem do faquir nos remetera a cama de
pregos e à ideia de que, submetendo-se aquela situação de possível risco a persona não se
machucaria, pois estava em “lugar” sobre humano, em que os efeitos físicos da gravidade
sobre um corpo que se deita em uma cama feita de pregos pontiagudos não se aplicam.
Tenho dito que sou um ator-brincante... Essa minha fala inicial marca o registro
das minhas descobertas no mundo do fazer teatral – brinquei nos circos
tradicionais que passaram pelo interior do Estado, mais precisamente na
comunidade do Sítio de Santa Cruz, Vera Cruz/RN. Ator de rua, construtor em
41
Realizado no PPGArC da UFRN, em 2017, sob a orientação do professor Dr. Robson Carlos Hadershpek.
146
minha comunidade de espaços não formais do fazer artístico. [...] Capoeira [...]
ator [...] laboração biográfica [...] “Revoada” [...] “Éter” [...] Arkhétypos [...]
“Saudades Z (é)” [...] “Pérola” [...] mundo afora. 42
“Saudades Z (é) contribui para a minha formação integral”. É assim que Tião
analisa a sua participação no espetáculo que realiza. Sua análise transcende nossa
expectativa. Tião, de fato, reflete em sua fala a pesquisa que realizou na sala de ensaio.
“[...] percebo que [...] depois de apresentar o “Zé”; tenho realizado uma anamnese”.
Refere-se a fato de que o espetáculo recorda fatos de sua vida, “[...] atravessa as minhas
memórias”.
O verbo está correto, com a pesquisa e o espetáculo, Tião montou uma grande
cartografia de suas lembranças, que traspassam seu entendimento dos festejos populares
de sua terra, muito especialmente, do Boi de Reis e do Mestre Zé de Moura. Saudades Z
(é) tem pontos que “[...] colocam em xeque a minha existência”. Tião considera que o
espetáculo é “[...] uma análise na tentativa do autoconhecimento, de ‘verdades’
intrínsecas”.
Podemos recortar que esta compreensão que o artista tem da narrativa cênica
realizada é também parte intrínseca do que constrói como poética, corporeidade, trajeto
perceptivo, fenômeno de si (MERLEAU-PONTY, 1996). Por outro lado, desprendendo-
se do romantismo do que chama de atravessamentos, Tião nos diz que “[...] participar do
42
Entrevista colhida em 13 de dezembro de 2018, conforme Anexo II.
147
“Zé” é um desafio além do trabalho de ator, pois exige pensar [...] desde a sua concepção,
produção, perpassando a atuação, a análise e a autogestão, ou seja, a minha participação
no Saudades Z(é) é parte de um todo, para que ele se fazer presente!”.
Partindo da anamnese que o actante vem realizando de seu trabalho, ele nos
descreveu sua personagem Mateus de Zé de Moura, que compôs e realizou nesse
espetáculo da seguinte maneira:
A maneira como Tião descreve a actância brincante que vive em seu festejo-
espetáculo, a quem deu o nome de Zé, toca aqueles que tiveram a oportunidade de
vivenciar a cultura dos brincantes de Boi de Reis, trazendo às nossas memórias outros
brincantes e brincadeiras que, vistos a partir da mesma superfície (rosto pintada de carvão,
roupa de couro e fitas coloridas etc.) criam uma espécie de avatar, uma forma que, através
da imagem, materializa uma série de significados construídos através de anos de história
e tradição.
Figura 94: Professor Makarios Maia, Mestre Jovelino e Tião Sales, nas pesquisas de campo acerca do
Boi de Reis de Vera Cruz (RN), preparatórias para Saudades Z(é). Fotografia: Lenice Lins (2009).
O actante destaca ainda a importância dos adereços, tais como o chapéu de couro,
que representa a couraça, a proteção do homem sertanejo quando sai para caçar; “o
‘macaca’ 43
[...] instrumento [...] representa o chicote do boiadeiro, que tange o boi no
curral, na capoeira” e o matulão 44, que
43
“[...] instrumento [musical feito com] um bastão de madeira com uma corda amarrada em sua ponta em
umas extremidades segurando uma bola de meia [...]” – definição dada pelo artista através de entrevista
realizada em 16 de janeiro de 2019, conforme Anexo II.
44
“[...] instrumento confeccionado por um pedaço de colchão e com diversos chocalhos pendurados” –
definição dada pelo artista através de entrevista realizada em 16 de janeiro de 2019, conforme em Anexo
II.
149
o ciclo do gado marcado por ferro; demarcando este animal e pelos sinos que
anunciavam por onde andavam os gados que fugiam dos cercados. [...] Nesse
aspecto, os adereços em “Zé” compõem a estrutura de paramentos (vistos não
apenas como um adorno), mas como signos que comunicam e se reestruturam
dentro da linguagem da cena do referido espetáculo.
A leitura que Tião faz da importância dos adereços como elementos que compõem
a tessitura dramatúrgica do espetáculo, alinham-se com a visão que se erigiu na cena
contemporânea, em que os
Figura 95: Tião Silva “brincando” seu “Zé de Moura” durante o Encontro da ABRACE 45.
Fotografia de Sarah Wollermann (2018).
45
Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (http://portalabrace.org).
150
quanto o espectador acessem essa dimensão lúdico-essencial onde o jogo dos brincantes
é estabelecido.
No que diz respeito aos cabelos, Tião acredita que seu aspecto não é relevante
para a construção da figura do Zé, no entanto, afirma sua preocupação em “não cortar o
cabelo com stylos mais modernos (como moicano, dégradé, com listinhas e outros; por
uma questão de estética do homem sertanejo [...])”. A informação se torna um tanto
contraditória, uma vez que sua preocupação afirma a relevância da informação construída
em todos os elementos que compõem a imagem da personagem, inclusive o cabelo
“comportado”.
O relato encantado do actante aponta a “cara pintada” como rito poético da cena
dos brincantes, em que eles não só repetem as ações que costumam fazer em cada uma de
suas apresentações, mas, mantendo de uma tradição muito mais antiga e profunda,
reproduzem as ações de seus antepassados, de tantos outros Mateus e Biricos que
passaram cansados por aqueles terreiros e transcenderam na brincadeira.
Não estamos, nesta reflexão, ignorando o elemento individual e único que cada
actante traz em sua própria dramaturgia, mas levamos em consideração o poder da figura
do brincante com sua “cara pintada” à maneira tradicional, como um signo potente que
atravessará a construção (e, portanto, a leitura) da personagem com a essência poética do
que já foi arraigado no imaginário das pessoas (que atuam ou que veem).
[...] quando eu pinto a minha cara com carvão, eu tenho certeza que não sou
mais eu, transformo-me e me coloco em estado de poesia, de trânsito,
transgressão e vivo a brincadeira de ser outros em meu corpo. [A “cara
pintada”] um elemento fundamental para a composição do “Zé”.
Figura 97: “Boi da cara preta”, Tião Silva em seu Saudades Z(é).
Fotografia: Tiago Lima (2017).
Haveria a possibilidade de Saudades Z(é) ser recebido pelo público com a mesma
aceitação, no caso do brincante Tião não “pintar a cara”? E ele responde: “[...] acredito
que não teria e não faria sentido outra maquiagem para este personagem. O ‘Zé’ é um
homem, um Boi da cara preta, da cara pintada!”.
153
3.1.3 Jacy
46
Criado em 1993, em Natal (RN), o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare desenvolve uma investigação
com foco na construção da presença cênica do ator, da musicalidade da cena e do corpo, teatro popular e
comédia, sempre sob uma perspectiva colaborativa. Mesmo sem trabalhar diretamente com palhaço, a
técnica do clown está presente na sua estética, seja na lógica subvertida do mundo, seja na relação direta e
verdadeira com a plateia, seja no lirismo que compõe o universo desses seres. Além, é claro, de toda a sua
carga cômica. As comédias shakespearianas vieram a contribuir para essa pesquisa. Sem adotar uma atitude
“museológica” sobre o bardo, no entanto sem desrespeitar a sua genialidade, o desafio tem sido encontrar,
na universalidade da obra do dramaturgo, o que faz sentido para o grupo. (Cf.
https://www.clowns.com.br/o-grupo/).
47
Em março de 2001, o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare mobilizou a classe artística e de produtores
culturais da cidade do Natal (RN) para, através de um conjunto de ações coletivas de vários atores sociais
e via incentivos culturais de empresas da região, fundar o Espaço Cultural Casa da Ribeira (Em atividade
há 18 anos), que habita um casarão construído em 1911 (Tombado pelo IPHAN como Patrimônio Cultural
Brasileiro), e comporta: um Teatro (com 164 lugares), uma Sala de Exposições, um Laboratório de Ideias,
um Acervo Literário (com mais de 1400 títulos) e um Café Cultural. (Cf. www.casadaribeira.com.br).
48
O Grupo Teatro Carmin foi criado em janeiro de 2007, em Natal (RN), para pesquisar temas urbanos que
pudessem ser retratados de forma cômica. A busca pelo riso não era gratuita e deveria proporcionar abertura
para reflexão ou, como quis Georges Bataille, para uma “atitude filosófica”. Motivados pela pesquisa
proposta pelo Grupo Clowns de Shakespeare sobre moradores de rua do bairro da Ribeira, as atrizes
Quitéria Kelly e Titina Medeiros convidaram o diretor e dramaturgo Henrique Fontes e o cenógrafo
Mathieu Duvignaud para juntos aprofundarem a pesquisa e, daí, nasceu a peça “Pobres de Marré” que já
realizou mais de 60 apresentações, percorreu o Brasil e a França. Em 2013, o grupo estreia Jacy, uma peça
cômico-trágica que revela fatos sobre o abandono dos idosos, a política e o crescimento desenfreados das
cidades que, por muitas vezes, ignoramos. Na atualidade, o Grupo Carmin mantém em cena “A Invenção
do Nordeste”, um espetáculo sobre identidade e xenofobia. E o grupo busca aprofundamento estético na
linguagem de Teatro Documental. (Cf. http://www.grupocarmin.com/o-grupo#/historia/).
49
Entrevista colhida em 16 de janeiro de 2019, conforme Anexo III.
154
de fora, mas acabou que, no processo, a gente não conseguiu esse diretor e decidimos
fazer nós mesmos. E, eu acabei dirigindo.”.
Figura 98: O actante Henrique Fontes em Jacy. Fotografia: Wladimir Alexandre (2014).
[...] o formato de teatro que a gente trabalha é um teatro onde o ator ele não
busca a mimese da personagem ou a criação de um corpo que é externo ou
forjado para a cena. O corpo do ator é o corpo do suposto personagem. [...] pra
mim a maquiagem não tem nenhuma importância; o figurino ele tem
importância no sentido de ser algo que dê forma e sentido à criação anterior –
então, não é ele que influencia, ele vem como um complemento pra isso – tanto
que, muitas vezes, a gente nega figurino, né? dizendo assim – “ah não, isso não
dá certo, isso não funcional, tal” – porque a gente já tá muito fortemente ligado,
ou se apropriou de estar em cena, né? Obviamente que quando o figurino chega
ele é utilizado, potencializado para a cena, mas eu não diria que ele tem um
papel preponderante, fundamental, não.
155
Segundo Fontes, o espetáculo parte de uma estética que não busca grandes
composições de personagens através de elementos estéticos ou mesmo psicológicos
porque,
construindo uma artificialidade de si mesmo, está construindo uma “cara pintada” para a
persona que ele vivencia em cena.
[...] a gente tem tipos, que não chegam a ser personagens, mas são a suposta
representação de Luiz, o irmão de Jacy; um velho que eu retrato como “um
processo inicial”, que aí, sim! a gente trabalhava com mimese, trabalhava com
a coisa da observação e da composição, né? E aí, esse personagem que não tem
nome, mas que é velho, ele tem ali uma construção, sim, de corpo, de voz,
enfim, de estado. Mas acho que o que a gente mais preza é a fluidez da
narrativa... das narrativas diferentes.
Figura 99: O actante Henrique Fontes em Jacy. Fotografia: Daniel Torres (S/D).
157
Figura 100: O actante César Ferrario vivendo Clarence, em Sua Incelença, Ricardo III.
Fotografia: Lenise Pinheiro (2010).
158
César, quando perguntamos sobre seu trabalho artístico, encara a questão com
profundidade,
[...] caí nesse espaço cênico por uma casualidade. Foi quando eu fazia o
segundo grau e [...] muito prontamente entendi o poder e as necessidades das
narrativas teatrais, não só para o mundo, mas para mim, para minha existência.
E desde então não larguei mais. Durante esse mesmo período funda-se [...] Os
Clowns de Shakespeare [...] a minha jornada artística durante 24, quase 25 anos
[...] no início do ano passado [...] vim a concluir [...] que não estava mais no
coletivo. [...] Daí então, seguir em mar aberto, disposto a construir novas
oportunidades ao final de cada trabalho concluído.
50
Antônio Gabriel Santana Vilela é um diretor de teatro, cenógrafo e figurinista brasileiro que já dirigiu
mais de 40 espetáculos, entre adultos e infantis. Formou-se no curso de Formação de Diretores, da Escola
de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e tem em seu currículo muitos espetáculos de teatro
e música. Em 2010, dirigiu o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, na montagem de Sua Incelença,
Ricardo III.
51
Entrevista colhida em 14 de janeiro de 2019, conforme Anexo IV.
159
Guerra, Formigas e Palhaços 52 [...] que nem tem uma relação direta com
Ricardo III, mas não deixa de ser fruto desse encontro.
A análise que o actante faz de seu trabalho é profunda, de modo que, para
responder as questões sobre o espetáculo Sua Incelença, Ricardo III, ele esquadrinha
todo o universo que se instaurou ao redor do processo experienciado. Porém, focando
mais na busca de nossa pesquisa, ele afirma que
[...] o mais interessante pra mim, dado o contexto que eu encontrei em Gabriel
[Villela], diz de uma percepção construída, física da personagem. Ele entende
que o ator está um palmo atrás da personagem e de fora dela e, de maneira
consciente, ele a articula. Tudo... todo o processo narrativo, segundo Gabriel
Villela – ou pelo menos da forma como ele trabalhou com a gente – se
estabelece a partir de uma pele, de uma derme. A partir do entendimento dessa
derme, dessa pele, dessa máscara, dessa caracterização é que o ator começa a
entender e a manipular a persona cênica ou personagem. Tanto que – lembro-
me até hoje – no primeiro dia de trabalho, ele, sem saber bem para onde ia,
nem como seria o desenrolar do processo, nos vestiu e nos maquiou a todos e
disse: “a partir daqui a gente começa a nossa montagem”. E claro, no instante
em que as coisas iam caminhando ele ia ressignificando, mudando figurinos,
mudando a maquiagem, mas desde o primeiro dia de trabalho, quando
chegamos na sala de ensaio, ele já instaurou essa manifestação concreta, visual,
na caracterização, na configuração, na construção de cada personagem e, a
partir dali, aquele elemento concreto, físico, tratava da síntese de uma
mediação entre o ator e o diretor. Lógico que esse material ia sendo
ressignificado, mas ele nunca deixou de existir, desde o primeiro momento.
Isso para mim foi muito significativo, inclusive no meu entendimento do ator,
ou do processo de atuação enquanto filosofia.
O processo iniciado pelo diretor Gabriel Vilela nos instiga a curiosidade por partir
de uma dramaturgia da “cara pintada” como matriz da criação não apenas das
personagens, mas de todo o espetáculo desenvolvido com o Clowns de Shakespeare. A
partir dos relatos de César, compreendemos que a criação de toda a tessitura do referido
espetáculo se deu de maneira isocrônica, semelhante ao modo referido por Ferracini
(2011, s/p), em que no “[...] tecido (formado pela ação ativa do tecer das linhas-cênicas)
descarta-se qualquer centro hierárquico, ou seja, [...] Todo o conjunto de linhas agrupadas
enquanto opção são igualmente importantes para a ação do tecer, ou do fazer o tecido
dramatúrgico”.
52
Com forte teor político e filosófico, sem abrir mão da ludicidade, da subversão e da comicidade, Guerra,
Formigas e Palhaços conta a saga de dois militares, últimos remanescentes de um batalhão de combate,
que se encontram perdidos em uma guerra à espera de reforços. Porém, quando todas as saídas parecem se
fechar, um fato inusitado acontece: o batalhão de dois homens finalmente se depara, estupefato, diante
daquele que pode carregar o último fio de esperança: um palhaço. O texto é de César Ferrario, os atores são
Rogério Ferraz (que também dirige o espetáculo), Ênio Cavalcante e Pedro Queiroga ou Thiago ou Caio
Padilha. A produção é do Grupo Estação de Teatro. (Cf. www.grupoestacaodeteatro.com.br).
160
[...] Eu tive três personagens no Ricardo III: O Clarence, que era um dos
irmãos mais velhos do Ricardo III – e, por isso, morto por ele, por encontrar-
se na linha sucessória direta [...] como obstáculo à coroa que Ricardo tanto
almejava – [...]; fazia também um matador chamado Tyrrel Jararaca. Tyrrel no
original de Shakespeare e Jararaca talvez já advindo de uma inspiração de
Gabriel num cangaceiro; e fazia também a Rainha Mãe de Ricardo. Vou me
valer aqui do caso de Clarence, o irmão dele. Gabriel me viu um dia brincando
com um bonequinho lá, que tinha no Clowns, e pediu uma boneca dessas de
bebê, da qual arrancou a cabeça e botou na minha mão. O Clarence, portanto,
era um boneco ostentado pela minha mão. Como eu usava um bigode que era
usado nos outros personagens ele pôs um bigode no boneco, caracterizando um
duplo [através da imagem], e eu acho que essa é a chave de compreensão de
todo o resto. Eu dava voz a Clarence, enquanto de fora olhava o bonequinho
que eu empunhava com os dois dedos centrais da minha mão – o indicador e
seu vizinho, e as mãozinhas dele que ficavam pro polegar, e os dois últimos
dedos, inclusive o mindinho – e, enquanto eu operava a voz do personagem,
de fora eu promovia, analisava, entendia, via todos os seus movimentos. Eu
acho que essa é uma síntese de como lidar com os personagens na visão de
Gabriel Vilela, mesmo aqueles em que a gente veste por completo [...].
Figura 101: O actante César Ferrario vivendo Tyrrel Jararaca, em Sua Incelença, Ricardo III. Ao fundo,
desfocados, Dudu galvão, Marco França e Titina Medeiros, do mesmo elenco.
Fotografia: Thiago Coutinho (2010).
César nos relata também que a direção de Gabriel Villela era bastante vertical,
embora não desconsiderasse a liberdade poética do actante, desde que sua criação
dialogasse com a proposta que estava sendo construída. Ele esperava de seus actantes
uma entrega ao que estavam vivenciando similar à sua própria. Compreendendo os
161
meandros de sua criação que se pautam em uma “[...] música que ele imprime, que é uma
música, um bit, um pulso, de frequência alta”, como nos conta César, os actantes
compreendem sua proposta e passam a dialogar com sua criação de maneira mais ativa,
“[...] servindo-lhe também de elementos que eu acreditava harmonizar com o que ele
estava propondo para a linguagem do espetáculo”.
como esse tem para o nosso estudo e, por isso, o tratamos com o mérito que tanto a
linguagem teatral quanto a poética de criação merecem. Nele, a imagem pode ser
considerada em sua materialidade, tanto significante quanto sensível. César continua,
[...] cada processo é um processo e cada processo tem seus ditames -, mas eu
gosto de dividir, ainda que teoricamente o espetáculo em dois estágios: o
primeiro diz do recolhimento, da coleta – aquela que você vai ler o texto, que
você vai buscar imagens, que você vai pra rua atrás de informação, que você
vai conversar com pessoas, que você vai ler, que você vai assistir filmes, então
essa diz de uma fase, na minha concepção, aberta. [...] e uma segunda parte em
que você parte para o arremate do processo, ou da construção propriamente
dita, entende? Então pra mim essa fisicalidade, essa materialidade do
personagem, essa imagem material, dado o processo que Gabriel nos apresenta,
acredito que precisa existir desde um primeiro momento. Eu acho que essa
história de você pegar a construção de um personagem pelo sentimento, pela
temperatura interna, por um reviver de experiências e memória é, em algum
aspecto (respeito muitos as escolhas alheias, mas no meu caso é) um pouco
arriscado. A materialidade da personagem pra mim, ainda que num primeiro
instante, ou desde um primeiro instante (entendendo que ela pode ir se
transformando ao longo do processo) é fundamental como um chão, como algo
que eu posso ver, me apoiar, relembrar e repetir e reativar aquela estrutura a
cada dia, sem riscos da volatilidade, da fugacidade, a que outros sentimentos
mais subjetivos podem nos levar.
Nesse fluxo, Roubine (1985, p. 64) afirma que “Desde a aurora do século XX,
várias teorias estéticas contribuíram para a utilização dos recursos de representação facial
numa perspectiva não psicológica”. A construção pautada na ideia do rosto da
personagem como um elemento narrativo ganha força. No entanto, a construção da
materialidade da personagem, como um dos elementos iniciais da encenação, não
significa um engessamento de uma composição plástica. É, como bem foi ressaltado pelo
actante em vários momentos, mais um elemento significante que, junto aos demais
elementos que compõem a tessitura dramaturgia da encenação, conduzirão a narrativa.
[...] Já trabalhei com profissionais como Gabriel [Villela], que essa maquiagem
é parte fundante do personagem e já trabalhei com outros diretores que não
utilizaram maquiagem alguma, por exemplo. [...] eu diria que para mim a
maquiagem é a máscara. Ela pode ser vista da mesma forma pra mim como a
máscara teatral. A Commedia Dell’arte em seu sentido mais extremado nos
aponta esse caminho. Para todas as outras experiências ou utilizações que eu
já passei, senão de forma tão contundente e demarcada como a Commedia
Dell’arte, de formas mais tênue, mas pra mim o princípio é bem próximo.
aplicações cosméticas sobre a pele), César também nos fala que sua importância “[...] vai
depender da linguagem, da montagem, do diretor, das escolhas... e eu não acho que deva
ser uma regra fechada dizer que pintar a cara ressignifica a interpretação”.
Figura 102: O actante César Ferrario vivendo a Rainha Mãe (Duquesa de York), em Sua Incelença,
Ricardo III. Foto: Thiago Coutinho (2010).
Apesar de percebermos que ao falar aos actantes sobre a “cara pintada” os mesmos
reduziam o significado do termo a pintura literal do rosto, ou seja, a maquiagem,
resolvemos não intervir em suas respostas com a finalidade de explicar melhor o que
compreendemos como esse fenômeno para que os relatos permanecessem mais fiéis às
164
suas vivências, não sendo modificados pela sugestão de nossa compreensão acerca do
objeto de estudo.
Na última questão que lhe fizemos, César reafirma a conjunção criativa de todos
os elementos que compõem a tessitura da cena, citando mais um exemplo de como sua
“cara pintada” foi sendo lapidada a partir dos estímulos que emergiam da criação como
um todo
No caso do Ricardo III, sim. Foi tudo criado junto. O exemplo maior que eu
lhe dou é que meu personagem, num determinado instante do espetáculo,
assume a figura do Freddie Mercury e eu uso um bigode característico, que
esse bigode foi pra a Rainha Mãe e foi também para o Clarence, como eu disse
[...] E o Freddie Mercury entra porque achou-se interessante, num determinado
momento do espetáculo, a música Bohemia Rhapsody do Queen, que também
é inglês, então, nesse caso, a música que pauta o Freddie Mercury, que pauta o
meu bigode, que pauta o boneco do Clarence, por exemplo. Então é pra mostrar
como no Ricardo III essas coisas são imbricadas, são relacionadas. [...] pra
ser bem suscinto e objetivo a maquiagem – como a música, como a cenografia,
como o texto – pra mim, é um elemento narrativo. É um elemento que tá lá na
composição da narrativa, ou seja, na contação daquela determinada história.
Sim, claro que eu acho que era possível. Quantos “Ricardos terceiros” não já
foram feitos por visões distintas? Eu sou uma pessoa que acredita muito na
sobrescrita. [...] Então eu tenho certeza que se o texto fosse Ricardo III, o
diretor fosse Gabriel [Villela], mas um outro ator fizesse os meus personagens
[...] principalmente se participasse desde o seu processo de construção, que
seria um pouco diferente.
O argumento utilizado por César é muito claro. Cada elemento que fosse
modificado no jogo poderia alterar parcialmente, ou, como cremos, totalmente seus
resultados. Cada elemento que o atravessou durante essa construção o guiou para a
construção poética de seus personagens. Cada elemento que fosse modificado nas suas
vivências durante essa construção traria novos resultados, ainda que similares, que
também proporcionariam para o público um encontro diferente. Um encontro com uma
“cara pintada” por outras “cores”.
165
CONCLUSÃO
Não há como não partir dessa premissa que o professor Sávio Araújo nos
apresenta como uma das chaves mais relevantes dos estudos teatrais do século XXI: “[...]
produções [acadêmicas] que também dialoguem com outros aspectos da
representação teatral” – eis o ovo da serpente. Estudar a maquiagem em nova chave é
o principal resultado dessa pesquisa.
Com isso, não estamos aqui nos aferindo nenhuma condição de superioridade ou
de vaidade; aqui reconhecemos com humildade a dimensão paradigmática que se dá na
pesquisa acadêmica e, sobretudo, em sua condição coletiva, por isso mesmo democrática,
necessária, didática, eficaz, ética.
166
Um dos pontos cruciais para uma melhor delimitação do Objeto de nossa pesquisa
foi revisitar o trabalho que vinha sendo desenvolvido por outros pesquisadores da área,
nos últimos dez anos, a fim de compreender seus pontos de convergência e divergência
e, desta forma, ter uma visão mais ampliada do Corpus da pesquisa. Esse processo nos
permitiu a observação do fenômeno de “pintar a cara” como parte constitutiva dos estudos
acerca da caracterização, ainda que este afluísse apenas como um subtexto presente nas
entrelinhas da semiótica discursiva de cada pesquisa.
53
Alsthom-Bull-Belfort apud RYNGAERT, 1998, p. 49 (conforme referido anteriormente).
167
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SZONDI, Peter. A crise do drama. In: SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950].
Tradução de Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 23-99.
ANEXOS
176
ANEXO I
“TRAVESSIAS”
Questões
1) Como poderíamos nos referir ao seu trabalho artístico? Nos dê uma breve biografia
artística sua.
Meu trabalho em mágica, ao longo de dez anos, tem influência do estilo de mágica de palco e rua,
uma mescla. Há também elementos da mágica de mentalismo, da magia clássica de palco
(manipulação) e do escapismo. Minha poética atual mescla elementos da performance (tanto na
maneira e atuar quanto de compor a ação), trabalho com work in process, estado de performance,
pesquisa de material.
3) Como você descreveria o personagem que você compôs e realizou nesse espetáculo?
Não há um personagem, mas uma atitude, então a atuação sofre alguns desdobramentos
dependendo do nível de interação da plateia e da organização do ambiente da ação.
Meu treinamento-processo parte de exercícios técnicos, pesquisa referencial (por vídeos, livros,
ou assistindo ao vivo outros artistas) e experimentação com público.
No ato em questão eu utilizo um figurino mais neutro, que não desloque o olhar do público para
o que estou realizando. Trabalho com materiais reais, ou seja, sem preparação especial (vidros
de garrafas, tecido de algodão, moedas, fita adesiva)
177
6) No seu processo criativo enquanto ator(atriz) você passa a dar importância à imagem
material do personagem em que fase da montagem teatral?
A imagem é um dos primeiros elementos que dou importância, sua construção vem ganhando
modificações no decorrer do processo.
Normalmente utilizo poucos recursos de maquiagem, uso mais para reforçar um olhar, uma
presença, uma atitude.
8) Você considera haver diferença, para a interpretação da sua personagem, entre pintar
ou não pintar a cara para entrar e cena?
No ato em questão necessito vendar meus olhos, isso modifica a imagem que o público tem do
que estou realizando, aparentando maior dificuldade, é extremamente necessário usar os
elementos que uso para vendar o rosto, na quantidade e exagero do que uso também.
9) A maquiagem (ou a forma material do rosto da personagem) foi criada em conjunto com
os demais elementos da cena (texto, preparação, direção, composição, cenografia,
sonoplastia, música, figurino, cenário, adereços etc.)? Por quê?
Sim, mas foi criada pensando na ideia de uma maneira de bloquear completamente a visão, de
modo que qualquer outra pessoa no meu lugar perderia total referência de espacialidade se cobrir
o rosto da mesma maneira.
11) Que significados você atribui à maquiagem, que ajudam no entendimento e na aceitação
da sua personagem pela plateia?
12) É possível que se sua personagem tivesse outra maquiagem, que não a que você usou, o
espetáculo tivesse outro entendimento, outra aceitação? Por quê?
Sim. Já imaginei realizar somente a caminhada sobre os vidros, sem uso de venda, mas com o
corpo todo pintado, uma imagem próxima a do brâmane indiano, do faquir. Ainda pretendo
experimentar com o público.
178
ANEXO II
“SAUDADES Z(É)”
Questões
1) Como poderíamos nos referir ao seu trabalho artístico? Nos dê uma breve biografia
artística sua.
Tenho dito que sou um ator-brincante,
Essa minha fala inicial marca o registro das minhas descobertas no mundo do fazer teatral –
brinquei nos circos tradicionais que passaram pelo interior do Estado, mais precisamente na
comunidade do Sítio de Santa Cruz, Vera Cruz/RN. Ator de rua, construtor em minha
comunidade de espaços não formais do fazer artístico.
Quando adentro a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2011), conheço o Grupo de
Capoeira da professora Lara Machado, início o meu processo de trabalho de ator, mas é no
Arkhétypos Grupo de Teatro, que dou o ponta pé na laboração biográfica do Tião ator. No
Arkhétypos; faço parte de dois espetáculos, quais sejam: “Revoada” – com participação efetiva
(desde do processo dos laboratórios de criação até as apresentações em si) e do “Éter” – com
participação no processo de construção, mas não fiz as apresentações.
Depois de uma temporada com o Arkhétypos, seguir com a apresentação do meu Espetáculo
(“Saudades Z (é))”, resultado da prática do meu Mestrado em Artes Cênicas pela UFRN. No
ano de 2018 fiz uma breve participação na Cia. Pérola de Teatro com o espetáculo “Pérola”.
Atualmente, sigo na tentativa de marujar com o “Saudades Z (é)” mundo afora.
Realizando uma análise qualitativa da minha participação no referido espetáculo, percebo que o
“Saudades Z (é)” contribui para a minha formação integral; depois de apresentar o “Zé”; tenho
realizado uma anamnese – e essa compreendida não só como o fato de recordar os fatos de
minha vida (já que o espetáculo atravessa as minhas memórias), mas de pontos que colocam em
xeque a minha existência, é uma análise na tentativa do autoconhecimento, de “verdades”
intrínsecas.
Por outro lado, desprendo-me do romantismo do Tião atravessado; vejo que participar do “Zé” é
um desafio além do trabalho de ator, pois exige pensar o todo – desde a sua concepção,
produção, perpassando a atuação, a análise e a autogestão, ou seja, a minha participação no
“Saudades Z (é) ” é parte de um todo, para que ele se fazer presente!
3) Como você descreveria o personagem Mateus de Zé de Moura que você compôs e
realizou nesse espetáculo?
Carinhosamente, tenho chamado ele de “Zé”,
“Zé” é uma figura intrigante, por ora ele é um ser engraçado, bobo, cortês e maestro da boa
companhia, por vezes ele usa de sua seriedade, esperteza e não faz questão de fazer as honras da
casa.
“Zé” é uma figura alta, magra, retilínea e negra.
“Zé” é um transeunte, malandro, brincante, bebum, criança, homem, mulher, bicho, animalesco,
empregado (de si, do outro – do capitão, da mulher ou dele mesmo).
“Zé” representa o terceiro lado da moeda, é a antiestrutura da sociedade; ele está à margem da
margem entre as probabilidades exatas de /cara ou coroa/
“Zé” sou eu, é você, é Mateus, é Catirina, é o Boi, é o festejo, é o fogo que faz a roda do terreiro
girar!
“Zé” é tanto Zés do Brasil e do mundo afora. Ele é um presente em minha vida artística. Ele é o
avesso do avesso do meu corpo – somos um – vivemos esse trânsito!
4) Como foi o processo de composição dessa personagem?
Criei o “Zé” nas entranhas das memórias da minha infância. Acredito ser necessário pontuar a
partida dessa relação; desde de muito cedo (ainda quando criança), minha mãe me contava
histórias de Reis, mas não são desses Reis que moram em castelos, que tem uma filha princesa e
que estão à espera de um príncipe. Ela me contava histórias de Bois de Reis – precisamente do
Boi de Mestre Jovelino e do brincante Zé de Moura, a partir de narrativas de minha mãe fui me
apaixonando pela brincadeira e comecei a assistir as rodas de Boi.
O tempo passou e o menino Tião cresceu e chegou a uma cidade grande, chamada
Universidade. Nela, ele conheceu o professor Makarios Maia e juntos foram construindo as
fitas, as fibras e a couraça desse Boi, ora homem ora bicho!
Os laboratórios de composição dessa persona se deram inicialmente no componente curricular
de Estudos Culturais do Teatro – momento ímpar de minha formação enquanto professor de
Teatro – passou pela sala 07 (Sala que pertencia ao GPT) e ganhou as ruas da nossa cidade
Natal.
A composição atravessa o tempo de minha formação cidadã, tenho aprendido muito com essa
personagem – que mata e morre – ele transita esses espaços de fricção.
5) Que relevância tem os aspectos materiais (figurino, adereços, cabelo e maquiagem) na
realização dessa personagem?
Quando falamos nos elementos constituintes da encenação, devemos pensar primeiro o quão
estes são fundamentais para a construção de uma narrativa. Em “Saudades Z(é)”, quando
falamos em figurino estamos falando da ‘roupagem’ que reveste a alma da brincadeira – ele
detecta é teatro, foge daquilo que é visto/vestido no cotidiano, extrapola o cunho social e ganha
180
a cena, nesse sentido, o figurino em “Zé” faz parte da laboração da arquitetura da cena, ele
ocupa o lugar de representação, é teatro, é se (trans)formar a partir de uma indumentária e vestir
a alma da brincadeira. São elementos que compõe esse figurino: 1. A capa do Boi, 2. O paletó,
3. A camisa e calça customizada e 4. Os sapatos.
No que concerne aos adereços, temos o ‘macaca’ – instrumento que podemos descrevê-lo como
um bastão de madeira com uma corda amarrada em sua ponta em umas extremidades segurando
uma bola de meia – este instrumento tem representa o chicote do boiadeiro, que tange o boi no
curral, na capoeira.
Ainda sobre este tópico, teríamos o ‘matulão’ – instrumento confeccionado por um pedaço de
colchão e com diversos chocalhos pendurados – este adereço representa a chegança das figuras
animalescas na brincadeira (como o próprio Boi), além de simbolicamente representar o gado, o
mundo sertanejo, o ciclo do gado marcado por ferro; demarcando este animal e pelos sinos que
anunciavam por onde andavam os gados que fugiam dos cercados.
E por último, o ‘chapéu de couro’, que o próprio nome já diz muito sobre este elemento, couro,
couraça, caça. Nesse aspecto, os adereços em “Zé” compõem a estrutura de paramentos (vistos
não apenas como um adorno), mas como signos que comunicam e se reestruturam dentro da
linguagem da cena do referido espetáculo.
Ao que se refere ao cabelo, este não tamanha relevância, não atrapalha e não contribui de forma
tão significativa para a composição da personagem; claro que me preocupo em não cortar o
cabelo com stylos mais modernos (como moicano, degradê, com listinhas e outros; por uma
questão de estética do homem sertanejo – que geralmente quando vai a barbearia, pedem para
cortar no estilo padrão – baixinho; por uma questão de economia, pois o cabelo vai demorar a
crescer e/ou dividido; da esquerda para direita ou vice-versa).
Sobre o último ponto aqui expressado, quando penso na maquiagem do Zé, aqui tenho um dos
principais elementos da composição desta personagem.
Boi, boi, boi
Boi da cara preta 54
Pega esta criança que tem medo de careta.
54
Disponível em: https://www.letras.mus.br/cantigas-populares/983984/ (Acesso em 16/02/19).
181
A relevância aqui da maquiagem parte aos estudos sobre o mascaramento teatral, em uma
tentativa de manter três pontos que considero relevante, quais sejam: a tradição teatral popular, a
expressividade através do rosto/máscara/pele e do rito de passagem.
Sobre o primeiro ponto; quando o Mestre Jovelino permitiu que eu adentrasse o terreiro de sua
casa para ver os brincantes “se arrumar”, vi na primeira observação sem intenção alguma
homens comuns embebecidos com cana, brincando um com outro, abraçando, “tirando onda”,
sarro do dia a dia, exauridos de um dia de trabalho no roçado. Com o passar do tempo;
começaram a se vestir do brinquedo (os galantes, muito bem vestidos; com fitas multicolores. O
Mestre como senhor do brinquedo, elegante dos pés a cabeça, uma capa de fitas, pequenos
espelhos redondos pregados em sua camisa tom de pastel, seus espelhos reluziam aos meus
olhos e ainda olhava para a sua calça azul e sapatos pretos. Os mascarados /Mateus e Birico/
estavam à margem, no final do terreiro, gargalhavam ascendendo o fogo da lamparina, raspando
o carvão e começavam o ritual, pintando a cara.
Ao realizar o ritual, disserto sobre o segundo ponto, a expressividade dos rosto pintado, olhava e
tive a certeza: não são as mesmas pessoas – eles se transfiguravam, acessavam estados corporais
que os olhos nunca tinham visto e dali rompiam o muro da casa do Mestre Jovelino e ganhavam
as casas dos vizinhos, transitavam entre um lugar e o outros – ao escrever, recrio em meu corpo,
memórias dos meus amigos gritando: “lá vem o bicho da cara preta”, lá vem o Boi” – eu estava
extasiado, parado por fora e pulsando por dentro perante tudo que vi.
Tudo isso, contribui de forma muito significativa e relevante para a construção da minha
personagem e faz parte do terceiro ponto acima exposto (o rito de passagem), quando eu pinto a
minha cara com carvão, eu tenho certeza que não sou mais eu, transformo-me e me coloco em
estado de poesia, de trânsito, transgressão e vivo a brincadeira de ser outros em meu corpo.
Diante o que do que foi escrito, referendo a importância da maquiagem, de pintar a cara como
um elemento fundamental para a composição do “Zé”.
6) No seu processo criativo enquanto ator(atriz) você passa a dar importância à imagem
material do personagem em que fase da montagem teatral?
Entendendo que a composição ela é processual, fui construindo aos poucos a visualidade do
personagem, mas a fase em que este material ficou laborado se deu quando o processo criativo
já tinha finalizado, já tinha passado por uma limpeza das cenas.
Nesse ponto, acho importante frisar que a pessoa que construiu o figurino e adereços não
acompanhou o processo de montagem e isso dificultou o tempo de algumas cenas, como por
exemplo, o jogo multiuso da capa, que ora é a pele do Boi ora é o vestido de Catirina (a mulher
de Mateus dentro da brincadeira – aquela de deseja comer a língua do Boi).
A partir do exposto, apresento a minha preocupação com a homogeneidade dos elementos
cênicos e dos técnicos que compõem a parte visual da encenação – encenar é um ato coletivo, é
uma costura que precisa de bons alfaiates – tanto na técnica quanto na organicidade daquilo que
está sendo laborado.
7) De que maneira você utiliza a maquiagem como elemento de composição da
personagem?
A maquiagem é parte integrante da composição; no caso específico da construção do “Zé” já
existe uma maquiagem que faz parte da brincadeira de Boi de Reis (que é a maquiagem feita a
partir do pó do carvão); dessa forma, decidir manter a tradição em respeito aos “velhos” e bons
brincantes de Reis.
8) Você considera haver diferença, para a interpretação da sua personagem, entre pintar
ou não pintar a cara para entrar e cena?
Acredito que já tenha respondido esta questão anteriormente; mas gostaria de reforçar a
importância, dizer que preciso literalmente pintar a cara para entrar em cena. A maquiagem da
cara pintada é parte integrante da preparação que antecede a cena – sem ela, eu não sou o
182
Mateus de Zé de Moura, preciso pintar a cara para transmutar-se em brinquedo, para cair no
estado de brincadeira. Pintar a cara faz parte do meu ritual de ator-brincante.
9) A maquiagem (ou a forma material do rosto da personagem) foi criada em conjunto
com os demais elementos da cena (texto, preparação, direção, composição, cenografia,
sonoplastia, música, figurino, cenário, adereços etc.)? Por quê?
Compreendo a dimensão da questão; mas como já foi dito, decidi seguir o que a tradição dos
brincantes de Boi geralmente fazem – que é pintar a cara com o pó do carvão (pelo menos, os
mais antigos na brincadeira, visto que na contemporaneidade alguns brincantes tem usado tinta
guache para a maquiagem, de antemão, percebo que não é o mesmo ritual, não traz a
construção/expressividade/rosto/pele/transição de um ser para o outro).
Sendo mais direto na questão; não, não foi construído em conjunto, visto que já tinha decidido
manter o ritual de passagem que aprendi com os meus ancestres.
10) Como é para você o uso da maquiagem em cena, na realização da personagem?
Pensando a partir da palavra “usar”, vislumbro que o uso da maquiagem em “Saudades Z(é)” é
indispensável para a construção da personagem. Ela é o mascaramento no sentido de permitir ao
outro ser outros, certa vez conversando com um dos filhos do brincante Zé de Moura, ele me
disse assim: “Sebastião, quando eu pinto a cara, não sou mais eu. Aprendi isso com papai. No
dia que tinha brincadeira de Reis no terreiro, papai começava a se preparar cedo. Lembro
como se fosse hoje; ele tinha o seu ritual, as suas ações sabe?!. Ele pegava o seu espelho –
aqueles laranjas, sabe?! Ia lá pra trás do terreiro e pindurava em um prego que estava na
dispensa do fogão de lenha. Papai, se olhava, tirava a barba e me chamava dizendo: “Tota,
coloca as minha coisas num saco, depois prende no bagageiro da bicicleta que daqui a pouco
eu vou sair”. Ele fazia sempre o mesmo ritual para pintar a cara”, ou seja, pintar a cara faz
parte da identidade do brincante, permite a ele o lugar da liberdade, o lugar de se presentificar
perante as outras pessoas, a viver um mundo duplo, uma suspensão do tempo real; nesse
contexto, a maquiagem é um elemento integrador e transformador do sujeito que brinca e que
faz a cena.
11) Que significados você atribui à maquiagem, que ajudam no entendimento e na
aceitação da sua personagem pela plateia?
Acredito que o primeiro entendimento é fazer com que o ator possa mostrar para o público que
ali não é ele. O ator anuncia a partir da cara pintada e de outros elementos cênicos que a
liberdade poética resguarda, abriga e dá sentido ao feitio artístico da construção da personagem
que se apresenta perante a plateia – isso não quer dizer que um ator sem maquiagem não possa
dá esse sentido representativo/construtivo do fazer teatral; mas, ao vermos um ator sem este
elemento, muito às vezes a convicção, as convenções de algumas estéticas teatrais necessitam
desse elemento, como por exemplo, na brincadeira do Boi de Reis, o Mateus – personagem
estruturante do brinquedo tem marca registrada como aquele que pinta a cara de preto! É uma
convenção! Faz parte da construção desse personagem.
12) É possível que se sua personagem tivesse outra maquiagem, que não a que você usou, o
espetáculo tivesse outro entendimento, outra aceitação? Por quê?
Como um homem da tradição, arraigado, ‘crente’, convicto e brincante desse brinquedo popular,
acredito que não teria e não faria sentido outra maquiagem para este personagem. O “Zé” é um
homem, um Boi da cara preta, da cara pintada!
183
ANEXO III
“JACY”
1) Como poderíamos nos referir ao seu trabalho artístico? Nos dê uma breve biografia
artística sua.
Bom, eu acho que posso dizer que eu sou ator, dramaturgo, encenador e produtor cultural, né.
Mais pra gestor cultural por conta da Casa da Ribeira, né – a criação do espaço –, do que mesmo
produtor executivo. Em 2019 estou fazendo 30 anos de carreira começada como ator e sou
formado em Comunicação Social, com mestrado em Ciências Sociais, mas desde antes da
universidade eu já trabalhava com Teatro.
Trabalhei nos grupos Ahazragiva, Beira, Atores à Deriva e Carmim (em todos estes participei da
fundação). Também trabalhei com os Clowns de Shakespeare por 8 anos.
2) Como você analisa a sua participação no espetáculo Jacy?
Em Jacy, o ponto de partida da peça foi um achado – que fui eu que achei –, uma frasqueira no
lixo junto com um desejo que eu tinha e Quitéria também de a gente trabalhar juntos em cena,
atuando. E a gente começou a pesquisa até antes do encontro da frasqueira, querendo falar sobre
o nosso envelhecimento. Enfim, e aí as coisas casaram, eu passei... eu queria então atuar e me
propus a fazer a dramaturgia, e iria ter um diretor de fora, mas acabou que no processo a gente
não conseguiu esse diretor e decidimos a gente mesmo fazer e, eu acabei dirigindo. A peça, ela
foi marcante, eu acho – nesse processo, porque foi quando a gente encontrou o teatro
Documentário, que foi fruto de uma ida... duas idas minhas ao Santiago a Mil, que é um festival
que tem em Santiago, no Chile, em que eu me deparei com as peças da Lola Arias, que é uma
argentina que trabalha com Teatro Documentário, então isso foi definidor, assim, no processo. E
acho que o Jacy é um divisor de águas pro o Carmim, que é onde a gente entra no Teatro
Documentário e, a gente entra numa pesquisa mais aprofundada de Dramaturgia.
184
3) Como você descreveria o personagem que você compôs e realizou nesse espetáculo?
Na verdade, o personagem sou eu. Em Jacy – a gente se trata, inclusive pelos próprios nomes –
o que nós temos é uma diferença de narrativas. Tem uma narrativa que ela é mais depoimental,
mais próxima. O mais próximo da gente mesmo – e a grande dificuldade tá aí, né, em ser você
de forma artificial no palco – mas ela tem dispositivos que a gente cria na própria forma de falar
que a gente entendeu que dão esse tom mais depoimental um pouco mais próximo da plateia,
como uma conversa mesmo. E a gente tem tipos, que não chegam a ser personagens, mas são a
suposta representação de luiz, o irmão de Jacy; um velho que eu retrato como “um processo
inicial”, que aí sim a gente trabalhava com mimese, trabalhava com a coisa da observação e da
composição, né, e aí esse personagem que não tem nome, mas que é velho, ele tem ali uma
construção sim de corpo, de voz, enfim, de estado. Mas acho que o que a gente mais preza, né, é
a fluidez da narrativa... das narrativas diferentes.
4) Como foi o processo de composição dessa personagem?
Acho que respondi na anterior.
5) Que relevância tem os aspectos materiais (figurino, adereços, cabelo e maquiagem) na
realização dessa personagem?
Olha, o formato de teatro que a gente trabalha é um teatro onde o ator ele não busca a mimese
da personagem ou a criação de um corpo que é externo ou forjado para a cena. O corpo do ator
o corpo do suposto personagem, né. Obviamente quando a gente trabalha com auto ficção ou
com coisas mais numa linha do ficcional eu acredito – pra Quitéria talvez seja diferente – pra
mim é, a maquiagem ela não tem nenhuma importância; o figurino ele tem importância no
sentido de ser algo que dê forma e sentido à criação anterior – então não é ele que influencia, ele
vem como um complemento pra isso – tanto que muitas vezes a gente nega figurino, né,
dizendo assim “ah não, isso não dá certo, isso não funcional, tal”, porque a gente já tá muito
fortemente ligado , ou se apropriou de estar em cena, né. Obviamente que quando o figurino
chega ele é utilizado, potencializado para a cena, mas eu não diria que ele tem um papel
preponderante, fundamental não. O cenário já é diferente. O cenário eu já acho que ele
influencia muito, ele cria... enfim, ele tá nesse lugar do espaço, né, a espacialidade que a gente
cria gera o cenário e quando esse cenário chega esse cenário também modifica a espacialidade,
então eu acho mais definidor, assim como a luz.
6) No seu processo criativo enquanto ator(atriz) você passa a dar importância à imagem
material do personagem em que fase da montagem teatral?
Nos ensaios gerais. Já no último terço da montagem.
7) De que maneira você utiliza a maquiagem como elemento de composição da
personagem?
Não utilizo.
8) Você considera haver diferença, para a interpretação da sua personagem, entre pintar
ou não pintar a cara para entrar e cena?
Não.
9) A maquiagem (ou a forma material do rosto da personagem) foi criada em conjunto
com os demais elementos da cena (texto, preparação, direção, composição, cenografia,
sonoplastia, música, figurino, cenário, adereços etc.)? Por quê?
- Não respondeu.
10) Como é para você o uso da maquiagem em cena, na realização da personagem?
- Não respondeu.
185
ANEXO IV
“SUA INCELENÇA, RICARDO III”
1) Como poderíamos nos referir ao seu trabalho artístico? Nos dê uma breve biografia
artística sua.
Essa minha forma de responder – brincalhona, poética – diz da condição necessária para que eu
possa lhe falar com mais liberdade. Poderia lhe falar sério, sem preâmbulos, mas eu tenho
certeza que minha desenvoltura dentro do jogo, da brincadeira, não seria a mesma, então vou
começar por isso que não responde a sua pergunta ou as suas perguntas, mas inaugura este
canal, essa conversa. Existe o professor Eduardo Afonso (Posso lhe mandar esse texto depois)
que os brinda com mais uma pedra preciosa de nosso garimpo vernacular, ele diz que há dois
tipos de palavras: As proparoxítonas (Stéphane) e o resto (Stephâne). E ele ainda diz que sobre
qualquer ângulo as proparoxítonas têm mais crédito. É inequívoca a diferença entre o arruaceiro
e o vândalo; o inclinado e o íngreme; o irregular e o áspero; o grosso e o ríspido; o brejo e o
pântano; o quieto e o tímido. Vou mandar esse texto pra você depois, viu Stephane? E vou
começar a responder às suas perguntas.
Quando você pra nos referir a nosso próprio trabalho artístico e entregar também uma biografia
artística, eu acho que essa própria pergunta já careceria de uma dissertação. No entanto, me
arriscarei nas injustiças da brevidade, tá bom? Começarei a dizer sobre como eu poderia me
referir ao meu trabalho artístico: e nisso, eu lembro de uma passagem da análise do espetáculo,
de Patrice Pavis, onde ele diz que há várias tribos, legiões, povos africanos, eles tem uma única
palavra pra designar pulso, ritmo, dança, canto, porque pra eles, pra esses africanos, tudo diz (ou
tudo emana) de um mesmo centro pulsante. Eu gosto muito dessa definição unificada, pouco
abrangente e que abraça a todos pra se referir a música, ao pulso, ao ritmo e à dança como tendo
187
uma mesma raiz, um mesmo centro causal. Dito isso, eu lhe digo que me considero – se
referindo ao teatro – como um homem da cena. Eu acho que eu sou um homem da cena, é isso.
Daí as necessidades e as circunstancias acabam me colocando os desdobramentos possíveis: por
vezes sou dramaturgo, por vezes sou ator, por vezes também dirijo, mas eu gosto de acreditar
que todas essas coisas vem de um mesmo centro pulsante, pois no final das contas – sem
desmerecer as competências e as expertises necessárias ao cumprimentos de cada uma dessas
funções citadas – o que eu lhe digo é que eu sou um homem da cena.
Então nesse exercício injusto de resumir tudo, o que eu teria a lhe dizer é que eu caí nesse
espaço cênico por uma casualidade, né. Foi quando eu fazia o segundo grau e o professor de
literatura nos desafiou (desafiou a turma, no caso) à montagem de um espetáculo e, a partir
desse momento, o que eu tenho a lhe dizer é que eu experienciei uma realização de
arrebatamento, muito prontamente entendi o poder e as necessidades das narrativas teatrais, não
só para o mundo, mas para mim, para minha existência. E desde então não larguei mais. Durante
esse mesmo período funda-se o grupo do qual eu fiz parte durante quase toda a minha vida
profissional: Os Clowns de Shakespeare, também filhos desse professor de literatura que nos
desafiou nesse mesmo instante, nesse mesmo momento. É aí que o grupo nasce.
Atravessei a minha jornada artística durante 24, quase 25 anos com Os Clowns de Shakespeare
e no início do ano passado, em uma conversa muito franca, honesta, amigável, vim a concluir –
junto com todos – que não estava mais no coletivo. Os motivos maiores dizem de uma série de
outros trabalhos em todas essas vertentes que eu já havia lhe dito (como ator, como dramaturgo
e como diretor) que começavam a se colocar na minha frente e o entendimento que surgia a hora
de me provar diante de outros desafios. Seria esse o resumo que eu teria a lhe dizer da minha
vida profissional. Daí então, seguir em mar aberto, disposto a construir novas oportunidades ao
final de cada trabalho concluído.
2) Como você analisa a sua participação no espetáculo Sua Incelença, Ricardo III?
O espetaculo Ricardo III marca o encontro do grupo Clowns de Shakespeare com o encenador
Gabriel Vilela. Gabriel Vilela dispensa comentários, é uma pessoa que faz parte dos anais do
teatro brasileiro, principalmente na sua história mais recente. E Gabriel trouxe pra mim – que
até então colhi toda a minha formação dentro do Clowns –, trouxe pra mim, através dos seus
procedimentos e conduta na direção do espetáculo, ele trouxe pra mim um conjunto de
conhecimentos... diria mais, ele trouxe uma visão de mundo, uma forma de ver a arte que até
então eu não acessava e que pra mim foi absurdamente transformador. Gabriel Vilela é por
essência uma pessoa anárquica, toda construção dele, entenda, parte de uma força causal que é
ao mesmo tempo também muito desorganizadora. Isso se manifesta não só dentro dos processos
que ele rege, como também na própria visão instaurada e no discurso final que o espetáculo
geralmente articula, ou impunha, ou expressa, né. Por mais que ele nos cobra muito – no que diz
respeito a precisão, a métrica, a colocação, ao tempo das atuações; ele também, acredite-me é
muito caótico.
Gabriel mereceria, assim, uma análise extensa e à parte, principalmente no que me diz respeito,
Stephane, porque ele me ensinou muito. Por exemplo, foi durante o processo de montagem do
Ricardo III e das coisas que Gabriel nos dizia, ou mais ainda, as coisas que Gabriel fazia com
sua batuta de maestro na mão, que eu encontrei entendimento, inspiração e eu de pronto escrevi
todo o texto Guerra, Formigas e Palhaço, por exemplo, que nem tem uma relação direta com
Ricardo III, mas não deixa de ser fruto desse encontro.
Porém, pra direcionar e ser mais objetivo a partir das necessidades ou da busca da sua pesquisa,
eu lhe digo que o mais contundente, o mais interessante pra mim e dado o contexto que eu
encontrei em Gabriel diz de uma percepção construída, física da personagem. Ele entende que o
ator está um palmo atrás da personagem e de fora dela, de maneira consciente, ele a articula.
Tudo... todo o processo narrativo, segundo Gabriel Vilela, ou pelo menos da forma como ele
trabalhou com a gente, se estabelece a partir de uma pele, de uma derme, né. A partir do
entendimento dessa derme, dessa pele, dessa máscara, dessa caracterização é que o ator começa
a entender e a manipular a persona cênica, ou personagem, né. Tanto que – lembro-me até hoje
188
– no primeiro dia de trabalho, ele sem saber bem pra onde ia, nem como seria o desenrolar do
processo, ele nos vestiu e nos maquiou todos, e disse: A partir daqui a gente começa a nossa
montagem. E claro, no instante em que as coisas iam caminhando ele ia ressignificando,
mudando figurinos, mudando maquiagem, mas desde o primeiro dia de trabalho, quando
chegamos na sala de ensaio, ele já instaurou essa manifestação concreta, visual, na
caracterização, na configuração, na construção de cada personagem e, a partir dali, aquele
elemento concreto, físico, tratava da síntese de uma mediação entre o ator e o diretor. E lógico
que esse material ia sendo ressignificado, mas ele nunca deixou de existir, desde o primeiro
momento. Isso para mim foi muito significativo, inclusive no meu entendimento do ator, ou do
processo de atuação enquanto filosofia.
3) Como você descreveria o personagem que você compôs e realizou nesse espetáculo?
Embora eu acho que já antecipei um pouco dessa resposta da terceira pergunta que você faz na
questão anterior, eu aproveito então pra exemplificar ou verticalizar. Eu tive três personagens no
Ricardo III: O Clarence, que era um dos irmãos mais velhos do Ricardo e, por isso, morto por
ele, por encontrar-se na linha sucessória direta e, por isso, se colocasse como obstáculo à coroa
que Ricardo tanto almejava, né, então eu fazia esse irmão dele, Clarence; fazia também um
matador chamado Tirreon Jararaca. Tirreon no original de Shakespeare e Jararaca talvez já uma
inspiração de Gabriel num cangaceiro; e fazia também a Rainha Mãe de Ricardo. Vou me valer
aqui do caso de Clarence, o irmão dele.
Gabriel me viu um dia brincando com um bonequinho lá, que tinha no Clowns, e pediu uma
boneca dessas de bebê e arrancou a cabeça e botou na minha mão. O Clarence era um boneco
ostentado pela minha mão. Como eu usava um bigode que era usado nos outros personagens ele
pôs um bigode no boneco, caracterizando um duplo, e eu acho que essa é a chave de
compreensão de todo o resto. Eu dava voz a Clarence, enquanto de fora olhava o bonequinho
que eu empunhava com os dois dedos centrais da minha mão – o indicador e seu vizinho – e as
mãozinhas dele que ficava pro polegar, e os dois últimos dedos, inclusive o mindinho. E
enquanto eu operava a voz do personagem, de fora eu promovia, analisava, entendia, via todos
os seus movimentos. Eu acho que essa é uma síntese de como lidar com os personagens na
visão de Gabriel Vilela, mesmo aqueles em que a gente veste por completo o personagem. Eu
acho que essa é uma boa chave de entendimento, pra o que e comecei a falar na questão
anterior, no que diz respeito da capa, da plasticidade do personagem e da consciência do ator em
manipulá-la.
4) Como foi o processo de composição dessa personagem?
Gabriel não deixa de ser também um diretor muito vertical, isso é importante a gente dizer. Ele
tem muitos demônios – e anjos também – dentro dele. Ele é uma pessoa que num processo
criativo – embora ele não tenha dito, eu tenho certeza –, ele tem dificuldade de dormir. Aquilo
povoa ele 24h por dia e por vezes na cena ele, no ensaio, no processo, ele era muito tomado por
esse sentimento criativo que se manifestava com muita violência nele a ponto – e isso ficou
muito claro) de ser difícil, às vezes, de ele gerenciar. Apesar de as vezes ele ter a mão um pouco
violenta, a mim era muito claro, era uma pessoa que mais precisava e carecia de ajuda, no que
diz respeito a cumplicidade de todo o corpus cênico que trabalhava com ele, do que
obrigatoriamente um desejo de prejudicar alguém, muito pelo contrário. Então, Stephane, o que
acontecia: quando ele começava a criar, no início, até entender o processo – talvez nos dois, três
primeiros dias – você inevitavelmente se coloca com certa passividade diante da música que ele
imprime, que é uma música, um bit, um pulso, de frequência alta. Mas ao longo do processo eu
fui entendendo como eu poderia dialogar com o diretor e prontamente fui servindo-lhe também
de elementos que eu acreditava harmonizar com o que ele estava propondo para a linguagem do
espetaculo. Por exemplo, eu tenho um dos personagens que é a duquesa de York, a mãe de
Ricardo – como eu disse na resposta anterior, chama duquesa de York – que eu entendendo a
proposta dele e vendo a metragem do tecido que tinha eu disse “Gabriel, vamos fazer em cima
do banco”. Isso deu à figura um aspecto longilíneo, talvez aquela figura tivesse ali dois metros e
meio de altura, porque dizia o tamanho do meu corpo em cima do tamborete, então a estrutura
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ficava oculta por um longo vestido que ia do pescoço até o chão. Então a mesma coisa se deu
com Tyrrel Jararaca quando eu propus óculos, quando eu propus um andar, quando eu propus
um prazer no ato de matar, mas tudo diz respeito de uma pronta resposta com os
esclarecimentos que a linguagem ia tendo a partir do processo. Na medida em que ele
explicitava a linguagem, ia deixando claro pra gente, ele hora nenhuma também refutava o
espaço criativo do ator. Contanto, claro que se tivesse dentro de uma harmonia com o todo que
ele propunha.
5) Que relevância tem os aspectos materiais (figurino, adereços, cabelo e maquiagem) na
realização dessa personagem?
Então, eu acho que nos próprios relatos anteriores isso já fica claro, como no Ricardo III isso
são coisas indissociáveis, né, o figurino, os adereços, o cabelo na composição da personagem.
Para além dos exemplos dados, eu aproveito então para dar mais um: Tyrrel Jararaca (que era o
matador) tinha um colete que era feito a partir da sela de um cavalo que ficava no peitoral e
duas perneias de vaqueiro que vinham até a bacia, e essa estrutura, quando eu acabei de vestir
que eu tentei andar com essa estrutura – que literalmente é uma armadura – isso me limitava
completamente as articulações da espinha e dos joelhos. Isso me dava um andar muito
especifico que prontamente eu aproveitei para o personagem. Então acho que essa é literalmente
um exemplo de como a fisicalidade do personagem, ou como a composição do personagem
surge a partir do seu “exoesqueleto” – no caso, a caracterização que ele nos oferecia. E era
impressionante, porque eu não sabia oferecer a fisicalidade do “Tyrrel” se eu não estivesse com
o figurino. Eu só conseguia imprimir o jeito do personagem andar, subir no palco, fazer suas
matanças, subir na carroça, se eu estivesse vestido com o figurino. E esse figurino me oferecesse
os seus limitadores. Só assim o personagem poderia ser observado.
6) No seu processo criativo enquanto ator(atriz) você passa a dar importância à imagem
material do personagem em que fase da montagem teatral?
Então, se dentro de uma relação hipotética – cada processo é um processo e cada processo tem
seus ditames -, mas eu gosto de dividir, ainda que teoricamente o espetáculo em dois estágios: o
primeiro diz do recolhimento, da coleta – aquela que você vai ler o texto, que você vai buscar
imagens, que você vai pra rua atrás de informação, que você vai conversar com pessoas, que
você vai ler, que você vai assistir filmes, então essa diz de uma fase, na minha concepção,
aberta. É uma fase que você não pode se provocar instantes conclusivos. É uma parte que seu
Norte precisa ter liberdade de variações, entende Stephane? – e uma segunda parte em que você
parte para o arremate do processo, ou da construção propriamente dita, entende. Então pra mim
essa fisicalidade, essa materialidade do personagem, essa imagem material, dado o processo que
Gabriel nos apresenta, tomando-o como exemplo, eu acredito que precisa existir desde um
primeiro momento. Eu acho que essa história de você pegar a construção de um personagem
pelo sentimento, pela temperatura interna, por um reviver de experiencias e memoria, eu acho
que isso é em algum aspecto (respeito muitos as escolhas alheias, mas no meu caso é) um pouco
arriscado. A materialidade da personagem pra mim, ainda que num primeiro instante, ou desde
um primeiro instante (entendendo que ela pode ir se transformando ao longo do processo) é
fundamental como um chão, como algo que eu posso ver, me apoiar, relembrar e repetir e
reativar aquela estrutura a cada dia, sem riscos da volatilidade, da fugacidade, né, a que outros
sentimentos mais subjetivos podem nos levar.
7) De que maneira você utiliza a maquiagem como elemento de composição da
personagem?
Essa pergunta, para mim é um pouco difícil de responder, porque cada trabalho é um trabalho.
Já trabalhei com muitos diretores e é difícil você encontrar uma única resposta pra essa questão.
Eu diria que nem tem como, porque cada trabalho é um trabalho distinto. Já trabalhei com
profissionais como Gabriel, que essa maquiagem é parte fundante do personagem e já trabalhei
com outros diretores que não utilizaram maquiagem alguma, por exemplo.
Mas se você perguntasse “de que maneira você utiliza”, né, porque aí eu vou me valer das
recorrências e das experiências, de como você vê, eu diria que para mim a maquiagem é a
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máscara. Ela pode ser vista da mesma forma pra mim como a máscara teatral. A Commedia
Dell’arte em seu sentido mais extremado nos aponta esse caminho. Para todas as outras
experiências ou utilizações que eu já passei, se não de forma tão contundente e demarcada como
a Commedia Dell’arte, de formas mais tênue, mas pra mim o princípio é bem próximo.
8) Você considera haver diferença, para a interpretação da sua personagem, entre pintar
ou não pintar a cara para entrar e cena?
Eu acho que se eu for responder de forma generalista eu diria que sim, há diferença, né. A “cara
pintada”, você fala “pintar a cara”, né. Ela já nos induz ou nos remete a uma determinada
estética teatral, embora sejam várias. Agora de forma precisa eu não teria como responder essa
pergunta porque depende. Depende da situação, depende da linguagem, do diretor... veja, eu
poderia estar fazendo – como personagem – um ator que vai pra uma brincadeira popular, está
saindo de casa e está pintando seu rosto. Então ele teoricamente ele estaria de rosto pintado, mas
aquilo não interferiria na sua interpretação, pelo menos até ele chegar no brinquedo, entende?
Dando um exemplo bem radical aqui e simplista, até, pra você entender. Mas eu acho que no
fundo, no fundo, Stephane, vai depender da linguagem, da montagem, do diretor, das escolhas...
e eu não acho que deva ser uma regra fechada dizer que pintar a cara ressignifica a
interpretação. Eu acho que aí tem outras variáveis que podem confirmar ou negar a questão que
a pergunta levanta.
9) A maquiagem (ou a forma material do rosto da personagem) foi criada em conjunto
com os demais elementos da cena (texto, preparação, direção, composição, cenografia,
sonoplastia, música, figurino, cenário, adereços etc.)? Por quê?
No caso do Ricardo III, sim. Foi tudo criado junto. O exemplo maior que eu lhe dou é que meu
personagem num determinado instante do espetáculo assume a figura do Freddie Mercury e eu
uso um bigode característico, que esse bigode foi pra a Rainha e foi também para o Clarence,
como eu disse na primeira questão. E o Freddie Mercury entra porque achou-se interessante,
num determinado momento do espetáculo, a música Bohemia Rhapsody do Queen, que também
é inglês, então nesse caso a música que pauta o Freddie Mercury, que pauta o meu bigode, que
pauta o boneco do Clarence, por exemplo. Então é pra mostrar como no Ricardo III essas coisas
são imbricadas, são relacionadas.
10) Como é para você o uso da maquiagem em cena, na realização da personagem?
Sei que cabe uma série de outras análises, mas pra ser bem suscinto e objetivo a maquiagem –
como a música, como a cenografia, como o texto – pra mim é um elemento narrativo. É um
elemento que tá lá na composição da narrativa, ou seja, na contação daquela determinada
história. É a forma primeira que eu consigo ver a maquiagem.
11) Que significados você atribui à maquiagem, que ajudam no entendimento e na
aceitação da sua personagem pela plateia?
Eu acho que eu praticamente repetiria o que eu coloquei na questão anterior. Eu acho que é
entendimento e aceitação são dois termos que não abraçam por completo a personagem na
narrativa. Às vezes eu não entendo, mas eu admiro. Às vezes eu não entendo, mas eu me
abismo. Às vezes eu não entendo, mas eu me apaixono, num é. E a aceitação da mesma forma.
Às vezes eu não aceito e diz justamente dessa não aceitação, dessa minha discordância a
percepção da personagem na trama. Então entende como entendimento e aceitação pra mim não
são palavras que abraçam? Pra mim, colaborar no desenho final da narrativa, como eu já tinha
antecipado na questão anterior é a sua função mais contundente – em se tratando da maquiagem,
volto a dizer.
12) É possível que se sua personagem tivesse outra maquiagem, que não a que você usou, o
espetáculo tivesse outro entendimento, outra aceitação? Por quê?
Sim, claro que eu acho que era possível. Quantos Ricardo’s III’s não já foram feitos por visões
distintas, eu sou uma pessoa que acredita muito na sobrescrita. O autor estabelece uma escrita, o
diretor tem seu espaço de escrita, o ator tem seu espaço de escrita e não obrigatoriamente esses
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espaços de escrita se negam ou precisam alterar a sua premissa – no caso, texto escrito, se foi
assim que o espetáculo teve seu início, no caso do Ricardo foi – para poder se colocar... eu não
acredito que o diretor precisa mudar o texto pra imprimir a sua linguagem. Não, eu acredito que
cada instancia dessa deixa espaço suficiente para que possam ser ocupados de formas distintas
pelos outros partícipes da encenação, entende?
Então eu tenho certeza que se o texto fosse Ricardo III, o diretor fosse Gabriel, mas um outro
ator fizesse os meus personagens, eu tenho certeza – principalmente se participasse desde o seu
processo de construção - ... eu tenho certeza que seria um pouco diferente, entende? Então eu
acho que teria várias outras formas possíveis de o espetaculo ser desenvolvido, entendido e,
também, ser aceito pela plateia.